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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO / J. Steinbeck
O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO / J. Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Quando a luz dourada daquela manhã de Abril tirou Mary Hawley do sono, ela voltou-se para o marido. Com os dedos mínimos puxando os cantos da boca, imitando uma  rã, ele olhava-a. -Tu és tolo, Ethan! Estás possuído pelo teu génio cómico. -Diz-me, ratinha, queres casar comigo? -Acordaste assim tão tolo? -O ano está em cada dia. O dia em cada manhã. -Tens razão. Sabes que hoje é Sexta-Feira Santa? -Os imundos romanos estão subindo ao Calvário disse ele numa voz cavernosa. -Não sejas sacrílego. O Marullo deixa-te fechar a loja às onze horas? -Querida, pintainho em flor, Marullo é católico e macaroni. Naturalmente nem lá irá. Eu fecharei a loja ao meio-dia, quando a execução estiver terminada. - Isso é linguagem de peregrino. Não é bonita. -Estás enganada, Joaninha. Eu herdei isto da minha mãe. É linguagem de piratas.

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Foi mesmo uma execução, sabes? -Não eram piratas, tu mesmo o disseste. Eram pescadores de baleias munidos de cartas do... como chamaste tu àquilo... do Congresso Continental. O navio que os alvejou tomou-os por piratas e os soldados romanos julgavam proceder a uma execução. -Agora fiz-te zangar. Gosto mais de ti idiota. -Eu sou mesmo idiota. Todos o sabem. -Fazes-me dizer o que eu não quero. Afinal, tens todo o direito de te sentires orgulhoso dos padres peregrinos e dos capitães baleeiros todos numa só família. -Acreditas nisso? -Que queres dizer? -Pensas que os meus grandes antepassados se sentiriam orgulhosos em saber que deram origem a um humilde caixeiro numa miserável mercearia italiana na sua própria cidade natal ? -Tu não és caixeiro. És uma espécie de gerente. És tu que tens os livros, guardas o dinheiro e fazes as encomendas. -Evidentemente. Mas também varro o lixo, faço sala maleques ao Marullo e, se fosse gato, comia-lhe os ratos. Ela envolveu-o nos braços. -Não digas idiotices. Peço-te. Não digas blasfémias numa Sexta-Feira Santa. Eu amo-te. -Entendido -disse ele passado um instante.-É o que toda a gente diz. Mas, mesmo assim, não te julgues autorizada a tagarelar toda nua com um homem casado. -Queria falar-te das crianças. -Elas estão na cadeia? -Lá voltas tu a ser idiota. Será melhor que elas próprias falem contigo? -Mas porque não queres... -Margie Young-Hunt vai ler-me hoje outra vez. -Como um livro? Quem é Margie Young-Hunt, quem é ela entre todos os nossos cortesãos? -Olha se eu fosse ciumenta... Quando um homem pretende não ter reparado numa rapariga bonita... -Ah, é essa? Rapariga? Ela já teve dois maridos. -O segundo morreu. -Quero o meu pequeno almoço. Tu acreditas em tudo aquilo ? -Margie viu o irmão nas cartas. Alguém muito próximo e querido, disse ela. -Alguém que me é próximo e querido não tarda a
 
12 tomar contacto com o meu pé em certo sítio se não corre a ir buscar o que pedi... -Eu vou... Ovos? -Pode ser. Porque é que chamam a isto Sexta-Feira Santa? -Oh!-disse ela.-Lá estás tu com brincadeiras.
 
O café estava feito e os ovos num prato ao lado de um monte de torradas quando Ethan Allen Hawley se sentou a uma mesinha ao lado da janela. -Sinto-me bem-disse ele.-Porque chamam eles a isto Sexta-Feira Santa? -É a Primavera-respondeu a mulher, de pé junto do fogão. -Sexta-Feira da Primavera? -Febre da Primavera. As crianças já se levantaram? -Julgas isso? Esses patifes preguiçosos ! Fá-los sair da cama com uns açoites. -Só dizes disparates quanto te fazes idiota. Voltas do meio-dia às três? -Haverá perigo? -Porquê ? -Por causa das mulheres. Entrarei furtivamente. Essa Margie, talvez... -Ethan, não fales assim. Margie é uma boa amiga. Ela é capaz de te dar a sua camisa. -Essa é boa. E onde iria ela buscar a camisa? -Lá voltas tu à linguagem de peregrino. -Aposto quanto quiseres que nós somos parentes. Ela tem sangue de pirata nas veias. -Oh! Outra vez as tuas parvoíces. Aqui está a lista das compras.-Mary meteu-lha na algibeira.-Parece muito grande. Mas lembra-te de que estamos na semana da Páscoa.  E duas dúzias de ovos, não te esqueças. Estás a atrasar-te. -Já sei, mas posso bem falhar uma venda ao Marullo. Porquê duas dúzias? -Para os tingir. Allen e Mary Ellen pediram-nos. Era melhor que fosses já. -Entendido, pulgão... É preciso ir lá acima dar uns açoites a Allen e a Mary Ellen ? -Tu estrága-los, Eth. Bem o sabes.
 
-Até à vista, navio de luxo. Bateu com a porta e saiu para a manhã verde e dourada. Voltou-se para olhar a velha e graciosa casa que havia sido de seu pai e de seu avô. Pintada de branco, com  um olho de boi por cima da porta de entrada, estava escondida pelos lilases centenários, de tronco tão grosso como a cintura de uma pessoa e cheios de rebentos.  Os olmos de Elm Street juntavam as suas copas douradas, de folhagens novas. O Sol acabava de surgir sobre o edifício do banco e iluminava a massa prateada do gasómetro  e aquecia o cheiro de sargaços e de sal do velho porto. Só um ser vivo passeava a essa hora matinal em Elm Street, o setter ruivo de Mr. Baker, o cão do banqueiro, Red Baker. Andava com uma dignidade tranquila, parando  de vez em quando para farejar junto ao tronco dos olmos. -Bom dia, cavalheiro. Chamo-me Ethan Allen Hawley. Já nos encontrámos uma vez, quando urinávamos.
 
 
13 Red Baker parou e com um ligeiro abanar da cauda deu a entender que tomava nota do cumprimento. -Olhava para a minha casa-prosseguiu Ethan. -Sabia-se construir, naqueles tempos. Red Baker inclinou a cabeça e, indolentemente, coçou a ilharga. -E porque não? Tinham dinheiro. Óleo de baleia dos sete mares e espermacete. Sabe o que é o espermacete ? Red Baker latiu docemente. -Estou a ver que não. É um óleo leve, que cheira a rosas e se encontra na caixa craniana do cachalote. Leia Moby Dick, cão. Recomendo-lho. O setter meteu a pata numa fenda da placa de ferro fundido da abertura do esgoto. Ethan continuou o caminho. -E faça um relatório sobre o livro-disse ele por cima do ombro.-Pode então dar lições ao meu filho. Ele nem sabe soletrar espermacete ou... qualquer outra coisa. Elm Street corta perpendicularmente High Street, à distância de dois quarteirões da velha moradia de Ethan Allen Hawley. Um bando de pardais zaragateava na relva  nova da casa dos Elgar. Eles não brincavam, chilreavam e picavam-se, procurando cegar-se com uma tal ferocidade e fazendo tal barulho que não deram pela aproximação de Ethan, que parou para ver a batalha. -Nos seus ninhos, os outros pássaros estão de acordo. Como podem vocês fazer isso? Têm ali um montão de excremento de cavalo para todos. Vamos, meus meninos, não  se faz isso numa manhã tão linda. E são vocês os pequenos bastardos para quem S. Francisco era tão bondoso. Ponham-se a andar. Correu para eles batendo os pés, e os pardais levantaram voo com um ruidoso bater de asas, protestando amargamente com gritos estridentes. -Escutem -disse-lhes Ethan.-Ao meio-dia o Sol escurecerá, a noite cairá sobre a Terra e tereis medo ! Voltou ao passeio e seguiu o seu caminho. A velha casa dos Phillips, situada no segundo quarteirão, é agora uma pensão familiar. Joey Morphy, caixa do First National, assomou à porta, palitando os dentes  e apertando o colete. -Bom dia-disse a Ethan.-la agora mesmo procurá-lo, Mr. Hawley. -Porque chamam ao dia de hoje Good Friday? (1) -Vem do latim-respondeu Joey.-Goodus, Goodilius, Goodum, que significa mau. Joey tinha qualquer coisa de cavalo e sorria como um cavalo, exibindo os dentes enormes debaixo do grosso lábio superior. Joseph Patrick Morphy, Joey Morphy, o jovem Joey, ou o Morph, era um tipo verdadeiramente popular, se bem que estivesse em New Baytown há poucos anos. Um farsante que dizia as suas pilhérias de olhos semicerrados como um jogador de poker e que sabia gozar ao ouvir as piadas dos outros, quer os conhecesse ou não. Morph, um espertalhão, sabia tudo acerca de cada coisa e de  cada indivíduo desde A até Z. Distribuía o seu saber num tom de quem faz uma pergunta. Isto excluía toda a nota pedante e tornava possível ao interlocutor repetir  o que ouvia como se fosse seu. Joey era um sujeito fascinante. Um jogador que ninguém vira apostar, um bom guarda-livros e um notável tesoureiro. O seu patrão, o  director do First National, confiava de tal maneira em Joey que lhe entregava a maior parte do trabalho. 
