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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INFORME DE BRODIE / Jorge Luis Borges
O INFORME DE BRODIE / Jorge Luis Borges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INFORME DE BRODIE

 

     As últimas narrativas de Kipling não foram menos labirínticas e angustiosas que as de Kafka ou as de James, às quais sem dúvida superam; mas em mil oitocentos e oitenta e cinco, em Lahore, empreendera uma série de contos curtos, escritos de maneira direta, que reuniria em mil oitocentos e noventa. Muitos deles – "In the house of Suddhoo", "Beyond the pale", "The gate of the hundred sorrows" – são concisas obras-primas; certa vez pensei que o que foi concebido e elaborado por um moço genial pode ser imitado sem imodéstia por um homem nas fronteiras da velhice que conhece o oficio. O fruto dessa reflexão é este volume que meus leitores julgarão.

     Tentei, não sei com que resultados, a redação de contos diretos. Não me atrevo a afirmar que são simples; não há na terra uma única página, uma única palavra que o seja, já que todas postulam o universo, cujo atributo mais notório é a complexidade. Só quero esclarecer que não sou, nem jamais fui, o que antes se chamava um fabulista ou um pregador de parábolas e atualmente um escritor comprometido. Não aspiro a ser Esopo. Meus contos, como os de As Mil e Uma Noites, pretendem distrair e comover, não persuadir. Esse propósito não quer dizer que me encerre, segundo a imagem salomônica, em uma torre de marfim. Minhas convicções em assuntos políticos são por demais conhecidas; filiei-me ao Partido Conservador, o que é uma forma de ceticismo, e ninguém me tachou de comunista, de nacionalista, de anti-semita, de partidário de Hormiga Negra ou de Rosas. Acredito que com o passar do tempo mereceremos que não existam governos. Nunca dissimulei minhas opiniões, nem mesmo nos anos árduos, mas não permiti que interferissem em minha obra literária, a não ser quando fui tomado pela exaltação da Guerra dos Seis Dias. O exercício das letras é misterioso; o que opinamos é efêmero e adequado pela tese platônica da Musa e não pela de Poe, que argumentou, ou fingiu argumentar, que a escrita de um poema é operação da inteligência. Não deixa de admirar-me que os clássicos professassem uma tese romântica, e um poeta romântico, uma tese clássica.

     Com exceção do texto que dá nome a este livro e que claramente procede da última viagem empreendida por Lemuel Gulliver, meus contos são realistas, para usar a nomenclatura hoje na moda. Conservam, creio, todas as convenções do gênero, não menos convencional que os outros e do qual logo nos cansaremos ou já estamos cansados. São abundantes na necessária invenção de fatos circunstanciais, dos quais há esplêndidos exemplos na balada anglo-saxã de Maldon, datada do século X, e nas posteriores sagas da Islândia. Duas narrativas – não direi quais – admitem uma mesma chave fantástica. O curioso leitor perceberá certas afinidades íntimas. Alguns argumentos perseguiram-me ao longo do tempo; sou, decididamente, monótono.

     Devo a um sonho de Hugo Ramírez Moroni a trama geral da história intitulada "O Evangelho segundo Marcos", a melhor da série; receio tê-la distorcido com as mudanças que minha imaginação ou minha razão julgaram convenientes. Afinal de contas, a literatura não é outra coisa que um sonho dirigido.

     Renunciei às surpresas de um estilo barroco; também às que querem proporcionar um final imprevisto. Preferi, em suma, a preparação de uma expectativa ou a de um assombro. Durante muitos anos acreditei que me seria dado chegar a uma boa página mediante variações e novidades; agora, completados os setenta, creio ter encontrado minha voz. As modificações verbais não deformarão nem melhorarão o que dito, a não ser quando podem moderar uma frase desagradável ou mitigar uma ênfase. Cada linguagem é uma tradição, cada palavra, um símbolo compartilhado; é insignificante o que um inovador é capaz de alterar; lembremos a obra esplêndida mas não poucas vezes ilegível de um Mallarmé ou de um Joyce. É verossímil que essas razoáveis razões sejam fruto do cansaço. A já avançada idade ensinou-me a resignação de ser Borges.

     Com imparcialidade não me preocupam o Dicionário da Real Academia, "dont chague édition fait regretter la précédente", segundo o melancólico parecer de Paul Groussac, e os intoleráveis dicionários de argentinismos. Todos, os deste e os do outro lado do mar, tendem a acentuar as diferenças e a desintegrar o idioma. Lembro a esse propósito que recriminaram Roberto Arlt por seu desconhecimento do lunfardo, ao que ele respondeu: "Criei-me em Villa Luro, entre gente pobre e marginais, e na verdade não tive tempo de estudar essas coisas". O lunfardo, de fato, é uma brincadeira literária inventada por autores de sainetes e compositores de tangos, mas os suburbanos o ignoram, a não ser quando os discos do fonógrafo os doutrinaram.

     Situei meus contos um pouco longe, seja no tempo, seja no espaço. A imaginação pode agir assim com mais liberdade. Quem, em mil novecentos e setenta, lembrará com precisão o que foram, em fins do século passado, os subúrbios de Palermo ou de Lomas? Por incrível que pareça, há escrupulosos que exercem o policiamento das pequenas distrações. Observam, por exemplo, que Martín Fierro falou de uma sacola de ossos e não de um saco de ossos, e reprovam, talvez injustamente, a pelagem oveiro rosado de certo cavalo famoso.

     Deus te livre, leitor, de prólogos longos. A citação é de Quevedo, que, para não cometer um anacronismo que com o tempo seria descoberto, jamais leu os de Shaw.

 

                         A INTRUSA

 

     Dizem (o que é improvável) que a história foi contada por Eduardo, o mais moço dos Nilsen, no velório de Cristián, o mais velho, que faleceu de morte natural, em mil oitocentos e noventa e tantos, no município de Morón. O fato é que alguém a ouviu de alguém, durante essa longa noite perdida, entre um e outro mate, e a repetiu a Santiago Dabove, que a contou a mim. Anos depois, em Turdera, onde a história acontecera, ouvi-a novamente. A segunda versão, um pouco mais detalhada, confirmava em suma a de Santiago, com as pequenas variações e divergências próprias do caso. Escrevo-a agora porque nela se cifra, se não me engano, um breve e trágico reflexo da índole dos antigos suburbanos das margens. Farei isso com probidade, mas já prevejo que cederei à tentação literária de acentuar ou acrescentar algum pormenor.

    

     Em Turdera eram conhecidos como os Nilsen. O pároco disse-me que seu antecessor lembrava-se, não sem surpresa, de ter visto na casa dessa gente uma gasta Bíblia de capa preta com caracteres góticos; nas últimas páginas entreviu nomes e datas manuscritos. Era o único livro existente na casa. A incerta crônica dos Nilsen, perdida, como tudo se perderá. O casarão, que já não existe, era de tijolo sem reboco; do vestíbulo divisavam-se um pátio de ladrilhos vermelhos e outro de terra. Poucas pessoas, aliás, entraram aí; os Nilsen defendiam sua solidão. Nos quartos desmantelados dormiam em catres; seus luxos eram o cavalo, os arreios, a adaga de lâmina curta, os ornamentos espalhafatosos dos sábados e o álcool briguento. Sei que eram altos e de longos cabelos avermelhados. A Dinamarca ou a Irlanda, das quais nunca ouviriam falar, circulavam no sangue desses dois crioulos. O bairro temia os Vermelhos; e não é impossível que devessem alguma morte. Ombro a ombro brigaram certa vez com a polícia. Diz-se que o mais moço travou uma luta com Juan Iberra, em que não levou a pior parte. Isso, segundo os entendidos, já é muita coisa. Foram tropeiros, rebocadores, ladrões de gado e vez ou outra trapaceiros. Tinham fama de avarentos, salvo quando a bebida e o jogo os tornavam generosos. De seus parentes nada se sabe nem de onde vieram. Tinham uma carroça e uma junta de bois.

 

     Fisicamente eram diferentes do compadrio que deu seu apelido de foragido à Costa Brava. Isto, e o mais que ignoramos, ajuda a compreender o quanto foram unidos. Desentender-se com um era contar com dois inimigos.

 

     Os Nilsen eram mulherengos, mas suas aventuras amorosas tinham sido até então de vestíbulo ou de casas de má fama. Não faltaram, pois, comentários quando Cristián levou Juliana Burgos para viver com ele. É verdade que assim ganhava uma criada, mas também não é menos certo que a cumulou de horríveis bugigangas e que a exibia nas festas. Nas pobres festas de cortiço, onde os requebros e o meneio estavam proibidos e onde se dançava, ainda, com muita luz. Juliana era de tez morena e de olhos rasgados; bastava que alguém a olhasse para que sorrisse. Em um bairro modesto, onde o trabalho e o descaso desgastam as mulheres, não tinha má aparência.

 

     A princípio, Eduardo os acompanhava. Depois empreendeu uma viagem a Arrecifes por não sei que negócio; na volta, levou para casa uma moça, que pegara pelo caminho, mas em poucos dias mandou-a embora. Tornou-se mais carrancudo; embriagava-se sozinho no armazém e não se dava com ninguém. Estava apaixonado pela mulher de Cristián. No bairro, que talvez tenha sabido disso antes dele, previram com perversa alegria a rivalidade latente entre os dois irmãos.

 

     Uma noite, ao voltar tarde da esquina, Eduardo viu o cavalo escuro de Cristián amarrado ao palanque. No pátio, o mais velho o estava esperando todo ataviado. A mulher ia e vinha com o mate na mão. Cristián disse a Eduardo:

 

     – Vou para uma farra na casa do Farías. Aí tens Juliana; se te der vontade, usa ela.

 

     O tom era entre mandão e cordial. Eduardo ficou a olhá-lo durante certo tempo; não sabia o que fazer. Cristián levantou-se, despediu-se de Eduardo, mas não de Juliana, que era uma coisa, montou a cavalo e saiu trotando, sem pressa.

 

     A partir daquela noite ela passou a ser compartilhada. Ninguém jamais saberá os pormenores dessa sórdida união que ultrajava o decoro do subúrbio. O arranjo funcionou por algumas semanas, mas não podia durar. Entre eles, os irmãos não pronunciavam o nome de Juliana, nem sequer para chamá-la, mas procuravam, e encontravam, razões para não concordarem. Discutiam a venda de uns couros, mas o que discutiam era outra coisa. Cristián costumava levantar a voz e Eduardo calava-se. Sem que soubessem, estavam enciumados. No duro subúrbio, um homem não dizia, nem sequer para si próprio, que uma mulher pudesse importar-lhe, além do desejo e da posse, mas os dois estavam apaixonados. Isso, de certo modo, humilhava-os.

 

     Uma tarde, na praça de Lomas, Eduardo cruzou com Juan Iberra, que o felicitou pelo arranjo primoroso que negociara. Foi então, creio, que Eduardo o insultou. Ninguém, na frente dele, ia zombar de Cristián.

 

     A mulher atendia aos dois com submissão animal; mas não podia esconder certa preferência pelo mais moço, que não havia recusado a participação, mas também não fizera as normas para isso.

 

     Um dia, mandaram que Juliana levasse duas cadeiras para o primeiro pátio e que não aparecesse aí, porque tinham de conversar. Ela esperava um longo diálogo e deitou-se para dormir a sesta, mas pouco depois a acordaram. Fizeram-na encher uma sacola com tudo o que tinha, sem esquecer o rosário de vidro e a cruzinha que sua mãe lhe deixara. Sem lhe explicar nada, colocaram-na em cima da carroça e empreenderam uma silenciosa e enfadonha viagem. Havia chovido; os caminhos estavam muito difíceis e deviam ser cinco da madrugada quando chegaram a Morón. Aí, venderam-na à dona do prostíbulo. O trato já estava feito; Cristián recebeu o dinheiro e depois o dividiu com o outro.

 

     Em Turdera, os Nilsen, até então enredados na teia (que era também uma rotina) daquele monstruoso amor, tentaram retomar a antiga vida de homens entre homens. Voltaram às trucadas, às rinhas, às farras casuais. Talvez tenham acreditado, em algum momento, que estavam salvos, mas costumavam reincidir, cada qual por seu lado, em injustificadas ou mais que justificadas ausências. Pouco antes do fim do ano, o mais moço disse que tinha o que fazer na capital. Cristián foi para Morón; no palanque da casa que conhecemos, identificou o oveiro de Eduardo. Entrou; lá dentro estava o outro, esperando sua vez. Parece que Cristián lhe disse:

 

     – Continuando assim vamos é cansar os cavalos. É melhor que a tenhamos por perto.

 

     Falou com a dona, tirou umas moedas do cinturão e levaram-na. Juliana ia com Cristián. Eduardo esporeou o oveiro para não vê-los.

 

     Voltaram ao que já foi narrado. A infame solução fracassara. Os dois haviam cedido à tentação de trapacear. Caim andava por ali, mas o afeto entre os Nilsen era muito grande – quem sabe que durezas e que perigos haviam compartilhado! – e preferiram desabafar sua exasperação sobre os outros. Sobre um desconhecido, sobre os cachorros, sobre Juliana, que havia trazido a discórdia.

 

     O mês de março estava chegando ao fim e o calor não diminuía. Um domingo (aos domingos as pessoas costumam recolher-se cedo) Eduardo, que voltava do armazém, viu que Cristián atrelava os bois. Cristián disse-lhe:

 

     – Vem cá; temos de deixar uns couros na loja do Pardo. Já está tudo carregado, vamos aproveitar a fresca.

 

     A loja do Pardo ficava, creio, mais ao sul. Tomaram o Caminho das Tropas; depois um desvio. O campo ia agigantando-se com a noite.

 

     Contornaram um capinzal; Cristián jogou fora o cigarro que acendera e disse sem pressa:

 

     – Vamos trabalhar, meu irmão. Depois os carcarás nos ajudarão. Eu a matei hoje. Que fique aqui com seus enfeites. Já não causará mais danos.

 

     Abraçaram-se, quase chorando. Agora, estavam presos por outro vínculo: a mulher tristemente sacrificada e a obrigação de esquecê-la.

 

                   O INDIGNO

 

     A imagem que temos da cidade sempre é algo anacrônica. O café degenerou em bar; o vestíbulo que nos deixava entrever os pátios e a parreira é agora um corredor sombrio com um elevador ao fundo. Por isso, durante anos acreditei que a certa altura de Talcahuano esperava-me a Livraria Buenos Aires; uma manhã comprovei que fora substituída por uma casa de antigüidades e disseram-me que Dom Santiago Fischbein, o dono, havia falecido. Era quase obeso; lembro menos suas feições que nossos longos diálogos. Firme e tranqüilo, costumava condenar o sionismo, que faria do judeu um homem comum, preso, como todos os outros, a uma única tradição e a um único país, sem as complexidades e discórdias que agora o enriquecem. Estavam compilando, disse-me, uma volumosa antologia da obra de Baruch Spinoza, aliviada de todo esse aparato euclidiano que trava a leitura e que dá à fantástica teoria um rigor ilusório. Mostrou-me, e não quis vender-me, um curioso exemplar da Kabbala Denudata, de Rosenroth, mas em minha biblioteca existem alguns livros de Ginsburg e de Waite que trazem seu selo.

 

     Uma tarde em que os dois estávamos sós confiou-me um episódio de sua vida, que agora posso contar. Mudarei, como é de prever, um ou outro pormenor.

 

     "Vou revelar-lhe uma coisa que não contei a ninguém. Ana, minha mulher, não sabe disso, nem sequer meus amigos mais íntimos. Faz tanto tempo que aconteceu que agora a sinto como se fosse alheia. Possivelmente lhe sirva para um conto que você, sem dúvida, abastecerá de punhais. Não sei se já lhe disse alguma vez que sou entrerriano. Não direi que éramos gaúchos-judeus; gaúchos-judeus jamais existiram. Éramos comerciantes e chacareiros. Nasci em Urdinarrain, da qual mal me lembro; quando meus pais vieram para Buenos Aires, abrir uma loja, eu era muito pequeno. A alguns quarteirões ficava o Maldonado e depois os ermos.

 

     "Carlyle escreveu que os homens necessitam de heróis. A história de Grosso me propôs o culto de San Martín, mas nele não encontrei mais que um militar que guerreara no Chile e que agora é uma estátua de bronze e nome de uma praça. O acaso me forneceu um herói muito diferente, para desgraça dos dois: Francisco Ferrari. Com certeza esta é a primeira vez que ouve seu nome.

 

     "O bairro não era violento como o foram, segundo dizem, Corrales e Bajo, mas não havia armazém que não contasse com seu bando de compadritos. Ferrari vivia no armazém

da Triunvirato com Thames. Foi onde ocorreu o incidente que me levou a ser um de seus adeptos. Eu aí fora comprar um quarto de mate. Um forasteiro de cabelos compridos e bigode apareceu e pediu uma genebra. Ferrari disse-lhe calmamente:

 

     "– Diga-me, não nos vimos anteontem à noite no baile da Juliana? De onde vem?

