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O INQUISIDOR / Catherine Jinks
O INQUISIDOR / Catherine Jinks

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INQUISIDOR

 

SaluTatio

O bem-aventurado padre Bernard of Landorra, Mestre-geral da Ordem dos Pregadores.

Bernard Peyre of Prouille, frade da mesma ordem na cidade de Lazet, servo indigno e de pouco préstimo, envia saudações no espírito de súplica.

Quando o Senhor apareceu perante o Rei Salomão e lhe disse: “Pede! Que posso Eu dar-te?”, o Rei Salomão respondeu: “Concede, pois, ao teu servo um coração cheio de entendimento para governar o teu povo, para discernir entre o bem e o mal”. Esta foi a oração de Salomão, e esta foi também a minha oração durante muitos anos, enquanto me empenhei para fazer a inquisição de todos os hereges e seus crentes, fautores, recebedores e defensores, aqui, na província de Narbonne. Não reclamo a sabedoria de Salomão, Reverendo Padre, mas de uma coisa tenho a certeza: de que a busca da verdade é longa e árdua, como a busca de um homem num país estrangeiro. O país tem de ser explorado, muitas estradas têm de ser palmilhadas e muitas perguntas feitas, antes de se poder encontrar o homem. Assim, poder-se-á dizer que a busca de entendimento se assemelha àquela forma de discurso retórico a que chamamos silogismo - pois tal como um silogismo parte do universal para o particular, apresentando uma certa verdade imutável, se for constituído por proposições verdadeiras, assim o total entendimento de um acto fatídico emergirá de um entendimento de todas as pessoas, locais e acontecimentos que o rodearam ou precederam.

Reverendo Padre, preciso do vosso entendimento. Preciso da vossa protecção e do vosso bom julgamento. Estende a mão contra a ira dos meus inimigos, pois eles afiam a sua língua como serpentes e escondem nos lábios veneno de víboras. Talvez tomeis conhecimento da minha situação, e vireis costas, mas juro que sou acusado injustamente. Muitas pessoas têm sido acusadas injustamente, muitas pessoas têm olhado sem ver, preferindo dormir satisfeitas com a escuridão da sua ignorância a olhar para a luz da verdade. Reverendo Padre, imploro-vos - considerai esta missiva como uma luz. Lede-a, Padre, e vereis longe, entendereis muita coisa e perdoareis muita coisa. Abençoado aquele cuja transgressão é perdoada, mas as minhas transgressões têm sido poucas e pequenas. É pela culpa e pela malícia que eu tenho sido tão cruelmente castigado.

Assim, para vos iluminar o caminho, em nome de Deus Todo-Poderoso e da bem-aventurada Virgem Maria, mãe de Cristo, e do abençoado Domingos, nosso pai, e de toda a corte celeste, passo a registar aqui os acontecimentos que ocorreram dentro e em redor da cidade de Lazet, na província de Narbonne, e que se relacionam com o homicídio do nosso venerável e respeitado irmão Agostinho Duese, na Festa da Natividade da Virgem Maria, no ano do Senhor de 1318.

 

A sombra da morte

Quando conheci o padre Agostinho Duese, pensei: aquele homem vive na sombra da morte. Pensei isto, primeiro, por causa da sua aparência, que era exangue e esguia, como um dos ossos ressequidos da visão de Ezequiel. Era alto e muito magro, tinha os ombros caídos, a pele macilenta, as faces cavadas, os olhos quase perdidos nas órbitas profundas e sombrias, o cabelo raro, os dentes podres, o passo hesitante. Parecia um cadáver ambulante, e isso não era simplesmente devido ao peso dos anos. Senti que a morte rondava por perto dele, atacando-o continuamente com as armas da doença: inflamação das articulações - especialmente nas mãos e nos joelhos -, má digestão, visão deficiente, obstipação intestinal, um problema de bexiga. Só os ouvidos não estavam afectados, uma vez que a sua audição era muito apurada (penso que a sua habilidade como inquisidor advinha da sua capacidade para detectar o tom de falsidade na voz de uma pessoa). Estou também convencido de que a qualidade penitencial das suas refeições pode ter contribuído para a degradação do seu estômago, que era forçado a digerir a comida que o próprio São Domingos teria recusado, comida a que eu hesitaria em chamar comida, e que era consumida em muito pequenas quantidades. Eu diria até que, se ele estivesse morto, talvez pudesse comer um pouco mais, se bem que comer grandes porções dos alimentos que ele favorecia - pão duro como pedra, cascas de legumes cozidas, cascas de queijo - fosse mais difícil do que engolir uma sebe de espinheiros. Sem dúvida que ele oferecia o seu sofrimento ao Senhor como sacrifício.

Eu próprio penso que tal dieta deveria ser observada com um pouco menos de zelo. O doutor Angélico disse-nos que a austeridade é aceite pela vida religiosa como sendo necessária para mortificar a carne, mas, se praticada sem discrição, traz consigo o risco de esmorecimento. Não que o padre Agostinho exibisse as suas mortificações: a sua abstinência não era um gesto vão e desprovido de fé, do género contra o qual Cristo nos avisa quando condena os hipócritas que jejuam com um semblante triste, e que desfiguram o rosto para que possam parecer homens que jejuam. () padre Agostinho não era desses. Se mortificava a carne, era porque se sentia indigno. Mas não fez amigos entre os pastores de porcos do priorado com os seus pedidos de nabos bolorentos e fruta com manchas. Restos desse tipo sempre foram considerados propriedade deles - até ao ponto em que um irmão leigo dominicano pode possuir nem que seja um talo de couve. Uma vez observei ao padre Agostinho que, enquanto ele próprio passava fome, fazia também com que os nossos porcos passassem fome, e um porco a fazer jejum não servia de nada a ninguém.

Ele nada disse, é claro. A maior parte dos inquisidores sabe como usar o silêncio com a mais hábil precisão.

Seja como for, o padre Agostinho não só parecia e, tenho a certeza, se sentia como um moribundo, como também se comportava como um. O que quero dizer com isto é que ele parecia estar com uma pressa muito grande, como se contasse os dias. para vos dar um exemplo desta estranha urgência, contarei o que aconteceu pouco depois de ele ter aparecido em Lazet, menos de três meses antes da sua morte, em resposta ao meu pedido de ajuda na meritória tarefa de “apanhar as pequenas raposas que procuram destruir a vinha do Senhor” - ou seja, na prisão de certos inimigos de que a igreja está rodeada, como um lírio entre espinheiros. Sem dúvida que estareis familiarizado com estes inimigos. Talvez tenhais até encontrado estes fornecedores de doutrina herege, estes semeadores da discórdia, forjadores de cisma, destruidores da unidade, que colocam em causa aquela santa verdade proclamada pela Sé Romana e que sujam a pureza da Fé com os seus ensinamentos diversamente erróneos. Até os primeiros padres, afinal, foram atormentados por tais emissores de Satanás (não foi o próprio São Paulo que nos assegurou: “Tem de haver heresias, para que aqueles que são aprovados possam ser visíveis entre vós?”). Aqui no Sul, combatemos muitos dogmas perversos, muitas seitas perniciosas, cujos nomes e práticas diferem, mas cujo veneno corrompe com um efeito igualmente nocivo. Aqui no Sul, as antigas sementes da heresia Maniqueísta denunciada por Santo Agostinho ganharam raízes profundas, e ainda florescem, apesar dos piedosos esforços da santa ordem de São Domingos.

Aqui, as vidas de muitos frades são dedicadas à defesa da cruz de Cristo. Quando fui pela primeira vez nomeado vigário de Jacques Vaquier, o inquisidor de Lazet para a Depravação Herege (parece que foi há tanto tempo!), a intenção não era que eu passasse a maior parte do dia a perseguir aqueles obreiros da iniquidade, mas que aliviasse o fardo do padre Jacques sempre que ele se cansasse do peso. Contudo, acontecia que o padre Jacques se cansava facilmente. Eu passava muito mais tempo ocupado com assuntos do Santo Ofício do que era inicialmente minha intenção. No entanto, Jacques Vaquier procedeu, de facto, à inquisição de muitas almas que, como as ovelhas, se tinham, infelizmente, tresmalhado, e, quando ele morreu, no Inverno passado, o volume de trabalho que deixou era demasiado grande para um homem só. Foi por esse motivo que apelei para Paris a pedir um novo superior. E foi por esse motivo que o padre Agostinho chegou ao priorado ao final de uma tarde de Verão, seis dias antes da Festa da Visitação (altura em que ele era, de facto, esperado), sem ser anunciado, sem ser esperado, sem qualquer companhia, para além do seu jovem copista e assistente, Sicarcl, que era os olhos do amo.

Estavam ambos demasiado cansados para assistirem à ceia ou às Completas. Tanto quanto sei, foram directamente para a cama. Mas na manhã seguinte, durante o ofício da Matinas, vi o padre Agostinho na bancada do coro, à minha frente, e, após a Tércia, juntei-me a ele na sua cela (é claro que para isso era-nos dada uma autorização especial). Devo explicar que, no priorado de Lazet, aos irmãos nomeados para o serviço do Santo Ofício são dados os mesmos privilégios de que gozam o nosso leitor e o bibliotecário - nomeadamente, celas individuais e autorização para fecharem as portas das suas celas. O padre Agostinho, no entanto, não fechava a sua porta.

- Prefiro não falar de assuntos que não são sacros num local dedicado a Deus - explicou. - tanto quanto possível, falaremos dos membros do Anticristo só nos locais onde os atacarmos, em vez de envenenarmos o ar do priorado com pensamentos e feitos perversos. Assim, não vejo necessidade de secretismo nem de portas fechadas - pelo menos aqui.

Concordei com ele. Então ele pediu-me, num tom formal, que me juntasse a ele numa oração, para que Deus abençoasse os nossos esforços para limpar a terra da morbidez herege. Já era aparente que ele e Jacques Vaquier tinham sido feitos com moldes diferentes. O padre Agostinho estava habituado a usar certas expressões sábias quando se referia aos hereges - “as raposas na vinha”, “o piolho das colheitas”, “os que se desviam do caminho certo”, e assim por diante. Era também muito preciso no uso que fazia dos termos definidos pelo Conselho de Tarragona, no século passado, e que diziam respeito aos diferentes graus de culpabilidade em associação herege: por exemplo, ele nunca chamava “encobridor” de hereges a alguém que, na realidade, fosse “ocultador” (a distinção, como sabeis, é muito subtil), nem “defensor” a alguém que, na realidade, fosse “recebedor”. Geralmente ele chamava “receptáculo” à casa ou estalagem onde os hereges se podiam reunir, tal como o Conselho decretava.

O padre Jacques chamava aos hereges “lodo dos charcos”, e “fossas pestilentas” às suas casas. Ele não era, como Santo Agostinho poderia ter colocado a questão, um daqueles homens que uniam os seus corações aos anjos.

- Estou ao corrente de que o Inquisidor-Mor vos escreveu, apresentando um relatório completo da minha história e educação - continuou o padre Agostinho. A sua voz era surpreendentemente firme e ressonante. - Desejais fazer-me perguntas relativamente à minha experiência como inquisidor... sobre a minha vida na ordem...?

A descrição do Inquisidor-Mor fora, de facto, exaustiva, com datas exactas sobre todos os cargos de ensino, priorados e comissões papais do padre Agostinho, de Cahors a Bolonha. Mas há mais a dizer sobre um homem do que os locais para onde foi nomeado. Eu poderia ter feito um grande número de perguntas sobre a saúde do padre Agostinho, ou sobre os pais, ou sobre os seus autores preferidos; poderia ter-lhe perguntado qual era a sua opinião sobre o papel do inquisidor, ou sobre a pobreza de Cristo.

Em vez disso, fiz-lhe a pergunta em que vós próprio estaríeis a pensar e a que ele deve ter respondido mil vezes.

- Padre - disse eu -, sois parente do Santo Padre, o Papa João? Ele esboçou um sorriso cansado.

- O Santo Padre não me reconheceria - respondeu dubiamente, não acrescentando mais nada sobre o assunto, nem nessa nem noutra altura qualquer. Eu nunca descobri a verdade. A minha opinião é que, como um Duese de Cahors, ele era parente do Santo Padre, mas, de alguma forma, os dois ramos da família tinham-se separado, e, consequentemente, ele não beneficiava da conhecida generosidade do Papa João para com os homens do seu próprio sangue. Se não fosse assim, ele seria cardeal por esta altura - ou, pelo menos, bispo.

Tendo fugido à minha pergunta, o padre Agostinho começou, por sua vez, a fazer-me perguntas. Eu fora identificado com um Peyre de Prouille; fora eu realmente criado à vista da primeira fundação de São Domingos? A sua proximidade tinha-me inspirado a juntar-me à ordem Dominicana? Ele falava com reverência, e lamentei informá-lo de que os Peyres de Prouille estavam arruinados muito antes de São Domingos ter chegado lá. Mesmo no tempo de São Domingos, a fortaleza fora desguarnecida, e os direitos senhoriais dos Peyres cedidos a uma família de camponeses ricos. Soube-o através da leitura de um relato sobre os primeiros dias do mosteiro, que, bastante inesperadamente, me tranquilizou num ponto que sempre constituíra para mim alguma preocupação - já que eu sempre vivera numa inquietação relacionada com as circunstâncias exactas do declínio da minha família. Nesta parte do mundo, a glória perdida é muitas vezes resultado de crenças hereges: fiquei aliviado por descobrir que a minha propriedade ancestral não fora confiscada pelo Santo Ofício, nem, de facto, pelos exércitos de Simão de Montfort, mas que se perdera simplesmente devido a fraqueza ou estupidez.

Disse ao padre Agostinho que fora criado em Carcassonne, e que o meu pai fora lá notário público e cônsul. Se tinha parentes em Prouille, não sabia nada deles. Na verdade, eu nunca sequer visitara tal lugar.

O padre Agostinho pareceu decepcionado. Num tom mais frio, perguntou-me sobre os meus progressos na ordem, e eu depressa os passei em revista: profissão solene aos dezanove anos, três anos de filosofia em Carcassonne, ensino de filosofia em Carcassonne e Lazet, cinco anos de teologia no Studium Generale de Montpellier, nomeação como pregador-geral, definidor em vários capítulos de província. Mestre de Estudantes em Béziers, lazet, Toulouse...

- E estais de volta a Lazet - terminou o padre Agostinho. - Há quanto tempo?

- Nove anos.

- Estais confortável aqui?

- Confortável. Sim - ele queria dizer, é claro, que o meu passo abrandara, que eu parecia estar parado. mas, à medida que se envelhece, começa-se a perder as paixões da juventude. Além de que existem certos homens na ordem que não riem como eu. - O vinho aqui é bom. O tempo é bom. Há hereges suficientes. Que mais se pode querer?

O padre Agostinho olhou-me por alguns instantes. Depois começou a fazer-me perguntas sobre o padre Jacques, sobre a sua história e os seus hábitos, os seus gostos, os seus talentos, a sua vida e a sua morte. Apercebi-me muito rapidamente de que ele estava a levar-me em determinada direcção, da forma que os cães levam um veado na direcção de um grupo de caçadores. Da forma que eu levo um herege em direcção à verdade.

- Padre, não há necessidade de usar de subterfúgios - disse-lhe eu, interrompendo um cuidadoso interrogatório sobre a amizade do padre Jacques com alguns dos principais mercadores da cidade. - Quereis saber se os rumores se baseiam em factos - se o vosso antecessor aceitou, de facto, dinheiro secretamente de hereges acusados.

O padre Agostinho não exibiu quaisquer manifestações de surpresa ou de aborrecimento. Era um inquisidor demasiado experiente para isso. Observava-me, simplesmente, e esperava.

- Também eu ouvi essas histórias - continuei -, mas não consegui confirmar nem a sua veracidade nem a sua falsidade. O padre Jacques trouxe para a ordem muitos livros ricos e bonitos, que dizia que recebera de presente. Tinha também muitos parentes abastados nesta região, mas não sei dizer-vos se a riqueza destes vinha dele ou se foi para ele. Se, de facto, ele recebia presentes ilícitos, tal não podia ter ocorrido com muita frequência.

O padre Agostinho continuava em silêncio, o olhar fixo no chão. Ao longo dos anos, aprendi que ninguém, nem mesmo um experiente inquisidor, consegue ler o coração e a mente das pessoas como se

de um livro se tratasse. É que o homem olha para o aspecto exterior, mas o Senhor olha para o coração - e o aspecto exterior do padre Agostinho era tão imperscrutável como uma parede de pedra. Contudo, com uma confiança ambiciosa e sem dúvida imerecida, acreditei que podia seguir a direcção dos seus pensamentos. Pensava que ele, naturalmente, desconfiava do ponto até ao qual eu estava implicado, por isso apressei-me a tranquilizá-lo.

- Eu, por outro lado, não tenho parentes ricos. E o meu salário como vosso vigário é directamente transferido para o priorado - quando é pago - vendo o confuso franzir de sobrolho do meu superior, expliquei que, apesar dos repetidos pedidos feitos ao administrador real de Confiscações, o padre Jacques, à altura da sua morte, tinha a haver três anos de salários. - As confiscações não são tão rentáveis como costumavam ser - acrescentei. - Os hereges que vemos agora são, na sua maior parte, camponeses pobres das montanhas. Todos os senhores ricos hereges foram capturados e esfolados há muito tempo.

O padre Agostinho resmungou.

- O Rei é responsável pelas despesas do Santo Ofício - disse. - Isto não é a Lombardia nem a Toscana. A Inquisição de França não depende de confiscações para sobreviver.

- Talvez não, em teoria - respondi. - Mas o Rei ainda deve ao padre Jacques quatrocentos e cinquenta livres tornois.

- E a vós? Quanto é que o Rei vos deve?

- Metade disso.

O padre Agostinho voltou a franzir o sobrolho. Nesse momento soou o sino a anunciar a hora da Prima, e levantámo-nos ao mesmo tempo.

- Depois da missa - disse ele - desejo visitar a prisão, e o local em que conduzis os vossos interrogatórios.

- Levar-vos-ei lá.

- Também desejo conhecer esse tal administrador real de Confiscações - e, é claro, o senescal Real.

- Isso pode arranjar-se.

- Naturalmente, perguntarei sobre o assunto dos salários - continuou ele, e dirigiu-se para a porta. Parecia que o nosso diálogo chegara ao fim. Mas, à medida que atravessava a soleira, o meu superior virou-se e olhou-me.

- Dissestes que as ovelhas tresmalhadas que se encontram na nossa prisão são, na sua maioria, camponeses pobres? - perguntou.

- Disse, sim.

- Nesse caso devemos perguntar-nos porquê. Os ricos são todos católicos fiéis? Ou será que têm os meios para comprarem a sua liberdade?

Não consegui encontrar dentro de mim resposta para isto. Assim, após ter esperado, por breves instantes, uma resposta, o padre Agostinho voltou a encaminhar-se para a igreja, apoiando-se pesadamente no seu bordão e parando, por vezes, para recuperar o fôlego.

Atrás dele, eu tinha de caminhar mais devagar do que era meu costume. Mas fui forçado a admitir que, embora o seu corpo pudesse não ter firmeza, a mente do padre Agostinho era, de facto, muito vigorosa.

Ocorre-me que não estareis familiarizado com Lazet, excepto nos termos mais simples: podeis saber que é uma cidade grande, apenas um pouco mais pequena do que Carcassonne; que fica situada junto ao sopé dos Pirinéus, dando para um vale fértil bissecado pelo Rio Agly; que comercia especialmente vinho e lã, alguns cereais, um pouco de azeite, e madeira das montanhas. Podeis até saber que é propriedade real desde a morte de Afonso de Poitiers. Mas não sabereis nada do seu aspecto, das suas características importantes, dos seus cidadãos proeminentes. Assim, passarei a fazer uma descrição fiel da cidade, antes de dar início ao relato dos acontecimentos que nela ocorreram, e que Deus empreste à minha mão uma eloquência que falta à minha língua.

Lazet está construída sobre a coroa de uma colina baixa e está bem fortificada. Quando se entra pela porta norte, a que se dá o nome de Porta de São Policarpo, depressa se chega à catedral de São Policarpo. Há uma igreja antiga, bastante pequena e de construção simples; os claustros dos cónegos que a ladeiam apresentam uma decoração mais elaborada, tendo sido completados mais recentemente. O palácio do bispo costumava ser a casa de hóspedes dos cónegos, antes de o Papa Bonifácio XIII ter criado os bispados de Pamiers e Lazet, em 1295. Desde então, este edifício sofreu muitas transformações (pelo menos é o que me dizem), e gaba-se de ter muito mais divisões do que até um arcebispo poderia exigir. É sem dúvida o edifício mais bonito de Lazet.

Há um espaço aberto em frente da catedral onde cinco estradas se cruzam, e aí encontrareis o mercado. Muitas pessoas frequentam-no para comprarem vinho, tecido, ovelhas, madeira, peixe, artigos de cerâmica, cobertores e outros bens. Ao centro do mercado ergue-se uma cruz de pedra, plantada sobre uma cova abrigada e pouco profunda, semelhante a uma gruta, que é propriedade dos cónegos de São Policarpo. Ouvi dizer que, há muito tempo, antes de a cidade ter sido construída, um eremita devoto viveu nesta gruta durante cinquenta anos, sem nunca ter de lá saído (e sem sequer se levantar, a julgar pelas dimensões do espaço), e que profetizou a construção de Lazet. O seu nome era Galamus. Embora nunca tivesse sido santificado, a sua gruta foi sempre considerada um lugar santo; há anos sem conta que as pessoas deixam lá dádivas, anonimamente, para os cónegos - às vezes dinheiro, mais frequentemente pão ou legumes, uma peça de tecido, um par de sapatos. Estas ofertas são recolhidas todos os dias ao pôr do Sol.

A culpa pelo facto de haver pouco para recolher, nestes últimos anos, tem sido atribuída ao Santo Ofício - que tem tendência a ser culpado pela maioria das coisas más nesta parte do mundo.

Do mercado, se se descer a Rua de Galamus, passa-se pelo Chateau Comtal, à direita. Em tempos residência dos condes de Lazet (uma linhagem agora extinta, graças às suas tendências hereges), esta fortaleza é agora o quartel-general do senescal real, Roger Descalquencs. Quando o Rei Filipe visitou a nossa região há cerca de catorze anos, dormiu no quarto em que Roger agora dorme - como o próprio Roger faz questão de lembrar. As reuniões mensais do tribunal criminal e civil, às quais ele, como magistrado, geralmente preside, também decorrem no chateau, e a prisão real também se encontra instalada em duas das suas torres. Grande parte da guarnição da cidade está estacionada nas casernas e às portas da cidade.

O priorado dos Frades Pregadores fica situado a Este do chateau. Como uma das mais antigas fundações dominicanas, recebeu muitas vezes a visita de São Domingos, que o agraciou com uma pequena colecção de crostas e peças de vestuário cuidadosamente guardadas na casa do capítulo. Vivem aí vinte e oito frades, assim como dezassete irmãos leigos e doze estudantes. Há cento e setenta e dois livros na biblioteca, catorze dos quais adquiridos (através de alguns estratagemas) pelo padre Jacques Vaquier. Segundo aquele trabalho muito respeitado de Humbert of Romans sobre a vida dos nossos primeiros padres, Lazet foi o local onde um certo irmão Benedito, atormentado para além de toda a resistência humana por Sete Demónios Alados (que o agrediram sem piedade, lhe cobriram o corpo de pústulas e lhe encheram as narinas de um cheiro perverso), enlouqueceu completamente, tendo de ser acorrentado a uma parede para protecção dos seus irmãos frades. Quando São Domingos exorcizou esses demónios, o senhor destes apareceu em pessoa - tendo assumido a forma de um lagarto negro - e discutiu teologia com o santo, até ser derrotado por um entimema colectivo muito poderoso.

Felizmente, tais coisas já não acontecem por aqui.

Do priorado até às instalações do Santo Ofício são apenas alguns passos de distância. No entanto, quando levei o padre Agostinho por esse caminho, fui saudado quatro vezes por pessoas conhecidas que passavam - um luveiro, um soldado, um taberneiro e uma matrona devota - e apercebi-me do olhar de lado cheio de ironia do meu superior.

- Não me dissestes - perguntou ele - que o Santo Ofício é visto com hostilidade entre os locais?

- Receio que sim.

- no entanto, parecem considerar-vos um amigo. Eu ri.

- Padre - respondi -, se eu estivesse na posição deles, faria do inquisidor local um amigo.

Isto pareceu satisfazê-lo, embora não se tratasse de uma explicação inteiramente verdadeira. O facto é que me tenho preocupado em manter boas relações com muitos dos cidadãos de Lazet, pois para construir uma imagem mental pormenorizada das árvores genealógicas mais notáveis da cidade, de sociedades de negócios e de rixas entre famílias, é necessário passar tempo com as pessoas envolvidas. Garanto-vos que se descobre mais sobre os segredos eróticos de uma mulher trocando algumas palavras com a criada ou com a vizinha do que interrogando-a numa roda (coisa que eu, graças a Deus, nunca fiz). Olhai, envio-vos como ovelhas no meio de lobos: sede, por isso, sensatos como serpentes, e inofensivos como pombas. estas são palavras a não esquecer, não só pelo pregador, mas também pelo inquisidor.

Eu sempre disse que um bom inquisidor não precisa de fazer muitas perguntas à sua testemunha. Um bom inquisidor já sabe as respostas. E não encontrará todas as respostas em livros, nem na contemplação da Inefável Majestade de Cristo.

- Aqui, como vedes, é a prisão - anunciei, quando chegámos à muralha da cidade. Porque em Lazet, como em Carcassonne, os prisioneiros do Santo Ofício estão alojados numa das torres fortificadas que adornam a muralha que rodeia a cidade, da mesma forma que as jóias adornam um colar. - Temos sorte, aqui, pelo facto de a nossa sede ter sido especialmente construída ao lado da prisão, permitindo movimentar-nos livre e facilmente entre os dois edifícios.

- Um bom plano - concordou o padre Agostinho, num tom sério.

- Não encontrareis as instalações tão pródigas como as de Toulouse - acrescentei, porque sabia que ele passara algum tempo a trabalhar com Bernard Gui, que desenvolve o seu trabalho naquela casa perto do Chateau Narbonnaise e que Peter Cella doou a São Domingos. - Não podemos vangloriar-nos de ter um refeitório ou um grande salão, como têm em Carcassonne. Temos estábulos, mas não temos cavalos. Os nossos empregados são poucos.

- É melhor ter pouco com o temor do Senhor - murmurou o padre Agostinho. em seguida mostrei-lhe como os estábulos foram construídos, talhados numa suave encosta para que as grandes portas de madeira, trancadas por dentro, se abrissem para uma rua algo mais baixa do que a estrada onde se encontrava a entrada principal. Com efeito, embora o edifício tivesse três pisos - com os estábulos a formarem o piso inferior - da parte norte, parecia haver apenas dois pisos, arrimados à torre da prisão como um cordeiro a procurar refúgio encostado ao flanco da mãe.

Mas talvez não seja adequado comparar a sede do Santo Ofício a algo fraco e terno como é um cordeiro. Repositório de muitos segredos graves, ela estava tão bem fortificada como a prisão a seu lado, com espessas paredes de pedra atravessadas por três pequenas aberturas. A porta principal mal era suficientemente larga e alta para deixar passar um homem de estatura normal, e, como a porta dos estábulos, também ela podia ser trancada por dentro. No entanto, naquela manhã, encontrámos Raymond Donatus, que vinha a sair quando nós íamos a entrar, por isso não houve necessidade de batermos.

- Ah! Raymond Donatus - disse eu. - Permiti que vos apresente o padre Agostinho Duese. Padre, este é o nosso notário, que dedica a maior parte do seu tempo às nossas exigências especiais. Há oito anos que é um fiel servidor do Santo Ofício.

Raymond Donatus pareceu surpreendido. Presumi que ele ia a sair para esvaziar a bexiga (já que as suas mãos tacteavam as suas roupas), e não estava à espera de encontrar o nosso novo inquisidor à entrada da porta. Contudo, recompôs-se rapidamente e fez uma vénia acentuada.

- Honrais-nos com a vossa presença, reverendo padre. O meu coração alegra-se.

O padre Agostinho pestanejou e murmurou uma bênção. Parecia um pouco surpreendido com a vénia exagerada - poder-se-ia até dizer, teatral. Mas essa era uma característica de Raymond: era sempre extremo no uso que fazia das palavras, que tanto eram doces como o pão dos anjos, ou como o martelo que quebra a rocha em pedaços. Era um indivíduo de temperamento instável, oscilando da soturnidade para a exultação muitas vezes por dia, irascível, convicto das suas opiniões, hilariante quando estava de bom humor, comilão, dado à bebida, e tão lascivo como uma cabra (cujo sangue é tão quente que derrete diamantes). Homem de berço humilde, orgulhava-se da sua educação. Vestia também roupas finas e falava muito das suas vinhas.

No entanto, estes pequenos defeitos não eram nada ao lado do seu domínio da linguagem jurídica, e da destreza da sua mão, que inspirava respeito. em nenhuma das minhas viagens encontrei um notário que soubesse transcrever tão depressa a palavra escrita. Mal a nossa primeira frase saía da nossa boca, já a sua contracção se encontrava na página.

Para concluir com uma descrição da sua aparência (a que Cícero chamaria effictió), direi que ele tinha cerca de quarenta anos, era de estatura média, nédio sem ser obeso, de rosto rosado, com um cabelo abundante e tão negro como o terceiro cavalo do Apocalipse. Tinha bons dentes e tinha sempre orgulho em exibi-los, sorrindo tão radiosamente perante o padre Agostinho que o meu superior pareceu ficar um pouco desconcertado.

Para preencher o incómodo silêncio, expliquei que Raymond Donatus era responsável pelos registos inquisitoriais, que se guardavam lá em cima.

- Ah! - exclamou o padre Agostinho, subitamente animado, e atravessou a soleira da porta num passo surpreendentemente rápido.

- Sim. Os livros de registo. Desejo falar convosco sobre os livros de registo.

- Estão bastante seguros - disse eu, seguindo-o. À medida que os nossos olhos se adaptavam às sombras, apontei para a minha secretária, que ocupava uma extremidade da sala em que tínhamos entrado. De resto, as únicas peças de mobiliário que se viam eram três bancos, dispostos ao longo das paredes, à nossa esquerda e à nossa direita. – É ali que desenvolvo uma boa parte do meu trabalho. O padre Jacques costumava deixar-me uma grande parte da sua correspondência.

O padre Agostinho observava, os olhos semicerrados, como um cego. Em seguida caminhou, arrastando os pés, e tocou na estante de madeira - novamente como um cego. Tive de o conduzir à sua própria sala, que era maior do que a antessala, e que era abençoada com uma abertura na parede que deixava passar alguma luz. Tendo explicado que era costume do padre Jacques interrogar as testemunhas nesta sala, mostrei ao seu sucessor a secretária do inquisidor, a cadeira do inquisidor (uma impressionante peça de mobiliário, elaboradamente esculpida) e a arca onde o padre Jacques guardara certas obras de referência: Speadum Judidale, de Guillaume Duram, Summa, de Rainerius Sac-coni, Sentences, de Peter Lombard, um comentário de Raymond Penatort a Uber Extra, de Gregório IX. Estes livros, disse eu, estavam agora ao cuidado do bibliotecário do priorado, mas se o padre Agostinho precisasse de os consultar, era só pedir.

- E os livros de registo? - perguntou ele, como se eu não tivesse falado. Havia nos seus modos uma fria determinação que me deixou confuso. Levei-o de regresso à antessala e subimos a escada de pedra em caracol que fora construída num estreito torreão de canto, ligando todos os três pisos. Quando chegámos ao piso de cima, encontrámos lá Raymond Donatus à nossa espera, juntamente com o copista, o irmão Lucius Pourcel.

- É aqui que guardamos os livros de registo - expliquei. - E este é o irmão Lucius, o nosso copista. O irmão Lucius é cónego de São Policarpo. É um copista rápido e muito cuidadoso.

O padre Agostinho e o irmão Lucius trocaram uma saudação fraterna, o irmão Lucius com a sua humildade do costume, o padre Agostinho como se a sua mente estivesse concentrada em assuntos mais importantes. Apercebi-me de que nada o distrairia do seu objectivo, que era localizar e examinar os livros de registo inquisitorial. Assim, conduzi-o até às duas grandes arcas em que estavam guardados, e dei-lhe as chaves do seu antecessor.

- A quem mais é que foram dadas chaves? - perguntou. - A vós próprio?

- É claro.

- E a estes homens?

- Sim. A estes homens também - olhei para o local onde Raymond Donatus e o irmão Lucius se encontravam, um par em nada condicente, um tão bem almofadado e ricamente vestido, tão robustamente rude de aparência e apetites, o outro tão pálido e delicado e submisso. Ouvi muitas vezes Raymond a falar com Lucius, a sua voz plangente claramente audível de baixo, enquanto classificava os encantos de algum dos seus conhecimentos femininos ou discursava sobre assuntos relacionados com o dogma católico. Tinha muitas opiniões e gostava de as ventilar. Não me lembro de ouvir o irmão Lucius exprimir os seus pensamentos sobre o que quer que fosse, com excepção, talvez, do tempo, ou dos seus olhos, que lhe ardiam. Uma vez, por piedade, perguntei-lhe se preferia ver menos vezes Raymond Donatus, mas assegurou-me que não tinha razões de queixa. Raymond, disse-me ele, era um homem culto.

Era também um homem que queimava incenso à vaidade, e não ficou de forma alguma lisonjeado com a aparente incapacidade do padre Agostinho de se lembrar do seu nome (essa, pelo menos, foi a interpretação que dei à sua expressão amuada). O padre Agostinho, porém, estava consumido por uma preocupação primordial, e enquanto não se satisfizesse nesse sentido, nada mais poderia prender-lhe o interesse.

- Não sou capaz de abrir estas arcas - declarou, apresentando a mão inchada e trémula para que eu a inspeccionasse. - tende a amabilidade de mas abrirdes.

- Procurais algum livro em especial, padre?

- Quero todos os livros de registo que contenham todas as inquisições conduzidas pelo padre Jacques durante o tempo que passou aqui.

- Nesse caso Raymond poderá ajudar-vos mais do que eu - fazendo um gesto na direcção de Raymond Donatus, levantei com esforço a tampa da primeira arca. - Raymond mantém estes livros em ordem.

- Com grande zelo e diligência - acrescentou Raymond, que nunca era tímido ao proclamar as suas próprias virtudes. Avançou rapidamente, ansioso por reclamar a responsabilidade sobre os nossos livros de registo inquisitorial. - Há algum caso especial que desejeis rever, reverendo padre? Porque na frente de cada livro há catalogações...

- Desejo rever todos os casos - interrompeu-o o padre Agostinho. - Baixando os olhos semicerrados para a pilha de volumes encadernados a couro, franziu o sobrolho e perguntou quantos havia.

- Há cinquenta e seis livros de registo - disse Raymond orgulhosamente. - Há também vários rolos e cadernos.

- Sendo esta, como sabeis, uma das sedes mais antigas - assinalei. Ocorrera-me que o padre Agostinho era quase de certeza incapaz de levantar um único livro de registo, porque cada códice era bastante grande e pesava muito. - Também é uma das que têm mais movimento. Presentemente, por exemplo, há cento e setenta e oito prisioneiros adultos.

- Quero todos os livros de registo do padre Jacques colocados na arca lá em baixo - ordenou o meu superior, ignorando mais uma vez as minhas observações. - Sicard ajudar-me-á a revê-los. Podemos entrar na prisão a partir deste piso?

- Não, padre. Só do piso de baixo.

- Nesse caso, voltaremos atrás. Obrigado - o padre Agostinho acenou com a cabeça ao irmão Lucius e a Raymond Donatus. - Voltarei a falar convosco mais tarde. Agora podeis regressar aos vossos deveres.

- Padre, não posso - objectou Raymond Donatus. - Não sem o padre Bernard. Estamos a planear um interrogatório.

- Isso pode esperar - disse eu. - Já escrevestes o protocolo para Bertrand Gasco?

- Não completamente.

- Então terminai-o. Chamar-vos-ei quando precisar de vós.

O padre Agostinho desceu para a antessala devagar, pois as escadas eram estreitas e a luz escassa. Mas não falou enquanto não nos encontrámos em segurança atrás da minha secretária, perto da porta da prisão. Então, o meu superior disse:

- Desejo perguntar-vos com franqueza, irmão, aqueles homens são de confiança?

- Raymond? - perguntei. - De confiança?

- Pode-se confiar neles? Quem os nomeou?

- O padre Jacques. Claro que sim - como diz Santo Agostinho, há coisas em que não acreditamos a não ser que as compreendamos, e coisas que não compreendemos a não ser que acreditemos nelas. Mas aqui estava algo que eu compreendia e em que, no entanto, não acreditava. - Padre - perguntei -, viestes cá para fazer a inquisição da Inquisição? Porque, se assim for, deveis dizer-me a verdade.

- Vim cá para impedir que lobos vorazes depravem a Fé - respondeu o padre Agostinho. - Para o fazer, tenho de assegurar que os registos do Santo Ofício estejam em segurança. Os registos são o nosso maior recurso, irmão, e os inimigos de Cristo compreendem isso. Percorrerão grandes distâncias para os obterem.

- Sim, eu sei. Avignonet - todas as almas que trabalham para o Santo Ofício têm gravados no coração os nomes dos inquisidores mortos em Avignonet no século passado. Não há tantos que saibam que os seus livros de registo foram roubados e vendidos mais tarde pela quantia de quarenta soldos. - Caunes, também. E Narbonne. Todos os ataques contra nós parecem terminar com o roubo e a queima de livros de registo. Mas este edifício está bem guardado e foram feitas cópias de todos os livros. Encontrá-las-eis na biblioteca do bispo.

- Irmão, as maiores derrotas de todas são as forjadas por traidores - respondeu o padre Agostinho. Encostado pesadamente ao seu bordão, acrescentou: - Há trinta anos, o inquisidor de Carcassonne desmascarou uma conspiração para destruir certos livros de registo. Vi os depoimentos - há cópias em Toulouse. Dois dos homens implicados trabalhavam para o Santo Ofício, um como mensageiro, o outro como copista. Temos de estar vigilantes, irmão, sempre - Tem cuidado com cada um dos teus vizinhos, e não confies em nenhum dos teus irmãos.

Mais uma vez, fiquei confuso. Não consegui encontrar nada para dizer, excepto:

- Por que estivestes a consultar testemunhos de ha trinta anos? O padre Agostinho sorriu.

- Os velhos registos dizem-nos tanto quanto os novos - disse.

- É por isso que desejo rever os livros de registo do padre Jacques. Extraindo os nomes de todas as pessoas difamadas por heresia nos seus testemunhos, e depois comparando-os com os nomes daquelas que fazem parte das listas dos acusados e condenados, verei se alguém escapou sem ser castigado.

- Podem ter escapado sem serem castigados porque morreram - assinalei.

- Nesse caso, conforme se recomenda, exumaremos os restos mortais, queimaremos os ossos e destruiremos as suas casas.

Através da ira do Senhor dos exércitos, a terra escureceu, e as pessoas serão o combustível do fogo. Sem dúvida que sou mole de coração, mas a perseguição de almas que já partiram sempre pareceu exagerada à minha forma de pensar. Não estão os mortos no domínio de Deus - ou do demónio?

- As pessoas desta cidade não vos olharão com simpatia, padre, se lhes desenterrardes os mortos - observei, pensando novamente naqueles episódios a que já fizera referência - aos ataques perpetrados contra o Santo Ofício em Caunes, Narbonne e Carcassonne. Ao incidente descrito na Cbronicle, de Guillaume Pelhisson, em que o irmão Arnaud Catalan, inquisidor de Albi, foi violentamente agredido por uma população hostil por ter queimado ossos declarados hereges.

Mas a resposta do padre Agostinho foi:

- Não estamos aqui para fazer amigos, irmão. E olhou-me com um ar ligeiramente acusador.

Entre as imensas obras notáveis alojadas no priorado de Lazet encontra-se a Historia Albigensis, de Pierre of Vaux-de-Cernay. Esta crónica contém um registo dos feitos que, não fosse o dom das letras que Deus nos concedeu, teriam, quase de certeza, sido esquecidos, uma vez que poucos desejam lembrar tempos tão sangrentos ou as raízes da amargura que estiveram na sua origem. Talvez (quem sabe?) estejam melhor esquecidos. É certo que a história vergonhosa do fascínio desta província por doutrinas perversas não é uma história que eu me preocupe em ver largamente publicada. No entanto, será suficiente dizer que, ao consultar-se a Historia albigensis, se ganhará uma compreensão muito completa daquelas obscuras infidelidades que fizeram com que a ira da cristandade se abatesse sobre nós, aqui no Sul. Não posso sequer ter esperança em tentar fazer uma sinopse dos acontecimentos descritos pelo dito Pierre, que, seguindo os passos do próprio Simão de Mont-fort, testemunhou tantas batalhas e cercos, à medida que os exércitos em cruzada devastavam as nossas montanhas e a nossa herança à procura dos dragões do deserto. De qualquer maneira, foi uma guerra que tem pouco a ver com a minha humilde narrativa. Chamei a vossa atenção para a obra do padre Pierre apenas porque ela faz um relato tão fiel do ponto a que aquela “abominável pestilência da Depravação Herege”, a seita dos hereges maniqueístas ou albigenses (também conhecidos por cátaros), infectara os meus patrícios antes de ter sido lançada a cruzada contra eles. Do mais alto ao mais baixo, vagueavam de um lado para o outro, através das inóspitas vastidões do erro. Nas próprias palavras de Pierre, até os nobres desta terra “se tinham, quase todos, tornado defensores e recebedores de hereges”. onde os nobres vão à frente, como deveis saber, o povo miúdo vai sempre atrás.

Por que vão eles atrás? Por que viram a cara à Luz? Alguns dizem que a própria Santa Igreja Apostólica é culpada, devido à sua ganância e ignorância, devido à vaidade dos seus sacerdotes e à simonia dos seus pontífices. Mas olho à minha volta e vejo orgulho - vejo ignorância - na raiz de toda a divergência. Vejo homens do povo que aspiram não só a serem sacerdotes, mas ao manto da profecia. Vejo mulheres que ousam ensinar, e camponeses que se intitulam de bispos (não actualmente, graças ao Senhor, mas em tempos passados os cátaros tinham os seus bispos, e os seus concílios, também).

Esta era a nossa situação, há algumas centenas de anos, ou cerca disso. Hoje, graças à diligência do Santo Ofício, a heresia foi empurrada para a clandestinidade: a doença já não está espalhada nem exposta, como as chagas de um leproso, mas está a apodrecer, escondida no escuro, em bosques e montanhas, atrás da falsa piedade, por baixo de peles de cordeiro. Tanto quanto me foi possível averiguar, após ter consultado Jean de Beaune, em Carcassonne, e Bernard Gui, em Toulouse (e também o novo bispo de Pamiers, Jacques Fournier, que recentemente instigou o seu próprio ataque às crenças não-ortodoxas da sua diocese), a última explosão desta infecção foi ocasionada pelos trabalhos de Pierre Authie, outrora notário de Foix, que, em 1310, foi queimado pelos seus crimes. Pierre e o seu irmão Guillaume foram convertidos ao erro na lombardia; regressaram à sua terra natal, no final do século passado, como perfeitos - ou sacerdotes - para converterem, por sua vez. Bernard Gui estima que devem ter feito pelo menos um milhar de crentes. Com efeito, eles lançaram à terra uma semente que germinou, floresceu e que voltou a dar sementes, de forma que as encostas e os desfiladeiros dos Pirinéus estão agora cheios desta erva daninha.

Daí o número de camponeses da montanha encerrados na nossa prisão - almas ignorantes de quem se poderia sentir pena, se não fossem tão estupidamente teimosos. Com quanta tenacidade se agarram aos seus erros loucos, insistindo, por exemplo, em que onde não há pão no estômago, não há alma. Ou que as almas dos homens maus não vão para o inferno nem para o paraíso após o Juízo Final - são atiradas de penhascos por demónios. OU até que aqueles que movimentam as mãos ou os braços para os lados quando caminham, provocam grande mal, pois movimentos deste género atiram para a terra muitas almas de mortos! Duvido de que os próprios perfeitos maniqueístas ensinem tal disparate (uma vez que tem um código de crenças que, embora errado, não deixa de ter lógica na sua perversidade). Não, as estranhas convicções destes analfabetos são da sua própria invenção. ensinados pelos perfeitos a duvidarem e a porem em causa, criam as suas próprias doutrinas da forma que lhes convém, e a que leva isso? Leva a homens como Bertrand Gasco.

Bertrand é oriundo de Seyrac, uma aldeia de montanha cheia de heresia e de criadores de ovelhas. Porque os perfeitos ensinam que a cópula, mesmo entre marido e mulher, é pecaminosa (e, se consultardes a primeira parte da Historia Albinensis, vereis que o autor classifica este erro particular da seguinte forma: “que o santo matrimónio não é mais do que prostituição, e alguém que, ao abrigo desse estado, conceba filhos jamais poderá alcançar a salvação”), porque, como digo, este é um dos dogmas maniqueístas, Bertrand Gasco usou-o para atingir os seus próprios objectivos. Tecelão atarracado, doente e carrancudo, de poucas posses e nenhuma educação, mesmo assim conseguia seduzir todas as mulheres que queria - ainda não calculei o total -, incluindo várias que eram casadas, uma que era sua irmã, e outra que era sua meia-irmã. Para justificar um pecado tão monstruoso, ele dizia às suas ignorantes vítimas que ser conhecida carnalmente pelo próprio marido era mais pecaminoso do que ser conhecida carnalmente por qualquer outro homem, mesmo que se tratasse de um irmão. Porquê? Porque a esposa não acreditava que estava a pecar quando era conhecida pelo marido! Ele dizia também que Deus nunca ordenara que o homem não deveria aceitar a sua irmã de sangue como esposa, uma vez que no princípio do mundo os irmãos costumavam conhecer as irmãs carnalmente. Nesta declaração, detectei instantaneamente a influência de alguém mais letrado do que Bertrand, e consegui extrair-lhe um nome - o nome de um perfeito, Ademar de Roaxio. Ora acontecia que este mesmo Ademar também fora preso. Já estava encarcerado juntamente com Bertrand.

Não acredito que Ademar tivesse ensinado a Bertrand tão perverso dogma com a intenção de o encorajar a perseguir as mulheres da sua própria família. Sem dúvida que estes erros foram apresentados simplesmente para confirmarem a proposição de que o conhecimento carnal é pecaminoso, quer seja fora do casamento, quer entre estranhos ou irmãos. Ademar, sendo um homem de temperamento ascético, não teria aprovado o comportamento de Bertrand. especularia que o perfeito vivia como professava que vivia - como a doutrina herege decretava que ele devia viver: levando uma existência casta e pobre, seguindo uma dieta que excluía carne, ovos ou queijo (tendo estes sido produzidos por coito), evitando pragas, pedindo esmola e pregando. Algumas autoridades defendem que os hereges não falam verdade, quando dizem ser castos, pobres, ou puros de alguma forma, e é um facto que muitos hereges são mentirosos, fornicadores e glutões. Mas alguns não são. Alguns, como Ademar, são verdadeiros crentes. E são ainda mais assustadores por isso mesmo.

Do depoimento de uma testemunha chamada Raymonda Vitalis, fiquei a saber que, em determinada ocasião, pediram a Ademar que abençoasse uma criança moribunda com aquela bênção conhecida como consolamentum, e que incluía muitas orações e prostrações. Isto, segundo acreditam os hereges, garantirá que uma alma moribunda ganhará a vida eterna - mas só se ele ou ela não comer nem beber depois. “Não dê a sua filha nada para comer nem beber, mesmo que ela peça”, instruiu Ademar. Quando a mãe da criança respondeu que jamais negaria à filha comida ou bebida, Ademar disse-lhe que estava a colocar em perigo a alma da criança. Em seguida, o pai retirou a esposa, à força, da presença da criança - que morreu a chorar por leite e pão.

Chamam endura a este terrível jejum e acreditam que é uma forma santa de suicídio. Sem dúvida que a filosofia que lhe está na base deriva de alguma forma de descontentamento com o mundo material, a que chamam a criação e o domínio do deus do mal, Satanás, a quem atribuem um poder igual ao do Senhor. Mas já estou a divagar. A minha intenção aqui não consiste em explorar as complexidades da doutrina herege. A minha intenção é narrar uma história, o mais rápida e claramente possível.

Assim, bastará dizer que o próprio Ademar jejuava quando o padre Agostinho inspeccionou a prisão pela primeira vez.

- Este homem é um perfeito impenitente - informei o meu superior (e devo confessar que falei com algum orgulho, pois os perfeitos são uma raça rara, hoje em dia). - Está a morrer.

- A morrer?

- Recusa-se a comer.

Abri o ferrolho da porta da cela de Ademar, mas estava demasiado escura para se poder ver alguma coisa. Assim, destranquei a porta, sabendo que, enfraquecido devido à fome e amarrado à parede, Ademar não constituiria para nós qualquer ameaça, estava sozinho, porque os perfeitos têm de ser colocados em isolamento, por mais que uma prisão pudesse estar superlotada. Se assim não for, eles envenenarão as mentes de outros prisioneiros, convencendo-os a renegarem as suas confissões e a morrerem pelos seus princípios.

- Saudações, Ademar - disse eu alegremente. - Pareces muito doente, meu amigo. Não quererás reconsiderar?

O prisioneiro mexeu-se um pouco, de forma que as correntes que o prendiam tiniram. Mas não disse nada.

- Vejo que Pons te deixou pão. Por que não comê-lo, antes que endureça?

Ademar continuou em silêncio. Ocorreu-me que estava demasiado fraco para falar - talvez demasiado fraco para apanhar o pão. Na obscuridade, a sua aparência era de morte, o rosto comprido e ossudo tão branco como os sete anjos.

- Queres que te dê de comer? - perguntei-lhe, com verdadeira preocupação. Quando parti um pedaço de pão e lho coloquei nos lábios, ele desviou a cabeça.

Suspirando, endireitei-me e dirigi-me ao meu superior:

- Ademar fez uma confissão completa e sincera, mas recusa-se a renunciar aos seus erros. As instruções do padre Jacques foram no sentido de que todas as testemunhas que não colaboram e pecadores obdurados sejam submetidos a jejum, a pão e água, para que os rigores corporais possam abrir-lhes os corações para a luz da verdade - fiz uma pausa, dominado, por um momento, pelo ar abafado e fétido do local. - O jejum de Ademar é um pouco mais rigoroso do que eu desejaria - concluí.

O padre Agostinho inclinou a cabeça. em seguida avançou até se encontrar próximo do prisioneiro, ergueu a mão e entoou as palavras:

- Arrepende-te e serás salvo.

Ademar levantou o olhar. Abriu a boca. A voz que dela saiu era fraca e espectral, como o chiar de uma árvore ao vento.

- Arrepende-te e serás salvo - repetiu.

Tive de esconder uma gargalhada atrás de um acesso de tosse. Ademar era incorrigível.

- Renuncia aos teus erros, e fica com Deus - exigiu o padre Agostinho, num tom ainda mais severo. Após o que Ademar respondeu:

- Renuncia aos teus erros e fica com Deus.

Olhando de um homem para o outro, fiquei perturbado ao reconhecer uma certa semelhança entre eles. Eram ambos tão firmes, tão implacáveis, como as montanhas de bronze de Zacarias.

- A tua vida não te pertence para terminares como desejas - disse o padre Agostinho ao perfeito. - Se preciso for, posso realizar um auto-de-fé amanhã mesmo. Não presumas que podes escapar ás chamas desta forma covarde.

- Não sou covarde - disse Ademar com voz rouca, fazendo tinir as correntes. - Se fôsseis verdadeiramente um servidor de Deus, em vez de uma caixa de dinheiro ambulante, saberíeis que a fome morde mais do que qualquer fogo.

Desta vez eu simplesmente tive de me rir.

- Esse teu protesto pode bem aplicar-se a mim, Ademar, mas não ao padre Agostinho. A reputação do padre Agostinho precede-o:

Ele é sobejamente conhecido por viver de urtigas e ossos, ele sabe o que é fome.

- Nesse caso, deve saber que ela é lenta, muito lenta. As chamas são rápidas. Se eu fosse covarde, atirar-me-ia para a pira, mas não sou.

- És - disse eu. - És covarde porque condenaste uma criança à morte e afastaste-te. Deixaste que os pais suportassem sozinhos os gritos dela. Esse é um acto de covardia.

- Eu não me afastei! Fiquei até ao fim! Vi-a morrer!

- E aposto que gostaste de ver. Sei o que pensas das crianças. Disseste a uma mulher grávida que o útero dela estava amaldiçoado com os frutos do demónio.

- Caminhais na escuridão, monge ignorante. Não compreendeis nada destes mistérios.

- É verdade. Não consigo compreender por que motivo é que dás a vida por uma fé errónea que tem de desaparecer um dia, uma vez que nenhum crente devoto pode ter filhos. Indivíduo idiota. Porquê buscar a morte desta maneira, se, como crês, a tua alma pode muito bem acabar numa galinha ou num porco, Ou até num bispo, que Deus não o permita!

Ademar virou o rosto para a parede. Fechou os olhos e recusou-se a falar. Por isso dirigi a minha observação seguinte ao padre Agostinho.

- Com vossa permissão, padre, eu podia enviar Ponds aqui com uns cogumelos recheados... talvez um pouco de vinho, alguns bolos de mel... algo para tentar o apetite.

O padre Agostinho estava a franzir o sobrolho. Abanava a cabeça impacientemente, como se as minhas palavras lhe tivessem desagradado. em seguida coxeou em direcção à porta.

- Ademar - disse eu, antes de seguir o meu superior -, se morreres nesta cela, não servirá de nada. Mas se morreres à vista de outros, talvez eles se deixem comover com a tua coragem e firmeza. Por isso, pouco me importa que morras aqui. Não estás a desafiar-me com este jejum - estás a ajudar-me. A última coisa de que preciso é de um mártir maniqueísta como tu.

O padre Agostinho estava a espera no corredor, quando eu saí da cela de Ademar. Era um corredor muito barulhento, porque as prisões são locais barulhentos (independentemente da quantidade de palha que se coloque no chão, cada voz ecoa como um balde a bater no fundo de um poço de pedra), e as celas estavam bem guarnecidas de pessoas zangadas e infelizes. No entanto, ele baixou a voz para falar comigo.

- As vossas observações não são bem pensadas, irmão - disse ele - em latim.

- As minhas observações...?

- Chamar mártir àquele primogénito de Satanás para lhe prometer influência sobre uma multidão com pena.

- Padre, tudo o que ele precisa é de uma desculpa - respondi. - Uma desculpa para comer, e ele fá-lo-á. Eu dei-lhe essa desculpa. uma vez que presumo que estáveis, digamos, a exagerar quando lhe dissestes que podíeis arranjar um auto-de-fé para amanhã...

- Isso não era verdade - admitiu ele.

- Exactamente. Se ele não comer, pode estar morto amanhã. Com certeza que estará morto no final da semana. as mortes na prisão não são... não são desejáveis.

- Não - disse o padre Agostinho. - Deve transformar-se esta fonte de infidelidade num exemplo.

- Sim... - devo confessar que fiquei preocupado, não por oferecer uma lição à populaça, mas por ter de assegurar que não eram feitas perguntas entre pessoas que ocupavam cargos elevados. Apenas doze anos antes, a investigação do Papa Clemente levada a cabo na prisão do Santo Ofício de Carcassonne resultara numa reprimenda oficial.

Além disso, a morte está fora dos limites da autoridade inquisitorial. É o braço secular que detém a responsabilidade de tirar a vida.

- Como podeis ver - observei, mudando a conversa para assuntos menos perturbadores -, neste piso encontram-se prisioneiros condenados ao regime de munis sirictus, e os obstinados que recusam confessar. O piso por cima de nós alberga os prisioneiros do regime de murus lareiis. que podem fazer exercício nos corredores, e aí conversar. Desejais visitar a masmorra, padre? Pode-se aceder a ela através daquele alçapão.

- Não - disse o padre Agostinho, abruptamente. Depois perguntou:

- É usada muitas vezes?

- Só quando eu preciso de espaço para interrogar pessoas - um bom inquisidor não precisa de fazer uso da tortura.

O padre Jacques, por vezes, usava-a com outras finalidades, mas não nos últimos tempos. Podemos subir agora as escadas? Pons vive com a esposa no último piso, por isso podemos terminar lá, tal como pedistes.

De facto, o meu superior desejara inspeccionar a prisão antes de conhecer o carcereiro. Não deu qualquer motivo para esta preferência, mas deduzi que, se o trabalho de Pons fosse de alguma forma deficiente, O padre Agostinho certamente que tomaria nota do facto e exigiria uma explicação no final da visita. À medida que eu o conduzia pelas filas de celas do regime de murus largus, algumas delas com dois ou mais ocupantes, devido a uma insuficiência de espaço, ele interrogou-me pormenorizadamente sobre os procedimentos usados para assegurar que os prisioneiros recebiam os bens que os amigos e a família lhes traziam. Esses bens, perguntou ele, chegavam a passar pelas mãos do carcereiro?

- Ficai descansado, padre - foi a minha resposta. - Se um carcereiro pode ser honesto, Pons é-o.

- Como podeis ter a certeza?

- Porque conheço muitos dos amigos e familiares dos prisioneiros. Pergunto-lhes o que dão, e pergunto aos prisioneiros o que recebem. Nunca há discrepância.

O padre Agostinho resmungou. Senti que talvez ele não estivesse convencido, mas decidi - como sempre - que seria loucura desafiá-lo com base numa suposição não corroborada. Na calma e na confiança estará a tua força. Ele não disse nada. Eu não disse nada. Prosseguimos. A caminho do último piso, apresentei-o a vários guardas e ao nosso familiar Isarn, que muitas vezes entregava intimações. Isarn era, ele próprio, um herege emendado. Era também um jovem doente e honesto, filho de pais hereges (há muito falecidos), e considerava o carcereiro e a esposa como seus pais adoptivos, comendo com eles, dando-lhes a maior parte do seu magro salário e dormindo em cima da mesa deles.

Sempre o considerei bastante inofensivo, na verdade, mal digno de se reparar nele, por isso fiquei surpreendido com a resposta do padre Agostinho quando mencionei a sua história infeliz.

- Aquele jovem foi seguidor da falsidade? - exclamou ele, ao receber esta informação.

- Como eu disse. Mas já não é. Renunciou aos seus erros há anos, quando era criança.

- Como podeis ter a certeza disso?

Olhei-o com espanto. Na altura, estávamos a subir as escadas para os aposentos de Pons, por isso fui obrigado a parar e a virar-me para o fixar.

- Nunca aprovei que se usassem tais pessoas - declarou ele. - Não é seguro. Não é sensato. A conspiração em Carcassonne foi facilitada por um homem de tendências semelhantes...

- Padre - interrompi-o -, estais a dizer-me que não há "antigos" hereges?

- Estou a dizer-vos que não podemos empregar aquele jovem - respondeu o padre Agostinho. - Livrai-vos dele.

- Mas ele nunca nos deu razões...

- Imediatamente, se fazeis favor.

- Mas...

- Irmão Bernard - o padre Agostinho falava com grande severidade. - "Pode o etíope mudar de pele, ou o leopardo as suas manchas?"

- Padre Agostinho - respondi -, o vosso homónimo era, ele próprio, um herege emendado.

- Era um santo e um grande homem.

- E uma vez escreveu: "Só os grandes homens foram autores de heresias".

- Não desejo embrenhar-me numa discussão retórica, irmão. Certamente que não estais inclinado a sentir pena do ramo que foi cortado da videira, pois não?

- Não - disse eu, e dizia a verdade. Um antigo sacerdote da igreja escreveu uma vez: Não há herege que não tenha nascido da discórdia. O próprio São Paulo criticou a dissidência e a divisão, das quais nada brota a não ser destruição, infelicidade, desespero. A harmonia da unidade é a pedra angular do mundo cristão. Só os presunçosos, movidos pelo orgulho e pela paixão, procurariam fragmentar esta pedra e ver a nossa civilização cair para o poço da escuridão eterna.

Pelos seus frutos, conhecê-los-ás. Famílias destruídas, sacerdotes assassinados, irmãs seduzidas pelos irmãos, crianças a morrerem privadas de comida. Chegou a circular a ideia de que os bons hereges estariam mais relutantes em matar uma galinha do que um monge. E fazem esta escolha. Como provavelmente sabeis, "escolha" é o que significa, de facto, a palavra "heresia".

Eles escolhem o caminho do desvio, e têm de sofrer o preço por terem feito tal escolha.

- Não, padre - disse eu. - Não estou inclinado a sentir pena de nenhum herege.

- Nesse caso, deveis estar vigilante. Está no poder do homem descobrir o que vai no coração de outro homem?

- Não, padre.

- Não. A não ser que esteja iluminado pelo espírito de Deus, ou instruído pelo cuidado dos anjos. Sois com isso abençoado?

- Não, padre.

- Nem eu. Assim, temos de estar em guarda. Não podemos permitir que o Inimigo da Humanidade se torne nosso amigo.

Pela terceira vez naquele dia, ele derrotou-me. Era verdadeiramente convincente no poder da sua vontade. Inclinei-me perante ele, querendo, com isso, dizer que concordava, e em seguida levei-o a mostrar as suas cartas reais de nomeação ao senescal, ao bispo, ao tesoureiro real e ao administrador real de Confiscações. De regresso ao priorado, o meu superior também assistiu às Completas, depois de ter falado com o abade em particular.

E nessa noite, quando estava deitado na minha enxerga, adormeci ao som da voz baixa e monótona do pobre Sicard, quando este lia os livros de registo do padre Jacques na cela ao lado. Sicard ainda estava a ler quando o sino tocou para as Matinas, às primeiras horas da manhã.

Seria ilógico da minha parte começar a considerar o meu novo superior como um homem que vivia na sombra da morte?

 

Um leão em lugares secretos

O Santo Ofício teria problemas de todos os lados, se não fosse a ajuda de certos baixos funcionários - copistas, guardas, mensageiros, até espiões - que são geralmente conhecidos como "familiares" e que são vistos com desdém por muitos cidadãos respeitáveis, muitas vezes injustamente. Isarn pode ter trabalhado sob o fardo de um passado herege, mas era um bom e humilde servidor, sem vaidade nem perfídia. O padre Agostinho também era desprovido de vaidade e perfídia, uma alma pródiga em virtudes, enriquecida com a graça multifacetada do espírito santo de Deus - mas ao escorraçar o pobre Isarn, fez mal. Manifestamente, fez mal. Em assuntos como este, não se deve ter demasiada pressa em condenar, pois a misericórdia e a verdade são virtudes que caminham muitas vezes de mãos dadas. Abençoados são os misericordiosos, com bênçãos que são muito ricas - como eu próprio posso testemunhar.

Há cerca de três anos, contratei um familiar, cujos serviços estavam quase para além do elogio, um homem de tal inteligência excepcional, tão perfeito no seu trabalho, que a minha pena hesita quando tento fazer jus à sua excelência. No entanto, era perfeito (pelo menos era o que parecia), e indigno de confiança. Com que facilidade eu poderia ter desconsiderado as suas estranhas propostas! Com que determinação eu poderia ter-me agarrado às minhas suspeitas e perder a oportunidade que ele me oferecia! Contudo, fui ousado. Ouvi; ponderei; concordei. E os frutos desta decisão foram generosos.

Vi-o pela primeira vez na sua cela da prisão, para onde fora recentemente enviado. Sabia pouco dele, excepto que fora apanhado - com um companheiro perfeito - na feira de Padern. Sabia também o seu nome, mas não o transcreverei para aqui. Sendo a sua identidade um segredo bem guardado, chamar-lhe-ei simplesmente "S". De aparência (e, mais uma vez, não poderei dar-vos uma descrição completa e pormenorizada do seu effictio), era alto e pálido, com olhos pequenos, muito límpidos, muito medidores.

- Então! Meu amigo - disse-lhe eu. - Pediste uma audiência comigo.

- É verdade - a sua voz era suave, e macia como manteiga. - Desejo fazer uma confissão.

- Nesse caso deves esperar até amanhã - aconselhei-o. - Haverá uma sessão no tribunal, e estará presente um notário para registar tudo o que tens a dizer.

- Não - disse ele. - Desejo falar convosco em particular.

- Se queres fazer uma confissão, deve ser registada.

- Desejo fazer uma sugestão. Concedei-me um pouco do vosso tempo, meu senhor, e não o lamentareis.

Fiquei intrigado. Geralmente, sou apenas "meu senhor" para camponeses assustados e soldados reverentes; era a primeira vez que um perfeito se dirigia a mim dessa maneira. Assim, disse ao prisioneiro que continuasse, e ele começou por dizer:

- - Não sou um Homem Bom, meu senhor.

Sabendo que "Homem Bom" era outra forma de designar um perfeito, respondi:

- Nesse caso, isto não é confissão nenhuma, porque já tenho testemunhas de que és.

- Visto-me como um Homem Bom. Uso uma túnica azul e sandálias. Não como carne, quando como com os outros, e falo da Grande Babilónia da Igreja Romana. Mas, de coração, não sou herege, e nunca fui.

Ao ouvir isto, ri alto, e teria falado, não fosse ele ter-se adiantado. Disse que os pais tinham sido crentes cátaros; que o pai fora queimado como herege relapso, e que a mãe fora presa; que o seu património fora confiscado e a casa onde nascera destruída. Disse que, aos seis anos de idade, perdera tudo o que outrora fora seu. A sua juventude fora passada a dormir em palheiros de parentes, cuidando das ovelhas deles, comendo as suas migalhas. Narrou tudo isto calmamente, na sua voz suave, como alguém falaria de um dia nebuloso ou de um pão duro.

- Os Homens Bons destruíram a minha herança - concluiu. - No entanto, ainda vieram ter comigo, esperando partilhar a minha cama e a minha comida, esperando ser guiados daqui para ali, esperando ser escondidos e ajudados e ouvidos, mesmo quando colocavam toda a aldeia em risco. Os meus parentes sempre os receberam bem, e, à noite, eu costumava ficar deitado acordado, receando que alguém informasse os inquisidores.

- Tu próprio nos deverias ter informado - observei.

- E teria ido para onde, meu senhor? Eu não passava de uma criança. Mas jurei que, um dia, recuperaria a minha herança, destruindo aqueles que ma tinham roubado.

Falava com uma calma intensidade, que considerei totalmente convincente. Mas, mesmo assim, eu ainda estava confuso.

- Eram teus inimigos, mas juntaste-te às suas fileiras. Como foi isso?

- Para traíres o teu inimigo, tens de conhecê-lo bem - respondeu "S". - Meu senhor, o Homem Bom, Arnaud, foi capturado comigo. Trouxe-o até à vossa porta. Posso contar-vos tudo sobre ele, e sobre outros Homens Bons, sobre os seus hábitos, os locais que costumam frequentar, os caminhos que usam, e sobre as pessoas que os conduzem. Posso dar-vos os últimos cinco anos da minha vida, e toda a região de Corbieres.

- Por uma questão de inimizade? - perguntei, mas ele não compreendeu (não era, como eu depressa descobri, um homem muito instruído, embora possuísse uma mente viva). Assim, fui obrigado a reformular a minha pergunta. - Porque odeias tanto os hereges?

- Odeio-os, sim. E desejo lucrar com eles. Dou-vos os últimos cinco anos gratuitamente, como sinal da minha boa vontade. Quanto ao próximo ano, tereis de pagar por ele.

- Estás a oferecer-te como meu espião?

- Vosso e só vosso - olhou-me com os seus pequenos olhos límpidos, cor de mel, e compreendi que ele devia ter sido um poderoso pregador, pois o seu olhar era persuasivo. - Ninguém mais deve saber. Contar-vos-ei a minha história como herege reformado.

Porque denuncio tanta gente, o meu castigo será leve. Deixar-me-eis ir e eu regressarei ao meu ministério numa nova região - a região de Rousil-lon. Daqui a um ano, prender-me-eis em Tautavel. Contar-vos-ei tudo o que descobri e pagar-me-eis duzentos livres tournois.

- Duzentos? Meu amigo, sabes qual é o meu salário?

- Duzentos - disse ele com firmeza. - Com isso comprarei uma casa, algumas vinhas, um pomar...

- Como farás isso, se estiveres preso? Não posso libertar um herege relapso. Irás para o poste.

- Não, se me ajudardes a fugir, meu senhor - fez uma pausa, acrescentando em seguida: - Se gostardes do meu trabalho, talvez me possais contratar por mais um ano.

E foi assim que adquiri o mais dotado familiar que o Santo Ofício alguma vez empregou - não por um ano, nem sequer por dois, mas por quantos ele me desse. Que sepulcro caiado aquele homem era! Tão astuto como um camaleão (que muda de cor segundo o esconderijo) e tão perigoso como um leão entre os animais da floresta. No entanto, dei-lhe a minha confiança e, em troca, ele deu-me a sua. Sê forte, e tem muita coragem, pois o Senhor teu Deus está contigo aonde quer que vás.

Contudo, estou pronto a admitir à vontade que nem todos os familiares são dignos de confiança. Alguns vendem os seus virtuosos por prata, e os pobres por um par de sapatos. Grimaud Sobacca era um desses; a sua imagem feita de metal fundido era a falsidade, no entanto, o padre Jacques dava-lhe alguns livres, de vez em quando, por serviços de natureza baixa e pouco honrados. Por vezes, Grimaud espalhava rumores falsos, causando divisões entre as pessoas que, em seguida, se denunciavam umas às outras como hereges. Por vezes fingia ser prisioneiro e tornava-se receptor de segredos que, mais tarde, eram contados ao padre Jacques. Por vezes subornava criadas, ameaçava crianças, roubava documentos. Se o padre Jacques alguma vez aceitou dinheiro, foi quase de certeza Grimaud que o recolheu.

Depois, com a morte do seu protector, Grimaud procurou auxílio junto do padre Agostinho. Trazia ao Santo Ofício migalhas rançosas de coscuvilhice como um gato perdido poderia trazer ratos mortos para uma cozinha - só que ele era mais uma ratazana do que um gato, e, como a maior parte dos parasitas, encontrava sempre uma entrada. Um final de tarde, quando regressávamos ao priorado após as Completas, o meu superior fez-me perguntas sobre Grimaud. Disse-me que Grimaud fora ter com ele nesse mesmo dia com uma história de mulheres hereges que viviam em Casseras. Tinham-se mudado para o velho castelo dos cátaros que lá existia e não iam à igreja.

- Sabeis da existência dessas mulheres? - perguntou-me o padre Agostinho. - Eu não tinha conhecimento de castelo nenhum em Casseras.

- Não há nenhum - disse eu. - Há uma forcia, uma quinta fortificada, que foi confiscada algures no passado, quando o proprietário foi condenado por heresia. Creio que as terras pertencem agora à coroa. Da última vez que estive em Casseras, não vivia ninguém na forcia, que fora bastante destruída.

- Quer dizer que Grimaud estava a mentir?

- Grimaud mente sempre. Caminha nas ruas de Babilónia e chafurda na lama dela, como que numa cama de especiarias e unguentos preciosos.

- Compreendo - a força da minha condenação impressionou claramente o padre Agostinho. - No entanto, vou escrever ao padre de lá. Quem é o padre de lá?

- O padre Paul de Miramonte.

- Escrever-lhe-ei a pedir confirmação.

- Destes dinheiro a Grimaud?

- Disse-lhe que, se prendêssemos algumas dessas mulheres, após o devido inquérito, ele receberia então uma pequena quantia.

- Se houver hereges em Casseras, padre, o sacerdote ter-vos-ia dito. É uma pessoa de confiança.

- Conhecei-lo?

- Faço questão de conhecer a maioria dos sacerdotes das paróquias das redondezas.

- E muitos dos seus paroquianos também, segundo me parece.

- Sim.

- Então talvez me possais falar destas pessoas - e o meu superior passou a enumerar uma lista de seis nomes: Aimery Ribaudin, Bernard de Pibraux, Raymond Maury, Oldric Capiscol, Petrona Capdenier e Bruna d'Aguilar. - São pessoas cujos nomes foram mencionados em alguns testemunhos do padre Jacques, mas nunca foram acusadas nem condenadas.

- Aimery Ribaudin! - exclamei. - Aimery Ribaudin?

- Esse nome é-vos familiar?

Parei, peguei-lhe no braço e apontei para o fundo da rua, à nossa direita. Esta rua estava cheia de impressionantes hospita - habitações de dois pisos com grandes lojas e armazéns abobadados nos pisos inferiores.

- Estais a ver aquele hospitum? Pertence a Aimery Ribaudin. É armeiro e cônsul e um homem muito rico.

- Alguma vez foi difamado, tanto quanto sabeis?

- Nunca. É patrono de São Policarpo.

- E os outros? E Bernard de Pibraux?

- Pibraux é uma aldeia a Ocidente de Lazet. O senhor feudal tem três filhos, e Bernard é o mais novo. Não o conheço - estavam parados, mas, ao ver os olhares de curiosidade que eram lançados na nossa direcção, recomecei a caminhar. - Raymond Maury é padeiro - vive perto do priorado. É um indivíduo com mau feitio, mas tem nove filhos para alimentar. Bruna d'Aguilar é uma viúva da paróquia de São Nicolau, é abastada, cabeça da casa. Ouvi histórias sobre ela.

- Que histórias?

- Histórias disparatadas. Que cospe três vezes para abençoar o pão. Que o porco dela sabe recitar o pater noster.

- Hum.

- Os outros dois nomes são-me desconhecidos. Sei que existem vários Capiscols, mas nunca ouvi falar de nenhum Oldric. Talvez tenha morrido.

- Talvez. Foi visto numa reunião que ocorreu há quarenta e três anos.

- Nesse caso pode ter morrido. Pode ter sido acusado e condenado muito antes do tempo do padre Jacques. Deveis verificar os livros de registo antigos.

- Fá-lo-ei.

E foi o que fez. Mandou Raymond procurar nos registos os livros com cinquenta anos, e mandou Sicard lê-los, todas as noites, desde as Completas até às Matinas, até o pobre Sicard ficar rouco e com os olhos vermelhos. Então, um dia, na nossa sede, quando eu me encontrava ocupado a escrever uma carta a Jean de Beaune, o inquisidor de Carcassonne (que queria uma cópia de certos depoimentos que guardávamos, o padre Agostinho desceu a escada em caracol, arrastando os pés, e parou em frente da minha secretária.

- Irmão Bernard - disse ele, - tendes consultado os registos ultimamente?

- Eu? Não.

- Tendes alguns livros de registo em vosso poder?

- Nem um. Porquê? Falta algum livro?

- Parece que sim - o padre Agostinho parecia algo distraído, à sua maneira; enquanto falava, o seu olhar vagueava por cima das minhas penas, da terra de pisoeiro, e por cima da pedra-pomes. - Raymond não encontra um dos livros de registo antigos.

- Não poderia andar a procurar no local errado?

- Ele disse que podíeis tê-lo enviado para outro inquisidor.

- Nunca envio originais, padre, mando sempre fazer cópias. Raymond devia saber isso - eu estava a começar a partilhar da preocupação do meu superior. - Há quanto tempo é que o livro está desaparecido?

- Isso não posso precisar. Raymond não tem a certeza - os registos antigos são consultados raramente.

- Talvez ambas as cópias tenham sido colocadas na biblioteca do bispo, por engano.

- Talvez. De qualquer maneira, disse-lhe que encontrasse a cópia do bispo e que a trouxesse cá.

Por esta altura eu estava muito concentrado. Tal mistério não podia passar sem ser resolvido.

- O irmão Lucius viu esse livro?

- Não.

- E o bispo?

- Tenciono perguntar-lhe.

- Mais ninguém teria acesso aos nossos registos. A não ser que... - fiz uma pausa, e, por uma maravilhosa harmonia de pensamento, o padre Agostinho terminou a frase por mim.

- A não ser que o padre Jacques o tenha tirado.

- A não ser que ele o tenha colocado no local errado.

- Hum.

Olhámos um para o outro, e perguntei a mim próprio: o padre Jacques estaria a esconder as suas actividades? Mas não disse nada, pois aquele que refreia os seus lábios é sensato.

- Investigarei o assunto - anunciou finalmente o meu superior. Pareceu colocá-lo de parte com um movimento brusco da mão. De imediato, estava a referir-se a outro assunto completamente diferente. - Amanhã vou precisar de cavalos - disse. - Quais são os procedimentos para os arranjar?

- Cavalos?

- Desejo visitar Casseras.

- Ah - tendo explicado que o moço de estrebaria principal do bispo precisaria de ser informado, perguntei ao meu superior se recebera informações frescas da parte do padre Paul de Miramonte. - A suspeita de Grimaud foi confirmada? - perguntei. - Há hereges a viver na forcia, em Casseras?

Durante muito tempo, o padre Agostinho permaneceu em silêncio. Eu estava prestes a repetir a minha pergunta (sem me aperceber de que o ouvido dele era particularmente apurado), quando, de súbito, ele demonstrou que, afinal, me ouvira.

- Tanto quanto pude averiguar - respondeu -, as mulheres em questão são boas católicas. Frequentam a igreja, mas não com regularidade, por falta de saúde. O padre Paul diz que a forcia fica a alguma distância da aldeia, e que isso pode também impedi-las de exercer o culto quando o tempo está mau. Levam uma vida simples e devota, criando aves de capoeira e trocando ovos por queijo. Ele não vê nada de questionável nos seus hábitos.

- Então...? - eu estava confuso. - Porquê a viagem?

De novo, o padre Agostinho pensou por algum tempo antes de falar.

- As mulheres que vivem juntas dessa forma convidam ao perigo e à calúnia - disse, por fim. - Se as mulheres querem viver castamente, servindo a Deus e obedecendo às Suas leis, devem procurar a protecção de um sacerdote ou de um monge e entrar para um convento. De outra forma correm sério risco, em primeiro lugar, porque estão a viver uma vida isolada, vulneráveis à violação e à pilhagem, em segundo lugar, porque as pessoas se lembram de que as seguidoras do erro albigense viveram em tempos em circunstâncias semelhantes, fundando muitos "conventos" hereges. As pessoas desconfiam de mulheres que parecem favorecer a vida de Maria em detrimento da de Marta, e que, no entanto, rejeitam a orientação disciplinada da autoridade eclesiástica.

- Isso é verdade - concordei. - Há sempre uma interrogação em tais casos. Como dizeis, por que não entrar para um convento?

- Além disso... - e aqui o padre Agostinho fez uma pausa, antes de se repetir enfaticamente com toda a ponderação daquela forma retórica conhecida como o conduplicatio. - Além disso, uma delas sabe ler.

- Ah - que bênção confusa a instrução pode ser entre os leigos! - Mas não latim, certamente...?

- Penso que não. Mas, como sabeis, aqueles que são meio instruídos correm um perigo muito maior do que aqueles que não têm qualquer instrução.

- Sim, de facto - eu próprio testemunhara a teimosa presunção de homens e mulheres apenas parcialmente familiarizados com as letras, que podiam ter aprendido de cor algumas passagens do Evangelho, e que, no entanto, se consideravam superiores às mais letradas autoridades. Ouvi muitos aldeões ignorantes interpretarem falsa e corruptamente a sagrada escritura, como na Epístola "Os seus não o receberam", de Jean, traduzindo "Os seus" por "porcos", tomando erradamente sui por sues. E no salmo "Domina a fera dos canaviais", eles dizem "Domina os animais das andorinhas", tomando erradamente Harunãnis por Hirun. Assumem a aparência da aprendizagem como um manto, que, para outros analfabetos, esconde por baixo as profundezas da ignorância.

- Se essas mulheres estão a buscar o erro, vivendo de uma forma perigosa, esforçar-me-ei por colocá-las no caminho certo - disse o padre Agostinho. - Pode não ser preciso mais do que um conselho paternal. Um discurso suave.

- A maneira de São Domingos - concordei eu, e ele pareceu satisfeito com esta comparação.

- Sim, como São Domingos - depois, nos seus modos secos mas convincentes, acrescentou:

- Afinal, Domini Canes não são cães do Senhor simplesmente porque atacamos os lobos vorazes. Estamos também aqui para juntar aquelas ovelhas que se tresmalham do rebanho.

Tendo falado do que sentia, partiu a coxear, a arfar como um fole e apoiando-se pesadamente na sua bengala. Devo confessar que, nesse momento, me passou pela mente um pensamento de culpa - a imagem de um cão com três patas, muito velho, sem pêlo e sem dentes - e sorri para a pena que tinha na mão.

Mas o meu sorriso esvaneceu-se quando perguntei a mim próprio: como é que os cães sem dentes se sustentam, se não for correndo tudo à procura de animais mortos?

O padre Agostinho estava claramente determinado a perseguir os hereges difamados até às suas sepulturas e para além delas. Eu sabia que, se ele o fizesse, nos traria problemas. Haveria protestos e recriminações. Haveria um desfile de patronos influentes.

No entanto, eu não esperava o pior. E nisso tive falta de visão.

Casseras fica situada perto da aldeia maior de Rasiers. Do que me lembrava, eu estimava que Rasiers fosse habitada por trezentas pessoas, mais ou menos, entre elas o preboste real. É este preboste que ocupa o castelo, outrora propriedade da mesma família que construiu a forcia nos arredores de Casseras - uma família de que não sei muita coisa, para além de que o seu chefe, um tal Jordan de Rasiers, entregou o seu castelo a forças do Norte, há cem anos atrás. Tendo consultado os nossos registos do Santo Ofício, posso também dizer-vos que o neto, Raymond-Arnaud, perdeu a forcia de Casseras, assim como uma casa na cidade de Lazet, quando foi condenado por heresia, em 1254.

Há muito tempo, tanto Rasiers como Casseras estavam infestadas de hereges. Vi os testemunhos, centenas deles, dos interrogatórios de 1253 e 1254, quando a maior parte dos aldeões foram chamados a Lazet, em pequenos grupos, para serem interrogados. Tanto quanto me lembro, foram condenadas cerca de sessenta pessoas de Casseras, todas elas pertencendo a quatro famílias (observei muitas vezes que a heresia infecta o sangue, como certas doenças hereditárias). Essas famílias já não estão representadas na aldeia: os seus membros foram presos, executados, ou enviados em longas peregrinações de que nunca regressaram. Alguns, na sua maior parte crianças, foram enviados para viverem com parentes distantes. Como Jerónimo declarou no seu comentário sobre os gaiatas, "Corta a carne podre, expulsa as ovelhas defeituosas do curral, para que toda a casa, toda a massa, todo o corpo, todo o rebanho, não ardam, não pereçam, não apodreçam, não morram". Com a infecção da heresia cauterizada, Casseras regressou à saúde (embora, como o padre Agostinho costumava dizer, se deva estar sempre vigilante).

Para chegar à aldeia vindo de Lazet, tem de se cavalgar meio-dia para Sul, até se chegar a Rasiers, ao seu verdejante planalto de pastagens, bosques e campos de trigo - uma harmoniosa combinação de riqueza natural que proporciona ao trabalhador zeloso tanto descanso para a vista como várias dádivas em forma de produtos. Senhor, como são grandes as Tuas obras! Todas elas são fruto da Tua sabedoria! A terra está cheia das Tuas criaturas! Casseras fica ainda mais para Sul, no sopé das montanhas, entre colinas, e a terra lá não é tão fértil. Não há pomares nem vinhas, não há carroças nem cavalos, não há moinhos, não há estalagens, não há priorado, não há ferreiro. Só duas casas se podem gabar de ter instalações exteriores para as ovelhas, gado muar e bois. A igreja é um modesto receptáculo da graça de Deus - uma escura caixa de pedra calcária contendo um altar de pedra, um crucifixo de madeira e uma arca fechada à chave para o cálice, a patena, panos de linho e toalhas de altar. Há também quadros nas paredes, mal executados, e em mau estado de conservação. É claro que é melhor ser-se modesto com os humildes (etecetera), mas pouco lá há que glorifique a majestade de Cristo.

De Casseras, um caminho de pedregoso sobe serpenteando, através de pequenos terrenos cultivados e bosques cerrados, até às pastagens dispostas em socalcos da velha forcia de Rasiers. Aqui é frequente ver-se ovelhas a pastar, propriedade de certas famílias locais que pagam ao preboste pelo direito de pastagem e de cortar madeira, em troca do privilégio de usarem a terra da coroa (há muitas queixas sobre tais impostos: ouço-as para onde quer que vá. Demasiados impostos, dizem os camponeses. Como podemos dar à igreja, quando o Rei quer tanto?). O caminho de que falo é, nalguns locais, tão íngreme como uma escadaria, e, noutros, é tão fundo como uma trincheira, quase intransitável no tempo húmido, perigoso na neve, mais próprio para cabras do que para pessoas, desafiando até os cavaleiros mais hábeis e experientes. Assim, aconteceu que o padre Agostinho e os seus guardas, tendo atravessado o Rio Agly, picaram as suas montadas por encostas enrugadas, sob um sol escaldante e tendo arriscado a vida ao atravessarem uma densa floresta conhecida pela sua população de salteadores, se viram confrontados, quase no fim da sua viagem, com a subida mais difícil de todas.

Decidiram também regressar no mesmo dia, e mais depressa, também, de forma a chegarem a Lazet antes de as portas se fecharem, ao pôr do Sol. Isto é, o padre Agostinho tomou esta decisão, e bem insensata se revelou, pois quase o destruiu. Como consequência, passou os três dias seguintes de cama - e porquê? Porque estava relutante (pelo menos, foi o que ele disse) em faltar à celebração das Completas. Ora eu compreendo que é dever de todos os irmãos dominicanos assistirem às Completas, que as Completas são a coroa e a culminação do nosso dia, que nenhuma ausência deixará de ser notada e nenhuma desculpa será suficiente. No entanto, como sublinha Santo Agostinho, Deus fez a mente humana racional e intelectual, e a razão dita que um homem fraco, tornado ainda mais enfermo pelas dores e pela fadiga de uma longa cavalgada, estará ausente das Completas em muitas mais ocasiões do que um homem que sensatamente interrompe a sua viagem com uma noite passada sob o tecto de um padre local.

Manifestei esta opinião quando visitei o meu superior na sua cela ao segundo dia da sua recuperação, e ele concordou em que tinha sobrestimado as suas forças.

- Da próxima vez, passo lá a noite - disse ele. Fiquei surpreendido.

- Tencionais lá voltar?

- Sim.

- Mas se essas mulheres não são ortodoxas na sua fé, devíeis chamá-las cá.

- Não é que elas não sejam ortodoxas - interrompeu o padre Agostinho. A sua voz era baixa e rouca, saindo-lhe com dificuldade, mas, baixando a cabeça quase até ao nível da sua boca, consegui captar tanto as palavras que ele pronunciava como a sugestão, o mero eco, da cólera de que estavam imbuídas. Deixava-me confuso, essa cólera que jorrava de uma fonte oculta. Eu não via razão para a sua existência.

"Elas precisam de orientação espiritual - continuou o padre Agostinho, os olhos fechados, o bafo malcheiroso na minha face. Eu conseguia distinguir nitidamente os contornos do crânio por baixo da sua pele.

- Certamente que o padre Paul lhes poderá dar essa orientação - disse eu, e ele moveu a cabeça irritadamente, quase febrilmente.

- Não pode.

- Mas...

- O padre Paul é um homem simples com mais de uma centena de almas ao seu cuidado. Estas mulheres não são de origem humilde e são bastante inteligentes, até ao ponto em que uma mulher pode exercer as faculdades que são mais desenvolvidas num homem.

Fez uma pausa, e eu fiquei à espera, mas não surgiu mais nenhuma explicação. Por isso ousei alvitrar a minha.

- Ou seja - observei - se elas estiverem aferradas ao erro e o padre Paul argumentar com elas, elas, provavelmente, convertê-lo-ão. É isso que quereis dizer, padre?

Mais uma vez, o meu superior meneou a cabeça de uma forma irritada, como aqueles que bebem o vinho da ira de Deus e não têm descanso nem de dia nem de noite. O seu estado enfermo estava a começar a afectar-lhe o comportamento, normalmente tão calmo e frio.

- Sois irreverente - queixou-se. - Esta zombaria... atormentais-me...

Logo arrependido, implorei perdão.

- Padre, estou errado. Não devia falar assim, é uma fraqueza minha.

- Estes assuntos são sérios.

- Eu sei.

- No entanto, zombais deles. Sempre. A gracejar até com os prisioneiros acorrentados. Como posso compreender-vos?

E eu pensei: Ouço-te, mas não te compreendo. Era sempre assim, receio. Qualquer que seja a ordem a que pertençam, é geralmente imposto aos monges que falem calmamente e sem se rirem, com humildade, seriedade, e em poucas palavras.

- O padre Paul não se converteria - continuou o meu superior, produzindo farfalheira ao respirar. - Mas talvez ele não fosse convincente.

- Com certeza. Compreendo.

- As mulheres necessitam de orientação pastoral. É meu dever, como frade dominicano, impedi-las de caírem em erro. Ofereci-me para as visitar de vez em quando e para contribuir para a saúde das suas almas. É o meu dever, irmão.

- Com certeza - disse eu novamente, mas sem compreender. A assistência pastoral é dever do clero secular, não dos Frades Pregadores. Pode haver algumas excepções (Guillaume de Paris, como sabeis, há muitos anos que é confessor do Rei), mas a Regra de São Domingos, embora envie os nossos irmãos para os mais longínquos cantos da terra para que espalhemos a palavra de Deus com os poderes persuasivos da retórica suave - embora convide o povo comum para o nosso seio, para participar connosco nas Completas - ainda assim não encoraja o género de intimidade favorecida pelos laços da assistência pastoral. Além disso, certamente que não encoraja o convívio livre e frequente com mulheres.

Isto, devo confessar, foi o que mais me intrigou e preocupou. Não preciso de vos apresentar um argumento demonstrativo dos perigos da amizade entre monges e mulheres, sejam elas matronas, virgens ou prostitutas. Santo Agostinho foi firme ao declarar tais amizades ocasiões para o pecado. Através de uma inclinação excessiva para estes bens de ordem inferior, os melhores e superiores são abandonados. São Bernardo de Claraval perguntou: "Estar sempre com uma mulher e não a conhecer carnalmente, não é isso mais do que ressuscitar os mortos?". Até as associações mais divinamente inspiradas, como seja a de Santa Cristina de Markgate e do eremita Roger, podem ser plenas de perigo - pois não aconteceu que o demónio, esse inimigo da castidade, se aproveitou da sua íntima camaradagem e dominou a resistência do homem?

Ora há muitos homens nas ordens religiosas que, porque Eva violou a árvore proibida e infringiu a Lei de Deus (e porque mais amarga do que a morte é a mulher, cujo coração é só armadilhas e redes), evitarão falar, até mesmo olhar, para muitas mulheres que se atravessam no seu caminho. Nisto são desprovidos do espírito de caridade, e são exagerados no seu receio de contacto carnal. O próprio Cristo não permitiu à mulher que lhe prestou assistência que lhe beijasse os pés, os lavasse com lágrimas e os limpasse com os seus cabelos? Não lhe falou Ele, dizendo: "A tua fé te salvou; vai em paz?" Tenho falado com muitas mulheres na rua, fora do priorado, às portas e atrás das paredes dos conventos. Tenho-lhes pregado em igrejas e tenho-as ouvido em prisões. Tal discurso pode ser muito benéfico de todas as formas.

Mas comer com uma mulher, dormir sob o seu tecto, encontrar-se com ela frequentemente e abrir-lhe o coração - aí reside grande perigo. Sei (e aqui devo fazer uma vergonhosa confissão), porque cortejei tal perigo quando era jovem, e expus-me ao pecado e à desgraça. Quando era novo, antes de tomar ordens sacras, conheci mulheres carnalmente - pecaminosamente - fora dos laços do matrimónio. Com que diligência estudei a arte do amor! Com que seriedade li as obras dos trovadores e usei as suas frases doces como setas apontadas ao coração de tantas raparigas! No entanto, quando fiz o voto de castidade, fi-lo com a intenção solene de não o quebrar. Mesmo como pregador ordinário, viajando pela província com um pregador geral mais velho e mais experiente (o reverendo padre Domingos de Radel), eu era ardente no meu desejo de despedaçar contra Cristo, como contra uma rocha, aqueles perversos e libidinosos pensamentos que se me erguiam na mente. Eu aplicava-me a desviar o olhar de qualquer forma feminina, esforçando-me por alcançar aquele amor de Deus que é perfeito, e expulsar o medo.

Mas todos somos pecadores, não somos? E eu caí, como Adão, quando fui obrigado a ficar numa aldeia do Ariège durante várias semanas devido a uma doença que acometeu e incapacitou o meu companheiro. Os meus sermões na igreja local levaram uma viúva particularmente jovem a aproximar-se de mim, procurando orientação espiritual. Conversámos não uma, mas várias vezes, e... tende piedade de mim, Senhor, pois sou fraco. Para não insistirmos num incidente profano e indigno, juntámo-nos em satisfação sensual.

É claro que eu não esperava que o padre Agostinho sucumbisse de maneira semelhante. O estado da sua saúde, suspeitava eu, não o permitiria. Além disso, eu considerava-o um homem que caminhava com firmeza pela estrada da lei divina (eu diria: que coxeava pela estrada da lei divina, se não fosse uma irreverência desnecessária). Com efeito, ele era como uma oliveira verde na casa de Deus, e eu não conseguia imaginar que a sua alma se unisse à alma de outra pessoa, assim como não conseguia imaginar que a chama do desejo ímpio se acendesse nas suas entranhas.

Contudo, as suas viagens a Casseras tornaram-se uma fonte de irritação para mim. Não eram regulares, nem demasiado frequentes, mas eram suficientemente frequentes para atrasarem o avanço do trabalho do Santo Ofício. E para compreenderdes porquê, deveis compreender a dimensão do inquisitio em curso naquela altura.

Eu recebera de Jean de Beaune, de Carcassonne, a informação de que ele se encontrava a interrogar testemunhas de Tarascon, ou dos arredores. Uma dessas testemunhas implicara um homem de uma aldeia chamada Saint-Fiacre, situada dentro dos domínios de Lazet. Quando chamado e interrogado, esse homem difamara quase todos os habitantes de Saint-Fiacre, acusando até o padre local de dar abrigo e ajudar perfeitos. Confrontado com uma tal massa de testemunhos, eu não sabia que fazer. Por onde deveria começar? Quem deveria ser chamado em primeiro lugar?

- Prendei-os todos - ordenou o padre Agostinho.

- Todos?

- Já não é a primeira vez que acontece. Há dez anos, o antigo inquisidor de Carcassonne prendeu toda a população de uma aldeia das montanhas. Esqueci-me do nome.

- Mas, padre, há mais de cento e cinquenta pessoas em Saint-Fiacre. Onde é que as colocamos?

- Na prisão.

- Mas...

- Ou na prisão real. Vou falar com o senescal.

- Mas por que não chamá-los em pequenos grupos? Seria muito mais fácil se...

- Se o resto fugisse para a Catalunha? Sem dúvida que teríamos menos trabalho, se eles o fizessem - o meu superior não acrescentou: "Será essa a vossa desculpa quando no fim fordes ressuscitado para enfrentardes Aquele de cujo rosto a terra e o céu se afastarão?" Mas a sua expressão de pedra disse as palavras com a mesma clareza que qualquer língua. Duvidando de que a população inteira de Saint-Fiacre fugisse pelas montanhas, eu, no entanto, tinha de admitir que pelo menos algumas pessoas, especialmente os pastores, pudessem servir-se desse caminho. Por isso, com o espírito muito cansado, empreendi a tarefa de convencer Roger Descalquencs a dar-nos o seu apoio - pois sem o senescal não dispúnhamos de meios para obrigar mais de cento e cinquenta pessoas a virem até Lazet, e muito menos a entregarem-se nas mãos do Santo Ofício (naturalmente, Roger fizera o juramento de obediência exigido a todos aqueles que desempenhavam cargos oficiais, mas, mesmo assim, ele era um homem muito ocupado, e, por vezes, tinha de ser conquistado).

Tive também de aplacar Pons, o nosso carcereiro, que não ficou satisfeito com tal afluxo de prisioneiros - e tive de assegurar os serviços de outro notário. Até Raymond Donatus, apesar de toda a sua destreza e capacidade, não dava conta de tão grande número de interrogatórios. O padre Agostinho e eu fomos obrigados a reunir depoimentos não só dos habitantes de Saint-Fiacre, mas também de testemunhas que podiam servir para implicar aqueles quatro suspeitos identificados pelo meu superior como tendo possivelmente subornado o padre Jacques: ou seja, os suspeitos Aimery Ribaudin, Bernard de Pibraux, Raymond Maury e Bruna d'Aguilar. Uma vez que o padre Agostinho estava a tratar exclusivamente destes casos, os testemunhos de Saint-Fiacre ficaram, em grande parte, entregues a mim. Consequentemente, eram precisos dois notários, por isso apelámos para o administrador real de Confiscações, que nos deu alguns relutantes livres tournois para podermos empregar Durand Fogasset.

Durand já trabalhara algumas vezes para mim. Era um jovem alto e magro, descorado, com dedos sujos de tinta, roupas coçadas e melenas de cabelo negro desgrenhado a caírem-lhe para os olhos. As suas capacidades e a sua experiência eram proporcionais à modesta quantia que lhe pagávamos. Na verdade, só a necessidade é que fazia com que ele trabalhasse connosco, já que Lazet tinha notários a mais, e também não havia oportunidades para trabalhar no campo, na altura. Embora o seu comportamento não estivesse em desarmonia com o seu cargo, ele não fazia esforço para esconder a sua opinião sobre o Santo Ofício e os seus funcionários. Talvez por esta razão, e porque não era tão eficiente como Raymond, o padre Agostinho não o tinha em grande estima. "Aquele jovem desmazelado" era o epíteto que o padre Agostinho usava para se referir a Durand. Consequentemente, o jovem notário trabalhava apenas comigo.

Ao rever o parágrafo anterior, estou preocupado com o facto de poder induzir em erro. Durand não expressava quaisquer ideias culpáveis ou hereges. Nunca abria a boca durante os meus interrogatórios, nem me censurava depois por alguma coisa que eu pudesse ter dito. Simplesmente, por vezes, com uma careta ou uma observação azeda ("Quereis que eu, de futuro, não considere todos os apelos à Virgem, ou que os inclua na minha transcrição?"), ele conseguia transmitir uma certa muda desaprovação.