14 Morph conhecia toda a gente, mas nunca empregava o nome próprio. Ethan era, para Joey, Mr. Hawley. Margie Young-Hunt era Mrs. Young-Hunt, se bem que se murmurasse que  dormia com ela. Não tinha família nem qualquer ligação oficial. Ocupava sdzinho duas divisões e uma casa de banho na velha casa dos Phillips e tomava a maior parte  das refeições no Foremaster Grill. O seu passado de empregado bancário, bem conhecido de Mr. Baker e da companhia, era imaculado; apesar de tudo isso, Joey tinha  uma maneira de contar aventuras sucedidas a outras pessoas que fazia crer que as vivera ele próprio. E se assim era, que crónica ele tinha ! O facto de não se gabar  só fazia que agradasse ainda mais. Tinha as unhas invariàvelmente limpas, vestia-se com correcção, apresentava sempre uma camisa acabada de lavar e sapatos brilhantes. Os dois homens desceram juntos Elm Street em direcção a High Street. -Queria fazer-lhe uma pergunta. Não é da família do almirante Hawley? -Não quererá referir-se ao almirante Hawey? Nós tivemos na família uma porção de capitães, mas nunca ouvi falar de um almirante. -Disseram-me que o seu avô era capitão de um navio baleeiro. Devo ter feito confusão com o almirante. -Uma cidade como esta aprecia os mitos. Dizem também que os meus antepassados do lado paterno se dedicaram à pirataria e que a família da minha mãe chegou no Mayflower. -Ethan Allen. Meu Deus... Você também lhe é aparentado? -Talvez. Pode ser. Que dia... Já viu algum mais belo? A que propósito queria falar comigo? -Ah, sim. Suponho que você fecha a loja do meio-dia às três. Pode arranjar-me algumas sanduíches lá para as onze e meia? Eu daria um salto para ir buscá-las. E também  uma garrafa de leite. -O banco não fecha? -O banco, sim. Mas eu não. O pequeno Joey lá estará agarrado aos seus livros. Num fim-de-semanaa como este, toda a gente quer levantar dinheiro. -Nunca tinha pensado nisso. -Pois é assim. Na Páscoa, no Memorial Day, no 4 de julho e no Dia do Trabalho. Se eu quisesse assaltar um banco, faria isso justamente nas vésperas de um fim-de-semana prolongado. A massa está toda pronta e  só espera que a levem. -Você nunca sofreu um assalto, Joey? -Não. Mas tenho um amigo a quem isso aconteceu duas vezes. -Que lhe disse ele? -Que teve medo. Obedeceu. Deitou-se no chão e deixou levar o que quiseram. Na sua opinião, o dinheiro estava mais seguro que ele. -Eu levo-lhe as sanduíches quando fechar. Baterei à porta de trás. Como as quer? -Não se incomode, Mr. Hawley. Eu atravessarei a rua. Quero uma de fiambre e outra de queijo, com pão de centeio, uma folha de alface e maionese e talvez uma garrafa  de leite e uma de Coca-Cola, para acabar.
15 -Eu recebi um bom salame... isto é, o Marullo. -Não, obrigado. Como passa esse membro da Mafia? -Creio que bem. -Mesmo quando não se aprecia demasiado o dinheiro, não se pode deixar de admirar um tipo que se governou como ele. É esperto. Nem se sabe quanto já encaixou. Fazia  melhor em calar-me. Um empregado bancário não deve falar. -Você não disse nada. Tinham chegado à esquina de Elm Street e de High Street. Com um movimento análogo, pararam para olhar um montão de tijolos cor-de-rosa e de gesso, vestígios do velho  Bay Hotel, que estava a ser demolido para dar lugar ao novo Woolworth"s. O bulldozer pintado de amarelo e a grande grua que movia o aríete pareciam esperar os demolidores. -Eu gostaria de fazer isto-disse Joey.-Deve causar impressão ver ruir um muro. -Fartei-me de vê-los cair em França-respondeu Ethan. -É isso. O seu nome figura no monumento em frente ao cais. -Encontraram os ladrões que assaltaram o seu amigo? Ethan estava persuadido de que se tratava do próprio Joey.
 16 2-O I. D. -Sim. Caíram na armadilha como ratos. É uma felicidade os ladrões não serem espertos. Se o Joey escrever um livro sobre a maneira de assaltar um banco, a Polícia  nunca mais apanha ninguém. Ethan riu. -Como chegou a essa conclusão? -Eu sou como toda a gente. Tenho-me contentado em ler os jornais e conheci bem um sujeito que era polícia. Quer uma conferência de dois dólares sobre o assunto? -Prefiro uma de seis cêntimos. Tenho de abrir a loja. -Minhas senhoras e meus senhores-começou Joey. -Estou aqui esta manhã... Não, oiçam. Como apanhar os assaltantes de um banco? Primeiro : se já foram condenados, cadastro judiciário. Segundo: eles pegam-se no momento da partilha e há um que come o bolo. Terceiro : as mulheres. Isto leva-nos ao quarto ponto : o dinheiro é para ser gasto. Vigiem as pessoas que fazem despesas fora do vulgar e tereis os vossos homens. -Qual é então o seu método, professor? -Simples como beber água. Fazer exactamente o contrário. Nunca assaltar um banco se já se foi preso e se se tem ficha, seja pelo que for. Nada de cúmplices: agir  só e não dizer nem uma palavra a qualquer ser vivo. Esquecer as mulheres. Não gastar. Guardar o dinheiro durante anos, se for preciso. Depois, quando houver um motivo  para dispor de algum dinheiro, investi-lo pouco a pouco. Não gastar nada em divertimentos. -E se o ladrão é reconhecido? -Se ele esconde a cara e não fala, como podem reconhecê-lo? Já alguma vez leu as descrições das testemunhas oculares? Uma laracha. O meu anuo chui repetia quando  o encarregavam de fazer um inqueerito: as pessoas estavam prontas a jurar fosse o que fosse. Deve-me seis centimos. Ethan meteu a mão na algibeira. -Devo-lhos- disse ele. -Pagar-me-ei nas sanduíches-respondeu Joey. Atravessaram High Street e entraram na travessa perpendicular à rua. Joey, de um lado, entrou pelas traseiras do First National Bank e Ethan abriu do outro lado  a porta da mercearia-frutaria de Marullo. -Fiambre e queijo?-gritou. -Com pão de centeio... alface e maionese. loja. Da estreita ruela, coada pela janela gradeada, de vidros poeirentos, uma claridade difusa vinha iluminar a Ethan parou à entrada do compartimento escuro, guarnecido  de prateleiras até ao tecto, atravancadas de sacos e caixas de frutas, de legumes, peixe, queijos. Esfregou o nariz procurando o cheiro a ratos por entre o odor  da farinha, dos pêssegos e das peras secas, dos cereais nas caixas e a acidez forte dos queijos, das salsichas, dos presuntos e o mofo das couves, alfaces e beterrabas.  Não descobrindo sinal de roedores, arrastou os caixotes com lixo para a travessa. Um gato cinzento tentou esgueirar-se para dentro, mas ele enxotou-o.
 
17 -Não-disse-lhe ele.-Os ratos estão à tua disposição, mas tu és um apreciador de salsichas. Safa-te ! Ouves-me? Safa-te ! O gato, que, sentado, lambia uma das patas rosadas, ao segundo "safa-te" fugiu com o rabo no ar e desapareceu por cima do muro nas traseiras do banco. -Deve ser uma palavra mágica-notou Ethan. Tornando a entrar no armazém, fechou a porta atrás de si. Atravessava o compartimento poeirento, dirigindo-se à mercearia, quando " um murmúrio de água a correr o fez parar. Empurrou a porta de contraplacado do cubículo  que servia de lavabo, acendeu a luz e puxou o autoclismo.Depois empurrou os batentes da grande porta protegida por rede metálica e abriu-a com uma pancada do tacão  no ferrolho de baixo. As cortinas da montra deixavam entrar uma luz verde na loja. Aqui também havia prateleiras até ao tecto, carregadas de caixas de conservas e de frascos bem alinhados:  uma biblioteca para o estômago. Além, o balcão, a caixa registadora, os sacos, e aquela glória de aço inoxidável e esmalte branco, o frigorífico de motor ciciante.  Ethan deu volta a um comutador e banhou os queijos, as salsichas, as costeletas, os bifes e o peixe de uma luz de néon azul, gelada. Difusa como a de Chartres, uma  claridade de catedral invadiu a loja. Ethan parou para admirar os frascos de tomate, nos quais viu tubos de órgão, as capelas de mostarda e de azeitonas e os túmulos  ovais das latas de sardinha.
