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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INCRIVEL MUNDO DO HIPNOTISMO
O INCRIVEL MUNDO DO HIPNOTISMO

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Molly Moon olhou para suas pernas cor-de-rosa e cheias de manchas. Não era a água da banheira que estava fazendo com que elas ficassem pintalgadas com cara de carne moída, elas eram sempre dessa cor. E tão magra! Talvez um dia, como um pato feio se transformando em cisne, suas pernas tortas, com os joelhos juntos demais, pudessem se transformar nas pernas mais lindas do mundo. Doce esperança.

Molly se reclinou para trás até os cabelos castanhos encaracolados e os ouvidos ficarem debaixo d’água. Olhou para a tira de luz fluorescente acima, e para a tinta cheia de cocô de moscas que estava descascando da parede, e o trecho úmido no teto, onde cresciam cogumelos estranhos. A água encheu seus ouvidos e os sons do mundo ficaram distantes.

Fechou os olhos. Era um início de noite comum de novembro, e ela estava num banheiro desenxabido num prédio prestes a desmoronar, chamado Lar Vidadura. Imaginou-se voando como um pássaro, olhando para o telhado de ardósia cinza e o jardim cheio de ervas daninhas. Imaginou-se voando ainda mais alto, até estar olhando para a colina onde ficava o vilarejo de Vidadura. Subiu mais e mais até o Lar Vidadura ficar minúsculo. Podia ver toda a cidade de Briersville mais além. Enquanto subia cada vez mais alto, Molly viu o resto do país, e agora o também litoral, com o mar de todos os lados. Sua mente disparou como um foguete até ela estar voando no espaço, olhando para a terra. E ficou lá, pairando. Molly gostava de voar para longe do mundo em sua imaginação. Era relaxante. E com freqüência, quando estava assim, sentia-se diferente.

 

 

 

 

Nessa noite estava com aquele sentimento especial, como se alguma coisa empolgante ou estranha estivesse para lhe acontecer. Na última vez em que tinha se sentido especial, havia achado um pacote de doces pela metade, na calçada do vilarejo. Na vez anterior, tinha conseguido assistir à televisão durante duas horas à noite, em vez de uma. Molly imaginou que surpresa haveria dessa vez. Depois abriu os olhos e estava de volta à banheira. Olhou para seu reflexo distorcido na base da torneira cromada. Minha nossa. Certamente ela não era tão feia assim, era? Aquele naco de massa cor-de-rosa era seu rosto? Aquela batata era o seu nariz? Aquelas luzes verdes e pequeninas eram seus olhos?

Alguém estava martelando lá embaixo. Estranho, ninguém nunca consertava nada ali. Então Molly percebeu que as marteladas eram alguém batendo na porta do banheiro. Encrenca. Levantou-se rapidamente e bateu a cabeça na torneira. As pancadas do lado de fora eram muito altas, e com elas veio um rosnado feroz.

— Molly Moon, quer abrir essa porta agora mesmo! Se não abrir, vou ser forçada a usar a chave mestra.

Molly pôde ouvir as chaves chacoalhando num chaveiro. Olhou para o nível da água na banheira e ofegou. Tinha água demais, muito acima do nível permitido. Pulou, puxando o tampão ao mesmo tempo, e estendeu a mão para a toalha. Bem na hora. A porta se abriu. A Srta. Viborípedes tinha entrado, e disparou como uma víbora em direção à banheira, franzindo o nariz escamoso quando descobriu a água funda, esvaindo. Enrolou a manga de tecido enrugado e recolocou o tampão.

—    Como eu suspeitava — sibilou ela. — Violação intencional das regras do orfanato.

Os olhos da Srta. Viborípedes brilharam malignos enquanto ela pegava a trena no bolso. Puxou a tira de metal e, fazendo ruídos empolgados ao chupar a dentadura frouxa, mediu até onde a água do banho de Molly tinha ido acima da linha vermelha pintada na parte de dentro da banheira. Os dentes de Molly batiam, tremendo. Agora seus joelhos estavam ficando azuis e manchados. Apesar de um vento gélido que entrava por uma fenda na janela, as palmas de suas mãos começaram a suar, como sempre acontecia quando ela estava empolgada ou nervosa.

A Srta. Viborípedes balançou a trena, enxugou-a na blusa de Molly e em seguida fechou-a com um estalo. Molly se preparou para encarar a solteirona magricela, que, com o cabelo curto e grisalho e o rosto peludo, mais parecia um senhor do que uma senhorita.

—    A água do seu banho está com trinta centímetros de profundidade — anunciou a Srta. Viborípedes. — Considerando a quantidade que fraudulentamente já havia escorrido pelo ralo enquanto eu estava batendo na porta, calculo que a água de seu banho estava com quarenta centímetros de profundidade. Você sabe que a água do banho deve ter apenas dez centímetros de profundidade. A sua estava quatro vezes mais funda. De fato, você gastou os seus três próximos banhos. Assim, Molly, você está proibida de tomar banho nas próximas três semanas. Como punição... — A Srta. Viborípedes pegou a escova de dentes de Molly. O coração de Molly encolheu. Ela sabia o que estava para vir: a punição predileta da Srta. Viborípedes.

A Srta. Viborípedes encarou Molly furiosa, com os olhos opacos e pretos. Seu rosto balançou de um modo monstruoso enquanto a língua deslocava a dentadura e a movia pela boca antes de recolocá-la no lugar certo da gengiva. Ela estendeu a escova de dentes para Molly.

— Esta semana você será monitora do banheiro. Quero o banheiro impecável, Molly, e esta é a escova que você vai usar. E não pense que vai se livrar, usando a escova do vaso sanitário, porque eu vou estar vigiando.

A Srta. Viborípedes deu uma última chupada satisfeita na dentadura e saiu do banheiro. Molly se deixou cair sentada na borda da banheira. Então aquela coisa que ela havia sentido que iria acontecer esta noite era simplesmente encrenca. Olhou para a velha escova de dentes, esperando que seu amigo Rocky deixasse que ela usasse a dele.

Enquanto puxava um fio solto de sua toalha cinza, meio careca de tão velha, imaginou como seria se enrolar numa toalha nova e fofa como as dos anúncios de TV

“A maciez é quem diz:

Todo mundo está feliz,

Toalhas macias como pluma:

Sabão Nuvem de Espu-u-u-uma!”

Molly adorava comerciais. Eles mostravam como a vida poderia ser confortável, levando-a de seu mundo para o deles. Muitos anúncios eram idiotas, mas Molly tinha seus prediletos, e esses não eram. Eram cheios dos seus amigos — amigos que sempre ficavam felizes em ver Molly quando ela os visitava na mente.

“Enrole-se no prazer sem culpa alguma:

Sabão Nuvem de Espu-u-u-uma!”

Foi arrancada do devaneio na toalha quando o sino da reunião noturna tocou. Encolheu-se. Estava atrasada, como sempre. Sempre atrasada, para sempre encrencada. As outras crianças chamavam Molly de “Zona de Perigo”, ou “Periga”, porque era desajeitada, sem coordenação e tendia a provocar acidentes. Seus outros apelidos eram “Zunza”, porque as pessoas diziam que a voz de Molly as deixava com vontade de cair no sono, e “Olho-de-vampiro”, porque seus olhos eram verde-escuros e muito juntos. Só Rocky, seu melhor amigo, e alguns dos órfãos menores, a chamavam de Molly.

—    Molly! Molly!

Do outro lado do corredor, que agora estava se enchendo com o barulho dos pés de crianças que corriam para o andar de baixo, Molly viu o rosto castanho-escuro de Rocky, emoldurado por caracóis pretos, pedindo para ela se apressar. Molly pegou a escova de dentes e correu até o quarto que dividia com duas garotas chamadas Hazel e Cynthia. Enquanto atravessava o corredor, dois garotos mais velhos, Roger Pikuinhas e Gordon Furúnklus, trombaram com ela e a empurraram de lado.

—    Sai da frente, Periga!

—    Cai fora, Zunza.

— Depressa, Molly! — disse Rocky, que estava enfiando os pés nos chinelos. — A gente não pode se atrasar de novo! Viborípedes vai ter um ataque... E aí, olha só, ela pode se sufocar com a dentadura. — Rocky deu um sorriso encorajador enquanto Molly procurava seu pijama. Rocky sempre sabia animá-la. Ele a conhecia bem. E foi assim.

Tanto Molly quanto Rocky tinham chegado ao Lar Vidadura há dez verões. Um bebê branco e um bebê negro.

Molly foi encontrada pela Srta. Viborípedes numa caixa de papelão na porta, e Rocky foi encontrado num estacionamento atrás da delegacia de polícia de Briersville. Achado, porque foi ouvido berrando a plenos pulmões.

A Srta. Viborípedes não gostava de bebês. Para ela, eles eram criaturas barulhentas, fedorentas, nojentas, e a idéia de trocar uma fralda a enchia de nojo. Assim a Sra. Brinklebury, uma tímida viúva da cidade, que tinha ajudado antes com bebês do orfanato, fora empregada para cuidar de Molly e Rocky. E como a Sra. Brinklebury dava os nomes das crianças a partir das roupas ou das coisas em que elas tinham sido trazidas — como Moisés Vimes, que tinha sido achado num cesto de vime, como Moisés; ou Roberta Cetin, que tinha chegado vestida com um robe de cetim — Molly e Rocky também receberam nomes exóticos.

O sobrenome de Molly, Moon, tinha vindo de “Caramelos Moon”, que estava impresso em rosa e verde nas laterais da caixa. Quando a Sra. Brinklebury achou uma embalagem de maria-mole na caixa, pensou em chamar o bebê de Maria, mas achou que ficaria comum demais. Acabou optando por Molly Moon.

O nome de Rocky veio diretamente de seu carrinho vermelho. Na capota dobrável estava escrito “Roqueiro Escarlate”. Rocky tinha um jeito sólido, como uma rocha, e era muito calmo. Essa calma vinha de uma qualidade sonhadora que ele possuía — mas era diferente da de Molly. Molly sonhava acordada para escapar, enquanto o jeito sonhador de Rocky era uma espécie de avaliação, como se ele estivesse sempre pensando no mundo estranho que via ao redor. Mesmo quando era bebê, ele podia ser encontrado todo feliz em sua cama, pensando e cantarolando sozinho. Sua voz funda e rouca, junto com a boa aparência, fizeram a Sra. Brinklebury dizer que um dia ele seria um astro do rock, cantando músicas de amor para as mulheres. Assim, Rocky Scarlate, o nome que ela lhe deu, acabou servindo muito bem.

A Sra. Brinklebury não era muito inteligente, mas seu coração doce compensava a natureza simples. E foi uma grande sorte ela ter sido babá de Molly e Rocky porque, se fossem cuidados apenas pela Srta. Viborípedes, talvez crescessem pensando que o mundo inteiro era mau, e também tivessem ficado maus. Em vez disso, eram balançados no gordo joelho da Sra. Brinklebury, e caíam no sono com ela cantando. Com ela aprenderam a gentileza. Ela fazia com que os dois rissem e enxugava seus olhos quando choravam. E à noite, se perguntassem por que tinham sido abandonados, ela contava que eles eram órfãos por que um cuco malvado tinha derrubado os dois dos seus ninhos. Depois ela cantava uma misteriosa canção de ninar. Era assim.

“Perdoem o cuco marrom

Que empurrou vocês dos seus ninhos.

Foi o que mamãe cuco ensinou:

O bom é expulsar passarinhos.”

Se Molly ou Rocky ficavam chateados com seus pais por tê-los abandonado — mesmo não sabendo quem eles eram — a canção da Sra. Brinklebury fazia com que os dois se sentissem melhor.

Mas a Sra. Brinklebury não morava mais no orfanato. Assim que Molly e Rocky pararam de usar fraldas, ela foi mandada embora. Agora só voltava uma vez por semana para ajudar na faxina e na lavagem de roupa. Molly e Rocky queriam que chegassem mais bebês abandonados, para que a Sra. Brinklebury pudesse voltar, mas nenhum chegava. Chegavam crianças pequenas, mas andando e falando, e para economizar dinheiro a Srta. Viborípedes usava Molly e Rocky como babás. Agora Ruby, a criança mais nova do orfanato, estava com cinco anos, e tinha parado de usar fralda há séculos, mesmo durante a noite.

A noite estava chegando.

A distância Molly ouviu o barulho abafado do relógio de cuco tocando as seis horas nos aposentos da Srta. Viborípedes.

—    Nós estamos atrasados de verdade — disse ela, arrancando seu roupão de um gancho na porta.

—    Ela vai ter um chilique — concordou Rocky, enquanto os dois passavam correndo pela porta. Dispararam rapidamente pela pista de obstáculos que era o caminho até o andar de baixo; uma jornada que tinham feito milhares de vezes. Num canto, deslizaram no piso de linóleo encerado e foram pulando escada abaixo. Em silêncio e sem fôlego, foram na ponta dos pés pelo chão de pedras que formavam um desenho xadrez no corredor, passaram pela sala de TV e chegaram à sala de reuniões, forrada com lambris de carvalho. Entraram furtivamente.

Nove crianças, quatro delas com menos de sete anos, estavam enfileiradas ao longo das paredes. Molly e Rocky se juntaram no final de uma das filas, perto de duas crianças amigáveis, de cinco anos, Ruby e Jinx, esperando que a Srta. Viborípedes ainda não tivesse chegado ao nome deles no livro de presença. Molly olhou para alguns dos rostos pouco amistosos, do outro lado. Hazel Marretta, a pior garota do orfanato, estreitou os olhos para Molly. Gordon Furúnklus fez um gesto de cortar a garganta com uma faca imaginária.

—    Ruby Able? — leu a Srta. Viborípedes.

—    Presente, Srta. Viborípedes — piou a minúscula Ruby ao lado de Molly.

—    Jinx Eames?

Ruby cutucou Jinx nas costelas.

—    Presente, Srta. Viborípedes — respondeu ele.

—    Gordon Furúnklus?

—    Aqui, Srta. Viborípedes — disse Gordon, fazendo careta para Molly.

—    Hazel Marretta?

—    Aqui, Srta. Viborípedes.

Molly ficou aliviada. Seu nome era o próximo.

—    Gerry Oakly?

—    Aqui, Srta. Viborípedes — disse Gerry, de sete anos, enfiando a mão no bolso onde podia sentir seu camundongo de estimação tentando escapar.

—    Roger Pikuinhas?

—    Aqui, Srta. Viborípedes — disse o garoto alto e magro que estava parado ao lado de Gordon, olhando Molly maliciosamente.

—    Cynthia Redmon?

—    Aqui, Srta. Viborípedes — disse Cynthia, piscando para Hazel.

Molly imaginou quando seu nome seria chamado.

—    Craig Redmon?

—    Aqui, Srta. Viborípedes — grunhiu o irmão gêmeo de Cynthia. A Srta. Viborípedes parecia ter-se esquecido de Molly. Ela ficou aliviada.

—    Gemma Patel?

—    Aqui, Srta. Viborípedes.

—    Rocky Scarlate?

—    Aqui — disse Rocky, com a voz chiando. A Srta. Viborípedes fechou livro de presença.

—    Como sempre, Molly Moon não está.

—    Eu estou aqui, agora, Srta. Viborípedes. — Molly mal podia acreditar. A Srta. Viborípedes devia ter lido o nome dela primeiro, para intencionalmente marcar sua ausência.

—    Agora não conta — disse a Srta. Viborípedes, com os lábios se retorcendo. — Esta noite você ficará de serviço lavando os pratos. Edna vai ficar feliz em ter a noite de folga.

Molly fechou os olhos com força, cheia de arrependimento. A idéia de que alguma coisa especial poderia acontecer com ela esta noite estava desaparecendo depressa. Obviamente esta noite seria como tantas outras, cheia de encrenca.

As orações da noite começaram, como sempre. Era quando cantavam um hino e rezavam. Normalmente a voz de Rocky estrondeava acima da de todo mundo, mas hoje ele cantou baixo, tentando prender o fôlego. Molly esperava que ele não fosse ter um inverno ruim, com ataques de asma e o peito chiando. E então a noite prosseguiu, como sempre acontecia nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano.

Depois da última oração de bênçãos, o gongo do jantar soou, e a pesada porta da sala de jantar se abriu. As garotas e garotos passaram por ela arrastando os pés, esta noite recebidos por um cheiro nojento de peixe velho. Eles já tinham visto peixe em caixotes de plástico no beco do lado de fora da cozinha, cheio de moscas e besouros, fedendo como se estivesse lá há uma semana. E todo mundo sabia que Edna, a cozinheira do orfanato, teria preparado o peixe num molho de queijo e nozes comprado pronto, grosso e gorduroso, para disfarçar o gosto de podre, um truque que ela havia aprendido na marinha.

Ali estava Edna, grande e musculosa, com os cabelos grisalhos encaracolados e o nariz achatado, pronta para se certificar de que todas as crianças comeriam tudo. Com uma tatuagem de marinheiro na coxa (se bem que isso fosse apenas um boato), e sua linguagem terrível, Edna parecia um pirata rabugento. O mau humor ficava como um dragão adormecido dentro dela, um humor feroz e violento se fosse acordado.

Todas as crianças estavam nervosas e enjoadas de pé na fila, inventando desculpas enquanto Edna jogava em seus pratos os bocados pegajosos e fedorentos.

—    Eu sou alérgica a peixe, Edna.

—    Deixe de nojeira — foi a resposta carrancuda de Edna enquanto ela enxugava o nariz na manga do casaco.

—    Isso é uma nojeira mesmo — sussurrou Molly para Rocky, olhando para o peixe.

A noite comum estava quase terminada. A última coisa que restava antes de ir para a cama era o castigo de Molly: lavar a louça. Como sempre, Rocky se ofereceu para ajudar.

—    A gente pode inventar uma música sobre lavar pratos. Além disso, lá em cima eu só vou ter o Gordon e o Roger tentando pegar no meu pé.

—    Eles têm ciúme de você. Por que você não vai lá e acaba com eles de uma vez por todas? — perguntou Molly.

—    Não quero me incomodar com isso.

—    Mas você odeia lavar pratos.

—    E você também. Você vai terminar mais depressa se eu ajudar.

Assim, nessa noite tão comum, os dois foram para a cozinha no porão. Mas Molly estava certa. Uma coisa estranha iria acontecer, e já estava para acontecer.

Fazia frio no porão, com canos pingando no alto e frestas na parede, que deixavam entrar o ar frio com cheiro de mofo e camundongos.

Molly abriu a torneira, que espirrou uma água meio morna, enquanto Rocky ia pegar o detergente. Molly podia ouvir os rosnados de Edna no corredor, enquanto empurrava o carrinho com onze pratos com restos de peixe pela rampa em forma de túnel que ia dar na cozinha.

Molly cruzou os dedos, desejando que Edna simplesmente largasse o carrinho com a louça e fosse embora, mas o mais provável era que ela entrasse na cozinha e desse uma bronca. Isso era mais do estilo de Edna. Rocky chegou com o detergente. E espirrou um pouco na pia, fingindo que estava num de seus comerciais de TV prediletos.

—    Ah, mamma! — disse ele a Molly. — Porque suas mãos são tão macias?

Molly e Rocky costumavam representar os comerciais da televisão, e eram capazes fazer um monte deles, palavra por palavra. Fingir que eram atores de comerciais fazia os dois rirem.

—    Tão macias? — respondeu Molly de modo extravagante. — É porque uso este detergente, querido. As outras marcas são simplesmente mortais. Só Muitespuma é gentil com minhas mãos.

De repente a mão de dinossauro de Edna baixou sobre Molly, despedaçando o mundo de faz-de-conta dos dois. Molly se encolheu de lado, esperando uma torrente de insultos. Mas em vez disso uma voz de uma doçura doentia falou em seu ouvido:

—    Eu faço isso, queridinha. Agora saia e vá brincar. Queridinha? Molly achou que não tinha ouvido direito.

Edna jamais falava de modo gentil com ela. Normalmente Edna era simplesmente horrenda e medonha. Mas agora estava dando um sorriso estranho, de dentes quebrados.

—    Mas a Srta. Vibor...

—    Não se preocupe com isso — disse Edna. — Vá descansar... Vá assistir àquela bela porcaria de televisão ou fazer qualquer outra coisa.

Molly olhou para Rocky, que parecia tão confuso quanto ela. Os dois olharam para Edna. A mudança era espantosa. Tão espantosa como se tulipas estivessem crescendo no topo de sua cabeça.

E essa foi a primeira coisa estranha que aconteceu naquela semana.

 

Algumas vezes, quando o azar vem na sua direção, você acha que ele nunca vai terminar. Freqüentemente Molly Moon se sentia assim, o que não era de surpreender, já que vivia entrando em encrenca. Se ao menos soubesse que sua sorte estava para mudar, poderia ter desfrutado o dia seguinte, porque no final dele Molly iria achar que todo tipo de coisas maravilhosas iria acontecer. Mas naquela manhã, desde o momento em que abriu os olhos depois de um sono profundo no colchão cheio de calombos, seu dia começou a dar errado. Foi assim que aconteceu:

Ela levou um susto ao acordar, ouvindo um sino tocando alto no seu ouvido. A ossuda Hazel, protegida da Srta. Viborípedes, gostava de acordar Molly do modo mais violento possível. Hazel estava com o cabelo preto, que ia até a altura dos ombros, puxado para trás com uma faixa e já havia enfiado o corpo atlético em seu uniforme azul e justo da escola.

—    Hoje vai ser a corrida rústica da escola, Olho-de-vampiro, e aquele teste de ditado com cinqüenta palavras — anunciou. Depois foi andando, balançando o sino toda feliz, adorando ter arruinado a manhã de Molly.

Molly se vestiu rapidamente e foi para o quarto que Rocky dividia com Gordon. Gordon jogou um copo de papel sujo na direção dela, como boas-vindas. Rocky estava cantando sozinho, sem perceber nada em volta.

—    Rocky — disse Molly —, você se lembrou do teste de ditado de hoje?

Eles tentaram estudar durante o café da manhã, mas os cadernos de dever de casa foram confiscados pela Srta. Viborípedes. Depois a Srta. Viborípedes teve o grande prazer de ficar olhando Molly limpar o vaso sanitário com sua escova de dentes. Às oito e meia Molly estava se sentindo enjoada.

A manhã também não melhorou no caminho para a escola.

A Escola Briersville, outro prédio de pedra cinza, ficava a quinze minutos de caminhada descendo o morro do orfanato. Na rua, um dos garotos do vilarejo jogou uma bomba de água em cima de Hazel. Quando ela se desviou, a bomba de água acertou Molly, explodindo no impacto e deixando-a encharcada. Hazel e seus comparsas, os outros quatro garotos mais velhos do orfanato, acharam isso muito divertido.

Como resultado, a escola começou com Molly e Rocky perdendo a fila, na tentativa de secar o casaco e a saia de Molly no aquecedor do vestiário das meninas. Eles sabiam que chegariam tarde para a primeira aula, o que era uma coisa pouco sensata.

—    Atrasados! — a Sra. Assapa, professora de gramática, gritou quando eles entraram na sala. — E vocês perderam a fila. Vou dar seus castigos depois. Aaaa tchi iiimm! — A Sra. Assapa teve um pequeno ataque de espirros, o que sempre acontecia quando ficava agitada. Molly suspirou. Mais castigos.

Os castigos da Sra. Assapa eram imaginativos. E, claro, Molly os conhecia de primeira mão. Por exemplo, quando Molly foi apanhada mastigando papel pela décima vez, a Sra. Assapa mandou que ela se sentasse no canto da sala e comesse uma pilha de papel de computador. Molly demorou duas horas, e aquilo foi particularmente desagradável. É muito difícil fingir que massa de papel é um sanduíche com ketchup ou um biscoito — o gosto é sempre de papel.

Molly odiava a Sra. Assapa, e achava bom que ela tivesse uma aparência tão repulsiva — tinha rosto gorducho, e era meio careca, com uma barriga que parecia um balão de borracha cheio d’água. A aparência era perfeita para ela. Molly poderia ter sentido pena da Sra. Assapa por causa das suas entranhas barulhentas, gorgolejantes, por ser alérgica a tudo, e por viver espirrando. Mas mesmo assim a odiava.

Os ataques de espirro da Sra. Assapa geralmente eram úteis para colar, mas colar juntos na prova de ditado de hoje estava fora de questão, já que nem Rocky nem Molly sabiam as respostas. Eles se sentaram em duas carteiras comidas de cupim na primeira fila da sala.

Era um teste criado na Terra da Algaravia. A turma não somente precisava escrever as palavras, mas também precisava dar o significado. Molly e Rocky ficaram doidos, tentando descobrir as respostas.

Quando terminaram, a Sra. Assapa recolheu os testes e passou um exercício de compreensão de texto enquanto começava a corrigir. Começou com o de Molly. Alguns minutos depois a voz esganiçada e aguda da Sra. Assapa saltou estridente pela sala, seguida por uma sucessão de espirros altos. O estômago de Molly se apertou enquanto outra bronca começava. Suas forças começaram a se desmoronar. Afinal de contas, uma pessoa só agüenta apanhar até certo ponto. Vestiu sua melhor armadura contra broncas e se desligou. Tinha de fazer isso, para impedir que a língua cruel da Sra. Assapa a machucasse. Em sua mente flutuou para longe da sala até que a voz medonha da professora ficou minúscula e distante, como se viesse por telefone, e o estampado miudinho de sua saia de tecido elástico se transformou num borrão roxo-alaranjado.

—    Você errou NOTÓRIO também — soou a voz esganiçada. — Aaa tchhhh iiiimm,.. na verdade notório significa “famoso, mas no mau sentido”, e devo dizer que isso se encaixa direitinho em você, não é, Molly? Hein... Hein?... Hein?

Molly se sentou empertigada.

—    Molly Moon! Quer ouvir pelo menos uma vez, sua garota inútil!

—    Desculpe se desapontei a senhora, Sra. Assapa. Vou me esforçar mais da próxima vez.

A Sra. Assapa fungou, espirrou e se sentou, com as veias latejando de adrenalina.

Molly deu nota dez em pavor para a manhã. Mas à tarde aconteceu uma coisa muito pior, e não tinha nada a ver com os professores.

Depois do almoço, a turma de Molly trocou de roupa para a corrida rústica. Estava chovendo baldes, e os caminhos que subiam o morro, indo para longe da escola e entrando no mato, estavam lamacentos. Pingos de chuva escorriam pelas janelas do vestiário enquanto Molly procurava seu tênis perdido. Quando encontrou, e quando ela e Rocky saíram na chuva, os outros estavam muito na frente. Rocky queria alcançá-los, mas o terreno escorregadio tornava isso difícil. Depois de correr pelo mato enlameado, Molly precisou de uma pausa, e Rocky estava começando a chiar. Por isso sentaram-se num banco embaixo de uma árvore para descansar um pouco. Os tênis dos dois estavam encharcados, e as pernas estavam frias e molhadas, mas as capas de plástico faziam com que sentissem calor. Rocky tirou a dele e enrolou na cintura.

—    Venha — disse ele. — Vamos começar de novo, senão a gente fica muito para trás.

—    Porque a gente não volta simplesmente?

—    Molly — disse Rocky irritado —, você quer se encrencar? Você está maluca.

—    Não estou maluca, só não gosto de correr.

—    Ah, anda, Molly, vamos indo.

—    Não, eu só não... estou a fim.

Rocky inclinou a cabeça e olhou para ela interrogativamente. Tinha passado os últimos dez minutos ajudando-a a achar o tênis, e por causa disso também se atrasou, e agora Molly queria colocar os dois em mais encrenca ainda.

—    Molly — disse ele exasperado — se você não quer, provavelmente vão fazer a gente correr duas vezes. Por que não tenta?

—    Porque eu não sou boa nisso, e não quero. Rocky a encarou.

—    Você poderia ser boa em corrida, sabe, se tentasse. Se ficasse melhor em corrida, você iria gostar, mas você nem tenta. — Rocky olhou para as nuvens de chuva no alto. — É igual a um monte de coisa que a gente faz. Se você não é boa nas coisas, só desiste. E aí não é mais boa naquilo, e não tenta mais, e aí fica ainda pior naquilo e então...

—    Ah, cale a boca, Rocky. — Molly estava cansada, e a última coisa que queria era um sermão do seu melhor amigo. De fato, estava chocada em ver como Rocky se incomodava. Normalmente ele era muito tranqüilo e tolerante. Se alguma coisa o chateasse, ele simplesmente ignorava, ou se afastava.

—    E então — continuou Rocky — você arranja encrenca. — Ele respirou fundo, uma respiração cheia e chiada. — E sabe de uma coisa? Estou cheio de ver você entrar em encrenca. É como se você gostasse. É como se você quisesse que as pessoas gostassem cada vez menos de você.

O coração de Molly saltou espantado enquanto aquelas palavras inesperadas a acertavam. Rocky nunca a criticava. Ficou furiosa.

—    Você também não é muito popular, Rocky Scarlate.

—    Isso porque geralmente eu estou com você — disse Rocky, em um tom diferente.

—    Talvez seja porque ninguém gosta muito de você, também — reagiu Molly, ríspida. — Puxa, você não é perfeito. Você é muito sonhador, é como se vivesse num planeta diferente. Na verdade, se comunicar com você é como tentar falar com um alienígena. E você não é exatamente confiável. Algumas vezes eu tenho de esperar horas até você aparecer. Que nem ontem, eu tive de esperar horas perto dos armários da escola. E finalmente você veio andando como se estivesse na hora certa. E você faz tanto segredo, você é quase furtivo. Quero dizer, onde é que você estava ontem depois da escola? Ultimamente você vem desaparecendo o tempo todo. As pessoas podem achar que eu sou estranha, mas elas acham você tão estranho quanto eu. Você parece um estranho trovador andante.

—    Mesmo assim elas gostam mais de mim do que de você, e isso é certo — disse Rocky com sinceridade, virando-se.

—    O que você falou?

—    Eu falei — disse Rocky alto — que elas gostam mais de mim do que de você.

Molly ficou de pé, lançando para a Rocky o olhar mas maligno que conseguiu.

—    Eu vou indo — falou. — Agora eu sei que você se acha muito melhor do que eu. E sabe de uma coisa, Rocky? Pode ir correndo alcançar os outros. Vá ficar mais popular. Não deixe que eu fique segurando você.

—    Ah, não fique tão chateada. Eu só estava tentando ajudar. — Rocky franziu a testa. Mas Molly estava furiosa. Era como se alguma coisa tivesse se partido dentro dela de repente. Ela sabia que era menos popular que Rocky, mas não queria ouvir isso. Era verdade que todo mundo a maltratava, e ninguém maltratava Rocky. Ele era intocável, confiante, difícil de ser chateado e ficava feliz em sonhar acordado: Hazel e sua turma ficavam longe dele, e ele tinha muitos amigos na escola. Outras crianças queriam secretamente ser como ele. Agora Molly o odiou por tê-la traído. Encarou-o furiosa e ele encheu as bochechas para ela, como se dissesse, “Ah, você me deixa louco”.

—    O mesmo para você. E desse jeito você parece um baiacu estúpido. Talvez algum dos seus novos amigos ache isso interessante. — Enquanto se afastava batendo os pés, ela gritou: — Eu odeio este lugar, na verdade eu não consigo imaginar um lugar pior no mundo. Minha vida é simplesmente HORRÍVEL.

Molly saiu correndo pelo meio do mato. Não iria fazer a corrida rústica, nem voltaria para aquela escola abominável. Iria para o seu lugar especial, seu lugar secreto, e todos eles poderiam relinchar, gemer e gritar até ficarem azuis.

 

Molly corria pela floresta perto da escola, com o mato baixo, molhado e espinhento roçando nas pernas. Pegou uma vara e bateu nas plantas. A primeira samambaia peluda que atacou era a Srta. Viborípedes. ZZZIIIIP. A vara zumbiu no ar e cortou a cabeça dela.

—    Vaca velha! — murmurou Molly.

Uma trepadeira verde-escura era Edna. ZZZIIIIP.

—    Saco de imundície!

Chegou até a base de um velho teixo. Frutas vermelhas e venenosas apodreciam no chão em volta, e um enorme cogumelo amarelo crescia nojento no tronco.

—    Ah! Sra. Assapa!

ZAP! ZAP! Molly se sentiu um pouco melhor depois de ter cortado a Sra. Assapa em pedacinhos fedorentos.

—    Notória é você — falou baixinho.

Sentando-se num toco de árvore, Molly chutou uma urtiga e pensou no que Rocky tinha dito. A urtiga balançou de volta e pegou seu tornozelo. Enquanto achava uma folha de labaça e esfregava no ardido da urtiga, pensou que talvez Rocky estivesse certo — um pouco — mas continuou irritada. Afinal de contas, ela nunca dava broncas nele. Algumas vezes, se Rocky estivesse cantando uma das suas músicas, ela tinha de sacudi-lo para atrair a atenção. Mas não esperava que ele mudasse o jeito de ser. Molly achava que Rocky gostava dela exatamente como ela era, por isso foi um grande choque descobrir que ele desgostava ao menos de uma parte dela — e um choque ainda maior vê-lo ficar do lado dos outros. Imaginou com que freqüência ele tinha ficado ressentido com ela sem falar nada. Ultimamente Rocky vinha se afastando um bocado. Será que a estava evitando? A mente de Molly queimava. O que é que ele tinha dito mesmo? Que ela nunca tentava nada? Mas ela fazia os comerciais com ele brilhantemente. Isso ela tentava. Talvez devesse achar uma outra coisa na qual pudesse ser boa. Isso. Mostraria a ele. Por dentro, Molly era uma panela borbulhando de raiva e preocupação.

Foi caminhando pela floresta, sentindo muita pena de si mesma e respirando fundo para se acalmar. As árvores terminaram, e ela parou ao vento, na colina descoberta, olhando para a cidadezinha de Briersville. Ali estava a escola, e depois a rua alta, a prefeitura, os prédios públicos e as casas. Tudo brilhando por causa da chuva da tarde. Carros que pareciam do tamanho de porquinhos-da-índia seguiam pelas ruas serpenteantes. Molly desejou que um daqueles carros viesse pegá-la, levá-la para uma casa aconchegante. Pensou em como as outras crianças da escola eram sortudas; por pior que tivesse sido o dia, sempre tinham uma casa boa para onde voltar.

Desviou o pensamento para o cartaz gigante que ficava na entrada da cidade, mostrando um anúncio diferente a cada mês. Hoje a mensagem que brilhava na vida de todo mundo era “REFRESQUE SUA VIDA, BEBA QUBE”. A foto do cartaz enorme era de um homem na praia, de óculos escuros, tomando uma lata de Qube. A famosa lata de Qube mostrava suas tiras douradas e laranja, como se o Qube, e não o sol, iluminasse o mundo. Molly gostava de como a lata parecia quente, e no entanto tinha um refrigerante gelado lá dentro. Pessoas lindas na praia se juntavam em volta do homem que estava bebendo, como se o adorassem. Todas tinham maravilhosos dentes brancos, mas os dentes mais brancos eram os do sujeito que estava com a lata de Qube.

Ela adorava os anúncios de Qube. Sentia-se praticamente andando na praia branca, coberta de areia, onde se passava aquele, e achava que conhecia as pessoas que brincavam lá. Como desejava ser transportada para seu mundo fantástico! Sabia que eram atores, e que o cenário era inventado, mas também confiava em que o mundo deles existia. Um dia escaparia do sofrimento do Lar Vidadura e começaria uma vida nova. Uma vida realizada, como a das pessoas dos seus anúncios prediletos — mas seria real.

Molly havia tomado Qube uma vez, quando a Sra. Brinklebury trouxe algumas latas. Mas as latas tinham sido divididas, e ela só tomou alguns goles. Com aquele gosto de menta, de fruta, sem dúvida era uma bebida diferente.

Enquanto andava pela cidade, pensou em como seria fantástico se o simples ato de tomar uma lata de Qube pudesse tornar uma pessoa popular. Ela adoraria ser popular como as pessoas brilhantes daquele cartaz. Como desejava ser rica e linda! Mas era pobre, esquisita e impopular. Uma ninguém.

Depois de descer o morro, foi andando para a biblioteca da cidade.

Gostava muito da biblioteca antiga e desorganizada. Era pacífica, e seus grossos livros de fotografia davam a Molly lugares distantes com os quais sonhar. Tanto Rocky quanto Molly adoravam a biblioteca. A bibliotecária vivia ocupada lendo ou separando livros, e não os incomodava. De fato, era o único lugar onde Molly não estava sempre a ponto de levar uma bronca. E podia relaxar no seu local secreto.

Subiu os degraus de granito e passou pelos leões de pedra no topo, entrando no saguão. O cheiro doce da cera do assoalho imediatamente fez com que Molly se sentisse dez vezes mais calma. Limpou os pés e foi até o quadro de avisos, onde havia mensagens do mundo lá fora. Essa semana era alguém tentando vender uma cama d’água e outra pessoa tentando achar quem quisesse alguns gatinhos. Havia anúncios de cursos de ioga, aulas de tango, aulas de culinária e passeios guiados. O maior anúncio de todos era do Concurso de Talentos de Briersville na semana seguinte. Isso fez com que ela se lembrasse de Rocky, já que ele iria participar com uma das músicas que tinha composto. Molly queria que ele ganhasse, mas, lembrando-se de que ainda estava irritada com ele, parou de querer imediatamente.

Em silêncio, abriu a porta da biblioteca propriamente dita. A bibliotecária estava sentada atrás da sua mesa, lendo um livro. Ela ergueu os olhos para Molly e sorriu.

— Ah, olá — disse a mulher, com os olhos azuis e gentis brilhando atrás dos óculos. — Quando vi o seu casaco da escola do outro lado da porta, achei que fosse o seu amigo. Ele tem vindo um bocado aqui ultimamente. É bom ver você de novo.

Molly retribuiu o sorriso.

— Obrigada.

A amabilidade da bibliotecária fez com que ela se sentisse estranha. Molly não estava acostumada com a gentileza dos adultos. Sem jeito, deu as costas para o olhar da mulher e começou a ler os panfletos empilhados na frente da mesa de jornais, onde uma velha senhora com o cabelo tingido de cor-de-rosa preso com muito laquê estava lendo uma revista chamada Show de cães.

Então era para a biblioteca que Rocky andava indo secretamente. De novo Molly imaginou se era porque ele a estava evitando. Depois decidiu que não iria se preocupar mais, e começou a olhar pela biblioteca. Foi na direção das estantes, e no caminho pegou uma almofada numa cadeira.

Passou pelas grandes fileiras de livros, de A a C, de D a F. As prateleiras eram atulhadas de livros, algumas com duas camadas. Alguns livros, pensou Molly, não eram lidos há décadas. Passou pelos livros de G a I, depois pelos de J a L. Pelos de M a P, de Q a S.

De T a S e de X a Z

  1. O lugar predileto de Molly. A seção de X a Z ficava bem no final da biblioteca, onde a sala se estreitava e só havia espaço para uma estante pequena. Entre a estante e a parede havia um lugar aconchegante, aquecido por um tubo que passava debaixo do chão e iluminado por uma lâmpada separada. O tapete era menos gasto, já que quase ninguém ia até lá, porque não havia muitos autores ou muitos temas que começassem com X, Y ou Z. Ocasionalmente as pessoas chegavam àquele corredor procurando Zoologia, ou livros de algum autor cujo sobrenome começasse com Z. Mas não era muito freqüente. Molly tirou o casaco e se deitou, com a cabeça no Y e os pés nos Z, apoiando a cabeça na almofada. O chão estava quente, e o barulho distante e rítmico do aquecedor do prédio ajudou-a a começar a respirar calmamente, e logo ela estava deitada no chão e imaginando que flutuava no espaço de novo. Então apagou.

Um barulho a despertou. Tinha dormido durante aproximadamente meia hora. Um homem — um homem com sotaque americano — estava num mau humor terrível, e sua voz rouca ia ficando mais alta a cada segundo.

—    Não consigo acreditar nisso — gritava ele. — Puxa, isso é incrível. Eu fiz um trato com a senhora há alguns dias pelo telefone. Mandei o dinheiro para alugar o livro, depois vim de avião de Chicago, para pegar. Atravessei quase cinco mil quilômetros, e a senhora, enquanto isso... a senhora perde o livro. Puxa, que tipo de instituição mal administrada é essa?

Para Molly, essa era uma sensação muito estranha. Outra pessoa estava levando uma bronca. A voz de cambaxirra da bibliotecária piava de nervosismo.

—    Desculpe, professor Nockman, realmente não consigo imaginar o que pode ter acontecido com ele. Eu vi o livro com meus próprios olhos na semana passada. Só posso deduzir que foi levado por outra pessoa... apesar de ele sempre ter estado na seção restrita, de modo que não deveria... ah, minha nossa... deixe-me olhar nas fichas.

Molly se levantou para espiar entre as estantes e ver quem estava fazendo aquela confusão. Na mesa principal, a bibliotecária estava remexendo freneticamente numa caixa, olhando pasma para as fichas e implorando que uma delas explicasse para onde tinha ido o livro que faltava. Molly sabia como a bibliotecária estava se sentindo.

—    É de Logam, o senhor disse? — perguntou ela numa voz preocupada.

—    Logan — corrigiu a voz irritada. — E o título começa com “H”.

Molly se ajoelhou para espiar através de uma prateleira mais alta, para ver como era aquele homem. Lá estava a barriga dele, parecendo um barril, vestindo uma camisa havaiana com palmeiras e abacaxis. Molly subiu mais um nível. A camisa era de manga curta, e no braço peludo o homem usava um relógio de ouro que parecia caro. Suas mãos eram pequenas, gordas e peludas, e as unhas eram compridas de um modo nojento. Ele batucava na mesa com impaciência.

Molly subiu mais uma prateleira.

O nariz dele era virado para cima, e o rosto redondo, com queixo duplo. O cabelo preto e gorduroso começava na metade da cabeça e caía até os ombros. A barba era um triângulo pequeno, agudo, preto, logo embaixo do lábio inferior, e o bigode era curto e gorduroso. Os olhos dele eram saltados e o rosto queimado de sol. No todo, o sujeito parecia um leão-marinho muito feio, e, pensou Molly, muito diferente de como ela achava que um professor deveria ser.

—    E então? — perguntou ele com jeito beligerante. — Ainda não encontrou?

—    Hmm... ainda não, sinto muitíssimo, professor Nockman, parece que ele não foi emprestado. Ah, meu Deus. Ah, isso é muito embaraçoso. — As palavras da bibliotecária rolavam nervosamente para fora da boca. Ela começou a rabiscar sobre a mesa. — Professor Nockman, acho que por enquanto o senhor deveria pegar seu cheque de volta.

—    EU NÃO QUERO PEGAR MEU CHEQUE DE VOLTA! — trovejou o homem feio. — QUE TIPO DE BIBLIOTECÁRIA CHINFRIM É VOCÊ? PERDENDO LIVROS!

O professor Nockman começou a berrar furioso:

—    Eu quero aquele livro. Eu paguei por aquele livro. Eu vou ter aquele livro! — Ele foi intempestivamente até o corredor do G ao I. — Algum idiota provavelmente colocou no lugar errado.

A bibliotecária se remexeu nervosa em sua cadeira, enquanto o homem andava por entre os corredores, bufando e suando. Molly podia ouvir a respiração furiosa do sujeito. Agora o homem estava do outro lado de sua estante, tão perto que Molly poderia tocar nele. Ele cheirava a gordura velha de batata frita, a peixe e fumo. Em volta do pescoço grosso, numa corrente de ouro, havia um medalhão com um escorpião, aninhado em seu peito peludo. O escorpião dourado tinha um diamante no lugar do olho, que captou a luz e piscou para Molly. O dedo gordo do professor, com a unha que parecia uma garra, correu ameaçadoramente ao longo dos livros de T a W.

—    Certo — anunciou ele subitamente. — Certo. Obviamente não está aqui, de modo que nós vamos fazer o seguinte: você — disse ele, marchando até a mesa, apontando agressivamente de modo que a unha do dedo quase cutucava a bibliotecária entre os olhos —, você vai verificar com sua colega e descobrir o que aconteceu com meu livro. Assim que souberem, vai ligar para mim. — O homem que parecia um javali puxou uma carteira de couro de cobra do bolso de trás e tirou dela um cartão de visita. Escreveu alguma coisa no verso do cartão.

—    Eu estou hospedado no Hotel Briersville. Você vai telefonar para mim e me manter a par. E sua prioridade será achar aquele livro. Eu preciso dele para uma pesquisa científica muito importante. Meu museu ficará horrorizado em saber que foi perdido. Se bem que, se você achar, eles não devem ficar sabendo disso, é óbvio. Estou sendo claro? — Sim, professor.

Então o professor pegou um casaco de pele de carneiro e, grunhindo com raiva, saiu da biblioteca.

A bibliotecária mordeu o lábio e em seguida começou a ajeitar os grampos do coque. Do lado de fora, a porta principal se fechou com um estrondo. Molly voltou a se apoiar nos joelhos. Na frente dela um Y grande indicava o começo das prateleiras do Y. Y, Y. Por quê?

Por que aquele homem feio estava tão ansioso para conseguir esse livro? Ele tinha dito que havia pago para alugá-lo, mesmo sendo um livro da seção “Para Não Ser Emprestado”. E tinha viajado muito para conseguir. Devia ser um livro muito interessante. Mais interessante, imaginou Molly, do que Yin-Yang, Yeats ou Ypnotismo. Ypnotismo? Molly olhou para o livro que estava à sua frente. A capa de couro tinha sido rasgada, de modo que a primeira letra do título fora removida e a segunda estava rachada em cima, com uma parte meio de lado. Num clarão ofuscante, percebeu que a letra que faltava era um H, e que a segunda era na verdade um I!

Rapidamente puxou da estante o livro pesado, encadernado em couro. E, verificando disfarçadamente se ninguém estava olhando, abriu a capa.

Ali, em letras de estilo antigo, estavam as palavras:

 

HIPNOTISMO

Uma Arte Antiga Explicada pelo Doutor H. Logan Publicada por Arkwright e Filhos 1908

Molly não precisava olhar mais. Fechou o livro em silêncio, enrolou no casaco e, enquanto a bibliotecária estava procurando alguma coisa num armário embaixo da mesa, saiu da biblioteca também.

E esse foi o segundo acontecimento estranho da semana.

 

Com empolgação crescente, Molly voltou pelas ruas secundárias de Briersville e subiu os campos morro acima, até o orfanato. Tinha parado de chover, mas mesmo assim ela estava com o livro de hipnotismo muito bem enrolado no casaco. Ainda era a hora do chá, mas a luz cinzenta de novembro estava sumindo. Faisões faziam barulho no mato, acomodando-se para dormir, e coelhos corriam procurando abrigo enquanto Molly passava.

Quando chegou ao Lar Vidadura, as janelas do prédio de pedra já estavam brilhando com as luzes lá dentro. Por trás da cortina fina de uma janela do primeiro andar, Molly podia vislumbrar a silhueta murcha da Srta. Viborípedes acariciando sua mal-humorada buldogue miniatura, Petula.

Molly sorriu consigo mesma e abriu o portão de ferro. Enquanto atravessava rapidamente o terreno de cascalho, a porta lateral do orfanato se abriu. Era a Sra. Brinklebury. Ela envolveu Molly com seus braços gorduchos e a abraçou.

—    Ah, o-olá, Molly, b-bonequinha! Você está de volta. Pelo menos não d-deixei de falar com você. C-como você está? Tudo bem?

—    É, mais ou menos — disse Molly, devolvendo o abraço. Molly adoraria contar à Sra. Brinklebury sobre o livro, mas decidiu que era melhor não fazer isso. — Como vai a senhora?

—    Ah, vou bem, como sempre. Um p-probleminha com H-hazel agorinha mesmo, mas isso não é novidade. Olha, eu guardei um bolo para você. — A Sra. Brinklebury enfiou a mão em sua florida bolsa de tricô e remexeu lá dentro. — Aqui está — disse ela, entregando a Molly um embrulho de papel impermeável. — É um b-bolo de ch-chocolate. Fiz um bocado ontem à noite. — As lentes de seus óculos brilharam ao captar a luz que vinha do corredor. — M-mas não deixe a Srta. Você-sabe-quem pegar você com ele.

—    Ah, obrigada.

—    A-agora eu preciso ir, querida — disse ela, apertando o velho casaco de crochê em volta do corpo, fechando os botões em forma de flores e beijando Molly. — Use sempre o agasalho, querida. Vejo você daqui a uma semana. — Com isso, a Sra. Brinklebury foi pela estrada na direção da cidade, e Molly entrou.

Subiu direto para o seu quarto, e como todos os outros estavam tomando chá, teve tempo para esconder o livro e o bolo cuidadosamente debaixo do colchão. Depois desceu até a sala de jantar e se sentou sozinha na pequena mesa perto da lareira.

Geralmente Molly tomava chá com Rocky, mas dessa vez ele não estava lá, para evitar encrenca. Ela comeu o pão com margarina, cautelosamente vigiando Hazel na mesa grande do outro lado da sala. A garota estava contando vantagem porque tinha vencido a corrida rústica. As pernas fortes de Hazel estavam cobertas de lama, seu rosto grande ainda estava vermelho do esforço e ela havia enfiado um galho cheio de folhas no cabelo preto, como se fosse uma pluma.

Molly sabia que quando Hazel a visse sozinha, começaria uma sessão de provocações. E aconteceria a escalada habitual de coisas ruins. Hazel faria alguns comentários malignos, Molly fingiria que não estava ouvindo. As provocações de Hazel ficariam mais perversas, até que ela conseguiria quebrar a casca de Molly. Molly poderia ficar vermelha, ou seu rosto poderia se retorcer, ou pior, ela poderia ficar com um nó na garganta e seus olhos poderiam se encher de água. Era muito difícil para Molly não deixar sua confiança desmoronar quando Hazel e seus seguidores pegavam no seu pé. Rapidamente enfiou o resto do pão na boca e se preparou para se levantar. Mas era tarde demais.

Hazel a viu e gritou com voz rouca:

—    Olhe, todo mundo, Periga finalmente conseguiu chegar. Caiu numa poça, Zunza? Ou será que tinha um sapo no caminho e amedrontou você? Ou será que suas pernas esquisitas quebraram?

Molly deu um sorriso sarcástico, tentando não ligar para os insultos.

—    Isso aí era para ser um sorriso maneiro? — perguntou Hazel, zombando. — Olha, todo mundo, Olho-de-vampiro está tentando ser maneira.

Molly odiava Hazel — ainda que nem sempre tivesse sido assim. No início, havia sentido pena dela.

Hazel tinha chegado ao orfanato há quatro anos, com seis de idade. Seus pais, falidos, tinham sido mortos num acidente de carro, deixando-a sem nada, nem mesmo parentes. E assim, sozinha e sem dinheiro, foi mandada ao Lar Vidadura. Molly tinha feito o possível para Hazel se sentir bem-vinda, mas logo percebeu que a garota não queria amizade. Hazel empurrou Molly contra uma parede e explicou que era melhor do que ela. Ela tinha tido uma vida maravilhosa de família, e se lembrava dos pais. Ela não tinha sido largada como lixo na porta. Tinha vindo para cá por causa de uma virada trágica do destino que havia matado seus pais amorosos. Com um monte de histórias sobre seu passado elegante, Hazel era uma figura glamorosa no meio das outras crianças, mas com Molly e Rocky ela era dura e venenosa. Durante quatro anos Hazel tinha provocado, zombado e brigado com Molly. Por algum motivo ela odiava Molly. E agora Molly retribuía esse desprezo.

— Eu disse: isso aí era para ser um sorriso maneiro? — repetiu Hazel.

As quatro crianças maiores zombaram. Cynthia e Craig, os gêmeos gorduchos, e Gordon Furúnklus e Roger Pikuinhas, que eram os acompanhantes especiais de Hazel, tinham caráter fraco, fraco demais para contrariar a líder. Eles adoravam vê-la chatear Molly.

Gordon Furúnklus, de cabelo gorduroso, estava sentado à esquerda de Hazel, usando um lenço na cabeça e fechando os punhos. Desde que tinha tatuado cada um de seus dedos, usando um compasso e tinta, os dedos da mão direita diziam “G O R D” e os da mão esquerda diziam “ORE I”. De onde estava sentada, Molly podia ler “O REI GORD”. Enquanto Gordon dava uma mordida em seu bolo do chá, Molly se lembrou do truque que era marca registrada dele: pegar um pedaço de pão e assoar o nariz dentro, fazendo o que ele chamava de sanduíche de meleca, e que em seguida comia. Gordon tinha uma imaginação nojenta, e, se pagassem, faria praticamente qualquer coisa. Ele era o cachorrinho de Hazel.

À direita de Hazel estava seu fofoqueiro oficial, Roger Pikuinhas. Ele era o informante de Hazel; seu espião. Enquanto Molly o olhava, vendo a camisa branca e bem passada e o cabelo arrumadinho, pensou em como ele parecia um adulto encolhido. Seu nariz fino e os olhos frios eram sinistros. Rocky e Molly o chamavam de “o Enxerido”. E chamavam Cynthia e Craig de “os Clones”.

Quanto mais coisas maldosas Hazel dizia, mais sua turma gargalhava e a encorajava. Gemma e Gerry, as amiguinhas de seis e sete anos que estavam sentadas quietinhas em outra mesa pequena perto da porta da sala de jantar, começaram a ficar inquietas. Elas odiavam ver Molly ser provocada, mas eram pequenas demais para poder ajudá-la.

—    Ou será que um fazendeiro atacou você porque você parecia um rato com olho de vampiro? — sugeriu o magricela Roger.

—    Ou será que um rato atacou você porque sua mão vive suando e fedendo?

—    Ou será que Rocky e você ficaram sentados no mato planejando seu casamento? — provocou Hazel.

De repente Molly sorriu. Era um sorriso que vinha de uma empolgação profunda, e da esperança que o livro de hipnotismo tinha provocado nela. Ela já havia sonhado acordada com o que poderia fazer se aprendesse a hipnotizar as pessoas. Hazel e sua turma tinham mais é que tomar cuidado. Sem dizer uma palavra, Molly se levantou e saiu da sala. Mal podia esperar para olhar o seu livro. Mas demorou algum tempo antes de ter a chance.

Depois do chá, todas as crianças tinham de descansar na cama, a não ser os que tinham permissão de treinar seus números para o Concurso de Talentos de Briersville. Molly estava doida para começar a ler o livro de hipnotismo, mas não podia se arriscar, porque Cynthia estava lendo uma revista em quadrinhos na cama ao lado.

Os minutos se arrastavam. Molly ouvia a música que subia pelas escadas. Escutou a voz rouca de Rocky e de novo teve esperanças de que ele vencesse o concurso, mas ainda estava chateada com o que ele tinha dito, por isso não desceu para vê-lo. Depois chegou a hora do dever de casa, que pareceu levar um ano.

O relógio de cuco da Srta. Viborípedes tocou as seis horas. Na hora das orações, Molly se esforçou ao máximo para evitar Rocky, e por isso Rocky ignorou Molly. Depois de cantar um hino, com o acompanhamento de órgão no toca-fitas, a Srta. Viborípedes, com a cadela mimada, alimentada demais, latindo debaixo de seu braço, fez alguns anúncios. O primeiro era que Molly estaria encarregada do aspirador de pó durante uma semana, já que não tinha completado a corrida rústica. A segunda era que alguns visitantes americanos viriam no dia seguinte.

— Eles vão chegar às quatro horas. Devo dizer que estão interessados em adotar um de vocês, estranhamente. Caso se lembrem, os últimos americanos que vieram aqui partiram com as mãos vazias. Não me deixem frustrada de novo. Eu gostaria de me livrar de pelo menos um de vocês. Eles não estarão interessados em adotar uns ratos sujos e cheios de pulgas. — Os olhos da Srta. Viborípedes pararam em Molly. — De modo que se limpem. Apenas uma criança respeitável será escolhida. Alguns de vocês, claro, não precisam de que eu diga isso.

Cada criança na sala ficou empolgada ao ouvir a notícia. Molly chegou a detectar um brilho de esperança nos olhos de Hazel.

Durante o jantar Molly se sentou sozinha, comendo uma maçã amassada.

Finalmente, quando pensou que estava para explodir de curiosidade, conseguiu um momento em que seu quarto estava vazio. Pegando rapidamente o livro e o bolo amassado, escondeu-os na sua sacola de roupa suja, e foi procurar um lugar aonde ir.

“Hades” significa inferno em grego. Este era o nome dado no orfanato à lavanderia pouco visitada, que ficava no fundo das entranhas do prédio. Molly desceu para lá, parecendo que ia lavar um pouco de roupa.

A lavanderia no porão era escura, com o teto baixo. As paredes tinham fileiras de canos enferrujados onde estavam penduradas roupas para secar, de modo que o porão era pelo menos quente. Na extremidade mais distante ficavam uns velhos tanques de porcelana com ralos cheios de musgo, onde as crianças lavavam roupa. Molly achou um lugar quente embaixo de uma lâmpada, perto de alguns canos usados para secar roupa e, explodindo de ansiedade, enfiou a mão na sacola de roupa suja.

Durante toda a vida tinha ansiado por ser especial. Tinha fantasiado que era especial e que um dia alguma coisa milagrosa aconteceria com ela. Bem lá no fundo sentia que, um dia, uma brilhante Molly Moon explodiria e mostraria a todo mundo no Lar Vidadura que ela realmente era alguém. Ontem havia pensado que alguma coisa importante estava para acontecer. Talvez a coisa importante estivesse com um dia de atraso.

Durante toda a tarde Molly tinha imaginado se esse livro iria realizar seus sonhos, e sua mente havia disparado, pensando no que ele poderia ensinar. Talvez sua imaginação houvesse se esticado um pouco demais. Foi com uma trepidação e a mão tímida que ela levantou lentamente a capa de couro seco do livro velho. Ela se abriu com um rangido.

Ali estava primeira página de novo.

 

HIPNOTISMO

Uma Arte Antiga Explicada

Molly virou a segunda página. O que leu fez com que ela se arrepiasse da cabeça aos dedos dos pés.

Caro leitor,

Bem-vindo ao Mundo Maravilhoso do Hipnotismo e parabéns por ter tomado a decisão sábia de abrir este livro. Você vai partir numa jornada incrível. Se colocar em prática estas pílulas de sabedoria, descobrirá que o mundo está cheio de oportunidades de ouro! Bon voyage e bonne chance!

Assinado

Doutor H. Logan

Briersville 3 de fevereiro de 1908

 

Molly percebeu com espanto que o doutor Logan era de Briersville. Isso era extraordinário, uma vez que a sonolenta Briersville não tinha pessoas muito interessantes das quais se gabar. Ansiosamente virou a página.

 

INTRODUÇÃO

Provavelmente você já ouviu falar muito da antiga arte do hipnotismo. Talvez tenha visto um hipnotizador num circo, hipnotizando membros da platéia, Jazendo com que eles se comportassem de modo estranho e divertindo os espectadores. Talvez tenha lido declarações de como as pessoas foram hipnotizadas para fazer cirurgias, de modo a não sentir dor.

O hipnotismo é uma grande forma de arte. E, como outras formas de arte, o hipnotismo é uma coisa que muitas pessoas podem aprender, se forem pacientes e treinarem muito. Alguns alunos de hipnotismo terão um talento natural. Um número ainda menor terá um dom verdadeiro. Será que você é um dos poucos talentosos? Continue lendo.

As mãos de Molly começaram a suar.

O hipnotismo recebeu esse nome dos gregos antigos. “HYPNOS” significa sono em grego. £ os hipnotizadores vêm praticando desde o início dos tempos. O hipnotismo também é conhecido como “MESMERISMO”, uma palavra que vem do nome de um médico chamado Franz Mesmer. Ele nasceu em 1734 e morreu em 1815, e sua principal atividade na vida era a arte do hipnotismo.

Quando uma pessoa está sob os poderes de um hipnotizador, ela está em TRANSE. As pessoas entram em transe o tempo todo sem notar. Quando você larga sua caneta, por exemplo, e um minuto depois não consegue se lembrar de onde a deixou, isso acontece porque você estava num pequeno transe.

Os devaneios são outra forma de entrar em transe. As pessoas que ficam em devaneio estão num mundo próprio, e quando saem do transe do devaneio freqüentemente não sabem o que as pessoas em volta estavam dizendo ou fazendo. No transe, os pensamentos da pessoa se afastam do mundo barulhento para lugares silenciosos da mente.

Molly pensou no truque que tinha aprendido, de deslizar para o espaço e olhar o mundo lá embaixo, de se desligar quando as pessoas estavam gritando com ela. Talvez, sem saber, ela estivesse se colocando em transe. O livro continuava:

A nossa mente tenta relaxar desse modo, como se descansasse de tanto pensar. Os transes são coisas muito normais.

Quando leu a frase seguinte, seu coração praticamente parou de bater.

Se você é bom em entrar em transe, são grandes as chances de que você seja muito bom no hipnotismo.

Faminta, continuou lendo.

O que o hipnotizador faz é colocar as pessoas em transe, e depois as mantém assim falando com elas de modo hipnótico. Quando a pessoa está em transe profundo, numa espécie de sono acordado, o hipnotizador pode sugerir coisas que a pessoa deve fazer ou pensar. Por exemplo, o hipnotizador pode dizer: “quando você acordar, não vai querer fumar outro cachimbo”. Ou: “quando você acordar, não vai ter mais medo de andar de automóvel. “

Molly baixou o livro por um momento.

— Ou — pensou em voz alta — quando você acordar, você vai pensar que é um macaco.

Sorriu enquanto as idéias começaram a pular na sua cabeça. Então um tremor de suspeita fez com que ela parasse. Será que esse livro era de verdade ou teria sido escrito por um louco? Pensou nisso enquanto folheava as páginas.

A intervalos, o livro tinha desenhos de pessoas com roupas vitorianas, mostrando exemplos de posições para hipnose. Havia o desenho de uma mulher deitada reta, tendo apenas uma cadeira embaixo da cabeça e uma debaixo dos pés. Ela era chamada de “a tábua humana”. Havia um monte de diagramas estranhos de um homem fazendo todo tipo de caretas, uma cara cheia, como um baiacu, outra com os olhos virados para cima, mostrando o branco. “Eca, que nojo!”, pensou Molly. Enquanto virava as páginas grossas do livro velho e pesado, chegou ao fim do capítulo seis e percebeu que em seguida vinha o capítulo nove. Dois capítulos, o sete, “Hipnotizando usando apenas a voz”, e o capítulo oito, “Hipnose à distância”, tinham sido cuidadosamente removidos. Molly imaginou quem haveria retirado as páginas, e se elas estavam desaparecidas há anos ou apenas recentemente. Era impossível dizer.

