Chegou um bonde e subiram. Carla depositou a cesta no regaço com ar despreocupado, como se não contivera nada mais importante que a couve. Observou aos demais passageiros e a aliviou não ver nenhum uniforme. —Vêem minha casa esta noite —a convidou Frieda—. Escutaremos jazz. Podemos pôr os discos do Werner. —eu adoraria, mas não posso —se desculpou Carla—. Tenho que fazer uma chamada. Lembra-te da família Rothmann? Frieda olhou ao redor com cautela. Não era seguro que Rothmann fora um nome judeu, mas poderia sê-lo. Por sorte, não havia ninguém o bastante perto para as ouvir. —Claro, o pai era nosso médico de cabeceira. —Em teoria já não exerce. Eva Rothmann partiu a Londres antes da guerra e se casou com um soldado escocês. Mas os pais não podem sair da Alemanha, claro. Seu filho, Rudi, fabricava violinos e ao parecer lhe dava muito bem. Mas perdeu o trabalho e agora se dedica a reparar instrumentos e a afinar pianos. —Quatro vezes ao ano ia a casa dos Von Ulrich para afinar o piano de cauda Steinway—. A questão é que esta noite me tinha comprometido a passar a vê-los. —OH —exclamou Frieda. Foi prolongada exclamação própria de quem acaba de reparar em algo. —O que ocorre? —perguntou Carla. —Agora entendo por que aferra esse capazo como se contivera o Santo Grial. Carla ficou sem fala.
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Frieda tinha descoberto o segredo! —Como o adivinhaste? —Há dito que em teoria já não exerce, o qual indica que na prática sim que o faz. Carla se deu conta de que acabava de trair ao doutor Rothmann. Deveria haver dito que não exercia porque o tinha proibido. Por sorte, solo o tinha delatado ante a Frieda. —Que outra coisa pode fazer? Os doentes se apresentam em sua casa e lhe pedem de joelhos que os cure. Não pode jogá-los! Nem sequer ganha dinheiro; todos seus pacientes são judeus e outras pobres gente que lhe pagam com quatro batatas ou um ovo. —Por mim não faz falta que o justifique —disse Frieda—. Me parece muito valente. E você é toda uma heroína por roubar material do hospital e levar-lhe É a primeira vez? Carla negou com a cabeça. —A terceira. Mas me sinto muito estúpida por ter permitido que o descubra. —Não é nenhuma estúpida. O que ocorre é que te conheço muito bem. O bonde estava chegando à parada da Carla. —me deseje sorte —disse, e se apeou. Quando entrou em casa, ouviu as vacilantes nota do piano procedentes do piso de acima. Maud estava com um aluno, e Carla se alegrou disso, pois assim sua mãe animaria-se e, de passagem, ganharia um pouco de dinheiro. despojou-se do impermeável, entrou na cozinha e saudou a Ada. Quando Maud tinha anunciado a Ada que não podia seguir lhe pagando, esta lhe perguntou se podia ficar a viver ali de todas formas. Agora trabalhava de noite limpando um escritório, e de dia limpava a casa dos Von Ulrich em troca da comida e o alojamento. Carla arrojou os sapatos debaixo da mesa e se esfregou um pé com o outro para aliviar a dor. Ada lhe preparou uma taça de sucedâneo de café. Maud entrou na cozinha com olhos cintilantes. —Tenho um aluno novo! —disse, e mostrou a Carla um maço de bilhetes—. E quer que lhe dê classes todos os dias! —Tinha-o deixado praticando escalas, e o som de fundo de sua inexperiente pulsação recordava ao de um gato passeando-se por cima do teclado. —Estupendo —disse Carla—. Quem é? —Um nazista, é obvio, mas necessitamos o dinheiro. —Como se chama? —Joachim Koch. É bastante jovem e tímido. Se lhe encontrar isso, pelo que mais queira, te remoa a língua e sei amável. —Claro. Maud desapareceu. Carla sorveu o café com gosto. acostumou-se ao sabor das bolotas torradas, como quase todo mundo. Conversou uns minutos com a Ada. Em outro tempo a mulher tinha sido rellenita, mas agora estava magra. Na Alemanha atual havia pouca gente metida em carnes; sem embargo, no caso da Ada ocorria algo mais. A morte de seu filho discapacitado, Kurt, tinha suposto um duro golpe. A via apática. Cumpria bem com seu trabalho, mas logo se passava horas sentada frente à janela com expressão ausente. Carla lhe tinha carinho, e se compadecia dela, mas não sabia o que fazer para ajudá-la. O som do piano cessou e, uns instantes depois, Carla ouviu duas vozes no saguão, a de sua mãe e a de um homem. Supôs que Maud estava despedindo-se de herr Koch; mas ao cabo de uns instantes se horrorizou quando sua mãe entrou na cozinha seguida de perto por um homem embelezado com um imaculado uniforme de tenente. —Esta é minha filha —disse Maud em tom alegre—. Carla, este é o tenente Koch, um aluno novo. Koch era um homem atrativo e de aspecto tímido que rondava os vinte anos. Levava um bigode loiro, e a Carla recordou às fotografias de quando seu pai era jovem. A Carla lhe acelerou o coração pelo medo. A cesta com o material médico roubado se encontrava na cadeira da cozinha que tinha justo ao lado. delataria-se ante o tenente Koch por acidente tal como tinha feito com a Frieda? Logo que podia falar. —Em… encantada de conhecê-lo —balbuciou. Maud a observou com curiosidade, surpreendida de seu nervosismo. Tudo que Maud desejava era que Carla se mostrasse amável com o novo aluno para que este não abandonasse as classes. Não via nada de mau em convidar a entrar na cozinha a um oficial do exército; não tinha nem idéia de que Carla ocultasse material roubado na cesta de compra-a. Koch efetuou uma formal reverencia. —O prazer é meu —disse. —E Ada é a criada. Ada o obsequiou com um olhar hostil mas ele não se precaveu: nunca prestava atenção ao serviço. Apoiou todo o peso em uma perna e permaneceu inclinado; tratava de adotar uma atitude relaxada mas dava justo a impressão contrária. Seu comportamento era mais infantil que sua aparência. Nele se adivinhava uma inocência que fazia pensar que de menino o tinham protegido em excesso. De todos os modos, seguia sendo um perigo. Trocou de postura e posou as mãos sobre o respaldo do assento que ocupava a cesta da Carla. —Vejo que é enfermeira —observou. —Sim. —Carla tratou de pensar com claridade. Tinha idéia Koch dos quais eram os Von Ulrich? Parecia muito jovem para saber o que era um socialdemócrata posto que fazia nove anos que haviam ilegalizado a partida. Talvez a infâmia da família Von Ulrich se desvaneceu com a morte do Walter. Em qualquer caso, dava a impressão de que Koch tomava por uma respeitável família alemã que, simplesmente, era pobre porque tinha perdido à cabeça de família, uma situação em que se viam muitas mulheres de bom berço. Não havia razão para que olhasse dentro da cesta. Carla se esforçou por lhe falar em tom amável. —Que tal vai com o piano? —Parece-me que estou progredindo muito rápido! —Olhou ao Maud—. Pelo menos, é o que diz a professora. —Tem talento, lhe nota apesar de que acaba de começar —disse Maud. Sempre dizia o mesmo para animar aos alunos a seguir com as classes; entretanto, a Carla lhe pareceu que nessa ocasião se estava comportando com maior afabilidade da habitual. Tinha direito a flertar, é obvio; fazia mais de um ano que era viúva. Mas não era possível que albergasse sentimentos românticos para alguém a quem dobrava a idade. —Não obstante, tenho pensado não contarnada a meus amigos até que domine o instrumento —acrescentou Koch—. Assim os assombrarei com minha arte. —Será divertido —observou Maud—. Por favor, tenente, sinta-se, se é que dispõe de uns minutos. —Assinalou a cadeira onde repousava a cesta da Carla. Carla se dispôs a retirá-la, mas Koch lhe adiantou. —me permita —disse, retirando a cesta. Olhou dentro—. Imagino que é para o jantar —observou ao ver a couve. —Sim —respondeu Carla com a voz quebrada. Ele se sentou na cadeira e depositou a cesta no chão, junto aos pés, no lado oposto a Carla. —Sempre acreditei que tinha aptidões para a música, e chegou o momento de comprová-lo. Cruzou as pernas e as descruzó. Carla se perguntava por que se mostrava tão inquieto; ele não tinha nada que temer. Por um instante, lhe ocorreu pensar que talvez seu desconforto se devesse a uma questão sexual. encontrava-se a sós com três mulheres. Que idéias deviam lhe estar passando pela mente? Ada lhe pôs uma taça de café em frente e ele tirou um pacote de cigarros. Fumava igual a um adolescente, como se fora inexperiente. Ada lhe aproximou um cinzeiro. —O tenente Koch trabalha no Ministério de Guerra, no Bendlerstrasse —informou Maud. —Sério? —Era o Quartel Geral Supremo. Menos mal que Koch não pensava revelar a ninguém que estava estudando piano. Os maiores secretos do exército alemão guardavam-se naquele edifício, e embora Koch não soubesse, era possível que alguns de seus companheiros se lembrassem de que Walter von Ulrich estava em contra do nazismo. E isso seria o final das classes com frau Von Ulrich. —É um grande privilégio trabalhar ali —acrescentou Koch. —Meu filho está na Rússia —disse Maud—. Estou muito preocupada com ele. —É natural, tratando-se de sua mãe —observou Koch—. Mas não seja pessimista, por favor! A recente contra-ofensiva da Rússia se rechaçou com contundência. Miúdo conto. A maquinaria propagandística não podia ocultar o fato de que os soviéticos tinham ganho a batalha de Moscou e tinham feito retroceder cento cinqüenta quilômetros aos alemães. —Agora estamos em uma posição que nos permitirá voltar a empreender o avanço —prosseguiu Koch. —Está seguro? —Maud parecia nervosa, e Carla se sentia igual. Às dois as atendia o medo do que pudesse lhe acontecer ao Erik. Koch adotou um sorriso de superioridade. —me crie, frau Von Ulrich, estou seguro. Claro que não posso lhe contar tudo o que sei. Não obstante, asseguro-lhe que se está planejando uma nova operação muito agressiva. —Estou segura de que nossas tropas dispõem de todo o necessário; comida suficiente e demais. —Posou uma mão no braço do Koch—. Mesmo assim, estou preocupada. Não deveria dizer isso, sei, mas tenho a impressão de que posso confiar em você, tenente. —É obvio. —Faz meses que não tenho notícias de meu filho, não sei se estiver vivo ou morto. Koch se levou a mão ao bolso e tirou um lápis e um pequeno caderno. —Averiguarei-o —disse. —Pode fazê-lo? —perguntou Maud, com os olhos exagerados. Carla pensou que talvez esse fora o motivo pelo que flertava com ele. —claro que sim —respondeu Koch—. Estou no Corpo de Estado Maior, já sabe… Embora tenha um cargo muito baixo. —Tratou de aparentar modéstia—. Posso perguntar por… —Erik. —Erik von Ulrich. —Isso seria fantástico. É carregador de maca; estudava medicina, mas estava impaciente por combater para o Führer. Dizia a verdade. Erik era um exaltado nazista; embora em suas últimas cartas deixava entrever uma atitude mais moderada. Koch anotou o nome. —É você maravilhoso, tenente Koch —o elogiou Maud. —Não tem importância. —Me alegro muito de que estejamos a ponto de contra-atacar no fronte oriental. Mas não deve me dizer quando se iniciará a ofensiva, apesar de que morro de vontades se soubesse. Maud estava tentando surrupiá-lo. Carla não via que razões podia ter para fazê-lo, essa informação não lhe servia de nada. Koch baixou a voz, como se frente à janela aberta da cozinha pudesse haver um espião. —Será muito em breve —confessou, e olhou às três mulheres. Carla reparou em que estava tentando captar sua atenção. Talvez não estivesse acostumado a ter a várias mulheres pendentes de suas palavras. Prolongou um pouco o momento. —A Operação Azul começará muito em breve —disse ao fim. Maud o olhou com olhos cintilantes. —A Operação Azul; é muito emocionante! —Disse-o no mesmo tom com que teria respondido a um convite para passar uma semana no hotel Ritz de Paris. —Em 28 de junho —sussurrou ele. Maud se levou a mão ao coração. —Que logo! É uma notícia excelente. —Não teria que haver dito nada. Maud posou a mão sobre a dele. —Pois me alegro muito de que o tenha feito. Faz que me sinta muito melhor. Lhe olhou a mão. Carla se deu conta de que não estava acostumado a que uma mulher o tocasse. Elevou a vista até olhar ao Maud aos olhos. Ela esboçou uma cálida sorriso, tão cálida que a Carla custava acreditar que fora do todo falsa. Maud retirou a mão. Koch apagou o cigarro e ficou em pé. —Devo partir —disse. Graças a Deus, pensou Carla. Lhe fez uma reverência. —foi um prazer conhecê-la, fräulein. —Adeus, tenente —respondeu ela em tom neutro. Maud o acompanhou à porta. —Assim, até manhã à mesma hora —disse. Retornou à cozinha. —Miúdo achado; um tolo que trabalha no Corpo de Estado Maior! —Não compreendo por que está tão emocionada —disse Carla. —É muito bonito —atravessou Ada. —Revelou-nos informação secreta! —exclamou Maud. —E do que nos serve isso? —perguntou Maud—. Não somos espiões. —Sabemos a data da seguinte ofensiva; encontraremos alguma maneira de informar aos russos. —Pois não sei como. —supõe-se que vivemos rodeados de espiões. —Isso não é mais que propaganda. Quando algo sai mau, os nazistas sempre culpam aos agentes secretos dos judeus bolcheviques em lugar de aceitar que colocaram a pata. —Dá igual, seguro que tem que haver espiões. —E como nos poremos em contato com eles? Sua mãe parecia estar refletindo. —Falarei com a Frieda —decidiu. —por que diz isso? —Por intuição. Carla recordou a situação da parada do bonde, quando tinha perguntado em voz alta quem podia ter pendurado aqueles pôsteres antinazis e Frieda tinha guardado silêncio. A intuição da Carla coincidia com a de sua mãe. Mas esse não era o único problema. —Embora pudéssemos fazê-lo, por que íamos trair a nosso país? —Temos que derrotar aos nazistas —afirmou Maud em tom categórico. —Odeio aos nazistas mais que ninguém, mas sigo sendo alemã. —Compreendo o que quer dizer. Eu não gosto da idéia de me converter em uma traidora, apesar de que nasci na Inglaterra. Mas não nos liberaremos dos nazistas se não perdemos a guerra. —De todos os modos, imagina que passamos informação aos russos e isso faz que percamos uma batalha. Erik poderia morrer nessa batalha! É seu filho… e meu irmão! Poderia morrer por nossa culpa. Maud abriu a boca para responder, mas não podia falar. Em lugar disso, pôs-se a chorar. Carla ficou em pé e a abraçou. —Poderia morrer de todos os modos —sussurrou Maud ao cabo de um minuto—. Poderia morrer lutando pelo nazismo. É melhor que o matem em uma batalha perdida a que ganhem. Carla não o via tão claro. separou-se de sua mãe. —Seja como for, agradeceria-te que me avisasse antes de entrar com alguém na cozinha dessa forma. —Recolheu a cesta do chão—. Menos mal que o tenente Koch não olhou melhor aqui dentro. —por que? O que leva aí? —Coisas que roubei que hospital para o doutor Rothmann. Maud sorriu orgulhosa, com os olhos cheios de lágrimas. —Esta é minha filha. —Quase me dá um desmaio quando agarrou a cesta. —Sinto muito. —Não podia adivinhá-lo. Mas, sabe o que?, vou liberar me de tudo isto agora mesmo. —Boa idéia. Carla voltou a ficar o impermeável sobre o uniforme e saiu de casa. Avançou com rapidez para a rua onde viviam os Rothmann. Sua casa não era tão grande como a dos Von Ulrich, mas era uma moradia bem distribuída com espaços muito acolhedores. Não obstante, as janelas estavam fechadas com pranchas e na porta principal havia uma áspera placa que rezava: CONSULTÓRIO FECHADO. Em outros tempos a família tinha sido próspera. O doutor Rothmann tinha tido muitos pacientes enriquecidos, e também tinha tratado a pacientes pobres a preços módicos. Agora solo iam a sua consulta os pobres. Carla se dirigiu à porta traseira, como os pacientes. Em seguida se deu conta de que algo ia mau. A porta traseira estava aberta, e quando entrou na cozinha viu um violão com o mastro quebrado atirada no chão ladrilhado. Ali não havia ninguém, mas ouviu vozes procedentes de algum outro ponto da casa. Cruzou a cozinha e entrou no saguão. Na planta baixa havia duas habitações principais que antes eram a consulta e a sala de espera. Agora a sala de espera fazia as vezes de sala de estar, e a consulta se converteu na oficina do Rudi, com um banco de trabalho e ferramentas para trabalhar a madeira, e também estava acostumado a haver meia dúzia de bandolins, violinos e violoncelos em diversos estados de reparação. Todo o instrumental médico ficava fora da vista, fechado sob chave nos armários. Entretanto, quando entrou viu que já não era assim. Alguém tinha aberto os armários e vazamento seu conteúdo. O estou acostumado a estava estofo de cristais quebrados e pílulas, pó e líquido de diversas classes. Entre os restos, Carla descobriu um estetoscópio e um aparelho para tomar a tensão. Havia partes de instrumental pulverizados por toda parte; era evidente que o haviam arrojado ao chão e logo o tinham pisoteado. Carla estava atônita e indignada. Que esbanjamento! Logo jogou uma olhada à outra habitação. Em uma esquina jazia Rudi Rothmann. Era um jovem de vinte e dois anos, alto e de constituição atlética. Tinha os olhos fechados e gemia com agonia. Sua mãe, Hannelore, estava ajoelhada a seu lado. Em outro tempo Hannelore tinha sido loira e bonita; agora, pelo contrário, tinha o cabelo cinza e aspecto gasto. —O que ocorreu? —perguntou Carla, temendo-a resposta. —A polícia —respondeu Hannelore—. Acusam a meu marido de tratar a pacientes arianos. O levaram. Rudi tentou lhes impedir que destroçassem a consulta. Hajam-lhe… —Lhe fez um nó na garganta. Carla deixou a cesta no chão e se ajoelhou junto ao Hannelore. —O que lhe têm feito? Hannelore recuperou a fala. —Têm-lhe quebrado as mãos —disse com um fio de voz. Carla se deu conta ao momento. Rudi tinha as mãos vermelhas e retorcidas de um modo horrível. Ao parecer, a polícia lhe tinha quebrado os dedos um a um; não era de sentir saudades que gemesse. Aquilo era nauseabundo. Claro que, como presenciava horrores todos os dias, sabia reprimir as emoções e emprestar a ajuda requerida. —Necessita morfina —disse. Hannelore assinalou a confusão do chão. —Se tínhamos, já não há. Um acesso de pura raiva assaltou a Carla. Inclusive nos hospitais faltavam medicamentos; e a polícia se permitia esbanjar fármacos muito valiosos em um arrebatamento de destruição. —Trouxe-lhes um pouco. —Tirou da cesta um vial de um líquido transparente e a seringa de injeção nova. Com diligência, extraiu a seringa de injeção de seu estojo e a encheu com o fármaco. Logo o injetou ao Rudi. O efeito foi quase instantâneo. Rudi deixou de gemer. Abriu os olhos e olhou a Carla. —É você, preciosa —disse. Então voltou a fechar os olhos e pareceu ficar dormido. —Temos que tentar lhe pôr retos os dedos para que os ossos se soldem bem —explicou Carla. Tocou a mão esquerda do Rudi e ele não reagiu. Então a agarrou e a levantou. Ele seguiu sem alterar-se. —Nunca endireitei ossos —disse Hannelore—. Mas vi fazê-lo muitos vezes. —me passa igual —confessou Carla—. Mas mais nos vale tentá-lo. Eu me encarregarei da mão esquerda e você da direita. Temos que terminar antes de que se passe o efeito do fármaco. Bem sabe Deus que já lhe tocará sofrer o bastante. —De acordo —conveio Hannelore. Carla fez uma pausa mais larga. Sua mãe tinha razão. Deviam fazer quanto estivesse em suas mãos para parar os pés ao regime nazista, embora isso significasse trair a seu país. Já não lhe cabia nenhuma dúvida. —Mãos à obra —disse Carla. Devagar, com cuidado, as duas mulheres se dispuseram a endireitar os ossos das mãos do Rudi. II Thomas Macke ia ao bar Tannenberg tudas as sextas-feiras pela tarde. O local não era grande coisa. Em uma parede havia uma fotografia emoldurada do proprietário, Fritz, embelezado com o uniforme da Primeira guerra mundial, vinte e cinco anos mais jovem e sem a barriga de cerveja. gabava-se de ter dado morte a nove russos na batalha do Tannenberg. Também havia umas quantas mesas e cadeiras, mas os clientes habituais preferiam sentar-se à barra. A carta, com a coberta de couro, era puramente ornamental; quão único serviam era salsichas com batatas ou salsichas sem batatas. Contudo, o lugar se encontrava justo em frente da delegacia de polícia do Kreuzberg, pelo que o freqüentavam policiais e isso significava que nele não havia normas. Estava permitido o jogo, as mulheres da rua faziam felaciones no lavabo e os inspetores de sanidade da prefeitura do Berlim nunca entravam na cozinha. Abria suas portas assim que Fritz se levantava e as fechava quando partia o último cliente. Macke tinha sido um humilde agente de polícia que trabalhava na delegacia de polícia do Kreuzberg antes de que os nazistas subissem ao poder e dessem porta a homens como ele sem prévio aviso. Alguns de seus antigos companheiros seguiam acudindo ao Tannenberg, pelo que sempre se encontrava com alguma cara conhecida. Gostava de conversar com seus velhos amigos apesar de ter adquirido uma categoria muito superior a eles ao converter-se em inspetor e membro das SS. —Tem-no feito muito bem, Thomas. Esta vai por ti —disse Bernhardt Engel, que em 1932 era sargento e superior do Macke, e seguia sendo sargento—. Bom sorte, filho. —levou-se aos lábios a jarra de cerveja a que Macke o havia convidado. —Não penso te levar a contrária —repôs Macke—. Mesmo assim, direi-te que o superintendente Kringelein é bastante pior chefe que você. —Eu era muito brando com vós —admitiu Bernhardt. Outro velho companheiro, Franz Edel, riu com ar zombador. —Pois eu não diria que foi precisamente brando! Macke olhou pela janela e viu deter-se uma motocicleta conduzida por um jovem que luzia a jaqueta azul claro com cinturão própria de um oficial das forças aéreas. Resultava-lhe familiar, tinha-o visto em alguma parte. O cabelo vermelho e mas bem comprido caía com gracioso movimento sobre sua frente Patricia. Cruzou a calçada e entrou no Tannenberg. Macke recordou seu nome. Era Werner Franck, o filho mimado do fabricante de rádios Ludi Franck. Werner se aproximou da barra e pediu um pacote de cigarros Kamel. Lógico, pensou Macke; o playboy fumava cigarros americanos, embora fora uma imitação alemã. Werner pagou, abriu o pacote, tirou um cigarro e pediu um acendedor ao Fritz. Quando se voltou para partir, sujeitando o cigarro inclinado na boca com ar desenvolto, cruzou o olhar com o Macke. —Inspetor Macke —disse, depois de pensá-lo uns instantes. Todos os homens da barra ficaram olhando ao Macke, esperando a ver o que respondia. Ele o saudou com a cabeça de modo informal. —Que tal está, jovem Werner? —Muito bem, senhor, obrigado. Macke se sentiu agradado, embora também surpreso, ante seu tom respeitoso. Recordava ao Werner como um mucoso arrogante que não mostrava o devido respeito a a autoridade. —Acabo de retornar de passar uma temporadita no fronte oriental, com o general Dorn —acrescentou Werner. Macke se precaveu de que os policiais da barra estavam pendentes da conversação. Um homem que tinha estado no fronte oriental merecia respeito. Macke não pôde evitar sentir sentido prazer ao vê-los impressionados ante os seletos círculos nos que se movia. Werner ofereceu o pacote de cigarros ao Macke, que aceitou um. —Uma cerveja —disse Werner ao Fritz—. Posso lhe convidar a tomar algo, inspetor? —perguntou voltando-se para o Macke. —Tomarei o mesmo, obrigado. Fritz encheu duas jarras. Werner levantou a jarra ante o Macke. —Quero lhe dar as obrigado. Macke se levou outra surpresa. —por que? —perguntou. Seus amigos seguiam escutando com interesse. —Faz um ano me deu uma boa reprimenda —disse Werner. —Nesse momento não pareceu agradecê-lo. —E me desculpo por isso. Dava muitas voltas ao que me disse, e ao final compreendi que tinha razão. Tinha permitido que as emoções me nublassem a razão e você meteu-me em cintura. Nunca o esquecerei. Macke estava emocionado. Antes sentia aversão pelo Werner, e lhe tinha falado com dureza. Entretanto, o jovem se tomou a peito suas palavras e tinha trocado de atitude. Macke se sentiu cheio de orgulho ao saber-se capaz de obrar semelhante transformação na vida de um jovem. Werner prosseguiu. —De fato, o outro dia me lembrei de você. O general Dorn falava de capturar espiões e nos perguntou se podíamos lhes seguir a pista através dos sinais que enviavam por rádio. Temo que não fui capaz de lhe explicar grande coisa. —Teria que haver me perguntado isso —disse Macke—. É minha especialidade. —Sério? —Venha, sinta-se. Levaram as bebidas a uma mesa imunda. —Esses homens são agentes de polícia —explicou Macke—. E embora não fora assim, não deve falar-se dessas coisas diante da gente. —Claro. —Werner baixou a voz—. Mas sei que posso confiar em você. Olhe, alguns comandantes do frente explicaram ao Dorn que, conforme acreditam, muitas vezes o inimigo conhece nossas intenções de antemão. —Ah! —exclamou Macke—. Me temia isso. —O que posso lhe contar ao Dorn sobre a detecção de sinais de rádio? —O término correto é goniometría. —Macke se parou a pensar. Era uma oportunidade de impressionar a um influente general, embora fora de maneira indireta. Tinha que ser claro e pôr de relevo a importância do que estava fazendo sem exagerar os resultados. Imaginou ao general Dorn dizendo ao Führer como quem não quer a coisa: Na Gestapo há um bom elemento, chama-se Macke. É sozinho inspetor, por agora, mas é muito eficiente e…—. Dispomos de um instrumento que indica-nos a direção da que procede o sinal —começou—. Se realizarmos três escutas desde lugares bastante separados, podemos riscar três linhas no mapa. A intercessão é o ponto onde se encontra o emissor. —É fantástico! Macke elevou a mão com gesto de advertência. —Em teoria —acrescentou—. Na prática, resulta mais difícil. O pianista, que é como chamamos o operador de rádio, não está acostumado a permanecer em um mesmo sítio o tempo suficiente para que o encontremos. Um pianista cauteloso envia dois sinais do mesmo ponto. E nosso instrumento se encontra em uma caminhonete que tem uma antena muito chamativa no teto, ou seja que nos vêem vir. —Mas obtiveram bons resultados. —É claro que sim. De todos os modos, uma noite destas deveria vir conosco, assim veria todo o processo… e poderia explicar-lhe ao general Dorn de primeira mão. —Boa idéia —conveio Werner. III Moscou em junho era quente e ensolarado. Na hora de comer, Volodia esperava a Zoya junto a uma fonte dos jardins Alexander, atrás do Kremlin. Havia centenas de pessoas passeando, a maioria em casal, aproveitando que fazia bom dia. Corriam tempos difíceis e tinham talhado o fornecimento de água da fonte para economizar energia, mas o céu era azul, as árvores estavam povoadas de folhas e o exército alemão se encontrava a cento e cinqüenta quilômetros de distância. Volodia se enchia de orgulho cada vez que recordava a batalha de Moscou. O temível exército alemão, perito na guerra relâmpago, tinha chegado até as portas da cidade; mas o tinham rechaçado. Os soldados soviéticos tinham lutado como leões para salvar seu capital. Por desgraça, em março o contra-ataque soviético tinha chegado a um ponto morto. Tinham conseguido reconquistar grande parte do território, pelo que os moscovitas sentiam-se mais seguros, mas os alemães se recuperaram do golpe e se estavam preparando para voltar a tentá-lo. E Stalin seguia à cabeça. Volodia viu a Zoya entre a multidão, dirigindo-se para ele. Levava um vestido a quadros vermelhos e brancos. Caminhava com brio e seu cabelo loiro claro parecia expulsar ao compasso de seus passos. Todos os homens a olhavam. Volodia tinha tido umas quantas noivas bonitas, mas se o fazia estranho estar saindo com a Zoya. Durante anos, ela o tinha tratado com fria indiferença e não o falava de nada que não fosse física nuclear. De repente, um dia, para seu grande assombro, perguntou-lhe se queria acompanhá-la ao cinema. Ocorreu pouco depois do motim no qual assassinaram ao general Bobrov. Aquele dia tinha trocado de atitude com respeito a ele, e Volodia não estava seguro de compreender por que. De algum modo, a experiência compartilhada tinha criado um clima de intimidade entre os dois. A questão era que tinham ido juntos a ver George’s Dinky Jazz Band, uma astracanada protagonizada por um inglês que tocava o banjo e se chamava George Formby. O filme se feito muito popular, e em Moscou esteve em anúncio durante meses. O argumento era do mais surrealista: George ignorava que seu instrumento enviava mensagens aos Ou-Boot alemães. Era tão parvo que os dois se haviam rido a mandíbula batente. Desde aquele dia, saíam de forma habitual. Hoje foram comer com o pai dele. Volodia havia ficado de esperá-la antes junto à fonte para dispor de uns minutos a sós. Zoya o obsequiou com seu sorriso de mil vatios e ficou nas pontas dos pés para beijá-lo. Era alta, mas ele o era mais. Volodia se deleitou com o beijo, notando seus lábios suaves e úmidos, mas terminou muito rápido. Ele ainda não tinha plena confiança na relação. Estavam na fase de cortejo, tal como o chamava a geração anterior. beijavam-se freqüentemente, mas ainda não deitaram-se. Não é que fossem muito jovens: ele tinha vinte e sete anos e ela, vinte e oito. Contudo, Volodia intuía que Zoya não se deitaria com ele até que não estivesse preparada. Uma parte de seu ser resistia a acreditar que acabasse passando uma só noite com essa moça de sonho. Parecia-lhe muito loira, muito inteligente, muito alta, muito segura de si mesmo, muito sensual para entregar-se a um homem. Provavelmente, nunca teria a oportunidade de ver como se tirava a roupa, de contemplá-la nua, de lhe acariciar todo o corpo, de tombar-se sobre ela… Caminharam pelo parque estreito e alargado. A um lado havia uma rua muito transitada. Com o passar do outro, as torres do Kremlin se abatiam por cima de um alto muro. —Olhando isso parece que os cidadãos russos tenham prisioneiros aos dirigentes —disse Volodia. —Sim —conveio Zoya—. Em vez do contrário. Ele se voltou a olhar atrás, mas não os tinha ouvido ninguém. Mesmo assim, era uma imprudência falar desse modo. —Não sente saudades que meu pai te considere um perigo. —Antes acreditava que você foi igual a seu pai. —Oxalá. Meu pai é um herói. Assaltou o Palácio de Inverno! Não acredito que eu chegue nunca a trocar o curso da história. —Ah, já, mas ele tem uma mentalidade fechada e conservadora. Você não é assim. Volodia pensou que sim que era como seu pai, mas não pensava discutir. —Está livre esta noite? —perguntou ela—. Eu gostaria de cozinhar para ti. —É obvio! Era a primeira vez que o convidava a sua casa. —Tenho carne de vitela. —Genial! —A vitela de qualidade era um luxo incluso no privilegiado lar da Volodia. —E os Kovalev saíram que viagem. Essa notícia era ainda melhor. Como muitos moscovitas, Zoya vivia em um piso com outra família. Dispunha de duas habitações para seu uso, e compartilhava a cozinha e o banho com outro cientista, o doutor Kovalev, além de sua esposa e seu filho. Mas os Kovalev não estavam, assim Zoya e Volodia teriam o piso para eles sozinhos. Lhe acelerou o pulso. —Levo-me a escova de dentes? —perguntou. Lhe dirigiu um sorriso enigmático e não respondeu à pergunta. Saíram do parque e cruzaram a rua em direção a um restaurante. Muitos tinham fechado, mas o centro da cidade estava cheio de despachos cujos ocupantes tinham que comer em algum sítio, pelo que uns quantos bares e cafés tinham sobrevivido. Grigori Peshkov ocupava uma mesa na terraço. Dentro do Kremlin havia melhores restaurantes, mas gostava de deixar-se ver em lugares freqüentados pelos cidadãos da pé; queria demonstrar que pelo fato de levar um uniforme de general não estava por cima dos soviéticos correntes. Contudo, tinha eleito uma mesa bastante separada do resto para que ninguém ouvisse sua conversação. Desaprovava a atitude da Zoya, mas não era invulnerável a seus encantos. ficou em pé e a beijou em ambas as bochechas. Pediram tortitas de batata e cerveja. A única outra opção eram arenques em vinagre e vodca. —Hoje não vou falar lhe de física nuclear, general —começou Zoya—. Entretanto, pode dar por sentado que sigo acreditando em tudo o que te expliquei a última vez que tratamos do tema. —É um alívio —disse ele. Ela se pôs-se a rir, mostrando os brancos dentes. —Em vez disso, eu gostaria de saber quanto tempo durará a guerra. Volodia sacudiu a cabeça fingindo exasperar-se. Zoya sempre tinha que provocar a seu pai. Se não tivesse sido uma moça e bonita, fazia tempo que Grigori a teria encarcerado. —Os nazistas estão acabados, mas não o reconhecerão —disse Grigori. —Em Moscou, todo mundo se pergunta o que ocorrerá este verão; claro que certamente vós dois sabem. —Asseguro-te que embora soubesse, não o contaria a minha noiva; por muito louco que esteja por ela —disse Volodia. Sobre tudo porque poderiam lhe pegar um tiro, pensou; mas isso não o confessou. Chegaram as tortitas de batata e começaram a comer. como sempre, Zoya devorou sua parte. A Volodia adorava a avidez com que atacava a comida. A ele, entretanto, não gostou de muito as tortitas. —Estas batatas sabem sospechosamente a nabo —protestou. Seu pai lhe lançou um olhar de desaprovação. —Não me estou queixando —se apressou a acrescentar. Quando tiveram terminado, Zoya foi ao serviço. Quando se teve afastado o suficiente para que não pudesse ouvi-lo, Volodia disse: —Acreditam que a ofensiva alemã é iminente. —Opino o mesmo —conveio seu pai. —Estamos preparados? —claro que sim —assegurou Grigori, mas lhe via nervoso. —Atacarão pelo sul. Querem fazer-se com as jazidas de petróleo do Cáucaso. Grigori sacudiu a cabeça. —Voltarão para Moscou. É o único que importa. —Stalingrado também é todo um símbolo. Leva o nome de nosso dirigente. —A mierda os símbolos. Se conquistarem Moscou, acabou-se a guerra. Se não, não terão ganho, dá igual os sítios que invadam. —Está fazendo conjeturas —repôs Volodia com irritação. —Você também. —Ao contrário, eu tenho provas. —Olhou ao redor, mas não havia ninguém perto—. A ofensiva se conhece com o nome em chave de Operação Azul. Começará o 28 de junho. —Tinha obtido a informação da rede de espiões que Werner Franck tinha no Berlim—. Encontramos parte da informação na maleta de um oficial alemão que durante um reconhecimento aéreo teve que realizar uma aterrissagem de emergência perto do Járkov. —Os chefes de reconhecimento não andam com os planos de combate na maleta —disse Grigori—. O camarada Stalin acredita que é uma mutreta para nos enganar, e eu estou de acordo. Os alemães querem debilitar nossa frente central fazendo que enviemos forças ao sul para enfrentar-se ao que não resultará ser mais que uma distração. Esse era o problema da informação secreta, pensou Volodia, contrariado. Inclusive quando se dispunha dela, os velhos cabezotas seguiam acreditando o que os dava a vontade. Viu que Zoya retornava, todos os olhos se posaram nela quando cruzou a terraço. —O que necessita para te convencer? —perguntou a seu pai antes de que ela chegasse. —Mais prova. —Por exemplo? Grigori ficou pensativo um momento; tomou-se a sério a pergunta. —me mostre o plano de combate. Volodia suspirou. Werner Franck ainda não tinha obtido o documento. —Se o consigo, Stalin o pensará melhor? —Se o conseguir, pedirei-lhe que o faça. —Um trato é um trato —disse Volodia. estava-se precipitando. Não tinha nem idéia de como ia conseguir o plano. Werner, Heinrich, Lili e outros já tinham deslocado uns riscos terríveis. Agora teria que pressioná-los ainda mais. Zoya chegou à mesa e Grigori ficou em pé. Os três foram tomar caminhos distintos, assim que se despediram. —Até esta noite —disse Zoya a Volodia. Ele a beijou. —Chegarei às sete. —Traz a escova de dentes —disse ela. Ele partiu sentindo um homem afortunado. IV Uma moça sabe quando seu melhor amiga guarda um segredo. Talvez não saiba qual é esse segredo, mas sabe que existe, igual a se sabe que há um móvel sob a lençol que o protege do pó. À força de respostas reticentes e lacônicas a perguntas inocentes, descobre que seu amiga está vendo-se com quem não deveria; não sabe seu nome, embora adivinha que o amor proibido é um homem casado, ou um estrangeiro de pele escura, ou outra mulher. Se fixa no colar de seu amiga e, por a silenciosa reação desta, deduz que está vinculado a alguma história vergonhosa. Entretanto, até anos mais tarde não descobre que o roubou do joalheiro de seu senecta avó. Isso era o que pensava Carla meditando sobre a Frieda. Frieda tinha um segredo, e estava relacionado com a resistência aos nazistas. Era possível que estivesse muito implicada, até um ponto delitivo. Talvez todas as noites registrasse a maleta de seu irmão Werner, copiasse documentos secretos e entregasse as cópias a algum espião russo; embora o mais provável era que a coisa não fora tão dramática: certamente tão solo ajudava a imprimir e distribuir os pôsteres e panfletos ilegais que criticavam ao governo. Assim, Carla estava decidida a lhe contar a Frieda o do Joachim Koch. Entretanto, não lhe apresentou a ocasião imediatamente. Carla e Frieda trabalhavam de enfermeiras em diferentes salga de um grande hospital, e cobriam turnos diferentes, pelo que não sempre se viam diariamente. Enquanto isso, Joachim acudia diariamente a sua classe de piano. Não revelou mais informação secreta, mas Maud seguia paquerando com ele. —dá-se conta de que tenho quase quarenta anos? —ouviu-lhe dizer um dia Carla, embora em realidade tinha cinqüenta e um. Joachim estava prendadísimo dela, e Maud desfrutava comprovando que ainda era capaz de seduzir a um jovem atrativo, embora se tratasse de um muito ingênuo. A Carla lhe passou pela cabeça que sua mãe poderia estar afeiçoando-se com aquele moço de bigode loiro que se parecia um pouco ao Walter quando era jovem; mas a idéia lhe pareceu ridícula. Joachim se desfazia por agradá-la, e logo lhe levou notícias de seu filho. Erik seguia com vida e se encontrava bem. —Sua unidade está em Ucrânia —informou Joachim—. É tudo que posso lhe dizer. —Oxalá conseguisse uma permissão para voltar para casa —disse Maud com nostalgia. O jovem oficial vacilou. —Uma mãe sofre muito —prosseguiu ela—. Se ao menos pudesse vê-lo, embora fora por um dia, ficaria muito mais tranqüila. —Talvez… Talvez possa arrumá-lo. Maud fingiu estupefação. —De verdade? Tanto poder tem? —Não é seguro. Mas posso tentá-lo. —Só por isso, estou-lhe muito agradecida. —Beijou-lhe a mão. Isso aconteceu uma semana antes de que Carla voltasse a ver a Frieda. Quando se encontraram, explicou-lhe tudo o do Joachim Koch. Detalhou-lhe a história como se estivesse lhe contando uma mera fofoca, mas estava segura de que seu amiga não o veria de um modo tão inocente. —Imagine o disse—. Se até nos revelou o nome secreto da operação e a data do ataque! —Aguardou para ver a reação da Frieda. —Poderiam executá-lo por isso —disse Frieda. —Se conhecêssemos alguém que tivesse contato com Moscou, poderíamos trocar o curso da guerra —prosseguiu Carla, como recreando-se na gravidade da ação que tinha cometido Joachim. —É possível —respondeu Frieda. Aí estava a prova. Ante semelhante historia, Frieda deveria ter reagido com surpresa e vivo interesse, e lhe fazer mais pergunta. Entretanto, solo pronunciava frases neutras e grunhidos evasivos. Quando Carla retornou a casa, confirmou a sua mãe que suas suspeitas eram certas. Ao dia seguinte, no hospital, Frieda apareceu na sala da Carla com aspecto desesperado. —Tenho que falar contigo em seguida —a apressou. Carla se encontrava trocando a vendagem a uma jovem que tinha sofrido graves queimaduras na explosão de uma fábrica de munições. —me espere no vestuário —disse—. Irei assim que possa. Ao cabo de cinco minutos se encontrou com a Frieda no pequeno quarto. Seu amiga estava fumando diante de uma janela aberta. —O que ocorre? —perguntou. Frieda apagou o cigarro. —É sobre sua tenente Koch. —Já me imaginava. —Tem que averiguar mais coisas dele. —Como que tenho? Do que está falando? —Pode conseguir o plano de combate completo da Operação Azul. De momento, sabemos umas quantas coisas, mas em Moscou precisam conhecer os detalhes. Frieda estava dando por sentadas muitas coisas, mas Carla decidiu lhe seguir a corrente. —Posso lhe perguntar… —Não. Tem que conseguir que te mostre o plano de combate. —Mas não sei se isso será possível. Não é parvo de tudo. Não te parece que…? Frieda nem sequer a escutava. —E tem que fotografá-lo-a interrompeu. tirou-se do bolso do uniforme um receptáculo de aço inoxidável do tamanho aproximado de um pacote de tabaco, só que mais largo e mais estreito—. É uma câmara em miniatura especialmente desenhada para fotografar documentos. —Carla reparou no nome Minox que aparecia em um lateral—. Em cada carretel cabem onze fotos. Aqui tem três carretéis. —Tirou três cintas em forma de haltera o bastante pequenas para as encaixar na câmara—. Assim é como se carrega. —Frieda fez uma demonstração—. Para fazer uma foto, tem que olhar por esta ventanita. Se tiver dúvidas, te leia o manual. Carla nunca tinha observado na Frieda uma atitude tão dominante. —A verdade é que tenho que pensá-lo. —Não há tempo. Este é sua impermeável, verdade? —Sim, mas… Frieda guardou nos bolsos do objeto a câmara, os carretéis e o folheto de instruções. Parecia aliviada de haver os tirado de cima. —Tenho que ir. —dirigiu-se à porta. —Mas Frieda! Ao fim Frieda se deteve e olhou a Carla à cara. —O que ocorre? —Bom… Não te está comportando como uma amiga. —Isto é mais importante. —Põe-me entre a espada e a parede. —É tua culpa, por me explicar o do Joachim Koch. Não finja que não esperava que fizesse algo com a informação. Era certo. Ela sozinha tinha provocado a situação. Entretanto, não tinha previsto que as coisas tomassem esse rumo. —E se se nega? —Então certamente viverá toda sua vida sob o regime nazista. Frieda partiu. —Maldita seja —renegou Carla. Permaneceu sozinha no vestuário, pensando. Nem sequer podia desfazer-se da câmara sem correr riscos. Tinha-a no impermeável, e não podia arrojá-la em um cubo de lixo do hospital. Teria que sair dali com a câmara no bolso e procurar um lugar onde pudesse tirar-lhe de cima em segredo. Mas queria fazê-lo? Parecia pouco provável que pudessem convencer ao Koch para que tirasse às escondidas uma cópia do plano de combate do Ministério de Guerra e a mostrasse a sua amada, por muito ingênuo que fora o jovem. Claro que se alguém podia persuadi-lo, essa pessoa era Maud. Entretanto, Carla tinha medo. Não teriam compaixão com ela se a pilhavam. Deteriam-na e a torturariam. Pensou no Rudi Rothmann, gemendo de agonia a causa dos ossos quebrados. Recordou a seu pai; haviam-lhe propinado uma surra tão brutal que, quando o soltaram, morreu. Seu delito seria mais grave que os que haviam cometido eles, e o castigo seria proporcional. Matariam-na, claro. Mas o sofrimento seria breve. disse-se que estava disposta a correr esse risco. O que não podia aceitar era a possibilidade de que matassem a seu irmão por sua culpa. Seguia no fronte oriental, Joachim o tinha confirmado. Estava comprometido na Operação Azul. Se Carla permitia que os soviéticos ganhassem a batalha, Erik poderia morrer como resultado disso. Isso sim que não podia consenti-lo. Voltou a ocupar-se de seu trabalho. Estava distraída e cometeu enganos, mas, por sorte, os médicos não o notaram e os pacientes não disseram nada. Quando por fim terminou o turno, partiu depressa. A câmara lhe queimava no bolso, e não encontrava um lugar seguro para desfazer-se dela. perguntava-se de onde a tinha tirado Frieda. Seu amiga tinha muito dinheiro, e lhe teria resultado fácil comprá-la, embora para isso teria que haver-se inventado uma história que justificasse para que necessitava uma coisa assim. O mais provável era que a tivessem dado os soviéticos quando enclausuraram a embaixada um ano atrás. Quando Carla chegou a casa, a câmara seguia no bolso de sua impermeável. Não se ouvia o piano no piso de acima. Esse dia Joachim chegava mais tarde à classe. Sua mãe se encontrava sentada à mesa da cozinha. Quando Carla entrou, Maud sorriu. —Olhe quem está aqui! —exclamou. Era Erik. Carla ficou olhando. Estava esquálido, mas parecia ileso. Tinha o uniforme muito sujo e rasgado, embora se tinha lavado a cara e as mãos. levantou-se e abraçou-a. Ela o estreitou com força, sem lhe importar que lhe manchasse o uniforme imaculado. —São e salvo —observou ela. Estava tão enxuto de carnes que lhe notava os ossos, as costelas, os quadris, os ombros e a coluna vertebral, através da fino tecido. —De momento sim —disse ele. Ela o soltou. —Como está? —Melhor que a maioria. —Não levará um uniforme tão magro na Rússia em pleno inverno, verdade? —Roubei-lhe o casaco a um russo morto. Carla se sentou à mesa. Ada também se encontrava ali. —Tinha razão —começou Erik—. Refiro aos nazistas. Tinha razão. Ela se sentiu agradada, embora não sabia muito bem a que se referia. —Em que sentido? —Assassinam a gente. Você me advertiu isso, e papai também; e mamãe. Sinto não lhes haver feito conta. Sinto muito, Ada, por não ter querido acreditar que assassinaram a seu pobre Kurt. Agora sei que era certo. A transformação era impressionante. —O que te tem feito trocar de opinião? —perguntou Carla. —Vi-os fazê-lo, na Rússia. Mandaram deter todas as pessoas importantes da cidade, porque podiam ser comunistas. E também agarraram aos judeus. Não sozinho aos homens, também às mulheres e aos meninos. E a anciões, tão fracos que era impossível que fizessem nenhum dano. —As lágrimas lhe rodavam pelas bochechas—. Os soldados regulares não o fazem; são grupos especiais. levam-se aos prisioneiros fora da cidade. Às vezes há uma pedreira, ou uma fossa de alguma classe. Se não, obrigam aos mais jovens a cavar um grande fossa. Então… Lhe fez um nó na garganta; mas Carla tinha que ouvir o dizer. —Então, o que? —Fazem-no de doze em doze; seis casais. Às vezes marido e mulher se dão a mão enquanto baixam à fossa. As mães levam em braços aos bebês. Os fuzileiros esperam a que os prisioneiros estejam bem situados. Então disparam. —Erik se enxugou as lágrimas com a suja manga do uniforme—. Pum! —exclamou. Na cozinha se fez um comprido silencio. Ada chorava. Carla estava horrorizada. Tão só Maud permanecia impertérrita. Ao final, Erik se soou. Logo tirou um pacote de cigarros. —Surpreendeu-me que me dessem permissão e um bilhete para voltar para casa —disse. —Quando tem que voltar? —perguntou Carla. —Amanhã. Solo posso ficar vinte e quatro horas. Mesmo assim, sou a inveja de todos meus companheiros. Dariam o que fora por poder acontecer um dia em casa. O doutor Weiss me há dito que devo ter amigos muito bem situados. —Pois sim —disse Maud—. Joachim Koch, um jovem tenente que trabalha no Ministério de Guerra e deve tomar classes de piano. Pedi-lhe que te conseguisse uma permissão. —Olhou o relógio—. Chegará dentro de uns minutos. Tomou-me carinho… Acredito que sente falta a uma mãe. Sim, sim, uma mãe, pensou Carla. A relação do Maud e Joachim não tinha nada de maternal. Maud prosseguiu. —É muito ingênuo. Contou-nos que em 28 de junho começará uma nova ofensiva no fronte oriental. Inclusive disse o nome em chave: Operação Azul. —Pegarão-lhe um tiro —disse Erik. —Joachim não é o único a quem lhe pegarão um tiro —atravessou Carla—. Lhe contei o que tinha sabor de uma pessoa, e agora me pediram que convença como é ao Joachim para que me mostre o plano de combate. —Santo Deus! —Erik estava conmocionado—. Isso sim que é espionagem. Corre mais perigo você aqui que eu no fronte! —Não te apure. Não me cabe na cabeça que Joachim faça uma coisa assim —disse Carla. —Não o tenha por seguro —replicou Maud. Todos ficaram olhando. —É possível que o faça por mim —opinou—. Se o peço tal como faz falta. —Tão cândido é? —sentiu saudades Erik. Ela adotou uma atitude desafiante. —Está apaixonado por mim. —Ah. —Ao Erik incomodava a idéia de que sua mãe tivesse uma aventura amorosa. —Dá igual, não podemos fazê-lo —disse Carla. —por que não? —perguntou Erik. —Porque se os russos ganham a batalha, você poderia morrer! —Provavelmente, morrerei de todos os modos. Carla proferiu um grito estridente fruto dos nervos. —Mas estaríamos ajudando aos russos a te matar! —Mesmo assim, quero que o façam —disse Erik com determinação. Baixou a vista ao oleado de quadros da mesa da cozinha, mas o que via estava a mil e quinhentos quilômetros de distância. Carla se sentia destroçada. Se ele o queria… —Mas por que? —Penso nos que baixam à fossa, agarrados da mão. —aferrou-se as mãos sobre a mesa com tanta força que se deixou um moratón—. Arriscarei a vida com tal de que ponhamos fim a todo isso. Quero arriscar a vida; assim me sentirei melhor comigo mesmo, e com meu país. Por favor, Carla, se puder, envia o plano de combate aos russos. Ela seguia vacilando. —Está seguro? —Rogo-lhe isso. —Então, farei-o. V Thomas Macke pediu a seus homens, Wagner, Richter e Schneider, que fizessem ornamento de suas melhores maneiras. —Werner Franck só é tenente, mas trabalha para o general Dorn. Quero que se leve a melhor impressão possível da equipe e do trabalho. Nada de insultos, nada de brincadeiras, nada de comer e nada de grosserias, a menos que seja imprescindível. Se pilharmos a um espião comunista, podem pô-lo verde. Mas se falharmos, não quero que tomem com outra pessoa só para lhes divertir. —Em condições normais, fazia a vista gorda ante uma coisa assim. Tudo valia com tal de que a gente seguisse temendo despertar a aversão dos nazistas. Mas igual resultava que Franck era um afetado. Werner chegou com pontualidade ao quartel geral da Gestapo no Prinz-Albrecht-Strasse montado em sua motocicleta. Todos subiram à caminhonete de vigilância com a antena giratória no teto. O interior estava abarrotado com as equipes de rádio. Richter se sentou ao volante e começaram a percorrer a cidade a última hora da tarde, o momento preferido pelos espiões para enviar mensagens ao inimigo. —Pergunto-me por que o fazem sempre a estas horas —comentou Werner. —Quase todos os espiões têm outro trabalho —explicou Macke—. Forma parte de sua identidade oculta. De dia vão ao escritório, ou à fábrica. —Claro —disse Werner—. Não me tinha ocorrido. Ao Macke preocupava não descobrir nada essa noite. Aterrava-lhe a possibilidade de que o culpassem dos reversos que o exército alemão estava sofrendo na União Soviética. Fazia tudo que podia, mas o Terceiro Reich não premiava os esforços. Algumas vezes a unidade não captava nenhum sinal. Outras captava dois ou três de uma vez, e Macke devia decidir a qual seguir a pista e a qual não. Estava seguro de que na cidade havia mais de uma rede de espiões, e provavelmente desconheciam mutuamente sua existência. Estava tratando de fazer um trabalho impossível com médios insuficientes. encontravam-se perto do Potsdamer Platz quando ouviram um sinal. Macke reconheceu o som característico. —Isso é um pianista —observou aliviado. Ao menos poderia demonstrar ao Werner que a equipe funcionava. Alguém estava transmitindo números de cinco cifras, um detrás do outro—. Os serviços segredos soviéticos utilizam um código segundo o qual dois números representam uma letra —explicou Macke ao Werner—. Assim, por exemplo, 11 poderia representar a A. O fato de que os agrupem de cinco em cinco é uma mera convenção. O operador de rádio, um engenheiro elétrico chamado Mann, leu umas coordenadas e Wagner riscou uma linha no plano com um lápis e uma regra. Richter acendeu o motor da caminhonete e voltaram a ficar em marcha. O pianista continuava transmitindo, dentro da caminhonete se ouviam fortes assobios. Macke odiava a aquele homem, fosse quem fosse. —Puto porco comunista —amaldiçoou—. Algum dia o teremos encerrado no porão, e me rogará que o mate para acabar com a dor. Werner empalideceu. Não estava acostumado ao trabalho policial, pensou Macke. Ao cabo de um momento, o jovem recuperou a compostura. —Pela forma em que descreve o código soviético, não parece muito difícil de decifrar —disse com ar pensativo. —Correto! —Macke estava encantado de que Werner compreendesse as coisas com tanta rapidez—. Mas o simplifiquei. A coisa é mais refinada. depois de encriptar a mensagem serial de números, o pianista escreve várias vezes uma palavra secreta de fundo; por exemplo, Kurfürstendamm, e também a encripta. Logo sustrae os últimos números dos primeiros e transmite o resultado. —Isso é virtualmente impossível de decifrar se não se conhece a palavra secreta! —Exato. Voltaram a deter-se perto do edifício incendiado do Reichstag e riscaram outra linha no plano. As duas se uniam no Friedrichshain, ao leste do centro da cidade. Macke ordenou ao condutor que torcesse para o nordeste, para aproximar-se da suposta localização e poder riscar uma terceira linha desde outro ângulo. —A experiência demonstra que é melhor fazer três medições —explicou Macke ao Werner—. Os dados que se obtêm com a equipe são aproximadas, e a medição extra reduz o engano. —Sempre o apanham? —perguntou Werner. —Nem muito menos. A maioria das vezes não o conseguimos, porque não vamos o bastante rápido. Pode que a meio caminho troque de freqüência, e então o perdemos. Em outras ocasiões deixa a transmissão pela metade e a reata desde outro ponto. Pode que tenha vigilantes que nos vejam chegar e o avisem para que fuja. —Há muitas travas. —Mas antes ou depois os apanhamos. Richter deteve a caminhonete e Mann fez a terceira medição. As três linhas riscadas a lápis no plano do Wagner formavam um pequeno triângulo perto do Ostbahnhof. O pianista se encontrava em algum lugar entre a linha ferroviária e o canal. Macke indicou a posição ao Richter e acrescentou: —Vê o mais rápido que possa. Macke notou que Werner estava suando. Talvez fora porque na caminhonete fazia muito calor. E o jovem tenente não estava acostumado à ação. Estava descobrindo como era a vida na Gestapo. Melhor que melhor, pensou Macke. Richter se dirigiu para o sul pelo Warschauer-Strasse, cruzou a via e torceu para um mísero polígono industrial ocupado por armazéns, revestir e pequenas fábricas. Viram um grupo de soldados com suas esteiras ao ombro em um acesso traseiro à estação; sem dúvida, foram embarcar se rumo à frente oriental. E pensar que nesse mesmo bairro havia seu compatriota fazendo todo o possível por trai-los!, pensou Macke, indignado. Wagner assinalou uma rua estreita que partia da estação. —encontra-se em um rádio de poucos centenares de metros, mas não sabemos em que direção —disse—. Se nos aproximamos mais com a caminhonete, verá-nos. —Muito bem, meninos, já sabem o que terá que fazer —disse Macke—. Warner e Richter, irão pela esquerda. Schneider e eu iremos pela direita. —Agarraram sendos maços de manga comprido—. Você venha comigo, Franck. Havia poucas pessoas pela rua: um homem com um casco de operário se dirigia com apresso para a estação, uma mulher de idade com roupas desgastadas provavelmente ia limpar despachos; passaram de comprimento a toda pressa, não queriam atrair a atenção da Gestapo. A equipe do Macke ia entrando em todos os edifícios; um dos agentes cobria a seu companheiro. A maioria dos locais estavam já fechados, pelo que tinham que aguardar a que o zelador fosse a abrir, mas se demorava mais de um minuto, jogavam a porta abaixo. Uma vez dentro, percorriam o edifício a toda pressa, inspecionando cada uma das salas. O pianista não estava na primeira maçã. O primeiro edifício da direita da seguinte maçã tinha um pôster esvaído que rezava: MODA EM PELE. tratava-se de uma fábrica de dois novelo que se estendia para a rua lateral. Parecia abandonada, mas a porta principal estava blindada e as janelas tinham barrotes: era normal que uma fábrica de casacos de pele dispusera de fortes medidas de segurança. Macke guiou ao Werner pela rua lateral, procurando a forma de entrar. O edifício contigüo estava em ruínas, destroçado pelas bombas. Tinham retirado os escombros da rua e um pôster pintado à mão anunciava: PERIGO – NÃO ENTRAR. Os restos do rótulo identificavam o local como um armazém de mobiliário. Passaram por cima de um montão de pedras e tablones quebrados; foram o mais rápido possível mas tinham que olhar onde pisavam. Um dos muros permanecia em pé e ocultava a parte traseira do edifício. Macke o rodeou e encontrou uma brecha que conectava com a fábrica contigüa. Tinha toda a impressão de que o pianista se encontrava ali. Entrou pela brecha, e Werner o seguiu. acharam-se em um despacho vazio. Havia um velho escritório de aço sem nenhuma cadeira e, em frente, um arquivo. O calendário pendurado na parede era de 1939, provavelmente o último ano em que os berlinenses tinham podido permitir-se adquirir frivolidades tais como um casaco de pele. Macke ouviu passos no piso superior. Tirou a pistola. Werner ia desarmado. Abriram a porta e se encontraram em um corredor. Macke reparou em que havia várias portas abertas, umas escadas que subiam e, baixo estas, uma porta que devia conduzir a um porão. Macke avançou com sigilo pelo corredor para as escadas, e então se precaveu de que Werner estava frente à porta do porão. —Pareceu-me ouvir um ruído abaixo —disse Werner. Acionou o cabo, mas a porta tinha outra fechadura. Então retrocedeu e levantou o pé direito. —Não… —disse Macke. —Sim. Ouço-os! —repôs Werner, e abriu a porta de uma patada. O estrondo ecoou em toda a deserta fábrica. Werner penetrou rapidamente pela porta e desapareceu. acendeu-se uma luz que revelou umas escadas de pedra. —Não se movam! —gritou Werner—. Estão detidos! Macke baixou as escadas atrás dele. Quando chegou ao porão, Werner se encontrava ao pé das escadas, com expressão desconcertada. Na sala não havia ninguém. Do teto penduravam umas barras que, provavelmente, tinham servido para sustentar os casacos de pele. Ao fundo, em uma esquina, havia um cilindro enorme de papel marrom, certamente para embalá-los. Mas não havia nenhuma rádio nem nenhum espião transmitindo mensagens a Moscou. —Puto imbecil! —disse Macke ao Werner. deu-se meia volta e se precipitou escada acima. Werner saiu correndo atrás dele. Cruzaram o corredor e subiram a seguinte planta. Vários bancos de trabalho se alinhavam sob uma coberta acristalada. Em outro tempo o lugar devia estar repleto de mulheres costurando a máquina. Agora não havia ninguém. Uma porta acristalada comunicava com a saída de incêndios, mas estava fechada com chave. Macke apareceu e não viu ninguém. Guardou a pistola. Respirou fundo e se apoiou em um dos bancos de trabalho. No estou acostumado a viu umas quantas bitucas, uma com restos de pintalabios. Pareciam recentes. —Estavam aqui —disse ao Werner, assinalando o estou acostumado a—. São dois. Ao gritar os pôs sobre aviso e se escaparam. —Que estúpido fui —se lamentou Werner—. O sinto, mas não estou acostumado a estas coisas. Macke se dirigiu à janela da esquina. Na rua viu um jovem casal que se afastava a passo ligeiro. O homem levava uma maleta de couro marrom. Enquanto observava-os, entraram na estação e desapareceram. —Mierda —amaldiçoou. —Não acredito que fossem espiões —observou Werner. Assinalou uma coisa do chão e Macke viu uma camisinha enrugada—. Está usado, embora vazio —disse Werner—. Me parece que os pilhamos em plena ação. —Oxalá tenha razão —respondeu Macke. VI O dia em que Joachim Koch tinha prometido lhes mostrar o plano de combate, Carla não foi trabalhar. Provavelmente, lhe teria dado tempo de cobrir o habitual turno de amanhã e retornar a casa a tempo; mas com a probabilidade não bastava. Sempre corria o risco de que um incêndio importante ou um acidente de tráfico a obrigasse a alargar o turno para encarregar-se da avalanche de feridos. Por isso ficou em casa todo o dia. Ao final, Maud não teve que lhe pedir ao Joachim que lhes mostrasse o documento. Ele se tinha desculpado dizendo que esse dia não poderia assistir à classe. Logo, incapaz de resistir a tentação de presumir, tinha-lhes explicado que devia cruzar a cidade para entregar uma cópia do plano de combate. —Pois pare-se a meio caminho para a classe —o incitou Maud, e ele disse que sim. A hora da comida foi muito tensa. Carla e Maud tomaram uma sopa ligeira feita com osso de presunto e ervilhas secadas. Carla não perguntou ao Maud o que tinha feito, ou prometido fazer, para persuadir ao Koch. Ao melhor havia dito que estava fazendo maravilhosos progressos com o piano mas que não podia permitir-se perder uma classe. Talvez o tivesse provocado lhe perguntando se tão pouca responsabilidade tinha como para que o controlassem continuamente; um comentário assim lhe haveria doído, porque sempre aparentava ser mais importante do que em realidade era, e possivelmente o teria empurrado a apresentar-se com o plano de combate, tão solo para lhe demonstrar que estava equivocada. Entretanto, o ardil que mais probabilidades tinha de ter triunfado era o que Carla não queria expor-se: o sexo. Sua mãe paquerava com o Koch de um modo escandaloso, e ele respondia com cega devoção. Carla suspeitava que essa era a irresistível tentação que tinha feito que Joachim não fizesse caso da voz que em sua consciência dizia: Não seja tão estúpido, Por Deus. Ou não. Talvez houvesse primado o sentido comum. Talvez essa tarde se apresentasse, mas não com uma cópia de papel carvão no esteira a não ser com uma brigada da Gestapo e algemas para todos. Carla colocou um carretel na câmara Minox. Logo guardou a câmara e os dois carretéis de recâmbio na gaveta superiora de um armário desço da cozinha, oculto por uns panos. O armário se encontrava junto à janela, onde havia muita luz. Decidiu que fotografaria o documento em cima do armário. Não sabia como o fariam para enviar as fotografias reveladas a Moscou, mas Frieda lhe tinha assegurado que chegariam, e Carla imaginou a algum viajante de comércio (talvez de produtos farmacêuticos, ou de Bíblias em alemão) com permissão para vender a mercadoria na Suíça entregando discretamente o carretel a alguém da embaixada soviética da Berna. A tarde era larga. Maud foi descansar a seu dormitório. Ada fez a penetrada. Carla se sentou no comilão, apenas em uso ultimamente, e tratou de ler, mas não podia concentrar-se. No periódico só publicavam mentiras. Devia estudar para os próximos exames de enfermaria, mas os términos médicos do livro de texto dançavam ante seus olhos. Estava lendo um velho exemplar de Sem novidade no fronte, uma novela alemã sobre a Primeira guerra mundial que tinha sido todo um êxito de vendas mas que agora estava proibida porque narrava com muita crueldade o sofrimento dos soldados; entretanto, encontrou-se com que tinha o livro nas mãos enquanto contemplava pela janela como o sol de junho açoitava a cidade poeirenta. Por fim chegou. Carla ouviu passos no caminho de entrada e se levantou imediatamente para aparecer. Não viu nenhuma brigada da Gestapo, solo ao Joachim Koch com o uniforme engomado e as botas lustrosas. Seu rosto de estrela de cinema revelava tanta espera como o de um menino que fosse a uma festa de aniversário. Levava o esteira ao ombro, como sempre. Teria completo sua promessa? Havia nessa bolsa uma cópia do plano da Operação Azul? Chamou o timbre. Carla e Maud tinham projetado todos os detalhes a partir desse momento. Segundo o plano, Carla não iria a abrir. Ao cabo de uns instantes, viu sua mãe cruzar o saguão com um salto de cama de seda púrpura e umas sapatilhas de salto alto. Parece uma prostituta, pensou Carla com vergonha e desconforto. Ouviu-a abrir a porta de entrada e logo fechá-la. Procedente do saguão, ouviu o frufrú da seda e uns sussurros carinhosos, prova de que lhe estava dando um abraço. Logo o objeto púrpura e o uniforme caqui passaram por diante da porta do comilão e desapareceram para o piso de acima. A prioridade do Maud era assegurar-se de que levava em cima o documento. Tinha que contemplá-lo, fazer algum comentário admirativo e voltar a guardá-lo. Logo levaria ao Joachim junto ao piano, e procuraria alguma desculpa (Carla preferia não pensar qual) para cruzar com ele a dobro porta que separava o salão do estudo contigüo, uma habitação mais pequena e mais íntima com cortinas de veludo vermelho e um sofá amplo e fofo. Quando estivessem ali, Maud daria o sinal. Como resultava difícil prever de antemão a seqüência exata de seus movimentos, tinham pensado em vários sinais possíveis, com o mesmo significado. A mais simples consistia em fechar a porta o bastante forte para que se ouvisse por toda a casa. Outra era pulsar o timbre situado junto à chaminé, que soava na cozinha; um dos mecanismos em desuso para chamar o serviço. Se não, tinha decidido que qualquer outro ruído serviria: no desespero, jogaria no chão o busto de mármore do Goethe, ou romperia um vaso por acidente. Carla saiu do comilão e permaneceu em pé no saguão, de cara às escadas. Não se ouvia nenhum ruído. apareceu à cozinha. Ada estava esfregando a panela de ferro onde tinha preparado a sopa, esfregando-a com uma energia que, sem dúvida, era produto do nervosismo. Carla lhe dirigiu o que pretendia que fora um sorriso alentador. Carla e Maud teriam preferido manter a Ada à margem de todo aquele assunto secreto, não porque não confiassem nela (ao contrário, sua aversão para os nazistas era extrema) mas sim porque o fato a se soubesse convertia em cúmplice de traição, o qual podia desembocar em uma condenação de pena capital. Entretanto, viviam muito perto para ter secretos; ou seja que Ada sabia tudo. Carla ouviu o Maud soltar uma risita cantarina. Conhecia esse som, tinha um deixe artificial e indicava que estava levando seu poder de sedução ao limite. Tinha Joachim o documento, ou não? Ao cabo de uns instantes, Carla ouviu o piano. Não cabia dúvida de que quem tocava era Joachim. A melodia correspondia a uma simples toada infantil sobre um gato na neve: A.B.C., Die Katze lief im Schnee. O pai da Carla a tinha cantada centenas de vezes. Ao pensá-lo, lhe fez um nó na garganta. Como se atreviam os nazistas a tocar essas canções depois de ter deixado órfãos a tantos meninos? O som cessou de repente a meia canção. Algo tinha ocorrido. Carla se esforçou por ouvir algo: vozes, passos, o que fora; mas não ouviu nada. Transcorreu um instante, e outro. Algo tinha saído mau, mas o que? Olhou a Ada na cozinha, e esta deixou de esfregar a panela e estendeu as mãos em um gesto que significava: Não tenho nem idéia. Carla tinha que averiguá-lo. dirigiu-se em silencio ao piso de acima, pisando com cuidado o tapete puído. deteve-se frente ao salão. Seguia sem ouvir nada: nem o piano, nem movimentos, nem vozes. Abriu a porta com o maior sigilo. apareceu. Não via ninguém. Entrou e olhou ao redor. O salão estava deserto. Não havia rastro do esteira do Joachim. voltou-se para a dobro porta que dava ao estudo. Uma das duas folhas estava entreabierta. Carla cruzou a habitação nas pontas dos pés. Ali não havia tapete, solo as pranchas de madeira polida, e seus passos não resultavam completamente silenciosos; mas tinha que correr esse risco. Ao aproximar-se, ouviu sussurros. Chegou à porta. pegou-se à parede e se arriscou a jogar uma olhada dentro. Estavam em pé, abraçados, beijando-se. Joachim se encontrava de costas à porta e, portanto, a Carla; sem dúvida, Maud se tinha cuidado de situá-lo nessa posição. Enquanto os observava, Maud interrompeu o beijo, olhou por cima do ombro dele e cruzou um olhar com a Carla. Apartou a mão do pescoço do Joachim e lhe fez um sinal premente. Carla viu o esteira em cima de uma cadeira. Compreendeu imediatamente o que tinha ocorrido. Quando Maud persuadiu ao Joachim para entrar no estudo, ele não tinha deixado a bolsa no salão, tal como esperavam, mas sim, presa do nervosismo, tinha-a levado consigo. Agora Carla tinha que recuperá-la. Entrou na habitação. O pulso lhe palpitava com força nas têmporas. —OH, sim, carinho, segue assim —murmurou Maud. —Quero-te, meu amor —gemeu Joachim. Carla avançou dois passos, agarrou o esteira, deu-se meia volta e saiu em silêncio da habitação. Não pesava nada. Cruzou rapidamente o salão e correu escada abaixo, com a respiração agitada. Uma vez na cozinha, depositou o esteira sobre a mesa e desatou os cordões. Dentro havia um exemplar do dia do periódico berlinense Der Angriff, um pacote de cigarros Kamel sem estrear e uma simples pasta de cartão de cor bege. Com as mãos trementes, tirou a pasta da bolsa e a abriu. Dentro havia uma cópia de papel carvão de um documento. A primeira folha tinha um título: DIRETIVA N.º 41 Na última página havia uma linha de pontos para incluir a assinatura. Não aparecia nenhuma rubrica, sem dúvida porque se tratava de uma cópia, mas o nome datilografado junto à linha de pontos era Adolf Hitler. Entre ambas as coisas se detalhava o plano da Operação Azul. Seu coração se encheu de júbilo, misturado com a tensão que ainda sentia e o tremendo temor a que a descobrissem. Colocou o documento em cima do armário baixo próximo à janela da cozinha. Rapidamente, abriu a gaveta e tirou a câmara Minox e os dois carretéis de recâmbio. Situou bem o documento e começou a fotografá-lo página por página. Não lhe levou muito tempo, solo tinha dez páginas. Nem sequer lhe fez falta trocar o carretel. Tinha-o feito; tinha roubado o plano de combate. Vai por ti, papai. Voltou a guardar a câmara na gaveta, fechou-o, guardou o documento na pasta de cartão, colocou a pasta no esteira e fechou este atirando dos cordões. Com todo o sigilo de que foi capaz, retornou com o esteira à planta superior. Quando entrou no salão ouviu a voz de sua mãe. Maud estava falando com claridade e grande ênfase, expressamente para que ela a ouvisse, e Carla captou a advertência imediatamente. —Por favor, não se preocupe —dizia—. É porque estava muito excitado. Os dois estávamos muito excitados. Joachim respondeu com um fio de voz, em tom incômodo. —Sinto-me como um parvo —disse—. Não tem feito mais que me tocar, e se acabou. Carla imaginou o que tinha acontecido. Não tinha experiência, mas as moças contavam coisas, e as conversações das enfermeiras continham todo tipo de detalhes. Joachim devia ter tido uma ejaculação precoce. Frieda lhe tinha explicado que as primeiras vezes ao Heinrich tinha passado o mesmo, e que morria da vergonha, embora logo o superou. Era devido ao nervosismo, disse-lhe ela. O fato de que as carícias do Maud e Joachim tivessem terminado tão logo, criava uma dificuldade acrescentada a Carla. Joachim se daria mais conta de tudo, já não estaria cego e surdo ao que acontecia a seu redor. Contudo, Maud devia estar fazendo todo o possível para mantê-lo de costas à porta. Se Carla conseguia penetrar um momento na habitação e voltar a deixar o esteira na cadeira sem que Joachim a visse, talvez o obtivessem. Carla cruzou o salão e se deteve frente à porta aberta. O coração lhe pulsava desbocado. Maud falava em tom tranqüilizador: —Ocorre muitas vezes; o corpo não pode esperar. Não passa nada. Carla apareceu a cabeça pela porta. Os dois seguiam em pé no mesmo sítio, ainda muito perto um do outro. Maud olhou por detrás do Joachim e viu a Carla. Então posou a mão na bochecha dele para evitar que a visse. —me beije outra vez, e me diga que não me odeia por esse pequeno acidente —disse. Carla pôs um pé na habitação. —Necessito um cigarro —disse Joachim. Carla viu que se dava a volta e retrocedeu. Aguardou junto à porta. Levava tabaco no bolso ou iria a pelo pacote que guardava no esteira? Obteve a resposta ao cabo de um segundo. —Onde está minha esteira? —perguntou. A Carla lhe parou o coração. —Deixaste-o no salão —disse Maud com voz clara. —Não, não o deixei no salão. Carla cruzou a estadia, deixou a bolsa em uma cadeira e saiu às escadas. deteve-se no patamar para escutar. Ouviu-os transladar do estudo ao salão. —Aí está, já lhe dizia isso eu. —Eu não o deixei aí —repôs ele com obstinação—. Me tinha proposto não perder o de vista. Mas, sim que o tenho feito… quando te beijei. —Carinho, está aborrecido pelo que nos ocorreu. Tenta te relaxar. —Alguém deve ter entrado no estudo enquanto estava distraído… —Que tolice. —Não me parece isso. —Vamos ao piano, sentaremo-nos juntos, como você gosta de —disse, mas começava a notar-se que estava se desesperada. —Quem mais há nesta casa? Carla imaginou o que ocorreria a seguir e baixou correndo à cozinha. Ada a olhou com expressão alarmada, mas não tinha tempo de explicar-lhe furia sería terrible. Ouviu as pisadas das botas do Joachim nas escadas. Ao cabo de um instante, apareceu na porta da cozinha. Levava o esteira na mão e tinha o semblante furioso. Olhou a Carla e a Ada. —Uma de vocês registrou minha bolsa! —bramou. Carla falou com tanta serenidade como foi capaz. —Não sei o que lhe faz pensar isso, Joachim —respondeu. Maud apareceu por detrás do Joachim e entrou na cozinha. —Prepara café, por favor, Ada —disse em tom alegre—. Joachim, sente-se, por favor. Não lhe fez caso e registrou a cozinha. Posou o olhar na superfície do armário baixo próximo à janela. Então Carla reparou horrorizada em que, embora tinha guardado a câmara, tinha deixado à vista os dois carretéis de recâmbio. —Isso são cintas de oito milímetros, não? —adivinhou Joachim—. Têm uma minicámara? De repente, não parecia tão ingênuo. —Para isso servem as cintas? —disse Maud—. Me estava perguntando isso. As deixou outro aluno, agente da Gestapo, por certo. Era uma improvisação brilhante, mas Joachim não o tragou. —E também se deixou esta câmara, não? —disse. Tinha aberto a gaveta. Ali estava a pequena e pulcra câmara de aço inoxidável, em cima de um pano branco, mais evidente que um atoleiro de sangue. Joachim parecia consternado. Possivelmente não acreditasse a sério que estava sendo vítima de uma traição; talvez solo se estivesse desafogando pelo percalço sexual e agora se visse enfrentado pela primeira vez à realidade. Fora qual fosse o motivo, permaneceu aturdido uns momentos. Sem soltar o atirador da gaveta, olhava a câmara como se estivesse hipnotizado. Nesse breve instante, Carla se deu conta de que acabava de fazer-se pedacinhos o sonho romântico de um jovem, e de que seu fúria seria terrível. Ao final levantou a cabeça. Olhou às três mulheres a seu redor e posou os olhos no Maud. —foste você —disse—. Me tendeste uma armadilha. Mas receberá seu castigo. —Agarrou a câmara e os carretéis e os guardou no bolso—. Está detida, frau Von Ulrich. —Deu um passo adiante e a agarrou por braço—. vou levá-la ao quartel geral da Gestapo. Maud se soltou de um puxão e retrocedeu um passo. Então Joachim estirou o braço para trás e a golpeou com toda sua alma. Era alto, forte e jovem. O murro lhe alcançou a cara e a atirou ao chão. Joachim se situou em cima dela. —Tomaste-me por um estúpido! —uivou—. Me mentiste, e eu te acreditei! —Estava histérico—. A Gestapo torturará aos dois, e os dois nos merecemos isso! —Começou a lhe dar patadas no chão. Ela tratou de apartar-se rodando, mas topou com a cozinha. Joachim levantou o pé direito e lhe deu uma patada nas costelas, a coxa, o ventre. Ada correu para ele e lhe cravou as unhas na cara, mas ele a separou de um tapa. Então golpeou ao Maud na cabeça. Carla ficou em movimento. Sabia que a gente se recuperava de todo tipo de traumatismos no corpo, mas os golpes na cabeça freqüentemente causavam danos irreparáveis. Contudo, apenas pensou-o de forma consciente, atuou sem havê-lo premeditado. Agarrou da mesa da cozinha a panela de ferro que Ada tinha estado esfregando com tanto brio. A sujeitou pelo comprido surripio, levantou-a no ar e logo a estampou com todas suas forças na cabeça do Joachim. Ele se cambaleou, aturdido. Ela voltou a golpeá-lo, mais forte. O menino se desabou, inconsciente. Maud se incorporou antes de que caísse e se sentou contra a parede, levando-as mãos ao peito. Carla voltou a levantar a panela. —Não! Para! —gritou Maud. Carla voltou a deixar a panela sobre a mesa da cozinha. Joachim fez um movimento, tratava de levantar-se. Então Ada agarrou a panela e o golpeou com fúria. Carla tratou de lhe sujeitar o braço, mas a mulher estava cega de cólera. Esmurrou a cabeça do homem uma e outra vez, até ficar esgotada, e logo soltou a panela e esta caiu ao chão com um ruído metálico. Maud se esforçou por ficar em pé e ficou olhando ao Joachim. Tinha os olhos muito abertos e o nariz torcido. O crânio parecia deformado e lhe saía sangue de um ouvido. Parecia que não respirava. Carla se ajoelhou a seu lado, pô-lhe os dedos no pescoço e procurou o pulso. Não o encontrou. —Está morto —anunciou—. O matamos. meu deus. —Pobre moço estúpido —disse Maud. E se pôs-se a chorar. —E agora o que fazemos? —perguntou Ada, ofegando pelo esforço. Carla reparou em que tinham que desfazer do cadáver. Maud tratou de ficar em pé, mas lhe custava. Tinha torcida a metade esquerda da cara. —Santo Deus, como dói —se queixou sujeitando o flanco. Carla supôs que tinha alguma costela rota. —Podemos escondê-lo no desvão —disse Ada olhando ao Joachim. —Isso, até que os vizinhos comecem a queixar do aroma —repôs Carla. —Pois então o enterraremos no jardim traseiro. —E o que acreditará a gente quando virem a três mulheres cavando um fossa de um metro oitenta no pátio de uma casa do Berlim? Que estamos procurando ouro? —Podemos cavar de noite. —Levantaremos menos suspeitas? Ada se arranhou a cabeça. —Temos que tirar daqui o cadáver e jogá-lo em algum sítio —resolveu Carla—. Em um parque, ou um canal. —E como o levaremos? —perguntou Ada. —Não pesa muito —observou Maud com tristeza—. Tão magro e tão forte. —O problema não é o peso —atravessou Carla—. Podemos levá-lo entre a Ada e eu. Mas temos que fazê-lo de modo que a gente não suspeite. —Oxalá tivéssemos carro —disse Maud. Carla sacudiu a cabeça. —Ninguém pode comprar gasolina. Guardaram silêncio. Estava começando a anoitecer. Ada agarrou um pano e envolveu com ele a cabeça do Joachim para que o sangue não manchasse o chão. Maud chorava em silêncio, as lágrimas rodavam por seu rosto mudado pela angústia. A Carla teria gostado de poder compadecer do jovem, mas antes tinha que resolver o problema. —Podemos colocá-lo em uma caixa —propôs. —As únicas caixas dessa medida são os ataúdes. —E se o metemos em um móvel? Um aparador? —Pesa muito. —Ada estava meditando—. Mas o armário de meu dormitório é bastante ligeiro. Carla assentiu. dava-se por sentado que uma criada não necessitava muita roupa e, portanto, tampouco móveis de mogno, pensou envergonhada. Por isso na habitação de Ada só havia um roupeiro estreito de madeira de pinheiro. —vamos baixar o —disse. Antes Ada dormia no porão, mas agora estava habilitado como refúgio anti-aéreo e tinha a habitação acima. Carla a acompanhou. Ada abriu o armário e tirou tudo os objetos. Não continha muita roupa: dois uniformize, uns quantos vestidos e um casaco de inverno, todo velho. Depositou-o com cuidado em cima da cama individual. Carla inclinou o armário e o carregou em cima enquanto que Ada o levantou pelo outro extremo. Não pesava muito mas era pomposo e demoraram um momento em fazê-lo passar pela porta e baixá-lo pelas escadas. Ao final o deixaram convexo no saguão. Carla abriu a porta. Parecia um ataúde com a tampa de dobradiças. Carla retornou à cozinha e se inclinou sobre o cadáver. Tirou a câmara e os carretéis de fotos do bolso do Joachim e voltou a guardá-los na gaveta. Logo o levantou pelos braços enquanto Ada fazia o próprio pelas pernas. Levaram-no a saguão e o meteram no roupeiro. Ada lhe colocou bem o pano de a cabeça, embora tinha deixado de sangrar. Deveriam lhe tirar o uniforme?, perguntou-se Carla. Isso faria que o cadáver resultasse mais difícil de identificar; mas teriam que ocultar duas coisas em vez de uma. Decidiu que não era necessário. Abriu o esteira e o jogou no armário, junto com o cadáver. Fechou a porta e deu a volta à chave para assegurar-se de que não se abriria de forma acidental. guardou-se a chave no bolso do vestido. Entrou no comilão e apareceu à janela. —Está obscurecendo —disse—. Menos mal. —O que pensará a gente? —perguntou Maud. —Que nos estamos desfazendo de um móvel. Que queremos vendê-lo, talvez, para poder comprar comida. —É normal que duas mulheres conduzam um armário? —Muitas mulheres têm que fazer coisas assim continuamente, agora que tantos homens estão no exército ou morreram. Já não se alugam caminhonetes para transladar móveis; não há gasolina. —E se lhes perguntam por que o fazem de noite? Carla deu rédea solta a sua frustração. —Não sei, mamãe. Se me perguntarem isso, já me inventarei algo. A questão é que o cadáver não pode ficar aqui. —Assim que o encontrem saberão que o assassinaram. Examinarão as feridas. A Carla também preocupava isso. —Não podemos fazer nada mais. —Certamente quererão investigar aonde foi hoje. —Disse que não pensava lhe contar a ninguém o das classes de piano, queria assombrar a seus amigos com sua arte. Se tivermos sorte, ninguém saberá que esteve aqui. —E se não a tivermos, matarão às três, pensou Carla. —Qual acreditarão que é o móvel do assassinato? —Encontrarão restos de sêmen em sua roupa interior? Maud voltou a cabeça, envergonhada. —Sim. —Então pensarão que manteve relações sexuais com alguém, talvez com outro homem, e que acabaram brigando. —Oxalá tenha razão. Carla não se sentia nada segura, mas não lhe ocorria que outra coisa podiam fazer. —Jogaremo-lo no canal —resolveu. O cadáver flutuaria, e antes ou depois o encontrariam; e se abriria uma investigação por assassinato. Solo podiam esperar que não descobrissem nada que o relacionasse com elas. Carla abriu a porta principal. situou-se diante do roupeiro, à esquerda, e Ada se colocou detrás, à direita. As duas se agacharam de uma vez. —Inclina-o e ponha as mãos debaixo —disse Ada, que sem dúvida tinha mais experiência em levar peso que seus patronas. Carla fez o que lhe aconselhava. —Agora levanta-o um pouco. Carla seguiu as instruções. Ada também colocou as mãos debaixo de seu extremo. —te agache dobrando os joelhos, te assegure de que controla o peso e logo te levante. Elevaram o armário até os quadris. Então Ada se agachou e o carregou a ombros. Carla fez o próprio. As duas se ergueram. O peso fez que Carla se cambaleasse quando baixaram os degraus da entrada, mas podia suportá-lo. Quando chegaram à rua, torceu para o canal, que se encontrava a poucas maçãs de distância. feito-se de noite e não havia lua, tão solo umas quantas estrelas que projetavam uma luz tênue. Com a cidade às escuras, tinham muitos possibilidades de que ninguém as visse arrojando o armário à água. O mau era que Carla não via muito bem por onde ia, tinha medo de tropeçar e cair, e de que então o roupeiro se fizesse pedacinhos e deixasse ao descoberto à vítima. Passou uma ambulância com os faróis talheres por ralos. Certamente ia ao lugar de um acidente de tráfico. Como na cidade não havia luz, ocorriam muitos acidentes. O qual significava que devia haver carros de polícia nas imediações. Carla recordou um assassinato espetacular que teve lugar ao pouco tempo de decretá-la alerta anti-aérea: um homem tinha assassinado a sua esposa, tinha embutido o cadáver em uma caixa de cartão e tinha cruzado de noite a cidade com ele em bicicleta para jogá-lo no rio Havel. Recordaria o caso a polícia e suspeitaria de qualquer que transportasse um vulto grande? Enquanto pensava nisso, passou um carro de polícia. Um agente se fixou nas duas mulheres que conduziam um armário, mas o carro não se deteve. Aquilo cada vez pesava mais. A noite era cálida, e logo Carla começou a suar. A madeira lhe cravava no ombro. Pensou que oxalá lhe tivesse ocorrido ficar um lenço dobrado por dentro da blusa. Giraram em uma esquina e se toparam com o acidente. Um caminhão articulado de quatro ex que transportava madeiros tinha chocado de frente com um turismo da marca Mercedes e o tinha esmagado. O carro de polícia e a ambulância iluminavam o acidente com os faróis. Ao redor do carro havia uns quantos homens, agrupados sob um débil foco de luz. A colisão devia ter ocorrido fazia poucos minutos, pois os ocupantes seguiam dentro do veículo. Um auxiliar da ambulância estava inclinado ante a porta traseira, provavelmente examinando aos feridos para determinar se podiam movê-los. O terror se apoderou da Carla. O sentimento de culpa a paralisava e freou em seco, mas ninguém reparou na Ada e ela conduzindo o roupeiro, pelo que ao cabo de uns instantes se deu conta de que o que tinham que fazer era retroceder com sigilo, voltar sobre seus passos e tomar outro caminho até o canal. dispôs-se a dar-se meia volta; mas justo nesse momento um atento polícia as enfocou com a lanterna. Carla esteve tentada de soltar o roupeiro e pôr-se a correr, mas se reprimiu. —O que estão fazendo? —perguntou o policial. —Estamos transladando um armário, agente —respondeu. Recuperou o aprumo e fingiu sentir uma enorme curiosidade para ocultar a culpabilidade e o nervosismo—. O que ocorreu? —perguntou, e, se por acaso não era suficiente, acrescentou—: Há algum morto? Sabia que quão profissionais assistiam às vítimas detestavam essa forma de alimentar-se das desgraças alheias; não em vão era um deles. Tal como esperava, o policial reagiu tirando-lhe de cima. —Não é seu assunto —respondeu—. Partam daqui. —deu-se meia volta e voltou a enfocar o carro acidentado. A esse lado da rua não havia ninguém mais. Carla tomou uma decisão repentina e seguiu caminhando em linha reta. Ada e ela se aproximaram do lugar do acidente com o armário que continha o cadáver. Manteve a vista fixa no pessoal de emergência reunido sob o tênue foco de luz. Estavam completamente enfrascados em sua tarefa e nenhum levantou a cabeça quando Carla passou por seu lado. Parecia que não foram conseguir deixar atrás o caminhão de quatro ex. Então, quando quase tinha alcançado o extremo posterior, teve um golpe de inspiração. deteve-se. —O que acontece? —sussurrou Ada. —Vêem por aqui. —Carla se situou no meio-fio, atrás do caminhão—. Baixa o armário —murmurou—. Não faça ruído. Depositaram o roupeiro no chão com cuidado. —Pensa deixá-lo aqui? —perguntou Ada em voz baixa. Carla se tirou a chave do bolso e a colocou na fechadura do roupeiro. Levantou a cabeça; pelo que via, os homens seguiam apinhados ao outro lado do carro, a seis metros de distância. Abriu a porta do roupeiro. Joachim Koch apareceu com o olhar vazio e a cabeça envolta no pano ensangüentado. —Inclina-o para que caia ao estou acostumado a —ordenou Carla—. Ao lado das rodas. Entre as duas, derrubaram o armário, e o cadáver caiu e ficou convexo junto às rodas do caminhão. Carla lhe retirou o pano ensangüentado e o arrojou dentro do armário. Logo deixou o esteira ao lado do cadáver, não via o momento de livrar-se dele. Fechou com chave a porta do roupeiro. Logo voltaram a levantá-lo e seguiram seu caminho. Agora pesava menos. Quando se encontravam a uns cinqüenta metros, ocultas pela escuridão, Carla ouviu uma voz distante. —meu deus, há outra vítima. Parece que atropelaram a um pedestre! Carla e Ada dobraram uma esquina, e o alívio invadiu a Carla como um maremoto. livrou-se do cadáver. Se conseguia retornar a casa sem chamar mais a atenção, e sem que ninguém olhasse dentro do roupeiro e descobrisse o pano ensangüentado, estaria a salvo. Não abririam nenhuma investigação por assassinato. Agora Joachim resultava ser um pedestre morto em um acidente de tráfico provocado pela escuridão. Se as rodas do caminhão o tivessem miserável pelo pavimento pavimentado, ferida-las sofridas teriam sido similares às causadas pela dura base da panela da Ada. Claro que um médico forense com experiência notaria a diferença; mas ninguém consideraria necessária uma autópsia. Carla pensou em desfazer do roupeiro, mas decidiu que não o faria. Embora tirassem o pano, seguia havendo manchas de sangue, e só por isso poderia alertar à polícia para que abrisse uma investigação. Tinham que levar-lhe e limpá-lo. Chegaram a casa sem tropeçar-se com ninguém mais. Deixaram o roupeiro no chão do saguão. Logo Ada tirou o pano, levou-o a pia da cozinha e abriu a água fria. A Carla a invadiu uma mescla de euforia e tristeza. Tinha roubado o plano de combate dos nazistas, mas tinha matado a um jovem que era mais insensato que malvado. Teria que refletir durante muito tempo, anos talvez, antes de saber como se sentia por isso em realidade. De momento, estava muito cansada. Contou a sua mãe o que tinham feito. Maud tinha a bochecha esquerda tão torcida que logo que podia abrir o olho, e se pressionava o flanco para aliviar a dor. Tinha um aspecto horrível. —É muito valente, mamãe —disse Carla—. Te admiro muitíssimo pelo que tem feito. —Pois eu não o encontro nada admirável —repôs ela—. Estou muito envergonhada; desprezo-me mesma. —Porque não o amava? —perguntou Carla. —Não —respondeu Maud—. Precisamente porque sim que o amava. 