18 #- UMmum et unimorum -disse num tom nasal de litania. -UM unimus quod unibus in omnem unira domine... ahhhhmen. -Pareceu-lhe ouvir o comentário da sua mulher: "Isso é uma parvoíce que pode ferir os sentimentos dos outros. Não se ganha nada em magoar as pessoas..." Caixeiro de mercearia-da mercearia Marullo-, um homem com mulher e dois filhos encantadores. Quando está só... Mas quando é que pode estar só? Durante o dia, os  clientes, à tarde, a mulher e os miúdos, à noite, a mulher. Que sentimentos posso ferir, torrãozinho de açúcar? ", imaginou-se a dizer à mulher. "Aqui não há pessoas nem sentimentos. Só eu e o meu unimum unimorum até que  abra aquela sagrada porta de entrada." De uma gaveta por detrás do balcão ao lado da caixa registadora tirou um avental limpo, que desdobrou. Pô-lo diante de si e cingiu-o, fazendo que os atilhos dessem  duas voltas à cintura estreita. Depois atou-o com um nó atrás das costas. O avental era comprido e dava-lhe pelo meio das pernas. Com a mão direita levantada e frouxamente dobrada, a palma para cima, pôs-se a declamar - Escutai-me, geras enlatadas, e vós pickles, e vós também piccallili... Logo que amanheceu, os velhos, os chefes dos sacerdotes e os escribas reuniram-se e levaram-n" O diante do seu concílio... "Logo que amanheceu..."  Os patifes come çaram o trabalho bem cedinho, não é verdade? Não desperdiçavam o tempo. Continuemos. E era por volta da sexta hora... isto é, à volta do meio-dia... e as trevas  estenderam-se sobre a Terra até à nona hora. E o Sol escureceu. Porque me lembro eu disto agora? Meu Deus, muito tempo demorou Ele a morrer-uma medonha eternidade. Deixou cair a mão e, pensativo, contemplou as prateleiras como se esperasse uma resposta. -Tu não me falas agora, Mary, minha querida. És uma das filhas de Jerusalém? Não chores por mim. Guarda as lágrimas para ti e para os teus filhos... Porque, se estas  coisas acontecem numa árvore verde, que seria numa árvore seca?-A tia Deborah trabalhava melhor do que ele imaginava. Ergueu então as cortinas verdes da montra. -Penetra, dia! ao Depois desaferrolhou a porta da entrada, empurrando os batentes chapeados de ferro. -Entra, mundo! O sol banhava suavemente o pavimento, pois em Abril levanta-se exactamente onde High Street desemboca na baía. Ethan foi ao lavabo buscar uma vassoura para limpar  o passeio. Uma manhã inteira não é uma coisa, mas muitas. Muda não só em intensidade de luz, crescente primeiro, para declinar depois, mas em textura, em humor, em tom e em  matises, deformada pelos mil pormenores de uma estação, o calor ou o frio, a calmaria ou os diversos ventos, diferindo nos cheiros, nas construções feitas pelo gelo  ou pela erva, nos rebentos, nas folhas ou nos ramos secos e nus. E como o dia muda, assim mudam também os seus actores insectos, pássaros, gatos, cães, borboletas  e pessoas.
 
19 O dia tranquilo e interior de Ethan Allen Hawley acabara. O homem que varria o passeio com gestos de metrónomo não era o mesmo que podia falar aos alimentos em conserva.  Já não era o unimus unimorum. Amontoava as pontas de cigarros, os papéis dos bombons, as folhas caídas das árvores e o vulgar pó, para depois empurrar tudo para  a valeta, onde ficaria à espera do pessoal da limpeza e do seu camião. Mr. Baker aproximava-se, anulando a curta distância que separava a sua casa de Maple Street da basílica de tijolo do First Nacional Bank. E se os seus passos não  eram todos de igual comprimento, quem diria que isso era devido a que outrora se esforçara por nunca pisar a sombra de sua mãe quando caminhavam juntos? -Bom dia, Mr. Baker-disse Ethan, interrompendo o seu trabalho para não salpicar de poeira as calças do banqueiro. -Bom dia, Ethan. Bela manhã. -Com efeito. É a Primavera, Mr. Baker. O Serviço Meteorológico tinha razão. -Sim, sim-respondeu Baker, que fez uma pequena pausa antes de continuar:-Eu queria falar-lhe, Ethan. Aquele dinheiro que sua mulher herdou do irmão... mais de cinco  mil dólares, não foi? -Seis mil e quinhentos, depois dos impostos pagos. -Pois bem. Isso dorme no banco. É necessario sempre pagá-lo. Gostaria que discutíssemos isso. É preciso fazer trabalhar o seu dinheiro. -Seis mil e quinhentos dólares não podem trabalhar muito. Estão lá para um caso de urgência. -Não creio no dinheiro que não serve para nada. -Mas ele serve... fica, espera. A voz do banqueiro perdeu todo o calor. -Não compreendo. O seu tom mostrava que compreendia perfeitamente e achava aquilo estúpido. E aquele tom fez nascer a amargura em Ethan, e esta amargura engendrou uma mentira. A  vassoura traçou uma curva graciosa sobre o pavimento. -É o que lhe digo. Aquele dinheiro dará uma segurança temporária a Mary no caso de acontecer alguma coisa. -Nesse caso, sirva-se dele, parcialmente, para arranjar um seguro de vida. -Mas trata-se de uma coisa temporária. Esse dinheiro fazia parte da herança do irmão de Mary. A mãe vive ainda. Ela pode viver alguns anos. -Compreendo. As pessoas de idade podem ser um fardo. -Podem também sentar-se em cima do seu dinheiro. Ethan olhou disfarçadamente Baker à medida que dizia a sua mentira e viu o sangue subir no pescoço do banqueiro. -Sabe, se eu investisse o dinheiro de Mary, poderia perdê-lo como perdi o meu e o meu pai o dele. -Águas passadas não movem moinhos, Ethan. Você teve aborrecimentos, eu sei. Mas os tempos mudaram. Hoje oferecem-se novas possibilidades. -Eu tive-as, Mr. Baker, mais que bom senso. Imediatamente a seguir à guerra este estabelecimento pertencia-me, não o esqueça. Tive de vender um lote de casas para  recheá-lo... Era a última das nossas propriedades comerciais. -Eu sei, Ethan. Sou o seu banqueiro. Conheço os seus negócios como o seu médico conhece o estado do seu pulso.
20 -E evidente que o senhor sabe. Bastou-me menos de dois anos para falir. Tive de vender tudo, menos a minha casa, para pagar as dívidas. -Não carregue todas as culpas. Mal saiu do Exército... sem experiência comercial... E não se esqueça de que chegou em plena crise. Muitos homens de negócios afundaram-Se -Eu também, e totalmente. Pela primeira vez um Hawley é caixeiro de um merceeiro macaroni. -E isso que eu não posso compreender, Ethan. Toda a gente pode falir. Mas o que eu não vejo é motivo para que um homem do seu meio, da sua educação, permaneça um  falido. Isso não pode ser definitivo, a não ser que o seu sangue tenha perdido o vigor. Que é que o abateu, Ethan? Que é que o faz continuar caído? Ethan começou uma réplica irada. -Evidentemente, o senhor não pode compreender, nunca foi... Depois formou um montinho de invólucros de goma elástica e pontas de cigarros e empurrou-os para a valeta. -Os homens não se deixam prostrar. Eles podem bater-se contra grandes coisas. É a erosão que os mata. São atraídos pelos reveses. Pouco a pouco, têm medo. Eu tenho  medo. A companhia de electricidade de Long Island pode cortar a corrente. Minha mulher precisa de vestidos. Os meus filhos de sapatos e de divertimentos. E imagine  que eles não possam estudar? E os pagamentos do fim do mês, o médico, o dentista, a operação das amígdalas. E se, ainda por cima, eu adoecesse e me tornasse incapaz  de varrer este passeio? Evidentemente, o senhor não pode compreender. Eu odeio o meu trabalho, e tremo à ideia de perdê-lo. Como poderá compreender? -E a mãe de Mary? -Já lhe disse. Ela está sentada em cima do dinheiro e em cima dele morrerá. -Não sabia. Julgava que Mary era de uma família pobre. Mas eu sei que quando se está doente há necessidade de medicamentos, ou de uma operação, ou talvez de um tratamento  prolongado. Os nossos pais arriscavam-se. Você sabe. Eles andavam a marcar passo até à morte. Os tempos mudaram. Oferecem-se agora oportunidades com que os nossos  antepassados nunca sonharam. E são os estrangeiros que se apoderam delas. Os estrangeiros ultrapassam-nos, Ethan. -E o frigorífico, que acha? -Abandone-o, se for preciso. -E Mary? E os garotos?