Depois se lembrou do homem que parecia um javali, na biblioteca. Ele disse que tinha viajado lá da América só para encontrar esse livro. O professor devia acreditar que os segredos contidos entre as duas capas eram extremamente valiosos. Esse livro devia ser muito, muito especial. Talvez — pensou Molly consigo mesma — talvez, por acaso, ela tivesse encontrado um verdadeiro tesouro!

Perto do fim do livro havia algumas páginas com fotografias meio marrons. Uma era de um homem com cabelos encaracolados, óculos e nariz de batata.

“Doutor Logan. O mais famoso hipnotizador do mundo”, dizia embaixo. Molly ficou aliviada ao ver que não era preciso ser uma grande beldade para ser um bom hipnotizador. Ansiosa, voltou para o primeiro capítulo: “Treine com você mesmo”.

O primeiro subtítulo era “VOZ”. Dizia:

A voz de um hipnotizador deve ser gentil, calma, e tranqüilizadora. Como a mão de uma mãe balançando o bebê para dormir, a voz do hipnotizador deve tranqüilizar a pessoa para que entre em transe.

Isso parecia bom demais para ser verdade. Molly tinha sido rotulada com o apelido de “Zunza” porque as pessoas diziam que sua voz dava vontade de dormir. Agora, essa capacidade, em vez de ser uma coisa da qual se envergonhar, parecia um talento do qual se orgulhar. O livro continuava:

Aqui vão alguns exercícios que devem ser falados devagar e com firmeza. Pratique.

Molly leu as frases em voz alta. “EU TENHO UMA VOZ CALMA E MA-RA-VI-LHO-SA EU SOU CALMA E PER-SU-A-SI-VA. MINHA VOZ É MUITO...”

De repente ouviu passos altos. Fechou o livro rapidamente, enfiou na bolsa de roupa suja e tirou seu bolo de chocolate amassado.

Hazel estava descendo para o Hades. Chegou fazendo barulho na sala dos canos, ainda com os sapatos de sapateado.

—    Eca — disse ela —, o que você está fazendo aqui embaixo, esquisitona? Eu ouvi você tentando cantar. Desista. Sua voz é sem graça.

—    Eu só estava cantando enquanto procurava minhas meias.

—    É mais provável que você esteja aqui embaixo pensando em como ninguém gosta de você. — Hazel pegou seu uniforme de hóquei num cano alto e se virou para olhar Molly. — Você parece uma meia, não é, Periga? Uma meia gasta, fedorenta, esquisita, que ninguém quer. Por que você não entra no concurso de talentos fazendo uma imitação de meia? Melhor ainda, entre como a pessoa mais feia do mundo. — E estremecendo, acrescentou: — Eca, aposto que os seus pais eram feios, Olho-de-vampiro.

Quando Molly não reagiu, Hazel acrescentou:

—    Ah, e a propósito, você perdeu a sua Brinklebury fedorenta hoje. — Com um sorriso satisfeito e cheio de desprezo, ela se virou e foi embora.

Molly ficou olhando. Sorriu consigo mesma e deu uma mordida no bolo. Baixinho, falou:

—    Espere só, Hazel Marretta, espere só.

 

O dia seguinte era sexta-feira. Molly acordou às seis da manhã, sorrindo de um sonho em que era uma hipnotizadora mundialmente famosa. Desde então estivera tramando um plano ousado.

Não tinha intenção de ir para a escola. Não poderia ir para lá, sentar-se durante as chatíssimas aulas da Sra. Assapa enquanto o livro, com todos os seus segredos esperando para ser aprendidos, ficava embaixo de seu colchão. Além disso, não poderia deixar o livro sem ser vigiado. A abelhuda Srta. Viborípedes poderia encontrá-lo. E se o levasse para a escola, Hazel iria tirá-lo dela.

Quando o sino da manhã tocou, ela fingiu que não tinha acordado e manteve os olhos fechados, mesmo quando Rocky veio visitá-la. Quando Hazel tocou o sino no ouvido de Molly pela segunda vez, puxando suas cobertas, Molly simplesmente ficou imóvel na cama.

—    O cérebro não está funcionando de novo, Vampira? — zombou Hazel.

—    Não estou me sentindo muito bem — gemeu Molly. Molly não apareceu para o café da manhã. Quando teve certeza de que todo mundo estava no andar de baixo, partiu para a ação rapidamente. Pulou da cama, abriu a janela do quarto, e com uma tesoura raspou um pouco de mofo verde da parede de pedra numa saboneteira de plástico. Depois esmagou cuidadosamente os pedaços de mofo verde fazendo um pó fino. Aplicou o pó no rosto, dando à pele um tom verde e doentio bastante realista. Depois limpou a saboneteira e colocou de volta perto da pia.

Em seguida se arrastou até a enfermaria. Havia uma chaleira elétrica, que Molly ligou. Um instante depois tinha posto meio copo com água fervendo escondido debaixo de uma poltrona baixa. Depois pegou uma bacia de metal e colocou no alto de um armário, na frente da poltrona.

De volta ao quarto, remexeu na sua sacola de pano e achou um saquinho de ketchup de emergência, que tinha guardado para fazer sanduíches. Com isso no bolso do pijama, voltou para a cama, tendo montado sua armadilha.

As pessoas começaram a voltar do café da manhã. Roger Furúnklus entrou no quarto de Molly.

—    Doente? Doce esperança — disse ele. Molly ouviu alguma coisa sendo sacudida, e sentiu uma coisa pequena, nojenta e úmida pousar no seu pescoço antes de Gordon sair. Depois reconheceu as vozes de Gerry e Gemma, que vieram vê-la.

—    Aposto que ela pegou um resfriado. Talvez ela tenha mesmo caído numa poça ontem — sussurrou Gemma.

—    Coitada da Molly. Na certa ficou doente porque os garotos grandes são malvados com ela — disse Gerry.

—    Mmm. Vamos dar comida para o seu ratinho? Finalmente a Srta. Viborípedes apareceu batendo os pés.

—    Ouvi dizer que está doente — disse sem qualquer simpatia na voz. — Bom, é melhor você vir para a enfermaria. — A Srta. Viborípedes sacudiu-a.

Molly fingiu que estava acordando e começou a agir como se estivesse com o máximo de dor de cabeça e gripe possível. Acompanhou a Srta. Viborípedes pelo corredor sujo e passou pelas outras crianças que tinham saído dos quartos para olhar. A Srta. Viborípedes fez com que Molly se sentasse na poltrona da enfermaria. E, pegando uma chave da corrente de metal presa na cintura, abriu uma gaveta, achou o termômetro e enfiou na boca de Molly. Os dedos suados de Molly estavam cruzados com força às costas, enquanto ela esperava loucamente que a Srta. Viborípedes saísse da sala. Segundos depois seu desejo foi realizado.

—    Eu vou voltar em cinco minutos. Veremos se você está doente.

Sugando sua dentadura, a Srta. Viborípedes marchou para fora.

Assim que ela estava longe, Molly achou o copo d’água — que antes estava fervendo, e agora muito quente — e colocou o termômetro dentro. Ficou olhando ansiosa, o coração batendo depressa, enquanto o mercúrio subia pelo vidro. Já estava bastante alto. Uma temperatura de quarenta e dois graus convenceria a Srta. Viborípedes de que ela não estava bem. Mas, para ter certeza, Molly abriu o saquinho de ketchup antes de colocá-lo de volta no bolso. Agora seus nervos começaram a se agitar, fazendo com que ela se sentisse esquisita, esperando para realizar a parte final do plano.

Dentro de mais um minuto ouviu os sons da dentadura sendo chupada, e os passos rápidos da Srta. Viborípedes voltando. Baixou a cabeça, tentando parecer o mais doente possível. A Srta. Viborípedes entrou e, sem falar, arrancou grosseiramente o termômetro da boca de Molly.

Molly respirou fundo. Enquanto a Srta. Viborípedes levantava os óculos até a parte de cima do nariz para inspecionar o termômetro, Molly começou a fazer uma careta.

—    Srta. Viborípedes — gemeu, fazendo movimentos de ânsia de vômito com o corpo —, acho que eu vou enjoar.

A Srta. Viborípedes parecia que estava para levar uma borrifada de um gambá. Ansiosa, virou-se para pegar a bacia de metal.

—    Onde está a...? — começou a perguntar. Depois viu-a no alto do armário.

Molly estava fazendo barulho como se fosse vomitar.

—    Uuuueeuugh, uuaaargh. — Enquanto a Srta. Viborípedes subia numa banqueta para alcançar a bacia, Molly espremeu um pouco do ketchup na boca e tomou um bocado d’água. Quando a Srta. Viborípedes desceu, segurando a bacia, Molly estava pronta.

Mirou na bacia.

—    Blaaauuuuuurgh. — O falso vômito cor-de-rosa espirrou no aço. Depois de mais algumas ânsias — Uuaaaargh, uuuuuaaargh — Molly achou que o desempenho tinha sido bastante convincente.

—    Desculpe, Srta. Viborípedes — falou com a voz débil. A Srta. Viborípedes estava perplexa. Dando um passo atrás, examinou o termômetro de novo.

—    Recolha suas coisas imediatamente, camisola, escova de den... — A Srta. Viborípedes hesitou. — Suas coisas. Depois vá para o sótão. Você está com quarenta e dois graus de febre. Veja só. Espero que a gente não pegue isso. E lave essa bacia imunda. Leve para cima com você.

Molly sentia vontade de correr e dar um soco no ar, de tão empolgada por ter enganado a Srta. Viborípedes, mas não demonstrou. Voltou arrastando os pés lugubremente até o quarto, vestiu a camisola fina e calçou os chinelos, pegou um casaco na gaveta, além da bolsa de roupa suja que, claro, estava com o livro de hipnotismo. Depois foi até a escada forrada de linóleo verde-garrafa que levava ao sótão.

As crianças doentes eram confinadas no sótão do Lar Vidadura, que ficava longe dos quartos e imediatamente acima do apartamento da Srta. Viborípedes. Molly passou pelo patamar da Srta. Viborípedes, com a pesada mobília de mogno e o retrato sério dela. A almofada roxa de Petula estava no chão abaixo de uma mesinha de canto marrom, e perto dela estava uma coleção de pequenas pedras de sílex e pedaços de cascalho. O hábito particular de Petula era chupar pedras e depois cuspir. Ao lado das pedras havia um prato cheio de biscoitos de chocolate.

Depois de subir a escada, Molly foi até o sótão. Abriu a porta e — como o dia de novembro estava ensolarado — descobriu que lá dentro estava quente. Grãos de poeira dançavam nos raios de luz que atravessavam a janela, e havia moscas mortas embaixo dos vidros. Uma cama de latão ficava encostada na parede amarela. Molly tirou o horrível lençol de plástico do colchão, já que não estava planejando molhar a cama, e a arrumou com seus lençóis de algodão e dois cobertores. Depois se acomodou para ler.

Decidiu pular o capítulo um, “Treine com você mesmo”, porque estava impaciente e achava que já havia passado anos aprendendo a sonhar e a entrar em transes. Em vez disso foi ao Capítulo Dois.

Como hipnotizar animais.

Agora que você dominou a arte de entrar em transe, pode estar pronto para hipnotizar um animal. Hipnotizar um animal é uma arte difícil — mais difícil do que hipnotizar seres humanos. Mas se você conseguir o que eu chamo de “Sentimento de Fusão “quando estiver hipnotizando animais, você sentirá o “Sentimento de Fusão” quando estiver hipnotizando pessoas, e isso será muito útil.

Se não conseguir o “Sentimento de Fusão”, animais e pessoas não serão hipnotizados adequadamente.

Primeiro passo: entre em transe.

Segundo passo: no seu transe, pense no animal (cachorro, gato, leão) que você vai hipnotizar. Pense na essência desse animal. Tente se transformar nesse animal,

Molly fechou livro e o colocou debaixo das cobertas. Olhou para a luz que brincava na parede amarela e começou a se transportar para um transe, subindo uma espécie de encosta coberta de névoa, para longe do mundo, para dentro da sua mente. Facilmente conseguiu se sentir distante e flutuando, e logo o ambiente em volta começou a parecer um borrão, a não ser pela luz na parede. Depois fechou os olhos, pensou no seu animal. Petula, a cadela da Srta. Viborípedes, era o único animal do orfanato. Ela teria de participar da experiência de Molly.

Pense na essência desse animal. Tente se transformar nesse animal. As palavras do Dr. Logan atravessaram a mente de Molly.

A essência de Petula. Molly se concentrou na buldogue miniatura com pêlo de veludo. Era uma cachorrinha mal-humorada, mimada e paparicada, gorda demais e preguiçosa. Como tinha ficado tão mal-humorada? Era o único bicho que Molly tinha visto sempre mal-humorado. Molly viu-a na mente — o corpo sólido, de pêlos pretos, as pernas da frente tortas, curvadas por causa do corpo gordo, o rabo virado para cima, o rosto achatado, a marca branca na testa, o rosnado, o mau hálito, os olhos saltados. Em seu transe, Molly olhava para os olhos de Petula, opacos, aquosos, semicerrados. Chegou mais perto e mais perto, até que os olhos de Petula eram do tamanho de bolas pretas de bilhar, depois eram bolas de basquete pretas, depois gigantescas bolas pretas. Então, enquanto os olhos de Petula pareciam crescer até o tamanho de dois balões de ar quente, pretos, a mente de Molly entrou neles e passou para a mente canina de Petula.

Começou a se sentir canina. Em sua imaginação, sentia as quatro pernas atarracadas, as orelhas, o nariz altamente sensível. Sentiu o cheiro dos biscoitos de chocolate no chão ao lado, sentiu o cheiro da almofada de veludo mofado embaixo do corpo. Isso era espantoso. Ela estava realmente sentindo o cheiro da almofada peluda de Petula. Em seguida sentiu a barriga dela, inchada e cheia demais. Sentiu enjôo — de todos aqueles biscoitos de chocolate que a Srta. Viborípedes lhe dava. Ai! Doía de verdade. Molly soube exatamente como Petula se sentia, e se pegou fazendo um ruído, um ganido ou rosnado de simpatia.

— Ggrrrr.

A distância ouviu o relógio de cuco da Srta. Viborípedes bater as oito horas, e abriu os olhos. Então era por isso que Petula era uma cachorra tão mal-humorada, pouco amigável. Tinha dor de barriga, de comer biscoito demais.

Molly sentiu como se uma porta tivesse se aberto subitamente na sua cabeça. Ficou pasma ao perceber que tinha entendido Petula com tanta facilidade. Imaginou que outros talentos latentes havia dentro dela. Talentos que as lições do Sr. Logan iriam lhe permitir usar. Se aprendesse cada lição do livro tão rapidamente quanto esta, logo seria uma especialista.

Por um momento hesitou. Na verdade, ainda não tinha feito nada. Talvez tivesse inventado os sentimentos de Petula. Ansiosa, abriu o livro de novo. Logo veria se era realmente possível hipnotizar Petula. Tudo que tinha de fazer era seguir o terceiro passo.

 

Quando todo mundo tinha saído para a escola, Molly escutou os passos rápidos da Srta. Viborípedes subindo de má vontade para o sótão. A Srta. Viborípedes ficou aliviada ao descobrir que Molly estava dormindo. Apertando o nariz, atravessou o cômodo e deixou um bilhete na mesa.

 

“Como provavelmente você está contagiosa, vai ficar longe da companhia dos outros até melhorar. Quando conseguir manter a comida dentro do corpo, desça até o corredor da cozinha e chame Edna. De jeito nenhum você deve entrar na cozinha e respirar em cima da comida.

Aqui está um termômetro. Quando estiver melhor e sua temperatura tiver baixado para trinta e seis graus e meio, que é o normal, você deve voltar ao quarto e retomar sua programação normal. Espero que então você possa compensar as tarefas de limpeza que deixou de fazer.

Srta. Viborípedes.”

Chupando a dentadura, a Srta. Viborípedes desceu até o seu apartamento, para tomar o copo de xerez matinal. Até agora o dia tinha sido particularmente cansativo, ela achava, por isso serviu uma dose dupla. Pouco depois Molly ouviu seus pés pisando no cascalho do lado de fora. Quando os portões de ferro se abriram com um rangido, Molly olhou para a janela a tempo de ver a Srta. Viborípedes caminhando com dificuldade até seu microônibus. Ela ia a algum lugar, mas sem Petula. Agora era a chance de Molly experimentar! Terminou de ler às pressas o Terceiro Passo do capítulo sobre como hipnotizar animais.

Você pode levar semanas para encontrar a essência do seu animal, mas não desista. Encontre a “voz” que se ajusta ao seu animal.

Bom, Molly já havia feito isso instintivamente. Tinha rosnado exatamente como Petula.

Quarto passo. Encare o seu animal, aproximando-se lentamente dele, se for necessário. Pense na “voz” do animal e agora faça-a lenta e calmamente. Repita a voz do animal, de um modo tranqüilizador, até que o animal caia num transe. Um pêndulo pode ser usado. (Todos os estudantes de hipnotismo devem adquirir um pêndulo e estudar o capítulo quatro.) Assim que o animal estiver em transe, você saberá disso a partir do “Sentimento de Fusão”.

Molly fechou o livro e foi até o patamar do sótão. Olhou por cima da balaustrada e pôde ver Petula roncando barulhenta em sua almofada de veludo. Desceu rapidamente a escada até ficar a três metros de Petula. Semicerrando os olhos e se concentrando em Petula até que o rosnado saísse de sua boca de novo, Molly ajustou o rosnado, para que ficasse mais lento e mais rítmico.

—    Grrrr, grrrr, grrrr — fez ela. Por um momento sentiu-se idiota, mas depois, ao ver as orelhas de Petula se levantarem e seus olhos se abrirem, Molly se concentrou a sério.

A cadelinha viu Molly no degrau de cima e ouviu o ruído familiar. Prestou atenção e inclinou a cabeça para o lado. Normalmente rosnaria, porque uma criança se aproximando geralmente significava que havia o risco de ela ser apanhada. E como Petula odiava ser apanhada. Sua dona estúpida vivia pegando-a, e como era doloroso! Mas aquela criança era simpática. Os barulhos que aquela criança estava fazendo eram reconfortantes. Petula viu que a criança estava chegando mais perto, mas não se importou. De fato, queria que ela chegasse perto, para poder olhar naqueles olhos lindos e verdes. Gostava do modo como a voz da criança estava fazendo com que ela se sentisse relaxada.

Logo Molly estava a apenas trinta centímetros de Petula. Os olhos pretos de Petula a encaravam diretamente.

—    GRRRR — grrrr — GRRRR — grrrr. — Molly soltava seu grunhido estilo essência-de-petula, esperando e ansiando que o hipnotismo funcionasse. E de repente os olhos de Petula ficaram vidrados, como se duas cortinas tivessem se fechado atrás dos olhos dela, enquanto continuavam abertos. Era uma coisa curiosa de ver. E enquanto olhava, Molly teve uma sensação quente, turva, subindo dos dedos dos pés, passando pelo corpo até as raízes do cabelo. Era o sentimento de fusão que o Doutor Logan havia descrito. Molly parou de fazer os barulhos. Petula ficou sentada, como um cachorro de pelúcia, olhando para o espaço. Molly tinha conseguido! Mal podia acreditar. Isso era espantoso! Tinha hipnotizado um animal.

Agora, pensou Molly, ela poderia “sugerir” coisas a Petula, mas depois percebeu, irritada, que isso seria difícil, já que não falava “cachorrês”. Como adoraria dizer a Petula para fazer xixi no copo de xerez da Srta. Viborípedes, ou morder os tornozelos dela, ou rolar em estrume de vaca e depois dormir na cama da Srta. Viborípedes. De repente pensou na melhor coisa que poderia fazer por Petula. Iria fazer com que ela recusasse os biscoitos de chocolate que a Srta. Viborípedes lhe dava constantemente. Petula comia os biscoitos por hábito e ganância, sem perceber que eles estavam fazendo com que ela se sentisse doente e mal-humorada. Molly enfiou a mão no bolso e pegou o saquinho de ketchup pela metade.

Petula olhava para a garota à sua frente, que era a pessoa mais legal, mais simpática, que ela já havia encontrado. A garota estava segurando um dos biscoitos de chocolate de Petula e espremendo alguma coisa nojenta nele. Uma coisa vermelha. Petula sabia que devia ser alguma coisa ruim porque a garota estava fazendo caras horrendas para aquele negócio vermelho. E aquilo estava lambuzando um dos biscoitos de Petula. Agora o biscoito parecia muito pouco apetitoso. E a garota também achava isso. Estava fazendo barulhos de vômito. E Petula confiava na garota. Em sua mente canina sabia que precisava se lembrar do que aquela garota legal estava mostrando. Biscoitos de chocolate eram ruins, ruins, ruins.

Então a garota acariciou a cabeça de Petula e Petula gostou dela ainda mais. A garota começou a rosnar baixinho de novo e, enquanto se afastava, soltou um latido forte. Isso fez com que Petula saísse do transe.

Petula balançou as orelhas moles com uma expressão perplexa no rosto. Não se lembrava do que tinha acontecido nos últimos dez minutos, mas estava se sentindo diferente. Por algum motivo, um sentimento novo tinha baixado sobre ela; não gostava mais de biscoitos de chocolate. Mas gostava muito daquela pessoa sentada na escada.

Molly acenou para Petula.

— Boa menina — disse ela.

Petula ainda estava com dor de barriga, mas gostava tanto daquela garota que subiu a escada toda para receber o carinho. Balançou o rabo, o que era uma sensação maravilhosa, porque não fazia isso há semanas.

Molly deu um tapinha em Petula e se sentiu muito satisfeita. Depois foi até o banheiro e deu a descarga no biscoito de chocolate coberto de ketchup.

Apesar de a barriga de Molly ter roncado bastante naquele dia por causa da fome, ela não se importou. Estava devorando o livro de hipnotismo. Na hora do almoço, o cheiro de enguia assada — o almoço da Srta. Viborípedes e de Edna — subiu até lá. Molly desceu na ponta dos pés até o patamar de Petula e ficou muito satisfeita em ver que ela não havia tocado em nenhum biscoito. Molly almoçou biscoitos de chocolate, depois voltou para o seu livro.

Às quatro horas ouviu todo mundo voltando da escola e a Srta. Viborípedes enchendo a tigela de biscoitos de Petula. Quando todo mundo estava tomando chá, Molly pegou três biscoitos. Meia hora depois ouviu um carro do lado de fora. Olhou pela janela para ver a chegada dos visitantes americanos — um homem magro e barbudo e uma mulher com lenço de cabelo cor-de-rosa. A Srta. Viborípedes, com seu conjunto turquesa e com seu melhor comportamento, estava guinchando:

— Bem-vindos, entrem. — Por um momento Molly sentiu uma pontada de desejo. Se ao menos pudesse ser ela a escolhida e ser levada embora! Carregada para longe como tinha acontecido com Roberta Cetin e Moisés Vimes. Mas sabia que a adoção era uma coisa rara, e que se alguém fosse escolhido hoje, definitivamente não seria ela. E de qualquer modo, quando pensava no livro, a vida no orfanato não parecia tão ruim.

Mais duas vezes naquele dia a tigela de biscoitos foi enchida. A cada vez Molly descia na ponta dos pés para se servir, e desse modo conseguiu manter a fome à distância.

Leu até tarde da noite, concentrando-se intensamente nas lições do Dr. Logan. Quando finalmente apagou a luz, estava com a sensação quente, agradável, de que o tempo estava a seu favor. Poderia ficar doente durante pelo menos mais um dia ali, antes que a Srta. Viborípedes viesse investigar. Poderia sobreviver com os biscoitos de Petula, e absorver à vontade a sabedoria do Dr. Logan. Dentro de alguns dias teria os segredos do livro muito bem guardados na cabeça. Era irritante que dois capítulos do livro tivessem sido arrancados, mas ela poderia aprender tudo dos outros sete. Mal podia esperar para contar a Rocky sobre sua descoberta. Agora a briga dos dois parecia uma bobagem diante dos segredos poderosos do livro de hipnotismo. Ficou deitada na cama, imaginando onde poderia arranjar uma corrente e um pêndulo.

A imagem do professor mal-humorado na biblioteca atravessou seu pensamento. Sentiu uma leve culpa. Esse deveria ser o melhor livro de hipnotismo que existia, escrito por um dos hipnotizadores mais famosos do mundo. A pesquisa do pobre professor ficaria incompleta sem as idéias de Logan sobre o assunto, e ele havia atravessado milhares de quilômetros para isso. Não é de espantar que estivesse tão perturbado. Os diretores de seu museu ficariam muito furiosos pelo dinheiro gasto nas caras passagens aéreas. Bom, pensou Molly, ela levaria o livro de volta depois de terminar. Depois os outros poderiam estudá-lo durante anos. E com a consciência aplacada, afundou no sono.

Não pensou de novo no professor. E esse foi seu grande erro.

 

O dia seguinte era sábado. Molly acordou de um sono profundo com Petula tentando pular na sua cama. Quando olhou para baixo, Petula largou uma pedra no chão, como presente. Ela parecia muito mais alegre. Molly puxou-a para cima e coçou suas orelhas.

— Sou eu quem deveria estar agradecendo a você, Petula. Você me ajudou de verdade, sabe?

Petula bateu no peito de Molly com a pata, como se dissesse: “Não, foi você que me ajudou.” Então elas eram amigas.

Molly pôs as pernas para fora da cama e foi até a janela. Acima dos telhados de ardósia do povoado, dava para ver o relógio da igreja. As outras crianças já haviam saído para a caminhada matinal de sábado.

A Srta. Viborípedes gostava de levar as crianças no microônibus até a base de um morro chamado Corcova de São Bartolomeu, a dezesseis quilômetros de distância. Depois de deixá-las, esperava que elas subissem a Corcova e voltassem pelo campo cheio de morros até o orfanato. Isso dava à Srta. Viborípedes três horas e meia que ela sempre passava na cidade. Molly sabia que ela costumava ir ao pedicure para ter as unhas cortadas e os joanetes tratados, e depois talvez fosse a algum lugar, tomar duas taças de xerez.

O que significava que Molly tinha praticamente três horas até que todo mundo voltasse.

Sem perder tempo, vestiu o roupão e saiu do quarto. Era ótimo poder escorregar pelo corrimão sem ninguém por perto. Petula foi bamboleando atrás, entrou correndo no apartamento da Srta. Viborípedes pela sua portinhola e saiu de novo trazendo na boca sua guia. Acompanhou Molly até o andar térreo. Molly seguiu pelo corredor e foi deslizando pelo chão encerado até a sala de reuniões, e entrou em silêncio na sala de jantar. As duas foram até a entrada para a cozinha, desceram a rampa e passaram pelas gavetas de talheres e pelas prateleiras dos pratos. Edna podia ser ouvida fazendo barulho com as panelas, começando a preparar o almoço. Molly foi andando na ponta dos pés, repassando na cabeça as aulas que tinha aprendido no capítulo três: “Hipnotizando outras pessoas” e no capítulo quatro “Hipnose com pêndulo”.

No cômodo do porão, Molly já havia feito uma jornada imaginária para dentro da cabeça de Edna. Lá encontrara uma pessoa descontente, cheia de ressentimento, chateada com a vida e cansada de trabalhar. Molly achava que sabia como hipnotizar Edna. Não deveria ser difícil demais. Afinal de contas, Edna, que vivia rosnando, era bem parecida com um animal. Respirou fundo enquanto uma onda de nervosismo passava por dentro de seu corpo. Mas se tudo desse errado, Edna simplesmente acharia que ela era estranha. Molly entrou na cozinha antiquada, com as paredes de azulejos rachados, as pias quebradas, os dois fogões a gás e o chão de pedra. Petula foi atrás.

Edna estava tirando cabeças de galinha de um saco e colocando numa enorme panela com água fervendo.

—    Hmm... olá, Edna — disse Molly. — Isso está cheirando bem.

Edna deu um pulo e em seguida lançou um olhar atravessado para Molly.

—    Sua coisa esquisita! É esquisita mesmo, aparecendo assim. — Obviamente ela não estava naquele bom humor maluco da outra noite. Molly tentou de novo.

—    O que você está fazendo?

—    Uma porcaria de uma sopa, é claro — grunhiu Edna, arrancando uma pena de uma cabeça de galinha. Pela primeira vez a linguagem de Edna estava correta: a sopa realmente parecia uma porcaria, com todas aquelas cabeças de galinha dentro.

—    Hmmm — disse Molly, com o estômago revirando. — Receita da marinha?

—    Espero que você não tenha vindo aqui procurar algum bagulho para comer. É melhor não vir contagiar a gente, porcaria.

—    Você está parecendo aborrecida, porcaria — disse Molly, de repente.

—    Claro que eu estou parecendo aborrecida, porcaria — retrucou Edna. — Eu estou aborrecida pra caramba. Essa cozinha é quente demais. — Ela repuxou o jaleco branco e balançou os braços, fazendo Molly pensar num peru grande e gordo.

—    Por que você não se senta? — sugeriu Molly. — Eu mexo essa porcaria de sopa, e você pode ficar confortável. Venha, Edna. Você merece essa porcaria.

Edna olhou cheia de suspeitas para Molly. Mas alguma coisa nas palavras de Molly fizeram com que ela se sentisse à vontade.

—    Se você se sentar, vai ficar mais confortável — persuadiu Molly.

E, preguiçosa como era, Edna concordou.

—    É, não vejo porque não. Afinal de contas, você esteve na porcaria daquela cama durante dois dias, enquanto eu bancava a escrava aqui embaixo.

Ela se sentou na cadeira de braços da cozinha, com as pernas esparramadas como se fosse uma boneca.

—    Aposto que assim está mais confortável — disse Molly, pegando a colher na mão de Edna. — Você deve estar cansada pra caramba.

Edna assentiu.

—    Estou... ufa. — Ela se recostou e soltou o ar fazendo barulho.

—    Você está fazendo a coisa certa — disse Molly, olhando calmamente para Edna. Respirando assim, respirando fundo, você vai se sentir muito... mais... relaxada.

—    Mmm, acho que você está certa — concordou Edna, soltando a respiração junto com um resmungo.

A voz de Molly ficou sutilmente mais lenta.

—    Se você... respirar... um pouco... verá... como se sente... relaxada. E como... você precisava... se sentar.

—    É — disse Edna —, eu precisava pra caramba me sentar. — Mas então abriu os olhos. — Espere um minuto, você está contagiosa, porcaria. Eu não deveria deixar você chegar perto dessa comida.

Isso era irritante. Molly percebeu que talvez não fosse ser essa moleza toda hipnotizar Edna. Talvez devesse ter trazido algum tipo de pêndulo para concentrar a mente de Edna.

—    Tudo bem, a fervura da porcaria da sopa vai matar... qualquer... germe — disse Molly. E, num gesto inspirado, começou a mexer a sopa devagar e com ritmo. A colher de pau girava no ritmo de suas palavras. Edna olhava a colher. — Você... não... acha — disse Molly — que a fervura da sopa vai matar... os... germes? Não precisa... se preocupar... com nada. — Molly se concentrou com força enquanto falava e mexia. Edna parecia a ponto de dizer alguma coisa, mas seus olhos estavam dominados pelo movimento da colher, e sua preguiça tomou conta.

—    Mmmmmnn, acho que ao você está certa, porcaria — suspirou ela, e se recostou de novo.

—    Espero... que os seus... ombros... e as costas... estejam... muito mais... confortáveis — disse Molly.

—    Mmmn — concordou Edna —, estão. — Depois falou: — Molly, você tem olhos muito grandes, sabe?

—    Obrigada — disse Molly, virando os olhos verdes para os de Edna. — Os seus olhos... provavelmente... estão muito... pesados... agora... veja... como... você precisava... relaxar.

Os olhos de Edna começaram a tremular enquanto ela olhava para os olhos de Molly e observava Molly mexendo a sopa.

—    E esta cozinha... é... tão... quente... e... confortável... se... você... só... ficar... sentada... aí... eu... mexo... a... sopa... e mexo... e mexo... e mexo... e mexo... e mexo. — Molly mexia, tentando não olhar para as cabeças de galinha que borbulhavam na panela.

—    Eu mexo... e mexo... e mexo... e... Edna... você... deveria... só... relaxar... e... relaxar... ainda... mais... talvez... você... devesse... fechar... os... olhos...

Edna não fechou os olhos, mas parecia muito distante e sonhadora. Por dentro, Molly estava tão empolgada, queria gritar: “Isso! Eu quase consegui” mas em vez disso falou calmamente:

—    Eu... vou... contar... de vinte... para trás, e você... vai... se sentir... mais... e mais... relaxada... enquanto... eu... conto... para trás. — Molly mexia a sopa e se concentrava realmente em sua voz mais tranqüilizadora. — Vinte... dezenove — o franzido na testa de Edna desapareceu. — Dezoito... dezessete — as pálpebras de Edna começaram a baixar. — Dezesseis... quinze... quatorze... treze...

No treze, as pálpebras de Edna se fecharam de repente, e num instante a sensação turva, arrepiante, começou a subir pelo corpo de Molly.

—    O sentimento de fusão! — ofegou Molly. Depois, notando que isso fez os olhos de Edna estremecerem de novo, contou mais: — Onze... dez... nove... Agora... Edna... você... está... tão... profundamente... relaxada... que... está... em... transe... Oito... tão... relaxada... Sete... profundamente... relaxada.

Molly parou de mexer a sopa e foi até Edna.

—    Seis — falou, a apenas trinta centímetros dela. — Cinco... e enquanto continuo contando agora, você, Edna, vai ficar cada vez mais em transe até que, quando eu chegar ao zero, vai estar totalmente disposta a fazer o que eu mandar... quatro... três... dois... um... zero... Bom — disse Molly, enquanto olhava para Edna sentada em silêncio na cadeira de braços. Tinha conseguido! Mal podia acreditar. A voz baixa e constante que tinha lhe dado o apelido de Zunza era obviamente a voz perfeita para o hipnotismo. Talvez seus olhos também tivessem alguma coisa a ver. Eles pareciam luminosos.

Por um momento Molly não conseguiu achar palavras. Estivera se concentrando tanto em como hipnotizar Edna que não pensou no que iria mandá-la fazer. Por isso disse a primeira coisa que lhe veio à mente.

—    De agora em diante, Edna, você vai ser muito, muito legal comigo, Molly Moon. Vai me defender se alguém me der uma bronca, me castigar ou quiser me bater. — Esse era definitivamente um bom começo. — E quando eu vier para a cozinha você vai me deixar fazer sanduíches de tomate e ketchup... Vai comprar coisas deliciosas na cidade, para eu comer, porque você gosta muito de mim, e... e... vai parar de fazer peixe com molho de queijo e nozes. De fato, você vai se recusar a fazer peixe, a não ser que seja fresco, daquele dia, e... — Molly hesitou, depois acrescentou ousada: — E vai ficar muito interessada em... cozinha italiana. Vai arranjar livros de culinária italiana e tentar ao máximo se tornar a melhor chefe de cozinha italiana... do... do mundo... e vai preparar comidas italianas deliciosas daqui em diante. Menos para a Srta. Viborípedes, a quem você vai dar comida normal, mas faça muito, muito mais temperada. E, sem saber, você vai fazer a comida de Hazel Marretta muito temperada também, e a de Gordon Furúnklus e de Roger Pikuinhas... está claro?

Edna confirmou com a cabeça, como um robô. Era uma visão maravilhosa. Molly sentiu vontade de rir, mas então sua barriga soltou um ronco baixo e ela disse com firmeza:

—    E agora, Edna, você vai me levar de carro até a cidade e me pagar um café da manhã decente, e vai continuar sob o meu comando.

Edna fez que sim com a cabeça e se levantou, e com os olhos ainda fechados foi diretamente para a porta.

—    Mas obviamente, Edna — disse Molly depressa —, você precisa abrir os olhos para andar e dirigir.

Edna abriu os olhos e confirmou com a cabeça. Sua expressão era distante e vidrada, como tinha sido a de Petula.

—    Certo, Edna. Vamos.

Assim, vestida com um jaleco branco, chapéu de cozinheiro e tamancos brancos, Edna saiu do prédio como um zumbi. No caminho, Molly apanhou um casaco para cobrir o pijama, e lá fora Petula pegou um pedaço de cascalho para chupar.

Edna ao volante não era uma boa experiência, nem mesmo nas melhores ocasiões. Quando ela pisou no acelerador, fazendo as rodas traseiras de seu carro chutarem o cascalho, Molly prendeu o cinto de segurança. Edna não parecia estar totalmente “lá”. No caminho para Briersville dirigia com uma expressão muito estranha no rosto — como se alguém tivesse acabado de jogar um cubo de gelo dentro do seu vestido. Foi pela rua principal fazendo ziguezagues bruscos, quase batendo num caminhão que vinha em sentido contrário. Depois ultrapassou dois sinais vermelhos e passou por cima de um canteiro de flores numa área exclusiva de pedestres. Finalmente parou o carro na calçada do lado de fora de uma lanchonete e, olhando para a frente com expressão vazia, guiou Molly e Petula para dentro. Da porta, Molly verificou preocupada a rua, muito aliviada ao ver que nenhum policial tinha notado as duas.

Dentro da lanchonete, dois operários de construção olharam por cima de seus sanduíches de bacon e examinaram Edna. Com sua roupa branca, ela parecia mesmo estranha. Além disso estava se mexendo como se fosse uma boneca mecânica. Rapidamente Molly encorajou Edna a se sentar.

—    Em que posso ajudar? — perguntou um garçom todo alegre, que tinha um cravo enfiado no botão da lapela.

—    Por favor — disse Molly, já que Edna estava olhando diretamente para o saleiro com uma cara surpresa, e começando a babar. — Quero quatro sanduíches de tomate e ketchup, com pouca manteiga, e meio copo de concentrado de laranja, sem água. — A boca de Molly ficou cheia d’água. Era uma maravilha poder pedir suas coisas prediletas.

O garçom parecia espantado.

—    Devo trazer um pouco d’água para você misturar no suco?

—    Não, obrigada. Mas uma tigela d’água para a nossa cachorrinha seria ótimo. — Petula estava sentada lealmente aos seus pés, inclinando a cabeça para o lado enquanto Edna punha a língua para fora e fazia um brrrrr, como um barulho de pum.

—    E para a senhora? — perguntou o garçom.

—    Eu adoro a porcaria da Itália — disse Edna, chupando um garfo.

—    É bom passar o dia fora do hospital, não é? — disse Molly para Edna com gentileza, como se ela estivesse saído de um hospício. O garçom deu um sorriso simpático.

Vinte minutos depois, após o café da manhã mais embaraçoso da vida de Molly, elas estavam voltando para o orfanato. Passaram pelas lojas da cidade. Passaram pela TireFoto, a loja de material fotográfico, passaram por uma loja de bicicletas chamada Raios, passaram pela loja de antigüidades com o nome pintado em letras cheias de curvas, Ouro de Moffo. Molly pensou nas coisas que sempre havia desejado, e se sentiu no topo do mundo. A Srta. Viborípedes provavelmente tinha montanhas de dinheiro do orfanato em sua conta bancária. Tudo que Molly precisava fazer era hipnotizar Viborípedes e convencê-la a ir fazer compras. Molly olhou para Edna ao lado, que estava sorrindo como uma idiota com a boca escancarada. Ela estava completamente sob o feitiço de Molly. Será que todo mundo seria tão fácil de hipnotizar como Edna? Até agora, Molly parecia ter um talento natural.

—    Edna — disse Molly. — Quando a gente voltar, você vai até a cozinha, e assim que passar pela porta, vai acordar. Vai se esquecer de nossa ida à cidade. Não vai saber que eu hipnotizei você. Vai dizer à Srta. Viborípedes que eu desci para pedir um comprimido para dor de cabeça e que você acha que eu estou muito doente. Entendeu?

Edna confirmou com a cabeça.

—    E, de agora em diante, sempre que me ouvir bater palmas uma vez, vai entrar direto em transe de novo, e no transe sempre vai fazer o que eu mandar. E sempre que eu bater palmas duas vezes, você sairá do transe, sem se lembrar de nada que aconteceu. Está claro?

Edna assentiu de novo, com a boca aberta como uma boneca. Depois, batendo o pé com força no acelerador e a mão na buzina, fez o carro subir o morro.

O professor Nockman foi acordado de um sono frenético cheio de pêndulos e redemoinhos por um carro guinchando e buzinando alto na rua do lado de fora de seu quarto no Hotel Briersville. Esfregou os olhos e passou a língua sobre os dentes cobertos de tártaro.

— Aqui está mais barulhento do que Chicago — grunhiu consigo mesmo enquanto desemaranhava o medalhão de escorpião dos pêlos encaracolados do peito, e estendeu a mão para um copo d’água.

Depois da experiência frustrada na biblioteca, o professor tinha estendido sua permanência em Briersville. Decidiu que, se incomodasse suficientemente aquela bibliotecária patética, ela acharia o livro de hipnotismo. Ou, esperava, ele poderia ver alguém lendo-o. Briersville era uma cidade bem pequena.

Desde a quinta-feira vinha rondando as ruas, falando com pessoas que carregavam livros. Mães com filhos pequenos tinham atravessado a rua para evitá-lo, e um grupo de adolescentes o chamou de maluco, mas ele não se importou. Estava decidido a conseguir o livro do Dr. Logan.

Tinha motivos particulares para precisar dos segredos contidos nele, e esses motivos não tinham nada a ver com pesquisas de museu.

O professor Nockman sabia muita coisa sobre a vida do famoso hipnotizador. Tinha lido que Logan crescera em Briersville e viajara para a América, onde ficou rico e famoso com seu show de hipnotismo. Nockman tinha estudado recortes de jornais antigos e amarelados descrevendo os espantosos feitos de hipnotismo realizados pelo doutor no show que o tornou uma das maiores celebridades de seu tempo. Tinha visitado a Mansão Hipno, o palácio que Logan havia construído com o dinheiro que ganhou durante a carreira nos espetáculos.

Mas ficou especialmente fascinado quando soube de um livro que o Dr. Logan escrevera, e que aparentemente continha tudo que ele sabia sobre o hipnotismo e sobre como realizá-lo. Muito poucos exemplares do livro tinham sido impressos, e ele era extremamente raro. Mas o professor Nockman descobriu que um dos únicos exemplares que restavam pertencia à biblioteca de Briersville. A partir desse momento ficou absolutamente decidido a adquirir o livro. Quase tinha conseguido, até que aquela bibliotecária estúpida o perdeu.

Pensar na bibliotecária fez Nockman se sacudir de fúria. Imaginou-se apertando-lhe o pescoço magro, e o sangue lhe subiu à cabeça. Com o rosto arroxeado, estendeu a mão para o telefone.

— Serviço de quarto — falou com raiva. — Traga um bule de bibliotecária... quero dizer, de café.

Estava desesperado por aquele livro. Nunca quisera tanto uma coisa na vida. Nada em sua vida desonesta havia sido tão atraente, e ele tinha grandes planos que dependiam de encontrá-lo. Ninguém iria impedi-lo de ter o livro, e ele não voltaria aos Estados Unidos enquanto não tivesse o livro em segurança nas suas mãos oleosas e gordas.

 

Edna e Molly chegaram de volta ao orfanato num redemoinho de cascalhos que voavam. O lugar estava quieto e vazio, já que a Srta. Viborípedes ainda estava fora e as outras crianças não tinham voltado do passeio. Petula ficou do lado de fora, para explorar o jardim, e Molly voltou ao cômodo no sótão, sentindo-se muito satisfeita consigo mesma. Sentou-se na cama para pensar na coisa extraordinária que tinha acabado de fazer. Hipnotizar Edna quase tinha parecido um sonho. A música do rádio da cozinha subia fracamente pela escada enquanto Molly se maravilhava com seu novo poder. Seus olhos estavam cansados. Alguma coisa estranha havia definitivamente acontecido com eles quando ela hipnotizou Edna. A sensação era de que estavam brilhando, e agora pareciam opacos e pesados. Molly folheou o livro de hipnotismo para ver se havia alguma coisa sobre olhos luminosos ou cansados. No capítulo sobre “Como hipnotizar uma multidão”, havia uma parte que dizia:

“Tudo está nos olhos.”

Para hipnotizar uma grande multidão você precisa aprender a hipnotizar usando apenas os olhos. Isso é muito cansativo para os olhos. Treine os seguintes exercícios.

O livro tinha diagramas de um olho. Um olho olhando para a esquerda. Um olho olhando para a direita. Um olho olhando para objetos próximos e distantes. Depois Molly chegou a uma coisa chamada “O exercício do espelho”.

Fique na frente de um espelho e olhe direto para os seus olhos. Tente não piscar. Logo seu rosto vai começar a mudar de forma. Não se assuste. Seus olhos parecerão estar luminosos. Essa sensação de luminosidade é a sensação que você deve ter para hipnotizar as pessoas apenas com os seus olhos. E este é o truque do qual você precisa para hipnotizar uma multidão.

Então Molly havia hipnotizado Edna usando apenas os olhos? Molly tinha certeza de que havia usado a colher, como um pêndulo, e a voz também. Foi até o espelho e olhou para si mesma. Lá estava seu rosto rosado e pintalgado, e o nariz de batata. Olhou para os olhos muito próximos um do outro. Seus olhos a encararam de volta, verdes e intensos. Dez segundos, vinte segundos, trinta segundos, ela encarou. Seus olhos tremeram, e então pareceram ficar maiores, maiores e maiores. A música lá embaixo pareceu muito distante. Molly se concentrou nos olhos e tentou não piscar, tentando fazer com que seus olhos parecessem estar luzindo de novo. E então, de repente, aconteceu uma coisa curiosa. Molly perdeu o rosto inteiramente e, como se por mágica, um rosto diferente começou a surgir onde estivera o rosto verdadeiro. Os cabelos ficaram laranja e espetados. Um grande alfinete de segurança brotou na lateral do nariz, e as pálpebras se cobriram de maquiagem azul e branca. Ela estava se vendo como se fosse uma punk. As pernas de Molly ficaram arrepiadas, e seus olhos pareciam estar latejando, luzindo e latejando, acendendo e apagando como a luz de um farol na beira do mar. E isso, segundo o livro, era o truque para hipnotizar multidões. Piscou com força. Ficou aliviada ao ver seu rosto normal no espelho. Isso tinha sido muito estranho. Será que o exercício do espelho fez com que ela se hipnotizasse? Talvez o livro explicasse o que aconteceu.

Examinou a parte intitulada “O Exercício do Espelho”. Havia um parágrafo chamado “Hipnotizando Você Mesmo”.

Imagine formas de você mesmo que você gostaria de ter, sugeria o livro. Por exemplo, se você quiser ser mais gentil, ou mais corajoso, imagine-se mais gentil ou mais corajoso, e no espelho você verá um você alternativo.

Molly sentou-se, perplexa. Não tinha se imaginado como uma punk, mas a visão simplesmente havia saltado do espelho. Era como se sua mente inconsciente quisesse que ela fosse uma punk e — através da hipnose — tivesse mostrado outra identidade. O que eram os punks? Ela sempre os havia considerado pessoas rebeldes. Molly certamente queria ser rebelde. Sim, parecia que sua mente inconsciente estava um passo adiante dela, mostrando como, lá no fundo, ela queria ser.

Depois de enfiar o livro de hipnotismo em segurança debaixo do colchão, sentou-se para imaginar que outras Mollys poderiam ser criadas. Depois, ainda pensando nisso, pegou um lápis e começou a fazer um buraco num pedaço de sabonete que estava na pia Puxou um pedaço de fio grosso da franja do cobertor, arrebentou-o e passou pelo sabonete. Agora tinha um pêndulo feito em casa. Não era muito bom, mas teria de servir, e mesmo estando cansada, havia tempo para experimentá-lo com Edna antes que os outros voltassem. Assim, depois de vestir o roupão, desceu a escada.

No caminho passou por Petula, que trotou toda feliz atrás dela. Molly continuou descendo a escada até estar no piso de pedra xadrez do corredor. Ouviu música de novo, vindo da sala de TV e, para sua surpresa, ouviu a voz gemida de Hazel Marretta cantando. De algum modo Hazel devia ter escapado do passeio matinal de sábado.

Molly foi pé-ante-pé e espiou pela porta da sala de estar. Viu Hazel vestida com uma fantasia de gato, de malha branca, sapatos de sapateado brancos e orelhas fofas num arco de cabelo. Era seu figurino para o concurso de talentos. Na mão balançava uma cauda branca, e enquanto dançava ela cantava.

“Desculpe se cacei aqueles pombos

Desculpe se matei aquele rato

Desculpe se gosto de roubar leite

O fato é que eu sou um gato... Miauuuu, miauuuu.”

Olhou Hazel sapateando pela sala, arregalando os olhos, tremulando as pálpebras e parecendo realmente estúpida. Molly queria ter uma máquina fotográfica. Depois teve outra idéia. Quando Hazel estava fazendo uma reverência, Molly respirou fundo e entrou.

— Ah, você não, Zunza... e você está com a fedorenta da Petula. Você não está melhor, está? — gemeu Hazel. Petula rosnou para ela.

—    Estou, um pouquinho melhor, obrigada — disse Molly, tirando do bolso o pêndulo de sabonete. Sentou-se na frente de Hazel e começou a balançar o pêndulo como se estivesse apenas brincando com ele.

—    O que é isso? — perguntou Hazel. — Precisa ficar carregando o sabonete porque suas mãos suam demais?

Molly levantou o pêndulo na frente do rosto e balançou-o num ritmo constante, de um lado para o outro.

—    O que você está fazendo?

—    Só re...la...xando — disse Molly.

—    Não está não, está tentando me hipnotizar — respondeu Hazel na bucha. — É bem típico de uma maluca que nem você, achar que o hipnotismo é uma coisa real.

Molly parou de balançar o pêndulo.

—    Não, não estou — falou rapidamente.

—    Você é esquisita demais — zombou Hazel, e Molly percebeu que tinha abordado Hazel de um modo muito desajeitado. Seus sucessos anteriores tinham feito com que se sentisse confiante demais. Agora Hazel estava muito alerta para ser hipnotizada.

—    Eu não estava tentando hipnotizar você. Isso não é um pêndulo, é... sabonete-no-barbante, para eu não perder na banheira.

—    Espero que você não esteja planejando tomar banho — disse Hazel de modo maligno, voltando a fita no gravador — porque Viborípedes não vai gostar de saber que você ignorou o castigo dela. Se você estiver coberta de vômito, deve continuar assim. Sem banho durante quatro semanas, não era?

—    Era. Eu só estou me preparando. Hazel olhou para Molly, enojada.

—    Maluca de pedra — falou. Depois, quando Molly estava saindo da sala, disse meio marota: —Por sinal, você ouviu dizer?

—    Ouvi o quê?

—    Rocky arranjou uma família.

As palavras pareceram um soco em Molly. Foi como se uma cascata de água gelada a houvesse encharcado da cabeça aos pés. Achou difícil falar.

—    Q... quando?

Hazel deu um sorriso cheio de desprezo.

—    Aquele casal americano que veio ontem. Espantoso, eles gostaram dele... Casal estranho. De qualquer modo, ele foi embora ontem Não se despediu de você, despediu? Isso foi porque, bem, ele me disse que estava cheio de você. Disse que era como comer demais uma coisa só. Disse que estava com uma espécie de overdose de você... Disse que escreveria para você.

—    Você está brincando... ou pelo menos inventando.

—    Não, não, não estou brincando, mas acho engraçado — respondeu Hazel com frieza.

Molly encarou o rosto maldoso de Hazel.

—    Mentirosa — falou, virando-se. Mas, por dentro, emoções violentas a queimavam.

Rocky tinha ido embora? A idéia era terrível. Molly não podia acreditar. A idéia de perder Rocky era devastadora, como perder o braço, a perna ou toda a família de uma vez, porque ele era toda a família de Molly. Hazel devia estar brincando. Rocky nunca iria embora sem consultá-la. De fato, ele não iria embora se ela não fosse adotada com ele. Esse sempre tinha sido o pacto dos dois. Se fossem embora, iriam juntos. A provocação de Hazel simplesmente havia chegado a um novo nível.

Mas uma suspeita pavorosa encheu Molly — de que Hazel não estivesse mentindo. Enquanto safa da sala e ia para a escada, um medo crescente gelou seu coração. Suas mãos úmidas começaram a suar, mas ela sentia um frio intenso. No patamar do primeiro andar, a luz que vinha da porta do quarto dos meninos iluminava o corredor, familiar e amigável. Ao ver isso Molly soube que as coisas de Rocky iriam piscar para ela assim que entrasse no quarto dele. Iria se sentir uma idiota por ter caído na história de Hazel. Mas, a cada passo que dava, sua cabeça ficava mais tonta. Depois a verdade medonha a golpeou, inegável como um tapa na cara.

A cama de Rocky estava sem os lençóis, e os três cobertores estavam dobrados em retângulos bem arrumados, e o travesseiro sem fronha. A mesinha-de-cabeceira estava sem nenhuma revista em quadrinhos. O guarda-roupa estava aberto e as roupas dele tinham sumido.

Molly quase não podia respirar. Um terror invisível parecia ter agarrado seu pescoço e seu cérebro, de modo que ela não conseguia usar os pulmões. Tombou de encontro ao batente da porta, olhando para o canto anônimo e para a cama sem dono.

— Como é que você pôde? — sussurrou. Em seguida atravessou o quarto num passo trôpego e se sentou no velho colchão de Rocky. Passou-se um pouquinho de tempo até ela conseguir respirar normalmente e pensar com lógica. No coração, tinha certeza de que Rocky não iria embora sem se despedir, a não ser que tivesse um motivo muito bom. Eles haviam discutido, mas não foi tão sério, e mesmo que Rocky andasse cheio de segredos ultimamente, Molly não acreditava que ele estivesse enjoado dela. Essa parte da idéia era devida à imaginação maligna de Molly. Mas o que poderia explicar o súbito desaparecimento? Os dois eram como irmãos. Ele não poderia ser tão distraído assim. Tudo isso era muito estranho.

Sem Rocky, Molly não tinha ninguém. Ninguém a não ser Petula. As crianças menores eram legais, mas eram muito pequenas para ser suas amigas. Viver ali sem Rocky era inconcebível. Precisava descobrir onde ele estava e falar com ele.

Mas enquanto se arrastava escada acima até o quarto no sótão, sentiu-se confusa e perdida. Atordoada, abriu a torneira da pia para lavar o rosto. Estava perplexa, perturbada e desorientada. Olhou-se no espelho. Lá estavam aqueles olhos muito próximos um do outro, queimando com lágrimas. Encarou atentamente seu reflexo, lembrando-se do que tinha acontecido quando havia feito o exercício do espelho. Talvez, se imaginasse que estava se sentindo bem, poderia se hipnotizar para ficar feliz.

Enquanto olhava, suas feições desapareceram, e a música cheia de miados do sapateado de Hazel vinha até cá em cima, e Molly imaginou que não se sentia tão mal. Num instante seu rosto mudou. Suas bochechas ficaram mais cheias e mais rosadas, o cabelo, mais macio, mais louro e mais encaracolado. Cresceram fitas nele. Ela estava bonita! Como uma estrela infantil. Era incrível! Molly começou a sentir um arrepio, como o sentimento de fusão, subindo pelo corpo de novo. Sua depressão sumiu como um casulo velho e cascudo, substituído pelo otimismo. Mais uma vez, através do espelho, sua Molly inconsciente estava dizendo como queria ficar, e como poderia mudar.

Enquanto a Molly estranha e bonita a encarava de volta, a idéia chegou. Uma idéia gigantesca e espantosa.

Ela possuía o truque do olho. E o truque do olho era o truque de hipnotismo usado com multidões. Haveria uma platéia — uma multidão de gente olhando — no concurso de talentos da cidade, dali a alguns dias. Alguém tinha de ganhar o concurso, com o enorme prêmio em dinheiro. Por que esse alguém não poderia ser Molly?

Molly piscou — e era ela mesma de novo. Mas agora estava com esperança. Recusava-se a acreditar que Rocky a odiava, mesmo que ele tivesse ido embora.

Decidiu imediatamente. Iria descobrir onde ele estava, iria arranjar um modo de sair do Lar Vidadura e depois se juntar a ele. Talvez fosse difícil mas, Molly prometeu a si mesma, usaria cada grama de energia e talento para achar Rocky, e não desistiria enquanto não estivessem juntos de novo.

 

No fim da tarde de sábado Molly estava boa. Mesmo se sentindo melhor do que antes, sentia falta de Rocky. Durante as orações do início da noite, enquanto as outras crianças sussurravam agitadas sobre a adoção de Rocky, Molly estava triste e sentia falta da voz dele. Desejava olhar para ele, para seu cabelo preto e brilhante com os caracóis apertados, para a pele lisa e negra, e para os olhos suaves e escuros. Sentia falta dos jeans remendados dele, que a cada semana tinham novos buracos, e das mãos que, com freqüência, estavam cobertas de rabiscos de caneta. Mas acima de tudo sentia falta do sorriso confiante. Enquanto murmurava as palavras do hino, sentia a perda como um apavorante abismo de vazio, bem no fundo dela. Depois juntou as forças e prestou atenção nos cheiros deliciosos que vinham da sala de jantar. Enquanto a Srta. Viborípedes fazia os anúncios da noite, a boca de Molly se encheu d’água.

—    O primeiro anúncio é o seguinte: Gemma e Gerry, vocês dois ficarão com a tarefa de limpar as janelas todas as tardes da semana que vem, já que ficaram fofocando o tempo todo durante as orações. A partida de Rocky Scarlate deve ser de grande interesse para vocês, mas não é para mim. Sempre deve haver silêncio durante as orações. —A Srta. Viborípedes fungou e Gemma e Gerry se olharam, carrancudos.

A Srta. Viborípedes continuou:

—    Segundo anúncio: amanhã é o Concurso de Talentos de Briersville. Creio que alguns de vocês vão participar. Vocês irão da escola até a prefeitura para chegar à uma hora, para o concurso. O prêmio em dinheiro, como vocês sabem, é uma ridícula quantia de três mil libras, e se algum de vocês ganhar, espera-se que doem o prêmio para o orfanato. Está claro?

—    Sim, Srta. Viborípedes.

—    Depois do jantar teremos uma breve prévia. — A Srta. Viborípedes olhou para Hazel e sorriu seu sorriso de dentes falsos. Depois o sorriso sumiu do rosto. — Molly Moon, vejo que está boa de novo. Vai ficar sozinha numa mesa durante o jantar, já que não posso permitir que outras crianças peguem o que você teve.

—    Sim, Srta. Viborípedes.

Molly seguiu os outros até a sala de jantar. Ninguém falou com ela, mas ela não se importou. Lá dentro, as mesas de tamanhos diferentes estavam arrumadas com guardanapos e velas, e Edna estava parada triunfante ao lado de uma grande panela fumegante, cheia de espaguete com ervilhas e legumes. O cheiro era realmente bom.

—    Espaguete primavera — declarou Edna dramaticamente. — Que nem minha mamma fazia. — E levantando um pão com azeitonas, acrescentou com orgulho: — E meu pão ciabatta feito em casa. — O pão tinha uma bandeirinha italiana enfiada, como todos os outros pães sobre a mesa. Atrás de Edna, na parede, havia um mapa da Itália.

—    Ficou louca, Edna? — perguntou a Srta. Viborípedes com frieza.

—    Não. Por acaso eu tenho um amor pela Itália, bem no fundo da alma, e às vezes ele sai.

—    Ele nunca saiu antes.

—    Nunca saiu antes na sua frente — disse Edna. — Mas sempre há uma primeira vez para tudo...

—    Bom, espero que tenha feito a minha comida normal... não quero essa gosma italiana.

—    Certamente, Srta. Viborípedes.

Sem se impressionar, a Srta. Viborípedes foi até a sua mesa, onde havia um prato de fígado e torta de rim. Enquanto essa comida esfriava, ela se serviu de uma taça de xerez que bebeu cobiçosamente, enquanto as crianças faziam fila para o jantar. Molly notou que Edna deu a Hazel, Gordon e Roger pratos especiais de espaguete. Espaguete extraquente, apimentado, esperava ela. Parecia que Edna tinha se lembrado de todas as instruções. Muito impressionada, Molly ocupou seu lugar numa pequena mesa solitária perto da janela. De lá tinha uma boa visão de todos os outros.

O espaguete de legumes de Edna era fantástico. Molly olhou para o rosto das crianças pequenas enquanto elas provavam. Gemma, Gerry, Ruby e Jinx estavam devorando, como se a comida fosse ser arrancada deles antes que terminassem. Sem dúvida era a melhor coisa que Edna já fizera. Mas não para Hazel, Roger e Gordon. Todos eles ofegaram e cuspiram depois de enfiar um bocado na boca.

—    Passe a água — grasnou Hazel. Gordon Furúnklus se esqueceu de que Hazel era a chefe. Encheu seu copo primeiro e engoliu tudo.

—    Gordon! — exclamou Hazel com rispidez. Ele serviu um pouco d’água para Hazel e depois Roger pegou a jarra.

—    Isso... é... horrível — disse Hazel, engasgando e apontando para o seu espaguete.

E a quatro mesas de distância a voz de Edna estrondeou:

—    O que você disse? — A comida de Edna havia melhorado, mas não Edna, e seu humor era feroz como sempre. Ela veio marchando e as crianças se encolheram nos bancos. — O que você disse sobre a porcaria da minha comida, Hazel Marretta? Caramba!

—    Bom, para mim está apimentada demais — disse Hazel numa voz de minhoca. Ela não estava acostumada a levar broncas.

—    Apimentada? Ficou maluca, sua besta? Você está comendo espaguete primavera, caramba. É italiano, Hazel Marretta... da terra das oliveiras e da ópera. Se você não pode sentir o gosto dessa finura e o calor das colinas na minha massa, se você acha que o sol de verão na minha comida é quente demais, então acho que você é uma panaca total, completa e absoluta, e vá se catar!

Hazel olhou para o prato, e suas sobrancelhas subiram e desceram. Edna parecia ter enlouquecido.

—    Está delicioso, Edna — disse Molly em voz alta. Hazel lançou-lhe um olhar que parecia uma faca.

Edna deu um sorriso de agradecimento.

—    Obrigada, Molly — e riu de orelha a orelha.