 

     "– De San Cristóbal – disse o outro.

 

     "– Aconselho-o – insinuou Ferrari – a que não volte por aqui. Há gente sem consideração que é capaz de fazê-lo passar maus momentos.

 

     "O homem de San Cristóbal foi embora, com bigode e tudo. Talvez não fosse menos homem que o outro, mas sabia que ali estava o bando.

 

     "A partir dessa tarde, Francisco Ferrari foi o herói que meus quinze anos almejavam. Era moreno, mais alto que baixo, de boa aparência, bom moço à maneira da época. Sempre andava de preto. Um segundo episódio nos aproximou. Eu estava com minha mãe e minha tia; cruzamos com alguns rapagões e um deles disse alto para os outros:

 

     "– Deixem-nas passar. Carne velha.

 

     "Eu não soube o que fazer. Nisso interveio Ferrari, que ia saindo de sua casa. Encarou o provocador e disse:

 

     "– Se você está a fim de brigar com alguém, briga comigo.

    

     "Foi medindo um por um, devagar, e ninguém respondeu uma palavra. Já o conheciam.

    

     "Deu de ombros, cumprimentou-nos e foi embora. Antes de afastar-se, disse-me:

 

     "– Se não tiveres nada que fazer, passa depois no boteco.

 

     "Fiquei desconcertado. Sarah, minha tia, sentenciou:

 

     "– Um cavalheiro que faz com que se respeitem as senhoras.

 

     "Minha mãe, para tirar-me do embaraço, observou:

 

     "– Eu diria antes um compadre que não quer que haja outros.

 

     "Não sei como lhe explicar as coisas. Conquistei agora uma posição, tenho esta livraria de que gosto e cujos livros leio, desfruto de amizades como a nossa, tenho minha mulher e meus filhos, filiei-me ao Partido Socialista, sou um bom argentino e um bom judeu. Sou um homem considerado. Agora você me vê quase calvo; na época eu era um pobre rapaz judeu, de cabelos vermelhos, em um subúrbio das margens. As pessoas me tratavam com desdém. Como todos os jovens, eu tentava ser como os outros. Apelidara-me de Santiago para esconder o Jacob, mas restava o Fischbein. Todos nos parecemos à imagem que fazem de nós. Eu sentia o desprezo das pessoas e também me desprezava. Naquele tempo, e sobretudo naquele meio, era importante ser valente; eu me sabia covarde. As mulheres me intimidavam; eu sentia a íntima vergonha de minha castidade temerosa. Não tinha amigos de minha idade.

 

     "Naquela noite não fui ao armazém. Oxalá nunca o tivesse feito. Acabei compreendendo que no convite havia uma ordem; um sábado, depois de jantar, entrei no local.

 

     "Ferrari presidia uma das mesas. Eu conhecia os outros de vista; seriam uns sete. Ferrari era o mais velho, com exceção de um homem velho, de poucas e cansadas palavras, cujo nome é o único que não se apagou de minha memória: Dom Eliseo Amaro. Uma cicatriz lhe atravessava o rosto muito largo e flácido. Disseram-me depois que sofrera uma condenação.

 

     "Ferrari mandou que me sentasse a sua esquerda; fizeram Dom Eliseo mudar de lugar. Eu não me sentia muito tranqüilo. Temia que Ferrari aludisse ao desagradável incidente de dias passados. Nada disso ocorreu; falaram de mulheres, baralhos, eleições, de um cantador que estava para chegar e não chegou, das coisas do bairro. A princípio custaram a aceitar-me; depois o fizeram, porque essa era a vontade de Ferrari. Apesar dos sobrenomes, em sua maioria italianos, cada um se sentia (e sentiam isso) crioulo e até gaúcho. Um era rebocador, ou cocheiro, ou talvez magarefe; a convivência com os animais os aproximaria das pessoas do campo. Acho que o maior desejo deles era ser Juan Moreira. Acabaram por chamar-me de Jacozinho, mas no apelido não havia desprezo. Com eles aprendi a fumar e outras coisas mais.

 

     "Em uma casa da rua Junín alguém me perguntou se eu não era amigo de Francisco Ferrari. Respondi que não; senti que se houvesse dito sim teria sido arrogância.

 

     "Uma noite a polícia entrou e nos revistou. Um de nós teve de ir à delegacia; mas não se meteram com Ferrari. Quinze dias depois, a cena se repetiu e dessa segunda vez prenderam Ferrari também, que tinha uma adaga na cinta. Talvez houvesse perdido os favores do caudilho da paróquia.

 

     "Agora vejo em Ferrari um pobre rapaz, iludido e atraiçoado; para mim, naquela época, ele era um deus.

 

     "A amizade não é menos misteriosa que o amor ou qualquer das outras faces desta confusão que é a vida. Suspeitei certa vez que a única coisa sem mistério é a felicidade, porque se justifica por si só. O fato é que Francisco Ferrari, o ousado, o forte, sentiu amizade por mim, o desprezível. Senti que ele se havia equivocado e que eu não era digno dessa amizade. Tentei evitá-lo, mas ele não permitiu. Essa aflição agravou-se pela desaprovação de minha mãe, que não se conformava com minha convivência com o que ela chamava "a gentalha", e a quem eu imitava. O essencial da história que lhe conto é meu relacionamento com Ferrari, não os sórdidos fatos dos quais agora não me arrependo. Enquanto o arrependimento dura, a culpa também dura.

 

     "O velho, que havia retomado seu lugar ao lado de Ferrari, segredava com ele. Alguma coisa estariam tramando. Da outra ponta da mesa julguei perceber o nome de Weidemann, cuja tecelagem ficava nos confins do bairro. Em pouco tempo me encarregaram, sem maiores explicações, de rondar a fábrica e de prestar muita atenção às portas. Já estava entardecendo quando atravessei o arroio e a estrada. Lembro-me de algumas casas espalhadas, de um salgueiral e de alguns terrenos baldios. A fábrica era nova, mas de aspecto abandonado e arruinado; sua cor vermelha, na memória, confunde-se agora com o poente. Cercava-a uma grade. Além da entrada principal havia no fundo duas portas, voltadas em direção ao sul e que davam diretamente para as salas.

 

     "Confesso que demorei em compreender o que você já terá compreendido. Dei minha informação, que outro dos rapazes corroborou. A irmã dele trabalhava na fábrica. Se o bando faltasse ao armazém uma noite de sábado, seria lembrado por todos; por isso, Ferrari decidiu que o assalto seria na outra sexta-feira. Eu devia servir de sentinela. Era melhor, entretanto, que ninguém nos visse juntos. Quando eu já estava na rua sozinho com Ferrari, perguntei:

 

     "– Você tem confiança em mim?

 

     "– Tenho – respondeu. – Sei que te portarás como um homem.

 

     "Dormi bem nessa e nas outras noites. Na quarta-feira disse a minha mãe que ia ao centro assistir a um novo filme de cowboys. Vesti o melhor que tinha e fui para a rua Moreno. A viagem no Lacroze foi longa. No Departamento de Polícia fizeram-me esperar, mas por fim um dos funcionários, um tal de Eald ou Alt, recebeu-me. Disse-lhe que vinha tratar de um assunto confidencial. Respondeu-me que falasse sem medo. Revelei-lhe o que Ferrari andava tramando. Não deixou de admirar-me que esse nome lhe fosse desconhecido; já foi outra coisa quando lhe falei de Dom Eliseo.

 

     "– Ah! – disse-me. – Esse foi do bando do Oriental.

 

     "Mandou chamar outro oficial, encarregado de meu distrito, e os dois conversaram. Um deles perguntou-me, não sem ironia:

 

     "– Você veio com esta denúncia porque se acha um bom cidadão?

 

     "Senti que não me entenderia e respondi:

 

     "– Sim, senhor. Sou um bom argentino.

 

     "Disseram-me que cumprisse a missão para a qual fora encarregado por meu chefe, mas que não assobiasse quando visse os agentes chegarem. Ao despedir-me, um dos dois advertiu-me:

 

     "– Toma cuidado. Você sabe o que espera os cagüetes.

 

     "Os funcionários da polícia divertem-se com o lunfardo, como os garotos da quarta série. Respondi-lhe:

 

     "– Oxalá me matem. É o melhor que pode me acontecer.

 

     "Desde a madrugada de sexta-feira senti o alívio de estar no dia decisivo e o remorso de não sentir remorso algum. As horas tornaram-se muito longas. Mal provei a comida. As dez da noite fomos nos reunindo a menos de um quarteirão da tecelagem. Um dos nossos falhou; Dom Eliseo disse que nunca falta um frouxo. Pensei que depois o culpariam de tudo. Estava ameaçando chuva. Receei que alguém ficasse comigo, mas me deixaram só em uma das portas do fundo. Pouco depois, apareceram os guardas e um oficial. Vieram caminhando; para não chamar a atenção haviam deixado os cavalos em um terreno. Ferrari forçara a porta e assim puderam entrar sem fazer ruído. Aturdiram-me quatro descargas. Pensei que dentro, na escuridão, estavam se matando. Nisso, vi a polícia sair com os rapazes algemados. Depois, saíram dois agentes com Francisco Ferrari e Dom Eliseo Amaro arrastados. Queimaram-nos a balaços. No processo foi declarado que haviam resistido à ordem de prisão e que foram os primeiros a abrir fogo. Eu sabia que era mentira, porque nunca os vira com revólver. A polícia aproveitou a ocasião para ressarcir-se de uma velha dívida. Dias depois, disseram-me que Ferrari tentara fugir, mas que um balaço bastara. Os jornais, é claro, converteram-no no herói que talvez nunca fora e com o qual eu havia sonhado.

 

     "Fui preso com os outros, mas logo me soltaram."

 

             HISTÓRIA DE ROSENDO JUÁREZ

 

     Seriam onze da noite; eu havia entrado no armazém, que agora é um bar, na esquina de Bolívar com Venezuela. De um canto, o homem me chamou com um psiu. Algo de autoritário haveria nele, porque obedeci de imediato. Estava sentado a uma das mesinhas; senti de modo inexplicável que havia muito tempo não se movia dali, diante do copo vazio. Não era nem baixo nem alto; parecia um artesão decente, talvez um antigo homem do campo. O bigode ralo era cinza. Apreensivo como os portenhos, não tirara o cachecol. Convidou-me para tomar alguma coisa com ele. Sentei-me e conversamos. Tudo isso aconteceu em mil novecentos e trinta e tantos.

 

     O homem me disse:

 

     – O senhor apenas me conhece de fama, mas eu o conheço bem. Chamo-me Rosendo Juárez. O finado Paredes lhe terá falado de mim. O velho tinha suas manias; gostava de mentir, não para enganar, mas para divertir as pessoas. Agora, que não temos nada a fazer, vou contar-lhe o que de fato aconteceu naquela noite. Na noite em que mataram o Curraleiro. O senhor contou isto em uma história, que não tenho capacidade para apreciar, mas quero que saiba a verdade sobre esses boatos.

 

     Fez uma pausa como se estivesse juntando as lembranças e prosseguiu:

 

     "As coisas nos acontecem e somente com os anos é que vamos compreendendo. O que se passou comigo naquela noite vinha de longe. Eu me criei no bairro do Maldonado, adiante de Floresta. Era um fosso miserável que, por sorte, já foi aterrado. Sempre fui de opinião de que ninguém tem autoridade para deter a marcha do progresso. Enfim, cada um nasce onde pode. Nunca me ocorreu investigar o nome do pai que me fez. Clementina Juárez, minha mãe, era uma mulher muito decente que ganhava o pão com o ferro de passar. Para mim, era entrerriana ou oriental; seja como for, costumava falar de seus achegados em Concepción del Uruguay. Criei-me como o capim. Aprendi o uso da faca com os outros, com um pau queimado. Ainda não havíamos sido conquistados pelo futebol, que era coisa dos ingleses.

 

     "No armazém, uma noite, começou a me procurar um rapaz chamado Garmendia. Eu me fiz de surdo, mas o outro, que estava de fogo, insistiu. Saímos; já da calçada entreabriu a porta do armazém e disse às pessoas:

 

     "– Não se preocupem, que volto logo.

 

     "Eu havia arranjado um punhal; tomamos os lados do Arroyo, devagar, vigiando-nos. Ele era alguns anos mais velho que eu; tinha esgrimido comigo muitas vezes e senti que ia me esfaquear. Eu ia peia direita da ruela e ele pela esquerda. Tropeçou em alguns cascalhos. Foi Garmendia tropeçar e eu cair por cima dele, quase sem pensar. Abri-lhe a cara com uma espetada e nos engalfinhamos, houve um momento em que podia acontecer qualquer coisa, mas por fim dei-lhe uma punhalada, que foi a última. Somente depois senti que ele também me ferira, alguns arranhões. Nessa noite aprendi que não é difícil matar um homem ou ser morto. O arroio estava muito baixo; para ir ganhando tempo, escondi mais ou menos o morto atrás de um forno de tijolos. De tão aturdido, surrupiei-lhe o anel que ele costumava usar como enfeite. Coloquei-o em meu dedo, ajeitei o chapéu e voltei ao armazém. Entrei sem pressa e disse aos outros:

 

     "– Parece que fui eu quem voltou.

 

     "Pedi uma cana e na verdade estava precisando dela. Foi então que alguém me chamou a atenção para a mancha de sangue.

 

     "Naquela noite fiquei dando voltas e mais voltas no catre; não dormi até que o dia nasceu. Na hora da prece, dois guardas vieram me buscar. Minha mãe – pobre da finada – se desesperava. Prenderam-me como se eu fosse um criminoso. Dois dias e duas noites tive de me agüentar na cadeia. Ninguém foi me ver, fora Luis Irala, um amigo de verdade, mas negaram-lhe permissão. Uma manhã, o delegado me mandou buscar. Estava refestelado na cadeira; nem me olhou e disse:

 

     "– Então foste tu quem despachou Garmendia?

 

     "– É você quem está dizendo – respondi.

 

     "– Trata-me de senhor. Nada de artimanhas nem de evasivas. Aqui estão os depoimentos das testemunhas e o anel que foi achado em tua casa. Assina a confissão de uma vez por todas.

 

     "Molhou a pena no tinteiro e estendeu-a para mim.

 

     "– Deixe-me pensar, senhor delegado – atinei em responder.

 

     "– Dou-te vinte e quatro horas para pensar bem, na cela. Não vou te apressar. Se não queres ser razoável, vai aceitando a idéia de um descansozinho na prisão da cadeia da rua Las Heras.

 

     "Como é de imaginar, não entendi.

 

     "– Se concordares, restam-te somente alguns dias. Depois te solto e Dom Nicolás Paredes já me garantiu que te acerta o assunto.

 

     "Foram dez dias. A muito custo lembraram-se de mim. Assinei o que queriam e um dos dois guardas me acompanhou até a rua Cabrera.

 

     "Havia cavalos amarrados ao palanque e no vestíbulo e dentro mais gente que no bordel. Parecia um comitê. Dom Nicolás, que estava mateando, afinal me atendeu. Sem nenhuma pressa disse que ia me mandar para Morón, onde estavam preparando as eleições. Recomendou-me ao senhor Laferrer, que me experimentaria. A carta foi escrita por um rapazinho vestido de preto, que compunha versos, segundo ouvi, sobre cortiços e imundície, assuntos que não são do interesse de um público ilustrado. Agradeci-lhe o favor e saí. Ao voltar, já não me seguia o guarda.

 

     "Tudo foi para o bem; a Providência sabe o que faz. A morte de Garmendia, que no começo resultara em desgosto, agora me abria um caminho. Claro que a autoridade tinha-me na mão. Se eu não servisse ao partido, mandavam-me para dentro, mas eu estava avalentado e tinha fé em mim mesmo.

 

     "O senhor Laferrer me preveniu que com ele eu teria de andar direitinho e que poderia chegar a guarda-costas. Minha atuação foi a que se esperava de mim. Em Morón, e depois no bairro, mereci a confiança de meus chefes. Na polícia e no partido fui criando fama de valentão; fui um cabo eleitoral de valor nas praças da capital e da província. Naquela época, as eleições eram violentas. Não o molestarei, senhor, com um ou outro fato sangrento. Nunca suportei os radicais, que continuam vivendo presos às barbas do Além. Não havia uma alma que não me respeitasse. Contratei uma mulher, a Lujanera, e um alazão dourado de belo porte. Durante anos banquei o Moreira, que talvez tenha fingido em seu tempo algum outro gaúcho de circo. Entreguei-me às cartas e ao absinto.

