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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INDOMÁVEL - p.2 / Harold Robbins
O INDOMÁVEL - p.2 / Harold Robbins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INDOMÁVEL

Segunda Parte

 

INTERLÚDIO

JERRY

"É estranho", pensava Marty, "Jerry pode me dizer o que qui­ser mas ele não conhecia Frank. Mais estranho ainda é que nenhum de nós parece pensar sobre ele da mesma maneira. Era uma pessoa diferente para cada um de nós. Cada um de nós o via diferentemente, à luz da sua experiência e conhecimento. Quem estará certo? Talvez nenhum de nós. Mas não sei... Talvez Ruth. Ela foi a primeira a ver..."

Os seus pensamentos foram interrompidos por Jerry, que lhe perguntou se queria beber alguma coisa. Recostou-se na cadeira e fi­cou vendo Jerry preparar os uísque. Quando voltou a cabeça, viu que Janet estava olhando para ele. Sorriu para ele e Marty retribuiu gen­tilmente o sorriso. Velhos amigos... Eram bem conhecidos, pensava-se que se sabia tudo sobre eles e, entretanto, ainda se tinha muito que aprender nesse particular.

Pegou o copo que Jerry lhe deu e começou a beber lentamente, saboreando o maciez do bom scotch.

Janet voltou-se para ele.

Que era que Ruth pensava dele? — perguntou ela, acenden­do um cigarro.

Que coisa mais curiosa! — exclamou Marty. — Estava ago­ra mesmo pensando nisso.

"Creio que Ruth foi a primeira pessoa de todos nós que viu Frank como realmente era. A primeira vez em que o viu, no dia em que o levei à minha casa pela primeira vez, não gostou. Teve um pouco de medo dele, o que não era natural nela.

"Ela me encontrou sozinho por um instante e disse. 'Ele não é mais garoto", disse ela, perplexa. 'Parece mais um homem. O olhar dele faz a gente sentir-se velha e consciente de si mesma'.

"Pobre Ruth! Na realidade, ele a impressionou mais do que a qualquer de nós. Ela era alguns anos mais velha do que nós e muito mais adulta do que pensávamos. Só muito tempo depois é que ela me falou a respeito dele.

"Talvez se lembre de que nós tínhamos uma moça trabalhando lá em casa naquele verão. Chamava-se Julie, se não estou enganado, mas o nome não tem importância. Devia ter uns vinte anos e era bem bonita ao seu jeito francamente sexual. De qualquer maneira, Frank a viu e 'rendeu-se aos seus encantos', como se dizia antigamente.

"Naquela noite, Frankie me dera uma lição de boxe e um olho arroxeado. Ruth ficou muito aborrecida com isso. Disse-lhe boas quando ele se despediu e se arrependeu no momento em que ele saiu. 'Afinal de contas', pensou ela, 'o pobre rapaz é órfão e nunca deve ter tido um só amigo'. Foi ao meu quarto ver como eu estava pas­sando e ficou algum tempo ali conversando.

"Depois, saiu e foi até à cozinha para beber um copo de água. Quando acabou e ia botar o copo em cima da pia, julgou ouvir baru­lho no quarto de Julie. Foi até à porta, pensando que Julie devia estar ainda acordada e que as duas poderiam conversar um pouco. Mas quando já estava com a mão na maçaneta da porta, ouviu a voz de outra pessoa dentro do quarto.

"Ficou um pouco nervosa e foi para um pequeno corredor perto da cozinha e ficou ali, de costas para a cozinha. Não tinha, a princí­pio, a intenção de espionar, mas havia um espelho na parede pelo qual ela podia ver tudo o que aconteceria na cozinha. Viu a porta do quarto de Julie abrir-se. Julie olhou m volta para ver se havia alguém e então entrou na cozinha seguida de Frank. Julie fez Frank sair pela porta de serviço e ali ele a beijou. Ruth percebeu, olhando-os, que ali não se tratava de simples namoro. Tudo entre eles estava impregna­do de sexualidade. Tentou desviar os olhos, mas não pôde. Sentia-se fascinada pelo que via no espelho. Para ela, aquilo era um exemplo eloqüente da sordidez do sexo, mas era também uma armadilha em que ela caiu sem saber.

"Sentia por procuração a intensidade das emoções de Frank e estava perdida sem ter consciência disso. Não tinha na época experi­ência suficiente para compreender corretamente o que ela própria sentia tentar analisá-lo. Sabia apenas que o que ela sentia fora senti­do por outras pessoas e que nada seria capaz de satisfazê-la enquanto não soubesse o que era que desejava nele.

"Tentou tirar aquilo da idéia dizendo que ele era um garoto. Mas não podia desconhecer que Julie sabia também que Frank era um garoto e, apesar disso, sentia por ele o mesmo que ela sentia.

"Ruth voltou para o quarto dela, chorando, sem saber por quê. Se eu soubesse disso naquela ocasião, teria falado em 'choque emo­cional'. Passou a noite sem dormir e, quando se levantou no dia se­guinte, exausta e nervosa, havia formulado inconscientemente um plano para amesquinhá-los aos seus olhos.

"Desde então, não teve a menor piedade com Frank — fazia pi­lhérias com ele, ria das suas gafes, diminuía tudo o que ele conse­guia. Não sei se Frank chegou a compreender por que ela fazia isso. O que sei é que um dia na escola ele a beijou. E todas as coisas que ela havia arquitetado a respeito dele se desmoronaram por completo.

"Ruth ficou sabendo então que aquele era o único homem que ela seria capaz de querer na vida e que isso não era um capricho de criança, mas uma emoção adulta, séria e sincera e ansiosa por uma satisfação adulta.

"Só vim a saber disso muitos anos depois. Ela havia começado a trabalhar na seção hospitalar do Departamento de Assistência. Lembra-se desse tempo, Jerry? Foi seu pai quem conseguiu o lugar para ela. Eu estava trabalhando como interno no Hospital Geral de Manhattan no último turno e chegava em casa às três horas da ma­drugada.

"Uma noite, quando cheguei, vi a luz acesa na sala. Fui ver o que era e encontrei Ruth que pegara no sono na poltrona. Acordei-a delicadamente, pois não queria assustá-la. Ela abriu os olhos e as primeiras palavras que me disse foram: 'Acabo de ver Frank'. Limi­tei-me a murmurar: 'Frank?' Que Frank? Acho que ela nem me ou­viu, pois começou a falar precipitadamente: 'Você não seria capaz de reconhecê-lo, Marty. Está muito mudado. Os cabelos estão quase brancos e ele parece cansado, solitário e derrotado. E ainda mais, com fome. Foi por isso que o levaram para o hospital. Havia perdido os sentidos no meio da rua. O médico disse que ele já estava sem comer havia vários dias".

"Espere um pouco, menina — disse eu. — De quem é que você está falando? — Ela me olhou como se estivesse surpresa de que eu não soubesse de quem estava falando e disse: 'Francis Kane'.

"De repente, fiquei tão agitado quanto ela. 'Frankie ?' — disse eu num grito, esquecendo-me de que horas eram. 'Onde foi que você o viu?'

'É exatamente o que lhe estou tentando dizer. Vi-o no hospi­tal hoje à noite'.

'E que foi que ele disse, Ruth? Reconheceu-a?'

'Não', disse ela, desatando a chorar. 'Negou que nos conhe­cesse. Negou que fosse o Frank Kane que eu sabia que ele era — mesmo depois de eu ter dito que o amava."

"Era um pouco demais para mim. Deixei-a cair no sofá e perguntei: 'Você disse o quê?', perguntei, pensando que não tinha ouvido direito.

"Ela parou de chorar e me olhou com firmeza: 'Disse-lhe que o amava e que não me esquecia do beijo que me dera no corredor da escola, mas ele só fez pilheriar e afirmar que não era a pessoa que eu julgava. Disse então que iria voltar com você amanhã de manhã, que ele talvez sofresse de amnésia e, por isso, não podia lembrar-se de nós. Mas eu sei que ele se lembra perfeitamente de tudo, mas que se cercou de um muro no qual colocou um cartaz proibindo a entrada e não deixará ninguém passar. E foi isso que me convenceu mais ainda de que era ele, porque logo que nos conhecemos, quando eu dizia al­guma coisa que o feria, ele ficava com aquela mesma expressão de alheamento, como se um muro invisível fosse levantado em torno dele e ninguém pudesse transpô-lo, conseguindo ao máximo machu­car-se, caso insistisse.'

"Olhei-a durante algum tempo em silêncio. Compreendi então muitas coisas a respeito dela — porque nunca tivera um namorado, porque nunca pensara em casar-se. Ela já estava quase com vinte e cinco anos e eu a havia conhecido quase todos os dias da sua vida e naquele momento é que começava a compreendê-la. É curioso. Co­nhecemos tão pouco de nós mesmos que não é de surpreender que só se comece a compreender uma pessoa com quem sempre se convi­veu depois de vinte e cinco anos.

'Iremos lá amanhã de manhã e eu vou ter uma conversa com ele', disse eu por fim. 'Não adianta Marty, tenho certeza de que a- manhã de manhã ele não estará mais no hospital". 'Vamos então agora mesmo', disse eu, levantando-me.

'"Não, Marty, não iremos lá agora', disse-me ela com voz suave. 'Se fizermos isso, ele nunca nos perdoará. A única coisa que ele realmente teve e ainda tem é o seu orgulho e se lhe tirarmos isso, ele não será mais o Frankie que conhecemos. Temos de deixar que ele resolva o seu caso por si mesmo, como sempre fez'. 'E você, Ru- th ?' 'Eu posso esperar'. Fez-me sentar ao seu lado e apoiou a cabe­ça no meu ombro. 'Compreenda, Marty. Ele nunca teve realmente uma chance de ser jovem. Sempre teve de lutar muito e de enfrentar um mundo hostil. Nunca foi um adolescente no sentido exato do termo. Saltou diretamente da infância para a idade adulta. Era por is­so que ele nos parecia velho quando nós éramos garotos. Era por isso que alguns gostavam dele e outros não. Não era possível haver meio-termo em relação a ele. Tinha de ser uma coisa ou outra. Mas no fundo ele não passava de um garotinho ávido por um carinho, ansio­so por amor.'

'Mas, Ruth, se ele se afastar desta vez, talvez nunca mais vol­te'. 'Eu sei, Marty, mas é um risco que eu tenho de correr'. Sorriu e acrescentou como se soubesse mais do que queria dizer. 'E creio que voltará. Quando isso acontecer, vou-me casar com ele e tirar do rosto dele aqueles sinais de solidão e de amargura. Farei ruir aquele muro para construir outro — feito de amor e não de desconfiança'. 'Mas isso pode levar anos'. 'Podemos esperar', respondeu ela, com os o-lhos cheios de calor e confiança. 'Somos moços e podemos esperar. Enquanto isso, há outros a quem posso ajudar. Há muitas crianças como Frank neste mundo — muitas crianças que são forçadas a de­sistir da infância para conseguir o necessário. Todas as crianças têm direito a uma oportunidade. Gostaria de contribuir para ajudá-las nesse sentido.

—        'Não iremos então ao hospital esta noite ?', perguntei. 'Não, Marty', disse ela, 'não iremos esta noite. Deixemo-lo descansar bem. Ele precisa muito disso'. Aparecemos lá no dia seguinte e, como Ru­th havia previsto, elejá havia saído.

'O tempo foi passando. Terminei os meus estudos e comecei a clinicar. Vocês dois se casaram e Jerry foi trabalhar na procuradoria. Ruth chegou a chefe de seção no Departamento de Assistência Infan­til. Estávamos todos crescendo. Mas nós víamos e observávamos o crescimento uns dos outros. Eu sabia onde vocês estavam e vocês sabiam a todo o tempo o que eu estava fazendo.

'Mas nenhum de nós sabia de Frank, nem mesmo depois que ele voltou para a nossa vida. Não soubemos nem mesmo depois que ele se casou com Ruth. Talvez ele tivesse contado a ela, mas ela nunca nos disse nada. Francis passou pelo que eu gosto de chamar 'os anos perdidos'. Não sei o que foram para ele esses anos, de tran­sição para a idade adulta. Será que alguém sabe? Não sei..."

Marty acabou de beber o seu uísque e foi até à janela. O seu es­pírito estava anuviado e ele se sentia curiosamente deprimido. A noi­te perdera para ele toda a sua magia.

—        Marty —, disse Jerry, chamando-o.

Voltou-se e notou que Jerry estava com uma fisionomia dife­rente, como que livre da tensão que o dominara. Parecia mais ani­mado e seguro de si mesmo.

—        Talvez eu possa dizer-lhe o que foram esses anos — mur­murou  Jerry.

 

Sam deixou os estudos e foi trabalhar no caminhão. Ganhava cerca de doze dólares por semana e morava com alguns parentes seus no fim do Harlem. No meado do verão, eu já estava bem articu­lado com o trabalho do armazém. Embora Harry nada me dissesse, eu podia ver da maneira pela qual ele me tratava e do jeito com que os fregueses falavam comigo que ia muito bem, O trabalho me to­mava a maior parte do tempo só aos domingos, que era o meu dia de folga, ficava sem fazer nada e acabava entrando num cinema.

Não fazia amigos com a facilidade de outros tempos, de modo que os meus interesses externos eram de certo modo restritos. Mas não me importava muito com isso. Estava satisfeito de que a minha vida transcorresse daquela maneira rotineira. Nos meus momentos de descontentamento, dominava-me para jogar tudo no fundo da cabeça juntamente com outros anseios indefinidos. Fiz várias tentativas de descobrir o paradeiro de meu tio junto à firma para a qual ele havia trabalhado, mas parecia que toda a família havia desaparecido de vez. Não houve muito movimento no armazém durante o verão e Harry me disse que iria pleitear um aumento para mim no outono. O meu salário era de dez dólares por semana aos quais se juntavam os dois dólares que Harry costumava dar-me e cerca de três dólares de gorjetas em média, o que fazia um bom total de quinze dólares por semana e me dava perfeitamente para viver. Gostaria de ter mais dinheiro, mas quem é que não gostaria? A verdade é que os empregos estavam muito difíceis naquela época e eu devia dar-me por satisfeito. Não era tanto dinheiro quanto eu ganhava no tempo em que trabalhava para Keough, mas eu não estava interessado em voltar a fazer aquela espécie de trabalho. Não abandonava, porém, a esperança de conseguir um emprego que me desse mais dinheiro.

Em julho, Oto, proprietário da sorveteria em nossa rua, me perguntou se queria trabalhar para ele nos domingos à tarde, quan­do era maior o seu movimento. Pagar-me-ia dois dólares para tra­balhar de uma hora da tarde às oito da noite. Desde que não tinha nada mesmo para fazer aos domingos, aceitei. Dentro de poucas semanas, estava inteiramente a par do serviço a ponto de poder fi­car sozinho na casa. Gostava muito de conversar com os rapazes que apareciam por lá. Muitos deles vinham do clube que ficava em cima do armazém.

Eu sempre sentira curiosidade a respeito daquele clube. O le-treiro nas janelas dizia "Aliança dos Trabalhadores", mas o nome nunca me pareceu apropriado porque quase todas as pessoas que lá iam recebiam pensão de desemprego e não trabalhavam. Todos os sábados à noite, quando ficávamos trabalhando até tarde no arma­zém, ouvíamos um bocado de barulho lá em cima.

Numa noite de sábado, quase à meia-noite, quando fechamos, resolvi subir e saber a causa daquele barulho. Vários sócios do clube já me haviam convidado para ir até lá, mas eu nunca tivera a menor vontade de subir. Acho que naquela noite estava um pouco agitado e precisando de algum convívio humano.

O local onde se reuniam era um grande apartamento, onde ha­viam derrubado paredes para fazer um enorme salão. Havia num canto do salão uma orquestra de quatro figuras e uma mesa prepara­da com pratos de frios, e pão, um barril de chope, um vaso de pon-che e algumas garrafas grandes de vinho tinto. A orquestra estava tocando alguma música harmoniosa que eu não conhecia e alguns pares de moços estavam dançando, enquanto os mais velhos forma­vam pequenos grupos e conversavam com sanduíches na mão.

Entrei procurando alguém que eu conhecesse. Por fim, vi um camarada chamado Joey — não sabia o sobrenome dele — que cos­tumava fazer compras no armazém.

—        Não esperava você por aqui — disse ele, aproximando-se e com surpresa na voz.

Apertei-lhe a mão estendida e disse rindo

Resolvi vir ver o que é que vocês fazem aqui em cima. Ele me pegou pelo braço.

Venha que eu lhe vou mostrar a casa.

Apresentou-me a vários rapazes e moças e eu cumprimentei vá­rias pessoas que conhecia do armazém. Depois, levou-me para a mesa, meteu-me um sanduíche nas mãos e disse-me: "Divirta-se". Cor­reu então para a porta a fim de falar com alguém que estava chegan­do. Calculei que ele fazia parte da diretoria do clube, pois parecia conhecer todo o mundo.

Pouco depois, vi uma pequena que eu conhecia conversando com um rapaz. Eu a conhecia do armazém porque havia uma espécie de brincadeira habitual entre nós. Ela sempre ia comprar uma garrafa de ketchup e fazia o pedido muito depressa de uma maneira que eu achava engraçada. Encaminhei-me para ela, tirei uma dentada do sanduíche para ter a boca cheia e perguntei-lhe:

Foi buscar o seu ketchup hoje? — perguntei. Ela me olhou, parecendo também um tanto surpresa.

Que é que está fazendo aqui?

Sou do partido!

Isso é que eu duvido!

Está bem. Só vim então porque a comida é de graça.

—        Essa é que é a verdade. É por isso que todos nós estamos aqui.

O outro camarada se afastou e começou a conversar com outra

Vamos dançar? — perguntei-lhe.

Está bem. Vou arriscar-me.

Coloquei o resto do sanduíche em cima de uma cadeira e co­meçamos a dançar.

Isso aqui é muito agradável — disse eu.

E é de graça.

Já era tarde, mas continuou a chegar mais gente enquanto dan­çávamos. Pisei muito os pés dela. Havia já muito tempo que eu não dançava.

—        Você pode saber muito bem cortar queijo disse ela, aborre­cida, depois que lhe pisei o pé pela sexta vez. — Mas dançar é coisa que você nunca soube em sua vida!

Apertei-a de encontro a mim e murmurei:

—        Dançar é apenas um pretexto...

Ela me empurrou com uma exclamação de indignação e nisso a musica parou.

—        Está na hora do discurso — disse ela.

—        Quer dar o fora daqui? — perguntei, pois tinha outras idéias.

Ela não quis. Voltamos para a cadeira onde eu havia deixado o sanduíche e nos sentamos.

—        Fique — disse ela —, que talvez possa aprender alguma coi­sa

Olhei e vi Joey subindo a uma grande mesa que haviam arras­tado para o meio do salão. Levantou a mão, pedindo silêncio e disse:

—        Atenção, muita atenção! Como sabem, temos hoje aqui conosco um grande orador que todos vocês conhecem e já ouviram. Não é preciso que eu o apresente. O trabalho que ele desenvolve na sua seção da cidade todos conhecem. Todos nós estamos a par dos serviços por ele prestados a todos nós e ao partido. Dou a palavra a Gerro Browning.

Saltou para o chão e, com grande surpresa para mim, um negro alto e jovem tornou o lugar dele em cima da mesa. A assistência era um bocado misturada. Irlandeses, italianos, escandinavos, poloneses, tudo. Ele era o único negro presente, mas foi muito aplaudido. Todo o mundo gritava e batia palmas enquanto ele olhava em torno calma­mente, sorrindo um pouco. Afinal, levantou as mãos e houve silêncio. Ele então disse com a voz estranhamente sem qualquer sotaque:

—        Amigos, vejo muitas caras novas esta noite. São pessoas que ainda não conheço, mas têm caras sinceras e humanas. São gente como nós, querem da vida o mesmo que nós queremos e é com satis­fação que lhes agradeço a presença esta noite.

Todos aplaudiram. Ele esperou que os aplausos cessassem e continuou:

—        Não vou falar esta noite sobre o partido ou sobre os seus princípios. Não vou repetir as coisas que todos já sabem tão bem. Em vez disso, vou contar a história de um homem que mora aqui nesta rua.

"Esse homem nunca esteve aqui nesta sala. Nunca veio a qual­quer das nossas reuniões. Embora eu e outras pessoas o tivéssemos convidado, ele nunca veio. Como muitos de vocês, recebeu durante algum tempo pensão por desemprego e ultimamente conseguiu um lugar em Long Island na companhia de eletricidade. Talvez um dos motivos pelos quais ele nunca apareceu aqui foi o receio de que os seus patrões soubessem que ele pertencia ao nosso clube e pudessem despedi-lo, forçando-o a receber de novo a pensão de desemprego até conseguir outra coisa. De qualquer modo, disse várias vezes que o haviam avisado que se afastasse de nós e não tivesse qualquer es­pécie de relações conosco — que nós éramos um bando de canalhas agitadores e que ele perderia o pouco que conseguira e tinha.

"Na semana passada, quando cavava o chão para o assentamen­to de um novo cabo, a pá dele, ao ser metida na terra, tocou num fio descoberto. O choque da corrente elétrica atingiu-o e jogou-o a três metros de distância, produzindo-lhe contusões e queimaduras graves. Ainda está num hospital e não sabemos se escapará.

"Quando eu soube do acidente, fui procurar a esposa dele e per­guntei-lhe o que poderíamos fazer pan ajudá-la. Ela achou que nada havia que pudéssemos fazer, mas me contou onde e como o marido dela sofrera o acidente. Na mesma noite, comuniquei tudo à sede do partido. Mandaram um médico, especializado nesse tipo de trabalho, para vê-lo no hospital, e um investigador para olhar o local do acidente. O médico está lutando neste momento para salvar a vida do homem.

"O relatório do investigador que está comigo diz claramente que o homem não foi vítima de um acidente do trabalho comum, mas de um acidente causado pela negligência da companhia para a qual trabalha. Eis as palavras textuais do relatório: 'A lei determina que os cabos de energia descobertos sejam assentados a uma certa distância abaixo do nível da rua. Os cabos existentes no local do aci­dente não estavam assentados na profundidade necessária e determi­nada expressamente por lei. Estavam um metro mais alto do que de­viam estar'. Ouviram bem, amigos? Um metro mais alto do que de­viam estar! Esse metro pode representar para aquele homem a dife­rença entre a vida e a morte. Esse metro pode ser a diferença entre a fome e o sustento para a família daquele homem. Já falei com os nossos advogados e eles vão intentar uma ação contra a companhia e providenciar para que se faça justiça neste caso."

O povo começou a aplaudir, mas ele levantou as mãos pedindo silêncio. Com as mãos assim acima da cabeça, parecia quase um pro­feta.

—        Amigos — continuou ele —, a mulher do homem de quem falei está aqui esta noite. O dinheiro que vai receber da junta de in­denização mal dará para comprar comida para os filhos. Não chegará para pagar o aluguel, nem as contas de luz gás. Sei muito bem que vocês mal podem poupar alguns níqueis do pouco que têm para aju­dá-las, mas quero que façam justamente isso.

"O partido se encarregará das despesas judiciárias com a ação que foi intentada. Mas sei perfeitamente que podem privar-se de al­guma coisa para ajudar a mulher e a família desse homem. Não se esqueçam de que o que aconteceu a ele pode acontecer a qualquer de vocês. E o que acontece a qualquer de nós, atinge-nos a todos. Te­mos de trabalhar juntos. Temos de lutar juntos."

A sua voz se tornou mais calma, mais determinada, mais positiva.

—        Temos direito a viver, a trabalhar e a comer. Não conquis­taremos esses direitos se não estivermos dispostos a ganhá-los por nós mesmos. Não se esqueçam de que, quanto mais forte for o parti­do e mais gente tiver, mais respeito poderemos exigir para os nossos direitos fundamentais. Quero que se esforcem para conseguir novos filiados. Quero que vendam ou distribuam os nossos papéis e folhe­tos. Mas, mais do que tudo, quero que dêem todo o apoio possível ao nosso clube para que o clube possa dar todo o apoio possível a todos vocês!

Desceu da mesa e muita gente se reuniu em torno dele, todos falando.

Olhei para a moça que estava ao meu lado. Nunca pensara mui­to nela, como nunca pensara muito no pessoal daquele clube. Tinha ouvido Harry dizer muitas vezes que a maioria não trabalharia ainda que tivesse uma oportunidade. Mas estava em dúvida naquele mo­mento.

Os olhos da moça brilhavam. O rosto estava pálido de emoção, acentuando o constraste com o batom e o rouge.

—        Vamos, disse ela, estendendo a mão. — Você está traba­lhando. Dê alguma coisa.

Tirei uma moeda de 25 centavos.

—        Você pode dar mais do que isso. Quero um dólar! Dei-lhe um dólar e disse, rindo:

Pensei que a coisa aqui fosse de graça e agora estou pagan­do como em qualquer outro lugar.

Deixe de ser sujo! — disse ela friamente. — Gostaria de que isso acontecesse com você?

Levou o dólar e entregou-o ao homem que tinha acabado de fa­lar. Com certeza, ele perguntou quem dera o dinheiro, pois ela apon­tou para mim.

Pouco depois, ele se afastou das pessoas que o rodeavam e se aproximou de mim.

Obrigado pela sua contribuição —, disse ele, estendendo-me a mão. — Foi mais do que qualquer outra pessoa deu.

Eu estou trabalhando —, respondi, apertando-lhe a mão.

Os outros trabalhariam também se tivessem oportunidade, — replicou ele, calmamente.

Não quis dizer isso. Quero apenas dizer que o dinheiro não me faz muita falta.

É novo aqui. É a primeira vez que o vejo.

Chamo-me Frank Kane e trabalho no armazém aí embaixo.

Prazer em conhecê-lo — disse ele, sorrindo. — Espero vê-lo outras vezes aqui.

—        E vai ver —, disse eu, delicadamente. Ele se afastou e a moça veio falar comigo.

Vi você conversando com Gerro — disse ela, com o mesmo tom de voz como se eu tivesse falado com Deus.

Está bem, menina. Se os discursos já acabaram, vamos sair e pegar uma última sessão de cinema na Rua 42. E por falar nisso, eu ainda nem sei o seu nome.

Terry. Eu sei o seu, pois já ouvi no armazém. É Frank.

Então vamos. Ou quer ficar aqui o resto da noite?

Espere um pouco que eu vou arrumar-me.

Fiquei a olhá-la enquanto ela ia pan o toalete das senhoras. De repente, deu-me uma vontade enorme de sair com ela. Havia já mui­to tempo que não saía com uma pequena. "Não é nada má", pensei eu, "e quem sabe se não terei sorte esta noite ?"

Marquei encontro com Terry para a tarde do dia seguinte: Ía­mos tomar banho de mar na ilha. Ela era um estouro, mas positiva­mente trancada. Era naturalmente insensível. Dizia coisas e fazia gestos que deixavam o sangue fervendo, mas tudo isso era pura con­versa, fazia parte da sua representação. Deixava a gente pegá-la até que se começava a ver estrelas e, logo que se queria um pouco mais, esquivava-se violentamente.

Não sei — dizia ela com um sorriso que era uma zombaria para o tormento alheio —, mas todos os homens são a mesma coisa. Saem com uma pequena e logo pensam que têm direito a tudo. Porque não se pode divertir sem querer essas coisas?

Mas, menina, você não pode proceder assim. Ainda vai fa­zer alguém ficar maluco com isso! Vamos, seja camarada. Não vai acontecer nada.

Quanto a isso, eu tinha razão. Nada aconteceu. Mas, por inter­médio dela, passei a fazer parte do pessoal do andar de cima. Come­cei a ver que eu não era a única pessoa no mundo que tinha de usar o couro para ganhar alguns tostões. Outras pessoas tinham o mesmo problema — todas elas, fossem quem fossem. Todas tinham de ga­nhar esse dinheiro miserável ou morrer de fome. Notava o jeito es­quisito de algumas caras. O tempo e as circunstâncias lhes haviam estampado a derrota nos rostos. A caridade deixara também a sua marca de humilhação que sentiam. Cada um mostrava isso de manei­ra diferente.

Alguns entravam no armazém com o seu vale de comida, sorri­dentes e alegres, num grande fingimento. "Vai-se comer de novo !" exclamavam animadamente e iam de canto em canto febrilmente, comprando comida e mais comida até que a importância do vale se esgotava. Alguns abriam o vale em cima do balcão e diziam num tom de voz meio belicoso: "Aceitam isto aqui?" Outros chegavam sossegadamente, esperavam que a gente atendesse aos outros fregue­ses e o armazém ficasse vazio. Inclinavam-se então sobre o balcão com o vale na mão e perguntavam com alguma hesitação e vergo­nha: "Aceitam isso aqui ?" E havia ainda alguns que entravam, pedi­am o que queriam e só depois que tudo estava embrulhado, tiravam o vale do bolso e perguntavam num tom de voz que era um desafio a qualquer resposta negativa: "Aceitam isto aqui ?"

Uma coisa todos eles tinham em comum. Nunca se referiam aos vales pelo seu nome, "Vale de Socorro de Emergência". Chama­vam-lhes "este" ou "isto". E quando compravam tudo aquilo que julgavam que lhes bastaria para o período até receberem o outro va­le, compravam um pedaço de bolo ou algumas balas para as crian­ças. Alguns pediam cigarros ou dinheiro pelo resto do vale. Não tí­nhamos permissão para dar cigarros ou dinheiro. Mas dávamos. De vez em quando, aparecia alguém que nos oferecia um vale de 13 dó­lares e meio em víveres em troca de cinco ou seis dólares em dinhei­ro. Comprávamos os vales. O mesmo faziam todos os outros negoci­antes do bairro. O socorro público tinha muitos efeitos sobre a pes­soa. O mais comum era fazê-las perder a liberdade.

Mas lá em cima, no clube era diferente. O clube estava-se es forçando para que o governo desse às pessoas contempladas com o socorro dinheiro em vez de vales. Alegava que as casas comerciais cobravam dos portadores de vales preços mais altos do que dos fre­gueses que compravam a dinheiro. Soube que alguns negociantes se justificavam dizendo que tinham de esperar noventa dias pelo di­nheiro. De qualquer modo, havia sempre queixas lá em cima. Outras coisas eram também debatidas. Dizia-se no clube que o governo ia instituir um vasto programa de obras para ajudar as pessoas que re­cebiam socorro. Todos os dias surgiam novos rumores. Mas, enquan­to isso, o povo continuava a sofrer e a apertar o cinto.

Encontrava-me com Terry nas quartas-feiras à noite. Não que­ria sair com ela aos domingos porque tinha de gastar muito dinheiro sem proveito algum. Não que eu não gostasse dela. Gostava até demais, mas não podia despedir-me dela todo exaltado e ir para a cama e passar a noite a virar-me de um lado para outro, sem dormir, com uma porção de pensamentos a passar-me pela cabeça. Não podia ir procurar mulheres de outra espécie para acalmar-me, depois do que eu tinha visto delas. O resultado é que passava horas horríveis, ju­rando que nunca mais sairia com ela e com uma vontade enorme de castigá-la pelo que fazia comigo. "Na próxima vez, deixo-a moída de pancada se tentar me impedir alguma coisa", pensava eu. Mas não fazia nada disso. Acabei transferindo o dia dos nossos encontros do sábado para a quarta-feira. Ia com ela a um cinema, depois levava-a para casa e passava alguns minutos na porta, conseguindo alguns beijos e rápidas carícias. Depois, ia-me embora. Mas estava cansado depois de um dia de trabalho e, quando caía na cama, dormia mes­mo... às vezes.

Numa tarde de quinta-feira, fui levar um pedido a uma casa. Estava um bocado nervoso naquele dia. Na noite anterior, conseguira meter a mão por dentro do vestido de Terry e sentir-lhe o seio quente e macio. Ela deixou a minha mão ali, mas quando quis ir mais além, ela me repeliu decididamente. Seria ela insensível? Por mais que eu me esforçasse, esse pensamento não me saía da cabeça.

Toquei a campainha e uma mulher jovem apareceu. Tinha ca­belos alourados, o rosto magro e estava com um vestido velho. Era uma freguesa nova. Havia esgotado o vale do socorro e comprara mais alguns artigos, pedindo que o resto lhe fosse entregue mais tar­de em casa, quando ela esperava ter algum dinheiro.

—        Compras — disse eu, ficando no corredor. — Um dólar e 25 a receber.

Harry me havia dito que não deixasse as compras sem receber antes o dinheiro.

—        Faça o favor de entrar e levar para a cozinha — disse ela com voz quase sumida.

Entrei no apartamento, deixei as compras na mesa da cozinha e voltei-me para ela.

Estava olhando ansiosamente os embrulhos e disse:

Meu marido deve chegar dentro de poucos minutos com o dinheiro. Não pode deixar as compras aqui? Irei pagar mais tarde no armazém.

Desculpe. Gostaria de fazer isso, mas não posso. Isso não está registrado como venda a crédito e o patrão será capaz de me despedir se eu não cumprir as ordens dele.

Comecei a recolher as compras, mas ela me disse nervosamente:

—        Espere um pouco. Meu marido não deve demorar. — Uma criança apareceu na sala. Era a filha dela. A mulher pegou-a no colo e me disse: — Pode sentar-se, se quiser.

Sentei-me numa cadeira perto das compras e acendi um cigarro, depois de oferecer-lhe um, que ela recusou. Quando acabei de fumar o cigarro, levantei-me.

Está ficando tarda e eu tenho de ir, moça. O patrão já deve estar pensando que me aconteceu alguma coisa.

Mais alguns minutos, por favor — disse ela. — Deve estar chegando a qualquer momento. — Foi até â janela, olhou a rua e dis­se com aflição: —Não demora... Não demora...

Ora essa! Podia não demorar, mas dinheiro era coisa que não ia trazer. De qualquer maneira, eu teria de levar as compras. Mas espe­rei mais cinco minutos. Ao fim desse tempo, levantei-me.

—        Desculpe, moça, mas tenho de voltar. Quando seu marido chegar, diga-lhe que vá até ao armazém que nós lhe entregaremos as compras.

Peguei a caixa com os embrulhos e levei-a ao ombro.

Por favor, não leve. Deixe tudo aqui. Quando ele chegar, irá lá pagar, dou-lhe minha palavra!

Acredito e gostaria de deixar as compras, mas não posso.

Não vai querer que eu perca o meu emprego, não é?

Eu já estava ficando um pouco aborrecido com a atitude dela. Talvez estivesse ainda mais aborrecido comigo mesmo por não dei­xar as compras. Mas ninguém ia enganar-me. Sabia de muita gente que fora lograda em casos como aquele.

Mas nós ainda não tivemos nada para comer hoje — disse ela. — Só a menina. Meu marido foi à cidade pegar um emprego. Nós lhe pagaremos, tenho a certeza!

Por que vem dizer isso a mim, moça? Não adianta nada. De­ve falar é com meu patrão. Se ele quiser confiar na senhora, deixarei as compras aqui.

—        Já falei — disse ela, deixando a menina no chão e sentando-se. Do jeito que ela falou, fiquei sabendo qual tinha sido a resposta.

—        Que é que eu posso fazer então? — perguntei, virando-me para a porta. De repente, ocorreu-me uma idéia e eu olhei para ela. — Anão ser...

Só disse isso, mas o silêncio que se seguiu foi cheio de signifi­cação. A principio, ela me olhou com um brilho de esperança nos olhos, mas esse brilho logo se desvaneceu quando ela me olhou. O rosto dela ficou vermelho e ela olhou nervosamente para as mãos que se apertavam convulsivamente.

Olhei também para as mãos dela. Estavam vermelhas e maltra­tadas de trabalho. Eram as mãos de uma mulher a quem os serviços de casa haviam envelhecido prematuramente — todos os serviços de casa.

Não! — sussurrou ela. Falava tão baixo quase como se esti­vesse falando sozinha. — Não, não, não!

Está bem, moça — disse eu, cruelmente. — Como quiser. Mas é bom não se iludir. Nós dois sabemos muito bem que não há muita chance de que ele arranje emprego hoje.

Fui até à porta e levei a mão à maçaneta.

—        Espere um pouco — disse ela. — Deixe-me pensar. Colocou as mãos na cabeça enquanto a menina olhava solene­mente para nós dois.

Esperei. Podia quase ver os pensamentos que lhe corriam pela cabeça. E sabia qual seria o resultado, qual seria a resposta que ela me ia dar.

Levantou afinal a vista para mim. Mas alguma coisa lhe havia desaparecido do rosto. Não sabia bem o quê, mas estava diferente. Falou com a menina:

—        Laura, desça e vá esperar seu pai lá embaixo. Quando ele vier, dê um grito debaixo da janela para eu ficar sabendo.

A criança passou tranqüilamente pela porta ela. Olhou para trás e deu adeus. Depois, desceu a escada. Esperei que ela chegasse lá embaixo para fechar a porta. Larguei depois a caixa das compras e olhei para a mulher.

Ela me olhou um momento e então se dirigiu para o quarto. Era um quarto pequeno com uma janelinha onde se via uma cama e um berço. Havia uma pequena imagem da Virgem com o Menino e uma fotografia dela ao lado do marido em cima de uma cômoda. Ela en­trou, ficou um instante parada e então disse:

—        Aqui não.

Voltou para a sala e eu acompanhei-a. Ela se sentou no sofá, ti­rou os sapatos e deitou-se. Sentei-me na beira do sofá. Sentia todas as veias latejarem-me. Botei as mãos nas coxas dela. A pele estava fria como gelo e ela estremeceu quando a toquei. Cometi então um erro. Olhei involuntariamente para o rosto dela.

Não era uma mulher que estava ali ao meu lado. Era uma casca vazia. Olhei-a durante todo um minuto. Não moveu um músculo nesse tempo. Completamente imóvel, só fazia olhar-me.

Levantei-me e consertei-me. A princípio, ela me olhou como se não acreditasse. Depois, levantou-se também.

—        Apesar de tudo, obrigado — disse eu. — Pode ficar com as compras.

Ela deu um passo na minha direção e de repente caiu com o corpo para a frente. Segurei-a antes que ela chegasse ao chão, O cor­po dela estava de súbito quente. Eu podia sentir a onda de calor que lhe aquecia a pele. Encostou a cabeça no meu ombro e começou a soluçar, mas dessa vez sem lágrimas. Eu a sustentava, mas impesso­almente. Parecia que toda a força lhe havia fugido das pernas.

—        Desculpe, desculpe... mas não pode imaginar o que temos passado... quantas vezes Mike tem passado fome para a menina po­der comer, quantos dias ele tem passado sem botar um cigarro na boca...

Ela estava arrasada. Ali estava eu com uma mulher nos braços, que chorava pelos sacrifícios que o marido tinha feito. Pensava natu­ralmente que ela mesma nada havia feito pela menina. Senti-me de repente envergonhado.

—        Calma! — disse eu, interrompendo-lhe os queixumes. Cal­ma! Tudo vai-se resolver.

Ela me olhou, cheia de gratidão.

Você é bom — disse ela, num sussurro.

Eu sei, eu sei — disse eu, rindo. Kane, o trouxa, o maior idiota do século!

Atravessamos a cozinha em silêncio. Na porta, ela me fez parar e disse:

—        Muito obrigada.

Não tem importância, moça!

Desci as escadas e saí para a rua. Já ia na metade do quartei­rão quando vi a menina. Um homem correu para ela, pegou-a no co­lo e jogou-a para o ar.

Papai, Papai!

Ele dançou um pouco com ela e deu-lhe, exultante, a notícia:

Laurinha, Papai conseguiu um emprego! Passei por eles e disse ao homem:

Parabéns, Mike. Conseguiu mais do que um emprego.

Fui andando. Ele me olhou um instante e coçou a cabeça. Devia estar em dúvida sobre se me conhecia ou não. Depois, saiu correndo para a casa com a filha nos braços.

Voltei para o armazém ficando cada vez com mais raiva. Terry, aquela bandida, ia-me pagar tudo aquilo. Na primeira vez em que se encontrasse comigo, não ia livrar-se de mim.

E não se livrou.

Na manhã seguinte, a senhora em cuja casa eu deixara as com­pras apareceu no armazém. Foi diretamente para onde eu estava, le­vando a menina pela mão. Tinha um aspecto bem diferente do da véspera. Talvez fosse o jeito pelo qual levantava a cabeça, talvez fosse o seu andar. Havia mais confiança nela e a sombra da derrota se lhe apagara dos olhos.

Meu marido — disse ela sem preliminares, queria saber se me podia dar algumas coisas a crédito até amanhã, que é o dia do pagamento.

Sei que ele está empregado. Vi-o na rua. Espere um instante que vou perguntar ao patrão.

Expliquei a situação a Harry. O marido dela tinha começado a trabalhar ela precisava de algumas coisas até o dia seguinte quando o marido recebia o primeiro pagamento.

Eu estava envergonhado com o meu procedimento do dia ante­rior. Só naquela manhã tivera plena consciência do que havia feito. Naquele momento, estava ansioso para reabilitar-me. Harry me disse que estava certo se eu julgava que se tratava de gente direita.

Voltei para onde ela estava e dei-lhe tudo o que ela pediu. En­quanto estava embrulhando as compras procurei pedir-lhe desculpas do que havia feito. Falei bem baixo para que ninguém mais senão ela me pudesse ouvir.

—        Estou muito contente de seu marido ter conseguido um emprego — disse eu.

Ela não respondeu.

Desculpe o que eu fiz ontem — continuei. — Não sei por que agi daquela maneira, mas tenho ouvido tantas histórias mentiro­sas que não posso mais saber se alguma é verdadeira. Não sei em quem confiar.

Por que não confia em todos para só deixar de confiar quando houver motivo? — disse ela simplesmente, com o rosto vermelho.

Senti-me ainda pior, mas não pude dizer-lhe mais nada. Podia dizer-lhe que algumas pessoas enganam e outras não — e que as primeiras prejudicam as outras. Mas nada disse. Acabei de fazer o embrulho. Ela o pegou e saiu.

A tarde, Terry apareceu, sorrindo para mim.

Quer-me dar um vidro de ketchup?

Ih! Em sua casa não se gasta outra coisa?

Eu sabia, da maneira pela qual agia, que ela não estava aborre­cida comigo. Pensei então que eu já devia ter procedido assim com ela há muito tempo, pois então não me veria na situação em que me tinha visto. Peguei um vidro de ketchup na prateleira e botei-o em cima do balcão.

—        Mais alguma coisa?

Ela sacudiu a cabeça e eu coloquei o vidro dentro de um saco. Ela me pagou os dez centavos e perguntou:

Vai à reunião amanhã?

Vou, sim. Espere-me lá

Depois que saiu, Harry se aproximou de mim

Por que é que você está indo a essas reuniões lá em cima?

Esse pessoal quase todo vive do socorro do governo. A maioria não quer mesmo trabalhar.

Não sei... Parecem uma gente muito decente. Apenas não ti­veram sorte. Além disso, divirto-me muito lá em cima.

Não me diga que está ficando comunista!

Nem sei o que é comunismo — disse eu, rindo. — Acho a gente lá de cima igual o todo o mundo. Querem as mesmas coisas que os outros — emprego, comida e um pouco de distração. Quero as mesmas coisas e não sou comunista.

Acreditam no amor livre — disse Harry. — Pensam que o casamento não é necessário.

Disso não sei. Os que vão lá são na sua maioria homens ca­sados.

Uma coisa é certa — disse Harry —, se fossem decentes não deixariam as filhas andarem à toa... como essa Terry, por exemplo.

Aposto que todos lá em cima já estiveram com ela.

Aquilo me irritou. Ia responder de maneira bem rude, mas con­trolei-me, O que disse com um sorriso foi:

—        Ela é uma pequena com quem todo o mundo gostaria de es­tar se pudesse.

Uma freguesa entrou no armazém Harry foi atendê-la. Comecei a desempacotar umas latas e esquecemos toda a nossa conversas.

Os meses foram passando. Sam deixou o emprego e foi morar com alguns parentes em Hartford. Continuei no armazém e fui au­mentado para 15 dólares por semana. Aos domingos, trabalhava para Oto e trabalhava muito bem. Economizei algum dinheiro, comprei roupas novas, ganhei um pouco de peso e me senti um pouco melhor e mais cordial para com todo o mundo. Conhecia quase todas as pes­soas do bairro. Entre o armazém e o clube, tinha sempre muito o que fazer. Não era grande a minha atividade no clube, mas parecia-me que lá eu estava mais perto do povo em geral.

Uma noite, cerca de uma semana depois do Dia de Ação de Graças, Gerro Browning chamou-me pelo nome quando saí do ar­mazém. Fiquei esperando que se aproximasse e então fomos juntos a pé em direção ao centro.

Onde é que você mora, Frank? — perguntou ele.

No Mills — disse eu, sem saber por que ele estava interes­sado.

Que é que vai fazer agora?

Vou comer alguma coisa. Depois, irei para casa.

Não se incomoda de eu jantar com você?

Absolutamente — respondi, surpreso de que ele pedisse para jantar comigo. — Até gostaria de ter alguém com quem conversar, para variar.

Não tem família? — perguntou ele, olhando-me com curio­sidade.

Sacudi a cabeça.

Qual é a sua idade?

Vinte e dois anos. Escute, não me importo com as suas per­guntas, mas quer me dizer o motivo desse súbito interesse por mim?

Não sei exatamente — disse ele com um riso breve. Mas você me interessa.

Por quê? Não sou diferente dos outros?

Acha mesmo que não é?

Não, não sou

Entramos numa cafeteria, pegamos as nossas bandejas e, depois de servidos, sentamo-nos a uma mesa. Durante alguns minutos, co­memos em silêncio. Por fim, ele disse:

Seu cabelo, por exemplo.

Que é que tem meu cabelo? — perguntei, levando instinti­vamente a mão às têmporas. — Está penteado, não está?

Ele começou a rir.

Não, não é isso. É que é diferente. Você não me perguntou?

Não tem diferença alguma dos cabelos dos outros.

Tem, sim — disse ele, sorrindo. — Está começando a ficar branco. Não muito, mas já dá para se ver. E você é ainda muito mo­ço para ter cabelos brancos.

Talvez eu me preocupe muito com as coisas.

Não, você não é desse tipo. O que acho é que deve ter pas­sado muita coisa na vida.

Como é que sabe?

Ele levou um pouco de comida à boca antes de responder.

Por algumas pequenas coisas. A maneira pela qual você age.

Costuma sentar-se atrás dos outros ficar olhando todo o mundo com um ar de divertimento, de superioridade ou de seja lá o que for que se mostra nos olhos. Depois, a maneira pela qual você fala — sem­pre positivo direto, seguro, sem qualquer indecisão. E há o seu jeito de andar — na ponta dos pés por assim dizer — pronto a saltar de um lado ou de outro, como um animal, sempre cauteloso, sempre em guarda. Repare como se sentou aqui no restaurante — com as costas para a parede. E olha instintivamente para todo o mundo que entra ou que passa enquanto estamos comendo e conversando. Quem é que você está vigiando e contra quem é que está em guarda?

Nunca percebi isso — disse eu, sorrindo. — Não estou em guarda contra coisa alguma. Acho que é apenas um hábito.

Há sempre uma razão para os nossos hábitos.

Tínhamos acabado de comer. Ele se levantou, foi buscar o café e levou-o para a mesa.

Sentou-se fumando e girando distraidamente com os dedos um pequeno objeto preso à corrente do relógio.

Que é isso? — perguntei, apontando o objeto. Ele tirou o relógio do bolso e mostrou

É uma chave de Phi Beta Kappa — disse ele. Olhei a chave que tinha umas letras esquisitas.

—        É a chave de jeito mais estranho que já vi. Que é que ela abre?

Ele riu e disse:

Dizem que abre a porta da oportunidade. Mas não abre. Acho às vezes que é uma chave falsa. — Percebeu que eu não estava entendendo. — É na universidade que se ganha isso. É a insígnia de um clube muito fechado no qual só entra quem tem as mais altas qualificações.

Esteve na universidade?

Estive.

Devolvi-lhe o relógio e a corrente e pensei em Marty e Jerry que já deviam naquela época estar acabando a universidade.

Tenho alguns amigos que estão na universidade.

Qual delas? — perguntou ele, mostrando-se interessado.

Não sei. Há muito que não os vejo.

Como sabe então que estão na universidade?

Eu os conheço.

É engraçado como as pessoas se perdem de vista — disse Gerro, pensativamente.

Isso pareceu quebrar o gelo entre nós. Ficamos conversando durante uma hora. Falei de mim, contando-lhe coisas que ainda não havia dito a ninguém, e ele se mostrou verdadeiramente interessado. Despedimo-nos como bons amigos.

O inverno de 1932-1933 foi muito severo. Havia muita gente desempregada, que era sustentada pelo socorro. De dia para dia era mais evidente, até para mim que vivia em relativa segurança, que era preciso tomar providências para assegurar a subsistência das pessoas que nos rodeavam. Todos os dias os jornais anunciavam: "Nova cri­se". Havia gente com fome. Havia gente com frio. Bônus para os ve­teranos. Empregos para o povo. Não se iluda, amigo, a prosperidade não está ali na esquina.

Mas isso, estranhamente, não parecia afetar-me. Eu estava em segurança. Não passava fome. Não sentia frio. Tinha um emprego.

Quando subia para o clube, as queixas das pessoas presentes nunca me pareciam muito reais. Os discursos que eu ouvia nunca pa­reciam dar resultado. As exigências feitas nunca eram atendidas. E pouco a pouco o povo foi-se desesperando e perdendo a esperança de voltar a ter trabalho um dia. Homens que saíam religiosamente de casa todos os dias a fim de procurar trabalho deixaram-se ficar em casa. Adotavam uma atividade de completa apatia. A queixa deles era a de todo o mundo. "Não sabe que estamos em depressão? Tem algum níquel sobrando, amigo?"

Várias casas comerciais na avenida tiveram de ser fechadas, por falta de freguesia. Ninguém parecia incomodar-se com isso. As casas ficavam vazias com grandes cartazes de "Aluga-se Esta Loja" nas vitrinas. Só se falava em vender barato: "Abaixo do custo", "preços pela metade", "liquidação", "venda de aniversário". Tudo era pretexto para uma venda. Mas não havia vendas.

Todo o mundo estava desorientado e confuso. Ninguém sabia de quem era a culpa. Nos subways, nas vitrinas, portas havia papei-zinhos colados: “Compre o Que é Americano". O Morning Ameri-am e o Evening Journal lançaram uma campanha nacional: "Faça voltar a prosperidade comprando produtos americanos". Havia em Columbus Circle homens que falavam contra o governo, contra o Presidente, contra os judeus, contra os negros, contra os católicos, contra tudo. Atacavam rudemente a tudo — sindicatos, greves, fura­dores de greve, patrões, patrões judeus, banqueiros judeus. Desorde­nadamente, violentamente, estupidamente, atacavam todos os que es­tavam em volta.

Compre Nacional. Comprem Americano. Andava-se pelas ruas entre notícias de distúrbios em Harlem — distúrbios de gente famin­ta na Cozinha do Inferno. Os temperamentos estavam exaltados e a selvajaria latente nas pessoas subia à superfície. Toda aquela confu­são estava sendo agitada como por uma mão sinistra que parava de poucos em poucos minutos para acrescentar mais algum tempero de ódio, de desconfiança, de calúnia, de insinuação

Coloquem os negros no seu lugar. Os brancos precisam dos empregos. Querem ter uma irmã estuprada por um negro, querem?

Corram os olhos em torno. Quem domina todos os negócios? Os judeus. Quem são os donos dos bancos? Os judeus. Quem tem os melhores empregos? Os judeus. Quem são a maioria dos médicos e advogados? Judeus. Quem são Os comunistas? Os judeus. Quem são os grevistas? Os judeus. Este país é nosso ou deles?

Os negros são como um câncer. Basta deixá-los entrar num edi­fício ou num bairro para que eles se espalhem por lá como moscas. Arruínam a propriedade imobiliária. Arruínam os bairros, arruínam a todos nós. Teremos medo de andar na rua à noite se deixarmos os negros entrarem. Teremos medo quando nossas filhinhas voltarem da escola. Os negros são como o câncer. Quando começam, tudo está perdido. E matarão a todo nós, se deixarmos.

Foi um inverno duro por muitos motivos. Lembro-me daquela noite de fevereiro — a noite do Dia de Lincoln — em que ouvi Ger-ro chorar.

Eu estava nos fundos da sala. O clube estava meio vazio e os sócios se limitavam a ficar ali conversando calmamente. Não havia mais orquestra, nem danças. O dinheiro era necessário para coisas mais importantes. Muita gente havia deixado de ir às reuniões. Ou tinham perdido a esperança ou tinham dado ouvidos às mentiras dos outros, deixando-se seduzir pela eloqüência grosseira e inflamada dos oradores de esquina

Eu estava conversando com Terry. Como de costume, ela se es­tava queixando.

Sabe que estou atrasada? Será mesmo que não se descuidou?

Claro que não me descuidei — disse eu, rindo. — Mas deixe de estar-se preocupando Se você estiver mesmo, posso sempre dar-lhe um empurrão na escada e tudo se resolverá assim.