—    Molly Moon — gritou a Srta. Viborípedes do outro lado da sala de jantar. — Por mais que você tenha gostado da comida de Edna, sabe que é contra as regras do orfanato gritar na sala de jantar. Mais tarde venha à minha sala para receber seu castigo. — Depois ela bebeu a taça de xerez num gole só e soltou um arroto bêbado.

Perfeito, pensou Molly, olhando para Edna e imaginando se ela havia se lembrado das outras instruções. Edna estava encarando a Srta. Viborípedes com um olhar ultrajado. Um jorro de vermelho estava começando a encher suas bochechas, e seu rosto estava se revirando em contorções de fúria.

—    Alguma coisa errada, Edna? — perguntou rispidamente a Srta. Viborípedes.

O rosto de Edna foi ficando vermelho e vermelho e vermelho como o centro de um vulcão derretido. Então ela explodiu:

—    Errada... Errada? Molly Moon só elogiou minha comida, Agnes Viborípedes...

A boca da Srta. Viborípedes se abriu, atônita, e um pequeno pedaço de rim caiu dela. Nunca Edna havia respondido a ela ou a chamado pelo primeiro nome diante das crianças.

—    ... ela elogiou meu espaguete primavera... talvez em voz alta, mas eu gosto dos elogios dela em voz alta, e mais, eu gosto dela. Eu gosto dela de montão. Gosto dela mais do que de comida italiana, que eu gosto mais do que tudo no mundo, e você, VOCÊ DEU UMA BRONCA NELA! — Edna apontou uma das bandeiras italianas para a Srta. Viborípedes e rugiu: — Você não vai castigar Molly Moon mais tarde, caramba... Nem por cima da porcaria do meu cadáver!

A Srta. Viborípedes pousou a faca e o garfo e se levantou.

—    Edna, acho que talvez você precise de uma folga.

—    Uma folga? Você deve estar brincando. Meu trabalho só começou. Eu tenho uma porcaria de uma montanha para escalar. Tenho toda a culinária italiana para aprender. — Agora Edna pôs a bandeira italiana no peito, como se fizesse um juramento, e para espanto de todos subiu numa cadeira e depois numa mesa. — Porque eu vou me tornar a melhor chefe de cozinha italiana do mundo.

Todo mundo ficou olhando. Gordon Furúnklus não pôde resistir a olhar por baixo da saia dela e tentar ver a lendária tatuagem na coxa. A Srta. Viborípedes andou em passos inseguros até a porta da sala de jantar.

—    Edna — disse ela com seriedade. — Eu gostaria de falar com você depois.

—    Não vai terminar o seu jantar? — perguntou Edna, lá das alturas.

—    Não, eu também achei meu jantar apimentado demais. Enquanto a Srta. Viborípedes saía, Edna murmurou baixinho:

—    Vaca velha. Ela deveria ter experimentado o meu espaguete.

 

Depois do jantar, Molly foi obedientemente até a porta do apartamento da Srta. Viborípedes e bateu. A Srta. Viborípedes abriu a porta e pôs imediatamente um lenço sobre a boca ao vê-la.

A sala da Srta. Viborípedes era escura, com as paredes forradas de madeira pintada de marrom-chocolate e mobiliada com poltronas cor de ameixa. Um tapete verde estampado cobria o chão, e todo o lugar cheirava a naftalina, xerez e, por cima de tudo, um pouco de anti-séptico bucal. Havia duas mesinhas com toalhas de renda, mas nenhuma foto emoldurada, como se a Srta. Viborípedes não tivesse família nem amigos. Três abajures com franjas iluminavam a sala, deixando ver os quadros nas paredes. Todos os quadros eram de bosques escuros, rios escuros e cavernas escuras. Enquanto Molly pensava em como aquilo era assustador, Petula foi até ela, largou uma pedra aos seus pés e lambeu seu joelho. Molly lhe deu um tapinha.

—    Controle-se, Petula — disse a Srta. Viborípedes. E depois: — Sente-se. — Molly e Petula se sentaram imediatamente. Molly num banco duro perto da lareira apagada. Por um momento a sala ficou em silêncio, a não ser pelo som da Srta. Viborípedes chupando sua dentadura e, Molly tinha certeza, pelo som de seu próprio coração batendo. Estava extremamente nervosa. A Srta. Viborípedes era seu maior desafio até agora, e havia uma chance horrível de que aquilo desse errado, especialmente porque não tinha uma colher de pau nem qualquer tipo de pêndulo em que concentrar a mente da Srta. Viborípedes. Mas seus nervos foram controlados pelo ódio contra a Srta. Viborípedes que, de propósito — e portanto maldosamente —, devia ter deixado Rocky ir embora sem se despedir dela.

O relógio de cuco na parede rompeu o silêncio com seu toque rouco, oco: “Cucoooo!”. Molly deu um pulo. A Srta, Viborípedes fez uma cara de desprezo. O relógio cucou mais seis vezes. Molly olhou o pássaro de madeira empoeirada, com o bico quebrado, sair e entrar na casa do cuco, preso à sua mola, até finalmente desaparecer no buraco. A Srta. Viborípedes se virou para olhar pela janela, e falou:

—    Como você sabe, Rocky foi embora. Ele era responsável por muitas tarefas da casa, que agora terão de ser feitas por outra pessoa. Decidi dar todas elas a você, uma vez que você é o tipo de criança que vai aprender muito com o trabalho duro. Aquela sua manifestação na sala de jantar, que provocou Edna, foi muito vulgar. A culpa é inteiramente sua.

Quando a Srta. Viborípedes se virou, Molly estava olhando para baixo.

—    Tenha a cortesia de prestar atenção quando estou falando com você.

Molly trincou os dentes e levantou a cabeça. Tinha invocado a sensação especial no olhar, e agora, enquanto fitava os olhos medonhos e sem alegria da Srta. Viborípedes, seu novo poder, como um raio laser apontado, saltou para o próprio âmago da alma dela. A Srta. Viborípedes se virou. Sentiu-se estranhamente instável.

—    Obrigada, assim está melhor — conseguiu dizer do modo mais normal que pôde. Estremeceu, imaginando se esse sentimento estranho era seu coração palpitando de novo. Depois de um gole de xerez, ela se sentiu melhor.

—    Como eu estava dizendo... — Os olhos frios da Srta. Viborípedes encontraram os de Molly de novo, atraídos para eles como uma mariposa é atraída para a luz. Ela não tinha poder para se impedir de olhar, por isso olhou. E, ao fazer isso, uma coisa curiosa aconteceu.

Toda a raiva da Srta. Viborípedes desapareceu, e todos os seus pensamentos também. Ela não conseguia se lembrar do que ia dizer. Só sabia que aqueles olhos verdes de Molly eram muito, muito relaxantes, e que ela estava experimentando uma sensação, quente, sonolenta, por dentro. E então, de repente, a Srta. Viborípedes tinha... ido embora. Os olhos de Molly latejaram e o sentimento de fusão atravessou seu corpo. Enquanto a cabeça da Srta. Viborípedes se inclinava para o lado e sua língua saía da boca, empurrando a dentadura para a frente, o nervosismo de Molly desapareceu. Era óbvio que agora estava no controle total. Quando começou a falar, sua voz parecia a de um anjo para a Srta. Viborípedes.

—    Agnes... Viborípedes... ouça. Agora você está... sob meu... comando. — A voz de Molly parecia ondas batendo numa praia. A Srta, Viborípedes assentiu. — De agora em diante eu não posso fazer nada errado, entende? Você vai gostar de mim tanto quanto Edna gosta... o que equivale a dez toneladas de gosto... Qualquer coisa que eu pedir, você vai me dar. — A Srta. Viborípedes assentiu debilmente. — E a primeira coisa que eu quero é o número do telefone de Rocky. Me dê agora.

A Srta. Viborípedes balançou a cabeça. E numa voz monótona, de robô, falou:

—    Eu... não... tenho... registro... eu... destruí... o... número. Molly ficou chocada. A Srta. Viborípedes obviamente não estava tão hipnotizada quanto parecia. Molly bombeou mais poder para os olhos.

—    Srta. Viborípedes, você deve me dar o número — falou incisivamente.

—    Eu estou dizendo... a verdade — disse a robô Viborípedes. — Eu... nunca... mantenho... registros... Eu sempre... destruo... as fichas... das crianças que vão embora. É sempre bom... vê-las... pelas costas... Eu gostaria de que todas elas... fossem embora... e me deixassem aqui... sozinha, menos você, Molly... — A Srta. Viborípedes gemeu. — Não vá embora, Molly.

Molly a ignorou. Então Viborípedes sempre jogava fora as fichas das crianças! Que coisa mais horrível!

—    Você precisa se lembrar da cidade para onde ele foi — ordenou Molly asperamente. — Ou o nome da família. Eu quero que você lembre.

A Srta. Viborípedes olhou obedientemente nas profundezas de sua mente cheia de teias de aranha.

—    O nome da família... era... Alabaster, a cidade era... era... não consigo lembrar... Era um... endereço comprido... na América. Perto de Nova York.

—    Você precisa lembrar! — Molly quase acordou a Srta. Viborípedes. Bombeou mais poder para os olhos. — Você deve se lembrar da cidade. — A Srta. Viborípedes se levantou atordoada, com os olhos se revirando na cabeça. — Ande — ordenou Molly. — Pense!

—    Polchester, Pilchester, Porchester — engrolou a Srta. Viborípedes. — Alguma coisa... assim.

—    Onde as fichas são guardadas? — exigiu Molly. — Mostre. Você não pode ter jogado fora tudo sobre o Rocky. Eu não acredito.

Humildemente a Srta. Viborípedes abriu um arquivo cinza no canto da sala.

—    Aqui — apontou ela. Aqui... estão todas... as fichas.

Molly empurrou a Srta. Viborípedes para o lado e remexeu ansiosa a gaveta. A ficha de Rocky não estava ali. Em vez disso, Molly viu seu próprio nome numa pasta. Puxou-a.

Enquanto a Srta. Viborípedes ficava parada como uma sentinela perto da mesa, Molly abriu sua pasta. Dentro havia um passaporte e uma folha de papel.

—    É só isso que você tem sobre mim? Nenhum relatório... nada mais?

—    Só isso — confirmou a Srta. Viborípedes.

 

Nome

Molly Moon

Data da nascimento

?

Local de nascimento

?

Pais

?

Como chegou ao lar Vidadura

Deixada na porta

Descrição da criança

?

 

E na letra torta da Srta. Viborípedes estava escrito: “Criança comum. Sem nada de notável. Deslocada. Não agradável.” E era só.

Molly olhou para o pedaço de papel. Mais do que nunca na vida sentiu-se uma ninguém. Abriu seu passaporte, que nunca tinha visto, apesar de se lembrar de ter tirado a foto para ele. A Srta. Viborípedes sempre mantinha os passaportes das crianças atualizados para, no caso de algum estrangeiro vir adotá-las, poderem ir embora para casa imediatamente com a criança escolhida. Uma Molly Moon de seis anos sorria empolgada no passaporte. Molly se lembrou de como tinha ficado ansiosa para tirar a foto, e de como a Srta. Viborípedes havia zombado dela por ter sorrido quando o flash espocou. Molly sentiu uma enorme vontade de proteger a menininha da foto. Olhando cheia de ódio para a rígida solteirona à sua frente, imaginou como uma pessoa poderia ser tão absolutamente desprovida de gentileza. Então, enquanto percorria com o olhar a sala gélida, ficou subitamente cheia de curiosidade. Imaginou o que conteria a ficha da Srta. Viborípedes, se ele tivesse uma. Por isso perguntou.

A resposta da Srta. Viborípedes fez a sala sinistra parecer ainda mais fria e escura.

— Minha mãe... foi para um asilo de loucos... depois de eu nascer. Meu pai era bêbado. Eu fui... morar... com minha... tia. Ela era... cruel. Ela... me batia. Meu tio... me batia também. Eles eram... muito, muito rígidos.

Molly não tinha esperado isso. Por um segundo sentiu uma onda de simpatia pela Srta. Viborípedes. Parecia que ela tivera uma vida pior do que a sua. Mas Molly se controlou imediatamente, e afastou da mente qualquer pensamento de compaixão. Pegou sua ficha triste na pasta, junto com o passaporte, e enfiou no bolso. Depois enxugou as mãos suadas na saia e se concentrou de novo.

—    Certo. Agora, Srta. Viborípedes, eu vou colocá-la num transe... ainda mais profundo... e... você... vai... obedecer... a tudo... que... eu disser.

A Srta. Viborípedes assentiu como um brinquedo de corda, e Molly lambeu os lábios. Durante toda a vida de Molly ela fora o alvo para a maldade da Srta. Viborípedes. Agora era a hora da vingança.

Vinte minutos depois Molly deixou os aposentos da Srta. Viborípedes, com Petula trotando atrás. Sentia-se mais poderosa do que nunca.

O ensaio geral para o show de talentos era às oito horas, no salão. Molly se sentou no oitavo degrau da escada, para poder ver bem. Quando a Srta. Viborípedes subiu no arremedo de palco, diante da lareira vazia, Molly se recostou e deu um suspiro fundo, satisfeito. Porque a Srta. Viborípedes havia se fantasiado. Estava usando uma camisola rosa cheia de frufrus e botas de borracha. Na cabeça usava um sutiã, e no pescoço, pendurada num barbante, estava sua dentadura.

—    Boa noite, todo mundo — disse ela numa voz cantarolada, a boca parecendo uma caverna borrachuda sem os dentes. Depois levantou a camisola e mostrou as calçolas a todo mundo.

—    Epa, epa!

Todas as crianças que olhavam ficaram quietas, totalmente pasmas, diante das pernas brancas e enrugadas da Srta. Viborípedes. A mudança era tão dramática que era como se um marciano tivesse pousado na sala.

—    E vamos começar o show! — anunciou a Srta. Viborípedes num floreio. Batendo os dentes falsos no ar como se fossem castanholas, sapateou com as botas, e com um floreado flamenco saiu do palco e se sentou numa cadeira na lateral do salão.

Alguns risinhos nervosos, contidos, brotaram aqui e ali. Então a Srta. Viborípedes guinchou do seu modo rabugento de sempre:

—    Gordon Furúnklus! Cuspa esse chiclete!

Gordon Furúnklus se encolheu na cadeira. Ele preferiria levar uma bronca da antiga Srta. Viborípedes. Esta Viborípedes era assustadora.

—    Desculpe, Srta. Viborípedes — falou numa voz minúscula, cuspindo o chiclete e colocando no bolso.

Molly subiu no palco.

Cynthia e Craig vaiaram em uníssono.

—    Argh, saia daí, Zunza Periga.

Molly olhou para os sapatos, concentrando-se na sensação dos olhos com, muita, muita força. Tentaria hipnotizar todo mundo usando apenas os olhos.

—    Qual é o problema... esqueceu a música para cantar com essa voz de zumbido?

—    Chega disso — falou com rispidez a Srta. Viborípedes, batendo as castanholas de sua dentadura e mordendo o ar com ela. — Qualquer um que fizer bagunça vai levar uma mordida!

Todo mundo ficou quieto. Então Molly levantou devagar os olhos para a platéia. Eles cintilavam para o pequeno grupo, como um farol de busca. E cada pessoa ali foi apanhada, atordoada como um coelho diante dos faróis de um carro. Molly se sentia como se estivesse jogando um jogo de computador. A cada vez que uma pessoa a olhava nos olhos, ela sentia as defesas da pessoa caírem. Trabalhou pelas fileiras. Gemma, Gerry, Ruby e Jinx foram os mais fáceis, mas até os mais velhos foram um passeio. Todos os olhos que normalmente mostravam escárnio e nojo estavam vazios e sem expressão. Gordon, Roger... Então alguém bateu no ombro de Molly.

—    Acho que eu sou a primeira — disse a voz aguda e maldosa de Hazel. Molly se virou e lançou seu olhar sobre Hazel. Os olhos semicerrados de Hazel desafiaram os de Molly. Então seu rosto estremeceu de um modo estranho.

Os olhos de Hazel ficaram esquisitos. Ela estava olhando para Molly — a feia e impopular Molly, que ela não olharia durante muito tempo, mas por algum motivo agora seus olhos pareciam magnetizados. Tentou olhar para outro lado, mas não conseguia. E, como alguém que se agarrasse à margem de um rio, sendo puxada por uma correnteza forte, Hazel, fraca demais para se segurar por mais tempo, soltou-se.

A sala ficou em silêncio. Todo mundo estava ali sentado, arregalado e apalermado. Molly olhou em volta, satisfeita e muito impressionada consigo mesma por não ter precisado usar a voz.

—    Dentro de um minuto eu vou me sentar. Quando eu fizer isso, vou bater palma. Quando vocês me ouvirem bater palma, vão todos sair do transe e não vão se lembrar de que eu hipnotizei vocês... E de agora em diante, sempre que se lembrarem das coisas ruins que falaram ou que fizeram com Molly Moon, vão bater na própria cabeça com qualquer coisa que estejam carregando.

Molly deixou o palco e se sentou. Bateu palma com força uma vez. Não tinha hipnotizado todo mundo para que a amassem. Não precisava disso agora. Só queria ter certeza de que podia controlar um grupo grande, e podia. Enquanto o salão voltava à vida ao seu redor, Molly enfiou a mão no bolso, tirou o papel que tinha achado nos arquivos de Viborípedes e o rasgou.

Até agora Molly havia sempre se dado mal. Agora ia ter o que lhe era devido. Uma vida como o mundo dos seus anúncios prediletos. Essa vida poderia estar logo ali adiante. Molly estremeceu de expectativa enquanto pensava em todas as coisas lindas que sempre quisera mas que nunca teve. Encheria os bolsos com o dinheiro do prêmio do concurso de talentos, mas isso seria só para começar. Tinha certeza de que, com a arma do hipnotismo, nunca mais ficaria sem dinheiro. E quanto às pessoas, Molly decidiu que, dali em diante, ninguém iria castigá-la, beliscá-la, mandar nela, brigar com ela ou ignorá-la. Agora ela seria alguém, e o mundo que se cuidasse, porque uma nova e brilhante Molly Moon estava para atravessar o éter e ofuscar o planeta.

 

Na manhã seguinte o orfanato acordou com o cheiro maravilhoso de croissants frescos e pão de pizza, e o aroma combinava com o humor ensolarado de Molly.

O tema italiano de Edna estava indo a pleno vapor na sala de jantar. Ela havia trazido seu aparelho de som, e uma ópera tocava a todo volume. Sobre as mesas havia livros sobre a Itália.

—    Esteve na biblioteca, Edna? — perguntou Molly, pegando um croissant crocante e um bolinho doce num prato.

—    Sim, veja bem, eu sou fã da Itália — explicou Edna educadamente, como se Molly não soubesse. — Eu adoro a Itália, particularmente a culinária italiana. A porcaria dos italianos realmente sabem viver. — Ela serviu chocolate quente para Molly.

—    Deixe-me fazer isso, Edna — disse a Srta. Viborípedes com um sorriso sem dentes, tirando o bule de chocolate da mão teimosa de Edna. — Molly, querida, onde você gostaria de se sentar?

Em seguida levou Molly até a janela, como se ela fosse alguém da realeza. Crianças sussurravam enquanto a Srta. Viborípedes passava, com o colar da dentadura balançando a cada passo. Nessa manhã ela estava com uma calçola enorme enfiada na cabeça. Usava seu conjunto turquesa, só que tinha sido recortado de modo maníaco, cheio de talhos e rasgos. Parecia a criação louca de algum estilista pirado.

—    Gosto da sua roupa — disse Molly.

—    Ah, obrigada, obrigada, Molly. Eu mesma fiz ontem à noite, com uma tesoura.

Atrás delas, alguém gritou. A Srta. Viborípedes se virou com sua expressão maligna de sempre (porque nada havia mudado no modo como ela se sentia com relação às outras crianças) e ficou horrorizada. Hazel Marretta tinha batido em si mesma com a caneca e derramado todo o chocolate na cabeça.

—    O que você acha que está fazendo, Hazel? — perguntou furiosamente a Srta. Viborípedes. — Com licença, Molly.

Houve outro grito quando Roger derramou leite em todo o cabelo. A Srta. Viborípedes bateu com as castanholas da dentadura e baixou sobre ele como uma lagosta mal-humorada.

—    Ora, Roger Pikuinhas. Por causa disso você ganhará uma dentada. — E abrindo caminho clicando os dentes, ela foi até o trêmulo Roger e lhe deu uma dentada maligna no braço.

—    Aaaaaaiiii! — gritou Roger, com os olhos arregalados de espanto.

Molly se encolheu. Não tinha hipnotizado a Srta. Viborípedes para ser tão feroz.

Edna, que tinha vindo para perto de Molly, sussurrou em seu ouvido:

—    Acho que Agnes ficou meio pirada da idéia, caramba. Quando Molly saiu da sala de jantar, viu Gordon Furúnklus batendo na própria cabeça com um croissant. Olhou-o, preocupada.

Molly não foi à escola dominical. Em vez disso, durante a manhã inteira, Edna e a Srta. Viborípedes ficaram à sua disposição. Edna fez seus petiscos maravilhosos e a Srta. Viborípedes fez uma massagem em Molly enquanto Petula ficava sentada em seu colo. Ao meio-dia Molly estava se sentindo maravilhosamente relaxada e pronta para o desafio da tarde.

As outras crianças partiram a pé, mas Edna acompanhou Molly até o microônibus, carregando sua bolsa de lona e abrindo a porta de trás para ela. Depois subiu no banco da frente com a Srta. Viborípedes. Molly, com Petula no colo, foi levada até a prefeitura de Briersville.

A prefeitura era um prédio vitoriano, de pedra, com telhado de cobre esverdeado e manchado. A escada se abria em leque em duas direções, como um bigode na frente do prédio. E hoje os degraus estavam cheios de crianças. Crianças vestidas com todo tipo de figurino. Vestidos de cetim, cartolas e fraques. Algumas estavam vestidas para cantar e dançar, algumas para fazer mágica, algumas para representar um papel, e algumas estavam vestidas para fazer um número de comédia. Todas estavam preparadas para o concurso de talentos. E cada criança estava acompanhada por um dos pais. Molly achou difícil passar. Havia pais amarrando cabelos, dando pontos de última hora em bainhas e repassando instruções.

—    É só botar para fora, Jimmy... Mostre a eles do que você é feito.

—    Sally, não esqueça de sorrir quando estiver cantando.

—    Lembre, Angélica, tudo está nos olhos. “Certamente está”, pensou Molly, enquanto ia subindo a escada.

Ninguém notou a garota simples e desajeitada que se espremia passando. Ninguém notou o microônibus estacionado na rua, esperando sua volta.

Segurando com força a sacola de lona onde estava o livro de hipnotismo, Molly foi até uma mesa na ante-sala.

—    Nome? — perguntou uma senhora com óculos de aro de cristal de rocha.

—    Molly Moon.

—    Endereço.

—    Orfanato Lar Vidadura.

A mulher entregou a Molly um cartão com seu nome.

—    Esteja nos bastidores antes do show começar, e vão lhe dizer quando chegar sua hora. Boa sorte — disse ela com um sorriso gentil.

—    Obrigada, eu vou precisar.

Molly seguiu por um corredor com piso de parque até o Grande Salão de teto alto, onde centenas de cadeiras de metal com assentos de lona vermelha estavam enfileiradas, algumas já ocupadas. Molly viu uma plataforma baixa no meio da sala, com seis cadeiras em cima. Eram para os jurados.

Os corredores ao redor de Molly ecoavam com vozes cantando escalas musicais, enquanto os concorrentes se aqueciam. Ela passou por Hazel e Cynthia, que lhe fizeram careta, e entrou na sala atrás do palco. Era como entrar numa gaiola com pássaros multicoloridos, todos guinchando e piando. Mães e pais ajeitavam os filhos, filhos ajeitavam as roupas. O nervosismo de última hora enchia o ar de tensão. A visão daqueles grupos familiares deu uma pontada de inveja em Molly. Ela se virou e se sentou no canto, diante de um aparelho de televisão que estava ligado e sem som. Sentiu que era justo vencer o concurso de talentos. Aquelas outras crianças tinham a vida fácil comparada com a dela. Mas sua confiança estava se esvaindo. Olhou a TV, esperando ficar calma, e tentando fazer com que as palmas das mãos parassem de suar.

Um intervalo comercial mostrou o anúncio do Qube. O mesmo homem do cartaz do Qube acima de Briersville estava agora na televisão, bebendo uma lata de Qube. Molly se sentiu muito à vontade, e sua concentração se fixou no anúncio familiar. “Aahh, você é tão bonito, posso tomar um gole do seu Qube?” Molly disse as falas da mulher que estava de biquíni brilhante. Depois ecoou os pensamentos do herói do anúncio. “Ei, o mundo realmente parece melhor com uma lata de Qube na mão.” Agora Molly sabia que uma voz profunda, por cima das imagens, estava dizendo: “Qube... sua sede vai e sua sorte vem!”

Molly assistiu e sentiu saudade de Rocky. Eles sempre riam juntos quando representavam o comercial de Qube. Queria que os dois estivessem agora naquela praia paradisíaca. Mas naquele momento a Sra. Assapa entrou na sala de espera. O espirro explosivo da professora arrancou Molly de seus pensamentos.

—    Aaaaaatchchchchiiimmm. Ah — disse ela cheia de desdém, enxugando o nariz com um lenço. — Estou surpresa em ver você aqui. Não sabia que você possuía algum talento especial.

—    A senhora vai se surpreender — disse Molly friamente.

—    Eu sou juíza, veja bem — declarou a Srta. Assapa com outro espirro.

—    Eu sei, e estou realmente ansiosa para me apresentar para a senhora — disse Molly toda animada, enquanto a Srta. Assapa se afastava.

Depois de mais alguns minutos um homem de colete vermelho brilhante apareceu e começou a entregar cartões com números.

—    Eu posso ser a última? — perguntou Molly educadamente.

—    Sem dúvida. — O homem lhe deu um cartão com o número 32, e pegou o cartão que tinha o nome de Molly.

O concurso começou. Molly saiu do vestiário quando dois garotos começaram a brigar por causa de uma varinha mágica. Foi até os bastidores do palco e esperou, perto de uma mulher que estava sentada num banco, encarregada das cortinas. Dali tinha uma visão lateral do palco. Depois de cada número, a mulher puxava uma corda, e a pesada cortina de veludo se fechava com um jorro de ar mofado. O apresentador, que era o homem de colete vermelho, saltava na frente da cortina e anunciava cada número.

Molly ficou olhando os outros concorrentes. Sapateadores, malabaristas, mímicos, bailarinas, um garoto com uma bateria que fez um solo de cinco minutos e uma garota que fez imitações de astros da TV Algumas crianças levavam partituras para um pianista que estava sentado diante de um piano branco na lateral do palco. Ela ficou olhando ventríloquos, cantores, músicos, comediantes, e alguns que foram dominados pelo medo do palco. A cada vez que um número terminava, a pessoa descia a escada da frente para se sentar na platéia. A cada vez, o estômago de Molly estremecia de nervosismo.

Espiou por um buraco na cortina para ver como a platéia estava. Na primeira fila viu a gorda Sra. Brinklebury olhando, toda feliz. Mas Molly só podia ver as poucas filas da frente que eram iluminadas pela luz do palco. O resto da platéia estava no escuro. Isso a deixou em pânico. Se não pudesse ver os olhos da platéia, como poderia ter certeza de que eles estavam olhando para ela? Se uma mãe na última fila estivesse enfiando a mão na bolsa, ou se um juiz estivesse amarrando o sapato, não poderia olhar os olhos de Molly. Se todos não fossem hipnotizados, seu segredo iria se revelar. Molly não sabia como hipnotizar uma platéia inteira apenas com a voz. O capítulo sobre “Hipnotizando pessoas usando apenas a voz” tinha sido arrancado do livro. Isso era terrível.

— Número vinte e sete, Hazel Marretta — anunciou o apresentador.

Hazel entrou rapidamente no palco. Molly deveria ter desfrutado desse momento delicioso. Na noite anterior tinha tido um “encontro” com Hazel. Mas em vez disso estava preocupada pensando em como poderia ver a platéia.

A dança de Hazel começou. Uma dança? Na verdade era mais uns pulos no palco. Hazel pulava e batia os pés como se estivesse pregando pregos no chão. Cantava, ou melhor, gritava, sua canção do gato, cujas palavras tinham mudado. Agora era:

“Desculpem se eu não sei dançar Desculpem se eu sou bagunceira Desculpem se eu sou valentona Eu sei que só faço besteira.”

Quando ela saiu do palco sorrindo, como se tivesse acabado de ter um desempenho digno do Oscar, houve um silêncio chocado, antes que algumas pessoas começassem a bater palmas desenxabidas.

—    Minha nossa — disse a mulher sentada no banco —, acho que essa não vai ganhar.

—    Número 28 — anunciou o apresentador, e o estômago de Molly teve uma cãibra dolorosa, enquanto a confiança ia desaparecendo. A escuridão na platéia era aterrorizante. Ela se sentou, tentando se recompor, tentando ter a sensação nos olhos, mas a dúvida ficava impedindo, atrapalhando a concentração. Isso era pavoroso. E então a mente desesperada de Molly teve um pensamento. Ela esperou que desse certo.

—    Número trinta — disse o apresentador. Molly olhou e olhou para o chão.

O número trinta era um garoto que imitava pássaros, e fez a platéia soltar aahs e oohs. O número 31, uma garota vestida como uma deusa grega, foi em seguida. Enquanto ela cantava, Molly lutava para se controlar. Era agora ou nunca.

Concentrou os olhos e deu um tapinha no ombro do apresentador. Quando ele se virou, os olhos dela se cravaram nos dele. Em seguida Molly se virou para a mulher encarregada da cortina e olhou nos seus olhos também. O número 31 terminou. O homem todo alegre voltou para o palco.

—    E agora, por último, mas não menos importante — disse ele — temos o número 32... a Srta. Molly Moon.

Molly entrou no palco, com as mãos mais suadas do que nunca. A cortina se abriu e a luz quente do refletor acertou seu rosto. Molly foi até o microfone, com o estômago se revirando de nervosismo. De repente ficou cheia de medo de que não pudesse se lembrar de como hipnotizar nada, quanto mais toda uma platéia cheia de briersvillenses. Olhou para o buraco negro do salão e pôde sentir as pessoas olhando-a. O ar estava denso de ansiedade. Houve silêncio, a não ser por algumas tosses e um ataque de espirro da Sra. Assapa.

—    Boa noite, senhoras e senhores — falou nervosa. — Eu sou Molly Moon, e esta noite vou mostrar o talento que eu tenho para ler pensamentos.

Ouviu-se um murmúrio de ruídos interessados.

—    Para isso preciso ser capaz de ver vocês, portanto, senhoras e senhores, hm... meninos e meninas, as luzes do salão vão se acender agora.

Abrigando os olhos contra o refletor, Molly olhou para cima.

—    Operador de luz, por favor, será que podíamos apagar o refletor e a acender a luz da platéia?

Com dois interruptores, o refletor do palco se apagou e as luzes acima da platéia se acenderam. Havia um monte de gente lá. Na primeira fila Molly notou Hazel batendo em si mesma com seu rabo de gato.

—    Olá, todo mundo — disse Molly, sentindo-se mais calma. — Agora, senhoras e senhores, eu posso mostrar o que sei fazer, se me deixarem me concentrar um momento e pensar. Logo começarei a receber pensamentos telepáticos... os seus pensamentos, e vou dizer o que vocês estão pensando.

Molly olhou para o chão.

Pelo ponto de vista da platéia, aquela garota tinha a aparência perfeita para o papel. Ali estava ela, se concentrando de modo muito teatral. Claro, todo aquele negócio de ler mentes era uma representação, mas a garota estava fingindo muito bem. Seria interessante ver como ela leria suas mentes. Talvez ela tivesse algumas pessoas “infiltradas” na platéia, que agiriam como se nunca tivessem visto antes.

Então, para sua surpresa, quando a garota ergueu os olhos de novo, cada pessoa no salão pensou em como, num segundo olhar, essa garota era muito mais especial do que haviam pensado a princípio. Aquela menina magra como um palito, simples, era realmente encantadora. Quanto mais as pessoas da platéia examinavam Molly, imaginando por que não tinham visto seu encanto antes, mais fascinados ficavam por seu olhar hipnotizante.

—    Agora não vai demorar muito — disse Molly, enquanto passava o olhar metodicamente pelas fileiras de rosto boquiabertos, verificando os olhos de cada pessoa. Um segundo era apenas o necessário para verificar, e para o sentimento de fusão ficar cada vez mais forte. Molly ficou espantada em ver que a maioria da platéia tinha caído sob seu feitiço imediatamente, inclusive os juízes. A Sra. Assapa parecia um sapo velho, com a boca aberta. A Sra. Brinklebury parecia a ponto de ter um ataque de risada.

O único problema era uma mulher na sexta fila.

—    Senhora, sim, a senhora na sexta fila, de óculos escuros, será que poderia tirá-los?

Quando a mulher tirou os óculos, Molly descobriu que ela já estava em transe. Um garoto que tinha ido ao banheiro quase atravessou a rede de Molly, mas ela o pegou no caminho de volta para sua cadeira. E quando ele se sentou com os olhos vidrados, Molly teve a confiança de que cada pessoa estava totalmente na palma de sua mão, por mais suada que estivesse. Ela havia encarado até mesmo o operador de luz.

—    Agora apague as luzes da platéia de novo — disse Molly. Sob o facho luminoso do refletor, começou a falar com a platéia.

— Vocês... estão todos sob meu comando — começou. — Todos vão se esquecer que eu subi no palco para ler mentes. Em vez disso vão pensar que eu subi no palco e... — As instruções claras de Molly reverberaram pelo salão da prefeitura.

O número começou. Todas as pessoas estavam sentadas num espanto. Aquele número de canto e dança de Molly Moon era tão bom, tão bem realizado, tão divertido, que eles se sentiram como se estivessem testemunhando o nascimento de uma estrela. A garota tinha um talento espantoso, era carismática e divertida, com o rosto lindo. Dançava com tanta graça que seus pés não pareciam tocar o chão. Cantava como um anjo e contava piadas. Piadas tão engraçadas! Piadas que os fizeram rir até acharem que iam estourar a barriga.

Na verdade Molly estava simplesmente parada no palco, descrevendo para a platéia o que a achava que estavam vendo e ouvindo. Antes de terminar, Molly trocou uma palavra especial com a senhora Assapa.

— De agora em diante a senhora dirá a todo mundo que encontrar como a senhora é uma professora horrenda, mandona — disse Molly, e a Sra. Assapa abriu e fechou a boca como um peixe dourado gorducho, para mostrar que estava concordando.

Então Molly bateu palmas, e instantaneamente tirou todo mundo do transe. Toda a platéia irrompeu em aplausos estrondosos, com gritos e assobios. Número 32, Molly Moon. Ela era óbvia e indiscutivelmente a vencedora. Tinha mais talento na unha do dedinho do pé do que todos os outros juntos. E ali estava ela, vestida com uma saia e uma blusa muito simples. Isso apenas demonstrava que todas aquelas roupas elegantes eram desnecessárias. Ora, aquela tal de Molly Moon tinha tanta presença de palco que não precisava de figurino e maquiagem. Havia alguma coisa ultra-especial naquela garota. Ela era tão... fácil de se gostar. Definitivamente tinha aquele algo especial que as pessoas chamam de “Qualidade de Estrela”.

A platéia bateu palmas até ficar com as mãos doendo. Molly ficou ali parada, sorrindo e fazendo reverências. Gostava daquele aplauso e daquela adoração. Finalmente foi se sentar na primeira fila. As pessoas perto dela deram parabéns efusivos.

—    M...Molly, isso foi m-maravilhoso — gaguejou a Sra. Brinklebury. Até mesmo Hazel Marretta estava sorrindo para ela, com olhos doces, uma experiência que Molly achou revoltante.

Então os juízes foram pelo corredor até o palco. A Sra. Assapa era a segunda da fila, depois do prefeito.

—    Eu sou uma professora horrível, mandona, o senhor sabe — Molly ouviu quando ela disse para o homem que vinha atrás.

—    Eu sei — disse ele —, eu tenho um filho na sua turma.

Quando o prefeito anunciou Molly como a grande vencedora, os outros juízes confirmaram com a cabeça como aqueles brinquedos que a gente costuma ver no vidro de trás dos carros.

—    ... simplesmente a criança mais talentosa que esta cidade já teve o prazer de ver. Então, por favor, aplaudam de novo nossa querida Molly Moon, uma menina criada nesta cidade.

Molly subiu para receber o dinheiro do prêmio. Mal podia acreditar que tinha feito isso. Seu desejo fervoroso, no morro acima de Briersville enquanto olhava para o cartaz de Qube, era de ser rica, popular e bonita. E agora, com um clarão dos olhos, esses desejos tinham sido realizados.

—    Muito obrigada — disse timidamente.

Enquanto segurava o envelope gordo, cheio de notas estalando de novas, foi tomada por um forte desejo de sair da cena do crime o mais rapidamente possível. Assim, depois de posar para algumas fotos, desceu do palco e saiu rapidamente do prédio. Antes que qualquer um percebesse que ela estava indo embora, tinha descido a escada da prefeitura e entrado na frente de seu microônibus com chofer.

—    Para o Hotel Briersville — ordenou.

Edna se virou para sorrir para ela, Petula pulou no seu colo, e a Srta. Viborípedes a encarou obedientemente.

—    Sim, senhora.

Com os pneus cantando, o carro se afastou rapidamente.

 

Tudo estava acontecendo de acordo com o plano. Molly e Petula passaram a tarde num quarto do Hotel Briersville. E mesmo estando longe de ser o melhor hotel do mundo — as camas eram velhas e tortas, e a mobília de carvalho estava arranhada e gasta — era um bom lugar para Molly respirar fundo, e Petula achou confortável a poltrona.

Molly instruiu a Srta. Viborípedes e Edna a esperarem no microônibus, enquanto ela começava a próxima fase dos planos. Pegou o telefone e discou o número da telefonista internacional.

—    O sobrenome é Alabaster. Eles moram na América — explicou Molly.

—    Acho que você terá de ser um pouco mais detalhada do que isso — explicou a telefonista. — Qual é o estado e qual é a cidade?

—    Polchester, ou Pilchester, ou Porchester. Fica perto de Nova York.

—    Sinto muito, mas isso é vago demais — disse a mulher. — Existem milhares de pessoas com o sobrenome Alabaster nos Estados Unidos — eu demoraria a noite inteira para verificar todas.

—    A senhora... está... se sentindo... relaxada? — perguntou Molly lentamente.

—    O quê? — disse a telefonista. — Se isso é algum tipo de brincadeira, pode desligar agora mesmo.

—    Não, é... obrigada pela ajuda — disse Molly. Ficou muito desapontada em saber que Rocky seria muito mais difícil de achar do que ela havia esperado.

Mesmo assim estava empolgada com o quarto de hotel. Ligou a televisão e se sentou para contar o dinheiro do prêmio. Dentro do envelope, o dinheiro estava num maço preso por uma tira de papel. Molly rasgou o papel e abriu o dinheiro em leque, como se fosse um baralho. Molly nunca tinha segurado uma nota de dez libras, e nunca tinha visto uma nota de cinqüenta libras, quanto mais sessenta notas de cinqüenta libras! Três mil libras pareciam uma coisa boa, cheiravam bem, e davam uma sensação boa. O dinheiro fez com que Molly se sentisse poderosa e livre. Ela poderia ir a qualquer lugar do mundo com três mil libras. Austrália, Índia ou China. Podia simplesmente comprar a passagem e ir. Ou poderia gastar tudo em doces. Caminhões cheios de doces.

Molly não queria doces, mas havia algumas coisas que ela queria. Assim, colocando o dinheiro no bolso e o livro de hipnotismo embaixo do casaco, foi com Petula fazer compras.

Dez minutos depois elas estavam andando pela rua principal de Briersville. Molly estava carregando um cesto de viagem para Petula, que tinha comprado na Amor Animal, a loja de bichinhos de estimação. Petula parecia orgulhosa e alegre, com uma coleira vermelha e nova no pescoço.

Molly parou na ótica, e, de veneta, entrou. Cinco minutos depois saiu de novo, com óculos escuros. Sempre quisera ter óculos escuros, e agora, achava, eles também poderiam ser úteis para disfarçá-la. Não queria que as pessoas a reconhecessem do show. Depois continuou virando a esquina e parou na frente da vitrine com moldura de madeira, a loja de antiguidades Ouro de Moffo.

O que havia na vitrine era uma coleção excêntrica de objetos interessantes. Bolas de vidro espelhado, pequenos frascos de cristal bisotado, caixas de prata com compartimentos secretos, um guarda-chuva com cabo em forma de papagaio, lentes, um espartilho, um enorme ovo de avestruz, uma tigela com frutas de cera, uma espada e um par de botas de montaria vitorianas. E então, numa pequena plataforma de veludo no fundo da vitrine, um disco dourado atraiu o olhar de Molly. Na superfície estava desenhada uma espiral escura que parecia atrair seu olhar. Era bonito e, mesmo com o hálito de Molly tendo embaçado a vitrine, ela teve certeza de que podia ver que o objeto estava pendurado numa corrente. Para Molly, tinha a aparência exata que um pêndulo deveria ter.

Tirou os óculos escuros, empurrou a porta da loja e entrou. Um sino antiquado tocou em cima da porta, alertando o vendedor, o Sr. Moffo, que estava nos fundos polindo uns óculos antigos. Ele lambeu os lábios rapidamente, repuxou as sobrancelhas fartas e foi depressa receber a cliente. Quando viu uma criança mal-vestida e um minibuldogue, sua ansiedade sumiu.

— Boa tarde — disse ele, ajeitando o colarinho.

—    Boa tarde — disse Molly, levantando o olhar de uma caixa cheia de jóias e grampos de cabelo enfeitados.

—    Posso ajudar? — perguntou o Sr. Moffo.

—    Sim, por favor. Eu gostaria de olhar o pêndulo que está na vitrine, por favor. — Molly tinha decidido dar um presente a si mesma. Precisava de um pêndulo adequado, pesado, e seria o presente perfeito para comemorar suas realizações no hipnotismo.

—    Um pêndulo... hmm... — cantarolou o vendedor. Ele foi até a vitrine e enfiou a mão. Depois pegou uma bandeja e a colocou no balcão de vidro, entre ele e Molly.

—    Acho que pode haver alguma coisa parecida com um pêndulo aqui dentro.

Molly olhou dentro da gaveta. Estava cheia de colares de contas coloridas, correntes, medalhões e pendentes, mas o pêndulo do qual ela havia gostado não estava ali.

—    Ah. O pêndulo do qual estou falando é o dourado, em cima do veludo, no fundo da vitrine — explicou ela.

—    Hmm — tossiu o Sr. Moffo. — Acho que aquele pendente está além do que você pode pagar, minha jovem. — Ele pegou o pêndulo antigo pela corrente e deixou Molly admirá-lo enquanto o virava na mão. De perto era ainda mais bonito do que antes. O ouro estava gasto, mas não marcado, e a espiral era desenhada de modo perfeito.

—    Quanto custa?

—    Bem... Hmm... Quinhentas e cinqüenta libras. É ouro maciço, vinte e dois quilates, e bem antigo. Talvez este aqui seja mais adequado às suas possibilidades. — O Sr. Moffo pegou um colar de estanho, com uma pedra marrom e sem graça. Molly ignorou a peça de estanho e examinou o pêndulo dourado. Sua espiral parecia girar enquanto Molly olhava.

Achou irresistível. Precisava tê-lo. Estava cansada de não poder ter as coisas. Daqui para a frente compraria tudo que quisesse! Com um gesto extravagante, enfiou a mão no bolso e pegou um maço de dinheiro.

—    Vou levar o pêndulo de ouro — disse educadamente, e contou onze notas de cinqüenta libras.

O Sr. Moffo ficou olhando.

—    Você deve ter tido sorte nas corridas!

—    Não, tive sorte no concurso de talentos — explicou Molly.

—    Ah! Então você é a garota que ganhou! Minha neta telefonou para mim e contou. Disse que você era fabulosa! — O velho não conseguiu disfarçar o espanto. Estava perplexo porque uma garota tão comum, até mesmo tão feia quanto Molly, poderia ser considerada “fofa”, “lindíssima” e “adorável”, que foi como sua neta a havia descrito. — Então deixe-me apertar sua mão — disse ele. — Parabéns.

Ele apertou a mão úmida de Molly.

—    Então você fez todos eles morrerem de rir — disse ele, meio esperando que Molly fizesse alguma imitação ou contasse uma piada.

—    Mmmnnn — respondeu Molly, dando um sorriso enigmático.

—    Então você está comprando um presente para si mesma. — O vendedor apertou o botão da caixa registradora, fazendo com que ela se abrisse com um tinido, e colocou as quinhentas e cinqüenta libras na gaveta.

—    É.

—    E onde você aprendeu a se apresentar daquele jeito? Molly estava tão feliz e empolgada que não se importou em contar.

—    Num livro muito antigo — falou misteriosamente, batendo na forma grande e pesada debaixo do casaco.

—    Você está brincando!

—    Não, não estou. É um livro muito especial.

—    E por isso você está carregando esse livro o tempo todo?

—    Exatamente.

O vendedor embrulhou a compra de Molly.

—    Obrigado, e aproveite o seu pendente.

—    Obrigada. Adeus.

—    Adeus.

Enquanto Molly enfiava o pacote no bolso e se virava para sair, o sino em cima da porta da loja tocou, e outro cliente entrou. Numa nuvem de fumaça de cigarrilha, ele passou rapidamente por Molly, dando-lhe um ligeiro esbarrão.

Molly saiu da loja, puxando a gola de seu casaco azul e puído e colocando outra vez os óculos escuros novos. O Sr. Moffo continuou olhando para ela.

O novo freguês bloqueou a visão dele.

—    Deixe-me olhar de novo os óculos que o senhor me mostrou hoje de manhã — pediu ele.

—    Ah, sim, professor Nockman — disse o Sr. Moffo, saindo do atordoamento, pegando no bolso de cima do paletó os óculos que estivera polindo antes e colocando no balcão. — O senhor nunca adivinharia, mas aquela garota ali acabou de ganhar o concurso de talentos!

O cliente impaciente, baixo e gordo não estava nem um pouco preocupado com a vida moderna de Briersville. Mas tinha interesse na vida de Briersville há cem anos. Tinha entrado várias vezes na loja do Sr. Moffo, desde que havia descoberto que o idoso vendedor de antigüidades conhecia a história do famoso Dr. Logan, e que o Sr. Moffo até mesmo havia comprado e vendido artefatos que tinham sido usados no show itinerante de hipnotismo do Dr. Logan.

Hoje o professor Nockmann estava de volta à loja por causa dos óculos antigos que agora estavam no balcão. Eles possuíam lentes pretas com um padrão em redemoinho, e supostamente teriam pertencido ao próprio Dr. Mesmer.

—    Supostamente servem para proteger contra olhares hipnóticos — tinha explicado o Sr. Moffo. — É divertido, mas tolo. Mas — havia acrescentado ele cheio de esperança — muito adequado à coleção do seu museu.

Os óculos eram caros, e o professor Nockman não tinha decidido se ia comprá-los ou não. Pegou-os e coçou o bigode oleoso com um dedo gorducho, de unha cumprida. O Sr. Moffo continuou a olhar Molly e Petula na rua, que estavam caminhando lado a lado, olhando as vitrines das lojas.

—    O senhor tem certeza absoluta de que não viu esse livro do Dr. Logan? — perguntou Nockman. — Porque o meu museu pagaria um preço especial por ele, para a exposição sobre hipnotismo que estou organizando.

—    Não... não, definitivamente não — disse o vendedor, afastando o olhar de Molly. — Parece que ela é capaz de dançar como Ginger Rogers. Minha filha achou que ela era linda! Para mim ela parece muito simples. Bom, acho que tudo está nos olhos de quem vê.

—    Pois é — disse o professor, experimentando os óculos estranhos e olhando para o teto.

—    Ela comprou um lindo pendente de ouro, mas disse que era um pêndulo. Uma coisa estranha para uma criança comprar. Espero que ela não torre todo aquele dinheiro do prêmio.

—    Um pêndulo? — perguntou o professor Nockman, subitamente dando toda atenção ao vendedor. Em seguida virou para ele os olhos cobertos pelos óculos com redemoinhos. — Quanto dinheiro ela ganhou?

—    Acho que três mil libras. É espantoso, não é? Ela parece tão comum! Bom, você sabe como dizem: “não julgue o seu livro pela capa”. E por falar em livros, quando perguntei onde ela tinha aprendido a se apresentar assim, ela falou: “com um livro muito especial, antigo”. Que criança excêntrica!

—    Que livro? — perguntou Nockman, com o nariz se retorcendo, como um cachorro que tivesse acabado de captar um cheiro.

—    Um livro que ela está carregando.

O professor Nockman tirou apressadamente os óculos antigos e finalmente olhou para a rua e para a garota. Ela estava lendo as notícias do lado de fora da banca de jornais e, seguro desajeitadamente debaixo do braço, sob o casaco azul, estava a forma dura de um objeto grande, retangular. Nockman foi golpeado de modo tão forte pelo sentimento de que tinha acabado de acertar na mosca, que ofegou. Estivera revirando Briersville, procurando pessoas que estivessem carregando esse livro durante todo o fim de semana, procurando uma visão assim. Tinha conseguido a sorte grande. Estava certo disso. Sua mente disparou enquanto pensava no que o Sr. Moffo tinha falado sobre ela. Ela havia comprado um pêndulo, ganhado um monte de dinheiro, todo mundo achava que ela era linda, mas não era, e o segredo de seu sucesso estava no livro especial, antigo. Ela obviamente não queria que ninguém visse o livro, já que estava escondendo dentro do casaco. O instinto de Nockman se agitou dentro dele, e disse que a forma por baixo do casaco daquela garota estranha era, sem qualquer sombra de dúvida, seu livro de hipnotismo.

Molly e Petula estavam desaparecendo na esquina. O professor estendeu a mão para a maçaneta da porta, depois se lembrou dos óculos.

—    Eu vou levar os óculos — falou. — Quanto o senhor disse que eram?

—    Eles são absolutamente únicos — disse o Sr. Moffo, cheio de esperteza. — Quatrocentos e cinqüenta libras. — Ele estendeu os óculos de aro de prata.

A mente de Nockman estava galopando. Sabia que o vendedor estava cobrando demais, e não gostou disso, mas se aqueles fossem óculos anti-hipnotismo realmente eficazes, ele poderia precisar deles, e não tinha tempo para pechinchar.

—    Vou levá-los. — O professor Nockman colocou o dinheiro sobre a mesa. — Não precisa embrulhar. E se o senhor conseguir qualquer outra coisa sobre hipnotismo, ligue para mim nos Estados Unidos. Aqui está o meu número.

—    Certamente — disse o vendedor, todo feliz. Nunca tinha vendido tanto numa única tarde. Fora uma boa idéia abrir no domingo, afinal de contas. — Adeus.

O professor Nockman saiu correndo da loja, jogou a cigarrilha no chão e olhou freneticamente para a direita e a esquerda procurando a garota. Arrotou de empolgação enquanto ia bufando pela rua na direção que elas haviam tomado.

Enquanto isso Molly e Petula tinham voltado ao hotel, onde a Srta. Viborípedes e Edna estavam esperando fielmente no microônibus.

Foi até o seu quarto, pegou sua sacola de lona e desceu para pagar a conta da tarde passada no hotel. Depois foi até o microônibus e subiu. Petula foi atrás.

—    Para onde, senhorita? — perguntou a Srta. Viborípedes em sua voz borrachenta (ainda sem usar a dentadura).

—    Para o aeroporto — disse Molly cheia de confiança. Em seguida se recostou e deu uma boa acariciada em Petula.

O professor Nockman, que estivera procurando a garota em outras lojas, chegou correndo à entrada de veículos do hotel, no momento exato em que um microônibus azul estava saindo. A motorista tinha um olhar louco e parecia estar usando uma calcinha na cabeça. Quando o veículo entrou no tráfego, o professor Nockman vislumbrou pela segunda vez a vencedora do concurso de talentos, uma garota de aparência comum. Ela estava sentada na parte de trás do microônibus como se fosse uma estrela de cinema, com um minibuldogue ao lado e um enorme livro cor de vinho sobre os joelhos, e através da janela baixa ele viu que ela estava segurando, inconfundivelmente, um passaporte.

O professor Nockman sabia que a garota estava com o livro de hipnotismo. Num esforço inútil para chegar mais perto, mergulhou em direção à traseira do microônibus, mas errou o veículo completamente e tropeçou nos próprios pés. Engolindo um monte de fumaça do cano de descarga, começou a entrar em pânico. Percebeu que o livro de hipnotismo, o seu livro, estava indo para longe. O livro era essencial para o seu plano — seu plano concebido de modo brilhante, secreto, que iria lançá-lo no topo de sua profissão. Sem ele, nunca alcançaria seus objetivos. Agora havia uma boa chance de que a garota com o passaporte estivesse planejando levá-lo para longe, muito longe. Nockman correu desesperadamente, ofegando e bufando, para o hotel.

—    Peça um táxi e prepare minha conta — ordenou com grosseria à recepcionista. Depois correu para cima, com o queixo duplo balançando.

—    É uma pena o senhor estar indo embora tão cedo — disse a mulher quando ele voltou, disparando na direção dela com as roupas pulando para fora da mala. O professor Nockman grunhiu e empurrou um cartão de crédito para ela. Estava totalmente nervoso; precisava acompanhar aquela garota.

—    Onde está o táxi? — perguntou ferozmente enquanto assinava a conta.

—    O senhor vai encontrar uma fileira logo do lado de fora do portão do hotel — respondeu a recepcionista, imaginando se o professor não estava à beira de um ataque. — O senhor está bem?

Mas Nockman não respondeu. Já estava passando pela porta.

—    Para o aeroporto — rosnou para um sonolento motorista de táxi que estava lendo o jornal. Era uma possibilidade distante, mas tinha certeza de que a garota havia ido para lá.

Enquanto o carro se afastava, Nockman ia desejando que os sinais de trânsito não ficassem vermelhos. Gotas de suor escorriam pela sua testa. Então, enquanto o táxi saía da cidade e acelerava mais, percebeu que ainda poderia pegar a garota e começou a se acalmar.

Aquele livro era o seu destino. Ele só precisava segui-lo.

 

O aeroporto ficava a uma hora e meia, de carro, de Briersville. Molly estava sentada no banco de trás do microônibus, acariciando Petula e olhando o campo passar rapidamente do outro lado da janela. Sorvia tudo aquilo, sem ter certeza de quando veria o lugar outra vez, agora que estava indo para a América, encontrar Rocky. Não se incomodaria em não voltar nunca mais. Nem se importava se realmente não sabia para onde estava indo na América. Sentia-se corajosa, forte, rica e ansiosa para ver o mundo.

A Srta. Viborípedes dirigiu rápida e furiosamente em direção ao aeroporto, e ela e Edna ajudaram Molly a sair do microônibus. Agora elas pareciam quase doces, paradas uma junto da outra, buscando consolo, a Srta. Viborípedes vestindo seu conjunto todo picotado, com a calcinha na cabeça, e Edna com um casaco apertado, de aparência italiana. As duas enxugavam os olhos com lenços. Edna tinha um mapa da Itália costurado no dela.

—    Ah, Molly, nós vamos sofrer, vamos sentir saudades suas — disse Edna toda chorosa.

—    Desejo toda sorte para você, Molly querida — fungou a Srta. Viborípedes.

—    Obrigada — disse Molly, alegre. Petula deu um olhar de cão maligno para Srta. Viborípedes.

—    Mande um postal para nós.

—    Mantenha contato.

Molly concordou com a cabeça. Depois decidiu dar um presente de despedida a cada uma delas. Bateu palmas uma vez e as duas entraram num transe profundo.

—    Agora escutem atentamente. Eu vou dar alguns interesses novos a vocês duas... para que a vida de vocês fique mais... bem, mais interessante. Srta. Viborípedes, de agora em diante a senhorita terá uma paixão nova e grande por... — Molly olhou em volta, buscando inspiração — ... por, por aviões e por voar. Sim, é isso. A senhorita vai aprender a pilotar aviões. E Edna, bem, você vai amar ainda mais a culinária italiana e a Itália. Vai adorar a moda italiana, hmm... carros italianos, ah, e a língua, claro, que você vai aprender a falar. E de agora em diante vocês duas vão ser boas com todas as crianças.

Molly se sentiu insatisfeita por ter sido generosa com todo mundo do Lar Vidadura. Bateu palmas duas vezes e a Srta. Viborípedes e Edna saíram do transe. A Srta. Viborípedes começou a fungar de novo.

—    Ah, você tem tanta sorte, Molly, vai viajar de avião — falou com um soluço. — Eu sempre quis voar.

Molly ajudou Petula a entrar em seu cesto de viagem.

—    Então adeus — disse ela. Depois se virou e o som dos gemidos da Srta. Viborípedes e de Edna foram sumindo enquanto ela entrava no terminal do aeroporto.

—    Minha nossa — disse Molly baixinho.

— Gostaria de uma passagem no próximo avião para Nova York, por favor.

A vendedora de passagens olhou para a garota pequena e simples, cujo queixo estava na mesma altura do balcão.

—    Sinto muito, mas só podemos vender passagens para quem tem mais de dezesseis anos.

Molly tirou os óculos escuros e seus olhos luziram irresistivelmente para a mulher uniformizada.

—    Eu tenho dezesseis anos — disse Molly, dando o passaporte à mulher. De súbito a vendedora viu uma garota que obviamente tinha pelo menos dezesseis anos. Molly estendeu o dinheiro.

—    Madame, claro, eu não estava pensando direito, desculpe. Mas a senhora terá de comprar a passagem na bilheteria ali adiante, além do mais, já está atrasada para pegar o próximo vôo. O embarque praticamente acabou. O avião parte em vinte minutos.

Molly aumentou a voltagem do olhar.

—    Eu sinto muitíssimo — disse a mulher de uniforme azul. — Não sei o que está acontecendo comigo hoje. Para uma passageira VIP como a senhora, claro que posso resolver tudo. Vai custar quatrocentos e cinqüenta libras. A senhora tem bagagem para despachar?

—    Não.

A mulher pegou o dinheiro de Molly e anotou os detalhes antes de entregar uma passagem escrita à mão e um cartão de embarque.

—    Por favor, vá o mais rápido possível até o portão 25. Faça uma boa viagem. — A vendedora deu um sorriso feliz para Molly enquanto ela se afastava. Depois se levantou e foi até o balcão de passagens, pára anotar a transação em dinheiro.

Molly correu, passando pelos portões de embarque, e foi até as máquinas de raios X. Depois de uma boa olhada, o guarda deixou que ela passasse sem verificar o cesto de cachorro, e Molly foi correndo pela frente das free-shops e pelos corredores acarpetados até achar o Portão 25.

O professor Nockman chegou, suando e ofegando, ao balcão de passagens.

—    Uma menina acabou de comprar uma passagem aqui? — perguntou ele com agressividade. — Ela deve ter comprado com dinheiro.

—    Senhor, nós temos centenas de pessoas comprando passagens aqui todos os dias — respondeu a vendedora, tensa.

—    É, é — disse o professor Nockman com grosseria. — Mas uma garota, uma garota de mais ou menos dez anos... ela...

—    Senhor, nós não vendemos passagens para crianças. E, além disso, não revelamos informações desse tipo. — O telefone atrás do balcão tocou e a mulher se virou para atender. O professor se inclinou para frente e examinou o pedaço de papel que estava na frente dela, lendo de cabeça para baixo.

Ela parecia ter anotado um pagamento em dinheiro por uma passagem para Nova York, para uma tal de M. Moon.

—    Dê-me uma passagem para Nova York. Quero pegar o vôo das vinte horas — exigiu o professor.

A mulher olhou para sua lista e, irritada, cobriu-a com a mão.

—    É muito tarde para embarcar no vôo das vinte horas, os portões estão fechados.

Estavam mesmo. Molly tinha entrado no avião, era a última passageira.

Molly mostrou à aeromoça seu bilhete da classe econômica e relampejou os olhos.

— Primeira classe, acho — sugeriu ela, e foi acompanhada ao compartimento da primeira classe na frente do avião. Colocou Petula, escondida no cesto, no assento vazio ao lado.

Enquanto o professor Nockman batia os pés e gritava furioso, Molly estava prendendo o cinto de segurança. Enquanto um segurança punha a mão no ombro do professor, uma aeromoça trazia a Molly um suco de laranja. O professor Nockman teve de se contentar com uma passagem no vôo seguinte para Nova York, cinco horas depois.

Enquanto o avião rugia pela pista e decolava no céu que ia escurecendo, Molly olhou pela janela. Era sua primeira vez num avião, e ela achou assustadora a idéia de estar dentro de um enorme pedaço de metal que voava. Suas mãos começaram a ficar pegajosas. Mas então percebeu como todas as aeromoças estavam calmas e se sentiu melhor. Olhou pela janela e viu as luzes piscantes no aeroporto ficarem para trás enquanto o avião subia cada vez mais alto. Olhou para o oeste, na direção do Lar Vidadura. Ele estava em algum lugar lá embaixo, a quilômetros e quilômetros de distância. Molly deu um suspiro de alívio. Era bom estar indo embora. O Lar Vidadura não tinha nada para lhe oferecer, e de algum modo, tinha certeza, veria Rocky outra vez. Então tudo ficaria bem. Talvez ela pudesse hipnotizar a família dele para adotá-la também. Ou eles poderiam fugir juntos e viver viajando. A mente de Molly ficava atolada enquanto ela pensava na América. Tinha visto aquele lugar tantas vezes nos programas de televisão! Logo estaria tendo a vida feliz que tanto esperava. Não teria mais de esperar que os anúncios a levassem para lá.

Começou a investigar a pequena tela de TV presa no braço da poltrona.

Na galeria de observação no telhado do aeroporto, o professor Nockman fumegava, vendo o avião ir embora.

— M. Moon. — murmurou — Eu vou pegar você, M. Moon... — em seguida girou o medalhão do escorpião de ouro, pendurado no pescoço. — Então você tem o livro e aprendeu alguns truques. Ora, não é que você é esperta? Mas não tão esperta a ponto de cobrir os rastros. É melhor tomar cuidado, criança: eu estou nos seus calcanhares. E quando pegar você... você vai realmente sentir vontade de nunca ter posto os olhos naquele livro.