 

     "Nós, os velhos, falamos e falamos, mas já estou chegando ao que lhe quero contar. Não sei se já lhe mencionei Luis Irala. Um amigo como não há muitos. Era um homem já avançado em anos, que nunca sentira aversão ao trabalho e que se afeiçoara a mim. Jamais pusera os pés no comitê. Vivia de seu ofício de carpinteiro. Não se metia com ninguém nem teria permitido que ninguém se metesse com ele. Uma manhã veio ver-me e disse-me:

 

     "– Com certeza já vieram com a história de que a Cacilda me deixou. E que foi Rufino Aguilera quem a tomou.

 

     "Em Morón eu já tratara com esse sujeito. Respondi-lhe:

    

     "– Sim, eu o conheço. É o menos imundo dos Aguilera.

    

     "– Imundo ou não, agora terá de se haver comigo.

    

     "Pensei um pouco e disse-lhe:

 

     "– Ninguém toma nada de ninguém. Se a Cacilda te deixou é porque ama Rufino e não está a fim de você.

 

     "– E o que vão dizer as pessoas? Que sou um covarde?

    

     "– Meu conselho é que não te metas em histórias só pelo que as pessoas possam dizer e por uma mulher que já não te ama.

 

     – Ela não me importa. Um homem que pensa cinco minutos seguidos em uma mulher não é um homem, mas um maricas. Cacilda não tem coração. Na última noite que passamos juntos me disse que eu estava ficando velho.

 

     "– Dizia-te a verdade.

 

     "– Mas a verdade é o que dói. O que me importa agora é Rufino.

 

     "– Toma cuidado. Já vi Rufino em ação na praça de Merlo. É um raio.

 

     "– Pensas que tenho medo dele?

 

     "– Já sei que não tens medo, mas pensa bem. Das duas, uma: ou o matas e ficas à sombra, ou ele te mata edis para La Chacarita.

 

     "– Pois assim será. Tu, o que farias em meu lugar?

 

     "– Não sei, mas minha vida não é precisamente um exemplo. Sou um sujeito que para evitar o risco da cadeia tornou-se um capanga de comitê.

 

     "– Eu não vou ser capanga de nenhum comitê, vou somente cobrar uma dívida.

 

     "– Vais então jogar tua tranqüilidade por um desconhecido e por uma mulher de quem já não estás a fim?

 

     "Não quis ouvir-me e foi embora. No outro dia chegou-nos a notícia de que provocara Rufino em uma loja de Morón, e que Rufino o matara.

 

     "Foi para morrer e o mataram dentro da lei, de homem para homem. Eu lhe dera meu conselho de amigo, mas me sentia culpado.

 

     "Dias depois do velório fui ao rinhadeiro. Nunca me entusiasmaram as rinhas, mas naquele domingo francamente me causaram asco. O que está acontecendo com esses animais, pensei, que se despedaçam assim?

 

     "Na noite de minha história, na noite do final de minha história, eu combinara com os rapazes para irmos a um baile na casa da Parda. Já faz tantos anos e ainda me lembro do vestido florido que minha companheira usava. A festa foi no pátio. Não faltou um bêbado para armar confusão, mas eu me encarreguei de que as coisas corressem como Deus manda. Ainda não tinham dado as doze quando os forasteiros apareceram. Um, a quem chamavam Curraleiro, morto à traição nessa mesma noite, pagou uns copos para todos nós. Quis a casualidade que os dois fôssemos do mesmo feitio. Ele estava tramando alguma coisa; aproximou-se de mim e começou a me sondar. Disse que era do Norte, onde soubera de minha fama. Eu o deixava falar a seu modo, mas já estava desconfiando dele. Não dava descanso à genebra, talvez para tomar coragem, e por fim me convidou para lutar. Aconteceu então o que ninguém quer entender. Nesse insensato provocador eu me vi como em um espelho e fiquei envergonhado. Não senti medo; se houvesse sentido, sairia para brigar. Fiquei como se não tivesse acontecido nada. O outro, com o rosto quase colado ao meu, gritou para que todos o ouvissem:

 

     "– O que acontece é que não passas de um covarde.

 

     "– Assim seja – disse-lhe. – Não tenho medo de passar por covarde. Podes acrescentar, se te agrada, que me chamaste filho de uma cadela e que deixei que cuspiste em mim. Então, agora estás mais sossegado?

 

     "A Lujanera puxou o punhal que eu costumava carregar na cava e, louca da vida, colocou-o em minha mão. Para rematar o assunto, disse-me:

 

     "– Rosendo, acho que estás precisando disto.

 

     "Soltei o punhal e saí sem pressa. As pessoas me abriram cancha, assombradas. O que me importava o que pensassem?

 

     "Para safar-me dessa vida, fugi para a República Oriental, onde me tornei cocheiro. Desde que voltei me estabeleci aqui. San Telmo sempre foi um bairro ordeiro."

 

                     O ENCONTRO

 

     Quem dá uma olhada nos jornais toda manhã o faz para o esquecimento ou para o diálogo casual da tarde, e por isso não é estranho que agora ninguém se lembre – ou lembre como em um sonho – do caso, na época discutido e famoso, de Maneco Uriarte e Duncan. O fato, além disso, aconteceu em 191O, o ano do cometa e do Centenário, e são muitas as coisas que desde aquele momento tivemos e perdemos. Os protagonistas já morreram; aqueles que foram testemunhas do episódio juraram solene silêncio. Também eu ergui a mão para jurar e senti a importância daquele rito, com toda a romântica seriedade de meus nove ou dez anos. Não sei se os outros perceberam que eu tinha dado minha palavra; não sei se mantiveram a deles. Seja como for, aqui vai a história, com as inevitáveis variações trazidas pelo tempo e pela boa ou má literatura.

 

     Meu primo Lafinur levou-me naquela tarde a um churrasco na chácara dos Laureles. Não posso precisar sua topografia; pensemos em um desses povoados do Norte, sombreados e aprazíveis, que vão declinando em direção ao rio e que nada têm a ver com a ampla cidade e sua planície. A viagem de trem durou o suficiente para me parecer entediaste, mas o tempo dos meninos, como se sabe, flui lentamente. Começara a escurecer quando atravessamos o portão da chácara. Aí estavam, senti, as antigas coisas elementares: o odor da carne dourando, as árvores, os cães, os ramos secos, o fogo que reúne os homens.

    

     Os convidados não passavam de uma dúzia; todos adultos. O mais velho, eu soube depois, não havia completado ainda trinta anos. Eram, não tardei a compreender, doutos em temas sobre os quais continuo incapaz: cavalos de corrida, alfaiates, carros, mulheres notoriamente dispendiosas. Ninguém perturbou minha timidez, ninguém reparou em mim. O carneiro, preparado com hábil lentidão por um dos peões, deteve-nos na grande sala de jantar. Discutiram-se as datas dos vinhos. Havia uma guitarra; meu primo, se bem me lembro, cantou La Tapera e El Gaucho, de Elías Regules, e algumas décimas em lunfardo, no desprovido lunfardo daqueles anos, sobre um duelo a punhal em uma casa da rua Junín. Trouxeram o café e os cigarros de palha. Nem uma palavra sobre a volta. Eu sentia (a frase é de Lugones) o medo do demasiado tarde. Não quis olhar o relógio. Para disfarçar minha solidão de menino entre adultos esgotei sem vontade uma ou duas taças. Uriarte, gritando, propôs a Duncan jogarem pôquer a dois. Alguém objetou que essa maneira de jogar costumava ser muito pobre e sugeriu uma mesa de quatro. Duncan o apoiou, mas Uriarte, com obstinação que não entendi nem tentei entender, insistiu na primeira. Fora o truco, cuja finalidade essencial é encher o tempo com diabruras e versos, e os modestos labirintos da paciência, nunca gostei de baralho. Escapuli sem que ninguém notasse. Um casarão desconhecido e escuro (somente na sala de jantar havia luz) significa mais para um menino que um país ignorado para um viajante. Passo a passo explorei os aposentos; lembro-me de uma sala de bilhar, uma galeria envidraçada com formas de retângulos e losangos, um par de cadeiras de balanço e uma janela da qual se divisava um caramanchão. Perdi-me na escuridão; o dono da casa, cujo nome, depois de anos, pode ser Acevedo ou Acebal, afinal me encontrou. Por bondade ou para satisfazer sua vaidade de colecionador, levou-me a uma vitrina. Quando acendeu a lâmpada, vi que continha armas brancas. Eram punhais que por seu uso se haviam tornado famosos. Disse-me que possuía umas terrinhas para os lados de Pergamino e que em suas idas e vindas pela província fora juntando essas coisas. Abriu a vitrina e, sem olhar os dados das fichas, contou-me a história de cada um, sempre mais ou menos a mesma, com diferenças de locais e datas. Perguntei-lhe se entre as armas não constava a adaga de Moreira, naquele tempo o arquétipo do gaúcho, como depois o foram Martín Fierro e Dom Segundo Sombra. Teve de confessar que não, mas que me podia mostrar uma igual, com os copos em forma de U. Foi interrompido por vozes exaltadas. Fechou imediatamente a vitrina; eu o segui.

 

     Uriarte vociferava que seu adversário trapaceara. Os companheiros os rodeavam, de pé. Duncan, lembro-me, era mais alto que os outros, robusto, forte de ombros, inexpressivo, de um louro quase branco; Maneco Uriarte era irrequieto, moreno, talvez com sangue de índio, de bigode petulante e ralo. Era evidente que todos estavam bêbados; não sei se havia no chão duas ou três garrafas jogadas ou se o abuso do cinema me sugere essa falsa recordação. As injúrias de Uriarte não cessavam, agudas e já obscenas. Duncan parecia não ouvi-lo; por fim, como se estivesse cansado, levantou-se e deu-lhe um soco. Uriarte, do chão, gritou que não ia tolerar essa afronta e desafiou-o a lutar.

 

     Duncan disse-lhe que não e acrescentou à maneira de explicação:

 

     – O que acontece é que tenho medo de você.

 

     A gargalhada foi geral.

 

     Uriarte, já de pé, replicou:

 

     – Vou lutar com você e agora mesmo.

 

     Alguém, Deus o perdoe, observou que armas não faltavam.

 

     Não sei quem abriu a vitrina. Maneco Uriarte procurou a arma mais vistosa e mais comprida, a dos copos em forma de U; Duncan, quase com negligência, apanhou um punhal de cabo de madeira, com a figura de uma arvorezinha na folha. Outro disse que era típico de Maneco escolher uma espada. Ninguém se admirou de que naquele momento a mão lhe tremesse; mas todos se admiraram de que acontecesse o mesmo com Duncan.

 

     A tradição exige que os homens prestes a duelar não ofendam a casa em que estão e vão para fora. Meio de brincadeira e meio a sério, saímos para a úmida noite. Eu não estava embriagado de vinho, mas sim de aventura; desejava que alguém matasse, para depois poder contar e lembrar. Talvez naquele momento os outros não fossem mais adultos que eu. Também senti que um redemoinho, que ninguém era capaz de conter, arrastava-nos e perdia-nos. Não acreditavam muito na acusação de Maneco; todos a interpretavam como fruto de uma velha rivalidade, exacerbada pelo vinho.

 

     Caminhamos entre árvores, deixamos o caramanchão para trás. Uriarte e Duncan iam na frente; estranhei que se vigiassem, como temendo uma surpresa. Contornamos um canteiro de grama. Duncan disse com suave autoridade:

 

     – Este lugar é conveniente.

 

     Os dois ficaram no centro, indecisos. Uma voz gritou-lhes:

    

     – Soltem essa ferragem que os estorva e agarrem-se de verdade.

 

     Mas já os homens lutavam. A princípio o fizeram com insegurança, como se temessem ferir-se; a princípio olhavam os aços, mas depois os olhos do adversário. Uriarte esquecera sua raiva; Duncan, sua indiferença ou desdém. O perigo os transfigurara; agora eram dois homens que lutavam, não dois rapazes. Eu previra a luta como um caos de aço, mas pude segui-la, ou quase, como se fosse uma partida de xadrez. Os anos, é claro, talvez não tenham deixado de exaltar ou obscurecer o que vi. Não sei quanto durou; há fatos que não se sujeitam à medida comum do tempo.

 

     Sem o poncho que serve de proteção, paravam os golpes com o antebraço. As mangas, logo feitas em tiras, iam escurecendo com o sangue. Pensei que nos havíamos enganado ao pressupor que desconheciam esse tipo de esgrima. Não demorei a perceber que agiam de maneira diferente. As armas eram desiguais. Duncan, para superar essa desvantagem, aproximava-se muito do outro; Uriarte recuava para lançar-se com punhaladas longas e baixas. A mesma voz que indicara a vitrina gritou:

 

     – Estão se matando. Não os deixem continuar.

 

     Ninguém se atreveu a intervir. Uriarte perdera terreno; Duncan, então, atacou-o. Os corpos já quase se tocavam. O aço de Uriarte procurava o rosto de Duncan. Subitamente, pareceu-nos mais curto, porque penetrara no peito. Duncan ficou estendido na grama. Foi então que disse com voz muito baixa:

 

     – Que estranho. Tudo isto é como um sonho.

 

    Não fechou os olhos, não se moveu e eu tinha visto um homem matar outro.

 

     Maneco Uriarte inclinou-se sobre o morto e pediu-lhe que o perdoasse. Soluçava sem fingimento. O que acabara de cometer o dilacerava. Agora sei que se arrependia menos de um crime que da execução de um ato insensato.

 

     Não quis mais olhar. O que eu desejara ocorrera e me deixava despedaçado. Lafinur me disse depois que tiveram de arrancar a arma com força. Formou-se um conciliábulo. Resolveram mentir o menos possível e elevar o duelo com punhal a um duelo com espada. Quatro se ofereceram como padrinhos, entre eles Acebal. Tudo se arranja em Buenos Aires; alguém é sempre amigo de alguém.

 

     Em cima da mesa de mogno ficou uma desordem de baralhos ingleses e cédulas que ninguém queria olhar ou tocar.

 

     Nos anos que se seguiram pensei mais de uma vez em confiar a história a um amigo, mas sempre senti que ser possuidor de um segredo me comprazia mais que contá-lo. Por volta de 1929, um diálogo casual me levou de repente a quebrar o longo silêncio. O delegado aposentado Dom José Olave me contara histórias de homens da faca da parte baixa do Retiro; observou que essa gente era capaz de qualquer felonia, contanto que se antecipasse ao adversário, e que antes dos Podestá e de Gutiérrez quase não havia duelos crioulos. Disse-lhe que fora testemunha de um e contei-lhe o que acontecera havia tantos anos.

 

     Ouviu-me com atenção profissional e depois me disse:

 

     – Está certo de que Uriarte e o outro nunca tinham se enfrentado? Talvez uma temporada no campo lhes tenha servido para alguma coisa.

 

     – Não – respondi. – Todos os que ali estavam naquela noite se conheciam e todos estavam atônitos.

 

     Olave continuou sem pressa, como se pensasse em voz alta:

 

     – Uma das adagas tinha os copos em forma de U. Houve duas adagas como essa que se tornaram famosas: a de Moreira e a de Juan Almada, de Tapalquén.

 

     Algo despertou em minha memória; Olave prosseguiu:

 

     – Você mencionou também um punhal com cabo de madeira, da marca da Arvorezinha. Existem milhares de armas como essa, mas houve uma...

 

     Calou-se um instante e depois continuou:

 

     – O senhor Acevedo tinha sua propriedade no campo perto de Pergamino. Precisamente por aqueles pagos andou, em fins do século, outro pendenciador de fama: Juan Almanza. Desde a primeira morte que cometeu, aos catorze anos, usava sempre um desses punhais curtos, porque lhe trazia sorte. Juan Almanza e Juan Almada tomaram aversão um pelo outro, porque as pessoas os confundiam. Durante muito tempo procuraram-se, mas nunca se encontraram. Juan Almanza foi morto por uma bala perdida, em umas eleições. O outro, creio, morreu de morte natural no hospital de Las Flores.

 

     Nada mais foi dito nessa tarde. Ficamos pensando.

 

     Nove ou dez homens, que já morreram, viram o que meus olhos viram – alonga estocada no corpo e o corpo sob o céu –, mas o que viram foi o final de outra história mais antiga. Maneco Uriarte não matou Duncan. As armas, não os homens, lutaram. Tinham dormido, lado a lado, em uma vitrina, até que as mãos as despertaram. Talvez se tenham agitado ao despertar; por isso tremeu o pulso de Uriarte, por isso tremeu o pulso de Duncan. As duas sabiam duelar – não seus instrumentos, os homens – e duelaram bem naquela noite. Haviam-se procurado por longo tempo, pelos extensos caminhos da província, e afinal se encontraram, quando seus gaúchos já eram pó. Em seu ferro dormia e espreitava um rancor humano.