21 -Esqueça-os por algum tempo. Amá-lo-ão mais se você sair da rotina. Você não os ajuda arreliando-se por,, causa deles. -E o dinheiro de Mary? -Perca-o, se for preciso, mas arrisque-o. Tomando precauções e seguindo conselhos prudentes, você não o per derá. Arriscar não e perder. Os nossos pais tomaram sempre  riscos calculados, e não perdiam. Eu vou chocá-lo, Ethan. Você esquece-se do velho capitão Hawley. Deve alguma coisa à sua memória. Meu pai e ele possuíam em comum  o Belle Adair. Um dos últimos baleeiros, e um dos mais bonitos. Jogue as suas cartas, Ethan. Lembre-se do Belle Adair e mostre audácia. Mande passear o pé-de-meia. Com a ponta da vassoura, Ethan convenceu um bocado de celofane recalcitrante a entrar na valeta. -O Belle Adair ardeu até à linha de flutuação - disse suavemente. -Eu sei, mas isso fez-nos parar? Não. -Estava no seguro. -Evidentemente. -Pois bem. Não o estou eu. Salvei a minha casa, e nada mais. -Esqueça isso. Você deixa-se empolgar pelo passado. Dê mostras de um pouco de coragem, de audácia. Por isso lhe digo que empregue o dinheiro de Mary. Eu procuro  ajudá-lo. -Obrigado. -Vamos tirar esse avental em atenção ao velho capi tão Hawley. Ele não poderia recebê-lo. -Também penso que não. -lsso é que é falar. Vamos tirar esse avental. -Se não fosse Mary e as crianças... -Esqueça-as, repito-lhe... para bem delas. Bem depressa acontecerão coisas interessantes em New Baytown. Você poderá tomar parte nelas. -Obrigado. -Eu pensarei no assunto. -Mr. Joey disse-me que continuaria a trabalhar depois da hora de fechar. Vou preparar-lhe umas sanduíches. Quer também algumas? -Não, obrigado. Eu deixo o Joey trabalhar. É um belo rapaz. Desejo informar-me acerca das confrontações e limites decerta propriedade. Na repartição de cadastro, bem entendido. Trata-se disso com todo o sossego entre  o meio-dia e as três horas. Talvez lá encontre alguma coisa para si. Tornaremos a falar nisso. Até logo. Deu uma grande passada para evitar uma fenda do pavimento e atravessou a ruela em direcção à porta principal do banco. Ethan sorriu enquanto ele se afastava. Terminou ràpidamente de varrer, pois as pessoas começavam a dirigir-se aos seus trabalhos. Instalou o mostruário de frutos frescos à entrada da loja. Depois deslocou  três latas com comida para cães, meteu a mão pelo intervalo aberto, retirou um pequeno saco, tornou a por as latas no seu lugar, carregou no botão que abria a gaveta da caixa registadora e distribuiu pelas divisões respectivas as notas de um, cinco, dez e vinte dólares.
 
22 Depois apartou as moedas segundo o seu valor, colocou-as nas divisórias de carvalho e fechou a gaveta com um empurrão seco. Os clientes eram ainda raros. Crianças principalmente, mandadas buscar pão, leite ou café, e rapariguinhas cujos cabelos estavam ainda desgrenhados. Margie Young-Hunt apareceu. Os seios atrevidos emolduravam-se numa camisola cor de salmão. A saia de tweed acariciava-lhe as coxas com amor e apertava-lhe o traseiro  arrogante. Mas foi nos seus olhos castanhos, um pouco míopes, que Ethan viu o que a sua mulher não podia notar, pois aquele género de clarão não é feito para as  esposas. Ela era uma devastadora, uma caçadora, uma Artemisa para tudo quanto fosse calças. O velho capitão Hawley teria dito que ela tinha um "olhar vadio". E a  voz, muito aveludada, mudava quando falava com mulheres para se tornar propícia às confidências. -Bom dia, Eth. Que dia para um piquenique ! -Bom dia. Aposto que já não tem café. -Se você apostasse que eu ja nao tinha Alka Seltzer, eu passava a evitá-lo. -A noite foi dura? -De certo modo. Histórias de caixeiros viajantes. Uma mulher divorciada não oferece nenhum risco. Talvez você o conheça; Bigger ou Bogger, viaja por conta de B.  B. D. e D. Ele manifestou a intenção de vir vê-lo.
23 -Nós compramos quase tudo à Weylands. -Mr. Bigger vai talvez procurar fazer negócio se, esta manhã estiver melhor que eu. Diga, pode dar-me um copo de água? Vou já tomar duas pastilhas efervescentes. Ethan foi encher um copo de água à torneira das traseiras da loja e deu-lho. Ela deitou três comprimidos e olhou-os até se dissolverem. -Como isto ferve!-Esvaziou o copo de uma vez. Mãos à obra, seu brutos ! -Você vai hoje ler a sina à Mary? -Oh, meu Deus. Quase o esquecia. Tenho de me apressar. Eu poderia fazer fortuna dessa maneira. -Mary adora essas coisas. Você percebe disso? -Não custa nada. Você deixa as pessoas-quero dizer, as mulheres-falar delas, depois aproveita o que acabam de dizer-lhe e acreditarão que tem o dom de adivinhar. -E se for um matulão moreno? -lsso também eu queria! Se soubesse ler a sina aos homens, não teria sido tão intrujada. Ah, meu velho, como em me enganei com certos tipos ! -O seu primeiro marido morreu? -Não, o segundo. Paz às suas cinzas, esse filho da... Não, o melhor é deixar andar. Paz às suas cinzas. Ethan saudou com solicitude a velha senhora Ezyzinski, que acabava de entrar na loja, demorou a cerimónia da transferência de uma quarta de manteiga e arriscou alguns  comentários elogiosos acerca do tempo. Mas Margie Young-Hunt, à vontade e sorridente, inspeccionava as latas douradas de foie gral e as minúsculas latas de caviar  no fundo do balcão, ao lado da caixa. -Agora... -disse Margie, quando a velha dama se afastava no seu passo curto e falando consigo própria em polaco. -Agora... o quê? -Pensava sòmente que, se eu conhecesse os homens tão bem como as mulheres, poderia retirar-me dos negócios. Porque não me dá algumas lições, Ethan? -Você sabe bastante disso. Talvez demasiado. -Ora vamos ! Você não tem um certo pendor para o gracejo? -Quer que comecemos agora? -Uma destas noites, talvez. -Bem. Um grupo. Mary, você e os dois miúdos. Assunto: os homens... suas fraquezas, a sua estupidez e como tirar partido de tudo isso. Margie não reparou na entoação dele. -Você trabalha sempre até tarde... as contas do fim do mês e todas essas coisas? -Sem dúvida. Levo trabalho para casa. Ela levantou os braços acima da cabeça e passou os dedos pelo cabelo. -Porquê?. -perguntou. -O trabalho e a fonte de todas as alegrias. -Já imaginou o que poderia ensinar-me?
-E, depois de terem troçado d"Ele, tiraram-Lhe a tunzca e arrastaram-n" O para pô-l" Ona cruz. Quando saíram, encontraram um homem de Cirena, que se chamava Simão.  Obrigaram-no a levar a cruz. Quando atingiram o Gólgota-um lugar situado numa eminência... -Oh, pelo amor de Deus! -É exactamente assim... -Você sabe que é um bom patife? -Sim, ó filha de Jerusalém. Bruscamente, ela sorriu. -Adivinha o que eu vou fazer? Ler-lhe a sina. Você está destinado a um grande futuro, sabe? Tudo aquilo em que tocar se transformará em ouro... um condutor de homens. Com passo rápido, dirigiu-se para a porta. Depois voltou-se com um sorriso nos lábios. -Desafio-o a levar a vida que é necessária para isso e também o desafio a não a levar. Adeus, Salvador. Como é estranho o som de um tacão raivoso sobre o pavimento ! As dez horas tudo mudou. As grandes portas envidraçadas do banco abriram e uma onda de gente invadiu o edifício para ir buscar o dinheiro que iriam dar a Marullo  em troca de fantasistas alimentos pascais. Até ao último minuto da sexta hora Ethan não parou. Na sua cúpula da Câmara Municipal, o sino de incêndios, irritado, marcou as doze horas. Os clientes afastaram-se com os braços carregados de mantimentos. Ethan meteu  outra vez na loja o mostruário dos frutos, fechou a porta e depois, sem outra razão senão as trevas que acabavam de estender-se sobre o mundo e sobre ele próprio,  desceu a espessa cortina verde, e a escuridão reinou na loja. Só o 26 27 Biblioteca Pública "Arthur Viarina Sala H .toldo Maranhão néon do balcão-frigorífico fornecia uma claridade azul, f tasmagórica. Cortou quatro fatias de pão de centeio barrou-as de manteiga. Do frigorífico tirou duas fatias  queijo e três de fiambre. Alface e queijo, disse para consigo. u Alface queijo. Quando um homem se casa, está arrumado." Besuntou o pão com maionese tirada de um frase aplicou as fatias uma contra a outra e aparou o fiambre e salada que saíam para fora do pão. Depois juntou tu numa  embalagem de cartão, com o leite, e envolveu conjunto em papel-manteiga. Dedicava todos os cuidad ao embrulho quando uma chave deu volta na fechadur Era Marullo.  Pesado como um urso, o seu vasto peito faz* parecer muito curtos os braços, que trazia afastados corpo. O chapéu, atirado para a nuca, libertava uma espess franja  de cabelos grisalhos, que dava a impressão de u gorro. Os olhos de Marullo eram húmidos, tímidos e son lentos, mas as coroas de ouro dos seus dentes brilhavam claridade  do balcão-frigorífico. Dois botões desabotoado no alto das calças deixavam ver a roupa interior, de c cinzenta e grosseira. Pôs os polegares gordos e curtos na cia  tura e pestanejou na semiobscuridade. -Bom dia, Mr. Marullo. Perdão, acho que já tarde.