 

O vôo para Nova York demorou oito horas, mas Molly estava se sentindo muito confortável em sua enorme poltrona reclinável. Assistiu a dois filmes e estava com um cheiro ótimo, depois de usar todos os cremes para a pele, gratuitos, que vieram numa bolsa especial. Petula se comportou o tempo inteiro, chupando uma pedra que tinha apanhado na entrada de veículos do Hotel Briersville. Ganiu apenas uma vez — quando chegou a galinha assada — mas a aeromoça pensou que era Molly quem estava fazendo o barulho. Molly pediu uma segunda porção e colocou dentro do cesto de Petula.

Enquanto o avião descia através das nuvens baixas até o aeroporto John F. Kennedy, perto de Nova York, Molly pensou no próximo passo que daria. Restavam apenas 1.910 libras do dinheiro do prêmio. Tinha gasto 5 libras com a coleira de Petula, 15 com o cesto de viagem, 20 com os óculos escuros, 550 no pendente e 450 com a passagem aérea. Mais de mil libras. Estava espantada ao ver como tinham sumido rapidamente. A primeira coisa a fazer era trocar o dinheiro por dólares. Depois teria de pegar um trem ou um táxi para... Molly ainda não tinha certeza de qual lugar em Nova York. Sabia que se transformasse algum hotel em sua base seria um bom começo. A partir daí, em segurança e sozinha, poderia planejar o que faria em seguida.

O avião pousou às quatro da manhã, horário de Molly.

—    Senhoras e senhores, por favor, atrasem seus relógios em cinco horas — anunciou o piloto. — Em Nova York são onze da noite. Esperamos que tenham gostado do vôo e estamos ansiosos por viajar com vocês de novo.

Molly estava tão nervosa e agitada que não sentia nem um pouco de cansaço. Colocou os óculos escuros, pegou a bolsa de lona e o cesto de Petula, e vinte minutos depois estava numa fila de táxis, com dólares no bolso. Eram 2.998 dólares, para ser exata. Ali, enquanto Petula fazia xixi na sarjeta, uma funcionária do serviço de táxis, com forte sotaque do Brooklin, perguntou a Molly:

—    Para onde?

—    Nova York.

—    É, mocinha, mas que parte de Nova York?

—    O centro — disse Molly, com o máximo de confiança possível.

—    Então você vai querer a ilha de Manhattan. — A mulher escreveu Manhattan num pedaço de papel, entregou ao motorista de um táxi amarelo, enferrujado e velho, e ajudou Molly e Petula a entrar. A porta bateu e Molly se recostou no banco de couro, fundo. Uma minúscula voz gravada gritou de baixo do sofá:

“Ei, você... aqui é o prefeito de Nova York. Prenda o cinto de segurança... não quero ver você no hospital!”

Enquanto Molly prendia o cinto de segurança, outra voz, mais profunda, perguntou:

—    Certo, então onde, em Manhattan?

Molly ergueu os olhos para a divisória sólida entre ela e o motorista. Tinha uma grade de metal em cima, com uma minúscula porta deslizante para o dinheiro ser passado. Só podia ver a parte de trás da careca do motorista. Ele olhou para ela pelo retrovisor e falou com voz rouca:

—    Você é pequena para estar viajando sozinha a esta hora da noite. Deveria ser cuidadosa, essa é uma cidade pouco amistosa se você for para o lugar errado.

—    Eu sou mais velha do que pareço. E estou acostumada a ficar sozinha. E sabe de uma coisa? Nenhum lugar poderia ser menos amistoso do que o lugar de onde eu vim. Agora, eu quero ir para... ah... não... a, ah o vôo foi tão longo que eu esqueci o nome do hotel. — Molly fingiu de modo convincente que estava procurando um pedaço de papel no bolso.

—    Eu conheço todos os hotéis de Manhattan — alardeou o motorista. — Como ele é?

—    É o mais grandioso, o mais antigo, o senhor conhece... tem estátuas por toda parte e ouro, podre de chique.

—    Ah, você está falando do Bellingham?

—    É... esse mesmo — disse Molly toda feliz. — O Bellingham.

—    Certo, mocinha. Bem, segure-se.

O táxi entrou no tráfego. Era o carro mais sacudido em que Molly já havia andado. Ela e Petula pulavam enquanto o veículo velho e enferrujado entrava na via expressa e ia para o centro de Nova York, para a ilha de Manhattan.

Molly ficou olhando para fora, espantada. Tudo era grande demais. Veículos gigantescos trovejavam pela estrada de seis pistas como monstros furiosos, com uma quantidade de luzes nas frentes enormes. A esquerda e à direita, casas suburbanas se espalhavam até a distância. Era uma noite escura e sem lua, mas a via expressa era um rio sólido de faróis brancos e luzes traseiras vermelhas.

Depois de balançar e chacoalhar durante meia hora, o motorista anunciou:

—    Estamos chegando.

Tinham virado uma esquina e, de repente, ali, do lado de fora da janela, estava a visão da cidade espacial mais alta, mais luminosa, mais colossal que Molly já tinha visto. Os edifícios eram absurdamente grandes, como construções de outro planeta, e todos estavam numa ilha. Petula pôs as patas da frente na janela para olhar para fora, e as mãos de Molly começaram a suar enquanto ela via que o caminho para a ilha de Manhattan era por cima de uma enorme e brilhante ponte suspensa. Sua boca ficou aberta enquanto passavam por ela, e quando começaram a atravessar o rio, Molly viu como os prédios eram realmente grandes. Alguns tinham centenas de andares e milhares de janelas com luzes ainda acesas.

—    Tantas pessoas ainda estão acordadas! — exclamou Molly.

E, você não sabia? — riu o motorista. — Esta é a cidade que nunca dorme.

Do outro lado da ponte o táxi virou à direita e seguiu por cinco minutos ao longo da margem do rio. À direita, a água refletia as luzes da cidade, e à esquerda ruas laterais levavam ao centro. Elas eram muito retas e ladeadas por prédios altos.

—    As ruas em Manhattan têm um desenho muito simples — explicou o motorista de táxi enquanto buzinava para um caminhão. — Elas foram projetadas num sistema de grade, sabe, como no livro de matemática, de modo que é fácil se orientar. Todas têm número. Veja só... rua 70... rua 71... rua 72. Algumas ruas ficam no lado leste do parque, algumas do lado oeste. O parque fica no meio. Nós estamos indo para o lado leste da ilha. Mais ou menos por aqui é o que eles chamam de “Up Town” ou área norte, por volta das ruas 60,70 e 80. Up Town é o lugar elegante, onde você vê todas as pessoas ricas. Veja bem, hoje em dia as pessoas ricas também vivem em Down Town, a área sul. É, é. Manhattan está ficando realmente cara, mas as ruas continuam cheias de buracos. — O motorista virou o volante rapidamente para evitar um buraco enorme. Na rua 75 Leste virou à esquerda e finalmente parou na frente de um prédio grandioso e antigo.

— Aqui é a sua parada, moça, e você me deve trinta e cinco dólares.

Um porteiro uniformizado, usando terno verde com acabamento dourado nos ombros e luvas brancas, veio abrir a porta de Molly. Molly pagou e agradeceu ao motorista, e o carro saiu chacoalhando para a noite. Ela e Petula subiram inseguras um lance de degraus de mármore, passaram por uma gigantesca porta dourada e entraram no saguão do hotel, onde ficaram paradas, olhando.

Um enorme candelabro dourado pendia no alto, acima da cabeça delas, embaixo de uma brilhante cúpula de mosaico. Mármore dourado brilhava sob seus pés. Cadeiras pretas, de laca chinesa, e mesinhas de centro estavam espalhadas, e na parte de trás do saguão um vaso gigantesco estava cheio de flores exóticas. Molly viu seu reflexo num enorme espelho de moldura dourada, e pensou no quanto estava desalinhada com suas roupas velhas. Esse era o lugar mais luxuoso, mais perfumado em que já estivera.

—    Hhh, hmm — tossiu o recepcionista empertigado, olhando para Molly por cima de duas narinas grandes. — Em que posso ajudar?

Molly se virou e foi na direção do homem pequeno, elegantemente vestido, que estava atrás de um balcão de vidro preto.

—    Por favor, eu gostaria de um quarto.

—    Acho que você é um pouco nova.

Molly estava cansada, por isso foi necessário mais esforço para colocar os olhos no “modo rápido”. Mas depois de um momento o recepcionista estava tão maleável quanto um pedaço de massa de pão. Ele olhou para os seus livros.

—    Acho, madame, que todos os nossos quartos comuns estão ocupados.

—    Ocupados? — disse Molly incrédula. — Mas vocês devem ter um monte de quartos aí.

—    Sim, e todos os cento e vinte e quatro comuns estão ocupados.

—    E quanto aos quartos fora do comum?

—    Nós temos a suíte Lua-de-mel, madame, no último andar.

—    Vou ficar com ela. Quanto custa?

—    Três mil dólares por noite, madame.

—    O quê?... E eu preciso pagar antes?

—    Não, madame. A senhora paga a conta quando for embora.

Molly tinha apenas 2.963 dólares. Uma noite na suíte Lua-de-mel já estava fora do seu alcance, mas ela estava cansada demais para sair procurando hotel.

—    Ah. Bem, eu fico com ela.

—    Seu passaporte, por favor — pediu o recepcionista, mas Molly o encarou.

—    O senhor não precisa disso — falou. Não gostava da idéia de deixar provas de quem ela era, ou de sua idade, no cofre do hotel.

O homem saiu de trás do balcão.

—    Siga-me.

Pegaram o elevador até o vigésimo primeiro andar e seguiram por um corredor acarpetado de amarelo até o quarto 125. O recepcionista abriu a porta e fez com que Molly e Petula entrassem.

Molly se sentiu como se tivesse pisado num sonho.

O quarto era espetacular. De fato, era uma suíte, tinha dois cômodos enormes, um com cortinas de seda creme e uma gigantesca cama de dossel, outro com sofás e uma mesa baixa.

—    Tanto o quarto e a sala quanto o banheiro têm televisão e sistemas de música — explicou o recepcionista, abrindo armários e revelando equipamentos de TV e de som escondidos. — Aqui está o frigobar, e também uma lista dos serviços que nós oferecemos, de aluguel de limusines a passeios para os cães e cabeleireiro. A banheira de hidromassagem é fácil de operar, e há uma piscina e uma academia de ginástica no último andar. O serviço de quarto é disponível 24 horas por dia, de modo que, se quiser alguma coisa, por favor não hesite em pedir. Obrigado, madame. — O recepcionista fez uma reverência e saiu.

Molly chutou os sapatos para longe e pulou na cama.

—    Ihhhhaaaa! — gritou, sentindo-se de repente totalmente acordada. Petula também subiu na cama. — Isso não é fantástico, Petula? Puxa, olha para a gente. Você consegue acreditar? Ontem naquele horrível Lar Vidadura, hoje no hotel mais luxuoso de Nova York! — Petula respondeu com um latido feliz e Molly pulou da cama e abriu o frigobar. Depois de se servir de um suco de laranja com pedaços de gelo, e de dar a Petula uma tigela de água mineral gelada, abriu as portas que levavam à sua varanda. O barulho explodiu dentro do quarto. Buzinas de táxi, buzinas de furgões de entrega, guinchos dos caminhões de lixo, sirenes de carros da polícia, vozes gritando e assobiando. Toda a cidade zumbia com ruído e vida. Molly nunca estivera num lugar tão barulhento e agitado. Com Petula enfiada debaixo do braço, olhou por cima da varanda.

Era meia-noite, mas as ruas estavam cheias de tráfego. A cidade se erguia em volta dela numa floresta de arranha-céus, com carros e táxis que pareciam insetos se arrastando no chão da floresta. Molly se perguntou quantas pessoas moravam ali. E por um segundo imaginou se, talvez, em algum lugar por ali, no meio dos milhões de nova-iorquinos, haveria algum parente seu. Rocky deveria estar em algum lugar por ali... mas onde? Abraçou Petula.

— Onde está sua família, Petula? — Petula lambeu a mão de Molly. — É, Petula. Acho que você e eu somos uma família. Nós somos tudo que nós temos nesse momento.

Molly fechou as portas da varanda e foi tomar um banho. Espremeu todos os pequenos frascos de banho de espuma para torná-lo extra-espumante, e quando a espuma estava bem alta, afundou na água perfumada. Ligou a TV presa na parede, usando o controle remoto. Como isso era diferente do banheiro frio do Lar Vidadura, onde recentemente ela havia sido castigada por tomar um banho com mais de dez centímetros de profundidade! Gargalhou alto.

Havia centenas de canais de TV Molly surfou por eles, toda feliz. Havia noticiários, programas de entrevistas, programas de música, programas de ginástica, programas religiosos e filmes e anúncios o tempo todo. Molly notou que alguns canais tinham comerciais a cada cinco minutos, praticamente sem programas no meio. Alguns anúncios eram repetidos sem parar. “Compre isso... compre isso... você precisa disso... você realmente precisa disso...”

Enquanto olhava, espantada com a regularidade dos intervalos comerciais, pela primeira vez Molly se deu conta de que a propaganda era uma espécie de hipnotismo. Um hipnotismo que persuadia as pessoas a comprarem coisas. Uma espécie de lavagem cerebral. Talvez, se as pessoas assistissem a um anúncio que dissesse: “você precisa disso”, com freqüência suficiente, acabariam acreditando que precisavam. Então Molly viu o seu predileto, o anúncio de Qube, e se sentiu toda quente por dentro. Como estava muito mais perto de ser uma daquelas pessoas glamurosas na praia! Começou a cantar junto.

—    Qube se você é bonito... Qube se você não é... todo mundo gosta de você porque você é tão Qube.

O homem de olhos azuis na TV piscou.

—    Eu sou tããããão popular. Eu tomo Qube ao cubo!

— Não tanto quanto eu vou ser — gritou Molly, jogando uma toalha de flanela para a TV e apertando o botão da hidromassagem na lateral da banheira. Um instante depois foi praticamente jogada fora d’água. Apertou o botão de novo e as bolhas pararam. Não tinha muita certeza se queria hidromassagem. Era como se houvesse dez monstros peidando ao mesmo tempo em seu banho. Mas, afora a hidromassagem, ela certamente achava que poderia se acostumar com esse tipo de vida. A questão era: como poderia mantê-la?

Depois do banho, subiu na sua cama de dossel com lençóis de cetim, para pensar. Mas, em vez disso, como Petula que estava na ponta da cama, caiu instantaneamente no sono.

Nockman estava a quatro horas de pousar no aeroporto JFK. Em sua mente conjurou a imagem da garota com o livro. A garota que, pelo que o motorista de táxi de Briersville tinha contado, havia se apresentado na frente de centenas de pessoas do local, e todos achavam que ela era a criança mais talentosa e linda que já tinham visto. Nockman percebeu perplexo que a garota havia hipnotizado todos eles. Ficou pasmo ao imaginar que uma garota tão nova poderia aprender a arte do Dr. Logan. Ela devia ser excepcionalmente talentosa. Mas seu fascínio por ela foi logo substituído pela fúria. Como aquela criança desgraçada pôde roubar seu livro? Logo ele tiraria o sorriso do rosto dela. Estava ansioso para ouvir as desculpas, e esperava que viessem com lágrimas.

Trincou os dentes numa fúria nervosa. Ela não iria escapar. Ele estava na trilha. Mesmo não tendo visto direito como era, tinha certeza de que, se mantivesse o ouvido encostado no chão, encontraria seu rastro em Nova York. Tirou do bolso os óculos novos, com padrão de espiral nas lentes, e limpou. Tinha lido o suficiente sobre hipnotismo para saber que, quando alguém tinha o dom, as pessoas ficavam impotentes diante de seu olhar. Mas alguma coisa na espiral dos óculos desviava o efeito do olhar hipnótico. Nockman esperava que eles funcionassem. A única outra coisa de que ele precisava era uma máquina para embaralhar a voz, então estaria protegido também da voz de M. Moon.

Torcendo o bigode oleoso, o professor Nockman se recostou e imaginou o que significaria o M. Margaret? Matilda? Maria? Sorriu. Talvez fosse uma boa coisa aquela garota ter encontrado o livro de hipnotismo. Talvez ela fosse melhor nisso do que ele poderia ser. Então, quando encontrasse essa tal de M. Moon, só precisava controlá-la, o que não deveria ser difícil. Afinal de contas, ela não passava de uma criança. E de repente o implacável Nockman percebeu que, longe de ser sua rival, essa tal de M. Moon, quem quer que ela fosse, poderia ser um prêmio disfarçado. Bom, sem dúvida ela era a cúmplice perfeita para ajudá-lo a alcançar suas ambições. Ela poderia lhe dar uma carona até o topo.

 

Quando Molly abriu os olhos na manhã seguinte, o quarto de hotel fez com que ela desse um pulo. O luxo era um choque. O tapete creme e as pesadas cortinas de seda fizeram com que ela se sentisse num comercial de chocolate. Obrigou-se a sair da cama, abriu o frigobar e pegou uma barra de chocolate Céu, cantando a música do comercial enquanto comia. — Eu estou no céu, o céu está em mim eu sabia que iria ao céu enfim.

Depois colocou o roupão atoalhado que estava atrás da porta do banheiro. Era grande demais para ela, mas era quente e muito macio, como as toalhas dos anúncios do sabão Nuvem. Foi para a varanda, dessa vez para olhar Nova York à luz do dia. A cidade zumbia lá embaixo e lá longe. Os prédios pareciam ainda maiores, e Manhattan parecia se estender ainda mais. Um cartaz gigantesco, com dezenas de metros de altura, estava pregado na lateral de um arranha-céu. Era uma foto gigantesca de uma mulher usando calça e jaqueta de jeans. Por baixo, dizia: “Caminhe como um gigante... Use jeans Diva.

A mulher gigantesca fez com que Molly se sentisse extremamente pequena. Um ataque de nervosismo agitou seu estômago. Desde Briersville ela estivera montada numa nuvem de glória, e com a cabeça girando tinha feito seus planos ousados e saído do país. Mas agora, à luz da manhã, não se sentia tão confiante como na véspera. Percebeu que não sabia nada dessa cidade nem de seus habitantes. Não tinha certeza de como deveria agir. As pessoas nas cidades grandes eram menos amistosas e menos pacientes do que as do campo. Ela olhava para os nova-iorquinos lá embaixo na calçada, caminhando com objetivo e determinação. Muito poucos estavam andando devagar ou parados. Molly decidiu que precisava aprender alguma coisa sobre esse lugar antes de pisar nele. Mas antes de fazer qualquer coisa, precisava de um café da manhã, por isso telefonou para o serviço de quarto.

Quinze minutos depois um garçom muito velho, magro, empurrou uma mesa sobre rodinhas para dentro da suíte de Molly. A mesa estava arrumada com uma toalha branca, talheres, e delicados pratos, pires e xícaras de porcelana. Dois bules brilhantes estavam ao lado de duas cúpulas prateadas que escondiam o café da manhã de Molly. O garçom lhe entregou um pedaço de papel.

—    Assine, por favor, madame — disse ele em voz trêmula. Molly olhou a conta. Seu café da manhã tinha custado quarenta e cinco dólares! Assinou. O garçom esperou perto da porta um instante, como se tivesse esquecido alguma coisa.

—    Ah... obrigada... — disse Molly. — Adeus.

O garçom saiu. Na verdade estava esperando uma gorjeta. Molly olhou de novo para a conta do café da manhã e se encolheu. Um segundo ataque de nervosismo, um nervosismo do tamanho de um arranha-céu, encheu suas entranhas. Ela nunca precisara gastar dinheiro antes, e agora que precisava, isso a deixava em pânico. O principal motivo era que estava ficando sem ele.

Tinha gastado quase todo o dinheiro do prêmio, e sabia que a conta do hotel iria comer o resto e ainda mais. Sabia que ter hipnotizado o recepcionista para lhe dar o quarto mais caro do Bellingham não havia sido sensato. E não tinha idéia de como iria pagar.

Além disso, precisava de dinheiro para a vida em geral. Para as coisas pequenas, como goma de mascar, sorvete, algodão doce e revistas. Não podia andar por Nova York hipnotizando todo mundo para conseguir tudo, porque cedo ou tarde alguém veria o que ela estava fazendo, e então ela estaria muito encrencada.

No entanto Molly não sabia como conseguir dinheiro. Não tinha pensado nisso. No dia anterior, três mil libras pareciam uma fortuna.

Seu nervosismo se transformou em roncos na barriga. Decidindo tomar o café da manhã e pensar no dilema, levantou as cúpulas prateadas. Um dos pratos tinha uma salsicha. Era o café da manhã de Petula. O outro tinha quatro sanduíches de ketchup. No pequeno bule de prata havia um pouco de suco de laranja concentrado que Molly colocou num copo. No grande bule de prata havia chocolate quente.

Logo Molly e Petula estavam comendo com prazer.

Mas o café da manhã não ajudou nem um pouco com uma inspiração para o problema de dinheiro. Molly mordeu seu sanduíche de ketchup e pensou. Queria abordar o problema com lógica. Talvez a TV pudesse ajudar. Assim, colocando os óculos escuros novos, ela e Petula se acomodaram para uma maratona de TV, prestando atenção particular aos anúncios.

Ficou sabendo de algumas coisas interessantes sobre como os americanos viviam. Havia um anúncio sobre creme de amendoim, em que o pote de creme de amendoim tinha uma parte cheia de geléia, como indicava a mãe do comercial. A mulher de cabelo cor de limão estava espalhando um monte de creme de amendoim e geléia numa fatia de pão.

—    É uma tradição que foi passada em nossa família durante gerações — disse ela, entregando o sanduíche à filha de olhos arregalados. — Foi muito bom para mim quando eu era criança...

—    E vai ser muito bom para os meus filhos também! — disse a menina, dando uma mordida. — Todo mundo adora creme de amendoim com geléia Vovó Raio de Sol!

—    Eca! — disse Molly. — Eu não gosto. Dá vontade de vomitar. — E tomando outro gole de suco de laranja, mudou de canal. Caiu num programa sobre a natureza. Na tela havia um ninho com três passarinhos dentro, todos piando e pedindo comida. O passarinho do meio era muito maior e mais barulhento do que os outros. A voz do narrador explicava:

—    O bebê cuco nasceu no ninho dos tordos. E já está crescendo mais rápido do que os filhotes de tordo.

A mamãe tordo voltou para o ninho com uma minhoca. Mas antes que os pequenos tordos tivessem tempo de dar uma mordida, o filhote de cuco a arrancou rapidamente.

—    É espantoso — continuou o narrador — como a mãe tordo acha que o filhote de cuco é dela.

Quando a mãe tordo saiu voando, o filhote de cuco começou a pular. E então, com um movimento firme, empurrou um filhote de tordo, e depois o outro, para fora do ninho.

Molly ficou boquiaberta. Então os cucos realmente empurravam os outros pássaros para fora do ninho. A canção de ninar da Sra. Brinklebury ressoava na sua cabeça, fazendo com que ela se sentisse estranha. Será que ela era como aqueles bebês tordos? Sentia-se mais parecida com o cuco, pelo modo como havia aberto caminho até a vitória no concurso em Briersville. A canção da Sra. Brinklebury nunca tinha feito muito sentido para ela. Agora fazia ainda menos. Com um leve estremecimento, trocou de canal.

Na hora do almoço os olhos de Molly estavam parecendo retangulares. Estivera surfando pelos canais durante três horas, e sabia muito mais sobre a América, mas ainda não tinha a menor pista de como ganharia dinheiro, e quanto a Rocky, não sabia onde começar a procurá-lo. Como um balão cheio de hélio com um buraco, seu ânimo estava diminuindo cada vez mais. Pensamentos negativos enchiam sua mente. Ela devia ser louca em ter vindo à América. Doida de pedra em ter se aventurado em Nova York. Estava começando a sentir que tinha mordido um bocado grande demais, muito maior do que poderia mastigar.

Levantou-se e abriu o frigobar para pegar uma bebida. Dentro havia todo tipo de coisas: garrafinhas minúsculas de uísque, gim e vodca, e caixas com sucos de fruta, água e Qube também. “Refresque sua vida, beba Qube”, cantava o anúncio em sua memória. O Qube iria ajudá-la. Certamente ela precisava se refrescar, precisava do frescor de Qube. Pegou uma lata e abriu.

Bolhas com cheiro de menta e frutas subiram até o nariz enquanto ela engolia. E enquanto gorgolejava, o anúncio de Qube apareceu na tela de TV. Era uma coisa incrível estar tomando sua primeira lata inteira de Qube, finalmente, e no mesmo momento assistir ao pessoal do Qube na TV Molly sorriu.

—    Ei, o mundo realmente parece melhor com uma lata de Qube na minha mão — riu o homem de dentes brancos.

—    É — concordou Molly, bebendo o resto da lata de uma vez só, e fazendo o sinal de vitória com os dedos para homem na TV. De repente o mundo realmente parecia melhor. Molly teve certeza de que tudo ficaria bem. Por um momento sentiu-se como uma das pessoas na tela. Em seguida arrotou, e a sensação sumiu. O anúncio mudou para um outro de verniz para madeira. Molly ficou com uma lata vazia na mão e um monte de bolhas no estômago.

Sentiu-se espantada. Na verdade ela havia acreditado que uma lata de Qube poderia ajudar a resolver seus problemas. Qube e o pessoal do anúncio. Com Qube ao lado, ela havia sentido a certeza de que ficaria mais confiante e capaz de encantar o mundo. Mas, em vez de sentir refrescada, sentia-se quente, preocupada e vazia. Achava que o pessoal do seu anúncio predileto a havia traído, e num clarão ofuscante viu que sua paixão por eles e pelo mundo deles tinha sido loucura. Ora, eles eram completamente irreais.

Enquanto assistia ao próximo anúncio, que era de curativos, onde aparecia um garoto com o joelho arranhado, Molly pensou que talvez pudesse conseguir algum trabalho como atriz. Afinal de contas, aquelas pessoas em todos os anúncios não eram reais, eram atores, e certamente existiam centenas de anúncios. Devia haver muito trabalho. Talvez até mesmo ela pudesse fazer parte de um anúncio de Qube. Enquanto brincava com essa idéia, um novo programa começou.

Um homem de terno laranja estava sentado num sofá cor-de-rosa segurando um gigantesco microfone esponjoso. Atrás dele um grande cartaz piscante dizia “Show do Charlie Bond Papo”. O homem tinha uma voz tão profunda, que parecia fazer gargarejo com cascalho de manhã.

—    Sim, senhoras e senhores, como prometi, ela estará aqui conosco. Juntem as mãos e dêem boas-vindas calorosas à mais nova estrela da Broadway, Davina Nuttel!

Molly já ia mudar de canal quando ficou surpresa ao ver que Davina Nuttel era uma garota pequena, de oito ou nove anos, usando um monte de maquiagem. Enquanto ela subia no palco, a platéia assobiava e batia palmas. Quando sentou ao lado do entrevistador ruivo, Charlie Bond Papo, ele abriu um enorme sorriso:

—    Ora, oi, Davina! É trrrremendamente fantástico ter você no programa!

—    Oi, Charlie, é fantástico estar aqui — veio a voz de Davina, doce como açúcar.

—    Então, Davina, vamos dirrrreto ao ponto. Tenho certeza de que todo mundo quer saber como é ser a estrela de um musical da Broadway.

—    É simplesmente ótimo — disse Davina, dando um sorriso lindo. — Eu adoro as músicas, adoro as danças, adoro a história. Adoro os outros atores, adoro as platéias e adoro estar em Manhattan.

—    Você deve ter um coração bem grrrrande para tanto amor — disse Charlie, e a platéia gargalhou.

—    Bom, é tudo ótimo, e todo mundo deveria ir assistir à peça. — Davina se virou para a platéia e deu um riso enorme, persuasivo. Seu rosto fez com que Molly estremecesse. Ela se parecia um pouco com Hazel.

—    Vamos ver uma parte — disse Charlie Bond Papo. Em seguida veio uma seqüência de imagens. Primeiro era a entrada de um teatro grandioso com o título da peça, Estrelas em Marte, escrito em cima, em letras de néon. Um carro preto e comprido parou do lado de fora e Davina Nuttel, num casaco de pele, saiu dele. Então a imagem cortou para uma filmagem da peça. O cenário parecia a superfície do planeta Marte, cheio de grandes pedras vermelhas. Davina Nuttel estava com uma roupa de astronauta, vermelha, sapateando e cantando. Era um musical espacial. Outros trechos foram mostrados, um era cheio de grandes monstros marcianos tentando atacar Davina Nuttel. Petula largou a pedra que estava chupando e rosnou para os marcianos.

A platéia do programa de entrevistas bateu palmas, e Molly sentiu parte da empolgação que havia sentido no palco em Briersville, quando a platéia havia aplaudido.

—    Minha nossa, cerrrrtamente isso é fantástico — disse Charlie.

—    Obrigada. Vocês sabem, eu devo praticamente tudo a meus maravilhosos pais, que se sacrificaram para que eu chegasse até aqui.

—    Ahhhh — disse a platéia.

—    E — disse Davina — ao meu empresário, Barry Bravatta.

—    Ah, sim — disse Charlie Papo. — E aqui está ele! Na tela apareceu um homem com o cabelo dividido ao meio, cheio de gel e penteado para baixo. Tinha bochechas vermelhas, usava terno xadrez e óculos vermelhos.

—    Olá, Davina e Charlie! — disse ele.

—    Oi, Barry! — gritou Davina Nuttel.

—    Oi, Barry! E então, Barrrrry, todo mundo aqui quer saber: como você descobriu Davina?

—    Bom, ela simplesmente entrou no meu escritório na rua Derry, em Manhattan — disse Barry entusiasmado, ajeitando a gravata-borboleta — e arrasou comigo. Todos vocês sabem como ela canta e dança; bom, Davina simplesmente entrou na minha sala e cantou e dançou com toda essa magia que ela tem. Para mim ficou óbvio que ela seria uma estrela, por isso a apresentei à diretora de Estrelas em Marte e, bem, um sucesso e meio depois, aqui estamos nós.

Davina gargalhou, sacudindo os cachos dourados.

— Minha estrela da sorte estava no céu no dia em que encontrei você, Barry. — Ela se virou para Charlie Bond Papo. — Puxa, Barry conhece todo mundo no mundo dos espetáculos.

O programa continuou e Molly ficou vendo pessoas de olhos brilhantes chegarem e saírem. Pensou que realmente gostaria de ser atriz durante um tempo, mas não nos anúncios, eles pareciam muito superficiais comparados a cantar e dançar na frente de uma platéia ao vivo. Tinha gostado de toda aquela adulação e dos aplausos no palco em Briersville, gostaria de experimentar de novo. Apostava que atrizes como Davina ganhavam um bom dinheiro. Talvez esse empresário, Barry Bravatta, fosse uma boa pessoa que ela deveria conhecer, não é? Interpretar seria um desafio, mas Molly tinha certeza de que poderia dar conta do recado, especialmente com suas novas habilidades. E o que foi que Rocky tinha dito? Que ela nunca tentava nada? Provaria que ele estava absolutamente errado.

Levantou-se e se espreguiçou. Petula fez o mesmo. Molly achava que tinha encontrado uma solução. Esse tal de Barry Bravatta, cujo escritório ficava na rua Derry, onde quer que isso fosse, poderia ajudá-la.

Enquanto se vestia, cantarolou uma música de Estrelas em Marte. Realmente era uma música que ficava na cabeça, e Molly pensou em como seria divertido ser uma estrela de uma peça na Broadway.

Colocou a camiseta e o velho agasalho cheio de buracos. Vestiu a saia cinzenta, curta e gasta, penteou o cabelo encaracolado e olhou para seu rosto peculiar no espelho, franzindo o nariz de batata para o reflexo. Trancou o livro de hipnotismo no cofre do quarto, depois pegou o casaco fino e assobiou para Petula.

— Venha, Petula. Vamos ter um pouco da ação!

Com o destino diante da mente, e deixando para trás todos os pensamentos sobre Rocky, saiu do quarto de hotel.

 

Foi assustador sair do hotel silencioso e elegante para as ruas agitadas e sujas de Manhattan. Cachorros-quentes, cebolas, pães, amendoim assado, café, pretzels, hambúrgueres e picles enchiam o ar com seus aromas. E em toda parte havia movimento — de pessoas e de trânsito. Molly nunca tinha visto tanta mistura de pessoas num só lugar; de todas as cores e todos os tipos. As pessoas maiores e mais gordas que ela já tinha visto passavam pelas mais magras. Os nova-iorquinos pareciam se vestir exatamente do modo como se sentiam, sem se preocupar com o que os outros pensavam. Molly viu um sujeito vestido de cowboy passar por uma mulher enorme vestida com uma pantalona rosa-brilhante. Imaginou a Sra. Assapa com uma roupa daquelas, e sorriu, e pensou em como a Srta. Viborípedes poderia andar pela rua aqui com seu conjunto todo picotado, a calcinha na cabeça, e todo mundo simplesmente acharia que era uma nova moda.

Por um momento se sentiu muito pequena e insegura, mas então apareceu um porteiro do hotel, com o uniforme verde e dourado.

—    Táxi, madame?

—    É... sim, por favor.

O porteiro abriu a porta de outro táxi amarelo e velho, dessa vez dirigido por um sujeito com cara de mexicano, usando bigode grosso e preto.

—    Ondé que cê qué ir, moça? — perguntou ele.

—    Rua Derry — disse Molly com o máximo de firmeza possível. Ela e Petula subiram, e outra voz gravada, de baixo de seu banco, falou:

“Miaaauuu, os gatos têm sete vidas, mas você não, então prenda o cinto.”

Molly não precisava ser lembrada, porque aquele motorista dirigia com um louco. Saíram de perto do hotel cantando pneus e viraram numa das ruas principais, que ia para o sul de Manhattan. “Avenida Madison”, dizia uma placa, e o motorista mexicano foi costurando por ela como se estivesse num jogo de computador, rindo como um lunático a cada vez que quase batia em outro carro. Molly agarrou o banco e Petula enfiou as garras no couro.

Acima delas, dos dois lados, enormes arranha-céus disparavam para o alto, grandes paredes de vidro e aço. No nível da rua, nuvens de fumaça subiam através de grades nas calçadas.

Molly olhou para o mapa nas costas do banco do motorista, Era um mapa de Manhattan, e ela viu que, apesar de a maioria das ruas terem números em vez de nomes, na ponta inferior da ilha as ruas tinham nomes, como em outras cidades. De fato, dez minutos e treze dólares depois, Molly e Petula tinham chegado ao labirinto daquelas ruas e foram deixadas na que se chamava Derry. Era uma rua cheia de edifícios de pedras marrons, mais do tamanho dos prédios de Briersville, apesar de terem um ar decididamente de cidade grande. Molly e Petula foram andando, olhando para os nomes nas campainhas. Finalmente chegaram a uma placa de bronze polido que dizia “Agência Barry Bravatta”. Molly ficou aliviada ao ver que tinha sido tão simples achar o Sr. Bravatta, se bem que isso significava que agora não havia como desistir de falar com ele. Ajeitou a saia, respirou fundo e apertou a campainha.

—    Olá-á — disse uma voz esganiçada de mulher pelo interfone. — Em que posso ajudar?

—    Eu vim ver Barry Bravatta.

—    Suba até o quinto andar. — A porta foi aberta com um barulho de cigarra. Molly e Petula entraram num saguão escuro, forrado de espelhos, que cheirava a laranja e essência de baunilha. Atravessaram o brilhante piso de pedra até um pequeno elevador em formato de gaiola. Logo estavam no quinto andar.

—    Bom dia — disse a recepcionista, que parecia uma boneca Barbie. Ela dirigiu os olhos de cílios pretos para Molly, percebendo suas roupas maltrapilhas. Depois percebeu Petula. — Ah, então é um número com cachorro?

—    Não.

A recepcionista olhou a agenda do Sr. Bravatta.

—    E eu não estava esperando ninguém esta manhã — disse ela, — Você marcou hora?

—    Sim — disse Molly, pensando em como havia decidido ver Barry Bravatta depois de assisti-lo pela TV — Sim. Eu marquei a hora pessoalmente, com o senhor Bravatta, hoje de manhã.

—    Ah, sei — disse a recepcionista. Não lhe passou pela mente que Molly poderia estar mentindo. — O Sr. Bravatta vai sair num minuto. Por favor, sente-se.

Molly se sentou para esperar. Ela e Petula ficaram olhando fascinadas a secretária pegar uma caixa de maquiagem do tamanho de um kit de ferramentas e passar dez minutos pintando os lábios muito carnudos.

—    Bem, obrigado por ter vindo — disse a voz melosa de Barry Bravatta. Seu braço, coberto pelo tecido do terno púrpura, abriu a porta do escritório para que alguns visitantes saíssem. Um garoto com um grande boneco em forma de pássaro saiu com os pais. Todos estavam sorrindo.

—    Bom, obrigada por nos receber — disse a mãe. — Eu devo ligar para o senhor?

—    Ele foi fabuloso, fabuloso, fabuloso — disse Barry Bravatta. — Mas não liguem para mim, eu vou ligar pra vocês... preciso de alguns dias.

—    Obrigado, senhor — disse o garoto, e seu pato disse: — Obrigggado, Moço!

—    Ah, Jimmy... a gente não consegue fazer com que ele pare — disse o pai, orgulhoso.

—    Estou vendo, estou vendo — disse Barry Bravatta rindo alto. — Bem, adeus. E continue treinando.

O visitantes saíram. Barry Bravatta afrouxou a gravata borboleta cor-de-rosa e deu um suspiro de alívio.

—    Minha nossa, nunca vi um número mais gasto. — Em seguida notou Molly. — Veio me ver? — falou, franzindo a testa. E olhou interrogativamente para a secretária.

—    Ela disse que tinha marcado a hora com você — explicou a recepcionista, percebendo lentamente que tinha sido enganada.

Molly assentiu, firmando-se para o que iria fazer.

—    Sem... os pais? — perguntou Barry.

—    Sim — disse Molly.

—    Ora, que alívio! — exclamou Barry Bravatta. — Vou lhe dizer, a pior parte desse trabalho são os pais. Pais que vivem pressionando. Eles são a tortura da minha vida. Nossa, uma criança sozinha é bem-vinda! Entre!

Esta era a primeira vez em que não ter pais tinha sido vantagem para Molly.

—    Obrigada, Sr. Bravatta — disse ela, enquanto entrava no escritório todo decorado em púrpura e ouro.

—    Então — disse Barry Bravatta, olhando a roupa velha de Molly enquanto andava em volta dela e se sentava atrás da sua mesa. — Que tipo de número você faz? Alguma coisa como Cinderela? Gosto do figurino maltrapilho, tem autenticidade real! — Ele abriu uma caixa de charutos. Enquanto levantava a tampa, a caixa começou a cantar: “Você precisa bater uma ou duas carteiras.” Ele escolheu um charuto pequeno e gordo e mordeu a ponta, que em seguida cuspiu para trás, e pegou um isqueiro com a forma de Charlie Chaplin. Uma chama saiu de chapéu de Chaplin, e depois de sugar e soltar baforadas de fumaça do charuto na sala, ele falou: — Certo, garota, vejamos o que você é capaz de fazer.

Enquanto a fumaça se desvanecia, Barry Bravatta virou os olhos azuis para Molly. Ela estava segurando um pêndulo, que estava balançando lentamente para trás e para a frente, para trás e para a frente, e sua voz suave dizia:

—    Ah, então é um número de hipno... — Barry Bravatta tentou terminar a frase, mas não podia se lembrar do que ia dizer. O pêndulo era muito lindo de olhar. No meio havia uma estranha espiral giratória, que o atraía. — Isso é lind... — Nenhuma palavra parecia capaz de sair da sua boca, mas ele não se importava.

Lentamente Molly fez o pêndulo parar de balançar e sugeriu com calma:

—    Olhe nos meus olhos.

Foi isso. Os olhos verdes de Molly agarraram Barry em segundos. Os olhos dele ficaram vidrados, e Molly começou a trabalhar.

—    Barry, agora você está sob meu comando, e vai fazer o que eu mandar, entendeu? — Barry confirmou com a cabeça. Molly sorriu. — Primeira coisa: eu quero que você apague esse charuto...

Meia hora depois Barry estava falando entusiasmado pelo telefone.

—    Eu estou dizendo, Rixey, ela é fabulosa. Você precisa vê-la.

Depois de uma rápida corrida de carro vindo de seu apartamento, a produtora e diretora de Estrelas em Marte chegou ao escritório da rua Derry. Seu nome era Rixey Floral, e era uma das personalidades mais quentes de Nova York. Tinha trinta e seis anos e era a mulher que se vestia de modo mais caro que Molly já tinha visto. Usava um conjunto de calça e casaco de couro preto, botas de pele de zebra até o tornozelo e carregava uma bolsa combinando. Seu cabelo era tão fofo como se ela tivesse acabado de sair de um comercial de xampu, os lábios eram cheios e suculentos (tinham sido aumentados por um dos principais cirurgiões plásticos de Nova York), e os olhos eram de um azul cortante. Olhou cheia de suspeitas para Molly.

—    Bom, Barry, eu sei que você me conseguiu Davina — disse Rixey Floral — mas, querido, essa garota não é bonita.

Olha só as pernas manchadas dela. Querido, acho que você está perdendo o seu jeito.

—    Ela é fantástica, ela é fantástica — insistiu Barry. — A própria Molly admitirá que não é nenhuma rainha da beleza, mas você não vê? Há alguma coisa nela. Ela é mágica. — Barry Bravatta estava começando a suar, de tão empolgado.

Rixey Floral estava perplexa.

—    Posso mostrar o que eu sei fazer? — sugeriu Molly. No tempo que se leva para apontar dois lápis, Rixey e Barry estavam olhando para ela, vidrados.

—    Então o que eu quero — instruiu Molly — é um papel num grande musical, ou numa peça, aqui em Nova York, e quero um papel que pague bem. O que vocês têm?

—    Nada — disse Rixey Floral, com a cabeça oscilando. — Todas as... peças que nós... estamos produzindo... só têm papéis... adultos.

Molly hesitou. Tinha de haver algum grande trabalho de atriz que ela pudesse pegar. Ela queria. Mais do que isso, precisava. Simplesmente tinha de arranjar algum dinheiro.

Então viu a foto de Davina Nuttel na parede. Lembrou-se de novo de Hazel. Davina tinha o mesmo brilho de desprezo no olhar. As lembranças de Hazel sendo má atravessaram sua mente.

—    Então certo, eu vou ficar com o papel de Davina Nuttel em Estrelas em Marte.

Houve um silêncio.

—    Isso deve ser possível.

—    Se você... diz — disse Rixey.

—    Bom — disse Molly. — Eu vou aprender as canções dela, vou aprender as danças... ah, e eu quero a minha cachorra na peça.

—    Não... há... papéis... para... cães... a... peça... se passa... em... Marte — disse Rixey Floral.

—    Bom, faça um papel para ela. E desenhe uma roupa de astronauta para Petula. — Petula olhou para Molly como se gostasse da idéia. — E eu vou precisar de que todas as minhas contas do hotel sejam pagas. E quero receber o dobro do que Davina Nuttel ganha. Bem... quanto vai ser isso?

—    Quarenta... mil... dólares... por mês.

—    Mmmm. — Molly engoliu em seco. — Sim, bem, essa é a quantia que você deve me pagar. E eu quero um monte de roupas novas, porque, como podem ver, as minhas estão um pouco velhas, e quero um carro com chofer que espere por mim o tempo todo, e já que estamos nisso, que seja um Rolls Royce. E quero um suprimento interminável de doces. Mais tarde eu digo de quais eu gosto. E aqui vai uma coisa muito importante. Eu preciso conhecer todas as pessoas da peça separadamente, antes de nós começarmos a ensaiar, e todas as pessoas que trabalham nos bastidores, e realmente estou falando de todas... está claro?

Os dois nova-iorquinos assentiram.

—    Por fim, eu não quero conhecer Davina Nuttel. Vocês têm alguma outra peça em que podem colocá-la?

—    Não.

—    Ah, bem, não importa... e por que eu quero tudo isso? — perguntou Molly, se recostando na poltrona para olhar, orgulhosa, as marionetes que tinha acabado de criar.

—    Porque você é a criança mais talentosa que já apareceu na Broadway — suspirou Barry.

—    Porque você é puro gênio — assentiu Rixey Floral. Molly estremeceu por dentro. Esse seria um desafio gigantesco. Esperava estar à altura.

 

Foi tudo tão fácil!

Às quatro horas daquela tarde Molly estava dançando em seu quarto de hotel, chupando um doce, e cantando junto com a fita de Estrelas em Marte. As músicas eram fáceis de aprender.

Espalhadas em volta havia caixas abertas cheias de papel de seda, com roupas novas se derramando para fora. Rixey Floral tinha escolhido todas e mandado, e Molly tinha passado a tarde experimentando casacos, vestidos, calças e sapatos. A mesinha de centro agora era uma mesa de doces, com duas tigelas, enormes, cheias de todo tipo de coisas gostosas e uma cheia de marshmallows multicoloridos.

Petula havia passado a patrulhar a varanda, latindo para os pombos magros sempre que eles pousavam.

Depois da última música, Molly desligou o gravador e ficou deitada na cama, usando jeans novos e uma camiseta muito legal, com uma lua brilhante. Desejou ter alguém com quem falar sobre tudo isso. Rocky. Talvez ele tivesse telefonado para a Srta. Viborípedes e deixado o novo endereço. Na Inglaterra eram cinco horas mais tarde — nove horas — de modo que Viborípedes ainda estaria de pé. Molly pegou o telefone e discou. Depois de seis toques, o telefone foi atendido.

—    Boa noite, Orfanato Vidadura — disse a voz familiar de Gerry.

—    Ah, olá, Gerry — disse Molly.

—    Molly! Molly, onde você está? Viborípedes disse que você tinha ido embora de avião! Foi bom?

—    Eu estou em Nova York — disse Molly, pensando em como isso parecia impressionante. — E o avião foi fantástico. Mas olha, eu posso falar com Viborípedes?

—    Viborípedes foi...

—    Foi fazer compras? Cuidar dos joanetes? Quando ela vai voltar?

—    Ela nunca vai voltar — disse Gerry — subitamente sussurrando. — Ela foi embora, e Edna também. Viborípedes disse que elas queriam ser boas para as crianças de agora em diante, por isso iam deixar que a gente cuidasse da gente mesma, e que a gente podia fazer tudo que a gente gostasse.

Essa era a última novidade que Molly esperava ouvir.

—    E por que você está sussurrando, Gerry?

—    Porque Hazel está ali perto, no corredor. Agora ela é a encarregada, veja só, e... eu preciso ir... tchau!

A linha ficou muda. Molly discou de novo, mas dessa vez o telefone estava ocupado. A idéia do orfanato comandado por Hazel era aterrorizante, mas então ela imaginou que a Sra. Brinklebury ficaria de olho em todo mundo, e relaxou. Imaginou para onde a Srta. Viborípedes e Edna teriam ido, e se sentiu responsável. Esperava que não estivessem fazendo nada perigoso. Visões da Srta. Viborípedes picotando a roupa de outras pessoas e de Edna batendo em pessoas que não gostassem da Itália encheram a mente de Molly.

Mas pior do que a idéia de Edna e da Srta. Viborípedes estarem perdidas era o fato de que agora Molly talvez nunca mais encontrasse Rocky, a não ser que ele ligasse para o orfanato e perguntasse por ela. Molly telefonou de novo para o orfanato.

Gerry atendeu outra vez.

—    Alô, é Molly.

—    Oi, Molly — veio o sussurro minúsculo de Gerry. — Olha, o negócio, Molly, é que eu não deveria atender ao telefone. Hazel fica muito irritada. Eu tenho de ir logo.

—    Gerry, pare. Antes de você desligar, eu quero dar o meu número em Nova York. Para o caso de Rocky telefonar. É importante. Você tem uma caneta?

—    Hmm, tenho, acho que tem uma no meu bolso, junto com meu ratinho. Não, não, Guincho, você fica aí... desculpe, Molly, Guincho quase escapou... ah, sim, aqui tem uma caneta e, hmm, um pedaço de papel.

—    Certo. — Molly começou a dar a Gerry o seu número no hotel Bellingham. A linha estalou. — E se Rocky ligar, dê esse número a ele, ou dê a Hazel, de modo que, se ela falar com Rocky, ela pode...

—    Preciso ir, Molly. Hazel não está de bom humor, eu não quero que ela me pegue. Tchau. — O telefone estalou.

—    Tchau — murmurou Molly, não confiando muito que Gerry fosse dar o recado a alguém.

Mas não se preocupou durante muito tempo. Olhou para uma caixa de roupas e ficou maravilhada em ver a rapidez com que seus sonhos estavam se realizando. Estava para ficar rica. Logo também seria muito popular, e, aos olhos das outras pessoas, até mesmo bonita.

Petula olhava através de uma abertura no parapeito de pedra, para ver as luzes de novembro da cidade começando a se acender. Se tivesse olhos mágicos de raios X, teria visto que, a vinte e cinco quarteirões de distância, num quarto barato e sujo, onde passava boa parte de seu tempo astucioso, o professor Nockman estava estendido numa cama, roncando, debaixo de uma lâmpada pendurada no teto. Seu prédio ficava ao lado de um trilho de ferrovia, e a lâmpada balançava todas as vezes que um trem passava rugindo. No chão do quarto e em cima da cama estavam espalhados jornais. O professor Nockman estava apostando que, quem quer que fosse essa tal de M. Moon, ela apareceria nos jornais mais cedo ou mais tarde, por ter feito alguma coisa extraordinária. E como um cão de caça (ainda que não um cão bonito), ele estava preparado para captar o cheiro. Durante todo o dia tinha examinado jornais e percorrido as ruas em busca de histórias sobre uma garota espantosa, até mesmo visitando hotéis, mas em todas as vezes tinham pedido que ele parasse de ficar espreitando nos saguões e fosse embora.

Nos sonhos ele via a garota de novo, sentada no banco de trás do microônibus com o livro de hipnotismo no colo e um minibuldogue ao lado. No sonho, o professor Nockman rosnava.

De volta à sua varanda, Petula farejou o ar. Em algum local, longe, alguém estava pensando nela, sabia. E não gostava do modo como a pessoa estava pensando. Latiu, depois estremeceu e correu para dentro. Pulou na cama de Molly e enfiou o nariz embaixo das cobertas, para achar uma de suas pedras.

Molly teve um pesadelo. Sonhou que era um cuco grande, feio, numa floresta sem amigos. Ao fundo, a cantiga da Sra. Brinklebury ecoava pelos galhos, como se as próprias árvores estivessem cantando.

 

“Perdoem aquele cuco marrom

Que empurrou vocês dos seus ninhos

Foi o que mamãe cuco ensinou:

O bom é expulsar passarinhos.”

 

Todos os outros pássaros ignoravam Molly e se escondiam dela. Alguns tinham o rosto das crianças menores do orfanato. Quando Molly ia na direção delas, elas fugiam. No sono, Molly se sentia desesperadamente solitária. Estava procurando Rocky e tentava gritar o nome dele, mas tudo que saía de seu bico era um grasnido.

Mas de manhã esqueceu logo o sofrimento do sonho. Porque tinha trabalho a fazer e dinheiro a ganhar. Os ensaios de Estrelas em Marte estavam começando, e Molly não tinha tempo para procurar o amigo.

 

O Teatro Manhattan, onde a peça Estrelas em Marte estava sendo apresentada, fechou as portas subitamente. Nenhum jornal sabia por quê. Por trás das portas, Davina Nuttell tinha sido despedida e o pessoal do teatro jurou fazer segredo. Molly se certificara de que todo mundo mantivesse os lábios lacrados, e sua primeira manhã foi tomada por reuniões particulares Molly conheceu e hipnotizou cada pessoa que trabalhava na peça; o maestro da orquestra, os músicos, os bilheteiros, os vendedores de sorvete, os operadores de luz, os contra-regras, os maquiadores, os outros atores e o rapaz que varria o palco. Todo mundo achou Molly maravilhosa.

Então os ensaios começaram.

Para sua surpresa, Molly descobriu que os ensaios eram realmente divertidos. E estava decidida a se esforçar ao máximo para ser boa. Claro, qualquer coisa que ela fizesse, o resto do elenco acharia fantástico. Quando cantava desafinada, ninguém notava. Quando errava a coreografia, ninguém se importava. Seu sapateado era inútil, mas todo mundo achava perfeito.

Petula também estava gostando. Ela realmente parecia uma doçura numa roupa vermelha de astronauta, e participava das danças. Mas — de modo pouco surpreendente — não gostava nem um pouco dos monstros marcianos. Eles eram coisas enormes, como gigantescas pimentas malaguetas com antenas, grandes como árvores de natal, e andavam, porque tinham atores dentro. Para Petula eles significavam encrenca, especialmente quando atacavam Molly. A cadelinha latia para eles ininterruptamente, depois mordeu um no tornozelo. Ficou decidido que Petula deveria ser mantida longe dos monstros marcianos, dentro e fora do palco.

Os ensaios começavam às dez horas todas as manhãs, com um breve intervalo para o almoço e mais ensaios durante toda a tarde. Molly tinha de aprender onde deveria ficar, como dançar e o que cantar e dizer.

E então, no terceiro dia no teatro, aconteceu um encontro que Molly não estava esperando.

Ela estava em seu camarim, quando ouviu uma voz horrível gritando no corredor:

—    CADÊ ELAAAAA!

—    Ela está lá, Srta. Davina — disse uma dançarina coberta de lantejoulas, com voz simpática. — Mas, Davina, não seja muito rude... quando você a conhecer vai ver por quê... bom, você vai gostar dela.

—    GOSTAR DELA?!!! — gritou a voz furiosa. — GOSTAR DELA...? ELA SIMPLESMENTE ARRUINOU A MINHA CARREIRA. Ela roubou o que é meu. Qual é o problema com todos vocês? Rixey, Barry, todos vocês... vocês sabem que eu fiz dessa peça o que ela é. A dançarina guinchou:

—    Desculpe, Davina, mas...

Quando Davina entrou feito uma tempestade no camarim de Molly, Molly estava pronta.

—    Então — disse Davina, entrando, fechando a porta, e depois batendo no chão a bota de salto alto. — Quem você pensa que é? Como você ousa? — Então sua boca se abriu de repente. — Você é Molly Moon? — falou incrédula.

Molly olhou para Davina, o prodígio do canto e da dança. A estrelinha cujo desempenho todo mundo adorava assistir. E ficou fascinada. Porque, de perto, Davina não parecia nada especial. Sem maquiagem de palco, seu rosto era pálido e meio doentio. O cabelo era louro, mas escorrido e oleoso. Os olhos eram saltados e tinham olheiras cinzentas. Mas se vestia de modo luminoso. Estava usando veludo púrpura, com botas de camurça púrpura de saltos altos, e um cordão com pedras verdes no pescoço. Molly estava usando uma roupa de astronauta que estava experimentando para tirar as medidas.

—    M... mas você é tão comum — disse Davina, espantada.

—    Você também — disse Molly, igualmente perplexa.

—    Eles disseram que você era muito, muito especial — falou Davina, pasma demais para registrar a observação de Molly. — Como alguém tão comum e com um nariz de batata como você poderia pegar o meu papel? — por um momento Davina Nuttel parecia esmagada. Depois, trincando os dentes, deu um passo na direção de Molly e numa voz calma, encantadora, falou: — Esse figurino é meu, acho que é melhor você devolver. — Seus olhos se fixaram nos de Molly.

Molly olhou calmamente de volta e de repente percebeu que as pupilas dos olhos de Davina Nuttel eram gigantescas. Mais do que isso, de fato elas eram escuras e estavam espiralando, como redemoinhos negros. Molly se sentiu insegura, como se o chão fosse começar a desaparecer. Rapidamente se concentrou e lançou para Davina um jorro de seu olhar hipnótico. Mas ficou chocada ao descobrir, enquanto aumentava a voltagem do olhar até a potência máxima, que os olhos de Davina tinham uma forte atração. Com cada grama de concentração que possuía, Molly se manteve firme, até que o chão pareceu equilibrado de novo sob seus pés.

Essa era uma grande surpresa. Davina Nuttel tinha o dom. Também sabia cantar e dançar, mas além disso tinha o dom. Tinha o dom sem realmente saber o que era. Não era tão bem afinado como o de Molly, mas ela obviamente usava esse poder sobre as outras pessoas, para influenciá-las e fasciná-las. Molly sentiu que quase tinha vontade de ficar amiga de Davina. Poderia treiná-la, e as duas poderiam se tornar parceiras. Seriam imbatíveis! Mas essa idéia saiu de sua cabeça quando ouviu o que Davina estava dizendo.

— Você é tão comum, é tão feia... não é o tipo de garota que alguém gostaria de ver no palco. Tudo vai dar muito errado, então por que não desiste simplesmente? Você não foi feita para o estrelato, você é muito chata, não tem carisma, e o seu cachorro é revoltante.

Petula gemeu e, decididamente, Molly aumentou de novo o facho do olhar. Mas o olhar furioso de Davina contra-atacou. Era um cabo-de-guerra entre olhos azuis e verdes. As mãos de Molly começaram a suar. Ela estava se concentrando tanto no olhar que nem podia pensar em como usaria a voz. E quando esse pensamento negativo nublou a mente, ela enfraqueceu. Imaginou o que aconteceria se Davina conseguisse hipnotizá-la. Talvez Davina roubasse todos poderes de Molly e a deixasse com a cabeça vazia. Molly se imaginou como uma mendiga nas ruas de Nova York, perdida e confusa, com a mente esvaziada por Davina. Era um futuro horroroso demais para ser contemplado, e tão amedrontador que lhe deu um jorro de energia. Com um olhar nocauteador que fez o cabelo de Molly ficar em pé, a tensão estalou, e Molly tinha vencido.

Davina desviou o olhar. Numa voz trêmula, falou:

—    Não sei como você fez isso. Você pode ter dominado todo mundo, mas não vai me dominar. Você não passa de uma garota manchada, feia, caipira. — Desmoronando em soluços altos, sabendo que tinha sido derrotada, foi embora.

Molly estava chocada e exausta pelo confronto. Nunca tinha esperado encontrar alguém que tivesse o dom, e ficou chocada consigo mesma por não estar preparada. Deveria ter adivinhado que existiriam outras pessoas assim. Imaginou quantas pessoas haveriam em Nova York, como Davina, que usavam inconscientemente seus poderes hipnóticos para se virar na vida. Especulou quantos exemplares do livro de Logan poderiam haver. Talvez houvesse pessoas melhores no hipnotismo do que ela. Todos esses pensamentos eram muito inquietantes. Mas ficou aliviada quando uma batida na porta a distraiu e Rixey Floral colocou o rosto que parecia de plástico na porta do camarim. Deu um sorriso doce.

—    Está pronta para ensaiar, Molly querida?

Naquela noite, o The New York Tribune tinha uma manchete chocante.

ALVOROÇO NA BROADWAY Davina Nuttel sai do caminho para uma nova criança-prodígio

O professor Nockman comprou seu exemplar do jornal e leu ansioso numa esquina. Então ela se chamava Molly Moon, e estava estrelando um musical da Broadway. Fantástico! Nockman sentia como se um sinal verde houvesse se ligado de súbito, chamando-o para a frente. Por fim não precisaria mais caçar no escuro. Um refletor tão grande brilhava sobre essa tal de Molly Moon, que ele não poderia perdê-la de novo. Isso era brilhante! O professor Nockman mal podia esperar para encontrá-la.

Não demorou muito para descobrir que a Srta. Moon estava morando no Hotel Bellingham. Enquanto estacionava seu furgão branco enferrujado do outro lado da rua, diante do hotel de Molly, ficou sentado tenso, roendo as unhas compridas, agitado, esperando para identificar a presa.

Quando Molly apareceu, as unhas de Nockman estavam totalmente roídas. Durante a noite inteira estivera sentado em seu furgão apertado, enrolado no casaco de pele de carneiro e tentando se esquentar com um pequeno aquecedor ligado na tomada do acendedor de cigarros. Dormiu a intervalos, verificando obsessivamente a entrada do hotel.

Quando o dia de trabalho ia começando, um Rolls Royce prateado parou na frente do hotel. Nockman se sacudiu para acordar e enxugou as janelas cobertas de vapor para enxergar melhor. Um porteiro estava abrindo a porta do hotel para alguém. Nockman forçou a vista, e finalmente viu Molly Moon.

Ela desceu a escada na direção do carro. Estava vestida com um casaco de vison macio e branco, com um gorro de pele combinando, e calçava botas de couro creme, de saltos baixos, indo até o joelho. Debaixo do braço levava um buldogue miniatura, de cara chata. A garota parecia uma estrela, totalmente diferente daquela malvestida que Nockman tinha visto em Briersville.

Ia começando a respeitar aquela garota do interior. Estava espantado e impressionado com a velocidade com que ela chegara ao topo. Ela possuía talentos excepcionais, e ele tinha certeza de que era a única pessoa em Nova York que conhecia seu segredo.

A partir daquela manhã o professor Nockman seguiu de perto os movimentos de Molly na cidade. Seguia-a quando ela ia fazer compras acompanhada por guarda-costas, olhando enquanto um número cada vez maior de bolsas e caixas elegantes eram colocadas no Rolls-Royce. Esperava quando ela ia nos fliperamas e gastava uma fortuna. Ficava sentado do lado de fora de restaurantes fabulosos enquanto Molly provava as culinárias do mundo com Rixey ou Barry. E, quanto mais olhava, mais convencido se sentia de que estava certo com relação ao poder do hipnotismo. Essa tal de Molly Moon obviamente tinha posto todo mundo na palma da mão.

Há anos Nockman estava ansioso para aprender sobre hipnotismo — desde que tinha ouvido uma senhora rica e velha, que ele havia conhecido num café, falar do livro. Tinha descoberto que a mulher de noventa anos era parente do Dr. Logan, o grande hipnotizador, e mais, tinha herdado o dinheiro dele. Em seu apartamento grandioso ela havia mostrado a Nockman uma carta intrigante da bibliotecária de Briersville, descrevendo o livro de hipnotismo.

— Bom, se aquele livro algum dia cair nas mãos erradas — tinha dito a velha senhora — quem sabe o que pode acontecer no mundo? — A partir daquele momento Nockman esperava que essas mãos erradas fossem as dele. Havia se convencido de que, se pudesse colocar as mãos no livro, seria capaz de realizar o crime mais ambicioso de sua carreira, que ele vinha planejando há algum tempo. Nockman não era nenhum intelectual com um interesse erudito no hipnotismo. Não era um professor de verdade, e sim um bandido profissional. Com um bocado de experiência debaixo do braço.

