Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O INIMIGO DE DEUS
Segunda Parte
Camelote
Arderam todos os Tesouros? perguntou-me Igraine. Desapareceu tudo. disse eu.
Pobre Merlin. disse Igraine. Ela ocupara o seu lugar habitual no peitoril da minha janela, apesar de estar bem protegida do frio desse dia por uma grossa capa de pêlo de castor. E bem precisa dela, porque hoje está um frio terrível. Esta manhã caíram flocos de neve e para Oeste o céu está carregado de nuvens ominosas e pesadas como chumbo. Não posso ficar por muito tempo anunciara ela ao chegar e quando se instalara para passar os olhos pelos pergaminhos já prontos caso neve.
Irá nevar. As sebes estão cheias de bagas e isso significa sempre um Inverno rigoroso.
Os velhos dizem isso todos os anos observou Igraine com mordacidade.
Quando fordes velha disse eu todos os Invernos serão rigorosos.
Que idade tinha Merlim?
Quando perdeu o Caldeirão? Muito perto dos oitenta anos. Mas viveu por mais algum tempo depois disso.
Mas ele nunca reconstruiu a sua torre de sonho? perguntou Igraine.
Não.
Suspirou e puxou a magnífica capa para si.
Eu iria gostar de uma torre de sonho. Gostaria muito de ter uma torre de sonho.
Então mandai construir uma disse eu. Vós sois uma Rainha. Dai ordens, fazei barulho. É muito simples; não há nada como uma torre com quatro paredes, sem telhado e uma plataforma a meia altura. Uma vez construída, ninguém para além de vós pode lá entrar, e o truque é dormirdes na plataforma e aguardardes que os Deuses vos enviem mensagens. Merlim sempre disse que era um sítio horrivelmente frio para dormir no Inverno.
E o Caldeirão calculou Igraine fora escondido na plataforma?
Sim.
Mas não foi queimado, pois não, irmão Derfel? insistiu ela.
A história do Caldeirão prossegue admiti eu, mas não será agora que vos vou contar.
Deitou-me a língua de fora. Hoje está assombrosamente bela. Talvez o frio tenha imprimido cor à sua face e brilho aos seus olhos escuros, ou possivelmente a pele de castor assenta-lhe bem, mas suspeito que ela está grávida. Conseguia sempre dizer quando Ceinwyn trazia um filho, e Igraine demonstra essa mesma alegria de viver. Mas Igraine nada disse, por isso nada lhe pergunto. Só Deus sabe como ela tanto rezou para ter um filho, e talvez o nosso Deus cristão escute, na verdade, as preces. Nada mais nos resta que nos dê esperança, pois os nossos próprios Deuses estão mortos ou fugiram ou não querem saber de nós.
Os bardos disse Igraine, e percebi pela inflexão da sua voz que outra das minhas imprecisões como contador de histórias estava prestes a ser exposta, dizem que a batalha próximo de Londres foi terrível. Dizem que Artur lutou durante todo o dia.
Dez minutos disse com desdém.
E todos eles afirmam que Lancelote o salvou ao chegar no último instante com uma centena de lanceiros.
Todos eles o afirmam disse porque foram os poetas de Lancelote quem escreveu as canções.
Ela abanou a cabeça tristemente.
Derfel, se este for o único registo de Lancelote disse ela, batendo no grande saco de couro onde levava os pergaminhos já prontos para Caer então o que irão as pessoas pensar? Que os poetas mentem?
Quem se importa com o que os poetas pensam? perguntei irritado E os poetas mentem sempre. É para isso que são pagos. Mas haveis-me pedido a verdade, eu digo-vo-la, e depois queixai-vos.
Os guerreiros de Lancelote citou ela, lanceiros tão corajosos, Causadores de viúvas e distribuidores de ouro. Carrascos dos Saxões, temidos pelos Sais..."
Parai, interrompi-a, por favor. Eu ouvi a canção uma semana depois de ter sido escrita!
Mas se as canções mentiam alegou ela, por que razão Artur não protestou?
Porque ele nunca se importou com as canções. Porque haveria de se importar? Ele era um guerreiro e não um bardo, e conquanto os seus homens cantassem antes da batalha, ele não se importava. E, além disso, ele próprio nunca soube cantar. Pensava que tinha voz, mas Ceinwyn dizia sempre que ele parecia uma vaca com gases.
Igraine franziu as sobrancelhas.
Continuo sem perceber por que razão era tão mau que Lancelote fizesse a paz.
Não é difícil de entender disse. Levantei-me e atravessei a sala até à lareira, onde usei uma vara para tirar algumas brasas incandescentes da pequena fogueira. Dispus no chão seis brasas em linha e depois dividi a fileira em dois e quatro. As quatro brasas disse representam as forças de Aelle. As duas, as de Cerdic. Agora vede como nunca poderíamos ter vencido os Saxões, se as brasas estivessem todas juntas. Não teríamos conseguido derrotar seis, mas podíamos vencer quatro. Artur planeou vencer aquelas quatro e depois virar-se contra as outras duas, e assim podíamos ter expulso os Sais da Bretanha. Mas ao fazer a paz, Lancelote aumentou o poder de Cerdic. Acrescentei outra brasa às duas para que as quatro estivessem agora diante de um grupo de três, depois agitei o pau para que se apagasse a chama que nele se ateara. Tínhamos enfraquecido Aelle expliquei eu mas também nos tínhamos enfraquecido, pois já não tínhamos os trezentos lanceiros de Lancelote. Eles estavam obrigados à paz. isso aumentou ainda mais o poder de Cerdic. Puxei duas brasas de Aelle para o campo de Cerdic, dividindo a linha em cinco e duas. Portanto, tudo o que fizemos disse foi enfraquecer Aelle e fortalecer Cerdic. E foi isso o que o pacto de paz de Lancelote conseguiu.
Estás a dar aulas de aritmética à nossa Rainha e Senhora? Sansum entrou timidamente na sala com uma expressão desconfiada estampada no rosto. E eu que julgava que estivésseis a fazer um Evangelho acrescentou ele com astúcia.
Os cinco pães e dois peixes disse Igraine rapidamente. O irmão Derfel pensou que pudessem ser cinco peixes e dois pães, mas tenho a certeza de que estou certa, não estou, senhor bispo?
A minha Rainha e Senhora tem toda a razão disse Sansum. E o irmão Derfel é um pobre cristão. Como pode um homem de tamanha ignorância escrever um Evangelho para os Saxões?
Apenas com o vosso admirável auxílio, senhor bispo respondeu Igraine e, claro, com o provimento de meu esposo. Ou deverei dizer ao rei que a ele vos opondes nesta insignificante questão?
Seríeis acusada da mais brutal falsidade se o fizésseis mentiu-lhe Sansum, de novo vencido pela estratégia da minha inteligente rainha. Vim para vos dizer, Senhora, que os vossos lanceiros crêem que devíeis partir. O céu ameaça mais neve.
Ela apanhou o saco dos pergaminhos e lançou-me um sorriso.
Voltarei a ver-vos depois de a neve parar, irmão Derfel.
Rezarei para que esse momento chegue, Senhora.
Voltou a sorrir, depois passou pelo santo, que fez uma pequena vénia quando ela passou pela porta, mas que depois de ela ter desaparecido se endireitou e me olhou fixamente. Os tufos de cabelo por cima das orelhas que nos levam a chamar-lhe Lorde Rato estão agora brancos, mas a idade não enterneceu o santo. Ainda consegue eriçar-se com vitupérios, e a dor que ainda o atormenta quando urina serve apenas para piorar o seu mau génio.
Existe um lugar especial no inferno, irmão Derfel sibilou-me ele, para os contadores de mentiras.
Rezarei por essas pobres almas, Senhor disse eu. Depois virei-lhe as costas e mergulhei esta pena na tinta para continuar a minha história sobre Artur, o meu senhor da guerra, o meu pacificador e amigo.
Seguiram-se os anos gloriosos. Igraine, que escuta demasiado os poetas, chama-lhes Camelote. Nós não. Foram os melhores anos de governação de Artur, os anos em que ele moldou um país aos seus desígnios e os anos em que Dumnónia mais se aproximou do seu ideal de uma nação em paz consigo própria e com os seus confinantes; mas é apenas ao olhar para trás que esses anos parecem tão melhores do que foram, e isto porque os anos que se seguiram foram muito piores. Ao ouvirdes as histórias contadas à noite à lareira pensareis que tínhamos construído um país completamente novo na Bretanha, que lhe teríamos chamado Camelote e o teríamos povoado de heróis extraordinários, mas a verdade é que apenas governámos Dumnónia o melhor que conseguimos, governámo-la com justiça e nunca lhe chamámos Camelote. Nunca ouvira esse nome até há dois anos atrás. Camelote existe apenas nos sonhos dos poetas, enquanto na nossa Dumnónia, até mesmo nesses bons anos, as colheitas eram ainda insuficientes, as pragas ainda nos dizimavam e guerras ainda eram travadas.
Ceinwyn veio para Dumnónia e foi em Lindinis que nasceu o nosso primeiro filho. Foi uma rapariga e chamámos-lhe Morwenna, o nome da mãe de Ceinwyn. Nasceu com cabelo escuro, mas pouco depois ficou cor de ouro, pálido como o de sua mãe. Bela Morwenna.
Comprovou-se que Merlim tinha razão relativamente a Guinevere, porque assim que Lancelote estabeleceu a sua nova administração em Venta, ela declarou-se cansada do palácio de Lindinis, novinho em folha. Era demasiado húmido, dissera ela, e estava demasiado exposto aos ventos húmidos que emergiam dos pântanos que rodeavam Ynys Wydryn, e era demasiado frio no Inverno, e de repente nada era melhor do que o antigo Palácio de Inverno de Uther, na Durnovária. Mas Durnovária ficava quase tão afastada de Venta como Lindinis, e deste modo Guinevere convenceu Artur de que precisavam de arranjar uma casa para o dia ainda longínquo em que Mordred fosse rei e, por direito real, pedisse a devolução do Palácio de Inverno; por isso Artur deixou que Guinevere escolhesse. O próprio Artur sonhava com um sólido castelo com uma paliçada, estrebaria e celeiros, mas Guinevere encontrou uma villa romana mesmo a sul do forte de Vindocládia que se encontrava, tal como Merlim pressagiara, na fronteira entre Dumnónia e o novo reino belga de Lancelote. A villa fora construída numa colina sobranceira a uma enseada e Guinevere chamou-lhe o seu Palácio do Mar. Chamou uma horda de construtores para renovar a villa e encheu-na com todas as estátuas que outrora haviam adornado Lindinis, exigindo até o chão de mosaicos da entrada deste palácio. Durante algum tempo Artur receou que o Palácio do Mar estivesse perigosamente próximo dos domínios de Cerdic, mas Guinevere insistiu que a paz negociada em Londres perduraria e Artur, apercebendo-se de como ela gostava do local, cedeu. Ele nunca se importava com o sítio onde morava, porque raramente lá estava. Gostava de andar de um lado para o outro, sempre em visita a algum lugar longínquo do reino de Mordred.
O próprio Mordred foi viver para o saqueado palácio em Lindinis, e Ceinwyn e eu, por sermos os seus tutores, também lá vivíamos. Connosco estavam sessenta lanceiros, dez cavaleiros para levarem mensagens, dezasseis raparigas de cozinha e vinte e oito escravos de casa. Tínhamos um intendente, um camareiro, um bardo, dois batedores de caça, um fabricante de hidromel, um falcoeiro, um médico, um porteiro, um alumiador e seis cozinheiros, e todos eles tinham escravos, e para além desses escravos de casa havia um pequeno exército de outros escravos que trabalhavam a terra e aparavam os ramos das árvores e mantinham os fossos drenados. Desenvolveu-se uma pequena cidade em volta do palácio, habitada por oleiros, sapateiros e ferreiros; os comerciantes que haviam enriquecido com o nosso tributo.
Tudo parecia muito afastado de Cwm Isaf. Agora dormíamos numa câmara coberta de telhas com paredes em gesso polido e portas com colunas. As nossas refeições eram tomadas num salão de banquetes onde podia sentar-se uma centena de pessoas, embora com bastante frequência o deixássemos vazio e comêssemos num pequeno aposento que ficava mesmo defronte das cozinhas, pois nunca consegui tolerar que a comida fosse servida fria quando era suposto estar quente. Se chovesse podíamos ir para a arcada coberta do pátio exterior e assim continuar secos, e no Verão, quando o Sol quente incidia nas telhas, havia um tanque cheio de entradas de água no pátio interior onde podíamos banhar-nos. Claro que nada disto era nosso; este palácio e os seus vastos terrenos faziam parte das honras prestadas a um rei e todas elas pertenciam a Mordred, de seis anos de idade.
Ceinwyn estava habituada à ostentação, ainda que não a esta escala sumptuosa, mas a constante presença de escravos e de criados nunca a embaraçou como acontecia comigo, e ela cumpria as suas obrigações com uma eficiente ausência de minudências excessivas, mantendo o palácio calmo e feliz. Era Ceinwyn quem dirigia os criados e inspeccionava as cozinhas e verificava as contas, mas sei que ela sentia saudades de Cwm Isaf e, uma vez por outra, ainda se sentava com a sua roca e fiava lã enquanto conversávamos.
Falávamos de Mordred com bastante frequência. Ambos tínhamos esperança que as histórias sobre as suas velhacarias fossem exageradas, mas não eram, porque se havia criança perversa era Mordred. Portou-se mal desde o dia em que chegou de carroça de bois vindo do castelo de Culhwuch, perto de Durnovária, e foi largado no nosso pátio. Cheguei a odiá-lo, Deus me perdoe. Era apenas uma criança, e eu odiava-o.
O rei sempre fora pequeno para a sua idade, mas, à parte o pé esquerdo defeituoso, tinha uma constituição atlética com vigorosos músculos e pouca gordura. O rosto era muito redondo, embora desfigurado por um nariz estranhamente bolboso, que tornava feia a pobre criança. O seu cabelo castanho-escuro encaracolava-se com naturalidade e crescia em dois eminentes tufos que sobressaíam de ambos os lados de um risco feito ao centro e que levava as outras crianças de Lindinis a chamarem-lhe palha-de-aço, embora nunca directamente. Tinha uns olhos estranhamente idosos, pois até mesmo aos seis anos eram circunspectos e desconfiados, e não se tornaram mais afáveis na idade viril quando o seu rosto endureceu. Era um rapaz esperto, apesar de obstinadamente se recusar a aprender as letras. O bardo da nossa casa, um jovem diligente chamado Pyrlig, era responsável por ensinar Mordred a ler, a contar, a cantar, a tocar harpa, a nomear os Deuses e a aprender a genealogia dos seus descendentes reais, mas desde logo Mordred avaliou Pyrlig.
Ele nada fará, Senhor! queixou-se-me Pyrlig. Dou-lhe pergaminho, ele rasga-o, dou-lhe uma pena e ele parte-a. Bato-lhe e ele morde-me, vede! Estendeu um pulso magro mordido das pulgas onde estavam, vermelhas e vincadas, as marcas dos dentes reais.
Coloquei Eachern, um pequeno e rude lanceiro irlandês, na sala de aula com ordens para manter o rei na linha e isso resultou bastante bem. Uma palmada de Eachern convenceu a criança que se deparava com um seu igual, e deste modo se submeteu taciturno à disciplina, mas ainda assim nada aprendeu. Conseguia-se manter uma criança quieta, segundo parecia, mas não se conseguia fazê-la aprender. Mordred bem tentou assustar Eachern, dizendo que quando fosse rei se vingaria do guerreiro por causa das frequentes tareias, mas Eachern deu-lhe outra sova e garantiu que já teria voltado para a Irlanda quando Mordred chegasse a essa idade.
Por isso se quiserdes vingança, meu Rei e Senhor disse Eachern, dando ao rapaz outro violento murro, trazei o vosso exército para a Irlanda e nós vos daremos uma valente tareia, de igual para igual.
Mordred não era apenas um rapaz travesso com isso podíamos nós bem mas terrivelmente cruel. Os seus actos eram concebidos para fazer mal, até mesmo para matar. Certa vez, quando tinha dez anos, encontrámos cinco víboras na adega escura onde guardávamos os tonéis de hidromel. Ninguém excepto Mordred as teria ali colocado, e sem dúvida que o fez na esperança de que um escravo ou um criado fosse picado. O frio da adega tornara as cobras sonolentas e matámo-las com relativa facilidade, mas um mês mais tarde uma criada morreu mesmo, depois de ter comido cogumelos que posteriormente descobrimos serem uma variedade venenosa. Ninguém soube quem fizera a substituição, mas todos acreditavam ter sido Mordred. Era como se, dizia Ceinwyn, houvesse uma mente adulta calculista dentro do rapazinho pugnaz. Penso que ela antipatizava com ele tanto quanto eu, mas tentava desesperadamente ser amável para o rapaz e detestava as tareias que todos nós lhe dávamos.
Só fazem com que ele fique pior admoestava-me ela.
Receio bem que assim seja admiti.
Então porque continuam? Encolhi os ombros.
Porque se tentamos a delicadeza ele apenas tira vantagem disso. No início, quando Mordred veio pela primeira vez para Lindinis, prometi a mim próprio que nunca bateria no rapaz, mas aquela elevada pretensão extinguiu-se em poucos dias e pelo final do primeiro ano bastava-me ver a sua cara feia, carrancuda, de nariz bulboso e com cabeça de palha-de-aço para ter vontade de o colocar sobre os meus joelhos e o sovar até fazer sangue.
E afinal até Ceinwyn lhe bateu. Ela não quisera, mas um dia ouvi-a gritar. Mordred encontrara uma agulha e enterrava-a indolente no couro cabeludo de Morwenna. Decidira simplesmente ver o que acontecia se cravasse a agulha num dos olhos do bebé quando Ceinwyn correu a ver por que razão a sua filha gritava. Puxou Mordred para cima e deu-lhe tamanho sopapo que ele rodopiou até ao centro da sala. Depois disso, a nossa filha nunca mais foi deixada sozinha a dormir, estando sempre um criado ao seu lado, e Mordred acrescentou Ceinwyn à lista de nomes dos seus inimigos.
Ele é simplesmente malévolo explicou-me Merlim. Lembras-te certamente da noite em que ele nasceu?
Nitidamente afirmei, pois ao contrário de Merlim, tinha lá estado.
Eles deixaram que os cristãos guardassem a câmara onde nasceu, não foi? perguntou-me ele. E só mandaram chamar Morgana quando tudo estava a correr mal. Que precauções tomaram os cristãos?
Encolhi os ombros.
Orações. Lembro-me de um crucifixo. Claro que não estivera na câmara onde ele nasceu, porque nenhum homem alguma vez entrou numa câmara onde uma mulher estivesse a dar à luz, mas observara tudo das muralhas de Caer Cadarn.
Não admira que tudo tenha corrido mal disse Merlim. Orações! De que servem as orações contra um espírito maligno? Tem de ser a urina na soleira da porta, ferro na cama, artemísia na lareira. Abanou a cabeça melancolicamente. Um espírito entrou no corpo da criança antes de Morgana conseguir acudir-lhe e é essa a razão pela qual o seu pé é tão retorcido. Provavelmente o espírito agarrou-se com firmeza ao pé quando pressentiu a chegada de Morgana.
Então, como é que expulsamos o espírito? perguntei.
Com uma espada cravada no malévolo coração da criança disse ele sorrindo e reclinando-se na cadeira.
Por favor, Senhor insisti, como? Merlim encolheu os ombros.
O velho Balise contava que podia ser feito colocando a pessoa possuída numa cama entre duas virgens. Todos nus, claro. Soltou um riso abafado. Pobre Balise. Era um bom druida, mas a esmagadora maioria dos seus feitiços implicavam despir rapariguinhas. A ideia era que o espírito iria preferir estar no corpo de uma virgem, entendes? Por isso lhe eram oferecidas duas virgens, para que ele ficasse confuso e não soubesse qual havia de escolher, e o truque era fazê-las sair da cama no preciso instante em que o espírito saísse do corpo da pessoa louca e ainda estivesse a tentar decidir qual a virgem que escolheria; e justamente nessa altura tiravas os três da cama e lançavas um tição para a palha. Era suposto queimar o espírito e reduzi-lo a fumo, entendes? Mas para mim nunca fez muito sentido. Confesso que certa vez tentei a técnica. Tentei curar um pobre velho louco chamado Malldyn, e tudo o que consegui foi um idiota que continuou doido varrido, duas escravas aterrorizadas e os três ligeiramente chamuscados. Suspirou. Mandámos Malldyn para a Ilha dos Mortos. O melhor lugar para ele. Podias mandar Mordred para lá?
A Ilha dos Mortos é para onde mandamos os nossos loucos em pior estado. Nimue estivera lá uma vez e fora eu quem a arrancara a esse horror.
Artur nunca o consentiria disse eu.
Penso que não. Vou tentar conseguir um encantamento para ti, mas não posso dizer que tenha muita esperança. Merlim vivia agora connosco. Era um homem velho que morria aos poucos, ou pelo menos era o que nos parecia, porque a energia havia-lhe sido sugada pelo fogo que consumira o Tor, e com essa energia tinham desaparecido os sonhos de reunir os Tesouros da Bretanha. Tudo o que restava agora era uma pele seca que envelhecia continuamente. Sentava-se durante horas ao Sol e no Inverno inclinava-se sobre a lareira. Mantinha a tonsura própria dos druidas, embora já há muito não entrançasse a sua barba, deixando-a simplesmente crescer em desalinho e branca. Comia pouco, mas estava sempre pronto para falar, embora nunca sobre Dinas e Lavaine, nem sobre o terrível momento em que Cerdic cortara a trança da sua barba. Fora essa violação, concluí, juntamente com o golpe de relâmpago no Tor que sugara a vida de Merlin, apesar de ele ainda conservar uma pequena réstia de esperança. Estava convencido de que o Caldeirão não fora queimado, mas roubado, e logo no início da nossa estadia em Lindinis provou-mo no jardim. Construiu uma torre falsa de lenha cortada, colocou um cálice de ouro no centro e uma mão-cheia de mecha na sua base, depois ordenou que trouxessem fogo das cozinhas.
Até Mordred se portou bem nessa tarde. O fogo sempre fascinou o rei e os seus olhos estavam esbugalhados enquanto a torre modelo se consumia sob a luz do Sol. A pira de cepos desabou para o centro ainda as chamas crepitavam, e ao cair da tarde Merlim foi buscar um ancinho de jardineiro e examinou as cinzas com todo o cuidado. Retirou o cálice de ouro, que já não parecia um cálice de tão disforme e torcido estava, mas que ainda era de ouro.
Eu fui ao Tor na manhã a seguir ao incêndio, Derfel disse-me ele e procurei e voltei a procurar no meio das cinzas. Retirei à mão, toda a madeira chamuscada, peneirei as cinzas, examinei o que restava com cuidado e não encontrei ouro algum. Nem uma gota. O Caldeirão foi levado e a torre incendiada. Desconfio que os Tesouros tenham sido roubados na mesma altura, pois estavam todos aí guardados, excepto o carro e o outro.
Que outro?
Por momentos pareceu que não ia responder, depois encolheu os ombros como nada disto tivesse já importância.
A espada de Rhydderch. Conhece-la como Caledfwlch. Ele falava da espada de Artur, Excalibur.
Destes-lha mesmo sabendo que era um dos Tesouros? perguntei abismado.
Porque não? Ele jurou devolver-ma quando eu precisasse dela. Ele não sabe que é a espada de Rhydderch, Derfel, e tu tens de me prometer que nada lhe dirás. Ele só fará alguma estupidez, como derretê-la para provar que não tem medo dos Deuses, se descobrir. Por vezes Artur pode ser muito casmurro, mas é o melhor governante que temos, por isso decidi conceder-lhe um secreto poderzinho extra, deixando-o usar a espada de Rhydderch. Claro que ele escarneceria se soubesse, mas um dia a espada incender-se-á e nessa altura ele não escarnecerá.
Eu queria saber mais sobre a espada, mas ele nada mais me contaria.
Agora não tem importância disse ele tudo terminou. Os Tesouros desapareceram. Presumo que Nimue olhará por eles, mas estou demasiado velho, muito velho mesmo.
Detestava ouvi-lo dizer aquilo. Depois de todo o esforço que tinha despendido na recolha dos Tesouros, parecia abandoná-los simplesmente. Até o Caldeirão, pelo qual havíamos passado pela provação da Estrada Sombria, parecia já não ter importância alguma.
Se os Tesouros ainda existirem, Senhor insisti podem ser encontrados.
Sorriu indulgente.
Serão encontrados disse ele com desdém. Claro que serão encontrados.
Então porque não vamos à procura deles?
Suspirou como se as minhas perguntas fossem uma maçada.
Porque estão escondidos, Derfel, e o seu esconderijo estará envolto por feitiço. Eu sei isso. Pressinto-o. Portanto temos de esperar até que alguém tente usar o Caldeirão. Nessa altura saberemos, porque só sei usar o Caldeirão devidamente e se mais alguém invocar os seus poderes, estes lançarão o horror sobre a Bretanha. Encolheu os ombros. Esperamos pelo horror, Derfel, depois iremos ao seu âmago e aí encontraremos o Caldeirão.
Mas quem pensais vós que o roubou? insisti. Abriu as mãos mostrando desconhecimento.
Os homens de Lancelote? Possivelmente para oferecê-lo a Cerdic. Ou talvez àqueles dois gémeos silurianos. Subestimei-os bastante, não foi? Não que isso tenha agora importância. Só o tempo dirá quem o possui, Derfel, só o tempo o dirá. Aguarda que o horror surja, então encontrá-lo-emos. Parecia satisfeito por esperar e enquanto esperava contou velhas histórias e ouviu outras novas, embora de vez em quando se arrastasse para dentro do seu quarto, que comunicava com o pátio exterior, e aí trabalhasse num qualquer feitiço, normalmente pela saúde de Morwenna. Ainda lia sinas, normalmente espalhando uma camada de cinzas frias sobre as lajes do pátio e deixando que uma vulgar cobra anelada serpenteasse através da poeira para que ele pudesse ler no seu rasto, mas eu reparei que as suas previsões eram sempre brandas e optimistas. Não sentia prazer algum nessa tarefa. Ainda assim detinha alguns poderes, porque quando Morwenna apanhou uma febre, fez um amuleto com lã e cascas de fruto de faia, depois deu-lhe uma mistura feita de piolhos da madeira esmagados que levou a que a febre desaparecesse por completo. No entanto, quando Mordred adoecia inventava sempre feitiços que fizessem com que a doença se agravasse, embora o rei nunca tivesse enfraquecido ao ponto de morrer.
O demónio protege-o explicava Merlim, e hoje em dia já estou demasiado fraco para defrontar jovens demónios. Reclinou-se nas almofadas e atraiu um dos gatos para o seu colo. Sempre gostara de gatos e tínhamos imensos em Lindinis. Merlim era bastante feliz no palácio. Nós os dois éramos amigos, ele gostava apaixonadamente de Ceinwyn e da nossa crescente família de filhas e era tratado por Gwlyddyn, Ralla e Caddwg, os seus mais antigos criados do Tor. Gwlyddyn e os filhos de Ralla haviam crescido com as nossas e todos se uniam contra Mordred. Na altura em que o rei tinha doze anos, Ceinwyn já tinha dado à luz cinco vezes. As três raparigas sobreviveram mas os dois rapazes morreram no intervalo de uma semana após o nascimento e Ceinwyn culpou o espírito maligno de Mordred pelas suas mortes.
Ele não quer outros rapazes no palácio disse ela com tristeza, só raparigas.
Mordred partirá em breve prometi-lhe, porque contava os dias que faltavam para o seu décimo quinto aniversário, idade em que seria aclamado rei.
Artur também contava os dias, embora com algum receio pois temia que Mordred destruísse tudo o que ele tinha alcançado. Naquela época, Artur vinha frequentemente a Lindinis. Ouvíamos o barulho de passos no pátio exterior, a porta abria-se de rompante e a sua voz ecoava pelos salões quase vazios do palácio.
Morwenna! Seren! Dian! Gritava ele, e as nossas três filhas de cabelos de ouro corriam ou caminhavam vacilantes para se unirem num enorme abraço e depois serem mimadas com presentes; mel num favo, pequenos pregadores ou a delicada concha em espiral de um caracol. Depois, adornado com panos artisticamente dispostos pelas minhas filhas, dirigia-se a um qualquer dos aposentos onde estivéssemos e transmitia-nos as suas últimas notícias: uma ponte reconstruída, um tribunal aberto, encontrado um magistrado honesto, um salteador de caminhos executado; ou então uma qualquer outra história sobre um prodígio natural: uma cobra marinha vista ao largo da costa, um vitelo recém-nascido com cinco pernas ou, como certa vez, histórias de um malabarista que comia fogo. Como está o rei? perguntava ele quando estes prodígios já haviam sido contados inúmeras vezes.
O rei cresce respondia sempre Ceinwyn com malícia e Artur nada mais perguntava.
Ele dava-nos novas de Guinevere, que eram sempre boas, embora tanto eu como Ceinwyn suspeitássemos que o seu entusiasmo ocultava uma estranha solidão. Nunca estava sozinho, mas julgo que ele jamais encontrou a alma gémea que tanto desejava. Outrora Guinevere estivera tão apaixonadamente interessada nos assuntos da governação como Artur, mas gradualmente foi dirigindo as suas energias para a adoração de ísis. Artur, que sempre se sentira desconfortável com o fervor religioso, fingia estar interessado nessa Deusa, mas na verdade julgo que ele pensava que Guinevere perdia tempo em busca de um poder que não existia, tal como nós outrora tínhamos desperdiçado o nosso tempo à procura do Caldeirão.
Guinevere deu-lhe um único filho. Ceinwyn dizia que ou eles dormiam separados ou então Guinevere usava uma magia feminina para evitar a concepção. Todas as aldeias tinham uma feiticeira que sabia que ervas fariam isso, tal como sabia que substâncias podiam fazer abortar uma criança ou curar uma doença. Eu sabia que Artur gostaria de ter mais filhos porque ele adorava crianças, e alguns dos seus períodos mais felizes eram quando trazia Gwydre para ficar no nosso palácio. Artur e o filho deliciavam-se com o bando travesso de crianças desalinhadas e com laços nos cabelos que descuidadamente corriam velozes por Lindinis, mas que evitavam sempre a presença carrancuda e congeminadora de Mordred. Gwydre brincava com as nossas três filhas e com os três rapazes de Ralla e com as duas dúzias de escravos ou criados, também crianças, que constituíam exércitos em miniatura para combates fictícios ou então adornavam com mantos de guerra emprestados os ramos de uma pequena pereira do jardim para a transformar numa pretensa casa que imitasse as intensas emoções e os comportamentos do grande palácio. Mordred tinha os seus próprios companheiros, todos rapazes, todos filhos de escravos, que, sendo mais velhos, deambulavam mais esparçamente. Ouvíamos histórias sobre uma foice roubada de uma choupana, sobre um telhado de colmo ou uma meda de feno incendiados, sobre uma peneira rasgada ou uma cerca já partida que fora acabada de colocar, e, em anos que se seguiram, sobre a rapariga de um pastor ou a filha de um lavrador que fora assaltada. Artur ouvia, estremecia, depois saía e ia falar com o rei, mas isso nunca fez diferença alguma.
Guinevere raramente vinha a Lindinis e apesar de as minhas obrigações me levarem a percorrer Dumnónia ao serviço de Artur, conduziam-me também ao Palácio de Inverno de Durnovária amiudadas vezes, e era aí que, com bastante frequência, encontrava Guinevere. Ela era cordial para comigo, mas nesses tempos nós éramos todos cordiais, pois Artur consagrara o seu grande grupo de guerreiros. A primeira vez que me falara da sua ideia fora em Cwm Isaf, mas agora, nos anos de paz que se seguiam à batalha próxima de Londres, ele transformava a sua corporação de lanceiros numa realidade.
Até mesmo hoje em dia, se se mencionar a Távola Redonda, alguns homens idosos recordar-se-ão e rir-se-ão por entre dentes da antiga tentativa para refrear a rivalidade, a hostilidade e a ambição. Távola Redonda nunca foi, evidentemente, o seu nome correcto, mas antes uma alcunha. O próprio Artur decidira chamar-lhe a Irmandade da Bretanha, que soava muito mais impressionante, mas nunca ninguém a designou dessa forma. Seria recordada, se é que a recordam sequer, como o juramento da Távola Redonda, e provavelmente esqueceram que era suposto trazer-nos a paz. Pobre Artur. Ele acreditava mesmo na irmandade, e se os abraços pudessem trazer a paz então um milhar de homens ainda hoje estaria vivo. Artur tentou na verdade mudar o mundo e o seu instrumento foi o amor.
Era suposto a Irmandade da Bretanha ter sido consagrada no Palácio de Inverno em Durnovária, no Verão a seguir à morte de Leodegan, o pai de Guinevere, o rei exilado de Henis Wyren, que sucumbira a uma peste. Todavia, nesse mês de Julho, quando nos devíamos encontrar todos, a peste surgiu de novo na Durnovária, e, no último momento, Artur transferiu a grande assembleia para o Palácio do Mar, que estava agora terminado e iluminava a sua colina por cima da enseada. Lindinis teria sido um local mais adequado aos ritos inaugurais, por ser um palácio muito maior, mas Guinevere deve ter decidido que queria exibir o seu novo lar. Não há dúvida que lhe agradava ter guerreiros bretões rudes, de cabelos longos e barbas hirsutas deambulando pelos seus corredores civilizados e pelas arcadas sombreadas. Esta beleza, parecia ela dizer-nos, é o que vocês têm de proteger, embora tivesse muito cuidado em se certificar de que poucos de nós de facto dormiam no interior da villa ampliada. Acampámos no exterior e, diga-se em abono da verdade, éramos mais felizes aí.
Ceinwyn foi comigo. Não estava bem, uma vez que as cerimónias decorreram pouco depois do nascimento do seu terceiro filho, um rapaz, e fora um parto difícil que terminara com o enfraquecimento desesperado de Ceinwyn e a morte da criança; mas Artur rogara-lhe que viesse. Ele queria que todos os Lordes da Bretanha estivessem presentes, e embora nenhum de Gwynedd, Elmet ou de outros reinos do Norte tivesse comparecido, muitos outros fizeram a longa viagem e quase todos os grandes homens de Dumnónia estavam presentes. Cuneglas de Powys, Meurig de Gwent estavam lá, o príncipe Tristão de Kernow atendeu ao pedido, tal como, evidentemente, Lancelote, e todos estes reis trouxeram senhores, druidas, bispos e chefes de tribos e assim as tendas e abrigos formaram uma enorme faixa na colina do Palácio do Mar. Mordred, que ao tempo tinha nove anos de idade, foi connosco e, para descontentamento de Guinevere, foi instalado com os outros reis no interior do palácio. Merlim recusou-se comparecer. Disse que estava demasiado velho para tamanho disparate. Galaad foi nomeado Marechal da Irmandade, presidindo por isso com Artur e, à semelhança de Artur, acreditando com devoção em toda a ideia.
Nunca o confessei, menos ainda a Artur, mas achei tudo aquilo embaraçoso. A sua ideia era que todos jurássemos paz e amizade uns aos outros, e dessa forma sanássemos todas as nossas inimizades e nos uníssemos por juramentos que proibissem todos os membros da Irmandade da Bretanha de jamais erguerem uma lança uns contra os outros; mas até os Deuses pareciam troçar desta elevada ambição, porque o dia da cerimónia despontou gelado e sombrio, embora nunca tivesse chegado a chover, circunstâncias que Artur, que estava ridiculamente optimista com tudo aquilo, declarou ser um sinal propiciador.
Para a cerimónia, que teve lugar no agradabilíssimo jardim do Palácio do Mar, disposto entre duas novas arcadas que se estendiam por cima de taludes de relva em direcção à enseada, não foram levadas espadas, lanças ou escudos. Estandartes pendiam das arcadas onde dois coros cantavam música solene para conferir às cerimónias a dignidade devida. No extremo norte do jardim, próximo de uma grande porta em arco, que conduzia ao interior do palácio, fora posta uma mesa. Era uma mesa redonda, apesar de nada de significativo ter essa forma; era apenas a mesa mais cómoda de se transportar para o jardim. A mesa não era muito grande, talvez tão larga quanto o alcance dos braços abertos de um homem, mas estava, recordo-me, muito bonita. Era romana, claro, feita de uma pedra branca translúcida na qual havia sido cinzelado um cavalo notável com umas enormes asas abertas. Uma das asas tinha uma fenda aflitiva, mas a mesa era ainda um objecto impressionante e o cavalo alado uma maravilha. Sagramor disse jamais ter visto semelhante animal em todas as viagens que fizera, embora afirmasse existirem cavalos alados nos países misteriosos instalados algures para lá dos oceanos de areia. Sagramor casara com a sua vigorosa saxã, Malla, e era agora pai de dois rapazes.
As únicas espadas consentidas na cerimónia eram as que pertenciam aos reis e príncipes. A espada de Mordred estava pousada em cima da mesa e, entrecruzadas sobre ela, estavam as espadas de Lancelote, Meurig, Cuneglas, Galaad e Tristão. Um a um, todos demos um passo em frente, reis, príncipes, chefes de tribos e lordes, e colocámos as mãos no sítio onde as seis espadas se tocavam e prestámos o juramento de Artur, que nos comprometia relativamente à amizade e à paz. Ceinwyn vestira roupas novas a Mordred que tinha então nove anos, depois espontou e penteou o seu cabelo na tentativa de impedir que os pêlos eriçados e encaracolados formassem uma saliência semelhante a escovas gémeas que saíssem do seu crânio redondo. Ainda assim aparentava uma figura sem graça e coxeando do seu pé esquerdo defeituoso dispôs-se a resmonear o juramento. Admito que o momento em que coloquei a minha mão sobre as seis espadas foi bastante solene; como a maior parte dos homens que aí se encontravam, era meu desígnio cumprir o juramento, que se destinava, evidentemente, apenas aos homens, uma vez que Artur não considerara este um assunto de mulheres, embora muitas permanecessem de pé no terraço por cima da porta em arco para testemunhar a longa cerimónia. Também foi uma longa cerimónia. Inicialmente, Artur tivera a intenção de restringir os membros da sua Irmandade apenas aos guerreiros com juramento prestado que haviam pelejado contra os Saxões, mas agora alargava o seu âmbito de modo a incluir todos os homens notáveis que conseguisse atrair para o palácio. Quando os juramentos chegaram ao fim, fez o seu próprio juramento e depois deteve-se no terraço e disse-nos que o compromisso que solenemente havíamos acabado de declarar era tão sagrado como todos os que anteriormente havíamos feito, que havíamos prometido paz para a Bretanha e que se algum de nós quebrasse essa paz era então dever solene de todos os membros da Irmandade punir o transgressor. Depois ordenou que nos abraçássemos, após o que, bem entendido, começámos a beber.
A solenidade do dia não terminou quando a bebida teve início. Artur estivera a observar cuidadosamente os homens que evitavam os abraços de outros homens, e depois, grupo por grupo, as almas recalcitrantes foram mandadas chamar ao grande salão do palácio, onde Artur insistiu que deviam reconciliar-se. O próprio Artur deu o exemplo ao abraçar primeiro Sansum e depois Melwas, o rei belga destronado e que Artur exilara em Isca. Melwas acedeu com pouca vontade ao beijo de paz, mas um mês mais tarde morreu depois de ter comido um pequeno-almoço de ostras estragadas. O destino, como Merlim adorava dizer-nos, é inexorável.
As reconciliações mais íntimas atrasaram inevitavelmente o início do banquete, que iria ter lugar no grande salão onde Artur iria reunir os inimigos. Deste modo foi trazido mais hidromel para o jardim onde os guerreiros enfadados aguardavam e tentavam adivinhar quais de entre eles seriam os seguintes a serem chamados para selar a paz de Artur. Eu sabia que seria chamado, porque evitara cautelosamente Lancelote durante toda a cerimónia, e de facto Hygwydd, o lacaio de Artur, encontrou-me e insistiu para que eu fosse para o grande salão onde, tal como eu temia, Lancelote e os seus cortesãos me aguardavam. Artur convencera Ceinwyn a assistir e, para lhe proporcionar algum conforto acrescido, pedira ao irmão dela para estar presente. Permanecemos os três de pé num dos lados do salão, Lancelote e os seus homens no outro lado, enquanto Artur, Galaad e Guinevere assumiam a presidência do estrado onde a mesa principal estava pronta para o grande festim. Artur sorriu-nos, irradiando alegria.
Tenho nesta sala declarou, alguns dos meus mais queridos amigos. O rei Cuneglas, o melhor aliado que qualquer homem pode ter em tempo de guerra ou de paz, o rei Lancelote, a quem estou ligado como a um irmão, Lorde Derfel Cadarn, o mais corajoso dos meus valentes homens, e a querida princesa Ceinwyn. Ele sorriu.
Mantive-me de pé tão embaraçado como um espantalho num campo de ervilhas. Ceinwyn estava graciosa, Cuneglas fixava o olhar no tecto pintado do salão, Lancelote franzia o sobrolho, Amhar e Loholt tentaram parecer beligerantes, enquanto Dinas e Lavaine nada mostravam para além de satisfação nos seus rostos severos. Guinevere observou-nos cuidadosamente e o seu atraente rosto nada traiu, embora eu suspeitasse que ela sentisse tanto desdém como Dinas e Lavaine por esta cerimónia inventiva, tão cara ao seu marido. Artur desejava fervorosamente a paz, e apenas ele e Galaad pareciam não estar incomodados com a situação.
Como nenhum de nós falasse Artur abriu os braços e desceu do palanque.
Exijo disse que a inimizade que existe entre vós seja agora revelada, revelada por uma vez e depois esquecida.
Voltou a aguardar. Arrastei os pés e Cuneglas deu um puxão nos seus longos bigodes.
Por favor disse Artur. Ceinwyn encolheu um pouco os ombros.
Lamento disse ela o dano que causei ao rei Lancelote. Artur, encantado por o gelo se ter quebrado, sorriu para o rei belga.
Meu Rei e Senhor? Convidou Lancelote a responder. Ireis perdoá-la?
Lancelote, que nesse dia estava todo de branco vestido, lançou-lhe um olhar rápido, depois fez uma vénia.
Significa isso perdão? resmunguei.
Lancelote ruborizou, mas conseguiu aceder às expectativas de Artur.
Não tenho qualquer quezília com a princesa Ceinwyn disse ele de forma hirta.
Pronto! Artur estava deliciado com as palavras reticentes e abriu de novo os braços convidando os dois a aproximarem-se. Abraçai-vos disse ele. Então eu terei paz!
Ambos deram um passo em frente, beijaram-se na face e recuaram. O gesto foi quase tão caloroso como a noite estrelada em que esperámos pelo Caldeirão nos rochedos junto a Llyn Cerrig Bach, mas agradou a Artur.
Derfel, ele olhou para mim, não vais abraçar o rei? Fiquei empedernido devido ao conflito.
Beijá-lo-ei, Senhor disse eu quando os seus druidas retirarem as ameaças que fizeram contra a princesa Ceinwyn.
Reinou o silêncio. Guinevere suspirou e bateu com um pé nos mosaicos do estrado, os mesmos mosaicos que retirara de Lindinis. Estava, como sempre, soberba. Trajava um vestido preto, talvez em reconhecimento pela solenidade do dia, ornamentado com dúzias de pequenas luas de prata em quarto crescente. O seu cabelo ruivo fora domado em tranças que ela enrolara junto ao crânio e mantidas seguras por dois ganchos de ouro em forma de dragões. Em volta do pescoço trazia o bárbaro colar saxão em ouro que Artur lhe enviara após a batalha há muito travada contra os saxões de Aelle. Por essa altura ela dissera-me que não gostava do colar, mas ficava-lhe magnificamente. Ela pode ter desprezado os procedimentos deste dia, mas ainda assim fez o seu melhor para ajudar o marido.
Que ameaças? perguntou-me ela com frieza.
Eles sabem respondi, fitando os gémeos.
Não fizemos quaisquer ameaças protestou Lavaine terminantemente.
Mas vocês podem fazer com que as estrelas desapareçam acusei-os. Dinas consentiu um sorriso indolente no seu rosto brutal e bonito.
A pequena estrela de papel, Lorde Derfel? perguntou com uma falsa surpresa. É esse o vosso insulto?
Foi a vossa ameaça.
Meu Senhor! apelou Dinas para Artur. Foi uma partida de crianças. Nada significou.
Artur dirigiu o olhar de mim para os druidas.
Jurai-o? perguntou.
Pela vida de meu irmão disse Dinas.
E a barba de Merlim? desafiei-os. Ainda a têm? Guinevere suspirou como que em sinal de enfado. Galaad franziu as sobrancelhas. Fora do palácio, as vozes dos guerreiros tornavam-se ruidosas e roucas devido ao hidromel. Lavaine olhou para Artur.
É verdade, Senhor disse ele com cortesia, que nós possuíamos um fio da barba de Merlim, cortado depois de ele ter insultado o rei Cerdic. Mas pela minha vida, Senhor, nós queimámo-lo.
Não lutamos com homens idosos resmungou Dinas com maus modos, depois olhou de relance para Ceinwyn. Nem com mulheres.
Artur sorriu satisfeito.
Vamos, Derfel disse ele abraça. Terei paz entre os meus mais queridos amigos.
Ainda hesitei, mas Ceinwyn e o seu irmão impeliram-me para a frente, e deste modo, pela segunda e última vez na minha vida, abracei Lancelote. Porém, agora, em vez de murmurar insultos como aconteceu no nosso primeiro abraço, não dissemos nada. Apenas nos beijámos e com um passo nos separámos.
Existirá paz entre vós insistiu Artur.
Juro-vos, Senhor respondi rigidamente.
Não tenho qualquer disputa respondeu Lancelote tão friamente como eu.
Artur teria de se contentar com a nossa reconciliação grosseira e deixou escapar um longo suspiro de alívio como se a parte mais difícil do seu dia estivesse agora concluída; depois, abraçou-nos aos dois antes de insistir para que Guinevere, Galaad, Ceinwyn e Cuneglas se aproximassem e se beijassem.
A nossa provação terminara. As últimas vítimas de Artur eram a sua própria mulher e Mordred e a isso eu não queria assistir, por isso conduzi Ceinwyn para fora da sala. O irmão dela, a pedido de Artur, permaneceu, ficando nós sozinhos.
Perdoa-me aquilo disse-lhe eu. Ceinwyn encolheu os ombros.
Foi uma provação inevitável.
Continuo a não confiar no patife disse eu por vingança. Ela sorriu.
Tu, Derfel Cadarn, és um valente guerreiro e ele é Lancelote. Terá o lobo receio da lebre?
Receia a serpente disse eu melancólico. Não tinha vontade de enfrentar os meus amigos e lhes descrever a minha reconciliação com Lancelote, por isso conduzi Ceinwyn pelas graciosas salas do Palácio do Mar com as suas paredes com colunas, chãos decorados e pesados candeeiros de bronze que pendiam de longas correntes de ferro presas nos tectos pintados com cenas de caça. Ceinwyn achou o palácio incomensuravelmente magnificente, mas também frio. É mesmo típico dos Romanos disse ela.
É mesmo típico de Guinevere devolvi o sarcasmo. Encontrámos um lanço de escadas que descia para umas cozinhas afadigadas e depois para uma porta que abria sobre os jardins das traseiras onde frutos e ervas cresciam em canteiros bem arranjados. Não creio disse eu quando saímos para o exterior que esta Irmandade da Bretanha consiga alcançar alguma coisa.
Alcançará disse Ceinwyn se um número razoável de vocês levar o juramento a sério.
Talvez. Detive-me de repente embaraçado, pois à minha frente, a acabar de se endireitar depois de ter estado debruçada sobre um canteiro de salsa, estava Gwenhwyvach, a irmã mais nova de Guinevere.
Ceinwyn cumprimentou-a feliz. Esquecera-me que haviam sido amigas durante os longos anos em que Guinevere e Gwenhwyvach estiveram exiladas em Powys, e depois de se beijarem Ceinwyn trouxe Gwenhwyvach até mim. Pensei que ela pudesse estar ressentida por me ter negado a desposá-la, mas não pareceu carregar qualquer rancor.
Tornei-me a jardineira de minha irmã disse-me ela.
Certamente que não, Senhora? respondi.
A nomeação não é oficial disse ela secamente nem os meus elevados ofícios de chefe dos camareiros ou de chefe de caçadas, mas alguém tem de desempenhar a tarefa, e quando o nosso pai morreu obrigou Guinevere a prometer que olharia por mim.
Lamentei o que sucedeu a vosso pai disse Ceinwyn. Gwenhwyvach encolheu os ombros.
Apenas foi ficando cada vez mais magro até desaparecer. A própria Gwenhwyvach não tinha emagrecido, na verdade ela agora estava obesa, uma mulher de cara redonda e vermelha que, no seu vestido manchado de terra e no avental branco emporcalhado, mais se assemelhava à mulher de um camponês do que a uma princesa. Eu vivo ali disse ela, gesticulando em direcção a um sólido edifício de madeira que se erguia a uma centena de passos do palácio. Minha irmã consente que eu faça o meu trabalho todos os dias, mas à tardinha esperam que permaneça acauteladamente longe das vistas. Nada com mau aspecto, entendeis, pode desfigurar o Palácio do Mar.
Senhora! protestei pela sua autodepreciação. Gwenhwyvach acenou-me para que me calasse.
Sou feliz disse ela tristemente. Dou grandes passeios com os cães e falo com as abelhas.
Vem para Lindinis rogou-lhe Ceinwyn.
Tal nunca seria consentido! afirmou Gwenhwyvach pretensamente chocada.
Porque não? perguntou Ceinwyn. Temos aposentos disponíveis. Por favor.
Gwenhwyvach sorriu dissimuladamente.
Eu sei demasiado, Ceinwyn, é por isso. Sei quem vem e quem fica e o que lá fazem. Nenhum de nós desejou aprofundar aquelas insinuações, por isso nos mantivemos os dois em silêncio, mas Gwenhwyvach tinha necessidade de falar. Devia sentir-se só e Ceinwyn era um rosto amigo e querido do passado. De repente, Gwenhwyvach atirou para o chão as ervas que acabara de cortar e apressou-se a levar-nos pelo interior do palácio. Deixem-me que vos mostre disse ela.
Tenho a certeza que não necessitamos de ver disse Ceinwyn, receando o que quer que estivesse prestes a ser revelado.
Tu podes ver disse Gwenhwyvach para Ceinwyn, mas Derfel não pode. Ou não deveria. Os homens não devem entrar no templo.
Levara-nos até uma porta que ficava ao fundo de alguns degraus em tijolo que, conforme vimos quando ela a puxou para abrir, dava para uma enorme adega por baixo do chão do palácio, suportada por enormes arcos em tijolo romano.
Aqui guardam vinho disse Gwenhwyvach, justificando os frascos e os odres dispostos em grades nas prateleiras. Havia deixado a porta aberta para que alguns raios da luz do dia penetrassem o escuro e poeirento labirinto de arcos. Por aqui disse ela, e desapareceu por entre alguns pilares à nossa direita.
Seguimos mais devagar, tacteando com tanto mais cuidado quanto mais nos afastávamos da luz do dia que passava pela porta da adega. Ouvimos Gwenhwyvach levantar uma tranca, depois uma lufada de ar frio bafejou-nos assim que ela puxou uma enorme porta, abrindo-a.
Este é um templo de ísis? perguntei-lhe.
Ouviram falar dele? Gwenhwyvach pareceu desiludida.
Guinevere mostrou-me o seu templo em Durnovária respondi há uns anos atrás.
Não vos mostraria este disse Gwenhwyvach, e então afastou as grossas cortinas pretas penduradas já no interior do templo, alguns metros para lá das portas do templo para que Ceinwyn e eu pudéssemos arregalar os olhos para o relicário privado de Guinevere. Com receio da ira da irmã, Gwenhwyvach não me deixou passar além do pequeno hall de entrada que ficava entre a porta e as grossas cortinas, mas permitiu que Ceinwyn descesse dois degraus para o interior da comprida sala, cujo chão era em pedra preta polida, as paredes e o tecto em abóbada pintados com pez, e onde se encontrava um estrado de pedra preta com um trono também de pedra preta, por detrás do qual havia outra cortina preta. Diante do baixo estrado havia um poço com pouca profundidade que, sabia eu, era cheio de água durante as cerimónias de ísis. Na verdade, o templo era quase igual ao que Guinevere me mostrara tantos anos antes, e muito parecido com o santuário abandonado que havíamos descoberto no palácio de Lindinis. A única diferença, além de esta adega ser maior e mais baixa do que os dois templos anteriores, era que aqui a luz do dia podia penetrar, pois havia um enorme buraco no tecto abobadado mesmo por cima do poço pouco profundo. Ali em cima há uma parede sussurrou Gwenhwyvach, apontando na direcção do buraco, mais alta do que um homem. Por isso é que o luar pode passar através de uma clarabóia até ao poço, mas ninguém consegue ver nada através dela cá para baixo. Inteligente, não é?
A existência da clarabóia sugeria que a adega tinha de terminar por baixo da zona lateral do jardim do palácio e Gwenhwyvach confirmou-o.
Costumava haver aqui uma entrada disse ela, apontando para uma linha recortada no tijolo trabalhado coberto de pez que se prolongava até ao templo, para que os mantimentos pudessem ser transportados directamente para a cave, mas Guinevere alongou o arco, vêem? E ocultou-o com turfa.
Não parecia haver nada excessivamente sinistro no templo para além da sua escuridão malevolente, pois não existia qualquer ídolo, fogueira sacrificial ou altar. E se alguma coisa havia, desiludia, pois a cave abobadada nada tinha da magnificência dos aposentos superiores. Tinha uma aparência enganadora, até um pouco suja. Os Romanos, pensei, teriam sabido arranjar e preparar este aposento para a deusa, mas o resultado dos esforços de Guinevere tinha sido simplesmente transformar uma adega de tijolo numa cave escura, apesar do trono baixo feito de um único bloco de pedra preta e que era, presumi, o mesmo trono que eu vira em Durnovária, ser bastante impressionante. Gwenhwyvach passou pelo trono e afastou para o lado a cortina preta para que Ceinwyn pudesse acompanhá-la. Permaneceram durante muito tempo por detrás da cortina, mas quando deixámos as caves Ceinwyn disse-me que aí não havia muito para ver.
Era apenas um quartinho preto disse-me com uma grande cama e imensos excrementos de rato
Uma cama? perguntei desconfiado.
Uma cama de sonho disse Ceinwyn com firmeza, igual à que costumava estar a meio da torre de Merlin.
Era tudo o que lá havia? perguntei, ainda desconfiado. Ceinwyn encolheu os ombros.
Gwenhwyvach tentou sugerir que era usada para outros fins disse ela de forma recriminadora, mas não tinha provas, e finalmente admitiu que a irmã dormia nela para receber sonhos. Sorriu com tristeza.
Acho que a pobre Gwenhwyvach não está no seu perfeito juízo. Ela pensa que um dia Lancelote voltará para ela.
Ela acredita em quê? perguntei estupefacto.
Está apaixonada por ele, pobre mulher disse Ceinwyn. Havíamos tentado convencer Gwenhwyvach a juntar-se a nós durante as cerimónias no jardim da frente, mas ela recusara. Confiara-nos que não seria bem-vinda e por isso teria de se retirar rapidamente, lançando espreitadelas rápidas para a esquerda e para a direita. Pobre Gwenhwyvach. disse Ceinwyn, depois riu-se. É tão típico de Guinevere, não é?
O quê?
Adoptar uma religião tão exótica! Por que razão não venera ela os Deuses da Bretanha como todos nós? Mas não, ela tinha de encontrar algo estranho e difícil. Suspirou, depois colocou um braço em volta do meu.
Temos mesmo de ficar para o banquete?
Sentia-se fraca, pois ainda não recuperara completamente do último parto.
Artur compreenderá se não formos disse eu.
Mas Guinevere não, suspirou ela, por isso é melhor eu sobreviver. Tínhamos contornado toda a longa ala oeste do palácio, e passado a alta paliçada de madeira da clarabóia do templo, e chegávamos agora ao extremo da comprida arcada. Detive-a antes de dobrarmos a esquina e coloquei as minhas mãos nos seus ombros.
Ceinwyn de Powys disse eu, olhando o seu rosto surpreendido e belo. Amo-te muito.
Eu sei disse ela com um sorriso, depois pôs-se em bicos de pés para me beijar antes de me conduzir alguns passos mais à frente para que pudéssemos contemplar o comprimento do maravilhoso jardim do Palácio do Mar. Eis disse Ceinwyn divertida a Irmandade da Bretanha de Artur.
O jardim titubeava de homens ébrios. Haviam sido mantidos afastados do banquete demasiado tempo e agora ofereciam uns aos outros abraços pormenorizadamente preparados e promessas floreadas de amizade eterna. Alguns dos abraços tinham-se transformado em jogos de luta que se desenrolavam furiosamente por cima dos canteiros de Guinevere. Os coros há muito que haviam abandonado as suas tentativas para entoar música solene e algumas das mulheres dos coros bebiam agora com os guerreiros. Claro que nem todos os homens estavam ébrios, mas os convidados sóbrios haviam-se retirado para o terraço para protegerem as mulheres, muitas das quais eram criadas de Guinevere e entre as quais se encontrava Lunete, o meu primeiro e antigo amor. Guinevere também estava no terraço, de onde olhava estarrecida para a destruição do jardim, apesar de a culpa ser inteiramente sua por ter servido hidromel com uma fermentação especialmente forte, e agora pelo menos cinquenta homens divertiam-se ruidosamente nos jardins; alguns haviam arrancado estacas de flores para fingir lutas de espadas e pelo menos um homem tinha o rosto ensanguentado, enquanto outro tentava tirar um dente que abanava, e amaldiçoava com obscenidades o irmão da Bretanha que o agredira. Qualquer outro tinha vomitado por cima da mesa redonda.
Ajudei Ceinwyn a subir para a segurança da arcada enquanto por baixo de nós a Irmandade da Bretanha praguejava, lutava e se embebedava até à inconsciência.
E foi assim, embora Igraine nunca acredite em mim, que começou a Irmandade da Bretanha de Artur, à qual os ignorantes ainda chamam a Távola Redonda.
Gostaria de dizer que o novo espírito de paz gerado pelo juramento da Távola Redonda de Artur espalhou felicidade por todo o reino, mas as pessoas mais vulgares desconheciam em muito que o juramento alguma vez tivesse tido lugar. A maior parte das pessoas não sabia nem se importava com o que os seus senhores faziam desde que os seus campos e famílias não fossem molestados. Artur, claro, teve o juramento em grande conta. Como Ceinwyn dizia amiúde, para um homem que clamava odiar juramentos, retirava um prazer invulgar em os fazer.
Mas pelo menos o juramento foi mantido durante aqueles anos e a Bretanha prosperou ao longo daquele período de paz. Aelle e Cerdic pelejaram pelo domínio de Lloegyr, e o seu conflito azedo poupou o resto da Bretanha das suas lanças saxãs. Os reis irlandeses do oeste da Bretanha não desistiram de testar as suas armas contra os escudos britânicos, mas esses conflitos eram em pequena escala e dispersos, e a maioria de nós usufruiu de um longo período de paz. O Conselho de Mordred, do qual eu agora fazia parte, podia envolver-se com leis, impostos e disputas de terras em vez de se preocupar com inimigos.
Artur dirigia o Conselho, embora nunca se tivesse apoderado da cadeira à cabeceira da mesa, porque esse era o trono reservado ao rei e aguardava, vazio, que Mordred chegasse à idade de o ocupar. Merlim era oficialmente o conselheiro-chefe do rei, mas nunca viajava para Durnovária e pouco disse nas poucas ocasiões em que o Conselho se reuniu em Lindinis. Meia dúzia de conselheiros eram guerreiros, apesar de a maior parte nunca ter comparecido. Agravain dizia que esses assuntos o aborreciam, enquanto Sagramor preferia manter a fronteira saxónica em paz. Os outros conselheiros eram dois bardos conhecedores das leis e genealogias da Bretanha, dois magistrados, um mercador e dois bispos cristãos. Um dos bispos era um homem grave e de certa idade, chamado Emrys, que sucedera a Bedwin como Bispo na Durnovária, e o outro era Sansum.
Sansum conspirara certa vez contra Artur e quando a conspiração foi revelada poucos homens tiveram dúvidas de que ele deveria ser degolado. Mas Sansum de alguma forma conseguiu escapar e foi posto em liberdade. Nunca aprendeu a ler nem a escrever, mas era um homem esperto e a sua ambição não tinha fim. Veio de Gwent, onde o seu pai fora curtidor, e tornara-se um dos sacerdotes de Tewdric, mas conseguiu verdadeira notoriedade ao celebrar o casamento de Artur com Guinevere quando ambos fugiram como desertores de Caer Sws. Foi recompensado por esse serviço, sendo feito bispo de Dumnónia e capelão de Mordred, apesar de ter perdido esta última honra após ter conspirado com Nabur e Melwas. Depois disso era suposto apodrecer na obscuridade como guardião do santuário do Espinheiro Sagrado, mas Sansum não conseguia suportar a obscuridade. Havia salvo Lancelote da humilhação da rejeição de Mitras, e com isso merecera o prudente reconhecimento de Guinevere, mas nem a sua amizade com Lancelote nem as suas tréguas com Guinevere teriam sido suficientes para o fazer ascender ao Conselho de Dumnónia.
Alcançou essa elevação por casamento, e a mulher que desposou era Morgana, a irmã mais velha de Artur Morgana, a sacerdotisa de Merlim, a profunda conhecedora dos mistérios, a Morgana pagã. Casamento com que Sansum se libertou de todos os vestígios da sua antiga desonra e ascendeu ao mais elevado cume do poder de Dumnónia. Foi admitido no Conselho, feito bispo de Lindinis e renomeado como capelão de Mordred, embora venturosamente a sua antipatia pelo jovem rei o mantivesse afastado do palácio de Lindinis. Assumiu autoridade sobre todas as igrejas no norte de Dumnónia, à semelhança de Emrys que dominou todas as igrejas do Sul. Para Sansum este fora um casamento resplandecente e para todos nós um assombro.
O casamento teve lugar na igreja do Espinheiro Sagrado em Ynys Wydryn. Artur e Guinevere ficaram em Lindinis, e todos nós cavalgámos juntos para o santuário no grande dia. As cerimónias tiveram início com o baptismo de Morgana nas águas da lagoa de Issa, cujas margens estavam decoradas com canaviais. Ela abandonara a sua antiga máscara de ouro com a imagem do deus cornudo, Cernunnos, e em seu lugar adoptara uma nova máscara ornamentada com uma cruz cristã, para marcar o dia de júbilo, em que trocara o seu habitual vestido negro por um vestido branco. Artur chorara de alegria ao ver a irmã seguir com passo incerto para a lagoa onde Sansum, com evidente ternura, apoiava as suas costas à medida que a mergulhava devagar nas águas. Um coro entoou cânticos de aleluia. Aguardámos enquanto Morgana se secava e se mudava para um vestido branco novo, depois observámo-la coxear até ao altar onde o bispo Emrys os uniu como marido e mulher.
Penso que não ficaria mais espantado se o próprio Merlim abandonasse os antigos Deuses para aceitar a cruz. Claro que para Sansum este era um duplo triunfo, porque ao desposar a irmã de Artur não só era catapultado para o Conselho real do reino, como, ao convertê-la ao cristianismo, desferia um rude golpe contra os pagãos. Alguns homens irritados acusaram-no de oportunismo, mas com toda a justiça, penso que ele amava Morgana à sua própria maneira calculista e ela, indubitavelmente, adorava-o. Eram duas pessoas espertas unidas por ressentimentos. Sansum sempre achou que devia ocupar uma posição superior à que ocupava, enquanto Morgana, que outrora fora bela, odiava o fogo que lhe deformara o corpo e lhe transformara o rosto em algo horrível. Estava igualmente ressentida com Nimue, pois em tempos Morgana fora a sacerdotisa de maior confiança de Merlim e a jovem Nimue usurpara-lhe esse cargo. Assim, por vingança, Morgana tornara-se a mais ardente dos cristãos. Era tão estridente nas suas declarações solenes de Cristo como sempre fora ao serviço dos antigos Deuses e depois do seu casamento todo o seu formidável entusiasmo foi dirigido para a campanha missionária de Sansum.
Merlim não assistiu ao casamento, mas dele retirou algum divertimento.
Ela sente-se só disse-me ele quando soube da notícia, e Lorde Rato pelo menos é uma companhia. Não pensas que eles se querem um ao outro, pois não? Bons Deuses, Derfel, se a pobre Morgana se despisse diante de Sansum ele vomitaria! Além disso, ele não sabe como galantear. Pelo menos as mulheres.
O casamento não enterneceu Morgana. Em Sansum encontrou um homem disposto a ser guiado pelos seus conselhos argutos e cujas ambições ela conseguia apoiar com toda a sua intensa energia, mas para o resto do mundo ela continuava a ser a mulher rabugenta e amarga por trás da sinistra máscara de ouro. Ela ainda vivia em Ynys Wydryn, embora em vez de viver no Tor de Merlim habitasse agora na casa do bispo, no santuário, de onde podia ver o Tor com as marcas das fogueiras, onde a sua inimiga Nimue vivia.
Depois da morte de Merlim, Nimue ficou convencida de que Morgana roubara os Tesouros da Bretanha. Tanto quanto me era dado observar, essa convicção era baseada exclusivamente no ódio de Nimue por Morgana, a quem Nimue considerava a maior traidora da Bretanha. Afinal, Morgana era a sacerdotisa pagã que abandonara os Deuses para se tornar cristã, e Nimue, em que ocasião fosse que visse Morgana, cuspia e rogava pragas que Morgana energicamente lhe devolvia; a ameaça pagã batalhando contra a lei cristã. Nunca seriam corteses uma com a outra, até que um dia, por instigação de Nimue, confrontei Morgana com o Caldeirão perdido. Isto aconteceu um ano depois do casamento e, apesar de agora eu ser Lorde e um dos homens mais abastados de Dumnónia, ainda me sentia nervoso diante de Morgana. Na minha infância, ela fora uma figura de pavorosa autoridade e aparência aterradora que governara o Tor com uns modos bruscos, e mau génio e um bastão sempre diligente à vista do qual todos nós éramos disciplinados. Nos dias que correm, tantos anos passados, acho-a apenas alarmante.