-Bom dia, rapaz. Tu fechaste muito cedo. -Toda a cidade já fechou. Supunha que o senti estava na missa. -Hoje não há missa. É o único dia do ano em qu não a há. -Ah! Não sabia. Em que posso ser-lhe útil? Marullo levantou os curtos braços e esfregou os coto velos. -A minha artrite, rapaz. Isto está pior ! -Não pode fazer nada a isso? -Já fiz tudo... compressas quentes, óleo de Cubar pílulas... isto dói sempre... E se nós tivéssemos uma quena conversa, que dizes, rapaz? Os seus dentes luziram. -Há qualquer coisa que não esteja bem? -Não. Porquê? -Bem. Se pudesse esperar um minuto até eu le estas sanduíches ao banco. Mr. Morphy pediu-mas. -Tu és um rapaz simpático. Sempre pronto a fazer um favor. Isso é bom. Ethan atravessou a loja e a ruela e bateu à porta de trás do banco, onde entregou o leite e as sanduíches a joey. -Obrigado. Mas não era preciso incomodar-se. -É um favor. O Marullo acaba de mo dizer. -Ponha duas garrafas de Coca-Cola a gelar. Tenho a boca que parece de contraplacado. Quando voltou, Ethan encontrou Marullo a mexer num caixote de lixo. -De que me queria falar, Mr. Marullo ? -Disto, para começar, rapaz.-Tinha pescado algumas folhas de couve-flor no caixote.Tu deitas muitas coisas fora. -E para ficarem com bom aspecto. -A couve-flor é a peso. Deitas dinheiro para o lixo. Conheço um grego que possui talvez vinte restaurantes. O seu grande segredo, diz ele, consiste em vigiar os  caixotes de lixo. O que se deita fora não se vende. E um espertalhão. -Sim, Mr. Marullo. lNervoso, Ethan encaminhou-se para a entrada da oja. Marullo seguiu-o, esfregando os cotovelos. -Molhas bem as hortaliças, como te disse? -Sim. O patrão pegou numa alface. -Parece-me seca. -Santo Deus, Mr. Marullo, não é preciso encharcá-las... elas já contêm um terço de água. -Faz parecê-las frescas e apetitosas. Pensas que eu não sei disto? Comecei com um carro de mão... um só. Pois bem. Tu precisas de conhecer os truques do ofício,  rapaz, senão abres falência. Agora a carne, tu compra-la muito cara. -Nós vendemos vaca de primeira qualidade. -E depois? Continuemos a nossa conversazinha. Há contas atrasadas. Há gente que não liquida no dia quinze... conforme se vê nos livros. -Nós não podemos fazer isso. Alguns deles são nossos clientes há mais de vinte anos. -Ouve, rapaz, as cadeias de armazéns não fiam um centavo a John D. Rockfeller. 28 29
-Sim, mas esta gente é decente, pelo menos a maio parte. -Que queres tu dizer com esse <.cé decente"? Os grand armazéns compram a mercadoria atas vagões. Nós não pod mos fazer o mesmo. Tens de aprender, rapaz. Está be  pequeno. Está bern, é gente encantadora. O dinheiro tarn bém e encantador, Tens muitas quebras. -Trata-se unicamente de despe indícios. -lsso evita-se se pesares primei-ro e ajeitares a merca doria depois. Pensa nos truques. `Vens ainda muito qu aprender, rapaz. Os dentes de ouro já não brilhavam, cobertos agora pelos lábios cerrados. Com grande surpresa sua, a .cólera apoderou-se d Ethan. -Eu não sou um vigarista, Mr . Marullo ! -Quem fala aqui em vigarice ? É comércio do bo e a única maneira de fazer negócÃo. Tu crês que Baker, distribui amostras gratuitas? Ethan explodiu com violência. -Escute-me! -gritou. -Os Havwley vivem aqui desde 170O. Você não passa de um estrara,geiro. Nós sempre no demos bem com os vizinhos e nunca deixámos de ser decen  tes durante este tempo todo. Se acredita que pode desembarcar da sua Sicília e mudar tudo- isto, está muito erga nado. Se quer fazer o meu trabalhar, tome-o. E imediata  mente. E não me chame rapaz, ou po-arto-lhe a cara. Todos os dentes de Marullo brilham rani simultâneamente. -Está bem. Está bem. Não to::~ zangues. Eu apenas quis brincar contigo. -Não me chame rapaz. A milha família vive aq há mais de duzentos anos. Isto pareceu pueril aos seus própa.rios ouvidos e a cóler extinguiu-se. -Eu não falo bem inglês. Tu j3ensas que Marullo é um nome sem valor, um nome de n-waroni ? O meu nom tem talvez dois ou três mil anos. M :;arullus vem de Roma Valerius  Maximus fala nele. Que sãn3 duzentos anos? -Você não estava aqui nessa altura. -Há duzentos anos também tu rntão estavas. E Ethan, passada toda a fúria, v .u uma daquelas cois que levam um homem a duvidar dzz constância das reali dado fora de si mesmo. Viu o emigrante, o pequeno italiano,, mudar sob os seus olhos. Viu a abóbada da sua fronte, - nariz forte e recurvo, os olhos bravios sem medo, profun damente encaixados, a cabeça suportada por uma bela coluna musculosa, o orgulho tão seguro e tão grande que podia permitir-se a humildade. Chocante descoberta, ao  ponto de provocar esta pergunta admirada: " Se não notei isto, que outras coisas me esqueci eu de ver?" -E inutil falar de ninharias disse Ethan suavemente. -Muito bem. Eu ensino-te o comércio. Tenho sessenta - oito anos. A minha mulher morreu. Artritismo ! Como isto dói! Faço por pôr-te ao corrente destas coisas. Talvez tu não queiras aprender. Há muitas pessoas assim.  E arruinam-se. -Não vale a pena recomeçar, eu fali. -Não. Enganas-te. Ensinar-te-ei a fazer bons negocios,
-        não te arruinarás mais. -Há poucas probabilidades. Não tenho nada. -Não passas de um garoto. -Mr. Marullo, escute-me um pouco. Eu, praticamente, faço caminhar esta loja para si. Encarrego-me da contabilidade, guardo o dinheiro, faço as encomendas. Chamo  a clientela. Ela vem. Tudo isto não é um bom trabalho? -Evidentemente... Aprendeste alguma coisa. já não és uma criança. Tu zangas-te quando eu te chamo rapaz. Gomo quererás que te trate? Eu chamo rapaz a toda a gente. -Experimente o meu nome. -lsso não é amistoso. Rapaz é amigável. -Mas não é digno. -A dignidade não é amistosa. Ethan riu. -Quando se é caixeiro da mercearia de um macarani) é necessário dignidade... Em atenção à sua mulher, aos seus filhos. Compreende? -lsso é uma comédia. -Certamente. Se eu pcissuísse a verdadeira dignidade, ryãO pensaria nela. Por momentos esqueci o que me disse o meu velho pai antes de morrer. Disse-me que o insulto  egtá directamente relacionado com a inteligência e a segurança e as palavras "filho de uma cadela" só ferem 30 3r quem não estiver seguro acerca da mãe. Como se pode insultar Albert Einstein? Portanto, se o deseja, po chamar-me rapaz. -Tu vês, rapaz? É muito mais amigável. -Magnífico. Que tem a dizer acerca daquilo que não faço ? -O trabalho é dinheiro. O dinheiro não é amáve Rapaz, talvez tu sejas demasiado amável... demasia gentil. O dinheiro atrai o dinheiro, e não a amizade. -lsso é ridículo, Mr. Marullo. Conheço muitos home de negócios decentes, encantadores, amáveis. -Quando não trabalham, pode ser. Tu verás. Mas nessa altura será demasiado tarde. Tu diriges a loja com gentileza, rapaz, mas, se ela fosse tua, irias sem dúvida gentilmente para a falência. Dou-te lições tão verdadeiras como as da escola. Até à vista, rapaz. Marullo flectiu os braços, atingiu em passo apressa a porta de entrada, que fez bater atrás de si, e Ethan sentiu estenderem-se as trevas sobre o mundo. Pancadas secas na porta de entrada levaram Ethan a afastar as cortinas e a gritar: -Está fechado até às três horas. -Deixe-me entrar, tenho de falar-lhe. O desconhecido penetrou no interior. Era um home ,magro e jovem, mas nunca devia ter conhecido a juventud vestia pretensiosamente e os cabelos luzidios estava colados  ao crânio, os olhos eram brilhantes e perpètua mente agitados. -Lamento incomoda-lo. Queria estar consigo a sós julguei que o velho nunca mais sairia. -O Marullo? -Sim. Eu estava do outro lado da rua.