Nockman tinha horas para ficar esperando em seu furgão; horas para pensar em como estava satisfeito ao ver que todos seus esforços tinham valido a pena. De certa forma, Molly Moon ter achado o livro era uma coisa boa. Porque agora, se pusesse as mãos nela, poderia facilmente se lançar na Superliga do Crime. Lambeu os lábios, cheio de cobiça.

Enquanto cochilava no furgão, imaginou quanto dinheiro Molly Moon deveria estar ganhando, e murmurou para si mesmo com aprovação. Dormia e acordava, fantasiando que ele também tinha poderes hipnóticos, sonhando em como poderia ficar poderoso. Tinha visões de si próprio vestido com roupas de golfe num gramado junto de uma mansão gigantesca, com uma empregada trazendo chá. Via-se num iate grandioso, com dez marinheiros uniformizados, velejando em volta de Nova York. Imaginava-se dormindo numa pilha de dinheiro, segurando O livro do hipnotismo.

Um dia, de madrugada, Nockman acordou e viu um cartaz enorme sendo colocado na lateral do arranha-céu perto do Hotel Billingham. A imagem era uma fotografia gigantesca de uma Molly Moon de trinta metros de altura, vestida de astronauta, segurando a cadela, que também estava usando roupa espacial. Nockman deu um risinho. Aquela garota era um gênio! E quanto melhor ela fosse no hipnotismo, melhor para ele.

 

Depois do encontro com Davina Nuttel, Molly deu instruções rígidas de que durante os ensaios não deveria entrar nenhum estranho. Claro, suas instruções foram seguidas obedientemente.

Agora, sempre que Molly saía do teatro ou chegava no Hotel Bellingham, sempre havia um bando de jornalistas com máquinas fotográficas e flashes. Molly dava um sorriso enigmático por trás dos óculos escuros enquanto entrava e saía de seu Rolls-Royce com chofer, mas nunca falava com eles.

Em toda a cidade as pessoas estavam falando da misteriosa Molly, especulando quem ela era e de onde tinha vindo. Seu mistério a tornava cada vez mais interessante, e todo mundo queria ver fotos dela nos jornais. Um jornal deu-lhe o apelido de “O Cuco”, porque tinha roubado o papel de Davina Nuttel, e programas de TV mandavam equipes de cinegrafistas para tentar entrevistá-la, sem sucesso.

Davina Nuttel foi à televisão e reclamou de como tinha sido maltratada.

Charlie Bond Papo telefonou repetidamente para a agência Barry Bravatta, implorando uma entrevista exclusiva com essa tal de Molly Moon no programa de TV. Barry Bravatta disse que talvez fosse possível, se o dinheiro falasse alto.

Enquanto a mente de Nockman espiralava no furgão, seu eczema irrompeu no pescoço e no rosto. Ele mal podia esperar para colocar as mãos em Molly.

Mas era muito difícil ao menos chegar perto dela.

Sempre havia gente onde quer que ela fosse. Era exasperador. Ele só podia vigiar e esperar uma oportunidade. Talvez, depois da noite de estréia, Molly começasse a dar entrevistas e ele pudesse bancar um jornalista. Tentou relaxar, mas era impaciente por natureza, e a situação o estava deixando maluco. Ficava preocupado com a hipótese de outra pessoa descobrir o segredo de Molly. Sentava-se em seu furgão branco, fumando, comendo biscoitos vagabundos e olhando cheio de suspeitas para os outros carros estacionados. O furgão estava cheio de lixo e de embalagens vazias, de todas as coisas vagabundas que ele havia comido, com um cheiro nojento. Ele fedia mais do que nunca. Agora, além da gordura de batatas fritas, de peixe e do fumo, havia o fedor de loção pós-barba barata, para encobrir o cheiro de suor velho. Ocasionalmente ele voltava ao quarto perto da ferrovia para tomar banho, mas não com muita freqüência, porque odiava perder a pista de Molly ao menos por um instante. À medida que os dias passavam, ele pensava nela com obsessão.

Tinha sentimentos confusos com relação a Molly. Sentia ciúme, porque ela havia encontrado primeiro o livro de hipnotismo e tinha aprendido os truques do hipnotismo, mas também porque ela estava levando uma vida ótima, enquanto ele chafurdava nesse furgão atulhado. Ao mesmo tempo, ficava espantado com ela e com os talentos dela e, como considerava que Molly era sua propriedade, também saboreava sua ascensão à fama. Para se manter são, acariciava o escorpião dourado pendurado no pescoço, e repetia sem parar um mantra que dizia:

 

Quanto melhor for para ela, melhor para mim

Quanto melhor for para ela, melhor para mim

Quanto melhor for para ela, melhor para mim

Quanto melhor for para ela, melhor para mim.

 

E quanto à cachorra dela, ele odiava aquela cachorra. Aquela buldogue miniatura era tão metida a besta! Uma buldogue besta, bisonha, trotando atrás dela. Nockman pensou com ciúme na cama luxuosa de Petula e em seus excelentes jantares. Ora, aquela cachorra era parceira de Molly Moon, sua melhor amiga. Ela provavelmente faria qualquer coisa por aquela cachorra... e então, enquanto pensava em Petula, Nockman começou a ter uma idéia brilhante. Sua natureza manipuladora começou a se remexer de prazer, alimentando seu pensamento e ajudando-o a ficar maior. Porque não tinha visto o valor da cachorra antes? Ora, aquela cachorra era a chave para o coração de Molly! Nockman sorriu e acariciou seu queixo duplo. Cutucou o eczema escamoso no pescoço, jogando um pedaço de pele no painel do carro. Depois, pensando em Molly, amassou o floco de pele no plástico do painel e sua mente chocou um plano maligno. Por fim ele podia ver um caminho adiante.

 

Novembro rolou para dentro de dezembro e a temperatura em Nova York caiu enquanto o inverno cravava os dentes na cidade. Molly não tivera tempo para pensar em Rocky, uma vez que, quando não estava trabalhando duro na peça, estava ocupada desfrutando a fama e a fortuna. Estivera muito ocupada na cidade, sempre com um acompanhante e um guarda-costas, que mantinham os jornalistas longe. Tinha passado horas felizes fazendo compras, indo ao cinema e vendo os lugares turísticos. Tinha ido a um salão de cabeleireiros exclusivo e seu cabelo fora bem cortado, de modo que não parecia mais uma criança de orfanato, tinha feito dez visitas a uma esteticista onde usaram vapor e mimos até sua pele brilhar. Apesar de suas mãos ainda suarem, agora estavam com uma aparência muito melhor, depois de caros tratamentos de manicure. As unhas estavam bem-cortadas e esmaltadas.

Molly adorava sua vida nova. Adorava a atenção que estava recebendo e o modo como as pessoas a tratavam com reverência. Não podia entender, agora, como alguém seria capaz de viver de outro modo. Era muito mais fácil quando todo mundo adorava você. E quanto mais Molly vivia essa vida, mas achava que merecia. E mais, começou a achar que as pessoas a admiravam não só porque ela as havia hipnotizado. Suspeitava de que, na verdade, realmente possuía “Qualidade de Estrela”. As pessoas do Lar Vidadura eram simplesmente muito pouco cultas para perceber isso.

Depois de duas semanas de ensaios intensivos e horas treinando, chegou a noite de estréia da nova produção de Estrelas em Marte. Agora o letreiro de néon cor-de-rosa na frente do teatro dizia:

ESTRELAS DE MARTE

ESTRELANDO

MOLLY MOON

E A CADELINHA PETULA

Nos bastidores, Molly estava sentada em seu camarim atulhado, com Petula no colo, sentindo-se muito nervosa. As duas estavam vestidas com macacões espaciais prateados. O rosto de Molly estava grosso de tanta maquiagem de palco, de modo a não brilhar debaixo das luzes fortes do teatro. Seus olhos estavam definidos com delineador preto para se destacarem, e havia purpurina salpicada nas bochechas. Petula tinha sido arrumada, e tanto ela quanto Molly tinham pó brilhante nos cabelos e pêlos. Seus outros figurinos, roupas espaciais e os figurinos de dança espaciais cheios de lantejoulas, estavam numa arara de aço. Vasos de flores cobriam cada superfície disponível, mandados por todas as pessoas que amavam Molly. Rixey bateu na porta e enfiou o rosto.

—    As cortinas sobem daqui a vinte minutos, Molly. Como está se sentindo?

—    Bem, bem — mentiu Molly.

—    Boa sorte, se bem que você não precisa, você é uma estrela, Molly, uma estrela brilhante, e todo mundo verá isso esta noite. Nova York vai amar você.

—    Obrigada — disse Molly, com o estômago revirando. Rixey desapareceu.

—    Minha nossa, Petula, o que foi que eu fiz? — gemeu Molly. Agora a idéia de fazer sua fortuna participando de um musical da Broadway não parecia nem um pouco divertida. Seu nervosismo estava mil vezes pior do que antes do concurso de talentos em Briersville. Pensar na platéia esta noite era realmente aterrorizante. Uma platéia de nova-iorquinos cosmopolitas, difíceis de agradar e prontos a recusar. Ela sabia que a platéia seria cética, crítica, agressiva e muito, muito difícil de empolgar... mas, pior do que isso, difícil de hipnotizar. Lembrou-se de como Davina tinha sido um desafio tão grande. Talvez houvesse hipnotizadores treinados na platéia. Como o tipo de hipnoterapeutas que ajudam as pessoas a parar de fumar. Molly tentou ficar calma. Em que estava pensando? Claro que ela seria muito melhor do que eles. Só esperava que o novo número que tinha escrito para o início da peça, com os novos adereços, tornasse as coisas mais fáceis.

—    Quinze minutos para as cortinas subirem — anunciou o diretor de cena.

Molly enfiou mão no bolso para pegar o pêndulo e olhou para a espiral preta.

—    Eu vou conseguir, eu vou conseguir — disse a si mesma repetidamente, e em seguida beijou o pêndulo para dar sorte, colocando-o de novo no macacão.

Molly e Petula seguiram pelo corredor e subiram a escada na lateral do palco. Através da cortina dava para ouvir o zumbido da platéia enorme. Suas mãos começaram a suar e o coração começou a bater com força. “Boa sorte, boa sorte”, ouviu algumas pessoas dizendo. Assumiu sua posição na cabine de uma espaçonave prateada sobre o palco, pronta para decolar.

—    Faltam dez minutos — sussurrou alguém para ela. — O estômago de Molly se contraiu. Estava difícil se concentrar.

A orquestra começou a tocar a abertura; pedacinhos de diferentes canções do musical. A platéia ficou em silêncio para ouvir. Molly baixou a cabeça, que parecia inútil e cheia de algodão.

—    Qual é, Molly, você pode fazer isso — falou para si mesma numa voz baixa, rouca.

Então a abertura terminou, e por mais que Molly desejasse que o tempo ficasse parado, a peça começou. Com um rufar de tambores, a cortina subiu rapidamente.

A platéia estava sentada com a respiração presa, e concentrou os olhos em Molly Moon. O Cuco. Finalmente lá estava ela, a nova estrela do show, na cabine de uma espaçonave gigantesca, com a cadelinha Petula no banco ao lado.

Uma voz profunda estalou no alto-falante:

—    Controle de terra para a major Wilbur, está me ouvindo? Estamos prontos para decolar, câmbio.

Com os olhos fechados, a major Wilbur respondeu:

—    Pronta.

Então, lentamente, uma gigantesca janela de vidro começou a baixar na frente do foguete.

Essa era a nova parte da peça, que Molly havia acrescentado. Porque aquela janela de vidro não era uma janela de vidro comum, era uma lente enorme, poderosa, que o teatro tinha mandado fazer especialmente, a um custo enorme, na NASA, a agência espacial americana. Enquanto baixava lentamente na frente de Molly, a lente ampliava tanto que a garota se transformou numa gigante. O centro da lente era a parte mais forte, e quando Molly se inclinou para esse centro, seus olhos fechados se tornaram oito vezes maiores.

Isso parecia bom, e murmúrios de aprovação encheram o teatro. A platéia de NY gostou desse espetáculo, e relaxou para olhar todo o palco escurecendo, a não ser por um refletor brilhando nos olhos fechados de Molly.

—    Dez — a voz do controlador ressoou nos alto-falantes.

—    Nove... oito...

—    Motores ligados — disse a major Wilbur.

—    Sete... seis... cinco — disse o controle de terra.

—    Temos ignição — disse a major Wilbur.

—    Quatro... três... dois... um... decolar.

O rugido dos motores encheu o teatro. Luzes laranja faiscavam em volta da cabine como se fosse o fogo do motor do foguete, e então os olhos de Molly, gigantescos como os maiores aparelhos de TV, se abriram. Finalmente Molly estava concentrada, e seus olhos ampliados varreram a platéia como se fossem lasers. Do fundo da platéia até os fundos dos balcões, as pessoas foram varridas pelo poder estranho e dominador de Molly, e foram sugadas para o redemoinho hipnótico do seu olhar.

Molly sentiu um jorro de uma coisa que parecia eletricidade no ar, fazendo com que ela sentisse arrepios da cabeça aos dedos dos pés. Era aquele sentimento de fusão, mas numa escala enorme. Virou o olhar lentamente da esquerda para direita, estendeu o olhar até os fundos do teatro e depois baixou para a frente. E enquanto o sentimento de fusão ia ficando cada vez mais forte, o nervosismo de Molly desapareceu. Ela se sentia tremendamente poderosa, tinha certeza de que todo mundo fora “acertado”, e sabia que os porteiros do teatro tinham instrução para não deixar ninguém entrar. Ela estava em segurança.

—    Só... olhem... para... mim — falou, para o caso de haver alguém que não tivesse olhado ainda. — Só... ooooolhem... para... mim — repetiu lentamente, com a voz parecendo um ímã vocal.

Molly tinha tecido suas instruções hipnóticas numa música, que ela havia composto. Cantou-a agora sem acompanhamento instrumental, numa canção simples, persistente. “Vocês vão ficar fascinados... com esta... peça Eu serei tão boa... que vocês não quererão... sair dessa Minha dança e minha música... vão deixar vocês... loucos Minhas piadas vão fazer vocês rirem... como poucos Essa peça de sucesso estrondoso... agora nasceu A estrela... do século vinte... sou... EU”. Molly estalou os dedos e o rugido dos lançadores do foguete encheram o ar.

—    Sim — disse Molly, com o rosto inteiro agora no centro da lente — Nós DECOLAMOS. — A lente subiu e se afastou, e a peça de verdade teve início.

Durante duas horas a platéia ficou fascinada de prazer, maravilhada com a dança e a música de Molly. Ela era capaz de dançar balé, sapateado, jazz e break. Saltava sem esforço no ar. Deslizava! E quando cantava, fazia a platéia ficar toda arrepiada, com os pêlos da nuca em pé. Ela era arrebatadora.

Mas na realidade a dança de Molly era desajeitada e sem coordenação. Seu sapateado era uma bagunça, seu jazz era pesado e fora do ritmo. Mas Molly estava adorando dançar, e realmente se envolveu na cena de batalha com os marcianos. Os outros atores eram ótimos, e ajudavam sempre que ela esquecia as frases, ainda que não importasse se estava esquecendo as frases ou não; a platéia adorava tudo que ela fazia. E achava Petula maravilhosa também, mesmo quando ela estava simplesmente deitada na boca de cena, mastigando uma pedra, e parecendo entediada.

Sorvetes pingavam no colo das pessoas que esqueciam de tomá-los.

Quando a peça terminou, o teatro irrompeu em aplausos, e quando Molly se adiantou para agradecer, toda a platéia se levantou gritando, assobiando e batendo palmas. Flores foram jogadas para ela. Qualquer coisa boa que as pessoas tivessem, elas jogavam: dinheiro, relógios, jóias, echarpes elegantes... Era uma demonstração de apreciação diferente de tudo que já fora visto em Nova York. A cortina se abriu e se fechou, e se abriu e se fechou quarenta vezes. A platéia aplaudiu, aplaudiu, aplaudiu e aplaudiu até ficar com as mãos vermelhas. E então a cortina baixou pela última vez.

Molly se sentia no topo do mundo, confiante em que todo mundo tinha visto o que ela queria que vissem.

Uma pessoa apenas passou através de sua rede. Um menininho na platéia não tinha sido hipnotizado, simplesmente porque não estivera olhando nem ouvindo. Estivera lendo uma revista em quadrinhos usando uma lanterna e estava absorvido demais no Super-homem para olhar os olhos de Molly. De modo que depois, quando largou a revista, ele foi o único que viu o verdadeiro talento de Molly.

—    Mãe, ela não era tão boa assim — falou enquanto saía do teatro. — Puxa, tem crianças na escola que são melhores do que ela.

Mas a mãe do garoto estava fascinada.

—    Como você pode dizer isso, Bobby? Ela foi fabulosa. Linda. E você, Bobby, vai se lembrar desta noite pelo resto da vida. Esta noite você viu uma estrela nascendo.

Bobby e a mãe discutiram a respeito do show durante todo o caminho para casa, e finalmente ela chegou à triste conclusão de que seu filho precisava de um aparelho de audição, de óculos ou de uma consulta com um analista.

Nockman tinha evitado o show. Não queria se arriscar a estar dentro do teatro, para o caso de ser forçado a tirar seus óculos anti-hipnotismo. E, de qualquer maneira, para que seu plano desse certo, ele precisava estar do lado de fora da porta de serviço quando a peça terminasse.

Tinha começado a chover. Nockman estava parado com seu casaco de pele de ovelha, escondido na sombra de uma parede, a alguns metros da porta de serviço. Seu cocuruto careca e a juba oleosa estavam encharcados. Gotas de chuva escorriam pelo pescoço e pingavam da ponta do nariz.

Logo depois das dez e meia, hordas de pessoas começaram a se juntar em volta da porta de serviço, esperando conseguir autógrafos. Vinte minutos depois a porta se abriu e lá estava Molly Moon, sorrindo e acenando, com um enorme guarda-costas de cada lado.

Os gritos e aplausos dos fãs a distraíram perfeitamente. A mente de Molly não estava em Petula.

Petula saiu na chuva e se afastou da multidão para conseguir respirar um pouco de ar puro. Farejou um poste e fez um xixi de boas-vindas. Depois um interessante cheiro de pele de ovelha acertou seu nariz. Ela trotou na direção de uma parede sombria, para investigar. E assim que havia saído da luz da rua, uma mão forte e enluvada pegou-a e a enrolou num pano, enquanto outra mão fechava sua boca. Petula se viu sob o braço de um homem baixo, gordo, fedorento, que se afastava rapidamente por uma rua secundária. Ela se retorceu e lutou, mas não conseguiu escapar. A coitada morria de medo enquanto ouvia, sentia, e cheirava Molly se afastando cada vez mais.

Nockman abriu a traseira do furgão branco e enfiou Petula numa jaula. Antes que ela tivesse tempo de se orientar, ele havia fechado a porta da jaula e também a do furgão. Depois pulou no banco da frente, ligou o motor e foi embora.

 

Depois de ter assinado o que pareciam ter sido mil autógrafos, Molly assobiou chamando Petula. Quando Petula não veio, presumiu que ela havia entrado no teatro, para longe da multidão barulhenta que fazia pressão. Mas Petula também não estava lá dentro. Molly verificou todos os locais prediletos de Petula: a almofada embaixo da mesa do camarim, onde ela guardava suas pedras; a pilha de trapos embaixo da mesa de adereços; o espaço embaixo da cadeira de lona azul. Depois verificou os banheiros, o palco e até mesmo o camarim dos marcianos. Mas Petula não estava em lugar algum. Logo o resto do elenco também estava ajudando. Procuraram em armários, atrás de cortinas e nos guarda-roupas. Ela não estava no saguão do teatro, na bilheteria nem no bar. Petula estava realmente perdida. O coração de Molly deu um salto gigantesco quando ela imaginou o pior. O homem que cuidava da porta de serviço procurou nas sarjetas de todas as ruas por perto para ver se Petula teria sido atropelada por um carro. Depois disso, só puderam chegar à conclusão de que Petula tinha sido roubada.

Molly ficou num atordoamento só. Quem poderia ter levado a cadelinha? Estremeceu quando imaginou a coitada em alguma casa estranha, sozinha e com medo.

— Vou dizer uma coisa — falou Barry Bravatta tentando tranqüilizá-la. — A pessoa que a levou fez isso porque gostou dela, e não vai tratá-la mal se gostou dela. — Por dentro ele já estava pensando em toda a publicidade que a peça obteria com o roubo de Petula. — Sabe o que a gente deveria fazer? Uma entrevista de SOS na TV. Alguém vai vê-la. Quero dizer, as pessoas percebem quando os vizinhos arranjam bichos novos. Alguém vai informar.

A polícia chegou. Molly falou em particular com o sargento e, usando seus poderes, persuadiu-o de que achar Petula era uma das missões mais importantes de sua vida. O sargento ligou para o superintendente, e vinte policiais — homens e mulheres — foram postos na busca da cadela desaparecida.

De madrugada Molly chegou aos estúdios da TV Sunshine, onde foi maquiada e posta na frente de luzes fortes e de câmeras para uma entrevista. Charlie Bond Papo estava sentado diante dela, ainda com suas roupas de festa, já que o produtor do programa o havia chamado numa boate.

Molly achou difícil se concentrar e produzir seu olhar hipnótico, porque estava perturbada e distraída pensando em Petula, mas logo percebeu que estava fazendo isso por Petula, e tentou ao máximo ficar absolutamente encantadora.

Durante o café da manhã de domingo os nova-iorquinos que comiam granola, panquecas e bolinhos assistiram à entrevista de Molly com Charlie Bond Papo.

—    É tão triste — disse o já apaixonado Charlie a Molly — que uma noite tão gloriosa quanto a de ontem fosse manchada por essa catástrofe. Que sua cadelinha que, pelo que eu soube, estava maravilhosa na peça, acabasse desaparecendo. — A voz grave de Charlie caiu para um tom muito simpático. — E, Molly, você acha que Petula foi roubada ou seqüestrada?

Em toda a costa leste dos Estados Unidos, espectadores viram a nova estrela infantil e ouviam seu pedido de ajuda.

—    Se alguém por aí acha que viu uma cadelinha buldogue miniatura assim... — Molly levantou uma foto de Petula vestida com seu traje espacial. — Vocês podem imaginá-la sem o traje espacial... é... essa é a única foto que eu tenho dela... é da peça... ela gosta de mastigar pedras... se alguém por aí acha que sabe o paradeiro dela, por favor entre em contato com o Teatro Manhattan. Há uma recompensa de vinte mil dólares para qualquer pessoa que dê alguma informação que me leve a ela. Vejam bem, eu conheço Petula desde que eu era muito pequena. A mãe a abandonou quando ela era um filhotinho, por isso não posso abandoná-la agora. Ser abandonada duas vezes na vida é demais. De qualquer modo, ela é muito especial para mim. Ela é minha melhor amiga, se bem que... — de repente Molly pensou em Rocky em Nova York, e imaginou se ele assistia à TV durante o café da manhã —... se bem que eu também tenho um melhor amigo humano, e se ele estiver assistindo, eu gostaria de dizer olá ao Rocky e gostaria de vê-lo logo. Mas essa mensagem é principalmente por causa de Petula, porque ela está perdida, e talvez correndo perigo. Então ajudem, por favor, se puderem.

As pessoas que olhavam para suas telas sentiram uma pena incrível de Molly. Ela transmitia uma espécie de encanto hipnótico pelas ondas da TV, e os espectadores se pegavam atraídos. Aquela menina não era bonita nem nada, mas definitivamente tinha alguma coisa. Milhões de americanos foram trabalhar levando Molly na mente, alertas a qualquer latido de cachorro e atentos para encontrar uma buldogue preta miniatura.

Durante todo o dia a entrevista de Molly foi repassada regularmente pela televisão, e nenhum buldogue miniatura da cidade estava em segurança enquanto pessoas bem-intencionadas, atrás de recompensa, atrás de Petula, arrancavam cães de seus donos verdadeiros e levavam para as delegacias. As delegacias estavam caóticas, cheias de cachorrinhos latindo e pessoas gritando. Donos discutiam com salvadores de Petula, e salvadores discutiam com a polícia. A polícia de Nova York investigava cada cachorro e cada informação, mas nenhum dos cachorros era Petula.

Não havia nada para Molly fazer depois da entrevista, a não ser voltar para o hotel. Era domingo, de modo que não haveria peça à noite, e sua suíte estava muito solitária sem Petula. Molly pensou em todas as aventuras pelas quais elas haviam passado, e olhou para as fotos da peça, mostrando Petula em seus figurinos enfeitados. Não sabia o que faria sem ela. Sentia-se absolutamente arrasada pensando nas orelhas macias, que tinha vontade de acariciar. Pela décima quinta vez odiou-se por ter deixado Petula sair de sua vista, por ter sido vaidosa e ir dar autógrafos. E então o telefone tocou.

—    Alô — disse Molly cheia de esperança.

—    Eu estou com sua cachorra — disse uma voz pesada do outro lado da linha.

—    O quê...? Onde...? Ah, obrigada! Ela está bem? — ofegou Molly, cheia de alívio.

—    Escute — disse a voz fria de Nockman. — Se você quer sua cadela de volta, faça o que eu digo. A primeira coisa é: não fale nada no telefone agora. Se você falar alguma coisa, eu desligo. — Ele achava que Molly poderia tentar hipnotizá-lo com a voz, e não queria se arriscar a isso. — Diga somente OK... OK? — ordenou ele.

—    OK — sussurrou Molly. Estava apavorada e chocada. Esse sujeito era lunático. Ela não queria desagradá-lo.

A voz continuou:

—    Se você não fizer exatamente o que eu digo, eu mato a cachorra, entendeu?

Molly ficou gelada.

—    OK — falou de novo. A palavra “mato” começou a ecoar como uma campainha de alarme em sua cabeça, e sua mão começou a tremer tanto que o telefone batia em seu rosto enquanto ela o segurava.

—    Certo — disse o homem. — Eu encontro você no coreto dos escoteiros no Central Park às seis e meia. Eu vou sozinho. Você vai sozinha. Eu não vou levar a cachorra, mas vou levar a coleira, para você saber que estou falando a verdade. Se você levar alguém, ou se envolver os policiais, estou avisando: a cachorra morre. OK?

—    OK. — Molly olhou para a parede, mal podendo acreditar que esse pesadelo estava acontecendo. OK.

—    Eu vou fazer minhas exigências. Se você concordar, a cachorra volta, OK...? OK?

—    OK — repetiu Molly, mas estava tão atordoada que mal sabia com o que estava concordando. A linha ficou muda. Em seu choque, Molly mordeu o fone enquanto tentava absorver o que tinha acabado de escutar. Dentre todas as pessoas cruéis que havia conhecido na vida, nenhuma era tão sinistra ou ameaçadora quanto essa voz estranha. Sentiu-se idiota. Deveria ter sido mais inteligente e estar mais preparada para alguma coisa assim. Afinal de contas, aqui era a cidade de Nova York, e nas vísceras daquela cidade vivia todo tipo de criaturas perigosas e revoltantes. As costas de Molly se arrepiaram quando ela percebeu que estava para conhecer uma delas. Em seguida se controlou. Porque estava preocupada? Ela era hipnotizadora. Será que havia esquecido? Ficaria em segurança... não ficaria? Dúvidas a atravessavam enquanto ela se lembrava da resistência de Davina. Mas, pensou, aquele homem era um criminoso. Se tivesse o encanto de Davina, não estaria seqüestrando cachorros.

Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira. Já eram cinco e quarenta e cinco. O Central Park ficava perto, mas como poderia chegar lá? Rapidamente abriu a porta da varanda, olhou por cima do parapeito e, para sua consternação, viu que lá embaixo havia quatro fotógrafos esperando. Pensou depressa.

Remexeu no fundo de um dos guarda-roupas e encontrou seus jeans, um agasalho cinza e o velho casaco puído, que, por sorte, não tinha jogado fora. Vestindo tudo isso, parecia muito menos interessante. Depois, com um maço de dinheiro num bolso e o pêndulo no outro, saiu do quarto no hotel e foi em silêncio até a sala das arrumadeiras no fim do corredor. Tinha visto as arrumadeiras levando montes de roupas de cama para lá e jogando por um poço até a lavanderia. Ela teria de se arriscar...

Foi uma descida rápida, escura e atabalhoada até o porão do hotel, e Molly pousou numa pilha de roupa suja. Tirou uma meia fedorenta da cabeça e olhou em volta. Como não havia ninguém à vista, foi fácil ir até a entrada de serviço. Do lado de fora encontrou a bicicleta de um entregador e montou nela, mas como estava um feixe de nervos, e como a bicicleta era grande demais, caiu duas vezes e arranhou o tornozelo na corrente antes de conseguir se equilibrar. Mas logo estava pedalando para o oeste, afastando-se das portas dos fundos do Hotel Bellingham, com os cabelos castanhos encaracolados balançando ao vento, e uma expressão de determinação ansiosa. Enquanto o asfalto passava debaixo das rodas da bicicleta, Molly se convenceu de que não havia necessidade de ter medo, que esse homem seria simplesmente outra de suas vítimas. Enquanto atravessava a avenida Madison, disse a si mesma que deveria ser forte, que logo veria Petula de novo. À medida que subia pela Quinta Avenida, ao lado do Central Park, tentou se sentir empolgada. Mas quando chegou à entrada do parque, sua apreensão voltou. Com o dedo trêmulo, seguiu os caminhos no mapa do parque, e viu que o coreto dos escoteiros não ficava longe. Preparou-se. Sabia que à noite figuras estranhas ficavam no Central Park — e esse sujeito era uma delas. Desde que ela pudesse olhar para qualquer pessoa que tentasse atacá-la, estava em segurança. Assim, respirando fundo, entrou.

O parque estava lindo. A lua tinha surgido por trás das nuvens, lançando a luz por cima das árvores gigantescas e desfolhadas. Uma névoa úmida se espalhava sobre o chão, e Molly estava afundada nela até os tornozelos. Depois voltou a montar na bicicleta, e tomando o cuidado de olhar em volta com freqüência, para que ninguém pudesse atacá-la por trás, foi pedalando na direção do centro do parque. Por mais que tentasse ser corajosa, cada galho que estalava, cada farfalhar de folhas fazia seu coração martelar. Ocasionalmente alguém correndo ou andando de patins passava por ela, mas a maior parte do tempo Molly estava sozinha na escuridão. Quando chegou ao coreto, não havia ninguém à vista. Encostou a bicicleta, subiu a escada do coreto e parou na plataforma gelada. Um relógio rompeu o silêncio, sinalizando as seis e quinze, depois seis e meia. Começou a chover. Molly esperou e esperou, tentando se manter calma. Seu coração batia com tanta força que ela achava que ele poderia atravessar as costelas. De repente uma figura pequena e redonda que ela reconheceu ligeiramente apareceu, correndo de um arbusto para o outro. Depois, levantando a cabeça, veio rapidamente pelo caminho até ela.

 

O homem começou a subir a escada do coreto. A ansiedade e o medo eram demais para Molly, e seus dentes começaram a bater. Ela os trincou com força, e então descobriu que sua cabeça estava tremendo. Um vento gelado de dezembro soprou o cheiro do homem na sua direção. Era um fedor de gordura de batatas fritas, suor e fumo velho, e fez com que Molly sentisse náuseas. Enquanto o homem ia subindo a escada de madeira, Molly viu que ele estava usando fones de ouvido e estranhos óculos escuros com um padrão em espiral no meio das lentes. Numa das mãos segurava uma pasta e, na outra, um microfone. Esse microfone estava ligado a algum tipo de máquina presa ao cinto. Ele estava vestindo um casaco de pele de ovelha e, Molly decidiu, era definitivamente muito, muito estranho. Mas, por mais nervoso que ele a fizesse se sentir, com uma decisão resoluta e grande controle, Molly se concentrou em levar seus olhos ao pico hipnótico. Quando o homem chegou debaixo da lâmpada fraca do coreto, ela o encarou com os olhos em força total.

—    Bem... vindo... disse ela lentamente, esforçando-se para colocar aquele rato horrível num transe muito, muito profundo. Mas em vez de parar no ato, o homem deu mais um passo para Molly e apontou o microfone para ela.

—    Acho, Srta. Moon, que seus olhos hipnóticos não vão funcionar em mim, uma vez que estou usando óculos anti-hipnotismo projetados pelo próprio Dr. Mesmer. Quanto à sua voz hipnótica, não estou ouvindo. Esse instrumento está processando o que você diz e interferindo no tom da voz... através disso você parece uma alienígena do espaço sideral.

Molly ficou pasma. Em seguida viu o escorpião dourado pendurado no pescoço do seqüestrador. O olho de diamante do medalhão faiscou ao luar, e para sua perplexidade ela reconheceu o rosto feio do professor que tinha gritado na biblioteca de Briersville.

Nesse ponto, de modo bastante peculiar, os temores de Molly se afastaram. Na verdade ela se sentiu aliviada em ver o professor, uma vez que estivera esperando um seqüestrador maníaco e aterrorizante. E Molly se sentiu estranhamente reconfortada em ver alguém que conhecia Briersville. Era quase como ver um velho amigo. O professor não poderia ser um seqüestrador, por isso o seqüestrador deveria ser outra pessoa. Ela precisava alertá-lo. Ou será que ele sabia sobre o seqüestrador? Por um instante Molly ficou confusa. Mas então sua mente disparou de volta para a biblioteca de Briersville. Viu, com uma clareza horrível, o professor gritando agressivamente com a bibliotecária. Ele estava exigindo um livro que ela havia perdido. Um livro do Dr. Logan. O livro que Molly tinha roubado. Molly olhou para os equipamentos extraordinários do professor. No tempo que se leva para pegar uma borboleta vagarosa, ela percebeu que estava profundamente encrencada.

—    Vamos direto ao que interessa — começou o professor. — Eu conheço os seus truques, Molly Moon. Ou será que devo dizer “Srta. Cuco”? Sei exatamente como você atua. Sei de onde você veio e o que você fez. Aquele livro de hipnotismo que você achou era meu. Eu paguei por ele. Era minha propriedade. Eu sei sobre o Livro do hipnotismo de Logan desde antes de você usar fraldas.

Por trás dos óculos com redemoinhos, Nockman olhou para Molly e se sentiu muito empolgado. Porque a verdade, bem no fundo, é que estava fascinado por Molly. Todas as outras pessoas estavam fascinadas por ela porque tinham sido hipnotizadas, mas Nockman estava de verdade. Aos seus olhos, Molly era espantosamente talentosa. Ele a vira atuando, e a respeitava. Molly, pensava ele, tinha tudo para ser uma grande criminosa, e para ele era um prazer conhecê-la. Assim, como sentia que eram parecidos, falou num tom mais gentil:

—    Como vê, eu fiquei muito chateado com você, Srta. Moon. Tem sido muito cansativo, ainda que algumas vezes divertido, caçar você por aí. Isso levou minha paciência até o limite. Acho que você vai entender quando eu disser que espero alguma coisa em recompensa por minha... inconveniência.

O coração de Molly martelou. Isso era extremamente enervante. Ela gostaria de que alguém aparecesse, e olhou em volta procurando ajuda. Nockman falou imediatamente:

—    Se você quer ver sua cadela de novo, não deve pensar em envolver mais ninguém. Você quer ver sua cadela de novo, não quer?

—    Quero — assentiu Molly, infeliz.

Nockman sentou-se no banco do coreto e enfiou a mão no bolso.

—    Aqui está coleira dela — disse ele, jogando uma tira de couro vermelho no colo de Molly.

Molly mordeu o lábio.

— Agora — continuou ele — tudo isso vai ser muito indolor, eu prometo. De fato, talvez você até mesmo goste do que eu vou pedir, Molly Moon. Mas estou avisando de novo: você deve fazer o que eu pedir. Porque se não fizer, garanto, você não vai ver sua cadelinha de novo, e haverá muito, muito mais pessoas em Nova York que saberão do seu pequeno segredo. Deixe-me dizer do seguinte modo... tenho certeza de que muita gente vai ficar muito chateada se souber como você as enganou deliberadamente para chegar até o topo. De fato, num tribunal, você poderia ser condenada por fraude. Um crime pelo qual iria para a prisão, se fosse considerada culpada. Claro, alguém da sua idade não iria para a cadeia, só para uma instituição destinada a jovens criminosos, mas ouvi dizer que essas instituições não são lugares muito confortáveis; muito piores do que orfanatos ruins. — Nockman sorriu com um brilho sinistro no olhar.

—    M... mas, Petula — gaguejou Molly — Ela está bem?

—    Já vamos falar dela.

—    O que você quer? — disse Molly bruscamente. — Dinheiro? Eu tenho um monte. É só dizer. — A mente de Molly disparou. Como é que aquele homem manipulativo, sórdido, a havia encontrado? Ela o odiava.

—    Dinheiro? — o professor Nockman deu uma risadinha.

—    De modo indireto, sim, eu quero dinheiro. Há um assunto — disse ele, abrindo sua pasta — sim, há um pequeno assunto que precisa de sua cooperação. — Nockman tirou da pasta um grande envelope e, com a mão enluvada, entregou a Molly. — Este envelope contém tudo de que você precisa saber para me ajudar. Eu quero suas habilidades emprestadas... só por um dia... é um pequeno favor, em troca da boa sorte que meu livro de hipnotismo trouxe para você.

—    O que o senhor quer que eu faça? — perguntou Molly, pegando o envelope como se ele estivesse para explodir na sua mão.

—    Eu quero — suspirou Nockman preguiçosamente — bem, a primeira coisa que eu quero, claro, é O livro do hipnotismo. Disso não há dúvida. A segunda coisa, esse favor, é o seguinte... quero que você me ajude a roubar um banco.

 

—    Roubar um banco? — Molly engasgou com as palavras, e Nockman deu um riso condescendente.

—    Não lhe passou pela cabeça, Srta. Moon, que poderia usar suas habilidades para roubar um banco? Lá estava você, dançando com seus pezinhos para ganhar seu salário, quando poderia ter milhões de vezes mais apenas visitando um banco.

—    Não, nunca me ocorreu — disse Molly, atordoada.

—    Qual é! — disse Nockman, incrédulo. — Não precisa ser tímida. Você está mostrando todos os sinais de ser uma estrela do crime. Deveria ter orgulho de si mesma.

—    Mas eu jamais roubaria um banco — insistiu Molly.

—    Ah, sim, roubaria. E roubará. E acho que quando você voltar ao Bellingham e abrir esse envelope, vai ficar muito impressionada.

Molly percebeu que Nockman parecia muito satisfeito consigo mesmo.

—    Dentro dele você encontrará planos que farão sua cabecinha girar. Você vai ver, criança, como se comete crime em grande estilo. — Ele soltou o ar com força. — Quero que você roube o banco Shorings. Talvez você já tenha ouvido falar dele. Fica no distrito de joalherias de Nova York, na rua 46. É onde todos os negociantes de jóias e todos os grandes donos de joalherias guardam suas pedras. O lugar está cheio até o teto com rubis, safiras, diamantes. É só dizer o nome de uma pedra preciosa e haverá montanhas delas no Shorings. Não é um banco cheio de lingotes de ouro, e não tem uma grande quantidade de dinheiro vivo. Não, o que ele guarda é jóias. E por que todo mundo guarda suas jóias lá? Porque o Shorings é o banco mais inexpugnável do mundo. Invadi-lo é tão difícil quanto ir ao centro da terra e voltar, entende o que estou dizendo? O sonho de todo criminoso é roubar o Shorings, e eu tenho esse sonho desde que era garoto.

—    Mas o senhor é um professor! — exclamou Molly, e mesmo enquanto dizia, isso lhe pareceu muito afetado.

—    Qual é, Moonzinha — zombou Nockman. — Acorde e sinta o cheiro do uísque. Eu não sou professor nenhum... bom, talvez um professor do crime. — Ele riu de sua própria piada. — E venho estudando esse serviço há muito tempo. O Shorings é inexpugnável? É. Mas não para um gênio do crime como eu. Eu estava decidido a roubá-lo. Por isso trabalhei lá, como faxineiro. E limpava direitinho, de modo que eles não fossem me demitir. Passava pano de chão, limpava latrinas, mas o tempo todo estava estudando o lugar e vendo como funcionava. Mas depois do tempo que passei lá, ainda não sabia exatamente como iria roubá-lo. Então fiquei sabendo do livro de hipnotismo e, depois disso, descobri sobre você.

Molly ficou boquiaberta de espanto.

—    Eu mesmo ia roubar o banco — disse ele. — Mas como você roubou o livro e me fez esperar tanto, pensei em deixar você fazer o serviço.

—    Obrigada — disse Molly debilmente.

—    De modo que vou deixar tudo nas suas mãos capazes. — Nockman apertou o casaco de pele de ovelha em volta do corpo. — Você deve considerar isso um privilégio. É a sua chance de ser associada ao maior roubo de banco de todos os tempos. Você verá. Nós vamos entrar para a história.

Com isso, Nockman se virou para ir embora. Sentia-se bem. Nunca havia falado a ninguém de suas ambições, ou de seu trabalho. A sensação foi fantástica.

—    E eu ligo para você — acrescentou. — E não faça nenhuma coisa estúpida como falar com os policiais... lembre-se, eu estou com a cadela. — Depois ele foi andando.

A reunião estava terminada. Molly ficou segurando o envelope pesado, cheia de horror. Nunca havia roubado nem mesmo um doce numa loja. A idéia de roubar milhões de dólares em jóias no banco Shorings fez com que ela se sentisse enjoada e amedrontada. Mas se não fizesse isso, Petula iria morrer. De repente tudo parecia totalmente fora de controle.

Saiu do coreto e foi empurrando a bicicleta pelo caminho. Agora se sentia culpada por causa da bicicleta. Sentia-se uma ladra. Depois pensou no que Nockman tinha dito, que ela era uma fraude. Ela era uma fraude. Pensou no dinheiro que tinha ganhado no concurso de talentos em Briersville, e no modo como havia afastado Davina Nuttel de Estrelas em Marte. Ficou pasma consigo mesma. Davina podia ser uma carreirista chata, mimada, mas pelo menos havia lutado para chegar ao topo. Ao passo que Molly havia enganado para subir. Como é que poderia desprezar Nockman por querer roubar um banco, quando ela vinha roubando, ao seu modo?

Em seguida imaginou o que aconteceria se realmente roubasse o banco Shorings. Seria apanhada, claro. Os bancos, diferentemente dos teatros, estavam sempre atentos para ladrões. Tinham todo tipo de equipamento de alta tecnologia — alarmes, câmeras. Molly seria presa, julgada no tribunal e depois mandada para uma prisão de jovens. Podia imaginar como os jornais adorariam isso. Sua foto seria colocada nas primeiras páginas, e o público iria desprezá-la. Talvez a notícia até chegasse a Briersville, e todo mundo lá saberia o que Molly tinha feito. Imaginou como a Sra. Brinklebury ficaria, chorando enquanto fazia bolinhos. Molly se viu numa cela de concreto, sentada numa cama, sozinha e sem visitas. A Sra. Brinklebury estaria longe demais para vir, e Petula não teria permissão para visitá-la. E quanto a Rocky? Será que ele iria vê-la?

Os olhos de Molly queimavam. Ansiava por um amigo com quem pudesse se abrir. Precisava de Rocky. Pensou no rosto dele, e pela primeira vez em semanas seus olhos se encheram de lágrimas. Percebeu que já poderia tê-lo encontrado facilmente, se não estivesse tão envolvida consigo mesma. Sentiu-se medonha por ter-se esquecido dele, e em vez disso procurado a fama e a fortuna. Agora essas coisas não eram nada comparadas com sua preciosa amizade com Rocky. Ela o amava como a um irmão, e agora precisava desesperadamente da sua amizade.

Lágrimas encharcaram o rosto de Molly enquanto ela passava pelo poço dos desejos do parque. Parou. A letra de uma música antiga veio à sua cabeça. “Você nunca sente falta d’água enquanto seu poço não seca.” Seu poço de amizade estava totalmente seco.

Enfiou a mão no bolso e pegou o pêndulo. Mesmo no escuro, ele brilhava. Pensou em como o pêndulo era exatamente igual a todas as coisas que vinha procurando em Nova York. Era caro, bonito e brilhante, mas no fim das contas era inútil. Molly não precisava dele. Agora gostava mais de seu velho pêndulo feito de sabonete e barbante.

Virou na mão o objeto pesado e dourado, e então, com um gesto súbito, jogou-o no poço. Ao fazer isso, desejou de todo o coração ter de volta Petula e Rocky. Com um plaft, o pêndulo bateu na água e afundou.

Pedalou de volta até o Hotel Bellingham debaixo da chuva, revirando a situação na mente o tempo todo. Caso se recusasse a roubar o banco, Nockman iria denunciá-la e ela terminaria na cadeia. Mas, pior do que isso, Nockman acabaria com Petula. Visões de pesadelo em que Petula era deixada morrendo de fome num porão, jogada num rio ou largada do alto de um arranha-céu encheram a mente de Molly. Desprezava Nockman e tinha um sentimento muito violento com relação a ele. Sentia vontade de empurrá-lo de um arranha-céu. Sentia vontade de bater nele com uma pá pesada. Sua preocupação com Petula e o ódio por Nockman estavam misturados com a saudade de Rocky e sua confusão geral. Quando entrou disfarçadamente no elevador de serviço e estava voltando para sua suíte, encharcada de chuva e suja, sentia-se totalmente arrasada.

De volta ao quarto, sentou-se triste na cama e abriu o envelope. A primeira coisa que tirou foi um mapa. Era uma planta do interior do banco Shorings. Uma parte mostrava o desenho do andar térreo, outra mostrava o do porão. Era no porão que ficavam todos os cofres e salas de depósito. Molly gemeu quando viu que Nockman tinha escrito: “Esvazie todas essas salas.”

Uma sala forte era chamada de “Sala de Caixas de Depósito de Pequenos Clientes”. Molly pensou nas velhinhas inocentes que guardavam suas preciosas heranças de família no banco. Teriam ataques cardíacos quando soubessem que as jóias tinham sido roubadas. Roubadas por Molly. Não poderia fazer isso. Viu uma anotação na parte de baixo da página.

 

“O serviço é simples: eu quero todas as pedras e jóias das salas-fortes. Deixe de lado qualquer ouro ou dinheiro, Eu tenho uma lista, e nós vamos usá-la.’

Molly tirou outros documentos de dentro do envelope. Havia uma página com uma lista de todas as pessoas que trabalhavam no banco, e onde elas trabalhavam. A última página era intitulada: “Operação Hipnobanco”. Dizia:

 

  1. Hipnotizar todos os funcionários do banco, caixas, secretárias, gerente, guardas de segurança
  2. Hipnotizar os clientes que estejam no banco
  3. Instruir o gerente a fechar o banco e a desligar todas as câmeras e alarmes internos
  4. Entrar nas salas-fortes do porão
  5. Roubar
  6. Encher o veiculo que está na garagem do banco
  7. Esvaziar a mente de todos os funcionários do banco
  8. Hipnotizar o motorista e ir até o armazém (o endereço será dado mais tarde)’

 

E onde Nockman estaria nesse tempo todo? A quilômetros de distância, claro, onde jamais seria um suspeito. Molly continuou lendo. Ela deveria acompanhar o veículo do banco, carregado de jóias, até um armazém, onde encontraria um caminhão marrom. O motorista hipnotizado deveria transferir todo o material roubado do veículo do banco para o caminhão marrom, depois ela deveria dispensá-lo com uma história na cabeça, sobre o lugar onde ele estivera. E só quando tudo isso fosse feito Nockman chegaria para levar o caminhão e o tesouro roubado para longe. Assim que ele tivesse viajado para outro lugar, bem distante, e assim que tivesse verificado que o caminhão continha tudo do banco, então, e só então, ele telefonaria para Molly no armazém e diria onde ela poderia achar Petula.

‘Quando eu tiver verificado que tudo está lá. vou telefonar e dar o endereço de onde você vai encontrar a sua cadela, e você vai encontrá-la em segurança e confortável.’

Molly gemeu. E se Nockman não devolvesse Petula? E se ficasse no pé dela e mandasse roubar outro banco? Ou se ele fosse embora com o roubo e nunca dissesse a Molly onde Petula estava? Molly imaginou se deveria ligar para a polícia. Mas as palavras de Nockman ressoavam nos seus ouvidos. “Se você envolver os policiais, estou avisando: a cachorra morre.”

Foi ao banheiro jogar água no rosto para tentar se acalmar. Olhou-se no espelho elegante e ficou olhando e olhando. Queria se hipnotizar para se sentir no controle da situação.

Mas em vez de mudar, seu rosto continuou o mesmo. Nenhum sentimento de fusão subiu pelas pernas. Seu rosto triste, manchado de lágrimas, olhava de volta, e por mais que ela tentasse, não conseguia invocar uma Molly cheia de confiança. Percebeu como estava à deriva. Tão desamparada que parecia estar perdendo os poderes. Isso era horrível.

Obrigou-se a se afastar do espelho e voltou para o quarto. Uma luz estava piscando no telefone. Alguém tinha deixado recado. Seu coração se encolheu quando notou que provavelmente era de Nockman, com o endereço do armazém. Apertou o botão para ouvir.

—    Oi, Molly! — veio a voz de Barry Bravatta. — É só para dizer de novo: você foi fabulosa na peça ontem à noite... ligue para mim, é o Barry.

Biiiiip.

—    Molly, aqui é o detetive Osman. Por favor telefone, nós gostaríamos de conversar sobre outros modos de encontrar a sua cachorrinha. Eu estou no 713 7889.

Biiiiip.

—    Molly, meu nome é Sra. Philpot. Barry Bravatta me deu seu número. Disse que talvez você estivesse interessada em alguns filhotinhos de buldogue miniatura que eu tenho.... telefone para mim no 678 2356.

Biiiiip.

—    Oi, Molly! Adivinhe quem é! — Molly se sentou empertigada... era a voz de Rocky! — Eu estou em Nova York, no saguão do seu hotel, mas você não está. Vou esperar aqui até as sete e quarenta e cinco, depois vou voltar para o meu hotel... o número de lá é 975 3366.

Molly olhou para o relógio. Eram sete e quarenta. Saiu correndo do quarto, chamou um elevador e logo estava descendo para o térreo. Quando a porta se abriu, seus olhos examinaram freneticamente as pessoas que estavam no saguão. Então viu uma cabeça com cabelos encaracolados e pretos aparecendo por cima de uma cadeira de laca preta.

—    Rocky! Você me achou! — Molly não conseguia acreditar.

O fantástico rosto marrom de Rocky girou, olhando para ela cheio de surpresa. Molly nunca havia ficado tão satisfeita em ver alguém na vida.

—    Ei, Molly!

Os dois amigos correram um para outro e se abraçaram como irmãos. Por um momento Molly se esqueceu de todas as preocupações, tão feliz estava em ver Rocky. Era como ter uma parte sua de volta.

Então os dois se soltaram e se encararam incrédulos. Cada um achava que talvez nunca mais fosse ver o outro. Molly olhava cada detalhe do rosto de Rocky. Estava luminoso como sempre. O cabelo tinha sido cortado, e ele estava usando uma jaqueta de jeans nova. Afora isso, continuava igual.

Ficaram ali parados, com um riso gigantesco no rosto, apenas se olhando. Então Molly falou:

—    Depressa, venha para cima, para longe de todas essas pessoas.

Enquanto apertava o botão do elevador ela sussurrou:

—    Você não sabe como eu estou feliz em ver você. Verdade, Rocky, você não sabe...

—    Eu digo o mesmo.

—    Ah, Rocky, verdade? Eu tenho tanta coisa para contar. Como você me achou? Você não poderia ter chegado numa hora melhor. Eu estava desejando e desejando que você viesse. Estou tão feliz porque você está aqui. Como você sabia que eu estava aqui? Gerry contou?

—    Gerry? não. Eu vi você na televisão hoje cedo, dizendo a todo mundo que Petula se perdeu, e aí você falou olá para mim. Foi surreal! Eu mal podia acreditar que era você aqui em Nova York. Mas fiquei muito satisfeito porque não sabia onde você estava, Molly. Todas as vezes que eu ligava para o Lar Vidadura, Hazel atendia, e ela não fazia idéia de onde você estava. Eu não sei onde a Srta. Viborípedes está. A propósito, Hazel disse que você ganhou o concurso de talentos de Briersville. Você vai ter de me contar tudo...

—    Eu conto isso depois — disse Molly, esperando que Rocky não desaprovasse quando ela dissesse como tinha ganhado. Os dois entraram no elevador de braços dados.

—    Eu estava no café da manhã... tomando uma xícara de chá e quase me engasguei quando vi você na TV Tossi o chá na mesa inteira... fiquei tão, tão chocado...

—    Desculpe. — Molly começou a rir.

O elevador parou no vigésimo primeiro andar.

—    Eu não podia acreditar que era você, a velha Molly Moon, no café da manhã pela TV!

— UAU... isso é fabuloso — disse Rocky quando entrou na supersônica suíte de cobertura. — Isso é espantoso. Você precisa me contar tudo que aconteceu, Molly. Quero dizer, isso é tão legal! Isso tudo é seu?

—    Mmmnn, só que, bem, era meu e de Petula.

Rocky pegou a roupa espacial prateada de Petula e suspirou.

—    Tenho certeza de que ela vai ser encontrada. Puxa, todo o mundo está procurando... Você foi muito convincente naquele programa... Meus novos pais acharam que você era linda... Ficaram dizendo coisas como: “Oh, Molly Moon não é tão doce!... Ela parece Shirley Temple... Ela é adorável...

Um pensamento medonho acertou Molly de repente. Será que Rocky tinha sido hipnotizado à distância por ela, pelas ondas da TV? Não poderia suportar se o seu único amigo de verdade tivesse sido hipnotizado para gostar dela, como todas as outras pessoas.

—    Rocky — disse ela rapidamente —, antes que você comece a pensar qualquer coisa sobre mim, pare agora mesmo, porque eu vou contar a você como consegui tudo isso, como entrei para o Estrelas em Marte e tudo, de modo que não decida que gosta de mim antes de eu ter contado. E vou dizer: talvez você não goste de mim quando souber o que eu fiz, mas preciso contar a verdade, porque senão você não vai saber quem eu sou realmente.

—    Calma, Molly — disse Rocky, franzindo a testa e sentando no sofá. Ele pegou um marshmallow que estava na grande tigela sobre a mesa.

—    Certo, eu vou contar. — Molly respirou fundo. — Primeiro preciso mostrar uma coisa. — Ela foi até um armário e abriu. — É a coisa que mudou minha vida... é o que me ajudou a chegar aqui. — Girou o botão de um cofre e abriu a pesada porta de aço. Tirou o livro de hipnotismo que estava enrolado num pacote de seda e levou até Rocky. — Aqui dentro está o livro mais incrível. Não estou brincando, Rocky, é realmente uma coisa especial. Foi esse livro que me trouxe a Nova York. Ele me trouxe todo esse sucesso... mas tudo terminou num desastre.

Enquanto Molly servia um Qube para os dois, Rocky abriu o pacote. E durante a hora seguinte Molly contou a história inteira. Do momento em que tiveram a discussão na pista de corrida rústica em Briersville ao minuto em que ouviu a voz de Rocky na secretária eletrônica. Mostrou o envelope com as instruções de Nockman e a coleira vermelha de Petula. Quando terminou, tentou olhar Rocky corajosamente nos olhos.

—    Então, agora você sabe o que eu andei fazendo. O pior foi que eu fiquei tão enrolada comigo mesma e tão fascinada pela fama, pelo dinheiro e pelas coisas bonitas, que quase esqueci de você. E então, quando perdi Petula também, percebi como é horrível ficar sem amigos. Agora você provavelmente vai querer ir embora, mas eu precisava contar tudo.

A expressão de Rocky era pensativa. Ficou enrolando um pedaço de papel dourado, de chocolate, até virar uma bolinha.

—    Sua boba — disse ele. — Eu não vou. Acabei de achar você. Por que iria querer deixar minha melhor amiga, que foi quase impossível de achar e que me deixou doido de tanta saudade? — Rocky levantou a bolinha dourada e virou de um lado para o outro, de modo a captar a luz e brilhar. — Puxa, ela pode ser meio maluca e ter feito umas coisas que não deveria ter feito, mas e daí? Ela ainda é a melhor pessoa que eu conheço. Puxa, olha só esta bola. Se ela fosse a única coisa preciosa que você tivesse, e se você tivesse ela durante a vida inteira, não ia simplesmente jogar fora quando aparecesse um pouquinho de ferrugem, iria?

Molly balançou a cabeça e olhou para a bola dourada.

—    Pode relaxar, Molly. Eu não vou a lugar nenhum. Vou ficar aqui, do seu lado, certo? Para você poder relaxar e se sentir bem.

Molly realmente se sentiu bem. Melhor do que não se sentia há séculos. Era maravilhoso ter Rocky de volta. Agora ele estava falando, mas ela não prestava atenção. Só estava ouvindo a voz quente e gentil, percebendo como tinha sentido sua falta. Era como se tivesse voltado para casa. Mas ainda se sentia mal.

—    O que eu vou fazer com relação a Petula, Rocky? Não sei como vou sair dessa armadilha. Nockman está me chantageando. Por minha causa, Petula está em algum lugar, solitária e com medo. Ela estava melhor quando sentia dor de barriga por causa dos biscoitos de chocolate de Viborípedes. Porque agora ela pode morrer, pode mesmo... Puxa, esse cara é mau de verdade... e é tudo minha culpa... eu deveria ter ficado no Lar Vidadura e aceitado a vida lá. Eu poderia ser ruim em tudo e impopular, mas pelo menos Petula estava em segurança e eu não estava sendo chantageada para roubar um banco... Na verdade, eu gostaria de estar lá, de volta... Gostaria de nunca ter achado esse estúpido livro de hipnotismo... gostaria de voltar o relógio e que tudo isso simplesmente desaparecesse.

De repente Rocky bateu palmas e, com um som de vento, o quarto do hotel desapareceu. No lugar havia um bosque. Um bosque ao lado da pista de corrida rústica, perto de Briersville. Rocky e Molly estavam sentados num banco, como tinha acontecido na tarde da discussão. Molly e ele estavam com uniforme de ginástica, com tênis nos pés. Chovia e eles estavam molhados.

 

Molly quase saiu de dentro da própria pele. Olhou em volta, em pânico. Eles realmente estavam sentados perto da pista de corrida do colégio Briersville, debaixo da chuva.

—    Aaaah, o que está acontecendo? Para onde Nova York foi? — gritou ela.

—    O tempo que você passou em Nova York nunca existiu — disse ele com calma. — Foi tudo sua imaginação, e minha também.

—    Mas... como? — ainda em choque, Molly conseguiu gaguejar.

—    Eu hipnotizei você.

—    Você me hipnotizou? — perguntou ela, pasma.

—    É.

—    Você hipnotizou a mim? — repetiu Molly. — Mas... mas... quando? — Molly estava desorientada e confusa. A chuva ia ficando mais forte.

Rocky deu um suspiro.

—    Desculpe, mas agora mesmo, aqui em Briersville. Você disse: “eu odeio esse lugar, na verdade não consigo pensar num lugar pior no mundo. Minha vida é simplesmente horrível”

Molly se sentia muito confusa.

—    Foi mesmo? Não me lembro de ter dito isso.

—    Você disse agora mesmo, no fim da nossa discussão.

—    Que discussão? — perguntou Molly, totalmente perplexa.

—    Desculpe — disse Rocky —:, “vou ter de deixar isso mais claro. Você estava irritada desde de manhã, por que a Sra. Assapa foi ruim com você depois do teste de ditado, e a Srta. Viborípedes estava botando você de castigo a semana inteira, você sabe, limpando os banheiros com a escova de dente.

—    Mas... mas... eu não posso acreditar... é incrível... — Ela não conseguia encontrar as palavras, enquanto começava a perceber realmente onde estava no mundo, e quando.

—    Você disse — repetiu Rocky — que não podia pensar num lugar pior para ficar, e que sua vida em Briersville era uma coisa horrível. Por isso eu hipnotizei você eu mostrei um lugar pior para se estar: uma situação imaginária numa Nova York imaginária.

—    Então Petula está bem? — perguntou Molly, tentando afastar o choque.

—    Está. Provavelmente está enrolada no colo da Srta. Viborípedes agora mesmo.

—    Então Nockman não existe?

—    Não.

—    E Viborípedes ainda está no Lar Vidadura?

—    Está.

—    E ela não estala a dentadura como se fossem castanholas?

—    Não.

—    E você não foi adotado?

—    Não.

—    E eu sou a velha Molly Moon, simples e impopular?

—    E isso aí.

—    Uau — disse Molly. A preocupação com Petula e a preocupação por ter de roubar um banco saiu de cima de seus ombros. Seu estômago relaxou e ela se sentiu cem vezes melhor. — Uau — repetiu, ainda tonta pelo choque e ainda meio sem acreditar que tinha voltado ao seu próprio mundo. — Uau, Rocky! Mas onde foi que você aprendeu a hipnotizar? Uau! Essa história foi demais. Você acabou de inventar tudo?

—    Foi.

—    Mas, Rocky, você provavelmente poderia hipnotizar de verdade as pessoas e chegar até o topo. Puxa, você é bom mesmo. Aquilo pareceu completamente real. Eu me senti como se estivesse em Nova York durante semanas e semanas. — Gotas de chuva batiam nos tênis de Molly. — Não posso acreditar que eu realmente pensei que eu era hipnotizadora, e o tempo todo era você.

—    Mmmnn — confirmou Rocky.

—    Mas isso foi espantoso — disse Molly, lembrando-se de tudo. — Eu realmente me senti como se estivesse naquela peça. — Estremeceu. — E Nockman era tão real! Aaargh, ele era horrível, e eu me senti muito mal quando ele pegou Petula. Rocky, sua imaginação é louca. Não posso acreditar que você inventou aquilo tudo. E há quanto tempo você consegue fazer isso? Quando aprendeu? O livro existe mesmo? Por que não me contou? — Molly olhou cheia de suspeitas para Rocky. — Por que você não me hipnotizou antes? Ou será que hipnotizou?

—    É melhor a gente ir voltando. O que será que vai ter para o jantar?