Encontrei-a numa das novas casas de Sansum em Ynys Wydryn. A maior era do tamanho de um salão de festas real e era a escola onde dúzias de sacerdotes eram preparados para se tornar missionários. Esses sacerdotes iniciavam as suas lições aos seis anos de idade, eram proclamados santos aos dezasseis anos e depois enviados para os caminhos da Bretanha para conquistar conversos. Encontrei frequentemente esses homens fervorosos durante as minhas viagens. Caminhavam aos pares, carregando apenas um pequeno saco e um bastão, embora por vezes estivessem acompanhados por grupos de mulheres que pareciam ter uma curiosa atracção pelos missionários. Eram destemidos. Onde quer que os encontrasse, provocavam-me sempre e desafiavam-me a negar o seu Deus, e eu admitia sempre com cortesia a sua existência, depois insistia que os meus próprios Deuses também viviam, e perante tal afirmação eles rogavam-me pragas e as suas mulheres gritavam lamúrias e berravam insultos. Certa vez, quando dois desses fanáticos amedrontaram as minhas filhas, fiz uso da coronha de uma lança e admito que a usei com demasiada força, porque no final da discussão havia um crânio partido e um pulso esmigalhado, e nenhum deles me pertencia. Artur insistiu para que eu fosse julgado para demonstrar que nem mesmo os dumnonianos mais privilegiados estavam acima da lei, e deste modo compareci no tribunal de Lindinis onde um magistrado cristão me cobrou o pagamento do osso partido em metade do meu peso em prata.
Devias ter sido chicoteado claro que ao ser admitido na presença de Morgana, ela recordou o incidente e disparou contra mim o seu veredicto.
Chicoteado sem dó nem piedade. Em público!
Julgo que até vós consideraríeis isso difícil neste momento, Senhora - disse eu calmamente.
Deus conceder-me-ia a força necessária resmungou ela rispidamente por trás da sua nova máscara de ouro com a cruz cristã. Sentou-se a uma mesa coberta de pergaminhos e aparas de madeira cobertas de tinta, pois não só dirigia a escola de Sansum, como fazia o registo dos tesouros de todas as igrejas e mosteiros do norte de Dumnónia talhando-os. No entanto, o empreendimento de que ela mais se orgulhava era a sua comunidade de mulheres santas que cantavam e oravam no seu próprio salão onde aos homens não era permitido entrar. Conseguia ouvir a suas vozes doces cantando enquanto Morgana me olhava de cima abaixo. Era evidente que não que vós pagãos do Conselho. Depois fungou. Como está gostava muito do que via. Se vieste por mais dinheiro disse ela com brusquidão não o receberás. Pelo menos até teres pago os empréstimos que estão por saldar.
Não tenho conhecimento de quaisquer empréstimos em dívida disse eu serenamente.
Disparate. Pegou numa das aparas de madeira e leu em voz alta uma lista fictícia de empréstimos que estavam por pagar.
Deixei-a terminar, depois devagar disse-lhe que o Conselho não queria pedir dinheiro emprestado à igreja.
E se assim fosse acrescentei tenho a certeza que vosso esposo vo-lo teria comunicado.
E eu tenho a certeza disse ela que vós pagãos do Conselho maquinais conluios nas costas dos santos. Depois fungou. Como está meu irmão?
Ocupado, Senhora.
Certamente demasiado ocupado para aqui vir ver-me.
E vós estais demasiado ocupada para o visitares disse eu jocosamente.
Eu? Ir a Durnovária? E encarar Guinevere, aquela bruxa? Fez o sinal da cruz, depois mergulhou a mão numa tigela com água e fez de novo o sinal. Preferia ir para o inferno e ver o próprio Satanás disse ela do que ver a bruxa de ísis! Estava prestes a cuspir para afastar o demónio, depois em vez disso lembrou-se de fazer outro sinal da cruz. Sabes que ritos ísis exige? perguntou-me zangada.
Não, Senhora disse eu.
Obscenidades, Derfel, obscenidades! ísis é a grande prostituta! A rameira da Babilónia. É a doutrina do Diabo, Derfel. Deitam-se juntos, homem e mulher. Estremeceu diante desse horrível pensamento. Pura imundície.
Os homens não são admitidos no seu templo, Senhora disse eu, defendendo Guinevere tal como não o são no vosso salão das mulheres.
Não são admitidos! disse Morgana numa gargalhada ruidosa. Eles vêm à noite, idiota, e veneram a sua Deusa nua e nojenta. Homem e mulher juntos, a suarem como porcos! Julgas que não sei? Eu, que outrora fui tamanha pecadora? Pensas que conheces as crenças pagãs melhor do que eu? Digo-te, Derfel, eles deitam-se juntos no seu próprio suor, mulher e homem nus. ísis e Osíris, mulher e homem, e a mulher dá vida ao homem, e como pensas tu que isso é feito, seu idiota? É feito pelo nojento acto da fornicação, é o que é! Mergulhou os dedos na bacia de água e fez de novo o sinal da cruz, deixando uma gota de água benta na testa da sua máscara. Tu és um ignorante, idiota crédulo atirou-me ela à cara bruscamente. Não prossegui a discussão. Os defensores de crenças diferentes insultavam-se sempre uns aos outros deste modo. Muitos pagãos acusavam os cristãos de comportamentos semelhantes nos seus chamados "festivais de amor", e muitas pessoas do campo acreditavam que os cristãos raptavam, matavam e comiam crianças. Artur também é um tolo resmungou Morgana por confiar em Guinevere. Lançou-me um olhar pouco amistoso com o seu único olho. Então o que queres de mim, Derfel, se não é dinheiro?
Desejo saber, Senhora, o que aconteceu na noite em que o Caldeirão desapareceu.
Ela riu-se disso. Era um eco das suas antigas gargalhadas, o som cruel da gargalhada ruidosa que sempre pressagiara infortúnios no Tor.
Seu pobre louco miserável disse ela a desperdiçar o meu tempo. E com isto regressou à sua mesa de trabalho. Aguardei enquanto ela fazia marcas nas suas varas de medição ou nas margens de pergaminhos enrolados e fingia ignorar-me. Ainda aí estás, tolo? perguntou-me algum tempo depois.
Ainda aqui estou, Senhora disse eu. Rodou o seu banco.
Porque queres tu saber? Foi aquela malvada megerazinha da colina que te enviou? Acenou na direcção da janela que dava para o Tor.
Merlim pediu-mo, Senhora menti-lhe. Ele está curioso em relação ao passado, mas a sua memória vagueia.
Vagueará em breve para o inferno disse ela vingativa, depois reflectiu sobre a minha pergunta antes de, por fim, encolher os ombros. Vou contar-te o que aconteceu naquela noite disse ela finalmente e só to direi uma vez, e uma vez contado nunca mais voltarás a perguntar-me.
Uma vez é suficiente, Senhora.
Levantou-se e coxeou até à janela de onde podia avistar o Tor, mais acima.
O Senhor Deus Todo-Poderoso disse ela o único Deus verdadeiro, o Pai de todos nós, enviou fogo dos céus. Eu estava lá, por isso sei o que aconteceu. Ele enviou o raio de luz que atingiu a cobertura de colmo do salão e a incendiou. Gritei, pois tenho boas razões para temer o fogo. Conheço o fogo. Sou uma filha do fogo. O fogo arruinou a minha vida, mas este fogo era diferente. Este era o fogo purificador de Deus, o fogo que consumiu os meus pecados. O fogo espalhou-se da cobertura de colmo até à torre e queimou tudo. Olhei aquele fogo e teria nele morrido se o abençoado santo Sansum não tivesse vindo mostrar-me a salvação. Ela fez o sinal da cruz, depois virou-se para mim. Isto, tolo disse ela com brusquidão, foi o que aconteceu.
Então Sansum estivera no Tor nessa noite? Isso era interessante, mas não fiz qualquer observação a esse respeito. Em vez disso disse gentilmente:
O fogo não queimou o Caldeirão, Senhora. Merlim veio no dia seguinte revolveu as cinzas e não encontrou nenhum ouro.
Idiota! Morgana cuspiu-me através da abertura da boca da sua máscara. Achas que o fogo de Deus queima como as vossas chamas débeis? O Caldeirão era o recipiente do mal, a influência maligna mais perniciosa na terra de Deus. Era o penico do diabo e o Senhor Deus consumiu-o, Derfel, consumiu-o reduzindo-o a nada! Vi-o com este olho! Bateu na máscara um pouco abaixo do olho são. Vi-o arder, e era uma fornalha viva, fervente e sibilante com um brilho intenso e ofuscante mesmo no centro do fogo, era uma chama semelhante à chama mais ardente do inferno e eu ouvi os demónios soltarem gritos penetrantes de dor enquanto o Caldeirão se transformava em fumo. Deus queimou-o! Queimou-o e enviou-o de novo para o inferno onde pertencia! Fez uma pausa e pressenti que o seu rosto arruinado e macerado pelas chamas se contorcia num sorriso por trás da máscara. Desapareceu, Derfel disse ela numa voz mais calma, e agora também podes ir.
Deixei-a, deixei o santuário e subi ao Tor onde fiz recuar a comporta semiquebrada que pendia insegura do cordame de uma dobradiça. As cinzas enegrecidas do salão e da torre eram dissimuladas pela terra, e à sua volta encontravam-se as doze cabanas sujas onde Nimue e a sua gente viviam. Essas pessoas eram os indesejados do nosso mundo; os seus estropiados e pedintes, as suas gentes sem-abrigo e criaturas semiloucas que sobreviviam com a comida que Ceinwyn e eu mandávamos todas as semanas de Lindinis. Nimue reclamava que as suas gentes falavam com os Deuses, mas tudo o que deles sempre ouvi foram conversas tolas de loucos ou tristes lamentos.
Ela nega tudo disse eu a Nimue.
Claro que nega.
Ela diz que o seu Deus o queimou reduzindo-o a nada.
O Deus dela nem tão-pouco um ovo conseguiria cozer afirmou Nimue vingativa. Decaíra abominavelmente com o tempo, desde que o Caldeirão desaparecera e à medida que Merlim se abandonara à sua calma idade avançada. Hoje em dia Nimue estava nojenta, nojenta e magra e quase tão louca como quando a resgatei da Ilha dos Mortos. De vez em quando estremecia, ou então o seu rosto contorcia-se em tiques incontroláveis. Há muito que vendera ou deitara fora o olho de ouro, e usava agora uma pala de cabedal sobre a cavidade vazia. Toda e qualquer intrigante beleza que ela outrora tivesse possuído estava agora escondida por baixo da sujidade e das feridas e perdida debaixo da massa de cabelo preto sem brilho tão untada de porcaria que até as gentes do campo que vinham ter com ela para que lhes lesse a sina ou fizesse alguma cura, recuavam muitas vezes diante do seu cheiro pestilento. Até eu, que lhe prestara juramento e que outrora a amara, quase não conseguia estar junto dela.
O Caldeirão ainda vive disse-me Nimue nesse dia.
Assim o diz Merlim.
E Merlim também vive, Derfel. Colocou uma mão de unhas roídas no meu braço. Ele está à espera, nada mais, está a poupar forças.
"À espera da sua pira funerária", pensei, mas não disse nada. Nimue virou-se pensativa para perscrutar todo o horizonte.
Algures por aí, Derfel disse ela está o Caldeirão escondido. E alguém está a tentar descobrir como ele funciona. Ela riu com suavidade. E quando conseguirem, Derfel, verás a terra ficar vermelha com o sangue. Virou o seu único olho para mim. Sangue! sibilou. Nesse dia o mundo vomitará sangue, Derfel, e Merlim cavalgará de novo.
Possivelmente, pensei; mas o dia estava soalheiro e Dumnónia estava em paz. Era a paz de Artur, concedida pela sua espada e mantida pelos seus tribunais e valorizada pelos seus caminhos e selada pela sua Irmandade. Tudo parecia tão distante do mundo do Caldeirão e dos Tesouros desaparecidos, mas Nimue ainda acreditava na sua magia e, por ela, eu não mostraria descrença, embora nesse dia resplandecente na Dumnónia de Artur, me tivesse parecido que a Bretanha forjava o seu caminho das trevas para a luz, do caos para a ordem e da selvajaria para a lei. Era esse o objectivo de Artur. Era esse o seu Camelote.
Mas Nimue tinha razão. O Caldeirão não estava perdido e ela, tal como Merlim, aguardava apenas o seu horror.
A nossa maior tarefa nesses anos foi preparar Mordred para o trono. Ele já era o nosso rei, pois fora aclamado ainda bebé no cume de Caer Cadarn, mas Artur decidira repetir a aclamação quando Mordred chegasse à idade adulta. Julgo que Artur tinha esperança que algum poder místico pudesse investir Mordred de responsabilidade e sensatez na segunda aclamação, pois nada mais parecia capaz de melhorar o rapaz. Nós tentámos, os Deuses sabem como tentámos, mas Mordred continuou o mesmo adolescente insociável, rancoroso e boçal. Artur antipatizava com ele, mas permanecia obstinadamente cego em relação aos maiores erros de Mordred, uma vez que se Artur considerasse alguma religião como verdadeiramente sagrada a sua crença iria para a divindade dos reis. Chegaria o tempo em que Artur seria obrigado a encarar a verdade em relação a Mordred, mas nesses anos, sempre que o assunto sobre a aptidão de Mordred era levantado no Conselho real, Artur dizia sempre a mesma coisa. Mordred, concordava ele, era uma criança sem encantos, mas todos conhecêramos rapazes semelhantes que se haviam transformado em homens dignos e a solenidade da aclamação e as responsabilidades da realeza moderariam certamente o rapaz.
Eu próprio não era uma criança exemplar gostava ele de dizer, mas penso que não me transformei numa má pessoa. Tende esperança no rapaz. Além disso, acrescentava sempre com um sorriso que Mordred seria orientado por um Conselho sensato e experiente.
Ele nomeará o seu próprio Conselho objectava sempre um de nós, mas Artur rejeitava a questão. Tudo, assegurava-nos ele com jovialidade, seria resolvido a contento.
Guinevere não tinha tais ilusões. Na verdade, nos anos que se seguiram ao juramento da Távola Redonda, o destino de Mordred tornou-se uma obsessão para ela. Não comparecia ao Conselho real, pois nenhuma mulher podia fazê-lo, mas suspeito que quando ela estava em Durnovária escutava por detrás de uma passagem em arco tapada com uma cortina que dava para a câmara do Conselho. Muito do que dizíamos deve tê-la enfadado; passávamos horas a discutir se havíamos de colocar novas pedras num vau ou se devíamos gastar dinheiro numa ponte, ou se um magistrado estava a aceitar subornos ou a quem deveríamos conceder a tutela de um herdeiro ou de uma herdeira órfãos. Semelhantes assuntos eram a moeda corrente das reuniões do Conselho e estou certo que ela os achava entediantes, mas quão avidamente teria ela escutado quando falávamos de Mordred.
Guinevere mal conhecia Mordred, mas odiava-o, porque ele era rei e Artur não, e um após outro ela tentou converter os conselheiros reais ao seu próprio ponto de vista. Ela até era agradável comigo, pois suspeito que examinava a minha alma e sabia que secretamente eu concordava com ela. Após a primeira reunião do Conselho que se seguiu ao juramento da Távola Redonda agarrou-me pelo braço e acompanhou-me ao mosteiro de Durnovária, que estava envolto pelo fumo das ervas que estavam a ser queimadas em braseiros para evitar o regresso da peste. Talvez fosse o fumo inebriante o que me entontecia, mas era mais provável que fosse a proximidade de Guinevere. Ela exalava um perfume intenso, a sua cabeleira ruiva e farta estava revolta, o seu corpo recto e delgado, e o seu rosto de ossos delicadamente esculpidos e cheio de personalidade. Disse-lhe que lamentava a morte de seu pai.
Pobre pai disse ela. Tudo com que sempre sonhou foi regressar a Henis Wyren. Fez uma pausa, e interroguei-me se ela havia reprovado Artur por não se esforçar mais para desalojar Diwrnach. Duvido que Guinevere alguma vez tenha querido rever a costa selvagem de Henis Wyren, mas o seu pai sempre quisera regressar às propriedades dos seus antepassados. Nunca me falaste da tua visita a Henis Wyren disse Guinevere repreensiva. Constou-me que encontraste Diwrnach?
E faço votos de não mais voltar a encontrá-lo, Senhora. Ela encolheu os ombros.
Por vezes, num rei, a reputação de selvajaria pode ser útil. Interrogou-se sobre o estado de Henis Wyren, mas pressenti que ela não estava verdadeiramente interessada nas minhas respostas, mesmo quando me perguntou como estava Ceinwyn.
Bem, Senhora respondi-lhe, obrigado.
Grávida de novo? perguntou-me num divertimento moderado.
Julgamos que sim, Senhora.
Quão ocupados vós dois se mantêm, Derfel disse ela numa gentil zombaria. O seu incómodo em relação a Ceinwyn esmorecera com o passar dos anos, apesar de nunca se terem tornado amigas. Guinevere arrancou uma folha de um loureiro que crescia numa urna romana decorada com ninfas nuas e esfregou a folha entre os dedos. E como está o nosso Rei e Senhor? perguntou ela irritada.
Perturbador, Senhora.
Está ele pronto para ser rei? Isto era típico de Guinevere; uma pergunta directa, brutal e honesta.
Nasceu para isso, Senhora disse-lhe defensivamente, e nós prestámos o juramento para que isso acontecesse.
Ela deixou escapar uma gargalhada ridícula. As suas sandálias com cordões em ouro bateram nas lajes e um colar de ouro com pérolas penduradas tiniu no seu pescoço.
Há muitos anos atrás, Derfel disse ela, tu e eu falámos sobre isto e tu disseste-me que, de todos os homens de Dumnónia, Artur era o mais apto para ser rei.
Disse admiti.
E achas que Mordred é mais apto?
Não, Senhora.
Então? Virou-se para me observar. Poucas mulheres conseguiam olhar-me directamente nos olhos, mas Guinevere era capaz de o fazer. Então? perguntou-me de novo.
Então eu prestei um juramento, Senhora, tal como o vosso esposo.
Juramentos! disse com rispidez, libertando-me o braço. Artur prestou um juramento para matar Aelle, e porém Aelle vive. Prestou um juramento para reconquistar Henis Wyren, porém Diwrnach ainda aí governa. Juramentos! Vós, homens, escondei-vos por detrás de juramentos como os criados por detrás da estupidez, mas quando um juramento se torna inconveniente esquecei-vos dele sem delonga. Achas que o teu juramento para com Uther não pode ser esquecido?
O meu juramento é para com o príncipe Artur afirmei atento, como sempre fazia, para tratar Artur por príncipe diante de Guinevere. Desejais que esqueça esse juramento? perguntei-lhe.
De ti, Derfel, desejo que o faças chegar à razão disse ela. Ele escuta-te.
Ele escuta-vos, Senhora.
Não em relação à questão de Mordred disse ela. Nos demais assuntos, é possível, mas não relativamente a este. Estremeceu, talvez por se lembrar do abraço que fora forçada a dar a Mordred no Palácio do Mar, depois irritada amarfanhou a folha de louro e atirou-a para as lajes. Em poucos minutos, sabia eu, um criado varrê-la-ia em silêncio. O palácio de Inverno de Durnovária estava sempre tão cuidado, enquanto o nosso palácio em Lindinis estava tão em desordem com crianças constantemente a precisarem de ser arranjadas e a ala de Mordred como uma estrumeira. Artur, insistia agora Guinevere cansativamente é o mais velho dos filhos de Uther que ainda vivem. Devia ser rei.
"E assim devia ser", pensei, mas todos nós prestáramos juramentos para colocar Mordred no trono e haviam perecido homens no Vale do Lugg para defender esse juramento. Em tempos, os Deuses me perdoem, apenas desejei que Mordred morresse e assim o nosso problema ficaria resolvido, mas apesar do seu pé defeituoso e dos maus presságios do seu nascimento, parecia abençoado com uma saúde de ferro. Olhei os olhos verdes de Guinevere.
Recordo-me, Senhora disse eu cautelosamente como há anos atrás me levastes por aquela porta apontei para uma baixa passagem em arco que conduzia ao exterior do claustro e me mostrastes o vosso templo de ísis.
Assim fiz. E então? Ela estava defensiva, talvez se arrependesse desse momento de intimidade. Nesse dia distante ela tentara fazer-me seu aliado na mesma causa que a impelira a tomar o meu braço e a trazer-me para este claustro. Queria que Mordred fosse destruído para que Artur pudesse governar.
Haveis-me mostrado o trono de ísis afirmei, com cuidado para não revelar que vira de novo aquela cadeira preta no Palácio do Mar e haveis-me dito que ísis era a deusa que determinava o homem que devia sentar-se no trono do reino. Assim é?
É um dos seus poderes, sim disse Guinevere descuidadamente.
Então deveis rezar à deusa, Senhora disse eu.
Julgas que não o faço, Derfel? perguntou-me. Julgas que não tenho fatigado os seus ouvidos com as minhas preces? Quero que Artur seja rei, e que Gwydre o seja depois dele, mas não podemos forçar um homem a subir ao trono. Artur tem de o desejar antes que ísis torne issso possível.
Esta pareceu-me uma débil defesa. Se ísis não conseguia modificar a ideia de Artur, como podíamos nós, simples mortais, esperar mudá-la? Tentáramos demasiadas vezes, mas Artur recusava discutir o assunto, tal como Guinevere desistiu da nossa conversa no pátio quando percebeu que eu não podia ser convencido a juntar-me à sua campanha para substituir Mordred por Artur.
Eu queria Artur como Rei, mas apenas uma vez em todos esses anos contrariei as suas brandas certezas e lhe falei seriamente sobre os seus próprios direitos à realeza, e essa conversa não ocorreu senão cinco anos completados sobre o juramento da Távola Redonda. Foi durante o Verão anterior ao ano em que Mordred seria aclamado Rei, e por essa altura os sussurros de hostilidade haviam-se transformado num grito ensurdecedor. Apenas os Cristãos apoiavam o direito de Mordred, e mesmo esses faziam-no com relutância; mas era sabido que a sua mãe fora cristã e que a própria criança fora baptizada e isso era suficiente para convencer os cristãos de que Mordred podia atender as suas ambições. Todos os demais habitantes de Dumnónia olhavam para Artur para que este os salvasse do rapaz, mas Artur ignorava-os serenamente. Nesse Verão, como já aprendêramos a contar as rotações do Sol, sabíamos que tinham passado quatrocentos e noventa e cinco anos sobre o nascimento de Cristo e o tempo estava bonito e soalheiro. Artur estava no auge dos seus poderes, o próprio Merlim demorava-se ao Sol no nosso jardim, com as minhas três filhinhas clamando por histórias; Ceinwyn estava feliz, Guinevere estendera-se ao sol no seu novo e belo Palácio do Mar com as suas arcadas e galerias e o seu escuro templo escondido, Lancelote parecia satisfeito no seu reino junto ao mar, os Saxões pelejavam entre si, e Dumnónia estava em paz. Foi também, tanto quanto me recordo, um Verão de grande tormento.
Pois foi o Verão de Tristão e Isolda.
Kernow é o reino bárbaro que, como uma lapa, se fixou no extremo oeste de Dumnónia. Os Romanos deslocaram-se até aí, mas poucos se instalaram nessas terras áridas e quando deixaram a Bretanha o povo de Kernow prosseguiu as suas vidas como se os invasores nunca tivessem existido. Lavraram pequenos campos, pescaram em mares revoltos e abriram minas de precioso estanho. Viajar em Kernow, haviam-me dito, era ver como a Bretanha fora antes da vinda dos Romanos, apesar de eu nunca lá ter ido, nem mesmo Artur.
Pois tanto quanto me recordava, Kernow fora governado pelo rei Mark. Raras vezes nos importunou, embora de vez em quando normalmente quando Dumnónia estava enrolada com um qualquer inimigo maior para Leste ele decidisse que algumas das nossas terras a Oeste devessem pertencer-lhe e então seguia-se uma breve contenda fronteiriça e súbitas incursões selvagens na nossa costa por esquadrilhas marítimas vindas de Kernow. Sempre vencemos essas guerras, como podia ser de outro modo? Dumnónia era grande e Kernow um reino pequeno, e quando as guerras terminavam Mark enviava um mensageiro a dizer que tudo não passara de um acidente. Durante algum tempo no início do reinado de Artur, quando Cadwy de Isca se rebelara contra a restante Dumnónia, Mark capturara algumas extensas porções da nossa região em frente da sua fronteira, mas Culhwuch terminou essa rebelião e quando Artur enviou a cabeça de Cadwy a Mark como oferenda, os lanceiros de Kernow recuaram em silêncio para as suas antigas praças fortes.
Semelhantes querelas eram raras, pois as mais famosas campanhas do rei Mark eram conduzidas na sua cama. Ele era conhecido pelo número de esposas que tinha, mas enquanto outros homens como ele podiam manter várias mulheres ao mesmo tempo, Mark desposara-as umas a seguir às outras. Elas morriam com uma regularidade terrível, quase sempre, segundo parecia, apenas quatro anos após a cerimónia do casamento ter sido realizada por druidas de Kernow, e embora Mark sempre tivesse tido uma explicação para as mortes talvez uma febre, ou um acidente, ou um parto difícil a maioria de nós suspeitava que era o aborrecimento do rei que estava por detrás das piras funerárias que queimavam os cadáveres das rainhas em Caer Dore, a praça forte do rei. A sétima esposa que falecera havia sido lalle, a sobrinha de Artur, e Mark enviara um mensageiro com uma triste história sobre cogumelos comestíveis, uma variedade de cogumelos venenosos e o insaciável apetite de lalle. Enviara ainda uma albarda cheia de lingotes de estanho e ossos de baleia raros para minimizar qualquer possibilidade de Artur se encolerizar.
As mortes das esposas nunca pareceram evitar que outras princesas se atrevessem a atravessar o mar para partilhar o leito de Mark. Talvez fosse melhor ser rainha em Kernow, ainda que por pouco tempo, do que aguardar nos aposentos das mulheres por um pretendente que podia nunca chegar, e ademais, as explicações para as mortes sempre haviam sido plausíveis. Eram apenas acidentes.
Após a morte de lalle, durante muito tempo não houve novo casamento. Mark estava a ficar velho e os homens pensaram que ele tinha abandonado o divertimento do casamento. Foi então que, nesse belo Verão do ano anterior à ascensão de Mordred ao poder de Dumnónia, o idoso rei Mark voltou na verdade a escolher uma esposa. Era ela a filha do nosso velho aliado, Oengus Mac Airem, o rei irlandês de Demétia que nos entregara a vitória no Vale do Lugg, e por isso Artur perdoara a Oengus uma miríade de violações de propriedade que ainda vexavam a região de Cuneglas. Os Escudos Negros, temíveis guerreiros de Oengus, faziam consecutivos ataques súbitos a Powys, bem como ao que fora Silúria, e ao longo de todos esses anos Cuneglas foi forçado a manter dispendiosos grupos de guerra na sua fronteira oeste. Oengus sempre negou qualquer responsabilidade por esses ataques súbitos, dizendo que os seus chefes eram ingovernáveis e prometendo que deceparia algumas cabeças; mas as cabeças continuaram intactas e em todas as épocas das colheitas os famintos Escudos Negros voltavam a Powys. Artur enviou alguns dos nossos jovens lanceiros para adquirirem a experiência da batalha nessas guerras de colheitas que nos concederam a hipótese de treinar guerreiros que não pertenciam a esta raça e manter desabridos os instintos dos homens mais velhos. Cuneglas queria liquidar Demétia de uma vez por todas, mas Artur gostava de Oengus e argumentava que as suas depredações valiam a experiência que ele concedia aos nossos lanceiros. Deste modo os Escudos Negros sobreviveram.
O casamento do velho rei Mark com a sua jovem noiva de Demétia era uma aliança de dois pequenos reinos que não importunavam ninguém, e aliás, ninguém acreditava que Mark havia desposado a princesa por uma qualquer vantagem política. Desposou-a apenas porque tinha um insaciável apetite por carne fresca de sangue real. Estava então próximo dos sessenta anos, o seu filho Tristão tinha quase quarenta e Isolda, a nova rainha, tinha apenas quinze.
A atribulação teve início quando Culhwuch nos enviou uma mensagem dizendo que Tristão chegara a Isca com a noiva de seu pai, uma criança ainda. Depois de Melwas ter morrido por causa de uma indigestão de ostras, Culhwuch fora nomeado governador da província oeste de Dumnónia e a sua mensagem comunicava que Tristão e Isolda eram fugitivos do rei Mark. O próprio Culhwuch estava mais divertido do que perturbado com a sua chegada porque ele, tal como eu, lutara ao lado de Tristão no Vale do Lugg e próximo de Londres e gostava do príncipe. "Pelo menos esta noiva viverá", escrevera o escriba de Culhwuch ao Conselho, "e merece-lo. Concedi-lhes um velho castelo e uma guarda de lanceiros." A mensagem continuou descrevendo um ataque súbito de piratas irlandeses do outro lado do mar e terminou com o habitual pedido de Culhwuch de uma redução dos impostos e com um aviso, também muito comum, de que as colheitas eram parcas. Em poucas palavras, era um lugar comum enviar minudências para alertar as apreensões do Conselho, pois todos sabíamos que as colheitas eram abundantes e que Culhwuch se posicionava para a sua acostumada disputa por causa dos impostos. Quanto a Tristão e a Isolda, a sua história era um mero divertimento e nenhum de nós viu aí qualquer perigo. Os escrivães de Artur arquivaram a mensagem e o Conselho prosseguiu para se discutir o pedido de Sansum para que o Conselho construísse uma grande igreja onde seriam celebrados os quinhentos anos do nascimento de Cristo. Eu insurgi-me contra a proposta, o bispo Sansum barafustou e berrou e disse encolerizado que a igreja era necessária para que o mundo não fosse destruído pelo Diabo, e esta animada contenda manteve o Conselho ocupado até à refeição do meio-dia ser servida no pátio do palácio.
Essa reunião teve lugar em Durnovária e, como habitualmente, Guinevere viera do seu Palácio do Mar para estar na cidade quando o Conselho se reunisse e juntar-se a nós na refeição do meio-dia. Sentou-se ao lado de Artur e, como sempre, a sua proximidade deu-lhe uma felicidade entusiasta. Ele tinha tanto orgulho nela. O casamento devia ter-lhe causado dissabores, sobretudo quanto ao número de filhos, mas era evidente que ele ainda estava apaixonado por ela. Todo o olhar que ele lhe lançava era uma proclamação da sua incredulidade pelo facto de semelhante mulher o ter desposado, e nunca ocorreu a Artur que fosse ele a recompensa, que fosse ele o governante capaz e o homem bom. Adorava-a, e nesse dia, enquanto comíamos fruta, pão e queijo sob um Sol quente, foi fácil ver porquê. Ela conseguia ser espirituosa e mordaz, divertida e sensata, e a sua aparência ainda dominava as atenções. Os anos pareciam não tocar em Guinevere. A sua pele era tão alva como leite desnatado e os seus olhos não tinham sequer uma das rugas finas que mostravam os de Ceinwyn; parecia, de facto, que ela não envelhecera um único momento desde o dia distante em que Artur a vislumbrara pela primeira vez no castelo superlotado de Gorfyddyd. Penso que ainda assim, sempre que Artur regressava a casa de uma qualquer longa viagem pelo reino de Mordred, e ao seu serviço, sentia a mesma felicidade ao ver Guinevere, que sentira naquele mesmo primeiro dia. E Guinevere sabia como mantê-lo fascinado, permanecendo sempre um misterioso passo à frente dele e deste modo mergulhando Artur cada vez mais fundo na sua paixão. Era, presumo, uma receita para o amor.
Mordred estava connosco nesse dia. Artur insistira para que o rei começasse a assistir ao Conselho antes de ser aclamado e deter plenos poderes, e encorajava sempre Mordred a tomar parte nas nossas discussões. Mas o único contributo de Mordred era sentar-se a raspar a sujidade que tinha por baixo das unhas ou então a bocejar quando os assuntos enfadonhos se arrastavam. Artur tinha esperança que, ao assistir ao Conselho, ele aprendesse a ser responsável, mas eu temi que com isso o rei apenas aprendesse a evitar os pormenores da governação. Nesse dia sentou-se, como devia, ao centro da mesa das refeições e não mostrou qualquer interesse pela história do bispo Emrys sobre uma nascente que milagrosamente aparecera quando um sacerdote abençoara a encosta de uma colina.
Essa nascente, bispo interveio Guinevere teria surgido nas colinas do norte de Dunum?
Foi sim, Senhora! disse Emrys, agradado por ter uma outra audiência para além do irresponsável Mordred. Haveis ouvido falar do milagre?
Bem antes de o vosso sacerdote lá chegar disse Guinevere. Essa nascente surge e desaparece, bispo, dependendo das chuvas que caem. E este ano, deveis recordar-vos, as últimas chuvas de Inverno foram invulgarmente fortes. Sorriu triunfante. A sua oposição à igreja ainda continuava, mas agora era muda.
Esta é uma nova nascente insistiu Emrys. As gentes do campo asseguraram-nos que nunca tinha existido antes! E virou-se para Mordred. Devíeis visitar a nascente, meu Rei e Senhor. É verdadeiramente um milagre.
Mordred bocejou e olhou fixamente e sem expressão para os pombos pousados no telhado distante. O seu casaco tinha nódoas de comida e a sua barba recente, encaracolada, estava cheia de migalhas.
Já terminámos os assuntos? perguntou de repente.
Longe disso, meu Rei e Senhor disse Emrys entusiasmado. Temos ainda de chegar a uma decisão sobre a construção da igreja, e existem três nomes propostos como magistrados. Creio que os homens aqui estejam para serem interrogados? perguntou a Artur.
Estão sim, bispo confirmou Artur.
Um dia inteiro de trabalho! disse Emrys, satisfeito.
Não para mim disse Mordred. Vou caçar.
Mas, meu Rei e Senhor... protestou Emrys com moderação.
Caçar, Mordred interrompeu o bispo. Afastou o seu canapé da mesa baixa e atravessou o pátio a coxear.
O silêncio desceu à volta da mesa. Todos sabíamos o que os outros pensavam, mas ninguém se manifestou em voz alta até eu tentar ser optimista.
Ele zela pelo bom funcionamento disse eu das suas armas.
Porque gosta de matar afirmou Guinevere em tom gélido.
Eu só queria que de vez em quando o rapaz falasse! queixou-se Emrys. Fica apenas ali sentado, taciturno! A limpar as unhas.
Pelo menos não é o nariz disse Guinevere com azedume, depois olhou para cima quando um estranho surgiu, escoltado, no interior do pátio. Hygwydd, o criado de Artur, anunciou o forasteiro como sendo Cyllan, o paladino de Kernow, e de facto parecia o paladino de um rei, pois era um brutamontes com uma enorme cabeleira negra e uma barba encrespada que trazia na testa a tatuagem azul de um machado. Fez uma vénia a Guinevere, depois puxou de uma comprida espada de aspecto bárbaro que colocou sobre as lajes com a lâmina apontada para Artur. Esse gesto significava que existiam problemas entre os nossos países.
Sentai-vos, Lorde Cyllan. Artur indicou com um aceno o canapé desocupado de Mordred. Há queijo, algum vinho. O pão foi acabado de fazer.
Cyllan tirou com um puxão o seu elmo de ferro ornamentado com a máscara mal-humorada de um gato-montês.
Senhor disse ele numa voz ressoante, trago uma queixa...
Vindes também com um estômago vazio, não tenho dúvidas interrompeu-o Artur. Sentai-vos, homem! A vossa escolta será alimentada nas cozinhas. E apanhai a espada.
Cyllan rendeu-se à informalidade de Artur. Partiu um pão ao meio e cortou um grande naco de queijo.
Tristão explicou concisamente quando Artur lhe perguntou a natureza da queixa. Cyllan falou com a boca quase cheia de comida, fazendo com que Guinevere estremecesse de horror. O Herdeiro fugiu para estas terras, Senhor o paladino de Kernow prosseguiu, e trouxe com ele a rainha. Alcançou o vinho e bebeu um chifre cheio. O rei Mark quere-os de volta.
Artur não se manifestou, tamborilando tão-só com os dedos no canto da mesa.
Cyllan engoliu mais pão e queijo, depois serviu-se de mais vinho.
Já é suficientemente mau continuou depois de um prodigioso arroto que o Herdeiro esteja fez uma pausa, olhou de relance para Guinevere, depois emendou a sua frase esteja com a sua madrasta.
Guinevere interrompeu para proferir a palavra que Cyllan não ousara pronunciar na sua presença. Ele acenou negativamente com a cabeça, corou e prosseguiu.
Não está certo, Senhora. Copular com a sua própria madrasta. Mas ele também roubou metade do tesouro de seu pai. Quebrou dois juramentos, Senhor. O juramento ao seu pai real e o juramento à sua rainha, e agora soubemos que lhe foi concedido refúgio próximo de Isca.
Ouvi dizer que o príncipe está em Dumnónia disse Artur maliciosamente.
E o meu rei quer que ele regresse. Quere-os a ambos de volta. Tendo entregue a sua mensagem, Cyllan atacou de novo o queijo.
O Conselho voltou a reunir, deixando Cyllan a aguardar de pé ao Sol. Foi dito aos três candidatos a magistrados que aguardassem e a tormentosa questão da grande igreja de Sansum foi colocada de parte enquanto debatíamos a resposta de Artur ao rei Mark.
Tristão disse eu sempre foi um amigo deste país. Quando já ninguém lutava por nós, ele fê-lo. Trouxe homens para o Vale do Lugg. Esteve connosco em Londres. Merece o nosso auxílio.
Ele quebrou juramentos prestados a um rei disse Artur preocupado.
Juramentos pagãos abonou Sansum, como se isso diminuísse as ofensas de Tristão.
Mas ele roubou dinheiro salientou o bispo Emrys.
Que espera em breve lhe venha a pertencer por direito próprio respondi, tentando defender o meu velho companheiro de batalhas.
E é justamente isso o que preocupa o rei Mark disse Artur. Coloca-te no seu lugar, Derfel, e diz-me o que mais receias?
Uma carestia de princesas? atrevi-me.
Artur franziu as sobrancelhas diante da minha leviandade.
Ele teme que Tristão comande lanceiros sobre Kernow. Receia a guerra civil. Teme que o filho esteja cansado de esperar pela sua morte e tem razão em temê-lo.
Abanei a cabeça.
Tristão nunca foi calculista, Senhor disse eu. Age por impulso. Está loucamente apaixonado pela noiva de seu pai. Neste momento não pensa no trono.
Por enquanto disse Artur ominoso, mas pensará.
Se dermos refúgio a Tristão, o que fará o rei Mark? perguntou Sansum astutamente.
Ataques súbitos disse Artur. Algumas quintas queimadas, gado roubado. Ou então enviará os seus lanceiros para levarem Tristão vivo. Os seus barqueiros podiam fazê-lo. Sozinhos entre os reinos bretões os homens de Kernow eram marinheiros de confiança e os Saxões, nas suas últimas incursões, haviam aprendido a temer os compridos barcos dos lanceiros de Mark. Significará problemas constantes e insignificantes admitiu Artur. Todos os meses uma dúzia de agricultores mortos bem como as suas mulheres. Teremos de manter cem lanceiros na fronteira até tudo estar resolvido.
Dispendioso comentou Sansum.
Demasiado dispendioso disse Artur sinistro.
O dinheiro do rei Mark terá certamente de ser devolvido insistiu Emrys.
E provavelmente a Rainha aventou Cythryn, um dos magistrados que tinham assento no Conselho. Não consigo imaginar que o orgulho do rei Mark lhe permita deixar este insulto por vingar.
O que acontece à rapariga se regressar? perguntou Emrys.
Isso disse Artur com firmeza é uma questão para o rei Mark decidir. Não nós. Esfregou o seu longo rosto ossudo com ambas as mãos. Suponho disse com lassidão, que será melhor mediarmos a questão. Sorriu. Já há muito tempo que estive nessa parte do Mundo. Talvez seja a altura de lá voltar. Vens, Derfel? Tu és amigo de Tristão. Talvez ele te ouça.
Com prazer, Senhor assenti.
O Conselho concordou em deixar Artur mediar a questão, em reenviar Cyllan para Kernow com a mensagem descrevendo o que Artur ia fazer, e depois, com uma dúzia dos meus lanceiros de serviço, rumámos para Sul e depois para Oeste para nos encontrarmos com os amantes errantes.
Começou como uma viagem bastante agradável, apesar da delicada questão que envolvia a sua finalidade. Nove anos de paz haviam aumentado a boa qualidade da terra e se o tempo quente do Verão perdurasse, apesar das sombrias previsões de Culhwuch, tudo parecia indicar que nesse ano teríamos uma boa colheita. Artur sentiu uma grande alegria ao ver os campos bem tratados e os novos celeiros. Era saudado em todas as cidades e aldeias e a saudação era sempre calorosa. Coros de crianças cantavam para ele e presentes eram deixados aos seus pés: bonequinhas de trigo, cestos de fruta ou uma pele de raposa. Ele dava ouro em troca dos presentes, discutia quaisquer problemas que afligissem a aldeia, falava com o magistrado local e depois continuávamos. A única nota desagradável foi deixada pela hostilidade cristã, porque em quase todas as aldeias havia um pequeno grupo de cristãos que, aos gritos, rogava pragas a Artur até os seus vizinhos os abafarem ou os empurrarem para longe. Erguiam-se novas igrejas por todo o lado, normalmente construídas onde outrora os pagãos haviam venerado um poço sagrado ou uma nascente. As igrejas eram o produto dos afadigados missionários do bispo Sansum e interroguei-me por que razão os pagãos não utilizavam semelhantes homens para viajar pelas estradas e pregarem aos camponeses. As novas igrejas dos cristãos eram, reconhecidamente, coisas de pouco valor, meras choupanas de vime e cobertura de colmo com uma cruz pregada numa das partes superiores de forma triangular, mas multiplicavam-se, e o mais rancoroso dos seus sacerdotes amaldiçoava Artur por ser pagão e detestava Guinevere pela sua adesão a ísis.
Guinevere nunca se importou que a odiassem, mas a Artur desagradava-lhe todo o rancor religioso. Nessa viagem a Isca parou frequentes vezes para falar com cristãos que vociferavam contra ele, mas as suas palavras não surtiam efeito. Os cristãos não se importavam que ele tivesse trazido paz à região, nem que eles tivessem prosperado, apenas lhes interessava o facto de Artur ser pagão.
Eles são como os Saxões disse-me ele melancolicamente ao deixarmos para trás outro grupo hostil, só ficarão satisfeitos quando forem senhores de tudo.
Então devíamos fazer-lhes o que fizemos aos Saxões, Senhor disse eu. Colocá-los uns contra os outros.
Eles já lutam entre si disse Artur. Entendes esta discussão sobre Pelagianismo?
Nem quero entendê-la respondi irreverente, embora na verdade a ideia se tornasse cada vez mais viciosa com um grupo de cristãos a acusar os outros de heresia e ambos os lados a provocarem mortes nos seus opositores. Conseguis entendê-la?
Julgo que sim. Pelágio recusou-se a acreditar que a humanidade é intrinsecamente má, enquanto homens como Sansum e Emrys dizem que todos nascemos maus. Fez uma pausa. Suspeito continuou Artur
que se eu fosse cristão, seria um pelagiano. Pensei em Mordred e conclui que a humanidade pode bem ser intrinsecamente má, mas não disse nada. Acredito na humanidade disse Artur ainda mais do que em qualquer deus.
Cuspi para a berma da estrada para afastar o mal que as suas palavras pudessem trazer.
Penso muitas vezes disse eu sobre o rumo que as coisas teriam tomado se Merlim tivesse continuado com o seu Caldeirão.
Aquele velho pote? riu Artur. Há anos que não pensava nisso!
Sorriu com a lembrança desses tempos longínquos. Nada teria mudado, Derfel continuou. Por vezes penso que toda a vida de Merlim se resumiu a coleccionar os Tesouros, e uma vez todos na sua posse nada mais lhe restava para fazer! Ele nem tão-pouco teve coragem para tentar pôr em prática a magia dessas coisas por suspeitar que nada iria acontecer.
Olhei de relance para a espada pendurada na sua anca, um dos treze Tesouros, mas nada disse porque mantinha a minha promessa para com Merlim de não revelar a Artur o verdadeiro poder da Excalibur. E em vez disso perguntei-lhe:
Pensais que Merlim incendiou a sua própria torre?
Interroguei-me sobre isso admitiu.
Não, disse eu com firmeza ele acreditava. E penso que, por vezes, se atreve a acreditar que encontrará de novo os Tesouros.
Então é melhor que se apresse disse Artur mordaz, pois não lhe deve restar muito tempo.
Passámos essa noite no palácio do governador romano em Isca, onde agora vivia Culhwuch. Ele sentia-se melancólico, não por causa de Tristão, mas porque a cidade se transformara num antro de cristãos fanáticos. Apenas uma semana antes, um bando de jovens cristãos havia invadido os templos pagãos da cidade e atirado ao chão as estátuas dos Deuses e salpicado as paredes com excrementos. Os lanceiros de Culhwuch apanharam alguns dos profanadores e encheram a prisão com eles, mas Culhwuch estava preocupado com o futuro.
Se não domamos agora os patifes disse ele eles farão a guerra pelo seu Deus.
Disparate disse Artur rejeitando essa hipótese. Culhwuch abanou a cabeça.
Eles querem um rei cristão, Artur.
Terão Mordred no próximo ano disse Artur.
Ele é cristão? perguntou Culhwuch.
Se não for mais nada disse eu.
Mas não é a ele que eles querem disse Culhwuch sombrio.
Então quem querem eles? perguntou Artur, finalmente intrigado com os avisos de seu primo.
Culhwuch hesitou, depois encolheu os ombros.
Lancelote.
Lancelote! Artur pareceu divertido. Não sabem que ele mantém os seus templos pagãos abertos?
Eles nada sabem sobre ele disse Culhwuch mas não precisam de saber. Pensam nele do mesmo modo que o povo pensou em ti nos últimos anos de vida de Uther. Pensam nele como o seu libertador.
Libertador de quê? perguntei com desdém.
De nós pagãos, claro disse Culhwuch. Eles insistem que Lancelote é o rei cristão que os conduzirá a todos para o céu. E sabes porquê? Por causa daquela águia-marinha no seu escudo. Tinha um peixe nas suas garras, recordam-se? E o peixe é um símbolo cristão. Extravasou o seu desagrado. Eles nada sabem sobre ele disse de novo, mas vêem esse peixe e pensam que é um sinal do seu Deus.
Um peixe? Manifestamente, Artur não acreditou em Culhwuch.
Um peixe insistiu Culhwuch. Talvez eles rezem a uma truta? Sei lá! Já veneram um espírito santo, uma virgem e um carpinteiro, por que não também um peixe? São todos loucos.
Não são loucos insistiu Artur exaltados talvez.
Exaltados! Estiveste nalgum dos seus ritos ultimamente? Culhwuch desafiou o primo.
Depois do casamento de Morgana, não.
Então vem e vê com os teus próprios olhos disse Culhwuch. Eram nove horas e tínhamos acabado de jantar, mas Culhwuch insistiu para que vestíssemos mantos escuros
e o seguíssemos para fora do palácio por uma das portas laterais. Subimos por uma álea escura até ao fórum onde os cristãos tinham o seu santuário, num antigo templo romano outrora dedicado a Apolo, mas que agora fora purgado do paganismo, caiado e dedicado ao cristianismo. Avançámos pela porta oeste e encontrámos um nicho na penumbra onde, imitando o grande tropel de veneradores, nos ajoelhámos.
Culhwuch dissera-nos que os cristãos aqui vinham todas as noites em adoração, e todas as noites, dissera ele, o mesmo delírio seguia-se às oferendas de pão e vinho que o sacerdote distribuía aos crentes. O pão e o vinho eram mágicos, supostamente eram o corpo e o sangue do seu Deus, e nós observámos como os veneradores se amontoavam junto ao altar para receber as suas migalhas. Pelo menos metade deles eram mulheres que, uma vez recebido o pão dos sacerdotes, começavam a ser arrebatadas pelo êxtase. Eu tinha visto muitas vezes tão estranho fervor, pois os antigos ritos pagãos de Merlim terminavam com frequência com mulheres a gritar e a dançar em volta das fogueiras do Tor, e estas mulheres comportavam-se em muito de modo semelhante. Dançavam de olhos fechados e acenavam com as mãos levantadas para o telhado branco onde o fumo das tochas e das tigelas de incenso queimado provocava um espesso nevoeiro. Algumas lamuriavam palavras estranhas, outras estavam em transe e apenas olhavam estarrecidas para uma estátua da sua mãe de Deus, poucas contorciam-se no chão, mas a maioria dançava ao ritmo da cadência do canto de três sacerdotes. A maioria dos homens presentes na igreja observava, mas alguns juntaram-se às mulheres que dançavam e foram eles os primeiros a despir-se até à cintura e a pegarem em correias de couro com nós com as quais começaram a chicotear as suas próprias costas. Isso deixou-me espantado, porque nunca antes vira nada assim, mas o meu espanto transformou-se em horror quando algumas das mulheres se juntaram aos homens e começaram a gritar de gozo extático à medida que as chicotadas provocavam sangue nos seus seios nus e nas suas costas.
Artur odiou isto.
É uma loucura sussurrou ele, pura loucura!
Está a alastrar avisou-o Culhwuch sombriamente. Uma das mulheres batia nas costas nuas com a extremidade de uma corrente enferrujada e os seus queixumes delirantes ecoaram na grande câmara de pedra enquanto o seu sangue salpicava espesso para o chão de laje. Eles continuarão assim toda a noite disse Culhwuch.
Os veneradores haviam-se deslocado gradualmente para a frente para cercarem os dançarinos extáticos, deixando-nos aos três isolados no nosso nicho na penumbra. Um sacerdote viu-nos ali e precipitou-se na nossa direcção.
Haveis comido o corpo de Cristo? perguntou.
Comemos ganso assado disse Artur educadamente, levantando-se. O sacerdote fitou-nos aos três e, reconhecendo Culhwuch, cuspiu-lhe no rosto.
Pagão! gritou ele. Idólatra! Atreves-te a profanar o templo de Deus! Bateu em Culhwuch, um erro, pois Culhwuch deu-lhe um soco que fez o sacerdote rodopiar para trás e o atirou ao chão, mas a altercação chamara a atenção e elevou-se um gemido entre os homens que tinham estado a observar os dançarinos flageladores.
É altura de irmos disse Artur, e retirámo-nos os três, de forma inteligente, atravessando o fórum para o local onde os lanceiros de Culhwuch guardavam a arcada do palácio. Os cristãos saíram em torrentes da sua igreja no nosso encalço, mas os lanceiros impassíveis fecharam-se numa barreira de escudos e baixaram as suas espadas, e os cristãos não fizeram qualquer tentativa para invadir o palácio.
Eles podem não atacar esta noite disse Culhwuch, mas pela manhã ficam mais bravios.
Artur observou os cristãos vociferantes de uma janela do palácio.
O que querem eles? perguntou perplexo. Ele gostava que a sua religião fosse decorosa. Quando vinha a Lindinis juntava-se sempre a Ceinwyn e a mim nas nossas orações da manhã quando nos ajoelhávamos em silêncio diante dos nossos Deuses domésticos, oferecendo-lhes um naco de pão e rezando para que as nossas tarefas diárias fossem realizadas com correcção; era esse o tipo de veneração que agradava a Artur. Estava simplesmente estupefacto com as coisas que vira na igreja de Isca.
Eles acreditam começou Culhwuch a explicar o fanatismo que testemunháramos que o seu Deus voltará à terra dentro de cinco anos, e acreditam que têm o dever de a preparar para a sua vinda. Os seus sacerdotes dizem-lhes que os pagãos têm de ser banidos antes da chegada do seu Deus e eles pregam que Dumnónia tem de ter um rei cristão.
Terão Mordred disse Artur ameaçador.
Então, o melhor será mudar o dragão do seu escudo para um peixe disse Culhwuch pois, digo-vos, o seu fervor é cada vez maior. Haverá problemas.
Conseguiremos acalmá-los disse Artur. Dir-lhes-emos que Mordred é cristão e talvez isso os acalme. Talvez fosse melhor construirmos a igreja que Sansum deseja acrescentou ele virando-se para mim.
Se isso os impedir de provocar tumultos disse eu porque não? Deixámos Isca na manhã seguinte, escoltados agora por Culhwuch e uma dúzia dos seus homens, e atravessámos o Exe pela ponte romana e depois virámos para Sul para as profundas terras junto ao mar, que ficavam nas costas mais longínquas de Dumnónia. Artur nada mais disse sobre o delírio cristão que testemunhara, mas nesse dia estava estranhamente silencioso e adivinhei que os ritos o tinham transtornado profundamente. Ele detestava todo o tipo de delírio, pois isso despia homens e mulheres da sua razão, e deve ter temido o que tamanha loucura podia fazer à sua cautelosa paz.
Mas por agora o nosso problema não eram os cristãos de Dunnónia, mas Tristão. Culhwuch enviara uma palavra ao príncipe, avisando-o da nossa aproximação, e Tristão veio receber-nos. Cavalgava sozinho, e os cascos do seu cavalo lançavam jactos de pó à medida que galopava na nossa direcção. Saudou-nos feliz, mas recuou diante da fria reserva de Artur. Essa reserva não era causada por nenhum desagrado natural que Artur sentisse por Tristão de facto ele gostava do príncipe mas provinha antes da aceitação de Artur de não vir apenas para mediar esta disputa, mas para tomar parte no julgamento de um velho amigo.
Ele tem preocupações expliquei vagamente, tentando acalmar Tristão e fazer-lhe ver que a frieza de Artur não indicava mau prenúncio.
Eu conduzia o meu próprio cavalo, porque me sentia sempre mais satisfeito a pé, e Tristão, tendo cumprimentado Culhwuch, deslizou da sua sela e caminhou ao meu lado. Descrevi os selvagens êxtases cristãos e atribuí a frieza de Artur às suas preocupações sobre o seu significado, mas Tristão não quis ouvir nada disso. Estava apaixonado, e como todos os apaixonados, só conseguia falar da sua amada.
Uma jóia, Derfel disse ele é o que ela é, uma jóia irlandesa! Caminhou com passos largos ao meu lado, com um braço em volta do meu ombro e com o seu longo cabelo negro a tilintar devido aos anéis de guerreiro que colocara nas suas tranças. A sua barba estava mais raiada de branco, mas continuava a ser um bonito homem com um nariz ossudo e escuro, olhos vivos que brilhavam de paixão. O seu nome disse ele sonhador, é Isolda.
Já soubemos disse eu friamente.
Uma filha de Demétia disse ele uma filha de Oengus Mac Airem. Uma princesa, meu amigo, de Uí Liatháin. Pronunciou o nome da tribo de Oengus Mac Airem como se as suas sílabas fossem forjadas no ouro mais puro. Isolda disse ele de Uí Liatháin. Quinze Primaveras de idade e tão bela como a noite.
Pensei na paixão desgovernada de Artur por Guinevere e nos meus próprios anseios de alma por Ceinwyn e o meu coração chorou pelo meu amigo. Ele fora cego pelo amor, arrebatado por ele, e por ele enlouquecido. Tristão sempre fora um homem de paixões, dado a momentos de profunda tristeza ou a elevados arroubos de felicidade, mas esta era a primeira vez que o via assolado pelos tumultuosos ventos do amor.
O teu pai avisei-o cauteloso deseja Isolda de volta.
Meu pai está velho disse ele, rejeitando todos os obstáculos e quando ele morrer atravessarei o mar com a minha princesa de Uí Liatháin até aos portões de ferro de Tintagel e construirei para ela um castelo com torres de prata que tocarão as estrelas. Riu da sua própria extravagância. Vais adorá-la, Derfel!
Eu não disse mais nada, deixei-o apenas falar, falar. Ele não tinha qualquer interesse pelas nossas notícias, não se importando nem um pouco que eu tivesse três filhas ou que os Saxões estivessem na defensiva. No seu universo só havia espaço para Isolda.
Aguarda até a veres, Derfel! disse ele uma e outra vez, e quanto mais nos aproximávamos do seu refúgio mais excitado ele ficava, até que, por fim, incapaz de estar separado da sua Isolda por mais tempo, saltou para cima do seu cavalo e afastou-se à nossa frente galopando. Artur olhou-me motejado e eu fiz-lhe uma careta. Está apaixonado disse eu, como se tivesse de explicar.
Com o gosto de seu pai por rapariguinhas acrescentou Artur severamente.
Vós e eu conhecemos o amor, Senhor disse eu, sede gentil com eles.
O refúgio de Tristão e de Isolda era um lugar belo, talvez o mais belo que alguma vez vi. Era um sítio onde pequenas colinas eram cortadas por ribeiros e densos bosques, onde abundantes rios corriam velozes para o mar e onde escarpas abruptas ecoavam ruidosas com o chilreio dos pássaros. Era um local bravio mas maravilhoso, apropriado ao delírio amoroso no seu estado selvagem.
E aí, na pequena e escura casa senhorial por entre os densos bosques verdes, conheci Isolda.
Pequena e morena, grácil e frágil é como me recordo de Isolda. Pouco maior do que uma criança, é a verdade, ainda que tivesse sido forçada a ascender à condição de mulher pelo casamento com Mark. Aos meus olhos, parecia uma rapariga tímida, pequena e magra, apenas uma delicada rapariga quase-mulher que mantinha os seus enormes olhos escuros fixos em Tristão até ele insistir para que nos cumprimentasse. Fez uma vénia a Artur.
Não vos ajoelhais diante de mim disse Artur, erguendo-a, pois sois uma Rainha. E ele deixou-se cair sobre um joelho e beijou a sua pequena mão.
A sua voz era sussurrante, tal como a voz dos espíritos. O seu cabelo era escuro e ela tentara parecer mais velha, prendendo-o num grande círculo no alto da cabeça e pendurando em si algumas jóias, mas usava-as de forma desajeitada, recordando-me Morwenna quando punha as vestes de cerimónia de sua mãe. Olhou-nos fixamente com receio. Julgo que Isolda percebeu, mesmo antes de Tristão, que esta incursão de lanceiros armados não era uma vinda de amigos, mas a chegada dos seus juizes.
Culhwuch concedera aos amantes o seu refúgio. Era uma casa senhorial de madeira, pequena mas bem construída, e pertencera a um chefe de tribo que apoiara a rebelião de Cadwy e que por isso fora degolado. Esta casa, com três choupanas e um paiol, era circundada por uma paliçada num pequeno vale arborizado onde os ventos do mar não conseguiam corroer as suas coberturas de colmo, e deste modo, com seis leais lanceiros e um pequeno monte de tesouros roubados, Tristão e Isolda pensavam transformar o seu amor num grandioso hino.
Artur retalhou o seu hino em mil pedaços.
O tesouro disse a Tristão nessa noite tem de ser devolvido a vosso pai.
Pode ficar com ele! declarou Tristão. Trouxe-o apenas para não ter de apelar para a vossa caridade, Senhor.
Durante todo o tempo que estiverdes nesta região, meu Príncipe e Senhor disse Artur com dificuldade sereis nossos convidados.
E por quanto tempo será, Senhor? perguntou Tristão.
Artur franziu as sobrancelhas e olhou para cima para as escuras coberturas de colmo da casa senhorial.
É chuva? Parece que passou tanto tempo desde as últimas chuvas.
Tristão fez de novo a pergunta e uma vez mais Artur recusou responder. Isolda agarrou na mão do seu príncipe e manteve-a assim enquanto Tristão recordava a Artur o Vale do Lugg.
Quando mais ninguém veio em vosso auxílio, Senhor, eu vim. disse Tristão.
Assim foi, meu Príncipe e Senhor admitiu Artur.
E quando pelejastes contra Owain, Senhor, eu mantive-me ao vosso lado.
Mantiveste-vos disse Artur.
E trouxe os meus escudos de falcão para Londres.
Haveis trazido, meu Príncipe e Senhor, e nessa ocasião eles pelejaram bem.
Aceitei o Vosso juramento da Távola Redonda disse Tristão. Nunca mais ninguém voltou a chamar-lhe Irmandade da Bretanha.
Assim foi, Senhor disse Artur com dificuldade.
Então, Senhor implorou Tristão, não serei eu digno do vosso auxílio?
Sois muito digno dele, meu Príncipe e Senhor disse Artur e eu não o esquecerei. Era uma resposta evasiva, mas a única que Tristão recebeu nessa noite.
Deixámos os amantes na casa, e fizemos as nossas próprias camas de palha nos pequenos paióis. A chuva parou durante a noite e a manhã seguinte rompeu quente e bela. Só mais tarde me apercebi que Tristão e Isolda já haviam deixado a casa.
Se tivessem um pingo de juízo resmungou Culhwuch para mim fugiriam para tão longe quanto conseguissem.
Fugirão?
Eles não raciocinam, Derfel, são amantes. Pensam que o mundo existe para sua conveniência. Agora Culhwuch coxeava ligeiramente, o legado do ferimento que recebera na batalha contra o exército de Aelle. Foram para o mar disse-me ele para rezar a Manawydan.
Culhwuch e eu seguimos os amantes, subindo do declive arborizado para a colina batida pelo vento que terminava numa falésia escarpada onde as aves marinhas planavam e contra a qual se quebrava o vasto oceano, numa rebentação de borrifos esfarrapados. Culhwuch e eu detivémo-nos no topo da falésia e olhámos fixamente para uma pequena enseada onde Tristão e Isolda caminhavam pela areia. Na noite anterior, ao observar a tímida rainha, eu não compreendera exactamente o que levara Tristão ao delírio amoroso, mas nessa manhã ventosa compreendi.
Observava-a quando de repente ela se separou de Tristão e correu à sua frente, saltando, rodopiando e rindo para o seu amante que caminhava lentamente atrás dela. Tinha um vestido folgado branco e o seu cabelo preto, que já não estava preso num círculo, acariciado pelo ondulado e livre vento salgado. Parecia um ser sobrenatural, semelhante às ninfas aquáticas que dançaram na Bretanha antes de os Romanos chegarem. E então, talvez para gracejar com Tristão, ou para tornar os seus apelos mais próximos de Manawydan, o deus do mar, correu destemida para as enormes vagas prestes a rebentar Mergulhou nas ondas desaparecendo de imediato e Tristão nada mais conseguiu fazer do que estar furioso de pé na areia a olhar para a massa de espuma branca do mar agitado. E então, lustrosa como uma lontra num caudal, surgiu a sua cabeça. Acenou, nadou um pouco, depois avançou com dificuldade regressando à praia com o seu vestido branco molhado colando-se ao seu patético corpo magro. Não pude deixar de ver que tinha uns seios pequenos e hirtos e umas pernas longas e delgadas, e nessa altura Tristão escondeu-a dos nossos olhares, embrulhando-a nas abas da sua larga capa negra e aí, junto ao mar, estreitou-a nos seus braços e encostou a face ao seu cabelo molhado e salgado. Culhwuch e eu afastámo-nos dali, deixando os amantes sozinhos e entregues ao vento vindo do mar e que soprava da Lyonesse imaginária.
Ele não pode fazê-los regressar resmungou Culhwuch.
Não deve concordei. Fitámos o interminável mar agitado.
Então porque não os tranquilizas Artur? perguntou Culhwuch irritado
Não sei.
Devia tê-los enviado para Broceliande disse Culhwuch. O vento levantava a sua capa enquanto caminhávamos para Oeste contornando as colinas por cima da enseada. O nosso caminho conduziu-nos a um lugar alto de onde podíamos avistar, em baixo, um belo porto natural onde o oceano inundara a depressão de um rio e formara uma sequência de extensos lagos de água salgada bem abrigados. Halcwm Culhwuch chamou ao porto e o fumo provém do sal. Apontou para uma luz difusa e cinzenta que se via na margem mais longínqua dos lagos.
Ali deve haver marinheiros que os possam levar para Broceliande disse eu, pois o porto tinha pelo menos uma dúzia de barcos ancorados no seu abrigo.
Tristão não iria disse-me Culhwuch com tristeza. Sugeri-lho, mas ele crê que Artur é seu amigo. Ele confia em Artur. Está impaciente por ser rei, pois diz que nesse momento todas as lanças de Kernow estarão ao serviço de Artur.
Porque não matou ele simplesmente o pai? perguntei eu em tom amargo.
Pela mesma razão que nenhum de nós mata Mordred, esse patifezinho disse Culhwuch. Não se mata um rei por ninharias.
Nessa noite jantámos de novo na casa senhorial, e uma vez mais Tristão pressionou Artur a dizer quanto tempo ele e Isolda podiam ficar em Dumnónia, e novamente Artur evitou dar-lhe uma resposta.
Amanhã, meu Príncipe e Senhor prometeu ele a Tristão, amanhã decidiremos tudo.
Mas na manhã seguinte, dois navios negros com longos mastros de onde pendiam velas em farrapos e cujas proas eram altas, levantadas e esculpidas com cabeças de falcões, navegaram em direcção aos lagos salgados de Halcwm. Os dois navios eram atravessados por uma multidão de homens apinhados que, no preciso instante em que os vagos contornos de terra surgiram enfunando as suas velas de vento, desarmaram os remos e conduziram os longos barcos negros para a praia. Feixes de lanças empilhavam-se na popa dos navios onde os timoneiros manobravam os enormes remos na direcção correcta. Ramos verdes estavam atados a cada uma das cabeças de falcão da proa, significando que os navios vinham em paz.
Eu não sabia quem eles traziam, mas podia adivinhar. O rei Mark viera de Kernow.
O rei Mark era um homem enorme, recordando-me Uther na seu idade avançada. Era tão gordo que não conseguia subir as colinas de Halcwm sem ajuda, por isso era transportado por quatro lanceiros numa cadeira equipada com duas resistentes vigas. Quarenta outros lanceiros acompanhavam o seu rei, precedido por Cyllan, o seu paladino. A tosca cadeira foi içada colina acima e depois para baixo pelo vale arborizado onde Tristão e Isolda julgavam ter encontrado refúgio.
Isolda gritou ao vê-los, e depois, em pânico, correu desesperadamente para fugir ao marido. Mas a paliçada tinha apenas uma entrada e a enorme cadeira de Mark preenchia-a, por isso recuou apressadamente para a casa senhorial onde o seu amante estava cercado. As portas da casa estavam guardadas pelos homens de Culhwuch e estes recusaram-se a deixar que Cyllan ou qualquer outro lanceiro de Mark entrasse no edifício. Ouvia-se Isolda a chorar, Tristão a gritar e Artur a implorar. O rei Mark ordenou que a sua cadeira fosse colocada no lado oposto à porta da casa e aí aguardou até Artur surgir, o rosto pálido e tenso, e se ajoelhar diante dele.