Ethan lançou um olhar às mãos do outro, muito ctu dadas. No terceiro dedo da mão esquerda trazia u volumoso olho de gato engastado num anel de ouro. O desconhecido surpreendeu o olhar. -Não foi roubado-disse ele.-Encontrei uma d suas amigas a noite passada. -Quem? -Mrs. Young-Hunt. Margie Young-Hunt. -Ali! Ethan tinha a impressão de ver o trabalho a que ava o cérebro do homem, procurando uma abertura, terreno para um entendimento. _Boa pequena. Ela parece aprecia-lo muito. Por isso p ,i,,, Chamo-me Biggers. Corro a região por conta de B. B. D. e D. -Nós compramos à Weylands. Já sabia. Por isso aqui estou. Pensei que você gostaria de variar um pouco. Somos novos nesta área. A reputação faz-se depressa. Costumamos fazer algumas concessões  paraa nos tornarmos conhecidos. Podia aproveita-las. -Sabe, Mr. Marullo sempre trabalhou com a Weylands. O outro não baixou a voz, mas o tom tornou-se confidencial. -É o senhor que faz as encomendas? -Sim. Mr. Marullo sofre de artritismo e tem outros interesses. -Pode dar-se um jeito aos preços. -Mr. Marullo ajeita-os tanto quanto pode. Fale, portanto, com ele. -E justamente o que eu não quero. Prefiro tratar com a pessoa que faz as encomendas, consigo. -Eu não passo de um caixeiro. -Você é quem dá as ordens aos fornecedores, Mr. Hawley. Posso arranjar-lhe um desconto de cinco por cento. -lsso pode interessar Mr. Marullo, se, bem entendido, a qualidade for a mesma. -O senhor ainda não compreendeu. Não quero nada com o Marullo. Os cinco por cento seriam em dinheiro. Nem cheque, nem recibo, nem aborrecimentos com os sujeitos  dos impostos, apenas umas notas novinhas da minha mão para a sua e da sua para o seu bolso. -Mas por que motivo não receberia Mr. Marullo esse desconto ? -Existe um acordo entre os grossistas quanto aos preços. -Muito bem. E se eu recebo os cinco por cento e os entrego a Mr. Marullo ? -Ah! O senhor não os conhece como eu. Se lhos der, ele pergunta a si próprio quanto é que o senhor meteu na algibeira. É natural. -Você deseja que eu engane o homem para quem trabalho?-perguntou Ethan, baixando a voz. 32
 
33 -Enganá-lo? Ele não perde nada e você recebe boas luvas. Toda a gente tem direito a luvas. A disse que o senhor era um bom tipo. -O dia está sombrio. -Não. As cortinas é que estão caídas.
Ele tinha faro. Sentiu o perigo. Era como um entre o medo da armadilha e o cheiro do queijo. -Pense nisso-disse Biggers.-Veja se é possível jar as coisas no sentido que acabo de falar-lhe. D aqui um salto quando voltar a esta região. Passo todas quinzenas. Aqui tem o meu cartão. A mão de Ethan não se mexeu. Biggers pousou o sobre o balcão-frigorífico. -E aceite uma pequena lembrança que oferec ao nossos amigos novos. Tirou da algibeira uma carteira de pele de foca melhor qualidade. Colocou-a ao lado do cartão sob placa de porcelana. -Bonito objecto-acrescentou-para guardar a carta de condução e cartões de visita. Ethan não reagiu. -Voltarei dentro de quinze dias - disse Big -Reflicta. Virei com certeza. Tenho um encontro mar com a Margie. Que rapariga! Não recebendo resposta, acrescentou: -Vou-me embora. Até à volta. E, aproximando-se de Ethan, continuou -Não seja idiota. Toda a gente faz isso. Toda a g Depois atravessou àgilmente a porta e fechou-a cuidado. Na penumbra silenciosa, Ethan ouvia o suave bar transformador da lâmpada de néon do balcão-frigo Voltou-se então lentamente para os espectadores lhados e alinhados  nas prateleiras. -E eu que acreditava que fossem meus amigos! mesmo me estenderam uma mão. Ostras, pickles, que eu supunha amigos dos belos tempos ! Já unimus para vós. Pergunto  o que teria dito S. Fr mordido por um cão ou conspurcado por um p Teria dito : "Obrigado, Senhor Cão. Grazie tanta, Ave"? Neste momento ouviu um tamborilar na porta Para a ruela. entes doatravessou ue se estivesse aberto apressadamente e " Há mais mam° OU. h        reci fitou-se no interior, agarrando a Joey Morpy        p - com as duas mãos. L" -Pelo amor de Deus, dê-me de beber! Morro de sede! porque está tão escuro aqui? Também os meus olhos estarão doentes? -Baixei as cortinas na esperança vã de desencorajar os banqueiros sequiosos. Ethan caminhou, seguido por Joey, até ao balcão£cigorífico, donde tirou uma garrafa gelada, à qual retirou a cápsula antes de a estender ao companheiro. -Também vou beber uma-disse. Joey, apoiado à placa de vidro iluminada, esvaziou metade da garrafa antes de tomar fôlego. -Olá! Alguém se esqueceu do cofre-forte-disse ele, pegando na carteira. Q-É um presentinho do viajante de B. B. D. e D. ueria que fôssemos seus clientes. -Pois olhe que ele não atira com pólvora seca. Isto não é fancaria. Até tem as suas iniciais em ouro. -É verdade? -O quê? Pretende não o saber? -Ele deixou-a há apenas um minuto. Joey vasculhou com os dedos todas as divisões da carteira.
-lsto é o que eu chamo uma atenção delicada-disse ele, mostrando entre o polegar e o indicador uma nota nova de vinte dólares.-Eu sabia que eles atacavam, mas não  pensava que fosse com carros de assalto. -Estava lá dentro? -Pensa que fui eu que a pus lá? Joey, tenho de falar-lhe. O tipo ofereceu-me cinco Por cento sobre todos os negócios que eu fizesse com eles. -Bravo ! Enfim, a prosperidade. E não é uma vaga Promessa. Venha Coca-Cola. Hoje é o seu dia. -Quer dizer que eu devo aceitar? -Porque não? Se os preços não aumentam, quem Perde? -Ele disse-me que não devia falar no caso ao Marullo, 34 35 não fosse ele pensar que eu tinha ficado com a parte. -Sem dúvida nenhuma. Que é que tem, Ha Sente-se mal? Suponho que é da luz. Você está Também eu estou verde? Certamente que não recusar? -Contive-me com dificuldade para não lhe to pescoço. -Ah! É isso... Você e os dinossauros. -Ele afirma que todos o fazem. -Nem todos o podem fazer. Você é um dos felizardos. -Mas isso não é honesto. -Como? A quem vai isso prejudicar? Não é -Você teria aceitado? -Aceitado!? Teria suplicado que mo oferecesse minha profissão não há possibilidades. Pràticamente, quanto possa fazer-se num banco é ilegal... A n que se seja o  presidente. Não estou a enganá-lo. P há-de hesitar? Se você tirasse isso ao seu Alfio, não que fosse muito honesto... mas não é esse o caso. faz-lhe um favor, eles  fazem-lhe outro... um encan favorzinho. Não seja idiota. Tem mulher e filhos, nisso. Educar crianças não se faz de graça. Peço-lhe que saia imediatamente. Joey Morphy deixou cair a garrafa meio ch balcão. -Mr. Hawley... perdão, Mr. Ethan Allen Ha disse num tom frio-, se julga que eu estou pronto a uma desonestidade ou a sugerir-lhe que faça uma; muito bem ir passear! E, dizendo isto, dirigiu-se para a saída. -Não queria dizer-lhe isso. Juro-lhe, Joey, que queria dizer isso. Tive hoje grandes contrariedades, e, disso... estas festas são terríveis... terríveis. Morphy parou. -Ah! Sim. Eu sei. Eu sei. Você acredita-me, verdade? -E todos os anos, desde a minha infância. Isto "vez está pior porque..- talvez por saber melhor & isso significa. Oiço aquelas palavras : lama sabach e a elas apenas... 36 -nu. ei, Ethan. Está quase acabado. Quase. Esqueça mia brutalidade, sim? U sino de bronze soou. Uma badalada. Apenas uma. _Está acabado-continuou Joey.Tudo acabado... 196 ao próximo ano. Atravessou sem ruído a loja e saiu, deixando fechada a por para a ruela.