—    Provavelmente o peixe de Edna com molho de queijo e nozes — disse Molly, pensando na comida do Bellingham, que na sua imaginação era tão deliciosa. — Veja bem, Rocky, nessa história que você me contou houve um monte de partes que foram bem legais. — Molly lambeu os lábios. — A comida do hotel era incrível, e aquele quarto era tão chique! O serviço de quarto... eu gostei do serviço de quarto, gostei da vista do quarto do hotel e, mesmo que eu não devesse ter roubado o papel de Davina, gostei de participar de Estrelas em Marte, e gostei de Nova York, ah, e gostei de ter dinheiro. — Molly gargalhou. — Seria maravilhoso se tudo fosse verdade, somente com Nockman cortado da história. Puxa, ele estragou tudo. Se bem que eu ache que eu estava começando a me sentir culpada por ser uma fraude tão grande. Mas afora isso, foi... bastante bom. — Molly deu um risinho. Depois houve um clarão de luz e Rocky bateu palmas de novo.

 

Um relâmpago iluminou a silhueta de Nova York. Molly se viu de volta no quarto do Hotel Bellingham com Rocky.

—    O quê...? Por quê...? Rocky! O que está acontecendo? Ah, Rocky, o que você está fazendo? Porque nós estamos de volta aqui? — Molly ficou assustada. Não sabia mais o que era verdadeiro, e não gostava nem um pouco desse sentimento.

—    Rocky — falou lentamente —, eu não entendo... isso aqui é real, ou a floresta em Briersville é real? Quero dizer, nós estávamos agora mesmo em Briersville ou foi só a minha imaginação?

—    Nova York é real. Briersville estava na sua imaginação.

—    Definitivamente?

—    É. Nova York é real, e tudo que você andou fazendo aqui é real.

—    Tem certeza? — perguntou Molly, ainda insegura.

—    Tenho. Eu hipnotizei você agora mesmo, usando minha voz e essa bola de papel dourado. — Rocky levantou o papel de bala. — Fiz você pensar que nós ainda estávamos na corrida rústica. Queria que você pensasse que tudo isso — ele apontou pela janela, para a silhueta de Nova York — nunca aconteceu. Desculpe.

—    Mas eu fiquei molhada... aquela chuva. Tudo era tão real!

—    Bom, essa é a força do hipnotismo — disse Rocky.

—    Mas por quê... por que você fez isso?

—    Desculpe — disse Rocky de novo. — Mas, bem, você estava dizendo que desejava nunca ter encontrado aquele livro de hipnotismo... por isso eu quis mostrar como você teve sorte em achá-lo, e queria mostrar que eu também sabia hipnotizar.

—    Então você também é hipnotizador! Não posso acreditar — disse Molly, ainda agitada com a viagem que Rocky a havia levado a fazer, e completamente espantada com o talento dele. — E é assim que a gente se sente quando é hipnotizada... Que legal! Então, como foi que você aprendeu?

Rocky sorriu.

—    Adivinha.

—    Não sei, seus pais novos são hipnotizadores?

—    Não.

—    Desisto.

—    Está bem. — Rocky enfiou a mão no bolso da jaqueta de jeans e cuidadosamente pegou dois pacotes de papel de seda. — Você reconhece isso? — perguntou ele, passando o mais encalombado para Molly. Molly desembrulhou o pacote e encontrou dentro dele um pequeno pedaço de couro velho, cor de vinho. Ela virou o couro na mão e descobriu do outro lado uma grande letra maiúscula, impressa em dourado: H

— O H que estava faltando! — disse ela, espantada, e, pegando o livro de hipnotismo, colocou cuidadosamente o H no local, na lombada. Encaixava-se exatamente, e depois de fechar a ponta rasgada do I, a estranha palavra, YPNO-TISMO, se tornava HIPNOTISMO de novo.

Então Rocky entregou o outro embrulho. Nesse havia algumas folhas de papel velho, amarelado, muito bem dobrado. Molly abriu o papel.

—    Não posso acreditar! Então foi você quem rasgou aqueles capítulos!

—    Eu não pude resistir — disse Rocky. — O Capítulo Sete: Hipnotismo Usando Somente a Voz e o Capítulo Oito: Hipnose à Longa Distância. São minhas especialidades.

—    E eu achava que eu é que era má — disse Molly.

—    Mmmnn. Veja bem, eu peguei o livro primeiro. Achei na biblioteca, na sessão de livros que não deveriam ser emprestados, por isso eu li lá. Levei séculos para ler. Toda vez que eu tinha uma hora livre, ia de fininho até a biblioteca. Acho que você pensava que eu não gostava mais de você, porque ficava sempre desaparecendo. A verdade é que eu estava tentando aprender a hipnotizar, porque tinha um plano. Queria que você eu saíssemos do Lar Vidadura hipnotizando alguns americanos que aparecessem. Queria que eles fossem hipnotizados para ver como você é incrível. Queria que eles dissessem como gostavam de você porque todas outras pessoas sempre eram muito más com você. Queria que eles aumentassem a sua confiança. Por isso nunca falei do livro. De qualquer modo, enquanto eu estava lendo, aquele pedaço da capa caiu, por isso eu guardei. E decidi... bem... pegar essas páginas emprestadas. Mas sabe de uma coisa? Acho que eu deveria colocar todas elas de volta agora.

Rocky pegou as páginas, alisou-as e, abrindo o livro de hipnotismo, colocou as folhas de volta no lugar certo.

—    Lar, doce lar — falou. Em seguida entregou o livro inteiro a Molly.

—    Vamos colar o H de volta — disse ela, enrolando o couro junto com o livro. Depois de colocar o embrulho de volta no cofre, imaginou Rocky treinando as lições do Dr. Logan, exatamente como a própria Molly. — Você hipnotizou um animal? — perguntou, muito intrigada.

—    Sim, um ratinho na biblioteca.

—    Está brincando!

—    Eu nunca vi um rato rolar que nem aquele com quem eu conversei — riu Rocky.

Molly gargalhou.

—    E pessoas? Quem você hipnotizou?

—    Bom, as pessoas não foram fáceis. Eu podia meio hipnotizar as pessoas, mas nunca deu certo de verdade. Você se lembra de quando Edna fez o seu castigo de lavar a louça?

—    Lembro.

—    Bom, eu consegui hipnotizar Edna para fazer aquilo, mas meus poderes não eram muito fortes, e só consegui pouca coisa. E você se lembra da nossa briga na corrida rústica, quando eu fiz aquela cara de baiacu?

—    Lembro — disse Molly, sorrindo.

—    E você falou que eu estava parecendo estúpido?

—    Lembro — disse Molly, rindo.

—    Bom, eu estava tentando hipnotizar você para se acalmar, por que você estava muito mal-humorada.

Molly riu da lembrança.

—    Então quando foi que você ficou bom nisso?

—    Bom, alguma coisa estalou no dia em que os Alabaster foram ao Lar Vidadura, pelo menos o bastante para eles caírem sob o meu feitiço. Eu fiquei abestalhado, não conseguia acreditar quando eles quiseram me levar para casa. Eles simplesmente apareceram de novo na manhã de sábado e quiseram que eu fosse embora naquele momento, e a Srta. Viborípedes, claro, ficou muito satisfeita em se livrar de mim, mas eu não consegui passar tempo suficiente com eles para convencer os dois a levarem você.

—    Mas, Rocky, talvez eles tenham gostado genuinamente de você — interrompeu Molly.

—    Bom, talvez. Talvez. De qualquer modo, Molly, o negócio é que você estava lá no sótão, doente, e eu queria me despedir e explicar que ia voltar e pegar você também, e depois todas as crianças menores. Uau! Eu tinha um plano incrível... Mas a Srta. Viborípedes não me deixou ver você. Falou que você estava com uma doença muito contagiosa, e que estava doente, e eu sabia que não ia conseguir hipnotizar a Srta. Viborípedes, e os Alabaster disseram que, como nós íamos viajar, eu não deveria pegar a sua doença, e foi terrível, porque eu não queria fazer uma cena, para eles não me recusarem, mas sabia que você ia ficar muito chateada, e escrevi um bilhete, mas acho que Viborípedes não entregou, e ah, Molly, desculpe. — Rocky parou, sem fôlego, e tomou um gole de Qube.

—    Isso mesmo — disse Molly. — Eu sabia que alguma coisa assim deveria ter acontecido.

—    Mas agora eu estou mais treinado no hipnotismo. — Rocky sorriu maroto. — Meu ponto mais forte é a hipnose somente com a voz. E na maior parte do tempo funciona.

—    Mmmnn — disse Molly, muito impressionada e falando como uma especialista. — Eu nunca consegui dominar a hipnose somente com a voz. Já que não consegui achar as aulas. Minha especialidade é hipnose somente com os olhos, com um pouquinho de voz por cima. Quando você me viu pela TV, adivinhou que eu tinha encontrado o livro?

—    Pode apostar que sim.

Molly se recostou e sorriu. Era fantástico ter Rocky de volta, e alguém em quem confiar.

—    Os amigos de verdade são a melhor coisa — falou. — Melhor do que a popularidade, a fama ou o dinheiro. Rocky, eu estou tão feliz porque você me encontrou! Mas... o que nós vamos fazer com relação a Petula? E o que nós vamos fazer com relação ao Nockman e ao roubo?

—    Bom — Rocky assentiu devagar. — Agora as coisas estão um pouco diferentes, porque Nockman não sabe sobre mim.

—    Espero que não — disse Molly em voz baixa.

—    Quando você acha que ele vai pedir para você roubar o banco?

—    Quem sabe? Ele é tão ambicioso... amanhã?

—    Tão cedo? Nesse caso, a gente tem pouco tempo para se preparar. Acho que eu sei que a gente pode fazer. Tenho uma idéia. Tenho que admitir que é uma possibilidade remota, mas acho que pode dar certo.

 

Um relâmpago iluminou a cela de Petula. Ela odiava tempestades com raios, e, estando sozinha, sentia-se ainda mais aterrorizada. Estremeceu no canto da pequena sala no porão onde Nockman a havia aprisionado.

Depois do seqüestro, Petula tinha sido levada de carro para longe do teatro, e passou a noite no furgão branco. Nockman também ficou escarrapachado na parte de trás. Através das barras de sua jaula, Petula havia examinado o rosto de morsa do sujeito e seu colar de escorpião, e enquanto ele roncava, ficou pensando em por que aquela pessoa com um cheiro estranho a havia roubado. Tinha conseguido puxar com a pata e devorar um sanduíche vagabundo, comido pela metade. Depois, de barriga cheia, caiu no sono. No dia seguinte o homem tinha levado o carro até o prédio industrial vazio e gélido em que estavam agora. Ele estacionou o furgão dentro do prédio ao lado de um caminhão grande, e depois, com as mãos enluvadas, levou a jaula de Petula para este cômodo no porão. Abriu a tranca da jaula, tirou rudemente sua coleira, deixou-a lá e foi embora. Por sorte, um cano que pingava no cômodo significava que Petula tinha alguma coisa para beber, mas não tinha nada para comer.

Petula ficou girando e girando num sofá antigo, quebrado, que cheirava a mofo, tentando achar uma posição confortável. Desejou ter uma pedra para chupar. Desejou que os raios parassem.

O mesmo lençol de raios iluminou a calçada enquanto Nockman andava rapidamente pela chuva. Estava correndo através de ruas escuras da parte sul da cidade, a alguma distância do Central Park, onde tinha acabado de se encontrar com Molly Moon no coreto. Seus pés estavam encharcados de tanto pisar em poças, e seu chapéu estava pingando, mas por dentro ele se sentia ótimo. Tinha chantageado Molly Moon lindamente, perfeitamente. Não havia modo de ela recusar as suas exigências. Dentro de alguns dias ele seria mais rico do que qualquer criminoso na história do crime. Como adorava aquela cadelinha!

De vez em quando Nockman parava perto de uma porta para recuperar o fôlego e prestar atenção, para verificar se Molly não havia trazido os policiais com ela. A cada vez, tudo o que conseguia escutar era a chuva caindo pesada. Então continuava, andando rapidamente por becos e ruas secundárias, voltando até seu armazém. Quinze minutos depois chegou, com as mãos tremendo enquanto pegava as chaves. Lá dentro deixou-se cair numa poltrona, o coração ainda martelando devido à ansiedade da corrida. Depois de alguns minutos levantou-se e se serviu de uma grande dose de uísque, e cinco uísques depois estava dormindo.

Dormiu tranqüilo na poltrona e acordou às seis horas da manhã seguinte, com a boca seca e uma dor de cabeça terrível por causa do uísque. Enquanto pegava uma garrafa d’água e olhava o armazém escuro em volta, percebeu que ninguém tinha vindo atrás dele, e isso o fez se sentir muito melhor. Às oito estava numa cabine telefônica, discando o número de Molly. Por segurança, estava usando seu aparelho no ouvido e segurando o microfone junto ao telefone. Molly se sentou na cama para atender.

—    Bom dia, Molly — disse Nockman. — E parabéns por não ter feito nenhuma besteira. Sua cachorra ainda está bem.

Molly assentiu freneticamente para Rocky, que estava no sofá, indicando que era Nockman ao telefone. Rocky se empertigou rapidamente.

—    Imagino que você tenha concordado em fazer o serviço, não é? — perguntou ele.

—    É — disse Molly, com a voz parecendo de um alienígena através da máquina de embaralhamento.

—    Bom. Você está com uma caneta?

—    Estou.

—    Então eu tenho o endereço do armazém, para onde você vai trazer o caminhão do banco, assim que ele estiver cheio. O lugar vai estar aberto.

Molly anotou o endereço do armazém. Ficava no lado oeste de Manhattan, na rua 52, perto do cais, onde havia um monte de prédios abandonados.

—    Então eu levo o caminhão do banco até o armazém, dirigido por um guarda hipnotizado — disse Molly. — E depois...?

—    Minha nossa, Molly — disse Nockman impaciente. — Está tudo nas instruções que eu dei. Espero que você esteja à altura de serviço.

—    Estou, estou. Desculpe, é só que estou meio nervosa.

—    É bom não ficar tão nervosa a ponto de estragar tudo, Molly. Porque eu não vou ser tão gentil com sua cachorra se você estragar isso.

—    Não, desculpe. Eu me lembro de tudo. O segurança transporta as jóias do caminhão do banco para o seu caminhão. Eu mando o segurança de volta para o banco com a mente vazia, e depois você vem pegar o caminhão, e depois de ter levado a outro lugar, bem longe, você vai telefonar para mim, e dizer como posso pegar Petula.

—    Correto. E, Molly, eu só vou ligar quando estiver totalmente certo de que você entregou toda a mercadoria. Até a última esmeralda.

—    E quando o senhor quer que eu faça isso?

—    Hoje. Esta manhã.

—    Esta manhã!

—    É. — Nockman tinha decidido que era melhor pressionar Molly antes que ela mudasse de idéia. Se ele desse tempo, ela poderia encontrá-lo ou pensar em algum modo de enganá-lo. Além disso, ele estava muito impaciente e queria sentir aqueles rubis escorrendo entre os dedos.

—    Estas são as suas instruções finais: eu quero que as pessoas do banco fiquem em transe até as duas e meia. Eu vou tirar o meu caminhão do armazém na rua 52 antes mesmo que eles informem que o banco foi roubado. Vou recolher a mercadoria às quinze para as duas.

—    Às quinze para as duas de hoje?! Mas... Tudo bem. Nockman desligou o telefone e tirou seu equipamento anti-hipnotismo. Depois saiu da cabine e voltou para o armazém gelado. Jogou o casaco na parte de trás do furgão, deu um tapinha no seu caminhão marrom, que logo estaria cheio com o roubo precioso, e desceu a escada para pegar Petula.

O quarto de Petula estava com um cheiro horrível. A coitada tinha feito xixi no chão, o que ia contra todo o seu treinamento. Quando Nockman entrou, ela tentou brigar, mas ele estava usando luvas de novo, de modo que a mordida não machucou. Além disso ela estava fraca. Nockman a agarrou pela pele do pescoço e empurrou para dentro da jaula. Petula se sentiu abatida e muito, muito faminta.

Com a jaula dentro do furgão, Nockman atravessou a ilha de Manhattan e passou por uma ponte até o Brooklin, chegando a uma pequena área industrial semi-abandonada, onde ele possuía outro armazém, maior. Com o passar dos anos, os negócios escusos de Nockman haviam lhe garantido uma certa riqueza, de modo que ele tinha dois lugares para usar como depósito. Eles eram úteis para os negócios. Era nesse segundo armazém que Nockman guardava todo o material roubado. O lugar estava atulhado até o teto com caixas e sacos cheios de coisas roubadas, de taças de vidro a louças, cortadores de grama e anões de jardim; qualquer coisa que Nockman pudesse roubar e depois vender.

Entrou com o furgão dentro do armazém, estacionou, saiu e, todo alegre, chutou um dos sorridentes anões de jardim. A Operação Hipnobanco estava seguindo de acordo com o plano. Ele praticamente já havia sido lançado na Superliga do Crime. Estava quase lá! Daqui para frente nada de crimezinhos de terceira. Dali a pouco estaria rolando em dinheiro. O próximo passo era colocar aquela cachorra estúpida em algum lugar e ficar pronto para voltar a Manhattan e recolher sua riqueza. Estava tenso de empolgação. Tomou uma dose de uísque para acalmar os nervos.

Uma mesa de serviço de quarto estava na sala de Molly, com as sobras de dois desjejuns comidos pela metade. Molly olhou para Rocky e puxou o cabelo.

—    Hoje! Não posso acreditar que ele quer que a gente faça isso hoje. São oito e quinze, e ele quer a jóias e as coisas no primeiro armazém, colocadas no caminhão dele, às quinze para as duas. Até lá nós temos...

—    Cinco horas e meia — calculou Rocky — para roubar o banco, colocar o roubo no caminhão do banco, levar até o armazém e depois transferir para o caminhão dele.

—    Mas nós não memorizamos as plantas.

—    Vamos levar os papéis.

—    Puxa, vai ser possível?

—    Vamos ter de tentar.

—    Mais do que tentar — disse Molly. — Vamos ter de fazer cem por cento direito.

—    É.

Os dois ficaram quietos por um momento, avaliando a monstruosidade da tarefa. Depois Molly falou:

—    O que nós estamos esperando? Vamos acabar com isso. Estava na hora de agir.

 

Às oito e quarenta, Molly e Rocky, vestidos de jeans e casacos, estavam na frente do Banco Shorings. Era uma fortaleza gigantesca, austera, com paredes altas e sólidas como a lateral de um pequeno penhasco. Em duas sacadas havia janelas cheias de azevinhos e frutinhas vermelhas. Escondidas nas frutinhas havia câmeras que filmavam a entrada do banco. Ele só abria às nove horas.

Molly e Rocky se sentaram num banco do outro lado da rua, escondidos por um arbusto. Ocultando os planos de Nockman dentro de uma revista em quadrinhos, estavam testando um ao outro para ver se lembravam da planta do banco, tentando visualizar onde tudo estava e onde estariam todos os funcionários. Através dos arbustos viam nova-iorquinos correndo para o trabalho. A duzentos metros de distância podiam ver os guardas do banco patrulhando a entrada, atentos para possíveis ladrões. Molly e Rocky jogavam pedrinhas na sarjeta enquanto os últimos minutos tiquetaqueavam.

—    Só espero que todos eles sejam fáceis de hipnotizar — disse Molly. — E você consegue, não consegue, Rocky? Puxa, eu não estou sendo grosseira, só que você disse que na maior parte do tempo o negócio funciona. Quero dizer, com que freqüência não funciona? O caso é que, se você fizer errado e eles forem alertados para o fato de que estamos tentando hipnotizá-los, vai ser uma encrenca enorme...

—    Eu hipnotizei você, não hipnotizei?

—    É verdade. Mas você tem certeza de que consegue hipnotizar mesmo quando estiver nervoso?

—    Tenho. Bem, acho que sim.

—    Você está nervoso agora?

—    Estou.

—    Eu também.

Molly não estava confiando totalmente em Rocky, mas sabia que ele iria se esforçar ao máximo, e precisava de um cúmplice, por isso tentava não pensar nas coisas que poderiam dar errado.

—    Rocky, você não vai fazer um dos seus truques de sumir quando nós estivermos lá dentro, vai? Não desapareça de perto de mim na hora de ir embora ou algo assim.

—    Fique calma, Molly. Você só está com nervosismo de última hora. A gente consegue. Desde que você se lembre de tudo que a gente planejou ontem à noite, certo?

—    Certo — disse Molly, tentando relaxar.

Um relógio dentro do banco bateu as nove horas, fazendo os dois pularem. E então as pesadas portas de ferro fundido do banco se abriram.

—    Você acha que todas as pessoas que trabalham no banco estão lá dentro agora? — perguntou ela, nervosa.

Rocky deu de ombros.

—    Acho que sim.

Ele enfiou as plantas do banco na bolsa de lona de Molly, junto com o livro de hipnotismo, que estava embrulhado para Nockman.

Os dois amigos se afastaram da parede e foram andando devagar até o banco. Quanto mais perto chegavam, maior o banco ficava, e mais seus estômagos se reviravam.

—    Eu estou com um vazio na barriga — disse Rocky.

—    Você tem sorte — disse Molly, enxugando as mãos nas calças. — A minha parece que está entalada.

Cautelosamente eles subiram os degraus de pedra. Enquanto passavam pela entrada imensa, Molly notou as enormes trancas de metal que mantinham as portas fechadas à noite, e dois guardas que pareciam gorilas peludos, que pareciam estar olhando direto através dela.

Dentro do banco estava frio e quieto. Ventiladores de cobre e luminárias verdes pendiam do teto alto, e o chão era de mármore preto e brilhante. Molly olhou para as altas janelas gradeadas e viu câmeras, parecendo moscas pretas e ameaçadoras, agachadas nas paredes. Espalhadas no salão havia mesas elegantes, com tampos forrados de couro e balanças em cima, atrás das quais estavam sentados funcionários do banco. Aqui e ali havia mesas onde os clientes poderiam colocar rubis e pedras preciosas sobre tecidos brancos para os banqueiros inspecionarem com lentes de aumento. Ao longo da parede do fundo havia cabines com frente de vidro, separando outros funcionários do público. E, esticadas pelo salão, havia cordas vermelhas, pesadas, presas em pequenos postes de latão. Alguns clientes já estavam formando fila. Telefones tocavam e eram atendidos. O lugar estava cheio de atividade.

—    Minha nossa — sussurrou Molly, perdendo a coragem. — Olhe para as câmeras. Isso vai ser complicado.

—    Não se você seguir o nosso plano — disse Rocky, animando-se. — Você vai ver, vai dar tudo certo... e... e boa sorte, Molly.

Molly engoliu em seco e assentiu.

—    Para você também. — E Rocky foi se sentar numa cadeira perto da parede.

Molly foi até uma mesa no canto do salão. Sentou-se diante de um funcionário jovem, com o rosto sardento.

—    Bom dia — disse ela —, eu gostaria de depositar alguns rubis.

—    Sem dúvida, madame — disse o funcionário, erguendo os olhos inocentemente. O pobre rapaz era uma vítima fácil. Ele caiu na teia de Molly como uma lagarta cega.

Num instante Molly tinha quase terminado suas instruções.

—    De agora em diante você fará exatamente o que eu disser, ou que o meu amigo disser. Até as dez horas você vai se comportar normalmente com os outros clientes. Às dez você vai até a frente do banco e vai esperar instruções.

O funcionário assentiu.

—    E quando a senhora gostaria de trazer essas jóias? — perguntou ele, comportando-se normalmente.

—    Muito bem — disse Molly. — Agora, por favor, me leve para falar com o gerente.

O funcionário levou Molly passando por uma porta de segurança. Agindo do modo mais inocente possível, ela olhava direto para frente, ignorando qualquer pessoa que poderia estar vigiando-a e seguindo o sujeito sardento por um grande corredor, até chegarem a uma porta onde havia uma placa dourada em que estava escrito: “Sra, V. Brisco. Gerente”.

O funcionário bateu e os dois entraram. Isso espantou a secretária da gerente, que parou de digitar e olhou muito irritada para os visitantes que não tinham sido anunciados, mas depois de alguns segundos do olhar de Molly, ela também estava sob controle, e falou com a Sra. Brisco através de um interfone.

—    Desculpe incomodá-la, Sra. Brisco, mas há uma pessoa aqui para vê-la, chamada...

—    Srta... é... — Os olhos de Molly dardejaram desesperadamente pela sala, buscando inspiração. — Srta. Azaléia — falou, ao ver uma planta num vaso perto da janela, e se encolhendo por dentro quando ouviu o nome estúpido sair de sua boca.

—    Srta. Azaléia — repetiu a secretária. — Acho que a senhora deveria recebê-la.

—    Mande-a entrar — foi a resposta séria da gerente.

A gerente do banco era uma mulher pequena e magra de cerca de cinqüenta anos, com mãos trêmulas e rosto fraco. Recebeu Molly franzindo a testa impaciente, examinando-a através dos óculos com armação de chifre, imaginando que diabos uma criança poderia querer com ela.

—    Nós não fazemos visitas pelo Shorings com crianças de escola. Mas você pode pegar alguns folhetos do banco no balcão de informações, para o seu projeto escolar. Tenho certeza de que será adequado para as suas necessidades. Adeus.

—    Não — disse Molly. — Eu gostaria da sua ajuda pessoal para o meu projeto, por favor.

Como gerente de banco, a Sra. Brisco tinha aprendido a desconfiar muito das pessoas. De modo que era difícil de ser hipnotizada. Molly descobriu que ela era surpreendentemente resistente. Era como um cachorro, puxando uma coleira, recusando-se a vir, mas a vinda da Sra. Brisco era inevitável, uma vez que estava na ponta da correia segura por Molly. Ela se remexeu e se retorceu, e tentou se defender, mas não pôde resistir aos olhos de Molly. Em meio minuto Molly deixou a Sra. Brisco totalmente desorientada.

Logo a Sra. Brisco tinha concordado em fazer tudo que Molly pediu.

Sem tempo a perder, todos funcionários do banco foram trazidos, um a um, para a sala dela, onde Molly lançou sua magia sobre eles. Deu as mesmas instruções a todos: continue trabalhando do modo normal até as dez horas, depois se reúna com os outros no salão do banco e espere mais ordens. Molly queria manter o banco trabalhando normalmente pelo maior tempo possível. Já havia quase passado das nove e meia.

Enquanto isso Rocky estava na frente do banco, de olho em quem chegasse. Via clientes vindo e indo, e prestava atenção enquanto os funcionários atrás da divisória de vidro saíam de suas mesas e voltavam com o olhar vidrado.

Na sala da gerente, assim que havia dominado todos os seguranças, inclusive os dois gorilas da porta principal, e todos os outros funcionários do banco, Molly se concentrou nas câmeras, que estavam espiando de cada canto. Descobriu que algumas ficavam escondidas secretamente nas laterais de cestos de lixo. Molly e Rocky já deviam ter sido gravados por umas vinte ou mais. Era muito importante apagar essa prova, e depois o trabalho deles poderia começar. A Sra. Brisco levou-a à sala de vídeo e todas as câmeras foram desligadas.

— Agora — disse Molly, soltando um suspiro de alívio. — Quero que a senhora volte as fitas e apague tudo que foi gravado esta manhã.

—    Im...possível — disse a gerente. — As imagens vão... eletronicamente... direto para o nosso... setor de registros gravados.

—    O quê?! — exclamou Molly, incrédula. Não podia acreditar no que estava ouvindo. Rocky e ela filmados, no setor de registros gravados! Isso era terrível. Molly seria reconhecida! Até mesmo o detetive mais imbecil ficaria cheio de suspeitas, ao vê-la andar pelas salas dos fundos do banco. As anotações de Nockman não diziam nada sobre um setor de registros. Molly ficou cheia de fúria, e ao mesmo tempo em pânico. — Espere aqui — ordenou. Com o estômago se revirando de tanto nervosismo, foi correndo até Rocky.

—    Rocky — falou rouca —, estamos com um problema. Nós fomos filmados, e as fitas não podem ser apagadas porque as imagens são transmitidas automaticamente para o setor de registros de gravações... nós não podemos continuar, vamos ser apanhados na hora. Mas, Rocky, se nós não continuarmos, o que vai acontecer com Petula?

Rocky ficou preocupado.

—    Me leve até a sala de vídeo. Não estou prometendo nada, mas talvez eu possa resolver isso.

Depois de pegar o número de telefone do gerente do setor de registros com a Sra. Brisco, Rocky se sentou com um telefone e tentou se concentrar. Só havia hipnotizado pelo telefone algumas vezes antes, por isso estava extremamente ansioso, sem saber se conseguiria. Era muito difícil relaxar, com Molly suspirando e mordendo o lábio ao lado. Depois respirou fundo e foi em frente.

Concentrando-se como se sua vida dependesse disso, discou o número. Um funcionário que parecia meio burro atendeu o telefone, e como não suspeitava de nada, hipnotizá-lo à distância foi muito mais fácil do que Rocky esperava. Logo o sujeito havia apagado todo o filme daquela manhã. Sentindo-se muito mais confiante, em seguida Rocky telefonou para a companhia de segurança que cuidava do banco e mandou o guarda desligar o alarme do Shorings.

—    Uuuufa! — murmurou Molly. — Isso foi brilhante, Rocky!

—    Por sorte funcionou — disse ele, respirando com mais facilidade. — Por um momento pensei que não iria dar certo. Parece que os planos de Nockman estavam desatualizados. Espero que não haja mais nenhuma surpresa ruim esperando a gente.

Molly assentiu, sentindo-se enjoada. Em seguida os dois continuaram.

Os dois seguranças que trabalhavam na frente do banco foram chamados à sala da Sra. Brisco. Parados um do lado do outro em estado hipnótico, com a língua pendurada fora da boca, Molly pensou em como eles pareciam homens da idade da pedra.

—    Qual dos dois vamos escolher como chofer? — perguntou ela a Rocky. — Qual tem cara de mais inteligente?

—    Não dá para dizer se nenhum dos dois tem um cérebro maior do que um torrão de açúcar — disse Rocky —, mas acho que o da esquerda parece mais esperto.

—    Por quê?

—    Porque não está tentando comer o próprio colarinho. O guarda que escolheram era o mais musculoso e também o mais peludo. Rocky levou o que estava faminto de volta para o saguão do banco, e Molly foi levada pelo outro até a garagem do banco. A garagem ficava nos fundos do prédio, seguindo por uma passagem estreita, no final da qual havia uma porta antiincêndio, preta, com maçaneta de metal. Atrás da porta ficava uma plataforma de aço e um lance de escada que descia até o chão de concreto de uma garagem do tamanho de uma quadra de tênis. Ali estava o caminhão. Um caminhão cinza, do tamanho de um pequeno elefante. Molly imaginou que ela mal poderia ficar em pé na traseira dele.

—    Esse é o único caminhão que vocês têm? — perguntou, preocupada em saber se ele não seria pequeno demais para levar a carga de Nockman.

—    Urghhhé — grunhiu o guarda.

—    Você acha que ele é capaz de carregar o conteúdo das salas fortes do banco?

—    Urghhhé.

—    Por que você tem tanta certeza? — perguntou Molly, esperando que o cérebro do tamanho de um torrão de açúcar estivesse funcionando.

—    Porque as pedras não são pesadas, são muito caras, mas não são tão pesadas.

—    Certo — disse Molly, olhando para as janelas laterais do caminhão, escuras e estreitas como fendas, e para as portas à prova de bala. Esperava que o homem estivesse certo.

Voltou ao saguão e sutilmente hipnotizou os treze clientes que estavam lá. Logo eles ficaram em fila como soldadinhos de brinquedo em posição de sentido. E quando o relógio bateu as dez horas, as portas do banco foram fechadas. Um cartaz foi colocado do lado de fora.

“Fechado durante duas horas e meia, para treinamento dos funcionários. Pedimos desculpas por qualquer inconveniência.”

Alguns clientes muito chateados, que queriam entrar, foram deixados na escada, reclamando. Depois os funcionários do banco, hipnotizados, começaram a encher o saguão, e logo também eles estavam em fila como se fossem marionetes.

—    Isso parece um sonho — sussurrou Rocky. Durante um momento, ele e Molly ficaram imóveis. Era uma sensação fantasmagórica estar ali, com o dia de trabalho imobilizado.

Ao fundo, um telefone tocando fez Molly dar um pulo, mas ele foi rapidamente atendido por uma recepcionista, que, segundo as instruções, disse:

—    No momento ele não pode atender. Ele liga para o senhor de volta, adeus.

—    Certo — disse Rocky. — Vamos para o porão.

A Sra. Brisco guiou os dois por um corredor cinzento até um elevador. Ali digitou um código de dez números numa pequena caixa prateada. As portas se abriram com um chiado, e Molly e Rocky a acompanharam para dentro do elevador. Enquanto desciam, Molly começou a se sentir muito claustrofóbica. Agora ela e Rocky estavam realmente encalacrados. Tinham hipnotizado aproximadamente trinta e cinco pessoas, e, se saíssem do transe, todas elas iriam diretamente ao telefone, ligar para a polícia. E todas aquelas pessoas estavam lá em cima, enquanto ela e Rocky iam realizar seus negócios cá embaixo. Se alguém acordasse, ela e Rocky estariam numa armadilha. Molly baniu o pensamento da mente, e tentou se concentrar no que deveria fazer. Seus joelhos estavam pinicando, e ela ficou arrepiada de nervosismo. E, além disso, o medo fazia com que ela quisesse ir ao banheiro, mesmo que realmente não quisesse. O rosto marrom de Rocky, notou ela, estava nitidamente pálido. Molly se lembrou de todas as vezes em que ele a havia ajudado a sair de encrencas no Lar Vidadura. Agora sentia culpa por tê-lo envolvido.

—    Desculpe por tudo isso — sussurrou, enquanto as portas do elevador se abriam.

—    Deixa pra lá — disse ele com um sorriso nervoso. Agora estavam no porão. A sua frente Molly reconheceu as entradas para as salas de contabilidade particulares, a partir das plantas do banco desenhadas por Nockman. Enquanto a Sra. Brisco guiava os dois pelo corredor apertado e de teto baixo indo até as salas fortes onde ficavam os cofres das jóias, Molly ficou um pouco para trás. Tinha imaginado qual seria a aparência de uma daquelas salas de contabilidade, e também queria verificar se não haveria algum guarda lá dentro, sem ser hipnotizado. Assim, afastando-se de Rocky e da Sra. Brisco, entrou em uma. Foi uma sorte tremenda ter feito isso.

Um homem com rosto que parecia de pedra, usando terno grosso e listrado, levantou a cabeça. Estava com uma bandeja de cofre na mesa à sua frente, e segurando um diamante muito grande.

—    Que diabo uma criança está fazendo aqui embaixo? — perguntou ele, com os olhos se estreitando e o nariz franzindo numa careta agressiva. Rapidamente Molly o dominou e tirou o diamante da mão dele. O diamante era pesado, duro e enorme. E captou o reflexo de Molly enquanto ela fazia rolar na mão.

—    Minha nossa, isso deve valer uma fortuna — falou maravilhada.

—    Pode apostar que sim — rosnou o homem com cara de gângster. — Eu o roubei... hoje.

—    De onde? — perguntou Molly, chocada e fascinada com aquele homem do submundo.

—    De... outro... bandido.

Molly estremeceu, colocou o diamante dentro do bolso do casaco e alcançou Rocky, que estava a três portas de distância, com a Sra. Brisco, perto das salas-fortes.

A cara de Rocky era como se ele tivesse acabado de saber que Petula tinha virado picadinho.

—    Qual é o problema?

—    As trancas — sussurrou Rocky com voz rouca. — Aquele idiota do Nockman não sabe nada sobre esse lugar. Tudo foi atualizado depois que ele saiu daqui. Não existe modo nenhum de a gente entrar nessas salas-fortes e abrir os cofres.

—    Por quê?

—    Porque a Sra. Brisco aqui me disse que não pode abri-los sozinha. Ela e o cliente que aluga o cofre têm de estar presentes para abrir as caixas. São cinco salas-fortes, cada uma com oitenta caixas. Portanto são quatrocentas caixas, e quatrocentos clientes que precisariam estar aqui.

—    Mas por quê?

—    Porque — explicou a Sra. Brisco — nós temos... um... novo equipamento... que só... abre as... caixas quando recebe... uma informação minha... e de um cliente autorizado.

—    Que tipo de informação?

—    Leitura de íris.

De repente as pernas de Molly ficaram totalmente bambas. O que a Sra. Brisco estava dizendo?

—    Mostre o equipamento — disse ela.

A Sra. Brisco levou-a até uma caixa preta na parede. Nela havia um painel com botões numerados de zero a nove e um mostrador eletrônico onde os números apareciam em verde. No momento o mostrador estava com zero, zero, zero. A direita dos zeros havia uma luz amarela, do tamanho de uma bola de bilhar.

—    Explique como isso funciona — disse Molly.

—    Primeiro... eu digito... o número... da caixa de depósito que precise... ser aberta. Então... o equipamento compara minha íris... com o padrão da minha íris que ele tem na memória. Depois ele lê... a íris do cliente e compara... com a que está na memória. Se todas as informações sobre as íris... estiverem corretas, o computador... da máquina... sabe que eu estou presente... e o cliente... também. Então o equipamento pode autorizar a abertura... do cofre de depósito. Isso é assim... para que os cofres não possam ser abertos... por alguém que queira roubar... o... conteúdo.

Molly apertou os lábios. Isso era totalmente imprevisto. Olhou para Rocky, que parecia a ponto de vomitar.

—    E o quê, exatamente, é uma íris? Algum tipo de impressão digital?

—    De... certa... forma é... como uma digital... no sentido de que nenhuma íris de uma pessoa... é igual... à de outra. É por isso que... o equipamento... funciona.

—    É, eu sei por que funciona — disse Molly, sabendo que estavam derrotados. — Eu só queria saber o que é uma íris.

A resposta da Sra. Brisco foi inexpressiva, como se estivesse lendo um livro sem graça.

—    A íris... é a parte colorida... do olho. A parte que dá à pessoa... a cor do olho. A íris tem os músculos que... contraem e dilatam... a pupila preta... no centro... do olho. Todo mundo... tem uma íris diferente. A sua é linda... tem um tom lindo de verde.

Um brilho de esperança atravessou Molly. Ela assentiu para Rocky.

—    Vale tentar.

Um minuto depois Rocky tinha apertado o número um no equipamento de leitura de íris, para abrir o cofre de depósito número um, e a Sra. Brisco estava curvada, olhando para a máquina, para que sua íris fosse lida.

Em seguida foi a vez de Molly. Ela se inclinou para frente e grudou o olho no buraco amarelo. Olhou para dentro, para o equipamento de leitura de íris, e a máquina, por sua vez, olhou no olho de Molly.

Ali estava o olho de Molly, como um pneu grande, pintalgado, verde, cheio de raios cor de esmeralda. A máquina começou a ler os ramos formados por veias e músculos minúsculos, criando um padrão em sua memória de computador. Ela soltou bips enquanto assimilava a informação.

Então, de repente, o olho na frente dele mudou. A máquina começou de novo. Soltando bips enquanto lia a íris. Quando o olho mudou de novo, mais rápido do que antes, a máquina recomeçou. O olho mudou, a máquina mudou. Então a pupila do olho ficou maior, a máquina se adaptou ao tamanho. A pupila se encolheu, a máquina encolheu os dados. A íris que parecia um pneu começou a girar. A máquina ficou confusa. Não estava programada para ler olhos que giravam. E agora as marcas verdes no olho estavam piscando. A temperatura da máquina subiu enquanto ela examinava sua memória de silício para encontrar instruções com relação ao que fazer. O olho começou a pulsar, o computador soltava bips mais rápidos, o olho começou a se retorcer e a pulsar ao mesmo tempo, o computador começou a entrar em pânico. Sua temperatura estava crescendo demais, seu chip estava se entortando, o equipamento de leitura estava... estava... de repente o computador não conseguia se lembrar do que era o equipamento de leitura, e onde ele estava. De repente tudo que ele conseguia computar era como aquele olho na sua frente parecia perfeito. O chip de silício se sentia quente e confortável como no dia em que fora feito. O computador gostava daquele olho. Gostava da íris dele. Era melhor do que todas as outras íris que ele já havia lido, juntas. O computador relaxou e deu instruções a si mesmo para se abrir completamente.

PING CLUNCH, PING CLUNCH, PING CLUNCH, PING CLUNCH, PING CLUNCH, PULIUNK, PULIUNK, PULIUNK, PULIUNK.

Quatrocentas portas de cofres de depósito se abriram imediatamente. E, simultaneamente, cinco portões com barras de aço nas salas de depósito se destrancaram.

Molly afastou o olho da máquina. E admirou seu trabalho.

—    Isso é que eu chamo de estilo — disse ela.

—    Isso é que eu chamo de sorte tremenda — corrigiu Rocky.

Ele acompanhou a Sra. Brisco escada acima pela saída alternativa do porão, e voltou para o saguão do banco. Lá, ordenou que as trinta e cinco pessoas hipnotizadas formassem uma corrente humana indo dos cofres de depósito até o caminhão do banco na garagem. A Sra. Brisco entregou a Molly e Rocky sacos de pano do tamanho de bolas de futebol, e um monte de envelopes pardos, grandes. Imediatamente os dois passaram a trabalhar.

As salas fortes guardavam uma quantidade impressionante de tesouros. Cada uma tinha oito colunas com dez caixas. Desse modo eram oitenta caixas em cada sala forte. Quatrocentas no total.

Cada caixa tinha uma pequena bandeja de metal, que podia ser puxada, e cada uma delas, como Molly e Rocky logo descobriram, era diferente. Havia bandejas com apenas grandes rubis separados, postos cuidadosamente sobre o veludo. Havia outras com minúsculos pacotes do tamanho de unhas, apertados uns contra os outros como sardinhas. Havia bandejas cheias de colares de pérolas e outras cobertas por anéis de diamantes. Algumas tinham bolsas de couro, seda ou camurça. Cada bolsa estava cheia de pedras preciosas. Havia bandejas com jóias antigas e caras, e jóias especialmente lapidadas. Molly e Rocky esvaziavam cada bandeja, colocando o conteúdo num envelope pardo separado, trabalhando numa coluna de caixas de cada vez. Dez envelopes pardos, cheios, enchiam cada saco do tamanho de uma bola de futebol.

Finalmente o último saco foi passado para a esteira transportadora humana e levado até a garagem. Lá todos eles eram postos no caminhão pelo gorila.

Foi um trabalho exaustivo. Milhões e milhões e milhões de dólares em jóias saíram dos cofres. Mas finalmente o último cristal tinha sido retirado e empacotado, e uma pilha de sacos gorduchos esperava na parte de trás do caminhão.

Molly e Rocky juntaram aquela quantidade de pessoas suadas e hipnotizadas e esvaziaram a mente de todas elas.

— Todos vocês vão acordar quando o relógio lá fora der duas e meia — disse Molly. — Todos vão contar à polícia que uma gangue de assaltantes armados, com meias cobrindo a cabeça, roubaram o banco e, bem, cada um de vocês terá sua própria história para contar, dizendo como ficaram apavorados, e o que eles disseram a vocês, que tipo de coisas, bem... e até as duas e meia todos vocês podem ficar sentados no chão e... cantar. A última coisa é a seguinte: vocês não terão nenhuma lembrança de meu amigo aqui e de mim.

Todas as pessoas no saguão sentaram-se obedientemente e começaram a cantar. Molly pensou em como elas pareciam doces, iguais a crianças de jardim de infância sentadas no chão. Em seguida ela e Rocky subiram na frente do caminhão junto com o motorista hipnotizado, a porta da garagem se abriu, o caminhão saiu e a porta se fechou de novo.

Foi uma viagem de arrasar os nervos, do Banco Shorings à rua 52 Oeste, porque o gorila não estava no controle completo do caminhão. Mas logo, perto do cais, eles localizaram o prédio arruinado que era o depósito de Nockman. Molly tentou ler o exterior coberto de pichações enquanto Rocky descia para abrir o portão.

Então começou o transplante. Os sacos de pano tinham de ser colocados no caminhão marrom de Nockman. Quando o serviço terminou, o guarda peludo se sentou, com o rosto vermelho de tanto esforço, e Molly lhe deu um pouco d’água para beber.

— Muito, muito obrigado — disse Rocky, sentindo pena dele. — Agora você deve dirigir o caminhão vazio de volta ao banco, mas não vai acordar nem chegar lá antes das três horas. Não vai se lembrar deste endereço. Você vai dizer, a todo mundo que perguntar, que foi obrigado a descarregar a mercadoria roubada num monte de carros diferentes, Mustangs, Cadillacs e furgões. E vai dizer que depois você foi amarrado e vendado, e quando finalmente conseguiu se soltar, estava na... na... rua 99, e que de lá voltou para o banco.

O gorila grunhiu, depois tomou sua água, derramando metade no peito. Logo ele tinha ido embora.

Às vinte para as duas Molly estava sentada nervosa numa cadeira, esperando a chegada de Nockman.

 

Exatamente às quinze para as duas a porta do armazém se abriu lentamente. Nockman, com seu casaco de pele de ovelha e usando o equipamento anti-hipnotismo, entrou. Em seguida fechou a porta. Seu corpo tremia lentamente, com frio por causa da caminhada desde o metrô, e suas mãos tremiam de nervosismo. Ele não estava cem por cento seguro com relação a Molly. Entretanto precisava fazer com que ela achasse que ele estava no controle completo. Respirou fundo, com um som áspero.

Lá estava ela, sentada numa cadeira. Ele não podia ver muito bem com os óculos de redemoinhos, mas sem dúvida era ela. Seus passos soavam de modo esquisito pelo fone de ouvido, e sua própria voz parecia a do Mickey Mouse enquanto ele falava.

—    Então o veículo está cheio, não é?

—    Está. Está com tudo dos cofres. Até a última pérola.

Nockman se espantou. A garota era melhor do que ele tinha pensado. Mas não deixou que a perplexidade aparecesse.

—    E o serviço aconteceu de acordo com o plano?

—    Completamente. Todos eles acham que foram assaltados por um bando de ladrões armados. E o seu caminhão está com tudo dentro. Você vai ver. — Molly examinou o falso professor como se ele fosse um inseto sob uma lente. Realmente era um piolho sujo, e olhava para Molly como um piolho olharia um ser humano cujo sangue estava para sugar: sem compaixão.

—    Bom — disse ele. — Você está aprendendo. Da próxima vez pode roubar um banco sozinha, sem minha ajuda. E o livro? Isso também fazia parte do trato.

Molly levou a mão para trás, pegou o pacote embrulhado em seda, e ofereceu a Nockman. Ele agarrou o embrulho e puxou rapidamente a seda, para verificar se era o livro de verdade.

—    É meu — disse cheio de cobiça, como uma criança mimada. Agora estava doido para ir embora.

Subiu rapidamente no caminhão. O veículo tremeu quando o motor foi ligado e cuspiu fumaça de descarga dentro do armazém.

—    Ligo para você quando tiver terminado minha verificação — falou com pressa. — Agora abra a porta.

—    E Petula, ela está bem? — perguntou Molly, levantando-se na ponta dos pés e falando com ele pela janela da frente.

—    Está bem, está bem — mentiu Nockman. — Ela comeu direitinho, bife, bacon e biscoitos de chocolate.

—    Biscoitos de chocolate?

—    É, e o quanto antes você abrir esse armazém, mais cedo eu telefono de volta, e mais cedo você estará vendo a cachorra.

Molly abriu o portão e ficou olhando enquanto Nockman dirigia o caminhão marrom para longe, seguindo pela rua 52 Oeste.

Assim que pegou a rua perto do cais, Nockman arrancou os óculos de redemoinho e os fones de ouvido do equipamento de distorção de voz. As engrenagens do caminhão fizeram barulho quando ele mudou a marcha. Então, com o coração disparado, acelerou. Mesmo sabendo que estaria facilmente fora da ilha de Manhattan antes que o roubo fosse ao menos informado, sentia um nervosismo pavoroso. Gotas de suor pingavam da testa para dentro dos olhos, turvando a vista. Ele xingava cada sinal de trânsito e berrava contra qualquer pessoa que quisesse atravessar a rua. Mas logo estava entrando na rua industrial do Brooklin, ladeada de árvores, até chegar ao seu depósito cheio de anões de jardim, longe de olhares curiosos.

Ali, Nockman ficou ansioso para controlar o fôlego, acalmar os nervos e inspecionar a mercadoria preciosa que estava na traseira do caminhão.

Depois de entrar em segurança no prédio e trancar a porta, encostou-se na parede de concreto.

—    Nossa, minha nossa, eu preciso de uma bela dose de bebida — falou em voz alta.

Pegou a sacola com o livro de hipnotismo, o kit anti-hipnotismo e o passaporte na cabine do caminhão, e colocou tudo numa mesa baixa onde havia uma grande garrafa de uísque e um copo sujo. Sentando-se numa poltrona de plástico, rodeado por anões de jardim, bebeu o copo inteiro e serviu outro. Acendeu uma cigarrilha e, soltando uma nuvem de fumaça, se recostou com os pés em cima da mesa. Depois começou a rir.

Dentro do caminhão, escondido atrás de uma pilha de caixas de papelão, Rocky o ouviu rindo. Imaginou se Nockman estaria sozinho.

Dentro de seu quarto, Petula pôde sentir que o humor de Nockman tinha mudado. Latiu.

—    Ah, cale a boca, seu animal imbecil — gritou Nockman. — Um ruído alto ressoou pelo prédio enquanto ele abria a traseira do caminhão. Rocky se encolheu atrás das caixas.

—    Feliz natalaniversário para mim! — gritou Nockman, pegando dois sacos e tirando-os. Levou os sacos até sua poltrona de plástico e cuidadosamente abriu um deles sobre a mesa. Dez pesados envelopes pardos caíram sobre o tampo de fórmica. Nockman deu um sorriso cheio de cobiça, soltando fumaça de sua cigarrilha. Debaixo da mesa ele pegou uma pasta azul com várias folhas de papel datilografado e, depois de se sentar, começou a rasgar um envelope. Lá dentro, um monte de rubis duros e cor de sangue olharam para ele.

Rocky se esgueirou para fora da traseira do caminhão e espiou por trás da borda. Lá estava sentado o gorducho Nockman, babando diante do pacote de pedras preciosas, e na mesa ao lado dele estava O livro de hipnotismo e seu kit anti-hipnotismo. Nockman sorria enquanto cutucava seu tesouro.

Rocky não sabia fazer o truque do olho, como Molly. Só podia hipnotizar as pessoas falando com elas. Tudo que tinha de fazer era esperar e hipnotizar Nockman quando ele finalmente caísse no sono.

Nockman sorriu de novo enquanto contava. Deixou cair a cigarrilha no chão e apagou com o pé. Depois colocou os fones de ouvido e os óculos de redemoinho, e riu consigo mesmo.

Foi até o caminhão.

Rocky recuou de volta para o esconderijo.

Casualmente, Nockman apertou um botão e subiu, usando o elevador elétrico do caminhão. Rocky estremeceu de nervosismo. Nockman pegou uma corda que estava pendurada na parede interna do caminhão. Em seguida tirou as caixas que estavam na frente de Rocky e o agarrou pelos pulsos.

—    Bela tentativa — falou ameaçadoramente, puxando-o com força para fora do caminhão. — Seu idiota estúpido. Eu vi seu reflexo na minha garrafa de uísque.

Nockman era cheio de banhas moles, mas mesmo assim era muito mais forte do que Rocky. Então, por mais que Rocky lutasse, foi incapaz de resistir quando Nockman amarrou seus pulsos nas costas e o amordaçou. Nockman o arrastou pelo armazém e o empurrou com força para dentro da sala dos fundos, onde estava Petula. Rocky caiu para trás no chão duro.

—    Fique à vontade, moleque — cuspiu Nockman, trancando a porta. Petula pulou no colo de Rocky e lambeu seu rosto. Nockman se aproximou do caminhão, cheio de suspeitas. Se houvesse mais ratos a bordo, ele pegaria.

Então ouviu um barulho fraco acima da cabeça. Alguém estava entrando pelo telhado.

 

Molly sabia que Petula odiava biscoitos de chocolate. E pelo modo como Nockman tinha alardeado sobre como vinha alimentando a cadelinha, teve a certeza de que ele não tinha feito isso. Não confiava nele nem um pouco. Sabia que tinha de segui-lo.

Então, quando Nockman levou o caminhão marrom até o final da rua 52 e virou a esquina, ela saiu do armazém e correu até a rua principal, como nunca havia feito na vida, e chamou um táxi.

O caminhão de Nockman estava quase fora de vista quando ela subiu num táxi amarelo, mas por sorte o motorista era hábil, e logo estavam seguindo o veículo.

Molly se sentia uma espiã. Se a situação fosse menos crítica, teria gostado daquilo. Em vez disso, suas mãos estavam tão suadas que praticamente pingavam, e quando o táxi chegou à rua industrial do Brooklin, seu humor estava muito ruim.

Olhou atentamente enquanto, à distância, Nockman parava junto de um armazém. Assim que o táxi foi embora, Molly se escondeu atrás de uma árvore e ficou espiando Nockman, entrando com o caminhão no armazém.

— Peguei você — falou baixinho.

O som abafado vindo de cima havia provocado pânico em Nockman. Ele teve uma visão súbita de um esquadrão de polícia fazendo uma emboscada. Não sabia que o intruso era apenas Molly, que tinha conseguido subir numa árvore, passar por uma clarabóia entreaberta no teto e entrar silenciosamente num cômodo do andar de cima. Freneticamente ele jogou as sacolas com pedras preciosas, a lista de verificação, o livro de hipnotismo e o equipamento anti-hipnotismo na traseira do caminhão e fechou-a. Depois de enfiar o passaporte no bolso, subiu na cabine e virou a chave.

Molly ouviu um motor dando partida e percebeu em pânico que Nockman estava indo embora. Desceu correndo a escada, mas o veículo já estava mudando a marcha. Nockman pôs o pé no acelerador. Quando Molly chegou à calçada do lado de fora, era tarde demais. Com um guincho e soltando fumaça, o caminhão se afastou.

Molly correu para a rua e foi atrás, mas a fumaça de óleo diesel a fez tossir, e o caminhão era muito rápido. Ela foi deixada imóvel na rua vazia, rodeada por velhos armazéns vazios e árvores.

Realmente tinha estragado tudo. Rocky ainda devia estar no caminhão, e Nockman iria achá-lo. E Petula? Agora Nockman nunca telefonaria para Molly. Gemeu. Sentia-se totalmente enjoada.

Enquanto se preocupava com Petula e Rocky, percebeu que a única saída segura era contar tudo à polícia. Teria de contar, caso contrário Rocky estaria correndo um perigo verdadeiro. Quanto a Petula, ainda havia uma leve esperança de que ela estivesse nesse prédio. Molly voltou correndo. Assim que entrou, achou uma porta e ouviu sons raspados e gritos abafados. Molly entrou na prisão de Petula — e de Rocky.

Petula saltou para Molly e Molly a abraçou ao mesmo tempo em que tirava uma mordaça da boca de Rocky. Rocky começou a falar assim que pôde.

—    Molly, desculpe, mas ele me viu e colocou os equipamentos de novo, e me agarrou e... — Rocky estava tremendo e respirando com uma crise de asma.

—    Rocky, desculpe, foi tudo minha culpa — disse Molly, desamarrando a corda nos pulsos de Rocky, ao mesmo tempo em que abraçava Petula. — Estou tão feliz porque vocês dois estão bem! Pensei que tinha perdido os dois. Pensei mesmo.

—    Ela enfiou a mão no bolso e pegou uma latinha de comida de cachorro de emergência, que vinha carregando há alguns dias, tirou a tampa e jogou os nacos de carne no chão. Petula engoliu a comida freneticamente. Depois Molly colocou um pouco de água mineral na mão em concha. — Não posso acreditar. Acho que ele não deu comida nem nada para Petula beber — falou enojada. — Pobre Petula!

Quando terminou de beber, Molly pegou-a e a abraçou com força. Era maravilhoso sentir de novo seu calor nos braços.

—    Desculpe, Petula. Nunca mais vou deixar isso acontecer. — E Petula se aninhou no casaco de Molly para se sentir o mais segura possível.

Então as duas crianças a acariciaram e pensaram em Nockman.

—    Agora ele está indo para o mais longe que puder — disse Rocky.

—    É. E aposto que está se sentindo nervoso...

Ela e Rocky ficaram quietos por um momento e olharam pela porta, imaginando Nockman na via expressa. Depois, curiosamente, os dois começaram a sorrir.

—    Mmmn — disse Rocky. — Sem dúvida ele vai ter de parar num posto de gasolina para abastecer. Vai comprar uma barra de chocolate Céu.

—    E talvez uma lata de Qube — sugeriu Molly.

—    Depois vai voltar para o caminhão e continuar dirigindo.

—    E continuar, e continuar e continuar — ecoou Molly.

—    E depois?

—    Depois ele vai se cansar.

—    E depois?

—    Depois vai começar a sentir que está querendo dormir, e não vai gostar disso.

—    Não, porque não vai querer parar de dirigir, vai? Porque ele quer sair imediatamente do estado de Nova York... e então?

—    E então, para ficar acordado, acho que ele vai ligar o rádio — imaginou Molly.

—    Vamos esperar que sim.

Nockman se afastou rapidamente do armazém cheio de anões de jardim. A adrenalina corria em suas veias enquanto o caminhão atravessava os subúrbios do Brooklin. Cada carro de polícia que ele via fazia seu eczema coçar, mesmo que, como ele dizia a si mesmo, seu caminhão não tivesse motivos para parecer suspeito. A polícia pensaria que todos os caminhões que já estavam fora da ilha de Manhattan estavam limpos, e não com jóias limpadas do banco. Mesmo assim Nockman era um feixe de nervos. Dirigia o mais rápido possível para longe de Nova York, mantendo-se nas estradas secundárias, olhando constantemente pelo retrovisor, fumando um cigarro atrás do outro e suando como um queijo quente. Depois de duas horas de tormento, começou a confiar que não estava sendo seguido. Afrouxou a camisa e virou para a auto-estrada interestadual.

Continuou dirigindo durante horas, até ter ido tão longe que o mostrador do tanque de gasolina estava apontando para o vazio. Parou num posto, encheu o tanque, comprou três barras de chocolate Céu e quatro latas de Qube. Depois voltou ao caminhão e partiu de novo.

Às nove horas estava começando a se sentir cansado. Isso o preocupou. Não queria dormir ao volante e bater. Imaginou o caminhão arrebentado e aberto na estrada como um ovo de Páscoa muito caro, com todas as pedras e jóias se esparramado no asfalto. Mas não queria parar para descansar. Precisava continuar dirigindo. Pararia em algum lugar dali a pouco e tomaria meio litro de café, isso iria mantê-lo acordado. Nesse meio tempo, decidiu ouvir o noticiário.

“Hora da estrada”, cantou um jingle no rádio.

— É — disse um locutor todo alegre. — Vamos manter todos vocês, motoristas da Costa Leste da América, muito, muito acordados, agora vocês não precisam se preocupar com isso. Portanto relaxem enquanto dirigem... esta é a estação que faz você rodar! E nós temos boa diversão para vocês. Temos horas e horas de música faaaaaantástica. Num segundo teremos o noticiário, mas primeiro uma pequena pausa...

Nockman se sentiu muito melhor. Esse era o tipo de estação de que ele precisava, e ficaria muito empolgado em ouvir as notícias, porque seu roubo seria noticiado. Enquanto o rádio tocava anúncios, ele mudou de marcha.

—    Eu estou no Céu, o Céu está em mim eu sabia que um dia ao Céu iria. Então uma voz cantou:

—    Ei, você, quer um gostinho do céu? Pegue uma barra de chocolate Céu!

Nockman deu outra mordida em sua barra de chocolate e se sentiu muito feliz. Ouviu um anúncio de Qube.

—    Qube se você é bonito... Qube se você não é... todo mundo gosta de você porque você é tão Qube.

—    Eu sou tããããão popular. Eu tomo Qube ao cubo!

—    Ei, o mundo fica realmente melhor com uma lata de Qube na minha mão.

—    Qube... acaba com sua sede!

Nockman abriu sua lata de Qube, tomou um gole e sorriu. Agora ele iria ser muito, muito popular. Nunca tinha sido popular na vida, e essa idéia o fazia se arrepiar de prazer.

O locutor voltou.

—    Então, agora, as notícias. A principal história do dia é que o banco Shorings, em Manhattan, foi roubado hoje... — Nockman aumentou o volume. — A operação foi realizada hoje cedo por um bando de ladrões armados. Eles saíram com pedras preciosas no valor de mais de cem milhões de dólares.

Nockman fez um muxoxo. Era muito mais do que isso!

—    Os especialistas estão tentando avaliar como os ladrões conseguiram fechar o prédio e desligar todos os alarmes, já que o banco Shorings tem um dos sistemas de alarme mais sofisticados do mundo. Acredita-se que o bando ainda esteja em algum lugar dentro da ilha de Manhattan. O roubo foi informado imediatamente depois de os ladrões saírem, e em cinco minutos a polícia pôde colocar bloqueios nas estradas que saem de Manhattan. Além disso a polícia esteve verificando os barcos ancorados ao redor da ilha. Todo o tráfego aquático foi interrompido. Um funcionário do banco que foi obrigado a ir com os assaltantes relatou como foi obrigado a descarregar de um caminhão do banco as jóias roubadas e colocar em vários carros, que partiram. Acredita-se que os criminosos espalharam o produto do roubo por toda Manhattan. A polícia pediu que as pessoas fiquem atentas, e que tenham cuidado, porque a quadrilha provavelmente é perigosa. A polícia está muito interessada em qualquer informação que possa levar aos bandidos.

Era a melhor notícia que Nockman já ouvira na vida. Ele adorou aquele locutor, por tê-las trazido a ele.

—    Obrigado por ouvirem — disse o locutor.

—    Obrigado a você — disse Nockman.

—    Grande notícia, não é? — disse o locutor.

—    É — disse Nockman. Ele realmente gostava daquele locutor, especialmente da voz. Tinha um tom perfeito, e era muito tranqüilizador.

—    Você deve estar se sentindo fantástico — disse o locutor.

—    Eu estou! — riu Nockman.

—    Você está se sentindo fantástico, como não se sentia há anos.

—    Eu estou! Estou!

—    Todo aquele esforço valeu a pena. Você merece isso, não merece?

Nockman assentiu. A voz estava totalmente certa.

—    E agora você precisa de seu descanso merecido. Respire bem fundo e expire devagar.

Nockman respirou fundo e expirou, e se sentiu muito, muito melhor.