O rei Mark tinha um rosto façudo manchado por derrames. A sua barba era escassa e branca, a sua respiração pouco profunda provocava um ruído áspero na sua garganta larga e os seus pequenos olhos estavam marejados de lágrimas. Acenou a Artur, depois libertou-se com dificuldade da sua cadeira e, sobre as pernas grossas e inseguras, seguiu Artur até à choupana maior. Estava um dia quente, mas o corpo volumoso de Mark ainda estava envolto numa capa de pele de foca uma vez que achara que estaria frio. Colocou uma mão no braço de Artur para que o ajudasse a andar até à choupana onde tinham sido colocadas duas cadeiras.
Culhwuch, com aversão, colocara a sua figura corpulenta na porta de entrada da casa senhorial e aí permaneceu com uma espada visível. Eu mantive-me de pé ao seu lado enquanto, atrás de nós, a Isolda dos cabelos negros chorava.
Artur permaneceu uma hora inteira dentro da choupana, depois surgiu e olhou para mim e para Culhwuch. Pareceu suspirar, depois passou por nós e entrou na casa. Não ouvimos o que disse, mas ouvimos Isolda gritar.
Culhwuch lançou um olhar feroz e fixo aos lanceiros de Kernow, implorando para que apenas um deles o desafiasse, mas nenhum se mexeu. Cyllan, o paladino, estava de pé, imóvel, ao lado do portão com uma enorme lança de guerra e a sua formidável espada comprida.
Isolda gritou de novo e então, de repente, Artur saiu para a luz do dia e puxou-me pelo braço.
Anda, Derfel.
E eu? perguntou Culhwuch provocador.
Vigia-os, Culhwuch disse Artur. Que ninguém entre na casa Ele afastou-se e eu acompanhei-o.
Não disse nada enquanto subimos a colina nem quando caminhámos ao longo do caminho da colina, e continuou sem proferir palavra quando nos dirigimos para o pico da enseada. A pedra do promontório avançava para o mar à nossa frente, onde a água batia com intensidade e bramia ao quebrar a sua espuma para leste num vento constante. O Sol brilhava sobre nós, mas no mar distante havia uma enorme nuvem e Artur olhou fixamente a chuva que caía nas ondas esgotadas. O vento fazia rodopiar a sua capa branca
Conheces a lenda de Excalibur? perguntou-me de repente. Melhor do que ele, pensei, mas não lhe disse que a espada era um dos Tesouros da Bretanha.
Sei, meu Senhor disse eu, interrogando-me porque estaria ele a fazer-me aquela pergunta naquele momento, que Merlim a ganhou num concurso de sonhos na Irlanda e que vo-la deu em Stones.
E disse-me que se alguma vez estivesse em grande necessidade, então tudo o que tinha a fazer era puxar da espada, espetá-la no solo e Gofannon viria do Outro Mundo para me ajudar. Não é assim?
Sim, Senhor.
Então, Gofannon! gritou ele para o vento que vinha do mar ao mesmo tempo que puxava a grande espada. Vinde! E com essa invectiva cravou com força a espada na turfa.
Uma gaivota piou ao vento, o mar sugou as rochas quando recuou para as profundezas e uma rajada de vento salgado passou pelas nossas capas, mas não surgiu nenhum deus.
Os Deuses me ajudem disse por fim Artur, fitando a espada oscilante, mas como gostaria de matar aquele monstro gordo.
Então porque não o fizestes? perguntei com brusquidão.
Por breves instantes não disse nada e eu vi que lágrimas lhe corriam pelas faces muito encovadas.
Eu ofereci-lhes a sua morte, Derfel disse ele. Rápida e sem dor. Esbofeteou as suas faces, e depois, num súbito acesso de raiva, deu um pontapé na espada. Deuses! Cuspiu para a espada trémula. Que Deuses?
Puxei Excalibur da turfa e limpei a terra da extremidade. Ele recusou aceitar a espada novamente, por isso pousei-a reverentemente num pedregulho cinzento.
O que lhes vai acontecer, Senhor? perguntei.
Sentou-se noutra pedra. Durante algum tempo não me respondeu, fitando apenas a chuva no mar distante com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
Vivi a minha vida, Derfel disse por fim seguindo os juramentos. Não conheço nenhuma outra forma. Fico melindrado com os juramentos, e assim devia ser todos os homens, pois os juramentos unem-nos, embaraçam a nossa liberdade, e qual de nós não deseja ser livre? Mas se abandonamos os juramentos, então abandonamos o governo. Caímos no caos. Caímos apenas. Não somos melhores do que os animais. De repente deixou de conseguir falar, e apenas chorava.
Fitei as vagas cinzentas do mar. Onde, interrogava-me, começam estas imensas vagas e onde terminam elas?
Considereis perguntei que o juramento é um erro?
Um erro? Lançou-me um olhar fortuito, depois voltou os olhos para o oceano. Por vezes disse ele soturno um juramento não pode ser mantido. Não consegui salvar o reino de Ban, embora os Deuses saibam como tentei, mas não podia fazê-lo. E assim quebrei esse juramento e pagarei por isso, mas não o quebrei de livre vontade. Ainda tenho de matar Aelle, e esse é um juramento que tem de ser mantido, mas por enquanto não quebrei o juramento, apenas o adiei. Prometi tirar Henis Wyren a Diwrnach, e assim o farei. E talvez esse juramento tenha sido um erro, mas prestei-o. Aqui está a tua resposta. Se um juramento é um erro continuas ainda a ter obrigações para com ele, porque o prestaste. Limpou as faces. Por isso sim, um dia terei de pegar nas minhas lanças contra Diwrnach.
Não haveis prestado juramento a Mark disse eu amargo.
Nenhum concordou ele mas Tristão sim, bem como Isolda.
São os seus juramentos assunto nosso? perguntei.
Fitou a sua espada cinzenta, embutida com complexas espirais e cabeças de dragões com compridas línguas que reflectiam as longínquas nuvens escuras como ardósia.
Uma espada e uma pedra disse ele suavemente, pensando talvez no momento em que Mordred seria rei. Levantou-se de repente, e virou as costas à espada para olhar fixamente para península, para as suas colinas verdes. Supõe disse-me ele que dois juramentos colidem. Supõe que eu jurei lutar por ti e jurei lutar pelo teu inimigo, que juramento mantenho?
O primeiro prestado disse eu, conhecendo a lei tão bem como ele.
E se os dois tivessem sido prestados ao mesmo tempo?
Então submeter-vos-eis ao juízo do rei.
Porquê o rei? examinou-me ele como se eu fosse um lanceiro novo sendo ensinado sobre as leis de Dumnónia.
Porque o vosso juramento ao rei disse eu respeitosamente está acima de todos os outros juramentos, e o vosso dever é para com ele.
Então, o rei disse ele energicamente é o guardião dos nossos juramentos, e sem um rei nada existe a não ser um emaranhado de juramentos incompatíveis. Sem um rei, é o caos. Todos os juramentos conduzem ao rei, Derfel, todo o nosso dever termina com o rei e todas as nossas leis estão à guarda do rei. Se desafiamos o nosso rei, desafiamos a ordem. Podemos combater outros reis, podemos até matá-los, mas apenas porque ameaçam o nosso rei e a sua boa ordem. O rei, Derfel, é a nação, e nós pertencemos ao rei. O que quer que tu ou eu façamos, temos de apoiar o rei.
Eu sabia que ele não falava de Tristão nem de Mark. Pensava em Mordred e por isso atrevi-me a dizer o indizível, uma vez que isso se havia propagado tão lentamente pela Dumnónia ao longo de todos esses anos.
Há aqueles, Senhor disse eu, que dizem que deveríeis ser o rei.
Não! Gritou a palavra para o vento. Não! repetiu mais brandamente, olhando-me.
Baixei os olhos para a espada sobre a pedra.
Porque não?
Porque prestei um juramento a Uther.
Mordred disse eu não está preparado para ser Rei. E vós sabeis isso, Senhor.
Virou-se e olhou de novo para o mar.
Mordred é o nosso rei, Derfel, e isto é tudo o que tu ou eu precisamos de saber. Ele tem os nossos juramentos. Não podemos julgá-lo, ele julgar-nos-á, e se tu ou eu decidirmos que outro homem devia ser rei, então onde está a ordem? Se um homem subir ao trono injustamente, então qualquer homem pode ascender a ele. Se eu o tomasse, porque não haveria outro de mo tirar? Toda a ordem desapareceria. Restaria apenas o caos.
Pensais que Mordred se importa com a ordem? perguntei-lhe amargamente.
Penso que Mordred ainda não foi convenientemente aclamado disse Artur. Creio que quando os elevados poderes lhe forem entregues, ele poderá mudar. Julgo que é mais provável que não mude, mas acima de tudo, Derfel, acredito que ele é o nosso rei e nós temos de o suportar porque é isso que temos de fazer queiramos ou não. Em todo este mundo, Derfel disse ele, limpando de repente a Excalibur e volteando a sua espada por todo o horizonte, em todo este mundo existe apenas uma ordem indubitável, e essa é a ordem do rei. Não dos Deuses. Eles desapareceram da Bretanha. Merlim pensou que podia fazê-los regressar, mas olha agora para Merlim. Sansum diz-nos que o seu Deus tem poder e na verdade Ele pode ter, mas não para mim. Eu penso apenas nos reis, e neles estão concentrados os nossos juramentos e os nossos deveres. Sem eles seríamos coisas selvagens disputando um lugar. Meteu a Excalibur com força na sua bainha. Tenho de apoiar os reis, porque sem eles existiria o caos e por isso disse a Tristão e a Isolda que teriam de ser julgados.
Julgados! exclamei, e depois cuspi na turfa. Artur olhou-me irado de olhos fixos.
Eles são acusados disse ele de roubo. Eles são acusados de quebrarem juramentos. São acusados de fornicação. A última palavra enrolou-se-lhe na boca e ele virou-se e afastou-se de mim para a proferir com brusquidão na direcção do mar.
Eles estão apaixonados! protestei, e como nada dissesse ataquei-o mais directamente. E tendes vós sido julgado, Artur Uther, quando quebrastes um juramento? Não o juramento a Ban, mas o juramento que haveis feito quando vos prometestes em casamento a Ceinwyn. Haveis quebrado um juramento, e ninguém vos colocou diante de magistrados!
Virou-se para mim num acesso de raiva flamejante e por breves instantes julguei que ia desembainhar a Excalibur e atacar-me com a espada, mas depois estremeceu e ficou imóvel. Os seus olhos fervilhavam de novo com lágrimas. Nada disse por um longo tempo, depois acenou afirmativamente com a cabeça.
É verdade que quebrei esse juramento. Julgas que não o lamentei?
E não permitis que Tristão quebre um juramento?
Ele é um ladrão! disse-me Artur com rispidez e enfurecido. Achas que devíamos arriscar anos de incursões na fronteira por um ladrão que fornica com a madrasta? Conseguias falar com as famílias dos fazendeiros mortos na nossa fronteira e justificar as suas mortes em nome do amor de Tristão? Achas que devem morrer mulheres e crianças porque um príncipe está apaixonado? É essa a tua justiça?
Penso que Tristão é nosso amigo disse eu, e como não respondia, cuspi para os seus pés. Mandastes chamar Mark, não foi? acusei-o.
Assentiu com a cabeça.
Sim. Enviei um mensageiro de Isca.
Tristão é nosso amigo gritei-lhe. Cerrou os olhos.
Ele roubou um rei disse ele teimoso. Roubou ouro, uma mulher e orgulho. Quebrou juramentos. O seu pai busca a justiça e eu jurei justiça.
Ele é vosso amigo insisti. E meu! Abriu os olhos e fitou-me.
Um rei vem até mim, Derfel, e pede-me justiça. Devo eu negar a justiça de Mark, porque ele é velho, grosseiro e feio? Terão a juventude e a beleza direito a perverter a justiça? Por que outro motivo pelejei ao longo de todos estes anos, se não para me assegurar que a justiça seria imparcial? Agora rogava-me. Enquanto viajávamos para aqui, por todas essas aldeias e cidades, terão as pessoas fugido ao ver as nossas espadas? Não! E porquê? Porque sabem que no reino de Mordred existe justiça. E agora, porque um homem partilha o leito com a mulher de seu pai, atirarias tu essa justiça para o lado como um fardo incómodo?
Sim disse eu porque ele é um amigo, e porque se vós os obrigardes a depor em julgamento eles serão considerados culpados. Não têm hipótese em tribunal protestei amargamente porque Mark é um Senhor da Palavra.
Artur dirigiu-me um sorriso triste, pois reconheceu as imagens que eu deliberadamente provocara. Essas imagens eram do nosso primeiro encontro com Tristão, e também esse encontro se devera a uma questão legal, e nesse caso quase fora proferida uma enorme injustiça, porque o acusado era um Senhor da Palavra. Segundo a nossa lei, o testemunho concedido por um Senhor da Palavra era incontroverso. Mil pessoas podiam jurar o contrário, mas o seu testemunho nada valia se fosse contradito por um lorde, um druida, um sacerdote, um pai falando dos seus filhos, um donatário falando da sua oferenda, uma rapariga solteira falando da sua virgindade, um pastor falando dos seus animais ou um condenado proferindo as suas últimas palavras. E Mark era um lorde, um rei, e a sua palavra prevalecia sobre as de um príncipe ou de uma rainha. Nenhuma corte da Bretanha absolveria Tristão e Isolda e Artur sabia-o. Mas Artur fizera um juramento de proteger a lei.
Porém, nesse dia distante, quando Owain esteve tão próximo de perverter a justiça ao usar o privilégio de um Senhor da Palavra para dizer uma mentira, Artur apelara para o tribunal das espadas. Com o auxílio de Tristão, o próprio Artur lutara contra Owain e vencera.
Tristão disse eu, então, a Artur poderá apelar para o tribunal das espadas.
É esse o seu privilégio disse Artur.
E como sou seu amigo disse eu friamente posso lutar por ele. Artur olhou-me de olhos arregalados, como se só naquele momento tivesse percebido as verdadeiras razões da minha hostilidade.
Tu, Derfel? perguntou-me.
Lutarei por Tristão disse eu friamente porque ele é meu amigo. Como outrora vós haveis sido.
Fez uma pausa por breves instantes.
Esse é o teu privilégio disse ele, por fim mas eu cumpri o meu dever. Afastou-se e eu segui-o dez passos atrás; quando ele abrandava, eu abrandava, e quando se virava para me observar, eu desviava o olhar. Ia lutar por um amigo.
Artur ordenou aos lanceiros de Culhwuch, em breves palavras, que escoltassem Tristão e Isolda a Isca. Aí, decretou, que o seu julgamento teria lugar. O rei Mark podia arranjar um juiz e nós, dumnonianos, o outro.
O rei Mark sentou-se na sua cadeira sem dizer nada. Tinha-se insurgido para que o julgamento tivesse lugar em Kernow, embora certamente soubesse que isso não tinha importância. Tristão não seria deposto em julgamento, porque nunca lhe sobreviveria. Apenas podia apelar para a espada.
O príncipe assomou à porta da casa senhorial e aí enfrentou o seu pai. O rosto de Mark nada deixava transparecer, Tristão estava pálido e Artur mantinha-se de pé com a cabeça baixa para que não tivesse de olhar para nenhum dos dois homens.
Tristão não envergava armadura nem trazia nenhum escudo. O seu cabelo escuro, com os seus anéis de guerreiro, estava penteado para trás e preso com uma fita de linho branco que devia ter rasgado do vestido de Isolda. Vestia uma camisa, calças axadrezadas e botas e tinha uma espada embainhada. Avançou alguns passos na direcção de seu pai e parou. Puxou da espada, fitou os olhos implacáveis de seu pai e depois enterrou a espada com força na turfa.
Serei julgado pela corte das espadas insistiu.
Mark encolheu os ombros e fez um gesto letárgico com a mão direita, e esse gesto trouxe Cyllan para a frente. Era evidente que Tristão conhecia as mestrias do paladino, pois pareceu nervoso quando o enorme homem, cuja barba descia até à cintura, despiu a sua capa. Cyllan afastou o seu cabelo negro da tatuagem do machado, depois colocou o seu elmo de ferro na cabeça. Cuspiu nas mãos, esfregou o cuspo na palma das mãos e avançou devagar e tocou na lâmina da espada de Tristão. Com este gesto aceitara o combate.
Invoquei a Hywelbane.
Lutarei por Tristão ouvi-me dizer. Estava estranhamente nervoso, e não era apenas o nervoso que antecede o combate. Era o medo do imenso abismo que se abria na minha vida, o abismo que me separava de Artur.
Eu lutarei por Tristão insistiu Culhwuch. Avançou e colocou-se a meu lado. Tu tens filhas, idiota murmurou.
Tu também.
Mas eu venço este sapo barbudo mais depressa do que tu, pau de virar tripas saxão disse Culhwuch ternamente. Tristão colocou-se entre nós e protestou que seria ele a lutar sozinho contra Cyllan, que este era o seu combate e de mais ninguém, mas Culhwuch resmungou-lhe para que fosse para dentro de casa. Venci homens com o dobro do tamanho deste grosseirão barbudo disse a Tristão.
Cyllan desembainhou a sua longa espada e deu uma cutilada no ar.
Um de vós disse ele descuidadamente não me interessa qual.
Não! gritou Mark de repente. Chamou Cyllan e dois outros dos seus lanceiros, e os três homens ajoelharam-se ao lado da cadeira de Mark e ouviram as instruções do seu Rei.
Culhwuch e eu pensámos que Mark iria ordenar aos seus três homens que lutassem connosco.
Eu fico com o patife de barba grande e testa suja decidiu Culhwuch tu ficas com aquele cretino ruivo, Derfel, e o meu Príncipe e Senhor pode espetar o calvo. Dois minutos de trabalho?
Isolda apereceu, vinda do interior da casa senhorial. Parecia aterrorizada por estar na presença de Mark, mas veio para nos beijar a mim e a Culhwuch. Culhwuch submergiu-a nos seus braços, enquanto eu me ajoelhei e beijei a sua mão pálida e magra.
Obrigada disse ela na sua vozinha toldada. Os seus olhos estavam vermelhos de lágrimas. Pôs-se em bicos de pés para beijar Tristão, e depois, lançando um olhar assustado e acanhado ao marido, fugiu recuando para a penumbra da casa senhorial.
Mark ergueu a sua pesada cabeça do colarinho da pele de foca.
A corte das espadas disse numa voz enrouquecida pelas mucosidades exige um homem para cada um. Sempre assim foi.
Então mandai as vossas donzelas uma de cada vez, meu Rei e Senhor gritou Culhwuch e eu matá-las-ei cada uma por sua vez.
Mark abanou a cabeça.
Um homem, uma espada insistiu e o meu filho invocou o privilégio, por isso lutará.
Meu Rei e Senhor disse eu decreta o costume que um homem pode lutar pelo seu amigo na corte das espadas. Eu, Derfel Cadarn, insisto nesse privilégio.
Nada sei sobre tal costume mentiu Mark.
Artur conhece disse eu desapiedado. Ele lutou por vosso filho na corte das espadas e hoje lutarei eu por ele.
Mark virou os seus olhos lacrimosos na direcção de Artur, mas este abanou a cabeça como que para sugerir que nada queria ter a ver com esta discussão. Mark voltou a olhar para mim.
A ofensa de meu filho é imoral disse ele e ninguém senão ele devia defendê-la.
Defendê-la-ei! disse eu, depois Culhwuch deu um passo para junto de mim e insistiu que lutaria por Tristão. O rei apenas olhou para nós, ergueu a sua mão direita e fez um gesto enfastiado.
Os lanceiros de Kernow, instruídos pelo homem de cabelo ruivo e pelo guerreiro pelado, formaram uma barreira de escudos ao sinal do rei. Era uma barreira com a profundidade de dois homens e a linha da frente segurava os seus escudos numa fileira fechada enquanto a segunda fila segurava os seus escudos para proteger as cabeças da linha da frente. Depois, à voz de comando, atiraram as suas lanças para o chão.
Estupores disse Culhwuch, pois percebeu o que estava para acontecer. Quebramo-los, Lorde Derfel? perguntou-me.
Quebramo-los, Lorde Culhwuch disse eu vingativo.
Havia quarenta homens de Kernow, e três nossos. Os quarenta arrastavam os pés lentamente para diante na sua barreira de escudos bem fechada com os olhos cautelosamente postos em nós por baixo do rebordo dos elmos. Não empunhavam lanças nem haviam desembainhado nenhuma espada. Não vinham para nos matar, mas para nos imobilizar.
E Culhwuch e eu atacámo-los. Havia anos que eu não precisava de quebrar uma barreira de escudos, mas o antigo desvario voltou ao meu espírito assim que gritei o nome de Bei, depois gritei o nome de Ceinwyn ao mesmo tempo que avançava com a ponta da Hywelbane à altura dos olhos de um homem, e quando ele se desviou para o lado atirei com o meu ombro para a união do escudo dele com o do seu companheiro do lado.
A parede quebrou-se e eu gritei triunfante enquanto esmurrava com o punho de Hywelbane a parte de trás da cabeça de um homem, trespassando-a depois pela frente para alargar a fenda. Em combate, nesta altura, os meus homens estariam à estocada atrás de mim, a abrir as fendas e a encharcar o chão com sangue inimigo, mas eu não tinha nenhum homem atrás de mim nem quaisquer armas a oporem-se-me, apenas escudos e mais escudos, e deste modo rodopiei num círculo, fazendo com que a espada de Hywelbane silvasse como se golpeasse em todas as direcções aqueles escudos inexoravelmente fechados sobre mim. Atrevi-me a não matar nenhum dos lanceiros, pois isso seria desonroso, depois de eles terem tão deliberadamente posto de parte as suas próprias armas, e desapossado dessa oportunidade apenas podia tentar assustá-los. Mas eles sabiam que eu não mataria e, deste modo, um círculo de escudos rodeou-me, fechou-me, e a Hywelbane foi finalmente detida desfalecendo sob um monte de escudos de ferro. De repente, os escudos de Kernow pressionaram-me com mais força.
Ouvi Artur a gritar um comando severo, e adivinhei que alguns dos lanceiros de Culhwuch e meus haviam desejado ajudar os seus senhores, mas Artur fê-los recuar. Ele não queria uma luta sangrenta, Kernow contra Dumnónia. Apenas queria esta questão cumprida e terminada.
Culhwuch havia sido cercado como eu e zombava dos seus captores, chamando-lhes infantes, cães e vermes, mas os homens de Kernow tinham as suas ordens. Nenhum de nós estava ferido, apenas bem seguros pela pressão dos homens e dos seus escudos, e deste modo, tal como Isolda, apenas conseguíamos ver que o paladino de Kernow avançava com a espada virada para baixo e fazia uma vénia ao seu príncipe.
Tristão sabia que iria morrer. Retirara a fita do cabelo e prendera-a no punho da sua espada, e beijava agora a faixa de linho. Depois estendeu a sua espada, tocou na espada do paladino, e precipitou-se para diante com uma investida.
Cyllan desviou-se. O som das duas espadas ecoou na paliçada, depois ecoou de novo assim que Tristão atacou uma segunda vez, agora oscilando a espada numa rápida cutilada descendente. Mas uma vez mais Cyllan desviou-se. Fê-lo com facilidade, quase com lassidão. Por mais duas vezes Tristão atacou, e depois susteve o fôlego oscilando e investindo tão depressa quanto conseguia, tentando desesperadamente manter baixa a guarda de Cyllan. No entanto, apenas fatigava o seu próprio braço, e assim que parou para respirar e recuou um passo, o paladino investiu.
A estocada foi muito bem dada. Fora até magnificamente dada, se estivésseis a ver uma espada a ser usada apropriadamente. Fora até misericordiosamente dada, pois Cyllan tirou a vida a Tristão num pestanejo. O Príncipe nem tempo teve de olhar para trás para a sua amada que estava à porta da casa senhorial, na penumbra. Rodou apenas os olhos esbugalhados para o seu assassino, e o sangue brotou do corte na sua garganta, deixando vermelha a sua camisa branca. Depois a sua espada caiu enquanto ele morria, exalando um som sufocante. E quando a sua alma o abandonou, tombou.
Justiça feita, meu Rei e Senhor disse Cyllan friamente quando puxou a sua espada do pescoço de Tristão e se afastou. Dos lanceiros que me rodeavam, nenhum se atreveu a olhar-me nos olhos, recuando apenas. Apanhei a Hywelbane e a visão da sua espada cinzenta foi turvada pelas minhas lágrimas. Ouvi Isolda gritar quando os homens do seu marido mataram os seis lanceiros que acompanhavam Tristão e que guardavam agora a sua rainha. Fechei os olhos.
Não olharia para Artur. Não falaria com Artur. Caminhei para o promontório e aí rezei aos meus Deuses e lhes pedi que voltassem à Bretanha, e enquanto rezava os homens de Kernow levaram a rainha Isolda para o lago salgado onde os dois navios negros aguardavam. Mas não a levaram de regresso a Kernow. Em vez disso, a princesa de Uí Liatháin, essa criança de quinze Primaveras que saltara de pés descalços para as ondas e cuja voz fora um sussurro de fada semelhante aos espíritos dos marinheiros que cavalgam nas longas asas do mar, foi amarrada a um poste e rodeada por uma pilha de madeira flutuante, que abundava na costa de Halcwm, e aí, diante dos olhos impiedosos do seu marido, foi queimada viva. O cadáver do seu amado foi queimado na mesma pira.
Não partiria com Artur. Não falaria com ele. Deixei-o partir, e nessa noite dormi na velha e escura casa senhorial onde os amantes haviam dormido. Depois, viajei para Lindinis e foi então que confessei a Ceinwyn o antigo massacre no paul quando eu matara o inocente para manter o juramento. Disse-lhe que Isolda fora queimada viva e que gritava enquanto o seu marido assistia.
Ceinwyn abraçou-me.
Não conhecias essa dureza em Artur? perguntou-me suavemente.
Não.
Ele é tudo o que está entre nós e o horror disse Ceinwyn como poderia ele ser outra coisa senão duro?
Até neste momento, de olhos cerrados, vejo por vezes essa criança saindo do mar, sorrindo, com o seu corpo delgado delineado pelo vestido branco e as suas mãos estendidas em direcção ao seu amado. Não consigo ouvir o grito de uma gaivota sem a ver, pois ela irá perseguir-me até ao dia da minha morte, e depois da morte, onde quer que a minha alma vá, ela lá estará; uma criança morta por um rei, segundo a lei, em Camelote.
Durante muitos anos depois do juramento da Távola Redonda não vi Lancelote nem nenhum dos seus escudeiros. Amhar e Loholt, os dois filhos gémeos de Artur, viviam em Venta, a capital de Lancelote, onde chefiavam bandos de lanceiros, mas a única luta em que pareciam participar era nas suas tabernas. Dinas e Lavaine também estavam em Venta onde presidiam a um templo dedicado a Mercúrio, um Deus romano, rivalizando as suas cerimónias com as realizadas na igreja do palácio de Lancelote, consagrada pelo bispo Sansum, um visitante frequente de Venta que relatara que o povo belga parecia suficientemente satisfeito com Lancelote, afirmação que nós entendemos como não serem eles declaradamente rebeldes.
Lancelote e os seus companheiros também visitavam Dumnónia, a maioria das vezes atravessando a sua fronteira para o Palácio do Mar, mas outras viajando para tão longe como Durnovária para estarem presentes nalgum grande festim. Eu, todavia, afastava-me simplesmente de tais festivais se soubesse que eles vinham, e nem Artur nem Guinevere alguma vez me pediram que comparecesse. E também não fui convidado para o grande funeral que se seguiu à morte de Elaine, a mãe de Lancelote.
Na verdade, Lancelote não era um mau governante. Não era um Artur, pois em nada se importava com a qualidade da justiça ou com a equidade dos impostos ou do estado das estradas, ignorando simplesmente essas coisas, mas como antes da sua governação elas já haviam sido ignoradas, ninguém notou uma grande diferença. Lancelote, à semelhança de Guinevere, preocupava-se apenas com o seu conforto e, tal como ela, construiu um sumptuoso palácio onde abundavam estátuas. As paredes haviam sido pintadas para o tornar mais vivo e, claro, expunham a extravagante colecção de espelhos nos quais ele podia admirar o seu próprio reflexo infinitas vezes. O dinheiro para estes luxos era extorquido dos impostos, e se estes fossem pesados então a compensação era a libertação das terras belgas de rápidos ataques saxões. Espantosamente, Cerdic mantivera o acordo com Lancelote e os temíveis lanceiros de Sais nunca empreenderam ataques rápidos aos terrenos das herdades abastadas de Lancelote.
Porém, nem eles necessitavam de os empreender, pois Lancelote convidara-os a virem viver no seu reino. A região havia sido despovoada devido aos longos anos de guerra e vastas extensões de campos férteis haviam sido tomados de novo pelos bosques, por isso entre as gentes de Cerdic, Lancelote convidou colonos para cultivarem os campos. Os Saxões prestaram juramentos de lealdade a Lancelote, fizeram a terra prosperar, construíram novas vilas, pagaram os seus impostos, e os seus lanceiros chegaram mesmo a marchar no seu grupo de guerra. Os guardas do seu palácio, constava-nos, eram agora todos saxões. A Guarda Saxónica, como lhes chamava, e ele próprio escolhiam-nos pela sua altura e pela cor dos cabelos. Não os vi durante esses anos, apesar de eventualmente os ter encontrado, mas eram todos homens altos e louros, transportando machados polidos até brilharem como espelhos. Havia corrido o rumor que Lancelote pagava um tributo a Cerdic, mas Artur furioso negou-o quando o nosso Conselho lhe perguntou se era verdade. Artur não concordou que os colonos saxões fossem convidados para a região bretã, mas a decisão desta questão, dizia ele, cabia a Lancelote e não a nós, e pelo menos a região estaria em paz. Segundo parecia, a paz desculpava tudo.
Lancelote até se vangloriava de ter convertido a sua Guarda Saxónica ao cristianismo, pois o seu baptismo, é agora visível, não tivera lugar apenas pelo espectáculo, mas fora bastante real, ou pelo menos foi o que Galaad me contou numa das suas frequentes visitas a Lindinis. Descreveu a igreja que Sansum construíra no palácio de Venta e disse-me que todos os dias um coro cantava e um grupo de sacerdotes celebrava os mistérios cristãos.
É tudo muito bonito disse Galaad ansioso. Isto ocorreu antes de eu ver os êxtases arrebatadores em Isca e não fazia a mínima ideia que tais frenesins tivessem lugar, por isso não lhe perguntei se aconteciam em Venta, ou se o seu irmão encorajava os cristãos de Dumnónia a verem-no como libertador.
O cristianismo modificou o vosso irmão? perguntou Ceinwyn. Galaad observou o tremor das suas mãos enquanto penteava um fio de lã da roca para o carretel.
Não, admitiu. Ele pensa que é suficiente rezar uma vez por dia e depois comporta-se como muito bem quer. Mas muitos cristãos são assim, infelizmente.
E como procede ele? perguntou Ceinwyn.
Mal.
Desejais que deixe a sala perguntou Ceinwyn docemente para que possais dizer a Derfel sem me embaraçar? E depois ele poderá dizer-me quando formos para a cama.
Galaad riu.
Ele está enfadado, Senhora, e alivia o seu enfado da forma habitual. Caça.
Assim faz Derfel e assim faço eu. Caçar não é mau.
Ele caça raparigas disse Galaad com tristeza. Não as trata mal, mas na verdade elas não têm muita escolha. Algumas ficam agradadas e todas elas enriquecem bastante, mas também se tornam suas prostitutas.
Ele assemelha-se à maior parte dos reis disse Ceinwyn secamente
É tudo o que ele faz?
Passa horas com aqueles dois patifes druidas disse Galaad e ninguém sabe por que razão um rei cristão o faria, mas ele clama ser apenas por amizade. Encoraja os seus poetas, colecciona espelhos e visita o Palácio do Mar de Guinevere.
Com que finalidade? perguntei.
Para conversar, conforme diz. Galahad encolheu os ombros. Afirma falarem sobre religião. Ou melhor, discutem sobre isso. Ela tornou-se muito devota.
A ísis disse Ceinwyn recriminadora. Nos anos que se seguiram ao juramento da Távola Redonda todos ouvíramos dizer como Guinevere cada vez mais amiúde se retirava para a prática da sua religião, de tal modo que agora o Palácio do Mar era, dizia-se, um enorme santuário dedicado a ísis, e as servidoras de Guinevere, todas mulheres escolhidas pelo seu encanto e boa aparência, eram as sacerdotisas de ísis.
A Deusa Suprema disse Galaad depreciativamente, depois com cautela fez o sinal da cruz para repelir o mal pagão. Claro que Guinevere acredita que a Deusa tem um enorme poder que pode ser canalizado para as questões humanas. Não creio que Artur goste disto.
Ele está aborrecido com tudo isto disse Ceinwyn, fiando e retirando o último fio de lã da roca e depois pousando-a. Só se lamenta continuou ela por Guinevere só lhe falar da sua religião. Deve ser horrivelmente entediante para ele. Esta conversa ocorreu muito antes de Tristão fugir com Isolda para Dumnónia, e quando Artur ainda era um conviva desejado em nossa casa.
Meu irmão clama estar fascinado pelas suas ideias disse Galaad
e talvez esteja. Ele afirma que ela é a mulher mais inteligente da Bretanha e diz que não casará até encontrar uma mulher como ela.
Ceinwyn riu.
Então foi uma sorte ter-me deixado. Que idade tem ele agora?
Trinta e três, julgo eu.
Tão velho! - disse Ceinwyn, sorrindo-me, pois eu era apenas um ano mais novo. O que aconteceu a Ade?
Ela deu-lhe um filho, e morreu ao tê-lo.
Não! disse Ceinwyn, impressionada como sempre ficava ao ouvir falar numa morte durante um parto. E dizeis que ele tem um filho?
Um bastardo disse Galaad reprovadoramente. Peredur de seu nome. Agora tem quatro anos, e não é um mau rapazinho. Na verdade até gosto dele.
Houve alguma vez alguma criança de quem não tivesses gostado? perguntei-lhe friamente.
Palha-de-aço disse ele, e todos sorrimos com a velha alcunha.
Imaginem Lancelote com um filho! disse Ceinwyn com aquela entoação de efectiva surpresa com que as mulheres acolhem semelhantes notícias. Para mim a existência de outro bastardo real parecia nada ter de extraordinário, mas percebi já que homens e mulheres reagem a estas coisas de forma bem diferente.
Galaad, tal como o seu irmão, nunca casara. Também não tinha propriedades, mas era feliz e mantinha-se ocupado a prestar serviço a Artur como embaixador. Tentou manter viva a Irmandade da Bretanha, embora eu tivesse sabido quão depressa essas ocupações entraram em declínio, e viajou por todos os reinos bretões, transportando mensagens, resolvendo disputas e usando a sua condição real para resolver quaisquer problemas que Dumnónia pudesse ter com outros estados. Era Galaad quem normalmente viajava para Demétia para restringir os ataques súbitos de Oengus Mac Airem a Powys e foi Galaad quem, depois da morte de Tristão, levou a notícia do destino de Isolda a seu pai. Depois disso não o vi por muitos meses.
Também tentei não ver Artur. Estava demasiado zangado com ele, e também não responderia às suas cartas nem iria ao Conselho. Ele veio a Lindinis por duas vezes nos meses que se seguiram à morte de Tristão, e de ambas fui friamente educado e também das duas vezes o deixei assim que consegui. Conversou com Ceinwyn por longo tempo e ela tentou reconciliar-nos, mas eu não conseguia afastar do meu pensamento a imagem daquela criança a arder.
Porém, também não conseguia ignorar Artur completamente. A segunda aclamação de Mordred estava agora apenas a alguns meses e os preparativos tinham de ser feitos. A cerimónia teria lugar em Caer Cadarn, a uma curta distância a leste de Lindinis, e inevitavelmente Ceinwyn e eu fôramos encarregues dos preparativos. O próprio Mordred até demonstrou algum interesse nisso, talvez por se aperceber que a cerimónia o libertaria finalmente de toda a disciplina.
Tereis de decidir disse-lhe eu certo dia quem irá aclamar-vos.
Artur fá-lo-á, não é? perguntou sombrio.
Normalmente é feito por um druida disse eu mas se desejais uma cerimónia cristã então tereis de escolher entre Emrys ou Sansum.
Encolheu os ombros.
Sansum, suponho.
Então devíamos ir falar-lhe disse eu.
Fizemo-lo num dia rigoroso de pleno Inverno. Eu tinha outros assuntos em Ynys Wydryn, mas antes fui com Mordred ao santuário cristão onde um sacerdote nos disse que o bispo Sansum estava ocupado a dizer a missa e que devíamos aguardar.
Sabe ele que está aqui o seu rei? perguntei.
Dir-lhe-ei, Senhor disse o sacerdote, e retirou-se apressadamente correndo sobre o chão gelado.
Mordred caminhou vagarosamente até junto da campa de sua mãe, onde, apesar do frio, uma dúzia de peregrinos se ajoelhara em veneração. Era uma campa muito simples, compondo-se apenas de um pequeno monte de terra com uma cruz de pedra, enfezada pela urna de chumbo que Sansum colocara para receber as oferendas dos peregrinos.
O bispo virá ter connosco sem demora disse eu. Esperamos ali dentro?
Abanou a cabeça e franziu as sobrancelhas para o pequeno monte com erva.
Ela devia ter uma campa melhor disse ele.
É isso bem verdade disse eu, admirado por ele ter sequer falado. Podeis construí-la.
Teria sido melhor disse ele falsamente se outros lhe tivessem prestado esse tributo.
Meu Rei e Senhor disse eu, nós estávamos tão ocupados a defender a vida do seu filho que tivemos pouco tempo para nos ocuparmos dos seus ossos. Mas tendes razão, e nós fomos descuidados.
Bateu taciturno com o pé na urna, depois espreitou para o interior para ver os pequenos tesouros que haviam sido deixados pelos peregrinos. Os que rezavam junto à campa afastaram-se cautelosamente, não por medo de Mordred que duvido tenham até reconhecido, mas porque o amuleto de ferro que eu usava ao pescoço traía-me como pagão.
Porque foi ela enterrada? perguntou-me Mordred de repente. Porque não foi queimada?
Porque ela era cristã disse eu, escondendo o meu horror pela sua ignorância. Expliquei que os cristãos acreditavam que os seus corpos seriam de novo usados na última vinda de Cristo, enquanto nós pagãos assumíamos novos corpos-sombra no Outro Mundo e por isso não precisávamos dos nossos cadáveres, os quais, se pudéssemos, queimávamos para evitar que os nossos espíritos vagueassem pela Terra. Se não pudéssemos pagar uma pira funerária então queimávamos o cabelo da pessoa morta e cortávamos um pé.
Far-lhe-ei um jazigo disse ele depois de eu terminar a minha explicação teológica. Perguntou-me como morrera a sua mãe e contei-lhe toda a história de como Gundleus de Silúria perfidamente desposara Norwenna, depois a assassinara quando ela se ajoelhara diante dele. E contei-lhe como Nimue se vingara de Gundleus.
Essa bruxa disse Mordred. Ele temia Nimue, e não admira, pois ela tornara-se cada vez mais temida, cada vez mais lúgubre, cada vez mais suja. Agora ela era uma solitária, escavando à procura de vida nos restos das coisas que Merlim juntava onde entoava as suas palavras mágicas, acendia fogueiras aos seus Deuses e recebia poucos visitantes, embora uma vez por outra, sem aviso, se dirigisse a passos largos a Lindinis para ouvir a opinião de Merlim. Nessas raras visitas eu tentava alimentá-la, as crianças fugiam dela, e ela afastava-se, resmungando para consigo com o seu único olho desvairado, a capa cheia de lama já seca e cinzas, e o cabelo negro baço emaranhado com porcaria. Ela era obrigada a ver abaixo do seu refúgio no Tor o santuário cristão a aumentar, a ficar cada vez mais forte e ainda mais organizado. "Os antigos Deuses", pensei, "estavam rapidamente a perder a Bretanha." Sansum, claro, estava ansioso para que Merlim morresse para se apoderar do Tor e construir uma igreja no seu cume com marcas de fogueiras, mas o que Sansum não sabia era que todas as terras de Merlim me estavam destinadas em testamento.
De pé junto à campa da sua mãe, Mordred interrogava-se sobre a semelhança de nomes entre a minha filha mais velha e a sua falecida mãe e eu disse-lhe que Ceinwyn era prima de Norwenna.
Morwenna e Norwenna são nomes antigos em Powys expliquei.
Ela amava-me? perguntou Mordred, e a incongruência desta palavra na sua boca provocou em mim hesitação. Pensei que talvez Artur tivesse razão. Talvez Mordred se tornasse responsável. É certo que, ao longo de todos os anos em que o conhecera, nunca havia tido uma conversa tão cortês.
Amava-vos muito respondi-lhe com verdade. As vezes em que vi vossa mãe mais feliz continuei foi quando estáveis com ela. Ali em cima. Apontei para a parte negra rochosa e escarpada da encosta onde, outrora, o castelo de Merlim e a sua torre de sonho se tinham erguido no Tor. Havia sido nesse local que Norwenna fora assassinada e Mordred lhe fora roubado. Nessa época ele era bebé, até mais novo do que eu quando fui retirado da minha mãe, Erce. Viveria ainda? Não, viajara para Silúria para tentar encontrá-la, e esse esquecimento fez-me sentir culpado. Toquei no amuleto de ferro.
Quando eu morrer disse Mordred quero ir para a mesma sepultura de minha mãe. E eu próprio a farei. Um jazigo de pedra declarou com os nossos corpos elevados num pedestal.
Deveis falar com o bispo disse eu e tenho a certeza que ficará agradado por fazer todos os possíveis para vos ajudar. "Desde que", pensei cinicamente, "ele não tenha de pagar pelo sepulcro abobadado."
Virei-me enquanto Sansum se apressava atravessando a relva. Fez uma vénia a Mordred, depois deu-me as boas-vindas ao santuário.
Vindes, faço votos, em busca da verdade, Lorde Derfel?
Vim visitar aquele santuário disse eu, apontando para o Tor mas o meu Rei e Senhor tem assuntos seus a tratar convosco. Deixei-os sozinhos e subi para o Tor no meu cavalo, passando junto a um grupo de cristãos que, dia e noite, rezavam no sopé do Tor para que os habitantes pagãos fossem mandados embora. Aguentei os seus insultos, depois subi a colina íngreme para verificar que a comporta havia caído da sua última dobradiça. Prendi o meu cavalo a uma estaca do que restava da paliçada, depois carreguei a trouxa de roupas e peles que Ceinwyn fizera para que as pobres gentes que partilhavam o refúgio de Nimue não congelassem no rigoroso Inverno. Dei as roupas a Nimue e ela deixou-as cair descuidadamente na neve, depois puxou pela minha manga e conduziu-me à sua nova cabana, que ela construíra justamente onde outrora se erguera a torre de sonho de Merlim. A cabana tresandava tão abominavelmente que eu quase sufoquei, mas ela já se esquecera do seu asfixiante cheiro fétido. Estava um dia glacial e uma saraivada gelada vergastava de leste empurrada por um vento húmido, mas ainda assim eu preferiria manter-me de pé debaixo do aguaceiro gelado do que tolerar aquela cabana a tresandar.
Olha disse ela orgulhosa, e mostrou-me um caldeirão, não o Caldeirão, mas apenas um vulgar caldeirão de ferro remendado pendurado numa viga do telhado, cheio de um qualquer líquido escuro. Raminhos de visco-branco, um par de asas de morcego, a pele velha de serpentes, uns chifres de veado partidos e ramos de ervas também pendiam das traves do telhado, que por serem tão baixas me obrigaram a dobrar para entrar na cabana, onde a enorme quantidade de fumo fazia arder os olhos. Um homem nu estava deitado num colchão de palha na penumbra e queixou-se da minha presença.
Calado disse-lhe Nimue com rispidez, depois agarrou num pau e empurrou-o para dentro do líquido negro do caldeirão, que fumegava devagar em cima de uma pequena fogueira e de onde saía muito mais fumo do que calor. Ela mexeu o caldeirão, encontrou aquilo que queria, o que quer que fosse, e içou-o do líquido. Vi que era um crânio humano. Lembras-te de Balise? perguntou-me Nimue.
Claro disse eu. Balise fora um druida, um homem velho quando eu era jovem, e agora há muito falecido.
Eles queimaram-lhe o corpo disse-me Nimue mas não a cabeça, e a cabeça de um druida, Derfel, é uma coisa com um poder terrível Um homem trouxe-ma na semana passada. Ele tinha-a numa barrica de cera de abelha e eu comprei-lha.
O que significou que eu adquiri a cabeça. Desde sempre que Nimue comprara objectos com poder de culto: a membrana fetal de uma criança morta, os dentes de um dragão, um pedaço do pão mágico cristão, pontas de seta de sílex, e agora a cabeça de um homem morto. Ela costumava vir ao palácio e pedir dinheiro por estas coisas espalhafatosas, mas agora eu achava mais simples deixar-lhe um pouco de ouro, mesmo que isso significasse que ela desperdiçaria o metal em qualquer coisa estranha que lhe oferecessem
Certa vez pagou um lingote de ouro inteiro pela carcaça de um cordeiro que nascera com duas cabeças, e pregou a carcaça à paliçada que dava para o santuário cristão e aí a deixou apodrecer. Não quis perguntar-lhe quanto tinha pago por uma barrica de cera que continha a cabeça de um homem morto.
Retirei a cera disse-me ela e fervi-a até a carne se separar do osso. Em parte isso explicava o opressivo cheiro fétido da cabana.
Não existe augúrio mais poderoso disse-me ela, com o seu único olho a brilhar na cabana escura do que a cabeça de um druida a fervilhar num pote de urina com as dez ervas castanhas de Crom Dubh. Largou o crânio e este afundou-se na superfície escura do líquido. Agora espera ordenou-me.
Estava a sentir-me tonto com o fumo e o cheiro fétido, mas esperei obediente enquanto a superfície do líquido tremia, brilhava e finalmente baixava até nada restar senão um brilho escuro tão liso como um espelho delgado apenas com um vago vapor elevando-se da superfície negra. Nimue inclinou-se para se aproximar e susteve a respiração, e eu percebi que estava a ver maus presságios na superfície do líquido. O homem sobre o colchão de palha tossiu horrivelmente, depois agarrou sem forças num cobertor puído com que tapou parte da sua nudez.
Tenho fome gemeu. Nimue ignorou-o. Aguardei.
Estou desiludida contigo, Derfel disse Nimue de repente, com o seu bafejo a ondular a superfície do líquido.
Porquê?
Vejo que uma rainha foi queimada viva junto a uma costa do mar. Eu teria gostado das suas cinzas, Derfel disse reprovadora. Eu podia ter usado as cinzas de uma rainha continuou. Devias saber isso. Ficou em silêncio e eu nada disse. O líquido estava de novo imóvel, e quando Nimue voltou a falar fê-lo numa voz estranha e rouca que não embaciou em absoluto a superfície negra do líquido. Dois reis virão a Cadarn disse ela mas um homem que não é rei aí governará. As mortes ocorrerão no casamento, os perdidos virão para a luz e uma espada pousará no pescoço de uma criança. Depois gritou terrivelmente, assustando o homem nu que fugiu frenético para o canto mais afastado da cabana, onde se inclinou submisso com as mãos a cobrirem-lhe a cabeça. Diz isto a Merlim disse-me Nimue na sua voz natural. Ele saberá o que significa.
Dir-lhe-ei prometi-lhe.
E diz-lhe disse ela com um fervor desesperado, agarrando-me no braço com uma das mãos imundas em concha, que vi o Caldeirão no líquido. Diz-lhe que em breve será usado. Em breve, Derfel! Diz-lhe isto.
Digo disse eu, e depois, incapaz de suportar por mais tempo o cheiro, libertei-me do aperto da sua mão e recuei para a neve que caía.
Ela seguiu-me para fora da cabana e deu um puxão numa aba da minha capa para se cobrir da saraiva. Caminhou comigo passando pela comporta quebrada e estava estranhamente alegre.
Toda a gente pensa que estamos a perder, Derfel disse ela todos pensam que estes cristãos imundos estão a apoderar-se da região. Mas não estão. O Caldeirão será revelado em breve, Merlim regressará e o poder libertar-se-á.
Detive-me no portão e olhei fixamente o grupo de cristãos que estava sempre reunido no sopé do Tor para rezar as suas extravagantes orações de braços abertos. Sansum e Morgana combinaram que eles aí ficariam para que as suas constantes orações pudessem servir para escorraçar os pagãos para fora do cume do Tor onde havia vestígios de fogueiras. Nimue olhou para baixo, para o grupo, fixamente e com desdém. Alguns dos cristãos reconheceram-na e fizeram o sinal da cruz.
Achas que o cristianismo está a ganhar, Derfel? perguntou-me ela.
Receio que sim disse eu, ouvindo os uivos de raiva vindos do sopé do Tor. Lembrei-me dos veneradores delirantes em Isca e interroguei-me por quanto tempo o horror desse fanatismo podia ser mantido sob controlo. Receio bem que sim disse eu tristemente.
O Cristianismo não está a ganhar disse Nimue desdenhosamente. Vê. Curvou-se de súbito, libertando-se da minha capa, e levantou o vestido imundo para expor a sua deplorável nudez aos cristãos, e depois obscenamente impeliu com força as ancas para eles e lançou um grito choroso que se perdeu no vento assim que largou o vestido. Alguns dos cristãos fizeram o sinal da cruz, mas a maioria, notei, fez instintivamente o sinal pagão contra o mal com as suas mãos direitas e depois cuspiram para o chão. Vês? disse ela com um sorriso eles ainda acreditam nos antigos Deuses. Ainda acreditam. E em breve, Derfel, terão provas. Conta isto a Merlim.
De facto contei a Merlim. Permaneci de pé diante dele e informei-o de que dois reis viriam a Cadarn, mas um homem que não era rei aí governaria, que as mortes ocorreriam no casamento, os perdidos chegariam à luz e uma espada assentaria no pescoço de uma criança.
Diz isso de novo, Derfel disse ele, olhando-me de soslaio e afagando um velho gato malhado com riscas pretas estendido ao comprido no seu colo.
Repeti tudo solenemente, depois acrescentei a promessa de Nimue de que o Caldeirão em breve seria desvendado e que o seu horror estava eminente. Ele riu, abanou a cabeça, depois voltou a rir. Acalmou o gato para que ficasse no seu colo.
E dizes tu que ela tem a cabeça de um druida? perguntou.
A cabeça de Balise, Senhor.
Coçou o gato por baixo do queixo.
A cabeça de Balise foi queimada, Derfel, há anos. Foi queimada, depois esmagada e reduzida a pó. Reduzida a nada. Eu sei, porque fui eu quem o fez. Cerrou os olhos e adormeceu.
No Verão seguinte, na véspera de lua cheia, quando as árvores que cresciam junto ao sopé de Caer Cadarn estavam carregadas de folhas, numa manhã de Sol brilhante que iluminava as vedações decoradas com briónias, bons-dias e salgueirinha, aclamámos Mordred nosso Rei no antigo cume de Caer.
A antiga fortaleza de Caer Cadarn mantinha-se deserta durante a maior parte do ano, mas continuava a ser a nossa colina da realeza, o solene lugar de rituais no coração real de Dumnónia. As muralhas do forte foram mantidas robustas, mas o interior era um sítio triste com cabanas apodrecidas que se inclinavam servilmente em torno do grande mas lúgubre salão de festins, que se transformara em abrigo para pássaros, morcegos e ratos. O salão ocupava a parte mais baixa do vasto cume de Caer Cadarn, enquanto na zona mais alta, para oeste, se erguia um círculo de pedras cobertas de líquen, circundando o grande bloco de pedra cinzenta semelhante a lousa, a antiga pedra da realeza de Dumnónia. Neste local, o grande Deus Bei havia sagrado rei Beli Mawr, o seu filho semideus e semi-humano, como o primeiro dos nossos reis e desde então, mesmo nos anos em que os romanos governaram, todos os nossos reis aqui vieram para ser aclamados. Mordred nascera nesta colina e também aqui fora aclamado quando bebé, apesar de essa cerimónia haver sido um mero sinal do seu estatuto real não lhe conferindo quaisquer direitos. Mas agora ele estava no início da sua idade viril e desse dia em diante seria rei, mais do que apenas de nome. Esta segunda aclamação desobrigou o juramento de Artur e concedeu a Mordred todo o poder de Uther.
As multidões cedo começaram a reunir-se. O salão de festins fora varrido, depois pendurados estandartes e decorado com galhos verdes. Tonéis de hidromel e púcaros de cerveja haviam sido colocados na relva, enquanto fumo emergia em grossos rolos das grandes fogueiras onde bois, porcos e veados eram assados para o festim. Homens tatuados de tribos de Isca misturavam-se com os cidadãos elegantes de Durnovária e Corinium vestidos com togas, e ambos ouviram os bardos de branco que cantavam canções especialmente compostas a enaltecer o carácter de Mordred e a predizer as glórias do seu reino. Os bardos nunca eram de confiança.
Eu era o paladino de Mordred e por isso, sozinho entre os lordes na colina, envergava todos os meus ornamentos de guerra. Já não eram as vestes coçadas e mal remendadas que eu vestira na batalha fora de Londres, pois agora eu possuía uma nova e dispendiosa armadura, que reflectia o meu elevado estatuto. Tinha um casaco de fina malha romana enfeitado com argolas de ouro na gola, bainha e mangas. Calçava botas altas até ao joelho onde cintilavam barras de bronze, luvas compridas até aos cotovelos delimitadas por couraças de ferro que me protegiam os antebraços e os dedos, e um belo elmo com embutidos de prata com uma aba em cota de malha que me protegia a parte de trás do pescoço. O elmo tinha umas protecções que baloiçavam sobre gonzos nas partes laterais do meu rosto e um remate em ouro do qual pendia a minha cauda de lobo recém-escovada. Envergava uma capa verde, com a Hywelbane na minha anca e um escudo que, em homenagem a esse dia, tolerava o dragão vermelho de Mordred em vez da minha própria estrela branca.
Culhwuch viera de Isca. Abraçou-me.
Isto é uma farsa, Derfel resmungou.
Um belo e feliz dia, Senhor Culhwuch disse, olhando-o de frente Não sorriu, e em vez disso olhou carrancudo para a multidão expectante
Cristãos e cuspiu.
Parecem ser muitos.
Merlim está cá?
Sentia-se cansado disse eu.
Queres então dizer que teve bastante juízo para cá não vir disse Culhwuch. Então quem faz hoje as honras?
O bispo Sansum.
Culhwuch cuspiu. A sua barba ficara mais grisalha nos poucos meses que haviam passado e ele movia-se com rigidez, embora ainda fosse um homem muito robusto.
Já falas com Artur? perguntou.
Falamos quando é necessário respondi evasivo.
Ele quer voltar a ser teu amigo disse-me Culhwuch.
Ele lida com os amigos de forma muito estranha disse eu severamente.
Ele precisa de amigos.
Então tem sorte em ter-te repliquei, e virei-me assim que um lur soou, interrompendo a nossa conversa. Lanceiros abriam uma passagem por entre a multidão, usando os escudos e as hastes das lanças para empurrar as pessoas devagar para trás, e no corredor de lanceiros avançava lentamente em direcção ao círculo de pedras uma procissão de lordes, magistrados e sacerdotes. Tomei o meu lugar na procissão ao lado de Ceinwyn e das minhas filhas.
Nesse dia, a reunião era mais um tributo a Artur do que a Mordred, pois todos os seus aliados se encontravam presentes. Cuneglas viera de Powys, trazendo uma dúzia de lordes e o seu herdeiro, o príncipe Perddel que era agora um bonito rapaz com a cara redonda e séria de seu pai. Agrícola, agora velho e de articulações rígidas, acompanhava o rei Meurig, ambos de toga
Tewdric, o pai de Meurig ainda vivia, mas o velho rei desistira do trono, rapara o cabelo para que ficasse igual à tonsura de um sacerdote e retirou-se para um mosteiro no vale de Wye onde pacientemente criou uma biblioteca, reunindo textos cristãos e permitindo que o seu filho pedante governasse Gwent em seu lugar. Byrthig, que sucedera a seu pai como rei de Gwynedd, e que agora tinha apenas dois dentes, manteve-se de pé agitado, achando que os rituais eram algo inevitavelmente irritante que deviam terminar antes de ele poder regressar aos tonéis de hidromel já servidos. Oengus Mac Airem, o pai de Isolda e rei de Demétia, viera com um grupo dos seus temíveis Escudos Negros, enquanto Lancelote, rei de Belgae, era escoltado por uma dúzia de homens gigantes da sua Guarda Saxónica e pelos sinistros pares de gémeos, Dinas e Lavaine e Amhar e Loholt.
Reparei que Artur abraçou Oengus que, feliz, retribuiu o gesto. Não havia má vontade, conforme parecia, apesar da horrível morte de Isolda. Artur usava uma capa castanha, talvez por não querer que uma das suas capas brancas ofuscasse o herói do dia. Guinevere estava maravilhosa num vestido de cor castanha-avermelhada ornamentado com prata e bordado com o seu símbolo do veado coroado com a lua. Sagramor veio numa toga negra e trouxera Malla, a sua mulher saxã, que estava grávida, e os seus dois filhos varões. Não veio ninguém de Kernow.
Os estandartes dos reis, chefes de tribos e lordes pendiam das muralhas onde um círculo de lanceiros, todos equipados com escudos com dragões pintados de fresco, estavam de sentinela. Soou de novo um lur com o seu som pesaroso espalhando-se pelo ar quente enquanto outros vinte lanceiros escoltavam Mordred em direcção ao círculo de pedras onde, quinze anos antes, o aclamáramos pela primeira vez. Essa primeira cerimónia ocorrera no Inverno e o bebé Mordred fora embrulhado em peles e transportado para as pedras numa alvoroçada guerra de escudos. Morgana vigiara essa primeira aclamação, marcada pelo sacrifício de um saxão cativo, mas desta vez a cerimónia seria um rito inteiramente cristão. Os cristãos, pensei de modo severo, independentemente do que Nimue possa pensar, ganharam. Ali não estavam presentes druidas, à excepção de Dinas e Lavaine, mas esses não tinham qualquer lugar de destaque. Merlim dormia no jardim de Lindinis, Nimue estava no Tor e nenhum cativo seria trucidado para se descobrir os augúrios relativos ao reino do rei recém-aclamado. Na primeira aclamação de Mordred havíamos morto um prisioneiro saxão, trespassando-o acima do abdómen para que a sua morte fosse lenta e agonizante, e Morgana observara cada cambaleio doloroso e todas as golfadas de sangue como sinais do futuro. Tais augúrios, recordo-me, não haviam sido bons, apesar de terem prometido a Mordred um longo reinado. Tentei recordar-me do nome desse pobre saxão, mas tudo o que me ocorria era o seu rosto aterrado e o facto de eu ter gostado dele, e então de repente o seu nome surgiu vindo com o recuar dos anos. Wlenca! Pobre e trémulo Wlenca. Morgana insistira na sua morte, mas agora, com um crucifixo a baloiçar-lhe à frente da máscara, estava aqui apenas como mulher de Sansum e não tomaria parte nos ritos.
Uma exclamação em surdina saudou a chegada de Mordred. Os cristãos aplaudiram, enquanto nós pagãos apenas tocámos as nossas mãos respeitosamente e depois ficámos em silêncio. O rei estava todo vestido de preto: camisa preta, calças axadrezadas pretas, capa preta e um par de botas pretas, uma das quais fora monstruosamente confeccionada para revestir o seu pé direito defeituoso. Um crucifixo em ouro pendia do seu pescoço e pareceu-me ver no seu rosto redondo e feio um sorriso dengoso, ou talvez essa careta apenas traísse o seu nervosismo. Mantivera a barba, mas era uma coisa fina que pouco valorizava a sua cara bolbosa metida nos tufos salientes de cabelo. Caminhou sozinho para o interior do círculo real e tomou o seu lugar junto à pedra real.
Sansum, magnífico de branco e dourado, apressou-se a colocar-se ao lado do rei. O bispo ergueu os braços e, sem qualquer preâmbulo, começou a rezar em voz alta. A sua voz, sempre poderosa, retumbou por entre a imensa multidão que se comprimia por detrás dos lordes, chegando aos imóveis lanceiros que se encontravam em cima das plataformas das muralhas de combate.
Senhor Deus! gritou. Concedei a Vossa bênção a este Vosso filho Mordred, a este rei abençoado, a esta luz da Bretanha, a este monarca que comandará o Vosso reino de Dumnónia na sua nova e abençoada era. Confesso que parafraseio o sacerdote, pois na verdade pouca atenção prestei quando Sansum pregou ao seu Deus. Ele era bom em tais discursos públicos, mas eram todos muito semelhantes; sempre muito longos, sempre cheios de enaltecimentos do cristianismo e sempre repletos de sarcasmos em relação ao paganismo, por isso em vez de ouvir, eu observava a multidão para ver quem no meio dela estendia os braços e cerrava os olhos. A maioria fazia-o. Artur, sempre pronto a mostrar respeito para com qualquer religião, estava apenas de pé com a cabeça baixa e segurava a mão do seu filho, enquanto, do outro lado de Gwydre, Guinevere contemplava o céu com um sorriso secreto no seu rosto belo. Amhar e Loholt, filhos de Artur e Aillean, rezavam com os cristãos, enquanto Dinas e Lavaine apenas se mantinham de pé, com os braços cruzados por cima das suas vestes brancas, e olhavam fixamente para Ceinwyn que, à semelhança daquele dia em que fugira dos seus esponsais, não usava nem ouro nem prata. O seu cabelo ainda mantinha um esplendor tão belo e pálido, e ela continuava a ser para mim a criatura mais adorada que alguma vez caminhara sobre a terra. O seu irmão, o rei Cuneglas, também estava ao seu lado, de pé, e ao deparar-se com o meu olhar durante um dos altos voos de fantasia de Sansum dirigiu-me um sorriso forçado. Mordred, de braços abertos em oração, observou-nos a todos com um sorriso cabotino.
Depois de terminada a oração, o bispo Sansum tomou o braço do rei e conduziu-o para junto de Artur que, na qualidade de guardião do reino, apresentaria agora o novo governante ao seu povo. Artur sorriu a Mordred para o encorajar, depois conduziu-o caminhando pela parte exterior do círculo de pedras e, enquanto Mordred passava, os que não eram reis curvavam-se sobre um joelho. Eu, como seu paladino, caminhei atrás dele com uma espada desembainhada. Caminhámos de frente para o Sol, a única altura em que um círculo podia alguma vez ser percorrido deste modo, para mostrar que o nosso novo rei descendia de Beli Mawr e podia assim desafiar a ordem natural de todas as coisas vivas, embora o bispo Sansum declarasse, evidentemente, que a caminhada contra o Sol provava a morte das superstições pagãs. Vi que Culhwuch conseguira esconder-se durante a caminhada em círculo para não ter de se ajoelhar.
Depois de completar dois círculos inteiros de pedras, Artur conduziu Mordred à pedra real e ajudou-o a subir para que o rei aí ficasse sozinho. Dian, a minha filha mais nova, deu então uns passos incertos e vacilantes para diante com uma grinalda de centáureas azuis no cabelo e colocou um pão grande junto aos pés desproporcionados de Mordred simbolizando o seu dever de alimentar o seu povo. As mulheres murmuraram quando a viram, porque Dian, tal como as suas irmãs, herdara a beleza descuidada de sua mãe. Pousou o pão, depois olhou à sua volta aguardando um sinal sobre o que havia de fazer em seguida e, como se nada lhe fosse revelado, olhou majestosamente para cima para o rosto de Mordred e imediatamente se desfez em lágrimas. As mulheres suspiraram, contentes, ao mesmo tempo que a criança corria para a mãe a chorar e Ceinwyn a chegava a si e lhe secava as lágrimas. Gwydre, o filho de Artur, levou de seguida um chicote de couro que colocou aos pés do rei como símbolo do dever de Mordred conceder justiça à região, e depois eu levei a nova espada real, forjada em Gwent e com um punho de couro preto envolto numa tela de ouro, e estendi a espada para a mão direita de Mordred.
Meu Rei e Senhor disse eu, olhando-o nos olhos, isto é pelo vosso dever de protegerdes o vosso povo. O sorriso dengoso de Mordred desaparecera e fitava-me com uma dignidade fria que me fez desejar que Artur tivesse razão e que a solenidade deste ritual concedesse, de facto, a Mordred o poder de ser um bom rei.
Depois, um a um, presenteámo-lo com as nossas oferendas. Eu dei-lhe um belo elmo, ornado a ouro e com um dragão vermelho esmaltado com gravações a fogo na cabeça. Artur deu-lhe um casaco com incrustações, uma lança, e uma caixa de marfim cheia de moedas de ouro. Cuneglas ofereceu-lhe lingotes de ouro das minas de Powys. Lancelote presenteou-o com uma cruz maciça de ouro e um pequeno espelho em electrum emoldurado a ouro. Oengus Mac Airem deitou aos seus pés duas grossas peles de urso, enquanto Sagramor colocou uma imagem saxónica em ouro da cabeça de um touro na pira. Sansum presenteou o rei com um pedaço da cruz onde, afirmou bem alto, Cristo fora crucificado. O bocado de madeira escura estava fechado num frasco de vidro romano que fora selado a ouro. Só Culhwuch nada ofereceu. De facto, depois das oferendas terem sido entregues e de os lordes se terem colocado em linha para se ajoelharem diante do rei e lhe prestarem os seus juramentos de lealdade, já não se via Culhwuch em parte alguma. Eu fui o segundo homem a prestar juramento, seguindo Artur até à pedra real onde me ajoelhei no lado contrário ao grande monte de ouro reluzente e pus os meus lábios na extremidade da nova espada de Mordred e jurei pela minha vida que o serviria lealmente. Fora um momento solene, pois tratara-se do juramento real, o juramento que regia todos os outros.