Ela ficou furiosa.

Francamente não sei por que lhe dou atenção. Você não me da a mínima De mim só quer uma coisa.

E tenho de querer mais?

É assim, não é? — exclamou ela, com a boca torcida e os olhos fuzilantes, — Pois um dia você não me encontrará mais para lhe dar o que você quer. Você vai ver!

Você não é a única no mundo!

Vá para o inferno! Fique brincando até o dia em que eu me casar!

Quem é que vai-se casar com você?

Há quem me queira — disse ela, de repente muito segura de si mesma. — E está muito bem empregado. É chofer de um ônibus da Quinta Avenida. E é um verdadeiro cavalheiro, incapaz de forçar uma mulher a fazer o que não quer.

Isso vem apenas provar o velho ditado: De minuto em minu­to, nasce um trouxa no mundo". Por que não se casa com ele?

Isso é que eu não sei — disse ela. De repente, mudou o tom de voz, e me perguntou ternamente: — Nunca pensou em se casar, Frank?

Levantei as mãos, fingindo-me horrorizado.

—        Acha que eu sou maluco? Para que fazer uma mulher apenas infeliz, quando posso dar infelicidade a todas elas? Escute — acres­ centei, — rindo — está-me pedindo em casamento? Pegou-me de surpresa

Ela se zangou de novo.

—        Pode rir à vontade. Se vier este mês, eu me caso com ele e você vai ficar chupando o dedo.

Deu-me as costas e eu fiquei a olhá-la pensativamente. Nunca se podia saber quando ela estava falando a sério. Mas a verdade era que eu não queria casar-me com ninguém!

Gerro subiu à mesa para falar. Levantou as mãos pedindo silên­cio e disse:

—        Companheiros!

Mas foi só o que pôde dizer. No mesmo instante, uma pedra quebrou uma vidraça e caiu dentro da sala. Depois, jogaram mais pedras. Ficamos um instante parados, sem poder compreender o que estava acontecendo. Gerro continuou na mesa, com a boca a-berta de espanto.

Era eu quem estava mais perto da janela. Olhei para a rua e vi vinte ou trinta homens que olhavam para nós. Não reconheci ne­nhum deles. Senti alguém segurar-me a mão. Era Terry.

—        Que é que eles querem? — perguntou ela, amedrontada. Não tive necessidade de responder. Um homem lá embaixo gritou:

—        Queremos esse negro atrevido. Não vai continuar a fazer o que quer com as mulheres brancas do bairro. Tem de aprender a respeitar os brancos!

Olhei para Gerro. Estava no centro da sala e parecia sozinho. Os outros, com o medo estampado nos rostos, se encolhiam pelas paredes. Uma mulher perguntou alarmada, quase num grito:

Por que não chamam a polícia?

Acho melhor eu descer e ir falar com eles — disse Gerro calmamente, encaminhando-se para a porta.

Não o deixe ir, Frankie — disse-me Terry. — Podem matá-lo!

Reagi automaticamente ao pedido dela.

—        Espere um instante, Gerro. Não adianta nada você descer.

Vamos fazer as mulheres saírem primeiro.

Ele parou perto da porta e se dirigiu para a janela.

—        Fique onde está! — disse-lhe eu.

Ele parou e ficou a olhar-me. Voltei para a janela e gritei para a turma na rua:

—        Se nós o entregarmos, vocês deixarão os outros saírem?

Os homens falaram entre si e um deles gritou: — OK!

Está bem então. As mulheres sairão primeiro; depois, os homens. Quando todos saírem, vocês poderão subir e agarrá-lo.

Não! — gritaram lá de baixo. — Você descerá por último com ele.

OK! — respondi.

Não pode fazer isso, Frankie. Você não pode entregá-lo as­sim! — disse Terry, num sussurro.

Cale essa boca! — respondi-lhe em voz baixa. — Não vão pegá-lo. Assim que sair daqui, vá chamar a polícia. Depois, vá para casa e fique lá até eu entrar em contato com você. — Disse então em voz alta aos outros. Vocês todos sairão daqui. Portanto, não se preocupem. Saiam em fila, de chapéu na mão, para que eles possam ver que vocês são brancos. Vão para casa e fiquem lá até ama­nhã de manhã. E não abram a boca para falar com ninguém. Saiam e façam a pista!

Um dos homens protestou.

Não podemos deixar Gerro aqui!

Não vou deixar Gerro aqui!

Não vou deixar — disse eu. — Agora, vão saindo. Não que­rem que aconteça nada às mulheres, não é?

Começaram a encaminhar-se para a porta. Alguém gritou da rua:

—        Tragam esse negro para a janela para a gente ver que ele não está fugindo.

Isso atrapalhava um pouco os meus planos. Eu pretendia dizer a Gerro que fugisse pelo terraço, passando para os outros prédios. O pedido dos arruaceiros nos retardaria um pouco. Gerro dirigiu-se pa­ra a janela. Fi-lo parar. Chamei Joey e disse-lhe que fosse até ao ter­raço e abrisse a porta de alçapão para que nós pudéssemos fugir. De­pois, descesse e saísse com os outros.

—        Agora — disse eu aos outros —, vão saindo em fila e bem devagar. Todo o tempo que vocês ganharem com isso será precioso para nós.

Não houve confusão. Desceram em silêncio e com firmeza e saíram do prédio. Olhei pela janela e vi os primeiros saírem pela porta. Passaram perto do grupo, chegaram à esquina e de­sapareceram.

Lá embaixo, alguém gritou:

—        Onde está o negro?

Fiz sinal a Gerro e ele chegou à janela com o rosto sério e fir­me, os lábios apertados. Se estava com medo, não o demonstrava. Vi Terry chegar à esquina. Parou ali um instante para olhar para nós na janela e dar adeus. Jogaram uma pedra lá de baixo. Abaixei-me ins­tintivamente. A pedra foi atingir Gerro no rosto, mas ele não se mo­veu com o impacto.

Olhei-o em silêncio. O rosto fora ferido pela pedra e estava sangrando. Ele nem movia a cabeça. Não mostrava o menor sinal de estar ferido, nenhuma reação. O sangue lhe escorria pelas faces e pe­lo pescoço, manchando-lhe o colarinho da camisa. Dei-lhe o meu lenço que ele encostou ao rosto com tão pouca emoção quanto se fosse uma toalha quente de barbeiro. Continuou na janela olhando para os desordeiros.

Conhece algum deles? — perguntei-lhe.

Conheço quase todos — respondeu ele, com voz um pouco trêmula.

Alguns daqueles patifes deviam ter sido sócios do clube, pen­sei eu. Esperei que Joey voltasse antes que a última pessoa houves­se saído.

Frank! — disse afinal Joey da porta.

Tudo OK? — perguntei, sem sair da janela.

Tudo! — respondeu ele.

Vá saindo então! Não se esqueça de ser o último. — Disse então a Gerro na janela: — Venha comigo quando vir Joey chegar à rua.

Ele não respondeu. Mais algumas pedras foram jogadas. Esqui­vei-me delas, mas Gerro continuou no mesmo lugar, imóvel. Vi Joey aparecer na rua.

Vamos sair! — gritei. Antes de afastar-me da janela, vi os desordeiros ser dirigirem para a porta. Gerro continuava na janela.

Agarrei-o pela mão e puxei-o.

Vamo-nos embora

Corri para a porta, quase arrastando Gerro. Chegamos ao pata­mar. Ouvia passos lá embaixo na escada. Virei-me para o outro lado e comecei a correr pela escada para o último andar. Vi que o alçapão quadrado da saída tinha sido tirado e pela abertura viam-se as estre­las. Fiz intimamente um elogio a Joey.

Empurrei Gerro pela escada à minha frente e vi-o desaparecer pelo alçapão, depois do que segui-o. Havia gritos embaixo, na sala do clube. O barulho mostrava que estavam quebrando os móveis. E houve também um tropel pela escada. Já estava quase chegando ao terraço quando senti uma mão agarrar-me pelo pé. Olhei e vi um dos desordeiros que subia a escada. Meti o pé nele com toda a força. A-certei-lhe a cara. Ele caiu da escada e eu galguei o alçapão.

Corri os olhos em torno. Os terraços estavam cobertos com os restos da última nevada. Vi a tampa ao lado do alçapão e perto dela um colchão velho, que provavelmente algum inquilina esquecera ali depois de passar as noites no terraço durante o verão.

—        Ajude-me aqui — disse eu a Gerro.

Ele ainda estava com o rosto sangrando, mas curvou-se e me ajudou a colocar a tampa. Joguei depois o colchão em cima, na espe­rança de que isso os retardasse um pouco mais. Alguns terraços ti­nham aberturas de alçapão como aquela. Corri sobre os prédios para eles. A primeira ficava a cerca de duas casas de distância. Quando tentei abri-Ia, não consegui. Estava trancada.

Olhei para o prédio de que havíamos partido. A tampa ainda es­tava na abertura, mas se movia. O colchão subia e descia e estava escorregando um pouco. Os arruaceiros não tardariam a passar. Cor­remos para o prédio vizinho.

Tivemos mais sorte lá, A porta estava aberta. Entramos e eu tranquei a porta com o ferrolho depois de passar. Descemos as es­cadas e saímos do prédio na Rua 68, tomando então o caminho do parque.

Olhei para a rua. Não havia qualquer sinal de perseguição. To­mamos um carro que passava em Central Park Oeste.

—        Siga depressa — disse eu ao motorista. — Já lhe direi para onde vamos.

Gerro jogou-se no banco e cobriu o rosto com as mãos. O lenço que tinha nas mãos já estava todo ensangüentado. Afastei-lhe as mãos do rosto e examinei o corte.

—        O ferimento está feio. É preciso um médico fazer um curati­vo nisso.

Disse ao motorista que nos levasse para o Hospital Roosevelt. Saltamos no hospital e eu paguei ao motorista. Fomos para a sala de pronto-socorro e um interno examinou o ferimento. Era preciso dar alguns pontos. Enquanto o médico tratava de Gerro, respondi às perguntas da enfermeira que preenchia uma ficha. O médico terminou o curativo e recomendou a Gerro que fosse para casa e descansasse um pouco. Deu-lhe alguns comprimidos para tomar e nós saímos do hospital.

Um relógio numa loja do outro lado da rua marcava onze horas. Olhei para Gerro.

—        Você tem de ir para casa já. Está-me parecendo um tanto fraco.

Ele tentou sorrir.

Vou para casa, sim. Mas não é preciso você se incomodar, Frank. Obrigado por tudo. Você foi formidável!

Nem pense nisso. Acha mesmo que pode ir sozinho?

Claro que posso! — disse ele, mas tive a impressão de que o corpo oscilava um pouco.

Estendi a mão para firmá-lo e disse:

—        Acho que vou com você. Podemos acabar a noite juntos, como começamos,

Ele não protestou

Onde é que você mora? — perguntei.

Acho melhor eu não ir para casa. Meu pessoal vai ficar mui­to preocupado se me vir neste estado. Acho que vou para a casa de uma pessoa amiga.

—        Está bem, Gerro, mas vamos logo que você precisa de des­cansar.

Tomamos um táxi. Ele deu ao chofer um endereço em Creen-wich Village. Gerro se recostou nas almofadas e durante algum tem­po, enquanto o táxi rodava para o centro, não falamos. Ele olhava pela vidraça. Eu de vez em quando olhava para ele.

Afinal, ele baixou a cabeça para as mãos e começou a chorar. Eu sabia que não era de dor. Era o choque, a humilhação que se ex­primiam naqueles soluços duros e contidos.

—        Loucos! — murmurou ele. — Pobres loucos desorientados! Quando é que vão aprender?

O táxi parou diante de um pequeno edifício remodelado, de a-partamentos. Sobre a porta lia-se o letreiro: "Edifício Studio". Saltei, paguei ao chofer e nós entramos no prédio. Paramos diante de uma porta no segundo andar. Gerro tocou a campainha. Pela contração do rosto dele, eu percebia que o ferimento estava começando a doer.

Tocamos de novo a campainha. Esperamos um pouco, mas nin­guém apareceu.

Acho que o seu amigo não está, Gerro.

Tenho a chave — disse ele, tirando a chave do bolso e abrindo a porta. Entrei com ele no apartamento. Gerro acendeu a luz. Num canto da sala, havia uma máquina de escrever e algumas tiras de papel rasgadas. No outro lado, via-se um cavalete de pintura, mostrando um retrato de homem, inacabado. Havia uma mesa e vá­rias poltronas espalhadas pela sala. Noutro canto, perto da janela, via-se uma kitchenette com fogão, geladeira e armário. Do outro la­do da sala, havia uma porta. Gerro abriu-a. Vi duas camas e uma penteadeira lá dentro. Gerro fechou a porta e voltou para a sala.

Parece que não estão em casa — murmurou ele com um ar de incerteza, como se não soubesse o que devia fazer. — Mas acho que agora estou bem. Você podia ir para sua casa. Já é bem tarde e você deve estar exausto.

Só vou depois que o meter na cama e depois que você tomar alguma coisa quente e os comprimidos que o médico lhe receitou.

—        Não é preciso você se incomodar.

Tive a impressão de que ele queria que eu saísse, mas repliquei:

Nada disso! Vá para a cama. Vou botar água no fogo. Sabe se há chá por aqui?

Deve haver no armário.

Fui até ao fogão, enchi uma chaleira com água e depois voltei-me ao ver que ele me olhava.

—        Vá tirar a roupa e deitar-se.

Gerro foi para o quarto e fechou a porta.

Preparei o chá e fui com uma xícara até à porta fechada.

O chá está pronto, Gerro.

Pode entrar.

Ele estava na cama mais afastada da porta, perto da janela. Ti­nha vestido um pijama azul e o rosto escuro se destacava do traves­seiro branco, tendo ainda o curativo a dar-lhe um aspecto estranho.

Como se está sentindo, Gerro?

Um pouco melhor, mas com uma terrível dor de cabeça.

Beba isto e sentirá melhor. Está com os comprimido que o médico lhe deu?

Abriu a mão e mostrou-os

—        Muito bem. Torne-os com o chá.

Ele engoliu os comprimidos e estendeu a mão para pegar a xí­cara de chá, mas eu vi que a mão estava tão trêmula que ele mal po­dia segurá-la. Ajudei-o a beber, segurando a xícara. Afinal acabou e descansou a cabeça no travesseiro.

Mais alguma coisa que queira que eu faça para você, Gerro?

Não, muito obrigado. Já fez demais.

Ficamos algum tempo em silêncio e eu vi que ele começava a cochilar. De repente, abriu os olhos e perguntou:

Frank, você teve medo quando estávamos lá no clube?

Claro que tive um medo louco — disse eu, sorrindo.

Você não está dizendo a verdade, Frank. Você não teve um pingo de medo. Eu o estava observando. Ficou impassível e deu-me até a impressão de que estava gostando. — Você também não mos­trou medo, Gerro. Queria descer sozinho para falar com .eles.

Estava mais era com medo. No meu intimo, sabia que estava com medo e tinha vergonha disso. Pensei que havia vencido esse medo há muito tempo. É um medo de natureza peculiar — o medo de uma turba de brancos. É um medo especial dos negros e eu havia muito que não o experimentava.

Bem, você pode ter sentido medo, mas não demonstrou na­da. Agora, não pense mais nisso e veja se dorme. Quando acordar amanhã, tudo parecerá diferente.

Acha que amanhã será diferente? Poderão as coisas um dia ser diferentes do que são hoje? A espécie humana não muda com fa­cilidade. Quando as coisas não correm bem, procura-se sempre um bode-expiatório. Esquecem qualquer coisa que se tinha feito por eles na sua sede irracional de vingança.

Levantei-me e falei com um tom determinado:

Tire essas coisas da cabeça e trate de dormir. Precisa agora de um pouco de repouso. Vou ficar na sala. Se precisar de mim é só me chamar.

Você é um camarada curioso Frank — murmurou ele. — Já lhe disse isso, não disse?

Já e pode dizer-me outra vez, amanhã, depois de um bom descanso. Boa noite, Gerro.

Boa noite.

Fechei a porta com cuidado. Depois, fui lavar a xícara e guar­dei-a no armário. Sentei-me então e acendi um cigarro. Quando já havia fumado a metade, tive a impressão de que ele me havia chamado. Levantei-me e olhei para dentro do quarto. Ele estava dor­mindo. Voltei para a poltrona.

Havia um pequeno retrato de Gerro na mesa ao lado do cavale-te. Era um bom retrato. Eu não tinha dado muita atenção a isso até então, mas Gerro era um homem bonito, com um rosto sensível e bem feito, com maçãs salientes, olhos inteligentes e uma linha longa e firme de queixo. Deixei o retrato no lugar e tornei a sentar-me. Lembro-me de ainda haver olhado para o relógio, verificando que já passava de uma hora. Peguei então no sono.

Acordei ao ouvir uma chave girar na fechadura. Olhei rápida­mente para o relógio e vi que já eram três e meia. Esperei que a porta se abrisse e vi então uma moça entrar na sala. Deu alguns passos e parou logo que me viu.

Era muito bonita — pequena, com Os cabelos vermelho-escuro, os olhos castanhos e uma boca bem feita, O casaco estava aberto e eu percebi que o corpo era magnífico, sexy. Todas as coisas certas nos lugares certos. Pernas bonitas e uma pele bem lisa e cremosa. Pisquei os olhos. Era por isso que Gerro tinha querido fazer-me sair. Levantei-me.

—        Quem é você — perguntou ela. A voz correspondia à apa­rência. Era suave e profunda.

Sou Frank Kane — respondi. — Amigo de Gerro.

Onde está ele?

Apontei para o quarto.

—        Está dormindo. Sofreu um pequeno acidente e eu vim com ele.

Ela fechou a porta e entrou, tirando o casaco. Depois, foi até à porta do quarto e abriu-a. Vi que ele ainda estava dormindo. Ela en­trou no quarto, aproximou-se da cama e ficou a olhá-lo. Ao fim de algum tempo, saiu e fechou a porta.

Vi que ela estava um pouco pálida e disse:

Não se preocupe. Não é nada demais.

Que foi que houve?

Tirei o maço de cigarros e ofereci-lhe. Depois dos cigarros ace­sos, contei-lhe tudo. Quando acabei, ela se encolheu na poltrona.

Deve ter sido horrível — murmurou.

Mas poderia ter sido muito pior.

Estou falando é dele — disse e — Não sabe quanto ele se dedicou àquele clube e o orgulho que tinha dele. Como ficava satis­feito com a maneira pela qual o aceitavam ali! Sempre disse que isso era apenas o começo — um prenúncio de dias melhores, quando to­dos, fosse qual fosse a cor ou o credo de cada um, se entenderiam uns com os outros. Deve ter sido um choque tremendo para ele.

Bem, o ferimento não foi tão grave assim.

Não, ele esquecerá bem depressa o aspecto físico do caso. O ferimento mais grave foi psicológico — o seu orgulho e o seu espíri­to — e isso vai custar muito mais a cicatrizar do que o ferimento do rosto.

Peguei o meu sobretudo e disse:

Bem, vou indo. Só estava esperando que chegasse alguém para dizer que ele não devia ser perturbado.

Não — disse ela prontamente —, não se vá embora. Já e tar­de. Não sei onde mora, mas pode passar a noite aqui. Durma no quarto com Gerro, na outra cama. Dormirei aqui no sofá. Está-me parecendo muito cansado.

Não. De qualquer maneira, muito obrigado, mas acho que é melhor eu ir.

Dirigi.me para a porta. Ela me acompanhou e disse:

—        Por que não fica? Não me importo de dormir aqui no sofá, sinceramente De qualquer modo, é isso mesmo que tenho de fazer. Olhei-a, estranhando Ela ficou muito vermelha e baixou os olhos pa­ra o chão.

—        Espere um pouco. Acho que não compreende. Sou a esposa dele.

Estive a ponto de sorrir.

—        Escute, não quero parecer grosseiro, nem malicioso. O pro­blema é seu e não meu. Para mim não tem importância nenhuma quem seja ou o que seja. Acho Gerro um grande sujeito. Acho até que pode ser um grande homem. Sou apenas uma das pessoas que têm a sorte de conhecê-lo. É só.

Ela se sentou numa poltrona. Parecia furiosa consigo mesma.

—        Desculpe ter-lhe dito isso. Menti. Não sou esposa dele. — Levantou a cabeça e olhou-me com altivez. — Mas gostaria de ser.

Gostaria de ter a coragem de pedir-lhe que se casasse comigo.

Olhei-a firmemente até que ela começou a ficar vermelha de novo. Mas não desviou os olhos. Joguei o sobretudo num canto.

Isso é maneira de tratar um hóspede? — perguntei jovial­mente. — Não tem nada para se comer aqui dentro. Estou com fome, senhorita...?

Marianne Renoir.

Não há nada para se comer, Marianne? — perguntei, sor­rindo.

Ovos? — disse ela, sorrindo também. — Terá de contentar-se com isso, pois é só o que há, — Encaminhou-se para a kitchenet. — Fritos ou mexidos?

Dez minutos depois, estávamos sentados à mesa, comendo. Isto é, eu estava comendo e ela falava.

—        Gerro não teria gostado de saber do que eu lhe disse. Não quer mentiras a nosso respeito. Diz que a verdade é sempre muito mais simples.

Acendeu um cigarro e continuou.

—        Conheci Gerro logo que entramos para a universidade. Sabe como são essas coisas. Um minuto, conversa-se sobre um problema comum dos estudos e, no minuto seguinte, descobre-se que há coisas mais importa de que falar.

"Bem, a coragem foi minha. Vamos desafiar o mundo, disse eu. De que valem os preconceitos alheios? Que importância tem o que os outros pensem ou digam? Vamos mostrar-lhes uma coisa. Gerro nunca disse coisa alguma. Limitava-se a sorrir naquela sua maneira doce, calma e sincera, sem dizer uma palavra.

"Acho que, já naquela época, eu falava demais para impedi-lo de enfrentar a realidade. Minha família nunca haveria de concordar. Sou do Haiti e, embora haja em mim um pouco de sangue negro, a-cho que do tempo de meus bisavós, meus pais têm mais orgulho da sua cor do que se fossem brancos puros. E a família de Gerro era a mesma coisa, embora de um ponto de vista diametralmente oposto.

"Gerro sempre quis ser escritor e jornalista Estudou jornalismo na universidade. Ma logo percebeu a enorme desproporção entre a sua competência e as oportunidades que lhe apareciam. Resolveu en­tão trabalhar para modificar esse estado de coisas. Pensou que, se ele se esforçasse ao máximo e outras pessoas fizessem também tudo o que pudessem, os outros acabariam por aceitá-lo, como ele estava disposto a aceitar todas as pessoas. É por isso que eu acho que ele deve ter sentido muito o que aconteceu esta noite.

"Trabalha tanto que só tem tempo de vir-me ver uma vez por semana. E quando chega aqui, senta-se diante daquela máquina e começa a escrever coisas tão admiráveis, belas e sentidas que não sei como alguém pode lê-las sem chorar. Derrama o coração e a alma naquela máquina e, quando acaba, olha para mim, sorri e me pede que leia. Enquanto leio, ele anda de um lado para outro nervosamen­te, acendendo um cigarro atrás do outro, inquieto por saber da minha opinião.

"Quando eu acabo e digo-lhe que tudo está magnífico, ele me toma das mãos as páginas datilografadas e pergunta ansiosamente. 'É verdade, Marianne? É verdade mesmo?'

"E era verdade. Era a verdade que ele escrevia — a verdade nua, crua, honesta, sem compromissos Era todo o desespero de uma alma humana, a sua sensibilidade aos sentimentos dos seus seme­lhantes Era a verdade — um farol brilhante e claro numa noite de nevoeiro, obscurecida pelos preconceitos e pela ignorância."

Levantou-se e apanhou o retrato de Gerro que eu havia exami­nado pouco antes.

—        Pintei-o num dia em que ele estava trabalhando. Só perce­beu o que eu estava fazendo, quando acabou o trabalho e me viu. Sorri para ele e mostrei-lhe o retrato. E sabe o que foi que ele me disse? "Mas, querida, você me fez um homem bonito !" Com se ele não fosse bonito, bom e honesto por direito próprio.

Olhou para o retrato ainda alguns minutos. Eu havia acabado de comer os ovos Ela, no seu enlevo, nem tomava conhecimento de mi­nha presença.

—        Oh! Como desejo que nós fossemos casados!

Comecei a falar, mas uma voz me interrompeu. Era Gerro, que estava na porta d quarto, sorrindo para nós.

—        Vejo que vocês dois já se conhecem — disse ele. — Mas posso jurar que, como de costume, ela só contou o lado dela da his­tória. Não lhe disse que ganhou a Bolsa Ross de Estudos Artísticos, disse? Disse que a família dela é uma das mais ricas do Haiti? Disse que se eu me casasse com ela não teríamos um centavo para vi­ver?

Ela se levantou e correu para ele.

Estava com tanto receio por sua causa, Gerro

Receio, Marianne? — disse ele, sorrindo. — Não acredito. Talvez eu tivesse receio. Mas você, não.

Levantei-me da mesa e disse:

—        Escutem aqui. Estou cansadíssimo. Vamos entrar em recesso por esta noite, está bem? Amanhã ouvirei o seu lado da história, Ger­ ro. Agora, vamos dormir.

Deitei-me no sofá da sala. Já estava quase dormindo quando ouvi alguém sair do quarto. Era Marianne.

Elejá está dormindo, Marianne? — perguntei em voz baixa.

Já — disse ela, aproximando-se do sofá. E você? Ainda não dormiu?

Não.

Ele me contou o que você fez. Vim agradecer-lhe. Eu não sabia... — murmurou ela, rindo de repente.

De que é que está rindo?

Sabe o que foi que eu pensei quando entrei no apartamento e vi você ali na poltrona? Pensei que fosse um ladrão e que havia pe­gado no sono, acordando quando entrei. Havia no seu rosto alguma coisa que parecia estar rindo de mim e dizendo: "Está bem, fui pega­do. E agora, que é que vai fazer?" Estava com medo de entrar, mas não podia fugir. Um dia, vou pintar o seu retrato... embora eu saiba agora que é uma boa pessoa.

Não respondi.

Ela se curvou para mim e deu-me um beijo no rosto. Havia nela um perfume, uma feminilidade de que tive imediata consciência.

—        Isto é por ter sido bom com Gerro, como foi. Passei os braços e torno dela e puxei-a para mim.

—        Esse foi por causa de Gerro — sussurrei-lhe eu. — Este ago­ra é por minha causa.

Beijei-a na boca. A princípio, ficou tão surpresa que não me pôde impedir. Depois, beijou-me também. Passou os braços sob a minha cabeça e manteve o meu rosto junto do dela. Quando nos separamos, perguntei-lhe:

—        Por que disse tudo aquilo enquanto eu estava comendo? Por mim ou por você?

Ela me olhou firmemente durante alguns segundos. Depois, le­vantou-se e disse:

—        Patife! Patife imundo! Agora, não posso mais pintar o seu retrato. Você é mesmo um ladrão, como pensei da primeira vez. — Voltou para o quarto e parou à porta para dizer-me: — Não quero vê-lo nunca mais!

Virei-me no sofá para olhar para ela e perguntei

—        Você diria isso se eu não fosse amigo de Gerro, Marianne?

Ela entrou no quarto sem me responder. Fiquei olhando para o teto, sorrindo comigo mesmo. Ela tinha razão. Eu nunca mais a veria, enquanto Gerro fosse meu amigo. Era perigoso demais para nós ambos. Eu gostava dela — mais do que já havia gostado de qualquer mulher. Havia alguma coisa nela — em nós — que parecia atrair-nos um para o outro. Senti isso logo que a vi. Sabia que ela devia ter sentido também. Eu gostava da voz dela, do rosto móvel e expressivo, das mãos com os dedos longos, firmes e sensíveis. Tinha gostado do contato dos lábios dela, com os cantos da boca movendo-se levemente. Mas nunca poderia vê-la enquanto Gerro fosse meu amigo.

Saí do apartamento de manhã bem cedo, antes que qualquer de­les acordasse. Era segunda-feira e eu tinha de trabalhar. Saí do apar­tamento furtivamente... como um ladrão.

Pouco depois de abrirmos o armazém, Terry apareceu. Estava furiosa.

Você não disse que ia entrar em contato comigo ontem à noite.

Não pude — disse eu, tentando acalmá-la, enquanto Harry nos olhava com curiosidade. — Gerro ficou ferido e eu tive de pas­sar a noite com ele. Que foi que aconteceu depois que eu saí?

Não sei — disse ela, já bem mais calma. — Chamei a polí­cia, como você recomendou, e depois fui para casa. Acho que o clu­ be deve estar em pedaços. Como vai Gerro?

Vai ficar bom. Saímos pelo terraço.

Que é que vão fazer com o clube?

Não sei, Terry

Saímos para a rua e olhamos para o clube. Todas as vidraças das janelas estavam despedaçadas. Subimos. Os poucos móveis que havia estavam completamente destroçados. Haviam escrito obsceni­dades nas paredes. Quando descemos, Terry estava com uma cara esquisita.

Acho que agora tudo está acabado — murmurou ela.

Talvez. Mas nunca se pode saber. Se o clube significava muito para os sócios, eles tratarão de reabri-lo.

Claro que significava muito! — disse ela.

Que significava o clube para você? — perguntei, com curio­ sidade. — Que era que você ganhava com ele?

Ela hesitou um momento antes de responder.

Ora, era um lugar onde a gente via os outros, fazia amizades e conversava sobre as coisas. Era um lugar de reunião.

Não era um lugar onde você podia repartir o que tinha com os outros? Não era um pouco mais do que um lugar de divertimento apenas?

Acho que sim — disse ela sem muita certeza.

Eu tinha razão. A maior parte das pessoas não faziam uma idéia exata do clube. Este era apenas um lugar aonde iam. O que se fazia ali de bom devia-se exclusivamente ao trabalho de alguns diretores, de homens como Gerro. O sócio comum não fazia idéia da impor­tância que tinha ou podia ter o clube. Despedi-me de Terry e fui tra­balhar.

Na quarta-feira à tarde, Harry atendeu o telefone.

É para você — disse-me ele, passando-me o fone.

Alô, — disse eu.

Alô, Frank. É Gerro.

Como está passando?

Já estou bom. Só telefonei para saber se você pode jantar comigo esta noite.

Será ótimo. Onde?

Aqui em casa de Marianne.

Não esperava por isso e fiquei sem saber o que dizer. Não que­ria ir lá; não queria vê-la. Ou, melhor, queria vê-la, mas sabia que não devia. Tinha pensado muito nela naqueles dias — muito mais do que seria crível. Era curiosa a maneira pela qual ela me havia ficado na cabeça.

A que horas?

Vamos dizer sete e meia

Espere um pouco Gerro. Agora ê que me lembrei. O cami­nhão chega hoje à noite e eu tenho de esperar por ele. Não poderei ir.

Sinto muito.

Oh! É uma pena. Marianne queria tanto que você viesse. Se­rá uma decepção para nós dois.

Achei engraçado meu coração disparar quando Gerro falou no nome dela.

Peça muitas desculpas a ela em meu nome, mas você deve compreender.

Compreendo, sim. Fica para outra vez.

—        Sim, outra vez.

Despedimo-nos e desligamos.

Fiquei satisfeito depois daquele telefonema. Ela devia ter pen­sado também em mim, pois do contrário eu não receberia aquele convite.

Gerro me telefonou de novo na semana seguinte e eu fui jantar com ele num restaurante da Rua 14. Conversamos muito. Eu estava começando a gostar um bocado dele. Era talvez a primeira pessoa que eu conhecia havia muito tempo e com quem fazia boa amizade.

Que é que você vai fazer agora? — perguntei-lhe quando já estávamos na sobremesa.

Vou passar para um clube no Harlem.

Não sei por que você tem tanto trabalho com essa gente, Gerro! A maioria não sabe o que você está querendo realmente fazer ou não se interessa. Querem apenas um lugar onde possam divertir-se um pouco.

Sei perfeitamente disso, — replicou ele, causando-me sur­presa. — Sei que a maioria não compreende o que nós tentamos fa­zer. Mas isso não é motivo para que eu não procure ajudá-los. Mais cedo ou mais tarde, todos acabarão compreendendo que o que esta­mos fazendo é que é o certo. Pode demorar algum tempo, mais aprenderão.

Vai então para o Harlem — disse eu, pensando na família Harris. Ele podia fazer muito ali. Tinha capacidade para isso.

É verdade. A organização acha que poderia fazer melhor serviço no meio da minha gente.

Mas você fez muito bom serviço aqui, Gerro!

Eu também pensava assim, mas agora não sei. Eu havia es­perado que, trabalhando com eles, faríamos com que as velhas animosidades e divergências fossem esquecidas. É essa a única maneira de conseguir uma verdadeira união: trabalhar-se juntos para um ob­jetivo comum. Dessa maneira, nós nos conheceríamos melhor compreenderíamos que todos nós desejamos a mesma coisa. Desse modo, acabar-se-iam as divergências.

—        Acho que tem razão — disse eu. Não sabia até que ponto ele tinha razão, mas sabia que ninguém pode modificar as pessoas da noite para o dia.

Encontrei-me com ele uma vez por semana depois disso e era sempre para mim a melhor noite da semana. Ficava à espera dele. Éramos já muito bons amigos.

Passei a ver menos Terry. O clube se mudara para nova sede a umas cinco ruas de distância e eu não fui a qualquer das reuniões ali. Estava mudado depois que conhecera Marianne. Começava a sentir que havia mais coisas que eu queria de uma mulher do que a mera posse física do seu corpo. Terry era uma boa menina, mas não tinha aquilo de que eu precisava. Não havia entre nós a menor pretensão de amor. As nossas relações eram puramente físicas. De uma manei­ra vaga, eu sentia que não era isso apenas o que eu queria. Não tinha com ela aquele sentimento de exaltação, de curiosidade e de consci­ência profunda que eu experimentava ao pensar em Marianne. Che­guei a pensar que estava apaixonado, mas tirei isso da cabeça, rindo. A idéia de uma paixão era para mim um absurdo. Era uma coisa que só acontecia nos livros e nos filmes, mas que não tinha qualquer re­lação com a vida real. Tinha certeza de não estar apaixonado.

Numa noite em março, estávamos no vestíbulo de entrada do prédio onde Terry morava. Eu a beijara e ela me repelira. Dessa vez, eu não havia insistido e ela estava ali no escuro olhando para mim. Falou por fim.

—        Você está mudado, Frank.

Ri-me.

Está mudado, sim — continuou ela. — Há alguma coisa di­ferente em sua cabeça.

Que eu saiba, não há nada.

Você pode não saber, mas há. Depois, estive pensando. O que estamos fazendo tem de acabar.

Eu nada disse.

—        Vê como tenho razão? — continuou ela, com mais seguran­ça. — Há alguns meses, você teria discutido comigo para convencer-me do contrário. Agora, fica calado. Para mim, é melhor assim. Eu ia mesmo parar com isso porque vou casar-me.

Ela não compreendeu bem o meu suspiro de alívio. Eu estava esperando outra coisa.

—        É mesmo com a pessoa de quem já lhe falei. É motorista de ônibus. O emprego é bom e ele faz quase quarenta dólares por sema­na. Gosta de mim e, se eu me casar com ele, posso sair deste buraco e ter tudo o que eu quero. Podemos ir morar em Long Island num bom apartamento Com aquecimento e não nesta friagem onde vivo. Não terei mais de me preocupar com contas ou comida ou de ficar contando tostões.

Procurei fingir tristeza, mas era difícil. Ela botou a mão em meu braço.

—        Não leve a mal, Frank. Mas é o inevitável. — Parecia a ar­tista de um filme que tínhamos visto juntos na semana anterior. — Tivemos um bocado de bons momentos juntos. Vamos separar-nos como amigos.

Olhei para ela. Não era possível que estivesse dizendo aquelas tolices a sério. Mas o rosto sério mostrava que estava. Tive uma vontade enorme de rir e, por isso, foi com a voz estrangulada que disse.

Se é assim que você quer, Terry.

Ela pensou que fosse tristeza.

É adeus então, Frank.

Segui as regras do jogo.

Não, Terry. Você não pode estar falando a sério.

Estou, sim, Frank. Adeus

Ela se deixara levar tanto pelo que dissera que tinha lágrimas de verdade nos olhos.

Dei-lhe um beijo no rosto.

—        Acho que está certa. Não sirvo para você. Só desejo é que seja muito feliz. Adeus e boa sorte,

Ela desatou em soluços e subiu as escadas chorando. Saí então para a rua, rindo.

Um mês depois, quando entrei no restaurante onde havia com­binado encontrar-me com Gerro, vi Marianne sentada à mesa com ele. Parei um instante à porta hesitando e então continuei, porque ele me havia visto. Sentei-me.

Marianne veio jantar conosco — disse Gerro, sorrindo.

Estou vendo. Como vai, Marianne?

Estou bem — disse ela, sorrindo pan mim de uma maneira que me fez o sangue correr mais depressa. — E você, como vai?

Muito bem — disse eu, olhando o cardápio para que ela não pudesse perceber o que me passava pela cabeça.

Com licença um instante — disse Gerro, levantando-se — Peçam um suco de tomate para mim.

Dirigiu-se para o lavatório dos homens. Eu não acabava mais de olhar o cardápio.

Que é que há, Frank? — perguntou Marianne, com um sorri­so. — Ficou surpreso de que eu tivesse vindo?

Um pouco.

Ora não se incomode com isso. Eu estava apenas com curio­sidade de saber como você era a luz do dia.

Olhei para fora pela janela do restaurante. Já estava escuro ha­via mais de uma hora.

Ela seguiu o meu olhar e riu.

Não acredita em mim, então?

Não.

Ela tornou a rir.

Acho que você está é com medo de mim, Frank. Com certe­za, julga que sou uma mulher mal intencionada.

Já lhe disse da outra vez que não me interessa saber quem você é. Eu sou amigo de Gerro.

Touché! — exclamou ela. Depois, debruçou-se sobre a me­sa e me disse muito séria: — Frank, é possível a uma mulher amar dois homens ao mesmo tempo. Gerro é admirável — doce, bondoso e dono de tudo o que uma mulher deseja num homem. Gostaria de que fossemos casados e é com toda a sinceridade que digo isso. Mas você é diferente. Você é ruim, egoísta, desonesto. Mostra isso no rosto. Parece querer tudo o que os outros possuem. Mas você me in­teressa. Sinto vontade de desmontá-lo peça por peça para ver o que faz você andar. Mas você é esquivo. Eu sabia que nunca me iria procurar e por isso pedi a Gerro que me trouxesse. Tinha de vê-lo de novo. Tinha de saber o que você sente por mim. Agora, já sei.

Está mais do que visível por baixo dessa máscara que você teima em colocar no rosto.

Neste caso, acho que pode ver também que é o amor de Ger­ro e que ele já tem muitos problemas e não precisa de que eu vá complicar-lhe ainda a vida particular. Há anos, é você quem dá for­ças a Gerro. Não vou privá-lo disso.

Ela baixou a vista para o prato e mordeu os lábios. O rosto vermelho. Corava com muita facilidade. Ia responder-me quando Gerro voltou e a conversa parou aí.

Quando saí depois do jantar, fui caminhando lentamente pela rua. "Se não fosse Gerro..." pensava eu. Mas tirei resolutamente o pensamento da cabeça e voltei para o hotel.

Abril chegou, trazendo o primeiro toque suave da primavera. Primavera em Nova York! Tinha sem dúvida um efeito sobre a gen­te, mas não era nada daquilo que se costuma atribuir à primavera. Era a primeira sortida dos dias insuportáveis e quentes que viriam. Era o primeiro sinal de um verão tórrido e desagradável. Eu ia vi­vendo automaticamente — um dia atrás do outro, fazendo a mesma coisa todos os dias. Não sabia se era feliz, mas sabia que vivia con­formado, de uma maneira estranhamente insatisfeita.

Gerro perguntou-me uma noite se eu podia ir à Union Square no primeiro de Maio. Fora designado para fazer um discurso e queria que eu o ouvisse. Eu não sabia se podia ir, pois o Primeiro de Maio caía numa segunda-feira. Mas disse que pediria a Harry algumas ho­ras de folga à tarde. Se conseguisse isso, iria.

Não tinha visto Marianne desde a noite do jantar, em março. Pensei vagamente que talvez ela estivesse lá também. Não sei se foi isso que me fez afinal decidir comparecer ao comício do Primeiro de Maio. Mas isso deve ter influído na minha decisão, porque a verdade é que eu não gosto de ouvir discursos.

De qualquer modo, no dia 1.° de maio, segunda-feira, tive folga para ir. Havia muita gente na praça, em cujo centro haviam armado um coreto para os oradores. Alguns homens andavam pelo meio do povo distribuindo um papel no qual estava impresso o programa do dia. Vi que Gerro seria o quarto orador. O tema do seu discurso, de acordo com o programa, seria "O Direito Inato da Igualdade".

Consegui chegar perto do coreto. Estava falando um homem que eu não sabia quem era e não me interessava. Procurei ver se a-vistava Gerro. Estava no coreto com outros homens, que esperavam evidentemente a sua vez de falar. Dei-lhe adeus. Os olhos dele, que estavam correndo nervosamente pela multidão, pararam em mim. Sorriu e fez um gesto com a cabeça para mostrar que me havia visto. Comecei a procurar no meio da multidão para ver se via Marianne. Mas ela não estava lá.

Puxaram-me pela manga do paletó. Voltei-me e vi Terry.

Alô — disse eu, sorrindo. — Não esperava vê-la aqui. Ela sorriu também e disse:

Vim ouvir Gerro falar. Estou aqui com meu pessoal.

—        Ótimo — murmurei desajeitadamente, sem saber mais o que ia dizer. — Como vai indo você?

Era uma pergunta idiota, pois eu a via quase todos os dias no armazém. Mas parecia que nos havíamos tornado dois estranhos e nada mais tínhamos para dizer um ao outro.

Vou bem. Muita gente, não é?

Muita — disse eu, ainda procurando Marianne com os olhos.

Ficamos alguns minutos em silêncio. Não havia mais nada para dizer. Afinal, ela disse:

Tenho de voltar para onde está o meu pessoal.

Está bem, Terry.

Adeus.

Continuei a olhar para todos os cantos, mas não vi Marianne. Olhei para o coreto e vi Gerro encaminhar-se para a escada. Fui até lá.

Apertei-lhe a mão.

—        Olá, rapaz!

Foi muito bom você ter vindo, Frank. Eu estava um bocado nervoso até ver você. É a primeira vez que faço um discurso para tanta gente, mas bastou ver você para me sentir melhor. Gosto sem­ pre de falar para alguém no público que eu conheça. Faz a gente es­quecer os outros.

Fico então contente de ter vindo — disse eu, rindo. Olhei em torno e perguntei displicentemente — Marianne veio também?

Não. Ela diz que não suporta multidões.

Dissimulei a minha decepção. Conversamos mais alguns minu­tos e ele voltou para o coreto. Fiquei à espera de que ele falasse. Ha­via mais dois oradores antes dele.

Via-se ali gente de toda a espécie — pobres de todas as raças, todas as cores, todos os credos, vestidos com o que tinham de me­lhor. A pobreza não era exclusividade. Não era precisa ter nascido nos Estados Unidos para viver na miséria. Além da multidão, havia polícias a cavalo para manter a ordem. Montavam belos cavalos ala­zões, e seguravam firmemente os cassetetes na mão. Pareciam pron­tos a reprimir qualquer desordem.

No coreto, o primeiro orador havia terminado e era outro que estava falando. O calor estava forte e eu saí do meio do povo para comprar uma coca-cola. Voltei então para junto do coreto, onde Ger­ro estava na primeira fila, na ponta mais próxima da escada. Acabei de tomar o refrigerante e, como não encontrei um lugar para deixar a garrafa, continuei com ela na mão.

De repente, vi um movimento da multidão como uma onda que se estendesse na direção do coreto. Começaram a gritar: "Bri­ga! Briga !" Gerro se aproximou da beira do coreto e ficou olhando. Procurei um lugar onde pudesse ver melhor e divisei alguns ho­mens que lutavam. Voltei os olhos para o coreto e vi Gerro descer a escada. Do outro lado, vi um polícia que galopava para o ponto onde havia a briga, fazendo gente correr para todos os cantos, saindo da frente do cavalo.

Depois disso, tudo aconteceu rapidamente. Gerro tentou apartar dois dos homens que brigavam. O guarda se aproximou, brandindo o cassetete para os homens que brigavam. Gritava alguma coisa, mas não pude ouvir o que era, tamanho era o barulho que fazia o povo. Vi Gerro dar um pulo e tentar agarrar o braço armado de cassetete do polícia. Eu sabia que ele estava apenas querendo impedir que o polí­cia batesse em alguém. Mas o polícia fez rodar o cavalo e conseguiu livrar o braço das mãos de Gerro. Em seguida, desceu o cassetete duas vezes com toda a força na cabeça de Gerro. Este escorregou a-tordoado ao lado do cavalo e tentou agarrar-se ao animal para não ir ao chão. Nesse momento, quando ele estava com as mãos perto da anca do cavalo, o polícia virou o cavalo para o povo. Virando-se, o animal deu um coice no peito de Gerro, que caiu atrás do cavalo. O povo então avançou para o polícia e este fez o animal recuar. Os cascos pisaram Gerro, que estava estendido no chão.

Tentei abrir caminho para chegar até onde ele estava, mas havia muita gente na minha frente.

— Por que não o tiram dali? Ele vai ser morto. — Gritei desesperadamente.

O polícia parecia não saber que Gerro estava debaixo das patas do cavalo. Continuava de cassetete em punho, procurando acertar os que estavam mais perto. Levantei as mãos cheio de raiva e percebi que ainda estava com a garrafa na mão. Sem saber bem o que fazia, joguei a garrafa. Esta girou no ar e foi atingir o polícia no rosto. O homem se balançou tonto na sela. O sangue começou a correr-lhe da boca e do nariz e ele escorregou da sela e caiu no chão. Ouvi os api­tos dos outros polícias que acorriam ao local.

Fiquei um momento atordoado. Depois, compreendi que tinha de sair quanto antes dali. Vi então Terry. Ela estava olhando para mim com os olhos arregalados e a mão na boca. Desapareci no meio da multidão. Se a polícia me pegasse e descobrisse que fora eu quem havia jogado a garrafa, eu levaria a maior surra de minha vida.

Cheguei ofegante ao portão do subway e virei-me para olhar para trás. Havia ainda muita gente e eu nada podia fazer por Gerro se ficasse ali. Resolvi voltar para o armazém e ficar esperando lá noti­cias dele.

Cheguei ao armazém poucos minutos antes das três horas. Ha­via passado antes por um bar para tomar um drinque. Depois, tomei uma xícara de café e fiquei mais calmo. Entrei, vesti o meu avental e comecei a trabalhar. Felizmente, Harry estava muito ocupado e não me fez perguntas sobre o discurso.

As duas horas seguintes se arrastaram. Eu estava esperando que o telefone tocasse. Queria ter notícias de Gerro e sabia que ele tele­fonaria se pudesse. Só por volta das seis horas foi que o telefone to­cou. Harry atendeu e me passou o fone.

Alô?

Frankie? — disse uma voz muito nervosa. — É Terry. Fuja quanto antes. A policia está à sua procura.

Espere aí, Terry. Como é que a polícia sabe? Só você é que me viu.

Só eu, não. Houve outras pessoas que o viram, Frank, inclu­sive gente do clube. A polícia estava interrogando todo o mundo e a qualquer momento vai saber onde é que você está. Aquele polícia es­tá no hospital e pode morrer...

Eu não queria pensar nisso.

E Gerro? Sabe como é que ele está, Terry?

Não sabia? — perguntou ela, chorando. — Morreu. O cava­lo o acabou a patadas.

Senti tudo rodar em volta de mim. Mas me dominei.

Frankie? Alô? — disse Terry.

Pronto, Terry.

Ande depressa, Frankie. Você não tem muito tempo.

Está bem. Obrigado — disse eu, desligando o telefone.

Não sei quanto tempo fiquei ali parado até que tive forças para chegar perto de Harry e dizer:

—        Vou deixar a casa

Ele estava cortando fatias de queijo na máquina e teve uma surpresa tão grande que quase cortou o dedo.

Por que, Frank?

Estou metido numa encrenca terrível. Houve uma briga lá no comício e eu tive de fugir.

Eu já sabia! — exclamou ele. —. Não lhe disse que se afastasse dessa gente, que você ia arrepender-se?

Não adianta mais nada falar. Além disso, eles não tiveram nenhuma culpa.

Harry acabou de cortar o queijo, embrulhou-o e entregou o em­brulho à freguesa que estava esperando perto da porta onde não me podia ver nem ouvir. Voltou depois para onde eu estava.

—        Desculpe, Harry. Nunca pensei em sair assim, deixando vo­cê sem ninguém. Mas não tenho outro jeito. Você sempre foi correto comigo e muito gentil e quero que saiba que lhe sou muito grato.

Quer dizer isso também por mim ao Sr. Rayzeus?

Fui para a sala dos fundos e tirei o avental. Pendurei-o num prego da parede e voltei para o armazém. Estendi a mão para, Harry.

Mais uma vez, obrigado por tudo.

Sinto muito a sua saída, Frank. Você sempre foi um bom empregado e eu sempre gostei muito de você.

Sinto muito também — disse eu, encaminhando-me para a porta.

Espere um pouco, Frank. Você está esquecendo uma coisa.

— Voltei-me, surpreso. — O pagamento.

Mas hoje ainda é segunda-feira.

Ora essa! Você faz jus a muitas semanas extras de paga­mento.

Tomei o dinheiro, guardei-o no bolso e disse:

—        Obrigado. Eu bem que preciso.

De fato, eu tinha apenas pouco mais de cem dólares guardados no meu quarto de hotel. Não se podia economizar muito com o que eu ganhava.

—        De nada, garoto — disse Harry, levando-me até à porta. —

Espero que tudo lhe corra bem.

Cruzei os dedos para dar sorte. Ele riu, apertou-me a mão e cru­zou os dedos também.

Olhei para um lado e para outro da avenida. Estava tudo calmo como de costume. Tomei o subway e fui até ao hotel. Arrumei tudo o que tinha na maleta que comprara algum tempo antes e paguei a minha conta. Já ia tomar o rumo da estação da estrada de ferro quan­do tive uma idéia.

Marianne! Quem iria dizer a ela? Não devia ser uma pessoa es­tranha que nada soubesse dos sentimentos existentes entre os dois. Esperava que ela não soubesse pela leitura de algum jornal, que pu­blicaria friamente a notícia para conhecimento de quem tivesse ape­nas um interesse mínimo pelo fato. De instante a instante, mais me convencia de que eu é que teria de dizer-lhe. Mas só tive plena cons­ciência da minha decisão quando me vi em frente à porta dela, de maleta na mão e tocando a campainha.

Esperei que estivesse em casa. Estava, pois lhe ouvi os passos rápidos em direção à porta. Abriu-a e viu-me. Ficou um instante confusa ao ver a maleta. Entrei sem esperar que ela me mandasse.

Ela fechou a porta e olhou para mim.

Vai viajar, Frank?

Vou, mas antes vim dizer uma coisa.

Ela não podia saber de que eu estava falando e, por isso, inter­pretou mal as minhas palavras. Aproximou-se de mim, com um olhar terno no rosto. Notei com surpresa que os olhos dela eram cinzentos e não castanhos, como eu havia pensado. Eram de um cinza-escuro enevoado.

—        Que é que tem para me dizer? — perguntou ela, com voz macia. — Por que é que você não pode viajar sem me dizer?

Larguei a maleta e agarrei-a pelos ombros. Na minha confusão, pensei que assim ela compreenderia mais depressa.

Você está-me machucando, Frank!

Larguei-a e disse mais delicadamente:

É melhor sentar-se.

Não quero — disse ela, com os olhos a dilatarem-se de medo.

Que é?

Gerro morreu.

Ela me olhou um momento sem compreender, mas de repente ficou muito pálida e virou os olhos. Segurei-a antes que caísse. De­pois, carreguei-a nos braços e levei-a para o quarto, deitando-a na cama. Fui buscar um copo de água e, quando voltei, ela estava co­meçando a mover-se. Levei-lhe o copo à boca e algumas gotas des­ceram pelo pescoço. Afrouxei-lhe a blusa e fiquei esperando que ela voltasse a si.

Afinal, ela bateu as pestanas e abriu os olhos.

—        Não queria que você soubesse por mais ninguém — disse eu, gentilmente. — Achei melhor que eu mesmo lhe dissesse, mas acho que não tive muito jeito.

Ela sacudiu debilmente a cabeça

Como... como foi?

Houve uma briga na praça onde ele devia falar. Um polícia bateu nele com o cassetete e ele caiu embaixo do cavalo do polícia.

Joguei uma garrafa no homem que está no hospital e eu tenho de fugir.

Mas Gerro... — perguntou ela com voz sumida. Gerro so­freu muito?

Não. As coisas se passaram tão depressa que ele não deve ter sentido nada.