—    Respire lentamente e, enquanto eu conto, você vai se sentir muito mais relaxado. Continue dirigindo enquanto eu conto. Dez... nove... oito... sete... seis... cinco... quatro... três... dois... e agora, Sr. Nockman, o senhor está completa... mente sob o meu poder. Entendeu?

—    Entendi — disse Nockman estupidamente. Sentia-se maravilhoso. Tinha caído na armadilha de Rocky e Molly, e se sentia fabuloso.

—    Agora — disse Rocky. — Quero que você vire esse caminhão e volte para Nova York, de volta ao lugar de onde você saiu esta tarde. Certo?

—    Ótimo — sorriu Nockman. — Ótimo mesmo. Enquanto Nockman dirigia, a fita no gravador girava até o fim. O resto estava vazio. Molly e Rocky só tinham tido tempo, na noite de domingo, para gravar um programa de rádio falso bem curto. Por isso Nockman dirigiu rindo em silêncio.

Molly e Rocky tinham contado com duas coisas para chegar a esse objetivo:

A primeira é um fato: a maioria dos adultos subestima a inteligência das crianças.

A segunda é uma questão de projeto: se um rádio/toca-fitas estiver com a fita dentro, quando é ligado, a fita toca primeiro, automaticamente.

 

Molly, Rocky e Petula estavam sentados pacientemente no armazém cheio de anões de jardim. Enquanto a luz do dia lá fora ia sumindo, Molly foi até uma cabine telefônica. Ligou para Rixey Bloomy e disse que estava perturbada demais com o roubo de Petula para conseguir se apresentar esta noite em Estrelas em Marte.

—    Sinto muito, Rixey, é que eu simplesmente poderia desmoronar no palco.

—    Ah, Molly, o público vai entender — disse Rixey, cheia de simpatia. — E não se preocupe, sua substituta, Laura, fará seu papel hoje.

Molly se sentiu meio culpada, porque sabia que as pessoas que iriam ao teatro esta noite ficariam desapontadas. Mas então pensou em Laura, a substituta, uma garota que estava ansiosa para mostrar a todo mundo que era capaz de cantar e dançar, e Molly se sentiu melhor. Rocky não precisava telefonar para ninguém, já que havia programado os Alabaster para pensar que ele tinha feito uma viagem com um grupo de escoteiros até Nova York. Então, em vez disso, ele encomendou pizzas. Depois, cheios de pizza e esperança, esperaram por Nockman.

Enquanto isso Petula estava dando vazão à sua raiva de Nockman atacando os anões coloridos que pareciam um pequeno exército nas sombras. Eles a faziam se lembrar dos marcianos de Estrelas em Marte, mesmo sendo menores. E um ou dois dos anões tinham uma semelhança maligna com o próprio Nockman.

Molly e Rocky foram ao andar de cima, onde havia uma janela dando para a rua escura.

—    Você acha que ele ouviu a fita? — perguntou Rocky.

—    Se não ouviu, eu estou muito encrencada. Sem dúvida ele vai me denunciar. — Molly se encolheu.

—    Se ele ouviu, espero que a fita tenha dado certo. Espero que minha voz tenha estado à altura.

—    Teremos de esperar e ver.

Enquanto esperavam, Molly e Rocky deram uma espiada pelo armazém de Nockman. Descobriram mais dois cômodos no primeiro andar: uma cozinha minúscula e um banheiro. A cozinha tinha uma pia, com detergente Muitabolha e luvas sobre o secador de pratos, um fogão sujo e uma geladeira que cheirava a leite azedo. E em toda parte havia caixas para Molly e Rocky abrirem. Caixas de perfume, jóias, enfeites, antigüidades e relógios caros.

—    Uau — disse Molly. — Isso deve valer uma fortuna!

—    Acho que não — disse Rocky, apontando para um adesivo numa das caixas, onde estava escrito: “Feito na China”. — Isso é tudo falso, mas acho que Nockman vende como se fosse de verdade.

Em outra sala acharam caixas cheias de bolsas de couro.

—    Falsas também — disse Rocky. — São imitações de bolsas de grife. Se você olhar bem, vai ver que são coladas, e não costuradas... Vão desmontar em segundos. Já ouvi falar de trambiqueiros que vendem esse tipo de coisa.

—    Mas ele vende por uma grana preta.

—    É, pode apostar.

Embaixo havia caixas cheias de porcelana antiga e preciosa. De novo, cada peça era uma falsificação moderna. Outras caixas estavam cheias de tudo em que Nockman podia colocar as mãos: secadores de cabelo, cestos para gatos, martelos, esfregões, aparelhos de TV e de som. Havia até uma caixa cheia de relógios cuco.

—    Aposto que é tudo roubado — disse Rocky.

—    “Caído da traseira de um caminhão”, como dizem — concordou Molly.

Pouco depois da meia-noite, faróis iluminaram a rua do armazém.

—    É ele — disseram Molly e Rocky ao mesmo tempo. Desceram correndo para abrir a enorme porta de metal. Nockman entrou e estacionou, com os pneus do caminhão despedaçando uma caixa de bules. Molly e Rocky abriram a porta do lado do motorista e o encontraram olhando direto para frente, com uma expressão idiota no rosto, segurando o volante com força.

Dirigir num semi-atordoamento tinha sido uma experiência tremenda para Nockman. Num determinado ponto ele havia saído da estrada e contornado sessenta e duas vezes um trevo complicado antes de chegar de novo à via principal.

—    Pode sair agora — disse Rocky. Obedientemente, Nockman desceu para o armazém. Petula rosnou para ele, e Nockman encheu as bochechas de ar. Quando seus olhos começaram a revirar nas órbitas, Petula recuou. Aquele não era o homem feroz que ela havia conhecido. Este parecia a ponto de explodir de repente. Petula decidiu deixá-lo, e em vez disso atacar um anão de jardim.

Molly resgatou o livro de hipnotismo.

—    Fiiu — assobiou ela.

Depois, junto com Rocky, rodeou Nockman.

—    Com a roupa certa — disse Molly. — Ele ficaria perfeito perto de uma piscina.

—    Mmmm. Você vai estar sob o poder desta pessoa também — ordenou Rocky a Nockman — Ela se chama... — Rocky olhou em volta. — Secador-de-Cabelo.

—    Eu já tive apelidos piores — disse Molly.

—    E eu — continuou Rocky — me chamo Cesto-de-Gato. Nockman assentiu, sério, e Molly e Rocky começaram a rir.

—    Quem sou eu? — perguntou Rocky.

—    Cesto-de-Gato — disse Nockman, como se estivesse falando “Deus”.

—    E quem é esta pessoa?

—    Secador-de-Cabelo. Eu farei... tudo que a Srta. Secador-de-Cabelo... e o Sr. Cesto-de-Gato... disserem — O latido de Petula disfarçou o riso contido de Molly e Rocky.

—    Sshh, Petula — disse Molly. Virando-se para Rocky, ela sussurrou:

—    E agora?

Rocky puxou os pêlos da sobrancelha. Eles haviam conversado sobre o que poderiam fazer se Nockman voltasse totalmente hipnotizado, mas não tinham chegado a uma decisão.

—    Vamos fazer o que eu disse — sugeriu ele. — Vamos deixar o caminhão aqui, largar Nockman em Manhattan com a mente vazia e dar um telefonema anônimo para a polícia. Assim que eles tiverem este endereço, podem resolver tudo.

—    De jeito nenhum — sussurrou Molly, rouca. — Eu já disse: quando a polícia chegar aqui, provavelmente vai ligar Nockman ao armazém, e quando o investigarem, vão descobrir que ele foi hipnotizado e talvez desfaçam a hipnose, e um dia podem nos descobrir.

—    Será que a gente não poderia simplesmente largar o caminhão em algum lugar?

—    Não, porque eles provavelmente poderiam ligar o caminhão também ao Nockman. É arriscado demais. Não, o que a gente deve fazer é colocar as jóias em outro lugar, em sacos de lixo, por exemplo. A gente poderia colocá-las em sacos de lixo na frente do banco.

Rocky estava em dúvida.

—    Por que não? — insistiu Molly. — O banco não precisa de guardas agora que não resta nada para ser roubado, de modo que vai ser seguro. Ninguém vai esperar que os ladrões voltem ao banco. A gente poderia ligar para a polícia e dizer onde eles devem ir.

—    Nós não podemos colocar as jóias em sacos de lixo — sussurrou Rocky. — E se os lixeiros acharem que é lixo? E nós não podemos largar tudo ao mesmo tempo. São toneladas. Demoraria séculos para tirar tudo do caminhão. Alguém iria ver.

Sentindo a discussão tensa, Petula estava latindo furiosamente para um anão de rosto rosado, como se tudo fosse culpa dele.

—    É, você está certo, sacos de lixo não servem. E aquelas bolsas lá em cima?

—    São pequenas demais — sussurrou Rocky. — E, de qualquer modo, as pessoas iriam roubá-las. Puxa, bolsas quase sempre têm dinheiro dentro, não é?

—    Hmm, nós precisamos de sacos grandes que não sejam roubados nem apanhados.

Petula estava pulando para outro anão de chapéu vermelho, tentando morder seu nariz. Finalmente derrubou-o. O anão se quebrou com barulho ao bater num degrau de concreto, e sua cabeça se abriu. Petula levantou a cabeça, orgulhosa, como se tivesse acabado de matar uma górgona.

—    Os anões! — disse Molly ofegante — Não acredito, eles são ocos! Olha, eles têm a base de atarrachar, para você poder encher de areia e eles não caírem.

—    Perfeito — disse Rocky, pegando o cachimbo do anão. — Obrigado, Petula.

—    Aaauf rrrauuuf — latiu Petula, satisfeita consigo mesma.

Nas duas horas e meia seguintes, Molly, Rocky e Nockman, todos com luvas de borracha do Muitabolha para não deixarem impressões digitais, trabalharam transferindo os envelopes com pedras e jóias roubadas para dentro dos anões. Colocaram em cada anão um recheio misturado. Jóias delicadas e mais leves na cabeça e na parte superior dos anões, para não serem esmagadas, e os pacotes mais pesados de jóias na parte de baixo, para ajudar a equilibrar. Assim que as bases eram atarrachadas, as estátuas de jardim pareciam tão inocentes quanto antes.

Por fim, suando e fedendo como uma meia suja, Nockman colocou o último deles no caminhão.

Segurando Petula, Molly e Rocky admiraram a fileira de anões sorridentes, todos prontos para a ação, e vigiaram Nockman baixando a plataforma elétrica do caminhão.

—    Vamos deixá-lo aqui? — perguntou Rocky.

—    Não, ele é perigoso demais. Ele sabe muito. Ele pode ter algum mapa do banco, ou alguma coisa que possa trazer a memória de volta.

—    Mas... mas isso significa que ele tem de ir conosco — gemeu Rocky.

—    Sinto muito. Mas ele pode ser útil para nós. Olha como ele ajudou a carregar o caminhão. De qualquer modo, Rocky, para começar, nem você nem eu podemos dirigir.

—    Eu poderia, se fosse preciso.

—    Nem pensar, Rocky. Você deve estar fora de si. Anda, vamos embora. Vai amanhecer daqui a umas duas horas.

—    Eu sei — disse Rocky, bocejando.

—    É melhor a gente entregar essas coisas antes que todo mundo em Manhattan acorde.

Molly e Rocky verificaram o armazém em busca de qualquer prova incriminadora. Depois, com Rocky e Nockman na cabine do caminhão, e Molly e Petula na parte de trás, afastaram-se do armazém e atravessaram o Brooklyn na direção de Manhattan.

Nockman dirigia de modo muito, muito frouxo, meio balançando o volante, mas praticamente bem. Enquanto atravessaram a ponte de Manhattan, Rocky notou que todos os veículos que saíam da ilha estavam sendo parados e verificados pela polícia. Havia um longo engarrafamento. Mas a entrada de Manhattan estava vazia, de modo que eles passaram direto sobre a ponte.

Assim que chegaram a Manhattan, teve início a “Operação Plante um Anão”. Eles tinham decidido largar os anões em locais diferentes por toda a cidade. Desse modo não precisavam parar o caminhão durante muito tempo, e reduziam o risco de serem vistos. A cada vez que chegavam a uma área gramada e tranqüila, onde não havia olhares curiosos, Rocky, sentado na frente, dizia a Nockman onde parar e batia na divisória atrás dele. Então Molly abria a parte de trás, rolava um anão até a plataforma elétrica e o baixava até o chão. Petula atuava como cão de guarda, enquanto Molly rolava cada anão e o colocava em pé. Rocky anotava exatamente onde cada anão estava.

Deixaram anões debaixo de árvores, atrás de arbustos e em minúsculos triângulos de gramado. Decoraram playgrounds com anões, puseram anões perto de fontes, junto de bancos nas calçadas e ao lado dos canteiros de flores. Um deles parecia muito corajoso rindo debaixo de um feroz dinossauro de mentira no gramado do lado de fora do Museu de História Natural. Outro parecia satisfeito ao ver que seu lago havia gelado, sentado numa plataforma gramada acima do rinque de patinação do Rockefeller Center. Colocaram dois anões perto dos portões do zoológico de Manhattan, e dois na entrada do Central Park chamada Strawberry Fields.

Cada anão levava cinco minutos para ser plantado.

Cada cinco minutos de arrepiar os cabelos era um momento em que poderiam ser vistos, e houve alguns instantes tensos quando Molly pensou que poderiam ter sido notados. Junto do parque, na Riverside Drive, Molly parou a porta elétrica pela metade, porque viu um carro da polícia se aproximando. Enquanto ele chegava perto, parecendo um tubarão faminto, ela cruzou os dedos desejando que o veículo não parasse. No Gramercy Park, Petula saiu correndo no escuro para investigar um cão vadio, e Molly teve de chamar baixinho por ela, até ela voltar. Na Union Square dois japoneses saíram das sombras e tropeçaram num anão. Molly imaginou se eles a teriam visto, mas quando notou que eles mal conseguiam andar, de tão bêbados, soube que não deviam estar enxergando direito.

Um a um, livraram-se dos vinte e cinco anões coloridos. Manhattan estava cheia deles. Os últimos dois foram postos, de modo provocador, diante do banco Shorings.

—    Eles estão fantásticos! — disse Molly, admirando, ao mesmo tempo em que subia na cabine do caminhão com Petula, Rocky e Nockman.

Então voltaram ao armazém perto do cais na rua 52 Oeste para largar o caminhão. Rocky tirou sua fita do rádio/toca-fitas.

Saíram de perto das docas e voltaram rapidamente para as ruas principais. Numa cabine telefônica, ligaram para a polícia e encostaram o fone na boca de Nockman.

—    As... jóias... do Shorings... estão... em... segurança... Procurem... anões de jardim... nas... ruas... de... Manhattan — disse ele. E então eles desligaram. Sinalizaram para um táxi na madrugada e, às seis horas, antes que o sol de dezembro nascesse, estavam de volta ao hotel Bellingham.

 

O recepcionista do hotel estava cansado de seu turno da noite. Molly usou facilmente seus poderes para persuadi-lo a dar um quarto a Nockman, só por aquele dia, e para lhe trazer uma roupa limpa, qualquer roupa que o hotel tivesse e servisse para ele, e um kit de barbear. O recepcionista assentiu e os levou a um quarto no décimo sexto andar.

—    Por fim — instruiu Molly — você não vai se lembrar de ter visto este homem depois de ter entregado a roupa a ele. Entendeu?

—    En...ten...di. Madame.

—    Pode ir.

Então, a Nockman, Molly disse:

—    Durma aqui até as duas horas de hoje. Depois tome um banho, lave o cabelo, raspe o bigode e o cavanhaque e fique cheirando bem. Às duas e meia, quando estiver vestido com a roupa nova, venha ao quarto 125.

Então Molly e Rocky subiram e, tirando os casacos, tombaram na cama totalmente vestidos. Petula fez a cama no velho casaco de Molly e também caiu no sono.

Molly dormiu até que seu despertador tocou. Durante um ou dois minutos ficou deitada na cama, olhando as mãos de Rocky, cobertas de rabiscos, ouvindo-o roncar e escutando a chuva, que estava começando a cair forte lá fora. A aventura na madrugada já parecia um sonho. Molly sorriu e ligou para o serviço de quarto, para pedir alguma comida.

Rocky acordou sentindo cheiro de ovos e torradas, e depois ele e Molly se sentaram para fazer um lanche diante da TV.

Os canais de noticiário estavam cheios de reportagens sobre os anões. Os repórteres de TV ficaram doidinhos. Era uma notícia fabulosa. No canal 38, um repórter, debaixo de um guarda-chuva, estava falando empolgado num microfone peludo diante do banco Shorings.

— Espantosamente, todas as jóias do Shorings foram devolvidas. O banco verificou que até a última pérola apareceu. Cada diamante, rubi e pedra preciosa! De fato, mercadorias no valor de cem milhões de dólares! E o método de entrega dá uma reviravolta bizarra no que já era uma história provocante. Vinte e cinco anões de jardim totalmente cheios do produto do roubo foram descobertos espalhados por Manhattan no início desta manhã, depois de um telefonema anônimo. O homem que ligou tinha sotaque de Chicago mas, afora isso, nada mais se sabe sobre ele. A polícia liberou estas fotos dos anões, como foram encontrados.

A tela se encheu de fotos dos anões, parecendo espantados no escuro, iluminados por lanternas da polícia como criminosos apanhados no ato. Pareciam muito divertidos.

O repórter continuou:

—    O motivo para a devolução das jóias está deixando os detetives confusos. Alguns acham que o roubo foi uma espécie de aposta. Outros acreditam que os próprios ladrões foram roubados. A polícia está pedindo ao público qualquer informação que possa ajudar a resolver o mistério. Agora, de volta ao estúdio.

—    Mais! Mais! — gritou Rocky para a TV. — Queremos mais fotos dos anões, e mais polícia confusa. — Em seguida apertou o controle remoto, pulando pelos canais, tentando achar mais notícias. — Aah — reclamou. — O noticiário da hora do almoço já acabou. Eu nunca estive no noticiário antes. Isso foi brilhante!

—    Nós fomos brilhantes — concordou Molly. — Roubamos aquele banco como profissionais e devolvemos o roubo como agentes secretos.

—    Só que a gente teve alguns obstáculos enquanto fazia isso. — Rocky deu um risinho. — Molly, você não parecia muito satisfeita com você mesma no banco, quando achou que a gente tinha sido captada nas gravações das câmeras. Seu rosto estava tão preocupado!

Molly se lembrou e riu.

—    É, mas nem de longe tão apavorada quanto você quando achou que a gente não ia passar pelos scanners de olho...

—    É, é, é, mas e você, Molly, no Gramercy Park de madrugada, quando Petula saiu correndo? Achei que seu lábio inferior ia cair no chão...

Molly e Rocky ficaram rindo enquanto lembravam os momentos mais apavorantes, cena por cena.

—    E o mais doido é que ninguém nunca vai saber quem fez isso, e como foi feito. Na verdade, sabe de uma coisa? —

Rocky observou com orgulho: — Esse crime vai entrar para a história.

Realmente entraria para a história. Molly se recordou de como Nockman tinha desejado isso para si mesmo. Depois, outras coisas que ele tinha dito a deixaram preocupada. Desligou a TV e começou a torcer o guardanapo com os dedos.

—    Sabe, Rocky, na verdade eu não sou melhor do que o Nockman. Eu também sou criminosa.

Rocky ficou surpreso.

—    Sou sim, Rocky. Pense bem. Olhe este lugar. Eu enganei para ficar aqui, enganei as pessoas para pagar por ele, enganei para conseguir o papel de Davina Nuttel. Enganei as pessoas em Briersville, de modo que, na verdade, eu roubei o dinheiro do prêmio, e enganei as pessoas impedindo que todas aquelas crianças tivessem uma chance no concurso de talentos.

—    Ah, cale a boca — disse Rocky, sem se abalar. — Você é um gênio do hipnotismo. É nisso que você é boa. É aí que está o seu talento. Puxa, nenhuma daquelas pessoas de Briersville poderia vir a Nova York com o talento delas. Você é brilhante. Todo mundo está feliz. Os nova-iorquinos adoraram a sua peça, tiveram a melhor noite da vida deles. E Rixey e Barry amam você. Olhe só toda a publicidade que você conseguiu para eles e para o Estrelas em Marte. Agora todo mundo em Nova York sabe sobre a peça e um monte de gente vai comprar ingressos. Você não é uma ladra de verdade, só consegue o que quer usando um método diferente dos outros. A única coisa que você roubou de verdade foi o papel de Davina, e ela também não era um anjo, era? Você e eu somos os únicos que sabemos a verdade, e então, no duro, Molly, o que importa?

—    É, eu sei, mas ser sincero é melhor, não é, Rocky?

—    Está bem, é, mas, Molly, não vou deixar você entrar numa de sofrer de culpa agora. Fique fria.

Molly se sentia culpada, mas mais do que isso. Como um cavalo fugido que tivesse galopado e galopado, tinha chegado a um lugar onde realmente não queria estar. A presença de Rocky havia feito com que ela diminuísse o pique e olhasse em volta.

—    Não é só isso, Rocky. Tem outra coisa que está me fazendo sentir... bem... muito mal. Eu sei que esse quarto de hotel é incrível e tudo mais, mas o negócio, Rocky, é que eu estou começando a não gostar de ser Molly Moon, a Estrela. Talvez eu gostasse se realmente fosse a pessoa que todo mundo acha que eu sou, mas o negócio é que não sou. E pode parecer engraçado para você, mas eu estou começando a ficar cansada desse negócio de as pessoas gostarem de mim só porque foram hipnotizadas para gostar. As pessoas não estão gostando de mim de verdade. Estão gostando de uma coisa irreal. Estão gostando de uma espécie de falsa Molly Moon, uma coisa de propaganda. E isso faz com que a Molly de verdade se sinta uma porcaria, e minha vida aqui é só uma perda de tempo, porque não é a vida da verdadeira Molly Moon, ninguém vai conhecer a Molly Moon da vida real. — Ela olhou para Petula, caída no sono. — Puxa, nem Petula gosta realmente de mim. Eu a hipnotizei para gostar de mim.

—    Molly! Mas isso foi há séculos. Sua hipnose sobre Petula já deve ter se gastado.

—    Gastado? De quê você está falando?

—    Molly, a coisa não dura para sempre. Você não notou? As lições que os animais ou as pessoas podem aprender com o hipnotismo podem durar para sempre, como o fato de Petula não comer biscoitos de chocolate e gostar de você. Ela conseguiu hábitos novos que a fizeram se sentir bem, por isso continuou sendo assim. Mas o hipnotismo não dura para sempre. Petula não está mais hipnotizada. Agora ela gosta de você porque gosta.

—    Então você quer dizer que o hipnotismo que eu fiz em Barry Bravatta e Rixey Bloomy vai gastar? — Molly ficou boquiaberta.

—    Claro. Com o tempo. Eles nunca vão saber que estavam hipnotizados, e sempre vão se lembrar de você como uma pessoa brilhante. Mas se você não se encontrasse com eles durante seis meses, eles não iriam considerá-la tão brilhante como achavam antes. Você teria de hipnotizá-los todos de novo.

—    E a platéia que eu hipnotizei?

—    A mesma coisa. Eles vão se lembrar de que você era boa, mas se vissem você no palco de novo, você teria de hipnotizá-los outra vez, caso contrário veriam seu canto e sua dança como são de verdade.

—    Mas onde você ficou sabendo tudo isso?

—    No livro, claro. Molly ficou perplexa.

—    Ah, oops — disse Rocky, cobrindo a boca com a mão. — Estava escrito no fim do capítulo oito.

—    Então essa informação vital estava no seu bolso. Muito legal.

—    Desculpe.

—    Não se preocupe — disse Molly, pensando. — Então o hipnotismo se gasta. Bom, sabe de uma coisa? O brilho da minha vida também se gastou. De qualquer modo, eu queria ir embora de Nova York com você e Petula. Agora que você me contou tudo isso, eu realmente quero ir. Ter de enfeitiçar e hipnotizar todo mundo o tempo todo, para sempre... aaargh! É como um pesadelo.

—    Aonde você quer ir? Molly olhou para o teto.

—    Eu estive preocupada com o pessoal do Lar Vidadura. Não com Hazel, Gordon ou Roger, mas com Gemma e Gerry, Ruby e Jinx.

—    Mmmnn, eu também. Imagine como deve ser aquilo lá com Hazel no comando. Provavelmente é pior do que quando a Srta. Viborípedes estava lá, mesmo com a Sra. Brinklebury visitando.

—    E é tudo minha culpa — disse Molly. — Aposto que Hazel manda eles fazerem o serviço todo. Eu quero voltar. Mas você, Rocky... você não vai querer voltar, agora que tem pais novos.

—    Ah. Bem, Molly. Eu tenho uma coisa a contar sobre os Alabaster. Eles não eram muito legais.

—    Não eram muito legais?

—    Não. Na verdade eram horríveis.

Rocky passou a contar sobre os pavorosos Alabaster, que tinham parecido maravilhosos no dia em que visitaram o Lar Vidadura, mas que mostraram suas cores verdadeiras assim que voltaram aos Estados Unidos. Eles eram muito, muito rígidos, e Rocky achou a casa deles parecida com uma cadeia.

—    Eles queriam me vestir com ternos duros, fora de moda, e me obrigavam a ficar dentro de casa fazendo quebra-cabeças ou origami.

—    O que é origami?

—    Aquela arte japonesa de dobrar papéis. Eu não me importaria em fazer, nem um pouco, só que eles me davam um livro para aprender, e as instruções eram impossíveis de acompanhar, e queriam que eu fizesse o dia inteiro.

—    O dia inteiro?

—    Bem, um bocado. Diziam que ia disciplinar minha mente. Eu os hipnotizei, claro, para largar o origami.

—    O que mais?

—    Bom, eles não queriam que eu saísse de casa, para não enlamear a roupa. Ou para não pegar doença com outras crianças. Não que eu visse outras crianças. O bairro deles era cheio de gente velha. Uma vez, quando saí para dar uma volta, eles chamaram a polícia! Eu tentei hipnotizar os dois para me deixarem mais solto, mas nem sempre funcionava. Eu não era tão bom nisso como você, Molly. Se dependesse deles eu nem teria permissão de cantar, assobiar, ir dar uma volta ou assistir à TV. Eles queriam que eu lesse, mas os únicos livros eram anuários antigos que a Sra. Alabaster tinha quando era criança. Ah, e a comida deles era horrível... os dois faziam dieta especial, e eu tinha de comer aquela comida de coelho também.

—    Comida de coelho?

—    Bom, parecia comida de coelho. Algumas vezes parecia comida de gato com comida de peixe dourado salpicada em cima. Tudo que eles faziam era estranho. Era difícil morar com eles. No fim eu consegui o que queria, mas eles não eram as pessoas que eu esperava que fossem, e eu odiava minha vida lá. Pior de tudo, eu sentia falta de você. Puxa, você é minha família, Molly. Eu conheço você a vida inteira.

Molly se sentiu quente por dentro.

—    Obrigada, Rocky. — Houve alguns instantes de silêncio enquanto os dois sorriam um para o outro, avaliando o que tinham. Então Molly perguntou:

—    Mas como você vai sair?

—    Vou ligar para lá e colocar umas idéias na cabeça deles. Vou hipnotizar os dois para eles pensarem que a coisa não deu certo porque eles não gostaram de mim. Vou fazer eles pensarem que me mandaram de volta e que isso foi o melhor, sabe, esse tipo de coisa.

—    Vai ser difícil me libertar de Nova York — disse Molly, com pavor na voz.

—    Você pode consertar tudo. Eu sei o que você deve fazer. E acho que talvez saiba como você pode compensar toda a culpa por causa dos trambiques que fez. Você só precisa dar uns telefonemas.

Dez minutos depois Molly estava ao telefone.

—    Sim, Barry, Petula foi devolvida durante a noite.

—    Igual aos anões do banco Shorings! — disse Barry.

—    É, igual aos anões. Mas veja bem, Barry, esse negócio do seqüestro me deixou doida. E decidi que quero que Davina tenha o papel de volta. Quero tirar uma folga longa.

—    Mas...

—    Eu tenho de ir — disse Molly com firmeza.

—    Sei. Bom, Rixey, eu e o elenco vamos... sentir falta de você.

— Obrigada. Eu também vou sentir falta de vocês. Agora, Barry, escute atentamente. Você deve organizar para que as contas do hotel sejam pagas, e eu quero alguma recompensa. Quanto você acha justo?

—    Bom... considerando o... quanto você custou... para ser mantida... e o custo... daquela lente... enorme... comparado com a grande publicidade... que você conseguiu para a peça... bem... eu acho... trinta mil dólares — calculou Barry, pensando em seus dez por cento.

—    Está bem — disse Molly, muito satisfeita com os cálculos dele. — Fantástico. Por favor, mande isso para o Bellingham, às quatro da tarde de hoje. Ah, e eu vou querer em dinheiro.

—    Está... certo.

—    E, Barry, diga a Rixey que eu não posso fazer a peça hoje de novo. Deixe Laura, a substituta, fazer... ah, e por falar em Laura, você vai cuidar dela, Barry? Faça com que ela consiga um bom papel principal em alguma coisa... ponha Laura debaixo de sua asa...

—    Está... certo.

—    Então, quanto a mim, até amanhã ninguém deve saber que eu fui embora.

—    Está... certo.

—    Diga a Rixey que você teve uma conversa muito longa comigo e que eu mandei lembranças para ela. Diga que eu ligo para ela.

—    Está... certo.

—    Viu, não foi tão ruim, foi? — disse Rocky.

—    Não — disse Molly, se bem que por dentro estivesse se sentindo um pouco triste. Tinha passado a gostar do excêntrico Barry Bravatta, e sentiria saudades dele.

 

Logo depois de eles lancharem, Nockman bateu na porta de Molly. Ele parecia elegante na roupa verde de porteiro, com o quepe de feltro combinando, que o recepcionista tinha lhe dado. Entrou obedientemente no quarto e Molly e Rocky o examinaram. Seu cabelo ainda era uma juba preta e revolta, e o rosto, embora limpo e barbeado, era inchado e tinha aparência pouco saudável, e ele tinha um eczema cascudo e vermelho debaixo do queixo.

—    Um corte de cabelo, acho — disse Rocky. E logo ele e Molly tinham posto uma toalha em volta os ombros de Nockman.

Sem o cabelo comprido, Nockman parecia muito melhor. Mesmo assim, ficou careca como um ovo na frente e com uma franja de cabelos atrás, como um frade.

Rocky lhe deu uma banana.

—    Durante alguns dias você não vai comer nada, a não ser fruta. Isso vai lhe fazer bem. E você vai parar de fumar. — Nockman descascou a banana e a enfiou na boca com voracidade. Pedaços de banana caíram pelo chão.

—    E os modos dele? São revoltantes — observou Molly.

—    É — disse Rocky. — De agora em diante, Nockman, você vai comer como...

—    Como uma rainha — sugeriu Molly.

—    Hmm... será que eu poderia ter um guardanapo e uma tigela de lavanda, por favor? — perguntou Nockman.

—    E o sotaque dele deve mudar — disse Molly. — Um sotaque de Chicago pode fazer com que nós sejamos apanhados. De agora em diante você vai falar com... sotaque alemão.

—    Cerrto, eu fai fazer issa — concordou Nockman. Depois de Nockman terminar sua banana, Rocky pediu que ele ficasse de pé. Rocky e Molly andaram de novo ao redor dele, e observaram suas costas, o pescoço pequeno e o queixo duplo.

—    Será que não dá para fazer com que ele fique mais amigável? — perguntou Rocky. Experimentando, ele exigiu: — Pareça um cachorrinho.

Imediatamente Nockman pôs a língua roxa para fora e levantou as mãos como se fossem patas. Seus olhos ficaram arregalados e ansiosos.

—    Está quase lá, só ponha sua língua de volta para dentro. — Rocky sussurrou para Molly: — Ele é tão estranho! Sinto pena dele.

—    Pena? Ele é um rato — respondeu Molly. Nockman começou a imitar um rato, agachando-se no chão e farejando.

—    Eu não disse para ser um rato — disse Molly.

—    Desculpe, Srta. Secador-de-Cabelo.

—    Mas ele não tem amigos — sussurrou Rocky.

—    Aposto que tem. Um monte de outros ratos. Vamos perguntar. Vamos descobrir coisas sobre ele. Você tem algum amigo? — perguntou Molly.

—    Non, non. Nunca tife amigos — declarou Nockman roboticamente em seu novo sotaque alemão. — Só tife um perriquito fofinho... uma fez. Ele cantafa tão... linto! E foafa pelo jarrdim. — Lágrimas de verdade cresceram nos olhos de Nockman. Molly ficou pasma. A última coisa que queria era sentir pena daquele sujeito.

Mas Rocky estava intrigado e com simpatia.

—    O que aconteceu com ele?

—    Ele... foi... morrto... na rratoeirra... do Sr. Snuff. Eu achei... ele... morrto.

—    Que horrível, e triste — disse Rocky. — Molly, você precisa concordar, isso é triste... Coitado do periquito, coitado de você. Mas quem era o Sr. Snuff?

—    Erra o nosso senhorrio. A gente difidia o jarrdim com ele.

—    E por que, por que você não teve mais amigos? — perguntou Rocky.

—    Porque... eu... erra estrranho.

—    Estranho? Como?

—    Só estrranho. Não erra popular.

—    Eu não tinha notado. Isso é horrível. Eu realmente sinto pena dele.

—    Eu não — declarou Molly. — Ele foi realmente mau com Petula e comigo. Pare com isso, Rocky. O que deu em você? Esse cara é um bandido.

—    Eu não acho que ele seja mau até o fundo — disse Rocky.

—    Não? Vamos perguntar. Certo, moço. Por favor, faça uma lista de todas as coisas ruins que você fez desde... desde que o seu periquito morreu.

Nockman concordou com a cabeça e começou a falar numa voz infantil.

—    Eu arrmei uma rato... eirra e coloquei debaixo da mesa onde... o Sr. Snuff se sentafa... e ela se fechou... no pé dele... como tinha feito... no... meu p-p-perriquito.

Rocky olhou para Molly com um ar do tipo “bem, isso foi justo”.

Nockman continuou:

—    Eu joguei a comida do perriquito na caixa de cerreal do Sr. Snuff, e ele comeu.

Isso também pareceu justo.

—    Certo, certo — disse Molly. — Não conte mais coisas ruins que você fez com o Sr. Snuff, porque ele obviamente merecia. Conte outras coisas ruins.

Um jorro de confissões começou a derramar da boca de Nockman.

—    Eu roubei o relógio de Suart Blithe... e botei a culpa em outrro garroto... e ele lefou uma surra do coordenador. Eu rabisquei todo... o defer de casa de Shirley Denning... e risquei em cima dos melhorres desenhos dela. Riz Robin Fletcher comer quinze... moscas mortas, e enton, quando ele fomitou... fiz ele comer o fômito. Empurrei a cabeça de Debrra Cronly pelo meio da balaustrrada da escada... e a brrigada de incêndio tefe de corrtar a escada parra livrrar ela. Eu roubafa... doces de crrianças... e dizia que se elas contassem eu jogafa elas de cabeça no sanitárrio e dafa descarga...

Molly interrompeu.

—    Isso é ser ruim até o fundo, não é, Rocky?

Rocky deu de ombros.

—    Acho que é.

—    O que mais? — perguntou Molly. — E pule alguns anos.

Agora a voz de Nockman pareceu mais velha.

—    Eu queimei o aerromodelo de Danny Tike, que ele passou trrês semanas parra fazer. Amarrei barrbante... entrre dois postes perto... do asilo de felhinhos e fiz a velha... Sra. Stokes trropeçar e ela... quebrrou o narriz. Isso foi engrraçado. Depois eu fiz o cego... trropeçar. Isso foi fácil... e eu roubei a carteirra dele.

—    Roubou a carteira? — Molly estava realmente chocada. — E mais tarde?

—- Mais tarde. — A memória de Nockman se adiantou rapidamente, passando por cima de numerosos atos perversos.

—    Mais tarrde eu aprrendi... a roubar em outrros lugarres. Isso erra muito... útil. Brrinquedos de crrianças, qualquer coisa que eu pudesse roubar. Esse foi... o começo... da minha carreirra.

—    E quantos anos você tinha nessa época?

—    Onze.

—    O que mais?

—    Eu roubei a bicicleta de uma garrota e trranquei a garrota... num depósito. Ninguém soube que ela estafa lá durrante... um dia e... uma noite. Fazia crrianças pequenas roubarrem os pais. Se elas contassem... eu batia nelas. Forrcei um garroto a roubar... a casa de um felho... parra mim. Ele cabia na... janela pequena. Esse trrabalho... foi bom.

—    Esse trrabalho, quero dizer, esse trabalho, não foi nada bom — corrigiu Molly.

—    Não, não foi bom — disse Nockman, mudando de idéia.

—    E nos últimos anos?

—    Bom—explicou Nockman em voz chapada. — Eu me dei muito bem uma fez... quando consegui... confencer... uma felha... a me dar as economias de toda a vida parra um lar de cachorros abandonados. Ela me deu... cento e cinqüenta... mil prratas. Eu comprrei meus armazéns... e estabeleci meus negócios.

Rocky fez uma careta, como se tivesse acabado de engolir um ovo em conserva.

—    Seus negócios?

—    É. Eu lido com... mercadorrias roubadas.

—    Não, não lida mais — disse Molly.

—    Não — concordou Nockman. — Não.

—    Então — continuou Molly. — Qual você acha que foi o ponto alto da sua carreira?

—    Ah... — Disse Nockman, com os olhos hipnotizados ficando subitamente sonhadores. — Ah... a melhor... coisa que eu já descobrri... foi um livrro de hipnotismo. A felha... ela me contou tudo sobrre o livrro. Com esse livrro... eu bolei o maior... roubo de banco... do mundo. Eu roubei... o Banco Shorings... em Nofa York.

—    Droga — disse Molly baixinho para Rocky. — Ele não está iludido. — Depois, para Nockman, falou: — Tenho de parar você um momento. Você não roubou o banco. Algumas crian... alguns cúmplices muito talentosos fizeram isso. De qualquer modo, isso não importa, já que de agora em diante você vai esquecer completamente o livro de hipnotismo e as viagens que fez para achá-lo. Vai esquecer qualquer idéia que teve sobre roubar o banco Shorings. Vai esquecer que ele foi roubado. Certo?

—    Certo. Eu esqueci... agora.

—    Certo. E outras coisas ruins que você fez?

—    Sim. Eu fendi um carro com chassis... quebrrado... a um homem. Ele tefe um acidente.

—    Ele morreu? — perguntou Rocky com a boca totalmente aberta.

—    Não, mas a mulher que ele atrropelou morreu.

—    Aarrgh, pare — disse Rocky com raiva. — Isso é horrível. Não posso acreditar. Por que você faz todas essas coisas se sabe que elas são ruins?

—    Eu gosto de ser ruim — foi a resposta simples de Nockman.

—    Mas, por quê? Por quê? — Rocky estava completamente perplexo. — Por que você gosta de ser ruim? Por que não pode gostar de ser bom?

—    Nunca... soube... o que erra ser bom.

—    Mas as pessoas não foram boas com você?

—    Não... clarro que não. Todo mundo me odiafa. Meu pai... me batia quando me fia... em casa. Até minha mãe riu quando meu perriquito... morreu. Ela querria que eu tifesse morrido também. Eu aprrendi as coisas ruins... com ela... e não as boas. Não sei o que é bom.

Rocky estava tomado pelo horror. Então sua expressão pasma se transformou em reconhecimento.

—    Molly, é como a cantiga de ninar da Sra. Brinklebury... Foi o que a mamãe cuco ensinou a fazer. Ela ensinou que empurrar era o certo.

Molly assentiu devagar, uma vez que agora via a cantiga da Sra. Brinklebury e Nockman sob uma nova luz. Como poderia culpar Nockman por ser ruim, se ele nunca tinha sido tratado com bondade? Se sua infância de cuco só lhe havia ensinado coisas ruins?

—    Você está certo, Rocky. Eu quase odeio sentir pena dele, mas você está certo. Acho que não é de surpreender que ele seja ruim, se ninguém ensinou outra coisa... acho que ser bom é meio como... como ler... se ninguém nunca tivesse me ensinado, eu acharia muito difícil ler... quero dizer, as páginas cheias de letras iam parecer uma confusão. Ser bom deve ser uma confusão para ele. — Depois acrescentou: — E nós dois achávamos que nossa vida era ruim.

—    É — suspirou Rocky. — Pelo menos a gente tinha a Sra. Brinklebury, e cada um tinha o outro. Talvez a gente possa ensinar o Sr. Nockman a ser uma pessoa melhor.

—    Mmmmnn — cantarolou Molly. — Será que... — Em seguida perguntou a Nockman: — Você se sente mal com relação às coisas ruins que fez?

—    Não, por que deverria me sentir?

—    Há um problema aqui — disse Molly a Rocky. — Vai ser difícil ensiná-lo a ser melhor, se ele não vê um motivo para mudar. Ele não vai querer aprender. E não sei se somente hipnotizá-lo para ele ser bom vai dar um jeito nisso. Ele não vai realmente mudar enquanto não lamentar o que fez antes. Ele poderia querer mudar se percebesse como tinha magoado as pessoas.

—    Mas como é que a gente faz isso? A gente teria de fazer com que ele sentisse o que aquelas pessoas sentiram.

—    Bom, eu acho — disse Molly, sentindo-se um cirurgião antes de uma operação difícil — acho que podemos usar a única coisa que deixou Nockman perturbado, a única coisa que nós sabemos que o perturbou.

—    O periquito?

—    É, o periquito. — Molly se virou para Nockman.

—    Vou lhe dizer uma coisa... é... qual é o seu primeiro nome?

—    Simon. Eu sou Simon — disse Nockman, enfiando a mão dentro do paletó verde, pegando o passaporte e oferecendo a Molly. Ela o pegou e examinou a fotografia, em que ele mais parecia um peixe dourado do que uma pessoa. Ou talvez uma piranha.

—    Bom, Sr. Simon Nockman. Primeiro eu quero que o senhor imite um cachorro morto, de costas e com as pernas e os braços para cima. É, isso mesmo, e agora lata.

—    Aauf, auuuf, aaauuf — latiu Nockman, no chão, com as pernas e os braços balançando.

—    Bom — continuou Molly. — Agora, enquanto está assim, quero que imagine como foi para a Petula, aquela cadelinha que o senhor roubou, ser maltratada pelo senhor.

—    Aauuf, arf, aaauf.

Molly podia ver que ele não estava sentindo grande coisa, por isso acrescentou:

—    E se não consegue sentir nada, pense no coitado do seu periquito morto.

—    Aaaaaoooouuuuuoooo — uivou Nockman, um uivo de dar pena.

—    Pronto. Aí está — disse Molly —, ele está pensando na pobre da Petula e misturando com os sentimentos de tristeza pelo periquito. Ele está aprendendo.

Nockman uivou de novo.

—    Aaaaaoooouuuuuoooo.

—    Agora — gritou Molly por cima dos uivos. — Sempre que alguém disser “oi”, o senhor vai ficar de costas e latir desse jeito, e se sentir desse jeito, e imaginar como Petula deve ter se sentido quando foi seqüestrada. — E, virando-se para Rocky, falou: — A cada vez que alguém disser “oi” deve bastar para fazer com que a lição penetre, não é? E desse jeito significa que a gente não vai ter de ficar cutucando esse cara.

Então, para parar o barulho, Molly mandou Nockman se levantar e ficar andando como um orangotango agitado.

—    Uuuugh, uuugh aaaagh — grunhiu ele.

—    Agora — disse Rocky, captando a idéia —, por causa de todas as outras coisas ruins que o senhor fez, sempre que alguém disser “boa noite” o senhor vai se lembrar da coisa ruim que fez e que aquela pessoa o faz lembrar, e vai contar a ela o que o senhor fez, lembrando-se do periquito de novo. Certo?

—    Uuuugh, uuugh aaaargh, aah, certo — assentiu Nockman, absorvendo as instruções complicadas de Rocky.

—    Sem a menor dúvida — concordou Molly. — E pode parar de ser um orangotango. Bom, o senhor trabalha para nós, Sr. Nockman. Vai fazer tudo que nós mandarmos. Nós vamos tratá-lo bem e o senhor será muito feliz trabalhando para nós. Agora, pode acordar.

Molly bateu palmas.

Depois Rocky foi até a geladeira e serviu Qube para todo mundo.

Começaram os preparativos para a partida.

Molly pediu que algumas malas extras fossem mandadas da loja que havia no térreo, já que tinha tantas coisas novas, e Nockman começou a guardar as roupas dela. Rocky foi até o quarto da suíte para dar uma série de telefonemas importantes. E Molly cuidou do livro de hipnotismo.

Tirou-o do cofre, guardando-o cuidadosamente em sua sacola de pano. Depois abriu caminho pelos entulhos, correspondências de fãs e lembranças de Nova York, brinquedos e bricabraques, acessórios e roupas, e pensou no que iria levar.

Quando viu Petula deitada em seu velho casaco, decidiu deixá-lo para trás. Tirou do gancho na porta do armário sua nova jaqueta de jeans e, com uma sombrinha, foi até a varanda dar uma última olhada na brilhante Manhattan.

A chuva caía torrencialmente lá fora, mas o sol da tarde também batia nos prédios, e assim, em toda parte, tijolo, aço e vidro brilhavam. Molly ainda se sentia pequena ali, porque a cidade era tão alta, densa e cheia de pessoas, que ela nunca havia conhecido. Mas em vez de achar a cidade assustadora, como na primeira manhã em que olhou para ela, agora a adorava. Adorava os arranha-céus, as ruas barulhentas, os motoristas malucos, as lojas, as galerias, os teatros, os cinemas, as pessoas chiques, os parques e toda a sujeira da cidade. E tinha certeza de que, um dia, iria voltar.

Depois de um sono reparador em cima do velho casaco, Petula foi acordada pelo som de Nockman esvaziando o guarda-roupa de Molly. Por algum motivo o homem no quarto não era tão assustador quanto o que a havia seqüestrado, por isso ela o ignorou. Pegou uma bela pedra no chão e começou a chupá-la. E olhando sonolentamente Molly na varanda, sentiu-se aliviada por estar de volta.

Por fim o recepcionista do hotel trouxe um envelope gordo que tinha sido mandado para Molly, e estava na hora de ir.

O Rolls Royce de Molly foi trazido até a entrada de serviço. Com a ajuda de um porteiro do hotel, Nockman o encheu com a bagagem. Logo Molly, Rocky e Petula estavam sentados confortavelmente nos bancos de couro do carro, atrás das janelas de vidro fumê. Nockman estava ao volante, como chofer, mordomo, porteiro, e empregado de serviços gerais.

O motor do Rolls Royce foi ligado, e cantando pneus eles deixaram o Hotel Bellingham.

 

Antes de deixarem Nova York, Molly e Rocky queriam dar uma última parada. O Rolls Royce foi abrindo caminho pelas avenidas agitadas até Nockman estacioná-lo diante de um prédio alto com uma entrada triangular e o nome Estúdios Sunshine acima da porta.

Um homem malvestido desceu correndo os degraus de mármore branco para recebê-los. Tirou os óculos escuros e sorriu, revelando um incisivo dourado entre os dentes de cima.

— Bem-vindos, bem-vindos — disse ele empolgado. — E obrigado pelo telefonema. Nós estamos muito felizes em tê-los aqui. Eu sou Alan Beaker, o diretor com quem vocês falaram. — Ele estendeu a mão para Molly e Rocky apertarem. — Por favor, sigam-me.

Molly, Rocky e Petula seguiram o diretor ao longo de corredores brancos e depois até um estúdio enorme, cheio de microfones, gruas, câmeras e pessoas de pé, olhando para Molly. A nova estrela, Molly Moon.

Uma mulher grisalha, vestida num conjunto muito elegante, se afastou da multidão.

—    Esta é a diretora da Qube Incorporated, Dorothy Ourofino — disse Alan Beaker.

Dorothy Ourofino levantou a mão para apertar a de Molly. Um enorme anel de esmeralda faiscou em seu dedo.

—    Como vai — disse ela em tom suave e grandioso. — É um prazer enorme.

—    Prazer em conhecê-la também — disse Molly. — Acho que a senhora falou com meu amigo Rocky pelo telefone. — Rocky deu um passo à frente.

—    Como vai? — disse ele.

—    É um prazer imenso... conhecê-lo também — disse Dorothy Ourofino, hesitando apenas um pouco. — E estamos prontos... prontos para tudo.

Vinte minutos depois, Rocky, Molly e Petula tinham sido arrumados e estavam no cenário do estúdio.

—    Luzes — gritou Alan Beaker. — Câmera rodando, e... ação.

E Molly e Rocky começaram. Era um jingle simples, em forma de rap, que Rocky tinha inventado, mas com os olhos de Molly atuando em força total, com a voz de Rocky no estado mais hipnótico, e Petula parecendo o mais doce possível, o anúncio que eles fizeram foi muito, muito poderoso. Era assim:

“Se você quer ser legal e se sentir legal

Faça uma coisa que é muito genial

Dê uma sacada, uma sacada nas crianças

Nas crianças que moram nas vizinhanças.

Algumas crianças podem estar na pior

Olhe essas crianças, faça com que se sintam melhor,

Dê uma sacada, uma sacada nas crianças

Nas crianças que moram nas vizinhanças.

Olha aí, escuta irmão,

Para algumas crianças a vida não é brincadeira.

O mundo deveria ser bom para a humanidade inteira. Infância feliz...

Disso a gente não se cansa,

Dê uma sacada nas crianças de sua vizinhança.

O anúncio terminava com Molly e Rocky apontando direto para as câmeras.

—    Corta! — gritou Alan Beaker. — Foi fabuloso! Vocês são profissionais de primeira.

—    Bom — disse Molly, sorrindo para Rocky —, a gente faz comerciais há anos.

—    É — disse Dorothy Ourofino —, isso foi maravilhoso, e vamos pôr no ar, como vocês disseram, a cada hora, todo dia. Será um prazer para a Qube Incorporated pagar o tempo de TV Muitíssimo obrigada.

—    Ah, não — disse Molly. — Obrigada a vocês. E adeus, agora. Nós precisamos ir.

—    Adeus — gritaram todos no estúdio, fascinados.

De volta ao Rolls Royce, Rocky disse a Molly:

—    Está vendo, a lavagem cerebral pode ser usada para o bem. Está se sentindo menos culpada agora?

Molly assentiu.

—    Eu sei que aquele anúncio não vai mudar o mundo, mas vai fazer alguma coisa boa, não é?

— Sem dúvida. Mesmo que uma pessoa seja mais gentil por causa dele, vai valer a pena. Mas sabe de uma coisa? Acho que milhares de pessoas vão ver. Nunca se sabe quantas coisas boas serão feitas por causa dele. Plante uma semente e espere crescer.

 

O Rolls Royce saiu da ilha de Manhattan pelo túnel Queens Midtown e seguiu pela via expressa até o aeroporto John F. Kennedy.

Chegando lá, Nockman parou ao lado da entrada do Embarque Internacional, e um porteiro veio ajudar. Ele e Nockman puseram as doze malas de Molly num carrinho do aeroporto, enquanto Petula pulava em seu cesto de viagem e Rocky ia lá dentro pegar as passagens. O porteiro empurrou o carro para dentro e todo mundo o acompanhou até o balcão de check-in.

—    Obrigada — disse Molly quando ele colocou a última mala na esteira rolante. — E, se não for muito incômodo, será que o senhor pode ficar com o carro? — Ela pôs as chaves do Rolls Royce na mão do homem cansado.

—    Ficar? Quer dizer, colocar na garagem?

—    É um presente — disse Molly. A boca do homem se escancarou.

—    Está brincando?

—    Estes são os documentos dele. — Molly pegou um envelope amarrotado no bolso dos jeans. — Se o senhor colocar o seu nome aqui, ele é seu. Qual é o seu nome?

—    Louis Rochetta. Mas você está brincando, não está? Ei, eu estou numa espécie de pegadinha? — O homem girou, procurando uma câmera escondida.

—    Não — disse Molly, tentando fazer sua esferográfica funcionar. — Aí está, Sr. Rochetta. Pegue e leve agora.

O Sr. Rochetta estava aparvalhado demais para falar alguma coisa além de:

—    Ob... ob...

—    Foi um prazer — disse Molly, sorrindo. — Adeus. Ela sempre tinha desejado fazer uma surpresa daquelas a alguém. Depois se virou para falar com Rocky, que tinha separado as passagens. Quinze minutos depois Molly estava hipnotizando de novo o pessoal do aeroporto, para que Petula passasse sem ser notada pelos seguranças e pelas máquinas de raios X.

Rocky e Molly foram fazer compras no free-shop. Tinham de ir a uma loja de produtos para toalete, uma loja de doces, uma loja de produtos eletrônicos e uma de brinquedos. Depois de uma gigantesca farra de compras, o avião deles estava pronto para o embarque. Assim, cambaleando com o peso das compras e carregando o cesto de Petula, foram até o Portão 20, onde tinham combinado de se encontrar com Nockman.

Como um bom empregado, Nockman estava indo para o portão, como tinha sido instruído. Sentia-se bastante estranho. Sabia quem era e exatamente como sua vida tinha sido até agora. Mas não sabia como tinha chegado a ser empregado do Sr. Cesto-de-Gato e da Srta. Secador-de-Cabelo. Nem sabia exatamente por que gostava tanto deles. Ainda odiava outras pessoas. No Portão 20, onde todo mundo estava fazendo fila para entrar no avião, ele apresentou seu passaporte e a passagem à aeromoça.

—    Boa noite — disse ela educadamente.

Nockman estava na metade de um sorriso sincero quando de súbito sua mente se encheu de lembranças de uma adolescente que havia conhecido e que se parecia com a aeromoça. Lembrou-se de como tinha sido grosseiro com ela. E, sem querer, começou a balbuciar:

—    Focê é gorrda e feia como ela — viu-se dizendo. — É mesmo, é ferrdade. Você parrece um sapo com prrisão de ventrre. E erra isso que eu semprre falafa com ela. E eu semprre fazia um barrulho com a boca parra ela. — Nesse ponto, Nockman notou que sua boca estava se enchendo de ar, e antes que pudesse se impedir, um som de pum, alto, saiu de sua boca. E como se não bastasse, incontrolavelmente ele começou a se lembrar do velho periquito, Fofo, que o Sr. Snuff tinha matado, e começou a uivar: —Aaaaiiiieeeeoooouuuuu!

A aeromoça ficou perplexa. Cruzou os braços e estreitou os olhos.

—    Senhor, nós temos uma política contra passageiros sem educação. Se o senhor for grosseiro com os funcionários ou com outros passageiros, será impedido de viajar.

Nockman estava pasmo consigo mesmo. Não podia entender como isso havia acontecido. Não estava bêbado. Talvez estivesse doente. E todas aquelas lembranças ruins lhe davam medo.

—    Desculpa. Por fafor, aceite minha desculpas. Foi uma brrincadeirra.

—    Senso de humor esquisito — disse a aeromoça. Mas, descruzando os braços, deixou que ele passasse.

Nockman foi cambaleando pelo túnel até a porta do avião, tropeçando no cordão do sapato e imaginando de novo o que lhe havia acontecido. Enquanto andava, pensou em como aquilo tinha sido estranho, e como tinha se sentido descontrolado. Tinha se sentido como se fosse uma máquina, mas com outra pessoa segurando os controles. Estremeceu de novo ao pensar no pobre periquito, e franziu o nariz ao lembrar da adolescente que ele havia tratado tão mal. Não conseguia entender por que todas aquelas lembranças tinham vindo de repente à sua cabeça. Não gostava daquilo. Depois pensou nos novos patrões e se apressou.

— É... oi, Srta. Secador-de-Cabelo e Sr. Cesto-de-Gato, eu voltei.

—    Ah, oi — disseram Molly e Rocky, olhando de seus lugares na primeira classe para Nockman, ainda com o terno verde. Nockman olhou para os dois e empalideceu, como se tivesse visto um fantasma.

—    O senhor está bem? — perguntou Rocky.

De repente Nockman se sentiu esquisito de novo. Dessa vez se pegou mergulhando para o piso do avião, rolando de costas e balançando os braços e as pernas no ar. E, como antes, sua boca se abriu por vontade própria. Ele se pegou latindo e uivando de dar pena.

—    Uuuuf, uuuuf, aaarf, aaarf — latiu, enquanto seu chapéu caía. Depois: —UUUuuuuUUUuuUUuuuuuoooouuuf— uivou quando, de novo, pensou no pobre periquito.

Outras pessoas no avião ficaram muito preocupadas, e uma aeromoça veio ver qual era o problema.

— Pode parar agora — disse Molly com autoridade. Em seguida lançou o facho do olhar para a aeromoça. — Está tudo bem. Ele só precisa do remédio. Não se preocupe, por favor. — E a aeromoça se afastou.

Nockman ficou de pé, sem fôlego. Aquilo tinha sido um ataque. Ele devia estar doente. De novo, vindo do nada, estivera chorando por causa do seu periquito e de como o Sr. Snuff tinha sido perverso.

E agora, enquanto se sentava, outro sentimento fez seus olhos se encherem d’água. Sentia pena de uma cachorra com o qual tinha sido mau; uma cachorra que não era muito diferente da cadelinha da Srta. Secador-de-Cabelo.

Nockman viu que não era melhor do que o Sr. Snuff. Enquanto prendia o cinto de segurança, imaginou como podia ter sido tão cego. Quando era garoto, ele não era cego. Sabia como o seu periquito tinha sofrido, e tinha chorado por ele. Tinha chorado durante noites. No entanto, como adulto, tinha sido cruel com uma cachorrinha. Tinha deixado o animal sozinho, com frio e fome, num cômodo escuro e sujo. O S de Simon, ele pensou, deveria significar Sórdido. Sórdido Nockman. Nockman baixou a cabeça e uma emoção que não o perturbava há anos tomou conta dele. Vergonha.

Nockman olhou pela janela do avião e pensou. Tinha sido ruim com pessoas também. Nunca havia deixado que os sentimentos das outras pessoas o incomodassem. Mas agora... era muito estranho, e não sabia por que, mas hoje sabia que não podia mais ignorar os sentimentos dos outros. Estava acordando para o fato de que, como seu periquito, as pessoas também tinham sentimentos.

Mais lembranças de coisas horríveis que tinha feito começaram a encher sua mente. Um a um, os fantasmas de suas más ações se apresentaram. E quanto mais eles vinham, mais Nockman se sentia nauseado consigo mesmo.

Enquanto o avião decolava, ele se sentiu pesado de um modo que era totalmente novo. Seu espírito estava se arrastando atrás dele, baixo e triste, e encharcado de culpa.

 

Quando chegou a hora do jantar no avião, Nockman se pegou só querendo comer frutas. Depois foi dormir. Rocky e Molly, por outro lado, ficaram totalmente despertos, aproveitando ao máximo o menu da primeira classe.

—    Imagino o que o resto do pessoal no avião está comendo —      disse Molly, animada, mordendo um sanduíche com ketchup.

—    Carne nadando em gordura, seguida por pedaços de pão velho e fruta com gosto de papelão — sugeriu Rocky, mordendo uma panqueca crocante que deixava escorrer xarope de limão.

—    Foi isso que a gente comemos, eu e os Alabaster, na vinda.

—    Nós comemos, você quis dizer — corrigiu Molly.

—    Você não estava com eles.

—    Ah, esqueça. Eu só estava tentando melhorar a sua linguagem.

—    Sabe de uma coisa? — Rocky levantou os olhos da revista de bordo. —Aqui diz que a gente pode ter massagem no pescoço, na primeira classe.

—    Quem faz?

—    Não sei. O comandante?

Isso fez os dois rirem, e Rocky derramou um monte de recheio de panqueca na revista.

—    Mmmnnn, primeira classe é o máximo. Luxo puro! — acrescentou Molly, tomando um gole de suco de laranja concentrado. — Mas sabe de uma coisa, Rocky? Vai ser difícil voltar à terra quando nós pousarmos.

—    Por quê? O avião não tem rodas? Começaram a rir de novo.

—    Piada horrível... — disse Molly, com os olhos se enchendo d’água enquanto se recuperava.

—    Não, o que eu quis dizer é... — ela olhou para Rocky. — E não me faça rir, Rocky, porque eu estou para dizer uma coisa séria.

—    Está? — Rocky fez uma cara muito séria.

—    O que eu quero dizer é que vai ser difícil não usar mais o hipnotismo quando a gente voltar. Quero dizer, pense em todas as vezes que você o usou nas últimas semanas. É tão útil! Eu sei que nós concordamos que devemos seguir com a vida honestamente daqui em diante, mas e se... digamos, se você visse um velho gritando na rua porque a mulher dele morreu, e porque estava se sentindo sozinho... Você não iria querer hipnotizá-lo para não se sentir tão triste? E entrar num clube da terceira idade ou alguma coisa assim? Ou digamos que você visse uma menininha chorando porque teve notas ruins na escola, e no mesmo dia seu hamster foi comido por um gato e sua amiga foi para o hospital com uma doença terrível e...

—    Molly, pare com isso. Nós concordamos.

—    É, mas eu acho que vai ser difícil resistir à tentação.

—    É verdade. Vai ser. Mas a gente precisa resistir, porque se a gente começar a usar o hipnotismo para fazer o bem, logo vai começar a fazer coisas úteis, e antes que a gente perceba vai estar usando o tempo todo de novo, sempre que não conseguir as coisas de outro modo. E então a gente vai estar levando uma vida irreal de novo.

Molly ficou desapontada. Sabia que Rocky estava certo. Já haviam falado de tudo isso.

—    Mas... — tentou. — Se a gente não hipnotizar ninguém, talvez a gente esqueça como se faz.

—    Não — Rocky levantou uma sobrancelha. — É como chupar o dedo. Depois que você aprende, nunca mais esquece.

—    É, você está certo — disse Molly mal-humorada, virando a cabeça para a janela.

Lá fora, o céu estava cheio de estrelas, e lá embaixo — dez mil metros abaixo — a maré do oceano Atlântico movia-se com a lua. Molly olhou para fora, achando difícil acreditar que nunca mais iria hipnotizar alguém. Mas percebeu que ainda faltavam horas antes de pousarem. Não estaria violando as regras se usasse seus poderes no avião.

Rocky estava assistindo a um clipe de música. Molly se levantou e se espreguiçou. Depois foi dar uma voltinha.