 

     As coisas duram mais que as pessoas. Quem sabe se a história termina aqui, quem sabe se não voltarão a encontrar-se?

 

                       JUAN MURAÑA

 

     Durante anos tenho repetido que me criei em Palermo. Trata-se, sei disso agora, de mera vaidade literária; o fato é que me criei do outro lado de uma extensa grade com lanças, em uma casa ajardinada e com a biblioteca de meu pai e de meus avós. Palermo do punhal e da guitarra andava (asseguram-me) pelas esquinas. Em 193O, consagrei um estudo a Carriego, nosso vizinho cantor e exaltador dos subúrbios. O acaso colocou-me, pouco depois, diante de Emilio Trápani. Eu ia para Morón; Trápani, que estava junto à janela, chamou-me pelo nome. Demorei em reconhecê-lo, pois já se haviam passado muitos anos desde que compartilhamos o mesmo banco em uma escola da rua Thames. Roberto Godel se lembrará disso.

 

     Nunca tivemos amizade um pelo outro. O tempo nos havia distanciado, e também a recíproca indiferença. Ele me ensinara, lembro-me agora, os rudimentos do lunfardo de então. Entabulamos uma dessas conversas triviais que se empenham na busca de fatos inúteis e que nos revelam o falecimento de um colega que já não é mais que um nome. De repente, Trápani disse-me:

 

     – Emprestaram-me teu livro sobre Carriego. Nele falas todo o tempo sobre malfeitores. Dize-me, Borges, que podes saber a respeito de malfeitores?

 

     Olhou-me com uma espécie de santo horror.

 

     – Documentei-me – respondi-lhe.

 

     Não me deixou continuar e disse:

 

     – Documentado é a palavra. A mim os documentos não fazem falta; eu conheço essa gente.

 

     Depois de um silêncio, acrescentou, como se me confiasse um segredo:

 

     – Sou sobrinho de Juan Muraña.

 

     Dos homens da faca que houve em Palermo em noventa e tantos, o mais afamado era Muraña. Trápani continuou:

 

     – Florentina, minha tia, era sua mulher. A história pode interessar-te.

    

     Certa ênfase do tipo retórico e algumas frases longas fizeram-me suspeitar que não era a primeira vez que a contava.

 

     "Minha mãe sempre teve desgosto porque a irmã unira sua vida à de Juan Muraña, que para ela era um desalmado e para tia Florentina um homem de ação. Sobre a sorte de meu tio correram muitas histórias. Não faltou quem dissesse que uma noite em que estava "alto" caiu da boléia de seu carro ao dobrar a esquina de Coronel e que as pedras lhe racharam o crânio. Também se disse que estava sendo procurado pela lei e que fugiu para o Uruguai. Minha mãe, que nunca suportou o cunhado, não me contou o assunto. Eu era muito pequeno e não guardo lembrança dele.

 

     "Por ocasião do Centenário, vivíamos na passagem Russell, em uma casa comprida e estreita. A porta do fundo, que estava sempre fechada à chave, dava para San Salvador. No quarto do sótão vivia minha tia, já entrada em anos e um pouco estranha. Magra e ossuda, era, ou me parecia que era, muito alta e de poucas palavras. Tinha medo do vento, nunca saía, não queria que entrássemos em seu quarto e mais de uma vez peguei-a roubando e escondendo comida. No bairro diziam que a morte, ou o desaparecimento, de Muraña a havia transtornado. Recordo-a sempre de preto. Tinha o costume de falar só.

 

     "A casa era de propriedade de um tal senhor Luchessi, dono de uma barbearia em Barracas. Minha mãe, que era costureira de carregação, estava na pior. Sem que eu as entendesse completamente, ouvia palavras sigilosas: oficial de justiça, desocupação, despejo por falta de pagamento. Minha mãe estava muito aflita; minha tia repetia obstinadamente: "Juan não vai consentir que o italiano nos ponha para fora". Recordava o caso – que sabíamos de cor – de um sulista insolente que se atrevera a duvidar da coragem de seu marido. Este, assim que soube, bandeou-se para a outra ponta da cidade, procurou-o, liquidou-o com uma punhalada e atirou-o ao Riachuelo. Não sei se a história é verdadeira; o que importa agora é o fato de que tenha sido contada e de que se tenha acreditado nela.

 

     "Eu já me via dormindo nos baldios da rua Serrano ou pedindo esmolas ou com uma cesta de pêssegos. Tentava-me a última, que me livraria de ir à escola.

 

     "Não sei quanto durou essa aflição. Uma vez, teu finado pai nos disse que não se pode medir o tempo por dias, como o dinheiro por centavos ou pesos, porque os pesos são iguais e cada dia é diferente, talvez mesmo cada hora. Não compreendi muito bem o que ele dizia, mas gravei a frase.

 

    "Em uma dessas noites tive um sonho que acabou em pesadelo. Sonhei com meu tio Juan. Não cheguei a conhecê-lo, mas imaginava-o com feições de índio, forte, de bigode ralo e cabelo comprido. Íamos para o sul, entre grandes pedreiras e matagal, mas essas pedreiras e esse matagal eram também a rua Thames. No sonho o sol estava alto. Tio Juan ia vestido de preto. Parou perto de uma espécie de tablado, em um desfiladeiro. Tinha a mão debaixo do paletó, à altura do coração, não como quem está para puxar uma arma, mas como quem a está escondendo. Com voz muito triste, disse-me: "Mudei muito". Foi tirando a mão e eu vi que era uma garra de abutre. Acordei gritando no escuro.

 

     "No outro dia minha mãe me ordenou que fosse com ela à casa de Luchessi. Eu sabia que ia pedir-lhe uma prorrogação; levava-me, sem dúvida, para que o credor visse seu desamparo. Não disse uma palavra à irmã, que não teria concordado em rebaixar-se daquela maneira. Eu nunca estivera em Barracas; pareceu-me haver mais gente, mais trânsito e menos terrenos baldios. Da esquina vimos guardas e uma aglomeração diante do número que procurávamos. Um vizinho repetia de grupo em grupo que por volta das três horas da manhã fora acordado por umas pancadas; ouviu a porta que se abria e alguém que entrava. Ninguém a fechou; ao amanhecer, encontraram Luchessi estendido no vestíbulo, meio vestido. Fora atravessado a punhaladas. O homem vivia só; a Justiça nunca encontrou o culpado. Não haviam roubado nada. Alguém lembrou que, ultimamente, o finado quase havia perdido a vista. Com voz autoritária, disse outro: "Chegara sua hora". O ditame e o tom me impressionaram; com o passar dos anos, pude observar que cada vez que alguém morre não falta um sentencioso para fazer essa mesma descoberta.

 

     "Os do velório nos convidaram para um café e eu tomei uma xícara. No caixão havia uma figura de cera em lugar do morto. Comentei o fato com minha mãe; um dos agentes funerários, rindo, esclareceu-me que aquela figura com roupa preta era o senhor Luchessi. Fiquei como que fascinado, olhando-o. Minha mãe teve de me puxar pelo braço.

 

     "Durante meses não se falou de outra coisa. Os crimes eram raros então; imagina o muito que deram que falar os casos do Melena, do Campana e do Silletero. A única pessoa em Buenos Aires que não se tocou foi tia Florentina. Repetia com a insistência da velhice:

 

     "– Já lhes disse que Juan não ia permitir que o italiano nos deixasse sem teto.

 

     "Um dia chovia a cântaros. Como eu não podia ir à escola, comecei a bisbilhotar pela casa. Subi ao sótão. Aí estava minha tia, com uma mão em cima da outra; senti que nem sequer estava pensando. O quarto cheirava a umidade. Em um canto estava a cama de ferro, com o rosário em uma das grades da cabeceira; no outro, uma arca de madeira para guardar roupa. Em uma das paredes caiadas havia uma estampa da Virgem do Carmo. Na mesinha-de-cabeceira estava o castiçal.

 

     "Sem erguer os olhos, minha tia disse:

 

     "– Já sei o que te traz por aqui. Tua mãe te mandou. Ela não consegue entender que foi Juan quem nos salvou.

 

     "– Juan? – atinei em dizer. – Juan morreu há mais de dez anos.

 

     "– Juan está aqui – disse. – Queres vê-lo?

 

     "Abriu a gaveta da mesinha e tirou um punhal.

    

     "Continuou falando suavemente:

 

     "– Aqui o tens. Eu sabia que ele nunca ia me deixar.

 

     Nunca houve no mundo um homem como ele. O italiano não teve nem tempo de respirar.

 

     "Foi somente então que entendi. Essa pobre mulher desatinada assassinara Luchessi. Tomada pelo ódio, pela loucura e, talvez, quem sabe, pelo amor, escapara pela porta voltada para o sul, atravessara na alta noite ruas e mais ruas, dera por fim com a casa e, com aquelas grandes mãos ossudas, cravara o punhal. A adaga era Muraña, era o morto que ela continuava adorando.

 

     "Nunca hei de saber se confiou a história a minha mãe. Faleceu pouco antes do despejo."

 

     Até aqui a narrativa de Trápani, com quem jamais voltei a encontrar-me. Na história dessa mulher que ficou só e que confunde seu homem, seu tigre, com aquela coisa cruel que lhe deixou, a arma de seus feitos, creio entrever um símbolo ou muitos símbolos. Juan Muraña foi um homem que pisou minhas ruas familiares, que soube o que sabem os homens, que conheceu o gosto da morte, que foi depois um punhal e agora a memória de um punhal e amanhã o esquecimento, o comum esquecimento.

 

                   A VELHA DAMA

 

     No dia catorze de janeiro de 1941, Maria Justina Rubio de Jáuregui completaria cem anos. Era a única filha de guerreiros da Independência que ainda não havia morrido.

 

     O coronel Mariano Rubio, seu pai, foi o que, sem falta de respeito, pode-se chamar um prócer menor. Nascido na paróquia de La Merced, filho de pais fazendeiros da província, foi promovido a alferes no exército dos Andes, militou em Chacabuco, na derrota de Cancha Rayada, em Maipú e, dois anos depois, em Arequipa. Conta-se que na véspera dessa ação José de Olavarría e ele trocaram suas espadas. Em princípios de abril de 23 ocorreria o célebre combate de Cerro Alto, que, por se haver travado no vale, costuma chamar-se também de Cerro Bermejo. Sempre invejosos de nossas glórias, os venezuelanos atribuíram essa vitória ao general Simón Bolívar, mas o observador imparcial, o historiador argentino, não se deixa enganar e sabe muito bem que seus lauréis correspondem ao coronel Mariano Rubio. Este, à cabeça de um regimento de hussardos colombianos, decidiu a incerta contenda de sabres e lanças que preparou a não menos famosa expedição de Ayacucho, na qual também lutou. Nesta recebeu um ferimento. A 27 lhe foi dado agir com denodo em Ituzaingó, sob as ordens diretas de Alvear. Apesar de seu parentesco com Rosas, foi homem de Lavalle e desbaratou os guerrilheiros em uma ação a que chamou sempre espadeirada. Derrotados os unitários, emigrou para o Estado Oriental, onde se casou. Durante a Guerra Grande morreu em Montevidéu, praça sitiada pelos brancos de Oribe. Ia fazer quarenta e quatro anos, o que já era quase a velhice. Foi amigo de Florencio Varela. É bem verossímil que os professores do Colégio Militar o tivessem reprovado; ele só havia cursado batalhas, mas nem um único exame. Deixou duas filhas, das quais Maria Justina, a mais moça, é a que nos interessa.

    

     Em fins de 53, a viúva do coronel e suas filhas fixaram-se em Buenos Aires. Não recuperaram a propriedade de campo confiscada pelo tirano, mas a recordação dessas léguas perdidas, que nunca tinham visto, perdurou por muito tempo na família. Com a idade de dezessete anos, Maria Justina casou-se com o doutor Bernardo Jáuregui, que, embora sendo civil, lutou em Pavón e em Cepeda, morrendo no exercício de sua profissão durante a Febre Amarela. Deixou um filho e duas filhas. Mariano, o primogênito, era fiscal de rendas e costumava freqüentar a Biblioteca Nacional e o Arquivo, premido pelo propósito de escrever uma exaustiva biografia do herói, a qual nunca terminou e que talvez jamais tenha começado. A mais velha, Maria Elvira, casou-se com um primo, um Saavedra, funcionário do Ministério da Fazenda; Júlia, com certo senhor Molinari, que, apesar do sobrenome italiano, era professor de latim e pessoa das mais ilustradas. Omito netos e bisnetos; basta que o leitor imagine uma família honrada e arruinada, presidida por uma sombra épica e pela filha que nasceu no desterro.

 

     Viviam modestamente em Palermo, não longe da Igreja de Guadalupe, onde Mariano se lembrava de ter visto ainda, de um bonde da Gran Nacional, uma laguna bordejada por alguns ranchos de tijolo sem rebocar, não de folhas de zinco; a pobreza de ontem era menos pobre que a que nos depara agora a indústria. Também as fortunas eram menores.

 

     A casa dos Rubio ocupava os altos de uma mercearia do bairro. A escada lateral era estreita; a varanda, que estava à direita, prolongava-se para um dos lados do escuro vestíbulo, onde havia um cabide e algumas cadeiras. O vestíbulo dava para a saleta com móveis estofados, e a saleta para a sala de jantar, com móveis de mogno e um aparador. As persianas de ferro, sempre fechadas por temor a soalheira, deixavam passar uma meia-luz. Lembro-me de um odor a coisas guardadas. No fundo estavam os quartos de dormir, o banheiro, um pequeno pátio com uma pia e o quarto da criada. Em toda a casa não havia outros livros que um volume de Andrade, uma monografia do herói, com adições manuscritas, e o Dicionário Hispano-Americano, de Montaner e Simón, adquirido porque o pagavam à prestação e pela estante correspondente. Contavam com uma pensão, que sempre lhes chegava com atraso, e com o aluguel de um terreno – único vestígio da estância, antes enorme – em Lomas de Zamora.

 

     Na data de minha narrativa, a velha dama morava com Júlia, que enviuvara, e com um filho desta. Continuava abominando Artigas, Rosas e Urquiza; a primeira guerra européia, que a fez detestar os alemães, sobre os quais sabia muito pouca coisa, foi menos real para ela que a revolução de noventa e que o ataque de Cerro Alto. Desde 1932 fora se apagando pouco a pouco; as metáforas comuns são as melhores, porque são as únicas verdadeiras. Professava, por certo, a fé católica, o que não significa que acreditasse em um Deus que é Uno e é Três nem sequer na imortalidade das almas. Murmurava orações que não entendia e as mãos moviam o rosário. Em vez da Páscoa e do Dia de Reis aceitara o Natal, assim como o chá em vez do mate. As palavras protestante, judeu, maçom, herege e ateu eram, para ela, sinônimas e nada queriam dizer. Enquanto pôde não falava de espanhóis, mas de godos, como o haviam feito seus pais. Em 191O, não queria acreditar que a Infanta, que afinal de contas era uma princesa, falasse, contra toda a previsão, como uma espanhola do povo e não como uma senhora argentina. Foi no velório de seu genro que uma parenta rica, que nunca pisara naquela casa mas cujo nome procuravam com avidez na crônica social dos jornais, deu-lhe a desconcertante notícia. A terminologia da senhora Jáuregui continuava antiquada; falava da rua das Artes, da rua do Temple, da rua Buen Orden, da rua de La Piedad, das duas ruas Largas, da praça do Parque e dos Portones. A família simulava esses arcaísmos, mas na velha dama eram espontâneos. Diziam orientais e não uruguaios. Não saía de sua casa; talvez nem suspeitasse que Buenos Aires mudara e crescera. As primeiras recordações são as mais nítidas; a cidade que a velha dama imaginava do outro lado da porta da rua seria muito anterior à do tempo em que tiveram de mudar-se do centro. Os bois das carretas descansariam na praça do Once e as violetas mortas perfumariam as chácaras de Barracas. Eu só sonho com mortos foi uma das últimas coisas que a ouviram dizer. Nunca foi tola, mas não desfrutara, que eu saiba, de prazeres intelectuais; restariam a ela somente os que a memória e depois o esquecimento dão. Sempre foi generosa. Lembro-me de seus tranqüilos olhos claros e de seu sorriso. Quem sabe que tumulto de paixões, agora perdidas mas que já arderam, houve nessa velha mulher, que fora bonita. Muito sensível às plantas, cuja modesta vida silenciosa era muito semelhante à dela, cuidava de algumas begônias em seu quarto e tocava nas folhas que não via. Até 1929, ano em que mergulhou no entressonho, contava acontecimentos históricos, mas sempre com as mesmas palavras e na mesma ordem, como se fossem o Pai-Nosso, e suspeitei que já não correspondiam a imagens. Tanto lhe fazia comer uma coisa como outra. Em suma, era feliz.