Houve um acontecimento novo nessa aclamação, um ritual que Artur imaginara como uma forma de continuar a paz que ele tão zelosamente construíra e mantivera ao longo dos anos. A nova cerimónia era uma extensão da sua Irmandade da Bretanha, pois convencera os reis da Bretanha pelo menos aqueles que estavam presentes a beijarem Mordred e a prestar juramentos de nunca lutarem uns contra os outros. Mordred, Meurig, Cuneglas, Byrthig, Oengus e Lancelote todos se abraçaram, juntaram as suas espadas usadas no juramento e juraram manter a paz uns com os outros. Artur irradiou alegria e Oengus Mac Airem, um tratante se é que alguma vez existiu algum, lançou-me um pestanejo prolongado. Vinha o tempo das colheitas e eu sabia que os seus lanceiros desferiam ataques rápidos sobre os celeiros de Powys, independentemente dos juramentos que ele tivesse prestado.
Depois do juramento real ter sido prestado, representei o último acto da aclamação. Primeiro dei a Mordred a minha mão enluvada e ajudei-o a descer da pedra e então, depois de o ter conduzido à pedra mais a norte do círculo exterior, peguei na sua espada real e coloquei o lado da sua lâmina descoberta em cima da pedra real. Aí ficou, reluzente, uma espada sobre uma pedra, o verdadeiro sinal de um rei, e depois cumpri o dever do paladino do rei que consistia em andar em largas passadas junto ao círculo e cuspir aos espectadores e desafiando todos quantos ouviam a atreverem-se a negar o direito de Mordred Uther ser o rei desta região. Pisquei o olho às minhas filhas ao passar, assegurando-me que o meu cuspo aterrara nas vestes luzidias de Sansum, e certificando-me igualmente que não havia aterrado no vestido bordado de Guinevere.
Declaro que Mordred Uther seja rei! gritei de novo e ainda outra vez. E se algum homem o negar, que me defronte aqui e agora. Caminhei devagar com a Hywelbane desembainhada e gritei o meu desafio bem alto. Declaro que Mordred Uther seja o rei, e se algum homem o negar, deixai-o que me defronte aqui e agora.
Quase completara o círculo quando ouvi a lâmina roçar na bainha enquanto era puxada.
Nego-o! Gritou uma voz e o grito foi seguido por um sobressalto de horror da multidão. Ceinwyn empalideceu, e as minhas filhas, que já estavam assustadas por me ver com as irreconhecíveis vestes de ferro, aço, couro e pêlo de lobo, esconderam os rostos nas suas camisas de linho.
Virei-me devagar e vi que Culhwuch voltara para o círculo e me encarava agora com a sua grande espada de batalha desembainhada.
Não, pedi-lhe, por favor.
Culhwuch, de expressão severa, deu um passo largo para o centro do círculo e arrancou a espada do rei com punho de ouro de cima da pedra.
Nego Mordred Uther disse Culhwuch cerimoniosamente, depois atirou a espada real para a relva.
Matai-o gritou Mordred do seu lugar ao lado de Artur. Cumpri o vosso dever, Lorde Derfel!
Nego a sua adequação para governar! gritou Culhwuch para a assembleia. Uma aragem ergueu os estandartes pendurados nas paredes e fez mover o cabelo dourado de Ceinwyn.
Ordeno-te que o mates! gritou Mordred exaltado.
Caminhei para dentro do círculo para encarar Culhwuch. Agora o meu dever era lutar com ele, e se ele me matasse então seria escolhido outro paladino do rei e assim continuaria a estúpida questão até Culhwuch, batido, ensanguentado e em convulsão exalar o seu último suspiro no solo de Caer Cadarn, ou, o que era mais provável, eclodir no cume uma batalha em larga escala que terminasse com a facção triunfante de Culhwuch ou de Mordred. Tirei o elmo da cabeça, afastei o cabelo da frente dos olhos e vacilei-o por cima da parte superior da minha bainha. Depois, ainda com a Hywelbane na mão, abracei Culhwuch.
Não faças isto sussurrei ao seu ouvido. Não posso matar-te, meu amigo, por isso só te restará matar-me.
Ele é um sapo miserável, um verme, não um rei murmurou.
Por favor disse eu. Eu não posso matar-te. Sabes disso. Apertou-me com força.
Faz as pazes com Artur, meu amigo sussurrou-me ele, depois afastou-se com um passo e bateu com força a sua espada na bainha. Levantou a espada de Mordred da relva, lançou ao rei um olhar irritado, depois voltou a colocar a espada sobre a pedra. Dou-me por vencido gritou ele para que todo o cume o pudesse ouvir, depois dirigiu-se a Cuneglas e ajoelhou-se aos seus pés. Aceitais o meu juramento, meu Rei e Senhor?
Fora um momento embaraçoso, porque se o rei de Powys aceitasse a lealdade de Culhwuch então a primeira actuação de Powys deste recente reino de Dumnónia seria acolher um inimigo de Mordred, mas Cuneglas não hesitou. Empurrou o punho da sua espada para diante para que Culhwuch o beijasse.
De boa vontade, Lorde Culhwuch disse ele de boa vontade. Culhwuch beijou a espada de Cuneglas, depois ergueu-se e caminhou para o portão oeste. Os seus lanceiros seguiram-no e, deste modo, com a saída de Culhwuch, Mordred teria por fim o poder do reino inabalável. Fez-se silêncio, depois Sansum começou a dar vivas ao rei e os cristãos imitaram-no e desta forma foi aclamado o seu novo governante. Os homens reuniram-se em volta do rei, congratulando-o, e eu vi que Artur fora deixado sozinho. Olhou-me e sorriu, mas eu virei-me para outro lado. Embainhei a Hywelbane, depois inclinei-me para as minhas filhas ainda assustadas e disse-lhes que nada havia a recear. Dei a Morwenna o meu elmo para que o segurasse, e mostrei-lhe como as protecções laterais balançavam para trás e para diante nas suas dobradiças.
Não as partas! adverti-a.
Pobre lobo disse Seren, acariciando a cauda do lobo.
Matou muitos cordeiros.
Foi por isso que vocês mataram o lobo?
Claro.
Lorde Derfel! Chamou de repente a voz de Mordred, e eu endireitei-me e virei-me para ver que o rei afastara os seus admiradores e, coxeando, atravessava o círculo real na minha direcção.
Fui ao seu encontro, depois fiz uma vénia com a cabeça.
Meu Rei e Senhor.
Os cristãos haviam-se reunido atrás de Mordred. Eram agora os senhores, e a sua vitória era evidente nos seus rostos.
Haveis feito um juramento, Lorde Derfel disse Mordred de me obedecer.
Fi-lo, meu Rei e Senhor.
Mas Culhwuch ainda vive disse ele numa voz embaraçada. Não é assim?
Vive, meu Rei e Senhor disse eu. Mordred sorriu.
Um juramento quebrado, Lorde Derfel, merece castigo. Não foi o que sempre me ensinaste?
Sim, meu Rei e Senhor.
E o juramento, Lorde Derfel, foi prestado sobre a tua vida, não foi?
Sim, meu Rei e Senhor. Cofiou a barba fina.
Mas as tuas filhas são lindas, Derfel, por isso lamentaria perder-te de Dumnónia. Perdoo-te por Culhwuch ainda viver.
Obrigado, meu Rei e Senhor disse eu, reprimindo a tentação de lhe bater.
Mas um juramento quebrado ainda merece castigo disse ele excitado.
Sim, meu Rei e Senhor concordei. Assim é.
Fez uma pequena pausa, depois bateu-me com força na cara com o malho de couro da justiça. Riu, e estava tão deliciado com a reacção inesperada do meu rosto que me bateu com o malho uma segunda vez.
Castigo cumprido, Lorde Derfel disse ele, depois virou-se e afastou-se. Os seus apoiantes riram-se e aplaudiram.
Não ficámos para o festim, nem para os jogos de luta, nem para os fictícios assaltos de esgrima ou as exibições de malabarismo, nem tão-pouco para ver dançar o urso domesticado e o concurso dos bardos. Caminhámos, em família, de regresso a Lindinis junto ao ribeiro onde os salgueiros cinzentos e as lisimáquias púrpuras floriam. Fomos a pé para casa.
Cuneglas seguiu-nos uma hora depois. Planeara ficar connosco durante uma semana, depois regressaria a Powys.
Regressa comigo disse ele.
Prestei juramento a Mordred, meu Rei e Senhor.
Oh, Derfel, Derfel! Colocou o braço em volta do meu pescoço e subiu para o pátio exterior comigo. Meu caro Derfel, és tão mau como Artur! Julgas que a Mordred lhe interessa que mantenhas ou não o juramento?
Tenho esperança que ele me não queira como inimigo.
Quem sabe o que ele quer? perguntou Cuneglas. Raparigas, provavelmente, e cavalos rápidos e veados em retirada e hidromel forte. Anda para casa, Derfel! Culhwuch estará lá.
Terei saudades dele, Senhor disse eu. Enquanto regressávamos de Caer Cadarn fizera votos para que Culhwuch nos aguardasse em Lindinis, mas infelizmente ele não se atrevera a desperdiçar tempo algum e cavalgava já para norte para escapar aos lanceiros enviados para o encontrar antes que atravessasse a fronteira.
Cuneglas abandonou a sua tentativa para me convencer a ir para o Norte.
O que estava Oengus, aquele tratante, a fazer ali? perguntou-me impertinente. E também a fazer aquela promessa de manter a paz!
Ele sabe, meu Rei e Senhor disse eu, que se perder a amizade de Artur as vossas lanças invadirão a sua região.
Ele tem razão disse Cuneglas ameaçador. Talvez eu conceda essa tarefa a Culhwuch. Terá agora Artur algum poder?
Isso depende de Mordred.
Admitamos que Mordred não é completamente tolo. Não consigo conceber Dumnónia sem Artur. Virou-se quando um grito vindo do portão anunciou mais visitantes. Eu tinha quase a certeza que iria ver os escudos de dragão e um grupo de homens de Mordred à procura de Culhwuch, mas afinal era Artur e Oengus Mac Airem quem chegavam com uma vintena de lanceiros. Artur hesitou à entrada do portão. Sou bem-vindo? gritou-me ele.
Claro, Senhor retorqui, embora sem ser de forma acolhedora. As minhas filhas espiavam-no por detrás de uma janela e uns instantes depois correram, gritando, a recebê-lo. Cuneglas juntou-se-lhes, ignorando claramente o rei Oengus Mac Airem que veio para junto de mim. Fiz uma vénia, mas Oengus puxou-me na vertical e enlaçou-me nos seus braços. A sua gola de pêlo tresandava a suor e a gordura retardada. Sorriu-me ironicamente.
Artur disse-me que tu já não lutas numa guerra decente há dez anos disse ele.
Deve haver esse tempo, Senhor.
Perderás a prática, Derfel. No primeiro combate bem travado de um rapaz e alguma escorregadela arrancar-te-ão as entranhas para alimentar os seus cães. Como estás?
Mais velho do que antes, Senhor. E vós?
Continuo vivo disse ele, depois lançou um rápido olhar para trás para Cuneglas. Presumo que o rei de Powys não queira cumprimentar-me?
Ele acha, meu Rei e Senhor, que os vossos lanceiros estão demasiado ocupados na sua fronteira.
Oengus riu.
Tenho de os manter ocupados, Derfel, sabes como é. Os lanceiros de Idle causam problemas. E além disso, hoje em dia tenho demasiados desses canalhas. A Irlanda está a tornar-se cristã! cuspiu. Um bretão qualquer intrometido chamado Padraig transformou-os em maricas. Vocês nunca se atreveram a conquistar-nos com as vossas lanças, por isso enviaram esse monte de merda de foca para nos enfraquecer, e qualquer irlandês com coragem suficiente virá para os reinos irlandeses na Bretanha para fugir dos seus cristãos. Pregou-lhes com uma folha de trevo! Imaginam vocês isto? Conquistar a Irlanda com uma folha de trevo? Não admira que todos os guerreiros decentes venham ter comigo, mas o que posso fazer com eles?
Manda-os matar Padraig? sugeri.
Ele já está morto, Derfel, mas os seus seguidores estão todos demasiado vivos. Oengus atraíra-me para um canto do pátio onde parou e levantou os olhos para o meu rosto. Ouvi dizer que tentaste proteger a minha filha.
Assim foi, Senhor disse eu. Vi que Ceinwyn chegara do palácio e beijava Artur. Seguravam-se um ao outro enquanto falavam e Ceinwyn olhava de soslaio recriminadora na minha direcção. Voltei a virar-me para Oengus.
Desembainhei uma espada por ela, meu Rei e Senhor.
Fizeste bem, Derfel disse ele descuidadamente fizeste bem, mas não tem importância. Tenho várias filhas. Nem tenho a certeza se me consigo lembrar de qual delas era Isolda. Uma coisinha magrizela, não era?
Uma rapariga linda, meu Rei e Senhor. Ele riu:
Quando se é velho, qualquer coisa jovem com mamas é bela. Tenho uma beleza na descendência. Argante, chama-se ela, e quebrará alguns corações antes da idade adulta. O teu novo rei procurará uma noiva, não é?
Creio que sim.
Argante servirá para ele disse Oengus. Não estava a ser gentil para Mordred ao sugerir a sua linda filha para Rainha de Dumnónia, mas antes a assegurar-se que Dumnónia continuasse a proteger Demétia dos homens de Powys. Talvez eu traga cá Argante numa visita disse ele. Depois abandonou o assunto desse possível casamento e desferiu um violento murro no meu peito. Ouve, meu amigo disse ele energicamente não merece a pena zangares-te com Artur por causa de Isolda.
Foi por isso que ele vos trouxe até aqui, Senhor? perguntei com suspeição.
Claro que foi, seu idiota! disse Oengus feliz. E porque eu não suporto todos aqueles cristãos em Caer. Faz as pazes, Derfel. A Bretanha não é assim tão grande para que os homens decentes possam começar a cuspir-se uns aos outros. Ouvi dizer que Merlin vive aqui?
Encontrá-lo-ás por ali disse eu apontando na direcção de um arco que conduzia a um jardim onde as rosas de Ceinwyn desabrochavam em flor o que resta dele.
Vou espevitar aquele lorpa. Talvez ele me consiga dizer o que tem uma folha de trevo de tão especial. E preciso de um encantamento para me ajudar a fazer mais filhas. Riu e afastou-se. Estou a ficar velho, Derfel, estou a ficar velho!
Artur deixou as minhas três filhas à guarda de Ceinwyn e do seu tio Cuneglas, depois caminhou na minha direcção. Hesitei, depois gesticulei através do portão e caminhei à sua frente para o prado onde aguardei fitando, por cima das árvores que se interpunham, as muralhas de Caer Cadarn com os estandartes pendurados.
Ele parou atrás de mim.
Foi na primeira aclamação de Mordred disse ele suavemente que conhecemos Tristão. Lembras-te?
Não me virei.
Sim, Senhor.
Já não sou teu Senhor, Derfel disse ele. O nosso juramento para com Uther foi cumprido, está terminado. Eu não sou teu senhor, mas serei teu amigo. Hesitou. E em relação ao que aconteceu continuoo, lamento.
Continuei sem me virar. Não por orgulho, mas porque tinha lágrimas nos olhos.
Também lamento disse eu.
Perdoas-me? perguntou com humildade. Voltamos a ser amigos? Olhei fixamente para Caer e pensei em todas as coisas que eu fizera que necessitavam de perdão. Pensei nos corpos na charneca. Nesse tempo eu era um jovem lanceiro, mas a juventude não desculpava a chacina. Não me cabia a mim, pensei, perdoar Artur pelo que fizera. Ele tinha de o fazer por si próprio.
Seremos amigos disse eu até à morte. E então virei-me. E abraçámo-nos. Cumprira-se o nosso juramento a Uther. E Mordred era rei
Os Mistérios de Isis
Isolda,
era bela? pergunta-me Igraine. Por instantes reflecti na pergunta.
Era jovem disse eu por fim e como dizia seu pai... Li o que seu pai disse interrompeu-me Igraine com brevidade. Quando vem a Dinnewrac, Igraine senta-se sempre e lê na íntegra os pergaminhos prontos antes de se sentar no peitoril da janela e falar comigo. Hoje está pendurada nessa janela uma cortina de couro para tentar impedir que o frio entre neste aposento mal iluminado com velas de pavio de medula de junco sobre a minha secretária e cheio de fumo, porque o vento vem de Norte e o fumo da lareira não encontra a saída pela chaminé.
Foi há muito disse eu com lassidão e só a vi por um dia e duas noites. Recordo-a como sendo bela, mas suponho que achamos sempre os mortos bonitos quando desaparecem novos.
Todas as canções dizem que ela era bela disse Igraine melancolicamente.
Eu paguei a bardos por essas canções disse eu. Tal como paguei a homens para que levassem as cinzas de Tristão de regresso a Kernow. "Era justo", pensara eu, que depois de morto, Tristão fosse para a sua própria região, e eu misturara os seus ossos com os de Isolda e as suas cinzas com as dela, e na verdade com uma razoável quantidade de vulgares cinzas de madeira e encerrei-as num frasco que encontráramos na casa senhorial onde haviam partilhado o seu sonho de amor impossível. Na altura eu era abastado, um grande senhor, dono de escravos, criados e lanceiros, suficientemente rico para comprar uma dúzia de canções sobre Tristão e Isolda, ainda hoje entoadas em todos os salões de banquetes. Também me certifico de que as canções culpem Artur pelas suas mortes.
Mas porque fez ele isso? perguntou Igraine. Esfreguei a face com a mão.
Artur adorava a ordem expliquei Não creio que alguma vez ele tenha acreditado nos Deuses. Bom, acreditava que existiam, não era tolo, mas não acreditava que ainda se importassem connosco. Lembro-me de, certa vez, ele se rir e dizer que era demasiado arrogante da nossa parte pensarmos que os Deuses nada de melhor tinham para fazer do que preocuparem-se connosco. Perdemos minutos de sono por causa do rato que está no telhado de colmo? perguntou-me. Então porque haviam os Deuses de se importar connosco? Desta forma, tudo o que lhe restava, à parte os Deuses, era a ordem, e a única coisa que mantinha a ordem era a lei, e a única coisa que obrigava os poderosos a obedecer à lei eram os seus juramentos. Era, na verdade, bastante simples. Encolhi os ombros. Claro que ele tinha razão; quase sempre a tinha.
Devia tê-los deixado viver insistiu Igraine.
Ele obedeceu à lei afirmei, sombriamente. Muitas vezes me arrependi de ter permitido que os bardos culpassem Artur. Ele perdoou-me, todavia.
E Isolda foi queimada viva? Igraine estremeceu. E Artur deixou simplesmente que isso acontecesse?
Ele podia ser muito duro disse eu, e tinha de o ser, para que todos nós, sabe Deus, pudéssemos ser brandos.
Ele devia tê-los poupado insistiu Igraine.
E se o tivesse feito não teria havido canções nem histórias respondi. Teriam envelhecido, ter-se-iam tornado gordos, quezilentos e teriam morrido. Ou então, Tristão teria regressado a casa em Kernow quando o seu pai morresse e desposado outras mulheres. Quem sabe?
Quanto tempo viveu Mark? perguntou-me Igraine.
Apenas mais um ano disse eu. Morreu de estrangúria.
De quê? Sorri.
Uma doença malcheirosa, Senhora. As mulheres, creio, não estão sujeitas a ela. Então, um sobrinho, de cujo nome me não recordo, tornou-se rei.
Igraine fez uma careta.
Mas lembrai-vos de Isolda saindo do mar, a correr disse ela acusadora, porque o seu vestido estava molhado.
Sorri.
Como se fosse ontem, Senhora.
O mar da Galileia disse Igraine com muita vivacidade, pois São Tudwal entrara de repente no nosso aposento. Tudwal tem agora dez ou onze anos de idade, um rapaz franzino de cabelo preto e um rosto que me recorda o de Cerdic. Uma cara de ratazana, partilhando ele tanto a sua cela como a sua autoridade. Quão afortunados nós somos por termos dois santos na nossa comunidade.
O santo deseja que lhe decifreis estes pergaminhos pediu Tudwal, colocando-os sobre a minha mesa. Ignorou Igraine. Segundo parece, os santos podem ser indelicados para com as rainhas.
O que são? perguntei-lhe.
Um mercador deseja que lhos compremos disse Tudwal. Clama serem salmos, mas os olhos do santo estão demasiado toldados para os ler.
Certamente disse eu. De facto, a verdade é que Sansum não sabe ler e Tudwal é demasiado preguiçoso para aprender, embora todos tenhamos tentado ensiná-lo e agora todos nós simulemos que consegue. Desenrolei com cuidado o pergaminho já antigo, quebradiço e frágil. O idioma era Latim, uma língua que mal percebo, mas reparei na palavra Christus. Não são salmos disse eu, todavia são cristãos. Suponho que sejam fragmentos de Evangelhos.
O mercador deseja quatro moedas de ouro.
Duas moedas disse eu, apesar de muito não cuidar que os comprássemos ou não. Deixei os pergaminhos encaracolar-se. O homem disse onde os arranjou? perguntei.
Tudwal encolheu os ombros.
Aos saxões.
Deveríamos na verdade conservá-los afirmei respeitosamente, devolvendo-lhos. O seu lugar deveria ser a cela dos tesouros. Onde, pensei, a Hywelbane permanecia com todos os outros pequenos tesouros que eu trouxera da minha longa vida. Tudo excepto o brochezinho em ouro de Ceinwyn que mantenho escondido do santo mais velho. Agradeci humildemente ao santo mais jovem por me consultar, e fiz uma vénia com a cabeça quando saiu.
Miserável sapo borbulhoso disse Igraine depois de Tudwal ter saído. Cuspiu para a fogueira. És cristão, Derfel?
Certamente que sim, Senhora! protestei. Que pergunta! Franziu-me as sobrancelhas motejadora.
Pergunto-o disse ela porque me parece que és hoje menos cristão do que eras quando começaste a escrever esta história.
Esta, pensei, foi uma observação inteligente. E igualmente verdadeira, mas não me atrevi a confessar-lho abertamente, pois Sansum adoraria ter uma desculpa para me acusar de heresia e mandar-me para a fogueira. Não economizaria nela, pensei, ainda que racionasse o que devíamos consumir em nossos corações. Sorri.
Fazeis com que me recorde das coisas antigas, Senhora afirmei, é tudo. Não era tudo. Quanto mais relembrava os antigos anos, mais essas coisas antigas voltavam ao meu pensamento. Toquei num prego de ferro da minha secretária de madeira para impedir o agoiro do ódio de Sansum. Há muito que abandonei o paganismo afirmei.
Quem me dera ser pagã disse Igraine melancólica, puxando a sua capa de pêlo de castor para bem junto dos ombros. Os seus olhos continuam luminosos e o seu rosto está tão cheio de vida que estou certo que está grávida.
Não digas aos santos que afirmei isto acrescentou rapidamente. E Mordred perguntou ela, era cristão?
Não. Mas sabia que era em Dumnónia onde estava o seu apoio, por isso fez o bastante para os manter felizes. Deixou Sansum construir a sua grande igreja.
Onde?
Em Caer Cadarn. Sorri ao recordar-me disso. Nunca foi terminada, mas era suposto ser uma grande igreja em forma de cruz. Clamou que a igreja acolheria a segunda vinda de Cristo no ano quinhentos, e demoliu a maior parte do castelo de festins e usou a sua madeira para construir o muro e o círculo de pedras para as fundações da igreja. Certamente que deixou a pedra real. Depois, apoderou-se de metade das terras que pertenciam ao palácio de Lindinis e usou a sua riqueza para pagar os monges de Caer Cadarn.
As tuas terras? Abanei a cabeça.
As terras sempre foram de Mordred, nunca minhas. E, claro, Mordred quis que fôssemos expulsos de Lindinis.
Para que pudesse ele viver no palácio?
Para que Sansum lá vivesse. Mordred mudou-se para o Palácio de Inverno de Uther. Ele gostava de lá estar.
Então para onde foram vocês?
Encontrámos um lar disse eu. Era a velha casa senhorial de Ermid, a sul da lagoa Issa. Não foi o meu Issa quem deu o nome à lagoa, evidentemente, mas um antigo chefe de tribo e Ermid fora outro chefe de tribo que vivera na sua margem sul. Após a sua morte adquiri as suas terras, e depois de Sansum e Morgana se apoderarem de Lindinis mudei-me para lá. As minhas filhas sentiram falta dos amplos corredores de Lindinis e da ressonância dos aposentos, mas eu gostava da casa senhorial de Ermid. Era antiga, coberta de colmo, coberta de sombras de árvores e cheia de aranhas que faziam Morwenna gritar e, pela minha filha mais velha, tornei-me Lorde Derfel Cadarn, o chacinador de aranhas.
Terias morto Culhwuch? perguntou-me Igraine.
De modo nenhum!
Odeio Mordred afirmou.
Não sois a única, Senhora.
Olhou fixamente para a fogueira na lareira por alguns instantes.
Tinha mesmo de ser rei?
Desde que dependesse de Artur, sim. Se fora eu? Não, tê-lo-ia morto com a Hywelbane, ainda que isso significasse quebrar o meu juramento. Era um rapaz triste.
Tudo parece tão triste disse Igraine.
Esses foram anos muito felizes respondi, e até mesmo mais tarde, em algumas ocasiões. Olhando para trás, nessa altura éramos bastante felizes. Ainda me recordo dos gritos das minhas filhas a ecoarem em Lindinis, o barulho dos passos e a sua excitação com algum novo jogo ou alguma descoberta estranha. Ceinwyn estava sempre feliz (tinha esse dom natural) e os que a rodeavam contraíam essa felicidade e transmitiam-na. E suponho que Dumnónia era feliz. Prosperou, sem dúvida, e os que trabalharam com mais afinco enriqueceram. Os cristãos fervilhavam de descontentamento, mas ainda assim esses foram os anos gloriosos, o tempo de paz, o tempo de Artur.
Igraine pôs em desalinho as novas folhas de pergaminho à procura de uma passagem em particular.
Sobre a Távola Redonda começou.
Por favor disse eu, levantando a minha mão para calar o que sabia ser um protesto.
Derfel! disse ela com dureza. Todos sabem que foi uma coisa solene! Uma coisa importante! Todos os melhores guerreiros da Bretanha prestaram o juramento a Artur, e todos eles eram amigos. Toda a gente o sabe!
Era uma mesa de pedra rachada que pelo final do dia estava ainda mais rachada e suja de vómito. Todos estavam muito bêbedos.
Suspirou.
Imagino que apenas te tenhas esquecido da verdade disse ela, abandonando o assunto com demasiada facilidade, o que me faz pensar que Dafydd, o escrivão que traduz as minhas palavras para a língua inglesa, surgirá com algo mais condicente com a preferência de Igraine. Não há muito, cheguei mesmo a ouvir uma história que afirmava compor-se a mesa de um amplo círculo de madeira em volta da qual toda a Irmandade da Bretanha se sentava com solenidade, mas essa mesa nunca existiu, nem nesse local nunca poderia ter estado a menos que tivéssemos abatido metade dos bosques de Dumnónia para a construir.
A Irmandade da Bretanha disse eu pacientemente foi uma ideia de Artur que nunca deu resultado efectivo. Nem podia! Os juramentos reais dos homens foram preferidos ao juramento da Távola Redonda, e ademais, ninguém à excepção de Artur e Galaad alguma vez acreditou de facto nele. No final, crede no que vos digo, até ele estava confuso, ainda que nunca ninguém o tivesse referido.
Certamente que tens razão disse ela, significando isto que tinha absoluta certeza que eu estava errado. E quero saber continuou o que aconteceu a Merlim.
Contar-vos-ei. Vo-lo prometo.
Agora! insistiu. Conta-me agora. É verdade que ele enfraqueceu, simplesmente?
Não disse eu. Chegou a sua hora. Nimue estava certa, entendeis. Em Lindinis ele apenas esperava. Ele sempre gostou de simular, lembrai-vos? Nesses anos ele fingiu ser um homem velho, moribundo, mas por baixo dessa capa, onde nenhum de nós via, o poder sempre lá estivera. Porém, estava velho, e teve de acumular o seu poder. Sabeis que ele aguardava a altura em que o Caldeirão fosse desvendado e sabia que, então, iria precisar do seu poder, mas até ser necessário era feliz em deixar Nimue guardar a chama.
Então o que aconteceu? perguntou Igraine excitada.
Enrolei a manga do meu hábito de monge pelo coto do meu pulso.
Se Deus me deixar viver, minha Rainha e Senhora, contar-vos-ei afirmei, e nada mais lhe disse. Estava prestes a chorar ao recordar-me daquele último exemplo selvagem do poder de Merlim na Bretanha, mas esse momento situa-se mais adiante, muito mais adiante nesta história, bem depois da época em que a profecia de Nimue sobre a vinda dos reis para Cadarn se realizou.
Se me não contas disse Igraine, então não te conto as minhas novidades.
Estais grávida disse eu, e estou tão feliz por vós.
Safado, Derfel protestou. Queria fazer-te uma surpresa!
Tendes rezado para isso, Senhora, e eu por vós, e como podia Deus não atender às nossas preces?
Fez uma careta.
Deus enviou a Nwylle a sífilis, foi o que Deus fez. Toda ela eram manchas, chagas e pus a escorrer, por isso o rei a mandou embora.
Estou muito contente. Tocou na barriga.
Só desejo que ele viva para governar, Derfel.
Ele? perguntei.
Ele respondeu com firmeza.
Então rezarei também por isso afirmei devotadamente, sem saber se rezaria ao Deus de Sansum ou aos mais bárbaros Deuses da Bretanha. Ao longo da minha vida muitas orações dissera, tantas, e para onde me tinham trazido elas? Para este refúgio húmido nas colinas, enquanto os nossos velhos inimigos cantam nos nossos antigos castelos. Mas esse fim também se situa bastante mais adiante, e a história de Artur está longe de estar concluída. Em alguns aspectos mal começou, pois agora, ao renunciar à sua glória e conceder o seu poder a Mordred, haviam chegado os tempos de provação, e iriam provar as adversidades de Artur, o meu Senhor de juramentos, o meu Senhor severo, mas meu amigo até à morte.
A princípio nada aconteceu. Suspendemos o nosso fôlego, esperámos o pior, e nada aconteceu.
Pusemos um campo a feno, depois cortámos o linho e colocámos as hastes fibrosas nos tanques de maceração para que as nossas vilas fedessem durante semanas. Ceifámos os campos de centeio, cevada e trigo, depois ouvimos os escravos a entoarem as suas canções em círculo na eira ou nas mós de rotação ininterrupta. A palha das ceifas era utilizada na reparação das coberturas de colmo para que, durante algum tempo, os remendos de ouro dos telhados luzissem ao Sol tardio do Verão. Colhíamos fruta dos pomares, cortávamos a lenha para o Inverno e colhíamos as hastes dos salgueiros para a arte da cestaria. Comíamos amoras silvestres e nozes, colocávamos fumo nas colmeias para afugentar as abelhas e espremíamos o seu mel para dentro de sacas, que pendurávamos defronte dos fogões das cozinhas onde deixávamos comida para os mortos na véspera do Samain.
Os saxões permaneciam em Lloegyr, era feita justiça nas nossas cortes, raparigas eram dadas em casamento, crianças nasciam e crianças morriam. O ano findo trazia nevoeiros e geada. O gado era abatido e o mau cheiro dos tanques de maceração dava lugar ao cheiro nauseabundo dos poços de curtumes. Os panos de linho entrançado acabados de fazer encontravam-se numa barrela em tanques cheios de cinzas de madeira, água da chuva e urina, que recolhêramos ao longo de todo o ano, os impostos de Inverno eram pagos, e no Solstício nós, mitraístas, matávamos um touro no nosso festival anual em honra do Sol, enquanto nesse mesmo dia os cristãos celebravam o nascimento do seu Deus. No Imbolc, na grande festa da estação fria, alimentámos duzentas almas no nosso palácio, certificando-nos que três facas estivessem sobre a mesa para uso dos Deuses invisíveis e oferecíamos sacrifícios pelas colheitas do novo ano. Cordeiros recém-nascidos eram o primeiro sinal desse novo ano, depois vinha a época da lavra e da sementeira e de novos rebentos verdes nas velhas árvores despidas. Era o primeiro ano novo da governação de Mordred.
A governação trouxera algumas mudanças. Mordred pediu que lhe fosse concedido o Palácio de Inverno de seu avô, o que a ninguém surpreendeu, mas fiquei admirado quando Sansum pediu para si próprio o palácio de Lindinis. Fez o pedido no Conselho, alegando que necessitava do espaço do palácio para a sua escola e para a comunidade de Morgana de mulheres santas, e ainda por desejar estar próximo da igreja que iria construir no cume de Caer Cadarn. Mordred acenou o seu consentimento, e deste modo Ceinwyn e eu fomos sumariamente expulsos, mas a casa senhorial de Ermid estava vazia e mudámo-nos para os seus domínios junto à lagoa, onde havia nevoeiros frequentes. Artur mostrou-se contra a permissão da ida de Sansum para Lindinis, do mesmo modo que se opôs ao pedido do mesmo de que as riquezas reais pagassem a reparação dos estragos feitos no palácio por, clamava Sansum, crianças demasiadamente indisciplinadas. Foram estas as únicas decisões de Mordred, já que normalmente se contentava em deixar que Artur se ocupasse dos assuntos do reino. Apesar de já não ser o protector de Mordred, Artur era nesse tempo o conselheiro mais importante e o rei raras vezes vinha ao Conselho, preferindo caçar. Nem sempre eram veados nem lobos o que ele caçava e eu e Artur acostumámo-nos a levar ouro a algumas choupanas no campo para recompensar o homem pela virgindade da sua filha ou pela vergonha da sua mulher. Esta não era uma tarefa agradável, mas raros e afortunados eram os reinos onde não fosse necessária
Dian, a nossa filha mais nova, adoeceu nesse Verão com uma febre que não desapareceria, ou antes surgia e desaparecia, mas com tal ferocidade que por três vezes julgámo-la morta, e por três vezes as misturas de Merlim revivificaram-na, embora nada do que o velho fizesse parecesse capaz de debelar o padecimento. Das nossas três filhas, Dian prometia ser a mais viva. Morwenna, a mais velha, era uma criança sensível, que gostava de proteger as suas irmãs mais novas como uma mãe e a quem os trabalhos da lida caseira fascinavam; sempre com curiosidade em relação às cozinhas, aos tanques de maceração do linho ou aos tanques onde estavam de molho. Seren, o astro, era a nossa perfeição, uma criança que herdara todas as características delicadas de sua mãe, mas acrescentara-lhes uma natureza melancólica e encantadora. Passava horas com os bardos a aprender as suas canções e a tocar as suas harpas, mas Dian, como Ceinwyn dizia, era a minha filha. Dian não tinha medo. Sabia atirar com arco e flecha, adorava montar a cavalo, e até mesmo aos seis anos de idade conseguia manobrar um coracle tão bem como qualquer pescador da lagoa. Tinha seis anos quando a febre a atacou e, não tivesse ela surgido, provavelmente teríamos viajado todos juntos para Powys, pois estávamos apenas a um mês do primeiro aniversário da aclamação de Mordred, quando inesperadamente o rei exigiu que Artur e eu viajássemos para o reino de Cuneglas.
Mordred fez a exigência numa das suas raras comparências ao Conselho real. O surgimento inesperado da imposição surpreendeu-nos, bem como a necessidade da incumbência que propôs, mas o rei estava determinado. Havia, claro, um motivo inconfessado, apesar de nem Artur nem eu nem qualquer outro dos presentes ao Conselho o termos entendido na altura. Sansum era todavia a excepção, pois fora ele quem propusera a ideia, tendo passado muito tempo até descobrirmos as razões da sugestão do Lorde Rato. Nem era essa nenhuma razão óbvia para suspeitarmos da proposta do rei, pois parecia-nos bastante razoável, apesar de nem Artur nem eu compreendermos por que motivo haveríamos de ser os dois enviados para Powys.
A questão procedia de uma história muito antiga. Norwenna, a mãe de Mordred, havia sido assassinada por Gundleus, o rei da Silúria, e embora
Nota: Coracle nome atribuído a um pequeno barco, de um lugar, com uma armação leve de madeira, e revestido com peles ou tela impermeável, ainda hoje empregado em Clare e nos nos Severn e Towy. [N da T]
este tivesse recebido o seu castigo, o homem que traíra Norwenna ainda vivia. O seu nome era Ligessac, e fora o chefe da guarda de Mordred quando o rei era apenas um bebé. Porém, Ligessac recebera um suborno de Gundleus, abrindo os portões do Tor de Merlim aos desígnios assassinos do rei siluriano. Mordred fora arrebatado por Morgana para um local seguro, mas a sua mãe morrera. Ligessac, cuja perfídia causara a morte de Norwenna, sobreviveu à guerra que se seguiu ao assassínio, tal como havia sobrevivido à batalha do Vale do Lugg.
É certo que Mordred ouvira a história, e era perfeitamente natural que se interessasse pelo destino de Ligessac, mas foi o bispo Sansum quem transformou esse interesse em obsessão. Para lá do meio, Sansum descobriu que Lingessac se refugiara com um bando de cristãos eremitas numa região montanhosa e remota do norte da Silúria, nessa altura sob a governação de Cuneglas.
Faz-me sofrer trair um companheiro cristão anunciou hipocritamente o Lorde Rato na reunião do Conselho mas faz-me também sofrer que um cristão tivesse sido culpado de tão vil traição. Ligessac ainda vive, meu Rei e Senhor disse ele a Mordred e deveria ser trazido à vossa justiça.
Artur sugeriu que fosse pedido a Cuneglas que prendesse o fugitivo e o enviasse para Dumnónia, mas Sansum abanou a cabeça à proposta e disse ser seguramente descortês pedir a outro rei que iniciasse a vingança que tocava tão de perto a honra de Mordred.
Esta é uma questão dumnoniana insistiu Sansum, e só dumnonianos, meu Rei e Senhor, deviam ser os agentes do seu sucesso.
Mordred anuiu concordativo e depois insistiu para que ambos fôssemos capturar o traidor. Artur, surpreendido como habitualmente quando Mordred se afirmava no Conselho, levantou objecções. Por que motivo, queria ele saber, deviam dois lordes partir com uma incumbência, que podia com sucesso ser entregue a uma dúzia de lanceiros? Mordred sorriu dengosamente à pergunta.
Julgais, Lorde Artur, que Dumnónia cairá se vós e Lorde Derfel estiverem ausentes?
Não, meu Rei e Senhor disse Artur, mas Ligessac deve agora estar velho e não serão necessários dois grupos de guerra para o capturar.
O rei bateu com o punho na mesa.
Depois da morte de minha mãe acusou ele Artur permitistes que Ligessac escapasse. No Vale do Lugg, Lorde Artur, havíeis de novo permitido que Ligessac escapasse. Deveis-me a sua vida.
Por um momento, Artur ficou rígido diante desta acusação, mas depois inclinou a cabeça reconhecendo a obrigação.
Mas o Lorde Derfel realçou não foi responsável. Mordred lançou-me um olhar rápido. Continuava a não lhe agradar por todas as tareias que apanhara em criança, mas eu tinha esperança que as bofetadas que me dera na sua aclamação e o seu mesquinho triunfo com a nossa expulsão de Lindinis tivessem saciado a sua sede de vingança.
Lorde Derfel disse ele, fazendo como sempre com que o título soasse ridículo conhece o traidor. Quem mais o reconheceria? Insisto para que vão ambos. E também não necessitais de levar dois grupos de guerra completos remetendo para a última objecção de Artur. Apenas alguns homens serão suficientes. Deve ter-se sentido constrangido por dar a Artur semelhante alvitre militar, pois a sua voz diminuiu debilmente, olhando dissimulado para os outros conselheiros antes de recobrar a parca firmeza que possuía. Quero aqui Ligessac antes do Samain insistiu, e quero-o aqui vivo.
Quando um rei insiste, os homens obedecem, por isso Artur e eu, cada um com trinta homens, dirigimo-nos para Norte. Nenhum de nós acreditava que precisássemos de tantos, mas era uma oportunidade para conceder a alguns homens desocupados o exercício de uma longa marcha. Os meus outros trinta lanceiros ficaram para guardar Ceinwyn, enquanto uns homens de Artur permaneceram em Durnovária e outros partiram para reforçar Sagramor, que ainda guardava a fronteira saxónica do norte. Os habituais grupos de guerra estavam activos nessa fronteira, não tentando invadir-nos, mas antes fazendo pilhagens de gado e escravos, como havia acontecido durante todos os anos de paz. Empreendemos ataques-surpresa semelhantes, mas ambos os lados tinham cuidado para não deixar que esses ataques se transformassem numa guerra em grande escala. A paz de recurso que forjáramos em Londres mantivera-se notavelmente, apesar de a paz entre Aelle e Cerdic haver sido pouco duradoura. Ambos haviam lutado um com o outro, mas as suas contendas haviam-nos deixado por longo tempo em paz. De facto, havíamos crescido habituados à paz.
Os meus homens caminharam para Norte enquanto Artur cavalgou pela estrada, ou pelo menos conduziu os seus cavalos pelas boas estradas romanas que, em primeiro lugar, nos levaram ao reino de Gwent, pertencente a Meurig. O rei concedeu-nos um festim de má vontade, no qual os nossos homens eram suplantados em número pelos sacerdotes, e depois disso desviámos para Wye Valley para ver o velho Tewdric, que encontrámos a viver numa humilde choupana coberta de colmo com metade do tamanho da edificação onde guardava a sua colecção de pergaminhos cristãos. A rainha Enid, sua esposa, mostrou-se descontente com o destino que a levara dos palácios de Gwent para esta vida nos bosques infestados de ratos, mas o velho rei estava feliz. Acatara ordens dos cristãos e com jovialidade ignorou as censuras de Enid. Ofereceu-nos uma refeição de feijões, pão e água e regozijou-se com as novas de o cristianismo estar a espalhar-se em Dumnónia. Questionámo-lo sobre as profecias que pressagiavam o regresso de Cristo dentro de quatro anos e Tewdric afirmou rezar para que fossem verdadeiras, mas suspeitava que fosse muito mais provável que Cristo aguardasse os cem anos antes de regressar em glória.
Porém, quem sabe? perguntou. É possível que Ele venha dentro de quatro anos. Quão glorioso pensamento!
Só desejo que os vossos companheiros cristãos se contentem em esperar em paz disse Artur.
Eles têm o dever de preparar a terra para a Sua vinda afirmou Tewdric severamente. Têm de fazer convertidos, Lorde Artur, e depurar a terra do pecado.
Se não tiverem cuidado provocarão uma guerra entre eles e os que restarem de nós, queixou-se Artur, e contou a Tewdric como haviam ocorrido distúrbios por todas as cidades da Dumnónia quando os cristãos quiseram demolir ou profanar os templos pagãos. O que víramos em Isca havia sido apenas o início daqueles tumultos e a agitação alastrava rapidamente, sendo um dos seus sintomas a marca do peixe, um simples gatafunho de duas linhas curvas, que os cristãos pintavam nos muros pagãos ou gravavam nas árvores de matas druidas. Culhwuch tivera razão: o peixe era um símbolo cristão.
É porque a palavra grega para peixe é ichthus disse-nos Tewdric, e as letras gregas formam o nome de Cristo, lesous Christos, Theou Uios, Soter. Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador. Muito simples, mesmo muito simples. Soltou um riso abafado sentindo prazer na sua explicação, e facilmente se percebia de onde Meurig herdara o seu fastidioso pedantismo.
Claro que continuou Tewdric se eu continuasse a governar ficaria preocupado com toda esta desordem, mas, como cristão devo sentir-me agradado. Os santos padres dizem-nos que existirão muitos sinais e prodígios dos últimos dias, Lorde Artur, e os distúrbios civis são apenas um desses sinais. Assim, talvez o fim esteja próximo?
Artur esmigalhou um bocado de pão para o seu prato.
Agrada-vos mesmo esses distúrbios? perguntou ele. Aprovais ataques sobre os pagãos? Os santuários queimados e estragados?
Através da porta aberta, Tewdric olhou fixamente os bosques verdes que faziam uma enorme pressão sobre o seu pequeno mosteiro.
Penso que têm de ser duros para que outros os entendam disse ele, evadindo uma resposta directa à pergunta de Artur. Deveis ver os distúrbios como sintomas de entusiasmo, Lorde Artur, não como sinais da graça de Nosso Senhor. Fez o sinal da cruz e sorriu-nos. A nossa fé
afirmou com seriedade é uma fé de amor. O Filho de Deus humilhou-se para nos salvar dos nossos pecados, e foi-nos ordenado que O emitássemos em tudo o que fazemos ou pensamos. Fomos encorajados a amar os nossos inimigos e a praticar o bem àqueles que nos odeiam. Todavia estes são mandamentos severos, demasiado severos para a maioria das gentes
E deveis recordar-vos que aquilo por que rezamos com maior fervor é o regresso a esta terra do Nosso Senhor Jesus Cristo. Fez de novo o sinal da cruz. As pessoas oram e anseiam pela Sua segunda vinda, mas temem que se o Mundo ainda for governado por pagãos, Ele possa não vir, e deste modo sentem-se impelidos a destruir o ateísmo.
Destruindo o paganismo observou Artur com mordacidade, dificilmente parece digno de uma religião que prega o amor.
Destruir o paganismo é um acto cheio de amor insistiu Tewdric. Se vocês pagãos se recusarem a aceitar Cristo, então irão com toda a certeza para o inferno. Não importa que tenhais levado uma vida virtuosa, pois ainda assim ireis arder para toda a eternidade. Nós cristãos temos o dever de vos salvar desse destino, e não é esse dever um acto de amor?
Não, se eu não desejar ser salvo disse Artur.
Então tereis de sofrer a inimizade daqueles que vos amam disse Tewdric ou, pelo menos, tereis de a sofrer até o entusiasmo esmorecer. E assim acontecerá. Estes entusiasmos nunca duram por muito tempo, e se o Nosso Senhor Jesus Cristo não regressar dentro de quatro anos seguramente que o entusiasmo se desvanecerá até que chegue o milénio. Olhou de novo fixamente para os densos bosques. Quão glorioso seria disse numa voz plenamente maravilhada se eu vivesse para ver o rosto do meu Salvador na Bretanha. Voltou-se para Artur. E receio que os presságios do Seu regresso serão perturbadores. Sem dúvida que os Saxões serão um incómodo. Hoje em dia causam muitos distúrbios?
Não, disse Artur, mas o seu número aumenta todos os anos. Temo que não permaneçam calmos por muito mais tempo.
Rezarei para que Cristo regresse antes de eles partirem disse Tewdric. Não creio que suportaria perder terras minhas para os Saxões. Não que esse seja ainda assunto meu, claro acrescentou apressadamente, agora deixo todas essas coisas para Meurig. Levantou-se assim que uma trombeta soou da capela vizinha. Hora de preces! afirmou feliz. Fazeis-me certamente companhia?
Desculpámo-nos, e na manhã seguinte subimos as colinas que nos afastavam do mosteiro do antigo rei e dirigimo-nos para Powys. Duas noites depois estávamos em Caer Sws onde nos reunimos com Culhwuch, que prosperava no seu novo reino. Nessa noite todos bebemos demasiado hidromel e na manhã seguinte, quando Cuneglas e eu cavalgámos para Cwm Isaf, doía-me a cabeça. Descobri que o rei mantivera a nossa casinha intacta.
Nunca sei quando voltarás a precisar dela de novo, Derfel disse-me ele.
Talvez em breve admiti sombriamente.
Em breve? Faço votos para que assim seja. Encolhi os ombros.
Não somos muito bem acolhidos em Dumnónia. Mordred guarda ressentimentos em relação a mim.
Então pede para seres desobrigado do teu juramento.
Assim fiz disse eu e ele recusou-mo. Pedira-lho a seguir à aclamação, quando a desonra das duas bofetadas ainda estava viva em mim, e depois pedira-lho novamente, seis meses mais tarde, e voltou a recusar-mo. Julgo que era suficientemente esperto para saber que a melhor maneira de me punir era forçar-me a servi-lo.
São os teus lanceiros que ele quer? perguntou-me Cuneglas, sentando-se no banco sob a macieira junto à porta da casa.
Apenas a minha lealdade servil afirmei amargamente. Ele parece não querer disputar quaisquer guerras.
Então não é tolo de todo disse Cuneglas secamente. Depois falámos de Ceinwyn e das minhas filhas e Cuneglas ofereceu-se para enviar Malaine, o seu novo chefe dos druidas, para junto de Dian. Malaine tem uma notável habilidade com ervas disse ele. Melhor do que o velho lorweth. Sabeis que morreu?
Ouvi dizer. E se pudésseis dispensar-me Malaine, meu Rei e Senhor, ficaria muito contente.
Partirá amanhã. As minhas sobrinhas poderão adoecer. Será uma solução, a vossa Nimue?
Nem mais nem menos do que Merlim disse eu, tocando na extremidade de uma velha lâmina de foice cravada na casca da macieira. O toque no ferro era para afastar o mal que ameaçava Dian. Os antigos Deuses disse eu amargamente abandonaram Dumnónia.
Cuneglas sorriu.
Derfel, nunca se deve subestimar os Deuses. Eles terão de novo o seu tempo em Dumnónia. Fez uma pausa. Os cristãos gostam de se denominar ovelhas, não é assim? Bem, escutai com atenção os seus balidos quando os lobos se aproximam.
Que lobos?
Os Saxões afirmou tristemente. Concederam-nos dez anos de paz, mas os seus barcos ainda estão acostados nas costas a leste e sinto o seu poder a aumentar. Se começarem de novo a combater connosco, então os vossos cristãos ficarão bastante satisfeitos com as espadas pagãs. Levantou-se e pousou uma mão no meu ombro. Os Saxões são um assunto inacabado, Derfel, um assunto inacabado.
Nessa noite concedeu um festim em nossa honra e na manhã seguinte, com um guia cedido por Cuneglas, viajámos para Sul por entre as colinas batidas pelo vento, que se encontravam na antiga fronteira da Silúria.
Dirigíamo-nos para uma comunidade cristã afastada. Havia ainda poucos cristãos em Powys, pois Cuneglas expulsou impiedosamente os missionários de Sansum do seu reino quando descobriu a sua presença. Porém, alguns cristãos viviam no reino, e eram em grande número nas antigas terras da Silúria. Este grupo em particular era famoso entre os cristãos da Bretanha pela sua santidade, e eles ostentavam essa santidade ao viverem na extrema pobreza num lugar bravio e rude. Ligessac encontrara o seu refúgio entre estes cristãos fanáticos, que, tal como Tewdric no-lo dissera, flagelavam a sua carne, atitude que ele pensava ser de competição uns com os outros para ver qual chefiaria as vidas mais miseráveis. Alguns viviam em grutas, outros recusavam de todo qualquer abrigo, outros ainda apenas comiam coisas verdes, ainda outros rejeitavam todas as roupas, outros vestiam-se com túnicas feitas de pêlo com espinheiros entrelaçados no tecido, alguns usavam coroas feitas de espinhos e outros espancavam o seu próprio corpo dia após dia até sangrar, tal como os flageladores que víramos em Isca. Pareceu-me que o melhor castigo para Ligessac era deixá-lo numa comunidade como esta, mas levávamos ordens para o irmos buscar e o levarmos para Dumnónia, o que significava que teríamos de desafiar o chefe da comunidade, um temível bispo chamado Cadoc, cuja beligerância era conhecida.
Esta reputação convenceu-nos a vestir as nossas armaduras enquanto nos aproximávamos do sórdido baluarte de Cadoc, situado nas altas colinas. Não envergávamos as nossas melhores armaduras, pelo menos aqueles de nós que tinham essa possibilidade, pois esses ornamentos seriam desperdiçados numa cáfila de piedosos fanáticos semiloucos, mas todos tínhamos elmos e usávamos malha ou couro, transportando ainda os nossos escudos. Se nada mais acontecer, pensámos, o aparato de guerra poderá intimidar os discípulos de Cadoc, que, asseverou-nos o nosso guia, contava com não mais de vinte almas.
E todos são loucos disse-nos ele. Um deles ficou de pé completamente imóvel durante um ano inteiro! Dizem que nem um músculo mexeu. Ficou tão só de pé como uma estaca de feijoeiro enquanto o alimentavam com sofreguidão por uma extremidade e lhe retiravam os dejectos pela outra. Estranha espécie de Deus que pede isto a um homem.
A estrada para o refúgio de Cadoc fora sulcada na terra pelos pés dos peregrinos, e serpenteava subindo os flancos de amplas colinas sem árvores onde a única coisa viva que vimos foram cabras e bodes. Não vimos pastores, mas sem dúvida que eles nos viram.
Se Ligessac tem algum tino disse Artur há muito que terá partido. Por esta altura já nos devem ter visto.
E o que diremos a Mordred?
A verdade, sem dúvida disse Artur friamente. A sua armadura era constituída por um elmo simples de lanceiro e uma cota de couro, todavia até coisas tão humildes nele pareciam elegantes e limpas. A sua vaidade nunca foi ostensiva como a de Lancelote, mas de facto orgulhava-se da limpeza, e de alguma forma toda esta expedição às inóspitas regiões montanhosas do interior ofendiam o seu sentido de limpeza e correcção. O tempo não ajudava, pois estava um dia de Verão ventoso e húmido, com chuva a assolar de Oeste num vento gelado.
Os ânimos de Artur podiam ter estado em baixo, mas os nossos lanceiros estavam alegres. Inventaram piadas sobre assaltar a praça forte de sua alteza real o rei Cadoc e vangloriarem-se do ouro, das argolas de guerreiros e dos escravos que capturassem no assalto e as extravagantes reivindicações das piadas faziam-nos rir, quando por fim nos deparámos com a última depressão das colinas e pudemos olhar para baixo para o vale onde Ligessac encontrara o seu refúgio. Era de facto um sítio miserável; um mar de lama no qual uma dúzia de cabanas de pedra redonda circundavam uma pequena igreja quadrada também de pedra. Havia alguns quintais rudes com vegetais, um pequeno lago escuro e alguns currais de pedra para as cabras da comunidade, todavia sem paliçada.
A única protecção de que o vale podia vangloriar-se era uma enorme cruz esculpida na pedra com desenhos intrigantes e uma imagem do Deus cristão entronizado em glória. A cruz, que era um maravilhoso trabalho em pedra, marcava a depressão onde a terra de Cadoc começava, e foi ao seu lado, com uma vista ampla para o minúsculo povoamento, que se encontrava apenas a alguns metros, que Artur deteve o nosso bando de guerra.
Não invadiremos a propriedade disse-nos brandamente, até termos oportunidade de falar com ele. Colocou a haste da sua lança no chão ao lado das patas da frente do seu cavalo e aguardou.
Era visível uma dúzia de pessoas naqueles domínios e ao verem-nos correram para a igreja, de onde, um momento mais tarde, surgiu um homem enorme, que subiu pela estrada em grandes passadas na nossa direcção. Era um homem gigante, tão alto como Merlim, com um peito maciço e umas mãos grandes e fortes. Também estava imundo, com a cara por lavar e uma túnica castanha cheia de lama já seca e sujidade, enquanto o seu cabelo grisalho, tão sujo como a sua túnica, parecia nunca ter sido cortado. A sua barba crescia em desalinho, passando abaixo da sua cintura, enquanto por detrás da sua tonsura o cabelo espetava num emaranhado sujo, semelhante a um enorme velo cinzento acabado de tosquiar. O seu rosto tinha um bronzeado escuro, a sua boca era enorme, a testa protuberante e olhos irados. Era uma cara impressionante. Trazia um bordão na mão direita, enquanto no lado esquerdo da sua anca, sem bainha, pendia uma longa e rústica espada. Dava a impressão de outrora ter sido um lanceiro útil, e não tive dúvidas que ele ainda conseguisse dar um ou dois murros com força.
Não sois bem-vindos aqui gritou enquanto se aproximava cada vez mais de nós, a menos que venhais para depor as vossas miseráveis almas diante de Deus.
As nossas almas já foram depostas diante dos nossos Deuses respondeu Artur com modos agradáveis.
Pagãos! O homem grande, que presumi ser o famoso Cadoc, cuspiu-nos. Vindes com ferro e aço para um lugar onde crianças cristãs brincam com o Cordeiro de Deus?
Vimos em paz insistiu Artur.
O bispo cuspiu um enorme escarro amarelo na direcção do cavalo de Artur.
Sois Artur Uther Satan disse ele e a vossa alma é um monte de porcaria.
E vós, presumo, sois o bispo Cadoc respondeu Artur com cortesia. O bispo manteve-se de pé ao lado da cruz e traçou uma linha na estrada com a extremidade mais grossa do seu bordão.
Só os fiéis e os penitentes podem transpor esta linha declarou pois este é solo sagrado de Deus.
Artur olhou com pasmo por uns instantes para a sordidez lamacenta à sua frente, depois sorriu gravemente para o desafiador Cadoc.
Não desejo entrar no vosso solo de Deus, bispo disse ele, todavia peço-vos, em paz, que nos trazeis o homem chamado Ligessac.
Ligessac gritou-nos Cadoc estrondosamente, como se estivesse a dirigir-se a uma assembleia de milhares de pessoas. É o abençoado de Deus e do seu filho santificado. Foi-lhe aqui erigido um santuário e nem vós nem ninguém que se denomine lorde pode invadir esse santuário.
Artur sorriu.
Um rei governa aqui, bispo, não o vosso Deus. Só Cuneglas pode erigir santuários, e ele não o fez.
Meu Rei, Artur disse Cadoc orgulhosamente é o Rei dos Reis, e Ele ordenou-me que vos recusasse a entrada.
Resistis-me? Perguntou Artur com uma surpresa educada na voz.
Até à morte! gritou Cadoc. Artur abanou a cabeça com tristeza.
Não sou cristão, bispo disse ele suavemente, contudo não pregais vós que o vosso Outro Mundo é um lugar de alegria absoluta? Cadoc não respondeu e Artur encolheu os ombros. Então, faço-vos um favor, não é assim, despachando-vos para esse destino? Fez a pergunta e depois puxou da Excalibur.
O bispo usou o seu bordão para aprofundar a linha que traçara, cruzando o trilho lamacento.
Proíbo-vos de atravessar esta linha gritou. Proíbo-o em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo! Depois ergueu o bordão e apontou-o a Artur. Manteve-o parado por breves instantes, depois passou a sua extremidade velozmente sobre os restantes para nos envolver a todos, e confesso que naquele momento senti um arrepio. Cadoc não era Merlim, e o seu Deus, pensei, não tinha poder como os Deuses de Merlim, mas ainda assim estremeci quando aquele bordão apontou na minha direcção, e o meu medo fez-me tocar na minha malha de ferro e cuspir para a estrada. Vou agora para as minhas orações, Artur disse Cadoc, e vós, se desejais viver, virai-vos e ide-vos deste local, porque se passardes por esta cruz sagrada juro-vos, pelo sangue puro do Senhor Jesus Cristo, que as vossas almas serão consumidas em tormento. Conhecereis o fogo sempre eterno. Sereis amaldiçoados desde o início dos tempos até ao seu final e da abóbada celeste até ao mais fundo dos infernos. E proferida esta violenta maldição, cuspiu uma vez mais, virou-se e depois afastou-se.
Artur usou a aba da sua capa para limpar a chuva da Excalibur, depois embainhou a espada.
Parece que não somos bem-vindos disse ele com algum divertimento, depois virou-se e acenou a Balin, o cavaleiro mais velho ali presente. Traz os cavaleiros ordenou-lhe Artur e colocai-vos por detrás da aldeia. Certificai-vos de que ninguém consegue fugir. Uma vez nas vossas posições, levo Derfel e os seus homens para revistarmos as casas. E escutai! a sua voz elevou-se para que os sessenta homens pudessem ouvi-lo. Estas gentes irão resistir. Insultar-nos-ão e lutarão connosco, mas não damos tréguas a nenhum deles. Apenas a Ligessac. Não os roubeis e não feri nenhum deles desnecessariamente. Lembrai-vos que sois soldados e eles não. Tratai-os com respeito e às suas maldições respondei com o silêncio. Falou com severidade, e depois de ter a certeza de que todos os nossos homens o haviam entendido, sorriu para Balin e num gesto mandou-o seguir adiante.
Os trinta cavaleiros com armaduras cavalgaram em frente, deslocando-se velozmente para fora da estrada, para galoparem depois em torno da orla do vale e chegarem à longínqua encosta para lá da aldeia. Cadoc, que ainda caminhava na direcção da sua igreja, lançou-lhes um olhar rápido, mas não se mostrou de todo alarmado.
Interrogo-me disse Artur como ele soube quem eu era?
Sois famoso, Senhor respondi-lhe. Ainda lhe chamava Senhor e sempre o faria.
O meu nome é conhecido, certamente, mas não o meu rosto. Não aqui. Encolheu os ombros esquecendo o mistério. Ligessac sempre foi cristão?
Desde a primeira vez que o vi. Mas nunca um cristão bom. Sorriu.
A vida virtuosa torna-se mais fácil quando se é mais velho. Pelo menos assim o julgo. Ele observou os seus cavaleiros a passarem na aldeia a galope com os cascos dos seus cavalos a levantarem grandes jactos de água da erva encharcada, depois tomou o peso da sua lança e olhou para trás para os meus homens. Lembrem-se! Nada de roubos! Tentei imaginar o que poderia haver para roubar num semelhante lugar imundo, mas Artur sabia que todos os lanceiros normalmente encontram alguma coisa e levam-na como recordação.
Não quero problemas disse-lhes Artur. Apenas vimos à procura do nosso homem, depois partimos. Tocou nos quadris de Llamrei e a égua preta avançou, obediente. Nós, os soldados a pé, seguimos obliterando com as nossas botas a linha traçada por Cardoc na estrada lamacenta ao lado da cruz intricadamente escavada. Nenhum raio caiu do céu.
O bispo chegava agora à sua igreja e parou à entrada. Virou-se, viu-nos caminhar na sua direcção e esgueirou-se para dentro.
Eles souberam que vínhamos disse-me Artur, por isso não encontraremos Ligessac aqui. Receio que seja uma perda de tempo para nós, Derfel. Uma ovelha coxa subia a estrada com dificuldade e Artur deteve o seu cavalo para que ela passasse. Vi-o arrepiar-se e percebi que estava ofendido pela sujidade do povoamento, que quase rivalizava com a imundície do Tor de Nimue.
Cadoc reapareceu à porta da igreja quando nos encontrávamos apenas a uma centena de passos. Por essa altura, os nossos cavaleiros aguardavam por trás da aldeia, mas Cadoc nem se incomodou em olhar para ver onde eles estavam. Levou apenas um grande lur de carneiro aos lábios e soprou um chamamento que ecoou pela concavidade nua das colinas com um som oco. Tocou o lur uma vez, fez uma pausa para encher os pulmões de ar, depois soprou de novo.
E, de repente, tínhamos um combate entre mãos.
Era quase certo que eles haviam sabido que vínhamos a caminho, e haviam-se preparado para nos defrontar. Todos os cristãos de Powys e Silúria devem ter sido chamados a defender Cadoc e esses homens surgiam agora nos cumes a toda a volta do vale, enquanto outros corriam a bloquear a estrada por trás de nós. Alguns traziam lanças, outros escudos e outros nada mais do que foices ou forquilhas, mas pareciam bastante confiantes. Muitos, percebi, haviam outrora sido lanceiros voluntários na guerra, todavia o que dava a esses cristãos uma verdadeira confiança, à parte a sua fé em Deus, era que contavam, pelo menos, com duzentos homens.
Idiotas! disse Artur irado. Detestava violência desnecessária e sabia que nesse momento algumas mortes eram inevitáveis. Também sabia que nós venceríamos, pois apenas fanáticos que acreditassem que o seu Deus lutaria por eles investiriam contra sessenta dos melhores guerreiros de Dumnónia.
Idiotas! Disse de novo violentamente, depois lançou um olhar rápido para a aldeia e viu mais homens armados a saírem das cabanas. Fica aqui, Derfel disse ele. Aguenta-os apenas, que nós pômo-los a fugir. Puxou as esporas com um toque rápido e galopou sozinho até ao extremo da aldeia em direcção aos seus cavaleiros.
Escudo defensivo disse eu em voz baixa. Éramos apenas trinta homens e o nosso círculo de fileiras duplas formou uma circunferência tão pequena que deve ter parecido um alvo fácil para aqueles cristãos vociferantes que desciam agora as colinas a correr ou que saíam da aldeia para nos aniquilar. O escudo defensivo nunca é uma formação comum com soldados, porque a extensão das lanças para fora do círculo significa que as suas pontas ficam muito afastadas e quanto mais pequeno for o círculo mais largas serão as aberturas entre os ferros das lanças; mas os meus homens estavam bem treinados. A fileira da frente ajoelhou-se com os seus escudos a tocarem-se e os punhos das suas longas lanças cravados no chão atrás dos escudos. Nós, na segunda fileira, deitámos os nossos escudos sobre os escudos da primeira fileira, apoiando-os no chão para que os nossos atacantes encontrassem um compacto muro duplo de madeira coberta de couro. Depois, cada um de nós permaneceu de pé atrás de um homem ajoelhado e elevámos as nossas lanças acima das suas cabeças. A nossa tarefa era proteger a fileira da frente e a deles era permanecerem firmes. Teríamos um serviço árduo e sangrento, mas desde que os homens ajoelhados mantivessem os seus escudos elevados e segurassem as suas lanças firmes, e desde que nós os protegêssemos, o escudo defensivo seria suficientemente seguro. Lembrei aos homens ajoelhados o seu treino, dizendo-lhes que apenas ali estavam como obstáculo e que deixassem a matança connosco.
Bei está connosco disse-lhes eu.
Artur também acrescentou Issa com entusiasmo.
Pois seria Artur a proceder à verdadeira matança do dia. Nós éramos o engodo e ele era o executor, e os homens de Cadoc tomaram de assalto esse engodo como um salmão irado saltando para apanhar uma efémera. O próprio Cadoc comandou o ataque a partir da aldeia, empunhando a sua espada ferrugenta e um grande escudo redondo pintado com uma cruz preta por trás da qual apenas consegui ver o contorno esfumado da raposa de Silúria, traindo a sua antiga fidelidade como lanceiro nas fileiras de Gundleus.
Essa horda cristã não atacou como um escudo defensivo. Isso podia ter-lhes dado a vitória, mas em vez disso atacaram-nos da antiga forma que utilizáramos quando fôramos vencidos pelos Romanos. Nos velhos tempos, quando os romanos se encontravam há pouco na Bretanha, as tribos atacavam-nos numa investida gloriosa, vociferante e bem regada de hidromel. Semelhante investida era temível de se ver, mas fácil de derrotar para homens disciplinados, e os meus lanceiros estavam impecavelmente disciplinados.