14 1942 (III) I Greg Peshkov se graduou no Harvard com a maior distinção, summa cum sentencie. Poderia haver-se decidido sem nenhuma dificuldade por seguir com um doutorado em Física, sua especialização, e assim ter evitado o serviço militar. Entretanto, não queria ser científico. Tinha a ambição de exercer outra classe de poder e, quando a guerra terminasse, um histórico militar seria uma enorme vantagem para catapultar a um jovem político, assim que se alistou no exército. Por outro lado, tampouco queria ter que combater. Tinha seguido a guerra européia com crescente interesse e ao mesmo tempo tinha pressionado a todos seus contatos de Washington —que eram muitíssimos— para que lhe conseguissem um posto na sede do Departamento de Guerra. A ofensiva alemã desse verão tinha dado começo em 28 de junho e, posto que tinham encontrado uma oposição relativamente débil, em seguida tinham avançado para o este até chegar à cidade do Stalingrado, a antiga Tsaritsin, onde a feroz resistência russa lhes parou os pés. Nesses momentos, os alemães estavam entupidos, suas linhas de abastecimento já não davam mais de si e cada vez parecia mais possível que o Exército Vermelho lhes tivesse tendido uma armadilha. Não fazia muito que Greg estava realizando a instrução básica quando foi convocado ao despacho do coronel. —O Corpo de Engenheiros do Exército necessita a um jovem oficial brilhante em Washington —lhe informou este—. Embora você tem feito as práticas em Washington, não teria sido minha primeira eleição… te Olhe, nem sequer é capaz de levar limpo o maldito uniforme. Entretanto, é um posto que requer conhecimentos de física, e as opções nesse campo são bastante limitadas. —Obrigado, senhor —disse Greg. —Prova a lhe dirigir esse sarcasmo a seu novo chefe e o lamentará. vais ser assistente de um tal coronel Groves. Eu estive com ele no West Point e é o filho de cadela maior que jamais conheci, dentro e fora do exército. Boa sorte. Greg chamou o Mike Penfold, do escritório de imprensa do Departamento de Estado, e descobriu que Leslie Groves tinha sido até não fazia muito chefe de construções de todo o exército dos Estados Unidos, e responsável também do novo quartel geral do exército em Washington, esse gigantesco edifício de cinco lados ao que já começavam a chamar Pentágono. Entretanto, fazia pouco o tinham atribuído a um novo projeto do que ninguém sabia muito. Alguns comentavam que tinha ofendido a seus superiores tão freqüentemente que ao final o tinham degradado de fato; outros diziam que seu novo papel era ainda mais importante, mas alto secreto. Todos coincidiam em que era egoísta, arrogante e desumano. —Mas é que todo mundo o detesta? —perguntou Greg. —O que vai —respondeu Mike—. Solo quem o tem conhecido. O tenente Greg Peshkov sentia certo temor quando chegou ao despacho do Groves, no novo e imponente edifício do Departamento de Guerra, um palácio art déco cor torrada claro que havia na rua Vinte e um com a Virginia Avenue. O primeiro que lhe disseram foi que formaria parte de um grupo chamado Distrito de Engenharia Manhattan. Esse nome tão deliberadamente ambíguo camuflava a uma equipe que tentava inventar uma nova classe de bomba que utilizava o urânio como explosivo. Greg estava intrigado. Sabia que a energia que se acumulava no isótopo mais ligeiro do urânio, o Ou-235, era incalculável, e tinha lido vários artigos sobre o tema em publicações científicas. Entretanto, o fluxo de notícias sobre a investigação se secou fazia um par de anos, e ao fim Greg sabia por que. Também se inteirou de que o presidente Roosevelt acreditava que o projeto avançava muito devagar, de modo que tinham designado ao Groves para que tirasse o látego. Greg chegou seis dias depois da nomeação do Groves. Seu primeiro trabalho para o coronel foi ajudá-lo a colocá-las estrelas no pescoço da camisa caqui: acabavam de ascendê-lo a brigadeiro. —É mais que nada para impressionar a todos esses cientistas civis com os que temos que trabalhar —grunhiu Groves—. Tenho uma reunião no despacho do secretário de Guerra dentro de dez minutos. Será melhor que venha comigo, servirá-te para te pôr ao dia. Groves era um homem enorme. Media mais de metro oitenta e devia pesar cento e dez quilogramas, pode que cento e trinta. Levava as calças do uniforme muito subidos e a barriga lhe avultava depois do cinturão militar. O cabelo o tinha de cor avelã, e poderia ter sido encaracolado se o tivesse deixado crescer o suficiente. Sua frente era estreita, e as abundantes bochechas transbordavam sob a linha de sua mandíbula. Levava um pequeno bigode que era virtualmente invisível. Era um homem pouco atrativo em todos os sentidos, e ao Greg não gostava de muito trabalhar para ele. Groves e seu séquito, incluído Greg, saíram do edifício e caminharam pela Virginia Avenue até a Esplanada Nacional. —Quando me deram este trabalho —comentou Groves ao Greg pelo caminho—, disseram-me que com ele poderíamos ganhar a guerra. Não sei se será verdade, mas tenho pensado atuar como se assim fora. Será melhor que você fazer o mesmo. —Sim, senhor —repôs Greg. O secretário de Guerra ainda não se transladou ao Pentágono, que ainda estava sem acabar, e o quartel geral do Departamento de Guerra seguia ocupando o velho Edifício de Munições, uma estrutura temporária alargada, baixa, antiquada, que se elevava no Constitution Avenue. O secretário de Guerra, Henry Stimson, era republicano e o presidente o tinha renomado para impedir que sua partida boicotasse a campanha de guerra lhes pondo pega no Congresso. A seus setenta e cinco anos de idade, Stimson era um velho homem de Estado, um pulcro ancião com bigode branco mas em cujos olhos cinzas seguia brilhando a luz da inteligência. A reunião foi todo um acontecimento, a sala estava cheia de peixes gordos, entre eles o chefe do Estado Major do exército, George Marshall. Greg estava muito nervoso e se fixou, não sem admiração, no surpreendentemente tranqüilo que parecia Groves para ser um homem que até no dia anterior não tinha passado de coronel. Groves começou por esboçar a forma em que pretendia impor a ordem entre as centenas de cientistas civis e as dezenas de laboratórios de física que participariam no projeto Manhattan. Em nenhum momento tentou mostrar-se diferente com aqueles homens de alta fila que bem podiam considerar-se quem estava ao mando. Informou de seus planos sem incomodar-se em utilizar expressões conciliadoras como com sua permissão ou se lhes parecer bem. Greg se perguntou se aquele homem estava tentando que o despedissem. A reunião lhe supôs tal inundação de informação nova que quis tomar apontamentos, mas ninguém mais o fazia, assim pensou que não estaria bem visto. —Tenho entendido que para o projeto são fundamentais as estoque de urânio —disse um membro do grupo quando Groves teve terminado—. Temos suficientes? —Há mil duzentas e cinqüenta toneladas de pecblenda, o mineral que contém óxido de urânio, em um armazém do Staten Island. —Então será melhor que adquiramos parte dela —disse o que tinha feito a pergunta. —Comprei-a toda na sexta-feira, senhor. —na sexta-feira? O dia depois de sua nomeação? —Correto. O secretário de Guerra reprimiu um sorriso. A surpresa do Greg ante a arrogância do Groves começou a converter-se em admiração por seu atrevimento. —O que há do nível de prioridade do projeto? —perguntou um homem vestido com uniforme de almirante—. Tem que falar com a Junta de Produção de Guerra para que lhe limpem o caminho. —Reuni-me com o Donald Nelson na sábado, senhor —informou Groves. Nelson era o chefe civil da junta—. Solicitei que aumentassem nosso nível de prioridade. —Qual foi a resposta? —Que não. —Isso será um problema. —Já não é. Disse-lhe que me veria obrigado a lhe recomendar ao presidente que se abandonasse o projeto Manhattan posto que a Junta de Produção de Guerra não estava disposta a colaborar. Assim que nos concedeu a triplo A. —Bem —disse o secretário de Guerra. Greg voltou a ficar impressionado. Groves era uma autêntica tocha. —Bom, pois trabalhará você sob a supervisão de um comitê que me informará —anunciou Stimson—. Se proposto nove membros… —Diabos, nem pensar! —exclamou Groves. —Como há dito? —perguntou o secretário de Guerra. Está claro que esta vez Groves se passou da raia, pensou Greg. —Não posso ter a um comitê de nove pessoas pendente de mim, senhor secretário. Terei-os todo o dia em cima. Stimson sorriu. Era um cão velho e, pelo visto, sabia que não devia ofender-se porque lhe falassem assim. —Quantas pessoas sugere você, general? —perguntou com gentileza. Greg viu que em realidade Groves queria dizer que nenhuma, mas sua resposta foi: —Três seriam perfeitas. —De acordo —acessou o secretário de Guerra, para assombro do Greg—. Algo mais? —vamos necessitar um recinto grande, de uns vinte e cinco mil hectares, para a planta de enriquecimento de urânio e as instalações associadas. No Oak Ridge, Tennessee, há uma zona que se ajusta a nossas necessidades. trata-se de um vale escarpado, de modo que em caso de acidente a explosão ficaria contida. —Acidente? —comentou o almirante—. É isso provável? Groves não ocultou que aquela pergunta lhe parecia estúpida. —Estamos construindo uma bomba experimental, pelo amor de Deus —repôs—. Uma bomba tão capitalista que promete arrasar uma cidade de tamanho médio com uma só detonação. Seríamos bastante néscios se descartássemos a possibilidade de acidentes, maldita seja. Parecia que o almirante queria protestar, mas Stimson interveio. —Prossiga, general. —No Tennessee a terra é troca —explicou Groves—. Também a eletricidade… e nossa planta consumirá uma quantidade descomunal de energia elétrica. —De modo que nos propõe que compremos essa propriedade. —Proponho-me ir ver a hoje mesmo. —Groves consultou seu relógio—. De fato, tenho que sair imediatamente para não perder o trem ao Knoxville. —levantou-se—. Com sua permissão, cavalheiros, não quero desperdiçar nem um minuto. Os homens da sala ficaram estupefatos. Inclusive Stimson parecia atônito. Em Washington, nem em sonhos se atrevia ninguém a sair do despacho de um secretário se não lhe indicavam que a reunião tinha terminado. tratava-se de uma falta grave de protocolo, mas ao Groves não parecia lhe importar. Não houve represálias. —Muito bem —disse Stimson—. Não deixe que lhe entretenhamos. —Obrigado, senhor —repôs Groves, e saiu da sala. Greg se apressou atrás dele. II A secretária civil mais atrativa do novo edifício do Departamento de Guerra era Margaret Cowdry. Tinha os olhos grandes e escuros, e uma boca larga, sensual. Quando os homens a viam sentada detrás de sua máquina de escrever, ela os olhava desde sua cadeira e lhes sorria, e eles se sentiam como se já estivessem fazendo o amor com ela. Seu pai tinha convertido a padaria em um negócio de produção industrial. Os biscoitinhos Cowdry são tão rangentes como as de mamãe! A garota não tinha nenhuma necessidade de trabalhar, mas contribuía seu grão de areia à campanha bélica. antes de convidá-la a comer, Greg se assegurou de que soubesse que também ele era filho de milionário. As herdeiras estavam acostumadas preferir aos meninos ricos: assim podiam estar seguras de que não foram detrás de seu dinheiro. Era outubro e fazia frio. Margaret levava um elegante casaco azul marinho com ombreiras e a cintura entalhada. A boina a jogo dava certo ar militar. Foram ao Ritz-Carlton, mas ao entrar no comilão Greg viu seu pai sentado com o Gladys Angelus. Não queria converter a entrevista em uma comida de casais, assim o explicou a Margaret. —Não passa nada —disse ela—. Comeremos no Clube Universitário de Mulheres. Está à volta da esquina e sou sócia. Greg nunca tinha estado ali, mas tinha a sensação de que esse sítio lhe soava de algo. Por um momento esteve rebuscando entre suas lembranças, mas a informação fugia-lhe, assim que o deixou correr. No clube, Margaret se tirou o casaco e deixou ver um vestido de cachemira azul real que lhe rodeava de maneira sedutora. O chapéu e as luvas os deixou postos, como fazia toda mulher respeitável quando comia fora de casa. como sempre, Greg desfrutou da sensação de entrar em um local com uma bela mulher do braço. No comilão do Clube Universitário de Mulheres só havia uns quantos homens, mas todos eles o invejaram. Embora não estivesse disposto a admiti-lo diante de ninguém, isso gostava quase tanto como deitar-se com garotas. Pediu uma garrafa de vinho. Margaret esclareceu a sua com água mineral, ao estilo francês. —Não quero me passar a tarde corrigindo enganos de mecanografia. Lhe falou do general Groves. —É um homem com muchísima ambição. Em certa forma, é como uma versão mau vestida de meu pai. —Todo mundo o detesta —disse Margaret. Greg assentiu com a cabeça. —Cai-lhe mal às pessoas. —Seu pai é assim? —Às vezes, embora quase sempre utiliza seu encanto. —O meu faz o mesmo! Ao melhor todos os homens de êxito são iguais. Serviram-lhes os pratos bastante depressa. Em Washington o serviço se acelerou. O país estava em guerra e os homens tinham trabalho urgente que atender. Uma garçonete lhes trouxe a carta das sobremesas. Greg ficou olhando e se surpreendeu ao reconhecer ao Jacky Jakes. —Olá, Jacky! —exclamou. —Olá, Greg —repôs a garota, que tentou dissimular seu nervosismo lhe falando com familiaridade—. Que tal vai tudo? Greg recordou que o detetive lhe tinha contado que Jackie trabalhava no Clube Universitário de Mulheres. Essa era a lembrança que antes não tinha podido encontrar. —Bastante bem —respondeu—. E a ti? —Bem, muito bem. —Tudo segue como sempre? —perguntou-se se seu pai ainda lhe pagaria uma atribuição. —Mais ou menos. Greg supôs que o dinheiro o pagaria algum advogado, e que ao Lev lhe teria esquecido por completo. —Isso está bem. Jacky recordou então que estava trabalhando. —Posso lhes oferecer alguma sobremesa? —Sim, por favor. Margaret pediu uma salada de frutas e Greg se decidiu pelo sorvete. —É muito bonita —disse Margaret assim que Jacky os deixou sozinhos. Logo ficou à espera. —Suponho que sim. —Não leva anel de casada. Greg suspirou. As mulheres eram muito perspicazes. —Está-te perguntando como é que sou amigo de uma garçonete negra bonita que não está casada —disse—. Será melhor que te conte a verdade. Tive uma aventura com ela aos quinze anos. Espero que não te surpreenda muito. —claro que sim —repôs Margaret—. Me deixa escandalizada. —Não falava nem a sério nem em brincadeira, a não ser a meio caminho entre o um e o outro. Greg sentiu que em realidade não a tinha violentado tanto, mas que ao melhor tampouco queria lhe dar a impressão de que se sentia cômoda com todo o relacionado com o sexo… ao menos não em sua primeira entrevista. Jacky lhes serve a sobremesa e lhes perguntou se queriam café. Não tinham tempo (o exército não via com bons olhos as sobremesas largas) e Margaret pediu a conta. —Aos convidados não lhes permite pagar —explicou. Jacky partiu. —Parece-me bonito que a trate com carinho —disse Margaret então. —Isso faço? —Greg estava surpreso—. Guardo com carinho as lembranças que compartilhamos, suponho. Não me importaria voltar a ter quinze anos. —E, entretanto, tem-te medo. —Não é verdade! —Está aterrorizada. —O que vai. —me acredite. Os homens estão cegos, mas as mulheres vêem estas coisas. Greg olhou ao Jacky com insistência quando lhes trouxe a conta e compreendeu que Margaret tinha razão. Jacky seguia tendo medo. Cada vez que via o Greg, lembrava-se do Joe Brekhunov e sua navalha. Isso lhe enfureceu. A garota tinha direito a viver tranqüila. Teria que fazer algo para solucioná-lo. —E me parece que sabe do que tem medo —disse Margaret, a quem não lhe escapava nenhuma. —Meu pai a afugentou. Preocupava-lhe que pudesse me casar com ela. —Tanto medo dá seu pai? —Gosta de sair-se com a sua. —O meu é igual —repôs ela—. Tenro como uma bolacha, até que lhe fazem zangar. Então se volta cruel. —Me alegro de que o entenda. Voltaram para trabalho, mas Greg passou toda a tarde zangado. De algum modo, a maldição de seu pai seguia sendo uma laje sobre a vida do Jacky. O que podia fazer ele? O que faria seu pai? Essa era uma boa forma de encarar o problema. Lev estaria completamente decidido a sair-se com a sua, e pouco importaria a quem fizesse danifico para consegui-lo. O general Groves também atuaria assim. E também eu posso fazê-lo —pensou Greg—. Sou digno filho de meu pai. O germe de um plano começou a formar-se em sua mente. passou-se a tarde lendo e resumindo um relatório provisório do laboratório metalúrgico da Universidade de Chicago. Entre os cientistas desse departamento estava Leó Szilárd, o homem que tinha concebido a idéia da reação nuclear em cadeia. Szilárd era um judeu húngaro que tinha estudado na Universidade de Berlim… até o fatídico ano de 1933. A equipe de investigadores de Chicago trabalhava sob a direção do Enrico Fermi, o físico italiano. Fermi, cuja mulher era judia, tinha saído da Itália quando Mussolini publicou seu Manifesto da raça. Greg se perguntou se os fascistas se dariam conta de que seu racismo tinha provocado semelhante fuga de cérebros entre os cientistas mais brilhantes, que haviam acudido correndo ao inimigo. Ele compreendia os efeitos físicos à perfeição. Fermi e Szilárd tinham a teoria de que, quando um nêutron impactava contra um átomo de urânio, a colisão podia produzir dois nêutrones. Esses dois nêutrones podiam colidir depois com outros átomos de urânio para produzir quatro, logo oito, e assim sucessivamente. Szilárd havia chamado a esse efeito reação em cadeia: uma intuição brilhante. Dessa forma, uma tonelada de urânio podia produzir tanta energia como três milhões de toneladas de carvão… em teoria. Na prática, nunca se tinha demonstrado. Fermi e sua equipe estavam construindo uma pilha de urânio no Stagg Field, um antigo campo de futebol americano que já não se utilizava e que pertencia à Universidade de Chicago. Para evitar que o material explorasse de maneira espontânea, encerraram o urânio em grafite, que absorvia os nêutrones e sufocava a reação em cadeia. O objetivo era ir aumentando a radiatividade, paulatinamente, até um nível no qual se criava mais da que se absorvia —o qual demonstraria que a reação em cadeia era uma realidade—, e logo cortá-la, depressa, antes de que fizesse explorar a pilha, o estádio, o campus universitário e, certamente, toda a cidade de Chicago. De momento não o tinham conseguido. Greg redigiu um relatório favorável sobre o projeto, pediu a Margaret Cowdry que o passasse a máquina em seguida e logo o levou ao Groves. O general leu o primeiro parágrafo e perguntou: —Funcionará? —Bom, senhor… —É você cientista, maldita seja. Funcionará ou não? —Sim, senhor. Funcionará —disse Greg. —Bem —repôs Groves, e logo atirou o relatório ao cesto de papéis. Greg retornou a seu escritório e ficou um momento sentado, olhando fixamente o póster da Tabela Periódica dos Elementos que pendurava na parede que tinha frente ao escritório. Estava bastante seguro de que a pilha nuclear funcionaria. O que lhe preocupava mais era como obrigar a seu pai a retirar suas ameaças contra Jacky. Tinha pensado ocupar do problema igual ao teria feito Lev, mas de repente duvidava de como resolver os detalhes na prática. Tinha que adotar uma postura drástica. Seu plano começou a cobrar forma. Mas teria guelra para enfrentar-se a seu pai? Às cinco acabou sua jornada. De caminho a casa se deteve em uma barbearia e comprou uma navalha, dessas dobradiças que escondiam a folha dentro da manga. —Com sua barba, verá que vai melhor que um barbeador elétrico de barbear. Greg não pensava barbear-se com ela. Vivia na suíte que seu pai tinha permanentemente paga no Ritz-Carlton. Quando chegou, Lev e Gladys estavam tomando um coquetel. Recordou que tinha conhecido ao Gladys naquela mesma sala fazia sete anos, sentada nesse mesmo sofá de seda amarela. Os anos a tinham convertido em uma estrela ainda mais famosa. Lev a tinha colocado em uma série de filmes bélicos descaradamente patrioteras nas que desafiava a nazistas desdenhosos, burlava a japoneses sádicos e curava as feridas de pilotos norte-americanos de mandíbula retangular. Greg constatou que já não era tão bonita como o tinha sido aos vinte anos. A pele de seu rosto tinha perdido aquela perfeita tersura; sua juba já não parecia tão sã e abundante; e levava sustento, algo do que antes sem dúvida se haveria burlado. Entretanto, ainda tinha esses escuros olhos azuis que pareciam transmitir um convite irresistível. Greg aceitou um Martini e se sentou. De verdade ia desafiar a seu pai? Não o tinha feito nos sete anos que tinham acontecido desde que estreitasse a mão do Gladys pela primeira vez. Possivelmente ia sendo hora. Atuarei tal como atuaria ele, pensou Greg. Deu um sorvo a sua bebida e a deixou em uma mesita de centro com patas aracnídeas. —Quando tinha quinze anos —disse ao Gladys como se queria lhe dar conversação—, meu pai apresentou a uma atriz que se chamava Jacky Jakes. Lev abriu muito os olhos. —Parece-me que não a conheço —repôs Gladys. Greg tirou a navalha do bolso, mas não a abriu. Sustentou-a na mão como se a estivesse sopesando. —Eu me apaixonei por ela. —A que vem tirar agora essa história tão velha? —disse Lev. Gladys percebeu a tensão e os olhou, preocupada. —Meu pai tinha medo de que queria me casar com ela —seguiu contando Greg. —Com essa furcia troca? —perguntou Lev, rendo com desdém. —Era uma furcia troca? —disse Greg—. Eu acreditava que era atriz. Olhou ao Gladys, que se ruborizou ao perceber o insulto implícito. —Meu pai foi fazer lhe uma visita e se levou com ele a um companheiro, Joe Brekhunov. Conhece-o, Gladys? —Acredito que não. —Pois tem sorte. Joe tem uma navalha como esta. —Greg abriu a navalha de repente e lhe mostrou a folha afiada e reluzente. Gladys afogou uma exclamação. —Não tenho sabor do que crie que está jogando… —começou a dizer Lev. —Espera um momento —o interrompeu Greg—. Gladys quer ouvir o resto da história. —Sorriu-lhe à mulher, que o olhava aterrorizada—. Meu pai disse ao Jacky que, se voltava para ver-me, Joe lhe racharia a cara com sua navalha. Agitou a folha, solo um pouco, e Gladys soltou um pequeno grito. —Já basta, demônios! —exclamou Lev, e deu uns passos para seu filho. Greg levantou a mão com a que sustentava a navalha e seu pai se deteve. Greg não sabia se seria capaz de cravar-lhe mas Lev tampouco. —Jacky vive aqui, em Washington —disse. —Volta-lhe isso a atirar? —perguntou seu pai com grosseria. —Não. Não me estou atirando a ninguém, embora tenha planos para a Margaret Cowdry. —A herdeira das bolachas? —por que?, quer que Joe a ameace também a ela? —Não seja imbecil. —Jacky é garçonete… nunca lhe deram o papel que estava esperando. Às vezes me encontro isso pela rua. Hoje me serviu em um restaurante. Cada vez que me vê a cara, acredita que Joe irá a por ela. —Está endoidecida —disse Lev—. Me tinha esquecido completamente dela até faz cinco minutos. —Posso lhe dizer isso? —perguntou Greg—. Me parece que a estas alturas tem direito a viver tranqüila. —lhe diga o que goste, joder. Para mim, nem existe. —Fantástico —repôs Greg—. adorará sabê-lo. —Guarda já essa maldita navalha. —Uma coisa mais. Uma advertência. Lev parecia furioso. —Você me adverte ? —Como ao Jacky aconteça algo mau… algo… —Greg moveu a navalha de lado a lado, solo um pouco. —Não me diga que vais rachar ao Joe Brekhunov? —comentou Lev com brincadeira. —Não. Seu pai não conseguiu ocultar seu temor. —Racharia-me ? Greg disse que não com a cabeça. —Então, o que? Pelo amor de Deus! —exclamou Lev, furioso. Greg olhou ao Gladys. Ela demorou um segundo em compreendê-lo. Então se fez atrás em seu sofá de tapeçaria de seda, levou-se as duas mãos às bochechas para as proteger e proferiu outro grito, um pouco mais forte esta vez. —Pequeno filho de cadela —disse Lev. Greg fechou a navalha e se levantou. —É o que teria feito você. —E saiu. Fechou de uma portada e se apoiou na parede, respirando tão trabalhosamente como se tivesse estado correndo. Em toda sua vida tinha tido tanto medo e, mesmo assim, também se sentia triunfante. Tinha-lhe plantado cara ao velho, tinha usado suas próprias táticas contra ele, inclusive o tinha assustado um pouco. Guardou a navalha enquanto caminhava para o elevador. A respiração ia acalmando. Voltou o olhar com o passar do corredor do hotel, quase esperando ver seu pai sair correndo atrás dele. Entretanto, a porta da suíte seguiu fechada e Greg montou no elevador e baixou ao vestíbulo. Entrou no bar e pediu um Martini seco. III no domingo, Greg decidiu ir ver o Jacky. Queria lhe dar a boa notícia. Recordava a direção: a única informação pela que tinha pago nunca a um detetive privado. A menos que se transladou, vivia justo em frente do Union Station. Lhe tinha prometido que não iria ali, mas agora poderia lhe explicar que essa precaução já não era necessária. Foi em táxi. Enquanto cruzava a cidade, disse-se que gostaria de muito pôr um esperado ponto e final a esse assunto do Jacky. Sentia debilidade por seu primeira amante, mas não queria voltar a ver-se misturado em sua vida em nenhum sentido. Seria um alívio descarregar a consciência com respeito a ela. Assim, a próxima vez que se a encontrasse casualmente, a garota não teria que levar um susto de morte. Poderiam dizer-se olá, conversar um momento e seguir cada um seu caminho. O táxi o levou a um favela de casas de um só piso com pequenos pátios delimitados por cercas de tecido metálico não muito altas. perguntou-se como viveria Jacky. Que fazia durante essas noites que tanto insistia em ter para si? Seguro que ia ao cinema com seus amigas. iria ver os jogos de futebol dos Washington Redskins ou seguiria à equipe de beisebol dos Nats? Quando lhe tinha perguntado por seus noivos, a resposta tinha sido enigmática. Talvez estava casada e não podia permitir uma aliança. Segundo seus cálculos, Jacky tinha vinte e quatro anos. Se procurava dom perfeito, a essas alturas já devia havê-lo encontrado. Mas nunca lhe tinha falado de um marido, e o detetive tampouco. Pagou ao taxista frente a uma casa pequena e bonita que tinha vasos de barro de flores em um pátio de entrada de cimento… mais caseiro do que tinha esperado. Assim que abriu a grade, ouviu ladrar a um cão. Pareceu-lhe lógico: uma mulher que vivia sozinha podia sentir-se mais segura com um cão. aproximou-se do alpendre e chamou o timbre. Os latidos se fizeram mais fortes. Parecia um cão grande, embora Greg sabia que isso podia enganar. Ninguém lhe abria a porta. Quando o cão calou para agarrar ar, Greg ouviu o silêncio característico de uma casa vazia. Havia um banco de madeira na entrada. sentou-se e esperou uns minutos. Ali não chegava ninguém, nenhum vizinho solícito lhe aproximou para lhe dizer se Jacky estaria fora uns minutos, todo o dia ou duas semanas. Caminhou várias maçãs, comprou a edição do domingo do The Washington Pós e retornou ao banco a lê-la. O cão seguia ladrando de vez em quando porque sabia que ele seguia ali. Era 1 de novembro, e se alegrou de haver ficado a boina e o sobretudo verde oliva de sua uniforme: levantou-se vento. As eleições de metade de mandato se celebrariam na terça-feira, e o Pós predizia que os democratas se levariam um varapalo por culpa do Pearl Harbor. Esse incidente tinha transformado ao país, e ao Greg surpreendeu dar-se conta de que tinha acontecido fazia menos de um ano. Aqueles dias, compatriotas de sua idade estavam morrendo em uma ilha de a que ninguém tinha ouvido falar, Guadalcanal. Ouviu que se abria a grade e levantou o olhar. Ao princípio Jacky não se fixou em que estava ali, assim que ele teve um momento para olhá-la bem. Tinha um aspecto modestamente respeitável com seu casaco escuro e seu singelo chapéu de feltro, e levava um livro de tampas negras na mão. Se não a conhecesse melhor, Greg teria pensado que vinha da igreja. Com ela ia um menino. O pequeno levava um casaco de tweed e uma boina, e lhe dava a mão. O menino foi o primeiro em ver o Greg. —Olhe, mamãe, há um soldado! —exclamou. Jacky olhou ao Greg e se levou a mão à boca em um ato reflito. Greg se levantou enquanto eles subiam os degraus da entrada. Um menino! Sim que o tinha calado… Isso explicava por que tinha que estar em casa pelas noites. Nunca lhe tinha ocorrido. —Disse-te que não viesse por aqui —lhe recriminou Jacky enquanto colocava a chave na fechadura. —Queria te dizer que já não tem por que ter medo de meu pai. Não sabia que tinha um filho. O menino e ela entraram na casa. Greg ficou na porta, esperando. Um pastor alemão lhe grunhiu e logo olhou ao Jacky para saber o que tinha que fazer. Ela fulminou ao Greg com o olhar, estava claro que pensava lhe fechar a porta nos narizes… mas um momento depois soltou um suspiro de exasperação e deu meia volta, deixando-a aberta. Greg entrou e lhe ofereceu o punho esquerdo ao cão, que o farejou com cautela e lhe concedeu uma aprovação provisória. Greg seguiu ao Jacky até uma quitinete. —Hoje é Todos os Santos —disse. Ele não era religioso, mas no internato lhe tinham obrigado a aprendê-las festividades cristãs—. Por isso foste à igreja? —Vamos todos os domingos —respondeu ela. —Hoje é um dia cheio de surpresas —murmurou Greg. Jacky lhe tirou o casaco ao menino, sentou-o à mesa e lhe deu uma taça de suco de laranja. Greg se sentou frente a ele e lhe perguntou: —Como te chama? —Georgy. —Disse-o em voz baixa mas com segurança: não era tímido. Greg o olhou com atenção. Era tão bonito como sua mãe, com a mesma boca em forma de laço, mas tinha a pele mais clara que ela, de um tom mais café com leite, e tinha os olhos verdes, algo inusitado em um rosto negro. Ao Greg recordou um pouco a sua meio-irmã, Daisy. Enquanto isso, Georgy cravava no Greg um olhar tão intensa que quase resultava lhe intimide. —Quantos anos tem, Georgy? —perguntou Greg. O menino olhou a sua mãe em busca de ajuda. Jacky olhou ao Greg com uma expressão estranha e disse: —Tem seis anos. —Seis! É um menino muito maior, verdade? Caray… Uma idéia descabelada cruzou por sua mente, e então ficou calado. Georgy tinha nascido fazia seis anos. Greg e Jacky tinham sido amantes fazia sete. Sentiu que lhe falhava o coração. Olhou ao Jacky fixamente. —Não pode ser. Ela assentiu com a cabeça. —Nasceu em 1936 —disse Greg. —Em maio —acrescentou Jacky—. Oito meses e meio depois de que me fora daquele apartamento do Buffalo. —Meu pai sabe? —Não, nem pensar. Isso lhe teria dado ainda mais poder sobre mim. Sua hostilidade tinha desaparecido, de repente parecia simplesmente vulnerável. Em seu olhar, Greg viu uma súplica, embora não estava muito seguro do que era o que o suplicava. Olhou ao Georgy com outros olhos: a pele clara, os olhos verdes, esse ligeiro parecido com o Daisy. É meu filho? —pensou—. Pode ser certo? Mas sabia que sim. Um estranho sentimento lhe invadiu o coração. De repente, Georgy parecia terrivelmente frágil, um garotinho indefeso em um mundo cruel, e Greg sentiu a necessidade de ocupar-se dele, de assegurar-se de que ninguém lhe fizesse mal. Teve o impulso de estreitá-lo entre seus braços, mas se deu conta de que ao melhor o assustava, assim que se conteve. Georgy deixou seu suco de laranja. Desceu da cadeira e rodeou a mesa até colocar-se ao lado do Greg. —Você quem é? —disse, olhando o de uma forma assombrosamente direta. Tinha que ser um menino o que te fizesse a pergunta mais difícil de todas, pensou Greg. Que narizes ia dizer lhe? A verdade era muito para que um guri de seis anos pudesse assimilá-la. Não sou mais que um velho amigo de sua mãe. Passava por aqui e pensei em dever saudar. Não sou ninguém especial. Talvez voltamos a nos ver algum dia, mas o mais provável é que não. Olhou ao Jacky e viu como se intensificava essa expressão de súplica. deu-se conta do que estava pensando: sentia um medo atroz a que rechaçasse ao Georgy. —por que não fazemos uma coisa? —disse Greg, e subiu ao Georgy aos joelhos—. por que não me chama tio Greg? IV Greg estava tremendo de frio na tribuna de espectadores de uma pista de squash sem calefação. Ali, sob o degrau oeste do estádio em desuso, ao final do campus da Universidade de Chicago, Fermi e Szilárd tinham construído sua pilha atômica. Greg estava impressionado e assustado. A pilha era um cubo de blocos cinzas que chegavam até o teto da pista, a pouquíssima distância da parede do fundo, que ainda tinha as marcas de toupeiras das Pelotas de squash. A pilha havia flanco um milhão de dólares e podia fazer voar a cidade inteira pelos ares. O grafite era o mesmo material do que se faziam as minas dos lápis e despedia um polvillo sujo que cobria o chão e as paredes. Tudo o que passava um momento nessa sala acabava com a cara tão negra como a de um mineiro. Ninguém levava a bata de laboratório limpa. O grafite não era o material explosivo; ao contrário, estava ali para suprimir a radiatividade. Entretanto, alguns dos blocos da construção estavam brocados por uns orifícios estreitos que tinham recheado com óxido de urânio, e esse sim era o material que emitia os nêutrones. A pilha estava perfurada por dez canais nos que se inseriam as barras de controle. Estas consistiam em umas varas de quatro metros feitas de cádmio, um metal que absorvia os nêutrones com uma voracidade ainda maior que a do grafite. Nesse preciso instante, as barras o mantinham tudo em calma. Quando as retirassem da pilha, começaria a diversão. O urânio já estava emitindo sua radiação mortal, mas o grafite e o cádmio a retinham toda. A radiação se media com uns contadores que soltavam uns estalos ameaçadores e com um registrador de risco, um cilindro de papel contínuo compasivamente silencioso. O desdobramento de controles e medidores que havia junto ao Greg, na tribuna, era o único que despedia calor naquele lugar. Sua visita tinha lugar na quarta-feira 2 de dezembro, um dia de vento e frio glacial em Chicago. O dia em que a pilha devia chegar pela primeira vez a níveis críticos. Greg estava ali para assistir ao experimento em representação de seu chefe, o general Groves; a todo mundo tinha solto a jovial indireta de que Groves temia uma explosão e que por isso tinha delegado no Greg para que se arriscasse por ele. Em realidade tinha uma missão mais sinistra. ia realizar uma valoração inicial dos cientistas com vistas a decidir quem podia supor um perigo para a segurança. A segurança do projeto Manhattan era um pesadelo. Os cientistas de élite eram estrangeiros, e a maioria do resto de colaboradores eram de esquerdas, ou bem diretamente comunistas, ou liberais que tinham amigos comunistas. Se tivessem se despedido de todos os que eram suspeitos, logo que teria ficado ninguém. Assim que Greg estava tentando averiguar quem deles supunham um risco maior. Enrico Fermi tinha uns quarenta anos. Era um homem pequeno, com uma calva incipiente e o nariz largo, e sorria com grande encanto enquanto fiscalizava o aterrador experimento. Vestia um traje elegante e colete. No meio da amanhã ordenou o começo da prova. Indicou a um técnico que extraíra todas as barras de controle da pilha menos uma. —O que? Todas de uma vez? —perguntou Greg. Aquilo lhe parecia terroríficamente precipitado. O cientista que estava a seu lado, Barney McHugh, o explicou. —Ontem à noite chegamos até esse mesmo ponto. Funcionou bem. —Me alegro de ouvi-lo —repôs Greg. McHugh, um homem com barba e gorducho, ocupava os últimos lugares na lista de suspeitos do Greg. Era americano e sem interesses políticos. A única tacha em seu expediente era que tinha uma mulher estrangeira: britânica, o qual nunca era bom sinal, mas tampouco constituía uma prova de alta traição. Greg tinha suposto que contariam com algum mecanismo sofisticado para retirar e inserir as barras, mas era muito mais simples. O técnico aproximava uma escada à pilha, subia até a metade dos degraus e tirava as barras à mão. —Em um princípio íamos fazer isto no bosque do Argonne —comentou McHugh como se nada. —Onde está isso? —A uns trinta quilômetros ao sudeste de Chicago. Fica bastante isolado. Menos perigo de baixas. Greg se estremeceu. —E por que trocaram de opinião e decidiram fazê-lo aqui, em plena rua Cinqüenta e sete? —Os construtores que contratamos se declararam em greve, assim tivemos que fabricar este maldito traste nós mesmos, e não podíamos nos afastar tanto dos laboratórios. —Ou seja que decidiram lhes arriscar a aniquilar a todo Chicago. —Não acreditam que isso vá acontecer. Tampouco Greg o tinha acreditado até esse momento, mas de repente, ali em pé, a tão solo uns metros da pilha, já não o deixava tão claro. Fermi estava comprovando os monitores e comparando os dados com uma predição que tinha preparado dos níveis de radiação em cada fase do experimento. Por visto-o, a fase inicial se desenvolvia segundo o previsto, porque então ordenou que extraíram a última barra até a metade. Havia algumas medidas de segurança. Uma barra lastrada pendurava de tal maneira que podia deixar cair automaticamente no interior da pilha se a radiação aumentava muito. Em caso de que isso não funcionasse, havia uma barra similar atada com uma corda ao corrimão da tribuna, e um jovem físico, com pinta de sentir-se um pouco parvo, estava ali ao lado com uma tocha, preparado para cortar a corda em caso de emergência. Por último, outros três cientistas aos que chamavam o pelotão suicida estavam situados perto do teto, sobre a plataforma do elevador que tinham utilizado durante a construção, sustentando grandes jarras de solução de sulfato de cádmio, que verteriam sobre a pilha como quem sufoca uma fogueira. Greg sabia que a geração de nêutrones se multiplicava em milésimas de segundo. Não obstante, Fermi argumentava que alguns nêutrones demoravam mais, pode que até vários segundos. Se Fermi tinha razão, não haveria nenhum problema. Mas se se equivocava, o pelotão das jarras e o físico da tocha ficariam fulminados antes de pestanejar sequer. Ouviu então que os estalos se aceleravam. Olhou ao Fermi com inquietação, mas ele seguia fazendo números com uma regra de cálculo. Fermi parecia encantado. De todas formas —pensou Greg—, se algo sair mal certamente tudo irá tão depressa que não nos daremos nem conta. O ritmo dos estalos se estabilizou. Fermi sorriu e deu ordem de que extraíram a barra outros quinze centímetros. Cada vez chegavam mais cientistas que subiam as escadas da tribuna com as grosas roupas que exigia o inverno de Chicago: casacos, chapéus, cachecóis, luvas. Greg estava horrorizado pela falta de segurança. Ninguém comprovava os créditos, qualquer daqueles homens podia ser um espião dos japoneses. Entre eles, Greg reconheceu ao grande Szilárd, alto e grosso, com uma cara redonda e o cabelo encaracolado e abundante. Leó Szilárd era um idealista que tinha imaginado que a energia nuclear liberaria à humanidade do trabalho. Se se tinha unido à equipe que desenhava a bomba atômica, tinha-o feito com grande pesadumbre. Outros quinze centímetros mais, outro aumento no ritmo dos estalos. Greg consultou seu relógio. As onze e meia. de repente se ouviu um forte estrépito. Todo mundo se sobressaltou. —Joder —disse McHugh. —O que foi isso? —perguntou Greg. —Ah, já o vejo —repôs McHugh—. O nível de radiação ativou o mecanismo de segurança e soltou a barra de controle de emergência, nada mais. —Tenho fome —anunciou Fermi—. Andiamo a comere —acrescentou, mesclando seu italiano materno. Como podiam pensar em comida? Entretanto, ninguém pôs nenhuma objeção. —Nunca se sabe quanto vai durar um experimento —explicou McHugh—. Poderia alargar-se todo o dia. É melhor comer quando se pode. Greg sentiu vontades de gritar. As barras de controle voltaram a inserir-se na pilha e ficaram asseguradas em sua posição. Logo, todo mundo saiu dali. A maioria deles se dirigiram ao comilão do campus. Greg pediu um sándwich quente de queijo e se sentou junto a um solene físico que se chamava Wilhelm Frunze. Quase todos os cientistas vestiam mau, mas o do Frunze era exagerado. Levava um traje verde que tinha todos os cós em ante cor torrada: as casas, o revestimento do pescoço, as cotoveleiras, as lapelas dos bolsos. Esse tipo ocupava os primeiros postos da lista de suspeitos do Greg. Era alemão, embora tinha abandonado o país em meados da década de 1930 e se foi a Londres. Era antinazi, mas não comunista: suas inclinações políticas se decantavam mais para a socialdemocracia. Estava casado com uma garota norte-americana, uma artista. Conversando com ele durante a comida, Greg não encontrou nenhum motivo de suspeita; parecia que adorava viver nos Estados Unidos e que lhe interessavam poucas coisas além de seu trabalho. Entretanto, com os estrangeiros nunca sabia um do que lado recaía sua verdadeira lealdade. depois de comer, Greg ficou um momento no estádio abandonado. Enquanto contemplava os milhares de degraus vazios, pensou no Georgy. Não lhe tinha contado a ninguém que tinha um filho —nem sequer a Margaret Cowdry, com quem já estava desfrutando de umas deliciosas relações carnais—, mas desejava dizer-lhe a sua mãe. Estava orgulhoso, embora sem motivo: quão único tinha feito para contribuir a trazer para o Georgy ao mundo tinha sido deitar-se com o Jacky, certamente o mais fácil que havia feito na vida. Sobre tudo estava entusiasmado. Sentia que se encontrava ao princípio de uma espécie de aventura. Georgy ia crescer, a aprender e a trocar, e um dia se converteria em um homem; e Greg estaria ali, contemplando-o maravilhado. Os cientistas voltaram a reunir-se às duas da tarde. Esta vez havia umas quarenta pessoas na tribuna, junto à equipe de controle. O experimento se levou cuidadosamente até o mesmo ponto em que o tinham deixado, e Fermi não parava de comprovar seus instrumentos nem um segundo. —Esta vez retirem a barra trinta centímetros —disse então. Os estalos se aceleraram. Greg esperou que o aumento se estabilizasse como o tinha feito antes, mas não ocorreu assim. Ao contrário, os estalos eram cada vez mais rápidos, até que se converteram em um rugido constante. Ao ver que todo mundo centrava sua atenção no registrador de risco, Greg se deu conta de que o nível de radiação estava por cima do máximo marcado em os contadores. O registrador tinha uma escala regulável. À medida que o nível subia, a escala trocava, e assim outra vez, e outra. Fermi levantou uma mão. Todos guardaram silêncio. —A pilha alcançou o nível crítico —disse. Sorriu… e não fez nada. Greg queria gritar: Pois apague o puto aparelho!, mas Fermi seguia calado e imóvel, consultando o registrador, e sua autoridade era tal que ninguém se atreveu a desafiá-lo. A reação em cadeia se estava produzindo mas de maneira controlada. Deixou que prosseguisse durante um minuto, logo outro mais. —Por Deus bendito —murmurou McHugh. Greg não queria morrer. Queria chegar a senador. Queria voltar a deitar-se com a Margaret Cowdry. Queria ver o Georgy na universidade. Ainda não cheguei nem a a metade de minha vida, pensou. Por fim Fermi ordenou que recolocaran as barras de controle. O ruído dos contadores remeteu até converter-se em um lento tictac que finalmente se deteve. Greg voltou a respirar com normalidade. —Demonstramo-lo! —McHugh estava exultante—. A reação em cadeia é uma realidade! —E é controlável, o que resulta mais importante —acrescentou Greg. —Sim, suponho que isso é mais importante de um ponto de vista prático. Greg sorriu. Assim eram os cientistas, sabia do Harvard: para eles, a teoria era a realidade e o mundo, um modelo bastante impreciso. Alguém tirou uma garrafa de vinho italiano que vinha dentro de uma cestita de vime e vários copos de papel. Todos os cientistas beberam o pouco que lhes tocou. Essa era outra razão pela que Greg não era científico: não tinham nem idéia de como celebrar uma festa. Alguém pediu ao Fermi que assinasse a cestita e, depois dele, todos outros assinaram também. Os técnicos apagaram os monitores. Todo mundo partia já, mas Greg ficou a observar. Ao cabo de um momento, encontrou-se a sós com o Fermi e Szilárd em a tribuna e viu como os dois gigantes intelectuais se davam a mão. Szilárd era um homem grande e de cara redonda; Fermi era miúdo e delicado. Por um momento, Greg teve a inadequada ocorrência de pensar em Louro e Hardy. Então ouviu falar com o Szilárd. —Amigo —disse—, parece-me que o dia de hoje passará à história da humanidade como um dia desgraçado. Que complicações quis dizer com isso?, pensou Greg. V Greg queria que seus pais aceitassem ao Georgy. Não seria fácil. Seguro que lhes resultaria desconcertante inteirar-se de que tinham um neto desde fazia seis anos e que o tinham oculto. Pode que se zangassem. Pode que também desprezassem ao Jacky. Não tinham nenhum direito a adotar uma atitude de superioridade moral, pensou com acritud: eles mesmos tinham um filho ilegítimo… o próprio Greg. Mas a gente não era racional. Tampouco sabia muito bem até que ponto importaria que Georgy fora negro. Os pais do Greg não eram fechados em temas raciais e nunca falavam de sujos negros nem de cães judeus, como faziam outros de sua geração, mas isso podia trocar assim que soubessem que tinham a alguém de cor na família. Supunha que seu pai seria o maior obstáculo, assim falou primeiro com sua mãe. Por Natal, agarrou vários dias de licença e foi ver a sua casa, no Buffalo. Marga tinha um enorme apartamento no melhor edifício da cidade. Vivia quase sempre sozinha, mas tinha cozinheira, duas criadas e chofer. Contava com uma caixa forte cheia de jóias e um vestidor do tamanho de uma garagem de dois carros. Mas não tinha marido. Lev estava na cidade, mas o dia de Véspera de natal sempre tirava a Olga para jantar. Tecnicamente seguia casado com ela, embora fazia anos que não passava uma noite em sua casa. Pelo que sabia Greg, Olga e Lev se detestavam, mas por algum motivo seguiam vendo-se uma vez ao ano. Essa noite, Greg e sua mãe jantaram juntos no apartamento, e ele ficou o smoking para agradá-la. —eu adoro ver meus homens bem vestidos —estava acostumado a dizer. Tomaram sopa de pescado, frango ao forno e a sobremesa preferido do Greg quando era pequeno, bolo de pêssego. —Tenho que te dar uma notícia, mamãe —disse com certo nervosismo enquanto a criada lhes servia o café. Dava-lhe medo que sua mãe se zangasse. Não tinha medo por si mesmo, mas sim pelo Georgy, e se perguntou se nisso consistia a paternidade: em preocupar-se com outra pessoa mais do que se preocupava um por si mesmo. —Uma boa notícia? —perguntou a mulher. Tinha ganho peso nos últimos tempos, mas a seus quarenta e seis anos seguia conservando todo o glamour. Se tinha alguma cã em seu cabelo escuro, sua cabeleireira tinha-a camuflado com esmero. Essa noite levava um singelo vestido negro e uma gargantilha de diamantes. —Muito boa, embora me parece que algo surpreendente. Assim, por favor, não perca os nervos. Ela levantou uma sobrancelha negra, mas não disse nada. Greg se levou uma mão ao interior da jaqueta e tirou uma fotografia: era Georgy, montado em uma bicicleta vermelha com cintas no guidão. A roda traseira de a bicicleta tinha um par de rueditas estabilizadoras para que não caísse. A expressão do menino era de autêntica felicidade. Greg estava ajoelhado junto a ele com cara de orgulho. Passou-lhe a fotografia a sua mãe. Ela a olhou com atenção e, ao cabo de um minuto, disse: —Suponho que lhe deste de presente a bicicleta a esse menino por Natal. —Isso. A mulher levantou o olhar. —Está-me dizendo que tem um filho? Greg assentiu com a cabeça. —chama-se Georgy. —Casaste-te? —Não. Sua mãe soltou a foto. —Pelo amor de Deus! —exclamou, zangada—. Mas o que acontece com os homens Peshkov? Greg estava consternado. —Não sei o que quer dizer com isso. —Outro filho ilegítimo! Outra mulher criando-o sozinha! deu-se conta de que via o Jacky como uma versão mais jovem de si mesmo. —Eu tinha quinze anos… —por que não podia ser normal? —gritou a mulher—. Por todos os Santos, o que tem de mau uma família como é devido? Greg baixou o olhar. —Não tem nada de mau. sentia-se envergonhado. Até esse momento se viu como um ator passivo daquela obra dramática, inclusive uma vítima. Tudo o que tinha acontecido o havia feito seu pai a ele, e também ao Jacky. Mas sua mãe não o via do mesmo modo, e de repente Greg compreendeu que tinha razão. Ao deitar-se com o Jacky, ele não se o tinha pensado duas vezes; não tinha perguntado nada quando ela, alegremente, havia-lhe dito que não tinham que preocupar-se com a contracepção; e tampouco se havia enfrentado a seu pai quando Jacky partiu. Então era muito jovem, sim, mas se tinha sido o bastante adulto para ter relações com ela, também deveria havê-lo sido para aceitar a responsabilidade das conseqüências. Sua mãe seguia feita uma fúria. —É que não te lembra de seus intermináveis pergunta? Onde está meu papai? por que não dorme aqui? por que não podemos ir com ele a casa do Daisy? E mais adiante as brigas que tinha no colégio quando outros meninos lhe chamavam bastardo. E o muito que te zangou quando não deixaram que te fizesse sócio desse maldito clube náutico. —Claro que me lembro. Sua mãe estampou um punho cheio de anéis na mesa e fez tremer as taças de cristal. —Então, como pode fazer passar a outro menino por essa mesma tortura? —Não sabia que existia até faz dois meses. Papai espantou à mãe, afugentou-a. —Quem é ela? —chama-se Jacky Jakes. É garçonete. —Tirou outra fotografia. Sua mãe suspirou. —Um negra muito bonita. —estava-se tranqüilizando. —Queria ser atriz, mas suponho que abandonou essa esperança quando teve ao Georgy. Marga assentiu com a cabeça. —Um menino te arruína a carreira mais depressa que uma gonorréia. Greg se deu conta de que sua mãe dava por feito que uma atriz tinha que deitar-se com a gente adequada para progredir. O que ia ou seja ela? Mas, claro, havia sido cantor em um clube noturno quando conheceu seu pai… Greg não quis seguir por aí. —Que presente de Natal tem feito a ela? —perguntou a mulher. —Um seguro médico. —Boa eleição. Melhor que um osito de peluche. Greg ouviu uns passos no vestíbulo. Seu pai estava em casa. —Mamãe —disse a toda pressa—, quererá conhecer o Jacky? Aceitará ao Georgy como teu neto? Sua mãe se levou a mão à boca. —Ai, Meu deus, se for avó. —Não sabia se estar horrorizada ou encantada. Greg se inclinou para diante. —Não quero que papai o rechace. Por favor! antes de que pudesse lhe responder, Lev entrou na sala. —Olá, carinho —disse Marga—. Que tal o jantar? Ele se sentou à mesa com cara de mau humor. —Bom, explicaram-me meus defeitos com todo detalhe, assim suponho que o passei que fábula. —Pobrecillo. Ficaste-te com fome? Posso te preparar uma omelete em um momento. —A comida esteve bem. As fotografias seguiam na mesa, mas Lev ainda não as tinha visto. Então entrou a criada. —Gosta de um café, senhor Peshkov? —Não, obrigado. —Traz o vodca —disse Marga—. Se por acaso ao senhor Peshkov gosta de uma taça depois. —Sim, senhora. Greg se fixou em quão solícita era Marga com tudo o que tinha que ver com a comodidade e o prazer do Lev. Supôs que por isso passava ele ali a noite, e não com Olga. A criada tirou uma garrafa e três vasitos em uma bandeja de prata. Lev seguia bebendo o vodca ao estilo russo, quente e sozinho. —Pai, já conhece o Jacky Jakes… —começou a dizer Greg. —Outra essa vez? —repôs Lev, molesto. —Sim, porque há algo que não sabe dela. Com isso chamou sua atenção. Lev detestava pensar que outros sabiam algo e ele não. —O que? —Tem um filho. —Aproximou-lhe as fotografias sobre a lustrada mesa. —É teu? —Tem seis anos. Você o que crie? —O tinha muito calladito, joder. —Tinha-te medo. —O que pensava que ia fazer, cozinhar ao menino e me comer isso para jantar? —Não sei… O perito em assustar às pessoas é você. Lev o fulminou com o olhar. —Mas você aprende depressa. referia-se à cena da navalha. Ao melhor sim que estou aprendendo a assustar às pessoas, pensou Greg. —por que me ensina estas fotografias? —Pensava que você gostaria de saber que tem um neto. —De uma maldita atriz de três ao quarto que não pensava mais que em pescar a um ricachón! —Carinho! —exclamou Marga—. Por favor, recorda que também eu era uma cantor de clube noturno de três ao quarto que não pensava mais que em pescar a um ricachón. Lev estava furioso. Por um momento fulminou a Marga com o olhar, mas depois relaxou sua expressão. —Sabe o que? —disse—. Tem razão. Quem sou eu para julgar ao Jacky Jakes? Greg e Marga ficaram olhando-o, atônitos ante essa repentina humildade. —Sou igual a ela —seguiu dizendo Lev—. Não era mais que um vigarista de três ao quarto dos subúrbios de São Petersburgo até que me casei com a Olga Vyalov, a filha de meu chefe. Greg intercambiou um olhar com sua mãe, que simplesmente se encolheu um pouco de ombros como dizendo: Nunca se sabe. Lev voltou a olhar a fotografia. —Menos pela cor, esse menino é igual a meu irmão Grigori. Isto sim que é uma surpresa. até agora, pensava que todos esses morenitos eram iguais. Ao Greg custava trabalho respirar. —Quererá conhecê-lo? Acompanhará-me a conhecer seu neto? —Que complicações, sim. —Lev desentupiu a garrafa, serve vodca nos vasitos e os repartiu—. Bom, e como se chama o menino? —Georgy. Lev elevou seu copo. —Pois pelo Georgy. Beberam os três. 15 1943 (I) I Lloyd Williams subia por um estreito atalho de montanha fechando uma fila de fugitivos se desesperados. Não se notava fatigado. Estava habituado a essas caminhadas. Tinha cruzado já várias vezes os Pirineos. As alpargatas que calçava proporcionavam boa sujeição em um terreno rochoso como aquele. Levava um pesado casaco sobre o macaco azul. O sol esquentava com força, mas mais tarde, quando o anoitecer surpreendeu ao grupo a maior altitude, a temperatura caiu em picado baixo zero. diante dele foram dois robustos cavalos, três aldeãos e oito prófugos exaustos e desalinhados, todos eles carregados com fardos. Dos estrangeiros, três eram pilotos americanos, os superviventes da tripulação de um bombardeiro B-24 Liberator que se estrelou na Bélgica; dois, oficiais britânicos que fugiram-se do campo de prisioneiros de guerra Oflag 65, no Estrasburgo, e outros, um comunista tcheco, uma mulher judia com um violino e um misterioso inglês chamado Watermill, que com toda probabilidade era uma espécie de espião. Todos tinham percorrido um comprido caminho e sofrido infinidade de penúrias. Aquela era a última etapa de sua viagem, e a mais perigosa. Se os capturavam então, torturariam-nos até que traíssem aos valentes homens e mulheres que os tinham ajudado em sua fuga. À cabeça do grupo ia Teresa. A ascensão era dura para quem não estava acostumados a subir montanhas, mas tinham que avançar a bom ritmo para reduzir ao mínimo sua exposição, e Lloyd tinha comprovado que os refugiados se atrasavam menos quando os precedia uma mulher miúda e extremamente bela. Em um momento dado, o atalho se aplainou e se alargou formando um pequeno claro. —Alto! —ouviram de repente que alguém gritava em francês mas com acento alemão. A coluna se deteve em seco. Dois soldados alemães saíram de detrás de uma rocha. Levavam fuzis de ferrolho convencionais Mauser, ambos com antecâmaras de cinco projéteis. Lloyd se levou instintivamente a mão ao bolso do casaco no qual levava sua pistola Luger de 9 mm carregada. Fugir do norte e do centro da Europa se tornou mais difícil, e o trabalho do Lloyd, inclusive mais arriscado. Ao final do ano anterior, os alemães haviam ocupado a metade meridional da França, em uma manobra de desdém para o governo francês do Vichy, que sempre tinha sido uma farsa. Tinham declarado uma zona proibida de dezesseis quilômetros ao longo da fronteira com a Espanha. Lloyd e seu grupo se encontravam nessa zona. Teresa se dirigiu em francês aos soldados. —bom dia, cavalheiros. Vai tudo bem? Lloyd a conhecia e captou o tremor em sua voz, mas confiou em que aos guardas passasse inadvertido. Entre a polícia francesa havia muitos fascistas e uns quantos comunistas, mas todos eram preguiçosos e nenhum queria dedicar-se a perseguir refugiados pelos gélidos passos dos Pirineos. Entretanto, os alemães sim o faziam. Muitos soldados tinham sido destinados às cidades fronteiriças e tinham começado a patrulhar os atalhos das montanhas e as gargantas que seguiam Lloyd e Teresa. Os ocupantes não eram soldados de élite; esses estavam combatendo na Rússia, onde recentemente tinham entregue Stalingrado depois de uma luta larga e sangrenta. Muitos dos alemães que estavam na França eram homens entrados em anos, moços e feridos que podiam caminhar. Entretanto, isso solo parecia aumentar sua determinação para demonstrar sua valia. A diferença dos franceses, raramente faziam a vista gorda. —Aonde vão? —perguntou a Teresa o major dos dois soldados, de uma magreza cadavérica e bigode grisalho. —Ao povo do Lamont. Levamos provisões para vocês e seus camaradas. Aquela unidade alemã em particular se transladou a um povo de montanha remoto e tinha jogado a patadas a seus habitantes. Logo tinha cansado na conta do difícil que era abastecer aos soldados apostados ali. A decisão de oferecer-se para levar comida a aquele povo tinha sido uma jogada brilhante, além disso de bem remunerada, por parte da Teresa, pois com isso tinha conseguido a permissão para acessar à zona proibida. O soldado magro olhou receoso aos homens e suas cargas. —Todo isso é para os soldados alemães? —Isso espero —respondeu Teresa—. Ali acima não há ninguém mais a quem vender-lhe tirou-se uma folha de papel do bolso—. Aqui está o pedido, assinado por seu sargento Eisenstein. O homem o leu atentamente e o devolveu. Depois olhou à tenente coronel Will Donelly, um fornido piloto americano. —Esse é francês? Lloyd rodeou a arma com a mão dentro do bolso. A aparência dos fugitivos era um problema. Os aldeãos daquele rincão do mundo, franceses e espanhóis, pelo general eram miúdos e de tez escura, e indefectiblemente magros. Tanto Lloyd como Teresa encaixavam com essa descrição, e também o tcheco e a violinista. Mas os britânicos tinham a pele e o cabelo claros, e os americanos eram altos e corpulentos. —Guillaume nasceu na Normandía. Já sabe, a manteiga… —disse Teresa. O mais jovem dos dois soldados, um moço pálido com lentes, sorriu a Teresa. Não custava fazê-lo. —Levam vinho? —perguntou. —Claro. Aos dois lhes iluminou a cara visivelmente. —Gosta de um pouco agora? —perguntou Teresa. —Este sol dá muita sede —disse o comandante. Lloyd abriu a alforja que transportava um dos cavalos, tirou quatro garrafas de vinho branco do Rosellón e as ofereceu. Agarraram dois cada um. de repente, todos sorriam e se estreitavam a mão. —Podem seguir, amigos —disse o de mais idade. Os fugitivos ficaram em marcha. Lloyd não tinha esperado problemas, mas nunca se sabia, e se sentiu aliviado ao deixar atrás o posto de guarda. Demoraram outras duas horas em chegar ao Lamont. O povo era um casario pobre e poeirento formado por um punhado de casas rudimentares e vários currais vazios, e se erigia ao bordo de um pequeno plano onde já começava a crescer a erva. Lloyd compadeceu às pessoas que o tinha povoado. Tinham vivido com tão pouco…, e inclusive isso o tinham arrebatado. Todos se dirigiram ao centro do povoado e soltaram agradecidos os fardos. Em um instante estiveram rodeados de soldados alemães. Aquele era o momento mais perigoso, pensou Lloyd. O sargento Eisenstein estava ao cargo de uma seção de quinze ou vinte homens. Todos ajudaram a descarregar as provisões: pão, salsichão, pescado fresco, leite condensada, latas de comida. Os soldados se alegravam de receber mantimentos e de ver caras novas. Tentaram alegremente cercar conversação com seus benfeitores. Os fugitivos deviam dizer o menos possível. Era então quando podiam delatar-se com o menor deslize. Alguns alemães sabiam suficiente francês para detectar um acento inglês ou americano. Inclusive os que tinham uma pronúncia passável, como Teresa e Lloyd, podiam ficar em evidencia com um simples engano gramatical. Era muito fácil dizer Sul o table em lugar do Sul a table, mas seria algo insólito em um francês. Para evitá-lo, os dois franceses do grupo se esforçaram por mostrar-se loquazes. Sempre que um soldado começava a falar com um fugitivo, alguém atravessava em a conversação. Teresa entregou um recibo ao sargento, que se tomou seu tempo para revisar as quantidades e contar o dinheiro. Finalmente puderam partir, com os fardos vazios e algo mais relaxados. Descenderam ao longo de um quilômetro e ali se separaram. Teresa seguiu baixando com os franceses e os cavalos. Lloyd e os fugitivos enfiaram por um atalho ascendente. Os guardas alemães apostados no claro provavelmente estariam muito bêbados para dispor-se de que voltavam menos pessoas das que tinham subido. Mas se faziam perguntas, Teresa lhes diria que parte do grupo se ficou jogando às cartas com os soldados e que voltariam mais tarde. Depois haveria uma mudança de guarda e os alemães lhes perderiam a pista. Lloyd fez caminhar a seu grupo durante duas horas mais antes de lhes conceder um descanso de dez minutos. A todos lhes tinha proporcionado garrafas de água e pacotes de figos desidratados para que recuperassem energias. Lhes tinha convencido de que não levassem nada mais; Lloyd sabia por experiência que os livros apreciados, os objetos de prata, os adornos e os discos de gramofone acabavam pesando muito e, por isso, atirados em um ravina nevado muito antes de que os pés doloridos de seus donos conseguissem chegar ao alto do passo. Aquela era a parte mais dura. Desde esse ponto o caminho se tornava mais escuro, frio e rochoso. Justo antes de começar a pisar em neve, Lloyd lhes indicou que enchessem as garrafas em um limpo e frio arroio. Quando caiu a noite, seguiram avançando. Era perigoso deixar dormir, pois podiam morrer congelados. Estavam cansados e escorregavam e tropeçavam com as rochas geladas. Indevidamente, seu passo se ralentizó. Lloyd não podia permitir que a fila se desagregasse; atrasado-los podiam perder-se ou inclusive cair em algum dos numerosos e escarpados ravinas, embora, de momento, não tinha perdido a ninguém. Muitos dos fugitivos eram oficiais, e esse era o momento em que em ocasiões desafiavam ao Lloyd, protestando quando lhes ordenava que não se detivessem. Para lhe conferir mais autoridade, ao Lloyd o tinham subido a comandante. A meia-noite, quando os ânimos estavam em seu ponto mais baixo, Lloyd anunciou: Já estão na neutra a Espanha!, e todos estalaram em vítores. Em realidade não sabia onde se encontrava exatamente a fronteira, mas sempre fazia o anúncio quando mais fôlego pareciam necessitar. O ânimo voltou a melhorar ao amanhecer. Ainda ficava um trecho por percorrer, mas o caminho era de baixada e seus frite extremidades começaram a entrar em calor. Ao sair o sol rodearam uma pequena população com uma igreja atapetada em pó e situada no alto de uma colina. Ao outro lado, junto à estrada, encontraram um espaçoso celeiro. Dentro tinha estacionado um caminhão plataforma Ford de cor verde, talher por uma lona imunda. O caminhão era o bastante grande para levá-los a todos. Ao volante se sentou o capitão Silva, um inglês de média idade e ascendência espanhola que trabalhava com o Lloyd. Para surpresa do Lloyd, também estava ali o comandante Lowther, que se tinha encarregado do curso de instrução dos serviços secretos no Ty Gwyn, e que havia reprovado com ar de superioridade —ou talvez solo com inveja— a amizade do Lloyd e Daisy. Lloyd sabia que tinham destinado ao Lowthie à embaixada britânica em Madrid e suspeitava que trabalhava para o MI6, o Serviço Secreto de Inteligência, mas não tinha esperado vê-lo tão longe da capital. Lowther levava um traje de flanela branco e caro, embora enrugado e sujo. Estava em pé junto ao caminhão, como se fosse seu amo e senhor. —Eu me encarregarei daqui, Williams —disse. Olhou aos fugitivos—. Qual de vós é Watermill? Watermill bem podia ser tanto um sobrenome real como um código. O misterioso inglês se adiantou e lhe estreitou a mão. —Sou o comandante Lowther. Levarei-o diretamente a Madrid. —voltou-se para o Lloyd e acrescentou—: Me temo que seu grupo vai ter que seguir até a estação de trem mais próxima. —Um momento —repôs Lloyd—. Esse caminhão é propriedade de minha organização. —Tinha-o comprado com seu pressuposto do MI9, o departamento que ajudava a escapar a prisioneiros—. E o chofer trabalha para mim. —É inegociável —replicou Lowther com rotundidad—. Watermill tem prioridade. O Serviço de Secreto de Inteligência sempre acreditava que tinha prioridade. —Não estou de acordo —disse Lloyd—. Não vejo motivo para que não possam ir todos a Barcelona no caminhão, como estava previsto. Depois poderá levar ao Watermill a Madrid em trem. —Não te pedi sua opinião, moço. te limite a fazer o que te diz. —Estarei encantado de compartilhar o caminhão —interveio Watermill com tom apaziguador. —Permita que me eu encarregue disto, por favor —lhe respondeu Lowther. —Esta gente acaba de cruzar a pé os Pirineos. Estão esgotados —disse Lloyd. —Pois então será melhor que descansem um pouco antes de seguir. Lloyd negou com a cabeça. —Muito perigoso. Esse povo daí acima tem um prefeito pormenorizado, por isso fixamos este lugar como ponto de encontro. Mas mais abaixo do vale os políticos são diferentes. A Gestapo está em todas partes, sabe; e a polícia espanhola está em sua maioria de seu lado, não do nosso. Meu grupo correrá um perigo enorme de que os detenham por entrar ilegalmente no país. E também sabe quão difícil é tirar os detentos dos cárceres de Franco, embora sejam inocentes. —Não penso discutir contigo. Supero-te em fila. —Não. —O que? —Sou comandante, assim não volte a me chamar moço a menos que queira que lhe dê um murro no nariz. —Minha missão é urgente! —E por que não trouxe seu próprio veículo? —Porque este estava livre! —Pois não, não o estava. Will Donelly, o americano corpulento, avançou um passo. —Estou com o comandante Williams —disse, arrastando as palavras—. Acaba de me salvar a vida. Você, comandante Lowther, não tem feito uma mierda. —Isso não tem nada que ver com isto —replicou Lowther. —Bem, parece que a situação está clara —atravessou Donelly—. O caminhão está sob a autoridade do comandante Williams. O comandante Lowther o quer, mas não pode dispor dele. Fim da história. —Mantenha-se à margem disto —disse Lowther. —dá-se a circunstância de que sou tenente coronel, assim acredito que os supero em fila aos dois. —Mas esta não é sua jurisdição. —Nem a sua, obviamente. —Donelly se voltou para o Lloyd—. Nos pomos em caminho? —Insisto! —balbuciou Lowther. Donelly se voltou para ele. —Comandante Lowther —disse—, fechamento a puta boca. É uma ordem. —Muito bem. Subam todos ao caminhão —disse Lloyd. Lowther o fulminou com o olhar. —Pagará-me isso, bode galês —lhe espetou. II Os narcisistas tinham brotado em Londres quando Daisy e Boy decidiram ir ao médico. Tinha sido idéia do Daisy. Estava farta de que Boy a culpasse de que não ficasse grávida. Não deixava de compará-la com a esposa de seu irmão, Mai, que já tinha três filhos. —Deve ter algum problema —lhe havia dito com tom agressivo. —Já fiquei grávida uma vez. —estremeceu-se ao pensar na dor que lhe tinha causado o aborto; logo recordou como a tinha cuidado Lloyd e sentiu um tipo de dor diferente. —Poderia te haver passado algo após que te tenha deixado estéril. —Ou a ti. —O que quer dizer? —Que há as mesmas possibilidades de que você seja quem tem um problema. —Não seja ridícula. —Olhe, vamos fazer um trato. —Por um instante pensou que estava negociando como o teria feito seu pai, Lev—. Submeterei a um exame… se você também o fizer. Surpreso, Boy duvidou um momento. —De acordo —disse—. Você primeiro. Se lhe disserem que não tem nenhum problema, então irei eu. —Não —replicou ela—. Você primeiro. —por que? —Porque não confio em suas promessas. —Muito bem, pois. Iremos juntos. Daisy não estava segura de por que se incomodava em fazer aquilo. Não queria ao Boy, fazia já muito tempo que tinha deixado de querê-lo. Estava apaixonada pelo Lloyd Williams, que seguia na Espanha em uma missão da que não podia desvelar muito. Mas estava casada com o Boy. Lhe tinha sido infiel, e com várias mulheres. Mas ela também tinha cometido adultério, embora com um só homem. Faltava-lhe uma base ética em que sustentar-se, e em conseqüência estava paralisada. Solo tinha a sensação de que se cumpria com seu dever como esposa talvez poderia conservar um ápice de respeito por si mesma. A consulta do médico estava na Harley Street, não muito longe de sua casa, embora em um bairro menos caro. Ao Daisy a exploração resultou desagradável. O médico era um homem, e se queixou de que chegasse com dez minutos de atraso. Fez-lhe um sem-fim de perguntas sobre sua saúde geral, sua menstruação e o que ele denominou suas relações com seu marido, sem olhá-la mas tomando notas com uma estilográfica. Depois lhe introduziu uma série de instrumentos metálicos e frios pela vagina. —Faço isto diariamente, assim não tem do que preocupar—lhe disse, e lhe dedicou um sorriso que transmitia justamente o contrário. Quando saiu da consulta, em certo modo esperava que Boy faltasse a sua palavra e se negasse a fazer o exame. Em efeito, a idéia parecia amargurá-lo, mas acabou entrando. Enquanto esperava, Daisy releu uma carta que lhe tinha enviado seu meio-irmão, Greg. Tinha descoberto que era pai de um filho, fruto de uma aventura que havia tido aos quinze anos com uma garota negra. Para assombro do Daisy, o sedutor Greg estava muito emocionado com a notícia e ansioso por formar parte da vida do pequeno, embora como tio, em lugar de como pai. E o que era ainda mais surpreendente: Lev tinha conhecido ao menino e dizia que era muito preparado. Daisy pensou na ironia de que Greg tivesse um filho quando nunca o tinha desejado e que Boy não o tivesse quando o ansiava com toda a alma. Boy saiu da consulta uma hora depois. O doutor lhes disse que lhes daria os resultados em uma semana. partiram às doze do meio-dia. —Necessito uma taça depois disto —disse Boy. —Eu também —conveio Daisy. Olharam a um lado e ao outro daquela rua de casas idênticas. —Este bairro é um maldito deserto. Nem um pub à vista. —Eu não vou a um pub —disse Daisy—. Quero um Martini e nos pubs não sabem prepará-los. —Falava por experiência. Tinha pedido um Martini seco no King’s Head da Chelsea e lhe tinham servido um copo de vermut asquerosamente quente—. me Leve a hotel Claridge, por favor. Está a só cinco minutos a pé. —Excelente ideia. O bar do Claridge estava cheio de conhecidos. Os restaurantes tinham que aplicar em seus menus as normas de austeridade imperantes, mas o Claridge tinha encontrado uma fresta legal: não havia restrições quanto a dar de presente comida, de modo que ofereciam um bufet livre e só aplicavam seus habituais preços elevados às bebidas. Daisy e Boy se sentaram em um esplêndido salão art déco e degustaram uns coquetéis perfeitos. Daisy começou a sentir-se melhor. —O médico me perguntou se tiver passado as caxumba —disse Boy. —E assim é. —Era uma enfermidade que afetava mayoritariamente aos meninos, mas Boy a tinha contraído um par de anos antes. alojou-se uns dias em uma vicaría do East Anglia e os três filhos do vigário, de curta idade, a tinham contagiado. A experiência tinha sido muito dolorosa—. Te há dito por que? —Não. Já sabe como são esses tipos. Nunca soltam objeto. Daisy caiu na conta de que já não era tão despreocupada como no passado. Antes nunca teria pensado em seu matrimônio naqueles términos. Sempre lhe havia encantado o que Escarlate Ou’Hara dizia no que o vento se levou: Já o pensarei amanhã. Mas isso tinha trocado. Talvez estava maturando. Boy