 

     Dormir, segundo se sabe, é o mais secreto de nossos atos. Dedicamos ao sono uma terça parte de nossa vida e não o compreendemos. Para alguns não é senão um eclipse da vigília; para outros, um estado mais complexo, que abarca ao mesmo tempo o ontem, o agora e o amanhã; para outros, ainda, uma não interrompida série de sonhos. Dizer que a senhora Jáuregui passou dez anos em um caos tranqüilo talvez seja um erro; cada instante desses dez anos pode ter sido um puro presente, sem antes nem depois. Não nos maravilhemos demais com esse presente que contamos por dias e noites e pelas centenas de folhas de muitos calendários, além de ansiedades e fatos. O presente é o que atravessamos cada manhã antes de recordarmos e cada noite antes do sono. Todos os dias somos duas vezes a velha dama.

 

     Os Jáuregui viviam, já sabemos, em uma situação um tanto falsa. Acreditavam pertencer à aristocracia, mas as pessoas dessa classe os ignoravam; eram descendentes de um prócer, mas os manuais de história costumavam prescindir de seu nome. É verdade que havia uma rua em sua homenagem, mas essa rua, que muito poucos conhecem, estava perdida nos fundos do cemitério do Oeste.

 

     A data se aproximava. No dia dez, um militar fardado apresentou-se com uma carta assinada pelo próprio Ministro anunciando sua visita para o dia catorze; os Jáuregui mostraram essa carta a toda a vizinhança, chamando a atenção para o timbre e para a assinatura autêntica. Depois foram chegando os jornalistas para a redação da notícia. Facilitaram-lhes todos os dados; era evidente que na vida deles jamais tinham ouvido falar do coronel Rubio. Pessoas quase desconhecidas telefonaram pedindo-lhes para serem convidadas.

 

     Diligentemente, trabalharam para o grande dia. Enceraram o assoalho, limparam os vidros das janelas, desencaparam os lustres, envernizaram o mogno, poliram a prataria do aparador, modificaram a disposição dos móveis e deixaram aberto o piano da sala para ostentar o veludo que cobria as teclas. As pessoas iam e vinham. A única alheia a esse bulício era a senhora Jáuregui, que parecia não entender nada. Sorria. Júlia, assistida pela criada, enfeitou-a como se já estivesse morta. A primeira coisa que as visitas veriam ao entrar seria o retrato a óleo do prócer e, um pouco mais abaixo e à direita, a espada de suas muitas batalhas. Mesmo nas épocas de penúria se haviam negado sempre a vendê-la e pensavam doá-la ao Museu Histórico. Uma vizinha muito atenciosa emprestou-lhes para a ocasião um vaso de gerânios.

 

     A festa começaria às sete. Marcaram tudo para as seis e meia, porque sabiam que ninguém gosta de chegar para acender as luzes. Às sete e dez não havia vivalma; discutiram com certa aspereza as vantagens e desvantagens da falta de pontualidade. Elvira, que se prezava de chegar na hora exata, sentenciou que era imperdoável desconsideração deixar as pessoas esperando; Júlia, repetindo palavras de seu marido, opinou que chegar tarde é uma cortesia, porque se todos agem assim é mais cômodo e ninguém apressa ninguém. Às sete e um quarto as pessoas não cabiam dentro da casa. O bairro inteiro pôde ver e invejar o carro e o chauffeur da senhora Figueroa, que quase nunca as convidava, mas que receberam efusivamente, para que ninguém suspeitasse que só se viam uma vez na vida, outra na morte. O presidente mandou seu oficial de gabinete, um senhor muito amável, que disse que para ele era uma imensa honra apertar a mão da filha do herói de Cerro Alto. O ministro, que teve de sair cedo, leu um discurso muito conceituoso, no qual, no entanto, falava-se mais de San Martín que do coronel Rubio. A anciã estava em sua poltrona, encostada em almofadões, e de vez em quando inclinava a cabeça ou deixava o leque cair. Um grupo de senhoras distintas, as Damas da Pátria, cantou-lhe o Hino, mas ela não pareceu ouvir. Os fotógrafos colocaram a assistência em grupos artísticos e foram pródigos em seus fogos. Os cálices de porto e de xerez não davam conta do necessário. Espocaram várias garrafas de champagne. A senhora Jáuregui não disse uma única palavra: talvez já não soubesse quem era. E a partir dessa noite não saiu mais da cama.

 

     Quando os convidados foram embora, a família improvisou um pequeno jantar frio. O cheiro do tabaco e do café já havia dissipado o do suave benjoim.

 

     Os jornais da manhã e da tarde mentiram com lealdade; consideraram a quase milagrosa memória da filha do prócer, que “é arquivo eloqüente de cem anos da história argentina”. Júlia quis mostrar-lhe essas notícias. Na penumbra, a velha dama continuava imóvel, de olhos fechados. Não tinha febre; o médico examinou-a e afirmou que tudo estava bem. Poucos dias depois morreu. A invasão da turba, o tumulto insólito, os fogos, o discurso, os uniformes, os repetidos apertos de mão e o ruidoso champagne apressaram seu fim. Talvez tenha acreditado que era a Mazorca que entrava.

 

     Penso nos mortos de Cerro Alto, penso nos homens esquecidos da América e da Espanha que pereceram sob os cascos dos cavalos; penso que a última vítima desse tropel de lanças no Peru seria, mais de um século depois, uma velha dama.

 

                   O DUELO

 

     Henry James – cujo trabalho me foi revelado por uma de minhas duas protagonistas, a senhora Figueroa – talvez não houvesse desprezado a história. Talvez lhe consagrasse mais de cem páginas de ironia e ternura, adornadas com diálogos complexos e escrupulosamente ambíguos. Não é improvável que lhe acrescentasse algum traço melodramático. O essencial não teria sido modificado pelo cenário diferente: Londres ou Boston. Os fatos ocorreram em Buenos Aires e aí os deixarei. Vou limitar-me a um resumo do caso, já que sua lenta evolução e seu ambiente mundano são alheios a meus hábitos literários. Ditar essa narrativa é para mim uma modesta e lateral aventura. Devo prevenir o leitor de que os episódios importam menos que a situação que os causa e os caracteres.

 

     Clara Glencairn de Figueroa era altiva e alta e de fogoso cabelo vermelho. Menos intelectual que compreensiva, não era talentosa, mas sim capaz de apreciar o talento dos outros e até das outras. Em sua alma havia hospitalidade. Apreciava as diferenças e talvez por isso tenha viajado tanto. Sabia que o ambiente que lhe coubera por sorte era um conjunto às vezes arbitrário de ritos e cerimônias, mas esses ritos lhe agradavam e os exercia com dignidade. Seus pais casaram-na muito jovem com o doutor Isidro Figueroa, que foi nosso embaixador no Canadá e que acabou por renunciar ao cargo, alegando que em uma época de telégrafos e telefones as embaixadas eram anacronismos e constituíam um ônus inútil. Essa decisão lhe valeu o rancor de todos os seus colegas; Clara gostava do clima de Ottawa – afinal de contas, era de linhagem escocesa – e não desgostava dos deveres de mulher de um embaixador, mas nem sequer sonhou em protestar. Figueroa morreu pouco tempo depois; Clara, após alguns anos de indecisão e procura íntima, entregou-se à prática da pintura, induzida a isto talvez pelo exemplo de sua amiga Marta Pizarro.

 

     É típico de Marta Pizarro que todos, ao se referirem a ela, definissem-na como irmã da brilhante Nélida Sara, casada e separada.

 

     Antes de escolher o pincel, Marta Pizarro considerara a alternativa das letras. Podia ser habilidosa em francês, idioma habitual de suas leituras; o espanhol, para ela, não passava de mero utensílio caseiro, como o guarani para as senhoras da província de Corrientes. Os jornais haviam colocado a seu alcance páginas de Lugones e do madrileno Ortega y Gasset; o estilo desses mestres confirmou sua suspeita de que a língua a que estava predestinada é menos apta para a expressão do pensamento ou das paixões que para a vaidade verbosa. Só sabia da música o que deve saber toda pessoa que assiste corretamente a concertos. Era de San Luis de la Punta; começou sua carreira com escrupulosos retratos de Juan Crisóstomo Lafinur e do coronel Pascual Pringles, que foram previsivelmente adquiridos pelo Museu Provincial. Do retrato de próceres locais passou para as velhas casas de Buenos Aires, cujos modestos pátios delineou com modestas cores e não com a chamativa cenografia que outros lhes dão. Alguém – que certamente não foi a senhora Figueroa – disse que toda a sua arte se alimentava dos mestres de obras genoveses do século XIX. Entre Clara Glencairn e Nélida Sara (que, segundo dizem, certa vez gostara do doutor Figueroa) sempre houve certa rivalidade; talvez o duelo fosse entre as duas e Marta um instrumento.

 

     Tudo, segundo se sabe, acontece inicialmente em outros países e por fim no nosso. A seita dos pintores, hoje em dia tão injustamente esquecida, que se chamou concreta ou abstrata, como para indicar seu desprezo pela lógica e pela linguagem, é um dos tantos exemplos disso. Argumentava, creio, que, da mesma maneira que à música se permite criar um mundo próprio de sons, a pintura, sua irmã, poderia ensaiar cores e formas que não reproduzissem apenas aquelas coisas que nossos olhos vêem. Lee Kaplan escreveu que suas telas, que indignavam os burgueses, acatavam a bíblica proibição, compartilhada pelo Islã, de lavrar com mãos humanas ídolos de seres vivos. Os iconoclastas,, argüia, estavam restaurando a genuína tradição da arte pictórica, falsificada por hereges como Dürer ou Rembrandt. Seus detratores o acusaram de haver invocado o exemplo que nos dão os tapetes, os caleidoscópios e as gravatas. As revoluções estéticas propõem às pessoas a tentação do irresponsável e do fácil; Clara Glencairn optou por ser uma pintora abstrata. Sempre professara o culto a Turner e se dispôs a enriquecer a arte concreta com seus esplendores indefinidos. Trabalhou sem pressa, refez ou destruiu várias composições e no inverno de 1954 exibiu uma série de têmperas em uma sala da rua Suipacha, cuja especialidade eram as obras que uma metáfora militar, então na moda, chamava de vanguarda. Aconteceu um fato paradoxal: a crítica em geral foi benevolente, mas o órgão oficial da seita reprovou aquelas formas anômalas que, embora não fossem figurativas, sugeriam o tumulto de um ocaso, de uma selva ou do mar e não se resignavam a ser austeros círculos e linhas. Talvez a primeira a sorrir fosse Clara Glencairn. Quisera ser moderna e os modernos a recusavam. A elaboração de sua obra lhe importava mais que o sucesso e por isso não deixou de trabalhar. Alheia a esse episódio, a pintura seguia seu caminho.

 

     Já havia começado o duelo secreto. Marta não somente era uma artista; interessava-lhe profundamente o que não é injusto chamar o administrativo da arte e era segunda-secretária da sociedade que se chama o Círculo de Giotto. Em meados de 55 conseguiu que Clara, admitida já como sócia, figurasse como vogal na lista das novas autoridades. O fato, na aparência insignificante, merece uma análise. Marta apoiara sua amiga, mas é indiscutível, embora misterioso, que a pessoa que confere um favor supera de algum modo quem o recebe.

 

     Por volta do ano sessenta, "dois pincéis de nível internacional" – perdoem-nos este jargão – disputavam um primeiro prêmio. Um dos candidatos, o mais velho, consagrara solenes óleos à figuração de gaúchos tremendos, de altura escandinava; seu rival, bastante jovem, conseguira aplausos e escândalo mediante uma aplicada incoerência. Os jurados, que já haviam ultrapassado o meio século, temiam que as pessoas lhes imputassem um critério antiquado e estavam inclinados a votar no último, que intimamente não lhes agradava. Depois de tenazes debates, travados a princípio com cortesia e por fim com tédio, não chegavam a um acordo. No decorrer da terceira discussão, alguém opinou:

 

     – B me parece ruim; na realidade me parece inferior à própria senhora Figueroa.

 

     – E você votaria nela? – perguntou outro, em tom de ironia.

 

     – Votaria – replicou o primeiro, que já estava irritado.

 

     Nessa mesma tarde, o prêmio foi concedido por unanimidade a Clara Glencairn. Era distinta, amável, de uma moral sem mácula e costumava dar festas que as revistas mais caras fotografavam em sua chácara de Pilar. O consabido jantar de homenagem foi organizado e oferecido por Marta. Clara agradeceu-lhe com poucas e acertadas palavras; observou que não existe oposição entre o tradicional e o novo, entre a ordem e a aventura, e que a tradição é feita de uma trama secular de aventuras. Assistiram à manifestação numerosas pessoas da sociedade, quase todos os membros do júri e um ou outro pintor.

 

     Todos nós pensamos que o acaso nos deparou um ambiente mesquinho e que os outros sempre são melhores. O culto aos gaúchos e ao Beatus ille1 são nostalgias urbanas; Clara Glencairn e Marta, fartas das rotinas do ócio, cobiçavam o mundo dos artistas, gente que dedicara sua vida à criação de coisas belas. Presumo que no céu os Bem-aventurados acham que as vantagens desse local foram exageradas pelos teólogos que nunca estiveram ali. Talvez no inferno os réprobos não sejam sempre felizes.

 

     Dois anos depois, realizou-se na cidade de Cartagena o Primeiro Congresso Internacional de Artistas Plásticos Latino-Americanos. Cada república mandou seu representante. O temário – que nos perdoem o jargão – era de palpitante interesse: pode o artista prescindir do autóctone, pode omitir ou escamotear a fauna e a flora, pode ser insensível à problemática social, pode não unir sua voz à daqueles que estão combatendo o imperialismo saxão, etcétera, etcétera? Antes de ser embaixador no Canadá, o doutor Figueroa desempenhara em Cartagena uma missão diplomática; Clara, um tanto envaidecida pelo prêmio, gostaria de voltar, agora como artista. Essa esperança fracassou. Marta Pizarro foi designada pelo governo. Sua atuação (embora nem sempre persuasiva) foi não poucas vezes brilhante, segundo o testemunho imparcial dos correspondentes de Buenos Aires.

 

     A vida exige uma paixão. Ambas as mulheres a encontraram na pintura ou, melhor, na relação que a pintura lhes impôs. Clara Glencairn pintava contra Marta e de certo modo para Marta; cada uma era o juiz de sua rival e o solitário público. Nessas telas, que já ninguém olhava, creio perceber, como era inevitável, uma influência recíproca. E importante não esquecer que as duas se gostavam e que ao longo daquele íntimo duelo agiram com perfeita lealdade.

 

     Foi durante aqueles anos que Marta, que já não era tão jovem, recusou um pedido de casamento; só lhe interessava sua batalha.

 

   No dia dois de fevereiro de mil novecentos e sessenta e quatro, Clara Glencairn morreu de um aneurisma. As colunas dos jornais lhe consagraram longos necrológios, que ainda são de praxe em nosso país, onde a mulher é um exemplar da espécie e não um indivíduo. Afora uma apressada referência a seus pendores pictóricos e a seu refinado bom gosto, ressaltaram sua fé, sua bondade, sua quase anônima e constante filantropia, sua linhagem aristocrata – o general Glencairn militara na campanha do Brasil – e sua destacada posição nos mais altos círculos. Marta compreendeu que sua vida já não tinha sentido. Nunca se sentira tão inútil. Recordou suas primeiras tentativas, agora longínquas, e expôs no Salão Nacional um sóbrio retrato de Clara, ao estilo daqueles mestres ingleses que as duas haviam admirado. Alguém julgou-o sua melhor obra. Jamais voltaria a pintar.

 

     Naquele duelo delicado que somente nós, alguns íntimos, adivinhamos não houve derrotas nem vitórias, nem sequer um encontro nem outras visíveis circunstâncias além das que procurei registrar com respeitosa pena. Só Deus (cujas preferências estéticas ignoramos) pode conceder a glória final. A história que se desenrolou na sombra acaba na sombra.

 

                     O OUTRO DUELO

 

     Já faz muitos anos que Carlos Reyles, filho do romancista, contou-me a história em Adrogué, em um entardecer de verão. Em minha memória se confundem agora a longa crônica de um ódio e seu trágico fim com o odor medicinal dos eucaliptos e o canto dos pássaros.