Teve algumas conversas nas duas horas seguintes.

Conheceu um homem que estava tremendo, perto dos banheiros, porque odiava viajar de avião. Molly o persuadiu de que, dali em diante, ele iria adorar. Falou com uma mãe exausta, de pé e segurando uma criança que não queria dormir. Depois de dez minutos as duas estavam de volta aos lugares, as duas completamente apagadas. Falou com uma aeromoça chorosa que tinha acabado de romper com o namorado, e Molly emendou seu coração partido. Depois ajudou três crianças que odiavam a escola, transformou um velho esquisito e rabugento num homem de meia-idade afável, e consertou um garotinho para que ele adorasse comer verduras, especialmente espinafre.

Voltou ao seu lugar sentindo-se muito satisfeita, e meio como uma fada madrinha.

O avião pousou às seis da manhã. Em Nova York era uma hora, por isso Rocky e Molly se sentiram muito desorientados. Mas tinham dormido um pouquinho e estavam muito empolgados em voltar.

—    Lembre-se do que a gente combinou — disse Rocky, descendo a escada do avião.

—    Vamos lá — disse Molly, pisando no asfalto do aeroporto.

Assim que chegaram ao terminal, Nockman pegou a enorme quantidade de malas e compras na esteira de bagagens. Depois Molly e Rocky decidiram que seria legal voltar ao Lar Vidadura em grande estilo. Por isso alugaram um helicóptero.

A viagem de helicóptero levou vinte minutos. Enquanto as pás giravam acima, Molly olhava para fora, vendo o litoral à distância e, de longe, a cidade de Briersville. A medida que o piloto se aproximava, ela apontou para o morro onde ficava o Lar Vidadura. Enquanto se aproximavam do prédio dilapidado e malcuidado, Molly se lembrou de como costumava fechar os olhos e se imaginar voando para longe, para o espaço.

Logo estavam pairando diretamente acima do terreno, e o piloto começou a baixar o helicóptero. Ele pousou do lado de fora do orfanato, numa pequena área de terreno plano, enquanto o vento provocado pelas pás chicoteava os arbustos, os espinheiros e o capim. Ele desligou o motor.

—    Chegamos.

Molly olhou para fora, cheia de expectativa, para ver quem sairia primeiro do prédio, mas ninguém saiu.

—    Acho que ninguém acordou ainda — disse Rocky. — Quero dizer, ainda é cedo. Pelo menos isso mostra que Hazel não é rígida com relação a levantar da cama.

—    O lugar parece tão malcuidado como sempre — disse Molly, deixando Petula sair para fazer xixi.

Enquanto Petula farejava cheia de entusiasmo pela entrada de veículos gelada, o piloto desejou boa sorte a todos eles, e com todo mundo mantendo distância, ligou o helicóptero de novo. Com um sinal de polegar para cima, decolou. Um minuto depois a máquina não passava de um ponto no céu.

Molly e Rocky se viraram para olhar o Lar Vidadura. Um pequeno rosto surgiu numa janela.

—    Alguém acordou.

—    Alguém acordou — disse Molly. — Está tudo muito quieto por aqui. — Ela tocou a campainha, mas então notou que a porta rachada já estava aberta.

 

A primeira coisa que espantou Rocky e Molly quando passaram pela porta foi o cheiro. O saguão estava com um cheiro medonho. Cheirava a alguma coisa podre. Comida podre, lixo e sujeira. O piso xadrez, em vez de ser preto e branco, estava tão sujo que parecia todo preto.

—    Eca! — disse Molly, levantando a echarpe de caxemira na frente do nariz. — Que nojento!

—    Cheira como se alguém tivesse morrido — disse Rocky. — E está frio, que nem um necrotério.

—    Ah, não diga isso — encolheu-se Molly. — Por favor. Você está me assustando. Mas por que será que fede tanto? E onde está todo mundo?

—    Acho que o cheiro vem da cozinha — disse Rocky, fechando a porta que levava à entrada do porão. — Todo mundo deve estar lá em cima. Nockman, por favor, traga a bagagem, e deixe a porta aberta para que a gente possa arejar esse lugar.

—    Sim, Sr. Cesto-de-Gato — disse Nockman, obedientemente. E Molly, Rocky e Petula se aventuraram pela escada de pedra.

No primeiro patamar todas as portas dos quartos estavam fechadas e havia um cheiro pungente, sujo, avinagrado. Molly abriu a porta do quarto onde Gordon e Rocky dormiam antigamente.

O quarto estava silencioso, com as cortinas fechadas, mas buracos nas cortinas deixavam entrar luz suficiente para ver que não havia ninguém. E o lugar estava uma bagunça. Lençóis, cobertores e colchões encalombados estavam espalhados no chão, deixando os estrados de arame das camas despidos e frios. Cascas de laranja, caroços de maçã, velhas caixas de leite, latas de feijão cozido vazias e pratos sujos estavam espalhados em toda parte. Uma nuvem de mariposas voou daquelas coisas.

Molly e Rocky fecharam o quarto e abriram o próximo.

Esse também estava vazio, e num estado caótico semelhante. O terceiro e o quarto quartos também estavam vazios, porém mais arrumados, com os colchões nas camas. Em cada quarto o ar estava tão frio, que Molly e Rocky podiam ver a própria respiração.

—    Mas nós vimos alguém — disse Molly. — Talvez eles estejam aqui. — Ela abriu a porta do quinto quarto e descobriu que estava barrada com algum móvel. Mas não estava bem travada, e com outro empurrão a porta cedeu.

Nesse quarto as cortinas estavam abertas. E ali, sentados à luz áspera de dezembro, estavam Gerry, Gemma e as duas crianças de seis anos, Ruby e Jinx.

Estavam amontoados juntos, debaixo de cobertores, com o cabelo emaranhado, o rosto sujo, os olhos arregalados e apavorados.

—    O que vocês estão fazendo aqui, com uma barricada na porta? — foi a primeira coisa que Molly perguntou. Depois, quando nenhuma criança respondeu, nem mesmo Gerry ou Gemma, ela se aproximou e se agachou na frente deles. As crianças se encolheram umas contra as outras, como limalha de ferro imantado. Seu comportamento era chocante.

—    Gemma — disse Molly em voz baixa. — Você não está me reconhecendo?

—    N... não — respondeu Gemma, olhando interrogativamente para o rosto de Molly.

—    Eu sou Molly.

—    Mas — disse Gemma com voz fraca. — Molly voou para longe, e, de qualquer modo, Molly não se parecia com você. Ela não tinha roupas bonitas e coisas que nem você, e os sapatos dela não eram limpos como os seus, e o cabelo dela não era arrumado, e o rosto dela era diferente. — A menininha enxugou com a ponta do lençol o nariz que estava escorrendo, e estremeceu.

—    É, Molly tinha cara manchada — disse Gerry.

—    Eu sou Molly. Só estou um pouquinho mais gorda e mais bem cuidada. Vocês sabem, como o seu camundongo, Gerry, depois de você cuidar dele. Vocês sabem.

Molly olhou em volta. Pilhas de roupas sujas estavam espalhadas na maior bagunça. Penas brancas, de um travesseiro que tinha estourado, cobriam os colchões e o chão, de modo que o quarto mais parecia um ninho do que um quarto. Um tubo de pasta de dentes que tinha sido pisado havia espremido o conteúdo no chão de madeira, numa mistura pegajosa, com cheiro de menta, e havia uma lata de Qube ao lado, amassada, vazia e de aparência triste.

—    Meu camundongo morreu — disse Gerry, baixando a cabeça.

—    Ah, não, Gerry, foi? Isso é horrível. Não é, Rocky? Rocky parecia muito preocupado.

—    É — disse ele. — Essa notícia é muito ruim, Gerry. Eu fico muito triste em saber que Guincho morreu. Você se lembra de mim, Gerry? Eu sou Rocky.

Gerry assentiu.

—    E esta é Petula. Ela também mudou. Ela não é mais gorda, e sabe, agora ela até gosta de ficar correndo por aí.

Gerry olhou inexpressivamente para Petula, que lambeu sua mão.

Molly olhou ansiosa para a fileira de crianças.

—    Vocês todos parecem doentes. — Ela mal podia acreditar na mudança, e na rapidez com que tinha acontecido. Enquanto ela estivera engordando, todas elas estavam meio mortas de fome. Pareciam muito doentes. Mais algumas semanas e Molly poderia ter encontrado todas mortas. Encolheu-se diante do pensamento e se sentiu totalmente culpada. Enquanto olhava os rostinhos que lhe eram tão familiares quanto rostos de irmãos, sentiu-se completamente responsável pelo sofrimento deles.

Inclinou-se e deu um abraço em Gemma.

—    Desculpe — falou, do fundo do coração. A menininha se agarrou a ela, e Molly sentiu como Gemma estava frágil e fria. Rocky abraçou Gerry, e em seguida Ruby e Jinx também. Jinx e Ruby começaram a chorar. Absolutamente chocada consigo mesma, Molly imaginou como podia ter sido tão má; deixando aquele grupinho no Lar Vidadura, com a louca Srta. Viborípedes. E depois, por que não tinha voltado quando soube que aquela horrível Hazel estava no comando? Viu que estivera interessada apenas em si mesma. E desesperada também, lembrou-se. Mas como podia ter partido para a América pensando que não restava nada em Briersville para ela?

Achava que era porque até agora não tinha percebido como amava aquelas crianças.

— Tem alguma comida na casa? — perguntou a Gemma, decidida a melhorar as coisas o mais rápido possível.

— Tem, a gente ainda recebe as entregas, batatas, ovos e coisas, mas eu não sei cozinhar direito, e nós ficamos sem panelas, mas a cozinha está cheia de ratazanas, e a gente ficou com medo de ir lá embaixo, mas de vez em quando a gente vai lá, e é horrível.

—    Então o que vocês estão comendo?

—    Feijão em lata, frio...

—    Mas o abridor de lata é difícil de usar...

—    E a gente come pão, fruta e queijo de vez em quando, se a gente consegue pegar antes daqueles ratos nojentos.

—    Mas por que tudo deu errado? A Sra. Brinklebury não vem e traz bolinhos, nem ajuda vocês a limpar tudo e cozinhar?

—    Não — disse Gerry, piando alto. — A Srta. Viborípedes despediu a Sra. Brinklebury, e ela nunca mais voltou. Viborípedes disse que a gente ficaria mais feliz sozinha. Mas a gente não ficou... e meu ratinho morreu. — Gerry olhou para o chão.

—    Eu sei, Gerry, isso é muito, muito triste — disse Molly, passando a mão em sua cabeça.

—    Mas escutem — disse Rocky, tentando ser positivo, — Vocês devem estar com fome de verdade. Então, que tal a gente fazer omeletes, batatas fritas e chocolate?

As quatro crianças olharam Rocky, pasmas.

—    Sim, por favor — disseram.

—    Então, certo. Ponham os roupões e os chinelos e vamos lá para baixo, e nós vamos acender um fogo e deixar todos vocês quentinhos.

As crianças pareciam tão exaustas, e tão agradecidas, que Molly se sentiu obrigada a dizer:

—    E escutem, vocês aí, não precisam se preocupar mais. Tudo vai ser ótimo daqui em diante, eu prometo. Nós voltamos para cuidar de vocês, e temos outra pessoa para ajudar também, e tudo vai ser arrumado e vai haver coisas boas para comer, e nós vamos ficar quentes e... bom, esperem só.

Com isso Molly guiou para baixo as crianças que pareciam mendigos esfomeados, vestidas em seus roupões velhos. Em vinte minutos a lareira estava acesa na sala e elas estavam sentadas em volta, aquecendo os pés sujos. Molly imaginou onde estariam as crianças mais velhas, mas decidiu perguntar a Gemma depois. Em primeiro lugar tinha de fazer o café da manhã, por isso chamou Nockman e Rocky. E entraram na cozinha fétida.

Acharam a cozinha num estado diabólico. Sacos de lixo estavam caídos de lado, cheios de comida podre e vermes. As pias estavam com pilhas de pratos e talheres sujos. De fato, cada objeto da cozinha estava sujo na pia, caído de lado ou no chão. Havia cadeiras puxadas para perto do fogão, onde as crianças pequenas tinham tentado cozinhar.

Petula farejou e sentiu cheiro de roedores. Quando Molly abriu um armário, três camundongos, que estavam comendo algumas migalhas, dispararam entrando em buracos.

—    Sabe, Molly — observou Rocky —, não pode haver ratazanas aqui, porque eu ouvi dizer que onde há camundongos não aparecem ratazanas. O que é bom, porque as ratazanas transmitem doenças ruins, e os camundongos só são meio sujos. Se Nockman limpar tudo com algum desinfetante, deve ser seguro cozinhar.

—    Isso só mostra como elas estavam apavoradas. Puxa, Gerry adora camundongos, mas na imaginação ele viu os camundongos como ratazanas.

Graças aos dias em que tinha trabalhado como faxineiro no Banco Shorings, Nockman era muito bom em limpeza. Primeiro levou o lixo da cozinha para fora, depois encheu uma das pias com água e detergente e outra com água quente e limpa, para enxaguar. Lavou frigideiras, tigelas, pratos e talheres, e depois começou a descascar batatas. Rocky quebrou vinte ovos numa tigela e começou a mexê-los, enquanto Molly achava dois carrinhos, que limpou. Depois foi até a porta dos fundos, ver se o leiteiro tinha passado.

Perto da porta havia dois caixotes com peixe extremamente podre, além de outras caixas fedorentas e garrafas de leite com as tampas prateadas bicadas por pássaros. Molly pegou o cesto de leite com as cinco garrafas novas e voltou correndo para dentro.

—    Nockman, quando terminar de fazer o café da manhã, e de ter comido também, por favor, pode limpar a cozinha muito bem?

—    Sim, Srta. Secador-de-Cabelo.

Um cheiro fantástico de omelete, batatas fritas e lenha queimando na lareira logo encheu a casa. Molly e Rocky olharam com satisfação as crianças pequenas comerem sentadas no chão diante da lareira. A cada bocado, mais cor voltava às bochechas.

Gerry foi o primeiro a ter a curiosidade de volta.

—    E então — disse ele. — Como se chamava mesmo o lugar aonde vocês foram?

—    Nova York — disse Molly. — Você lembra que eu telefonei?

—    Lembro. Então, como é lá em Nova York?

—    Incrível — disse Rocky.

—    E o que vocês fizeram lá?

—    Bom, a gente fez um bocado de coisas — respondeu Rocky. — Eu morei com uma família e descobri que gostava muito mais de vocês. — Gerry ficou satisfeito com isso. As outras crianças assentiram e sorriram.

—    E eu — disse Molly —, eu vivi sozinha, e tinha tudo o que eu queria.

—    O quê, tudo? — perguntou Gemma.

—    É. Eu tinha riqueza. Tudo de chique, que nem as coisas que a gente vê nos comerciais, e ainda mais. Tinha roupas, carros, TVs, filmes, lojas e todos os doces que eu quisesse. E trabalhei numa peça, apareci na televisão e as pessoas telefonavam para mim o tempo todo, e fiz umas coisas de dar medo e era famosa!

—    Você era famosa? — ecoaram as crianças.

—    É, eu era famosa como... como uma pessoa de comercial.

—    Então por que não ficou lá? — piou Gemma, muito perplexa.

—    Porque eu também tive uma coisa que eu não queria.

—    E o que era?

—    Piolho? — sugeriu Gerry.

—    Não, não era piolho. Eu tinha solidão.

—    Solidão?

—    É. Solidão. E sabe de uma coisa?

—    O quê?

—    A solidão faz aqueles anúncios chiques, podres de chique, parecerem lixo.

—    Lixo?

—    É, como sacos cheios de lixo velho.

—    Mas por quê? — perguntou Gerry.

—    Porque quando você está sozinho, sem amigos nem família, o que você quer mais do que tudo é não ficar sozinha. E todas aquelas coisas chiques não fazem você se sentir melhor. Você não se importa com as coisas chiques, só quer ficar com pessoas de quem você gosta.

—    Então — disse Rocky. — Quando Molly me achou, ficou muito feliz em me ver. E nós decidimos que estávamos sentindo solidão longe de vocês, e também ficamos preocupados, por isso voltamos para casa.

As crianças pareceram muito impressionadas, boquiabertas por terem atraído Rocky e Molly para casa. Nenhuma delas estava ressentida. Eram muito doces e prontas a perdoar. Todas ficaram olhando maravilhadas para Rocky e Molly, tomando o chocolate.

—    E Petula também ficou solitária? — perguntou Jinx, acariciando a cabeça macia de Petula.

—    Ficou — disse Molly.

—    Porque a gente ficou solitária também, não foi, Gemma?

—    É. E não foi muito legal.

A minúscula Ruby estava sentada perto da lareira, junto de Nockman, com um enorme bigode de chocolate quente em cima do lábio. Ela enfiou a mão na de Nockman.

—    Obrigada, moço — falou, piscando para ele. — Isso foi o melhor.

Nockman vinha se sentindo diferente desde o ataque que tivera no avião, e agora, olhando a menininha, sentiu uma coisa que não sentia há anos. Sentiu-se quente por dentro. Quente porque a menininha havia achado o caminho para o seu coração, e porque estava feliz por tê-la ajudado. Mal podia acreditar naquele sentimento.

—    O prrrazer foi meu — falou em voz baixa.

—    Agora — disse Molly a Gerry e Gemma — contem tudo. Aonde foram Hazel e os outros?

—    Foram? Eles não foram — disse Gemma. — Eles ainda estão aqui. — E ela respirou fundo para contar tudo que tinha acontecido no Lar Vidadura.

 

Gemma começou:

— Depois de você ir embora de avião, a Srta. Viborípedes e Edna também foram embora, mas, antes de irem, despediram a Sra. Brinklebury, e disseram pra ela nunca mais voltar. Disseram que queriam ser boas com as crianças de agora em diante, e que a gente não gostava de adultos mandando na gente o tempo todo. Por isso elas disseram que a gente ia ser mais feliz se todos eles fossem embora.

Molly se lembrou das instruções que tinha dado a Viborípedes e Edna no aeroporto. Como podiam ter sido estúpidas a ponto de achar que as crianças ficariam mais felizes sozinhas, sem qualquer ajuda?

—    Mas a Sra. Brinklebury era boa — insistiu Jinx.

—    É, mas ela fez o que Viborípedes mandou e foi embora assim mesmo — continuou Gemma. — Depois a Srta. Viborípedes juntou todas as coisas dela, e Edna também, e elas tiveram uma briga porque a Srta. Viborípedes picotou umas roupas de Edna e...

—    Ela cortou o casaco de Edna — disse Ruby.

—    E o chapéu das duas — acrescentou Jinx.

—    É, elas ficaram parecendo idiotas quando foram embora, com as roupas todas cortadas — disse Gerry. — Edna deu uns doces a nós, só que eram esquisitos, com coisas horríveis dentro.

—    Eram doces italianos, de adultos — explicou Gemma. — Mas as duas foram boas com a gente antes de irem. A Srta. Viborípedes me deu um saquinho de naftalina.

—    E me deu um vidro de remédio para lavar a boca — disse Jinx.

—    Mas você foi mau, não foi, Jinx? — lembrou Gemma.

—    É, eu bebi.

Rocky desalinhou o cabelo de Jinx.

—    De qualquer modo — continuou Gemma —, a Srta. Viborípedes disse que a comida e as compras iam continuar sendo entregues e pagas automaticamente pelo banco, e disse que a gente tinha de continuar indo à escola, se não a maligna Sra. Assapa viria aqui. Por isso a gente tinha de fingir que a Srta. Viborípedes e Edna ainda estavam aqui, para ninguém saber que elas tinham ido embora.

—    E para onde elas foram? — perguntou Molly.

—    Não sei.

—    Então, o que aconteceu?

—    Bem, então Hazel ficou no comando — disse Gemma.

—    E ela era pior do que Viborípedes — sussurrou Gerry.

—    Ela era horrível e mandona — continuou Gemma — e fazia a gente trabalhar muito. A gente tinha de cozinhar e fazer a limpeza. Ela dizia que a gente tinha de ficar bem arrumada para a escola, senão a Sra. Assapa ia adivinhar que a gente estava aqui sozinha...

—    E Hazel saiu do quarto dela e se mudou para o apartamento antigo da Srta. Viborípedes, e jogou um monte de papel pela janela — disse Geny. — Ela disse que Roger e Gordon deviam ir para o quarto de Edna. Mas então...

—    Então eles começaram a brigar — disse Gemma. — E Roger queria ser o chefe porque disse que Hazel estava deixando a casa ficar uma bagunça. E Gordon queria o quarto de Edna só para ele. Por isso Roger e ele brigaram e Roger teve de ir para o sanatório...

Gemma e Gerry estavam falando muito depressa e animados, e Ruby e Jinx estavam olhando-os arregalados. Molly e Rocky perceberam como as últimas semanas deviam ter sido perturbadoras.

—    E então todos eles ficavam gritando com a gente e mandando na gente — disse Ruby —, mas eles nunca ajudavam.

—    E todos eles brigaram tanto que pararam de falar uns com os outros.

—    E com a gente. Eles pararam de falar com a gente — disse Jinx.

—    Na maior parte do tempo — lembrou Gemma. — Algumas vezes eles ficavam muito bravos com a gente, se a gente atendesse ao telefone. Ou à porta. E Hazel era muito rígida. Dizia que a gente não devia contar a ninguém que Viborípedes tinha ido embora. Disse que se a gente contasse, Gordon ia bater na gente. Mas agora está tudo bem, porque chegaram as férias de Natal e a escola fechou.

—    E a gente não precisa mais ficar se limpando sempre — disse Gerry.

—    Mas agora a gente não tem o almoço na escola, por isso a gente tá com fome — murmurou Ruby.

—    E a gente não pode ir no povoado, nem na cidade.

—    Nunca — disse Jinx. — Eles dizem que o bicho-papão vai pegar a gente.

—    Bom, vocês não devem se preocupar com isso — disse Molly. — O bicho-papão é mentira.

Molly olhou em volta. O lugar mais parecia uma lixeira do que uma sala. Tacos de hóquei, bolas de futebol furadas estavam largados nos cantos, junto com caixas de papelão e sacos plásticos. Algumas panelas com coisas mofadas dentro ainda estavam largadas, e as paredes estavam manchadas de tinta preta.

—    Onde os outros estão agora?

—    Provavelmente dormindo — disse Gemma, tomando seu chocolate. — As dez horas Roger se levanta. Ele vai catar coisas nas latas de lixo em Briersville. Mas Gordon, Cynthia e Craig não saem. Eles ficam no quarto de Edna, assistindo à TV. E Hazel fica no quarto dela, só desce a escada para pegar as entregas especiais. Ela leva as caixas de volta para o quarto.

—    Bom — concluiu Molly, virando-se para Rocky. — Acho que está na hora de acordar Hazel e os outros. Não acha?

A porta do velho apartamento de Viborípedes estava fechada. Um enorme besouro preto saiu se arrastando por baixo dela. Petula farejou nervosamente o ar, detectando um leve cheiro da velha solteirona. Molly olhou o retrato da Srta. Viborípedes na parede do patamar. Alguém tinha lhe dado um bigode e uma barba. Molly bateu na porta, empurrou, e a porta se abriu. Molly e Rocky entraram.

O lugar cheirava a ranço. A velha sala marrom da Srta. Viborípedes estava mais escura do que o normal, com as pesadas cortinas cor de vinho fechadas.

Molly acendeu uma luz. Caixas, latas vazias e pastas do arquivo da Srta. Viborípedes estavam largadas em toda parte. Sacos de salgadinhos vazios e pilhas de papel de doces cobriam o chão como folhas secas de outono.

Na escuridão da parede, o relógio cuco se abriu e cucou nove vezes.

—    Quem é? — veio do quarto a voz grogue de Hazel. Rocky e Molly foram pisando no entulho do chão e abriram a porta.

Na semi-escuridão viram Hazel, sentada na cama. Molly pisou em mais lixo e puxou a corda da cortina.

A luz inundou o quarto, batendo no rosto de Hazel. Ela protegeu os olhos e, apertando a vista, gemeu:

—    Saia, Gemma. Ninguém deve entrar aqui.

—    Não é Gemma. É Molly e Rocky — disse Molly. Enquanto os olhos de Hazel se acostumavam à luz, ela deixou as mãos baixarem da frente do rosto. E revelou uma Hazel muito diferente da que Molly tinha visto pela última vez. Esta Hazel tinha um rosto muito mais gordo, mais pálido e manchado. Seus olhos estavam injetados e com círculos escuros em volta. Os lábios tinham crostas de rachaduras de frio nas bordas. O cabelo estava mais comprido porque não tinha sido cortado, e grudado na cabeça porque estava sujo demais. Além disso Hazel tinha a aparência de uma pessoa louca, o que agora, junto com o choque de ver Molly e Rocky, a fez parecer completamente biruta. Ela agarrou um travesseiro.

—    Z-Z-Zunza. Eu estou sonhando — gemeu rouca, e bateu de leve na cabeça com o travesseiro.

—    Não, não está. Nós voltamos — disse Molly. — E isso pode parecer um pesadelo, mas nós vamos ficar.

A velha Hazel teria pulado da cama e desafiado Molly, mas esta simplesmente gemeu.

—    Tanto faz.

Hazel enfiou a mão numa caixa de papelão debaixo da cama e pegou uma barra de chocolate Céu. Desembrulhou e enfiou freneticamente na boca.

—    Preciso de açúcar — disse ela, mordendo um pedaço e se concentrando no chocolate. De repente pareceu ter esquecido que Rocky e Molly estavam no quarto.

—    Hazel — disse Molly —, você está péssima.

—    É, eu sei — disse Hazel, mordendo um segundo pedaço.

—    Você parece doente — disse Rocky. — Você só esteve comendo doces?

—    É, não tem nada melhor para se comer — disse Hazel, com os olhos dardejando desesperadamente pelo quarto, para as caixas e caixas de doces. E de repente ficou petrificada. — Vocês não vão tirar meus doces, vão?

—    Não — disse Molly. —- Mas temos comida melhor para você. Não quer um pouco de omelete e batata frita?

Depois de Rocky ter servido um pouco de comida decente, e de Hazel tê-la devorado, Rocky e Molly falaram com ela.

Ela contou como tudo tinha dado errado.

Contou que a princípio gostou de estar no comando, mas que então, depois das brigas com Roger e Gordon, ficou mais isolada. Começou a passar mais tempo sozinha, comendo apenas chocolate e doces. Até fumou um maço de cigarros que tinha achado no armário da Srta. Viborípedes. Confessou que se sentiu cansada, doente e sozinha, e que finalmente começou a olhar para si mesma.

—    Eu me sentia mal-humorada o tempo todo, e tentei me mentir melhor, mas não conseguia. Queria ter sentimentos bons pelos outros, mas eles não vinham. Eu só odiava todo mundo e me odiava por ser tão... tão cheia de ódio. E eu sou uma mentirosa.

Hazel olhou para uma pasta verde na mesinha-de-cabeceira, e jogou na direção de Molly.

—    Vocês deveriam saber quem eu sou de verdade. Eu sempre menti para todo mundo. Leiam. Andem. Leiam. — Ela afundou de novo nos travesseiros, com lágrimas nos olhos. — Não adianta mais esconder.

Dentro da pasta verde estava a ficha de Hazel. Molly e Rocky começaram a ler.

 

Nome

Hazel Marretta

Data de nascimento

?

Local de nascimento

?

Como chegou ao Lar Vidadura

Vida doméstica tremendamente instável. Criança de seis anos, chegou subnutrida e machucada devido a maus-tratos.

Pais

Mãe alcoólatra. Pai violento e dado a ataques. Os dois inadequados para cuidar da criança.

Posses

Nenhuma

Descrição da criança

"Hazel me faz lembrar de como eu era na infância. Ela é rápida em aprender e ansiosa por agradar."

 

—    Estão vendo? — gemeu Hazel. — Eu nunca fui a criança chique que vocês achavam. Vocês achavam que eu tinha os melhores pais do mundo, mas meus pais nunca me amaram, eles só me batiam. — Os olhos de Hazel se encheram de lágrimas. — Pelo menos Viborípedes nunca batia em mim, por isso eu gostava dela. Mas vocês... eu tinha ciúme de vocês porque vocês tinham a Sra. Brinklebury. Ela era como uma mãe para vocês dois. Mas não para mim. Eu cheguei tarde demais. Eu tinha uma mãe que gritava comigo.

—    Mas — disse Molly, apavorada com o que Hazel estava dizendo. — Mas a Sra Brinklebury ia acabar amando você também. Você nunca deixou,

—    Mas eu sou horrível — soluçou Hazel. — Sei que ninguém gosta de mim. Não culpo vocês. Eu não gosto de mim. Sou má. E sabe, não é um pesadelo vocês terem voltado. Eu não me importo mais em ser a chefe. Não quero comandar esse lugar. Estou enjoada. Só quero ficar melhor. Quero ser melhor. — O rosto de Hazel se franziu numa massa desesperada de rugas, e sua boca se abriu. Não saiu nenhum som. Mas havia um grito silencioso, e lágrimas desceram pelas bochechas.

Molly pôs a mão no ombro de Hazel.

—    Tudo bem, Hazel. Por favor, não chore. Nós entendemos. Obrigada por ter mostrado sua ficha. Você deveria ter visto a minha, ela dava a entender que eu era uma verdadeira ninguém. Vamos ajudar você a ficar melhor agora. De agora em diante as coisas vão ser diferentes por aqui.

—    Bom — Hazel conseguiu dizer ofegante, entre soluços. — E... obrigada por vocês terem voltado.

Molly e Rocky ajudaram Hazel a sair da cama e prepararam um banho para ela. Depois saíram do quarto para investigar Gordon Furúnklus.

Acharam Gordon sentado numa poltrona no quarto de Edna, enrolado num edredom, com os pés num chinelo gigantesco. Perto dele, num sofá, debaixo de edredons, estavam duas outras das crianças maiores, Cynthia e Craig. Seus olhos estavam grudados numa tevê que tinha sido removida dos cômodos lá de baixo. Quando Rocky e Molly apareceram, todos levantaram os olhos brevemente como se tivessem visto duas moscas, e depois se viraram de novo para a TV.

O rosto de Gordon, que estava apoiado nas mãos, estava anêmico, mais magro e menos agressivo. Molly leu as tatuagens dele: O REI GORDO, diziam seus dedos. Agora não havia nada de majestoso nele. Cynthia e Craig pareciam igualmente fantasmagóricos e tristes.

Molly desligou a tevê.

—    Olá, pessoal.

Depois de Rocky ter trazido o café da manhã para todos, finalmente Gordon falou. Sua voz estava mais fraca, e enquanto falava seus olhos se mexiam inquietos.

Contou como todos estavam num humor negro e péssimo desde o fim das aulas. O único consolo era a tevê, por isso eles assistiam sem parar.

—    Aqui está horrível. Todo mundo está enjoado — gemeu Gordon. — Eu estou me sentindo enjoado até o fundo. Verdade, acho que tem alguma coisa errada comigo. Rocky, acho que eu preciso de um médico.

Cynthia e Craig não disseram nada.

—    Escutem — disse Molly. — Nós vamos ajudar vocês a ficarem melhor, mas com uma condição; todos vocês vão ter de mudar seus modos.

—    O que você quer dizer? — perguntou Gordon, debilmente.

—    Vocês vão ter de parar de ser maus.

—    Ah, isso — disse o arrasado Gordon, cujos olhos estavam suaves e úmidos como os de um bezerro. — Claro que a gente pode. Eu não pego no pé de ninguém há... dias.

—    Mas como você pode ajudar a gente, Olho-de-vampiro? — perguntou Cynthia.

—    Eu vou ajudar. Esperem e vejam. Ah, e a propósito, para vocês eu sou Molly. Molly Moon.

Molly falou com firmeza, mas por dentro estava satisfeita por Cynthia tê-la chamado de Olho-de-vampiro. Isso mostrava que qualquer adoração que Cynthia pudesse ter sentido depois do hipnotismo no Concurso de Talentos de Briersville tinha se desgastado.

Enquanto deixavam Gordon, Cynthia e Craig para tomar banho e se vestirem, Molly imaginou se os três ficariam tão dóceis quando estivessem melhores de novo.

—    Teremos de ver — concordou Rocky.

A última pessoa a visitar era Roger Pikuinhas, lá no quarto do sanatório. Acharam-no sentado na beira da cama, amarrando o sapato.

Roger pulou num choque quando viu Molly e Rocky.

Seu rosto estava mais ossudo do que nunca, o nariz fino estava rosado e pingando, e as mãos roxas de frio. As roupas continuavam tão arrumadas como antes, mas quando Molly chegou mais perto percebeu que a camisa tinha uma marca de sujeira marrom por dentro do colarinho, e que a calça cinza estava dura de sujeira. As unhas estavam imundas.

—    O que... o que vocês estão fazendo aqui em cima? — perguntou ele, com o olho esquerdo piscando. — Eu vou sair, Tenho de... tenho de ir verificar as lixeiras. — Ele olhou para um relógio quebrado, no pulso. — Estou atrasado, e se não verificar logo elas vão estar vazias.

Depois de Molly e Rocky terem acalmado Roger com um pouco de comida nutritiva, descobriram que ele também estava abalado. Tinha desenvolvido um hábito de revirar lixo, para arranjar comida, na cidade de Briersville. Tinha contraído algum germe estomacal, mas achava que esse era o melhor modo de conseguir uma dieta variada.

—    Isso — disse ele, meio chorando, apontando para o prato vazio do desjejum — foi a melhor comida que eu comi há... há... semanas.

—    Não se preocupe, Roger. Vai haver muita coisa boa para comer daqui em diante — garantiu Rocky. E, diante dessas palavras gentis e promissoras, Roger passou os braços em volta do pescoço de Rocky e irrompeu em lágrimas.

Enquanto andava pelo quarto do sanatório, Molly se vislumbrou no espelho. O mesmo espelho em que havia se visto como uma punk.

Pensou em como estava diferente. O cabelo brilhava mais, o rosto não estava manchado, a pele parecia saudável. E quanto ao nariz de batata e aos olhos verdes muitos juntos, em vez de ver essas coisas como feias, agora gostava delas, porque eram suas.

Definitivamente tinha mudado desde aquela noite de novembro em que havia parado no topo do morro, odiando sua vida e se odiando.

Refletiu em como todo mundo no Lar Vidadura tinha mudado desde aquela época. E todas as mudanças tinham acontecido por causa do Livro de hipnotismo.

Hazel, Roger, Gordon, Cynthia e Craig estavam mais humildes. Sem a estrutura da escola e das regras, e não tendo contra o que brigar, tinham brigado uns com os outros e partido as alianças. Com a gangue destruída, todos tiveram de ficar sozinhos. E depois tiveram de encarar a si mesmos. E não gostaram do que viram. Hazel havia desmoronado tão completamente que contou a verdade a seu respeito. Molly sabia que ela jamais poderia ser autoritária como antes. E confiava em que Hazel tinha falado sério quando disse que queria ser uma pessoa melhor. Não tinha certeza de que Gordon, Cynthia e Craig iriam mudar de modos. Não podia imaginar Gordon ajudando uma velhinha a atravessar a rua, ou Cynthia e Craig sendo gentis. Molly pensou que, quando as forças deles voltassem, as agressões também voltariam. Seria difícil viver com eles. Quanto a Roger, Molly estava preocupada com a hipótese de a tensão das últimas semanas tê-lo jogado numa espécie de loucura. Esperava que ele se recuperasse.

E havia Nockman. Estava definitivamente melhorando, ficando mais amável a cada hora. Mesmo ele sendo ainda uma espécie de experimento, Molly esperava que Nockman mudasse para sempre, como Petula. A cadelinha estava correndo pela casa agora, tão em forma quanto um filhotinho.

E a Srta. Viborípedes e Edna? Molly não sabia o que estavam fazendo, nem onde. Sabia que as instruções que tinha lhes dado iriam se desgastar em breve, mas esperava que as duas descobrissem que realmente gostavam de aviões e de cozinha italiana. E se esses passatempos se transformassem em novas paixões, elas não voltariam ao Lar Vidadura. Nenhuma das duas era do tipo que gostava de crianças. Molly tinha feito um favor enorme guiando-as para longe de crianças.

Depois Molly desceu, para esconder o livro de hipnotismo onde ele sempre estivera em segurança antes. Debaixo de um colchão.

 

A Sra. Brinklebury ficou deliciada quando recebeu o telefonema de Molly. Chegou ao Lar Vidadura alegre e rosada como um pudim, enrolada num casaco de lã. Trazia bolsas de compras cheias de coisas deliciosas para preparar para o jantar, e sua velha bolsa de tricô estava cheia de bolinhos feitos em casa. Assim que entrou, ela os distribuiu.

—    Aaah, minha n-nossa! — falou olhando em volta. — Este lugar ficou abandonado, não foi? N-nossa, está fedendo como um canil sujo.

Depois de Molly e Rocky terem explicado a situação, não foi preciso pedir muito para persuadi-la a vir morar com eles.

—    A senhora tem de vir, Sra. Brinklebury. Nós precisamos da senhora para cuidar de nós — explicou Molly.

—    Caso contrário vão mandar outra Srta. Viborípedes — alertou Rocky.

—    Por favor, venha, Sra. Brinklebury, porque a gente precisa muito de uma mãe — disse Ruby.

—    Alguém pra fazer bolinho — declarou Jinx. A Sra. Brinklebury suspirou e cruzou os braços.

—    Vocês sabem que eu fiquei solitária em casa desde que meu A-Albert morreu. E estou ainda mais solitária depois que a Srta. Viborípedes me despediu. Eu adoraria v-v-vir.

Molly e Rocky a abraçaram.

—    A senhora é uma estrela, Sra. B.

Então eles levaram a Sra. Brinklebury para baixo, para conhecer Nockman.

Nockman vestia um avental, e seus braços estavam enfiados até os cotovelos em detergente Muitabolha. Tinha esvaziado as lixeiras fedorentas e limpado os armários da cozinha. Agora a cozinha cheirava a pasta de limpeza limão.

—    Sr. Nockman, esta é a Sra. Brinklebury. Ela vem morar aqui, e vai ser a chefe.

—    E você vai se dar bem com ela — sussurrou Rocky.

—    Ah, olá — disse Nockman, tirando as luvas de borracha e apertando educadamente a mão dela.

—    Prazer em conhecê-lo — disse a Sra. Brinklebury. — O senhor está fazendo um b-b-belo trabalho de limpeza.

—    Obrigado — respondeu Nockman, sorrindo, feliz por seu trabalho duro estar sendo apreciado.

—    B-bem — disse a Sra. Brinklebury, embaraçada e sem saber o que dizer em seguida. — Como eu d-disse a Molly, eu a-a-adoraria voltar. Vou trazer P-poppet, se não fizer mal. — Depois ela explicou a Nockman: — É minha periquita de estimação, e canta lindamente. Tenho certeza de que o senhor vai gostar dela.

—    A senhorra tem uma perriquita? — perguntou Nockman, olhando para a Sra. Brinklebury como se ela fosse uma deusa.

—    Ah, s-sim. — De novo a Sra. Brinklebury ficou embaraçada com a atenção do Sr. Nockman. Ela calçou um par de luvas de borracha. — Se a gente precisa dar um jeito nesse lugar, é melhor eu ir começando.

Na hora do jantar, cheiros maravilhosos de assado com batatas e ervilhas, milho verde e molho se espalhavam pelo orfanato. O prédio estava quente, já que a Sra. Brinklebury tinha arranjado para que o óleo fosse entregue, e agora o aquecedor funcionava a plena força.

Molly e Rocky deram espuma de banho e xampu a todas as crianças, e toalhas macias novas em folha, que Molly tinha comprado no aeroporto.

Às oito horas todo mundo estava lavado, seco e usando alguma coisa nova, escolhida das malas de Molly. Até Gordon, Roger e Craig acharam camisetas das quais gostaram.

As mesas da sala de jantar foram arrumadas, brilhando com copos e iluminadas por velas. E o fogo estava aceso.

O jantar foi o melhor que Molly já tivera. Não era a melhor comida, mesmo sendo boa, mas foi o melhor porque era fantástico ver todo mundo de novo, até mesmo Hazel e sua velha gangue. E como eles estavam diferentes! Eram sombras do que eram antes, e estavam muito quietos comendo e bebendo. As crianças menores, por outro lado, ficaram mais faladoras à medida que a noite seguia, fazendo a Sra. Brinklebury, e até mesmo Nockman, rirem.

Então Gerry falou:

—    E aí, Sra. Brinklebury... Agora a senhora e o Sr. Nockman vão ser nossa mãe e nosso pai? — E a Sra. Brinklebury e Nockman ficaram vermelhos.

Molly e Rocky deram presentes a todos, presentes que tinham trazido do aeroporto. Máquinas fotográficas e Walkmans para Hazel e Cynthia, carros e aviões de controle remoto para Gordon, Roger e Craig, e ursinhos e walkie-talkies para Gemma, Gerry, Ruby e Jinx. Gerry também ganhou um ratinho de pelúcia. Todo mundo recebeu um minúsculo aparelho de TV e um enorme saco de doces. A Sra. Brinklebury adorou o perfume e o colar que eles compraram, e o Sr. Nockman gostou de seu terno novo.

Depois dos presentes, Gemma pediu que Molly fizesse de novo seu número de canto e dança.

—    Você sabe, o mesmo do concurso de talentos. Molly sorriu e balançou a cabeça.

—    Desculpe desapontar você, Gemma, mas o negócio é que eu parei com aquilo. Você gostou?

—    Gostei. Você foi brilhante! — lembrou Gemma.

—    Fui mesmo, não fui?

Quando as velas na mesa derreteram até o tamanho de cogumelos, de repente a Sra. Brinklebury bateu no lado de seu copo com um garfo. Todo mundo ficou quieto enquanto a tímida Sra. Brinklebury se levantava, tossia e prosseguia corajosamente.

—    Bom, como todos v-v-vocês sabem, eu sou g-gaga — começou ela, sorrindo.

—    Mas a senhora é muito boa — disse Gemma.

—    Bom, obrigada, Gemma, você também é. E por m-mais que eu g-gagueje, vou f-falar com vocês todos sobre uma coisa q-que eu não conto a ninguém há anos, mas que sei que p-preciso contar. Esta é a hora certa para contar. É a hora certa porque finalmente esse prédio, o nosso lar, o Lar V-v-vidadura, tem felicidade dentro.

“M-Molly e Rocky, como vocês sabem, pediram para eu v-vir morar aqui e a-ajudar a cuidar de vocês. O que eu es-espero que esteja bom para vocês.

A Sra. Brinklebury respirou fundo.

—    Antes de agora, havia muita tristeza n-neste prédio, e alguns de vocês provavelmente acham que ninguém entendia c-como é ser sozinho no mundo. Acho q-que a Srta. Viborípedes não ajudava.

“Eu sentia a t-tristeza aqui quando vinha limpar, e isso quase me p-partia o coração. Porque, bem, no fundo, eu também sei como é ficar sozinha. Porque, bem, era isso que eu queria dizer a vocês: eu também sou órfã.

“Vocês acham que eu sou meio velha e gorda para ser órfã, mas quando eu era pequenina, também fiquei num orfanato. Vejam b-bem, meu pai morreu quando eu tinha dois anos, e depois minha mãe casou de novo. O problema é que o marido novo tinha três filhos e depois teve mais três com minha m-mãe, e a coitada da minha mãe não conseguia cuidar de todo mundo. Um de nós t-tinha de ir embora. E fui eu.

“Bom, isso nunca me pareceu justo. E durante muito tempo eu odiava aquelas crianças porque me empurraram para fora. P-porque elas empurraram, vejam bem. Elas eram como o pai delas. Ele era um homem b-bruto, e elas também eram brutas. E agarravam, chutavam, e fui eu que fui chutada para fora. Eu era mais tímida do que eles.

“Então, um dia, eu escutei uma cantiga que parecia que foi feita para mim. Alguns de vocês conhecem.”

A Sra. Brinklebury sorriu para Molly e Rocky.

—    Mas para os outros eu vou cantar agora. É assim.

A voz esganiçada da Sra. Brinklebury encheu a sala de jantar.

 

 

“Perdoem o cuco marrom

Que empurrou vocês dos seus ninhos.

Foi o que mamãe cuco ensinou:

O bom é expulsar passarinhos.”

 

Molly olhou em volta, imaginando se Hazel e as crianças maiores estariam fazendo careta depois de ouvir a cantiga de ninar. Mas não estavam. Estavam parados, ouvindo atentamente. A não ser Gordon, que continuava comendo.

—    Essa música me ensinou muito — disse a Sra. Brinklebury. — Ela me fez perceber que eu não deveria odiar as crianças que me empurraram para fora do ninho, porque elas só estavam sendo como o p-pai delas tinha ensinado. Por isso eu perdoei. E daquele momento em diante a vida foi melhor, porque eu não o-odiava mais.

“Bom, todos nós temos histórias de como estamos aqui, e pro-provavelmente alguns de vocês têm raiva de quem deixou vocês aqui. Mas vocês devem tentar se lembrar de que eles agiram assim porque foi assim que aprenderam a ser. Vocês d-devem tentar sentir pena deles e perdoar.

“E como as mamães cucos ensinam maus hábitos aos filhos, e porque o que vocês aprendem na in-infância vocês vão passar para as pessoas que estão em volta, de agora em diante esta casa vai ser uma casa de felicidade.

“A partir desta noite, cada um de nós vai pensar no sentimento dos outros.

Ela se virou para as crianças pequenas.

—    Nós não precisamos de m-maldades, precisamos? O que é a maldade? Uma doença ruim. E nós não queremos que ela se espalhe, queremos?

—    Não — concordou Gerry. — Não queremos.

—    Então — concluiu a Sra. Brinklebury —, se estiver bem para todos vocês, eu quero mudar o nome deste prédio, de modo que, de agora em diante, seja um lugar de alegria. De agora em diante eu proponho que este prédio seja conhecido como Lar da Felicidade.

Todo mundo a encarou.

—    Então vocês concordam? Se concordarem, 1-levantem os copos.

Todo mundo levantou os copos cheios de Qube. Nockman levantou mais alto que todos. Cynthia jogou um pedaço de pão em Craig.

—    Ao Lar da Felicidade — brindou a Sra. Brinklebury.

—    Ao Lar da Felicidade — concordaram todos.

—    Agora — terminou a Sra. Brinklebury —, acho que está na hora de ir para a cama.

—    Mas primeiro — interrompeu Nockman — eu gostaria de fazer uns truques.

Molly engoliu em seco. Tinha a sensação de que Nockman ia se comportar mal. Mas na meia hora seguinte ela viu um novo lado dele, que a surpreendeu. Nockman era ele mesmo enquanto empolgava todo mundo com uma quantidade de truques de baralho, achando cartas atrás das orelhas das pessoas e debaixo das cadeiras. Mostrou como trapacear no pôquer, e Molly percebeu os olhos de Gordon se iluminando enquanto via Nockman em ação. Teria de ficar de olho naqueles dois, pensou. O fascínio de Gordon por Nockman poderia levar a encrencas.

Depois dos truques com cartas, Nockman mostrou sua espantosa mão leve. Tirou uma carteira do bolso da blusa da Sra. Brinklebury sem que ela notasse, e tirou um pacote de doces de baixo do braço de Hazel. Todos bateram palmas e acharam que ele era um dos melhores homens que já haviam conhecido. Molly e os outros mal sabiam que Nockman tinha realmente se comportado mal. Tinha roubado uma máquina fotográfica de Hazel, um pirulito de Ruby, cinco libras do bolso de Gordon e a chave da porta da Sra. Brinklebury, e tinha colocado tudo isso na frente de sua camisa. As coisas ficaram lá, debaixo de seu escorpião com olho de diamante, aninhado confortavelmente entre os pêlos do peito.

Às onze horas todo mundo tinha ido para a cama. Só Molly e Rocky continuaram sentados diante do fogo que estalava, totalmente acordados. Petula estava deitada feliz aos seus pés, chupando uma pedra.

—    Que dia! — suspirou Rocky. — Veja bem, eu não estou cansado porque, pelo horário de Nova York, ainda são apenas seis da tarde.

—    É, a gente está sentindo o efeito do fuso horário — concordou Molly, olhando para o fogo. — Hoje foi fantástico. E, na verdade, aqui é ótimo quando está quente.

—    Mmmn, muito diferente de quando Viborípedes era encarregada.

—    O problema — disse Molly franzindo a testa — é que o óleo para o aquecedor foi caro demais. Duzentas e cinqüenta libras! A Sra. Brinklebury me deu a conta. — Molly enfiou a mão no bolso da blusa e tirou o envelope de dinheiro. — Se a gente continuar comprando óleo e se começar a gastar dinheiro em outras coisas, tipo redecorando os quartos e comprando móveis novos, logo não vai dar para pagar o aquecimento, o salário da Sra. Brinklebury ou comida boa. E nós prometemos que não iríamos mais usar hipnotismo. Talvez nós tenhamos sido idiotas em dizer que íamos ser honestos, porque, Rocky, não sei como vamos conseguir.

Petula levantou os olhos, chupando sua pedra, sentindo que Molly estava preocupada.

—    Bom — disse Rocky. — Nós teremos de dar um jeito. As coisas não vão ser sempre perfeitas, Molly, mas vão ser muito melhores do que antes, e qualquer problema que a gente tenha, a gente resolve.

—    Mmmnn — assentiu Molly.

Petula inclinou a cabeça para o lado e imaginou como poderia animar Molly. Odiava quando Molly ficava preocupada. Pensou em seu truque de sempre, que normalmente funcionava. Molly gostava quando Petula lhe dava uma de suas pedras de chupar.

Então, afetuosamente, Petula roçou a perna de Molly com a pata da frente, largou sua pedra aos pés de Molly e deu um latido amigável.

Mas dessa vez, para surpresa de Petula, Molly reagiu de modo bem diferente diante do presente de Petula.

—    Ah, minha nossa! Não posso acreditar! — disse ela, olhando boquiaberta para o chão. E, igualmente pasmo, Rocky exclamou:

—    Que coisa, Petula! Onde você conseguiu isso! Petula deu um sorriso canino. Tinha de concordar, aquela pedra em especial era bonita; a pedra mais dura que ela já havia chupado. Tinha achado no bolso do casaco velho de Molly quando estava tentando ficar confortável, na manhã do dia anterior.

Molly pegou o diamante enorme e se virou para Rocky, com a boca aberta.

—    É o diamante que aquele gângster estava segurando no cofre do banco. Eu lembro que coloquei no bolso, mas esqueci de juntar às outras coisas do banco. Então não foi posto num anão de jardim...

Rocky estava perplexo.

—    Mas o repórter da TV disse que todas as jóias tinham sido devolvidas ao banco.

—    Talvez esse diamante ainda não estivesse na lista. Eu lembro daquele gângster dizendo que tinha roubado naquele dia, de outro bandido.

—    Aaauf! Aaauf! latiu Petula, como se dissesse: “Pegue. É seu!”

Molly coçou as orelhas aveludadas da cadelinha.

—    O que vamos fazer com ele, Rocky?

—    Não sei — disse Rocky, acariciando o diamante pesado. — Seria difícil, talvez impossível, descobrir a quem ele pertencia originalmente. — Depois um riso maligno se abriu em seu rosto. — É melhor colocar num lugar seguro, Molly.

 

Naquela noite, Molly e Rocky foram finalmente para a cama às duas da madrugada. As quatro da manhã Molly acordou. A lua cheia de dezembro estava brilhando pela janela, com os raios inundando sua cama.

Molly se sentia estranha. Suas mãos começaram a suar, e então, como se alguma coisa a estivesse chamando, levantou-se, vestiu o roupão e os chinelos e pegou o livro de hipnotismo embaixo do colchão.

Como se num sonho, viu-se saindo do quarto, descendo a escada, pegando um casaco e saindo na noite gelada.

A lua iluminava o caminho enquanto ela abria o portão do orfanato, pegava a estrada gélida que descia o morro e atravessava o povoado, na direção da cidade de Briersville.

Sentia-se atraída. Puxada. E não se importava com o frio. Nem sentia medo. Simplesmente sentia que precisava fazer uma coisa, se bem que não sabia exatamente o quê. Pegou-se parando finalmente na biblioteca de Briersville. Subiu os degraus de pedra, passou pelos velhos leões de pedra e entrou no saguão. Lá na frente, na sala de leitura, pôde ver uma luz acesa. Molly sabia que tinha de ir lá. Foi até a porta e empurrou.

Lá, sentada atrás da mesa, estava a bibliotecária.

—    Ah — disse ela erguendo os olhos e sorrindo. — Então você voltou. — E olhando pela janela, para a lua cheia, acrescentou. — E perfeitamente pontual.

Quando ela disse isso, Molly emergiu de súbito de seu estado onírico. Sentia como se tivesse acabado de acordar de um sonho muito bom. Sua cabeça estava clara, e tudo em volta parecia extraluminoso. Lá estava ela, vestida de roupão, casaco e chinelos, na sala de leitura da biblioteca, com o livro de hipnotismo debaixo do braço. Atordoada, entregou-o à bibliotecária.

—    Obrigada, Molly. Espero que tenha ajudado — disse a bibliotecária, tirando os óculos.

Molly começou a se orientar. Olhou interrogativamente para a bibliotecária, imaginando como ela sabia seu nome. Depois percebeu que a bibliotecária devia ter visto seu nome dezenas de vezes, quando ela retirava livros. Mas como sabia que ela estava vindo? Molly perguntou cheia de suspeitas:

—    O que a senhora quis dizer quando falou que eu era “perfeitamente pontual”? Eu não me lembro de ter combinado nada com a senhora.

Pensou em como tinha roubado o livro da biblioteca. Será que a bibliotecária tinha visto? Sentiu-se embaraçada por ter sido apanhada com a boca na botija. Quisera colocar o livro de hipnotismo de volta discretamente, para evitar esses sentimentos. Mas então pensou de novo. Tinha certeza de que havia afanado o livro quando a bibliotecária não estava olhando. É, ninguém tinha visto. Então como aquela mulher sabia? De repente Molly se sentiu muito confusa. A bibliotecária sorriu.

—    Ah, Molly, não se preocupe. Venha se sentar aqui. — Molly se sentou junto da mesa, na frente da bibliotecária. E pela primeira vez olhou bem para ela.

Era uma mulher de aparência estudiosa, mas agora que tinha tirado os óculos Molly viu que ela não era tão velha quanto parecera antes. Usava o cabelo num coque fora de moda e tinha alguns fios grisalhos, mas o rosto não combinava com isso. O rosto era jovem e liso, e quando sorria, os olhos se iluminavam de gentileza.

— Você, Molly, provavelmente pensou que eu não a notava, já que estava sempre com o nariz enfiado num livro ou numa pasta. Mas eu notava você. Notava como você vinha aqui tão solitária e com frio, e se sentava perto dos aquecedores. Fiquei de olho em você durante séculos, e senti pena. Queria ajudá-la. Tinha a sensação de que você iria aprender alguma coisa, bem, na verdade muita coisa, com o livro de hipnotismo. Por isso, naquela tarde, hipnotizei você para achá-lo. Você se lembra de ter acordado depois de dormir no chão?

Molly assentiu, com o rosto franzindo, incrédulo.

—    Bom, aquele sono foi provocado por mim. Eu hipnotizei você quando falei olá. E enquanto você pensava que estava somente dormindo, na verdade eu estava sugerindo coisas. Hipnotizei você para achar o livro. Imaginei que três semanas com ele seria o tempo certo para você ter uma aventura. Por isso pedi que o trouxesse na noite de lua cheia de dezembro.

—    Perfeitamente pontual... — disse Molly.

—    Essa foi a expressão que eu disse que iria acordá-la da caminhada ao luar. Você não foi hipnotizada para fazer nada além disso. Todo o resto que aconteceu foi sua aventura.

—    Normalmente eu sou tão atrasada para tudo! — disse Molly, se bem que seu pensamento seguinte foi que, na verdade, não vinha se atrasando para nada há semanas. — Mas como foi que Nockman soube do livro? — perguntou, tentando pensar direito.

—    Ah, ele. Aquele mentiroso. Bom, alguns dias antes ele ligou dos Estados Unidos, dizendo que precisava do livro para um importante trabalho de pesquisa. Disse que era um professor, e que ter o livro durante um tempo iria ajudá-lo tremendamente. Ele foi muito convincente. Eu disse que ele poderia pegá-lo emprestado. Mas então ele ligou de novo, no meu dia de folga, e falou com uma das outras bibliotecárias. Persuadiu-a a vender o livro para ele. Mandou o dinheiro pelo correio expresso, e quando eu voltei no dia seguinte ela disse que ele estava para chegar. Nesse ponto eu comecei a farejar um rato. E quando fiz minhas investigações, descobri que não existia nenhum professor Nockman no Museu de Chicago. Em nenhum departamento. Antes de ele ter vindo para cá, eu já sabia que o sujeito era uma fraude. E além disso, nessa época, eu estava pensando em você. Queria emprestar o livro a você. — A bibliotecária desligou a luz de sua mesa. — Desculpe ter tirado você da cama. É tarde, e eu também estou cansada. Tenho de ir para casa, e você também.

Molly estava começando a acordar, e perguntas enchiam sua cabeça.

—    Eu não estou sonhando, estou?

—    Não — riu a bibliotecária. — Mas deveria estar. Você deveria estar na cama, dormindo a sono solto.

—    Eu não estou mais cansada.

—    Mas eu estou. Realmente tenho de ir para casa. Mas adoraria conversar direito com você. Então, assim que você tiver um momento, e se sentir vontade, vamos nos encontrar para tomar um chá. Você pode contar algumas das aventuras que teve, e eu conto algumas das minhas.

—    A senhora também teve aventuras usando o hipnotismo?

—    Claro. Todo mundo que descobre que tem o dom tem aventuras. Mas agora eu raramente uso minhas habilidades. Algumas vezes uso, só para ajudar as pessoas. Acho que é o melhor.

—    Como me ajudou?

—    Ajudei? Fico muito feliz.

Por um momento Molly ficou quieta, pensando em como tinha mudado nas últimas semanas. Ainda poderia estar infeliz, não fosse pela bibliotecária. Tinha aprendido muito por causa dela.

—    Obrigada — disse, agradecida. — Hmm, desculpe, eu nem sei o seu nome.

—    É Lucy Logan — respondeu a mulher de rosto gentil.

—    Como o doutor? — Ela ficou boquiaberta. — Como o doutor Logan que escreveu o livro?

—    Ele era meu bisavô. Mas olhe, você já teve surpresas suficientes por esta noite. Você vai achar difícil voltar a dormir. E eu preciso descansar. Então vamos embora agora e, Molly, você realmente é mais do que bem-vinda para conversar comigo sempre que quiser, e eu lhe conto tudo sobre o meu bisavô, e nós podemos falar sobre hipnotismo. Certo?

Molly assentiu e se levantou da mesa.

Quando ela ia saindo da biblioteca, Lucy Logan acenou.

—    E feliz Natal, Molly, se eu não vir você até lá.

—    Feliz Natal — disse Molly, tonta com as revelações da noite.

Molly caminhou de volta para casa, sob a lua de dezembro. De vez em quando balançava a cabeça pensando em algum episódio das últimas semanas, revivendo momentos empolgantes ou apavorantes, e vendo como a sorte estivera a seu favor. Estava maravilhada pelo modo como as coisas tinham acontecido.

Enquanto caminhava pela estrada do campo, flocos de neve grossos e macios começaram a cair, e o chão sob seus pés ficou mais branco e fazia barulho de neve esmagada. As árvores acima da cerca viva ao lado da estrada pareciam incitá-la a continuar.

Viu o cartaz de Briersville, iluminado à distância. O pessoal do Qube, nas roupas de praia, aparentemente estaria com os dentes batendo agora. E Molly pensou em como era engraçado que há apenas três semanas tinha achado aquelas pessoas maravilhosas, e desejado ser assim. Agora não poderia se importar menos com a vida de Qube que elas levavam. Tinha sua própria vida, e era muito mais interessante e significativa que a delas.

A neve enchia o ar, girando em volta de Molly, abafando os ruídos de modo que seu caminhar era silencioso e só dela. Pela primeira vez sentia-se realmente empolgada com a vida. Gostava de ser Molly Moon, mesmo não sendo perfeita.

O livro de hipnotismo tinha ensinado que ela possuía a capacidade de aprender qualquer coisa, desde que tentasse.

Há seis meses, se alguém dissesse que ela poderia ser uma grande hipnotizadora, Molly não teria acreditado porque achava que era ruim em tudo. Mal podia esperar para tentar todo tipo de coisas novas. Um esporte que tinha decidido fazer era corrida rústica, só para ver se poderia ficar melhor nisso. E tinha decidido realmente aprender sapateado. Não para se tornar uma sapateadora imensamente famosa, mas só para ser suficientemente boa a ponto de curtir de verdade. Agora também não se importava com a fama. Só queria curtir a vida, e ajudar as outras pessoas a curtir a delas.

Agora faltavam apenas cinco dias para o Natal! Molly estivera tão ocupada que tinha esquecido. Sorriu. Esse seria o melhor Natal de todos.

Respirou o ar frio da noite e riu para o campo silencioso, adormecido. Esta noite a vida estava quase empolgante demais. O que ela havia pensado ao encontrar o livro de hipnotismo? Que as possibilidades que ele poderia trazer eram intermináveis? Esta noite Molly sentia que isso era verdadeiro para a sua vida. Do alto da cabeça à ponta dos pés. A vida parecia completamente mágica. E de novo pensou em como era feliz em ser a velha e simples Molly Moon.

Adiante a estrada brilhava como uma fita de prata ao luar, por todo o caminho até o Lar da Felicidade.A cinco mil quilômetros dali, a mil e duzentos metros de altura no céu sobre os Alpes italianos, um avião fazia um looping. Na cabine estavam duas mulheres; uma musculosa, a outra magricela. A piloto tinha um brilho louco nos olhos, e não tinha dentes. Seus dentes estavam pendurados debaixo do queixo, num barbante, como um medalhão. A mulher forte ao lado dela usava uma camiseta com as palavras

“É MELHOR VOCÊ AMAR A ITÁLIA, SENÃO...”

Enquanto o avião dava outra cambalhota, a musculosa se levantou.

—    Quer una pasta molto, molto bene, Agnes?

—    Mmmnnn, sim, mas olha, Edna, sem pimenta demais. Estou falando sério desta vez, Edna... sem pimenta demais.

 

 

 

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