pedia o segundo coquetel quando Daisy olhou para a porta e viu entrar em marquês do Lowther, embelezado com um uniforme enrugado e sujo. Daisy o desprezava. Desde que conhecia sua relação com o Lloyd a tratava com uma familiaridade enjoativa, como se compartilhassem um segredo que os fazia ser íntimos. Lowther se sentou a sua mesa sem esperar a que lhe convidassem a fazê-lo, deixou cair a cinza do charuto sobre suas calças cáqui e pediu um Manhattan. Daisy soube imediatamente que não se trazia nada bom entre mãos. Havia em seus olhos um olhar de malvado deleite que não podia dever-se solo ao prazer de estar a ponto de tomar um bom coquetel. —Fazia como um ano que não te via, Lowthie —lhe disse Boy—. Onde estiveste? —Em Madrid —respondeu Lowthie—. Não posso contar muito. Súper secreto, já sabe. E você? —Passei muito tempo formando a pilotos, embora ultimamente voei em várias missões, agora que intensificamos o bombardeio da Alemanha. —Fantástico. Que os alemães tirem de seu próprio remédio. —Pode que você opine isso, mas muitos pilotos começam a protestar. —Seriamente? por que? —Porque toda esta história dos objetivos militares é uma descomunal mentira. Não tem sentido bombardear fábricas alemãs porque em seguida as reconstróem, assim estamos bombardeando regiões densamente povoadas por gente de classe operária. Assim não podem substituir tão depressa aos trabalhadores. Lowther parecia surpreso. —Isso significa que nossa política consiste em matar a civis. —Exato. —Mas o governo nos assegura que… —O governo minta —o interrompeu Boy—. E a tripulação dos bombardeiros sabe. A muitos importa um carajo, claro, mas outros se sentem mau. Acreditam que se estamos fazendo o correto, deveríamos dizê-lo, e que se estamos fazendo algo mau, deveríamos parar. Lowther parecia inquieto. —Não estou seguro de se deveríamos falar disto aqui. —Sim, suponho que tem razão —conveio Boy. Chegou a segunda ronda de coquetéis. Lowther se voltou para o Daisy. —E que tal a mujercita? —disse—. Deve estar trabalhando ao serviço da guerra. A ociosidade é a mãe de todos os vícios, segundo o provérbio. Daisy respondeu com naturalidade. —Agora que acabou o Blitz, já não se necessitam condutores para as ambulâncias, assim trabalho para a Cruz Vermelha americana. Temos um escritório no Pall Mall. Fazemos o que podemos para ajudar aos militares destinados em Londres. —Homens sós necessitados de companhia feminina, né? —A maioria só têm morrinha. Gostam de ouvir o acento de seu país. Lowthie lhe lançou um olhar lascivo. —Espero que te dê bem consolá-los. —Faço o que posso. —Não me cabe a menor duvida. —Ouça, Lowthie, não estará um pouco bêbado… Já sabe que essa forma de falar não é precisamente agradável —atravessou Boy. Ao Lowther lhe avinagrou o semblante. —OH, vamos, Boy, não me diga que não sabe. Está cego ou o que? —Boy, por favor, me leve a casa —disse Daisy. Boy não lhe fez caso e se dirigiu de novo ao Lowther. —A que diabos te refere? —lhe pergunte pelo Lloyd Williams. —Quem demônios é Lloyd Williams? —exclamou Boy. —Vou a casa sozinha, se não querer me levar —insistiu Daisy. —Conhece esse tal Lloyd Williams, Daisy? É seu irmão, pensou Daisy, e sentiu o irrefreável impulso de revelar o segredo e deixá-lo petrificado, mas acabou resistindo a tentação. —Conhece-o —disse—. Foi a Cambridge contigo. Faz anos o encontramos à saída de um teatro do East End. —Ah! —respondeu Boy ao recordá-lo. Logo, desconcertado, perguntou ao Lowther—: Ele? —Ao Boy resultava difícil contemplar como rival a alguém como Lloyd. Com crescente incredulidade, acrescentou—: Um homem que não pode nem costear um traje de etiqueta? —Faz três anos assistiu a meu curso de instrução no Ty Gwyn, quando Daisy vivia ali —respondeu Lowther—. Acredito recordar que então você estava arriscando a vida no céu da França a bordo de um Hawker Hurricane. Ela se entretinha com esse rato galesa… na casa de sua família! Ao Boy começava a acender-se o a cara. —Se lhe está inventando isso, Lowthie, juro Por Deus que te darei uma surra. —lhe pergunte a sua mulher! —disse Lowther com um sorriso confiado. Boy se voltou para o Daisy. Daisy não se deitou com o Lloyd no Ty Gwyn. Tinha dormido com ele em sua antiga cama, em casa de sua mãe, durante o Blitz. Isso não podia dizer-lhe ao Boy em presença do Lowther, e em qualquer caso não era mais que um detalhe. A acusação de adultério era certa, e ela não pensava negá-la. O segredo se desvelou. Quão único queria era conservar uma aparência de dignidade. —Contarei-te tudo o que queira saber, Boy…, mas não diante deste esnobe baboso —disse. Boy elevou a voz, perplexo. —De modo que não o nega. Os clientes da mesa contigüa os olharam, pareceram mortos de calor e voltaram a centrar-se em suas taças. Daisy também elevou a voz. —Nego-me a que me interrogue no bar do hotel Claridge. —Então, reconhece-o? —gritou Boy. O salão ficou em silêncio. Daisy ficou em pé. —Não reconheço nem nego nada aqui. Contarei-lhe isso tudo em privado, que é onde os matrimônios civilizados falam destes assuntos. —meu deus, fez-o, deitou-te com ele! —bramou Boy. Inclusive os garçons se detiveram e observavam a discussão. Daisy se encaminhou à porta. —Zorra! —gritou Boy. Daisy não pensava partir deixando as coisas assim. deu-se a volta. —Claro, você sabe muito de zorras. Tive a desgraça de conhecer dois das tuas, recorda? —Olhou a seu redor—. Joanie e Pearl —disse com voz desdenhosa—. Quantas algemas suportariam isso? —partiu antes de que ele pudesse replicar. Subiu a um dos táxis que aguardavam na porta. Quando este ficava em marcha, viu o Boy sair do hotel e subir ao seguinte táxi. Indicou ao taxista sua direção. Em certo modo se sentia aliviada porque a verdade tivesse saído à luz. Mas também se sentia terrivelmente triste. Sabia que algo se acabou. A casa estava a apenas uns quatrocentos metros. Justo quando chegava, o táxi do Boy se deteve detrás. Boy a seguiu ao vestíbulo. Daisy soube que não poderia ficar ali com ele. Aquilo se tinha acabado. Não voltaria a compartilhar seu lar nem sua cama. —me traga uma mala, por favor —lhe disse ao mordomo. —Em seguida, milady. Olhou a seu redor. Era uma casa do século XVIII, de proporções perfeitas, com umas elegantes escadas curvadas, mas em realidade não lamentava abandoná-la. —Aonde vai? —perguntou-lhe Boy. —A um hotel, suponho. Embora não acredito que escolha o Claridge. —Para te encontrar com seu amante! —Não, está no estrangeiro. Mas sim, amo-o. Sinto muito, Boy. Não tem direito a me julgar, suas ofensas são piores. E eu já me julgo sozinha. —acabou-se —disse ele—. vou divorciar me de ti. Daisy compreendeu que aquelas eram as palavras que tinha estado esperando ouvir. Agora que ele as tinha pronunciado, tudo tinha terminado. Sua nova vida começava nesse momento. Suspirou. —Graças a Deus —disse. III Daisy alugou um apartamento no Piccadilly. Tinha um quarto de banho espaçoso, de estilo norte-americano e com ducha. Havia dois serviços independentes, um para os convidados, um luxo ridículo aos olhos da maioria dos ingleses. Felizmente, o dinheiro não supunha um problema para o Daisy. Era rica graças à herança de seu avô Vyalov, e administrava sua fortuna desde que tinha completo vinte e um anos, uma fortuna em dólares americanos. Era difícil comprar móveis novos, de modo que optou pelas antiguidades, que abundavam a preços muito baixos. Pendurou quadros modernos para dar um ar alegre e juvenil ao apartamento. Contratou a uma lavadeira entrada em anos e a uma garota da limpeza, e lhe resultou fácil levar a casa sem mordomo nem cozinheira, mais ainda sem um marido ao que ter que mimar. Os serventes da casa do Mayfair empacotaram toda sua roupa e a enviaram em um caminhão de mudanças. Daisy e a lavadeira passaram a tarde abrindo as caixas e ordenando-o todo pulcramente. Tinham-na humilhado e liberado ao mesmo tempo. A fim de contas, pensou, estava melhor assim. A ferida do rechaço cicatrizaria, mas se tinha liberado do Boy para sempre. Uma semana depois sentiu curiosidade pelos resultados do exame médico. O doutor, é obvio, teria informado ao Boy, em qualidade de marido. Daisy não queria lhe perguntar a ele, e de todos os modos pensou que tampouco importava já, assim preferiu esquecer o assunto. Desfrutou transformando aquele piso em seu novo lar. Durante um par de semanas esteve muito ocupada para retomar a vida social. Quando acabou de acondicionar o apartamento, decidiu ver todas as amigas às que tinha descuidado. Tinha muitas amizades em Londres. Levava ali sete anos. Durante os últimos quatro, Boy tinha passado mais tempo fora que dentro de casa, e ela tinha assistido só a festas e a bailes, de modo que o fato de não ter marido não ia supor uma grande diferencia em sua vida, supôs. Sem dúvida a tachariam das listas de convidados da família Fitzherbert, mas havia muitas mais na sociedade de Londres. Comprou caixas de uísque, genebra e champanha, percorrendo todo Londres em busca do pouco que podia adquirir-se de forma legal e conseguindo o resto no mercado negro. Depois enviou convites para a festa de inauguração do piso que tinha decidido celebrar. As respostas chegaram com inquietante prontidão e todas foram negativas. Chamou a Eva Murray com lágrimas nos olhos. —por que ninguém quer vir a minha festa? —gemeu. Eva estava em sua porta dez minutos depois. Chegou com três meninos e uma babá. Jamie tinha seis anos, Anna quatro e Karen, o bebê, dois. Daisy lhe ensinou o apartamento e depois pediu que lhes preparassem chá enquanto Jamie convertia o sofá em um tanque, com suas irmãs como tripulantes. Eva falou em inglês com uma mescla de acento alemão, americano e escocês. —Daisy, carinho, isto não é Roma. —Sei. Seguro que está cômoda? Eva se encontrava na última etapa do embaraço de seu quarto filho. —Importa-te se puser os pés em alto? —Claro que não. —Daisy lhe levou uma almofada. —A sociedade de Londres é respeitável —prosseguiu Eva—, embora não cria que me entusiasma. Também me excluíram freqüentemente, e às vezes o pobre Jimmy se leva algum que outro despreze por haver-se casado com uma alemã médio judia. —É horrível. —Não o desejo a ninguém, à margem dos motivos. —Às vezes odeio aos ingleses. —Esquece como são os americanos. Não recorda que me disse que as garotas do Buffalo eram umas esnobes? Daisy riu. —Parece que tenha passado muito tempo daquilo. —deixaste a seu marido —disse Eva—. E o tem feito de um modo inquestionavelmente espetacular, insultando-o no bar do hotel Claridge. —E só tinha tomado um Martini! Eva sorriu. —Como me teria gostado de estar ali! —Em certo modo me teria gostado não estar. —Como suporá, a alta sociedade londrino não falou que outra coisa nas últimas três semanas. —Deveria havê-lo imaginado. —Temo-me que agora qualquer que se apresentasse em sua festa seria considerado partidário do adultério e do divórcio. Nem sequer eu quero que minha sogra saiba que vim a tomar chá contigo. —Mas é tão injusto… Boy já me tinha sido infiel! —E acreditava que às mulheres nos trata com igualdade? Daisy recordou que Eva tinha muito mais de que preocupar-se que do esnobismo. Sua família seguia na Alemanha nazista. Fitz tinha indagado por meio da embaixada Suíça e tinha averiguado que seu pai estava em um campo de concentração, e que a seu irmão, fabricante de violinos, a polícia lhe tinha dado uma surra e o tinha destroçado as mãos. —Quando penso em seus problemas, envergonho-me de me queixar —disse Daisy. —Não tem do que te envergonhar. Mas cancela a festa. Daisy seguiu seu conselho. Entretanto, isso a deprimiu. O trabalho para a Cruz Vermelha enchia seus dias, mas pelas noites não tinha aonde ir nem nada que fazer. Ia ao cinema duas vezes por semana. Tentou ler Moby Dick, mas lhe pareceu aborrecido. Um domingo foi à igreja. a do St. James, desenhada pelo Christopher Wren e que ficava frente a seu apartamento, no Piccadilly, tinha sido bombardeada, pelo que foi a do St. Martin-in-theFields. Boy não estava ali, mas sim Fitz e B, e Daisy passou todo o ofício religioso olhando a nuca do Fitz e pensando que se apaixonou pelos dois filhos daquele homem. Boy tinha herdado as facções de sua mãe e o tenaz egoísmo de seu pai; Lloyd, o atrativo de seu pai e o enorme coração de sua mãe. por que terei demorado tanto em vê-lo?, perguntou-se. A igreja estava cheia de conhecidos, e depois do ofício nenhum deles lhe dirigiu a palavra. Estava sozinha e quase não tinha amigos em um país estrangeiro e em plena guerra. Uma noite foi em táxi ao Aldgate e bateu na porta dos Leckwith. Ethel saiu a recebê-la. —vim a pedir em matrimônio a mão de seu filho —disse Daisy. Ethel deixou escapar uma gargalhada e a abraçou. Levava-lhes um presente, uma lata de presunto norte-americano que tinha conseguido de mãos de um co-piloto das forças aéreas americanas. Produtos como aquele eram autênticos luxos para as famílias britânicas submetidas ao racionamento. sentou-se na cozinha com o Ethel e Bernie, e escutaram música alegre na rádio. Cantaram juntos Underneath the Arches, do Flanagan e Allen. —Bud Flanagan nasceu aqui, no East End —disse Bernie, orgulhoso—. Seu verdadeiro nome era Chaim Reuben Weintrop. Os Leckwith estavam emocionados com o Relatório Beveridge, uma publicação governamental que tinha chegado a ser súper vendas. —Encarregado por um primeiro-ministro conservador e escrito por um economista liberal —disse Bernie—, e mesmo assim propõe o que a Partida Trabalhista sempre quis! Em política, a gente sabe que está ganhando quando seus oponentes lhe roubam as idéias. —Propõe que todo mundo em idade de trabalhar pague uma prima semanal —explicou Ethel— para que depois tenham direito a um subsídio quando estiverem doentes, no
parada ou aposentados, ou fiquem viúvos. —Uma proposta simples, mas que transformará nosso país —acrescentou Bernie com entusiasmo—. Ninguém voltará a ver-se nunca na indigência. —Aceitou-a o governo? —perguntou Daisy. —Não —respondeu Ethel—. Clem Attlee pressionou muito ao Churchill, mas Churchill não referendou o Relatório. O Tesouro acredita que custará muito. —Teremos que ganhar umas eleições antes de que possamos levar a à prática. A filha do Ethel e Bernie, Millie, chegou nesse momento. —Não posso ficar muito momento —disse—. Abie vai cuidar dos meninos meia hora. Tinha perdido seu emprego —as mulheres já não compravam vestidos caros, embora pudessem permitir-lhe mas por sorte o negócio do couro de seu marido prosperava, e tinham dois bebês, Lennie e Pammie. Tomaram chocolate quente e falaram do jovem ao que todos adoravam. Logo que tinham notícias do Lloyd. Cada seis ou oito meses, Ethel recebia uma carta com o cabeçalho da embaixada britânica em Madrid em que lhe informavam que estava bem e que seguia contribuindo a derrotar ao fascismo. Tinham-no subido a comandante. Nunca tinha escrito ao Daisy, por medo de que Boy pudesse ler seu correio, mas agora já podia fazê-lo. Daisy deu ao Ethel a direção de seu novo piso e anotou a do Lloyd, que era um código do Escritório Postal do Exército Britânico. Não tinham idéia de se voltaria para casa de licença. Daisy lhes falou de seu meio-irmão, Greg, e do filho deste, Georgy. Sabia que precisamente os Leckwith não censurariam o que aconteceu e que saberiam alegrar-se da notícia. Também lhes narrou a história da família da Eva no Berlim. Bernie era judeu, e lhe encheram os olhos de lágrimas quando ouviu que ao Rudi tinham destroçado as mãos. —Deveriam ter combatido a esses bodes fascistas na rua, quando tiveram a oportunidade —disse—. Isso é o que fizemos nós. —Ainda tenho cicatrizes nas costas —comentou Millie—, de quando a polícia nos empurrou pela vidraça rota do Gardiner. Envergonhava-me delas, Abie não me viu as costas até que levávamos seis meses casados, mas diz que lhe fazem sentir-se orgulhoso de mim. —A batalha de Cabo Street não foi agradável —acrescentou Bernie—, mas pôs fim a sua sangrenta estupidez. —tirou-se os óculos e se enxugou os olhos com um lenço. Ethel lhe jogou um braço sobre os ombros. —Aquele dia lhe disse às pessoas que ficasse em casa —recordou—. Me equivocava, e você tinha razão. Bernie esboçou um sorriso triste. —Não passa freqüentemente. —Mas foi a Lei de Ordem Pública, que se promulgou depois do de Cabo Street, o que acabou com os fascistas britânicos —disse Ethel—. O Parlamento proibiu levar uniformes políticos em público. Isso acabou com eles. Se não podiam pavonear-se por toda parte com suas camisas negras, não eram nada. Os conservadores o conseguiram. Terá que reconhecer o mérito a quem o tem. Família de tradição política, os Leckwith planejavam uma reforma do país à mãos da Partida Trabalhista quando acabasse a guerra. Sua líder, um homem discreto e brilhante como Clement Attlee, era agora vice-presidente com o Churchill, e o herói sindicalista Ernie Bevin, ministro do Trabalho. Sua visão fez sentir-se ao Daisy esperançada. Millie partiu e Bernie foi se dormir. —De verdade quer te casar com meu Lloyd? —perguntou- Ethel ao Daisy quando ficaram sozinhas. —Mais que nada no mundo. Parece-te bem? —Sim. por que não? —Porque vamos de entornos muito diferentes. Vós são muito boas pessoas. Vivem derrubados no serviço a outros. —Exceto nossa Millie. É como o irmão do Bernie… Só quer ganhar dinheiro. —Embora conserve as cicatrizes de Cabo Street. —Certo. —Lloyd é como você. Para ele a política não é uma atividade complementar ou uma afeição…, é o centro de sua vida. E eu sou uma milionária egoísta. —Acredito que há duas classes de matrimônios —disse Ethel com ar reflexivo—. Um é a do casal cômoda e estável, em que duas pessoas compartilham esperanças e medos, educam aos filhos como uma equipe e se oferecem consolo e ajuda. —Daisy compreendeu que falava do Bernie e dela—. A outra é a da paixão selvagem, a loucura, a alegria e o sexo, possivelmente com alguém completamente inadequado, possivelmente com alguém a quem não admira e que nem sequer você gosta. —Daisy estava segura de que estava pensando em sua aventura com o Fitz. Conteve o fôlego, sabia que Ethel estava dizendo a verdade em estado puro—. Eu fui muito afortunada, vivi as duas —prosseguiu Ethel—. E este é o conselho que te dou: se tiver a oportunidade de experimentar esse amor louco e desenfreado, te aferre a ele com força e ao diabo com as conseqüências. —Uau —disse Daisy. partiu pouco depois. sentia-se privilegiada porque Ethel lhe tivesse deixado ver parte de sua alma. Mas quando retornou a seu apartamento vazio, voltou a deprimir-se. preparou-se um coquetel e o atirou sem bebê-lo. Pôs a bule a esquentar e também a retirou. Acendeu a rádio e a apagou… Ao final, deitou-se entre lençóis frite e desejou que Lloyd estivesse ali. Comparou a família do Lloyd com a sua. As duas tinham uma história turbulenta, mas Ethel tinha forjado a partir de uma base desfavorável uma família forte em a que todos se apoiavam, algo que sua mãe tinha sido incapaz de conseguir, embora era mais culpa do Lev que da Olga. Ethel era uma mulher excepcional, e Lloyd possuía muitas de suas qualidades. Onde estaria nesse momento? O que estaria fazendo? Fora qual fosse a resposta, estava segura de que corria perigo. Teria morrido já, quando ao fim ela era livre para amá-lo sem restrições e para casar-se com ele? O que faria ela se morria? Tinha a sensação de que sua vida também se acabaria: sem marido, sem amante, sem amigos, sem país. Perto já do amanhecer, chorou até ficar dormida. Ao dia seguinte despertou tarde. Tomava café a meio-dia em seu pequeno comilão, vestida com um salto de cama negro, quando a donzela de quinze anos entrou. —O comandante Williams está aqui, milady —lhe disse. —O que? —chiou—. Não pode ser ele! Então Lloyd entrou pela porta com a mochila ao ombro. Parecia cansado e levava barba de vários dias, e era evidente que tinha dormido com o uniforme posto. Daisy se lançou a seus braços e beijou sua cara áspera. Lloyd lhe devolveu o beijo, um pouco coibido porque não podia deixar de sorrir. —Devo emprestar —disse entre beijo e beijo—. Levo uma semana sem me trocar de roupa. —Cheira a fábrica de queijos —respondeu ela—. eu adoro. —Levou-o a dormitório e começou a despi-lo. —Darei-me uma ducha rápida —disse ele. —Não —replicou Daisy. Empurrou-o de costas sobre a cama—. Tenho muita pressa. O desejo que sentia por ele era desmedido. E o certo é que desfrutou de do forte aroma de seu corpo. Deveria havê-la repelido, mas obrou o efeito contrário. Era ele, o homem ao que tinha acreditado morto, e seu aroma lhe enchia o nariz e os pulmões. Poderia ter chorado de felicidade. Para lhe tirar as calças teria tido que lhe descalçar antes as botas, coisa que parecia complicada, assim não se incomodou em fazê-lo. limitou-se a lhe desabotoar a braguilha. arrancou-se o salto de cama e subiu a camisola até a cintura, sem deixar de olhar com alegre luxúria o membro branco que aparecia já pela tosca tecido cáqui. Logo se sentou escarranchado sobre ele, inclinou-se para diante e o beijou. —OH, Deus —lhe disse—. Não sabe quanto te desejei. Estirada sobre ele, não se moveu muito, tão solo o beijava sem parar. Ele tomou sua cara entre as mãos e a olhou fixamente. —Isto é real, verdade? —perguntou-lhe ele—. Não é outro sonho feliz… —É real —respondeu ela. —Perfeito. Não queria despertar agora. —Quero estar assim sempre. —Bonita idéia, mas não acredito que possa agüentar muito mais. —Começou a mover-se baixo ela. —Se fizer isso, correrei-me —disse Daisy. E o fez. Depois ficaram na cama muito momento, falando. Lloyd tinha duas semanas de licença. —te instale aqui —lhe propôs Daisy—. Poderá ir ver todos os dias a seus pais, mas te quero comigo de noite. —Não suportaria que por minha culpa tivesse má reputação. —Muito tarde. A sociedade de Londres já me repudiou. —Sei. —Tinha chamado por telefone ao Ethel da estação do Waterloo e lhe tinha informado da separação do Daisy e Boy, e lhe tinha dado a direção do piso. —Teremos que utilizar algum método anticoncepcional —disse Lloyd—. Tentarei conseguir preservativos. Embora possivelmente prefira algum dispositivo permanente… O que opina? —Quer te assegurar de que não fique grávida? —perguntou ela. Havia uma nota de tristeza em sua voz, e ele a captou. —Não me interprete mal —disse. incorporou-se e se apoiou sobre um cotovelo—. Sou filho ilegítimo. Mentiram-me sobre minha origem, e quando soube a verdade foi um golpe muito duro. —Sua voz tremia sutilmente de emoção—. Nunca faria passar a meus filhos por algo assim. Nunca. —Nós não teríamos que lhes mentir. —Diríamo-lhes que não estamos casados? Que em realidade você está casada com outro? —Não vejo por que não. —Pensa em como se burlariam deles na escola. Daisy não estava convencida, mas era evidente que para ele era uma questão delicada. —Então, o que quer fazer? —Quero que tenhamos filhos. Mas não até que possamos nos casar. —Entendo-o —disse ela—. Então… —Temos que esperar. Os homens eram tão lentos captando indiretas… —Eu não sou muito tradicional —acrescentou—, mas, mesmo assim, há certas coisas que… Ao fim ele compreendeu aonde queria chegar. —Ah! Vale, um momento. —ajoelhou-se na cama—. Daisy, carinho… Daisy estalou em gargalhadas. Lloyd tinha um aspecto cômico, uniformizado e com o pênis flácido pendurando por fora da braguilha. —Posso te fazer uma foto assim? —perguntou-lhe ela. Lloyd baixou o olhar e viu que se referia. —OH, sinto muito. —Não! Não te atreva a escondê-lo! Fique exatamente como está, e me diga o que foste dizer me. Ele sorriu. —Daisy, carinho, quer ser minha esposa? —quanto antes —respondeu ela. Voltaram a jazer abraçados. A novidade do aroma do Lloyd logo se desvaneceu. tomaram banho juntos. Daisy o ensaboou de pés a cabeça, desfrutando alegremente de seu abafado quando lhe lavou as partes mais íntimas. Esfregou-lhe o cabelo com xampu e escovou seus imundos pés. Quando já estava limpo, Lloyd insistiu em lavá-la a ela, mas logo que tinha chegado a seus peitos quando sentiram o apresso de voltar a fazer o amor. E o fizeram ali, em pé na ducha, com a água quente derramando-se por seus corpos. Era óbvio que ele tinha esquecido momentaneamente sua aversão pelos embaraços ilegítimos, e não lhe importou. Depois Lloyd se barbeou frente ao espelho. Daisy se envolveu em uma toalha e se sentou sobre a tampa do privada, contemplando-o. —Quanto demorará para te divorciar? —perguntou-lhe Lloyd. —Não sei. Será melhor que fale com o Boy. —Mas não hoje. Quero-te para mim todo o dia. —Quando vai ver seus pais? —Possivelmente amanhã. —Aproveitarei então para ir falar com o Boy. Quero acabar com isto o antes possível. —Muito bem —disse Lloyd—. Decidido, pois. IV Daisy se sentiu estranha ao entrar na casa em que tinha vivido com o Boy. Um mês antes tinha sido também sua casa. Tinha tido liberdade para ir e vir a seu desejo, e acessar a qualquer estadia sem pedir permissão. Os serventes tinham obedecido todas suas ordens sem replicar. Agora era uma estranha ali. deixou-se postos o chapéu e as luvas, e teve que seguir ao velho mordomo, que a precedeu até a sala de estar. Boy não lhe estreitou a mão nem a beijou. Parecia transbordado por uma espécie de indignação justificada. —Ainda não contratei a um advogado —disse Daisy enquanto tomava assento—. Queria falar antes em pessoa contigo. Confio em que possamos fazer isto sem chegar a nos odiar. Ao fim e ao cabo, não há meninos pelos que brigar, e os dois temos muito dinheiro. —Traíste-me! —exclamou ele. Daisy suspirou. Estava claro que aquilo não ia como ela esperava. —Os dois cometemos adultério —respondeu—. E você antes que eu. —Humilhaste-me. Todo Londres sabe! —Tentei evitar que pusesse em ridículo no Claridge, mas estava muito ocupado me humilhando a mim! Espero que tenha dado seu castigo a esse repugnante marquês. —por que? Fez-me um favor. —Poderia te haver feito um favor muito maior falando contigo discretamente no clube. —Não entendo como pudeste te apaixonar por um palurdo de classe baixa como Williams. averigüei umas quantas coisas sobre ele. Sua mãe foi criada! —Provavelmente é a mulher mais impressionante que conheci. —Espero que esteja à corrente de que ninguém sabe quem é seu verdadeiro pai. Daisy pensou que aquilo era o mais irônico que podia ter esperado. —Sei quem é seu pai —respondeu. —Quem? —Não lhe penso dizer isso —¿Qué quieres decir? ¿Por qué no? —Vê-o? —Isto não nos está levando a nenhuma parte. —Não. —Acredito que será melhor que peça a um advogado que te escreva. —ficou em pé—. Houve um tempo em que te quis, Boy —disse com voz triste—. Foi divertido. Sinto que eu não fora suficiente para ti. Desejo-te que seja feliz. Espero que te case com alguém mais adequado para ti, e que te dê muitos filhos. Alegrarei-me muito quando isso ocorra. —Pois não ocorrerá —respondeu ele. Daisy se tinha encaminhado à porta, mas para ouvir aquilo se voltou. —por que diz isso? —recebi o relatório do médico ao que fomos. Daisy se tinha esquecido já daquela visita médica. Tinha-lhe parecido irrelevante depois de separar-se. —O que te há dito? —Você não tem nenhum problema. Pode ter toda uma ninhada de cachorrinhos, se quiser. Mas eu não posso engendrar filhos. Às vezes as caxumba provocam infertilidade nos homens adultos, e me há meio doido. —riu amargamente—. Todos esses malditos alemães me disparando durante anos, e acabaram me tombando os três mucosos de um vigário. Daisy sentiu lástima por ele. —OH, Boy, sinto-o muito. —Bom, ainda o vais sentir mais, porque não penso me divorciar de ti. Daisy ficou geada. —O que quer dizer? por que não? —por que ia incomodar me em me divorciar? Não vou voltar a me casar. Não posso ter filhos. O filho do Andy será o herdeiro. —Mas eu quero me casar com o Lloyd! —por que ia importar me isso ?por que ia ter ele filhos se eu não puder? Daisy se sentiu desolada. Lhe foram arrebatar a felicidade justo quando parecia tê-la ao alcance da mão? —Boy, não pode falar a sério! —Em toda minha vida falei mais a sério. Sua voz denotava angústia. —Mas Lloyd quer ter filhos! —Deveria ter pensado nisso antes de f… f… follarse à mulher de outro. —Muito bem —repôs ela, desafiante—. Pois então me divorciarei eu. —Alegando o que? —Adultério, é obvio. —Não tem provas. —Daisy estava a ponto de dizer que isso não suporia um problema quando ele sorriu com malícia e acrescentou—: E eu me encarregarei de que não as consiga. Podia fazê-lo se era discreto com suas aventuras, compreendeu Daisy com crescente horror. —Mas você me rechaçou! —gritou. —Direi-lhe ao juiz que sempre será bem-vinda nesta casa. Daisy tentou conter as lágrimas. —Nunca acreditei que me odiasse tanto —disse, abatida. —Ah, não? —respondeu Boy—. Bem, pois agora já sabe. V Lloyd Williams foi à casa do Boy Fitzherbert, no Mayfair, no meio da amanhã, momento do dia em que Boy estaria sóbrio, e lhe disse ao mordomo que era o comandante Williams, um parente longínquo. Acreditava que merecia a pena manter uma conversação de homem a homem. Obviamente, Boy não quereria dedicar o resto de sua vida a vingar-se… Lloyd ia uniformizado, confiando em que Boy o visse como o que ele também era, um combatente, embora sem dúvida prevaleceria o sentido comum. Acompanharam-no à sala de estar, onde Boy lia o periódico e fumava um charuto. Boy demorou um momento em reconhecê-lo. —Você! —exclamou quando finalmente o fez—. Já pode te largar agora mesmo. —vim a te pedir que conceda o divórcio ao Daisy —disse Lloyd. —Fora daqui. —Boy ficou em pé. —Vejo que contempla a idéia de tentar me pegar, assim para ser justos te direi que não te resultará tão fácil como imagina. Pode que seja um pouco mais baixo que você, mas sou peso leve de boxe e ganhei muitos combates. —Não penso me manchar as mãos contigo. —Boa decisão. Mas vais reconsiderar o do divórcio? —Rotundamente, não. —Há algo que não sabe —disse Lloyd— e que talvez te faça trocar de opinião. —Duvido-o —respondeu Boy—, mas adiante; já que está aqui, dispara. —sentou-se, mas não ofereceu assento ao Lloyd. Eu de ti não o duvidaria tanto, pensou Lloyd. tirou-se do bolso uma fotografia velha de cor sépia. —Se for tão amável, olhe esta fotografia. Sou eu. —Deixou-a sobre a mesa de café, ao lado do cinzeiro do Boy. Boy a agarrou. —Este não é você. parece-se com ti, mas o uniforme é vitoriano. Deve ser seu pai. —Em realidade é meu avô. lhe dê a volta. Boy leu a inscrição que havia no reverso. —Conde Fitzherbert? —perguntou com ar desdenhoso. —Sim. O anterior conde, seu avô… e o meu. Daisy encontrou essa foto no Ty Gwyn. —Lloyd tomou ar—. Disse ao Daisy que ninguém sabe quem é meu pai. Bem, eu mesmo lhe posso dizer isso É o conde Fitzherbert. Somos irmãos, Boy. —Esperou sua resposta. Boy se pôs-se a rir. —Isso é ridículo! —A mesma reação que tive eu quando me inteirei. —Bom, tenho que admitir que me surpreendeste. Teria esperado que viesse com algo melhor que esta fantasia absurda. Lloyd tinha crédulo em que aquela revelação conmocionaría ao Boy e o faria trocar de atitude, mas no momento não estava funcionando. Entretanto, prosseguiu com seu raciocínio. —Vamos, Boy, tão improvável te parece? Acaso não é algo que passa continuamente nas grandes mansões? Criadas bonitas, jovens nobres e ardentes, e a natureza segue seu curso. Quando nasce um bebê, o assunto se encobre. Por favor, não finja que não tinha nem idéia de que estas coisas passam. —Não duvido que seja algo habitual. —Sua confiança começava a cambalear-se, mas Boy seguia fanfarroneando—. Entretanto, muita gente finge ter algum vínculo com a aristocracia. —OH, por favor —repôs Lloyd com tom depreciativo—. Eu não quero ter nenhum vínculo com a aristocracia. Não sou o aprendiz de um pañero com sonhos de grandeza. Provenho de uma distinguida família de políticos socialistas. Meu avô materno foi um dos fundadores da Federação Mineira do Gales do Sul. O último que preciso é ter um vínculo de bastardia com um par conservador. Já é bastante abafadiço para mim. Boy voltou a rir, embora com menos convicção. —Você, morto de calor! Vá, o típico renegado de sua origem nobre que elogia a classe social inferior a que quer pertencer. —Inferior? Tenho mais probabilidades que você de chegar a ser primeiro-ministro. —Lloyd compreendeu que se encetaram em uma briga de galos, e não era isso o que queria—. Não importa —disse—. Estou tratando de te convencer de que não passe o resto de sua vida te vingando de mim… embora solo seja porque somos irmãos. —Sigo sem acreditar me respondeu isso Boy enquanto deixava a foto na mesa e agarrava o charuto. —Eu tampouco me acreditei isso no princípio. —Lloyd seguiu tentando-o, todo seu futuro estava em jogo—. Então me recordaram que minha mãe trabalhava no Ty Gwyn quando ficou grávida, que sempre se mostrou evasiva com a identidade de meu pai, e que pouco antes de que eu nascesse de algum modo conseguiu dinheiro para comprar uma casa de três habitações em Londres. Expu-lhe minhas suspeitas e ela admitiu a verdade. —É irrisório. —Mas sabe que é verdade, não é assim? —Pois não. —Eu acredito que sim. Nem sequer por nossa fraternidade fará o mais decente? —Não. Lloyd viu que não ia ganhar. sentiu-se abatido. Boy tinha o poder de arruinar sua vida, e estava decidido a fazer uso dele. Agarrou a fotografia e a guardou no bolso. —Perguntará a seu pai sobre isto. Não poderá resistir. Precisará sabê-lo. Boy proferiu um som zombador. Lloyd se dirigiu à porta. —Acredito que ele te dirá a verdade. Adeus, Boy. Saiu e fechou a porta a seu passo. 16 1943 (II) I O coronel Albert Beck recebeu um balaço russo no pulmão direito no Járkov em março de 1943. Teve sorte: um cirurgião do acampamento lhe praticou uma drenagem em o peito e voltou a lhe inflar o pulmão, o que lhe permitiu lhe salvar a vida pelos cabelos. Debilitado pela perda de sangue e pela infecção quase inevitável, Beck foi transladado a seu país em trem e acabou no hospital do Berlim onde trabalhava Carla. Era um homem forte e fibroso de quarenta e poucos anos, com calvície prematura e uma mandíbula proeminente similar à proa de um navio vikingo. A primeira vez que falou com a Carla estava sob os efeitos da medicação e tinha febre, pelo que foi muito indiscreto. —Estamos perdendo a guerra —disse. Ela prestou atenção imediatamente. Um oficial descontente era uma fonte potencial de informação. —Os periódicos dizem que estamos reduzindo a linha de batalha no fronte oriental —respondeu ela sem lhe dar muita importância. Ele riu com desdém. —Isso significa que nos estamos retirando. Carla seguiu lhe surrupiando informação. —E na Itália a coisa pinta mau. —O ditador italiano Benito Mussolini, o maior aliado do Hitler, tinha sido tombado. —lembra-se de 1939 e 1940? —perguntou Beck com nostalgia—. Uma brilhante vitória relâmpago atrás de outra. Isso sim que eram bons tempos. Saltava à vista que não se movia por nenhuma ideologia, talvez nem sequer lhe interessasse a política. Era um militar patriota normal e corrente que tinha deixado de enganar-se a si mesmo. Carla lhe seguiu a corrente. —Não é possível que, como dizem, o exército ande escasso de tudo, desde balas até cueca. —Ultimamente, não era estranho ouvir no Berlim conversações desse tipo, mas bem arriscadas. —claro que sim. —Beck estava desinhibido por completo mas conservava bastante a capacidade de articular—. a Alemanha não pode de maneira nenhuma fabricar tantos fuzis e tanques como a União Soviética, Grã-Bretanha e Estados Unidos juntos, sobre tudo porque não param de nos bombardear. E não importa a quantos russos matemos, o Exército Vermelho parece dispor de uma fonte inesgotável de recrutas. —O que acredita que ocorrerá? —Os nazistas não admitirão nunca a derrota, é obvio, ou seja que não parará de morrer gente. Morrerão a milhões, e tudo porque os nazistas são muito orgulhosos para dar seu braço a torcer. Que loucura. Que loucura. —ficou dormido. Tinha que estar muito doente, ou muito desenquadrado, para pronunciar semelhantes pensamentos em voz alta, mas Carla acreditava que cada vez havia mais gente que opinava igual. Apesar da constante propaganda do governo, era evidente que Hitler estava perdendo a guerra. Não se tinha aberto nenhuma investigação policial pela morte do Joachim Koch. Os periódicos o apresentaram como um atropelo. Carla tinha superado a comoção inicial, mas de vez em quando a assaltava a consciência de que tinha assassinado a um homem e revivia mentalmente sua morte, e então lhe fraquejavam as forças e tinha que sentar-se. Por sorte, solo lhe tinha ocorrido uma vez enquanto estava trabalhando e lhe tirou importância aduzindo um desmaio devido à fome, o qual era perfeitamente verossímil no Berlim dos tempos da guerra. Sua mãe o levava pior. Resultava curioso que Maud amasse ao Joachim, com o brando e tolo que era; mas nada podia justificar o amor. Carla também tinha sofrido um completo desengano com o Werner Franck ao acreditá-lo forte e valente e logo descobrir que era débil e egoísta. Falou muito com o Beck antes de que lhe dessem o alta, tratando de averiguar que classe de pessoa era. Uma vez recuperado, jamais voltou a tratar questões bélicas com indiscrição. Descobriu que era militar de carreira, que sua esposa tinha morrido e que sua filha estava casada e vivia em Buenos Aires. Seu pai tinha sido vereador na prefeitura do Berlim; não lhe tinha explicado a que partido pertencia, ou seja que seguro que não era dos nazistas nem de nenhum de seus aliados. Nunca dizia nada mau do Hitler, embora tampouco nada bom, nem falava com desdém dos judeus ou os comunistas; nem sequer o fez nos dias que roçou a insubordinação. O pulmão lhe curou, mas nunca voltaria a gozar da fortaleza suficiente para a vida militar ativa, pelo qual foram destinar o ao Corpo de Estado Maior. Era uma autêntica mina de informação secreta de vital importância. Carla se jogava a vida se tratava de recrutá-lo; mas tinha que tentá-lo. Sabia que o homem não recordava sua primeira conversação. —Falou com muita franqueza —disse Carla em voz baixa. Não havia ninguém perto—. Disse que estávamos perdendo a guerra. lhe cintilaram os olhos de medo. Já não era um paciente dormitado vestido com a bata do hospital e com barba incipiente. Ia asseado e barbeado, sentava-se muito direito e luzia um pijama azul marinho abotoado até o pescoço. —Suponho que denunciará a Gestapo —disse—. Não acredito que deva se ter em conta o que diz um homem doente e delirante. —Não delirava —repôs ela—. Falava muito claro. Mas não penso denunciá-lo a ninguém. —Não? —Não, porque tem razão. Ele se surpreendeu. —Agora sou eu quem deveria denunciá-la. —Se o fizer, contarei que em seu desvario insultou ao Hitler, e que quando lhe ameacei denunciando-o-se inventou uma história para desculpar-se. —Se eu a denunciar, você me denuncia . Estamos em pranchas. —Mas você não me denunciará —disse—. Sei porque o conheço. Cuidei-o enquanto estava doente e sei que é uma boa pessoa. alistou-se no exército por amor a seu país, mas odeia a guerra e aos nazistas. —Estava virtualmente convencida de que era assim. —É muito perigoso falar desse modo. —Já sei. —Ou seja que não se trata de uma conversação casual. —Exato. Disse que milhões de pessoas morrerão por culpa de que os nazistas são muito orgulhosos para render-se. —Isso pinjente? —Agora pode ajudar a que algumas dessas pessoas se salvem. —Como? Carla fez uma pausa. Esse era o momento em que ia jogar se a vida. —Eu posso fazer chegar ao destino apropriado qualquer informação de que disponha. —Conteve a respiração. Se estava equivocada com respeito ao Beck, era mulher morta. Captou o assombro em seu olhar. Apenas lhe cabia na cabeça que essa enfermeira jovem e eficiente fora uma espiã. Entretanto, acreditava-; Carla também captou isso. —Acredito que a compreendo —disse. Lhe tendeu uma pasta verde do hospital, vazia, e ele a agarrou. —Para que é? —perguntou. —É militar, sabe o que significa camuflagem. Ele assentiu. —está-se jogando a vida —disse, e Carla observou em seus olhos um pouco parecido a um brilho de admiração. —Agora você também. —Sim —respondeu o coronel Beck—. Mas eu estou acostumado. II A primeira hora da manhã, Macke levou a jovem Werner Franck à a prisão do Plötzensee, situada no bairro do Charlottenburg, no oeste do Berlim. —Tem que ver isto —disse—. Assim poderá lhe explicar ao general Dorn quão eficientes somos. Estacionou no Königsdamm e guiou ao Werner até a porta traseira do edifício principal da prisão. Entraram em uma sala de sete metros e meio de comprimento e aproximadamente a metade de largura. Ali aguardava um homem embelezado com um fraque, uma cartola e umas luvas brancas. Werner enrugou a frente ante a peculiar indumentária. —Este é herr Reichhart —disse Macke—. O verdugo. Werner tragou saliva. —Assim, vamos presenciar uma execução? —Isso. —E por que leva esse traje tão elegante? —perguntou Werner em um tom despreocupado que bem podia ser fingido. —É a tradição —respondeu Macke encolhendo-se de ombros. Uma cortina negra dividia a sala em dois. Macke a abriu e revelou oito ganchos fixados a uma viga de ferro que se estendia de lado a lado do teto. —É para pendurá-los? —perguntou Werner. Macke assentiu. Também havia um tabuleiro de madeira com umas correias para sujeitar a uma pessoa. Ao final do tabuleiro se via um dispositivo alto de forma inconfundível e no chão, uma robusta cesta. O jovem tenente empalideceu. —Uma guilhotina —disse. —Exato —assentiu Macke. Olhou o relógio—. Não teremos que esperar muito. Entraram mais homens. Vários saudaram o Macke com a cabeça de modo familiar. Macke sussurrou ao Werner ao ouvido. —As normas obrigam a que atiram os juizes, os funcionários do tribunal, o diretor da prisão e o capelão. Werner tragou saliva. Macke se dava conta de que aquilo não gostava nem um cabelo. Disso se tratava. Não o tinha levado ali para impressionar ao general Dorn. Ao Macke preocupava Werner. Havia algo nele que não lhe resultava convincente. Não cabia dúvida de que trabalhava para o Dorn. Tinha-o acompanhado durante uma visita ao quartel geral da Gestapo depois da qual Dorn tinha escrito uma nota na que reconhecia o admirável esforço do Berlim por combater a espionagem, e mencionava ao Macke, como resultado do qual este se passeou durante semanas com um mefítico ar fátuo. Entretanto, Macke não podia esquecer o comportamento do Werner a noite de fazia quase um ano que tinham estado a ponto de apanhar a um espião em uma fábrica desmantelada de casacos de pele perto do Ostbahnhof. O jovem tinha sofrido um ataque de pânico; ou não? Fosse por acidente ou por outro motivo, a questão era que tinha posto sobre aviso ao pianista e este tinha fugido. Macke não conseguia desprezar a sensação de que o ataque de pânico tinha sido fingido e de que, em realidade, Werner havia atuado de modo frio e deliberado para fazer saltar o alarme. Não tinha tido guelra de detê-lo e torturá-lo. Poderia havê-lo feito, é obvio, mas Dorn teria armado um bom escândalo e isso teria posto em interdição ao Macke. Seu chefe, o superintendente Kringelein, que não lhe tinha muita avaliação, lhe teria perguntado que provas de peso tinha contra Werner; e não tinha nenhuma. Entretanto, esse método tinha que servir para revelar a verdade. A porta voltou a abrir-se e dois guardas da prisão entraram escoltando a uma jovem chamada Lili Markgraf. Ouviu que Werner afogava um grito. —O que ocorre? —perguntou Macke. —Não me havia dito que fosse uma mulher. —Conhece-a? —Não. Macke sabia que Lili tinha vinte e dois anos, embora parecia menor. Essa manhã lhe tinham talhado o cabelo loiro, e agora o levava igual a um homem. Caminhava coxeando e com o corpo dobrado para diante como se sofresse alguma ferida abdominal. Levava um singelo vestido azul de algodão grosso sem pescoço, com o decote a caixa. Tinha os olhos avermelhados de tanto chorar. Os guardas a sujeitavam com força pelos braços, não pensavam correr riscos. —Denunciou-a um familiar que encontrou um livro de códigos oculto em sua habitação —explicou Macke—. Os códigos russos de cinco cifras. —por que caminha desse modo? —Pelos efeitos do interrogatório. Mas não conseguimos lhe tirar nada. Werner manteve o semblante impassível. —Que lástima —disse—. Poderia nos haver guiado até outros espiões. Macke não observou sinais de que estivesse fingindo. —Só conhece seu cupincha pelo nome do Heinrich; não sabe qual é o sobrenome. Além disso, poderia tratar-se de um pseudônimo. Nunca obtemos grande proveito capturando a mulheres; sabem muito pouco. —Mas ao menos tem o livro de códigos. —Não vale muito a pena. Revistam trocar a palavra chave com freqüência, ou seja que segue caso toda uma provocação decifrar as mensagens. —Que pena. Um dos homens pigarreou e falou o bastante alto para que todo mundo o ouvisse. apresentou-se como o presidente do tribunal, e a seguir pronunciou a sentença de morte. Os guardas levaram ao Lili até o tabuleiro de madeira. Ofereceram-lhe a oportunidade de tender-se nele de forma voluntária, mas ela deu um passo atrás e tiveram que obrigá-la. Não resistiu. Tombaram-na de barriga para baixo e a sujeitaram com as correias. O capelão iniciou uma oração. Lili começou a suplicar. —Não, não —disse sem levantar a voz—. Não, por favor, me soltem; me soltem. —Falava com aprumo, como se tão solo estivesse pedindo um favor. O homem da cartola olhou ao presidente, mas este negou com a cabeça. —Ainda não. O capelão tem que terminar a oração. Lili falou em tom mais alto e premente. —Não quero morrer! Dá-me medo! Não me façam isto, por favor! O verdugo voltou a olhar ao presidente do tribunal, que essa vez se limitou a ignorá-lo. Macke escrutinou ao Werner. Parecia repugnado, mas também o parecia o resto dos presentes na sala. A prova não estava dando muito bons resultados; o único que demonstrava a reação do Werner era que tinha sentimentos, não que fosse um traidor. Teria que pensar em outra coisa. Lili começou a chiar. Inclusive Macke estava impaciente. O pastor terminou a oração depressa e correndo. Quando pronunciou Amém a garota deixou de chiar, como se soubesse que tudo tinha terminado. O presidente assentiu. O verdugo acionou uma alavanca e a folha deslastrada da guilhotina caiu. ouviu-se um vaio quando a folha seccionó o pálido pescoço do Lili. Sua cabeça de cabelo curto caiu para diante e o sangue brotou a jorro. A cabeça aterrissou na cesta com um ruído surdo que ressonou por toda a sala. Macke se fez a absurda pergunta de se a cabeça sentia dor. III Carla se topou com o coronel Beck no corredor do hospital. Ia uniformizado e, de repente, inspirou-lhe medo. Desde que lhe deram o alta, Carla vivia todos os dias com o temor de que a delatasse e a Gestapo fosse a detê-la. Entretanto, lhe sorriu. —vim por uma visita rotineira com o doutor Ernst. Isso era tudo? Tinha esquecido a conversação que tinham mantido? Pretendia havê-la esquecido? Haveria um Mercedes negro da Gestapo aguardando-a na porta? Beck levava na mão uma pasta verde das que utilizavam no hospital. aproximou-se um oncologista embelezado com uma bata branca. —Que tal vão as coisas? —perguntou Carla ao Beck em tom jovial quando o especialista passou por seu lado. —Estou tudo quão bem posso estar. Não voltarei a me pôr à frente de um batalhão mas, deixando de lado a atividade física, posso levar uma vida normal. —Alegra-me ouvir isso. Não cessava de passar gente. Carla temia que Beck não tivesse a oportunidade de lhe falar em privado. O homem, pelo contrário, não se alterou. —Queria lhe dar as obrigado por seu amável trato e seu profesionalidad. —Não há de que. —Adeus, enfermeira. —Adeus, coronel. Quando Beck partiu, a pasta tinha passado à mãos da Carla. dirigiu-se a toda pressa ao vestuário das enfermeiras. Estava deserto. Manteve o pé contra a porta com firmeza para que ninguém pudesse entrar. dentro da pasta havia um grande sobre corrente de cor bege dos que se usavam em todos os despachos. Carla o abriu. Continha várias folhas datilografadas. Jogou uma olhada à primeira sem tirá-la do sobre. O encabeçado rezava: ORDEM OPERACIONAL N.º 6 OPERAÇÃO CIDADELA Era o plano de combate para a ofensiva que devia levar-se a cabo no verão no fronte oriental. O coração lhe acelerou. Tinha um autêntico tesouro nas mãos. Devia lhe entregar o sobre a Frieda. Por desgraça, seu amiga não tinha ido trabalhar; tinha o dia livre. Carla se expôs partir imediatamente, antes de terminar o turno, e dirigir-se a casa da Frieda, mas em seguida descartou a idéia. Era melhor comportar-se com normalidade para não chamar a atenção. Guardou a sobre na bolsa que tinha junto pendurado com o impermeável e o tampou com o lenço de seda de motivos azuis e dourados que sempre levava para ocultar coisas. Permaneceu quieta uns instantes até que pôde voltar a respirar com normalidade, e retornou junto aos pacientes. Cobriu o resto do turno o melhor que pôde. Logo ficou o impermeável, saiu do hospital e se dirigiu à estação. Ao passar junto a um edifício bombardeado, viu uma grafite nos restos de um muro. Um patriota desafiante tinha escrito: PODEM nos destruir AS CASAS, MAS NÃO NOS DESTRUIRÃO A ALMA. Entretanto, outra pessoa tinha chamado ironicamente o eslogan utilizado pelo Hitler nas eleições de 1933: me dêem quatro anos e não reconhecerão a Alemanha. Comprou um bilhete para a estação do Zoologischer Garten. No trem se sentia uma estranha. Todos outros passageiros eram fiéis alemães e ela levava na bolsa secretas para entregar seu país a Moscou. Não gostava essa sensação. Ninguém posava os olhos nela, mas tinha a impressão de que o faziam expressamente, para não cruzar as olhadas. Não via o momento de entregar o sobre a Frieda. A estação do Berlin Zoológico estava ao outro lado do Tiergarten. As árvores pareciam miúdos ao lado da colossal torre anti-aérea, uma das três construídas em a cidade. O bloco quadrado de concreto media mais de trinta metros. Em cada uma das quatro esquinas do telhado havia um canhão anti-aéreo de 128 mm que pesava 25 toneladas. A estrutura de concreto visto estava grafite de verde em um vão intento otimista de evitar que a monstruosa construção ferisse a sensibilidade dos visitantes do parque. Entretanto, apesar de sua fealdade, os berlinenses a adoravam. Quando caíam as bombas sobre a cidade, sua ensurdecedora resposta garantia que alguém disparava em sua defesa. Seguia em um estado de grande tensão. Da estação, foi caminhando até casa da Frieda. Era meia tarde, ou seja que o matrimônio Franck não devia encontrar-se em casa; Ludi estaria na fábrica e Monika teria ido visitar alguma amiga, possivelmente à mãe da Carla. Viu a motocicleta do Werner estacionada no caminho de entrada. O criado abriu a porta. —A senhorita Frieda não está em casa, mas não demorará para voltar —anunciou—. foi ao KaDeWe a comprar umas luvas. O senhor Werner está na cama com um forte resfriado. —Esperarei a Frieda em sua habitação, como sempre. Carla se tirou o impermeável e se dirigiu ao piso de acima com a bolsa. Uma vez na habitação da Frieda, descalçou-se, tendeu-se na cama e se dispôs a ler o plano de combate da Operação Cidadela. Estava mais tensa que a corda de um arco, mas se sentiria melhor quando tivesse entregue o documento roubado. Ouviu uns soluços na habitação contigüa, o qual lhe surpreendeu, posto que se tratava do dormitório do Werner. A Carla custava imaginar ao engolado dom Juan chorando. Não obstante, era indubitável que se tratava de um homem, e que tentava em vão afugentar a pena que sentia. Contra sua vontade, Carla se compadeceu dele. disse-se que alguma moça briguenta devia lhe haver dado cabaças, e, provavelmente, com razão. Mesmo assim, não podia evitar responder a aquelas amostras de autêntica dor. Saltou da cama, voltou a guardar o plano de combate na bolsa e saiu da habitação. ficou escutando junto à porta do dormitório do Werner. Ali os soluços se ouviam com maior claridade. Era muito bondosa para não fazer caso deles. Abriu a porta e entrou. Werner estava sentado no bordo da cama, com a cabeça entre as mãos. Para ouvir que abriam a porta, levantou o olhar, sobressaltado. Tinha o rosto avermelhado e úmido a causa do pranto. afrouxou-se o nó da gravata e desabotoado o pescoço da camisa. Olhou a Carla com expressão de angústia. Estava abatido, desolado, e se sentia muito infeliz para lhe preocupar quem o visse. Carla não podia fingir que não lhe importava. —O que te passa? —perguntou. —Não posso seguir com isto —respondeu ele. Ela fechou a porta detrás de si. —O que ocorreu? —Cortaram- a cabeça ao Lili Markgraf, e eu estava presente. Carla ficou olhando boquiaberta. —De que demônios me está falando? —Tinha vinte e dois anos. —Tirou um lenço do bolso e se enxugou a cara—. Agora corre perigo, mas se lhe o conto será muito pior. Carla estava perplexa e sua cabeça não parava de fazer conjeturas. —Parece-me que já sei do que vai, mas conta me disse isso. Ele assentiu. —De todos os modos, adivinharia-o logo. Lili ajudava ao Heinrich a transmitir mensagens a Moscou. vai muito mais rápido se alguém te ajudar a ler os códigos, e quanto mais rápido vá, menos possibilidades tem que lhe pilhem. Mas a prima do Lili passou uns quantos dias em sua casa e encontrou o livro de códigos. Puta nazista. Essas palavras confirmavam as suspeitas que tinham a Carla estupefata. —Sabe o dos espiões? Ele a olhou com um sorriso irônico. —Dirijo-os eu. —Deus santo! —Por isso tive que abandonar o assunto dos meninos assassinados. Moscou me ordenou isso. E tinham razão. Se tivesse perdido o trabalho no Ministério do Ar, haveria deixado de ter acesso a documentos secretos e a pessoas que podiam me acontecer informação. Carla precisava sentar-se. apoiou-se no bordo da cama, a seu lado. —por que não me contou isso? —Damos por sentado que, sob tortura, todo mundo acaba confessando. Se não saber nada, não pode delatar a outros. A pobre Lili a torturaram, mas sozinho conhecia a Volodia, que retornou a Moscou, e ao Heinrich, e não sabia seu sobrenome nem nenhuma outra coisa dele. Carla ficou completamente geada. Sob tortura, todo mundo acaba confessando. —Sinto haver lhe contado isso, mas à lombriga assim o teria acabado adivinhando de todos os modos. —Ou seja que me equivoquei que médio ao meio contigo. —Não é tua culpa. Enganei-te a propósito. —Pois me sinto igual de tola. Levo dois anos acreditando que foi um indesejável. —E eu morria de vontades de lhe explicar isso tudo. Ela o rodeou com o braço. Tomou a outra mão e a beijou. —Poderá me perdoar? Carla não estava segura do que sentia, mas não queria rechaçá-lo vendo-o tão aflito. —Claro —respondeu. —Pobre Lili —disse ele. Falava com um fio de voz—. Lhe tinham dado tal surra que logo que podia caminhar até a guilhotina. Mesmo assim, esteve suplicando clemência até o final. —Como é que estava ali? —Tenho-me feito amigo de um agente da Gestapo, o inspetor Thomas Macke. Ele me levou. —Macke? Lembro-me dele; é quem deteve meu pai. —Recordava perfeitamente ao homem de rosto abotagado com um pequeno bigode negro, e reviveu a raiva que tinha sentido ante sua arrogante demonstração de poder quando se levou a seu pai, e a pesadumbre, quando este morreu devido às feridas sofridas à mãos do Macke. —Acredito que suspeita de mim, e que o fato de me fazer presenciar a execução era uma prova. Talvez acreditava que perderia o controle e trataria de intervir. Mas parece-me que superei a prova. —Mas se lhe detêm… Werner assentiu. —Sob tortura, todo mundo acaba confessando. —E você sabe tudo. —Conheço todos os espiões, todos os códigos… Quão único não sei é desde onde transmitem as mensagens. Deixei que eles o decidissem, e não me querem dizer isso Ella no comprendía qué trataba de decirle Werner. ¿Quería que volvieran a salir juntos o, por el contrario, le estaba diciendo que tal cosa era imposible? Guardaram silêncio, agarrados das mãos. —vim para dar uma coisa a Frieda, mas também lhe posso dar isso a ti —disse Carla ao cabo de um momento. —O que é? —O plano de combate da Operação Cidadela. Werner se sobressaltou. —Levo semanas tentando me fazer com ele! De onde o tiraste? —Entregou-me isso um oficial do Corpo de Estado Maior. Acredito que é melhor que não te diga seu nome. —De acordo, não me diga isso. Mas é autêntico? —Será melhor que lhe jogue uma olhada. —Foi à habitação da Frieda e retornou com o sobre bege. Não lhe tinha passado pela cabeça que o documento podia ser falso—. me parece autêntico, mas eu não entendo destas coisas. Werner tirou as folhas datilografadas. —É o verdadeiro —disse ao cabo de um minuto—. Fantástico! —Me alegro muito. Ele ficou em pé. —Tenho que levar-lhe ao Heinrich imediatamente. Temos que encriptarlo e transmiti-lo esta mesma noite. Carla lamentou que o momento de intimidade terminasse tão logo, embora não sabia muito bem o que esperava dele. Seguiu-o até o corredor, entrou na habitação de Frieda para recuperar sua bolsa e baixou. Werner estava na porta principal, a ponto de sair. —Me alegro de que voltemos a ser amigos —disse. —Eu também. —Crie que seremos capazes de esquecer que estivemos distanciados todo este tempo? Ela não compreendia o que tratava de lhe dizer Werner. Queria que voltassem a sair juntos ou, pelo contrário, estava-lhe dizendo que tal coisa era impossível? —Acredito que o superaremos —respondeu ela sem definir-se. —Estupendo. —Ele se inclinou e lhe deu um fugaz beijo nos lábios. A seguir abriu a porta. Saíram de uma vez, mas ele subiu à moto. Carla percorreu o pequeno caminho até a rua e se dirigiu à estação. Ao cabo de um momento, Werner tocou a buzina e a saudou com a mão ao passar por seu lado. Uma vez a sós, Carla pôde começar a assimilar o que Werner lhe tinha confessado. Como se sentia? Levava dois anos odiando-o, mas em todo esse tempo não tinha tido nenhuma relação séria. Acaso seguia apaixonada pelo Werner? Ao menos, no fundo e apesar de tudo, conservava certo apego por ele. E hoje, ao vê-lo tão aflito, sua hostilidade se desvaneceu. sentia-se transbordante de carinho. Seguia amando-o? Não sabia. IV Macke estava sentado no assento traseiro do Mercedes negro, ao lado do Werner. Levava uma bolsa pendurada nos ombros, como uma carteira de colegial, solo que tinha-a diante em lugar de detrás. Era o bastante pequena para que ficasse oculta debaixo do casaco. Da bolsa saía um cabo magro conectado a um pequeno auricular. —É o último —disse Macke—. Quando te aproxima do emissor, o som aumenta de volume. —É mais discreto que uma caminhonete com uma antena enorme no teto —observou Werner. —Temos que utilizar as duas coisas; a caminhonete serve para demarcar a zona e isto para dar com a localização exata. Macke tinha problemas. A Operação Cidadela tinha resultado catastrófica. Inclusive antes de que começasse a ofensiva, o Exército Vermelho tinha atacado os aeródromos onde se agrupava a Luftwaffe. A operação se suspendeu ao cabo de uma semana, mas mesmo assim era tarde para evitar danos irreparáveis ao exército alemão. Sempre que algo saía mau, os dirigentes alemães se apressavam a acusar de conspiração aos judeus bolcheviques. Entretanto, nessa ocasião tinham razão. Ao parecer, o Exército Vermelho conhecia de antemão todos os detalhes do plano de combate. Mas como, segundo o superintendente Kringelein, era culpa do Thomas Macke, porque era o chefe de contra-espionagem na cidade do Berlim. Sua carreira estava em jogo. enfrentava-se a uma possível demissão, e a coisas piores. Agora sua única esperança era dar um golpe formidável, uma jogada a rede maciça para encurralar a todos os espiões que estavam escavando os esforços bélicos da Alemanha. Para isso, essa noite tinha tendido uma armadilha ao Werner Franck. Se Franck resultava ser inocente, não sabia o que faria. No assento dianteiro do carro, ouviu-se crepitar um walkie-talkie. Ao Macke lhe acelerou o pulso. O condutor desprendeu o auricular. —Wagner à fala. —Pôs em funcionamento o motor—. Estamos de caminho. Mudança e curta. A coisa estava em marcha. —Aonde vamos? —perguntou Macke. —Ao Kreuzberg. —tratava-se de um bairro humilde e muito povoado do sul do centro da cidade. Justo quando arrancavam, soou a sereia que anunciava um ataque aéreo. Era uma complicação inoportuna. Macke olhou pelo guichê. acenderam-se os refletores e os focos luminosos começaram a oscilar de um lado a outro como batutas gigantes. Macke supunha que às vezes serviam para detectar os aviões, mas nunca tinha sido testemunha disso. Quando as sereias cessaram de uivar, ouviu a estridência dos bombeiros aproximando-se. Nos primeiros anos da guerra, nas missões de bombardeio britânicas participavam poucas dezenas de aviões, e mesmo assim resultavam nefastas. Agora, entretanto, iam a centenas. O ruído resultava aterrador inclusive antes de que lançassem as bombas. —Imagino que é melhor suspender a missão de esta noite —aventurou Werner. —Não, diabos —repôs Macke. O rugido dos aviões aumentou. Quando o carro se aproximou do Kreuzberg, começaram a cair rojões de luzes e pequenas bombas incendiárias. O bairro era um objetivo clássico segundo a atual estratégia de a RAF, consistente em matar o máximo número possível de operários das fábricas. Com uma hipocrisia pasmosa, Churchill e Attlee afirmavam que tão solo atacavam objetivos militares e que as mortes de civis eram um dano colateral lamentável. Entretanto, os berlinenses sabiam que não era certo. Wagner avançou o mais rápido possível pelas ruas iluminadas de modo irregular pelas chamas. Não havia ninguém à vista à exceção dos oficiais do corpo de defesa anti-aérea: todos outros cidadãos estavam obrigados por lei a permanecer baixo coberto. Os únicos veículos que circulavam eram ambulâncias e carros de bombeiros e de polícia. Macke escrutinou ao Werner com dissimulação. O moço tinha os nervos a flor de pele, não parava quieto e olhava pelo guichê preocupado enquanto, inconscientemente, dava golpes com o pé por causa da tensão. Macke só tinha compartilhado suas suspeitas com sua equipe habitual. ia passar o mal se tinha que confessar que tinha insone as operações da Gestapo a alguém a quem agora acreditava um espião. Poderia acabar tendo que submeter-se a um interrogatório em sua própria câmara de torturas, assim não pensava dizer nada até que não estivesse seguro. A única forma de sair gracioso era expor-lhe a seus superiores lhes demonstrando ao mesmo tempo que tinha capturado a um espião. Contudo, se suas suspeitas resultavam ser certas, não só jogaria a luva ao Werner mas também a sua família e seus amigos, e isso suporia a destruição de uma grande rede de espionagem. O resultado seria muito distinto. Talvez o ascendessem, inclusive. Enquanto o ataque aéreo prosseguia, o tipo de bombas trocou, e Macke ouviu o som grave e ensurdecedor dos explosivos de alta potencializa. Uma vez iluminado o objetivo, a RAF era partidária de arrojar uma combinação de grandes bombas incendiárias para iniciar o fogo e explosivos de alta potencializa para avivar as chamas e dificultar as tarefas dos serviços de emergência. Era um procedimento cruel, mas Macke sabia que o da Luftwaffe era similar. Macke começou para ouvir os sons no auricular enquanto avançavam com cautela por uma rua de edifícios de cinco novelo. A zona estava sofrendo um ataque terrível e se estavam derrubando vários edifícios. —Estamos em pleno centro do objetivo, pelo amor de Deus —disse Werner com voz tremente. Ao Macke dava igual; para ele o que ocorresse essa noite era uma questão de vida ou morte. —Melhor que melhor —disse—. Graças ao bombardeio, o pianista acreditará que não tem que preocupar-se com a Gestapo. Wagner deteve o carro junto a uma igreja em chamas e assinalou uma rua lateral. —por aí —disse. Macke e Werner saltaram do veículo. Macke avançou depressa pela rua com o Werner a seu lado e Wagner detrás. —Está seguro de que se trata de um espião? —perguntou Werner—. Não poderia ser outra coisa? —Outra coisa, uma transmissão por rádio? —soltou Macke—. O que quer que seja? Macke seguia ouvindo os sons no auricular, mas muito débeis, pois o ataque aéreo era uma pura gritaria: os aviões, as bombas, os canhonaços anti-aéreos, o estrondo dos edifícios derrubando-se e o rugido das tremendas chamas. Passaram junto a um estábulo onde os cavalos relinchavam de terror. O sinal era cada vez mais forte. Werner olhava a um lado e ao outro, nervoso. Se era um espião, devia temer que a Gestapo estivesse a ponto de deter algum de seus cupinchas, e de perguntar-se que narizes podia fazer para evitá-lo. Repetiria o truque da última vez ou lhe teria ocorrido alguma outra forma de pô-los sobre aviso? Por outra parte, se não o era, toda aquela farsa era uma autêntica perda de tempo. Macke se retirou o auricular do ouvido e o entregou ao Werner. —Escute —disse sem deixar de caminhar. Werner assentiu. —É cada vez mais forte —observou. A expressão de seus olhos era quase desesperada. Devolveu o auricular ao Macke. Parece-me que já te tenho, pensou Macke, triunfal. ouviu-se um estrondo ensurdecedor quando uma bomba aterrissou no edifício que acabavam de deixar atrás. voltaram-se e viram que as chamas lambiam já o interior da cristaleira feita pedacinhos de uma padaria. —Deus, que perto —exclamou Wagner. Chegaram a uma escola, um edifício desço de obra vista construído em um solar asfaltado. —Parece-me que é aí —disse Macke. Os três homens subiram o pequeno lance de degraus de pedra da entrada. A porta não estava fechada com chave. Cruzaram-na. encontraram-se ao princípio de um corredor largo. No outro extremo havia uma grande porta que provavelmente dava ao vestíbulo da escola. —Vamos lá —ordenou Macke. Tirou a arma, uma pistola Luger de 9 mm. Werner ia desarmado. ouviu-se um estrépito, um golpe surdo e o rugido de uma explosão, tudo terrivelmente perto. Todas as janelas do corredor estalaram e uma chuva de cristais quebrados atapetou o estou acostumado a ladrilhado. Devia ter cansado uma bomba no pátio. —Fora todo mundo! —gritou Werner—. O edifício se derrubará de um momento a outro! Macke se deu conta de que não havia perigo de que o edifício se viesse abaixo. Era uma estratagema para alertar ao pianista. Werner pôs-se a correr, mas em lugar de sair por onde tinham entrado, avançou pelo corredor para o vestíbulo. Para avisar a seus cupinchas, pensou Macke. Wagner tirou a pistola, mas Macke o atalhou. —Não! Não díspares! —gritou. Werner chegou ao final do corredor e abriu de repente a porta do vestíbulo. —Corram todos! —gritou. De repente, calou-se e ficou quieto. Quem havia no vestíbulo era Mann, o engenheiro elétrico da equipe do Macke, e transmitia mensagens sem sentido com uma rádio portátil. Depois dele estavam Schneider e Richter, ambos empunhando suas pistolas. Macke sorriu com ar triunfal. Werner tinha cansado na armadilha. Wagner foi direto para ele e o apontou com a pistola na cabeça. —Está detido, escória bolchevique —lhe espetou Macke. Werner atuou com rapidez. Com um movimento brusco, apartou sua cabeça da pistola do Wagner, a arrebatou e o atraiu para si enquanto entrava no vestíbulo. Durante uns instantes, Wagner lhe serve de escudo contra as armas que o apontavam de ali. Logo lhe deu um empurrão, e ele tropeçou e caiu. Ao cabo de um instante tinha saído do vestíbulo e tinha fechado a porta de repente. Durante uns segundos, Macke e Werner ficaram sozinhos no corredor. Werner se dirigiu para o Macke. Este o apontou com a Luger. —Quieto, ou disparo. —Não, não disparará. —Werner se aproximou mais—. Tem que me interrogar para averiguar quem som outros. Macke apontou às pernas do Werner. —Mas posso te interrogar com uma bala no joelho —disse, e disparou. Tinha falhado. Werner arremeteu contra Macke e lhe golpeou a mão com que sustentava a pistola, obrigando-o a soltar a arma. Quando se agachou para recuperá-la, Werner o adiantou. Macke recolheu a pistola. Werner chegou à porta da escola. Macke apontou com precisão às pernas e disparou. Os primeiros três disparos não alcançaram ao Werner, que pôde sair do edifício. Macke efetuou outro disparo através da porta, ainda aberta, e Werner soltou um grito e caiu ao chão. Macke correu pelo corredor. Ouviu detrás de si a seus companheiros, que tinham saído do vestíbulo. Então o teto se derrubou com grande estrondo, ouviu-se outro ruído, como um golpe surdo, e uma onda de fogo os engoliu. Macke chiou de terror e, continuando, de agonia quando a roupa lhe prendeu. Caiu ao chão. fez-se o silêncio. Logo, a escuridão. V Os médicos estavam no vestíbulo do hospital decidindo a que pacientes atender primeiro. A aqueles que simplesmente apresentavam queimaduras e cortes os enviavam à sala de espera do ambulatório, onde as enfermeiras menos experimentadas lhes limpavam as feridas e lhes acalmavam a dor com aspirinas. Os mais graves recebiam tratamento urgente no próprio vestíbulo antes de enviá-los à planta superior para que os examinasse um especialista. Os mortos eram transladados ao pátio e tendidos no frio chão à espera de que alguém perguntasse por eles. O doutor Ernst examinou a uma vítima de queimaduras que sofria fortes dores e prescreveu que lhe administrassem morfina. —Logo lhe tirem a roupa e lhe ponham pomada nas queimaduras —disse, e se dispôs a atender a outro paciente. Carla encheu a seringa de injeção enquanto Frieda cortava as enegrecidos objetos do paciente. Apresentava graves queimaduras no lado direito, mas o esquerdo não tinha-o tão mal. Carla encontrou uma zona da coxa esquerda onde as malhas estavam intactos. dispunha-se a lhe administrar a injeção quando o olhou à cara, e ficou geada. Conhecia esse rosto abotagado com um bigode que parecia uma mancha de fuligem. Dois anos atrás tinha entrado em sua casa e se levou a seu pai, e agora que voltava a vê-lo, estava morrendo. Era o inspetor Thomas Macke, da Gestapo. Você matou a meu pai, pensou. Agora eu posso te matar a ti. Seria muito singelo. Administraria-lhe quatro dose de morfina da quantidade máxima. Ninguém se daria conta, e menos em uma noite assim. Perderia o conhecimento de imediato e morreria ao cabo de poucos minutos. Qualquer médico sonolento daria por sentado que tinha sofrido uma parada cardíaca. Ninguém questionaria o diagnóstico e nenhum cético faria perguntas. Passaria a ser uma das milhares de vítimas mortas por causa de um bombardeio aéreo. Descanse em paz. Sabia que Werner temia que Macke suspeitava dele. Qualquer dia podiam detê-lo. Sob tortura, todo mundo acaba confessando. Werner delataria a Frieda, e ao Heinrich, e a outros; incluída Carla. Em questão de um minuto podia salvá-los a todos. Entretanto, vacilava. perguntava-se por que. Macke era um torturador e um assassino, merecia a morte mil vezes. E ela tinha matado ao Joachim, ou ao menos tinha contribuído a matá-lo. Contudo, aquilo tinha sido durante uma briga, e Joachim tentava matar a patadas a seu mãe quando lhe golpeou com uma panela na cabeça. Mas isto era outra coisa. Macke era um paciente. Carla não era uma fervorosa crente, mas havia coisas que considerava sagradas. Era enfermeira, e os pacientes confiavam nela. Sabia que Macke a torturaria e a mataria sem compaixão; mas ela não era como Macke, ela não era assim. Não se tratava de quem fora ele mas sim de quem era ela. Sentia que, se matava a um paciente, teria que abandonar a profe sión porque nunca mais se atreveria a cuidar doentes. Seria como um banqueiro que rouba dinheiro, ou um político que aceita subornos, ou um sacerdote que coloca mão às meninas que acodem a que as prepare para a primeira comunhão. estaria-se traindo a si mesmo. —A que esperas? —disse Frieda—. Não posso lhe pôr a pomada enquanto não se acalme. Carla cravou a agulha ao Thomas Macke, e este deixou de gritar. Frieda começou a aplicar a pomada nas queimaduras. —Este solo sofre uma comoção cerebral —explicava o doutor Ernst refiriéndose a outro paciente—. Mas tem uma bala incrustada no traseiro. —Elevou a voz para falar com paciente—. Como lhe dispararam? Precisamente o único que a RAF não arroja são balas. Carla se voltou a olhá-lo. O paciente estava tendido de barriga para baixo. Tinham-lhe talhado as calças e lhe viam as nádegas. Tinha a pele branca e fina, e um pouco de pêlo loiro na parte baixa das costas. Estava aturdido, mas balbuciava. —Diz que a arma de um policial se disparou acidentalmente? —perguntou Ernst. —Sim —respondeu o paciente com mais claridade. —vamos extrair lhe a bala. Doerá-lhe, mas não temos muita morfina e há pacientes que estão pior que você. —Faça o que tenha que fazer. Carla lhe limpou a ferida. Ernst agarrou uns fórceps largos e magros. —Remoa o travesseiro —disse. Introduziu os fórceps na ferida. O travesseiro amorteceu o alarido de dor do paciente. —Tente não ficar tenso, é pior —aconselhou Ernst. A Carla pareceu um comentário do mais estúpido. Ninguém era capaz de relaxar-se enquanto lhe pinçavam em uma ferida. —Ai! Mierda! —rugiu o paciente. —Já a tenho —disse o doutor Ernst—. Trate de estar-se quieto! O paciente permaneceu imóvel, e Ernst extraiu a bala e a depositou em uma bandeja. Carla lhe limpou o sangue da ferida e lhe aplicou uma vendagem. O paciente se deu a volta. —Não —disse Carla—. Deve permanecer de… interrompeu-se. O paciente era Werner. —Carla? —perguntou ele. —Sim, sou eu —respondeu ela com alegria—. Te pus um curativo no traseiro. —Quero-te —disse ele. Jogou os braços ao pescoço da forma menos profissional possível e lhe disse: —OH, meu amor. Eu também te quero. VI Thomas Macke recuperou o conhecimento pouco a pouco. Ao princípio se encontrava aturdido, mas logo começou a despertar e se deu conta de que estava em um hospital, sob os efeitos da medicação. Também deduzia por que; sentia muita dor, sobre tudo na metade inferior direita. Compreendeu que a medicação lhe aliviava a dor mas não o acalmava de tudo. Pouco a pouco, foi recordando como tinha chegado até ali. Tinha havido um bombardeio. livrou-se da explosão porque perseguia um fugitivo; se não, estaria morto. Como sem dúvida estavam mortos quem se tinha ficado atrás: Mann, Schneider, Richter e o jovem Wagner. Toda sua equipe. Por sorte, tinha caçado ao Werner. Não era assim? Tinha-lhe disparado, e Werner caiu ao chão. Então explorou a bomba. Macke tinha sobrevivido, assim era possível que Werner também estivesse vivo. Agora ele era a única pessoa com vida que sabia que Werner era um espião. Tinha que contar-lhe a seu chefe, o superintendente Kringelein. Tratou de incorporar-se, mas se deu conta de que não tinha forças para mover-se. Decidiu avisar a uma enfermeira, mas quando abriu a boca não pôde articular palavra. O esforço o deixou esgotado e voltou a ficar dormido. A seguinte vez que despertou, notou que era de noite. Tudo estava em silêncio, ninguém se movia. Abriu os olhos e viu um rosto a pouca distancia do dele. Era Werner. —vais sair daqui agora mesmo —disse Werner. Macke tentou pedir ajuda, mas não tinha voz. —Transladarão a outro sítio —prosseguiu Werner—. Já não será um torturador; de fato, o torturado será você. Macke abriu a boca para gritar. Um travesseiro descendeu sobre seu rosto e lhe tampou com força a boca e o nariz. Não podia respirar. Tratou de lutar, mas não tinha forças. Quis tomar ar, mas não o havia. Começou a invadi-lo o pânico. Conseguiu mover a cabeça para os lados, mas pressionaram o travesseiro com mais força. Ao fim, conseguiu emitir um som, mas não foi mais que um gemido gutural. O mundo era um disco luminoso que foi reduzindo-se até converter-se em um ponto minúsculo. Logo desapareceu. 