Sem dúvida que sentiram medo. Eu senti, pois a investida vociferadora é uma visão terrível. Contra homens mal disciplinados resulta, por causa do terror que provoca, e esta era a primeira vez que eu via essa antiga formação das batalhas da Bretanha. Os cristãos de Cadoc investiram fanaticamente contra nós, competindo para ver quem seria o primeiro a tocar nas nossas lanças. Soltavam gritos agudos e rogavam pragas, e era como se cada um quisesse ser um mártir ou então um herói. A sua arremetida selvagem sempre incluiu mulheres que gritavam ao mesmo tempo que agitavam mocas de madeira ou foices. Até havia crianças no meio dessa gentalha vociferante.
Bei! gritei quando o primeiro homem tentou passar pelo homem ajoelhado na fileira da frente e caiu morto pela minha lança. Trespassei-o por completo como a uma lebre pronta para ser assada, depois atirei-o, espada e tudo, para fora do círculo, para que o seu corpo moribundo formasse um obstáculo aos seus companheiros. A Hywelbane matou o homem que se seguiu e eu ouvi os meus lanceiros ajoelhados entoarem o seu horrível canto de combate enquanto rasgavam, estocavam, cortavam e trespassavam. Éramos todos tão bons, tão rápidos e tão meticulosamente treinados. Haviam sido dispendidas horas no treino deste escudo defensivo e apesar de haver anos que a maioria de nós não combatia numa batalha, descobrimos que os nossos antigos instintos estavam tão rápidos como outrora, e foi o instinto e a experiência que nos salvaram nesse dia. O inimigo era uma prensa de moagem fanática soltando gritos estridentes, que se amontoava junto ao nosso círculo e impelia as suas lanças na nossa direcção, mas o nosso escudo defensivo exterior manteve-se firme como uma rocha e o monte de mortos e atacantes moribundos que aumentou tão rapidamente em frente dos nossos escudos fez recuar os outros atacantes. Durante um ou dois minutos, enquanto o chão junto ao nosso escudo defensivo ainda estava livre de obstáculos e os mais corajosos entre o inimigo ainda podiam aproximar-se, deu-se uma luta frenética; quando o círculo de mortos e moribundos já nos protegia, só os mais bravos dos nossos atacantes tentavam alcançar-nos. Então, nós os quinze da fileira interior podíamos escolher os nossos alvos e usá-los para praticar o manuseio da lança ou da espada. Lutámos depressa, animámo-nos uns aos outros e matámos sem misericórdia.
O próprio Cadoc cedo veio para o combate, agitando a enorme espada enferrujada tão vigorosamente que silvava no ar. Conhecíamos bastante bem o seu manejo e ele tentou derrubar um dos homens ajoelhados, pois sabia que uma vez quebrado o círculo exterior, todos nós seríamos mortos com bastante rapidez. Aparei o grande golpe com a Hywelbane, ripostei com uma oscilação rápida que enfraqueceu na sua imunda cabeleira espessa, depois Eachern, o pequeno e robusto lanceiro irlandês, que ainda me servia apesar das ameaças de Mordred, bateu com a haste da sua lança no rosto do bispo. A ponta da lança de Eachern desaparecera, arrancada por um golpe de espada, mas ele atirou a ponta de ferro da extremidade mais grossa do bastão à testa de Cadoc O bispo entortou os olhos por breves instantes, a sua boca escancarou-se mostrando dentes apodrecidos, depois afundou-se simplesmente na lama.
O último atacante a tentar e a conseguir rachar o escudo defensivo foi uma mulher de cabelo desalinhado, que trepou pelo círculo de mortos e me gritou uma praga ao mesmo tempo que tentava saltar por cima dos homens ajoelhados da fileira da frente. Agarrei-a pelo cabelo, deixei que a sua foice partisse a ponta na minha cota de malha, depois arrastei-a para dentro do círculo onde Issa lhe bateu com força na cabeça. Só nessa altura Artur atacou. Treze cavaleiros com longas lanças carregaram, retalhando a gentalha cristã. Suponho que estivemos a defender-nos, ao todo, durante três minutos, mas assim que Artur chegou o combate terminou num abrir e fechar de olhos. Os seus cavaleiros surgiram com as lanças baixas em sinal de ataque, galopando velozmente, e eu vi um terrível esguicho de sangue, quando uma das lanças estocou com força provocando um som oco. Deste modo, os nossos atacantes fugiram em pânico e Artur, sem a sua lança e com a Excalibur a reluzir-lhe na mão, gritava aos seus homens para que parassem de matar.
Escorracem-nos apenas! gritava. Escorracem-nos! Os seus cavaleiros separaram-se em pequenos grupos, que dispersaram os sobreviventes aterrados e os perseguiram, subindo a estrada em direcção à cruz guardiã.
Os meus homens descontraíram-se. Issa ainda permanecia sentado em cima da mulher de cabelo eriçado, e Eachern procurava a ponta da sua lança, que havia perdido. Dois homens do escudo defensivo haviam sofrido feridas graves, e um da segunda fileira tinha um maxilar partido e ensanguentado, mas ademais estávamos incólumes, enquanto à nossa volta havia vinte e três cadáveres e, pelo menos, o mesmo número de homens gravemente feridos. Cadoc, estonteado por causa do soco de Eachern, estava ainda vivo e amarrámos-lhe as mãos e os pés. Depois, apesar das instruções de Artur para mostrarmos respeito pelo nosso inimigo, cortámos-lhe o cabelo e a barba para o envergonhar. Ele cuspiu-nos e amaldiçoou-nos, mas atafulhámos-lhe a boca com madeixas cortadas da sua barba oleosa, depois fizemo-lo caminhar de regresso à aldeia.
E foi aí que descobri Ligessac. Afinal não havia fugido, aguardando apenas na igreja junto ao pequeno altar. Estava velho, magro e de cabelo grisalho, e rendeu-se resignadamente, mesmo quando lhe cortámos a barba e fizemos uma corda tosca com o seu cabelo, que prendemos em volta do seu pescoço para mostrar que era um traidor condenado. Até pareceu bastante agradado por voltar a ver-me após todos aqueles anos.
Eu disse-lhes que não te venceriam disse ele, não Derfel Cadarn.
Eles sabiam que vínhamos a caminho? perguntei-lhe.
Já o sabemos há uma semana disse ele, suavemente, estendendo as mãos para que Issa pudesse prender os seus pulsos com uma corda. Quisemos mesmo que viésseis. Pensámos que era esta a nossa oportunidade de libertar a Bretanha de Artur.
Porque havíeis de querer fazer tal coisa? perguntei-lhe.
Porque Artur é um inimigo dos cristãos, eis a razão disse Ligessac.
Não é não, disse eu com desdém.
E o que sabes tu, Derfel? perguntou-me Ligessac. Preparamos a Bretanha para o regresso de Cristo e temos de libertar a terra dos ateus!
Fez esta proclamação num tom de voz alto e desafiador, depois encolheu os ombros e sorriu ironicamente. Mas eu disse-lhes que esta não era a forma de matar nem Artur nem Derfel. Eu disse a Cadoc que vós éreis demasiado bons. Levantou-se e seguiu Issa para fora da igreja, mas depois virou-se para trás e olhou para mim, que ainda permanecia à porta.
Suponho que vou morrer agora? perguntou-me.
Em Dumnónia disse eu. Encolheu os ombros.
Verei Deus frente a frente disse ele por isso o que há a temer? Segui-o para fora da igreja. Artur havia esvaziado a boca do bispo e Cadoc ameaçava-nos numa torrente de palavras obscenas. Fiz cócegas, com a Hywelbane, no queixo recém-tosquiado do bispo. Ele sabia que vínhamos a caminho disse eu a Artur e planeou matar-nos aqui.
Falhou disse Artur, desviando a sua cabeça para o lado para evitar um escarro do bispo. Guarda a espada ordenou-me.
Não o quereis morto? perguntei.
O seu castigo é viver aqui ordenou Artur em vez de ser no céu. Levou Ligessac e afastou-se, e nenhum de nós chegou a reflectir sobre o que Ligessac revelara na igreja. Afirmara que sabiam que vínhamos a caminho há já uma semana completa, mas uma semana antes estivéramos em Dumnónia, não em Powys, o que significava que alguém em Dumnónia enviara o anúncio da nossa aproximação. Todavia, nunca nos lembrámos de relacionar ninguém em Dumnónia com esse massacre lamacento nas colinas esquálidas; atribuímos a chacina ao fanatismo cristão, não à traição, mas esta emboscada fora planeada.
Nos dias que correm, certamente que há cristãos que contam uma história diferente. Dizem que Artur surpreendeu o refúgio de Cadoc, violou as mulheres, matou os homens e roubou todos os tesouros de Cadoc, mas não vi quaisquer violações, matámos tão só aqueles que tentaram matar-nos, e não encontrei qualquer tesouro para roubar todavia, ainda que isso tivesse acontecido, Artur não lhe teria tocado com um dedo sequer. Viria o tempo, e também não tardaria, em que eu vi Artur matar libertinamente, mas todas essas mortes seriam de pagãos; no entanto, os cristãos ainda insistiram que ele era seu inimigo e a história da derrota de Cadoc apenas aumentou o seu ódio por ele. Cadoc fora elevado à condição de santo vivo e foi por esse tempo que os cristãos começaram a insultar Artur como o Inimigo de Deus. E esse título encolerizado ficou-lhe associado até ao final dos seus dias.
Claro que o seu crime não respeitava apenas à fractura de algumas cabeças cristãs no vale de Cadoc, mas antes à sua tolerância para com o paganismo durante o tempo em que governou Dumnónia. Nunca ocorreu aos cristãos mais exacerbados que Artur fosse, ele próprio, um pagão e que simplesmente tolerasse o Cristianismo. Eles apenas o condenavam por ter poder para obliterar o ateísmo e não o ter feito, e esse pecado transformou-o em Inimigo de Deus. Claro que se lembravam ainda de como ele havia anulado a isenção dos empréstimos forçados, que Uther concedera à igreja.
Contudo, nem todos os cristãos o odiavam. Pelo menos um número razoável de lanceiros que haviam pelejado ombro a ombro connosco no vale de Cadoc eram, eles próprios, cristãos. Galaad gostava dele, e havia muitos outros, como o bispo Emrys, que eram seus apoiantes silenciosos. Contudo, nesses dias tormentosos, no final dos primeiros quinhentos anos da lei de Cristo na Terra, a igreja não escutava os homens serenos e decentes, mas os fanáticos que clamavam dever o mundo ser expugnado dos pagãos, se de facto Cristo estava prestes a vir de novo. É certo que agora sei que a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo é a única fé verdadeira, e que nenhuma outra fé pode existir na gloriosa luz da sua verdade, mas ainda assim me pareceu estranho, e continua ainda hoje a parecer-me, que Artur, o mais justo e leal dos governantes, fosse chamado o Inimigo de Deus.
Seja por que motivo for. Demos a Cadoc uma dor de cabeça, atámos a garganta de Ligessac com uma trela feita com a sua barba, e afastámo-nos.
Artur e eu separámo-nos junto à cruz de pedra no extremo do vale de Cadoc. Ele levaria Ligessac para Norte e depois iria para Leste em busca das boas estradas que o conduziriam a Dumnónia, enquanto eu decidira viajar para mais longe, até Silúria, ao encontro de minha mãe. Levei Issa e mais quatro outros lanceiros e deixei que os restantes regressassem a casa na companhia de Artur.
Nós os seis circundámos o vale de Cadoc onde um bando deplorável de cristãos feridos e ensanguentados se havia reunido para orar em memória dos seus mortos, e depois atravessámos a pé as altas colinas nuas e descemos para os íngremes vales verdes que nos levavam ao mar Severn. Eu não sabia onde Erce vivia, embora suspeitasse que não seria difícil descobri-la, pois Tanaburs, o druida que eu matara no Vale do Lugg, murmurara um terrível feitiço contra ela. Mas seguramente que a escrava saxã tão debilmente amaldiçoada pelo druida estaria agora bastante bem. E estava.
Encontrei-a a viver junto ao mar numa aldeia minúscula onde as mulheres faziam sal e os homens apanhavam peixe. Os aldeãos fugiram aos gritos dos estranhos escudos dos meus homens, mas eu curvei-me para entrar num dos casinhotos, onde uma criança atemorizada me apontou a casa da mulher saxã, que se revelava ser uma cabana no alto da falésia irregular por cima da praia. Nem tão-pouco era uma cabana, mas antes um abrigo grosseiro feito de madeira flutuante e coberta por um tosco telhado de colmo de algas marinhas e palha. Uma fogueira crepitava no pequeno espaço fora do abrigo e uma dúzia de peixes fumegava por cima das suas chamas, enquanto um fumo ainda mais sufocante era arrastado pelo vento das fogueiras de carvão que faziam fervilhar as panelas de sal na base da escarpa. Deixei a minha lança e o escudo no sopé da falésia e subi o caminho íngreme. Um gato mostrou-me os dentes e silvou-me quando me inclinei para espreitar para dentro da escura cabana.
Erce? chamei. Erce?
Algo se mexeu na penumbra. Era uma sombra monstruosa e escura de onde pendiam camadas sobrepostas de peles e panos andrajosos, e que me observou com atenção.
Erce? perguntei. Sois Erce?
O que podia eu esperar? Não via a minha mãe há mais de vinte e cinco anos, desde o dia em que fora arrancado dos seus braços pelos homens de Gundleus e entregue a Tanaburs para o sacrifício no poço da morte. Erce gritara enquanto eu lhe era roubado, e depois havia sido levada para a sua nova escravidão em Silúria, e ter-me-ia julgado morto até Tanaburs lhe revelar que eu ainda vivia. Enquanto caminhava para sul através dos profundos vales da Silúria, o meu espírito inquieto antevira um abraço, lágrimas, perdão e felicidade.
Todavia, em vez disso, uma enorme mulher de cabelo louro, que se tornara cinzento-sujo, arrastando um misto de peles e cobertores, olhou-me pestanejando com desconfiança. Era uma criatura enorme, um grande monte de carne decadente com uma cara tão redonda como um escudo e manchada pela doença e as escaras. Os seus olhos eram pequenos e duros e raiados de sangue.
Chamei-me Erce em tempos disse ela numa voz rouca. Recuei para fora da cabana repelido pelo seu cheiro fétido a urina e podridão. Ela seguiu-me, arrastando-se pesadamente e apoiando-se com as mãos para depois pestanejar ao Sol da manhã. Estava vestida com farrapos.
Sois Erce? perguntei-lhe.
Outrora disse ela, e bocejou mostrando uma boca estragada sem dentes. Há muito. Agora chamam-me Enna. Fez uma pausa. A Enna louca acrescentou tristemente, depois examinou as minhas roupas delicadas, o meu valioso cinturão da espada e as botas altas. Quem sois, Senhor?
Chamo-me Derfel Cadarn disse eu, um Lorde de Dumnónia. O nome nada lhe disse. Sou vosso filho acrescentei.
Não teve qualquer reacção a esta afirmação, recostando-se apenas de encontro à parede de madeira flutuante da sua cabana, que cedeu perigosamente sob o seu peso. Enfiou uma mão bem fundo dentro dos farrapos e coçou o peito.
Todos os meus filhos estão mortos disse ela.
Tanaburs levou-me recordei-lhe e atirou-me para o poço da morte.
A história parecia nada lhe dizer. Ajeitou-se desinteressada contra a parede e o seu enorme corpo pesava mais a cada difícil aspiração que ela se esforçava por fazer. Brincou com o gato e olhou fixamente para lá do mar Severn onde, indistinta pela distância, a costa dumnoniana era uma linha escura sob uma fileira de nuvens carregadas de chuva.
Outrora tive um filho disse, por fim que foi oferecido aos Deuses no poço da morte. Wygga, era o seu nome. Wygga. Um bom menino.
Wygga? Wygga! Esse nome tão rude e feio imobilizou-me por alguns instantes.
Eu sou Wygga disse eu, finalmente, odiando o nome. Foi-me dado um outro nome depois de ter sido resgatado do poço expliquei-lhe. Falámos em saxão, uma língua em que eu era agora mais fluente do que a minha mãe, pois muitos anos haviam passado desde que ela não a falava.
Oh, não disse ela, franzindo as sobrancelhas. Pude ver um piolho rastejando por um fio do seu cabelo. Não insistiu de novo. Wygga era apenas um rapazinho. Apenas um rapazinho. Ele era o meu primeiro filho, e eles levaram-mo.
Sobrevivi, mãe disse eu. Estava revoltado por ela, fascinado por ela e arrependido por nunca ter ido à sua procura. Sobrevivi ao poço disse-lhe e lembro-me de vós. E assim era, embora na minha memória ela fosse tão esguia e ágil quanto Ceinwyn.
Apenas um rapazinho disse Erce sonhadora. Cerrou os olhos e julguei que dormia, mas afigurou-se-me que urinava, pois surgiu um fio de água no fundo das suas roupas escorrendo em pingos pela rocha na direcção da fogueira que se debatia por se manter acesa.
Falai-me de Wygga pedi-lhe.
Trazia-o dentro de mim disse ela quando Uther me prendeu. Um homem grande, Uther, com um grande dragão no seu escudo. Coçou no sítio onde estava o piolho, que desapareceu no meio do seu cabelo. Ele deu-me a Madog continuou e foi nos domínios de Madog que Wygga nasceu. Éramos felizes com Madog disse ela. Era um Senhor bom, bondoso para os seus escravos, mas chegou Gundleus e mataram Wygga.
Não mataram insisti. Tanaburs não vos contou?
À menção do nome do druida ela estremeceu e apertou o xaile esfarrapado ainda mais sobre os seus ombros descomunais. Nada disse, mas algum tempo depois surgiram lágrimas no canto dos seus olhos.
Uma mulher subiu pelo caminho na nossa direcção. Vinha devagar e apreensivamente, lançando olhares circunspectos na minha direcção e caminhou timidamente até à plataforma de pedra. Quando por fim se sentiu segura passou por mim a correr e inclinou-se ao lado de Erce.
O meu nome disse eu à recém-chegada é Derfel Cadarn, mas outrora chamei-me Wygga.
O meu nome é Linna disse a mulher na língua bretã. Era mais nova do que eu, mas a vida dura desta costa desenhara linhas fundas no seu rosto, vergado os seus ombros e enrijecido as suas articulações, enquanto o trabalho duro de vigiar as panelas do sal nas fogueiras haviam deixado a sua pele escurecida pelo carvão.
Sois filha de Erce? adivinhei eu.
Filha de Enna corrigiu-me.
Então sou vosso meio-irmão disse eu.
Não creio que ela tivesse acreditado em mim, e porque havia de acreditar? Ninguém saía vivo de um poço da morte. Contudo eu havia saído, e desse modo fora tocado pelos Deuses e entregue a Merlim, mas o que podia esta história significar para estas duas mulheres cansadas e rudes?
Tanaburs! disse Erce de repente, e ergueu ambas as mãos para afastar o mal. Ele levou o pai de Wygga! gemeu num lamento choroso balançando-se de um lado para o outro.
Entrou em mim e tirou-me o pai de Wygga. Amaldiçoou-me e amaldiçoou Wygga e o meu ventre. Agora chorava e Linna embalou a cabeça de sua mãe nos seus braços e olhou-me reprovadoramente.
Tanaburs disse eu não teve poder sobre Wygga. Wygga matou-o por ter poder sobre ele. Tanaburs não conseguiu levar o pai de Wygga.
Talvez a minha mãe me tivesse ouvido, mas não acreditou em mim. Era embalada nos braços de sua filha e as lágrimas corriam-lhe pelas faces sujas e marcadas pelas pústulas, quando mal se lembrou dos quase imperceptíveis fragmentos da praga de Tanaburs.
Wygga mataria o seu pai disse-me ela, era o que dizia a praga, que o filho matará o pai.
Então Wygga ainda vive insisti.
Parou o seu balanceio de repente e observou-me. Abanou a cabeça.
Os mortos regressam para matar. Crianças mortas! Vejo-as, Senhor, lá longe falou seriamente e apontou para o mar, todos os mortos pequeninos indo para a sua vingança. Embalou-se de novo nos braços da filha. E Wygga matará o seu pai. Agora chorava profundamente. E o pai de Wygga era um homem tão bom! Que herói. Quão grande e forte. E Tanaburs amaldiçoou-o. Fungou, depois sussurrou uma canção de embalar por um momento antes de falar mais ainda de meu pai, dizendo como as suas gentes cruzaram os mares para a Bretanha e como usara a sua espada para construir para si uma bela casa. Erce, deduzi, fora uma criada nessa casa e o Senhor saxão levara-a para a sua cama e, desse modo, dera-me vida, a mesma vida que Tanaburs não conseguira tirar no poço da morte. Ele era um homem encantador disse Erce de meu pai, um homem tão encantador e bonito. Todos o temiam, mas para mim, ele era bom. Costumávamos rir juntos.
Como se chamava ele? perguntei, e penso que sabia a resposta mesmo antes de ela a proferir.
Aelle disse ela num sussurro, encantador e bonito Aelle. O fumo formou um remoinho junto à minha cabeça, e, por um momento, senti o meu cérebro tão vazio como o espírito de minha mãe. Aelle? Eu era filho de Aelle?
Aelle disse Erce sonhadoramente encantador e bonito Aelle.
Não tinha outras perguntas para lhe fazer e por isso forcei-me a ajoelhar diante de minha mãe e a abraçá-la. Beijei-a em ambas as faces depois apertei-a com força como se pudesse devolver-lhe alguma da vida que ela me dera, e apesar de não opor resistência ao abraço, continuava a não saber que eu era seu filho. Retirei-lhe alguns piolhos.
Puxei Linna e descobri que era casada com um dos pescadores da aldeia e tinha seis filhos vivos. Dei-lhe ouro, julgo que mais do que alguma vez esperara ver, e provavelmente mais ouro do que suspeitava existir. Olhou-me fixamente e depois, incrédula, para os pequenos lingotes.
A nossa mãe ainda é escrava? perguntei-lhe.
Todos somos disse ela, fazendo um gesto para toda a miserável aldeia.
Isso comprará a vossa liberdade disse eu, apontando para o ouro, se a quereis.
Encolheu os ombros, e suspeitei que serem livres nenhuma diferença faria nas suas vidas. Eu podia ter encontrado o seu Senhor e comprado eu próprio a sua liberdade, mas certamente que vivia num sítio bem distante dali e o ouro, se gasto sensatamente, facilitaria a sua dura vida fossem escravas ou estivessem livres. Um dia, prometi a mim mesmo, voltaria e tentaria fazer algo mais.
Toma conta da nossa mãe pedi a Linna
Tomarei, Senhor disse ela respeitosamente, mas eu continuava a achar que não acreditara em mim.
Não trates o teu próprio irmão por Senhor disse-lhe eu, mas ela não se deixou convencer.
Deixei-a e desci para a costa onde os meus homens aguardavam com a bagagem.
Vamos para casa disse eu. Era ainda manhã e tínhamos muitos dias de caminho à nossa frente. Um caminho em direcção a casa.
Para casa, para Ceinwyn. Para as minhas filhas, que descendiam de uma linha dos reis bretões e do sangue real do seu inimigo saxão. Porque eu era filho de Aelle. Detive-me numa colina verde por cima do mar e interroguei-me sobre a extraordinária teia da vida, mas não consegui que fizesse sentido. Eu era filho de Aelle, mas que diferença fazia isso? Nada explicava e nada questionava O destino é inexorável. Iria para casa
Foi Issa quem primeiro viu o fumo. Sempre tivera olhos de falcão e, nesse dia, enquanto me detinha numa colina tentando encontrar um sentido nas revelações de minha mãe, Issa perscrutou fumo para lá do mar.
Senhor? chamou ele, e a princípio não respondi, tão absorto estava no que ouvira. Eu mataria meu pai? E esse pai era Aelle? Senhor! disse Issa com mais insistência, afastando-me dos meus pensamentos. Senhor, Senhor, fumo.
Ele apontava para Sul em direcção a Dumnónia e primeiro pensei que a brancura era apenas uma parte mais pálida entre as nuvens carregadas de chuva, mas Issa tinha a certeza e dois outros lanceiros asseveraram que o que víamos era fumo e não uma nuvem ou chuva.
Há mais, Senhor disse um deles, apontando mais para Oeste, onde outra pequena mancha branca contrastava com o cinzento.
Um fogo podia ficar a dever-se a um acidente, talvez um palácio a arder ou um campo seco em chamas, mas com esse tempo húmido nenhum campo se teria incendiado e em toda a minha vida nunca vira dois castelos em chamas, a menos que um inimigo os tivesse ateado com tochas.
Senhor? incitou-me Issa, pois ele, tal como eu, tinha a sua mulher em Dumnónia.
Voltemos para a aldeia disse eu. Agora.
O marido de Linna acordou em nos transportar de barco. A viagem não era longa, pois aqui o mar tinha apenas cerca de oito milhas de extensão e permitia-nos uma viagem mais rápida para casa. No entanto, como todos os lanceiros, preferíamos uma viagem longa e seca a outra curta e molhada, por isso essa travessia foi uma prova tormentosa, encharcada e fria. Um vento forte soprava de Oeste, transportando mais nuvens e chuva, e com ele o mar altercava-se com vagas curtas e revoltas, que rebentavam e passavam por sobre os baixos alcatrates do barco. Gritámos pelas nossas vidas enquanto o pequeno barco tosco rangia, batia violentamente na água e nos arrastava vagarosamente para Sul. O nosso barqueiro, Balig de seu nome, e que era meu cunhado, declarou não haver prazer comparável ao de um bom barco batido por um vento forte e bradou graças a Manawydan por nos enviar semelhante tempo, embora Issa enjoasse como um cão e eu me esforçasse, em vão, por vomitar. Mas todos ficámos contentes quando, a meio da tarde, ele nos deixou em terra, numa praia de Dumnónia a não mais de três ou quatro horas de casa.
Paguei a Balig, depois dirigimo-nos para o interior passando por uma região plana e húmida. Existia uma aldeia não longe da praia, mas as suas gentes haviam visto o fumo e estavam assustadas; tomando-nos por inimigos, fugiram para as choupanas. A aldeia possuía uma pequena igreja, uma simples cabana coberta de colmo com uma cruz de madeira pregada num espigão, mas os cristãos haviam todos desaparecido. Um dos aldeãos pagãos que havia ficado disse-me que os cristãos haviam todos partido para leste.
Eles seguiram o seu sacerdote, Senhor disse-me ele.
Porquê? perguntei. Para onde?
Não sabemos, Senhor. Lançou um olhar rápido ao fumo distante. Os Saxões voltaram?
Não tranquilizei-o, e fiz votos para que tivesse razão. O fumo que lentamente se esbatia não me pareceu a mais de seis ou sete milhas de distância e tive dúvidas que tanto Aelle como Cerdic pudessem ter chegado tão longe na Dumnónia. Se o tivessem conseguido, então toda a Bretanha estaria perdida.
Apressámo-nos. Nesse momento tudo o que queríamos era chegar até junto das nossas famílias e, quando soubéssemos que estavam bem, seria chegada a altura de saber o que estava a acontecer. Tínhamos duas estradas à escolha até à casa senhorial de Ermid. Uma, a mais distante, bem para o interior e por onde levaríamos quatro ou cinco horas, sendo a maior parte do percurso feito na penumbra, e outra que atravessava os grandes pântanos de Avalon; traiçoeiras enseadas pantanosas, pauis com salgueiros nas suas margens e baldios cobertos de junco por onde, quando a maré estava alta e o vento soprava de Oeste, por vezes o mar podia infiltrar-se, encher e inundar os níveis, afogando viajantes incautos. Havia estradas por entre esse vasto pântano, e até mesmo passadiços de madeira que conduziam ao sítio onde os salgueiros podados cresciam e onde as armadilhas das enguias e do peixe haviam sido colocadas, mas nenhum de nós conhecia os caminhos do pântano. Ainda assim, escolhemos estes caminhos traiçoeiros, já que nos permitiam um caminho mais rápido para casa.
Ao cair a noite encontrámos um guia. Tal como a maior parte das gentes dos pântanos ele era pagão e, assim que soube quem eu era, ofereceu satisfeito os seus serviços. No meio dos pântanos, erguendo-se da luz crepuscular, conseguimos ver o Tor. Disse-nos o nosso guia que teríamos de aí nos deslocar primeiro, e depois encontrar um dos barqueiros de Ynys Wydryn que nos fizesse atravessar num barco de junco de fundo chato as águas pouco profundas da lagoa de Issa.
Ainda chovia quando deixámos a aldeia dos pântanos, com as gotas batendo ao de leve no junco e salpicando os charcos, mas a chuva parou em menos de uma hora e gradualmente uma Lua pálida e suave brilhou debilmente por detrás das escassas nuvens que deslizavam suave e rapidamente de oeste. O nosso caminho cruzou fossos escuros em pontes de tábuas grossas, atravessadas pelo intrincado e entrelaçado trabalho de verga das armadilhas de enguias urdidas com salgueiros, e serpenteámos incompreensivelmente pelo meio de pauis despidos de interesse onde o nosso guia murmurou feitiços contra os espíritos dos pântanos. Afirmou-nos que em algumas noites estranhas luzes tremeluziam nos húmidos terrenos baldios; os espíritos, pensava ele, de muitas gentes que haviam morrido neste labirinto de água, lama e junco. As nossas passadas atemorizaram os patos que emitiram gritos agudos e voaram dos seus ninhos, batendo desesperadamente as asas escuras em direcção ao céu de nuvens passageiras. O nosso guia falou-me enquanto seguíamos, contando-me histórias de dragões que dormiam sob os pântanos e de vampiros que se arrastavam pelos ancoradouros lamacentos. Trazia ao pescoço um colar feito com a coluna de um homem afogado, o único amuleto seguro, dizia ele, contra essas coisas temíveis que assombravam o nosso caminho.
Pareceu-me que o Tor não se aproximava, mas isso não passava da nossa impaciência e passo a passo, de ancoradouro em ancoradouro, aproximávamo-nos de facto e, à medida que a enorme colina se elevava cada vez mais no céu com farrapos de nuvens, vimos uma mancha de luz brilhante surgir no seu sopé. Era um enorme clarão de chamas, e a princípio pensámos que o santuário do Espinheiro Sagrado tivesse ardido, mas à medida que nos aproximávamos mais aumentavam as chamas, ainda que com a mesma intensidade, e eu julguei que a luz viesse das fogueiras ao ar livre, talvez acesas para alumiar algum rito cristão que servisse para afastar algum perigo do santuário. Todos fizemos o sinal contra o mal, depois, por fim, alcançámos um talude que nos levava directamente da terra húmida aos terrenos mais altos de Ynys Wydryn.
O nosso guia deixou-nos aí. Preferia os perigos do pântano aos perigos das fogueiras acesas de Ynys Wydryn, por isso ajoelhou-se diante de mim e recompensei-o com o último ouro de que dispunha, depois ergui-o e agradeci-lhe.
Os seis continuámos para diante passando pelo meio da pequena cidade de Ynys Wydryn, um lugar de pescadores e cesteiros. As casas estavam escuras e os caminhos desertos, vendo-se apenas cães e ratazanas. Dirigíamo-nos para a paliçada de madeira que circundava o santuário, e apesar de conseguirmos ver o fumo incandescente das fogueiras a agitar-se por cima da vedação, ainda não conseguíamos ver nada do que acontecia no seu interior. Contudo, o nosso caminho levou-nos a passar o portão principal do santuário e, ao aproximarmo-nos mais, ainda vi que estavam dois lanceiros montando guarda à entrada
A luz das chamas que passava pelo portão aberto iluminou um dos seus escudos que tinha o último símbolo que jamais esperara ver em Ynys Wydryn Era a águia marinha de Lancelote com o peixe preso nas suas garras.
Os nossos próprios escudos balançavam nas nossas costas estando, deste modo, as suas estrelas brancas escondidas, e como todos usávamos a cauda de lobo cinzenta, os lanceiros devem ter pensado que éramos amigos, pois não gritaram qualquer ordem quando nos aproximámos. Em vez disso, julgando que queríamos entrar no santuário, afastaram-se para o lado, e só quando eu estava prestes a passar o portão, atraído pela minha curiosidade em conhecer o contributo de Lancelote para os estranhos acontecimentos desta noite, é que os dois homens perceberam que não éramos companheiros seus. Um tentou barrar-me a passagem com uma lança.
Quem sois vós? desafiou-me.
Afastei a sua lança para o lado e depois, antes que pudesse dar um grito de alarme, empurrei-o para trás do portão enquanto Issa arrastava o seu companheiro para fora dali. Uma enorme multidão estava reunida dentro do santuário, mas todos estavam de costas voltadas para nós e ninguém viu o barulho no portão principal. Nem podiam ouvir alguma coisa, pois a multidão entoava cânticos e cantava e o seu confuso murmúrio abafara o pequeno ruído que fizéramos. Arrastei o meu cativo para as sombras junto à estrada, onde me ajoelhei ao seu lado. Havia deixado cair a minha lança quando o empurrara para fora do portão, por isso puxei da minha pequena faca que usava no cinto
És um homem de Lancelote? perguntei-lhe
Sim sibilou.
Então o que fazes aqui? perguntei. Este país pertence a Mordred.
O rei Mordred está morto disse ele, assustado com a lâmina da faca que eu segurava contra a sua garganta. Eu nada disse, pois estava tão atónito com a resposta que nada encontrei para dizer. O homem deve ter pensado que o meu silêncio pressagiava a sua morte, pois ficou desesperado. Estão todos mortos! exclamou
Quem?
Mordred, Artur, todos eles.
Por breves instantes pareceu-me que o meu mundo desabava pelas fundações. O homem lutou um pouco, mas a pressão da minha faca acalmou-o.
Como? silvei.
Não sei.
Como? perguntei mais alto.
Não sabemos! insistiu. Mordred foi morto antes de virmos e dizem que Artur morreu em Powys.
Oscilei para trás e fiz um gesto a um dos meus homens para que mantivesse os dois cativos em silêncio com a lâmina da sua lança. Depois contei as horas que haviam passado desde que vira Artur Havia apenas dias que nos havíamos separado na cruz de Cadoc, e a estrada que Artur tomara para casa era muito mais longa do que a minha; se ele tivesse morrido, pensei, a notícia da sua morte não teria seguramente chegado a Ynys Wydryn antes de mim.
Está o teu rei aqui? perguntei ao homem.
Sim.
Porquê? perguntei.
A sua resposta soou um pouco mais que um sussurro.
Para tomar o reino, Senhor.
Cortámos tiras da lã das capas dos dois homens, atámos os seus braços e pernas e enchemos as suas bocas com mãos cheias de lã para os manter em silêncio. Empurrámo-los para um fosso, avisámo-los para que estivessem calados e depois conduzi os meus cinco homens de novo para o portão do santuário. Queria olhar para o seu interior por alguns instantes, perceber o que conseguisse, e só depois me apressaria a ir para casa.
Capas sobre os vossos elmos ordenei aos meus homens e escudos voltados ao contrário.
Levantámos as capas para cima dos nossos elmos para que as caudas de lobo ficassem escondidas, depois segurámos os nossos escudos com a frente para baixo contra as nossas pernas para que as estrelas não se vissem, e deste modo disfarçados penetrámos em silêncio no santuário agora desprotegido. Movemo-nos nas sombras, circundando as costas da multidão excitada até chegarmos às fundações de pedra do santuário que Mordred começara a construir para a sua mãe defunta. Trepámos para a fileira de pedras mais elevada da sepultura inacabada e daí pudemos ver, por sobre as cabeças da multidão, que coisa estranha acontecia entre as duas filas de fogueiras que iluminavam a noite de Ynys Wydryn.
No início pensei tratar-se de outro rito cristão como o que testemunhara em Isca, porque o espaço entre as filas de fogueiras estava cheio de mulheres que dançavam, homens que oscilavam e sacerdotes que cantavam. O barulho que faziam era uma cacofonia de guinchos, gritos e gemidos. Monges com malhos de couro vagueavam pelo meio dos extáticos e flagelavam as suas costas nuas, e cada chicotada forte provocava apenas mais gritos de júbilo. Uma mulher ajoelhava-se junto ao Espinheiro Sagrado.
Vinde, Senhor Jesus! gritava. Vinde!
Um monge batia-lhe com frenesim, e fazia-o com tamanha força que as suas costas nuas eram um sinistro lençol de sangue, mas a cada nova batida o fervor da sua prece desesperada aumentava.
Preparava-me para saltar do sepulcro e regressar ao portão quando surgiram lanceiros vindos dos edifícios do santuário e empurraram os adoradores rudemente para o lado para abrir espaço entre as fogueiras que iluminavam o Espinheiro Sagrado. Arrastaram do local a mulher que gritava. Mais lanceiros se seguiram, dois deles carregando uma liteira, por trás da qual o bispo Sansum comandava um grupo de sacerdotes vestidos com aprumo. Lancelote e os seus servidores acompanhavam os sacerdotes. Bors, o paladino de Lancelote, estava presente, e Amhar e Loholt estavam com o rei belga, mas não vi os terríveis gémeos Lavaine e Dinas.
A multidão gritou ainda mais alto quando viu Lancelote. Estendiam as mãos na sua direcção e alguns ajoelhavam-se mesmo à sua passagem. Ele estava ataviado na sua armadura branca esmaltada de lâminas metálicas, que jurava ter sido o equipamento de guerra do antigo herói Agamémnon, e usava o seu elmo preto ornamentado com longas penas de cisne. O seu longo cabelo negro, que oleara até ficar brilhante, surgia por baixo do elmo e caía suavemente sobre a capa vermelha que lhe cobria os ombros. A espada de Cristo estava embainhada e as suas pernas estavam protegidas por umas botas altas de guerra em couro vermelho. A Guarda Saxónica seguia atrás, homens enormes envergando cotas de malha prateadas, armados com machados de guerra de gumes largos onde se reflectiam as chamas crepitantes das fogueiras. Não via Morgana, mas o coro formado pelas vozes das suas mulheres santas vestidas de branco tentava em vão fazer ouvir a sua canção por cima dos lamentos e gritos da multidão excitada.
Um dos lanceiros transportava um poste, que colocou num buraco preparado para o efeito ao lado do Espinheiro Sagrado. Por um momento temi que fôssemos ver algum pobre pagão ser queimado no poste e cuspi para afastar o mal. A vítima era transportada na liteira. Os homens que a carregavam depuseram o seu fardo junto do Espinheiro Sagrado, apressando-se, em seguida, a amarrar o prisioneiro ao poste; mas quando se afastaram e nós pudemos finalmente ver bem o que acontecia, percebi que não era nem um prisioneiro nem um condenado à fogueira. De facto, não era um pagão quem estava amarrado àquele poste, mas sim um cristão, e não era uma morte o que nós víamos, mas um casamento.
E pensei na estranha profecia de Nimue. A morta será tomada em casamento.
Lancelote era o noivo e estava agora de pé ao lado da sua noiva amarrada ao poste. Era uma rainha, em tempos princesa de Powys, que se tornara princesa de Dumnónia e depois rainha de Silúria. Era Norwenna, nora de Sua Alteza Real, o rei Uther, a mãe de Mordred, e falecera havia catorze anos. Jazera na sua campa durante todos esses anos, mas agora fora desenterrada e os seus restos mortais estavam firmemente atados ao poste junto do Espinheiro Sagrado.
Olhei estarrecido pelo horror, depois fiz o sinal para afastar o mal e bati na malha de ferro da minha armadura. Issa tocou-me no braço, como se assim quisesse assegurar-se de que não estava a viver um pesadelo inimaginável.
A rainha morta era pouco mais do que um esqueleto. Um xaile branco fora colocado sobre os seus ombros, todavia não conseguia esconder os medonhos farrapos de pele amarelada e os nódulos de carne branca e gorda ainda agarrados aos seus ossos. O crânio, pendia de uma das cordas que a seguravam ao poste e estava semicoberto por uma camada de pele esticada O malar descaíra para um dos lados e estava suspenso do crânio, enquanto os seus olhos eram apenas sombras escuras na máscara mortal, iluminada pelas fogueiras, que era o seu rosto. Um dos guardas colocara uma coroa de papoilas no alto do seu crânio do qual pendiam andrajosas mechas de cabelo húmido e frio que lhe roçavam o xaile.
O que está a acontecer? perguntou-me Issa num tom de voz suave
Lancelote reclama Dumnónia sussurrei-lhe e ao desposar Norwenna liga-se à família real de Dumnónia. Não havia outra explicação possível. Lancelote roubava o trono de Dumnónia, e esta cerimónia macabra no meio de grandes fogueiras conceder-lhe-ia uma justificação legal pouco convincente. Desposava a morta para se tornar herdeiro de Uther.
Sansum fez um gesto pedindo silêncio e os monges que transportavam os malhos gritaram para a multidão excitada que lentamente acalmou o seu frenesim. De vez em quando ouvia-se um grito de mulher e a multidão estremecia nervosa, mas por fim fez-se silêncio. As vozes dos coros esvaneceram-se e Sansum ergueu os braços e orou para que o Deus Todo Poderoso abençoasse esta união de um homem com uma mulher, deste rei com esta rainha, e depois instruiu Lancelote para que tomasse a mão da noiva. Lancelote alcançou com a sua mão direita enluvada os ossos amarelos e levantou-os. As patilhas do elmo, que lhe protegiam as faces, estavam abertas e eu pude ver o seu sorriso irónico. A multidão gritava de alegria e lembrei-me das palavras de Tewdric acerca de sinais e presságios, e supus que este casamento ímpio era para os cristãos a prova de que o regresso do seu Deus estava iminente.
Pelo poder em mim investido pelo Pai Santo e pela graça que me foi concedida pelo Espírito Santo gritou Sansum, declaro-vos marido e mulher!
Onde está o nosso rei? perguntou-me Issa.
Quem sabe? respondi-lhe sussurrando. Provavelmente morto Depois vi como Lancelote erguia os ossos amarelos da mão de Norwenna e fingia beijar os seus dedos. Um destes caiu quando ele largou a mão
Sansum, que nunca perdia uma oportunidade para pregar, começou a discursar para a multidão e foi então que Morgana me abordou. Não a vira aproximar-se e só me apercebi da sua presença quando ao sentir uma mão puxar-me pela capa me virei, alarmado, e vi a sua máscara de ouro reluzindo à luz da fogueira.
Quando eles descobrirem que os guardas não estão no portão sibilou ela revistarão estes domínios e vós sereis homens mortos. Sigam-me, idiotas
Assaltados por um sentimento de culpa descemos das pedras e seguimos a sua figura corcunda e escura à medida que ela se esgueirava por detrás da multidão e era engolida pela penumbra da grande igreja do santuário. Aí parou e fitou-me.
Eles disseram que vocês estavam mortos disse-me ela. Mortos juntamente com Artur no santuário de Cadoc.
Eu vivo, Senhora.
E Artur?
Estava vivo há três dias atrás, Senhora respondi. Nenhum de nós morreu no santuário de Cadoc.
Graças a Deus suspirou ela, graças a Deus. Depois agarrou na minha capa e puxou a minha cara para bem perto da sua máscara. Ouve disse ela com urgência, o meu marido não teve alternativa quanto a esta questão.
Se o dizeis, Senhora disse eu, não acreditando nela nem por um segundo, mas compreendendo que Morgana estava a fazer tudo o que estava ao seu alcance para contentar ambos os lados desta crise, que tão rapidamente se abatera sobre a Dumnónia. Lancelote apoderava-se do trono, e alguém conspirara para garantir que Artur estivesse fora do país quando o fizesse. Pior, pensei, alguém enviara Artur e eu próprio para o alto vale de Cadoc e contratara homens para nos fazer uma emboscada. Alguém queria ver-nos mortos e fora Sansum quem primeiro nos revelara o refúgio de Ligessac e também ele quem se opusera a que fosse permitido aos homens de Cuneglas fazer a detenção, e era Sansum quem agora se encontrava diante de Lancelote e de um cadáver iluminado pelas fogueiras desta noite. Pressenti a marca das garras de Lorde Rato em todo este assunto iníquo, embora tivesse dúvidas sobre se Morgana saberia metade do que o seu marido fizera ou planeara. Ela estava demasiado velha e era demasiado sensata para se deixar infectar pelo frenesim religioso, e ela pelo menos tentava escolher um caminho seguro por entre a vaga de horrores.
Jura-me que Artur vive! pediu-me ela.
Não morreu no vale de Cadoc disse eu. Isso vos asseguro. Durante algum tempo ficou em silêncio e penso que chorava por detrás da máscara.
Diz a Artur que outra coisa não podíamos fazer disse ela.
Assim farei prometi-lhe. O que podeis dizer-me de Mordred?
Está morto sibilou ela. Foi morto enquanto caçava.
Mas se eles mentiram em relação a Artur disse eu, então porque não sobre Mordred?
Quem sabe? benzeu-se e puxou a minha capa. Vem disse abruptamente, e conduziu-nos ao longo da parte lateral da igreja em direcção a uma pequena cabana de madeira. Alguém estava preso no seu interior, pois ouvia punhos a baterem na porta, trancada com trelas de couro atadas em nós. Devias ir ter com a tua mulher, Derfel disse-me Morgana enquanto tentava desatar o nó com a sua única mão sã. Dinas e Lavaine partiram para Sul depois do anoitecer na direcção da tua casa, e com eles levaram lanceiros. O pânico cresceu rapidamente dentro de mim, fazendo-me usar a ponta da minha lança para rasgar a trela de couro. Assim que o nó se soltou, a porta escancarou-se e Nimue saltou para fora com as mãos enclavinhadas como garras, mas depois reconheceu-me e esbarrou contra o meu corpo, apoiando-se nele. Cuspiu para Morgana.
Vai-te, sua louca resmoneou-lhe Morgana, e lembra-te que fui eu quem hoje te salvou da morte.
Tomei as duas mãos de Morgana, a queimada e a sã, e levei-as aos lábios.
Pelo que haveis feito esta noite, Senhora disse eu, estou em dívida para convosco.
Vai-te, idiota disse ela, e sem delonga! E correndo atravessámos a parte de trás do santuário, passando depósitos, cabanas de escravos e celeiros. Saímos depois pelo pequeno portão para o local onde os pescadores deixavam os seus pequenos barcos de junco. Apanhámos duas das pequenas embarcações e usámos as longas lâminas das nossas espadas como varas. Recordei, então, esse dia longínquo da morte de Norwenna em que Nimue e eu fugíramos de Ynys Wydryn desse mesmo modo. Dessa vez, como agora, dirigíamo-nos à casa senhorial de Ermid e então, como hoje, éramos fugitivos perseguidos numa terra governada por inimigos.
Nimue pouco sabia do que se havia passado em Dumnónia. Afirmou que Lancelote viera e se declarara rei, mas sobre Mordred ela apenas conseguia repetir o que Morgana afirmara, que o rei fora morto enquanto caçava. Contou-nos como os lanceiros haviam vindo para o Tor e a tinham feito cativa no santuário onde Morgana a aprisionara. Depois disso, ouvira ela, uma turba de cristãos havia subido ao Tor, espancado quem quer que aí tivessem encontrado, deitado abaixo as cabanas e começado a construir uma igreja com as madeiras recuperadas.
Então Morgana salvou mesmo a tua vida disse eu.
Ela quer a minha sabedoria disse Nimue. O que mais saberão eles fazer com o Caldeirão? Por isso Dinas e Lavaine foram a tua casa, Derfel. À procura de Merlim. Cuspiu para dentro da lagoa. É como te digo terminou ela, eles desenterraram o Caldeirão e não sabem como controlar o seu poder. Dois reis vieram para Cadarn. Mordred foi um e Lancelote o outro. Fomos lá esta tarde e estivemos sobre a pedra. E esta noite os mortos estão a ser tomados em casamento.
E afirmaste ainda recordei-lhe amargamente, que uma espada se deterá no pescoço de uma criança. Mergulhei a minha lança na lagoa pouco profunda, na urgência desesperada de chegar à casa de Ermid, onde as minhas filhas e Ceinwyn se encontravam, e para onde os druidas silurianos e os seus lanceiros se haviam dirigido há perto de três horas.
Chamas iluminaram o nosso caminho de regresso a casa. Não as chamas que alumiavam o casamento de Lancelote com a morta, mas outras recentes, que crepitavam vermelhas e altas a partir da casa senhorial de Ermid. íamos a meio da lagoa quando esse fogo se inflamou bruscamente, estremecendo os seus longos reflexos na água escura.
Eu rezava a Gofannon, a Lleullaw, a Bei, a Cernunnos, a Taranis, a todos os Deuses, onde quer que estivessem, para que apenas um deles se vergasse do reino das estrelas e salvasse a minha família. As chamas irromperam mais alto, cuspindo fagulhas de colmo a arder para o fumo levado para leste e que atravessava a pobre Dumnónia.
Depois de Nimue contar a sua história caminhámos em silêncio. Issa tinha lágrimas nos olhos, por estar preocupado com Scarach, a rapariga irlandesa que desposara, e interrogava-se, tal como eu, sobre o que acontecera aos lanceiros que havíamos deixado a guardar a casa senhorial. Havia seguramente homens suficientes para deterem os ataques surpresa de Dinas e Lavaine. Todavia, as chamas diziam o contrário e enterrámos as hastes das nossas lanças com mais força para fazer com que as embarcações se deslocassem ainda mais depressa.
Ouvimos os gritos ao aproximar-nos. Éramos apenas seis lanceiros, mas não hesitei, nem tentei fazer uma aproximação indirecta, dirigindo simplesmente as embarcações para o ancoradouro escondido pelas sombras das árvores, situado ao longo da paliçada da casa senhorial. Aí, próximo do pequeno coracle de Dian que Gwlyddyn, o criado de Merlim, fizera para ela, saltámos para terra firme.
Mais tarde, juntei as peças desta história. Gwilym, o homem que comandara os lanceiros que haviam ficado para trás enquanto eu me dirigira para Norte com Artur, vira o fumo distante a Leste e supôs que havia tumultos a aproximar-se. Colocara todos os seus homens de alerta, depois considerou com Ceinwyn se deviam ir para os barcos e esconder-se nos pântanos situados para lá do mar. Ceinwyn havia negado. Malaine, o seu irmão druida, dera a Dian uma mistura de folhas que lhe baixara a febre, mas a criança estava ainda fraca, e ademais, ninguém sabia o que o fogo significava, nem quaisquer mensageiros haviam trazido qualquer aviso; deste modo, Ceinwyn enviou dois dos lanceiros para Leste em busca de notícias e aguardaram então por detrás da paliçada de madeira.
O cair da noite não trouxe notícias, mas sentiram-se um pouco aliviados quando alguns lanceiros caminharam na noite, e Ceinwyn sentiu-se mais segura do que à luz do dia. Do interior da paliçada e para lá da lagoa viram as chamas em Ynys Wydryn e interrogaram-se sobre o que significariam. Ninguém ouviu os cavaleiros de Dinas e Lavaine aproximarem-se vindos dos bosques vizinhos, uma vez que desmontaram bastante longe da casa senhorial, prenderam as rédeas dos seus cavalos às árvores e então, sob a Lua pálida e toldada de nuvens, rastejaram em direcção à paliçada. Apenas quando os homens de Dinas e Lavaine atacaram o portão, Gwilym se apercebeu de que a casa senhorial estava a ser atacada. Os seus dois batedores não haviam regressado, não havia guardas nos bosques e o inimigo estava já a poucos metros do portão da paliçada quando o alarme soou pela primeira vez. Não era um portão imponente, não mais do que da altura de um homem, e a primeira fileira de inimigos investiu na sua direcção sem armaduras, lanças ou escudos, conseguindo trepá-lo antes mesmo que os homens de Gwilym se tivessem reunido. Os guardas do portão lutaram e mataram, mas um número suficiente desses primeiros atacantes sobreviveu, levantando a tranca do portão e deste modo abrindo-o ao ataque dos lanceiros de Dinas e Lavaine, munidos de pesadas armaduras. Dez desses lanceiros pertenciam à Guarda Saxónica de Lancelote, enquanto os restantes eram guerreiros belgas, que haviam jurado servir o seu rei.
Os homens de Gwilym reuniram-se o melhor que conseguiram, e a luta mais feroz teve lugar à porta da casa senhorial. Foi aí que o próprio Gwilym caiu morto juntamente com seis dos meus homens. Ainda outros seis estavam estendidos no pátio onde um armazém fora posto a fogo e eram essas as chamas que haviam iluminado o nosso caminho ao longo da lagoa e que agora, quando chegávamos ao portão aberto, nos mostravam o horror no interior da paliçada.
A batalha não terminara. Dinas e Lavaine haviam planeado bem a sua perfídia, mas os seus homens não haviam conseguido transpor a porta da casa senhorial e os restantes dos meus lanceiros mantinham ainda o grande edifício intacto. Eu conseguia ver os seus escudos e lanças a bloquearem o arco da porta, e via outra lança a surgir numa das altas janelas, por cuja empena saía o fumo. Dois dos meus batedores de caça estavam nessa janela, e as suas flechas impediam que os homens de Dinas e Lavaine trouxessem fogo do armazém em chamas para o telhado de colmo da casa senhorial. Ceinwyn, Morwenna e Seren estavam todas dentro da casa senhorial, juntamente com Merlim, Malaine e a maior parte das outras mulheres e crianças que viviam nos nossos domínios, mas estavam cercados por homens que excediam o seu número. Os druidas inimigos haviam encontrado Dian.
Dian estivera a dormir numa das choupanas, como fazia frequentes vezes, gostando de estar na companhia da sua velha ama, casada com o meu ferreiro, e talvez tenha sido o seu cabelo de ouro que a denunciou ou então, como lhe era característico, tivesse gritado desafios aos captores, dizendo-lhes que o seu pai se vingaria.
E agora Lavaine, vestido de preto e com a bainha vazia balouçando na sua anca, segurava Dian contra o seu corpo. Os seus pequenos pés sujos de terra saíam esticados por baixo do pequeno vestido branco que trazia e lutava o melhor que podia, mas Lavaine mantinha o seu braço esquerdo bem apertado em volta da sua cintura e na sua mão direita empunhava uma espada desembainhada contra a sua garganta.
Issa prendeu-me o braço para me impedir que carregasse furiosamente sobre a linha de homens com armaduras que se encontravam de frente para a casa cercada. Eram em número de vinte. Não via Dinas, mas suspeitei que estivesse com os outros lanceiros inimigos nas traseiras da casa, onde estariam a impedir a fuga de todas as almas sitiadas no interior.
Ceinwyn! Chamou Lavaine na sua voz cavada. Sai daí! O meu rei quer-te!
Pousei a minha lança e puxei da Hywelbane. A sua lâmina sibilou suavemente na parte de cima da bainha.
Sai cá para fora! Gritou Lavaine de novo.
Toquei nos pedaços de osso de porco que tinha no copo da espada, e depois rezei aos meus Deuses para que me fizessem terrível nessa noite.
Queres a tua cria morta? gritou Lavaine, e Dian gritava quando a lâmina da espada se estreitava na sua garganta. O teu homem morreu! gritou Lavaine. Morreu em Powys com Artur, e não virá para te socorrer. Pressionou a espada com mais força e Dian voltou a gritar.
Issa manteve a sua mão no meu braço.
Ainda não, Senhor sussurrou, ainda não.
Os escudos junto à porta da casa senhorial separaram-se e Ceinwyn saiu. Trazia uma capa escura presa à garganta.
Põe a criança no chão disse ela a Lavaine calmamente.
A criança será libertada quando vieres comigo disse Lavaine. O meu rei exige a tua companhia.
O teu rei? perguntou Ceinwyn. Que rei é esse? Ela sabia bem que homens haviam chegado nessa noite, pois os seus escudos por si só contavam essa história, mas não facilitaria nada a Lavaine.
O rei Lancelote disse Lavaine. Rei dos belgas e rei de Dumnónia Ceinwyn estreitou mais a sua capa escura junto aos ombros.
Então, o que quer o rei Lancelote de mim? perguntou. Atrás dela, no espaço das traseiras da casa, e debilmente iluminados pelo armazém em chamas, consegui ver mais alguns lanceiros de Lancelote. Haviam retirado os cavalos dos meus estábulos e observavam agora o confronto entre Ceinwyn e Lavaine.
Esta noite, Senhora explicou Lavaine, o meu rei casou-se Ceinwyn encolheu os ombros.
Então não precisa de mim.
A noiva, Senhora, não pode conceder ao meu rei os privilégios que um homem exige na sua noite de núpcias. Tereis de ser vós, Senhora, a satisfazer o seu prazer. É uma antiga dívida de honra que possuís. Além disso acrescentou Lavaine, agora sois viúva. Precisais de outro homem.
Fiquei ansioso, mas Issa agarrou de novo o meu braço, apertando-o. Um dos homens da Guarda Saxónica próximo de Lavaine estava impaciente e Issa sugeriu em surdina que esperássemos até o homem se descontrair de novo.
Ceinwyn inclinou a cabeça por alguns segundos, depois voltou a olhar para cima.
E se eu for contigo disse ela numa voz sombria, deixas a minha filha viver?
Viverá prometeu Lavaine.
E todos os outros também? perguntou, fazendo um gesto com a mão para a casa senhorial.
Esses também disse Lavaine.
Então liberta a minha filha pediu Ceinwyn.
Primeiro vem até aqui retorquiu Lavaine. E traz Merlim contigo. Dian deu-lhe um pontapé com os calcanhares nus, mas ele estreitou de novo a espada e ela permaneceu quieta. O telhado do armazém abateu, explodindo em fagulhas e bocados de palha em chamas que subiram no céu escuro. Algumas das chamas caíram no telhado de colmo da casa senhorial onde tremeluziram debilmente. Por ora, a água da chuva no telhado de colmo protegia a casa senhorial, mas eu sabia que, em breve, o telhado arderia.
Fiquei tenso, pronto para atacar, mas então Merlim surgiu por detrás de Ceinwyn. Vi que a sua barba estava novamente com tranças; trazia o seu grande bastão e deteve-se muito direito e sinistro, como há anos o não via. Colocou o seu braço direito em volta dos ombros de Ceinwyn.
Liberta a criança ordenou. Lavaine abanou a cabeça.
Fizemos um feitiço com a tua barba, velho, e tu não tens poder sobre nós. Todavia, esta noite teremos o prazer de conversar contigo enquanto o nosso rei tiver prazer com a princesa Ceinwyn. Vós os dois ordenou, vinde até aqui.
Merlim ergueu o bastão e apontou-o para Lavaine.
Na próxima lua cheia disse ele, morrerás junto ao mar. Tu e o teu irmão morrerão os dois e os vossos gritos ressoarão através dos tempos. Solta a criança.
Nimue silvou suavemente por trás de mim. Ela havia-se apoderado da minha lança e levantado a pala de couro que tapava a horrível cavidade vazia do seu olho.
Lavaine ficara imóvel com a profecia de Merlim.
Na próxima lua cheia disse ele ferveremos as tranças da tua barba em sangue de touro e entregaremos a tua alma ao verme Annwn cuspiu. Vós dois, acrescentou rapidamente, vinde aqui.
Liberta a minha filha pediu Ceinwyn.
Quando chegares a mim disse Lavaine, ela será libertada. Houve uma pausa. Ceinwyn e Merlim falaram baixo um com o outro.
Morwenna gritou do interior da casa senhorial e Ceinwyn virou-se e falou com a filha; depois tomou a mão de Merlim e começaram a caminhar em direcção a Lavaine.
Assim não, Senhora gritou-lhe Lavaine. O meu Rei e Senhor Lancelote exige que venhais até ele nua. O meu Rei e Senhor tomar-vos-á depois de passardes nua pelos campos e pela cidade e entrardes nua na sua cama. Havei-lo envergonhado, Senhora, e esta noite ele far-vos-á pagar a sua vergonha cem vezes.
Ceinwyn deteve-se e olhou-o irritada e com ferocidade. Mas Lavaine pressionou apenas a sua espada contra a garganta de Dian, a criança estremeceu de dor, e Ceinwyn instintivamente puxou o alfinete que apertava a sua capa e deixou-a cair, mostrando um simples vestido branco.
Despi o vestido, Senhora ordenou-lhe Lavaine asperamente, despi-o, ou a vossa filha morre.
Carreguei sobre eles. Gritei o nome de Bei e carreguei como um louco. Os meus homens acompanharam-me, e mais homens vieram da casa senhorial quando viram as estrelas brancas nos nossos escudos e as caudas cinzentas nos nossos elmos. Nimue atacou connosco, guinchando e gemendo, e eu vi a linha de lanceiros inimigos virar-se com o horror estampado nos seus rostos. Corri direito a Lavaine. Ele viu-me, reconheceu-me e gelou de terror. Disfarçara-se de sacerdote cristão, pendurando um crucifixo ao pescoço. Não era altura de os homens se disfarçarem de druidas, mas chegara a altura de Lavaine morrer e eu gritei o nome dos meus Deuses enquanto carregava sobre ele.
Um guarda saxão correu então para a minha frente com o seu machado brilhante a reflectir a luz das chamas ao mesmo tempo que oscilava a sua pesada lâmina em direcção ao meu crânio. Detive-a com o meu escudo e a força do golpe empurrou-me o braço para baixo. Depois, deslizei a Hywelbane para diante, rodei a lâmina na sua barriga e libertei-a com um puxão, trazendo atrás uma massa de intestinos saxónicos. Issa matara outro saxão e Scarach, a sua temida mulher irlandesa, viera da casa senhorial para bater num saxão ferido com o cabo de uma lança, enquanto Nimue levava a sua lança à barriga de um homem. Detive outro golpe de espada, deitei o lanceiro ao chão com a Hywelbane e olhei desesperadamente em volta à procura de Lavaine. Vi-o correr com Dian nos braços. Tentava chegar junto do irmão nas traseiras da casa quando um monte de lanceiros o interceptou e ele se virou, me viu e fugiu atravessando o portão. Levava Dian como um escudo.
Quero-o vivo! bradei e precipitei-me na sua direcção por entre o caos alumiado pelo fogo. Outro saxão aproximou-se de mim gritando o nome do seu Deus, e eu tirei-lhe o nome de Deus da garganta com uma estocada da Hywelbane. Depois Issa gritou um aviso e ouvi o barulho de cascos e vi que os inimigos que haviam estado a guardar as traseiras da casa senhorial atacavam a cavalo para resgatar os seus companheiros. Dinas, que estava vestido como o seu irmão com o hábito negro de um sacerdote cristão, comandava o ataque com uma espada desembainhada.
Detenham-nos! clamei. Ouvi Dian gritar. Os inimigos estavam em pânico. Suplantavam-nos em número, mas a irrupção de lanceiros da noite escura agitara demasiado os seus corações e a Nimue com um só olho, guinchando feroz com a sua lança ensanguentada, deve ter-lhes parecido um temível fantasma das trevas que viera para levar as suas almas. Fugiram aterrorizados. Lavaine aguardou o irmão perto do armazém em chamas e ainda detinha a sua espada na garganta de Dian. Scarach, silvando como Nimue, perseguiu-o em silêncio com a sua lança, mas ela não se atreveu a arriscar a vida da minha filha. Outros do inimigo treparam pela paliçada, alguns fugiram pelo portão, alguns foram derrubados na penumbra entre as cabanas e alguns outros escaparam correndo ao lado dos cavalos aterrorizados que ruidosamente passavam por nós para o meio da noite.
Dinas cavalgou direito a mim. Ergui o meu escudo, tomei o peso da Hywelbane e gritei um desafio, mas no último momento quando se preparava para lançar violentamente a sua espada à minha cabeça, desviou o cavalo de olhos brancos para o lado e cavalgou na direcção do irmão gémeo. Ao aproximar-se de Lavaine desceu da sela e estendeu-lhe os braços. Scarach precipitou-se rapidamente do caminho por onde o cavalo em carga passara assim que Lavaine saltou para o abraço salvador de Dinas. Este largou Dian e vi-a afastar-se dele enquanto eu corria atrás do cavalo. Lavaine agarrava-se desesperadamente ao irmão que com igual desespero se agarrava a uma correia da sela enquanto o cavalo se afastava galopando. Gritei-lhes para que ficassem e lutassem, mas os gémeos apenas galoparam para o meio das negras árvores por onde os outros sobreviventes inimigos haviam fugido. Amaldiçoei as suas almas. Detive-me ao portão e chamei-lhes insectos, cobardes e criaturas do mal.
Derfel? chamou-me Ceinwyn atrás de mim. Derfel? Abandonei as minhas pragas e virei-me para ela.
Estou vivo disse eu, estou vivo.
Oh, Derfel! gemeu ela, e foi então que vi que Ceinwyn segurava Dian e que o seu vestido branco já não era branco mas vermelho.
Corri para junto delas. Dian estava aconchegada com firmeza nos braços de sua mãe. Deixei cair a minha espada, arranquei o elmo da cabeça e caí de joelhos ao seu lado.
Dian? sussurrei. Meu amor?
Vi a sua alma tremeluzir nos seus olhos. Ela viu-me viu-me, sem dúvida, e viu a sua mãe antes de morrer. Olhou para nós por um instante e depois a sua jovem alma voou tão branda como uma asa na escuridão e estremecendo apenas como a chama de uma vela a extinguir-se com uma brisa de vento. A sua garganta fora cortada quando Lavaine saltara para os braços do irmão, e agora o seu pequeno coração desistia da batalha. Mas ela viu-me primeiro. Eu sei que viu. Ela viu-me, depois morreu. Coloquei os meus braços à sua volta e da sua mãe e chorei como uma criança. Pela minha adorada Dian, chorei.
Havíamos detido quatro prisioneiros ilesos. Um pertencia à Guarda Saxónica e três eram lanceiros belgas. Merlim interrogou-os, e depois de acabar cortei os quatro aos bocados. Chacinei-os. Matei com raiva, soluçando enquanto os matava, cego para tudo excepto para o peso da Hywelbane e a vazia satisfação de sentir a sua lâmina a ferir as suas carnes. Um a um, diante dos meus homens, diante de Ceinwyn, diante de Morwenna e de Seren, matei com crueldade os quatro homens, e quando terminei a Hywelbane estava molhada e vermelha da ponta ao copo, mas continuei a mutilar os seus corpos já sem vida. Os meus braços estavam ensopados de sangue, a minha raiva podia ter enchido o mundo inteiro e ainda assim não me traria a pequena Dian de volta.