Uma vez, após ter interrogado uma rapariga de Saint-Fiacre de dezasseis anos de idade, perguntei a Durand o que ele pensava francamente. A testemunha acima mencionada falara comigo durante algum tempo sobre a dedicação que sentia para com a tia, e, como é meu hábito, eu permitira-lhe que se afastasse do caminho ao longo do qual eu a conduzira, sabendo que alguns assuntos têm de ser ventilados e esgotados - aliviando assim um coração sobrecarregado - antes de se poderem examinar outros (desta maneira, também, eu aproveito para demonstrar a minha própria posição solidária). No final da sessão, eu disse a Durand que, quando escrevesse o protocolo na sua forma final, podia suprimir a maior parte das referências à tia da testemunha.

- As referências que ela faz sobre o Santo Sacramento são relevantes, e, é claro, a visita do perfeito. Podemos suprimir o resto.

Durand olhou-me por um momento.

- Pensais que é irrelevante? - perguntou.

- Para o nosso inquérito, sim.

- Mas a tia era como uma mãe para esta rapariga. Tratou dela com tanto carinho. Com tanta dedicação. Como é que a rapariga a pode ter traído? Teria sido contra a natureza.

- Talvez - mas discutir sobre a natureza, e o que ela abarca, é patinar num pântano teológico. - Mesmo assim, é irrelevante para o nosso inquérito. Estamos a reunir provas, Durand. Provas de associação herege. Não nos compete procurar desculpas.

Fiz uma pausa, e olhei Durand, que franzia o sobrolho enquanto olhava para o chão, as páginas do protocolo agarradas contra o peito.

- Pensas que sou injusto? - perguntei calmamente. - Pensas que fui cruel para com aquela rapariga?

- Não - Durand abanava a cabeça, ainda de sobrolho franzido.

- Fostes bastante... tendes uns modos amáveis com pessoas como ela - em seguida lançou-me um irónico olhar de esguelha. – É a vossa maneira, já reparei. A vossa técnica.

- E funciona.

- Sim. Mas arrancais estas confidências às pessoas, e depois suprimi-las. Quando podiam ser importantes.

- De que forma?

- Para a defesa dela.

- Queres dizer que ela foi impelida pelo amor a trair a Santa Igreja Apostólica?

Durand pestanejou. Hesitou, parecendo confuso.

- Durand - disse eu -, lembras-te das palavras de Cristo? "Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim?"

- Sei que ela estava errada - respondeu ele -, mas é certo que os seus motivos foram menos condenáveis do que os da tia, digamos... ou da prima...

- Talvez. E serão tidos em consideração quando ela for sentenciada.

- Mas serão mesmo? Se não forem registados?

- Eu estarei presente quando a sentença for lida. Farei questão de que sejam - observando o sobrolho carregado de Durand, acrescentei: - Lembra-te do estado das finanças do Santo Ofício, meu amigo. Podemos dar-nos ao luxo de gastar centenas de metros de pergaminho com os devaneios íntimos de todas as testemunhas que interrogamos? Se o fizéssemos, receio que não teríamos dinheiro para pagar o teu salário.

Ao ouvir isto, Durand franziu o rosto na expressão mais extraordinária, composta, em partes iguais, de repugnância, arrependimento e embaraço. Em seguida encolheu os ombros e escondeu a cabeça, na sua habitual tentativa rudimentar de executar uma vénia de despedida.

- Com isso já me convencestes - observou. - Vou então acabar de escrever isto. Obrigado, padre.

Acompanhei-o com o olhar, enquanto ele se dirigia a passo largo e rápido para a escadaria. No entanto, antes que ele lá chegasse, fui impelido a reforçar o meu argumento com uma última observação.

- Durand! - disse eu, e ele virou-se. - Lembra-te também - acrescentei - de que a rapariga fez uma escolha. No fim de contas, todos fazemos escolhas. Esse tipo de liberdade é a dádiva de Deus à humanidade

Durand pareceu ficar a pensar nisto. Por fim, disse:

- Talvez ela sentisse que não tinha alternativa.

- Nesse caso enganou-se.

- Sem dúvida. Bem... obrigado, padre. Vou lembrar-me disso. Mas estou a divagar. Este diálogo não tem qualquer relação com o tema principal da minha narrativa, que é o volume de trabalho provocado pelo inquérito do padre Agostinho à moral do seu antecessor, e a prisão de toda a população adulta de Saint-Fiacre. Estávamos tão ocupados, como disse, que precisámos de outro notário.

Estávamos tão ocupados que cheguei uma vez atrasado às Completas, e fui castigado pela minha desobediência durante o Capítulo das Faltas. Contudo, no meio desta grande confusão, o padre Agostinho visitou Casseras três vezes. Sabendo o peso do trabalho que caía sobre as nossas costas, ele, apesar de tudo, ausentou-se, e devo confessar que até as entranhas me ferviam, Deus me perdoe. Pensei, como Job: não reprimirei a minha língua; falarei da angústia do meu espírito; queixar-me-ei da amargura da minha alma.

Assim, fui ter com o meu confessor.

Purgar o coração do rancor e do ressentimento é difícil, num priorado. Um frade fala tão raramente, e, mesmo assim, a maior parte das vezes em fórmulas - as suas conversas pouco frequentes são, geralmente, escutadas por terceiros, porque quase nunca está sozinho. Um frade tem de sequestrar os seus sentimentos, e de parecer suportar calmamente tudo o que lhe é infligido. Mas não preciso explicar-vos isto; todos nós estivemos deitados de noite, acordados, a beber do cálice da ira, enquanto, em silêncio, amaldiçoamos o nosso irmão, que, muitas vezes, está deitado, acordado e irritado, na cama ao lado!

Para nós, apenas a confissão oferece alívio. No acto de descrever os nossos sentimentos condenáveis, podemos catalogar as faltas e as injustiças dos nossos irmãos. E foi isso que eu fiz, encerrado num gabinete com o prior Hugues. Confessei a minha amargura e continuei para relatar a sua fonte. O prior ouvia de olhos fechados. Ele e eu partilhávamos uma longa história, tendo-nos conhecido na escola do priorado de Carcassonne, e respeitávamos a capacidade crítica um do outro.

- Não sei que fazer - disse-lhe. - O padre Agostinho é tão constante e perseverante, tão diligente e zeloso na sua busca da verdade, no entanto, de vez em quando, afasta-se para Casseras-por nenhuma boa causa, tanto quanto me parece, a não ser que se tenha afastado da Regra de alguma forma.

O prior abriu os olhos.

- De que forma?

- Oh, há mulheres envolvidas, padre. Quem é que pode passar sem especular?

- Sobre o padre Agostinho?

- Sei que parece improvável...

- Certamente que sim!

- Mas porquê, padre? Por que está ele a fazer isto?

- Perguntai-lhe.

- Já perguntei - em poucas palavras, contei-lhe a explicação que o padre Agostinho me dera para a sua conduta. - Mas não somos padres de paróquia, somos monges. Não consigo compreender.

- Tendes de compreender? "Serei o guarda do meu irmão?". Eu teria dito "sim" - porque, num priorado, o prior é o guarda de todos os seus irmãos em Cristo. Mas eu sabia que tal observação jocosa só deixaria perplexo o meu velho amigo. Embora sensato e sereno, ele não era pessoa para graças espirituosas. Por isso fiquei calado.

- O irmão Agostinho sente verdadeiramente que está a fazer o trabalho de Deus - continuou o prior, nos seus modos plácidos, e apercebi-me de que, como pastor vigilante do nosso rebanho, ele já devia ter levantado a questão com o meu superior. - A um inquisidor - assinalou - é confiada a salvação das almas.

- Às custas do seu trabalho no Santo Ofício?

- Meu filho, perdoai-me, mas não tendes razão ao pôr em causa os actos do vosso superior - com o seu sorriso benevolente, o prior conseguiu castigar-me sem me ofender. - O vosso lugar é apenas servir e carregar a vossa cruz com fortaleza de espírito.

Mais uma vez, eu não disse nada, pois sabia que ele tinha razão.

- Ficai descansado que eu estou a vigiar o vosso irmão - concluiu o prior - e tratarei de que nenhum mal lhe aconteça. limitai-vos aos vossos deveres, e purificai o coração desses pensamentos de raiva. Que mais farão eles, senão envenenar a vossa existência?

Assim, esforcei-me por fazer com que a minha alma estivesse tão tranquila como um jardim regado, enquanto o padre Agostinho, aparentemente em paz com a sua consciência, continuou como antes, visitando Casseras todas as semanas ou de duas em duas semanas, a perseguir teimosamente um objectivo que escondia dos que o rodeavam. As viagens deixavam-no sempre seriamente enervado. Na verdade, avisei-o várias vezes de que essas viagens o matariam.

E eu tinha razão, porque ele estava de visita a Casseras no dia da sua morte.

O padre Agostinho morreu durante a Festa da Natividade da Virgem Maria. A sua ausência do priorado nesse dia foi muito comentada, e certamente que me pareceu um erro de julgamento, já para não dizer uma falta de respeito. No entanto, o facto de ele não ter regressado para as Completas não ocasionou qualquer observação. Tornara-se seu hábito passar a noite com o padre Paul, em Casseras, antes de regressar a Lazet.

Foi só no outro dia ao meio-dia, quando ele e a sua comitiva continuavam ausentes, que eu fiquei preocupado.

Neste ponto da minha narrativa, devo tentar fazer uma demonstratio de acontecimentos que eu próprio nunca testemunhei. Não é tarefa fácil parafrasear as palavras de outras pessoas para poder recriar vividamente certos episódios, cujos aspectos são apenas vagos na minha própria mente. Contudo, é preciso fazê-lo, pois esses episódios são cruciais para compreenderdes o destino que me tocou.

O caminho acima descrito que levava de Casseras para a forcia era, como eu disse, uma estrada enrugada e inóspita, pouco usada pelos aldeões, com excepção daqueles que apascentavam os seus rebanhos na terra do Rei. O troço final, mais íngreme, serpenteando entre rochas e floresta nova, quase nunca era usado. Só os habitantes da forcia - e, mais recentemente, o inquisidor que os visitava - eram obrigados a lutar para subir e descer este caminho de cabras. Mas no dia a seguir à Festa da Natividade, dois rapazes decidiram visitar a forcia para poderem saudar e admirar tanto os guardas do inquisidor como os maravilhosos cavalos no dorso dos quais cavalgavam estes homens magníficos. Os rapazes eram, é claro, crianças de Casseras.

Os seus nomes eram Guido e Guillaume.

Antes da chegada do padre Agostinho, Guido e Guillaume nunca tinham visto cavalos. Nem sequer tinham visto uma espada, ou uma maça. Consequentemente, viam com grande excitação aqueles serões que traziam o inquisidor de Lazet a casa do seu padre, pois o inquisidor fazia-se sempre acompanhar de quatro homens armados e respectivas montadas, que dormiam juntos no palheiro de Bruno Pelfort. Os dois rapazes estavam enfeitiçados com a noção de guerra. Eram frequentemente encontrados a seguirem a pista dos nossos conhecidos Bertrand, Maurand, Jordan e Giraud como sombras, e eram, por vezes, recompensados pela sua assiduidade com restos de comida ou algum tempo sentados na sela.

Assim, quando os seus heróis atravessaram Casseras no dia da Festa da Natividade e não regressaram nessa noite, os rapazes ficaram extremamente desiludidos. Tal como o resto da aldeia, presumiram que o padre Agostinho decidira pernoitar na forcia ("Pensámos que o vosso frade ficara a divertir-se com a sua dama, finalmente", foi a forma como um habitante mais tarde colocou a questão). Por isso, na manhã seguinte, escaparam-se para visitarem os seus ídolos, ansiosos por não perderem a oportunidade.

Quando vim a conversar com Guillaume, que era o mais velho dos dois, o rapaz descreveu aquela manhã com vívido pormenor. Segundo Guillaume, Guido tinha um pouco de medo da forcia, porque era ideia corrente, entre as crianças da aldeia, que ela era assombrada por "demónios". O completo significado desta observação sempre me escapou, uma vez que os aldeões adultos pareciam mostrar muito boa vontade para com as mulheres que viviam quase à sua porta. Talvez a noção de "demónios" derive das crenças hereges da família de Rasiers. Talvez certas aparições demoníacas se tivessem, de facto, manifestado lá. Fosse como fosse, Guillaume foi obrigado a empurrar o amigo ao longo do caminho, assinalando que não era possível que os demónios permanecessem na forcia, visto que o inquisidor de Lazet os devia ter afastado a todos.

Estavam a discutir o inquisidor e quantos demónios ele poderia ter prendido em jaulas em Lazet, quando repararam num cheio pestilento (lembrai-vos de que era o mês de Setembro, e os dias tinham sido muito quentes). À medida que avançavam, o fedor tornava-se cada vez mais intenso. Guillaume presumiu imediatamente que, algures não muito longe, uma ovelha caíra, vítima de doença, dos cães, ou de um dos muitos destinos tristes aos quais as ovelhas, deduzo eu, são particularmente propensas. O rapaz fez uma observação a este respeito, e Guido não concordou, pois ninguém se queixara de ter perdido uma ovelha.

Então ouviram o zumbido de moscas. De início recearam que se estivesse a aproximar um enxame de abelhas, e Guido estava ansioso por bater rapidamente em retirada. Mas Guillaume aplicara os seus poderes de raciocínio ao assunto: ao encontrar a relação entre o cheiro e o som, deduziu que um animal morto estava a atrair os insectos, e que, uma vez que havia tantos insectos, o animal morto devia ser muito grande.

Assim, avançou, algo assustado, um pau pontiagudo na mão, e, no local onde o caminho se aplanava formando um pequeno planalto, descobriu o que restava do grupo do padre Agostinho.

Sem dúvida que ouvistes dizer que o padre Agostinho e a sua guarda pessoal foram cortados aos pedaços. Contudo, talvez não compreendais totalmente que, quando emprego a expressão "cortados aos pedaços", não estou a usar uma hipérbole, mas uma descrição literal e precisa do estado das vítimas. Os seus corpos tinham sido divididos em pequenas porções, as porções tinham sido espalhadas como sementes. Nem um fragmento de roupa restou. A tranlatio que se poderia aplicar ao estado dos cadáveres é a de uma cripta saqueada - ou talvez até o Vale dos Ossos - só que estes ossos não estavam limpos e secos. Estavam cobertos de sangue e carne purulenta, e, por baixo de um manto de moscas, gritavam ao céu por vingança.

Pensai só na visão que assaltou os olhos de Guillaume: uma cena da mais terrível chacina, pó escurecido pelo sangue, folhas e pedras salpicadas de sangue, fragmentos de carne escurecida aderindo a todas as superfícies, e, a pairar no ar, um fedor tão intenso que parecia ter uma presença corpórea própria (Guillaume confessou-me mais tarde que sentiu dificuldade em respirar). De início, as crianças, estupefactas, não conseguiram identificar o que viam. Guillaume pensou, por um instante, que uma ovelha fora desmembrada por uma alcateia. Mas, quando avançou e espantou um manto de moscas de forma que este se levantou e se dispersou como nevoeiro, viu um pé humano no chão à sua frente e percebeu o que acontecera.

- Fugi - disse-me ele, quando o interroguei. - Fugi porque Guido fugiu. Corremos ambos de volta à aldeia.

- Não para a forcia? A forcia estava mais perto.

- Nunca pensámos nisso - parecendo um pouco envergonhado, acrescentou: - Guido tinha medo da forcia. Guido é que tinha medo. Eu não.

- E depois?

- Vi o padre. Disse ao padre.

Como podeis imaginar, o padre Paul ficou horrorizado e sem saber o que fazer. Foi ter com Bruno Pelfort, que era o homem mais rico e mais importante de Casseras, e, juntos, pediram ajuda a outros aldeões. Decidiu-se que devia ser enviado um grupo para examinar o local do massacre e resgatar o que restava dos cadáveres. Foram reunidos vários utensílios agrícolas para servirem de armas em caso de emboscada. A conselho de Guillaume, foram reunidos também vários baldes e sacos. Em seguida, catorze homens, armados de gadanhas, pás e aguilhões, partiram em direcção à forcia.

Regressaram muito tempo depois, perseguidos por nuvens de moscas.

- Foi horrível - disse-me o padre Paul. - O cheiro era horrível. Alguns dos homens que tinham de apanhar os pedaços... estavam enjoados. A vomitarem. Alguns diziam que era obra do demónio e estavam muito assustados. Depois, os sacos e os baldes foram queimados. Ninguém os queria de volta.

- E ninguém pensou nas mulheres?

- Ah, sim, pensámos nelas. Estávamos com receio de que lhes tivesse acontecido a mesma coisa. Mas ninguém queria ir ver.

- Mas alguém foi ver.

- Sim. Quando chegámos à aldeia, enviei um recado ao preboste de Rasiers. Ele tem lá uma pequena guarnição - muito pequena. Veio com alguns soldados, e foram à forcia.

Entretanto, havia grande discussão por causa dos restos mortais. Fora estabelecido que se tratava de restos mortais masculinos, e a maior parte dos aldeões partilhava a opinião de que pertenciam ao padre Agostinho e aos seus homens. Mas ninguém podia ter a certeza, porque não tinham sido encontradas cabeças. Faltavam também outros membros, e algumas pessoas foram acusadas de os terem deixado para trás.

O padre Paul, no entanto, insistia em que todas as partes de corpos que eram visíveis tinham sido resgatadas. Ele fora muito cuidadoso nesse ponto.

- Se faltar alguma coisa, devemos procurar noutro lado - disse ele. - Nos bosques, talvez. Devíamos colocar os cães a trabalhar.

- Mas não agora - disse Bruno. - Pelo menos enquanto os soldados não chegarem.

- Sim. Depois de os soldados terem chegado - concordou o padre Paul. Então alguém perguntou o que deviam fazer com os restos mortais que tinham em seu poder, e houve mais discussão. Uma pessoa aconselhou que se enterrassem imediatamente, mas foi calada com gritos. Como se pode enterrar metade de um homem, quando a outra metade estava ainda algures nos bosques? Além disso, estes corpos pertenciam ao Santo Ofício. Sem dúvida que o Santo Ofício os reclamaria. Até lá, teriam de ser guardados.

- Como podeis dizer isso? - objectou a mãe de Guillaume. - Eles não se aguentam. Não são lacões de porco salgados. Pode-se sentir o cheiro deles daqui.

- Calai-vos! - disse o padre Paul com brusquidão. Estava muito abalado, pois de entre todos os aldeões, só ele fora íntimo do padre Agostinho (mais tarde fiquei a saber que, depois de ter posto os olhos na cena da chacina, ele caíra de joelhos e não fora capaz de andar durante algum tempo). - Não faleis com tamanho desrespeito! Estes homens ainda são homens, independentemente da forma bárbara como foram usados!

Seguiu-se um silêncio longo e pensativo. Então um dos aldeões disse:

- Talvez devêssemos salgá-los - como carne de porco - e trocaram-se olhares cuidadosos. A sugestão parecia quase blasfema, mas, por outro lado, que mais poderiam fazer? Lentamente, até o padre Paul foi forçado a admitir que a escolha se situava entre salgar e pôr ao fumeiro. Assim, relutante, ele deu a sua aprovação ao uso de sal, e seguiu-se uma discussão acesa relativamente a quem doaria o seu tempo a esta tarefa, e quem doaria as barricas de salmoura, pois ninguém desejava empreender tão horrível dever.

Ouviu-se mesmo uma matrona declarar que o padre Paul é que devia ser o responsável, já que ele, como o inquisidor, era um homem de Deus. Mas o padre Paul abanou a cabeça.

- Eu tenho de ir a Lazet - observou. - Tenho de ir contar ao padre Bernard. - E todos concordaram que esse trabalho era, de facto, melhor realizado por um padre. O padre Paul foi insistentemente aconselhado a esperar até que o preboste, Estolt de Coza, chegasse, para lhe poder pedir o cavalo emprestado. O padre, porém, estava disposto a partir a pé o mais depressa possível. - Se o preboste quiser enviar um cavalo atrás de mim, o cavalo alcançar-me-á - disse. - Tenho de me apressar, porque, se partir imediatamente, chegarei a Lazet antes do pôr do Sol.

Decidiu levar consigo o filho de Bruno, Aimery, e partiu pouco depois, com um modesto fornecimento de vinho, pão e queijo. Os dois homens ainda não iam longe quando se lhes juntou um dos soldados do preboste, montando um cavalo que cedeu ao padre Paul - por isso era evidente que Estolt chegara a Casseras muito pouco tempo depois da partida do padre. A cavalo, o padre Paul não precisava muito de companhia. Por isso, continuou sozinho, enquanto que Aimery e o soldado voltaram para trás.

Em Casseras, o preboste tomara o comando das operações. Ouviu seriamente o relato que Bruno Pelfort fez do trabalho a que se tinham dedicado durante a manhã. Observou os restos mortais do padre Agostinho e dos familiares. Em seguida, com o seu grupo de soldados, alguns corajosos voluntários da aldeia e o seu próprio cão de caça, dirigiu-se cuidadosamente para o local do assassínio.

- O meu cão é um bom cão de caça, com um faro muito apurado - disse-me quando o visitei. - Embora assustado com todo aquele sangue, o animal depressa descobriu uma cabeça e outro pedaço, que estavam escondidos na vegetação rasteira. Apercebi-me de que devem ter sido atirados para lá.

Ao contrário do padre Paul, Estolt tinha a presença de espírito para examinar o chão à procura de pistas. Infelizmente, a terra cozida pelo Sol estava tão dura e tão seca como um osso velho, mas ele encontrou provas suficientes em forma de folhagem quebrada e manchas de sangue que sugeriam que os cavalos tinham mergulhado nos bosques, e que, muito possivelmente, tinham sido novamente enxotados.

- Eu não sabia - disse - se os atacantes se encontravam na forcia, ou se tinham fugido - não lhe ocorrera, neste ponto, que eles pudessem ter regressado à aldeia.

Com as partes de corpos acabadas de descobrir cuidadosamente embrulhadas no manto de alguém, Estolt e o seu grupo encaminharam-se para a forcia. O caminho que usaram não estava sujo de gotas de sangue, nem de quaisquer outros vestígios suspeitos. Uma coluna de fumo erguia-se das ruínas, mas era escassa e fina, e vinha de uma fogueira de cozinha. Ouviam-se vozes de mulher, e essas vozes não pareciam assustadas. Reuniam-se num murmúrio tranquilo, como o arrulhar de pombas. Como Estolt mais tarde disse, era um som que lhe dizia, com mais clareza do que quaisquer palavras, que não encontraria os assassinos naquele local em especial.

Em vez disso, encontrou quatro mulheres tranquilas: uma mais velha chamada Alcaya de Rasiers; uma idosa sem dentes e acamada, que (ironicamente) tinha o nome de Vitalia; uma viúva, Johanna de Caussade, e a filha, Babilónia. Não tinham conhecimento da chacina que ocorrera a pouca distância de sua casa, e pareceram consternadas quando souberam.

- Não tinham ouvido nada nem visto ninguém - informou-me o preboste. - Não tinham qualquer explicação para oferecer. Falei com Alcaya - era descendente do velho Raymond-Arnaud de Rasiers, por isso suponho que ela sentia que tinha ali alguma superioridade. Falei principalmente com ela, porque parecia ser a responsável. Mas foi a viúva que regressou comigo a Casseras.

E ali, segundo fiquei a saber, ela chamou a si a tarefa de salgar os restos mortais dos cinco homens assassinados. Foi um acto quase de exaltada devoção, que os aldeões consideraram altamente suspeito. Suponho, à luz do que mais tarde vim a saber, que essas suspeitas não eram infundadas. Contudo, creio que Johanna de Caussade deitou mãos à horrível tarefa por um sentido de dever moral, e devia ser elogiada por essa decisão.

Embora eu sentisse reverência pelo padre Agostinho e o respeitasse, eu próprio não poderia ter feito tal coisa.

 

Prestai atenção, eu conto-vos um mistério

Quando o padre Agostinho não regressou, como era esperado, naturalmente que eu fiquei algo perturbado. Após ter consultado o prior Hugh, enviei a Casseras um par de familiares armados, com uma carta dirigida ao padre Paul de Miramonte. Deviam ter passado pelo padre Paul algures perto de Crieux, pois ele chegou a Lazet pouco antes das Vésperas. Consequentemente, não assisti a esse serviço. Na verdade, estive ausente até durante as Completas, ocupado como estava com a infeliz tarefa de informar tanto o bispo como o senescal de que a carcaça do padre Agostinho era agora carne para as aves do céu. Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus: e aqueles que a ouvirem viverão. Acreditava naquela altura, e acredito agora, que o padre Agostinho está destinado à Vida Eterna. Para ele, a morte é certamente o portal para o Paraíso - e com que alegria a sua alma deve ter abandonado aquela frágil e doentia mortalidade! Recordo as palavras do seu homónimo: "Lá, louvado seja Deus, e aqui, louvado seja Deus, mas, aqui, por aqueles que estão cheios de cuidados ansiosos, lá, por aqueles que estão livres de cuidados; aqui, por aqueles cujo destino é morrer, lá, por aqueles que vivem para sempre; aqui, na esperança, lá, na esperança tornada realidade; aqui, a caminho, lá, na nossa pátria". Sei que o padre Agostinho encontrará a glória eterna naquela cidade que não precisa do Sol nem da Lua, pois o Cordeiro é a Luz que a ilumina. Sei que ele deve caminhar vestido de branco entre aqueles que não sujaram as suas roupas. Sei que ele morreu como testemunha da Fé, e que, por isso, tem a salvação garantida.

No entanto, eu não encontrava conforto nesta certeza. Em vez disso, assombrava-me uma imagem de chacina que não me dava paz e me deixava secretamente receoso. Como um leão em lugares secretos, este medo avançava para mim lentamente, passo a passo, à medida que o meu choque era dispersado pela actividade que se seguiu ao anúncio do padre Paul. Foi o senescal, Roger Descalquencs, quem primeiro deu voz ao meu medo, durante a nossa discussão inicial relativamente ao homicídio.

- Dizeis que não havia roupas? - perguntou ele ao padre de Casseras.

- Absolutamente nenhumas - respondeu o padre Paul.

- Nem sequer um vestígio? Farrapos? Nada?

- Nem um único fio.

Roger pensou por um instante. Estávamos sentados no Grande Salão do Chateau Comtal, que sempre foi um local de confusão, cheio de fumo e de cães e de soldados refastelados, mesas pegajosas, armas abandonadas, do odor de refeições velhas. De vez em quando, um dos filhos mais novos do senescal irrompia pela porta, completava um circuito à sala e saía novamente.

Sempre que isso acontecia, éramos obrigados a levantar a voz por cima dos guinchos extraordinários emitidos por essa criança - que não eram muito diferentes dos guinchos de um porco na matança. Assim, o assassínio do padre Agostinho tornou-se público, já que muitos dos soldados da guarnição ouviram e depressa espalharam a notícia. Na verdade, muitos até se juntaram à nossa conversa, oferecendo as suas opiniões sem qualquer tipo de encorajamento.

- Ladrões - dizia um. - Devem ter sido ladrões.

- Os ladrões podiam ter levado os cavalos e as roupas - respondeu Roger -, mas por que perderiam tempo a cortar pernas e braços?

Esta era, penso eu, a questão-chave. Ponderámo-la por alguns instantes. Depois Roger voltou a falar:

- As vítimas estavam montadas - disse devagar. - Quatro delas eram mercenários - não é assim, padre?

- Sim.

- Quatro delas eram mercenários treinados. Para dominarem soldados profissionais devidamente armados... bem, na minha opinião, nenhum pequeno grupo de camponeses esfaimados e andrajosos vai fazer uma coisa daquelas.

- Nem sequer com setas? - perguntou um dos soldados. Roger franziu o sobrolho e abanou a cabeça. Ocorre-me, à medida que revejo este texto, que não forneci um effictio do senescal, nem sequer um breve relato da sua vida, embora ele seja de grande importância para a minha narrativa. Na altura de que falo, ele estava ao serviço do Rei havia doze anos, vigorosamente, judiciosamente, talvez um pouco gananciosamente, mas só no interesse do Rei. O seu próprio modo de vida não é caracterizado por uma ligação excessiva a bens mundanos. Mais ou menos da minha idade, com experiência de campanha e uma figura atarracada e musculosa, ele conservava muito mais cabelo do que eu (de facto, é um dos indivíduos mais hirsutos que conheço), e foi casado três vezes - tendo as suas duas primeiras esposas perecido ao darem à luz. Contudo, com a ajuda delas, ele conseguiu trazer ao mundo sete filhos, sendo o mais velho - uma rapariga - casada com o sobrinho do conde de Foix.

Com os seus modos ligeiramente rudes, Roger Descalquencs é geralmente capaz de disfarçar a profundidade e a subtilidade da sua inteligência. Gosta de criar cães e de caçar porcos; é analfabeto, muitas vezes taciturno, sem instrução em muitos pontos fundamentais da doutrina católica, sem qualquer interesse pela História ou pela Filosofia, sem desejo de aumentar os seus conhecimentos geográficos, sem qualquer preocupação devota pela salvação da sua alma. A aparência que apresenta, vestido de lã cheia de nódoas e couro surrado, é mais de moço de estrebaria do que de oficial do Rei. Li que Aristóteles, numa carta enviada ao Rei Alexandre, aconselhou uma vez o Rei a seleccionar como conselheiro "uma pessoa que seja instruída nas sete artes liberais, conhecedor dos sete princípios, e mestre das sete capacidades do cavalheiro. Considero isto a verdadeira nobreza". Por estes padrões, Roger não pertence mesmo à nobreza.

No entanto, é um homem de perspicaz visão política, que possui uma mente muito cuidadosa, clara e lógica. Isso ele demonstrou enquanto raciocinava com base nas provas até agora apresentadas.

- Para atacar mercenários armados e a cavalo, é preciso estar-se armado, e talvez também a cavalo - meditava ele -, a não ser que se seja em grande número, e duvido que fosse o que aconteceu neste caso. A maior parte dos ladrões não têm dinheiro para armas ou cavalos, a não ser que, por acaso, estejam a viver à conta de assaltos perpetrados nalguma estrada de peregrinação rica. Há salteadores desses na estrada para Compostela, ouvi dizer, mas não nos arredores de Casseras - tanto quanto eu saiba.

- Quer dizer que duvidais de que isto seja obra de ladrões comuns? - perguntei, e ele abriu as mãos.

- Quem poderá dizer?

- Mas perguntais-vos por que motivo os ladrões perderiam o seu tempo a desmembrar os cadáveres?

- Sim. Pergunto-me também como é que eles sabiam onde deviam montar a emboscada. Se me perguntardes, este ataque não foi nenhum encontro ao acaso. Que salteadores armados andariam a vaguear por aquele género de terreno inóspito? É o local perfeito para uma emboscada, mas quem é que eles esperariam assaltar ali? Alguém deve ter contado aos nossos assassinos sobre o padre Agostinho.

Já admiti, nestas páginas, a impossibilidade de adivinhar os pensamentos de outro homem. Como o próprio Santo Agostinho uma vez escreveu: "Os homens podem falar, podem ser vistos pelas operações dos seus membros, podem ser ouvidos a falar; mas que pensamento é lido, que coração é penetrado?". Contudo, acredito que o progresso dos meus cálculos estava a par do de Roger. Porque quando eu falei, ele acenou com a cabeça, como alguém acenaria perante um rosto conhecido.

- As visitas do padre Agostinho não eram regulares nem publicamente anunciadas - disse eu. - Ninguém teria conhecimento delas, a não ser que essa pessoa o visse na estrada.

- Ou vivesse em Casseras.

- Ou talvez recebesse essa informação dos estábulos do bispo - concluí. - Os estábulos do bispo eram sempre avisados na noite anterior à sua partida.

- Ninguém em Casseras faria uma coisa destas - insistia o padre Paul com veemência. - Ninguém pensaria sequer nisso! - mas lamento dizer que todos o ignoraram.

- Vou dizer-vos o que me parece estranho - observou o senescal, batendo com um dedo no queixo, ao mesmo tempo que perdia o olhar no espaço. - Cortar alguém em pedaços é uma coisa que se faz quando se está zangado. Só se faria porque se odeia a pessoa a quem se faz tal coisa. Assim, se foram ladrões que fizeram isto, nesse caso devem ter tido qualquer ressentimento contra o inquisidor. E se não foram ladrões, então porquê tirar-lhes as roupas?

- Devem ter despido os corpos antes de os desmembrarem - assinalei. - Mais tempo perdido.

- Exactamente.

- Um assassino contratado poderia querer guardar as roupas - alvitrei. - Se o seu cavalo e as armas fossem fornecidos por outra pessoa, ele seria suficientemente pobre para pensar em ficar com roupas rasgadas e ensanguentadas, até, porque poderiam ser lavadas e remendadas.

Roger resmungou. Em seguida estendeu os membros e passou várias vezes as mãos pela espessa cabeleira grisalha, como se estivesse a cardar lã.

- Com alguns homens, seria fácil encontrar um inimigo que os odiasse o suficiente para os cortar aos pedaços - observou. - Com um inquisidor, meio mundo o cozeria vivo de boa vontade. Se eu fosse a vós, padre Bernard, teria muito cuidado com os lugares aonde fosse, a partir de agora. O facto de os guardas também terem sido cortados em pedaços pode significar que quem quer que o tenha feito odeia toda a inquisição - e não apenas o padre Agostinho.

Com esta animadora observação a ecoar-me nos ouvidos, admira que eu não tivesse conseguido dormir nessa noite? Não que eu estivesse à espera de dormir, pois foi naturalmente realizada uma vigília pela alma do padre Agostinho. Mas deveis saber como são as vigílias (e, na verdade, as Matinas) - por mais sinceras que as nossas intenções possam ser, temos tendência a perder a consciência de vez em quando, às horas mais tardias. Nessa noite, no entanto, fiquei acordado a contemplar esta morte, tão cruel e injustificada, e tão próxima da minha própria vida. Devo confessar que não estava tão movido ao desgosto como ao medo, à repugnância, e até (Deus perdoe a minha irreverência) à autocompaixão, pois o falecimento do meu superior deixara-me com o fardo das suas várias inquisições por completar. Quão vãos somos, nós, homens, embora os nossos dias sejam como uma sombra que passa! Quão apegados estamos às coisas deste mundo, mesmo na sombra desse mistério que é a morte! Assim, em vez de oferecer orações pela alma do falecido, dei comigo a rever os acontecimentos do dia, que fora cheio: o senescal fora a Casseras para reclamar os corpos e examinar o local do assassínio; o prior Hugues escrevera ao seu superior, informando-o deste crime hediondo, o bispo escrevera ao inquisidor de França, solicitando um substituto para o padre Agostinho. E eu? Embora estivesse confrontado com uma montanha de trabalho, eu passara a maior parte do dia a pensar quem, entre todas as pessoas que estavam a ser perseguidas pelo meu superior, poderia estar em posição de o mandar assassinar. Pois ocorrera-me que muitas delas não teriam sido capazes, elas próprias, de o matarem. Encontravam-se ainda na prisão, compreendeis?

O padre Agostinho estava em Lazet havia apenas três meses: durante esse tempo instaurara processos contra Aimery Ribaudin, Bernard de Pibraux, Raymond Maury, Bruna d'Aguilar e a aldeia inteira de Saint-Fiacre. Eu acreditava ser provável que uma das pessoas da cidade fora responsável pela morte do meu superior, uma vez que poucos, se é que algum, dos aldeões tinha família fora da prisão ou os recursos para pagar e equipar assassinos contratados. Este foi o meu primeiro pensamento. Depois comecei a perguntar a mim próprio se, como especulara o senescal, o ataque teria sido dirigido não ao padre Agostinho pessoalmente, mas ao próprio Santo Ofício. Nesse caso, o culpado podia ter sido alguém perseguido sob as minhas ordens - ou até sob as ordens do padre Jacques. De súbito, ocorreu-me que o padre Agostinho foi durante muitos anos o primeiro inquisidor a pôr os pés fora de Lazet. O seu antecessor permanecera atrás das muralhas da cidade enquanto o conheci; eu próprio raramente viajara. Assim, poder-se-ia concluir que o padre Agostinho fora um alvo óbvio. Era possível que algum pecador malevolente tivesse durante anos magicado neste acto sangrento, tendo-o apenas levado a cabo quando a oportunidade finalmente se apresentou.

Foi neste ponto que me apercebi, com desespero no coração, de que o pecador acima mencionado jamais seria capturado, se tal pudesse apenas ser feito através do exame das inquisições dos últimos vinte anos. Havia tantas, e os recursos do Santo Ofício eram tão escassos. Mesmo que a investigação do senescal revelasse novas provas, e essas provas reduzissem o campo dos suspeitos, precisaríamos, mesmo assim, de um campo de suspeitos, para o qual os registos do Santo Ofício devem, naturalmente, ser a fonte.

Era isto que me ocupava os pensamentos quando estava ajoelhado no coro durante a vigília do padre Agostinho. Não rezei por ele, como devia ter feito; não fixei o coração no sofrimento de Cristo nem entreguei a minha vaidade na mão de Deus, humilhando-me até ser tão humilde como a palha das eiras de Verão, e, assim, digno de procurar o perdão divino em nome do meu superior. Não reflecti sobre as suas feridas cruéis, nem chorei por elas como devia ter chorado pelas feridas do nosso Salvador. Em vez disso, eu estava entregue aos cuidados deste mundo (onde teremos sofrimento), tacteando na escuridão, quando devia ter levantado o olhar para a luz.

Nem sequer pensei: o meu amigo está morto; não o verei mais. Ao ler isto, deveis olhar-me com desaprovação e condenar-me por ter coração de pedra. Mas penso que vim a sentir a falta do padre Agostinho mais intensamente com o passar do tempo, e apercebo-me agora de que isso é consequência da rara qualidade da nossa amizade. A verdadeira amizade, assim nos dizem as autoridades no assunto, é um caminho para a virtude - e muitos andam por este caminho de mão dada. Ailred de Rievaulx, na sua Spiritualis Amiátia, coloca a questão da seguinte forma: "O amigo, juntando-se ao seu amigo no espírito de Cristo, torna-se num só coração e numa só alma com ele, e, elevando-se, assim, através dos estádios do amor, até à amizade de Cristo, torna-se, com um beijo, num só espírito com ele". Ora este é um ideal sublime, mas tem pouco a ver com a minha própria relação com o padre Agostinho. Receio que o padre Agostinho e eu mantivéssemos os nossos corações e as nossas almas firmemente separados, principalmente devido à minha própria culpável auto-estima. Contudo, sabia que ele seguia o caminho da lei divina, e recordo as palavras de Cícero em De Amiátia. "Porque eu amava a virtude do homem, que não está extinta". O padre Agostinho e eu não partilhávamos gestos agradáveis nem segredos ternos. Não encontrávamos alegria na companhia um do outro, nem nos procurávamos um ao outro para descarregar os nossos corações quando o fardo das preocupações mundanas os tornava pesados. Mas na estrada para a virtude, ele caminhava à minha frente, uma candeia aos meus pés e uma luz que me iluminava o caminho. Ele era um modelo e um ideal, o inquisidor perfeito, zeloso e de temperamento sempre igual, forte na sua fé, firme na sua coragem. Eu colhia da sua presença uma nova força que realmente não notei senão quando a sua fonte partira. No padre Agostinho eu identificara um sentido de missão ausente no seu antecessor, e, cegamente, eu deixara que esse sentido de missão guiasse os meus próprios passos, sabendo que o padre Agostinho não me desencaminharia.

Sem ele, eu não tinha ninguém a quem seguir. Mais uma vez, eu era obrigado a construir o meu próprio caminho, perdendo-me por carreiros que me levavam a pântanos e campos de urtigas - pois sempre permiti que o meu humor perverso e a minha curiosidade, a minha preguiça e o meu orgulho governassem aquelas virtudes que parecem ter raízes tão superficiais no meu carácter. Se o padre Agostinho estivesse vivo, talvez... mas se o padre Agostinho estivesse vivo, nada disto teria acontecido.

Sei que ele terá morrido corajosamente. Embora frágil de corpo, era forte de espírito, e teria encarado o golpe final tão calmamente como um homem o poderia fazer, os pensamentos e as emoções fixos nas recompensas eternas. Acredito também que ele estava melhor preparado para a morte do que a maioria de nós, tendo vivido tanto tempo na sua sombra. Mas agora, quando recordo as suas mãos trémulas, a sua forma frágil (tão indefesa como a de um passarinho que ainda não sai do ninho) e a lentidão e o esforço com que ele executava até a mais simples das tarefas... quando recordo estas coisas, doem-me as próprias entranhas, e enchem-se-me os olhos de lágrimas, pois sei que quando caiu o primeiro golpe, ele não teria tido tempo nem força para levantar sequer o braço, ou esconder a cabeça, numa tentativa fútil de se proteger. Na verdade, a sua visão era tão má que pode nem ter visto a lâmina cair.

Matá-lo teria sido como matar um cordeiro amarrado.

É estranho que eu seja capaz de chorar por ele agora, e que não o tenha feito naquela altura. Suponho que sinto que o conheço melhor agora, por razões que em breve se tornarão claras para vós - e estou também muito diferente, em muitos aspectos. Os acontecimentos conspiraram para alargar os limites dos meus afectos.

Por tudo isso, contudo, eu deveria ter sido movido ao desgosto quando pus pela primeira vez os olhos nos seus restos mortais mutilados. Em vez disso, limitei-me a sentir-me enjoado e algo inquieto. Talvez, confrontado com tão terrível prova da transitoriedade da vida, uma pessoa naturalmente se afaste da noção de que aqueles pedaços de carne ensanguentados, aqueles ossos despedaçados, pudessem ser humanos na sua essência. Ou talvez fosse simplesmente porque não tinham qualquer semelhança com o padre Agostinho - uma vez que a cabeça, o elemento mais distintivo, ainda estava desaparecida.

Mas eu não devia falar ainda dos restos mortais. Eles chegaram um pouco mais tarde, com o passar de mais dois dias. Eu devia aprender a não saltar para a frente na minha narrativa, quando há chão a percorrer no meio.

O senescal, como já disse, não regressou com os corpos das vítimas senão dois dias depois. Nesse período, eu estive muito ocupado. Um dos familiares mortos (e apenas um, graças a Deus) era casado, com filhos; fui encarregue de lhes dar assistência e de lhes oferecer todo o conforto que podia - bastante pouco, receio, embora, com o consentimento do prior e do bispo, eu pudesse prometer uma pequena pensão à viúva. Era também meu dever informar os inquisidores de Carcassonne e de Toulouse de que o padre Agostinho perecera, e avisá-los de que eles próprios poderiam estar em perigo. Estava relutante em enviar mensageiros com esta correspondência, com receio de que, como servidores do Santo Ofício, fossem chacinados no caminho. Mas ao usar três homens da casa do bispo, pude acalmar quaisquer receios que tinha neste contexto.

Além disso, todo o trabalho até ali desempenhado pelo padre Agostinho caiu-me naturalmente em cima. Com que remorsos eu agora pensava no tempo, um passado tão recente, em que alimentara um ressentimento contra ele por causa das suas viagens a Casseras. Quão sobrecarregado eu me achara então! Agora, ao consultar a sua lista de interrogatórios, apercebi-me de que ele estivera a tentar compensar as suas ausências ao arcar com muito mais do que era legítimo esperar-se de alguém - quanto mais de um homem de saúde frágil. Eu estava envergonhado, e estava também consternado. Como podia eu sequer ter esperança em substituí-lo? A resposta era que eu não era capaz. Muitas pessoas teriam de definhar na prisão durante muito mais meses, à espera de serem interrogadas, porque o Santo Ofício não possuía recursos para tratar dos seus casos imediatamente.

Desnecessário será dizer que me ocorrera que o agente da morte do padre Agostinho podia muito bem encontrar-se entre aqueles com quem ele ultimamente se envolvera. Assim, eu estava ansioso por dar uma olhadela aos seus pertences e por rever os documentos relacionados com as suas mais recentes inquisições. Não encontrei nada de interesse na sua cela, pois aqui guardavam-se apenas os humildes artigos que a Regra exigia: as suas três túnicas de Inverno e a pelica, as suas polainas, peúgas e roupa interior, os três livros que são atribuídos à maioria daqueles de nós que seguem para os níveis superiores de aprendizagem - Historia Scholastica, de Pierre Comester; Sentences, de Pierre Lombard; e as Sagradas Escrituras. O seu escapulário e a sua túnica, o seu manto negro e o cinto de couro, a navalha, a bolsa e o lenço... estes, é claro, faltavam. Encontrei e deitei fora alguns unguentos e tónicos que o nosso irmão enfermeiro preparara para ele, assim como uma vela de cheiro que se dizia que possuía propriedades salutares em dores de cabeça e ardor nos olhos. Dei a almofada de ervas ao pobre Sicard. Tenho negligenciado Sicard nesta narrativa, mas o seu papel é muito diminuto. Entrou para a ordem como oblato, e possuía muitas daquelas qualidades que são características de pessoas há pouco saídas de uma infância enclausurada: uma voz surda, um apetite voraz, uma inclinação muito ligeira para a frente e uma reverência algo ávida por livros (o irmão Lucius, o nosso copista, possuía dotes semelhantes). Embora Sicard nunca me tivesse impressionado como um jovem de grande inteligência ou desempenho, servira o padre Agostinho com lealdade e eficiência como escriba, e ficou abalado até à própria alma com a morte do meu superior. Assim, mantive-o perto de mim durante vários dias após o que acontecera, tal como se dá abrigo a um gatinho órfão, permitindo-lhe que ficasse com a almofada que pertencera ao padre Agostinho, sabendo que ela lhe daria um pouco de conforto. Fi-lo com a aprovação do prior, que pouco depois mo tirou das mãos. Perto do fim do mês, Sicard estava a ajudar o irmão Bibliotecário, e a dormir muito mais do que fazia ao cuidado do padre Agostinho.

Jamais será pregador, aquele. Não tem capacidade.

Mas estava eu a falar dos pertences do padre Agostinho. Depois de ter esvaziado a sua cela, passei a examinar a sua secretária e a arca dos documentos na sede do Santo Ofício. Aqui encontrei quatro livros de registo do tempo do padre Jacques, todos marcados e com anotações nos locais em que surgiam os nomes Aimery Ribaudin, Bernard de Pibraux, Raymond Maury, Oldric Capiscol, Petrona Capdenier e Bruna d'Aguilar.

Encontrei também um velho livro de registo, marcado em vários locais, e no qual descobri a triste história inteira de Oldric Capiscol.

Há quarenta e três anos, aos treze anos de idade, Oldric, a pedido do pai, adorara um perfeito. Três anos mais tarde, alguém presente durante a adoração, difamara Oldric, que fora preso por dois anos. Quando foi libertado, foi obrigado a suportar poena confusibilis - o nome que damos àquele humilhante castigo em que se exige que o penitente use cruzes cor de açafrão no peito e nas costas. Oldric mostrou as vergonhosas insígnias durante um ano, mas, descobrindo que elas o impediam de ganhar a vida, viu-se livre delas, por fim, e conseguiu emprego como barqueiro. Desnecessário será dizer que ele não podia escapar ao castigo com tanta facilidade. Não duvides de que o teu pecado te encontrará. Tendo sido descoberto e chamado a comparecer em 1283, receou fazê-lo, fugindo à ira do Santo Ofício - o que mais tarde fez com que fosse excomungado. Após ter permanecido sob repreensão durante um ano, foi declarado herege em 1284. Em 1288 foi capturado, finalmente, mas fugiu na estrada, só para ser recapturado perto de Carcassonne. Foi sentenciado a prisão perpétua a pão e água.

Considerei isto surpreendente, pois sabia que o padre Jacques, se tivesse presidido ao auto-de-fé, tê-lo-ia condenado à morte. Numa nota marginal, o padre Agostinho escrevera que nenhum Oldric Capiscol se encontrava actualmente na prisão, concluindo que, uma vez que não fora feita menção de mais nenhuma fuga, o prisioneiro devia, assim, ter morrido no cativeiro algures entre 1289 e o presente.

Assim, Oldric não podia ser culpado da morte do padre Agostinho - embora eu me perguntasse, inquieto, se ele podia ter descendentes que guardassem rancor contra o Santo Ofício. Nenhum dos Capiscols que eu conhecia parecia ser de temperamento rancoroso; eram negociantes de aves domésticas, e todos os negociantes de aves domésticas que conheço (tão frequentemente ocupados, como estão, com o decapitar de aves de capoeira) revelam uma disposição serena, talvez porque podem descarregar o seu mau humor nos seus animais. Contudo, apercebi-me de que poderia haver um ramo da família que eu desconhecesse, e, sentado ali, à secretária do meu superior, folheando lentamente o registo poeirento de velhos nomes e maus comportamentos, fiquei bastante apreensivo. Poderia haver alguém em Lazet cuja vida não tivesse sido tocada, de alguma forma, pela implacável perseguição que movíamos às almas errantes? Como era possível descobrir e identificar os assassinos, quando tanta gente tinha razão para odiar - ou recear - o morto? Em Avignonet, Guillaume Arnaud e Stephen de Saint-Thibery tinham sido assassinados por cavaleiros hereges, muitos deles desconhecidos das vítimas, que tinham vindo de Montsegur simplesmente com o objectivo de assassinar estes dois campeões da Fé. Será que um destino semelhante se abatera sobre o padre Agostinho? Seriam os seus assassinos simplesmente hereges, sem qualquer ligação directa ao homem que com tamanha brutalidade cortaram em pedaços?

Mas então lembrei a mim próprio que os culpados sabiam onde e quando atacar. Preparar uma emboscada teria sido impossível, sem uma base perto de Casseras - ou sem um informador entre os criados do bispo. Se a investigação do senescal fosse completa, algum nome ou descrição devia certamente vir à superfície. Entretanto, competia-me providenciar a minha própria lista de nomes, que poderiam ser comparados com qualquer coisa que o senescal tivesse descoberto.

Foi isso que me esforcei por fazer, nos dois dias que passaram até ao regresso de Roger Descalquencs. E comecei pelos suspeitos de suborno.

De todos esses suspeitos, apenas um, Bernard de Pibraux, fora preso e encarcerado pelo padre Agostinho. Raymond Maury, por outro lado, fora chamado para se apresentar perante o tribunal dentro de cinco dias. O raciocínio do padre Agostinho era claro para mim, neste sentido - era muito menos provável que um padeiro com nove filhos desaparecesse do que um jovem nobre vigoroso e solteiro, sem (tanto quando me é dado deduzir de vários testemunhos) qualquer perspectiva de herdar a riqueza da família. Na verdade, nenhum dos homens acusados parecia possuir muitos bens mundanos, e perguntei a mim próprio, de início, como é que poderiam ter encontrado os meios de persuadirem o padre Jacques a esquecê-los. Mas Bernard de Pibraux tinha, de facto, um pai extremoso, e lembrei-me de que os parentes da mulher de Raymond estavam muito bem colocados na vida, sendo uma família de peleiros de sucesso. A maior parte das famílias estariam dispostas a pagar muito para não serem marcadas com a infâmia de um parente herege. Trata-se, é claro, de uma mancha hereditária.

Depois de ter examinado os livros de registo do padre Jacques, familiarizei-me com as acusações originais contra Bernard de Pibraux e Raymond Maury. Ambos os nomes tinham sido mencionados, de passagem, por testemunhas chamadas para deporem sobre assuntos que não estavam relacionados com este. Uma testemunha ouvira Raymond observar, um dia, na sua padaria, que "uma mula tinha uma alma tão boa como a de um homem". A outra testemunha vira Bernard de Pibraux fazer uma vénia a um perfeito e dar-lhe comida. Nenhum dos incidentes se tornara assunto de inquérito por parte do padre Jacques, embora o padre Agostinho tivesse depois disso interrogado Bernard, que insistira em que desconhecia a identidade do perfeito. Tendo encontrado este fornecedor de falsa doutrina em casa de um amigo, ele fizera uma vénia por boa educação, e dera-lhe pão que ele próprio não queria. Bernard negou ter alguma vez pago ao padre Jacques, fosse por que razão fosse.

Em casos como este, é muito difícil discernir a verdade. O padre Agostinho interrogara uma série de testemunhas, e nenhuma delas pôde atribuir a Bernard quaisquer actos que pudessem ser descritos como não-ortodoxos. O jovem frequentava a igreja, embora nem sempre: o sacerdote da sua paróquia condenava-o como "um jovem leviano, dado a excessos de bebida, negligenciando muitas vezes o bem da sua alma - como tantos por aqui. Pertence a um pequeno grupo de amigos que partilham os mesmos hábitos. Não consigo persuadi-los a "deixarem as raparigas em paz". A sua habitual maneira eficiente, o padre Agostinho tivera o cuidado de recolher os nomes deste "pequeno grupo de amigos": eram o primo de Bernard, Guibert; Etienne, filho de um castelão vizinho; e Odo, filho do notário local. Perguntei a mim próprio se seriam de temperamento violento, e fui perguntar a Pons se Bernard de Pibraux fora visitado por amigos mais ou menos da mesma idade.

- Não - disse Pons. - Só o pai e o irmão.

- O pai responsabilizou-se pelo irmão?

- Se o fez, não havia necessidade - Pons estava, de facto, a sorrir: uma visão rara, permiti que vos assegure. - Foram feitos com o mesmo molde, aqueles três.

- Como é que eles apareceram? Pareceram-vos muito irritados? Havia alguma coisa de furtivo no comportamento deles?

- Furtivo?

- Tinham aspecto de quem estava a magicar alguma coisa de menos bom?

Pons franziu o sobrolho. Coçou o maxilar.

- Todos parecem assustados quando entram aqui - assinalou. - Pensam que podem não ser autorizados a sair.

Este era um ponto válido. Esquecemo-nos do efeito horrível que a prisão tem sobre a maior parte dos visitantes.

- E Bernard? - perguntei. - Como é que ele está a encarar a prisão?

- Oh, isso posso dizer-vos. Bernard tem o temperamento do demónio. Nunca se cala. Atirei-lhe três baldes de água para cima e não valeu de nada. Alguns dos outros prisioneiros queixaram-se.

- Ele é violento, então?

- Seria, se eu o deixasse. Uma vez acorrentei-o, e isso acalmou-o um pouco.

- Estou a ver.

Com esta informação, regressei à minha secretária e pus-me a pensar. Para mim, a culpa ou a inocência de Bernard relativamente à "veneração" do perfeito nunca seriam estabelecidas - a não ser que ele confessasse um acto herege. O padre Agostinho deve ter sentido a mesma coisa, pois tivera grande cuidado em pedir a Bernard os nomes de quaisquer inimigos que lhe pudessem desejar mal. Este procedimento, destinado a descobrir falsas testemunhas, é útil se a culpa de uma pessoa for difícil de estabelecer. Mas uma vez que Bernard não nomeara a testemunha responsável pela sua acusação, não havia sugestão de conspiração.

Deparado com este dilema, pensei no que teria feito o padre Jacques. Para ele, teria havido duas alternativas. Através da fome, teria extraído uma confissão a Bernard, antes de recomendar uma sentença branda, ou teria ignorado todo o incidente. Uma vez ou duas, no passado, eu próprio testemunhara esta tendência para fechar os olhos a certas acções condenáveis relatadas, "por falta de provas", e não estou convencido de que o meu superior fosse movido por uma paixão pelo lucro, em vez de uma inclinação para a misericórdia. "Se um homem optar por não matar uma galinha para a sogra", explicou ele numa ocasião, "isso não significa que ele na altura fosse herege. Essa mulher é uma rabugenta e uma megera. Quem optaria por sacrificar uma boa galinha gorda por uma mulher assim? Diz-lhe que se vá embora".

Nunca contei ao padre Agostinho estes pequenos lapsos, pois não tinham sido frequentes, e envolviam pessoas sem fundos para pagarem uma portagem (quanto mais um suborno), e tinham normalmente ocorrido quando o padre Jacques se sentia particularmente cheio de cuidados. Na verdade, eu elogiava-o pela sua clemência, se não pelo facto de que também ele estava sujeito aos mais repulsivos acessos de vingança. Na minha opinião, o facto de a pequena falta de Bernard de Pibraux ter sido desconsiderada não indicava nada de extraordinário, no que diz respeito ao comportamento do padre Jacques.

Contudo, no caso de Raymond Maury, eu via que havia algo de errado. Dizer que uma mula tem uma alma tão boa como a de um homem é atestar a crença, defendida pelos cátaros, de que as almas dos homens e dos animais foram tiradas do Reino da Luz pelo Senhor das Trevas, e introduzidas em corpos materiais até poderem ser devolvidas ao céu. Ora é possível que se possa insultar um inimigo, dizendo "ele tem a alma de uma mula, e a moral de uma ratazana", ou coisa parecida, e que este insulto possa ser escutado ou mal entendido. Mas o padre Agostinho, depois de ter interrogado certos amigos e conhecidos de Raymond Maury, extraíra-lhes mais provas de que o padeiro acima mencionado era um homem de opiniões dissidentes. Um vizinho, ao informar Raymond de que pretendia completar uma peregrinação para assegurar uma indulgência, ouviu Raymond dizer: "Acreditas que qualquer homem pode absolver os teus pecados? Só Deus pode fazer isso, meu amigo". Outra conhecida lembrava-se de ter ido à igreja de Santa Maria de Montgauzy para rezar para que pudesse recuperar os bens que lhe tinham sido roubados. No caminho, encontrou Raymond Maury, que escarneceu das suas intenções. "As tuas orações não farão nada por ti" - é o que consta que ele disse.

Como podeis ver, o padre Agostinho reunira algumas provas condenatórias contra Raymond - e, ao fazê-lo, levantara também sérias dúvidas sobre o padre Jacques. Realmente, parecia que a honestidade do anterior inquisidor devia ser colocada em questão, senão, por que não fora Raymond Maury preso desde então? Eu não podia acreditar que a aparente cegueira do padre Jacques provinha de um impulso misericordioso, independentemente do número de filhos que Raymond pudesse ter.

Em tais casos, a misericórdia devia ser adequadamente demonstrada no acto da sentença. Não: fiquei convencido, ao mesmo tempo que lia os testemunhos, de que algum género de pagamento devia ter trocado de mãos.

Entristecia-me pensar assim, mas não estava inteiramente surpreendido. O que realmente me surpreendeu foi o documento que encontrei escondido num dos livros de registo. Depois de o examinar atentamente, consegui identificá-lo como sendo uma carta, mas não reconheci a mão que a escrevera.

Embora não consiga reproduzir fielmente o texto da carta, tanto quanto me lembro, o conteúdo era o seguinte:

Jacques Fournier, bispo, pela graça de Deus humilde servo da Igreja de Pamiers, para o seu digno filho, irmão Agostinho Duese, inquisidor de Depravação Herege, saudações no espírito do Senhor.

Foi com alegria que recebia vossa missiva. Em relação ao assunto sobre o qual pedíeis conselho: Oxalá houvesse tanto discernimento como amor no que digo, para que eu pudesse dar ao meu filho querido um conselho de valor. Referis-vos a uma jovem mulher, de grande beleza e valor espiritual, "possuídapor demónios". Procurais invocações através das quais ela possa ser libertada desta maldição. Na minha biblioteca, como especulastes, possuo, de facto, literatura que descreve tais exorcismos, mas antes que tenteis quaisquer rituais desta natureza, incito-vos a examinar diligentemente a forma e os sintomas da sua doença. É, como direis, um caso de possessão, ou tratar-se-á de um exemplo de loucura, provocada por algum inimigo perito nas artes diabólicas? O próprio doutor Angélico nos avisou contra aquelas velhas mulheres que podem infligir o mal, especialmente em crianças, através do mau-olhado - e há outras, ainda mais perigosas, especialistas na conjuração de "reis infernais", sobre as quais pouco sei. Certificai-vos de que vos armais bem com a armadura da Fé e da coragem, antes de sacardes da espada contra tal inimigo.

Quanto à fórmula para expulsar demónios, dou-vo-la aqui:

Que a pessoa, sentada ou ajoelhada, segure numa vela; que o sacerdote comece com "A nossa ajuda é em nome do Senhor", e os presentes cantam os responsos. Que o sacerdote borrife então a pessoa com água benta, lhe coloque uma estola em volta do pescoço e recite o salmo setenta: "Ó Deus, vem em meu auxílio, vem depressa socorrer-me" - e que continue com a litania dos doentes, acendo, na Invocação dos Santos: "Rezai por ele e sede favoráveis: libertai-o, ó Senhor."

Começa então o exorcismo, para ser recitado assim:

"Exorcizo-te, sendo fraco mas renascido no santo baptismo pelo Deus vivo, pelo Deus verdadeiro, pelo Deus que te salvou com o Seu sangue precioso, para que possas ser exorcizado, para que todas as ilusões e toda a maldade do engano do demónio possam partir e fugir de ti para sempre, juntamente com todos os espíritos imundos abjurados por Aquele que virá julgar tanto os vivos como os mortos, e que purgará a terra com fogo. Amen...".

Mas não apresentarei a fórmula completa, visto que não tem relação com a minha história. A carta terminava com uma respeitável saudação (Que a paz de Nosso Senhor Jesus Cristo seja convosco, etc.) e um pedido de cópias de certos testemunhos que, mais uma vez, não são relevantes para esta narrativa. A data dada era um dia menos de três semanas antes.

Digo que fiquei surpreendido com esta carta, mas, na verdade, fiquei mais do que surpreendido: fiquei tão admirado que quase caí do banco. Quem era esta "jovem mulher, de grande beleza e valor espiritual?" Certamente que não era ninguém que eu tivesse encontrado. Talvez, pensei, se tratasse de uma das mulheres de Casseras - a filha da viúva, por exemplo. Mas por que se teria o padre Agostinho preocupado com as suas tribulações? Os demónios, quer invocados quer em possessão de uma alma dominada pela escuridão, não pertenciam ao domínio do Santo Ofício. O Papa Alexandre IV avisara especificamente os inquisidores para que não se preocupassem com casos de adivinhação (ou semelhantes), a não ser que tivessem manifestamente a ver com heresia.

Quanto às fórmulas fornecidas, eu não podia ver como é que elas poderiam ter beneficiado o meu superior, uma vez que ele não era sacerdote, e devia ter procurado um, antes de se ter dirigido ao bispo de Pamiers. Este era só um mistério entre muitos. Mas eu sabia que o meu superior não podia, ele próprio, ter escrito ao bispo, sendo a sua visão tão má - por isso fui ter com Sicard, e perguntei-lhe sobre a carta.

- Sim - disse ele, pestanejando na minha direcção com os seus grandes olhos mortiços (estava a inspeccionar certos volumes da Summa, do doutor Angélico, à procura de traças). - Lembro-me de ter transcrito isso. Ele enviou-a para Pamiers juntamente com outros documentos. Mas teríeis de perguntar ao irmão Lucius sobre os outros documentos.

- O que dizia a carta? Lembras-te?

- Era sobre uma mulher. Que tinha o demónio dentro dela.

- Sabes quem ela é? Ele mencionou o nome dela?

- Não.

Esperei, mas depressa percebi que, se queria mais alguma coisa, teria de extraí-la a ferros, como se faz aos dentes. Sicard foi sempre assim - a disciplina do claustro treinara-o demasiado bem. Ou talvez tivesse sido o padre Agostinho que insistira para que ele falasse apenas quando se dirigissem a ele, que respondesse apenas às perguntas que lhe eram colocadas e que não fizesse quaisquer observações livremente, até à altura em que pudesse ter alcançado um elevado nível de maturidade e educação.

- Sicard - disse eu -, o padre Agostinho fez menção do local onde ela vive, ou com quem vive? Ele ofereceu algum género de descrição pormenorizada? Pensa bem.

Obedientemente, Sicard pensou. Sugava o lábio inferior. Os seus dedos delicados brincavam nervosamente com uma pena, ao mesmo tempo que ele abanava a cabeça.

- Ele disse apenas que ela era jovem. E de grande valor espiritual.

- E não te deu nenhuma explicação?

- Não, padre.

- E nunca pensaste em pedir-lha?

- Oh não, padre! - Sicard parecia chocado. - Por que deveria eu fazer uma coisa dessas?

- Porque estavas curioso. Certamente que estavas curioso. Eu teria ficado curioso.

O pobre rapaz olhava-me fixamente como se desconhecesse a palavra "curioso", e não tivesse qualquer desejo de a conhecer melhor. Vi então que o padre Agostinho escolhera o seu copista com grande sabedoria, seleccionando alguém completamente desprovido de curiosidade, naturalmente deferente, tristemente desprovido de percepção - e, por todas estas razões, quase incapaz de revelar os segredos do Santo Ofício. Assim, deixei-o, com uma palavra de encorajamento, e dirigi-me para as Completas, ainda a magicar nesta notável carta, que decidi (sabiamente, como se veio a revelar) manter escondida, por enquanto.

No entanto, prometi em silêncio que havia de visitar as mulheres de Casseras, para ter a certeza de que tudo estava lá em ordem.

Mas estava relutante em fazê-lo enquanto o senescal não regressasse. Queria ouvir o relatório dele antes de tomar mais decisões.

Por acaso, o senescal regressou no dia seguinte, por isso não pude apresentar-lhe uma lista de possíveis suspeitos. Na altura eu ainda nem sequer interrogara Bernard de Pibraux. Talvez eu tivesse estado demasiado confiante das minhas capacidades, mas, com toda a franqueza, eu não esperava que o senescal regressasse tão depressa. Se a investigação estivesse sob o meu comando, penso que me teria movimentado mais lenta e delicadamente.

Suponho que todos temos as nossas formas diferentes de trabalhar.

Eu estava a escrever cartas quando os cadáveres chegaram. Ocorrera-me que devia, sem dúvida, falar com os três amigos de Bernard de Pibraux - Etienne, Odo e Guibert - para determinar, se pudesse, o seu paradeiro no dia do assassínio do padre Agostinho. Pelo menos dois destes jovens tinham muito provavelmente sido treinados na arte da guerra, e, uma vez que eram jovens, de cabeça quente e dedicados à bebida, havia todas as razões para crer que podiam ter-se incitado uns aos outros a infligir uma terrível vingança ao agente da ruína do amigo. Esta especulação era fortalecida, na minha mente, pela possível inocência de Bernard de Pibraux. Um grupo de jovens insensatos e movidos pela paixão, convencidos de que o amigo fora erradamente preso, seria com toda a probabilidade movido ao género de fúria implacável necessária para executar tão terrível acto de destruição.

Até aqui, pelo menos, eles eram os mais prováveis suspeitos.

Podereis não saber que existe um procedimento e fórmulas próprias para intimar indivíduos a comparecerem perante o tribunal. Escreve-se ao sacerdote da sua paróquia, da seguinte forma: Nós, a Inquisição de Depravação Herege, enviamos saudações, e ordenando-vos e instruindo-vos rigidamente, por virtude da autoridade de que dispomos, para que intimeis em nosso nome fulano de tal, para que compareça no dia tal, em tal sítio, para responder pela sua fé. Neste exemplo, é claro, eu mencionei três nomes, e pedi que comparecessem perante mim a horas diferentes, em dias diferentes - pois desejava interrogar cada um deles em separado.

Eu selara esta carta, e encontrava-me a afiar a minha pena como preparação para a seguinte (convocando o sogro de Raymond Maury), quando se ouviu alguém bater à porta de fora. Uma vez que estava trancada por dentro, como é nossa prática na sede do Santo Ofício, levantei-me e fui abrir. Encontrei Roger Descalquencs na soleira.

- Meu senhor! - exclamei.

- Padre - estava banhado em suor e coberto de pó; na mão direita segurava as rédeas do seu palafrém. - Ficais com estas barricas?

- O quê?

- Os corpos estão nestas barricas - disse ele, apontando para os cavalos atrás de si. Cada um deles estava carregado com duas pequenas barricas de madeira amarradas com cordas. Seis ou sete soldados de aspecto cansado estavam a ajudar, todos apresentando marcas de uma viagem dura. - Foram salgados.

- Salgados?

- Foram colocados em salmoura. Para se conservarem. Benzi-me, e dois dos soldados, ao verem o que eu fazia, imitaram as minhas acções.

- Pensei que poderíeis querer que os trouxesse directamente para aqui - continuou o senescal. Tinha a voz rouca, a respiração pesada. - A não ser que tenhais uma ideia melhor.

- Oh... hum...

- Cheiram muito mal, aviso-vos já.

Por esta altura, Raymond Donatus (sempre vigilante) descera do escritório; eu ouvia, atrás de mim, as suas manifestações de choque.

- Terão de ser examinados... - hesitei. - Tenho de pedir ao irmão enfermeiro...

- Querei-los no priorado?

- Não! Não... - a ideia de restos mortais tão macabros a conspurcarem e a perturbarem a paz do claustro repugnava-me. Sei quanto eles agitariam muitos dos irmãos. - Não, levai-os... já sei - lembrara-me dos estábulos vazios por baixo dos nossos pés. - Levai-os para baixo. Por aqui. Raymond, indicais-lhes o caminho? Tenho de ir buscar o irmão enfermeiro.

- Jean pode fazer isso. Preciso de falar convosco. Jean! Ouviste. O senescal espetou o queixo na direcção de um dos seus soldados.

- Arnaud, tu supervisionas a descarga. Onde podemos falar, padre?

- Aqui.

Conduzi o senescal à sala antes ocupada pelo meu superior e convidei-o a sentar-se. Ao vê-lo cair na cadeira do inquisidor, também me senti movido a oferecer-lhe alguma coisa para comer e beber. Mas ele recusou esta sugestão acenando com a mão.

- Quando chegar a casa - disse. - Agora, dizei-me, aconteceu alguma coisa enquanto estive ausente? Descobristes alguma coisa que nos possa ajudar?

- Ah - era evidente que as notícias que ele trazia não eram boas. - Ia fazer-vos a mesma pergunta.

- Padre, não sou nenhum cão de caça. Não tenho faro para este tipo de coisa - suspirou, baixando o olhar para as suas bonitas botas'à espanhola. - Tudo o que posso dizer é que, se os aldeões estiveram envolvidos, foram todos. Do primeiro ao último.

- Contai-me o que descobristes.

Ele assim fez. Contou-me que os seus soldados tinham passado revista a Casseras, à procura de armas escondidas, cavalos ou roupas. Disse-me que interrogara todos os aldeões, perguntando-lhes o que tinham estado a fazer na tarde da morte do padre Agostinho. Tanto quanto ele se lembrava, não havia discrepâncias entre o que diziam.

- Não havia nada. Ninguém viu gente estranha nesse dia. Ninguém parece guardar rancor contra o Santo Ofício. E ninguém esteve ausente nessa noite - o que, provavelmente, é a coisa mais importante que descobri.

- Porquê?

- Porque foram encontrados mais pedaços - parecia que, durante a estadia do senescal em Casseras, tinham sido feitas duas descobertas notáveis a alguma distância da aldeia. Numa delas, um pastor encontrara, lá em cima, nas montanhas, um membro amputado, e levara-o para Casseras porque queria entregá-lo ao sacerdote mais próximo. De forma semelhante, fora encontrada uma cabeça perto da aldeia, na estrada para Rasiers - uma aldeia em que o sacerdote ouvira falar do massacre de Casseras, e, por isso, enviara com toda a pressa a cabeça a Estolt de Coza. Estolt, por sua vez, enviara-a a Roger.

- Estes pedaços foram espalhados por uma grande distância - assinalou o senescal. - O braço estava a um bom dia de caminho de Casseras, por isso, se alguém da aldeia o tivesse deixado lá, certamente que teria estado ausente nessa noite...

- Mesmo que fosse a cavalo?

- Mesmo assim, teria de regressar a pé, porque não havia nenhum cavalo em Casseras, padre.

- Estou a compreender.

- Estais? Quem me dera compreender. É como se os assassinos se tivessem separado e seguido em direcções diferentes.

- Espalhando membros ensanguentados pelo caminho.

- Isso faz sentido para vós?

- Nenhum, receio.

- Pelo menos podemos dizer que eram dois - provavelmente mais - e que não eram da aldeia. A perícia que teriam de ter, as distâncias que percorreram... não. Se me perguntardes, eram de outro lado qualquer.

Tendo dado esta opinião, Roger calou-se. Por escassos instantes, ficou sentado de sobrolho carregado, fixando as botas, aparentemente perdido nos pensamentos, enquanto eu revia os seus argumentos na minha própria mente. Pareciam suficientemente sólidos.

De súbito, ele voltou a falar.

- Sabeis quanto custa contratar um grupo de assassinos? - perguntou abruptamente, e eu não consegui reprimir um sorriso.

- Por mais estranho que pareça, meu senhor, eu nem sequer poderia lançar uma quantia ao acaso.

- Bem... depende do que se quer. Pode-se contratar um par de gatunos por quase nada, suponho. Mas, não há muito tempo, foram julgados dois mercenários no meu tribunal, e pagaram-lhes quinze livres. Quinze! Por apenas dois!

- E onde é que alguém em Casseras arranjava quinze livres?

- Exactamente. Onde? Digamos que o preço era de vinte livres - bem, por esse dinheiro, podia-se comprar metade de uma casa em Casseras. Imagino que até Bruno Pelfort teria de vender uma boa parte do seu rebanho, e ele é o homem mais rico da aldeia. Mas o sacerdote diz que o rebanho dele é do tamanho de que sempre foi, mais ou menos.

- Por isso, a não ser que todos os aldeões tenham contribuído...

- Ou a não ser que tenham conseguido o dinheiro de alguém como Estolt de Coza...

- Mas achais que não?

- Não consigo ver razão para isso. A acreditar no que diz o padre Paul.

- E penso que é de acreditar.

- Eu também. Tem havido hereges em Casseras ultimamente? Abanei a cabeça.

- Tanto quanto nos tenhamos apercebido, não.

- E em Rasiers?

- Nem em Rasiers.

- E aquelas mulheres na forcia? O padre Paul diz que o inquisidor ia lá para lhes dar orientação espiritual. É verdade?

Hesitei, não sabendo como responder. Eu não tinha a certeza se era verdade. Vendo-me atrapalhado, o senescal franziu o rosto numa careta desconsolada.

- Não era assunto de coração, certamente...? - alvitrou. - Alguns dos aldeões dizem que era...

- Meu senhor, isso é provável?

- Quero saber o que vós pensais.

- Penso que não é provável.

- Mas não impossível.

- Penso que é muito improvável.

Mesmo enquanto falava, eu sabia que a ênfase que eu colocava nestas palavras e a expressão do meu rosto quando as pronunciava eram culpavelmente irreverentes - pois implicavam que alguém com a idade e a aparência do padre Agostinho certamente devia ter renunciado, há muito muito tempo atrás, a todas as reclamações às dores do amor. No entanto, para minha surpresa, o senescal não respondeu, como eu esperava que ele fizesse. Em vez de responder com algum seco reconhecimento - talvez até com um sorriso -, ele franziu o sobrolho e coçou o maxilar.

- Eu também acharia improvável - disse ele -, se não tivesse conhecido as mulheres. Tinham os olhos vermelhos de tanto chorar. Não paravam de falar sobre a sua bondade e a sua piedade e a sua sabedoria. Foi muito... - fez uma pausa, e depois sorriu mesmo, mas como se sentisse relutância em fazê-lo. - Compreendeis, padre, se elas tivessem estado a falar de vós, eu teria compreendido. Sois o género de monge por que uma mulher pode chorar.

- Oh! - naturalmente, eu ri alto, embora deva confessar que fiquei lisonjeado, Deus me perdoe. - Isso é um cumprimento ou uma acusação?

- Sabeis o que eu quero dizer. Tendes uma maneira de falar... ora!

- aparentemente pouco à-vontade com o assunto, Roger colocou-o de lado com um movimento brusco das mãos. - Sabeis o que eu quero dizer. Mas o padre Agostinho era... um monge nato.

- Um monge nato?

- Não havia sangue nas suas veias! Era seco como o pó! Que Deus nos ajude, padre, deveis saber o que eu quero dizer!

- Sim, sim, sei o que quereis dizer - não era altura para brincadeiras. - Então achais que essas mulheres estavam genuinamente afectadas?

- Quem poderá dizer? Lágrimas de mulher... Mas pensei que, se o padre Agostinho estava, de facto, a investigá-las, elas poderiam ter um motivo para o matarem.

- E os meios?

- Talvez sim. Talvez não. Elas vivem de uma forma simples, mas devem viver de alguma coisa. De algo mais do que de algumas aves de capoeira e de uma horta.

- Sim. Devem - disse eu, pensando na carta de Jacques Fournier. Encontrava-se na sala mesmo ao lado, e eu podia ter ido buscá-la, naquela altura e ali mesmo, para que o senescal a analisasse. Por que hesitei? Porque ainda não a tinha apresentado ao prior? Talvez porque estivesse ansioso por salvaguardar a reputação do padre Agostinho. Se, na minha futura visita a Casseras, eu, por acaso, descobrisse que ele formara uma associação vergonhosa com aquelas mulheres - uma associação que não tivesse relação com o seu destino último -, nesse caso seria meu dever esconder do mundo a sua conduta irregular. - Infelizmente, as mulheres não estavam a ser investigadas - declarei. - Tanto quanto sei, o padre Agostinho estava a tentar convencê-las a entrar para um convento. Para própria segurança delas.

- Ah.

- E se elas tivessem desejado desencorajá-lo, poderiam tê-lo feito sem o terem cortado em pedaços.

- Sim.

Neste ponto, ambos nos calámos, como que exaustos, e ocupámo-nos com os nossos próprios pensamentos. Os meus tinham a ver com Bernard de Pibraux e a pilha de trabalho por terminar que estava em cima da minha secretária. Os de Roger, evidentemente, tinham a ver com os estábulos do bispo, já que pouco depois, disse:

- Falastes, por acaso, com o moço de estrebaria do bispo?

- Não. E vós?

- Ainda não.

- Se conseguirmos descobrir quem sabia da visita do padre Agostinho - fora de Casseras...

- Sim.

- E depois comparar esses nomes com os nomes das pessoas que ele possa ter ofendido...

- Com certeza. E vós podeis saber dos vossos familiares mortos, também, se eles falaram na viagem a alguém.

- Há muito trabalho para fazer - suspirei. - Pode levar semanas. Meses. E poderá ser tudo em vão.

O senescal resmungou.

- Se eu mandar dizer a todos os beleguins, prebostes e castelões num raio de três dias de viagem de Casseras, podemos encontrar uma testemunha que tenha visto os assassinos em fuga - disse ele, libertando-se de um cavernoso bocejo. - Devem ter parado, esses homens, para lavarem o sangue das roupas. Talvez alguém descubra que um dos seus cavalos foi roubado.

- Talvez.

- Os assassinos podem até ter-se gabado do que fizeram. Acontece muitas vezes.

- Rezo a Deus para que tenha sido assim.

Mais uma vez, uma sensação de fadiga pareceu instalar-se por cima de nós como nevoeiro. Manifestamente, impedia-nos de terminar o diálogo, de nos levantarmos das cadeiras, de atacar os nossos deveres. Em vez disso, ficámos simplesmente ali sentados, à medida que a sala se enchia lentamente do cheiro de suor de cavalo. Lembro-me de ter baixado o olhar para as mãos, que estavam cobertas de tinta e cera.

- Bem - disse, por fim, Roger, falando quase num murmúrio, como se o esforço envolvido fosse demasiado pesado. - Suponho que devia ir falar com o moço de estrebaria do bispo. Conseguir alguns nomes que vós queríeis. E uma descrição dos cavalos que faltam.

- O bispo está muito desgostoso por causa dos cavalos que estão desaparecidos - receio que a minha intenção, ao dizer isto, fosse pouco caridosa, mas o senescal respondeu apenas às minhas palavras e não ao meu tom de voz.

- Desapareceram cinco? - disse. - Eu próprio ficaria bastante desgostoso. Vai custar uma fortuna substituí-los. Ides encarregar-vos dos corpos, padre?

- Naturalmente - assegurei-lhe, levantando-me ao mesmo tempo que ele. De detrás da porta fechada, eu ouvia batida de pés, pragas, o ranger de madeira, o que me indicava que as barricas que continham os restos mortais do padre Agostinho (e os dos familiares que o acompanhavam) estavam a ser transportadas para os estábulos. Poderia eu distinguir o bater oco da água salgada contra a madeira? Apercebi-me, então, de que teria de examinar pessoalmente o conteúdo destes receptáculos - uma tarefa que eu estava muito relutante em empreender.

- Meu senhor? - disse eu, retendo Roger na soleira da porta. - Se não vos opuserdes, meu senhor, gostaria de visitar Casseras em breve (ao fazer este pedido, eu sabia que teria de caminhar com cuidado, de contrário arriscava-me a ofendê-lo com o que poderia ter sido considerado uma falta de respeito pelos seus métodos). - Uma vez que estou mais familiarizado com os sinais que indicam a presença de heresia, posso descobrir certas pistas que eventualmente vos tenham passado ao lado. Embora não seja erro da vossa parte.

- Vós? - no rosto do senescal estava escrito espanto e alarme. Penso que é maravilhosa a forma como um homem pode falar sem palavras - pois tal como as orações dos santos são frascos celestes cheios de odores, assim a mudança das sombras é a linguagem da expressão de um homem. - Vós ides? Mas isso seria loucura!

- Não, se fosse acompanhado de alguns dos vossos homens.

- O padre Agostinho estava acompanhado. Vede o que lhe aconteceu.

- Eu podia dobrar a guarda.

- Podíeis mandar buscar os aldeões. Seria menos perigoso.

- É verdade - a ideia ocorrera-me. - Mas isso assustá-los-ia. Quero que eles me considerem um amigo. Quero a confiança deles. Além disso, não temos espaço na prisão.

- Padre, se eu fosse a vós, pensaria melhor - avisou Roger. Fechou a porta (que acabara de ser aberta) e colocou a mão no meu braço - onde deixou uma mancha cinzenta de pó no tecido branco. - Que faremos, se fordes chacinado?

Tentei afastar a preocupação dele com uma gargalhada.

- Uma vez que estarei a usar os vossos cavalos, meu senhor, saberemos, pelo menos, que o culpado não foi buscar as suas informações aos estábulos do bispo - observei com sarcasmo. E, de facto, o meu comportamento era de coragem desleixada, ainda que, por dentro, eu tremesse. Pois embora o meu intelecto me dissesse que os assassinos do padre Agostinho tinham deixado a cena do homicídio muito muito para trás, o meu coração estava pleno de um medo irracional que eu estava decidido a suprimir.

Infelizmente, como podereis ter previsto, a primeira olhadela que dei aos restos mortais do padre Agostinho só serviu para alimentar este medo.

 

Para que eu possa conhecer

Amiel de Veteravinea é o enfermeiro do priorado. É um homem baixo e delgado, de comportamento arisco, com uma maneira de falar apressada que faz com que coma sílabas às palavras. Embora tenha a cabeça absolutamente calva, as suas sobrancelhas são luxuriosas, densas e negras como as florestas do Norte. Eu diria que o seu carácter não é tão solidário como se poderia desejar num enfermeiro. No entanto, é muito dotado tanto no diagnóstico de queixas como na preparação de remédios. Exibe também um profundo e sábio interesse na arte de embalsamar.

Esta antiga arte, pela qual, através do uso de certas especiarias e técnicas misteriosas, se conserva carne morta e se impede que entre em decomposição - esta arte, como eu digo, é daquelas sobre as quais não posso demonstrar grande conhecimento. Nunca considerei o assunto atraente. Para o irmão Amiel, por outro lado, é uma fonte de intenso fascínio, semelhante ao que um teólogo poderá encontrar no debate sobre a essência da Divindade. E o interesse do irmão Amiel não é puramente teórico, já que, depois de ter consultado vários textos raros e veneráveis devido à sua idade (alguns deles escritos por infiéis), ele mancha muitas vezes a integridade imaculada do seu conhecimento recentemente adquirido ao aplicá-lo aos cadáveres de pequenas aves e outros animais.

Assim, foi ao irmão Amiel que me dirigi, quando confrontado com os lamentáveis restos mortais de cinco homens assassinados. Dos meus conhecimentos, ninguém mais teria tido estômago para examinar cada parte de corpo com o cuidado exigido para se poder fazer uma identificação como devia ser. Ele chegou prontamente, trazendo consigo vários lençóis grandes de linho, e vi imediatamente que a minha intuição não me enganara, pois os olhos dele eram brilhantes, e o seu passo decididamente ansioso. Ao chegar aos estábulos, estendeu os lençóis no chão, ao lado uns dos outros, em seguida arregaçou as mangas como faria um homem que se deparasse com a perspectiva de uma deliciosa refeição e que não desejava que nenhuma parte das suas roupas se arrastasse pela gordura do pato.

Devo dizer-vos, neste ponto, que os estábulos já eram algo repelentes de odor e aspecto, tendo sido usados para alojar os porcos de Pons cerca de dois anos antes. No entanto, os animais não tinham medrado ali, e os cheiros tinham sido desagradáveis para aqueles de nós que trabalhavam no piso por cima. Por isso, tendo procedido à matança dos seus preciosos porcos (num dos bebedouros destinados a matarem a sede aos nossos cavalos inexistentes), Pons abandonara o seu sonho de toucinho caseiro e os estábulos tinham-se tornado menos frequentados do que nunca.

Eram, com efeito, perfeitamente adequados ao armazenamento de restos humanos em decomposição.

- Ah! - exclamou o irmão Amiel, após ter produzido da primeira barrica uma articulação encharcada em água. - Joelho, pelo aspecto que tem. Sim. Um joelho.

- Eu... hum... se me perdoais, irmão... - com uma ponta do meu manto pressionada contra o rosto, desloquei-me covardemente em direcção às escadas (havia dois meios de sair dos estábulos: por uma pequena porta ao cimo das escadas, ou por um par de portas grandes que se abriam para a rua. Estas estavam sempre trancadas por dentro). - Voltarei quando tiverdes completado o vosso exame.

- Mas esta não é a mão do padre Agostinho. Eu conhecia a mão dele, e esta é muito maior.

Virei-me para sair, mas o irmão Amiel impediu-me.

- Esperai! - disse. - Aonde ides?

- Eu estou... estou muito ocupado, irmão...

- Conhecíeis esses soldados que morreram? Deveis tê-los conhecido. Trabalhavam aqui, não trabalhavam?

- Eu conhecia-os, mas mal, não muito bem.

- Então quem é que os conhecia bem? Preciso de ajuda, irmão Bernard, não consigo reunir estes corpos sozinho.

- Por que não? - lamento dizer que, de início, me escapou o que ele queria dizer. - Há alguma coisa que seja demasiado pesada para vós?

- Irmão, os pedaços têm de ser identificados.

- Ah. Sim. É claro - disse eu rapidamente, mas, ao olhar para o objecto inchado, púrpura e negro, que ele tinha na mão, recuperei subitamente os meus poderes de raciocínio. - Irmão, certamente que este avançado grau de decomposição nos impedirá de... quer dizer... duvido de que a maior parte das pessoas reconheça estas partes de corpos, por melhor que possam ter conhecido as vítimas.

- Disparate. - Asseguro-vos.

- Os pêlos desta mão são negros. Os do joelho são grisalhos -

o irmão Amiel falava com condescendência e um pouco de brusquidão, como se poderia falar com uma criança estúpida - mas eu estava a sentir-me demasiado enjoado para me ofender. - Há sempre características que a decomposição não elimina.

- Sim, mas deveis tomar em consideração a nossa repulsa natural - disse eu, num sopro, apercebendo-me, enquanto o fazia, de que o irmão Amiel não experimentara, em absoluto, qualquer repulsa natural. - A visão destes restos mortais... afectará as pessoas de uma forma tão forte...

- Nesse caso, não vou receber ajuda?

- Irmão, não deveis esperar nenhuma. Estou simplesmente a avisar-vos... só isso - e, tendo feito este aviso, retirei-me à pressa, para procurar a mulher do pobre Giraud, juntamente com os familiares que pudessem ser convencidos a examinar o que restava de Giraud e dos outros companheiros.

Quando regressei, trouxe Pons comigo. Dos sete soldados que restavam ao nosso serviço, quatro tinham concordado em vir, um de cada vez, devido às contingências da escala de serviço, e três estavam em casa a dormir, já que tinham feito o turno da noite. Eu mandara o substituto de Isarn, o novo mensageiro, ir buscar Matheva Gantier. Deus sabe que eu estava relutante em procurar a sua ajuda, mas parecia haver poucas alternativas.

- Deus do Céu! - disse Pons com voz rouca, ao entrar nos estábulos. Na minha ausência, o irmão Amiel esvaziara as barricas de salmoura e espalhara o seu conteúdo sobre os seus lençóis de linho. Reparei imediatamente que algumas das partes pareciam estar agrupadas em combinações que lembravam vagamente formas humanas, com cabeças colocadas ao cimo dos lençóis, e pés dispostos ao fundo.

Eu via apenas duas cabeças.

- Temos aqui muitos membros em falta - anunciou o irmão Amiel, sem nos dirigir um olhar. - Uma grande quantidade. Isso torna as coisas muito difíceis.

- Oh, Cristo, meu Deus... - murmurou Pons. Tinha a mão a tapar a boca, e estava tão branco como o segundo cavalo do Apocalipse. Coloquei-lhe uma mão solidária no braço.

- Talvez devêsseis pedir à vossa mulher que traga para baixo algumas ervas aromáticas - sugeri. - Ervas fortes. Para disfarçar o fedor.

- Sim. Sim. Imediatamente! - o carcereiro afastou-se precipitadamente, de forma que fiquei sozinho na soleira da porta. Levei algum tempo a ganhar coragem para avançar. O irmão Amiel ignorava-me, simplesmente, inspeccionando minuciosamente cada terrível artefacto à luz da sua candeia, até que me juntei a ele no local onde se encontrava de cócoras.

- Estais a ver, encontrei o que resta do padre Agostinho - disse ele, apontando. - A cabeça não está aqui, mas conheço bem o corpo dele. Tinha as mãos tão deformadas que são inconfundíveis. Os pés também - estais a ver? Está aqui apenas um. Isto, tenho a certeza, é a parte de cima das costas. Lembrais-vos de como ele se inclinava para a frente... a curvatura é nítida. Os braços eram muito finos e frágeis.

Virei as costas.

- Com os restantes é mais difícil. É claro que há duas cabeças, e podemos, até certo ponto, distinguir entre certos tipos através da consistência e da cor dos pêlos do corpo. O cabelo do padre Agostinho é grisalho, por isso podemos colocar nesse grupo todos os pedaços com pêlos grisalhos. Temos também pêlos pretos e castanhos, e os pretos são fortes e ásperos, enquanto que os castanhos parecem mais finos. Mas também há alguns castanhos mais fortes, e três braços com pêlos pretos - por isso, temos de ter em consideração as diferenças entre pêlos que crescem em diferentes partes do corpo...

- Uh... irmão? Se especulásseis, diríeis que isto foi feito com um machado?

- Se especulasse, diria que isto teve de ser feito com um machado. Vede como as espinhas dorsais estão cortadas! Duvido de que isto pudesse ter sido feito com uma espada.

- Teria de ter sido alguém muito jovem, então? Para fazer isto? O irmão Amiel hesitou.

- Teria de ser alguém suficientemente forte para cortar lenha - disse, por fim. - Já vi crianças a cortarem lenha, e mulheres grávidas. Mas não inválidos.

- É claro.

- "Louvo-Te, pois fizeste-me temeroso e maravilhoso" - murmurou o irmão Amiel –“... e, no Teu livro, todos os meus membros foram escritos, que em conformidade foram feitos...". Se tivéssemos o livro do Senhor, irmão, seríamos capazes de identificar todas as partes, até à última.

- Sem dúvida.

- Receio que eles tenham de ser sepultados numa só sepultura - continuou o enfermeiro -, e, mesmo assim, o que acontecerá na Ressurreição? Como pode o padre Agostinho levantar-se para encarar o julgamento de Deus, quando a sua cabeça está perdida algures nas montanhas?

- Sim, de facto - murmurei, levantando depois a minha própria cabeça, à medida que a pergunta dele atravessou o meu enjoo como o dobrar claro e nítido de um sino. Seria essa a razão para terem desmembrado o padre Agostinho? Seria intenção dos seus assassinos negar-lhe a ressurreição?

Era-me difícil acreditar que alguém tivesse sido tão exaltado no seu ódio por ele.

- Se estes pedaços de corpos tivessem sido salgados em seco, eu estaria muito mais feliz - continuou o irmão Amiel para se queixar. - Carne podre não pode ser bem conservada em salmoura. Mas atrevo-me a dizer que as reservas de sal de Casseras teriam sido insuficientes...

- Hum... posso identificar as cabeças, irmão - dera comigo a olhar para elas, e ocorreu-me que estavam reconhecíveis - nem que fosse pelas barbas. - Este é Giraud e este é Bertrand.

- Ah? Óptimo. E qual deles era o mais alto?

- Isso não sei dizer-vos.

- Temos desesperadamente falta de membros, aqui. Só há cinco pés.

Por esta altura, eu estava a ficar bastante tonto devido ao fedor, mas sabia que me competia ficar, nem que fosse só por poder oferecer algum conforto a Matheva. Matheva era uma mulher baixa e delicada, recentemente recuperada de uma febre. Tal como eu receara, ela exibiu intensas manifestações de profunda angústia ao ver a cabeça do marido, e teve de ser levada para fora dos estábulos. Quanto aos soldados, também eles pouca ajuda deram: um vomitou nas escadas (embora mais tarde insistisse em que tinha sido envenenado por um ovo podre), e, aparentemente, o resto era de natureza nada observadora, respondendo às perguntas do irmão Amiel com expressões vazias e rudes pedidos de perdão.

Mesmo assim, o enfermeiro foi parcialmente bem sucedido na tarefa que lhe fora indicada. À hora das Completas, já tinha separado os restos mortais em quatro grupos distintos. Um que compreendia os membros do padre Agostinho, um que compreendia os de Giraud Gantier, um que compreendia "pedaços com pêlos pretos" - de que havia uma confusa abundância - e um que compreendia a cabeça de Bertrand Borrei, juntamente com vários pedaços (na sua maioria sem pêlos) que eram impossíveis de classificar. Cada um destes agrupamentos distintos, tendo sido embrulhado num lençol separado, foi levado para o priorado, de forma que só as barricas de salmoura ali ficaram.

Dei ordens para que estas barricas ficassem onde estavam, até que eu conseguisse saber dos seus donos se deviam ser devolvidas ou simplesmente destruídas. Não conseguia imaginar alguém a querer guardá-las, mas sabia que a propriedade tinha de ser respeitada. Seria fácil resolver o assunto quando eu visitasse Casseras. O único esforço envolvido seria lembrar-me de uma preocupação de importância tão diminuta. Eu duvidava muito de que os aldeões estivessem sequer à espera de voltar a ver as suas barricas.

Com respeito à minha visita, consegui arranjar uma escolta de doze soldados da guarnição da cidade. O senescal até me emprestou o seu próprio cavalo de batalha, um grande garanhão preto chamado Star, que me impressionou como um animal do mais intimidante valor, ultrapassando um elefante em tamanho, um touro em força e um tigre em velocidade. Mas antes de passar a descrever o curso e o resultado desta viagem, desejo deixar aqui registadas duas ideias que me passaram pela cabeça durante os três dias que precederam a minha partida. A primeira foi uma adenda à minha teoria relativa ao desmembramento do padre Agostinho; a segunda, uma teoria inteiramente nova que me assaltou com a força de uma tempestade, uma noite, quando estava deitado. Vale a pena considerar ambas, uma vez que modificaram a minha percepção das coisas a partir daí.

Começarei pela adenda, que me ocorreu quando conversava com o bispo. Mais uma vez, omiti um importante effictio, ao negligenciar o bispo, cuja posição, só por si, devia ter-lhe assegurado, desde há muito, uma descrição da sua aparência pessoal nesta narrativa. Mas talvez já o tenhais encontrado. Se não, permiti que vos apresente a Anselm de Villelongue, antigo abade cistercience que se tornou prelado, pelo menos quarenta anos de trabalho honesto atrás de si, habilidoso nas artes da poesia e da caça, confidente de vários senhores e senhoras (especialmente senhoras) com posições elevadas, um homem cujo coração e alma são dedicados, não às obsessões básicas da política local, mas aos muito mais exaltados reinos da diplomacia entre condes e reis. O bispo Anselm preside às preocupações espirituais do seu rebanho com uma educada e abstraída indiferença, permitindo às autoridades devidamente nomeadas agir conforme considerem adequado. Passa uma grande parte do seu tempo a escrever cartas - e, um dia, será provavelmente eleito Papa. Quanto à sua aparência, não é nem demasiado gordo nem demasiado magro, nem demasiado alto nem demasiado baixo; usa roupas finas e come comida delicada; tem um sorriso agradável e simpático, dentes bonitos, e um rosto redondo e macio com uma cor uniforme.

As mãos são papudas e curtas, mas, mesmo assim, ele chama a atenção para elas com o seu invejável sortido de jóias. Tem de se procurar muito, asseguro-vos, para encontrar o anel episcopal para beijar. Se se comentar esta ostentação, ele, muito generosamente, fornecerá uma história de cada artigo, citando o seu valor, os seus antigos proprietários, e os meios pelos quais veio parar ao seu poder - geralmente como presente. O pobre é odiado até pelo seu próprio vizinho: mas o rico tem muitos amigos. Os amigos do bispo Anselm constituem uma legião, e o seu número cresce todos os dias; contudo, poucos são de proveniência local. Talvez os cidadãos de Lazet estejam cansados de tentar chamar a atenção dele.

Foi necessário, por exemplo, discutir minuciosamente as várias características e pontos fracos dos cavalos que faltavam ao bispo Anselm, antes que o senescal e eu o pudéssemos levar para tópicos mais lucrativos. Estávamos sentados na sua sala de visitas, tanto quanto me lembro - em almofadas de damasco em cadeiras trabalhadas - e até Roger Descalquencs perdera a paciência com toda aquela conversa sobre jarretes e esparavões muito antes de o bispo ter esgotado o seu próprio interesse nos mistérios da criação de cavalos (sempre me perguntei: o bispo será insensível só ao aborrecimento dos seus inferiores, ou será que as pessoas do género do conde de Foix e do arcebispo de Narbonne também considerarão a carne de cavalo e as jóias assuntos de vital preocupação?). Seja como for, lembro-me de que estava a descrever ao bispo Anselm o estado exacto dos homens assassinados, enquanto ele permanecia ali sentado com uma expressão de dor estampada no rosto - mas mais como se tivesse mordido uma uva azeda do que se os pecados do mundo lhe estivessem a rasgar a membrana do coração -, e eu estava também a dizer-lhe que uma grande parte do cadáver do padre Agostinho ainda estava desaparecida, embora parecesse que fora encontrada outra cabeça perto de uma aldeia no caminho para a costa (juntamente com um dos cavalos do bispo que estavam desaparecidos). Essa cabeça estava a ser transportada, nesse preciso momento, para Lazet. Se Deus quisesse, o irmão Amiel identificá-la-ia como pertencendo ao padre Agostinho.