17 1943 (III) I Quer te casar comigo? —perguntou Volodia Peshkov, que conteve a respiração. —Não —respondeu Zoya Vorotsintsev—. Mas obrigado. Era uma mulher que se caracterizava por seu pragmatismo, mas essa resposta brusca era excessiva inclusive para ela. Estavam na cama, no fastuoso hotel Moskvá, e acabavam de fazer o amor. Zoya tinha chegado ao orgasmo duas vezes. Sua prática favorita era o cunnilingus. Gostava de tornar-se sobre um montão de travesseiros enquanto ele se ajoelhava entre suas pernas, para render adoração. Volodia se comportava como um coroinha entregue, e ela o correspondia com entusiasmo. Fazia mais de um ano que eram casal, e tudo parecia ir às mil maravilhas. Por isso, a negativa da Zoya o desconcertou. —Quer-me? —perguntou ele. —Sim. Adoro-te. Obrigado por me querer tanto como para me pedir que me case contigo. Aquilo estava um pouco melhor. —E por que não aceita? —Não quero trazer meninos a um mundo em guerra. —De acordo, entendo-o. —peça-me isso outra vez quando tivermos ganho. —Possivelmente por então não queira me casar contigo. —Se tão veleidoso for, me alegro de te haver rechaçado. —Sinto muito, por um momento esqueci que não entende as brincadeiras. —Tenho que ir fazer pis. —levantou-se da cama e cruzou a habitação nua. Volodia com muita dificuldade podia acreditar que o fora permitido ver um espetáculo como esse. Zoya tinha o corpo de uma modelo ou uma estrela de cinema, a pele branca como a neve e o cabelo de um loiro pálido…, todo seu cabelo. sentou-se no váter sem fechar a porta do banho e Volodia a escutou enquanto fazia pis. Sua falta de pudor era uma fonte constante de deleite. supunha-se que ele estava trabalhando. O pessoal de Moscou do serviço de espionagem se sumia na confusão cada vez que os máximos dirigentes dos Aliados acudiam a Moscou, e a rotina habitual da Volodia se viu alterada de novo para a conferência de ministros de Assuntos Exteriores que tinha começado em 18 de outubro. Os assistentes eram o secretário de estado norte-americano, Cordell Hull, e o secretário do Foreign Office britânico, Anthony Eden. Tinham elaborado um plano disparatado para realizar um pacto entre quatro potências que incluía a China. Stalin acreditava que era uma estupidez e não entendia por que perdiam o tempo com isso. O americano, Hull, tinha setenta e dois anos e tossia sangue, seu médico o tinha acompanhado a Moscou, mas não por isso era menos enérgico, e insistia no pacto. Durante a conferência havia tanto trabalho, que o NKVD —a polícia secreta— se viu obrigado a cooperar com seus odiados rivais do Serviço Secreto do Exército Vermelho, a organização a que pertencia Volodia. Tiveram que pôr microfones ocultos em habitações de hotel; havia inclusive um na habitação que ocupavam Volodia e Zoya, mas ele o tinha desligado. Os ministros estrangeiros e todos seus conselheiros deviam ser submetidos a uma estrita vigilância, minuto a minuto. Tinham que lhes abrir a bagagem e registrar-se o de forma clandestina. Tinham que gravar, transcrever e traduzir ao russo suas conversações telefônicas, para posteriormente as ler e as resumir. A maioria das pessoas com as que tratassem, incluídos garçons de restaurante e garçonetes de hotel, eram agentes do NKVD, mas ao resto das pessoas com as que falassem, já fora no vestíbulo do hotel ou na rua, teriam que as investigar, talvez as deter e as interrogar sob tortura. Era muito trabalho. A Volodia ia tudo muito bem. Seus espiões do Berlim lhe estavam proporcionando uma informação secreta muito valiosa. Tinham-lhe dado o plano de batalha da principal ofensiva alemã do verão, a Operação Cidadela, e o Exército Vermelho lhe tinha infligido uma grande derrota. Zoya também era feliz. A União Soviética tinha retomado a investigação nuclear, e Zoya formava parte da equipe que tentava desenhar uma bomba. Os cientistas ocidentais lhes levavam uma boa vantagem por culpa do atraso fruto do cepticismo do Stalin, mas em troca estavam recebendo uma ajuda muito valioso dos espiões comunistas da Inglaterra e Estados Unidos, incluído o velho amigo de escola da Volodia, Willi Frunze. Zoya retornou à cama. —Quando nos conhecemos, parecia que você não gostava de muito —disse Volodia. —Eu não gostava dos homens em geral —respondeu ela—. E seguem sem me gostar de. A maioria são um rebanho de bêbados, valentões e estúpidos. Demorei um pouco em me dar conta de que foi distinto. —Obrigado, acredito —disse Volodia—. Tão maus somos os homens? —Olhe a seu redor. Olhe seu país. estirou-se por cima dela para alcançar a rádio da mesita de noite. Embora tinha desligado o dispositivo de escuta que havia atrás do cabecero, toda precaução era pouca. Quando a rádio se esquentou, começou a soar uma marcha interpretada por uma banda militar. Convencido de que ninguém podia ouvi-los, Volodia retomou a conversação. —Pensa no Stalin e Beria. Mas não se manterão no poder eternamente. —Sabe como caiu em desgraça meu pai? —perguntou Zoya. —Não. Meus pais nunca o mencionaram. —Há um motivo pelo que não o têm feito. —Conta-me o —¿De qué se trata? —Segundo minha mãe, na fábrica onde trabalhava meu pai se celebraram umas eleições para escolher o deputado que devia representá-los no Sóviet de Moscou. Se apresentou um candidato bolchevique e um menchevique, e meu pai assistiu a um comício deste para escutá-lo. Não era partidário dos mencheviques e tampouco os votou, mas todos os que assistiram ao comício foram despedidos e ao cabo de umas semanas detiveram meu pai e o transladaram à a Lubianka. referia-se ao cárcere e ao quartel geral do NKVD, situado na praça Lubianka. —Minha mãe foi ver seu pai para lhe suplicar ajuda e ele a acompanhou imediatamente à a Lubianka. Resgataram a meu pai, mas foram testemunhas do fuzilamento de doze operários. —É horrível —disse Volodia—. Mas foi Stalin… —Não, isto aconteceu em 1920 e nnaquele tempo naquele tempo Stalin tão solo era um comandante do Exército Vermelho que lutava na guerra polonês-soviética. Era Lenin quem mandava. —Isso ocorreu com o Lenin? —Sim. De modo que já vê, não são unicamente Stalin e Beria. A opinião da Volodia sobre a história comunista se viu alterada grandemente. —Então, o que é? abriu-se a porta. Volodia agarrou a pistola que tinha na gaveta da mesinha de noite. Entretanto, a pessoa que entrou era uma garota vestida, a julgar pelo que via simples vista, unicamente com um casaco de pele. —Sinto muito, Volodia —disse a garota—. Não sabia que tinha companhia. —Quem coño é? —perguntou Zoya. —Como tem aberto a porta, Natasha? —perguntou Volodia. —Deu-me uma chave professora que abre todas as portas do hotel. —Mesmo assim poderia ter chamado! —Sinto muito. Solo vim a te dar as más notícias. —Do que se trata? —fui à habitação do Woody Dewar, tal e como me pediu, mas não consegui nada. —O que tem feito? —Isto. —Natasha se abriu o casaco e lhes mostrou seu corpo nu. Tinha uma figura voluptuosa e uma exuberante mata de pêlo púbico. —De acordo, já me imagino, fecha o casaco —disse Volodia—. O que te há dito ele? Natasha trocou ao inglês. —limitou-se a dizer: Não. Ao que eu perguntei: A que te refere com não?. E ele há dito: É o contrário de si. Então agüentou a porta aberta até que me fui. —Mierda —disse Volodia—. Terei que pensar em outra coisa. II Chuck Dewar soube que se morava tormenta quando o capitão Vandermeier entrou na seção de território inimigo na metade do a tarde, com o rosto rosado depois de um almoço regado com cerveja. A unidade de inteligência do Pearl Harbor se ampliou. Antigamente chamada Estação HYPO, agora a tinham batizado com o grandilocuente nome de Centro Conjunto de Inteligência, Área do Oceano Pacífico, ou JICPOA, segundo suas siglas em inglês. Vandermeier chegou acompanhado de um sargento da armada. —Né, vós dois, capullitos de alhelí —disse Vandermeier—. Têm uma queixa de um cliente. A operação tinha crescido, todo mundo se tinha especializado, e Chuck e Eddie se converteram em peritos de levantar mapas do território no qual estavam a ponto de aterrissar as forças americanas enquanto se abriam caminho ilha a ilha, por todo o Pacífico. —Este é o sargento Donegan. —O marinho era muito alto e parecia duro como um rifle. Chuck supôs que Vandermeier, com seus problemas de sexualidade, sentia-se turbado. Chuck ficou em pé. —Encantado de conhecê-lo, sargento. Sou o suboficial chefe de marinha Dewar. Chuck e Eddie tinham obtido sendos ascensões. Apesar de que milhares de recrutas se alistavam no exército americano, havia escassez de oficiais, e os homens que se tinham alistado antes da guerra e que eram o suficientemente chicoteados ascendiam com rapidez. Agora Chuck e Eddie podiam viver fora da base e haviam alugado um pequeno piso juntos. Chuck lhe tendeu a mão, mas Donegan não a estreitou. Chuck se sentou de novo. Tinha uma fila ligeiramente superior ao de um sargento, e não ia mostrar se cortês com alguém que o tratava de forma grosseira. —Posso fazer algo por você, capitão Vandermeier? Um capitão podia atormentar a um suboficial da armada de diversas maneiras, e Vandermeier as conhecia todas. Ajustava a lista de voltas para que Chuck e Eddie nunca tivessem o mesmo dia livre. Qualificava seus informe com um adequado, até sabendo que tudo o que estivesse por debaixo de excelente era, em realidade, um ponto negativo. Enviava mensagens confusas ao escritório de folhas de pagamento para que recebessem o salário com atraso ou de uma quantidade inferior a que lhes correspondia e se vissem obrigados a passar várias horas desfazendo a ofensa. Era um tipo verdadeiramente insuportável. E agora lhe tinha ocorrido uma nova forma de lhes complicar a vida. Donegan se tirou do bolso uma folha de papel imundo e a desdobrou. —É o responsável por isto? —perguntou com tom agressivo. Chuck tomou a folha de papel. Era um mapa de Nova Georgia, uma ilha das ilhas Salomón. —me deixe lhe jogar uma olhada —disse. Era obra dela, e sabia, mas queria ganhar um pouco de tempo. aproximou-se de um arquivo e abriu uma gaveta. Tirou a pasta de Nova Georgia e fechou a gaveta com o joelho. Retornou ao escritório, sentou-se e abriu a pasta. Continha uma cópia do mapa do Donegan. —Sim —disse Chuck—. É meu. —Bom, pois vim a te dizer que é uma mierda —lhe espetou Donegan. —Ah, sim? —Olhe, aqui. Segundo seu mapa, a selva chega até o mar quando, em realidade, há uma praia de quatrocentos metros de largura. —Lamento-o. —Lamenta-o? —Donegan tinha bebido tanta cerveja como Vandermeier e tinha vontades de briga—. Cinqüenta de meus homens morreram nessa praia. Vandermeier arrotou e disse: —Como pôde cometer um engano assim, Dewar? Chuck se estremeceu. Se era o responsável por um engano que tinha provocado a morte de cinqüenta homens, merecia que lhe gritassem. —Este é o material com o que tivemos que trabalhar —disse. A pasta continha um mapa impreciso, talvez vitoriano, das ilhas, e uma carta de navegação mais recente que mostrava as profundidades do mar mas que não incluía as características do terreno. Não havia nenhum relatório elaborado sobre o terreno nem mensagens de rádio decifrados. A única informação mais que continha a pasta era uma fotografia de reconhecimento aéreo em branco e negro e imprecisa. Ao assinalar com o dedo o ponto relevante da fotografia, Chuck disse—: Sem dúvida parece que as árvores chegam até a água. Há enjoa alta? Se não, possivelmente a areia estivesse coberta de algas quando se tomou a fotografia. As algas aparecem e desaparecem de forma muito rápida. —Seria mais rigoroso se fosse você o que tivesse que lutar no terreno. Possivelmente era certo, pensou Chuck. Donegan era agressivo, mal educado e, além disso, Vandermeier se estava encarregando de incitá-lo com toda a malícia do mundo, mas isso não significava que estivesse equivocado. —Sim, Dewar —atravessou Vandermeier—. Possivelmente essa joaninha amiga teu e você teriam que acompanhar aos marinhe na seguinte missão. Para comprovar como se usam seus mapas. Chuck estava tentando pensar em uma réplica engenhosa quando lhe ocorreu que possivelmente podia tomá-la sugestão ao pé da letra. Talvez devia ver um pouco de ação. Era fácil adotar um atitude displicente protegido depois de um escritório. A queixa do Donegan merecia ser tomada a sério. Entretanto, se seguia adiante poria em risco sua vida. Chuck olhou ao Vandermeier aos olhos. —Parece-me uma boa idéia, capitão —disse—. Eu gostaria de me oferecer voluntário para uma missão. Donegan ficou surpreso, como se começasse a pensar que talvez tinha avaliado mal a situação. Eddie abriu a boca pela primeira vez. —Também me parece isso e quero ir. —Muito bem —disse Vandermeier—. Retornarão mais sábios, ou não retornarão. III Volodia foi incapaz de embebedar ao Woody Dewar. Sentados no bar do hotel Moskvá pôs um copo de vodca diante do jovem norte-americano. —Você gostará de —lhe disse com um acento inglês de colegial—, é o melhor. —Muito obrigado —disse Woody—. Lhe agradeço isso. —E não tocou o copo. Woody era alto, larguirucho e tão honrado que quase parecia ingênuo, motivo pelo que Volodia o tinha eleito como objetivo. —É Peshkov um sobrenome comum na Rússia? —perguntou Woody através do intérprete. —Não especialmente —respondeu Volodia em russo. —Sou do Buffalo, uma cidade em que há um empresário muito famoso chamado Lev Peshkov. Pergunto-me se forem familiares. Volodia se sobressaltou. O irmão de seu pai se chamava Lev Peshkov e tinha emigrado ao Buffalo antes da Primeira guerra mundial. Entretanto, a prudência o fez atuar com precaução. —Teria que perguntar-lhe a meu pai —disse. —Estudei no Harvard com o filho do Lev Peshkov, Greg. Poderia ser sua primo. —É possível. —Volodia olhou com nervosismo aos espiões da polícia que havia na mesa. Woody não entendia que qualquer vínculo com alguém dos Estados Unidos podia converter em suspeito a um cidadão soviético—. Olhe, Woody, neste país se considera um insulto que alguém rechace uma bebida. Woody sorriu com amabilidade. —Nos Estados Unidos não —replicou. Volodia agarrou seu copo e olhou aos policiais secretos que fingiam ser funcionários e diplomáticos. —Um brinde! —disse—. Pela amizade entre os Estados Unidos e a União Soviética! Outros levantaram os copos. Woody fez o próprio. —Pela amizade! —repetiram os pressente ao uníssono. Todos beberam salvo Woody, que deixou o copo sem ter provado o vodca. Volodia começava a suspeitar que não era tão ingênuo como parecia. Woody se inclinou sobre a mesa. —Volodia, tem que entender que não conheço nenhum secreto. Tenho uma fila muito baixo. —Eu também —disse Volodia, o qual distava muito de ser verdade. —O que intento te dizer é que pode me perguntar o que queira. Se souber a resposta, direi-lhe isso. Isso posso fazê-lo porque tudo o que sei não pode ser um segredo, de modo que não é necessário que me embebede nem que me envie prostitutas à habitação. me pode perguntar isso diretamente. Volodia acreditava que era uma espécie de truque. Ninguém podia ser tão inocente. Entretanto decidiu seguir a corrente ao Woody. por que não? —De acordo —disse—. Preciso saber o que querem. Não você pessoalmente, claro, a não ser sua delegação, o secretário Hull e o presidente Roosevelt. O que esperam obter desta conferência? —Queremos que apóiem o Pacto Cuatripartito. Era a resposta esperada, mas Volodia decidiu insistir. —Isso é o que não entendemos. —Agora era ele quem se mostrava ingênuo, possivelmente mais do que devia, mas o instinto lhe dizia que devia arriscar-se e abrir-se um pouco—. A quem lhe importa um pacto com a China? O que temos que fazer é derrotar aos nazistas na Europa. Queremos que nos ajudem a obtê-lo. —E o faremos. —Isso dizem, mas também afirmaram que invadiriam a Europa este verão. —Bom, invadimos a Itália. —Com isso não basta. —França o ano que vem. Prometemo-lo. —Então, do que lhes serve o pacto? —Bom. —Woody fez uma pausa para ordenar seus pensamentos—. Temos que lhe demonstrar ao povo norte-americano que invadir a Europa beneficiaria seus interesses. —por que? —por que o que? —por que têm que explicar-lhe às pessoas? Roosevelt é o presidente, não? Teria que limitar-se a dar a ordem e preparada! —O ano que vem há eleições e quer que o reelejam. —E? —O povo norte-americano não o votará se acreditar que implicou ao país na guerra da Europa de forma desnecessária. De modo que quer transmitir a mensagem de que a intervenção militar forma parte de um plano geral para obter a paz mundial. Se assinarmos o Pacto Cuatripartito, para demonstrar que nosso apoio à Organização das Nações Unidas vai a sério, então é mais provável que os votantes norte-americanos aceitem que a invasão da França é um passo mais do caminho para conseguir a paz mundial. —É incrível —disse Volodia—. Roosevelt é o presidente e, entretanto, tem que estar inventando-se desculpas continuamente para justificar tudo o que faz! —por aí vão os tiros —disse Woody—. O chamamos democracia. Volodia tinha a sensação de que essa incrível historia podia ser certa. —assim, o pacto é necessário para convencer aos votantes americanos de que emprestem seu apoio à invasão da Europa. —Exato. —Então, por que necessitamos a China? —Stalin receava especialmente da insistência dos Aliados para incluir o Pekín no pacto. —China é um aliado débil. —Pois não façamos conta. —Se os deixarmos de lado, talvez não mostrem tanto ardor na luta contra os japoneses. —E? —Teremos que aumentar as forças no Pacífico e isso nos debilitará na Europa. Aquilo alarmou a Volodia. A União Soviética não queria que as forças aliadas concentrassem esforços no Pacífico. —De modo que estão fazendo um gesto amistoso com a China para poder dedicar um maior número de forças à invasão da Europa. —Sim. —Faz que pareça muito singelo. —é —disse Woody. IV Na madrugada de 1 de novembro, Chuck e Eddie tomaram o café da manhã um bife com guarnição junto com a 3.ª Divisão de Marinhe, perto da ilha do Bougainville, em o mar do Sul. A ilha media uns duzentos quilômetros de comprimento. Tinha duas bases aéreas navais japonesas, uma ao norte e outra ao sul. Marinhe-os se estavam preparando para aterrissar para a metade da costa oeste, que logo que contava com medidas de defesa. Seu objetivo era estabelecer uma cabeça de praia e conquistar suficiente território para construir uma pista de aterrissagem da que lançar ataques contra as bases japonesas. Chuck se encontrava em coberta às sete e vinte e seis quando marinhar providos com cascos e mochilas começaram a descender pelas redes que penduravam por os lados do navio e saltaram nas naves de desembarque. além deles havia um pequeno número de cães do exército, uns doberman pinscher que eram uns sentinelas infatigáveis. Enquanto as naves se aproximavam de terra, Chuck já viu um engano no mapa que tinha preparado. As ondas altas rompiam em uma praia com um forte pendente. Enquanto observava a cena, uma nave ficou em paralelo à costa e naufragou. Marinhe-os tiveram que nadar até a borda. —Temos que mostrar as condições do fluxo —disse Chuck ao Eddie, que se encontrava junto a ele em coberta. —Como vamos averiguar as? —Um avião de reconhecimento terá que voar baixo para que as cristas das ondas apareçam nas fotografias. —Não podem arriscar-se a voar tão baixo quando há bases inimizades tão perto. Eddie estava no certo, mas tinha que haver uma solução. Chuck tomou nota disso, seria a principal questão que deveria solucionar como resultado daquela missão. Para a aterrissagem se beneficiaram de mais informação do que era habitual. Além dos mapas pouco confiáveis e das fotografias aéreas difíceis de decifrar, contavam com um relatório de uma equipe de reconhecimento que tinha desembarcado de um submarino seis semanas atrás. A equipe tinha identificado doze praias adequadas para o desembarque dos marinhe em uma franja de costa de sete quilômetros de comprimento. Mas não lhes tinham advertido da maré. Possivelmente não estava tão alta esse dia. Pelo resto, o mapa do Chuck era correto até o momento. Havia uma praia de areia de uns cem metros de largura e logo um labirinto de palmeiras e outra vegetação. Justo detrás da maleza, segundo o mapa, havia uma restinga. A costa não estava desguarnecida por completo. Chuck ouviu o rugido de fogo de artilharia, e um projétil caiu no baixio. Não causou danos, mas estava claro que a pontaria do artilheiro melhoraria. Marinhe-os se viram obrigados a atuar com maior celeridade enquanto saltavam da nave de desembarque e puseram-se a correr em direção à praia para chegar até a vegetação. Chuck se alegrou de ter tomado a decisão de ir. Sempre tinha feito seus mapas com grande esmero, mas era benéfico comprovar em carne própria que uns mapas corretos podiam salvar as vistas de vários homens, e que o mínimo engano podia resultar mortal. Inclusive antes de embarcar, Eddie e ele se tornaram muito mais exigentes. Pediram que se tomassem de novo as fotografias imprecisas, falaram por telefone com membros dos grupos de reconhecimento para lhes expor dúvidas e enviaram cabos a todo mundo para conseguir melhores mapas. alegrava-se por outro motivo. Estava em alta mar, o que adorava. Estava em um navio com setecentos homens jovens, desfrutava de do ambiente de camaradagem, das brincadeiras, das canções e da intimidade dos camarotes abarrotados e as duchas compartilhadas. —É como ser um menino heterossexual em um internato feminino —disse ao Eddie uma noite. —Salvo que isso nunca acontece e isto sim —disse Eddie, que se sentia igual a Chuck. queriam-se mutuamente, mas não tinham reparos em olhar a marinhos nus. Agora os setecentos marinhe estavam desembarcando e se dirigiam para terra tão rápido como podiam. O mesmo acontecia em outros oito pontos da costa. Assim que uma nave de desembarque ficava vazia, rapidamente ia procurar a mais homens; entretanto, o processo parecia desesperadamente lento. O artilheiro japonês, oculto em algum lugar da selva, finalmente deu com a distância correta e, para horror do Chuck, um obus bem dirigido explorou no meio de um grupo de marinhe e fez voar pelos ares homens, fuzis e extremidades, e tingiu a areia da praia de vermelho. Chuck observava o açougue horrorizado quando ouviu o rugido de um avião; elevou a vista e viu um Zero japonês em vôo rasante, ao longo da costa. Os sóis vermelhos pintados nas asas provocaram que o medo se apoderasse dele. A última vez que tinha visto esses cazabombarderos tinha sido no batalha do Midway. O Zero lançou várias rajadas de metralhadora na praia. Marinhe-os que estavam desembarcando da nave ficaram indefesos. Alguns se atiraram no baixio, outros tentaram esconder-se depois do casco da nave, outros correram em direção à selva. Durante uns quantos segundos correu o sangue e caíram os homens. Então desapareceu o avião e deixou uma praia semeada de norte-americanos mortos. Chuck o ouviu ao cabo de um instante, metralhando a seguinte praia. Não demoraria para voltar. supunha-se que contavam com a ajuda de vários aviões americanos, mas não via nenhum. O apoio aéreo nunca estava onde queria que estivesse, que era justo sobre sua cabeça. Quando todos os marinhe estavam em terra, vivos e mortos, os botes transportaram a médicos e carregadores de maca até a praia. Logo começaram a desembarcar munição, água potável, comida, medicamentos e material sanitário. Na viagem de volta, a nave de desembarque se levou aos feridos ao navio. Chuck e Eddie, que eram considerados pessoal não essencial, desembarcaram com os equipamento. Quão marinhos dirigiam o bote se acostumaram ao fluxo, e a embarcação mantinha uma posição estável, com a rampa na areia enquanto as ondas rompiam na popa. Um grupo de soldados descarregaram as caixas e Chuck e Eddie saltaram à água para chegar à borda. Alcançaram a praia juntos. No momento em que pisaram na areia, uma metralhadora abriu fogo. Parecia estar oculta na selva, a uns quatrocentos metros. Tinha estado aí desde o começo, esperando a que chegasse o momento idôneo para atacar, ou acabava de chegar a essa localização? Eddie e Chuck se agacharam e correram para as árvores. Um marinho que carregava com uma caixa de munição ao ombro proferiu um grito de dor e caiu, atirando a caixa. Logo foi Eddie o que gritou. Chuck deu um par de passos antes de poder deter-se. Quando se voltou, Eddie se derrubava na areia, agarrando-a joelho e gritando: —Ah, joder! Chuck correu até ele e se ajoelhou a seu lado. —Não passa nada, estou aqui! —gritou. Eddie fechou os olhos, mas estava vivo, e Chuck não viu nenhuma outra ferida além da do joelho. Elevou a vista. O bote que os tinha transladado a terra ainda estava perto da borda; ainda não tinham acabado de descarregá-lo. Tinha a possibilidade de transladar ao Eddie ao navio em poucos minutos, mas a metralhadora não tinha deixado de disparar. agachou-se. —Isto te vai doer —disse—. Grita quanto queira. Agarrou ao Eddie por debaixo do ombro com o braço direito e deslizou o esquerdo sob as coxas. Então levantou o peso e ficou em pé. Eddie gritou de dor enquanto sua perna ferida se balançava. —Agüenta, amigo —disse Chuck, que se voltou para a água. de repente sentiu uma dor insuportável e aguda que foi subindo pelas pernas, as costas e, ao final, chegou até a cabeça. Ao cabo de um instante pensou que não devia soltar ao Eddie. Pouco depois se deu conta de que ia fazer o. Viu uma chama de luz que o deixou cego. E um manto de escuridão cobriu o mundo. V Em seu dia livre, Carla trabalhava no hospital judeu. O doutor Rothmann a tinha convencido. Tinha sido liberado do campo no qual estava encerrado e ninguém sabia o motivo, salvo os nazistas, que não o tinham revelado. Agora era torto e coxo, mas estava vivo e podia praticar a medicina. O hospital se encontrava no bairro operário do Wedding, situado ao norte da cidade, mas sua arquitetura não tinha nada de proletário. Tinha sido construído antes da Primeira guerra mundial, quando os judeus do Berlim eram prósperos e conservavam o orgulho. Era um complexo formado por sete edifícios elegantes e um grande jardim. Os diferentes pavilhões estavam unidos por túneis, de modo que os pacientes e o pessoal sanitário podiam transladar-se de um a outro sem sofrer as inclemências do tempo. Era um milagre que ainda houvesse um hospital judeu. Logo que ficavam judeus no Berlim. A milhares deles os tinham detido e metido de trens especiais. Ninguém sabia aonde os tinham enviado nem o que lhes tinha acontecido. Corriam uns rumores incríveis sobre uns campos de extermínio. Quando os poucos judeus que ficavam no Berlim estavam doentes, não podiam ir à consulta de médicos arianos, de modo que, conforme a retorcida lógica do racismo nazista, permitiram que o hospital seguisse funcionando. O pessoal era judeu principalmente e outras pessoas desafortunadas que não eram consideradas árias: eslavos da Europa oriental, gente de ascendência mista e pessoas casadas com judeus. Entretanto, não havia suficientes enfermeiras, pelo que a Carla lhes dava uma mão. O hospital estava submetido à perseguição contínuo da Gestapo, sofria uma grande carência de todo tipo de produtos, em especial de medicamentos, não contava com pessoal suficiente e não dispunha de recursos. Carla infringia a lei ao tomar a temperatura a um menino de onze anos que tinha o pé esmagado por culpa do último ataque aéreo. Também era um delito que roubasse medicamentos do hospital no qual trabalhava diariamente e os levasse a judeu. Mas queria demonstrar, embora só fora a si mesmo, que não todo mundo tinha resumido ante os nazistas. Enquanto acabava a ronda viu o Werner ao outro lado da porta, vestido com sua uniforme das forças aéreas. Durante vários dias Carla e ele tinham vivido atemorizados, perguntando-se se alguém tinha sobrevivido ao bombardeio da escola e tinha denunciado ao Werner; sem embargo, agora estava claro que todos tinham morrido e que ninguém mais compartilhava as suspeitas do Macke. Haviam tornado a sair-se com a sua. Werner se tinha recuperado rapidamente da ferida de bala. E eram amantes. Werner se tinha transladado à casa grande e médio vazia dos Von Ulrich, e dormia com a Carla todas as noites. Seus pais não puseram objeção alguma: todo mundo vivia com a sensação de que podia morrer em qualquer momento, de modo que a gente queria desfrutar da mais mínima alegria que pudesse lhes proporcionar aquela vida de penúrias e sofrimento. Entretanto, Werner tinha um aspecto mais sério do habitual quando saudou a Carla com a mão através do cristal da porta do pavilhão. Lhe fez um gesto para que entrasse e o beijou. —Quero-te —lhe disse. Nunca se cansava de dizer-lhe psiquiátrico, que acostumbraba a permanecer cerrada, estaba abierta de par en par. Los pacientes estaban saliendo. Dos policías más y unas cuantas enfermeras acompañaban —Eu também te quero —gostava de responder a ele. —O que faz aqui? —perguntou ela—. Sozinho queria um beijo? —Trago más notícias. Destinaram-me à frente oriental. —OH, não! —disse Carla, que começou a chorar. —É um milagre que tenha podido evitá-lo até agora. Mas o general Dorn não pode me ajudar mais. A metade de nosso exército está formado por anciões e escolar, e eu sou um oficial são de vinte e quatro anos. —Não morra, por favor —murmurou ela. —Tentarei-o. —Mas o que acontecerá com a rede? —perguntou Carla com um sussurro—. Você sabe tudo. Quem mais pode dirigi-la? Olhou-a sem dizer nada. Carla se deu conta de quais eram seus planos. —OH, não… Eu não! —É a pessoa mais adequada. Frieda é uma boa ajudante, mas não tem madeira de líder. Você demonstraste que poses a capacidade de recrutar a gente nova e motivá-la. Nunca te colocaste em problemas com a polícia e não tem antecedentes de atividade política. Ninguém conhece o papel que desempenhou para acabar com o Aktion T4. No que respeita às autoridades, é uma enfermeira com um histórico imaculado. —Mas, Werner, estou assustada! —Não está obrigada a aceitar. Mas ninguém mais pode me substituir. Então ouviram um forte ruído. O pavilhão contigüo era para pacientes mentais e não era estranho ouvir gritos e chiados; entretanto, nesta ocasião era distinto. Uma voz culta se elevou entre a gritaria. Logo ouviram uma segunda, esta com acento berlinense e o deixe intimidatório que as pessoas de fora consideravam típico dos berlinenses. Carla saiu ao corredor e Werner a seguiu. O doutor Rothmann, que levava uma estrela amarela na bata, discutia com um homem vestido com o uniforme das SS. Depois deles, a porta dobro do pavilhão psiquiátrico, que acostumava a permanecer fechada, estava totalmente aberto. Os pacientes estavam saindo. Dois policiais mais e umas quantas enfermeiras acompanhavam à fileira de homens e mulheres, a maioria em pijama; alguns caminhavam erguidos e tinham um aspecto normal, mas outros arrastavam os pés e murmuravam enquanto seguiam a outros pelas escadas. Carla se lembrou imediatamente do filho da Ada, Kurt, e do irmão do Werner, Axel, e do mal chamado hospital do Akelberg. Não sabia aonde levavam a esses pacientes, mas estava segura de que foram matar os. —Esta gente está doente! —exclamou o doutor Rothmann, indignado—. Necessitam tratamento! —Não estão doentes, estão loucos, e os levamos a lugar que lhes corresponde. —A um hospital? —Lhe informará ao seu devido tempo. —Essa explicação não me basta. Carla sabia que não devia intervir. Se averiguavam que não era feijão se meteria em problemas. Entretanto, tampouco tinha um aspecto muito ariano com seu cabelo escuro e os olhos verdes. Se não abria a boca, era provável que não a incomodassem. Entretanto, se mostrava sua oposição ao que as SS estavam fazendo, deteriam-na e interrogariam, e então averiguariam que estava trabalhando de forma ilegal. De modo que apertou os dentes. O oficial elevou a voz. —lhes dê pressa, coloquem a esses cretinos no ônibus. —Tem que me informar do lugar ao que os transladam. São meus pacientes —insistiu Rothmann. Em sentido estrito não eram seus pacientes já que não era psiquiatra. —Se tanto se preocupa com eles, pode lhe acompanhá-los espetou o homem das SS. O doutor Rothmann empalideceu. Se aceitava, encontraria a morte. Carla pensou em sua mulher, Hannelore; seu filho, Rudi, e sua filha, Eva, que estava na Inglaterra; o medo a atendeu. O oficial sorriu. —de repente já não está tão preocupado? —burlou-se. Rothmann ficou direito. —Ao contrário —disse—. Aceito sua oferta. Faz muitos anos jurei que faria tudo o que estivesse em minhas mãos para ajudar aos doentes. Não penso romper o juramento agora. Quero morrer em paz com minha consciência. —Baixou os degraus coxeando. Uma mulher passou ante eles vestida unicamente com a bata, que estava aberta e deixava ao descoberto sua nudez. Carla foi incapaz de seguir em silêncio. —Estamos no mês de novembro! —gritou—. Não têm roupa de rua! O oficial a fulminou com o olhar. —No ônibus estarão bem. —Vou lhes buscar roupa. —Carla se voltou para o Werner—. Vêem me ajudar. Agarra todas as mantas que encontre. Ambos percorreram o pavilhão psiquiátrico, agarrando as mantas das camas e dos armários. Cada um levava um montão e baixaram as escadas correndo. O jardim do hospital estava gelado. Frente à porta principal havia um ônibus cinza, com o motor ao ralentí, e o condutor fumando ao volante. Carla viu que levava um casaco grosso, chapéu e luvas, o que significava que o ônibus não tinha calefação. Havia um punhado de homens da Gestapo e das SS observando o que acontecia. Os últimos pacientes subiram a bordo. Carla e Werner fizeram o próprio e começaram a repartir mantas. O doutor Rothmann se encontrava ao fundo. —Carla —disse—. lhe Diga… lhe diga a meu Hannelore o que aconteceu. Tenho que ir com os pacientes. Não fica outra eleição. —É obvio —disse ela com a voz entrecortada. —Possivelmente possa protegê-los. Carla assentiu, embora em realidade não estava convencida disso. —Em qualquer caso, não posso abandoná-los. —O direi. —E lhe diga que a quero. Carla não foi capaz de conter as lágrimas. —lhe diga que isso é quão último hei dito. Que a quero —disse Rothmann. Carla assentiu. Werner a agarrou do braço. —Vamos. Desceram do ônibus. —Você, o do uniforme da Luftwaffe, que demônios crie que faz? —perguntou-lhe um dos membros das SS ao Werner. Werner estava tão furioso que por um momento Carla temeu que fora a começar uma briga. Entretanto, falou com tom acalmado. —Dar mantas a gente que passa frio —disse—. Acaso é algo que vá contra a lei agora? —Deveria estar lutando no fronte oriental. —Vou amanhã. E você? —Cuidado com o que diz. —Se tivesse a amabilidade de me prender antes de ir, possivelmente me salvaria a vida. O homem se voltou. As marchas do ônibus fizeram um grande estrondo e o motor emitiu um som mais agudo. Carla e Werner se deram a volta para olhar. Em todas as janelas havia uma cara, e todas eram diferentes: gritavam, babavam, riam de forma histérica, mostravam uma expressão distraída ou crispada pela angústia: todos sofriam algum transtorno. Pacientes psiquiátricos transladados pelas SS. Uns loucos ao mando de outros loucos. O ônibus ficou em marcha. VI —Talvez me teria gostado da Rússia se me tivessem deixado lhe vê-la disse Woody a seu pai. —Opino o mesmo. —Nem tão sequer pude fazer alguma fotografia decente. Estavam sentados no vestíbulo do hotel Moskvá, perto da entrada da estação de metro. Faziam as malas e estavam a ponto de voltar para casa. —Tenho que lhe dizer ao Greg Peshkov que conheci a Volodia. Embora a Volodia não fez muita graça quando o disse. Suponho que tudo o que tem vínculos com o Ocidente passa a converter-se em alguém sob suspeita. —E que o diga. —Bom, já temos o que devemos buscar, isso é o importante. Os Aliados mostraram seu compromisso com a Organização das Nações Unidas. —Sim —disse Gus com satisfação—. Nos há flanco um pouco convencer ao Stalin, mas ao final entrou em razão. E em parte é graças a ti e ao bate-papo tão franco que manteve com o Peshkov. —Você lutaste por isso durante toda sua vida —disse Woody. —Não me importa admitir que este é um momento muito bom. Um pensamento inquietante cruzou a mente do Woody. —Não te irás aposentar agora, verdade? Gus riu. —Não. obtivemos um acordo em princípio, mas o trabalho não tem feito mais que começar. Cordell Hull já se foi de Moscou, mas alguns de seus ajudantes ainda estavam na cidade e um deles se aproximou até os Dewar. Woody o conhecia, era um moço chamado Ray Baker. —Tenho uma mensagem para você, senador —disse. Parecia nervoso. —Pois se chegar a vir um pouco mais tarde não me tivesse encontrado porque estou a ponto de ir —disse Gus—. Do que se trata? —É sobre seu filho Charles… Chuck. —Que mensagem traz? —perguntou Gus, que se havia posto pálido. Ao jovem lhe custava falar. —São más notícias, senhor. participou da batalha das ilhas Salomón. —Está ferido? —Não, senhor, é pior. —OH, Deus —disse Gus, que rompeu a chorar. Woody nunca tinha visto chorar a seu pai. —Sinto muito, senhor —disse Ray—. A mensagem é que morreu. 18 1944 I Woody se plantou diante do espelho do dormitório do piso que seus pais tinham em Washington. Luzia o uniforme de segundo tenente do 510.º Regimento Pára-quedista do exército dos Estados Unidos. Tinha encarregado a confecção do traje a um bom alfaiate da cidade, mas não lhe sentava bem. A cor cáqui lhe conferia um tom cítrico e as insígnias e os distintivos da jaqueta pareciam postos de qualquer maneira. Provavelmente, poderia haver-se liberado de que o chamassem filas, mas decidiu não fazê-lo. Uma parte dele desejava seguir trabalhando para seu pai, que estava ajudando ao presidente Roosevelt a planejar uma nova ordem global que evitaria mais guerras mundiais. Tinham conseguido a vitória em Moscou, mas Stalin não atuava com perseverança e parecia desfrutar criando problemas. Na conferência do Teherán celebrada em dezembro, o dirigente soviético havia tornado a propor a solução intermédia dos conselhos regionais e Roosevelt tinha tido que dissuadi-lo. Era óbvio que a Organização das Nações Unidas deveria manter-se olho atento. Entretanto, Gus podia arrumar-se sem o Woody, e ele se sentia cada vez pior permitindo que outros combatessem por ele. Tinha o melhor aspecto possível com o uniforme, assim entrou no salão para que sua mãe o visse. Rosa tinha visita, um jovem com o uniforme branco da armada, e ao cabo de um momento Woody reconheceu o sardento e atrativo rosto do Eddie Parry. Estava sentado junto a Rosa no sofá, com um fortificação na mão. ficou em pé com dificuldade para estreitar a mão ao Woody. Sua mãe tinha o semblante triste. —Eddie me estava falando do dia em que morreu Chuck —disse. Eddie voltou a sentar-se, e Woody ocupou um assento frente a ele. —Eu gostaria de ouvi-lo —disse Woody. —Não é uma história muito larga —começou Eddie—. Levávamos uns cinco segundos na praia do Bougainville quando uma metralhadora abriu fogo desde algum ponto da restinga. Corremos a nos pôr a coberto, mas recebi uns quantos disparos no joelho. Chuck teria que ter seguido correndo até a fileira de árvores; assim é como terá que atuar: deve deixar que os médicos se encarreguem dos feridos. Mas, é obvio, Chuck desobedeceu as ordens e se deteve para me recolher. Eddie fez uma pausa. Tinha ao lado uma taça de café, em uma mesita baixa, e tomou um sorvo. —Agarrou-me em braços —prosseguiu—. Pobre tolo. ficou a tiro. Imagino que o que queria era me levar de volta a bordo. As naves de desembarque têm os flancos muito altos, e são de aço. Ali teríamos estado a salvo, e poderia ter recebido atenção médica imediata. Mas era impossível que o conseguisse. Assim que se pôs em pé, o acribillaron a balaços; deram-lhe nas pernas, as costas e a cabeça. Acredito que morreu antes de cair ao chão. A questão é que quando fui capaz de levantar a cabeça e olhar, já não estava neste mundo. Woody viu que a sua mãe estava custando conter o pranto, e temia que se punha-se a chorar, ele faria o mesmo. —Permaneci uma hora convexo na praia a seu lado, lhe agarrando a mão —disse Eddie—. Até que vieram a me buscar com uma maca. Não queria ir porque sabia que nunca voltaria a vê-lo. —cobriu-se o rosto com as mãos—. O queria tanto —confessou. Rosa o rodeou pelos largos ombros e o abraçou. Ele apoiou a cabeça em seu peito e começou a soluçar como um menino. Rosa lhe acariciava o cabelo. —Vamos, tranqüilo —o consolou ela—. Tranqüilo. Woody se deu conta de que sua mãe sabia que relação tinham Chuck e Eddie. Ao cabo de um minuto, Eddie recuperou a compostura e olhou ao Woody. —Já sabe o que se sente. referia-se à morte do Joanne. —Sim, sim que sei —disse Woody—. É quão pior pode te acontecer na vida; mas cada dia dói um pouco menos. —Isso espero. —Segue no Hawai? —Sim. Chuck e eu trabalhamos juntos na unidade de território inimigo. Bom, trabalhávamos. —Tragou saliva—. Chuck decidiu que precisávamos ter melhores conhecimentos de como se utilizam nossos mapas durante o combate. Por isso fomos ao Bougainville com os marinhe. —Deviam estar fazendo um bom trabalho —observou Woody—. Parece que nos estamos carregando aos japoneses no Pacífico. —Pouco a pouco —particularizou Eddie. ficou olhando o uniforme do Woody—. Onde está destinado? —estive no Fort Benning, na Georgia, recebendo instrução em pára-quedismo —respondeu Woody—. Agora estou a ponto de partir para Londres. Vou amanhã. Captou o olhar de sua mãe. De repente, pareceu-lhe que tinha envelhecido; tinha a cara sulcada de rugas. Seus cinqüenta aniversários tinha passado sem pena nem glória. Entretanto, Woody deduziu que o fato de estar falando da morte do Chuck enquanto seu outro filho se plantava ante ela embelezado com o uniforme do exército tinha suposto um duro golpe. Eddie não se fixou nisso. —Dizem que este ano invadiremos a França —comentou. —Imagino que por isso me instruíram a toda pressa —disse Woody. —Seguro que entra em combate. Rosa afogou um soluço. —Espero ser tão valente como meu irmão —declarou Woody. —Pois eu espero que nunca chegue a averiguá-lo —repôs Eddie. II Greg Peshkov convidou a Margaret Cowdry, a moça de olhos escuros, a um concerto sinfônico de tarde. Margaret tinha uma boca grande, opulenta, que adorava os beijos. Entretanto, Greg estava pendente de outra coisa. Andava seguindo ao Barney McHugh. Igual a um agente do FBI chamado Bill Bicks. Barney McHugh era um físico jovem e brilhante. Trabalhava no laboratório secreto que o exército americano tinha em Los Álamos, Novo o México, e estava de permissão, pelo que tinha aproveitado para levar a sua mulher, de nacionalidade britânica, a visitar Washington. O FBI tinha averiguado de antemão que McHugh ia assistir ao concerto, e o agente especial Bicks as tinha arrumado para lhe conseguir ao Greg duas localidades poucas filas por detrás dele. Uma sala de concertos, com centenares de estranhos que se apinhavam ao entrar e ao sair, era o lugar perfeito para as entrevistas clandestinas, e Greg queria saber o que era o que McHugh se trazia entre mãos. Era uma lástima que já se conhecessem. Greg tinha falado com o McHugh em Chicago o dia que se provou a pilha atômica. Disso fazia um ano e meio, mas era possível que McHugh o recordasse. Por isso tinha que assegurar-se de que não o visse. Quando Greg e Margaret chegaram ao lugar, os assentos do McHugh estavam livres. A ambos os lados havia caminhos casais de aspecto corrente: à esquerda, um homem de média idade que levava um humilde traje cinza com raias brancas e a sosaina de sua esposa; à direita, duas mulheres de idade. Greg esperava que McHugh se apresentasse. Se era um espião, queria lhe jogar a luva. foram escutar a Sinfonia número um do Chaikovski. —Assim que você gosta da música clássica —comentou Margaret com desenvoltura enquanto a orquestra afinava. Não tinha nem idéia do verdadeiro motivo pelo que Greg a havia levado ali. Sabia que se dedicava à investigação de armas, o qual em si já era informação secreta, mas, como à maioria dos americanos, nem sequer soava-lhe que se estivesse desenvolvendo uma bomba atômica—. Acreditava que solo escutava jazz —disse. —eu adoro os compositores russos; são muito dramáticos —respondeu Greg—. Suponho que o levo no sangue. —Eu cresci rodeada de música clássica. A meu pai gosta que uma pequena orquestra acompanhe os jantares que organiza. —A família da Margaret era tão rica que, em comparação com ela, Greg se sentia um pobretón. Ainda não conhecia seus pais, mas suspeitava que não aprovariam uma relação com o filho ilegítimo de um famoso mulherengo de Hollywood. —O que está olhando? —perguntou. —Nada. —Tinham chegado os McHugh—. Que perfume leva? —Chichi do Renoir. —eu adoro. Os McHugh pareciam felizes; um casal radiante e próspero que desfrutava das férias. Greg se perguntava se o motivo pelo que tinham chegado tarde era que tinham estado fazendo o amor na habitação do hotel. Barney McHugh estava sentado ao lado do homem com o traje cinza de raias. Greg notava que o objeto era de pouca qualidade pela rigidez antinatural das ombreiras. O homem não se fixou nos recém chegados. Então os McHugh começaram a fazer um palavra cruzada; aproximavam as cabeças em um gesto de intimidade enquanto examinavam o periódico que sustentava Barney. Ao cabo de uns minutos, apareceu o diretor. O concerto se iniciou com uma obra do Saint-Saëns. Os compositores alemães e austríacos tinham perdido popularidade desde que tinha estalado a guerra, e os melómanos estavam descobrindo alternativas. Havia um interesse renovado pelo Sibelius. Era provável que McHugh fosse comunista. Greg sabia porque J. Robert Oppenheimer o tinha confessado. Oppenheimer, um destacado físico teórico da Universidade de Califórnia, dirigia o laboratório de Los Álamos e era o chefe de toda a equipe científica do projeto Manhattan. Tinha fortes vínculos comunistas, embora recalcava que nunca tinha pertencido à partida. —Para que quer o exército a todos esses vermelhos? —tinha perguntado ao Greg o agente especial Bicks—. Seja o que seja o que querem encontrar na larga travessia pelo deserto, não há suficientes cientistas jovens, brilhantes e de ideologia conservadora na América do Norte? —Não, não há os tinha respondido Greg—. Se os houvesse, já os teríamos contratado. Às vezes os comunistas eram mais leais a sua causa que a seu país, e podia lhes parecer apropriado revelar os segredos da investigação nuclear à União Soviética. Não era como lhe passar informação ao inimigo. Os soviéticos eram aliados dos Estados Unidos contra os nazistas; de fato, entre ambos países lhes tinham plantado mais cara que todos os outros aliados juntos. De todos os modos, era perigoso. A informação destinada a Moscou podia acabar em mãos do Berlim. Além disso, qualquer que dedicasse mais de um minuto a pensar na ordem mundial depois da guerra deduziria que os Estados Unidos e a União Soviética não seriam amigos para sempre. O FBI acreditava que Oppenheimer supunha um risco para a segurança e não parava de lhe insistir ao chefe do Greg, o general Groves, para que o despedisse. Mas Oppenheimer era o cientista mais relevante de sua geração e por isso o general estava empenhado em mantê-lo na equipe. Em um intento de demonstrar sua lealdade, Oppenheimer tinha revelado que cabia a possibilidade de que McHugh fora comunista, e por isso Greg o andava seguindo. Não obstante, o FBI tinha suas dúvidas. —Oppenheimer lhes está colocando dobrada —tinha assegurado isso Bicks. —Não acredito —tinha replicado Greg—. Faz um ano que o conheço. —É um puto comunista, como sua mulher, e seu irmão, e sua cunhada. —Trabalha dezenove horas ao dia para prover de melhores arma aos soldados norte-americanos. Que classe de traidor faria uma coisa assim? Greg esperava que McHugh resultasse ser um espião, pois assim deixariam de suspeitar do Oppenheimer, aumentaria a credibilidade do general Groves e, de passagem, também seu próprio prestígio. passou-se toda a primeira metade do concerto observando ao McHugh; não queria perder o de vista. O físico não prestava atenção às pessoas sentadas a um nem outro lado, parecia absorto na música e só apartava os olhos do cenário para lançar olhadas carinhosas à senhora McHugh, que era uma típica beleza inglesa com a cútis de porcelana. Estava Oppenheimer equivocado com respeito ao McHugh? Ou tinha obrado com grande sutileza e o tinha acusado para apartar as suspeitas de sim? Greg sabia que Bicks também o estava observando. encontrava-se acima, no primeiro piso. Talvez ele tivesse visto algo. No intermédio, Greg abandonou a sala detrás dos McHugh e se situou na mesma cauda para tomar café. Nem o casal anódino nem as duas anciãs estavam por ali perto. Greg se sentia frustrado. Não sabia que conclusões tirar. Eram infundadas suas suspeitas? Ou o único inocente dos McHugh era essa particular visita a cidade? Quando Margaret e ele retornavam a seus assentos, Bill Bicks lhe aproximou. O agente era de média idade, tinha um ligeiro sobrepeso e se estava ficando calvo. Levava um traje cinza pálido com manchas de suor nas axilas. —Tinha razão —disse em voz baixa. —Como sabe? —Note-se no tipo que se sinta ao lado do McHugh. —O do traje cinza de raias? —Exato. É Nikolái Yenkov, um agregado cultural da embaixada soviética. —Santo Deus! —exclamou Greg. —O que acontece? —atravessou Margaret, voltando-se para olhá-los. —Nada —respondeu Greg. Bicks se afastou. —Leva-te algo entre mãos —disse Margaret quando tomaram assento—. Me parece que não ouviste nem um só compasso do Saint-Saëns. —Estava pensando no trabalho. —me diga que não é outra mulher e te deixarei em paz. —Não é outra mulher. Durante a segunda parte, Greg começou a ficar nervoso. Não tinha observado contato algum entre os McHugh e Yenkov. Não falavam, e Greg não viu que intercambiassem nada; nenhuma pasta, nenhum sobre, nenhum carretel de fotos. A sinfonia tocou a seu fim e o diretor recebeu os aplausos pertinentes. O público começou a desfilar. A caça do espião tinha sido um desastre. Depois de sair ao vestíbulo, Margaret foi ao serviço. Enquanto Greg a esperava, Bicks lhe aproximou. —Não vi nada —disse Greg. —Eu tampouco. —Talvez é pura casualidade que McHugh estivesse sentado ao lado do Yenkov. —Nada ocorre por acaso. —Pois igual tiveram algum tropeço. Uma contra-senha errônea, por exemplo. Bicks negou com a cabeça. —Seguro que se aconteceram algo, solo que não o vimos. A senhora McHugh também tinha ido ao serviço e, como Greg, seu marido esperava por ali perto. Greg o observou desde detrás de uma coluna. Não levava nenhuma maleta, nem nenhuma gabardina onde ocultar um pacote ou uma pasta. Contudo, algo não acabava de lhe quadrar. O que era? Então Greg caiu na conta. —O periódico! —exclamou. —Como? —Antes Barney levava um periódico. Estava fazendo o palavra cruzada com sua mulher enquanto esperavam a que começasse o concerto. E agora já não o tem! —Ou o atirou… ou o passou ao Yenkov, com algo oculto dentro. —Yenkov e sua mulher já se partiram. —É possível que ainda estejam na porta. Bicks e Greg saíram correndo. Bicks se abriu passo entre a multidão que ainda obstruía a saída. Greg o seguiu, pegando-se a ele. Uma vez na rua, olharam a ambos os lados. Greg não observou rastro do Yenkov, mas Bicks tinha vista de lince. —cruzou a rua! —gritou. O agregado e sua anódina esposa aguardavam plantados na calçada enquanto uma limusine negra se aproximava pouco a pouco. Yenkov levava um periódico dobrado. Greg e Bicks cruzaram a toda pressa. A limusine se deteve. Greg era mais rápido que Bicks e chegou antes à outra calçada. Yenkov não tinha reparado neles. Abriu a porta do carro com toda tranqüilidade e se fez atrás para deixar passo a sua esposa. Greg se jogou sobre ele, e ambos caíram ao chão. A senhora Yenkov ficou a chiar. Greg conseguiu ficar em pé. O chofer tinha saído do veículo e se dispunha a rodeá-lo. —FBI! —gritou Bicks, e elevou a placa. Yenkov se dispunha a recuperar o periódico que lhe tinha cansado das mãos. Entretanto, Greg foi mais rápido. Agarrou-o, deu um passo atrás e o abriu. Dentro havia um montão de folhas. a de em cima de tudo tinha um esquema que Greg reconheceu imediatamente. Mostrava o funcionamento do dispositivo de implosão de uma bomba de plutônio. —meu deus —exclamou—. Estes são os adiantamentos mais recentes! Yenkov se apressou a subir ao carro, fechou a porta e acionou o seguro. O chofer voltou a ocupar seu assento e ficou em marcha. III Era sábado de noite e o piso que Daisy ocupava no Piccadilly estava abarrotado. Pelo menos havia um centenar de convidados, pensou agradada. converteu-se na representante de um grupo que emprestava serviços sociais em Londres e que dependia da Cruz Vermelha americana. Todos os sábados organizava uma festa para os soldados norte-americanos e convidava a enfermeiras do hospital do St. Bart. Também acudiam pilotos da RAF. Bebiam de suas ilimitadas reservas de uísque escocês e genebra e dançavam ao compasso dos discos do Glenn Miller reproduzidos em seu gramofone. Consciente de que bem podia ser a última festa a que os homens assistissem, fazia todo o possível pelos ter contentes. Tudo menos beijá-los; disso já se encarregavam as enfermeiras. Daisy nunca bebia álcool em suas festas, tinha que estar pendente de muitas coisas. Não paravam de encerrar-se casais no lavabo, e tinha que tirar as de ali de modo que a gente pudesse utilizá-lo para seu fim original. Se algum importante general se embebedava, tinha que encarregar-se de que chegasse a casa são e salvo. Muitas vezes ficava sem gelo; não havia forma de que seus serventes britânicos fossem conscientes da grande quantidade de gelo que fazia falta para celebrar uma festa. Durante um tempo, depois de romper com o Boy Fitzherbert, seus únicos amigos tinham sido a família Leckwith. A mãe do Lloyd, Ethel, nunca a julgava. Embora agora Ethel era a respeitabilidade personificada, no passado tinha cometido enganos e isso fazia que se mostrasse mais pormenorizada. Daisy seguia indo visitar ao Aldgate tudas as quartas-feiras de noite, e se tomavam uma taça de chocolate junto à rádio. Era seu momento favorito da semana. Tinha sofrido o rechaço social duas vezes, primeiro no Buffalo e logo em Londres, onde teve um momento de desânimo que a levou a pensar que talvez tinha sido por sua culpa. Possivelmente, depois de tudo, esses grupos rançosos da alta sociedade, com suas estritas normas de conduta, não eram para ela. Era uma parva por sentir-se atraída por eles. O problema era que adorava as festas, os picnics, os acontecimentos esportivos e toda classe de eventos nos que a gente ficava elegante e o passava bem. Não obstante, agora sabia que não necessitava aos britânicos de linhagem nem aos norte-americanos de família enriquecida para divertir-se. Tinha criado seu próprio grupo social, e era muito mais emocionante que os outros. Algumas das pessoas que tinham deixado de lhe dirigir a palavra depois da ruptura com o Boy agora não cessavam de lhe insinuar que gostariam de assistir a uma de suas famosas veladas dos sábados. E muitos convidados iam a sua casa para soltar o cabelo detrás sobreviver com esforço a um opulento jantar na suntuosa residência Mayfair. A festa dessa noite prometia ser a melhor até o momento, pois Lloyd estava de licença. Não escondiam que viviam juntos no piso. Ao Daisy dava igual o que pensasse a gente: sua reputação nos círculos respeitáveis era tão malote que não podia cair mais baixo. Em realidade, o apresso com que se vivia o amor em tempos de guerra tinha impulsionado a numerosos casais a quebrantar as normas de forma similar. Muitas vezes o serviço doméstico podia ser tão rígido como as señoronas em relação com esses aspectos, mas os empregados do Daisy a adoravam, assim Lloyd e ela não se incomodavam em fingir que dormiam em habitações separadas. adorava deitar-se com ele. Não tinha tanta experiência como Boy, mas o compensava com o entusiasmo; e estava ansioso por aprender. Cada noite era uma viagem de descobrimento em uma cama de matrimônio. Enquanto observavam aos convidados conversando e rendo, bebendo e fumando, dançando e beijocando-se, Lloyd lhe sorriu. —É feliz? —perguntou. —Quase —respondeu ela. —Como que quase? Ela suspirou. —Quero ter filhos, Lloyd, dá-me igual a não estejamos casados. Bom, não me dá igual, claro, mas mesmo assim quero um bebê. O semblante do Lloyd se escureceu. —Já sabe o que opino da ilegitimidade. —Sim, já me explicaste isso. Mas quero ter algo teu a meu lado, se por acaso morre. —Farei todo o possível por sobreviver. —Já sei. —Entretanto, se as suspeitas do Daisy eram certas e estava cumprindo uma missão secreta em território ocupado, poderiam executá-lo, tal como faziam em Grã-Bretanha com os espiões alemães. Desapareceria, e não ficaria nada—. acontece com milhões de mulheres, já sei, mas não sou capaz de imaginar a vida sem ti. Acredito que morreria. —Se soubesse como fazer que Boy se divorciasse de ti, faria-o. —Bom, não é um tema que devamos tratar em uma festa. —Posou a vista no outro extremo da sala—. O que te parece? Acredito que temos aqui ao Woody Dewar! Woody luzia um uniforme de tenente. Daisy se aproximou de saudá-lo. Resultava-lhe estranho voltar a vê-lo depois de nove anos; embora não tinha trocado muito, sozinho lhe via mais maior. —Temos a milhares de soldados norte-americanos por aqui —disse Daisy enquanto dançavam o fox-trot ao ritmo da Pennsylvania Six-Five Thousand—. Devemos estar a ponto de invadir a França. O que outra razão pode haver? —Asseguro-te que os mandamases não compartilham os planos com os tenentes novatos —disse Woody—. Mas a mim tampouco me ocorre nenhuma outra razão para que estejamos aqui. Não podemos deixar que os russos sigam levando todo o peso do conflito por muito tempo. —Quando crie que ocorrerá? —As ofensivas sempre têm lugar no verão. No fim de maio ou princípios de junho, conforme opina quase todo mundo. —Que logo! —Mas ninguém sabe onde ocorrerá. —O passo do Dover ao Calais é o mais estreito. —Por isso as defesas alemãs se concentraram ao redor do Calais. Mas igual tentamos surpreendê-los; por exemplo, desembarcando na costa sul, perto de Marsella. —Ao melhor então termina tudo. —Duvido-o. Quando tivermos uma cabeça de ponte, ainda ficará conquistar a França, e logo a Alemanha. Temos um comprido caminho por diante. —Vá, querido. —Woody parecia necessitar que o animassem, e Daisy conhecia a garota perfeita para fazê-lo. Isabel Hernández era uma estudante becada pela fundação do Rhodes para cursar um máster de história no St. Hilda’s College, em Oxford. Era muito bonito, mas os meninos a consideravam uma calientabraguetas por ser tão intelectual. Ao Woody, entretanto, essas coisas lhe traziam sem cuidado—. Vêem aqui —gritou a Isabel—. Woody, esta é meu amiga Bela. É de São Francisco. Bela, apresento-te ao Woody Dewar, do Buffalo. estreitaram-se a mão. Bela era alta, e tinha o cabelo grosso e escuro e a pele azeitonada, exatamente igual a Joanne Rouzrokh. Woody lhe sorriu. —O que faz em Londres? —perguntou. Daisy os deixou sozinhos. Serve o jantar a meia-noite. Quando conseguia provisões dos Estados Unidos, esta consistia em ovos com presunto; se não, em sándwiches de queijo. O jantar oferecia o parêntese durante o qual os convidados podiam falar, um momento parecido ao intermédio no teatro. Reparou em que Woody Dewar seguia acompanhado de Bela Hernández, e pareciam enfrascados na conversação. assegurou-se de que todo mundo dispusera do que desejava e se sentou em um rincão com o Lloyd. —Já sei o que quero fazer quando terminar a guerra, se seguir com vida —disse ele—. além de me casar contigo, quero dizer. —O que? —vou apresentar me como candidato ao Parlamento. Daisy estava emocionada. —Lloyd! Isso é fantástico! —Jogou os braços ao pescoço e o beijou. —É logo para felicitações. apresentei minha candidatura pelo Hoxton, circunscrição contigüa a de mamãe. Mas é possível que a seção local da Partida Trabalhista não me escolha; e embora o façam, pode que não ganhe. No Hoxton há um parlamentario liberal com muita força neste momento. —Quero te ajudar —disse ela—. Eu gostaria de ser sua mão direita. Redigirei-te os discursos; seguro que me dá bem. —eu adoraria que me ajudasse. —Pois parece! Os convidados de mais idade partiram depois de jantar, mas a música continuou e a bebida não se esgotava, assim que a festa prosseguiu com um ambiente mais desinhibido inclusive. Woody estava dançando uma peça lenta com Bela, e Daisy se perguntou se era seu primeiro escarcéu amoroso da morte do Joanne. As carícias foram em aumento, e os convidados começaram a transladar-se aos dois dormitórios. Como não podiam fechar a porta porque Daisy sempre tirava a chave, às vezes havia mais de um casal na mesma habitação, mas a ninguém parecia lhe importar. Em uma ocasião Daisy tinha encontrado a um casal no armário escobero, dormidos o um em braços do outro. À uma da madrugada chegou seu marido. Não tinha convidado ao Boy à festa, mas este se apresentou acompanhado por um casal de pilotos norte-americanos, e Daisy se encolheu de ombros e os deixou entrar. Desprendia certa euforia, e dançou com várias enfermeiras. Logo o propôs a ela com amabilidade. Estaria bebido?, perguntou-se, ou talvez solo se tornou mais transigente com ela? Se era assim, talvez se replanteara o do divórcio. Ela acessou, e dançaram o jitterbug. A maioria dos convidados não sabiam que eram um matrimônio separado, mas quem estava à corrente não davam crédito. —Tenho lido no periódico que compraste outro cavalo de carreiras —disse ela, iniciando uma conversação corriqueira. —chama-se Afortunado —respondeu ele—. Me há flanco oito mil guineas; toda uma fortuna. —Espero que valha a pena. —Daisy adorava os cavalos, e tinha forjado em sua mente a fantasia de que se dedicariam a comprá-los e adestrá-los juntos. Entretanto, ele não tinha querido compartilhar a afeição com sua mulher. Esse tinha sido um dos fracassos de seu matrimônio. Lhe leu a mente. —Decepcionei-te, verdade? —disse. —Sim. —E você me decepcionaste . Isso era novo para ela. —Por não fechar os olhos a suas infidelidades? —perguntou detrás meditá-lo um minuto. —Exato. —Estava o bastante bêbado para falar com sinceridade. Ela viu sua oportunidade. —Quanto tempo crie que temos que seguir nos mortificando? —nos mortificando? —sentiu saudades ele—. Quem se mortifica? —Mortificamo-nos o um ao outro por nos obrigar a seguir casados. Teríamos que nos divorciar, como fazem as pessoas sensatas. —Talvez tenha razão —conveio ele—. Mas um sábado a estas horas não é o melhor momento para falar disso. Daisy se criou novas expectativas. —O que te parece se for verte um dia? —propôs—. Quando estivermos acordados, e sóbrios. Ele vacilou. —De acordo. Daisy, ansiosa, aproveitou o momento. —Que tal manhã pela manhã? —De acordo. —Verei-te o sair da igreja. Às doze do meio-dia parece bem? —De acordo —repetiu Boy. IV Quando Woody estava cruzando Hyde Park com Bela para acompanhá-la a casa de uma amiga que vivia no South Kensington, ela o beijou. Ninguém o tinha feito da morte do Joanne e, ao princípio, ficou paralisado. Bela gostava muitíssimo, era a garota mais inteligente que tinha conhecido, além do Joanne. E sua forma de abraçá-lo quando dançavam lhe tinha feito pensar que podia beijá-la se o desejava. Mesmo assim, refreou-se. Não deixava de pensar no Joanne. Assim Bela tomou a iniciativa. Abriu a boca, e ele notou o roce de sua língua, mas isso solo serve para que recordasse ao Joanne fazendo o mesmo. Unicamente tinham acontecido dois anos e meio de sua morte. Seu cérebro começava a baralhar amáveis frases de rechaço quando seu corpo tomou a substituição. De repente, o desejo o consumia. Começou a beijá-la com avidez. Ela respondeu com entusiasmo a seu arrebatamento de paixão. Agarrou-lhe as duas mãos e as pôs sobre seus peitos, grandes e suaves. Ele gemeu sem poder conter-se. Tinha escurecido e logo que via mas, a julgar pelos sons médio afogados procedentes dos arbustos de ao redor, deduziu que havia muitos casais fazendo o mesmo. Ela se apertou contra seu corpo; Woody sabia que notava sua ereção. Estava tão excitado que tinha a impressão de que ejacularia de um momento a outro. Bela parecia igual de avivada que ele. Notou que lhe desabotoava as calças com movimentos apressados; tinha as mãos frite em contraste com seu pênis ardente. Retirou o objeto que o cobria e logo, para surpresa e deleite do Woody, ajoelhou-se. Assim que rodeou a glande com os lábios, ele se derramou em sua boca sem poder controlá-lo. Enquanto o fazia, ela o sugou e o lambeu com impaciência febril. Depois do momento do clímax, Bela seguiu lhe beijando o membro até que baixou a ereção. Logo o tampou com suavidade e se levantou. —foi muito excitante —sussurrou—. Obrigado. Woody estava a ponto de lhe dar também as obrigado, mas em vez disso a abraçou e a atraiu com força para si. sentia-se tão agradecido que se teria jogado a chorar. Até esse momento, não tinha reparado em quanto necessitava as cuidados de uma mulher essa noite. Era como se lhe tivessem tirado de cima algo que o escurecia. —Não sei como te dizer… —começou, mas não encontrava palavras para expressar o que tinha significado para ele. —Pois não diga nada —repôs ela—. De todos os modos, sei. Noto-o. Caminharam até sua casa. —Poderíamos…? —começou ele quando chegaram à porta. Lhe posou um dedo nos lábios para sossegá-lo. —Vê e vontade a guerra —disse. Logo entrou. V Quando Daisy assistia ao ofício religioso os domingos, o qual não acontecia freqüentemente, evitava as Iglesias de élite freqüentadas pelos fiéis do West End que o voltavam a cara e preferia transladar-se em metro até o Aldgate e acudir ao Calvary Gospel Hall. As diferenças doutrinais eram numerosas, mas a ela isso não o importava. Os cânticos do East End eram mais divertidos. Lloyd e ela chegaram por separado. Os habitantes do Aldgate a conheciam, e gostavam de ter a uma aristocrata peculiar em seus humildes bancos. Entretanto, tratando-se de uma mulher casada e separada, teria suposto abusar de sua tolerância entrar na igreja do braço de seu concubino. Jesus não condenou à adultera, mas o pediu que não voltasse a pecar, havia dito Billy, o irmão do Ethel. Durante o ofício pensou no Boy. Teria pronunciado a sério as palavras conciliadoras da noite anterior, ou tudo tinha sido fruto da debilidade do momento de embriaguez? Boy incluso lhe tinha estreitado a mão ao Lloyd quando partiu, e isso tinha que significar que a perdoava, não? Entretanto, disse-se que não devia permitir que suas esperanças aumentassem. Boy era a pessoa mais egocêntrica que tinha conhecido na vida, pior que seu pai e seu irmão Greg. Ao sair da igreja, Daisy estava acostumado a ir a casa do Eth Leckwith a comer. Entretanto, esse dia deixou ao Lloyd com sua família e partiu a toda pressa. Retornou ao West End e bateu na porta da casa que seu marido ocupava no Mayfair. O mordomo a acompanhou ao salão de dia. Boy entrou gritando. —De que narizes vai tudo isto? —rugiu, e lhe arrojou um periódico. Tinha-o visto desse humor muitíssimas vezes, e não lhe dava medo. Solo lhe tinha levantado a mão uma vez, e ela tinha pego um pesado candelabro e o ameaçou com ele. Nunca tinha voltado para seu ceder. Não estava assustada, mas sim decepcionada. A noite anterior o tinha visto de um humor excelente. Claro que ainda cabia a possibilidade de que atendesse a razões. —por que está tão contrariado? —perguntou ela com serenidade. —Olhe o maldito periódico. Daisy se agachou e o recolheu. Era a edição do dia do Sunday Mirror, um popular tablóide de esquerdas. Em capa havia uma foto do novo cavalo do Boy, Afortunado, e o titular rezava: AFORTUNADO… VALE POR 28 MINEIROS DO CARVÃO A notícia da compra do Boy tinha aparecido na imprensa no dia anterior, mas esse dia o Mirror publicava um indignado artigo de opinião que recalcava que o preço do cavalo, oito mil e quatrocentas libras, equivalia exatamente a vinte e oito vezes o pagamento compensatório de trezentas libras que recebia a viúva de um mineiro morto em acidente de trabalho. E a fortuna da família Fitzherbert procedia das minas de carvão. —Meu pai está furioso —disse Boy—. Esperava que o nomeassem ministro dos Assuntos Exteriores do governo depois da guerra. Provavelmente isto arruinou seus possibilidades. Daisy respondeu com exasperação. —Escuta, Boy, pode fazer o favor de me explicar o que tenho eu que ver com isso? —Olhe quem tem escrito o maldito artigo! Daisy olhou a assinatura. Billy Williams Parlamentario pelo Aberowen —O tio de seu noivo! —soltou Boy. —Crie-te que antes de escrever um artigo me consulta isso ? Ele agitou o dedo em sinal de advertência. —Por alguma razão, essa família nos odeia! —Acreditam que é injusto que ganhe tanto dinheiro com o carvão enquanto os próprios mineiros passam penúrias. Estamos em guerra, já sabe. —Você também vive de uma fortuna herdada —lhe espetou—. Além disso, ontem à noite não observei muita austeridade em seu piso do Piccadilly, e isso que estamos em guerra. —Tem razão —conveio ela—. Mas eu me dedico a dar festas para os soldados. Você, pelo contrário, gastaste-te uma fortuna em um cavalo. —É meu dinheiro! —Mas ganha com o carvão. —Deitaste-te tantas vezes com esse bode do Williams que te converteste em uma maldita bolchevique! —Essa é uma das muitas coisas que nos separam, Boy. A sério quer seguir casado comigo? Encontrará a alguém que te convenha, a metade das garotas de Londres dariam algo por converter-se em viscondessas do Aberowen. —Não farei nada que favoreça a esses malditos Williams. Além disso, ontem à noite me pareceu ouvir que seu noivo quer converter-se em parlamentario. —Fará-o estupendamente. —Pois contigo perto, tem-no muito mal. Nem sequer o escolherão. É um maldito socialista, e você é ex-fascista. —Já pensei nisso. Sei que é um pouco problemático… —Problemático? É uma barreira infranqueável. Espera a que a notícia saia nos periódicos! Crucificarão-lhe igual a hoje têm feito comigo. —Imagino que pensa vender a história ao Daily Mail. —Não me fará falta; farão-o seus rivais. te lembre de minhas palavras: contigo perto, Lloyd Williams não terá nenhuma maldita oportunidade. VI Durante os primeiros cinco dias de junho, o tenente Woody Dewar e sua seção de pára-quedistas, além de outros mil homens aproximadamente, permaneceram isolados em um aeródromo do noroeste de Londres. Tinham convertido um hangar em um dormitório gigante com centenas de camas dispostas formando largas fileiras. Viam filmes e escutavam discos de jazz para entreter-se enquanto esperavam. O objetivo era Normandía. Com elaborados planos falsos, os Aliados tinham tentado convencer ao alto mando alemão de que o ponto estratégico se encontrava trezentos quilômetros ao nordeste do Calais. Se tinham conseguido enganá-los, as forças invasoras encontrariam pouca resistência relativamente, ao menos durante as primeiras horas. O primeiro grupo estaria formado pelos pára-quedistas, que saltariam em metade da noite. O segundo, pelo grosso de 130.000 homens a bordo de 5.000 naves que atracariam nas praias da Normandía ao amanhecer. Para então, os pára-quedistas teriam que ter destruído os pontos fortificados do interior e haver-se feito com o controle das principais conexões de transporte. A seção do Woody tinha que tomar uma ponte que cruzava o rio na pequena população de Église-dê-Soeurs, a dezesseis quilômetros da praia. Quando o houvessem conseguido, deviam controlar o acesso, bloqueando o passo às unidades de reforço alemãs, até que chegasse o grosso da tropa. Deviam evitar a toda costa que os alemães voassem a ponte. Enquanto esperavam luz verde, Ace Webber tinha organizado uma maratoniana timba de pôquer que lhe tinha feito ganhar mil dólares e logo voltar a perdê-los. Cameron o Canhoto não parava de limpar e engordurar de forma obsessiva sua ligeira carabina semiautomática M1, um modelo utilizado pelos pára-quedistas que tinha a culatra dobradiça. Lonnie Callaghan e Tony Bonanio, que não se agradavam, foram a missa juntos todos os dias. Pete Schneider, o Arteiro, não parava de afiar a faca de comando que tinha comprado em Londres, até tal ponto que poderia haver-se barbeado com ele. Patrick Timothy, que se parecia com o Clark Gable e inclusive levava um bigode similar ao dele, tocava o ukelele, repetindo uma e outra vez a mesma melodia e pondo a todo mundo frenético. O sargento Defoe escrevia largas cartas a sua esposa, logo as fazia pedaços e voltava a começar. Mack o Sedutor e Joe Morgan, o Charutos, rapavam-se mutuamente com a esperança de que isso facilitasse aos médicos a tarefa de lhes curar as feridas da cabeça. A maioria tinham motes. Woody tinha descoberto que o seu era o Escocês. O Dia D se estabeleceu no domingo 4 de junho, mas se atrasou a causa do mau tempo. na segunda-feira 5 de junho, a última hora da tarde, o coronel pronunciou um discurso. —Soldados! —gritou—. Esta noite invadiremos a França! Todos rugiram em sinal de aprovação. Woody pensou que era uma ironia; ali estavam cômodos e a salvo, mas não viam a hora de chegar ao lugar estabelecido, saltar dos aviões e aterrissar em braços das tropas inimizades que queriam acabar com suas vidas. Serviram-lhes um jantar especial; podiam comer quanto quisessem: vitela, porco, frango, batatas fritas e gelado. Woody não provou nada disso. Era mais consciente que outros do que lhes esperava e não queria confrontá-lo com o estômago cheio. Pediu um café e um donut. O café era americano, aromático e delicioso, muito distinto da beberagem asquerosa que serviam os britânicos quando, no melhor dos casos, havia café. tirou-se as botas e se tombou na cama. Pensou em Bela Hernández, em seu sorriso inclinado e seus suaves peitos. Quando se deu conta, soava uma sereia. Por um momento, Woody acreditou estar despertando de um pesadelo em que entrava em combate e matava gente. Logo se deu conta de que era a realidade. Todos ficaram o macaco de pára-quedista e prepararam a equipe. Levavam muitas coisas. Algumas eram imprescindíveis: uma carabina com cento e cinqüenta cartuchos de 30 mm, amadurecidas antitanque, uma pequena bomba chamada granada Gammon, rações K, tabletes para desencardir a água e um estojo de primeiro socorros de primeiros auxílios com morfina. Teriam que prescindir do resto: uma ferramenta para construir trincheiras, utensílios para barbear-se e um manual de conversação em francês. Foram tão carregados que aos homens menos corpulentos custava chegar até os aviões alinhados na pista às escuras. Os aviões destinados a transportá-los eram os Skytrain C-47. Para sua surpresa e apesar da pouca luz, Woody viu que os tinham pintado com chamativas raias negras e brancas. —É para que não nos derrubem os nosso por um maldito engano —disse o piloto do avião do Woody, um homem mal-encarado do Meio Oeste que respondia no nome de capitão Bonner. antes de embarcar-se, os homens deviam pesar-se. Donegan e Bonanio levavam sendos bazukas desmontados guardados em umas bolsas que lhes penduravam das pernas das calças e que acrescentavam trinta e seis quilogramas a seu peso. Quando somaram o total, o capitão Bonner se zangou. —Estão-me sobrecarregando! —grunhiu ao Woody—. Não conseguirei levantar este puto aparelho do chão! —Não é minha decisão, capitão —repôs Woody—. Fale com o coronel. O sargento Defoe se embarcou o primeiro e ocupou um assento na parte dianteira do avião, junto ao espaço aberto da cabine de mando. Seria o último em abandonar o avião. Qualquer homem que a última hora se arrependesse de ter que saltar em metade da noite receberia a ajuda de um bom empurrão do Defoe. Ao Donegan e ao Bonanio, com as bolsas dos bazukas e todo o resto, tiveram que lhes ajudar a subir a escalerilla. Woody subiu o último, posto que era o comandante da seção. Seria o primeiro em saltar, e também em chegar a terra. O interior do avião era um tubo com uma fila de simples assentos metálicos a cada lado. Os homens tinham problemas para grampear o cinto de segurança com toda a equipe, e alguns nem sequer se incomodaram em fazê-lo. A portinhola se fechou e os motores ficaram em funcionamento com um rugido. Woody se sentia tão emocionado como assustado. Contra toda lógica, não via o momento de que começasse a batalha. Para sua surpresa, estava impaciente por chegar a terra, enfrentar-se ao inimigo e disparar as armas. Queria que terminasse a espera. perguntou-se se voltaria a ver bela Hernández. Pareceu-lhe notar que o avião fazia um grande esforço para avançar pela pista. Com muita dificuldade adquiria velocidade, e dava a impressão de que não deixaria nunca de estralar em contato com o chão. Woody se surpreendeu a si mesmo ao perguntar-se quantos quilômetros tinha a maldita pista. Por fim separou o aparelho. Não tinha a sensação de estar voando, e pensou que deviam estar a pouca altura. Olhou pelo guichê. Estava sentado junto à sétima e última, ao lado da portinhola, e viu as veladas luzes da base, cada vez mais longe. elevaram-se. O céu estava turvo, mas as nuvens tinham certa luminosidade, certamente porque a lua se encontrava por cima. Ao final de cada asa, observava-se uma lucecita azul, e Woody viu que o avião no qual viajava ocupava seu lugar entre outros, formando uma V gigantesca. Na cabine havia tanto ruído que os homens tinham que gritar-se ao ouvido, e logo cessaram as conversações. Todos se removiam nos rígidos assentos, tratando em vão de ficar cômodos. Alguns fecharam os olhos, mas Woody duvidava que ninguém pudesse dormir. Voavam baixo, a pouco mais de mil pés, e de vez em quando Woody observava o brilho cinzento dos rios e os lagos. Em um momento dado, viu um grupo de pessoas, centenas de cabeças levantadas, olhando os aviões que voavam sobre elas com um ruído ensurdecedor. Sabia que havia mais de mil aparelhos sobrevoando o sul da Inglaterra ao mesmo tempo, e reparou em que a vista devia ser magnífica. Lhe ocorreu pensar que o que toda essa gente estava observando passaria a formar parte da história, e ele estava contribuindo a isso. Ao cabo de meia hora cruzaram os centros turísticos da costa e se encontraram sobrevoando o mar. Por um momento, a lua brilhou por uma fresta entre o amontoado de nuvens e Woody descobriu os navios. Logo que podia acreditar o que via. Era toda uma cidade flutuante, naves de todos os tamanhos formavam fileiras zigzagueantes no mar como as casas isoladas de uma urbanização. observavam-se milhares delas, chegavam até onde alcançava a vista. Mas antes de que pudesse avisar a seus companheiros para que contemplassem aquele panorama excepcional, as nuvens voltaram a tampar a lua e a visão se desvaneceu como um sonho. Os aviões viraram para a direita formando uma ampla curva com a intenção de se situar sobre o oeste da zona da França onde deviam lançá-los pára-quedistas e logo seguir a linha da costa para o este, guiando-se pelas características do terreno para assegurar-se de que caíssem onde deviam. As ilhas Anglonormandas, que embora eram britânicas se encontravam mais perto da França, tinham sido ocupadas pela Alemanha ao final da batalha da França em 1940. Enquanto a frota as sobrevoava, os canhões anti-aéreos alemães abriram fogo. A tão pouca altura os Skytrain eram muito vulneráveis, e Woody se deu conta de que podia perder a vida antes inclusive de chegar ao campo de batalha. Não queria morrer de forma tão inútil. O capitão Bonner ziguezagueou para evitar que o alcançassem os disparos. Woody se alegrou de que o fizesse, mas a manobra teve um efeito indeseado nos homens. Todos começaram a enjoar-se, incluído Woody. Patrick Timothy foi o primeiro que não pôde suportá-lo, e vomitou no chão. O fedor fez que outros se sentissem pior. Pete o Arteiro foi o seguinte em vomitar, e atrás dele o fizeram vários homens de uma vez. fartaram-se de vitela e sorvete, e agora o estavam arrojando tudo. O fedor era insuportável e o estou acostumado a ficou asquerosamente escorregadio. A trajetória se tornou mais estável uma vez que tiveram deixado atrás as ilhas. Ao cabo de poucos minutos, divisaram a costa francesa. O avião se inclinou e girou à esquerda. O co-piloto se levantou do assento e falou com ouvido ao sargento Defoe, e este se deu a volta e mostrou aos homens as duas mãos com os dedos estendidos. Faltavam dez minutos para saltar. O avião diminuiu a velocidade de 250 km/h aos aproximadamente 160 recomendados para saltar em pára-quedas. De repente, encontraram-se em meio de um banco de névoa. Era tão denso que ocultava a luz azul do extremo das asas. Ao Woody lhe acelerou o coração. Era uma situação muito perigosa para um grupo de aviões que voavam tão perto os uns dos outros. Miúda tragédia suporia morrer em um acidente aeronáutico, nem sequer em combate. Entretanto, Bonner só podia manter a trajetória reta e não perder a esperança. Qualquer mudança de direção provocaria uma colisão segura. O avião saiu do banco de névoa com tanta rapidez como tinha entrado nele. A ambos os lados, o resto da frota seguia mantendo a formação de modo milagroso. Quase imediatamente estalou o fogo anti-aéreo, as mortais exploda se aconteciam nos espaços fechados. Em tais circunstâncias, Woody sabia que as ordens do piloto consistiriam em manter a velocidade e voar diretamente para o objetivo. Mas Bonner desafiou as ordens e rompeu a formação. O zumbido dos aviões aumentou até converter-se em um rugido dos motores a toda máquina. A nave começou a ziguezaguear outra vez. O focinho do avião descendeu para tratar de adquirir maior velocidade. Woody olhou pelo guichê e viu que muitos outros pilotos estavam atuando com igual indisciplina. Não podiam controlar o impulso de salvar a vida. acendeu-se a luz vermelha da porta: faltavam quatro minutos. Woody estava seguro de que a tripulação tinha aceso a luz muito logo, estavam desesperados por livrar-se das tropas e correr a salvar o pele. Entretanto, eram eles quem dispunha da carta de navegação, assim não servia de nada discutir. ficou em pé. —lhes levante e lhes enganche! —gritou. A maioria dos homens não podiam ouvi-lo mas sabiam o que estava dizendo. Todos ficaram em pé e engancharam o cabo fixo ao cabo situado sobre suas cabeças, para que não pudessem cair de modo acidental. A portinhola se abriu e um vento uivador penetrou por ela. O avião se deslocava a muita velocidade. Um salto nessas condições resultava desagradável, mas esse não era o principal problema. Aterrissariam em pontos muito separados, e Woody demoraria muito mais tempo em reunir a seus homens. Alcançariam o objetivo mais tarde que o previsto e começariam a missão com atraso. Amaldiçoou ao Bonner. O piloto continuou inclinando-se para um lado e para o outro, esquivando o fogo anti-aéreo. Aos homens custava manter os pés no chão escorregadio pelos vômitos. Woody apareceu à portinhola. Bonner tinha começado a descender enquanto tratava de aumentar a velocidade e agora o avião voava a uns quinhentos pés; muito baixo. Talvez não tivessem tempo de abrir o pára-quedas de tudo antes de chegar ao chão. Vacilou, logo fez um gesto ao sargento para que se aproximasse. Defoe se plantou a seu lado e olhou abaixo, logo sacudiu a cabeça. —Se saltarmos desde esta altura, a metade dos homens se romperão os tornozelos —gritou com a boca pega ao ouvido do Woody—. E os dos bazukas se matarão. Woody tomou uma decisão. —Assegure-se de que não salte ninguém —gritou ao Defoe. Então se desenganchou do cabo e, abrindo-se passo entre as duas fileiras de homens, avançou até a cabine de mandos. Ocupavam-na três tripulantes. —Vamos! Vamos! —gritou a voz em pescoço. —Volte atrás e salte! —gritou Bonner por sua vez. —Ninguém vai saltar desde esta altura! —Woody se inclinou e assinalou o altímetro, que indicava quatrocentos e oitenta pés—. É um suicídio! —Saia da cabine de mandos, tenente. É uma ordem. Woody devia obedecer a seu superior, mas decidiu deixar clara sua postura. —Não, a menos que ganhemos altitude. —Deixaremos atrás o objetivo se não saltarem agora mesmo! Woody perdeu a paciência. —Pois salta você, bode! Salta você! Bonner parecia furioso, mas Woody não se moveu. Sabia que o piloto não estaria disposto a retornar com todos a bordo do avião porque teria que confrontar uma investigação para averiguar o que tinha saído mau, e Bonner já tinha desobedecido muitas ordens essa noite. Entre reniegos, atirou da alavanca de manobra. O focinho do avião voltou a elevar-se imediatamente, e o aparelho ganhou altura e perdeu velocidade. —Satisfeito? —grunhiu Bonner. —Não, joder. —Woody não pensava voltar atrás e dar tempo a que Bonner trocasse a trajetória—. Saltamos a mil pés. Bonner aumentou a velocidade ao máximo. Woody não apartava os olhos do altímetro. Quando chegou a mil pés, dirigiu-se à parte traseira do avião. abriu-se passo entre os homens, chegou à portinhola, apareceu, fez o sabido gesto de aprovação levantando os polegares e saltou. O pára-quedas se