Desejei mais homens para matar, mas os inimigos feridos já tinham as suas goelas cortadas e deste modo, sem mais vingança para fazer e ensanguentado como estava, caminhei para as minhas filhas aterrorizadas e segurei-as nos braços. Eu não conseguia parar de chorar; nem elas. Segurei-as como se a minha vida dependesse das suas, e depois levei-as até junto de Ceinwyn, que ainda embalava o cadáver de Dian. Abri gentilmente os braços de Ceinwyn e coloquei-os em torno das suas filhas vivas, depois peguei no pequeno corpo de Dian e levei-o para o armazém em chamas. Merlim acompanhou-me. Tocou com o seu bastão na testa de Dian, depois fez-me um aceno com a cabeça. Era tempo, dizia ele, de deixar a alma de Dian atravessar a ponte das espadas. Mas primeiro beijei-a, depois pousei o seu corpo e usei a minha faca para cortar uma madeixa espessa do seu cabelo dourado, que coloquei cuidadosamente na minha bolsa. Feito isto, voltei a levantá-la, beijei-a uma última vez e atirei o seu cadáver para as chamas. O seu cabelo e o seu vestidinho branco luziram.
Espevitai o fogo! disse Merlim com brusquidão para os meus homens. Alimentai-o!
Deitaram abaixo uma cabana para transformar o fogo numa fornalha, que consumisse o corpo de Dian até nada restar. A sua alma já se encaminhava para o seu corpo-sombra no Outro Mundo, e agora a sua pira funerária crepitava no escuro enquanto eu me ajoelhava diante das chamas com uma alma vazia e enraivecida.
Merlim ergueu-me.
Temos de ir, Derfel.
Eu sei.
Abraçou-me, estreitando-me com força nos seus braços longos e fortes como um pai.
Se eu a pudesse ter salvo disse ele suavemente.
Haveis tentado disse eu, e amaldiçoei-me por me ter demorado em Ynys Wydryn.
Vem disse Merlim. Temos de estar bem longe pelo amanhecer. Pegámos no pouco que conseguíamos levar. Desfiz-me da armadura ensanguentada que envergava e vesti a minha cota de malha ornamentada a ouro. Seren levou três gatinhes num saco de couro, Morwenna uma roca e uma trouxa de roupa, enquanto Ceinwyn transportou um saco de comida. Ao todo éramos oitenta; lanceiros, famílias, criados e escravos, e todos eles haviam atirado uma qualquer pequena lembrança para a pira funerária; um pedaço de pão, na sua maioria, embora Gwlyddyn, o criado de Merlim, tivesse atirado o coracle de Dian para as chamas para que ela pudesse guiá-lo pelos lagos e ancoradouros do Outro Mundo.
Ceinwyn, caminhando com Merlim e Malaine, o seu irmão druida, perguntou o que acontecia às crianças no Outro Mundo.
Brincam disse Merlim com toda a sua antiga autoridade. Elas brincam por baixo das macieiras e esperam por ti.
Ela será feliz tranquilizou-a Malaine. Ele era um jovem alto, magro e com o corpo inclinado para diante, que transportava o velho bastão de lorweth. Pareceu chocado com o horror desta noite, e estava claramente nervoso por causa do vestido imundo e manchado de sangue de Nimue. A pala do seu olho havia desaparecido e o seu cabelo sinistro pendia liso e sujo.
Uma vez satisfeita com o destino de Dian, Ceinwyn colocou-se ao meu lado, caminhando comigo. Eu sentia ainda uma estranha agonia, culpando-me por ter parado para ver a cerimónia de casamento de Lancelote, mas Ceinwyn estava agora mais calma.
Foi o destino, Derfel disse ela, e ela agora está feliz. Tomou o meu braço. E tu estás vivo. Eles disseram-nos que vocês estavam mortos. Os dois, tu e Artur.
Ele vive prometi-lhe. Caminhei em silêncio, seguindo os hábitos brancos dos dois druidas. Um dia disse eu algum tempo depois encontrarei Dinas e Lavaine e a sua morte será terrível.
Ceinwyn apertou-me o braço.
Quão felizes nós éramos todos juntos disse ela. Começara de novo a chorar e eu tentei encontrar palavras para a consolar, mas não podia haver explicação para os Deuses nos terem roubado Dian. Atrás de nós, luzindo no céu da noite, as chamas e o fumo da casa senhorial de Ermid agitavam-se em direcção às estrelas. O telhado de colmo da casa senhorial pegara finalmente fogo e a nossa antiga vida desvanecia-se em cinzas.
Seguimos um caminho tortuoso junto à margem da lagoa. A Lua deslizara de trás das suas nuvens para espalhar uma luz de prata sobre os juncos e os salgueiros e pelo lago pouco profundo e ondulado pelo vento. Caminhámos em direcção ao mar, todavia eu mal pensara no que devíamos fazer quando chegássemos à costa. Os homens de Lancelote andariam à nossa procura, isso era certo, e de um qualquer modo nós precisávamos de encontrar segurança.
Merlim questionara os nossos prisioneiros antes de eu os matar e contou-nos então, a Ceinwyn e a mim, o que soubera. Muitas das coisas já nós sabíamos. Dizia-se que Mordred fora morto enquanto caçava e um dos prisioneiros clamara que o rei fora assassinado pelo pai de uma rapariga que havia violado. Corriam rumores que Artur estaria morto e por isso Lancelote se declarara o rei de Dumnónia. Os cristãos haviam-no acolhido acreditando que Lancelote era o seu novo João Baptista, um homem que pressagiara a primeira vinda de Cristo, tal como Lancelote pressagiava agora a segunda.
Artur não morreu afirmei amargamente. Era suposto ter sido morto, e era suposto eu morrer com ele, mas falharam. E como pode Lancelote ter sabido tão depressa da sua morte, se eu vi Artur há três dias? perguntei.
Ele não ouviu coisa alguma disse Merlim calmamente. Ele apenas o desejava.
Cuspi.
Foram Sansum e Lancelote disse eu irritado. Provavelmente Lancelote preparou a morte de Mordred e Sansum as nossas. Agora Sansum tem o seu rei cristão e Lancelote tem Dumnónia.
Só que tu estás vivo disse Ceinwyn com suavidade.
E Artur vive disse eu, e se Mordred está morto, então o trono pertence a Artur.
Só se ele desafiar Lancelote disse Merlim secamente.
Certamente que ele desafiará Lancelote disse eu teimosamente.
Artur está enfraquecido avisou-me Merlim com gentileza. Muitos dos seus homens foram mortos. Todos os guardas de Mordred estão mortos, assim como todos os lanceiros em Caer Cadarn. Cei e os seus homens estão mortos em Isca, ou se não estão mortos, são fugitivos. Os cristãos rebelaram-se, Derfel. Ouvi dizer que marcaram as suas casas com o símbolo do peixe, e os habitantes das que não o tivessem seriam chacinados. Caminhou num silêncio sombrio por algum tempo. Eles estão a purificar a Bretanha para a vinda do seu Deus.
Mas Lancelote não matou Sagramor disse eu, fazendo votos para o que afirmara fosse verdade, e Sagramor comanda um exército.
Sagramor vive assegurou-me Merlim, e depois deu a pior notícia daquela terrível noite, mas foi atacado por Cerdic. Creio continuou que Lancelote e Cerdic podem bem ter acordado dividir Dumnónia entre si. Cerdic tomará as regiões da fronteira e Lancelote governará o resto.
Não consegui encontrar nada para dizer. Parecia incompreensível. Cerdic andava livremente pela Dumnónia? E os cristãos haviam-se sublevado para fazer de Lancelote o seu rei? E tudo havia acontecido tão rapidamente, no espaço de dias, e não houvera qualquer sinal disso antes de eu deixar Dumnónia.
Houve sinais disse Merlim, lendo o meu pensamento. Apenas aconteceu que nenhum de nós os tomou a sério. Quem se importava que alguns cristãos pintassem o peixe nas paredes das suas casas? Quem reparou nos seus frenesins? Habituámo-nos tanto ao palavreado dos seus sacerdotes que deixámos de escutar o que diziam. E quem de nós acredita que o seu Deus virá à Bretanha dentro de quatro anos? Havia sinais a toda a nossa volta, Derfel, e nós mantivémo-nos cegos diante deles. Todavia não foi isso o que causou este horror.
Sansum e Lancelote causaram-no disse eu.
Trouxe-o o Caldeirão disse Merlim. Alguém o utilizou, Derfel, e o seu poder está livre pela terra. Suspeito que Dinas e Lavaine o tenham, mas não sabem como controlá-lo e desse modo espalharam o seu horror.
Continuei a caminhar em silêncio. O mar Severn era agora visível, numa maré escura prateada ondulando suavemente sob uma Lua que descia no horizonte. Ceinwyn chorava baixinho e eu tomei a sua mão.
Descobri disse-lhe eu, tentando distraí-la do seu sofrimento quem é meu pai. Só ontem o descobri.
O teu pai é Aelle disse Merlim tranquilamente. Olhei-o fixamente.
Como sabíeis?
Está no teu rosto, Derfel, no teu rosto. Esta noite, quando atravessaste o portão, faltava-te apenas uma capa preta de pêlo de urso para ser ele. Sorriu-me. Recordo-me de ti como um rapazinho sério, todas as perguntas e olhares carregados, depois esta noite vieste como um guerreiro dos Deuses, um ser aterrador de ferro, aço, plumas e escudo.
É verdade? perguntou-me Ceinwyn.
Sim admiti, temi qual pudesse ser a sua reacção. Não necessitava de ter receado.
Então Aelle deve ser um grande homem disse ela com firmeza, e lançou-me um sorriso triste, meu Príncipe e Senhor.
Alcançámos o mar e virámos para Norte. A partir daí podíamos apenas dirigir-nos para Gwent e Powys para onde a demência ainda não se espalhara, mas o nosso caminho terminava num local onde a areia da praia se esgotava numa língua de terra e onde a maré quebrava branca numa vasta mas pequena ondulação de lodo. À nossa esquerda estava o mar, à nossa direita estavam os pântanos de Avalon, e pareceu-me estarmos aí cercados, mas Merlim disse-nos para que não nos preocupássemos.
Descansai disse ele, pois o auxílio em breve chegará. Olhou para Leste para ver uma réstia de luz surgindo por cima das colinas para lá dos pântanos. Aurora anunciou ele e quando o Sol estiver bem alto, o nosso auxílio virá. Sentou-se e rezou com Seren e os seus gatinhos enquanto os restantes se deitavam na areia com as trouxas ao lado, e Pyrlig, o nosso bardo, cantava a Canção de Amor de Rhiannon, que sempre fora a canção favorita de Dian. Ceinwyn, com um braço em volta de Morwenna, chorava enquanto eu olhava fixamente para o mar cinzento agitado e sonhava com a vingança.
O Sol despontou, prometendo outro belo dia de Verão em Dumnónia, embora neste dia os cavaleiros com armaduras de ferro estivessem a espalhar-se pelo campo à nossa procura. O Caldeirão fora finalmente usado, os cristãos haviam-se juntado diante do estandarte de Lancelote, o horror espalhava-se, atravessando a terra e todo o trabalho de Artur fora afrontado.
Nessa manhã, os homens de Lancelote não eram os únicos a procurar-nos. As aldeias dos pântanos haviam sabido da notícia da casa senhorial de Ermid, tal como haviam ouvido que a horripilante cerimónia em Ynys Wydryn fora um casamento cristão. Porque qualquer inimigo dos cristãos era um amigo das gentes do pântano, os seus barqueiros, batedores de caça e caçadores dispuseram-se em longas fileiras atravessando os pântanos à nossa procura.
Encontraram-nos duas horas depois de raiar o dia e levaram-nos para Norte através dos caminhos pantanosos onde nenhum inimigo se atreveria a entrar. Ao cair da noite, já fora dos pântanos, aproximámo-nos da cidade de Abona onde barcos velejavam para a costa siluriana com cargas de cereais, olaria, estanho e chumbo. Um grupo dos homens de Lancelote guardava os molhes de construção romana que formavam em linha o porto do rio, mas o seu exército estava pouco disperso e não havia mais de vinte lanceiros vigiando os barcos, estando na sua maioria quase ébrios com uma carga pilhada de hidromel. Matámo-los a todos. A morte já havia chegado a Abona, pois os corpos de uma dúzia de pagãos jazia na lama acima da estreita linha do rio. Os cristãos fanáticos que haviam chacinado os pagãos já haviam partido para se juntar ao exército de Lancelote, e as gentes que permaneceram na cidade estavam cheias de medo. Contaram-nos o que havia acontecido na cidade, juraram a sua própria inocência em relação às mortes, depois trancaram as suas portas, onde era visível a marca do peixe. Na manhã seguinte, numa maré cheia, velejámos rumo à Isca siluriana, o forte no Usk, onde outrora Lancelote havia feito o seu palácio quando se aborreceu com o inadequado trono de Silúria.
Ceinwyn sentou-se ao meu lado nos embornais do barco.
É estranho disse ela como as guerras começam e terminam com os reis.
Como? perguntei. Ela encolheu os ombros.
Uther morreu e apenas se combateu até Artur matar o meu pai, depois tivemos paz, e agora Mordred chega ao trono e temos guerra de novo. É como as estações, Derfel. A guerra vem e volta. Encostou a sua cabeça ao meu ombro. Então o que faremos agora? perguntou.
Tu e as meninas vão para Norte, para Caer Sws afirmei e eu ficarei para lutar.
Irá Artur lutar? quis ela saber.
Se Guinevere tiver sido morta disse eu, ele lutará até não haver nenhum inimigo vivo. Nada ouvíramos sobre Guinevere, mas com cristãos a saquearem por toda a Dumnónia pareceu improvável que não tivesse sido molestada.
Pobre Guinevere disse Ceinwyn e pobre Gwydre. Ela gostava muito do filho de Artur.
Acostámos no rio Usk, salvos, por fim, num território governado por Meurig, e daí caminhámos para Norte, para Burrium, a capital de Gwent. Este era um país cristão, mas não fora infectado pela demência que assolara Dumnónia. Gwent tinha já um rei cristão, e talvez essa circunstância tivesse sido suficiente para manter o seu povo calmo. Meurig culpou Artur.
Ele devia ter contido o paganismo disse-nos ele.
Porquê, meu Rei e Senhor? perguntei. O próprio Artur é pagão.
A verdade de Cristo é cegamente óbvia, devia eu ter pensado disse Meurig. Se um homem não consegue ler os cursos da história então só terá de se culpar O cristianismo. é o futuro, Lorde Derfel, e o paganismo é o seu passado.
Não é um grande futuro acrescentei com desdém se for para a história terminar dentro de quatro anos.
Não termina! disse Meurig. Começa! Quando Cristo vier novamente, Lorde Derfel, terão chegado os dias de glória! Todos seremos reis, todos ficarão contentes e todos serão abençoados.
Excepto nós pagãos.
Naturalmente, o inferno terá de ser alimentado. Contudo, tereis ainda tempo de aceitardes a verdadeira fé.
Tanto eu como Ceinwyn declinámos o convite para nos baptizarmos e, na manhã seguinte, ela partiu para Powys com Morwenna, Seren e as outras mulheres e crianças. Nós, lanceiros, abraçámos as nossas famílias e ficámos a vê-las afastarem-se para Norte. Meurig concedeu-lhes uma escolta e eu enviei seis dos meus homens com ordens para voltarem a Sul assim que as mulheres estivessem em segurança à guarda de Cuneglas. Malaine, druida de Powys seguiu com eles, mas Merlim e Nimue, cuja chama pela busca do Caldeirão de repente ardia tão fogosa como na Estrada Sombria, permaneceram connosco.
O rei Meurig viajou connosco para Glevum. Esta era uma cidade dumnoniana, mas situada justamente na fronteira de Gwent e os seus muros de terra e madeira guardavam o território de Meurig. Deste modo, muito sensatamente, havia já colocado uma guarnição de lanceiros seus para garantir que os tumultos de Dumnónia não se espalhavam para norte para Gwent. Levámos meio dia a chegar a Glevum e aí, no grande castelo romano onde fora instalado o último Grande Conselho de Uther, encontrei os meus restantes homens, os homens de Artur e ele próprio.
Viu-me entrar no castelo e o alívio espelhado no seu rosto foi tão sentido que os meus olhos se encheram de lágrimas. Os meus lanceiros, que haviam permanecido com Artur quando me dirigi para Sul à procura de minha mãe, bradaram vivas, e os curtos instantes que se seguiram foram preenchidos com ruidosos encontros e troca de notícias. Contei-lhes da casa senhorial de Ermid, disse-lhes o nome dos homens que haviam morrido, assegurei-lhes que as suas mulheres ainda viviam, e depois olhei para Artur.
Contudo, mataram Dian disse eu.
Dian? Creio que a princípio ele não acreditou em mim.
Dian disse eu, e lágrimas desventuradas voltaram a surgir nos meus olhos.
Artur conduziu-me devagar para fora do castelo e caminhou com o seu braço direito em volta dos meus ombros em direcção às muralhas de Glevum, onde lanceiros de Meurig com capas vermelhas fortificavam agora todas as plataformas de combate. Obrigou-me a contar de novo toda a história, justamente a partir do momento em que o havia deixado até à altura em que apanháramos o barco em Abona.
Dinas e Lavaine. Proferiu os nomes em tom amargo, depois desembainhou a Excalibur e beijou a lâmina cinzenta. A tua vingança é minha afirmou com formalidade, depois deslizou a espada na bainha.
Nada dissemos por algum tempo, inclinando-nos tão-só no cimo do muro e olhando fixamente o vasto vale a sul de Glevum. Quão calmo nos pareceu. O feno estava quase pronto para ser cortado e havia viçosas papoilas por entre o milho.
Tens notícias de Guinevere? Artur quebrou o silêncio e percebi algo próximo do desespero na sua voz.
Não, Senhor.
Estremeceu, depois recuperou o controlo.
Os cristãos odeiam-na disse ele em voz baixa, e depois, coisa que não lhe era característica, tocou no ferro do copo da Excalibur para afastar o mal.
Senhor tentei acalmá-lo, ela tem guardas. E o seu palácio fica junto ao mar. Teria fugido se houvesse perigo.
Para onde? Broceliande? Mas supõe que Cerdic enviou barcos? Cerrou os olhos por alguns segundos, depois abanou a cabeça. Apenas podemos aguardar novas.
Perguntei-lhe se sabia de Mordred, mas nada mais ouvira do que todos nós.
Suspeito que esteja morto afirmou sombriamente porque se tivesse fugido já havia tempo de aqui ter chegado para se juntar a nós.
Tinha, de facto, novas de Sagramor, e estas eram más.
Cerdic feriu-o gravemente. Caer Ambra caiu, Calleva desapareceu e Corinium está cercado. Eu devia ter aí permanecido por mais alguns dias, pois Sagramor conseguiu acrescentar duzentas lanças à sua guarnição, mas os seus mantimentos acabarão pelo final do mês. Parece que temos de novo a guerra. Deu uma gargalhada curta e seca. Tinhas razão quanto a Lancelote, não era? E eu estava cego. Tomei-o como amigo.
Eu nada disse, olhando-o apenas de soslaio e vi, para minha surpresa, que havia cabelos grisalhos nas suas têmporas. Para mim ele era ainda jovem, mas suponho que se algum homem o conhecesse nessa altura pela primeira vez, julgá-lo-ia bem próximo da meia-idade.
Como foi Lancelote capaz de trazer Cerdic para Dumnónia perguntou zangado, ou de encorajar os cristãos na sua demência?
Por querer ser rei de Dumnónia afirmei, e ele precisa das suas lanças. E Sansum deseja ser seu conselheiro-chefe, o seu tesoureiro real e ainda tudo o mais.
Artur estremeceu.
Julgas que foi mesmo Sansum quem planeou as nossas mortes no santuário de Cadoc?
Quem mais poderia ser? indaguei. Foi Sansum, creio, quem primeiro associou o peixe no escudo de Lancelote ao nome de Cristo, e ele quem levou a excitação da comunidade cristã ao fervor que precipitaria Lancelote para o trono de Dumnónia. Tive dúvidas que Sansum acreditasse muito na iminente vinda de Cristo, mas ele quis, de facto, deter tanto poder quanto pudesse e Lancelote era o candidato de Sansum para a realeza de Dumnónia. Se Lancelote tivesse êxito na tomada do trono, todas as rédeas do poder voltariam para as garras de Lorde Rato. Ele é um estupor perigoso afirmei vingativo. Devíamos tê-lo morto há dez anos.
Pobre Morgana suspirou Artur. Depois fez uma careta. O que fizemos nós de errado? perguntou-me ele.
Nós? perguntei indignado. Nada fizemos de errado.
Nunca compreendemos o que queriam os cristãos afirmou. Mas o que poderíamos ter feito caso soubéssemos? Eles apenas aceitariam a vitória total.
Nada foi algo que tenhamos feito disse eu, apenas o que o calendário lhes fez a eles. O ano quinhentos enlouqueceu-os.
Eu tinha esperanças afirmou brandamente que tivéssemos afastado Dumnónia da demência.
Concedestes-lhes a paz, Senhor afirmei e a paz permitiu-lhes produzir a sua demência. Se em todos estes anos tivéssemos lutado contra os Saxões, todas as suas energias se teriam esgotado na batalha e na sobrevivência, mas em vez disso demos-lhes a oportunidade de fomentar as suas idiotices.
Encolheu os ombros.
Mas o que fazemos nós agora?
Agora? disse eu. Lutamos!
Com quê? perguntou amargamente. Sagramor tem as mãos ocupadas com Cerdic. Cuneglas enviar-nos-á lanças, estou certo, mas Meurig não pelejará.
Não? perguntei, alarmado. Mas ele prestou o juramento da Távola Redonda!
Artur sorriu tristemente.
Esses juramentos, Derfel, como nos perseguiram. E nestes dias tristes, parece-me, os homens prestam-nos tão levianamente. Lancelote também prestou o juramento, não foi? Mas Meurig diz que com Mordred morto não há casus belli. Citou o latim amargamente, e recordei-me de Meurig usar as mesmas palavras antes do Vale do Lugg, e como Culhwuch zombara da erudição do rei ao distorcer o latim dizendo "a barriga da vaca".
Culhwuch virá afirmei.
Para lutar pelos territórios de Mordred? perguntou Artur. Tenho dúvidas.
Para lutar por vós, Senhor afirmei. Uma vez que Mordred está morto, sois vós o rei.
Sorriu amargamente diante desta declaração.
Rei de quê? De Glevum? Riu. Tenho-te a ti, tenho Sagramor, tenho o que Cuneglas me der, mas Lancelote tem Dumnónia e tem Cerdic. Caminhou em silêncio por algum tempo, depois lançou-me um sorriso desonesto. Temos de facto outro aliado, embora dificilmente seja amigo. Aelle retirou vantagem da ausência de Cerdic para retomar Londres. Talvez Cerdic e ele se matem um ao outro?
Aelle afirmei será morto pelo seu filho, não por Cerdic. Lançou-me um olhar motejador.
Que filho?
É uma maldição afirmei e sou eu o filho de Aelle. Deteve-se e olhou-me pasmado para ver se eu gracejava.
Tu? perguntou.
Eu, Senhor.
É verdade?
Juro pela minha honra, Senhor, sou o filho do vosso inimigo. Continuou a olhar-me admirado, depois começou a rir. O riso era genuíno e extravagante, terminando em lágrimas que limpou enquanto abanava a cabeça divertido.
Caro Derfel! Se pelo menos Uther e Aelle soubessem! Uther e Aelle, os grandes inimigos, cujos filhos se tornaram amigos. O destino é inexorável.
Talvez Aelle saiba afirmei, lembrando-me quão gracilmente ele me admoestara por ignorar Erce.
Agora ele é nosso aliado afirmou Artur, quer o queiramos quer não. A menos que a nossa escolha seja não lutar.
Não lutar? perguntei horrorizado.
Há alturas disse Artur suavemente em que tudo o que desejo é ter Guinevere e Gwydre de novo e uma pequena casa onde possamos viver em paz. Estou até tentado a jurar, Derfel, que se os Deuses me devolverem a minha família, nunca mais os perturbarei. Irei para uma casa como a que tens em Powys, lembras-te?
A Cwm Isaf afirmei, e interroguei-me como Artur podia alguma vez acreditar que Guinevere pudesse ser feliz em tal lugar.
Mesmo igual a Cwm Isaf afirmou melancolicamente. Um arado, alguns terrenos, um filho para criar, um rei a quem respeitar e canções à noite, à lareira. Virou-se e olhou fixamente de novo para Sul. A leste do vale grandes colinas verdes erguiam-se íngremes, e os homens de Cerdic não estavam muito longe desses cumes. Estou cansado de tudo isto afirmou Artur. Por um momento quase chegou às lágrimas. Pensa em tudo o que conseguimos, Derfel, todas as estradas, tribunais e pontes, e todas as disputas que resolvemos e toda a prosperidade que criámos, e tudo isso se transformou em nada por causa da religião! Religião! Cuspiu sobre as muralhas. Valerá ainda a pena lutarmos pela Dumnónia?
Vale a pena lutarmos pela alma de Dian afirmei, e enquanto Dinas e Lavaine viverem não estarei em paz. E eu rezo, Senhor, para que não tenhais semelhantes mortes para vingar, mas ainda assim deveis lutar. Se Mordred está morto, então sois vós o rei, e se ele vive, temos os nossos juramentos.
Os nossos juramentos disse ele ressentido, e estou certo que pensava nas palavras que proferira naquele promontório sobre o mar onde Isolda fora condenada a morrer. Os nossos juramentos disse de novo.
Mas os juramentos eram tudo o que agora tínhamos, pois eram eles os nossos guias em épocas de caos, e este atravessava agora copiosamente toda a Dumnónia. Pois alguém havia entornado o poder do Caldeirão e os seus horrores ameaçavam submergir-nos a todos.
Nesse Verão, Dumnónia assemelhava-se a um alvo gigantesco e Lancelote arremessara bem os seus pedaços, ganhando metade do alvo com o seu arremesso sem barreiras. Restituíra o vale do Tamisa aos Saxões, todavia mas as restantes regiões do país eram agora suas, graças aos cristãos que cegamente haviam lutado por ele, porque o seu escudo ostentava o seu símbolo místico do peixe. Tive dúvidas que Lancelote continuasse a ser mais cristão do que Mordred fora, mas os missionários de Sansum haviam propalado a sua insidiosa mensagem, e no que dizia respeito aos pobres cristãos desiludidos, Lancelote era o mensageiro de Cristo.
Lancelote não alcançara todos os seus desígnios. O seu conluio para matar Artur falhara, e enquanto Artur vivesse Lancelote corria perigo. Todavia no dia a seguir à minha chegada a Glevum, ele tentou limpar o alvo. Tentou vencê-lo por completo.
Enviou um cavaleiro com o seu escudo virado ao contrário e um raminho de visco-branco preso à ponta da sua lança. O cavaleiro transportava uma mensagem que chamava Artur a Dun Ceinach, uma antiga fortaleza de terra, erigida no seu cume, apenas a algumas milhas a sul das muralhas de Glevum. A mensagem pedia que Artur se deslocasse ao antigo forte nesse mesmo dia, garantia a sua segurança e permitia-lhe que se fizesse acompanhar de tantos lanceiros quantos desejasse. O tom imperioso da mensagem quase convidava à recusa, mas terminava prometendo a Artur novas de Guinevere, e Lancelote de certo soubera que essa promessa levaria Artur a sair de Glevum.
Partiu uma hora depois. Acompanhámo-lo vinte homens, todos de armaduras aprestadas sob um Sol escaldante. Enormes nuvens brancas deslocavam-se lentamente sobre as colinas, que se erguiam íngremes na vertente leste do amplo vale do Severn. Podíamos ter seguido os trilhos que serpenteavam em torno dessas colinas, mas atravessavam muitos locais onde podia estar montada uma emboscada e, deste modo, tomámos a estrada sul ao longo do vale, uma estrada romana que se precipitava pelos campos onde as papoilas resplandeciam por entre o centeio que se alongava e a cevada. Decorrida uma hora de caminho, virámos para Leste e galopámos junto a uma sebe branqueada pelos espinheiros-alvar em flor, depois atravessámos uma campina de feno quase pronto para a ceifa, e deste modo chegámos à íngreme encosta coberta de erva, encimada pelo antigo forte. Ovelhas dispersaram em várias direcções à medida que subíamos a vertente, que, de tão íngreme, preferi deslizar do dorso do meu cavalo e conduzi-lo pelas rédeas. Tufos de orquídeas floriam, cor-de-rosa e castanhas por entre a erva.
Detivémo-nos uns cem passos abaixo do cume e subi sozinho para me assegurar de que nenhuma emboscada nos aguardava por detrás dos altos muros do forte revestidos com erva. Quando os alcancei arfava e suava, mas nenhum inimigo rastejava por detrás do talude. Na verdade, o velho forte parecia deserto não fora duas lebres que fugiram diante do meu repentino aparecimento. O silêncio do topo da colina tornou-se cauteloso, e foi então que um único cavaleiro surgiu do meio de algumas pequenas árvores, que cresciam na parte norte do forte. Trazia uma lança, que com grande alarde atirou ao chão, virou o seu escudo ao contrário e depois deslizou do dorso do seu cavalo. Uma dúzia de homens seguiu-o saindo do meio das árvores e também eles atiraram as suas lanças para o chão como que para me reafirmar que a sua promessa de uma trégua era genuína.
Acenei a Artur para que subisse. Os seus cavalos detiveram-se junto ao muro e ele e eu seguimos apeados. Artur envergava a sua melhor armadura, pois não vinha como suplicante, mas como um guerreiro com um elmo de plumas brancas e uma capa prateada sobre uma armadura de lâminas metálicas.
Dois homens foram ao nosso encontro. Eu esperava ver o próprio Lancelote, mas foi Bors, seu primo e paladino, quem se aproximou de nós. Era um homem alto, de cabelo negro, barba farta e ombros largos; um guerreiro de predicados. Bors não me desagradava nem eu a ele, porém as nossas lealdades ditavam que devíamos ser inimigos.
Bors acenou com a cabeça um cumprimento breve. Envergava a sua armadura, mas o seu companheiro caminhava em vestes de sacerdote. Era o bispo Sansum. Esse facto surpreendeu-me, visto Sansum ser bastante cauteloso na dissimulação das suas lealdades, e pensei que o nosso Lorde Rato, se tão notoriamente ostentava a sua fidelidade a Lancelote, estaria muito confiante da vitória. Artur lançou-lhe um rápido olhar de repúdio, depois olhou para Bors.
Tendes novas de minha esposa? perguntou com brevidade.
Ela vive afirmou Bors e está acautelada, bem como vosso filho. Artur cerrou os olhos. Não conseguia esconder o alívio que sentia, e até por breves instantes nem mesmo conseguiu falar.
Onde estão eles? perguntou depois de se ter recomposto.
No Palácio do Mar afirmou Bors, sob escolta.
Mantendes mulheres cativas? perguntei com desdém.
Eles estão sob escolta, Derfel respondeu Bors com igual desdém, visto os cristãos de Dumnónia estarem a chacinar os seus inimigos. E esses cristãos, Lorde Artur, não têm afeição por vossa esposa. O meu Rei e Senhor Lancelote tem vossa esposa e vosso filho sob sua protecção.
Então o vosso Rei e Senhor Lancelote disse Artur com um laivo de sarcasmo pode trazê-los para Norte sob escolta.
Não disse Bors. Tinha a cabeça descoberta e o calor do Sol fazia com que o suor lhe escorresse para a cara larga e marcada com cicatrizes.
Não? perguntou Artur perigosamente.
Tenho uma mensagem que vos é dirigida, Senhor informou Bors desafiadoramente, e é a seguinte. O meu Rei e Senhor concede-vos o direito de viver em Dumnónia com vossa esposa. Sereis tratado com honrarias, mas tão-só se prestardes um juramento de lealdade ao meu rei.
Fez uma pausa e lançou um rápido olhar ao céu. Era um daqueles portentosos dias em que a Lua partilha o céu com o Sol, e ele gesticulou na direcção da Lua, que estava abalonada algures entre a meia-lua e a lua cheia.
Até chegar à lua cheia disse ele deveis apresentar-vos diante do meu Rei e Senhor em Caer Cadarn. Podeis levar não mais de dez homens, prestareis o vosso juramento, e podeis depois viver em paz sob o seu domínio.
Cuspi para mostrar o que pensava em relação à sua promessa, mas Artur ergueu uma mão para conter a minha fúria.
E se eu não for? perguntou.
Outro homem poderia ter sentido embaraço por entregar a mensagem, mas Bors não mostrou quaisquer escrúpulos.
Se não vierdes informou ele então o meu Rei e Senhor presumirá que estais em guerra com ele, caso em que precisará de todas as lanças que conseguir reunir. Mesmo daquelas que protegem agora a vossa esposa e o vosso filho.
Então os cristãos dele, Artur fez um movimento brusco com o queixo na direcção de Sansum podem matá-los?
Ela pode sempre ser baptizada! intrometeu-se Sansum. Agarrava na cruz que lhe pendia sobre o hábito negro. Garantirei a sua segurança se ela for baptizada.
Artur fitou-o. Depois, bem deliberadamente, cuspiu em cheio na cara de Sansum. O bispo fez um movimento súbito e brusco para trás. Reparei que Bors se divertia e suspeitei que a pouca afeição entre o paladino de Lancelote e o seu capelão acabava de desaparecer. Artur voltou a olhar para Bors.
Dizei-me de Mordred pediu ele. Bors pareceu surpreendido com a pergunta.
Outras novas não tenho para vos dizer afirmou depois de uma pausa. Está morto.
Haveis visto o seu cadáver? perguntou Artur. Bors voltou a hesitar, depois abanou a cabeça.
Foi morto por um homem cuja filha violara. Coisa diversa não sei, senão que o meu Rei e Senhor veio para a Dumnónia para reprimir os tumultos que se seguiram à sua morte. Fez uma pausa como se esperasse que Artur dissesse algo mais, mas como não o fizesse levantou apenas os olhos para a lua. Tendes até à Lua cheia acrescentou. Virou-se e afastou-se.
Um instante! gritei, fazendo com que Bors se virasse. E eu? perguntei.
Os olhos severos de Bors penetraram fixamente os meus.
O que há contigo? perguntou com desdém.
O assassino de minha filha exige um juramento meu? perguntei.
O meu Rei e Senhor nada quer de ti disse Bors.
Diz-lhe então, comuniquei-lhe que dele quero um benefício. Diz-lhe que quero as almas de Dinas e de Lavaine, e que se for a última coisa que me permita fazer, tê-las-ei.
Bors encolheu os ombros como se as suas mortes para ele nada significassem, depois voltou a olhar para Artur.
Aguardar-vos-emos em Caer Cadarn, Senhor disse ele e depois afastou-se. Sansum ficou para gritar connosco, dizendo-nos que Cristo vinha na sua glória e que todos os pagãos e pecadores seriam varridos da Terra antes desse dia glorioso. Cuspi-lhe depois virei-me e segui Artur. Sansum seguiu-nos de perto, gritando para os nossos calcanhares, mas de repente gritou o meu nome. Ignorei-o.
Lorde Derfel! Gritou de novo. Seu idólatra! Seu amante de Deuses falsos!
Sabia que tais insultos me fariam voltar atrás e dirigir-me a ele enfurecido, e no entanto ele não queria a minha ira, mas a minha atenção.
Nada quis dizer com aquilo, Senhor disse ele prontamente quando me apressei a recuar na sua direcção. Tenho de vos falar. Depressa.
Lançou um olhar rápido para trás certificando-se de que Bors estava fora do alcance das nossas vozes, depois atirou-me outro ronco exigindo o meu arrependimento apenas para garantir que Bors pensasse que me vexava.
Pensei que tu e Artur estivessem mortos disse ele em voz baixa.
Planeaste as nossas mortes acusei-o. Ficou lívido.
Pela minha alma, Derfel, não! Não! Fez o sinal da cruz. Podem os anjos arrancar a minha língua e dá-la a comer ao Diabo, se te minto. Juro por Deus Todo Poderoso, Derfel, que eu nada sabia.
Proferida esta mentira, lançou de novo um olhar rápido em volta, depois olhou de novo para mim.
Dinas e Lavaine afirmou suavemente montam guarda a Guinevere no Palácio do Mar. Lembrai-vos que fui eu, Senhor, quem vos disse isto.
Sorri.
Não queres que Bors saiba que me revelaste essa informação, não é assim?
É, Senhor, por favor!
Então isto deverá convencê-lo da tua inocência afirmei, e dei ao Lorde Rato duas consideráveis bofetadas que devem ter-lhe deixado a cabeça a zunir como o grande sino do santuário. Rodopiou na direcção da turfa de onde me rogou pragas aos guinchos enquanto eu me afastava. Compreendi agora por que motivo Sansum fora àquela alta fortaleza junto ao céu. O Lorde Rato sabia, com toda a certeza, que a sobrevivência de Artur ameaçava o novo trono de Lancelote, e que ninguém podia jovialmente manter a sua lealdade a um senhor a quem Artur se opusesse. Sansum, tal como a sua mulher, estava a garantir que eu lhe devesse um reconhecimento.
O que foi tudo aquilo? perguntou-me Artur quando cheguei junto dele.
Disse-me que Dinas e Lavaine estão no Palácio do Mar e que montam guarda a Guinevere.
Artur fez um resmoneio, depois levantou os olhos para a Lua, empalidecida pelo Sol, suspensa sobre as nossas cabeças.
Quantas noites faltam para a lua cheia?
Cinco? Tentei adivinhar. Seis? Merlim saberá.
Seis dias para decidir disse ele, depois parou e olhou fixamente para mim. Atrever-se-ão eles a matá-la?
Não, Senhor afirmei, fazendo votos para que estivesse certo. Eles não se atrevem a fazer de vós um inimigo. Querem que vades prestar o seu juramento e, então, matar-vos-ão. Depois disso, poderão matá-la.
E se eu não for afirmou suavemente, continuarão a mantê-la presa. E enquanto eles a tiverem presa, Derfel, fico desamparado.
Tendes uma espada, Senhor, e uma lança e um escudo. Nenhum homem vos diria desamparado.
Por trás de nós, Bors e os seus homens subiam para as suas selas e afastavam-se. Ficámos mais alguns instantes nas muralhas de Dun Ceinach a olhar fixamente para Oeste. Era um dos mais belos panoramas de toda a Bretanha, uma vista imensa para Oeste, atravessando o Severn e mergulhando fundo na distante Silúria. Conseguia-se ter uma visão de muitas milhas, e deste lugar alto parecia tão luminoso, verde e belo. Era um lugar pelo qual valia a pena lutar.
E tínhamos seis noites até estar lua cheia.
Sete dias disse Merlim.
Tendes a certeza? perguntou Artur.
Talvez seis concedeu Merlim. Faço votos para que não desejem que eu faça os cálculos. Quão entediante tarefa! Desempenhei-a amiúde para Uther e quase sempre o resultado era outro. Seis ou sete, é razoavelmente aproximado. Talvez oito.
Malaine descobri-lo-á disse Cuneglas.
Quando regressámos de Dun Ceinach soubemos que Cuneglas viera de Powys. Trouxera Malaine consigo depois de encontrar o druida, que havia acompanhado Ceimwyn e as outras mulheres para Norte. O rei de Powys abraçou-me e jurou a sua própria vingança contra Dinas e Lavaine. Ele trouxera sessenta lanceiros no seu séquito e disse-nos que outros cem o seguiam já para Sul. Disse que mais viriam, pois Cuneglas esperava lutar e providenciava generosamente todos os guerreiros que havia comandado.
Os seus sessenta guerreiros estavam agora com os homens de Artur de cócoras em torno das orlas do grande castelo de Glevum, enquanto os seus senhores falavam no seu centro. Apenas Sagramor lá não se encontrava, já que estava com os seus restantes lanceiros a atormentar o exército de Cerdic próximo de Corinium. Meurig estava presente e incapaz de esconder o seu aborrecimento por Merlim ter ocupado a grande cadeira no topo da mesa. Cuneglas e Artur ladeavam Merlim, Meurig encarava Merlim do outro lado da mesa, e Culhwuch e eu ocupávamos os outros dois lugares. Culhwuch viera para Glevum com Cuneglas e a sua chegada assemelhara-se a uma lufada de ar fresco num castelo fuliginoso. Estava ansioso por lutar. Declarou que com Mordred morto, Artur era rei de Dumnónia, e Culhwuch estava pronto para abrir caminho à custa de sangue para proteger o trono de seu primo. Cuneglas e eu partilhámos a combatividade, Meurig lançou gritos agudos sobre prudência, Artur nada disse, enquanto Merlim parecia estar a dormir. Tive dúvidas que o fizesse, porque surgiu no seu rosto um ténue sorriso, e os seus olhos estavam fechados quando se fingia ditosamente alheado de tudo o que dizíamos.
Culhwuch desdenhou a mensagem de Bors. Insistiu que Lancelote nunca mataria Guinevere, e que tudo o que Artur tinha de fazer era dirigir-se para Sul à frente dos seus homens e o trono cairia nas suas mãos.
Amanhã! disse Culhwuch a Artur. Partiremos amanhã. Dentro de dois dias, tudo estará terminado.
Cuneglas era um pouco mais cauteloso, aconselhando Artur a esperar até que os seus restantes lanceiros powysianos chegassem, mas assim que isso acontecesse, certamente que deveríamos declarar guerra e avançar para Sul.
Qual o tamanho do exército de Lancelote? perguntou. Artur encolheu os ombros.
Sem contar com os homens de Cerdic? Talvez trezentos?
Nada é! bramiu Culhwuch. Temo-los mortos antes do pequeno-almoço.
E muitos cristãos fogosos avisou-o Artur.
Culhwuch expôs uma ideia de cristãos que fez o cristão Meurig indignar-se atabalhoada e veementemente. Artur acalmou o jovem rei de Gwent.
Todos vós vos esqueceis de uma coisa disse ele suavemente. Eu nunca quis ser rei. E continuo a não querer.
Houve um momento de silêncio em volta da mesa, apesar de alguns dos guerreiros na orla do castelo resmoneassem um protesto pelas palavras de Artur.
O que fosse que quisesses quebrou Cuneglas o nosso silêncio já não tem importância. Parece que os Deuses tomaram essa decisão por ti.
Se os Deuses me quisessem para rei disse Artur tudo teriam feito para que minha mãe desposasse Uther.
Então o que queres? bramiu Culhwuch desesperado.
Quero voltar a ter Guinevere e Gwydre respondeu Artur brandamente. E Cerdic derrotado acrescentou, antes de baixar os olhos e fitar, por uns instantes, a cabeceira da mesa marcada. Quero viver continuou como um homem vulgar. Com uma esposa, um filho, uma casa e uma quinta. Quero paz e pela primeira vez ele não falava de toda a Bretanha, mas apenas de si próprio. Já não quero estar enleado em juramentos, não quero estar para sempre a lidar com as ambições dos homens e já não quero ser o sentenciador da felicidade dos homens. Quero apenas fazer o que fez o rei Tewdric. Quero encontrar um sítio verde e aí viver.
E apodrecer? Merlim desistiu de fingir que dormia. Artur sorriu.
Há tanto que aprender, Merlim. Por que razão faz um homem duas espadas do mesmo metal e no mesmo fogo, e uma lâmina será verdadeira e a outra se arqueará na sua primeira batalha? Há tanto que perceber.
Ele quer tornar-se ferreiro disse Merlim a Culhwuch.
O que eu quero é Guinevere e Gwydre de novo declarou Artur com firmeza.
Então deves prestar o juramento a Lancelote disse Meurig.
Se ele for para Caer Cadarn para prestar o juramento a Lancelote disse eu amargamente encontrará cem homens armados e será abatido como um cão.
Não se me fizer acompanhar de reis disse Artur, com suavidade. Todos o olhámos fixamente e pareceu surpreendido pela nossa perplexidade diante das suas palavras.
Reis? Culhwuch quebrou, por fim, o silêncio. Artur sorriu.
Se o meu Rei e Senhor Cuneglas e o meu Rei e Senhor Meurig assentirem em me acompanhar a Caer Cadarn, tenho dúvidas que Lancelote ousasse matar-me. Uma vez diante dos reis da Bretanha, terá de falar, e se ele falar, chegaremos a um acordo. Ele teme-me, porém, se descobre que nada tem a temer, deixar-me-á viver. E deixará a minha família viver.
Houve de novo silêncio enquanto digeríamos tudo aquilo, depois Culhwuch vociferou um protesto.
Deixarias aquele estupor de Lancelote ser rei? Alguns dos lanceiros que se encontravam na orla do castelo resmonearam o seu acordo.
Primo, primo! Artur tentou acalmar Culhwuch. Lancelote não é um homem malévolo. Julgo que é fraco, mas não malévolo. Ele não estabelece planos, não tem sonhos, apenas um olho ganancioso e mãos velozes. Ele arrebata as coisas à medida que vão surgindo, depois amealha-as e fica a aguardar algo mais para arrebatar. Agora quer-me morto, porque me teme, mas quando descobrir que o preço da minha morte é demasiado elevado, então aceitará o que puder ter.
Aceitará a tua morte, idiota! Culhwuch bateu com o punho repetidas vezes na mesa. Contar-te-á mil mentiras, protestará a sua amizade e fará deslizar uma espada entre as tuas costelas assim que os teus reis forem para os seus reinos?.
Mentir-me-á concordou Artur, tranquilamente. Todos os reis mentem. Nenhum reino poderia ser governado sem mentiras, porque elas são o que usamos para construir as nossas reputações. Pagamos aos bardos para que transformem as nossas esquálidas vitórias em grandes triunfos e, por vezes, chegamos mesmo a acreditar em todas essas mentiras que nos cantam. Lancelote adoraria acreditar em todas essas canções, mas a verdade é que ele é fraco e anseia desesperadamente por amigos fortes. Agora teme-me, pois presume a minha inimizade, mas quando descobrir que não sou seu inimigo, então descobrirá também que precisa de mim. Precisará de todos os homens que conseguir encontrar, se quiser livrar Dumnónia de Cerdic.
E quem convidou Cerdic a vir para a Dumnónia? protestou Culhwuch. Foi Lancelote!
E em breve se arrependerá de o ter feito disse Artur calmamente Usou Cerdic para arrebatar a sua presa, e descobrirá que Cerdic é um aliado perigoso.
Pelejaríeis por Lancelote? perguntei horrorizado.
Pelejarei pela Bretanha afirmou Artur. Não posso pedir a homens que morram para me transformar naquilo que não quero ser, mas posso pedir-lhes que lutem pelos seus lares, pelas suas mulheres e pelos seus filhos. E é por isso que eu luto. Por Guinevere. E para derrotar Cerdic, e uma vez derrotado, que importa que Lancelote governe Dumnónia? Alguém tem de o fazer e atrevo-me a dizer que ele será melhor rei do que Mordred alguma vez foi. Houve de novo silêncio. Um cão de caça ganiu na orla do castelo e um lanceiro espirrou. Artur olhou para nós e viu que estávamos ainda estupefactos. Se eu lutar contra Lancelote disse-nos então regressamos à Bretanha que tínhamos antes do Vale do Lugg. Uma Bretanha na qual lutamos uns contra os outros, em vez de ser contra os Saxões. Aqui existe apenas um preceito, que é a velha insistência de Uther de que os Saxões têm de ser mantidos afastados do mar Severn. E, neste momento disse ele vigorosamente os Saxões estão mais perto do Severn do que alguma vez estiveram. Se eu lutar por um trono que não quero, dou a Cerdic a possibilidade de tomar Corinium, e depois a cidade; e se ele tomar, de facto, Glevum, então ter-nos-á dividido em duas partes. Se eu lutar contra Lancelote, então os Saxões ganharão tudo. Tomarão Dumnónia e Gwent, e depois disso, irão para o Norte para Powys.
Exactamente. Meurig aplaudiu Artur.
Não pelejarei por Lancelote disse eu irado, e Culhwuch aplaudiu-me. Artur sorriu-me.
Meu querido amigo Derfel, não esperaria que pelejasses por Lancelote, apesar de querer, na verdade, os teus homens para lutar contra Cerdic. E o meu preço para ajudar Lancelote a derrotar Cerdic é que te entregue Dinas e Lavaine.
Olhei-o espantado. Só nesse momento percebi quão longe havia ido o seu pensamento. Todos os outros nada mais havíamos visto para lá da traição de Lancelote, mas Artur pensava apenas na Bretanha e na necessidade desesperada de manter os Saxões afastados de Severn. Ele ignoraria a hostilidade de Lancelote, imporia a minha vingança nele, depois continuaria com a tarefa da derrota dos Saxões.
E os cristãos? perguntou Culhwuch com ironia. Pensas que eles te deixarão regressar à Dumnónia? Julgas que esses estupores não te farão uma pira funerária?
Meurig grasnou outro protesto que Artur silenciou.
O fervor cristão consumir-se-á disse Artur. É como uma demência, e uma vez esgotada, irão para casa apanhar os bocados das suas vidas. E uma vez Cerdic derrotado, Lancelote pode pacificar a Dumnónia. Eu apenas viverei com a minha família, que é tudo o que desejo.
Cuneglas estivera reclinado na sua cadeira a olhar fixamente para os fragmentos que restavam das pinturas romanas do tecto do castelo. Nessa altura, endireitou-se e olhou para Artur.
Diz-me novamente o que queres pediu suavemente.
Quero que os Bretões tenham paz respondeu Artur pacientemente, e quero que se faça recuar Cerdic, e quero a minha família.
Cuneglas olhou para Merlim.
Então, Senhor? solicitou a opinião do velho homem.
Merlim estivera a prender duas das tranças da sua barba com nós, mas agora parecia brandamente surpreendido e, com vivacidade, desembaraçou os fios da barba.
Tenho dúvidas que os Deuses queiram o que Artur quer disse ele. Todos vós se estão a esquecer do Caldeirão.
Isto nada tem a ver com o Caldeirão disse Artur firmemente.
Tem tudo a ver com isto disse Merlim com uma súbita e surpreendente dureza, e o Caldeirão traz o caos. Tu desejas a ordem, Artur, e julgas que Lancelote escutará a tua razão e que Cerdic se submeterá à tua espada, mas a tua ordem sensata jamais funcionará no futuro como resultou no passado. Pensas mesmo que homens e mulheres te agradeceram por lhes teres trazido paz? Eles apenas se enfadaram com a tua paz, e desse modo fermentaram os seus próprios tumultos para preencher o seu enfado. Os homens não querem a paz, Artur, eles querem distrair-se do tédio, enquanto tu desejas o tédio como um homem sedento busca hidromel. A tua razão não vencerá os Deuses, e eles garantirão isso. Pensas que podes afastar-te rastejando para uma herdade e fingires ser um ferreiro? Não. Merlim fez um sorriso malicioso e apanhou o seu comprido e escuro bordão. Até neste momento disse Merlim os Deuses estão a causar-te dificuldades. Apontou o bastão para as portas da frente do castelo. Observa a tua dificuldade, Artur Uther.
Todos nos virámos para ver Galaad de pé à porta. Vestia uma armadura de malha, trazia uma espada na sua anca e salpicos de lama até à cintura. E com ele estava um miserável palha-de-aço, com um pé defeituoso, um nariz esborrachado, uma cara redonda e uma barba acanhada.
Pois Mordred ainda vivia.
Houve um silêncio surpreendido. Mordred coxeou para o interior do salão e os seus olhos pequenos traíram o seu ressentimento pela ausência de acolhimento. Artur olhou simplesmente estupefacto para o seu senhor, a quem prestara juramento, e percebi que ele estava a desfazer na sua mente todos os planos cuidadosos que acabara de nos descrever. Não podia existir paz tolerável com Lancelote, porque o senhor a quem Artur prestara juramento ainda vivia. Dumnónia possuía ainda um rei, que não era Lancelote. Era Mordred e ele tinha o juramento de Artur.
Depois, o silêncio quebrou-se quando os homens se juntaram à volta do rei para saber novas suas. Galaad afastou-se para me abraçar.
Graças a Deus estás vivo disse ele com um alívio sincero. Sorri ao meu amigo.
Esperas que eu te agradeça por teres salvo a vida do meu rei? perguntei-lhe.
Alguém devia, pois ele não o fez. É uma bestinha ingrata disse Galaad. Só Deus sabe porque vive quando tantos homens bons morrem. Llywarch, Bedwyr, Dagonet, Blaise. Todos morreram. Nomeava os guerreiros de Artur que haviam sido mortos em Durnovária. De algumas das mortes eu já soubera, outras foram para mim novidade, mas Galaad sabia ainda como tinham ocorrido. Estava em Durnovária quando o rumor da morte de Mordred dera origem aos tumultos dos cristãos, mas Galaad jurou ter havido lanceiros entre os rebeldes. Ele acreditava que os homens de Lancelote se haviam infiltrado na cidade disfarçados de peregrinos em viagem para Ynys Wydryn e que esses lanceiros haviam conduzido o massacre. A maior parte dos homens de Artur estavam nas tabernas disse ele e tiveram poucas hipóteses. Poucos sobreviveram, mas só Deus sabe onde estão agora. Fez o sinal da cruz. Isto não é obra de Cristo, Derfel, sabes disso não sabes? É o Diabo a congeminar. Olhou-me de uma forma dolorosa, quase assustada. É verdade o que se diz sobre Dian?
Sim disse eu. Galaad abraçou-me sem proferir qualquer palavra. Ele nunca casara e não tinha filhos, mas adorava as minhas filhas. Admirava todas as crianças.
Dinas e Lavaine mataram-na disse-lhe e ainda vivem.
A minha espada é tua afirmou.
Eu sei assenti.
E se isto fosse obra de Deus disse Galaad seriamente então Dinas e Lavaine não estariam ao serviço de Lancelote.
Não censuro o teu Deus disse-lhe eu, não censuro nenhum Deus. Virei-me para observar a agitação em torno de Mordred. Artur gritava por silêncio e ordem, tinha sido mandado aos criados que trouxessem comida e roupas apropriadas a um rei e outros homens tentavam ouvir as suas novas. Não exigiu Lancelote o teu juramento? perguntei a Galaad.
Ele não me sabia em Durnovária. Eu estava em casa do bispo Emrys e ele deu-me um hábito de monge para usar por cima disto. Afagou a sua cota de malha. Depois fui para Norte. Pobre Emrys está furioso. Ele pensa que os seus cristãos enlouqueceram e eu penso o mesmo. Julgo que podia ter ficado e lutado, mas não o fiz. Fugi. Tinha ouvido que tu e Artur estavam mortos, mas não acreditei. Pensei que te encontraria, mas em vez de ti, encontrei o nosso rei. Contou-me como Mordred fora à caça do javali para o norte de Durnovária, e Lancelote, acreditava Galaad, enviara homens para interceptar o rei quando regressasse de Durnovária; mas uma qualquer rapariga de aldeia conquistara Mordred e quando ele e os seus companheiros terminaram a conquista já era quase escuro. Deste modo, ele quis à sua disposição a casa maior da aldeia e ordenou comida. Os seus assassinos haviam-no esperado no portão mais a norte da cidade, enquanto Mordred fazia um banquete a uma dúzia de milhas dali, e em alguma altura durante essa noite os homens de Lancelote devem ter decidido começar a matar, ainda que o rei dumnoniano tivesse de um qualquer modo escapado à sua emboscada. Haviam espalhado o rumor da sua morte e usaram-no para justificar a usurpação de Lancelote. Mordred soube dos tumultos quando os primeiros fugitivos chegaram de Durnovária. A maior parte dos seus companheiros havia desaparecido, os aldeãos ganhavam coragem para matar o rei que violara uma das suas raparigas e roubado muita da sua comida, e Mordred entrou em pânico. Ele e os seus últimos amigos fugiram para Norte em trajos dos aldeãos.
Tentavam chegar a Caer Cadarn disse-me Galaad, supondo que iriam encontrar aí leais lanceiros, mas, na sua vez, encontraram-me a mim. Eu tentava chegar a tua casa, mas ouvimos dizer que as tuas gentes haviam fugido, por isso trouxe-o para Norte.
Viste saxões? Abanou a cabeça.
Eles estão no vale do Tamisa. Evitámo-lo. Fitou a multidão que se empurrava em volta de Mordred. Então o que se fará agora? perguntou ele
Mordred tinha ideias fixas. Estava vestido com uma capa emprestada e sentado à mesa onde comia com sofreguidão pão e carne salgada. Dizia a Artur que marchasse imediatamente para Sul, e sempre que Artur tentava ''interrompê-lo, o rei batia na mesa e repetia a sua exigência.
Negais o vosso juramento? gritou-lhe Mordred por fim, vomitando bocados de pão e carne semimastigados.
O Lorde Artur, respondeu Cuneglas acremente, está a tentar proteger a sua esposa e o seu filho.
Mordred olhou sem expressão para o rei powysiano.
Primeiro que o meu reino? perguntou finalmente.
Se Artur for combater explicou Cuneglas a Mordred, Guinevere e Gwydre morrem.
Então nada fazemos? gritou Mordred. Estava histérico.
Pensámos na questão disse Artur amargamente.
Pensaram? gritou Mordred, depois levantou-se. Vós pensais simplesmente, enquanto aquele estupor governa o meu país? Prestaste um juramento? quis saber de Artur. E de que servirão estes homens se não lutares? Fez um aceno em direcção aos lanceiros, que estavam agora de pé num círculo junto à mesa. Lutarás por mim, é o que farás! É o que exige o teu juramento. Lutarás! Bateu de novo na mesa. Não pensas! Lutas!
Eu aguentara já o bastante. Talvez a alma morta da minha filha tenha vindo até mim naquele momento, pois quase sem pensar caminhei para diante em largas passadas e desafivelei o cinto da minha espada. Retirei a Hywelbane do cinto, atirei a espada para o chão, depois dobrei a correia de couro ao meio. Mordred observava-me e proferiu atabalhoadamente um débil protesto quando me aproximei dele, mas ninguém se mexeu para me deter.
Cheguei ao lado do meu rei, fiz uma pausa, depois bati-lhe com força no rosto com o cinto dobrado
Esta disse eu, não é a paga pelos sopapos que me deste, mas pela minha filha, e esta bati-lhe de novo, com muito mais força é por teres fracassado em manter o juramento de defender o teu reino.
Lanceiros bramiram aprovação. O lábio inferior de Mordred tremia como quando levava todas aquelas tareias em criança. As faces ruboresceram pelos açoites e um fio de sangue surgiu de um minúsculo corte por baixo do seu olho. Tocou com um dedo no sangue, depois cuspiu-me para a cara um pedaço de carne e pão semimastigados.
Morrerás por isto prometeu-me, e depois, num acesso de raiva, tentou bater-me. Como podia eu defender o reino? gritou ele. Vós não estáveis lá! Artur não estava lá? Tentou bater-me uma segunda vez, mas detive de novo o seu soco com o meu braço, depois tirei o meu cinto para lhe bater de novo.
Horrorizado com o meu comportamento, Artur puxou-me o braço para baixo e arrastou-me. Mordred seguiu-nos, tentando sem conseguir alcançar-me com os punhos, mas depois um bastão negro bateu no seu braço com força e ele virou-se enfurecido para assaltar o seu novo atacante.
Mas era Merlim quem agora se elevava acima do irado rei.
Bate-me, Mordred disse o druida calmamente, e transformar-te-ei em sapo e dar-te-ei a comer às serpentes de Annwn.
Mordred olhou estupefacto para o druida, mas nada disse. Tentou mesmo empurrar o bastão para o lado, mas Merlim segurou-o com firmeza, usando-o para empurrar o jovem rei de costas em direcção à sua cadeira.
Diz-me, Mordred disse Merlim enquanto o empurrava para que se sentasse na cadeira, porque mandaste Artur e Derfel para tão longe?
Mordred abanou a cabeça. Estava assustado com este novo Merlim, muito direito e muito alto. Ele sempre conhecera o druida como um velho débil, que se expunha ao Sol nos jardins de Lindinis, e este revigorado Merlim com a barba coberta e entrançada aterrorizava-o.
Merlim ergueu o seu bastão e bateu com ele na mesa.
Porquê? perguntou suavemente depois de o eco da pancada do bastão se ter dissipado.
Para prenderem sussurrou Mordred.
Seu idiota retorcido disse Merlim. Uma criança podia ter preso Ligessac. Por que razão enviaste Artur e Derfel?
Mordred abanou apenas a cabeça Merlim suspirou.
Passou já muito tempo, jovem Mordred, desde que fiz uso da grande magia. Estou infelizmente sem prática, mas penso que com a ajuda de Nimue, posso transformar a tua urina no pus negro, que feda como uma vespa sempre que mijes. Posso confundir o teu cérebro, o que quer que dele reste, e posso fazer com que a tua virilidade de repente o bastão vacilou na virilha de Mordred murche até ao tamanho de um feijão seco. É tudo o que posso fazer, Mordred, e tudo o que farei a menos que me digas a verdade. Sorriu, e havia mais ameaça neste sorriso do que no bastão imóvel. Diz-me, rapazinho, porque enviaste Artur e Derfel para o acampamento de Cadoc?
O lábio inferior de Mordred tremia.
Porque Sansum me disse para o fazer.
O Lorde Rato! exclamou Merlim como se a resposta o surpreendesse. Voltou a sorrir, ou pelo menos mostrou os dentes. Tenho outra pergunta, Mordred continuou e se não me disseres a verdade, então os teus intestinos vomitarão sapos ao lodo, a tua barriga transformar-se-á num ninho de vermes e a tua garganta encher-se-á com a sua bílis. Farei com que tremas sem descanso, para que toda a tua vida, a tua vida inteira, sejas um cagador de sapos, um comedor de vermes, um tremente cuspidor de bílis. Tornar-te-ei fez uma pausa e baixou a voz ainda mais horrível do que a tua mãe te fez. Por isso, Mordred, diz-me o que o Lorde Rato prometeu que aconteceria se afastasses Artur e Derfel?
Mordred olhou estarrecido e horrorizado para o rosto de Merlim. Merlim aguardou. Como nenhuma resposta chegasse ergueu o bastão em direcção ao alto telhado do salão.
Em nome de Bei entoou sonoramente e de Callyc, o seu senhor dos sapos, e em nome de Sucellos e de Horfael, o seu dono dos vermes, e em nome de...
Eles seriam mortos! gritou Mordred desesperadamente.
O bastão desceu lentamente para apontar de novo para o rosto de Mordred.
Ele prometeu-te isso, rapazinho? indagou Merlim.
Mordred contorceu-se na cadeira, mas não conseguia fugir daquele bastão. Engoliu, olhou para a esquerda e para a direita, mas do salão não vinha qualquer ajuda.
Que eles seriam mortos admitiu Mordred pelos cristãos.
E porque quererias tu isso? inquiriu Merlim.
Mordred hesitou, mas Merlim ergueu de novo o bastão bem alto e o rapaz fez abruptamente a sua confissão.
Porque não posso ser rei enquanto ele viver!
Pensavas que a morte de Artur te deixaria livre para te comportares como queres?
Sim!
E acreditaste que Sansum era teu amigo?
Sim.
E nem nunca pensaste que Sansum também pudesse querer-te morto? Merlim abanou a cabeça. Que rapaz tolo tu és. Não sabes que os cristãos nunca fazem nada como deve ser? Até o seu primeiro se deixou pregar numa cruz. Essa não é a forma como os Deuses eficientes se comportam, de maneira nenhuma. Obrigado, Mordred, pela nossa conversa. Sorriu, encolheu os ombros e afastou-se. Só tentei ajudar afirmou ao passar por Artur.
Mordred parecia que sempre tivera os estremeções que Merlim ameaçara. Agarrou-se aos braços da cadeira, tremendo, e surgiram lágrimas nos seus olhos pelas humilhações que acabara de sofrer. Tentou mesmo recuperar algum do seu orgulho ao apontar para mim e pedir a Artur que me prendesse.
Não sejas tolo! virou-se Artur para ele irado. Julgas que podemos recuperar o teu trono sem os homens de Derfel? Mordred nada disse, e aquele impertinente silêncio impeliu Artur para uma fúria semelhante à que me levara a bater no meu rei. Poderá ser feito sem ti! disse ele rispidamente para Mordred. E o que quer que se faça, ficarás aqui, sob escolta! Mordred olhou-o boquiaberto e uma lágrima caiu, diluindo o pequeno fio de sangue. Não como prisioneiro, meu Rei e Senhor explicou Artur com lassidão, mas para preservar a vossa vida das centenas de homens que gostariam de vo-la tirar.
Então o que ireis fazer? perguntou Mordred, agora absolutamente patético.
Como vos disse respondeu-lhe Artur com desdém, pensarei no assunto. E nada mais diria.
A configuração do desígnio de Lancelote era agora bem evidente. Sansum havia planeado a morte de Artur, Lancelote enviara homens para causar a morte de Mordred e depois seguira com o seu exército julgando que todos os obstáculos para o trono de Dumnónia haviam sido eliminados e que os cristãos, açoitados com chicotes até ao frenesi pelos missionários de Sansum, matariam quaisquer inimigos que ainda houvesse, enquanto Cerdic segurara os homens de Sagramor na baía.
Todavia, Artur vivia, bem como Mordred, e desde que este estivesse vivo, Artur tinha um juramento a cumprir, e esse juramento dizia que tínhamos de fazer a guerra. Não importava que pudesse franquear o vale Severn aos Saxões, tínhamos de lutar contra Lancelote. Estávamos presos pelo juramento.
Meurig não enviaria nenhum lanceiro para o combate contra Lancelote. Clamava precisar de todos os homens para guardar as suas próprias fronteiras contra um possível ataque de Cerdic ou de Aelle, e nada do que alguém pudesse dizer o dissuadiria. Concordou mesmo em deixar a sua guarnição em Glevum, e, deste modo, libertar a sua guarnição dumnoniana para se juntar às tropas de Artur, mas nada mais cederia.
Ele é um estuporzinho amarelo resmungou Culhwuch.
É um jovem sensível disse Artur. O seu objectivo é preservar o seu reino. Ele falou-nos nas suas ordens de guerra num salão nos banhos romanos de Glevum. O aposento tinha um chão de lajes e um tecto em abóbada onde se via restos pintados de ninfas nuas a serem perseguidas por um fauno por entre espirais de folhas e flores.