Eu não sabia se ele havia sofrido ou não. Mas para ele isso não tinha mais importância e para ela era melhor pensar que ele não sofrera.

Ela sentou-se na cama e murmurou.

—        Foi melhor assim... Depressa... se tinha de acontecer. Gerro não podia tolerar qualquer dor.

Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Deixei-a cho­rar alguns minutos. Depois, levantei-me Quanto mais tempo eu me de morasse ali, mais perigoso seria para mim. Ela parou de chorar e levantou os olhos pan mim.

—        Você era amigo dele — disse ela. — Não sabe como ele fi­cou orgulhoso de que você tivesse lutado por ele. Disse-me isso mui­tas vezes. E você lutou por ele até ao fim.

Não soube o que dizer. Não me era possível dizer displicente­mente: "Não foi nada. Tive prazer com isso". Uma coisa assim acon­tecia e, por mais que eu fizesse, não era possível impedi-la.

—        Sinto muito — disse eu. — Não sabe como estou sentido.

Ele era magnífico.

Nunca haverá ninguém como ele — murmurou ela. Ficamos em silêncio durante um minuto e por fim eu disse:

Se acha que já está bem, vou indo.

—. Estou bem, sim — disse ela, tristemente.

Adeus — disse eu da porta do quarto.

Adeus — respondeu ela.

Fui em direção à porta do apartamento quando ouvi passos a-trás de mim, Virei-me e Marianne me caiu nos braços. Abracei-a com o rosto colado ao dela e sentindo-lhe as lágrimas quentes corre­rem-me pela face. Passei a mão pelos cabelos dela.

—        Marianne...

Ela me disse com os lábios junto ao meu ouvido.

—        Tome cuidado com você. E volte. Vou precisar de você ago­ra que...

Não a deixei acabar a frase.

Voltarei, sim, Marianne. Quando acabar o verão e isso esti­ver esquecido, estarei de volta.

Promete? — perguntou ela como uma criancinha.

Prometo! — respondi, olhando-a nos olhos. Estavam cheios de lágrimas e eram violeta, não cinzentos como eu havia pensado. — Fique aqui e me espere que eu voltarei.

Saí sem beijá-la.

Quando fechei a porta, ouvi-a dizer:

—        Tenha muito cuidado, querido.

Estava escuro na rua e eu pensei que seria muito perigoso para mim ir para a estação. Se a polícia já sabia quem havia jogado a garrafa, devia estar à minha espera lá. O melhor seria tomar a barca para Nova Jersey.

Ela me chamara "querido"! Por um momento, senti remorsos ao lembrar-me de Gerro. Depois, compreendi que ele estava morto e essas coisas já não tinham importância para ele. Além disso, eu tinha feito tudo o que podia. Enquanto ele estava vivo, eu nem me apro­ximara dela. "Querido!"

Atravessei sem novidades na barca. Um chofer de caminhão que ia para Newark deu-me carona. Na estação de Newark, comprei passagem para Atlantic City. Era um lugar de veraneio e o melhor ponto para conseguir um emprego, se houvesse algum.

Olhei receoso de um lado para outro da estação enquanto espe­rava o trem. Lá estava eu de novo no velho carrossel. Iria parar al­gum dia? De repente, comecei a rir intimamente.

"Querido", dissera ela. Pela primeira vez em minha vida, eu amava de verdade alguém.

Consegui um emprego duas horas depois de ter chegado a A-tlantic City. Havia ainda muitos empregos, pois se estava no início da estação de veraneio. Empreguei-me numa sorveteria da praia. Eu trabalharia à noite, chegando às três da tarde e ficando até uma da madrugada. O salário era de vinte dólares por semana com comida, sete dias na semana e o emprego era garantido até setembro. Para mim estava bem. Eu tinha para onde ir quando o verão chegasse ao fim.

Depois de pegar o emprego, aluguei um quarto num hotel barato por oito dólares por semana. O hotel ficava perto da sorveteria. Não tive muita dificuldade com o serviço. O tempo que eu passara traba­lhando com Oto estava dando resultado. Eu era um bom caixeiro de sorveteria. Dentro em pouco, passei a ser excelente porque aprendi a trabalhar com uma certa economia de movimentos que permitia servi­ço mais rápido, maiores vendas e menos cansaço para mim.

Passava em geral o dia na praia até quase à hora de começar a trabalhar. Ia então para o hotel, vestia-me e ia para a sorveteria. Almoçava lá, trabalhava até à hora de fechar e, depois, voltava para o hotel e dormia.

O verão foi passando lentamente, Eu trabalhava muito, mas me sentia bem, O sol da praia me queimou a pele e eu ganhei um pouco de peso. Não queria saber de amizades, nem com homens, nem com mulheres. Não tinha necessidade disso. Por enquanto, estava muito contente em viver sozinho. Havia muitas pequenas com quem eu po­deria sair se quisesse — encontrava-as na praia ou na sorveteria — mas não queria.

Comprava todos os jornais de Nova York, matutinos e vesper­tinos, mas além da primeira noticia do caso em que se dizia que o polícia havia ido para o hospital, não pude mais encontrar uma só li­nha sobre o assunto. Mas não me ia arriscar. Não escrevia a Marian-ne nem lhe telefonava com receio de que ela estivesse sob vigilância da polícia, empenhada em apurar mais alguma coisa sobre os ante­cedentes de Gerro. Dava tempo ao tempo e esperava que o verão passasse.

Pensei muito também naquele verão. Pensei muito em mim, em minha tia e meu tio, em Marianne. Procurei descobrir o que havia entre Marianne e mim que nos fazia ser como éramos. Que havia em nós que tinha feito com que mudássemos de sentimentos quase na mesma hora em que Gerro se afastara de cena? A única explicação que podia achar quanto a mim era que eu era um realista, O que ha­via acontecido acontecera e nada do que eu pudesse fazer alteraria esse fato. Era também um oportunista. Sabia o que queria e, quando a oportunidade chegava, aproveitava-a, fossem quais fossem os meus sentimentos anteriores. Queria Marianne — ela tinha para mim uma atração que mulher nenhuma tivera ainda e que, embora fosse algu­ma coisa bastante vaga que eu não podia precisar bem, me fazia an­sioso por tê-la só para mim. Por último, amava Marianne. De todas as explicações, esta me parecia a mais vaga, tola e fútil. Aceitava-a apenas em parte e rejeitava-a à luz da razão.

Quanto a Marianne só podia saber quais os seus sentimentos quando a visse de novo,

Julho passou e agosto estava chegando ao fim. Ainda me resta­vam cerca de três semanas de trabalho. Depois disso, voltaria para Nova York. Tudo me parecia seguro. A briga na praça não tivera a repercussão que eu havia esperado. Estava disposto a ir para Nova York logo que a sorveteria fechasse.

Era a última quarta-feira de agosto. Eu estava estendido na a-reia com o braço sobre os olhos, a fim de protegê-lo do sol. Estava quase cochilando ao calor do sol, quando tive de repente uma idéia que me fez ficar inteiramente desperto. E se Marianne não me esti­vesse esperando? Saí da praia, fui a um telefone e pedi uma ligação para ela.

Eram quase onze horas da manhã. Talvez ela não estivesse em casa. Comecei a sentir-me ridículo e já. ia desligar quando uma voz clara, quente, musical, me disse: — Alô.

Gaguejei quase na emoção com que falei.

M-Mariane!

Frank! — exclamou ela, surpresa. — Oh, querido! Onde es­tá você? Já estava começando a pensar que nunca mais voltaria!

Fiquei radiante com o sentimento que havia na voz dela.

Estou em Atlantic City. Estou trabalhando aqui. Tive de te­lefonar-lhe para saber como você vai

Vou muito bem. E você?

Otimamente.

Quando é que vai voltar?

Daqui a três semanas, quando terminar o meu trabalho aqui.

Não pode vir mais cedo? Quero ver você. Há tantas coi­sas...

Não concluiu a frase.

—        Eu bem que gostaria, mas não posso. Prometi ficar até o fim da temporada. E tudo aí está bem?

Ela sabia a que eu estava me referindo

Tudo por aqui normal. Mas, querido, não posso ir aí vê-lo?

Podemos passar uns dias juntos. Não quero mais esperar.

Não sei — disse eu com hesitação. — Trabalho de três horas da tarde à uma da madrugada e nós não poderíamos ter muito tempo para ficar juntos

Não faz mal. Aproveitaríamos todos os minutos e eu estou precisando de descanso. Estes meses têm sido bem duros para mim.

Tenho procurado botar umas coisas em ordem na minha cabeça.

Você também? Tenho pensado muito em nós.

Está vendo? Tenho de ver você. Tenho de saber se você sen­te o mesmo que eu. Vou aí. Onde é que você está?

Disse-lhe onde era.

Irei de carro para ai ainda hoje à noite. É só o tempo de ar­rumar algumas coisas.

Trabalharei na sorveteria até uma hora da madrugada. Acho melhor ir procurar-me lá. Fica na praia, no Hotel Vitória.

Estarei lá hoje à noite

Ótimo! Até lá então.

Como eu amo você, querido!

Fiquei por um momento sem ação, com as palavras ressoando-me no ouvido

Marianne — murmurei. — Marianne

Sim... E você me ama, Frank?

Você sabe muito bem disso.

Sei, sim. Desde o momento em que vi você no meu aparta­mento, desde aquele primeiro beijo que sei disso. Não foi direito o que você fez. Foi uma canalhice. Nós dois sabíamos disso e nada podíamos fazer. — Pareceu-me ouvir um suspiro pelo telefone. — Até logo, querido.

Até logo — disse eu, desligando e voltando para a praia.

A meia-noite, que era a hora em que eu principiava a arrumar a sorveteria para sair, ela ainda não havia chegado. Eu já havia desis­tido de esperá-la, certo de que só iria chegar de manhã. Charlie, meu patrão, estava trabalhando do outro lado. Eu estava limpando as bombas e nós dois conversávamos, pois não havia mais fregueses.

Charlie costumava zombar de mim porque nunca me vira sair com pequena alguma e eu não me dava ao trabalho de explicar-lhe. O movimento depois daquela semana começava a cair. Ele tinha uma casa em Miami Beach para onde iria depois de fechar aquela. Tinha um sócio que havia ficado em Miami Beach, tomando conta da outra sorveteria.

Acabei de limpar as bombas, arrumei os copos nas prateleiras e olhei para o relógio.

—        Quer sair mais cedo, Frank? — perguntou ele, rindo. — Ar­rumou alguma coisa hoje?

Sacudi a cabeça.

Deu uma hora e nós fechamos a casa. Esperei alguns minutos em frente à sorveteria para ver se ela chegava. Fui então sentar-me num dos bancos da praia o acendi um cigarro. Tinha havido decerto algum contratempo e ela não pudera vir naquela noite. A praia esta­va quase deserta. Eram raras as pessoas que ainda passeavam. No mar passava um navio todo iluminado. Devia estar a caminho da Flórida. Talvez Marianne tivesse falado apenas por falar, sem qual­quer intenção de ir mesmo a Atlantic City.

Senti de repente duas mãos cobrirem-me os olhos. Uma voz su­ave perguntou:

—        Sabe quem é?

Se eu sabia quem era! Não podia haver dúvida possível. Mas resolvi entrar no espírito da brincadeira.

Jane? — perguntei.

Não — respondeu Marianne.

Helen? Mary? Edna? — perguntei, começando a rir.

—        Só pode dizer mais um nome — disse Marianne. — Se não adivinhar, vou-me embora agora mesmo. Talvez fosse melhor mes­ mo não ter vindo. Você me parece por demais preocupado.

Tirei as mãos dela dos meus olhos, beijei-as e depois esfreguei-as no meu rosto. Fi-la sentar-se no banco ao meu lado.

—        Marianne! Pensei que não ia mais chegar!

Ela sorriu, mostrando os belos dentes brancos e com os cabelos avermelhados a brilharem ao luar.

—        Não podia deixar de vir sabendo onde você estava, querido, ainda que não quisesse!

Beijei-a. Foi um beijo doce, terno, quente e apaixonado, tudo ao mesmo tempo. Era como se a lua e todas as estrelas houvessem descido do céu e estivessem girando entre nós dois. Era como se eu estivesse flutuando no ar ou caminhando por cima das nuvens. Eu era ao mesmo tempo um garotinho e um homem adulto e completo. Estava exultante e sentia um aperto na garganta que não me deixava falar.

Olhei-lhe os olhos e vi que eram suaves e estavam banhados em lágrimas. Abracei-a, sentindo o pulsar do seu coração junto ao meu. Tornei a beijá-la. Era como um encantamento, com o mundo desaparecendo diante dos meus olhos e com todos os sons a fugirem dos ouvidos. Um momento de puro êxtase!

Lembra-se do que eu lhe disse pelo telefone? — perguntou ela. — Os nossos sentimentos são idênticos. E ninguém pode fugir dos seus sentimentos. Gerro me falou muito a seu respeito. Sei que você fugiu uma vez de um orfanato. Pensei que podia fazer isso de novo e fugir de mim. Mas agora sei que não é possível. Não pode mais fugir!

Marianne, amo você. Você é tudo o que a vida já me deu de melhor. É tudo para mim. Amo você.

Ela pousou a cabeça em meu ombro e murmurou:

—        Queria ouvir isso dos seus lábios. Amo-o, amo-o, amo-o.

Levantamo-nos do banco e começamos a caminhar pela praia.

Deitamo-nos na areia, falamos sobre um milhão de coisas e torna­mos a falar, a falar. E enquanto caminhávamos ou falávamos, tínha­mos os braços passados pela cintura um do outro, com as mãos jun­tas e os olhos misturados.

E mais tarde, quando a lua estava descambando no céu para os lados do oeste e nós dois ficamos â janela do meu quarto, olhando o mar e fumando, compreendi de repente que havia chegado a minha hora de amar, e que a diferença estava em dar, não em receber.

E ao amanhecer, quando acordei de súbito e sentia-a adormeci­da ao meu lado, fiquei maravilhado com a idéia de que eu pudesse possuir tanta beleza e paixão. Ela deve ter sentido o meu olhar por­que acordou nesse momento e, enlaçando-me nos braços, murmurou:

— Nunca me deixe, Frank! Nunca!

Nunca hei de deixá-la Marianne! — disse eu, certo para todo o sempre do que dizia.

Fomos á praia na manhã seguinte. Ela estava com um belo maiô novo e tão bonita que dava vontade de devorá-la. Era uma des­sas mulheres que são belas de qualquer maneira — com pouca rou­pa, sem roupa ou inteiramente vestida Tinha um corpo esbelto e cheio e pernas longas e bem feitas. Os seus movimentos eram gra­ciosos e toda ela era impregnada de sutil vivacidade. Era admirável e dava orgulho estar com ela. Via com os homens a olhavam e palavra que era um prazer sentir a inveja que tinham de mim.

Ela tinha plena consciência da sua beleza. Sabia que era dina­mite com um maiô branco. Procurava hábil e francamente atrair as atenções e sorria feliz para mim quando eu lhe dizia com era bela.

Depois de nadarmos um pouco, deitamo-nos na areia e rimos felizes. O sentimento de plenitude que eu tinha quando estava com ela era alguma coisa nova em minha vida e eu me entreguei comple­tamente a ele.

Ao meio-dia comprei cachorros-quentes para comermos na praia. Enquanto comíamos, pedi-lhe notícias de Nova York. A velha cidade estava no mesmo. Quanto a ela, acabara de fazer dois retratos que lhe haviam encomendado e estava exausta O meu telefonema chegara no momento exato quando ela estava em dúvida sobre o que ia fazer. Estava contentíssima de estar ali, de estar ao meu lado, de viver apenas.

Segurei-lhe a mão e ficamos alguns minutos em silêncio. Per­guntei-lhe então se fora ao enterro de Gerro.

Não — respondeu ela.

Por quê?

Porque sou covarde. Porque não podia suportar a idéia do que haviam feito com ele. Porque não queria pensar que ele havia, morrido e eu ainda estava viva e gozando a vida. Por sua causa e pe­ lo que eu sentia que havia entre nós dois. Amava a ambos e não sa­bia a quem era que queria mais. Amava a você por uma série de ra­zões e a ele por uma série de razões diferentes. Por que vocês dois eram tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos um do outro. Não pude ir.

Gerro era formidável. Foi uma pena o que aconteceu. Não havia e não há muita gente igual a ele.

Ela me olhou de maneira estranha.

—        Está sendo sincero mesmo, Frank? No seu íntimo, não se sente secretamente satisfeito com o que aconteceu? Afinal de contas, se isso nunca tivesse acontecido, talvez nunca... nós dois...

Eu ainda não havia pensado nisso exatamente assim. Talvez ela tivesse razão. Se tinha, fora por isso que eu a procurara antes de sair da cidade e não pelo motivo que eu imaginara. Senti.me um tanto confuso. Olhei-a. Ela estava estendida de costas na areia, com o belo cabelo palpitando como fogo na cabeça, e os seios firmes e esféricos arredondando-lhe o maiô, o estômago liso e dissolvendo-se na sua­vidade dos quadris e das coxas. Olhei-a, desejei-a e comecei a com­preender os meus sentimentos.

Falei um pouco devagar, pois queria pensar claramente no que dizia e articular bem as palavras:

Não, Marianne. Não é isso o que eu sinto. Sou o que sou. Quero o que quero. Mas o que quero é por mim mesmo e não à custa de outra pessoa, por mais que eu possa querer alguma coisa. Sinto que de qualquer maneira você e eu íamos ser o que somos agora. O fato de que as circunstâncias tivessem tornado tudo possí­vel não altera a sinceridade do meu pesar pelo que aconteceu a Gerro. Você e eu teríamos encontrado um meio, ainda que nada ti­vesse acontecido a ele.

Não creio — disse ela maliciosamente. — Da maneira pela qual você agia, do jeito pelo qual me evitava, isso nunca teria acon­tecido. E veja o que teríamos perdido! Tudo isso, você e eu, perfei­ ção, ritmo, harmonia e felicidade. Algumas pessoas pensam que fo­ram feitas uma para a outra, fisicamente, mentalmente e, até (riu um pouco), moralmente. Você e eu somos de outra massa. Somos pre­datórios, egoístas, mimados. Não estou dizendo com isso que você tenha sempre tido tudo o que quis pelo simples fato de desejá-lo, como me tem acontecido. Mas de um modo especial você tem sido mimado, pois só pensa em si mesmo e marcha diretamente para aquilo que deseja. Você sabe que não presta, não sabe? Sabe que o que estamos fazendo pode ser considerado errado por muitas pesso­as. E você pouco se importa. Vai em frente e faz aquilo que quer. Você é um animal: na sua maneira de andar, na sua maneira de agir, na sua maneira de pensar — tudo em preto e branco. Para você, não há tons intermediários, E é isso justamente o que eu amo em você. Você é uma estranha mistura contraditória e eu amo todas as facetas da sua alucinada personalidade Além do mais, não é muito desagra­dável olhar para você com essa pele deliciosamente queimada. Apos­to que as pequenas daqui não lhe davam sossego.

Ri ao ouvi-la dizer isso. Poucas se haviam dado ao trabalho de olhar para mim.

—        Havia brigas na praia por minha causa a cada instante — disse eu. — Não me davam uma folga.

—        Ordinário — disse ela, chegando o corpo para perto de mim.

Passei o braço por ela e beijei-a.

Assim sim! — exclamou alguém perto de nós. Levantei os olhos e vi Charlie, meu patrão. Tinha saído da água e estava com o corpo todo molhado. Sorri para ele.

Olá, Charlie!

Olá, Frankie! — disse ele, sentando-se ao nosso lado.

Tive de apresentá-lo. Estava um pouco aborrecido pelo fato de ter sido visto por ele, mas não havia jeito a dar. A praia era pública.

—        Marianne, este é Charlie — disse eu.

Os dois se cumprimentaram Marianne era bem esperta. No momento em que soube que ele era meu patrão, começou a agir so­bre ele.

Não sei por que Frank tem de ir até o fim da temporada se o movimento agora é quase nenhum — disse-lhe ela. — Ele devia era tomar algumas semanas para descansar antes de voltar para Nova York.

Isso depende de Frank — disse Charlie pensativamente — Ele pode fazer o que quiser depois da segunda-feira.

Foi o embuste rápido que eu já vira, pensei, olhando para Mari­anne com novo respeito. Ela certamente sabia o que queria e não es­tava disposta a me deixar trabalhar enquanto estivesse ali.

—        Falaremos sobre isso depois — disse eu, adiando a resposta e levantando-me — Vamos, querida, que eu tenho de me vestir. Está quase na hora de ir para o trabalho e o patrão vai-se zangar se eu chegar atrasado.

Fiz Marianne levantar-se e Charlie também se levantou. Sorria, percebendo o jogo entre nós dois.

—        Até logo — disse ele, afastando-se.

Quando saí do chuveiro, ela já estava vestida e penteava os ca­belos em frente ao espelho. Eu tinha a toalha passada pelo corpo e atravessei o quarto para onde ela estava.

Por que foi que disse aquilo a Charlie? — perguntei-lhe, sorrindo.

Não lhe disse que eu era egoísta? Pois não quero que você continue trabalhando com um tempo tão bonito assim quando podia estar realmente descansando e junto de mim.

Você é uma sereia! — exclamei. — Mas não se esqueça de que eu, se não trabalhar, não terei o que comer. Nem todo o mundo tem uma família rica que o sustente.

Não se preocupe com isso — disse ela, sorrindo. — Tenho tanto dinheiro que nem sei mais o que vou fazer com ele. Por que não se despede logo? Poderíamos sair deste hotel e ir para o Towers, onde nos divertiremos de verdade.

Assim com essa facilidade?

Assim com essa facilidade! — disse ela, chegando-se a mim. — Há tantas coisas que quero fazer por você, querido. Quero vê-lo bem vestido. As suas roupas são horrorosas. Você é lindo e, com boas roupas, ficará um estouro. Gostaria também de ensiná-lo a comer. Você devora tudo como se estivesse com uma fome de três dias e tivesse medo de que a comida fosse fugir do prato. Quero pas­sá-lo a limpo sem mudar você nem um pouco. Gosto da perfeição e sou louca por você.

Quer então modificar-me e sustentar-me? Não estou gostan­do. Quais são exatamente as suas intenções, minha senhora?

Adivinhe! — disse ela, puxando a toalha do meu corpo e ca­indo nos meus braços.

Mais tarde, na sorveteria, quando o movimento havia diminuí­do um pouco, Charlie me perguntou quem era ela.

Minha pequena, Charlie. Veio de Nova York para passar al­guns dias comigo.

Ela é OK, Frank. Deve estar apaixonada por você. Com uma garota daquelas, não é de admirar que você nunca desse aten­ção às pequenas daqui. Cheguei a pensar que você era doente ou outra coisa.

Fiquei calado.

Vai sair daqui como ela quer, Frank?

Não sei, Charlie. Não resolvi nada.

Mas era pura conversa. Eu sabia que ela me tinha onde queria e se ela me mandasse sair, eu sairia.

E foi o que eu fiz — na segunda-feira, á noite.

Passamos três semanas em Atlantic City. Mudamo-nos para o Hotel Towers e ficamos num apartamento de três peças no décimo terceiro andar com um terraço que dava para o mar. Pedíamos a co­mida no quarto. Marianne tinha aversão aos restaurantes de hotel. Era pelo menos o que dizia. Gastava muito com tudo isso. Eu não sabia exatamente quanto, pois pagava prontamente todas as contas de um suprimento de dinheiro aparentemente inesgotável que parecia levar com ela.

Comprei-lhe uma pequena pulseira com uma moeda de prata, numa das lojas da praia. Custou-me onze dólares e mandei gravar nela: "A Marianne com muito amor, Frank". Dei-lhe o presente nu­ma madrugada, às três horas. Estávamos no terraço, gozando a brisa fresca que vinha do mar. Ela estava com um vaporoso negligê e eu estava apenas de short, fumando uma cigarro. Lembrei-me então do meu presente e que havia esperado uma oportunidade para dá-lo. En­trei e fui buscar a pulseira.

Senti-me um pouco desajeitado. Não lhe tinha dado muitas coi­sas e não sabia bem o que dizer.

—        Isto é para você, Marianne — disse constrangidamente entregando-lhe a pulseira.

Ela pareceu surpresa e aceitou o presente com alegria.

—        Que linda, Frank! — exclamou ela e leu a inscrição em voz alta. — "A Marianne, com muito amor, Frank". Muito doce... e ori­ginal também.

Julguei perceber uma nota de ironia na voz dela e isso me doeu. Repliquei com voz bem calma:

—        É original, sim. Nunca disse isso e nunca pensei isso de ne­nhuma outra mulher.

Ela reagiu prontamente ao meu tom de voz.

—        Querido! Não foi isso que eu quis dizer. Não tive a menor intenção de ofendê-lo. Desculpe. Gosto da pulseira e sempre a usa­rei. Faça o favor de colocá-la.

Estendeu o braço. Prendi-lhe a pulseira no braço. Ela estava com um anel de brilhante, cercado de rubis, no dedo. As pedras cintilavam ao luar e o contraste era tremendo. A pulseira era uma coisa triste di­ante do esplendor daquele anel. Arrependi-me de tê-la comprado. Com isso havia, apenas, acentuado a diferença entre nós. Prometi a mim mesmo que, quando voltasse para Nova York, iria ganhar dinheiro de verdade para comprar-lhe coisas que não ficassem em desvan­tagem comparadas com o que ela já possuía.

Voltamos para Nova York no dia 20 de setembro. Fui morar no apartamento dela e, alguns dias depois, decidi sair e ir procurar em­prego. Mas os empregos estavam muito difíceis e eu não tive muita sorte nos primeiros dias.

Ela, enquanto isso, tinha muito o que fazer. Recebera muitas encomendas e vivia num estado constante de energia e trabalho efer­vescente. Quando ela estava trabalhando, era uma pessoa inteira­mente diferente. Dava-me algum dinheiro e dizia-me que saísse de casa, que fosse a um cinema ou a qualquer outro lugar e só voltasse muito depois. A princípio, tudo foi novidade para mim. A rainha não podia errar. Gostava de vê-la pintar, com o curioso ar de concentra­ção que a envolvia. A cabeça, os olhos, o corpo, tudo parecia sob tensão e inteiramente absorvido pelo trabalho. Se eu falava com ela, respondia-me por monossílabos ou não me respondia. Andava mui­tas vezes pela sala como se eu não estivesse presente. Quando pinta­va, dava pinceladas nervosas e murmurava nomes feios quando de­parava com algum efeito difícil. Dentro em pouco, o rosto e a testa apareciam manchados de tinta quando ela afastava com as mãos os cabelos, dos olhos.

Mas, se o dia tinha corrido bem e ela estava satisfeita com o que havia pintado, mostrava-se à noite doce e amorosa com uma es­pécie de alegria infantil. Fazia pilhérias e nós tomávamos champa­nha e eu preparava algumas coisas gostosas para comermos. Era eu quem cuidava principalmente da cozinha, porque ela dizia que não tinha jeito para cozinhar e não podia suportar nada que ela mesma preparasse. De vez em quando, aparecia algum amigo para visitá-la — artistas como ela, escritores, homens e mulheres de variada capa­cidade intelectual que pareciam viver num mundo à parte. Quando eu lhes era apresentado, olhavam para mim polidamente e queriam saber o que eu fazia. Quando descobriam que eu não era um deles, deixavam de tomar conhecimento de mim e me excluíam das con­versas a não ser que quisessem outro drinque, quando então me chamavam como se eu fosse um empregado.

Mas eu continuava desesperada, louca, alucinadamente apaixo­nado. A rainha não podia errar. Levava-me para fazer compras com ela e muitas vezes gastou trezentos dólares de roupas, comigo. Eu ti­nha ternos, sobretudos e camisas feitos sob medida. A minha roupa de baixo era de um luxo fora do comum e eu dormia com pijamas de seda. No começo, procurei emprego. Quando afinal se abriu uma possibilidade e eu cheguei em casa todo satisfeito, Marianne franziu o rosto e perguntou:

Quanto é que vaio ganhar?

Dezenove dólares por semana! — disse eu, cheio de confiança.

Só dezenove dólares? — perguntou ela com um gesto dra­mático. — Que é que você pode fazer com tão pouco dinheiro? Isso não lhe dá nem para os cigarros.

É um emprego, afinal de contas — disse eu. — É melhor do que nada.

É pior do que nada — replicou ela energicamente. — É um insulto à sua inteligência, à sua capacidade, à sua energia. Você vale muito mais do que isso. Além disso, querido, por que vai trabalhar por tão pouco dinheiro quando não precisa disso? Posso dar-lhe duas vezes isso por semana, se você quiser.

Comecei a perder a calma.

Mas não posso viver assim para sempre. Não é direito. E, além disso, não me sinto bem em lhe pedir dinheiro, sempre.

Mas isso não tem a menor importância, querido — disse ela, beijando-me. — Se o dinheiro fosse seu, pouco me incomodaria de pedir-lhe sempre que tivesse necessidade.

Mas isso é diferente.

Não, não é. Nós nos amamos muito e tudo o que é de um, é do outro, também.

Não era possível discutir com ela sobre isso quando ela resolvia ser gentil. E foi assim que as coisas continuaram durante algum tem­po. Era uma vida fácil e eu gostava da vida fácil. Tinha conhecido muito bem o outro lado da vida e, de qualquer modo, achava que mais cedo ou mais tarde me apareceria uma boa oportunidade e eu conseguiria um emprego decente. Deixei o barco correr.

Cerca de um mês depois, quando fui pegar um cigarro na mesi-nha da sala, notei que o retrato de Gerro não estava mais lá. Procu­rei-o por toda a parte e não o encontrei. Fora substituído por um re­trato meu. Pareceu-me bom. Não entendo muito dessas coisas. Mas, olhando melhor, percebi que não se parecia muito comigo. Eu estava no retrato muito descansado, muito displicente, muito à vontade. Deu-me a vaga impressão de haver alguma coisa errada.

—        Gostou, querido? — perguntou de repente Marianne, que chegara sem eu ver.

Virei-me para ela e disse gentilmente

Está muito bom.

É um presente para você, por ser como é, maravilhoso, e por me fazer muito feliz — disse ela, dando-me um beijo.

Muito obrigado.

Não me agradeça. Fiz porque tive vontade de fazer. Foi difí­cil porque eu não queria que você desconfiasse. Pintei-o escondido de você, nos momentos em que .me era possível.

Imagino.

Não está satisfeito? — perguntou ela, com voz preocupada. — Que é que não está certo?

Onde está o retrato de Gerro?

Ah! — disse ela, sentando-se numa poltrona. — O agente viu, achou que podia conseguir um bom preço por ele e eu entreguei a ele para vender.

Peça-o de volta. Quero o retrato!

Para quê? — perguntou ela, olhando-me com estranheza.

Porque quero. Peça-o de volta.

Eu mesmo não sabia por que era que o queria.

Ela estava começando a se aborrecer e me disse exaltadamente:

Basta que me dê uma justificativa que seja e eu farei isso.

Mas não posso absolutamente compreender para que você quer o re­trato.

Pois vou-lhe dizer. Esse retrato meu está muito bem feito.

Mas é apenas isso — um retrato bem feito e amável. Nada revela a meu respeito. Mostra apenas o meu exterior, a minha casca. Talvez eu nada tenha dentro de mim que se possa botar num retrato, mas Gerro tinha. E você pegou bem o que havia dentro dele. E se você perdeu a coragem de enfrentar o que se mostrava naquele retrato e tentou substituí-lo por esse retrato mentiroso meu, cometeu um erro.

Não é assim que se enterram as coisas. Você pode não querer o re­trato, mas eu quero.

Ela se levantou de um repelão, com o peito arfando. Embora eu pouco entenda de pintura, a reação dela mostrava que eu havia acer­tado em cheio. Gritou-me:

—        Fique sabendo que o retrato não vai voltar! Engraçado você querer me dizer o que é que eu devo fazer! Você não está em condi­ções de me dar ordens!

Arranquei o meu retrato da moldura e rasguei-o em tiras.

—        Pare de gritar como uma lavadeira! — disse-lhe calmamente embora estivesse fervendo por dentro.

Ela avançou para mim quando viu o que eu havia feito com o retrato e começou a bater-me e arranhar-me o rosto, ao mesmo tem­po que gritava como uma alucinada:

—        Ignorante! Idiota! Por que tenho pena de você e lhe faço as vontades, pensa que é dono de mim? Saiba que posso jogá-lo de no­vo na lama em que o encontrei!

Uma coisa explodiu de repente dentro de mim. Dei-lhe uma bofetada tão violenta que ela caiu em cima do sofá com a mão no rosto e olhando para mim, como se não acreditasse no que havia acontecido.

Fui para perto dela e disse com voz fria como gelo:

—        Vá buscar o retrato de Gerro ou eu a matarei de tanta pan­cada!

A expressão do rosto dela mudou de súbito. A feições se suavi­zaram e os olhos ficaram lânguidos.

Bem sei que você será capaz de fazer isso... — murmurou ela, com a voz rouca habitual.

Sou capaz. Sim. E quero o retrato!

Ela passou os braços pelo meu pescoço e me abraçou.

—        Meu querido, meu forte, ordinário e simples amor, é claro que lhe vou fazer a vontade. Tudo o que você quiser, eu faço.

Beijou-me e os lábios dela foram como um incêndio que virou o mundo de pernas para o ar para mim. Mas na manhã seguinte, o re­trato de Gerro estava de novo no lugar.

Foi quando estava sentado na grande poltrona do canto fuman­do o cachimbo que Marianne me dera, que tomei a decisão. Tirei o cachimbo da boca e olhei-o com desgosto. Sentia na boca o gosto desagradável do sarro. Não sabia para que fumava aquilo. Não gos­tava de cachimbo e nunca iria gostar. Mas Marianne me perguntara um dia: "Por que não fuma cachimbo, querido?"

"Não sei", havia respondido. "Nunca experimentei". Ela sorri­ra, dizendo: "pois eu acho o cachimbo muito viril, um toque perfeito de masculinidade. É uma coisa que nenhuma mulher devia fumar." "Gostaria de ter um cachimbo?" Respondera: "Não, acho que não. Vou ficar mesmo com os meus Camels."

Mas no dia seguinte ela me comprou não um, mas quatro ca­chimbos, juntamente com uma estante e uma caixa para o fumo. Comprou também uma mistura especial de fumo aromático e me en­tregou tudo com uma pequena cerimônia. Quis que, no mesmo ins­tante, eu enchesse um dos cachimbos e o pusesse na boca.

—        Deixe que eu acendo para você — disse ela ao meu lado, encantadoramente inclinada para o lado e uma caixa de fósforos na mão.

Riscou o fósforo, acendeu o cachimbo e recuou um pouco para observar-me. O gosto do fumo era amargo. Eu sabia que tinha de cu­rar o cachimbo até que ele tivesse bom gosto e tremi ante a perspec­tiva de curar quatro cachimbos. Tirei uma grande baforada.

Ela se sentou de repente no chão e ficou-me olhando.

—        Você está maravilhoso — disse ela com um olhar de adoração como o de uma criança. — Parece que foi feito para fumar cachimbo.

Depois disso, nada pude fazer senão fumar cachimbo mesmo. Não queria que ela soubesse que eu detestava aquilo, que o cachimbo me enjoava. Mas, com o correr do tempo, em vez de habituar-me, ca­da vez fumava menos cachimbo e não sei quantas vezes jogava-o de lado e acendia um cigarro para tirar da boca aquele gosto horrível.

E naquele momento, olhando para o cachimbo, senti que era um símbolo daquilo em que eu me havia transformado. Ali estava eu, moço, forte, sadio, cheio de vontade de fazer alguma coisa e sem fazer nada. Não era que o trabalho em si me interessasse — gostava tão pouco de trabalhar quanto qualquer outra pessoa — mas sentia de repente a minha inutilidade. Vivia contente, deixando-me levar, contente de viver, de estar ao lado de Marianne, de amá-la e deixar que ela me amasse, contente de ceder e deixar o barco correr porque era indolente demais para tomar uma decisão.

Voltei inconscientemente os olhos para o retrato de Gerro. A luz do abajur caía sobre ele, deixando o resto da mesa na sombra. O seu rosto enérgico e forte tinha uma estranha atração sobre mim. Fe­chei os olhos e pareceu-me ouvi-lo mais uma vez dizer: "Tenho um objetivo na vida. Todas as coisas que eu quero da vida nunca serão possíveis enquanto eu não fizer isso. O mundo nos dá não o que ti­ramos dele, mas o que nele colocamos". Lembrei-me de que ele me dizia: "Que é que você procura, Frank? Contra quem é que está em guarda? Que é que você quer? Que é que está fazendo para consegui-lo ?" Ocorreram-me outras frases: "Você já é adulto bastante para contentar-se com um pouco menos e ajudar... Muito obrigado, foi quem mais deu. Estranho você ter cabelos brancos... Só quando tra­balhamos junto com os outros é que podemos conseguir o que que­remos... Viver no mundo como homens, entre os homens e com os homens.. ."

A voz de Marianne interrompeu-me o devaneio.

—        Em que é que está pensando, Frank?

Sorri e disse olhando para o retrato de Gerro

Nele.

Eu sabia — disse Marianne, seguindo o meu olhar. — Você tinha uma expressão no rosto como se ele estivesse falando.

Talvez estivesse. Talvez me estivesse dando bons conselhos.

Larguei o cachimbo e acendi um cigarro. Nesse momento, to­mei uma decisão. Nunca mais botaria um cachimbo na boca. E logo depois, outro pensamento me ocorreu e eu disse:

—        Marianne...

Ela se levantou, sentou-se no chão aos meus pés, abraçou as minhas pernas e ergueu o rosto para mim, dizendo:

Que é, querido?

Vou arranjar um emprego.

Era nisso que você estava pensando?

Era.

Mas, querido, para que vai perder tempo com coisas insigni­ficantes, sem necessidade? Não se sente feliz? Não tem tudo de que precisa?

Tenho. Mas sinto-me inútil, longe das coisas, sem contato com o mundo. Nunca me senti assim.

E que é que lhe interessa o mundo? Nem tão agradável as­ sim ele é. Aqui é muito melhor. Só nós dois no nosso mundo particu­lar, sem ninguém para nos aborrecer, com as suas dificuldades e os seus pequenos problemas. Não me ama?

Olhei-a. Ela estava com o queixo apoiado nos meus joelhos e os olhos voltados para mim.

É claro que a amo, mas nada tem uma coisa com a outra.

Amo você, adoro-a mesmo sou muito feliz com você, mas isso não basta. — Procurei alguma coisa que a fizesse compreender e disse: — Escute, se você não tivesse a sua pintura para ocupar o espírito, como você se sentiria?

Isso é coisa diferente. É arte, é um sentimento, uma obses­são. É alguma coisa acima das nossas forças a que não se pode resis­tir. Não é trabalho apenas.

Mas não deixa de ser trabalho e você se sentiria vazia se não o tivesse, o que eu quero fazer pode não ser arte, como você diz, mas me dará a mesma satisfação que a pintura lhe dá.

Ela se levantou e olhou para mim. A sua voz tomou um tom que eu já conhecia Ela não tolerava ser contrariada

—        Estou começando a acreditar que você estava mesmo falan­do com ele.

Essa frase me deixou curioso

—        Por que diz isso? Ele alguma vez lhe disse essas coisas?

Ela não respondeu imediatamente. Pensou um pouco e afinal disse

—        Muitas vezes. Pedi-lhe que fizesse o que eu queria, que não jogasse fora a nossa chance de felicidade, mas foi isso justamente que ele fez. E foi uma coisa tão idiota, tão terrivelmente fútil... Afinal de contas, tínhamos tudo o que podíamos querer. Mas ele nunca estava satisfeito. E veja qual foi o resultado que lhe deram os seus ideais. Você agora quer fazer a mesma coisa: destruir a nossa felicidade.

Sentou-se numa poltrona e começou a chorar. Fui até ela, pas­sei um braço pelos ombros dela e disse:

—        Não chore, meu bem, não estou querendo destruir-nos. Que­ro apenas sentir-me de novo um homem. Agora, não sou mais do que uma casca vazia, sem nada dentro. Sinto-me tão inútil quando vou pela rua e vejo a gente que vai para o trabalho ou volta. Sinto-me tão vazio quando vou ao cinema à tarde e vejo na tela aquelas figuras que se movem imitando a vida. Quero alguma coisa para fazer, para sentir que estou vivo.

Ela parou de chorar e perguntou

—        Então por que não trabalha em casa? Por que não faz como Gerro? Experimente escrever. Você sabe expressar-se, sabe dizer o que pensa. Por que não pode escrever?

Não pude deixar de rir, tanto a coisa era absurda. Eu, escritor?

—        Não, isso não vou fazer. É gentil da sua parte pensar que eu sou capaz de escrever, mas eu sei que não sou. Nada disso! Vou sair e procurar um emprego.

Mas os empregos não estavam mais fáceis de conseguir do que dantes. O tempo estava mais frio e eu voltava da minha busca de emprego enregelado e com raiva do meu insucesso.

Ela interrompia a pintura ou o que estivesse fazendo no mo­mento e ia ao meu encontro.

Conseguiu alguma coisa? — perguntava. E eu sacudia a cabeça.

Nada.

—        Por que não deixa então de torturar-se e não pára com esse desperdício de energia? — dizia ela. — Sente-se e descanse. Nós temos tudo.

Olhava para ela e não respondia. Mas, pouco a pouco, fui per­dendo a esperança. Dentro de um mês, deixei de sair para procurar trabalho, e fiquei em casa.

Marianne ficou feliz com isso, mas eu estava desolado. Doía-me pensar que não fora capaz de conseguir coisa alguma. Sentava-me na poltrona grande, olhava para o retrato de Gerro e o olhar dele caia sobre mim. Ficava ali horas sem conta, olhando para o retrato e pensando no meu fracasso.

Um dia, quando eu estava sentado ali olhando para o retrato e Marianne trabalhava com os pincéis, uma voz disse dentro de mim: "Você está liquidado! Nunca será nada na vida! Viverá até ao fim, de esmolas !"

A voz era tão real e táo forte que eu involuntariamente respondi em voz alta:

—        Nunca!

A minha voz foi tão áspera que Marianne jogou furiosamente os pincéis e a paleta em cima da mesa. Eu lhe perturbara a concen­tração na pintura.

—        Já não lhe disse um milhão de vezes que fique em silêncio quando eu estiver trabalhando? — gritou-me ela.

Olhei-a com surpresa. Quase me havia esquecido de que ela es­tava na sala.

Desculpe — disse eu.

Desculpe! Acha que basta pedir desculpas e tudo está resol­vido, não é? Sabe o que foi que você fez, idiota? Estragou o meu quadro — está aí o que você fez. Agora, nunca mais vou dar com o tom exato!

De repente, zanguei-me também. Foi como uma fagulha em madeira seca. Explodi antes que tivesse consciência disso. A voz me saiu estrangulada e dura, tamanha era a raiva que eu sentia.

Não! Não lhe estou pedindo desculpas! Não admito que me culpe por não conseguir o que está acima das suas forças! Não sou responsável pela sua incapacidade.

Incapaz, eu? Quem é você para me chamar de incapaz? Agarrou a faca da paleta que estava na mesa perto dela e avançou ameaçadoramente para mim.

Ri friamente e disse-lhe com desprezo

—        Vai tentar isso, vai?

Ela parou, olhou pan a faca nas mãos e depois para mim. Jogou a faca no chão. A raiva e a vergonha pareceram correr-lhe pelo rosto, uma tangendo a outra, como nuvens diante da lua.

—        Cachorro miserável! — gritou ela. — Canalha, ordinário e sem-vergonha!

O sangue me correu do rosto. Senti-me gelado, pálido e rígido de raiva. Tive vontade de matá-la, mas ficamos ali parados a enca­rar-nos enquanto os segundos passavam. As têmporas me latejavam alucinadamente. As mãos me doíam, de tão crispadas.

Por fim, abri-as e senti-as úmidas e trêmulas. Virei-me, peguei o chapéu e o sobretudo no cabide e saí pela porta a fora, ainda ou­vindo a voz dela que me chamava: "Frank! Volte, Frank!"

A voz me seguiu até à rua, ressoando-me aos ouvidos. "Aonde é que você vai ?" Depois, a batida da porta e o grito. "Por favor, vol­te!" como que arrancado do fundo da alma e impregnado do medo de perder-me.

Eu sabia que ia voltar, mas naquele momento sentia um rude prazer em fazê-la sofrer e sentir a dor e a humilhação que eu havia sentido.

Já era bem tarde quando voltei e estava bêbedo pela primeira vez em minha vida, mas não tão bêbedo que não soubesse o que es­tava fazendo ou — quando nada — que não soubesse de algum mo­do o que estava fazendo. Parei um momento diante da porta e escu­tei. Não havia barulho algum e eu meti a chave na fechadura, abri a porta e entrei.

Fui aos tropeções até à mesa e peguei o retrato de Gerro.

—        Gerro, meu amigo, sinto muito a sua falta — murmurei, cho­rando. Arrastei-me até à minha poltrona e deixei-me cair nela, ainda segurando o retrato. Olhei-o. — Que é que vou fazer, meu amigo? Estou perdido.

A porta do quarto se abriu e Marianne apareceu no seu negligê. Estava por baixo com uma camisola preta.

—        Marianne — exclamei, mostrando o retrato. — Ele não quer falar comigo!

Ela me olhou pensativamente por um momento. Depois, to­mou-me o retrato e colocou-o em cima da mesa. Depois, ajudou-me a levantar, levou-me para o quarto e tirou-me a roupa. Estendi-me desamparadamente na cama enquanto ela me tirava os sapatos.

—        Oh, querido — murmurou ela, enquanto me desabotoava a camisa e me vestia o pijama — por que fez isso? A culpa foi mi­nha... desse meu temperamento de cadela!

Olhei-a e nunca me pareceu mais bela do que naquele momen­to, mostrando no rosto as rugas da preocupação e do remorso.

—        Marianne — disse eu solenemente —, você é uma cadela, mas eu a amo.

Rolei de bruços na cama e peguei no sono no mesmo instante.

Foi numa festa do Dia de Ação de Graças em casa de uma das amigas dela que nós começamos de fato a separar-nos. O tempo pas­sava lentamente e eu, embora não estivesse inteiramente satisfeito, vi­via contente, deixando as coisas como eram. Marianne se tornara ex­tremamente possessiva para comigo. Eu não reclamava e, para dizer a verdade, até gostava. Gostava dela e do seu jeito de falar, caminhar e andar. Gostava do modo pelo qual ela me apertava quando dançáva­mos e que fazia tudo parecer tão íntimo, tão pessoal, tão ousado.

Mas estávamos noutra festa com o grupo habitual e convencio­nal. Marianne e eu sozinhos era uma coisa — íntima, cordial e cheia de compreensão —, mas, Marianne e eu, num grupo, passava a ser coisa bem diferente. Ela gravitava naturalmente para onde estavam os artistas seus colegas e só se conversava então sobre o ofício que tinham. Eu era excluído dessas conversas — não intencionalmente, mas como se fosse uma coisa lógica, pois eu não podia dizer o que quer que fosse a esse respeito. Andava assim de um lado para outro, de copo na mão, e esperava aborrecido, cansado e isolado que a festa acabasse e nós pudéssemos voltar para casa.

Voltávamos em silêncio. Encurtávamos caminho através de Washington Square, onde os ônibus de dois andares esperavam pas­sageiros, vendo o nosso hálito cortar o ar gelado da noite, sem dizer uma palavra. Quando chegávamos em casa, Marianne dizia:

Boa festa, não foi?

Hum-hum — resmungava eu.

Ela não dizia mais nada. Sabia talvez que eu não tolerava aque­las festas, mas nunca iria dizer-lhe.

A festa daquela noite não foi diferente das outras. Marianne conversou muito e eu fiquei encostado às paredes. A noite foi pas­sando. Às dez horas, chegou mais gente e novos grupos formaram-se. Eu estava começando a ficar farto de meu papel e pensava em sa­ir dali e ir para casa. Procurei Marianne com os olhos para dizer-lhe que me ia embora. Nesse momento, alguém agarrou-me pelo braço e eu me voltei para ver quem era.

Era um modelo quer de vez em quando, posava para Marianne.

Lembra-se de mim? — perguntou ela, sorrindo.

Claro que me lembro — respondi, satisfeito de ter alguém com quem falar. — Como vai?

Não muito bem. Esta festa está um lixo.

Ri. Era bom encontrar alguém que se sentia do mesmo modo que eu.

—        Por que veio, então? — perguntei.

—        Porque preciso. Minha profissão. Tenho uma coisa para vender — disse ela, apontando com as mãos

Compreendo — disse eu. Ela de fato tinha o que vender.

Vamos dançar?

Concordei e fomos para um canto onde o rádio estava tocando. Ela dançava bem e me fez dançar melhor do que de costume. Várias pessoas pararam de falar e ficaram a olhar-me. Pelo canto dos olhos, vi Marianne e o seu grupo em silêncio quando passamos por eles, dançando.

—        Formam um par excepcional — ouvi uma pessoa do grupo dizer a Marianne. — Por que não os pinta?

Não ouvi a resposta de Marianne. A loura me perguntou:

E você?

Eu o quê?

Por que é que vem a estas festas? Parece tão à vontade aqui como um peixe fora da água.

Bem, não tenho outra coisa para fazer — disse eu, enco­ lhendo os ombros.

Compreendo — disse ela, virando a cabeça a fim de olhar para Marianne. O que ela pensava era bastante claro — eu tinha de obedecer às ordens de quem mandava.

De repente, não quis mais dançar. Estava um pouco com raiva de mim mesmo.

—        Quer um drinque? — perguntei.

Ficamos de pé, olhando os outros. Vi Marianne olhar para nós rapidamente e desviar os olhos.

Ao fim de algum tempo, não agüentei mais isso.

—        Vamos tomar um pouco de ar, lá fora? — perguntei à moça.

Ela aceitou. Pegamos os nossos casacos e saímos. Caminhamos

em silêncio, atravessamos o parque e depois demos a volta por ele. Houve um momento em que paramos para ver um grupo que embar­cava num ônibus. Continuamos a caminhar sem conversar, de mãos dadas.

Voltamos. Quando cheguei à porta da festa, disse:

—        Não vou entrar.

Foram as primeiras palavras que proferi desde que havíamos saído.

—        Não estou também com nenhuma vontade, mas é preciso — disse ela. — Alguém me convidou para trabalhar amanhã.

Tive a impressão de que, se eu dissesse alguma coisa, ela não voltaria. Mas fiquei calado.

Ela me olhou um instante, sorriu e disse:

—        Está bem aborrecido, não está?

Não respondi. Ela me deu as costas e entrou. Voltei para casa. Sentei-me na poltrona e comecei a ler os matutinos. Pouco de­pois de uma hora, Marianne chegou.

Gostou da festa? — perguntei-lhe.

Por que não ficou lá para saber? — replicou ela de mau modo.

Compreendi que estava zangada e fiquei calado. Não estava com vontade de brigar naquela noite.

Ela entrou no quarto e voltou alguns minutos depois.

—        Onde está Bess?

Percebi logo que se estava referindo à modelo e sorri.

Deve estar na festa. Deixei-a à porta e vim para casa.

Não a vi voltar.

Não posso saber o que foi que ela fez depois que a deixei, — disse eu, sorrindo de novo. — Tenha calma, menina. Estou come­çando a pensar que está com ciúmes.

Foi o que eu podia dizer de pior. Ela se descontrolou por com­pleto e gritou:

—        Ciúmes? Daquela cadela ordinária? Quem você pensa que eu sou? Mas não gostei do que você fez, fique sabendo! Quando vo­cê sair comigo, espero que fique comigo! Gostaria de que os outros começassem a falar de você!

Eu já estava começando também a aborrecer-me.

Por mim, podem falar à vontade. Não há jeito mesmo de fe­char-lhes a boca. E que nos importa lá o que digam?

Não me importo de fato, mas que é que você acha que eu sinto? Sabem de tudo a nosso respeito e vêem você sair com aquela loura cachorra!

E você se interessa pelo que eu sinto? Em todas as festas, sou jogado de lado como um sobretudo para só ser lembrado e apa­nhado na hora de voltar para casa. Não seja idiota! — disse eu, a- cendendo um cigarro. — Não pense mais nisso.

Aquela vagabunda se jogou para você no momento em que oviu!

Ela me pareceu uma boa pequena. E que é que há de errado no que ela fez? Não foi o que aconteceu com você?

Não foi nada disso! E fique sabendo, se eu a tivesse encon­trado aqui, seria capaz de arrancar-lhe o coração.

Comecei a rir, achando muita graça em tudo aquilo.

—        Foi por isso que você foi olhar o quarto logo que entrou? Acha que eu seria tão idiota para trazê-la para cá, ainda que eu qui­sesse?

Ela se plantou diante de mim, com os olhos faiscando. Disse-me então com voz tensa, mas controlada:

—        Não se esqueça do que lhe vou dizer. Você me pertence. Tudo o que você tem, tudo o que você é, tudo o que você ainda possa ser é por minha causa, porque eu dei a você. E do mesmo modo que lhe dei, posso tirar tudo. Posso jogar de novo você no lugar onde o encontrei, na hora que eu quiser. Quando sair comigo para qualquer lugar não se esqueça disso. Tem de ficar comigo, es­teja cansado ou não esteja, goste ou não goste. Só sairá quando eu mandar, ouviu?