 

     Falávamos, como sempre, da confusa história das duas pátrias. Disse-me que sem dúvida eu conhecia de nome Juan Patrício Nolan, que ganhara fama de valente, brincalhão e malandro. Respondi-lhe, mentindo, que sim. Nolan morrera por volta do ano de noventa, mas as pessoas continuavam pensando nele como um amigo. Teve também seus detratores, que nunca faltam. Contou-me uma das muitas diabruras dele. O fato ocorrera pouco antes da batalha de Manantiales; os protagonistas eram dois gaúchos de Cerro Largo: Manuel Cardoso e Carmen Silveira.

 

     Como e por que cresceu o ódio de um pelo outro? Como recuperar, depois de um século, a obscura história de dois homens, sem outra fama que aquela que lhes deu o duelo final? Um capataz do pai de Reyles, que se chamava Laderecha e "que tinha um bigode de tigre", recebera por tradição oral certos pormenores que agora transcrevo sem maior fé, já que o esquecimento e a lembrança são inventivos.

 

     Manuel Cardoso e Carmen Silveira tinham suas terrinhas contíguas. Como a de outras paixões, a origem de um ódio sempre é obscura, mas fala-se de uma disputa por causa de animais sem marcar ou de uma corrida em pêlo, na qual Silveira, que era mais forte, tirara da cancha com empurrões o parelheiro de Cardoso. Meses depois aconteceria, no comércio local, uma longa partida de truco a dois, de quinze e quinze. Silveira felicitava o adversário quase a cada vaza, mas no fim deixou-o sem um centavo. Quando guardou o dinheiro no cinturão, agradeceu a Cardoso a lição que lhe dera. Foi então, creio, que estiveram a ponto de se pegarem. A partida fora muito disputada; os assistentes, que eram muitos, tiveram de apartá-los. Nessas asperezas e naquele tempo, o homem se encontrava com o homem e o aço com o aço. Um traço singular da história é que Manuel Cardoso e Carmen Silveira talvez se tenham enfrentado nas coxilhas mais de uma vez, ao entardecer e ao amanhecer, mas que não se bateram até o fim. Talvez suas pobres vidas rudimentares não possuíssem outro bem que seu ódio e por isso eles o foram acumulando. Sem suspeitar disso, cada um dos dois converteu-se em escravo do outro.

 

     Já não sei se os fatos que vou narrar são efeitos ou causas. Cardoso, menos por amor que para fazer algo, enamorou-se de uma moça vizinha, a Serviliana; bastou que Silveira soubesse disso para que a cortejasse a sua maneira e a levasse a seu rancho. Depois de alguns meses, mandou-a embora porque já o estorvava. A mulher, despeitada, quis procurar amparo no rancho de Cardoso; este passou uma noite com ela e despediu-a ao meio-dia. Não queria as sobras do outro.

 

     Foi por aqueles anos que aconteceu, antes ou depois de Serviliana, o incidente do ovelheiro. Silveira tinha muito apego ao cão e pusera-lhe o nome de Trinta e Três. Encontraram-no morto em uma vala. Silveira desconfiou quem o havia envenenado.

 

     Por volta do inverno de setenta, a revolução de Aparicio encontrou-os na mesma taberna do truco. A frente de um piquete de guerrilheiros, um brasileiro amulatado arengou para os presentes, disse-lhes que a pátria precisava deles, que a opressão governista era intolerável, distribuiu divisas brancas e, ao final desse exórdio que não entenderam, arregimentou todos. Não lhes foi permitido despedir-se de suas famílias. Manuel Cardoso e Carmen Silveira aceitaram sua sorte; a vida do soldado não era mais dura que a do gaúcho. Dormir à intempérie, sobre os arreios, era algo a que já estavam acostumados; matar homens não custava muito para a mão que tinha o hábito de matar animais. A falta de imaginação livrou-os do medo e da queixa, embora o primeiro os tenha tocado em algum momento, quando começaram os ataques. O tremor dos estribos e das armas é uma das coisas que sempre se ouvem ao entrar em ação a cavalaria. O homem que não foi ferido no começo já se julga invulnerável. Não sentiram falta de seus pagos. O conceito de pátria lhes era estranho; apesar das divisas dos chapéus, um partido ou outro lhes dava na mesma. Aprenderam o que se pode fazer com a lança. No decurso de marchas e contramarchas, acabaram por perceber que o fato de serem companheiros lhes permitia continuar sendo rivais. Lutaram ombro a ombro e não trocaram, ao que sabemos, uma única palavra.

 

     No outono de setenta e um, que foi árduo, o fim chegaria para eles.

 

     O combate, que não duraria uma hora, ocorreu em um lugar cujo nome nunca souberam. Os nomes são dados depois pelos historiadores. Na véspera, Cardoso meteu-se, engatinhando, na barraca do chefe e lhe pediu em voz baixa que, se ganhassem no dia seguinte, reservasse para ele um dos colorados, porque até então ele não degolara ninguém e queria saber como era. O superior prometeu que, se ele se comportasse como homem, lhe faria esse favor.

 

     Os brancos eram em maior número, mas os outros dispunham de melhor armamento e os dizimaram do alto de uma colina. Depois de dois ataques inúteis que não chegaram ao cume, o chefe, ferido gravemente, rendeu-se. Aí mesmo, a seu pedido, livraram-no de seus sofrimentos.

 

     Os homens depuseram as armas. O capitão Juan Patrício Nolan, que comandava os colorados, ordenou com muitos pormenores a costumeira execução dos prisioneiros. Era de Cerro Largo e não desconhecia o rancor antigo de Silveira e Cardoso. Mandou buscá-los e disse-lhes:

 

     – Já sei que vocês dois não se podem ver e que há tempo andam procurando um ao outro. Tenho uma boa notícia para vocês: antes que o sol se esconda vão poder mostrar quem é o mais forte. Vou mandar degolá-los, de pé, e depois darão uma corrida. Sabe Deus quem ganhará.

 

     O soldado que os trouxera levou-os de volta.

 

     A notícia não tardou a espalhar-se por todo o acampamento. Nolan resolvera que a corrida coroaria a ação daquela tarde, mas os prisioneiros lhe mandaram um encarregado para dizer que eles também queriam ser testemunhas e apostar em um dos dois. Nolan, que era homem razoável, convenceu-se; fizeram apostas em dinheiro, objetos de montar, armas brancas e cavalos, que seriam entregues na ocasião oportuna às viúvas e parentes. O calor era incomum; para que ninguém ficasse sem fazer a sesta, adiaram a coisa para as quatro horas. (Deu-lhes trabalho acordar Silveira.) Nolan, à maneira crioula, deixou-os esperando uma hora. Deveria estar comentando a vitória com outros oficiais; o ordenança ia e vinha com a chaleira.

 

     De cada lado do caminho de terra, em frente às barracas, aguardavam as filas de prisioneiros, sentados no chão, com as mãos amarradas às costas para não darem trabalho. Um ou outro desabafava com palavrões, alguém recitou o princípio do Pai-Nosso, quase todos estavam como que aturdidos. Naturalmente, não podiam fumar. Já não lhes interessava a corrida, mas todos olhavam.

 

     – Eles também vão me agarrar pelos cabelos – disse um deles, invejoso.

 

     – É, mas na multidão – corrigiu um vizinho.

 

     – Como a ti também – retrucou o primeiro.

 

     Com o sabre, um sargento fez uma risca na largura do caminho. Tinham desamarrado os pulsos de Silveira e Cardoso, para que não corressem presos. Um espaço de mais de cinco varas ficava entre os dois. Colocaram os pés na risca; alguns chefes lhes pediram que não falhassem porque confiavam neles e as somas que haviam apostado eram de muita monta.

 

     Tirada a sorte, Silveira coube ao Pardo Nolan, cujos avós tinham sido sem dúvida escravos da família do capitão e usavam o nome dela; e Cardoso ficou para o degolador habitual, um correntino entrado em anos, que para acalmar os condenados costumava dizer-lhes, com uma palmadinha no ombro: "Ânimo, amigo, muito mais sofrem as mulheres quando parem".

 

     Com o tronco estendido para a frente, os dois homens, ansiosos, não se olharam.

 

     Nolan deu o sinal.

 

     Pardo, envaidecido por sua atuação, exagerou e abriu um corte vistoso que ia de orelha a orelha; para o correntino foi suficiente um talho estreito. Das gargantas brotou o jorro de sangue; os homens deram alguns passos e caíram de bruços. Cardoso, na queda, estirou os braços. Ganhara a corrida e talvez jamais soubesse disso.

 

                     GUAYAQUIL

 

     Não verei o cume do Higuerota duplicar-se nas águas do Golfo Plácido, não irei ao Estado Ocidental, não decifrarei nessa biblioteca, que de Buenos Aires imagino de tantas maneiras e que tem sem dúvida sua forma exata e suas crescentes sombras, a letra de Bolívar.

 

     Releio o parágrafo anterior para escrever o seguinte e surpreende-me que seja, ao mesmo tempo, melancólico e pomposo. Talvez não se possa falar daquela república do Caribe sem refletir, ao menos de longe, o estilo monumental de seu mais famoso historiador, o capitão José Korzeniovski, mas em meu caso há outra razão. O íntimo propósito de infundir certo tom patético a um episódio um tanto penoso e quase insignificante ditou-me o parágrafo inicial. Contarei com toda a probidade o que aconteceu; isto me ajudará, talvez, a entendê-lo. Além disso, confessar um fato é deixar de ser o ator para ser uma testemunha, para ser alguém que o olha e o narra e que não o executou mais.

 

     O caso me aconteceu na sexta-feira passada, nesta mesma sala em que escrevo, nesta mesma hora da tarde, agora um pouco mais fresca. Sei que tendemos a esquecer as coisas desagradáveis; quero deixar escrito meu diálogo com o doutor Eduardo Zimmermann, da Universidad del Sur, antes que o apague o esquecimento. A lembrança que guardo é ainda muito vívida.

 

     Para que se entenda minha narrativa, terei de recordar brevemente a curiosa aventura de certas cartas de Bolívar, que foram exumadas do arquivo do doutor Avellanos, cuja Historia de Cincuenta Anos de Desgobierno, que se acreditou perdida em circunstâncias de domínio público, foi descoberta e publicada em 1939 por seu neto, o doutor Ricardo Avellanos. A julgar pelas referências que recolhi em diversas publicações, essas cartas não oferecem maior interesse, salvo uma datada em Cartagena a 13 de agosto de 1822, na qual o Libertador conta detalhes de sua conversa com o general San Martín. Inútil destacar o valor desse documento no qual Bolívar revelou, ao menos parcialmente, o que aconteceu em Guayaquil. O doutor Ricardo Avellanos, tenaz opositor do oficialismo, negou-se a entregar a coleção de cartas à Academia de História e ofereceu-a a diversas repúblicas latino-americanas. Graças ao elogiável zelo de nosso embaixador, o doutor Melaza, o governo argentino foi o primeiro a aceitar a desinteressada oferta. Combinou-se que um representante iria a Sulaco, capital do Estado Ocidental, e tiraria cópia das cartas para publicá-las aqui. O reitor de nossa Universidade, na qual exerço o cargo de titular de História Americana, teve a deferência de recomendar-me ao ministro para cumprir essa missão; também obtive os votos mais ou menos unânimes da Academia Nacional de História, à qual pertenço. Já marcada a data em que d ministro me receberia, soubemos que a Universidad del Sur, que ignorava, prefiro supor, essas decisões, propusera o nome do doutor Zimmermann.

 

    Trata-se, como talvez saiba o leitor, de um historiador estrangeiro, expulso de seu país pelo Terceiro Reich e agora cidadão argentino. De seu trabalho, sem dúvida benemérito, só pude examinar uma vindicação da república semítica de Cartago, que a posteridade julga por intermédio de seus historiadores romanos, seus inimigos, e uma espécie de ensaio sustentando que o governo não deve ser uma função visível e patética. Esse argumento mereceu a refutação decisiva de Martin Heidegger, que demonstrou, mediante fotocópias das manchetes dos jornais, que o moderno chefe de estado, longe de ser anônimo, é antes o protagonista, o corego, o Davi dançarino, que mima o drama de seu povo, assistido com pompa cênica e recorrendo, sem vacilar, às hipérboles da arte oratória. Provou também que a linhagem de Zimmermann era hebraica, para não dizer judia. Essa publicação do venerado existencialista foi a causa imediata do êxodo e das transumantes atividades de nosso hóspede.

 

     Zimmermann, sem dúvida, tinha ido a Buenos Aires para conversar com o ministro; este me sugeriu, pessoalmente, por intermédio de um secretário, que falasse com Zimmermann e o pusesse a par do assunto, com a finalidade de evitar o espetáculo desagradável de duas universidades em desacordo. Aceitei, como é natural. De volta a casa, disseram-me que o doutor Zimmermann comunicara por telefone sua visita, para as seis da tarde. Moro, segundo se sabe, na rua Chile. Davam exatamente as seis quando soou a campainha.

 

     Eu mesmo, com simplicidade republicana, abri-lhe a porta e o conduzi a meu escritório particular. Deteve-se, olhando o pátio; os ladrilhos pretos e brancos, as duas magnólias e a cisterna suscitaram sua loquacidade. Estava, creio, um pouco nervoso. Nada de singular havia nele; contaria uns quarenta anos e tinha a cabeça um pouco grande. Óculos escuros ocultavam-lhe os olhos; em algum momento deixou-os sobre a mesa e os retomou. Ao nos cumprimentarmos, comprovei com satisfação que eu era mais alto e, imediatamente, envergonhei-me de tal satisfação, já que não se tratava de um duelo físico nem sequer moral, mas de uma mise au point talvez incômoda. Sou pouco ou nada observador, mas lembro o que certo poeta chamou, com a feiúra que corresponde ao que define, seu desalinhado traje. Vejo ainda aquelas roupas de um azul forte, com excesso de botões e bolsos. Sua gravata, percebi, era um desses laços de ilusionista que se ajustam com dois fechos elásticos. Carregava uma pasta de couro que presumi estar cheia de documentos. Usava um discreto bigode de corte militar; no decurso da conversa acendeu um charuto e senti então que havia demasiadas coisas naquele rosto. Trop meublé, disse para mim mesmo.

 

     O caráter sucessivo da linguagem indevidamente exagera os fatos que indicamos, já que cada palavra ocupa um lugar na página e um instante na mente do leitor; além das trivialidades visuais que enumerei, o homem dava a impressão de um passado incerto.

 

     Há em meu escritório um retrato oval de meu bisavô, que militou nas guerras da Independência, e umas vitrinas com espadas, medalhas e bandeiras. Mostrei-lhe, com alguma explicação, essas velhas coisas gloriosas; olhava-as rapidamente como quem cumpre um dever e completava minhas palavras não sem certa impertinência, que acredito involuntária e mecânica. Dizia, por exemplo:

 

     – Correto. Combate de Junín. 6 de agosto de 1824. Ataque da cavalaria de Juárez.

 

     – De Suárez – corrigi.

 

     Desconfio que o erro foi deliberado. Abriu os braços com um gesto oriental e exclamou:

 

     – Meu primeiro erro, que não será o último! Eu me alimento de textos e me confundo; no senhor vive o interessante passado.

 

     Pronunciava o vê quase como se fosse um efe.

 

     Essas lisonjas não me agradaram. Os livros interessaram-lhe mais. Passou os olhos pelos títulos quase amorosamente e lembro que disse:

 

     – Ah, Schopenhauer, que sempre desacreditou da história... Essa mesma edição, publicada por Grisebach, eu a tinha em Praga, e acreditei envelhecer na intimidade desses volumes manuseáveis, mas precisamente a história, encarnada em um insensato, expulsou-me dessa casa e dessa cidade. Aqui estou com o senhor, na América, na agradável casa do senhor...

 

     Falava com incorreção e fluidez; o perceptível sotaque alemão convivia com um ceceio espanhol.

 

     Já estávamos sentados e aproveitei o que ele falou para entrar no assunto. Disse-lhe:

 

     – Aqui a história é mais piedosa. Espero morrer nesta casa, na qual nasci. Para aqui meu bisavô trouxe essa espada que andou pela América; aqui tenho refletido sobre o passado e escrevi meus livros. Quase posso dizer que nunca deixei esta biblioteca, mas agora finalmente sairei, para percorrer a terra que só percorri nos mapas.

 

     Atenuei com um sorriso meu possível excesso retórico.

 

     – Alude o senhor a certa república do Caribe? – disse Zimmermann.

 

     – É verdade. A essa próxima viagem devo a honra de sua visita – respondi.

 

     Trinidad nos serviu café. Continuei com lenta segurança:

 

     – O senhor já deve saber que o ministro me encarregou da missão de transcrever e prefaciar as cartas de Bolívar, exumadas por acaso do arquivo do doutor Avellanos. Essa missão coroa, com uma espécie de ditosa fatalidade, o trabalho de toda a minha vida, o trabalho que de algum modo carrego no sangue.