Cuneglas foi generoso. Os lanceiros que trouxera de Caer Sws seriam enviados sob o comando de Culhwuch para ajudar os homens de Sagramor. Culhwuch jurou que nada faria para ajudar à restauração de Mordred, mas não tinha escrúpulos em combater os guerreiros de Cerdic, e que essa era ainda tarefa de Sagramor. Uma vez o numidiano reforçado pelos homens vindos de Powys, ele dirigir-se-ia para Sul, interceptaria os saxões que estivessem a sitiar Corinium e, desse modo, arrastaria os homens de Cerdic numa campanha que os impedisse de ajudar Lancelote no coração da Dumnónia. Cuneglas prometeu a todos nós a ajuda que conseguisse, mas disse que levaria pelo menos duas semanas a reunir toda a sua força e a trazê-la para Sul, para Glevum.
Artur tinha poucos homens preciosos em Glevum. Tinha os trinta homens que haviam partido para Norte para prender Ligessac, que estavam agora postos a ferros em Glevum, e tinha os meus homens, e a esses ele podia acrescentar os setenta lanceiros que haviam constituído a pequena guarnição de Glevum. Esses números aumentavam todos os dias com os refugiados que conseguiam fugir aos grupos de cristãos em alvoroço que ainda abatiam quaisquer pagãos que tivessem ficado na Dumnónia. Ouvimos dizer que muitos desses fugitivos estavam ainda na Dumnónia, alguns a manterem-se firmes em antigos fortes de terra ou nas profundezas das regiões dos bosques, mas outros haviam vindo para Glevum, e entre eles estava Morfans, o Disforme, que escapara ao massacre nas tabernas de Durnovária. Artur encarregou-o das forças de Glevum e ordenou-lhe que as conduzisse para sul, em direcção a Aquae Sulis. Galaad iria com ele.
Não aceitem a batalha avisou-os Artur incitem apenas o inimigo, atormentem-no, irritem-no. Ficai nas colinas, sede lestos, e mantenham-nos a olhar neste sentido. Quando o meu Rei e Senhor vier ele referia-se a Cuneglas podeis juntar-vos ao seu exército e marchar para Sul em direcção a Caer Cadarn.
Artur declarou não lutar nem com Sagramor nem com Morfans, mas em vez disso iria em busca do auxílio de Aelle. Artur sabia melhor do que ninguém que a notícia dos seus planos seria levada para Sul. Em Glevum havia suficientes cristãos que acreditavam que Artur era o Inimigo de Deus e que viam em Lancelote o mensageiro do regresso de Cristo à Terra, que fora enviado do céu; Artur queria que esses cristãos enviassem as suas mensagens para Dumnónia e queria que essas mensagens dissessem a Lancelote que Artur se atrevia a não arriscar a vida de Guinevere marchando contra ele. Em vez disso, Artur iria pedir que Aelle levasse os seus machados e as suas lanças contra os homens de Cerdic.
Derfel virá comigo disse-nos nesse momento.
Eu não queria acompanhar Artur. Protestei que havia outros intérpretes, e o meu único desejo era juntar-me a Morfans e desse modo marchar para Sul, para Dumnónia. Eu não queria enfrentar o meu pai, Aelle. Queria combater, não voltar a colocar Mordred no seu trono, mas derrubar Lancelote e encontrar Dinas e Lavaine.
Artur recusou-mo.
Virás comigo, Derfel ordenou-me e levaremos connosco quarenta homens.
Quarenta? objectou Morfans. Quarenta era um número enorme para desguarnecer o seu pequeno grupo de guerra, que teria de distrair Lancelote.
Artur encolheu os ombros.
Não ouso parecer fraco diante de Aelle. disse ele De facto, devia levar mais, mas quarenta homens podem ser suficientes para o convencer que não estou desesperado. Fez uma pausa. Há uma última coisa. Falou num tom de voz carregado que captou a atenção de homens que se preparavam para deixar a casa dos banhos. Alguns de vós não estão inclinados a lutar por Mordred admitiu Artur. Culhwuch já deixou Dumnónia, Derfel partirá, sem dúvida, quando esta guerra terminar, e quem sabe quantos mais de vós partirão? Dumnónia não pode perder tais homens. Fez uma pausa. Começara a chover e a água pingava dos tijolos que apareciam por entre os desenhos do tecto pintado. Falei com Cuneglas disse Artur, dando conhecimento da presença do rei de Powys com uma inclinação da cabeça e falei com Merlim, e falámos das antigas leis e costumes do nosso povo. O que faço, será de acordo com a lei, e não posso libertar-vos de Mordred, pois o meu juramento proíbe-o, e a antiga lei do nosso povo não pode perdoá-lo. Fez outra pausa com a sua mão direita inconscientemente a agarrar no copo da Excalibur. Mas continuou a lei permite, sim, uma coisa. Se um rei for incapaz de governar, o seu Conselho pode governar em seu lugar, desde que o rei conceda a honra e os privilégios do seu posto. Merlim assegura-me que assim é, e Cuneglas afirma que o mesmo aconteceu no reino de Brychan, o seu bisavô.
Tinha macaquinhos no sótão! adiantou Cuneglas satisfeito. Artur fez um leve sorriso, depois fungou enquanto organizava as suas ideias.
Não foi isto o que alguma vez quis protestou devagar, com a sua voz sombria a ecoar na câmara que ainda pingava, mas irei propor ao Conselho de Dumnónia que eu governe no lugar de Mordred.
Sim! gritou Culhwuch. Artur aquietou-o.
Eu desejara disse ele que Mordred aprendesse a ser responsável, mas não o fez. Não me importo que me queira morto, mas importo-me que ele tenha perdido o seu reino. Quebrou o seu juramento de aclamação e agora duvido que ele alguma vez consiga cumprir esse juramento. Fez uma pausa, e muitos de nós devem ter reflectido sobre quanto tempo teria levado a Artur para compreender uma coisa que parecera tão óbvia a todos nós. Durante anos, ele resistira teimosamente ao reconhecimento da impreparação de Mordred para governar, mas agora, depois de Mordred ter perdido o seu reino e, o que era muito pior aos olhos de Artur, falhara na protecção dos seus súbditos, Artur estava finalmente preparado para encarar a verdade. Pingos de água caíram na sua cabeça descoberta, mas pareceu não prestar atenção a isso. Merlim diz-me continuou num tom melancólico que Mordred está possuído por um espírito maligno. Não sou entendido nesses assuntos, mas esse veredicto não me parece improvável e por isso, se o Conselho concordar, proporei que depois de termos restaurado Mordred, depois lhe concedamos todas as honras devidas ao nosso rei. Ele poderá viver no Palácio de Inverno, poderá caçar, poderá comer como um rei e saciar todos os seus apetites segundo a lei, mas não governará. Estou a propor que lhe concedamos todos os privilégios, mas nenhum dos deveres do seu trono.
Aplaudimos. E como o fizemos. De agora em diante, parecia, tínhamos algo por que lutar. Não por Mordred, esse sapo miserável, mas por Artur, porque apesar de todas as suas belas palavras sobre o Conselho governar Dumnónia em vez de Mordred todos sabíamos o que significavam. Queriam dizer que Artur seria rei de Dumnónia em tudo excepto na denominação e que para esse final feliz deveríamos levar as nossas armas para a guerra. Aplaudimos, porque agora tínhamos uma razão para lutar e morrer. Tínhamos Artur.
Artur escolheu vinte dos seus melhores cavaleiros e insistiu para que eu escolhesse vinte dos meus mais hábeis lanceiros para que compusessem a nossa embaixada para Aelle.
Temos de impressionar o teu pai disse-me ele e não impressionas um homem chegando com lanceiros frágeis e idosos. Levamos os nossos melhores homens. Insistiu ainda para que Nimue nos acompanhasse. Ele teria preferido a companhia de Merlim, mas o druida declarou estar demasiado velho para a longa viagem e propôs Nimue para o substituir.
Deixámos Mordred escoltado por lanceiros de Meurig. Mordred soube dos planos de Artur em relação a si, mas não tinha aliados em Glevum nem opositores na sua alma apodrecida, embora tivesse tido a satisfação de ver Ligessac ser estrangulado no fórum, e depois dessa morte lenta, Mordred deteve-se no terraço do grande castelo e fez um discurso comovente no qual ameaçou um destino igual para todos os traidores da Dumnónia, depois voltou taciturno para os seus aposentos, enquanto nós seguíamos Culhwuch para Leste. Ele havia partido para se juntar a Sagramor e ajudar a empreender o ataque que todos nós esperávamos que salvasse Corinium.
Artur e eu marchámos para o interior muito belo, a província de Gwent, a leste, mais rica. Era um local de sumptuosas villas, amplas quintas e grande riqueza, a maior parte das quais se erguiam por detrás dos locais onde as ovelhas pastavam nas colinas redondas. Marchámos sob dois estandartes, o urso de Artur e a minha própria estrela, e permanecemos bem a norte da fronteira dumnoniana, para que todas as novas que chegassem a Lancelote lhe contassem que Artur não oferecia qualquer ameaça ao seu trono roubado. Nimue caminhava connosco. Merlim havia conseguido, de algum modo, convencê-la a lavar-se e a encontrar roupas limpas, e depois, desesperado por não mais conseguir desemaranhar a imundície do seu cabelo, havia-o cortado curto e queimado as tranças encrostadas, de sujidade. Ficava-lhe bem o cabelo curto, usava de novo uma pala no olho e levava um bastão sem mais bagagem. Caminhava descalça e avançava com relutância por não ter querido ir, mas Merlim convencera-a, apesar de Nimue ainda se queixar que a sua presença era dispensável.
Qualquer louco é capaz de derrotar um feiticeiro saxão disse ela a Artur quando nos aproximávamos do final do primeiro dia de marcha. Basta cuspir-lhes, rolar os olhos e acenar um osso de galinha. É tudo o que é preciso.
Não encontraremos nenhum feiticeiro saxão respondeu Artur calmamente. Estávamos agora em campo aberto, longe de qualquer vila, e ele deteve o seu cavalo, levantou a mão e esperou que os homens se reunissem à sua volta. Não encontraremos quaisquer feiticeiros disse-nos porque não vamos encontrar-nos com Aelle. Vamos para Sul para a nossa própria região. Bem para Sul.
Para o mar? adivinhei. Ele sorriu.
Para o mar. Juntou as mãos na barra da sua sela. Somos poucos disse-nos ele e Lancelote tem muitos, mas Nimue pode fazer-nos um encantamento de dissimulação e marcharemos à noite e marcharemos muito. Sorriu e encolheu os ombros. Nada consigo fazer enquanto minha esposa e o meu filho estiverem prisioneiros, mas se os libertarmos, então também eu serei livre. E quando estiver livre posso lutar contra Lancelote, mas vocês devem saber que o nosso auxílio estará longe e bem no interior de uma Dumnónia que é mantida pelos nossos inimigos. Quando eu tiver Guinevere e Gwydre não sei como conseguiremos fugir, mas Nimue ajudar-nos-á. Os Deuses ajudar-nos-ão, contudo, se algum de vós teme esta tarefa, pode então regressar agora.
Ninguém o fez, e ele devia saber que ninguém o faria. Estes quarenta eram os nossos melhores homens e eles teriam seguido Artur até para dentro do buraco das serpentes. Artur, claro, não contara a ninguém, excepto a Merlim, o que planeava para que absolutamente nada pudesse chegar aos ouvidos de Lancelote; nesse momento, ele encolheu lamentavelmente os ombros para mim, como que pedindo desculpa por me desapontar, mas devia saber como eu me sentia feliz por não irmos apenas ao sítio onde Guinevere e Gwydre estavam mantidos reféns, como ainda onde os dois assassinos de Dian pensavam estar a salvo de toda e qualquer vingança.
Partimos esta noite disse Artur e não descansaremos antes da alvorada. Vamos para Sul e pela manhã quero estar nas colinas para lá do Tamisa.
Pusemos as capas sobre as nossas armaduras, cobrimos os cascos dos cavalos com faixas de roupa e depois viajámos para Sul durante a noite. Os cavaleiros conduziam os seus animais e Nimue conduzia-nos a nós, utilizando a sua estranha habilidade para encontrar o caminho por um país desconhecido na escuridão.
Algures nessa escura noite atravessámos para o interior de Dumnónia, e assim que descemos das colinas para o vale do Tamisa, vimos, bem distante à nossa direita, um brilho no céu que mostrava onde os homens de Cerdic estavam acampados nas imediações de Corinium. Uma vez fora das colinas o nosso caminho levou-nos inevitavelmente pelo meio de pequenas aldeias onde os cães ladraram à nossa passagem, mas ninguém nos fez qualquer pergunta. Os habitantes ou estavam mortos ou então temeram que fôssemos Saxões, e deste modo, como um bando de fantasmas, passámos por eles. Um dos cavaleiros de Artur era nativo das terras do rio e levou-nos por um vau, que subiu até ao nosso peito. Mantivemos as nossas armas e os nossos sacos com pão bem alto, depois forçámos o caminho através da forte corrente e, deste modo, alcançámos o longínquo talude onde Nimue sibilou um encantamento de dissimulação para uma vila próxima. Pela manhã, estávamos nas colinas do sul, em segurança dentro de uma fortaleza de terra dos Antigos Povos.
Dormimos durante o dia e à noite continuámos para Sul. O nosso caminho conduziu-nos através de uma região bela e rica onde os Saxões ainda não haviam estado, mas onde nenhum aldeão nos desafiou, pois só um louco faria perguntas a um homem armado que viajasse à noite em época de tumultos. Ao romper do dia chegámos à grande planície e o nascer do Sol afastou as sombras dos montes da morte do Antigo Povo, ao longo da erva pálida. Alguns dos montes tinham ainda tesouros guardados por espíritos de tumbas e esses evitámos quando vislumbrámos um buraco com erva onde os cavalos podiam comer e nós descansar.
No luar seguinte passámos as Pedras, esse enorme misterioso círculo onde Merlim dera a Artur a sua espada e onde, tantos anos depois, nós tínhamos dado o ouro a Aelle antes de marcharmos para o Vale do Lugg. Nimue deslizou pelo meio dos enormes pilares, tocando-lhes com o seu bastão, depois permaneceu de pé no seu centro com os olhos fixos nas estrelas. A Lua estava quase cheia e a sua luz conferia às Pedras uma pálida luminosidade.
Ainda possuem magia? perguntei-lhe quando nos levou lá acima.
Algumas disse ela mas está a desaparecer, Derfel. Toda a nossa magia está a desaparecer. Precisamos do Caldeirão. Sorriu no escuro. Já não é longe disse ela, pressinto-o. Ainda vive, Derfel, e nós vamos encontrá-lo e restituí-lo a Merlim. Havia agora nela uma paixão, a mesma paixão que mostrara quando nos aproximámos do fim da Estrada Sombria. Artur caminhava pela escuridão pela sua Guinevere, eu por vingança e Nimue para convocar os Deuses com o Caldeirão, mas ainda assim éramos poucos e do inimigo eram muitos.
Estávamos agora bem no interior da nova região de Lancelote, todavia não vimos quaisquer vestígios dos seus guerreiros nem qualquer sinal dos bandos fanáticos de cristãos dos quais se dizia aterrorizarem ainda os pagãos campesinos. Os lanceiros de Lancelote não tinham qualquer afazer nesta parte da Dumnónia, pois vigiavam as estradas de Glevum, enquanto os cristãos deviam ter partido para apoiar o seu exército, na crença de que seria por obra de Cristo, caminhando nós, deste modo, sem sermos molestados, à medida que descíamos da grande planície para as terras do rio da costa sul da Dumnónia. Contornámos a cidade fortaleza de Sorviodunum e sentimos o cheiro a fumo das casas que aí haviam sido queimadas. Mas mesmo aí ninguém nos desafiou, pois caminhávamos sob a Lua quase cheia e estávamos protegidos pelos feitiços de Nimue.
Alcançámos o rio na quinta noite. Acabáramos de passar a fortaleza romana de Vindocládia, onde Artur tinha a certeza que estaria colocada uma guarnição das tropas de Lancelote, e ao amanhecer escondemo-nos nos densos bosques acima do promontório onde se encontrava o Palácio do Mar. Este ficava apenas a uma milha para oeste e nós alcançámo-lo sem sermos vistos, surgindo como fantasmas da noite na nossa própria terra.
E também faríamos o nosso ataque à noite. Lancelote usava Guinevere como um escudo, e nós levar-lhe-íamos os seus escudos, e assim libertados, empunharíamos as nossas lanças ao seu coração traidor. Mas não por Mordred, pois agora lutávamos por Artur e pelo reino feliz que vimos para lá da guerra.
Como os bardos agora dizem, lutámos por Camelote.
A maior parte dos lanceiros dormiu nesse dia, mas Artur, Issa e eu rastejámos até à orla do bosque e contemplámos através do pequeno vale para o Palácio do Mar.
Estava tão belo com a sua pedra branca reluzindo ao Sol nascente. Olhámos fixamente para o seu flanco leste de um promontório que era ligeiramente mais baixo do que o palácio. O seu muro leste era cortado apenas por três pequenas janelas, por isso nos pareceu semelhante a uma enorme fortaleza branca na colina verde, embora essa ilusão desaparecesse pela grande marca do peixe que havia sido cruelmente manchada no muro caiado, supostamente para defender o palácio da ira de quaisquer cristãos itinerantes. A longa fachada sul por cima do promontório e do mar que se ficava para lá de uma ilha de areia no talude sul do promontório, era onde os construtores romanos haviam colocado as suas janelas, tal como haviam relegado as cozinhas e os aposentos dos escravos e os celeiros para o terreno norte por detrás da vila onde se encontrava a casa de madeira de Gwenhwyvach. Agora também aí havia uma pequena aldeia de cabanas de colmo, calculei que para os lanceiros e suas famílias, e um rolo de fumo elevou-se das chaminés das cozinhas das cabanas. Para lá das cabanas estavam os pomares e as hortas, e ainda para lá deles, cercado pelos profundos bosques, que cresciam densos, nesta zona do país, havia campos com algum feno já cortado.
Em frente do palácio, e tal como me recordava daquele dia distante em que prestara o precioso juramento a Artur na Távola Redonda, os dois taludes encimados por arcadas alongadas em direcção ao promontório. O palácio estava todo exposto ao Sol, tão branco, grandioso e belo.
Se os Romanos voltassem hoje disse Artur orgulhosamente, nunca perceberiam que foi reconstruído.
Se os Romanos voltassem hoje disse Issa teriam uma verdadeira batalha entre mãos. Eu insistira para que ele viesse para a orla das árvores, pois não conhecia ninguém com melhor visão e precisávamos de passar este dia apenas a descobrir quantos guardas Lancelote havia colocado no Palácio do Mar.
Nessa manhã não contámos mais de uma dúzia. Assim que despontou o dia, dois homens treparam a uma plataforma de madeira construída sobre o telhado e daí observavam a estrada que levava a norte. Quatro outros lanceiros caminhavam para cima e para baixo na arcada mais próxima, e pareceu sensato deduzir que outros quatro estariam colocados na arcada de oeste, escondida da nossa vista. Os outros guardas estavam todos no terreno que ia do terraço de pedra balaustrado no fundo dos jardins ao promontório, uma patrulha que, evidentemente, guardava os caminhos que seguiam ao longo da costa. Issa, despiu a armadura e tirou o elmo, fez um reconhecimento nessa direcção, espreitando através dos bosques, tentando ver a fachada da vila entre as estreitas arcadas.
Artur examinou fixamente o palácio. Estava silenciosamente extasiado, sabendo que estava a um passo de um resgate ousado, que soaria como um choque por todo o novo reino de Lancelote. Na verdade, raramente vira Artur tão feliz como naquele dia. Ao vir para tão fundo na Dumnónia, libertara-se das responsabilidades da governação e agora, tal como no muito longínquo passado, o seu futuro dependia apenas da arte da sua espada.
Nunca pensas no casamento, Derfel? perguntou-me de repente.
Não, Senhor respondi-lhe. Ceinwyn jurou nunca se casar, e não vejo necessidade alguma em a desafiar. Sorri e toquei no meu anel de amantes com o seu pequeno fragmento do Caldeirão de ouro. Se me permitis continuei penso que somos mais casados do que a maioria dos casais que estiveram diante de um druida ou de um sacerdote.
Não me refiro a isso disse ele. Nunca pensas no casamento?
Sublinhou a palavra "no".
Não, Senhor respondi. Não exactamente.
Obstinado Derfel zombou de mim. Quando eu morrer disse ele sonhador creio desejar um enterro cristão.
Porquê? perguntei, horrorizado, e tocando na minha cota de malha para que esse ferro me defendesse do mal.
Porque repousarei com a minha Guinevere para todos os tempos
disse ele, ela e eu, numa tumba, juntos.
Pensei na carne de Norwenna, pendurada dos seus ossos amarelos e fiz uma careta.
Estareis no Outro Mundo com ela, Senhor.
As nossas almas estarão, sim admitiu ele, e os nossos corpos-sombra lá estarão, mas porque não podem também estes corpos jazer de mãos dadas?
Abanei a cabeça.
Sede queimado disse eu, a menos que desejais que a vossa alma vagueie perdida pela Bretanha.
Talvez tenhas razão disse ele facilmente. Estava deitado sobre a barriga, escondido da vila por um cenário de tasna e loios. Nenhum de nós tinha armadura. Nós vestiríamos essa indumentária de guerra no crepúsculo antes de sairmos da escuridão para abater os guardas de Lancelote. O que vos faz felizes, a ti e a Ceinwyn? perguntou-me Artur. Não fazia a barba desde que saíramos de Glevum e o restolho da sua recente barba nascia grisalho.
Amizade afirmei. Franziu as sobrancelhas.
Apenas isso?
Pensei nisso. Distantes iam os primeiros escravos para os campos de feno com as suas foicinhas a apanharem o Sol da manhã em brilhantes lampejos.
Rapazinhos corriam para cima e para baixo nas hortas para assustarem os gaios das plantas das ervilhas e as gralhas das groselheiras verdes, das groselheiras vermelhas e das framboeseiras, enquanto mais próximo, um grupo de verdelhões se altercavam ruidosamente. Parecia que nenhum cristão fanático havia perturbado este lugar, de facto, parecia impossível que a Dumnónia estivesse de todo em guerra.
Continuo a sentir uma ânsia sempre que olho para ela admiti.
É isso, não é? disse ele entusiasticamente. Uma ânsia! Uma rapidez no coração.
Amor disse eu secamente.
Temos sorte, tu e eu disse ele, sorrindo. É amizade, é amor, e é ainda algo mais. É o que os Irlandeses chamam anmchara, uma alma amiga. A quem desejas tu mais falar no último dia? Eu adoro as noites em que posso apenas sentar-me e falar. E pondo-se o Sol, vêm as traças para junto das velas.
E nós falamos de crianças disse eu, e desejei não o ter feito e das querelas entre os criados, e se a escrava estrábica da cozinha está de novo grávida, e interrogamo-nos quem quebrou o gancho de ferro do fogão, e se o telhado de colmo precisa de reparação ou se ainda irá durar mais um ano, e tentamos resolver o que fazer com o cão velho que já não consegue andar, e que desculpa Cadell irá conjurar para não pagar de novo a sua renda, e discutimos se o linho esteve tempo suficiente em infusão, e se devíamos pôr mosto nas tetas das vacas para melhorar a sua produção. É sobre isso que falamos.
Ele riu.
Guinevere e eu falamos da Dumnónia. Da Bretanha. E, claro, de ísis. Algum do seu entusiasmo dissipou-se quando mencionou aquele nome, mas depois encolheu os ombros. Não que estejamos juntos o tempo suficiente. Foi por isso que eu sempre esperei que Mordred acartasse o fardo, então eu estaria sempre aqui.
A falar de ganchos de ferro quebrados em vez de ísis? importunei-o.
Desses assuntos e de todos os outros disse ele calorosamente. Um dia cultivarei esta terra, e Guinevere continuará com o seu trabalho.
O seu trabalho? Ele sorriu perverso.
Para conhecer ísis. Ela diz-me que se conseguir contactar com a Deusa, o poder virá ao Mundo. Encolheu os ombros, céptico como sempre em relação a tais pretensões religiosas extravagantes. Só Artur se atreveria a enterrar a Excalibur no solo e a desafiar Gofannon a vir em seu auxílio, pois nunca acreditou, de facto, que Gofannon alguma vez viesse. Nós somos para os Deuses, disse-me certa vez, como ratos num telhado de colmo, e sobrevivemos apenas durante tanto tempo quanto aquele que não formos notados. Mas apenas o amor exigia que ele expandisse uma seca tolerância à paixão de Guinevere. Gostava de estar mais convencido em relação a ísis admitiu-me então mas, claro, os homens não são parte dos mistérios. Sorriu. Guinevere até invoca Gwydre Horus.
Horus?
O filho de ísis explicou. Que nome feio.
Não tão feio como Wygga disse eu.
O quê? perguntou, depois de repente, firmou-se. Olha! ele entusiasmado. Olha!
Ergui a cabeça para espreitar por cima do cenário de flores e lá estava a Guinevere. Até mesmo a um quarto de milha de distância ela era inconfundível, com o seu cabelo ruivo a cair em desalinho por cima do longo vestido azul que trazia. Caminhava ao longo da arcada mais próxima através do pequeno pavilhão aberto no seu extremo virado para o mar. Três criadas caminhavam atrás com dois dos seus galgos escoceses. Os guardas afastaram-se e fizeram uma vénia à sua passagem. Uma vez no pavilhão sentou-se a uma mesa de pedra e as três criadas serviram-lhe o pequeno-almoço.
Ela comerá fruta disse Artur ternamente. No Verão, é apenas o que come pela manhã. Sorriu. Se ela soubesse quão próximo estou!
Esta noite, Senhor garanti-lhe, estareis com ela.
Assentiu.
Pelo menos têm-na tratado bem.
Lancelote teme-vos demasiado para que a trate mal, Senhor. Alguns momentos mais tarde, Dinas e Lavaine surgiram na arcada. Vestiam os seus hábitos druidas e eu toquei no copo da Hywelbane
quando os vi e prometi à alma da minha filha que os gritos dos seus assassinos fariam todo o Outro Mundo aninhar-se com medo. Os dois druidas chegaram ao pavilhão, fizeram uma vénia a Guinevere, depois juntaram-se a ela à mesa. Gwydre veio a correr alguns momentos mais tarde e vimos Guinevere a ondular o seu cabelo, depois mandou-o embora para a guarda de um criado.
Ele é um bom rapazinho disse Artur com ternura. Nele não há engano. Não é como Amhar e Loholt. Falhei com eles, não foi?
Eles são ainda jovens, Senhor disse eu.
Mas eles servem agora o meu inimigo afirmou sombrio. O que devo fazer com eles?
Culhwuch tê-lo-ia, sem dúvida, aconselhado a matá-los, mas eu apenas encolhi os ombros.
Mandai-os para um exílio disse eu. Os gémeos podiam fazer companhia aos homens infelizes que não prestaram qualquer juramento. Eles podiam vender as suas espadas até que por fim fossem mortos nalguma batalha esquecida contra os Saxões, os Irlandeses ou os Escoceses.
Na arcada surgiram mais mulheres. Algumas eram criadas, enquanto outras eram as cortesãs de Guinevere. Lunete, o meu antigo amor, era provavelmente uma dessas doze mulheres que eram confidentes de Guinevere e também as sacerdotisas da sua fé.
A meio da manhã adormeci com a minha cabeça encaixada nos braços e o meu corpo embalado pelo calor do Sol de Verão. Quando acordei descobri que Artur havia desaparecido e que Issa o viera substituir.
Lorde Artur regressou para junto dos lanceiros, Senhor disse-me ele. Bocejei.
O que viste?
Outros seis homens. Todos da Guarda Saxónica.
Saxões de Lancelote? Assentiu.
Todos eles no grande jardim, Senhor. Mas apenas os seis. Ao todo vimos dezoito homens, e alguns outros deverão estar de guarda à noite, mas ainda assim não pode haver mais de trinta no total.
Calculei que ele tivesse razão. Trinta homens seriam suficientes para guardar este palácio, e mais seriam supérfluos, sobretudo se Lancelote precisava de todas as lanças para guardar o seu reino roubado. Levantei a cabeça e vi que a arcada estava agora vazia, tendo apenas quatro guardas que pareciam visivelmente enfastiados. Dois estavam sentados com as costas assentes em pilares, enquanto os outros dois conversavam no banco de pedra onde Guinevere tomara o seu pequeno-almoço. As suas lanças estavam apoiadas na mesa. Os dois guardas em cima da pequena plataforma no telhado estavam igualmente preguiçosos. O Palácio do Mar aquecia sob um Sol intenso de Verão e ninguém ali acreditava que algum inimigo pudesse estar a menos de uma centena de quilómetros.
Contaste a Artur sobre os Saxões? perguntei a Issa.
Sim, Senhor. Ele disse que era apenas de se esperar. Lancelote quererá que ela seja bem guardada.
Vai e dorme um pouco disse-lhe eu. Agora ficarei eu a vigiar.
Ele partiu e, apesar da minha promessa, adormeci de novo. Tinha caminhado toda a noite e estava fatigado, e ademais, pareceu não haver qualquer perigo que ameaçasse na orla daquele bosque de Verão. E desse modo eu dormi um pouco apenas, pois fui abruptamente acordado por um latido repentino e o garatujar de grandes patas.
Acordei aterrorizado descobrindo dois galgos escoceses a babarem-se de pé sobre mim, um dos quais ladrava e o outro rosnava. Alcancei a minha faca, mas depois a voz de uma mulher gritou aos cães.
Para baixo! gritou-lhes ela. Drudwyn, Gwen, para baixo! Calados! Relutantemente os cães deitaram-se e virei-me, deparando com Gwenhwyvach a observar-me. Trazia um velho vestido castanho, tinha um lenço sobre a cabeça e um cesto no braço onde juntava ervas silvestres. O seu rosto estava mais redondo do que nunca e o seu cabelo, que aparecia por baixo do lenço, estava solto e emaranhado. O Lorde Derfel adormecido disse ela feliz.
Toquei com um dedo nos lábios e lancei um olhar rápido na direcção do palácio.
Eles não me observarão disse ela, eles não se importam comigo. Além disso, muitas vezes falo sozinha. Os loucos fazem-no, tu sabes.
Não sois louca, Senhora.
Eu devia gostar de ser disse ela. Não compreendo porque alguém quereria ser outra coisa no mundo. Riu, puxou o seu vestido para cima e sentou-se pesadamente ao meu lado. Virou-se quando os cães rosnaram a um barulho atrás de mim e observou divertida enquanto Artur serpenteava pelo caminho para se juntar a mim. Deve ter ouvido o latido. Na tua barriga como uma serpente, Artur? perguntou ela.
Tal como eu fizera Artur tocou com um dedo nos lábios.
Eles não se importam comigo repetiu Gwenhwyvach. Vede! E vigorosamente acenou com os seus braços na direcção dos guardas que simplesmente abanaram as cabeças e se viraram para o outro lado. Eu não vivo disse ela tão longe para que se preocupem. Eu sou apenas a mulher gorda e louca que passeia os cães. Acenou de novo, e uma vez mais os sentinelas a ignoraram. Até Lancelote não repara em mim acrescentou tristemente.
Está ele aqui? perguntou Artur.
Claro que ele não está aqui. Está muito distante daqui. Também tu, disseram-me. Não devias estar a falar com os saxões?
Estou aqui para levar Guinevere daqui disse Artur e a ti também acrescentou galanteador.
Eu não quero ser levada daqui protestou Gwenhwyvach. E Guinevere não sabe que tu aqui estás.
Ninguém devia saber disse Artur.
Ela devia! Guinevere devia! Ela olha fixamente para o pote de óleo. Ela diz que aí consegue ver o futuro! Mas não te viu, pois não? Teve um risinho sacudido, depois virou-se e fitou Artur como se achasse a sua presença divertida. Estás aqui para a salvares?
Sim.
Esta noite? Gwenhwyvach tentou adivinhar.
Sim.
Ela não te agradecerá disse Gwenhwyvach não esta noite. Não há nuvens, vês? Acenou para o céu quase sem nuvens. Sabes que não se pode adorar ísis com nuvens, porque a Lua não pode entrar no templo, e esta noite ela aguarda a lua cheia. Uma grande lua cheia, igualzinha a um queijo fresco. Mexeu no longo pêlo de um dos cães. Este é Drudwyn disse-nos e é um menino mau. E este é Gwen. Chape! disse inesperadamente. É como vem a lua, chape! Mesmo para dentro do seu templo. Riu de novo. Desce direitinha pela clarabóia e chape... para dentro do buraco.
Gwydre estará no templo? perguntou-lhe Artur.
Gwydre não. Não são permitidos homens, foi o que me disseram
Gwenhwyvach fez esta afirmação num tom sarcástico, e pareceu prestes a dizer mais qualquer coisa, mas depois encolheu simplesmente os ombros. Gwydre será posto na cama disse ela em vez do que pensava. Olhou fixamente para o palácio e no seu rosto redondo surgiu um sorriso lento e vago.
Como vais entrar, Artur? perguntou. Há imensas trancas naquelas portas e todas as janelas estão aferrolhadas.
Havemos de conseguir disse ele desde que não digas a ninguém que nos viste.
Desde que tu me deixes aqui disse Gwenhwyvach nem às abelhas digo. E a elas conto-lhes tudo. Tem de ser, de outro modo o mel fica seco. Não é assim, Gwen? perguntou à cadela, remexendo as suas orelhas moles.
Deixar-te-ei aqui se é isso o que desejas prometeu-lhe Artur.
Só eu disse ela, só eu, os cães e as abelhas. É tudo o que quero. Eu e os cães e as abelhas e o palácio. Guinevere pode ficar com a lua. Voltou a sorrir, depois empurrou-me o ombro com uma mão de chumbo.
Lembras-te da porta da adega por onde eu vos levei, Derfel? A que comunica com o jardim?
Penso que sim disse eu.
Certificar-me-ei que esteja destrancada. Deu novas risadinhas antecipando algum divertimento. Escondo-me na adega e destranco a porta quando todos estiverem à espera da Lua. Aí não há guardas à noite, porque a porta é demasiado grossa. Os guardas estão todos nas suas cabanas ou cá fora à frente. Ela virou-se para olhar para Artur. Virás? perguntou ansiosamente.
Prometo replicou Artur.
Guinevere ficará agradada disse Gwenhwyvach. E também eu ficarei. Riu e arrastou os seus pés pesadamente. Esta noite disse ela quando a Lua vier a fazer chape. E com isto afastou-se com os dois cães. Dava palmadinhas por baixo do queixo enquanto andava e até dançou dois desajeitados passos. Chape! gritou bem alto, e os cães saltavam junto dela à medida que saltava descendo a encosta.
Ela está louca? perguntei a Artur.
Um pouco, julgo eu. Observou a sua figura rotunda a descer desajeitadamente a colina. Mas ela deixar-nos-á entrar, Derfel, deixar-nos-á entrar. Sorriu, depois inclinou-se e apanhou uma mão-cheia de loios do extremo do campo. Dispô-los num pequeno ramo, depois fez-me um sorriso tímido. Para Guinevere explicou, esta noite.
Ao anoitecer, depois de terminado o seu trabalho, os malhadores do feno regressavam dos campos e os guardas do telhado desceram a longa escada. Os caldeireiros na arcada estavam cheios com madeira fresca que era agora acesa, mas calculei que as fogueiras se destinassem a iluminar o palácio e não como aviso da aproximação de algum inimigo. Gaivotas voaram para os seus refúgios em terra e o pôr do Sol tornava as suas asas tão cor-de-rosa como os convólvulos enrolados por entre os espinheiros.
De volta aos bosques Artur colocou a sua armadura de lâminas metálicas. Afivelou a Excalibur por cima do brilho luzidio do metal do casaco, depois lançou uma capa preta sobre os ombros. Raramente usava capas pretas, preferindo a sua branca, mas à noite os trajes escuros ajudariam a disfarçar-nos. Ele levaria o seu elmo reluzente por baixo da capa para esconder as suas plumas sumptuosas de longas penas brancas de ganso.
Dez dos seus cavaleiros ficariam junto às árvores. A sua tarefa era aguardar pelo som do lur de prata de Artur e depois atacar as cabanas dos lanceiros. Os enormes cavalos e os seus cavaleiros com armaduras, com enormes e ruidosas passadas à noite, serviriam para pôr em pânico quaisquer guardas que pudessem interferir com a nossa retirada. Artur fez votos para que o lur só soasse quando tivéssemos encontrado tanto Gwydre como Guinevere e estivessem prontos para partir.
Os restantes de nós fariam a longa viagem para o lado oeste do palácio, e daí treparíamos escondidos pelas sombras dos jardins da cozinha para alcançar a porta da adega. Se Gwenhwyvach falhasse na sua promessa teríamos de ir em volta para a frente do palácio, matar os guardas e entrar por um dos postigos das janelas no terraço. Uma vez dentro do palácio deveríamos matar todos os lanceiros que encontrássemos.
Nimue viria connosco. Quando Artur acabou de falar, ela disse-nos que Dinas e Lavaine não eram verdadeiros druidas, não como Merlim ou a velha lorweth, mas ela avisou-nos que os gémeos silurianos possuíam, de facto, alguns poderes estranhos e devíamos esperar encontrar a sua feitiçaria. Ela passara a tarde a vasculhar nos bosques e erguia agora uma capa numa trouxa que pareceu contorcer-se quando ela a vestiu, e essa estranha visão fez os meus homens tocar na ponta das suas lanças.
Tenho aqui coisas para suspender os seus feitiços disse-nos ela, mas tende cuidado.
E eu quero Dinas e Lavaine vivos disse eu aos meus homens. Esperámos, armados e com as armaduras colocadas, quarenta homens em ferro, aço e couro. Esperámos enquanto o Sol morria e a lua cheia de ísis subia vagarosamente do mar como uma grande bola redonda de prata.
Nimue fez os seus feitiços e alguns de nós rezámos. Artur sentou-se em silêncio, mas observou-me quando retirei da minha bolsa a pequena trança de cabelo dourado. Beijei o cabelo de cor viva, segurei-o por instantes contra a minha face, depois atei-a em volta do copo da Hywelbane. Senti uma lágrima a rolar pelo meu rosto, enquanto pensava na minha pequenina no seu corpo-sombra, mas esta noite, com a ajuda dos meus Deuses, eu daria a Dian a sua paz.
Puxei o elmo para a frente, apertei a fivela por baixo do queixo e atirei a pluma de pêlo de lobo para trás dos ombros. Calçámos as luvas de couro rijo e passámos os braços esquerdos através das presilhas dos escudos. Desembainhámos as espadas e expusemo-las para que fossem tocadas por Nimue. Por momentos pareceu-nos que Artur queria dizer mais qualquer coisa, mas em vez disso limitou-se a ajustar o pequeno ramo de centáureas azuis no pescoço da sua armadura laminada. Em seguida fez um aceno de cabeça na direcção de Nimue que, vestida de negro e segurando firmemente um estranho volume, nos guiou para Sul, através do arvoredo.
Para além das árvores estendia-se um pequeno prado que descia até à margem do rio, descrevendo uma encosta suave. Atravessámos o prado escuro em fila indiana, ainda fora do alcance do palácio. A nossa presença sobressaltou algumas lebres que, tendo saído para uma refeição à luz do luar, se esgueiraram, tomadas de pânico, quando passámos por alguns arbustos baixos e descemos um talude irregular, direitos à praia de seixos que bordejava a enseada. Daí seguimos para Oeste, resguardados dos olhares dos guardas que se encontravam nas arcadas do palácio, ao longo do talude alto da enseada. A sul, ouvia-se a rebentação das ondas que se sobrepunha ao ruído produzido pelas nossas botas ao pisar a praia de seixos.
Espreitei por cima do talude uma única vez e vi o palácio, que se erguia sobre a terra escura como uma prodigiosa maravilha branca banhada pelo luar. A sua beleza fez-me pensar em Ynys Trebes, essa mágica cidade à beira-mar que havia sido arrasada e destruída pelos Francos. Este lugar possuía a mesma beleza etérea, cintilando sobre a terra escura como se fosse feito de raios de lua.
Quando já estávamos bem para oeste do palácio escalámos o talude, ajudando-nos uns aos outros com as hastes das lanças e continuámos para Norte, atrás de Nimue e através dos bosques. O luar filtrado através da folhagem estival era suficiente para iluminar o nosso caminho e nenhum guarda apareceu a desafiar-nos. O bramido incessante do mar enchia a noite, embora em dado momento um grito tivesse soado muito perto de nós deixando-nos petrificados, antes de reconhecermos o ruído de uma lebre sendo morta por uma doninha. Suspirámos de alívio e prosseguimos.
Por fim, quando parecia que já tínhamos percorrido uma longa distância entre o arvoredo, Nimue virou para Leste e nós seguimos no seu encalço até à orla do bosque, onde ficámos frente a frente com as paredes caiadas do palácio. Não estávamos longe da clarabóia circular de madeira que conduzia ao templo e eu pude ver que ainda levaria algum tempo até que a Lua estivesse suficientemente alta para derramar a sua claridade através da clarabóia, iluminando assim a cave de paredes negras.
Foi quando nos encontrávamos na orla do bosque que os cânticos começaram. De início, eram de tal modo suaves que cheguei a pensar que se tratava dos gemidos do vento. Em seguida, porém, o som tornou-se mais alto e dei-me conta que era um coro de vozes femininas entoando uma melodia desconhecida, fantástica e pungente que em nada se parecia com tudo o que já ouvira antes. A melodia devia chegar até nós através da clarabóia, já que soava como se estivesse muito distante de nós; um cântico espectral, como um coro de mortos cantando para nós directamente do Outro Mundo. Não conseguíamos discernir as palavras, mas sabíamos que se tratava de uma canção triste, composta em mínimas que evoluíam estranhamente para cima e para baixo, crescendo para tornar a descer até se tornar um som suave e demorado que se misturava com o som distante da rebentação. A música era de uma grande beleza, mas fez-me estremecer e procurar a lança com uma das mãos.
Se tivéssemos abandonado a protecção das árvores teríamos penetrado no campo de visão dos guardas colocados na arcada oeste. Deste modo avançámos alguns passos ao longo do bosque, de onde poderíamos alcançar o palácio através de um labirinto de sombras projectadas pela Lua. Havia um pomar, algumas fileiras de árvores de frutos e até uma sebe alta que protegia a horta dos veados e das lebres. Movíamo-nos lentamente, um de cada vez, e durante todo esse tempo aquele cântico estranho crescia e esmorecia, fluía e carpia. Uma coluna de fumo serpenteou sobre a clarabóia e o cheiro que dele se libertava flutuou na nossa direcção, empurrado pela suave brisa nocturna. Era um odor a templo; penetrante e quase doentio.
Estávamos agora a alguns metros de distância das cabanas dos lanceiros. Um cão começou a ladrar, logo seguido de outro, mas nenhum dos ocupantes das cabanas atribuiu os latidos a alguma situação insólita, pois algumas vozes limitaram-se a gritar por silêncio. A pouco e pouco, os cães obedeceram às vozes de comando, deixando apenas o ruído do vento agitando as árvores, o bramido do mar e a melodia espectral e ténue do cântico.
Eu seguia à frente, para indicar o caminho, já que era o único que conhecia a porta pequena, e apesar de ter receio de não a encontrar descobri-a com facilidade. Com cuidado desci os velhos degraus de tijolo e empurrei a porta com suavidade. Esta ofereceu alguma resistência e por alguns instantes julguei que ainda devia estar trancada. Foi então que, com um ranger metálico de gonzos, ela se abriu e inundou-me de luz.
A cave estava iluminada por velas. Pisquei os olhos, encandeado, e depois ouvi a voz estridente de Gwenhwyvach.
Depressa! Depressa!
Entrámos. Trinta homens possantes vestidos com armaduras, capas e elmos e armados de lanças. Gwenhwyvach pediu-nos silêncio num sussurro, em seguida fechou a porta atrás de nós e tornou a colocar a pesada barra no devido lugar.
O templo é ali sussurrou, apontando para um corredor iluminado por velas, que haviam sido ali colocadas para alumiar a passagem que conduzia à porta do santuário. Estava excitada e o rosto rechonchudo estava ruborizado. O cântico obsessivo do coro soava muito mais suave, pois era abafado pelos reposteiros interiores do templo e pela sua pesada porta exterior.
Onde está Gwydre? murmurou Artur para Gwenhwyvach.
Nesta sala disse Gwenhwyvach.
Há guardas? perguntou ele.
À noite há apenas servos no palácio murmurou.
E Dinas e Lavaine estão cá? inquiri eu. Ela sorriu.
Hás-de vê-los, prometo-te. Hás-de vê-los. Puxou a capa de Artur, a fim de o conduzir na direcção do templo. Vem.
Primeiro vou buscar Gwydre insistiu Artur, desapertando a capa e tocando no ombro de seis dos seus homens. Vocês esperam aqui sussurrou. Esperem aqui. Não entrem no templo. Vamos deixá-las acabar o culto.
Depois, caminhando em silêncio, guiou os seis homens e juntos atravessaram a cave e subiram alguns degraus de pedra.
Ao meu lado, Gwenhwyvach soltou uma gargalhada abafada.
Rezei uma oração a Clud murmurou e ela vai ajudar-nos.
Óptimo disse eu.
Clud é uma deusa da luz e não seria mau poder contar com a sua ajuda esta noite.
Guinevere não gosta de Clud censurou Gwenhwyvach. Não gosta de nenhum dos Deuses da Bretanha. Já vai alta, a Lua?
Ainda não. Mas está a subir.
Então ainda não chegou o momento disse-me Gwinhwyvach.
O momento para quê, Senhora?
Verás! tornou a rir. Verás repetiu e depois recuou assustada quando Nimue furou o grupo de lanceiros nervosos. Nimue tinha tirado a viseira de pele, pelo que a órbita vazia e engelhada aparecia como um buraco negro no seu rosto e Gwenhwyvach recuou, aterrorizada soltou um gemido assustado.
Nimue ignorou Gwenhwyvach. Em vez disso passeou o olhar pela cave e farejou como se fosse um cão, procurando um rasto. Eu só conseguia ver teias de aranha e odres de vinho e jarros de hidromel e sentia um odor húmido a podre, mas Nimue farejou algo detestável. Assobiou e depois cuspiu na direcção do santuário. A trouxa que trazia nas mãos mudou lentamente de lugar.
Nenhum de nós se mexeu. Para dizer a verdade, fomos dominados por uma espécie de terror, ali naquela cave à luz das velas. Artur deixara-nos, não tínhamos sido descobertos, mas o som dos cânticos e a quietude do palácio eram ambos petrificadores. Talvez esse terror tivesse origem num feitiço lançado por Dinas e Lavaine, ou talvez fosse porque tudo ali parecia tão pouco natural. Estávamos habituados a madeira, colmo, terra e ervas e aquele lugar húmido feito de arcos de tijolo e pavimentos de pedra era estranho e enervante. Um dos meus homens tremia.
Nimue acariciou a mão do homem para tornar a incutir-lhe coragem e em seguida caminhou, descalça, na direcção das portas do templo. Acompanhei-a, cuidando onde pousava as minhas botas para não fazer barulho. Queria puxá-la para trás. Era evidente que estava empenhada em desobedecer às ordens de Artur, que nos ordenara que esperássemos até que os ritos tivessem terminado, e eu temia que ela fizesse qualquer coisa precipitada que alertasse as mulheres do templo e fizesse com que elas desatassem aos gritos, o que arrancaria os lanceiros às suas cabanas. Mas as minhas botas pesadas e barulhentas não deixavam que me movimentasse tão rapidamente quanto Nimue que caminhava descalça ignorando os meus sussurros de advertência. Ao invés apoderou-se de um dos puxadores de bronze do templo. Hesitou por um instante e depois abriu a porta e, de súbito, a melodia fantasmagórica e clangorosa subiu de tom.
Os gonzos das portas tinham sido oleados e a porta abriu-se silenciosamente deixando ver uma escuridão absoluta. Era a escuridão mais completa que eu jamais vira e era provocada pelos pesados reposteiros suspensos a escassos metros para além da porta. Fiz sinal aos meus homens para que não se mexessem e dispus-me a seguir Nimue. Quis retê-la, mas ela resistiu à pressão das minhas mãos e puxou a porta do templo, cujas dobradiças tinham sido oleadas. Os cânticos soavam agora mais perto. Não conseguia ver nada e apenas podia ouvir o coro, mas o templo estava impregnado de um odor intenso e nauseabundo.
Nimue tacteou o escuro à minha procura e depois puxou a minha cabeça para baixo até ficar perto da dela.
O mal! pronunciou suavemente.
Não devíamos estar aqui sussurrei.
Ela ignorou o meu comentário. Em vez disso tornou a tactear no escuro e descobriu o reposteiro e, um instante depois, uma estreita fenda de luz surgiu quando ela descobriu o rebordo do cortinado. Continuei atrás dela, baixei-me e espreitei por cima do seu ombro. De início, a abertura era tão pequena que eu não conseguia ver quase nada, mas depois, à medida que os meus olhos iam discernindo o que estava do outro lado do cortinado, acabei por ver de mais. Vi os mistérios de ísis.
Para que eu conseguisse encontrar um sentido para aquela noite tinha de saber a história de ísis. Fiquei a conhecê-la mais tarde, mas naquele momento, espreitando por cima dos cabelos curtos de Nimue, não fazia a mais pequena ideia do que o ritual significava. Sabia apenas que ísis era uma Deusa e que para muitos romanos era uma Deusa dotada dos maiores poderes. Sabia também que era uma protectora de tronos, o que explicava o trono negro e baixo que continuava sobre o estrado, no extremo mais afastado da cave, embora não conseguíssemos vê-lo com muita nitidez em virtude da espessa cortina de fumo que revoluteava e flutuava por todo o aposento escuro, subindo na direcção da clarabóia. O fumo libertava-se dos braseiros, cujas chamas tinham sido engrossadas por ervas que exalavam o odor acre e estonteante que cheiráramos na orla do bosque.
Não podia ver o coro que continuava a cantar apesar do fumo, mas podia distinguir os adoradores de ísis e, de início, não acreditei no que os meus olhos viram. Não queria acreditar.
Vi oito adoradores ajoelhados no chão de pedra negra, todos eles nus. Estavam de costas para nós, mas ainda assim pude ver que alguns dos adoradores nus eram homens. Não eram, pois, surpreendentes os risinhos abafados de Gwenhwyvach, que daquela maneira antecipava este momento, pois já devia conhecer aquele segredo. Os homens, Guinevere sempre asseverara, não eram admitidos no templo de ísis, mas ali estavam eles naquela noite e, suspeitava eu, em todas as noites em que a lua cheia derramasse a sua fria claridade através da abertura no tecto da cave. As chamas vacilantes dos braseiros projectavam os seus clarões acobreados sobre as costas dos adoradores. Estavam todos nus. Homens e mulheres, todos nus, tal como Morgana me prevenira havia tantos anos.
Os adoradores estavam nus, mas o mesmo não acontecia com os dois oficiantes. Lavaine era um deles. Estava de pé, num dos lados do trono negro e baixo, e a minha alma exultou quando o vi. Fora a espada de Lavaine que decepara a cabeça de Dian e entre ele e a minha espada havia apenas a largura da cave propriamente dita. Ali estava ele, alto, ao lado do trono, a cicatriz que lhe cortava a face iluminada pela claridade dos braseiros e os seus cabelos negros, oleados como os de Lancelote de forma que caíssem sobre as suas vestes negras. Na mão segurava um esguio bastão negro, encimado por uma pequena lua dourada, em quarto crescente. Não havia sinal de Dinas.
Duas tochas cintilantes enfiadas em argolas de ferro ladeavam o trono, onde Guinevere estava sentada, personificando ísis. Os seus cabelos estavam enrolados no alto da cabeça, presos por um aro de ouro do qual saíam dois chifres projectados para cima. Não eram chifres de um animal que eu conhecesse, e mais tarde viemos a descobrir que tinham sido talhados em marfim. Em torno do pescoço trazia uma pesada torques de ouro, mas não usava mais nenhuma jóia, apenas uma ampla capa vermelha-escura que escondia todo o seu corpo. Não via o chão à frente dela, mas sabia que o poço pouco profundo se situava aí e supus que estivessem à espera que o luar penetrasse através da clarabóia e inundasse as águas negras com o seu clarão prateado. Ao fundo viam-se os cortinados, por detrás dos quais, dissera Ceinwyn, havia uma cama, que no momento estavam corridos.
De súbito, uma luz vacilante cintilou no meio do fumo flutuante, e os adoradores nus soltaram uma exclamação perante a promessa nela encerrada. A pequena réstia de luz era pálida e prateada, a prova de que a Lua ia já suficientemente alta para que os seus primeiros raios oblíquos descessem sobre o pavimento da cave. Lavaine esperou alguns instantes que a claridade se tornasse mais intensa e então bateu duas vezes no chão com o bastão.
Eis chegada a hora disse, na sua voz gutural e áspera, eis chegado o momento.
O coro calou-se.
Depois nada aconteceu. Limitaram-se a esperar em silêncio que a coluna formada pela luz da Lua envolta em fumo engrossasse e deslizasse ao longo do pavimento, trazendo-me à memória aquela noite distante em que, enrodilhado no cume do outeiro rochoso perto de Llyn Cerrig Bach, vira o luar deslizar na direcção do corpo de Merlim. Agora, via de novo o luar deslizar e oscilar no interior do templo silencioso de ísis. O silêncio estava carregado de maus presságios. Uma das mulheres nuas, ajoelhadas, soltou um gemido baixo e tornou a imobilizar-se. Outra balouçava para a frente e para trás.
O raio de luar tornou-se ainda mais amplo e os seus reflexos projectavam uma claridade pálida sobre o rosto belo e severo de Guinevere. A coluna de luz era agora quase vertical. Uma das mulheres nuas tremia, não de frio, mas sim de êxtase. Então, Lavaine inclinou-se para a frente para espreitar pela clarabóia. A Lua iluminou a sua barba enorme, e o seu rosto surgiu duro e largo marcado pela cicatriz feita em combate. Olhou para cima durante alguns instantes e depois recuou alguns passos e tocou solenemente o ombro de Guinevere.
Ela ergueu-se e os chifres que adornavam a sua cabeça quase tocaram o tecto baixo e arqueado da cave. Os seus braços e mãos estavam escondidos por detrás da capa, que caía a direito desde os ombros até ao chão. Cerrou os olhos.
Quem é a Deusa? perguntou.
ísis, ísis, ísis as mulheres pronunciaram o nome com suavidade, ísis, ísis, ísis.
A coluna formada pela luz do luar era agora quase tão larga quanto a clarabóia e fazia lembrar um imenso pilar de luz prateada e nebulosa, que reluzia e ondulava no centro da cave. Quando vira o templo pela primeira vez, achara-o um sítio extravagante, mas à noite, iluminado por aquele cintilante pilar de luz branca afigurava-se-me tão fantástico e fantasmagórico e misterioso como todos os santuários que eu conhecia.
E quem é o Deus? perguntou Guinevere, ainda de olhos cerrados.
Osíris responderam os homens nus em voz baixa, Osíris, Osíris, Osíris.
E quem se sentará no trono? perguntou Guinevere.
Lancelote responderam homens e mulheres em conjunto, Lancelote, Lancelote.
Foi quando ouvi esse nome que soube que nada ficaria no lugar certo esta noite. Esta noite nunca traria de volta a velha Dumnónia. Esta noite nada nos ofereceria a não ser o horror, pois eu sabia que esta noite destruiria Artur e queria afastar-me daquele reposteiro, voltar para o interior da cave e empurrá-lo para o ar fresco da noite alumiada pelo luar claro para depois fazê-lo recuar no tempo, anos, dias e horas de forma que ele nunca tivesse de passar por esta noite. Mas não me mexi. Nimue não se mexeu. Nenhum de nós ousou mexer-se, pois Guinevere estendera a sua mão direita para aceitar o bastão negro que Lavaine lhe estendia. Este gesto entreabriu a capa vermelha, no lado direito, e eu vi que por baixo das pesadas dobras da capa ela estava nua.
ísis, ísis, ísis suspiravam as mulheres.
Osíris, Osíris, Osíris sussurravam os homens.
Lancelote, Lancelote, Lancelote entoaram todos em cântico. Guinevere pegou no bastão com a extremidade dourada e deu um passo em frente, deixando descair de novo a capa que cobriu de sombras o seu seio direito. Em seguida, em movimentos muito lentos e gestos exagerados, tocou com o bastão algo que estava dentro do poço de água, precisamente por baixo da brilhante e tremeluzente clarabóia de fumo prateado, que agora descia dos céus na vertical. Mais ninguém se movia dentro da cave. Ninguém parecia respirar, sequer.
Erguei-vos! ordenou Guinevere, erguei-vos. E o coro começou a entoar de novo o seu cântico bizarro e obsessivo. ísis, ísis, ísis cantava eles, e sobre as cabeças dos adoradores vi um homem erguer-se do interior do poço. Era Dinas, e o seu corpo alto e musculado e os longos cabelos negros escorriam água à medida que ele se endireitava e que o coro entoava o nome da Deusa cada vez mais alto. ísis! ísis! ísis! cantaram eles, até Dinas ficar finalmente em pé diante de Guinevere, de costas para nós, e nu. Ele saiu do poço e Guinevere entregou o bastão negro a Lavaine, depois ergueu as mãos e desapertou a capa deixando-a cair para cima do trono. A esposa de Artur ficou ali, de pé, nua, à excepção do ouro que lhe adornava o pescoço e do marfim que lhe rodeava a cabeça, e abriu os braços para que o neto nu de Tanaburs pudesse subir para o estrado e receber o seu abraço. Osíris! Osíris! Osíris! clamavam as mulheres que se encontravam na cave. Algumas balouçavam-se para a frente e para trás como os adoradores cristãos de Isca, que tinham sucumbido a um êxtase semelhante. As vozes que ecoavam pela cave tornavam-se agora dissonantes. Osíris! Osíris! Osíris! cantavam, e Guinevere recuou quando Dinas se virava em toda a sua nudez para enfrentar os adoradores e erguia os braços num gesto de triunfo. Com esse movimento exibiu o seu magnífico corpo nu e não havia dúvidas que era um homem ou quanto ao que se predispunha a fazer em seguida, quando Guinevere, com o seu corpo alto, bonito e direito, magicamente tingido de prata pelo luar cintilante envolto pelo fumo, tocou o seu braço direito e o conduziu na direcção do reposteiro por detrás do trono. Lavaine acompanhou-os enquanto as mulheres se contorciam em adoração e balouçavam para a frente e para trás, proferindo o nome da sua grande deusa.
ísis! ísis! ísis!
Guinevere afastou o pesado reposteiro para o lado. Por breves instantes entrevi o aposento que estava por detrás dele, que parecia tão brilhante como o Sol. Então, o cântico dissonante elevou-se para atingir um novo pico de excitação quando os homens do templo se aproximaram das mulheres que estavam ao seu lado; nesse preciso momento as portas atrás de mim escancararam-se e Artur, magnífico no seu equipamento de guerra, entrou no vestíbulo do templo.
Não, Senhor disse-lhe eu, não, Senhor, por favor.
Não devias estar aqui, Derfel falou num tom de voz baixo, mas com uma entoação reprovadora. Na sua mão direita segurava o pequeno ramos de centáureas azuis que colhera para Guinevere, enquanto com a esquerda segurava a mão do filho. Afasta-te ordenou. Nesse momento, porém, Nimue afastou o enorme reposteiro para os lados e o pesadelo do meu Senhor começou.
ísis é uma Deusa. Os Romanos trouxeram-na para a Bretanha, embora ela não fosse originária de Roma mas sim de um país longínquo, bem a oriente de Roma. Mitras era outro dos Deuses naturais dessas paragens, ainda que não fosse do mesmo país, segundo creio. Galaad disse-me que metade das religiões do Mundo nasciam no Oriente onde, julgo eu, os homens se parecem mais com Sagramor do que connosco. O cristianismo é outra dessas crenças trazidas de terras longínquas onde, assegura-me Galaad, os campos nada produzem senão areia, o Sol é mais escaldante que na Bretanha e a neve nunca cai.
ísis vinha dessas paragens ardentes. Tornou-se uma Deusa poderosa para os Romanos e muitas mulheres, na Bretanha, adoptaram o seu culto que permaneceu depois da partida dos Romanos. Nunca fora tão popular como o cristianismo, pois este abria as suas portas a todos os que quisessem adorar o seu Deus, enquanto ísis, tal como Mitras, restringia o círculo dos seus seguidores àqueles, e apenas àqueles, que tivessem sido iniciados nos seus mistérios. De certa maneira, dissera Galaad, ísis fazia lembrar a Santa Mãe dos cristãos, pois era considerada a mãe perfeita do seu filho, Horus. ísis, porém, possuía poderes que a Virgem Maria nunca reclamara para si. Aos olhos dos seus adeptos, ísis era a Deusa da vida e da morte, da cura e, claro, dos tronos mortais.
Galaad contara-me que ela era casada com um Deus chamado Osíris, mas este fora morto numa guerra entre deuses e o seu corpo foi desmembrado em vários pedaços, que foram atirados para dentro de um rio. ísis recuperou os membros espalhados do seu corpo e, ternamente, voltou a reuni-los e deitou-se com eles com o fito de fazer o marido regressar à vida. Osíris voltou a viver, de facto, reanimado pelos poderes de ísis. Galaad odiava esta história e benzera-se várias vezes enquanto a contava. Suponho que a cerimónia a que Nimue e eu tínhamos assistido naquela cave escura e cheia de fumo era a história da ressurreição e da mulher que faz reviver o homem. Víramos ísis, a Deusa, a mãe, a geradora de vida executar o milagre que tornava a instilar o sopro da vida no corpo do marido e a transformava na guardiã dos vivos e dos mortos e na soberana dos tronos dos homens. E era este último poder, o poder que determinava quais os homens que deveriam sentar-se nos tronos desta terra, que era, para Guinevere, a dádiva suprema da Deusa. Era o poder que investia o outorgador de tronos que levava Guinevere a adorar ísis.
Nimue afastou o reposteiro para os lados e a cave encheu-se de gritos.
No espaço de um segundo, no espaço de um terrível segundo, Guinevere hesitou junto ao cortinado, no outro extremo do aposento, e virou-se para ver o que tinha vindo perturbar os seus ritos. Ficou onde estava, alta, nua e terrífica na sua beleza pálida, ladeada por um homem nu. À entrada da cave, segurando o filho numa das mãos e as flores na outra, estava o homem que era seu marido. As protecções do elmo de Artur estavam desapertadas e eu pude contemplar o seu rosto naquele momento terrível. Era como se a sua alma se tivesse escapado nesse momento.
Guinevere desapareceu atrás do cortinado, levando Dinas e Lavaine com ela, e Artur soltou um som medonho, um som que era uma combinação de um grito de guerra com o clamor um homem devastado pela dor. Empurrou Gwydre para trás, deixou cair as flores, depois desembainhou a Excalibur e precipitou-se para a frente atravessando sem pensar o grupo de adoradores nus que gritavam e se afastavam com movimentos atabalhoados para o deixar passar.
Agarrem-nos a todos! gritei para os lanceiros que seguiam atrás de Artur, não os deixem escapar! Apanhem-nos!
Em seguida corri atrás de Artur com Nimue ao meu lado. Artur saltou por cima do poço negro, soltou uma das tochas quando atravessou o estrado e descerrou o reposteiro preto com a lâmina da Excalibur.
E aí estacou.
Parei ao seu lado. Livrara-me da lança enquanto atravessava o templo e nesse momento tinha a Hywelbane na mão. Nimue estava ao meu lado e soltou um uivo triunfante quando contemplou o pequeno aposento quadrado que era um prolongamento da cave arqueada. Parecia ser o santuário interior de ísis e, aí, ao serviço da Deusa, estava o Caldeirão de Clyddno Eiddyn.
O Caldeirão foi a primeira coisa que vi, já que estava colocado sobre um pedestal negro que chegava à cintura de um homem e as velas espalhadas pelo aposento eram tantas que o Caldeirão parecia resplandecer em reflexos de prata e ouro cintilando sob a sua luz brilhante. Esta luz tornava-se ainda mais brilhante porque o aposento, à excepção da parede coberta pelo cortinado, estava forrado a espelhos. Havia espelhos nas paredes e até no tecto, espelhos que multiplicavam as chamas das velas e reflectiam a nudez de Guinevere e Dinas. Aterrorizada, Guinevere enfiara-se na cama ampla que ocupava o canto mais recuado do aposento e agarrara-se furiosamente a uma manta felpuda, num esforço para esconder a palidez da sua pele. Dinas estava a seu lado, as mãos coladas às virilhas, e Lavaine enfrentava-nos com um olhar desafiador.
Olhou para Artur, pôs de parte Nimue com um relance e estendeu o esguio bastão negro na minha direcção. Ele sabia que eu tinha vindo para matá-lo e agora iria tentar deter-me recorrendo à mais poderosa das magias que estivesse ao seu alcance. Apontou o bastão para mim e com a outra mão segurava um fragmento incrustado em cristal da verdadeira cruz que o bispo Sansum dera a Mordred no dia da aclamação deste. Segurava o fragmento suspenso sobre o Caldeirão, repleto de um líquido escuro e aromático.
As tuas outras filhas morrerão também disse-me. Basta que o largue.
Artur ergueu a Excalibur.
O teu filho também! disse Lavaine, deixando-nos a ambos petrificados. Agora, vão disse, com uma autoridade tranquila. Invadiram o santuário da Deusa e agora vão sair, deixando-nos em paz. Ou então todos vós, e todos os vossos entes queridos, morrerão.
Esperou. Atrás dele, entre o Caldeirão e a cama, estava a Távola Redonda de Artur com a imagem de um cavalo alado em pedra, sobre o qual, tinham sido colocados um cesto castanho-claro, um chifre vulgar, um velho cabresto, uma faca usada, uma pedra de amolar, uma cota com mangas, uma capa, um prato de barro, um escudo, um anel de guerreiro e um monte de tábuas de madeira podres e partidas. O pedaço da barba de Merlim também estava entre os objectos, ainda envolta na sua fita preta. Todo o poder da Bretanha estava concentrado naquele pequeno aposento, aliado a um bocado da mais poderosa das magias cristãs.
Ergui a Hywelbane e nesse momento Lavaine fez menção de deixar cair o fragmento da cruz verdadeira para dentro do líquido, o que fez com que Artur levasse a mão ao meu escudo.
Saiam disse Lavaine. Guinevere nada disse, limitando-se a fixar em nós os olhos muito abertos, por cima da pele que a cobria parcialmente.