Fiquei furioso de ouvir isso, mas me contive e continuei fria­mente sentado. Ela tinha razão. Eu nada tinha de meu. Até as roupas que eu vestia e o dinheiro que tinha no bolso eram dela.

—        Ouvi, sim, menina. Se é isso mesmo o que você quer, está bem.

Ela me olhou, estranhamente desapontada, como se esperasse que eu respondesse e brigasse.

—        É isso mesmo o que eu quero — disse ela sem muita firmeza.

Levantei-me, fui para o quarto, tirei a roupa e meti-me na ca­ma. Peguei no sono. Não sabia que horas eram, quando acordei. Ela me havia chamado.

Está acordado, Frank?

Agora estou — disse eu.

De repente, os meus olhos se abriram. A penumbra do quarto não era a única coisa que eu podia ver. Via-me como realmente era, — um homem sustentado por uma mulher, um gigolô! Estremeci an­te a idéia.

Venha cá, querido — disse ela, num sussurro.

Sim, minha senhora — disse eu, levantando-me e indo sen­tar-me na beira da cama dela.

Aí não, meu bem — disse ela, com os olhos luminosos na penumbra. — Deite-se aqui ao meu lado e beije-me.

Estendi-me ao lado dela e tomei-a nos braços. O corpo era quente e macio e eu sentia as faíscas que jorravam dele quando o to­cava. Eu era pago para aquilo e dei-lhe naquela noite o valor justo do seu dinheiro.

Eu a amava. Sabia que sempre a amaria. Pouco importava o que ela dissesse ou fizesse. Mas durante toda aquela noite havia al­guém atrás de mim, que me observava, ria e me dizia ao ouvido: "Faça' tudo o que ela mandar. Dance conforme ela puxar os cordéis. Mas não se esqueça de que uma coisa acabou. Ha-ha-ha! E você nunca mais a terá! Nunca! Nunca! Nunca !"

Ela estava dormindo quando a luz cinzenta do amanhecer en­trou pelo quarto. Olhei-a. Os cabelos lhe coroavam a cabeça como uma chama viva sobre o travesseiro. A boca esboçava um sorriso e o rosto estava repousado e feliz.

Olhei-a e meu coração bateu por ela de uma maneira estranha e convulsiva. Amava-a, mas alguma coisa essencial desaparecera. E no fundo do coração sabia que eu também ia desaparecer da vida dela. Isso era tão certo como o dia que vem depois da noite, e, contudo...

A semana das festas — a lenta, alvoroçada e alegre semana en­ter o Natal e o Ano Novo. As crianças estavam em férias e até as pessoas que trabalhavam tinham um ar diferente — um ar de expec­tativa, de alegria contida, de esperança e confiança no que lhes ia acontecer no ano prestes a começar.

Passei quase toda a semana sentado à janela do apartamento, olhando — vendo as pessoas que saíam para o trabalho ou voltavam para casa, vendo as crianças que brincavam, vendo os homens da limpeza pública que tiravam a neve das ruas, vendo o carteiro entre­gar cartas, vendo o leiteiro deixar o leite, vendo os guardas patrulha­rem a rua, vendo, vendo, vendo o mundo passar diante de mim, por trás de uma vidraça. Aquela situação de ver o mundo e não fazer parte dele já me estava enlouquecendo. Estava começando a sentir a garganta apertada e o estômago embrulhado. A inatividade me ata­cava os nervos. O fim estava próximo. Eu sabia. Não podia demorar. E demorou menos do que eu previa.

Era a noite de Ano Novo e as buzinas tocavam. Todo o mundo estava um pouco alto, menos eu. Não sei por quê. Tentei ficar mais alto do que um avião a jato, mas quanto mais bebia, menos sentia o efeito. Estava numa boate em Greenwich Village. Marianne, os ami­gos dela e eu. De repente, tive a impressão de que havia saído de dentro de mim mesmo e estava olhando tudo como se fosse um es­tranho, ironicamente tolerante, sarcasticamente divertido pelo proce­dimento insensato e infantil daqueles pretensos adultos que procura­vam desesperadamente fingir que se alegravam com a passagem do tempo, quando a verdade era que intimamente estavam com medo. Tinham medo do dia de amanhã. Ri alto, mas eu também era assim — estava com medo do dia de amanhã. Marianne olhou para mim, com um pouco de curiosidade no olhar.

—        Está-se divertindo, querido?

Não respondi, mas tornei a rir. Ela pensou que eu estivesse um pouco bêbedo. Puxei-a para mim e beijei-a. O beijo foi doce e quen­te e eu me senti forte e poderoso. De que podia ter eu medo? Era jo­vem e forte — muito forte. Ela me beijou. Beijei-lhe o pescoço até aos ombros.

—        Frank, murmurou ela com voz rouca e apaixonada. — Aqui não, Frank! Aqui não!

Larguei-a e ri de novo. Ela riu comigo. Rimos juntos. Rimos, rimos, rimos até perder o fôlego. Depois, olhamo-nos sérios.

Havia arrogância e orgulho nos seus olhos. Pareciam dizer: "E-le é meu! Meu! Ele me pertence e eu pertenço a ele. Tenho orgulho dele como ele tem de mim". A mão dela procurou a minha e apertou-a firmemente em baixo da mesa. Parecia correrem entre nós várias correntes — sentimentos sem palavras, emoções sem linguagem. O-lhávamos um para o outro e sentíamo-nos orgulhosos. A noite foi passando.

As luzes diminuíram e se apagaram. A orquestra começou a to­car Auld Long Syne. De repente, ela estava nos meus braços e nós nos abraçávamos, sentindo o calor um do outro. Beijamo-nos.

Amo-o, querido, murmurou ela com os lábios junto aos meus. — Feliz Ano Novo!

Amo-a — disse eu. — Feliz Ano Novo!

Beijei-lhe o rosto e vi que estava molhado com o sal das suas lágrimas. Senti-o na língua, na boca. E compreendi que ela soubera todo o tempo em que eu estava pensando.

Ela me beijou de novo, com a boca entreaberta, abraçando-me com muita força.

Não vá, querido. Por favor, não vá.

É preciso — disse eu. Tenho de ir. Nada posso fazer.

As luzes se acenderam e nos encontraram olhando um para o outro. Ela estava pálida e com os olhos abertos e cheios de lágrimas. Apenas as nossas mãos se apertavam quando nos sentamos.

Saímos alguns minutos depois e fomos para casa em silêncio. A noite estava límpida, clara e nova. Um milhão de estrelas brilha­va no céu. O ar era novo, tudo era novo —já era 1934. Entramos em silêncio no apartamento. Tirei o sobretudo e joguei-o em cima de uma cadeira. Fui ao armário, tirei minha maleta e abri-a em ci­ma da cama.

Sem uma palavra, ela começou a me dar o que era meu: cami­sas, sapatos, meias, gravatas, pijamas e ternos. Tive de fazer pressão com o joelho para poder fechar a maleta. Afinal, o fecho se prendeu com um estalo.

Levantei-me e olhei-a. Acho que minha voz tremia.

—        Bem... adeus.

Ela se jogou nos meus braços.

—        Não, Frank, você não pode ir! Eu preciso de você! Chorava. Era a primeira vez que eu a via chorar de verdade.

Abracei-a em silêncio e, ao fim de algum tempo, disse:

É melhor assim, querida, muito melhor. Acredite em mim. Com o tempo, acabaríamos tendo ódio um do outro. É melhor agora do que quando nos detestarmos.

Mas, querido, você é meu mundo, minha vida — disse ela, beijando-me. — E que é que você vai fazer? Você não tem empre­go... não tem nada. Como ê que vai viver. Não posso tolerar a idéia de que você vá trabalhar em alguma coisa mesquinha, humilhante. Aqui comigo você está em segurança. Posso olhar por você, protegê-lo. Posso dar-lhe o que você quiser, o mundo todo!

Lembrei.me de uma frase que tinha lido e citei-a.

—        De que vale ao homem ganhar o mundo se perder a alma?

Ela me olhou estranhamente e então me beijou com paixão, na boca.

—        Despeça-se de mim com amor e carinho, querido — disse ela, estendendo a mão e apagando a luz.

Despedi-me dela com doçura, com carinho, com paixão. O tempo correu em torno de nós e através de nós, levou-nos juntos por toda uma vida e acabou trazendo-nos de volta para o pequeno apar­tamento de Greenwich Village. Cheguei à porta desajeitadamente, de maleta na mão, como um estranho que parte depois de uma visita longa e inesperada.

—        Espere um pouco — disse ela. Entrou e foi buscar o retrato de Gerro, que me entregou. — Leve-o. Você tem alguma coisa dele dentro de você e alguma coisa de mim. Nós três juntos significamos mais do que pessoas — mais do que a vida apenas. Há em você ago­ra um brilho, uma incandescência que você nunca teve até esta noite. Vi como essa nova alma se fundiu na boate e compreendi no mesmo instante que já o havia perdido e que nada mais podia retê-lo.

Beijamo-nos ainda. Saí da porta e ela a fechou devagar. Ouvi soluços quando desci o corredor e saí do edifício.

Olhei para o céu. As estrelas ainda estavam brilhando, mas para o lado do nascente despontavam os primeiros clarões do dia. Era um novo dia que chegava — um luminoso dia. Caminhei com confiança para ele, com a cabeça cheia de pensamentos de Marianne. Não tinha planos nem imediatos, nem futuros. Hoje e amanhã cuidariam de si mesmos.

Percorri quatro ou cinco ruas antes de perceber que levava ain­da na mão o retrato de Gerro. Guardei-o no bolso. Estava sentindo um pouco de fome e também de sono, porque ainda não havia dor­mido naquela noite. Vi as luzes de uma cafeteria, na esquina, que fi­cava aberta a noite toda e entrei. Tomei café com torradas enquanto debatia algumas idéias na cabeça.

Quando acabei, resolvi ir para um hotel e dormir um pouco. No dia seguinte, começaria a procurar trabalho. Tinha certeza de que daquela vez tudo ia dar certo. A manhã estava um tanto fria e clara e eu me dirigi para a estação de subway mais próxima. As ruas esta­vam quase vazias. Era Dia de Ano Novo e poucas eram as pessoas que trabalhavam no feriado. Um homem descia apressadamente a rua à minha frente. Não reparei muito nele porque estava andando muito cosido às paredes das casas. De repente, desapareceu numa porta. Continuei a andar. Um carro veio descendo a rua, no mesmo sentido em que eu ia. Só o notei porque vinha muito devagar. Dele partiu uma descarga de tiros quando passou em frente à porta onde o homem entrara. Em seguida, ganhou velocidade e dobrou a esquina. Fiquei por um segundo imobilizado, sem saber o que fazia. Por fim, corri para a porta. O homem saía de lá, cambaleando. Larguei a maleta no chão e amparei-o. Um momento se passou, enquanto nos o-lhávamos um ao outro.

Foi ele que me reconheceu.

— Frankie! — gaguejou ele com o sangue a escorrer-lhe dos cantos da boca. — Ajude-me!

Descansou o peso do corpo em mim e eu, logo no primeiro ins­tante, não pude pensar em nada. Fiquei apenas olhando, atordoado, o rosto que empalidecia rapidamente. Era como se o tempo houvesse andado dez anos para trás, pois Silk Fennelli estava mais uma vez en-sangüentando-me as roupas. Mais uma vez sentia-me paralisado pelo medo. Dez anos e a cena se repetia em condições quase idênticas.

Mas dessa vez não fugi. Levei-o para o Hospital Bellevue. Dei­xei a maleta no passeio onde a havia largado, coloquei-o num táxi e levei-o para o hospital.

Não fiquei por lá. Saí logo que fiz entrega dele. Não tinha a menor vontade de ser interrogado pela polícia. De novo na rua, a-cendi um cigarro. Lembrei-me então da minha maleta. Tomei um tá­xi até o lugar onde havia encontrado Fennelli, mas não vi mais a ma­leta. Olhei de um lado para outro da rua, mas já sabia que não adian­tava. Ri tristemente. Eu devia saber que não a encontraria mais.

Senti-me de repente muito cansado. Fui para um hotel, tomei um quarto e dormi. Já era quase noite quando acordei. Sentei-me na cama e contei o meu dinheiro. Só me restavam dez dólares. Tinha de me arrumar com isso até conseguir alguma coisa. Desci para comer algo. Li os jornais e tornei a deitar-me.

Tentei dormir de novo, mas não pude. Estava sem um pingo de sono. Fiquei ali no escuro, virando-me de um lado para outro e pen­sando. Por fim, levantei-me, vesti as calças e me sentei junto à jane­la, fumando.

Dez anos! Era estranho. Fennelli não havia mudado muito em dez anos, mas eu estava muito diferente e eu não sabia como ele me havia reconhecido tão depressa. Talvez alguma coisa em mim não tivesse mudado: talvez fosse a situação. De qualquer maneira, não podia com­preender. Comecei então a pensar nas coisas daquele tempo, nas pesso­as que tinha conhecido e no que estariam fazendo, nas minhas amiza­des da mocidade — Jerry, Marty, Janet. Que teria sido deles? Já passa­ra tanto tempo que era até difícil lembrar-me deles, direito.

Lembrei-me da primeira refeição com a família: o cheiro do pão fresco que eu tinha ido buscar na padaria, o sorriso de minha tia, quando eu chegara. Lembrei-me da escola, dos risos, das brincadeiras. Lembrei-me de tantas coisas que acabei sentindo-me velho e cansado.

Voltei para a cama e deitei-me, O cansaço desapareceu e eu continuei acordado. Lembrei-me de Marianne e de como, nas noites em que eu custava a dormir, ela ia para minha cama e deitava-se ao meu lado. Ficava conversando e eu sentia o seu calor e pouco a pou­co ia-me acalmando. Ela adormecia antes de mim e quase sempre es­tendia sobre mim a longa perna branca e eu acabava adormecendo tranqüilamente.

Mas Marianne não estava ali e eu não podia dormir. Ainda a via na porta, despedindo-se de mim. Ouvia-lhe a voz baixa, rouca e controlada. Que havia ela dito? Tentei lembrar-me e então ouvi per­feitamente as palavras dela, enquanto a sombra da porta lhe caía so­bre o rosto.

"Há em você alguma coisa de Gerro. .. e de todas as outras pessoas que você já conheceu. Mas o que há principalmente é você mesmo..."

E eu? Nunca olhara para dentro de mim mesmo. Como era eu? De todas as pessoas que eu conhecia, quem eu menos conhecia era a mim mesmo. Porque eu fazia as coisas que fazia? Que era mesmo que eu queria? Por que me contentava em deixar-me levar pela maré, sem nunca procurar uma solução para a minha vida? Que era que eu queria? Dinheiro? Amor? Amigos? Respeito? Procurei febrilmente uma resposta, mas não a encontrei.

Tinha lido muito enquanto vivera com Marianne. Ela tinha al­guns livros e eu os devorava todos — alguns bons, alguns maus — mas a explicação não estava neles. Que pensavam de mim os outros? Que havia em mim que lhes agradava? Por que me abriam os lares e os corações quando eu lhes dava tão pouco em troca?

Tive saudades de Marianne. Durante o dia, dormira exausto. Mas ali, à noite, fui dominado por um sentimento estranho e peculiar de solidão. Tive vontade de correr para o telefone, discar para ela e ouvir-lhe a voz baixa e suave: "Alô, querido".

Mas não podia fazer isso. Não é possível voltar atrás. Era uma coisa que eu havia aprendido desde muito tempo. Nunca se pode vol­tar atrás... Nunca! Afinal, adormeci. Marianne, Marianne, até meu sono foi cheio de você. Foi você que deu calor e vida à minha noite. Por que não me abandona, Marianne?

Acordei com o sol a bater-me no rosto. A princípio, cobri o ros­to com o braço sem querer levantar-me e enfrentar a realidade do di-a. Mas fui pouco a pouco revivendo. Sentia a energia invadir-me o organismo e chegar ao espírito. Os pensamentos eram cada vez mais fortes. Já estamos no amanhã. Hoje é hoje — o seu dia. Levante-se e enfrente-o.

Desci pelo corredor até ao banheiro e, depois, voltei para o quarto e vesti-me. Entreguei a chave na portaria e saí. Apesar de tu­do, aquele local era muito caro para mim. Dois dólares de diária e-ram demais. Teria de voltar ao Hotel Mills. Estava mais de acordo comigo.

Comprei um Times e comecei a ler os anúncios de empregos. Não sabia bem o lugar que eu queria, mas não encontrei nada que me conviesse. Fui até às agências da Sexta Avenida, mas também não adiantou nada. Mas não me preocupei. Tinha certeza de que me sur­giria uma oportunidade. Era o dia de amanhã e o amanhã era meu.

Dois meses depois, ainda era amanhã. Mas eu não sabia mais se ele era meu. Estava começando a duvidar de que algum dia tivesse o amanhã que me havia prometido. Estava-se no princípio de março e o frio ainda estava severo. O meu sobretudo novo e grosso tinha ido havia muito fazer companhia a meu relógio e a tudo mais que eu po­dia empenhar. Havia semanas que eu não fazia uma refeição comple­ta. Tinha entrado em tudo quanto era fila — fila de pão, fila de sopa, fila de trabalho — mas não havia trabalhado um só dia.

Na noite anterior, tinha dormido num portal. Fora expulso de lá bem cedo, enregelado e miserável, pelo encarregado do edifício que ia fazer a limpeza. Ainda lhe ouvia a voz gutural e estranha de in­glês, brandindo a vassoura: "Passa fora, vagabundo !" Saí de lá cor­rido como um ladrão e só tinha querido roubar um pouco de repou­so... e de paz.

Estava com fome e com frio. Procurei automaticamente um ci­garro, mas não tinha mais cigarros. Fui olhando para a beira do meio-fio à procura de uma ponta. Afinal, encontrei uma. Um homem vinha descendo a rua. Pareceu-me que ele seria capaz de dar-me al­guma coisa. Vi-o aproximar-se de mim e passar, enquanto eu ficava ali, colado ao chão. Depois que ele passou, tive raiva de mim mes­mo. Por que não lhe pedira nada? É uma coisa fácil. Basta dizer: "Cavalheiro" e engrolar alguns sons na garganta. Não é preciso dizer mais. A pessoa já sabe. Mas eu não podia fazer isso. Havia alguma coisa dentro de mim que não deixava, O homem virou a esquina e eu continuei o meu caminho.

Idiota! Dizia eu comigo mesmo. Idiota! Idiota! Idiota! Nunca Vai aprender? Deixe de ilusões. Você não é nada de especial. não é melhor do que os outros. Peça esmolas, humilhe-se, agache-se, lam­ba as botas. É assim que se faz. É assim que se vive.

Volte para Marianne. . . Marianne! Ela o receberá de braços abertos. E você viverá com conforto de novo. Sem sentir frio, de barriga cheia e com uma bela mulher à sua disposição. Como seria bom ter uma mulher naquele momento! Comecei a rir. Que era que eu preferia naquela hora? Um bom bife ou uma boa mulher? Tornei a rir, vendo diante dos olhos um suculento bife tão real como o poste à minha frente.

Cheguei mais uma vez diante daquela porta e toquei a campai­nha. Comecei a pensar no que ia dizer. "Marianne, estou com fome, com frio e com sono. Deixe-me entrar. Aceite-me de novo. Nunca mais a deixarei, Marianne, nunca mais! Por favor, Marianne"

Que diria ela: "Não! Suma-se daqui !" Não, ela não podia dizer isso. Não era minha? Ela mesma havia dito. Depois de muito tempo, a porta se abriu.

— Não, a Srta. Renoir não mora mais aqui. Voltou para o Haiti no mês passado. Com licença.

A porta se fechou. Fiquei alguns minutos a olhar para ela e saí. Atravessei a rua e comecei a andar para fora do centro. Sentia-me al­to, muito alto, como na vez em que ficara bêbedo. Ri, pensando que estava tão alto que podia olhar se quisesse pelas janelas dos segun­dos andares, espantando as pessoas. A minha cabeça começou a flu­tuar no ar e dentro em pouco estava entre as nuvens. Mas as nuvens estavam úmidas e escuras e eu não podia ver nada. Senti-me então tropeçar, a cair. E de repente foi noite — a noite do Ano Novo — e eu era forte e no céu brilhava um milhão de estrelas. Era só para mim que cintilavam. Era o dia de amanhã — o meu amanhã!

Puseram-me numa cama num grande salão cinzento onde ha­via umas quarenta camas. O médico apareceu à noitinha e me exa­minou. Havia uma enfermeira com ele. O médico olhou para mim e perguntou:

Como se sente?

Melhor.

Ficar sem comer é coisa muito difícil — disse ele num es­forço mal sucedido de fazer graça.

Não me estava dizendo nenhuma novidade. Fiquei calado e ele disse à enfermeira:

É melhor registrá-lo. Ele deverá ficar aqui um dia ou dois. — Tornou a falar comigo: — Você vai descansar por mais algum tempo. Quer mais alguma coisa?

Cigarros? — perguntei, com receio de que estivesse pedindo demais.

Ele meteu a mão no bolso, tirou um maço de Camels pela me­tade e jogou em cima da cama, junto com uma caixa de fósforos.

—        Fique com o resto. Mas tenha cuidado para a enfermeira não ver. E não vá tocar fogo na casa... ainda que isso seja uma boa solu­ção — concluiu ele, correndo a vista pela enfermaria e encolhendo os ombros.

Saiu acompanhado da enfermeira. Parecia um bom rapaz. Fi­quei aborrecido de não lhe ter agradecido os cigarros. Esperei que os dois saíssem e acendi um cigarro, fumando-o lentamente. Cigarro de maço tem um gosto melhor do que as pontas que se apanham na rua.

Quando o cigarro acabou, coloquei-o num pratinho que havia ao lado da cama. Depois, recostei-me nos travesseiros e gozei o con­forto. É engraçado como a gente se sente bem de barriga cheia, dei­tado numa boa cama e ainda com o gosto de um cigarro na boca. Fe­chei os olhos.

Uma voz gentil ao lado da cama perguntou:

—        Está acordado?

Uma moça estava sentada perto da minha cama com um bloco de papel e um lápis na mão.

Estou — disse eu.

Sou Miss Cabell — disse ela. — Não quero aborrecê-lo se está com muito sono, mas tenho de preencher estas fichas.

  1. Vamos ver.

Ela não me parecia estranha. Estava com um costume marrom sal-e-pimenta de corte quase masculino, blusa branca e grandes ócu­los pretos.

—        Como se chama? — perguntou ela. — Não havia nas suas roupas nada que o identificasse.

Kane — disse eu, tentando ver se a localizava. Ela anotou o nome e perguntou:

Endereço?

Não tenho.

Como? Não tem endereço?

Não. Pode escrever "Nova York".

Estava começando a ficar irritado. Eu conhecia aquela moça. Mas quando a memória ia chegando, fugia de novo.

Idade? — perguntou ela.

Vinte e três anos.

Desculpe. Quando nasceu? Em que data?

No dia 21 de junho de 1912.

Ela continuou a escrever e a murmurar o que ia escrevendo.

Sexo — masculino. Cor — branca. Olhos — castanhos. Pele — morena. Cabelos — pretos e grisalhos. É muito moço para ter ca­ belos grisalhos.

É porque tenho muitas preocupações.

Oh! Desculpe. Não tive a intenção de ser impertinente.

Não tem importância. Nem pense nisso. Ela continuou.

Altura?

Um metro e setenta e três

Peso?

Sessenta e três quilos quando me pesei pela última vez.

Ela olhou para mim e sorriu. O sorriso foi a chave. Era um sor­riso de que eu me lembrava. Marty! Já sabia quem era — Marty e Ruth — Ruth Cabell. Esperava que ela não se lembrasse mais de mim. Não queria que ninguém me visse naquela situação.

Deve ter sido há muito tempo. Vamos dizer... cinqüenta quilos.

Pode ser, — disse eu, procurando tirar qualquer interesse da minha voz.

Onde é que trabalha?

Não trabalho. Estou desempregado.

Qual é a sua espécie de trabalho?

Qualquer espécie de trabalho, isto é, quando encontro.

Onde nasceu?

Nova York.

—        Tem curso secundário ou qualquer espécie de instrução?

Quase caí nessa. Se eu tivesse dito que havia estudado na Wa­shington, ela me identificaria logo.

Não.

Tem certeza?

Notei que ela não estava escrevendo e tinha um brilho de inte­resse no olhar. Respondi:

—        Claro que tenho.

Ela se levantou, foi até aos pés da cama e olhou firmemente pa­ra mim. Olhei-a também.

—        Francis Kane — murmurou ela. — Frank Kane. Frankie. Não se lembra mais de mim, Frankie? Sou Ruth, irmã de Marty.

Como poderia esquecê-la? Mas disse, impassível:

Desculpe, moça, mas creio que me está confundindo com outra pessoa.

Não estou não — disse ela, com um toque de irritação na voz, que me fez lembrar ainda mais a Ruth de outros tempos. — Vo­cê é Francis Kane, não é?

Sou, sim.

Então eu estou certa, disse ela, tirando os óculos. — Escute, você estudou na George Washington com meu irmão. Antes disso esteve no orfanato de St. Thérèse. Deve lembrar-se disso.

Sinto muito, mas continuo a dizer que está enganada. Não estive em nenhum desses lugares e não conheço seu irmão.

Mas seu nome é Francis Kane.

Moça — disse eu, procurando parecer pacientemente resig­nado — há muitas pessoas que têm o mesmo nome. E, além disso, este outro como era? Não se parecia muito comigo, não é?

Ela me olhou alguns segundos antes de responder e disse, com alguma dúvida na voz:

Não, não se parecia muito, mas isso foi há oito anos.

Está vendo? — perguntei, com um leve tom de triunfo.

Não, não estou vendo nada. Deve ter esquecido. Esteve do­ ente e pode ter esquecido. Não é a primeira vez que isso acontece.

Uma pessoa não esquece os amigos por mais tempo que pas­se sem vê-los — disse eu.

Ela tornou a sentar-se e disse:

Talvez tivesse tido um ataque de... — Hesitou em dizer a palavra.

Amnésia? — perguntei, rindo. — Acho que não.

Não posso estar errada — disse ela e tentou novo caminho: — Lembra-se de Julie? Ela trabalhava para nós. Você dava lições de boxe a meu irmão. E Jerry Cowan? E Janet Lindell? E sua tia e seu tio, Bertha e Morris Cain? Esses nomes não significam nada para você?

Sacudi a cabeça e fechei os olhos. Esses nomes significavam tudo para mim — todo um mundo de perfeição e de amor. Abri os olhos e sacudi a cabeça.

—        Não. É a primeira vez que os ouço.

Descansei a cabeça no travesseiro e ela continuou, solicita.

—        Você está cansado. Eu o estou perturbando. Está um pouco pálido. Não quero perturbá-lo. Quero apenas ajudá-lo. Procure ver se se lembra. Lembre-se de que houve Julie e depois Janet, e eu tinha ciúmes delas — tinha ciúmes de você, de todas as pessoas que gos­ tavam de você e dos motivos por que gostavam. Não sabia por quê.

Talvez fosse porque eu gostava muito de você — mais do que eu sa­bia, mais do que queria reconhecer. Gostava de implicar com você, de insultá-lo. Um dia, no corredor da escola, você me beijou, e disseque íamos ser amigos. Lembra-se? Quando você me beijou, compre­endi de repente tudo o que sentia por você, tudo o que sempre havia sentido e fiquei envergonhada de tudo o que lhe havia dito. Deve lembrar-se disso. Não pode ter esquecido.

Ri um pouco e disse com um esforço para ser irônico:

—        Ora, se eu a tivesse beijado algum dia, não me esqueceria com facilidade.

Ela ficou muito vermelha e era evidente que estava com raiva de si mesma por ter ficado vermelha. Alguns segundos depois, do­minou-se, voltou-se para mim e voltou a falar num tom de voz im­pessoal.

Desculpe. Talvez eu esteja errada mesmo. Mas não quis ofendê-lo. Estava apenas procurando ajudar.

Sei disso e lhe agradeço. Só sinto é não ser a pessoa que procura.

Levantou-se com o bloco e o lápis na mão e disse de novo com voz impessoal:

Talvez você é que esteja enganado. Amanhã vou trazer meu irmão aqui e pedir-lhe que olhe para você... Talvez Jerry Cowan também. Eles hão de saber.

Isso não vai adiantar nada — disse eu. Mas pensava coisa muito diferente. Eles me reconheceriam no mesmo instante, por mais que eu estivesse mudado.

Meu irmão trabalha como interno noutro hospital e não po­derá vir aqui antes do meio-dia. Mas nós viremos e espero que você seja quem eu penso. Tenho muitas coisas para lhe dizer.

Ficou ali à espera e eu quase sucumbi. Havia muitas coisas que eu queria saber. Que era feito de minha família, por exemplo. As perguntas se cruzavam na minha cabeça. Mas dominei-as. Ruth nada havia perdido da sua habilidade.

—        Faça o que quiser, moça — disse eu, como se estivesse can­sado de tudo aquilo — mas, como já disse, não vai adiantar nada.

—        Talvez — disse ela, com uma rápida sombra de desaponta­mento no rosto! — Boa noite.

Vi-a atravessar a enfermaria e sair, mas não respondi. Peguei depois um cigarro e acendi-o com as mãos trêmulas. Amanhã ao meio-dia! Isso queria dizer apenas que a essa hora eu já devia estar longe dali. Não teria coragem de ficar e tentar blefar os meus dois amigos. Sairia depois de um bom almoço de manhã. Não me podiam obrigar a ficar. Eu não era um criminoso.

Fiquei ali deitado, pensando nos motivos pelos quais eu ainda não havia encontrado emprego, por que eu sempre fazia uma confu­são de tudo. Talvez fosse porque eu nunca fazia um plano. Talvez fosse porque eu tentava pegar qualquer coisa indiscriminadamente. Devia ser isso. Daquela vez, eu precisava de ter um plano. Não podia falhar de novo. Daquela vez tinha de ser para valer. Mas qual devia ser o plano? Que podia eu fazer para não falhar? Tinha de ser algu­ma coisa sólida, segura, indestrutível.

Analisei uma porção de idéias, cada qual mais maluca do que a outra. Lutavam dentro da minha cabeça e mal uma aparecia eu a a-fastava. Em dado momento, corri os olhos pela enfermaria. Perto da porta havia uma placa que dizia: "Enfermaria 23 — Hospital Belle-vue". Foi então que encontrei o que procurava. Caiu-me no espírito com tal violência que eu me admirei de não ter pensado nisso antes. Aquilo não podia falhar. Era tiro e queda. Apaguei o cigarro e tratei de dormir.

Cheguei à esquina e olhei para o relógio na vitrina do outro la­do da rua. Onze horas. Havia escapado por pouco. Tivera um pouco de trabalho em convencer o médico de que me estava sentindo bem. Mas que poderia ele fazer sejá havia dito que eu estava OK?

Ficou um pouco preocupado quando lhe pedi que me deixasse sair.

—        Devia passar mais uns dias aqui — disse ele. — Precisa mesmo de repouso.

Estava sendo delicado, mas eu lhe respondi:

Sinto-me bem melhor, doutor. E tenho amigos que me aju­darão e olharão por mim. Fique descansado.

Está bem. Vou fazer-lhe a vontade. Não o posso forçar a continuar aqui, mas recomendo-lhe que tenha cuidado. Está mais combalido do que pensa. Procure os seus amigos e passe com eles alguns dias, descansando.

Não se preocupe, doutor. É isso mesmo que eu vou fazer.

Vi-o assinar os papéis que me davam alta, entregando-os a uma enfermeira. Em seguida, me disse:

Não se esqueça de fazer o que eu lhe disse.

Vou fazer, sim, doutor. Obrigado, muito obrigado — disse eu e estendi-lhe a mão.

Ele teve um momento de surpresa, mas logo me apertou a mão. A enfermeira chegou com as minhas roupas. Vesti-me e em breve a-travessei os corredores e saí do hospital.

Olhei o relógio de novo — onze horas. Podia já contar com um emprego. Tomei o meu caminho. Tinha de procurar Silk Fennelli naquele mesmo dia. Devia lembrar-se do que eu fizera. Salvara-lhe provavelmente a vida, levando-o para o hospital sem perda de tem­po. Tudo se resolveria naquele dia. Já que eu tinha de voltar, voltaria logo ao ponto de partida.

Ele não me iria repelir.

 

INTERLÚDIO

FRANCIS

Jerry foi até ao aparador e preparou outro uísque. Olhou-o de encontro à luz. Estava como devia ser: pródigo no scotch e com um traço de soda, apenas. Virou-se pan Marty e chamou-o, para uma cadeira.

— Os anos perdidos — murmurou ele calmamente. — A ma­neira pela qual você disse a frase me esclareceu. Durante este perío­do do tempo em que ele desapareceu até o tempo em que tomamos a vê-lo, Frank cresceu e desenvolveu-se também. Talvez não no mes­mo sentido em que isso aconteceu conosco. Mas de modo diferente. Alguma coisa deve ter-lhe acontecido no decurso dessa fase para fa­zê-lo voltar ao caminho único no qual sabia que ia dar-se bem.

"Não sei o que foi. Talvez ninguém saiba, nem venha a saber. Mas há traços do tempo em que ele principiou a voltar para as nossas vidas. Traços apagados, meros indícios — mas suficientes para dar uma idéia do que lhe estava acontecendo e do que ele estava fazendo.

"Começou curiosamente pouco depois de eu ter ido trabalhar como assistente do procurador-geral. Foi em abril de 1936. A polí­cia estava investigando um caso de tiroteio entre gangsters num dos hotéis da cidade. Os rumores davam como implicados certos joga­dores bem conhecidos. Estávamos explorando sem resultado todos os ângulos quando um dos nossos informantes apareceu com uma estranha história sobre um homem que trabalhava para Fennelli — um homem de quem nunca tínhamos ouvido falar. Mas, de acordo com o informante, ele subira em poucos anos — talvez dois, talvez três — de agente de bookmaker a uma das figuras principais da or­ganização. Esse homem se chamava Frank Kane. Eu estava muito ocupado nesse tempo com outro caso que acompanhava nos tribunais e deixei tudo isso de lado até alguns anos depois quando peguei no dossiê".

Os homens estavam sentados jogando pôquer quando a porta e abriu e um homem entrou. Pararam de jogar um instante para olhá-lo. Era difícil calcular-lhe a idade. Era magro e o rosto era quase emaciado. Não tinha sobretudo, embora lá fora estivesse fazendo um frio terrível. A sua pele tinha um aspecto jovem que não combinava bem com os seus olhos e os seus cabelos grisalhos. Os olhos eram castanhos, quase pretos e não tinham profundidade, nem expressão. A boca era pequena e ele falava quase sem descerrar os lábios. A voz era estranha — velha, cansada e vazia de expressão como os o-lhos, com um subtom baixo e áspero. Ficou na porta olhando-nos firmemente, sem bater as pálpebras.

—        Quero falar com Fennelli — disse ele.

Piggy Laurens, que se considerava engraçado, levantou-se e foi até onde estava o desconhecido.

—        Vá dando o fora! Fennelli não dá esmolas!

O homem fechou calmamente a porta, deu alguns passos e plantou-se bem diante de Piggy. Os braços estavam caídos, não ha­via expressão no seu rosto, mas a voz era dura e controlada. Disse com os olhos fixos em Piggy:

—        Não estou pedindo a opinião de subalternos.

Piggy ficou vermelho e deu um passo na direção do homem, mas olhou então para os olhos dele. Piggy não era de modo algum covarde, mas não deve ter gostado do que viu. Contudo, não podia mais recuar e tinha de agir. Deu outro passo à frente.

Os outros olhavam da mesa do jogo com muito interesse. Esta­vam à espera do momento em que o desconhecido recuasse e fugisse.

A mão de Piggy iniciou um movimento ameaçador para os bol­sos. A voz do desconhecido a fez parar no meio do caminho.

—        Se tentar fazer isso — disse ele no mesmo tom de voz —, eu o matarei.

Os braços ainda estavam caídos, mas os lábios se haviam arre-ganhado num sorriso que parecia um esgar de fera e os olhos pareci­am emitir faíscas. Ouviu-se então a voz de Silk da porta da sala dos fundos:

—        Vá sentar-se, Piggy.

Piggy voltou para a sua cadeira e sentou-se meio sem jeito.

O desconhecido e Fennelli se olharam através da extensão da sala. Houve silêncio por um momento. Depois, os passos do desco­nhecido ressoaram na sala.

—        Vim pegar o emprego que você me prometeu — disse ele, chegando perto de Fennelli.

Fennelli olhou-o e, depois afastou-se da porta, fazendo-lhe si­nal para que entrasse. O desconhecido entrou e Fennelli seguiu-o.

—        Como demorou a chegar aqui, Frankie! — disse Fennelli, ao fechar a porta.

Os homens ouviram isso e tornaram a pegar nas cartas.

Jerry tomou outro gole de uísque.

—        O informante disse que esse homem estava organizando to­da a rede do jogo na cidade, empenhado em por termo à guerra entre as quadrilhas que estavam provocando a atenção e a ira do público.

Os jornais estavam explorando muito essa guerra e atacando o de­partamento por não acabar com ela. Kane tinha a solução para o ca­so. Ia estabelecer um cartel, uma organização que fixasse os territó­rios dos diferentes grupos e exigisse o respeito ao acordo firmado. Tinha convidado os principais chefes da cidade para uma reunião.

Se Fennelli soubesse o que ia acontecer, talvez nunca tivesse dado emprego a Frank. Começara como agente de bookmaker, mas não ficara muito tempo nisso. Era um organizador inato. Dentro em pouco, tinha outras pessoas que recolhiam as apostas para ele e com quem ele rachava as comissões. Depois, Silk levou-o para o grupo e deu-lhe a direção de todos os bookmakers.

Para os outros do meio, Frank Kane foi sempre uma pessoa es­tranha. Só Fennelli sabia quem ele era e de onde vinha, e Fennelli não falava.

Frank sentou-se na mesa ao lado de Fennelli. A cidade estava bem representada na reunião: Madigan e Moscowits, do Bronx; Lui-gerro, do Sul de Brooklyn; "Fats" Crown, de Brownsville; "Big Black" Carvell, de Harlem; Scutz, de Yorkville; Taylor, de Rich-mond; Jensen, de Queens; Riordan, de Staten Tsland; Antone, de Greenwich Vil Kelly, de Washington Heights.

A reunião se realizava num quarto de hotel e parecia uma ses­são de diretoria de alguma importante empresa. Diante de cada ho­mem, havia um bloco e lápis em cima da mesa. Por toda parte, viam-se charutos, cigarros e cinzeiros. Eram duas horas da tarde e o sol entrava pelas janelas abertas quando Fennelli se levantou para falar.

—        Todos sabem por que foram convidados para vir aqui. Fala-se que o Governador vai nomear um procurador especial para limpar a Cidade. Se puserem no lugar um homem a quem não possamos dominar, estaremos perdidos, se não tratarmos de arrumar a nossa casa antes.

A voz de Fennelli era calma, agradável e bem modulada. A sua maneira de falar era simples. Considerava-se um homem de negócios que falava a outros homens de negócios com a esperança de conven­cê-los a proteger os seus interesses. O fato de que ele assumisse as funções de direção era puramente acidental. Quando Frank lhe havia sugerido a idéia, ele rira. Convencera-se depois com novas explica­ções de Frank. Resolveu fazer uma tentativa quando a indignação pública aumentou e dois dos seus homens foram vitimados.

—        De acordo com o plano que temos aqui — disse ele — pode­remos trabalhar sem interferência da polícia. Os atritos entre nós se­rão eliminados com a apresentação das queixas que cada qual tiver ao comissário. — Gostava daquela palavra. Fazia-o pensar no Juiz Landis e na excelente organização do beisebol, que eliminava todos os interesses externos. — Deixará de haver tiroteios, publicidade e pressão do povo para a limpeza da cidade. Há dinheiro de sobra para todos nós — se formos inteligentes. Ainda que ser inteligente não seja no caso o que sempre pensamos que fosse, acho que devemos agir imediatamente com inteligência. Somos uma grande indústria uma das maiores do país. Se alguma coisa acontece a uma grande empresa que ponha em risco os seus interesses, tomam-se imediata­mente medidas defensivas. É isso justamente o que estou propondo

um meio de proteger os nossos investimentos.

Fennelli sentou-se. Madigan foi o primeiro a fazer uma pergunta.

Tudo isso é muito bonito, mas quem é que vai fazer ficar dentro de seu território um camarada que queira expandir-se?

O comissário — respondeu Fennelli.

Como? — insistiu Madigan.

Conversando com as pessoas envolvidas na questão.

E se isso não der resultado?

Neste caso, torpedo!

Madigan teve um sorriso de triunfo.

Mas aí cairemos justamente no que queremos evitar! Fennelli ficou atordoado. Não havia pensando nisso. Mas Kane

tinha. Levantou-se prontamente e falou:

—        É justamente isso que queremos evitar e vamos evitar por meios de acordo. Se todos quiserem cooperar, poderemos ter êxito. A minha idéia — disse ele, roubando arrojadamente o mérito de Fennelli, que havia convocado a reunião — é a seguinte: Vocês ele­ gerão o comissário. Ele exercerá as suas atividades num escritório que se tornará o centro nervoso dos negócios. Organizará um fichário e um serviço de informações para que possam controlar os pre­ços, distribuir as quotas, fixar as percentagens. O comissário provi­denciará para que tenham uma quota justa dos negócios e dos lucros obtidos. Será o representante de todos e trabalhará exclusivamente para protegê-los.

—        E quem poderá ser esse comissário? — perguntou Madigan.

Fennelli se acomodou na cadeira. Sabia o que ia acontecer.

Frank ia indicar o seu nome.

Eu! — disse calmamente Kane.

Você! — exclamou Fennelli exaltadamente. — Que diabo é você?

Kane encarou-o calmamente.

"A primeira traição !" pensou Moscowits. "Isso dará em nada como todas as outras tentativas". Estava ficando um pouco cansado de tudo aquilo. Queria abandonar tudo e ir-se embora — para muito longe. Mas se houvesse um pouco de paz em vez daquela contínua luta de golpes e contragolpes, talvez ficasse mais um pouco.

—        Sou o homem talhado para o lugar — disse Kane, sem alte­rar a voz. — Sou a única pessoa aqui que nada tem para proteger. Não devo coisa alguma a nenhum de vocês. Não me beneficiarei se algum de vocês receber mais ou menos. Além disso, nenhum de vo­cês aceitará qualquer dos outros. A única pessoa que podem escolher sou eu — ou o procurador especial.

Fennelli se tranqüilizou, pensando: "Ele tem razão, sem dúvi­da! Eu não confiaria em nenhum dos outros e nenhum deles confia­ria em mim. Além disso, posso controlá-lo e é só de que eu preciso".

—        OK — disse em voz alta. — Compreendo o que quer dizer.

Kane olhou para os participantes, sentindo uma terrível agita­ção intima. "Conseguiu!" dizia-lhe constantemente uma voz, mas nada disso se mostrava nas suas maneiras.

Há alguma objeção? — perguntou ele.

Quanto é que isso nos vai custar? — quis saber Antone.

Isso vai variar de acordo com o volume de negócios de cada um — disse Kane. — As quotas, no começo, irão de quinhentos a dois mil e quinhentos dólares por semana. No seu caso, a quantia que terá de pagar está escrita num pedaço de papel dentro de um en­ velope. Tenho um envelope para cada um, com o nome escrito por fora. Quem quiser, poderá discutir a sua quota ou aceitá-la. Depende de cada um deixar saber ou não a sua quota, porque esta se baseia no volume de negócios de cada um.

Tirou um maço de envelopes do bolso do paletó e entregou-os a cada um dos homens sentados à mesa.

Os homens abriram prontamente os envelopes e olharam com variadas expressões para as quantias escritas no papel incluso:

"Dois mil por semana", pensou Moscowits. "Não é muito".

"Fats" Crown levantou-se impetuosamente.

—        Tudo isso para mim é simples besteira Nada disso me agra­da! Ninguém me pode dizer o que eu posso ou não posso fazer.

Falou olhando para Luigerro. A rivalidade entre os dois era bem conhecida.

Kane olhou para ele:

—        Qual acha que é o volume dos seus negócios? Cada qual de­ve escrever "sim" ou "não" no seu papel e assinar o seu nome e en­tão veremos o que é possível fazer.

Os homens escreveram e passaram os papéis a Kane. Ele exa­minou-os um por um e, em seguida, levantou os olhos para os ho­mens. Falou diretamente a Crown:

O seu é o único "não". Não quer reconsiderar a sua decisão? Crown sacudiu a cabeça.

Isso não vai adiantar nada. Não vou consentir que ninguém... Kane interrompeu-o:

—        Se prefere assim, está no seu direito. Mas fique sabendo que não é possível deixar que os negócios de todos fiquem arruinados por causa de um idiota. — Acrescentou quase com gentileza: — Po­de retirar-se da reunião...

Crown olhou em volta da mesa e disse:

—        Vou sair, mas quero avisar uma coisa. Não entrem no meu território! É só!

Saiu pisando com força e bateu a porta.

Os outros homens olharam para Kane. Era importante ver como ele iria resolver aquela situação. O que ele fizesse naquele momento indicaria o rumo que ia tomar no futuro.

Kane foi até um canto do quarto e pegou um telefone. Discou um número.

—        Fats abandonou a reunião — disse ele calmamente quando atenderam. Em seguida, desligou.

Voltou à mesa e sentou-se.

—        Nós continuamos em atividade — disse ele. — Agora, a primeira providência é uma sede. Tenho um escritório em Jersey City...

"Bandido!" pensou amargamente Fennelli enquanto Kane expu­nha seu plano. "O cachorro já estava com tudo pronto !" Mas com es­se pensamento se misturava uma certa dose de relutante admiração.

— Ninguém quis acreditar no que o informante havia dito — disse Jerry, observando o rosto de Marty, para ver se havia nele al­guma expressão de surpresa. Mas Marty estava impassível como um médico que ouvisse um doente narrar os seus sintomas. Só formaria a sua opinião depois que ouvisse e assimilasse todos os fatos.

"A polícia achou que aquilo era absurdo. Não acreditou que "Fats" Crown tivesse sido liquidado por uma organização que con­gregava todos os quadrilheiros da cidade. Tentaram ver se implica­vam Tony Luigerro no caso, mas nada conseguiram.

"Depois do assassinato de "Fats" Crown, houve paz na cidade. A guerra entre as quadrilhas cessou e pouco a pouco o interesse do público se desviou para outros assuntos. A pressão se atenuou e a i-déia de um procurador especial foi momentaneamente posta de lado.

"Enquanto isso, Frank continuou a construir e consolidar o seu império. A sua organização começou num escritório de duas salas em Jersey City. O nome na porta dizia: "Empresa Frank Kane". Mas estava crescendo. Daquele pequeno escritório de duas salas, estendi­am-se tentáculos por todo o país, para Chicago, St. Louis, San Fran­cisco, Nova Orleans. Para norte, leste, sul e oeste, estendiam-se em todas as direções, cobrindo todo o país. O jogo organizado se tornou uma das maiores e poderosas empresas do país.

"Já em fins de 1940, o escritório de duas salas havia aumentado para cinqüenta salas em quatro andares com mais de duzentos em­pregados, entre contabilistas, secretárias e auxiliares de escritório. A sua mesa telefônica com oito telefonistas tinha ligação direta com todos os centros de jogo do país. Era um grande business dentro do conceito americano. Nada havia nele de pequeno.

"Tinha chefes de departamento, diretores e subdiretores. Tinha um caro e bem montado serviço jurídico, a cuja frente estava um dos mais famosos advogados do país. Tinha um departamento de relações públicas, com um homem muito competente saído de uma das maio­res agências. Pode parecer estranho que uma organização clandestina tivesse interesse em relações públicas. Mas o fato é que o departa­mento procurava apresentar o jogo como coisa simpática ou, direta­mente, mostrando como os bookmakers choravam quando alguém perdia demais nas corridas, ou indiretamente, chamando a atenção pa­ra os desastres e as mortes que ocorriam nas competições de atletis­mo, nas lutas de boxe, em todos os esportes. Tinha jornalistas compe- tentes que escreviam sobre todos os ângulos dos esportes. Não per­diam uma só oportunidade.

"E no centro de tudo isso estava Frank Kane. Sob a sua direção, a organização chamada Empresas Frank Kane não cessou de expan­dir-se. Havia um departamento que tinha totalizadores para todos os prados importantes do país. As máquinas em funcionamento nos prados eram reproduzidas no escritório por meio de computadores eletrônicos operados por peritos, de modo que era possível a cada momento saber as apostas recebidas pela organização em qualquer prado do país. Era fácil cotejar as apostas com o jogo feito no prado e quando não havia equilíbrio, um agente do prado recebia ordem de jogar tanto neste ou naquele cavalo, de modo que a organização não deixasse de ter lucro.

"Fixou limites para o que os bookmakers poderiam pagar. Vinte por um para a ponta. Quinze por um para a dupla. Dez por um para o placê. Cinqüenta por um para as acumuladas. Cem por um para os bo­los duplos. Antes disso, os bookmakers pagavam os rateios numa base de competição, dependendo do volume de negócios que precisavam e queriam. De vez em quando, algum deles ficava em posição crítica e deixava de pagar. Frank Kane acabou com isso. Foi estabelecido um limite para os bookmakers de acordo com a sua base financeira. O que ultrapassasse esse limite cabia a organização que distribuía os lucros com os bookmakers na base de comissão. Dessa maneira, os bookma­kers podiam e deviam transferir as suas apostas quando estas ultrapas­savam a sua capacidade financeira. Isso teve um efeito estabilizador sobre os negócios. Em dois anos, nenhum bookmaker deixou de pagar as apostas recebidas. Era assim como um banco central que garantisse os depósitos feitos nos bancos particulares.

"Talvez o mais estranho de tudo isso fosse o fato de que, apesar da sua extensão, eram relativamente poucas as pessoas estranhas à organização que sabiam da sua existência. E ainda menos gente sa­bia da existência de Frank Kane. Mas um dia os jornais revelaram tudo. Uma conferência entre o Governador e o Prefeito deu em re­sultado a seguinte declaração:

A cidade e o Estado de Nova York, e até todo o pais, correm o risco de cair em poder e nas mãos de um homem. Esse homem organizou o jogo como uma indústria, de tal maneira que está afetando consideravelmente todo o nosso bem-estar econômico, quer joguemos, quer não.

Fez cair muitas pessoas em servidão econômica, forçando-as a contrair dívidas com pequenos e grandes agiotas e um sem mundo de falcatruas e desvios de toda espécie e além do jamais se pode imaginar.

As suas atividades levaram-no a extremos de corrupção ja­mais igualados na nossa história. Os seus negócios se fazem em milhões e não em centavos. Subornou ou tentou subornar fun­cionários públicos importantes e pequenos. Organizou de tal modo as suas sinistras atividades que o assassinato não é mais necessário como uma ameaça para aqueles que se lhe opõem, embora sejam sem conta as assassinatos e suicídios resultantes das suas atividades. A sua arma é outra. Consiste na ameaça de escravidão econômica por quem se levanta contra ele. Épreciso fazer parar esse homem.

Dentro de alguns dias o Governador divulgará a nomeação de um "Procurador Especial", cuja única função será deter esse homem e colocá-lo no lugar que lhe compete — atrás das gra­des. O nome do homem é Frank Kane.

A missão do Procurador Especial será apenas uma: meter Frank Kane na cadeia ".

"Os jornais ficaram em polvorosa. Sabiam há muito que um grande escândalo estava para estourar, mas isso os colhera inteira­mente de surpresa. Vasculharam febrilmente os seus arquivos à pro cura de fotografias de Frank Kane e não encontraram nada. Ele foi descrito das mais variadas maneiras: como alto e baixo, como gordo e magro e assim por diante. Para o público e.ra uma espécie de fan­tasma, um nome apenas. Nunca fora preso, nunca se haviam tirado as suas impressôes digitais, nem anotado as suas características de identificação. E todo o mundo perguntava: "Quem é Frank Kane? Onde está Frank Kane ?"

"Frank estava em Chicago quando a notícia foi publicada em Nova York. Tinha ido para lá sozinho por dois dias e por motivos que ninguém parecia saber. Não conseguimos apurar que fosse para tratar de negócios, para ver uma mulher nem para qualquer das coi­sas que podem fazer um homem passar dois dias em outra cidade.

"Não sei se ele tinha conhecimento do que estava acontecendo em Nova York depois da sua saída, mas tenho a impressão de que sabia de tudo. De qualquer modo, tomou o trem com a sua habitual displicência, tomou o seu lugar no Pullman e abriu o Chicago Tri-. bune. E foi então que eu voltei à vida dele, ou melhor, ele voltou à minha.