Ethan tornou a levantar a cortina e de novo abriu rias. Mas teve poucos clientes. Algumas crianças que am buscar leite e pão. Vendeu também uma pequena costeleta de carneiro e uma lata de ervilhas a Miss Barcher, que ia fazer disso o seu jantar. A rua ficou vazia. Na meia hora antes das seis, que Ethan empregou  em preparativos par~a o encerramento, não apareceu vivalma. Já tinha fechado e iase embora, quando se lembrou da lista das provisões que devia levar para casa.  Teve de voltar, encher dois grandes sacos e tornar a fechar. Gostaria de ir até à baía, contemplar as vagas cinzentas que batiam nas paredes do cais, sentir o cheiro  a maresia, falar a uma gaivota flutuando ao vento. Lembrava-se de um poema, escrito muitos anos atrás por uma mulher arrastada ao delírio pelas curvas caprichosas  de um voo de gaivota. KOh, bela ave... que paixão te leva desse modo?" Mas a dama nunca soube qual era essa paixão. E sem dúvida pouco se importava com isso. Os pesados sacos das provisões para as festas não convidavam ao passeio. Cansado, Ethan atravessou High Street e, lentamente, ao longo de Elm Street, voltou à velha  casa dos Hawley.
 
37 Capítulo II Mary afastou-se do fogão e tirou-lhe um dos sacos. -Tenho muitas coisas a dizer-te. E não podem esperar. Beijou-a e ela sentiu-lhe a forma dos lábios. -Que sucedeu?perguntou  Mary. -Estou um pouco fatigado. -Mas tu fechaste o armazém durante três horas. Tive muito que fazer. -Não estás triste, pois não? -O dia de hoje é triste. -Mas esteve um tempo maravilhoso. Espera, que vais saber uma coisa. -Onde estão as crianças? -Lá em cima, ao pé do rádio. Também têm algo a dizer-te. -Algum aborrecimento? -Porque me perguntas isso? -Não sei. -Não te sentes bem? -Sinto, sim! -Com todas estas coisas encantadoras... Vou esperar o fim do jantar. Ficarás admirado. Allen e Mary Ellen desceram a escada e correram para a cozinha. -Ele está cá 39 -Papá, tens Peãs na loja? -Flocos? Tenho, sim, Allen. -Podes trazer algumas caixas? Aquelas que desenho de um rato que se pode recortar. -Não és já muito crescido para te divertires co desenho de um rato? Ellen interrompeu-o -Envia-se a tampa da caixa e dez cêntimos e be-se um truque de ventríloquo e a maneira de o u Acabámos de ouvir isso na rádio. -Digam ao pai o que vocês querem fazer-disse -Bem. Nós queremos participar no concurso naci "Eu Amo a América". O primeiro prémio dá direito a viagem a Washington para ver o presidente. Há uma po Ge outros prémios. -Óptimo-disse Ethan.-De que se trata? Qu de fazer ? -Os jornais de Hearst-gritou Ellen.-Em todo o Escreve-se simplesmente dizendo por que razão am a América. Todos os vencedores aparecem na telev -E depois Washington, o hotel, o espectáculo, o Bidente. Tudo-disse Allen. -E os vossos trabalhos escolares? -É só no Verão. Os vencedores serão designados 4 de Julho. -Talvez seja bom. Vocês amam verdadeiramen América, ou os prémios? -Oh, pai, não lhes estragues isso!-protestou -Procurava apenas separar os flocos de aveia boneco do rato. Eles misturam tudo. -Papá: onde pensas tu que se possa ver? -Ver?
-Sim, o que os outros tipos disseram... -O vosso bisavô possuía alguns livros muito Estão no sótão. -Livros sobre quê? -Há os discursos de Lincoln, de Daniel Webster Henry Clay. Podem também dar uma olhadela a Th a Walt Whitman ou a Emerson... a Mark Twain ta Estão todos no sótão. -Tu já os leste, papá? -Às vezes o meu avô lia-os para eu ouvir. _Podes ajudar-nos? -Se o fizesse, os trabalhos não seriam vossos. -Está bem-disse Allen.-Não te esqueces de nos trazer Peuks" _Vou tentar. -Podemos ir ao cinema? -pensava que vocês queriam pintar os ovos da Páscoa -disse Mary.-Já os cozi. Podem levá-los para o terraço depois do jantar. -Podemos ir ao sótão e ver os livros? -Está bem, se não se esquecerem de apagar a luz qpando voltarem. Certa vez a luz ficou acesa durante oito dias. E foste tu que a deixaste, Allen.
 
-Estás contente por eles participarem no concurso? -perguntou Mary depois de as crianças terem partido. Certamente, se o fizerem bem. -Não posso esperar mais para dizer-te... A Margie leu-me hoje as cartas por três vezes. Disse-me nunca ter visto nada de semelhante. Três vezes ! Eu própria vi as  cartas que saíram. -Oh, meu Deus! -Espera e ouve. Tu, que troças sempre dos desconhecidos altos e morenos. Não podes adivinhar. Diz-me... queres adivinhar? -Mary, tenho de acautelar-te. -Tens de acautelar-me? Pois tu nem sabes do que se trata. A minha fortuna és tu. A meia voz, Ethan soltou uma palavra dura, amarga. -Que disseste? -Disse "fraco proveito". -As cartas não pensam como tu. Ela voltou-as três vezes. -As cartas pensam? -Não pensam. Sabem. Leu-mas. Só se tratava de ti. Serás um dos homens mais importantes da cidade... Sim, é verdade, dos mais importantes. E será bem depressa. Cada carta voltada mostrava dinheiro. Cada vez mais. Vais ser aleito rico. -Minha querida, toma cautela, peço-te. -Farás um investimento. -Com que dinheiro? "Bem, eu pensei no dinheiro do meu irmão. 40 4I -Não-gritou ele.-Não toco nisso. É teu, e teu fi Tu pensaste nisso sòzinha, ou... -Não disse acerca disso nem uma palavra. As r também não. Farás um investimento em julho e tud seguirá... uma coisa após outra. Não achas tudo isto midável? E a 
maneira como ela disse: "A sua fortu Ethan. Ele será muito rico, talvez o homem mais pode da cidade." -Que o Diabo a leve! Mete-se onde não é cham -Ethan! -Não compreendes o que ela faz? Sabes o que fazer ? -Sei que sou uma boa esposa e que ela é uma boa a E não quero zangas, pois as crianças podem ouvir. M Young-Hunt é a minha melhor amiga. Sei que não g dela. Tu és  ciumento das minhas amigas... é o que é. P uma tarde feliz e procuras estragar-ma. Ora isso não certo. A cólera resultante da decepção e o desejo ving de abater o obstáculo levantado contra os seus so desfiguravam Mary. -O Senhor-Sabe-Tudo não pensa senão numa co esmagar as pessoas. Acreditas que a Margie inventou Não é verdade. Eu própria cortei as cartas três ve E admitindo isso?  Porque o faria ela senão para ser vel, gentil e ajudar-nos um pouco? Diz então tu porq Arranjarás por certo uma razão vil. -Gostaria bastante de o saber. Talvez por simples dade. Não tem marido nem trabalho. Deve ser por mald -Ah, bem podes falar de maldade-respondeu M dominando a voz, mas ainda irada.-Tu não falarias mesmo que ela te esbofeteasse. Não sabes nada da M Todos os homens  da cidade correm atrás dela. Hom ricos, casados, que murmuram, suplicam... é repugn Por vezes ela nem sabe para onde se voltar. Por isso necessidade de mim, uma  mulher, uma amiga. Oh, diz-me tais coisas sobre os homens que nem se p acreditar. Alguns em público fingem não a conh São os mesmos que a procuram em casa e a convi  pretendendo fazer dela... Homens irrepreensíveis na a renda, falando sempre de moral, e agindo assim ! -Disse-te de quem se trata? _Não, e isso é uma prova suplementar. A Margie não quer fazer mal a ninguém, mesmo que o façam a ela. Mas aluiu a um, dizendo-me que os meus cabelos embranque arn de repente se eu soubesse o seu nome. Ethan inspirou profundamente e soltou um longo sopito.        _        nuou -Pergunto referialea alrguémUemuiito s conhecido t e em MarY- quem seria impossível pensar. -Sob certas condições, dir-te-ia quem é-disse Ethan suavemente. -Sòmente se fosse forçada a isso. Se tal devesse, em Qatenção à sua honra... à sua boa reputação. Compreendes? uem pensas que possa ser? -Tenho uma ideia. -Sabes? Quem é? -Eu. Mary escancarou a boca. -Oh, idiota!-gritou ela.-Se não estou com atenção, enrolas-me sempre. Enfim, gosto mais disso que de ver-te aborrecido.