- O irmão Amiel diz que ainda há membros insuficientes - expliquei. - Diz que, com o que tem, não poderia reunir quatro corpos, quanto mais cinco.

- Deus tenha piedade.

- Quem quer que tenha feito isto devia estar consumido pela raiva - interrompeu o senescal. - O padre Bernard pensa que pode ter tido alguma coisa a ver com a Ressurreição.

- A Ressurreição? - ecoou o bispo Anselm. - Como assim? Fui então obrigado a repetir a minha teoria, e fi-lo com alguma relutância, pois ainda a considerava improvável. O bispo abanou a cabeça.

- "Oh, vós, filhos dos homens, durante quanto tempo transformareis a Minha glória em vergonha?" - entoou ele. - Que acto monstruoso, negar a uma alma a sua salvação final! Sem dúvida que isto é obra de hereges.

- Bem... não, meu senhor - disse eu, apercebendo-me enquanto falava das totais implicações do que eu propusera. - Na verdade, os cátaros não acreditam na ressurreição dos corpos.

- Oh.

- Há, é claro, os hereges valdenses - continuei -, mas nunca encontrei um valdense. Só li sobre eles.

O bispo acenou com a mão como que a rejeitar a ideia.

- São todos descendentes do poder abominável - afirmou. - E dissestes antes que o homem que descobriu o meu cavalo - ou o cavalo que parece ser o meu -, dizeis que é monge?

- Franciscano, meu senhor, sim.

- Um homem irrepreensível?

- Segundo parece. Ele diz tê-lo encontrado a deambular nos pastos do seu próprio priorado. Mandámo-lo buscar, naturalmente.

- E ele traz o cavalo consigo?

- Creio que o montará, sim.

- Ah sim? - o bispo deu um dique com a língua. - Que preocupante. Há tantos franciscanos que, na sela, são como um saco de farinha. É por causa de andarem a pé por todo o lado.

Apreensivo, sem dúvida, de que a conversa voltasse, mais uma vez, a assuntos equinos, o senescal apressou-se a dizer:

- Meu senhor, interrogámos o vosso moço de estrebaria - informou. - Parece que apenas quatro pessoas foram informadas da visita do padre Agostinho a Casseras: o vosso moço de estrebaria, dois dos ajudantes do estábulo, e vós próprio, é claro. O moço de estrebaria falou no assunto a um dos cónegos. Mencionastes a visita a alguém? A quem quer que fosse?

O bispo, porém, não estava a prestar atenção - perdido, talvez, na sua preocupação relacionada com o bem-estar de qualquer cavalo montado por um franciscano.

- Mencionei o quê? - perguntou.

- Meu senhor, a visita do padre Agostinho a Casseras.

- Eu não fazia ideia de que ele ia a Casseras.

- Então ninguém vos pediu autorização? Para pedir os cavalos emprestados?

- Oh, os cavalos. Sim, é claro.

E assim nos arrastámos pela conversa, como que através de um lago de lama, e foi, de facto, um esforço algo fútil. Nessa noite, contudo, estava eu a rever a conversa na minha mente, quando os meus pensamentos se centraram numa observação especial que eu fizera, nomeadamente: "Ele disse que, com o que tem, não poderia reunir quatro corpos, quanto mais cinco". Fora uma observação curiosamente de mau gosto, embora poderosa na descrição que fazia das dificuldades do irmão Amiel. O seu significado completo - na verdade, literal - não se me tornou aparente senão naquele momento. Lembro-me de que abri os olhos de repente, e fixei a escuridão com o coração aos saltos.

O irmão Amiel não podia reconstituir cinco corpos. Assim, poder-se-ia especular que apenas quatro corpos estavam presentes.

Os meus pensamentos pareceram agarrar-se a esta suposição por muito, muito tempo. Depois, com um solavanco ou um cambaleio, saltaram para a frente e começaram a correr ao longo dos caminhos da razão, com a velocidade de um relâmpago. Talvez a melhor translatio que eu pudesse usar fosse comparar este fenómeno a um rato surpreendido num palheiro: primeiro, espantado, ficará imóvel; depois, com medo, fugirá. Os meus pensamentos fugiam, de cá para lá, como um rato assustado - fiz a mim próprio pergunta após pergunta. Teriam sido mortos só quatro homens? Teria o outro sido raptado ou, mais plausivelmente, seria este homem um traidor? Teriam os corpos sido despedaçados e espalhados por tal distância para esconder a sua ausência? Teriam as roupas sido removidas para facilitar tal engano?

Apercebi-me de que a minha nova teoria justificava várias características do massacre que, aos nossos olhos, tinham permanecido misteriosas. Justificava a estranha combinação de selvajaria e meticulosidade inerentes ao trabalho de cortar alguém em pedaços. Justificava as roupas desaparecidas. E justificava a fonte de informação relativa à visita do padre Agostinho a Casseras. Afinal, quem saberia melhor dos seus movimentos do que um dos seus guardas pessoais?

Os familiares tinham sempre sido instruídos relativamente aos seus deveres no serão anterior à partida do padre Agostinho.

Assim, um traidor teria tempo suficiente para alertar os seus amigos homicidas, que, por sua vez, teriam iniciado a sua viagem imediatamente (e passado a noite na estrada), ou, em alternativa, ao romper do dia. Neste último caso, podiam até ter seguido o padre Agostinho - a uma distância discreta -, sabendo que poderiam preparar a emboscada enquanto ele se encontrava de visita à forcia.

E depois? Depois, de regresso a Casseras, o padre Agostinho teria sido levado directamente para a morte pelo traidor que seguia a seu lado. Em seguida, este hipócrita pestilento teria fugido, procurando refúgio nalguma terra distante. Perguntei-me quem lhe poderá ter pago por esta traição, porque ele não poderia ter contratado os seus companheiros salteadores com o salário de um familiar; perguntei-me também onde se encontraria ele agora, se não estivesse morto - pois deveis compreender que esta teoria ainda era teoria. Eu não tinha provas - nenhuma prova em absoluto - e não podia ter a certeza de que as minhas suspeitas eram justificadas.

Mas se fossem, a identidade do traidor seria bastante fácil de estabelecer, desde que a terceira cabeça, agora a caminho de Lazet, não pertencesse ao padre Agostinho. Se pertencesse, defrontar-nos-íamos com uma escolha entre dois suspeitos: Jordan Sicre e Maurand d'Alzen. À medida que entrava no sono, prometi que investigaria as histórias destes dois homens.

Prometi também que guardaria as minhas suspeitas só para mim, até surgirem novas provas que as pudessem sustentar. Eu não queria ser precipitado ao anunciar que um dos assassinos do padre Agostinho fora alimentado ao peito do Santo Ofício. Afirmações deste tipo são difíceis de desdizer, se se provarem erradas - talvez porque tanta gente gostasse que fossem verdadeiras.

Um provérbio famosíssimo está relacionado com um certo grego, e diz-se que foi encontrado na trípode de Apolo: "Conhece-te, e vê-te como és". Não há nada mais claro na natureza humana, nada mais valioso, nada, finalmente, mais excelente. É através destas qualidades que o homem, por prerrogativa única, é privilegiado em relação a todas as criaturas sensíveis, e se junta também, por um laço de unidade, àquelas que são desprovidas de sensibilidade.

Tenho-me esforçado por me ver como sou, e, ao fazê-lo, reconheci uma vergonhosa falta de humildade no meu carácter voluntarioso e arrogante, na zombaria que faço dos Mandamentos do Senhor, na minha crença de que podia visitar Casseras, de que aguentava o perigo, sem correr riscos. Fui avisado pelo senescal para que não o fizesse; fui avisado por Raymond Donatus e Durand Fogasset; fui avisado pelo prior Hugues. E em vez de me submeter ao meu superior com toda a obediência (imitando Nosso Senhor, de quem o Apóstolo disse: "Ele foi feito obediente até na morte"), ignorei todos os argumentos com uma insolência condenável, mantendo-me teimosamente firme ao meu objectivo, e, gerando, assim, o tipo de castigo que eu deveria ter previsto - uma vez que somos avisados nas Sagradas Escrituras para não seguirmos a nossa própria vontade.

Omitirei qualquer descrição da viagem, que não é de grande relevância, excepto para dizer que a minha passagem foi notada e muito comentada, devido ao número de criados que levava comigo. Na verdade, eu sentia-me mais como um rei ou um bispo com os meus doze guardiães fortemente armados a cavalgarem à minha volta. Eram, na sua maioria, homens de origens humildes, de modos rudes e linguagem grosseira. Eu sentia que alguns deles não estavam talvez inteiramente satisfeitos por serem incluídos na excursão, mais por causa da minha própria presença do que por causa de quaisquer riscos que estavam destinados a correr: de início suspeitei de que este descontentamento provinha de uma aversão ao Santo Ofício, mas, gradualmente, fui-me apercebendo de que não se sentiam à-vontade quando eram obrigados a permanecer nas proximidades de alguém que usasse tonsura. Parecia que não estavam muito acostumados a rezar ou a adorar. Sabiam o pater noster, e o Credo, e frequentavam a igreja em certos dias de festa, alguns até se confessavam devotos de alguns santos em especial (principalmente dos santos guerreiros, como sejam São Jorge e São Maurício). No entanto, na sua maioria, pareciam considerar a Igreja como um género de mãe ou pai rígido e aborrecido, sempre a castigá-los pelos seus pecados, tão rica como Salomão, mas avara, ao mesmo tempo - a visão habitual de pessoas cuja vida exclui muita coisa que tenha a ver com a prática ou o discernimento espirituais. Não são hereges, estas pessoas, pois acreditam no que a igreja lhes diz para acreditarem. Contudo, são o material do qual os hereges muitas vezes são feitos.

Como nos lembra São Bernardo de Claraval, o escravo e o mercenário têm uma lei própria, que não é do Senhor.

Devo acrescentar que descobri tudo isto não através de insistentes interrogatórios, que teriam confirmado os meus piores receios sobre o Santo Ofício, mas depois de os ter elogiado pelo estado e desenho das suas armas. Não há nada mais próximo do coração de um soldado do que a sua espada ou maça ou lança. Ao admirar estes sinistros objectos, transmiti confiança aos seus proprietários, e ao trocar gracejos sobre o bispo (Deus me perdoe, mas não há ninguém mais desprezado em Lazet inteira), eu tornei-me ainda mais estimado. Quando chegámos a Casseras, o nosso grupo encontrava-se agradavelmente bem-disposto, embora cansado e a precisar de alguma coisa para comer e beber. Na verdade, um dos guardas foi ao ponto de me felicitar por não ser "nada parecido com um monge" - algo de que sou frequentemente acusado pelos meus irmãos de confraria, embora num tom muito diferente.

Casseras é uma aldeia rodeada de muralhas, não tendo por perto nenhum castelo para onde os aldeões possam fugir em ocasiões de perigo (a forcia não passa de uma quinta fortificada, e é de construção bastante recente). Felizmente, a disposição da terra é tal que permite às casas serem construídas em anéis concêntricos em volta da igreja. Se a aldeia se situasse em terreno mais íngreme, tal não teria sido possível. Dois poços estão abrigados atrás das muralhas, assim como vários jardins e eiras, duas dúzias de árvores de fruto e um par de palheiros. Todo o lugar exala um cheiro forte a estrume. Naturalmente que a minha chegada foi recebida com admiração, e talvez alguma apreensão, até eu poder informar os habitantes de que a minha enorme comitiva não constituía qualquer ameaça para eles, mas que tinha sido trazida para o caso de eles constituírem ameaça para mim. Muitos riram quando eu disse isto, mas outros ficaram ofendidos. Asseguraram-me, zangados, que não tinham estado envolvidos no assassínio do padre Agostinho.

O padre Paul parecia satisfeito por eu estar bem protegido. Ao contrário de tantos sacerdotes em semelhantes aldeias remotas - que se consideram pequenos senhores, para além do alcance da autoridade episcopal -, o padre Paul é um bom e humilde servo de Cristo, algo preocupado, talvez um pouco submisso em demasia aos desejos do abastado Bruno Pelfort, mas, na generalidade, um pároco honesto e de confiança. Mostrou-se feliz por me alojar nessa noite, pedindo desculpa, enquanto o fazia, pela natureza da sua hospitalidade, que descreveu como "muito simples". Naturalmente, elogiei-o por isso, e, por alguns instantes, falámos das virtudes da pobreza, embora com o cuidado de não adoptarmos uma postura enfática de mais - nenhum de nós era monge franciscano.

Em seguida disse-lhe que desejava visitar a forcia antes do pôr do Sol. Ele ofereceu-se para me acompanhar, para me poder indicar a cena do massacre, e aceitei prontamente a sua proposta. Para que ele pudesse seguir o nosso andamento, insisti para que um dos meus guardas pessoais cedesse o seu cavalo ao sacerdote e ficasse na aldeia até que regressássemos: eu mal acabara de falar e já o soldado à minha direita saltara da sela (perguntei a mim próprio mais tarde se a abundância de raparigas bonitas em Casseras poderia ter contribuído para a pressa dele). Seguiu-se uma explosão de actividade que não me darei ao incómodo de relatar aqui, e partimos enquanto o Sol ainda ia alto no céu a Ocidente. Por não sei que meios misteriosos, durante a nossa breve estadia em Casseras, muitos dos meus guardas tinham adquirido pedaços de pão e carne de porco fumada, que partilharam generosamente com aqueles de nós cujo encanto não era nem tão poderoso nem tão produtivo. Eu não podia deixar de especular em relação ao que eles mais poderiam receber durante a noite que passariam no palheiro de Bruno Pelfort.

Já descrevi o caminho para a forcia. Para mim, os sulcos secos e a folhagem que tudo invadia pareciam ominosos - ameaçadores -, embora eu compreenda que a minha percepção era colorida, até certo ponto, pelo meu conhecimento do que tinham testemunhado em silêncio. Estava muito calor. O céu era uniforme, pálido e sem nuvens; os pássaros estavam quase mudos. Zuniam insectos, o couro chiava. De vez em quando, um dos guardas cuspia ou arrotava. Ninguém parecia muito inclinado a conversar; a viagem a cavalo era tão difícil que exigia concentração.

Não precisei de ser alertado quando chegámos ao local da morte do padre Agostinho, porque o sangue ainda era visível. Embora uma parte dele estivesse ocultada pelo pó ou pelas folhas secas, podiam detectar-se muitas manchas negras - inconfundíveis, não por causa da sua cor, mas por causa da sua forma: gotas e manchas, poças, salpicos, pingos. Até a minha escolta ficou deprimida com estes vestígios, e com o ténue mas inevitável cheiro a putrefacção. Desmontei, e disse algumas orações. O padre Paul seguiu-me. O resto do grupo permaneceu na sela, alerta a algum sinal de ameaça. No entanto, os nossos receios eram infundados - ninguém nos atacou quando nos dirigíamos para a forcia. Nem sequer ninguém saiu dos bosques para nos ver ou para nos saudar. Parecia não haver absolutamente ninguém por perto.

Chegámos à forcia muito de repente, pois a configuração do terreno é tal que nos aproximamos dela após subirmos uma encosta íngreme como uma colina, só que o cimo da colina é cortado abruptamente para formar um planalto triangular. É neste planalto, rodeado de picos elevados, que a forcia está construída. Fica situada no meio de pastagens mal desbravadas, a alguma distância daquele ponto em que o caminho alcança o planalto. Assim, o viajante não tem qualquer vista do seu destino enquanto não completa a subida.

É, então, confrontado por um distante muro de pedra, claramente em ruínas e atravessado por um portão sem defesa. O portão abre-se para um género de paliçada, que rodeia, não uma torre fortificada, mas uma casa muito grande e em muito mau estado. Embora uma grande parte do seu telhado de ripas tivesse caído, o facto de uma parte estar habitada, na altura de que falo, podia deduzir-se da coluna de fumo que subia para o céu por cima dela. Outros sinais de habitação eram as aves de capoeira que se pavoneavam pela terra batida da paliçada, e as roupas penduradas ao longo de uma parede baixa, que, em tempos, podia ter pertencido a um palheiro, antes de ter sido desmantelado. Os restos de vários edifícios exteriores, construídos a espaços e encostados à muralha circundante, ainda eram visíveis. Não havia dúvida de que esta quinta fora outrora uma rica e próspera propriedade.

O que era agora, eu não conseguia perceber muito bem, à primeira vista. Embora bastante empobrecida de aspecto, não tinha a aparência desagradável de um refúgio de leprosos, nem, na verdade, da estranha cabana de pastores que eu conhecia. Um único olhar foi suficiente para me dizer que alguém tinha estado a varrer o pátio em volta da casa, e a cuidar assiduamente da horta plantada sob a muralha sul. As galinhas revelavam uma gordura lustrosa e bem nutrida. Não havia lixo de ossos velhos nem cascas de nozes debaixo dos pés, nem qualquer cheiro a excrementos a pairar no ar. Na verdade, o ar estava impregnado do perfume de várias ervas colocadas cá fora a secar ao sol; cheirava também àquela inexplicável e quase exultante pureza que parece vir com a proximidade das montanhas.

Reparava em tudo isto, quando uma mulher saiu da casa - atraída, sem dúvida, pelo barulho da nossa chegada. Não desejando alarmá-la, desmontei a alguma distância e aproximei-me dela a pé, com o padre Paul logo atrás de mim. Apercebi-me imediatamente de que não era a mulher jovem da carta do padre Agostinho. Devia ter quase a minha idade, e, sendo, na verdade, muito bem-parecida - era a matrona mais vistosa que eu encontrara em muitos anos -, não poderia ter sido descrita como uma mulher de "grande beleza". O seu espesso cabelo preto estava riscado de cinzento; a sua figura era alta e direita e imponente; tinha feições finas equilibradamente distribuídas por um rosto bastante comprido, e um olhar calmo mas crítico (em cuja visão nenhum homem vivo será justificado). Só a sua pele era verdadeiramente bonita, tão branca como as vestes celestes dos mártires. Com a sua limpeza imaculada, a sua postura firme embora graciosa, a própria maneira com que arranjara o cabelo - com todas estas coisas, ela parecia transformar o local que a rodeava, de forma que, onde antes eu reparara na pobreza e na desolação, apercebia-me agora da imponente vista montanhosa, da limpeza da horta, das delicadas e coloridas figuras tecidas no cobertor que fora aberto no chão, por baixo das já referidas ervas que estavam a secar. Enquanto que aquele não era um lugar a que ela, de modo algum, parecia pertencer, a sua própria presença servia para o elevar ou refinar, de maneira que se via de outra forma, como se poderia ver um farrapo ou um fragmento de madeira que foi tocado por um santo. Não que eu descrevesse esta mulher como uma santa - muito pelo contrário! Desejo simplesmente transmitir a impressão com que fiquei, a julgar pela sua aparência, de que fora nascida e criada entre pessoas acostumadas a coisas ricas e belas.

No entanto, apesar de tudo isto, ela usava roupas muito simples, e tinha as mãos sujas.

- Padre Paul! - exclamou ela, virando-se depois para mim, com uma vénia. O padre traçou uma cruz no ar por cima da cabeça dela, abençoando-a.

- Johanna - disse ele -, este é o padre Bernard Peyre de Prouille, de Lazet.

- Bem-vindo, padre.

- Quer falar convosco sobre o padre Agostinho.

- Sim. Compreendo - a viúva (pois esse era o estado dela) falava numa voz suave e musical, muito agradável ao ouvido, e, estranhamente, sem condizer com a rectidão do seu olhar. Tinha a voz de uma freira e os olhos de um juiz. - Vinde por aqui, por favor.

- Como está Vitalia? - perguntou o padre Paul, enquanto nos dirigíamos para a casa. - Está melhor?

- Nem por isso.

- Nesse caso, temos de rezar, e rezar muito.

- Sim, padre, tenho estado a rezar. Entrai, por favor.

Parando junto a uma entrada na muralha norte da casa, ela levantou a cortina que a tapava e recuou para que pudéssemos entrar. Devo confessar que hesitei, perguntando-me por breves instantes se algum assassino estaria à minha espera do outro lado da porta. O padre Paul, no entanto, não era assaltado por tais dúvidas, talvez porque este território lhe era familiar; avançou sem receio, e ouvia-se a cumprimentar um anfitrião que não se via - sem qualquer interrupção violenta -, pouco depois de ter atravessado a soleira da porta.

Assim, eu segui-o, consciente da presença da viúva atrás de mim.

- Vitalia, trouxe o amigo do padre Agostinho para te visitar - estava o padre Paul a dizer. À luz obscura, via-o de pé, debruçado sobre uma cama baixa, ou enxerga, na qual estava deitada a forma minúscula e encolhida de uma mulher idosa. Na outra extremidade do quarto, que era bastante espaçoso, havia uma braseira. Uma vez que não havia lareira, depreendi que a cozinha original não era habitável, e que esta divisão fora construída como quarto de cama ou um género de arrecadação.

O mobiliário era bastante escasso - apenas a cama da idosa, uma mesa feita de uma porta comida pelo bicho e colocada sobre pedras cortadas, e alguns bancos construídos segundo o mesmo princípio. Mas reparei que os utensílios de cozinha eram numerosos e (tanto quanto o meu conhecimento do assunto me permite julgar) de boa qualidade, assim como a roupa da cama, os armários para guardar comida, a própria braseira. Reparei também num livro. Estava em cima da mesa, como uma chávena ou um pedaço de queijo, e exerceu sobre mim um fascínio irresistível. A maior parte dos dominicanos que conheço são incapazes de ignorar um livro: não partilhais desta opinião?

Sub-repticiamente, peguei nele e examinei-o. Para minha surpresa, vi que era uma tradução, na língua vernácula, de Sávias, de Hildegard de Bingen. Mal transcrito, incompleto, sem título, reconheci-o apenas porque estou familiarizado com as obras da abadessa Hildegard. As palavras que li eram inconfundíveis: "As visões que tive não foi a dormir, nem na loucura, nem com os meus olhos carnais, nem com os ouvidos da carne, nem em lugares ocultos; mas acordada, alerta, e com os olhos do espírito e os ouvidos interiores. Olho para elas abertamente e de acordo com a vontade de Deus" (tradução execrável).

- De quem é este livro? - perguntei.

- Pertence a Alcaya - respondeu-me a viúva, e vi que estava a sorrir. - Alcaya sabe ler.

- Ah - por qualquer razão, eu estava à espera que ela própria fosse a letrada. - E onde está Alcaya?

- Alcaya está com a minha filha, a apanhar lenha.

Isto era uma decepção, pois eu queria conhecer a filha - que era, eu tinha a certeza, a mulher jovem a que se referia o padre Agostinho. Mas a mãe dar-me-ia, sem dúvida, pelo menos algumas informações.

Assim, exprimi o desejo de que ela se me juntasse num local onde pudéssemos estar a sós, onde discutiríamos certos assuntos relacionados com o padre Agostinho e a sua morte.

- Podemos falar no quarto - respondeu ela. - Por aqui.

- E eu ficarei com Vitalia - sugeriu o padre Paul. - Rezaremos a Deus misericordioso. Gostaríeis de o fazer, Vitalia?

Se Vitalia concordou ou não, acenou ou abanou a cabeça, nunca saberei - porque eu estava no quarto antes de o padre ter acabado de falar. Era evidente que este quarto se gabara em tempos de ter uma porta com ferrolho e venezianas, mas há muito que tinham desaparecido todos os vestígios delas; as aberturas que ficaram estavam agora escondidas atrás de pedaços de tecido barato, que estavam pregados aos lintéis de madeira. Havia três enxergas no quarto, e uma arca de enxoval muito impressionante, trabalhada e pintada. Examinei-a com curiosidade.

- É minha - observou a viúva. - Trouxe-a para cá.

- É muito bonita.

- Foi feita em Agde. Onde eu nasci.

- Viestes de Agde para cá?

- De Montpellier.

- Ah? Eu estudei Teologia em Montpellier.

- Sim, eu sei - ao mesmo tempo que eu levantava o olhar, surpreendido, ela acrescentou: - O padre Agostinho disse-me.

Observei-a por um momento. Estava com as mãos entrelaçadas junto à cintura, fitando-me com algum interesse, e sem qualquer medo. O comportamento dela deixava-me confuso. Era tão diferente do da maioria das mulheres, quando são confrontadas por um representante do Santo Ofício - sem ser, no entanto, minimamente insolente ou agressivo.

- Minha filha - disse eu -, o padre Agostinho visitou-vos aqui muitas vezes, por isso tenho a certeza de que deveis ter falado de muitas coisas. Mas qual era o objectivo das suas visitas? Por que precisáveis dele com tanta urgência? Certamente que poderíeis ter procurado o padre Paul para receberdes conselho espiritual...

A viúva pareceu pensar. Por fim, disse:

- O padre Paul está muito ocupado.

- Não mais do que estava o padre Agostinho.

- É verdade - concordou ela. - Mas o padre Paul não tem conhecimentos de leis.

- Conhecimentos de leis?

- Estou envolvida numa disputa de propriedade. O padre Agostinho estava a aconselhar-me.

Ela falava com cuidado, e com uma óbvia falta de candura, mas eu mantinha a expressão amável que é meu costume assumir nestas ocasiões.

- Que tipo de disputa de propriedade? - perguntei.

- Oh, padre, não gostaria de vos fazer perder tempo.

- No entanto, estivestes suficientemente disposta a fazer o padre Agostinho perder tempo.

- Só porque ele não tinha modos tão agradáveis como vós, padre. O sorriso dela, enquanto dizia isto, inquietou-me um pouco, pois contradizia o brilho que lhe via nos olhos. Na boca tinha um sorriso pretensioso, no olhar um desafio.

Ponderei esta curiosa contiguidade.

- Os meus modos podem ser tão desagradáveis como os de qualquer homem - respondi, num tom suave, mas com uma certa ênfase inequívoca. E para demonstrar que não me deixava facilmente desviar do meu caminho, acrescentei: - Falai-me da disputa de propriedade.

- Oh, um assunto triste.

- De que forma?

- Tem-me perturbado o sono.

- Por que razão?

- Porque é tão desesperado e complicado...

- Talvez eu possa ajudar...

- Ninguém pode ajudar.

- Nem sequer o padre Agostinho?

- O padre Agostinho está morto.

Comecei a sentir-me como se estivesse a jogar xadrez (um passatempo que me ocupava muito antes de proferir os meus votos). Suspirando, recomecei o meu ataque, usando armas um pouco menos afiadas.

- Tende a bondade de me explicar esse assunto da disputa de propriedade - disse eu.

- Padre, é demasiado aborrecido.

- Deixai que seja eu a julgar isso.

- Mas padre, não posso explicar - ela abriu as mãos. - Não posso explicar porque não compreendo. Sou uma mulher simples. Uma mulher ignorante.

E eu, minha senhora, sou um rei leproso, foi a minha resposta imediata a esta observação (tão manifestamente dissimulada). Mas contive-me para não pronunciar o pensamento em voz alta. Em vez disso, observei que, se ela, de facto, procurara ajuda junto do padre Agostinho, devia ter tido alguma forma de comunicar as suas dificuldades.

- Ele leu os papéis - respondeu ela. - Há documentos...

- Mostrai-mos.

- Não posso. Dei-os ao padre Agostinho.

De súbito, tornei-me impaciente. Não acontece com muita frequência, asseguro-vos, mas o meu tempo era limitado, e ela exibira uma subtilidade quase insolente nas suas respostas. Competia-me, pensei, mostrar-lhe que tinha conhecimento de certos factos importantes.

- O padre Agostinho escreveu ao bispo de Pamiers sobre a vossa filha - declarei. - Mencionou que ela estava possuída por um demónio. Poderia ser por isso que precisáveis do conselho dele, e não do conselho de um padre rural, com pouca educação?

Usar informações desta maneira é usá-las como uma arma. Eu já o fizera muitas vezes, ao interrogar testemunhas, e a resposta é sempre gratificantemente intensa. Vi pessoas engasgarem-se, chorarem e mudarem de cores; vi-as ajoelharem-se, numa súplica, e tentarem arranhar-me o rosto, furiosas. Mas Johanna de Caussade continuou a olhar-me sem qualquer alteração na sua expressão. Finalmente, disse:

- Agostinho falava muitas vezes de vós - e fui eu que respondi com um engasgo.

Será que ela omitira aquele importante título intencionalmente? - Ele dizia que éreis muito inteligente e persistente – continuou ela - e que trabalháveis muito, mas que não tínheis a alma de um inquisidor. Disse que tratáveis o assunto como um desporto, como caçar porcos - que não sentíeis o mesmo que ele. Ele desaprovava tal leviandade. Mas eu não...

Podeis imaginar o que senti, chegado a este ponto? Podeis imaginar ouvir, da boca de uma mulher desconhecida, que o vosso falecido e respeitado superior vos considerava assim deficiente num aspecto tão fundamental? E que ela tivesse o descaramento de o dizer! Asseguro-vos que fiquei sem palavras.

- Penso que isso mostra que tendes alguma fraqueza humana, e piedade - observou a viúva. Em seguida, sem pedir autorização, sentou-se, com um suspiro, na sua arca de enxoval.

- Vou contar-vos isto, porque, se tentar escondê-lo, sei que, mesmo assim, descobrireis. Não descansareis enquanto não o fizerdes. Mas peço que guardeis só para vós o que vos vou contar, padre. Não é para os ouvidos de outra pessoa. Finalmente, encontrei a minha voz. Com grande satisfação, informei-a de que não podia fazer tal promessa.

- Não? - ela ficou a pensar, por escassos instantes. - Contastes a mais alguém sobre a minha filha?

- Ainda não.

- Nesse caso, sabeis como guardar os vossos projectos para vós próprio - disse ela. Que cumprimento! Eu, um inquisidor de Depravação Herege e de há muito confessor de incontáveis irmãos - Eu, Bernard de Peyre de Prouille - fora julgado como um homem capaz de guardar os meus projectos para mim próprio!

De súbito, eu já não estava irritado mas divertido. A audácia da mulher era tão extrema que quase exigia a nossa relutante admiração.

- Sim - concordei, cruzando os braços -, sei guardar um segredo. Mas por que devo guardar o vosso?

- Porque não é só meu - respondeu ela. - Compreendeis, é que a minha filha é filha de Agostinho.

Acreditai quando vos digo que, de início, não compreendi o total significado desta revelação. Depois, à medida que as palavras dela penetravam as profundezas da minha alma, perdi o controlo do meu corpo, e tive de me encostar à parede para me segurar - senão teria caído.

- Ela nasceu há vinte e cinco anos - passou a viúva a informar-me, de uma forma indiferente, sem me dar tempo para me concentrar.

- Eu tinha dezassete anos, era filha única de um rico importador de tecidos finos, e era muito devota. Queria ser freira. O meu pai, que desejava um neto, tentou convencer-me de que devia casar, mas eu estava impressionada por histórias de virgens santas martirizadas - após ter feito esta observação, Johanna esboçou um pequeno sorriso forçado.

- Vi-me como a próxima Santa Ágata, compreendeis? O meu pai, desesperado, foi ter com o padre Agostinho, que era seu conhecido. Nessa altura, Agostinho tinha quarenta e dois anos, era muito alto e tinha uma postura real, como um príncipe. Muito erudito. Muito...

- fez uma pausa. - Ele tinha um fogo na barriga - disse ela, por fim -, e via-se-lhe nos olhos. Como os olhos dele me inquietavam! Mas eu era muito devota, deveis lembrar-vos. E jovem. E bonita. E estúpida. E quando falávamos em amar a Deus, eu pensava em amar Agostinho. Naquela altura, parecia-me a mesma coisa.

De súbito, desatou a rir às gargalhadas, e abanava a cabeça de espanto. No entanto, a incredulidade dela não conseguia corresponder à minha. Ao tentar imaginar o padre Agostinho como um apaixonado e vigoroso objecto de desejo inquietador de almas, eu falhava miseravelmente.

- Ele prometeu ao meu pai que olharia para o meu coração, para ver se eu era verdadeiramente uma noiva de Cristo - explicou a viúva.

- Falámos várias vezes, sentados no jardim de meu pai, mas falávamos apenas de Deus e de Jesus e dos santos. O amor do divino.

Eu podia tê-lo ouvido falar de qualquer coisa - podia tê-lo ouvido pronunciar a mesma palavra, sempre de novo! Não teria feito diferença. Houve outra pausa. Estendeu-se até que fui obrigado a incitá-la a prosseguir.

- E depois? - perguntei.

- E depois ele decidiu que eu não devia ser freira. É claro que ele deve ter percebido que eu estava apaixonada por ele - talvez ele me visse por aquilo que eu era, uma rapariga emotiva com ideias tontas. De qualquer forma, ele disse ao meu pai que eu estaria melhor casada. Disse-me a mesma coisa. E tinha razão, sabeis, tinha muita razão - a viúva acenou a cabeça para si própria, a sua atitude subitamente séria; não estava a olhar para mim, mas para a parede atrás de mim. - Mesmo assim, eu estava muito infeliz - sentia-me tão traída. Um dia, quando o encontrei na rua, recusei-me a olhar para ele, ou a falar com ele. Passei simplesmente por ele. Uma coisa tão estúpida e infantil para se fazer. Mas acreditais, padre... - (aqui ela voltou a rir) -... acreditais que ele ficou terrivelmente ofendido?! Penso que ofendi o orgulho dele. Veio a minha casa, e eu estava sozinha, e tivemos uma grande discussão. Terminou como se podia esperar: eu estava a chorar, e ele abraçou-me... bem, podeis imaginar o que aconteceu.

Podia, mas tentei não o fazer. Dar abrigo a pensamentos tão impuros dificilmente será melhor do que agir sob o seu domínio.

- Só aconteceu essa vez, porque - bem, porque ele estava tão envergonhado. Sei que ele nunca se perdoou; tinha quebrado os votos, compreendeis? E depois dei comigo grávida. Não disse a ninguém, mas um filho é uma coisa que não se pode esconder para sempre. O meu pai viu o que tinha acontecido, e bateu-me até que eu lhe dei o nome de Agostinho. O pobre Agostinho foi enviado para longe - eu nunca soube para onde. O prior dele estava muito ansioso para que nenhum escândalo arrastasse Agostinho - ou o priorado -, por isso todo o assunto se transformou num grande segredo, por graça de Deus. Quanto a mim, com a ajuda de um enorme dote, o meu pai convenceu Roger de Caussade a casar-se comigo e a sustentar o meu filho. O meu único filho. Uma menina - finalmente, a viúva olhou-me. - A filha de Agostinho.

Esta era, então, a história de Johanna. Não a considerei incrível; acreditei em todas as palavras, embora a imaginação me tenha falhado (graças a Deus), quando tentei conceber o padre Agostinho a abraçar apaixonadamente uma rapariga de dezassete anos. Também achei impossível comparar o ingénuo e ardente objecto do desejo dele, surgido perante os olhos da minha mente como uma aparição fantasmagórica, com a mulher que estava sentada na arca de enxoval, tão calma, tão senhora de si, tão manifestamente para além da sua juventude. Era absolutamente como se ela falasse de outra pessoa.

- E o vosso marido já morreu, agora? - perguntei.

- Morreu, e o irmão ficou-lhe com a casa, embora a propriedade do meu pai seja minha. A família de Roger nunca gostou de mim. Suspeitam de que a minha filha não é dele.

- Mas que estais aqui a fazer? - esta era a pergunta mais premente na minha cabeça. - Viestes para cá por causa de Agostinho?

- Oh, não! - pela primeira vez, ela ficou realmente animada: levantou as mãos e entrelaçou os dedos por baixo do queixo. - Não, não. Eu não fazia ideia onde ele estava.

- Porquê, então?

- Por causa da minha filha. Tinha de encontrar um sítio para a minha filha.

Em resposta a um interrogatório delicado mas persistente, ela revelou que a filha, sendo uma rapariga doce e bonita, nunca estivera "muito bem". Mesmo quando era pequenina, era assolada por pesadelos, raivas súbitas, períodos de anormal letargia. Sermões inflamados faziam-na chorar incontrolavelmente e mutilar a sua própria carne. Aos doze anos, experimentara uma "visão de demónios", e começara a gritar sempre que o primo se aproximava dela, dizendo que ele estava rodeado por um "halo negro". Os seus problemas pioraram com o passar dos anos: caía para o chão, a cuspir e a gritar e a morder a língua; por vezes sentava-se aos cantos, a balouçar para trás e para a frente, falando sem nexo; outras vezes gritava repetidamente, sem qualquer razão aparente.

- E, no entanto, é uma boa menina - insistiu Johanna. - Uma boa menina, tão doce e piedosa. Não fez mal nenhum. É como uma criança pequena. Não consigo compreender... - "Tal conhecimento é demasiado prodigioso para mim; é elevado, não consigo chegar até ele". Os caminhos do Senhor são misteriosos, Johanna.

- Sim, foi o que me disseram - respondeu ela, de uma forma bastante impaciente. - Consultei muitos sacerdotes e freiras, e disseram-me que os castigos de Deus podem ser cruéis. Alguns deles disseram-me que ela era atormentada por um demónio. As pessoas atiravam-lhe pedras na rua porque ela gritava e cuspia. O meu marido começou a ter tanto medo dela que recusava deixá-la entrar em casa. Ninguém casaria com ela. Eu não tinha alternativa; mandaram-na viver para um convento. Ela queria ir, e pensei que isso poderia ajudá-la. Paguei todo o dote dela à Igreja. Se fosse mais pequeno, ela teria sido recusada, penso.

- Pensais? - embora haja uma grande falta de caridade no mundo, eu não podia acreditar que algures, entre todas as comunidades dedicadas ao serviço de Cristo, não houvesse uma à qual o socorro de uma alma atormentada não conseguisse recomendar-se. Deus sabe que encontrei muitos monges mutilados e atormentados pelo demónio, no meu tempo. - Mas, por fim, ela foi admitida.

- Sim, pelos seus pecados. Tentaram fazer com que os demónios saíssem dela com pancada! Disseram-me que ela estava a morrer, e quando fui visitá-la, estava deitada na sua própria... na sua própria imundície - a lembrança ainda afectava Johanna; corou ligeiramente enquanto contava como a encontrara, e a voz tremia-lhe. - Por isso levei-a. O meu marido morrera, por isso levei-a. Fui para Montpellier, onde ninguém nos conhecia suficientemente bem para que lhe atirassem pedras na rua. E conheci Alcaya.

- Ah, sim. Alcaya - Alcaya, parecia, era neta daquele mesmo Raymond-Arnaud de Rasiers que construíra a casa em que estávamos sentados. Quando era pequena, tinham-na mandado viver com parentes em Montpellier, depois de os pais terem morrido na prisão. Casara, mas deixara o marido para ir viver, durante algum tempo, com algumas pessoas religiosas (Johanna falou dessas pessoas tão vagamente, com uma falta de compreensão tão evidente que fui incapaz de as identificar). Quando Johanna a conheceu, Alcaya levava uma vida que poderá ser melhor descrita como mendicante, pedindo esmolas para comer, dormindo sob o tecto de amigos caridosos, passando uma grande parte do seu tempo sentada junto aos poços municipais a falar com as mulheres que iam buscar água. Por vezes lia-lhes partes de um dos três livros que trazia sempre consigo. Parecia-me, do que ouvia, que ela se via como uma pregadora - e achei isso muito perturbador.

- Um dia a minha filha caiu na rua - relatou Johanna -, e alguém lhe atirou com um balde. Toda a gente se assustou com os seus gritos, excepto Alcaya. Alcaya pegou na minha filha e rezou. Disse-me que Babilónia era especial, e próxima de Deus; falou de muitas santas (não me lembro dos nomes, padre), que, quando viram Deus, choraram durante dias, ou dançaram como se estivessem embriagadas, ou gritaram sem parar até acordarem do seu transe. Alcaya disse que a minha filha estava exaltada no seu amor por Deus - a viúva olhou-me de uma forma hesitante e preocupada. - É verdade, padre? Os santos comportam-se assim?

Não pode haver dúvidas de que muitas mulheres santas (e homens santos), na sua exaltação mística, são levados a uma conduta que poderá parecer quase de loucura. Falam entusiasticamente de visões; parecem mortos; andam à roda ou falam línguas estranhas. Já li sobre tal loucura santa, embora nunca a tenha testemunhado.

- Alguns abençoados servidores de Deus foram conduzidos a actos estranhos, no seu êxtase - respondi, com algum cuidado. - No entanto, nunca ouvi dizer que são dados a morder a língua. Pensais que a vossa filha está... hum... a entrar na alegria do Senhor quando cai e morde a língua?

- Não - respondeu a viúva, de imediato. - Se Deus está com ela, então por que é que as pessoas têm medo? Por que é que Agostinho tinha medo? Ele pensava que era obra de Satanás, não de Deus.

- E vós?

A mulher suspirou, como que cansada de confrontar um dilema já velho e cediço.

- Sei apenas isto - disse ela num tom terminante. - Sei que ela está melhor quando come e dorme bem, quando é livre de andar por onde lhe apetece, sem ser incomodada. Sei que ela está melhor quando é amada. Alcaya ama-a. Alcaya sabe acalmá-la e fazê-la feliz. Por isso vim para cá com Alcaya.

- E por que é que Alcaya veio? - perguntei. - Para reclamar a sua herança? Este sítio agora pertence ao Rei.

- Alcaya queria encontrar paz. Todas queríamos encontrar paz. Vitalia também. Teve uma vida difícil.

- Pai? - exclamei, e ela percebeu imediatamente o que eu queria dizer.

- Este era um local pacífico. Antes de Agostinho chegar.

- Ele queria que vos fôsseis embora.

- Sim.

- Ele tinha razão. Não podeis viver aqui no Inverno.

- Não. No Inverno, iremos para outro sítio.

- Devíeis ir agora. Este não é um local seguro.

- Talvez - disse ela calmamente, os olhos postos no chão.

- Talvez? Vistes o que aconteceu ao padre Agostinho!

- Sim.

- Pensais que estais protegidas contra tal destino?

- Talvez.

- A sério? E será porquê?

- Porque eu não sou inquisidor.

Ao dizer isto, ela levantou os olhos, e não vi neles qualquer vestígio de lágrimas. A expressão do seu rosto era sombria, exausta, impaciente. Eu disse-lhe, com genuína curiosidade:

- Recebestes bem o padre Agostinho de volta à vossa vida? Ou ele incomodou-vos?

- Ele tinha o direito de me incomodar. Babilónia é dele, assim como é minha.

- Ele estava preocupado com Babilónia?

- É claro. Não tinha qualquer interesse por mim. Mas quando o padre Paul lhe disse os nossos nomes, ele quis ver a filha. Correu um grande risco, sabeis? Eu podia tê-lo coberto de vergonha perante o mundo, quando ele chegou aqui com os guardas. Eu podia ter revelado tudo - ele não tinha qualquer garantia de que eu não o faria. No entanto, veio. Veio para conhecer Babilónia - a viúva abanou a cabeça. - E quando o fez, não disse nada. Parecia insensível. Um homem estranho.

- E quando vos viu a vós? Como é que ele reagiu nessa altura?

- Oh, estava irritado comigo. Estava irritado comigo por ter trazido Babilónia para este lugar - a expressão confusa de Johanna tornou-se sardónica. - Ele odiava Alcaya.

- Porquê?

- Porque ela discutia com ele.

Notatio de Johanna da sua amiga não era atractiva. Parecia que Alcaya era perigosamente não-ortodoxa no seu comportamento, se não nas suas crenças. - Pensais que Alcaya desejaria vê-lo morto?

- Alcaya? - gritou a viúva. Olhou-me com espanto, desatando depois a rir. Mas o seu riso depressa se extinguiu. - Não podeis acreditar que Alcaya matou Agostinho - disse ela. - Como podeis pensar tal coisa?

- Pensai, madame, que eu nunca conheci Alcaya. Como é que hei-de saber do que ela é capaz?

- Eles foram cortados em pedaços! Cinco homens adultos!

- Podem contratar-se assassinos.

Ela olhou-me com tal desconcerto - tão manifesta perplexidade - que dei comigo a sorrir.

- Admitirei, contudo, que ela não ocupa o topo da minha lista de suspeitos - acrescentei.

Johanna pareceu aceitar isto; a nossa conversa virou-se para outros tópicos, passando do tempo atmosférico para Montpellier, para as mul-tifacetadas virtudes do padre Agostinho. Culpavelmente, talvez, considerei um grande alívio discutir o meu superior com alguém que o conhecera na intimidade e que não era um irmão monge.

- Ele obrigava-se a trabalhar muito - observou ela a determinada altura. - Desprezava a sua própria fraqueza. Eu dizia-lhe: "Estais demasiado doente. Se tendes de vir, ficai mais tempo". Mas ele recusava.

- Era uma alma ardente - concordei. - Acordado toda a noite - a viver de sobras da cozinha. Deve ter sentido que a sua vida estava a chegar ao fim.

- Oh não, foi sempre assim. Era a sua natureza. Um bom homem, mas quase bom de mais. Se sabeis o que eu quero dizer.

- Sei, sim. Bom de mais para se viver com ele - ri. - E a vossa filha é igual?

- Nada disso. Ela é boa como um cordeirinho. Agostinho era bom como... como...

- Uma águia - lembrei-lhe, calmamente, que se devia referir a ele como "padre" Agostinho. - Pergunto a mim próprio - será que ele pensava muitas vezes nela, ao longo dos anos? Se eu tivesse uma filha, rezaria por ela todos os dias.

- Vós não sois como Agos... como o padre Agostinho.

- Não precisais de mo lembrar, asseguro-vos. Os meus defeitos são muitos.

- E os meus também. Ele estava sempre a dizer-me isso.

- O castigo da vossa paz - disse eu, mas ela não percebeu a alusão. - Acreditai, nenhum de nós o igualou. E ele também ralhava com a filha?

- Oh, não. Nunca. Não se pode ralhar com Babilónia porque nenhum dos seus pecados é dela - pela primeira vez, vi os olhos da viúva humedecerem. - Ele amava-a. Tenho a certeza disso. Tinha um grande coração, mas tinha vergonha dele. Pobre homem. Pobre homem, e eu nunca disse a Babilónia...

- Nunca dissestes a Babilónia o quê?

- Que ele era o pai dela - a viúva soluçou. - De início, ela tinha medo dele, e eu estava à espera. Ela estava a começar a conhecê-lo, e ele estava a começar a sorrir-lhe... foi tão cruel. Tão cruel.

- De facto - disse eu. As lágrimas dela tinham-me convencido, como as lágrimas tão raramente fazem, de que Johanna não era de forma alguma responsável pela morte do meu superior. Não eram lágrimas fáceis, compreendeis? Eram-lhe arrancadas, uma fonte de profunda vergonha.

O seu efeito regenerador sobre a argila seca dos meus afectos quase que me levou ao ponto de lhe afagar a mão. Mas contive-me.

- Perdoai-me - balbuciou ela. - Perdoai-me, padre, não tenho

dormido nada.

( - Não há nada para perdoar.

- Quem me dera tê-lo amado mais. Ele tornava as coisas tão difíceis.

- Eu sei.

- Podia ser tão aborrecido! Por vezes, eu queria bater-lhe, e, quando aconteceu - aquela coisa terrível -, senti-me como se eu a tivesse provocado...

- Gostaríeis que ouvisse a vossa confissão?

- O quê? - ela levantou o olhar e pestanejou; parecia assustada. ' - Oh, não. Não, não - disse, recompondo-se imediatamente. -

Não há necessidade disso.

- Tendes a certeza?

- Não estou a esconder nada, padre - o tom dela era brusco. -

Foi por isso que viestes? Para descobrir se o matei?

- Para descobrir quem o matou. E para o fazer, tenho de saber tudo quanto há para saber. Sois uma mulher inteligente, Johanna - devíeis compreender. O que faríeis, no meu lugar?

Ela olhou-me, e o seu rancor esvaneceu-se. Podia vê-lo a abandonar-lhe o rosto. Acenando lentamente com a cabeça, Johanna abriu a boca para falar, mas foi interrompida por um alarido de vozes exaltadas. Parecia vir, não do quarto ao lado, mas de mais longe. A julgar pelo som, tratava-se de uma discussão.

Alarmados, Johanna e eu trocámos olhares interrogativos. Em seguida apressámo-nos a sair para o exterior, para ver o que se passava.

 

Pois a tua luz chegou

Santo Agostinho escreveu, uma vez: "Todas as coisas são tão presentes para aquele que é cego como para aquele que vê.

Um homem cego e um que é dotado de visão, encontrando-se de pé no mesmo local, estão ambos rodeados pelas mesmas formas de coisas; mas um é presente para elas, o outro ausente... não porque as próprias coisas se aproximam de um e se afastam do outro, mas por causa da diferença dos olhos deles".

Ora eu descobri que esta mesma observação se aplica também quando duas pessoas têm visão. Uma delas pode olhar e ver uma determinada pessoa, uma determinada coisa, ou um determinado acontecimento, enquanto que a outra, de início, pode não ver a mesma pessoa, ou a mesma coisa, ou o mesmo acontecimento, mas outra coisa ou outro acontecimento completamente diferentes. Assim foi quando a viúva e eu saímos da casa. A minha própria impressão era de que os meus guardas (todos reunidos agora na paliçada) pareciam estar a partilhar qualquer tipo de brincadeira, pois o seu comportamento era jovial e relaxado. Tinham desmontado, e estavam a passar um odre de vinho de mão em mão.

Johanna, ao contrário, viu um grupo de soldados armados a ameaçarem a sua querida amiga, Alcaya. Sei-o porque ela me agarrou o braço e disse:

- Que estão eles a fazer? - numa voz urgente e desconcertada.

- A fazer? - disse eu. - O que quereis dizer com isso?

- Aqueles homens!

- São os meus guardas.

- Eles estão a ameaçá-la!

- Achais que sim? - olhando novamente, vi uma mulher mais velha a tentar desarmar um dos soldados, que estava a ser bem sucedido a escapar-lhe. Um dos seus companheiros agarrou-a por detrás, caindo depois, num sofrimento simulado, entre muitos risos, quando ela, febrilmente, lhe aplicava palmadas no pulso. - Parece-me que ela é que está a ameaçá-los a eles.

No entanto, dei um passo em frente e perguntei o que significava toda aquela confusão.

- Oh, padre, ela quer que nos vamos embora! - evidentemente, tal pedido foi considerado, por homens dedicados à profissão das armas, como uma enorme piada: algo indigno de ser tomado a sério; uma exigência que deveria ter sido feita no mesmo espírito leve como aquele com que foi recebida. - Eu disse-lhe que quem nos dá ordens é o senescal!

- Aquela é Alcaya - murmurou o padre Paul, que saíra da casa atrás de mim. - Alcaya, o que te incomoda? Estes homens estão aqui comigo.

- Padre, sois bem-vindo. Eles são bem-vindos. Mas assustaram Babilónia. Ela está escondida na montanha. Não virá enquanto eles não se forem embora.

- Oh, mas é tão tarde - protestou Johanna. - Ela tem de descer.

- Não quer - respondeu a mulher idosa. Examinando-a, fiquei surpreendido ao reparar que os seus modos não eram nem beligerantes nem de forma alguma autoritários; tinha uma expressão serena, e a sua voz, sendo rouca com a rouquidão da idade, parecia crepitar calorosamente, como uma lareira de cozinha. Tinha olhos azuis-brilhantes (uma cor que raramente se vê nestas paragens), e, quando ela me olhou, pareciam tão inocentes como os de uma criança. - Sois um homem alto, padre - disse ela. - Nunca vi um monge tão alto.

- E vós sois uma mulher baixa - a surpresa levou-me a dar uma resposta infantil. - Embora não sejais a mais baixa que já vi.

- Este é o padre Bernard Peyre de Prouille - interrompeu o sacerdote. - Deveis mostrar-lhe respeito, Alcaya, pois ele é inquisidor de Depravação Herege, e um homem importante.

- Bem vejo, pelo tamanho da sua escolta - Alcaya falou, estou convencido, sem qualquer intenção irónica; o seu tom era doce e sério. - Sois muito bem-vindo, padre. Estamos honradas - e fez uma vénia pronunciada.

- Johanna diz-me que sabeis ler - foi a minha resposta - pois eu estava interessado, intensamente interessado, naquilo que ela lia. - Vi um dos vossos livros, da abadessa Hildegard.

O rosto de Alcaya iluminou-se.

- Ah! - exclamou. - Que livro abençoado!

- De facto.

- Que sabedoria! Que devoção! Que padrão de virtude feminina! Padre, lestes esse livro?

- Várias vezes.

- Eu li-o muitas vezes. Li-o às minhas amigas.

- E os vossos outros livros? Gostaria de ver os vossos outros livros. Mostrais-mos?

- Com certeza! Com prazer! Vinde, estão em casa.

- Esperai - era Johanna que falava; estivera a observar-nos atentamente (após tê-la visto a observar-me, apercebera-me, a julgar pela compreensão que os seus olhos revelavam, de que o padre Agostinho devia ter exibido um interesse semelhante pelo assunto das leituras de Alcaya), mas agora a preocupação dela era com a filha. - E Babilónia? Ela está com medo de descer das montanhas. Ela não pode lá ficar, padre, depressa escurecerá.

- Não receeis. Vou mandar os meus guardas embora.

Os guardas, contudo, estavam imóveis. Tinham recebido instruções para não saírem de perto de mim, e eram firmes na sua obediência a esta ordem. Nada que eu pudesse dizer os dissuadiria.

- Se desobedecermos ao senescal, ele esfola-nos - assinalaram, inexactamente (Roger Descalquencs, que eu saiba, nunca esfolou ninguém). Pelo menos concordaram em sair da paliçada, deixando apenas um elemento à porta da casa, enquanto que o resto defendia o portão - que era quase indefensável. Com isto eu tinha de estar satisfeito.

- Se a vossa filha ainda estiver assustada - disse eu a Johanna -, partiremos todos. Mas espero que ela volte, pois estou ansioso por conhecê-la.

Dito isto, senti que demonstrara as minhas próprias boas intenções. Que mais podia eu ter feito? A viúva, no entanto, parecia esperar muito mais - na verdade, olhou-me com uma expressão de tão ansiosa súplica que até me senti mal. Por isso deixei-a e entrei na casa, onde Alcaya estava a tirar livros da arca de enxoval da amiga.

Manuseava-os afectuosamente, com grande reverência, e colocou-os nas minhas mãos como uma mãe colocaria o seu próprio filho recém-nascido nos braços de um padre que o fosse baptizar.

Havia dois livros: o tratado de São Bernardo de Claraval, On loving God, e o tratado sobre a pobreza, de Pierre Jean Olieu. Ambos tinham sido traduzidos para a língua vernácula, e a obra de São Bernardo era, de facto, um volume muito bonito, embora muito velho e em mau estado. Tereis lido, certamente, este tratado, e tereis rejubilado com aquele nobre princípio: "Desejas que te diga porquê e como Deus deve ser amado. A minha resposta é que o próprio Deus é a razão pela qual Ele deve ser amado". Haveria algum exordium mais simples, mais profundo, mais exultante (excepto o das próprias Sagradas Escrituras!)? A obra de Olieu, porém, é de um género completamente diferente. Este falecido franciscano professa-se impelido a escrevê-la "porque a astúcia de serpente do velho Inimigo (com isto ele refere-se ao Demónio) continua, tal como no passado, a arranjar problemas contra a pobreza evangélica". Olieu execra "certos pseudo-religiosos revestidos de autoridade para ensinar e pregar" - nomeadamente, dominicanos como eu próprio -, que condena por terem abandonado aquela rigorosa adesão à pobreza que ele considera um requisito para a salvação. Podeis não estar familiarizado com os livros e panfletos deste homem. Podeis não ter conhecimento de que eles inflamaram as paixões nos seus irmãos franciscanos, nesta parte do mundo. Acreditai quando vos digo que este obscuro frade do Sul, com as suas ideias erróneas e extremas, foi, ainda que de uma forma mínima, responsável pela obstinação dos quatro franciscanos queimados em Maio último em Avignon. Lembrais-vos do caso? Como tantos outros franciscanos, e até leigos, estavam obcecados com a ideia disparatada (realmente, bastante impraticável) de que os servidores de Deus como eles próprios deviam viver como indigentes, não possuindo nada, nem pessoalmente nem sequer em comum. Advogavam pedir esmolas vestidos de andrajos, e proclamavam que a Igreja se tornara "Babilónia, a grande prostituta, que arruinou e envenenou a humanidade!" Por que diziam eles isto? Porque, insistiam eles, a nossa Santa Igreja Apostólica se entregou à luxúria, à avareza, ao orgulho e à concupiscência. Alguns dos seus seguidores até chamam Anticristo ao nosso Sumo Pontífice, e pregam que se aproxima uma nova era, na qual eles próprios conduzirão a Cristandade à glória.

Bem, não preciso lembrar-vos do que já deveis saber; sem dúvida que conheceis o decretai Gkriosam ecclesiam, onde o Santo Padre apresenta muitos dos erros em que caíram os "homens presunçosos". Como inquisidor de Depravação Herege, fui naturalmente obrigado a estudar este documento com grande cuidado quando chegou às mãos do bispo, pois há uma nítida distinção que separa os que amam a pobreza dos que a adoram acima de tudo o resto - até acima da devida obediência à autoridade apostólica. Posso acrescentar que, até àquela altura, ainda não encontrara em Lazet ninguém cujas crenças parecessem ser eco daquelas que o Santo Padre rejeitava. Além disso, nenhum dos nossos irmãos franciscanos usava hábito "curto e justo" (como se condena naquele outro Decretal Quorundam exigit, do fim do ano passado), nem afirmava acreditar que o Evangelho de Cristo só neles se cumprira.

É claro que os nossos irmãos franciscanos de Lazet não são como muitos outros que habitam esta região. Não expulsaram o seu prior, legitimamente nomeado, a favor de um candidato mais solidário com as opiniões de Pierre Olieu e seus congéneres - seguindo o exemplo dos frades de Narbonne, em 1315. Aqui em Lazet, estamos talvez um pouco isolados das paixões e das ideias novas que perturbam a paz de outras cidades. Em Lazet, as nossas heresias são muito antigas e as nossas paixões previsíveis.

Mas já estou a divagar. O que desejo dizer é que o tratado de Pierre Olieu, embora seja lido por muitas pessoas de valor (cada vez mais, no entanto, numa tentativa de desacreditar aquilo que nele se afirma)... embora ainda seja largamente lido, e possa ser encontrado, por exemplo, na biblioteca dos frades franciscanos da própria cidade de Lazet - parece carregar uma mancha, ou talvez ressumar uma nuvem negra, especialmente desde que o Santo Padre, ainda não há muito tempo, encarregou oito teólogos de investigarem a Lectura do autor. Seja como for, o tratado exige agora uma desculpa, ou uma explicação. Por isso, procurei uma em Alcaya de Rasiers.

- O tratado sobre a pobreza - murmurei, virando as páginas com marcas de polegares, de tanto folheadas. - Lestes o seu comentário sobre o Apocalipse?

- O Apocalipse? - disse Alcaya, com um olhar de incompreensão.

- Pierre Jean Olieu escreveu outros livros sobre outros assuntos. Leste-los?

- Não, infelizmente - abanava a cabeça, a sorrir. - Uma vez ouvi alguém a fazer uma leitura de outro livro que se dizia ser dele. Sobre a Perfeição Evangélica?

- Questions on Evangelical Perfection. Sim, esse deve ter sido dele. Eu próprio não o li.

- O padre Agostinho leu. Disse que continha muitas falsidades.

- Ah, disse? - mais uma vez, eu sentia-me a encalhar nos passos do padre Agostinho. Naturalmente, ele teria examinado a alma de Alcaya com grande atenção. Naturalmente, ele tê-la-ia preso, se as crenças dela fossem, de alguma forma, não-ortodoxas.

Ou será que não?

Eu achava difícil aceitar que o padre Agostinho tivesse negligenciado o dever da sua religião por causa da felicidade da filha. Por outro lado, achava igualmente difícil imaginá-lo a conceber uma filha, em primeiro lugar.

- E que disse o padre Agostinho sobre este livro? - perguntei, indicando o tratado que tinha na mão. - Disse que continha muitas falsidades?

- Oh sim - respondeu a mulher animadamente.

- E, no entanto, conservai-lo ainda...

- Ele não disse que era todo falso. Só algumas coisas - reflectiu ela, por um instante. - Ele disse que não podia provar-se que Cristo era tão pobre, desde que nasceu até à morte, que não tivesse deixado nada à mãe.

- Ah.

- Perguntei-lhe se podia provar-se que Cristo não era pobre, desde que nasceu até à morte - continuou Alcaya, ainda a sorrir, como que de uma recordação encontrada. - Ele disse que não. Tivemos uma longa conversa. Era um homem muito sensato, o padre Agostinho. Um homem muito sensato e santo.

A ideia do meu superior a debater o usus pauper com esta dúbia idosa - constrangido, não duvido, por saber o quanto a filha a amava - quase trouxe um sorriso ao meu rosto. Quão frígidos os seus modos devem ter sido! Quão repelente ele teria achado tudo isso! E, tenho a certeza, quanto ele se teria deliciado ao condenar Alcaya a um interrogatório formal, se tivesse havido razão para o fazer. A complacência com que ela descrevia a "longa conversa", como se estivesse a descrever uma troca de palavras entre duas lavadeiras, causava-me arrepios.

Contudo, convinha-me esclarecer quaisquer dúvidas que eu poderia ter tido - o mais cuidadosamente possível.

- Dizei-me - instei, revendo mentalmente o texto do decretai Gloriosam eccksiam (já que, sobre este assunto, não tinha mais nenhuma autoridade para consultar), - discutistes outras falsidades com o padre Agostinho? Discutistes a Igreja, e se ela se desviou do caminho de Cristo, porque está a abarrotar de riquezas?

- Oh sim! - desta vez Alcaya riu alto. - O padre Agostinho disse-me: "Alguém te disse alguma vez que a Igreja Romana é uma prostituta, e que os seus sacerdotes não têm autoridade?" E eu respondi-lhe: - "Sim, padre - vós acabastes de o dizer! Certamente que não acreditais em tal coisa?!" Ele ficou vermelho que nem um pimento! Mas eu estava a brincar - acrescentou ela, como que para me tranquilizar. - É claro que ele não acreditava em tal coisa.

- E vós não acreditais?

- Oh não - uma plácida resposta. - Sou uma filha fiel da Igreja Romana. Faço o que os sacerdotes me dizem para fazer.

- Mas certamente que os sacerdotes não vos disseram para deixardes o vosso marido, nem para pedir esmola nas ruas, nem para virdes viver para aqui... Devo confessar, Alcaya, que a vossa vida não parece ser a vida de uma boa cristã. Parece ser algo perversa - a vida de uma mendiga. De uma fugitiva.

Pela primeira vez, a serenidade de Alcaya foi abalada. Suspirou, e pareceu triste. Em seguida colocou-me uma mão no braço, em jeito de confidência.

- Padre, tenho procurado uma forma de servir a Deus - revelou. - Não deixei o meu marido - foi ele que me pôs na rua. Eu não tinha dinheiro, por isso fui obrigada a pedir esmola. Quis juntar-me a uma comunidade religiosa, mas quem é que me aceitava? Só os beguinos, padre, e o que pregavam lá era falso.

- Falso, como?

- Oh, padre, eram pessoas muito boas, muito pobres, que amavam Cristo e São Francisco, mas diziam coisas terríveis sobre o Papa. O Papa e os bispos. Fiquei muito irritada com isso.

- Que pecado - respondi, o pulso acelerado. - E falastes ao padre Agostinho nessas pessoas?

- Oh, sim, padre.

- E dissestes-lhe os nomes delas?

- Oh, sim - ao responder a mais perguntas, Alcaya descreveu a comunidade em pormenor, de forma que consegui identificá-la como um grupo de membros da Ordem Terceira (na sua maioria mulheres) sob a protecção de um frade que, se não estava incluído nos quarenta e três que se exigiu que expiassem os seus erros em Avignon no ano passado, certamente que deveria ter estado. Alcaya também me informou de que alertara um sacerdote local para o que estava a ser pregado, entre essas pessoas, e, em seguida, deixara-as. - Depois juntei-me a algumas mulheres ligadas à vossa Ordem, padre, mas elas não gostaram de mim. Nenhuma delas sabia ler, compreendeis, e receavam-me e conspiravam contra mim - seguiu-se uma longa e tediosa divagação sobre o tipo de conspirações existentes na vida em comunidade, calúnia mútua e perversas retaliações que muitas vezes se encontram em famílias, tribunais, e instituições monásticas. Embora relacionados comigo em tónicas de tristeza e espanto, mais do que de amargura e cólera, os pormenores não eram nada edificantes, pelo que os desconsiderei. Bastará dizer que parecia haver um profundo antagonismo entre Alcaya e uma mulher chamada Agnes. - Fui atirada para a rua - continuou Alcaya - e foi aí que encontrei Babilónia. Vi imediatamente que ela estava próxima de Deus. Pensei: poderá ser este o objectivo que Deus tem traçado para mim? Deverei levar estas pessoas - como Babilónia e a pobre Vitalia - e conduzi-las para um lugar onde serão felizes no amor de Deus? A voz de Alcaya tornou-se mais rápida e mais animada, a expressão mais viva. - Compreendeis, padre, estas queridas virgens são movidas pelo mais puro amor de Deus; são como aquelas extraordinárias filhas de Sião, mantendo uma serena Virgindade, maravilhosamente adornadas de ouro e gemas, como testemunhou a abadessa Hildegard. Falei com elas sobre os seus desejos, e elas desejam - com tanta força, padre! - elas anseiam por abraçar Cristo com um amor casto, suspiram profundamente pela Sua presença, descansam em paz quando pensam Nele. Renunciaram às ânsias da carne, asseguro-vos; eu digo-lhes: "A carne não serve para nada, é o espírito que dá vida", e elas sabem-no. Falo-lhes do seu Noivo celeste, que entrará espontaneamente na câmara do seu coração, se estiver coberto com as flores da graça e os frutos da Paixão, apanhados da árvore da Cruz. Louvamo-Lo juntas - falamos daquele doce momento em que "A sua mão esquerda está debaixo da minha cabeça e a sua mão direita abraçou-me". E Babilónia sentiu a carícia dessas mãos, padre, imergiu no amor de Deus. Ela viu a Nuvem da Luz Viva, como a abadessa Hildegard - por esta altura, o tom de voz de Alcaya era arrebatado; os olhos estavam cheios de lágrimas. - Quando lhe li as visões do livro da abadessa, ela gritou de assombro. Reconheceu a Luz dentro da Luz. Ela tinha experimentado o momento de eterna harmonia que habitava dentro dessa Luz. Oh, padre, ela conheceu a união com Cristo! A luz do Amor Divino cegou-a; Babilónia perdeu a vontade e a alma dela chegou a Deus. Que bênção, padre! Que alegria, para todas nós!

- Sim, de facto - balbuciei, atordoado por este fluxo de palavras. Muitas delas eu reconhecia: eram as palavras de São Bernardo e da abadessa Hildegard. Mas estavam imbuídas de um certo êxtase, uma paixão ardente, que não pode ser simulada. Vi que Alcaya era movida por um verdadeiro e avassalador amor por Deus, uma ânsia pela presença divina, e isso era admirável.

Mas tal paixão pode ser perigosa. Pode levar a excessos. Só se pode confiar que unicamente a mais forte e a mais sensata das mulheres, movida por tal fervor, siga o caminho de Deus sem uma cuidadosa orientação (como Jacques de Vitry diz da mulher santa, Marie d'Oignes: "ela nunca se inclinava nem para a direita nem para a esquerda, seguindo pelo abençoado caminho do meio com uma espantosa moderação").

- Padre, quando eu era pequena - continuou Alcaya, mais calmamente, agora -, subi àquela montanha ali, e ouvi os anjos. Foi a única vez que os ouvi em toda a minha vida. Assim, quando Johanna me falou dos receios que sentia em relação à filha, eu soube que Babilónia seria feliz aqui, onde os anjos cantam. Sabia que ninguém nos tiraria este tecto, que me abrigou quando eu era criança. Soube que, com a ajuda de Johanna, podíamos vir para aqui viver, felizes e devotas, à vista de Deus - inclinando-se para a frente, Alcaya pegou-me nas mãos e levantou o olhar para o meu rosto, e o seu próprio semblante estava inundado de um vivo e sorridente contentamento. - Sentistes o amor de Deus aqui, padre? A paz perfeita da Sua glória encheu-vos o coração?

Que poderia eu dizer? Que o amor de Deus era uma bênção que eu procurara arduamente durante toda a minha vida, mas que raramente o atingira satisfatoriamente? Que a minha alma estava vergada sob o peso do meu corpo corruptível, de forma que (nas palavras de São Bernardo) a vida terrena me preocupava a mente, ocupada com muitos pensamentos? Que eu era mais um homem de natureza prática do que espiritual, incapaz de me perder na contemplação do Divino?

- Quando olho para aquela montanha - respondi grosseiramente -, o meu coração enche-se, não de paz, mas de imagens dos membros decepados do padre Agostinho.

Deus me perdoe por isso. Foi dito com uma intenção maldosa, e afastou a alegria dos olhos de Alcaya.

Deus me perdoe por ter fechado o coração à Sua presença.

Não conheci Babilónia nesse final de tarde. Ela não regressava enquanto os soldados ali estavam, e os soldados recusavam ir-se embora, a não ser que eu os acompanhasse. Esperei durante algum tempo, conversando com Alcaya, ao mesmo tempo que observava Johanna (cujas subtis mudanças de expressão apontavam para pensamentos que eu teria gostado de partilhar). Mas, por fim, fui obrigado a deixar a forcia enquanto ainda havia luz no céu - já que os meus guardas estavam ansiosos por chegar a Casseras antes que a escuridão caísse.

Regressei com eles, decidindo que, quando o Sol nascesse, voltaria secretamente à forcia, sozinho. Desta forma, ganharia algum tempo com Babilónia, antes que a minha escolta me encontrasse e a assustasse. Veria também as mulheres na perfeição da sua paz imperturbável, e julgaria se, como Alcaya insistira, se tratava verdadeiramente da paz de Deus. Uma afirmação tão arrogante - que eu tinha dentro de mim o poder para julgar o que era, e o que não era, a paz que ultrapassa toda a compreensão!

Agora conheço melhor as coisas. Mas mesmo naquela altura, fui afectado pelo fervor de Alcaya. Sentira o seu calor, e estava curioso para descobrir o fogo de onde provinha. Queria conhecer Babilónia e decidir se ela estava, de facto, "próxima de Deus", ou se estava possuída por um demónio; queria examinar as feições dela, à procura de um traço daquelas outras feições, que outrora me eram tão familiares e que agora estavam a desaparecer da minha lembrança.

Devo admitir, também, que sentia necessidade de terminar a minha conversa com Johanna, que fora interrompida antes de a minha curiosidade ter sido satisfeita. Era nisto que eu acreditava verdadeiramente, embora estivesse, talvez, mais carnalmente inclinado nos meus desejos do que a minha consciência permitia - quem sabe? Só Deus. Eu era atraído para Johanna e admiti-o para mim próprio nessa noite, quando estava deitado na minha enxerga em casa do sacerdote. Mas resolvi seguir a razão e não o coração. Bani da minha mente todos os pensamentos relacionados com ela (como tenho feito tantas vezes, com tantas reflexões ímpias), e procurei o perdão de Deus, e meditei no Seu amor, que não procurara com tanto proveito como devia, e que não conhecera como teria desejado. É claro que eu conhecia o amor de Deus como todos o conhecemos: nomeadamente, nas dádivas que Ele nos concedeu (... vinho que alegra o coração do homem, e óleo que faz com que o seu rosto brilhe, e pão que fortalece o coração do homem..), mas, sobretudo, na dádiva do Seu Filho unigénito. Eu lera, e tinham-me dito, e, no meu coração, sabia que era verdade que Deus ama o mundo. Mas eu lera também sobre o Seu amor na forma como esse amor tocou os santos. Lera sobre São Bernardo, "abraçado por dentro, como foi, pelos braços da sabedoria" e recebendo "a doce inundação do Amor Divino". Lera sobre Santo Agostinho, rejubilando "quando aquela luz brilha para dentro da minha alma" e quando "se desfruta daquele abraço que a saciedade não separa". Este era o amor divino na sua pureza, na sua própria essência; reconheci-o como se reconheceria uma montanha distante e bela, eternamente inatingível.

No entanto, Babilónia pode tê-lo alcançado. Alcaya acreditava que sim, o padre Agostinho acreditara que não. Eu estava mais inclinado a confiar no julgamento do padre Agostinho, naturalmente - ele fora um homem de sabedoria, de erudição, de grande experiência e virtude. Contudo, Alcaya, de certa forma, agitara a minha alma, e perguntei a mim mesmo: será que o padre Agostinho, apesar de toda a sua sabedoria, erudição e virtude, sentiu alguma vez verdadeiramente a inundação do Amor divino? Teria ele reconhecido a sua manifestação noutra pessoa? Teria ele, como Jacques de Vitry, visto a presença de Deus no choro descontrolado de Marie d'Oignes, ou teria ele sido como aqueles outros homens, condenados pelo acima mencionado Jacques, que maliciosamente caluniaram a vida ascética de tais mulheres e que, como cães raivosos, censuravam os costumes que eram contrários aos seus próprios costumes?

Mas castiguei-me a mim próprio. O padre Agostinho não fora nenhum cão raivoso, e Marie d'Oignes nunca foi apedrejada nas ruas. Apercebi-me de que a minha mente estava toldada pelo cansaço, e encaminhei os pensamentos para outros assuntos. Pensei no tratado de Pierre Jean Olieu, que fora dado a Alcaya durante a sua breve estadia com os não-ortodoxos franciscanos membros da Ordem Terceira. Perturbava-me o receio de não a ter interrogado tão exaustivamente como devia relativamente às suas ideias sobre a pobreza de Cristo. É claro que ela se descrevera como uma "filha fiel da Igreja Romana", que fazia o que os sacerdotes lhe dizÍam - e, assim, não rejeitava a autoridade destes, na base de que tais sacerdotes não eram nem purificados pela frugalidade nem devotos do erro insensível. Além disso, eu sabia que o padre Agostinho percorrera aquele caminho antes de mim, e não conseguiu identificar Alcaya como estando enamorada da Santa Pobreza ao ponto de colocar a sua alma em perigo.

No entanto, eu deveria ter esclarecido as minhas dúvidas sobre este ponto, e resolvi fazê-lo.

Pensei também nas outras pessoas que tinham de ser interrogadas: o preboste de Rasiers; as crianças, Guillaume e Guido; os pastores locais que apascentavam as suas ovelhas nas proximidades da forcia. Seria uma tarefa difícil, porque esta não era uma inquisição formal, com procedimentos fixos como os que estavam estabelecidos na obra Speculum judiciale, de Guillaume Durant (alguma vez consultastes a sua obra?), e os que se tinham instituído, ao longo dos anos, pelo costume e por decreto papal. Os depoimentos dados ao Santo Ofício são sempre transcritos por um notário, na presença de dois observadores imparciais - como sejam os dois dominicanos, Simon e Berengar, geralmente presentes nos meus interrogatórios. Devem ser feitos e registados juramentos; as acusações devem ser reveladas ou ocultadas, de acordo com o que parece conveniente; deve ser concedida ou recusada autorização para um adiamento - novamente de acordo com o que parece conveniente. Há regras, e as regras devem ser seguidas.

Mas neste caso a inquisição era informal, e eu não tinha regras para me guiar. Para começar, a minha autoridade estendia-se apenas à extirpação de hereges: não era da minha competência descobrir os assassinos do padre Agostinho, a não ser que fossem motivados, ou inspirados, por crenças hereges. Outro homem poderia muito bem ter preso toda a população de Casseras, seguindo o raciocínio (com justiça, talvez - quem sabe?) de que qualquer pessoa que se encontrasse nas proximidades do local onde tal crime se perpetrou deve, por este mesmo acto, ser implicado como fermento dos Fariseus. Eu não estava, porém, convencido de que tal acção fosse o melhor caminho a tomar. De qualquer forma, onde se colocaria o povo de Casseras, quando a nossa prisão já estava a rebentar pelas costuras com o povo de Saint-Fiacre?

Como eu desejava que o padre Agostinho estivesse a meu lado! Ele teria sabido o que fazer. Senti que a minha experiência era insuficiente, afundando-me num pântano de informação esparsa e que era, de alguma forma, importante: Bernard de Pibraux e os seus três jovens amigos, os membros espalhados e os cavalos desaparecidos, o tratado de Pierre Jean Olieu, a carta do padre Agostinho para o bispo de Pamiers. O padre Agostinho escrevera que Babilónia estava possuída por um demónio; se eu a conhecesse, será que me encontraria a confrontar o Inimigo Inveterado da Raça Humana? São Domingos fizera-o tantas vezes, e triunfara, mas eu não era santo - a perspectiva fazia-me tremer.

Lembro-me de que estava a rezar devotamente por um novo superior, quando, de súbito, adormeci. E sonhei, não com anjos nem demónios, mas com velas, muitas centenas delas, num local enorme e escuro. Assim que acendia uma dessas velas, outra era apagada por meios misteriosos (pois não havia nem sopro de vento), e eu era obrigado a voltar mais uma vez para trás com o meu círio. Passei toda a noite, segundo parecia, a correr de vela para vela. E acordei antes do nascer do Sol - como era meu costume -, horrorizado ao ver que, apesar de todo o trabalho incessante que tivera, ainda estava rodeado de escuridão!

Devo dizer-vos que falara com o padre Paul antes de me retirar, mas não lhe perguntara se ele me acompanharia à forcia. Diante de uma humilde refeição de pão e queijo, tínhamos falado do padre Agostinho e da sua morte, mas não mencionei que desejava visitar novamente as mulheres - sabendo que, na sua preocupação pela minha segurança, sem dúvida que o padre Paul teria alertado os meus guardas. Assim, fui obrigado a deixar a casa dele o mais silenciosamente possível. O facto de que um soldado fora alojado na cozinha, com o objectivo específico de me proteger de algum ataque nocturno, dificultava a execução dos meus planos; embora tivesse saído descalço do meu quarto, acordei-o, e fui obrigado a sussurrar-lhe a mentira de que ia aliviar a bexiga. Ele mal ouviu esta observação, antes de voltar a fechar os olhos. Mesmo assim, eu sabia que, quando eu não regressasse, o seu instinto de guarda o despertaria. Consequentemente, avancei a toda a pressa, parando apenas para calçar as botas que trazia na mão.

Não podia selar o meu cavalo, porque estava a partilhar um palheiro com os guardas. Em vez disso, tive de partir a pé, como um verdadeiro mendicante, o caminho iluminado pela mais ténue luz da aurora. Este brilho tornava-se, naturalmente, mais vivo à medida que eu caminhava. Depois o Sol nasceu, as estrelas desapareceram, os pássaros acordaram, e, sem dúvida, eu devia ter reflectido, como São Francisco, sobre a bela variedade destas criaturas, que receberam a palavra de Deus com tanta alegria quando Ele lhes pregou. Mas eu estava cego pelo meu próprio medo. Na verdade, a minha coragem ao empreender esta viagem fora baseada no medo. Quanto mais medo tinha, mais teimava no meu desejo de provar que era corajoso - másculo - e destemido. Não receeis, escrevera eu na minha missiva para o padre Paul. Fui dar uma volta até à forcia, e regressarei em breve. Deus perdoe a minha vaidade! Mas estava a começar a lamentar tê-lo feito, permiti que vos assegure: o ar estava tão calmo, a estrada tão vazia, a luz tão esbatida. Um resmalhar nos arbustos à minha esquerda fizera com que eu parasse, para depois redobrar o passo, e depois parar novamente. Lembro-me de ter pronunciado as palavras: "O que estou eu a fazer?", e teria voltado para trás de boa vontade, não fosse o facto de ter comunicado as minhas intenções ao padre Paul. Ao voltar para trás, eu estaria também a admitir que tivera medo de avançar. Novamente, que vaidade!

Por isso, continuei, repetindo para mim próprio certos salmos, assim como os requisitos em tempos listados por Bernard Gui como sendo necessários para um bom inquisidor (pois, ao longo dos anos, tínhamo-nos correspondido muito, exactamente sobre este assunto). Segundo Bernard - e quem estará melhor colocado para julgar? - o inquisidor deve ser constante, perseverante entre os perigos e adversidades, mesmo até à morte. Deve estar disposto a sofrer pela causa da justiça, nem precipitando imprudentemente o perigo nem batendo vergonhosamente em retirada por medo, pois tal covardia enfraquece a estabilidade moral. Perguntei a mim próprio se precipitara o perigo imprudentemente, ao deixar Casseras sozinho, e decidi que, provavelmente, precipitara. Quase com ânsia, comecei a pôr-me à escuta, à espera de ouvir o som de cascos de cavalos atrás de mim. Por que é que a minha escolta não vinha resgatar-me?

Então, de súbito, cheguei ao local em que o padre Agostinho fora assassinado. Vi as manchas negras na terra pálida; senti o cheiro da putrefacção, o peso da folhagem sombria que tudo inundava. Era verdadeiramente um local amaldiçoado. E sem dúvida que me teria feito voltar para trás, não fosse o pequeno pedaço de chão dourado que parecia brilhar junto a uma das rochas mais horrivelmente sujas de sangue. Depois de me ter aproximado, consegui identificar este objecto brilhante como um pequeno ramo de flores amarelas. Pareciam frescas, e estavam atadas com um fio de erva entrançada.

Na sua beleza simples e delicada, reconheci uma oferenda de devoção.

O meu primeiro acto foi pegar-lhes, mas, sentindo que isso era, de certa maneira, errado, voltei a colocá-las no lugar rapidamente. De certa forma misteriosa, elas tornavam a clareira menos terrível. Uma grande parte do meu medo dissipou-se quando olhei para elas; dei comigo a sorrir. E o meu sorriso alargou-se quando a melodia de uma canção chegou aos meus ouvidos, pois o que é capaz de comover os nossos corações como a música? As próprias montanhas e colinas não irromperão a cantar? Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira!). É claro que a canção não era um salmo, mas uma composição humilde, escrita na língua local - mesmo assim, possuía uma certa poesia. Perdoar-me-eis se, na minha tentativa de a reproduzir e traduzir, não conseguir transmitir o seu suave encanto: tanto quanto me lembro, era assim:

Pequena cotovia, canto contigo, Porque também eu saúdo o Sol! Pequena cotovia, diz ao meu amado Que ele é o único. Pequena cotovia, não te demores, Deixa-me ver-te partir. Diz ao meu amor que o terei E que ele me terá.

Não são, de forma alguma, sentimentos dignos de louvor, mas a melodia era doce e alegre. Era cantada por uma mulher, cuja voz não reconheci. No entanto, segui este canto de sereia, sem ligar a possíveis perigos; persegui-a por entre as árvores, as botas a escorregarem-me no chão áspero e as saias a prenderem-se-me em galhos e espinhos, até que emergi num prado suave e inclinado que era aquecido pelo Sol nascente. Quem me dera ser poeta, para poder transmitir-vos a glória que se estendia aos meus pés!

Na frescura daquela manhã, o ar era tão nítido como o dobrar de um sino tenor. Por isso vi o cenário que se abria à minha frente com os olhos de uma águia: vi vales distantes e montanhas que lançavam sombras compridas e indistintas; vi Rasiers, tão pequena que podia tê-la escondido nas mãos; vi o brilho de um rio e o cintilar do orvalho à luz do Sol. Penhascos abruptos, como as muralhas de um castelo poderoso, pareciam tingidos de um cor-de-rosa macio. Cotovias e andorinhas teciam intrincados padrões no fundo do céu límpido. Senti que via o mundo como Deus o deve ver, em toda a sua majestade e toda a sua complexidade (Mas os próprios cabelos da tua cabeça estão numerados...). Senti como se me encontrasse no cume da criação, e o meu coração inchou, e pensei para mim próprio: Senhor, meu Deus, como Tu és grande! Estás revestido de esplendor e majestade! Estás envolto num manto de luz e estendeste os céus como um véu. Fixaste sobre as águas a Tua morada, fazes das nuvens o Teu carro, caminhas sobre as asas do vento. E, à medida que o calor do Sol me acariciava o rosto, e o ar puro me enchia as narinas, e a doce e ténue melodia daquela canção simples mas bonita me encantava o ouvido, distingui outra voz que se juntava à primeira em graciosa harmonia, e vi as duas mulheres que cantavam, saindo de uma mata que se encontrava por baixo de mim, na encosta da colina.

Levavam cestos à cabeça, e caminhavam em perfeita sintonia, de mão dada. Reconheci a mais alta das duas como sendo Johanna de Caussade. Reconheceu-me, penso, no mesmo instante, mas não interrompeu a sua canção nem o seu andamento.

Em vez disso sorriu, e saudou-me com uma alegria livre e descuidada, como se poderia saudar um amigo querido, ou alguém que se conheceu em circunstâncias de arrebatamento - num festival, talvez, ou na celebração de uma vitória. Em seguida, Johanna falou para a rapariga que seguia a seu lado, ainda sorridente, e ambas levantaram o olhar para mim, e, de súbito, o meu coração encheu até transbordar. Como poderei descrever esta extraordinária sensação, quase dolorosa no seu prazer, tão quente como leite acabado de ordenhar, tão imensa como o mar, infinitamente maravilhosa? Eu queria chorar e queria rir. Os meus membros cansados encheram-se de vigor, permanecendo, no entanto, curiosamente lânguidos. Senti que viveria para toda a eternidade, no entanto, estava feliz por morrer ali mesmo, sabendo que a minha morte não era importante. Com o mesmo amor, olhei a relva amarela, as borboletas brancas, as urtigas, os excrementos das ovelhas, as mulheres lá em baixo: queria embalar a criação nos meus braços.

O meu amor abarcava tudo, de forma que senti que não era verdadeiramente meu, mas que fluía através de mim, à minha volta, para dentro de mim, e em seguida olhei para o Sol, e uma grande luz cegou-me. Por um momento, que mal se estendeu para além do espaço de tempo de uma única inspiração, mas que, no entanto, se prolongou infinitamente, eu era como uma criança suspensa no útero da mãe. Senti Cristo a envolver-me, e Ele era a paz, e Ele era a alegria, e Ele era tão terrível como a morte, e conheci o Seu infinito amor por mim, porque § o vi e o apertei e o senti no meu próprio coração.

Deus, como posso mostrar-vos estas coisas se só tenho palavras para me ajudarem? Não tenho palavras. Não há palavras que cheguem.

Não foi o próprio doutor Angélico, quando estava dominado por uma revelação mística, nos seus últimos anos, incapaz de falar durante algum tempo depois? Sem dúvida que a sua revelação era de uma ordem superior à minha; certamente que ele exibia um génio no uso que fazia das palavras que eu jamais terei esperança em igualar. E sendo este o caso - se a presença de Deus o privou da sua língua ágil - como poderei encontrar as palavras que lhe faltaram a ele?

Sei que Deus estava comigo, na encosta daquela colina. Sei que Cristo me abraçou, embora não saiba dizer-vos porquê, uma vez que não fiz nada e não pensei nada que merecesse tão preciosa dádiva. Talvez Ele estivesse simplesmente ali, na perfeição da manhã, e tivesse pena de mim, quando eu tropecei na Sua presença. Talvez Ele estivesse no coração de Johanna, e o sorriso dela fosse a chave que abria a minha própria alma, de forma que, finalmente, o Amor Divino encontrou uma maneira de lá entrar. Como posso saber? Não sou santo. Sou um homem pecador e indolente, que, por não sei que maravilhoso acto de misericórdia, conseguiu ver para além da nuvem que cobre a terra inteira.

Santo Agostinho disse, uma vez, que, quando a alma de um homem perfura a escuridão carnal que envolve a vida terrena, é como se ele fosse tocado por um fulgor repentino, apenas para se afundar de novo na sua debilidade natural, sobrevivendo o desejo pelo qual ele pode novamente ser elevado às alturas, não sendo ele suficientemente puro para lá permanecer. Segundo Santo Agostinho, quanto mais uma pessoa for capaz de fazer isto, tanto maior é.

Isto sugere que um homem tem de trabalhar para ganhar tal bem-aventurança. Mas trabalhou São Paulo nalguma coisa a não ser no mal, antes de receber a Luz quando ia a caminho de Damasco? Foi o trabalho de Deus, e não dele próprio, que o conduziu à Verdade. Assim, foi o amor de Deus, e não o meu próprio, que me conduziu para tão próximo Dele.

Sem dúvida que Ele sabia que, deixado ao meu próprio livre-arbítrio, eu nunca teria levantado os olhos do chão. Talvez não torne a fa-zê-lo; talvez não tenha a força nem a pureza para isso.

Mas tenho dentro de mim o que é preciso para amar a Deus. Amo a Deus agora, não como meu Pai, que me concede dádivas e ensinamentos, mas como meu amante, como a paz do meu coração, como minha fé e esperança, como a comida e o vinho que me alimentam a alma. Para se amar assim é preciso trabalho, sem dúvida: felizmente, posso sempre alcançar tais alturas ao meditar naquele incomensurável momento em que elanguesci de amor, na cama da encosta, no abraço alegre e triste de Cristo.

Posso também encontrá-las ao meditar no sorriso de Johanna de Caussade. Pois no momento em que esse sorriso me abriu pela primeira vez o coração, descobri que ele continuava a fazê-lo.

- Padre?

Era a voz de Johanna que abria novamente os meus olhos terrenos e me fazia regressar a mim próprio, puxando-me como a um peixe numa linha. A eternidade da minha comunhão divina durara apenas um instante. As duas mulheres caminhavam ainda na minha direcção, quando a minha alma se libertou daquela arrebatada contemplação, e fiquei quedo, ainda deslumbrado, com a maré de amor a vazar do meu coração. Por algum tempo, olhei sem ver, sem falar. Depois a minha visão pareceu ficar mais nítida, e a primeira coisa que se impôs perante os meus olhos foi o rosto da companheira de Johanna.

Vi o rosto de uma mulher jovem, perfeitamente formado e tão claro como um lírio (embora apresentasse pequenas cicatrizes no queixo e nas fontes). Se eu fosse trovador, podia cantar-lhe elogios como deviam ser cantados, comparando a sua pele a rosas, a sua maciez à de um passarinho que começou a voar, o seu cabelo castanho-avermelhado a maçãs e seda. Mas não sou nenhum poeta do coração, por isso direi simplesmente que ela era bonita. Em toda a minha vida, nunca vi uma mulher de tão terna beleza. E porque os olhos dela exibiam, não só a inocência de uma criança, como também a inocência de um animal bebé - porque o meu coração estava ainda pleno de amor, demasiado amor para reprimir - sorri-lhe afectuosamente. Teria sorrido com igual ternura a qualquer mosca ou árvore ou lobo que pudesse ter surgido perante o meu olhar nesse momento, porque eu amava o mundo. Mas a sorte quis que ela fosse a primeira coisa que a minha visão encontrou, assim, foi ela que recebeu o sorriso que o próprio Deus formara.

Então ela retribuiu-me o sorriso, um sorriso tão doce como o mel.

- Sois o padre Bernard - disse ela.

- E tu és Babilónia.

- Sim - ela parecia encantada. - Eu sou Babilónia!

- Estais bem, padre? - perguntou Johanna, pois - como vim a saber mais tarde - a minha voz era anormalmente lenta e sem fôlego. Com efeito, eu dava a impressão de estar ou embriagado ou doente.

Apercebendo-me disso, apressei-me a tranquilizá-la.

- Estou bem - disse. - Bastante bem. E vós? O que estais a fazer? A apanhar mais lenha?

- Cogumelos - disse Johanna.

- E caracóis - acrescentou a filha.

- Cogumelos e caracóis! - pelo que aquilo significava para mim, elas poderiam ter dito "gordura de lã e ovos de mosca". Eu estava ainda quase tonto de elação, e tive de reprimir a necessidade de rir às gargalhadas, ou de chorar desenfreadamente. No entanto, ao ver a expressão confusa do rosto de Johanna, obriguei-me, com toda a força da minha mente e do meu espírito, a falar calmamente e a agir com decoro. - Correu bem? - perguntei.

- Mais ou menos - respondeu Johanna.

- Eu apanho os caracóis, mas não os como - acrescentou Babilónia. - Fazem-me falta de ar.

- A sério?

- Trouxestes os soldados, padre? - Johanna falava à-vontade, sem medo nem preocupação, mas vi a filha pestanejar várias vezes. - Eles estão convosco hoje?

- Hoje não. Ainda não - uma hilaridade interior impulsionou-me a acrescentar: - Saí sem ninguém dar por isso, esta manhã. Consegui fugir. Mas em breve eles virão à minha procura.

- Nesse caso, temos de vos esconder, depressa! - a pobre Babilónia estava manifestamente consternada. Apercebi-me de que ela era inocente em todas as coisas - e que nunca devia ser objecto de troça ou de gracejos, porque via apenas o que estava à sua frente.

- Os soldados não querem fazer-lhe mal, meu botão de rosa - observou Johanna. - Querem protegê-lo. Dos homens que mataram o padre Agostinho.

- Oh não! - os olhos de Babilónia encheram-se de lágrimas. - Nesse caso, deveis regressar! Agora!

- Minha querida filha, eu não corro perigo, aqui. Deus está connosco - na minha serenidade de inspiração divina, eu transmitia um calor e uma confiança que a acalmaram um pouco; até lhe toquei o braço (um acto que, normalmente, eu não tentaria, permiti que vos assegure). Perguntei, então, às duas mulheres se tinham terminado a sua busca das dádivas de Deus.

- Já nos chega por hoje - respondeu Johanna.

- Posso acompanhar-vos a casa? Desejo falar com Alcaya.

- Padre, podeis fazer o que quiserdes. Sois um inquisidor e um homem importante. O padre Paul disse-nos.

Parecia que Johanna estava a falar com uma suave ironia, mas não me ofendi.

- Não posso fazer absolutamente tudo o que quero, madame. Há certas regras e leis a que devo obedecer - sentindo-me anormalmente alegre, continuei de uma forma que era, provavelmente, insensata, à medida que começávamos a subida de regresso à forcia. - Por exemplo, não devo quebrar os meus votos de castidade e obediência, por mais intensamente que o possa desejar.

- Ah sim? - Johanna caminhava a meu lado quando fez esta observação, e vi-a lançar na minha direcção um olhar de esguelha que tinha (não consigo encontrar palavras que o descrevam) um carácter especulativo, namorisqueiro, até. No entanto, em vez de acender em mim a paixão, teve o efeito contrário: senti um choque frio, como se me tivessem atirado um balde de água, e abanei a cabeça como se essa água me tivesse entrado para os ouvidos.

- Perdoai-me - murmurei. - Perdoai-me, não estou em mim.

- Não - disse Johanna, quase divertida. - Estou a ver. Estais doente?

- Doente, não, não, eu... um estranho fascínio.

- Viestes a pé de Casseras até aqui?

- Sim.

- E costumais percorrer distâncias destas a pé, a subir?

- Não - disse eu -, mas não sou o padre Agostinho, madame! Não estou enfermo!

- Claro que não.

O tom dela fez-me rir.

- Que bem que lisonjeais a minha frágil vaidade. Praticastes essa capacidade no padre Agostinho, ou é o dom natural de todas as mães?

Agora era a vez de Johanna rir, mas fê-lo em silêncio, sem abrir a boca.

- Oh, padre - disse ela -, todos temos as nossas vaidades.

- É muito certo, isso que dizeis.

- Por exemplo, orgulho-me de ser capaz de encontrar pessoas boas, que me serão úteis.

- Como Alcaya?

- Como Alcaya. E como vós, padre.

- A sério? Mas que receio que estejais tristemente enganada.

- Talvez - admitiu Johanna. - Talvez não sejais assim tão bom. Neste ponto, ambos rimos, e, ao fazê-lo, parecemos partilhar uma compreensão dos nossos pensamentos e intenções mútuos que nunca partilhei com nenhum outro ser humano. Permiti que vos explique isto, pois sei que direis: "Aqui está um monge e uma mulher. Que poderão saber do coração e da mente um do outro, a não ser os aguilhões do desejo carnal?". E teríeis razão, até certo ponto, pois estávamos ambos sujeitos às inquietações da carne, sendo pecadores aos olhos de Deus. Mas creio que, por sermos pecadores - culpavelmente presunçosos, desobedientes, obstinados, até irreverentes -, por partilharmos tantos pecados, víamo-nos um ao outro com clareza. Parecíamos conhecer-nos um ao outro porque nos conhecíamos a nós próprios.

Bastará dizer que éramos de temperamento solidário. Uma curiosa conjunção, se considerarmos que ela era a filha iletrada de um mercador. Mas Deus é a fonte de mistérios muito maiores.

- Havia umas flores amarelas na estrada - observei, quando se me tornou claro que evitáramos o local da morte do padre Agostinho, através de um tortuoso circuito. - Fostes vós que as apanhastes, ou foi Babilónia?

- Fui eu que as apanhei - foi a resposta de Johanna. - Duvido que alguma vez visite a sua sepultura, por isso tive de as deixar no local onde ele morreu.

- Ele será sepultado em Lazet. Podeis sempre visitar Lazet.

- Não.

- Porquê? Não podeis ficar aqui no Inverno. Por que não ir para Lazet?

- Por que não ir para Casseras? É muito mais perto.

- Podeis não ser bem-vinda, em Casseras.

- Podemos não ser bem-vindas, em Lazet. Babilónia nunca é bem-vinda em lado nenhum.

- Parece-me difícil de acreditar - olhando mais para a frente, para o local onde Babilónia subia a estrada íngreme, fui novamente tocado pela sua beleza. - Ela é um ornamento, e tão doce como uma pomba.

- Para vós, ela tem sido tão doce como uma pomba. Para outros, ela será como um lobo. Não a reconheceríeis - Johanna fez esta observação com uma singular ausência de emoção profundamente sentida. Era como se ela considerasse tal transformação como um lugar-comum. Mas o seu tom tornou-se mais jovial quando continuou: - Fostes como Alcaya, quando a cumprimentastes. Se ao menos toda a gente fosse assim tão afável! Agostinho sorria-lhe como se lhe doessem as entranhas.