"Ali estava, no pé da primeira página, depois de uma notícia sobre a morte acidental de um detetive ferroviário de Chicago, o tele grama seguinte:

"Nova York, 9 de setembro de 1940 (AP) Jerome H. Co­mi an filho do ex-prefeito de Nova York A. H. Cowan, foi desig­nado para Procurador Especial pelo Governador do Estado. O Sr. Cowan terá a missão de Processar Frank Kane denunciado pelo Governador de Nova York como o chefe do sindicato do jogo no país."

"Era esse o meu dever — processar Frank Kane. Era a minha grande oportunidade — destruir um amigo e deixar a sua carcaça pa­ra os abutres.

"A verdade era que eu não queria o encargo. Mas meu pai, que havia trabalhado pela minha designação, me disse: "É a sua grande oportunidade. A amizade que vá às favas! Talvez nunca mais lhe a-pareça coisa igual !"

"Em vista disso, aceitei. Talvez fosse um erro, mas eu não po­dia saber o que ia acontecer. A primeira coisa que eu tinha de fazer era trazer Frank a Nova York para ser interrogado. Já sabem qual foi o resultado. Ele ficou calmamente do outro lado do rio, em Jersey, rindo de nós.

"Ao fim de três semanas de intensas investigações, eu estava começando a ficar nervoso. Os jornais já me estavam atacando. Pen­savam que me haviam confiado um caso já resolvido e que eu tinha apenas de levar o caso aos tribunais. Estavam errados. Começara sem qualquer base e ao fim de três semanas estava na mesma situação.

"Resolvi ter uma conversa com ele e uma tarde peguei o meu telefone de ligação direta e disquei para as Empresas Frank Kane. Esperava mostrar-lhe que não havia esperança para ele e que lhe se­ria melhor bater em retirada enquanto isso ainda era possível. Afinal de contas, ele foi meu amigo, pensei eu.

"Uma voz atendeu ao telefone: 'Empresas Frank Kane'.

"Por favor, quero falar com o Sr. Kane".

"Um momento", disse a voz. Houve o estalo da transferên­cia da chamada e outra voz disse: "Escritório do Sr. Kane".

"Quero falar com o Sr. Kane". "Quem deseja falar ?" "Je­rome Cowan".

"Percebi uma leve nota de surpresa na voz que me disse: "Faça o favor de esperar um instante". Outro estalo, mais outro e finalmen­te: "Fala Kane". A voz não tinha expressão alguma pelo telefone. Era como se eu estivesse falando com um fantasma."

Jerry colocou o copo de uísque pela metade em cima da mesa. Levantou-se e ficou em frente de Janet e de Marty olhando para eles.

Janet olhou espantada para o marido. Era a primeira vez que mencionava o fato. Estava agitado e nervoso como se estivesse vol­tando a passar por aquele momento difícil.

Recomeçou a falar, com voz áspera e nervosa:

—        Disse então: "É Jerry Cowan quem fala". Frank respondeu:

"Eu sei". Havia tanta emoção na voz dele como se falasse comigo todos os dias. Não parecia impressionado com o meu telefonema nem com o fato de que eu tivesse sido designado para mandá-lo para a cadeia. Não mostrou qualquer curiosidade quanto ao motivo do meu telefonema. Foi apenas polido, displicente, desinteressado.

"Procurei falar depressa. Tinha receio de que desligasse antes que eu pudesse dizer o que queria. Poder-se-ia pensar, da maneira pela qual eu agia, que eu era o acusado e não o acusador. "É Jerry Cowan quem fala", repeti. "Lembra-se ?"

"Lembro-me".

"Quero falar com você".

"Não está falando?"

"Você tem de livrar-se disso, Frank. Há gente empenhada em vê-lo no chão e você não pode vencer todo o mundo sempre. Fomos amigos em outros tempos. Acredite no que lhe estou dizendo. E saia enquanto é tempo".

"Foi só para dizer isso que me telefonou ?", perguntou ele.

"Foi. Mas pelo amor de Deus, ouça-me, Frank

"Já ouvi", disse ele e então a sua voz tomou um tom mais áspero. "Sr. Cowan, sei que tem uma missão a cumprir. Foi uma obrigação que assumiu. Muito bem, faça o que tem de fazer. Mas não espere que eu faça o seu serviço".

"Não é nada disso, Frank. Quero ajudá-lo".

"Então, para começar", disse ele com um breve riso, "porque não se mete com a sua vida?"

"Está bem", disse eu. "Se é assim que deseja..

"Deseja mais alguma coisa, Sr. Cowan ?", perguntou ele com um tom de voz que eu não podia compreender.

"Não", disse eu, de repente exausto. "Nada. Estava apenas pensando. Quando éramos garotos, tudo era tão simples. Você, Marty e eu éramos tão amigos e eu...

"Eu sei, disse ele com uma voz que se tornara de repente gentil e amiga. "Também estava pensando nisso". E desligou, dei­xando-me com o fone na mão.

"Deixei o fone no gancho e fiquei ali, no mesmo lugar, numa espécie de torpor. Acho que fiquei assim quase uma hora, enquanto o desespero pouco a pouco me invadia. Eu estava derrotado e sabia disso. Era a velha história — ele sempre fora melhor em tudo do que eu. Tinha a impressão de que jamais conseguiria vencê-lo.

"Corri os olhos pelo escritório. Odiava aquilo e tudo o que ele representava, tudo o que eu tinha querido ser desde garoto. Que lou­co eu era, querendo ser o que não podia ser! Tinha de sair dali e ir para um lugar onde pudesse pensar sozinho. Peguei o chapéu e saí. De passagem, disse à minha secretária que não voltaria mais naquele dia. Tomei o carro, fui para fora da cidade e... e...

A voz dele pareceu estrangular-se na garganta e ele não pôde mais falar. Ficou ali a olhá-los em silêncio, com o pomo-de-adão a mover-se convulsivamente para cima e para baixo.

Janet pegou-o pela mão e fê-lo sentar-se entre ela e Marty.

Ele colocou o rosto entre as mãos e murmurou:

—        Já sabem o resto da história...

Janet olhou para Marty por sobre a cabeça curvada do marido. Havia em seu rosto compreensão, amor e simpatia. Falou com Jerry, mas Marty teve a impressão de que ela estava falando com ele.

—        Sabemos, sim, querido. E é por isso que vamos agir como vamos.

O olhar de Janet tomou um brilho estranho, quase místico, tal como se estivesse voltado para o futuro. Perguntou a Marty:

—        Que faria se fosse viver de novo a sua vida? Que faria por Francis?

Marty pensou por um momento que estivesse louco. Deu um salto do sofá.

—        É uma pergunta absurda! Todos nós sabemos que Francis está morto!

O brilho foi mais forte nos olhos de Janet e ela perguntou:

—        Que faria você se eu lhe dissesse que não está?

 

Fennelli estava esperando no meu escritório quando voltei do almoço. Levantou-se quando me viu entrar. Atravessei o escritório e fui sentar-me à minha mesa. Liguei o interfone para que minha se­cretária soubesse que eu havia chegado — pois havia entrado pelo elevador particular. O relatório de uma hora estava em cima da me­sa. Peguei-o e examinei-o antes de falar com Fennelli.

Olhei-o então. Estava em frente à minha mesa e parecia um pouco nervoso. Talvez alguém que não o conhecesse tão bem quanto eu não pudesse perceber isso, mas eu percebia. Havia pequenos si­nais: a imobilidade forçada das mãos, a leve pressão dos lábios — pequenas coisas que o denunciavam.

Sente-se, Silk — disse eu, sorrindo. Acendi um cigarro e es­perei que ele se sentasse. — Que é que há?

A pressão está bem forte, Frank — disse ele, levantando-se de novo.

Não era preciso que ele me dissesse! Havia seis semanas que eu não me atrevia nem a atravessar o rio para ir a Nova York e ele me vinha dizer que a pressão estava forte! Eu nada disse.

Ele colocou o chapéu em cima de minha mesa.

—        Estou falando sério, Frank. Estão dispostos a tudo. Cowan esteve com o Governador outro dia e obteve permissão para proces­sar-nos primeiro já que não conseguem nada contra você.

Sabia disso também. Pagava a um camarada que trabalhava no gabinete do governador duzentos dólares por semana para me in­formar. Tinha sabido quando Cowan solicitara a audiência quando esta se realizara. Tinha até na minha gaveta um resumo da conversa entre os dois. Desde que não tinha nada mesmo de importante pa­ra dizer, continuei calado e fumando o meu cigarro.

Silk ainda me observava. Quando viu que eu não ia falar, con­tinuou:

Temos de fazer alguma coisa. Os homens estão preocupados.

Que homens?

Madigan, Moscowits, Kelly, Carvell, todos eles.

Você também, Silk?

Eu também.

Ri. Lembrei-me do tempo em que eu pensava que aquela gente era dura e não desanimava diante de coisa alguma. Sabia já que não era assim. Eram duros e implacáveis quando não corriam risco, mas logo que algum perigo surgia vinham correndo para mim.

—        Que é que você quer que eu faça? Quer que amarre as mãos deles?

Silk ficou um pouco vermelho.

Não tem nenhum jeito de agir sobre Cowan?

Já lhe disse que tentei, mas não deu resultado.

Eu estava mentindo. Não havia tentado. Mas, de qualquer ma­neira, eu sabia que não daria resultado.

E a vida pessoal dele? — perguntou Silk. — Talvez haja al­guma sujeira escondida que ele não queira que se saiba.

Não há nada. O camarada sempre levou uma vida tão decen­te que chega a ser nojenta.

E a família dele?

Você conhece o pai dele, Silk. Acha que se poderia fazer al­guma coisa contra ele que desse resultado? O grande vulto veneran­do da política de Nova York?

Ri desdenhosamente. Se tentassem alguma coisa contra o ve­lho, cairiam junto com ele. Sabiam muito bem disso.

E a mulher dele?

Nada feito. Verifiquei isso também. Conhecem-se há cem anos — isto é, desde o tempo de garotos. Ficaram noivos logo que concluíram o curso secundário. Nunca houve mais ninguém, nem de um lado, nem do outro.

Deve haver um jeito de fazer o homem parar — murmurou Silk.

Claro que há — exclamei, levantando-me e indo para junto dele. — Basta eu ir até ao escritório dele e dizer: "Pronto, rapazes! Que é que querem comigo ?" — Apaguei o cigarro no cinzeiro e repeti: — Basta isso!

Bem sabe que não é isso o que nós queremos, Frank!

Como é que eu posso saber o que é que vocês querem? Só sei é que correm para cá choramingando sempre que uma coisinha qualquer não dá certo. São tão imbecis que não podem perceber que é isso mesmo que os outros querem? Acossar vocês até que algum não agüente mais e abra a boca? Ai então farão o que quiserem com todos! Fiquem quietos! Metam a língua no saco! Deixem o trabalho de pensar comigo e parem de molhar as calças logo que o vento co­meça a soprar um pouco mais forte! Você me deram este lugar para fazer um serviço para vocês e eu estou fazendo. — Olhei-o firme­mente e dei uma inflexão diferente à voz. — Isto é, a menos que não estejam satisfeitos.

Nada disso, Frank! Estamos muito satisfeitos! — disse ele com excessiva precipitação.

Sabia também das conversas de todos eles em Nova York. Se eu lhes desse uma chance, eles me atirariam aos lobos sem a menor hesitação.

—        Neste caso, volte e diga-lhes que deixem de ficar tremendo.

Diga que eu estou a par de tudo e que quero que façam o que eu dis­ser. Já tomei providências para tirar da prisão poucos minutos depois qualquer deles que for preso. E que continuem com as suas ativida­des normalmente, até que recebam ordem minha em contrário.

Voltei para minha mesa e sentei-me.

Silk pegou o chapéu e se encaminhou para a porta.

—        Comunicarei a todos eles o que você disse, Frank.

A voz dele era cheia de respeito, mas os olhos fuzilavam. Mudei de assunto.

Se não me engano, você está atrasado em nove mil dólares da sua quota da semana passada. Já que está aqui, pode passar pela sala de Joe Price e acertar isso.

Está bem, Frank.

Ele já estava com a mão na porta e eu resolvi dar-lhe outro golpe.

Mais uma coisa, Silk. Saiba que não .me esqueço de que queria este lugar para você... e que eu tenho boa memória.

Saiba então também — disse num tom de voz que era estra­nho nele — que ainda me lembro de que, se eu não lhe desse a pri­meira chance, você nunca estaria onde está.

Lembro-me disso também, Silk, e é por isso que lhe falo com bons modos.

Hesitou um instante antes de sair, mas como se ainda quisesse dizer alguma coisa e lhe faltasse coragem. Afinal saiu, fechando a porta. O mal com aquela gente é que todos eles haviam passado tanto tempo intimidando os outros que se haviam esquecido de que eram humanos e podiam também ser intimidados.

Peguei o telefone. "Ligue para Alex Carson". Era um dos ad­vogados da firma. Queria recomendar-lhe que prosseguisse com a idéia de que eu tinha falado a Fennelli — para tirar da cadeia medi­ante fiança qualquer dos homens que fosse preso. Às vezes, uma pe­quena conversa esclarece muito as coisas. Eu estava sempre disposto a conversar sobre tudo, O ruim era que eu não confiava em nenhum deles para conversar francamente, de modo que eu mesmo é que ti­nha de coordenar tudo. Só podia falar com eles um pouco de cada vez. Do contrário, ficariam sabendo tanto quanto eu e isso poderia subir-lhes à cabeça.

Quando acabei de falar com Carson, desliguei e tratei de traba­lhar. Tinha muito o que fazer e não podia deixar de sorrir. Como se trabalhava duro para ter uma vida fácil!

Uma moça me trouxe o relatório das cinco horas e ficou espe­rando enquanto eu o lia. Olhei para ela.

Já chegou alguma coisa do Tanforan?

Não, Sr. Kane.

Peguei o telefone e pedi ligação para Joe Price. Joe era o ho­mem do controle — um camarada notável em matéria de números. Quando o conheci, ele estava fazendo cem dólares por semana como chefe da contabilidade de uma companhiazinha qualquer. Estava de­vendo alguns milhares de dólares e eu achei que me poderia ser útil e tirei-o de lá. Tinha valido a pena. Eu não lhe pagava mil dólares por semana porque gostasse da cara dele.

Price atendeu.

Como é que fomos no primeiro páreo em Tanforan? — per­guntei. Tanforan ficava na Califórnia e tinha três horas de atraso em relação a nós.

Perdemos oito mil dólares — disse ele com a sua voz preci­sa de contabilista. — Estamos com trinta mil contra nas acumuladas.

Quais são as perspectiva do dia?

Seremos felizes se sairmos em paz.

OK — disse eu, desligando o telefone. Não se podia ganhar todos os dias.

Minha secretária estava esperando perto da mesa.

Está aí uma moça que quer falar com o senhor — Miss Coville.

Como foi que ela passou pela portaria? — perguntei, espan­tado. — Não me lembro do nome.

Não sei, Sr. Kane. Acho que ela foi entrando sem falar com ninguém. Disse que o senhor já a conhecia, que ela era irmã de Marty.

Ah, sim! — Claro que a conhecia! Mas que diabo vinha ela fazer? Hesitei um momento. Para dissimular meus pensamentos, per­guntei:

Allison já chegou, Miss Walsh?

Ainda não. Quer que diga à moça que está ocupado? Hesitei ainda e disse:

Quero.

Ela saiu. Tinha vontade de ver Ruth, mas sabia que não adian­tara nada. Ela decerto reconheceria em mim o camarada do hospital, embora tivesse mais alguns quilos de peso e um terno de duzentos dólares. Era melhor assim.

Poucos minutos depois, Allison entrou. Era meu secretário da noite. Eu precisava de duas pessoas — uma para o dia, outra para a noite. Era difícil conseguir uma moça para trabalhar à noite e eu em geral ficava no escritório até bem tarde, esperando que fizessem to­dos os cálculos. Havia por isso contratado Allison.

—        Que é que você quer, Allison?

—        Há uma moça aí fora que quer falar-lhe, uma tal miss Coville.

Havia um jeito curioso no rosto quase efeminado de Allison. Eu não gostava dele. Nunca pude confiar num homem que soubesse taquigrafia.

Pensei que Miss Walsh a houvesse mandado embora. Foi o que eu lhe disse que fizesse.

Pois ela ainda está esperando. — Ele raramente me olhava diretamente, mas assim o fez naquele momento e eu tive a surpresa de ver que a linha do queixo era bem forte. — Diz ela que o senhor prometeu vê-la.

Resolvi ceder. Iria vê-la e liquidar logo o assunto,

—        Está bem. Mande-a entrar.

Levantei quando Allison abriu a porta para ela. Ela ficou para­da um instante à porta, olhando-me. Vestia um costume azul-cinza que combinava bem com os seus olhos azuis. O olhar era franco e direto. A boca era firme e o queixo quase virilmente quadrado.

Ela esperou que a porta se fechasse para então falar.

—        É você?

Encaminhou-se para mim e estendeu a mão. Não a apertei.

—        Quem esperava que fosse?

Ela deixou cair desajeitadamente a mão. A dúvida lhe pairava nos olhos como sombras numa parede.

—        Não sei. — Disse com uma ponta de nervosismo na voz, mas esta logo se acalmou. — Foi você então que esteve no hospital naquela ocasião. Não estava enganada.

E que é que isso prova?

Nada, eu acho. Apenas pensei...

Continuávamos de pé, com a mesa entre nós, como dois lutado­res que se enfrentassem num ringue.

—        Que veio fazer aqui? — perguntei-lhe.

O nervosismo a havia deixado por completo.

—        Queria vê-lo... para saber se era a mesma pessoa que esteve no hospital, a mesma pessoa que em outros tempos freqüentou nossa casa...

—        Agora, que já sabe quem sou eu, há mais alguma coisa? Ela ergueu a cabeça. Não havia mudado muito.

—        Você é ainda a mesma pessoa que era naquele tempo. Está apenas mais velho... e mais áspero.

Nada disse. Ela continuou:

—        Eu não devia ter vindo. Marty e Jerry me avisaram...

Cobri de um salto a distância entre nós e tapei-lhe a boca com a mão.

—        Cale-se, sua boba! — disse-lhe em voz baixa e irritada. —

Não compreende que eu sou vigiado a todo instante, que todas as pessoas que entram aqui são vigiadas? Não compreendo por que não ficou sossegada no seu canto! Não percebe o que acontecerá se sou­berem que eu tive alguma ligação com eles?

Não mencionei nomes, mas ela sabia a quem eu me estava refe­rindo. Afastei a mão da boca da moça e vi que ficara manchada de batom. Limpei-a com o lenço.

Ela estava quase chorando, com olhos repletos de lágrimas e o lábio inferior trêmulo. Deixou-se cair na cadeira diante da minha mesa.

Não sabia... Não pensei nisso.

O mal é esse! Você não pensou!

Só quis foi ajudar..

A quem, a mim? Isso vai ajudar-me muito... Se descobrirem quem você é, tudo se complicará. O melhor que você pode fazer quando sair daqui é nunca mais voltar.

Ela havia recuperado o controle sobre si mesma. Levantou-se e disse com voz fria e formal:

—        Desculpe. Foi um erro da minha parte. Foi um erro até pen­sar em ajudá-lo. Você não mudou nada. Ninguém pode ajudá-lo. Você não deixa ninguém tentar sequer. Continuará sozinho até ser vencido. Arrependo-me de ter vindo.

Dirigiu-se para a porta e eu fiquei a olhá-la. Queria dizer-lhe que tinha gostado de vê-la, que tinha saudades da velha turma, mas não podia fazer isso. Talvez Jerry a tivesse mandado falar comigo, à procura de um ângulo. Eu não sabia.

Desculpe ter sido tão grosseiro com você — disse-lhe.

Não tem importância. Mereci isso. Eu devia ter sabido. Adeus.

Ela já havia chegado à porta. Corri até lá, tomei-lhe a mão e sorri.

—        De qualquer modo, obrigado por ter vindo.

Ficamos ali um instante, olhando um para os olhos do outro e com as mãos juntas. Ela se inclinou para mim e eu senti um beijo ro­çar-me os lábios.

Lembra-se do que lhe disse há muito tempo — perguntou ela. — Agora, somos amigos.

Adeus — disse eu e vi-a fechar a porta.

Telefonei para Allison a fim de saber do comunicado de Tanfo-ran e, enquanto esperava ao telefone que ele me lesse as cifras, fi­quei pensando. Era uma coisa inteiramente sem cabimento, comple­tamente maluca. Aquilo não era hora de interessar-me por uma mu­lher, fosse ela quem fosse.

Ou era?

Fiquei por muito tempo sentado à minha mesa absorto em pen­samentos. Allison havia entrado, acendera as luzes e saíra. O tempo correu sem que eu notasse. Havia subido muito naqueles últimos a-nos. Tinha tudo o que sempre quisera. Tinha dinheiro e boas roupas, comia bem e vivia bem. De que mais precisava?

Mulher? Bastava-me estalar os dedos e as mulheres mais belas do país vinham correndo. Não, isso não era.

Amigos? Talvez. Mas já sabia havia muito que não é possível ter amigos quando se quer conseguir alguma coisa. Por tudo o que eu havia alcançado, tivera de dar alguma coisa em troca. Além disso, não é com amigos que se consegue o que eu tinha.

Virei a cabeça e olhei para a janela. Do outro lado do rio as luzes de Nova York brilhavam tantalicamente aos meus olhos. Era uma coi­sa engraçada. Nada havia do outro lado do rio que eu não pudesse ter onde estava. Mas desejava ardentemente poder atravessar o rio. Talvez fosse o fato de eu sentir as cadeias invisíveis que me restringiam os movimentos que fazia aquilo parecer tão importante. Levantei-me da cadeira, acendi um cigarro e fiquei à janela olhando para Nova York.

Ruth tinha de aparecer para ver-me justamente naquela ocasi­ão! Por quê? Teria sido mandada mesmo por Jerry? Eu bem sabia que não se podia facilitar naquele negócio em que eu estava metido. O primeiro erro que se cometia era quase sempre o último.

Mas se Jerry não estivesse na posição que estava, as coisas po­deriam ter sido diferentes.

O telefone tocou e eu fui até à mesa para atendê-lo. Era Allison.

—        Já tenho o comunicado de Tanforan para o senhor.

Olhei para o relógio. Quase dez horas. Não fazia idéia de que fosse tão tarde. Estava cansado e com fome.

—        Está bem. Pode falar.

Escutei e desliguei. Nova York ainda estava do outro lado do rio. Havia uma coisa que eu tinha de fazer antes de sair. Tirei a ficha de Allison da gaveta de cima da minha mesa, onde estava desde a véspera, e olhei-a. Depois, toquei a campainha, chamando-o.

Ele chegou â porta e disse:

Pronto.

Entre e sente-se. Quero falar com você.

Por um segundo apenas, apareceu-lhe uma ruga de preocupação no rosto. Mas obedeceu e foi sentar-se na cadeira em frente à minha mesa.

Acabo de olhar a sua ficha — disse eu. — Acho-a muito fora do comum.

Em que sentido, senhor? — contraiu-se visivelmente e, apesar do seu esforço para controlá-la, a voz demonstrou alguma perturbação.

Pode deixar de me tratar de senhor quando estivermos sozi­nhos, Allison. Tudo isso é tolice. A cerimônia só serve muitas vezes para disfarçar os verdadeiros sentimentos da pessoa. Todo mundo me chama Frank.

E meu nome é Edward. Ed.

Olhei-o. Ele não era tolo. Por mais que quisesse uma resposta para a sua pergunta. estava disposto a desistir dela ao ver que não a obteria de mim. Pouco antes, o queixo dele havia impressionado. Mas havia outros sinais de força naquele rosto: o jeito da boca, os olhos azuis e determinados, a testa enrugada.

—        Você não liga muito a esse emprego, não é? Com os seus antecedentes, parece estranho que tenha querido trabalhar num lugar destes, para um homem como eu. — Peguei a ficha e li: — Escola de Administração da Universidade de Columbia, 1931. Escola de Direi­to da Universidade de Columbia, 1934.

—        É preciso comer — disse ele, sentindo-se mais seguro. — A fome não respeita títulos, especialmente títulos universitários.

Gostei da resposta. Lá estava eu gostando do homem apesar do que sabia dele. Agradara-me que ele não tivesse procurado negar que estava trabalhando num lugar inferior à sua capacidade. Preferia isso a que ele me tivesse dito: "Nada disso, Sr. Kane! É exatamente o que eu quero!" ou outra coisa igualmente imbecil. Sorri para ele.

—        Não me diga uma coisas dessas, Ed! Parece que a sua famí­lia estava muito bem de vida.

Ele tentou outro caminho, vendo que o primeiro não havia adi­antado nada. Havia um subtom zombeteiro na sua voz. Tentou dar a impressão de que eu o havia desmascarado.

Bem, eu queria fazer uma coisa diferente. Não queria cair na terrível rotina de qualquer escritório comercial ou de advocacia.

Veio então para cá — disse eu, sorrindo.

É verdade.

E foi o que esperava?

De certo modo. Mas não exatamente o que eu esperava.

Que é que esperava então? Sangue nos tapetes? Deixe de ser criança, meu velho. Isto aqui é uma empresa como qualquer outra.

— Era a minha vez de zombar dele. Ele estava começando a mostrar que tinha temperamento. Tomei nota disso. Não gostava de que ris­sem dele. Mudei de assunto.

Há quanto tempo está trabalhando aqui, Ed?

Há cerca de oito meses. — Não chegava ainda a me chamar de "Frank", mas já desistira do "senhor".

Quanto ganha?

Cem dólares por semana.

Que diria se eu passasse isso para duzentos?

Bem — murmurou ele um pouco surpreso. — Eu diria mui­to obrigado.

Era uma boa resposta e eu tornei a rir.

Que faria para isso?

Que quer dizer com isso, Sr. Kane? — Lá estava ele de novo com o "senhor".

Imagine que eu lhe dissesse que o Departamento de Justiça conseguiu alguém que trabalhasse tão perto de mim que pudesse ob­servar todas as minhas atividades. Vamos supor ainda que você fosse essa pessoa. Neste caso, eu poderia dar um jeito. Você mandaria os relatórios que eu quisesse, não era mesmo?

Já sabe então? — perguntou ele, levantando-se e apoiando as mãos com toda a força na mesa.

Já sei o quê? — perguntei friamente.

Que eu sou do Departamento de Justiça — disse ele com voz derrotada.

Tive um pouco de pena dele. Por que tenho pena sempre de quem não devo? Se eu não o tivesse descoberto, ele me poderia pas­sar a corda pelo pescoço.

Ah, isso? — murmurei como se se tratasse de coisa sem im­portância. — Quando o contratei, já sabia de tudo.

E apesar disso me contratou?

É claro — disse eu, sorrindo ao ver a surpresa dele. — Com­preenda, eu precisava de um secretário. — Tentou dizer alguma coisa, mas não deixei que me interrompesse. — Sente-se —, conti­nuei de maneira levemente aborrecida. — Não há necessidade de drama. Não vou mandar fazer-lhe nada. Não é assim que eu procedo. Disse-me ainda há pouco que isto aqui é uma empresa como outra qualquer. — Ele se deixou cair na cadeira em silêncio. — Você tra­ balha aqui há oito meses. Durante esse tempo, não apurou nada de que o seu departamento pudesse acusar-me. Dirijo uma empresa. Es­ sa empresa tem muitos e diversificados interesses, como já sabe.

Possuímos ou temos participação em várias indústrias e negócios como máquinas caça-níqueis, eletrolas que funcionam com moedas, clubes, restaurantes e fábricas de pequenos artigos. Gosto de jogar um pouco. Quem não gosta? Todos os lucros de todas as fases das minhas atividades são exatamente registrados na minha declaração de renda. Não cometo crimes. E aí tem você um retrato resumido da minha companhia. É exatamente o que diz o nome que está na porta:

"Empresa Frank Kane".

Ele ficou por um instante em silêncio e então olhou para mim. As coisas ocultas — as coisas que me tinham feito desconfiar dele e que eu sentira mais do que vira no seu rosto — haviam desaparecido. Substituía-as uma espécie de reservada sinceridade. Sorriu e disse:

—        Estou satisfeito de que isso esteja terminado.

Ri e acendi um cigarro. Eu também estava. Ele nem sabia como estivera perto de saber de tudo! Mas havia alguma coisa mais. Só no dia anterior eu soubera aquilo a respeito dele. Do jeito que as coisas estavam, eu poderia tirar alguma vantagem. Mas fiquei calado.

Bem, creio que está na hora de ir-me embora — disse ele, levantando-se.

Como quiser — disse eu. Deixei-o ir até à porta para então dizer: — Mas ainda preciso de um bom secretário.

—        Que quer dizer com isso?

Fui deliberadamente vago.

—        Bem, poderia pedir demissão do seu cargo e trabalhar para mim. Ou poderia continuar na mesma base. Na realidade, pouco me importa o que você disser a eles a meu respeito.

Tinha um aspecto terrivelmente jovem quando murmurou:

Eu não podia fazer uma coisa dessas!

Por quê? Só nós saberíamos da conversa que tivemos.

Não. Não seria honesto.

Honesto uma conversa! Seria por acaso honesto o que ele vinha fazendo — espionar-me?

—        Bem, isso é com você — disse eu.

Ele saiu. Virei-me na cadeira e olhei para o outro lado do rio. Nova York continuava a piscar as suas luzes para mim, chamando-me.

Só quando eu estava no meio da ponte para Nova York foi que percebi quanto estava sendo imprudente.

Saíra do escritório às 10 e 45 e fora pegar meu carro. De repen­te, aconteceu aquilo.

—        Mike — perguntei ao velho garagista — tem aí um carro que me possa emprestar por esta noite?

Uma nota de dez dólares resolveu prontamente o caso.

—        Claro que sim, Sr. Kane! — exclamou ele com um sorriso desdentado! Entrou na garagem e daí a pouco me apareceu com um pequeno Plymouth.

Entrei no carro e verifiquei no indicador que o tanque estava cheio.

Escute, Mike, de quem é este carro?

Do patrão — disse ele rindo. — Não tem nenhuma impor­tância. Falarei com ele.

Obrigado, Mike — disse eu, dando partida no carro. Fui pe­la ponte, em vez de atravessar na barca, que ficava mais perto. Não queria estacionar o carro onde eu pudesse ser reconhecido.

Diminuí a marcha perto do centro. Saí da Riversidade Drive na Rua 125 e tomei o caminho da Broadway. Estacionei o carro durante alguns minutos enquanto ia à drugstore da esquina e procurava o en­dereço de Ruth. Encontrei-o:

"Cabell, Ruth — Rua 40 Leste, 100— Murray Hill, 7-1103.

Alguns minutos depois, parei diante do prédio. Era um grande edifício branco na esquina de Park Avenue. Entrei e olhei o relógio. Passavam alguns minutos da meia-noite. Toquei o botão chamando o elevador.

Um ascensorista de aspecto sonolento me abriu a porta. Entrei e disse:

Apartamento Cabell, faça o favor.

Pois não — disse ele, acionando o elevador. — O aparta­mento do Dr. Cabell é no quinto andar, apartamento 512.

Abriu a porta e ficou olhando enquanto eu descia o corredor. Voltei-me ao chegar diante da porta e ele, mais que depressa, fechou a porta do elevador e desceu. Toquei a campainha.

Levantei a gola do sobretudo e puxei o chapéu para cima dos olhos. E se ela não estivesse em casa? Tive por um momento vonta­de de voltar dali mesmo.

A porta se abriu e eu vi um homem a quem não conhecia.

Miss Cabell? — perguntei, ouvindo dentro do apartamento um murmúrio de vozes. Parecia haver algumas pessoas lá dentro. — Sou do serviço onde ela trabalha, meu nome é Coville.

Entre. Vou dizer a ela que está aqui.

O homem me fez passar e olhou-me com curiosidade antes de sair. Continuei de gola levantada e de chapéu na cabeça, esperando num pequeno vestíbulo. À direita, havia uma porta de onde vinham as vozes.

Ouvi a voz do homem dizer:

—        Ruth, está aí um homem que quer falar com você. Diz que é do seu serviço e se chama Coville.

Ouvi-a então dizer:

Com licença. Volto já. Vou saber o que é que ele quer. Apareceu então no vestíbulo. Ficou extremamente pálida.

Que veio fazer aqui? — perguntou com voz baixa e ansiosa.

Vim retribuir a sua visita — respondi, sorrindo.

Tem de sair neste momento. Não pode ficar. Jerry está aí.

—        Você não quis sair do meu escritório enquanto não falou comigo. Eu tenho o mesmo direito.

Ela botou a mão no meu braço.

—        Mas será que não compreende? Jerry está aí dentro e se ele o vir, terá de entregá-lo. Você tem de sair.

Não sei se ele fará isso — disse eu, sorrindo. Estava come­çando a gozar a situação. Sentia um pouco da exaltação que se sente quando se pisa numa camada fina de gelo.

Fará, sim — disse ela, aproximando-se de mim. O perfume dela era levemente nostálgico. A princípio, não pude situá-lo. De re­pente, lembrei-me. Marianne usava o mesmo perfume. — Você não o conhece.

Será que não o conheço mesmo? — perguntei, lembrando-me da minha conversa pelo telefone com ele alguns dias antes. — Vou-me arriscar.

Ela já estava perigosamente perto de mim e o perfume era in­sistente.

—        Vá-se embora, por favor.

Beijei-a de repente. Ela ficou por um instante parada e eu podia sentir a surpresa nos seus lábios. Mas de súbito ficaram quentes e ansiosos e ela me passou os braços pelo pescoço. Eu havia beijado muitas mulheres depois de Marianne, mas em nenhuma havia senti­do os beijos repercutirem dentro de mim, como acontecia com Mari­anne. Mas aquele era outra coisa. Era tão parecido com o beijo de Marianne e ao mesmo tempo tão diferente que eu não podia explicar. E nem tentei. Era terno, quente, doce e apaixonado.

Ela afastou afinal os lábios. Eu ainda a abraçava. Os olhos dela eram profundos lagos azuis nos quais me deixei mergulhar.

—        Agora, vá-se embora por favor — disse ela, acariciando-me o rosto.

Sorri, mais seguro de mim mesmo do que nunca.

—        Depois disso, não posso! Só se for comigo.

Ela não respondeu. Fiz menção de tirar o sobretudo.

Está bem — disse ela. — Vou sair com você. Espere-me lá fora.

Vou esperá-la aqui.

Neste caso, tenha cuidado.

Virou-se e entrou na sala de onde havia saído.

Ouvi-a murmurar alguma explicação. Vi dois vultos se aproxi­marem da porta. Virei o rosto para a parede e examinei um pequeno quadro que havia ali, de costas para eles. Pelo canto dos olhos, vi que era Marty que estava com ela. Não olhou para mim. Falava com voz baixa e não pude entender o que dizia, salvo as últimas palavras em que pedia a Ruth que tivesse cuidado. Ela trazia um casaco no braço e os seus olhos se voltavam de instante a instante para mim. Riu, fê-lo voltar para a festa ou o que era lá que estava havendo e se aproximou de mim.

Posso ajudá-la a vestir o casaco?

Vou vestir lá fora. Quanto mais depressa você sair daqui, mais sossegada ficarei.

Ri e abri a porta para ela passar. O ascensorista nos olhou es­tranhamente quando entramos no elevador. Descemos em silêncio. Fomos em silêncio até ao carro. Abri a porta para ela e depois em­barquei do outro lado.

Ela sorriu de repente.

Sabe que este carro é uma decepção?

Eu sei. Você esperava outra coisa, mas acontece que não posso andar no meu carro aqui. Seria perigoso demais.

Foi uma loucura você ter vindo.

Foi também uma loucura você ter ido ver-me. — Dei partida no carro e entrei em Park Avenue. — Aonde vamos?

Aonde você pode ir?

Pensei no caso. Nova York não era um lugar muito saudável para mim naquela ocasião.

—        Sei exatamente aonde devemos ir. Será perfeito.

Ela não percebeu para onde eu a levava até chegarmos à ponte de Jersey. Fui até à garagem e nós passamos para o meu carro.

Está melhor assim? — perguntei-lhe, sorrindo.

Está mais de acordo com o que eu esperava.

Claro que estava. Era um grande Cadillac preto de doze cilin­dros. Fui para o lugar onde eu morava.

Morava no Hotel Plaza. Tinha ali um apartamento de peças que me servia maravilhosamente, O pessoal do hotel cuidava da limpeza, pedia a comida no quarto na hora em que quisesse e estava livre do problema de empregados de qualquer espécie. Era assim que eu preferia. Impedia que as pessoas se aproximassem muito de mim.

Abri a porta do apartamento e disse sorrindo:

—        Não quer entrar?

Ela olhou para mim como se estranhasse alguma coisa e entrou. Segui-a e fechei a porta.

Estendi os braços para ela, abracei-a e beijei-a. Não havia erra­do. Era mesmo diferente.

De repente, ela me repeliu e perguntou, ofegante:

—        Foi para isso então que me foi procurar?

Sorri no escuro. Eu mesmo já estava começando a pensar as­sim. Estendi a mão, liguei a luz, joguei o sobretudo em cima de uma cadeira e peguei o telefone.

—        Serviço de quartos.

Enquanto esperava a ligação, olhei-a. Ela fechava o casaco com as mãos como se estivesse com medo de tirá-lo.

—        Não, querida — disse eu, displicentemente. — Estava com fome e queria alguém para conversar comigo sobre os velhos tempos enquanto eu comesse.

Ela se zangou com isso. O seu velho temperamento explodiu. O lábio inferior tremeu como se ela fosse chorar.

—        Você ainda é o mesmo — exclamou ela. — Egoísta e mau!

Correu para a porta. Nesse momento, atenderam e eu disse que

chamaria depois. Desliguei o telefone, corri atrás dela e segurei-a pe­los ombros.

—        Se eu não quisesse tanto ver você, acha que iria até à cidade procurá-la?

Ela me deixou levá-la para o centro da sala. Tinha lágrimas nos olhos e me disse em voz bem baixa:

—        Por que não diz então o que sente? Ou já se habituou tanto a esconder os seus pensamentos que não sabe mais externá-los com franqueza?

Beijei-lhe os olhos. Ela talvez tivesse razão no que dizia. De repente, ela me abraçou e beijou.

—        Como eu amo você, seu animal estúpido e egoísta! Tenho-o amado toda a minha vida. Nunca houve outro homem para mim!

Abracei-a mais. A dor que eu sentia dentro de mim com as suas palavras me atestavam a verdade do que ela dizia. Mas isso não era novidade para mim. Sabia do amor dela desde que a vira no hospital. Beijei-a de novo.

O telefone tocou e ela olhou para mim assustada. Sorri tranqüilizando-a e afastei-me dela para atender.

—        Serviço de quartos, Sr. Kane. O senhor não chamou? Olhei para Ruth e murmurei "serviço de quartos". Ela sorriu.

—        Quero frango assado frio para dois e uma garrafa de Piper Heidsick 1929. — Desliguei e encaminhei-me para ela. — Agora, quer fazer o favor de tirar o casaco?

Ela tirou o casaco e entregou-me. Os olhos estavam brilhantes e a pele tinha o tom rosado que dá o ar frio de novembro. Estava com um vestido preto simples.

Que é que está olhando? — Perguntou ela, sorrindo.

Estou olhando você. Como é linda!

É a fome que está fazendo você ver coisas.

Uma fome só, não. Todas as fomes!

Sorrimos e de repente nos sentimos muito próximos um do ou­tro. Ela estendeu instintivamente as mãos para mim. Joguei o casaco na cadeira mais próxima e tomei-lhe as mãos.

Sentamo-nos no sofá no centro da saia. As mãos dela estavam dentro das minhas e ela descansou a cabeça no meu ombro. Ficamos em silêncio durante muito tempo. Fechei os olhos. Era a primeira vez em muitos anos em que eu me sentia satisfeito e contente. Era como se eu tivesse voltado a ser garoto e estivesse sentado ao lado de minha tia e meu tio sem ninguém falar, mas todos sentindo-se fe­lizes e conscientes da felicidade dos outros. Era assim com Ruth e comigo.

Enterrei o rosto nos cabelos dela. Ela virou o rosto para mim e nós nos olhamos bem nos olhos. Havia uma pergunta nos olhos dela: Você me ama? Ela não precisava dizer isso, porque eu o lia nos o-lhos dela. Devia ter ficado com a resposta que viu nos meus porque me beijou.

Depois, tornou a descansar a cabeça no meu ombro e disse sua­vemente, quase num sussurro:

—        Sei que não estou louca, meu amor, mas estou deliciosamen­te desequilibrada. Isto só está acontecendo porque sonhei demais com um momento assim. — Olhou para mim de repente e passou os dedos pelo meu rosto, tomada de súbito medo. — Talvez seja um sonho. Quando acordar, não o verei mais.

Beijei-lhe a palma das mãos e disse:

—        Não é sonho.

Ela deu um suspiro de satisfação e descansou de novo no meu ombro. Senti-me de novo envolver por aquele sentimento de paz, de felicidade, de contentamento, O mundo afastou-se para bem longe. Era verdade: eu havia voltado para casa.

Entre — disse eu sem me levantar. Um garçom entrou empurrando um carrinho.

Quer que sirva, senhor? — perguntou ele, entregando-nos guardanapos e destampando a comida.

Olhei para Ruth e ela sacudiu de leve a cabeça.

—        Não, muito obrigado — disse eu, dando-lhe uma gorjeta e assinando a nota. — Pode deixar.

Depois que ele saiu, Ruth me serviu enquanto eu abria o cham­panha e enchia as taças. Sentamo-nos então e começamos a comer. Eu estava com fome e comi muito depressa, sem dizer uma palavra.

Ruth me observava.

Você, de fato, não mudou. Ainda devora a comida. É como no tempo em que éramos garotos

Estou com fome — disse eu, pegando uma coxa de galinha. — Não jantei

Poucos minutos depois, havia acabado. Acendi um cigarro e fi­quei olhando Ruth. Quando ela acabou, ofereci-lhe um cigarro e fo­mos sentar-nos no sofá. Olhei para o apartamento. Estava mobiliado e decorado com algum luxo. Pagava para isso, mas era a primeira vez em que aquilo me parecia um lar. Até então fora apenas um lu­gar para dormir.

Passei o braço pela cintura dela e Ruth pareceu ajustar-se bem à curva do meu corpo. Com a outra mão apaguei o cigarro e liguei o pequeno rádio ao lado do sofá. Uma orquestra tocava música suave. Eu gostava em geral de coisa mais forte, mas aquilo era perfeito na­quele momento

Ela apagou também o cigarro e se recostou em mim. O garçom bateu na porta para apanhar os pratos. Depois que ele saiu, apaguei o lustre da sala e acendi o abajur ao lado do sofá, sentando-me de no­vo. O rosto dela estava lindo à luz doce do abajur. Beijamo-nos.

Por que fugiu de mim do hospital, Frankie? — perguntou ela.

Não sei. Mas não teria fugido se soubesse.

As coisas estavam bem ruins para você naquele tempo.

Não respondi. Não queria pensar nisso. Há coisas que é melhor serem esquecidas.

Nunca mais teve notícias de seus tios?

Nunca mais. Fiz tudo o que era possível para descobri-los, sem resultado

É uma pena. Sei como você deve sentir-se. Eu quase havia perdido a esperança de tornar a vê-lo.

Seria tão terrível assim para você? — perguntei com um sor­riso.

Nem pode imaginar o que seria isso para mim. Mas ficaria para sempre à sua espera e acabaria uma velha solteirona.

Você? Não é possível. Deve ter havido outros homens.

E houve. Mas não eram você e era você que eu queria.

Aposto que diz isso a todos — murmurei sorrindo.

Ela riu comigo, mas os olhos continuaram sérios.

É claro. Isso faz parte da técnica.

Diga-me mais coisas, meu bem.

Por quê? — perguntou ela, com um ar preocupado.

Porque gosto. Adoro ouvir coisas assim.

Ficamos alguns instantes em silêncio. Ela então me olhou.

Estou preocupada, Frankie. Tenho medo de voltar a perdê-lo.

Não se preocupe, menina. Seria impossível.

Não, não é disso que tenho medo, Frankie. É das outras coi­sas, de Jerry, de todo o mundo que está contra você.

Ri cheio de confiança.

Fique descansada. Não me podem acusar de nada. Tudo o que faço é legal.

É verdade o que dizem a seu respeito, não é? — perguntou ela, afastando-se um pouco de mim.

Ora, querida, você sabe que muita gente gosta de falar só para ouvir o barulho da própria voz.

Mas é verdade, não é? Você dirige o sindicato do jogo?

E se for verdade? Alguém tem de fazer isso. Ela me olhou muito séria e disse:

Você terá de deixar isso.

Era engraçado e eu não pude deixar de rir. Muita gente estava ultimamente com aquela idéia.

Estou falando sério, Frankie. Se não fizer isso, acabará na cadeia ou caído no meio da rua, crivado de balas.

Pois eu não penso assim, menina. A lei não pode nada con­tra mim e esses macacos da cidade não têm coragem de tentar nada, pois sabem que nunca chegariam ao fim do que tentassem.

—        Com o tempo isso pode acontecer. Sorri.

Não pense mais nisso. Não estou preocupado e não quero que você se preocupe.

É que eu não quero que isso aconteça, Frankie. Seria para mim horrível acordar um dia e saber que você está na cadeia.

Estarei aqui amanhã de manhã, tenha certeza.

E nas outras manhãs? — perguntou ela, com lágrimas nos olhos. — Não vê então, Frankie? Não nos poderemos casar sem a certeza de que iremos viver juntos, sem eu ter a certeza de que você estará em segurança. Não poderá haver felicidade para nós de outra maneira.

Escutei-a com espanto. Quem era que estava falando em casa­mento? Mas quanto mais olhava para ela, mais me agradava a idéia.

Seria ótimo chegar em casa e encontrá-la. Ri comigo mesmo. Estava mesmo apaixonado... e com que rapidez!

Por que não? — perguntei. — Que é que tem o meu trabalho que ver com o nosso casamento? Ganho muito dinheiro. Se eu não ganhasse, não nos poderíamos casar. É uma tolice.

Não, Frankie, não é tolice Você tem a idéia de que o dinhei­ro pode fazer tudo, mas não pode. Não se pode comprar a altivez e o respeito próprio. É a pessoa que impõe essas coisas e não o dinheiro.

Não tenho vergonha do que eu faço — disse eu, um pouco enervado. — Passei grande parte da minha vida em empreguinhos miseráveis e passei até fome. Não gostei disso. Você não tem nada também de que se envergonhar. Tive um trabalho louco para montar a minha organização e não vou abrir mão dela só porque alguns grãfinos incapazes acham que o meu trabalho é inferior.

Será que não compreende o que estou querendo dizer? — perguntou ela, aprumando o corpo.

Não, não compreendo.

Os olhos dela perderam a suavidade e os maxilares se contraí­ram com a mesma obstinação de outros tempos.

—        Eu sabia que você não ia compreender — disse ela, friamen­te. — Vejo agora que não adianta nada tentar.

Levantou-se e apanhou o casaco.

Que é que vai fazer, Ruth?

Vou para casa — disse ela, com profundo desalento na voz.

— Acho que estava mesmo sonhando. Acho que a realidade nada tem para mim.

Zanguei-me então. Perguntei sarcasticamente:

—        Acha que a realidade nada tem para você? E que teria ela para mim se eu lhe fizesse a vontade?

Ela levantou a cabeça, jogou os ombros para trás e me respon­deu com os olhos fuzilantes:

—        Vou-lhe responder o que haveria para você, caso você não saiba. Você teria uma oportunidade de ter um lar, de tornar-se um ser humano. Teria oportunidade de voltar para a sociedade e convi­ ver com os outros. Teria a oportunidade de andar de cabeça erguida e ter o seu lugar no mundo, em vez de viver em luta contínua. Teria oportunidade de sair da selva e deixar de rugir e torturar-se num fre­nesi de ódio pelas coisas realmente importantes da vida. A oportuni­dade de amar e ser amado e distribuir e compartilhar, de dar e rece­ber. A oportunidade de viver sem medo, sem planos, sem as duvidas mesquinhas que perturbam o sono. A oportunidade de deixar de ser só. A oportunidade de viver, de ser humano, de ter filhos...

Não pôde mais falar. Os olhos se lhe encheram de lágrimas e os soluços lhe sacudiram a garganta.

Não tive coragem de aproximar-me dela. Se fizesse isso, estaria perdido. Sentia um aperto no coração. Lutara muito e duramente pa­ra ter o que tinha não ia abrir mão disso por ninguém. Baixei a vista para o chão e disse asperamente.

— Prefiro viver assim. Já sei o que é.

Ela não respondeu. As lágrimas cessaram. Deu um passo para mim. Mas logo apertou os lábios, como se quisesse forçar-se ao si­lêncio e, virando-se para a porta, saiu sem abrir a boca.

Eu estava de costas para a porta e ouvi o estalo da lingüeta. Deixei-me cair no sofá. Senti o perfume dela. Fechei os olhos e vi-lhe o rosto perfeitamente desenhado contra as minhas pálpebras. Ru-th! O nome do perfume me ocorreu de súbito. "Loucura". O nome estava certo.

Não tinha passado disso!

Acordei com o telefone. Passara uma noite horrível.Pela pri­meira vez em muitos anos, não havia dormido bem. Virei-me na ca­ma de um lado para outro até que, quando o dia já ia quase amanhe­cendo, caí numa espécie agitada de torpor. Resmungando impropé­rios, atendi o telefone.

Que diabo é que quer?

Frank? — reconheci a voz. Era Alex Carson.

Sim, Alex. Que é que há?

Estou a manhã toda telefonando para o seu escritório. De lá sempre me diziam que você ainda não havia chegado. — Olhei para o relógio — onze e meia! Sentei-me na cama e ele continuou:

Prenderam Luigerro hoje de manhã.

Que é que está esperando para tirá-lo da cadeia? Sabe o que tem de fazer e é para isso que está ganhando dinheiro!

Mas ele foi preso por atentado à moral, Frank! Infringiu a Lei Mann. Levou duas ginasianas para a casa que tem em Connecticut. Foi preso pela polícia federal e os jornais estão fazendo um barulho louco. Os pais das garotas estão gritando pela cidade toda. O FBI prendeu-o hoje de manhã e não me deixaram nem vê-lo. Só de­pois que terminarem as investigações.

Aquilo era uma patada na cara! Ainda na véspera eu mandara Allison embora. Logo no dia seguinte, entravam em ação. Não per­diam tempo.

—        Procure os pais das meninas e pague-lhes para calarem a bo­ca.

Eu não queria que Luigerro desse com a língua nos dentes.

Mas isso não adiantará nada — disse Alex. — O caso é fe­deral. A iniciativa cabe ao governo e não aos pais.

Escute Alex! Bote a cabeça para funcionar! Compre os pais.

Consiga deles uma declaração de que consentiram que as meninas fossem com Louie, que ia levá-las para visitar uma pessoa da famí­ lia. Não quero saber como mas você tem de tirá-lo da cadeia!

Bati o telefone com toda a força, levantei-me e tratei de vestir-me.

Idiotas assanhados! Como se não houvesse mulheres à vontade! Não, tinham de pegar meninas. Acabei de vestir-me e telefonei pe­dindo que aprontassem o meu carro.

Cheguei ao escritório ao meio-dia. Mandei chamar Carson. Ele apareceu no mesmo instante, um pouco suarento.

Então?

Preciso de um pouco de tempo, Frank. Essas coisas não se fazem com tanta rapidez assim.

—        Está bem. Mas traga-o para cá logo que conseguir soltá-lo. Saiu apressadamente. Peguei o telefone e disse a Miss Walsh que queria falar para a casa de Allison. Foi ele mesmo que atendeu.

—        Allison, é Kane quem fala. Pode vir aqui agora? Queria sondá-lo para ver o que havia sobre Luigerro.

—        Não, Sr. Kane, não posso fazer isso. Deixei o emprego on­tem à noite.

Desliguei sem dizer mais nada. Rodei a cadeira, olhei pela ja­nela e fiquei ali um momento, pensando. Depois, telefonei para Joe Price e disse-lhe que viesse imediatamente ao meu escritório.

Price chegou. Era um homem magro, de cabelos ruivos e com um bigodinho louro ineficiente que lutava para sobreviver à sombra de um nariz avantajado. Mandei-o sentar-se e perguntei:

—        Que é que acha de uma nova companhia para só se ocupar dos negócios legítimos da organização?

Price não era tolo. Olhou-me muito sério. Compreendeu imedi­atamente o que eu tinha em mente e eu pude ouvir-lhe os assobios. Mas eu contava com ele.

É uma idéia — disse ele com um sorriso.

Não é mesmo? — disse eu, sorrindo também.

De fato, mas que é que vai fazer com o resto?

O tempo decidirá por mim. Neste tipo de negócios, nunca se sabe o que pode acontecer.

Se o governo me apertasse muito, eu queria estar em condi­ções de dar o fora rapidamente... mas só faria isso se não tivesse outro jeito.

E o dinheiro que os outros investiram nesse parte dos negó­cios? — perguntou ele.