abriu imediatamente. Descendeu com rapidez enquanto a vela se desdobrava, até que esta freou sua queda. Ao cabo de uns segundos se encontrou em a água. Durante uma fração de segundo, invadiu-o o pânico; temia que o covarde do Bonner os tivesse feito lançar-se ao mar. Então seus pés toparam com algo sólido, pelo menos fofo, e compreendeu que tinha cansado em um terreno alagado. A seda do pára-quedas o envolveu. Lutou por livrar-se de suas dobras e se desabotoou o arnês. encontrava-se em pé no meio metro de água e olhou ao redor. Ou estava em um terreno pantanoso ou, o mais provável, em um campo alagado pelos alemães para impedir a invasão por parte das forças inimizades. Não viu ninguém, nem amigo nem inimigo, nem tampouco nenhum animal; claro que havia muito pouca luz. Olhou o relógio; eram as quatro menos vinte da madrugada; logo observou a bússola para orientar-se. Continuando, extraiu a carabina M1 do estojo e desdobrou a culatra. Colocou um cartucho de quinze projéteis na ranhura e deslocou a alavanca para introduzir um na antecâmara. Por fim, fez rodar o dispositivo de segurança até retirá-lo. Rebuscou no bolso e tirou um pequeno objeto metálico com aspecto de brinquedo infantil. Ao pressioná-lo, emitiu um ruidito seco inconfundível. Tinham-no repartido a todos os homens para que pudessem reconhecer-se na escuridão sem arriscar-se a revelar contra-senhas britânicas. Quando esteve preparado, voltou a olhar ao redor. Provou a pressionar o objeto duas vezes. Ao cabo de um momento, ouviu um ruidito idêntico justo em frente. Avançou chapinhando na água. Cheirava a vômito. —Quem há aí? —perguntou em voz baixa. —Patrick Timothy. —Sou o tenente Dewar. me siga. Timothy tinha sido o segundo em saltar, assim Woody supôs que se seguiam nessa mesma direção tinham muitas oportunidades de encontrar a outros. Depois de caminhar cinqüenta metros toparam com o Mack e com o Joe o Charutos, que já se reuniram. Saíram da água e se encontraram em uma estrada estreita, onde viram as primeiras vítimas. Lonnie e Tony, que levavam os bazukas nas bolsas das pernas das calças, tinham aterrissado com muita força. —Acredito que Lonnie está morto —observou Tony. Woody o comprovou: tinha razão. Lonnie não respirava. Ao parecer, quebrado-se o pescoço. Tony não podia mover-se, e Woody pensou que devia haver-se quebrado uma perna. Administrou-lhe uma dose de morfina e o arrastou da estrada até um prado próximo. Tony teria que esperar ali aos médicos. Woody ordenou ao Mack e ao Joe o Charutos que ocultassem o corpo do Lonnie para que não guiasse aos alemães até o Tony. Tratou de examinar o terreno que os rodeava, esforçando-se por reconhecer algo que se correspondesse com o mapa. A tarefa lhe desejou muito impossível, e mais na escuridão. Como ia guiar a esses homens até o objetivo se não sabia onde estava? O único do que estava bastante seguro era que não tinham aterrissado onde deviam. Ouviu um ruído estranho e, ao cabo de um momento, viu uma luz. Fez gestos aos outros para que se agachassem. supunha-se que os pára-quedistas não utilizavam lanternas, e a população francesa estava sob toque de silêncio, assim provavelmente quem se aproximava era um soldado alemão. A tênue luz permitiu ao Woody distinguir uma bicicleta. ficou em pé e o apontou com a carabina. Primeiro pensou em disparar imediatamente, mas não se sentia com ânimos de fazê-lo. —Halt! Arretez! —gritou pelo contrário. O ciclista se deteve. —Olá, tenente —saudou, e Woody reconheceu imediatamente a voz do Ace Webber. Woody baixou a arma. —De onde tiraste a bicicleta? —perguntou sem dar crédito. —Estava na porta de uma granja —respondeu Ace, lacônico. Woody guiou ao grupo por onde tinha vindo Ace, caso que era mais provável que outros se encontrassem nessa direção que em nenhuma outra. Enquanto, ia examinando o terreno com impaciência para encontrar características que o situassem no mapa, mas estava muito escuro. sentiu-se um inútil e um estúpido. Ali o oficial era ele, e tinha que saber resolver problemas desse tipo. Encontrou a mais homens de sua seção na estrada. Logo chegaram a um moinho. Woody decidiu que não podia seguir sem saber por onde ia, assim foi direto ao moinho e bateu na porta. abriu-se uma janela da planta superior. —Quem é? —perguntou um homem em francês. —Somos norte-americanos —respondeu Woody—. Vive a France! —O que querem? —liberá-los —disse Woody com seu francês de colegial—. Mas antes necessito que me ajude a me situar no mapa. O moleiro pôs-se a rir. —Já baixo —disse. Ao cabo de um minuto, Woody estava na cozinha, estendendo o sedoso mapa sobre a mesa, sob uma potente luz. O moleiro lhe mostrou onde se encontrava. Não estavam tão mal situados como Woody se temia. A pesar do pânico do capitão Bonner, solo tinham aterrissado a seis quilômetros e meio de Église-dê-Soeurs. O moleiro riscou a melhor rota no mapa. Uma moça de uns treze anos apareceu embelezada com uma camisola. —Mamãe diz que são americanos —disse ao Woody. —É certo, mademoiselle —respondeu ele. —Conhecem o Gladys Angelus? Woody se pôs-se a rir. —Pois uma vez coincidi com ela em casa do pai de um amigo. —E de verdade é tão, tão bonita? —Inclusive mais que nos filmes. —Sabia! O moleiro lhe ofereceu vinho. —Não, obrigado —disse Woody—. Talvez quando ganharmos. O moleiro o beijou em ambas as bochechas. Woody saiu e guiou a sua seção longe de ali, em direção a Églisedes-Soeurs. Tinha conseguido reunir a nove de seus dezoito homens, incluído ele. Tinham sofrido duas baixas, Lonnie tinha morrido e Tony estava ferido, e sete homens mais seguiam sem aparecer. Tinha ordens de não perder muito tempo tratando de encontrar a todo mundo. Quando tivesse suficientes homens para confrontar a missão, tinha que dirigir-se ao objetivo. Um dos sete que faltava apareceu ao cabo de um instante. Pete o Arteiro emergiu de uma sarjeta e se uniu ao grupo. —Olá, turma —saudou com desenvoltura, como se encontrar-se ali fora o mais normal do mundo. —O que fazia metido aí? —perguntou Woody. —Pensava que foram alemães —respondeu Pete—. Estava escondido. Woody tinha observado o pálido brilho da seda do pára-quedas na sarjeta. Pete devia ter permanecido ali escondido desde que aterrissaram. Era óbvio que estava morto de medo e se feito um novelo. Não obstante, Woody preferiu fingir que lhe acreditava. A quem mais desejava encontrar era ao sargento Defoe. Era um militar acostumado, e Woody pensava deixar-se guiar por sua experiência. Entretanto, não o via por nenhuma parte. Estavam perto de um cruzamento quando ouviram ruídos. Woody reconheceu o som de um motor ao ralentí e distinguiu duas ou três vozes. Ordenou a todo mundo que se agachasse, e a seção avançou desse modo. Mais adiante, viu que um motociclista se deteve a falar com dois pedestres. Os três foram uniformizados, e falavam alemão. No cruzamento havia um edifício, talvez se tratasse de um pequeno botequim ou uma padaria. Ao cabo de cinco minutos, perdeu a paciência e se deu meia volta. —Patrick Timothy! —sussurrou. —Pat o Potas! O Escocês te chama. Timothy avançou engatinhando. Seguia cheirando a vômito, e por isso lhe tinham posto esse mote. Woody tinha visto o Timothy jogar beisebol, e sabia que era capaz de lançar um objeto com força e precisão. —Arroja uma granada contra essa moto —ordenou Woody. Timothy tirou uma granada de sua mochila, atirou da argola e a lançou pelos ares. ouviu-se um ruído metálico. —O que foi isso? —perguntou um dos homens em alemão. Então a granada estalou. ouviram-se duas explosões. A primeira derrubou aos três alemães. A segunda procedia do depósito da motocicleta, e provocou uma labareda que engoliu aos três homens e deixou um fedor de carne carbonizada. —Não lhes movam! —gritou Woody a sua seção. Observou o edifício. Haveria alguém dentro? Durante os seguintes minutos, ninguém abriu a porta nem nenhuma janela. Ou o lugar estava deserto ou os ocupantes se esconderam debaixo da cama. Woody ficou em pé e fez gestos a seus homens para que o seguissem. Lhe fez estranho passar por cima dos horrendos cadáveres dos três alemães. Ele havia ordenado sua morte, a morte de homens que tinham pai e mãe, esposa ou noiva, inclusive talvez tivessem filhos. Agora esses homens tinham ficado reduzidos a uma horripilante massa de sangue e carne carbonizada. Woody deveria ter experiente uma sensação triunfal, era seu primeiro enfrentamento com o inimigo e o tinha derrotado. Entretanto, solo sentia alguma que outra náusea. Depois de superar o cruzamento, começou a andar a passo ligeiro e ordenou que ninguém falasse nem fumasse. Para conservar as energias, comeu-se uma barrita de chocolate da ração D que mas bem parecia massa com açúcar. Ao cabo de meia hora ouviu um carro e ordenou que todo mundo se escondesse nos campos. O veículo avançava depressa com os faróis acesos. Provavelmente era alemão, mas os Aliados enviavam jipes em planadores, além de canhões antitanque e outras armas de artilharia, assim também era possível que se tratasse de um veículo amigo. escondeu-se detrás de um sebe e esperou a que tivesse passado. Circulava muito rápido para identificá-lo. perguntou-se se devia ter ordenado a sua seção que lhe disparasse. Não, decidiu; pensando-o bem, era melhor concentrar-se em sua missão. Passaram por três aldeias que Woody conseguiu identificar no mapa. de vez em quando se ouvia ladrar a algum cão, mas ninguém saiu a averiguar o que ocorria. Sem dúvida, os franceses tinham aprendido que, sob a ocupação inimizade, era melhor encarregar-se de seus próprios assuntos. Resultava inquietante ter que avançar com cautela por estradas estranhas sumidos na escuridão e armados até os dentes, e passar frente a casa silenciosas cujos ocupantes dormiam alheios às armas mortais que espreitavam frente às janelas. Por fim chegaram às imediações de Église-dê-Soeurs. Woody ordenou um breve descanso. Entraram em uma pequena arvoredo e se sentaram no chão. Beberam dos cantis e comeram das rações. Woody não permitiu que ninguém fumasse ainda: um cigarro aceso resultava visível desde distâncias surpreendentes. Era de supor que a estrada que seguiam dava diretamente à ponte. Não dispunha de muita informação sobre até que ponto estava custodiado. Posto que os Aliados tinham descoberto que era importante, era lógico pensar que os alemães também acreditavam, e portanto era provável que tivessem tomado medidas de segurança; mas estas podiam consistir em algo, de um homem com um fuzil até uma seção completa. Não podia planejar o assalto até que visse o objetivo. Ao cabo de dez minutos ordenou avançar. Agora não o fazia falta insistir para que os homens guardassem silêncio, pois advertiam o perigo. Percorreram a rua com cautela, passaram frente a casas, Iglesias e lojas, pegos aos muros, aguçando a vista na escuridão da noite, sobressaltando-se ante o mínimo som. Um acesso de tosse ruidoso e repentino esteve a ponto de provocar que Woody disparasse a carabina. Église-dê-Soeurs era mais um povo grande que uma pequena aldeia, e Woody divisou o brilho prateado do rio antes do esperado. Elevou a mão para que todo o mundo se detivera. A rua principal descendia com um ligeiro pendente e desembocava no rio, formando um estreito ângulo com este, de modo que lhe proporcionava uma boa visibilidade. A correnteza tinha uns trinta metros de largura e a ponte consistia em uma única arcada. Devia tratar-se de uma construção antiga, imaginou Woody, porque era tão estreito que não podiam acontecer dois carros de uma vez. O mau era que em cada extremo tinham levantado um fortín: duas cúpulas geme as de concreto com caminhos ranhuras horizontais para disparar através delas. Dois sentinelas montavam guarda entre ambas, um em cada extremo. O mais próximo estava falando através da ranhura; provavelmente conversava com quem estivesse dentro. Logo os dois se reuniram no meio da ponte e observaram por cima da mureta as negras águas que fluíam. Não pareciam muito tensos, pelo que o Woody deduziu que não deviam haver-se informado de que tinha começado a invasão. Por outra parte, tampouco lhes via ociosos, a não ser bem acordados, movendo-se de um lado a outro e observando com certa atitude vigilante. Woody não podia adivinhar quantos homens havia dentro dos fortines nem até que ponto foram armados. Haveria metralhadoras espreitando depois das ranhuras ou só fuzis? A diferença era abismal. Lhe teria gostado de contar com mais experiência bélica. Como devia fazer frente à situação? Imaginou que devia haver milhares de homens como ele, oficiais recentemente graduados que tinham que resolver os problemas à medida que se apresentavam. Oxalá o sargento Defoe estivesse ali. A forma mais fácil de neutralizar um fortín consistia em aproximar-se com sigilo e lançar uma granada pela ranhura. Era provável que um homem veloz conseguisse arrastar-se até o primeiro sem ser visto. O mau era que Woody tinha que inutilizar as duas construções de uma vez; se não, o ataque à primeira alertaria aos ocupantes da segunda. Como podia arrumar-lhe para chegar até o segundo fortín sem que os sentinelas o vissem? Notou que seus homens se inquietavam. Não devia lhes gostar de perceber que sua tenente não sabia como atuar. —Pete o Arteiro —chamou—. Você te aproximará do primeiro fortín e arrojará uma granada pela ranhura. —Sim, senhor —respondeu Pete, embora lhe via apavorado. Logo Woody nomeou aos dois melhores atiradores da seção. —Joe o Charutos e Mack —chamou—. Escolha um sentinela cada um. Assim que Pete tenha arrojado a granada, carreguem-lhes isso arrojar fuera la granada. Os dois homens assentiram e levantaram as armas. Em ausência do Defoe, decidiu nomear ao Ace Webber o segundo de mando. Escolheu a quatro homens mais. —Sigam ao Ace —ordenou—. Assim que comece o tiroteio, cruzem a ponte a toda pressa e assaltem o outro fortín. Se forem o bastante rápidos, ainda os pilharão despreparados. —Sim, senhor —respondeu Ace—. Esses bodes não saberão nem quem os atacou. Woody deduziu que a agressividade lhe servia para ocultar o medo. —Todos os que não vão com o Ace, me sigam até o primeiro fortín. Ao Woody não acabava de lhe parecer bem ter atribuído ao Ace e aos homens que foram com ele a tarefa mais arriscada enquanto ele se reservava a menos perigosa; mas tinham-lhe repetido mil vezes que um oficial não devia expor a vida de forma desnecessária, pois então não haveria ninguém que desse ordens a seus homens. dirigiram-se para a ponte, com o Pete à cabeça. Era um momento perigoso. Dez homens que avançavam juntos pela rua não podiam acontecer desapercebidos muito tempo, nem sequer de noite. Qualquer que tivesse a atenção posta em sua trajetória perceberia o movimento. Se saltava o alarme de forma prematura, Pete o Arteiro não conseguiria chegar ao fortín, e então a seção perderia a vantagem do efeito surpresa. O caminho era largo. Pete chegou a uma esquina e se deteve. Woody supôs que estava esperando a que o sentinela mais próximo abandonasse seu posto junto ao fortín e se dirigisse ao centro da ponte. Os dois franco-atiradores encontraram um lugar onde ficar a coberto. Woody se ajoelhou sobre uma perna e indicou a outros que fizessem o próprio. Todos observaram ao sentinela. O homem deu uma larga imersão ao cigarro, jogou-o no chão, pisoteou a ponta para apagá-lo e exalou a fumaça formando uma grande voluta. Logo ficou direito, colocou-se bem sobre o ombro a bandoleira do fuzil e começou a caminhar. O sentinela do extremo oposto fez o mesmo. Pete percorreu o seguinte bloco de casas e chegou ao final da rua. Então ficou a quatro patas e cruzou o meio-fio com rapidez. Quando chegou junto ao fortín, levantou-se. Ninguém o tinha descoberto. Os dois sentinelas seguiam caminhando para o centro da ponte. Pete procurou uma granada e atirou da argola. Esperou uns segundos; Woody imaginou que o fazia para evitar que os homens de dentro do fortín tivessem tempo de arrojar fora a granada. Logo rodeou com o braço a construção semiesférica e, com cuidado, soltou a granada dentro. ouviram-se rugir as carabinas do Joe e Mack. O sentinela mais próximo caiu, mas o outro resultou ileso. O homem foi muito valente e, em lugar de dar-se meia volta e pôr-se a correr, ajoelhou-se sobre uma perna e desprendeu o fuzil. Contudo, foi muito lento: as carabinas voltaram a disparar de forma quase simultânea e o sentinela caiu sem ter chegado a disparar. Então se ouviu o ruído amortecido da granada do Pete ao explorar dentro do fortín mais próximo. Woody já tinha posto-se a correr a toda velocidade, e os homens o seguiam de perto. Em questão de segundos, chegaram à ponte. O fortín tinha uma portinhola baixa de madeira. Woody a abriu de repente e entrou. No estou acostumado a havia três alemães uniformizados; estavam mortos. dirigiu-se a uma das ranhuras e olhou por ela. Ace e os quatro homens que o acompanhavam estavam cruzando a toda pressa a pequena ponte e, enquanto, disparavam suas armas contra o outro fortín. A longitude da ponte era sozinha de uns trezentos metros, mas lhes sobrava a metade. Quando alcançaram o centro, uma metralhadora abriu fogo. Os norte-americanos ficaram apanhados em um estreito passo sem nenhuma possibilidade de ficar a coberto. A metralhadora disparava como louca e, em questão de segundos, caíram os cinco. A arma seguiu acribillándolos durante vários segundos mais, para assegurar-se de que estivessem mortos e, de passagem, de que também o estivessem os dois sentinelas alemães. Quando o fogo cessou, não se movia ninguém. Tudo ficou em silêncio. —Deus Todo-poderoso —exclamou Cameron o Canhoto, situado junto ao Woody. Woody esteve a ponto de tornar-se a chorar. Acabava de provocar a morte de dez homens, cinco norte-americanos e cinco alemães, e ainda não tinha conseguido cumprir seu objetivo. O inimigo seguia ocupando o extremo oposto da ponte e podia impedir que as forças aliadas o cruzassem. Ficavam quatro homens. Se voltavam a tentá-lo e cruzavam juntos a ponte, matariam-nos a todos. Tinha que pensar em outra coisa. Examinou o terreno. O que podia fazer? Oxalá tivesse um tanque. Devia dar-se pressa, era possível que houvesse tropas inimizades em outros pontos da população, e os disparos as teriam alertado. Logo as teriam em cima. Podia ocupar-se disso se tomava os dois fortines; se não, encontraria-se em apuros. Se seus homens não podiam cruzar a ponte, pensou com desespero, talvez pudessem cruzar o rio a nado. Decidiu jogar um rápido olhar à borda. —Mack e Joe o Charutos —disse—, disparem ao outro fortín. Tentem acertar na ranhura. Isso os manterá ocupados enquanto eu dou uma olhada por aqui. As carabinas abriram fogo, e Woody aproveitou o momento para sair pela porta. Pôde ficar a talher atrás do fortín enquanto aparecia por cima da mureta para examinar a borda do rio. Logo teve que cruzar às escondidas o meio-fio para observá-la pelo outro lado. Não obstante, ninguém disparou da posição inimizade. O rio não tinha nenhum muro de contenção. Em vez disso, um pendente de terra se introduzia na água. Dava a impressão de que na borda oposta acontecia o mesmo, pensou; claro que a luz era insuficiente para estar seguro. Um bom nadador seria capaz de chegar até ali, e se nadava por debaixo do arco da ponte não seria fácil descobri-lo da posição inimizade. Assim, poderiam repetir a ação do Pete o Arteiro e colocar outra granada no fortín oposto. Examinando a estrutura da ponte, lhe ocorreu uma idéia melhor. Por debaixo da mureta havia uma cornija de pedra de uns trinta centímetros de largura. Qualquer com um pouco de aprumo poderia deslizar-se a gatas por ela sem ser visto. Retornou ao fortín ocupado por seus homens. O mais miúdo era Cameron o Canhoto, e também era valente, não se arredava assim como assim. —Canhoto —disse Woody—. Há uma cornija oculta na parte de fora da ponte, por debaixo do corrimão. Certamente a utilizam para fazer trabalhos de reparação. Quero que a cruzes a gatas e lances uma granada dentro do outro fortín. —Isso parece —disse o Canhoto. A resposta era um pouco atrevida depois de presenciar a morte de cinco companheiros. Woody se voltou para o Mack e Joe o Charutos. —Cubram —ordenou. Os homens começaram a disparar. —E se me caio? —perguntou o Canhoto. —Só está a cinco ou seis metros da água como máximo —respondeu Woody—. Não te passará nada. —Vale —disse o Canhoto, que se dirigiu à porta—. Mas não sei nadar —esclareceu. E se foi. Woody o viu cruzar correndo o meio-fio. Cameron o Canhoto apareceu por cima da mureta, logo se sentou escarranchado sobre ele e se dê lizó pela parte exterior até desaparecer da vista. —Muito bem —disse Woody a outros—. Sigam disparando. Vai para ali. Todos olharam pela ranhura. Fora, não se movia nada. Woody notou que se estava fazendo de dia: a visão do povo era cada vez mais nítida. Entretanto, não apareceu nenhum só dos habitantes; eram muito preparados para isso. Talvez as tropas alemãs se estivessem mobilizando em alguma rua próxima, mas não ouvia nada. Então reparou em que estava prestando atenção a se ouvia algum ruído da água, temeroso de que o Canhoto se cansado ao rio. Um cão cruzou trotando a ponte. Era um vira-lata corrente, de tamanho médio, com a cauda muito rígida. Olisqueó os cadáveres com curiosidade e logo seguiu seu caminho com passo gracioso, como se tivesse coisas mais importantes que fazer. Woody o observou acontecer junto ao fortín e entrar no bairro do outro lado do rio. O fato de que tivesse amanhecido significava que o grosso da tropa estaria desembarcando na praia. dizia-se que era o ataque anfíbio mais importante de a história. Woody se perguntou a que classe de resistência teriam que fazer frente. Não havia ninguém mais vulnerável que um soldado de infantaria carregado contudo a equipe tendo que cruzar uma restinga, pois a praia oferecia um terreno plano e espaçoso para que os artilheiros ocultos depois das dunas pudessem lhe disparar. sentiu-se muito agradecido por encontrar-se dentro do fortín de concreto. O Canhoto demorava muito. teria se cansado à água sem fazer ruído? Era possível que alguma outra coisa tivesse saído mau? Então o viu. Sua magra silhueta cor cáqui se deslizou de barriga para baixo por cima da mureta no extremo oposto da ponte. Woody conteve a respiração. O Canhoto ficou engatinhando, avançou até o fortín e se levantou pegando as costas à curvada parede. Com a mão esquerda tirou uma granada. Atirou da argola, esperou uns segundos e se estirou para penetrá-la pela ranhura. Woody ouviu o estrondo da explosão e observou uma chama resplandecente pelas ranhuras. O Canhoto levantou os braços por cima da cabeça como um campeão. —Volta a te pôr a coberto, imbecil! —gritou Woody, embora o Canhoto não podia ouvi-lo. Podia haver um soldado alemão oculto em algum edifício próximo, desejoso de vingar a morte de seus amigos. Entretanto, não soou nenhum disparo. Depois de seu breve dança da vitória, o Canhoto entrou no fortín, e Woody ficou mais tranqüilo. Contudo, ainda não estavam a salvo de tudo. Nessas circunstâncias, um repentino ataque por parte de umas dezenas de alemães podia fazer que voltassem a ocupar a ponte. E, então, tudo teria sido em vão. esforçou-se por aguardar um minuto mais para ver se as tropas inimizades se deixavam ver. Não observou nenhum movimento. Começava a lhe dar a impressão de que em Église-dê-Soeurs não havia um só alemão, além dos que guardavam a ponte. Era possível que os relevassem a cada doze horas desde uns barracões situados a vários quilômetros de distância. —Joe o Charutos —disse—. Deshaz dos alemães mortos. Joga-os ao rio. Joe arrastou os três cadáveres fora do fortín e os jogou na água. Logo fez o mesmo com os dois sentinelas. —Pete e Mack —disse Woody—, ides reunir lhes com o Canhoto no outro fortín. Os três têm que lhes assegurar de manter os olhos bem abertos, ainda não acabamos com todos os alemães da França. Se virem que se aproximam tropas inimizades a sua posição, não duvidem, não negociem: lhes disparem. Os dois homens saíram pela porta e se dirigiram com passo apressado até o fortín oposto. Se os alemães tratavam de voltar a conquistar a ponte, eles custaria o seu, sobre tudo tendo em conta que se estava fazendo de dia. Woody se deu conta de que os norte-americanos mortos no meio da ponte chamariam a atenção das forças inimizades e lhes fariam reparar em que os fortines estavam ocupados. Isso arruinaria o efeito surpresa. Isso significava que também tinha que desfazer-se dos cadáveres de seus companheiros. Explicou ao Joe o que devia fazer e saiu do fortín. O ar da manhã era fresco e limpo. dirigiu-se ao centro da ponte. Comprovou que nenhum corpo tivesse pulso. Não cabia dúvida: estavam mortos. Um por um, carregou com seus companheiros e os arrojou por cima da mureta. O último foi Ace Webber. —Descansem em paz, meninos —disse Woody quando o cadáver do Ace caiu à água. Guardou um minuto de silêncio, com a cabeça baixa e os olhos fechados. Quando se voltou para partir, o sol começava a ascender. VII O grande temor dos Aliados ao planejar a operação era que os alemães enviassem rapidamente tropas de reforço a Normandía e organizassem um poderoso contra-ataque que obrigasse aos invasores a voltar a embarcar-se, em uma réplica do desastre do Dunkerque. Lloyd Williams era um dos homens encarregados de que tal coisa não ocorresse. A tarefa de ajudar a prisioneiros fugitivos a retornar a seu país tinha passado a um segundo plano depois da invasão, e agora trabalhava junto com a Resistência francesa. No fim de maio, a BBC começou a transmitir mensagens encriptados que desencadearam uma campanha de sabotagem na França ocupada pelos alemães. Durante os primeiros dias de junho, centenas de linhas telefônicas foram cortadas, sobre tudo em pontos difíceis de louca lizar. incendiavam-se depósitos de combustível, as estradas ficavam cortadas por árvores cansadas e se rachavam pneumáticos. Lloyd estava ajudando aos ferroviários, que eram comunistas acérrimos e se faziam chamar Résistance Fer. Levavam anos voltando loucos aos nazistas com seus subrepticias ações subversivas. Era um mistério por que os trens das tropas alemãs se desviavam por vias recônditas e acabavam muitos quilômetros de distância de seu destino. As máquinas se danificavam sem motivo aparente e os vagões descarrilavam. A coisa chegou a tal ponto que os invasores decidiram recrutar a ferroviários alemães para que controlassem o sistema. Mas a situação piorou. Na primavera de 1944, os ferroviários começaram a causar destroços na própria rede. Voavam as vias e inutilizavam as enormes gruas destinadas a retirar os trens sinistrados. Os nazistas não tomaram à ligeira. Centenas de ferroviários foram executados, e milhares, deportados a campos de concentração. Entretanto, a campanha foi em aumento, e para o Dia D o tráfico de trens em algumas zonas da França tinha ficado interrompido. Agora, uma jornada depois do Dia D, Lloyd se encontrava tendido no topo de um aterro, junto à linha principal do Ruán, a capital da Normandía, em um ponto onde a via penetrava em um túnel. Desde sua atalaia, via os trens que se aproximavam de um quilômetro e meio de distância. Lloyd estava acompanhado de dois homens mais, que respondiam aos apelidos do Legionnaire e Cigare. Legionnaire era o chefe da Resistência nesse bairro. Cigare era um ferroviário. Lloyd tinha levado dinamite. A principal tarefa dos britânicos na Resistência francesa era subministrar armamento. Os três homens ficavam médio ocultos depois de umas altas moitas de erva salpicados de flores silvestres. Era o lugar perfeito para levar a uma garota em um dia ensolarado como esse, pensou Lloyd. Ao Daisy adoraria. Apareceu um trem na distância. Cigare o escrutinou enquanto se aproximava. O homem tinha uns sessenta anos, era baixo e robusto, e tinha o rosto sulcado de rugas próprio de um fumante contumaz. Quando o trem estava ao meio quilômetro de distância, sacudiu a cabeça com gesto negativo. Não era o que estavam esperando. A máquina passou de comprimento, expulsando fumaça, e entrou no túnel. Arrastava quatro vagões de passageiros, todos abarrotados tanto de civis como de homens uniformizados. Lloyd tinha uma presa mais importante em perspectiva. Legionnaire olhou o relógio. Tinha a pele moréia e levava um bigode negro, e Lloyd supôs que devia haver algum ascendente norteafricano em sua árvore genealógica. Lhe via nervoso. Ali estavam, expostos à intempérie e à luz do dia. quanto mais tempo transcorresse, maior risco tinha que os descobrissem. —Quanto falta? —perguntou preocupado. Cigare se encolheu de ombros. —Já veremos. —Podem partir se querem —disse Lloyd em francês—. Todo está preparado. Legionnaire não se incomodou em responder; não pensava perder o momento mais emocionante. Por seu próprio prestígio e autoridade, tinha que poder dizer: Eu estive ali. Cigare ficou tenso, escrutinando a distância; toda a pele do contorno de seus olhos se enrugou devido ao esforço. —Já —disse em tom críptico. E se incorporou até ficar de joelhos. Lloyd logo que podia divisar o trem, e menos ainda identificá-lo. Por sorte, Cigare estava alerta. Avançava a uma velocidade muito maior que o anterior, disso sim que se deu conta. Quando esteve mais perto, observou que também era mais largo: tinha vinte e quatro vagões ao menos, pensou. —É este —disse Cigare. Ao Lloyd lhe acelerou o pulso. Se Cigare tinha razão, era um trem das tropas alemãs que transladava a mais de mil homens, entre oficiais e soldados, ao campo de batalha da Normandía. Talvez solo fora o primeiro de muitos. O trabalho do Lloyd consistia em assegurar-se que nem esse trem nem os seguintes conseguissem cruzar o túnel. Então viu outra coisa. Um avião seguia ao trem. Enquanto o observava, o aparelho se alinhou com o comboio e começou a descender. Era um avião britânico. Lloyd reconheceu que se tratava de um Hawker Typhoon, também conhecido como Tiffy, um cazabombardero monoplaza. Os Tiffy estavam acostumados a atacar a perigosa missão de penetrar no mais profundo do território inimigo para destruir as comunicações. Quem o pilotava tinha que ser todo um valente, pensou Lloyd. Entretanto, isso interferia com seus planos. Não queria que o trem sofresse danos que lhe impedissem de entrar no túnel. —Mierda —amaldiçoou. O Tiffy metralhou os vagões do trem. —A que vem isso? —perguntou Legionnaire. —Não tenho nem idéia —respondeu Lloyd em inglês. deu-se conta de que a locomotiva arrastava uma mescla de vagões de passageiros e furgões destinados a transportar ganho. Claro que era provável que nos furgões também viajassem soldados. O avião, voando a maior velocidade, bombardeou os vagões de uma vez que adiantava ao trem. Levava quatro canhões com cintas de munição de 20 mm, e provocou um estrondo aterrador que superou o ruído do motor do avião e os enérgicos bufos do trem. Lloyd não pôde evitar sentir lástima pelos soldados ali apanhados, a quem resultava impossível livrar-se da letal chuva de disparos. perguntava-se por que o piloto não lançava os mísseis. Causavam uma grande destruição em trens e carros, embora resultava difícil dispará-los com precisão. Talvez os tivesse utilizado em um enfrentamento anterior. Alguns alemães intrépidos apareceram a cabeça pelo guichê e apontaram ao avião com pistolas e fuzis, mas não serve de nada. Entretanto, Lloyd observou uma bateria ligeira anti-aérea convocada em um vagão de plataforma, justo detrás da locomotiva. Dois artilheiros estavam desdobrando a toda pressa o canhão de maior tamanho. Este girou sobre a base e o tubo se elevou até apontar ao avião britânico. O piloto não parecia haver-se dado conta, pois manteve a trajetória enquanto suas rajadas de disparos atravessavam o teto dos vagões que sobrevoava. O canhão disparou e falhou. Lloyd se perguntava se o piloto era alguém conhecido. Solo havia uns cinco mil em serviço ativo em todo o Reino Unido, e muitos tinham assistido às festas do Daisy. Pensou no Hubert Saint John, um brilhante graduado de Cambridge com quem poucas semanas atrás tinha estado recordando os tempos de estudante; no Dennis Chaucer, oriundo de Trindade, nas ilhas Ocidentais, que se queixava de quão insípida era a comida inglesa, sobre tudo as batatas trituradas que serviam de guarnição com todos os pratos; e também no Brian Toalha, um afável australiano que tinha cruzado com ele os Pirineos na última viagem. O valoroso piloto do Tiffy bem podia ser alguém a quem Lloyd conhecia. O canhão anti-aéreo voltou a disparar, e falhou de novo. Ou o piloto não o tinha visto, ou tinha a impressão de que era imune a seus disparos, pois não fez a mínima manobra evasiva mas sim continuou voando perigosamente baixo enquanto semeava a morte no trem militar. Tão solo faltavam uns segundos para que a locomotiva entrasse no túnel quando o avião foi alcançado. O motor estalou em chamas e se formou uma nuvem de fumaça negra. Muito tarde, o piloto trocou o rumo para afastar-se da trajetória do trem. O comboio penetrou no túnel, e os vagões passaram a toda velocidade frente a Lloyd. Observou que todos estavam lotados de soldados alemães; em cada um viajavam dezenas deles, centenas inclusa. O Tiffy ia direto para o Lloyd. Por um momento, acreditou que se estrelaria no muito mesmo lugar onde ele estava. Já se encontrava tendido de barriga para baixo no chão, mas em um arrebatamento de idiotice se levou as mãos à cabeça como se isso pudesse protegê-lo. O Tiffy rugiu trinta metros por cima dele. Então Legionnaire apertou o êmbolo do detonador. Dentro do túnel se ouviu um estrondo parecido a um trovão quando as vias voaram pelos ares, seguido da tremenda estridência do metal retorcendo-se quando o trem se estrelou. Ao princípio os vagões repletos de soldados seguiram entrando no túnel a toda velocidade, mas ao cabo de um segundo o movimento se interrompeu. Os extremos de dois vagões unidos se elevaram formando uma V investida. Lloyd ouviu gritar aos homens que viajavam neles. Todos os seguintes vagões descarrilaram e ficaram tombados como fósforos pulverizados ao redor da boca do túnel em forma do O. O ferro se deformava como se fora papel, e uma chuva de cristais quebrados caiu sobre os três sabotadores que observavam do alto do aterro. Corriam perigo de morrer por causa da explosão que eles mesmos tinham provocado; por isso, sem mediar palavra, ficaram em pé de um salto e puseram-se a correr. Para quando se encontraram a uma distância prudencial, tudo tinha terminado. Da boca do túnel saía uma grande nuvem de fumaça; no caso improvável de que algum homem tivesse sobrevivido ao impacto, teria morrido carbonizado. Lloyd tinha completo sua missão com êxito. Não só tinha matado a centenas de soldados inimigos e tinha inutilizado um trem, mas sim também tinha bloqueado uma importante linha ferroviária. demoravam-se semanas em limpar um túnel depois de uma colisão. Isso faria que aos alemães custasse muito mais enviar reforços a Normandía. Estava horrorizado. Tinha presenciado casos de morte e destruição na Espanha, mas nada parecido a isso. E o tinha provocado ele. ouviu-se outra explosão, e quando olhou na direção do som, viu que o Tiffy tinha cansado ao chão. A nave ardia, mas a fuselagem não estava destruída. Cabia a possibilidade de que o piloto seguisse com vida. Correu para o avião, e Cigare e Legionnaire o seguiram. O avião derrubado não tinha ficado do reverso. Tinha uma asa partida pela metade. Seu único motor desprendia fumaça. A cúpula de plexiglás tinha ficado enegrecida pela fuligem e Lloyd não via o piloto. situou-se sobre a asa e tirou o seguro da cúpula. Cigare fez o mesmo no outro lado e, juntos, retiraram-na deslizando-a pelo trilho. O piloto estava inconsciente. Levava postos o casco e os óculos de aviador, e uma máscara de oxigênio lhe cobria a boca e o nariz. Lloyd ainda não sabia se tratava-se de algum conhecido. perguntou-se onde estava o bujão de oxigênio, e se tinha explorado já. Legionnaire teve uma idéia parecida. —Temos que tirar o daqui antes de que o avião estale. Lloyd introduziu a mão e lhe desabotoou o cinto de segurança. Logo agarrou ao piloto pelas axilas e atirou dele. O homem estava inerte por completo. Lloyd não sabia como averiguar o que feridas tinha. Nem sequer estava seguro de que seguisse com vida. Tirou-o rastros da carlinga, logo o carregou ao ombro e se afastou o suficiente dos restos em chamas. Tendeu-o de barriga para cima no chão com toda a delicadeza possível. Ouviu um ruído a meio caminho entre um bufido e um golpe. Quando se voltou, viu que as chamas tinham engolido por completo o avião. inclinou-se sobre o piloto e, com cuidado, retirou-lhe os óculos e a máscara de oxigênio, e o rosto que ficou exposto lhe resultou terrivelmente familiar. Era Boy Fitzherbert. E respirava. Lloyd lhe limpou o sangue da boca e o nariz. Boy abriu os olhos. Ao princípio não deu amostras de havê-lo reconhecido, mas ao cabo de um minuto lhe mudou o rosto. —É você —disse. —voamos o trem —esclareceu Lloyd. Boy parecia incapaz de mover nada à exceção dos olhos e a boca. —Que pequeno é o mundo —disse. —Sim, verdade? —Quem é? —perguntou Cigare. Lloyd vacilou. —É meu irmão —revelou ao fim. —Santo Deus. Os olhos do Boy se fecharam. —Necessitamos um médico —disse Lloyd ao Legionnaire, mas este negou com a cabeça. —Temos que nos partir daqui, dentro de poucos minutos os alemães deverão investigar o sinistro. Lloyd sabia que tinha razão. —Pois temos que levá-lo conosco. Boy abriu os olhos. —Williams —chamou. —O que acontece, Boy? Ele pareceu esboçar um sorriso. —Agora já pode te casar com a bruxa —disse. E morreu. VIII Daisy chorou ao inteirar-se do ocorrido. Boy era um descarado, e a tinha tratado fatal, mas em outro tempo o tinha amado e lhe tinha ensinado muitas coisas sobre o sexo. Entristecia-a que o tivessem matado. Seu irmão, Andy, converteu-se em visconde e herdeiro do condado. A esposa do Andy, Mai, era a viscondessa. E Daisy, segundo as complexas normas da aristocracia, era a viscondessa viúva do Aberowen; até que se casasse com o Lloyd. Então lhe retirariam o título e passaria a ser simplesmente a senhora Williams. Não obstante, inclusive agora era possível que faltasse muito tempo para isso. Depois do verão, todas as esperanças de que a guerra tivesse um final rápido se haviam desvanecido. O plano esboçado por uns quantos oficiais alemães de assassinar ao Hitler em 20 de julho tinha falhado. O exército alemão se bateu em completa retirada no fronte oriental, e os Aliados tinham tomado Paris em agosto, mas Hitler estava decidido a lutar até o final custasse o que custasse. Daisy não tinha nem idéia de quando voltaria a ver o Lloyd, e menos ainda de quando poderiam casar-se. Uma quarta-feira de setembro que se dirigia ao Aldgate a passar a tarde, Eth Leckwith a recebeu com júbilo. —Boas notícias! —exclamou Ethel quando Daisy entrou na cozinha—. escolheram ao Lloyd como possível candidato parlamentario pelo Hoxton! A irmã do Lloyd, Millie, estava presente, e a acompanhavam seus filhos, Lennie e Pammie. —Não te parece fantástico? —disse—. Seguro que chegará a ser primeiro-ministro. —Sim —disse Daisy, e se deixou cair em uma cadeira. —Pois não te vejo muito alvoroçada —observou Ethel—. Como diria meu amiga Mildred, parece que lhe tenham jogado um jarro de água fria. O que te passa? —É que não lhe ajudará muito casar-se comigo. —sentia-se fatal precisamente porque o amava muitíssimo. Como podia permitir-se malograr seus planos? E, por outra parte, como podia deixá-lo? Solo de pensá-lo, lhe rasgava o coração e o futuro lhe desejava muito desolador. —Porque é uma herdeira? —perguntou Ethel. —Não só por isso. antes de morrer, Boy me disse que Lloyd nunca resultaria eleito se se casava com uma ex-fascista. —Olhou ao Ethel. Ela sempre dizia a verdade, embora doesse—. Tinha razão, verdade? —Não de tudo —respondeu Ethel. Pôs a bule no fogo e se sentou à mesa da cozinha frente a Daisy—. Não te direi que não influa, mas não acredito que deva tomar o los alemanes les enviaron una carta formal exigiendo la rendición, el general McAuliffe respondió con un mensaje compuesto por una única palabra que acabó siendo à tremenda. É como eu —pensou Daisy—, diz sempre o que pensa. Não sente saudades que Lloyd se apaixonou por mim: sou a imagem de sua mãe, solo que mais jovem! —O amor o pode tudo, não é assim? —atravessou Millie. Então reparou em que Lennie, de quatro anos, estava atiçando ao Pammie, de dois, com um soldadito de madeira—. Não pegue a sua irmã! —gritou. voltou-se de novo para o Daisy e prosseguiu—: Além disso, meu irmão te adora. Não acredito que tenha amado tanto a ninguém em sua vida, se digo-te a verdade. —Já sei —disse Daisy. Tinha vontades de chorar—. Mas está decidido a trocar o mundo, e não posso suportar a idéia de me interpor em seu caminho. Ethel se sentou no regaço à criatura de dois anos, que tinha estalado em pranto, e o irmão maior se acalmou imediatamente. —Direi-te o que tem que fazer: te prepare para que lhe acribillen a perguntas, e para te enfrentar a atitudes hostis, mas não agache a cabeça e esconda você passado —aconselhou ao Daisy. —O que devo dizer? —Dava que os fascistas lhe enganaram, igual à milhões de pessoas; mas que durante o Blitz te encarregou de conduzir uma ambulância e que crie que já há pago pelo que foi. Prepara-o palavra por palavra com o Lloyd. Tenha confiança, aproveita seu encanto irresistível e não te deixe abater. —Sairá bem? Ethel vacilou. —Não sei —disse depois de uma pausa—. De verdade que não sei. Mas tem que tentá-lo. —Seria horrível que tivesse que abandonar o que mais deseja no mundo por minha culpa. Uma coisa assim é capaz de arruinar um matrimônio. Daisy esperava que Ethel o desmentisse, mas não o fez. —Não sei —repetiu. 19 1945 (I) I Woody Dewar se acostumou depressa às muletas. Tinham-no ferido a finais de 1944, na Bélgica, na batalha das Ardenas. Um poderoso contra-ataque alemão surpreendeu a quão aliados avançavam para a fronteira germana. Woody e outros membros da 101.ª Divisão Aerotransportada tinham resistido na Bastoña, uma cidade situada em uma encruzilhada de vital importância. Quando os alemães lhes enviaram uma carta formal exigindo a rendição, o general McAuliffe respondeu com uma mensagem composta por uma única palavra que acabou sendo célebre: Nuts!, E uma mierda!. Uma metralhadora destroçou uma perna ao Woody o dia de Natal. A dor o torturou, mas o pior foi que demorou todo um mês em poder sair da cidade sitiada e ir a um hospital de verdade. Seus ossos soldariam e provavelmente a claudicação desapareceria, mas nunca voltaria a recuperar a força na perna para suportar os saltos em pára-quedas. A batalha das Ardenas tinha sido a última ofensiva do exército do Hitler no fronte ocidental. Depois já não houve mais contra-ataques. Woody voltou para a vida civil, o que significou que pôde instalar-se no piso de seus pais, em Washington, e desfrutar das cuidados de sua mãe. Quando o tiraram o gesso, retornou ao trabalho, no despacho de seu pai. Em 12 de abril de 1945 se encontrava no edifício do Capitólio, sede do Senado e da Câmara de Representantes, mancando pelo porão e falando com seu pai sobre os refugiados. —Acreditam que aproximadamente vinte e um milhões de pessoas se ficaram sem lar —disse Gus—. A Administração das Nações Unidas para o Auxílio e a Reabilitação está já preparada para as ajudar. —Suponho que poderão começar a fazê-lo logo —respondeu Woody—. O Exército Vermelho está às portas do Berlim. —E o exército dos Estados Unidos, a só oitenta quilômetros. —Quanto tempo poderá seguir resistindo Hitler? —Um homem em seus cabais já se teria rendido. Woody baixou o tom de voz. —Hão-me dito que os soviéticos encontraram o que parece ser um campo de extermínio. Os nazistas matavam ali a centenares de pessoas diariamente. Um lugar chamado Auschwitz, na Polônia. Gus assentiu com ar grave. —É verdade. A gente ainda não sabe, mas cedo ou tarde correrá a voz. —Deveriam julgar a alguém por isso. —A Comissão das Nações Unidas para os Crímenes de Guerra leva um par de anos elaborando listrados de criminosos de guerra e solicitando provas. Julgarão a alguém, se conseguirmos que as Nações Unidas sigam existindo depois da guerra. —Claro que o conseguiremos —repôs Woody, indignado—. O ano passado Roosevelt advogou por isso em sua campanha e ganhou as eleições. dentro de duas semanas se celebrará a conferência das Nações Unidas em São Francisco. —São Francisco tinha um significado especial para o Woody, porque Bela Hernández vivia ali, mas ainda não lhe tinha falado a seu pai dela—. Os americanos estão a favor da cooperação internacional para não voltar a viver uma guerra como esta. Quem poderia opor-se a isso? —Surpreenderia-te. Olhe, a maioria dos republicanos som homens decentes que simplesmente têm uma visão do mundo diferente da nossa. Mas logo está o núcleo duro desses jodidos endoidecidos. Woody estava perplexo. Seu pai quase nunca dizia palavras malsoantes. —Os tipos que planejaram uma insurreição contra Roosevelt nos anos trinta —prosseguiu Gus—. Executivos como Henry Ford, que acreditavam que Hitler era um bom líder contra o comunismo. Ficham a grupos de direitas como o America First. Woody não recordava lhe haver ouvido falar nunca de uma forma tão irada. —Se esses néscios saírem adiante, haverá uma terceira guerra mundial inclusive pior que as duas anteriores —concluiu Gus—. perdi a um filho na guerra, e se algum dia tenho um neto, não quererei perdê-lo também a ele. Woody sentiu uma pontada de dor. De estar viva, Joanne lhe teria dado netos ao Gus. Nesses momentos Woody nem sequer saía com ninguém, de modo que a possibilidade de ter filhos ficava ainda muito longe… a menos que conseguisse encontrar a Bela em São Francisco… —Não podemos fazer nada com esses idiotas de arremate —disse Gus—, mas possivelmente sim com o senador Vandenberg. Arthur Vandenberg era um republicano de Michigan, conservador e contrário ao new deal do Roosevelt. Trabalhava com o Gus no Comitê de Relações Exteriores do Senado. —Constitui nosso maior perigo —continuou Gus—. Pode que seja prepotente e vaidoso, mas conta com o respeito dos altos mandos. O presidente o esteve cortejando e conseguiu que fique de nosso lado, mas poderia trocar de parecer. —por que ia fazer o? —É um anticomunista recalcitrante. —Isso não tem nada de mau. Nós também o somos. —Sim, mas a postura do Arthur é muito rígida. Se encherá o saco se fizermos algo que ele considere uma submissão a Moscou. —Como por exemplo… —A ter sabor de que tipo de acordos poderíamos ter que chegar em São Francisco. Já acessamos a admitir a Bielorrusia e a Ucrânia como países independentes, o qual solo é um modo de conceder a Moscou três votos na Assembléia Geral. Temos que conservar aos soviéticos em nosso bando… mas se formos muito longe, Arthur poderia posicionar-se em contra do projeto das Nações Unidas. Então o Senado poderia negar-se a ratificá-lo, igual a rechaçaram a Sociedade das Nações em 1919. —De modo que nosso trabalho em São Francisco será contentar aos soviéticos sem ofender ao senador Vandenberg. —Exato. Ouviram uns passos precipitados, um som insólito nos solenes corredores do Capitólio. Os dois se voltaram. Woody se surpreendeu ao ver a vice-presidente, Harry Truman, correndo pelo corredor. Ia vestido como de costume, com um traje cinza de jaqueta cruzada e uma gravata de lunares, embora não levava chapéu. Parecia ter perdido a seu inseparável séquito de ajudantes e guardas dos serviços secretos. Corria com passo firme, ofegante, sem olhar a ninguém, e com evidente apresso. Woody e Gus o olharam desconcertados, como outros pressente. —Que demônios…? —perguntou Woody quando Truman desapareceu por uma esquina. —O presidente deve ter morrido —disse Gus. II Volodia Peshkov entrou na Alemanha em um Studebaker US6, um caminhão militar de dez rodas. Fabricado no South Bend, Indiana, tinha sido transportado de trem até Baltimore, depois em navio pelo Atlântico e o cabo de Boa Esperança até o golfo Pérsico, e desde a Persia de novo em trem até o centro da Rússia. Volodia sabia que era um dos duzentos mil caminhões Studebaker que o governo dos Estados Unidos tinha proporcionado ao Exército Vermelho. Aos soviéticos gostava, eram robustos e seguros. Os homens diziam que as iniciais USA pintadas nos laterais correspondiam ao Ubit Sukina syna Adolf, Matem ao filho de puta de Adolf. Também gostavam da comida que os norte-americanos lhes estavam enviando, especialmente as latas de carne imprensada da marca Spam, de uma estranha cor rosa mas deliciosamente graxa. Volodia tinha sido destinado a Alemanha porque os serviços secretos sabiam pelos espiões que no Berlim não era possível conseguir informação tão atualizada como a que proporcionavam as entrevistas com prisioneiros de guerra. Sua fluidez com o alemão o convertia em um interrogador de primeira. Quando cruzou a fronteira, viu um pôster governamental soviético no qual se lia: Soldado do Exército Vermelho: agora está em revisto alemão. chegou a hora da vingança!. Era um dos exemplos mais moderados de propaganda que tinha visto. O Kremlin levava certo tempo fomentando o ódio aos alemães, acreditando que isso faria lutar com maior empenho aos soldados. Os delegados políticos tinham calculado —ou isso diziam— o número de desce no campo de batalha, o número de casas incendiadas, o número de civis assassinados por ser comunistas, eslavos e judeus, em todos os povos e cidades invadidos pelo exército alemão. Em o fronte, muitos soldados conheciam as cifras que afetavam a suas populações de origem e estavam ansiosas por infligir o mesmo machuco na Alemanha. O Exército Vermelho tinha alcançado o rio Oder, que serpenteava pela Prusia do norte ao sul, o último obstáculo antes do Berlim. um milhão de soldados soviéticos se encontravam já a menos de oitenta quilômetros da capital, preparados para atacar. Volodia formava parte do V Exército de Choque. Enquanto esperava a que começasse o combate, folheava o periódico militar Rede Star. O que leu o arrepiou. A propaganda do horror transcendia a tudo o que tinha visto até então. Se não ter matado a ao menos um alemão ao dia, esbanjaste esse dia —leu—. Se estiver esperando a entrar em combate, mata a um alemão antes de que este comece. Se matas a um alemão, mata a outro; não há nada que nos divirta mais que um montão de cadáveres de alemães. Mata aos alemães, esta é a oração de sua anciã mãe. Mata aos alemães, isto é o que seus filhos lhe suplicam que faça. Mata a os alemães, este é o grito de sua terra soviética. Não duvide. Não fraqueje. Mata-os. Era repugnante, pensou Volodia. Mas implicava algo pior. Quem tinha redigido aquilo frivolizaba sobre o saque: As mulheres alemãs não são mais que casacos de peles e colheres de prata dos perdedores, que eles tinham roubado antes. E incluía uma piada enviesada sobre a violação: Os soldados soviéticos não rechaçam cumprido-los das mulheres alemãs. E os soldados não eram precisamente os homens mais civilizados do mundo. O comportamento dos invasores alemães em 1941 tinha encolerizado aos soviéticos. O governo estava esporeando sua ira com palavras de vingança. E agora o periódico do exército estava deixando claro que podiam fazer quanto lhes desejasse muito com derrotado-los alemães. Era a fórmula do Apocalipse. III Ao Erik von Ulrich consumia o desejo de que a guerra terminasse. Com ajuda de seu amigo Hermann Braun e do chefe de ambos, o doutor Weiss, Erik organizou um hospital de campanha em uma pequena igreja protestante; logo se sentaram na nave sem nada que fazer salvo esperar a que as ambulâncias atiradas por cavalos chegassem carregadas de homens com feridas e queimaduras terríveis. O exército alemão tinha reforçado as colinas do Seelow, que davam ao rio Oder em seu lance mais próximo ao Berlim. O posto de socorro do Erik se encontrava em um povo situado a uns quinhentos metros por detrás do frente. O doutor Weiss, que tinha um amigo nos serviços secretos do exército, afirmava que havia 110.000 alemães defendendo Berlim contra um milhão de soviéticos. Com seu habitual sarcasmo, disse: Mas temos a moral alta, e Adolf Hitler é o maior gênio de nossa história militar, assim estamos seguros de que ganharemos. Não havia esperança, mas os soldados alemães seguiam combatendo com ferocidade. Erik acreditava que o motivo eram os rumores que se filtravam sobre as atrocidades do Exército Vermelho: matavam aos prisioneiros, saqueavam e destroçavam as casas, violavam às mulheres e as cravavam às portas dos celeiros. Os alemães acreditavam que estavam defendendo a suas famílias da brutalidade comunista. A propaganda do ódio por parte do Kremlin estava falhando. Erik desejava que chegasse já a derrota. Ansiava que cessassem as mortes. Solo queria voltar para casa. Seu desejo tinha que cumprir-se logo… ou morreria. As detonações de armas soviéticas despertaram quando dormia em um banco de madeira às três da madrugada da segunda-feira 16 de abril. Não era o primeiro bombardeio que ouvia, mas aquele era dez vezes mais estrondoso que todos os anteriores. Para os homens que combatiam em primeira linha devia ser literalmente ensurdecedor. Os feridos começaram a chegar ao amanhecer, e a equipe ficou a trabalhar cansativamente, amputando extremidades, recompondo ossos fraturados, extraindo balas, e lavando e enfaixando feridas. Havia escassez de tudo, desde medicamentos até água poda, e administravam morfina só aos que gritavam agónicamente. Aos homens que ainda podiam caminhar e tinham uma arma os enviavam de volta ao campo de batalha. Os defensores alemães resistiam mais do que o doutor Weiss tinha esperado. Ao final do primeiro dia mantinham sua posição, e enquanto anoitecia a afluência de feridos foi diminuindo. A unidade médica pôde dormir um pouco essa noite. A primeira hora do dia seguinte levaram a hospital de campanha ao Werner Franck, com a boneca direita destroçada. Agora era capitão. Tinha estado a cargo de uma seção do frente com trinta baterias Flak de 88 mm. —Só tínhamos oito projéteis por arma —disse enquanto os dedos peritos do doutor Weiss recompunham lenta e meticulosamente seus ossos esmagados—. Tínhamos ordem de disparar sete aos tanques soviéticos e utilizar o oitavo para destruir a bateria, para que os vermelhos não pudessem usá-la. —encontrava-se em pé junto a uma Flak 88 quando a artilharia soviética impactou diretamente nela e a derrubou sobre o Werner—. Tive sorte de que solo me apanhasse a mão —acrescentou—. Poderia me haver esmagado a cabeça. soubeste um pouco da Carla? —perguntou ao Erik quando o médico acabou de lhe curar. Erik sabia que sua irmã e Werner eram já casal. —Faz semanas que não recebo cartas. —Como eu. ouvi coisas espantosas do Berlim. Espero que esteja bem. —Eu também estou preocupado —disse Erik. Surpreendentemente, os alemães resistiram nas colinas do Seelow um dia e uma noite mais. O posto de socorro não recebeu aviso de que o fronte tinha cansado. Atendiam a uma nova remessa de feridos quando sete ou oito soldados soviéticos entraram na igreja, dispararam uma rajada de metralhadora ao teto abovedado e Erik se lançou ao chão, como fizeram todos os que podiam mover-se. Ao ver que não havia ninguém armado, os soviéticos se relaxaram. Percorreram a nave apropriando-se de relógios e anéis, e logo partiram. Erik se perguntou o que passaria a seguir. Era a primeira vez que ficava apanhado depois da linha inimizade. Deviam abandonar o hospital de campanha e tentar reunir-se com o exército em retirada? Ou seus pacientes estariam mais seguros ali? O doutor Weiss foi cortante. —Sigam todos com seu trabalho —disse. Poucos minutos depois, um soldado soviético entrou carregando com um camarada ao ombro. Apontou com sua arma ao Weiss e pronunciou uma larga frase em russo. Estava apavorado, e seu amigo, banhado em sangue. Weiss reagiu com serenidade. —Não é necessário que me aponte. Deixa a seu amigo nesta mesa. O soldado obedeceu e a equipe reatou seu trabalho. O soldado seguiu apontando ao médico com o fuzil. Aquele mesmo dia, levaram-se aos feridos alemães em direção ao este, alguns a pé e outros na parte traseira de um caminhão. Erik viu como Werner Franck desaparecia, prisioneiro de guerra. De menino, ao Erik tinham contado freqüentemente a história de seu tio Robert, a quem os russos tinham apressado durante a Primeira Guerra Mundial, e que tinha voltado para casa andando desde a Siberia, uma viagem de uns seis mil e quinhentos quilômetros. Erik se perguntava onde acabaria Werner. Chegaram mais feridos soviéticos, e os alemães os atenderam como o teriam feito com seus homens. De noite, Erik, antes de dormir, exausto, compreendeu que agora ele também era um prisioneiro de guerra. IV Enquanto os exércitos aliados cercavam Berlim, os países vencedores começavam a discutir na conferência das Nações Unidas, em São Francisco. Era algo que ao Woody teria parecido deprimente de não ter estado mais interessado em tentar retomar o contato com Bela Hernández que naquelas discussões. Bela tinha permanecido em seus pensamentos durante todo o Dia D, durante o combate na França, durante o tempo que tinha passado no hospital e durante a convalescença. Um ano antes ela estava acabando seus estudos na Universidade de Oxford e planejando cursar um doutorado em Berkeley, justo ali, em São Francisco. Provavelmente estivesse vivendo em casa de seus pais, no Pacific Heights, a menos que tivesse alugado um apartamento perto do campus. Por desgraça, estava-lhe custando lhe fazer chegar uma mensagem. Suas cartas não recebiam resposta. Quando chamava um número de telefone do agendinha de telefones, uma mulher de média idade que ele suspeitava que era a mãe de Bela respondia com cortesia: Não está em casa nestes momentos. Quer que lhe dê algum recado?. Bela nunca lhe devolvia a chamada. Era possível que tivesse noivo formal. Nesse caso, queria que ela mesma o dissesse. Mas talvez sua mãe estivesse escondendo as cartas e não lhe acontecesse as chamadas. Provavelmente acabaria atirando a toalha; possivelmente inclusive estivesse fazendo o ridículo. Mas isso não era próprio dele. Recordou o tempo e o empenho que tinha dedicado a cortejar ao Joanne. A história parece repetir-se —pensou—. Estarei fazendo algo mal? Enquanto isso, todas as manhãs ia com seu pai ao apartamento de cobertura do hotel Fairmont, onde o secretário de estado, Edward Stettinius, convocava reuniões informativas para os representantes dos Estados Unidos na conferência. Stettinius substituía ao Cordell Hull, que estava hospitalizado. Estados Unidos tinha também um novo presidente, Harry Truman, que tinha jurado o cargo depois da morte do grande Franklin D. Roosevelt. Era uma lástima, observou Gus Dewar, que em um momento tão crucial de sua história, Estados Unidos estivesse dirigido por dois recém chegados sem experiência. As coisas tinham começado mau. O presidente Truman tinha ofendido torpemente ao ministro dos Assuntos Exteriores soviético, Mólotov, em uma reunião prévia à conferência, celebrada na Casa Branca. Em conseqüência, Mólotov chegou a São Francisco com um humor de cães. Anunciou que partiria se a conferência não acessava imediatamente a admitir a Bielorrusia, Ucrânia e Polônia. Ninguém queria que a URSS se retirasse. Sem os soviéticos, as Nações Unidas não eram Nações Unidas. A maior parte da delegação americana estava a favor de pactuar com os comunistas, mas o altivo e afetado senador Vandenberg insistiu em que não podia fazer-se nada sob a pressão de Moscou. Uma manhã em que dispunha de um par de horas livres, Woody foi a casa dos pais de Bela. O elegante bairro em que viviam não ficava longe do hotel Fairmont, no Nob Hill, mas Woody ainda tinha que ajudar-se de um fortificação para caminhar, pelo que foi em táxi. A casa, no Gough Street, era uma mansão vitoriana grafite de amarelo. A mulher que abriu a porta ia muito bem vestida para ser uma criada. O brindou um sorriso torcido, idêntica a de Bela; tinha que ser sua mãe. —bom dia, senhora —disse amavelmente—. Me chamo Woody Dewar. Conheci bela Hernández em Londres o ano passado e eu gostaria de voltar a vê-la, se não haver inconveniente. O sorriso desapareceu do rosto da mulher, que ficou olhando-o um momento. —Assim que você é ele. Woody não sabia o que queria dizer com aquilo. —Sou Caroline Hernández, a mãe da Isabel —disse a mulher—. Será melhor que entre. —Obrigado. A senhora Hernández não lhe ofereceu a mão e adotou uma atitude claramente hostil, embora não havia nada que pudesse justificá-la. Entretanto, Woody já estava dentro da casa. A mulher acompanhou ao Woody a um salão grande e acolhedor, com impactantes vista ao mar. Assinalou uma cadeira, lhe indicando que se sentasse com um gesto mas bem rude. Ela se sentou em frente e lhe dirigiu outro olhar severo. —Quanto tempo passou com Bela na Inglaterra? —perguntou-lhe. —Só umas horas. Mas não deixei que pensar nela após. Houve outra pausa eloqüente. —Quando se foi a Oxford, Bela estava comprometida com o Victor Rolandson, um jovem esplêndido ao que conhece virtualmente de toda a vida. Os Rolandson são velhos amigos da família…, ou ao menos o eram até que Bela voltou para casa e rompeu o compromisso de repente. Woody sentiu um fluxo de esperança. —Só disse que se deu conta de que não amava ao Victor —prosseguiu ela—. Supus que tinha conhecido a alguém, e agora já tenho sabor de quem. —Não sabia que estava comprometida —disse Woody. —Levava uma aliança com um diamante que era bastante difícil passar por cima. Sua pobre capacidade de observação provocou uma tragédia. —Lamento-o muito —respondeu Woody. E então se obrigou a deixar de mostrar-se tão submisso—. Senhora Hernández, acaba de empregar a palavra tragédia. Minha noiva, Joanne, morreu em meus braços no Pearl Harbor. A meu irmão, Chuck, matou-o uma metralhadora na praia do Bougainville. O Dia D enviei à morte ao Ace Webber e a outros quatro jovens americanas por salvar uma ponte em um povo insignificante chamado Église-dê-Soeurs. Sei o que é a tragédia, senhora, e a ruptura de um compromisso não é. A senhora Hernández parecia surpreendida. Woody supôs que não estava acostumada a que os jovens lhe replicassem. A mulher não respondeu, mas empalideceu levemente. Instantes depois ficou em pé e abandonou o salão sem mediar palavra. Woody não estava seguro do que esperava que fizesse ele, mas ainda não tinha visto bela, de modo que seguiu sentado muito erguido. Cinco minutos depois, Bela entrou. Woody se levantou com o pulso acelerado. Solo lhe vê-la fez sorrir. Bela levava um singelo vestido de cor amarela pálida que realçava seu brilhante cabelo negro e sua pele acanelada. Queria abraçá-la e estreitar seu corpo contra o seu, mas esperou a ver alguma sinal nela. Bela parecia nervosa e incômoda. —O que faz aqui? —perguntou-lhe. —estive te buscando. —por que? —Porque não consigo te esquecer. —Nem sequer nos conhecemos. —Pois remediemo-lo, começando hoje mesmo. Quer jantar comigo? —Não sei. Woody se aproximou dela. Bela se sobressaltou ao vê-lo caminhar com o fortificação. —O que te passou? —Dispararam-me no joelho na França. Vai melhorando pouco a pouco. —Sinto muito. —Bela, acredito que é maravilhosa. Acredito que você gosta. Nenhum dos dois estamos comprometidos. O que se preocupa? Bela lhe brindou o sorriso torcido que tanto gostava. —Suponho que me sinto envergonhada pelo que fiz aquela noite em Londres. —Só isso? —Foi muito, para uma primeira entrevista. —Essas coisas passam a todas as horas. Não a mim, claro, mas o ouço sem cessar. Acreditava que ia morrer no fronte. Bela assentiu. —Nunca tinha feito nada assim, nem sequer com o Victor. Não sei o que me passou. E em um parque! Sinto-me como uma puta. —Sei exatamente o que é —disse Woody—. É uma mulher inteligente e bonita, e com um grande coração. Assim, por que não esquecemos aquela loucura de Londres e começamos a nos conhecer como os dois jovens respeitáveis e educados que somos? Bela começou a abrandar-se. —Podemos fazê-lo? —Não o duvide. —De acordo. —Recolho às sete? —Sim. Parecia que não havia mais que dizer, mas Woody duvidou. —Não sabe quanto me alegro de ter tornado a te encontrar —disse. Bela o olhou aos olhos pela primeira vez. —OH, Woody, eu também —disse—.-me alegro tanto! —E então lhe rodeou a cintura com os braços e o apertou contra si. Aquilo era o que ele tinha desejado. Abraçou-a e posou sua cara contra seu maravilhoso cabelo. E permaneceram assim um comprido minuto. Ao cabo, ela se apartou. —Verei-te as sete —disse. —Não o duvide. Woody saiu da casa transbordante de felicidade. Foi diretamente à reunião do comitê diretor, no edifício de Veteranos, contigüo à ópera. Havia quarenta e seis membros em torno da larga mesa, com ajudantes como Gus Dewar sentados detrás deles. Woody era ajudante de um ajudante, e se sentou contra a parede. O ministro dos Assuntos Exteriores soviético, Mólotov, inaugurou a reunião. Não era um homem imponente, pensou Woody. Com sua incipiente alopecia, seu pulcro bigode e seus óculos, parecia o dependente de uma loja, que era o que tinha sido seu pai. Mas tinha sobrevivido muito tempo na política bolchevique. Amigo de Stalin desde antes da revolução, era o artífice do pacto de 1939 entre nazistas e soviéticos. Era muito trabalhador, e o apelidavam Culo de Pedra pela infinidade de horas que passava sentado a seu escritório. Em seu discurso inicial, propôs que Bielorrusia e Ucrânia fossem admitidas como membros originais das Nações Unidas. Aquelas duas repúblicas soviéticas haviam sofrido a faceta mais crua da invasão nazista, assinalou, e ambas tinham contribuído ao Exército Vermelho com mais de um milhão de homens. alegou-se que não eram totalmente independentes de Moscou, mas o mesmo argumento podia aplicar-se ao Canadá e a Austrália, domínios do Império britânico aos que se permitiu participar como membros independentes. O voto foi unânime. Woody sabia que se pactuou com antecipação. Os países latino-americanos tinham ameaçado dissentindo a menos que se admitisse a Argentina, que apoiava ao Hitler, e se tinha decidido de antemão assegurar essa concessão para ganhar seus votos. Então chegou o explosão. O ministro dos Assuntos Exteriores tcheco, Jan Masaryk, ficou em pé. Era uma famosa liberal e antinazi que tinha aparecido na capa da revista Teme em 1944. Propôs que também se admitisse a Polônia nas Nações Unidas. Estados Unidos se negava até que Stalin permitisse a celebração de eleições no país, e Masaryk, como democrata, deveria ter respaldado essa condição, sobre tudo porque ele também tratava de implantar a democracia sob a atenta vigilância do Stalin. Mólotov devia ter pressionado muito ao Masaryk para conseguir que este traísse seus ideais daquele modo. E, de fato, quando se sentou, o semblante do Masaryk era o de alguém que acabasse de comer algo repugnante. Gus Dewar também tinha um gesto sério. Os acordos convindos de antemão com respeito à Bielorrusia, Ucrânia e Argentina deviam ter garantido que aquela sessão transcorresse sem sobressaltos. Mas Mólotov acabava de lhes atirar um golpe baixo. O senador Vandenberg, sentado com a delegação americana, estava escandalizado. Agarrou uma caneta e um caderno e começou a escrever furiosamente. Um minuto depois, arrancou a folha, fez um gesto ao Woody e lhe entregou a nota. —Leva isto ao secretário de estado —lhe disse. Woody se aproximou da mesa, inclinou-se sobre o ombro do Stettinius e lhe deixou a nota diante. —Do senador Vandenberg, senhor. —Obrigado. Woody voltou para sua cadeira. Meu papel na história, pensou. Tinha cuidadoso a nota disimuladamente enquanto a entregava. Vandenberg tinha redigido um discurso breve e acalorado rechaçando a proposta dos tchecos. Seguiria Stettinius a batuta do senador? Se Mólotov se saía com a sua com respeito à Polônia, Vandenberg poderia sabotar as Nações Unidas no Senado. Mas se Stettinius recolhia o cabo arrojado pelo Vandenberg, Mólotov poderia levantar-se e partir, o que acabaria com as Nações Unidas de um modo igual de eficaz. Woody conteve o fôlego. Stettinius ficou em pé com a nota do Vandenberg na mão. —Acabamos de elogiar os acordos que alcançamos na Yalta pelo bem da União Soviética —disse. referia-se ao compromisso contraído pelos Estados Unidos para apoiar a Bielorrusia e a Ucrânia—. Há outras obrigações adquiridas na Yalta que também exigem lealdade. —Estava empregando as palavras que Vandenberg tinha escrito—. É preciso que na Polônia haja um novo governo provisório representativo. ouviu-se um murmúrio de surpresa em toda a sala. Stettinius se posicionava contra Mólotov. Woody olhou ao Vandenberg, que sussurrava. —Até que isso ocorra —prosseguiu Stettinius—, a conferência não pode, honestamente, reconhecer ao governo do Lublin. —Olhou diretamente ao Mólotov e citou as palavras exatas do Vandenberg—: Seria uma sórdida manifestação de má fé. Mólotov tinha ido às nuvens. O secretário de Assuntos Exteriores britânico, Anthony Eden, desdobrou sua desajeitada figura e ficou em pé para apoiar ao Stettinius. Empregou um tom impecavelmente cortês, mas suas palavras foram mordazes. —Meu governo não tem modo de saber se o povo polonês respaldar a seu governo provisório —disse—, porque nossos aliados soviéticos não permitem a presença de observadores britânicos na Polônia. Woody teve a impressão de que a reunião se voltava contra Mólotov. Era evidente que o representante russo também se dava conta disso. Consultava com seus ajudantes em voz o bastante alta para que Woody percebesse a ira nela. Mas partiria? O ministro dos Assuntos Exteriores belga, calvo, rechoncho e com papada, propôs um acordo, uma moção que expressasse a esperança de que o novo governo polonês organizasse-se a tempo para estar representado ali, em São Francisco, antes do final da conferência. Todos olharam ao Mólotov. Ofereciam-lhe uma oportunidade para salvar as aparências. Mas a aceitaria? Seguia parecendo furioso. Entretanto, fez um gesto de assentimento, leve mas inequívoco. A crise tinha terminado. Fantástico —pensou Woody—, duas vitórias em um dia. Todo pinta bem. V Carla foi fazer fila para conseguir água. Fazia dois dias que não havia água corrente. Por sorte, as amas de casa berlinensas tinham descoberto que cada poucas maçãs havia antigas bombas conectadas a poços subterrâneos, que levavam muito tempo em desuso. Estavam oxidadas e chiavam, mas, surpreendentemente, ainda funcionavam. De modo que todas as manhãs as mulheres faziam fila frente a elas com cubos e jarras. Os ataques aéreos tinham cessado, possivelmente porque o inimigo estava a ponto de entrar na cidade. Mas ainda era perigoso estar na rua, porque a artilharia do Exército Vermelho seguia bombardeando. Carla não estava segura de por que se incomodava em fazê-lo. Grande parte da cidade tinha desaparecido já. Edifícios inteiros e áreas inclusa mais extensas tinham ficado arrasados. Todos os serviços públicos estavam fora de serviço. Não circulavam trens nem ônibus. Milhares de pessoas ficaram-se sem lar, talvez milhões. A cidade era um imenso campo de refugiados. Mas o bombardeio prosseguia. A maioria dos cidadãos passavam tudo o dia em porões ou em refúgios anti-aéreos públicos, mas tinham que sair a por água. Na rádio, pouco antes de que a eletricidade se cortasse definitivamente, a BBC tinha anunciado que o Exército Vermelho tinha liberado o campo de concentração do Sachsenhausen, que estava ao norte do Berlim, pelo que sem dúvida os soviéticos, que chegavam pelo este, estavam cercando a cidade em lugar de cruzá-la. A mãe da Carla, Maud, deduziu que queriam deixar de lado às forças americanas, britânicas, francesas e canadenses, que se aproximavam com rapidez por o oeste. Tinha chamado ao Lenin: Quem controla Berlim controlará a Alemanha, e quem controla a Alemanha controlará a Europa. em que pese a isso, o exército alemão não se rendeu. Superados em homens e em armamento, com escassez de munição e combustível, e famintos, seguiam lutando como podiam. Uma e outra vez suas comandantes os jogavam contra as entristecedoras forças inimizades, e uma e outra vez eles obedeciam suas ordens, lutavam com denodo e coragem, e morriam por centenares e milhares. Entre eles se encontravam os dois homens aos que Carla queria: seu irmão, Erik, e seu noivo, Werner. Não tinha idéia de se seguiam combatendo, nem sequer de se seguiam vivos. Carla tinha abandonado a espionagem. O combate se estava transformando em caos. Os planos de batalha significavam pouco. A informação secreta que se filtrava desde o Berlim logo que tinha valor para os conquistadores soviéticos. Já não merecia a pena arriscar-se. Os espiões tinham queimado seus livros de códigos e escondido os transmissores de rádio entre os escombros de edifícios bombardeados. Tinham acordado não falar nunca de seu trabalho. Tinham sido valentes, tinham precipitado o final da guerra e tinham salvado vistas, mas era muito esperar que o derrotado povo alemão visse as coisas desse modo. Sua coragem permaneceria em segredo para sempre. Enquanto Carla esperava seu turno frente à bomba de água, um pelotão de cazatanques das Juventudes Hitlerianas passou por seu lado em direção ao este, para o combate. Estava formado por dois homens que passavam dos cinqüenta e uma dúzia de adolescentes, todos em bicicleta. Acoplados ao guidão de cada bicicleta levavam duas exemplares de uma nova arma antitanque de um só disparo chamada Panzerfäuste. Aos moços ficavam grandes os uniformize, e os cascos, também grandes, lhes teriam conferido um aspecto cômico se sua situação não tivesse sido tão patética. foram combater contra o Exército Vermelho. foram morrer. Carla desviou o olhar quando passaram; não queria recordar suas caras. Enquanto enchia o cubo, a mulher que ia detrás dela na cauda, frau Reichs, falou-lhe em voz baixa, para que ninguém mais pudesse ouvi-la. —É amiga da esposa do médico, verdade? Carla ficou tensa. Era evidente que frau Reichs se referia ao Hannelore Rothmann. O médico tinha desaparecido junto com os pacientes doentes mentais do hospital judeu. O filho do Hannelore, Rudi, arrancou-se a estrela amarela e unido a quão judeus viviam na clandestinidade, chamados Ou-Boat no jargão berlinense. Mas Hannelore, que não era judia, seguia vivendo em sua antiga casa. Durante doze anos, uma pergunta como a que acabavam de lhe fazer —É amiga da mulher de um judeu?