- E talvez doessem. Ele não era um homem saudável.

- Ele tinha medo dela - continuou Johanna, ignorando o meu comentário. - Amava-a, mas tinha medo dela. Ela atacou-o uma vez, e tive de a puxar. Ele ficou ali sentado a tremer. Com as lágrimas nos olhos. Estava envergonhado, por ter tanto medo - de súbito, Johanna franziu a testa, e as suas sobrancelhas negras uniram-se, de forma a conferirem-lhe uma expressão formidável. - Agostinho disse-me que ela estava amaldiçoada por causa do nosso pecado - dele e meu. Eu disse-lhe que era disparate. Pensais que ele tinha razão, padre?

Parecia-me que o padre Agostinho falara movido pelo choque e pelo desespero, mas a minha resposta foi cuidadosa.

- As Sagradas Escrituras não o diriam. "Qual é o vosso objectivo, ao usardes este provérbio em relação à terra de Israel, dizendo: Os pais comeram uvas ácidas, e os dentes dos filhos é que estão arrepiados? Enquanto eu viver, disse o Senhor Deus, não tereis ocasião para usar este provérbio em Israel".

- Nesse caso, Agostinho estava errado. Eu sabia que ele estava errado.

- Johanna, não podemos saber o que o Senhor queria dizer. Apenas uma coisa é certa - o facto de sermos todos pecadores, todos nós. Até Babilónia.

- Os pecados de Babilónia não são dela - respondeu a viúva, teimosamente.

- Mas o Homem nasceu no pecado, desde o erro de Adão. Os planos de Deus para nós, como seres humanos, vão no sentido de transcendermos este pecado ao alcançarmos a salvação. Estais a dizer-me que Babilónia tem a alma de um animal - que ela é menos do que humana?

A viúva abriu a boca e voltou a fechá-la. Parecia pensar profundamente. Uma vez que tínhamos chegado à última parte, e à mais íngreme, da nossa subida, não pudemos conversar enquanto não alcançámos os prados que rodeavam a forcia. Então, ainda a arfar do esforço, ela virou-se para mim com uma expressão séria e triste.

- Padre, sois um homem muito sensato - disse. - Sabia que éreis misericordioso e um companheiro agradável, porque Agostinho mo disse. Sabia que iria gostar de vós, mesmo antes de nos conhecermos, a julgar pela maneira como ele falava de vós. Mas não compreendi que tínheis tanta sabedoria no vosso coração.

- Johanna...

- O que dizeis é verdade, talvez. Acreditar que os pecados da minha filha não são dela é acreditar que ela é um animal. Mas, padre, por vezes, ela É mesmo um animal. Faz barulhos de animal, e tenta agredir-me. Como pode uma mãe aceitar que a sua própria filha a queira matar? Como pode um ser humano estar deitado na sua própria imundície? Como podem os pecados de Babilónia ser dela, quando não se lembra deles? Como, padre?

Que poderia eu dizer? Claramente, para o padre Agostinho, os actos irracionais de Babilónia tinham-lhe sido infligidos pela presença de demónios, como castigo pelos pecados dele próprio. Mas pergunto a mim mesmo se ele estaria correcto. Pergunto a mim mesmo se a repugnância que ele sentia pela sua fraqueza moral e física o teria orientado mal, no seu caso.

- Lembrai-vos - disse eu, após alguma hesitação -, de que Job, sendo perfeito e íntegro, foi testado por Deus e Satanás com todas as desgraças que se possam imaginar. Talvez seja a virtude de Babilónia, e não o seu pecado, que atraia esta ira para cima dela. Talvez ela, também, esteja a ser testada.

Os olhos de Johanna encheram-se de lágrimas.

- Oh, padre - murmurou -, poderá isso ser verdade?

- Como eu disse, não podemos saber o que Deus queria dizer. Sabemos apenas que Ele é bom.

- Oh, padre, que conforto sois - a sua voz era trémula, mas ela sorriu, e engoliu em seco, e enxugou os olhos com firmeza. - Que amável sois.

- Não era essa a minha intenção - embora fosse, é claro. A caridade do amor de Cristo ainda estava no meu coração, e eu era movido a fazer o mundo inteiro feliz. - Os inquisidores não são amáveis.

- É verdade. Mas talvez não sejais um inquisidor muito bom.

A sorrir, avançámos então ambos para a forcia, onde Alcaya me saudou alegremente. Estava sentada junto à cama de Vitalia, e lia à idosa excertos do tratado de São Bernardo. Observei (de forma jovial) que era tranquilizador vê-la com São Bernardo na mão, e não Pierre Jean Olieu. E ela abanou-me a cabeça afectuosamente, como uma tia.

- Como vós, dominicanos, odiais aquele pobre homem! - disse ela.

- Não o homem, mas as suas ideias - foi a minha resposta. - Ele foi demasiado ardente na sua busca da pobreza.

- Era isso que o padre Agostinho dizia.

- E estáveis de acordo com ele?

- Com certeza. Ele ficava demasiado zangado se eu discordasse. - Alcaya - protestou a viúva -, estavas sempre a discutir com ele!

- Sim, mas ele derrotava-me sempre no fim - sublinhou Alcaya. - Era um homem muito sensato.

- Alcaya - disse eu, pensando que seria franco no que se referia às minhas preocupações, em vez de as ocultar numa conversa aparentemente inofensiva e amigável, como era meu costume -, sabeis que os livros de Olieu são vistos com grande desaprovação pelo Papa e por muitos homens importantes da Igreja?

Ela olhou-me com espanto.

- É tanto assim - continuei -, que possuir um exemplar é convidar a suspeita de crenças hereges. Sabíeis isso?

Ouvi Johanna resfolegar, mas não olhei para ela. Fixei a minha atenção em Alcaya, que sorria, simplesmente.

- Oh, padre - disse ela. - Não sou herege.

- Nesse caso, devíeis ler outros livros. E devíeis queimar o tratado de Pierre Jean Olieu.

- Queima esse livro! - gritou Alcaya. Parecia divertida, mais do que chocada, e eu fiquei confuso, até que ela explicou que o padre Agostinho lhe ordenara, em várias ocasiões, sempre no calor de uma discussão, que queimasse o livro. - Eu dizia-lhe: "padre, este livro é meu. Tenho tão poucos. Gosto tanto deles. Roubar-me-íeis o meu próprio filho?"

- Alcaya, estais a chamar o perigo.

- Padre, sou uma pobre mulher. Sei onde é que o livro está errado, por isso, que mal pode ele fazer? - apresentando o tratado de São Bernardo para que eu o inspeccionasse, ela acariciou-o ternamente, primeiro a encadernação, depois as páginas de pergaminho. - Padre, vede como são bonitos, estes livros. Abrem-se como asas de uma pomba branca. Cheiram a sabedoria. Como se pode queimar nem que seja um só deles, quando são tão bonitos e inocentes? Padre, eles são meus amigos.

Deus misericordioso, que poderia eu dizer a isto? Sou dominicano. Dormi com as Confissões, de Santo Agostinho, apertadas contra o peito. Chorei ao ver páginas transformadas em pó na minha mão, sob a cruel sentença da traça. Beijei as Sagradas Escrituras. Cada palavra do discurso de Alcaya fazia desabrochar no meu coração flores delicadas - já bem regadas, nesse dia, pelo amor de Deus.

E pensei nos meus próprios livros (meus, mas que não eram meus), que me tinham sido cedidos pela Ordem e por certas pessoas que me tinham amado, no passado. O meu pai dera-me dois livros, depois de eu ter professado: The Golden Legend, de Jacobus de Voragine, que ele venerava, e Decretum, de Graciano, que ele consultava. De um dos leitores de Carcassonne, um irmão idoso e muito sensato chamado Guila-bert, eu recebera um exemplar de Ars Grammatica, de Donato (no qual ele escrevera: "Estou velho, e és o meu melhor aluno. Aceita este livro, usa-o com sensatez, e reza por mim quando o fizeres". Deus sabe como eu considero este livro um tesouro!). Havia uma mulher nobre numa das minhas congregações, quando eu era pregador ordinário, que insistiu comigo para que eu aceitasse o seu livro de Horas, dizendo que a minha eloquência a tinha movido a dar muitos dos seus bens - e, embora tenha ficado um pouco inquieto com o entusiasmo dela, não consegui recusar o volume, que apresentava uma decoração requintada e era enfeitado a ouro.

Finalmente, o padre Jacques, quando morreu, deixara-me um dos seus livros: Ad Herrenium de arte rhetorica, de Cícero. Ao pensar nesta obra, e nas outras que tinha na minha cela, senti-me envergonhado - como sempre-pela natureza possessiva do meu amor por elas (Nenhum homem pode servir a dois amos..). É claro que não eram verdadeiramente minhas, mas tinha o uso delas enquanto vivesse, por isso considerava-as como as minhas próprias mãos ou os meus próprios pés. Não era isto pecado, para um monge de São Domingos? Não seria eu igual a Alcaya, que falava dos seus livros como filhos, bonitos e inocentes?

- Alcaya - disse eu, e Deus sabe que eu estava a fazer um tremendo sacrifício - se me derdes o tratado de Pierre Jean Olieu, dar-vos-ei outro livro em seu lugar. Dar-vos-ei A Vida de São Francisco, de um livro chamado The Golden Legend, que é, de longe, uma obra muito melhor. Já alguma vez lestes The Golden Legend? Alcaya abanou a cabeça.

- Bem - continuei -, contém as histórias de muitos santos, entre eles São Francisco. E ele, como sabeis, era dedicado à Senhora

Pobreza com todo o seu coração e com toda a sua alma. Aceitais esta obra abençoada em troca da outra? É de muito melhor qualidade.

Ora eu fizera uma oferta tão generosa para testar a fé de Alcaya. Se ela estivesse infectada pelos erros de Olieu, estaria relutante em entregar a sua obra, fosse qual fosse a recompensa. Mas, ainda enquanto eu falava, os olhos dela brilharam; a mulher levou as mãos à boca, baixando-as depois para o peito.

- São Francisco! - gritou. - Oh, eu... Oh, que bênção...

- Tendes esse livro convosco? - perguntou-me Johanna.

- Não. Mas mandá-lo-ei buscar. Tê-lo-eis antes de eu deixar Casseras. Vinde - coloquei a mão no ombro de Alcaya e inclinei-me para que o meu rosto ficasse à altura do dela. - Dai-me o livro de Olieu, e descansai-me a mente. Fareis isso por mim? É o livro de meu pai que vos estou a oferecer, Alcaya.

Para minha profunda admiração, ela acariciou-me a face, fazendo com que eu me afastasse abruptamente. Mais tarde, o prior Hugues repreendeu-me por ter permitido que isso acontecesse, dizendo que fora o meu comportamento cordial - até afectuoso - que encorajara tais actos íntimos. Talvez ele tivesse razão. Ou talvez o amor de Deus ainda brilhasse nos meus olhos, atraindo de Alcaya a resposta natural. Fosse como fosse, ela acariciou-me a face e sorriu.

- Não precisais de me dar o livro de vosso pai - disse ela. - Se este livro vos perturba o espírito, podeis ficar com ele com a minha estima. Sei que não me desejais nada a não ser bem, pois fostes iluminado por raios de sabedoria celeste.

Como podeis imaginar, eu não soube que responder. Mas não precisei de saber, porque, nesse momento, Babilónia (que se encontrava no exterior) soltou o mais terrível grito.

- Mamã! - gritou. - Mamã! Os homens! Os homens!

Não me lembro de me ter mexido. Tudo o que recordo é que, de súbito, me encontrava na paliçada, a avançar para Babilónia, que corria de um lado para o outro, como um coelho numa gaiola. Apanhei-a e segurei-a, e o meu esforço foi recompensado com dentadas e arranhões.

- Acalmai-vos - disse eu. - Acalmai-vos, minha filha, não deixarei que vos façam mal. Vamos, acalmai-vos.

- A mamã está aqui, meu botão de rosa. A mamã está aqui - Johanna chegara junto a nós. Tentou abraçar a filha, mas Babilónia deu um puxão; começou a estrebuchar nos meus braços, oscilando a cabeça e proferindo ruídos estranhos - ruídos como uma língua demoníaca. Eu estava admirado com a sua força. Na verdade, eu mal tinha força suficiente nos meus próprios braços para a prender, embora ela fosse tão pequena e franzina.

Então ela começou novamente a gritar, e aquele era o grito de uma alma condenada, e, quando lhe olhei para o rosto, vi outro rosto completamente diferente, vermelho e contorcido, com uma língua azul de fora da boca, dentes a rangerem, olhos túmidos, veias inchadas. Vi o rosto de um demónio, e fiquei tão assustado que comecei a blasfemar (para minha eterna vergonha), após o que Babilónia começou a repetir a blasfémia, a uma velocidade que não era humana.

- Deixai-a! - gritou Alcaya. - Estais com medo, padre, deixai-a!

- Mas ela vai magoar-vos! - disse eu, sem fôlego.

- Deixai-a!

Como as coisas estavam, eu não tinha alternativa, pois, nesse preciso instante, Babilónia e eu fomos separados por um dos meus guardas. Embora eu não me tivesse apercebido da sua presença, os meus guardas pessoais tinham chegado à forcia; tinham sido recebidos com gritos de medo, e tinham-me visto a lutar com uma Fúria, o meu rosto branco debaixo de riscas de sangue.

Não é, talvez, de admirar que tenham respondido com força desnecessária.

- Padre! Padre, estais ferido?

- Deixai-a! Seus... parem com isso - deixai-a! Parem! - eu estava deveras irritado, pois eles tinham levado Babilónia e tinham-na atirado ao chão, e um dos soldados (um indivíduo corpulento e pesado) estava ajoelhado em cima das costas dela. Afastando os meus criados com um safanão, dei a este homem um poderoso empurrão e fi-lo cair para o lado. Ficai certo de que ele nunca teria cedido, se estivesse preparado.

- Meu amor. Oh, meu amor, Cristo está aqui. O Senhor Jesus está aqui - caindo sobre a forma prostrada da jovem mulher, Alcaya embalava nos braços a cabeça ensanguentada e empoeirada de Babilónia. - Consegues sentir a Sua doçura? Consegues sentir o Seu abraço? Bebe o Seu vinho, minha querida, e esquece as tuas mágoas.

- Ela está ferida? - debrucei-me sobre este estranho par, tentando ansiosamente avaliar o estado de Babilónia, quando senti mais mãos a puxarem-me para trás. Fui mais uma vez forçado a soltar-me do aperto de soldados preocupados, que pareciam querer que eu saísse do caminho do perigo. - Soltai-me, por favor, não corro perigo nenhum! Olhai!

E indiquei a infeliz rapariga a meus pés, que estava deitada no chão, imóvel e a gemer, os olhos fechados. O guarda a meu lado baixou o olhar para ela como se poderia olhar para um insecto morto.

- Foi ela a culpada, padre? - inquiriu.

- O quê?

- Foi ela que matou o padre Agostinho?

- Matou...? - passou um momento até que eu compreendesse. - Imbecil! - Gritei, e virei-me novamente para Alcaya. - Ela está ferida? - repeti. - Eles feriram-na?

- Não.

- Lamento muito.

- Não tendes culpa - disse Johanna. - Mas penso... perdoai-me, padre, penso que é melhor irdes.

- Sim - a minha escolta concordou com ela. - Vinde connosco. Aquela louca ainda vos tira os olhos com as unhas.

Assim, parti, sem mais demora. Pensei que era o melhor a fazer, embora lamentasse que a minha despedida tivesse sido acompanhada de tamanho aborrecimento. À medida que me retirava da paliçada, virei-me, e vi que Babilónia estava novamente de pé, sem gritar nem lutar, mas tranquilamente de pé, como uma mulher em plena posse das suas faculdades - e isso reconfortou-me. Reparei que Johanna levantou a mão para me acenar, e também isso foi reconfortante (a recordação desse gesto, hesitante e de desculpas, não me abandonou durante algum tempo).

Alcaya parecia ter esquecido a minha existência; nunca levantou o olhar para me ver ir.

Noutras circunstâncias, eu poderia ter ralhado com os meus guardas durante todo o caminho de regresso a Casseras, e teria ganho a sua sombria desaprovação. Mas, em primeiro lugar, eu estava demasiado abalado para falar. Estava a pensar na transformação de Babilónia, e nas forças satânicas que devem tê-la desencadeado. Depois, à medida que passávamos pelas flores de Johanna, a paz de Deus voltou a entrar-me na alma. Acalmou-me e silenciou-me; eu era como uma ovelha ao lado de águas paradas. Por isso, retira a tristeza do teu coração, disse a mim próprio, e afasta o mal da tua carne. Pois quem sabe o que é bom para o homem nesta vida, todos os dias da sua vida vã, que ele passa como uma sombra?

- Meus amigos - disse eu aos homens que seguiam comigo a cavalo -, tenho uma sugestão a fazer. Se vos esquecerdes de contar ao senescal que visitei a forcia sozinho, eu esquecer-me-ei de lhe contar que ninguém me impediu de o fazer. Parece-vos justo?

Parecia-lhes muito justo. Na verdade, os seus receios foram instantaneamente apaziguados, e a sua disposição tornou-se mais leve. Durante o resto da viagem, falámos de coisas agradáveis como comida, e de loucos, e de ferimentos que tínhamos testemunhado no passado.

E nenhum deles soube que o meu coração ansiava pela companhia que tínhamos deixado para trás.

 

Vós, que carregais tamanho peso

Fiquei com o padre Paul durante dois dias. No primeiro dia, depois de ter deixado a forcia, fui a Rasiers e falei com o preboste. Um homenzinho presunçoso com modos pomposos, mesmo assim forneceu-me um relatório muito completo da sua investigação sobre a morte do padre Agostinho, uma investigação que, devo admitir, era conduzida bastante irrepreensivelmente. Em seguida regressei a Casseras e interroguei os dois rapazes, Guillaume e Guido, sobre a descoberta dos restos mortais. Embora eu sentisse que os pais estavam algo alarmados ao verem-me conversar com estas crianças, os rapazes, em si, estavam muito felizes por me prestarem um serviço, porque eu possuíra visão suficiente para me armar de certos bolos e doçarias, preparados a meu pedido nas cozinhas do priorado. Na verdade, depressa me vi rodeado por todos os aldeões mais jovens: esperavam por mim nas soleiras das portas e espreitavam-me pelas janelas. Mas não levantei objecção a esta perseguição, pois as crianças não são mentirosos experimentados. Se uma pessoa for paciente, e amigável, e se mostrar ansiosa por se confessar admirada, pode aprender muito com as crianças. Muitas vezes elas reparam em coisas que escapam à atenção dos adultos. Por exemplo, depois de lhes ter feito perguntas sobre os movimentos do padre Agostinho e dos seus guardas pessoais, continuei para perguntar em relação a outros desconhecidos que poderiam eventualmente ter passado pela aldeia. Algum homem de vestes azuis, talvez? Homens que poderiam viver nos bosques e vir à aldeia à noite? Não? e homens armados, a cavalo?

- O senescal veio - disse Guillaume (um rapaz esperto, Guillaume). - Veio com os seus homens.

- Ah, sim.

- Fez-nos a mesma pergunta. Reuniu toda a aldeia e perguntou-nos: "Vistes homens armados a cavalo?"

- E tínheis visto?

- Oh não.

- Não.

- Ninguém tinha.

- Excepto Iili - observou uma das crianças mais pequenas, e Guillaume franziu o sobrolho.

- Iili? - disse ele, dirigindo-se a uma menina pequena de cabelo preto encaracolado. - O que tens andado a dizer?

Mas Iili limitou-se a olhar para ele, sem qualquer expressão no rosto.

- Ela viu um homem com setas - apressou-se a assegurar a amiga de Iili. - Mas não viu cavalo nenhum.

- Setas? - Mais uma vez, Guillaume tomou a seu cargo o interrogatório da testemunha. - O que era, Iili? Devias ter contado ao senescal!

- Mas ela não viu cavalo nenhum. O senescal falou de cavalos.

- Prima, sua idiota! Como se isso fosse importante! Iili, quando é que viste esse homem? Como era ele? Tinha espada? Iili? - não sendo proferida qualquer resposta, Guillaume perdeu, de repente, a paciência com a pequenina. - Oh, ela não viu nada. É tão estúpida. Inventou tudo.

- Iili, vem cá - após ter permitido a Guillaume interrogá-la - na crença de que ela poderia responder mais abertamente a um amigo -, decidi que não perderia nada ao dirigir-me, eu próprio, a ela. - Iili, tenho uma coisa para ti. Estás a ver? Uma torta deliciosa. Tem nozes lá dentro. Gostas? Sim? Tenho outra... estará aqui? Não, não há nada aqui. Estará na minha manga? Vamos espreitar? Não. Talvez a encontremos, se formos para o sítio onde viste o homem com as setas. Penso que é capaz de lá estar. Mostras-me? Sim? Vem, então.

Assim, verificava-se que eu caminhava para fora da aldeia, de mão dada com uma menina de três anos, perseguido por muitas outras crianças. Acompanharam-me até à beira de um campo de trigo, para lá do qual havia uma encosta rochosa coberta de vegetação, mas largamente desprovida de árvores. Contudo, havia protecção suficiente para fornecer a um assassino que aparecesse os meios de passar perto de Casseras sem ser detectado - excepto, talvez, por uma criança demasiado pequena para ser, ela própria, detectada.

Examinei a área que Iili identificou, fingindo encontrar lá uma amêndoa coberta de mel. A menina aceitou-a de uma forma sem graça, mas não adiantou nada quando a pressionei para que me desse uma data ou qualquer indicação de tempo.

- Ela contou-me isso há muito tempo - disse Prima, sem ninguém lhe perguntar.

- Há quanto tempo?

- Há muito tempo... dias e dias...

- Deve ter sido antes de termos encontrado o padre Agostinho - disse Guillaume -, porque desde essa altura nenhum de nós tem autorização para sair da aldeia sozinho.

Como já observei, Guillaume era um rapaz esperto.

- Tiveste medo, Iili? Quando viste o homem? - perguntei, e ela abanou a cabeça. - Porquê? Ele sorriu-te? Conhecia-lo? - a menina voltou a abanar a cabeça, e eu comecei a perder a esperança de lhe extrair uma única palavra coerente. - Penso que esta menina perdeu a língua. Consegues falar, Iili, ou perdeste a língua?

Em resposta, a língua dela apareceu para que eu a inspeccionasse.

- Oh! - exclamou, de súbito, Prima. - Já sei! Ela contou-me que tinha visto um dos soldados do padre Agostinho! E eu disse que ela estava a mentir, porque eles já tinham ido para a forcia!

- Queres dizer que isso aconteceu no mesmo dia?

- Sim.

- Iili... olha para mim. O homem estava sujo de sangue? Não? Não tinha sangue? De que cor era o cabelo dele, era preto? Castanho? E a túnica dele? Iili? Olha para mim, agora.

No entanto, o meu tom de voz era demasiado urgente; o lábio dela tremia e a menina começou a choramingar. Apetecia-me bater-lhe, Deus me perdoe.

- Ela é tão estúpida - disse Guillaume num tom solidário. - Dai-lhe outra amêndoa.

- E a mim! E a mim!

- Dai-me uma também a mim!

Depois de gastar uma grande quantidade de tempo e de energia, consegui determinar que o homem armado tinha cabelo preto, uma túnica verde e um manto azul. Quando lhe perguntaram se ele entrara a cavalo em Casseras com o padre Agostinho, mais cedo nesse dia, Iili não pôde ajudar. Depressa se tornou evidente que ela não era capaz de distinguir entre dois homens armados.

Contudo, eu alargara consideravelmente a soma do meu conhecimento. E estava satisfeito, muito satisfeito, porque nenhum dos guardas do padre Agostinho fora visto com uma túnica verde vestida ou com uma aljava de setas. Parecia que o homem encontrado junto ao campo de trigo não era familiar, e, assim, podia muito bem ter sido um assassino, embora eu não pudesse ter a certeza disso.

Mesmo hoje, ainda não tenho a certeza, pois após ter investigado perseverantemente o assunto, não consegui encontrar nem mais uma informação. Embora tivesse incitado os pais de Iili a interrogarem, eles próprios, a menina, eram pessoas simples, tão incapazes de se exprimir como a filha, e, desse lado, não recebi muita ajuda. Nem os vizinhos cederam qualquer coscuvilhice ou especulação útil; como Roger Descalquencs já concluíra, os habitantes de Casseras não tinham visto nada, não tinham ouvido nada, não tinham suspeitado de nada. Além disso, afirmavam-se bons católicos, elogiando o padre Agostinho como uma pessoa que não metia o nariz nos assuntos deles. Naturalmente, eu fui muito subtil e circunspecto no meu interrogatório - cheguei a pôr-me à escuta do lado de fora de algumas venezianas fechadas. Mas após dois dias passados a tornar-me estimado de todos, com bolos e simpatia e algumas promessas cuidadosamente colocadas, a duvidosa descrição de Iili continuava a ser o meu único triunfo. Não consegui detectar um único traço de heresia (se se descontar - como eu geralmente fazia - as intermináveis queixas sobre o pagamento do dízimo). Ninguém sequer fizera uma falsa acusação, o que me surpreendera, pois é raro investigar-se uma aldeia sem se incitar pelo menos um habitante a difamar um inimigo com uma vaga mentira em relação a recusar comer carne ou a cuspir a hóstia durante a missa.

Assim, as minhas esperanças saíram goradas, embora o meu estado de espírito não tivesse ficado abalado. Era como se a grande chama do Amor Divino, acesa no meu coração naquela encosta orvalhada, tivesse deixado brasas quentes que iluminavam todos os cantos escuros da minha alma, e não permitissem que a minha disposição se tornasse rígida e fria. Ficai certo de que dediquei o dobro dos pensamentos à minha comunhão mística com Deus do que à investigação que levei a cabo em Casseras. No entanto, a minha mente não foi toldada por tal santa distracção, ficando, pelo contrário, mais clara e nítida e forte.

Devo admitir que pensei muito nas mulheres da forcia, e isso talvez não seja assim tão louvável. Enviei até um dos meus guardas a Lazet para ir buscar The Golden Legend (ou, pelo menos, aquele códice que fala de São Francisco) -, que não consegui dar a Alcaya pessoalmente, sentindo-me relutante em invadir mais uma vez a paz de Babilónia com a minha numerosa e desajeitada escolta. Em vez disso, deixei o livro com o padre Paul, fazendo com que ele me prometesse que o entregaria na primeira oportunidade. Dentro do livro, escrevi: Que os ensinamentos de São Francisco vos guiem como uma estrela e vos dêem conforto nas horas difíceis. Espero ver-vos em Lazet este Inverno. Que o Senhor vos abençoe e vos guarde. Voltareis a ter notícias minhas.

Naturalmente, usei a língua vernácula nesta dedicatória, e esperava que Alcaya a lesse às amigas.

Quando regressei a Lazet, fiquei a saber que muita coisa acontecera durante a minha ausência. A cabeça decepada tinha chegado, e - apesar do seu avançado estado de decomposição - fora identificada como pertencendo ao padre Agostinho. Consequentemente, o prior Hugues ordenara que os restos mortais fossem sepultados, e o mais rapidamente possível: tinha-se realizado um modesto funeral e uma missa fúnebre. O cavalo do bispo também tinha chegado, para grande alegria do seu proprietário. Roger Descalquencs recebera um relatório, de um dos castelões locais, segundo o qual duas crianças de Bricaux tinham visto um desconhecido nu a lavar-se no rio, mas fugiram assustadas quando ele lhes acenou com uma espada. Segundo as crianças, havia um cavalo amarrado nas proximidades, mas não havia sinal de outros homens.

A data em que isto acontecera fora difícil de estabelecer com precisão, mas o senescal estava convencido de que ocorrera no dia da morte do padre Agostinho. A descrição do homem que fora visto era também algo vaga. "Grande e cabeludo, com dentes enormes e olhos vermelhos" foi como Roger a parafraseou. Contudo, enviou-a a todos os oficiais do Rei da região - juntamente com o relatório de UJi sobre o homem junto ao campo de trigo. Eu não estava optimista quanto à utilidade de um effictio tão incompleto, mas Roger estava bastante satisfeito.

- A pouco e pouco - disse ele. - Passo-a-passo. Sabemos que eram, pelo menos, três: um foi pelas montanhas até à Catalunha; um para Oriente, em direcção à costa; um dirigiu-se para Norte. O que se dirigiu para Norte era grande e cabeludo. O que foi para Oriente abandonou o cavalo...

- Abandonou o cavalo do bispo - corrigi. - Será que montava o seu próprio cavalo? Iili não viu cavalo nenhum. Será que o cavalo junto ao rio parecia um dos cavalos do bispo, ou será que os assassinos chegaram a Casseras a pé, e partiram em cavalos roubados?

Roger franziu o sobrolho.

- Para atacar quatro homens a cavalo... - murmurou ele. - Poderia ser muito perigoso, se não se estivesse também a cavalo.

- Tinham setas - assinalei.

- Mesmo assim...

Foi então que pus o senescal ao corrente da minha teoria relativa a um possível traidor na comitiva do padre Agostinho. Concordámos em que, distraídos por um ataque exterior às suas fileiras, os honestos familiares podem não se ter apercebido da ameaça vinda de dentro - até ser tarde de mais. Efectivamente, podem ter sido apunhalados pelas costas. E, nestas circunstâncias, pode ter sido possível atacá-los sem a ajuda de cavalos.

- Padre, tendes a mente de um salteador - disse Roger, admirado. - Isso explicaria tudo.

- Quase tudo.

- Dai-me a descrição dos dois homens de quem suspeitais - Jordan e Maurand, são esses os nomes? Dai-me uma descrição completa, e informarei todas as pessoas que puder.

- Devemos também analisar as suas recentes actividades, as pessoas com quem se davam, as casas que podem ter frequentado...

- Exactamente - o senescal bateu-me nos ombros num gesto de boa camaradagem. - Perguntai aos seus camaradas, e, se eles vos derem alguns nomes, trazei-os à minha presença.

Assim, fui sobrecarregado com mais uma tarefa difícil, numa altura em que o Santo Ofício de Lazet praticamente deixara de funcionar. Felizmente, o bispo Anselm mandara-me dizer que o Inquisidor de França fora informado da morte do padre Agostinho e que procurava assiduamente um substituto. Eu sabia que essa seria uma tarefa lenta e difícil, à luz da sorte que recaíra sobre o meu superior chacinado. Na verdade, eu tinha pouca esperança de arranjar ajuda antes do ano novo. Mas tranquilizava-me o facto de que o assunto estava a ser tratado, e que o meu pedido era conhecido daquelas pessoas em posição de poderem fazer alguma coisa.

Penso que concordareis que, com tanta coisa a ocupar-me os pensamentos, tive justificação para mandar embora Grimaud Sobacca, quando ele pediu para falar comigo na manhã que se seguiu ao meu regresso de Casseras. Lembrais-vos de Grimaud? Era o familiar a quem o padre Jacques confiara certos deveres desagradáveis - o homem que erradamente difamara Johanna e as amigas como "hereges". Eu estava, por isso, relutante em aceder ao seu pedido, e recusei-lhe a entrada no Santo Ofício.

No entanto, com a sua habitual persistência, ele confrontou-me na rua, quando eu regressava ao priorado.

- Meu senhor! - disse Grimaud. - Tenho de falar convosco!

- Não estou interessado nas tuas mentiras, Grimaud. Sai do meu caminho.

- Não são mentiras, meu senhor, não! É só o que eu ouvi dizer! Agradecer-me-eis por isso, por minha honra!

Embora relutante em distinguir este verme com um effictio, acredito que tal descrição possa servir para ilustrar a perversidade da sua alma, já que a sua aparência era tão repelente como a sua depravação moral. A sua pele oleosa e pustulenta, o nariz roxo, a sua corpulência - tudo era indicativo de gula, intemperança, excesso. A ociosidade tornava-o flácido; a inveja fazia-o lastimar-se. Era como um íbis, que limpa os intestinos com o seu próprio bico.

- Meu senhor - exclamou ele, à medida que eu me afastava para passar por ele. - Tenho notícias sobre a morte do padre Agostinho! Tenho de falar convosco em particular!

Ao ouvir estas palavras, eu fui naturalmente forçado a recebê-lo, pois não desejava discutir o assunto num local onde outros pudessem ouvir.

Por isso levei-o de volta para o Santo Ofício, sentei-o na sala do meu superior e deixei-me ficar em pé, debruçado sobre ele, numa pose ameaçadora.

- Se eu não estivesse tão ocupado, Grimaud, prendia-te por falso testemunho - disse eu. - Aquelas mulheres de Casseras não são hereges, e nunca foram. Por isso, se eu fosse a ti, pensaria muito, muito bem, antes de difamar outra pessoa, porque da próxima vez não terei misericórdia. Estás a compreender?

- Oh, sim, meu senhor - o homem era descarado. - Mas só vos conto o que ouço dizer.

- Nesse caso, os teus ouvidos estão cheios de esterco - disse eu bruscamente, após o que ele riu desesperadamente, pensando tornar-se estimado com uma falsa demonstração de apreciação. - Cala-te! Pára de zurrar e diz o que tens para dizer.

- Meu senhor, um amigo meu estava em Crieux, há dois dias - na estalagem de lá -, quando viu o pai, o irmão e o sobrinho de Bernard de Pibraux na mesa ao lado. Quando ia a passar, ouviu-os a conversar. O pai, Pierre, dizia: "Não faz diferença. Mata um, e Paris manda outro". Depois, o sobrinho disse: "Mas, pelo menos, vingámos o meu primo". E Pierre disse: "Shhh, idiota - eles têm espiões em toda a parte!" E depois calaram-se.

Tendo dado esta informação, o próprio Grimaud se calou, olhando-me no rosto com expectativa. Era como um cão debaixo de uma mesa, à espera de um osso. Eu cruzei os braços.

- E esperas que te pague por isto? - disse eu, após o que ele franziu o sobrolho.

- Meu senhor, eles disseram: "Paris manda outro!"

- Grimaud, quem é esse "amigo" de quem falas?

- Um homem chamado Barthelemy.

- E onde posso encontrá-lo?

- No hospital de St-Etienne. É lá cozinheiro.

A resposta espantou-me um pouco, pois eu estava à espera de ouvir que o acima mencionado Barthelemy partira numa peregrinação ou que morrera de uma febre. Mas depois pensei que ele poderia ter concordado em confirmar o testemunho de Grimaud por uma parte do dinheiro que contavam receber - especialmente se não tivesse conhecimento dos castigos infligidos por levantar falso testemunho.

Por outro lado, havia uma hipótese, apenas a mais ínfima hipótese, de a história ser verdadeira. Grimaud, embora fosse geralmente um mentiroso, não o era sempre. Aqui residia a dificuldade em rejeitar sem reservas todas as suas afirmações (especialmente à luz do facto de que Pierre de Pibraux ocupava um dos primeiros lugares na minha lista de suspeitos).

- Vou falar com o teu amigo, e com o estalajadeiro de Crieux - disse eu. - Se eu chegar à conclusão de que existe alguma verdade no que dizes, receberás o pagamento.

- Oh, obrigado, meu senhor!

- Volta daqui a duas semanas.

- Duas semanas? - uma expressão de horror estava escrita no rosto de Grimaud. - Mas meu senhor... duas semanas...

- Estou ocupado. Muito ocupado.

- Mas eu preciso de ajuda agora...

- Estou ocupado, Grimaud! Não tenho tempo para ti! Não tenho tempo! Agora sai, e volta daqui a duas semanas!

Devo confessar que levantei a voz, e os meus amigos dir-vos-ão que não perco muitas vezes a serenidade desta maneira. Mas estava assustado com o número de tarefas que tinha à minha frente. Para começar, esperava-se que eu investigasse Jordan e Maurand, os dois guardas sob suspeita, assim como os seus hábitos e amigos. Tinha de interrogar Bernard de Pibraux, os seus três jovens amigos, o pai e o irmão. Raymond Maury, o padeiro, fora intimado para comparecer perante mim no dia seguinte, e eu ainda não fizera preparativos para isso, nem para o interrogatório do sogro. Quanto aos outros possíveis suspeitos (como, por exemplo, Bruna d'Aguilar), eu ignorara-os completamente. Raymond Donatus e Durand Fogasset não me largavam à espera de trabalho, e o irmão Lucius estava sentado sem fazer nada. Pons, o carcereiro, informara-me de que um dos aldeões de Saint-Fiacre morrera, e de que outros estavam doentes; disse ainda que tais mortes eram de se esperar numa prisão superlotada. Quando é que eu poderia interrogar os prisioneiros de Saint-Fiacre?

Eu não podia dizer. Não sabia. Parecia-me que seria obrigado a nomear um dos meus irmãos monges como vigário - embora, sendo eu próprio vigário, não tivesse autoridade para fazer tal coisa. Se o bispo Anselm fosse como o bispo Jacques, de Pamiers, eu poderia tê-lo convencido a estabelecer uma inquisição episcopal, mas eu desesperava de conseguir alguma ajuda útil da parte do bispo Anselm. O desespero consumia-me, e não era só por causa do trabalho que se estendia à minha frente como um deserto.

O meu coração estava terrivelmente preocupado, pois o prior Hugues repreendera-me com palavras duras em relação aos dias que eu passara em Casseras.

A seguir ao meu regresso de Casseras, fui ter com o prior e solicitei uma audiência. Principalmente, eu desejava colocá-lo ao corrente daquela transformadora experiência de êxtase que me dominara na encosta. Queria perguntar-lhe como é que eu podia purificar mais a minha alma, e que passos devia seguir para alcançar mais uma vez aquele estado de exaltação. No entanto, não fui, possivelmente, muito eficaz nas tentativas que empreendi para o descrever, pois ele pareceu preocupado com o papel de Johanna no que considerou um "episódio sensual".

- Dissestes que ela vos sorriu, e que o vosso coração se encheu de amor - disse ele com reprovação. - Meu filho, receio que tenhais estado sujeito à atracção das paixões corporais.

- Mas era um amor que abrangia tudo. Eu amava tudo o que via.

- Amáveis a criação.

- Sim. Amava a criação.

- E que disse Santo Agostinho sobre tal amor? "É verdade que Ele criou tudo com uma perfeição maravilhosa, mas Ele, e não a criação, é o meu bem".

Esta observação fez com que eu reflectisse, e o prior, vendo a minha consternação, continuou:

- Falais das flores que acalmaram os vossos receios com a sua beleza e o seu perfume. Falais da música que vos enlevou e da vista que vos arrebatou. Meu filho, esses são apenas prazeres sensuais.

- Mas levaram-me até Deus!

- Cito novamente Santo Agostinho. "Ama, mas atenta no que amas. Ao amor de Deus, ao amor do nosso vizinho, chama-se caridade; ao amor do mundo, ao amor desta vida, chama-se concupiscência".

Mas eu não estava a sentir nada daquilo.

- Padre - disse eu -, já que estamos a citar Santo Agostinho, devemos considerar tudo o que ele diz. "Deixa que a raiz do amor seja profunda; desta raiz não pode nascer nada que não seja bom"; "Porque ainda não viste Deus, ganha a visão Dele ao amar o teu vizinho".

- Meu filho, meu filho - o prior levantou a mão. - Contende as vossas paixões.

- Perdoai-me, mas...

- Estou familiarizado com as autoridades que serviriam de suporte ao vosso argumento. São Paulo diz: "Não é o que é espiritual que vem primeiro, mas o que é animal, só depois o que é espiritual". São Bernardo diz: "Uma vez que somos carnais e nascidos da concupiscência da carne, a nossa cupidez ou amor deve começar pela carne, e, quando isso está em ordem, o nosso amor avança a passo constante, conduzido pela graça, até ser consumado no espírito". Mas que mais diz São Bernardo? Diz que, quando o Senhor é procurado em vigílias e orações, com muito esforço, com muitas lágrimas, Ele apresentar-se-á, finalmente, à alma. Onde estava o vosso esforço, Bernard? Onde estavam as vossas lágrimas?

- Não houve nenhumas - admiti. - Mas sinto que Deus talvez me tenha concedido a bênção do Seu amor divino para me estimular para um esforço deste género. Ao permitir-me provar da Sua doçura, Ele assegurou que eu me encheria de uma ânsia por mais.

O prior resmungou.

- Padre - continuei, sentindo que ele não estava convencido -, tenho estado repleto exactamente dessa ânsia. Sou um homem melhor devido ao que vi e senti. Sou mais humilde. Mais caridoso...

- Oh, ora, Bernard, ambos sabemos que isso não significa nada. Até Andreas Capellanus refere que o amor profano pode enobrecer. O que é que ele diz? Algo sobre o amor fazer o homem brilhar com tantas virtudes, e ensinar a todos, independentemente da condição social, tantos bons traços de carácter...

Divertiu-me descobrir que o meu velho amigo lera TheArtof Courtly Love nalguma altura da sua vida, e que até aprendera partes dele de cor. Eu próprio nunca encontrara a obra. Não é uma obra que se encontre com facilidade entre frades dominicanos.

- Bem, padre, eu não consultei essa autoridade - foi a minha resposta algo irónica. - Mas há uma canção que ouvi uma vez - como era?

Tudo o que Vénus me manda fazer

Faço com erecção,

Pois nunca no coração do homem

Ela habitou com monótona consternação...

- Que vergonha! - protestou o prior Hugues. - Bernard, sois irreverente. Estamos a falar de amor, não de excessos sensuais.

- Eu sei. Estou em falta. Mas, padre, já amei mulheres antes disto (lamento dizê-lo), e nenhuma delas alguma vez me inundou o coração de esplendor divino. Isto foi diferente.

- Porque a mulher era diferente.

- Oh, padre, não tendes qualquer respeito pela minha capacidade crítica?

- Tendes algum respeito pela minha? Bernard, viestes ter comigo. Dei-vos a minha opinião: se há uma mulher envolvida, estais a correr perigo. Todos os Mestres da Igreja nos dizem isso. Mas, se desconsiderardes os vossos votos de obediência, e desejardes contestar a minha posição, recorrei a uma autoridade maior. Procurai os sintomas do amor divino e do amor profano - aprendei a distingui-los. Consultai o doutor Angélico. Consultai a obra Etymologies. Depois ajoelhai-vos perante Deus, vós, que não sois digno de receber as Suas bênçãos seja em que forma for, devido à vossa profunda arrogância de espírito.

Tendo terminado esta reprimenda, o prior impôs-me uma série de exercícios de penitência, e pediu-me que saísse da sua presença. Foi um momento amargo, devo confessar. Enquanto que devia ter comido cinzas e abraçado montes de esterco, fui movido a uma teimosa revolta. As setas da cólera estavam dentro de mim, o veneno de que estavam impregnadas apoderou-se do meu espírito. Durante algum tempo, o meu mau génio andou inflamado. Os meus irmãos afastavam-se de mim, pois, em tal estado de fúria reprimida, eu era como um basilisco: a minha voz, embora nunca se levantasse, podia queimar e irritar. As minhas penitências eram conduzidas com mal dissimulado desdém.

Acreditava que o prior transformara capacidade crítica em rancor, e o fruto da justiça era cicuta.

Naturalmente que eu rezava, mas as minhas orações eram como caminhos escorregadios na escuridão. Naturalmente que consultei as autoridades que o bibliotecário recomendou, mas com o objectivo de desacreditar o prior e de demonstrar a justiça do meu próprio caso. Contudo, quanto mais lia, mais inseguro ficava quanto à verdadeira natureza do momento por mim vivido na encosta. Quando estava a estudar teologia, eu fizera-o - como é que devo dizer? - de uma forma algo despegada e teórica. Embora eu me tivesse debruçado sobre a união da alma com Deus, e sobre outros assuntos relacionados, saber, na nossa cabeça, que estar presente em Deus é não sermos nada em nós próprios, é abandonar tudo o que seja distintivo em nós próprios - saber isto na nossa cabeça é diferente de sabê-lo no nosso coração. Por outras palavras, eu parecia ler com olhos acabados de abrir que, para habitar em Deus, devemos renunciar a nós próprios e a todas as coisas, incluindo criaturas que existem no tempo ou na eternidade; que não devemos amar este bem ou aquele bem, mas o bem do qual todo o bem provém. É uma experiência estranha, usar tal sabedoria para interpretar um incidente na nossa própria vida (antes, eu usara o meu conhecimento filosófico e teológico simplesmente para debater proposições com interlocutores eruditos). Era como receber o depoimento de uma testemunha e avaliá-lo com base nos erros anatematizados num decreto papal. Fui forçado a perguntar: será que eu me abandonara a mim próprio, e a tudo à minha volta? Estava a minha alma completamente dissolvida em Deus?

À medida que a minha raiva se dissipava, vi o que devia ter visto desde o início (e abanareis a cabeça perante a minha imbecilidade): que proferir as afirmações que eu andava a proferir era uma coisa perigosa de fazer. Considerai, por exemplo, a forma como eu, na qualidade de inquisidor de Depravação Herege, teria olhado para uma história destas, se me fosse apresentada como prova de crenças hereges. Não teria eu perguntado a mim próprio que ímpia insolência podia possuir um homem que reclamava estar em comunhão com o próprio Deus, embora nada na sua vida ou obras parecesse justificar tal beatitude?

Como eu estava perturbado! Mergulhado na incerteza, era como uma folha ao vento forte, atirada para aqui e para ali. Recordava a

alegria intemporal por mim experimentada na colina, e tinha a certeza de que a minha alma alcançara Deus. Depois continuava a ler e começava a duvidar. Pensei na viagem de São Paulo para Damasco: reflecti na luz que brilhou em volta dele e na voz que falou com ele, e no facto de que, ao levantar-se, ele não viu nada. Muitos mestres ensinam que, no nada, ele viu Deus, pois Deus é o nada. Dionísio escreveu sobre Deus: "Ele está acima do ser, Ele está acima da vida, Ele está acima da luz". Na obra Celestial Hierarchies, Dionísio diz: "Quem falar de Deus com um sorriso, fala Dele de uma forma impura, mas quem falar de Deus usando o termo nada, fala Dele adequadamente". Assim, quando a alma chega à Unidade e aí entra numa pura rejeição de si própria, encontra Deus no nada.

Consequentemente, perguntei a mim próprio: foi isso que eu encontrei na encosta? Nada? Parecia-me que encontrara o amor, e todos sabemos que Deus é amor. Mas que género de amor? E se, de facto, eu experimentara o amor de Deus, nesse caso, talvez, porque eu o experimentara (pois acredito que estava consciente do meu próprio ser, do princípio ao fim), não me tornei completamente disforme, informe e transformado na uniformidade divina que nos torna unos com Deus. Oh, eu estava tão confuso! Rezei para que se fizesse luz no meu espírito, mas não se fez. Procurei a graça da presença de Deus, mas permaneci intocado pelo amor divino - ou, pelo menos, por aquele amor que me inundara na encosta. Passei uma boa quantidade de tempo ajoelhado, mas não o tempo suficiente, talvez; os meus deveres interferiam com a minha busca espiritual. Toda a paz abandonara a minha alma. Carregado de trabalho, condenado pelo meu superior, espiritualmente perturbado, eu não tinha descanso. Até na cama, como Job, eu agitava-me de um lado para o outro, até ao romper do dia.

Uma vez, passei uma noite inteira prostrado perante o altar, sincero no meu desejo de chegar a Deus. Não me mexi, e, passado algum tempo, a dor era muito grande. Ofereci-a a Nosso Senhor; implorei-lhe que fizesse de mim um instrumento da Sua paz. Com que ardor, com que paixão eu desejava libertar-me de mim próprio! Com que intensidade eu O queria ali, no meu coração! Mas quanto maior era o desespero com que eu O procurava, mais distante Ele parecia, até que, por fim, me senti sozinho em toda a criação, afastado do amor que inspira todo o amor, e chorei de desespero. Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

Eu era como uma ovelha perdida, e uma ovelha que merecia pouco, pois até nas profundezas em que me encontrava eu punha em questão a Sua infinita misericórdia. Por que é que, naquela encosta, Ele parecera tocar-me com o Seu amor divino, quando eu não fizera nada para o conseguir - e agora me negava o mesmo, quando eu o procurava com tanto fervor?

Concordareis, penso, que este interrogatório mostra quão distante eu me encontrava do meu objectivo. Na realidade, eu era muito indigno, pois a minha natureza está longe de ser mística e a minha compreensão é limitada. Eu iria até ao ponto de dizer que o meu desejo pelo amor de Deus era em certa medida fomentado pelo meu desejo de provar que já o conhecera uma vez antes. Fraco, vil hipócrita! Sofrendo como sofri, eu merecia sofrer agonias ainda maiores - pois notai onde procurei alívio. Notai onde o meu espírito atormentado encontrou descanso. No seio de Deus? Ai de mim, não.

No meio da minha vexação, eu recorri, não à oração, mas a Johanna de Caussade.

Imaginava o seu sorriso, e sentia-me reconfortado. Passava mentalmente em revista o nosso diálogo, e ria. Colocava a sua imagem à minha frente, na minha cela, à noite, e banqueteava-a com descrições dos meus tormentos, das minhas lutas, da minha confusão. Admirável conduta para um frade de São Domingos! Mas sou um verme, e não um homem; a vergonha dos homens, e desprezado por toda agente. Eu estava envergonhado e, ao mesmo tempo, era inflexível; argumentava comigo próprio que talvez ela fosse o instrumento de Deus, uma candeia e uma estrela. É claro que ela não era, de forma alguma, um exemplo, como era Marie d'Oignes - a quem Jacques de Vitry chamava a sua "mãe espiritual" - ou Santa Margarida da Escócia, que influenciou o Rei Malcolm, movendo-o à bondade e à piedade ("O que ela rejeitava, ele rejeitava... o que ela amava, ele, por amor dela, amava também"). Mas talvez o amor tão evidente entre Johanna e a filha me tivesse mostrado o caminho do amor. Ou talvez fosse o caminho de Alcaya - e Johanna, pecadora como eu, pegara-me na mão para me conduzir por ele.

Vergonhosos pensamentos! Observai só as minhas elaboradas e engenhosas suposições - as minhas tortuosas tentativas para justificar a ânsia culpável que eu alimentava. O prior Hugues conhecia-me bem.

Sabia que eu estava afectado por Johanna, ao ponto de os meus votos correrem perigo (uma ocorrência comum entre frades que têm de sair para o mundo). Sem dúvida que o papel do padre Agostinho na vida da viúva me encorajara a ceder às minhas emoções, pois se ele, o inquisidor perfeito, sucumbira aos seus encantos, quem era eu para lhes resistir? Não que o meu interesse fosse puramente ou sequer largamente libertino. Recordai, se desejardes, a minha resposta ao seu olhar namorisqueiro - o meu choque e o meu medo; eu não alimentava visões de natureza carnal. Queria apenas falar com ela, rir com ela, partilhar com ela os meus pensamentos e as minhas preocupações.

Queria que ela me amasse, e não como devemos amar todos os nossos vizinhos, mas com um amor que me distinguisse tanto quanto excluía outros homens. Tem compaixão de mim, ó Deus, pela Tua bondade; pela Tua grande misericórdia, apaga o meu pecado. Lembro-me de uma proposição que me foi colocada uma vez, e que fora tirada dos ensinamentos de um infiel: nomeadamente, que o amor profano reúne partes de almas que foram separadas na criação. Um erro pernicioso, sem dúvida, mas um erro que parecia uma translatio poética do meu próprio estado. Sentia que Johanna e eu estávamos perfeitamente um para o outro, como os dois lados de um selo quebrado. Sentia que éramos, em alguns sentidos, como irmãos.

Mas não em todos os sentidos, receio. Porque um dia, quando ia a caminhar na rua, vi uma mulher de costas que erradamente identifiquei como sendo Johanna de Caussade. Parei abruptamente. O coração parecia girar-me no peito. Depois vi que me enganara, e a minha decepção foi tão profunda que reconheci a completa imensidão do meu pecado. Aterrado, apercebi-me do quanto me afastara da Graça.

Em seguida, voltei para trás e fui directamente ter com o prior, que ouviu pacientemente a minha confissão.

Disse-lhe que estava apaixonado por Johanna de Caussade. Disse-lhe que esse amor estava a toldar-me o bom senso. Supliquei-lhe que me perdoasse, e auto-repreendi-me pela minha vaidade, pela minha estupidez, pela minha teimosia. Quanto eu fora obstinado! Quanto fora voluntarioso! O meu pescoço era um tendão de ferro, a minha testa era de bronze. - Tendes de refrear o vosso orgulho - concordou o meu superior.

- Tenho de o extinguir.

- Fazei disso o vosso objectivo deste mês, então. Praticai a obediência. Mortificai a carne. Ficai em silêncio durante o capítulo (sei que ides achar isso uma grande provação), e dizei a vós próprio, repetidas vezes, "O irmão Aeldred tem razão; eu estou errado").

Desatei a rir, pois o irmão Aeldred, o nosso mestre dos Estudantes, era um homem por quem eu nutria pouca simpatia. Ele e eu diferíamos enormemente nas nossas opiniões, sendo a dele baseada em conhecimentos insuficientes e defeituosos poderes de raciocínio.

- Essa é uma cruz pesada - gracejei.

- E, por isso, é a mais eficaz.

- Preferia lavar-lhe os pés.

- Os vossos desejos, Bernard, são exactamente aquilo que estamos a tentar vencer.

- Talvez eu devesse começar por um objectivo mais fácil de atingir. Talvez devesse dizer a mim próprio: "O irmão Aeldred tem direito a abrir a boca; estou errado ao esperar que ele compreenda".

- Meu filho, estou a falar muito a sério - o prior falava num tom grave. - Sois um homem inteligente; ninguém duvida disso. Mas orgulhais-vos de mais do vosso intelecto. Que mérito é que ele tem, se é acompanhado de preguiça, vaidade e desobediência? Isto não é Roma nem Paris - não encontrareis as mais brilhantes mentes do mundo reunidas em Lazet. Se as encontrásseis, talvez vos apercebêsseis de que não estais entre elas.

- Bem... talvez... - respondi, com um falso e exagerado ar de relutância.

- Bernard!

- Perdoai-me.

- Pergunto-me se estareis a rir quando chegardes à porta do Inferno...? Parece-me que, se reconhecêsseis verdadeiramente o caracter pecaminoso das vossas acções, estaríeis a chorar, e não a rir. Fostes desobediente. Cedestes aos desejos da carne, e amastes a vossa própria vontade. Fostes presunçoso - mais do que presunçoso, irreverente, até obsceno! - ao equiparardes o desejo da concupiscência com o êxtase do amor divino. Que Deus vos perdoe, meu filho, mas tal erro ímpio é próprio de um homem inteligente?

Talvez fosse a leve nota de escárnio presente no seu tom de voz que me incitou a falar nesta altura. Ou talvez fosse o conhecimento de que, ao confessarmo-nos, devemos revelar todos os pensamentos e sentimentos.

- Padre, pequei no meu amor por Johanna de Caussade - disse. - Pequei na minha raiva e no meu orgulho. Mas não estou convencido de que o que senti, naquela colina, fosse de origem terrena. Não estou convencido de que não era o amor de Deus.

- Bernard, estais errado.

- Talvez esteja. Talvez não esteja.

- Isso é humildade? É arrependimento?

- Quereis que eu negue Cristo?

- Quereis que eu aceite tal blasfémia?

- Padre, procurei na minha alma... -... e sucumbistes à vaidade.

Ao ouvir isto, devo confessar que fiquei irritado - embora tivesse prometido renunciar à raiva e abandonar o orgulho.

- Não é vaidade - protestei.

- Sois presunçoso.

- Achais-me incapaz de raciocinar? Incapaz de distinguir entre um género de amor e o outro?

- Porque estais cego pelo orgulho.

- Padre - disse eu, tentando manter-me calmo -, e vós, alguma vez conhecestes o amor divino?

- Não vos compete fazer tal pergunta.

- Sei que é um facto que nunca conhecestes o amor de uma mulher.

- Calai-vos! - de súbito, ele estava muito irritado. Eu raramente vira o prior irritado - desde a sua eleição, de certeza que não. Ao longo da sua vida, ele cultivara a serenidade, e, mesmo quando era jovem, apresentara ao mundo um rosto tranquilo. Movido por algum demónio da maldade, eu trabalhara muitas vezes, naqueles dias distantes, para minar a sua equanimidade, aborrecendo-o e escarnecendo dele - mas com pouco êxito. Mesmo assim, não havia ninguém tão capaz de perturbar a sua paz de espírito.

E embora já não fôssemos jovens, ele continuava a ser o antigo oblato lento e nédio sem experiência do mundo, enquanto que eu continuava o vivo e esguio licenciado da diversão.

- Calai-vos! - repetiu ele. - Senão mandar-vos-ei chicotear pela vossa insolência!

- Não é minha intenção ser insolente, padre. Eu desejava simplesmente assinalar que estou um pouco familiarizado com o amor, tanto profano como talvez divino...

- Não digais mais nada!

- Hugues, presta atenção. Não estou a tentar desafiar a tua autoridade - estou a falar a sério, juro. Conheces-me, sou um homem tão mundano; mas isto é diferente - tenho lutado com demónios...

- Sois guiado por demónios. Estais inflamado de orgulho e ignorais a vontade de Deus - o prior falava sem fôlego, intermitentemente, e levantou-se para fazer a sua conclusio. - Não vejo vantagem em continuarmos a falar. Fareis um jejum a pão e água, continuareis calado neste priorado, e prostrar-vos-eis no capítulo durante um mês - senão arriscais-vos a ser expulso. Se vierdes novamente ter comigo, que seja com as mãos e os joelhos no chão, pois de outra forma não vos receberei. Que Deus tenha piedade da vossa alma.

E foi assim que perdi a amizade do prior. Eu não tinha compreendido, até àquele momento, com que profundidade a sua eleição empolara o seu sentido de dignidade. Não tinha compreendido que, ao desafiá-lo, eu parecera, aos seus olhos, estar a denegrir as suas capacidades e a pôr em causa o seu direito ao cargo que ocupava.

Talvez, se eu tivesse compreendido isso, não me encontrasse na presente situação.

Setembro passou. Começou a Quaresma. O Verão aproximava-se do fim. No priorado, celebrávamos o dia de São Miguel e a festa de São Francisco. Nas montanhas, os pastores conduziam os seus rebanhos para Sul. Nas vinhas, esmagavam-se as uvas. O mundo continuava como Deus estabeleceu (A Lua cumpre as várias estações, o Sol conhece o seu ocaso), enquanto o padre Agostinho se putrefazia lentamente, sem ser vingado. Porque reconheço, para minha vergonha, que não avançava nem um passo para a verdadeira compreensão do seu assassínio.

Após ter-me esforçado nessa direcção durante vários dias, eu reunira uma boa quantidade de factos sobre Jordan Sicre e Maurand d'Alzen. Já estava ao corrente de que Jordan chegara a Lazet vindo da guarnição de Puilaurens. Nascido em Limoux, tinha lá família, de que raramente falava: os camaradas acreditavam que ele rompera com todos os parentes. Tinha um treino muito mais elaborado do que muitos dos nossos familiares e possuía uma espada curta que usava com "muita habilidade". Antes de ser nomeado para o Santo Ofício, servira na guarnição da cidade, e descobri que a transferência ocorrera a seu próprio pedido (o salário de um familiar é melhor do que o de um soldado da guarnição, e os seus deveres são menos pesados, embora o seu prestígio talvez não seja tão elevado). Jordan vivia com outros quatro familiares num quarto nas traseiras de uma loja que era propriedade de Raymond Donatus. Não era casado. Raramente, se é que alguma vez, ia à igreja.

Estes factos eram do meu conhecimento. Mas depois de ter falado com os homens que partilhavam o quarto com ele, e com os soldados que tinham trabalhado com ele na guarnição da cidade - alguns dos quais, tendo-me acompanhado a Casseras, estavam ansiosos por me prestarem auxílio -, fiquei com uma ideia mais completa sobre Jordan Sicre. Era um indivíduo prático, bastante taciturno, que desprezava a incompetência. Gostava de jogar, e entregava-se livremente a esta paixão, sem se deixar cair em dívidas com muita frequência. Falava de tosquia e de pastorícia com conhecimento de causa. Protegia prostitutas. Era respeitado, mas não amado. Disseram-me que não tinha amigos íntimos. Passava a maior parte do seu tempo livre a jogar com uns poucos companheiros com os mesmos interesses, todos eles familiares ou soldados da guarnição. Os seus bens (tal como estavam) foram distribuídos entre os restantes ocupantes do seu quarto. Tinha trinta anos, ou cerca disso, quando se oferecera como voluntário para acompanhar o padre Agostinho naquela viagem fatídica.

Maurand d'Alzen também se tinha oferecido como voluntário para a guarda do padre Agostinho. Era três ou quatro anos mais novo do que Jordan, era natural de Lazet, o pai era ferreiro no bairro de St-Etienne. Vivia com a família, mas parecia que não sentiam muito a falta dele. Depois de ouvir pela primeira vez o seu nome ligado ao massacre, lembrei-me de o ter repreendido muitas vezes por blasfémia ou violência excessiva. Numa ocasião, ele fora até acusado de fracturar as costelas de um prisioneiro, embora esta acusação nunca tivesse sido provada (houvera discórdia entre Maurand e a sua alegada vítima, mas o prisioneiro morrera sem ter recuperado a consciência, e, na realidade, ninguém testemunhara o ataque). Consequentemente, eu conhecia Maurand como um jovem vingativo, aparentemente de pouco mérito - uma impressão que foi confirmada nas conversas que tive com a família, os camaradas e com a mulher descrita como sua "amante".

Esta infeliz rapariga, uma prima pobre, trabalhara para o pai de Maurand desde muito pequena. Aos dezasseis anos dera à luz o filho ilegítimo de Maurand, que tinha agora três anos. No rosto e nos braços exibia as cicatrizes das atenções do amante, que tinha a mão pesada. Na verdade, parecia que ela o conhecera carnalmente pela primeira vez pouco depois de ter completado treze anos, quando ele a violara e a privara da sua virgindade. A rapariga estava ressentida com ele, não tanto por si própria como por causa do menino, que também sofria espancamentos. Em várias ocasiões, o amante fora expulso de casa, mas a família sempre recebera bem o seu regresso.

Embora ela não o dissesse, eu presumi, do seu comportamento, que ela não estava nada triste com a morte dele.

Parecia que os outros parentes de Maurand também se tinham virado contra ele, devido à frequência e à violência dos seus acessos de raiva. Descreviam-no como preguiçoso, desrespeitador, dado à bebida. Tinha sempre pouco dinheiro. Um tio acusara-o de ter roubado um cinto e uma capa, mas não conseguiu fornecer qualquer prova; no entanto, o pai de Maurand pagara estes artigos. Muitas das vizinhas queixaram-se-me das observações indecentes e insinuantes de Maurand. Estranhamente, frequentara a igreja diligentemente, e era considerado pelos cónegos de St-Etienne como "um rapaz simples, grosseiro mas devoto". Contudo, perguntei a mim próprio: é este o tipo de homem a que damos emprego no Santo Ofício? E prometi que, à primeira oportunidade, reveria os actuais procedimentos de contratação de pessoal. Tal responsabilidade não podia claramente ser confiada só a Pons.

Os familiares companheiros de Maurand foram um pouco mais generosos na apreciação que fizeram dele. Disseram que era "jovial", e elogiaram-no pelas suas anedotas cheias de humor. Era um indivíduo grande, forte e sólido, que, não sendo um lutador treinado, era capaz de aplicar um poderoso soco (juntamente com qualquer mesa, bastão ou elmo que pudesse estar à mão). Admitiram que possuía um carácter irascível, e era conhecido por nunca pagar dinheiro que lhe fora emprestado. Por esta razão, nunca ninguém lhe emprestara dinheiro duas vezes.

- Ele não tinha dinheiro para pegas - disseram-me -, por isso andava sempre a arranjar problemas com as mulheres. Era tão grande e forte que algumas delas iam com ele de boa vontade. Mas a maior parte delas tinha medo.

- Onde é que ele passava o tempo? - perguntei. - Quando não estava a trabalhar nem estava em casa, aonde é que ele ia?

- Oh... à estalagem junto ao mercado. A maioria de nós vai lá.

- É claro - eu estava familiarizado com o enxame de soldados indolentes sentados junto à porta daquele estabelecimento, a cuspirem aos rapazes e a fazerem gestos obscenos às mulheres jovens. - Quem eram os amigos dele lá? Para além de vós próprios?

Recebi uma longa lista de nomes - uma lista tão longa que fui obrigado a escrevê-la. Aparentemente Maurand fora conhecido (e, sem dúvida, detestado) por metade da população de Lazet. Embora eu não reconhecesse nenhum dos nomes como pertencendo a parentes ou a companheiros de Bernard de Pibraux, reconheci o nome do genro de Aimery Ribaudin, Matthieu Martin. Como vos lembrareis, Aimery Ribaudin era uma das seis pessoas suspeitas de subornar o padre Jacques.

- Aimery Ribaudin? - exclamou o senescal, quando o consultei sobre este assunto. - Impossível.

- O padre Agostinho andara a interrogar os seus amigos e parentes - respondi. - Se Aimery sabia disso, tinha uma razão para matar o padre Agostinho.

- Mas, para começar, como é que Aimery Ribaudin pode ser herege? Olhai só os donativos que ele faz a São Policarpo!

Era certo que o caso contra Aimery não tinha fortes fundamentos. Uns oito anos antes, um tecelão fora condenado por ter levado um perfeito ao leito de morte da esposa, para que ela recebesse a bênção herege do consolamentum. Uma testemunha interrogada sobre este incidente lembrava-se de ter visto Aimery a falar com o homem acusado dois ou três anos após a morte da esposa acima referida (tendo o tecelão deixado a aldeia da sua família para vir para Lazet, durante o período de tempo que entretanto passou) e a dar algum dinheiro ao acusado.

Eu estava relutante, porém, em fornecer ao senescal estes pormenores, que não eram publicamente conhecidos.

- Aimery Ribaudin está sob investigação - disse eu com firmeza, após o que Roger, abanando a cabeça, murmurou qualquer coisa do género: se ele fosse Aimery, teria sido tentado a matar, ele próprio, o padre Agostinho. Felizmente para Roger, preferi ignorar esta observação. Em vez disso), passei a informá-lo da acusação de Grimaud relativamente a Pierre de Pibraux, e à estalagem de Crieux. - Ainda não falei com o amigo de Grimaud, Barthelemy, nem com o estalajadeiro - e terminei -, mas fá-lo-ei antes de os três amigos de Bernard de Pibraux chegarem a Lazet. Há algum tempo que os chamei cá. Já nessa altura, eu tinha as minhas suspeitas.

- Por Deus, isso soa a promissor!

- Talvez. Como eu disse, Grimaud não é de confiança.

- Mas eu conheço o pai de Bernard de Pibraux - revelou o senescal, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro (eu decidira consultá-lo na sede, porque duvidava do grau de privacidade disponível no Chateau Comtal). - Conheço-o bem, e tem carácter. Todos têm, naquela família. Por Deus, padre, eles podiam tê-lo feito!

- Talvez.

- E, se foram eles, podemos levá-los à justiça! E o Rei deixará de andar atrás de mim por causa disto!

- Talvez - o meu tom deve ter sido algo desinteressado, pois naquela altura eu ainda lutava com certas questões espirituais levantadas pela minha visita a Casseras, e andava a dormir muito pouco. O senescal olhou-me, confuso.

- Pensei que estaríeis mais entusiasmado - observou. - Estais doente, padre?

- Eu? Oh, não.

- Pareceis... a vossa cor é má.

- Estou a jejuar.

- Oh.

- E tem havido tanto trabalho para fazer.

- Escutai - o senescal voltou a sentar-se, inclinou-se para a frente e colocou ambas as mãos nos meus joelhos. Estava corado, e senti que, com a nossa presa fora do nosso alcance (pelo menos assim parecia), os seus instintos de caçador tinham-se excitado. - Deixai-me falar com esse tal Barthelemy. Se parecer que está a dizer a verdade, deixai-me ir ter com Pibraux para descobrir o que ele e a família estavam a fazer no dia da morte do padre Agostinho. No caminho, posso até parar em Crieux. E falar com o estalajadeiro. Tirar-vos um peso dos ombros. O que dizeis?

Durante uns momentos, eu não disse nada. Estava a rever a sua oferta, e o conteúdo da alegada conversa de Pierre na estalagem. Por fim, disse:

- Não houve qualquer sugestão de que Pierre e o sobrinho tivessem morto o padre Agostinho com as suas próprias mãos. Se contrataram mercenários, todos eles teriam estado em segurança em Pibraux no dia do assassínio.

O rosto do senescal desanimou.

- Mas - continuei, raciocinando - Barthelemy pode não se aperceber disso. Se fordes ter com ele, e lhe disserdes o que tencionais fazer em Pibraux, e o avisardes dos castigos em que incorrem aqueles que levantam falsos testemunhos, podeis assustá-lo a ponto de ele admitir que mentiu - se ele, de facto, vos mentir. Dizei-lhe que, se Pierre estava em Pibraux no dia do assassínio, sabereis que alguém tem andado a mentir...

- E se ele mantiver a sua história, nesse caso está provavelmente a dizer a verdade! - concluiu Roger. Deu-me uma palmada no joelho, em jeito de satisfação, e com tal vigor que quase me aleijou. - Que mente tendes, padre! Tão matreira como uma raposa!

- Muito obrigado.

- Irei directamente ter com Barthelemy. E, se me satisfizer o que ele disser, irei para Pibraux ainda esta tarde. Por Deus, se eu conseguisse tirar este assunto das minhas costas - que alívio seria! E para vós também, padre, é claro - apressou-se ele a acrescentar. - Podereis descansar à vontade, uma vez que os assassinos tenham sido castigados.

Envergonhava-me o facto de parecer estar a sofrer por causa da morte do padre Agostinho, quando, na verdade, as minhas noites de insónia eram resultado de assuntos que não tinham nada a ver. Envergonhava-me o facto de se pensar que eu era mais dedicado à sua memória do que realmente era. Assim, uma vez que o senescal se retirara, entreguei-me aos meus deveres com um renovado sentido de objectivo. Nessa mesma tarde, fora marcada uma entrevista com o sogro de Raymond Maury (que era, como talvez vos lembreis, um peleiro abastado).

Com a ajuda de Raymond Donatus, interroguei este homem sobre as alegadas ideias hereges do genro, e - visto que não fiquei satisfeito com as suas respostas - voltei a interrogá-lo. Servindo-me de depoimentos extraídos pelo padre Agostinho a várias outras testemunhas, assinalei que, nalguns casos, elas contradiziam o peleiro. Davam o nome dele como tendo estado presente durante um episódio do qual ele negava ter conhecimento. Citavam-no como tendo dito: "O meu genro é um maldito herege!". Como podia ele negar a sua cumplicidade, quando era tão clara?

Não tenhais dúvidas de que eu era implacável. E após um longo e cansativo interrogatório, o peleiro, finalmente, capitulou. Confessou que estava a tentar proteger Raymond Maury. Implorou-me, a chorar, que lhe perdoasse. Disse-lhe que o perdoava com todo o meu coração, mas que devia ser e seria castigado pelos seus pecados. A sentença seria formulada no próximo auto-de-fé, e embora várias autoridades eruditas tivessem de ser consultadas, a habitual penitência para o crime de esconder um herege era composta de oração, jejum, flagelação e peregrinação.

O peleiro continuava a chorar.

- É claro que - disse-lhe eu -, se se descobrisse, do depoimento de outras testemunhas, que partilháveis, de facto, das crenças de Raymond Maury...

- Oh não, padre, não!

- Um herege arrependido receberá misericórdia. Um herege obstinado não a receberá.

- Padre, não sou herege, juro! Não o seria nunca, nunca! Sou um bom católico! Amo a Igreja!

Não tendo descoberto qualquer prova em contrário, acreditei nele. Quando se é inquisidor de Depravação Herege, uma pessoa começa a desenvolver um certo instinto para detectar mentiras. Embora a verdade possa ser escondida, pode-se muitas vezes cheirá-la, tal como um porco é capaz de cheirar trufas enterradas. Para além disso, o peleiro declarara sob juramento que diria toda a verdade, pura e simples - e os crentes cátaros não fazem juramentos, em nenhumas circunstâncias.

No entanto, continuei a fingir que suspeitava, pois tinha uma ideia de que o padre Jacques fora bem recompensado por ter "esquecido" Raymond Maury - e, se era esse o caso, o pagamento viera, muito provavelmente, do sogro de Raymond.

Fosse como fosse, decidi prosseguir nessa assunção.

- Como posso acreditar em vós - disse eu -, quando persistis em esconder-me coisas?

- Não! Nunca!

- Nunca? E o dinheiro que pagastes para assegurar que o vosso genro escapava ao castigo?

O peleiro olhou-me através das lágrimas. Lentamente, mudou de cores. Vi a garganta mexer-se-lhe, à medida que engolia em seco.

- Oh - disse ele com voz fraca -, esqueci-me disso.

- Esquecestes-vos?

- Foi há tanto tempo! Ele pediu-me!

- Quem? O padre Jacques?

- O padre Jacques? - o peleiro olhou-me, estupefacto. - Não. O meu genro é que me pediu. Raymond pediu-me.

- Quanto?

- Cinquenta livres tournois.

- E destes-lhos?

- Amo a minha filha - é a minha única filha - eu faria qualquer coisa...

- Mataríeis por ela? - perguntei, e o olhar que ele me lançou era tão compassivamente atrapalhado - tão aflito e embriagado, mas não de vinho - que eu quase ri alto. - Foi sugerido - disse eu falsamente - que, quando o padre Agostinho começou a perseguir Raymond, contratastes assassinos para o matarem.

- Eu? - guinchou o homem. Em seguida ficou irritado. - Quem é que diz isso? - perguntou. - É mentira! Eu nunca matei o inquisidor!

- Se o fizestes, deveis confessá-lo agora. Pois acabarei por vos descobrir.

- Não! - gritou. - Disse-vos que menti! Disse-vos que paguei dinheiro! Disse-vos tudo! Mas não matei o inquisidor!

Apesar de todos os meus esforços, não consegui convencer o peleiro a retractar-se desta afirmação. Só a tortura o faria mudar de ideias, e eu não desejava usar tortura. Pois há um ponto a partir do qual um homem admitirá qualquer coisa, e eu nunca alimentara realmente a crença de que o sogro de Raymond Maury fora responsável pela morte do padre Agostinho. Naturalmente, eu estava preparado para verificar o seu testemunho.

Estava preparado para voltar a chamar muitas das testemunhas já interrogadas pelo padre Agostinho, para lhes fazer perguntas sobre os hábitos, os gastos e as companhias recentes do peleiro. Mas não esperava descobrir que ele andara a frequentar a estalagem junto ao mercado nem a jogar dados com Jordan Sicre. Não esperava descobrir que ele andara a subornar os palafreneiros do bispo.

Queria simplesmente eliminá-lo da minha lista de suspeitos.

Por isso mandei-o embora, agradeci aos meus "observadores imparciais" (os acima mencionados irmãos Simon e Berengar), e concluí o interrogatório. Em seguida chamei Raymond Donatus à parte, para lhe dar instruções sobre a versão final do protocolo terminado. Raymond estava ansioso por exprimir a sua opinião sobre o peleiro, que considerava quase de certeza responsável pelo assassínio do padre Agostinho".

Mas não disse nada sobre o padre Jacques.

Surpreendeu-me o facto de ele ter sido capaz de resistir à tentação. Na verdade, eu estava tão surpreendido que levantei a questão eu mesmo.

- Sabíeis, é claro, que o padre Agostinho estava a investigar a virtude do seu antecessor - observei.

- Sim, padre.

- Formastes alguma opinião quanto à justiça desse inquérito?

- Eu... não me compete dizê-lo.

Como podeis imaginar, divertiu-me a sua incaracterística reticência.

' - Mas, meu amigo - observei -, nunca ficastes calado antes.

- É um assunto muito delicado.

- É verdade.

- E o padre Agostinho deu-me instruções para que não falasse disso.

- Compreendo.

' - E se pensais que eu posso estar implicado, ficai certo de que não estou! - exclamou o notário, fazendo-me sobressaltar. - O padre Agostinho estava bastante satisfeito sobre esse ponto! Interrogou-me várias vezes... e eu disse-lhe que confiava no padre Jacques - não me competia a mim fazer a contagem do dinheiro dado pelas pessoas mencionadas em todas aquelas centenas de inquisições...

- Raymond, por favor, não estava a acusar-vos.

- Se ele tivesse suspeitado de mim, padre, ter-me-ia demitido - ou pior!

- Eu sei. É claro. Acalmai-vos - eu teria dito mais, se não tivesse sido interrompido por um familiar que se aproximou de mim com uma carta selada enviada pelo bispo Anselm. Este funcionário trazia também uma mensagem verbal da parte do senescal, que me relatou, palavra por palavra. Barthelemy, segundo parecia, encontrara de facto Pierre de Pibraux em Crieux, mas não o ouvira dizer nada de sinistro ou de suspeito.

- Devo dizer-vos, padre, que o vosso pequeno estratagema resultou - anunciou o familiar.

- Obrigado, soldado.

- Devo também dizer-vos que morreu mais um dos prisioneiros. Uma criança. O carcereiro quer falar convosco.

- Que Deus nos salve. Muito bem.

- Também me pediram que vos informasse de que os familiares não foram pagos este mês. É claro que sabemos que tendes estado muito ocupado...

- Sim, soldado, vou tratar do assunto. Pedi desculpas por mim aos vossos camaradas, e dizei-lhes que visitarei o administrador real de Confiscações amanhã. Como dizeis, tenho estado muito ocupado.

Notícias animadoras, não eram? Não admirava que eu não encontrasse consolo na vida, assaltado como andava pela dúvida, pelo fracasso e pela frustração. Mas eu ainda estava para receber o mais cruel dos golpes. Pois quando abri a carta do bispo, encontrei lá dentro uma missiva do Inquisidor de França.

Parecia que o meu novo superior fora nomeado - e que era Pierre-Julien Fauré.

 

Ele vem com as nuvens

Sei que deveis conhecer Pierre-Julien Fauré. Sei que o deveis ter encontrado quando ele estava em Paris, pois ele atrai a nossa atenção, não atrai? Ou melhor, ele insinua-se à nossa observação. É, e sempre foi, um homem barulhento; eu posso confirmá-lo, pois há muito tempo que o conheço. É que ele é natural desta região.

Encontrámo-nos pela primeira vez quando eu ainda era pregador ordinário, antes de os meus superiores me terem encorajado e incitado a assumir, mais uma vez, o manto de estudante, para poder tornar-me leitor de grande fama e influência (ridículo, não é?). Durante as minhas viagens com o padre Dominic, passei por Toulouse, parando o tempo suficiente para conhecer a Casa Provincial de Estudos - onde Pierre-Julien era residente havia apenas um ano. Naqueles dias ele era um jovem pálido enamorado de São Tomás de Aquino, cuja Summa inteira ele parecia ter aprendido de cor. Era este feito, mais do que qualquer brilho ou manifestação de conhecimentos, que o recomendara aos professores - pois quando assisti lá a uma das prelecções, fiquei impressionado com a notável estupidez das suas perguntas.

Não gastei muito tempo a pensar no seu carácter na altura, vendo-o simplesmente como um rapaz sem nada de especial que o distinguisse, pálido e com aspecto doentio devido à sua vida de estudo (pelo menos foi o que pensei, embora agora saiba que a sua cor pálida seja natural nele), possuído de um entusiasmo que, de alguma forma, me repelia, e com uma voz que tinha a capacidade de se tornar estridente, se fosse ignorada. Falámos apenas uma vez: ele perguntou-me se eu achava difícil resistir às tentações do mundo, agora que me movimentava livremente entre elas.

- Não - respondi, não me tendo ainda envolvido com a jovem viúva acima mencionada e cujos encantos me obrigaram a quebrar os votos.

- Vedes muitas mulheres? - quis ele saber.

- Sim.

- Deve ser muito difícil.

- A sério? Porquê?

É claro que eu sabia exactamente o que ele estava a tentar dizer, mas senti alguma satisfação ao vê-lo corar, hesitar, e afastar-se. Em muitos sentidos, eu era um homem maldoso, e, muitas vezes, agia com crueldade. Neste exemplo, contudo, fui castigado pela minha arrogância. Que maior castigo poderia haver do que dar comigo em vigário de um homem que humilhei há tanto tempo - um homem que, apesar de possuir um baixo grau de inteligência, atingiu alturas muito mais elevadas do que eu alguma vez atingirei?

De qualquer forma, separámo-nos, e não voltei a encontrá-lo senão quando ambos frequentávamos os Estudos Gerais de Montpellier. Aqui movíamo-nos em círculos diferentes. Percebi que ele estava a lutar (enquanto que eu andava aéreo), mas que dominara um fundo de bisbilhotice que fazia com que ele fosse muito procurado por aqueles que se interessavam pelos debates de Paris, ou pela política da corte papal. Engordara, por essa altura, embora já estivesse a perder o cabelo. Uma vez destruí-o absolutamente, durante uma disputa informal, pois a sua posição era insustentável, e as suas capacidades retóricas não eram desenvolvidas. No entanto, e mais uma vez, vim a lamentar o vigor com que demoli os seus argumentos. A baixeza de espírito de uma pessoa acaba sempre por deitá-la abaixo.

Não soube mais nada da sua carreira posterior, até que comecei a encontrá-lo nos capítulos provinciais, por volta de 1310. Por essa altura, ele era prior; eu, pregador-geral e mestre de Estudantes (mas não no priorado dele, graças a Deus!). Tornou-se óbvio que tínhamos opiniões divergentes em relação a muitos assuntos, incluindo as obras de Durand de Saint Pourcain - que não foram, como podeis lembrar-vos, completamente banidas das escolas, mas autorizadas, desde que contivessem glossários adequados. Pierre-Julien, penso, teria preferido que os seus alunos não lessem mais nada a não ser Pierre Lombard e o doutor Angélico. Censurava-me, em tons de voz ofensivamente avunculares, por possuir um "intelecto indisciplinado".

Receio que não nutríamos um pelo outro um afecto fraternal.

Já passaram vários anos desde a minha última aparição num capítulo provincial, devido às exigências do Santo Ofício, e - devo dizer com franqueza - ao facto de não ser um favorito do próprio provincial. Mas através da correspondência que mantinha com outros irmãos, conservei-me informado dos progressos de Pierre-Julien. Soube que ele estava a dar aulas em Paris, depois, que se mudou para Avignon, onde era bem visto na corte papal. Soube que ele foi enviado para ajudar Michael de Moine, o inquisidor de Depravação Herege de Marselha, com a tarefa de persuadir aqueles obstinados franciscanos de Narbonne a abjurarem. E agora, aparentemente após se ter distinguido na tarefa santa de extirpar a heresia, fora nomeado inquisidor de Lazet, "em substituição do padre Agostinho Duese".

Devo confessar que ri (ainda que sombriamente) quando atentei nas palavras que o bispo usava, pois em sentido algum Pierre-Julien podia ser considerado um "substituto" para o padre Agostinho. Tinham sido feitos em moldes completamente diferentes. E se sois incapaz de avaliar as suas diferenças - não, talvez, tendo conhecido ambos os homens muito bem -, permiti que vos conte as actividades do meu novo superior durante os seus primeiros dias no cargo.

Chegou aproximadamente duas semanas depois de eu ter sido informado da sua nomeação, mas foi precedido de várias cartas alertando-me para a data prevista da sua chegada. Tendo estabelecido a data, alterou-a duas vezes, revertendo para a data original apenas três dias antes de aparecer (se ao menos ele estivesse a viver em Paris, em vez de Avignon, eu teria de ter esperado mais tempo!). Naturalmente, ele contava ser saudado com a habitual recepção solene - uma recepção a que o padre Agostinho renunciara -, por isso eu andava muito ocupado a tratar das coisas com o bispo, o senescal e o prior, os cónegos de São Policarpo, os cônsules... bem, compreendereis quantas pessoas têm de ser consultadas nestas ocasiões. O novo inquisidor desejava ser saudado às portas da cidade por um grupo de altos oficiais; depois, desejava ser acompanhado por um grupo de soldados e uma banda de música, desejava seguir para São Policarpo, onde tencionava dirigir-se a toda a população de Lazet relativamente à "grande videira de Deus, que estende as suas gavinhas e que foi plantada pela mão do Senhor, redimida pelo Seu sangue, regada pela Sua palavra, propagada pela Sua graça e tornada fertilizada pelo Seu espírito". Depois de uma grande parte da congregação se ter dispersado, ele saudaria os dirigentes da cidade um por um, para, "como bom pastor, poder conhecer as melhores ovelhas do seu rebanho".

Poder-se-ia apenas concluir, da leitura destas instruções, que Pierre-Julien considerava o cargo de inquisidor um cargo bastante elevado na hierarquia dos anjos. É claro que, quando ele chegou, esta impressão foi confirmada pelo ar paternal com que abençoou toda a gente, excepto o bispo, que, em vez disso, recebeu um caloroso e reverente beijo (o senescal, tenho a certeza, não ficou fascinado pelos modos de Pierre-Julien). Senti grande satisfação ao verificar que o meu superior já não precisava de navalha para manter a tonsura no lugar; estava quase completamente calvo, salvo uns escassos cabelos finos ainda agarrados ao couro cabeludo em redor das orelhas. De resto, não mudara muito - esganiçado, veemente, transpirado e tão pálido como toucinho congelado. Quando me viu, limitou-se a acenar com a cabeça, mas eu não esperava mais do que isso. Se ele me tivesse beijado, ter-me-ia dado volta ao estômago.

Não vos aborrecerei com um relato exaustivo da sua recepção, embora diga que, tal como eu previra, a translatio da videira do Senhor foi levada aos limites da resistência - até, de facto, ficar mais longa do que a própria videira. Falou de todos nós como "uvas", das nossas cidades como "cachos", das nossas dúvidas como "bichos perfuradores no interior das uvas". Falou em "apanhar as raposas na vinha". Falou do Apocalipse como "o esmagamento das uvas" e do Dia do Juízo Final como "a prova do vinho" (uma parte do vinho estaria embebida por Deus, compreendeis, e outra seria expectorada). Devo confessar que estava quase desesperado de riso quando o sermão chegou ao fim, e tive de fingir que estava imensamente comovido - que as minhas fungadelas e as minhas lágrimas eram prova de sofrimento, e não de hilaridade reprimida. Mesmo assim, creio que Pierre-Julien não ficou convencido. Sem dúvida que ele não me considerava uma das uvas mais sumarentas do mundo.

Contudo, quando, finalmente, chegámos à fala (o que aconteceu no segundo dia, depois de ele ter conversado com o bispo em particular, o senescal, o prior, o tesoureiro real, e o administrador real de Confiscações), saudou-me de forma genial, como se poderia saudar um irmão leigo afectuosamente tolerado, ainda que algo caprichoso e estúpido.

- Meu filho - disse ele -, quanto tempo passou desde a última vez que nos vimos! Pareceis bem. A vida aqui está claramente de acordo convosco.

Embora ele não tivesse acrescentado "aqui, no extremo da civilização", era evidente o que ele queria dizer.

- Esteve, no passado - respondi -, embora eu não possa falar pelo futuro.

- E, no entanto, este lugar parece ter sido abandonado por Deus - continuou ele, colocando amabilidades de parte. - Que perversidade! Chorei quando soube do horrível destino do irmão Agostinho. Pensei: "Satanás também está entre eles". Mal sabia eu que me seria pedido que me levantasse para que eu próprio purificasse os leprosos.

- Oh, nem todos somos leprosos aqui - disse eu, cheio de raiva por dentro. - Alguns de nós ainda seguem a lei de Deus.

- Com certeza, mas é um lamaçal muito profundo, não é? O fluxo transborda. Dizem-me que a prisão está cheia, e que os atacantes do padre Agostinho ainda não foram capturados.

- Como podeis imaginar, irmão, tenho estado sobrecarregado de trabalho...

- Sim. E agora vim ajudar-vos. Contai-me como têm corrido as investigações até aqui. Fizestes progressos?

Assegurei-lhe que sim. Descrevi a morte do padre Agostinho, tendo o cuidado de não me deter em Johanna nem nas amigas, que coloquei de parte como sendo "pias e humildes"; descrevi o inquérito do pre-boste, a investigação do senescal e a minha própria visita a Casseras (com algumas omissões importantes); descrevi a lista de suspeitos e os meus esforços para determinar até que ponto eram culpados. Exibi também a minha teoria relativa a um familiar traidor, que eu, por enquanto, ainda não identificara.

- Tanto Jordan como Maurand podem ser culpados - disse eu.

- Jordan, porque jogava, era um mercenário treinado e um homem

altamente eficiente; Maurand, porque era, em quase todos os sentidos, violento e depravado.

- Mas por que é que achais provável que alguém traiu o irmão Agostinho?

- Porque os corpos foram despedaçados e espalhados por aí. Isso faria sentido se o objectivo de um acto tão estranho fosse esconder a ausência de um corpo.

- Mas dissestes que a maior parte dos restos mortais foram encontrados na estrada.

- Sim, foram. Mas várias cabeças, que são as partes mais distintivas, foram levadas...

- Descrevei-me o local. Dissestes que o massacre ocorreu numa clareira?

- Num género de clareira.

- E a estrada passa por ela?

- Creio que o termo "caminho" é mais adequado do que "estrada".

- Esse caminho é atravessado por outros caminhos, quando chega à clareira?

Aturdido pelas suas perguntas, eu tive de reflectir por um momento antes de poder responder.

- Tanto quanto me lembro, há uma série de caminhos de cabras que convergem aí.

- Ah! - Pierre-Julien levantou as mãos. - Aí está. Uma encruzilhada.

- Uma encruzilhada? - repeti, intrigado.

- Não estais ao corrente da importância das encruzilhadas?

- Importância?

- Vinde - Pierre-Julien levantou-se da cama. Estávamos sentados na sua cela, que estava atravancada daquilo que eu só posso descrever como "haveres", a maior parte dos quais eram livros. Ele tinha muitos livros, juntamente com dois ou três instrumentos astronómicos, uma colecção de unguentos em pequenos frascos de vidro, um altar portátil, um relicário com jóias incrustadas e uma caixa trabalhada cheia de cartas. Do meio destas bagagens terrenas, ele extraiu um pequeno livro, que segurava quase com delicadeza, como se, a qualquer momento, pudesse inflamar-se. - Observai - disse ele.

- Sem dúvida que não estais familiarizado com esta obra. Chama-se The Book of the Offices of the Spirits, e foi baseado naquele texto antigo e místico, The Tes-tament of Sokmon. Por ser, em muitos sentidos, perigoso, só o encontrareis a circular entre homens eruditos, cuja força de piedade é indiscutível.

Neste ponto, eu bem poderia ter dito: "Então como é que o conseguistes?". Mas evitei fazê-lo. Na verdade, eu estava curioso em relação àquele livro.

- Diz respeito aos exércitos do Inferno - continuou Pierre-Julien. - Nele encontrareis todos os anjos do mal - os seus nomes, as suas manifestações e as suas capacidades. Observai esta página, por exemplo: "Berith tem três nomes. Alguns chamam-lhe Beall; os judeus chamam-lhe Berith; os necromantes, Bolfry: aparece como um soldado vermelho, vestido de vermelho, montando um cavalo vermelho. Responde com verdade sobre coisas passadas, presentes e futuras. É também um mentiroso, transforma todos os metais em ouro".

- Mostrai-me - pedi, estendendo a mão para o livro. Mas Pierre-Julien não o largava.

- É claro que estes são apenas os demónios principais - disse ele. - Demónios como Purson, Leraie, Glasya Labolas, Malaphas, Shax, Focalor, Sitrael, e os restantes. Muitos deles têm abaixo de si regimentos sem nome de demónios inferiores.

- Irmão, peço-vos, deixai-me ver.

Mas, mais uma vez, o livro foi-me negado.

- Como podeis imaginar, este tipo de conhecimento é bastante perigoso - declarou Pierre-Julien. - Mas o livro contém também fórmulas para conjurar e invocar os demónios mencionados aqui dentro. Rituais para prender os seus poderes.

- Não! - eu já ouvira falar de tais textos, mas nunca vira nenhum. Na verdade, eu sempre suspeitara de que só podiam existir na fraca imaginação da senilidade. - Nesse caso, é um livro de magia!

- É. E se consultarmos as prescrições para a invocação, leremos o seguinte: que, para conjurar os cinco demónios Sitrael, Malantha, Thamaor, Falaur e Sitrami, depois de nos termos preparado com um jejum puro e orações, devemos fumigar, aspergir e abençoar as facas de cabo preto e de cabo branco...

- Irmão...

- Um momento, por favor. E assim, tendo-nos preparado de várias maneiras, devemos levar uma galinha virgem viva, preta, para uma encruzilhada, à meia-noite, cortá-la em pedaços e espalhá-los, sempre a cantar: "Conjuro, encarrego e ordeno-vos, Sitrael, Malantha, Thamaor, Falaur e Sitrami, reis dos Infernos, em nome e pelo poder e dignidade do Omnipotente e Imortal Senhor Deus dos Exércitos...

- Irmão, estais a tentar dizer...

- ... embora, é claro, no caso da morte do irmão Agostinho, os conjuradores, sendo hereges, tenham usado o nome da sua própria divindade diabólica...

- Irmão, estais a falar a sério? - eu mal podia acreditar no que ouvia. - Estais a tentar dizer-me que o irmão Agostinho foi sacrificado para conjurar demónios?

- É muito provável.

- Mas ele não era uma galinha virgem!

- Não. Mas se examinardes livros como este, vereis que, por vezes, são sacrificados membros humanos. E se estais familiarizado com o processo de Guichard, bispo de Troyes - que, provavelmente, não é o caso, mas permiti que vos assegure que, quando estava em Paris, consultei cópias dos depoimentos de testemunhas na posse do Inquisidor de França - se estais familiarizado com este triste caso, sabereis que, quando Guichard e o frade Jean le Fay leram excertos do seu livro de encantamentos, apareceu uma forma semelhante a um monge negro com chifres, e quando Guichard lhe ordenou que fizesse as pazes por ele com a Rainha Joana, este demónio exigiu um dos seus membros em troca.

Asseguro-vos que fiquei de boca aberta. É claro que me lembrava da perseguição a Guichard, que ocorreu há dez anos. Lembro-me das histórias das infâmias de Guichard: que era filho de um incubo, que guardava um demónio particular dentro de um frasco, que envenenara a Rainha Joana com uma mistura de víboras, escorpiões, sapos e aranhas. E lembro-me de, na altura, ter pensado que, se essas histórias não estivessem distorcidas pela distância, eram tão monstruosas como ridículas. Mas há dez anos atrás toda a gente falava das iniquidades dos Cavaleiros Templários - lembrais-vos? Os cavaleiros foram acusados de adorarem Satanás com actos de blasfémia e sodomia, com o assassínio de crianças e com a invocação de demónios. Se estas alegações eram verdade ou não, não tenho forma de confirmar: não era inquisidor de Depravação Herege na altura, facto pelo qual estou profundamente agradecido, e agora sei quanto é fácil extrair uma confissão com carvões em brasa. Sei também que muitos cavaleiros retiraram as confissões que tinham feito sob tortura, e foram queimados vivos ainda a afirmarem a sua inocência. Mas deveis ter tirado as vossas próprias conclusões relativamente às actividades da Ordem em França, por isso não me desviarei do assunto. Bastará dizer que, quando ouvi as acusações contra o bispo Guichard, não pude deixar de perguntar a mim próprio se certas pessoas teriam usado o medo de forças demoníacas, na altura tão em voga, para destruir a sua reputação. E eu tinha razão, penso - pois não foi ele libertado da custódia há quatro anos, e enviado para a Alemanha como bispo sufragâneo? Isso, creio, foi depois de certas testemunhas, que em tempos o viam com hostilidade, terem atestado a inocência dele no seu leito de morte.

Não que eu negue a existência de demónios ou dos necromantes que procuram chamá-los das profundezas. São Tomás de Aquino referiu que, quando um mágico invoca um demónio, o demónio não é verdadeiramente forçado; embora possa parecer que está sujeito aos desejos do conjurador, está, de facto, a afundar mais o homem no pecado. Mas se Guichard fosse culpado de tal pecado, por que era agora bispo sufragâneo, com a bênção do Santo padre?

Com efeito, eu não podia acreditar que Pierre-Julien estivesse a usar o exemplo do bispo Guichard a sério. Talvez, também, eu estivesse a pensar naquele conhecido ataque levado a cabo contra o Papa Bonifácio VIII, perpetrado pelas mesmas forças que se encontravam por detrás da perseguição movida ao bispo Guichard e aos Cavaleiros Templários: nomeadamente, as forças do Rei Filipe. Recordar-vos-eis, sem dúvida, com que violência o Rei e o Papa Bonifácio se opunham um ao outro. Não é provavelmente de admirar que, após a morte do Santo Padre, o Rei o acusou de todo o género de práticas hereges e diabólicas. De facto, pareço recordar-me de que Bonifácio também foi acusado de dar abrigo a um demónio privado, que alegadamente conjurou ao matar um galo e ao atirar o seu sangue para o fogo. Talvez, como Guichard, ele usasse um livro semelhante àquele que Pierre-Julien tinha na mão. Mas se, na verdade, ele era culpado, então por que foi o processo contra ele repentinamente suspenso, quando o Papa Clemente (que descanse em paz), por fim, acedeu às várias exigências do Rei relativamente a bulas passadas pelo acima mencionado Bonifácio?

Oh, sou uma alma desconfiada e irreverente. O provincial costumava dizer isso, quando discordávamos em relação a este mesmo assunto. Mas acredito que não estou sozinho nas minhas dúvidas. Outras pessoas que conheço questionarão os motivos do Rei para perseguir o Papa Bonifácio e o bispo Guichard.

Pierre-Julien, no entanto, não estava, claramente, entre elas.

- Tenho a impressão de que as acusações contra o bispo Guichard nunca foram provadas - disse eu.

- Mas foram, de facto! Ele foi preso!

- Mas é certo que aqueles que o acusaram retiraram as acusações.

Pierre-Julien fez um gesto de rejeição.

- A misericórdia concedida a um pecador não faz dele menos pecador, como sabeis. Agora quanto ao padre Agostinho, parece-me que certos rebentos de depravação, no seu desejo de servirem o demónio e de negarem a verdade de Deus, podem tê-lo feito ao sacrificarem um dos mais zelosos defensores de Deus de uma forma que conjuraria todos os exércitos do inferno.