Escute, eles não sabem disso agora e não precisam saber nunca. Que vão para o inferno!

Ele nada disse. Ficou pensando no caso, mas eu sabia o que ele ia fazer — seria o que eu mandasse. Ele sabia de onde vinha a man­teiga que passava no pão.

Como é? — perguntei. — Pode fazer isso?

Posso, mas isso vai representar um prejuízo de mais ou me­ nos meios milhão de dólares para eles.

Simples detalhe! — exclamei com um largo sorriso. — Já está em tempo de começarem a ter algum prejuízo. Estão em ação contra nós em Nova York. Que melhor pretexto pode haver do que esse?

Ele pensou um pouco mais. Por fim, levantou-se e estendeu-me a mão.

Vou tratar disso.

Apertei-lhe a mão e disse

Sabia disso. Não vai arrepender-se.

Éle saiu. Mas a minha quota de aborrecimento não se esgotara ainda naquele dia. No fim da tarde, soube que "Bog Blak" e "Slips" Madigan tinham sido presos pelo gabinete do Procurador-Geral, sob a acusação de explorarem a loteria. Loteria era uma coisa de que eu não cuidava. Não era que eu desdenhasse o dinheiro que entrava aos pouquinhos. Era apenas porque o controle era quase impossível. Por isso, a loteria era a única coisa que faziam por conta própria.

O plano da justiça era visível. Cortem-se os dedos e a mão não pode fazer mais nada. E era justamente isso que estavam fa­zendo. Cortavam um dedo de cada vez... para doer mais. Ao mes­mo tempo, o Prefeito deu ordem à polícia para fechar todas as casas de bookmakers. O telefone não teve descanso com os pedidos de socorro.

Carson teve mais trabalho do que um bookmaker maneta com dois telefones. Quando chegou ao fim do dia, era quase uma ruína. Chamei-o às seis horas. Entrou no meu escritório suando em bicas apesar do frio.

Fi-lo sentar-se, apanhei uma garrafa e servi-lhe uma boa do­se. Se alguém já havia precisado de um bom gole era ele naquela ocasião.

—        Ouvi dizer que trabalhou um bocado hoje — disse eu, sor­rindo.

Ele tomou um grande gole de uísque e me olhou, ainda de boca aberta. Conseguiu afinal falar.

Que é que há com você, Frank? Ficou maluco? Tudo se vol­ta de repente contra nós e você ainda está rindo!

Calma, Alex! As coisas ainda não estão tão ruins assim.

Não? — gritou ele, levantando-se. — Mais um dia como o de hoje e quem acaba maluco sou eu!

Dei-lhe outro uísque. Quando ele acabou de tomá-lo e se acal­mou um pouco, perguntei-lhe como ia o caso de Luigerro. Respon­deu que ainda não tivera notícia das pessoas que mandara ir procurar os pais das garotas, mas que deviam falar a qualquer momento.

—        E quanto a Carvell e Madigan?

Disse-me que a fiança dos dois seria concedida no dia seguinte.

—        Muito bem — disse eu. — E se pudermos soltar Luigerro, tudo estará OK.

Carson se levantou para sair e eu lhe disse:

—        Tenha calma, Alex e não preocupe. Isso vai serenar dentro em pouco. O que eu não posso é perder você.

Ele bateu com a cabeça e saiu. Alex seria um homem difícil de substituir. Telefonei chamando Joe Price. Ele chegou com um maço de papéis debaixo do braço.

Então? Já pensou naquilo de que conversamos?

Já. E vinha mesmo procurá-lo quando me telefonou. Botei tudo no papel para ver como fica.

Peguei os papéis que ele me deu e examinei-os rapidamente. Era um balanço dos meus interesses nos vários ramos da organiza­ção. Somavam um investimento de uns quinhentos mil dólares.

—        Que rendimento podemos esperar disso? — perguntei.

—        Anotei os lucros do ano passado na outra folha — disse ele.

Olhei a outra folha. Depois de deduzidos salários e despesas, havia um lucro líquido de 95 mil dólares. Não era mau! Podia-se vi­ver perfeitamente com isso.

Parece-me bom — disse eu a Price.

Também acho.

Como foi o movimento das apostas hoje? — perguntei, acendendo um cigarro.

Ruim. Tivemos algum trabalho em cobrir as apostas com toda a agitação de hoje. Acho que alguns dos rapazes estão-se apro­veitando da situação. Telefonam muito tarde. Por isso, tivemos al­gum prejuízo.

Quanto?

Uns vinte e cinco mil dólares.

Muito bem. Não faz mal que se aproveitem da situação. Ao menos, esperam que assim haja alguns prejuízos. — Os patifes podi­am explorar-me à vontade. Eu ia até ajudá-los. — Aumente o prejuí­ zo para setenta mil e durante dez dias tire cinqüenta mil diariamente à conta de prejuízos. Isso devia cobrir o investimento.

Ele arregalou os olhos.

Se durante esse tempo não tivermos prejuízos nas apostas, ainda assim o bolo ficará reduzido a um milhão.

E daí? Tudo é uma questão de saber quem vai primeiro ao banco. É só

Ele nada disse e eu continuei

Trate amanhã da companhia com os negócios legítimos. Organize-a no Estado de Delaware com o nome de... — procurei um momento um nome que fosse respeitável — ... Empresas Stan­dard, S. A.

Está bem. Vou cuidar disso. Amanhã logo cedo falarei com Carson

Espere um pouco disse eu. — Não queria Carson metido na­quilo, fie estava muito ligado à turma de Nova Yorlc. — É melhor entregar isso a advogados diretos — a um escritório respeitável. Não quero que cheire nem de longe a coisa menos certa. Deixe- me pen­sar um momento.

Ele voltou, sentou-se numa cadeira e ficou a observar-me. Virei minha cadeira e olhei para Nova York. As luzes estavam piscando e as barcas iam e vinham atravessando o rio. Estava procurando lem­brar-me. Quando o pai de Jerry abandonara a política, havia entrado para um escritório de advocacia que o queria em vista das suas mui­tas relações. A principio, ele fizera um ou outro trabalho, mas embo­ra o seu nome continuasse a contar na firma, não trabalhava mais. Que escritório era esse? Era de que eu estava procurando lembrar-me. Seria um bom golpe se eu o conseguisse realizar. Ninguém iria relacionar-me com o escritório. Ri comigo mesmo — Jerry empenhado em meter-me na cadeia e o escritório do pai dele como meu representante legal! Não seria uma arma desprezível se eu tivesse necessidade de usá-la. Lembrei-me do nome de repente. Virei-me para Price.

—        Conheço um bom escritório em Pine Street. O nome da fir­ma é Driscol, Cowan, Schaunessy e Cohen.

Olhei-o para ver se o nome lhe havia provocado alguma associ­ação. Não percebi nada. Ele tomou nota e guardou o papel no bolso. Em seguida, levantou-se.

Vou falar com eles amanhã.

Ótimo! — disse eu. — Você sabe o que deve fazer. Use o meu nome — Francis e não Frank — e me atribua 80% das ações e o titulo de presidente. Você será vice-presidente e tesoureiro com 20% das ações.

Ele arregalou os olhos. Tinha motivos para isso. Eu acabara de dar-lhe cem mil dólares. Mas valia. Ele pagaria isso cem vezes mais desde que estava metido no caso. Possuir alguma coisa sempre ar­ranca mais de um homem do que um simples emprego.

Frank — disse ele, atônito. — Não está brincando?

Nunca falei mais sério na vida. Somos sócios — disse eu, sorrindo e estendendo-lhe a mão.

Na manhã seguinte, Carson soltou Madigan e Carvell. Logo depois, à tarde, o juiz federal concedeu fiança a Luigerro e eu con­voquei todos para estarem no meu escritório às oito horas da noite. Carson não tinha conseguido nada com os pais das meninas. Isto é, não conseguiu nada com um deles. O outro se mostrou acessível à voz da razão e a um cheque de dez mil dólares. Mas desde que não adiantava um sem o outro, disse-lhe que desistisse.

Não foi um mau dia. As apostas deram um lucro de trinta mil dólares apesar de todos os obstáculos contra nós. Dai resultou que o prejuízo escriturado foi de apenas vinte mil dólares. Os agentes ain­da estavam sendo presos na rua e o Prefeito procurava conseguir da companhia telefônica o corte de todos os telefones que serviam aos bookmakers. Mas como quando acontecem essas coisas, a compa­nhia prometeu a cooperação ao Prefeito, mas a ordem nesse sentido começou a correr de mesa em mesa e acabou perdendo-se.

Carson me apareceu no fim da tarde e me fez um relatório de todas as atividades do dia no seu setor. Luigerro teria de ser subme­tido a julgamento e parecia não ter chance de absolvição. Cavell e Madigan seriam também julgados, mas no caso deles havia 50% das probabilidades de absolvição e, na pior das hipóteses, a pena seria muito leve.

Os jornais estavam-se lavando em água de rosas. Enchiam pá­ginas com tudo o que Cowan fazia. Não havia uma primeira página em que não aparecesse o seu retrato e o seu futuro político principi­ou a parecer dos mais risonhos. Mostravam-no entrando no tribunal de chapéu na mão, e o bigodinho bem aparado, no estilo de Ronald Colman, sobre os lábios sorridentes. O rapaz parecia decerto simpá­tico — igualzinho ao pai. Eu não havia notado isso até então, mas ali estava um homem para beijar crianças, como seu velho.

Falei com Price e ele me disse que as coisas corriam bem com o escritório de advocacia a que eu o mandara. Haviam aceito o as­sunto para estudo e lhe diriam dentro de um ou dois dias se poderiam encarregar-se da representação legal da nova firma. Naquele dia, as coisas estavam decididamente melhor.

Saí para jantar às sete horas e voltei ao escritório poucos minu­tos depois das oito. Quase todos já estavam à minha espera. Apertei a mão de alguns deles e convidei-os a sentarem-se. Ofereci charutos e eles aceitaram e os acenderam.

Quando estavam bem acomodados nas cadeiras e tirando bafo­radas dos charutos, levantei-me e comecei a falar.

— Vocês estão lendo os jornais e não é preciso que eu diga o que está acontecendo. Já sabem de tudo. Pedi que viessem até aqui para falar de outra coisa. Temos um negócio para proteger e estamos diante de uma guerra declarada contra nós. Se quisermos vencer, te­remos de unir-nos e trabalhar juntos mais do que nunca.

"É preciso estarmos dispostos a ter alguns prejuízos. O que a-conteceu nestes últimos dias parece indicar que teremos algumas di­ficuldades nesse sentido. Joe Price me disse que vocês estão comu­nicando o jogo tarde e, às vezes, depois do páreo corrido. Sei que vocês estão lutando com muitas dificuldades, mas sem conhecimento da situação das apostas antes do páreo fico sem controle de espécie alguma. Em condições normais, não aceitaríamos jogo tão atrasado, mas sei que as condições não são normais.

"Apesar de tudo, acho que devemos recusar apostas e telefo­nemas que cheguem fora do prazo, mas em vista da situação resolvi deixar a deliberação com vocês. O bolo tem tido prejuízo, funcio­nando dessa maneira. Se querem que continue assim, o dinheiro é de vocês e eu farei o que mandarem.

Calei-me e fiquei a olhá-los.

Moscowits falou:

—        Acho que Frank tem razão, pessoal. Se aceitarmos apostas assim, dentro em breve estaremos arruinados.

Fennelli falou então da sua cadeira e, como de costume, com calma e cuidado.

—        Sei que é duro, mas que é que vamos fazer? Se decepcio­narmos os nossos fregueses agora, não teremos mais fregueses. Acho que o mais sensato seria aceitarmos os prejuízos por enquanto. De­pois, recuperaremos tudo o que perdemos.

Quase todos os outros concordaram com Fennelli. Os patifes estavam tão interessados em meter a mão no dinheiro do bolo que não queriam saber o que acontecia aos outros, desde que tirassem o máximo para eles. Sorri intimamente.

—        Está muito bem. Se é isso o que querem assim será feito — disse eu.

Eu calculara tudo com exatidão. Sabia que agiriam exatamente daquela maneira e que isso me facilitaria fazer o que eu queria.

—        Agora que esta parte está resolvida, vamos tratar de outro assunto. Como sabem, Louie, "Black" e "Slips" foram presos. Não sei o que o outro lado vai fazer ainda, mas seria melhor que os ou­tros não fossem para a cadeia também.

Olhei para os três homens que havia mencionado. Estavam com cara de meninos surpreendidos em alguma falta. Falei com Luigerro em primeiro lugar.

—        Carson me disse que o seu caso é muito difícil e que você tem poucas chances de livrar-se. Poderá dar-se por muito satisfeito se pegar cinco anos de prisão ou dois, se proceder direitinho.

Louie ficou aborrecido. Levantou-se da cadeira com a cara fe­chada e foi até onde eu estava.

—        Aquele seu advogado é um conversa fiada. Vou-me livrar. Tenho meios.

Eu já esperava que ele se zangasse.

—        Escute, Louie — disse-lhe secamente. — Você sabe muito bem que as suas chances de absolvição são iguais às de uma bola de neve no inverno! Se está pensando que tem meios de livrar-se, é melhor esquecê-los. Se está com idéia de fazer um trato com a polí­cia federal contando tudo a nosso respeito, nós não lhe daremos nem chance de ir cumprir a pena na cadeia. Tenha juízo, portanto! A mesma coisa se aplica aos outros que foram presos. Procedam direito conosco e nós protegeremos os interesses de vocês. Façam sujeira e irão comer capim pela raiz. Venceremos juntos ou cairemos juntos — não se esqueçam!

Ficaram todos em silêncio e eu os olhei durante alguns minu­tos. Depois, voltei a falar, mas com mais calma.

—        O que está feito, está feito e não se pode dar mais jeito. Mas acho que os outros, que ainda nada sofreram, devem ter cuidado. Quem for casado, deve ir para casa todas as noites e ficar com a es­posa. Fiquem longe de qualquer jogo de dados ou de cartas ou de qualquer casa de jogo em que tenham interesse. Não quero que ne­nhum de vocês seja preso — nem mesmo por perturbação da ordem pública.

"Quem estiver sustentando à parte alguma pequena, deve man­dá-la tomar ares na Flórida. É melhor não ter por perto ninguém que possa dar uma chance á polícia.

Olhei para Schultz. Ele tinha duas mulheres em apartamentos diferentes no mesmo edifício de Park Avenue. Nenhuma sabia da e-xistência da outra e, se a mulher dele soubesse de qualquer delas, a explosão seria inevitável. Olhei para Jensen e continuei:

—        Quem tiver ou quiser comprar alguma coisa roubada, deverá tomar o meu conselho e parar com isso.

Jensen sabia o que eu queria dizer. Era bem conhecida a sua paixão por jóias e carros roubados. Para vender-lhe alguma coisa, bastava dizer que era roubada, ainda que não fosse. Ele enxergava a possibilidade de um bom negócio e quase sempre era embrulhado.

Olhei para os outros.

—        Quem for sócio de alguma casa de mulheres, deverá afastar-se. É melhor perder um pouco agora do que perder tudo depois. Não se esqueçam disto: a prisão de cada um torna mais difícil a vida de todos. Se pilharem quase todos vocês, ninguém poderá mais traba­lhar. — Fiz uma pausa para acender um cigarro. — Se algum de vo­ cês não entendeu o que eu estou dizendo, pior para todos. As coisas para vocês nunca foram tão fáceis quanto vinham sendo. Não destru­am isso. — Levantei-me e perguntei: — Alguma pergunta?

Fennelli se levantou e veio até à minha mesa. Perguntou então, esbelto, suave e frio, com o chapéu elegantemente colocado na cabe­ça:

—        E que é que nós faremos se você for preso?

Era uma pergunta que eu estava esperando. Respondi:

—        Se me prenderem — acho que isso não vai acontecer — a minha opinião é que todos vocês devem arrumar as malas e tomar outro rumo. Sem que eu esteja aqui para olhar por vocês, vão ser pe­gados por eles como se fossem moscas.

Ele sorriu, pensando que me havia vencido nesse ponto.

Nós já vivíamos antes de você aparecer

Acha mesmo? — perguntei, achando que era a minha vez de sorrir. — O que você quer dizer é que tinham sorte poder viver antes de eu aparecer. Você, por exemplo, tem muita sorte em estar vivo, levando em conta a quantidade de chumbo que tem no corpo. Se quer voltar a isso, desejo-lhe muitas felicidades. — Olhei para os ou­tros e disse: — Vocês dependem de mim tanto quanto eu dependo de vocês. Se eu cair, todos vocês cairão. Se vocês caírem, eu cairei também.

Fiz uma breve pausa e continuei.

—        Mais uma coisa. É melhor que ninguém pense em puxar o gatilho. Se começarem a trocar tiros com a polícia, tudo está perdi­do. Se procedermos com juízo e discrição, tudo isso passará. Do contrário, nós é que passaremos. Mais alguma pergunta?

Ninguém perguntou mais nada e a reunião se encerrou. Vi-os sair conversando. Não me iludia com eles. Não iam fazer coisa al­guma por mim. Era preciso meter-lhes na cabeça que, se me traís­sem, perderiam até a camisa do corpo.

Mas sabia perfeitamente o que era que estava no fundo da ca­beça deles e o que era que fariam se achassem que podiam fazê-lo sem perigo.

Cheguei ao meu apartamento lá pelas onze da noite. Já fazia dois dias que Ruth tinha estado ali, mas eu ainda sentia a marca da sua presença. Chamei-me de um nome feio. Estava perdendo a ener­gia se uma mulher podia fazer isso comigo. Nunca deixara nenhuma aproximar-se de mim depois de Marianne e não queria decerto que isso acontecesse.

Liguei o rádio e escutei-o um instante. Nisto, o telefone tocou e da portaria do hotel me disseram:

Está aqui um Sr. Allison que quer falar com o senhor.

—        Mande-o subir — disse eu. Talvez ele tivesse mudado de idéia.

Alguns minutos depois, bateram na porta e eu fui abrir.

Olá, Allison. Que é que há?

A minha presença aqui é oficial, sr. Kane — disse ele, en­trando na sala.

Fui até ao sofá, indiquei-lhe uma cadeira e ofereci-lhe um uís­que. Recusou. Preparei uma dose para mim.

Que é que você quer saber? — perguntei calmamente.

Trabalhei para o senhor durante oito meses — disse ele com voz pausada.

Fiz um sinal de assentimento e ele continuou:

Sei perfeitamente, como todos sabem, qual é o seu tipo de negócios, mas há algumas coisas de que eu gostaria de saber, para meu governo. Não apenas por isso. O que disser poderá redundar em seu benefício.

Vamos a ver! Responderei o que puder.

Tomei um gole de uísque, pensando no que ele iria perguntar. Ele se inclinou para a frente, descansou os cotovelos nos joe­lhos, entrelaçou os dedos das mãos e perguntou:

Tem alguma relação com os agiotas de Nova York?

Nenhuma — respondi, E era verdade. Os agiotas eram um dos subprodutos do negócio, mas eu nunca me interessara por eles.

Mas há uma opinião generalizada de que é isso que acontece.

Sei disso, mas não posso governar a cabeça dos outros. As minhas atividades a esse respeito são muito peculiares. Não posso processar ninguém por calúnia.

E quanto ao vicio organizado?

Se está falando em mulheres, entorpecentes e coisas assim, também estou fora disso. Sou um espírito muito tolerante, mas não sou cáften.

Quer dizer que os seus únicos interesses estão no jogo?

Únicos, não; principais. A minha base são as apostas nas corridas de cavalos. Mas trato de outras coisas.

Ele pensou um momento e disse:

—        Se a oferta ainda está de pé, acho que vou aceitar agora aquele uísque.

Preparei-lhe um copo sem fazer qualquer comentário. Ele ainda não havia dito qual era o fim da sua visita. Ficamos a olhar-nos em silêncio durante algum tempo. file voltaria a falar quando quisesse e eu podia esperar até então.

—        Há quanto tempo conhece Ruth Cabell?

A pergunta me surpreendeu e eu tentei contorná-la.

Há algum tempo.

Parece que ela faz muito bom juízo a seu respeito.

Falou com ela? — perguntei, querendo saber o que ela lhe havia dito.

Falei ontem. Por que foi que ela o procurou sob um nome suposto?

Ela é assistente social. Com certeza achou que, se me desse o verdadeiro nome, eu não a receberia. Sabe como essa gente é. Ela estava querendo reformar-me.

Compreendo — murmurou ele. Mas ainda não estava satis­feito. — Como foi que veio a conhecê-la?

É preciso às vezes arriscar-se.

Foi no Hospital Bellevue há uns seis anos. Eu estava doente.

Desfaleci no meio da rua e fui levado para o hospital. Desnutrição.

Não comia havia já algum tempo, estava desempregado e vivia des­de alguns meses dormindo nos vestíbulos dos edifícios, nos subways e nos lavatórios públicos. Ela deve ter tido pena de mim.

Foi o que deduzi do que ela me disse. A vida deve ter sido bem dura para o senhor nessa época.

Eu estava certo. Ela nada dissera. Sorri e peguei-lhe a palavra.

—        Bem dura

Ele acabou o uísque, deixou o copo em cima da mesa e levan­tou-se.

Bem, acho que era só isso que eu queria saber.

Ainda é cedo. Por que não fica mais um pouco?

Não. Tenho de voltar para Nova York.

Levei-o até à porta. Ele pegou o sobretudo e colocou-o no bra­ço. De repente, voltou-se para mim e sorriu.

Sabe de uma coisa, Sr. Kane? Creio que o senhor poderia prosperar em qualquer outro negócio em que se metesse.

Talvez. Mas foi esse que me deu uma chance. Os outros me fecharam as portas.

Ainda pode tentar.

Bem sabia o que ele queria dizer. Se eu deixasse aquilo antes que me pegassem, talvez nada me acontecesse.

—        Não, jogarei até ao fim. Seria maluco de fugir com as cartas que eu tenho.

Às vezes as cartas não são tão boas quanto se pensa. Neste caso, perde-se tudo.

Não se pode ganhar sempre ombros. — disse eu, encolhendo os ombros. Disso eu já sei.

Está bem. O problema é seu. Não respondi.

Obrigado por ter-me recebido.

Sorri. Ele pelo menos era delicado. Era bem diferente da polí­cia local. Não se podia censurar a polícia federal por contratar gente com diplomas universitários.

—        De nada. Apareça quando quiser.

Depois que fechei a porta, hesitei um instante. Depois, fui ao telefone e liguei para Ruth. Ouvi uma voz de homem.

Dr. Cabell.

Miss Cabell está?

—        No momento, não — respondeu Marty. — Quer deixar re­cado?

Pensei alguns instantes e disse:

Não, muito obrigado. Telefonarei depois.

Espere um pouco — disse Marty rapidamente. — É Frank quem fala?

Surpreendi-me pela segunda vez naquela noite. Que diabo! Se­rá que a cidade toda já sabia que ela ia ver-me? Mas vi logo que ela de qualquer maneira podia contar tudo ao irmão.

É, sim.

Frank, quem fala é Marty — disse ele, todo alvoroçado. — Como vai, amigo velho?

Mantive a voz baixa e fria.

—        Sabia que era você.

Ele não deu a menor atenção ao meu tom de voz e continuou:

—        Não sabe a vontade que eu tenho de ver você!

Não pude resistir ao contágio da sua satisfação e disse mais amavelmente:

É muito gentil da sua parte, rapaz, mas não é bom para você neste momento. Poderia ter muitas conseqüências.

Está referindo-se a Jerry? Quem se importa lá com o que ele pense? Afinal de contas, nós somos amigos.

Não me estou referindo a Jerry. Refiro-me a mim.

Oh! — murmurou ele, evidentemente decepcionado. — Não podemos encontrar-nos em segredo e conversar um pouco? Ninguém saberia de nada. Ruth me disse que esteve com você. E não houve nada.

Pois foi justamente por isso que eu telefonei para Ruth. Um agente federal acaba de sair daqui da minha casa. Já havia falado com ela e eu queria saber o que foi que ela disse.

Não sabia disso. Ela não me disse nada.

Talvez ele a tenha procurado hoje mesmo. De qualquer ma­neira, meu velho, sinto muito, mas não é possível.

Compreendo. Quer que diga a Ruth que lhe telefone logo que chegar?

Faça o favor — disse eu, dando-lhe o número.

Falarei com ela logo que chegar, Frank.

Muito obrigado. Adeus.

Lembre-se de mim se precisar de alguém. Continuo a ser seu amigo. E felicidades!

Mais uma vez, obrigado! — Aquilo me emocionava. Eu não estava habituado a encontrar gentilezas gratuitas.

Adeus — disse ele e desligou

Deixei o telefone, sentei-me e comecei a ler um jornal. Meia hora depois, o telefone tocou. Fui atender.

—        É Kane quem fala.

Era Ruth. A voz era fria e distante

Soube que me telefonou.

É verdade — disse-lhe no mesmo tom. — Soube que Allison, do FBI, falou com você. Que queria ele?

O que você quer saber é o que eu disse a ele, não é?

Digamos que seja

Quer dizer que não confia mesmo em ninguém?

Confiar é um luxo que não posso sustentar.

Pode então ficar descansado. Nada lhe disse a nosso respeito.

Disse apenas que o conheci no hospital e me interessei pelo seu caso.

Ótimo! Ele veio falar comigo esta noite e me disse a mesma coisa.

E você então só telefonou para certificar-se?

—        Só, menina. Vou mandar-lhe uma orquídea por ter sabido calar a boca.

Eu podia iludi-la, mas não me iludia a mim mesmo. Não era preciso eu telefonar para ela. Soubera de tudo o que era preciso por intermédio de Allison.

—        Guarde a sua orquídea. Não é preciso subornar-me.

Sorri. Quando resolvesse todo aquele caso, iria dedicar algum tempo a ela. E isso também se resolveria

Foi na véspera de Natal, terça-feira, 24 de dezembro de 1940. Eu estava sentado à minha mesa e escutava a música que vinha do andar de baixo. Como em muitos outros escritórios, estávamos tendo uma animada festa de Natal. Teria de aparecer por lá ao menos um instante. Era da regra, como uma espécie de aviso anual aos empre­gados de que eu era uma pessoa real e não uma ficção mental. Du­rante a maior parte do ano, o empregado comum não me via. Eu en­trava e saia por uma porta particular. Só tinha contato com alguns di­retores que me traziam ao corrente de tudo.

Miss Walsh entrou na sala. Estava com um vestido novo. Nes­sas ocasiões, as mulheres sempre se esmeravam. Eram flores nos ca­belos, vestidos novos, tratamentos de beleza, sorrisos.

Se não precisa de mim agora — disse ela, sorrindo —, acho que vou descer.

Está certo, Miss Walsh. Pode ir.

Dei-lhe o presente que lhe havia comprado alguns dias antes.

Quase sempre eu lhe dava um vidro de perfume ou uma caixa de bombons, mas naquele ano eu lhe comprara um relógio de pulso. Ela bem merecia, pois havia trabalhado muito desde a saída de Allison. Quase sempre, ficava comigo até bem tarde da noite para ajudar-me.

—        Feliz Natal!

Ela recebeu o embrulho e ficou com ele na mão. Vi que estava louca para abri-lo, mas não queria, achando que isso seria grosseiro.

—        Muito obrigada, Sr. Kane! Feliz Natal para o senhor! — dis­se ela e saiu da sala.

Fiquei mais um pouco por ali e afinal desci para a festa. Estava animadíssima. Havia, como sempre, alguns levemente embriagados e todos estavam em diferentes fases da alegria natalina. Como sem­pre sucedia, o movimento caiu um pouco com a minha chegada. Chegou a haver alguns segundos de silêncio, enquanto alguns sus­surros diziam aos empregados novos quem era eu. Mas pouco a pou­co a festa se animou de novo. Demorei-me alguns minutos, sorrindo e falando delicadamente com quem se aproximava de mim. Depois, saíra em silêncio.

Estava meio deprimido naquela ocasião. Em geral, aquelas reu­niões me davam uma sensação de força e de poder, mas naquele dia me sentia vazio. Olhava os pares que dançavam e riam e me senti a-lheio a tudo aquilo. Tudo aquilo custava o meu dinheiro, mas a festa era deles.

Eu não devia ter motivo algum de preocupação. As coisas se haviam acalmado depois da prisão de Luigerro e dos outros dois. Os rapazes estavam-se comportando bem e todo o caso parecia estar morrendo de lenta morte natural. De dia para dia, as notícias sobre mim iam cada vez mais para as páginas de dentro dos jornais, tangi­das por matéria mais nova e mais sensacional. Mas não podia livrar-me daquela opressão que pairava sobre mim como uma nuvem ne­gra. Virei-me para sair.

—        Sr. Kane?

Era uma voz doce e jovem. Voltei-me. A moça tinha uma apa­rência que correspondia à voz. A mocidade se lhe estampava no ros­to, mas os olhos estavam bem abertos a um tanto assustados com o seu atrevimento.

—        Pronto — disse eu: sorrindo.

Ela teve uma expressão de alívio. Imaginei que, se tivesse fala­do rudemente, ela teria fugido.

Quer dançar comigo? — perguntou.

Será um prazer.

O rosto dela se iluminou ao ouvir isso. Estendi os braços para ela e começamos a dançar. Vi que todo o mundo nos olhava. Ora, podiam olhar à vontade. Eu tinha o direito de dançar ali se quisesse. A festa era minha. Era a primeira vez que eu dançava numa das nos­sas festas.

Ela dançava bem — era jovem e leve. A música era alegre e de um ritmo um tanto acelerado. Ela se acomodava bem nos meus bra­ços e eu sentia a pressão da sua mocidade contra mim. Ela levantou os olhos para mim enquanto dançávamos. Parecia estar-me estudan­do o rosto. Olhei-a, mas ela fechou a meio os olhos e virou um pou­co o rosto de modo que não pude vê-la direito.

Dança muito bem, Sr. Kane — murmurou ela timidamente.

Você é que dança bem. Eu não me sairia tão bem com qual­quer outra, Srta...

Muriel... Muriel Bonham. Espero que não me julgue atrevi­da... por pedir ao senhor que dançasse comigo.

—        Nada disso. Ao contrário, fiquei muito satisfeito. Ela parece que se encheu de confiança e disse:

—        É que vi que o senhor estava muito sozinho ali, sem falar com ninguém...

Eu devia estar mesmo mal se uma menina como aquela podia perceber o meu estado de espírito.

Por que pensou nisso, Muriel?

Bem, o senhor olhava as pessoas que dançavam, como se es­tivesse com vontade de dançar também.

—        Compreendo.

A música parou. Batemos palmas. O rosto dela era luminoso, a boca alegre.

Parecia-me jovem demais para estar trabalhando naquela espé­cie de negócio. Teria de pedir a Miss Walsh que descobrisse em que departamento ela trabalhava e a despedisse. Seria melhor para ela afastar-se dali.

A música tocou de novo. Olhei-a. Ela sorriu e dançamos outra vez. Quando a música parou, agradeci-lhe e voltei para o escritório. Preparei um uísque e fiquei ali até ouvir a música parar. A mocinha tinha razão. Eu estava muito sozinho. Mas é preciso tomar uma deci­são sobre aquilo que se deseja na vida. E eu já tomara a minha desde muito tempo.

Olhei para o telefone. Seria fácil ligar para Ruth e desejar-lhe um feliz Natal. Seria um pretexto tão bom quanto qualquer outro. Desde que eu falara pela última vez com ela, um florista lhe ia en­tregar diariamente uma orquídea. Ela nunca agradecera, mas também nunca se negara a receber as flores. Seria bom falar com ela. Estendi a mão para o telefone.

Nesse momento, notei que a porta do escritório se abria deva­gar. Abri a gaveta e encostei a mão na automática que guardava ali.

Mas foi a cabeça de uma moça que apareceu pela porta entrea-berta. Os cabelos de um louro pálido brilhavam à luz fraca da sala. Quando me viu, abriu de todo a porta e entrou.

Está aí desde aquela hora, Sr. Kane? — perguntou Muriel.

Estou — disse eu, fechando a gaveta. — Que veio fazer aqui?

Não sei. Mas tive vontade de vir.

Os olhos pareciam confusos, como se houvesse alguma coisa que ela não podia compreender.

Levantei-me e aproximei-me dela sem dizer uma palavra. Den­tro de mim lavrara um incêndio. Eu estava nervosamente sério, com os lábios apertados.

—        Sr. Kane — perguntou ela com voz meio amedrontada e re­cuando um pouco. — Que é que vai fazer?

Não respondi. Passei os braços pelos ombros dela e abracei-a violentamente. Ela tentou repelir-me sem resultado. Segurei-a com um braço. Com a outra mão, levantei-lhe o queixo e beijei-a.

As mãos dela se abriram e fecharam de encontro a mim e afinal me pegaram o paletó e pararam. Foi um beijo longo, duro, brutal. Quando a deixei, ela estava com os olhos semicerrados e se encosta­va languidamente a mim.

—        Era isso o que você queria, não era? — perguntei asperamente.

Ela não deu a menor atenção ao meu tom de voz. Pôs a cabeça no meu ombro e murmurou com voz bem meiga: — Oh, Sr. Kane..

Olhei-a. A cadelinha estava mesmo pedindo. Senti-me de re­pente velho e cansado. Toda a febre que havia dentro de mim desa­pareceu. Desci as mãos e afastei-me dela.

Que foi, Sr, Kane? — perguntou ela.

Nada, menina. Vá pan a sua casa, antes que se arrependa, — disse eu, acendendo um cigarro.

Sr. Kane — disse ela, naquela vozinha traiçoeira que tinha, — não me vou arrepender. Não me mande embora.

Vá-se embora, já disse! Você é muito menina para essas brincadeiras. Vá para junto de sua mãe.

Tenho vinte anos, Sr. Kane — disse ela, levantando a cabeça com um curioso jeito de orgulho — e com idade bastante para fazer qualquer brincadeira que eu queira.

Olhei-a sem dizer nada.

—        Sr. Kane, com quem o senhor vai fazer a ceia de Natal?

Isso me desorientou um pouco. Não esperava absolutamente que ela fizesse essa pergunta.

Por quê?

Não gostaria de cear comigo? Não quero passar o Natal ou­tra vez sozinha.

Intrigou-me aquele "outra vez".

Por quê? — perguntei.

Moro numa pensão. Meus pais morreram e eu não tenho ninguém com que passar o Natal. Olhei para ela e vi que os seus olhos azuis estavam cheios de lágrimas. — Todo mundo tem para on­de ir, menos nós.

Como sabe que eu não tenho?

O seu rosto está mostrando isso, Sr. Kane. Sei dizer quando alguém está sozinho

Olhei-a um momento e então sorri. Ela sorriu também.

—        Está bem, Muriel — disse eu tão severamente quanto me foi possível. — Vou cear com você. Mas nada de tolices, ouviu?

Sr. Kane, não sou virgem!

Dei uma gargalhada e disse:

Nem eu, Miss Bonham!

Beijei-a e saí com ela.

Fomos comer no Oyster Bay. Ela era uma pequena formidável sem duvida alguma, mas eu não estava com disposição. Além disso, não acreditava que ela fosse tão velha quanto dizia. Depois do jantar, levei-a para casa. Ela morava no Teaneck. Parei diante da casa que ela apontou e levei-a até à porta.

A entrada estava fracamente iluminada. Dei-lhe boa noite e me virei para voltar para o meu carro.

—        Não me vai beijar, Sr. Kane? — perguntou ela com voz queixosa.

Ri comigo mesmo. Eu devia estar louco mesmo para abrir mão daquilo.

—        OK, menina. Só um beijo!

Ela se aproximou de mim e o rosto dela me pareceu mais velho, mais sabido.

—        Não sou uma criança, Sr. Kane — murmurou ela. Abracei-a e beijei-a. Quando acabei, sabia que ela não estava

mentindo. Se havia uma mulher que soubesse beijar, era aquela. Bei­jei-a de novo.

Ela estava com o corpo colado ao meu. A boca era quente e do­ce, as mãos me agarravam pela nuca, prendendo-me a cabeça.

Nesse momento, ouvi uma voz às minhas costas. Era uma voz de homem, rouca e dura. Falou com ela, não comigo.

—        OK, Bonnie. Já chega!

A moça afastou as mãos de mim e recuou um pouco. Não tinha qualquer expressão de surpresa ou de susto. Olhei-a e comecei a virar-me devagar. Sentia todas as engrenagens cabeça funcionando. Quando acabei de me virar e vi os dois homens — um deles com uma pistola apontada para a minha barriga — só um pensamento me ficou.

Aquele tinha sido o último beijo de minha vida.

Não disse nada. Senti um aperto no estômago. Pensei por um momento que fosse vomitar, mas de certo modo venci a náusea.

Reviste-o — disse ao outro o sujeito que estava com a pistola.

Não é preciso — disse Bonnie, afastando-se mais um pouco. — Ele está desarmado.

—        Reviste-o ainda assim — disse o primeiro. — Com esse ca­marada não se pode facilitar.

Levantei os cotovelos enquanto o segundo homem me revista­va. Logo que ele se afastou, abaixei-os. A moça estava junto do ho­mem da pistola. Estava perfeitamente calma. Procurei adivinhar o que queria dizer tudo aquilo, mas não encontrei nada. A minha cabe­ça não estava mesmo funcionando direito. Do contrário, eu não teria caído naquilo.

—        Vire-se — disse o homem da pistola —, e vá para o seu carro.

Obedeci. Ninguém discute com uma pistola. Mas nada daquilo fazia sentido. Se me queriam matar, não podia haver melhor lugar do que aquele. Não havia casas perto daquela onde estávamos. Uma i-déia me ocorreu. A moça dissera que os pais dela tinham morrido. Só duas pessoas podiam saber que eu cairia com esse truque. Só du­as pessoas que conheciam a minha história estavam também preocu­padas com o meu futuro.

Jerry e Silk.

Se era Jerry, não podia compreender. Se era Silk, eu devia ter sido liquidado dentro da casa. Sentei-me ao volante pensando ainda.

—        Siga para a ponte e vamos para Nova York — disse o sujeito da pistola, sentando-se atrás de mim, enquanto a moça sentou-se na frente ao meu lado. — Você vai ver o Procurador —, acrescentou o homem.

Tive um suspiro de alívio. Era a certeza de que não me iam ma­tar. Mas ainda não compreendia por que Jerry estava fazendo aquilo. Nunca pensara que fosse essa a sua maneira de agir. Falei com a moça ao meu lado.

—        Como me enganou, menina!

—        Não foi difícil — , disse ela, sem ligar ao meu amor-próprio. Tinha razão. Eu a ajudara em tudo. Ela tivera apenas de acom­panhar-me

Há quanto tempo você trabalha no meu escritório?

Mas não trabalho lá. Limitei-me a entrar na festa e ficar à sua espera.

Ia dizer mais alguma coisa, mas o homem atrás de mim me ba­teu nas costas.

—        Cale a boca! Calei-me

Passamos a ponte e chegamos à cidade.

—        Vá para o Hotel Dauphim — disse o homem.


Eu sabia onde era. Ficava na esquina da Broadway com uma das ruas 70. Não estava gostando daquilo. Não sabia o que ia acon­tecer, mas não estava gostando.

Encostei o carro na Broadway e entramos no hotel. O homem da pistola olhou para o relógio.

—        Ainda temos tempo. Vamos beber alguma coisa no bar. E não se meta a engraçado!

Entramos os quatro no bar. Havia um compartimento vazio no qual nos sentamos. O garçom apareceu e nós fizemos os pedidos. Quis um scoth com soda e paguei a nota. Ficamos alguns minutos a-li. Depois, a moça se levantou e foi ao telefone. Quando voltou, o homem da pistola bateu com a cabeça para ela.

Acabe o seu uísque — ordenou ele, levantando-se. Obedeci.

OK — disse ele. — Vamos.

Fui com ele até à portaria. Ele então disse ao empregado:

Dois quartos com banheiro aqui para o meu amigo. O empregado me passou o livro de registro.

Assine! — disse o homem.

Escrevi meu nome no livro: Frank Kane. Aquilo estava come­çando a tomar forma. Havia todos os elementos de uma cilada. Eu só não podia saber quem era que a estava montando e qual era a cilada.

Fomos levados para quartos no quarto andar. Joguei um dólar para o boy e ele saiu.

—        Fique à vontade, — disse-me o pistoleiro.

Sentei-me numa cadeira perto da janela. O primeiro pistoleiro foi até ao telefone e discou um número, conservando a arma aponta­da para mim. Atenderam ao telefone e ele perguntou:

—        Sr. Cowan?

O pistoleiro esperou alguns instantes e então disse:

—        Sr. Cowan, Kane está aqui em Nova York e quer falar com o senhor... Sim, quer falar com o senhor sozinho... Muito bem. Está no Hotel Dauphim, na Broadway, quarto 412.

O pistoleiro ouviu mais alguma coisa e desligou.

A cilada estava clara. Tudo começou a fazer sentido para mim.

O pistoleiro disse à moça:

—        Tudo pronto, Bonnie. Pode ir dizer ao patrão que o Procura­dor estará aqui dentro de meia hora.

Ela se levantou e foi saindo. Gritei-lhe

—        Felicidades, menina!

Ela se virou e sorriu.

Guarde-as para você! Precisa mais do que eu!

Depressa, Bonnie! — disse o pistoleiro. — Vá logo! Depois que ela saiu, o pistoleiro voltou-se para o outro homem.

Desça e me telefone quando o homem aparecer!

O outro saiu e o pistoleiro me mandou ficar numa cadeira perto da porta, enquanto ele se sentava mais para dentro ao lado do telefo­ne. Ficamos a olhar-nos.

De Detroit? — perguntei.

Ele não respondeu.

Quanto é que vai ganhar por este serviço? Continuou calado.

Posso pagar-lhe o dobro do que vai receber.

Cale-se!

Calei-me. A trama era muito simples: o sujeito mataria Cowan quando este aparecesse na porta, depois me faria dormir, colocaria a pistola em minha mão e o caso seria mais do que claro.

Ninguém acreditaria no que eu dissesse e o camarada que engen­drara tudo ganharia dos dois lados. Teria o Procurador fora do seu caminho e eu na cadeia, o que lhe permitiria tomar conta de tudo.

Só podia ser Fennelli. De todos era o único que tinha inteligên­cia bastante para imaginar uma trama dessas. Simples, mas boa! A minha presença fora estabelecida — primeiro no bar, depois na por­taria. O Procurador fora chamado pelo telefone com urgência. Um ti­ro e eu estava frito. Comecei a suar frio.

Mas enquanto olhávamos um para o outro, os minutos iam pas­sando e eu não encontrava qualquer saída.

Olhei para o relógio. Não me restava mais muito tempo. Tirei o lenço e enxuguei a testa. Se ainda havia algum golpe de sorte a meu favor, era melhor chegar logo.

O telefone tocou. O homem atendeu, escutou um momento e desligou. Levantou-se da cadeira e se dirigiu para mim. Apontou pa­ra a cadeira de onde havia saído.

—        Vá sentar-se ali.

Sentei-me onde ele mandou. Comecei a sentir leves marteladas na cabeça e um aperto na garganta.

O pistoleiro foi então para o lado direito da porta onde esta o esconderia quando fosse aberta. Apontou a pistola para mim e disse:

—        Fique calado se quer continuar vivo! Falei de novo com ele, em desespero.

—        Não está vendo logo que isso não pode dar certo! Você está perdido! Pagarei o que você quiser!

Ele olhou para mim e uma espécie de desprezo se lhe mostrou no rosto:

—        Vocês todos são iguais. Muito importantes e valentes até que alguém lhes corta as asas. Começam então a chorar. Cale-se!

Um segundo depois, bateram na porta. Ao mesmo tempo, o te­lefone tocou. Fiquei sem saber para onde olhar primeiro. Mas auto­maticamente, levei o fone ao ouvido e disse:

—        Entre.

A porta começou a abrir-se e simultaneamente alguém me gri­tou ao ouvido.

—        Flix — dizia a voz ao telefone —, o hotel está cheio de guardas!

Desliguei sem responder e fiquei em pé de um salto. Era a pri­meira vez em que eu ficava satisfeito de que alguém não confiasse em mim. Jerry tivera juízo em trazer os guardas. Não confiava em mim. Falei rapidamente ao pistoleiro que me estava olhando.

—        O hotel está cheio de guardas! Desista disso! Eu lhe darei cobertura!

O homem me olhou indeciso. Levantou um pouco a pistola.

Dei um passo na direção dele. A pistola continuou a ser levan­tada. Jerry entrou no quarto entre nós. Não viu o pistoleiro atrás de­le. Havia outros homens que me olhavam curiosamente do corredor.

—        Foi bom você ter telefonado — disse Jerry. — Já estava em tempo de criar juízo.

Um flash se acendeu bem diante de mim e durante algum tem­po não pude ver nada. Quando a vista clareou, vi o homem que esta­va atrás da porta guardar a pistola e dirigir-se para mim. Pensei com aborrecimento que no dia seguinte o meu retrato estaria em todos os jornais. Depois, ri e disse:

—        Entre. Muito prazer em vê-lo.

Muitos homens entraram juntamente com Jerry.

É uma prisão? — perguntei.

Ainda não — respondeu Jerry. — Você disse que queria fa­lar comigo.

—        Eu não disse nada. A idéia foi dele — disse eu, apontando o pistoleiro. — Foi ele que arranjou o nosso encontro de pistola em punho. A idéia era matá-lo e deixar que eu fosse acusado do crime.

O pistoleiro praguejou e levou a mão ao bolso. Um dos deteti­ves agarrou-o num bom golpe e o pistoleiro desabou no chão. Conti­nuei a falar com se nada tivesse acontecido.

—        A verdade é que, no que me diz respeito, preferia estar bem longe daqui, sem vê-lo.

O detetive tinha tomado a arma do pistoleiro e fê-lo levantar-se. O homem estava um pouco tonto. Teve de sacudir fortemente a cabeça para poder falar.

—        Foi Kane quem armou tudo isso, o patife! Quando viu que não podia fazer nada, jogou a culpa em cima de mim!

Ri zombeteiramente.

Jerry falou com os detetives:

—        Levem-no e saiam.

Um deles não queria sair e disse:

—        Talvez Kane esteja armado.

Jerry olhou para mim. Sacudi a cabeça sem falar. Jerry se vol­tou para o detetive:

—        Não, não está. Esperem lá embaixo.

Saíram todos do quarto e nós dois ficamos sozinhos. Sentei-me numa cadeira. Jerry tirou o sobretudo, sentou-se em outra e olhou para mim.

Você estava dizendo a verdade?

Claro que sim. Prepararam-nos uma cilada. Iam matá-lo e jogar a culpa em cima de mim. Não podia falhar.

Tirei um cigarro e ofereci-lhe. Ele agradeceu e acendeu um charuto que tirou do bolso do paletó. Acendi o meu cigarro.

—        Tem alguma idéia de quem mandou fazer isso? Sorri. Pergunta infantil.

—        Se tivesse — respondi —, as coisas não teriam chegado ao ponto a que chegaram.

Ficamos de novo em silêncio. Olhei-o. Estava bem gordo, de rosto cheio. Os cabelos tinham ficado castanho-avermelhados e com uma leve ondulação. Tinha um pequeno bigode e faces bem coradas. Mostrava um pouco de barriga. Havia um ar de suficiência nele, uma espécie de convicção da própria importância.

Ele estava também a observar-me e em dado momento excla­mou:

—        Mas como você envelheceu!

A exclamação foi inteiramente espontânea. Sorri, mas nada disse.

—        Nunca pensei que nos tornaríamos a ver assim, Frank!

Continuei calado.

A sua voz tornou-se então direta e seca.

—        Sabe como estão as coisas entre nós dois. Gostaria de ajudá-lo, mas tenho o meu dever a cumprir.

"A velha conversa fiada !" — pensei. Mas disse em voz alta:

Compreendo.

Quero fazer-lhe algumas perguntas. — Tirou bolso, olhou-o, tornou a guardá-lo e me perguntou: — Conheceu um homem cha­mado "Fats" Crown?

Conheci.

Onde?

Aí pela cidade. Nunca cheguei a conhecê-lo muito bem e não lhe dava grande importância.

Entretanto, quando ele se opôs à organização dos jogadores que você propôs, mandou matá-lo?

Sorri.

Nada tive que ver com essa morte. Nada tive com a organi­zação dos jogadores. Os meus negócios são todos legítimos. Se são coisas assim que pretende perguntar-me, é melhor não perder tempo. Eu nada lhe poderia dizer ainda que soubesse de que era que você estava falando.

É assim então que quer jogar o jogo?

Ele estava louco se pensava que havia qualquer outra maneira de jogá-lo. Se ele pensava que eu ia dizer-lhe alguma coisa só por­que ele tinha sido meu amigo de infância, estava muito enganado. Eu não ia dar-lhe nada que me comprometesse.

Bem, você sabe que o segredo é a alma dos negócios — dis­se eu, sorrindo.

OK! — exclamou ele, levantando-se, visivelmente aborreci­ do. — Estou começando a acreditar que o que aquele homem disse é verdade — a cilada foi sua.

Você pode pensar o que quiser.

Escute, Frank, estou tentando dar-lhe uma chance que você não merece, apenas porque o conheci. Disse-lhe há meses, quando comecei, que você devia afastar-se, disso, mas você não me quis ou­ vir. Agora, quero dizer-lhe que vou metê-lo na cadeia. Fui compla­cente de propósito com você, mas agora vai ser para valer!

Tudo aquilo era pura conversa! Se ele pudesse prender-me, eu já estaria na cadeia. Não estava fazendo nada por mim, nem ia fazer porque não podia. Levantei-me.

Bem, a festa é sua! — disse eu.

E vai ser o seu funeral! — gritou ele.

Silêncio! — disse eu. — Olhe os vizinhos!

Ele ficou muito vermelho. As veias do pescoço se estofaram.

—        Bastardo imundo!

O insulto levara vinte anos para sair do lugar onde ele o havia guardado. Olhei-o friamente e disse, sorrindo:

—        Não, você não é tão ruim assim. Ele tornou a sentar-se.

Desculpe, Frank. Não tive essa intenção de ofendê-lo. É que estou nervoso. Gosto tanto disso que estou fazendo quanto você gos­ ta, mas não posso recuar.

Não pense nisso, rapaz! Sei como você se sente!

Ficamos algum tempo em silêncio, cada qual entregue aos seus pensamentos.

—        Por que não se afasta disso, Frankie?

Não respondi. Uma explicação seria uma confirmação de tudo em que ele estava pensando. Ele podia sentir o que quisesse, mas eu não ia confirmar nada para ele.

Quando ele viu que não ia responder, continuou:

Seria muito fácil processá-lo por uma tentativa de homicídio contra mim.

Fácil demais — disse eu. Mas era isso que ele queria.

Depois, eu poderia dar-lhe uma chance. Uma sentença não muito longa, nem muito curta, que afastasse você disso e o tornasse inofensivo.

Está com isso tentando proteger-me ou ao povo da sua cidade?

Ele me encarou com um olhar diferente.

Diz as coisas diretamente, não é?

—        Por que não? Deram-lhe um serviço para fazer. Procure fa­zê-lo, se puder. A mim você não deve nada.

Ele se levantou e me estendeu a mão.

Poderíamos ser amigos.

E somos — disse eu, apertando-lhe a mão. — Mas isso é en­tre nós. Os negócios são uma coisa inteiramente à parte.

Ele ainda me apertava a mão.

Vou desbaratar a sua organização. Vou fechar-lhe o negó­cio, — disse ele, sorrindo.

Isso é com você. Pode tentar.

Acha que não vou conseguir?

Acho que não vai conseguir.

Irá ao meu escritório na segunda-feira se eu o deixar sair agora?

Estava-me dando uma oportunidade. Aceitei. Isso me permitiria levar Carson comigo. Ele se voltou para a porta.

Esteja lá às dez e meia.

Estarei lá.

Ele olhou para mim e por um instante o seu velho sorriso lhe iluminou o rosto.

Feliz Natal!

Feliz Natal! — respondi, vendo-o sair.

Olhei para o meu relógio. Já passava da meia-noite. Sai pelo corredor e desci para a portaria. O quarto me havia custado quinze dólares. Tive prazer em pagar esse dinheiro. Saí. O meu carro ainda estava onde eu o havia deixado. No volante encontrei o papel de uma multa por estacionamento irregular. Ri comigo mesmo, entrando no carro.

Rodei algumas ruas quando ouvi uma voz no banco de trás.

—        Alô, Frankie.

Não podia acreditar. A voz era de Ruth. Virei a cabeça um pouco para trás e encostei o carro ao meio-fio.

—        Como veio parar aqui, Ruth?

Ela só respondeu depois que passou para a frente, sentando-se ao meu lado.

—        Jerry estava em nossa casa quando você telefonou para ele.

—        Não fui eu que telefonei. Era tudo uma cilada. Contei-lhe o que havia acontecido, mas sem fazer menção da pequena.

O rosto dela estava ansioso enquanto eu falava. Quando acabei, disse decepcionada:

—        E eu estava começando a pensar que você tinha visto afinal as coisas.

Tomei-lhe a mão.

Dê-me tempo. Talvez algum dia.