 

     Foi para mim um alívio ter dito o que tinha a dizer. Zimmermann não parecia ter-me ouvido; não olhava para meu rosto mas para os livros a minhas costas. Concordou vagamente e depois com ênfase:

 

     – No sangue. O senhor é o genuíno historiador. Sua gente andou pelos campos da América e travou as grandes batalhas, enquanto a minha, obscura, mal emergia do gueto. O senhor traz a história no sangue, segundo suas eloqüentes palavras; ao senhor basta ouvir com atenção essa voz recôndita. Eu, ao contrário, devo transferir-me para Sulaco e decifrar papéis e papéis talvez apócrifos. Creia-me, doutor, que o invejo.

 

     Nenhum desafio e nenhuma brincadeira insinuava com essas palavras; eram já a expressão de uma vontade que fazia do futuro algo tão irrevogável como o passado. Seus argumentos eram o que menos contava; o poder estava no homem e não na dialética. Zimmermann continuou com uma lentidão pedagógica:

 

     – Em assuntos bolivarianos (perdão, san-martinianos), sua posição, querido mestre, é bastante conhecida. Votre siège est fait. Não decifrei ainda a concernente carta de Bolívar, mas é inevitável ou razoável conjeturar que Bolívar a escreveu para justificar-se. Em todo o caso, a tão decantada epístola nos revelará o que poderíamos chamar o setor Bolívar, não o setor San Martín. Uma vez publicada, será necessário avaliá-la, examiná-la, passá-la pelo crivo crítico e, se for preciso, refutá-la. Ninguém mais indicado para esse ditame final que o senhor, com sua lupa. O escalpelo, o bisturi, se o rigor científico os exige! Permita-me, também, acrescentar que o nome do divulgador da carta ficará vinculado à carta. Ao senhor não convém, de modo algum, semelhante vinculação. O público não percebe nuanças.

 

     Compreendo agora que o que debatemos depois foi essencialmente inútil. Talvez nesse momento eu o tenha sentido; para não desafiá-lo, apeguei-me a um pormenor e perguntei-lhe se na verdade acreditava que as cartas eram apócrifas.

 

     – O fato de serem manuscritas por Bolívar – respondeu-me – não significa que toda a verdade esteja nelas. Bolívar pode ter desejado enganar seu correspondente ou, simplesmente, pode ter-se enganado. O senhor, um historiador, um homem dado à meditação, sabe melhor do que eu que o mistério está em nós mesmos e não nas palavras.

 

     Essas generalidades pomposas aborreceram-me e observei secamente que, dentro do enigma que nos rodeia, a conversa de Guayaquil, na qual o general San Martín renunciou à mera ambição e deixou o destino da América nas mãos de Bolívar, é também um enigma que pode merecer estudo.

 

     Zimmermann respondeu:

 

     – As explicações são tantas... Alguns conjeturam que San Martín caiu em uma cilada; outros, como Sarmiento, que era um militar europeu, perdido em um continente que nunca compreendeu; outros, em geral argentinos, atribuíram-lhe um ato de abnegação; e outros, ainda, de cansaço. E há quem fale da ordem secreta de não sei que loja maçônica.

 

     Observei que, de qualquer modo, seria interessante recuperar as precisas palavras que disseram um ao outro o Protetor do Peru e o Libertador.

 

     Zimmermann sentenciou:

 

     – Talvez as palavras que trocaram tenham sido triviais. Dois homens se enfrentaram em Guayaquil; se um deles se impôs, foi por causa de sua maior vontade e não por jogos dialéticos. Como o senhor vê, não esqueci meu Schopenhauer.

 

     Acrescentou com um sorriso:

 

     – "Words, words, words." Shakespeare, insuperável mestre das palavras, desdenhava-as. Em Guayaquil ou em Buenos Aires ou em Praga, elas sempre contam menos que as pessoas.

 

     Naquele momento, senti que algo estava ocorrendo conosco ou, melhor, que já havia ocorrido. De algum modo, já éramos outros. O crepúsculo entrava no aposento e eu não tinha acendido as lâmpadas. Um pouco ao acaso, perguntei:

 

     – O senhor é de Praga, doutor?

 

     – Eu era de Praga – respondeu.

 

     Para evitar o tema central, observei:

 

     – Deve ser uma estranha cidade. Não a conheço, mas o primeiro livro em alemão que li foi o romance O Golem, de Meyrink.

 

     Zimmermann respondeu:

 

     – É o único livro de Gustav Meyrink que merece ser lembrado. É preferível não gostar dos outros, feitos de má literatura e de pior teosofia. Contudo, algo da estranheza de Praga anda por esse livro de sonhos que se perdem em outros sonhos. Tudo em Praga é estranho e, se o senhor prefere, nada é estranho. Qualquer coisa pode acontecer. Em Londres, em certo entardecer, senti a mesma coisa.

 

     – O senhor – respondi – falou da vontade. Nos contos de Mabinogion, dois reis jogam xadrez no alto de uma colina, enquanto embaixo seus guerreiros combatem. Um dos reis ganha a partida; um cavaleiro chega com a notícia de que o exército do outro foi vencido. A batalha de homens era o reflexo da batalha do tabuleiro.

 

     – Ah, uma operação mágica – disse Zimmermann.

 

     Respondi-lhe:

 

     – Ou a manifestação de uma vontade em dois campos diferentes. Outra lenda dos celtas conta o duelo de dois bardos famosos. Um, acompanhando-se com a harpa, canta desde o crepúsculo do dia até o crepúsculo da noite. Já sob as estrelas e a lua, entrega a harpa ao outro. Este deixa-a de lado e levanta-se. O primeiro confessa sua derrota.

 

     – Que erudição, que poder de síntese! – exclamou Zimmermann.

 

     Acrescentou, já mais calmo:

 

     – Devo confessar minha ignorância, minha lamentável ignorância, em assuntos da Bretanha. O senhor, como o dia, abarca o Ocidente e o Oriente, enquanto eu estou reduzido a meu rincão cartaginês, que agora complemento com uma migalha de história americana. Sou um mero metódico.

 

     O servilismo do hebreu e o servilismo do alemão estavam em sua voz, mas senti que nada lhe custava dar-me razão e adular-me, já que o êxito era dele.

 

     Suplicou-me que não me preocupasse com as providências para sua viagem. (Tratativas foi a atroz palavra que usou.) Imediatamente, tirou da pasta uma carta dirigida ao ministro, em que eu lhe expunha os motivos de minha renúncia e as reconhecidas virtudes do doutor Zimmermann, pondo-me na mão sua caneta-tinteiro para que a assinasse. Quando guardou a carta, não pude deixar de entrever sua passagem marcada para o vôo Ezeiza-Sulaco.

 

     Ao sair, parou novamente diante dos tomos de Schopenhauer e disse:

    

     – Nosso mestre, nosso mestre comum, conjeturava que nenhum ato é involuntário. Se o senhor permanece nesta casa, nesta arejada casa aristocrática, é porque intimamente quer permanecer. Acato e agradeço sua vontade.

 

     Aceitei sem uma palavra essa esmola última.

 

     Fui com ele até a porta da rua. Ao nos despedirmos, declarou:

 

     – Excelente café.

 

     Releio estas desordenadas páginas que não tardarei a entregar ao fogo. A conversa fora curta.

 

     Pressinto que já não escreverei mais. "Mon siège est fait."

    

             O EVANGELHO SEGUNDO MARCOS

 

     O fato aconteceu na estância Los Álamos, no município de Junín, para os lados do sul, nos últimos dias do mês de março de 1928. Seu protagonista foi um estudante de medicina, Baltasar Espinosa. Podemos defini-lo por enquanto como um dos muitos rapazes portenhos, sem outros traços dignos de nota que essa faculdade oratória que o fizera merecer mais de um prêmio no colégio inglês de Ramos Mejía, além de uma quase ilimitada bondade. Não gostava de discutir; preferia que o interlocutor tivesse razão e não ele. Ainda que os azares do jogo lhe interessassem, era mau jogador, porque lhe desagradava ganhar. Sua franca inteligência era preguiçosa; aos trinta e três anos precisava concluir uma matéria para graduar-se, justamente a que mais o atraía. Seu pai, que era livre-pensador, como todos os senhores de sua época, o instruíra na doutrina de Herbert Spencer, mas sua mãe, antes de uma viagem a Montevidéu, pediu-lhe que rezasse o Pai-Nosso todas as noites e fizesse o sinal-da-cruz. No decorrer dos anos jamais quebrou essa promessa. Não lhe faltava coragem; certa manhã trocara, com mais indiferença que raiva, dois ou três socos com um grupo de companheiros que queria forçá-lo a participar de uma greve universitária. Era pródigo, por espírito de aquiescência, em opiniões ou hábitos discutíveis: o país lhe importava menos que o risco de que em outros lugares acreditassem que usamos penas; venerava a França, mas menosprezava os franceses; detestava os americanos, mas aprovava o fato de que houvesse arranha-céus em Buenos Aires; acreditava que os gaúchos da planície são melhores cavaleiros que os das coxilhas ou das colinas. Quando Daniel, seu primo, propôs-lhe veranear em Los Álamos, disse imediatamente que sim, não porque gostasse do campo mas por natural complacência e porque não procurou razões válidas para dizer não.

 

     A sede da estância era grande e um pouco abandonada; as dependências do capataz, que se chamava Gutre, estavam muito perto. Os Gutre eram três: o pai, o filho – singularmente tosco – e uma moça de paternidade incerta. Eram altos, fortes, ossudos, com cabelo tendendo para o avermelhado e com feições de índio. Quase não falavam. A mulher do capataz morrera havia anos.

 

     Espinosa, no campo, foi aprendendo coisas que não sabia e das quais não suspeitava. Por exemplo, que não se deve galopar quando se está aproximando das casas e que ninguém sai a cavalo a não ser para cumprir uma tarefa. Com o tempo, chegaria a distinguir os pássaros pelo canto.

 

     Poucos dias depois, Daniel teve de ir à capital para fechar uma operação com animais. No máximo, o negócio lhe tomaria uma semana. Espinosa, que já estava um pouco farto das bonnes fortunes de seu primo e de seu infatigável interesse pelas variações da moda, preferiu ficar na estância com seus livros escolares. O calor aumentava e nem mesmo a noite trazia alívio. Na aurora, os trovões despertaram-no. O vento sacudia as casuarinas. Espinosa ouviu as primeiras gotas e deu graças a Deus. O ar frio veio de repente. Nessa tarde, o Salado transbordou.

 

     No dia seguinte, Baltasar Espinosa, olhando da varanda os campos alagados, pensou que a metáfora que equipara os pampas ao mar não era, pelo menos nessa manhã, totalmente falsa, embora Hudson tenha escrito que o mar nos parece maior porque o vemos da coberta do barco e não do cavalo ou de nossa altura. A chuva não amainava. Os Gutre, ajudados ou incomodados pelo visitante da cidade, salvaram boa parte do rebanho, embora muitos animais tenham se afogado. Os caminhos para chegar à estância eram quatro: todos foram cobertos pelas águas. No terceiro dia, uma goteira ameaçou a casa do capataz; Espinosa cedeu-lhes um quarto que ficava no fundo, ao lado do galpão das ferramentas. A mudança os foi aproximando; comiam juntos na grande sala de jantar. O diálogo era difícil; os Gutre, que sabiam tantas coisas em assuntos do campo, não sabiam explicá-las. Uma noite, Espinosa perguntou-lhes se as pessoas guardavam alguma lembrança dos ataques dos índios, quando o comando estava em Junín. Disseram-lhe que sim, mas a mesma coisa teriam respondido a uma pergunta sobre a execução de Carlos I. Espinosa lembrou-se de que seu pai costumava dizer que quase todos os casos de longevidade no campo são casos de pouca memória ou de um conceito vago das datas. Os gaúchos costumam ignorar igualmente o ano em que nasceram e o nome de quem os gerou.

 

     Em toda a casa não havia outros livros que uma coleção da revista La Chacra, um manual de veterinária, um exemplar de luxo do Tabaré, uma Historia del Shorthorn en la Argentina, algumas narrativas eróticas ou policiais e um romance recente: Don Segundo Sombra. Espinosa, para distrair de algum modo a inevitável conversa após o jantar, leu um par de capítulos para os Gutre, que eram analfabetos. Infelizmente, o capataz fora tropeiro e não lhe podiam interessar as andanças de outro. Disse que esse trabalho era leve, que levavam sempre um cargueiro com tudo o que se precisava e que, se não tivesse sido tropeiro, jamais teria chegado até a Laguna de Gómez, até o Bragado e até os campos dos Núñez, em Chacabuco. Na cozinha havia uma guitarra; os peões, antes dos fatos que conto, sentavam-se em roda; alguém a afinava e jamais chegava a tocar. Isto se chamava uma guitarrada.

 

     Espinosa, que deixara crescer a barba, costumava demorar-se diante do espelho olhando seu rosto mudado e sorria ao pensar que em Buenos Aires entediaria os rapazes com a narrativa da inundação do Salado. Curiosamente, sentia saudades de lugares aos quais nunca fora e jamais iria: uma esquina da rua Cabrera onde há uma caixa de correio, uns leões de alvenaria em um portão da rua Jujuy, a algumas quadras do Once, um armazém com piso de lajotas que não sabia muito bem onde ficava. Quanto a seus irmãos e a seu pai, já saberiam por Daniel que ele estava filhado – a palavra, etimologicamente, era exata – pela enchente.

 

     Explorando a casa, sempre cercada pelas águas, deu com uma Bíblia em inglês. Nas páginas finais os Guthrie – era este seu nome verdadeiro – haviam escrito sua história. Eram oriundos de Inverness, chegaram a este continente, sem dúvida como peões, em princípios do século XIX e tinham acasalado com índios. A crônica cessava em mil oitocentos e setenta e tantos; já não sabiam escrever. Depois de umas poucas gerações, haviam esquecido o inglês; o castelhano, quando Espinosa os conheceu, dava-lhes trabalho. Careciam de fé, mas em seu sangue perduravam, como rastos obscuros, o duro fanatismo do calvinista e as superstições dos pampas. Espinosa falou-lhes de sua descoberta e eles quase não o escutaram.

 

     Folheou o volume e seus dedos o abriram no começo do Evangelho segundo Marcos. Para exercitar-se na tradução e talvez para ver se entendiam alguma coisa, decidiu ler para eles esse texto depois da refeição. Surpreendeu-se de que o escutassem com atenção e depois com silencioso interesse. Talvez a presença das letras de ouro da capa lhe desse mais autoridade. Trazem isso no sangue, pensou. Também lhe ocorreu que os homens, ao longo do tempo, têm repetido sempre duas histórias: a de um barco perdido que procura pelos mares mediterrâneos uma ilha amada e a de um deus que se faz crucificar no Gólgota. Lembrou-se das aulas de oratória em Ramos Mejía e ficava de pé para pregar as parábolas.

 

     Os Gutre davam conta rapidamente da carne assada e das sardinhas para não atrasar o Evangelho.

 

     Uma ovelhinha que a moça mimava e adornava com uma fitinha azul-celeste machucou-se em uma cerca de arame farpado. Para estancar o sangue, queriam colocar-lhe uma teia de aranha; Espinosa curou-a com algumas pastilhas. A gratidão que essa cura despertou não deixou de assombrá-lo. A princípio, desconfiara dos Gutre e escondera em um de seus livros os duzentos e quarenta pesos que levava consigo; agora, ausente o patrão, ele tomara seu lugar e dava ordens tímidas, que eram imediatamente acatadas. Os Gutre o seguiam pelos aposentos e pelo corredor, como se andassem perdidos. Enquanto lia, notou que retiravam as migalhas que ele deixara sobre a mesa. Uma tarde surpreendeu-os falando dele com respeito e poucas palavras. Terminado o Evangelho segundo Marcos, quis ler outro dos três que faltavam; o pai pediu-lhe que repetisse o que já havia lido, para entendê-lo bem. Espinosa sentiu que eram como crianças, para quem a repetição agrada mais que a variação ou a novidade. Uma noite sonhou com o Dilúvio, o que não é de estranhar; as marteladas da construção da arca despertaram-no e pensou que talvez fossem trovões. De fato, a chuva, que havia amainado, voltava a recrudescer. O frio era intenso. Disseram-lhe que o temporal quebrara o telhado do galpão das ferramentas e que o mostrariam logo que as vigas estivessem consertadas. Já não era um forasteiro e todos o tratavam com atenção e quase o mimavam. Nenhum deles gostava de café, mas sempre havia para ele uma xícara, que enchiam de açúcar.