— teria sido uma acusação. Era-o esse dia? Carla não o sabia. Logo que conhecia frau Reichs; não podia confiar nela. Carla fechou o grifo da bomba. —O doutor Rothmann era nosso médico de cabeceira quando eu era menina —respondeu com cautela—. por que? A outra mulher ocupou seu lugar frente à bomba e começou a encher uma lata grande que no passado tinha contido azeite para cozinhar. —levaram-se a frau Rothmann —disse frau Reichs—. Pensei que quereria sabê-lo. Era algo habitual. levavam-se a gente a todas as horas. Mas quando se tratava de alguém próximo, supunha um golpe duro. Não tinha sentido tentar averiguar o paradeiro dessas pessoas; de fato, era diretamente perigoso: quem indagava sobre esses desaparecimentos estavam acostumados a desaparecer também. Em qualquer caso, Carla tinha que perguntá-lo. —Sabe aonde a levaram? Esta vez havia resposta. —Ao campo de trânsito do Schulstrasse. —Carla se sentiu esperançada—. Está no antigo hospital judeu, no Wedding. Conhece-o? —Sim. —Carla trabalhava às vezes no hospital, de forma extra-oficial e ilegal, pelo que sabia que o governo tinha tomado um dos edifícios do hospital, o laboratório de patologia, e o tinha cercado com arame de espinheiro. —Espero que não lhe tenha passado nada —disse a outra mulher—. Se comportou muito bem comigo quando meu Steffi adoeceu. —Fechou o grifo e se afastou com a lata cheia de água. Carla se encaminhou a casa a toda pressa, na direção contrária. Tinha que fazer algo pelo Hannelore. Sempre tinha sido virtualmente impossível tirar ninguém de um campo, mas agora que todo se desintegrava possivelmente Carla encontrasse o modo de fazê-lo. Levou o cubo a casa e o deu a Ada. Maud tinha ido fazer fila para conseguir as rações de comida. Carla ficou o uniforme de enfermeira, acreditando que poderia ajudar. Disse a Ada aonde ia e voltou a sair. Teve que ir a pé ao Wedding. Estava a uns quatro quilômetros. Duvidava que aquilo merecesse a pena. Embora encontrasse ao Hannelore, provavelmente não poderia ajudá-la. Mas então pensou na Eva, que estava em Londres, e no Rudi, escondido em algum lugar do Berlim, pensou em quão terrível seria que perdessem a sua mãe nas últimas horas da guerra. Tinha que tentá-lo. A polícia militar estava nas ruas, pedindo a documentação às pessoas. Trabalhavam em grupos de três, formando tribunais sumários, e se interessavam principalmente pelos homens em idade de combater. Não se incomodaram em deter a Carla ao vê-la vestida de enfermeira. Era estranho que naquela inóspita paisagem urbana as macieiras e as cerejeiras luzissem esplêndidos, com suas flores brancas e rosadas, e que nos momentos de silêncio entre explosões ela ouvisse o canto dos pássaros, tão alegres como todas as primaveras. Viu horrorizada a vários homens pendurados de luzes, alguns uniformizados. A maioria daqueles corpos tinham um pôster ao pescoço que rezava Covarde ou Desertor. Sabia que eram os homens a quem aqueles tribunais de rua tinham considerado culpados. Não estavam satisfeitos já os nazistas com todas as mortes que havia havido? Entraram-lhe vontades de chorar. Teve que refugiar do fogo de artilharia em três ocasiões. Na última, quando se encontrava a apenas cem metros do hospital, os soviéticos e os alemães pareciam combater a solo umas ruas dali. O tiroteio era tão intenso que Carla sentiu tentações de voltar para casa. Certamente Hannelore já estava condenada, ou inclusive morta, por que devia Carla acrescentar sua própria vida à lista de vítimas? Entretanto, seguiu adiante. Anoitecia quando chegou a seu destino. O hospital estava no Iranische Strasse, na esquina com o Schul Strasse. Nas árvores que bordeaban as ruas começavam a brotar folhas. O edifício do laboratório, que se tinha convertido em um campo de trânsito, estava vigiado. Carla pensou na possibilidade de aproximar-se do guarda e lhe explicar sua missão, mas lhe pareceu uma estratégia com poucas possibilidades de êxito. perguntou-se se poderia penetrar por algum túnel. dirigiu-se ao edifício principal. O hospital estava em funcionamento. transladou-se a todos os pacientes a porões e túneis. O pessoal trabalhava à luz de abajures de azeite. Pelo aroma que percebeu, Carla supôs que os serviços também careciam de água corrente e que tinham que ir procurá-la ao velho poço que havia no jardim. Para sua surpresa, os soldados estavam levando a colegas feridos em busca de ajuda. de repente já não lhes importava que os médicos e as enfermeiras pudessem ser judeus. Seguiu um túnel que cruzava o jardim até o porão do laboratório. Tal como esperava, a porta estava vigiada. Entretanto, ao ver sua uniforme, o jovem de a Gestapo a deixou passar sem lhe perguntar nada. Possivelmente já não lhe encontrasse o sentido a seu trabalho. Já estava dentro do campo. Não sabia se seria igual de fácil sair dele. O aroma piorou, e Carla viu em seguida o motivo. O porão estava lotado. Centenares de pessoas se amontoavam em quatro salas de armazenagem. Sentadas e tombadas no chão; as mais afortunadas, apoiadas contra uma parede. Estavam sujas, fedorentos e exaustas, e a olharam sem o menor interesse. Encontrou ao Hannelore poucos minutos depois. A esposa do médico nunca tinha sido bonita, mas no passado tinha tido uma figura escultural e umas facções imponentes. Agora estava descarnada, como a maioria da gente, e tinha o cabelo cinza e apagado, e as bochechas afundadas e enrugadas pela tensão. Falava com uma adolescente que tinha essa idade em que uma garota pode parecer muito voluptuosa, com seios e quadris de mulher mas com cara de menina. A jovem estava sentada no chão, chorando, e Hannelore, ajoelhada a seu lado, sustentava-lhe uma mão e lhe falava com voz tênue e lhe sosseguem. Quando Hannelore viu a Carla, ficou em pé. —meu deus! O que faz você aqui? —disse-lhe. —Pensei que se lhes dizia que não é feijão possivelmente a soltariam. —Um gesto muito valente. —Seu marido salvou muitas vidas. Alguém deveria salvar a sua. Por um instante, Carla teve a impressão de que Hannelore estava a ponto de chorar, pois lhe contraiu a rosto, embora em seguida piscou e sacudiu a cabeça. —Apresento a Rebecca Rosen —disse com voz contida—. Uma bomba matou hoje a seus pais. —Sinto-o muito, Rebecca —se lamentou Carla. A garota não disse nada. —Quantos anos tem? —perguntou-lhe. —Estou a ponto de cumprir quatorze. —Agora vais ter que te comportar como uma adulta. —por que não me matou também essa bomba? —disse Rebecca—. Estava a seu lado. Deveria ter morrido. Agora estou sozinha. —Não está sozinha —se apressou a responder Carla—. Nós estamos contigo. —voltou-se para o Hannelore—. Quem está ao cargo disto? —chama-se Walter Dobberke. —vou dizer lhe que tem que deixá-la partir. —Já se foi. E sua mão direita é um sargento com o cérebro de um javali. Mas, olhe, aí vem Gisela. É a amante do Dobberke. Quão jovem entrava na sala era bonita, com o cabelo comprido e claro e pele de cor nata. Ninguém a olhou. Sua expressão era desafiante. —deita-se com ele na cama da sala de eletrocardiogramas, na planta principal. Em troca recebe rações extra de comida. Ninguém lhe fala exceto eu. Não acredito que devamos julgar às pessoas pelos concertos que fazem. Ao fim e ao cabo, todos estamos vivendo no inferno. Carla não estava tão segura. Ela não poderia ser amiga de uma garota judia que se deitava com um nazista. Gisela viu o Hannelore e se aproximou. —Walter recebeu novas ordens —disse em voz tão baixa que Carla apenas a ouviu. Logo duvidou. —E bem? Quais são as ordens? —perguntou Hannelore. A voz da Gisela se reduziu a um sussurro. —Matar a toda esta gente. Carla sentiu como se uma fria mão lhe espremesse o coração. A toda essa gente… incluídas Hannelore e a jovem Rebecca. —Ele não quer fazê-lo —disse Gisela—. Não é má pessoa, de verdade. —Quando se supõe que tem que nos matar? —perguntou Hannelore com uma calma fatalista. —Já. Mas antes quer destruir todos os registros. Agora mesmo Hans-Peter e Martin estão levando os arquivos ao forno. Demorarão várias horas em acabar, assim que dispomos de alguma margem. Possivelmente o Exército Vermelho chegue a tempo para nos salvar. —Mas também é possível que não seja assim —repôs Hannelore com determinação—. Há algum modo de lhe convencer de que desobedeça essas ordens? Pelo amor de Deus, a guerra quase terminou! —Antes podia falar com ele de algo —respondeu Gisela, abatida—, mas agora se está cansando de mim. Já sabe como são os homens. —Mas deveria pensar em seu próprio futuro. Qualquer dia os Aliados mandarão aqui. Castigarão os crímenes nazistas. —Se estivermos todos mortos, quem vai acusar o? —disse Gisela. —Eu —interveio Carla. As outras dois a olharam sem dizer nada. Carla caiu na conta de que, embora não fosse feijão, também a matariam a ela para que não ficassem testemunhas. Pensou em outras possibilidades. —Possivelmente, se Dobberke nos deixasse partir, isso lhe ajudaria com os Aliados. —É possível —disse Hannelore—. Poderíamos assinar todos uma declaração dizendo que nos salvou a vida. Carla dirigiu um olhar inquisitivo a Gisela. Sua expressão era dúbia. —Pode que o faça —respondeu, ao cabo. Hannelore olhou a seu redor. —Ali está Hilde —disse—. É a secretária do Dobberke. —Chamou à mulher e lhe contou o plano. —Redigirei documentos de liberação para todos —acessou Hilde—. Lhe pediremos que os firme antes de lhe dar a declaração. Não havia guardas no porão, solo na planta principal e no túnel, de modo que os prisioneiros podiam mover-se sem restrições. Hilde foi à sala que fazia as vezes de despacho do Dobberke no porão. Em primeiro lugar, datilografou a declaração. Hannelore e Carla percorreram as salas informando do plano e fazendo que todos assinassem o documento. Enquanto isso, Hilde redigiu os documentos. Quando acabaram era já meia-noite. Não podiam fazer nada mais até que Dobberke voltasse pela manhã. Carla se tombou no chão ao lado da Rebecca Rosen. Não havia nenhum outro sítio onde dormir. Ao momento, Rebecca rompeu a chorar em silêncio. Carla não sabia o que fazer. Queria consolá-la, mas não encontrava as palavras. O que se pode dizer a uma menina que acaba de ver como matam a seus pais? Os soluços prosseguiram. Ao final, Carla se deu a volta e a abraçou. Soube imediatamente que tinha feito o correto. Rebecca se acurrucó contra ela e posou a cara em seu peito. Carla lhe deu umas palmadas suaves nas costas, como se fosse um bebê. Pouco a pouco, os soluços cessaram e ao final Rebecca dormiu. Carla não pegou olho. Passou a noite imaginando discursos dirigidos ao diretor do campo. Às vezes apelava a sua bondade, outras o ameaçava com a justiça dos Aliados, outras argumentava a favor de seu próprio interesse. Tentou não pensar na possibilidade de que a fuzilassem. Erik lhe tinha explicado como os nazistas executavam às pessoas de doze em doze na União Soviética. Carla supôs que ali contariam também com um sistema eficaz. Custava imaginá-lo. Possivelmente fora o mesmo. Provavelmente poderia evitar a execução se saía do campo nesse momento, ou a primeira hora da manhã. Não era prisioneira, nem feijão, e sua documentação estava em perfeita ordem. Podia sair por onde tinha entrado, vestida de enfermeira. Mas isso significaria abandonar tanto ao Hannelore como a Rebecca. Era incapaz de fazer isso, por muito que desejasse sair dali. O combate nas ruas se prolongou até bem entrada a noite, logo houve uma pausa breve, e começou de novo ao amanhecer. Agora estava tão perto que Carla não só ouvia a artilharia mas também as metralhadoras. Pela manhã, cedo, os guardas levaram uma espécie de urna com sopa aguada e um saco cheio de pão, em realidade restos de fogaças já duras. Carla se tomou a sopa e se comeu o pão, e logo, a contra gosto, usou o lavabo, que estava indeciblemente sujo. Subiu com o Hannelore, Gisela e Hilde à planta principal para esperar ali ao Dobberke. O bombardeio se reatou e elas corriam perigo, mas queriam abordá-lo assim que chegasse. Dobberke não se apresentou à hora habitual. Hilde lhes disse que estava acostumado a ser pontual. Seu atraso talvez se devia ao combate nas ruas. Também poderiam havê-lo matado. Carla confiava em que não esse fora o caso. Sua mão direita, o sargento Ehrenstein, era muito estúpido para discutir com ele. Passou uma hora e Carla começou a perder a esperança. depois de outra hora, Dobberke chegou ao fim. —O que é isto? —disse ao ver as quatro mulheres esperando no vestíbulo—. Uma reunião de mães? —Todos os prisioneiros assinaram uma declaração dizendo que você lhes salvou a vida —respondeu Isso Hannelore poderia lhe salvar a vida a você, se aceitar nossas condições. —Não seja ridícula —replicou ele. —Segundo a BBC —disse Carla—, as Nações Unidas têm uma lista com os nomes dos oficiais nazistas que participaram de assassinatos em massa. dentro de uma semana você será julgado. Não gostaria de ter assinado uma declaração segundo a qual salvou vistas? —Escutar a BBC é um delito —repôs Dobberke. —Não tão grave como o assassinato. Hilde levava uma pasta na mão. —redigi estas ordens de liberação para todos os prisioneiros deste centro —lhe informou—. Se as assina, terá a declaração. —Poderia obrigá-la a que me desse isso sem mais. —Ninguém acreditará em sua inocência se morrermos todos. Dobberke estava furioso pela situação em que se encontrava, mas não o bastante seguro para fugir dela. —Poderia as fuzilar às quatro por sua insolência —disse. —Assim é a derrota —disse Carla, impacientada—. Acostume-se a ela. A ira turvou o rosto do Dobberke, e Carla soube que se excedeu. Desejou não ter pronunciado aquelas palavras. Observou o semblante iracundo do Dobberke, tratando de não mostrar o medo que sentia. Nesse momento uma bomba estalou justo fora do edifício. As portas estralaram e os vidros de uma janela se romperam. Todos se agacharam instintivamente, mas ninguém resultou ferido. Quando se ergueram, a expressão do Dobberke tinha trocado. A cólera tinha dado passo a uma espécie de resignação enojada. A Carla lhe acelerou o pulso. Se tinha rendido? O sargento Ehrenstein chegou correndo. —Nenhum ferido, senhor —informou. —Muito bem, sargento. Ehrenstein estava a ponto de partir quando Dobberke o chamou. —Este campo fica enclausurado desde este mesmo momento —lhe disse. Carla conteve o fôlego. —Enclausurado, senhor? —perguntou o sargento com um tom que mesclava agressividade e surpresa. —Novas ordens. lhes diga aos homens que partam. —Dobberke vacilou—. lhes Diga que se pressentem no búnker da estação do Friedrichstrasse. Carla sabia que Dobberke estava improvisando, e Ehrenstein também parecia suspeitá-lo. —Quando, senhor? —Imediatamente. —Imediatamente. —Ehrenstein fez uma pausa, como se a palavra imediatamente requeresse mais explicações. Dobberke o despachou com o olhar. —Muito bem, senhor —disse o sargento—. Informarei aos homens. —E se afastou. Carla sentiu um arrebatamento de triunfalismo, mas se recordou que ainda não era livre. —me mostre essa declaração —pediu Dobberke ao Hilde. Hilde abriu a pasta. Havia uma dúzia de documentos, todos com o mesmo cabeçalho, e o resto do espaço repleto de assinaturas. Os tendeu. Dobberke os dobrou e os guardou no bolso. Hilde lhe plantou diante as ordens de liberação. —Firme isto, por favor. —Não necessitarão ordens de liberação —repôs Dobberke—. Não tenho tempo para assinar centenares de folhas. —ficou imóvel. —A polícia está nas ruas —disse Carla—. Estão pendurando a gente das luzes. Necessitamos documentação. Dobberke se deu umas palmadas no bolso. —A mim sim que me pendurarão se me encontram com esta declaração. —encaminhou-se para a porta. —me leve contigo, Walter! —gritou Gisela. Dobberke se voltou para ela. —Que te leve comigo? —repetiu—. O que diria minha esposa? —Saiu e deu uma portada a seu passo. Gisela rompeu a chorar. Carla se dirigiu à porta, abriu-a e viu o Dobberke afastar-se a grandes pernadas. Não havia mais homens da Gestapo à vista; já tinham obedecido as ordens e abandonado o campo. O comandante chegou à rua e pôs-se a correr. Deixou a cancela aberta. Hannelore estava em pé junto à Carla, observando a cena com incredulidade. —Acredito que somos livres —disse Carla. —Devemos dizer-lhe a outros. —Eu o farei —se ofereceu Hilde, e baixou as escadas do porão. Carla e Hannelore caminharam temerosas pelo atalho que comunicava a entrada do laboratório com a cancela aberta. Ali duvidaram e se olharam. —Dá-nos medo a liberdade —disse Hannelore. —Carla, não vá sem mim! —exclamou uma voz infantil detrás delas. Era Rebecca, que corria pelo atalho; seus peitos oscilavam sob a imunda blusa. Carla suspirou. Acabo de adotar a uma filha —pensou—. Não estou preparada para ser mãe, mas o que posso fazer? —Vamos —disse—, mas te prepare para correr. Em seguida viu que não tinha que preocupar-se com a agilidade da Rebecca, pois a garota sem dúvida corria mais depressa que Hannelore e ela. Atravessaram o jardim do hospital até a entrada principal. Ali se detiveram e jogaram uma olhada ao Iranische Strasse. Parecia tranqüila. Cruzaram a rua e correram até a esquina. Enquanto olhava para o Schul Strasse, Carla ouviu uma rajada de metralhadora e viu que mais adiante havia um tiroteio. Tinha soldados alemães retirando-se em sua direção, perseguidos por outros do Exército Vermelho. Carla olhou a seu redor. Não havia onde esconder-se, salvo detrás das árvores, que logo que ofereciam amparo. Uma bomba caiu e explorou a uns cinqüenta metros delas. Carla notou a onda expansiva, mas não estava ferida. As três mulheres correram de volta ao recinto do hospital. Retornaram ao edifício do laboratório. Alguns de outros prisioneiros estavam desse lado da cerca de arame de espinheiro, como se não se atrevessem a sair. —O porão empresta, mas agora mesmo é o lugar mais seguro —lhes disse Carla. Entrou no edifício e baixou as escadas, e a maior parte de outros a seguiram. perguntou-se quanto tempo teriam que ficar ali. O exército alemão tinha que render-se, mas quando o faria? De algum modo, não conseguia imaginar ao Hitler acessando a render-se sob nenhum pretexto. Toda a vida daquele homem se baseado em gritar com arrogância que ele era o chefe. Como ia um homem assim a admitir que se equivocou e que tinha sido estúpido e perverso? Que tinha matado a milhões de pessoas e provocado que seu país fosse bombardeado até ficar reduzido a escombros? Que aconteceria a história como o homem mais malvado que poderia ter existido jamais? Não, não podia. voltaria-se louco, ou morreria de vergonha, ou se levaria uma pistola à boca e apertaria o gatilho. Mas quanto demoraria para ocorrer isso? Um dia? Uma semana? Mais tempo? ouviu-se um grito procedente de acima. —Já estão aqui! Os russos estão aqui! Carla ouviu umas pesadas botas baixando as escadas. Onde tinham conseguido os soviéticos expulsa de tanta qualidade? Dos norte-americanos? E ali entraram, quatro, seis, oito, nove homens com a cara suja armados com metralhadoras com carregador de tambor, preparados para disparar em um abrir e fechar de olhos. Pareciam ocupar muito espaço. A gente se encolheu, retrocedendo deles, embora eram seus libertadores. Os soldados observaram a sala. Viram que os gastos prisioneiros, em sua maioria mulheres, não constituíam nenhum perigo. Baixaram as armas. Alguns se dirigiram às salas contigüas. Um soldado alto se arregaçou a manga direita. Levava seis ou sete relógios de boneca. Gritou algo em russo, assinalando os relógios com a culatra da arma. Carla acreditou lhe entender, mas lhe custava acreditá-lo. O homem agarrou então a uma anciã, agarrou-lhe a mão e assinalou sua aliança. —vão roubar nos o pouco que não nos tiraram os nazistas? —perguntou Hannelore. Assim era. O soldado alto parecia frustrado e tentou lhe arrancar a aliança à mulher. Quando ela compreendeu o que queria, a tirou e a deu. O russo a agarrou, assentiu e assinalou a todos outros. Hannelore avançou um passo. —São todos prisioneiros! —disse em alemão—. Judeus e familiares de judeus perseguidos pelos nazistas! Entendesse-a ou não, o soldado não lhe fez o menor caso e se limitou a assinalar insistentemente os relógios que levava na boneca. Os poucos que conservavam algum objeto de valor que não lhes tinham roubado ou não tinham trocado por comida o entregaram. A liberação à mãos do Exército Vermelho não ia ser o acontecimento feliz que tanta gente tinha esperado. Mas o pior estava por chegar. O soldado alto apontou a Rebecca. A garota retrocedeu e tentou esconder-se detrás da Carla. Um segundo homem, miúdo e de cabelo claro, agarrou a Rebecca e atirou dela. A garota soltou um grito, e ele sorriu como desfrutando daquele som. Carla teve um horrível pressentimento do que ia acontecer. O homem baixo sujeitou com força a Rebecca enquanto o alto espremia rudamente os peitos e dizia algo que fez rir aos dois. ouviram-se gritos de protesto entre os prisioneiros. O soldado alto elevou a arma. Carla acreditou que ia disparar e sentiu terror. Mataria a dúzias de pessoas se apertava o gatilho de uma metralhadora em uma sala lotada. Todos advertiram o perigo e guardaram silêncio. Os dois soldados retrocederam para a porta, levando-se a Rebecca consigo. Ela chiou e lutou, mas não conseguiu escapar das mãos do soldado miúdo. Quando chegaram à porta, Carla se adiantou. —Esperem! —gritou. Algo em sua voz fez que se detivessem. —É muito jovem —disse Carla—. Só tem treze anos! —Não sabia se a entendiam. Ela levantou as duas mãos mostrando os dez dedos, e logo uma mostrando três—. E treze! O soldado alto pareceu entendê-la e sorriu. —Frau ist Frau —disse em alemão. Uma mulher é uma mulher. —Necessitam uma mulher de verdade —se surpreendeu dizendo Carla. Avançou lentamente—. me Levem a mim em seu lugar. —Tentou sorrir de forma sedutora—. Não sou uma menina. Sei o que terá que fazer. —aproximou-se um pouco mais, o bastante para perceber o aroma rançoso de um homem que levava meses sem lavar-se. Tentando ocultar sua aversão, baixou a voz e disse—: Eu sei o que um homem quer. —tocou-se um peito de forma sugerem-se—. lhes Esqueça da menina. O soldado alto voltou a olhar a Rebecca. A garota tinha os olhos vermelhos de chorar e lhe gotejava o nariz, o que, felizmente, a fazia parecer ainda mais menina e menos mulher. O soldado olhou a Carla. —Há uma cama acima —disse—. Quer que lhe ensine isso? Tampouco esta vez estava segura de que tivesse entendido suas palavras, mas o agarrou da mão, e ele a seguiu pelas escadas até a planta principal. O loiro soltou a Rebecca e foi atrás deles. Agora que se saiu com a sua, Carla lamentou sua fanfarronada. Queria pôr-se a correr e fugir daqueles dois russos. Mas provavelmente lhe disparariam e voltariam a pela Rebecca. Carla pensou na moça destroçada que tinha perdido a seus pais no dia anterior. Sofrer uma violação ao dia seguinte destruiria sua alma de por vida. Carla tinha que salvá-la. Não me envergonharei disto —pensou—. O suportarei. Voltarei a ser eu depois. Levou-os a sala de eletrocardiogramas. Sentiu frio, como se lhe estivesse gelando o coração, presa do atordoamento. junto à cama havia uma lata de graxa que os médicos utilizavam para melhorar a condutibilidade dos terminais. tirou-se a roupa interior, agarrou um punhado de graxa e a introduziu na vagina. Isso poderia evitar que sangrasse. Tinha que seguir fingindo. voltou-se por volta dos dois soldados. Para seu horror, outros três os tinham seguido até a sala. Tentou sorrir, mas não pôde. O alto se ajoelhou entre as pernas da Carla. Rasgou-lhe a blusa do uniforme para deixar seus peitos à vista. Carla viu que se tocava para provocar uma ereção. O soldado se tombou sobre ela e a penetrou. Carla se disse que aquilo não tinha nenhuma relação com o que Werner e ela tinham feito juntos. Inclinou a cabeça, mas o soldado a agarrou pelo queixo e lhe girou a cara, obrigando-a a lhe olhar enquanto a penetrava. Carla fechou os olhos. Notou como ele a beijava, tentando lhe introduzir a língua na boca. O fôlego cheirava a carne podre. Ao ver que ela se negava a abrir a boca, o soldado lhe atirou um murro. Carla gritou e separou os lábios para ele. Tentou pensar que aquilo teria sido muito pior para uma virgem de treze anos. O soldado gemeu e ejaculou dentro dela. Carla se esforçou por que sua cara não refletisse o asco que sentia. O soldado se apartou e o loiro ocupou seu lugar. Carla tentou bloquear seus pensamentos, desligar-se de seu corpo, convertê-lo em uma máquina, em um objeto totalmente alheio a ela. O segundo soldado não quis beijá-la, mas lhe sugou os peitos e lhe mordeu os mamilos, e quando ela gritou de dor, ele pareceu agradado e voltou a fazê-lo com mais força. Passou o tempo, e o homem ejaculou. Outro soldado se tombou sobre ela. Carla caiu na conta de que quando aquilo acabasse não poderia banhar-se nem tomar banho, pois na cidade não havia água corrente. Esse pensamento a fez desmoronar-se. Os fluidos daqueles homens ficariam dentro dela, seu aroma permaneceria em sua pele, sua saliva em sua boca, e ela não teria modo de lavar-se. Em certo modo, isso era pior que todo o resto. Fraquejou-lhe a coragem e rompeu a chorar. O terceiro soldado acabou, e depois o quarto se tombou sobre ela. 20 1945 (II) I Adolf Hitler se suicidó na segunda-feira 30 de abril de 1945 em seu búnker do Berlim. Exatamente uma semana depois, em Londres, às oito menos vinte da tarde, o Ministério de Informação anunciou que a Alemanha se rendeu. O dia seguinte, na terça-feira 8 de maio, declarou-se festivo. Daisy se sentou junto à janela de seu apartamento do Piccadilly a contemplar as celebrações. A rua estava tão abarrotada de gente que os carros e os ônibus virtualmente não podiam circular. As garotas beijavam a qualquer homem que levasse um uniforme, e milhares de afortunados soldados aproveitavam ao máximo a oportunidade. A primeira hora da tarde havia já muchísima gente bêbada. Pela janela aberta, Daisy ouviu uns cânticos ao longe e supôs que a multidão que se havia reunido frente ao palácio do Buckingham estava entoando o Land of Hope and Glory. Ela compartilhava sua alegria, mas Lloyd se encontrava em algum rincão da França, ou Alemanha, e era o único soldado ao que Daisy queria beijar. Rezou por que não o tivessem matado nas últimas horas da guerra. A irmã do Lloyd, Millie, apresentou-se com seus dois meninos. O marido do Millie, Abe Avery, também seguia destinado no exército. Os meninos e ela tinham ido ao West End para unir-se às celebrações e subiram a casa do Daisy a descansar um momento de tanta aglomeração. Fazia tempo que a casa dos Leckwith no Aldgate constituía um refúgio para ela, assim Daisy sempre se alegrava de ter ocasião de lhes corresponder. Preparou- um chá ao Millie —o serviço tinha saído à rua— e tirou também suco de laranja para os meninos. Lennie tinha já cinco anos e Pammie, três. Desde que tinham chamado ao Abe a filas, era Millie a que se encarregava do negócio de venda de couro em grandes quantidades. Sua cunhada, Naomi Avery, era a contável, mas ela fechava as vendas. —Agora tudo trocará —disse Millie—. Os últimos cinco anos tivemos demanda de couros duros para botas e calçado. Agora necessitaremos peles mais suaves, de bezerro e porco, para fazer bolsas e carteiras. Quando se reativar o mercado do luxo, por fim haverá um bom dinheiro que ganhar. Daisy recordou que seu pai tinha a mesma forma de ver as coisas que Millie. Também Lev se adiantava sempre aos acontecimentos em busca de oportunidades. Eva Murray apareceu então com seus quatro meninos pegos às saias. Jamie, que tinha oito anos, fez-os jogar a todos ao esconderijo e o apartamento ficou convertido em uma creche. O marido da Eva, Jimmy, tinha chegado a coronel e também estava em algum lugar da França ou Alemanha. Eva padecia a mesma angústia da incerteza que Daisy e Millie. —Saberemos deles qualquer dia destes —disse Millie—, e então por fim se acabou de verdade. Eva também estava impaciente por receber notícias de sua família, no Berlim, mas acreditava que, com o caos da posguerra, passariam semanas ou inclusive meses antes de que ninguém pudesse saber o que tinha sido de uns alemães em particular. —Pergunto-me se meus filhos conhecerão algum dia a meus pais —comentou com tristeza. Às cinco, Daisy preparou uma jarra do Martini. Millie foi à cozinha e, com a rapidez e a eficiência que a caracterizavam, tirou uma bandeja de torradas com sardinhas para acompanhar o coquetel. Eth e Bernie chegaram justo quando Daisy estava preparando uma segunda ronda. Bernie disse ao Daisy que Lennie já sabia ler, e que Pammie cantava o hino nacional. —É como todos os avós —soltou Ethel—. Acredita que nunca houve meninos inteligentes antes que os nossos. —Mas Daisy viu que no fundo se sentia tão orgulhosa como ele. Com a alegria e a relaxação que a embargou a metade do segundo Martini, contemplou ao díspar grupo que se reuniu em seu lar. Tinham-lhe feito o completo de aproximar-se de sua porta sem convite, sabedores de que seriam bem-vindos. Formavam parte de sua vida, e ela da deles. deu-se conta de que eram sua família. sentiu-se loja de comestíveis de bênções. II Woody Dewar estava sentado frente ao despacho de Leão Shapiro, repassando um maço de fotografias. Eram fotos instantâneas tomadas no Pearl Harbor, a hora anterior à morte do Joanne. O carretel levava meses dentro de sua câmara, mas ao final o tinha levado a revelar e tinha impresso as fotos. as olhar lhe produzia tanta tristeza que as tinha guardado em uma gaveta de seu dormitório, no apartamento de Washington, e ali as tinha deixado. Entretanto, já era hora de trocar. Jamais esqueceria ao Joanne, mas ao fim voltava a estar apaixonado. Adorava a Bela e ela sentia o mesmo por ele. Quando se tinham despedido na estação de trem do Oakland, nos subúrbios de São Francisco, lhe havia dito que a queria e ela tinha respondido: Eu também te quero. Pensava lhe pedir que se casasse com ele. O teria feito já, mas lhe parecia muito logo —não tinham acontecido ainda três meses— e não queria lhes dar aos pais dela, tão hostis, nenhum pretexto para que pusessem objeções. Além disso, tinha que tomar uma decisão sobre seu futuro. Não queria meter-se em política. Sabia que a notícia surpreenderia a seus pais. Eles sempre tinham suposto que seguiria os passos do Gus e acabaria convertendo-se no terceiro senador Dewar. Ele mesmo tinha aceito essa hipótese sem pensá-lo muito. Durante a guerra, não obstante, sobre tudo enquanto estava no hospital, perguntou-se o que era o que queria fazer de verdade, se é que sobrevivia; e a resposta não tinha sido a política. Era um bom momento para deixá-lo. Seu pai tinha obtido a ambição de sua vida. O Senado tinha debatido a formação da Organização das Nações Unidas. Era um momento da história similar aos dias em que se fundou a antiga Sociedade das Nações: uma lembrança dolorosa para o Gus Dewar. Mas o senador Vandenberg pronunciou-se apaixonadamente a favor, refiriéndose à organização como o sonho mais desejado da humanidade, e a Carta da ONU tinha sido ratificada por 89 votos frente a dois. O trabalho parecia. Woody já não decepcionaria a seu pai com sua decisão de abandonar. Esperava que Gus o visse igual a ele. Shapiro abriu a porta de seu escritório e o chamou com um gesto. Woody se levantou e entrou. O chefe da delegação de Washington da Agência Nacional de Imprensa era mais jovem do que Woody esperava, de uns trinta e tantos anos. sentou-se a seu escritório e disse: —No que posso ajudar ao filho do senador Dewar? —Eu gostaria de lhe ensinar umas fotografias, se me permitir isso. —De acordo. Woody estendeu suas fotos instantâneas sobre a mesa. —Isto é Pearl Harbor? —perguntou Shapiro. —Sim. Em 7 de dezembro de 1941. —meu deus. Woody as estava olhando do reverso, mas mesmo assim lhe saltavam as lágrimas. Nelas se via o Joanne, muito bonito; e ao Chuck, sonriendo com alegria porque estava com sua família e com o Eddie. Depois, os aviões que se aproximavam, as bombas e os torpedos caindo de seus ventres metálicos, a fumaça negra das explosões sobre os navios, e os marinhos correndo como podiam para os flancos, lançando-se ao mar, nadando para tentar salvar-se. —Este é seu pai —disse Shapiro—. E essa, sua mãe. Reconheço-os. —E minha prometida, que morreu uns minutos depois. Meu irmão, ao que mataram no Bougainville. E seu melhor amigo. —São umas fotografias estupendas! Quanto quer por elas? —Não quero dinheiro —respondeu Woody. Shapiro levantou o olhar, surpreso. —Quero um trabalho. III Quinze dias depois do Dia da Vitória na Europa, Winston Churchill convocou eleições gerais. À família Leckwith pilhou por surpresa. Igual a quase todo mundo, Ethel e Bernie pensavam que Churchill esperaria até a rendição dos japoneses. O líder trabalhista, Clement Attlee, tinha proposto umas eleições para outubro. Churchill os tinha pego despreparados a todos. O comandante Lloyd Williams foi licenciado do exército para que pudesse apresentar-se como candidato da Partida Trabalhista pelo Hoxton, no East End de Londres. sentia-se imbuído de um entusiasmo apaixonado pelo futuro que propunha sua partida. O fascismo tinha sido derrotado e o povo britânico poderia criar uma sociedade que unisse liberdade e prestações sociais. Os trabalhistas tinham um plano que gozava de uma enorme aceitação para evitar as catástrofes dos últimos vinte anos: um seguro de desemprego universal e completo para ajudar às famílias a capear os maus tempos, planejamento econômico para acautelar outra depressão e uma Organização das Nações Unidas que ajudasse a manter a paz. —Não têm a menor possibilidade —comentou seu padrasto, Bernie, na cozinha da casa do Aldgate na segunda-feira 4 de junho. O pessimismo do Bernie era tão mais convincente por ser muito pouco próprio dele—. A gente votará aos toureie porque Churchill ganhou a guerra —seguiu tagarelando com ânimo agoureiro—. Passou o mesmo com o Lloyd George em 1918. Lloyd ia rebater seu argumento, mas Daisy lhe adiantou. —A guerra não a ganharam o livre mercado nem a empresa capitalista —espetou, indignada—. foi a gente, que colaborou e se repartiu as cargas, tudo o mundo pôs que sua parte. Isso é socialismo! Lloyd a queria mais ainda quando se deixava levar pela paixão, mas ele era mais reflexivo. —Já temos medidas que os antigos toureie teriam pontuado de bolchevismo: controle governamental da ferrovia, as minas e o transporte marítimo, por exemplo, todas elas implantadas pelo Churchill. E Ernie Bevin esteve ao cargo do planejamento econômico durante toda a guerra. Bernie sacudiu a cabeça como com conhecimento de causa: um gesto de ancião que tirava o Lloyd de suas casinhas. —A gente vota com o coração, não com o cérebro —insistiu seu padrasto—. Quererão mostrar gratidão. —Bom, de nada serve estar aqui sentado discutindo contigo —repôs Lloyd—, assim melhor vou fora, a discutir com os votantes. Daisy e ele agarraram um ônibus em direção norte e baixaram várias paradas mais à frente, frente ao pub Black Lion, no Shoreditch, onde se encontraram com um grupo de campanha da Partida Trabalhista da circunscrição do Hoxton. Em realidade, fazer campanha não tinha nada que ver discutindo com os votantes e Lloyd sabia. Seu principal objetivo era o de identificar a partidários, de modo que o dia das eleições a maquinaria da partida pudesse assegurar-se de que todos fossem ao centro eleitoral. Os firmes partidários dos trabalhistas ficavam cotados; os firmes partidários de outras formações se tachavam. Solo a gente que ainda não se tinha decidido merecia mais de uns segundos de atenção: a eles lhes oferecia a possibilidade de falar com o candidato. Lloyd recebeu algumas reaja negativas. —De maneira que é você comandante, né? —disse uma mulher—. Meu Alf é cabo e diz que os oficiais quase nos fazem perder a guerra. Também houve acusações de nepotismo. —Não é você o filho da parlamentaria pelo Aldgate? Isto o que é, uma monarquia hereditária? Lloyd recordou o conselho de sua mãe: Nunca ganha um voto deixando em evidencia ao eleitor. Utiliza seu encanto, sei modesto e não perca os nervos. Se um votante fica agressivo e mal educado, lhe dê as obrigado por seu tempo e marcha lhe. Deixará-o pensando que ao melhor julgou mau. Os votantes da classe trabalhadora eram mayoritariamente trabalhistas. Muita gente comentava ao Lloyd que Attlee e Bevin faziam um bom trabalho durante a luta. Os indecisos eram sobre tudo de classe média. Quando a gente dizia que Churchill tinha ganho a guerra, Lloyd citava o elegante desprezo que o tinha dedicado Attlee: Não foi um governo de um só homem, como não foi uma guerra de um só homem. Churchill havia descrito ao Attlee como um personagem modesto com motivos sobrados para sentir modéstia. O engenho do Attlee era menos cruel, e precisamente por isso resultava mais efetivo; ao menos isso era o que pensava Lloyd. Um par de eleitores mencionaram ao parlamentario que ocupava o banco do Hoxton, uma liberal, e disseram que o votariam porque os tinha ajudado a resolver um problema. Estava acostumado a acontecer que a gente fosse aos membros do Parlamento quando sentiam que o governo, seu chefe ou um vizinho os tratava de forma injusta. Era um trabalho que tirava muito tempo mas que fazia ganhar votos. Em geral, Lloyd não podia fazer uma idéia de onde se decantava a opinião pública. Só um votante mencionou ao Daisy, um homem que se aproximou da porta com a boca cheia de comida. —Boa tarde, senhor Perkinson, parece-me que queria você me perguntar algo. —Sim, seu prometida era fascista —disse o homem sem deixar de mastigar. Lloyd supôs que o tinha lido no Daily Mail, que tinha publicado um malicioso artigo sobre eles dois titulado O socialista e a viscondessa. Assentiu com a cabeça. —O fascismo a enrolou brevemente, como a muitos outros. —Como pode casar um socialista com uma fascista? Lloyd olhou em redor, encontrou ao Daisy e lhe fez um sinal. —O senhor Perkinson me pergunta por minha prometida, diz que era fascista. —Encantada de conhecê-lo, senhor Perkinson. —Daisy lhe estreitou a mão ao homem—. Entendo perfeitamente sua preocupação. Meu primeiro marido foi fascista nos anos trinta, e eu o apoiei. Perkinson assentiu com aprovação. Certamente acreditava que uma mulher devia adotar as mesmas opiniões que seu marido. —Que ingênuos fomos… —seguiu relatando Daisy—. Mas quando chegou a guerra, meu primeiro marido se alistou na RAF e lutou contra os nazistas com tanto coragem como que mais. —É isso certo? —O ano passado, sobrevoava a França pilotando um Typhoon para bombardear um trem alemão de transporte de tropas, quando o abateram e morreu. Assim sou viúva de guerra. Perkinson tragou a comida que tinha na boca. —Sinto-o muito, faltaria mais. Mas Daisy não tinha terminado: —Quanto a mim, vivi em Londres toda a guerra e conduzi uma ambulância durante o Blitz. —Foi você muito valente, não há dúvida. —Bom, solo espero que pense que tanto meu defunto marido como eu já pagamos nossos enganos. —Disso não estou tão seguro —disse Perkinson, mal-humorado. —Não lhe roubaremos mais tempo —resolveu Lloyd—. Obrigado por me expor suas opiniões. Boa tarde. —Não acredito que o tenhamos convencido —disse Daisy enquanto partiam. —Nunca lhes convence —repôs ele—, mas agora viu as duas caras da história, e pode que isso o faça ser menos veemente esta noite, quando falar de nós no pub. —Hummm… Lloyd se deu conta de que não a tinha tranqüilizado muito. Com a campanha já quase terminada, essa noite a BBC retransmitiria o primeiro programa especial das eleições, e todos os que trabalhavam para algum partido o estariam escutando. Churchill teve o privilégio de ser o primeiro em falar. —Estou preocupada —disse Daisy enquanto voltavam para casa em ônibus—. Para ti sou uma carga nestas eleições. —Nenhum candidato é perfeito —repôs Lloyd—. O que importa é como administra cada qual seus pontos fracos. —Mas eu não quero ser seu ponto fraco. Talvez deveria me fazer a um lado. —Ao contrário, quero que a gente saiba tudo sobre ti desde o começo. Se for um obstáculo tão importante, deixarei a política. —Não, não! Não suportaria pensar que te obriguei a abandonar suas ambições. —Não fará falta —disse ele, mas de novo viu que não tinha conseguido acalmar a inquietação do Daisy. Já no Nutley Street, toda a família Leckwith estava sentada na cozinha, ao redor da rádio, e Daisy estreitou a mão do Lloyd. —Vinha aqui muitas vezes quando você não estava —disse—. Estávamos acostumados a escutar balanço e falar de ti. Essa idéia fez que Lloyd se sentisse muito afortunado. Churchill estava no ar. Seu conhecido tom áspero ressonava já. Durante cinco desgraçados anos, essa voz tinha inspirado força, esperança e valor às pessoas. Lloyd fraquejou: inclusive ele se sentia tentado de votá-lo. meus amigos —disse o primeiro-ministro—, devo lhes dizer que as políticas socialistas abominam das idéias de liberdade dos britânicos. Bom, era o bate-papo difamatório de sempre. Todas as idéias novas eram pontuadas de importações estrangeiras. Mas o que lhe ofereceria Churchill a seu povo? Os trabalhistas tinham um plano, mas o que propunham os conservadores? O socialismo é indisociable do totalitarismo, disse o primeiro-ministro. —Não irá insinuar que somos quão mesmo os nazistas? —comentou Ethel. —Pois me parece que sim —respondeu Bernie—. Dirá que derrotamos ao inimigo no estrangeiro, e que agora devemos derrotar ao inimigo que está entre nós. Uma tática conservadora habitual. —A gente não acreditará —objetou Ethel. —Chis! —interveio Lloyd. Churchill seguia com seu discurso. Um Estado socialista, uma vez completamente instaurado em todos seus detalhes e todos seus aspectos, não poderia permitir-se tolerar uma oposição. —Isto é uma vergonha —disse Ethel. Mas irei ainda mais longe —prosseguiu Churchill—. Ante vocês declaro, do mais fundo de minha alma, que nenhum sistema socialista pode estabelecer-se sem um policial política. —Um policial política? —repetiu Ethel com indignação—. De onde tirou essa bobagem? —Em certo sentido nos vem bem —disse Bernie—. Não encontra nada que criticar de nosso programa, ou seja que nos ataca por coisas que em realidade não propomos que fiquem em marcha. Maldito embusteiro. —Escutem! —gritou Lloyd. Teriam que recorrer a alguma forma do Gestapo. Todos ficaram em pé de repente, protestando a gritos. A voz do primeiro-ministro ficou silenciada. —Malnacido! —gritou Bernie, agitando um punho para a rádio do Marconi—. Malnacido, será malnacido! —Consistirá nisso sua campanha? —perguntou Ethel quando se acalmaram um pouco—. Nada mais que mentiras sobre nós? —Está claro que sim, complicações —disse Bernie. —Mas as acreditará a gente? —acrescentou Lloyd. IV No sul de novo o México, não muito longe Do Passo, há um deserto ao que chamam a Jornada do Morto. Durante todo o dia, o sol abrasa sem piedade o espinhoso cacto da mescalina e as folhas de espada da yuca. Seus habitantes são escorpiões, serpentes de cascavel, urticantes formigas vermelhas e tarântulas. Ali, os homens do projeto Manhattan provaram a arma mais mortífera que a espécie humana tinha concebido jamais. Greg Peshkov estava com os cientistas, contemplando o experimento a nove mil metros de distância. Tinha duas esperanças: primeiro, que a bomba funcionasse; e segundo, que esses nove mil metros o afastassem o suficiente dela. A conta atrás deu começo às cinco e nove minutos da madrugada (segundo a hora de guerra, zona das Rochosas) da segunda-feira 16 de julho. Estava amanhecendo e no céu, ao este, viam-se nervuras douradas. A prova recebia o nome em chave do Trinity, trindade. Quando Greg perguntou por que, o cientista ao mando, o judeu nova-iorquino e de orelhas bicudas J. Robert Oppenheimer, citou-lhe um verso do John Donne: Golpeia meu coração, Deus das três pessoas. Oppie era a pessoa mais inteligente que Greg tinha conhecido nunca. Era o físico mais brilhante de sua geração e além disso falava seis idiomas. Tinha lido O Capital do Karl Marx em seu original alemão. Estava aprendendo sânscrito por diversão. Ao Greg agradava, admirava-o. A maioria dos físicos eram uns pazguatos, mas Oppie, igual ao próprio Greg, era uma exceção: alto, arrumado, encantador, um autêntico rompecorazones. Oppie tinha ordenado ao Corpo de Engenheiros do Exército que construíra em pleno deserto uma torre de trinta metros com escoras de aço sobre uma base de cimento. No alto havia uma plataforma de carvalho, e até ela tinham subido a bomba na sábado anterior com a ajuda de polias. Os cientistas nunca usavam o término bomba. A chamavam o artefato. Em seu núcleo havia uma bola de plutônio, um metal que não existia na natureza, mas sim se criava como subproduto nas pilhas atômicas. A bola pesava quatro quilogramas e médio e continha todo o plutônio do mundo. Alguém tinha calculado que valia mil e milhões de dólares. Os 32 detonadores que havia na superfície da bola se disparariam simultaneamente e criariam uma pressão interior tão alta que o plutônio se voltaria ainda mais denso e alcançaria níveis críticos. Ninguém sabia muito bem o que aconteceria depois. Os cientistas tinham feito aposta, da um dólar cada um, sobre a força que alcançaria a explosão medida em toneladas equivalentes do TNT. Edward Teller tinha apostado por 45.000 toneladas. Oppie, por 300. O prognóstico oficial falava de 20.000 toneladas. A noite anterior, Enrico Fermi tinha proposto apostar, além disso, se por acaso a explosão arrasaria a totalidade do estado de novo o México ou não. Ao general Groves não lhe tinha feito nenhuma graça. Os cientistas tinham mantido uma discussão perfeitamente séria sobre se a explosão inflamaria toda a atmosfera terrestre e destruiria o planeta, mas haviam chegado à conclusão de que não. Se se equivocavam, quão único esperava Greg é que ocorresse depressa. O experimento se programou em um princípio para em 4 de julho. Entretanto, cada vez que provavam um componente, falhava; assim que o grande dia se havia posposto várias vezes. De volta em Los Álamos, na sábado, uma maquete a que chamavam a Cópia a China, negou-se a fazer explosão. No porrete, Norman Ramsey tinha apostado pelo zero e tinha posto seu dinheiro a que a bomba seria um fracasso total. A detonação desse dia estava programada para as duas da madrugada, mas a essa hora se produziu uma tormenta elétrica… no deserto! A chuva haveria feito que a radiatividade se precipitasse sobre as cabeças dos cientistas que estariam observando, assim tinham atrasado a prova. A tormenta tinha amainado à alvorada. Greg se encontrava no búnker S-10000, que albergava a sala de controle, mas tinha saído fora para ver melhor, igual a quase todos outros. A esperança e o medo competiam por dominar seu coração. Se a bomba era um fracasso, o empenho e o esforço de centenas de pessoas (além de uns dois mil e milhões de dólares) teriam cansado em saco quebrado. E se não o era, pode que acabassem todos mortos ao cabo de uns minutos. junto a ele estava Wilhelm Frunze, um jovem científico alemão ao que já tinha conhecido em Chicago. —O que teria passado, Will, se um raio tivesse alcançado a bomba? Frunze se encolheu de ombros. —Ninguém sabe. Um rojão de luzes verde saiu disparada para o céu e Greg se sobressaltou. —O aviso dos cinco minutos —informou Frunze. A segurança tinha sido um problema. Santa Fé, a cidade mais próxima aos Álamos, estava lotada de agentes do FBI bem vestidos. Apoiados com atitude despreocupada contra as paredes, com suas jaquetas de tweed e suas gravatas, saltavam à vista a todos os habitantes da cidade, que sempre levavam jeans azuis e botas de cowboy. O FBI também tinha cravado de maneira ilegal os telefones de centenas de pessoas envoltas no projeto Manhattan. Isso tinha ao Greg perplexo. Como podia o principal organismo de salvaguarda da lei de todo o país cometer atos delitivos de uma forma tão sistemática? Entretanto, o departamento de segurança do exército e o FBI tinham identificado a alguns espiões e os tinham afastado discretamente do projeto, entre eles ao Barney McHugh. Mas os teriam descoberto a todos? Greg não sabia. Groves se tinha visto obrigado a assumir o risco. Se tivesse se despedido de tudo o que assinalou o FBI, não lhe teriam ficado cientistas suficientes para acabar de fabricar a bomba. Por desgraça, a maioria dos homens de ciência eram radicais, socialistas e liberais. Logo que havia nenhum conservador entre eles. Além disso, acreditavam que as verdades descobertas pela ciência pertenciam à humanidade inteira, e que não deveriam manter-se em segredo e ao serviço de um só regime ou país. Assim, enquanto o governo dos Estados Unidos mantinha absolutamente secreto aquele gigantesco projeto, os cientistas organizavam grupos de discussão sobre se a tecnologia nuclear devia compartilhar-se com todas as nações do mundo. O próprio Oppie era suspeito: a única razão pela que não estava afiliado ao Partido Comunista era que nunca se fazia membro de nenhum clube. Nesse preciso instante estava convexo no chão junto a seu irmão pequeno, Frank, também um físico excepcional e também comunista. Ambos sustentavam uma parte de cristal de solda através do qual poderiam ver a explosão. Greg e Frunze tinham cristais parecidos. Alguns cientistas se puseram óculos de sol. Dispararam outro rojão de luzes. —Um minuto —disse Frunze. Greg ouviu que Oppie dizia: —Senhor, estas coisas pesam no coração. perguntou-se se seriam suas últimas palavras. Greg e Frunze estavam tombados no chão arenoso, perto do Oppie e do Frank. Todos eles se protegeram os olhos com os visores de cristal de solda e estavam olhando para a zona de provas. Ao ver-se frente à morte, Greg pensou em sua mãe, em seu pai e em sua irmã Daisy, que estava em Londres. perguntou-se quanto o sentiriam falta de. Pensou com certa tristeza na Margaret Cowdry, que o tinha deixado plantado por outro tipo que sim estava disposto a casar-se com ela. Mas sobre tudo pensou no Jacky Jakes e no Georgy, que já tinha nove anos. Ao Greg apaixonava a idéia de ver crescer a seu filho. deu-se conta de que Georgy era a razão principal pela que desejava seguir vivo. Esse menino lhe tinha ido colocando até a alma e lhe tinha roubado todo seu amor. A intensidade do sentimento o tinha assombrado. Então se ouviu ressonar um gongo, um som extrañamente impróprio no deserto. —Dez segundos. Greg sentiu o impulso de levantar-se e pôr-se a correr. Por muito parva que fora aquela ação (quanto seria capaz de afastar-se em dez segundos?) teve que obrigar-se a seguir convexo. A bomba estalou às cinco e vinte e nove minutos com quarenta e cinco segundos. Primeiro se viu uma imponente chama de um brilho impossível, o resplendor mais feroz que Greg tinha visto nunca, mais forte inclusive que o sol. Depois, uma incrível cúpula de fogo pareceu sair da terra mesma. Com uma velocidade aterradora se elevou até uma altura monstruosa. Chegou ao mesmo nível que as montanhas, continuou subindo e rapidamente deixou os picos atrás. —Joder… —sussurrou Greg. A cúpula se transformou em um quadrado. A luz seguia sendo mais resplandecente que a do meio-dia, e as montanhas longínquas estavam iluminadas com tal viveza que Greg via nelas tudas e cada um de suas dobras, gretas e rochas. Então a forma voltou a trocar. Pela parte inferior apareceu um pilar que impulsionou a deflagração vários quilômetros em direção ao céu, como o punho de Deus. A nuvem de fogo ardente que havia sobre o pilar se abriu como um guarda-chuva, até que toda ela tomou a forma de um cogumelo de onze quilômetros de altura. A nuvem adotou umas espantosas tonalidades alaranjadas, verdes e violáceas. Uma quebra de onda de calor alcançou ao Greg, como se o Todo-poderoso tivesse aberto um forno gigantesco. Nesse mesmo instante, o estrondo da explosão chegou a seus ouvidos como o estalo do julgamento final. Entretanto, aquilo não era mais que o princípio. Um ruído de um volume sobrenatural percorreu todo o deserto e se tragou todos outros sons. A nuvem abrasadora começou a diminuir, mas o trovão seguia rugindo, alargando-se de maneira impossível, até que Greg se perguntou se aquele seria o som do fim do mundo. Então começou a remeter e a nuvem cogumelo começou a dispersar-se. Greg ouviu o Frank Oppenheimer dizer: —funcionou. —Sim, funcionou —repôs Oppie. Os dois irmãos se deram a mão. E o mundo segue aqui, pensou Greg. Mas tinha trocado para sempre. V Lloyd Williams e Daisy se dirigiram à prefeitura do Hoxton a manhã de 26 de julho para assistir à recontagem de votos. Se Lloyd perdia, Daisy ia romper seu compromisso. Ele não fazia mais que lhe insistir em que não era uma carga política para ele, mas ela sabia que era certo. Os adversários do Lloyd se preocuparam de chamá-la sempre lady Aberowen. Os votantes reagiam com indignação ante seu acento norte-americano, como se não tivesse direito a participar da vida política britânica. Inclusive havia membros da Partida Trabalhista que a tratavam de forma diferente e lhe perguntavam se não preferiria café quando todos eles faziam um descanso para tomar um chá. Tal como Lloyd tinha prognosticado, ela estava acostumada ser capaz de superar a hostilidade inicial da gente mostrando-se natural e encantadora, e ajudando às demais mulheres a lavar as taças do chá. Entretanto, bastaria com isso? Os resultados das eleições lhe dariam a única resposta definitiva. Daisy não se casaria com ele se isso o obrigava a deixar o trabalho de sua vida. Lhe dizia que estava disposto a fazê-lo, mas não era uma boa base para o matrimônio. Daisy se estremecia de horror ao imaginá-lo em qualquer outro emprego, trabalhando em um banco, ou no funcionariado, terrivelmente desgraçado e tentando fingir que ela não tinha tido a culpa. Não suportava pensá-lo. Por desgraça, todo mundo acreditava que os conservadores ganhariam as eleições. Aos trabalhistas tinham saído algumas costure bem na campanha. O discurso do Churchill sobre a Gestapo tinha resultado um fracasso. Inclusive os conservadores tinham ficado consternados. Clement Attlee, que tinha falado na rádio pelos trabalhistas ao dia seguinte, mostrou-se fríamente irônico. —Para ouvir o discurso de ontem à noite do primeiro-ministro, no qual ofereceu uma paródia tão exagerada das políticas da Partida Trabalhista, em seguida me dava conta de qual era seu objetivo. Queria que os votantes compreendessem a enorme diferencia que existe entre o Winston Churchill, o grande líder de uma nação unida na guerra, e o senhor Churchill, líder da partida dos conservadores. Seu temor era que quem tinha aceito sua liderança na guerra pudessem ver-se tentados, por mera gratidão, a segui-lo mais à frente. Agradeço-lhe que os tenha desiludido tão a consciência. O magistral desdém do Attlee tinha convertido ao Churchill em um agitador. A gente já estava farta de paixões entusiasmadas, pensou Daisy; em tempos de paz sem dúvida prefeririam um moderado sentido comum. Um sondagem Gallup efetuado no dia anterior à votação mostrava que os trabalhistas se imporiam, mas ninguém acreditava. George Gallup, norte-americano, tinha realizado uma predição inexata nas últimas eleições presidenciais. A idéia de que pudesse antecipar o resultado perguntando a um pequeno número de eleitores parecia algo improvável. O News Chronicle, que tinha publicado o sondagem, falava de um empate. Todos outros periódicos diziam que ganhariam os conservadores. Daisy nunca se interessou muito pelos mecanismos da democracia, mas esta vez seu destino dependia disso e, fascinada, contemplava como tiravam as papeletas das urnas, classificavam-nas, contavam-nas, empilhavam-nas e as voltavam a contar. O homem que estava ao mando recebia o nome de escrutinador, como se seu atento olhar não perdesse de vista os votos nem um instante. Em realidade era o secretário da prefeitura. Observadores de tudas as partidas fiscalizavam o procedimento para assegurar-se de que não se produzia nenhum descuido nem nenhuma fraude. O processo era comprido e aquela incerteza torturava ao Daisy. Às dez e meia souberam os primeiros resultados de outra circunscrição. Harold Macmillan, protegido do Churchill e ministro de seu gabinete durante a guerra, tinha perdido Stockton-on-Lhes à mãos dos trabalhistas. Quinze minutos depois chegou a notícia de um grande giro para o laborismo em Birmingham. Na sala não estavam permitidas as rádios, assim Daisy e Lloyd dependiam dos rumores que se filtravam do exterior, e ela não estava segura do que acreditar. Era já meio-dia quando o escrutinador chamou os candidatos e a seus delegados a uma esquina da sala para lhes transmitir o resultado antes de fazer o anúncio público. Daisy quis acompanhar ao Lloyd, mas não o permitiram. O homem falou em voz baixa com todos eles. além do Lloyd e o parlamentario que ocupava o banco até esse momento, também havia um conservador e um comunista. Daisy examinava suas expressões com atenção, mas não podia adivinhar quem tinha ganho. Todos eles subiram ao estrado e na sala se fez o silêncio. Daisy sentiu náuseas. —Eu, Michael Charles Davies, escrutinador oficialmente designado para a circunscrição parlamentaria do Hoxton… Daisy estava junto aos observadores da Partida Trabalhista, olhando fixamente ao Lloyd. Estaria a ponto de perdê-lo? A só idéia lhe oprimia o coração e a afogava de medo. Ao longo de sua vida, duas vezes tinha escolhido a um homem que tinha resultado ser um desastroso equívoco. Charlie Farquharson tinha sido todo o contrário a seu pai, agradável mas débil. Boy Fitzherbert tinha sido igual a Lev, obstinado e egoísta. E por fim tinha encontrado ao Lloyd, que era forte e amável de uma vez. Não o tinha eleito por sua categoria social nem pelo que poderia lhe reportar a ela, a não ser unicamente por ser um homem de uma bondade extraordinária. Era carinhoso, era preparado, era leal, e a adorava. Daisy tinha demorado muito em dar-se conta de que ele era o que procurava. Que parva tinha sido. O escrutinador leu em voz alta a quantidade de votos recebidos por cada candidato. Seguia uma ordem alfabética, assim Williams seria o último. Daisy estava tão nervosa que não era capaz de reter as quantidades. —Reginald Sidney Blenkinsop, 5.427… Quando anunciou os votos do Lloyd, os observadores da Partida Trabalhista que estavam junto a ela estalaram em gritos de júbilo. Daisy demorou um momento em compreender que aquilo significava que tinham ganho. Então viu como a solene expressão do Lloyd se convertia em um amplo sorriso. Daisy ficou a aplaudir e a gritar mais forte que ninguém. Lloyd tinha ganho! E ela não teria que deixá-lo! Sentia que acabavam de lhe salvar a vida. —portanto, declaro que Lloyd Williams é o parlamentario legitimamente eleito pelo Hoxton. Lloyd era parlamentario. Daisy, cheia de orgulho, viu como se adiantava um passo e dava o discurso de aceitação. Compreendeu que existia uma fórmula para essa classe de discursos breves e que tinha que dar as obrigado pesadamente ao escrutinador e a seu pessoal, e também a seus oponentes, por sua justa competição. Daisy estava impaciente por abraçá-lo. Lloyd terminou com umas quantas frases a respeito do trabalho que tinha por diante, reconstruir uma Grã-Bretanha devastada pela guerra e criar uma sociedade mais justa. Desceu do estrado enquanto ainda seguiam aplaudindo-o. Na sala, foi direto para o Daisy, abraçou-a e a beijou. —Bem feito, carinho —disse ela, e depois já não foi capaz de dizer nada mais. Ao cabo de um momento saíram e se aproximaram em ônibus até a sede da Partida Trabalhista, no Transport House. Ali se inteiraram de que os trabalhistas tinham conseguido 106 bancos no momento. Era uma vitória arrolladora. Todos os peritos se equivocaram, as expectativas de todo o mundo tinham ficado desbaratadas. Quando terminou a recontagem, os trabalhistas tinham obtido 393 bancos e os conservadores, 210. As liberais ganharam doze e os comunistas, um: Stepney. O laborismo contava com uma maioria lhe esmaguem. Às sete em ponto da tarde, Winston Churchill, o grande líder britânico da guerra, foi ao palácio do Buckingham e demitiu como primeiro-ministro. Daisy recordou uma das brincadeiras do Churchill sobre o Attlee: Um carro vazio se detém e dele baixa Clem. O homem ao que considerava pouco menos que inexistente tinha-lhe dado uma surra. Às sete e meia, Clement Attlee chegou ao palácio em seu próprio carro, conduzido por sua esposa, Violet, e o rei Jorge VI lhe pediu que assumisse o cargo de primeiro ministro. Na casa do Nutley Street, depois de ter escutado todos juntos as notícias da rádio, Lloyd se voltou para o Daisy e disse: —Bom, pois já está. Podemos nos casar agora? —Sim —respondeu ela—. Assim que você queira. VI A recepção das bodas da Volodia e Zoya se celebrou em uma das salas de banquetes mais pequenas do Kremlin. A guerra com a Alemanha tinha terminado, mas a União Soviética seguia maltratada e empobrecida, e uma celebração por todo o alto não teria sido vista com bons olhos. Zoya tinha um vestido novo, mas Volodia levava sua uniforme. Entretanto, sim que houve muchísima comida, e o vodca correu a torrentes. Os sobrinhos da Volodia estavam ali, os gêmeos de sua irmã, Ania, e o desagradável marido desta, Ilia Dvorkin. Ainda não tinham seis anos. Dimka, o pequeno de cabelo escuro, estava sentado lendo um livro tranqüilamente, enquanto que Tania, com seus olhos azuis, não deixava de brincar de correr pela sala, chocando-se com os móveis e incomodando aos convidados; justo o contrário do que se esperava quanto a conduta de meninos e meninas. Zoya estava tão atrativa vestida de rosa que a Volodia teria gostado de partir naquele mesmo instante e levar-lhe à cama. Isso não podia fazê-lo, desde logo. O círculo de amigos de seu pai incluía a alguns dos generais e políticos mais influentes do país, e muitos deles tinham ido a brindar por o feliz casal. Grigori tinha insinuado que um convidado extremamente distinto podia estar a ponto de chegar: Volodia esperava que não fora o depravado chefe do NKVD, Beria. A felicidade da Volodia não acabava de apagar de sua lembrança os horrores que tinha visto nem o profundo receio que começava a lhe inspirar o comunismo soviético. A inenarrável brutalidade da polícia secreta, os garrafales enganos do Stalin, que se tinham cobrado milhões de vidas, e a propaganda que tinha animado ao Exército Vermelho a comportar-se como umas bestas enlouquecidas na Alemanha… todo isso lhe tinha feito duvidar dos princípios mais fundamentais que lhe tinham inculcado em sua educação. perguntou-se com inquietação em que classe de país cresceriam Dimka e Tania, mas esse não era um dia para pensar nessas coisas. A élite soviética estava de bom humor. Tinham ganho a guerra e tinham derrotado a Alemanha. Japão, seu antigo inimigo, estava sendo esmagado pelos Estados Unidos. O desatinado código de honra dos dirigentes japoneses dificultava que pudessem render-se, mas já solo era questão de tempo. O trágico era que, enquanto eles seguissem aferrando-se a seu orgulho, mais soldados japoneses e americanos morreriam, e mais mulheres e meninos japoneses ficariam sem lar por causa das bombas; mas o resultado final seria o mesmo. Tristemente, parecia que os norte-americanos não podiam fazer nada por acelerar o desenlace e evitar mortes desnecessárias. O pai da Volodia, bêbado e feliz, deu um discurso. —O Exército Vermelho ocupou a Polônia —anunciou—. Nunca mais será utilizado esse país como trampolim para que a Alemanha invada a Rússia. Os velhos camaradas proferiram gritos de júbilo e golpearam as mesas. —Na Europa ocidental, os partidos comunistas se vêem referendados por quantidades enormes de pessoas, como nunca antes. Nas eleições municipais de Paris, em mês passado de março, a Partida Comunista se elevou com a maior parte dos votos. Felicito aos camaradas franceses. De novo houve exclamações de alegria. —Ao passear hoje a vista pelo mundo inteiro, vejo que a Revolução russa, em que tantos valentes lutaram e morreram interrompeu quando umas lágrimas etílicas apareceram em seus olhos. Um sussurro percorreu a sala pedindo silêncio. Grigori se recuperou—. Vejo que a revolução nunca esteve tão segura como o está hoje! Todos elevaram as taças. —Pela revolução! Pela revolução! —E beberam. Comporta-as se abriram de repente e por elas entrou o camarada Stalin. Todo mundo ficou em pé. Tinha o cabelo cinza e parecia cansado. Já tinha uns sessenta e cinco anos e tinha estado doente: corriam rumores de que tinha padecido uma série de derrames cerebrais ou pequenos ataque cardíaco. Esse dia, entretanto, seu ânimo era exultante. —vim a beijar à noiva! —disse. aproximou-se da Zoya e lhe pôs as mãos nos ombros. Ela era quase dez centímetros mais alta que o líder, mas conseguiu agachar-se discretamente. Stalin lhe deu um beijo em cada bochecha e deixou que sua boca, coroada por um bigode cinza, atrasasse-se o suficiente para incomodar a Volodia. Depois deu um passo atrás e perguntou: —Quem me dá um gole? Muita gente se apressou para lhe buscar um copo de vodca. Grigori insistiu em ceder sua cadeira no centro da mesa presidencial ao Stalin. O murmúrio das conversações voltou a ouvir-se, mas algo mais apagado: estavam encantados do ter ali, mas de repente deviam mostrar-se cautelosos com cada palavra e cada movimento. Aquele homem podia ordenar a morte de uma pessoa com solo estalar os dedos, e o tinha feito freqüentemente. Tiraram mais vodca, a orquestra começou a tocar danças populares russas e, pouco a pouco, todos se foram relaxando. Volodia, Zoya, Grigori e Katerina dançaram uma dança da quatro chamada kadril, que era de índole cômica e sempre fazia rir às pessoas. Depois, mais casais se animaram a dançar e os homens ficaram a fazer o barinia: se acuclillaban e logo soltavam altas patadas, com o que muitos deles caíam ao chão. Volodia não fazia mais que olhar ao Stalin de reojo, igual a todos os da sala. Parecia que o grande homem se estava divertindo, pois golpeava com o copo na mesa ao ritmo das balalaikas. Zoya e Katerina estavam dançando uma troika com o chefe desta, Vasili, um físico eminente que trabalhava no projeto da bomba, e Volodia tinha ido sentar se quando o ambiente trocou de repente. Um assessor vestido de civil entrou correndo e, bordeando a sala, foi direto a procurar o Stalin. Sem nenhuma cerimônia, inclinou-se sobre o ombro do líder e o falou sem elevar a voz mas com obrigação. Primeiro Stalin pareceu desconcertado e fez uma pergunta brusca, logo outra. Sua expressão se transformou então. ficou pálido, parecia olhar fixamente aos bailarinos sem vê-los. —Que narizes ocorreu? —disse Volodia a meia voz. Os que dançavam ainda não se deram conta, mas os que estavam sentados à cabeceira da mesa pareciam assustados. Um momento depois Stalin ficou em pé. A seu redor todos fizeram o próprio, por deferência. Volodia viu que seu pai seguia dançando. A alguns os haviam fuzilado por menos. Mas Stalin não tinha olhos para os convidados. Abandonou a mesa com o assessor a seu lado e caminhou para a porta cruzando a pista de baile, onde os que ainda celebravam separaram-se de no meio precipitadamente. Um casal caiu ao chão. Stalin não pareceu dar-se conta. A orquestra deixou de tocar. Sem dizer nada, sem olhar a ninguém, o líder abandonou a sala. Alguns generais o seguiram com cara de assustados. Então chegou outro assessor, logo dois mais. Todos eles procuravam a seus chefes e falavam com eles. Um jovem com uma jaqueta de tweed se aproximou do Vasili. Pelo visto, Zoya o conhecia e escutou com atenção. Também ela parecia conmocionada. Vasili e o assessor partiram. Volodia se aproximou da Zoya. —Pelo amor de Deus, o que é o que ocorre? —Os norte-americanos lançaram uma bomba nuclear no Japão. —Tremia-lhe a voz. Seu formoso rosto de tez pálida parecia mais branco que nunca—. Ao princípio o governo japonês não sabia do que se tratava. demoraram horas em dar-se conta. —Estamos seguros? —arrasou treze quilômetros quadrados de edificações. Estimam que setenta e cinco mil pessoas morreram imediatamente. —Quantas bombas? —Uma. —Uma? —Sim. —meu deus. Não sente saudades que Stalin se ficou branco. Os dois guardaram silêncio. A notícia se estava estendendo visivelmente por toda a sala. Havia quem ficava sentado, paralisado; outros se levantavam e se foram, diretos a seus telefones, seus escritórios e seu pessoal. —Isto o troca tudo —disse Volodia. —Inclusive nossos planos para a lua de mel —acrescentou Zoya—. Seguro que me cancelam a permissão. —Pensávamos que a União Soviética estava a salvo. —Seu pai acaba de dizer em seu discurso que a revolução nunca tinha estado tão segura. —Já nada é seguro. —Não —disse Zoya—. Não, até que tenhamos nossa própria bomba. VII Jacky Jakes e Georgy estavam no Buffalo e pela primeira vez se hospedavam no apartamento da Marga. Greg e Lev também estavam ali, e o Dia da Vitória sobre Japão —na quarta-feira 15 de agosto— todos eles saíram ao Humboldt Park. Os atalhos do parque estavam repletos de casais pletóricas e havia centenas de meninos chapinhando no lago. Greg estava feliz e orgulhoso. A bomba tinha funcionado. Os dois artefatos que se lançaram na Hiroshima e Nagasaki tinham semeado uma devastação arrepiante, mas tinham posto um veloz final à guerra e tinham salvado milhares de vidas americanas. Greg tinha formado parte disso. Graças a tudo o que tinham feito, Georgy cresceria em um mundo livre. —Já tem nove anos —disse Greg ao Jacky. Estavam sentados em um banco, falando, enquanto Lev e Marga se levavam a menino a comprar gelado. —Quase não posso acreditá-lo. —Pergunto-me o que será de maior. —Não vai ser nada estúpido, como ator ou um maldito trompetista —disse Jacky com brutalidade—. É muito inteligente. —Você gostaria que fosse catedrático, como seu pai? —Sim. —Em tal caso… —Greg tinha estado preparando o terreno para isso, e lhe inquietava a possível reação do Jacky—, deveria ir a uma boa escola. —Tinha pensado em algo? —O que te pareceria um internato? Poderia ir ao mesmo que eu. —Seria o único aluno negro. —Não tem por que. Quando eu estudava ali havia um menino de cor, um índio do Delhi que se chamava Kamal. —Só um. —Sim. —burlavam-se dele? —Claro. Chamávamo-lo Camelo, mas ao final os meninos se acostumaram e chegou a fazer amigos. —O que foi dele? Sabe? —Acabou sendo farmacêutico. ouvi dizer que já tem dois drugstores em Nova Iorque. Jacky assentiu com a cabeça. Greg viu que não se opunha a seu plano. A garota vinha de uma família culta e, embora ela se rebelou e se apartou disso ambiente, acreditava no valor de uma boa educação. —E a matrícula desse internado? —Poderia pedir-lhe a meu pai. —Pagaria-a? —Olha-os. —Greg assinalou para o atalho. Lev, Marga e Georgy voltavam já do carrinho dos sorvetes. Lev e o menino caminhavam juntos, da mão, comendo um cartucho cada um—. Meu pai, tão conservador ele, lhe dando a mão a um menino de cor em um parque público. me acredite, pagará a matrícula do internato. —A verdade é que Georgy não acaba de encaixar em nenhum sítio —disse Jacky, um pouco preocupada—. É um menino negro com um pai branco. —Já sei. —A gente do edifício de sua mãe acredita que sou a criada… Sabia? —Sim. —Eu tive a precaução de não tirar os de seu engano. Se acreditassem que têm a uns negros convidados no edifício poderia haver problemas. Greg suspirou. —Sinto muito, mas tem razão. —A vida do Georgy será dura. —Já sei —repôs Greg—. Mas nos tem . Jacky lhe dirigiu um de seus desacostumadas sorrisos. —Sim —disse—. Isso já é algo. TERCEIRA PARTE A paz fria 21 1945 (III) I depois das bodas, Volodia e Zoya se mudaram a seu próprio apartamento. Eram poucos os soviéticos recém casados com tanta sorte. Durante quatro anos, os benefícios da poderosa indústria da União Soviética se investiram na fabricação de armas. Apenas se tinham construído novas moradias e muitas tinham sido destruídas. Entretanto, Volodia era comandante do Serviço Secreto do Exército Vermelho, além de filho de general, e tinha movido alguns fios. Era um espaço reduzido: um salão com uma mesa para comer, uma habitação ocupada em sua prática totalidade pela cama; uma cozinha que se enchia com duas pessoas; um banho diminuto com lavamanos e ducha, e um escasso saguão com um armário embutido para a roupa de ambos. Quando acendiam a rádio no salão, escutava-se por todo o piso. Não demoraram para convertê-lo em seu lar. Zoya comprou uma colcha de cor amarela gritã para a cama. A mãe da Volodia se tirou, como de um nada, uma baixela que tinha comprado em 1940, em previsão das bodas de seu filho, e que tinha conservado durante toda a guerra. Volodia pendurou uma imagem na parede: a foto de graduação de sua promoção na Academia de Inteligência Militar. Agora faziam o amor com mais freqüência. O estar sozinhos marcava uma diferença que Volodia não tinha previsto. Jamais tinha tido muitos reparos na hora de dormir com a Zoya em casa de seus pais, nem no piso que ela compartilhava antes; mas agora que tinham sua própria casa se dava conta de que influía na relação. Antes tinham que falar em voz baixa, escutar com atenção se por acaso os moles da cama chiavam, e sempre existia a possibilidade, embora muito remota, de que alguém pilhasse-lhes. A casa de outros nunca era um lugar de tudo íntimo. Estavam acostumados a despertar cedo, faziam o amor e logo ficavam na cama beijando-se e conversando durante uma hora antes de vestir-se e ir trabalhar. Em uma dessas manhãs, com a cabeça recostada sobre as coxas dela, com o aroma de sexo lhe penetrando pelo nariz, Volodia perguntou: —Gosta de uma taça de chá? —Sim, obrigado. —Ela se estirou com sensualidade e se recostou sobre os travesseiros. Volodia ficou o batín e cruzou o diminuto saguão até a reduzida cozinha, onde acendeu a chama do samovar. desgostou-se ao ver as caçarolas e os pratos sujos do jantar empilhados na pia. —Zoya! —exclamou—. A cozinha parece um desastre! Ela o ouviu com nitidez do dormitório de seu pequeno piso. —Já sei —respondeu. Ele retornou à habitação. —por que não recolheu ontem à noite? —por que não recolheu você? A Volodia não lhe tinha ocorrido que pudesse ser responsabilidade dela. —Tinha que redigir um relatório —respondeu, não obstante. —E eu estava cansada. A sugestão de que fora culpa sua o irritou. —Ódio que a cozinha esteja suja. —Eu também. por que estava sendo tão obtusa? —Pois, se você não gostar, limpa-a já! —vamos fazer o juntos agora mesmo. —Ela desceu de um salto da cama. Separou-o de um empurrão e, com um sorriso picarona, dirigiu-se à cozinha. Volodia a seguiu. —Você lava e eu seco —ordenou ela, e tirou um trapo limpo de uma gaveta. Zoya seguia nua. Ele não pôde evitar esboçar um sorriso. O corpo de sua esposa era esbelto e magro, e de pele branca. Tinha o peito plano e os mamilos eretos, e o pêlo de seu sexo era sedoso e loiro. Um dos prazeres de estar casado com ela era que Zoya tinha o costume de perambular pela casa nua. Volodia podia contemplar seu corpo durante todo o tempo que lhe desejasse muito. Ao parecer, lhe gostava. Se o pilhava olhando, não se mostrava sobressaltada, mas sim se limitava a sorrir. Volodia se arregaçou o batín e começou a lavar os pratos e a passar-lhe a Zoya para que os secasse. Esfregar não era uma atividade muito varonil —Volodia jamais havia visto fazê-lo a seu pai—, mas Zoya opinava que essas tarefas deviam compartilhar-se. Era uma idéia excêntrica. É que Zoya tinha um conceito muito elevado da igualdade de direitos no matrimônio? Ou estava deixando-se manipular por uma esposa castradora? Acreditou ouvir algo no exterior. Olhou para o saguão: a porta do piso estava a uns escassos três ou quatro passados da pia da cozinha. Não viu nada fora do normal. Nesse momento, derrubaram a porta. Zoya chiou. Volodia agarrou a faca de trinchar que acabava de lavar. Passou por diante da Zoya e ficou parado sob o marco da porta da cozinha. Um policial uniformizado, armado com uma maça, encontrava-se do outro lado da porta feita pedacinhos. Volodia fervia de ódio e medo. —Mas que coño passa aqui? —espetou. O policial retrocedeu e um homem pequeno, magro e com cara de rato entrou no piso. Era o cunhado da Volodia, Ilia Dvorkin, agente da polícia secreta. Levava luvas de pele. —Ilia! —gritou Volodia—. Maldita rato asqueroso! —te dirija a mim com respeito —ordenou Ilia. Volodia se sentia desconcertado e furioso. A polícia secreta não tinha costume de deter o pessoal dos serviços secretos do Exército Vermelho, nem tampouco ocorria à inversa. Desde não ser assim, teria estalado uma sorte de guerra de bandas. —por que coño tiveste que derrubar a porta de minha casa? Te teria aberto! Outros dois agentes se plantaram no saguão e se colocaram detrás da Ilia. Levavam os casacos de couro regulamentares da organização, a pesar do agradável tempo de finais do verão. Volodia estava tão assustado como furioso. O que estava passando? —Solta a faca, Volodia —ordenou Ilia com voz trêmula. —Não tem por que te assustar —respondeu Volodia—. Só estava esfregando os pratos. —Passou a faca a Zoya, quem estava detrás dele—. Por favor, passem ao comilão. Podemos falar enquanto Zoya se veste. —Acreditaste-te que isto é uma visita de cortesia? —perguntou Ilia, indignado. —Dá-me igual o tipo de visita que seja, mas estou seguro de que não quer acontecer o abafado de ter que ver minha mulher nua. —Estou aqui por um assunto oficial da polícia! —Então, por que enviaram a meu cunhado? Ilia baixou a voz. —Mas não entende que teria sido muito pior se tivesse vindo qualquer outro? Parecia algo gordo. Volodia se esforçou por manter a atitude fanfarrona. —Exatamente, o que é o que querem você e estes cretinos? —O camarada Beria assumiu a direção do programa de física nuclear. Volodia já sabia. Stalin tinha montado um novo comitê para dirigir a investigação e tinha renomado diretor a Beria, que não tinha nem a mais remota idéia de física e carecia de cualificación para organizar um projeto de investigação científica. Entretanto, Stalin confiava nele. Era um problema habitual no governo soviético: pessoas incompetentes embora leais ao regime recebiam ascensões e ocupavam cargos que não podiam desempenhar. —E o camarada Beria necessita a minha mulher em seu laboratório para desenvolver a bomba. vieste a levá-la ao trabalho em carro? —Os americanos criaram sua bomba nuclear antes que os soviéticos. —É obvio. Será porque concederam à investigação física uma prioridade mais alta que nós? —Não é possível que a ciência capitalista seja superior à ciência comunista! —Que tópico tão áspero! —Volodia estava confundido. Aonde queria ir parar?