- Irmão...

- Quando tomei conhecimento deste assassínio, perguntei a mim próprio se seria um acto de bruxaria. Disse-o ao Santo Padre, e ele ficou preocupadíssimo.

- Ficou? - achei difícil de acreditar. Pessoalmente, teria rido às gargalhadas. - Mas porquê?

Pierre-Julien olhou-me com um condescendente ar de pena. Colocou-me uma mão no braço e puxou-me para trás, para cima da cama, onde ambos nos sentámos lado a lado.

- Aqui, em Lazet, estais muito longe de Avignon - consolou-me ele. - É claro que não tereis qualquer compreensão do último ataque à Cristandade. Refiro-me ao contágio mortal de bruxarias, adivinhação e invocação de demónios. Estais ao corrente de que o Santo Padre nomeou uma comissão para investigar a bruxaria no seio da sua própria corte?

Abanei a cabeça, sem palavras.

- Pois é verdade. Ele próprio, receoso desta perniciosa associação de homens e anjos do mal, foi obrigado a usar uma pele de serpente mágica para detectar a presença de veneno na sua comida.

- Mas certamente que... - juro-vos que não encontrava as palavras. - Certamente que o Santo Padre não cairia no mesmo pecado...?

- Meu filho, ignorais conspirações passadas contra o Papa João? Não tendes conhecimento de que o bispo Hugh Geraud de Cahors e os seus companheiros de conspiração tentaram, no ano passado, matar o Santo Fadre?

- Sim, com certeza, mas...

- Compraram a um judeu três figuras de cera às quais amarraram três tiras de pergaminho com o nome do Papa e dos seus três conselheiros mais leais. Em seguida esconderam estas figuras, juntamente com venenos procurados em Toulouse, num pão que enviaram para Avignon.

- A sério? - embora eu tivesse conhecimento da conspiração, não sabia nada de figuras de cera. - Viste-las?

- O quê?

- As figuras.

- Não. Mas falei com pessoas que as viram.

- Ah - confuso, fiquei calado. Parecia que havia uma campanha

em curso que eu ignorava completamente. É claro que a necromancia não pertencia ao domínio de um inquisidor de Depravação Herege, por isso não se poderia esperar que eu me preocupasse com isso. No entanto, senti, pela primeira vez, que deixara de compreender o mundo. Sentia-me como um camponês das montanhas, confrontado com um exército invasor para o qual nada o preparou.

- Penso que devíeis ler isto - aconselhou-me Pierre-Julien, largando, finalmente, The Book of the Offices of the Spirits. - Tenho aqui também outro livro que devíeis ler, chamado Lemegetott. Tratai-os como manuais para a detecção de feiticeiros e adivinhos. Armado deste conhecimento, estareis melhor equipado para evitar as forças do mal.

- Mas não é minha função investigar mágicos. Não me ordenaram que o fizesse.

- Talvez em breve vos ordenem - observou Pierre-Julien -, se o Santo Padre conseguir o que pretende. Além disso, estais a investigar a morte do padre Agostinho, não estais?

Levantei a mão.

- Irmão - disse eu -, o padre Agostinho não foi sacrificado.

- Como podeis saber?

- Porque não era nenhuma galinha, porque não foi morto à meia-noite, e porque não foi espalhado em volta de uma encruzilhada. O padre Agostinho foi espalhado ao longo de todo o comprimento e de toda a largura desta região.

- Meu filho, não podemos saber quantos mais livros destes há - livros cheios de rituais e feitiços desconhecidos. Livros que nunca vimos, e que contêm blasfémias inimagináveis.

- Talvez. Mas se vós nunca os vistes, irmão, juro sobre as Sagradas Escrituras que ninguém aqui os viu também. Como dizeis, estamos muito longe de Avignon.

Pierre-Julien começou a abanar a cabeça.

- Oxalá assim fosse! - suspirou ele. - "E quando Ele vier, repreenderá o mundo do pecado". Não há canto do mundo livre da pestilência de Satanás.

De repente, fui inundado por uma terrível fadiga. Senti que, por mais que eu lutasse, Pierre-Julien nunca se calaria. Era infatigável - imbuído de um fervor que nenhum homem de paixões moderadas podia esperar igualar. Tornara-se-me evidente que esta energia, este entusiasmo tenaz, era o meio pelo qual ele progredira com tanta firmeza, enfrentando corajosamente toda a oposição. Passados uns momentos, uma pessoa desistia, simplesmente.

- Por exemplo, Casseras foi revistada com o intuito de encontrar textos mágicos? - perguntou ele, com persistente zelo.

- Foi revistada. Não se encontrou nada de natureza suspeita.

- Nada? Nenhumas facas escondidas, ganchos, foices nem agulhas? Não havia galos nem gatos pretos?

- Não faço ideia. Foi Roger Descalquencs que conduziu a busca.

- E os aldeões - interrogaste-los com respeito ao seu conhecimento de bruxaria?

- Como podia eu fazê-lo? - mais uma vez, a minha raiva acendeu-se. - Irmão, o Santo Ofício não foi intimado a preocupar-se com adivinhação!

- Mesmo assim, sinto que chegou a hora - respondeu Pierre-Julien. Pareceu pensar por um momento. - Quando voltardes a interrogar suspeitos ou testemunhas em relação a este assunto, perguntai-lhes que substâncias comeram ou lhes deram a comer - unhas, cabelo, sangue e coisas do género. Perguntai-lhes que conhecimentos possuem para fazerem com que as mulheres estéreis concebam, ou com respeito à discórdia entre maridos e mulheres, ou a crianças que morrem ou que se curam miraculosamente.

- Irmão... - Perguntai-lhes se viram ou usaram imagens de cera ou de chumbo; e também, sobre os métodos de apanhar ervas, e sobre roubos dentro da aldeia, sobre o crisma ou o óleo Santo ou sobre o sacramento do corpo de Cristo...

- Irmão, talvez vós devais perguntar-lhes essas coisas - eu não conseguia ver-me a conduzir tal interrogatório para que Pierre-Julien ficasse satisfeito. - Sois claramente mais conhecedor do que eu. É mais adequado que sejais vós a investigar a morte do padre Agostinho, enquanto eu trato de outros assuntos.

Novamente, Pierre-Julien ponderou, enquanto eu oferecia ao Senhor uma oração em silêncio. Mas o Senhor abandonara-me.

- Não - disse, por fim, o meu superior. - Já avançastes até muito longe por essa estrada. Estivestes em Casseras e conheceis as pessoas. Será melhor se continuardes a vossa investigação, enquanto eu começo a interrogar aquela aldeia que prendestes - qual é mesmo o nome dela?

- Saint-Fiacre.

- Saint-Fiacre. Precisamente. É claro que eu verificarei o vosso progresso, e farei sugestões quanto à forma de o melhorar. Na verdade, e achareis isso muito útil, transcreverei as perguntas que fareis, com respeito a magia e a invocações. Não conhecendo a literatura relevante, precisareis provavelmente de orientação na busca de necromantes.

Senhor, por que Te conservas à distância e Te escondes nos tempos de angústia? Podeis imaginar com que resignação suportei esta provação - com que paciente humildade me submeti à vontade de Deus. Como Job, amaldiçoei o dia. Mas fi-lo em silêncio, no meu coração. Por milagre, encontrei a força para me abster de falar. Pois se eu tivesse falado, teria gemido como os dragões, e chorado como as corujas.

Na verdade, o Senhor castigara-me pelos meus pecados. E, como o aumento da Sua governação e da sua paz, o castigo não teria fim.

Pouco depois da chegada de Pierre-Julien, realizou-se um auto-de-fé. Eu preparara as coisas para que assim fosse, já que havia muitos prisioneiros à espera da sentença. Eu queria também convencer o meu novo superior de que, apesar dos meus muitos defeitos e imperfeições, mesmo assim conseguira apreender pelo menos alguns lobos destruidores. Assim, entre todos os meus outros deveres, eu reunira uma assembleia de juizes para pronunciarem sentenças, e fizera com que fossem anunciados, de todos os púlpitos locais, os dias em que as cerimónias públicas se realizariam. Cuidei também de assegurar que este anúncio incluísse a informação da única execução planeada - pois descobri que, a não ser que se prometa uma morte, raramente se consegue atrair o número de pessoas necessário para tal ocasião.

Os juizes eram o bispo Anselm, o prior Hugues, o senescal, o administrador real de Confiscações, um representante do bispo de Pamiers (perito em lei canónica), um notário local de reputação impecável, e, é claro, Pierre-Julien Fauré. Durante um dia e meio debateram, nas instalações luxuosas do palácio do bispo, os vários casos que lhes foram apresentados. Em seguida, tendo chegado a acordo sobre os castigos adequados, mandaram registar estas sentenças. Quando dispersaram, foi com grande alívio, pois as suas disposições não condiziam. Em particular, fui informado pelo notário de que o bispo Anselm foi um "entrave" e o cónego de Pamiers "demasiado curto de compreensão" ("tudo o que sabe é tirado da Summa iuris, de Penafort! E a lei não é só Penafort, padre"). Roger queixou-se-me de que o notário acima referido "não dizia coisa com coisa, com as suas longas palavras" e que o prior Hugues era "demasiado suave". Quanto ao cónego, referiu-se ao senescal como "ignorante e rude".

Ninguém tinha nada de lisonjeiro a dizer sobre Pierre-Julien. Até o bispo, em absoluta confidência, me perguntou se o meu superior "pensava que era bispo". E o senescal foi levado a observar, durante os procedimentos, que se "aquele gordo maniento untuoso mencionar mais uma vez a sua missão papal, enfio-lha pela garganta abaixo".

Assembleias deste género expõem muitas vezes antagonismos latentes, segundo descobri.

Uma vez decididas as sentenças, foi erguida uma grande plataforma de madeira na nave de São Policarpo. Aqui, no dia marcado, juntaram-se dezasseis penitentes, assim como os notáveis cuja presença se exigia: vários cônsules, o senescal, o bispo, Pierre-Julien Fauré e eu próprio. Pierre-Julien deu o sermão, que foi um tal emaranhado de translatio que era praticamente incompreensível (ainda pergunto a mim próprio o que quereria ele dizer com "beber ferrugem do cálice do sangue de Cristo na mesma medida que medis, ao mesmo tempo que será medida novamente para vós?"). Em seguida foi prestado juramento de obediência ao senescal e a outros representantes do braço secular; foi cominado um decreto solene de excomunhão contra todos aqueles que levantavam obstáculos ao Santo Ofício; e ordenou-se a Raymond Donatus que lesse em voz alta, na língua vernácula, as confissões de cada um dos penitentes.

Geralmente eu atribuía esta tarefa a Raymond Donatus porque ele a desempenhava com muito vigor e paixão. Mesmo resumidas, estas confissões podem ser frases longas e pesadas, cheias de ofensas monótonas e insignificantes, mas Raymond Donatus podia levar o público às lágrimas, ou agitá-lo até à fúria, ao relatar simplesmente o mais humilde dos pecados (abençoar o pão à maneira herege, por exemplo). Nesta ocasião, ele excedia-se a si próprio. Até os penitentes choravam, e mal se ouviam quando reconheciam que as confissões eram verdadeiras. Tendo abjurado, eram posteriormente absolvidos da excomunhão em que tinham incorrido, e era-lhes prometida misericórdia se se comportassem com obediência, piedade e humildade em relação às sentenças que estavam prestes a ser-lhes impostas.

Nalguns casos, as sentenças eram mais duras do que eu previra. Geralmente, embora o senescal seja bastante implacável, o prior Hugues argumenta a favor da clemência, e o resultado é moderado e razoável. No entanto, neste caso em particular, Pierre-Julien apoiou o ponto de vista do senescal, e ninguém contrário à sua severidade teve força para se opor àquele zelo insaciável que eu deplorava noutros locais.

Assim, Grimaud Sobacca, pelo pecado de ter levantado falso testemunho, recebeu prisão perpétua, onde eu teria recomendado línguas vermelhas nas suas roupas, açoites com vara todos os domingos na igreja, jejum que se prolongaria desde a sexta-feira a seguir ao dia de São Miguel até à Páscoa, e uma multa avultada. De forma semelhante, o sogro de Raymond Maury foi sentenciado a cinco anos de prisão, onde eu lhe teria imposto apenas uma série de peregrinações: digamos, a Santa Maria de Roche-Amour,

a São Rufus de Aliscamp, a São Gilles de Vauverte, a São Guillaume do Deserto, e a Santiago de Compostela - todas no espaço de cinco anos.

Na verdade, Pierre-Julien parecia favorecer a prisão à penitência da peregrinação (sei que Pons oporia alguma objecção a isto, mas resolvi que o que quer que fosse que ele tivesse a dizer, di-lo-ia a Pierre-Julien). Apenas um penitente foi sentenciado a peregrinação - uma jovem mulher cujo crime era simplesmente o facto de, em criança, ter visto um perfeito cátaro em casa do tio sem saber o que ele era. Foi condenada a fazer dezassete peregrinações menores, e a trazer, de cada santuário, como é costume, cartas a confirmarem a sua visita. Foi especificado que ela não tinha de usar a cruz, nem submeter-se a flagelações em nenhum dos santuários, mas, na minha opinião, ela merecia uma penitência muito mais leve. Eu teria imposto uma série de aspectos a observar: missa diária, dez Padre-Nossos por dia, abstinência de carne, ovos, queijo, etcetera.

Lembrar-vos-eis do perfeito Ademar de Roaxio, de quem já falei nesta narrativa. Como herege obstinado, certamente que teria sido executado, se não tivesse perecido na prisão. Em vez disso, os seus restos mortais foram condenados à pira, juntamente com os de outro homem que recebera o consolamentum no seu leito de morte. A esposa deste homem - que, embora não fosse herege, permitira a execução da bênção herege - foi sentenciada a prisão. O libidinoso Bertrand Gasco de Seyrac, também já referido, foi sentenciado a três anos de prisão, após o que se exigia que usasse cruzes o resto da vida. Uma das mulheres por ele seduzidas, Raymonda Vitalis, recebeu castigo idêntico. Ao todo, apenas três dos penitentes não foram sentenciados a um período de prisão; destes três, um era a mulher acima mencionada condenada a realizar dezassete peregrinações, um estava ausente, e um foi relaxado debita animadversione puniendum - ou seja, abandonado às autoridades seculares para ser castigado.

Este terceiro penitente era um herege relaxado, antigo pastor e um animal em forma de gente. Condenado por ter adorado um perfeito cerca de doze anos antes, renegara a sua fé e fora reconciliado, fora submetido a uma pena de seis anos de cadeia, e fora libertado na condição de usar cruzes. Isso ele fez, e com orgulho, também. Em várias ocasiões, foi multado e açoitado por atacar os bons católicos que o insultavam por usar aquela marca infame. Chegou a gravar uma cruz no peito, e foi ouvido a vangloriar-se de que estivera no inferno, e era aqui na terra - uma crença baseada dos ensinamentos cátaros. Quando foi difamado por ser um herege relaxado, afirmou que os seus acusadores estavam a levantar falso testemunho contra ele, no entanto, apesar de tudo isso, quando foi preso, amaldiçoou o Santo Ofício, a Igreja e o senescal; cuspiu no padre Jacques e chamou-lhe demónio; disse que Cristo estava morto, e que nós o tínhamos morto com os nossos pecados. Na prisão, à espera da sentença, ele uivara como um lobo e mordera Pons na perna, comera os seus próprios excrementos, profetizou que Lazet inteira seria destruída por Deus no dia da sua morte. No entanto, não acredito que ele estivesse louco. Conversámos três vezes, e ele falava com coerência - com lógica -, embora a sua intenção fosse sempre ofender e enfurecer com insultos, pragas, conduta depravada. Uma vez, quando eu não estava acompanhado (e permiti que vos assegure que nunca mais entrei na sua cela sem escolta!), ele puxou-me para o chão, manteve-me no chão com um doloroso aperto e ameaçou que me ia conhecer carnalmente. Não tenho dúvidas de que teria executado esta ameaça, mesmo estando algemado, porque tinha uma força surpreendente. Felizmente, porém, os meus gritos alertaram um dos guardas, que o chicoteou com uma corrente até assegurar a minha libertação.

O nome deste irremissível pecador era Jacob Galaubi. Todos os que o conheciam tinham medo dele, e eu mais do que todos. É que eu olhara-o nos olhos, quando ele me mantinha no chão, e vi neles tal ódio que parecia estar a olhar para o próprio abismo sem fundo. Na verdade, quando ele apareceu em São Policarpo para o auto-de-fé, parecia ter emergido desse mesmo abismo, pois apresentava as cicatrizes das feridas que infligira a si próprio, estava vergado pelo peso das correntes que o prendiam, rangia os dentes, revirava os olhos, e teria pronunciado ameaças e blasfémias, se a língua não lhe tivesse sido queimada com carvão em brasa (este castigo cruelmente original fora inventado por Pons, que se confessava "cansado da boca suja daquele sacana"). Assim, em vez de blasfemar, Jacob babava-se como um lobo esfaimado, e todos os que o viam tremiam.

Uma vez que ele não fizera qualquer confissão, não lhe foi pedido que confirmasse a sua autenticidade. Tendo os seus pecados sido recitados, foi levado de volta para a prisão. Aqui, foi-lhe dado mais um dia para se arrepender, para que a sua alma não passasse das chamas temporais para as chamas eternas - mas ninguém ficou surpreendido pelo facto de ele ter permanecido obstinado no seu desdém pela Santa Igreja Apostólica. Na verdade, quando o abordei sobre o assunto, ele recusou-se a reconhecer a minha presença em absoluto. É claro que não podia falar, tendo a língua demasiado inchada. Mas depois de eu lhe ter perguntado se confessava solenemente e renunciava aos seus pecados, não fez qualquer gesto de assentimento. limitou-se a fixar-me, bocejou e virou-me as costas - abandonado pelo Espírito Santo.

No dia seguinte foi amarrado a um poste no mercado. Empilharam-lhe feixes de palha misturada com ramos de videira até ao queixo. Em seguida, o senescal perguntou-lhe se renunciava às obras de Satanás. Duvido que ele tenha sequer ouvido esta pergunta, pois resistira energicamente quando o foram buscar à prisão, e os guardas - consequentemente - foram algo duros. Com efeito, estava apenas meio consciente, e tenho de admitir que fiquei aliviado. Não que eu tivesse advogado misericórdia, pois Jacob merecia morrer. Há alguns hereges relapsos que, quando se aproximam da morte, o fazem num adequado espírito de humildade, chorosos e submissos, reconciliados com a Igreja - e embora a sua penitência possa ser fingida, sou incapaz de assistir sem remorso à sua agonia final. Jacob, no entanto, era uma ferida ulcerosa no corpo da Igreja. O seu veneno era como o veneno de uma serpente. Ele beberá o vinho da ira de Deus, e será atormentado com fogo e enxofre na presença dos anjos do céu.

Contudo, apesar de tudo isto, tive de virar o rosto quando a pira foi acesa. Tive de recitar orações em voz alta, não - confesso, envergonhado - em honra de Cristo, mas para assegurar que os últimos e terríveis gritos de Jacob não me chegavam aos ouvidos. É a minha fraqueza, este encolhimento. Um homem convencido da justiça de uma execução deve ter força para observar os resultados do seu trabalho. O padre Agostinho, eu sei, não teria protegido os olhos nem tapado os ouvidos.

O padre Agostinho teria observado a indignidade final, quando o corpo meio ardido foi retirado da pira, desmembrado, e colocado numa nova fogueira de toros até estar reduzido a cinzas. Muitos cidadãos ficam a observar este procedimento, que sempre me fez sentir náuseas. Novamente, não consigo arranjar desculpa. Tremem-me as mãos, e os meus joelhos são tão fracos como a água.

Podereis estar a perguntar-vos, à medida que ledes a minha descrição deste auto-de-fé, por que negligenciei contar a sorte de certas pessoas como Raymond Maury e Bernard de Pibraux. Podeis estar a perguntar: não estavam eles presentes? Resumindo, não estavam, por razões que passarei a explicar.

Após ter sido interrogado, Raymond Maury confessara de boa vontade os seus pecados. Era um homem profundamente assustado e estava ansioso por ser reconciliado. Até confessou ter oferecido ao padre Jacques o que ele chamava de "dinheiro da misericórdia" - cinquenta livres tournois. Disse-me que, tendo em conta a sua numerosa família dependente, o padre Jacques resolvera ser clemente.

Ora esta confissão colocava-me perante uma séria dificuldade. Pois enquanto seria bastante fácil sentenciar Raymond pelos seus outros crimes, o pecado de subornar um inquisidor de depravação herege era um pecado que eu até então nunca encontrara. Eu não sabia o que fazer. Deveria Raymond ser julgado por este erro? Deveria o padre Jacques sê-lo? Eu não tinha ninguém a quem consultar, pois o padre Agostinho estava morto, e Pierre-Julien, naquela altura, ainda não chegara de Avignon. Assim, resolvi escrever ao Inquisidor de França a pedir orientação, suspeitando de que ele poderia não querer que um segredo tão vergonhoso se tornasse publicamente conhecido, e manter Raymond sob custódia, à espera de sentença, até receber uma resposta.

Pierre-Julien, não tendo sido informado desta decisão, concordou em que devíamos esperar por um parecer de Paris, antes de avançarmos com o processo contra Raymond Maury.

O caso de Bernard de Pibraux era diferente, pois ele não confessava nada. Eu finalmente encontrara tempo para o interrogar, e ficara surpreendido com a sua grande beleza, já algo esvanecida, após vários meses passados na prisão, e com o seu carácter deveras encantador. O sofrimento varrera-lhe as tendências estouvadas e irresponsáveis, a sensualidade e o carácter ébrio, até que o que estava por baixo se tornou claramente visível: uma determinação calma mas de aço; uma alma jovem, pura e confusa. Era uma cria de leão, aquele rapaz, e a sua espinha era tão rígida como a de uma hiena. O meu coração amoleceu quando o vi. Compreendi imediatamente, de uma forma completa e sem desaprovação, por que razão o padre Jacques nunca o intimara a apresentar-se perante o Santo Ofício.

Não que o padre Agostinho estivesse errado em investigar o assunto. Não eram os fariseus comparados a sepulcros caiados? Um rosto bonito pode esconder uma alma degenerada, já que muitos hereges, como sublinha São Bernardo, são extremamente engenhosos - hábeis na dissimulação. Quem sabe se eu não estaria errado na avaliação que fiz de Bernard de Pibraux? O padre Agostinho, afinal, era mais virtuoso do que eu.

No entanto, e mais uma vez, a minha fraqueza traiu-me. Observei Bernard de Pibraux, ouvi o seu sincero testemunho, cheio de interrupções mas resoluto, e... oh! Como desejei encontrar-me noutro lugar, noutro tempo, noutra vocação! Dei comigo a levantar-me e a andar de um lado para o outro, enquanto Raymond Donatus me fixava, e Bernard balbuciava.

- Meu amigo - disse eu ao prisioneiro - permiti que seja franco convosco. Fostes visto a fazer uma vénia e a dar comida a um herege. É esse o resumo das provas até aqui recolhidas. Ora eu concordo que a suspeita contra vós não é relevante. Assim, decidi pedir ao vosso pai que reúna vinte compurgadores no vosso juramento de negação. Isto não se faz muitas vezes, mas penso que o vosso caso o merece. Se o vosso pai conseguir encontrar vinte pessoas da vossa condição social, de boa reputação, que vos conheçam pessoalmente e que, sob juramento, atestem a vossa ortodoxia, poderei apresentar ao meu novo superior, quando ele chegar, um argumento razoável para a vossa libertação.

- Oh, padre...!

- Esperai. Ouvi-me. Não sereis proclamado inocente, Bernard. A acusação será simplesmente declarada "não provada". No entanto, espera-se que abjureis a heresia de que vos libertais. E se eu descobrir mais alguma prova que vos implique, não serei misericordioso. Que fique bem claro.

- Padre, não sou herege. Não sou. Foi tudo um engano.

- É o que dizeis. Pode ser verdade. Mas não posso falar pelo meu superior. Ele pode não ficar convencido.

E não ficou, é claro. Pierre-Julien riu-se da minha sugestão de chamar vinte compurgadores - pelo menos até Bernard ter suportado uma dieta prolongada a pão e água. Se o jejum não conseguisse induzi-lo a confessar, havia sempre métodos mais vigorosos de extrair a verdade. Só quando estes métodos falhassem é que poderíamos começar a considerar a hipótese da sua inocência.

- Uma vara é do que precisam as costas dele, que são desprovidas de compreensão - observou o meu superior.

Eu estava decepcionado, mas dificilmente surpreendido. A tortura sempre foi a marca da incompetência, na minha opinião. Após ter informado Bernard de Pibraux da decisão do meu superior, assinalei que confessar resultaria numa sentença clemente, ao passo que insistir no seu actual comportamento levaria à perdição, ao sofrimento, ao desespero. Argumentei com ele: ele era, disse eu, um jovem belo e nobre, o orgulho do pai e a alegria da mãe. Uma peregrinação, ou, talvez, um ano, ou coisa assim, no cativeiro, não seriam preferíveis à roda?

- Seria uma mentira, não uma confissão - respondeu ele, tão pálido como a Lua.

- Bernard, não estais a prestar atenção.

- Estou inocente!

- Ouvi - apresentei-lhe uma última proposta. - Podeis estar inocente, mas a vossa família pode não estar. Se o vosso pai esteve por detrás da morte do padre Agostinho, deveis dizer-nos. Porque se o fizerdes, posso assegurar-vos, a vossa sentença será leve como uma pena.

Impressionado como eu estava com a dignidade da sua postura, quase esperava que ele me cuspisse no rosto. Mas no cativeiro ele aprendera a refrear-se: a sua única resposta foi uma expressão de repugnância e algumas palavras de censura.

- Pensei que éreis um homem bom - disse ele. - Mas sois igual aos outros.

Suspirando, disse-lhe que considerasse as suas opções com atenção. Disse-lhe também que podia apelar para o Papa, mas que o apelo teria de ser feito antes que fosse pronunciada uma sentença (não lhe disse que era improvável que o Santo Padre lhe concedesse a liberdade). Deixei, então, a sua cela, consolando-me com o pensamento de que algumas semanas a pão e água poderiam induzi-lo a mudar de ideias - pois eu não queria vê-lo na roda.

Esta era, então, a razão pela qual Bernard não apareceu no auto-de-fé; continuava enclausurado e a jejuar. Tão-pouco Bruna d'Aguilar ou Petrona Capdenier foram obrigadas a abjurar os seus erros em público, pois eu ainda não tivera tempo de as investigar. Quanto a Aimery Ribaudin, eu intimara-o para que se apresentasse perante o tribunal, e, quando veio, trouxera com ele, sem tal lhe ter sido solicitado, atestados da sua ortodoxia, que recolhera de cinquenta compurgadores - incluindo o bispo Anselm -, juntamente com dois notários e doze testemunhas que estavam dispostas a confirmar a sua versão dos acontecimentos. Segundo Aimery, o dinheiro que dera ao tecelão herege fora para pagamento de tecido, nada mais. Ele não tinha conhecimento do passado criminoso do tecelão. O padre Jacques, disse ele com franqueza, aceitara a sua palavra em relação a este assunto. E como sinal de gratidão, ele doara ao priorado dominicano uma vinha, quatro lojas e um relicário muito belo contendo um pedaço de osso do dedo de São Sebastião.

Nestas circunstâncias, eu estava com muita vontade de declarar a acusação contra ele "não provada". Contudo, eu sabia que a decisão final era de Pierre-Julien. Por isso arranjei um encontro entre os dois homens, e achei estranhamente divertido, quando o meu superior me abordou depois, a cantar elogios ao armeiro. Um bom católico, disse-me ele, e um modelo de cidadão. Modesto, recto e devoto. No entanto, até os homens bons podem ter inimigos com línguas viperinas.

- Quer dizer que acreditais que este é um caso de falso testemunho? - perguntei.

- Sem dúvida. Quem quer que seja responsável por caluniar um cidadão tão cívico devia ser castigado.

- E foi. Morreu na prisão há dois anos.

- Ah.

- Irmão, se considerais que Aimery Ribaudin foi falsamente acusado, talvez devais reconsiderar o caso contra Bernard de Pibraux, que é quase idêntico.

- Disparate.

- Também ele afirma que não tinha conhecimento da identidade do herege...

- Ele não tem bom carácter.

Quando Pierre-Julien disse "carácter”, referia-se, é claro, a riqueza e influência. Era sempre assim neste mundo. Mas eu não me ofendi, pois não pode haver dúvida de que os ricos e poderosos geram inimigos, e a reputação de Aimery não tinha mácula. Além disso, eu tomara conhecimento de certos factos que, efectivamente, retiravam a Maurand d'Alzen, e, consequentemente, ao genro de Aimery, toda e qualquer suspeita de cumplicidade no assassínio do padre Agostinho. Resumindo, eu descobrira que Jordan Sicre ainda estava vivo.

Esta informação chegou até mim, no priorado, menos de uma semana antes do auto-de-fé. Um final de tarde, após a administração dos castigos, naquele curto espaço de tempo antes de os irmãos se retirarem, fui abordado por um irmão leigo que supervisionava o pessoal da cozinha. Pediu-me autorização para falar, e eu dei-lha, embora estivesse a recitar para mim próprio os sete salmos penitenciais (não vos esqueçais que eu ainda me encontrava no meio de um dilema espiritual - do qual voltarei a falar, nesta narrativa).

O irmão leigo, cujo nome era Arnaud, pediu desculpa por estar a interromper. Falara com o vice-prior, que o aconselhara a falar comigo. Ele próprio não estava a falar em seu nome, mas em nome de um dos criados da cozinha. Não me teria incomodado por causa de um assunto de importância trivial...

- Ide direito ao assunto, irmão, por favor - disse eu.

Mas quando Arnaud hesitou, lamentei imediatamente a minha impaciência e levei-o para a minha cela, dirigindo-me a ele num tom solidário. A história que ele contou era curiosa. Todos os dias, após a nossa refeição principal, as sobras eram distribuídas aos pobres - juntamente com alguns pães especialmente cozidos para o efeito. A comida era levada para o portão do priorado por um ajudante de cozinha, um tal Thomas, a quem era confiada a tarefa de assegurar que todas as pessoas famintas que lá se encontravam à espera recebiam pelo menos uma pequena porção da dádiva do dia. A maior parte destes pedintes vinham ali regularmente. Thomas conhecia-os pelo nome. Contudo, vários dias antes, aparecera um homem que lhe era desconhecido - e que recusara um pedaço de pão porque "estava conspurcado por molho de carne", e, por conseguinte, por ter carne, o que é pecado.

Pensando que se tratava de uma referência ao jejum da Quaresma, Thomas ignorara o incidente. Mas dois dias depois, o mesmo pedinte censurou outro por "receber comida produzida por coito". Desconhecendo o termo "coito", Thomas recorrera a Arnaud para que lhe explicasse.

- Lembro-me de terdes uma vez falado dos pecados dos hereges - observou Arnaud, hesitante. - dissestes-nos que não comem carne, porque não matam aves nem outro qualquer animal.

- Isso é correcto.

- Dissestes-nos também que se vestem de azul, e este homem não estava vestido de azul. Mas, mesmo assim, pensei que vos devia alertar.

- Irmão, fizestes bem em vir ter comigo - peguei-lhe na mão.

- És um cão de guarda às portas da vinha. Obrigado.

Arnaud corou e pareceu grato. Pedi-lhe que me informasse quando chegasse a próxima altura de dar comida aos pobres, e eu interrogaria então esse estranho pedinte. Embora me fosse difícil de acreditar que um herege ardente procurasse ajuda exactamente à porta de um priorado dominicano, mesmo assim eu era obrigado a investigar. Se não o fizesse, correria o risco de ser difamado como fautor e encobridor de heresia.

No dia seguinte, antes das Nonas, Arnaud abordou-me mais uma vez e levou-me a ver os pedintes acima referidos. Estavam reunidos em volta da entrada do priorado, eram cerca de vinte; alguns, eram simples crianças, outros, velhos e doentes. Mas um, pelo menos, estava na Primavera da vida - um homem esbelto e pálido, olhos cor de mel e mãos delicadas.

Reconheci-o nesse mesmo instante.

Estareis certamente lembrado do familiar inigualável, descrito no início desta narrativa. Referi-me a ele apenas como "S". Na altura de que estou a falar, "S" estivera ausente de Lazet durante cinco meses, condenado como herege contumaz. Dando-lhe uma chave, e chamando um guarda para o meu lado quando chegasse a altura de esta chave ser usada, eu assegurara a sua "fuga" da prisão. O nosso acordo era que ele iria para Sul e se infiltraria num grupo de hereges que viviam nas montanhas da Catalunha. Um ano depois, ele atrairia alguns deles para trás, através das montanhas. Fora estabelecida uma data na qual eles deviam ser encontrados - e presos - numa aldeia próxima de Rasiers.

Assim, perguntava-me eu, que estava ele a fazer em Lazet?

- Meu amigo - disse-lhe eu, como se ele fosse um desconhecido, enquanto pensava, furioso -, é verdade que não comeis carne?

- É verdade - respondeu ele, na sua voz suave.

- E porquê, não me dizeis?

- Porque o jejum é bom para a alma.

- Certamente que, se aqui estais, estais demasiado esfaimado para jejuar - enquanto falava, perguntava a mim próprio: para onde iremos? É que não podia levá-lo para a sede do Santo Ofício, onde ele seria reconhecido. Por outro lado, far-me-iam perguntas, se eu introduzisse um desconhecido no priorado.

- A minha alma está mais esfaimada do que a minha carne - observou "S", virando as costas para se afastar. Acto contínuo, chamei Arnaud à parte e sussurrei-lhe que iria seguir aquele rebento de infidelidade para poder descobrir o seu covil. É que ele poderia ter surgido de um verdadeiro ninho de hereges! E parti imediatamente, antes que Arnaud me fizesse mais alguma pergunta.

Caminhando devagar a alguma distância da minha presa, persegui-o para lá do Chateau Comtal, para o outro lado do mercado. O seu passo era firme; nunca olhou para trás. No entanto, eu sentia que ele estava consciente da minha presença. Finalmente, fui levado, não para o canto de um galinheiro ou para a entrada obscura de uma igreja, mas para um hospitum. Embora o andar de cima não estivesse habitado, o de baixo - um armazém - estava encerrado como uma prisão. No entanto, quando eu ia a passar, vi o meu familiar puxar de uma chave que trazia nas roupas e entrar no edifício através de uma porta lateral.

Tendo completado uma volta ao quarteirão, regressei a esta porta, que estava aberta para que eu entrasse.

- Bem-vindo - observou o meu familiar com voz suave. Em seguida fechou a porta com igual suavidade, de forma que a única luz que iluminava o espaço interior em que nos encontrávamos provinha de duas pequenas janelas altas. Olhando em redor, vi que o armazém estava cheio de fardos de lã e pilhas de tábuas. Mas discerni também um monte de palha a pouca distância dos meus pés - e, junto a ele, viam-se certos artigos (um odre de vinho, um resto de pão, uma navalha, um cobertor) que me levaram a concluir que alguém vivia ali.

- Vives aqui? - perguntei.

- Por enquanto.

- Alguém sabe?

- Penso que não.

- Nesse caso, onde arranjaste a chave? - inquiri, e o meu familiar sorriu.

- Padre, este edifício é meu - disse ele. - Graças à vossa generosidade.

- Ah - eu sabia que "S" adquirira uma vinha, sob um nome falso, mas não que ele possuía um hospitum no coração de Lazet. - O conteúdo também é teu?

- Não. Os bens que vedes pertencem aos meus inquilinos - fez um gesto para o tecto, e eu examinei-o com curiosidade, pois ele parecia menos à-vontade dentro do seu próprio armazém do que na cela de uma prisão. Tinha um ar cansado mas estranhamente vigilante. Os seus movimentos eram anormalmente abruptos.

- Por que vieste cá? - perguntei. - Para vir buscar a renda? Estás a correr um risco muito sério, meu filho.

- Eu sei - respondeu. - Vim aqui para vos ajudar.

- Para me ajudares?

- Ouvi dizer que o inquisidor de Lazet foi assassinado - sentado num dos fardos de lã, convidou-me a juntar-me a ele. - Pensei que talvez fôsseis vós, mas disseram-me que foi outra pessoa. O substituto do padre Jacques.

- Agostinho Duese.

- Sim. Os meus novos amigos estavam ansiosos por descobrir mais. Ficaram a saber que também tinham sido mortos quatro guardas. Quatro familiares. É verdade?

- Talvez - encontrando o seu olhar penetrante e fixo, fui levado a fornecer uma explicação mais completa. - Os corpos foram cortados em pedaços e espalhados por uma grande distância. É difícil dizer com certeza se todos os guardas foram mortos ou não.

- Tendes as vossas dúvidas?

- Tenho as minhas dúvidas.

- Sobre Jordan Sicre? Sobressaltei-me.

- Viste-o! - exclamei, após o que ele levou o dedo aos lábios.

- Shhh! - murmurou. - Os meus inquilinos ainda vos ouvem.

- Viste-o! - e tive o cuidado de sussurrar: - Onde? Quando?

- Não muito longe do local onde tenho estado a viver. Ele comprou uma pequena quinta e é conhecido por outro nome. Mas eu reconheci-o daquele período agradável que passei da última vez que estive sob a vossa custódia, padre. Ele costumava esmagar-me a comida com os pés - mais uma vez, o meu familiar sorriu. Era um sorriso perturbador. - Ele reconheceu-me, é claro. Veio ter comigo e avisou-me de que, como perfeito evadido, eu seria idiota se informasse a Inquisição - ou qualquer outra pessoa - da sua identidade. E ele tinha razão. Para um perfeito evadido, seria uma estupidez fazer isso.

- Mesmo se isso significasse assegurar uma sentença mais leve?

- Ele não podia ter a certeza disso.

- É verdade. Mas pode estar a perguntar-se onde é que estás agora.

- Padre, vou pregar muitas vezes. Posso estar ausente durante dias de uma vez.

- Então ele ainda deve lá estar.

- Penso que sim.

- E se ele for preso? E se ele falar no teu nome?

- Oh, padre - disse "S" devagar -, se ele for preso, não posso lá voltar. É claro que ele falará em mim. Por isso, tendes de decidir: ' o que é mais importante? Jordan Sicre ou os meus novos amigos?

- Jordan - eu não tinha dúvidas em relação a isso. - Temos de ir apanhar Jordan. Mas certamente que, após todo este tempo, me poderás dar alguns nomes... alguns factos...

- Oh sim. Alguns.

- Nesse caso, devem ser suficientes. E tenho de os aprender de cor, porque não temos pena...

- Aqui está - o meu familiar levantou-se. De detrás de um fardo de lã, produziu tinta, pena, pergaminho. Eu estava espantado com a sua presciência.

- Tu escreves - disse eu, mas ele ergueu uma mão, como que para repelir a sugestão.

- Oh, não, padre - foi a sua resposta. - Se eu fizesse isso, poderia ser provado que eu era o informador.

Vede só a astúcia do homem! Na verdade, ele era inimitável. Sem igual. Foi o que eu disse, e ele respondeu que, como a maioria das pessoas, trabalhava para ser pago.

Logo me apressei a assegurar-lhe que receberia a quantia prometida pelos hereges catalães, embora houvesse talvez menos hereges do que se previra. Mas a quantia seria paga na data acordada, ao destinatário acordado.

- Independentemente do que eu fizer entretanto? - perguntou ele.

- Independentemente do que fizeres.

- Nesse caso, deveis procurar-me daqui a dezoito meses, em Alet-les-Bains. Tenho andado a querer visitar certos amigos lá.

"S" não disse mais nada sobre o assunto. Consequentemente, depois de ter anotado a informação que ele trazia na cabeça (e a sua memória, devo dizer, era admirável), despedi-me dele.

- Se eu estiver muito tempo ausente, começarão a fazer perguntas - acrescentei.

- É claro.

- Vais partir, agora?

- Imediatamente.

- Tem cuidado.

- Tenho sempre cuidado.

- Procurar-te-ei em Alet-les-Bains - com isto, virei costas para sair. Mas antes que eu pudesse abrir a porta, o meu familiar puxou-me o hábito - e assustei-me, pois ele nunca fizera qualquer tentativa para me tocar.

- Deveis também ter cuidado, padre - disse.

- Eu?

- Estai alerta. Jordan deve ter sido pago para matar o vosso amigo. Quem quer que lhe tenha pago pode ainda ter dinheiro.

- Oh, eu sei - despropositadamente, sentia-me quase honrado por "S" estar preocupado com o meu bem-estar. Ele sempre me impressionou como um homem de paixões curtas e amargas, impermeável aos sentimentos mais ternos gerados pelo amor, pela amizade e pela gratidão. Por baixo do seu plácido exterior, pressentia-se um coração duro e frio. - Acredita - disse-lhe eu - que foram consideradas todas as possibilidades.

Ele acenou com a cabeça, como que para dizer: é isso que se espera de um inquisidor. Em seguida abriu a porta e fechou-a atrás de mim.

Até hoje, nunca mais o vi.

 

E quando ele pegou no livro

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque o Seu amor é eterno. Finalmente Deus viera em meu auxílio; Ele despira-me o burel e cingira-me de alegria. Pois eu sabia que, se Jordan fosse capturado, o grande mistério seria resolvido. Os assassinos do padre Agostinho seriam identificados, apanhados e castigados. Seria feita justiça. E eu já não teria medo de sair da cidade.

Asseguro-vos que eu não tinha qualquer dúvida de que Jordan nos daria os nomes dos assassinos. Se fosse necessário usar a roda, que assim fosse. Eu próprio estaria preparado para girar os molinetes, se tal coisa não fosse proibida. Sentiria tanta compunção como Jordan revelara quando participou no assassínio de um idoso indefeso.

Como podeis imaginar, eu estava ansioso por interrogá-lo pessoalmente. Mas receava que Pierre-Julien considerasse sua esta inquisição. Receava porque sabia, por essa altura, que os seus interrogatórios eram desajeitados, desorganizados e inadequados, repletos de estranhas referências a sangue de galo, a pêlos do traseiro e a crânios de ladrões. No meio de um interrogatório escrito de antemão - "Já alguma vez vistes alguém receber o consolamentum? Quando e onde? Quem estava presente? Já alguma vez adorastes hereges? Já alguma vez os guiastes ou tratastes de tudo para que eles fossem escoltados de um lugar para outro?" -, ele injectaria perguntas irrelevantes ou confusas sobre aparições de demónios, sacrifícios, bruxaria. Perguntaria: "Já alguma vez cortastes um homem em pedaços e os espalhastes em volta de uma encruzilhada? Já alguma vez fizestes algum género de sacrifício para conjurar um demónio? Já alguma vez empregastes qualquer instrumento estranho para o fazerdes? Já alguma vez misturastes uma poção com ingredientes impuros como sejam unhas cortadas a cadáveres, ou pêlos de gato preto, para enfeitiçardes os bons católicos?"

Sei que ele fazia frequentemente estas perguntas, porque queria que eu também as fizesse. Ele foi tão longe, a ponto de rever as transcrições de Durand Fogasset sobre o interrogatório que eu fizera a Bruna d'Aguilar - que, como podeis lembrar-vos, era suspeita de ter subornado o padre Jacques. E quando ele descobriu que eu nem por uma vez fizera referência a bruxaria ou conjuração, puniu-me, furioso, em frente de Durant, do irmão Lucius e de Raymond Donatus.

- Tendes de interrogá-la de novo! - ordenou. - Tendes de lhe perguntar se ela fez sacrifícios a demónios...

- Mas não há necessidade de lhe perguntar isso. Quando Jordan chegar, ficaremos logo a saber quem é o culpado.

- Quando Jordan chegar? Estais a dizer-me que recebestes uma resposta da Catalunha?

- Claro que não. Ainda nem há uma semana que escrevi.

- Nesse caso, tende a bondade de continuar com a investigação. Se Jordan for apanhado, tanto melhor. Se não for, temos de encontrar os assassinos, mesmo assim. E só poderemos fazê-lo se perseguirmos os feiticeiros que se encontram entre nós.

Fui ridículo para todo o meu povo, e para o seu cântico, todo o dia. Olhando em redor do escritório do priorado, para o rosto ávido de Raymond, para os olhos baixos do irmão Lucius, para a careta torcida e solidária de Durand, refreei a minha ira e falei num tom uniforme. Calmamente. Educadamente.

- Irmão - disse eu a Pierre-Julien -, posso falar convosco lá em baixo? Em particular?

- Agora?

- Se tiverdes a bondade.

- Muito bem - juntos, descemos para a sala dele, que, por essa altura, se tornara receptáculo de muitos livros, entre eles pelo menos seis relacionados com bruxaria e invocação. Fechando a porta, virei-me para ele, e fui movido a agradecer a Deus, com todo o meu coração, o facto de Ele ter considerado adequado dotar-me de uma estatura grande. Pois era muito mais alto do que Pierre-Julien, que, embora não fosse exactamente enfezado, tinha uma altura insignificante. Consequentemente, o meu comportamento era ainda mais ameaçador.

- Em primeiro lugar, irmão - disse eu -, ficar-vos-ia grato se, quando desejardes repreender-me por qualquer erro que eu tenha cometido, não o façais à frente dos funcionários.

- Vós...

- Em segundo lugar, Bruna d'Aguilar não é feiticeira. Vou falar-vos de Bruna. Bruna tem sessenta e três anos, tem cinco filhos vivos e foi casada duas vezes. É proprietária de uma casa e de uma vinha, de um burro e de vários porcos, frequenta a igreja com regularidade, dá esmolas aos pobres, é devota da Virgem Santíssima, e é ligeiramente surda de um ouvido. Não come nabos, porque diz que não estão de acordo com ela.

- O que...

- Bruna é também uma velha irascível, impulsiva e repelente.

Está envolvida numa antiga disputa com a família de uma das noras, acusando-a de não terem pago o dote acordado. Zangou-se com todos os vizinhos, com o filho mais novo, com os dois irmãos e com as famílias de ambos os seus falecidos maridos. Podia contar-vos estas zangas, se tivésseis meio dia disponível. É acusada de matar as galinhas dos vizinhos - que, não há muito tempo, desapareceram misteriosamente -, de despejar águas sujas à porta do irmão, de provocar disenteria na nora com figos secos envenenados. Mais importante, é acusada de dar o Santo Sacramento a um dos seus porcos, para o curar de um problema digestivo. É que gosta muito dos seus porcos, como vedes.

- Isto não é...

- Falei com todos os membros da sua família, com os vizinhos, os filhos, os irmãos, os amigos. Sei o que ela come todos os dias, quando defeca, quando deixou de ser menstruada, o que guarda na arca de enxoval, por que morreram os maridos - quase que vos podia dizer quando é que ela coça o nariz. Por isso penso que, se Bruna d'Aguilar andasse a sacrificar inquisidores, eu teria descoberto. De facto, os seus inimigos só teriam ficado satisfeitos de acusá-la de tal crime.

- Não podeis acreditar que ela o faria abertamente, pois não? À frente de testemunhas...

- Irmão, permiti que vos diga uma coisa - eu estava cansado, mais do que espantado, com a sua cega obstinação. - Há oito anos que trabalho no Santo Ofício. Nem uma única vez encontrei, nem eu nem nenhum dos meus antigos superiores, alguém envolvido com demónios, adivinhação ou magia - excepto, talvez, uma ou duas mulheres idosas acusadas de possuírem mau-olhado. Mas, como já referi, este género de maldade não é da competência do Santo Ofício. A nós compete lidar com heresia.

- Não considerais heresia estar ligado ao demónio? Usar o Santo Sacramento em circunstâncias perversas?

- Bruna será castigada por dar o Santo Sacramento aos porcos. Ela admite livremente que o fez, a conselho de uma amiga que também será castigada. Mas foi um pecado causado pela ignorância, não um acto de feitiçaria. Ela é uma idosa estúpida. - Dizeis que os porcos dela têm todos nome - disse Pierre-Julien. - São pretos? Tanto quanto sabeis, alguma vez mudaram de forma?

- Irmão! - ele nem sequer me estava a ouvir. - Não há bruxas em Lazet!

- Como podeis saber, quando não fizestes as perguntas certas?

- Porque conheço esta cidade. Porque conheço as pessoas. E porque vós tendes andado a fazer essas perguntas, e não encontrastes bruxas nenhumas!

- Oh, isso é que encontrei - respondeu ele com ar presunçoso. Arregalei os olhos.

- Um dos homens de Saint-Fiacre confessou ter conjurado um demónio - continuou o meu superior. - Disse que tentou possuir carnalmente uma mulher casada oferecendo ao demónio uma boneca de cera, saliva e sangue de sapo. Colocou a boneca debaixo da soleira da porta dela, assegurando que, se ela não cedesse, seria atormentada por um demónio. Assim, ela cedeu, e, posteriormente, ele sacrificou uma borboleta ao demónio em questão, que se manifestou numa aragem.

Como podeis imaginar, fiquei profundamente chocado - embora não pelas razões que Pierre-Julien poderia ter previsto.

- Ele... ele confessou isso? - perguntei.

- O depoimento está agora a ser copiado.

- Nesse caso, deveis tê-lo levado para a masmorra - de repente, compreendi. - Usastes a roda.

- Não usei.

- O polé.

- Nada disso. Ele não foi torturado - ao ver-me sem fala, Pierre-Julien aproveitou-se da sua vantagem momentânea. - Concordareis, penso, perante tal prova incontestável, que nos compete procurar e destruir a infecção pestilenta e herege da necromancia no nosso rebanho. «Pois a rebelião é como o pecado da bruxaria, e a teimosia é como a iniquidade e a idolatria». Sois um homem teimoso, meu filho - deveis submeter-vos à minha superior compreensão destes assuntos, e fazer as perguntas que eu vos disser para fazerdes.

Tendo proferido este insulto, ele pediu-me que saísse da sala, pois ele tinha outro interrogatório para preparar. Perplexo, fiz o que ele me ordenou. Não houve manifestação de raiva. Nem sequer bati com a porta, tão preocupado estava com este desenvolvimento imprevisto. Como, perguntei a mim mesmo, é que isto podia ter acontecido? O que poderia ter originado uma confissão tão estranha? Seria verdade? Ou poderia Pierre-Julien estar a mentir?

Procurei Raymond Donatus, que ainda estava a trabalhar no escritório. Quando entrei, consegui deduzir imediatamente, do embaraço de Durand, da postura confiante de Raymond, e da forma como o irmão Lucius pegou na sua pena à pressa, que tinham estado a falar de mim. Mas não perdi a compostura. Tal reacção só era de esperar.

- Raymond - disse eu, sem rodeios -, transcrevestes uma confissão sobre bonecas de cera para o padre Pierre-Julien?

- Sim, padre. Esta manhã.

- Foi usada tortura durante essa inquisição?

- Não, padre.

- Nenhuma mesmo?

- Não, padre. Mas o padre Pierre-Julien ameaçou usar a roda.

- Ah.

- Explicou como ela funcionava, e como as articulações se separariam...

- Estou a ver. Obrigado, Raymond.

- Até fomos lá abaixo para a vermos.

- Sim. Obrigado. Estou a compreender - e estava, também. Ponderando, apercebi-me lentamente do olhar especulativo de Durand, e do arranhar da pena do cónego enquanto copiava o que era, sem dúvida, o relevante depoimento. Estava tão curvado sobre a sua secretária que o nariz quase a tocava.

- Padre? - Raymond pigarreou, e levantou o protocolo, já terminado, da confissão de Bruna. - Padre, perdoai-me, mas devo dar isto ao irmão Lucius para copiar? Ou devo esperar até que a volteis a interrogar?

- Não voltarei a interrogá-la.

Os dois notários trocaram um olhar.

- Não há razão para que eu volte a interrogá-la. Já tenho muito que fazer. Raymond, quando o padre Agostinho procurava nos antigos livros de registo, descobriu que faltava um. Lembrais-vos?

Raymond pareceu algo surpreendido com esta súbita mudança de assunto na nossa conversa. Como eu esperava, serviu para o distrair da questão se eu devia ou não voltar a interrogar Bruna d'Aguilar. Ele pestanejou, abriu a boca, e produziu uns ruídos ininteligíveis.

- Lembrais-vos? - reiterei. - Ele pediu-vos que procurásseis na biblioteca do bispo, para o caso de ambas as cópias lá se encontrarem. Fizestes o que ele disse?

- Sim, padre.

- E estavam lá ambas as cópias?

- Não, padre.

- Só uma?

- Não, padre.

- Não? - observei-o, enquanto ele se agitava, inquieto. - Não, como assim?

- Nnn... não havia cópias. Nem uma.

- Nem uma? Quereis dizer que ambos os livros de registo desapareceram?

- Sim, padre.

Como poderei transmitir-vos o meu espanto? A minha incredulidade? Na verdade, eu estava como o povo de Isaías, que ouvia, mas não compreendia nada.

- Isto é incrível - protestei. - Tendes a certeza? Procurastes?

- Padre, fui lá e procurei...

- Procurastes bem? Tendes de voltar a procurar. Deveis regressar lá e procurar na biblioteca do bispo.

- Sim, padre.

- E se não os encontrardes, eu próprio irei procurar. Pedirei uma explicação ao bispo. Isto é muito importante, Raymond, temos de encontrar esses livros.

- Sim, padre.

- Alertastes o padre Agostinho? Não? Não mesmo? Mas por que não?

- Padre, ele estava morto! - corado, Raymond estava a começar a assumir um tom defensivo. - Depois, vós fostes para Casseras! Esqueci-me! Nunca perguntastes!

- Mas por que devia eu ter perguntado, quando...? Oh, deixai - disse eu, acenando-lhe com a mão. - Ide. Ide procurá-los. Agora. Ide!

- Padre, não posso. Há... estou...

- O padre Pierre-Julien precisa dele para outra inquisição - interrompeu-o Durand.

- Quando?

- Muito em breve.

- Nesse caso, tens de o substituir - informei Durand. - E vós, Raymond - ide. Quero que examineis todos os livros de registo que se encontram na biblioteca do bispo. Compreendeis?

Raymond acenou com a cabeça. Depois saiu, ainda aparentemente confuso, e eu fiquei a lidar com as objecções de Durand, que não eram de indignação nem de queixa como teriam sido as de Raymond em circunstâncias semelhantes (na verdade, fiquei surpreendido por Raymond ter obedecido de tão boa vontade a uma ordem que, pela sua própria natureza, deve ter contribuído para o seu desconforto geral). Pelo contrário, a desaprovação de Durand era normalmente expressa em forma de silêncios, que podiam ser notavelmente enfáticos.

Contudo, nesta ocasião, ele foi movido a dar voz ao seu descontentamento.

- Padre, devo entender que o padre Pierre-Julien tem ameaçado colocar prisioneiros na roda?

Isto não era tanto uma pergunta como um protesto. Compreendi o que ele estava a tentar dizer.

- Só podemos esperar que a ameaça seja suficiente - foi a minha resposta.

- Padre, perdoai-me, mas podeis recordar-vos que, quando concordei em trabalhar para o Santo Ofício...

- Manifestaste os teus sentimentos em relação a certos assuntos. Sim, Durand, lembro-me muito bem. E podes ter observado que, enquanto trabalhaste comigo, esses sentimentos nunca foram ofendidos.

Infelizmente, és agora obrigado a trabalhar com o padre Pierre-Julien. E se não concordares com os seus métodos, sugiro que fales com ele sobre isso... como eu fiz.

Talvez eu fosse demasiado brusco, demasiado duro. Certamente que estava a expulsar a minha ira, para alívio de um coração sobrecarregado de sofrimento. Virando costas, desci precipitadamente para o piso de baixo, para a minha secretária, onde comecei a rebuscar nos papéis do padre Agostinho. Mas ocorre-me que podeis não compreender a razão que se encontrava por detrás desta actividade. Podeis ter esquecido que Bruna d'Aguilar não era o último nome da lista de suspeitos de suborno do padre Agostinho. Tendes, com efeito, estado a acompanhar?

Oldric Capiscol estava morto. Raymond Maury fora sentenciado. Bernard de Pibraux estava a morrer de fome no cativeiro. Aimery Ribaudin evitara habilidosamente ser acusado. Bruna d'Aguilar fora exaustivamente investigada. O único suspeito que ainda restava era Petrona Capdenier.

Petrona fora identificada, no testemunho de um perfeito investigado pelo padre Jacques, como tendo alimentado e alojado o dito perfeito muitos anos antes. O seu pecado, como o de Oldric, fora cometido muito tempo antes de o padre Jacques ter tomado conta do cargo. No entanto, enquanto que o livro de registo que continha o depoimento de Oldric (marcado e cheio de comentários) se encontrava entre os papéis do padre Agostinho, eu não descobrira lá qualquer livro de registo do qual o depoimento ou a sentença de Petrona tivesse constado. Aparentemente ela não fora presa pelo padre Jacques - e se a razão para isso residia no facto de ela já ter sido condenada, parecia não existir qualquer prova de tal condenação.

Recordando a busca levada a cabo pelo padre Agostinho para encontrar um livro de registo desaparecido, perguntei a mim próprio se o livro em questão estaria relacionado com o caso de Petrona Capdenier. A dedução foi facilitada por uma nota marginal, feita pela mão do padre Agostinho ao lado do acima mencionado depoimento do perfeito, e que designava um período de tempo e um antigo inquisidor de Lazet há muito falecido. Era evidente que, da informação disponível, o padre Agostinho inferira que devia examinar livros de registo que tratassem de processos instaurados na altura. Era evidente que ele procurava os ditos livros de registo. E era evidente que o facto de nenhum deles se encontrar entre os seus papéis indicava que, ou a busca do nome de Petrona nesses livros fora infrutífera, ou o livro que a continha desaparecera.

Procurei mais uma vez entre as notas do padre Agostinho, mas não encontrei mais nenhuma referência a livros desaparecidos. Sabendo que ele teria, sem dúvida, investigado o assunto diligentemente, fui forçado a concluir que ele, de facto, morrera antes de o poder fazer. A questão agora era: o livro de registo desaparecido e a respectiva cópia tinham sido colocados noutro lugar, ou alguém os roubara?

Se tivesse sido cometido um roubo, este podia ter ocorrido em qualquer altura durante os últimos quarenta anos. Mas só podia ter sido levado a cabo por um número limitado de pessoas, já que o acesso aos registos inquisitoriais sempre fora restrito. Naturalmente, todos os inquisidores tinham sido autorizados a consultá-los à-vontade, Assim como vários notários que trabalhavam para o Santo Ofício Recentemente. tinham sido confiadas ao bispo cópias dos livros de registo, e, antes da criação da diocese de Lazet, estas mesmas cópias tinham sido guardadas no priorado. Tanto quanto eu me lembrava, só o prior e o bibliotecário tinham tido em seu poder chaves da arca em que os documentos estavam guardados.

Tendo identificado possíveis culpados, pensei em possíveis motivos para que os documentos tivessem sido roubados. O padre Jacques podia tê-lo feito para esconder o crime de uma mulher que lhe tinha pago exactamente por esse serviço (ou teriam sido os seus descendentes que arranjaram o dinheiro?). Por outro lado, se fosse ele que tivesse destruído o livro de registo, por que não teria excluído o nome de Petrona também da confissão do perfeito? Na verdade, por que permitira ele que o nome de Raymond Maury aparecesse nos registos?

Parecia-me que havia duas razões muito mais plausíveis para se roubar um livro de registo. Em primeiro lugar, se alguém cuja condenação tivesse sido lá registada tivesse, anos depois, mais uma vez caído em erro, esse mesmo herege teria certamente sido executado, a não ser que o registo do seu crime anterior não tivesse sido encontrado. Lembro-me de um caso em Toulouse em que uma tal Sibylla Borrell, tendo confessado e renunciado às suas crenças hereges cerca de dez anos antes, fora presa cinco anos mais tarde por práticas semelhantes. Teria, sem dúvida, sido enviada para o poste, se a sua abjuração original não se tivesse perdido. Mas uma vez que não foi encontrada, ela podia apenas ser julgada como se se tratasse de uma primeira ofensa, e escapou com prisão perpétua.

Em alternativa, deve recordar-se que os antepassados hereges são uma mancha na prosperidade de alguém. Não se pode servir como notário nem como oficial público se se sofrer desta nódoa hereditária. Poderia ser possível, perguntei a mim próprio, que um dos notários inquisitoriais tivesse descoberto o nome do avô neste livro desaparecido? Poderia ter sido Raymond? Endireitei-me quando este pensamento me ocorreu, pois era um pensamento terrível. Um traidor entre nós! Outro traidor! E especulei, com horror, sobre a possibilidade de Raymond ter mandado matar o padre Agostinho simplesmente porque ele andava à procura do livro de registo que fora roubado.

Mas depois abanei a cabeça bruscamente. Eu sabia que suposições deste género eram infundadas e exageradas, quando as provas eram tão escassas, e os possíveis culpados tão numerosos. Ainda por cima, por lapso, o livro de registo poderia até nunca ter sido copiado. Podia ter-se perdido como o documento em Toulouse se perdera. Havia inúmeras explicações plausíveis.

Contudo, se Raymond Donatus não conseguisse encontrar o livro, resolvi que o interrogaria o mais depressa possível. Resolvi também procurar, eu próprio, o livro de registo em falta. De facto, regressei ao escritório assim que tomei esta decisão e comecei a procurar nas duas arcas grandes em que se guardavam os livros. Ninguém me perguntou o que eu estava a fazer. Durand já se juntara ao meu superior lá em baixo, na masmorra, e o irmão Lucius nunca proferia uma palavra. Escrevia continuamente, fungando ou esfregando os olhos de vez em quando, enquanto eu remexia em quase cem anos de depravação.

Era uma tarefa laboriosa, pois os livros não estavam arrumados segundo nenhuma ordem em particular, embora os que se encontravam por cima fossem geralmente de anos mais recentes. Além disso, como é costume, os depoimentos que se encontravam no interior de cada livro estavam agrupados segundo o local de residência do acusado, e não segundo as datas em que os depoimentos tinham sido transcritos. À medida que lutava com esta desorganizada massa de depoimentos, ficava cada vez mais furioso com Raymond Donatus. Parecia-me que ele não andara a fazer o seu trabalho - e eu considerava isso quase um pecado tão grande como ter assassinado o padre Agostinho. Na verdade, tornava-se bastante evidente que o livro de registo desaparecido se perdera. Comecei a considerar um milagre que, sob a guarda do notário, não tivessem desaparecido muitos mais livros.

- Lucius - disse eu, e ele olhou-me por cima da ponta da sua pena -, sabeis orientar-vos nestes registos?

- Eu não, padre. Não tenho autorização para os consultar.

- Bem, poderá interessar-vos saber que estão numa confusão total. O que faz Raymond o dia inteiro? Falar, suponho. Falar e falar e falar.

O copista não disse nada.

- E há fólios soltos por toda a parte. E vede - traças! Abominável. Imperdoável - decidi que teria de voltar a arrumar os documentos eu próprio - uma tarefa em que ainda estava ocupado quando, perto das Completas, Pierre-Julien entrou, de súbito, no escritório. Estava sem fôlego e transpirava abundantemente, como se tivesse subido as escadas a correr. Tinha o rosto incaracteristicamente corado.

- Ah! Meu filho - disse, ofegante. - Estais aqui.

- Como vedes.

- Sim. Bem. Uh, vinde por aqui, por favor, desejo falar convosco.

Intrigado, segui-o para o piso de baixo. Pierre-Julien estava extremamente agitado. Quando chegámos à minha secretária, ele virou-se para mim e cruzou os braços. A voz tremia-lhe de emoção reprimida.

- Fui informado - disse-me - de que não tendes intenção de seguir o meu conselho relativamente ao interrogatório de prisioneiros sobre o assunto de bruxaria. É verdade?

Surpreendido, fiquei momentaneamente sem saber o que responder. Mas Pierre-Julien não esperou que eu formulasse uma resposta.

- Nessas circunstâncias - continuou -, decidi assumir o controlo da investigação da morte do padre Agostinho.

- Mas...

- Tende a bondade de me entregar todos os documentos relevantes.

- Como desejardes - disse a mim próprio que, em vez de usar o seu ridículo interrogatório, eu preferia abandonar de todo a tarefa. - Mas devíeis saber o que descobri...

- Estou também a considerar o vosso futuro no Santo Ofício. Parece-me que não abordais este trabalho com o espírito adequado.

- Perdão?

- Resolvi discutir o assunto com o bispo e com o prior Hugues. Entretanto, deveis ocupar-vos da correspondência e de outras tarefas menores...

- Esperai. Parai - levantei a mão. - Estais realmente a tentar despedir-me deste cargo?

- É um direito que me assiste.

- Certamente que nem mesmo vós sois tão pouco sensato a ponto de estardes convencido de que podeis funcionar aqui sem a minha ajuda...?

- Sois um homem presunçoso e insolente.

- E vós sois um idiota. Um odre de vinho vazio - de repente, perdi o controlo. - Como ousais presumir que me dais instruções sobre o que quer que seja? Vós, que não sois capaz de conduzir um único interrogatório sem recorrer às armas desajeitadas exigidas pela completa incompetência?

- "Que se calem os lábios mentirosos, que orgulhosa e desdenhosamente dizem coisas dolorosas contra os justos".

- Eu próprio ia dizer a mesma coisa.

- Estais demitido - os lábios do homem tremiam. - Não vos quero ver mais aqui.

- Óptimo. Porque só o facto de vos ver me dá a volta ao estômago.

Dizia isto a mim próprio, mas não servia de bálsamo ao meu espírito perturbado. Veja-se só até que ponto eu me afastara da humildade perfeita! Eu podia ter chamado o fogo do inferno para que se abatesse sobre ele. Podia tê-lo castigado com as pragas do Egipto, e com a sarna, e com a comichão que não tem cura. E nisto eu não servia a Cristo, pois que disse Aquele que habita a eternidade? Eu habito no lugar alto e santo, também com aquele que tem um espírito contrito e humilde.

Quando reflectirdes sobre a minha raiva, podereis perguntar-vos: é este um homem que conheceu o amor divino? É este um homem que comungou com o Senhor, e que provou da Sua infinita misericórdia? Talvez, podereis pensar, devais rever a vossa posição. E com certeza que teríeis justificação para isso, porque também eu começara a duvidar. O meu coração era agora tão frio como a pedra; eu queimava incenso ao orgulho. As minhas iniquidades subiram-me à cabeça. A minha alma estava enredada em assuntos terrenos, quando devia andar à procura daquela cidade em que a corrente do rio é uma fonte de alegria, e cujas portas o Senhor ama mais do que todas as tendas de Jacob. Eu virara costas ao abraço de Deus - ou talvez esse abraço nunca me tivesse sido oferecido.

O meu coração de pedra, aquecido com a febre da angústia, em vez da chama do amor, arrefeceu lentamente quando eu estava deitado nessa noite. Pensei com desespero em todos os meus pecados e nos inimigos que tinham espalhado uma rede à beira da estrada. Em silêncio, supliquei: Oh, livrai-me do homem falso e injusto! Pensei, então, em Johanna, e encontrei um consolo que não conseguia obter da contemplação do Senhor - pois ao contemplar Johanna, não sentia vergonha dos meus defeitos e fraquezas (Deus perdoe os meus pecados!). Perguntei a mim próprio o que estaria ela a fazer, e se já teria partido para a sua residência de Inverno, e se pensaria em mim, quando estava deitada no escuro. Conscientemente, eu comia do fruto proibido, e o seu sabor era doce, embora me deixasse esfaimado por mais. Reflecti na promessa que lhe fiz de que voltaria a ter notícias minhas. Havia semanas que eu lutava com a composição de uma carta onde desejava confessar a minha culpável ligação a ela e declarar a minha intenção de não nos voltarmos a ver. É claro que seria uma carta difícil de escrever e quase impossível de enviar sem levantar suspeitas. Afinal, por que deveria um monge corresponder-se com uma mulher? E como podia eu expressar-me abertamente a uma pessoa que não sabia ler?

Então, sentei-me na cama. A carta! O facto de pensar numa carta levou-me a pensar noutra: a carta do bispo de Pamiers - a carta relacionada com a possessão demoníaca de Babilónia. Ainda se encontrava entre os papéis do padre Agostinho. Se Pierre-Julien deparasse com ela, os resultados podiam ser verdadeiramente terríveis. Quem poderia dizer que fantasias idiotas e erróneas ela poderia gerar dentro daquele cepo que ele carregava em cima dos ombros?

Eu sabia que tinha de a ir buscar. Jurei fazê-lo. E depois fiquei acordado toda a noite, atormentado pelo medo de não conseguir atingir o meu objectivo antes de Pierre-Julien.

Na manhã seguinte, não assisti às Primas. Apressei-me logo a ir à sede do Santo Ofício, enregelado pela primeira aragem do Inverno. Batendo à porta do exterior, fiquei surpreendido por não receber resposta imediata, pois estava geralmente um guarda estacionado do lado de dentro da porta, durante a noite. Ocorreu-me, então, que o irmão Lucius, que era conhecido por chegar cedo, já podia ter entrado. Por isso bati com mais força, e, por fim, fui recompensado pela voz do copista.

- Quem é? - disse ele.

- O padre Bernard. Abri.

- Oh - ouviu-se um som de arranhar, à medida que ele destrancava a porta. Depois surgiu o rosto dele. - Entrai, padre.

- Às vezes pergunto-me por que regressais a São Policarpo ao serão - observei, roçando por ele ao passar. - Devíeis dormir aqui e pronto - enquanto ele voltava a trancar a porta, apressei-me em direcção à minha secretária - mas estava limpa dos papéis do padre Agostinho. A praguejar para mim próprio, fui procurar na sala do inquisidor. Não encontrei nada.

Parecia que Pierre-Julien levara os papéis para a sua cela.

Sem fôlego devido a este duro golpe, afundei-me numa cadeira e considerei as minhas opções. Ir buscar a carta à cela dele não seria difícil, desde que ele estivesse ausente. Mas se ele pretendesse andar com os papéis, eu teria poucas esperanças de recuperar a dita carta. E qual seria a utilidade, se ele já a tivesse encontrado? Havia todas as razões para crer que ele passara pelo menos uma parte da noite anterior a consultar estes documentos, senão para quê levá-los para o priorado?

Decidi que a minha melhor hipótese, se ele não largasse os papéis, era ganhar de novo acesso a eles na sua presença, e tirar a carta enquanto lhe chamava a atenção para outra coisa. Para o problema do livro de registo desaparecido, por exemplo.

Levantei-me.

- Lucius! - chamei. - Lucius!

- Sim, padre?

Entrando na antessala, vi que ele vinha a meio das escadas.

- Raymond estará cá em breve, irmão? Geralmente ele parece chegar antes de mim.

O irmão Lucius pensou por um momento.

- Umas vezes ele chega cedo, outras tarde - foi a resposta cuidadosa. - Mas não chega muitas vezes assim tão cedo.

Resolvi, naquele momento e ali, visitar a casa do notário e perguntar se Raymond encontrara o livro de registo desaparecido na biblioteca do bispo. Se ele não o tivesse encontrado, eu levaria imediatamente esta preocupante informação a Pierre-Julien, que poderia considerá-la tão notável que largaria a carta que eu tanto desejava. Não desejando perder tempo, pois o tempo daria a Pierre-Julien oportunidade de ler a dita carta, agradeci ao irmão Lucius e retirei-me, rumando à nobre residência de Raymond Donatus. Eu sabia onde era, embora nunca tivesse pisado a soleira daquela porta. Outrora hospitum de um moleiro, havia cinco anos que fora comprada por Raymond, e o seu armazém de abóbada transformado em estábulos (devo assinalar que o notário possuía dois cavalos, que lhe eram tão queridos como as suas vinhas; ele falava mais deles do que do filho e da filha). A casa era muito grande, e exibia lintéis de pedra trabalhada por cima das janelas. No interior, as vigas do telhado tinham sido pintadas às riscas vermelhas e amarelas. Havia até algumas cadeiras em volta da mesa, e um crucifixo por cima da porta principal.

Mas quando a mulher de Raymond respondeu à minha batida, estava vestida de farrapos, como uma criada, e tinha o rosto sujo.

- Oh! - disse ela. - Padre Bernard!

- Ricarda.

- Tenho andado a limpar. Perdoai-me estas roupas velhas - convidando-me a entrar, ofereceu-me de comer e de beber, mas recusei, com agradecimentos. Olhando em redor da cozinha, com a sua poderosa lareira e presuntos pendurados, eu disse que desejava falar com Raymond.

- Raymond?

- O vosso marido - reparando no olhar confuso da mulher, acrescentei: - Ele está aqui?

- Mas não, padre. Está no Santo Ofício, de certeza.

- Que eu saiba, não.

- Mas tem de estar. Esteve lá toda a noite.

- Toda a noite? - disse eu, a pensar bastante depressa. A pobre mulher, agitada, começou a mostrar sinais de aflição.

- Ele... ele muitas vezes tem de trabalhar toda a noite - balbuciou ela. - Foi o que ele me disse.

- Ah - é claro, apercebi-me então - demasiado tarde - do que Raymond andara a fazer. Andara a passar noites com meretrizes, e depois mentia. Eu estava irritado ao pensar que o Santo Ofício lhe fornecera uma desculpa.

- Ricarda - disse eu, decidido a não mentir sobre o assunto -, o vosso marido não estava na sede quando eu saí. A única pessoa que lá estava era o irmão Lucius.

- Mas...

- Se o vosso marido não veio para casa ontem à noite, tendes de procurar outra explicação.

- Ele foi raptado! Aconteceu-lhe alguma coisa!

- Duvido.

- Oh, padre, o que é que eu vou fazer? Maria, o que é que eu vou fazer?

Maria parecia ser uma ama-seca. Estava sentada junto à lareira, com um bebé apertado contra o peito, e era tão ampla como Ricarda era mirrada.

- Deveis aquecer vinho para beberdes, Domina - aconselhou à ama. - Não aconteceu nada ao vosso marido.

- Mas ele desapareceu!

- Ninguém se pode perder nesta cidade - respondeu a ama-seca, e trocámos um olhar. Embora ela tivesse uma maneira de falar vagarosa e plácida, não havia nada de lento no intelecto de Maria.

- Padre, tendes de me ajudar - suplicou a mulher, aflita. - Temos de encontrá-lo.

- Estou a tentar encontrá-lo...

- Talvez os hereges o tenham morto, como mataram o padre Agostinho! Oh, padre, que devo fazer?

- - Nada - disse eu, de forma decisiva. - Sentai-vos e esperai, simplesmente. E quando ele chegar a casa, quero que lhe deis uma descompostura pelo seu comportamento dissoluto. Sem dúvida que está a jogar nalgum lugar, e já não sabe se é dia ou noite.

- Oh, nunca! Ele nunca faria uma coisa dessas!

Ao ver Ricarda debulhar-se em lágrimas, e não aguentando tal imagem, assegurei-lhe que havia de encontrar o marido dela. Em seguida deixei-a, assaltado pela culpa de ter sido o agente de tal aflição, mas esperando, ao mesmo tempo, que Raymond sofresse pelo seu descaramento. (Dizer que estava a trabalhar toda a noite! Era incrível!

Decidi regressar à sede, informar do desaparecimento do notário, e usar essa oportunidade para descobrir o paradeiro dos papéis do padre Agostinho - pois sabia que Pierre-Julien começava sempre o seu dia de trabalho depois das Primas. No entanto, quando ia a caminho, encontrei Roger Descalquencs no mercado, e parei para me dirigir a ele. Roger estava ocupado com uma disputa de pouca importância sobre impostos (já que as portagens dos mercados são assunto de tantas queixas como os dízimos), mas, quando me viu à espera, interrompeu a discussão que estava a ter com um irado vendedor de queijo.

- Viva, padre - disse ele. - Andáveis à minha procura?

- Não - respondi. - Mas agora que vos encontrei, há uma coisa que desejo discutir convosco.

Acenando com a cabeça, Roger chamou-me à parte, e conversámos em voz baixa, enquanto que à nossa volta ovelhas baliam e compradores regateavam e vendedores ambulantes cantavam elogios às suas mercadorias. Contei-lhe que Raymond Donatus se sumira durante a noite - que parecia ter desaparecido. Ofereci-lhe as minhas suspeitas de que o notário devia estar a descansar o seu deboche na cama de alguma meretriz. E pedi que a guarnição do senescal, conhecida, como era, entre os elementos mais pecadores de Lazet, devia procurar o notário quando saísse na sua guarda habitual.

- Não apareceu toda a noite? - disse Roger, pensativo. - Sim. Isso é preocupante.

- Oh, eu não estou preocupado. É óbvio que já aconteceu antes. Agora ele já pode estar no Santo Ofício.

- Mas pode também estar estendido num monte de lixo com a garganta cortada.

Surpreendido, perguntei sobre esta especulação. Por que teria ela passado pela cabeça do senescal?

- Porque misturar-se com prostitutas significa misturar-se com ladrões - respondeu ele. - Lá em baixo, junto ao rio, entre pedintes e barqueiros, há quem possa cortar-nos a garganta por um par de sapatos.

- Mas não tenho conhecimento de que Raymond procurasse prazer entre essa gente. Tanto quanto sei, ele preferia criadas e viúvas.

- Uma prostituta é uma prostituta - o senescal deu-me uma palmadinha nas costas. - Descansai, padre, eu vou descobri-lo, mesmo que tenha sido atirado ao rio. Ninguém me escapa nesta cidade.

E, com este compromisso, regressou ao seu debate com o vendedor de queijo, assegurando da minha parte a promessa de que, se Raymond se encontrasse, de facto, na sede do Santo Oficio, eu devia alertar um dos guardas da guarnição assim que pudesse. Embora ele parecesse bastante animado, não será, para vós, admiração que as suas terríveis previsões me tenham transtornado. No caminho de regresso à sede, fui assaltado por pensamentos infelizes: considerei a possibilidade de Raymond ter sido, de facto, morto para lhe roubarem a bolsa, e ter sido atirado ao rio. Ou que, como funcionário do Santo Ofício, tivesse encontrado uma sorte igual à do padre Agostinho. É claro que estes receios eram irracionais, pois havia uma explicação mais provável, que era a que eu dera a Roger logo de início. Mas, mesmo assim, a minha alma estava inquieta.

Quando cheguei à sede, foi o próprio Pierre-Julien que me abriu a porta. A julgar pelo seu semblante abatido e inchado, também ele passara uma noite de insónia - e agora não parecia propriamente encantado por me ver. No entanto, antes que ele pudesse protestar contra a minha chegada, perguntei-lhe se Raymond Donatus se encontrava no edifício.

- Não - respondeu ele -, e eu tenho uma inquisição marcada. Estava prestes a enviar um familiar a casa dele.

- Não o encontrareis lá - interrompi-o. - Raymond esteve desaparecido toda a noite.

- O quê?

- A mulher não o vê desde ontem de manhã. Eu não o vi ontem à tarde - e o facto de ele dever ter estado presente, para registar o testemunho, deixava-me muito preocupado. Embora não fosse a sua primeira noite fora de casa, era a primeira vez que ele não comparecera a um interrogatório planeado. - Suspeito de que ele habitualmente dedica as noites a meretrizes, e estou preocupado com a hipótese de ele ter caído no meio de ladrões. É claro que pode ser simplesmente um caso de excesso...

- Tenho de ir - anunciou Pierre-Julien. Eu ainda estava à entrada da porta, pois ele estivera a bloquear-me o caminho, e fui quase derrubado, à medida que ele passava por mim. - Mandai buscar Durand Fogasset - continuou ele, atirando a ordem por cima do ombro. - Dizei a Pons que a inquisição está cancelada.

- Mas...

- Ficai aqui até que eu regresse.

Espantado, observei a figura dele a afastar-se. Uma partida tão extraordinária não admitia explicação. Mas ocorreu-me, então, que a sala dele estava agora vazia, e fui dar uma olhadela à secretária.

Os papéis do padre Agostinho estavam mesmo lá - e entre eles encontrei a carta do bispo de Pamiers. Regozijai-vos sempre no Senhor, e volto a dizer, Regozijai-vos! Aqui estava, de facto, uma prova da misericórdia de Deus.

Escondi o documento nas minhas roupas, pensando que, mais tarde, destruí-lo-ia. Depois, em obediência à ordem de Pierre-Julien, dirigi-me à prisão, onde pedi a Pons que mandasse buscar Durand Fogasset. Informei-o também da ausência de Raymond. Concordámos em que, por meio de uma prostituta, um homem é transformado num pedaço de pão. Raymond, disse Pons, devia ter "mantido o seu pavio fora do sebo alheio".

- Se me perguntardes - acrescentou -, aquele louco começou a deitar-se com a mulher de alguém, e deu com a língua nos dentes. Eu sempre disse que ele o faria.

- Sabeis o nome da sua mais recente conquista? - perguntei.

- Se soubesse, dir-vos-ia. Eu estava sempre demasiado ocupado para prestar atenção à imoralidade de Raymond. Mas o copista é capaz de saber alguma coisa - ou aquele rapaz, Durand.

Era um bom conselho. No entanto, quando falei com o irmão Lucius, no escritório, ele foi vago, e não ajudou muito. Mulheres? Tinha havido tantas mulheres.

- Mas recentemente - pressionei-o. - Nas últimas semanas.

- Oh... - o pobre cónego estava aflito. - Padre, eu tento não ouvir... é um assunto tão pecaminoso.

- Sim, é claro. Bem o sei. E aborrecido, também, ouso eu dizer. Mas lembrais-vos de alguns nomes, irmão? Ou de características?

- Elas parecem ser todas de natureza muito lasciva - murmurou ele, tão vermelho como o pecado. - Com um... um peito avantajado.

- Todas?

- Raymond chama-lhes "tetas". Ele gosta de "tetas grandes".

- Ah.

- Havia uma chamada Clara - continuou o irmão Lucius. - Lembro-me dela porque pensei: como pode uma mulher com o nome daquela santa abençoada ser a fonte de tais iniquidades?

- Sim. É um grande pecado.

- Mas ele não me diz muitas vezes os nomes delas - concluiu o copista. - Ele gosta de as identificar de acordo com a sua aparência.

Eu podia imaginar. Podia também compreender. Na verdade, era profunda a piedade que eu sentia pelo irmão Lucius, e não fui capaz de continuar a fazer perguntas. Ele já estava suficientemente envergonhado, pensei. Há alguns monges que discutirão o coito e a carne das mulheres sem vacilar, à-vontade e sem constrangimentos, mas Lucius não era desses. Era um homem de grande modéstia, criado por uma mãe viúva (agora cega), e que vivia no convento desde os dez anos.

- Dizei-me - perguntei -, vistes Raymond ontem à tarde? Ele foi para São Policarpo, mas não voltou cá depois de eu ter saído? - Sim, padre.

- Ah, voltou?

- Sim, padre. Ele ainda aqui estava quando eu fui para as Completas.

- E disse-vos alguma coisa? Sobre a biblioteca do bispo? Sobre o local para onde ia ontem à noite?

- Não, padre.

- Disse alguma outra coisa?

Mais uma vez, o irmão Lucius estava aflito. Arrumou nervosamente as coisas em cima da sua secretária, e limpou as mãos ao hábito.

- Ele... ele falou de vós, padre.

- Falou, a sério? - só era de esperar. - E que foi que ele disse? - Estava irritado convosco. Disse que o insultastes, e que lhe dáveis ordens como a um criado.

- Mais alguma coisa?

- Disse que o orgulho vem antes da destruição.

- É indiscutível - disse eu, e agradeci ao irmão Lucius pela sua ajuda. Tendo decidido esperar por Durand, regressei para a minha secretária e sentei-me sem fazer nada, a passar em revista a informação que recolhera. No total, era muito pouca. Perguntei-me,

pela primeira vez, se teria sido Raymond que informara Pierre-Julien de que eu não tencionava seguir o seu conselho em relação aos interrogatórios. Durand, eu tinha a certeza, não teria repetido o comentário que eu fizera sobre o interrogatório a Bruna d'Aguilar. E Lucius só teria respondido a uma pergunta directa; ele nunca teria falado no assunto sem ter sido encorajado a fazê-lo.

Não havia dúvidas de que Raymond era o responsável. No calor da sua raiva, quando ia a caminho do palácio do bispo, alertara provavelmente Pierre-Julien da minha flagrante desobediência. O orgulho vem antes da destruição. O próprio orgulho de Raymond fora sempre muito melindroso.

Eu ainda estava a matutar nestas coisas, quando Durand Fogasset bateu à porta de fora. Levantando-me, fui destrancá-la para que ele entrasse.

- Raymond Donatus desapareceu - anunciei, quando ele entrou.

- Ouvi dizer.

- Viste-o desde ontem? Porque mais ninguém o viu. Nem sequer a mulher.

O aspecto de Durand sugeria que fora arrancado à cama, pois tinha o olhar turvo, o rosto com vincos, as roupas amarrotadas. Olhou-me de debaixo do cabelo preto desgrenhado.

- Eu disse ao padre Pierre-Julien que devíeis procurar nalgumas camas - respondeu ele. - Conheceis Lothaire Carbonel? O cônsul? Vi Raymond com uma das suas criadas há algumas semanas.

- Espera um momento - eu estava pasmado com esta referência ao meu superior. - Quando falaste com o padre Pierre-Julien sobre isso?

- Ainda agora - deixando-se cair num banco, Durand sentou-se com as pernas de gafanhoto estendidas, esfregando nos olhos e bocejando. - Passo pela casa de Raymond quando venho para cá, como sabeis.

- Queres dizer que o padre Pierre-Julien estava em casa de Raymond?

- Estava toda a gente em casa de Raymond. O senescal. A maior parte da guarnição...

- o senescal?

- Ele e o padre Pierre-Julien estavam a discutir à entrada da porta.

Sentei-me. Os joelhos já não podiam comigo, pois eu recebera demasiados choques nesse dia.

- Estavam a discutir sobre livros de registo - continuou Durand, de uma forma indolente mas ligeiramente intrigada. - O padre Pierre-Julien estava a insistir que, se ele tivesse encontrado algum, era propriedade do Santo Ofício, e devia ser-lhe entregue sem ser aberto. O senescal disse-lhe que não tinham encontrado nenhum - só os registos pessoais de Raymond.

- O senescal andava à procura de livros de registo?

- Oh não. Andava à procura do cadáver de Raymond.

- O que?

Durand riu. Até me afagou a mão.

- Perdoai-me - disse -, mas a cara que fizestes! Padre, disseram-me que, quando um homem é assassinado ou uma mulher é assassinada, o senescal suspeita sempre do cônjuge em primeiro lugar.

- Mas não há provas de que...

- ... Raymond esteja morto? É verdade. Pessoalmente, penso que ele bebeu vinho de mais e está a dormir em qualquer lado. Talvez eu esteja errado. O senescal tem mais experiência dessas coisas.

Eu abanei a cabeça, afundando-me em lama profunda, onde não havia qualquer ponto de apoio.

- É claro que devemos perguntar-nos: onde é que ele se tem deitado com estas mulheres? - continuou o notário. - Ele é proprietário de duas lojas, nas redondezas, mas estão ocupadas. Talvez haja um inquilino que lhe dê autorização para usar o chão em troca de uma renda reduzida, quem sabe? Ou talvez ele use apenas montes de esterco, como toda a gente.

Lentamente, os meus pensamentos estavam a tornar-se mais coerentes. Levantei-me e disse a Durand que ia visitar a casa de Raymond. Contudo, antes que eu tivesse chegado à porta, ele chamou-me.

- Padre, uma pergunta.

- Sim? O que é?

- Se Raymond estiver vivo, e não tenho dúvidas de que está, o que me acontecerá?

- O que te acontecerá?

- Só com um inquisidor, não haverá trabalho suficiente para dois notários.

Encontrei o olhar dele, e algo nos meus próprios olhos, ou na expressão da minha boca, lhe deve ter respondido à pergunta. Durand sorriu, encolheu os ombros e estendeu as mãos.

- Prestastes-me um grande serviço, padre - disse ele. - Este cargo estava a tornar-se demasiado sangrento para o meu gosto.

- Fica aqui - respondi - até que o padre Pierre-Julien regresse. Ele chamou-te especificamente.

Em seguida saí, perturbado com todas as perguntas que queria fazer. Teria Raymond Donatus levado livros de registo do Santo Ofício para casa, sabendo perfeitamente que tal acto era proibido, excepto a inquisidores de Depravação Herege? Teria Pierre-Julien conhecimento desta infracção às regras? E que livros de registo tinham sido escolhidos? Procurando explicação, voei em direcção à casa de Raymond, para encontrar, com a sede do Santo Ofício à vista, um frenético Pierre-Julien.

- Então! - exclamou ele.

- Ah! - disse eu.

Embora estivéssemos na rua, sob os olhos de muitos cidadãos curiosos, ele começou a repreender-me numa voz tão estridente como a flauta de um pastor. Estava ainda mais pálido do que de costume.

- Qual era a vossa intenção ao irdes falar com o senescal sem minha autorização? - perguntou num tom retórico. - Como ousais decidir abordar o braço secular? Sois voluntarioso e desobediente!

- Já não vos devo obediência, irmão. Deixei o Santo Ofício.

- É verdade! Por isso, abstende-vos de interferir nos assuntos do Santo Ofício!

Avançou para passar por mim, mas agarrei-lhe o cotovelo.

- A que assuntos vos referis? - perguntei. - Aos livros de registo desaparecidos, talvez?

- Soltai-me.

- Durand ouviu-vos dizer ao senescal que vos entregasse os livros de registo encontrados entre os bens de Raymond. Dissestes que eram propriedade do Santo Ofício.

- Não tendes o direito de me interrogar.

- Pelo contrário, tenho todo o direito! Sabeis que Raymond informou que havia dois livros desaparecidos? Poderá ser que ele os tenha em seu poder, e que vós tenhais disso conhecimento? Podereis ignorar a regra estabelecida pelo primeiro inquisidor de Lazet, segundo a qual os livros de registo inquisitorial nunca deviam deixar os limites do Santo Ofício, a não ser sob a custódia de um inquisidor?

- Autorizei Raymond a levar um livro de registo para casa - apressou-se a dizer Pierre-Julien. - Era necessário para uma tarefa que lhe dei.

- E onde está o livro agora? Nas mãos do senescal?

- Pode estar em cima da secretária de Raymond. Ele pode não o ter levado, afinal...

- Destes-lhe a custódia de um livro de registo inquisitorial, e agora não sabeis onde está?

- Afastai-vos.

- Irmão - declarei, ignorando imprudentemente todas as pessoas que estavam a ouvir -, parece-me que sois indigno do cargo que ocupais! Desprezar as regras desta maneira, correr tais riscos...

- "Aquele de entre vós que não tenha pecado, que atire a primeira pedra!" - gritou Pierre-Julien. - Dificilmente estareis em posição de me condenar, irmão... vós, cuja obtusidade vos impede de identificar hereges que estão debaixo do vosso nariz!

- A sério?

- Sim, a sério! Quereis dizer que não vistes a carta do bispo de Pa-miers, que se encontra entre os papéis do padre Agostinho?

Juro-vos, a minha cabeça parou. Depois começou a latejar como um ferreiro na bigorna.

- Algures nesta diocese há uma rapariga possuída por um demónio - continuou Pierre-Julien precipitadamente -, e onde há demónios, há certamente necromantes. Na verdade, irmão, sois um daqueles cegos que têm olhos. Não servis para meu vigário.

E afastou-se, antes que eu pudesse formular uma resposta.

 

As águas de Nimrin

Considerai a minha situação. Efectivamente, fora-me proibido o acesso às instalações do Santo Ofício. O meu amor por Johanna de Caussade, quer diminuído quer alimentado pela sua ausência (e creio que as autoridades diferem sobre esta questão), era, mesmo assim, suficientemente forte para me manter acordado à noite. Eu conhecia Pierre-Julien Fauré, e sabia como a sua mente funcionava. Uma vez que tivesse comparado a rapariga possuída da carta com Babilónia de Caussade, nada o faria parar até conseguir uma confissão de feitiçaria da parte dela - e da parte das amigas também. Além disso, embora ele não fosse, de forma alguma, intelectualmente perspicaz, até ele devia acabar por suspeitar de Babilónia, mais que não fosse através de um processo de exclusão de hipóteses. Eu não podia basear as minhas esperanças na sua falta de inteligência.

Das profundezas clamei por Ti, ó Senhor! Como Santo Agostinho, eu carregava uma alma despedaçada e a sangrar; o meu coração estava completamente obscurecido e tudo o que eu via era morte. Na verdade, depois de Pierre-Julien se ter afastado de mim, fiquei, por uns instantes, sem ver nem ouvir. Eu era, tal como ele declarara, como os cegos que têm olhos e os surdos que têm ouvidos. Comia o pão da tristeza, pois conhecia os métodos do Santo Ofício. Uma vez que se tenha chamado a sua atenção, não pode haver fuga. A sua rede é ampla e a sua memória longa. Eu compreendia isso: quem melhor do que eu? Era por essa razão que eu estava de luto, e à minha frente só via urtigas e minas de sal - a desolação do desespero.

Durante algum tempo, vagueei pelas ruas sem destino, e até hoje ainda não vos sei dizer se me saudaram quando caminhava. O meu olhar estava desviado do mundo; não via nada senão o flagelo das minhas tristezas. Depois, porque estava a ficar cansado, tornei-me mais consciente da minha carne e do que me rodeava. Comecei a considerar os protestos da minha barriga, pois já passava das Nonas e devia estar a comer. Assim, regressei ao priorado, onde, por ter chegado tarde para a refeição, fui objecto de muitos olhares de reprovação. Sem dúvida que seria castigado com severidade, no capítulo das faltas, pelo meu atraso, mas isso não me preocupava. Eu já estava fraco e dolorosamente despedaçado debaixo da vara da minha própria consciência. Quaisquer penitências que me fossem impostas seriam bem merecidas, pois no meu orgulho e presunção, eu banira-me, a mim próprio, do Santo Ofício. Estava impedido de ajudar Johanna, porque estava excluído de quaisquer decisões feitas em relação ao seu destino. Cortara os braços a mim próprio e arrancara até a minha própria língua.

Eu fora um louco, pois um louco diz tudo o que lhe vai na alma, mas um homem sensato guarda bem o que pensa até depois.

Deus misericordioso, como eu sofria! Fui para a minha cela e rezei. Lutando contra o desespero que repetidamente me dominava - e que me atrapalhava as faculdades sempre que o fazia -, esforcei-me para formular uma solução. Mas só uma se divisava. Fosse como fosse, eu teria de regressar ao Santo Ofício, embora fosse mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Fosse como fosse, eu teria de recuperar a minha posição lá.

Apercebia-me de que a minha admissão seria comprada a um preço elevado. Pierre-Julien obrigar-me-ia a atirar esterco para o meu próprio rosto, e a lamber o pó como uma serpente. Permiti que vos assegure, no entanto, que eu estava disposto a comer cinzas como pão, se fosse necessário. O meu orgulho não era nada, ao lado do meu amor por Johanna.

Podeis considerar inexplicável que eu tenha sucumbido a tal implacável paixão carnal tão depressa, após apenas dois breves encontros. Podeis admirar-vos com o poder daquelas correntes, tão recentemente forjadas, que me amarravam com tanta força ao distante objecto do meu desejo. Mas não foi a alma de Jónatas amarrada à alma de David, após o seu primeiro encontro? Não fora atestado, por muitas autoridades, que o amor, desde que entre pelo olho, é muitas vezes instantâneo no seu efeito? Há incontáveis exemplos, tanto no presente como no passado - e o meu, devo confessar, é outro. Com pouco encorajamento, apesar de todas as objecções, eu teria sugado o veneno das feridas de um leproso para salvar Johanna de qualquer mal.

Assim, talvez fosse vontade de Deus que eu sofresse tais reveses. Talvez fosse Seu desígnio que eu me tornasse humilde e contrito. Não tendo conseguido transformar-me com o Seu amor divino, Ele podia estar a procurar o mesmo resultado com o castigo e o sofrimento. É bom para mim eu ter sido atormentado, para poder aprender a Tua lei...

Assim, lavei o rosto, considerei a minha estratégia e regressei à sede do Santo Ofício com a intenção de abraçar montes de esterco. Por essa altura, era quase hora das Vésperas, e as sombras eram longas. Enquanto eu estivera entregue à oração e à autocondenação, a maior parte do dia passara. Mas parecia que Raymond Donatus ainda estava desaparecido, pois foi o que me disse o irmão Lucius quando respondeu à minha batida à porta.

- E o padre Pierre-Julien? - perguntei. - Onde está ele?

- Está lá em cima, no escritório. Está a consultar os livros de registo.

- Podeis dizer-lhe que eu venho, num espírito humilde e arrependido, procurar o seu perdão? - disse eu, ignorando o olhar estupefacto do cónego. - Perguntai-lhe, por favor, se ele condescenderá a conceder-me uma entrevista. Dizei-lhe que estou a falar a sério, irmão.

Obedientemente, o irmão Lucius foi dar o recado. Assim que deixei de o ver, entrei sub-repticiamente na sala de Pierre-Julien, e voltei a colocar a carta do bispo de Pamiers no devido lugar, não desejando ser condenado como ladrão, para além dos meus outros pecados. Desnecessário será dizer que não me demorei. Quando o irmão Lucius regressou, eu estava novamente junto à porta de fora, mostrando um comportamento de inocência e humildade.

- O padre Pierre-Julien diz que não falará convosco - fui informado.

- Dizei-lhe que vim apenas para ouvir e aceitar. Eu estava errado e procuro orientação.

O irmão Lucius arrastou-se novamente escadas acima. Após um curto intervalo, voltou a descer, trazendo uma resposta fria e deselegante.

- O padre Pierre-Julien diz que está ocupado.

- Nesse caso, esperarei um momento mais conveniente. Dizeis-lhe isso, por favor, irmão? Ficarei aqui até ser chamado.

E sentei-me num dos bancos, começando a recitar os salmos penitenciais. Tal como eu previa, o som da minha voz (que está bem treinada, embora seja eu a dizê-lo) trouxe Pierre-Julien para fora do escritório tão depressa como o fumo faz sair uma ratazana de um buraco.

- Calai-vos! - gritou ele do cimo da escada, deitando perdigotos. - O que quereis? Não sois bem-vindo aqui!

- Padre, vim ter convosco para suplicar. Fui ignorante e desobediente. Desdenhei da sabedoria e queimei incenso à presunção. Padre, peço o vosso perdão.