 

     O temporal ocorreu em uma terça-feira. Na quinta à noite, acordou-o uma pancadinha suave na porta, que, por via das dúvidas, sempre fechava à chave. Levantou-se

e abriu: era a moça. Na escuridão não a viu, mas pelos passos notou que estava descalça e depois, na cama, que já viera nua. Não o abraçou, não disse uma única palavra; deitou-se junto dele e estava tremendo. Era a primeira vez que conhecia um homem. Quando foi embora, não lhe deu um beijo; Espinosa pensou que nem ao menos sabia como se chamava. Premido por uma íntima razão que não tentou verificar, jurou que em Buenos Aires não contaria essa história a ninguém.

 

     O dia seguinte começou como os anteriores, a não ser que o pai falou com Espinosa e perguntou-lhe se Cristo se deixara matar para salvar todos os homens. Espinosa, que era livre-pensador, mas que se viu obrigado a justificar o que lera para eles, respondeu-lhe:

 

     – Sim. Para salvar todos do inferno.

 

     Gutre disse-lhe então:

 

     – O que é o inferno?

 

     – Um lugar embaixo da terra onde as almas arderão para sempre.

 

     – E também se salvaram os que lhe cravaram os cravos?

 

     – Sim – replicou Espinosa, cuja teologia era incerta.

 

     Receara que o capataz lhe exigisse explicações do que acontecera na noite anterior com a filha. Depois do almoço, pediram-lhe que relesse os últimos capítulos.

 

     Espinosa dormiu uma longa sesta, um leve sono interrompido por persistentes martelos e vagas premonições. Por volta do entardecer, levantou-se e saiu para o corredor. Disse como se pensasse em voz alta:

 

     – As águas estão baixas. Já falta pouco.

 

     – Já falta pouco – repetiu Gutre, como um eco.

 

     Os três o haviam seguido. Ajoelhados no piso de pedra, pediram-lhe a bênção. Depois o amaldiçoaram, cuspiram nele e o empurraram até o fundo. A moça chorava. Espinosa entendeu o que o esperava do outro lado da porta. Quando a abriram, ele viu o firmamento. Um pássaro piou; pensou: É um pintassilgo. O galpão estava sem teto; haviam arrancado as vigas para construir a Cruz.

 

                       O INFORME DE BRODIE

 

     Em um exemplar do primeiro volume das Mil e Uma Noites (Londres, 184O), de Lane, que me conseguiu meu querido amigo Paulino Keins, descobrimos o manuscrito que agora traduzirei. A esmerada caligrafia – arte que as máquinas de escrever nos estão ensinando a perder – sugere que foi redigido nessa mesma data. Lane foi pródigo, como se sabe, em extensas notas explicativas; as margens estão cheias de acréscimos, de pontos de interrogação e vez ou outra de correções, cuja letra é a mesma do manuscrito. Dir-se-ia que a seu leitor interessariam menos os prodigiosos contos de Sherazade que os hábitos do Islã. De David Brodie, cuja assinatura adornada com uma rubrica figura ao pé da página, nada pude averiguar, a não ser que foi um missionário escocês, natural de Aberdeen, que pregou a fé cristã no centro da África e depois em certas regiões selvagens do Brasil, terra à qual o levaria seu conhecimento do português. Ignoro a data e o lugar de seu falecimento. O manuscrito, ao que eu saiba, jamais foi publicado.

 

     Traduzirei fielmente o informe, composto em um inglês incolor, sem me permitir outras omissões que as de algum versículo da Bíblia e de uma curiosa passagem sobre as práticas sexuais dos Yahoos que o bom presbiteriano confiou pudicamente ao latim. Falta a primeira página.

 

     "...da região infestada pelos homens-macacos (Apemen) têm sua morada os Mlch,1 que chamarei Yahoos, para que meus leitores não esqueçam sua natureza bestial e porque

uma exata transliteração é quase impossível, dada a ausência de vogais em sua áspera linguagem. Os indivíduos da tribo não passam, creio, de setecentos, incluindo os Nr, que habitam mais ao sul, entre os matagais. A cifra que propus é conjeturai, já que, com exceção do rei, da rainha e dos feiticeiros, os Yahoos dormem onde a noite os encontra, sem lugar fixo. A febre palustre e as incursões contínuas dos homens-macacos diminuem seu número. Somente uns poucos têm nome. Para chamarem-se, jogam lama uns nos outros. Também vi Yahoos que, para chamarem um amigo, atiravam-se ao chão e rolavam. Fisicamente não diferem dos Kroo, a não ser pela testa mais baixa e por certa cor acobreada que diminui sua negrura. Alimentam-se de frutos, raízes e répteis; bebem leite de gato e de morcego e pescam com a mão. Escondem-se para comer ou fecham os olhos; fazem tudo o mais à vista de todos, como os filósofos cínicos. Devoram os cadáveres crus dos feiticeiros e dos reis, para assimilarem suas virtudes. Reprovei-lhes esse costume; tocaram na boca e na barriga, talvez para indicar que os mortos também são alimento ou – mas isto talvez seja demasiado sutil – para que eu entendesse que tudo o que comemos é, no fim das contas, carne humana.

 

     "Em suas guerras usam as pedras, das quais fazem provisões, e as imprecações mágicas. Andam nus; as artes do vestuário e da tatuagem lhes são desconhecidas.

 

     "É digno de atenção o fato de que, dispondo de uma meseta extensa e relvosa, na qual há mananciais de água límpida e árvores que proporcionam sombra, tenham optado por se amontoarem nos lamaçais que rodeiam a base, como se se deleitassem com os rigores do sol equatorial e com a impureza. As ladeiras são ásperas e formariam uma espécie de muro contra os homens-macacos. Nas Terras Altas da Escócia os clãs erigiam seus castelos no cume de uma colina; aleguei esse costume aos feiticeiros, propondo-o como exemplo, mas tudo foi inútil. Permitiram-me, no entanto, armar uma cabana na meseta, onde o ar da noite é mais fresco.

 

     "A tribo é regida por um rei, cujo poder é absoluto, mas suspeito que quem verdadeiramente governa são os quatro feiticeiros que o assistem e que o elegeram. Cada menino que nasce está sujeito a um exame minucioso. Se apresenta certos estigmas, que não me foram revelados, é elevado a rei dos Yahoos. Imediatamente mutilam-no (he is gelded), queimam-lhe os olhos, cortam os pés e as mãos, para que o mundo não o distraia da sabedoria. Vive confinado em uma caverna, cujo nome é Alcáçar (Qzr), na qual só podem entrar os quatro feiticeiros e o par de escravas que o atendem e o untam com esterco. Se há uma guerra, os feiticeiros tiram-no da caverna, exibem-no à tribo para estimular sua coragem e levam-no, carregado nos ombros, para o mais violento do combate, à maneira de bandeira ou talismã. Em tais casos é comum que morra imediatamente, sob as pedras que lhe atiram os homens-macacos.

 

     "Em outro Alcáçar vive a rainha, a quem não está permitido ver seu rei. Esta dignou-se receber-me; era sorridente, jovem e bela, até onde lhe permite sua raça. Pulseiras de metal e marfim e colares de dentes adornavam sua nudez. Olhou-me, cheirou-me, tocou-me e acabou por se oferecer a mim à vista de todas as açafatas. Meu hábito (my cloth) e meus hábitos fizeram-me declinar dessa honra, que costuma ser concedida aos feiticeiros e aos caçadores de escravos, geralmente muçulmanos, cujas cáfilas (caravanas) atravessam o reino. Cravou-me duas ou três vezes um alfinete de ouro na carne; tais picadas são as marcas do favor real e não são poucos os Yahoos que as fazem em si próprios, para simular que foi a rainha que as fez. Os ornamentos que enumerei vêm de outras regiões; os Yahoos pensam que são naturais, porque são incapazes de fabricar o objeto mais simples. Para a tribo minha cabana era uma árvore, embora muitos me tenham visto construí-la e me dessem sua ajuda. Entre outras coisas, eu tinha um relógio, um chapéu de cortiça, uma bússola e uma Bíblia; os Yahoos olhavam para elas, examinavam-nas e queriam saber onde eu as conseguira. Costumavam agarrar pela lâmina minha faca de caça; sem dúvida a viam de outra maneira. Não sei nem se conseguiriam enxergar uma cadeira. Uma casa com vários quartos constituiria um labirinto para eles, mas talvez não se perdessem, como tampouco um gato se perde, embora não possa imaginá-la. Todos se maravilhavam com minha barba, que naquela época era vermelha; acariciavam-na longamente.

 

     "São insensíveis à dor e ao prazer, salvo o gosto que lhes proporciona a carne crua e rançosa e as coisas fétidas. A falta de imaginação os induz a ser cruéis.

 

     "Falei da rainha e do rei; passo agora aos feiticeiros. Escrevi que são quatro; este número é o maior que abrange sua aritmética. Contam com os dedos um, dois, três, quatro,

muitos; o infinito começa no polegar. A mesma coisa, asseguram-me, acontece com as tribos que vagueiam nas imediações de Buenos Aires. Apesar de o quatro ser o último algarismo de que dispõem, os árabes que traficam com eles não os roubam, porque na troca tudo se divide em lotes de um, de dois, de três e de quatro, que cada um põe de seu lado. As operações são lentas, mas não admitem o erro ou o engano. Da nação dos Yahoos, os feiticeiros são realmente os únicos que suscitaram meu interesse. O vulgo lhes atribui o poder de transformar em formigas ou em tartarugas a quem assim desejarem; um indivíduo que percebeu minha incredulidade mostrou-me um formigueiro, como se este fosse uma prova. A memória dos Yahoos é fraca ou quase não a têm; falam dos estragos causados por uma invasão de leopardos, mas não sabem se foram eles ou seus pais que a viram ou se estão contando um sonho. Os feiticeiros têm memória, embora em grau mínimo; podem lembrar à tarde fatos que ocorreram pela manhã ou até na tarde anterior. Desfrutam também da faculdade da previsão; declaram com tranqüila certeza o que acontecerá dentro de dez ou quinze minutos. Indicam, por exemplo: Uma mosca roçará minha nuca ou Não tardaremos a ouvir o canto de um pássaro. Centenas de vezes testemunhei esse curioso dom. Muito hesitei sobre ele. Sabemos que o passado, o presente e o futuro já estão, detalhe por detalhe, na profética memória de Deus, em Sua eternidade; o estranho é que os homens possam olhar, indefinidamente, para trás mas não para a frente. Se me lembro com toda a nitidez daquele veleiro de alto bordo que veio da Noruega quando eu tinha apenas quatro anos, por que hei de surpreender-me com o fato de que alguém seja capaz de prever o que está a ponto de acontecer? Filosoficamente, a memória não é menos prodigiosa que a adivinhação do futuro; o dia de amanhã está mais perto de nós que a travessia do mar Vermelho pelos hebreus, que, no entanto, lembramos. A tribo estava proibida de fixar os olhos nas estrelas, privilégio reservado aos feiticeiros. Cada feiticeiro tem um discípulo, a quem instrui desde menino nas disciplinas secretas e que a ele sucede após sua morte. Assim, são sempre quatro, número de caráter mágico, já que é o último que a mente dos homens consegue atingir. Professam, a seu modo, a doutrina do inferno e do céu. Ambos são subterrâneos. No inferno, que é claro e seco, morarão os doentes, os velhos, os maltratados, os homens-macacos, os árabes e os leopardos; no céu, que imaginam pantanoso e escuro, o rei, a rainha, os feiticeiros, os que na terra foram felizes, duros e sanguinários. Veneram também um deus, cujo nome é Esterco, e que possivelmente conceberam à imagem e semelhança do rei; é um ser mutilado, cego, raquítico e de ilimitado poder. Costuma assumir a forma de uma formiga ou de uma cobra.

 

     "Ninguém se assombrará, depois do que foi dito, que durante o período de minha permanência não conseguisse a conversão de um único Yahoo. A frase "Pai-Nosso" os perturbava, uma vez que não têm o conceito da paternidade. Não compreendem que um ato executado há nove meses possa guardar alguma relação com o nascimento de uma criança; não admitem uma causa tão longínqua e tão inverossímil. Além disso, todas as mulheres conhecem o comércio carnal e nem todas são mães.

 

     "O idioma é complexo. Não se assemelha a nenhum outro dos que eu tenha noticia. Não podemos falar de partes da oração, já que não há orações. Cada palavra monossilábica

corresponde a uma idéia geral, que se define pelo contexto ou pelos gestos. A palavra nrz, por exemplo, sugere a dispersão ou as manchas; pode significar o céu estrelado, um leopardo, um bando de aves, a varíola, o salpicado, o ato de esparramar ou a fuga que se segue à derrota. Hrl, ao contrário, indica o apertado ou o denso; pode significar a tribo, um tronco, uma pedra, um monte de pedras, o fato de empilhá-las, a assembléia dos quatro feiticeiros, a união carnal e um bosque. Pronunciada de outra maneira ou com outros gestos, cada palavra pode ter sentido contrário. Não nos maravilhemos em excesso; em nossa língua, o verbo to cleave significa fender e aderir. Evidentemente, não há orações, nem mesmo frases truncadas.

 

     "A virtude intelectual de abstrair postulada por semelhante idioma sugere-me que os Yahoos, apesar de sua barbárie, não são uma nação primitiva mas degenerada. Confirmam essa conjetura as inscrições que descobri no cume da meseta e cujos caracteres, que se assemelham às runas gravadas por nossos antepassados, já não são decifrados pela tribo. É como se esta houvesse esquecido a linguagem escrita e só lhe restasse a oral.

 

     "As diversões das pessoas são as brigas de gatos adestrados e as execuções. Alguém é acusado de atentar contra o pudor da rainha ou de haver comido à vista de outro; não há depoimentos de testemunhas nem confissão e o rei dita sua sentença condenatória. O sentenciado sofre torturas de que tento não me lembrar e depois o apedrejam. A rainha tem o direito de atirar a primeira pedra e a última, que costuma ser inútil. O gentio elogia sua destreza e a formosura de suas partes, aclamando-a com frenesi, lançando-lhe rosas e coisas fétidas. A rainha, sem uma palavra, sorri.

 

     "Outro costume da tribo são os poetas. Ocorre a um homem ordenar seis ou sete palavras, geralmente enigmáticas. Não pode conter-se e grita-as, de pé, no centro de um círculo que formam, estendidos na terra, os feiticeiros e a plebe. Se o poema não excita, nada acontece; se as palavras do poeta os assustam, todos se afastam dele, em silêncio, sob o preceito de um horror sagrado (under a holy dread). Sentem que o espírito o tocou; ninguém falará com ele nem o olhará, nem mesmo sua mãe. Já não é um homem mas um deus e qualquer um pode matá-lo. O poeta, se puder, procurará refúgio nos areais do Norte.

 

     "Já contei como cheguei à terra dos Yahoos. O leitor se lembrará de que me cercaram, que dei um tiro de fuzil para cima e que tomaram a descarga por uma espécie de trovão mágico. Para alimentar esse erro, procurei andar sempre sem armas. Em uma manhã de primavera, ao raiar do dia, fomos repentinamente invadidos pelos homens-macacos; desci correndo do cume, de arma na mão, e matei dois desses animais. Os outros fugiram, atônitos. As balas, como se sabe, são invisíveis. Pela primeira vez em minha vida ouvi que me aclamavam. Foi então, creio, que a rainha me recebeu. A memória dos Yahoos é precária; parti nessa mesma tarde. Minhas aventuras na selva não importam. Dei, por fim, com um povoado de homens negros que sabiam arar, semear e rezar e com os quais me entendi em português. Um missionário romanista, o padre Fernandes, hospedou-me em sua cabana e cuidou de mim até que pude retomar minha penosa viagem. A princípio, causava-me certo asco vê-lo abrir a boca sem disfarçar e jogar dentro pedaços de comida. Eu me cobria com a mão ou desviava os olhos; em poucos dias me acostumei. Lembro-me com prazer de nossos debates sobre assuntos teológicos. Não consegui que voltasse à genuína fé de Jesus.

 

     "Escrevo agora em Glasgow. Contei minha estada entre os Yahoos, mas não seu horror essencial, que nunca me deixa completamente e que me visita em sonhos. Na rua, creio que ainda me cercam. Os Yahoos, sei disso muito bem, são um povo bárbaro, talvez o mais bárbaro do orbe, mas seria uma injustiça esquecer certos traços que os redimem. Têm instituições, um rei, empregam uma linguagem baseada em conceitos genéricos, crêem, como os hebreus e os gregos, na raiz divina da poesia e adivinham que a alma sobrevive à morte do corpo. Afirmam a verdade dos castigos e das recompensas. Representam, em suma, a cultura, como nós a representamos, apesar de nossos muitos pecados. Não me arrependo de haver combatido em suas fileiras contra os homens-macacos. Temos o dever de salvá-los. Espero que o Governo de Sua Majestade não deixe de atender o que se atreve a sugerir este informe."

 

                                                                                Jorge Luis Borges  

 

                      

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