Hoje não?

Hoje não, que tenho uma coisa para fazer. — Mudei de as­sunto. — Como foi que encontrou o carro?

Segui Jerry — disse ela meio alheada, como se estivesse pensando em outra coisa. — Quando vi o seu carro, entrei e fiquei à sua espera. Sabia que você iria aparecer mais cedo ou mais tarde.

Ela sabia mais do que eu sabia algumas horas antes, quando não daria um centavo falso pelas minhas perspectivas. Parei o carro diante da casa de Fennelli.

Espere-me aqui — disse eu, saltando. — Tenho de ver uma pessoa. Voltarei daqui a alguns minutos.

Ela nada disse. Subi e toquei a campainha de Fennelli. Se fosse ele o autor da trama, estaria decerto em casa com alguns amigos. Não me enganei. Laurens abriu a porta e eu passei por ele sem falar.

Fennelli estava tapeando um jogo de pôquer, com um copo na mão. Olhou para mim, surpreso.

Que é que está fazendo aqui, Frank? Ri, fria e zombeteiramente.

Em Nova York, quero dizer —, acrescentou ele.

Isso foi a prova decisiva. Ele não teria de acrescentar nada se não tivesse culpa. Passei por ele em direção ao quarto, sem tomar conhecimento dos outros, e abri a porta.

—        Venha cá um instante, Silk, que eu quero falar com você.

Talvez fossem as luzes, mas ele me pareceu um pouco pálido.

Fechei a porta e voltei-me para ele.

—        Que é que há? — perguntou ele.

— Alguém quis matar o Procurador esta noite e jogar a culpa em cima de mim.

Quem foi?

Não sei. Será que você sabe?

Agora é que estou sabendo disso. Como foi?

Narrei sucintamente os fatos. Quando acabei, ele levou a mão ao rosto.

Uff! Pouco faltou!

Bem pouco!

E você só viu essas três pessoas?

Só. Não sei o que aconteceu aos outros dois, mas o da pisto­la foi levado para a polícia.

Vou ficar de olhos abertos e se souber de alguma coisa logo lhes comunicarei — disse Fennelli, que se havia refeito prontamente da surpresa.

Procure saber especialmente dos três, Silk. Tenho planos pa­ra eles.

Fique descansado, Frank.

Saí de lá e desci. Fennelli não podia deixar que eu falasse com eles. Eu havia assinado o fim deles. Para mim estava certo. Fennelli não iria arriscar-se mais durante algum tempo — pelo menos en­quanto não tivesse maiores chances do que tivera naquela ocasião.

Abri a porta do carro, rindo.

— OK, menina! Demorei muito?

Não houve resposta. Olhei para dentro do carro.

Ela não estava mais lá.

O meu encontro com Jerry no escritório dele acabou sendo uma farsa. Carson estava comigo e cada vez que Jerry me fazia uma per­gunta, ele me aconselhava a não responder. Passei uma hora e meia de boca fechada e, quando saí, estava convencido de que Jerry não dispunha de elementos contra mim. Estava apenas jogando verde. Só haviam conseguido de mim retratos.

Os vespertinos os espalharam na primeira página. As legendas diziam: "É este o homem que o governo da cidade e o do Estado chamam de Inimigo Público Número Um".

Os jornais davam ainda outra notícia. Uma mulher e um ho­mem tinham sido encontrados mortos a tiros perto de Boston Post Road. A descrição que davam da mulher correspondia à pequena que tinha tomado parte no plano contra mim. Silk não perdera tempo em tampar os rombos na sua jangada. O outro estava ainda preso, mas eu tinha certeza de que Silk cuidaria dele na primeira oportunidade.

Numa coisa ao menos a situação havia melhorado. Eu podia ir a Nova York e andar por lá na hora em que quisesse. Havia prometido a Jerry que compareceria a qualquer hora que ele me chamasse. Te­lefonei para Ruth naquela noite.

Que é que vai fazer na véspera do Ano Novo?

Tenho um compromisso — disse ela, friamente.

Desmanche-o Vamos sair juntos

Ela desligou sem dizer mais nada. Sorri quando coloquei o re­ceptor no gancho. As coisas ainda não iam bem, mas daí a pouco...

Janeiro passou e chegamos a fevereiro. Nada demais aconteceu, mas eu sabia que os castores estavam trabalhando no escuro. A nova organização que eu havia formado estava pronta e a providência se­guinte era mandar Joe Price sair e ir instalar um novo escritório. Eu estava esperando para só fazer isso quando fosse necessário. Os ra­pazes estavam-se comportando bem e os negócios haviam voltado à normalidade.

A calmaria terminou em fins de fevereiro. A primeira notícia que eu tive foi um telefonema de Carson.

Fui suspenso, Frank, — disse-me ele, nervosamente.

Como assim?

A Ordem dos Advogados abriu processo contra mim para afastar-me do exercício da advocacia e eu fui suspenso provisoria­mente.

Quer dizer que nada poderá fazer enquanto não julgarem o seu caso?

Isso mesmo.

E têm mesmo elementos contra você?

Muito pouca coisa. Mas esticarão isso ao máximo, na espe­rança de conseguirem mais.

Essa esperança consistia em mim.

—        Bem, venha conversar comigo.

Desliguei. Acendi um cigarro e olhei para o outro lado do rio. Aquilo era de fato o começo do fim. Sabiam que eu não podia recor­rer a outro advogado naquela altura. Depois disso, começariam a a-gir contra os rapazes. Telefonei chamando Joe Price.

Dois dias depois, começaram a agir com força total. Jensen foi preso como receptador de objetos furtados. Descobriram um colar de brilhantes furtado em poder dele. Foi posto em liberdade mediante uma fiança de 25 mil dólares, mas era evidente que eu nada mais podia fazer com ele. Comuniquei aos rapazes que o departamento ju­rídico estava temporariamente fechado. Não gostaram disso. Não es­perava o contrário, mas eu também não gostava.

O golpe seguinte ocorreu quando alguém denunciou à mulher de Schultz a existência das duas mulheres em Park Avenue. Ela foi até lá, pegou o marido em flagrante com uma delas e atirou nos dois. Não os matou, mas a polícia a prendeu e ela botou a boca no mundo, dizendo tudo o que sabia sobre as atividades e o território dele. Bem podia imaginar os detetives recolhendo todas as suas palavras e ti­rando delas todas as conclusões possíveis.

No fim da semana, mandei Joe Price sair da cidade. Confiei o departamento dele a um camarada que lhe servia de assistente. Do jeito que as coisas iam, parecia que o jogo não iria demorar muito mais.

O último domingo de fevereiro foi o clímax de tudo. Logo que soube disso, vi que a festa estava acabada. Eu havia dividido o terri­tório de Schultz entre Carvel, Kelly e Fennelli. Em algum ponto — eu sabia onde — a combinação foi desfeita e dois homens de Fennel­li mataram Kelly quando ele saía de casa pela manhã.

Foi Fennelli quem me telefonou.

—        Frank, Piggy Laurens acaba de matar "Iron Mike".

Fiquei mudo por um momento. Ainda teríamos uma chance se eles tivessem observado as minhas recomendações, mas uma coisa daquelas só serviria para que a opinião pública apoiasse com maior firmeza a ação do governo.

Quem foi que deu a ordem?

Não tive nada com isso, Frank. — Notei uma leve nota de zombaria na voz dele. De zombaria e desafio.

Quem foi então? Foi um idiota que gosta de matar e não faz nada do que se manda fazer!

Ele disse que recebeu um telefonema seu.

A voz dele veio calmamente pelo telefone e eu compreendi tu­do. Respondi com calma igual:

E desde quando ele faz alguma coisa para mim? É para você que ele trabalha.

Diz ele que você telefonou e mandou que ele desse um jeito em Kelly, que depois você o protegeria.

Então diga a ele que por mim ele pode ir estourar nos in­fernos !

E se a polícia o pegar? Ele vai falar e botar toda a culpa em você!

É a você que cabe providenciar para que ele não seja preso.

Pode-se provar que ele trabalha para você.

Desliguei e no mesmo instante telefonei para Jake Rance. Era o homem que tratava da nossa publicidade. Colocava nos jornais notí­cias sobre gente que ganhava nas corridas e coisas assim.

Jake — disse eu quando ele atendeu. — É Frank Kane. Te­nho uma coisa que quero que você faça sair na coluna de Wetzel.

Que é?

—        É o seguinte: "Um certo homem de muitas empresas da ci­dade e de maneiras suaves como seda (Silk) sabe mais do que quer dizer sobre o assassinato de "Iron Mike" Kelly.

Jake assobiou.

Isso é perigoso, Frankie. Não sei se poderei conseguir.

Ganhará mil dólares se conseguir!

Já saiu então, Frank. Mas que é que há?

Os ratos estão começando a fugir do navio — disse eu, des­ligando. Fennelli não ia gostar de ler aquilo.

O trecho saiu na coluna de segunda-feira. Duas horas depois o que jornal estava na rua, Piggy morreu. Parece que foi atropelado por um carro.

Estava fazendo a barba diante do espelho. Sentia-me bem. Um leve toque primaveril se insinuava no ar da manhã de abril. O sol se derramava pela janela e eu, como um cretino que era, estava cantaro­lando. Larguei o aparelho e passei loção no rosto. Senti a pele arder com o álcool mentolado. Penteei os cabelos e saí do banheiro vestin­do a camisa

Peguei o telefone. Estava com fome naquele domingo.

É Kane quem fala. Mandem trazer o meu café. — Já sabiam o que eu queria.

Está bem, Sr. Kane — disse a telefonista. — Já ia mesmo te­lefonar-lhe. Estão aqui duas pessoas que querem vê-lo, o Dr. Cabell e a irmã.

Mande-os subir e peça o café para três.

Poucos minutos depois, bateram na porta. Fui abrir. Eram Marty e Ruth. Sorri para eles e estendi a mão a Marty.

Entre, rapaz. Que alegria em vê-lo!

Frankie! — exclamou ele, emocionado, apertando-me a mão.

Entraram comigo na sala

—        Chegaram mesmo na hora do café e não podem recusar.

Sentamo-nos e eu acendi um cigarro. O apartamento estava de­sarrumado, pois a arrumadeira não aparecia aos domingos.

—        Não reparem a desarrumação. Casa de solteiro é assim mesmo

Marty sorriu.

Você está ótimo, Frankie!

Você também, Marty! E segundo me disseram, vai ainda melhor na sua carreira.

Nem tanto, Frankie. Mas gosto da profissão que escolhi.

O café chegou. Sentamo-nos à mesa e começamos a comer. Ru-th estava calada. Não tínhamos muito sobre o que conversar.

Sabem que fim levou a Sra. Scott? — perguntei.

Morreu — disse Marty.

É uma pena.

De fato — disse Mary. — Foi ela quem primeiro me deu uma idéia do que eu queria. Se não fosse ela, eu talvez não estudasse medicina.

Ela era formidável! — disse eu.

Ela fazia muito bom conceito de você — disse Marty. — Você era de certo modo o predileto dela. Esperava muito de você.

Depois de dizer isso, calou-se meio confuso.

—        Que é que acha? — perguntei a Ruth.

—        Ela foi a primeira pessoa que chegou a compreendê-lo, Frank.

Pensei nisso. Talvez. De qualquer modo, as coisas nunca saem de acordo com os nossos planos. Encolhi os ombros.

—        Isso aconteceu há muito tempo.

Eu tinha acabado os ovos e ia tomar a minha segunda xícara de café. Ruth se adiantou e serviu-me o café. Quando estendi a mão pa­ra a xícara, toquei na mão dela e nós nos olhamos, espantados com esse contato acidental. Vi-lhe os olhos azuis e profundos e baixei a vista para a minha xícara.

Marty fez menção de dizer alguma coisa, mas não disse. Conti­nuamos sentados e em silêncio durante alguns minutos. Por fim, eu disse:

Foi muito gentil de vocês virem ver-me!

A idéia foi minha — disse Marty. — Queria ver você. Fica­mos tanto tempo um longe do outro que eu estava com curiosidade de saber como você estava e Ruth...

—        Sim? Que é que tem Ruth? — perguntei. Foi ela que falou.

—        Queria que ele conversasse com você. Ele é seu amigo e não tem nada a perder nem a ganhar com o que lhe disser.

Levantei-me e fui até à janela.

—        Quero amigos e não conselhos.

Ruth me seguiu até à janela e pegou-me na mão.

—        Os amigos não são apenas para ouvir o que a gente diz e concordar conosco. Dizem às vezes coisas que não gostamos de ou­vir, mas são para o nosso bem. Ouça o que nós temos para lhe dizer.

Virei-me para ela. Pouco me importava que Marty estivesse presente. Passei os braços pelo corpo dela e disse:

Se você me ama, por que não me aceita como eu sou e não deixa de querer convencer-me a fazer o que eu não quero?

É justamente por isso, Frankie — disse ela com voz terna. — Se eu não o amasse, pouco me incomodaria com o que lhe acon­tecesse

Marty olhou muito sério para nós.

—        Você foi realmente sincera no que me disse, Ruth?

—        Fui — respondeu ela.

Ele sorriu para mim.

—        Frank, acho que já pode jogar a toalha. A moça já tomou uma decisão há muito tempo e você não pode ganhar.

Olhei-os. Estavam ambos sorrindo e pensando na mesma coisa.

De que é que vocês estão falando?

Devo dizer a ele, Ruth?

Não — respondeu ela. Isso ele terá de descobrir por si mes­mo.

Ela me fez sair da janela. Fomos sentar-nos no sofá e eu passei os braços pelos ombros dela. Ela encostou a cabeça em mim, levan­tou os olhos e disse:

Marty esteve há alguns anos na Europa. — Quero que ele lhe fale sobre o que viu lá.

Que foi? — perguntei com curiosidade.

É uma história muito comprida — disse Marty.

Não faz mal. Tenho o dia todo livre —, disse eu, apertando mais Ruth com o braço. Como eu estava, seria capaz até de ouvir a conversa de quem quisesse me vender a Ponte de Brooklin.

Eu estava na Alemanha em 1935. Vi o que acontece a um país quando os gangsters o dominam.

Está-se referindo a Hitler? — perguntei. — Que é que isso tem que ver comigo?

Lembrava-me ainda do que havia acontecido em junho daquele ano quando a França caíra. Muita gente andava pela rua, triste, fa­lando em voz baixa. Falara-se muito em guerra com a Alemanha. O nosso movimento havia caído durante alguns dias, mas bem depressa voltou ao normal. Creio até que aumentou um pouco. Mas não fo­mos à guerra nessa ocasião e eu continuava a pensar que não iríamos — especialmente se não nos metêssemos naquilo que não nos dizia respeito

Marty continuou a falar, sem tomar conhecimento da minha pergunta.

—        Em 1935, Hitler estava organizando o seu país. Esmagava impiedosamente todos os que se atreviam a fazer-lhe oposição. Dizia nessa época: "Hoje a Alemanha, amanhã o mundo".

"Ora, estamos nesse amanhã, no amanhã que ele prometeu à Alemanha. Já conquistou o continente europeu, como havia prometi­do, e hoje só restam dele a Rússia e a Inglaterra. Depois, ele voltará os olhos para o outro lado do oceano, para nós.

Parou por um momento para acender um cigarro. Eu ainda não percebia aonde ele queria chegar. Recomeçou:

—        Quando ele principiou a agir, havia quem dissesse que ele não iria durar. Mas eu compreendi que ele duraria pelo tempo em que se deixasse de reconhecer a ameaça que ele de fato era.

"Logo que o mundo reconhecer o que ele é e a que visa, Hitler será detido. Já se está começando a reconhecer e ele vai sendo lenta­mente detido. A Inglaterra resistirá e a Rússia também. O homem comum irá detê-lo com pontes feitas dos seus corpos, da sua deter­minação.

"Quando o homem comum decide que uma pessoa não presta e o prejudica, essa pessoa está perdida. Faça o que fizer, o homem comum achará um meio de fazer prevalecer a sua vontade. Ninguém tem força ou inteligência suficientes para vencer o homem comum.

Está bem —, disse eu. — É claro que vão fazer Hitler parar!

Mas ainda não vejo o que é que eu tenho com isso.

Devia ver, Frank. O homem comum está contra você. E se ele acha que você tem de parar, vai parar mesmo!

Achei muita graça nisso. Por onde quer que andasse, só via gente rastejando à minha frente. Se estavam contra mim, por que não diziam? Disse a Marty o que eu pensava.

—        É exatamente isso, Frank. Era o que eu estava mostrando.

Quando Hitler aparece, só faltam beijar o chão em que ele pisa. Mas fazem isso por medo do que possa acontecer se assim não procede­ rem. E é por isso que as pessoas rastejam, como você diz, diante de você. Têm medo de você. O seu nome se tornou um símbolo de ter­ ror, de assassinato, de roubo. Têm medo da sua reputação, das coisas que se afirma em segredo que você tem feito. Pode ter feito ou não essas coisas, mas isso não tem mais importância. Não destrói o fato de que todos acreditam que você as fez. E vão destruí-lo, como um dia destruirão Hitler.

Continuo a não achar sentido nisso —, disse eu, rindo. — Quero apenas é viver em paz. Se não mexerem comigo, não mexerei com ninguém.

Agora não adianta mais. É o mesmo caso do menino que gritava que o lobo o estava atacando.

Não posso fazer nada então.

Pode afastar-se antes que seja tarde demais — disse Ruth.

Bem escutei o que vocês tinham para me dizer. — Apaguei o cigarro no cinzeiro e acendi outro. — Agora, vão escutar o que eu tenho para dizer. Durante muitos anos, tentei viver da maneira que consideram direito. Trabalhei muito por pouco dinheiro e pouca se­gurança e para quê?

"Fui acabar num hospital porque estava com fome e não tinha o que comer, porque não podia conseguir um emprego que me pagasse o suficiente para dar-me alguma segurança, porque toda essa história de vencer pelo trabalho honesto não passa de conversa fiada, porque as pessoas que são apontadas como heróis do trabalho honesto, por mais honestos que fossem, por mais arduamente que trabalhassem, só con­seguiram alguma coisa depois que socorreram a filha do patrão ou se casaram com ela. Nunca pude encontrar uma filha de patrão.

"Só encontrei por onde andei gente igual a mim — faminta, pobre, miserável, vivendo do socorro público, da caridade dos outros ou de algum emprego que mal dava para viver e que suspendia sobre as cabeças como uma espada o medo da fome.

"Eu seria um perfeito imbecil se insistisse em viver assim, quando um patrão pode despedir-nos quando se cai doente, quando um homem diz que só se pode ganhar dez dólares quando a gente precisa de quinze para viver, ou de vinte ou trinta quando se precisa de cinqüenta.

"Não, não me era possível ser idiota a esse ponto! Queria gozar a vida, ter as boas coisas da vida: dinheiro no bolso, um automóvel, um bom lugar para viver, as coisas que valem a pena — as coisas que se podem ter na mão, sentir, e comer. O caminho que escolhi foi o único em condições de me permitir conseguir essas coisas, o único que estava aberto para mim. E foi assim que consegui o que queria.

Mas, Frank —, disse Marty, pacientemente —, não percebe que em parte a culpa foi sua?

Talvez, mas não foi o que eu quis. Da minha parte, esforcei-me ao máximo e não deu resultado.

Ruth me disse então:

—        Frankie, você devia ter vivido na antigüidade. Mas os dias de pirataria terminaram. Não é mais possível abrir caminho a ferro e fogo. Não é mais possível lançar a mão sobre o que se deseja e mandar os outros para o inferno. Temos de conviver com os outros e dividir tudo com eles. É impossível cada qual ficar no seu canto e fechar os olhos a tudo o que acontece em derredor.

Pensei em Marianne. Era isso que ela queria que eu fizesse: meter-me num canto e não tomar conhecimento do resto do mundo. Eu a havia deixado porque não concordava com isso. Ou teria apenas trocado um canto por outro?

Mas Gerro havia acreditado nas mesmas coisas em que Ruth acreditava. Pensava e vivia de acordo com os seus ideais e qual o re­sultado que isso lhe tinha dado? Eu sabia mais do que qualquer deles o que era que eu queria. E ia conseguir tudo o que queria ao meu modo.

Levantei-me, dei alguns passos e encarei ambos.

—        Não compreendo o ponto de vista de vocês e vocês não compreendem o meu —, disse calmamente.

Ruth levantou-se do sofá e se aproximou de mim.

—        Mas, querido —, disse ela, com os olhos fitos nos meus —, compreendemos perfeitamente o que você diz. Achamos apenas que você está errado porque isso não dará resultado.

Nada disse.

Ela se voltou para o irmão com um gesto desalentado.

—        Marty, por favor, faça-o compreender Marty olhou-nos e de repente se levantou e disse:

—        Vou descer um instante. Parece que a questão tem de ser re­solvida entre vocês dois. Não se trata mais de saber quem tem razão ou quem está errado. É uma questão de saber quem ama mais o outro e quem está disposto a ceder mais.

Saiu. Ruth olhou para mim. Aproximei-me dela, tomei-a nos braços e beijei-a. Ela não correspondeu ao meu beijo. Beijei-lhe os olhos, os cabelos, as faces, o pescoço e a boca. Levei-a para o sofá e continuei a beijá-la impetuosamente, brutalmente. Os meus beijos deixavam-lhe marcas na pele.

De repente, ela me beijou também. Olhei-a. Estava com os o-lhos semicerrados e a boca trêmula. Abraçava-a com força e podia sentir o desejo que lhe fazia tremer o corpo.

—        Amo-a, Ruth —, murmurei.

Ela fechou os olhos e tornou a beijar-me.

—        Quero você —, disse eu, continuando a beijá-la. — Preciso de você. Não deixe que nada se levante entre nós dois.

A respiração dela era ofegante. Podia sentir-lhe os dentes pe­quenos e brancos nos lábios enquanto ela me beijava. Guiou-me a cabeça com as mãos para o seu seio e deixou-a repousar ali.

Ela tremia nos meus braços com os olhos úmidos e a boca en-treaberta.

—        Ruth!

Ela me olhou. As lágrimas lhe brilhavam nos cantos dos olhos como pequenos diamantes. Havia neles amor e também compaixão, compreensão e desejo. Quase imperceptivelmente, ela sacudiu a ca­beça.

—        Não, querido — disse ela docemente —, não é esse o cami­nho.

Enterrei o rosto na sua carne cheirosa.

Quero você, Ruth!

Quero você também, Frank, mas não apenas assim. Quero você de verdade, pelo resto da vida e não por minutos. — Beijou-me de novo apaixonadamente e perguntou: — Compreende, querido?

Olhei-a por um momento e levantei-me. Procurei automatica­mente um cigarro no bolso. Compreendia, sim.

Tinha de ser de acordo com as regras dela ou nada feito.

Ela me olhava fixamente enquanto eu acendia o cigarro. Creio que leu os meus pensamentos porque se levantou, chegou perto de mim e perguntou:

Não compreende, não é?

Não, não compreendo —, disse eu, quase com revolta. — Não posso entender a diferença que isso faria para você, se me tivesse suficiente amor. Seria melhor para nós que eu fosse um gari da rua?

Talvez ajudasse. Não é o que você é, Frankie, é o que você faz. Você tem de fazer coisas cruéis e baixas. Tem de ser duro e im­piedoso. Não é possível fazer essas coisas durante o dia e ser uma pessoa diferente á noite. Com o tempo, as duas coisas se confundirão e você acabará sendo apenas o que faz.

Comecei a responder-lhe para dizer que ela estava totalmente enganada, mas nisso Marty bateu eu lhe abri a porta.

Marty olhou para Ruth e depois para mim. A pergunta que não fez foi respondida pelos nossos atos. Não me deu mais conselhos. Sabia quando devia ficar calado. Os dois saíram alguns minutos de­pois e me deixaram sozinho no apartamento.

Pensei no que Ruth havia dito e no que e sentia por mim. Ela devia saber que não se podia largar uma posição boa como a que eu havia alcançado com a mesma facilidade com que se deixa um livro que se está lendo. Muito dependia daquilo. Eu trabalhara terrivel­mente para chegar até ali. E não ia abrir mão de tudo por mulher ne­nhuma — nem mesmo tratando-se de Ruth.

Mas aquilo me estragara sem dúvida alguma o dia. Para mim, não havia mais primavera.

Os meses seguintes foram surpreendentemente bons para mim. Os rapazes estavam tendo cuidado e Fennelli comportava-se bem. Os negócios iam muito bem e eu tirava para mim o dinheiro que podia. Não me iludia. Aquilo não ia durar para sempre, mas eu tinha de ar­rancar o mais que pudesse.

Só em fins de maio é que aconteceu alguma coisa fora do co­mum. E de uma maneira que eu nunca havia esperado. Eram quase quatro horas da tarde. O dia tinha sido um pouco agitado e eu estava bem cansado. De repente, o interfone tocou. Liguei a chave.

Que é?

O Sr. Moscowits quer falar com o senhor

Mande- entrar, Miss Walsh, —, disse eu, desligando e pen­sando no que ele poderia querer comigo.

Ele entrou, desajeitado como sempre. Levantei-me sorrindo, apertei-lhe a mão e nós nos sentamos.

—        Que é que há, Moishe?

Entrou diretamente no assunto. Era uma coisa que me agradava nele. Era da velha guarda dos jogadores, um daqueles homens anti­gos que cumpriam a sua palavra e que procediam corretamente à sua maneira. Nada havia de falso nele.

—        Frank, vou deixar dessa vida.

Olhei-o em silêncio durante alguns instantes. Depois, acendi um cigarro e perguntei:

Por quê?

Não é porque esteja com medo. Nada disso! Mas já estou fi­cando velho demais para essa vida. É uma tensão muito grande para mim. Gostaria de ir para bem longe com minha patroa e viver ainda alguns anos sem preocupações.

Fiquei ali olhando-o, sem saber o que fazer. Não era uma oca­sião propícia para que eu deixasse ninguém sair. Não seria bom para os outros se eu consentisse no afastamento dele. Pensariam que eu estava ficando sem fibra. Mas, afinal de contas, uma pessoa tinha to­do o direito de fazer o que quisesse e eu sabia que ele procederia corretamente e não diria uma palavra a nosso respeito. Empurrei em silêncio uma caixa de charutos para ele.

Ele aceitou um charuto e acendeu-o. Disse-lhe então:

—        Sabe como os outros vão reagir a isso, não sabe? Ele assentiu com gravidade.

Pensarão que você está com medo e irá abrir a boca e contar tudo.

Eles me conhecem demais e não poderão pensar uma coisa dessas, Frank. Moishe Moscowits nunca traiu ninguém em toda a sua vida e não iria começar aos sessenta e dois anos de idade.

Não sabia que ele era tão velho. Ficamos de novo em silêncio. Virei a cadeira para a janela.

E que é que vamos fazer com o seu território? — perguntei, de costas para ele.

Pode dividi-lo entre os outros.

E sua parte do bolo?

Pode ficar também com ela se for preciso

Moishe não estava hesitando em usar um pouco de suborno pa­ra conseguir o que queria. Calculei rapidamente. A parte dele andava nuns cem mil dólares.

Para onde pretende ir? — perguntei. Sabia que ele tinha uma pequena propriedade na Califórnia e queria saber se ele diria a ver­dade. Disse.

Tenho uma fazendola na Califórnia. Posso ir viver ali em paz, como minha mulher deseja.

Virei a cadeira e olhei para ele.

Quando tenciona ir?

Logo que você concordar.

Fiquei pensando e ele, alguns instantes depois, falou:

—        Frank, que é que adianta ter dinheiro e não poder gozá-lo? Te­nho dinheiro de sobra, mas aqui não posso gozá-lo. Os problemas, os trabalhos, as dores de cabeça não param. Quero um pouco de paz no fim da vida.

Tomei uma decisão. fie tinha direito a um pouco de paz na sua idade e ia tê-la.

—        Está bem, Moishe. Pode ir.

Era capaz de jurar que as lágrimas lhe chegaram aos olhos, mas ele se controlou muito bem. Apenas não dominou o tremor que lhe transpareceu na voz quando me disse com uma espécie de alegria contida:

—        Obrigado, muito obrigado.

—        Saia da cidade lá para o fim da semana —, disse-lhe eu. — Não diga nada a ninguém. Não quero que nenhum dos outros saiba disso até eu dizer e eu só direi depois de você ir-se embora.

Liguei o telefone para Mackson. Era o camarada que estava no lugar de Joe.

—        Em quanto está o bolo agora?

—        Um milhão e cento e dez mil, Sr. Kane —, respondeu ele. Assim era mais fácil.

—        Faça um cheque pagável a Moishe Moscowits de cento e dez mil dólares e mande-o aqui para mim agora.

Quando desliguei, os olhos de Moishe estavam brilhando.

—        Se você precisa do dinheiro, eu posso esperar, Frank. Sacudi a cabeça.

—        Você sempre pagou a sua quota. Tem o direito de levar o que é seu.

Mackson chegou com o cheque. Recebi-o, assinei-o e entre­guei-o a Moishe. Ele me agradeceu e eu ainda dei um conselho.

—        Não converse com ninguém sobre isso, Moishe. Deixe o seu apartamento como está. Não venda nada e não leve muita coisa com você. Tome o seu carro com duas ou três malas apenas e saia como se fosse passar o fim-de-semana fora. Quero que desapareça e deixe o resto comigo.

Apertamo-nos as mãos e eu o levei até à porta. Foi então que ele me disse:

—        Frank, meu filho, aceite um conselho de um velho. Saia disso enquanto você ainda pode. Você é um bom rapaz e muito in­ teligente. Vivi muito mais do que você e sei o que lhe digo. São poucos entre nós os que saem quando querem. Em geral, vamos fi­ cando enquanto somos moços. E quando mais se fica, mais difícil é sair. Fica-se cada vez com mais vontade de ganhar dinheiro e quase sempre recebe-se como saldo de tudo uma bala. Se fosse qualquer outro que não você, eu não poderia fazer o que estou fazendo. Não deixe ninguém impedi-lo de sair, porque no fim só lhe vão pagar com chumbo.

Interrompi-o com uma risada.

Não se preocupe comigo, Moishe. Faça o que eu lhe disse.

Vou fazer, Frank —, disse ele e saiu.

Voltei para a minha mesa e sentei-me. Não ia ser fácil conven­cer os outros de que eu tinha agido direito. Mas que fossem para o diabo!

Um homem tem o direito de acabar a sua vida em paz.

Alguns dias depois, Silk apareceu no escritório. Sentou-se na cadeira diante da minha mesa. Entrou logo no assunto.

Andam dizendo que Moscowits quer dar o fora.

Também soube — disse eu.

Se ele queria despertar meu interesse, não ia conseguir. Ele continuou:

Para dizer a verdade, Frank, alguns dos companheiros andam dizendo que você sabe de tudo e que ele conta com a sua aprovação.

Todo mundo só faz as coisas com a minha aprovação.

Não estão gostando disso, Frank. Dizem que você está co­meçando a fraquejar.

Ri e perguntei:

—        E você o que é que diz, Silk?

Ele devia saber. Tentara duas vezes levar-me à parede e ainda estava longe de conseguir alguma coisa. Não respondeu.

Ficamos em silêncio alguns minutos enquanto eu mexia em al­guns papéis na minha mesa. Por fim, olhei-o.

—        Se era só isso que me queria dizer, Silk, pode ir saindo.Não lhe dei nem a confiança de dizer que estava ocupado.

Bem, pensei que devia dizer-lhe o que os outros andam pen­ sando, Frank. E se é verdade, eles não vão gostar.

Sei o que estão dizendo, Silk. E sei muito antes de você. Sei também quem é que está dizendo e, se eu fosse você, mandaria botar um fecho no lugar que lhe serve de boca que é para que alguém não a feche para você — com agulha e linha!

Por um breve instante, ele se deu o prazer de deixar o ódio que tinha de mim se mostrar nos seus olhos. Mas só por um segun­do. Era uma coisa muito custosa para que ele se entregasse demais a ela. Baixou os olhos e voltou ao normal. Deu-me um adeus afeta­do e disse:

—        Está muito bem. Depois não diga que eu não o avisei. E saiu do escritório.

Corri para o telefone e pedi à telefonista que procurasse Mos­cowits. Não estava no clube. Disse-lhe que ligasse para a casa dele. Foi uma voz de mulher com um leve sotaque judeu que atendeu.

—        Alô?

O Sr. Moscowits está? — perguntei.

Não, não está.

É Frank Kane quem fala. Sabe onde poderei encontrá-lo?

Não sei não, Sr. Kane. E estou muito preocupada porque ele não voltou para casa ontem à noite.

É a Sra. Moscowits que fala?

Sou eu, sim Sr. Kane. E estou preocupada. Moishe sempre telefona me avisando quando não pode vir para casa.

Disse-lhe para onde ia quando saiu de casa?

Disse que ia ao centro para encontrar-se com dois dos com­panheiros. Isso foi ontem à tarde.

Pensei um momento. Silk devia estar com Moscowits detido em algum lugar, pois do contrário não iria falar comigo.

Está bem. Não fique mais preocupada. Ele com certeza está resolvendo algum negócio importante e não pôde telefonar. Vou procurá-lo e dizer-lhe que lhe telefone.

Obrigada, Sr. Kane.

Não há de quê. Até logo.

Desliguei e virei-me para a janela. Estava um dia lindo e claro e podiam-se ver até os carros que passavam do outro lado do Hudson.

Seria possível? Silk me armara mais uma e eu precisava de muita sorte para me sair bem dessa vez. Se dessem fim em Moishe sem eu conseguir impedi-los, meu domínio sobre eles iria por água abaixo. Silk sabia muito bem disso.

O telefone tocou. Atendi mais que depressa

O Sr. Price ao telefone — disse-me Miss Walsh.

Pode ligar.

Alô, Frank —, disse Joe do outro lado do fio.

Como vai, Joe?

Muito bem

Como vão as coisas?

Foi por isso mesmo que lhe telefonei. A fábrica de eletrolas automáticas vai-se transformar numa mina de ouro, sabe? Um inspe­tor do governo e alguns oficiais do exército acabaram de fazer uma inspeção na fábrica e querem que assinemos um contrato com o go­verno para fabricar material de rádio.

Vamos gastar muito com isso?

Nem um centavo, Frank O governo vai financiar tudo. Faz parte do programa de defesa nacional. Eles darão o dinheiro para a conversão. Nós nos limitaremos a produzir o material e embolsar os lucros.

Eu tinha outras coisas em que pensar e não podia estar perden­do tempo com aquilo.

Escute aqui, Joe. Estou de serviço até o pescoço. Faça o que você achar que está certo. Depois conversaremos sobre isso.

A coisa me parece excelente, Frank. A guerra vem aí e com esse contrato estaremos com uma boa dianteira sobre os con­correntes.

OK, OK! — disse eu. — Faça o que quiser, Joe!

Que me importava lá a outra guerra, quando eu estava metido na minha guerra particular? Liguei para Miss Walsh.

—        Não estou para mais ninguém hoje, compreendeu?

Atraquei-me então ao telefone. Tinha de saber para onde ti­nham levado Moscowits antes que dessem cabo dele. E se dessem cabo dele, eu queria aquele cheque antes que eles o pegassem. Eu sabia que ele só iria depositá-lo depois de chegar à Califórnia e não queria arriscar-me.

Às quatro horas da tarde, sabia onde ele estava. Tinham-no le­vado para uma garagem na Décima Segunda Avenida. Fennelli ia vê-lo com alguns dos rapazes às dez horas da noite. Eu tinha de estar lá antes deles.

Telefonei pedindo o meu carro. Desci às seis horas, jantei e de­pois fui no carro para Nova York. Tinha algum tempo livre até às oi­to e meia e, num impulso, fui até à casa de Ruth.

Subi no elevador e toquei a campainha do apartamento. Foi ela que me abriu a porta. Ficou um momento parada a olhar-me.

Nada pude dizer também. Queria dizer alguma coisa, como perguntar por Marty, mas não podia. Bastava-me olhar para ela e fi­cava assim.

Ela se afastou da porta ainda calada e eu entrei. Beijei logo que a porta se fechou.

—        Alô, Ruth.

Ela recuou um pouco.

Que veio fazer aqui?

Vim ver você —, disse eu. Não sabia até àquele momento o que isso representava para mim, mas, depois que falei, fiquei sabendo.

Ela se dirigiu para a sala. Joguei o chapéu e o sobretudo em cima de uma cadeira e acompanhei-a. Ela apanhou um cigarro numa caixa em cima da mesinha de café e acendeu-o lenta e deliberada-mente. Sabia que me tinha nas mãos e ia aproveitar o momento.

Arranquei-lhe o cigarro da mão, apaguei-o no cinzeiro e tomei-a nos braços. Ela não correspondeu ao meu abraço. Beijei-a.

—        Ruth!

Ela não pôde mais. Levantou a mão para afagar-me o rosto e pousou a cabeça no meu ombro.

—        Mude de idéia, querida — murmurei. — Não podemos con­tinuar assim.

Ela me interrompeu com um beijo. Abracei-a mais e senti-lhe o palpitar do coração. Beijou-me de novo.

—        Não, meu bem...

Levei-a para o sofá. Beijamo-nos de novo. Sentia que a pressão era cada vez mais forte nela. Os lábios dela estavam frios ao contato, mas ardiam com promessas. Tudo começou a girar em torno de nós. De repente, ela começou a chorar no meu ombro. Ouvi-lhe a voz en­tre os soluços.

Frank, temos de parar. Já passamos por isso uma vez.

As coisas cessaram o seu giro alucinado. Levantei-me e peguei um cigarro com os dedos trêmulos. Ela me olhava com os olhos cheios de lágrimas. Sentei-me e passei o braço pelos ombros dela. Eu já estava bem. Ela descansou a cabeça no meu ombro.

—        Ruth, quer-se casar comigo agora... ainda esta noite?

Quase não reconheci a voz com que disse isso. Havia nela um tom de súplica e de desejo que era coisa inteiramente nova para mim.

Ela não respondeu imediatamente. Procurou durante alguns mi­nutos conter os soluços e então disse:

Quero-o tanto, meu amor.

Vai casar-se comigo?

Ela me olhou no fundo dos olhos e disse

Não posso.

Mas não acabou de dizer...

Quem você, sim, Frankie. Mas quero você para sempre! Olhei-a. As luzes da sala não estavam acesas e o rosto dela na penumbra era um camafeu branco. Peguei-lhe então o rosto com as duas mãos, sentindo a pele macia.

Nesse momento, fiz uma promessa — a primeira de minha vida!

Amo-a, querida. E você não terá de esperar muito pelo que deseja. Vai ser uma noiva de junho.

Não me está mentindo, Frank?

A você não mentiria nunca!

Ainda não posso acreditar que seja verdade! — disse ela, emocionada.

Beijei-a e disse:

—        Pode acreditar, querida!

Sai de lá exatamente às oito e meia.

Estacionei o carro a duas ruas da garagem e fiz a pé o resto do caminho. Era uma zona que eu conhecia bem. Havia-me criado ali. Tudo aquilo fazia parte do território que eu havia coberto muitos a-nos antes para Keough. Às noites, aquilo ficava deserto.

A garagem ocupava cerca de meio quarteirão na rua que descia para o rio e um quarto do quarteirão na parte que dava para a aveni­da. Havia um grande portão central na frente, que estava com as por­tas de aço descidas e trancada e outra entrada por uma espécie de travessa do lado do prédio.

Meti as mãos nos bolsos. Com uma delas, segurava a automáti­ca que havia pegado ao sair do escritório, na outra, uma pequena lan­terna elétrica que apanhara no carro. Passei uma vez pela garagem. Não havia sinal de vida lá dentro. Na volta, entrei pela travessa. Es­tava escuro, escuro de verdade. Eu não enxergava meio metro à mi­nha frente. Com a mão na parede, fui até ao fim da travessa. Não queria acender a lanterna, pois isso poderia chamar a atenção de quem estivesse dentro da garagem. Procurava caminhar sem fazer barulho, mas os meus passos ressoavam no silêncio. Senti o coração bater um pouco. A respiração era entrecortada e eu sentia a testa ba­nhada de suor, embora não estivesse fazendo muito calor.

Senti com a mão uma abertura na parede. Era uma porta. Um leve toque mostrou que estava trancada. Continuei com a mão encos­tada à parede e parei diante de uma porta de madeira. A noite estava escura e eu nada podia ver. Estendi a mão para cima o mais que me era possível, mas não alcancei o alto da porta. Procurei alguma bre­cha na parede e não a encontrei. A parede era lisa e se estendia até o prédio no outro lado da travessa. Tornei a descer a travessa, ainda com a mão na parede. No meio do caminho para a rua havia uma porta; os olhos estavam mais habituados à escuridão e eu podia ver melhor

Experimentei a porta. Estava trancada. Olhei para a fechadura. Parecia que uma chave de modelo antigo seria capaz de abri-la .Eu tinha uma dessas chaves na minha penca. Tirei-a e meti-a na fecha­dura. Rodei-a na fechadura. Esta rangeu um pouco, mas a chave deu toda a volta, abrindo a porta.

Entrei na escuridão do prédio, fechei a porta e tranquei-a. De­pois, tirei a lanterna e acendi-a. Estava numa espécie de depósito. Havia ali grandes caixas de madeira empilhadas. Conservei a luz da lanterna voltada para o chão, a fim de que ninguém pudesse vê-la do lado de fora pelas janelas — se havia janelas. Fui até aos fundos do depósito. Havia uma porta e eu saí por ela para uma espécie de plata­forma de carga ao lado de um desvio de estrada de ferro, onde havia alguns vagões de carga.

Olhei para a garagem. Os trilhos passavam perto dela ao lado de uma cerca. Os vagões estavam perto da cerca. Subi no vagão mais próximo da plataforma, atravessei-o no teto até chegar bem atrás da garagem. Desci então pela escada do vagão até chegar ao nível do al­to da cerca. Olhei de novo para a garagem ainda na escada.

A garagem tinha duas janelas com as vidraças pintadas de pre­to, mas alguma luz se filtrava através de arranhões na tinta. Havia também uma porta. Larguei a escada do vagão e caí do lado de den­tro da cerca. Cheguei ao chão sem fazer barulho. Depois, levantei-me e fui até à porta. Havia alguns grandes tambores de óleo do lado de fora nos fundos da garagem. Contornei os tambores, levei à mão à porta e empurrei-a de leve. A porta se abriu.

Estava escuro lá dentro, mas havia uma luz de algum ponto à esquerda. Encaminhei-me para onde estava a luz, pisando bem de le­ve. Havia ali grandes carros de reboque e, enquanto eu não passasse por eles, não podia ver de onde vinha a luz. Vi, afinal.

Vinha de um pequeno escritório num canto da garagem. Três homens estavam ali, sentados a uma mesa, jogando cartas. Um deles era Moishe. Não pude reconhecer os outros dois, pois estavam um pouco de costas para mim. Corri os olhos pelo espaço aberto que ha­via entre o escritório e o ponto onde eu estava. Se eu o atravessasse diretamente, eles poderiam ouvir alguma coisa e virar-se ou talvez Moishe me visse e me denunciasse sem querer, olhando-me.

Meti-me entre os reboques até chegar à parede e segui então para o escritório colado à parede. Assim, teria apenas alguns metros de espaço aberto para atravessar a fim de chegar ao escritório. Tinha de arriscar-me nesse ponto e não podia deixar de fazê-lo.

Moishe foi o primeiro que me viu. Nem bateu as pestanas. Jo­gou três cartas em cima da mesa e disse:

—        Quero três

Um dos homens disse

Já viu a sorte desse camarada? Vai ao jogo com um par e ganha sempre. Estou quase liso.

Que importância tem isso? — resmungou o outro. — Ele não vai precisar de dinheiro no lugar para onde vai. De qualquer ma­neira, nós é que vamos ganhar.

O primeiro homem riu.

—        Tem razão, Flix. Eu não havia pensado nisso.

Moishe pegou as três cartas que havia pedido e começou a cho­rá-las. Nessa hora, eu já estava na porta.

Falei em voz baixa, com as mãos nos bolsos do casaco.

—        Deixe que eu acabo o jogo por você, Moishe.

Moishe levantou os olhos e sorriu. Os dois homens se voltaram rapidamente para a porta. Reconheci um deles, o que se chamava Flix. Fora o camarada que me levara para a cidade daquela vez a mando de Silk. Moveu-se com rapidez, estendendo a mão para a pis­tola que estava em cima da mesa.

Moishe foi mais rápido e apanhou a pistola.

Olhei firmemente para Flix. Falava ainda com voz baixa. Tirei as mãos dos bolsos sem trazer nada.

—        Entregue-lhe a pistola, Moishe —, disse eu. — Esse cama­rada pensa que é muito valente.

Moishe olhou para mim como se me julgasse louco. Depois, es­tendeu a pistola para Flix, que parecia ter-se imobilizado como uma estátua, de olhos voltados para mim.

—        Pegue a pistola, Flix —, disse eu. — Está com vergonha?

Tirou os olhos de mim, e desceu as mãos para bem longe da pistola que Moishe lhe estendia. Aproximei-me dele com as mãos ainda vazias. Flix ainda estava sentado, com o corpo um pouco en-curvado na cadeira.

—        Então, como é, valentão? Sem uma arma na mão você não é tão disposto assim, hem?

Ele não respondeu.

Agarrei-o pela gola do paletó e fi-lo levantar-se. Ficou ali à mi­nha frente com o corpo meio dobrado. Levantei o joelho com toda a força por entre as pernas dele e ele se dobrou ainda mais. Dei-lhe en­tão um soco no rosto e ele foi ao chão. Dei-lhe ainda um pontapé e ele nem se moveu.

Voltei-me para o outro homem.

—        Levante-o e sente-o numa cadeira.

O homem olhava para mim, branco como cera. Parecia incapaz de qualquer movimento.

—        Não ouviu? — gritei-lhe de súbito.

O homem deu um pulo e obedeceu. Colocou Flix na cadeira e voltou-se para mim. Flix estava meio sentado na cadeira, meio caído por cima da mesa. Não estava sem sentidos, mas não podia mover-se.

Só então Moishe falou.

Pensei a principio que fosse você, Frank.

Sei o que você pensou — repliquei calmamente —, mas eu lhe tinha dado a minha palavra.

Agora eu sei, Frank.

Está bem, Moishe. De qualquer modo, isso é assunto encer­rado e não interessa mais. Vá logo para casa que sua mulher está muito preocupada. Logo que chegar lá, inicie a sua viagem.

Fui para uma cadeira e sentei-me.

Que é que vai fazer? — perguntou ele.

Não disse? Vou acabar o seu jogo.

Peguei as cartas dele. Estava com sorte mesmo. Tinha um straight flush em espadas.

Vi Moishe sair. Da porta, voltou-se e ainda me deu adeus. O-lhei para os dois pistoleiros. Flix estava começando a mostrar algum interesse pelas coisas. Levantou a cabeça.

Há quanto tempo trabalha para Fennelli? — perguntei-lhe.

Não sei de quem é que está falando.

Quem foi que lhe disse então que pegasse Moscowits?

Um camarada me passou quinhentos dólares e apontou-me o homem.

Não me venha com conversa fiada! Um camarada escolado como você não iria fazer um serviço desses sem cobertura.

Ele não respondeu.

Quem foi que tirou você da cadeia depois daquele caso com o Procurador?

Meu advogado.

Ficamos ali em silêncio a olhar-nos. Flix estava remoendo al­guma coisa na cabeça. Bastava olhá-lo pata ver que não tardaria multo a dizer o que era. Eu tinha apenas de esperar.

Esperei menos do que pensava. De repente, os olhos dele fais-caram e ele perguntou:

—        Por que foi que mandou matar minha irmã? Sorri, sabendo que ele não ia gostar do meu sorriso.

—        Não a mandei matar e não sabia que era sua irmã. Mas, se ela era a sua irmã, para que foi que você a meteu naquela sujeira?

Ele não respondeu.

—        Não mandei matar sua irmã, mas sei quem foi que mandou. Quem sabe se não podemos trocar algumas informações?

Ele pensou um pouco e respondeu:

—        É possível.

Aquilo estava começando a ficar interessante e eu disse:

—        E então? Comece a falar.

Ele abriu a boca, mas um estalo na porta da frente o fez calar-se. Virou a cabeça para o lado e escutou. Eu também estava escutan­do. Ouvi vozes na porta. Recuei um pouco de perto da luz e tirei a pistola. Levei o dedo aos lábios. As vozes se aproximaram.

Vi quem eram: Fennelli, Riordan e Taylor. Precisavam de mais alguns homens e teriam quorum para uma reunião do grupo. Vinham conversando e entraram na sala.

Flix se voltara para esperá-los. O outro ainda estava jogado em cima de uma cadeira, Não sabia nem o que fazer de tão amedrontado que estava.

Fennelli não me viu logo, pois eu estava bem longe da luz.

—        Moishe —, murmurou ele.

Apareci de repente diante dele ainda de pistola em punho.

—        Moishe teve de sair da cidade — disse eu —, e eu fiquei no lugar dele.

Silk nem bateu as pestanas.

—        Olá, Frank Que bom encontrá-lo aqui. Passei a tarde toda à sua procura. Moishe estava tentando fugir.

Sorri. Aquilo era quase engraçado

Você estava então tentando segurá-lo para mim?

Exatamente.

E trouxe dois companheiros pan vigiá-lo quando não pôde encontrar-me?

Isso mesmo, Frank

Tudo mentira do principio ao fim! Ele mandara pegar Moishe desde a noite anterior e estivera comigo naquela manhã. Tivera tem­po de sobra para ser correto comigo. Fiquei em silêncio.

Ele começou a vacilar um pouco. Correu os olhos pelo escritório. Eu continuava a olhá-lo. De repente, fiz uma coisa que estava com vontade de fazer havia várias semanas. Virei a pistola e bati com ela com toda a força no rosto dele. Ele caiu de joelhos pro curando al­cançar com as mãos a cava do casaco.

Esperei que ele tirasse a pistola para então jogá-lo longe com um pontapé. file ficou com os olhos voltados para mim e o rosto muito branco. Passei por ele, apanhei a pistola no chão e guardei-a no bolso.

Dei a volta pela mesa, sentei-me numa cadeira e olhei para Ri-ordan e Taylor.

Qual é a participação de vocês dois nisso?

Não sabemos nada desse caso, Frank —, respondeu Taylor.

— Silk nos disse que tinha uma coisa para nos mostrar.

Parecia estar dizendo a verdade.

Sentem-se — disse. — Temos o que conversar. Sentaram-se. Olhei para Silk, que ainda estava no chão, e disse:

Você também!

Ele se levantou e sentou-se numa cadeira.

Flix estava de pé atrás de Fennelli. Olhei-o e disse:

—        Flix ia-me dizer alguma coisa quando vocês chegaram. Flix ficou calado. Olhei para ele.

—        Eu lhe disse que sabia quem havia mandado matar sua irmã.

Só uma pessoa além de nós dois sabia do que aconteceu naquela noi­te em que você preparou a cilada contra mim. Foi Fennelli. Fui à ca­sa dele logo depois que tudo aconteceu e contei-lhe a história, ele me prometeu ficar atento para ver quem tinha feito isso. Preciso dizer mais alguma coisa?

Flix me olhou desvairadamente. De repente, colocou as mãos em torno do pescoço de Fennelli e começou a estrangulá-lo.

Silk procurou desesperada, mas inutilmente livrar-se. Fiquei calmamente olhando. O rosto de Silk ficou vermelho. Foi pouco a pouco debatendo-se menos, à medida que o rosto se arroxeava.

Achei que Flix já tinha ido longe demais. Não queria que ele matasse o outro, mas apenas que lhe desse um ensino.

—        OK, Flix —, disse eu. — Chega.

Mas ele não me ouviu e continuou a apertar o pescoço de Silk. Apontei a pistola para Flix e disse-lhe:

—        Estou dizendo que chega!

Flix tirou as mãos e ficou ali olhando para Silk, cheio de raiva. Silk caíra com o corpo em cima da mesa. Estava desacordado.

—        Vá buscar água para Silk —, disse eu a Taylor.

Ele se levantou, foi até um gelador de água num canto e trouxe um copo de papel cheio para Silk. Ficou então ali olhando-me sem saber o que fazer.

Olhei para Taylor e sorri. Levantei-me, fui até ao bebedor, tirei o garrafão de água e joguei quase tudo em cima de Silk.

Ele voltou a si quando sentiu o impacto da água. Murmurou al­gumas coisas ininteligíveis, pois a garganta estava muito dolorida para que pudesse falar. As roupas estavam ensopadas, mas o corpo se aprumou na cadeira.

Depositei no chão o garrafão de água e disse calmamente:

—        Quero que prestem atenção ao que vou dizer. Dei permissão a Moishe para retirar-se da organização. Quando vocês chegarem à idade dele, o que só acontecerá se procederem corretamente comigo, poderão retirar-se também. Terão esse direito. Mas até lá é bom que não se esqueçam de quem é que manda.

Nada disseram e eu acrescentei.

—        Agora, vão saindo e levem Silk a um médico. Não quero que ele pegue um resfriado ou coisa parecida.