- Não posso discutir isso agora - respondeu ele, e, de facto, parecia bastante perturbado, inquieto, transpirado e trémulo. - Há demasiadas coisas... Raymond ainda está desaparecido...

- Padre, permiti que trabalhe convosco. Deixai-me ser o banco onde repousais os pés. Deixai-me ser útil.

- Estais a troçar de mim.

- Não! - movido como eu estava por uma profunda apreensão, ansioso em relação à segurança de Johanna e desgostoso com o meu próprio desdém lamentável, o meu tom era absolutamente convincente. - Acreditai quando vos digo que desejo renunciar ao meu carácter voluntarioso. Sou baixo e inferior, derramado como leite e coalhado como queijo. Padre, perdoai-me. Ando por aí inchado de orgulho, quando devia pensar apenas nos meus pecados e no terrível julgamento do Senhor. Sou como os inimigos da cruz de Cristo, cujo Deus é a sua própria barriga e que só se preocupam com coisas terrenas. O vosso julgamento é a minha lei, padre. Ordenai e obedecerei- pois sou indigno aos olhos de Deus. Sou um louco, e a boca de um louco é a sua destruição.

Como explicarei as lágrimas que me afloraram aos olhos nessa altura? Talvez fossem lágrimas de aversão, embora não saiba dizer, a esta distância, se esta repugnância era dirigida aos meus numerosos pecados, se a Pierre-Julien, se à difícil e terrível situação em que me encontrava, ou se a todas as três hipóteses. Seja como for, surtiram o efeito desejado. Pierre-Julien pareceu hesitar. Olhou para cima, para o escritório, depois novamente para baixo, para mim. Avançou alguns passos.

- Estais verdadeiramente arrependido? - perguntou, com evidente desconfiança, embora com menos força do que eu teria esperado. '

Em resposta, caí de joelhos e cobri o rosto com as mãos.

- Tem compaixão de mim, Ó Deus, pela Tua bondade - entoei -, pela Tua grande misericórdia, apaga o meu pecado. Lava-me de toda a iniquidade; purifica-me dos meus delitos. Reconheço as minhas culpas, e tenho sempre diante de mim os meus pecados.

Pierre-Julien resmungou. Desceu até ficar a meu lado e colocou-me uma mão húmida e fria na tonsura.

- Se estais verdadeiramente consciente dos vossos erros - disse ele -, de boa vontade vos perdoo pela vossa obstinada arrogância - (carvões em brasa, asseguro-vos!). - Mas é a misericórdia de Deus que devíeis procurar, meu filho. Deus é que conhece o vosso coração e que deve devolver-vos a alegria da salvação. Pois os sacrifícios de Deus são um espírito despedaçado. O vosso espírito está suficientemente despedaçado, meu filho?

- Está - respondi, e não estava a mentir. Pois ao passo que antes eu teria cerrado os dentes perante tão pomposa benevolência, agora pensava simplesmente: é o que mereço.

- Nesse caso, vinde - claramente, a minha compunção tinha um sabor doce para Pierre-Julien. Reanimava-o como vinho, trazendo-lhe a cor às faces e um sorriso ao rosto. - Vinde, dêmos o beijo da paz, e que Deus abençoe a nossa união com a extirpação de muitos hereges.

Pelos meus pecados, ele abraçou-me. Aceitei o beijo como teria aceite uma bofetada, como penitência pela minha presunção. Segui-o, então, para a sua sala, onde ele discursou durante algum tempo sobre a virtude da humildade, que purificava a alma como o fogo de um refinador e como sabão de pisoeiro. Eu ouvia em silêncio. Finalmente, tendo-se certificado de que eu não pretendia desafiá-lo, ordenou-me que regressasse aos meus deveres "num espírito de obediência", não esquecendo nunca que os bem-aventurados herdarão a terra.

- Padre - disse eu, antes que ele regressasse ao escritório -, com respeito à carta que mencionastes, a carta do bispo de Pamiers...

- Oh sim - acenou com a cabeça. - Creio que é uma prova importante.

- Contra quem, padre?

- Ora, contra a rapariga em questão, é claro!

- É claro - eu tinha de continuar com grande cuidado, pois não desejava parecer recalcitrante. - Identificaste-la?

- Ainda não - admitiu. - Mas vou perguntar a Pons se na prisão há raparigas bonitas que pareçam possuídas por um demónio - de súbito, franziu o sobrolho e fixou-me com um olhar ligeiramente desconfiado. - Tendes estado a rever todas as inquisições levadas a cabo pelo padre Agostinho - disse ele. Não encontrastes ninguém que corresponda a esta descrição? Alguém que ele possa ter interrogado? A data da carta deve ajudar.

Neste ponto, encontrei-me em dificuldades. Não queria alertar Pierre-Julien para a existência de Babilónia. Por outro lado, seria embaraçoso se ele a descobrisse por qualquer meio alternativo e me acusasse de tentar enganá-lo. Assim, respondi à sua pergunta com outra pergunta, destinada a desviá-lo da pista.

- Se o padre Agostinho nunca mencionou esta rapariga, e nunca a acusou nem sequer investigou - disse eu -, certamente que estava convencido da sua inocência, não é verdade?

- Nada disso. Isso só quer dizer que ele morreu antes de poder começar a inquisição.

- Mas, padre, se ela, de facto, for feiticeira, por que diria ele que ela estava possuída por um demónio, e por que teria procurado libertá-la dessa ligação?

- Pode ser que ela seja simplesmente uma vítima de feitiçaria - admitiu Pierre-Julien. - Mesmo assim, ela conduzir-nos-á até ao culpado. E lembrai-vos, igualmente, do que o doutor Angélico tem a dizer sobre conjuração. Embora possa parecer que o demónio está no poder do feiticeiro, esse nunca é o caso. Talvez a rapariga tenha invocado um demónio e tivesse sido, depois, possuída por ele. É uma mulher, lembrai-vos. Uma mulher é naturalmente mais fraca do que um homem.

- Mas o padre Agostinho descreveu essa rapariga como sendo de grande valor espiritual - assinalei. - Certamente que ele não o teria feito, se acreditasse que ela era uma feiticeira...?

- Meu filho, o padre Agostinho não era infalível - respondeu o meu superior, algo impaciente. - Ele alguma vez vos instruiu quanto aos métodos e características de uma feiticeira?

- Não, padre.

- Não. Então talvez ele fosse tão ignorante no assunto como vós, embora, sem dúvida, erudito noutros campos. Lembrai-vos, também, de que ele agora está morto. Temos de continuar sozinhos - levantando-se, Pierre-Julien indicou que a nossa conversa chegara ao fim. Disse-me que, como gesto de arrependimento, eu devia interrogar Bruna d'Aguilar mais uma vez e usar as perguntas que ele próprio fornecera. - Podeis fazê-lo antes das Completas, se desejardes - acrescentou. - Neste momento estou muito ocupado, por isso não preciso de Durand.

- Sim, padre - concordei, submisso. - E sobre os notários...

- Tomarei a minha decisão dentro de um dia ou dois - interrompeu-me ele. - É claro que, se Raymond Donatus continuar ausente, terá de ser nomeado outro notário.

Inclinando-me, afastei-me para que ele pudesse passar pela porta à minha frente. Embora o meu aspecto fosse sério, o meu coração regozijava-se, pois parecia que ele deixara a investigação da carta do bispo Jacques Fournier nas minhas mãos. Se assim fosse, eu tinha muito boas hipóteses de proteger Babilónia do seu olho acusador. Havia todas as razões para crer que ele podia nunca vir a saber da sua existência.

Infelizmente, porém, eu subestimara tanto a sua inteligência como o seu desejo de controlar tudo. Pouco depois de ter regressado ao escritório, chamou-me, erguendo a sua voz esganiçada e gritando o meu nome.

- Bernard! - gritou. - Irmão Bernard!

Como um fiel criado, apressei-me a acorrer ao seu chamamento, e encontrei-o sentado ao lado de uma arca aberta, rodeado de livros de registo.

- Acabou de me ocorrer - disse ele. - O padre Agostinho foi morto quando ia visitar umas mulheres em Casseras. Chamastes-lhes "mulheres pias". Não é assim?

- Sim, padre - respondi, com um aperto no coração.

- Visitastes essas mulheres, quando estivestes em Casseras?

- Sim, padre.

- E há algumas que sejam jovens e bonitas?

- Padre - disse eu jovialmente, embora por dentro estivesse tão desolado como as águas de Nimrin -, para um monge como eu próprio, todas as mulheres parecem jovens e bonitas.

Pierre-Julien franziu o sobrolho.

- Tais observações são indignas de vós, irmão - disse ele com rudeza. - Volto a perguntar-vos: há algumas que sejam jovens e bonitas?

- Padre, estou a falar a sério. O que é bonito para um homem pode não o ser para outro.

- Há algumas que sejam jovens, então? - insistiu ele, e eu soube que tinha de responder, pois ele estava a ficar impaciente.

- Eu não diria que alguma delas fosse jovem - foi a minha resposta cautelosa. - São todas mulheres maduras.

- Descrevei-mas.

Eu assim fiz, começando por Vitalia. Embora eu tivesse o cuidado de não elogiar demasiado a compleição imaculada de Johanna, nem o rosto angélico de Babilónia, o meu pouco enfático effictio de cada mulher interessou, mesmo assim, Pierre-Julien. Se ao menos eu pudesse ter mentido! Mas fazê-lo seria correr um risco muito grande - um risco realmente muito grande.

- Alguma destas mulheres exibiu características estranhas? - perguntou. - Alguma impiedade de discurso ou desrespeito no seu comportamento?

- Não, padre, nada disso - disse eu, na esperança de nenhum dos guardas ter mencionado o estranho ataque de Babilónia.

- Elas são diligentes na ida à igreja?

- Quando a saúde lho permite. Vivem a alguma distância da aldeia.

- Mas o sacerdote local visita-as com regularidade? Todos os dias ou coisa assim? - uma vez que eu hesitei, ele continuou. - Se ele não o fizer, padre, eu consideraria indesejável a situação destas mulheres. As mulheres não devem viver juntas sem homens, a não ser que estejam sujeitas a constantes visitas de um sacerdote ou monge.

- Oh, eu sei.

- De outra forma, não se pode confiar nas mulheres. Têm tendência a desviar-se e a cair em erro.

- É claro. O padre Agostinho estava preocupado exactamente com este problema. Ia lá persuadi-las de que deviam tornar-se membros da Ordem Terceira.

- Não estou a gostar disto - declarou Pierre-Julien. - Por que vivem elas num local tão remoto? De que estão a fugir?

- De nada, padre - desejam simplesmente servir o Senhor.

- Nesse caso, deviam entrar para um convento. Não, tudo isto é altamente suspeito. Estavam nas proximidades do local onde o padre Agostinho foi assassinado, vivem como beguinos (que acabaram de ser condenados pelo Santo padre, sabíeis?), e uma delas é, muito provavelmente, feiticeira. Nestas circunstâncias, penso que deviam ser chamadas para serem interrogadas.

O que poderia eu dizer? Se discutisse, ele ter-me-ia tirado o assunto das mãos. Por isso, inclinei-me, e fingi submeter-me, pensando, enquanto o fazia: isso tem de ser evitado. Isso será evitado. E ocorreu-me que, se eu fosse lento a executar a directiva do meu superior - se eu demorasse a levá-la a cabo - Johanna e as amigas poderiam muito bem ter deixado aforcia antes de poderem ser intimadas a comparecerem em Lazet.

É claro que uma pessoa nunca escapa ao Santo Ofício. Ao deslocar-se de um lugar para o outro, uma pessoa não faz mais do que adiar o inevitável. Mas quando estava deitado após as Completas, revendo os acontecimentos desse dia, fui assaltado por outro pensamento. E o livro de registo desaparecido? Na minha preocupação com o perigo que Johanna corria, esquecera-me de perguntar a Pierre-Julien, quando ele estava sentado no escritório a rebuscar nos nossos registos, o que era que ele procurava. No entanto, eu suspeitava de que ele procurava o mesmo livro que o levara a casa de Raymond. Eu tinha a impressão de que os livros de registo figuravam demasiado frequentemente em acontecimentos recentes que afectavam o Santo Ofício, e perguntei a mim próprio se poderia usar isso em meu proveito.

Se trabalhasse o suficiente, talvez eu pudesse assegurar o despedimento de Pierre-Julien. Perder um livro de registo era, afinal, um acto de incompetência flagrante. E havia, sem dúvida, outras formas de poder minar os seus esforços.

Tereis, porventura, reparado que não me preocupei com o desaparecimento de Raymond. Os meus pensamentos estavam todos com Johanna. Como diz Ovídio, "O amor é uma coisa cheia de receio ansioso": aquele que foi ferido pela espada do amor é a toda a hora abalado pelo constante pensamento do ser amado, e a sua alma está presa em escravidão. Nada mais interessa, quando o seu amor está ameaçado.

Contra Ti pequei, só contra Ti, fiz o mal diante dos Teus olhos.

Na manhã seguinte assisti às Primas, mas Pierre-Julien não. Não se encontrava na sua cela, quando passei por lá à saída do priorado. E embora esperasse encontrá-lo na sede do Santo Ofício, também essa esperança me saiu gorada.

Em contrapartida, encontrei a esposa de Raymond, que estava sentada a chorar junto à porta do Santo Ofício, como uma penitente.

- Ricarda - disse eu -, o que estais aqui a fazer?

- Oh... oh, padre, ele não foi para casa! - respondeu ela a soluçar. - Está morto, eu sei!

- Ricarda, isto não é lugar para vós. Voltai para casa.

- Dizem que ele tinha mulheres! Dizem que o matei!

- Disparate. Ninguém pensa tal coisa.

- O senescal pensa.

- Então o senescal é louco - ajudei-a a levantar-se, perguntando a mim próprio se ela seria capaz de encontrar o caminho para casa sozinha. - Andamos à procura dele, Ricarda - disse eu. - Estamos a fazer o melhor que podemos.

Mesmo assim ela soluçava, e vi que não estava em condições de ficar sozinha. Assim, decidi acompanhá-la até à sua residência, e, daí, partir para o Chateau Comtal - pois estava ansioso por me encontrar com Roger Descalquencs. Compreendeis, é que eu resolvera fazer três coisas nesse dia: interrogar Roger relativamente à busca por ele efectuada em casa de Raymond, pensar numa forma de avisar Johanna das intenções do meu superior, e visitar o palácio do bispo. Ocorrera-me que faria bem em consultar a biblioteca de Anselm, não só porque Raymond fizera a mesma coisa imediatamente antes do seu desaparecimento, mas também porque esta biblioteca não estava guardada em arcas, mas em guarda-livros, os códices cuidadosamente expostos, ao lado uns dos outros. Consequentemente, presumi, podia ser possível discernir onde havia um livro em falta.

Assim, não constituía qualquer inconveniente para mim o facto de a minha ajuda ser necessária a Ricarda. Caminhei com ela até à porta de casa e entreguei-a aos cuidados da ama-seca (que estava bem no seu posto, já que a sua senhora fora reduzida a pouco mais do que um bebé). Daí, caminhei a passo rápido para o Chateau Comtal, onde fui saudado jovialmente pelo guarda que se encontrava ao portão. Reconheci-o como um dos homens que me escoltara para Casseras.

- Tarde de mais, padre - observou. - O seu amigo acabou de sair.

- O meu amigo? Que amigo?

- O outro. O inquisidor. Nunca me lembro do nome dele.

- Não terá sido o padre Pierre-Julien Fauré, por acaso?

- Esse mesmo.

- Ele esteve aqui?

- Sim. Foi por ali, se é a ele que procurais.

Respondi que não, e solicitei uma audiência com o senescal. Mas também ele acabara de sair (para ir interrogar um certo preboste relativamente a certas multas e confiscações), por isso fui-me embora e dirigi-me ao palácio do bispo. Aqui fui obrigado, por uma questão de cortesia, a trocar algumas palavras com o próprio bispo, antes de assegurar as chaves (e a autorização) que me permitiriam consultar os seus livros. Felizmente, quando o abordei, ele estava embrenhado numa discussão bastante acesa. Na verdade, eu ouvia vozes zangadas enquanto esperava que me viessem abrir a porta. Foi por essa razão que fui poupado a um longo e tedioso relatório das suas últimas aquisições equinas.

Nem tão-pouco o bispo Anselm podia colocar a carne de cavalo à frente de uma sala cheia de combatentes carrancudos - entre eles o seu capelão, o arcediago, o deão de São Policarpo, o tesoureiro real e o cônsul, Lothaire Carbonel.

- Irmão Bernard - disse o bispo no silêncio súbito causado pela minha entrada. - Fui informado de que desejais consultar a biblioteca...

- Quando vos for conveniente, meu senhor.

- Oh, sois sempre bem-vindo. Louis, tens as chaves - leva o irmão Bernard à biblioteca.

Obedientemente, o capelão levantou-se e acompanhou-me ao piso de cima, aos aposentos privados do bispo. Mal nos tínhamos retirado e já a gritaria recomeçara. Era evidente que o bispo Anselm ofendera profundamente o capítulo de cónegos de São Policarpo. Mas isso não era novidade, pois estes raramente concordavam com aquele nalguma coisa - e por boas razões, também. O bispo tinha tendência a considerar o tesouro da catedral como a sua própria caixa do dinheiro.

Louis, um glutão obstinado e avaro, levou-me até aos guarda-livros do bispo, que se encontravam numa sala fechada à chave, ao lado do seu luxuoso quarto. Como havia pouca luz, ele acendeu-me uma candeia de azeite. Em seguida saiu, enquanto eu corria os olhos pelas prateleiras, à procura de um intervalo no padrão de lombadas de couro gravadas a ferro quente. Que proliferação de guarda-livros o bispo possuía! Em vez de estarem empilhados em montes instáveis, cada códice tinha o seu próprio espaço, para facilitar a tarefa de localizar e identificar os muitos volumes da sua biblioteca.

Consequentemente, não era difícil ver onde faltavam livros. Um espaço estava nitidamente definido, e o pó acumulado na prateleira nua assim exposta informou-me de que o livro de registo em questão faltava há várias semanas - embora não faltasse há vários anos (a julgar pelo pó reunido nas capas dos livros que se encontravam dos lados). O outro espaço era menos facilmente visível, mas uma folga peculiar nas fileiras disse-me que alguma coisa fora dali recentemente removida.

Foi com satisfação que constatei que algum dos funcionários do bispo (ou talvez um antigo funcionário do Santo Ofício) tivera o cuidado de arrumar todos os livros segundo determinada ordem, ajudando-me assim a deduzir o conteúdo de pelo menos um dos dois volumes ausentes. Uma vez que os livros de registo de ambos os lados do espaço deixado por esse livro continham testemunhos dos habitantes de Crieux, inferi que o livro perdido também cobria os pecados desta aldeia. Não me surpreendeu o facto de os referidos testemunhos terem sido registados sob a orientação do inquisidor mencionado pelo padre Agostinho na sua nota marginal. Decididamente, o padre Agostinho procurara este livro de registo perdido. Decididamente, também, não havia muito tempo que se perdera.

O outro livro em falta era também antigo - teria, pelo menos, quarenta anos. Infelizmente, fui incapaz sequer de lançar uma hipótese sobre o seu conteúdo, devido à negligente organização dos registos vizinhos (levada a efeito para esconder um buraco que dava tanto nas vistas, talvez?). Mesmo após ter consultado alguns destes registos, não consegui concluir quais as aldeias que faltavam. Assim, uma vez que não se podia fazer mais nada, procurei o irmão Louis e dei com ele à escuta junto à porta da sala de audiências do bispo. Pareceu aborrecido quando me viu.

Claramente, eu estava a interromper uma parte importante do debate.

- Terminastes, padre? - perguntou ele, e continuou, sem esperar por uma resposta: - Nesse caso, vou fechar à chave. Sabeis o caminho de saída.

- Irmão, faltam dois livros de registo - disse eu, antes que ele me pudesse empurrar da porta para fora. - Levaste-los? O bispo levou-os?

- Claro que não! - embora num tom muito baixo, a voz de Louis estava imbuída tanto de medo como de raiva. - Nós nunca tocamos nesses livros! Foi provavelmente o padre Pierre-Julien que os levou.

- O padre Pierre-Julien?

- Ele esteve aqui esta manhã. Vi-o sair com um livro debaixo do braço.

- A sério? - isto era muito interessante. - Um livro de registo, ou dois?

- Padre, deveis perguntar ao padre Pierre-Julien. Não me compete questionar os seus movimentos.

- Não, não. Compreendo - na minha postura mais tranquila, perguntei por Raymond Donatus. Estivera no palácio apenas um dia ou dois antes. Ele levara consigo alguns livros de registo?

Louis franziu o sobrolho.

- Raymond Donatus não veio cá - disse ele. - A última vez que vi Raymond Donatus foi... oh, há semanas. Meses.

- Tendes a certeza?

- Sim, padre, tenho a certeza absoluta - mais uma vez, senti que Louis estava dividido entre o medo e a fúria. - Não vimos ninguém do Santo Ofício a não ser o irmão Lucius. O irmão Lucius entrega-me sempre directamente os livros de registo novos.

- Mas ele nunca entra na biblioteca?

- Não, padre.

- E quando Raymond Donatus esteve aqui pela última vez - levou alguns livros nessa altura?

- Talvez. Não me lembro. Foi há muito tempo.

- Mas certamente que teríeis reparado...

- Padre, tenho muitas coisas em que me ocupar! Os meus dias são muito cheios!

- Sim, é claro.

- Agora, por exemplo, eu devia estar ali, com o bispo Anselm. Ele disse-me que regressasse assim que terminásseis. Já terminastes, padre?

Reconhecendo que Louis de pouco mais serviria, eu disse que sim, e deixei-o. Encaminhei-me, então, para a sede do Santo Ofício, na esperança de encontrar Pierre-Julien.

Para minha surpresa, encontrei-o logo à saída do palácio. Estava transpirado e agitado, e tinha o rosto corado. Debaixo do braço, trazia dois livros de registo inquisitorial.

- Vós! - exclamou ele, parando abruptamente. - O que estais aqui a fazer?

Eu podia ter-lhe feito a mesma pergunta. Queria fazer-lhe a mesma pergunta. Mas, tendo aprendido a ser cuidadoso nas minhas conversas com Pierre-Julien, respondi de forma humilde e obediente.

- A consultar a biblioteca do bispo - disse eu.

- Porquê?

- Porque Raymond me disse, antes de desaparecer, que faltava um dos livros de registo do bispo. E agora descubro que desapareceram dois - fixando o olhar nos livros que ele trazia debaixo do braço, não pude evitar perguntar-lhe: - São esses dois?

Pálido, Pierre-Julien baixou o olhar para os volumes, como se nunca os tivesse visto antes. Quando voltou a levantar o olhar, parecia não saber que dizer - e levou algum tempo até ser capaz de responder.

- São - disse, por fim. - Estou a devolvê-los.

- Levastes um, esta manhã?

- Sim, eu... eu levei um, esta manhã - de súbito, a voz acelerou-se-lhe; as palavras saíam em torrente. - Como já vos tinha dito, dei autorização a Raymond para que levasse um livro para casa. Uma vez que não foi encontrado lá, vim cá esta manhã para consultar a cópia do bispo. Quando o estava a fazer, ocorreu-me: talvez o senescal, ao revistar a casa de Raymond, tomasse erradamente os nossos livros de registo inquisitorial pelos próprios livros de Raymond. Assim, fui ter com ele e pedi-lhe que me mostrasse os livros de registo que tinha encontrado. Imagine a minha alegria quando descobri que tinha razão!

- Quereis dizer...

- Raymond tinha em seu poder não só o livro que eu lhe dei, mas também ambas as cópias de outro volume de testemunhos que o padre Agostinho deve ter pedido - com um sorriso nada habitual, Pierre-Julien exibiu a sua carga de encadernação de couro. - O mistério está resolvido! - declarou.

Eu não podia concordar com ele. À medida que eu colocava os meus pensamentos em ordem, várias perguntas me ocorreram.

- Raymond disse-me que esses livros tinham desaparecido - assinalei. - Aqueles que o padre Agostinho tinha pedido.

- Afinal, ele deve tê-los encontrado.

- Nesse caso, por que não mos deu?

- Sem dúvida que ele... sem dúvida que o destino o surpreendeu, antes que ele o pudesse fazer.

Era uma explicação razoável. Enquanto eu a ponderava, Pierre-Julien continuou:

- Acabei de devolver as nossas cópias ao escritório - disse ele. - Agora vou devolver estes livros ao bispo, e ficará tudo arrumado.

- E dizeis que o senescal tinha estes livros em seu poder? - eu fora assaltado por outro pensamento. - Por que razão teria ele levado os livros de registo de Raymond? Com que objectivo?

- Ora, para ver se eles continham alguma prova! - Pierre-Julien soava impaciente. - Realmente, irmão, sois muito lento.

- Mas ele não pode ter olhado para eles. Se tivesse olhado para eles, teria visto que alguns não eram de Raymond.

- Exactamente! O senescal é um homem ocupado. Não tinha examinado os documentos. Se tivesse, é claro que nos teria alertado.

- E ele ainda tem os outros livros de registo? Os registos notariais do próprio Raymond?

- Presumo que sim.

- E encontrou-os todos juntos? Num só lugar?

- Irmão, por que perguntais? Que importância tem o local onde ele os encontrou? Encontrou-os! É isso que nos importa. Nada mais.

O tom de Pierre-Julien penetrou o meu devaneio (pois, na verdade, eu estava a pensar em voz alta) e fez com que eu refreasse os lábios.

É que eu sentia que o meu superior estava a ficar agitado, irritado, até, e eu não lhe queria dar motivo para me despedir novamente do meu cargo.

Por isso, inclinei-me e acenei com a cabeça, parecendo estar satisfeito. Em seguida separámo-nos (com muitas palavras amáveis), e apressei-me a regressar à sede, tão depressa quanto a dignidade da minha posição permitia. Bati à porta, até que o irmão Lucius a destrancou. Corri para o piso de cima, para o escritório, tacteando à procura das chaves que trazia no cinto.

- Lucius! - gritei. - O padre Pierre-Julien acabou de guardar alguns livros de registo numa destas arcas?

- Sim, padre.

- Em qual? Em qual arca?

O copista subia ainda as escadas com dificuldade. Tive de esperar que ele entrasse na sala para satisfazer a minha curiosidade. Quando ele apontou para a arca maior, abri-a com a chave e tirei o livro que estava mais à superfície.

- Não, padre - objectou Lucius. - Ele colocou-os mais para baixo.

- Onde? Mais para baixo, onde?

Quando o copista encolheu os ombros, eu quase bati o pé de frustração. Parecia que eu seria obrigado a procurar em todos os livros de registo - e teria tempo para o fazer, antes de Pierre-Julien voltar? Mas tive sorte, pois quando peguei no quinto livro, encontrei o testemunho que eu (e o padre Agostinho) procurávamos: o testemunho dos habitantes de Crieux, já com vinte anos.

No entanto, não encontrei dois dos cinco primeiros fólios. Uma grande parte da lista de testemunhas, e a maior parte do índice tinham desaparecido. Quando abri o livro seguinte, descobri que tinha sofrido um abuso semelhante. Os dois livros de registo estavam agora incompletos.

Que abominação!

Folheando-os rapidamente, encontrei mais provas de fólios em falta. Encontrei irregularidades; encontrei espaços abertos nos depoimentos. Encontrei também um nome que me era familiar - o nome de um homem, agora falecido, cujo filho era, por acaso, Lothaire Carbonel (o mesmo homem que eu acabara de ver no palácio do bispo).

Deus misericordioso, pensei, e o pai morreu antes de ser sentenciado. Mas eu não podia gastar mais tempo com este assunto, pois sem dúvida que Pierre-Julien já vinha a caminho da sede, e eu estava relutante em deixá-lo saber que eu andara a verificar os livros de registo.

Assim, deixei-os cair, exclamando:

- Oh, não os encontro! (para bem do copista), e, com mãos trémulas, voltei a fechar a arca à chave. Podeis ter a certeza de que eu estava profundamente agitado. Era evidente que o próprio Pierre-Julien adulterara os livros de registo - porque, se não tivesse sido, ele ter-me-ia dito que eles estavam danificados. O Senhor guarda os simples: eu estava sem forças e Ele salvou-me. Como o Senhor me ajudara! Danificar um livro de registo inquisitorial já era suficientemente mau, mas a razão para o fazer era ainda pior. Obviamente, tendo pela primeira vez consultado certos livros de registo que podem ou não ter sido roubados por Raymond Donatus, Pierre-Julien descobrira, e ocultara, a identidade (ou identidades) de hereges anteriormente difamados - hereges com quem ele deve estar de alguma forma relacionado. Hereges obdurados, que não tinham feito reparação nem cumprido penitências. Hereges que podiam muito bem privá-lo do cargo que ocupava e cobri-lo de vergonha, se a sua relação com ele fosse tornada pública.

Como eu me regozijava com a minha descoberta! Como eu me vangloriava! Com quanto fervor eu agradecia a Deus, e Lhe dava graças, enquanto descia pomposamente as escadas em direcção à minha secretária! Mas eu sabia também que as provas que tinha eram incompletas: que só seriam irrefutáveis se eu tivesse os nomes e os crimes dos hereges em questão. Assim, afiei a minha pena à pressa, e sentei-me a redigir uma carta.

Enderecei-a a Jean de Beaune, o inquisidor de Carcassonne. Contei-lhe o que sabia dos testemunhos desaparecidos e perguntei-lhe se, em alguma ocasião ao longo dos últimos quarenta anos, ele ou os seus antecessores tinham solicitado cópias desses mesmos testemunhos. Era bastante possível (embora não fosse, talvez, muito provável) que tal pedido tivesse sido feito. Caso tivesse, poderia o texto em questão ser copiado e a nova cópia enviada para Lazet? Eu ficar-lhe-ia eternamente grato.

Tendo completado esta missiva, escrevi uma quase idêntica e enderecei-a ao inquisidor de Toulouse. Em seguida selei ambos os documentos e levei-os a Pons (pois era sempre Pons que escolhia e enviava familiares quando eram necessários mensageiros). Se tudo corresse bem, poder-se-ia esperar uma resposta dentro de três ou quatro dias.

Senhor, Tu és justo, e as Tuas sentenças são rectas! Ao sacrificar Pierre-Julien, eu tencionava salvar Johanna. E estava determinado a conseguir o despedimento do meu superior, com ou sem provas sólidas. Mas revelarei mais pormenores sobre os meus planos mais à frente nesta narrativa.

Após ter regressado à minha secretária, fiquei surpreendido (embora não aborrecido) ao descobrir que Pierre-Julien ainda se encontrava ausente. Fiquei ainda mais surpreendido quando ele faltou à refeição no priorado. De facto, eu começava a ficar um pouco preocupado, e teria ido à sua procura, se ele não tivesse subitamente aparecido na sede ao final da tarde, cheirando fortemente a vinho. Saudou-me com muito barulho, e lançou-se numa explicação da sua longa ausência que poderia ter sido perfeitamente convincente, se ele não se mostrasse tão completamente confuso. Em seguida colocou-me uma mão no braço e puxou-me para que me aproximasse.

- Eu disse-vos - perguntou - que Raymond arrancou alguns fólios dos livros de registo que levou emprestados?

A minha surpresa evidente, espero, era atribuível à duplicidade de tal acto. Na verdade, eu estava admirado por Pierre-Julien ter sequer levantado a questão. Mas depressa me apercebi de que ele estava a tentar esconder o seu próprio comportamento corrupto, para o caso de eu ter consultado (ou tencionasse consultar) os livros. E murmurei uma resposta incompreensível.

- Provavelmente ele fez isso para proteger o seu próprio nome - continuou Pierre-Julien - e depois fugiu da cidade quando se apercebeu de que o seu pecado seria descoberto. Mas havemos de encontrá-lo.

- Poderia ele ter feito isso por outra pessoa? - inquiri. - Poderia ele ter feito isso por dinheiro?

- Talvez. É muito triste.

- Poderia ele ter sido morto pela pessoa que lhe ofereceu dinheiro - continuei -, para assegurar que ele nunca revelaria esse facto? - E embora eu tivesse levantado tal possibilidade quase num espírito de troça, perguntei, de súbito, a mim próprio: estaria eu perto da verdade? Teria Raymond sido morto porque tinha guardado os livros danificados depois de terem sido danificados, e porque sabia quem os tinha danificado? Mas esta leitura dos acontecimentos excluía a culpa do meu superior, por isso ignorei-a.

- Oh... penso que isso é muito improvável - exclamou Pierre-Julien, desconcertado. - Mas, seja como for, irmão, podeis deixar o problema tranquilamente nas minhas mãos. A vossa investigação do destino terrível do padre Agostinho já vos dá bastantes preocupações. Já intimastes aquelas mulheres?

- Não, padre - respondi, com perfeita serenidade. - Ainda não intimei aquelas mulheres.

E ficai descansado, eu não tencionava fazê-lo.

Nesse mesmo dia, ao fim da tarde, Raymond Donatus foi encontrado.

Estareis lembrado da gruta de Galamus, no mercado da cidade. Estareis também lembrado de que, todos os dias, ao pôr do Sol, um certo cónego de São Policarpo vai buscar a esta santa depressão os donativos que foram lá depositados. Coloca os donativos num saco grande e leva-os para as cozinhas da catedral, pois são, na sua maior parte, legumes, pães, fruta e artigos do género. Por vezes há peixe salgado, outras vezes um pouco de toucinho fumado, mas só uma vez, mais exactamente na tarde acima referida, é que havia uma generosa quantidade de carne - pedaços de carne muito bem embrulhados em camadas de pano ensanguentado.

Surpreendido com tal abundância, o cónego de serviço deixou cair todos os pacotes no saco. O peso da carga era tanto que ele foi obrigado a arrastá-la, em vez de a carregar, até às cozinhas. O pessoal da cozinha regozijou-se: Deus era bom, para conceder tal abundância aos seus fiéis servidores. Mas quando a primeira trouxa foi desembrulhada, o regozijo transformou-se em horror.

É que a carne era humana: um braço cortado, dobrado no cotovelo.

Naturalmente, o deão foi chamado, depois o bispo, depois o senescal. Por volta da hora das Matinas, todas as trouxas tinham sido desembrulhadas, e as partes constituintes do corpo de Raymond Donatus tinham sido reveladas. Verificando a identidade do cadáver, Roger Descalquencs mandou imediatamente chamar Pierre-Julien, que, consequentemente, estava ausente do priorado durante as Matinas.

Agora considerai, se fizerdes obséquio, o comportamento subsequente do meu superior. Não sei se lhe disseram por que motivo o senescal solicitava a sua presença, mas mesmo que ele tivesse sido elucidado só depois de ter chegado a São Policarpo, esqueceu-se de me informar da horrível descoberta que fora feita. Disseram-me, após as Matinas, que o senescal solicitara a presença de Pierre-Julien (pois eu fui rápido a questionar o seu lugar vago no coro); no entanto, fui proibido de sair do priorado. Assim, regressei à minha cama num estado de profunda inquietação, mal podendo dormir.

Depois de me ter levantado novamente, encontrei Pierre-Julien nas Laudas, e falei com ele logo a seguir, na sua cela. Pierre-Julien disse-me que o cadáver desmembrado de Raymond fora encontrado na gruta de Galamus; que os arautos divulgariam a notícia por toda a cidade, e que procurariam testemunhas que poderiam ter visto os restos mortais serem depositados; que alguém teria de informar a infeliz viúva.

- Talvez vós pudésseis fazer isso, irmão - sugeriu Pierre-Julien, que parecia muito cansado e doente. - Com a ajuda do sacerdote da paróquia dela, ou... ou de algum amigo ou parente...

- Sim, com certeza - eu estava demasiado chocado para colocar objecções. - Onde... onde está ele?

- Em São Policarpo. Colocaram-no na cripta. A viúva pode ter os seus próprios desejos...

- Que Deus nos perdoe a todos - murmurei, genuflectindo. - Há quanto tempo é que ele está - isto é - os restos mortais são frescos, ou...?

Pierre-Julien engoliu em seco e pestanejou.

- Irmão, realmente não posso especular - respondeu. - A minha perícia não é suficiente - então levantou-se, e eu levantei-me com ele. - Durand tem de ser avisado - continuou. - Eu próprio farei isso. Escreverei também ao Inquisidor-Geral, informando-o de que Satanás ainda está entre nós. O Santo Ofício está cercado, mas nós lutaremos e havemos de triunfar. Pois Deus é o nosso refúgio e a nossa força.

- Cercado? - ecoei, sem compreender. Então, de súbito, compreendi. - Ah. Sim. O mesmo destino do padre Agostinho. Mas não os mesmos culpados, padre.

- Os mesmíssimos - disse ele com firmeza.

- Padre, Jordan Sicre está na Catalunha. Ou, pelo menos, já saiu de lá e vem a caminho de Lazet.

- Jordan Sicre foi apenas um agente do mal.

- Mas o padre Agostinho e a sua escolta foram desmembrados para esconder a ausência do corpo de Jordan. A morte de Raymond é muito diferente...

- É igual. Um sacrifício numa encruzilhada - exactamente igual. Um acto de feitiçaria.

Eu teria contestado esta posição, se não tivesse tido medo de despertar a ira de Pierre-Julien. Em vez disso, preocupado com o facto de ele poder, a qualquer momento, levantar a questão de Johanna e das amigas, apressei-me a deixá-lo. Saí do priorado e, sabendo que a paróquia de Ricarda era servida pela igreja de São Antonin, dirigi os meus passos para esta igreja - sempre a pensar: Qual é a resposta? Quem é o culpado? Senhor, por que te conservas à distância? Mas antes de chegar a São Antonin, passei por um arauto que anunciava na rua, e parei para ouvir.

Embora ainda fosse cedo, ele atraíra uma considerável audiência: havia pessoas debruçadas das janelas dos quartos, de olhos remelosos, num esforço para ouvirem estas estranhas notícias. Porque eu conhecia algumas destas pessoas, e não desejava conversar com elas (senão nunca mais chegaria a São Antonin), fiquei para trás, mantendo-me apenas suficientemente perto para ouvir o que o arauto tinha para dizer. Era o seguinte: que Raymond Donatus, notário público, fora encontrado na gruta de Galamus, cortado em pedaços. Que o senescal desejava interrogar o perpetrador deste revoltante acto, ou alguém que o possa ter testemunhado, ou alguém que possa ter limpo copiosas quantidades de sangue nos últimos dois dias, ou alguém que possa ter visto várias trouxas grandes, embrulhadas em pano, serem colocadas na gruta de Galamus. Também, que o senescal desejava receber informações sobre alguém que tivesse salgado carne recentemente. Também, que desejava falar com alguém que tivesse visto Raymond Donatus nos últimos três dias. E também, que alguém a quem falte um manto, ou mantos, deve ser imediatamente denunciado ao senescal.

O castigo para este crime pernicioso e sangrento seria terrível, e a vingança do Senhor seria ainda mais terrível. Por ordem de Roger Descalquencs, real senescal de Lazet.

Tendo divulgado esta mensagem, o arauto deu com os calcanhares nos flancos do cavalo, e seguiu o seu caminho. Logo o ar se encheu de exclamações em voz baixa. Se eu tivesse ficado ali mais tempo, sem dúvida que teriam reparado em mim e me teriam feito perguntas - mas fugi, ainda as últimas palavras do arauto não lhe tinham saído da boca. Fugi assim que ele falou em salgar carne. Fugi, não para São Antonin mas para São Policarpo, onde pedi autorização para aceder à cripta.

Aqui, entre os sepulcros, o sacristão mostrou-me o cadáver mutilado de Raymond. Não conspurcarei este pergaminho com uma descrição. Bastará dizer que o corpo estava parcialmente vestido, sem cor, e quase irreconhecível. Colocado num sarcófago de pedra sem tampa, cada parte ocupava o lugar que lhe era próprio. E todos os pedaços cheiravam fortemente a salmoura.

- Este cadáver foi salgado - disse eu num sopro, através da minha manga.

- Sim.

- Estava embrulhado em quê? Onde está o pano?

- Estava embrulhado em quatro mantos, que foram rasgados em pedaços - respondeu o sacristão, a voz abafada pela sua própria manga. - O senescal levou-os.

- E as roupas não foram retiradas do corpo - murmurei, pensando em voz alta. Como podeis lembrar-vos, as roupas do padre Agostinho tinham sido retiradas. - Quais foram os comentários do senescal? Ele suspeita de alguém?

- Irmão, não sei. Eu não estava presente quando ele examinou os restos mortais - após uma leve hesitação, o sacristão prosseguiu, para me perguntar, nos seus modos amáveis, se Ricarda Donatus mandaria buscar o cadáver em breve. - Devia ser enterrado, irmão. As moscas...

- Sim. Tratarei disso o mais depressa possível. Agradecendo-lhe, deixei São Policarpo - mas dali não me dirigi à casa de Ricarda. Nisso, penso que falhei no meu dever para com ela (mas devo confessar que outra mulher reinava no meu coração e na minha mente, nesse dia). Cruelmente, permiti que a pobre Ricarda tivesse

conhecimento do terrível destino do marido pela boca de um arauto, na rua, em vez de o saber dos lábios de um amigo solidário - já que fui directamente para a sede, onde o irmão Lucius destrancou a porta para me deixar entrar.

Pierre-Julien encontrava-se na sua sala, a falar com Durand Fogasset; eu ouvia-lhes as vozes. O irmão Lucius parecia mais irreal do que nunca, piscando os olhos para cima, para mim, como uma coruja à luz do Sol. Perguntei-lhe se se lembrava do seu último encontro com Raymond Donatus, e ele acenou com a cabeça, mudo.

- Dissestes que saístes daqui antes dele - observei. - É verdade?

- Sim, padre.

- Então não me sabeis dizer qual o guarda que estava aqui de serviço, nessa noite? No turno da noite, quero eu dizer - não no turno da manhã.

- Não, padre.

- Nesse caso, ide perguntar a Pons - movimentei-me em direcção às escadas. - Perguntai a Pons quem estava aqui de serviço no turno da noite, e dizei-lhe que mande esse guarda vir ter comigo. Quero interrogá-lo.

- Sim, padre.

- Oh... Lucius! As vossas lamparinas estão acesas, lá em cima?

- Sim, padre.

- Óptimo.

À medida que o copista se afastava para cumprir a minha ordem, fui buscar uma das lamparinas dele e levei-a para baixo, para a porta dos estábulos. Lembrar-vos-eis de que esta porta se situava ao fundo das escadas. Examinei minuciosamente a tábua que a trancava, mas não vi nela pó nenhum nem marcas de uso recente deixadas nesse pó. O chão, de forma semelhante, estava limpo de pó e de pegadas. Parecia-me estranho que o chão estivesse tão limpo. Quem pensaria em limpá-lo, e porquê? Tanto quanto eu sabia, ninguém entrara nos estábulos desde que os restos mortais do padre Agostinho tinham sido removidos.

Levantando a tranca, coloquei-a de um lado e empurrei a porta para a abrir. Imediatamente, as minhas narinas foram atacadas por um odor pútrido que era quase inteiramente atribuível à minha própria incompetência.

Compreendeis, é que me esquecera de notificar os habitantes de Casseras em relação às suas barricas de salmoura. Estavam ali há semanas, abertas e cheias da salmoura em que a carne podre estivera suspensa. Não que os estábulos alguma vez tivessem cheirado bem, desde o advento (e chacina) dos porcos de Pons. Contudo, este fedor era mais desagradável do que qualquer porco. Era tóxico - sufocante. Fazia com que as lágrimas me viessem aos olhos.

Sustendo a respiração, espreitei para a primeira barrica, e vi apenas a superfície escura e oleosa da salmoura. O chão em volta das barricas estava húmido, mas estava húmido em toda a parte, permanentemente húmido, e tão escorregadio como gelo a derreter. O bebedouro dos cavalos estava negro de sangue, se era de homem ou de porco, eu não sabia dizer; embora as manchas parecessem velhas, eram, ao mesmo tempo, pegajosas - talvez devido a toda a humidade que existia em volta. Esqueci-me de referir que chovera muito durante a semana anterior, ou cerca disso, e a chuva tinha sempre um efeito pernicioso sobre aqueles estábulos. De facto, eu nunca teria um cavalo meu ali. Leite, talvez, e peixe - mas não um cavalo.

Para minha imensa frustração, não via qualquer prova irrefutável de que Raymond Donatus tivesse sido cortado em pedaços ou salgado nesta caverna malcheirosa. Algo o fora, de certeza, mas podiam ter sido os porcos. Por outro lado, não havia nada que sugerisse que Raymond não tinha sido ali cortado em pedaços, e pensei que era mais do que possível que tivesse sido. Possível? Pensei que era provável. Olhei em redor, para as paredes gotejantes, para as sombras densas, para o chão de pedra escurecida e pegajosa, e pensei: isto é um antro do mal. Quase que podia ouvir as asas de morcego de demónios conjurados.

Apressadamente, voltei a subir as escadas.

- Oh! Irmão Bernard! - Pierre-Julien estava agora na antessala, e parecia surpreendido por me ver. - Informastes Ricarda?

- Cheirei o cadáver do marido - foi a minha resposta. - Foi salgado.

- Salgado? Ah, sim. Estava em salmoura.

- E tínheis conhecimento das barricas de salmoura, lá em baixo?

- Barricas de salmoura? - o meu superior parecia novamente surpreendido. Mas eu não estava inteiramente convencido de que a surpresa era genuína. - Não. Por que há lá barricas de salmoura?

- Vieram de Casseras, com os restos mortais do padre Agostinho. O senescal não vos disse nada?

- Não, não me disse nada.

- Então foi porque se esqueceu. Ah - ao ouvir o ranger de dobradiças, virei-me e vi o irmão Lucius entrar do lado da prisão, seguido de um dos familiares. Este homem há muito que era funcionário do Santo Ofício - um antigo mercenário chamado Jean-Pierre. Reconheci-lhe o rosto amarelento, marcado pelas bexigas, em forma de crescente, como uma fatia de maçã a que foi extraída a parte central, e a inclinação desalentada dos ombros. Era baixo e delgado, com muito cabelo. - Jean-Pierre - disse eu, reparando no ar prudente do seu semblante -, estáveis de serviço quando Raymond Donatus saiu daqui há três noites atrás?

- Sim, padre.

- Viste-lo sair? Trancastes aquela porta atrás dele?

- Sim, padre.

- E ele não regressou? Ninguém regressou?

- Não, padre.

- Estais a mentir.

O familiar pestanejou; à minha volta, senti uma certa tensão, ou endurecimento. As palavras que a seguir proferi tiveram um efeito ainda mais notável, como era minha intenção. Pois parecia-me que, se o cadáver de Raymond tinha sido conservado nos estábulos - uma conclusão provável, uma vez que se deve perguntar: em que outro lugar é que alguém salgaria secretamente um cadáver? -, então Jean-Pierre (que estivera sozinho no edifício, na noite do desaparecimento do notário) poderia muito bem tê-lo lá colocado. Quem mais teria tido tempo para executar tal chacina?

- Sei que estais a mentir, Jean-Pierre. Sei que Raymond Donatus foi assassinado neste edifício. E sei que fostes vós.

- O quê? - exclamou Pierre-Julien. Durand arfou, e o familiar cambaleou, como se tivesse sido atingido por um golpe.

- Não! - gritou. - Não, padre!

- Sim.

- Ele saiu! Eu vi-o sair!

- Não o vistes sair. Ele não saiu daqui. Foi morto lá em baixo, e o seu corpo foi conservado dois dias nas barricas de salmoura.

Sabemos isso. Temos provas. Quem mais o poderia ter feito, a não ser vós?

- A mulher! - disse Jean-Pierre precipitadamente. - Deve ter sido a mulher!

- Que mulher?

- Padre, eu... eu... era mentira, eu estava... o notário saiu mesmo, mas regressou. Com uma mulher. Tarde.

- E deixaste-lo entrar?

O familiar já não estava amarelo, mas vermelho. Parecia que ia debulhar-se em lágrimas.

- Padre, eu fui pago - disse ele atabalhoadamente. - Raymond Donatus pagou-me.

- Quer dizer que, quando ele bateu à porta, pedistes-lhe dinheiro para o deixardes entrar.

- Não, não, ele é que ofereceu! Antes!

- E isso já tinha acontecido noutras ocasiões?

- Não, padre. Pelo menos... não comigo - a voz de Jean-Pierre pouco mais era do que um coaxo. - Ele disse que Jordan Sicre costumava ajudá-lo, antes de Jordan ter sido - antes de ter desaparecido. Ele costumava trazer muitas mulheres, padre, e sei que isso estava errado, mas nunca o matei. Nunca. Ele ofereceu-me dinheiro uma vez, para matar Jordan, mas eu recusei. Eu nunca podia fazer uma coisa dessas, nunca.

- Descrevei a mulher - começou Pierre-Julien, apenas para ser interrompido. Como podeis imaginar, eu queria saber mais sobre Jordan Sicre.

- Como é que devíeis matar Jordan? - perguntei. - Quando? Porquê?

- Padre, ele disse-me que Jordan tinha morto o padre Agostinho, e que ia ser trazido de volta para Lazet. Disse-me que Jordan tinha de ser envenenado, senão revelaria que Raymond andava a trazer mulheres de má vida para o Santo Ofício. Ele disse: Se eles ficarem a saber sobre mim, Jean-Pierre, ficarão a saber também sobre ti. Mas eu não o quis fazer, padre. Assassinar é pecado.

- Descrevei a mulher - repetiu Pierre-Julien. - Que idade tinha? Tinha cabelo vermelho-acastanhado?

- Não havia mulher nenhuma! - disse eu com brusquidão. - Ele está a mentir!

- Não, padre, não!

- Claro que estais! - virei-me para o acusado. - Estais a tentar dizer-me que uma mulher misteriosa matou Raymond Donatus, arrastou-o lá para baixo, para os estábulos, cortou-o em pedaços, e saiu pela porta que estáveis a guardar? Pensais que sou idiota, Jean-Pierre?

- Padre, ouvi-me! - o familiar, agora a chorar, estava muito, muito assustado. - Ele levou-a lá para cima, padre, e depois mandou-a para baixo, para mim! Nós... nós fomos para ali... - fez um gesto na direcção da sala de Pierre-Julien. -... porque a cadeira tem uma almofada...

- Fornicastes na minha cadeira?

- ... e depois ela saiu... voltou lá acima para ir buscar o dinheiro. Mais tarde, ouvi a porta fechar-se - ainda estava na vossa sala, meu senhor - ela deve ter saído com ele, padre, deve ter saído.

- Viste-los, de facto, sair? Ambos? - perguntou Durand, de súbito, antes de se lembrar de que devia ter ficado calado. Mas era uma boa pergunta.

- Ouvi-os sair - respondeu o familiar. - Ouvi passos, e a porta a fechar-se. Estava destrancada. E não aconteceu mais nada toda a noite. Padre, juro que esta é a verdade! Ou ela o matou aqui - talvez eu tivesse adormecido - ou saíram, e ela matou-o depois!

- Estais a mentir. Fostes vós que o matastes. Fostes pago para o matardes.

- Não! - a chorar, o familiar caiu sobre os joelhos. - Não, padre, não...

- Por que deveria ele estar a mentir? - disse Pierre-Julien bruscamente. - Por que não teria esta mulher sido a feiticeira de Casseras?

- Porque não há nenhuma feiticeira em Casseras! - atirei-lhe eu à cara. - Isto não tem nada a ver com as mulheres de Casseras!

- O assassínio de Raymond foi feitiçaria, Bernard!

- Não foi feitiçaria! Foi planeado para parecer feitiçaria! Este homem foi pago para matar Raymond Donatus, e para se livrar do corpo como faria um feiticeiro!

- Disparate! Quem lhe pagaria para fazer tal coisa?

- Vós, padre! - e encostei-lhe um dedo ao externo. - Vós pagar-lhe-íeis!

 

Para interceder por eles

Podeis compreender o meu raciocínio ao fazer isto? Talvez a vossa mente não esteja treinada para desenredar os fios da culpa e da inocência, como está, sem dúvida, treinada para andar em busca de mistérios mais elevados, como seja o significado da encarnação. Talvez preferísseis não sujar o vosso intelecto com pormenores tão básicos e sangrentos, ofensivos para os homens virtuosos e inaceitáveis para o Senhor.

Se assim é, permiti que coloque perante vós certas proposições. Em primeiro lugar, parecia-me que Raymond Donatus estava muito possivelmente implicado no assassínio do padre Agostinho - senão porquê planear matar Jordan Sicre? Certamente que não se envenena um homem para o impedir de revelar o gosto perverso de alguém por meretrizes. De qualquer maneira, eu considerava que esta explicação não era convincente, ao passo que a minha fazia sentido. Por outro lado, o motivo pelo qual Raymond teria querido matar o padre Agostinho era uma pergunta para a qual eu não tinha resposta. Era certo que não fui capaz de aplicar os meus poderes de dedução a este problema, quando ele surgiu pela primeira vez na minha mente, empenhado como estava numa disputa com Pierre-Julien relativamente à minha segunda proposição: nomeadamente, o facto de que ele próprio era responsável pelo assassínio de Raymond Donatus.

Sem dúvida que considerareis tal proposta absurda. Mas pensai só nos livros de registo danificados: estavam na posse de Raymond, não estavam? Se, de facto, contivessem testemunhos prejudiciais a Pierre-Julien (como eu suspeitava), ele não teria querido que alguém os lesse, nem que transmitisse a outros o que lera. E a disposição peculiar dos restos mortais do notário sugeriam, na verdade, feitiçaria. Colocarem-nos numa encruzilhada, em vez de os atirarem ao rio, foi um acto destinado a encenar as fórmulas de invocações demoníacas.

Pergunto-vos: quem mais, na cidade inteira, foi educado em tais práticas obscuras e idólatras? Quem mais teria tentado implicar um grupo de pessoas - isto é, necromantes - consideradas suspeitas por um homem e só por um homem? Pensei para comigo que, se Pierre-Julien tivesse querido culpar um herege pela chacina de Raymond, não se teria livrado do cadáver de uma forma tão elaboradamente fiel à sua própria construção de ritual satânico.

Eram estes os meus pensamentos, que derivavam, em parte, da razão, e, em parte, da emoção. Não tenhais dúvidas de que eu queria que o meu superior fosse culpado. Queria-o fora do caminho. Assim, fui levado, até certo ponto, pelo preconceito, que me deixou meio cego, também. Não parei para considerar que relação poderia haver entre o assassínio do padre Agostinho planeado por Raymond e o próprio assassínio posterior deste. Não parei para considerar o desaparecimento do primeiro livro de registo, muito antes da chegada de Pierre-Julien a Lazet. Eu estava demasiado ansioso para estabelecer a culpa do meu superior.

Por isso, acusei, e, em troca, fui insultado.

- Estais enfeitiçado! - disse Pierre-Julien rápida e atabalhoadamente. - Estais possuído! Louco!

- E vós sois descendente de hereges!

- Aquelas mulheres enfeitiçaram-vos! Infectaram-vos a mente! Para as protegerdes, difamais-me a mim!

- Não, Fauré. Para vos protegerdes, difamai-las. Negais que tirastes fólios daqueles livros de registo?

- Fora! Fora daqui! Ide!

- Sim - irei! Irei ter com o senescal, e ele prender-vos-á!

- Vós é que sereis preso! O vosso desdém pela sagrada instituição que eu represento é pura contumácia!

- Vós não representais nada - disse eu sarcasticamente, dirigindo-me para a porta. - Sois um mentiroso, e um assassino, e um idiota. Sois um monte trémulo de carne putrefacta e fétida! Sereis atirado ao lago de fogo, e eu ficarei a ver, a cantar, vestido de branco - lançando um olhar a Durand (que parecia considerar esta altercação com sentimentos compostos de choque e prazer em partes iguais), saudei-o, e retirei-me. Em seguida encaminhei-me para o Chateau Comtal. Sem dúvida que eu era uma fonte de grande admiração para os cidadãos de Lazet, pois corri o caminho todo com as saias levantadas até aos joelhos, de forma que todos os que me viam passar ficavam a olhar, como que perante uma visão miraculosa. Na verdade, é raro ver-se um monge em pleno voo (a não ser que seja salteador), e ver um inquisidor de Depravação Herege a correr como uma lebre perseguida por um cão - bem, esse é um espectáculo que não se pode esperar encontrar nem em três vidas.

De qualquer maneira, eu corri. E podeis imaginar o meu aspecto quando cheguei ao meu destino. Estava tão ofegante que mal consegui pronunciar uma saudação, tendo arqueado as costas, as mãos apoiadas nos meus pobres joelhos monásticos (tão mal adaptados ao exercício vigoroso, após anos de oração e jejum), o peito a arder, os membros trémulos, as batidas do coração tão fortes que quase me ensurdeciam. Lembrai-vos, também, de que não sou jovem! E o senescal, quando me viu assim debilitado, ficou tão preocupado com a visão como teria ficado com um eclipse do Sol, ou com um vitelo de três cabeças, pois era uma visão que pressagiava muitos problemas.

- Deus do Céu! - blasfemou ele, antes de se benzer rapidamente. - O que se passa, padre? Estais ferido?

Abanei a cabeça, ainda mudo por não ter recuperado o fôlego. Ele levantara-se, assim como o tesoureiro real, com quem estivera encerrado no quarto. Mas um inquisidor de Depravação Herege terá sempre prioridade em relação a um oficial menor. Quando eu o mandei embora (com um gesto), ele saiu, deixando-me com a posse total da companhia do senescal.

- Sentai-vos - ordenou Roger. - Tomai um pouco de vinho. Viestes a correr.

Eu acenei com a cabeça.

- De quem? Abanei a cabeça.

- Respirai fundo. Outra vez. Agora bebei isto, e falai quando puderdes.

Deu-me vinho da mesa que tinha junto à cama, pois estávamos sentados no famoso quarto em que dormitara o próprio Rei Filipe. Como sempre, não pude deixar de admirar as tapeçarias de damasco bordadas que estavam estendidas em cima da cama, enfeitada a prata e ouro, como um altar. Roger parecia esbanjar nela todos os adornos luxuosos que negava à sua própria pessoa.

- Então - disse ele, quando eu me recompusera. - O que é? Morreu mais alguém?

- Vistes o cadáver de Raymond - respondi (bruscamente, devido à falta de fôlego). - Vistes que foi salgado.

- Sim.

- Lembrais-vos das barricas de salmoura que trouxestes de Casseras? Meu senhor, estão nos nossos estábulos, onde as deixastes.

Roger semicerrou os olhos.

- E foram usadas ultimamente? - inquiriu.

- Não sei. Parece provável. Meu senhor, parece lógico. Naquela noite, Raymond ficou lá depois de todos nós termos saído. Por que não pagar ao guarda que estava de serviço para que o matasse e colocasse o cadáver nos estábulos, onde ficaria, durante algum tempo, sem que ninguém desse por isso?

Houve um longo silêncio. O senescal estava sentado a observar-me, os sólidos braços cruzados sobre o peito. Por fim, resmungou. Tomei isso como um sinal de que eu podia continuar.

- Meu senhor, o padre Pierre-Julien veio ter convosco ontem para pedir os livros de registo inquisitorial que tínheis trazido da casa de Raymond? - inquiri.

- Sim.

- Livros de registo que ainda não tínheis consultado?

- Padre, tenho andado muito ocupado.

- Sim, é claro. Mas quando eu lhes dei uma olhadela, vi que tinham sido adulterados. Tinham sido de lá tirados fólios. No entanto, o padre Pierre-Julien não dissera nada sobre isso - nada! - quando me contou que eles tinham sido encontrados. Isso não sugere que ele pode ter danificado os livros, e não Raymond? Porque ele acusou Raymond, meu senhor. Disse que Raymond estava a tentar esconder antecedentes hereges.

- Padre... perdoai-me... - o senescal passou os dedos pelo cabelo. - Perdi-me. O que vos levaria a pensar que Raymond estava inocente? Por que é tão difícil acreditar na culpa dele?

- Porque o padre Pierre-Julien nem sequer mencionou os fólios desaparecidos, quando me disse que tinha encontrado os livros.

- Sim, mas...

- Essa devia ter sido a primeira coisa a sair-lhe da boca, meu senhor. Profanar um livro de registo inquisitorial! É um crime quase tão grande como assassinar o padre Agostinho!

- Mmmm - desta vez, o senescal limpou o rosto e endireitou os ombros, e o seu comportamento geral era o de um homem pouco à-vontade com uma proposição afirmada. - Bem... - disse ele -, e daí? Estais a dizer que o padre Pierre-Julien está a tentar esconder um avô herege?

- Ou coisa parecida. Mas foi Raymond que encalhou no livro de registo que implicava o padre Pierre-Julien. Por isso...

- Por isso Pierre-Julien matou-o? Oh, padre, isso é provável?

- Raymond foi morto nos estábulos do Santo Ofício! Tenho a certeza disso! Se investigardes as barricas de salmoura, podeis encontrar provas - fios das roupas dele - lembrais-vos, meu senhor, de que o padre Agostinho e a sua escolta foram encontrados sem roupas - Padre, esse guarda que referistes. Ele confessou?

- Não, mas...

- Então ele não explicou por que motivo, em vez de deixar o cadáver em salmoura até à noite seguinte, não o levou simplesmente para a gruta imediatamente após Raymond ter sido morto?

Fiz uma pausa. Deve admitir-se que esta pergunta ainda não me ocorrera. Novamente de braços cruzados, o senescal observava... e esperava.

- Talvez fosse uma forma de... de assegurar que o sangue não era tão evidente - disse eu, por fim, num tom hesitante. - Talvez... talvez... ora, talvez ele não tivesse tido tempo, porque o turno da manhã estava quase a começar! E lembrai-vos de que ele tinha de limpar o sangue todo.

- Padre, permiti que vos pergunte outra coisa - o senescal inclinou-se para a frente. - Falastes com o padre Pierre-Julien sobre isto?

- Falei.

- E que diz ele?

- O que esperáveis que ele dissesse? - disse eu com brusquidão. - Nega tudo, é claro!

- Ele assinalou que, mesmo que esse vosso guarda tenha morto Raymond, ele poderia ter sido pago pelas mesmas pessoas que mandaram matar o padre Agostinho?

- Meu senhor, Raymond é que mandou matar o padre Agostinho! Até este momento, o senescal permanecera bastante calmo, ainda que algo confuso, e cautelosamente céptico. No entanto, agora, todo o seu rosto se contorcia numa expressão de profunda surpresa.

- O quê? - exclamou, desatando depois a rir.

- Meu senhor, ouvi-me! Faz sentido! O guarda diz que Raymond lhe ofereceu dinheiro para envenenar Jordan Sicre quando Jordan fosse trazido de volta para Lazet!

- E vós acreditais nele? Franzi a testa.

- Em quem? - disse eu.

- Ora, nesse guarda, homem!

- Sim - eu estava a fazer um esforço enorme para me conter. - Sim, acredito nele.

- Embora ele se recuse a admitir que matou Raymond Donatus?

- Sim...

- Quer dizer que acreditais nele quando ele acusa Raymond, mas não quando ele se recusa a confessar que assassinou Raymond?

Abri a boca e voltei a fechá-la. Ao ver-me confuso, o senescal, que levantara a voz, como que para me fazer calar, moderou imediatamente o tom. Pousou até uma mão amiga no meu pulso, apertando-o com força.

- Padre, devíeis ir-vos embora e pensar bem nisto - disse ele com um sorriso. - O padre Pierre-Julien pode ser um moscardo, mas não podeis permitir que o seu ferrão vos enlouqueça. Devíeis dormir mais. Devíeis deixar o Santo Ofício.

- Ele despediu-me do Santo Ofício.

- Ainda bem. Aquele lugar é mau para a vossa saúde, padre, diz a minha mulher. Ela viu-vos outro dia na rua, e disse-me que não pareceis o mesmo. Estais demasiado magro, disse ela. O rosto pálido e cheio de rugas escuras.

- Ouvi-me - tal como ele me agarrara a mão, também eu agarrei a dele. - Temos de interrogar o guarda. Temos de ir para a sede e descobrir a verdade. O padre Pierre-Julien não me deixará lá entrar sem vós, e temos de saber o que aconteceu naquela noite, antes que ele extraia ao homem alguma confissão falsa...

- Mas pensei que tínheis dito que queríeis uma confissão?

- Uma confissão verdadeira! - o meu medo por Johanna era agora intenso, e estava a começar a afectar-me a razão. Eu estava a ter dificuldade em refrear as paixões que me moviam. Afastando-o bruscamente, e colocando-me em pé de um salto, eu andava de um lado para o outro como um louco. - O guarda falou de uma mulher, culpou uma mulher. Pierre-Julien tentará implicar as mulheres de Casseras, com esta... esta visão dúbia. Este disparate... - Padre, parai. Acalmai-vos. Eu vou.

- Agora? (nem uma palavra de agradecimento, como podeis ver! Que errados estão aqueles que defendem que o amor profano enobrece!) - Vireis agora?

- Assim que tenha terminado aqui.

- Mas temos de nos apressar!

- Não. Não temos - voltou a pegar-me no braço, desta vez para me levar até à porta. - Vós ides para a capela, para rezar e para vos acalmardes. Irei ter convosco quando tiver terminado o assunto que estou a tratar com o tesoureiro.

- Mas...

- Sede paciente.

- Meu senhor...

- Devagar se vai ao longe, padre.

E assim fui despedido da sua presença: amavelmente mas com firmeza. O senescal era intratável quando estava determinado. Sabendo isso, iniciei uma caminhada sombria em direcção à capela, que estava deserta (graças a Deus), se exceptuarmos a presença do Espírito Santo. Uma sala pequena mas muito bonita, que se gabava de uma janela de vidro por cima do altar, sempre foi um dos meus lugares preferidos no mundo, com as suas paredes e o seu tecto prodigamente pintados, a sua seda, o seu ouro, os seus azulejos brilhantes. Gosto dela - que Deus me perdoe - porque é como um guarda-jóias de senhora, ou como um relicário gigante e esmaltado, e porque me faz sentir poderoso.

Belos sentimentos, para um monge dominicano! Mas, na verdade, eu nunca tive pretensões a ser um exemplo de virtude monástica particularmente distinto.

É certo que encontrei pouco consolo na contemplação da Agonia de Cristo, quando estava ali sentado a olhar para o crucifixo alemão que estava pendurado na parede. Tão perfeita era a sua execução que quase que se podia ver cada gota de suor no corpo contorcido e no rosto angustiado. Mas Ele foi ferido pelos nossos pecados, Ele foi agredido pelas nossas iniquidades. Ver aquele sangue precioso - aquele santo sofrimento - perturbou-me profundamente, pois via nele um terrível aviso da forma como Johanna poderia sofrer, se fosse colocada sob a custódia de Pierre-Julien. Pensei no murus strictus, e os olhos da minha mente pareciam que estavam a começar a enxergar, pois divisavam as correntes e as celas e a sujidade com uma clareza terrível e afiada que me trespassava como uma espada. Estas coisas tinham outrora sido aceitáveis, quando infligidas em hereges relapsos e obdurados. Mas eram insuportavelmente horríveis quando Johanna se encontrava ameaçada por elas.

Quanto à masmorra... mas não fui capaz de reflectir sobre tal possibilidade. A minha mente recuou; gemi em voz alta, e bati várias vezes com os punhos nos joelhos.

- Ó Senhor, Deus vingador - rezei -, Ó Deus vingador, manifesta-Te! Levanta-Te, ó juiz da Terra, dá aos soberbos o castigo que merecem. Até quando é que os ímpios, Senhor, até quando é que os ímpios triunfarão?

E assim recitei vários salmos, até que, finalmente, comecei a sentir a paz daquele lugar tranquilo e bonito. A pouco e pouco, acalmei-me. Lembrei a mim próprio que, enquanto que Jean-Pierre podia, de facto, ser interrogado como herege - tendo alegadamente morto um funcionário do Santo Ofício -, a tortura exigia o consentimento e a presença do bispo do indivíduo, ou de um representante do bispo. Exigia a ajuda de familiares especiais. Não podia haver tortura sem muita preparação. E não podia haver confissão, neste caso, sem tortura.

Que louco eu era! Como sempre, subestimei Pierre-Julien. Na verdade, eu reconfortava-me com ilusões, pois quando, finalmente, o se-nescal terminou os seus assuntos e me acompanhou à sede do Santo Ofício, descobrimos - ao chegar - que Durand se encontrava do lado de fora da porta da prisão, a vomitar para o pó.

Não precisei de perguntar porquê.

- Não! Deus, não! - blasfemei.

- Padre, não posso - Durand estava a chorar. Tinha o rosto húmido e parecia muito jovem. - Não posso, não posso!

- Ele não pode! É proibido! - agarrando no braço do pobre rapaz, abanei-o (quando o devia ter reconfortado), cruel na minha raiva e ansiedade. - Onde está o bispo? Tens de saber as regras! Devias ter-me alertado!

- Padre, padre - objectou o senescal, libertando o notário do meu aperto. - Controlai-vos.

- Isto não é altura para coibições! - penso que teria aberto caminho através dos guardas, naquele mesmo instante, se Pierre-Julien não tivesse aparecido, de repente, com uma mão cheia de pergaminho. Era óbvio que procurava Durand. Essa busca trouxera-o cá fora, e a altercação que, consequentemente, se seguiu ocorreu debaixo dos olhos dos dois guardas da prisão, assim como de um ferrador que ia a passar, e da mulher que vivia na casa em frente à prisão.

- Estais a infringir a lei! - berrei, com tanta força que Pierre-Julien, surpreendido por me ver à entrada da prisão, deixou cair metade do documento que trazia. - Jean-Pierre não foi difamado! Não podeis interrogar como acusado um homem que não foi formalmente difamado!

- Posso, se ele já tiver confessado a um juiz delegado - respondeu Pierre-Julien, dobrando-se para apanhar os fólios que estavam espalhados no chão. - Se consultardes o regimento do Papa Bonifácio, Postquam, vereis que posso ser considerado como tal.

- E onde está o bispo, dizei! Onde está o representante? Não podeis usar a força sem um ou outro!

- Recebi instruções do bispo Anselm, por escrito, para agir por ele onde quer que seja e sempre que a sua presença seja exigida - disse Pierre-Julien. Para minha surpresa, ele mantinha uma pose de dignidade, mesmo perante um ataque directo. - Está tudo em ordem - pelo menos estaria, se Durand não tivesse adoecido.

- Devo compreender que estais a interrogar esse tal guarda, esse tal Jean-Pierre? - perguntou-lhe o senescal.

- Correcto.

- Sob tortura?

- Não.

- Agora já não - disse Durand, com voz fraca. - Queimaram-lhe os pés, mas apagaram o fogo, quando ele prometeu confessar.

- O prisioneiro confessou os seus pecados - interrompeu Pierre-Julien, fazendo calar o notário com um olhar severo. - O seu depoimento foi registado e testemunhado. Só resta a confirmação - que asseguraremos assim que Durand esteja suficientemente bem para ler o depoimento.

- Mas tendes de esperar um dia! - protestei. - É essa a regra! Um dia inteiro antes que a confissão seja confirmada!

O meu superior objectou acenando com a mão.

- Uma formalidade - disse.

- Uma formalidade? Uma formalidade?

- Padre, tendes de vos controlar - dirigiu-se o senescal a mim num tom bastante severo e repressivo, antes de se virar para Pierre-Julien. - E que foi exactamente que esse tal guarda confessou? - perguntou. - Ter morto Raymond Donatus?

- Com objectivos diabólicos - Pierre-Julien consultou o documento que tinha na mão. - Para conjurar um certo demónio dos níveis mais humildes da compreensão, sacrificando um dos criados do Santo Ofício.

- Foi isso que ele disse?

- Sim, meu senhor - embora não tivesse usado tantas palavras. É claro que foi ajudado e instruído por outros idólatras mais habilitados e abomináveis. Com isso refiro-me às mulheres de Casseras...

- Não!

- ... uma das quais atraiu Raymond à chacina, naquela noite...

- Uma fabricação! - treme-me a pena ao tentar descrever os meus sentimentos de ultraje e incredulidade. - Aquelas mulheres não são feiticeiras! Não são bruxas! Pusestes os nomes delas na boca daquele infeliz!

- As mulheres são bruxas - respondeu Pierre-Julien -, porque eu tenho aqui um testemunho que confirma esse facto. Se foram elas ou não que mandaram matar o padre Agostinho é difícil de estabelecer, mas sei que foram elas que aviltaram os seus restos mortais.

- Disparate! - eu podia ter revelado, neste ponto, o parentesco de Babilónia. Mas prometera não contar a ninguém, e não podia quebrar a minha promessa a não ser com autorização de Johanna. - Eram dedicadas ao padre Agostinho!

- Além disso - continuou Pierre-Julien, implacavelmente -, uma delas seduziu Jean-Pierre, e, com promessas de grandes recompensas, induziu-o a deixá-la entrar no Santo Ofício, para que ele assassinasse Raymond Donatus, enquanto a mulher e o notário estavam envolvidos carnalmente.

- Falsidades! - gritei, arrancando o depoimento da mão de Pierre-Julien. Ele tentou recuperá-lo, e, por uns instantes, engalfinhámo-nos, até que Roger Descalquencs nos separou. Embora mais baixo do que eu, o senescal tinha uma estrutura poderosa, e usou a sua força com a economia que só se aprende através de anos de experiência em combate.

- Basta! - disse ele, meio irritado, meio divertido. - Não permito zaragatas na rua.

- Isto é uma falsificação! É testemunho obtido através da coacção! - gritei.

- Ele diz isso porque está enfeitiçado, meu senhor - as mulheres infectaram-no com o seu veneno...

- Basta, disse eu! - sacudindo-nos, o senescal afrouxou depois o seu aperto, de forma que ambos cambaleámos - e Pierre-Julien caiu. - Isto não pode ser decidido aqui. Esperaremos um dia, e veremos se Jean-Pierre retracta a sua confissão. Entretanto, as mulheres serão presas.

- Não, meu senhor!

- Por vós, padre Bernard, e alguns dos soldados da minha guarnição. Vós trá-las-eis para cá, e interrogá-las-eis ambos, e se houver alguma prova de feitiçaria, ou de assassínio, ou de qualquer outra coisa, ficareis ambos satisfeitos.

- Meu senhor, quando Jordan Sicre chegar, provar-se-á que este homem vil e sedento de sangue está enganado.

- Talvez. Mas até que Jordan chegue, padre Bernard, sugiro que ajamos com cuidado e sensatez, e que paremos de nos descontrolar. Isso é aceitável para vós?

Que podia eu fazer, a não ser concordar? Não podia exprimir nada mais favorável a Johanna, que se encontrava agora sob fortes suspeitas. Pelo menos, se ela estivesse sob a minha custódia, eu poderia assegurar que ela fosse bem tratada.

Por isso acenei com a cabeça.

- Óptimo - o senescal virou-se para Pierre-Julien, que se levantara do chão e que estava agora a limpar o pó do manto. - É aceitável para vós, padre?

- Sim.

- Nesse caso, vou tratar da vossa escolta, padre Bernard, e vós deveis ir dizer ao vosso prior que estareis ausente, esta noite. Quantas mulheres são?

- Quatro - respondi. - Mas uma é muito idosa e doente.

- Então ela pode montar convosco. Dar-vos-ei o Star, novamente. Ou talvez... bem, isso pode decidir-se. Vindes, padre?

Roger estava a falar comigo. Suspeitando de que ele não desejava deixar-me com Pierre-Julien (para que não nos estripássemos um ao outro), voltei a mostrar a minha concordância com um aceno de cabeça, e avancei para me juntar a ele. Contudo, fui impedido de o fazer, quando Durand me agarrou as saias.

- Padre... - murmurou, desesperando baixinho. Olhei para os seus olhos debruados a vermelho, e vi neles um grande horror, tão profundo que me surpreendeu. Pois Durand nunca me impressionara por ser uma alma peculiarmente sensível.

- Coragem - disse eu, o tom de voz suavizado. - Depressa nos veremos livres de tudo isto.

- Padre, não posso.

A alteração na sua voz tocou-me o coração, embora estivesse, na altura, tão cheio de Johanna. Dando-lhe uma palmadinha no rosto com carinho paternal, fiz como se lhe fosse beijar a outra face, mas, de facto, coloquei-lhe os lábios ao ouvido.

- Continua a vomitar - sussurrei. - Não te inibas. Fá-lo nos sapatos dele, se for preciso. Ele acabará por te despedir.

Durand sorriu. Mais tarde, quando me preparava para a viagem num estado de indescritível angústia, a lembrança daquele sorriso era reconfortante. Fora um sorriso de esperança, cumplicidade e desafio. Dera-me força, pois sabia que em Durand, pelo menos, tinha um amigo. Não era um amigo de grande influência, talvez, mas um amigo que me ajudaria independentemente do caminho que eu optasse por seguir.

Dois são melhores do que um; porque têm uma boa recompensa pelo seu trabalho. Porque se caírem, um levantará o companheiro: mas ai daquele que estiver sozinho quando cai, pois não tem quem o ajude a levantar-se.

Eu estava esperançado de que Johanna e as amigas pudessem ter saído de Casseras. Estava esperançado de que as manhãs de nevoeiro e os dias de chuva pudessem, ao pressagiarem a chegada do Inverno, tê-las induzido a procurar uma habitação mais quente, mais seca e mais segura. Mas não contara com a saúde debilitada de Vitalia. Parecia que as mulheres estavam à espera de que o estado dela melhorasse (como se poderia esperar por uma aberta nas nuvens), para aproveitarem e levá-la sem lhe causarem demasiado desconforto.

- Ela está muito doente? - perguntei, da minha sela, ao padre Paul. Ele saíra de sua casa para me saudar, assim como quase todos os habitantes de Casseras; muitos deles tinham pronunciado o meu nome num tom prazenteiro, e as crianças tinham-me presenteado com calorosos sorrisos de boas-vindas.

Infelizmente, a minha preocupação com Johanna era tal que olhei para os seus rostos com uma expressão indiferente, e mal reparei nas suas saudações.

- Ela é muito idosa - disse o padre Paul. - Creio, padre, que o fim dela está próximo Mas posso estar enganado - lançou um olhar incerto ao meu cavalo, em que eu continuava firmemente montado, e aos dez soldados que me acompanhavam. - Ides agora para lá, padre? Ou ficareis aqui até de manhã?

- Não vamos dormir na aldeia - foi a minha resposta. Eu pensara cuidadosamente no assunto durante a viagem para Casseras, e chegara à seguinte conclusão: que trazer as minhas prisioneiras para passarem a noite na aldeia seria marcá-las inequivocamente como prisioneiras, uma vez que, naturalmente, estariam guardadas à vista de todos. Mas ao ficar na forcia, eu protegê-las-ia de tal humilhação; elas poderiam passar orgulhosamente por Casseras a cavalo, escoltadas como princesas, e não limitadas como criminosas.

- Ides passar a noite na forcia? - exclamou o padre Paul, claramente chocado. - Mas porquê?

- Porque não temos tempo para regressar a Lazet antes do cair da noite! - disse eu bruscamente. Em seguida incitei a minha montada a avançar, sem estar disposto a fornecer mais explicações, e desejoso de fixar os meus olhos famintos no rosto de Johanna. Como eu ansiava por vê-la!

No entanto, ao mesmo tempo, eu temia o encontro. Temia o medo que a minha ida pudesse causar, e a confusão que provocaria. Recordei o nosso último encontro, na encosta ao romper do dia, e as minhas entranhas suspiraram. Aquela incomparável manhã radiante! Certamente que fora uma dádiva de Deus. Cantai ao Senhor com gratidão; cantai ao nosso Deus ao som da harpa. Ele cobre de nuvens o céu e para a terra prepara as chuvas, que fazem crescer as ervas nos montes.

As montanhas estavam agora cinzentas e coroadas de nuvens. Não havia brilho nos céus. À medida que subíamos o caminho enrugado em direcção à forcia, começou a cair um leve chuvisco, tão suave como penugem de pato. No local do assassínio do padre Agostinho, um pequeno ramo de flores roxas estava espalhado na lama.

Eu tê-lo-ia apanhado, se os soldados não tivessem estado comigo. Tê-lo-ia guardado, como devia ter guardado aquelas primeiras flores douradas. Mas, com receio do que pudessem pensar e que escarnecessem de mim, passei por ele.

Embora eu tenha vivido uma existência muito enclausurada, tenho tido conhecimento de muita discussão em torno da natureza do amor profano, por vezes debatido num espírito muito próprio (como apoiado na essência do amor divino), outras vezes num espírito menos próprio. Destes colóquios, e das minhas leituras, aprendi que o amor é um certo sofrimento inato, e que há sintomas que dominam invariavelmente um homem apaixonado. Estes são, em primeiro lugar, uma tendência para ficar pálido e magro; em segundo lugar, uma tendência para a perda de apetite; em terceiro lugar, uma tendência para suspirar e chorar; em quarto lugar, uma tendência para se ficar sujeito a ataques de tremores quando se está na presença do ser amado. Ovídio listou muitos destes sintomas, nos tempos antigos. Desde então, têm sido examinados e classificados sempre de novo, com tanta frequência que acabei por considerá-los incontestáveis e inevitáveis.

Assim, eu estava atento a quaisquer alterações no meu próprio sono e apetite - vendo-as, quando ocorriam, como mais uma indicação de que me encontrava preso nas correntes do desejo (olhando para trás, pergunto a mim próprio se estes sintomas teriam sido tão agudos, se a minha amada não tivesse estado ameaçada). Agora, à medida que me aproximava da forcia, estava à espera de ser dominado pelas lágrimas e por tremores, e estava ansioso por me esconder dos olhos da minha escolta.

Mas quando pus os olhos em cima de Johanna, apercebi-me apenas de uma alegria transbordante - que me inundava o coração como uma fonte'- e, logo a seguir a este sentimento, de uma intensa preocupação. É que os soldados tinham recusado ficar para trás; não me deixavam entrar na forcia sozinho, à frente deles, com receio de que eu fosse capturado, ou morto, ou usado de qualquer outra forma para que uma fuga fosse efectuada. Embora eu argumentasse veementemente que eles me estavam a insultar ao presumirem que eu podia ser dominado por duas mulheres idosas, uma rapariga louca e uma matrona que mal andava, eles venceram pela pura força dos números. Consequentemente, entrámos na forcia como um exército conquistador, fazendo com que Babilónia gritasse, fugisse e se escondesse atrás de um muro.

- Perdoai-me - balbuciei, desmontando precipitadamente, enquanto Johanna nos olhava, consternada. - Isto não é obra minha. Mandaram-me. Há... oh, uma grande loucura. Uma grande loucura - aproximei-me dela, e tomei-lhe ambas as mãos nas minhas; os seus dedos eram longos e quentes e ásperos. O rosto dela arrebatava-me. Eu pensara, uma vez, que ela não era bonita. Como poderia eu ter sido tão cego? A sua pele era pálida e lustrosa, como uma pérola. Os olhos eram profundos e nítidos. O pescoço era uma torre de marfim. - Não receeis, Johanna, pois proteger-vos-ei. Mas tenho de explicar...

- Padre Bernard? - Alcaya saía agora da casa, trazendo The Legend, de São Francisco. Sorriu-me como se não pudesse imaginar maior alegria do que ver o meu rosto; fez uma vénia e pressionou os lábios contra a minha mão num gesto de profunda reverência. A minha escolta poderia não ter existido. - Oh, padre - disse ela com fervor -, que bom é terdes cá voltado. Com que ansiedade vos esperávamos!

- Infelizmente, Alcaya, a minha visita não é uma ocasião de felicidade.

- Mas é! - insistiu ela, ainda agarrando a minha mão com uma das suas, ao mesmo tempo que segurava o livro na outra. - Até que enfim que vos posso agradecer! Até que enfim que vos posso dizer como transformastes as nossas vidas com esta dádiva maravilhosa! Oh, padre, fomos tocadas pelo Espírito Santo! - havia lágrimas nos seus olhos quando se dirigia a mim, e um brilho, também, que atravessava as lágrimas como o Sol atravessa um aguaceiro.

- De facto, padre, São Francisco estava próximo de Deus. De facto, temos de nos esforçar por seguir o seu exemplo, para que possamos ser engolidos pelo fogo celeste, e provar da comida espiritual.

- Sim. Inquestionavelmente - que Deus me perdoe, naquela altura eu não tinha tempo para São Francisco. - Alcaya, os soldados assustaram Babilónia. Ides falar com ela para a reconfortardes? Dizei-lhe que não permitirei que eles façam mal a nenhuma de vós. Dizei-lhe que eu sou o vosso escudo e a vossa fortaleza. Dizeis-lhe isso?

- Com todo o meu coração - disse Alcaya, com um sorriso de extrema felicidade. - E depois conversaremos, padre. Falaremos da sublime penitência, e do Espírito Santo, e da contemplação da divina sabedoria.

- Sim. Sim, com certeza - virei-me para Johanna, que observava agora os soldados da guarnição, que desmontavam. Alguns estavam a começar a desfazer os alforges. - Esta noite dormiremos aqui - expliquei rapidamente -, e amanhã escoltar-vos-emos para Lazet. Johanna, o novo inquisidor já chegou, e é louco - um homem perigoso. Ele acredita que vós e as vossas amigas sois hereges e bruxas...

- Bruxas?

- ... e que matastes o padre Agostinho. Não dá ouvidos à razão. Mas estou a trabalhar muito para o tirar do cargo. Estou convencido de que ele está implicado noutro assassínio. Se eu conseguir prová-lo, se eu conseguir falar com a testemunha que ajudou a assassinar o padre Agostinho, e que ainda vive... - vendo a cor dela mudar, hesitei. Sentia que tudo aquilo era demasiado para que ela o absorvesse de uma só vez, e apertei-lhe as mãos tão apaixonadamente que ela estremeceu. - Johanna, nada receeis. Nada vos acontecerá - disse eu. - Tendes a minha palavra. A minha promessa.

- Quem... quem tem de ir, amanhã? - perguntou ela com voz fraca. - Não Vitalia?

- Todas vós.

- Mas Vitalia está doente!

- Perdoai-me.

- Ela não pode sentar-se num cavalo!

- Sozinha não. Mas eu montarei com ela. Ampará-la-ei.

- Isto é ridículo - agora ela estava a ficar irritada. - Uma mulher idosa e doente como ela! Como poderia uma mulher idosa e doente matar alguém?

- Como eu disse, o meu superior está louco.

- E vós? - gritou ela, afastando as mãos com brusquidão. - E vós? Dizeis que sois nosso amigo, no entanto vindes cá para nos levardes presas!

- Eu sou vosso amigo (amigo? Eu era escravo dela). Não me condeneis. Vim cá para vos proteger. Para vos reconfortar.

Ela olhou-me com o seu olhar nítido, directo e formidável, que me trespassava como uma seta, e que se encontrava quase à altura do meu. Eu já esquecera como ela era alta.

- Acalmai-vos - disse eu com voz suave. - Tende coragem. Haveremos de vencer, se seguirdes o meu conselho e não desanimardes. Deus está connosco - sei que está.

Perante isto, ela sorriu, e o seu sorriso era cansado e céptico. Desviando o olhar, disse:

- Ainda bem que estais tão certo das vossas crenças. E foi ter com a filha.

Eu queria ir atrás dela para a convencer e para lhe tocar de novo (que Deus perdoe o meu pecado), mas não podia. Em vez disso, aproximei-me do comandante da minha pequena comitiva e discutimos a disposição das fogueiras, das camas e dos cavalos. Na paliçada não havia abrigo suficiente para dez homens; os soldados queriam regressar a Casseras para passarem a noite lá, onde havia palheiros para dormir e fartura de hospitalidade. Eu disse que eles podiam regressar todos à aldeia, mas que eu ficaria. Uma vez que isto estava fora de questão, seis ofereceram-se para ficar na forcia, ao passo que o resto voltou a Casseras, rompendo a chuva e o crepúsculo que avançava.

Foi então feita uma escala de sentinela, que permitia a três dos voluntários dormir, enquanto que dois montavam guarda junto à porta da casa e outro vigiava os cavalos. Os preparativos para dormir foram os seguintes: a cama de Vitalia foi colocada no quarto, para que se juntasse às suas três amigas. Foi colocado um molho de palha na cozinha (ou na sala que agora servia de cozinha), e esta seria a minha cama. Um dos soldados dormiria em cima da mesa da cozinha, outro junto à lareira, um terceiro aos meus pés. Os cavalos seriam amarrados por baixo dos pedaços de madeira e colmo que ainda restavam em volta da paliçada.

Insisti para que ninguém tocasse nas aves de capoeira das mulheres, mas a minha pretensão foi rejeitada.

- Quem lhes dará de comer enquanto estivermos ausentes? - disse Johanna. Assim, as cinco aves foram mortas, limpas, depenadas e comidas pela minha escolta faminta; eu próprio comi apenas pão e alhos-porros - uma vez que era Quaresma -, enquanto que Alcaya e Babilónia recusaram tocar nos restos carbonizados das suas aves (Babilónia porque a forma como tinham sido mortas a perturbara imenso, e Alcaya porque evitava comer carne, a não ser em dias de festa).

Para Vitalia, fora feita uma sopa com um pedaço de galinha, que ela comeu com pão aquecido. Só com um olhar, vi que ela não estava em condições de viajar. Na verdade, ela mal conseguia andar, e, quando lhe peguei na mão, parecia uma folha seca, ou a carcaça vazia de um insecto morto. Mas quando eu falei na viagem que se aproximava, ela limitou-se a sorrir, e acenou com a cabeça, levando-me a perguntar a mim próprio se ela teria compreendido. - Claro que ela compreende - observou Johanna com sobriedade, quando eu exprimi as minhas dúvidas. Estávamos sentados em volta da braseira, inibidos pela presença de vários guardas, pois eu sentia que não podia falar à-vontade enquanto eles estivessem a ouvir. - Está tudo bem com a cabeça dela.

- Vitalia suportará a cruz com coragem - declarou Alcaya. - Cristo está com ela.

- Espero que sim - era um dos guardas que falava. - Senão, pode não aguentar a viagem.

- Que seja feita a vontade de Deus - disse Alcaya, com grande tranquilidade. Apressei-me a assegurar-lhe que eu montaria muito devagar, para não fazer oscilar a mulher doente, e que, por essa razão, teríamos de partir ao romper do dia, ou, de qualquer maneira, de manhã, o mais depressa possível. Em seguida Johanna perguntou se ela e as companheiras poderiam levar as suas posses com elas. As roupas, por exemplo. Os livros e os utensílios de cozinha.

Fiquei desolado com a forma seca e formal do seu discurso.

- Podeis levar as vossas roupas, e... e os bens que não nos impeçam de avançar - respondi.

- Então a arca fica - disse ela.

- Receio que sim.

- Deveis saber que será roubada.

- Pedirei ao padre Paul que vo-la guarde.

- Até que regressemos? - embora as suas palavras fossem indubitavelmente seleccionadas para reconfortar a filha, o tom era irónico, e sem esperança. Parecia que ela colocara de parte as minhas certezas, que não levara em consideração nada do que eu dissera.

Isso irritou-me, devo confessar.

- Regressareis - disse eu abruptamente. - Não há dúvida de que regressareis. Eu tomei a responsabilidade de fazer com que fôsseis libertadas.

- Com oração? - troçou ela, embora ainda falasse cuidadosamente.

- Com oração, sim! E por outros meios!

- Devemos todos rezar - disse Alcaya. - Rezemos agora - a mulher estivera a segurar a mão de Babilónia e a murmurar-lhe ao ouvido; só com a sua constante presença é que ela conseguira manter a mulher mais jovem relativamente calma. - Padre, direis uma oração por nós, por favor?

Assim fiz, entoando salmos, até que os guardas, levantando-se, declararam que devíamos ir dormir, se queríamos partir cedo (eu estivera esperançado em afastá-los da sala, com as minhas recitações, mas as minhas esperanças goraram - talvez porque ainda estivesse a chover). As mulheres concordaram, e retiraram-se para as suas camas. Os soldados, após mútuas consultas, dividiram-se em dois grupos, o que se retirava e o que ficava. À medida que os três que ficavam se embrulhavam nas suas capas, sussurrei para mim próprio o ofício das Completas, distraído pelos meus membros doridos e obsessões mundanas. O comportamento de Johanna atormentara-me; afinal, parecia que ela não me considerava um amigo íntimo. Com que frieza o olhar dela pousara no meu rosto! Que ferido eu ficara com a sua falta de fé, e com as suas observações sardónicas! No entanto, ainda houvera entre nós uma compreensão comum - eu sentira os seus sentimentos, mesmo enquanto os lamentara.

Deitado no meu molho de palha (que era quase tão desconfortável como as camas do priorado), eu não encontrava paz na contemplação de Johanna. Queria ir ter com ela e exigir uma explicação. A raiva, o medo e a angústia alternavam em mim. Dizia a mim próprio que também ela estava assustada - e mais do que eu -, mas o meu coração não tinha descanso. Embora exausto pelo esforço físico do dia, eu não conseguia dormir naquele chão húmido e frio. A minha alma está numa tristeza de morte; Pai, afasta de mim este cálice. À medida que a longa noite se desenrolava, eu resignava-me à vigília, ouvindo os roncos dos guardas, os gemidos de Babilónia (sem dúvida vítima de sonhos atormentados) e o bater da chuva no telhado. Rezei, praguejei, desesperei. Na verdade, eu caminhava na escuridão, e não tinha luz.

Mas era desígnio de Deus que eu não conseguisse dormir. Pois estava acordado quando Babilónia deslizou para fora do quarto e passou por mim em pés de veludo, dirigindo-se à porta. Ouvi os guardas ali estacionados desafiarem-na; ouvi-a explicar, num tom trémulo, que desejava esvaziar a bexiga. E ouvi-os responder que podia fazê-lo ao virar da esquina da casa, mas que, se não regressasse a seguir, teria um destino terrível.

À escuta com grande concentração, não ouvi mais nada, e, por alguns instantes, fiquei descansado. Sabia que os guardas não permitiriam que ela se afastasse. No entanto, como a sua ausência se prolongava, comecei a ficar preocupado. Por que é que os homens não a chamavam? Por que continuavam em silêncio? Eu tê-los-ia interrogado da minha cama, se não estivesse relutante em acordar Vitalia e as companheiras. Como as coisas estavam, atirei para trás o meu manto e fui até à porta, surpreendido por descobrir (quando lá cheguei) que os guardas tinham deixado o seu posto. A sua candeia também desaparecera. Mas, uma vez que já não chovia, consegui ouvir um leve ruído, um género de gemido, seguido de um grito breve e agudo, acompanhados de qualquer forma de actividade que estava a decorrer do outro lado da casa.

Agora, ao pensar nisso, comportei-me estupidamente. Não havia nada que indicasse que os sons que eu ouvia não eram sons de emboscada e chacina silenciosa. Até a gargalhada abafada podia ter sido a de um assassino. Mas a minha suposição instantânea revelou-se correcta, pois ao contornar a esquina, com um grito de ultraje, deparei com os dois guardas de que achara falta de joelhos na lama.

Estavam a tentar violar Babilónia.

Acreditai quando vos digo que não sou um homem violento. Os pacificadores são abençoados, não são? Pecador, até posso ser, mas não um assassino. Para mim, as palavras de São Paulo sempre serviram de guia e de mandamento: Que a tua moderação seja conhecida por todos os homens. Desferir um golpe não é o caminho da moderação. A violência gera violência, ao passo que a paz é a recompensa dos que amam a lei de Deus. E aquele que é lento a irritar-se é melhor que o poderoso.

Contudo, a visão com que me deparei pareceu privar-me de toda a razão. Eu precisava apenas de ter pedido que os dois homens embainhassem as suas armas, e que libertassem a rapariga que tinham cativa, já que ficaram chocados com o meu súbito aparecimento, e teriam obedecido sem demora. Em vez disso, enfiei o calcanhar na cabeça de um (que se encontrava à altura do meu joelho), e plantei o punho no rosto do outro. Agarrei os punhais que eles tinham deixado cair, ameaçando usá-los. Gritei e agredi repetidamente a soco o corpo enroscado e vestido de saio de malha que se encontrava aos meus pés. Comportei-me como um demente.

Sem dúvida que fui um louco. Tive também sorte, porque, embora mais alto, e abençoado com a vantagem da surpresa, eu não era tão habilitado no combate como o meu adversário armado, que teria triunfado facilmente se lhe tivesse sido dada hipótese de retaliar. No entanto, como parece que aconteceu, não lhes foi dada essa hipótese. É que os gritos de Babilónia, e a minha própria ruidosa indignação, tinham levantado os que estavam a dormir. Vieram a correr, alguns empunhando espadas, ao que se seguiu um período de grande confusão.

Babilónia berrava e chorava nos braços de Alcaya. Eu insultava os pretensos violadores no tom mais alto que a minha voz atingia. O guarda que comandava, e que estivera a dormir, implorava inutilmente que nos acalmássemos. Exigia uma explicação. Dei-lha. Os acusados negaram.

- Ela estava a tentar fugir! - insistiam. - Fomos atrás dela!

- Com as polainas em volta dos joelhos? - gritei.

- Eu estava a urinar! - o mais velho dos dois deu um passo em frente. - Se eu tivesse estado no meu posto, ela ter-nos-ia escapado!

- Mentiroso!'Eu vi-vos! Ela tinha as saias levantadas!

- Padre, isso não é verdade.

- É verdade! Perguntai à rapariga! Babilónia, dizei-nos!

Mas Babilónia estava sem fala; retirara-se para um mundo de demónios. Com Alcaya a segurá-la, ela estrebuchava e contorcia-se, e agitava os braços, e batia com a cabeça no chão, e uivava como um cão. Ao verem isto, vários soldados benzeram-se.

- A minha filha não tentaria fugir - disse Johanna com voz rouca. Estava ajoelhada; à luz fraca da candeia, os seus olhos brilhavam. - A minha filha foi atacada.

Mas ainda havia dúvidas entre os camaradas dos acusados. Olharam para Babilónia e viram, não uma mulher bonita, mas uma criatura louca ou possuída. Além disso, estavam dispostos a ser lenientes com os seus companheiros mercenários. Senti que, se eu não tivesse estado presente, eles poderiam muito bem ter virado as costas e permitido que o ataque continuasse.

Patifes! Disse-lhes que o senescal seria informado. Insisti para que retirassem as suas camas da cozinha; já não lhes seria permitido dormir ali confortáveis, disse-lhes eu. Tinham de ficar no exterior da casa, quer estivessem de serviço ou não. Avisei-os de que também eu estaria de serviço, que guardaria a porta do quarto como um cão de guarda.