Então, Nimue sorriu. Tinha estado a segurar a capa enrolada numa trouxa em ambas as mãos, mas nesse momento sacudiu-a na direcção de Lavaine. Gritou enquanto desenrolava a capa. Foi um guincho terrível e sobrenatural, que ecoou muito acima dos gritos proferidos pelas mulheres atrás de nós.
Víboras voaram pelos ares. Devia haver uma dúzia de cobras dentro da capa, todas elas reunidas por Nimue durante a tarde desse dia e reservadas para aquele momento. Contorciam-se no ar e Guinevere gritou e puxou a pele para cobrir o rosto enquanto Lavaine, ao ver uma cobra voar direita aos seus olhos, vacilou e agachou-se instintivamente. O fragmento da cruz verdadeira resvalou pelo chão enquanto as cobras, excitadas pelo calor que fazia na cave, serpenteavam sobre o leito e por cima dos Tesouros da Bretanha. Dei um passo em frente e desferi um golpe violento no estômago de Lavaine. Ele caiu e depois gritou quando uma das víboras lhe mordeu o tornozelo.
Dinas encolheu-se para fugir às cobras que estavam sobre a cama e depois ficou absolutamente imóvel quando a Excalibur lhe tocou a garganta.
A Hywelbane estava colada à garganta de Lavaine e, com a lâmina, obriguei-o a levantar o rosto e a fitar-me. Então sorri.
A minha filha disse, em voz baixa está a ver-nos do Outro Mundo. Envia-te saudações, Lavaine.
Ele tentou falar, mas nenhuma palavra saiu da sua boca. Uma cobra deslizou sobre a perna dele.
Artur fixou o olhar no sítio onde a mulher se escondia, debaixo da pele. Então, de uma forma quase terna, afastou as cobras da pele preta com a ponta da Excalibur e puxou a pele para trás até conseguir ver o rosto de Guinevere. Ela olhou para ele e, nesse momento, nada restava da sua imensa altivez. Era apenas uma mulher aterrorizada.
Tens algumas roupas aqui? perguntou Artur com ternura. Ela abanou a cabeça.
Há uma capa vermelha sobre o trono disse-lhe eu.
Podes ir buscá-la, Nimue? perguntou Artur.
Nimue trouxe a capa e Artur estendeu-a na direcção da mulher, suspensa na ponta da Excalibur.
Aqui tens disse, no mesmo tom terno, para ti. Um braço nu emergiu de debaixo da pele e agarrou a capa.
Vira-te Guinevere dirigiu-se a mim numa voz sumida e assustada.
Vira-te, Derfel, por favor disse Artur.
Uma coisa, antes disso, Senhor.
Vira-te insistiu ele, sem desviar os olhos da mulher.
Alcancei o rebordo do Caldeirão e tirei-o do pedestal. O valioso Caldeirão caiu ao chão com estridor e o líquido que ele continha espalhou-se numa mancha escura sobre as lajes do pavimento. O movimento atraiu a sua atenção. Ele fitou-me e eu quase não reconheci o seu rosto, de tão duro e frio e desprovido de vida estava. Mas algo mais tinha de ser dito nessa noite e se o meu Senhor tinha de engolir aquele cálice de horrores então podia perfeitamente esvaziá-lo até à última gota amarga. Tornei a aproximar a ponta da Hywelbane debaixo do queixo de Lavaine.
Quem é a Deusa? perguntei-lhe.
Ele abanou a cabeça e eu empurrei Hywelbane com força suficiente até lhe fazer sangrar a garganta.
Quem é a Deusa? tornei a perguntar.
Isis murmurou ele. Apertava o tornozelo no sítio onde a cobra o mordera.
E quem é o Deus? inquiri.
Osíris respondeu ele numa voz aterrorizada.
E quem perguntei deverá sentar-se no trono? ele tremeu e ficou calado.
Estas, Senhor disse eu a Artur, a minha espada ainda encostada à garganta de Lavaine, são as palavras que não haveis escutado. Mas eu ouvi-as, e Nimue ouviu-as. Quem deverá sentar-se no trono? tornei a perguntar a Lavaine.
Lancelote disse ele, num tom de voz tão sumido que era quase inaudível.
Artur, porém, ouviu, tal como deve ter visto a grande insígnia bordada a branco sobre a sumptuosa coberta preta que cobria o leito, escondido debaixo da pele de urso, no aposento forrado a espelhos. Era a águia-marinha de Lancelote.
Cuspi sobre Lavaine, embainhei a Hywelbane e depois dei um passo em frente e agarrei-o pelos longos cabelos negros. Nimue já tinha agarrado Dinas. Arrastámo-los de regresso ao templo e eu corri o reposteiro atrás de mim para que Artur e Guinevere pudessem ficar a sós. Gwenhwyvach tinha observado toda a cena e desfazia-se agora em gargalhadas sonoras. Os adoradores e o coro, todos nus, estavam agachados num dos cantos da cave, guardados pelas lanças dos homens de Artur. Gwydre, aterrorizado, estava encolhido junto à porta da cave.
Atrás de nós, Artur gritou uma palavra:
Porquê?
E eu levei os assassinos da minha filha para a noite enluarada.
Quando a madrugada despontou estávamos ainda no Palácio do Mar. Já devíamos ter partido, pois alguns dos lanceiros tinham conseguido escapar das cabanas quando os cavaleiros desceram finalmente da colina, chamados pelo corno de Artur, e estes fugitivos fariam soar o alarme por toda a Dumnónia, a norte. Artur, porém, parecia incapaz de tomar uma decisão. Era um homem atordoado.
Ainda chorava quando a alvorada inundou o mundo com a sua claridade.
Dinas e Lavaine morreram nesse momento. Morreram à beira do ribeiro. Não creio que seja um homem cruel, mas as suas mortes foram extremamente cruéis e demoradas. Foi Nimue quem as planeou, e durante todo o tempo que as suas almas demoraram a libertar-se da carne ela não se cansou de repetir aos seus ouvidos, num tom ciciante, o nome de Dian. Quando morreram já não eram homens, as suas línguas tinham desaparecido e a cada um deles já só restava um olho, um pequeno gesto de misericórdia que apenas lhes foi concedido para que pudessem conhecer o calvário seguinte que os esperava. E viram-no, de facto, enquanto morriam. A última coisa que ambos viram foi a madeixa de cabelo brilhante no punho da Hywelbane, no momento em que concluí o que Nimue começara. A essa altura, os gémeos eram meras coisas, coisas sangrentas e trémulas de terror, e quando morreram beijei o pequeno pedaço de cabelo, que em seguida levei até junto de um dos braseiros que ardiam sob as arcadas do palácio e atirei para o meio das brasas, para que nenhum fragmento da alma de Dian fosse deixado a vaguear pela terra. Nimue fez o mesmo com a barba entrançada de Merlim. Abandonámos os corpos dos gémeos virados sobre o lado esquerdo, junto ao mar e as primeiras gaivotas da aurora aproximaram-se para debicar a carne torturada com os seus bicos longos e curvos.
Nimue resgatara o Caldeirão e os Tesouros. Antes de morrerem, Dinas e Lavaine, contaram-lhe toda a história, e Nimue comprovou que sempre estivera certa. Fora Morgana quem roubara os Tesouros dando-os de presente a Sansum para assim convencê-lo a desposá-la. Sansum, por sua vez oferecera-os a Guinevere. Fora a promessa de uma oferenda de peso o que propiciara a reconciliação entre Guinevere e o Lorde Rato, antes do baptismo de Lancelote no rio Churn. Quando ouvi a história pensei que se ao menos tivesse aceite que Lancelote fosse admitido nos mistérios de Mitras talvez nada disto tivesse acontecido. O destino é inexorável.
As portas do santuário estavam fechadas, agora. Nenhum dos que tinham ficado presos no seu interior tinha escapado e mal Guinevere fora tirada de lá e depois de Artur ter conversado com ela durante muito tempo, regressara à cave sozinho, com a Excalibur pela mão só tornando a sair uma hora depois. Quando reapareceu, o seu rosto estava mais gelado do que o mar e tão cinzento como a lâmina da Excalibur. Só que a preciosa lâmina estava agora tingida de vermelho e banhada em sangue. Numa das mãos trazia o círculo de ouro em forma de chifres que Guinevere usara quando personificara ísis e, na outra, a espada.
Estão mortos disse-me.
Todos?
Todos. Parecia estranhamente despreocupado, embora tivesse sangue nos braços e na armadura e, até, uns salpicos nas plumas do elmo.
As mulheres também? perguntei, porque Lunete estava entre as adoradoras de ísis. Não sentia nenhum afecto por ela nesse momento, mas em tempos fora minha amante e senti pena dela. Os homens do templo tinham sido os mais formosos dos lanceiros de Lancelote e as mulheres eram servas de Guinevere.
Todas mortas disse Artur, num tom quase leviano. Aproximara-se lentamente percorrendo o caminho de gravilha que atravessava o jardim.
Não foi a primeira noite que fizeram isto disse ele, e na sua voz havia uma nota de perplexidade. Parece até que o faziam com frequência. Todos eles. Sempre que a Lua estava na fase certa. E faziam-no uns com os outros, todos. Excepto Guinevere. Ela só o fazia com os gémeos ou com Lancelote.
Nesse momento estremeceu, traindo o primeiro indício de emoção desde que deixara a cave com uma expressão glacial no olhar.
Aparentemente disse ele costumava fazê-lo em meu benefício. Quem deverá sentar-se no trono? Artur, Artur, Artur; mas eu não devo ter sido do agrado da Deusa. Tinha começado a chorar. Ou então resisti à Deusa com demasiada obstinação e eles mudaram o nome para Lancelote. Trespassou os ares com um movimento fútil da espada ensanguentada. Lancelote disse ele numa voz embargada pela angústia. Há anos que ela dorme com Lancelote, Derfel, e tudo em nome da religião, diz ela! Da religião! Ele personificava habitualmente Osíris e ela, ísis. Que outra coisa poderia ela ter sido? Alcançou o terraço e sentou-se num banco de pedra de onde podia contemplar a enseada banhada pela Lua. Não devia tê-los morto disse, passado muito tempo.
Não, Senhor disse eu, não o devíeis ter feito.
Mas que mais podia eu fazer? Era uma obscenidade, Derfel, simples obscenidade! Nesse momento começou a soluçar. Disse qualquer coisa sobre a vergonha, sobre o facto de os mortos terem sido testemunhas da vergonha da sua esposa, e da sua própria desonra, e quando não foi capaz de dizer mais nada, limitou-se a soluçar descontroladamente enquanto eu permanecia calado. Ele não parecia importar-se em saber se eu iria ficar junto dele ou não, mas deixei-me ficar até ao momento de levar Dinas e Lavaine para a beira-mar, para que Nimue pudesse arrancar as suas almas aos respectivos corpos, centímetro por centímetro.
E agora, na madrugada cinzenta, Artur estava sentado, exausto, sobre o mar. Os chifres jaziam aos seus pés, enquanto o elmo e a Excalibur repousavam no banco ao seu lado. O sangue que manchava a lâmina da espada secara entretanto e formara uma espessa crosta castanha.
Temos de partir, Senhor disse-lhe eu à medida que a alvorada emprestava ao mar uma tonalidade semelhante à da lâmina de uma lança.
Amor disse ele, amargamente. Pensei que ele não me tinha ouvido bem.
Temos de partir, Senhor tornei a dizer.
Para quê? perguntou ele.
Para completardes o vosso juramento.
Cuspiu e continuou sentado, em silêncio. Os cavalos tinham sido trazidos do bosque e o Caldeirão, bem como os Tesouros da Bretanha, estavam já devidamente acondicionados para iniciar a viagem. Os lanceiros fitavam-nos e esperavam.
Haverá algum juramento perguntou ele, desiludido que não tenha sido quebrado? Um único?
Temos de ir, Senhor disse-lhe, mas ele não se mexeu, nem falou, e eu virei-lhe as costas. Então partiremos sem vós disse eu, brutal.
Derfel! chamou Artur, a voz embargada por uma dor genuína.
Senhor? Virei-me.
Baixou os olhos e fitou a espada, parecendo surpreendido quando viu que estava toda ensanguentada.
A minha mulher e o meu filho estão num aposento lá em cima disse-me. Vai buscá-los, sim? Podem viajar no mesmo cavalo. Depois podemos ir.
Lutava ferozmente para falar com uma voz normal, como se esta fosse apenas mais uma madrugada como as outras.
Sim, Senhor disse eu.
Levantou-se e enfiou a Excalibur dentro da respectiva bainha, mesmo ensanguentada.
Em seguida, creio eu disse em tom azedo, temos de reconstruir a Bretanha?
Sim, Senhor respondi, temos.
Olhou para mim e percebi que queria chorar outra vez.
Sabes uma coisa, Derfel? perguntou-me.
Dizei, Senhor pedi.
A minha vida nunca mais tornará a ser a mesma, não é?
Não sei, Senhor disse, não sei mesmo. As lágrimas corriam ao longo das suas faces.
Vou amá-la até ao dia em que morrer. Todos os dias que viva pensarei nela. Todas as noites, antes de adormecer, vê-la-ei, e todas as madrugadas hei-de virar-me no nosso leito para descobrir que ela não está lá. Todos os dias, Derfel, e todas as noites e todas as madrugadas até ao instante da minha morte.
Pegou no elmo adornado com a pluma salpicada de sangue, abandonou os chifres de marfim e acompanhou-me. Fui buscar Guinevere e o filho dela ao aposento onde ambos se encontravam recolhidos e partimos.
Gwenhwyvach ficou com o Palácio do Mar só para ela. Aí passou a viver sozinha, meio tresloucada, e rodeada por cães e pelos magníficos tesouros que sucumbiam à ruína a toda a volta. Punha-se à janela, aguardando a chegada de Lancelote, pois estava certa que um dia, o seu Senhor viria viver com ela à beira-mar no palácio da irmã. O seu Senhor, porém, nunca chegou, os tesouros foram roubados, o palácio ruiu e Gwenhwyvach morreu. Pelo menos foi o que nos contaram. Ou talvez ainda viva lá, aguardando junto à enseada o homem que jamais chegará.
Partimos. E nos taludes lamacentos da enseada, as gaivotas debicavam e dilaceravam a carne putrefacta.
Num longo vestido negro coberto por uma capa verde-escura e com o cabelo ruivo esticado para trás num penteado severo preso por uma fita negra, Guinevere seguia montada na égua de Artur, Llamrei. Sentada de lado, agarrando as rédeas pelo bridão com a mão direita e, com o braço esquerdo, rodeando a cintura do filho assustado e choroso que não tirava os olhos do pai. Este caminhava teimosamente atrás do cavalo.
Sou o pai dele, suponho? Artur cuspiu-lhe uma vez. Guinevere, os olhos vermelhos das lágrimas, limitou-se a desviar o olhar. O movimento do cavalo fazia-a balançar para a frente e para trás, para a frente e para trás, o que apesar de tudo não a impedia de manter o mesmo porte gracioso de sempre.
E mais ninguém, meu Príncipe respondeu após uma longa pausa. Mais ninguém.
Depois disso caminhou em silêncio. Não desejava a minha companhia, não desejava a companhia de ninguém a não ser a da sua própria dor, pelo que fui juntar-me a Nimue na cabeça do cortejo. Logo atrás vinham os cavaleiros, seguidos de Guinevere, e na retaguarda os meus lanceiros escoltando o Caldeirão. Nimue percorria a mesma estrada que nos conduzira até à costa e que no trecho que atravessávamos no momento não era mais do que um trilho acidentado que subia até uma charneca descarnada interrompida por extensões escuras de teixo e giesta.
Gorfyddyd tinha razão, afinal disse eu pouco depois.
Gorfyddyd? perguntou Nimue, espantada por eu ter ido resgatar ao passado o nome daquele velho rei.
No Vale do Lugg recordei-a, ele disse que Guinevere era uma meretriz.
E tu, Derfel Cadarn disse Nimue, com desdém, és especialista em meretrizes?
E que outra coisa é ela senão isso? perguntei, com azedume.
Não é uma meretriz disse Nimue. Esboçou um gesto para a frente, apontando para as colunas de fumo que se elevavam acima das árvores distantes denunciando o local onde uma guarnição de Vindocládia cozinhava o pequeno-almoço. Teremos de os evitar disse Nimue e saiu da estrada conduzindo-nos até um arvoredo mais denso que se estendia para oeste. Suspeitei que a guarnição já tinha conhecimento de que Artur viera ao Palácio do Mar e não sentia qualquer desejo de o enfrentar, mas, obediente segui atrás de Nimue e os cavaleiros fizeram o mesmo.
O que fez Artur disse ela mais tarde foi casar com uma rival em vez de ter escolhido uma companheira.
Uma rival?
Guinevere seria capaz de governar a Dumnónia tão bem como qualquer homem volveu Nimue e melhor do que muitos. É mais inteligente do que ele e igualmente determinada. Se tivesse nascido filha de Uther em vez de ter por pai aquele idiota do Leodegan, tudo teria sido muito diferente. Seria uma nova Boudicca e haveria cristãos mortos daqui até ao mar da Irlanda, e saxões mortos até ao mar Germânico.
Boudicca lembrei-lhe perdeu a guerra.
Tal como Guinevere disse Nimue, sombriamente.
Não vejo como pode ter sido rival de Artur disse, algum tempo depois. Ela tinha poder. Suponho que ele nunca tomou uma decisão sem falar com ela.
E ele discutia com o Conselho, do qual nenhuma mulher pode fazer parte disse Nimue, mordaz. Imagina-te na posição de Guinevere, Derfel. Ela é mais arguta do que todos vocês juntos, mas qualquer ideia que ela pudesse ter era posta à consideração de um grupo de homens apagados e lentos. Tu e o bispo Emrys e Cythryn, aquele cretino, que finge ser tão sensato justo e depois chega a casa e bate na mulher e obriga-a a assistir enquanto ele está na cama com uma anã. Conselheiros! Achas que a Dumnónia iria notar a diferença se todos vocês morressem afogados?
Um rei deve ter um Conselho reagi, indignado.
Não, se for inteligente disse Nimue. Por que motivo deveria ter? Será que Merlim tem um Conselho? Será que Merlim tem necessidade de um quarto repleto de idiotas pomposos que lhe digam o que tem de fazer? A única finalidade de um conselho é fazer com que todos vocês se sintam muito importantes.
Faz mais do que isso insisti. Como é que um rei conhece o que o seu povo está a pensar se não existir um Conselho?
Que importa o que pensam os tolos? Basta dar ao povo uma oportunidade para pensar por ele e metade dele converter-se-á ao cristianismo. Ora aí está um elogio à sua capacidade para pensar cuspiu. E que fazes tu, exactamente, no Conselho, Derfel? Dizes a Artur aquilo de que falam os teus pastores? E Cythryn, suponho eu, representa os homens-anões da Dumnónia. É isso? riu-se. O povo! O povo é idiota, é por isso que têm um rei e é por isso que o rei tem lanceiros.
Artur disse eu, resoluto tem governado bem o país e tem-no feito sem ter de usar as lanças contra o povo.
E vê o que aconteceu ao país retorquiu Nimue. Caminhou em silêncio durante alguns momentos. Ao fim de algum tempo suspirou. Guinevere tinha razão desde o início. Artur devia ser rei. Ela sabia isso. Queria isso. Ter-se-ia até dado por feliz se tal tivesse acontecido, pois se Artur fosse rei ela seria rainha, e isso ter-lhe-ia proporcionado tanto poder quanto precisava. Mas o teu bem-amado Artur não quer sentar-se no trono. Tão magnânimo! Todos aqueles juramentos sagrados! E que queria ele em vez disso? Ser lavrador. Viver como tu e Ceinwyn; um lar feliz, filhos, risos fez com que estas coisas soassem ridículas. Achas que Guinevere perguntou se sentiria satisfeita com esse tipo de vida? Só a ideia a deixava entediada! E isso foi tudo o que Artur sempre quis. Ela é uma dama, inteligente, perspicaz e ele queria transformá-la numa vaca leiteira. E admiras-te que ela tenha procurado outras fontes de excitação?
Na devassidão?
Oh, não sejas pateta, Derfel. O facto de ter dormido contigo faz de mim uma meretriz. Tínhamos alcançado as árvores e Nimue virou para Norte e caminhou entre os freixos e os ulmeiros altos. Os lanceiros seguiram-nos em silêncio. Julgo que se os tivéssemos obrigado a andar em círculos eles nos teriam seguido sem protestar, tão atónitos e tolhidos estavam pelos horrores da noite anterior.
Ela quebrou os votos de casamento, e depois? disse Nimue. Julgas que é a primeira a fazê-lo? Ou achas que isso faz dela uma meretriz? Seja como for, a Bretanha está saturada de meretrizes. Ela não é uma meretriz, Derfel. É uma mulher forte, que nasceu com um espírito arguto e boa aparência, e Artur gostou da aparência mas não quis fazer uso da sua mente. Não deixou que ela fizesse dele rei e por isso se virou para aquela religião ridícula. E tudo o que Artur fez foi dizer-lhe quão feliz ela seria quando ele pudesse pendurar a Excalibur e começar a criar gado! riu perante aquela ideia. E uma vez que Artur nunca pensaria em ser infiel, nunca suspeitou que Guinevere fosse. Nós, sim, mas Artur não. Insistia em afirmar para si próprio que o casamento era perfeito e durante todo aquele tempo em que ele permanecia a quilómetros de distância, a beleza de Guinevere atraía homens como o mel atrai as moscas. E eram homens formosos, inteligentes, espirituosos, homens que desejavam o poder. Um deles era um homem formoso que desejava todo o poder que pudesse conseguir, e então Guinevere decidiu ajudá-lo. Artur queria um estábulo, mas Lancelote quer ser Rei Supremo da Bretanha e para Guinevere esse é um desafio mais interessante do que criar vacas ou limpar a porcaria feita pelas crianças. E aquela religião idiota encorajou-a. O soberano dos tronos! cuspiu. Ela não se deitava com Lancelote por ser uma meretriz, meu estúpido, ela deitava-se com ele para fazer com que o seu homem se tornasse Rei Supremo.
E Dinas? perguntei. E Lavaine?
Eram os sacerdotes dela. Ajudavam-na, e em algumas religiões, Derfel, os homens e as mulheres copulam, faz parte do culto. E porque não? Empurrou uma pedra com o pé e viu-a desaparecer no meio da corriola. E acredita-me, Derfel, aqueles dois eram homens bonitos. Sei-o, porque lhes arranquei essa beleza, embora não o tivesse feito em virtude do que fizeram com Guinevere. Fi-lo pelo insulto que fizeram a Merlim e pelo que fizeram com a tua filha. Caminhámos em silêncio durante alguns metros. Não desprezes Guinevere disse-me. Não a desprezes por se sentir entediada. Despreza-a, se tiveres de o fazer, por ter roubado o Caldeirão e agradece a Dinas e a Lavaine pelo facto de nunca terem libertado o seu poder. Resultou com Guinevere, todavia. Ela banhava-se nele todas as semanas e era por isso que nunca envelhecia nem uma semana.
Virou-se quando um som de passos soou atrás de nós. Era Artur que corria ao nosso encontro. Ainda parecia atordoado, mas em dado momento devia ter-se apercebido de que abandonáramos a estrada.
Onde é que vamos? perguntou.
Queres que a guarnição nos veja? perguntou Nimue voltando a apontar para o fumo provocado pelos cozinhados deles.
Ele não disse nada, olhou apenas para o fumo como se nunca tivesse visto coisa semelhante até aí. Nimue olhou-me de relance e encolheu os ombros perante a sua evidente confusão.
Se quisessem luta disse Artur já teriam vindo à nossa procura.
Tinha os olhos inchados e raiados de sangue, e talvez fosse imaginação minha, mas o seu cabelo parecia mais grisalho.
Que farias perguntou-me Artur se fosses o inimigo? Não se referia à insignificante guarnição em Vindocládia, mas também não pronunciava o nome de Lancelote.
Tentava encurralar-nos, Senhor disse eu.
Como? Onde? perguntou, irritado. A norte, é isso? Essa é a estrada mais rápida que podemos tomar até encontrar lanceiros que estejam do nosso lado, e eles ficarão a saber disso. Não iremos para Norte. Olhou para mim, e foi quase como se não me tivesse reconhecido. Atiramo-nos às gargantas deles, Derfel disse num tom selvagem.
Às gargantas deles, Senhor?
Vamos para Caer Cadarn.
Fiquei calado durante alguns segundos. Ele não estava bem. A dor e a raiva tinham-no perturbado e perguntava-me como poderia dissuadi-lo de embarcar neste suicídio.
Nós somos quarenta, Senhor disse eu, em voz baixa.
Caer Cadarn repetiu, ignorando a minha objecção. Quem dominar Caer dominará a Dumnónia, e quem dominar a Dumnónia dominará a Bretanha. Se não quiseres vir, Derfel, segue então o teu caminho. Eu vou para Caer Cadarn.
Virou-se.
Senhor! chamei-o. Dunum está no vosso caminho.
Era uma fortaleza importante, e embora a sua guarnição estivesse sem dúvida esgotada, possuía perfeitamente lanças em número suficiente para destruir a nossa pequena força.
Não me interessa quantas fortalezas se atravessem no nosso caminho Artur cuspiu aquelas palavras. Tu farás o que quiseres, Derfel, mas eu vou para Caer Cadarn. Afastou-se, gritando aos seus cavaleiros que rumassem para oeste.
Fechei os olhos, convencido que o meu senhor tinha enlouquecido. Privado do amor de Guinevere, ele nada mais queria senão morrer. Queria cair derrubado pelas lanças inimigas no coração do país pelo qual se batera durante tanto tempo. Não me ocorria outra explicação para o facto de ele querer conduzir o seu grupo de lanceiros exaustos para o centro da rebelião, a não ser que quisesse morrer ao lado do trono real de Dumnónia. Foi então que me ocorreu uma recordação e abri os olhos.
Há muito tempo atrás disse a Nimue, falei com Aillean. Era uma escrava irlandesa, mais velha do que Artur, mas fora a sua amante dedicada antes de ele conhecer Guinevere, e Amhar e Loholt eram os filhos ingratos que ela lhe dera. Ainda era viva, continuava graciosa e grisalha agora, mas provavelmente permanecia retida em Corinium. E agora, perdido numa Dumnónia dilacerada, ouvia de novo a sua voz e as palavras proferidas muitos anos antes voltavam a ecoar na minha mente. Observa Artur, dissera ela, porque quando pensares que ele está perdido, quando tudo parecer mais obscuro que nunca, ele deixar-te-á atónito. Ele sairá vitorioso. Repeti estas palavras a Nimue.
Ela disse também acrescentei, que uma vez tendo vencido cometeria o erro habitual e perdoaria os seus inimigos.
Não desta vez disse Nimue. Não desta vez. O pateta aprendeu a lição, Derfel. E tu, que farás?
O que sempre acabo por fazer respondi. Irei com ele. Direito à garganta do inimigo. Para Caer Cadarn.
Naquele dia, Artur parecia invadido por uma energia frenética e desesperada, como se a resposta para todo o seu sofrimento estivesse no cimo de Caer Cadarn. Não fez qualquer tentativa para esconder a sua reduzida força de combate, marchou apenas para Norte e depois para Oeste erguendo bem alto o urso do seu estandarte. Montou o cavalo de um dos seus homens e vestiu a sua famosa armadura para que ninguém pudesse reconhecer a figura que cavalgava rumo ao coração do território. Viajava tão rapidamente quanto o ritmo de marcha dos meus lanceiros permitia, e quando os "cascos de um dos cavalos se abriu em dois, limitou-se a abandonar o animal e a continuar com vigor redobrado. Queria chegar a Caer.
Atingimos Dunum em primeiro lugar. O Povo Antigo construíra uma imensa fortaleza na colina de Dunum, à qual os Romanos tinham acrescentado a sua própria muralha. Artur reparara as fortificações e destacara para lá uma guarnição permanente. Os homens desta guarnição nunca tinham travado qualquer batalha, mas se Cerdic alguma vez decidisse atacar a costa oeste de Dumnónia, Dunum constituiria um dos seus principais obstáculos. Além disso, mesmo durante os longos anos de paz, Artur nunca permitira que a fortaleza se degradasse. Um estandarte esvoaçava acima da muralha e, à medida que nos aproximávamos, apercebi-me que não se tratava da águia-marinha mas sim do dragão vermelho. Dunum permanecera fiel.
A guarnição ficara reduzida a trinta homens. Os restantes, ou eram cristãos que tinham desertado ou, temendo que Mordred e Artur estivessem de facto mortos, tinham baixado os braços e partido. Lanval, no entanto, o comandante da guarnição, mantivera-se no seu posto acompanhado dos poucos que tinham ficado, alimentando a esperança de que as terríveis notícias fossem falsas. Agora, Artur chegara, e Lanval conduziu os seus homens para fora dos portões enquanto Artur desmontava e corria a abraçar o velho guerreiro. Éramos setenta lanças ao todo, agora, em vez de quarenta e eu tornei a recordar as palavras de Aillean. É precisamente quando se julga que ele está vencido, dissera ela, que ele começa a vencer.
Lanval cavalgava ao meu lado e contou-me que os soldados de Lancelote tinham passado pela fortaleza.
Não pudemos detê-los disse, com amargura, e eles não nos desafiaram. Apenas tentaram fazer com que eu me rendesse. Disse-lhes que só mandaria baixar o estandarte de Mordred quando Artur mo ordenasse, e não acreditaria que Artur estava morto senão quando me trouxessem a sua cabeça num escudo.
Artur deve ter-lhe dito alguma coisa sobre Guinevere, pois Lanval passou a evitá-la, apesar de em tempos ter sido comandante da guarda dela. Contei-lhe uma pequena parte do que se passara no Palácio do Mar e ele abanou a cabeça, tristemente.
Ela e Lancelote deitavam-se juntos em Durnovária disse ele, naquele templo que ela mandou construir.
Sabias disso? perguntei, horrorizado.
Eu não sabia respondeu, numa voz cansada, mas ouvia rumores, Derfel, simples rumores, e não queria saber mais nada. Cuspiu para a berma da estrada. Eu estava presente no dia em que Lancelote chegou de Ynys Trebes e lembro-me que os dois não conseguiam tirar os olhos um do outro. Deitaram-se um com o outro mais tarde, claro, e Artur nunca suspeitou de nada. E facilitou-lhes tanto a vida! Confiava nela e nunca estava em casa. Estava sempre fora, inspeccionando fortalezas ou presidindo a um tribunal Lanval abanou a cabeça. Não duvido que ela chame a isso uma religião, Derfel, mas digo-te uma coisa, se aquela dama está apaixonada por alguém esse alguém é Lancelote.
Acho que ela ama Artur disse eu.
Talvez, mas ele é demasiado directo para o gosto dela. Não há mistério no coração de Artur, está tudo escrito no seu rosto e ela é uma dama que aprecia a subtileza. É como te digo, é Lancelote quem faz o coração dela bater mais depressa.
"E era Guinevere", pensei com tristeza, "quem fazia o coração de Artur bater mais depressa." Nem me atrevia a pensar no que estaria a acontecer dentro do coração dele naquele momento.
Dormimos ao relento nessa noite. Os meus homens guardavam Guinevere, que se ocupava diligentemente do filho. Nenhuma palavra fora pronunciada acerca do seu destino, e nenhum de nós queria interrogar Artur sobre o assunto, por isso a tratávamos com uma distância educada. Ela tratava-nos da mesma maneira, não pedindo favores e evitando Artur. Quando a noite caiu contou histórias a Gwydre, mas depois de ele ter adormecido vi-a balouçar-se para a frente e para trás ao lado do filho, chorando baixinho. Artur viu-o também e depois ele próprio começou a chorar, afastando-se para o extremo do amplo terreiro para que ninguém testemunhasse o seu sofrimento.
Retomámos a marcha de madrugada e a estrada por onde seguíamos conduziu-nos a uma paisagem deslumbrante, iluminada pela suave claridade do Sol que acabava de romper num céu sem nuvens. Esta era a Dumnónia pela qual Artur se batera, uma terra rica e fértil que os Deuses tinham dotado de uma beleza imensa. As aldeias eram forradas com espessos telhados de colmo e bordadas com pomares frondosos, embora muitas das paredes das habitações tivessem sido desfiguradas pelo símbolo do peixe, enquanto outras tinham sido queimadas. Reparei, no entanto, que os cristãos não insultaram Artur como teriam feito outrora e isso fez-me desconfiar que a febre que tinha atingido a Dumnónia poderia já estar a abrandar. Entre as aldeias, a estrada serpenteava entre as flores rosa dos espinheiros e por entre prados transbordantes de trevo, margaridas, ranúnculos amarelos e papoilas. Carriças e verdelhões-amarelos, as últimas aves a fazer os ninhos, esvoaçavam com pedaços de palha presos nos bicos, enquanto bem mais alto, no topo de alguns carvalhos, vi um falcão levantar voo, para logo me dar conta que não era nenhum falcão, mas sim um jovem cuco que ensaiava o seu primeiro voo. E aquilo, pensei, é um bom presságio, pois Lancelote, tal como o jovem cuco, apenas se assemelhava a um falcão quando, na verdade, não era mais do que um usurpador.
Detivemo-nos algumas milhas antes de Caer Cadarn, num pequeno mosteiro que tinha sido construído no local onde borbulhava uma nascente sagrada, na orla de um bosque de carvalhos. Outrora fora um santuário de druidas e agora era o Deus cristão quem guardava as águas. A divindade, porém, não conseguiu opor resistência aos meus homens que, sob as ordens de Artur, derrubaram o portão da paliçada e tomaram uma dúzia dos hábitos castanhos dos monges. O bispo do mosteiro recusou-se a aceitar o pagamento oferecido e, em vez disso, amaldiçoou Artur, que possuído agora de uma ira ingovernável agrediu o bispo, derrubando-o. Deixámos o bispo sangrando para dentro da nascente sagrada e marchámos para Oeste. O bispo chamava-se Carannog e é agora um santo. Às vezes penso que Artur fez mais santos que Deus.
Chegámos a Caer Cadarn depois de termos atravessado Pen Hill, mas parámos no sopé da colina antes que pudéssemos ser vistos das muralhas. Artur escolheu uma dúzia de lanceiros e ordenou-lhes que cortassem o cabelo à maneira cristã e depois que vestissem os hábitos dos monges. Nimue encarregou-se do corte dos cabelos e juntou todas as madeixas dentro de um saco, para que ficassem em segurança. Eu queria ser um dos doze, mas Artur recusou. Aqueles que se dirigissem aos portões de Caer Cadarn, disse ele, tinham de ter um rosto que não pudesse ser reconhecido.
Issa submeteu-se à lei da faca, sorrindo abertamente para mim depois de a sua cabeleira ter desaparecido da parte da frente do couro cabeludo.
Pareço-me com um cristão, Senhor?
Pareces o teu pai disse eu, calvo e feio.
Os doze homens levavam as espadas escondidas debaixo do hábito, mas não podiam levar lanças. Em vez disso separámos as cabeças das lanças das respectivas hastes e demos-lhe estas últimas, para que as utilizassem como armas. As suas frontes rapadas pareciam mais pálidas do que os seus rostos, mas com os capuzes dos hábitos a tapar-lhes as cabeças passariam bem por monges.
Vão disse-lhe Artur.
Caer Cadarn não possuía qualquer interesse do ponto de vista militar, mas enquanto lugar simbólico da realeza da Dumnónia o seu valor era incalculável. Por essa razão, apenas, sabíamos que a velha fortaleza estaria muito bem guardada e que os nossos doze monges iriam precisar, tanto de sorte como de coragem para enganar a guarnição e convencê-la a abrir-lhes os portões. Nimue abençoou-os e em seguida dispuseram-se a escalar o cume de Pen descendo depois a encosta em fila indiana. Ou porque trazíamos connosco o Caldeirão, ou porque a sorte que normalmente acompanhava Artur na guerra uma vez mais não o defraudou, o certo é que o nosso ardil resultou. Deitados sobre a erva macia, Artur e eu víamos Issa e os seus homens deslizar e tropeçar ao longo da íngreme encosta oeste de Pen Hill, atravessar os prados verdejantes e depois escalar o trilho íngreme e acidentado que conduzia ao portão oriental de Caer Cadarn. Alegaram que eram foragidos que tinham escapado a um dos ataques-surpresa dos cavaleiros de Artur e a sua história convenceu os guardas, que lhes abriram os portões. Issa e os seus homens mataram os guardas, apoderando-se em seguida das lanças e escudos das suas vítimas para assim defender o precioso portão que tinha sido aberto. Os cristãos jamais perdoaram Artur por este ardil.
Artur saltou para a garupa de Llamrei no instante em que viu que o portão de Caer tinha sido tomado.
Vamos! gritou, e os seus vinte cavaleiros cavalgaram até ao cume de Pen descendo depois a íngreme colina coberta de erva que se seguia. Dez homens seguiram Artur até à fortaleza propriamente dita, enquanto os restantes dez contornavam a galope o sopé da colina de Caer Cadarn, a fim de barrar a saída a qualquer soldado da guarnição.
Os restantes de nós seguiram-nos. Lanval ficou encarregado de guardar Guinevere e por isso avançava mais lentamente, mas os meus homens desceram as escarpas destemidamente e galgaram o trilho pedregoso de Caer até onde Issa e Artur esperavam. A guarnição, uma vez derrubado o portão, não esboçara um gesto de luta. Eram cinquenta homens, na sua maioria veteranos estropiados ou jovens imberbes, mas ainda assim suficientemente numerosos para terem defendido as muralhas de um ataque provocado pelas nossas debilitadas forças. Os poucos que tentaram escapar foram facilmente capturados pelos nossos cavaleiros e trazidos de volta à fortaleza. Issa e eu já tínhamos rumado em direcção à muralha sobranceira ao portão oeste, onde depois de termos baixado a bandeira de Lancelote, hasteamos o urso de Artur. Nimue queimou os cabelos cortados e depois cuspiu sobre os monges aterrados que viviam no Caer e tinham por missão supervisionar a construção da grande igreja de Sansum.
Estes monges, que davam mostras de ser mais recalcitrantes do que os lanceiros da guarnição, já tinham escavado os alicerces da igreja demarcando-os com pedras tiradas do círculo de pedras que se erguera no cume de Caer. Tinham derrubado metade das paredes do salão de celebrações e usado madeira para começar a erguer as paredes da igreja, que tinha a forma de uma cruz.
Vão dar uma boa fogueira disse Issa alegremente, acariciando a sua recente calvície.
Guinevere e o filho, não admitidos no interior do salão, ficaram com a cabana maior que havia no Caer. Era a morada da família de um dos lanceiros, que foi expulsa de casa para que Guinevere a ocupasse. Ela estremeceu ao contemplar o leito feito com palha de cevada e as teias de aranha que se acumulavam no travejamento do tecto. Lanval colocou um lanceiro à entrada e depois observou um dos cavaleiros de Artur que arrastava o comandante da guarnição, que fazia parte do grupo que tentara escapar, de volta à fortaleza.
O comandante derrotado era Loholt, um dos irascíveis filhos gémeos de Artur, que transformara a vida de Aillean, sua mãe, num mar de infelicidade e nunca deixara de alimentar um ressentimento em relação ao progenitor. Agora, Loholt, que encontrara em Lancelote um amo, era arrastado pelos cabelos até onde seu pai o esperava.
Loholt caiu de joelhos. Artur contemplou-o demoradamente, depois virou-se e afastou-se.
Pai! gritou Loholt, mas Artur ignorou-o.
Caminhou até junto dos prisioneiros alinhados. Reconheceu alguns homens, pois tinham em tempos estado ao seu serviço, enquanto outros tinham vindo do antigo reino dos belgas que pertencera a Lancelote. Esses homens, dezanove ao todo, foram levados para a igreja meio-construída e aí foram mortos. Foi um castigo severo, mas Artur não estava inclinado a oferecer misericórdia a homens que tinham invadido o seu território. Ordenou aos meus homens que os matassem, e eles obedeceram. Os monges protestaram e as esposas e filhos dos prisioneiros gritaram na nossa direcção até que dei ordens para que todos fossem conduzidos até ao portão oriental e expulsos.
Restaram trinta e um prisioneiros, todos eles dumnonianos, e Artur escolheu seis à medida que os ia contando um por um: o quinto homem, o décimo, o décimo-quinto, o vigésimo, o vigésimo-quinto e o trigésimo.
Mata-os ordenou-me friamente. Então conduzi os seis homens até à igreja e acrescentei os seus corpos ao monte de cadáveres ensanguentados. Os restantes prisioneiros ajoelharam e, um por um, beijaram a espada de Artur renovando assim os juramentos que os ligavam a ele, embora antes de beijarem a lâmina da espada cada homem tivesse sido obrigado a ajoelhar perante Nimue que marcou as suas frontes com a cabeça de uma lança que mantinha em brasa numa fogueira. Os homens receberam, pois, as marcas próprias de guerreiros que se tinham rebelado contra o senhor a quem tinham jurado servir, e a cicatriz que a partir daí ostentariam nas respectivas testas significavam que seriam mortos se voltassem a ser considerados traidores. De momento, com as frontes queimadas e doridas, constituíam aliados dúbios, mas ainda assim Artur conseguiu reunir e comandar mais de oitenta homens, um pequeno exército.
Loholt esperava, ainda ajoelhado. Era ainda muito jovem, com um rosto imberbe e uma barba rala, que Artur agarrou e usou para o arrastar até à pedra real, que era tudo o que restava do antigo círculo. Atirou o filho de encontro à pedra.
Onde está o teu irmão? perguntou.
Com Lancelote, Senhor. Loholt tremia. O cheiro a pele queimada aterrorizava-o.
Onde?
Seguiram para Norte, Senhor. Loholt ergueu os olhos para o pai.
Então podes ir juntar-te a eles disse Artur, e o rosto de Loholt expressou um alívio profundo ao saber que iria viver. Mas primeiro diz-me prosseguiu Artur num tom de voz glacial porque é que ergueste a mão contra o teu pai?
Disseram que havíeis morrido, Senhor.
E que fizeste tu, meu filho, para vingar a minha morte? perguntou Artur. Depois esperou por uma resposta, mas Loholt nada tinha para lhe dizer. E quando soubeste que estava vivo continuou Artur, por que razão continuaste a opor-te a mim?
Loholt fitou o rosto implacável de seu pai e, algures no seu íntimo, reuniu coragem para falar.
Nunca haveis sido um pai para nós disse, azedo.
O rosto de Artur contorceu-se violentamente e eu pensei que ele fosse explodir numa ira medonha, mas quando tornou a falar a sua voz soou estranhamente calma.
Coloca a tua mão direita sobre a pedra ordenou a Loholt. Loholt acreditou que iria fazer um juramento e, obedientemente, colocou
a mão no centro da pedra real. Então, Artur desembainhou a Excalibur e Loholt compreendeu as intenções de seu pai e escondeu rapidamente a mão.
Não! gritou. Peço-vos! Não!
Segura-a, Derfel disse Artur.
Loholt debateu-se, mas não era um adversário à altura da minha força. Esbofeteei-o para o dominar, depois descobri o seu braço direito até ao cotovelo e imobilizei-o sobre a pedra, mantendo-o firmemente preso enquanto Artur erguia a lâmina da espada. Loholt chorava.
Não, pai! Peço-vos!
Mas naquele dia, não havia sombra de misericórdia dentro de Artur. E durante muitos dias depois disso assim foi.
Ergueste a mão contra o teu próprio pai, Loholt, e por isso perdes ambos: o pai e a mão. Renego-te.
E com essa terrível maldição, deixou cair a espada e um jacto de sangue manchou a pedra enquanto Loholt se contorcia violentamente para trás. Gritava enquanto segurava o coto ensanguentado e contemplava horrorizado a mão decepada e depois desatou a choramingar em agonia.
Ata-lhe o braço, Artur ordenou a Nimue. Depois, esse pateta é livre de partir.
Afastou-se.
Empurrei a mão decepada, onde luziam ainda dois patéticos anéis de guerreiro, que estava em cima da pedra. Artur deixou cair a Excalibur sobre a erva, e eu peguei nela e depu-la, com toda a reverência sobre a mancha de sangue. "Assim está certo", pensei. "A espada certa na pedra certa, e tinham sido precisos tantos anos para a colocar ali."
Agora esperamos anunciou Artur, sombrio. até que o infame venha até nós.
Ainda era incapaz de proferir o nome de Lancelote.
Lancelote chegou dois dias mais tarde.
A sua rebelião estava a desmoronar-se, embora nós ainda não o soubéssemos. Sagramor, apoiado pelos primeiros dois contingentes de lanceiros oriundos de Powys tinha isolado os homens de Cerdic em Corinium, e o saxão só escapou recorrendo a uma desesperada marcha nocturna no decurso da qual, mesmo assim, perdeu mais de cinquenta homens que pereceram às mãos sedentas de vingança de Sagramor. A fronteira de Cerdic situava-se ainda mais para Oeste do que antes, mas as notícias de que Artur estava vivo e conquistara Caer Cadarn, e a ameaça do ódio implacável de Sagramor foram suficientes para convencer Cerdic a abandonar Lancelote, seu aliado. Recuou para a sua nova fronteira e incumbiu alguns dos seus homens da missão de roubar o que pudessem das terras belgas de Lancelote. Cerdic, ao menos, retirou algum benefício da rebelião.
Lancelote comandou o seu exército até Caer Cadarn. O núcleo deste exército era composto pela sua Guarda Saxónica e por duzentos guerreiros belgas, reforçados pela adesão de centenas de voluntários cristãos que acreditavam estar a cumprir o trabalho de Deus servindo Lancelote. No entanto, a notícia que Artur tomara o Caer e os ataques que Galaad e Morfans comandavam a sul de Glevum confundia-os e desencorajava-os. Os cristãos começaram a desertar, embora pelo menos duzentos deles ainda se mantivessem fiéis a Lancelote quando ele chegou, à hora do crepúsculo, dois dias depois de termos conquistado a colina real. Ainda dispunha de uma oportunidade de conservar o seu novo reino, se ousasse atacar Artur. Mas hesitou, e na madrugada do dia seguinte, Artur incumbiu-me de levar uma mensagem. Coloquei o meu escudo ao contrário e atei um raminho de folhas de carvalho à minha lança para indicar que vinha para parlamentar e não para lutar, e fui recebido por um chefe belga que prometeu respeitar a minha trégua antes de me conduzir ao palácio em Lindinis, onde Lancelote estava instalado. Esperei no pátio exterior, vigiado por lanceiros carrancudos, enquanto Lancelote tentava decidir se queria ou não receber-me.
Esperei mais de uma hora até que, por fim, Lancelote apareceu. Vestia a armadura de esmalte branco, trazia o elmo dourado debaixo de um dos braços e a espada de Cristo suspensa sobre a anca. Amhar e Loholt, de braço ligado, estavam atrás dele, a sua Guarda Saxónica e uma dúzia de chefes ladeavam-no e Bors, o seu paladino, estava a seu lado. Todos eles exalavam o odor da derrota. Conseguia sentir-lhe o cheiro, como se fosse carne putrefacta. Lancelote poderia ter-nos cercado em Caer, voltado atrás para massacrar Morfans e Galaad e depois regressar para nos matar à fome. Mas tinha perdido a coragem. Queria apenas sobreviver. Sansum, reparei depois de um olhar de relance, não estava visível. O Lorde Rato sabia quando devia ser discreto.
Voltamos a encontrar-nos, Lorde Derfel cumprimentou-me Bors, falando pelo seu amo.
Ignorei Bors.
Lancelote dirigi-me directamente ao rei, mas recusei-me a honrá-lo mencionado o título, Artur, o meu Senhor, concederá misericórdia aos vossos homens mediante uma condição.
Falei alto para que todos os lanceiros que se encontravam no pátio pudessem ouvir-me. A maioria dos guerreiros ostentava a insígnia de Lancelote nos seus escudos, mas alguns tinham pintado cruzes ou as linhas curvas dos peixes.
A condição para que beneficiais de misericórdia prossegui, é que combateis contra o nosso paladino, homem contra homem, espada contra espada. Se viverdes podereis partir em liberdade e os vossos homens poderão acompanhar-vos; se morrerdes, os vossos homens continuarão a ser livres de partir. Mesmo que escolheis não combater, os vossos homens serão perdoados, excepto aqueles que outrora prestaram juramento a Mordred, nosso Rei e Senhor. Esses serão mortos.
Era uma proposta engenhosa. Se Lancelote combatesse salvaria as vidas dos homens que tinham trocado de facção para apoiá-lo a ele, mas se recuasse e não aceitasse o desafio condená-lo-ia à morte e a sua preciosa reputação sofreria com isso.
Lancelote olhou de relance para Bors e depois tornou a fitar-me. O meu desprezo por ele naquele momento era imenso. Deveria estar a lutar contra nós, não a arrastar os pés pelos pátios de Lindinis. Mas a ousadia de Artur deixara-o estupefacto. Ignorava quantos homens nós tínhamos, podia apenas ver que os contrafortes de Caer fervilhavam de lanças e o desejo de luta esmorecera dentro dele. Inclinou-se para o primo e ambos trocaram algumas palavras. Lancelote voltou a fitar-me depois de Bors ter falado com ele e o rosto estava iluminado por um meio-sorriso.
Bors, o meu paladino disse, aceita o desafio de Artur.
A proposta é para que vós mesmo combateis disse eu, e não para que alguém cace e massacre a presa por vós.
Bors resmungou ao ouvir as minhas palavras, e desembainhou a espada até meio. Mas o chefe belga, que me tinha garantido que eu estaria em segurança deu um passo em frente empunhando uma lança e Bors recuou.
E o paladino de Artur perguntou Lancelote seria o próprio Artur?
Não respondi e sorri. Implorei-lhe que me concedesse essa honra disse-lhe, e obtive-a. Queria-a em virtude da forma como haveis insultado Ceinwyn. Haveis pensado em obrigá-la a desfilar nua por Ynys Wydryn, mas serei eu quem arrastará o vosso corpo nu por toda a Dumnónia. E quanto à minha filha continuei, a morte dela já está vingada. Os vossos druidas jazem caídos sobre o lado esquerdo, Lancelote. Os seus corpos estão por queimar e as suas almas vagueiam por aí.
Lancelote cuspiu aos meus pés.
Diz a Artur disse ele que enviarei a minha resposta ao meio-dia. Virou-se.
E tendes uma mensagem para Guinevere? perguntei-lhe, e a interrogação obrigou-o a virar-se. A vossa amante está em Caer disse-lhe. Quereis saber o que irá suceder-lhe? Artur contou-me qual seria o seu destino.
Fitou-me com repugnância, cuspiu mais uma vez, e depois virou-se e afastou-se. Imitei-o.
Regressei a Caer e encontrei Artur no contraforte sobranceiro ao portão oeste onde, muitos anos antes, ele me falara sobre o dever de um soldado. Esse dever, dissera ele, era travar batalhas em nome daqueles que não podiam combater por si próprios. Este era o seu credo, e ao longo de todos aqueles anos lutara pela criança que se chamava Mordred e agora, por fim, lutava por si mesmo, e ao fazê-lo perdia tudo aquilo que mais desejara.
Transmiti-lhe a resposta de Lancelote e ele assentiu com um aceno de cabeça, não disse nada e fez-me sinal para que o deixasse.
No final da manhã, Guinevere mandou Gwydre à minha procura. O garoto escalou os contrafortes até ao sítio onde eu me encontrava com os meus homens e puxou-me pela capa.
Tio Derfel? Ergueu uns olhos tristes e fitou-me. A mãe chama-vos. Falava a medo, e os seus olhos estavam marejados de lágrimas.
Olhei de relance para Artur, mas ele não prestava qualquer atenção a nenhum de nós e, por isso, desci os degraus e acompanhei Gwydre até à cabana do lanceiro. Chamar-me deve ter sido um rude golpe para o orgulho ferido de Guinevere, mas ela queria transmitir uma mensagem a Artur e sabia que mais ninguém em Caer Cadarn era tão próximo dele quanto eu. Levantou-se quando eu me inclinei para passar pela porta. Cumprimentei-a com uma vénia e esperei até ela mandar sair Gwydre dizendo-lhe que fosse conversar com o pai.
Por pouco a altura da cabana não permitiria que Guinevere ficasse de pé. O rosto dela estava distorcido, quase macilento, mas de certa forma a tristeza que ele espelhava conferia-lhe uma beleza luminosa que a sua habitual expressão altiva lhe negava.
Nimue disse-me que viste Lancelote falou em voz tão sumida que tive de me inclinar para a frente para ouvir as suas palavras.
Sim, Senhora, vi.
A mão direita dela brincava inconscientemente com as pregas do vestido.
E ele enviou alguma mensagem?
Nenhuma, Senhora.
Ela fitou-me com os seus enormes olhos verdes muito abertos.
Por favor, Derfel disse em voz baixa.
Incitei-o a falar, Senhora. Ele nada disse.
Ela deixou-se cair sobre um banco grosseiro. Permaneceu em silêncio durante algum tempo, durante o qual contemplei uma aranha que se infiltrara por entre o colmo e descia enquanto urdia a sua teia, cada vez mais próxima do cabelo dela. O insecto deixava-me estupefacto e eu perguntava a mim próprio se deveria afastá-lo ou deixá-lo simplesmente em paz.
Que lhe disseste? perguntou ela.
Ofereci-me para combater contra ele, Senhora, homem contra homem. A Hywelbane contra a lâmina de Cristo. E depois prometi arrastar o seu corpo nu por toda a Dumnónia.
Ela abanou a cabeça energicamente.
Combater disse, zangada, é tudo o que vocês, seus brutos, sabem fazer! Fechou os olhos durante alguns segundos. Perdoai-me, Lorde Derfel disse, humilde. Não devia insultar-vos, não quando preciso que soliciteis um favor a Lorde Artur. Ergueu os olhos para mim e vi que ela estava tão destroçada quanto o próprio Artur. Aceitais fazê-lo? suplicou ela.
Que favor, Senhora?
Dizei-lhe que ele poderá ficar com o nosso filho, e que ele é nosso filho, e que eu partirei e ele nunca mais me verá ou ouvirá falar em mim.
Farei o que me pedis, Senhora disse eu.
Ela percebeu a nota de dúvida na minha voz e fitou-me tristemente. A aranha desaparecera entre a sua farta cabeleira ruiva.
Achais que ele vai recusar perguntou numa voz fraca e assustada.
Senhora disse eu, ele ama-vos. Ama-vos tanto que julgo que nunca será capaz de se separar de vós.
Uma lágrima assomou a um dos seus olhos e deslizou ao longo da face.
Então que irá ele fazer comigo? perguntou, mas eu não respondi. Que irá ele fazer, Derfel? tornou a perguntar Guinevere com uma ponta da sua antiga energia. Diz-me!
Senhora disse eu, grave, ele instalar-vos-á num sítio seguro e aí vos manterá, com uma escolta para vos guardar.
"E todos os dias", pensei, "pensará nela, e todas as noites convocá-la-á para os seus sonhos, e todas as madrugadas virar-se-á no leito e descobrirá que ela não está ao seu lado."
Sereis bem tratada, Senhora tranquilizei-a, gentilmente.
Não, lamentou-se ela. Poderia ter antecipado a morte, mas esta promessa de encarceramento surgia aos seus olhos como algo muito mais terrível. Diz-lhe que me deixe partir, Derfel. Diz-lhe que me deixe partir e pronto!
Intercederei por vós prometi-lhe, mas julgo que ele não o fará. Não penso que possa fazê-lo.
Chorava convulsivamente agora, a cabeça entre as mãos, e embora eu esperasse, ela não disse mais nada pelo que recuei e saí da cabana. Gwydre achara a companhia do pai demasiado sorumbática e queria regressar para junto da mãe, mas eu levei-o comigo e pedi-lhe que me ajudasse a limpar e a afiar a lâmina da Excalibur. O pobre Gwydre estava assustado, pois não compreendia o que sucedera e nem Guinevere nem Artur pareciam capazes de lho explicar.
A tua mãe está muito doente disse-lhe, e tu sabes que por vezes as pessoas doentes precisam de estar sozinhas sorri-lhe. Talvez possas vir viver com Morwenna e Seren.
Achas que sim?
Acho que a tua mãe e o teu pai vão dizer que sim respondi, e eu gostava que viesses. Agora, vejamos, não escoves a espada! Afia-a. Movimentos suaves e longos, assim!
Ao meio-dia dirigi-me ao portão oeste e fiquei à espera do mensageiro de Lancelote. Mas ninguém apareceu. Ninguém apareceu. O exército de Lancelote esboroava-se como areia empurrada pela água da chuva. Alguns viajaram para Sul e Lancelote acompanhou-os. As penas de cisne dos seus homens surgiram no prado no sopé de Caer e aí depuseram as suas lanças, escudos e espadas, ajoelhando-se em seguida sobre a erva para receber a misericórdia de Artur.
Haveis vencido, Senhor disse.
Sim, Derfel disse ele, ainda sentado, parece que sim.
A sua nova barba, estranhamente grisalha, fazia-o parecer mais velho. Não lhe emprestava uma aparência mais frágil, mas dava-lhe um ar mais envelhecido e mais duro. Assentava-lhe bem. Por cima da cabeça dele, uma rajada de vento agitou o estandarte onde se via a insígnia do urso.
Sentei-me ao seu lado.
A princesa Guinevere disse, enquanto via o exército inimigo depor as suas armas e ajoelhar-se abaixo de nós suplicou-me que vos pedisse um favor.
Ele não disse nada. Nem olhou para mim.
Ela quer...
Partir interrompeu-me.
Sim, Senhor.
Com a sua águia-marinha disse ele, com amargura.
Ela não disse isso, Senhor.
E para onde iria ela? perguntou ele, fitando-me depois com os seus olhos gélidos. Ele perguntou por ela?
Não, Senhor. Ele não disse nada.
Artur riu-se ao ouvir isto, mas foi um riso cruel.
Pobre Guinevere disse ele, pobre, pobre Guinevere. Ele não a ama, pois não? Ela foi apenas algo de belo para ele, mais um espelho no qual vê reflectida a sua própria beleza. Isso deve fazê-la sofrer, Derfel, isso deve fazê-la sofrer.
Ela suplica-vos que a liberteis insisti, tal como prometera fazer. Ela deixará ficar Gwydre convosco, ela...
Ela não pode impor nenhuma condição reagiu Artur, zangado. Nenhuma.
Não, Senhor disse eu. Fizera o melhor que sabia por ela e fracassara.
Ela ficará em Dumnónia decretou Artur.
Sim, Senhor
E tu também ficarás cá ordenou-me com aspereza. Mordred poderá libertar-te do teu juramento para com ele, mas eu não. És o meu homem, Derfel, és o meu conselheiro e ficarás aqui comigo. De hoje em diante passas a ser o meu paladino.
Virei-me para olhar para a pedra real, onde depusera a espada acabada de limpar e de afiar.
Ainda sou o paladino de um rei, Senhor? perguntei.
Nós já temos um rei disse ele e não serei eu quem vai quebrar esse juramento, mas serei eu quem governará este país. Mais ninguém, Derfel, apenas eu.
Pensei na ponte em Pontes, onde tínhamos atravessado o rio, antes do confronto com Aelle.
Se não fordes rei, Senhor disse eu, então haveis de ser o nosso Imperador. Sereis um Senhor dos Reis.
Ele sorriu. Era o primeiro sorriso que eu via no seu rosto desde que Nimue descerrara o reposteiro negro, no Palácio do Mar. Era um sorriso triste, mas era visível. Também não recusou o título que eu lhe atribuía. Imperador Artur, Senhor dos Reis.
Lancelote partira e o que restava do seu exército estava agora ajoelhado aos nossos pés, invadido pelo terror. Os seus estandartes tinham sido derrubados, as lanças depostas e os escudos jaziam no chão. A demência que assolara a Dumnónia como uma tormenta, amainara; Artur vencera e, abaixo de nós, sob um escaldante Sol de Verão, um exército ajoelhava implorando a sua misericórdia. Este fora, outrora, o sonho de Guinevere. A Dumnónia aos pés de Artur, a sua espada sobre a pedra real. Agora, porém, era demasiado tarde. Demasiado tarde para ela.
Para nós, todavia, que nos mantivéramos fiéis aos nossos juramentos, era o que sempre havíamos desejado: por agora, em tudo menos no título, Artur era Rei.
Nota do Autor
As histórias do Caldeirão são um elemento comum nas histórias populares celtas, e a sua demanda era pretexto suficiente para que grupos de guerreiros se perdessem em lugares sombrios e perigosos. Conta-se que Cúchulain, esse grande herói irlandês, terá roubado o Caldeirão mágico de uma fortaleza mágica, e temáticas semelhantes aparecem igualmente nos mitos galeses. A origem destes mitos é hoje quase impossível de identificar, mas podemos estar razoavelmente certos de que as histórias populares medievais acerca da demanda do Santo Graal eram apenas novas versões cristianizadas dos mitos do Caldeirão, muito mais antigos. Uma dessas histórias envolve o Caldeirão de Clyddno Eiddyn, um dos Treze Tesouros da Bretanha. Estes tesouros estão ausentes das versões modernas da saga arturiana, mas tinham uma presença muito marcante nas versões mais antigas. A lista dos tesouros varia de fonte para fonte, pelo que compilei uma amostra mais ou menos representativa, ainda que a explicação de Nimue no que diz respeito às suas origens, na página 121-122, seja pura invenção da minha parte.
Os caldeirões e os tesouros mágicos dizem-nos que pisamos território pagão, o que estranho o facto de as histórias arturianas mais tardias serem tão marcadamente cristianizadas. Seria Artur o "Inimigo de Deus"? Algumas das primeiras narrativas sugerem, de facto, que a igreja celta tratava Artur com hostilidade. Assim, em The Life of St. Padarn, é referido que Artur terá roubado a túnica vermelha do santo e só concordou em devolvê-la depois de o santo o ter enterrado até ao pescoço. Diz-se ainda que Artur terá roubado o altar de S. Carannog, para usá-lo como mesa de refeições; na verdade, em muitas vidas de santos, Artur é descrito como um tirano que apenas é possível contrariar através da piedade ou das preces do homem santo. S. Cadoc foi, evidentemente, um rival famoso em cuja Vida se vangloria do número de vezes em que venceu Artur, incluindo um relato algo desagradável na qual Artur, interrompido durante um jogo de dados por um casal de amantes em fuga, tenta violar a rapariga. Este Artur, ladrão, mentiroso e hipotético violador não é claramente o Artur das lendas modernas, mas as histórias sugerem de facto a ideia que Artur terá de certo modo incorrido no desagrado da igreja dos primeiros tempos, e a explicação mais simples para o facto reside na circunstância de Artur ser pagão.
Não podemos estar certos disto, tal como não podemos adivinhar que tipo de pagão ele era. O druidismo, a religião autóctone da Bretanha fora de tal modo destruída por quatro séculos de supremacia romana que no final do século V. pouco mais era que um mero invólucro, embora permanecesse muito arreigada nas zonas rurais da Bretanha. O "doloroso golpe" do druidismo correspondia ao ano negro de 60 A.C., ano em que os Romanos invadiram Ynys Mon (Anglesey) destruindo o centro de culto do credo dominante. Llyn Cerrig Bach, o Lago das Pequenas Pedras, existiu de facto, e as investigações arqueológicas indicaram que se tratava de um local de importantes rituais druidas. Infelizmente, porém, o lago e tudo o que o rodeava foram destruídos durante a Segunda Guerra Mundial, quando da ampliação do Valley Airfield.
Os credos rivais do druidismo foram todos introduzidos pelos Romanos, e durante algum tempo o mitraísmo foi uma séria ameaça ao cristianismo. Enquanto isso, outras divindades como Mercúrio e ísis continuaram também a ser adoradas, embora o cristianismo fosse de longe a mais bem sucedida das importações. Chegara inclusivamente à Irlanda, para onde foi levado por Patrick (Padraig), um cristão bretão que segundo se diz usou folhas de trevo para ensinar a doutrina da Santíssima Trindade. Os Saxões expulsaram o cristianismo das zonas da Bretanha que conquistaram, pelo que os Ingleses tiveram de esperar mais cem anos até que Santo Agostinho de Cantuária reintroduzisse a fé em Lloegyr (hoje, Inglaterra). Este cristianismo agostiniano era diferente das antigas formas celtas; a Páscoa era celebrada num dia diferente e, em vez da tonsura druida que implicava rapar a parte da frente da cabeça, os novos cristãos tinham uma calvície circular no alto da cabeça, que nos é mais familiar.
Tal como em O Rei do Inverno, introduzi propositadamente alguns anacronismos. As lendas arturianas são terrivelmente complexas, sobretudo porque incluem toda a espécie de histórias diferentes, muitas das quais como é o caso da história de Tristão e Isolda começaram por ser narrativas bastante independentes e só, lentamente, foram incorporadas na saga arturiana, mais abrangente. Cheguei a pensar em deixar de fora todos os acrescentos posteriores, mas isso ter-me-ia impedido de utilizar entre outras coisas, Merlim e Lancelote. Optei, por isso, por deixar que o romantismo prevalecesse sobre o pedantismo. Confesso que o facto de ter incluído a palavra Camelot é um completo disparate histórico, já que o termo só foi inventado no século XII, pelo que Derfel nunca poderia tê-lo ouvido.
Algumas personagens, como Derfel, Ceinwyn, Culhwuch, Gwenhwyvach, Gwydre, Amhar, Loholt, Dinas e Lavaine saíram das histórias com o passar dos séculos para serem substituídas por novas personagens, como Lancelote.
Outros nomes foram mudando com os anos; Nimue tornou-se Vivien, Cei passou a Kay e Peredur passou a chamar-se Parsival. Os nomes mais antigos são galeses e podem ser difíceis, mas à excepção de Excalibur (para Caledfwlch) e de Guinevere (para Gwenhwyfar), preferi usá-los porque reflectem a Bretanha do século V. As lendas arturianas são histórias galesas e Artur é um antepassado dos Galeses, enquanto os seus inimigos como Cerdic e Aelle eram o povo que viria a ficar conhecido como sendo os Ingleses, e pareceu-me justo acentuar as origens galesas das histórias. Não que eu tenha a pretensão de afirmar que a trilogia "Crónicas do Senhor da Guerra" seja uma história exacta daqueles tempos, nem sequer é uma tentativa de construir uma história como essa; trata-se apenas de mais uma variação de uma saga fantástica e complexa que tendo chegado até nós vinda de uma época bárbara, continua a maravilhar-nos pelas suas dimensões heróicas, românticas e trágicas.
Bernard Cornwell
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