O homem que estava com Flix foi o primeiro a sair. Os outros o seguiram segundos depois, isto é, todos menos Flix, que ficou para­do diante de mim.

—        Que é que você quer? — perguntei-lhe.

Sorriu de repente. Não havia muito calor naquele sorriso, mas havia respeito.

O senhor é um bocado valente —, disse ele.

Ora, há muita gente assim.

Como o senhor, bem poucos.

Ele estava querendo alguma coisa. Eu não sabia o que era, mas não ia perguntar. Se ele quisesse, tinha de pedir.

—        Estou querendo uma oportunidade —, disse ele, afinal.

Joguei a pistola dele em cima da mesa, ele apanhou-a, guardou-

a e continuou a olhar-me.

Comecei a pensar rapidamente. Estava na hora para mim de uti­lizar os préstimos de um camarada como aquele. Havia muitas coisas em jogo com as quais eu tinha de ter cuidado. Falei lentamente.

—        Preciso de alguém que não perca a cabeça e que não deixe os sentimentos pessoais interferirem com a sua ação.

Não perco a cabeça. Faço o que me mandam. É o meu lema.

Sorri. Aquilo ia dar a Silk motivos para pensar.

Está empregado, disse eu

Por duzentos dólares semanais, eu tinha um guarda-costas.

Na manhã seguinte, telefonei para Joe Price.

—        Joe — disse eu quando ê atendeu — estava ontem todo atra­palhado quando você telefonou. Quero que fale de novo sobre a tran­sação que você mencionou.

Joe repetiu a proposta. Escutei atentamente e me pareceu bem.

Você tem de ficar aí durante algum tempo, não é? — per­guntei.

Devo ficar. Mas por quê? Há alguma coisa?

Não. Mas quero que faça um serviço para mim e gostaria de tê-lo aqui agora.

Estarei aí no domingo — disse ele. Joe era ótimo! Não fazia nem perguntas.

Muito bem, Joe. Vá falar comigo no hotel logo que chegar. Desliguei o telefone e toquei a cigarra. Miss Walsh atendeu.

Mande Powell aqui.

Flix apareceu na porta. Era a primeira vez que entrava no escri­tório. Correu os olhos por tudo e eu vi que tinha ficado impressiona­do. Disse-lhe que se sentasse e perguntei:

—        Como se está sentindo?

O rosto ainda estava inchado, mas ele sorriu.

—        Mais ou menos.

Ouviu em silêncio o que eu lhe dizia que queria. Dali por dian­te, qualquer pessoa que quisesse falar comigo teria de vê-lo antes, no escritório e em casa. Havia providenciado com o hotel para dar-lhe um quarto ao lado do meu apartamento e para encaminhar a ele quem me fosse ver, ainda que tivesse falado antes comigo. No escri­tório, ele se sentaria numa cadeira perto da mesa de Miss Walsh que ficava bem em frente à minha porta.

Quando acabei, perguntei se tinha alguma pergunta a fazer. Disse-me que não e eu o mandei embora. Recostei-me um momento na cadeira pensando. Conhecendo Silk como conhecia, sabia que ele tentaria liquidar-me na primeira oportunidade. E tomaria todas as providências para dessa vez não falhar. A única maneira que eu tinha de continuar vivo era estar um passo à frente dele... ou liquidá-lo an­tes. E isso eu não queria fazer. Os meus planos em relação ao ca­chorro eram outros.

Disquei para Ruth no telefone de ligação direta.

Ela atendeu

Alô?

Alô, querida. Não pude deixar de telefonar-lhe. Tinha de ouvir a sua voz.

Ela riu pelo telefone.

—        Queria falar com você também para pedir-lhe que me repe­tisse aquilo que me disse ontem à noite. Ainda não posso acreditar que esteja falando a sério.

Estou, sim, meu bem. Amo-a. Recebeu minhas flores? Tinha-lhe mandado naquela manhã uma caixa de orquídeas.

Recebi, sim. Achei lindas.

Mais algumas palavras e desligamos. Sentia-me muito bem dis­posto e ataquei o trabalho que tinha em cima da mesa, cantarolando.

Fui vê-la naquela noite. Flix deve ter ficado muito aborrecido de me esperar no carro até às duas da madrugada, mas nada me disse quando eu finalmente apareci.

No domingo, Price chegou ao meu apartamento às onze horas da manhã. Olhou para mim cheio de curiosidade quando entrou a-companhado de Flix. Disse a este que não precisava mais dele e, quando ele saiu, contei a Price tudo o que havia acontecido.

—        Ah, agora compreendo por que estava ocupadíssimo —, dis­se ele. — Que é que quer que eu faça?

Despejei toda a carga em cima dele.

—        Quero largar tudo isso. Não vai mais durar muito e eu tenho outros planos. Acha que pode arrumar a escrita e os arquivos de mo­ do que meu nome não apareça em lugar algum a não ser na porta?

Ele pensou um momento e fez um gesto de assentimento.

Quanto tempo levaria?

Algumas semanas de trabalho noite e dia. Mas teríamos de colocar outro nome no lugar do seu, pois do contrário tudo seria muito suspeito.

Já pensei em tudo. Coloque o nome de Fennelli.

Não compreendo, Frank. Como é que Fennelli vai figurar nisso? Pensei que ele estava querendo eliminá-lo.

E quer mesmo. Mas quer a organização também e eu vou fazer-lhe presente dela. Apenas ele ainda não sabe disso.

Está bem. Isso tudo é muito complicado para mim, mas vou fazer o serviço. Quando quer que eu comece?

Hoje. Depois de almoçarmos.

Deixei Joe Price no escritório para que ele desse uma vista de olhos nas coisas. Depois, fui pegar Ruth no apartamento dela.

—        Que tal um passeio no campo?

Ela aceitou o convite e foi pegar o chapéu e o casaco. Fiquei pensando no que ela diria quando visse Flix. Eu teria de explicar-lhe o fato com jeito para que ela não se preocupasse demais. Mas pas­samos uma ótima tarde.

Fomos até â Montanha do Urso, jantamos numa hospedaria das vizinhanças e depois voltamos calmamente para a cidade.

Foi só no dia 10 de junho que Joe entrou no meu escritório, es­fregando as mãos com evidente satisfação.

Então, Joe? Como vai o serviço?

Terminei —, respondeu ele, sorrindo. — Tudo pronto.

Ótimo! — disse eu. — Agora, tome um avião, vá para a fá­brica e entre em ação. Quero que compre uma casa para mim e a prepare até o começo do mês que vem. É quando me vou mudar para lá.

Espere, Frank! Uma coisa dessas exige mais tempo do que consertar uma escrita!

Contrate os melhores decoradores. A casa não precisa ser muito grande. Seis peças no máximo. Pague o que for necessário.

Deixe lá alguém tomando conta e esteja de volta aqui depois de amanhã que eu preciso de você.

Está bem, Frank. Mas não quer os livros antes de eu viajar?

É preciso mesmo? — disse eu, levantando-me e aproximando-me dele. — Agora, quanto menos eu souber deles, melhor. Além disso, não entendo de contabilidade. Se você diz que estão OK é porque estão mesmo.

Fiz o que você queria.

Para mim, chega. Agora, vá indo, amigo. Não há tempo a perder e eu tenho muito que fazer. Obrigado, Joe.

Ele sorriu e saiu.

Peguei o telefone e liguei para Jerry Cowan.

Depois que o meu telefonema passou por duas secretárias, Jerry chegou finalmente ao telefone.

— Jerry, é Frank Kane quem fala. Está livre hoje à tarde? Que­ro falar-lhe.

Venha até aqui.

Não posso ir ao seu escritório. Mas isso é importante e que­ro vê-lo sozinho.

Onde vamos encontrar-nos?

Posso pegá-lo no lado de Jersey da Ponte George Washing­ton. Às quatro horas da tarde. Faça os seus planos para jantar comigo porque o que tenho para dizer-lhe é demorado.

Ele ficou em silêncio alguns minutos e depois disse:

—        Está bem. Às quatro horas.

Saí do escritório ás três horas. Disse a Flix que fosse para o a-partamento e me esperasse lá. Saí então no carro para o encontro com Jerry.

Ainda não eram quatro horas e eu fiquei esperando. Vi-o às quatro horas em ponto. Estava num Buick azul. Estacionou o carro e olhou em volta à minha procura. Não me viu e eu toquei a buzina pa­ra chamar-lhe a atenção.

Ele olhou, sorriu e deu adeus. Fiz um gesto que significava:

"Vamos". Parti, olhando pelo espelho para ver se ele me estava seguindo. Estava.

Depois de uns dois quilômetros, entrei por uma pequena estra­da que levava para o Teaneck. Parei num ponto de estacionamento. Jerry parou atrás de mim.

Saltamos. Apertamo-nos as mãos e eu perguntei, sorrindo:

Como vai?

Muito bem.

E Janet?

Está bem agora, mas foi duro para ela perder o filho e ainda saber do médico que não podia mais ter filhos.

Era novidade para mim. De nada sabia.

Sinto muito, Jerry. Não sabia.

Bem, isso já passou. Que é que você quer?

Sorri. Ele estava com pressa, mas ia ter de esperar. Falaria com ele na hora que eu quisesse e como eu quisesse.

—        Deixe o seu carro aqui e entre no meu, Jerry. Vamos para algum lugar onde possamos comer e conversar.

Uma hora depois, estávamos numa sala reservada de uma hos­pedaria na Estrada 9. Tínhamos copos de scotch diante de nós e eu acendi um cigarro.

—        Com certeza, está achando o meu procedimento muito estra­nho —, disse eu, sorrindo.

Ele assentiu com a cabeça, sem falar.

Quer mesmo prender-me, Jerry

É o meu dever.

Ótimo! Era isso mesmo que eu queria ouvir.

—        Não seria bastante para você acabar com a organização? Le­var-me pessoalmente pan a cadeia não fará cessar a organização.

Mas eu poderia fazer um trato com você. Arrumarei a organização de tal maneira que você possa acabar com ela quando quiser, depois que eu me afastar. Dar-lhe-ei ainda nas suas mãos um camarada com uma ficha muito mais pesada do que a minha e que vocês estão que­rendo pegar há muito mais tempo.

Ele tomou um gole de uísque e me encarou.

Por que é que você quer afastar-se? Bem sabe que não con­segui nada contra você... por enquanto.

Vou-me casar e minha futura esposa não aprova as minhas atividades.

Ele riu.

Não me diga que uma mulher vai conseguir o que a prefeitu­ra, o estado e o governo federal não conseguiram!

É o que parece!

Deve ser uma pessoa de muito poder —, disse ele, rindo — Alguém que eu conheço?

Ruth.

Ele quase caiu da cadeira.

Ruth? Há quanto tempo vocês se gostam?

Já há muito tempo.

O garçom chegou com um prato de salgadinhos. Esperamos que ele saísse e Jerry disse:

Gostaria de fazer alguma coisa por você, principalmente em atenção a Ruth, mas não sei se será possível. Afinal de contas, tenho o meu dever a cumprir.

Como quiser. Mas há mais algumas coisas que você tem de saber. A verdade é que, se você agir contra mim, agirá contra seu ve­lho também. O escritório de advocacia dele está tratando de vários assuntos importantes meus.

Jerry olhou para mim, evidentemente aborrecido.

Não acredito.

Pode não acreditar, mas é a verdade.

Papai nunca aceitaria um caso seu.

Sei disso, mas o fato é que o escritório dele aceitou. E seria muito desagradável isso aparecer na primeira página dos jornais, não acha?

Jerry não respondeu. Estava pensando. Joguei mais lenha na fogueira.

—        Escute, Jerry, não vamos tratar desse assunto como garotos.

Somos pessoas adultas e estamos tratando de negócios. Suponha que um dia você chegue a conseguir provas suficientes para apresentar denúncia contra mim e processar-me. Imagine que na mesma ocasião alguém envolva nisso o nome de seu pai. Podem dizer que o motivo pelo qual você levou tanto tempo sem agir contra mim foi o fato de eu estar pagando a seu pai. Nem queira saber as coisas que dizem... ou pensam.

Ele se levantou, veio para junto de mim e agarrou-me pela gola do paletó.

—        Se está com alguma intenção de jogar lama em meu pai e manchá-lo com a sua sujeira, eu o matarei sem piedade.

Olhei-o tranqüilamente e tirei-lhe as mãos do meu paletó.

—        O homicídio é tão ilegal aqui em Jersey quanto em Nova York.

Ele me olhou sem falar e eu, de qualquer maneira, não lhe dei chance de falar.

—        Compreenda, Jerry. Não estou ameaçando seu pai. Estou apenas procurando apontar-lhe as conseqüências. Eu sei que não há jeito de impedir as pessoas de falarem. Dizem tanta mentira a meu respeito sem que eu nada possa fazer! Volte para o seu lugar e acabe o seu jantar. Quando ouvir o resto do meu plano, é bem possível que concorde.

Ele voltou para a sua cadeira e sentou-se. Não mostrou muito apetite. Limitou-se a beliscar e a ouvir. Mas quando voltamos ao lu­gar onde ele havia deixado o carro, estava de acordo em fazer o que eu pedira.

Acompanhei-o até ao carro dele e coloquei o pé no estribo. Dei- lhe uma chance de salvar o amor-próprio.

Ele entrara no carro e estava sentado atrás da direção com a ca­ra fechada.

Afinal de contas, Jerry, você vai executar o serviço para o qual foi designado. Vai acabar com a organização. Ainda que não se­ ja de acordo com todas as regras, isso é que importa.

Acho que sim —, disse ele com um sorriso forçado. Estava tão desanimado que nem aproveitou a deixa.

Não tem de acabar, Jerry. Sabe que é verdade. Você mesmo no princípio sugeriu a mesma coisa. Os resultados é que valem.

Ele pisou no arranco e já ia engrenar o carro quando se voltou para mim e disse:

Frank!

Sim, Jerry?

Você não mudou nada desde o tempo de garoto. Mas não pense que tudo pode dar certo sempre. A vida tem um jeito todo seu de fazer-nos pagar pelas coisas.

Tirei o pé do estribo e dei de ombros.

—        Quem sabe? Talvez eu continue a ter sorte.

Jerry se afastou pela estrada e eu voltei lentamente para o meu carro. Ri comigo mesmo. Talvez eu tivesse sorte. Mas não era só is­so. Era preciso ser esperto também.

Às onze horas na manhã seguinte, Alex Carson me telefonou, com uma animação na voz que havia muito tempo não mostrava.

—        Frank, a Ordem dos Advogados acaba de arquivar o proces­so contra mim.

Eu já sabia. Era uma das coisas que havia combinado com Jer­ry. Fingi surpresa.

—        Magnífico! Venha até cá e vamos festejar isso com um drinque!

Desliguei o telefone e mandei chamar Flix. O passo seguinte era ter Fennelli ali para falar comigo. Eu sabia que ele não viria por um simples convite meu. Mandei Flix ir buscá-lo.

Alex chegou meia hora depois de haver telefonado.

—        Parabéns! — disse eu, apertando-lhe a mão. — Eu sabia que você se sairia bem.

Ele sorriu.

Isso me preocupou muito. Mas ainda não sei por que arqui­varam o caso.

Sente-se que eu vou dizer por quê.

Expliquei-lhe tudo. Quando acabei, ele deu um longo assobio de espanto.

Acha que vai ter resultado com isso, Frank?

Se você me ajudar, é bem possível.

Bem, comigo você pode contar.

—        Ótimo! Fique por aqui. Quero você presente quando Fennelli chegar.

Flix trouxe Silk por volta das três horas da tarde. Silk aproxi­mou-se da minha mesa, jogou o chapéu em cima e disse, com um tom de censura:

Não precisava mandar esse macaco buscar-me. Bastava chamar-me pelo telefone.

Escute, Silk —, disse eu sorrindo. — Não quis dar a você um tratamento melhor do que o que você me deu.

Ele fez que não tinha ouvido e perguntou:

—        Que é que você quer?

Fiz uma pausa. Aquilo era muito importante. Se eu não conse­guisse fazê-lo morder a isca, estaria perdido.

Você sabe muito bem qual era a minha idéia quando inicia­mos isso, Silk. O arranjo que fizemos visou a dar ordem e estabili­dade aos nossos negócios. Mas, ultimamente, parece que você tem outras idéias a respeito da administração dos negócios. Seria muito simples para mim mandar dar cabo de você, talvez mais simples do que mandar Flix ir buscá-lo. Mas não é assim que eu faço as coisas.

Dirijo isso como outra indústria qualquer e não quero complicações.

Por isso, decidi comprar a sua parte.

Que é que isso significa exatamente?

Significa que você me passará o seu território e se afastará destas atividades.

E quanto me oferece por isso?

Cem mil dólares.

Ora, isso é apenas a minha parte no bolo. Faço um quarto de milhão por ano só no meu território.

Sei disso.

E o bolo me paga cerca de 200 mil dólares por ano.

Sei disso também.

Ele fez uma pausa e perguntou:

—        E se eu não quiser vender?

Dei de ombros e não respondi. Fiquei a observá-lo. Tinha de deixá-lo pensar à vontade. No fim ele teria a reação que eu esperava. Alguns minutos passaram. O seu rosto continuava impassível, impe­netrável. Só as mãos se abriam e fechavam. Afinal falou:

E se eu propusesse comprar a sua parte? O peixe mordia a isca.

Não me interessa —, murmurei displicentemente.

Ele se levantou, chegou perto da minha cadeira e me disse:

Eu lhe daria dinheiro de verdade. Um quarto de milhão.

Quem está querendo comprar sou eu, Silk. Não me interessa vender.

Ele voltou para a cadeira e sentou-se. Tirou um charuto do bol­so e acendeu-o nervosamente.

Dar-lhe-ei trezentos mil dólares e uma quota dos lucros.

Já começa a me interessar. Qual seria a quota?

Meia quota pagável todos os meses.

Ele se mostrava insistente. Era alguma coisa que ele queria ha­via muito.

—        Frank — continuou ele, tentando convencer-me. — Não po­de haver nada melhor para você. Não precisaria fazer nada. Poderia fazer o que bem quisesse fora da organização. Levaria uma vida re­galada. Viagens, mulheres — o que você quisesse.

Estava na hora de aceitar.

Bem, não me parece mau. Mas como é que vou saber se vo­cê agirá corretamente comigo?

Você ficaria convencido se tivesse os cheques visados na sua mão amanhã de manhã?

Hesitei ainda alguns segundos e depois dei-me por vencido.

—        Está bem, Silk. Negócio fechado.

Ele se levantou e estendeu-me a mão.

Não se arrependerá, rapaz. Lembra-se do que eu lhe disse quando você foi falar comigo? Disse que você ia ganhar um bocado de dinheiro. E não estava errado, não é mesmo?

Não, não estava.

Apertamo-nos as mãos, fechando o negócio. Na manhã seguinte, às onze horas, Silk chegou ao escritório. Carson já estava lá comigo.

—        Trouxe os cheques?

—        Sim —, disse ele, colocando-os em cima da mesa. — Fiz como me pediu: a Alexander Carson por serviços prestados.

Examinei os cheques. Estavam em ordem. Dei-os a Alex que os endossou e tornou a entregar-me. Toquei a campainha chamando Miss Walsh. Ela chegou com o envelope que eu lhe havia recomen­dado que tivesse à mão. Coloquei os cheques dentro do envelope e guardei-os no bolso enquanto ela saía da sala.

Olhei para os dois e disse:

—        Isso exige um drinque.

Preparei os uísques e depois que os tomamos, disse a Alex que levasse Silk para correr tudo. Saíram juntos.

Chamei Mackson e ele me trouxe os cheques que eu mandara fazer. Estavam todos ali. O bolo era dividido naquela data entre to­dos os participantes. Assinei-os e entreguei-os a Miss Walsh para remetê-los. Havia pago a todo mundo, até a Silk. Depois, saí pelo meu elevador particular e fui para o hotel.

Joe Price estava à minha espera no apartamento. Dei-lhe o en­velope com os cheques de Silk.

—        Você sabe o que tem de fazer com isso.

Tudo estava calculado. Uma conta fora aberta em cada um dos bancos em que Silk tinha conta. Essas contas eram no nome da mi­nha nova companhia. Os cheques seriam depositados em cada conta. Deixei-o e voltei para o escritório.

Uma hora depois, Joe me telefonou.

—        Tudo OK, Frank.

Desliguei. Tive um momento de hesitação. Depois, respirei fundo e disquei.

Por fim, ouvi a voz de Jerry.

—        Cowan —, disse ele.

—        É Frank. Pode começar a sua festa! — disse eu e desliguei.

Alguns minutos depois, Fennelli e Carson voltaram ao escritó­rio. Silk estava satisfeito e sorridente.

Que coisa formidável você conseguiu montar, Frank. Eu sa­bia que isto aqui era grande, mas não fazia idéia de que fosse tanto!

Bem, não é das piores coisas. Que tal outro drinque? Trata­remos dos pormenores amanhã.

Preparei três copos.

—        Felicidades! — disse eu, bebendo.

Silk sorriu e bebeu. Olhava cordialmente para mim. De repente, deu volta à mesa, sentou-se na minha cadeira e botou os pés em cima da mesa. Depois, fez um gesto para mim e disse:

—        Pegue uma cadeira.

Sorri comigo mesmo. Ele ainda não sabia quanto ia achar des­confortável aquela cadeira, mas não tardaria a saber. Sentei-me nu­ma cadeira diante de Silk. Ele sorriu para mim.

De repente, a porta do escritório se abriu. Nem me virei para ver quem era. Já sabia.

Silk levantou-se e gritou:

—        Que quer dizer isso?

Levantei-me e virei-me lentamente. Havia quatro homens no escritório. Flix fora jogado para um lado e um dos homens lhe apon­tava uma arma.

Um se aproximou de mim.

Frank Kane? — perguntou.

Eu mesmo.

Tenho um mandado de prisão contra a sua pessoa sob a acu­sação de atividades ilícitas e tentativas de suborno a funcionários públicos do Estado de Nova York. Tenho ainda um mandado de apreensão e busca dos livros das Empresas Frank Kane.

Carson interveio.

Tem carta de extradição?

Tenho, sim.

Posso ver?

O homem entregou alguns papéis a Carson. Este examinou-os cuidadosamente, devolveu-os e me disse:

—        Infelizmente, tudo está em ordem, Frank. Você terá de ir com eles.

Encolhi os ombros em silêncio.

O homem olhou para Silk e perguntou

—        Giuseppe Fennelli

O julgamento terminou no último dia de junho. Foi então que Jerry se levantou no tribunal e lançou a bomba. Passou por onde es­távamos, Fennelli e eu. Olhei-o gravemente, mas ele não olhou para nós. Tinha o rosto pálido e carrancudo quando se dirigiu aos jurados.

—        Senhores jurados —, disse ele — recebemos esta manhã dos contabilistas os resultados do minucioso exame efetuado nos livros e arquivos das Empresas Frank Kane. O exame foi feito conjunta­mente e mediante acordo com os governos dos Estados de Nova York e Nova Jersey e com a cooperação do Departamento do Tesou­ro dos Estados Unidos. Desejo apresentar como prova o relatório desse exame.

Mostrou um maço de papéis. Abriu-o e começou a ler: "Nós, os peritos, chegamos à conclusão de que as Empresas Frank Kane, tal como foram originariamente organizadas pelo réu

Frank Kane, eram um negócio honesto e legitimo, no que diz respei­to ao réu Frank Kane. Apuramos que o financiamento das empresas foi feito por Giuseppe Fennelli e que em tempo algum o Sr. Kane te­ve a intenção de envolver-se na linha principal de atividades do seu financiador. O Sr. Kane encaminhou os seus esforços nesse sentido.

"Empenhou-se na compra e venda de várias indústrias e títulos de crédito conforme julgou necessário para a prosperidade da com­panhia. Enquanto o Sr. Kane estava administrando corretamente a companhia o Sr. Fennelli seguia a sua própria orientação. Por outras palavras, o Sr. Fennelli se dedicava a atividades clandestinas de jogo e apostas em corridas de cavalos, usando as Empresas Frank Kane como uma capa para os seus empreendimentos."

"Estamos convencidos de que só recentemente o Sr. Kane teve conhecimento de que a sua organização estava servindo a tais fins. Quando se convenceu de tais irregularidades, o Sr. Kane tomou ime­diatamente providências para dissolver a sua organização, devolven­do aos outros investidores da companhia, inclusive ao Sr. Fennelli, a importância dos seus respectivos interesses, juntamente com uma carta em que explicava as suas razões."

Jerry afastou-se dos jurados, foi deixar os papéis em cima da sua mesa e depois voltou para diante do júri. Ficou alguns minutos em silêncio e por fim disse:

—        Senhores, diante das provas que acabo de apresentar, estou convencido de que se fez grande injustiça ao Sr. Kane. A sua atitude durante toda essa investigação foi de paciência e cooperação.

Voltou-se, olhou para mim e eu vi que o rosto dele estava páli­do e os olhos fundos.

—        Senhores do júri, a acusação pede que o réu Frank Kane seja absolvido...

Mal acabou de dizer isso, a sala do tribunal se transformou num verdadeiro pandemônio.

Silk levantou-se impetuosamente e me agarrou pela gola do pa­letó, fazendo-me sair da cadeira. Procurei desvencilhar-me dele. Os flashes se acendiam enquanto a multidão acorria para ver o que esta­va acontecendo. Um oficial de justiça afastou Silk de mim. Procurei ajeitar as roupas amarrotadas.

O juiz batia inutilmente com o martelo, enquanto os oficiais de justiça bradavam: "Ordem! Ordem no tribunal !" Mas a confusão não diminuiu e o juiz mandou evacuar a sala. A policia se espalhou por entre a assistência e dentro em pouco todos saíram e tudo ficou calmo.

Uma hora depois, o júri retirou-se para deliberar sobre o seu veredicto. Voltaram às quatro e meia. Fennelli e eu tínhamos rece­bido instruções para nos levantarmos e ficarmos de frente para os jurados.

Olhei para Jerry. Estava sentado de cara fechada à sua mesa sem olhar para o meu lado. No tribunal só haviam ficado os repórte­res. Senti de repente um aperto na garganta. E se tivesse havido al­guma coisa imprevista? Se eu tivesse feito tudo o que fizera e fosse acabar perdendo? Sentia pulsarem violentamente as veias da testa. Sabia que estava pálido e tinha raiva de mim mesmo por isso. Gosta­ria de parecer calmo, controlado. Mas as mãos me tremiam.

Chegaram a uma conclusão, Srs. jurados? — perguntou o juiz.

Sim, Excelência — disse o presidente do júri, olhando para um papel que tinha na mão e que começou a ler: "Nós, do júri, con­sideramos o réu Giuseppe Fennelli culpado, de acordo com as acusações."

Fennelli deixou-se cair na cadeira, com o rosto mortalmente branco. Um oficial de justiça acorreu levando-lhe um copo de água, mas Fennelli recusou com um gesto.

Continuei de pé voltado para o júri. A cabeça me latejava alu­cinadamente.

O presidente do júri continuou:

—        "Nós, do júri, consideramos o réu Frank Kane — fez uma pausa, procurando conscientemente armar efeito —, isento de culpa".

Carson voltou-se para mim e começou a apertar-me a mão, di­zendo em voz baixa:

—        Conseguiu, Frank! Conseguiu!

Olhei então para Fennelli. Ele estava olhando para mim, com as mãos entrelaçadas à frente e os olhos faiscantes. Levantei-me e pas­sei pela mesa ao meu lado. Senti a mão de Silk roçar pelo meu pale­tó, mas não dei atenção a isso. Continuei a andar, chegando até à ru-a. E durante todo tempo sentia à olhar de Fennelli a seguir-me, queimando-me as costas.

—        Aonde é que vai? — perguntou Carson, chegando ao meu lado.

Olhei para o sol. A claridade me ofuscou e me encheu de seu calor, dissipando a frialdade que me havia envolvido. Levei a mão aos olhos e disse:

—        Vou tomar um drinque —, disse com a voz um pouco trêmu­la. — Nunca precisei mais.

Deixei-o ali. Atravessei a rua e dobrei a primeira esquina, en­trando num bar.

—        Um uísque, dose dupla —, pedi no balcão.

O homem do bar me trouxe o copo e eu pedi logo outro. Ia co­meçar a beber quando senti uma mão no ombro.

Voltei-me lentamente. Era Flix, com o seu rosto impassível.

Conseguiu?

Consegui.

E o outro?

Não conseguiu —, disse eu, tomando o uísque e pedindo ou­tro. — Quer beber, Flix?

Pediu também uísque e ficamos ali, bebendo. O bar estava bem cheio e nós estávamos bem comprimidos um com o outro. Senti uma pistola no bolso dele.

Quanto tempo acha que ele vai pegar? — perguntou Flix com voz calma.

Uns dez anos.

Flix tomou o seu uísque e disse:

Ele não lhe vai perdoar isso.

Como é que sabe? — disse eu, que já estava saindo do meu torpor mental.

Flix deu de ombros.

—        É fácil de calcular.

De repente, estava de novo com pleno domínio de mim mesmo. Flix tinha razão. A cadeia não bastava para tolher um sujeito como Silk. De lá mesmo, ele podia movimentar muita coisa. Meti a mão no bolso para pegar dinheiro e pagar as bebidas. Encontrei um peda­ço de papel e tirei-o para ver o que era. Dizia: "Você me pagará is­so". Era só. Não havia assinatura — e não era preciso.

Olhei para Flix. Continuava impassível. Pedi mais dois uísques. Pequei o meu copo e virei-me para Flix, dizendo:

—        À sua irmã!

Compreendeu logo. Levantou o copo e bebemos. Parei no meio do meu e disse:

—        Dez mil dólares para você.

Bebemos os uísques e o homem do bar trouxe mais dois. — Como paga? — perguntou ele.

—        As condições de costume. Cinqüenta por cento de sinal e o resto contra entrega.

Acabamos de beber. Joguei uma nota de cinco dólares em cima do balcão para pagar os uísques e saímos.

—        Carson lhe dará o dinheiro —, disse eu quando chegamos à rua. — Procure-o amanhã.

Fiz sinal a um táxi e ele parou ao meu lado.

Adeus, Flix — disse eu, entrando no táxi.

Adeus, homem valente.

Recostei-me nas almofadas do carro. Aquilo não me agradava. Algum dia, poderia ter problemas com Flix... Ma isso seria mais tar­de. A voz do chofer do táxi interrompeu-me os pensamentos.

—        Posso dirigir o dia todo, patrão. Mas será que não quer ir a algum lugar?

Fui para o meu apartamento e troquei de roupa. Depois, mandei tirar o carro da garagem e dirigi-me para Nova York.

Do outro lado da ponte comprei o Evening Journal numa ban­ca. Havia uma grande manchete em letras vermelhas que dizia: KANE ABSOLVIDO — FENNELLI CONDENADO. Abaixo, ha­via um título em preto: "Cowan Desbarata a Quadrilha". Havia um flagrante de Jerry quando saía do tribunal com a legenda: "Jerome Cowan, Destruidor de Quadrilhas". Ele estava sorrindo para a má­quina.

Ri comigo mesmo. Jornal era assim mesmo. Não demorava muito estariam lançando a candidatura dele a Governador. Joguei o jornal na rua e segui o meu caminho.

Encostei o carro ao meio-fio diante da casa de Ruth e entrei. O mesmo ascensorista que me levara da primeira vez estava no carro e me olhou com curiosidade. Saltei no andar, fui até à porta dela e to­quei a campainha.

Ouvi o carrilhão tocar dentro do apartamento. Esperei. Tive a impressão de estar ali havia uma hora. Afinal, a porta se abriu e Ruth apareceu.

Ficamos os dois parados, olhando um para o outro. Era como se fossemos dois estranhos — como se nunca nos tivéssemos visto.

— Ruth! — disse eu, sem sair do lugar, sem coragem de mo­ver-me.

De repente, ela me caiu nos braços, chorando:

—        Frankie! Frankie!

A porta se fechou atrás de nós. A entrada estava escura. Ela so­luçava, com a cabeça encostada no meu peito. Afaguei-lhe delica­damente a cabeça.

Ruth, tudo terminou! Não chore, querida!

Pensei que você nunca mais voltasse, Frankie!

Não prometi, Ruth?

Ela me olhou com os olhos estranhamente luminosos. Beijei-a. Senti-lhe os lábios trêmulos.

Querido, querido!

Estava com medo de que você mudasse de idéia, Ruth. Ela me cobriu os lábios de beijos.

Fomos de braços dados para a sala e nos sentamos no grande sofá.

—        Sabe que hoje é o último dia de junho, Frankie?

—        E é por isso que estou aqui. Não disse que você seria uma noiva de junho? Arrume algumas coisas suas numa mala e vamo-nos casar em Meriden.

Ela se afastou para a outra ponta do sofá onde ficavam os cigar­ros numa pequena bandeja de porcelana. Pegou um cigarro com um ar de estudada calma. Acendi-o, observando-lhe o rosto. Ela me o-lhava firmemente.

Esperei que ela falasse. Por fim, depois de tirar algumas fuma­ças do cigarro, ela me disse com calma:

—        Não, Frank. Não nos vamos casar.

Procurei ser calmo também. Acendi sem pressa um cigarro e perguntei:

Por quê?

Porque você não me ama. A verdade é essa. Tudo faz parte do plano que você concebeu — exatamente como o trato que você fez com Jerry. Você quer passar de uma etapa de sua vida para outra e só quer casar-se comigo para completar a transação. O último reto­que! Quer vestir o manto da respeitabilidade e quer que eu seja o complemento perfeito. Na realidade, você não aprendeu nada. Não acredita no que está fazendo. Só chegou ao ponto a que chegou por que viu que estava perdido e resolveu aproveitar-se ao máximo de uma situação desagradável. Jerry me contou o que você o obrigou a fazer. Depois disso, comecei a pensar nas coisas. Você vai ter de aprender um dia a saber que não se pode fazer negócio com a vida dos outros.

Interrompia e disse com a voz ainda calma:

—        Você me ama?

Ela me olhou muito pálida.

—        Se eu amo você? Amo-o tanto desde que era garota que não sei quantas noites passei sem dormir pensando em você, que quando não sabia onde você estava sonhava com você, que nestes últimos meses desejei que você me possuísse porque queria seu filho em mim, dentro de meu coração. Mas por isso mesmo é que não farei o meu amor objeto de uma transação com você. É por isso mesmo que não vou casar-me com você, Frankie.

Apaguei o cigarro no cinzeiro e peguei-a rudemente pelos om­bros.

—        Idiotazinha — gritei, alucinado de raiva, com todas as veias da fronte latejando. — Talvez a princípio tenha sido assim, mas não pode ver que tudo o que fiz foi por você, tudo aquilo de que abri mão foi por seu amor? Acha que não me teria livrado de tudo isso, se quisesse? Eu tinha uma porção de lugares nos Estados Unidos para onde eu poderia ir e continuar fazendo funcionar a minha organiza­ção sem que ninguém pudesse botar a mão em mim. Não fui forçado a renunciar a coisa alguma, mas renunciei por sua causa. Se não fos­se o sentimento que tinha por você, teria superado isso como superei tudo o que se atravessou no meu caminho. Poderia com a maior faci­lidade ter arruinado a carreira de Jerry. Só desisti da luta por sua causa, porque acreditei no que você me dizia. Talvez no íntimo eu sempre soubesse que você tinha razão, mas foi por você que fiz o que fiz. Não houve qualquer transação com você. Virei a minha vida pelo avesso, troquei uma fortuna por você, troquei a segurança por um ideal. E se ainda acha que não a amo, pode ir para o diabo que a carregue!

Levantei-me e fui saindo.

—        Frank —, chamou ela em voz baixa.

Virei-me. Ela me olhou e disse com a mesma voz baixa, cheia de espanto:

—        Frank, você está chorando!

Ruth e eu nos casamos perante o Juiz de Paz Smith em Meri-den, no Estado de Connecticut, na segunda-feira, último dia de junho de 1941

A voz do juiz era profunda e forte

Francis, aceita esta mulher, Ruth, aqui presente, como sua legítima esposa e promete honrá-la, amá-la e querê-la, na doença e na saúde, enquanto ambos viverem?

Sim.

—        Ruth, aceita este homem, Francis, aqui presente, como seu legitimo esposo, e promete amá-lo, honrá-lo, na doença e na saúde, enquanto ambos viverem?

Ruth olhou para mim. Os seus olhos eram do mais profundo azul que já vi. A voz era quente, doce e rica.

—        Sim.

O juiz fez um gesto e eu coloquei o anel no dedo dela. O homem levantou as mãos e disse

—        Em vista dos poderes que me foram conferidos pelas leis do Estado de Connecticut, declaro que são marido e mulher. — Respi­ rou fundo e acrescentou: — Pode beijar a noiva.

Trocamos um beijo rápido e eu olhei para o juiz.

—        Parabéns, meu jovem! — disse ele, sorrindo. — Dois dóla­res, tenha a bondade.

Dei-lhe cinco dólares para dar sorte.

Voltamos para o meu apartamento às onze horas da noite. Car­reguei-a na porta e beijei-a.

Alô, Sr. Kane!

Alô, Sra. Kant!

Deixei-a e telefonei para baixo, pedindo quatro garrafas de champanha. Não tardaram a chegar.

Esperei na sala enquanto ela se preparava para deitar-se. Tomei um gole de champanha. Com a taça na mão, fui até à janela. Nova York cintilava do outro lado do rio.

Sorri ao meu reflexo na vidraça. De repente, levantei a taça e bebi em honra de Nova York.

O meu reflexo na vidraça bebeu em honra a mim.

—        Frank.

A voz era tão suave que eu quase não a ouvi. Saí da janela e fui até à porta do quarto.

—        Sim, Ruth?

Não houve qualquer resposta. Deixei a taça, apaguei as luzes das paredes e abri a porta do quarto. Havia um abajur aceso perto da cama. Atravessei o quarto.

Ruth estava de pé em frente à janela e me estendeu a mão.

—        Chegue aqui um momento e veja, Frank.

Fiquei ao lado dela, mas a única coisa que os meus olhos pude­ram ver foi Ruth.

—        Frank —, disse ela com uma voz estranha e cheia de misté­rio —, olhe pela janela. Já viu alguma vez o mundo todo assim dian­ te de você? Um mundo imenso e belo que o espera?

Não respondi. O luar banhava-lhe o rosto e ela era linda.

Frank, como você acha que será nosso filho? Beijei-lhe o rosto e ela se aconchegou mais nos meus braços.

Não sei, querida. Nunca pensei em filhos. Nunca os desejei.

Acha que ele vai ser como você — rude, estranho, mau e belo?

Se ele sair parecido comigo — será melhor não nascer.

Frank —, murmurou ela, enquanto eu a beijava — nosso fi­lho será belo. Sabe que você é um homem belo, Frank?

Beijei-lhe a boca. Os lábios estavam em fogo.

—        Sabe que você é linda? — perguntei. Ela estendeu o braço e apagou a luz.

Foi mais tarde — muito mais tarde. Eu estava ali havia muito tempo, vendo-a dormir. Havia pequenas lágrimas nos cantos dos olhos dela. Enxuguei-as. De repente, tive vontade de fumar um ci­garro.

Procurei com a mão ao lado da cama. Nada encontrei. Movi-me devagar e com cuidado, pois não queria acordá-la.

Podia ainda ouvir-lhe a voz: "Está contente, Frank? Sou tudo o que você queria que eu fosse ?"

Fui até à sala. Fechei a porta mansamente a acendi um abajur.

Ela era tudo o que eu queria.

Havia cigarros na mesa. Peguei o maço e acendi um cigarro. Tirei algumas fumaças, sentindo-me cheio de paz.

Olhei para a mesa. Havia algumas cartas ali que tinham sido entregues enquanto eu estava em Nova York. Olhei-as sem muito in­teresse. Algumas contas, alguns anúncios...

Quase embaixo da pilha encontrei um cartão. Era correspon­dência oficial e comunicava que a Junta de Recrutamento havia clas­sificado Francis Kane como Classe 1-A.

O cigarro estava quase no fim. Joguei-o num cinzeiro e voltei para o quarto. Quando estendi a mão para apagar a luz, vi que ainda estava com o cartão na mão.

Apaguei a luz e joguei o cartão para o meio da sala. Que me in­teressava aquilo? No dia seguinte, telefonaria para Carson a fim de que ele desse um jeito naquilo.

 

O QUE ACONTECEU DEPOIS

Martin de repente se sentiu muito fraco. Deixou-se cair numa cadeira, olhou para Janet e perguntou com voz trêmula:

—        Que quer dizer com isso?

Jerry olhou também para a espOsa. Era o que ele queria saber. Já sabia parte da história, mas ia ouvir o resto. O seu rosto perdeu um pouco da tensão e ele se acomodou na cadeira.

Todos nós sabíamos que Ruth estava esperando uma criança — começou ela —, e quando recebemos o lacônico telegrama de Frank em que ele dizia que Ruth morrera de parto, sem fazer qual­quer alusão à criança, presumimos que esta houvesse morrido tam­bém. Estávamos errados.

Você, Marty, já estava na guerra fora do país e nós lhe es­crevemos contando o que havia acontecido. Um mês depois, Jerry foi também para a guerra e durante algum tempo a vida pareceu que tinha parado.

"Algumas semanas antes da volta de Jerry, fui procurada por uma pessoa. Era um capelão, um capitão, da unidade em que Frank servia e tinha-o visto morrer. Já sabíamos que Frank havia morrido. Recebemos comunicação do Ministério da Guerra da morte dele no dia 10 de abril. Mas o Capitão Richards trouxe-me uma carta que Frank lhe havia confiado para ser entregue pessoalmente.

O capelão estava cansado. Parecia-lhe que não dormia havia anos. Todos os dias, vivia-se mil anos da manhã até à noite. E mil anos por dia era tempo demais para se viver.

O ribombar dos canhões havia diminuído para um ronco surdo que mal se ouvia. Na véspera, aquilo tinha sido um hospital de san­gue. Naquele dia, era um hospital-base — a frente avançara mais de cinqüenta quilômetros num dia. E os feridos não paravam de chegar. Os médicos trabalhavam febrilmente, sem parar, mas os feridos continuavam a amontoar-se em frente à porta da sala de o-peração.

O capelão saiu do pequeno prédio que servia de hospital. Lá fo­ra, estendia-se a longa fila de macas que esperavam a ida para a sala de operação ou o transporte para a retaguarda. Era quase noite. A primeira estréia brilhava incoerentemente no céu. Foi passando pela fila de macas rumo à sua barraca. Tinha de dormir um pouco. Não conseguiria mais ficar de pé um instante, ainda que soubesse que mesmo no sono veria aqueles rostos contorcidos pela dor e as vozes roucas de agonia.

Caminhou para a barraca de cabeça baixa, arrastando os pés e o coração pesado de angústia.

—        Capitão Richards.

Ouviu a voz. Sentiu-a mais do que a ouviu. O seu impacto era mais mental do que material. Como som, não era quase nada na in­tensidade da dor que a cercava. Parou.

—        Aqui, Capitão Richards.

A voz era fraca, mas firme.

O capelão dirigiu-se para a maca e olhou para o homem que o havia chamado. Era um soldado ferido entre os outros. Era anônimo, outro homem envolto até ao pescoço por um cobertor e com o rosto muito pálido. Não conhecia o homem e dobrou um joelho para vê-lo melhor.

Capitão, não se lembra mais de mim? — perguntou o homem.

O capelão sacudiu a cabeça. Eram tantos...

Sou Kane. Lembra-se agora?

O capelão lembrou-se com um choque. Recordou a primeira vez que vira o homem. Acabava de entrar para o exército e Kane era sargento. Havia dito a Kane que devia comparecer a alguns ofícios religiosos. Kane tinha rido. Que fora mesmo que dissera? Era difícil lembrar. Ah, sim, Kane tinha rido e dissera: "Ir à igreja não me aju­dará muito agora". E o capelão havia respondido: "Ir à igreja sempre ajuda. Nunca é tarde para se voltar para Deus". O homem tornara a rir. "Se as coisas chegarem a esse ponto, espero fazer essa volta pes­soalmente". Depois disso, o capelão passara a observar Kane durante algum tempo. Parecera-lhe que era velho demais para uma luta tão áspera e se surpreendeu quando soube que, apesar dos cabelos quase brancos, Kane tinha pouco mais de trinta anos.

—        Sim, Kane, estou-me lembrando.

Puxou o capote para baixo do corpo e sentou-se no chão frio. Viu então as marcas vermelhas dos primeiros curativos na testa de Kane. A luz estava nascendo.

Vou morrer —, dissera o homem com simplicidade. Não havia medo na sua voz. Estava apenas afirmando um fato.

Deixe disso —, murmurou o capelão, querendo confortá-lo, mas sabendo que a sua voz não tinha o necessário tom de convicção.

— Não fale assim.

Não procure iludir-me, meu amigo — disse o homem, com um esforço frustrado para rir. — Ninguém vive com o que eu tenho no corpo. Já vi muita gente morrer e sei.

O capelão tentou falar, mas o homem interrompeu-o.

—        Não dói, Padre. Não é isso. Estou tão cheio de morfina que nem sei mais se tenho um corpo. Além disso, colocaram-me no lado errado da porta do hospital.

O capelão olhou em torno, espantado. O homem tinha razão. Os que não tinham esperanças de salvar-se eram colocados num lado da porta; os que tinham, do outro.

Há duas horas que os vejo passar por mim. De vez em quan­do, um homem do pronto-socorro me dá uma injeção de morfina e marca a dose na minha testa. Não os censuro. É melhor socorrer os que têm alguma chance.

Escute aqui, tudo isso é impressão sua. Você vai-se curar, estou dizendo.

Está bem, Padre —, disse o homem numa voz paciente co­mo se os papéis estivessem invertidos e ele estivesse são e o capelão, no lugar dele. — Se diz assim eu concordo. Mas quero pedir-lhe um favor, caso aconteça o contrário.

Que é, Kane? — perguntou o capelão, pensando em dar-lhe absolvição. Todos eles voltaram para Deus mais cedo ou mais tarde.

A resposta decepcionou-o um pouco.

—        Tenho uma carta que quero que entregue para mim, Padre.

Pessoalmente, não pelo correio. Está em meu bolso. Quer pegá-la?

O capelão inclinou-se, meteu a mão por baixo do cobertor, en­controu a carta no bolso e tirou-a.

—        É essa carta, Padre. É para uma mulher. Mas não se trata de minha mãe, de minha esposa ou de minha namorada. Todas elas já se foram antes de mim. É para uma velha amiga, para o ma­rido dela e para um amigo dos dois. Não quero que a recebam ou que a leiam enquanto a guerra não acabar e os três não estiverem juntos.

O capelão olhou-o em silêncio e viu o sangue que escorria das orelhas do homem, fazendo na maca uma mancha cada vez maior.

—        Não se preocupe com a carta, meu filho. Eu a entregarei. Quer mais alguma coisa de mim?

Só os olhos do homem pareciam mover-se, O capelão teve a impressão de que estavam rindo dele, que lhe compreendiam a in­tenção.

—        Sim, Padre. Quero um cigarro.

O capelão colocou um cigarro na boca do homem. Sentiu os lá­bios finos do homem se moverem num agradecimento que foi quase um beijo. Virou-se para tirar a caixa de fósforos do bolso de trás. Mas, quando tornou a olhar para o homem, viu que tinha morrido.

Tinha passado deste mundo para o outro sem um som ou um movimento. Só os olhos estavam abertos. Pareciam vivos tal era a sua expressão. Estavam mais doces do que o capelão se lembrava de já tê-los visto. E mais quentes do que quando o homem vivia. Como que um véu caíra deles.

Pareciam agradecidos.

O capitão prometeu a Frank que entregaria a carta pessoal­ mente. Cumpriu a sua promessa e me falou do desejo de Frank de que nós a lêssemos quando estivéssemos juntos.

Foi por isso então que você não me contou tudo antes — disse Jerry. — Disse-me apenas que o capelão falara de uma criança.

Sim —, respondeu Janet. Queria que vocês dois a ouvissem juntos.

Foi a um armário no canto da sala e apanhou a carta. Voltou para onde os outros estavam e começou a lê-la. A voz era serena, mas tinha uma expressão tangível de emoção e afeto.

—        A carta está datada de 5 de dezembro de 1944 e diz o se­guinte:

"Cara Janet,

Escrevo-lhe esta carta esperando que você nunca a receba. É estranho escrever uma carta sabendo que nunca será entre­gue, mas é ainda mais estranho imaginar que o será. Se você re­ceber esta carta, eu estarei morto. Não é porque tenha qualquer pressentimento de morte que lhe escrevo, mas apenas porque, a-final de contas, há a possibilidade de que eu morra de repente.

Parece que já faz muitos anos que desembarcamos no Dia D, mas foi apenas em julho deste ano. Desde então, muitas coi­sas começaram a juntar-se na minha cabeça e a formar senti­do. Muitas coisas aconteceram e há muito que eu quero que vocês saibam e muito que quero pedir-lhes.

Houve uma ocasião em que Marty me comparou a Hitler. Ri porque não compreendi o que ele queria dizer. Agora, com­preendo. Fiquei sabendo no tempo em que vivi com Ruth e nes­tes últimos cinco meses na Europa. Soube que não se pode vi­ver sem respeitar a sociedade e o chamado homem comum. Vi­ver assim é viver sem respeito a si mesmo.

Comecei a pensar então no que fora que havia feito de mim o homem que eu cheguei a ser. E compreendi então que fora o fato de viver sozinho. Um homem pode viver sozinho se mora na mesma casa com mais vinte seres humanos e não divide o coração com nenhum deles. Foi assim que vivi quase toda a minha vida até me casar com Ruth.

Como sabem, Ruth morreu de parto. Mas não creio que saibam que a criança viveu. Tivemos um filho.

Eu não havia pensado em ter filhos e não os queria. Mas ela me disse: "Quero um filho seu. Quero por muitos motivos. Ele será você outra vez. Posso tê-lo junto de mim, mesmo que você esteja ausente. Posso dar a ele, dando a você, todo o a-mor, todo o carinho e todo o sonho que você nunca recebeu. Dê-me seu filho, querido, para que eu possa fazer você viver de novo ". Tudo isso ela me disse.

E quando nosso filho nasceu e ela soube que não viveria para cuidar dele, pediu-me: "Não o abandone, Frank. Faça com que tenha infância e tenha sonhos, com que goze os praze­res da mocidade e venha a ser o homem que deve ser. Dê-lhe todas as coisas que eu quis dar-lhe ".

Prometi-lhe que assim faria.

Mas primeiro eu teria de voltar paira casa depois do e-xército. Ocorreu-me então a possibilidade de que eu não vol­tasse. Pensei na promessa que havia jeito a Ruth e venho pe­dir a você que me ajude a cumpri-la. Receba nosso filho no seu coração e no seu lar, dê-lhe um nome e todas as coisas que sei que pode dar.

Sou um homem bem rico. Ele nunca sentirá falta de dinhei­ro. Mas terá falta das coisas que o dinheiro não pode dar. É is­so que lhe peço que dê a ele.

Não o deixe criar-se com eu. Com um teto para viver, ves­tido, alimentado e tratado, mas mais pobre em qualidades hu­manas do que o mais pobre dos homens. Uma pessoa precisa mais alguma coisa do que comida, roupa e dinheiro para ser humana. Precisa de amor, bondade e afeição.

Precisa de uma família que lhe sirva de âncora, que lhe dê raízes no mundo e na sociedade, que lhe ensine quais são os verdadeiros valores, os valores que aprendi a conhecer com Ruth.

Levei meu filho paira o Orfanato de St. Thérèse e confiei-o aos cuidados do Irmão Bernhard. Tenho recebido cartas desse bom homem que me dizem que o pequeno Francis é muito pa­recido comigo. E isso me faz orgulhoso. Não só porque é pare­cido comigo, mas também porque nele vejo a mãe. Ela olha pe­los olhos dele que são azuis como os dela. Sorri com o sorriso dela e ainda se parece comigo.

Como pode ver, aprendi muito com Ruth. Aprendi a amar e fiquei sabendo que amar é dar e não receber. E aprendi que não se pode dar quando n se tem nada para dar. Sei que você tem muito que dar, porque me lembro.

Leia essa carta para Jerry e para Marty quando estiverem juntos, se for possível. Diga a ambos que a amizade deles sem­pre foi uma das coisas melhores da minha vida. Nada do que aconteceu diminuiu ou fez cessar a amizade que sempre tive por eles. Diga a ambos que eu quero que também tomem meu filho no coração e lhe dêem todas as coisas que sei que podem dar.

Peço humildemente a todos que abram o lar para meu filho.

Ajudem-me a cumprir a promessa que fiz a Ruth.

Com muito afeto,

Frank. "

Janet olhou-os com os olhos cheios de orgulho. Os três ficaram em silêncio e se entreolharam. De repente, sorriram e a sala se en­cheu de encanto e calor.

As lágrimas chegaram aos olhos de Janet quando olhou para Jerry e Marty. Estendeu inconscientemente as mãos para eles. Não havia necessidade de perguntas. Eles todos sabiam a resposta.

 

                                                                                            Harold Robbins

 

                      

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