—. O que é o que insinúas? —Tem que ter sido um ato de sabotagem. Era justo a classe de fantasia absurda com a que sempre sonhava a polícia secreta. —Que classe de sabotagem? —Alguns cientistas atrasaram intencionalmente o desenvolvimento da bomba soviética. Volodia começava a atar cabos, e teve medo. Entretanto, seguiu respondendo com agressividade: sempre era um engano mostrar debilidade ante essa gente. —por que demônios foram fazer algo assim? —Porque são traidores, e sua mulher é uma deles! —Será melhor que não esteja falando a sério, pedaço de bode… —vim para detê-la. —Como? —Volodia estava atônito—. Isto é uma loucura! —É o que opina minha organização. —Não têm provas. —Se quiser provas, vete a Hiroshima! Zoya falou pela primeira vez desde que tinha chiado. —Terei que acompanhá-los, Volodia. Não faça que lhe detenham ti também. Volodia assinalou a Ilia com o dedo. —Acaba de te colocar em uma boa confusão, bode. —Só cumpro ordens. —Sal de no meio. Minha esposa vai ao quarto a vestir-se. —Não há tempo para isso —espetou Ilia—. Tem que vir tal como está. —Não seja ridículo. Ilia levantou o queixo. —Uma cidadã soviética respeitável não iria pelo piso sem roupa. Volodia se perguntou fugazmente como era possível que sua irmã estivesse casada com um fantasma assim. —Vós, a polícia secreta, com olhares morais ante a nudez? —Sua nudez é a prova de sua degradação. Levaremo-nos isso tal como está. —E uma mierda! —Aparta. —te aparte você. irá vestir se. —Volodia se situou no saguão e se plantou diante dos três agentes, com os braços estendidos para que Zoya pudesse passar por detrás dele. Quando ela se moveu, Ilia conseguiu passar por detrás da Volodia e agarrou a sua esposa pelo braço. Volodia golpeou a seu cunhado na cara, duas vezes. Ilia gritou e retrocedeu cambaleante. Os dois homens com casaco de couro avançaram. Volodia obteve propinar um murro a um, mas o outro o esquivou. Continuando, ambos agarraram a Volodia pelos braços. Ele tentou escapar, mas eram fortes e parecia que já houvessem feito aquilo antes. Estamparam-no contra a parede. Enquanto o sujeitavam, Ilia lhe pegou um murro na cara com seus punhos enluvados em couro. O propinó um segundo golpe, um terceiro e um quarto, logo lhe golpeou no estômago, uma e outra vez, até que Volodia cuspiu sangue. Zoya tentou intervir, mas Ilia também a golpeou, e ela gritou e caiu de costas. A Volodia lhe abriu o batín. Ilia lhe deu uma patada na entrepierna e logo nos joelhos. Volodia se retorcia, incapaz de levantar-se, mas os homens com casaco de couro o elevaram e Ilia o propinó uns quantos golpes mais. Ao final, Ilia se voltou para partir, esfregando-os nódulos. Os outros dois liberaram a Volodia, que se desabou sobre o chão. Logo que podia respirar e se sentia incapaz de mover-se, mas estava consciente. Pela extremidade do olho viu os dois forçudos agarrar a Zoya e obrigá-la a sair nua do apartamento. Ilia seguiu-os. Minuto a minuto, a dor foi passando de uma intensa agonia a um padecimento surdo e profundo, e Volodia voltou a respirar com normalidade. Pouco a pouco foi recuperando a mobilidade das extremidades e conseguiu levantar-se com muita dificuldade. Conseguiu chegar até o telefone e marcou o número de seu pai, com a esperança de que o velho não tivesse saído ainda a trabalhar. Aliviou-lhe escutar sua voz. —detiveram a Zoya —anunciou. —Malditos filhos de puta! —exclamou Grigori—. Quem foi? —foi Ilia. —O que? —Faz um par de chamadas —ordenou Volodia—. Averigua que coño está passando. Eu tenho que limpar o sangue. —Que sangue? Volodia pendurou. Não havia mais que um par de passos até o banho. Atirou o batín manchado de sangue e se meteu na ducha. A água quente proporcionou certo alívio a seu corpo quebrantado. Ilia era malvado, mas não forte, e não tinha nenhum osso quebrado. Volodia fechou o grifo. olhou-se no espelho do banho. Tinha a cara coberta de cortes e moratones. Não se incomodou em secar-se. Com um esforço considerável, ficou o uniforme do Exército Vermelho. Convinha-lhe luzir esse símbolo de autoridade. Seu pai chegou quando tentava atá-los cordões das botas. —Que coño aconteceu aqui? —grunhiu Grigori. —Procuravam briga —respondeu Volodia—, e eu fui tão idiota de dar-lhe Aquello no tenía sentido. Seu pai não se mostrou muito pormenorizado de entrada. —Esperava mais de ti. —Insistiram em levar-lhe nua. —Putos fanfarrões! —averiguaste algo? —Ainda não. falei com um par de pessoas. Ninguém sabe nada. —Grigori parecia preocupado—. Ou alguém cometeu um engano garrafal… ou, por algum motivo, estão muito seguros do que fazem. —me leve em carro a meu escritório. Lemítov vai encher o saco se de verdade. Não lhes deixará ir-se de rositas. Se tiverem permissão para me fazer isto , o farão a todo o Serviço Secreto do Exército Vermelho. O chofer do Grigori estava esperando fora com o carro. Conduziu até o aeródromo da Jodinka. Grigori ficou no veículo enquanto Volodia entrava capengante ao quartel geral do Exército Vermelho. Foi diretamente ao despacho de seu chefe, o coronel Lemítov. Bateu na porta, entrou e falou: —Esses bodes da polícia secreta detiveram a minha mulher. —Sei —confirmou Lemítov. —Sabe? —Eu dava o visto bom. Volodia ficou boquiaberto. —Mas que coño…? —Sente-se. —O que está passando? —Sente-se, fecha o pico e lhe contarei isso. Volodia se acomodou, dolorido, em uma cadeira. —Necessitamos a bomba nuclear, mas já —disse Lemítov—. De momento, Stalin segue fazendo o duro com os americanos, porque estamos bastante seguros de que não têm suficiente arsenal de armas nucleares para nos apagar do mapa. Mas estão criando um arsenal e, em um momento dado, utilizarão-o, a menos que nós estejamos em condições de contra-atacar. Aquilo não tinha sentido. —Minha esposa não pode desenhar a bomba enquanto a polícia secreta está lhe dando murros na cara. Isto é uma loucura. —Fecha o pico, joder. Nosso problema é que há vários desenhos possíveis. Os americanos demoraram cinco anos em averiguar qual funcionaria. Nós não temos tanto tempo. Terá que lhes roubar os documentos de sua investigação. —Mas, mesmo assim, necessitaremos físicos russos que copiem o desenho, e para isso têm que estar em seus laboratórios, não sob chave no porão da Lubianka. —Conhece um homem chamado Wilhelm Frunze. —Fui ao colégio com ele. À Academia Masculina do Berlim. —Passava-nos valiosa informação sobre a investigação nuclear britânica. Logo se transladou aos Estados Unidos, onde trabalhava no projeto da bomba nuclear. O pessoal de Washington do NKVD contatou com ele, assustou-o com sua incompetência e se carregou o contato. Precisamos convencê-lo para que volte conosco. —E o que tem todo isso que ver comigo? —Confia em ti. —Isso não sei. Levo doze anos sem vê-lo. —Queremos que vá aos Estados Unidos para falar com ele. —Mas por que detivestes a Zoya? —Para nos assegurar de que retorna. II Volodia se convenceu de que saberia fazê-lo. No Berlim, antes da guerra, tinha-lhe dado esquinazo a um par de homens da Gestapo, reuniu-se com possíveis espiões, tinha-os recrutado e os tinha convertido em fontes confiáveis para os serviços secretos. Jamais era fácil —sobre tudo a parte em que devia convencer a alguém para que se convertesse em traidor—, mas era um perito na matéria. Entretanto, agora estava nos Estados Unidos. Os países ocidentais que tinha visitado, Alemanha e Espanha nas décadas de 1930 e 1940, não lhe pareciam em nada. sentia-se afligido. Toda a vida lhe haviam dito que os filmes de Hollywood davam uma visão exagerada da prosperidade e que, em realidade, a maioria dos americanos viviam sumidos na pobreza. Entretanto, a Volodia ficou claro, desde dia em que chegou aos Estados Unidos, que os filmes não exageravam nem um ápice. E que, além disso, era difícil encontrar pessoas pobres. Nova Iorque estava lotado de automóveis, muitos conduzidos por pessoas que não eram importantes funcionários do governo: jovens, homens com roupa de trabalho, inclusive mulheres que saíam às compras. E todo mundo ia tão bem vestido! Parecia que todos os homens vestissem seu melhor traje. As mulheres levavam as pernas cobertas com brilhantes medeia. Todo mundo levava sapatos novos. Devia fazer o esforço de recordar-se constantemente o lado escuro dos Estados Unidos. Havia pobreza, em algum lugar. perseguia-se aos negros e, no Sul, nem sequer tinham direito ao voto. Havia muchísima delinqüência —os mesmos americanos afirmavam que era um mal endêmico—, embora, por estranho que parecesse, Volodia não conseguiu ver nada que o provasse, e se sentia seguro caminhando pela rua. Passou uns dias percorrendo Nova Iorque. Tentou melhorar seu inglês, que não era muito bom, embora isso não importava muito: a cidade estava cheia de pessoas que assassinavam o idioma e o falavam com marcado acento de outros países. familiarizou-se com as caras dos agentes do FBI destinados a segui-lo e identificou várias localizações convenientes onde poder despistá-los. Uma manhã ensolarada saiu do consulado da União Soviética em Nova Iorque, sem chapéu, com folgadas calças cinzas e camisa azul, como se fora a fazer um par de recados. Um jovem com traje escuro e gravata o seguia. Foi aos armazéns Saks da Quinta Avenida e comprou roupa interior e uma camisa de pequenos cuadritos marrons. Quem fora que o seguisse pensaria que estava simplesmente de compras. O chefe do NKVD do consulado tinha anunciado que uma equipe soviética seguiria vinte e quatro horas a Volodia durante sua visita aos Estados Unidos, para assegurar-se de que tinha um bom comportamento. Custava-lhe muito conter a raiva que sentia pelo fato de que a organização tivesse encarcerado a Zoya, e tinha que reprimir o desejo de agarrar ao tipo pelo cangote e estrangulá-lo. Mas tinha conservado a calma. Tinha famoso com sarcasmo que para cumprir sua missão teria que esquivar a vigilância do FBI, e, ao fazê-lo, era possível que perdesse, sem pretendê-lo, a seu perseguidor do NKVD; mas lhes desejou boa sorte. A maioria dos dias, bastavam-lhe cinco minutos para despistá-los. Assim que o jovem que estava seguindo-o era, quase com total segurança, um agente do FBI. Sua vestimenta de ar conservador muito esmerado o delatava. Com suas compras em uma bolsa de papel, Volodia saiu da loja por uma porta lateral e parou um táxi. Deu esquinazo ao agente do FBI, que ficou no meio-fio da calçada, agitando o braço. Quando o táxi teve dobrado duas esquinas, Volodia atirou ao condutor um bilhete e desceu de um salto. Entrou, disparado, a uma estação de metro, voltou a sair pela outra boca e esperou no portal de um edifício de escritórios durante cinco minutos. O jovem de traje escuro não se via por nenhum lado. Volodia se dirigiu ao Penn Station. Logo voltou a comprovar que ninguém lhe seguia e comprou um bilhete. Subiu ao trem sem mais bagagem que sua bolsa de papel. A viagem ao Albuquerque durava três dias. O trem avançava a toda velocidade ao longo de quilômetros e mais quilômetros de terras de cultivo, impressionantes fábricas de tabaco de mascar e grandes cidades com arranha-céu que apontavam com arrogância ao céu. A União Soviética era maior, mas além de Ucrânia, em sua maioria estava composta por bosques de pinheiros e estepes gelados. Jamais tinha imaginado a riqueza a essa escala. E a prosperidade não era o único. Volodia levava vários dias lhe dando voltas a um assunto que lhe preocupava, era algo estranho relacionado com a vida nos Estados Unidos. Ao final caiu na conta do que era: ninguém lhe tinha pedido a documentação. Depois de ter passado pelo controle de imigração em Nova Iorque, não havia tornado a ensinar o passaporte. Naquele país, ao parecer, qualquer podia chegar a uma estação de trem ou a um terminal de ônibus e comprar um bilhete com o destino a qualquer lugar sem ter que solicitar permissão nem explicar o motivo da viagem a um funcionário. Aquilo lhe provocava uma sensação de liberdade perigosamente lhe extasiem. Poderia ter ido aonde lhe desejasse muito! A riqueza dos Estados Unidos também sublinhava para a Volodia o perigo ao que se enfrentava seu país. Os alemães tinham estado a ponto de destruir a União Soviética, e o país no qual se encontrava tinha uma população que triplicava a de sua mãe pátria e uma riqueza dez vezes maior. A idéia de que os soviéticos pudessem converter-se em subordinados, que se entregassem à cega submissão por medo, atenuava as dúvidas que albergava Volodia sobre o comunismo, apesar do que o NKVD lhes tinha feito a sua mulher e a ele. Se tinha filhos, não queria que crescessem em um mundo tiranizado pelos Estados Unidos. Viajou via Pittsburgh e Chicago e tentou acontecer desapercebido durante a viagem. Seu aspecto era de americano, e ninguém se precaveu de seu acento russo pela simples razão de que não abriu a boca. Comprou sanduíches e café assinalando o produto com o dedo para depois satisfazer a importância. Folheou periódicos e revistas que outros viajantes deixavam ao partir: olhava as fotos e tentava decifrar o significado dos titulares. A última parte da viagem o levou por uma paisagem desértica de beleza desolada, com picos nevados na distância tintos de vermelho pelo ocaso, que, com segurança, era a explicação de que os chamassem a Serra do Sangue de Cristo. Foi ao banho, trocou-se de roupa interior e ficou a camisa nova que tinha comprado no Saks. Esperava que o FBI ou a segurança do exército estivesse vigiando a estação de trem no Albuquerque e, sem dúvida alguma, assim era, pois detectou a um homem cuja jaqueta a quadros —muito calorosa para o clima de novo o México em setembro— não ocultava do todo o vulto de seu pistolera. Entretanto, o agente estava interessado nos trens de comprimento percorrido que pudessem proceder de Nova Iorque ou Washington. Volodia, sem chapéu, nem jaqueta nem bagagem, parecia um habitante local de volta a casa depois de um trajeto curto. Não o seguiu ninguém ao dirigir-se à estação de ônibus e subiu a um Greyhound que ia a Santa Fé. Chegou a seu destino a última hora da tarde. Identificou a dois homens do FBI na estação de ônibus da Santa Fé, e eles o olharam com atenção. Sem embargo, não podiam seguir a todos quão viajantes desciam do ônibus e, uma vez mais, sua aparência despreocupada conseguiu despistá-los. Esforçando-se ao máximo para aparentar que sabia aonde ia, foi passeando pelas ruas. As casas baixas de telhados planos tipo povo mexicano e as pequenas Iglesias banhadas pelo sol, recordaram a Espanha. Os edifícios com lojas nas novelo baixas, e seus toldos cobrindo as calçadas, criavam galerias com agradáveis sombras. Evitou passar por La Hospedaria, o grande hotel da cidade na praça maior junto à catedral, e agarrou uma habitação no St. Francis. Pagou em dinheiro e se registrou com o nome do Robert Pender, que poderia ter sido americano ou de várias nacionalidades européias. —Trarão-me a mala mais tarde —informou à formosa senhorita sentada depois do mostrador da recepção—. Se tiver saído quando chegar, pode assegurar-se de que subam-me isso à habitação? —OH, é obvio, não há problema! —respondeu ela. —Obrigado —disse ele, e logo acrescentou uma frase que tinha escutado várias vezes no trem—: O agradeço sinceramente. —Se não estar aqui, outra pessoa se encarregará da mala, sempre que levar seu nome, claro. —Sim que o leva. —Não tinha bagagem, mas ela jamais saberia. A recepcionista leu seu nome no registro. —Bom, senhor Pender, assim é você de Nova Iorque… O comentário foi pronunciado com certo tom de cepticismo, sem dúvida alguma, porque ele não tinha acento nova-iorquino. —Sou de origem suíço. —Escolheu a Suíça por ser um país neutro. —Isso explica o acento. Nunca tinha conhecido a nenhuma pessoa da Suíça. Como é seu país? Volodia não tinha estado em sua vida ali, mas havia visto algumas fotografa. —Neva muito —respondeu. —Bom, pois desfrute do tempo de novo o México! —Farei-o. Transcorridos cinco minutos, voltou a sair. Alguns cientistas viviam no laboratório de Los Álamos, sabia porque o tinham contado seus colegas da embaixada da União Soviética, mas era uma cidade cheia de barracos com poucas comodidades da civilização e, se podiam permitir-lhe preferiam alugar casas e pisos pela zona. Will Frunze o podia permitir: estava casado com uma desenhista de prestígio autora de uma tira cômica para agências de distribuição jornalística titulada Alice a Folgazona. Sua esposa, também chamada Alice, podia trabalhar desde qualquer lugar, por isso tinham uma casa no capelo da cidade. A sucursal do NKVD em Nova Iorque lhe tinha proporcionado aquela informação. Tinham seguido ao Frunze de perto, e Volodia tinha sua direção e número de telefone, assim como uma descrição de seu carro: um Plymouth conversível de antes da guerra com pneumáticos de banda branca. O edifício onde viviam os Frunze tinha uma galeria de arte na planta baixa. O piso da planta de acima possuía um grande ventanal com orientação ao norte que devia fazer as delícias de um desenhista na hora de inspirar-se. Havia um Plymouth conversível estacionado na entrada. Volodia preferia não entrar: o lugar podia ter micros. Os Frunze eram um acomodada casal sem filhos, e supôs que não ficariam em casa a escutar a rádio uma sexta-feira de noite. Decidiu esperar pelos arredores para ver se saíam. Passou um momento na galeria de arte, olhando os quadros que estavam à venda. Gostava das imagens limpas e vitalistas, e não teria desejado possuir nenhum daqueles caóticos manchurrones. Encontrou uma cafeteria pelo bairro e conseguiu um sítio junto à janela da que via a porta dos Frunze. partiu uma hora depois, comprou um periódico, esperou em uma parada de ônibus e fingiu que o lia. A larga espera lhe permitiu assegurar-se de que ninguém mais estava vigiando o apartamento dos Frunze. E isso significava que o FBI e a segurança do exército não tinham catalogado ao Frunze como sujeito de alto risco. Ele era estrangeiro, mas também o eram muitos dos cientistas, e supostamente não tinham provas em seu contrário. encontravam-se em um bairro comercial do centro, não uma vizinhança residencial, e havia muitas pessoas pela rua; mas, de todas formas, passadas um par de horas, a Volodia começou a lhe preocupar que alguém se precavesse de sua presença pela zona. Então saíram os Frunze. Wilhelm estava mais gordo que fazia doze anos, não havia racionamento de comida na América do Norte. Seu cabelo começava a ralear, embora solo tinha trinta anos. Conservava o olhar solene. Levava camisa de jornal e chineses, uma combinação tipicamente americano. Sua esposa não vestia de forma conservadora. Levava o cabelo loiro recolhido em um coque sob uma boina e um vestido de algodão marrom sem forma definida, e complementava seu traje com toda uma série de braceletes em ambas as bonecas além de numerosos anéis. Volodia recordou que os artistas vestiam assim na Alemanha antes da chegada do Hitler. O casal se tornou à rua e Volodia os seguiu. perguntou-se qual seria a tendência política de sua esposa e se sua presença suporia alguma diferença na já de por si difícil conversação que deviam sustentar. Na Alemanha, Frunze tinha sido um socialdemócrata incondicional, assim não era muito provável que sua mulher fora conservadora; hipótese que ficava confirmada por seu traje. Por outra parte, ela certamente não sabia que ele tinha revelado secretos aos soviéticos em Londres. Ela era um mistério. Preferia tratar com o Frunze a sós, e se expôs deixá-los nesse momento e tentá-lo de novo ao dia seguinte. Mas a recepcionista do hotel se precaveu de seu acento estrangeiro, assim, pela manhã, certamente haveria um homem do FBI seguindo-o. Pensou que poderia arrumar-lhe embora não com a mesma facilidade nesta cidade pequena como o tinha feito em Nova Iorque ou no Berlim. E ao dia seguinte era sábado, e os Frunze certamente passariam o dia juntos. Quanto tempo mais teria que esperar Volodia para encontrar ao Frunze sozinho? Nunca tinha existido uma alternativa fácil para fazer aquilo. Depois de sopesá-lo, decidiu solucioná-lo essa mesma noite. Os Frunze entraram em um restaurante para jantar. Volodia passou por diante do local e olhou pela janela. Era um restaurante barato com as mesas em compartimentos. Pensou por um momento em entrar e sentar-se com eles, mas decidiu que antes os deixaria comer. Estariam de melhor humor com o estômago cheio. Esperou meia hora, vigiando a porta de longe. Logo, tremendamente inquieto, entrou. O casal estava terminando de jantar. Quando Volodia cruzou o restaurante para chegar até eles, Frunze levantou a vista, mas a apartou porque não o reconheceu. Volodia se sentou no compartimento junto à Alice e falou em alemão, em voz baixa. —Olá, Willi, não me recorda do colégio? Frunze o olhou com atenção durante vários segundos e logo esboçou um sorriso que lhe mudou o gesto. —Peshkov? Volodia Peshkov? De verdade é você? Uma quebra de onda de alívio invadiu a Volodia. Frunze ainda seguia sendo amigável. Não havia barreira de hostilidade que superar. —O mesmo que viu e meia —respondeu Volodia. Tendeu-lhe uma mão e se saudaram. voltou-se para a Alice, e disse em inglês—: Falo muito mal seu idioma, sinto muito. —Tranqüilo —respondeu ela em alemão—. Minha família emigrou desde a Baviera. —estive pensando em ti ultimamente —comentou Frunze, assombrado—, porque conheço outro tipo com seu mesmo sobrenome: Greg Peshkov. —Seriamente? Meu pai tinha um irmão chamado Lev que emigrou aos Estados Unidos lá por 1915. —Não, o tenente Peshkov é muito mais jovem. Em qualquer caso, o que te traz por aqui? Volodia sorriu. —vim a verte. —antes de que Frunze pudesse perguntar o porquê, disse—: A última vez que te vi, foi secretário da Partida Socialdemócrata do Neukölln. —Era sua segunda vaza. Depois de ter tomado um primeiro contato amistoso, queria apelar ao idealismo juvenil do Frunze. —Essa experiência me convenceu de que a socialdemocracia não funciona —respondeu Frunze—. Contra os nazistas nos víamos do todo impotentes. Fez falta a União Soviética para detê-los. Isso era certo, e a Volodia adorava que Frunze o reconhecesse; mas, o que era mais importante, o comentário supunha uma prova de que as idéias políticas do Frunze não se atenuaram por sua próspera vida nos Estados Unidos. —Estávamos pensando em tomar um par de taças em um bar que há à volta da esquina —disse Alice—. Muitos cientistas são assíduos do local a noite dos sexta-feira. Gostaria de nos acompanhar? Quão último interessava a Volodia era que o vissem em público em companhia dos Frunze. —Não sei —respondeu. Em realidade, já levava muito tempo com eles no mesmo restaurante. Tinha chegado a hora de dar o passado número três: recordar ao Frunze seu terrível culpa no assunto. aproximou-se dele e falou em voz baixa—: Willi, sabia que os americanos foram lançar bombas nucleares sobre o Japão? fez-se um comprido silencio. Volodia conteve a respiração. A estava jogando: tudo dependia de que ao Frunze remoesse a culpa. Durante um instante acreditou que tinha ido muito longe. Frunze pôs expressão de estar a ponto de romper a chorar. Então, o cientista inspirou profundamente e recuperou a compostura. —Não, não sabia —respondeu—. Nenhum de nós sabia. —Supusemos que o exército americano daria alguma prova do poder que lhe conferia a bomba —interveio Alice, irada—, como ameaça para que o Japão se rendesse antes. —Então Volodia se deu conta de que ela tinha conhecido de antemão a existência da bomba. Não lhe surpreendeu. Aos homens custava ocultar esse tipo de coisas a suas algemas—. Esperávamos que a fizessem explorar em algum momento, em um lugar qualquer —prosseguiu—. Mas imaginamos que destruiriam uma ilha desabitada ou alguma instalação militar com grande número de armas e muito pouca gente. —Isso poderia ter sido justificável —acrescentou Frunze—. Mas… —Falou com um hilillo de voz—. Ninguém pensava que a lançariam sobre uma cidade e que matariam a oitenta mil homens, mulheres e meninos. Volodia assentiu em silêncio. —Intuía que se sentiria assim. —Tinha-o desejado com todo seu coração. —E quem não o faria? —respondeu Frunze. —Deixa que te faça uma pergunta incluso mais importante. —Era o passado número quatro—. Voltarão a fazê-lo? —Não sei —respondeu Frunze—. É possível. Que Deus perdoe a todos, mas sim poderiam. Volodia ocultou sua satisfação. Tinha conseguido que Frunze se sentisse culpado pelo uso futuro das armas nucleares, assim como pelo uso que se feito já delas. Volodia assentiu uma vez mais. —Isso é o que pensávamos nós. —Nós? —perguntou Alice com brutalidade. Era uma mulher inteligente e certamente tinha mais mundo que seu marido. Seria difícil enganá-la, e Volodia decidiu não tentá-lo sequer. Devia arriscar-se a tratá-la como um igual. —Boa observação —respondeu—. E não tenho feito a viagem até aqui para decepcionar a um velho amigo. Sou comandante do Serviço Secreto do Exército Vermelho. ficaram olhando-o. A possibilidade talvez já lhes tivesse passado pela cabeça, mas lhes surpreendeu a franqueza de sua confissão. —Há algo que preciso te dizer —prosseguiu Volodia—. Algo de uma tremenda importância. Há algum lugar ao que possamos ir falar em privado? O casal parecia insegura. —Nosso piso? —perguntou Frunze. —Certamente o FBI instalou escutas. Frunze tinha certa experiência nas missões clandestinas, mas Alice estava impressionada. —Isso crie? —perguntou com incredulidade. —Sim. Poderíamos sair da cidade em carro? —Há um lugar ao que vamos às vezes, a estas horas da noite, para ver o pôr-do-sol —disse Frunze. —Perfeito. Vão ao carro, subam e me esperem. Eu irei dentro de um minuto. Frunze pagou a conta e saiu com a Alice, e Volodia os seguiu. Durante o breve passeio decidiu que ninguém o seguia. Chegou ao Plymouth e subiu. sentaram-se os três diante, no assento dianteiro de três lugares, estilo americano. Frunze conduziu até a saída da cidade. Foram por um caminho de terra até a cúpula de um monte baixo. Frunze parou o carro. Volodia se moveu para que pudessem sair todos, e lhes fez caminhar uns cem metros, se por acaso no carro também havia micros. Contemplaram a paisagem de chão rochoso e arbustos baixos em direção ao pôr-do-sol, e Volodia deu o quinto passo. —Acreditam que a seguinte bomba nuclear será lançada sobre a União Soviética. Frunze assentiu em silêncio. —Deus não o queira, mas certamente tem razão. —E não podemos fazer nada para evitá-lo —prosseguiu Volodia, e assim se encaminhava sem pausa para o ponto fundamental de seu discurso—. Não podemos tomar nenhuma precaução, não podemos levantar nenhuma barreira, não existe forma possível de proteger a nosso povo. Não há defesa neste mundo contra a bomba nuclear… a bomba que você criou, Willi. —Sei —respondeu Frunze, abatido. Estava claro que assumia como própria a responsabilidade do possível ataque nuclear contra a URSS. Passo número seis. —O único amparo seria nossa própria bomba nuclear. Frunze não queria acreditá-lo. —Não é uma defesa —negou. —Mas é um elemento de disuasión. —Poderia sê-lo —admitiu. —Não queremos que estas bombas se propaguem —atravessou Alice. —Nem eu tampouco —coincidiu Volodia—. Mas a única forma segura de impedir que os americanos arrasem Moscou como arrasaram Hiroshima é que a União Soviética tenha sua própria bomba nuclear e ameace contra-atacando. —Tem razão, Willi. Maldita seja, todos sabemos. Volodia se precaveu de que ela era a dura. Baixou a voz para dar o passado número sete. —Quantas bombas têm agora mesmo os americanos? Era um momento decisivo. Se Frunze respondia essa pergunta, teria cruzado a fronteira. Até esse instante não tinham entrado em detalhes durante a conversação. Com essa pergunta, Volodia tentava obter informação secreta. Frunze duvidou durante comprido momento. Ao final, olhou a Alice. Volodia percebeu seu gesto de assentimento quase imperceptível. —Só uma —respondeu Frunze. O soviético dissimulou sua sensação de triunfalismo. Frunze tinha traído a confiança depositada nele pelo governo. Era o primeiro movimento difícil. Um segundo secreto seria revelado com maior facilidade. —Mas logo terão mais —acrescentou Frunze. —É uma carreira; se a perdermos, morreremos apressou a atravessar Volodia—. Devemos armar ao menos uma bomba própria antes de que tenham tempo de arrasar conosco. —Podem fazê-lo? Esse era o pé que Volodia necessitava para o oitavo passo. —Necessitamos ajuda. Viu como se endurecia a expressão do Frunze, e supôs que estava recordando o que lhe tinha feito negar-se a colaborar com o NKVD. —E se decidirmos que não podemos fazer nada? —perguntou Alice—. Seria muito perigoso? Volodia se deixou levar por seu instinto. Levantou as mãos com gesto de rendição. —Partirei a casa e informarei de meu fracasso —disse—. Não posso lhes obrigar a fazer nada que não queiram fazer. Não quero lhes pressionar nem lhes coagir em modo algum. —Sem ameaças? —insistiu Alice. Isso confirmou a hipótese da Volodia de que o NKVD tinha tentado intimidar ao Frunze. Pretendiam intimidar a todo mundo: era o único que sabiam fazer. —Nem sequer vou tentar convencer —disse Volodia ao Frunze—. Limito a expor os fatos. O resto depende de ti. Se quer colaborar, estarei aqui para ser seu contato. Se vir as coisas de outro modo, pois fim da história. Ambos são pessoas inteligentes. Não poderia lhes enganar embora quisesse. O casal voltou a intercambiar um olhar. Esperava que estivessem pensando em quão distinto era ele do último agente soviético com o que tinham tratado. A resposta se fez esperar uma agônica eternidade. Foi Alice quem por fim falou. —Que classe de ajuda necessita? Isso não era um sim, mas era melhor que uma negativa, e conduzia, de forma lógica, para o passado número nove. —Minha esposa é uma das físicas da equipe —disse, com a esperança de que aquilo humanizasse sua pessoa em um momento em que podia correr o perigo de que o considerassem manipulador—. Me contou que há várias formas de chegar à bomba nuclear, mas não temos tempo para as provar todas. Podemos nos economizar anos se soubermos qual lhes funcionou a vós. —Isso tem sentido —admitiu Willi. Passo número dez, o mais ambicioso. —Precisamos saber que classe de bomba se lançou sobre o Japão. Frunze pôs expressão de desespero. Olhou a sua mulher. Esta vez, ela não assentiu, mas tampouco negou com a cabeça. Parecia tão dividida como ele. Frunze suspirou. —Dois tipos —respondeu. Volodia estava emocionado e assombrado. —Dois desenhos distintos? Frunze assentiu. —Para a Hiroshima utilizaram um dispositivo de urânio com uma ensambladura de tipo canhão. Chamamo-la Little Boy. Para o Nagasaki, a FAT Man, uma bomba de plutônio com um disparador de implosão. Volodia quase não podia nem respirar. Essa era informação mais que confidencial. —Qual é melhor? —Ambas funcionaram, greve dizê-lo, mas a FAT Man é mais fácil de criar. —por que? —Fazem falta muitos anos para obter suficiente Ou-235 para uma bomba. O plutônio requer menos tempo, sempre que ter um arsenal nuclear. —Então a URSS pode copiar a FAT Man. —Sem dúvida. —Há algo mais que pode fazer por salvar a Rússia da destruição —disse Volodia. —O que? O soviético o olhou diretamente aos olhos. —me consiga os planos do desenho. Willi empalideceu. —Sou cidadão americano —atravessou—. Está me pedindo que cometa traição. Está castigado com a morte. Poderia acabar na cadeira elétrica. E também sua mulher —pensou Volodia—, é cúmplice. Graças a Deus que não lhes ocorreu. —pedi a muita gente que ponha sua vida em perigo durante os últimos anos. Pessoas como vós, alemães que odiavam aos nazistas, homens e mulheres que arriscaram-se muitíssimo para nos enviar informação que nos ajudasse a ganhar a guerra. E devo lhes dizer o que disse a todos eles: morrerão muitas mais pessoas se não o fizerem. —ficou calado. Tinha jogado sua melhor vaza. Não ficava mais que oferecer. Frunze olhou a sua esposa. —Você desenhou a bomba, Willi —disse Alice. —Me pensarei —respondeu isso Frunze a Volodia. III Dois dias depois lhe entregaram os planos. Volodia os levou a Moscou. Zoya foi liberada da prisão. Ela não se sentia tão furiosa com seu encarceramento como seu marido. —Têm-no feito para proteger a revolução —disse—. E não me têm feito mal; foi como estar em um hotel sujo. Em seu primeiro dia em casa, depois de fazer o amor, Volodia quis falar. —Tenho algo que te ensinar, algo que trouxe dos Estados Unidos. —Baixou rodando da cama, abriu uma gaveta e tirou uma volumosa revista—. É o catálogo do Sears Roebuck —anunciou. sentou-se junto a ela na cama e abriu a publicação—. Olhe isto. O catálogo se abriu pelas páginas de vestidos para mulher. As modelos eram de uma magreza impossível, mas os tecidos desses objetos eram alegres e de cores intensos, de raias, de quadros e lisas, algumas tinham volantes, tabuletas e cinturões. —Que bonito! —comentou Zoya, e assinalou um vestido com o dedo—. Dois dólares noventa centavos é muito dinheiro? —Em realidade, não —respondeu Volodia—. O salário médio é de uns cinqüenta dólares à semana, e o aluguel é um terço disso. —Seriamente? —Zoya estava assombrada—. Assim que a maioria das pessoas podem permitir-se estes vestidos? —Isso. Ao melhor não os camponeses. Embora, por outra parte, estes catálogos se inventaram para os granjeiros que vivem a centenas de quilômetros do armazém mais próximo. —Como funciona? —Escolhe o que quer do catálogo e os envias o dinheiro; logo, em um par de semanas, o carteiro te traz para casa o que pediste. —Deve te sentir como uma czarina. —Zoya lhe tirou o catálogo e voltou a página—. OH! Aqui há mais! —Na página seguinte havia conjuntos de saia e jaqueta por quatro dólares com noventa e oito—. Estes também são elegantes —comentou. —Segue passando páginas —sugeriu Volodia. Zoya estava perplexa ante a visão de páginas e mais páginas de casacos para mulher, chapéus, sapatos, lingerie, pijamas e meias. —A gente pode ter algo destas? —perguntou. —Assim é. —Mas se nestas páginas há mais onde escolher que em qualquer loja normalita da Rússia! —Sim. Seguiu folheando a revista com parcimônia. Havia o mesmo número de roupa para homem e também para meninos. Zoya pôs o dedo sobre um grosso casaco de inverno de lã para meninos que custava quinze dólares. —A este preço, suponho que todos os meninos têm um nos Estados Unidos. —É o mais provável. depois da roupa vinha o mobiliário. A gente podia comprar uma cama por vinte e cinco dólares. Tudo era barato se ganhavam cinqüenta dólares à semana. E o catálogo seguia e seguia. Havia centenas de produtos que não podiam adquirir-se na União Soviética: brinquedos e jogos, produtos de beleza, violões, elegantes sela, ferramentas elétricas, cria novelas com coloridas capas, adornos natalinos e torradeiras elétricas. Havia inclusive um trator. —Você crie que qualquer granjeiro americano que queira um trator o pode conseguir com solo pedi-lo? —Só se tiver o dinheiro para pagá-lo —disse Volodia. —Não têm que incluir seu nome em uma lista e esperar durante um par de anos? —Não. Zoya fechou o catálogo e o olhou com ar de gravidade. —Se a gente pode ter tudo isto —atravessou—, por que foram querer ser comunistas? —Boa pergunta —respondeu Volodia. 22 1946 I Os meninos do Berlim tinham ideado um jogo novo chamado Komm, Frau, Vêem, mulher. Era um mais daqueles em que os meninos perseguiam as garotas, mas Carla observou que incorporava uma novidade. Os meninos formavam equipe e escolhiam a uma das garotas. Quando a apanhavam, gritavam: Komm, Frau! e a atiravam ao chão. Logo a imobilizavam e um deles se tombava sobre ela fingindo penetrá-la. Os meninos de sete e oito anos, que não teriam que ter sabido o que era a violação, jogavam a isso porque tinham visto o que os soldados do Exército Vermelho lhes tinham feito às mulheres alemãs. Todos os soviéticos sabiam dizer isso em alemão: Vêem, mulher. O que lhes passava? Carla nunca tinha sabido de nenhuma mulher violada por um soldado francês, britânico, americano ou canadense, embora supunha que deviam existir casos. Entretanto, todas as mulheres que conhecia de entre quinze e cinqüenta e cinco anos tinham sido violadas ao menos por um soldado soviético: sua mãe, Maud; seu amiga Frieda; a mãe da Frieda, Monika; Ada, sua criada; todas. Eram afortunadas, pois ao menos seguiam vivas. Algumas mulheres tinham morrido depois de sofrer o abuso de dúzias de homens durante horas. Carla tinha ouvido que a uma garota a tinham matado a dentadas. Solo Rebecca Rosen se livrou daquela experiência. depois de que Carla a protegesse, o dia da liberação do hospital judeu, Rebecca se mudou com os Von Ulrich. Sua casa se encontrava na zona soviética, mas não tinha nenhum outro sítio aonde ir. escondeu-se durante meses no desvão, como se fora uma criminal, baixando sozinho de noite, quando os soviéticos já se dormiram depois de embebedar-se. Carla passava com ela um par de horas quando podia, e naqueles momentos jogavam às cartas e compartilhavam seu passado. Carla queria ser como uma irmã maior para ela, mas Rebecca a tratava como a uma mãe. Então Carla soube que ia ser mãe de verdade. Maud e Monika passavam já dos cinqüenta e, felizmente, eram muito majores para ter filhos, e Ada tinha tido sorte, mas tanto Carla como Frieda se tinham ficado grávidas de seus violadores. Frieda abortou. Era uma prática ilegal, e a lei nazista que a castigava com a pena de morte seguia vigente. Por isso Frieda foi visitar uma parteira, que lhe praticou o aborto em troca de cinco cigarros. Frieda contraiu uma infecção grave, e teria morrido se Carla não tivesse conseguido um pouco de penicilina, muito escassa no hospital. Carla decidiu ter ao menino. Seus sentimentos ao respeito flutuavam sem cessar de um extremo ao outro. Pela manhã, quando tinha náuseas, rabiava contra quão animais tinham violado seu corpo e lhe tinham imposto aquela carga. Em outros momentos se surpreendia sentada com as mãos sobre o ventre e o olhar perdido, sonhando acordada com ropita de bebê. Logo se perguntava se a cara do pequeno recordaria a algum daqueles homens e a faria odiar a seu próprio filho. Mas seguro que também teria algum rasgo dos Von Ulrich… Se sentia ansiosa e assustada. Em janeiro de 1946 estava já de oito meses. Como a maioria dos alemães, passava frio, fome e penúrias. Quando já não pôde ocultar seu estado, teve que abandonar a enfermaria e somar-se às legiões de parados. As rações de comida se repartiam a cada dez dias. A quantidade diária para quem carecia de privilégios especiais era de mil e quinhentas calorias. E ainda terei que pagá-la, por descontado. Inclusive os que tinham dinheiro em efetivo e cartilhas de racionamento às vezes se encontravam com que não havia comida que comprar. Carla se tinha exposto a possibilidade de pedir aos soviéticos um trato especial pelo trabalho que tinha levado a cabo como espião durante a guerra. Mas Heinrich tinha-o tentado e tinha sofrido uma experiência aterradora. Os serviços secretos do Exército Vermelho esperavam que seguisse espiando para eles e lhe pediram que se infiltrasse no exército americano. Quando ele se negou, mostraram-se hostis e o ameaçaram enviando a um campo de trabalhos forçados. Conseguiu liberar-se argüindo que não falava inglês, e que portanto não lhes seria de nenhuma utilidade. Mas Carla estava bem advertida e decidiu que seria mais seguro guardar silêncio. Aquele dia, Carla e Maud estavam contentes porque tinham ajustado a venda de uma cômoda. Era um móvel de estilo jugendstil, de madeira de carvalho clara e veteada, que os pais do Walter tinham comprado quando se casaram, em 1889. Carla, Maud e Ada o carregaram em um carrinho de mão emprestado. Seguia sem haver homens na casa. Erik e Werner se contavam entre os milhões de soldados alemães que tinham desaparecido. Possivelmente estivessem mortos. O coronel Beck havia dito a Carla que quase três milhões de alemães tinham morrido nos combates do frente oriental a conseqüência da fome, o frio e as enfermidades. Mas outros dois milhões seguiam com vida nos campos de trabalhos forçados da União Soviética. Alguns tinham retornado, os que tinham evitado aos guardas e aos que tinham deixado partir porque estavam muito doentes para trabalhar; todos eles se somaram aos milhares de deslocados abandonados a sua sorte por toda a Europa e que tratavam de encontrar o modo de chegar a suas casas. Carla e Maud tinham enviado cartas à atenção do Exército Vermelho, mas nunca haviam recebido resposta. A Carla a atormentava a perspectiva da volta do Werner. Ainda o amava e confiava desesperadamente em que seguisse vivo, mas também a aterrava reencontrar-se com ele estando grávida do filho de um violador. Embora não era culpa dela, sentia certa vergonha irracional. As três mulheres empurraram o carrinho de mão pelas ruas. Deixaram em casa a Rebecca. A orgia de violações e saques do Exército Vermelho começava a amainar, e Rebecca já não vivia no desvão, mas para uma garota bonita ainda era arriscado deixar-se ver. Enormes fotografa do Lenin e Stalin penduravam no Unter dêem Confinem, o antigo bulevar da élite mais moderna da Alemanha. A maioria das ruas do Berlim haviam ficado arrasadas, e as ruínas dos edifícios ruídos se empilhavam cada poucos centenares de metros, talvez para ser reutilizadas se algum dia os alemães eram capazes de reconstruir seu país. destruíram-se hectares de casas, em muitos casos maçãs inteiras da cidade. demoraria-se anos em retirar os escombros. Havia milhares de cadáveres apodrecendo-se entre eles, e o repugnante aroma adocicado da carne humana em decomposição tinha flutuado no ar todo o verão. Agora já solo se percebia quando chovia. Enquanto isso, a cidade tinha sido dividida em quatro zonas: a russa, a americana, a britânica e a francesa. As tropas de ocupação tinham requisitado muitos dos edifícios que seguiam em pé. Os berlinenses viviam onde podiam; com freqüência procuravam um precário refúgio nas habitações de casas semidemolidas. A cidade voltava a ter água corrente e a eletricidade ia e vinha, mas resultava muito difícil encontrar combustível para cozinhar e combater o frio. Aquela cômoda era igual de valiosa como móvel que como lenha. Levaram-na ao Wedding, na zona francesa, onde a venderam a um coronel parisino encantador por um cartão do Gitanes. Com a ocupação, os soviéticos haviam emitido um excesso de moeda e provocado com isso sua desvalorização, de modo que todo comprava e se vendia em troca de cigarros. Voltaram para casa exultantes, Maud e Ada empurrando o carrinho de mão vazio e Carla caminhando a seu lado. Doía-lhe tudo depois do esforço, mas eram ricas: um cartão de cigarros ia dar para muito. Caiu a noite e a temperatura desceu em picado. O caminho cruzava um breve trecho do setor britânico. Carla às vezes se perguntava se os britânicos ajudariam a sua mãe se soubessem o calvário que estava passando. Embora, por outra parte, fazia já vinte e seis anos que Maud era cidadã alemã. Seu irmão, o conde Fitzherbert, era rico e influente, mas se tinha negado a ajudá-la depois de que ela se casasse com o Walter von Ulrich, e era um homem teimoso; dificilmente trocaria de atitude. encontraram-se com uma pequena multidão, umas trinta ou quarenta pessoas andrajosas, frente a uma casa que tinha sido confiscada pelas forças de ocupação. Ficando nas pontas dos pés para saber o que era o que olhavam, as três mulheres viram que dentro se celebrava uma festa. Pelas janelas espionaram estadias muito bem iluminadas, homens renda-se, mulheres com taças na mão e garçonetes caminhando entre os convidados com bandejas cheias de comida. Carla olhou a seu redor. A multidão estava formada mayoritariamente por mulheres e meninos —não ficavam muitos homens no Berlim, nem, de fato, na Alemanha—, e todos olhavam ofegantes as janelas, como pecadores repudiados às portas do paraíso. Era uma imagem patética. —Isto é obsceno —disse Maud, e enfiou pelo atalho que levava a entrada da casa. Um guarda britânico lhe fechou o passo. —Nein, nein —lhe disse. Provavelmente fossem as únicas palavras que conhecia em alemão. Maud se dirigiu a ele no pulcro inglês que tinha falado de jovem. —Tenho que ver o oficial ao mando imediatamente. Carla admirou o valor e o aprumo de sua mãe, como sempre. O guarda olhou vacilante o puído casaco do Maud, mas um instante depois bateu na porta. Esta se abriu e por ela apareceu uma cara. —Uma dama inglesa quer ver a comandante —disse o guarda. Ao pouco, a porta voltou a abrir-se e duas pessoas saíram. Poderiam ter sido as caricaturas de um oficial britânico e sua esposa: ele com uniforme de ornamento e passarinha negra, e ela com vestido comprido e pérolas. —boa noite —disse Maud—. Lamento muito interromper sua festa. Ambos a olharam, atônitos de que uma mulher esfarrapada se dirigisse a eles. —Acreditava que deviam ver o que lhe estão fazendo a esta pobre gente —acrescentou Maud. O casal olhou à multidão. —Embora solo seja por compaixão, poderiam correr as cortinas —sentenciou. —OH, Meu deus, George, crie que fomos desconsiderados? —perguntou a mulher um momento depois. —Involuntariamente, talvez —respondeu o homem com aspereza. —Poderíamos lhes compensar lhes dando um pouco de comida? —Sim —se apressou a responder Maud—. Seria um gesto amável, além de uma desculpa. O oficial parecia duvidar. Provavelmente dar de presente canapés a alemães famintos transgredia algum tipo de normativa. —George, carinho, podemos fazê-lo? —suplicou-lhe a mulher. —Ora, está bem —respondeu seu marido. A mulher se voltou para o Maud. —Obrigado por nos avisar. Asseguro-lhe que não queríamos fazer isto. —De nada —repôs Maud, e retrocedeu pelo atalho. Minutos depois, os convidados começaram a sair da casa com bandejas de sándwiches e bolos, que ofereceram à esfomeada multidão. Carla sorriu. O descaramento de sua mãe tinha sortido efeito. Agarrou uma porção grande de bolo de frutas que engoliu com anseia em quatro bocados; tinha mais açúcar da que tinha ingerido nos últimos seis meses. correram-se as cortinas, os convidados voltaram para a casa e a multidão se dispersou. Maud e Ada agarraram os punhos do carrinho de mão e prosseguiram caminho de casa. —Bem feito, mamãe —disse Carla—. Um cartão do Gitanes e uma comida grátis, e na mesma tarde! Carla caiu na conta de que, além dos soviéticos, eram poucos os soldados de ocupação que tratavam com crueldade aos alemães. Parecia-lhe algo surpreendente. Os americanos lhes davam de presente chocolate. Inclusive os franceses, cujos filhos tinham acontecida fome sob a ocupação alemã, estavam acostumados a mostrar-se amáveis com eles. depois de todo o sofrimento que infligimos —pensou—, é assombroso que não nos odeiem mais. Por outra parte, entre os nazistas, o Exército Vermelho e os bombardeios aéreos, possivelmente criam que já recebemos suficiente castigo. Era já tarde quando chegaram a casa. Devolveram o carrinho de mão aos vizinhos que a tinham deixado e deram de presente um maço de cigarro do Gitanes a modo de compensação pelo favor. Entraram na casa, que felizmente seguia intacta. A maioria das janelas não tinham vidros, e a alvenaria estava repleta de crateras, mas a moradia não tinha sofrido danos estruturais e ainda protegia do frio. De todos os modos, agora as mulheres viviam na cozinha; dormiam ali em colchões que de noite levavam do saguão. Já era bastante complicado esquentar uma estadia, e não dispunham de combustível para o resto da casa. No passado, no forno da cozinha tinha ardido carvão, mas já era do todo impossível consegui-lo. Entretanto, tinham descoberto que nele podiam arder muitos outros materiais: livros, periódicos, móveis, inclusive cortinas de qualidade. Dormiam de dois em dois, Carla com a Rebecca e Maud com a Ada. Rebecca às vezes suplicava dormir em braços da Carla, como tinha feito a noite posterior à morte de seus pais. A larga caminhada tinha deixado esgotada a Carla, que se tombou nada mais chegar. Ada acendeu o forno com periódicos velhos que Rebecca tinha descido do desvão. Maud acrescentou água à sopa de favas que tinha demasiado do almoço e a reaqueceu para o jantar. Ao sentar-se para tomar a sopa, Carla sentiu uma forte dor no abdômen. Soube que não se devia ao esforço de ter empurrado o carrinho de mão. Era outra coisa. Pensou que dia era e retrocedeu mentalmente até a data da liberação do hospital judeu. —Mamãe —disse, temerosa—, acredito que já vem o bebê. —É muito logo! —disse Maud. —Estou de trinta e seis semanas e tenho contrações. —Será melhor que nos preparemos. Maud subiu a procurar toalhas. Ada levou uma cadeira do comilão. Guardava um prático pedaço de aço que tinha recolhido na cratera de uma bomba e que utilizava como marreta. A golpes, reduziu a cadeira a pequenos fragmentos de madeira para reavivar o fogo no forno. Carla se levou as mãos a seu inchado ventre. —Poderia ter esperado a que fizesse menos frio, bebê —disse. Em seguida começou a sentir muito dor para notá-lo. Jamais tinha conhecido uma dor tão intensa. Nem tão prolongado. Esteve de parto toda a noite. Maud e Ada se alternavam para lhe sustentar a mão enquanto ela gemia e gritava. Rebecca as olhava, pálida e assustada. A luz cinzenta do amanhecer começava a filtrar-se através do periódico que cobria a janela da cozinha quando ao fim apareceu a cabeça do bebê. Carla sentiu mais alivio que em toda sua vida, embora a dor não remeteu de forma imediata. Depois de outro empurrão agônico, Maud recolheu ao bebê de entre suas pernas. —É um menino —disse. Soprou-lhe a cara, e o pequeno abriu a boca e chorou. Maud o entregou a Carla e a ajudou a incorporar-se com umas almofadas que foi procurar ao salão. O bebê tinha um denso arbusto de cabelo negro. Maud atou o cordão umbilical com uma parte de linho de algodão e depois o cortou. Carla se desabotoou a blusa e lhe deu o peito ao menino. Preocupava-lhe não ter leite. Seus peitos teriam que haver-se inchado e gotejado para o final do embaraço, mas não o tinham feito, possivelmente porque o bebê era prematuro, ou possivelmente porque a mãe estava mal alimentada. Entretanto, depois de que o bebê sugasse uns instantes, Carla notou uma dor estranha e o leite começou a fluir. O bebê dormiu em seguida. Ada levou uma bacia com água quente e um pano, e lavou com delicadeza a cara e a cabeça do pequeno, e depois o resto do corpo. —Que bonito é! —sussurrou Rebecca. —Mamãe, parece-te bem que o chamemos Walter? A intenção de suas palavras não era dramática, mas Maud se desmoronou. Lhe contraiu o rosto e se dobrou sobre si mesmo, convulsionada por uns terríveis soluços. recuperou-se o justo para dizer O sinto, e voltou a sumir-se na dor. —OH, Walter, meu Walter —disse, sem deixar de chorar. Finalmente conseguiu acalmar-se. —Sinto-o —voltou a dizer—. Não pretendia montar uma escenita. —secou-se a cara com a manga—. É sozinho que eu adoraria que seu pai pudesse ver o bebê. É tão injusto… Ada as surpreendeu com uma entrevista do Livro do Job: —Deus nos dá e Deus nos tira —disse—. Bendito seja seu nome. Carla não acreditava em Deus —nenhuma entidade sagrada digna de tal nome teria permitido que chegassem a existir os campos de extermínio nazistas—, mas, mesmo assim, a oração reconfortou-a, pois apelava a aceitá-lo tudo na vida, inclusive a dor do nascimento e a aflição da morte. Maud também pareceu encontrar consolo em ela, e se serenou um pouco mais. Carla contemplou com adoração ao bebê Walter. Jurou que o cuidaria, alimentaria-o e lhe daria calor, encontrasse os obstáculos que encontrasse pelo caminho. Era o menino mais maravilhoso que jamais tinha nascido, e ela o quereria e o mimaria toda a vida. O pequeno despertou e Carla voltou a lhe dar de mamar. Sugou satisfeito, fazendo ruiditos com a boca, enquanto as quatro mulheres o contemplavam. Durante um momento, na cozinha cálida e tenuemente iluminada, não se ouviu outro som. II O primeiro discurso de um novo parlamentario se conhece como discurso inaugural e está acostumado a ser tedioso. Nele devem dizer-se certas coisas, empregar-se certas frases manidas e tratar um tema nada controvertido. Colegas e opositores por igual felicitam ao recém-chegado, observam-se as tradições e se rompe o gelo. Lloyd Williams pronunciou seu primeiro discurso autêntico poucos meses depois, durante o debate sobre a National Insurance Bill, a Lei da Segurança Social. Era um assunto imponente. Enquanto o preparava tinha a dois oradores em mente. Seu avô, Dai Williams, utilizava a linguagem e a cadência da Bíblia, não só na capela mas também —possivelmente especialmente— quando falava da dureza e a injustiça da vida do mineiro do carvão. Gostava das palavras contundentes e profundas: esforço, pecado, cobiça. Falava do lar, da mina e da tumba. Churchill fazia o mesmo, mas com um humor do que Dai Williams carecia. Suas frases largas e majestosas estavam acostumadas acabar com uma imagem inesperada ou um giro de seu significado. Sendo diretor do periódico governamental British Gazette durante a Greve Geral de 1926, tinha advertido aos sindicalistas: Tenham muito claro isto: se voltarem a deixar cair sobre nós uma greve geral, deixaremos cair sobre vós outra British Gazette. Lloyd acreditava que essas surpresas eram necessárias nos discursos, que eram como as passas em uma bolacha. Mas quando ficou em pé e começou a falar, viu que suas palavras, escolhidas com tanto esmero, de repente pareciam irreais. Era evidente que seu público compartilhava essa impressão, e Lloyd percebeu que os cinqüenta ou sessenta parlamentarios presentes na câmara só escutavam pela metade. Sentiu um instante de pânico: como podia estar resultando tedioso um tema tão importante para a gente a que representava? No primeiro banco, destinado aos membros do governo, viu sua mãe, já ministra de Escolas, e a seu tio Billy, ministro do Carvão. Lloyd sabia que Billy Williams tinha começado a trabalhar na mina aos treze anos. Ethel tinha a mesma idade quando começou a esfregar os chãos do Ty Gwyn. Aquele debate não girava em torno de frases brilhantes, a não ser em torno de suas vidas. Um minuto depois abandonou o guia e improvisou. Em lugar do que tinha escrito, decidiu recordar a miséria das famílias operárias que se arruinaram a conseqüência do desemprego ou as discapacidades, cenas que tinha presenciado no East End de Londres e na jazida de carvão do Gales do Sul. Sua voz delatou a emoção que sentia, o que lhe causou certo abafado, mas seguiu adiante. Advertiu como os pressente começavam a lhe emprestar atenção. Falou de seu avô e de outros que se somaram ao início do movimento trabalhista com o sonho de conseguir um seguro universal de desemprego para desterrar para sempre o temor a a indigência. Quando se sentou, estalou um clamor de aprovação. Na tribuna de espectadores, sua esposa, Daisy, sorriu orgulhosa e elevou o polegar em sua direção. Lloyd escutou transbordante de satisfação o resto do debate. Sentia que tinha superado sua primeira prova real como parlamentario. Depois, no vestíbulo, lhe aproximou um whip trabalhista, um dos responsáveis por garantir que os parlamentarios votassem corretamente, e lhe felicitou por o discurso. —Gostaria de ser secretário privado parlamentario? —perguntou-lhe. Lloyd se estremeceu. Todos os ministérios e secretarias de Estado contavam ao menos com um. Em realidade, os secretários privados parlamentarios com freqüência faziam pouco mais que de acompanhantes, mas o posto estava acostumado a ser o primeiro passo para a nomeação ministerial. —Seria uma honra —respondeu Lloyd—. Para quem trabalharia? —Para o Ernie Bevin. Lloyd não dava crédito à sorte que estava tendo. Bevin era secretário do Foreign Office e o homem mais próximo ao primeiro-ministro, Attlee. A estreita relação que compartilhavam era um caso de atração de opostos. Attlee era de classe média, filho de um advogado, graduou-se em Oxford e tinha sido oficial na Primeira Guerra Mundial. Bevin era filho ilegítimo de uma criada, nunca tinha conhecido a seu pai, tinha começado a trabalhar aos onze anos e tinha baseado o descomunal Sindicato de Trabalhadores do Transporte. Também eram opostos fisicamente; Attlee, magro, pulcro, discreto e solene; Bevin, enorme, alto, forte, grosso e com uma risada estridente. O secretário de Assuntos Exteriores se referia ao primeiro-ministro como o pequeno Clem. Eram, do mesmo modo, aliados incondicionais. Bevin era um herói para o Lloyd e para milhões de cidadãos britânicos da pé. —Nada eu gostaria mais —disse Lloyd—, mas não tem já um secretário privado Bevin? —Necessita dois —respondeu o whip—. Vá ao Foreign Office amanhã às nove e poderá começar. —Obrigado! Lloyd caminhou a toda pressa pelo corredor revestido com painéis de carvalho, em direção ao despacho de sua mãe. Havia ficado de encontrar-se ali com o Daisy depois do debate. —Mamãe! —disse assim que entrou—. Me nomearam secretário privado do Ernie Bevin! Então viu que Ethel não estava sozinha. O conde Fitzherbert se encontrava também ali. Fitz olhou ao Lloyd com uma mescla de assombro e aversão. Pese ao desconcerto, Lloyd se fixou em que seu pai levava um traje elegante e impecável e um colete cruzado. Olhou a sua mãe. Parecia serena, como se aquele encontro não a surpreendesse. Devia havê-lo planejado. O conde chegou à mesma conclusão. —Que demônios é isto, Ethel? Lloyd olhou ao homem cujo sangue corria por suas veias. Embora a situação era embaraçosa, Fitz conservava o aprumo e a dignidade. Era um homem arrumado, apesar a ter um olho semicerrado a conseqüência de quão feridas tinha sofrido na batalha do Somme. apoiava-se sobre um fortificação, outra seqüela do Somme. A poucos meses de cumprir os sessenta, ia imaculadamente polido: levava o cabelo arrumado, a gravata de cor prata bem atada e os sapatos negros lustrados. A Lloyd também lhe tinha gostado sempre cuidar seu aspecto. Daí me vem, pensou. Ethel se aproximou do conde. Lloyd conhecia o bastante a sua mãe para saber o que significava aquele gesto. Estava acostumado a recorrer a seu encanto quando queria convencer a um homem. Entretanto, ao Lloyd contrariava vê-la mostrando-se tão encantada com alguém que se aproveitou dela e logo a tinha abandonado. —Lamentei muito a notícia da morte do Boy —disse ao Fitz—. Na vida não há nada mais valioso que os filhos, não te parece? —Tenho que ir —disse Fitz. Até esse momento, Lloyd apenas se cruzou com o Fitz. Nunca antes tinha passado tempo com ele nem lhe tinha ouvido pronunciar mais que umas quantas palavras. Apesar ao incômodo da situação, Lloyd estava fascinado. Inclusive mal-humorado, Fitz seguia exercendo uma espécie de atração inata. —Fitz, por favor —disse Ethel—, tem um filho ao que nunca reconheceste, um filho de que teria que te orgulhar. —Não deveria fazer isto, Ethel —repôs Fitz—. Um homem tem direito a esquecer os enganos de sua juventude. Lloyd se encolheu morto de calor, mas sua mãe insistiu. —por que foste querer esquecer? Sei que foi um engano, mas olha-o agora, é parlamentario, acaba de pronunciar um discurso emocionante e foi renomado secretário privado do secretário do Foreign Office. Fitz evitava olhar ao Lloyd. —Quer nos fazer acreditar que nossa relação foi um escarcéu sem importância —prosseguiu Ethel—, mas você sabe que não é certo. Sim, fomos jovens e insensatos, e também fogosos, eu tanto como você, mas nos amávamos. Amávamo-nos de verdade, Fitz. Deveria admiti-lo. Não sabe que se te negar, se negar sua verdade, perde a alma? Lloyd advertiu que o semblante do Fitz já não seguia impassível. Era evidente que se esforçava por conservar o controle. Lloyd compreendeu que sua mãe tinha posto o dedo na chaga. Não se tratava tanto de que Fitz se envergonhasse de ter um filho ilegítimo como de que era muito orgulhoso para aceitar que tinha amado a uma criada. E Lloyd supôs que provavelmente tinha amado ao Ethel mais que a sua esposa, e que isso desbaratava todas suas crenças mais fundamentais sobre a hierarquia social. Lloyd se decidiu a intervir. —Estive com o Boy no final, senhor. Morreu com valentia. Fitz o olhou pela primeira vez. —Meu filho não necessita sua aprovação —disse. Lloyd se sentiu como se o tivessem esbofeteado. Inclusive Ethel se sobressaltou. —Fitz! —exclamou—. Como pode ser tão cruel? Nesse momento entrou Daisy. —Olá, Fitz! —saudou-lhe alegremente—. Certamente acreditava que te tinha liberado de mim, mas agora volta a ser meu sogro. Não te parece divertido? —Só estou tentando convencer ao Fitz para que estreite a mão ao Lloyd —disse Ethel. —Procuro não estreitar a mão aos socialistas —replicou Fitz. Ethel liberava uma batalha perdida, mas não estava disposta a render-se. —Olhe tudo o que herdou que ti! parece-se com ti, viu como você, compartilha seu interesse pela política… É provável que acabe sendo secretário do Foreign Office, o que você sempre quis ser! O rosto do Fitz se obscureceu ainda mais. —Agora já é do todo impossível que chegue a sê-lo. —encaminhou-se para a porta—. E absolutamente quereria que esse grande despacho o ocupasse meu bastardo bolchevique! —Dito o qual, partiu. Ethel rompeu a chorar. Daisy rodeou ao Lloyd com um braço. —Sinto-o muito —lhe disse. —Não se preocupe —respondeu Lloyd—. Não estou surpreso nem decepcionado. —Não era verdade, mas não queria dar uma imagem de lástima—. Faz muito tempo que me repudiou. —Olhou ao Daisy com adoração—. E sou afortunado por ter a muitas outras pessoas que me querem. —É minha culpa —disse Ethel, chorosa—. Não deveria lhe haver pedido que viesse aqui. Deveria ter sabido que sairia mau. —Não importa —atravessou Daisy—. Tenho uma boa notícia. Lloyd sorriu. —Do que se trata? Daisy olhou ao Ethel. —Está preparada para isto? —Suponho que sim. —diga-nos isso a apressou Lloyd—. O que é? —vamos ter um filho —disse Daisy. III O irmão da Carla, Erik, voltou para casa aquele verão, a um passo da morte. Tinha contraído a tuberculose em um campo de trabalhos forçados soviético, e o tinham deixado em liberdade quando sua enfermidade se agravou até o ponto de lhe impedir de trabalhar. Levava semanas sem logo que dormir, viajando de trens de mercadorias e em caminhões cujos condutores acessavam a suas súplicas. Chegou a casa dos Von Ulrich descalço e com roupa imunda. Tinha o rosto cadavérico. Entretanto, não morreu. Talvez se devesse à companhia de pessoas que lhe queriam, ou à chegada do calor quando o inverno deu passo à a primavera, ou possivelmente simplesmente ao descanso, mas o caso é que a tosse foi remetendo e Erik recuperou suficiente energia para fazer alguns trabalhos na casa, como restaurar janelas destroçadas, repor telhas e desentupir tuberías. Felizmente, a princípios de ano Frieda Franck tinha encontrado um filão de ouro. Ludwig Franck tinha morrido no bombardeio aéreo que tinha destruído sua fábrica, e durante um tempo Frieda e sua mãe tinham vivido na indigência, como todos outros. Entretanto, não demorou para encontrar trabalho como enfermeira na zona americana, e pouco depois, conforme contou a Carla, um grupo de médicos norte-americanos pediram-lhe que vendesse seus excedentes de comida e cigarros no mercado negro em troca de uma parte das lucros. A partir de então se apresentou em casa da Carla uma vez por semana com uma pequena cesta cheia de provisões: roupa de casaco, velas, pilhas para lanternas, fósforos, sabão e comida (panceta, chocolate, maçãs, arroz, pêssego em calda de açúcar). Maud dividia a comida em rações e dava a Carla o dobro. Carla o aceitava sem duvidar, não por ela, a não ser para alimentar melhor ao bebê Walli. Sem os produtos ilegais da Frieda, provavelmente Walli não sairia adiante. O bebê trocava depressa. Tinha perdido o cabelo negro com o que tinha nascido, e em seu lugar tinha aparecido um pêlo fino e claro. Aos seis meses já tinha os maravilhosos olhos verdes do Maud. À medida que seu carita ia cobrando forma, Carla observou uma dobra carnuda nas comissuras dos olhos que os tornava rasgados, e se perguntou se seu pai seria siberiano. Não recordava a todos os homens que a tinham violado. Tinha mantido os olhos fechados a maior parte do tempo. Já não os odiava. Era estranho, mas o fazia tão feliz ter ao Walli que logo que lamentava o que tinha ocorrido. A Rebecca fascinava Walli. Com quinze anos recém cumpridos, o bastante major já para começar a ter sentimentos maternais, ajudava com entusiasmo a Carla a banhá-lo e vesti-lo. Jogava com ele a todas as horas, e o pequeno balbuciava entusiasmado quando a via. Assim que Erik se recuperou, filiou-se ao Partido Comunista. A Carla desconcertou sua decisão. depois do que tinha sofrido à mãos dos soviéticos, como era capaz de fazer isso? Mas em seguida advertiu que falava do comunismo do mesmo modo que tinha falado do nazismo uma década antes. Carla só confiava em que, nesta ocasião, não demorasse tanto em desiludir-se. Os Aliados estavam ansiosos por instaurar a democracia na Alemanha, e no Berlim se programaram eleições municipais para esse mesmo ano, 1946. Carla estava segura de que a cidade não recuperaria a normalidade até que a governassem seus cidadãos, pelo que decidiu posicionar-se a favor da Partida Socialdemócrata. Mas os berlinenses em seguida descobriram que os ocupantes soviéticos tinham um estranho conceito do que significava a democracia. Os resultados das eleições na Austria, celebradas o anterior mês de novembro, haviam conmocionado aos soviéticos. Os comunistas austríacos esperavam ficar igualados aos socialistas, mas solo conseguiram quatro dos 165 bancos. Ao parecer, os eleitores culpavam ao comunismo da brutalidade do Exército Vermelho. O Krem lin, nada habituado às eleições genuínas, não tinha previsto algo assim. Para evitar um resultado similar na Alemanha, os soviéticos propuseram a fusão dos comunistas e os socialdemócratas no que denominaram um frente unido. Os socialdemócratas se negaram, face à forte pressão que receberam. Na Alemanha do Este, os soviéticos começaram a detê-los, tal como o tinham feito os nazistas em 1933. E então se forçou a fusão. Mas no Berlim as eleições estiveram fiscalizadas pelos quatro Aliados, e os socialdemócratas sobreviveram. Quando chegou o calor, Carla se sentia já bastante recuperada e começou a encarregar-se de ir procurar a comida racionada. Levava consigo ao Walli envolto em um almofadão, pois não tinha muita roupa de bebê. Uma manhã, enquanto fazia penetra para conseguir as batatas a umas maçãs de casa, Carla se surpreendeu ao ver chegar um jipe norte-americano e a Frieda no assento do co-piloto. O chofer, alopécico e de média idade, beijou-a nos lábios e Frieda se apeou. Levava um vestido azul sem mangas e sapatos novos. afastou-se a toda pressa em direção à casa dos Von Ulrich, carregada com a pequena cesta. Carla o viu tudo como em um brilho. Frieda não comercializava no mercado negro, e não havia nenhum grupo de médicos. Era a amante a salário de um oficial americano. Não era algo insólito. Milhares de alemãs jovens e bonitas se viram nessa tesitura: escolher entre ver morrer de fome a sua família ou deitar-se com um oficial generoso. As francesas haviam feito o mesmo sob a ocupação alemã; as esposas dos oficiais, de volta na Alemanha, contavam-no com amargura. em que pese a isso, Carla estava horrorizada. Acreditava que Frieda amava ao Heinrich. Estavam planejando casar-se assim que a vida recuperasse um mínimo de normalidade. Carla se sentiu angustiada. Quando chegou seu turno, comprou a ração de batatas e voltou para casa tão depressa como pôde. Encontrou a Frieda acima, na sala de estar. Erik a tinha limpo e tinha posto papel de periódico nas janelas, o mais prático depois do vidro. Fazia muito tempo que tinham reciclado as cortinas as convertendo em roupa de cama, mas a maioria das cadeiras tinham sobrevivido até então, com o estofo esvaído e gasto. Milagrosamente, o fabuloso piano também seguia ali. Um oficial soviético o tinha visto e havia dito que voltaria para dia seguinte com uma grua para tirá-lo pela janela e levar-lhe mas nunca retornou. Frieda agarrou ao Walli dos braços da Carla e começou a lhe cantar: A, B, C, die Katze lief im Schnee. Carla observou que as mulheres que ainda não tinham filhos, Rebecca e Frieda, não se cansavam de cuidar e mimar ao Walli. As que sim os tinham, Maud e Ada, adoravam-no mas o tratavam de um modo mais pragmático e brioso. Frieda abriu a tampa do piano e animou ao Walli para que esmurrasse as teclas enquanto ela cantava. Fazia anos que ninguém o tocava; Maud não havia tornado a abri-lo da morte de seu último aluno, Joachim Koch. —Está um pouco séria —disse uns minutos depois Frieda a Carla—. O que te passa? —Sei como consegue a comida que nos traz —respondeu Carla—. Não comercializa no mercado negro, verdade? —Pois claro que sim —repôs Frieda—. Do que está falando? —Faz um momento te vi descer de um jipe. —O coronel Hicks se ofereceu a me trazer. —Beijou-te na boca. Frieda apartou o olhar. —Sabia que tinha que me haver baixado antes. Teria que ter vindo a pé da zona americana. —Frieda, e Heinrich? —Nunca saberá! Irei com mais cuidado, juro-lhe isso. —Ainda lhe ama? —É obvio que sim! vamos casar nos. —Então, por que…? —Já passei suficientes penúrias! Quero me pôr roupa bonita e ir a clubes noturnos e dançar. —Não, não é isso o que quer —replicou Carla com firmeza—. Não pode me mentir, Frieda. Faz muito tempo que somos amigas. me diga a verdade. —A verdade? —Sim, por favor. —Está segura? —Completamente. —Tenho-o feito pelo Walli. Aquela resposta deixou a Carla sem respiração. Não lhe tinha ocorrido que esse fora o motivo, mas tinha sentido. Carla acreditava capaz a Frieda de fazer semelhante sacrifício por ela e seu bebê. Mas se sentia fatal. Isso a fazia responsável por que Frieda se estivesse prostituyendo. —É terrível! —disse—. Não teria que havê-lo feito… Teríamos saído adiante de algum modo. Frieda saltou do tamborete do piano com o bebê ainda em braços. —Não, não é verdade! —bramou. Walli se assustou e começou a chorar. Carla o agarrou e o embalou, lhe dando tapinhas nas costas. —Não teriam saído adiante —disse Frieda, mais acalmada. —Como sabe? —Durante todo o inverno chegaram bebês ao hospital, nus, envoltos em periódicos, mortos de fome e fria. Quase não podia suportar olhá-los. —OH, Deus minha… —Carla estreitou ao Walli contra seu peito. —Adquirem uma cor azulada quando morrem de frio. —Basta. —Tenho que lhe dizer isso se não, não entenderá por que o tenho feito. Walli teria sido um desses meninos congelados e azuis. —Sei —sussurrou Carla—. Sei. —Percy Hicks é um homem amável. Tem uma mulher em Boston que ao parecer não se cuida muito, e sou a jovem mais atrativa que viu. É tenro e rápido no sexo, e sempre utiliza preservativo. —Deveria deixar de fazê-lo —disse Carla. —Em realidade não pensa isso. —Não —confessou Carla—. E isso é o pior. Sinto-me tão culpado… Sou culpado. —Não o é. É uma decisão que tomei por mim mesma. As mulheres alemãs têm que tomar decisões difíceis. Estamos pagando pelas decisões fáceis que os homens alemães tomaram faz quinze anos. Homens como meu pai, que acreditava que Hitler seria benéfico para os negócios, e como o pai do Heinrich, que votou a favor da Lei de Habilitação. Os pecados dos pais os pagamos as filhas. Ouviram um forte golpe na porta da rua. Instantes depois lhes chegou a correria de uns passos e Rebecca correu a esconder-se acima, se por acaso era o Exército Vermelho. —OH, senhor! bom dia! —saudou a voz da Ada. Parecia surpreendida e um pouco preocupada, embora não assustada. Carla se perguntou quem poderia ter provocado essa mescla de reações na criada. A seguir ouviram uns passos pesados e masculinos, e Werner entrou na sala. Ia sujo e andrajoso, e estava magro como um alfinete, mas seu atrativo rosto luzia um amplo sorriso. —Sou eu! —disse, exultante—. tornei! Então viu o bebê. ficou boquiaberto e seu sorriso desapareceu. —OH… —balbuciou—. O que…? Quem…? De quem é o bebê? —Meu, carinho —respondeu Carla—. Deixa que te explique. —Explicar? —repôs ele, irado—. Que explicação necessita isto? tiveste um filho com outro! —deu-se a volta para partir. —Werner! —gritou Frieda—. Nesta sala há duas mulheres que lhe querem. Não vá nos escutar. Não o entende. —Acredito que o entendo tudo. —A Carla a violaram. Werner empalideceu. —Que a violaram? Quem? —Nunca soube como se chamavam —respondeu Carla. —Chamavam? —Werner tragou saliva—. Foi… foi mais de um? —Cinco soldados do Exército Vermelho. A voz do Werner se reduziu a um sussurro. —Cinco? Carla assentiu. —Mas… não pôde…? Quero dizer… —Também me violaram, Werner —disse Frieda—. E a mamãe. —Céu santo, o que ocorreu aqui? —Um inferno —respondeu Frieda. Werner se deixou cair em uma estragado poltrona de couro. —Acreditava que o inferno era o que eu vivi —disse. Afundou a cara entre as mãos. Carla cruzou a sala com o Walli em braços e ficou em pé frente a Werner. —me olhe, Werner —lhe disse—. Por favor. Ele elevou o olhar, com o rosto contraído pela emoção. —O inferno terminou —acrescentou Carla. —De verdade? —Sim —respondeu ela com firmeza—. A vida é dura, mas os nazistas já não estão, a guerra acabou, Hitler está morto, e os violadores do Exército Vermelho estão mais ou menos sob controle. O pesadelo terminou. E os dois estamos vivos, e juntos. Ele alargou o braço e tomou uma mão. —Tem razão. —Temos ao Walli, e em seguida conhecerá uma garota de quinze anos chamada Rebecca, que em certo modo se converteu em minha filha. Temos que formar uma nova família com o que a guerra nos deixou, igual a temos que construir novas casas com os escombros que há nas ruas. Werner assentiu, aceitando a realidade. —Necessito seu amor —lhe disse Carla—. E Rebecca e Walli também. Werner ficou em pé lentamente. Carla o olhou espectador. Ele não disse nada, mas, depois de um comprido momento, abraçou-os a ela e ao bebê com ternura. IV Com as normativas de guerra ainda vigentes, o governo britânico seguia tendo capacidade para abrir uma mina de carvão em qualquer parte, à margem da vontade do proprietário das terras, a quem se pagavam compensações pelas perdas dos ganhos que lhe tivessem reportado seu cultivo ou sua exploração comercial. Billy Williams, ministro do Carvão, autorizou a escavação de uma mina a céu aberto nos terrenos do Ty Gwyn, a residência palaciana do conde Fitzherbert, situada aos subúrbios do Aberowen. Neste caso não cabia pagar compensação, pois não se tratava de um terreno comercial. A decisão levantou protestos entre os conservadores da Câmara dos Comuns. —A montanha de refugos estará justo debaixo das janelas da condessa! —disse indignado um deles. Billy Williams sorriu. —A montanha de refugos do conde esteve debaixo da janela de minha mãe durante cinqüenta anos —replicou. Lloyd Williams e Ethel foram ao Aberowen com o Billy o dia antes de que os operários começassem a escavar. Lloyd teve reticências ao deixar sozinha ao Daisy, que devia dar a luz duas semanas depois, mas era um momento histórico e queria estar ali. A seus avós não faltava já muito para cumprir os oitenta. O avô quase não via, nem sequer com os óculos de culo de garrafa, e a avó estava encurvada. —Que felicidade —disse a avó quando todos se sentaram à velha mesa de Minha cozinha dois filhos aqui. Serve-lhes vitela guisada com purê de nabos e grosas fatias de pão caseiro lubrificado com a banha da carne, e grandes tigelas de chá doce com leite como acompanhamento. De menino, Lloyd tinha comido aquilo muitas vezes, mas nesse momento lhe pareceu uma comida vulgar. Sabia que, inclusive nos tempos difíceis, as mulheres francesas e espanholas as arrumavam para elaborar saborosos pratos delicadamente condimentados com alho e guarnecidos com ervas. envergonhou-se de seus remilgos e fingiu comer e beber com fruição. —Que lástima que se percam os jardins do Ty Gwyn —disse a avó, com falta de tato. Billy se sentiu ferido. —O que quer dizer? Grã-Bretanha necessita o carvão. —Mas às pessoas adora esses jardins. São muito bonitos. fui a vê-los o menos uma vez ao ano desde que era jovem. É uma pena que desapareçam. —Há uma zona de recreio fantástica justo no centro do Aberowen! —Não é o mesmo —repôs a avó, imperturbável. —As mulheres nunca entenderão de política —disse o avô. —Não —conveio a avó—. Suponho que não. Lloyd olhou a sua mãe, que sorriu sem dizer nada. Billy e Lloyd compartilharam o segundo dormitório, e Ethel preparou uma cama no chão da cozinha. —Dormi nesta habitação todas as noites de minha vida até que me alistei no exército —disse Billy enquanto se deitavam—. E todas as manhãs via pela janela essa jodida montanha de refugos. —Baixa a voz, tio Billy —lhe disse Lloyd—. Não quererá que sua mãe te ouça dizer tacos. —Sim, tem razão —respondeu Billy. A manhã seguinte, depois de tomar o café da manhã, todos subiram pela ladeira da colina em direção à mansão. Era uma manhã temperada e, para variar, não chovia. As montanhas se recortavam contra o céu e pareciam mais suaves cobertas pelo manto de erva estival. Quando Ty Gwyn apareceu à vista, Lloyd não pôde evitar vê-la mais como uma edificação bonita que como um símbolo de opressão. Era as duas coisas, por descontado, mas em política nada era singelo. As grandes cancela de ferro estavam abertas. A família Williams entrou na propriedade, onde já se congregou uma multidão: os homens do empreiteiro e sua maquinaria, um centenar aproximado de mineiros e suas famílias, o conde Fitzherbert e seu filho Andrew, um punhado de jornalistas com cadernos de notas e uma equipe de filmagem. Os jardins eram imponentes. A avenida de velhos castanhos havia verdecido já, viam-se cisnes no lago e os bancales de flores transbordavam de cor. Lloyd supôs que o conde se assegurou de que o lugar luzisse aquele dia sua melhor cara. Queria deixar ao governo trabalhista como uma fileira de destruidores aos olhos do mundo. Lloyd sentiu compaixão por ele. O prefeito do Aberowen estava concedendo uma entrevista. —Os habitantes desta cidade são contrários à escavação de uma mina a céu aberto —dizia. Lloyd se surpreendeu; o governo municipal era trabalhista, e opor-se ao governo nacional teria equivalido a lançar pedras sobre seu próprio telhado. —Durante mais de cem anos, a beleza destes jardins refrescou as almas da gente que vive nesta lôbrega paisagem industrial —prosseguiu o prefeito. Passando do discurso preparado à memória pessoal, acrescentou—: Eu declarei a minha esposa aos pés desse cedro. Interrompeu-o um ruído metálico, como o dos passos de um gigante de ferro. Ao voltar-se para a entrada, Lloyd viu como se aproximava uma máquina enorme. Parecia a grua maior do mundo. Tinha um braço de quase trinta metros de comprimento e uma cubeta em que teria cabido perfeitamente um caminhão. O mais pasmoso de tudo era que se deslocava sobre uma espécie de sapatos giratórios de aço que faziam tremer o chão cada vez que o tocavam. —É uma escavadora aranha de arrasto Monighan. Pode carregar com seis toneladas de terra por pazada. O câmara seguiu atentamente a aquela máquina monstruosa enquanto cruzava a entrada. Lloyd só albergava um receio com respeito ao Partido Trabalhista. Muitos socialistas tinham uma nervura de autoritarismo puritano. Era o caso de seu avô, e também do Billy. Não se sentiam cômodos com os prazeres sensoriais. O sacrifício e a abnegação foram mais com eles. Desprezavam a magnífica beleza daqueles jardins por considerá-la irrelevante. equivocavam-se. Ethel não era assim, e tampouco Lloyd. Possivelmente eles não tivessem herdado essa veta desmancha-prazeres. Confiava em que assim fora. Fitz concedia também uma entrevista no atalho de cascalho rosa enquanto o operário da escavadora manobrava com sua máquina até deixá-la em posição. —O ministro do Carvão lhes há dito que quando a mina se esgote o jardim será submetido ao que ele denomina um efetivo programa de restauração —disse—. Eu vos digo que essa promessa não tem nenhum valor. Meu avô, meu pai e eu demoramos mais de um século em conseguir que o jardim alcance este grau de beleza e harmonia. demorariam-se outros cem anos em recuperá-lo. O braço da escavadora descendeu até formar um ângulo de quarenta e cinco graus sobre os arbustos e os bancales de flores do jardim ocidental. O concha de sopa ficou posicionado sobre a grama. Houve um comprido momento de espera. A multidão guardou silêncio. —Comecem de uma vez, pelo amor de Deus! —espetou Billy a gritos. Um engenheiro com chapéu de feltro fez soar um apito. O concha de sopa caiu ao chão com grande estrondo. Seus dentes de aço se cravaram no plano e verde grama. O cabo de arrasto se esticou, ouviu-se um estridente rangido metálico e o concha de sopa começou a retroceder. Em seu arrasto se levou consigo um dunas à beira mar de grandes girassóis, umas roseiras, uns arbustos doces do verão e castanhos de Índias, e um pequeno magnolio. Ao final de seu trajeto, o concha de sopa ficou cheio de terra, flores e novelo. A seguir se elevou uns seis metros, vertendo pelo caminho terra e flores. O braço girou lateralmente. Lloyd viu que era mais alto que a casa. Acreditou que o concha de sopa destroçaria as janelas da planta superior, mas o operário era hábil e o deteve bem a tempo. O cabo se afrouxou, o concha de sopa se derrubou e seis toneladas de jardim caíram ao chão a poucos metros da entrada. O concha de sopa voltou para sua posição inicial, e o processo se repetiu. Lloyd olhou ao Fitz e viu que chorava. 