- Cuidado com os meus dentes! - exclamei. - Cuidado com a ira do Santo Ofício! Estas mulheres estão ao meu cuidado! Se fizerem mal a alguma delas, sofrereis pela vossa contumácia!

Com ameaças deste género, imprimi na minha mal-humorada escolta a necessidade de comedimento. Era certo que eu corria algum perigo, pois estava sozinho, sem qualquer arma que não fosse a minha posição e a minha reputação. Se todos os seis guardas tivessem agido de comum acordo, soltando o seu desejo nas mulheres indefesas, eu não os poderia ter impedido. Nem os poderia ter condenado depois, se eles decidissem matar-me primeiro. Sem dúvida que poderiam forjar uma história convincente: um grupo de hereges armados que tivesse surgido de repente poderia ter sido culpado, e a minha morte atribuída às mesmas forças responsáveis pela morte do padre Agostinho.

Tudo isto me passou pela cabeça enquanto ali estava. Mas eu sabia que, como inquisidor de Depravação Herege, eu era dotado de uma distinção terrível e que inspirava respeito. A ubiquidade do Santo Ofício é tal que só a mais simples das mentes ousaria desafiá-lo. Toda a gente sabe que ofender um inquisidor é convidar a calamidade.

Assim, embora os soldados olhassem indignados, franzissem o sobrolho e resmungassem, não ofereceram resistência. Obedeceram às minhas instruções, desocupando a casa como lhes foi pedido, de forma que fiquei com o domínio absoluto da cozinha e de todo o seu conteúdo. Enquanto despojavam Babilónia das roupas molhadas e sujas, a secavam, a acalmavam, a tornavam a vestir, a abraçavam e, finalmente, lhe davam a beber uma infusão qualquer de ervas, eu fiquei no quarto com Vitalia, a quem fiz um relato algo resumido do incidente que ocorrera no exterior. Porém, quando Babilónia foi colocada na cama, a cozinha foi-me devolvida. Pude aquecer-me à braseira. Pude despir as minhas próprias roupas de cima e secá-las, à medida que ouvia os gemidos e murmúrios vindos do quarto, juntamente com o tom mais rude, embora igualmente abafado, dos guardas que se encontravam junto à porta e que estavam, sem dúvida, a condenar o meu carácter, os meus sentimentos e as minhas acções nos termos mais duros.

Passado pouco tempo, os homens calaram-se. Babilónia continuava a gemer, e, de vez em quando, chorava; eu ouvia Johanna a cantar-lhe, muito suavemente, como que a tentar adormecer um bebé com uma canção de embalar. Para além destes, não se ouvia qualquer som, excepto o crepitar do fogo, que eu alimentava com mão-cheia após mão-cheia de ramos secos. Pouco depois, até isto era demasiado para mim. Deixei que as chamas se apagassem, incapaz de me levantar da mesa, pois estava indescritivelmente cansado. Sentia que, como um elefante, se me deitasse, não me voltaria a levantar. Por isso fiquei sentado, a olhar para a minha mão, que palpitava devido à violenta colisão com o osso malar daquele porco devasso. Não estava a pensar em nada em particular. Estava demasiado cansado para pensar. Na verdade, teria muito provavelmente adormecido enquanto estava sentado, se o súbito aparecimento de Johanna não me tivesse despertado.

Johanna estava de pé a meu lado, antes que eu desse pela sua presença. Quando levantei o olhar, vi que estava vestida com uma roupa interior qualquer, ou camisa de noite - de qualquer maneira, vestia algo fino e cinzento e sem forma. Tinha o cabelo solto. Olhámo-nos durante muito tempo, e a minha mente estava vazia.

Por fim, ela disse, no mais fraco dos sussurros:

- Pensei que nos tínheis traído. Mas enganei-me.

- Sim.

- Eu estava tão assustada.

- Eu sei.

- Ainda estou assustada - embora a voz se lhe embargasse ao proferir estas palavras, reuniu forças para continuar: - Ainda estou assustada, mas recuperei a razão. Perdoai-me. Sei que sois um verdadeiro amigo.

Voltámos a olhar-nos. Como poderei justificar o meu silêncio neste ponto? Confuso pela fadiga, entorpecido pela surpresa, com vertigens de a estar a ver e a ouvir, eu estava sem palavras. Não conseguia dizer nada. Nem sequer conseguia mexer-me.

- Obrigada - disse ela. E quando eu não respondi, ela tapou os olhos com as mãos e desatou a chorar.

Como um clarim, aquelas lágrimas despertaram-me do transe em que me encontrava. Levantei-me de um salto. Abracei-a, e ela agarrou-se a mim, ao mesmo tempo que a filha choramingava no quarto ao lado.

- Não sou corajosa - Johanna soluçava, comprimida contra o meu ombro. - Vi-os arder... vi-os morrer, quando era jovem...

- Shhh.

- Alcaya é corajosa. Vitalia é corajosa.

- Vós sois corajosa.

- Estou assustada! Babilónia sabe!

- Shhh.

- Ela sabe-o! - um simples fio de som. - Não posso reconfortá-la. Estamos perdidas.

- Não.

- Estamos mortas!

- Não.

Que Deus me perdoe, pois sou pecador. Conto-me entre aqueles que descem para o inferno: sou como um homem que não tem força. Mas Tu, ó Senhor, és um Deus cheio de compaixão, e és piedoso, paciente e generoso em misericórdia e verdade. Não nos dizem as Sagradas Escrituras que o amor cobre todos os pecados? Meu bom Deus, eu amava-a. Cada uma das suas lágrimas caíam sobre o meu coração, ferindo-me profundamente. O meu próprio fígado derramou-se sobre a terra. Eu teria feito qualquer coisa para a reconfortar, qualquer coisa para carregar a sua dor. Mas que podia eu fazer? Numa agonia de remorso, apertei-a contra o peito beijando-lhe o alto da cabeça, a orelha, o pescoço, o ombro. Então ela levantou o rosto para mim, e os meus beijos choveram sobre as suas pálpebras fechadas, as faces de seda, as têmporas. Senti um sabor a sal. O cheiro do seu cabelo. Por causa do sabor dos Teus unguentos, o Teu nome é como unguento derramado. Quando eu cambaleei, vencido, ela puxou-me a cabeça para baixo e pousou os lábios nos meus, com firmeza.

Senhor, não me repreendas na Tua ira nem me castigues com o Teu furor. Pois o beijo dela não foi mel e leite - foi um bombardeamento. Uma seta a arder. Não me convidou a demorar-me num pomar de romãs, com agradáveis frutos; agarrou-me e amarrou-me, como um guerreiro. O calor dela pareceu incendiar-me o sangue e dissolver-me as articulações. Dei comigo incapaz de respirar.

Por isso virei a cabeça, abruptamente.

- O quê? - disse ela, olhando em redor. Talvez, por um instante, ela esperasse ver outra pessoa na sala. Mas não havia ninguém.

Entretanto, eu recuara um passo, e esta pequena retirada disse-lhe tudo. Enquanto me olhava, a sua expressão mudou. Soltou os braços do meu pescoço.

- Perdoai-me - sussurrou. Abanei a cabeça, ofegante.

- Perdoai-me - o cabelo caía-lhe sobre o rosto enquanto ela o limpava; de súbito, estávamos separados, e eu voltei a sentir frio. - Perdoai-me, padre - repetiu ela, cansada e arrependida, a voz apagada, a expressão abatida. Então levantou o olhar novamente, com o mais fraco brilho nos olhos. - Não pretendia assustar-vos - acrescentou.

Ora foi aqui que eu pequei com mais gravidade. Porque o meu orgulho foi ofendido, o meu indestrutível orgulho, que era tão sensível como carne queimada e tão vasto como uma montanha. Disse para mim próprio: Sou eu um homem? Sou como um leão entre os animais da floresta, ou bebo do cálice do tremor? E, na mais profunda vaidade de espírito, desconsiderando os meus votos, movido pelo desejo e pela insolência, atraí-a a mim com um sacão, no momento em que ela virava costas; rodeei-a com os meus braços, para poder imprimir nos seus lábios a prova da minha adoração.

Lembrai-vos, por favor, de que eu estava vestido com roupas leves. E Johanna também, e nisso, talvez, fomos infelizes. Mas duvido que uma barreira menos permeável do que uma cota de malha nos tivesse impedido de consumar os nossos desejos. Estávamos surdos aos gemidos de Babilónia e aos murmúrios de Alcaya (embora sempre conscientes de que nós próprios tínhamos de permanecer em silêncio). Ignorámos a proximidade dos guardas, como se a fina cortina de lã que protegia a porta fosse feita de pedra sólida. Sem falar, sem nos soltarmos um ao outro, afastámo-nos da mesa e caímos sobre a minha humilde cama.

O que se seguiu não é um assunto para descrição pormenorizada. Como disse São Paulo, o corpo não é para fornicação, mas para o Senhor. No entanto, também disse: "Vejo outra lei nos meus membros, em luta contra a lei da minha mente, e que me faz cativo da lei do pecado que está nos meus membros. Ó miserável homem que sou! Quem me libertará do corpo desta morte?"

Assim escreveu São Paulo, e se a sua carne estava sujeita à lei do pecado, quem era eu para resistir às armadilhas da concupiscência - ao laço da corrupção? Porque sou de carne, e vendido sob pecado. Obedeci à iniquidade, à indignação e à ira. Fiz do corpo de Johanna o meu templo, e adorei-o. Acreditai quando digo que fui culpado. Pois pequei livremente, com todo o meu coração.

Contudo, pequei através do amor, e as Sagradas Escrituras dizem-nos que o amor é tão forte como a morte; muitas águas não o podem destruir, nem as cheias o podem extinguir. É que ele próprio é uma cheia! Arrastou-me como um galho, e eu estava a afogar-me - a lutar -, sem fôlego, enquanto Johanna, os braços em volta do meu corpo, parecia puxar-me para baixo, para baixo, para baixo, para um descuidado e liquescente estado de êxtase.

Era ela que conduzia, eu quem seguia. Fere-me o orgulho dizer isto, mas Eva, afinal, foi a guia de Adão na busca da iniquidade. Ou será que eu era atraído, como uma ovelha? É certo que ela era tão terrível como um exército com estandartes, o seu toque forte e seguro, a sua paixão feroz.

- Sois tão bonito - foi tudo o que ela disse (ou soprou ao meu ouvido, pois, por necessidade, a nossa conjunção era extremamente silenciosa"). Eu quase ri quando ela o disse, pois ela era tão bela como a Lua e tão clara como o Sol, enquanto que eu - que sou eu, senão um rato de biblioteca, descorado, insípido, meio calvo, delgado?

Ainda me confunde o facto de ela desejar este velho corpo de monge.

Gostaria de dizer que festejei sobre lírios, que apanhei a minha mirra com o meu paladar, e que desci ao jardim das nogueiras para ver os frutos do vale. Mas não houve tempo para um prazer lânguido. O acto com o qual nos conspurcámos foi curto, impetuoso e sem graça - e não macularei os vossos olhos com mais uma palavra que seja sobre o assunto. Bastará dizer que depressa estávamos novamente em pé, mexendo desajeitadamente nas nossas roupas. De repente, os ruídos vindos do quarto pareciam ameaçadores, e muito próximos.

Pouco dissemos. Não havia necessidade de palavras. A minha alma estava unida à dela - falávamos com beijos e olhares. Mas observei, baixinho, que ela podia dormir em paz, pois eu ficaria a guardá-la.

- Não, não ficareis - sussurrou ela. - Também dormireis - e, quando abanei a cabeça, com um sorriso pesaroso, ela levou a mão à minha face, fixando-me com o seu olhar límpido e inteligente.

- Este pecado não foi vosso - disse ela. - Se foi de alguém, foi meu. Não permitais que ele se transforme numa úlcera. Não sejais como Agostinho.

- Infelizmente, não há esse perigo. Não sou como o padre Agostinho.

- Não - embora a voz dela fosse calma, era também enfática.

- Não sois como ele. Vós estais todo aqui. Estais completo. Amo-vos.

Ó Deus, Tu conheces a minha loucura; e os meus pecados não estão escondidos de Ti. As palavras dela encheram-me de uma alegria que era como a dor. Baixei a cabeça, a reprimir as lágrimas, e senti os lábios dela na minha fonte.

Em seguida ela regressou para a sua cama. Quanto a mim, obedeci à ordem dela. Dormi, embora o meu coração estivesse cheio. Dormi e sonhei com jardins perfumados.

 

Conheceremos a verdade

No dia seguinte, não houve oportunidade para namoriscar: havia muita coisa para fazer. Os cavalos tinham de ser alimentados e selados; tinha de ser consumido um magro repasto; vTtalia tinha de ser vestida e levada para o exterior. Então, depois de as outras mulheres terem colocado em sacos de couro e de fustão bens que podiam ser facilmente transportados, descobriu-se que Alcaya nunca montara um cavalo na vida. Deparados com a difícil e traiçoeira viagem a cavalo até Casseras, decidimos, assim, que ela devia acompanhar um dos soldados, enquanto que o cavalo posto de parte para ela devia ser usado para carregar bagagem.

Continuava a chover irregularmente; o caminho para a forcia era um rio de lama. Poucas palavras foram trocadas enquanto escolhíamos o caminho por encostas escorregadias, cada passo tão perigoso como o último. Eu estava particularmente atrapalhado, pois Vitalia ia sentada à minha frente (ela teria escorregado, se fosse colocada atrás), a bloquear-me a vista e interferindo com o meu domínio das rédeas. Não creio que Star sentisse sequer o peso dela, pois ela era como um feixe de lenha seca para atear fogo - um sopro tê-la-ia feito cair. Contudo, o terreno, o tempo, e a ocupação da minha sela por ela serviram para nos atrasar. Já o dia estava amplamente claro, quando chegámos a Casseras.

Aqui juntaram-se a nós os outros soldados, tão animados quanto os camaradas estavam mal-humorados e azedos. Estes quatro felizardos tinham passado uma noite seca no palheiro de Bruno Pelfort; Via-se, pelo seu ar satisfeito, que nenhum dominicano santimonial interferira nas suas actividades devassas. A aldeia, na verdade, tratara-os bem, mas quando incitados pelo padre Paul para que ficassem mais algum tempo - ou, pelo menos, até que a chuva abrandasse - não quiseram ouvir. Tinham recebido as suas ordens, e essas ordens eram para que regressassem logo. Uma chuvinha nunca fez mal a ninguém, declararam.

Eu aditei uma excepção a esta observação, pois era bastante evidente que a chuva não estava a ter um efeito salutar sobre Vitalia. Os pulmões dela chiavam e chocalhavam; os lábios estavam azuis, as mãos frias como pedra. A maior parte do tempo, eu fora obrigado a ampará-la, mantendo-a direita com uma mão em volta da sua cintura, enquanto guiava a minha montada com a outra. Quanto mais avançávamos no caminho, mais terrivelmente receoso eu ficava de que ela morresse na viagem. E embora eu não revelasse este medo (considerando a presença de Babilónia), exprimi a minha forte convicção de que a viagem deveria ser realizada por etapas, mesmo que levasse vários dias.

Mas a minha sugestão foi rejeitada.

- Quanto mais tempo levarmos, mais arriscado será - insistiu a minha escolta. - As mulheres podem fugir. Além disso, não estamos preparados para uma viagem longa. E a chuva vai terminar em breve. Devíamos ir avançando.

E assim fizemos. Seguindo à frente de Johanna, mal me era dado lançar-lhe um olhar; embora eu olhasse para trás, uma ou duas vezes, vi apenas a parte de cima da sua cabeça, pois ela estava atenta à estrada, não fosse cair nalgum buraco ou deparar com qualquer outro obstáculo. Felizmente, tendo chegado a Casseras, tínhamos completado a parte mais difícil da nossa viagem, e, a partir de Rasiers, prosseguimos com relativa facilidade. Não tínhamos nada a recear de salteadores, é claro. Quanto à chuva, parou antes do meio-dia. Só Vitalia não melhorava com o passar do tempo; a sua cor tornou-se muito má, a respiração ainda pior, e, à medida que nos aproximávamos das portas de Lazet, logo após as Vésperas, ela ficou inconsciente, caindo para a frente, para o pescoço de Star, ao mesmo tempo que eu lutava para a manter na sela.

Não era um agradável regresso a casa. Babilónia, convencida de que a amiga estava morta, começou a choramingar, atirando-se perigosamente do cavalo, o que a deixou com um joelho ferido. Alcaya também tentou desmontar, mas foi impedida pelo soldado que montava com ela. Outro soldado ajudou-me a colocar Vitalia no chão, enquanto que um par de franciscanos que passava - visitantes, segundo parecia, vindos de Narbonne - parou para prestar auxílio. Depois, como Alcaya argumentava e Babilónia soluçava, e os dois frades me asseguraram que um deles era sacerdote, capaz de executar a extrema-unção, se fosse necessário, tirou-se um cobertor de um dos sacos de couro de Johanna. Transportado entre quatro soldados, foi usado para carregar Vitalia durante o trecho final da sua viagem para a prisão.

Devagar, aproximámo-nos das torres das portas de Narbonne. Devagar, passámos por baixo da sua abóbada cavernosa. Uma vez que Babilónia já não podia montar, juntou-se a mim no meu cavalo, onde se sentou com o rosto enterrado entre os meus ombros, a chorar até que o meu manto e a minha túnica e o meu escapulário, ainda húmidos devido à chuva da manhã, voltaram a ficar encharcados. À medida que entrávamos na cidade, a procissão que constituíamos atraiu muitos olhares curiosos, e não menos da parte dos soldados da guarnição e dos cidadãos que se encontravam de guarda, estacionados ao longo das muralhas. Alguns deles lançaram perguntas à minha escolta relativamente ao número de cavalos sem cavaleiro que faziam parte da nossa cavalgada - dando origem a respostas curtas e blasfemas. Alguns ofereciam-se para levar os cavalos, enquanto que outros faziam observações grosseiras sobre as prisioneiras. Uma vez que as mulheres desconsideraram estes comentários, também eu seguia em paz, relutante em perturbar Babilónia. Mas tomei nota dos homens que tinham sujado o ar com tal linguagem obscena. Mais tarde, talvez eu os visse castigados.

Embora encontrássemos, a caminho da sede, muitas pessoas que eu conhecia, o meu rosto sombrio e sujo afastava perguntas; na verdade, afastava qualquer tipo de observações. Johanna montava de cabeça baixa, regiamente direita, mesmo depois de uma viagem tão longa e difícil. Junto à muralha sul, uma pequena multidão de matronas, pedintes, crianças e velhos interromperam as conversas para nos verem passar; uma mulher, tendo-me identificado, perguntou à pessoa que se encontrava ao lado se a mulher que montava comigo era herege.

Um rapazinho cuspiu para cima de Vitalia. Um carpinteiro chamado Astro genuflectiu.

Chegámos ao nosso destino no momento exacto em que as janelas do céu se abriam. Desmontando à chuva, chamei Pons e solicitei ajuda imediata. Em seguida entreguei Babilónia aos cuidados da mãe, antes de passar a dar instruções ao carcereiro, que estivera a inspeccionar o cadáver de um prisioneiro, quanto à forma e à qualidade do isolamento das minhas prisioneiras.

- Estas mulheres ficarão juntas - disse eu, chamando-o à parte. - Colocá-las-eis na casa dos guardas, no piso de cima.

- Na casa dos guardas? - protestou Pons. - E para onde vão os familiares?

- Se os familiares desejarem comer e dormir, podem fazê-lo convosco - eu subira as escadas até às instalações dele, que compreendiam uma cozinha ampla e dois quartos, abundantemente mobilados. Olhando em redor, não vi provas de que não podiam ser ali mais pessoas alojadas. - Quaisquer cobertores ou lençóis que as mulheres possam necessitar devem ser-lhes dados à-vontade. Quero-as alimentadas da vossa própria mesa.

- O quê?! - exclamou a mulher do carcereiro.

- ... e, se possível - continuei, ignorando-a -, mandarei vir comida do priorado. Estas mulheres não são vossas prisioneiras, Pons, são vossas convidadas. Se forem maltratadas, podereis esperar o mesmo.

- De quem? - perguntou o carcereiro, movido à insolência pelas minhas exigências. - Ouvi dizer que já não fazeis parte do Santo Ofício.

- Ter-me-iam enviado ao serviço do Santo Ofício, se já não fizesse parte do Santo Ofício? Uma das mulheres está muito doente, por isso quero que lhe deis caldo de carne e coisas do género. Comida para doentes. E se o estado dela inspirar cuidados maiores, - estais a compreender? - Devo ser imediatamente informado. Independentemente da hora. Ah! E se alguma das mulheres quiser consultar-me, devo também ser informado.

Pons resfolegou. A mulher olhava, indignada. Talvez eu devesse ter sido menos brusco, e mais macio com a dignidade deles. Talvez eu tivesse tido em consideração as perguntas que seriam feitas relativamente à minha preocupação com o bem-estar de Johanna. Mas eu estava ansioso para que as mulheres fossem devolvidas ao conforto o mais depressa possível. Estava determinado a que Vitalia não morresse à porta da prisão. Estava com medo de que Pierre-Julien aparecesse e contrariasse as minhas instruções.

- Há armas na casa dos guardas - referiu Pons. - Lanças. Combustível. Algemas sobressalentes.

- Tirai-as de lá.

- Mas aonde é que as ponho?

- Na masmorra.

- Há um prisioneiro na masmorra.

- Um prisioneiro?

- Um prisioneiro novo. Eu disse-vos que tínhamos gente a mais! Eram estes os obstáculos colocados no meu caminho. No entanto, venci; a casa dos guardas foi libertada de todos os artigos, com excepção da mesa, bancos, camas e balde dos despejos. Foram instaladas duas enxergas, e colocaram-se lençóis limpos. Só os meus desejos em relação à braseira é que foram contestados; tendo-a trazido de Casseras, eu tivera esperança de colocá-la junto à cama de Vitalia. Mas Pons avisou-me de que ela seria usada para incendiar a prisão.

- Não será nada - disse eu.

- Padre, é contra as regras!

- Vitalia deve manter-se quente durante a noite.

- Nesse caso, as amigas podem dormir com ela. Recusou-se a deixar que a braseira fosse acesa. O padre Pierre-Julien - disse ele- não permitiria tal quebra dos regulamentos. E sabendo que isso, quase de certeza, era verdade, capitulei. A todo o custo, eu estava determinado a que Pierre-Julien permanecesse ignorante em relação às ordens que eu dera com respeito a Johanna de Caussade.

- Não pode haver fogo - disse-lhe eu, quando ela foi trazida para a casa dos guardas. - Mas se precisardes de mais cobertores, o carcereiro trá-los-á.

- Obrigada - murmurou ela, olhando para os ganchos na parede. Estava a apertar Babilónia, que estava agarrada a ela como uma criança.

- As noites não estão muito frias - esta observação foi feita tanto para me tranquilizar a mim como a ela própria. - Quando estiverdes seco, sentir-vos-eis mais quente.

- Sim.

Então Alcaya entrou.

- Ena, isto é um palácio! - exclamou. Alcaya permanecera animada durante a viagem, excepto quando se irritou com os actos dos guardas. - Está tão seco como ossos velhos, e suficientemente grande para dez pessoas! Padre, certamente que o vosso próprio mosteiro não pode oferecer tal conforto!

Mais confiante, Babilónia levantou o olhar. Até a expressão de Johanna mudou. Só Vitalia, que estava a dormir, e os familiares que a traziam entre si, e que estavam ressentidos por terem perdido a sua casa dos guardas, não foram contagiados pela disposição viva de Alcaya. Na verdade, esta mulher possuía uma alma alegre. Com grande prazer, ela fez com que reparássemos no chilrear dos pássaros, que se encontravam em grande número em volta da muralha da cidade, construindo ninhos e alimentando-se entre as torres.

- As nossas irmãzinhas cantarão para nós - disse ela, resplandecente. E que bom é voltar a ouvir sinos! Esta sala tem muita luz. Poderei ler se me sentar debaixo da janela.

- Não são permitidas lamparinas - disse-lhe eu. - Perdoai-me. Mas os corredores estão sempre iluminados, por isso haverá alguma luz, mesmo quando a noite cair. Estais com fome? Desejais comer?

- Precisamos de água - respondeu Johanna.

- Com certeza.

- Precisamos da nossa bagagem.

- E tê-la-eis.

- E vós, onde estareis? - perguntou ela, a angústia e a ânsia no olhar. Eu queria beijá-la, mas tinha de me contentar ao colocar-lhe uma mão no braço.

- Se precisardes de mim, virei. Mandar-me-ão chamar. E visitar-vos-ei muitas vezes.

- Talvez nos possais emprestar mais alguns livros - disse Alcaya, contente. Era um pedido insolente, mas fez-nos sorrir a todos. Sem dúvida que fora formulado exactamente com esse objectivo.

- Talvez - respondi. - Talvez eu peça ao bispo para que vos visite. - Oh, sim. Seria agradável. Os bispos são sempre boa companhia.

- Não o bispo Anselm. Mas farei o melhor que puder. E agora tenho de ir tratar da vossa bagagem, e da água. Mais alguma coisa? Não? Tentai descansar. Ver-me-eis de novo, antes das Completas.

- Padre... - era Johanna que falava. Tocou-me a mão, e deixou os dedos aí descansarem. Senti aquele toque propagar-se pelo meu corpo todo. - Padre, o que acontecerá agora?

- Dormi - disse eu, sabendo que ela estava apenas a tentar reter-me. Como eu desejava ter podido ficar! - Primeiro uma refeição, depois dormir. Amanhã voltarei.

- E Vitalia...?

- Se precisardes de mim, o carcereiro mandar-me-á chamar. Se precisardes de um sacerdote, trarei um.

E, tendo-a acalmado com muitas outras certezas, saí. Nas instalações de Pons encontrei a bagagem que faltava; foi despachada para a casa dos guardas, juntamente com uma selha de água e uma tigela de sopa. Falei com todos os familiares de serviço, deixando bem claro que, se as mulheres fossem molestadas, ofendidas ou simplesmente incomodadas durante a noite, a ira de Deus se abateria sobre o agente de tal provocação. Em seguida visitei a sede do Santo Ofício, onde encontrei Durand e o irmão Lucius no escritório.

- Padre! - exclamou Durand. Estava debruçado sobre a secretária de Raymond, com a cabeça apoiada numa mão, enquanto virava languidamente as páginas do livro de registo que tinha à frente.

Lucius estava a afiar uma pena.

- Onde está o padre Pierre-Julien? - perguntei, ignorando as saudações de ambos. - Já saiu para as Completas?

- Padre, não o vimos o dia todo - foi a resposta de Durand. - Disse-me que eu devia estar sempre por aqui, mas ele próprio não está disponível.

- Onde está ele? Durand encolheu os ombros.

- Está doente? Tivestes notícias dele?

- Sim, padre - o notário parecia estar a examinar o meu rosto, talvez as manchas da viagem estivessem a chamar-lhe a atenção. - Quando Jordan chegou, enviei um recado para o priorado, e a resposta foi do padre Pierre-Julien. Disse-nos que tivéssemos paciência.

- Quando Jordan chegou? - eu mal podia acreditar no que ouvia. - Referes-te a Jordan Sicre?

- Sim - disse Durand.

- Ele está aqui?

- Sim, padre. Chegou esta manhã. Mas ninguém falou com ele.

- Nesse caso serei o primeiro. Irmão, tendes a gentileza de ir buscar os irmãos Simon e Berengar? Durand, preparas o teu equipamento, por favor? Vou precisar que faças a transcrição - olhando para a janela, vi quanto era tarde, e perguntei a mim próprio que desculpa arranjaria para faltar às Completas. - Jordan pode ser interrogado na sala do padre Pierre-Julien - e continuei, para observar: - uma vez que não está ocupada neste momento. Vou falar com Pons. Isto vem mesmo a calhar.

- Padre...

- O quê?

Durand olhou-me, a testa franzida. Por fim, disse:

- Ainda estais... quer dizer... pensei que...

- Sim?

- Não abandonastes as vossas funções?

Apressei-me a assegurar-lhe que, se eu fosse demitido do Santo Ofício, ele seria o primeiro a saber. E tendo-o descansado desta forma, fui perguntar a Pons sobre Jordan Sicre.

O carcereiro informou-me, com taciturno desrespeito, que Jordan era o prisioneiro que se encontrava lá em baixo na masmorra. Vinha acompanhado de uma carta dirigida a mim. A carta estava agora com o irmão Lucius. A escolta de Jordan - quatro mercenários catalães - já deixara Lazet. Pons não recebera quaisquer ordens do padre Pierre-Julien em relação ao novo prisioneiro.

Se eu o queria, era bem-vindo. E ali estavam as chaves.

- Vou precisar também de um guarda.

- Com Jordan não. Tem os pés e as mãos amarrados.

- Isso é necessário?

- Ele conhece a prisão, padre. Alguns dos guardas são camaradas dele. Mas vós é que sabeis, claro.

Como ele estava irritado! Considerei-o despropositado, e virei costas sem lhe agradecer. Mas depois de me ter lembrado de um último assunto importante, depressa voltei para trás.

- Alguém esteve a falar com Jordan? - perguntei.

- Eu disse-lhe que era um verme.

- Mas não houve conversas longas? Ninguém lhe contou coscuvilhices?

- Que eu saiba, não.

- Óptimo.

Eu tinha consciência de que o meu interrogatório teria mais êxito se o seu objecto não tivesse conhecimento dos recentes acontecimentos relacionados com o Santo Ofício. Sabia também que se correriam menos riscos se eu conduzisse esse interrogatório na masmorra. Assim, voltei ao escritório, informei Durand da minha mudança de planos, e procurei na secretária do irmão Lucius a carta que viera da Catalunha.

Fora redigida pelo bispo de Lerida, que, juntamente com um beleguim local, tinham prendido Jordan Sicre e confiscado a sua propriedade. Informava-me de que o prisioneiro usava um nome falso, e também que acusara alguns vizinhos de serem hereges; dizia-me também que ele mencionara um perfeito, um fugitivo da minha própria prisão, antigo residente da diocese de Lerida que agora, infelizmente, desaparecera de repente.

Por breves instantes, perguntei a mim próprio onde "S" poderia estar. Onde quer que ele estivesse, eu desejava-lhe sorte.

- Padre?

Levantei o olhar. Durand estava ainda sentado à secretária, na mesma posição desleixada, as penas e o pergaminho muito arrumados à sua frente. Coçava a face barbada, enquanto eu esperava.

- Padre, tenho de vos dizer - disse ele. - O trabalho do irmão Lucius tornou-se muito desmazelado.

- O trabalho dele?

- Olhai - chamando a minha atenção para os fólios empilhados no chão, preparados para encadernar, Durand indicou o tamanho e a irregularidade do texto, assim como certos erros lá contidos. - Estais a ver - hoc em vez de haec, como se não soubesse fazer a distinção entre ambas as palavras.

- Sim. Estou a ver - eu via, e estava admirado. - Mas costumava estar tudo tão bem!

- Agora já não.

- Não. Isso é evidente - escandalizado, devolvi o ofensivo documento ao meu companheiro. - Isto é muito humilhante. Eu devia ter reparado antes.

- Tendes estado ocupado com outros assuntos - respondeu Durand (um pouco generosamente, pensei). Só quando se trabalha com ele é que se torna evidente.

- Mesmo assim... - fiquei a pensar, por um instante. - Tens alguma ideia por que motivo é que esta mudança poderá ter acontecido?

- Nenhuma.

- A mãe dele... sabes se a mãe dele adoeceu, ou...

- Talvez.

- E informaste o padre Pierre-Julien sobre este problema? Durand hesitou.

- Não, padre - disse, por fim. - O irmão Lucius é boa pessoa. E o padre Pierre-Julien é tão... bem...

- Desprovido de tacto - terminei. - Insensível.

- Ele podia revelar que eu era o instrumento...

- Isso mesmo - eu compreendia perfeitamente. - Não tenhas medo, meu amigo. Eu próprio tratarei do assunto, e o teu nome não será mencionado.

- Obrigado, padre - disse Durand em voz baixa. E, nesse ponto, o próprio Lucius regressou com Simon e Berengar, interrompendo o nosso diálogo.

Estava na hora de interrogar Jordan Sicre.

Deveis compreender que há um procedimento a seguir, quando se examina uma testemunha ou um suspeito, quer tenham sido intimados quer tenham aparecido de sua própria vontade. Em primeiro lugar, após ter sido calma e discretamente intimado e avisado pelo inquisidor ou pelo representante do inquisidor, a testemunha ou o suspeito é obrigado a jurar sobre as Sagradas Escrituras que dirá toda a verdade e nada mais do que a verdade sobre o assunto de heresia, assim como sobre tudo o que dela advenha ou que, de alguma forma, esteja relacionado com o ofício da Inquisição. Deverá fazê-lo em relação a si próprio como centro de um processo, e como testemunha no caso de outras pessoas, vivas ou mortas.

Uma vez feito e registado o juramento, o sujeito é vivamente exortado a dizer a verdade. No entanto, se solicitar tempo ou oportunidade para pensar de forma a poder dar uma resposta mais ponderada, tal poder-lhe-á ser concedido se parecer conveniente ao inquisidor - especialmente se ele parecer estar a agir de boa-fé, e não com astúcia. Senão, é exigido que ele testemunhe imediatamente.

Ora Jordan Sicre não solicitou tal adiamento - não sabendo, talvez, que estava no direito de o pedir. De forma semelhante, não solicitou provas de infâmia nem perguntou quais eram as acusações contra ele (assim acontece com muitos acusados iletrados, que, ao fazê-lo, me permitem uma grande liberdade nos meus procedimentos). Contudo, ele dava-me a ideia de ser um homem inteligente, pois foi suficientemente sensato ao recusar-se a abrir a boca e ao não adiantar nada enquanto não fosse interrogado. Do seu canto da masmorra, onde fora algemado à parede, a pouca distância daquele instrumento de tortura conhecido como roda, Jordan, em silêncio, observava Durand, Simon e Berengar, que se sentavam nos lugares que lhes eram reservados.

Era um homem atarracado, de ombros largos, pele morena, malares pronunciados e olhos muito pequenos. Tinha uma ampla nódoa negra a florir-lhe na fonte. Reconheci-o imediatamente.

- É claro! - disse eu. - Lembro-me de vós. Fostes aquele que me salvou de Jacob Galaubi.

Não obtive resposta.

- Estou-vos muito grato por me terdes preservado a virtude. Muito grato mesmo. Mas receio que isso não tenha nada a ver com as presentes circunstâncias. Que pena terdes cedido à tentação! É claro, disseram-me que a recompensa era considerável. Uma bela quinta, três dúzias de ovelhas, uma mula. Estou correcto?

- Duas dúzias - emendou ele, com voz rouca.

- Ah. Mesmo que tivessem sido duas dúzias - mesmo assim teria sido necessária alguma ajuda.

- Contratei um homem. E uma criada.

- Uma criada! Que opulência! Há anexos?

- Sim.

- Descrevei-mos.

Ele assim fez. À medida que o interrogava sobre a disposição das divisões da sua casa, sobre os instrumentos e os utensílios de cozinha que ele lá tinha, sobre as pastagens circundantes e o conteúdo da horta, ele tornava-se mais loquaz, soltando a sua postura rígida e cansada na alegria da lembrança. Era evidente que esta quinta constituía o auge da sua ambição - o desejo do seu coração -, a sua única fraqueza. Era a fenda na sua carapaça de pedra.

Deixei-o falar até que a fenda alargasse um pouco. Inseri, então, a ponta do meu punhal.

- Quer dizer que pagastes, penso, cerca de cinquenta livres tournois por essa desejável propriedade? - perguntei.

- Quarenta e oito.

- Uma soma considerável.

- Herdei o dinheiro. De um tio.

- A sério? Mas Raymond Donatus afirma que vo-lo deu.

A mentira tinha o objectivo de abalar as defesas de Jordan, e é certo que ele ficou abalado. Embora a sua expressão continuasse indiferente, um movimento involuntário dos seus olhos disse-me que eu tocara num ponto sensível.

- Raymond Donatus nunca me deu dinheiro nenhum - disse ele. Reparando que ele usava o tempo presente, alegrei-me. Era óbvio que ele não tinha conhecimento do recente falecimento de Raymond.

- Então não fostes pago para deixar entrar as mulheres dele na sede? - inquiri.

De novo, os olhos dele moveram-se. Pestanejou várias vezes. Era ansiedade, aquilo que eu via, ou alívio?

- É tudo mentira - disse ele. - Nunca deixei entrar mulheres nenhumas na sede.

- Nesse caso, estais a ser falsamente acusado?

- Sim.

- Um dos vossos camaradas confirma o testemunho de Raymond. Ele próprio foi pago para deixar entrar as mulheres de Raymond, e diz que vós também fostes.

- Mentiras.

- Por que mentiria ele?

- Porque eu não podia defender-me.

- Então éreis fácil de acusar porque estáveis ausente?

- Sim.

Insisti neste assunto da entrada proibida, como se fosse de grande importância. Detive-me nele, falei em volta dele, e fingi estar indignado pelo facto de ter ocorrido fornicação nas instalações do Santo Ofício. Falei de provas: de "manchas vis e ímpias", de roupa interior de mulher, de certas ervas que impedem a mulher de conceber. Com várias observações equívocas, eu até dei a impressão de sugerir que o dinheiro usado para comprar a quinta de Jordan era o dinheiro que lhe foi pago por ajudar Raymond a seduzir criadas.

Desta forma, fi-lo entrar num estado de confusão: em primeiro lugar, porque falar de união carnal faz distrair qualquer homem na Primavera da vida; em segundo lugar, porque ele estava à espera de ser acusado de homicídio, e, em vez disso, foi instado a defender-se de acusações menores. Tendo negado cumplicidade desde o início, ele era obrigado a manter-se firme, cansando-se com uma infracção menor, quando devia ter estado a poupar as forças. Pois não tenhais dúvidas: mentir é cansativo. É preciso estar-se alerta e seguro, se se deseja mentir de forma convincente, repetidas vezes. À medida que o interrogatório se arrasta, a concentração torna-se menos fácil, e, consequentemente, é mais difícil apresentar uma combinação de mentiras sem falhas.

Jordan cometeu o seu primeiro erro debaixo da pressão da minha lasciva especulação. Há alguns sacerdotes que afirmam deplorar as muitas variedades diabólicas e degeneradas da cópula, mas cuja satisfação, à medida que extraem descrições destes actos, e os classificam e condenam publicamente, sugere que retiram um prazer repreensível da contemplação da imoralidade lasciva. Imitando tais sacerdotes, eu insistia nos benefícios que Jordan poderia ter recebido das mulheres perseguidas por Raymond Donatus. Apliquei-lhe um interrogatório perfeitamente obsceno, repleto de actos ordinários, que, asseguro-vos, ultrapassavam os limites do crível - actos que eu encontrei uma vez, com grande choque, num ritual de penitências irlandês.

Perguntei, por exemplo, se Jordan empregara certos objectos quando fornicava com as mulheres de Raymond. Perguntei-lhe se derramara a sua semente noutro lugar que não fosse um útero. Perguntei-lhe se pedira às mulheres que executassem quaisquer carícias perversas, que comessem ou sugassem ou excretassem alguma coisa, que recitassem palavras santas ou sugestões obscenas no decorrer destas depravações...

Oh, mas o melhor é passar à frente. Bastará dizer que Jordan se defendia tenazmente, e com crescente enfado, à medida que eu envenenava o ar com observações libidinosas (os pobres Simon e Berengar estavam tão vermelhos como o sangue das uvas, e até Durand parecia embaraçado). Finalmente, quando afirmei falsamente que falara com uma das mulheres acima mencionadas, que tinha acusado Jordan de sodomia, o objecto desta acusação infundada perdeu a calma.

- Isso não é verdade! - gritou. - Nunca fiz isso! Nunca fiz nenhuma dessas coisas!

- Só cópula viril como mandam as leis da natureza?

- Sim!

- Sem qualquer profanação da cadeira do inquisidor nem uso obsceno das penas ou do pergaminho do Santo Ofício...?

- Não!

- Só fornicação simples no chão da sala do padre Agostinho.

- Sim - disse ele bruscamente, fazendo depois uma pausa, ao aperceber-se do que dissera. - Quer dizer...

- Não tenteis negar o que acabastes de afirmar - interrompi. - A vossa vergonha é compreensível, mas mentir sob juramento é um pecado maior do que a fornicação. Se estais verdadeiramente arrependido, Deus perdoar-vos-á. E o Santo Ofício também vos perdoará. Agora... introduzistes ou não mulheres impuras nas instalações do Santo Ofício em troca de pagamento?

Jordan suspirou. Já não tinha força para resistir num assunto de importância tão trivial. Além disso, eu dera-lhe uma pequena dádiva de esperança.

- Sim - admitiu.

- E usastes esses pagamentos para comprar uma quinta na Catalunha?

- Sim.

- Isso foi antes ou depois de terdes desaparecido?

Jordan pensou por um momento. Evidentemente, ocorreu-lhe que as datas da compra podiam ser verificadas.

- Depois - disse, por fim.

- Quer dizer que leváveis convosco quarenta e oito livres tournois quando fostes para Casseras com o padre Agostinho?

- Sim.

- Porquê?

- Porque costumava andar sempre com eles. Senão podiam roubar-mos.

- Compreendo - embora eu considerasse esta explicação absurda, nem a minha voz nem o meu rosto traíram qualquer sinal de dúvida. - Contai-me o que aconteceu nesse dia - continuei. - No dia da morte do padre Agostinho.

Há quanto tempo é que ele estava à espera deste interrogatório? Quase com alívio, Jordan atirou-se ao relato, falando depressa e sem alterar a voz.

- Eu estava a sentir-me mal - disse ele. - Alguma coisa que tinha comido na forcia, talvez - e queria vomitar. Por isso deixei-me ficar para trás, e disse aos outros que esperassem por mim em Casseras...

- Esperai! - levantei a mão. - Do princípio, por favor. Quando é que recebestes instruções para vos juntardes à escolta do padre Agostinho?

Mais uma vez, o meu objectivo era cansá-lo - e dar-lhe confiança. Com ar satisfeito, eu ouvia o relato, não proferindo quaisquer objecções perspicazes, mas apenas sons encorajadores. De vez em quando pedia-lhe que desse mais pormenores, ou para repetir o que dissera relativamente à cronologia dos acontecimentos, e ele fazia-o com facilidade, descuidadamente, até que chegámos ao momento em que ele "se deixara ficar para trás". Então a sua narrativa tornou-se algo mais elaborada, embora de uma forma que poucas pessoas poderiam facilmente perceber. Compreendeis, é que quando uma história não é verdadeira mas fabricada, é mais difícil para o narrador isolar espontaneamente qualquer parte dela em particular. Porque não experimentou o que afirma ter experimentado, não pode valer-se da memória. Consequentemente, se o seu testemunho for interrompido, ele repeti-lo-á desde o início, de forma a manter em ordem a sequência lógica dos acontecimentos. Uma pessoa que está a dizer a verdade não precisa de se preocupar com a coerência lógica. Relatará simplesmente aquilo de que se lembra, sem se preocupar com inconsistências.

Dizia o prisioneiro que se sentira mal, e fora obrigado a desmontar pouco depois de terem deixado aforcia, na viagem de regresso a Casseras.

Depois, tendo descansado durante algum tempo, Jordan prosseguira (neste ponto, perguntei-lhe em que sítio é que despejara a sua preciosa refeição, ao que me foi respondido que tivera o cuidado de vomitar num pedaço de vegetação rasteira, onde poderia ter passado despercebida. Era um homem inteligente, este Jordan).

Passado pouco tempo, ouvira um pequeno grito e vários outros sons assustadores que lhe disseram que o grupo do padre Agostinho estava a ser atacado algures mais à frente na estrada. No entanto, à medida que ele avançava, os sons tinham diminuído, sugerindo que o confronto terminara. Mas quem tinha vencido? Inquieto, Jordan ocultara o cavalo e escondera-se atrás de uma rocha, à espera de encontrar a resposta à sua pergunta.

- Não queríeis caminhar para uma emboscada, vós próprio - disse eu, solidário.

- Pois não.

- Sabendo que, se os outros tivessem sido mortos, vós próprio não teríeis hipótese.

- Exactamente.

- E que aconteceu depois?

Depois a égua do padre Agostinho passara por ele a galope com a sela vazia. Fora seguida por um homem que montava o cavalo de Maurand e que apanhara o animal fugido, trazendo-a de volta, colina abaixo.

Após ter testemunhado este acontecimento, Jordan apercebeu-se de que os seus camaradas tinham sido derrotados, e, muito provavelmente, chacinados. Por isso, esperara durante algum tempo, antes de se aproximar da cena do massacre, sub-repticiamente, a pé. Ao fazê-lo, mantivera-se o mais possível junto ao caminho, e, consequentemente, assistira à fuga de dois homens que tinham subido a colina em cavalos roubados.

Naturalmente, solicitei uma descrição completa destes homens. Jordan respondeu que um estava vestido de verde, e que o outro usava um chapéu vermelho, mas que tinham passado demasiado depressa para que ele visse mais alguma coisa.

- Havia neles alguma coisa de anormal? - inquiri. - Nada que vos tenha impressionado particularmente?

- Não.

- Absolutamente nada que vos tenha chamado a atenção? Mesmo naquele breve instante?

- Não.

- Quer dizer que o facto de estarem cobertos de sangue não vos pareceu especialmente digno de nota?

Criatura idiota! Ele hesitou, e eu pensei para comigo: Este homem está a mentir. Pois se ele, de facto, tivesse visto os assassinos, teria reparado no sangue coalhado, antes de mais nada. "Vestido de verde", sinceramente!

No entanto, abstive-me de comentar, e mantive o comportamento solidário.

- Pensei que vos referíeis à altura, ou... ou à cor do cabelo - balbuciou, após uma curta pausa. - Naturalmente, estavam cobertos de sangue.

- Naturalmente. E depois, que fizestes?

- Continuei até chegar à clareira. Onde estavam os corpos. Era uma coisa terrível de se ver - (mesmo assim, a voz de Jordan era calma quando a descrevia). - Todos cortados em pedaços. Olhei em redor, mas vi que não restava ninguém com vida, por isso afastei-me novamente.

- Vomitastes?

- Não.

- A vossa barriga já estava recuperada por essa altura? Devo confessar que uma imagem daquelas me teria dado a volta ao estômago.

Houve um longo silêncio. Depois de ter pensado, Jordan observou:

- Vós não sois soldado. Os soldados têm de ser fortes.

- Compreendo. Bem, continuai. E depois?

Depois, Jordan passara algum tempo a pensar. Ocorreu-lhe que, como único sobrevivente, sem dúvida que recairiam sobre ele suspeitas de cumplicidade neste crime horrível. O Santo Ofício haveria de querer culpar alguém. Talvez fosse melhor se ele desaparecesse, se fugisse para as montanhas e comprasse uma quinta. Afinal, tinha o dinheiro com ele.

- E foi o que fiz - concluiu.

- E foi o que fizestes. Mas foi um disparate, meu amigo. Se estiverdes inocente, não precisais de ter medo do Santo Ofício.

Em resposta, Jordan limitou-se a resfolegar.

- Por minha honra, nós não condenaríamos sem razão - insisti. - Durand, tens a amabilidade de ler em voz alta a transcrição do testemunho deste homem? Temos de ter a certeza de que está correcta.

Se Durand ficou surpreendido (pois é costume esperar-se um dia para se ler ao prisioneiro uma transcrição mais acabada, antes de assegurar a confirmação), não permitiu que a sua surpresa transparecesse. A sua voz era quase indiferente, enquanto lia o depoimento, e o efeito era muito enfadonho. Era evidente que Jordan achava isso, pois bocejou várias vezes, e passou as mãos pelo rosto cansado. Quando lhe perguntei, no final da leitura, se desejava fazer alguma emenda, ele abanou a cabeça.

- Absolutamente nenhuma?

- Não.

- Nada que possais ter esquecido?

- Não, padre.

- Por exemplo, o facto de Raymond Donatus vos ter pago para matar o grupo do padre Agostinho e desmembrar os cadáveres para que a vossa própria ausência não fosse comentada?

Jordan engoliu em seco.

- Eu nunca fiz isso - e suspirou.

- Meu amigo, não acredito que o tenhais feito. Sei que o fizestes. Tenho a confissão de Raymond aqui, mesmo à minha frente - eu estava a mentir, é claro; o documento que tinha à minha frente era um conjunto de notas tiradas durante os interrogatórios que eu fizera aos habitantes de Casseras. Mas acontece muitas vezes que a palavra escrita incute medo nos corações de pessoas iletradas, enquanto que a palavra falada não o faz. - Importais-vos de a ler com atenção? - acrescentei, sabendo perfeitamente que Jordan não sabia ler. Ele olhava o documento como se fosse uma serpente prestes a morder-lhe. - Apercebeis-vos, não é verdade, de que Raymond planeava mandar-vos envenenar quando regressásseis para cá? Foi esse plano que me alertou para a culpa dele. Surpreende-me que ele não vos tenha mandado matar na Catalunha.

- Raymond está.. - parou, e pigarreou. Viam-se-lhe gotas de suor na testa. - Raymond está a mentir - disse.

- Jordan, ouvi-me - adoptei um tom persuasivo. - Tenho provas suficientes para vos mandar enterrar vivo - quer confesseis quer não. Tendes de compreender isso. E se recusardes confessar, isso é o melhor que podereis esperar. O pior é que caireis nas mãos do meu superior, o padre Pierre-Julien. E que, quando matastes o padre Agostinho, fizestes-nos um grande desserviço, porque o padre Pierre-Julien veio substituí-lo. E o padre Pierre-Julien é um homem violento. Devíeis ter visto o que ele fez a Jean-Pierre, para o induzir a confessar que tomou o vosso lugar ao serviço de Raymond. Se desejardes, posso mandar cá chamar Jean-Pierre. Têm de o trazer, porque não pode andar. Queimaram-lhe os pés.

Perceptivelmente, Jordan estremeceu.

- Mas podeis não vos aperceber - continuei - de que para o verdadeiro arrependimento haverá sempre misericórdia. Ouvistes falar de São Pedro, o Mártir? Era inquisidor dominicano, tal como eu, e foi morto por um grupo de assassinos, tal como o padre Agostinho. Um dos assassinos era um tal Pierre Bálsamo, que foi apanhado quase em flagrante e que, mais tarde, fugiu da prisão. No entanto, quando foi recapturado, arrependeu-se, foi perdoado, e permitiram-lhe que entrasse para a Ordem Dominicana. Sabíeis isso?

Jordan abanou a cabeça, franzindo o sobrolho.

- Isso é verdade? - perguntou.

- Claro que é verdade! Posso mostrar-vos os livros que quiserdes, onde se conta a história. Perguntai ao irmão Simon. Perguntai ao irmão Berengar. Eles dir-vos-ão a mesma coisa.

Os meus observadores imparciais indicaram que, de facto, testemunhariam a verdade das minhas afirmações.

- É claro - continuei - que não há razão para pensar que seríeis admitido na Ordem Dominicana. Mas, a não ser que confesseis os vossos pecados e que os abjureis, só poderá haver um resultado. Estais a compreender?

Para minha decepção, Jordan não respondeu. Estava sentado, os olhos baixos, pousados nos joelhos, como se eles e só eles lhe pudessem fornecer uma resposta para os seus problemas.

- Jordan - disse eu, tentando outra táctica -, alguma vez fostes recebido numa seita herege?

- Eu? - levantou a cabeça de repente. - Não!

- Nunca tomastes por verdadeira outra fé que não seja a que a Igreja Romana tem por verdadeira?

- Não sou herege!

- Nesse caso, por que matastes o padre Agostinho?

- Eu não matei o padre Agostinho!

- Talvez não - admiti. - Talvez não tivésseis sido vós a desferir o golpe. Mas, no mínimo, ficastes a observar, enquanto ele era chacinado como um porco. Por que motivo o fizestes? Foi simplesmente por dinheiro? Ou porque sois crente e fautor de heresia? - Consultando a transcrição do relatório que me fora feito por "S", li em voz alta a lista de nomes lá registados. - Todas estas pessoas são hereges difamados - disse eu. - Fostes visto em associação com eles na Catalunha. No entanto, não alertastes o Santo Ofício.

Jordan semicerrou os olhos; a sua respiração tornou-se bastante irregular. É possível que ele tencionasse negociar a sua vida com estes nomes - e agora descobria que eu já os possuía. - O perfeito! - disse abruptamente (referindo-se, obviamente, a "S"). Apanhaste-lo!

- Por que não alertastes o Santo Ofício? - repeti, ignorando a sua exclamação.

- Porque eu estava escondido! - disse bruscamente. - Como é que eu podia dizer alguma coisa? E se esse perfeito me está a chamar herege, está a mentir para salvar a pele. Foi ele que vos disse onde eu estava? Eu devia ter...

De súbito, interrompeu-se.

- O quê? - disse eu. - O que devíeis ter feito? Tê-lo morto, também?

Jordan continuava calado.

- Meu amigo, se fôsseis um bom católico, confessaríeis os vossos pecados e arrepender-vos-íeis - disse-lhe eu. - Penso que sois ateu. E, sendo um ateu assassino, recebereis um castigo muito maior do que qualquer outro decretado pelo Santo Ofício. Sereis lançado num lago de fogo, para toda a eternidade, se não vos reconciliardes. Pensai bem, agora. Talvez Raymond vos tenha mentido. Talvez ele vos tenha dito que o padre Agostinho andava a visitar mulheres hereges por razões de heresia, e que, por isso, merecia morrer. Se ele vos disse tais coisas, o vosso crime pode ser compreendido, e prontamente perdoado.

Finalmente, as minhas palavras tiveram um efeito evidente. Eu sentia que Jordan estava a considerá-las, a estudá-las.

- Raymond disse-vos que o padre Agostinho era inimigo de Deus? - perguntei com voz suave. - Jordan? O que é que ele vos disse?

Jordan levantou o olhar, respirou fundo, e anunciou, sem me olhar nos olhos:

- Disse-me que vós queríeis o padre Agostinho morto.

- Eu? - atónito, fiz o que um inquisidor jamais devia fazer: deixei que o prisioneiro visse a minha consternação.

- Disse-me que odiáveis o padre Agostinho. Disse-me que trataríeis de tudo para que eu nunca fosse culpado - virando-se para Durand, o vil carniceiro declarou: - O padre Bernard é o assassino, não eu!

Neste ponto, eu recuperara a minha equanimidade e soltei uma gargalhada.

- Jordan, estais louco! - disse eu. - Se eu tivesse planeado esse assassínio, pensais que alguma vez vos deixaria cá voltar? Pensais que estaríeis sentado à minha frente, vivo e de saúde, a denunciar-me em frente de testemunhas? Vamos, vamos, contai-me o que aconteceu. Acabastes de admitir cumplicidade.

Eu já referi que Jordan era inteligente. Só um homem com um certo grau de inteligência teria tentado atacar-me, esperando, com isso, ganhar alguma vantagem. Mas ele não pensara bem na sua ofensiva, e caíra numa armadilha que ele próprio montara.

Estava ali sentado, mudo, a pensar, sem dúvida, como se metera naquela embrulhada. Mas eu não era estúpido a ponto de lhe dar tempo para pensar.

- Não tendes alternativa. Temos a vossa confissão. Quem mais esteve implicado? Dizei-me, e arrependei-vos, e ainda podeis escapar à morte. Permanecei calado, e sereis considerado obdurado. O que tendes a perder, Jordan? Talvez um pouco de vinho vos ajude a recuperar a memória.

Tenho muitas vezes constatado que o vinho num estômago vazio faz soltar a língua. Mas no momento em que eu fazia um gesto ao irmão Berengar, sugerindo que me trouxesse um pouco do vinho ali colocado exactamente com esse objectivo, Jordan começou a falar.

Confessou que Raymond Donatus fornicara muitas vezes com mulheres no Santo Ofício, debaixo dos seus próprios olhos. Contou-me que, um dia, o notário o abordara com outra proposta: em troca de cinquenta livres tournois, Jordan devia matar o padre Agostinho. Isso devia ser feito, não nas instalações do Santo Ofício, onde todos os que frequentavam o edifício estariam sob suspeita, mas nas montanhas, que, toda a gente sabia, estavam infestadas de hereges. Segundo Raymond, era importante que os hereges fossem culpados.

O plano era bom, mas eram precisas mais quatro pessoas treinadas em combate. Cada uma receberia trinta livres tournois, se o assassínio fosse levado a cabo com êxito.

- Eu trabalhei em muitas cidades com guarnição - revelou Jordan. - Conhecia mercenários que já tinham feito dessas coisas antes. Assim, quando me mandavam a essas cidades, com mensagens do Santo Ofício, falei com quatro homens que ficaram contentes com a oportunidade de ganhar trinta livres tournois.

- Tende a gentileza de me dar os nomes deles - disse eu, e Jordan aquiesceu. Contou os movimentos dos quatro homens: como tinham chegado a Lazet, como tinham recebido metade do combinado, juntamente com as suas despesas diárias, e como tinham esperado até que o padre Agostinho partisse para Casseras.

- Eu fui informado na véspera - disse Jordan. - Assim, disse aos outros, e eles saíram antes que as portas da cidade se fechassem, dormindo, nessa noite, em Crieux.

- Não tinham cavalos?

- Nem um. Tinham de ir a pé até Casseras. Mas chegaram a horas. E eu conhecia o caminho para aforcia. Podia dizer-lhes onde deviam estar à espera.

À medida que ele descrevia, de uma forma crua e impiedosa, o estratagema que ele usara para obrigar o grupo a parar na clareira combinada, senti a raiva fria a crescer-me no coração. Jordan dissera que estava com tonturas e náuseas, só lhe faltou cair do cavalo. Um dos camaradas juntara-se a ele no chão. Esse homem, enquanto cuidava dele, fora apunhalado na barriga, uma acção destinada a chamar uma chuva de setas vindas da vegetação rasteira.

Era de extrema importância que os dois familiares a cavalo recebessem o peso do ataque. Quando o padre Agostinho recuperara do choque, era demasiado tarde para fugir; os seus guardas tinham sido abatidos, o freio do seu próprio cavalo agarrado.

O inquisidor assistira à morte de todos os seus companheiros, antes de ser, ele próprio, assassinado. Eu fui obrigado a desviar o olhar, quando Jordan assinalou que o meu superior fora morto com um só golpe, como se isso fosse, de alguma forma, um acto de misericórdia. Tive de concentrar todas as minhas forças para conseguir manter um comportamento tranquilo, quando o que eu queria era agarrar num banco e quebrá-lo na cabeça de Jordan. O homem merecia ser esfolado vivo. Era algo menos que um homem, pois a sua alma estava morta. E o seu coração estava enegrecido pelo fumo do pecado.

- Despimos os corpos antes de os cortarmos - relatou. - Foi o que nos disseram que fizéssemos. E que levássemos as cabeças connosco. As cabeças e algumas das outras partes, para esconder o facto de que faltava o meu corpo. Depois seguimos todos em direcções diferentes. Compreendeis, é que só tínhamos metade do dinheiro. Eu tinha de ir para Berga e tinha de ficar lá à espera, até que Raymond ouvisse dizer que o padre Agostinho estava morto. Quando isso aconteceu, ele enviou o resto do meu dinheiro para um notário em Berga, que mo deu.

- O nome do notário? - perguntei.

- Bertrand de Gaillac. Mas ele não sabia de nada. Era amigo de Raymond.

- E o sangue? O sangue que tínheis nas roupas?

- Todos tínhamos levado outras roupas. Assim que nos encontrássemos longe de Casseras, assim que chegássemos à água ou a um local onde nos pudéssemos esconder, devíamos lavar-nos e trocar de roupa. Depois devíamos ver-nos livres dos cavalos - após uma curta pausa, o prisioneiro acrescentou: - Eu matei o meu. Era mais seguro. Lá nas montanhas, os corvos e os lobos encontrá-lo-iam primeiro.

Esta era, então, a substância da confissão de Jordan Sicre. Uma história sangrenta, sem o fermento do arrependimento. No final, mandei Durand ler o depoimento mais uma vez em voz alta e os meus observadores imparciais foram testemunhas de que estava correcto e completo. Também a Jordan foi dado esse privilégio. Tendo extraído do homem tudo o que eu precisava, não gastei mais palavras simpáticas nem garantias com ele, pois não merecia tal tratamento amável.

- O que acontecerá agora? - perguntou-me ele, quando eu me preparava para sair.

- Agora ficareis à espera da sentença - respondi. - A não ser que tenhais mais alguma coisa a acrescentar.

- Só que lamento muito (ele soava mais ansioso do que arrependido). - Escrevestes isso?

- Farei uma nota do vosso arrependimento - foi a minha resposta. Eu estava muito, muito cansado. Talvez devesse estar a congratular-me por ter feito um bom trabalho-pois fora, embora seja eu a dizê-lo, um excelente trabalho - mas sentia pouca vontade de me regozijar. Tudo o que eu podia fazer era subir as escadas para a porta de alçapão; Durand teve de me ajudar a transpô-la. A prisão estava escura, com lamparinas a arder. Eu não fazia ideia do quanto a hora era tardia.

- Precisais que um familiar vos acompanhe a casa? - perguntei aos observadores imparciais, que me asseguraram que só precisavam de uma candeia ou de uma tocha. Tendo-lhes arranjado uma, despedi-me deles e virei-me para Durand. Encontrávamo-nos, na altura, junto à minha secretária, com uma candeia entre nós; as sombras à nossa volta eram densas, geladas, e ligeiramente ameaçadoras. Tudo estava muito silencioso.

- Quero que guardes esse protocolo - foi a minha instrução. - Não lhe tires os olhos de cima enquanto não for feita uma cópia.

- Devo ser eu a fazer a cópia? - Talvez isso fosse o melhor.

- Há emendas?

- Podes ignorar a quinta, é claro. A maior parte da viagem para Casseras pode ser omitida.

- O pedido de desculpas?

Os nossos olhos encontraram-se, e vi nos dele (que eram de uma cor muito bonita - verde-amarelado, como uma clareira iluminada pelo Sol) a mesma repulsa feroz como aquela que ainda exista secretamente no meu coração. Reconfortou-me, de alguma forma. Deu-me alívio.

- Deixo isso ao teu critério, Durand. Dizes sempre que eu excluo demasiado material explicativo.

Neste ponto, ambos fizemos uma pausa, talvez para reflectirmos no horror dos actos que nos tinham sido narrados. Gradualmente, o silêncio prolongou-se. Entorpecido pela fadiga, achei que não tinha mais nada para dizer.

- Sois um grande homem - observou Durand repentinamente. Não estava a olhar para mim; tinha os olhos postos no chão, a testa franzida. - Um grande homem mesmo, à vossa maneira especial. - Depois, após outro silêncio mais curto, acrescentou: - Mas eu não diria que é à maneira de Deus.

- Não - foi o que consegui dizer, após um esforço enorme. - Não, eu também não diria.

Isto concluiu o nosso diálogo. Durand deixou o edifício, de cabeça baixa e o testemunho de Jordan apertado contra o peito; eu regressei à prisão para dizer boa-noite a Johanna. Embora fosse muito tarde, não podia voltar ao priorado sem lhe dizer boa-noite, que mais não fosse porque lho tinha prometido. Quebrar tal promessa teria sido impensável, embora se tratasse de uma saudação trivial. Para um amante, até a mínima infracção se reveste de uma vasta e terrível importância.

Sabeis que o nome "amor" deriva da palavra que designa gancho, que significa "capturar” ou "ser capturado". Eu fui capturado nas correntes do desejo e não podia afastar-me para longe da minha amada. Durante todo esse dia, de facto, enquanto segurava Vitalia, enquanto tranquilizava Babilónia, enquanto interrogava Jordan, eu ficara cativo de pensamentos da minha impureza nocturna. Visões lascivas entravam-me na mente com persistência, fazendo com que grandes torrentes de calor me dominassem o corpo e me inundassem as faces. Contudo, ao afastar de mim estas recordações, descobria que eram irresistíveis, voltando repetidamente a elas, embora me enchessem de pudor - tal como um cão regressa ao seu vómito. Como Ovídio tinha razão ao dizer que: "Ansiamos pelo que é proibido, e queremos sempre o que nos é negado!"

Eu quebrara o meu voto de castidade. Ao seguir as atracções da carne, em vez daquela herança eterna que o Rei dos Céus, com o Seu próprio sangue, restituiu a todos os homens, eu entregara-me às chamas de geena. Não assinalou o próprio Pierre Lombard que: "Outros pecados mancham unicamente a alma... a fornicação mancha não só a alma, mas também o corpo?" Eis que nasci na culpa e a minha mãe concebeu-me em pecado. Além disso, eu era escravo de uma mulher, e édo conhecimento geral que as mulheres são fontes de duplicidade, vanglória, avareza, luxúria. Sansão foi traído por uma mulher. Salomão não conseguiu encontrar uma única mulher boa. A humanidade foi condenada pelo pecado de uma mulher. Eu sabia tudo isto, na minha cabeça, no entanto o meu coração não se convencia.

Assim, aconteceu que fui à casa dos guardas, sozinho e sem encontrar obstáculos. Uma vez que não se tratava de uma cela, a porta não tinha abertura com grades; tive de me contentar com uma batida suave e uma despedida murmurada, em vez de poder ver o rosto da minha amada.

Foi ela que retribuiu as minhas despedidas, a voz abafada pela espessura da madeira que nos separava.

- As outras estão a dormir - disse ela baixinho.

- Como vós devíeis estar também.

- Mas estava à vossa espera.

- Perdoai-me. Devia ter vindo mais cedo. Havia assuntos que eu tinha de tratar.

- Oh, meu querido, não me estava a queixar.

Este tratamento afectuoso pôs-me o pulso em correria vertiginosa, e pressionei a testa contra a porta, como que num esforço para a atravessar. Ao mesmo tempo, enchi-me de desespero, pois a barreira física existente entre nós parecia representar todos os outros impedimentos ao nosso amor e que eram mais difíceis de transpor. Até Heloísa e Pedro Abelardo foram mais favorecidos na sua conjunção - contudo, o Senhor lidara com eles de uma forma verdadeiramente dura. O futuro não abrigava qualquer esperança, tanto quanto eu podia divisar. O melhor resultado a esperar era que Johanna recebesse uma pena menor, libertada juntamente com a filha, e que lhe fosse permitido escapar à esfera de influência de Pierre-Julien. Mas é claro que tal fuga implicaria necessariamente que eu ficasse para trás.

Disse a mim próprio que isso seria uma coisa boa. O amor era um género de loucura - uma doença que passaria. Um tempo para amar, e um tempo para odiar. De que me valeria abandonar a minha vida de trabalho por uma mulher que eu mal conhecia? Por um amor que era tanto angústia como alegria?

- Não pode voltar a acontecer - sussurrei. - Johanna, não podemos permitir que volte a acontecer.

- Meu querido, que hipóteses há? - respondeu ela tristemente. - Foi a última vez que saboreei o amor.

- Não. Ficareis aqui apenas por pouco tempo, prometo.

- Bernard, não vos coloqueis em risco.

- Eu? Não estou em risco.

- Estais. Foi o que disse a mulher do carcereiro.

- A mulher do carcereiro? - eu quase ri. - Não é por aqui uma autoridade largamente respeitada.

- Bernard, tende cuidado - o tom dela era urgente. - Favoreceis-nos de mais. As pessoas adivinharão. Oh, meu querido, não é por mim, é por vós.

A voz embargou-se-lhe, e eu próprio fiquei dividido entre lágrimas e risos - um riso de espanto, de consternação.

- Como é possível? - disse eu. - Como pode isto ter acontecido? Custo a entender. Mal me conheceis.

- Conheço-vos tão bem como conheço a minha própria alma.

- Oh, Deus - eu queria que a minha cabeça atravessasse a porta. Queria expirar nos braços dela. Senhor, pensei, diante de Ti estão os meus desejos, e não desconheces o meu lamento. O meu coração palpita, faltam-me as forças...

Vem depressa socorrer-me, Senhor, minha salvação!

- Bernard? - disse ela. - Bernard, ouvi-me. Isto é obra minha. Quando Agostinho falava de vós - das coisas que dizíeis, da forma como ríeis - pensei para comigo: Eis um homem que eu quero conhecer. Depois, quando aparecestes, e quando me sorristes, éreis tão alto e tão bonito, e os vossos olhos eram como estrelas. Como podia eu resistir? Mas devia ter resistido. Por vós, devia ter resistido. Foi tão errado da minha parte.

- Não.

- Foi! Foi cruel! Ter-nos-íeis ajudado sem isto. Teríeis permanecido forte, e puro, e feliz, mas agora abalei-vos. E fi-lo porque queria ter-vos, antes que fosse tarde de mais. Sou tão vil. Não sou digna. Fiz-vos infeliz e impuro.

- Isso é um disparate. Estais a lisonjear-vos. Pensais que não tenho vontade própria? Acreditais realmente que sou perfeito? - para a tranquilizar, e também para a castigar (pois ela parecia pensar que eu era levado, como uma ovelha, em todas as coisas), revelei o meu encontro com a outra viúva, durante os anos em que servira como pregador ordinário. - Antes disto, eu já me tinha afastado do caminho. Fui desobediente e impuro. É a minha natureza - depois, como ela permaneceu em silêncio, comecei a recear tê-la ofendido profundamente.

- Mas a viúva não era nada - apressei-me a afirmar. - Foi a vaidade e o aborrecimento que me levaram para a cama dela. Isto é diferente.

- Para mim também.

- De alguma forma - disse eu, desesperadamente -, de alguma forma, tenho a certeza, Deus juntou-nos. Por alguma razão...

- Para sofrermos quando nos separarmos - Johanna suspirou.

- Devíeis ir, meu amor, antes que alguém vos veja. Não devíamos voltar a falar assim - a não ser para nos despedirmos.

- Deus não o permita.

- Agora ide. É muito tarde. Há demasiadas pessoas por perto.

- Pensais que me importo?

- Sois como um rapaz quando dizeis isso. Ide deitar-vos, agora. Rezai por mim. Estais nos meus pensamentos.

Ela era mais forte do que eu, ou o amor dela era mais fraco? Eu ainda lá estaria, se ela não me tivesse escorraçado da sua presença. E, enquanto descia as escadas, cambaleando, eu sentia que deixara parte de mim à porta da casa dos guardas: sentia-me tonto e enjoado, como se o sangue do meu coração se estivesse a esgotar.

No entanto, tive a presença de espírito para olhar para a minha secretária, na esperança de que tivesse chegado uma carta de Toulouse, ou de Carcassonne, relativamente aos livros de registo desaparecidos (agora, é claro, já não estavam desaparecidos, mas incompletos). Para meu pesar, não havia nada de interesse, e a secretária de Pierre-Julien, de forma semelhante, também não oferecia quaisquer surpresas agradáveis. Foi neste ponto, porém, que Deus me concedeu uma breve e nítida clareza de visão. De súbito, pensei: Por quê esperar por uma ajuda que pode nunca vir? Por que não usar o que está à mão? E, em seguida, ataquei os maços da minha correspondência mais recente.

Após uma breve busca, encontrei o que procurava. Era uma carta banal de Jean de Beune, em que o inquisidor, sem excessiva elaboração, se referira ao meu pedido de cópias de um depoimento que implicava os habitantes de Saint-Fiacre (era a testemunha de Tarascon, estais recordado?). "Quanto às cópias que solicitais", escrevera ele, "vou tratar de tudo para que sejam feitas e vos sejam imediatamente enviadas".

A data, no fim da carta, foi facilmente apagada: um pequeno borrão foi suficiente.

- Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque o Seu amor é eterno - rezei. - Digam-no aqueles que o Senhor resgatou, os que Ele libertou do poder do inimigo.

Em seguida escondi a carta no cinto, e saí para o priorado num estado de espírito intensamente confiante.

 

Forjadores de mentiras

Como podeis imaginar, fui um desajeitado e desatento participante do ofício das Matinas dessa noite. Desperto após um sono curto e irregular, eu estava demasiado atordoado de cansaço para me sair bem. Ficava sentado quando deveria estar de pé. Saltei os sinais e passei pelo sono enquanto recitava o Patere o Credo. Mas no curso normal dos acontecimentos, é tão provável que eu falhe no meu ofício como o próprio São Domingos, por isso fiquei admirado com a hostilidade que os meus enganos pareciam provocar. Mesmo no meu estado meio consciente, reparei nos olhares e nas caretas.

Às Laudas, porém, eu fui, como sempre, meticuloso. Mesmo assim, notei que havia muitos olhares carrancudos dirigidos a mim - e a mesma quantidade de olhares prolongados que pareciam ser solidários, de uma forma algo penetrante e especial. O único irmão que recusava, de todo, dar pela minha existência era Pierre-Julien. Embora estivesse sentado quase à minha frente, no coro, fazia tudo para evitar olhar sequer na minha direcção.

Só quando o abordei directamente, após as Primas, é que ele foi obrigado a reconhecer-me. Acenou com a cabeça. Eu acenei com a cabeça. Depois, após uma troca de sinais com a mão, retirámo-nos para a sua cela, onde era permitido conversar, se a conversa fosse conduzida discretamente e sem barulho excessivo. Comecei a falar antes que ele próprio tivesse oportunidade de estabelecer o assunto do nosso diálogo.

- Jordan Sicre chegou ontem - disse eu, abruptamente.

- Sim, mas...

- Interroguei-o, observando todas as formalidades.

- Vós?

- E ele disse-me que Raymond Donatus lhe pagara para matar o padre Agostinho. Não me pôde dizer porquê. Não sabia.

- Mas já não sois inquisidor de Depravação Herege! - exclamou Pierre-Julien, baixando depois rapidamente a voz, quando se lembrou do local onde se encontrava. - Não tendes o direito de interrogar suspeitos! - sussurrou. - Estais proibido de entrar nas instalações do Santo Ofício!

- Assim, as mulheres de Casseras não estão implicadas no assassínio do padre Agostinho.

- Isto é inaceitável! Vou falar com o abade...

- Ouvi-me, Pierre-Julien. Sei mais do que pensais - agarrando-lhe o braço, puxei-o para trás, para cima da cama, da qual ele se levantara. - Ouvi-me, simplesmente, antes de cometerdes quaisquer erros idiotas. Sei que todo este mistério anda à volta dos livros de registo inquisitorial. O padre Agostinho pediu a Raymond que encontrasse um livro de registo desaparecido, depois Agostinho foi morto. Quando, por sua vez, Raymond foi morto, vós fostes procurar certos livros de registo que se encontravam em sua posse. Depois de os examinar, descobri que estavam adulterados. Que faltavam fólios.

- Não estou a ver...

- Esperai. Ouvi. Quando me apercebi pela primeira vez de que havia livros de registo desaparecidos - e isso foi antes de os terdes recuperado - escrevi para Carcassonne e para Toulouse. Perguntei se tinham sido feitas cópias desses livros para serem usadas pelos inquisidores fora de Lazet. Ontem chegou uma carta do irmão Jean de Beune, informando-me de que, efectivamente, tinham sido feitas cópias. Prometeu-me que encetaria diligências no sentido de que as cópias existentes entre os seus registos fossem novamente copiadas e me fossem devolvidas. Tenho aqui a carta. Desejais consultá-la?

Pierre-Julien não respondeu. Ficou simplesmente a olhar, e os seus olhos estavam vazios de expressão, e o seu rosto estava tão pálido como as doze portas da Celeste Jerusalém.

Vendo-o atrapalhado, aproveitei a minha vantagem.

- Sei que estais implicado nisto, Pierre-Julien. Sei que fostes vós que retirastes aqueles fólios dos livros. E quando eu receber as cópias de Carcassonne, vou saber porquê - encostando-me a ele, continuei muito baixinho, mas com grande clareza e força. - Talvez estejais a pensar: "Vou escrever ao irmão Jean para lhe dizer que não se dê ao trabalho". Azar! O irmão Jean e eu somos bons amigos, e vós tendes sido o assunto da nossa recente correspondência. Ele não vos tem em muito elevada estima, irmão. Se anulardes o meu pedido, ele vai querer saber quais são os vossos motivos.

Pierre-Julien continuava em silêncio - devido ao choque, creio Assim, tornei-me mais encorajador e menos ameaçador.

- Irmão, não desejo ver o Santo Ofício sucumbir ao escândalo e à recriminação - disse eu. - Pode ainda haver tempo para o impedir. Se agirmos agora, se eu escrever ao irmão Jean, e lhe disser que, afinal, as cópias não são necessárias.

- Sim! Escrevei agora! - Pierre-Julien falava alto e com urgência. - Escrevei-lhe agora!

- Irmão...

- Ele não deve lê-los! Ninguém os deve ler!

- Porquê?

Ofegante, boquiaberto, o meu companheiro parecia incapaz de formular uma resposta. Levou a mão ao coração, como se este ameaçasse falhar-lhe.

Vi que era preciso mais um empurrão.

- Se me disserdes porquê, escreverei a carta - prometi. - se ordenardes a libertação das mulheres de Casseras, e me assegurardes que elas não serão nunca consideradas responsáveis por um crime qUe não cometeram, escreverei a carta. Mais do que isso, desistirei de tomar qualquer outra medida. Afastar-me-ei do Santo Ofício. Deixarei Lazet. Tudo o que eu quero é uma confissão, irmão. Uma confissão e um compromisso. Quero saber qual o motivo de tudo isto.

- Onde está a carta? - perguntou ele subitamente. - Mostrai-ma!

Oferecendo uma oração privada, tirei da bolsa o documento a qUe tinha apagado a data, e que tinha, dessa forma, falsificado, na noite anterior. Ele pegou-lhe e segurou-o nas mãos trémulas, ao mesmo tempo que eu lhe indicava o parágrafo que interessava. Mas embora ele olhasse, os olhos não se moviam. Não estava a ler. Aparentemente, não era capaz de ler. O medo e o espanto que sentia eram demasiado profundos; Pierre-Julien não era capaz de usar todas as suas faculdades.

- Trata-se de um antepassado, não é? - perguntei, observando o suor a correr-lhe pela cabeça nua. Eu falava suavemente, sem o mínimo indício de acusação. - Tendes antepassados hereges. Mas sabeis, irmão, eu nunca aprovei a prática, tão usada no Santo Ofício, segundo a qual um homem tem de sofrer pelos pecados do pai. "Enquanto eu viver, disse o Senhor, não tereis ocasião para usar este provérbio em Israel". Tal prática cruel e implacável parece-me excessiva. Parece pouco sensata. São Paulo disse: "Deixai que a vossa moderação seja conhecida de todos os homens". Não vos condeno por estardes infectado pela heresia do vosso avô, irmão. Acredito que todos os vossos pecados sejam mesmo vossos.

Esta dificilmente seria a forma mais amável de o tranquilizar, tereis de concordar. Era um insulto velado, de facto. Mas parece ter atingido Pierre-Julien, pois, para minha eterna surpresa, ele debulhou-se em lágrimas.

- Abençoai-me, irmão, porque pequei! - soluçava, cobrindo o rosto com as mãos. - Abençoai-me, irmão, porque pequei! Há uma semana que me confessei pela última vez...

Ora, ao dizer que queria uma confissão, eu não queria, podeis ter a certeza, este género de confissão. Estava sujeita a demasiadas restrições. De certeza que me causaria impedimentos. Mas embora eu levantasse objecções, Pierre-Julien continuou inflexível, e eu fiquei preocupado, com medo de que ele decidisse reter a sua história em absoluto. De qualquer maneira, independentemente do quanto é feita de livre vontade ou não, uma confissão não tem praticamente valor nenhum, a não ser que seja registada na presença de uma ou várias testemunhas. Por isso, concordei com as suas exigências e esperei pela sua confissão.

Não foi imediata.

- Irmão - disse eu, impaciente, enquanto ele limpava o nariz às saias da sua túnica -, recomponde-vos. Isto não beneficia ninguém.

- Odiais-me! Sempre me odiastes!

- Os meus sentimentos são irrelevantes.

- Deus amaldiçoou-me quando me trouxe para aqui!

- Porquê? Dizei-me porquê - quando ele se recusou a responder, perguntei com rudeza: - Matastes Raymond Donatus?

- Não! - gritou ele, levantando o olhar, e recuando, à medida que eu abanava um dedo em jeito de advertência.

- Shhh! - murmurei. - Quereis que todos ouçam?

- Eu não matei Raymond Donatus! Não parais de me acusar, mas eu não matei Raymond Donatus!

- Muito bem. O que foi que fizestes?

Pierre-Julien suspirou. Mais uma vez, enterrou o rosto nas mãos. - Tirei os fólios - confessou, numa voz abafada. - Queimei-os.

- Porquê?

- Porque o meu tio-avô era herege. Morreu antes de ser sentenciado. Eu nunca soube. As pessoas da minha família mal falavam dele. "O teu tio Isarn era um homem mau", era o que eles diziam. "Morreu na prisão. Cobriu de vergonha esta família". Pensei que ele devia ter sido ladrão ou assassino. Não tinha filhos, compreendeis? Tinha vivido fora de Lazet. Era difícil encontrar a ligação.

- Mas vós acabastes por encontrá-la.

- Não. Eu não. Raymond Donatus.

- Raymond?

- Ele veio ter comigo, há... oh, não há muito tempo - hesitante, a minha testemunha levou as mãos à testa. - Eu não podia acreditar... ele tinha um livro velho com ele. Mostrou-me um depoimento que difamava o meu tio-avô.

- Quando foi isso? - perguntei. - Quando foi exactamente que ele veio ter convosco?

- Foi depois de lhe terdes dito que procurasse um livro de registo desaparecido - virando a cabeça, Pierre-Julien lançou-me um olhar infeliz e desesperado. - Era esse livro. Tinha lá dentro o nome do meu tio-avô.

- Esperai - disse eu, erguendo a mão. - O livro que eu queria era o mesmo que o padre Agostinho queria. Eu queria-o porque ele o queria. Então por que é que Raymond o queria?

- Penso... penso que era porque havia lá dentro um nome. Não era o nome do meu tio-avô. Era outro nome - antes que eu lhe pedisse que elucidasse, ele fê-lo. - Raymond disse-me: "O padre Bernard procura este livro. Se ele o encontrar, o mundo inteiro ficará a saber que tendes antepassados hereges. Sereis injuriado. A vossa família será envergonhada. Talvez o vosso irmão perca a sua propriedade, e vós perdereis o vosso cargo" - a voz de Pierre-Julien embargou-se, neste ponto, mas, corajosamente, o meu superior esforçou-se por se controlar. Por fim, conseguiu. - Raymond disse-me que vos afastasse da investigação da morte do padre Agostinho, e eu fi-lo. Talvez ele tivesse feito mais pedidos, se não tivesse sido morto. Talvez tivesse pedido dinheiro...

- E escondia o livro de registo na sua própria casa! - exclamei, incapaz de me conter. - O livro e a cópia do bispo! E quando soubestes que ele estava desaparecido...

- Fui a casa dele para os encontrar. Mas o senescal já lá estava. Andava também à procura de livros de registo.

- O senescal?

- Oh... não eram os mesmos que eu procurava. Ele queria os livros que continham o nome da tia. A tia foi queimada como herege relapsa.

Imaginai a minha incredulidade. Imaginai o meu espanto. Juro-vos que eu não teria ficado mais mudo se a grande montanha a arder em fogo tivesse sido atirada para o mar perante os meus próprios olhos.

- O senescal encontrou dois livros de registo inquisitorial em casa de Raymond, mas eram os errados - continuou Pierre-Julien, aparentemente esquecido do meu queixo caído e comportamento pasmado. - Não continham o nome da tia. Passou os olhos por eles, e, quando viu o nome "Fauré", abordou-me imediatamente. Disse-me que, alguns anos antes, Raymond lhe pedira dinheiro. Os dois homens estavam, na altura, em casa de Raymond, e o notário produzira, de um esconderijo qualquer, um livro de registo que continha o depoimento e a sentença da tia herege de Roger. Raymond tinha dito que era apenas um mensageiro do padre Jacques. Mas, quando o padre Jacques morreu, Raymond tinha continuado a exigir dinheiro. O senescal pensou que eu devia estar na mesma posição do que ele.

Segundo Pierre-Julien, o senescal também o acusara de ter morto Raymond Donatus. Quando lhe foi dito que esse não era o caso, Lorde Roger encolhera os ombros e manifestou a opinião de que Raymond, sem dúvida, recebera pagamentos de uma série de infelizes, cujos antecedentes Inquisitoriais...

Uma das vítimas do notário, pensava ele, fora talvez empurrada um pouco longe de mais.

- "Se Raymond estiver morto, não ficarei surpreendido" - foi a conclusão do senescal. - "Pelo contrário, ficarei encantado".

Não tendo conseguido encontrar, em casa de Raymond, os livros que continham o nome da tia, Roger dera instruções a Pierre-Julien para que os procurasse na biblioteca do bispo e no escritório do Santo Ofício. Quando encontrados, estes códices deviam ser levados ao Cha-teau Comtal. O senescal apareceria então com os livros que encontrara em casa de Raymond, e haveria uma troca formal de documentos. Depois, certos fólios deviam ser destruídos.

- Levei tanto tempo a encontrar o nome da tia dele - observou com irritação a minha testemunha. - Um serão, faltei às Completas - lembrais-vos? - para procurar naquelas arcas horríveis do escritório. Mas, finalmente, encontrei os livros. E levei-os ao senescal. E fizemos o que tínhamos a fazer. Quando Raymond foi encontrado morto, pensei que estávamos salvos.

Ponderei este relato dos movimentos do meu superior. Se o que ele dizia era verdade (e eu não tinha razão para duvidar), tudo levava a crer que eu procurara na biblioteca do bispo pouco depois de Pierre-Julien ter extraído, em nome do senescal, a cópia do livro que continha o nome da tia deste. Enquanto eu examinava os espaços livres deixados pelos dois livros desaparecidos, estes volumes estavam a ser adulterados no Chateau Comtal. E enquanto eu me estava a preparar para deixar o palácio do bispo, Pierre-Julien estivera ocupado a devolver os dois originais às arcas de registos que se encontravam no escritório.

Estranha, a forma como eu seguira os passos dele naquela manhã.

- Então não matastes Raymond? - disse eu. - Não - Pierre-Julien falava num tom apagado. - Eu nunca seria capaz de fazer tal coisa.

- Então quem seria?

- Uma feiticeira. Jean-Pierre confessou...

- Que disparate! - eu estava irritado por ele ter ido buscar tal acusação infundada. - Isso é um completo disparate, e vós sabei-lo!

- As mulheres...

- Irmão, não me façais perder o meu tempo. O senescal tinha um motivo melhor para matar Raymond do que qualquer uma daquelas mulheres... e mais oportunidade, também. Esquecei as mulheres. Elas são irrelevantes.

- Não para vós, segundo parece - observou Pierre-Julien, maliciosamente, e com óbvia indignação. Ignorei-o.

- O mistério está quase resolvido - disse eu. - Raymond Donatus estava a usar os registos do Santo Ofício para extorquir dinheiro a pessoas com um passado herege ou antepassados hereges. Quando o padre Agostinho começou a consultar alguns dos velhos livros de registo, Raymond ficou nervoso. Sabia que o padre Agostinho era a favor da perseguição de hereges falecidos, e de outros que nunca tinham completado as suas sentenças - exactamente as mesmas pessoas cujos descendentes, também deixados por punir, eram alvos naturais de chantagem. Ficou preocupado com o facto de, se se permitisse que o padre Agostinho prosseguisse na sua investigação, algumas dessas pessoas que lhe tinham vindo a pagar serem intimadas. Receava que elas o denunciassem ao Santo Ofício. Finalmente, o padre Agostinho exigiu um livro de registo que continha, de facto, um dos nomes que Raymond desejava ocultar. Por isso mandou matar o padre Agostinho, na esperança de que a culpa recaísse sobre os hereges.

"Entretanto, tinha escondido em sua casa o livro que o padre Agostinho procurava. Talvez, ao manejá-lo, tivesse reparado no nome "Fauré". Assim, quando chegastes, ele tinha uma arma contra vós. E quando eu comecei a procurar o mesmo livro, ele usou essa arma - ocorreu-me uma ideia temerosa, e considerei-a. Ter-me-ia Raymond morto se eu tivesse persistido? Talvez. - Sorte a nossa, que uma das suas outras vítimas tenha decidido tomar as coisas em mãos - concluí.

- Pensais que é provável?

- Penso que é altamente provável. Talvez o corpo tivesse sido desmembrado na esperança de que a mesma pessoa responsável pela morte do padre Agostinho fosse acusada do segundo homicídio - gostei desta suposição. Era limpa e elegante. Satisfazia a maior parte das minhas exigências. - Talvez eu estivesse errado ao presumir que Raymond foi morto nas instalações do Santo Ofício. Talvez Jean-Pierre estivesse a dizer a verdade e não tivesse nada a ver com aquilo. É claro que se interrogássemos todos os outros funcionários, poderíamos descobrir mais alguma coisa. Mas será que queremos?

Raymond era um assassino. Sofreu o castigo justo. Talvez possamos deixar o castigo do seu assassino nas mãos de Deus.

Nesse instante lembrei-me de Lothaire Carbonel, cujo pai fora difamado num dos registos adulterados. Poderia ele, talvez, ser o assassino? Era certo que era um candidato importante à peculiar forma de iniquidade de Raymond.

Prometi a mim próprio que haveria de falar com Lothaire em privado, quando surgisse oportunidade. Dei, então, a absolvição a Pierre-Julien, assim como uma pesada penitência, que ele aceitou sem pestanejar. Ele não queria saber de penitências, justiça ou culpa. Desejava apenas uma coisa, e desejava-a com a paixão do alarme profundo.

- Escrevereis agora a carta? - perguntou. - Escrevei-a agora. Aqui.

- Muito bem. Mas não deve ser enviada enquanto as mulheres não tiverem sido libertadas.

- Sim, sim! Mas escrevei-a!

Que Deus me perdoe, eu gostei do desespero dele. Saboreei as suas súplicas como se fossem mel, e atormentei-o com o meu passo lento, com a forma meticulosa como afiava a minha pena, com a cuidadosa exactidão que empreguei a pautar as linhas, com o desenho das letras.

Sou um bruto entre as pessoas. Sou um vaso vazio, e um borrão no livro dos vivos. Por causa da perversidade do meu coração, e da pobreza da minha alma, mereci tudo o que seguiu.

Não duvides de que o teu pecado te encontrará.

- libertá-las? - disse Pons, incrédulo.

- libertai-as - insistiu Pierre-Julien.

- Mas...

- libertai-as! - frenético de preocupação para que eu despachasse a minha carta, Pierre-Julien não tolerava oposições. Falava, de facto, com muita rispidez. - Ouvistes o que eu disse! Fazei-o agora! Dai as chaves ao padre Bernard!

- Elas vão precisar de cavalos - observei, à medida que Pons, abanando a cabeça, procurava nas chaves que tinha penduradas no cinto. - Quatro cavalos.

- Irei falar com o bispo - apressou-se Pierre-Julien a dizer. - irei já. Trazei-as para os estábulos do bispo.

- Poderá haver um atraso.

Mas Pierre-Julien já partira. Ouvi-lhe os passos nas escadas. Pons, de sobrolho carregado, disse que abriria, ele próprio, a casa dos guardas.

- Nunca me separo das minhas chaves - disse com rudeza.

- Um preceito sensato.

- Como é que fizestes isto?

- O quê?

- Fostes longe de mais. Ides sofrer as consequências. Não sois invencível, padre.

Surpreendido, abri a boca para exigir uma explicação. Mas ele já ia a caminho da casa dos guardas, fazendo tilintar tanto as chaves que eu não podia ter esperança em que ninguém ouvisse.

- Aqui está a vossa amiga - disse ele num tom áspero e malicioso, ao mesmo tempo que abria a porta da casa dos guardas. - Aqui está o vosso amigo para vos salvar. Fora! Todas cá para fora! Não sois aqui bem-vindas!

Sentindo consternação nos sussurros e murmúrios com que este anúncio foi recebido, fiquei extremamente irritado, e disse ao carcereiro que se fosse embora. Ele obedeceu-me de boa vontade, resmungando qualquer coisa como "não quero ter nada a ver com isto". Só depois de ele ter saído é que me ocorreu que poderiam ser necessárias mais umas costas fortes para carregar a bagagem.

Eu estava aborrecido com a minha própria falta de visão.

- Johanna - disse eu, assim que entrei na casa dos guardas. - Alcaya. Fostes todas libertadas. Podeis ir, agora.

- Libertadas? - Johanna estava sentada no chão junto à cama de Vitalia. Tinha na mão uma chávena de barro. - Desta sala?

- Desta prisão. Vinde - aproximei-me dela, e estendi a mão. - Há cavalos à espera. Tendes de preparar a bagagem.

- Mas para onde vamos? - inquiriu Babilónia. No fundo das paredes de pedra enegrecida e das sombras poeirentas, o rosto dela parecia brilhar como uma brasa. - Vamos para casa?

- Não podeis regressar à forcia, minha pequenina - disse eu. - Mas podeis ir para qualquer outro sítio. Qualquer sítio mesmo.

- Agora não, padre - foi Alcaya quem me contradisse. - Vitalia está demasiado doente.

Espreitei Vitalia, e vi uma mulher cuja força estava seca como um caco, uma mulher envolta pela poeira da morte. Mirrada e sem vitalidade, a respiração fétida e a pele sem cor, ela parecia tão frágil como vidro fino, e compreendi a relutância de Alcaya em deslocá-la dali.

- Ela está muito mal? - murmurei.

- Não pode estar pior - respondeu Johanna.

- Mesmo assim, ela não pode ficar aqui. É demasiado perigoso.

- Padre, se ela tiver de se deslocar, pode morrer - assinalou Alcaya, numa voz muito suave.

- E se ficar aqui, morrerá de certeza - respondi. - Perdoai-me, mas não há alternativa. No mínimo, ela terá de ser levada para um hospital. O mais próximo é Saint-Remezy. Pertence aos Hospitalários.

- Mas receber-nos-ão lá a todas? - perguntou Johanna, e eu tive de reprimir um acesso de impaciência. Embora não fosse meu desejo assustá-la, ou à filha, parecia-me que nenhuma das mulheres estava totalmente ciente do perigo que corriam.

- Ouvi - disse eu, falando devagar e com cuidado. - O que eu consegui é um verdadeiro milagre. E não posso ter a certeza de que a nossa sorte se manterá. Se não deixardes Lazet o mais depressa possível, não há garantia de que continuareis em liberdade.

- Mas...

- Eu sei que Vitalia não está capaz de viajar. Apercebo-me do quanto ela está doente. Por isso irá para o hospital de Saint-Remezy, enquanto as restantes de vós formarão um lar juntas, longe daqui. Talvez um dia ela se reúna a vós.

- Mas, padre - protestou Alcaya, falando como alguém que desejava explicar algo a uma criança muito amada, em vez de usar um tom de voz de paixão e ultraje -, não posso deixar a minha amiga. Ela é minha irmã em Cristo.

- Não tendes alternativa.

- Perdoai-me, padre, mas não é assim. Posso escolher correr riscos, por causa de uma irmã.

Cerrei os dentes.

- Daqui a um dia, a vossa irmã poderá não estar em condições de agradecer o que fizestes por ela - disse eu cuidadosamente, Sempre consciente do olhar confuso de Babilónia. - A recompensa não valerá o sacrifício.

- Oh, penso que a recompensa será a paz no meu coração.

- Alcaya! - eu já não conseguia reprimir-me. - Tende algum senso!

- Padre...

- Não tendes o direito de colocar em perigo as vossas outras irmãs! O meu tom de voz era demasiado irritado; assustou Babilónia, que apelou para a mãe numa voz estridente:

- Mamã? Mamã!

Johanna correu para ela, abraçou-a, e disse-me:

- Alcaya está a falar só por si. Nós as duas podemos escolher.

- Sim, sim! Só uma de nós precisa de ficar - Alcaya sorriu afectuosamente a Johanna, a Babilónia. - Eu sou uma mulher idosa, as minhas irmãs são jovens. Têm força para construir um novo lar, de acordo com as leis do Senhor.

Os olhos de Johanna encheram-se de lágrimas.

- Mas não sem ti, Alcaya - disse ela, a voz embargada.

- Comigo ou sem mim. Queridas, tendes procurado o amor de Deus com um coração puro; Ele não vos abandonará agora. E eu rezarei por vós, sempre.

- Babilónia precisa de ti.

- Vitalia também precisa de mim. E não tem mãe para cuidar dela. Perdoa-me, filha querida. Tenho o coração a sangrar, mas a nossa irmã não pode ficar sozinha.

De súbito, senti como se não pertencesse àquela sala; como uma coruja no deserto, eu observava; era como um pardal solitário no topo do telhado. Excluído. Ignorado.

- Colocai as roupas nos sacos, agora - disse eu entredentes, consciente de que as minhas palavras não eram ouvidas. - Estai prontas para partir quando eu voltar. Vou a Saint-Remezy arranjar uma cama para Vitalia.

E foi o que fiz. Tendo informado Pons da minha intenção, fui (em pés que eram mais ligeiros do que a lançadeira de um tecelão) ao hospital de Saint-Remezy, onde falei com o irmão Michael. Um homem carrancudo e enfastiado que eu mal conhecia, o irmão Michael suspirou perante a ideia de socorrer outro vagabundo pelintra, como se o hospital tivesse sido construído para cumprir um objectivo mais nobre e mais feliz. Ou talvez ele simplesmente lamentasse que não houvesse possibilidade de receber uma generosa doação.

- Mas temos sempre espaço para uma moribunda - disse-me ele, inspeccionando um dormitório cheio de estropiados e doentes. - Afinal, ela não vai cá estar muito tempo.

- Ela vai trazer consigo algumas coisas. Naturalmente, ficarão para o hospital quando ela morrer.

- Tendes a certeza? Muitas vezes há parentes que aparecem no último minuto.

- Não há parentes.

Com a cama de Vitalia assim assegurada, regressei à prisão, onde deparei com um Pons irado, que me disse que "a rapariga louca" tivera "um ataque qualquer, e se eu fazia o favor de levar as quatro mulheres da sua casa dos guardas, antes que ele as pusesse na rua a pontapé. Como eu receava que acontecesse, o desgosto provocado pela separação de Alcaya perturbara Babilónia profundamente. Encontrei-a estendida no chão, com os olhos vermelhos e o rosto ensanguentado; segundo Johanna, a rapariga estivera a bater com a cabeça na parede.

- Ela não quer deixar Alcaya - observou a minha amada, levantando a voz rouca de emoção para que se sobrepusesse ao gemer rítmico da filha. - O que vamos nós fazer? Ela não quer deixar Alcaya, e eu não posso deixá-la. v - Então Alcaya tem de deixar Vitalia.

- Padre, como posso fazer uma coisa dessas?

- Ouvi-me - peguei na velha teimosa pelo braço (que Deus me perdoe, mas foi como pensei nela, na altura!) e empurrei-a para o corredor. Depois, fixando-a com uma dolorosa expressão de súplica, e numa voz baixa mas firme, expus-lhe o meu ponto de vista.

- Confiais em mim, Alcaya? - disse eu.

- Oh, padre, com a minha vida.

- Tenho-me preocupado convosco? Tenho-vos estimado a todas como irmãs?

- Tendes. De facto, tendes.

- Então confiais em mim para cuidar de Vitalia? Confiais em que vou estar ao lado dela e reconfortá-la? Fareis isso por mim?

O olhar azul e sincero de Alcaya parecia absorver as minhas palavras e pesar cada uma delas segundo os seus méritos. Eu sentia que ela ainda não estava convencida. Sentia que ela procurava outra forma de descrever e de me explicar a profundidade da sua obrigação para com Vitalia.

Assim, fiz a minha alegação final.

- Alcaya - disse eu com voz suave -, tendes de cuidar de Johanna. Tendes de me prometer isso. Como posso deixá-la ir, a não ser que estejais a seu lado para a amar e proteger? Imploro-vos. Rogo-vos. Não a abandoneis agora, logo quando eu sou obrigado a virar costas! Não posso... não sou... é demasiado para se suportar. É demasiado. Alcaya, concedei-me apenas isso. Por favor.

Se foi por causa da perda por que eu estava prestes a passar, se pela extensão do meu medo, se pela radiante, terna e infeliz compreensão estampada no rosto de Johanna, não sei, mas as lágrimas reuniram-se-me nos olhos, nesse momento. À medida que as enxugava, vi que também Alcaya chorava. Pegou-me na mão e encostou-a à face, como um gatinho.

- Oh, meu filho querido - sussurrou ela -, o vosso coração está demasiado cheio. Depositai o vosso peso sobre mim. Aceito o vosso amor e usá-lo-ei com sensatez. O vosso amor é o meu amor, padre. Descansai a alma, pois Johanna não ficará sozinha.

E, de súbito, houve paz. Houve paz como a paz com que eu fora abençoado, naquela manhã, na encosta da colina perto de Casseras. Desta vez não me encheu como se eu fosse um cálice, nem me ofuscou como o Sol. Tocou-me com tanta suavidade com um zéfiro passageiro, e tornou a partir. Aqueceu-me o coração dorido com um beijo leve como uma pena.

Fortalecido, eu, mesmo assim, fiquei aturdido e sem fala. Pensei: Cristo, estás aqui? Ainda hoje, não vos sei dizer se o Espírito Santo veio ter comigo nessa altura. Talvez o Seu amor formasse um só com o de Alcaya, pois o amor dela era puro e verdadeiro, ardente e generoso, transcendendo o seu sexo, os seus pecados, e os seus erros de julgamento. Ela estava, tenho a certeza, muito próxima de Deus no seu amor. Embora fosse pouco sensata nalgumas coisas, o seu amor era imenso. Sei-o agora. Senti-o naquela altura. Vi por que Babilónia se acalmava e transformava com o amor de Alcaya, pois ele permitia-lhe, talvez, provar daquele amor imensuravelmente maior, mais profundo, mais doce, que é o amor de Deus, e só Ele.

Sou um ignorante e um pecador. Só sei que nada sei. No mundo inteiro, não há ninguém digno do Senhor, e se a Sua paz ultrapassa toda a compreensão, como poderia eu ter tido esperança em reconhecê-lo com os meus sentidos indignos, o meu intelecto hesitante, o meu coração pecador? Talvez eu tivesse sido honrado para além do louvor dos homens e dos anjos. Talvez a fraqueza e o desejo me tenham desviado do caminho. Não sei. Não sei dizer.

Mas senti-me reconfortado com uma tristeza exultante - com uma força complacente (não encontro palavras para descrever as minhas sensações) - e encontrei alívio quando pousei a cabeça, por breves instantes, no ombro de Alcaya. Para isso, fui obrigado a inclinar-me, e, ao fazê-lo, ela abraçou-me. O cheiro dela não era de forma alguma doce, mas também não era fétido nem carnal. Os ossos dela eram tão pequenos e frágeis como os de uma galinha.

- Levai The Uttle Flowers - disse ela. - Lede-o a Vitalia. Eu já o sei de cor. Ela vai precisar mais dele do que eu.

Com um aceno de cabeça, mostrei o meu assentimento. Em seguida voltámos a entrar na casa dos guardas sem trocarmos mais uma palavra. E foi ela quem, a partir daí, se encarregou da evacuação, decidindo quem devia levar o quê. Acedendo ao seu amável pedido, fui à procura dos homens que transportariam Vitalia.

Eu encontrava-me ainda algo desorientado, compreendeis, e distraído por questões mais sublimes do que a disposição da bagagem. Estava ainda embriagado de amor.

Na cozinha do carcereiro, onde os familiares, quando não estavam de serviço, eram agora obrigados a estar, encontrei dois homens dispostos a levarem as mulheres rapidamente dali - nem que fosse só porque estavam ansiosos por reclamarem a sua sala. Não eram precisos mais de dois homens, pois Vitalia era tão leve e insubstancial como relva seca; embrulhámo-la num cobertor e colocámo-la em cima de outro, que foi depois usado como um género de padiola. Com grande dificuldade, ela foi levada escadas abaixo, enquanto eu seguia à frente com a braseira, e as amigas atrás, com roupas, panelas, livros, cobertores e afins. A procissão foi recebida com muitas observações de espanto tanto da parte do pessoal como dos prisioneiros. Não é com frequência que se vê um inquisidor de Depravação Herege a carregar a bagagem de outra pessoa; não tenhais dúvidas de que é uma visão digna de comentário.

Primeiro, dirigimo-nos a Saint-Remezy. Aí, fora preparada uma enxerga para receber a mulher doente, entre cenas de tanto sofrimento, tanto sangue e pus e sujidade, tais gemidos e fedores que todos empalidecemos, homens e mulheres. Na minha visita anterior, eu não fora levado àquela parte do hospital reservada aos moribundos. Não me apercebera de que era um local onde a esperança era inexistente. Eu já vira leprosarias mais animadoras, catacumbas menos apinhadas. O ar impregnado de fumo parecia ter um sabor a carne em putrefacção.

- Não podemos deixá-la aqui - murmurou Johanna, demasiado chocada para ser discreta. - Bernard, não podemos deixá-la aqui.

- Tem de ser - disse eu, desesperado. - Olhai, a cama dela é numa alcova. Está separada das outras. E virei visitá-la muitas vezes.

- Minha querida, Vitalia não sofrerá - para minha surpresa, era Alcaya que falava. Pousou um dos seus sacos para poder colocar um braço em volta de Babilónia. - O mundo não significa nada para ela agora: tem os olhos fixos na Luz Eterna. Está surda para esta torre de Babel. Tudo o que ela precisa é de um amigo que lhe segure a mão, e que lhe dê um caldo de carne.

Olhando para Vitalia, vi que, de facto, mal estava consciente e que se encontrava para além de preocupações com a sua sorte. No entanto, parecia horrível que fosse ao encontro do Criador num ambiente que tresandava a morte e a doença. E como poderia eu assegurar que estaria presente para me despedir dela, quando ela partisse para a sua última viagem?

Atormentado por estas questões, eu poderia ter reconsiderado os meus planos logo ali, naquele momento, se não tivéssemos sido abordados por um irmão que se apresentou como Leo. Sorridente e amável, tocou o rosto de Vitalia e chamou-lhe "minha filha". Falava-lhe como se ela o pudesse ouvir. Falava-lhe como se ela fosse mais importante do que qualquer um de nós.

- Minha filha - disse ele -, sois bem-vinda. O Senhor está contigo. Os Seus anjos caminham entre nós, aqui; vejo-os de noite. Não receeis, minha alma cansada. Rezarei convosco, e encontrareis paz.

Eu soube então que ela chegara a um porto seguro.

Deixai que vos diga que, no irmão Leo, o hospital de Saint-Remezy possui uma jóia sem preço. Falei com ele enquanto as mulheres se despediam da amiga (e vou saltar esta despedida, já que não há palavras que descrevam o quanto foi dolorosa); ele disse-me que adorava cuidar dos moribundos, pois estavam muito próximos de Deus.

- É uma honra - insistiu ele. - Uma honra. Todos os dias me sinto abençoado - sentir-se abençoado entre tal dor, tal desespero, exige uma fé capaz de mover montanhas; senti-me envergonhado ao testemunhar o seu contentamento, e a sua alegria tranquila, embora eu também acredite que ele fosse também um homem de - como direi? - inteligência limitada. Um homem simples mas devoto. E certo da salvação. Oh, sim, disso não pode haver dúvida. Por vezes, confessou-me ele, tinha de caminhar lá fora, gritar e disparatar - mas até Cristo, afinal, implorou a Deus para que afastasse Dele o cálice.

Quando, finalmente, partimos, pedi a bênção ao irmão Leo (que muito o surpreendeu), e recebi-a com grande humildade de espírito. Mesmo agora, penso muitas vezes nele. Que o Senhor seja magnânimo para com ele, pois é verdadeiramente uma pérola de grande valor.

Mas tenho de continuar com a minha narrativa. De olhos vermelhos e a soluçar, as três mulheres seguiram-me até ao palácio do bispo, onde eu contava encontrar quatro cavalos selados à nossa espera. No entanto, nisso fui excessivamente optimista. Em vez de ser escoltado até aos estábulos, o meu grupo foi levado para a sala de audiências do bispo Anselm. Aí, encontrámos não só o bispo, mas também o senescal, o prior Hugues e Pierre-Julien. Percebi imediatamente que esta reunião não augurava nada de bom. Havia nela o ambiente de tribunal. Havia até soldados colocados à porta. E estava presente o notário do bispo, sentado com uma pena na mão. Ele era, talvez, a visão mais ominosa de todas.

Tendes de vos esforçar por tentar imaginar a assembleia, pois iria ter consequências de grande alcance. O bispo, reluzindo de pedras preciosas, ocupava a cadeira maior e mais bonita. Parecia preocupado com assuntos corporais, arrotando de vez em quando, ou passando a mão pela barriga, ou agarrando a cana do nariz entre um polegar e um dedo indicador, ao mesmo tempo que se encolhia. Se não me engano, ele estava a sofrer os efeitos de ter tomado demasiado vinho. Era certo que exibia um estado de espírito anormalmente carrancudo que parecia confirmar esta premissa.

O prior Hugues estava manifestamente pouco à-vontade. Embora a sua expressão fosse impassível de uma forma pastosa, as suas mãos nunca estavam quietas, movendo-se dos joelhos para o cinto, depois para os braços da cadeira em que estava instalado. Pierre-Julien estava sentado com a cabeça inclinada para trás e o queixo espetado para a frente, numa atitude que, sem dúvida, tinha o objectivo de me impressionar como indómita. Só Roger Descalquencs se encontrava de pé, e era o único que estava calmo - embora, talvez, invulgarmente alerta.

Deparadas com tal quantidade de jóias, de armas e de olhares terríveis e ameaçadores, as mulheres muniram-se de muita coragem. Babilónia, embora enterrasse o rosto no peito da mãe, não gritou nem enlouqueceu. Alcaya observava os homens à sua frente com inocentes olhos azuis, não mostrando receio, mas apenas um interesse intenso e respeitoso. Johanna estava com medo. Deduzi-o pela palidez que lhe vi no rosto, e pela forma como comprimia os lábios macios. No entanto, o orgulho mantinha-lhe as costas e os ombros direitos. Da sua altura considerável, podia olhar por cima do nariz para o bispo Anselm e para Pierre-Julien.

Johanna podia até olhar o senescal nos olhos, num olhar à mesma altura.

- Ah. Irmão Bernard - com voz cansada, o bispo pronunciou o meu nome quando entrei na sala. Falava como se fizesse um esforço considerável para se lembrar de quem eu era e por que motivo estava ali. As mulheres, ele despachou com um simples olhar, como se não fossem suficientemente importantes para que a sua presença fosse notada. - Finalmente podemos avançar. Irmão Pierre-Julien?

Pierre-Julien pigarreou.

- Bernard Peyre de Prouille - disse ele com voz aguda -, já estais acusado como crente herege e por esconder e ocultar hereges, com base em infâmia pública.

- O quê?

- Jurais sobre os Santos Evangelhos dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade em relação ao crime de heresia?

Sem fala, olhei os Evangelhos que me foram trazidos por Roger Descalquencs. Sem energia, permiti que ele colocasse a minha mão sobre eles. O choque privara-me das minhas faculdades (estupidamente, talvez, eu não previra tal desenvolvimento), e fiz o meu juramento sem colaborar conscientemente, como se a minha vontade me tivesse abandonado. Mas então o meu olhar distraído encontrou o prior, e vi nos seus olhos um mal-estar que me despertou.

- Padre! - exclamei. - Que disparate é este?

- Como respondeis à acusação? - desta vez, a voz de Pierre-Julien era mais forte e mais dura. Não se desviava do seu objectivo. - Como respondeis à acusação?

Eu estava quase a gritar "Inocente!", quando, de súbito, recuperei a capacidade mental, e me apercebi de que estivera muito próximo de cair numa armadilha. Compreendeis, é que no ordo júris da inquisição, um acusado só pode ser formalmente acusado se tiver confessado ou sido difamado. Se tiver sido difamado, e isso por cidadãos dignos de confiança, o seu juiz deve apresentar provas de infâmia antes de lhe pedir que responda à acusação. E se ele se declarar inocente, devem então ser apresentadas provas da sua culpa.

No entanto, desde o Ubersextus, de Bonifácio VIII, aos juizes tem sido permitido avançar sem estabelecer infâmia, se o acusado não objectar. E eu quase me esquecera de o fazer.

Mas lembrei-me dos meus direitos, antes que as alegações finais fossem anunciadas, e, virando-me para Pierre-Julien, disse:

- Onde está a infâmia pública? Onde estão as acusações?

- Perguntais-me quais são as acusações? Quando vindes à nossa presença com estas hereges, cuja fuga estáveis a efectuar?

- Fuga? - gritei. - Destes a vossa autorização!

- Que assegurastes através de mentiras e truques - interrompeu o senescal. Levantei o olhar e vi um velho amigo que era um estranho: um homem cujos pequenos olhos negros me olhavam com frieza, tão implacáveis como pedras. - Falastes de uma carta de Jean de Beune. Ontem não chegou nenhuma carta de Carcassonne. Há uma semana que não chega carta nenhuma de lá, e Pons confirmou-o. Os vossos planos saíram frustrados.

Ocorreu-me, então, que o senescal era o meu verdadeiro inimigo. Se Pierre-Julien se encontrasse exposto, também ele estaria ameaçado. E ele era um homem forte, astuto, um lutador acostumado a batalhas tanto no campo como fora dele. Sem dúvida que Pierre-Julien correra a procurar a sua ajuda à primeira oportunidade; sem dúvida que forA Roger Descalquencs que perguntara primeiro sobre a minha carta falsificada:

"É genuína?". E enquanto eu perdia tempo no hospital, Roger depressa chegara à conclusão de que não era, de facto, o que eu dissera que era.

Eu olhava-o fixamente, e, pela primeira vez, senti algo parecido a medo.

- Meu senhor - disse eu, virando o rosto para o bispo -, estas acusações são resultado de uma conspiração entre o inquisidor e o senescal. Não têm qualquer fundamento. O irmão Pierre-Julien confessou-me, ainda esta manhã, que ele e o senescal destruíram partes dos livros de registo inquisitorial que implicavam as suas famílias como hereges...

Mas o bispo levantou a mão.

- O irmão Pierre-Julien afirma outra coisa - disse ele. - O irmão Pierre-Julien afirma que fostes ter com ele ameaçando expor a sua hereditariedade como conspurcado, se ele não libertasse as mulheres que estão à nossa frente. Ele afirma que fabricastes uma carta, na qual se faziam falsas acusações contra a sua família. No seu desespero inicial, ele cedeu aos vossos desejos. Mas depressa se apercebeu de que estava a colocar em perigo a sua alma ao fazê-lo.

- Meu senhor, se consultardes os livros de registo, vereis que estão danificados - comecei. Neste ponto, Pierre-Julien interrompeu-me, tartamudeando qualquer coisa relacionada com o facto de estes livros de registo já estarem adulterados quando foram recuperados da posse de Raymond.

- O irmão Bernard está a atacar-me para se defender! - terminou o homem vil. - Mas pode ser provado que ele é crente, que esconde e oculta...

- Provai-o, então! - protestei. - Onde está a vossa prova? Quais são as acusações? E que estais aqui a fazer - apontei para o senescal -, e vós, padre Hugues, se se trata de uma audição formal do tribunal?

- Estão aqui como observadores imparciais - explicou Pierre-Julien. - Quanto às provas, estão aqui à nossa frente, em forma de mulheres. Estas são as hereges que tendes tentado esconder e defender!

E indicou as três mulheres. Johanna deixou escapar um gemido em voz baixa, e distraí-me, por um instante, quando tentava transmitir-lhe confiança com um olhar. Assim, não consegui demover Alcaya quando ela deu um passo em frente, e, à sua maneira animada e audaz disse:

- Oh, não, não, padre. Não somos hereges - e, surpreendida, toda a assembleia a fixou.

Ninguém previra tal ousadia da parte de uma mulher. Ninguém podia acreditar na sua audácia. Foi o bispo que, após ter recuperado da surpresa, lhe ordenou, irritado, que ficasse calada - e, como uma boa filha da igreja, ela obedeceu à sua ordem.

Consequentemente, fui obrigado a defender, eu próprio, a sua reclamação.

- Elas não são hereges - insisti. - Não foram nem acusadas nem difamadas. Por isso, não posso ser acusado de as encobrir.

- Elas foram difamadas - respondeu Pierre-Julien. - Jean-Pierre acusou-as de feitiçaria e de conspiração contra o Santo Ofício.

- O testemunho dele não foi confirmado.

- Ele confirmou-o ontem.

- Foi-lhe extraído sob tortura.

- Não há nada de mal nisso, irmão Bernard - observou o senescal, após o que me virei para ele.

- Os observadores imparciais não têm o direito de comentar uma inquisição! - disse eu com brusquidão. - Se voltardes a abrir a boca, sereis expulso desta assembleia! Meu senhor, ouvi-me - mais uma vez, eu dirigia-me ao bispo. - Ontem à noite, Jordan Sicre, um dos familiares que se presume ter sido assassinado juntamente com o padre Agostinho, confessou que tinha planeado o assassínio a mandado de Raymond Donatus. Não foi feita qualquer menção das mulheres que aqui vedes. Elas não tiveram nada a ver com a morte do padre Agostinho.

- O testemunho de Jean-Pierre é referente à morte de Raymond Donatus e não do padre Agostinho - disse Pierre-Julien.

- Mas estão ambos ligados! Meu senhor, Raymond mandou matar o padre Agostinho, porque o padre Agostinho estava a consultar livros de registo antigos. E Raymond estava a usar esses livros para extorquir dinheiro a pessoas com antecedentes hereges. Quem quer que tenha morto Raymond talvez estivesse farto de pagar, e com medo de ser exposto...

- Como herege? - perguntou o bispo.

- Ou como descendente de hereges.

- Nesse caso, estas mulheres ainda estão implicadas - declarou o bispo. - O motivo delas não é importante.

- Meu senhor...

- Vedes como ele as defende? - gritou, de súbito, Pierre-Julien. - Ele próprio é acusado, no entanto, procura assegurar a segurança delas antes da dele!

- A minha segurança está assegurada - respondi. - Se elas forem ilibadas, eu sou ilibado, pois quem é que pode acreditar que eu seja herege? Quem? Quem é que me pode difamar? Padre, sabeis que sou um bom católico - e apelei para o prior, que era um velho amigo, e que tão bem conhecia o conteúdo do meu coração. - Deveis saber que isto é um disparate.

Mas o prior mexeu-se, inquieto, na sua cadeira.

- Não sei nada - murmurou. - Há outra prova...

- O quê? Que prova?

- O tratado sobre a pobreza, de Pierre Olieu! - exclamou Pierre-Julien. - Negais que esse livro ímpio se encontre na vossa cela?

Agora, neste ponto, tornava-se-me evidente que eu fora investigado. A minha cela fora revistada; talvez tivessem feito perguntas. E apercebia-me de que devia ter sido feito um inquérito à minha ortodoxia enquanto eu me encontrava em Casseras.

Já não me surpreendia que Pierre-Julien tivesse estado "demasiado ocupado" para interrogar Jordan Sicre. Sem dúvida que estivera ocupado a tratar de assuntos de mais peso: nomeadamente, a denegrir a minha reputação.

- Há na vossa cela livros sobre a invocação de demónios, irmão Pierre-Julien - disse eu, continuando com uma aparência calma, embora tremesse por dentro. - No entanto, ninguém presume que estejais envolvido em tais práticas.

- As palavras de Pierre Olieu foram condenadas como hereges.

- Algumas das suas ideias foram condenadas - não todas as suas obras. Além disso, encontrareis esse livro na biblioteca dos franciscanos.

- E nas mãos de muitos beguinos.

- É verdade. Era por essa razão que eu tencionava queimá-lo. Não concordo com os argumentos nele apresentados.

- A sério? - o tom de voz de Pierre-Julien era céptico. - Nesse caso, por que é que o livro estava na vossa cela, irmão? Alguém vo-lo deu?

- Confisquei-o.

- A quem?

Sabendo que a verdade condenaria ainda mais Alcaya, faltei à verdade.

- A uma alma perdida - respondi.

- A um herege? Ao herege que deixastes fugir, não há muito tempo, quando o deixastes afastar-se do priorado à vontade?

Intrigado, fitei o prior Hugues, que olhava para baixo, para as mãos.

- Herege? - perguntei. - Que herege?

- O irmão Thomas diz que vos chamou a atenção para um herege que pedia esmola junto ao portão do priorado - Pierre-Julien inclinou- se para a frente. - Afirma que perseguistes o homem. Mas, segundo Pons, não o acusastes nem o prendestes. Deixaste-lo fugir.

- Porque ele não era herege - com certeza que já tereis identificado o "herege" desta descrição. Eu estava ansioso por proteger a sua identidade, protegendo-me, a mim próprio, ao mesmo tempo. - Era um familiar, disfarçado de herege.

- Um familiar? - disse Pierre-Julien, desdenhosamente. - E quem é esse familiar, podeis dizer-nos? Onde o podemos encontrar?

- Não podeis encontrá-lo. Eu não posso encontrá-lo. É um espião, e a sua vida não valeria nada se se tornasse conhecido de todos que ele tinha contacto frequente com um inquisidor de Depravação Herege - consciente do quanto esta explicação era insuficiente, tentei torná-la mais convincente. - Foi ele que me informou do paradeiro de Jordan Sicre. Andava na Catalunha a fazer espionagem para mim, e conhecia Jordan de uma outra vez em que estivera preso. Correu um grande risco ao vir aqui. Depois foi-se embora, e... com toda a honestidade, sei apenas que ele estará em Alet-les-Bains daqui a dezoito meses.

Houve um curto silêncio, à medida que a assembleia digeria esta informação. O prior Hugues parecia espantado; o bispo, confuso; o senescal, francamente impressionado.

- Dezoito meses - murmurou ele para ninguém em especial. - Que conveniente.

- Muito conveniente - concordou Pierre-Julien. - E podemos saber como se chama esse misterioso confederado?

- Não servirá de nada. Ele usa muitos nomes.

- Então dai-no-los todos.

Hesitei. Na verdade, não desejava envolver o meu valioso familiar. Mas sabendo que uma desobediência poderia muito bem ser considerada uma insolência, eu entreguei os nomes, embora relutante. Afinal, era um acto levado a cabo em defesa do homem; era melhor que ele fosse publicamente identificado como servidor do Santo Ofício do que condenado por herege.

Também forneci um effictio a Pierre-Julien, e incitei-o para que procedesse com cuidado, se tencionava interrogar o inapreensível "S" como testemunha.

- Se tendes de deter este indivíduo, não digais a ninguém a razão - disse eu. - Ele tem de ser preso como perfeito, não como espião.

- Ele é perfeito?

- Finge ser perfeito.

- E deu-vos o tratado sobre a pobreza?

- Claro que não. Por que motivo é que um perfeito cátaro haveria de possuir um livro de Pierre Olieu?

- Aha! Então admitis que ele é perfeito!

- Augh! - eu estava a perder a paciência. - Padre Hugues, este disparate já foi longe de mais. Deveis saber que as acusações não têm fundamento. Agireis como meu compurgador? Sereis um entre muitos.

O prior fixou-me com um olhar sombrio. Por uns instantes, ficou em silêncio. Em seguida franziu a testa, suspirou e disse, de través:

- Bernard, eu sei de onde veio este tratado. Dissestes-me, lembrais-vos? E sei aonde as vossas paixões vos levaram - como eu o olhava, horrorizado, acrescentou: - Talvez elas vos tenham levado mais longe do que eu pensava. Eu bem vos avisei, Bernard. Falámos largamente disto.

- Quebrastes...?

- Não, não quebrei o selo da confissão. Só expressei as minhas dúvidas.

- As vossas dúvidas? - eu estava furioso. Não - este termo não é suficiente para transmitir a raiva que eu sentia. A fúria arrebatava-me. A cólera inflamava-me. Estava capaz de o matar. - Como ousais?! Como ousais sequer pensar em julgar-me, seu iletrado insensato, enfatuado e sem carácter? O que vos faz pensar que tendes capacidade para compreender alguma coisa que eu diga ou faça?

- Irmão...

- E pensar que vos elegi! Para me trairdes e me entregardes a um homem com a cabeça cheia de serradura! Respondereis por isto, Hugues - respondereis perante Deus e o Mestre!

- Sempre fostes caprichoso - gritou o prior. - Em relação a Durand de Saint Pourcain e à sua obra...

- Oh, estais louco? Durand de Saint Pourcain! Um desacordo sobre definições!

- Podeis não ser ortodoxo! Não o negueis!

- Nego-o completamente!

- E é essa a vossa resposta à acusação? - observou, de súbito, Pierre-Julien. - Fazeis uma declaração de inocência, irmão Bernard?

Fiquei a olhá-lo, momentaneamente confuso. Depois vi o notário A à espera, e, num tom brusco, dei a minha resposta.

- Inocente! Sim, estou inocente! E há outras pessoas que agirão como minhas compurgadoras! Inquisidores! Priores! Cónegos! Não estou inteiramente sem amigos, e apelarei para o Papa, se for preciso! O mundo inteiro irá saber desta conspiração porca!

Eu disse-o, mas já sabia que as minhas palavras não passavam de ameaças vazias. Reunir tais apoiantes levaria tempo, e o meu tempo era limitado. Enquanto se escreviam e despachavam cartas, a minha amada correria muito perigo. Pierre-Julien usaria a roda à-vontade, eu estava certo disso. Por isso, enquanto profetizava a condenação dos meus inimigos, usei simultaneamente os meus poderes de raciocínio para divisar as possibilidades de fuga.

Passei em revista as armas que ainda tinha comigo e perguntei a mim próprio como poderiam ser usadas.

- Como te chamas, mulher? - estava Pierre-Julien a dizer. E ouvi Alcaya responder que o seu nome era Alcaya de Rasiers.

- Alcaya de Rasiers, estais acusada do crime de heresia contumaz. Jurais sobre as Sagradas Escrituras dizer a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade em relação ao crime de heresia?

- Alcaya - interrompi -, tendes de pedir tempo para reconsiderar. Tendes de pedir provas de infâmia.

- Calado! - o senescal empurrou-me com movimento súbito e ameaçador. - O padre Pierre-Julien já acabou de vos interrogar.

- Prova de infâmia? - disse Alcaya, claramente confusa. Mas não pude clarificar-lhe este conceito, porque Pierre-Julien colocou-lhe as Sagradas Escrituras debaixo do nariz, e ordenou-lhe que jurasse.

- Jurai! - disse ele. - Ou sois herege e receais jurar?

- Não. Jurarei de boa vontade, embora nunca mentisse.

- Então jurai.

Ela fê-lo, sorrindo ao texto sagrado, e eu tive medo. Pois sabia que, das mulheres ali presentes, Alcaya era quem mais se afastara do caminho da ortodoxia ao longo da vida. E sabia que ela não se esforçaria por ocultar este facto dos seus carrascos.

- Alcaya de Rasiers - continuou Pierre-Julien -, alguma vez ouvistes alguém a ensinar e a afirmar que Cristo e os Seus apóstolos não possuíam nada, nem pessoalmente nem em comum?

- Alcaya - disse eu rapidamente, antes que ela respondesse e se condenasse com a sua própria língua -, tendes de pedir tempo para reconsiderar. Tendes de exigir prova de infâmia.

- Estai calado! - desta vez o senescal bateu-me na cabeça com a mão, e eu virei-me para ele, batendo-lhe no braço.

- Voltai a tocar-me - avisei -, e sofrereis por isso. Os olhos de Roger brilharam.

- Ai é assim? - disse ele, mostrando-me um sorriso terrível. Então Pierre-Julien pediu que eu fosse levado da sala, e Roger mostrou-se encantado por ser o agente do meu afastamento. Naturalmente, eu estava desejoso de ver qual seria o meu destino; naturalmente, apelei para que o prior me ajudasse. Mas o senescal, à força, impediu-me de o fazer, agarrando-me os braços numa tentativa de me expulsar da sala.

O que teríeis vós feito? Condenais-me por tê-lo pisado, ou, quando o aperto dele afrouxou, lhe ter aplicado o cotovelo nas costelas? Lembrai-vos, por favor, de que este homem, que eu durante tanto tempo considerara meu amigo, me traíra de uma forma muito cruel. Lembrai-vos, por obséquio, de que estávamos ambos envolvidos num combate mortal, que estava prestes a manifestar-se em actos de violência física.

Seja como for, ataquei-o, e, em troca, fui atacado. É claro que eu não podia ter esperança em vencer. Embora mais alto do que o senescal, eu era mais fraco, e sem qualquer treino na arte da guerra. Além disso, não tinha guardas nas minhas costas para me apoiarem. À medida que Roger se afastava um pouco a cambalear, agarrado ao peito, os dois soldados que se encontravam à porta avançaram num único movimento, e lançaram sobre mim uma chuva de golpes. Protegendo a cabeça com os braços, caí de joelhos, vagamente consciente dos protestos horrorizados de Johanna, antes de cair de borco por acção de um pontapé que me assentou entre os ombros.

Lembro-me de que estava deitado sobre a barriga, a tremer, à espera do soco seguinte. Só a pouco e pouco é que se tornou evidente que esse soco fora suspenso. Lentamente, o zumbido que tinha nos ouvidos desapareceu; comecei a ouvir outros sons - choros, gritos, pedidos de ajuda. Sentei-me. Através de lágrimas de dor, vi que estava a decorrer uma altercação. Vi o senescal a defender-se de Babilónia, que o arranhava e mordia como um animal, ao mesmo tempo que os soldados se apressavam a ir ajudá-lo. Um deles deixou cair o bastão nas costas da rapariga, para que ela parasse. Então Alcaya atirou-se entre Babilónia e a arma, e Johanna atirou-se ao soldado, e Pierre-Julien mergulhou atrás de uma cadeira. O que se seguiu não é muito claro para mim, agora, pois creio que o golpe que recebi depois na fonte me fez perder a memória. Só sei que, ainda a coxear dos ferimentos, tentei puxar Johanna para fora da rixa.

A seguir, por um breve período, vi estrelas e nada mais.

Disseram-me que fui derrubado pelo mesmo bastão que já fora usado contra Babilónia. Disseram-me também que Johanna, pensando, pelo menos por um instante, que eu estava morto, foi tão profundamente sentida nas suas lamentações que um pesado silêncio cobriu toda a sala com um manto. Todos hesitaram. Os soldados baixaram as armas. Nervosamente, o senescal procurou-me o pulso, enquanto que Alcaya começou a rezar. Então, a pouco e pouco, recuperei a consciência, e, de uma forma muda, foi decidido que a assembleia talvez devesse dispersar, por enquanto.

E aconteceu que dei comigo na casa dos guardas da prisão, sem fazer ideia de como isso acontecera.

 

Deliberação em relação aos prisioneiros

Eu dormia e acordava, dormia e acordava. Da primeira vez que

acordei, com dor de cabeça, cambaleei até à porta e exigi uma explicação: por que estava eu encerrado em tal sítio inóspito?

Durante algum tempo, ninguém respondeu. Depois ouvi a voz de Pons vinda do corredor; disse-me que eu era um herege obdurado, e um perigo para os outros. Ele poderia ter dito mais, mas não me lembro se o fez. Dominado pelas tonturas, voltei para a cama.

Quando voltei a acordar, a minha mente estava mais nítida. Sabia onde estava, e porquê; pelo toque dos sinos, deduzi que era a hora Sexta, e perguntei a mim próprio o que poderia ter ocorrido durante o tempo que passara desde que eu fora ferido. Sentia-me muito, muito ansioso em relação a Johanna. Sentia também sede, rigidez e dores. Doíam-me as costas quando respirava.

Levantando-me com alguma dificuldade, bati à porta, até que Pons veio.

- O que é? - resmungou.

- Preciso de vinho. Estou com dores. Ide buscar o irmão Amiel ao priorado.

Houve uma pausa. Depois, Pons disse:

- Tenho de perguntar ao padre Pierre-Julien.

- Fareis o que vos ordenei!

- Já não, padre. Tenho de perguntar ao padre Pierre-Julien. E deixou-me, e, a partir daí, era evidente que as minhas perspectivas eram sombrias. Como iria eu apelar para o Papa, se o meu pedido

de assistência por parte de um enfermeiro era recebido de tão má vontade? Sem dúvida que o meu destino seria o desdém, o isolamento, o esquecimento. Quanto às minhas novas amigas, a amizade tem de ser realmente forte para suportar a desaprovação do Santo Ofício.

Sentado na cama, que fora antes ocupada por Vitalia, considerei as minhas alternativas. Eram poucas e más, pois era muito claro para mim que, se não queria ficar na prisão, importunado por Pierre-Julien e atormentado pelos meus medos em relação a Johanna, teria de fugir. Só a ideia de tal acção deixava-me aterrado: como poderia levá-la a cabo? As paredes eram espessas; havia guardas ao portão; a porta da casa dos guardas estava fechada à chave, e só Pons tinha chave. Ocorreu-me, então, que teria também de salvar as mulheres, e senti-me desanimar. Na verdade, parecia uma tarefa impossível. Se elas estivessem encarceradas lá em baixo, seria bastante fácil libertá-las, porque as portas das celas murus largus estavam trancadas do lado de fora. Mas a minha própria porta, como disse, estava fechada à chave - e, para lá dos muros da prisão, a cidade não oferecia nenhum porto seguro a um herege fugitivo.

Contudo, competia-me fazer o que pudesse. Competia-me, pelo menos, descobrir o paradeiro de Johanna. - Pons! - gritei. - Pons!

Ninguém respondeu. Mas insisti, até que a mulher do carcereiro, a arfar e a resfolegar, me disse que o marido fora ter com o padre Pierre-Julien.

- O que quereis agora? - disse ela.

- Aquelas mulheres. Se não estão aqui comigo, onde estão?

- Lá em baixo, é claro.

- No murus largus?

- Estão a partilhar uma cela.

- E a cela tem janela?

- Não, não tem! - a mulher parecia sentir alguma satisfação em dizer-me isto. - Fica na extremidade sul, junto à escada. Não há janelas. É muito húmida. E as vossas amigas estão a comer o mesmo que o resto dos prisioneiros.

Era óbvio que a exigência que eu fizera de que as mulheres comessem da mesa dela a ofendera muito. Pensando melhor, talvez tivesse sido insensato da minha parte ter-lhe pedido isso. Talvez, se ela era agora minha inimiga, eu só me pudesse culpar a mim próprio.

Ouvindo o som arrastado dos passos dela que se afastavam, construí um plano mental da prisão, e apercebi-me de que Johanna estava praticamente por baixo de mim. No entanto, o chão era espesso e bem selado; não apresentava qualquer fenda, ou racha, por onde eu pudesse fazer passar um bilhete, ou sussurrar uma mensagem. Não que eu possuísse os meios para escrever um bilhete. Não tinha pena - nem pergaminho. Se apelasse para os meus amigos influentes, necessitaria do equipamento adequado. E quem ousaria trazer-mo?

Durand, pensei. Durand trar-mo-ia.

Estava a pensar nisto, quando o irmão Amiel chegou, cortesia de Pierre-Julien.

- Aqui está o vosso endireita - declarou Pons, tilintando as chaves. Depois abriu a porta, empurrou o irmão Amiel para a sala e voltou a fechar a porta à chave. - Se precisardes de mim, chamai-me - disse. - Estarei na cozinha, logo ao fundo do corredor.

O irmão Amiel fez uma careta, à medida que o tilintar cada vez menos audível das chaves indicava que Pons se afastava. Examinou a sala inteira, com evidente desaprovação, até que o seu olhar pousou, finalmente, em mim. E as suas sobrancelhas luxuriantes ergueram-se quase até à linha do escalpe.

- Então - disse ele -, estou a ver que alguém vos deixou em mau estado, irmão Bernard.

- Em muito mau estado.

- Onde é a dor?

Disse-lhe, e ele examinou-me, à procura de ossos fracturados. Não tendo encontrado nenhum, pareceu perder o interesse; disse que as nódoas negras desapareceriam, e que o inchaço diminuiria. Deu-me uma cataplasma de linho e unguento, que tirou de um saco de couro.

- Hissopo, absinto, consolda - explicou. - Um pouco de manjerona. E uma golada de vinho para a dor, mas devia ser aquecida. O carcereiro aquecê-la-á para vós?

- Penso que não.

- Nesse caso, colocai-a debaixo das roupas. O calor do vosso corpo pode ser suficiente - colocando-me na mão uma garrafa de barro com rolha de cortiça, disse que ficava à espera, até que eu consumisse o vinho. - Dizem que sois herege - acrescentou. – É verdade?

- Não.

- Parece improvável. Foi o que eu disse ao irmão Pierre-Julien.

- Quando?

- Ontem de manhã. Ele falou com todos os irmãos, um por um. Para fazer perguntas sobre vós - o tom de Amiel era algo indiferente. Ele sempre me impressionara como um homem mais interessado nos mortos do que nos vivos. - Fez-me perguntas sobre a minha lebre.

- A vossa lebre?

- A minha lebre embalsamada.

- Ah - eu podia imaginar. - Devíeis ter cuidado - avisei. - Ele tem ideias estranhas sobre animais mortos.

- O quê?

- Vê feitiçaria em toda a parte. Estai em guarda. Ele não é uma pessoa racional.

O irmão Amiel, porém, era demasiado sensato, ou talvez demasiado indiferente, para prosseguir com este assunto. Eu não podia censurá-lo; denegrir um inquisidor nas instalações do Santo Ofício é talvez melhor evitar-se. Perguntou qual era a cor da minha urina, e observou que a casa dos guardas era bastante fria. Perguntei-lhe se a sua golada de vinho faria com que eu ficasse sonolento. Ele respondeu que sim.

- Então é melhor que eu não a beba - foi a minha resposta. - Preciso de estar consciente, irmão. Tenho cartas para escrever.

- Que assim seja - com um gesto que indicava que renunciava a toda a responsabilidade sobre o meu bem-estar, Amiel devolveu a golada de vinho ao seu saco de couro. - Agora devíeis descansar. Se sangrardes, ou se tiverdes febre, devem mandar-me chamar. Mas, por agora, nada mais posso fazer por vós... - Esperai. Há uma coisa que podeis fazer. Podeis ir ter com Durand Fogasset e dizer-lhe que preciso de escrever algumas cartas.

- Durand Fogasset?

- É notário. Trabalha ao lado, onde eu costumava trabalhar. É um jovem, de aspecto desmazelado, com muito cabelo preto a cair-lhe para os olhos. Geralmente está cheio de manchas de tinta. Deve estar no escritório... ou com o padre Pierre-Julien. Se estiver, deixai uma mensagem a um dos familiares.

- Muito bem. E dizeis que quereis que ele vos escreva algumas cartas?

- Quero que ele entregue algumas cartas por mim. Quero que ele me traga uma pena e pergaminho. Tinta.

O irmão Amiel parecia ver isto como um pedido lógico. Assegurou-me que encontraria Durand Fogasset. Em seguida, tendo-se despedido de mim, chamou Pons, que lhe abriu a porta. Sem trocarem uma única palavra, os dois homens retiraram-se, deixando-me mais uma vez sozinho.

Mas desta vez, pelo menos, tinha a cataplasma para me dar conforto. Era fresca e húmida, e, grato, pressionei-a contra as minhas fontes latejantes. O cheiro a ervas parecia aclarar-me a mente enevoada.

De súbito, lembrei-me de Lothaire Carbonel, cujo pai fora herege impenitente.

Era um homem rico, Lothaire, com um segredo partilhado apenas por mim, agora que Raymond Donatus estava morto. Perguntei a mim próprio quanto é que um homem rico estaria disposto a sacrificar para conservar oculto um segredo tão ignominioso. Tanto quanto me lembrava, Lothaire mantinha orgulhosamente um estábulo cheio de cavalos. Sem dúvida que as suas cozinhas estariam bem fornecidas. E certamente que não acharia falta de algumas roupas: um manto, talvez... botas... uma túnica curta...

Com um bom cavalo, e a vantagem da surpresa, poderia ser possível ganhar a dianteira a qualquer perseguidor. Mas isso ainda deixava por resolver o problema das chaves, e dos guardas. O turno da manhã não tinha, de forma alguma, homens a mais, graças às restrições do orçamento inquisitorial. Para além dos dois guardas estacionados do lado de dentro da entrada da prisão, havia dois que patrulhavam o interior do edifício e que andavam sempre juntos, e um, cuja tarefa consistia em proibir a entrada na sede através da porta de fora. Os familiares até aqui responsáveis por esta tarefa tinham demonstrado um certo desleixo, pelo menos em relação à exclusão de transgressores femininos... e, de qualquer maneira, pensei, com crescente entusiasmo, o guarda não estará lá. O irmão Lucius chega sempre ao romper da manhã, e estará no escritório. Não nos verá, porque a porta que dá acesso ao edifício a quem vem da prisão fica situada no rés-do-chão da sede do Santo Ofício.

Pensei nesta porta. Estava sempre fechada à chave de noite, mas era aberta de manhã, com a chegada do irmão Lucius. Sem dúvida, uma partida ao romper da manhã eliminaria todo o tipo de dificuldades. No entanto, o coração desfaleceu-se-me ao aperceber-me de que ainda havia o problema da casa dos guardas. Pons tinha as chaves da casa dos guardas. Nunca as deixava. Se eu queria fugir, tinha de conseguir essas chaves, e que hipótese tinha eu de levar a efeito tal manobra? Só seria possível atacando-o. Uma vez dominado, talvez pudesse ser contido, amordaçado, até fechado. A mulher e os filhos estariam na cama, e eu poderia facilmente evitar passar pelas suas instalações, porque a escada estava praticamente encostada à porta da casa dos guardas. Apenas um lanço mais abaixo estava a cela de Johanna, e, daí, era mais um lanço até se chegar à entrada para a sede do Santo Ofício. Se eu conseguisse evitar a patrulha, levar as minhas companheiras para o exterior através dos estábulos, e fugir em cavalos doados por Lothaire Carbonel... seria este um plano impossível?

Impossível, talvez não, mas impraticável. Embora algo nédio, Pons era bastante ágil, e não era nenhum fraco. Além disso, andava muitas vezes munido de um punhal. Se estivesse deitado quando fosse chamado, poderia não estar armado, mas, mesmo assim, estávamos bem um para o outro. Era bastante provável que fosse eu o vencido. E, em qualquer caso, a luta certamente que acordaria a família dele. Não se derruba um homem para o chão sem fazer algum barulho.

Matutei neste facto e nos movimentos da patrulha, até Durand chegar. Ouvi-o caminhar até Pons algum tempo antes de o ver. O carcereiro fez algumas perguntas bruscas, mas pareceu ficar convencido com a resposta murmurada de Durand (eu conseguia distinguir o tom destas observações, se não o seu conteúdo, porque ambos os homens estavam a conversar na cozinha). Fosse como fosse, as chaves surgiram e a porta da casa dos guardas foi aberta. Quando Durand atravessou a soleira, fiquei surpreendido com o calor grato, com o alívio e a alegria que o seu aparecimento despertou em mim.

O notário trazia vários livros, assim como um maço de pergaminhos. Estava pálido.

- Trouxe alguns livros de registo - observou, olhando de lado, à medida que Pons, com ruidosas manifestações de descontentamento, fechava a porta à chave atrás dele. - Há uma ou duas coisas que quero esclarecer.

- A sério? - eu não podia imaginar o quê, e estava perplexo com os seus modos pomposos. Mas depressa percebi, pois quando ele me atirou um livro para as mãos, e o deixou cair aberto, vi uma faca longa e fina, terrivelmente afiada, escondida entre as páginas. Reconheci-a: era a faca que eu normalmente usava para afiar as penas.

- Aqui, estais a ver? - ele ainda estava a olhar para a porta. - Pensei que poderíeis saber o que fazer.

Eu estava quase demasiado chocado para falar. Mas, finalmente, voltei a encontrar a voz.

- Durand, tu... isto não é contigo - disse eu, escolhendo as palavras com cuidado. - Deixa estar. Não te preocupes.

- Mas é comigo, sim. Devia ser emendado.

- Não por ti, meu amigo. Deixa ficar.

- Muito bem. Deixarei ficar - retirando a faca do esconderijo, ele deslocou-se em direcção à cama, da qual eu me levantara para o saudar, e enfiou a arma debaixo de um cobertor.

Agarrando-lhe o braço, puxei-o na minha direcção.

- Leva-a de volta - soprei-lhe ao ouvido. - Serás implicado. Durand abanou a cabeça.

- Se me perguntarem - respondeu, no mais fraco dos sussurros -, direi: - "Sim, dei-lhe uma faca para afiar as penas. Por que não?" - depois, como se tivesse consciência de uma audiência invisível, voltou a levantar a voz: - O padre Amiel teve sorte em me encontrar - anunciou, olhando-me fixamente. - Estive toda a manhã a trabalhar com o padre Pierre-Julien, que esteve a interrogar uma das vossas amigas. A mais velha. Alcaya - sobressaltei-me, e ele apressou-se a assegurar-me que o interrogatório não decorrera na masmorra. - Não houve necessidade. Ela foi muito franca. Falou de Montpellier, e do livro de Pierre Olieu, e... e de outras coisas. Padre, ela foi... O padre Pierre-Julien estava muito satisfeito.

Isto, eu sabia, era um aviso. Se Pierre-Julien estava satisfeito, Alcaya devia ter-se condenado, aos olhos dele, como herege. E se Alcaya fosse condenada como herege, eu podia ser condenado como ocultador e encobridor de hereges.

- Tenho de escrever algumas cartas - declarei, consciente do tempo que passava. - Não te importas de esperar e de as entregar por mim? Não te deterei muito tempo.

Durand assentiu. Mostrou-me o que trouxera de materiais de escrita. Parecia-me prudente que a minha carta para Lothaire fosse escondida entre outras, para que a culpa da minha fuga - a concretizar-se - não recaísse sobre uma pessoa, mas sobre muitas. Assim, dirigi apelos ao deão de São Policarpo, e ao administrador real de Confiscações, aos inquisidores de Carcassonne e Toulouse. Perguntei se estariam dispostos a agir como meus compurgadores, sabendo que eu era um homem de indiscutível piedade e de crença ortodoxa. Sublinhei a necessidade de cooperação, com receio de que Pierre-Julien se sentisse encorajado a atacar um círculo cada vez maior de bons e fiéis servidores de Cristo. Mencionei e fiz citações das Sagradas Escrituras.

Felizmente, não fui obrigado a escrever, eu próprio, todos os apelos. Durand, que trouxera consigo várias penas, e tinta suficiente para afogar uma guarnição, copiou a minha primeira carta, substituindo apenas nomes e locais (pois todas as cartas eram idênticas). Estávamos sentados à mesa dos guardas, em frente um do outro, garatujando freneticamente, não ousando afiar as penas. Por duas vezes, fomos interrompidos por Pons, que, evidentemente, considerava altamente suspeito o silêncio prolongado na minha sala. A nossa monacal aplicação ao trabalho, porém, pareceu tranquilizá-lo. Em ambas as ocasiões, retirou-se sem fazer comentários.

Para além de uma sobrancelha erguida, Durand também não fez qualquer observação, limitou-se a lançar-me um olhar, a sorrir, e continuou a copiar.

Desejo observar aqui que Durand, sendo mais lento do que Raymond, se podia gabar de uma caligrafia verdadeiramente requintada quando as circunstâncias permitiam que ele a usasse. Era estranho que um jovem tão deselegante e desgrenhado fosse capaz de produzir uma caligrafia tão limpa, graciosa e harmoniosa. Mas talvez a sua escrita fosse um reflexo da sua alma. Pois tenho razões para crer que, por baixo dos seus hábitos algo dissolutos e da sua aparência desleixada, se encontrava um âmago sólido, de incorruptível virtude.

Durand era, na sua própria essência, um homem caridoso.

É claro que o digo agora, após longos dias de reflexão. Na altura, tal análise estava longe dos meus pensamentos. Na altura, eu estava preocupado com a minha carta para Lothaire Carbonel. Eu tinha conhecimento de que ele sabia ler, mas só a língua vernácula: não era verdadeiramente letrado. Assim, fui obrigado a compor a minha missiva em occitano, usando palavras simples, como se me dirigisse a uma criança. Sucintamente, eu informava Lothaire de que encontrara o nome do pai nos registos do Santo Ofício; de que, se ele desejava conservar a sua posição, os seus bens e o bom-nome dos filhos, me devia fornecer quatro cavalos selados, uma túnica, um manto, botas, pão, vinho e queijo, a serem transferidos para mim no exterior da entrada para os estábulos do Santo Ofício, ao amanhecer do dia seguinte. Acrescentei que, „ como prova da minha boa-fé (pois eu estava ansioso por assegurar a sua obediência incondicional), presenteá-lo-ia com os registos acima referidos que implicavam o seu pai, para que ele fizesse deles o que lhe aprouvesse.

É que me ocorrera que o irmão Lucius não apresentaria problemas. Por descuido - ou talvez porque ninguém pudesse considerar ' a hipótese de eu vir a ter oportunidade de as usar -, eu ainda tinha comigo as chaves das arcas dos livros de registo. Se eu queria desviar -me um pouco do caminho que estabelecera e passar pelo escritório quando saísse do Santo Ofício, o irmão Lucius não podia impedir-me de levar um livro de registo. Ele era tão pequeno e humilde e tão obediente. Se eu lhe dissesse que fora libertado da prisão, ele nunca suspeitaria de que eu estava a mentir. Por que deveria fazê-lo, se eu tinha em minha posse as chaves necessárias? Talvez (e aqui os remorsos atacavam-me um pouco) ele fosse sujeito a um inquérito rigoroso, se alguma vez se desse pela ausência do livro. Mas eu duvidava muito de que sobre ele recaísse a mínima suspeita de encobrir um herege. E se ele não abrisse a boca - sendo o silêncio o seu hábito, afinal -, havia poucas hipóteses de o seu lapso vir a ser descoberto.

Consequentemente, fiz a promessa acima referida em relação ao livro de registo, e sublinhei-a para lhe dar ênfase. Em seguida dobrei a carta cuidadosamente, até estar suficientemente pequena para me caber na palma da mão. Finalmente, escrevi nela o nome de Lothaire. - Leva esta primeiro - disse eu, apontando para o nome, e ficando à espera, até que Durand acenasse com a cabeça.

Tendo recebido essa confirmação, enfiei o documento na gola da sua túnica, para que caísse entre o peito e a lã verde-escura que o cobria. - Sabes aonde ir?

- Sim, padre.

- Tens de te dirigir a ele directamente, e esperar por uma resposta. Pergunta-lhe: é sim ou não? Depois encontra uma maneira de me dizeres.

- Sim, padre.

- Talvez encontres um selo em cima da minha secretária. Se estas cartas forem seladas, ficarei mais satisfeito.

Durand voltou a acenar com a cabeça. Não havia mais nada a dizer - pelo menos dentro do campo de audição do carcereiro. Levantámo-nos ao mesmo tempo, como que em resposta a um sino silencioso, e o notário colocou a maior parte da minha correspondência (com excepção da importantíssima carta para Lothaire Carbonel) entre as páginas de um livro de registo. Por um instante, pareceu estudar-me, levantando o olhar de debaixo do cabelo desgrenhado. Então, disse: "Passai bem", em latim.

Respondi na mesma língua, como se entoasse uma oração: "Que Deus te abençoe, meu caro amigo - e tem cuidado". Abraçámo-nos rapidamente, mas com fervor. Reparei que ele exalava um cheiro forte avinho.

Quando o libertei, ele reuniu os livros, as penas e os pergaminhos, e chamou Pons. Não dissemos nada enquanto ouvíamos o tilintar de chaves a aproximar-se. Talvez os nossos corações estivessem demasiado cheios. Mas antes de ele sair da sala, eu disse-lhe:

- A tua barriga ainda te incomoda, meu filho? Espero que isso não seja um impedimento permanente ao teu trabalho aqui - e ele sorriu-me por cima do ombro.

Essa foi a última vez que o vi.

Santo Agostinho falava da amizade como alguém que conheceu tal bênção na sua forma mais pura. "Ensinávamo-nos uns aos outros e aprendíamos uns com os outros", escreveu ele sobre os amigos. "Quando alguns de nós estavam ausentes, sentíamos a sua falta quase dolorosamente, e recebíamo-los alegremente quando regressavam. Com estes e outros sinais semelhantes, o amor de amigos pode passar de coração para coração, através da expressão facial, de palavras e olhares e de mil gestos amáveis. Eram como faíscas que nos incendiavam o coração, e que fundiam muitos num só".

- Que gesto podia ser mais amável do que salvar a vida de um amigo?

Sei agora, demasiado tarde, que Durand era meu verdadeiro amigo.

Acredito que podíamos ter sido amigos da forma como Tully definiu o termo e como Cícero o celebrou. Mas o afecto leal do notário era tão contido e acanhado, era uma flor tão modesta e delicada, que só me faltara pisá-la. Ofuscado pela paixão ardente que partilhava com Johanna de Caussade, eu, de início, não reconhecera a boa vontade mais serena, mais fresca, mais calma de Durand.

Uma dádiva dessas é uma das maiores bênçãos de Deus: maior, como diz Cícero, do que o fogo e a água. Guardo a recordação da amizade de Durand como um tesouro. Conservo-a junto ao coração.

Que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e o amor de Deus e a unidade do Espírito Santo estejam com ele.

O resto do dia decorreu muito lentamente. Passei-o a dormir e a atormentar-me, sujeito a uma agitação que era quase demasiado grande para suportar. Certamente que rezei, mas sem encontrar paz. À hora das Vésperas, ou cerca disso, foi enfiado um bilhete debaixo da minha porta; tinha escrita a palavra "sim", e reconheci a letra de Durand. No entanto, até isso não conseguiu acalmar a minha alma preocupada. Aquele bilhete obrigava-me a seguir por um caminho que eu não podia deixar de considerar assustador, desesperado e, com toda a probabilidade, condenado ao fracasso.

Não vi Pierre-Julien. A sua ausência dizia-me que ainda estava ocupado com Alcaya e as amigas. Uma vez que ele tivesse reunido provas suficientes contra elas, usá-las-ia para me implicar. Como podeis esperar, a minha preocupação com Johanna dominava-me completamente. E se eu destrancasse a porta da sua cela só para descobrir que... Deus misericordioso, ela não conseguia andar? Lembro-me que, quando esta possibilidade me veio pela primeira vez à cabeça, saltei da cama a torcer as mãos e andei de um lado para o outro como um lobo enjaulado. Lembro-me como bati com a base das mãos nas fontes, numa tentativa frenética de afastar a terrível imagem.

Não podia permitir-me tais pensamentos. Distraíam-me e toldavam-me o julgamento. O desespero só resultaria em derrota. Se eu queria ser bem sucedido, precisava de ter esperança. É bom que um homem tenha esperança e que espere calmamente pela salvação do Senhor. Eu precisava também de alguma coisa com que amarrar o carcereiro, e encontrei-a quando pensei nas minhas roupas. Com o cinto, amarrar-lhe-ia as mãos, com as meias - os pés. A cataplasma servia para lhe pôr na boca como mordaça. Mas como é que eu levaria a efeito um procedimento tão complicado, enquanto lhe encostava uma faca à garganta?

Se o matasse, é claro, não haveria dificuldades. Ponderei esta alternativa, antes de a colocar de parte por ser bárbara. Além disso, ocorreu-me que eu não precisava de todo de o amarrar: podia levá-lo comigo. Podia fechá-lo à chave na arca dos livros de Pierre-Julien, ou pedir a Johanna que lhe amarrasse as mãos.

Ele podia servir de escudo, se, por acaso, encontrássemos a patrulha a qualquer momento.

Foi com estes pensamentos que ocupei o longo e solitário final de tarde. Quando tocaram os sinos para as Completas, recitei o ofício o melhor que pude. Em seguida, retirei-me para a cama, sabendo que o sinal para as Matinas, embora fraco, me acordaria - como acontecia há tantos anos. Entre as Matinas e as Laudas, preparar-me-ia, pois as portas de Lazet abriam ao amanhecer, e as Laudas costumavam terminar a essa hora. Assim, logo que soassem os sinos para as Laudas, eu colocaria o meu plano em acção.

Eram estas as minhas intenções. Mas não consegui dormir entre as Completas e as Matinas. Estava deitado a transpirar, como se tivesse corrido de Lazet a Carcassonne (aqui estava, de facto, um caso de "constrói a tua própria salvação com medo e tremedouros!"). Depressa me apercebi de que não teria sossego enquanto Johanna estivesse presa, por isso imergi em oração até que as palavras dos Evangelhos começaram a acalmar o meu espírito atormentado. O Senhor é minha luz e salvação: de quem terei medo? O Senhor é o baluarte da minha vida: quem me assustará? Muitos rostos passaram à minha frente nessa noite; muitas recordações tristes e melancólicas ocuparam os meus pensamentos. Vi que a minha vida, num sentido, terminara. Eu só podia ter esperança em que uma vida nova estivesse à minha espera.

Em São Domingos, procurei perdão. Em Deus Nosso Senhor, procurei perdão. Os meus votos estavam quebrados. Eu andava à deriva. No entanto, parecia que eu não tinha escolha; o amor impelia-me como os ventos celestes. Como, perguntava-me, como é que eu chegara a isto? Sempre me considerara delicado, modesto, sensível: um homem dado ao orgulho e à raiva, certamente, mas não governado por paixões extremas. Como é que eu chegara ao ponto de renunciar ao caminho da razão - de abandonar a minha própria natureza?

Através do amor, segundo parecia. Pois o amor é tão forte como a morte, e se um homem desse toda a substância da sua casa por amor, ela estaria totalmente condenada.

Pensamentos deste género pouco faziam para iluminar a escuridão que me rodeava. Mas, à medida que a noite avançava, eu perdia o medo, tornando-me resignado e até impaciente. Queria agir. Queria lançar os dados e ver como caíam. Após ter ouvido os sinos das Matinas, voltei a recitar o meu ofício (num sussurro), omitindo apenas aquelas acções que acompanhavam as palavras. Depois, tacteando às cegas, comi o pão que me fora dado antes.

Que vos poderei dizer sobre aquele último período de espera, mais negro e mais longo? Ouvi ratazanas, e os gritos distantes de uma criança. Senti a faca debaixo da mão. Vi os mais ténues fios de luz, penetrando por debaixo da porta e pelo buraco da fechadura, vindos de uma lamparina colocada lá fora, no corredor.

Senti-me completamente abandonado.

Por vezes perguntava-me se a noite alguma vez terminaria. Pensava para mim próprio: a luz está a mudar? Está a amanhecer? Devo ter dormitado, a determinada altura, pois parecia que Johanna entrara na sala e se juntara a mim na cama, e me acariciava a tonsura. Naturalmente, pensei: Isto não pode ser, e acordei com um sobressalto, aterrorizado, receando não ter ouvido o sino para as Laudas. Mas Deus, na Sua misericórdia, salvou-me de tão terrível sorte. No momento em que me sentava na cama, com o coração aos saltos, ouvi um surdo toque de sinos, e soube o que significava.

Chegara a hora. Senhor, meu Deus, rezava eu, a Ti me confio; livra-me de todos os que me perseguem e salva-me.

Enfiando um dedo na garganta, vomitei para o chão. Depois voltei a deitar-me, com a faca comprimida contra o peito, e puxei o cobertor até ao queixo. De início, quando gritei, a voz saiu-me grossa e baixa; eu chiava como as ratazanas que corriam de um canto ao outro da minha sala. Pigarreei e, então, consegui fazer sair mais ar dos pulmões, de forma que o meu chamamento foi mais alto. Mais urgente. Imperativo.

- Pons! - chamei. - Pons, ajudai-me!

Nada buliu, embora o meu grito parecesse ecoar no silêncio como um trovão.

- Pons! Estou doente! Pons, por favor!

E se a patrulha me ouvisse antes de Pons? Até agora, tal possibilidade nem sequer me passara pela cabeça.

- Pons! Pons!

E se ele se recusasse a vir? E se eu estivesse condenado a ficar aqui deitado, no fedor do meu próprio vómito, até ao nascer do Sol ou até mais tarde ainda?

- Ajudai-me, Pons, estou doente!

Finalmente, um resmungo e um arrastar de pés anunciaram a aproximação do carcereiro. Ominosamente, porém, eram acompanhados pela lamúria queixosa de uma voz feminina.

A mulher vinha com ele.

- O que é? - resmungou ele, à medida que a chave soava na fechadura. - O que é que vos está a incomodar?

Eu não disse nada. A porta rangeu ao abrir-se, revelando duas figuras, escuras no fundo do corredor iluminado. Uma delas - a do carcereiro - acenava com a mão em frente do rosto.

- Buuhhh! - disse ele. - Que fedor!

- Ele fez porcaria?

- Padre, o que aconteceu?

Tenso, murmurei qualquer coisa inaudível, e gemi. O carcereiro aproximou-se.

- Ele pode limpar isso sozinho! - disse a mulher com brusquidão, após o que o marido lhe ordenou que se calasse. Pons avançou cautelosamente, com cuidado para evitar o vómito, que não era facilmente discernível com aquela luz fraca. Quando chegou junto à minha cama, inclinou-se e espreitou para o meu rosto.

- Estais doente? - perguntou.

Estendi-lhe a mão fraca e trémula. Sussurrei um pedido e agarrei-lhe o ombro. Franzindo o sobrolho, ele curvou-se ainda mais para colocar o ouvido junto aos meus lábios.

E, de repente, deu com uma faca encostada à garganta.

- Dizei-lhe que traga uma candeia - disse eu num sopro. Vi-lhe os dentes a brilhar. Vi-lhe o brilho nos olhos.

- Traz uma candeia! - disse ele com voz rouca.

- O quê?

- Traz uma candeia, mulher! Já!

Resmungando imprecações e a bambolear-se, a mulher afastou-se para fazer o que o marido lhe ordenara. Enquanto ela estava ausente eu disse a Pons, muito baixinho, que, quando ela regressasse, lhe devia ordenar que fechasse a porta. Estranhamente, eu não senti qualquer repugnância nem vergonha de estar ali deitado, embora o pulso dele corresse, acelerado, debaixo da minha mão, e a sua respiração fosse quente na minha face. Em vez disso, eu tinha apenas consciência da raiva fria, e de um entusiasmo de ferro que não era, receio, o género de coragem que Deus concede, mas algo mais vil e menos virtuoso.

- Se disserdes algum disparate - assobiei-lhe ao ouvido -, morrereis. Morrereis, Pons. Estamos entendidos?

Ele acenou com a cabeça, quase imperceptivelmente. Assim que a mulher voltou a aparecer, disse-lhe:

- Fecha a porta - e, durante o breve instante em que as costas dela estavam viradas, sentei-me na cama, deitando as pernas para baixo.

Ela sobressaltou-se quando viu o que eu estava a fazer.

- Se gritardes, ele morre - avisei. - Pousai a candeia. A resposta dela foi um queixume.

- Pousai a candeia - repeti.

- Por amor de Deus, queres pousar a candeia? - disse o meu cativo. - Vá! Despacha-te!

Ela obedeceu.

- Agora... estais a ver aquele cinto? E aquela meia? Em baixo, junto ao pé da cama? - tive o cuidado de não afastar os olhos de Pons. - Pegai nessa meia, e amarrai-lhe os pés. Com força, senão corto-lhe a orelha.

É claro que eu não teria feito tal coisa. Mas o meu tom deve ter sido convincente, porque a mulher começou a chorar. Ouvi-a a tactear em redor; ouvi o tinido de uma fivela, e, de súbito, ela estava à minha frente, com o meu cinto de couro na mão.

Obriguei o carcereiro a sentar-se no chão, com as mãos no regaço, onde eu as pudesse ver. Observei a mulher a amarrar-lhe os pés, dando-lhe instruções em relação à forma como o devia fazer. Feito isto, as mãos do homem foram amarradas à cama atrás dele, e testei ambos os nós, sempre com a faca encostada à garganta do carcereiro. Finalmente, enfiei-lhe a cataplasma na boca.

- Agora, tirai-lhe o cinto - ordenei. É que Pons, embora com pouca roupa vestida, dera-se ao trabalho de pôr o cinto, talvez porque as chaves estavam juntas a ele. - Dai-me as chaves. Não, o cinto não. Quero que amarreis os vossos próprios pés com esse cinto. E eu amarrar-vos-ei as mãos.

- Poupai os meus filhos - a idiota soluçava, ao mesmo tempo que tacteava a faixa entrançada que o marido usava em volta da cintura. Assegurei-lhe que não tinha intenção de fazer mal aos filhos dela, a não ser que ela fizesse barulho. E, tendo preso as mãos dela à cama com outra meia, amordacei-a com uma das suas próprias peúgas.

- Perdoai-me - disse eu, levantando-me, finalmente, para poder examinar o meu trabalho à luz da candeia (que era uma bênção inesperada). - Perdoai o cheiro. Não podia ser de outra maneira.

Se Pons me pudesse matar naquela altura, tê-lo-ia feito. Mas teve de se contentar com um olhar furioso, imbuído de todo o ódio natural num homem que foi humilhado à frente da mulher. Quanto a mim, dirigi-me à porta, abria-a cautelosamente, e espreitei lá para fora. Não vi ninguém. Não ouvi nada. Oferecendo uma oração silenciosa, escorreguei para o corredor, e fechei a porta da casa dos guardas à chave atrás de mim. Esperei pacientemente pelo Senhor; e Ele inclinou-se para mim e ouviu o meu choro. Que miraculosa a minha fuga fora, até aqui! Com que facilidade o primeiro passo fora dado!

Mas tinha consciência de que não havia motivo para me alegrar, não sabendo nada da escala de vigia da prisão. Tanto quanto eu sabia, a guarda da manhã devia mudar; podia haver guardas na cozinha do carcereiro, ou a caminho da cozinha do carcereiro. O irmão Lucius poderia não ter chegado. Havia um número indeterminado de circunstâncias que podiam servir de obstáculo à minha fuga.

Além disso, Pons e a mulher já estavam a fazer barulho. Mais cedo ou mais tarde conseguiriam tirar as mordaças, ou libertar os membros; mais cedo ou mais tarde alguém os ouviria. Eu sabia que tinha muito pouco tempo. No entanto, era obrigado a prosseguir com a mais profunda cautela, descendo a escada degrau a degrau, sustendo a respiração, à escuta de passos de familiares a aproximarem-se. Infelizmente, alguém estava doente no murus laugus. A ressonância dos gemidos e das pragas, os insultos que lhe eram atirados por parte de vários prisioneiros cujo sono fora perturbado, fazia com que me fosse difícil distinguir o ritmo baixo de passos que avançavam. No entanto, quando desci para o corredor sul, este estava vazio de movimento - embora cheio de gemidos e roncos e maldições que podiam ter tido origem em espíritos, tão estranhamente incorpóreos pareciam (devido ao facto de as pessoas responsáveis por eles estarem encerradas atrás de portas fechadas). E ocorreu-me que este clamor camuflaria o meu próprio avanço cuidadoso.

Assim, tendo identificado a cela que teria mais probabilidades de alojar Johanna e as amigas, aproximei-me e pronunciei o nome dela sem medo de ser ouvido por uma patrulha distante.

- Johanna? - disse eu, olhando nervosamente pelo corredor de pedra. - Johanna!

- Be... Bernard? - a resposta dela era fraca e incrédula. Eu estava quase a dirigir-me a ela de novo, quando um riso abafado se antecipou; esforçando-me por ouvir, reconheci o tinir de cotas de malha e o bater de botas pesadas. Mas de que direcção?

Das escadas, decidi. Uma patrulha subia, vinda do piso abaixo de mim.

É uma sorte que a prisão ocupe uma das torres defensivas de Lazet, pois todas as torres da cidade estão equipadas com escadas em caracol. Consequentemente, pude recuar sem ser visto de um nível inferior, e sem ser ouvido, graças aos gemidos do prisioneiro doente. Sustendo a respiração ao cimo da escada, consciente de que a casa dos guardas e os seus ocupantes se encontravam apenas a quatro passos do local onde me encontrava, tracei o percurso dos dois familiares armados e rezei para que eles não saíssem do caminho do costume.

Normalmente, não patrulhavam o piso superior. Normalmente, não alojava prisioneiros. Mas se Pons tivesse mudado a guarda, eu corria sério risco.

- Por Ti eu clamo, Senhor: vem depressa socorrer-me! Escuta a minha voz, quando Te invoco - era a minha oração. - Que os ímpios caiam nas suas próprias armadilhas e que eu possa passar ileso.

Podeis imaginar a minha alegria e a minha gratidão quando o som daquele passo pesado, o tilintar de armaduras, a troca de observações em voz alta começou a desaparecer. Ouviu-se uma série de pequenas pancadas nítidas e uma ordem ainda mais nítida - "Pára com esse barulho, senão ficas sem língua!" - seguida de um silêncio de morte que parecia sugerir que a ordem implacável fora dirigida ao prisioneiro doente.

Esperei até que os guardas estivessem fora de alcance auditivo, sabendo que teriam de patrulhar todo o murus largus antes de regressarem ao murus strictus, lá em baixo. Se eu fosse rápido, teria tempo para levar o meu grupo de fugitivos escadas abaixo, à frente da patrulha. Mas teria de ser muito, muito rápido.

Teria também de ser muito, muito silencioso.

Após ter chegado novamente à cela de Johanna, não me anunciei. Destranquei simplesmente a porta, estremecendo a cada som de raspar e a cada rangido, e abri-a com um empurrão - para descobrir que estava, de súbito, junto da minha amada. Ela encontrava-se à minha frente (sã e salva, graças a Deus!), e eu tê-la-ia apertado nos braços, se as circunstâncias em que nos encontrávamos não fossem tão perigosas. À luz fraca, ela parecia esgotada; tinha o cabelo desgrenhado, e a beleza diminuída. No entanto, eu amava-a ainda com mais ternura pela sua pele manchada e pela testa franzida.

- Vinde depressa - sussurrei, espreitando para a escuridão atrás dela. Embora a cela tivesse sido construída para apenas uma pessoa, estava tão superlotada como o resto do edifício. - Babilónia? Vinde. Alcaya? - e então vi uma quarta forma. - Vitalia?

- Trouxeram-na de volta do hospital - disse Johanna, a voz funda. - Queimaram os pés de Alcaya.

A voz embargou-se-lhe; a filha começou a soluçar ruidosamente.

- Shhh! - por um instante, eu não soube que fazer. Os pensamentos corriam-me, velozes, pela mente, e pareciam colidir uns com os outros. Haveria apenas quatro cavalos - mas Vitalia estava no seu leito de morte. Alcaya estava coxa, mas podia montar, se ainda pudesse fazer uso das mãos. Será que eu deveria levá-la ao colo?

Será que deveria dar a candeia e a faca a Johanna? E os guardas? Os prisioneiros mais próximos já começavam a fazer perguntas; em breve começariam a pedir que os soltassem.

O meu olhar errante encontrou Alcaya. Parecia muito doente; o seu rosto molhado brilhava à luz da candeia. Mas os olhos ainda eram límpidos, e o seu sofrimento era tranquilo.

- Alcaya - comecei, estendendo a mão, e ela abanou a cabeça.

- Ide - disse baixinho. - Não posso deixar a minha irmã.

- Não há tempo para discussões...

- Eu sei. Vinde, minha filha. Meu botão de rosa - e aqui testemunhei talvez o maior milagre de todos. Pois quando Alcaya abraçou Babilónia, e lhe sussurrou qualquer coisa ao ouvido, a mulher mais jovem deixou de chorar. Parecia ouvir atentamente, à medida que Alcaya lhe dizia algo profético, inaudível ao resto de nós, e que infundiu em Babilónia uma calma admirável. Acredito que foi a mão de Deus, a agir através de Alcaya naquele momento, que acalmou os demónios na alma de Babilónia. Toda a rigidez lhe abandonou o corpo; sem protestar, permitiu que Alcaya a beijasse e a libertasse, levantando-se pesada mas submissamente, para se colocar ao lado da mãe.

Ocorreu-me, de repente, que não considerara Babilónia. E se o demónio dela a movesse a uma fúria incompreensível enquanto ainda íamos em fuga?

Era mais uma razão para nos apressarmos.

- Vinde! - incitei Johanna. - Agora! Antes que os guardas regressem!

- Que Deus vos abençoe - disse Alcaya, carinhosamente. E essa foi a sua despedida, porque eu não permitiria mais demoras. Empurrei Johanna e a filha para fora da pequena sala malcheirosa e tenebrosa, ordenando-lhes que descessem as escadas a toda a velocidade. Enquanto elas se apressavam a obedecer aos meus desejos, voltei a trancar a porta da cela, na esperança de atrasar a descoberta da nossa fuga. Depressa me encontrei a pisar a bainha da saia de Babilónia, descendo para o murus strictus.

No entanto, ao fundo da escada, ultrapassei as minhas companheiras. Sem proferir uma palavra, levei-as em direcção à porta que se tornara o centro de todos os meus cuidados ansiosos. Estaria aberta?

Teria o irmão Lucius chegado? Encontraríamos o guarda da sede a caminho da cozinha lá em cima?

Se assim for, pensei, mato-o. E levantei a faca, preparado para atacar.

Mas tivemos sorte. A porta estava aberta; não havia nenhum guarda à espera naquela antessala familiar onde eu passara tantos dias longos, perseguindo a morbidez herege. Havia, no entanto, um cheiro bastante inesperado. Era um cheiro a fumo.

- Esperai - disse eu, alarmado com este desenvolvimento. Após ter avançado em direcção às escadas, fiquei ainda mais alarmado ao aperceber-me de que o cheiro era cada vez mais forte.

Virei-me e dirigi-me à minha amada.

- Esperai aqui - sussurrei-lhe. - Se acontecer alguma coisa, escapai-vos pela porta. Dá para a rua. Podeis encontrar um refúgio.

- Há... ides...?

- Quero assegurar-me de que temos o caminho livre - disse-lhe. - Se estiver, voltarei imediatamente. Ficai alerta e rezai.

Tive de levar a candeia; não tinha alternativa. Sem ela, não poderia ter encontrado o caminho para baixo, para a porta dos estábulos, nem destrancado esta porta rapidamente. Podeis ficar descansado: entrei nos estábulos com a faca em prontidão, mas, tendo-me apercebido de que o cheiro a fumo era muito menos pronunciado ao fundo das escadas, eu não previa qualquer interferência.

E estava correcto no meu julgamento. Ninguém me atacou e entrei de rompante naquela cave malcheirosa; à luz fraca da minha candeia, não vi sombras fugidias nem armas a brilharem, não vi tochas nem carvão em brasa. Satisfeito, virei costas. Subi as escadas convencido de que o irmão Lucius devia ter acendido uma braseira no escritório, pois o cheiro a fumo aumentava de intensidade a cada passo meu.

E eu estava intrigado, pois, normalmente, a braseira só se usava depois do Natal.

- Temos o caminho livre - disse a Johanna. - Pegai nesta candeia e descei. Encontrareis duas portas grandes que abrem para a rua; os nossos cavalos estão do outro lado dessas portas.

- E vós? - perguntou ela. - Aonde ides?

- Tenho de ir buscar um livro. Como pagamento pelos cavalos.

- Talvez nós devêssemos esperar...

- Não. Apressai-vos.

Johanna pegou na candeia. Sem ela, eu estava em desvantagem pois o caminho para o escritório não era iluminado; enquanto as minhas companheiras corriam precipitadamente escada abaixo, eu tive de subir os degraus às apalpadelas, até que um brilho ténue me informou de que já chegara quase ao último degrau. Talvez a minha preocupação com esta subida traiçoeira (pois os degraus eram muito íngremes, e estreitos) tivesse feito com que eu não reparasse na natureza invulgar dos sons que provinham do escritório. Fosse como fosse, quando cheguei ao meu destino e levantei o olhar da contemplação das minhas botas, fiquei, por um instante, paralisado de espanto.

Pois ali, à minha frente, vi o irmão Lucius a atear fogo ao seu local de trabalho.

Ora os acontecimentos que a seguir se desenvolveram ocorreram a grande velocidade. Mas, antes de os relatar, desejo descrever-vos a cena com que me deparei, quando estaquei, à entrada da porta, a arfar. Ambas as arcas de registo estavam abertas, e o conteúdo estava espalhado pelo chão. O mesmo acontecia com muitas folhas de pergaminho e velino. Das arcas, como de piras gémeas, saíam chamas a ondear, e alguns dos documentos dispersos estavam também a arder: nomeadamente aqueles que se encontravam mais longe do local onde eu me encontrava.

De costas para mim, o irmão Lucius estava a deitar azeite de iluminação para o chão juncado de documentos. Segurava uma tocha na mão. Era evidente que tencionava ensopar o escritório inteiro em azeite inflamável, antes de bater em retirada escadas abaixo. Mas não lhe foi dada oportunidade de completar o seu plano.

Pois quando eu tossi, ofegante, e soltei uma exclamação, ele virou-se para trás, surpreendido. E, de súbito, ele próprio era uma tocha incandescente, o hábito em chamas, a arder furiosamente.

Tive muitas semanas para reconstruir na minha mente a causa deste acidente. Os pormenores parecem estar gravados (ou melhor, gravados a fogo) na minha memória: Deus sabe que jamais os esquecerei. Lembro-me de que, quando ele se virou, o azeite se espalhou completamente sobre ele, entornando-se do recipiente que tinha na mão. Ao mesmo tempo, deixou cair a tocha-que, ao tombar, deve ter passado pelo tecido das suas roupas, impregnado de azeite.

O grito dele ainda ecoa no meu coração.

Que Deus me perdoe, eu não sabia o que fazer; recuei, à medida que ele avançava, com medo de lhe tocar. Dei comigo a descer as escadas, deixando cair a faca, tacteando para desapertar o manto. Quando ele cambaleou na minha direcção, o cabelo em chamas, afastei-me para o lado, sem pensar.

É claro que ele caiu, e rolou, e veio parar a meio das escadas. Atirei-lhe o manto para cima, no momento exacto em que Johanna apareceu; estava ofegante e de olhos esbugalhados.

- Parai! - exclamei, embora ela não estivesse em perigo de se queimar. O meu manto era pesado e tão eficaz como um extintor de velas. Comecei a bater com ambas as mãos no corpo que ele cobria.

- O que é? O que aconteceu? - exclamou Johanna.

- Pegai - atirei-lhe as chaves do carcereiro. Permiti que vos explique a disposição destas chaves: estavam penduradas de uma argola de couro, pela qual passara antes a faixa de Pons. Desde que as conseguira, eu usara a argola em volta dos dedos do meio de uma mão. Agora eu tinha motivos para agradecer a Deus por me ter dado a tal trabalho aborrecido e ruidoso. - Fechai à chave a porta que dá acesso à prisão! - disse eu, a tossir e a sufocar devido ao fedor horrível.

- Qual é a chave?

- Não sei. Experimentai-as. Depressa! - eu suspeitava de que o grito do irmão Lucius pudesse ter sido ouvido a alguma distância, e desejava proteger a sede contra qualquer género de intrusão. Mas que devia eu fazer com o ferido? Com ossos fracturados devido à queda, queimado pelo fogo, ele precisaria de ajuda rapidamente. À medida que Johanna se afastava, voltei para junto dele, e hesitei.

Eu mal ousava levantar o manto da sua cabeça fumegante.

- Deus misericordioso - não há palavras que descrevam o seu aspecto, quando o destapei. Para quê tentar uma descrição? Sem dúvida que já vistes hereges queimados antes.

As lágrimas afloraram-me aos olhos.

- Ah, Deus misericordioso - blasfemei. - Lucius, o que estáveis... o que é que eu vou fazer? Não posso... não há...

- Padre - juro-vos que, quando ele falou, pensei ter ouvido mal. Pensei que devia ter sido outra pessoa a falar. Só Deus sabe onde é que ele encontrou a força. - Padre... padre Bernard...

O fumo era quase sufocante. Eu chorava de desespero, pois como podia eu deixá-lo? E, no entanto, de modo oposto, como podia eu ficar?

- Desejo confessar-me - disse com voz funda. - Estou a morrer, padre, ouvi a minha confissão.

- Agora não - tentei erguê-lo, mas deixei-o cair novamente, quando ele gritou de dor. - Temos de ir... o fogo...

- Matei Raymond Donatus - sussurrou ele, na sua voz áspera e terrível. - Absolvei-me, padre, pois estou arrependido.

- O quê? - mais uma vez, eu tinha a certeza de que ouvira mal. - Que dissestes?

- Matei Raymond Donatus. Ateei fogo ao Santo Ofício. Estou a morrer em pecado...

- Bernard - era Johanna. - Já fechei a porta à chave. Ninguém apareceu. Mas...

- Shhh! - se eu estivesse ameaçado por um exército inteiro de familiares naquele momento, não sairia dali. Nada importava a não ser a confissão do irmão Lucius (tal é a natureza inquisidora daqueles que costumam estar empenhados em investigar e descobrir os segredos da alma). - Isso é verdade, irmão? Lucius, falai comigo!

- Os meus olhos... - gemeu ele.

- Como é que o matastes? Porquê?

- Bernard...

- Shhh! Esperai! Tenho de ouvir isto!

E assim, a confissão foi feita. Mas porque foi feita desajeitadamente, com muitas interjeições, e repetições, e apelos ao perdão - porque certas lacunas da narrativa foram, desde então, preenchidas pelas minhas próprias sugestões e especulações - não a irei aqui contar palavra por palavra. Em vez disso, resumi-la-ei o melhor que puder, sacrificando a excitação dramática da reconstrução aos benefícios da precisão e da clareza.

Com efeito, a triste história aconteceu da forma que passo a relatar.

O irmão Lucius era filho bastardo de uma mulher a quem faltou a vista. Pobre e sem amigos, teria sido atirada à caridade descuidada de uma casa de beneficência ou de um hospital, não fosse o salário que o Santo Ofício pagava ao filho. Com a aprovação dos seus superiores, ele entregava esse salário a uma mulher que dava alojamento e lhe cuidava da mãe como se fosse sua parente. Havia muitos anos que as duas mulheres viviam felizes juntas.

Mas agora era a vista do próprio irmão Lucius que estava a faltar. Ele reconheceu os sintomas; sabia aonde iriam levar. E enquanto um cónego cego pode viver até ao fim da vida ao cuidado dos seus irmãos, o que fará uma mulher cuja única amiga não a pode alimentar sem assistência pecuniária?

Lucius não suportava a ideia de condenar a mãe à vida suja e desoladora que tantos pobres deficientes são obrigados a aguentar - se, de facto, tiverem a sorte de estar vivos. Possuindo uma natureza orgulhosa e desdenhosa, ela era difícil de contentar; além disso, conhecia cada degrau, cada canto, cada buraco na madeira da casa que agora ocupava com tanta alegria. Era o seu lar, e ela deslocava-se por ele com confiança. Na sua idade avançada, jamais conheceria outro lar tão bem como conhecia este.

Assim, o irmão Lucius abordou o responsável pelas esmolas de São Policarpo, para lhe pedir ajuda. Não resultou muito. A quantia oferecida em esmolas - uma quantia regular, raramente ultrapassada - não era suficiente.

- O capítulo tem muitos dependentes - foi o que disseram ao irmão Lucius. - Têm de aceitar o que lhes dão.

Assim, perturbado por via de impedimentos terrenos, o escrivão virou-se para a oração. Dedicou-se à contemplação do sofrimento inefável de Cristo. Imergiu na busca do amor de Deus. Jejuava e renunciava ao sono, e castigava a sua própria carne. Mas de nada servia; a sua visão continuava a deteriorar-se.

E depois, com a chegada de Pierre-Julien, apresentou-se-lhe uma alternativa - uma alternativa desesperada, não há dúvida, mas, por essa altura, ele era um homem desesperado.

Enquanto copiava depoimentos, aprendeu através dos interrogatórios estranhos mas precisos de Pierre-Julien que se podiam conjurar demónios para executarem as nossas ordens, desde que se observassem certos ritos específicos. O irmão Lucius aprendeu que, ao desmembrar um corpo humano, e deixando o cadáver numa encruzilhada, poder-se-ia razoavelmente ter esperança de conseguir um objectivo desejado. Aprendeu que o mal podia, talvez, resultar em algum bem.

É minha opinião que o irmão Lucius não estava com a mente sã, quando recorreu a esta solução extrema. Era certo que ele, em murmúrios, se queixava de "entorpecimento", de ouvir "vozes" e de estar “cansado” - tão cansado". É quando a pessoa está mais fraca que os engodos do demónio parecem mais irresistíveis, e o irmão Lucius estava muito fraco devido ao sofrimento penitencial que infligira a si próprio. No entanto, teve ainda força suficiente para cortar a cabeça de Raymond com um machado.

Fizera-o nos estábulos, usando um machado que geralmente servia para cortar lenha para o Santo Ofício. Jorrara uma grande quantidade de sangue, mas a maior parte caíra para o bebedouro dos cavalos, porque o irmão Lucius tivera o cuidado de colocar o pescoço de Raymond em cima do rebordo do dito bebedouro. O sangue de Raymond fora então transferido para as barricas de salmoura, com a ajuda de uma concha que o copista pedira emprestada na cozinha do carcereiro.

- Eu sabia que... ninguém veria - o cónego estava ofegante. - Tão escuro. Húmido. E os porcos... tudo ensanguentado...

- Mas ele estava vivo quando lhe cortastes a cabeça?

- Tinha de estar.

- Então levaste-lo para os estábulos, e convenceste-lo a pôr a cabeça no bebedouro dos cavalos...

- Não.

Parecia que a escolha que o irmão Lucius fizera da vítima fora ditada por uma, e uma só, circunstância: o facto de ele chegar muitas vezes à sede do Santo Ofício para encontrar Raymond deitado num ébrio torpor. Aparentemente, era costume do notário passar a noite inteira no escritório, em cima de um monte de roupas velhas, após ter-se despedido da sua última conquista. O irmão Lucius tinha frequentemente de o acordar com um abanão, uma bofetada, ou um balde de agua.

Foi-me dado crer que Raymond morrera sem recuperar a consciência, uma manhã, quando Lucius, ao encontrá-lo no seu habitual estado de esquecimento, o arrastara para baixo, até aos estábulos, e lhe cortara a cabeça. O cónego executara este acto sem roupas, com medo de manchar o hábito. Após ter desmembrado o cadáver, e de o ter depositado nas barricas de salmoura, Lucius lavara-se e lavara os utensíllios que usara muito cuidadosamente, antes de regressar ao trabalho. A sua intenção era transportar as partes constituintes de Raymond para a gruta de Galamus, que ficava situada no centro de uma encruzilhada.

- Três idas - ele hesitou. - Embrulhei-as nos mantos dele... usei os sacos dos livros de registo.

- Os sacos dos livros de registo! - eu conhecia-os, é claro. Sempre que Lucius copiava um depoimento para a biblioteca do bispo, ou levava um conjunto de fólios para encadernar, ou ia buscar um livro de registo encadernado, transportava estes artigos num ou dois sacos de couro que a isso se destinavam. Era comum vê-lo sair da sede do Santo Ofício com um saco debaixo do braço. Ninguém consideraria digno de nota se, carregando dois sacos de couro cheios, ele tivesse desaparecido do Santo Ofício por breves instantes - nem sequer no dia do desaparecimento de Raymond.

Mas para se ver livre do corpo de Raymond foram necessárias três visitas à gruta, e três idas no mesmo dia já chamariam a atenção. Assim, Lucius foi obrigado a esperar um dia, para poder completar uma das suas idas antes do nascer do Sol, quando ninguém visse (a outra ida clandestina foi realizada ao final da tarde, antes de a gruta ser esvaziada). Talvez, disse ele, este dia de espera tivesse, de alguma forma, estragado os rituais. Ou talvez Raymond devesse ter sido morto numa encruzilhada. Fosse qual fosse a causa, nenhum demónio alguma vez se manifestou ao irmão Lucius.

Agora ele não sabia o que fazer. As pessoas que conhecia não tinham o hábito de beber até ficarem inconscientes - tornando-se, assim, vulneráveis a ataques - em espaços fechados. Mas ele tinha mais uma vantagem. É que sabia que um certo oficial, que ficara sem nome, oferecera uma vez a Raymond uma grande quantia em dinheiro para que ele queimasse os registos do Santo Ofício. Raymond falara muito da sua recusa determinada em fazer o favor a esse homem, e, sem dizer o nome do culpado, revelara ao irmão Lucius que iria relatar o assunto ao padre Jacques.

Mas o assunto nunca foi relatado - ou, se foi, nunca fora investigado. Na verdade, quando o notário se queixava das suas despesas, dizia muitas vezes, à laia de piada, que "havia de queimar os registos". E a piada tornou-se tão comum que ele se tornou descuidado, e, uma vez, bastante inadvertidamente, deixou escorregar o nome do oficial envolvido.

Armado deste nome, o irmão Lucius ia agora oferecer os seus serviços.

- Se eu perdesse a visão - disse ele num sopro -, pelo menos a minha mãe... haveria algum dinheiro...

- Compreendo.

- Bernard, ouvi! - Johanna puxava-me a manga, tossindo furiosamente. - Está alguém à porta! Está alguém a bater à porta! Temos de ir, Bernard!

Eu sabia que ela tinha razão. Sabia também que, se não levássemos o irmão Lucius connosco, ele pereceria no fumo e nas chamas antes que outra pessoa pudesse deitar abaixo uma porta e chegar até ele.

Mas será rápido, pensei. Mais rápido do que o que o espera, se não for assim. Pois ninguém tão horrivelmente ferido sobreviveria muito tempo.

Por isso deixei-o ali, que Deus me perdoe. Deixei-o, porque tinha tão pouco tempo; porque já era difícil respirar; porque, no fundo do meu coração, eu acreditava que ele merecia tal castigo. Deixei-o, porque estava assustado, e irritado, e porque não tive oportunidade de reflectir.

Tinha de ser tomada uma decisão. Por isso, tomei uma. Mas vivi para sofrer as consequências. Todos os dias, desde então, tenho suportado tais dores de consciência, tais setas de remorso, que o meu rosto está sujo de tanto chorar, e nas minhas pálpebras mora a sombra da morte. Estou repleto de amargo sofrimento, não tanto porque o deixei, mas porque o deixei sem absolvição. A absolvição era o que ele procurava - arrependimento o que oferecia -, mas eu neguei-lhe a absolvição, e deixei-o a morrer sozinho. A enfrentar Deus sozinho. Liberta-me da responsabilidade da sua morte, ó Deus, Tu, Deus da minha salvação: e a minha língua cantará alto a Tua justiça. Rezo ao Senhor para que afaste de mim este cálice, pois está cheio de fel e de coisas desagradáveis. Reconheço as minhas culpas, e tenho sempre diante de mim os meus pecados.

Estavam diante de mim até naquela altura, à medida que eu descia as escadas a cambalear, em direcção aos estábulos. Lembro-me de ter pensado: Senhor, perdoa o meu pecado, enquanto destrancava as portas grandes que havia tanto tempo permaneciam fechadas. Depois esqueci Lucius, porque Lothaire Carbonel estava à minha frente, a exigir o seu livro, e eu não o tinha.

- O livro! - exclamou ele, as feições sombrias à média luz, a respiração a sair em nuvens de vapor branco. - Onde está o livro?

- Está queimado.

- O quê?

- Está queimado. Os livros estão todos queimados. Estais a ver? Olhai para cima.

Olhámos para cima, e que vimos?! Da janela mais alta da sede jorravam nuvens de fumo e uma chuva de fagulhas. Em breve todo o piso se incendiaria, e desmoronar-se-ia para cima das salas por baixo.

- Precisamos apenas de três cavalos - disse eu, ofegante, montando o primeiro com alguma dificuldade, pois ainda tossia intensamente. - O quarto pode ficar.

Mas Lothaire não disse nada. Estava petrificado a observar a imagem de incêndio que ele - e, sem dúvida, muitos mais - tantas vezes desejara testemunhar. Por isso deixei-o, da mesma forma que deixara o irmão Lucius. Parti, a passo ligeiro mas sem pressa, em direcção às portas da cidade. Fugi, no mesmo instante em que os primeiros e ténues gritos de alarme me chegavam aos ouvidos.

Era a manhã da Festa de Finados. Nessa manhã, levando Johanna de Caussade e a filha, efectuei a minha fuga de Lazet antes que a minha ausência fosse sequer notada.

Não vos posso dizer mais nada. A minha história termina aqui. Prosseguir seria colocar muitas vidas em perigo.

 

Estou a escrever de um local secreto. Escrevo aos rigores amargos do frio, os dedos entorpecidos e cheios de cãibras, a minha respiração parece fumo à frente dos meus olhos. Estou aqui sentado como um leopardo, junto ao caminho, a vigiar mas sem ser visto, uma testemunha e um fugitivo. Procurei refúgio longe - muito longe - de Lazet. No entanto, mantenho-me ao corrente dos acontecimentos que lá se desenvolveram desde a minha partida. Tenho ouvidos atentos e os olhos de uma águia; tenho amigos, que têm amigos, que têm amigos. Foi assim que a minha carta chegou até vós, Reverendo Padre. Como todos os outros inquisidores de Depravação Herege, tenho um braço tão longo como a memória do Santo Ofício.

Por isso sei certas coisas. Sei que o incêndio ateado pelo irmão Lucius devorou toda a sede do Santo Ofício, embora, misericordiosamente, tenha poupado a prisão. Sei que fui excomungado, e intimado a comparecer perante Pierre-Julien Fauré como herege contumaz. Sei que Lothaire Carbonel foi preso como fautor de hereges, por ter estupidamente entregue os seus próprios cavalos ao meu cuidado. Não é fácil disfarçar a ausência de três cavalos. Ele devia tê-los roubado. Ou tê-los comprado a parentes de confiança. Que Deus me perdoe, pois fui o agente da sua destruição; por vezes, parece-me que a destruição anda sempre comigo, e que as flores murcham à minha passagem.

Vitalia morreu. Alcaya morreu. Por graça de Deus, morreram de enfermidades do corpo provocadas pelo encarceramento, e não na pira - pelo menos foi o que ouvi dizer -, mas, mesmo assim, as minhas mãos estão manchadas com o seu sangue. Durand Fogasset também morreu, derrubado pela doença; se ele estivesse vivo, eu não teria mencionado o papel que ele desempenhou na minha fuga. Sem dúvida que era um pecador, e talvez a sua morte tenha servido de castigo para os seus pecados. Mas é minha verdadeira e sincera convicção de que ele encontrou paz na glória eterna. Pois nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem os poderes, nem as coisas presentes, nem as coisas futuras, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura será capaz de nos separar do amor de Deus que vive em Jesus Cristo, Nosso Senhor.

Reverendo Padre, contei-vos tudo o que há para contar. Contei-vos uma história sangrenta de morte e corrupção, mas estes pecados não foram meus. Embora eu tenha pecado contra os meus votos de castidade e de obediência, não pequei contra a Santa Igreja Apostólica. No entanto, os meus inimigos censuram-me todo o dia; são corruptos, e falam com perversidade; a violência cobre-os como um manto. Procuram a minha alma, pois a perversidade mora com eles.

E eu? Tenho comido cinzas como pão. A censura despedaçou-me o coração, e a tristeza domina-me: ando de luto todo o dia. Padre, tendes de me ajudar. Permiti que sejam envergonhados e malditos os que procuram a minha alma para a destruírem: permiti que sejam obrigados a recuar e envergonhados os que me desejam mal. Os meus inimigos conspiram, Reverendo Padre. Mentem, e põem de parte a justiça. O seu veneno é como o veneno de uma serpente.

Mas vós inclinastes o coração para os testemunhos de Deus. Tendes as mãos limpas, e um coração puro, e julgais com justiça. A minha iniquidade está perante vós, Reverendo Padre, e pergunto-vos agora: de quem é o maior pecado? Examinai-me, e colocai-me à prova: verificai as minhas rédeas e colocai à prova o meu coração. Odeio a congregação dos que fazem mal, e não me sentarei com os ímpios. Assim, virai-vos para mim, e tende piedade de mim, pois os meus olhos estão sempre virados para o Senhor.

Reverendo Padre, imploro-vos - advogai a minha causa. Advogai a minha causa com o Papa João. Advogai a minha causa com o Inquisidor de França. Pois é a causa de um homem condenado injustamente, que é perseguido entre os justos. A minha defesa está aqui, nesta epístola: ponderai-a bem. Sou o vosso filho que vos ama, padre.

Não me abandoneis, como tantos fizeram antes. Olhai para mim com caridade, e lembrai-vos das palavras de São Paulo: agora subsiste a fé, a esperança, a caridade, estas três; mas a maior delas é a caridade.

Que continueis na graça e na sabedoria de Jesus Cristo, Nosso Senhor e Salvador. A Ele glória e majestade, domínio e poder, agora e sempre, Amén.

 

                                                                                Catherine Jinks  

 

                      

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