23 1947 I A princípios de 1947 parecia possível que toda a Europa acabasse sendo comunista. Volodia Peshkov não sabia se era algo desejável ou o contrário. O Exército Vermelho dominava a Europa oriental e os comunistas estavam ganhando as eleições na parte ocidental. Estes tinham adquirido prestígio por seu papel na luta contra os nazistas. Cinco milhões de pessoas tinham votado aos comunistas nas primeiras eleições francesas posteriores à guerra, convertendo ao Partido Comunista no mais popular. Na Itália, uma aliança de comunistas e socialistas tinha conseguido 40 por cento dos votos. Na Checoslovaquia, os comunistas em solitário se feito com 38 por cento dos votos e dirigiam o governo eleito de forma democrática. Na Austria e Alemanha a situação era diferente; ali os votantes tinham sido vítimas de espólios e violações à mãos do Exército Vermelho. Nas eleições municipais do Berlim, os socialdemócratas tinham obtido 63 dos 130 bancos, enquanto que os comunistas solo tinham ganho 26. Não obstante, Alemanha estava arruinada e a população passava fome, pelo que o Kremlin ainda confiava em que, desesperada-se, entregasse-se ao comunismo da mesma maneira que se entregou ao nazismo durante a Depressão. Grã-Bretanha era a grande decepção. Tão solo um comunista tinha sido eleito parlamentario nas eleições posteriores à guerra. E o governo trabalhista oferecia quão mesmo prometia o comunismo: o bem-estar, a sanidade gratuita, o acesso generalizado à educação e inclusive a redução da semana trabalhista a cinco dias para os mineiros do carvão. Contudo, no resto da Europa o capitalismo não conseguia tirar a população da crise econômica. E o mau tempo jogava a favor do Stalin, pensou Volodia enquanto observava como se engrossava a capa de neve que cobria as cúpulas em forma de bulbo. O inverno de 1946-47 foi o mais frio que a Europa suportava desde fazia mais de um século. A neve caía sobre o Saint Tropez. Nas estradas e as vias férreas de Grã-Bretanha resultava impossível circular, e a indústria ficou paralisada, o qual não tinha ocorrido nem sequer durante a guerra. Na França, as rações alimentares se reduziram mais que então. A Organização das Nações Unidas calculou que cem milhões de europeus consumiam tão só mil e quinhentas calorias diárias, a quantidade mínima a partir da qual a saúde começa a resentirse da má nutrição. Como os motores produtivos se ralentizaban cada vez mais, a população começou a considerar que não tinha nada que perder e a revolução se via como a única saída. Quando a URSS dispusera de armas nucleares, não haveria país capaz de interpor-se em seu caminho. Zoya, a esposa da Volodia, e seus colegas tinham construído uma pilha atômica no Laboratório Número 2 da Academia de Ciências, um nome vago ideado assim a propósito para designar o centro nevrálgico da investigação nuclear soviética. A pilha tinha alcançado o ponto crítico o dia de Natal, seis meses depois do nascimento do Konstantín, que nesses momentos dormia na creche do laboratório. Se o experimento saía mau, tinha confessado Zoya a Volodia, ao pequeno Kotia não lhe serviria de nada encontrar-se a dois ou três quilômetros de distância, pois todo o centro de Moscou ficaria arrasado por completo. Os sentimentos encontrados entre os que Volodia se debatia em relação com o futuro adquiriram maior relevância a raiz do nascimento de seu filho. Por uma parte, acreditava que a União Soviética merecia dominar a Europa. Era o Exército Vermelho o que tinha derrotado aos nazistas durante quatro devastadores anos de guerra sem quartel. Os outros aliados tinham permanecido à margem, liberando batalhas menores e implicando-se de verdade tão solo nos últimos onze meses. Todas suas baixas juntas ascendiam tão solo a uma pequena parte das soviéticas. Entretanto, logo pensava no que implicava o comunismo: as purgações arbitrárias, as torturas infligidas nos porões da polícia secreta, as arengas dirigidas aos soldados do bando conquistador para que cometessem toda classe de brutalidades, a submissão de toda uma vasta nação às caprichosas decisões de um tirano com mais poder que um czar. De verdade Volodia desejava estender um sistema tão cruel ao resto do continente? Recordou o dia que tinha entrado no Penn Station, em Nova Iorque, e tinha comprado um bilhete para o Albuquerque sem pedir permissão a ninguém nem ter que mostrar a documentação, e a estimulante sensação de liberdade absoluta que lhe tinha produzido. Fazia tempo que tinha jogado ao fogo o catálogo do Sears Roebuck, mas este pervivía em sua memória com as centenas de páginas de coisas bonitas ao alcance de qualquer. Os soviéticos acreditavam que o da liberdade e a prosperidade ocidentais era pura propaganda, mas Volodia sabia que não era assim. Uma parte dele desejava a derrota do comunismo. O futuro da Alemanha, e portanto de toda a Europa, devia decidir-se na Conferência de Ministros de Assuntos Exteriores celebrada em Moscou em março de 1947. Volodia, que tinha sido subido a coronel, estava ao cargo da equipe dos serviços secretos atribuído à conferência. As reuniões se celebravam em uma sala engalanada da Câmara de comércio Aeronáutico, a uma boa distância do hotel Moskvá. como sempre, os delegados e seus intérpretes se sentavam ao redor de uma mesa e seus ajudantes ocupavam várias filas de assentos situados detrás. O ministro dos Assuntos Exteriores soviético, Viacheslav Mólotov, apelidado Culo de Pedra, pediu a Alemanha que pagasse dez mil e milhões de dólares à URSS como compensação pelos danos causados pela guerra. Os americanos e os britânicos protestaram por considerá-lo um golpe mortal para a débil economia alemã. E, com toda probabilidade, isso era precisamente o que Stalin queria. Volodia voltou a relacionar-se com o Woody Dewar, que agora era fotógrafo jornalístico e tinha o encargo de cobrir a conferência. Ele também estava casado, e mostrou a Volodia uma fotografia de uma deslumbrante mulher de cabelo escuro com um bebê em braços. —É consciente de que a Alemanha não tem suficiente dinheiro para lhes compensar pelos danos, verdade? —disse Woody a Volodia de volta de uma sessão fotográfica oficial no Kremlin, enquanto viajavam no assento traseiro de uma limusine ZIS-110B. O nível de inglês da Volodia tinha melhorado e podiam entender-se sem nenhum intérprete. —E como pensam alimentar às pessoas e reconstruir as cidades? —Graças a nossa caridade, é obvio —respondeu Woody—. Nos estamos gastando uma fortuna em ajudá-los. Qualquer compensação que recebam da Alemanha será, em realidade, nosso dinheiro. —Tão mal te parece? Estados Unidos prosperou graças à guerra. Meu país, pelo contrário, ficou devastado. O lógico é que vós paguem. —Os votantes norte-americanos não opinam o mesmo. —Pois ao melhor os votantes norte-americanos se equivocam. Woody se encolheu de ombros. —É possível; mas o dinheiro é dele. Outra vez o de sempre, pensou Volodia: a importância da opinião pública. deu-se conta disso nas ocasiões anteriores em que tinha conversado com Woody. Os americanos tratavam aos votantes com a mesma deferência com que os soviéticos tratavam ao Stalin: em ambos os casos terei que lhes obedecer, equivocassem-se ou não. Woody baixou o guichê. —Não te importa que faça umas quantas fotos da cidade, verdade? Há uma luz preciosa. Acionou o disparador da câmara. Sabia que solo estava autorizado a tomar as fotografias oficiais, mas na rua não havia nada que pudesse resultar comprometido, solo umas mulheres retirando a neve a pazadas. —Não o faça, por favor —disse Volodia apesar disso. inclinou-se por cima do Woody e fechou o guichê—. te Limite às fotos oficiais. Estava a ponto de lhe pedir que lhe entregasse o carretel, mas Woody o atalhou. —Lembra-te de que um dia te falei de meu amigo Greg Peshkov, que leva seu mesmo sobrenome? Volodia o recordava bem. Willi Frunze lhe tinha contado uma história parecida e o mais provável era que se referissem à mesma pessoa. —Não, não me lembro —mentiu. Não queria ter nada que ver com um possível familiar no Ocidente; na União Soviética esse tipo de vínculos despertavam suspeitas e conduziam problemas. —Está na delegação norte-americana. Teria que falar com ele e averiguar se estiverem aparentados. —Farei-o —respondeu Volodia enquanto se dizia que trataria de evitar todo contato com esse homem. Decidiu deixar correr o do carretel. Não valia a pena armar um alvoroço por uma inocente fotografia tomada na rua. Ao dia seguinte, na conferência, o secretário de estado norte-americano, George Marshall, propôs que os quatro Aliados suprimissem a fronteira que separava Alemanha e unificassem o país, de modo que voltasse a ocupar seu lugar como potência econômica no coração da Europa, com as minas, as fábricas e o comércio. Era o último que desejavam os soviéticos. Mólotov se negou a falar da unificação até que se resolveu o tema da compensação econômica. A conferência chegou a um ponto morto. Mas como, pensou Volodia, era exatamente o que queria Stalin. II O mundo da diplomacia internacional era um lenço, concluiu Greg Peshkov. Um dos ajudantes mais jovens da delegação britânica na Conferência de Moscou era Lloyd Williams, o marido do Daisy, sua meio-irmã. Ao princípio, ao Greg desgostou o aspecto do Lloyd, que ia vestido como um afetado cavalheiro inglês; mas resultou ser um menino muito agradável. —Mólotov é um imbecil —soltou Lloyd no bar do hotel Moskvá detrás tomar-se uns quantos martinis com vodca. —E o que podemos fazer com ele? —Não sei, mas Grã-Bretanha não pode permitir-se perder o tempo dessa forma. A ocupação da Alemanha nos está custando um dinheiro que não temos, e as inclemências do inverno converteram o problema em uma autêntica crise. —Sabe o que? —disse Greg, pensando em voz alta—. Se os soviéticos não estiverem dispostos a cooperar, o melhor que podemos fazer é prescindir deles. —E como? —O que é o que queremos? —Greg contou os pontos com os dedos—. Querem unificar a Alemanha e convocar umas eleições. —Sim. —Queremos suprimir o marco imperial, que não vale nada, e introduzir uma nova moeda, de modo que os alemães voltem a ter poder aquisitivo. —Exato. —E queremos salvar ao país do comunismo. —E à política britânica. —No este não podemos fazê-lo porque os soviéticos não participarão. Porque se jodan! Controlamos três quartas partes da Alemanha; vamos salvar nossa zona, e que o leste do país se vá a mierda. Lloyd ficou pensativo. —Comentaste-o com seu chefe? —Não, Por Deus. Falo por falar. Mas, agora que o diz, por que não? —Eu poderia propor-lhe ao Ernie Bevin. —E eu ao George Marshall. —Greg deu um sorvo de sua bebida—. O vodca é o único bom que têm os russos —disse—. Bom, e que tal está minha irmã? —Grávida de nosso segundo filho. —Que tal lhe dá ser mãe? Lloyd se pôs-se a rir. —Seguro que crie que o faz fatal. Greg se encolheu de ombros. —Nunca me pareceu muito apta para as tarefas domésticas. —É paciente, tranqüila e organizada. —Não necessitou contratar a meia dúzia de babás para que lhe façam todo o trabalho? —Só a uma, para poder sair comigo pelas noites, sobre tudo para assistir a reuniões políticas. —Pois sim que trocou. —Não em tudo. Ainda adora as festas. Mas e você? Ainda está solteiro? —Há uma garota chamada Nelly Fordham com a que tenho uma relação bastante séria. Além disso, seguro que sabe que tenho um afilhado. —Sim —respondeu Lloyd—. Daisy me contou isso. Georgy. Pela expressão um pouco turvada que observou no Lloyd, Greg deduziu que, com toda segurança, sabia que Georgy era filho dele. —Tenho-lhe muito carinho. —É estupendo. Um membro da delegação soviética se aproximou da barra e Greg cruzou um olhar com ele. Resultava-lhe muito familiar. Rondava os trinta anos, era atrativo se deixava-se de lado o rigoroso corte de cabelo militar, e tinha uns olhos azuis de olhar algo intimidatória. Saudou com a cabeça de modo amigável. —Conhecemo-nos? —perguntou Greg. —É possível —respondeu o soviético—. Estudei na Alemanha; na Academia Juvenil Masculina do Berlim. Greg negou com a cabeça. —viajaste alguma vez aos Estados Unidos? —Não. —É o homem que leva o mesmo sobrenome que você, Volodia Peshkov —disse Lloyd. Greg se apresentou. —Talvez somos parentes. Meu pai, Lev Peshkov, emigrou em 1914 e deixou a sua noiva grávida, que logo se casou com seu irmão maior, Grigori Peshkov. É possível que sejamos meio-irmãos? A Volodia lhe mudou o semblante imediatamente. —Seguro que não —disse—. me Desculpe. —E se afastou da barra sem pedir nenhuma bebida. —Que brusco —disse Greg. —Sim —conveio Lloyd. —Lhe via alterado. —Será por algo do que há dito. III Não podia ser certo, disse-se Volodia. Greg afirmava que Grigori se casou com uma garota que já estava grávida do Lev. Se isso era verdade, o homem a quem sempre tinha considerado seu pai não era tal, a não ser seu tio. Talvez se tratasse de uma mera coincidência. Ou o norte-americano só procurava criar problemas. Fora como fosse, a Volodia estava custando recuperar do impacto. Retornou a casa à hora habitual. A Zoya e lhes estavam indo muito bem as coisas e agora dispunham de um piso na residência governamental, o luxuoso edifício onde viviam os pais da Volodia. Grigori e Katerina chegaram a hora de jantar da Kotia, como quase todas as noites. Katerina se encarregou de banhar a seu neto, e Grigori lhe cantou canções e lhe explicou contos russos. Kotia tinha nove meses, e ainda não falava, mas adorava as histórias que lhe contavam antes de dormir. Volodia cumpriu com sua rotina diária como um sonâmbulo. Tratou de comportar-se com normalidade, mas lhe custava dirigir a palavra tanto a seu pai como a sua mãe. O relato do Greg não lhe merecia crédito algum, mas, mesmo assim, não podia deixar de lhe dar voltas à cabeça. —É que tenho macacos na cara? —perguntou Grigori a Volodia quando Kotia já dormia e ele e Katerina estavam a ponto de partir. —Não. —Então, por que leva toda a noite me olhando dessa forma? Volodia decidiu contar a verdade. —Hoje conheci a um tal Greg Peshkov. Está na delegação norte-americana. Acredita que somos parentes. —É possível. —Grigori empregou um tom leve, como lhe tirando importância, mas Volodia observou que lhe avermelhava o pescoço, o qual, tratando-se de seu pai, era um claro sinal de que estava contendo as emoções—. A última vez que vi meu irmão foi em 1919 e não tornei a ter notícias dele. —O pai do Greg se chama Lev, e Lev tem um irmão chamado Grigori. —Então é possível que Greg seja sua primo. —Ele diz que somos irmãos. Grigori se ruborizou mais mas não disse nada. —Como é possível? —atravessou Zoya. —Segundo o norte-americano, Lev deixou a sua noiva grávida em São Petersburgo, e ela se casou com seu irmão. —Isso é ridículo! —soltou Grigori. Volodia olhou a Katerina. —Você não há dito nada, mamãe. Houve uma larga pausa, o qual era muito significativo porque o que tinham que pensar se o relato do Greg não era certo? Um estranho frio envolveu a Volodia como uma névoa geada. Ao final sua mãe falou. —De jovem era bastante frívola. —Olhou a Zoya—. Não tinha a sensatez de sua esposa. —Deu um fundo suspiro—. Grigori Peshkov se apaixonou por mim mais ou menos a primeira vista, pobre tolo. —Sorriu com carinho a seu marido—. Mas seu irmão Lev vestia muito bem, fumava, gastava dinheiro em vodca e tinha uns amigos pouco recomendáveis. E eu, mais parva ainda, preferi-o a ele. —Assim, é certo? —perguntou Volodia com consternação. Uma parte de si desejava desesperadamente que o negassem. —Lev fez o que sempre fazem essa classe de homens —respondeu Katerina—. Me deixou grávida e logo me abandonou. —Ou seja que Lev é meu pai. —Volodia olhou ao Grigori—. E você sozinho é meu tio! —Tinha a impressão de que ia deprimir se de um momento a outro. O chão que pisava tinha começado a mover-se, como em um terremoto. Zoya se situou junto à cadeira da Volodia e lhe posou a mão no ombro para tranqüilizá-lo, ou talvez para refreá-lo. Katerina prosseguiu. —E Grigori fez o que sempre fazem os homens como ele: ocupou-se de mim. Entregou-me seu amor, casou-se comigo e se encarregou de nos manter a mim e a meus filhos. —Estava sentada no sofá, ao lado do Grigori, e lhe agarrou a mão—. Eu o tinha rechaçado, e é evidente que não o merecia, mas mesmo assim Deus me tinha reservado isso. —temi este momento toda a vida —disse Grigori—. Sempre, do instante em que nasceu. —E por que o mantivestes em segredo? —perguntou Volodia—. Não era mais fácil me contar a verdade? Grigori tinha um nó na garganta e lhe custava falar. —Não me via com ânimos de te confessar que não era seu pai —conseguiu balbuciar—. Te queria muito. —Deixa que te diga uma coisa, querido filho —começou Katerina—. me Escute agora e não volte a escutar a sua mãe em toda a vida se não querer, mas isto tem que ouvi-lo. te esqueça do estranho norte-americano que um dia seduziu a uma jovencita com a cabeça cheia de pássaros e olhe ao homem que tem frente a ti com os olhos cheios de lágrimas. Volodia olhou ao Grigori e observou nele uma expressão suplicante que lhe chegou à alma. Katerina prosseguiu. —Este homem te deu que comer, vestiu-te e te amou que forma incondicional durante três décadas. Se a palavra pai tiver algum significado, então seu pai é ele. —Sim —disse Volodia—. Sei. IV Lloyd Williams se levava bem com o Ernie Bevin. Tinham muitas coisas em comum apesar da diferença de idade. Durante os quatro dias que durou a viagem em trem de ponta a ponta de uma Europa coberta de neve, Lloyd confiou ao Bevin que também ele era filho ilegítimo de uma donzela. Ambos eram anticomunistas acérrimos: Lloyd devido às vivencias na Espanha e Bevin porque tinha observado as táticas comunistas no movimento sindical. —São escravos do Kremlin e tiranizam ao resto do mundo —afirmou Bevin, e Lloyd sabia com exatidão a que se referia. Ao Lloyd não acabava de cair bem Greg Peshkov, que sempre tinha aspecto de haver-se vestido a toda pressa, com os punhos da camisa sem abotoar, o pescoço do casaco mau dobrado e os sapatos desatados. Greg era sagaz, e Lloyd se esforçava por simpatizar com ele, mas tinha a impressão de que sob sua aparência afável ocultava-se um fundo desumano. Daisy lhe tinha contado que Lev Peshkov era um patife, e Lloyd imaginava que Greg tinha herdado a mesma natureza. Entretanto, quando contou ao Bevin os planos que Greg tinha para a Alemanha, este ficou a dar saltos de alegria. —Crie que fala por boca do Marshall? —perguntou o corpulento secretário do Foreign Office com seu marcado acento do West Country. —Ele diz que não —respondeu Lloyd—. Crie que funcionaria? —Parece-me a melhor ideia que ouvi nas três putas semanas que levamos no puto Moscou. Se fala a sério, organiza uma comida informal; solo Marshall, esse moço e nós dois. —Farei-o imediatamente. —Mas não o diga a ninguém. Não queremos que a coisa chegue para ouvidos dos soviéticos. Acusariam-nos de conspirar contra eles, e com razão. Ao dia seguinte se encontraram no número 10 da praça Spasopeskovskaya, a residência do embaixador norte-americano, uma suntuosa mansão de estilo neoclássico construída antes da revolução. Marshall era alto e magro; um militar de pés a cabeça. Bevin era rechoncho e curto de vista, e sempre andava com um cigarro na boca. Entretanto, combinaram do primeiro momento. Ambos falavam sem rodeios. Uma vez o próprio Stalin tinha acusado ao Bevin de comportar-se de forma imprópria para um cavalheiro, distinção da que o secretário do Foreign Office estava muito orgulhoso. Sob os afrescos e os abajures de aranha do teto, entraram em matéria com a intenção de fazer ressurgir a Alemanha sem a ajuda da URSS. Em seguida ficaram de acordo nos princípios: a nova moeda; a unificação das zonas britânica, americano e, a ser possível, francesa; a desmilitarização da Alemanha Ocidental; as eleições, e uma nova aliança militar transatlântica. —Mas já sabe que nada disto funcionará —soltou Bevin de repente. Marshall ficou desconcertado. —Então não entendo por que estamos falando disso —disse com acritud. —Europa está passando por uma aguda crise econômica. Esse plano não funcionará se a população passa fome. O melhor amparo contra o comunismo é a prosperidade. Stalin sabe, e por isso não quer que a Alemanha saia da pobreza. —Estou de acordo. —Isso quer dizer que temos que reconstruir o país. Mas não podemos fazê-lo com as mãos vazias. Necessitamos tratores, escavadoras e material móvel. E nada disso está a nosso alcance. Marshall começava a ver por onde ia. —Os norte-americanos não estão dispostos a conceder mais ajuda a Europa. —É lógico. Mas temos que encontrar a forma de que os Estados Unidos nos empreste o dinheiro para comprar todo o necessário. fez-se um silêncio. Marshall detestava esbanjar saliva, mas a pausa resultava muito larga inclusive tratando-se dele. Ao final falou. —Tem sentido —disse—. Verei o que posso fazer. A conferência durou seis semanas, e para quando todos retornaram a seus respectivos países não se tomou nenhuma decisão. V Eva Williams tinha um ano quando começaram a lhe sair os molares. Os outros dentes não lhe tinham dado problemas, mas esses lhe doíam. Por desgraça, Lloyd e Daisy não podiam fazer grande coisa por ela. Estava de mau humor, não conseguia dormir e, portanto, não os deixava dormir a eles e também estavam de mau humor. Daisy tinha muito dinheiro mas levava uma vida pouco ostentosa. Tinham comprado uma acolhedora casa encostada no Hoxton e tinham de vizinhos a um lojista e um pedreiro. Adquiriram um pequeno utilitário, um Morris Eight novo que alcançava uma velocidade máxima de quase cem quilômetros por hora. Daisy seguia comprando roupa bonita, mas Lloyd só tinha três trajes: um de etiqueta, um com finas raias brancas para a Câmara dos Comuns e outro de tweed para os fins de semana, quando trabalhava na seção local da partida. Uma noite, Lloyd, já em pijama, estava embalando a quejumbrosa Evie ao mesmo tempo que folheava a revista Life e uma curiosa fotografia tomada em Moscou captou sua atenção. Mostrava a uma mulher russa cujo vetusto rosto estava sulcado de rugas, com um lenço ao redor da cabeça e um casaco apertado com uma corda de embalar, retirando a neve da rua a pazadas. A forma em que a luz a banhava lhe conferia um aspecto intemporal, como se levasse ali um milhar de anos. Procurou assina-a do fotógrafo e descobriu que se tratava do Woody Dewar, a quem tinha conhecido na conferência. Nesse momento soou o telefone. Agarrou-o e lhe respondeu a voz do Ernie Bevin. —Ponha a rádio —disse—. Marshall acaba de pronunciar um discurso. —Pendurou sem esperar resposta. Lloyd baixou à sala de estar com o Evie em braços e acendeu a rádio. O programa se chamava Crônica americana. O correspondente da BBC em Washington, Leonard Miall, estava retransmitindo da Universidade do Harvard em Cambridge, Massachusetts. O secretário de estado explicou aos alunos que a reconstrução da Europa levará mais tempo e requererá mais esforços do previsto, dizia Miall. A notícia era prometedora, pensou Lloyd, emocionado. —Silêncio, Evie, por favor —disse, e, por uma vez, ela se calou. Então Lloyd reconheceu a voz grave e moderada do George C. Marshall. Durante os próximos três ou quatro anos, a necessidade que a Europa tem de receber comida e outros produtos essenciais do estrangeiro, principalmente de Estados Unidos, supera com acréscimo seu poder aquisitivo, e por isso necessita uma ajuda adicional considerável… ou se enfrenta a uma deterioração econômica, político e social de caráter muito grave. Lloyd estava eletrizado. Uma ajuda adicional considerável era o que tinha pedido Bevin. O remédio consiste em romper o círculo vicioso e restabelecer a confiança dos europeus no futuro econômico —prosseguiu Marshall—. os Estados Unidos deve fazer todo o possível por colaborar para que o mundo recupere seu estado econômico normal. —Tem-no feito! —exclamou Lloyd em tom triunfal ante sua perplexa filhinha—. convenceu aos Estados Unidos de que tem que nos emprestar ajuda! Mas quanta? E quando?, e como? A voz trocou. O secretário de estado não detalhou um plano para a Europa mas sim pediu que sejam os próprios europeus quem o risque, disse o jornalista. —Significa isso que temos carta branca? —perguntou Lloyd ao Evie, entusiasmado. Voltou a ouvi-la voz do Marshall. Acredito que a iniciativa deve partir da Europa. A retransmissão tocou a seu fim e o telefone voltou a soar. —Ouviste-o? —perguntou Bevin. —O que quer dizer? —Não faça perguntas! —exclamou Bevin—. Se fizer perguntas, obterá respostas que não deseja. —Entendido —disse Lloyd, desconcertado. —Dá igual o que queira dizer. O que importa é o que nós façamos. Há dito que a iniciativa deve partir da Europa, e se refere a ti e a mim. —Mas o que posso fazer eu? —As malas —disse Bevin—. Vamos a Paris. 24 1948 I Volodia se encontrava na Praga. Formava parte da delegação do Exército Vermelho encarregada de manter conversações com o exército checoslovaco e se alojava no esplendoroso hotel Imperial, de uso art déco. Estava nevando. Sentia falta da Zoya e ao pequeno Kotia. Seu filho tinha dois anos e aprendia palavras novas a uma velocidade assombrosa. O menino trocava tão depressa que cada dia lhe via diferente. Além disso, Zoya voltava a estar grávida. Volodia lamentava ter que passar duas semanas separado de sua família. Para a maioria dos integrantes do grupo essa viagem significava uma oportunidade de afastar-se de suas algemas, de exceder-se com o vodca e de tontear com mulheres licenciosas. Ele, pelo contrário, sozinho desejava retornar a casa. Era certo que se estavam levando a cabo negociações militares, mas o fato de que Volodia participasse delas servia de coberta para sua verdadeira missão, que consistia em informar das ações cometidas na Praga pela torpe polícia secreta soviética, eterna rival dos serviços secretos do Exército Vermelho. Ultimamente, Volodia sentia pouco entusiasmo pelo trabalho. Tinha perdido a confiança em todo aquilo no que antes acreditava. Já não tinha fé no Stalin, no comunismo nem na bondade inerente dos soviéticos. Nem sequer quem dizia ser seu pai o era. De fato, teria desertado com rumo ao Ocidente se tivesse encontrado a forma de levar consigo a Zoya e a Kotia. Contudo, sim que tinha posta a alma na missão da Praga; era uma oportunidade excepcional de fazer algo no que seguia acreditando. Duas semanas atrás, a Partida Comunista da Checoslovaquia se feito com o controle absoluto do governo ao derrocar a seus coalicionistas. O ministro dos Assuntos Exteriores, Jan Masaryk, um herói da guerra e anticomunista democrático, estava detento na planta superior de sua residência oficial, o palácio Czernin. Não cabia dúvida de que a polícia secreta soviética tinha algo que ver com o golpe de estado. De fato, o cunhado da Volodia, o coronel Ilia Dvorkin, também se encontrava na Praga e se alojava no mesmo hotel, e o mais seguro era que estivesse comprometido. O chefe da Volodia, o general Lemítov, considerava o golpe como uma catástrofe para as relações públicas da URSS. Masaryk tinha demonstrado ao mundo que os países do leste da Europa podiam ser livres e independentes ao amparo da URSS. Tinha permitido que Checoslovaquia contasse com um governo comunista simpatizante com a União Soviética e ao mesmo tempo levasse a máscara da democracia burguesa. Era o acordo perfeito, pois cumpria com tudo o que a URSS desejava e tranqüilizava aos norte-americanos. Entretanto, o equilíbrio se quebrado. Ilia se gabava disso. —Ja! esmagaram aos partidos burgueses! —disse a Volodia uma noite no bar do hotel. —Viu o que aconteceu no Senado norte-americano? —repôs Volodia em tom leve—. Vandenberg, o velho aislacionista, pronunciou um discurso de oito minutos em favor do Plano Marshall, e os vítores se ouviam daqui. A partir das vagas idéias do Marshall tinha acabado riscando um plano, obrigado, sobre tudo, à astúcia ratonil do secretário do Foreign Office britânico, Ernie Bevin. Em opinião da Volodia, Bevin era o tipo de comunista mais perigoso: um socialdemócrata da classe operária. Apesar de sua volumosa compleição se movia com rapidez. Com a velocidade do raio, tinha organizado uma conferência em Paris, onde o discurso pronunciado pelo George Marshall no Harvard tinha obtido uma terminante aprovação por parte de toda a Europa. Volodia sabia por boca de espiões infiltrados no Foreign Office que Bevin estava decidido a incluir a Alemanha no Plano Marshall e excluir à URSS. E Stalin tinha cansado totalmente na armadilha do Bevin ao ordenar aos países do leste da Europa que repudiassem a ajuda do Marshall. Nesses momentos, a polícia secreta soviética parecia estar fazendo todo o possível para que o projeto de lei fora aprovado pelo Congresso. —O Senado estava mais que decidido a desprezar a proposta do Marshall —disse Volodia a Ilia—. Os contribuintes norte-americanos não querem correr com os gastos, mas o golpe da Praga os convenceu que devem fazê-lo, porque de outro modo se corre o perigo de que na Europa fracasse o capitalismo. —Os partidos burgueses checoslovacos queriam deixar-se subornar pelos norte-americanos —repôs Ilia, indignado. —Teríamos que haver o permitido —opinou Volodia—. Teria sido a forma mais rápida de lhes chatear todo o invento. Assim o Congresso teria rechaçado o Plano Marshall; não querem dar dinheiro aos comunistas. —O Plano Marshall é um ardil imperialista! —Sim, sim que é —conveio Volodia—. E me temo que funcionará. Nossos aliados durante a guerra estão formando um bloco antisoviético. —Já é hora de que toda essa gente que impede que o comunismo avance receba seu castigo. —Claro, claro. —Era impressionante a facilidade com que as pessoas como Ilia se formavam julgamentos políticos errôneos. —E também é hora de que me vá dormir. Só eram as dez, mas Volodia também foi deitar se. Permaneceu acordado pensando na Zoya e na Kotia; morria de vontades de lhes dar um beijo de boa noite. Desviou a atenção para a missão que tinha atribuída. Dois dias atrás tinha conhecido ao Jan Masaryk, o símbolo da independência da Checoslovaquia, em uma cerimônia celebrada ante a tumba de seu pai, Tomáš Masaryk, o fundador e primeiro presidente do país. Masaryk filho, com um casaco com o pescoço de pele e a cabeça descoberta sob a nevada, tinha um aspecto maltratado e deprimido. Se pudesse convencer o de que continuasse exercendo de ministro dos Assuntos Exteriores, era possível que se alcançasse certo grau de compromisso, pensou Volodia. Checoslovaquia podia ter um governo integralmente comunista em questões nacionais e mesmo assim manter-se neutro nas relações internacionais, ou ao menos minimizar a atitude antiamericana. Masaryk contava tanto com a habilidade diplomática como com a credibilidade internacional para dançar na corda frouxa. Volodia decidiu que ao dia seguinte o proporia ao Lemítov. Passou a noite inquieto e despertou antes das seis, quando começou a soar um alarme imaginário. Tinha algo que ver com a conversação que tinha mantido com a Ilia a noite anterior. Não podia deixar de lhe dar voltas. Quando Ilia havia dito toda essa gente que impede que o comunismo avance se referia ao Masaryk; e quando um membro da polícia secreta falava de receber seu castigo, referia-se a morrer. Ilia se tinha deitado cedo, o que significava que devia haver-se levantado também cedo. Que estúpido sou —pensou Volodia—. Os sinais eram inequívocos e empreguei toda a noite nas reconhecer. Saltou da cama. Ao melhor ainda não era muito tarde. vestiu-se depressa e se cobriu com um grosso casaco, um cachecol e um chapéu. Não havia nenhum táxi na porta do hotel; era muito cedo. Poderia haver pedido que fora para buscá-lo um carro do Exército Vermelho, mas entre que despertavam à chofer e chegava até ali teria passado quase uma hora. Decidiu ir andando. Solo havia dois ou três quilômetros de distância até o palácio Czernin. Abandonou o pitoresco centro da Praga para dava rigirse para o oeste, cruzou a ponte do Carlos e ascendeu a toda pressa para o castelo. Masaryk não o esperava, e o ministro dos Assuntos Exteriores não tinha a obrigação de conceder audiência a um coronel do Exército Vermelho. Entretanto, Volodia estava seguro de que sentiria suficiente curiosidade para recebê-lo. Caminhou com rapidez através da neve e chegou ao palácio Czernin às seis e quarenta e cinco. O edifício era uma colossal construção barroca com uma imponente fileira de pilastras corintias ao redor das três novelo superiores. Para sua surpresa, o lugar estava pouco custodiado. Um sentinela assinalou a porta principal e Volodia cruzou sem impedimentos o ornamentado vestíbulo. Esperava encontrar ao néscio polícia secreto de volta depois do mostrador de recepção, mas não havia ninguém. Pareceu-lhe um mau sinal e o invadiu uma grande inquietação. O vestíbulo dava a um pátio interior. Olhou através de uma janela e viu o que parecia um homem convexo na neve, como se dormisse. Talvez estava bêbado e se tinha cansado. Se era assim, corria perigo de morrer congelado. Volodia tentou abrir a porta e descobriu que estava aberta. Cruzou correndo o pátio interior. Efetivamente, um homem vestido com um pijama de seda azul jazia de barriga para baixo na neve. Não devia levar ali mais de uns minutos, pois a neve não o cobria. Volodia se ajoelhou a seu lado. O homem estava muito quieto, dava a impressão de que não respirava. Volodia levantou a cabeça. Ao pátio davam várias fileiras de janelas idênticas, como soldados durante um desfile militar. Todas estavam bem fechadas contra o gélido tempo invernal; todas exceto uma. Uma muito alta, justo por cima do homem em pijama, estava totalmente aberto. Como se tivessem arrojado a alguém por ela. Voltou a cabeça inerte do homem e lhe olhou a cara. Era Jan Masaryk. II Ao cabo de três dias, em Washington, o Estado Maior conjunto apresentou ao presidente Truman um plano de emergência para confrontar uma invasão soviética da Europa ocidental. O perigo de que estalasse uma terceira guerra mundial era um tema candente na imprensa. —Mas se acabarmos de ganhar a guerra —disse Jacky Jakes ao Greg Peshkov—. Como é possível que esteja a ponto de estalar outra? —Isso mesmo me pergunto eu —respondeu Greg. Estavam sentados em um banco do parque porque Greg precisava tomar uma pausa detrás ter estado jogando a bola com o Georgy. —Menos mal que é muito jovem para que o recrutem —disse Jacky. —Sim, menos mal. Os dois contemplaram a seu filho, que estava conversando com uma garota loira aproximadamente de sua mesma idade. Levava os cordões das sapatilhas Keds desatados e a camisa por fora das calças. Tinha doze anos e cada dia era mais alto. Tinha-lhe saído um pouco de pêlo negro sobre o lábio superior e dava a impressão de ter crescido sete ou oito centímetros da última semana. —Estamos fazendo que nossas tropas retornem o mais rápido possível —explicou Greg—. Igual aos britânicos e os franceses. Mas o Exército Vermelho segue em pé de guerra, e o resultado é que agora têm três vezes mais soldados que nós na Alemanha. —Os norte-americanos não querem outra guerra. —Isso está claro. E Truman espera ganhar as eleições presidenciais em novembro, pelo que fará todo o possível para evitar outra guerra. Mesmo assim, poderia ocorrer. —fica pouco tempo no exército. O que fará depois? Greg apreciou um tremor na voz do Jacky que lhe fez suspeitar que a pergunta não era tão banal como pretendia fazer ver. Olhou-a à cara, mas tinha a expressão hierática. —Se os Estados Unidos não estiver em guerra, apresentarei-me para o Congresso em 1950 —respondeu—. Meu pai se emprestou a me financiar a campanha. Começarei assim que terminem as eleições presidenciais. Ela apartou o olhar. —por que partido? —perguntou de forma mecânica. Greg se perguntava se algo do que havia dito lhe tinha sentado mau. —O Republicano, é obvio. —E não pensa te casar? Greg ficou desconcertado. —por que me pergunta isso? Agora Jacky o olhava com dureza. —Pensa te casar ou não? —insistiu. —Pois olhe, sim; estou prometido. chama-se Nelly Fordham. —Me imaginava. Quantos anos tem? —Vinte e dois. O que quer dizer que lhe imaginava? —Um político tem que ter esposa. —Quero-a! —claro que sim. Tem políticos na família? —Seu pai é um advogado de Washington. —Boa eleição. Greg se sentia incômodo. —Está sendo muito cínica. —Conheço-te, Greg. Por Deus, mas se me deitei contigo quando não foi muito maior que Georgy. Pode enganar a quem quer exceto a sua mãe e a mim. Era muito perspicaz, como sempre. Também a mãe do Greg tinha posto o noivado em interdição. Tinham razão: tratava-se de uma jogada em favor de sua carreira. Mas Nelly era bonita e encantadora, e adorava ao Greg. O que tinha aquilo de mau? —dentro de uns minutos fiquei com ela para comer aqui perto —disse. —Sabe Nelly o do Georgy? —perguntou Jacky. —Não, e não deve sabê-lo. —Tem razão. Ter um filho ilegítimo já supõe um problema, mas se em cima é negro, sua carreira está acabada. —Já sei. —É quase tão mau como ter uma mulher negra. Greg estava tão surpreso que soltou a pergunta sem pensá-lo duas vezes. —Acreditava que ia casar me contigo? Ela pareceu decepcionada. —Não, Greg, o que vai! Se tivesse a oportunidade de escolher entre você e o assassino do banho de ácido, pediria que me dessem tempo para me pensar isso Mierda, pensó Greg. Ele sabia que estava mentindo. expôs-se por um momento a possibilidade de casar-se com o Jacky. Os matrimônios interraciales eram incomuns e provocavam grande hostilidade tanto por parte dos brancos como dos negros. Contudo, havia pessoas que decidiam casar-se e assumiam as conseqüências. Nunca tinha conhecido a uma mulher que gostasse mais que Jacky; nem sequer Margaret Cowdry, com quem tinha saído uns quantos anos até que ela se fartou de esperar a que lhe pedisse a mão. Jacky tinha uma língua muito afiada, mas a ele isso não incomodava, talvez porque sua mãe era igual. Por algum motivo, a idéia de estar sempre os três juntos lhe resultava muito atrativa. Georgy se acostumaria a chamá-lo papai. Comprariam uma casa em um bairro de gente de mentalidade aberta, algum lugar onde houvesse muitos universitários e professores jovens, talvez Georgetown. Então viu que os pais da loira amiguita do Georgy a insistiam a apartar-se dele; sua branca mãe, zangada, agitava o dedo em sinal de admoestação. E deu-se conta de que casar-se com o Jacky era quão pior podia ocorrer-se o —¿No? Georgy retornou junto ao banco onde estavam sentados Greg e Jacky. —Que tal vai a escola? —perguntou-lhe Greg. —Agora eu gosto mais —respondeu o menino—. As matemática são mais interessantes. —me davam muito bem as matemática —disse Greg. —Olhe que casualidade —comentou Jacky. Greg ficou em pé. —Tenho que ir —disse. Deu um apertão no ombro ao Georgy—. Segue te aplicando com as matemática, menino. —Claro —respondeu Georgy. Greg agitou a mão para despedir-se do Jacky e partiu. Não lhe cabia dúvida de que tinha estado pensando na possibilidade de que se casassem ao mesmo tempo que ele. Sabia que o momento de abandonar o exército era decisivo porque o obrigava a expor o futuro. Era impossível que confiasse em que ia casar se com ela, mas mesmo assim no fundo devia albergar alguma esperança. E ele acabava de truncá-la. Má sorte. O certo era que não poderia haver-se casado com ela embora fora branca. Tinha-lhe muito carinho, e também queria ao menino, mas tinha toda a vida por diante e necessitava uma esposa que lhe proporcionasse contatos e apoio. O pai do Nelly era um homem muito capitalista na Partida Republicana. Caminhou até o Napoli, um restaurante italiano situado a poucas maçãs do parque. Nelly já tinha chegado; seus saca-rolhas acobreados se sobressaíam por debaixo de um pequeno chapéu verde. —Está preciosa! —exclamou—. Não chego muito tarde, verdade? —sentou-se. Nelly tinha uma expressão glacial. —Vi-te no parque —disse. Mierda, pensou Greg. —cheguei antes da hora e me sentei um momento em um banco —explicou ela—. Não te deste conta, e ao cabo de um momento tinha a impressão de me estar comportando como uma bisbilhoteira, assim que me fui. —Então, viu a meu afilhado? —perguntou ele com uma alegria forçada. —É seu afilhado? Que estranho que lhe escolham como padrinho, nem sequer vai nunca à igreja. —Me Porto bem com o menino! —Como se chama? —Georgy Jakes. —Nunca me tinha falado dele. —Não? —Quantos anos tem? —Doze. —Assim, quando nasceu você tinha dezesseis. um pouco jovem para ser padrinho, não? —Suponho que sim. —A que se dedica sua mãe? —É garçonete. Faz anos era atriz, e se fazia chamar Jacky Jakes. Conheci-a porque o estudo de meu pai a contratou. Era mais ou menos a verdade, pensou Greg, incômodo. —E o pai? Greg sacudiu a cabeça. —Jacky é solteira. —aproximou-se um garçom—. Gosta de tomar um coquetel? —perguntou Greg. Isso podia servir para aliviar a tensão—. nos Traga dois martinis —lhe pediu ao garçom. —Em seguida, senhor. —É o pai do menino, verdade? —perguntou Nelly assim que o garçom se partiu. —Não; o padrinho. —Deixa-o já, quer? —soltou ela em tom desdenhoso. —por que está tão segura? —É negro, mas mesmo assim te parece. Leva os cordões desatados e a camisa mau posta, igual a você. Além disso, estava-se chavecando a rubita que falava com ele. Claro que é teu filho. Greg se deu por vencido. —Pensava contar lhe disse isso com um suspiro. —Quando? —Estava esperando o melhor momento. —O melhor momento teria sido antes de me pedir em matrimônio. —Sinto muito. —sentia-se envergonhado, mas não de tudo arrependido. Acreditava que Nelly estava Armando um alvoroço desnecessário. O garçom lhes levou a carta e os dois se concentraram nos pratos. —Os espaguete a boloñesa devem estar riquíssimos —disse Greg. —Eu tomarei uma salada. Chegaram os martinis. Greg elevou a taça para brindar. —Pelos matrimônios que sabem perdoar-se —disse. Nelly não levantou a sua. —Não posso me casar contigo —declarou. —Vamos, carinho, não exagere. Já me desculpei. Ela sacudiu a cabeça. —Não o compreende, verdade? —O que é o que não compreendo? —A mulher que estava sentada a seu lado no banco do parque… te ama. —Ama-me? —No dia anterior, Greg o teria negado sem problemas, mas depois da conversação que tinham mantido não estava tão seguro. —Pois claro que te ama. por que não se casou, se não? É bastante bonita. Poderia ter encontrado a um homem disposto a adotar ao menino, se de verdade quisesse. Mas está apaixonada por ti, descarado. —Não estou seguro. —E o menino também te adora. —Sou seu tio favorito. —Só que não é seu tio. —Empurrou a taça até o outro extremo da mesa—. Tome você o Martini. —Carinho, por favor, te tranqüilize. —Vou. —ficou em pé. Greg não estava acostumado a que as mulheres o abandonassem, e lhe desejou muito muito desagradável. Estava perdendo seus encantos? —Quero me casar contigo! —exclamou. Soava muito desesperado, inclusive a si mesmo o pareceu. —Não pode te casar comigo, Greg —disse ela. tirou-se o anel de diamantes do dedo e o depositou sobre a toalha de quadros vermelhos—. Já tem família. E saiu do restaurante. III A crise mundial alcançou seu ponto crítico em junho, e surpreendeu a Carla e a sua família em seu mesmo epicentro. O presidente Truman tinha referendado o Plano Marshall, convertendo-o assim em lei, e as primeiras remessas de ajuda estavam chegando já a Europa, o qual encolerizou ao Kremlin. na sexta-feira 18 de junho, os Aliados ocidentais avisaram aos alemães de que foram efetuar um anúncio importante às oito em ponto daquela tarde. A família da Carla se reuniu na cozinha ao redor da rádio, sintonizou Rádio Frankfurt e esperou ansiosa. Fazia três anos que a guerra tinha acabado, mas seguiam sem saber o que lhes proporcionaria o futuro: capitalismo ou comunismo, unidade ou fragmentação, liberdade ou subjugação, prosperidade ou miséria. Werner se sentou ao lado da Carla, com o Walli, que já tinha dois anos e meio, no regaço. casaram-se discretamente um ano antes. Carla voltava a trabalhar de enfermeira. Era também concejala socialdemócrata, como o marido da Frieda, Heinrich. Na Alemanha Oriental, os soviéticos tinham proibido a Partida Socialdemócrata, mas Berlim era um oásis no setor soviético; a cidade estava governada por um conselho municipal, formado pelos quatro Aliados principais e denominado Kommandatura, que tinha vetado a proibição. como resultado disso, os socialdemócratas tinham ganho e os comunistas tinham ficado reduzidos a uma terceira fraco força detrás dos democratacristianos. Os soviéticos estavam iracundos e faziam o impossível por pôr travas ao conselho eleito nas urnas. A Carla resultava frustrante, mas não podia abandonar a esperança de que o país chegasse a independizarse dos soviéticos. Werner tinha conseguido montar um pequeno negócio. depois de pinçar entre as ruínas da fábrica de seu pai, fez-se com uma pequena coleção de fornecimentos elétricos e peças de rádio. Os alemães não podiam permitir o luxo de comprar rádios novas, mas todos queriam conservar as que já tinham. Werner encontrou a vários técnicos que tinham trabalhado na fábrica e os pôs a reparar transístores. Ele fazia de diretor e de comercial, indo casa por casa e piso por piso, chamando portas, impulsionando o negócio. Maud, também sentada junto à rádio aquela tarde, trabalhava como intérprete para os americanos. Era uma das melhores e com freqüência reclamavam seus serviços nas reuniões da Kommandatura. O irmão da Carla, Erik, levava o uniforme de polícia. Depois de filiar-se ao Partido Comunista —algo que consternou a sua família—, encontrou trabalho como agente do novo corpo de segurança que os ocupantes soviéticos tinham criado na Alemanha Oriental. Erik sustentava que os Aliados ocidentais estavam tentando dividir Alemanha em dois. —Seus socialdemócratas são secesionistas —disse, citando o guia comunista do mesmo modo que tinha repetido como um louro a propaganda nazista. —Os Aliados ocidentais não estão dividindo nada —replicou Carla—. Têm aberto as fronteiras entre seus setores. por que não fazem o mesmo os soviéticos? Então sim que voltaríamos a ser um país. Erik pareceu não ouvi-la. Rebecca estava a ponto de fazer dezessete anos. Carla e Werner a tinham adotado legalmente. Estava na escola e tinha dotes para os idiomas. Carla voltava a estar grávida, embora ainda não o havia dito ao Werner. Estava emocionada. Ele já tinha uma filha adotada e um enteado, mas agora teria além disso um filho próprio. Carla sabia que a notícia lhe entusiasmaria. Queria esperar um pouco mais para estar do todo segura. Mas ansiava saber em que classe de país foram viver seus três filhos. A rádio emitiu a voz de um oficial americano chamado Robert Lochner, que tinha crescido na Alemanha e falava alemão com fluidez. Às sete da manhã da segunda-feira, anunciou, a Alemanha Ocidental disporia de uma nova moeda, o marco alemão. A Carla não surpreendeu. O marco imperial seguia desvalorizando-se dia detrás dia. Aos poucos que tinham trabalho estavam acostumados a lhes pagar nessa moeda, com a que podiam ajudar necessidades básicas como as rações de comida e os bilhetes de ônibus, mas todo mundo preferia cobrar em mantimentos e cigarros. Embora seus clientes lhe pagavam no Marcos imperiais, Werner lhes oferecia reparações rápidas por cinco cigarros e entrega em qualquer sítio da cidade em troca de três ovos. Carla sabia pelo Maud que na Kommandatura se discutiu a respeito da nova moeda. Os soviéticos tinham exigido pranchas para cunhá-la, mas não tinha sentido que fizessem com ela quão mesmo tinham feito com a antiga: emiti-la em excesso e provocar com isso sua desvalorização. Por isso, Ocidente denegou a petição, e os soviéticos se enfureceram. Agora Ocidente tinha decidido seguir adiante sem a cooperação soviética. Carla estava encantada, pois a nova moeda poderia ser boa para a Alemanha, mas o inquietava a possível reação dos soviéticos. Os cidadãos da Alemanha Oriental poderiam trocar sessenta Marcos imperiais por três Marcos alemães e noventa peniques, informou Lochner. A seguir disse que esta medida não se aplicaria no Berlim, ao menos ao princípio, o qual despertou um grunhido coletivo na cozinha. Carla foi se dormir perguntando-se o que fariam os soviéticos. deitou-se junto ao Werner, atenta a se chorava Walli, que dormia na habitação do lado. A irritação dos ocupantes soviéticos tinha ido aumento ao longo dos últimos meses. A polícia secreta tinha seqüestrado a um jornalista chamado Dieter Friede em a zona americana; em um primeiro momento, os soviéticos tinham negado saber nada a respeito e depois admitiram que o tinham detido por levar a cabo atividades de espionagem. Também expulsaram a três estudantes da universidade por ter criticado aos soviéticos em uma revista. E, o pior de tudo, um caça soviético em pleno vôo passou roçando um avião comercial da British European Airways que aterrissava no Gatow, partiu-lhe uma asa e provocou que ambos se estrelassem, causando a morte de quatro tripulantes da B, dez passageiros e o piloto do caça. Sempre que os soviéticos se irritavam, eram outros os que sofriam. A manhã seguinte anunciaram que se consideraria delito importar Marcos alemães na Alemanha Oriental. Isso incluía Berlim, acrescentava o comunicado, que forma parte do setor soviético. Os americanos denunciaram imediatamente aquela decisão, argüindo que Berlim era uma cidade internacional, mas a tensão aumentava, e Carla seguia preocupada. na segunda-feira, a Alemanha Ocidental implantou a nova moeda. na terça-feira, um correio do Exército Vermelho foi a casa da Carla e a convocou a uma reunião na prefeitura. Era algo que já tinha ocorrido com antecedência, mas, em que pese a isso, Carla saiu de casa um pouco assustada. Nada poderia impedir que os soviéticos a encarcerassem. Os comunistas ostentavam todos os poderes arbitrários que tinham assumido os nazistas. Inclusive estavam utilizando os antigos campos de concentração. A famosa prefeitura vermelha tinha sofrida imperfeições a conseqüência dos bombardeios, e o governo municipal se instalou na nova prefeitura de Parochial Strasse. Os dois edifícios se encontravam no bairro do Mitte, na zona soviética, onde também vivia Carla. Quando chegou, Carla viu que a prefeita em funções, Louise Schroeder, entre outros, também tinha sido convocada a uma reunião com o oficial de enlace soviético, o comandante Otshkin. Este lhes informou que ia se levar a cabo uma reforma da moeda da Alemanha Oriental e que no futuro só o marco oriental seria legal no setor soviético. A prefeita em funções Schroeder deduziu imediatamente qual era a questão crucial. —Está-nos dizendo que esta medida afetará a todos os setores do Berlim? —Sim. Frau Schroeder não se arredava com facilidade. —De acordo com a constituição da cidade, as forças ocupantes soviéticas não podem impor tal medida a outros setores —disse com firmeza—. É preciso consultar aos outros aliados. —Não objetarão. —Tendeu-lhe um documento—. É o decreto do marechal Sokolovski. Amanhã você o entregará ao conselho municipal. Essa noite, ao deitar-se, Carla comentou ao Werner o que aconteceu. —É fácil adivinhar no que consiste a tática dos soviéticos. Se o conselho municipal aprovar o decreto, aos Aliados, com sua mentalidade democrática, custará-lhes revogá-lo. —Mas o conselho municipal não o passará. Os comunistas som minoria, e ninguém mais quereria o marco oriental. —Não, por isso me pergunto o que esconde o marechal Sokolovski na manga. Os periódicos da manhã seguinte anunciaram que a partir da sexta-feira haveria duas moedas rivais no Berlim, o marco oriental e o marco alemão. Casualmente, os americanos tinham feito circular em segredo duzentos e cinqüenta milhões do Marcos novos em caixas de madeira etiquetadas como Argila e Cão de caça e que agora estavam escondidas por todo Berlim. Durante o dia, Carla começou para ouvir rumores procedentes da Alemanha Ocidental. Ali, a nova moeda tinha obrado um milagre. Da noite a manhã, nos cristaleiras tinham aparecido mais produtos: cestas cheias de cerejas e molhos de cenouras pulcramente trancados e cultivados em campos de lavoura próximos a a cidade; manteiga, ovos e bolos, e luxos entesourados durante muito tempo, como sapatos e bolsas novas, e inclusive medeia a um preço de quatro Marcos alemães. A gente tinha estado esperando a poder vender esses bens em troca de dinheiro autêntico. Aquela tarde, Carla se dirigiu à prefeitura para assistir à reunião do conselho municipal programada para as quatro. Enquanto se aproximava, viu dúzias de caminhões do Exército Vermelho estacionados nas ruas vizinhas, cujos condutores vagabundeavam e fumavam. Eram em sua maioria veículos que os Estados Unidos devia haver cedido à URSS durante a guerra, como parte do programa de ajuda Empréstimo e Arrendamento. Pressentiu o motivo de sua presença quando começou para ouvir o rumor de uma turfa rebelde. Suspeitou que o que o governador soviético escondia na manga era um porrete. Frente ao prefeitura, bandeiras vermelhas ondeavam sobre uma multidão formada por vários milhares de pessoas, a maioria com insígnias da Partida Comunista. Alto-falantes instalados em caminhões emitiam estridentes e irados discursos, e a multidão gritava: Abaixo os secesionistas. Carla não sabia como ia chegar à prefeitura. Vários policiais olhavam sem interesse e sem fazer a menor tentativa de ajudar aos vereadores. Isso despertou em Carla a dolorosa lembrança da atitude da polícia o dia em que os camisas pardas destroçaram o despacho de sua mãe, quinze anos atrás. Estava segura de que os vereadores comunistas já estavam dentro, e de que se os socialdemócratas não conseguiam chegar ao edifício, a minoria aprovaria o decreto e o proclamaria válido. Tomou ar e começou a lutar entre a multidão. face aos esforços, logo que avançava. Então, alguém a reconheceu. Puta norte-americana!, vociferou, assinalando-a. Ela seguiu tentando abrir-se passo com determinação. Outra pessoa a cuspiu, e o cusparada lhe manchou o vestido. Carla não retrocedeu em seus esforços, mas a atendia o pânico. Estava rodeada de gente que a odiava, algo que nunca antes tinha experiente, e sentia o impulso de fugir dali. Empurraram-na, embora conseguiu manter o equilíbrio. Uma mão agarrou seu vestido; ao escapar dela, Carla ouviu o rasgo do tecido. Quis gritar. O que seriam capazes de fazer?, lhe arrancar toda a roupa? de repente teve a impressão de que outra pessoa se encontrava em sua mesma situação, algo mais atrás; voltou-se e viu o Heinrich von Kessel, o marido da Frieda. Heinrich a alcançou, e seguiram avançando juntos; ele era mais agressivo, pisava e dava cotoveladas a tudo o que se interpunha em seu caminho, e assim puderam avançar mais depressa até que ao fim alcançaram a porta. Mas seu calvário não tinha terminado. Os manifestantes tinham entrado por centenares, e tiveram que lutar com eles pelos corredores. Também estavam na sala de reuniões, não só na tribuna de espectadores, a não ser por toda parte. Seu comportamento ali era tão agressivo como fora. Alguns socialdemócratas já tinham chegado e outros o fizeram depois da Carla; dos sessenta e três que eram em total, a maioria as arrumaram para abrir-se caminho entre a turfa. Carla se sentiu aliviada. O inimigo não tinha conseguido afugentá-los. Quando o porta-voz da assembléia chamou o ordem, um representante comunista, em pé sobre um banco, insistiu aos manifestantes a que ficassem. —Que partam os traidores! —gritou ao ver a Carla. Tudo recordava tristemente a 1933: abusos, intimidação, debilitação da democracia por meio de distúrbios. Carla estava se desesperada. Olhou para a tribuna e se horrorizou ao ver seu irmão Erik entre a estridente multidão. —É alemão! —gritou-lhe Carla—. viveste sob o jugo nazista. É que não aprendeste nada? Erik pareceu não ouvi-la. Frau Schroeder se dirigiu ao estrado e chamou à calma. Os manifestantes a insultaram e vaiaram. Ela elevou a voz até convertê-la em um grito. —Se o conselho municipal não pode celebrar um debate pacífico neste edifício, transladarei a reunião ao setor americano! ouviram-se mais impropérios, mas os vinte e seis vereadores comunistas viram que aquilo não sortiria efeito. Se o conselho se reunia fora da zona soviética uma vez, poderia voltar a fazê-lo, e inclusive transladar-se de forma permanente a um espaço fora do alcance da intimidação comunista. Depois de uma breve discussão, um deles ficou em pé e pediu aos manifestantes que partissem. Todos obedeceram cantando A Internacional. —É evidente quem está ao mando desta gente —disse Heinrich. Ao fim houve silêncio. Frau Schroeder expôs a exigência dos russos e acrescentou que não poderia ser efetiva fora do setor soviético do Berlim a menos que os outros Aliados a ratificassem. Um representante comunista pronunciou um discurso acusando a de receber ordens diretas de Nova Iorque. Estalou um irado intercâmbio de insultos. Finalmente votaram. Os comunistas respaldaram unanimemente o decreto soviético, depois de acusar a outros de estar controlados do estrangeiro. O resto votou em contra, e a moção foi rechaçada. Berlim se tinha negado a submeter-se ao que considerava um abuso. Carla se sentiu satisfeita, embora também cansada. Entretanto, aquilo ainda não tinha terminado. Quando partiram eram já as sete da tarde. A maior parte da turfa tinha desaparecido, mas o núcleo duro seguia rondando pela entrada. Propinaron patadas e murros a uma concejala muito maior. A polícia seguia olhando com indiferença. Carla e Heinrich saíram por uma porta lateral com vários amigos, confiando em passar inadvertidos, mas um comunista patrulhava em bicicleta essa saída, e se afastou rapidamente. Enquanto os vereadores partiam a toda pressa, o ciclista voltou seguido de uma banda. Alguém pôs a rasteira a Carla, que caiu ao chão. Recebeu uma, dois, três patadas. Aterrada, ela se protegeu o ventre com as mãos. Estava quase de três meses, a etapa em que se produziam a maioria dos abortos, como bem sabia. Morreria o bebê do Werner em uma rua do Berlim espancado por uns valentões comunistas?, pensou, desesperada-se. Ao momento, todos desapareceram. Os vereadores foram levantando-se. Ninguém tinha sofrido feridas graves. partiram juntos, temerosos de que os outros voltassem, mas ao parecer os comunistas já tinham repartido suficientes golpes aquele dia. Carla chegou a casa às oito. Não havia rastro do Erik. Werner se assustou ao ver seus moretones e seu vestido esmigalhado. —O que ocorreu? —perguntou—. Está bem? Carla rompeu a chorar. —Está ferida —disse Werner—. Quer que vamos ao hospital? Ela negou vigorosamente com a cabeça. —Não é isso —disse—. Sozinho som contunda. E as tive piores. —deixou-se cair em uma cadeira—. Deus, estou muito cansada. —Quem te tem feito isto? —perguntou, iracundo. —os de sempre —respondeu Carla—. Se fazem chamar comunistas em lugar de nazistas, mas são da mesma índole. Voltamos a estar em 1933. Werner a abraçou. Carla não encontrava consolo. —Esses valentões estiveram tanto tempo no poder…! —soluçou—. Se acabará algum dia? IV Essa noite, a agência de notícias soviética emitiu um comunicado. Das seis da manhã, todo o transporte de passageiros e mercadorias para e desde o Berlim ocidental —trens, carros e as barcaças dos canais— cessaria. Não entraria nem sairia nenhuma classe de provisão: nem comida, nem leite, nem medicamentos, nem carvão. Dado que as estações generadoras de eletricidade, por conseguinte, enclausurariam-se, já estavam cortando o fornecimento de eletricidade, solo nos setores ocidentais. A cidade estava sitiada. Lloyd Williams se encontrava nos quartéis gerais do exército britânico. A atividade parlamentaria desfrutava de um breve recesso, e Ernie Bevin se havia ido de férias ao Sandbanks, na costa meridional da Inglaterra, mas estava o bastante preocupado para enviar ao Lloyd ao Berlim com a missão de observar a implantação da nova moeda e lhe manter informado. Daisy não tinha acompanhado ao Lloyd. Seu filho, Davey, tinha sozinho seis meses, e, junto com a Eva Murray, Daisy estava pondo em marcha uma clínica de controle da natalidade no Hoxton que estava a ponto de abrir suas portas. Ao Lloyd aterrava que aquela crise desembocasse em outra guerra. Tinha combatido em dois, e não queria ver uma terceira. Tinha dois filhos de curta idade aos que esperava ver crescer em um mundo em paz. Estava casado com a mulher mais bonita, atrativa e adorável do planeta e queria passar com ela o resto de uma vida que esperava que fosse muito larga. O general Clay, governador militar americano viciado no trabalho, ordenou a seu pessoal que organizasse um comboio couraçado que percorreria a auto-estrada desde Helmstedt, no oeste, até o Berlim, cruzando diretamente território soviético e arrasando quanto encontrasse a seu passo. Lloyd teve notícia deste plano ao mesmo tempo que o governador britânico, sir Brian Robertson, a quem ouviu dizer com seu sucinto tom militar: Se Clay fizer isso, será a guerra. Mas aquele plano não tinha sentido. Lloyd soube pelos ajudantes mais jovens do Clay que os norte-americanos tinham sugerido outras opções. O secretário do Exército, Kenneth Royall, queria deter a reforma da moeda. Clay repôs que esta tinha chegado muito longe para poder dar marcha atrás. Continuando, Royall propôs evacuar a todos os americanos. Clay lhe respondeu que isso era exatamente o que os soviéticos queriam. Sir Brian pretendia aprovisionar a cidade por ar. A maioria acreditava que era impossível fazê-lo. Alguns calcularam que Berlim precisava quatro mil toneladas diárias de combustível e de comida. Havia suficientes aviões no mundo para transportar todo isso? Ninguém sabia. Entretanto, sir Brian ordenou a Royal Air Force que pusesse em marcha a operação. na sexta-feira pela tarde, sir Brian visitou o Clay, e ao Lloyd o convidaram a formar parte do séquito. —Os russos poderiam bloquear a auto-estrada por diante de seu comboio e esperar para comprovar se tivermos arrestos de lhes atacar, embora não acredito que se atrevessem a derrubar aviões. —Não vejo como podemos fazer chegar suficientes fornecimentos por ar —voltou a dizer Clay. —Eu tampouco —repôs sir Brian—, mas vamos fazer o até que nos ocorra algo melhor. Clay desprendeu o telefone. —me ponha com o general LeMay, no Wiesbaden —pediu. Ao cabo de um minuto, disse—: Curtis, tem algum avião aí que possa transportar carvão? —Houve uma pausa—. Carvão —repetiu Clay em voz mais alta. Outra pausa—. Sim, isso é o que hei dito: carvão. Um instante depois, Clay olhou a sir Brian. —Diz que a Força Aérea dos Estados Unidos pode transportar qualquer carregamento. Os britânicos retornaram a seus quartéis gerais. na sábado, Lloyd solicitou um chofer militar e se dirigiu à zona soviética com uma missão pessoal. Foi à direção em que tinha visitado a família Von Ulrich quinze anos atrás. Sabia que Maud seguia vivendo ali. Sua mãe e ela tinham reatado a correspondência ao final da guerra. Em suas cartas, Maud punha boa cara ao que sem dúvida estava sendo um calvário. Não pedia ajuda, e, de todas formas, nada podia fazer Ethel por ela: o racionamento seguia vigente em Grã-Bretanha. A casa tinha trocado muito. Em 1933 era uma edificação bonita, um pouco deteriorada mas ainda elegante. Agora tinha um aspecto ruinoso. Na maioria das janelas havia cartões ou papel em lugar de vidros. Na alvenaria se viam orifícios de bala, e o jardim tinha desaparecido. A carpintaria fazia muito tempo que não via uma capa de pintura. Lloyd ficou um momento no carro, observando a casa. A última vez que tinha estado ali tinha dezoito anos, e Hitler só era chanceler da Alemanha. O jovem Lloyd não tinha imaginado os horrores que o mundo ia ver. Nem ele nem ninguém tinha suspeitado o perto que estaria o fascismo de triunfar em toda a Europa, e quanto teriam que sacrificar para derrotá-lo. sentiu-se um pouco como a casa dos Von Ulrich: maltratado, bombardeado e tiroteado, mas ainda em pé. Caminhou pelo atalho até a porta e chamou. Reconheceu à criada que o recebeu. —Olá, Ada, lembra-te de mim? —disse-lhe em alemão—. Sou Lloyd Williams. A casa estava em melhor estado por dentro que por fora. Ada o acompanhou à sala de estar, onde havia um vaso de cristal com flores em cima do piano. Uma manta de vivas cores cobria o sofá, com toda probabilidade para ocultar os buracos da tapeçaria. O papel de periódico das janelas deixava passar uma surpreendente quantidade de luz. Um menino de dois anos entrou na sala e o escrutinou com curiosidade. Ia vestido com roupa feita à mão, e tinha certo ar oriental. —Quem é? —perguntou-lhe o pequeno. —Meu nome é Lloyd. E você? —Walli —respondeu o menino, e partiu correndo—. Esse senhor fala muito gracioso! —ouviu Lloyd que dizia a alguém. Meu acento alemão, pensou. Logo ouviu a voz de uma mulher de média idade. —Não faça esses comentários! São de má educação. —Perdoa, avó. Um instante depois, Maud entrou. Seu aspecto deixou impactado ao Lloyd. Rondava os cinqüenta e cinco anos, mas aparentava setenta. Tinha o cabelo grisalho e a cara descarnada, e levava um vestido puído. Maud lhe deu um beijo na bochecha com seus lábios consumidos. —Lloyd Williams, que alegria verte! É minha tia, pensou Lloyd com uma sensação estranha. Mas ela não sabia; Ethel tinha guardado o segredo. detrás do Maud entraram Carla, que estava irreconhecível, e seu marido. Lloyd tinha visto a Carla pela primeira vez quando era uma precoce menina de onze anos; agora, calculou, tinha vinte e seis. Embora parecia esfomeada —como a maioria dos alemães—, era bonita e transmitia uma segurança que surpreendeu ao Lloyd. Algo em sua postura fez-lhe pensar que estava grávida. Sabia pelas cartas do Maud que Carla se casou com o Werner, que tinha sido um arrumado galã em 1933, e seguia sendo-o. Passaram uma hora ficando ao dia. A família tinha vivido um horror inimaginável e falava dele com franqueza, embora Lloyd seguia tendo a impressão de que passava por cima os piores detalhes. Falou-lhes do Daisy e do Evie. Durante a conversação, uma adolescente entrou na sala e perguntou a Carla se podia ir a casa de seu amiga. —Esta é nossa filha, Rebecca —disse Carla ao Lloyd. Lloyd supôs que teria uns dezesseis anos, e que portanto devia ser adotada. —Já tem feito os deveres? —perguntou-lhe Carla à garota. —Farei-os amanhã pela manhã. —faz-os agora, por favor —repôs Carla com firmeza. —OH, mamãe! —Não discuta —disse Carla. voltou-se para o Lloyd, e Rebecca se foi zangada. Falaram da crise. Como vereador, Carla estava muito implicada. Era pessimista sobre o futuro do Berlim. Acreditava que os soviéticos simplesmente deixariam morrer de fome à população até que Ocidente cedesse e entregasse toda a cidade ao controle soviético. —Deixa que te ensine algo que possivelmente te faça pensar de outro modo —lhe propôs Lloyd—. Me acompanha ao carro? Maud ficou na casa com o Walli, mas Carla e Werner saíram com o Lloyd, que lhe disse à chofer que os levasse ao Tempelhof, o aeroporto do setor americano. Quando chegaram, precedeu-os até um ventanal elevado do qual tinham uma ampla panorâmica da pista de aterrissagem. No asfalto havia uma dúzia de aviões C-47 Skytrain alinhados, alguns com a estrela americana, outros com o círculo da RAF. Tinham as comportas abertas, e ao pé de cada um deles esperava um caminhão. Moços alemãs e pilotos norte-americanos descarregavam as adegas. Havia sacos de farinha, latas enormes de querosene, caixas de material médico e gavetas de madeira cheios de milhares de garrafas de leite. Enquanto eles observavam a cena, aviões vazios decolavam e outros aterrissavam. —É incrível —disse Carla, com os olhos resplandecentes—. Nunca tinha visto nada assim. —Nunca tinha havido nada assim —repôs Lloyd. —Mas podem manter isto os britânicos e os americanos? —perguntou Carla. —Acredito que devemos fazê-lo. —Por quanto tempo? —que seja necessário —respondeu Lloyd com firmeza. E assim foi. 25 1949 I Virtualmente no meridiano do século XX, em 29 de agosto de 1949, Volodia Peshkov se encontrava na meseta do Ustiurt, ao leste do mar Caspio, no Kazajastán. tratava-se de um deserto rochoso no sul profundo da URSS, onde os nômades cuidavam as cabras de forma muito similar a como se fazia em tempos bíblicos. Volodia viajava em um caminhão militar que ia dando incômodos tombos por um caminho tortuoso. Rompia o alvorada na paisagem de rochas, areia e arbustos espinhosos. Um camelo esfomeado, apostado em solitário à beira do caminho, olhou o caminhão a seu passo com mau gesto. ao longe, algo imprecisa, Volodia intuiu a silhueta da torre de onde ia lançar se a bomba, iluminada por toda uma bateria de focos. Zoya e outros cientistas tinham armado sua primeira bomba nuclear seguindo o desenho que Volodia tinha conseguida graças ao Willi Frunze na Santa Fé. Era um dispositivo de plutônio com disparador de implosão. Havia outros desenhos, mas aquele tinha funcionado já em duas ocasiões, uma em Novo o México e outra no Nagasaki. Pelo qual também devia funcionar nessa ocasião. A prova recebeu o nome em chave do RDS-1, embora a chamavam Primeiro Relâmpago. O caminhão no qual viajava Volodia estacionou aos pés da torre. Ao levantar a vista, viu o grupo de cientistas na plataforma, transportando com um matagal de cabos que conduziam aos detonadores instalados na carcasa da bomba. Alguém embelezado com macaco azul de trabalho retrocedeu, e uma juba loira se agitou ao vento: era Zoya. Volodia se encheu de orgulho. Minha esposa —pensou—, física de primeira linha e mãe de dois filhos. Discutia com dois homens, suas três cabeças estavam muito juntas. Volodia esperava que não fora nada mau. Esta era a bomba que salvaria ao Stalin. À União Soviética, todo o resto lhe tinha ido mau. A Europa ocidental tinha abraçado de forma definitiva a democracia, tinha espantado ao comunismo com as ásperas táticas ameaçadoras do Kremlin e se deixou comprar pelos subornos do Plano Marshall. A URSS nem sequer tinha podido fazer-se com o controle de Berlim: como a ponte aérea tinha sido incessante, dia detrás dia, durante quase um ano, a União Soviética se rendeu e havia reabierto as estradas e vias férreas. Na Europa oriental, Stalin tinha conservado o controle graças à pura força bruta. Truman tinha sido reeleito presidente, e se considerava a si mesmo o líder mundial. Os americanos tinham acumulado um arsenal de armamento nuclear e tinham bombardeiros preparados B-29 na Inglaterra, dispostos a converter a União Soviética em um deserto radiativo. Entretanto, todo isso podia trocar esse mesmo dia. Se a bomba explorava como esperavam, a URSS e EUA voltariam a estar em igualdade de condições. Quando a União Soviética pudesse ameaçar aos Estados Unidos com a devastação nuclear, a dominação americana tocaria a seu fim. Volodia já não sabia se isso era algo negativo ou positivo. Se não explorava a bomba, tanto ele como sua esposa acabariam sendo vítimas de uma purgação: enviariam-nos a algum campo de trabalho na Siberia ou se limitariam a fuzilá-los. Volodia já tinha falado com seus pais e eles tinham prometido cuidar da Kotia e Galina. Tal como fariam se Volodia e Zoya morriam vítimas da prova. Graças à luz que cada vez era mais intensa, Volodia viu, em vários pontos distantes em torno da torre, uma variedade de estranhas edificações: casas de tijolo e madeira, uma ponte que pendia sobre um nada e a entrada de uma espécie de estrutura subterrânea. Supostamente, o exército queria medir o alcance da detonação. Depois de fixar-se melhor, viu que havia caminhões, tanques e aviões desmantelados; imaginou que os tinham colocado ali com o mesmo propósito. Os cientistas também foram valorar o impacto da bomba em seres vivos: havia cavalos, cabeças de gado, ovelhas e cães atados no interior de seus barracos. A discussão da plataforma finalizou com uma decisão. Os três cientistas assentiram e retomaram seu trabalho. Passados um par de minutos, Zoya baixou e saudou seu marido. —Vai tudo bem? —perguntou ele. —Isso acreditam —respondeu Zoya. —Você o que crie? Ela se encolheu de ombros. —Como é lógico, esta é nossa primeira vez. Subiram ao caminhão e partiram, percorreram uma terra que já era erma, até um búnker situado ao longe, de onde controlariam a detonação. Outros cientistas foram atrás. No búnker, todos ficaram óculos protetores enquanto se produzia a conta atrás. Aos sessenta segundos, Zoya tirou da mão a Volodia. Aos dez segundos, sorriu-lhe e lhe disse: Amo-te. Quando subtraía sozinho um segundo, conteve a respiração. Então foi como se o sol tivesse saído de repente. Uma luz mais intensa que os raios do meio-dia alagou o deserto. Na direção em que se encontrava a torre da bomba, uma bola de fogo se elevou até uma altura impossível, disparada para a lua. Volodia ficou pasmado ante as resplandecentes cores da bola de fogo: verde, arroxeado, laranja e violeta. A bola se converteu em um cogumelo cujo chapéu ascendia imparable. Ao final se ouviu o ruído: uma explosão semelhante a que tivesse produzido o armamento de artilharia de majores dimensione do Exército Vermelho em caso de ter sido detonado ao meio metro de distância, seguida por uma tormenta ensurdecedora que recordou a Volodia o bombardeio das colinas do Seelow. Ao final, a nuvem começou a dispersar-se e o ruído amainou. Seguiu um interminável momento de silêncio ensurdecedor. —meu deus, isso sim que não o esperava! —exclamou alguém. Volodia abraçou a sua esposa. —Conseguiste-lo —disse. Zoya tinha expressão de solenidade. —Já sei —respondeu—. Mas o que conseguimos? —salvastes o comunismo —atravessou Volodia. II —A bomba russa era uma cópia da FAT Man, a que lançamos sobre o Nagasaki —assegurou o agente especial Bill Bicks—. Alguém lhes proporcionou os planos. —Como sabe? —perguntou-lhe Greg. —Por um desertor. Estavam sentados no despacho enmoquetado do Bicks, no quartel geral do FBI em Washington, às nove em ponto da manhã. Bicks se tinha tirado a americana. Tinha duas manchas de óleo de suor nas axilas da camisa, embora o edifício contava com um refrescante sistema de ar condicionado. —Segundo esse tipo —prosseguiu Bicks—, um coronel do Exército Vermelho conseguiu a plana graças a um dos cientistas da equipe do projeto Manhattan. —Disse quem? —Não sabe que cientista foi. Por isso chamei a você. Necessitamos que encontre ao traidor. —O FBI os investigou a todos em sua época. —E todos supunham um risco potencial para nossa segurança! Não pudemos fazer nada. Mas você os conheceu pessoalmente. —Quem era o coronel do Exército Vermelho? —A isso queria chegar. Você o conhece. chama-se Vladímir Peshkov. —Meu meio-irmão! —Sim. —De estar em seu lugar, suspeitaria de mim —comentou Greg e soltou uma gargalhada, embora não se sentia muito cômodo. —OH, já o fizemos, me crie —disse Bicks—. foi submetido à investigação mais pormenorizada que presenciei nos vinte anos que levo no FBI. Greg o olhou com cepticismo. —Tira o sarro. —Vão bem os estudos a seu menino, verdade? Greg ficou impressionado. Quem podia ter falado ao FBI sobre o Georgy? —refere-se a meu afilhado? —perguntou. —Greg, hei dito pormenorizada. Sabemos que é seu filho. Greg se sentiu molesto, mas não quis manifestá-lo. Tinha insone os segredos de numerosos suspeitos durante sua época na segurança do exército. Não tinha direito a pôr objeções. —Está você limpo —prosseguiu Bicks. —Tranqüiliza-me ouvi-lo. —De todas formas, nosso informador insistiu em que os planos os entregou um cientista, e não algum dos membros do pessoal militar que trabalhava no projeto. —Quando me reuni com a Volodia em Moscou, disse-me que nunca tinha viajado aos Estados Unidos —atravessou Greg com gesto pensativo. —Mentiu —disse Bicks—. Esteve aqui em setembro de 1945. Passou uma semana em Nova Iorque. Logo lhe perdemos o rastro durante oito dias. Reapareceu pouco depois e retornou a seu país. —Oito dias? —Sim. Deixou-nos em evidência. —Isso é tempo suficiente para ir a Santa Fé, ficar um par de dias e retornar. —Exato. —Bicks se inclinou para diante sobre sua mesa de escritório—. Mas, pense. Se o cientista já tinha sido recrutado como espião, por que não contatou com ele seu enlace habitual? por que trouxeram para alguém de Moscou para falar com ele? —Acredita que o traidor foi recrutado durante aquela visita de dois dias? Parece muito rápido. —Certamente tinha trabalhado para eles antes, mas caiu em desgraça por algum motivo. Seja como for, o que temos suposto é que os russos tinham que enviar a alguém a quem o cientista já conhecesse. Isso significa que devia existir uma conexão entre a Volodia e um dos cientistas. —Bicks fez um gesto para assinalar uma mesa auxiliar com pastas marrons—. A resposta está aí, em algum sítio. Essas são as fichas de todos os cientistas que tiveram acesso a esses planos. —O que quer que eu faça? —repassá-los. —Não consiste nisso seu trabalho? —Já o temos feito. Não encontramos nada. Esperávamos que você visse algo que nos tivesse passado por cima. Ficarei aqui sentado lhe fazendo companhia; tenho papelada pendente. —É um trabalho comprido. —Tem todo o dia. Greg enrugou a frente. É que sabiam eles que…? —Não tem você nada que fazer durante o resto do dia —afirmou Bicks com rotundidad. Greg se encolheu de ombros. —Tem café? Tomou café e donuts, logo mais café, depois um sanduíche à hora do almoço e um plátano para lanchar. Leu todos os detalhes conhecidos sobre a vida dos cientistas, suas algemas e suas famílias: infância, educação, trajetória trabalhista, amor e matrimônio, lucros profissionais, excentricidades e pecados. Estava comendo a última parte de plátano quando de repente exclamou: —Cago-me em Deus! —O que, o que? —perguntou Bicks. —Willi Frunze estudou na Academia Masculina do Berlim. —Greg estampou o histórico com gesto triunfal sobre a mesa de escritório. —E…? —Volodia também foi a essa academia… me contou isso ele mesmo. Bicks golpeou sua mesa, emocionado. —Companheiros de colégio! Isso! Já temos a esse bode! —Isso não prova nada —replicou Greg. —OH, não se preocupe, confessará. —Como pode estar tão seguro? —Esses cientistas acreditam que o conhecimento deve compartilhar-se com todo mundo, não acreditam que deva guardar-se em segredo. Tentará justificar-se argumentando que fez-o pelo bem da humanidade. —E pode que o fizesse. —Diga o que diga, acabará na cadeira elétrica —sentenciou Bicks. Greg ficou gelado. Willi Frunze sempre lhe tinha parecido um tipo agradável. —De verdade? —Pode jogá-lo que queira. Acabará frito. Bicks tinha razão. Ao Willi Frunze o declararam culpado de traição, condenaram-no a morte e morreu na cadeira elétrica. Ao igual que sua mulher. III Daisy contemplava a seu marido enquanto este se atava a passarinha branca e ficava o fraque do fraque que lhe sentava como uma luva. —Parece um príncipe —lhe disse ela, e o dizia de todo coração. Deveria ter sido estrela de cinema. Recordou-o tal qual era fazia treze anos, com o traje emprestado no baile do Trinity, e a nostalgia lhe produziu um agradável comichão. naquela época já era bastante bonito, isso recordava, apesar de que o traje o fora duas talhas grande. Estavam alojados na suíte permanente do pai dela no hotel Ritz-Carlton de Washington. Lloyd era subsecretário do Foreign Office e estava de visita diplomática. Os pais do Lloyd, Ethel e Bernie, sentiram zz encantado de poder cuidar de seus dois netos durante uma semana. Essa noite, Daisy e Lloyd foram assistir a um baile de ornamento na Casa Branca. Ela levava um vestido que tirava o fôlego: confeccionado com cetim rosa, com saia de exagerado sino que caía até o infinito em um milhojas de delicados tules. Depois dos anos de austeridade fruto da guerra, Daisy se sentia encantada de poder voltar a comprar vestidos de noite em Paris. Recordou o baile do Clube Náutico de 1935 no Buffalo, o acontecimento ao que ela, na época, culpava de ter arruinado sua vida. A Casa Branca era, a todas luzes, uma entrevista muito mais prestigiosa, embora tinha a certeza de que nada do que pudesse ocorrer essa noite lhe arruinaria a vida. Pensava em todo isso enquanto Lloyd a ajudava a ficar o colar de diamantes rosas que tinha pertencido a sua mãe, com pendentes a jogo. Aos dezenove anos tinha desejado com toda seu alma que as pessoas da alta sociedade a aceitassem. E agora lhe custava imaginar o estar preocupada com algo assim. Enquanto Lloyd lhe dissesse que estava preciosa, trazia-lhe sem cuidado o que pensassem outros. A única pessoa cuja aprovação lhe interessava era sua sogra, Eth Leckwith, que tinha pouca posição social e, sem dúvida alguma, jamais tinha levado um vestido confeccionado em Paris. Todas as mulheres jogavam a vista atrás e pensavam em quão tolas tinham sido de jovens? Daisy voltou a pensar no Ethel, que sem dúvida tinha cometido uma estupidez —ao ficar em cinta de seu chefe casado—, embora jamais tinha falado ressentidamente disso. Possivelmente essa fora a atitude adequada. Daisy refletiu sobre seus próprios enganos: haver-se prometido com o Charlie Farquharson, ter rechaçado ao Lloyd, haver-se casado com o Boy Fitzherbert. Custava-lhe um pouco recordar o ontem e pensar nos benefícios pressente de todas aquelas decisões passadas. Não foi até o momento em que a alta sociedade a tinha rechaçado de forma definitiva, e detrás ter encontrado o consolo na cozinha do Ethel, no Aldgate, quando sua vida tinha dado um giro a melhor. Tinha deixado de choramingar pela posição social, havia aprendido o verdadeiro significado da amizade e se havia sentido feliz após. Agora que todo isso não lhe importava, desfrutava ainda mais nas festas. —Está preparada? —perguntou Lloyd. Estava preparada. ficou o casaco de noite que Dior tinha desenhado como complemento do vestido. Desceram no elevador, saíram do hotel e subiram à limusine que estava esperando-os. IV Carla convenceu a sua mãe para que tocasse o piano em Véspera de natal. Maud levava anos sem sentar-se ante o teclado. Possivelmente a entristecia porque lhe trazia lembranças do Walter: sempre haviam meio doido a quatro mãos e cantado juntos, e tinha contado aos meninos em muitas ocasiões seus vãos intentos de ensinar ao Walter a tocar ragtime. Embora já não contava essa história, e Carla suspeitava que, nesse momento, o piano fazia pensar ao Maud no Joachim Koch, o jovem oficial que tinha ido a ela para receber lições de música, a quem tinha enganado e seduzido, e ao que Carla e Ada tinham matado na cozinha. A própria Carla era incapaz de apagar a lembrança daquela noite de pesadelo, em especial, o momento em que tiveram que desfazer do corpo. Faziam o correto, mas, de todas formas, teria preferido correr um denso véu. Entretanto, Maud acessou finalmente a tocar Noite de paz para que a cantassem todos a coro. Werner, Ada, Erik e os três meninos, Rebecca, Walli e a pequena Lili, reuniram-se em torno do velho Steinway na sala de estar. Carla pôs uma vela sobre o piano, e olhou com atenção os rostos de seus familiares, veteados pelas sombras dançantes da chama enquanto cantavam o canção de Natal alemão. Walli, em braços do Werner, faria quatro anos em questão de semanas e tentava cantar, adivinhando a letra e seguindo a melodia. Tinha os olhos rasgados de seu pai o violador: Carla tinha decidido que sua vingança seria criar a um filho que tratasse às mulheres com ternura e respeito. Erik cantava a letra da canção com sentimento. Apoiava ao regime soviético com tanta lealdade como tinha apoiado aos nazistas. Carla, em um princípio, havia-se mostrado desconcertada e furiosa, mas tinha chegado a considerá-lo uma triste e lógica conseqüência. Erik era uma dessas pessoas ineptas às que assusta tanto a vida que preferem viver subjugados por uma autoridade de ferro e que um governo que não admite discussão lhes diga o que têm que fazer e pensar. Eram idiotas e perigosos, mas havia muitos como ele. Carla olhou com carinho a seu marido, que conservava todo seu atrativo aos trinta. Recordava lhe haver beijado, e algo mais, no assento dianteiro de seu carro, tão masculino, estacionado no Grunewald, quando solo tinham dezenove anos. Ainda gostava de lhe beijar. Quando pensava no tempo que tinha passado após, lhe ocorriam mil recriminações, embora sua major pena era a morte de seu pai. O tinha saudades a todas as horas e ainda chorava ao recordá-lo atirado no saguão, vítima de uma surra tão brutal que não conseguiu sobreviver até a chegada do médico. Não obstante, todo mundo tinha que morrer, e seu pai tinha dado a vida pelo bem de um mundo melhor. Se tivesse havido mais alemães com seu valor, os nazistas não teriam triunfado. Ela queria emular todas suas ações: criar bem a seus filhos, conseguir trocar as coisas na política de seu país, amar e ser amada. E, sobre tudo, ao morrer, queria que seus filhos pudessem dizer, como dizia ela de seu pai, que sua vida tinha significado algo e que o mundo era um lugar melhor obrigado a ela. O canção de Natal tocou a seu fim; Maud sustentou a última nota; o pequeno Walli se tornou para diante e soprou a vela. Agradecimentos Meu principal assessor histórico para a trilogia The Century é Richard Overy. Além disso desejo expressar meu agradecimento aos historiadores Evan Mawdsley, Tim Rés, Matthias Reiss e Richard Toye por ter lido o manuscrito do inverno do mundo e ter feito correções. como sempre, contei com a inestimável ajuda de meus editores e agentes, sobre tudo da Amy Berkower, Leslie Gelbman, Phyllis Grann, Neil Nyren, Susan Pentelhe e Jeremy Treviathan. Conheci meu agente Ao Zuckerman lá por 1975 e, após, foi meu leitor mais crítico, cuja opinião me serviu sempre de inspiração. São muitos os amigos que me têm feito chegar seus úteis comentários. Nigel Dean tem um olho único para o detalhe. Chris Manners e Tony McWalter leram o manuscrito com a perspicácia que lhes caracteriza. Angela Spizig e Annemarie Behnke me liberaram de cometer numerosos enganos nos capítulos alemães. Sempre damos as graças à família e assim deve seguir sendo. Barbara Follett, Emanuele Follett, Jann Turner e Kim Turner leram o primeiro rascunho e fizeram críticas muito enriquecedoras, além de me fazer o valioso presente de seu amor.
Ken Follett
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