-lsto está bonito. Um homem confessa à mulher que a engana com a sua melhor amiga, e ela torce-se a rir. -Que maneira de falar! -Então talvez o homem devesse negar. E só então, finalmente, a mulher o honrasse com as suas suspeitas. Minha querida, juro-te por tudo quanto tiveres de mais sagrado  nunca ter, nem por palavras nem por actos, distinguido como o meu favor Margie Young-Hunt. E agora, acreditas que sou culpado? -Lá estás tu! -Não me crês suficientemente simpático, suficientemente desejável, por outras palavras, não pensas que eu não seja capaz disso? -Gosto de brincadeiras, bem o sabes... Mas não vejo nada que sirva para rir. Espero que as crianças não te am revolvido as malas. Nunca deixam nada arrumado. -Vou tentar outra vez convencer-te, esposa sem máeula. Uma certa mulher, cujas iniciais são M. Y. H., tem-me estendido várias armadilhas por razões que só 42 43 ela conhece. Estou em perigo de cair numa ou em v dessas armadilhas. -Porque não pensas na tua fortuna? As cartas disse Julho, por três vezes... Eu vi. Vais ter dinheiro, m dinheiro. Pensa nisso. -Amas assim tanto o dinheiro, meu torrãozinh açúcar? -Se amo o dinheiro? Que queres dizer? -Deseja-lo tanto que se justifique a nigromância, taumaturgia e outras práticas obscuras? -Foste tu que flaste nisso. Tu é que começas Não te deixarei esconder por detrás das palavras. Se eu a o dinheiro? Não, não o amo. Mas também não aprecio preocupações.  Gostaria de andar na cidade de cabeça guida. Não gosto de ver as crianças com um ar acanha porque não estão bem vestidas como... as outras. Torno repetir, gosto  de andar de cabeça erguida. -O dinheiro endireita-te a cabeça? -Acabaria com a troça de certos pretensiosos. -Ninguém troça de um Hawley. -lsso é o que tu pensas ! Tu é que não reparas ! -Talvez porque não me preocupo com isso. -Queres comparar-me aos teus sacrossantos Hawley -Não, querida. Isso já não constitui uma vau gem. -Agrada-me que o sintas. Nesta cidade, ou em qualq outra, um Hawley caixeiro de mercearia não é mais q um caixeiro de mercearia. -Censuras a minha falência? -Certamente que não! Mas censuro-te o chafurd nela. Poderias perfeitamente erguerte se não tivesses id ridículas, próprias de outros tempos. Toda a gente se de  ti. Um senhor muito distinto mas sem vintém é falhado. As palavras explodiram-lhe nos ouvidos, e ela calou envergonhada. -Estou desolado-disse Ethan.-Acabas de ensinar, qualquer coisa, meu coelhinho. Três factos element nos quais nunca se pensa: o verdadeiro, o provável e lógico. Sei  agora onde encontrar o dinheiro que fará nas a minha fortuna.
-Onde? 44 _Vou assaltar um banco. Sobre o fogão, lentamente, começou a ouvir-se o apito da panela. _Chama as crianças-disse Mary.-O jantar está pronto. Diz-lhes que afastar-se.        as luzes. Ela
45 Capítulo III A minha mulher, a minha Mary, adormece como se fecha a porta de um armário. Quantas vezes a contemplei com inveja? Enrosca o lindo corpo como se se instalasse num  casulo, suspira, os olhos fecham-se e os lábios tomam a forma daquele sorriso sábio e vago dos antigos deuses gregos. Ela sorri toda a noite no seu sono e a respiração  faz ronrom na garganta. Não ressona, ronrona como um gatarrão. Durante alguns momentos a sua temperatura sobe a tal ponto que a sinto irradiar calor junto de mim.  Depois desce, e Mary como que se afasta. Não sei para onde. Ela diz que não sonha. Mas, no entanto, deve sonhar. O que sucede é que os sonhos não a perturbam, ou  então perturbam-na de tal maneira que os esquece antes de acordar. Gosta de dormir, e o sono faz-lhe bem. Queria ser como ela. Luto contra o sono e desejo-o com  ânsia. Talvez, digo a mim próprio, isso seja devido ao facto de a minha Mary saber que viverá sempre. Passará desta existência a outra com a mesma facilidade com que se  pia do sono ao despertar. Todo o seu corpo o sabe com uma tal certeza que ela não pensa nisso, como não pensa respirar. Assim tem tempo de dormir, de repousar, de cessar de existir por algum tempo. Quanto a mim, sinto nos ossos e na carne que um dia, cedo ou tarde, a minha vida cessará, e então ora luto contra 47 o sono, ora chamo por ele e tento engana-lo. Para dormir é um esforço enorme, uma agonia. Sei isso por dar com a sensação de uma dor esmagadora. Quando mo, cansome.  Os meus sonhos são os problemas do deformados até ao absurdo. Fazem lembrar bailarinos máscaras de animais e chifres. Durmo menos que Precisa, diz ela, de muito  sono. É possível que eu t menos necessidade, mas estou longe de o acreditar. corpo armazena uma grande quantidade de en aumentada pelo alimento. Há pessoas que a  usam depressa, como as crianças engolem um bombom, o gastam-na com lentidão. Há sempre uma pequenita põe de lado uma parte dos seus bombons. Ela vai busc quando  os mais glutões já acabaram os seus. A minha suponho que viverá mais do que eu. Economizou uma da sua vida para mais tarde. De resto, as mulheres vi mais que os  homens. A Sexta-Feira Santa sempre me perturbou. Ainda ça, já me sentia profundamente entristecido, não pelo cio da crucificação, mas pela sensação de ilimitadas do Crucificado.  Nunca me abandonou essa tristeza plantada por Mateus e lida pela minha tia Deborahr, sua maneira hesitante. Talvez este ano tenha sido pior. Peguemos exemplo e identifiquemo-nos com ele. O Marullo ins -me hoje de tal maneira que o compreendi no que r aos negócios. Pouco  depois convidaram-me, pela p vez, ao suborno. É extraordinário que se possa diz na minha idade, mas não me lembro de qualquer p dente. Pensemos em Margie YoungHunt.  E diabó Que pretende? Prometeu-me algo e ameaçou-me s aceitasse. Um homem deve viver guiado pelos seus cípios ou deixar-se arrastar?
Quantas noites permaneci acordado ouvindo a r ção de Mary a meu lado? Quando se fixa a esc pontos vermelhos flutuam diante dos olhos e o tempo longo. Mary gosta  tanto de dormir que eu faço tudo lhe proteger o sono. Se me levanto, acorda, e isso a ce-a. Julga-me doente, porque a única experiênc insónia foi-lhe provocada por  uma doença. Esta noite tive de levantar-me e sair. A sua resp era suave e vi-lhe nos lábios o tal sorriso angélico. So a sina e o dinheiro que eu iria ter? Mary quer sentir-se
 
° "É uroso acreditar que podemos pensar melhor quando coamos em determinado lugar. Tenho um lugar desses, tiver sempre, mas sei que ali o que faço não é bem pensar,  opas sim sentir, experimentar e lembrar. É um lugar secreto. Toda a gente deve ter o seu, mas, apesar disso, nunca ouvi ninguém falar nele. Um segredo, um movimento  subtil, acordam por vezes mais fàcilmente a pessoa c~ue dorme do que um gesto normal, deliberado. Os espíritos dos adormecidos, creio que vagueiam nos pensamentos  das outras pessoas. Procedi como se tivesse necessidade de ir à casa de banho, e fui lá. Depois desci suavemente ao rés-do-chão com a roupa no braço e vesti-me na cozinha. Na opinião de Mary, eu partilho com os outros desgostos que não existem. Talvez assim seja. O certo é que imaginei uma pequenina cena desenrolando-se na cozinha  mal iluminada: Mary acordando e procurando-me por toda a casa com a cara descomposta. Tracei algumas palavras no rol da mercearia: "Querida... Estou nervoso. Saio  para dar uma volta. Não me demoro." Deixei-o no meio da mesa. Assim, daria nas vistas a quem acendesse a luz. Depois abri a porta de trás e vi como estava o tempo. O ar estava frio e havia geada. "Abafeime  num espesso sobretudo e enterrei até às orelhas um boné de malha de marinheiro. O relógio eléctrico da cozinha bateu horas. Eram três e um quarto. Tinha estado deitado  na escuridão, a ver os tais pontos vermelhos, desde as onze horas. New Baytown é uma bonita cidade. Um velho burgo, dos primeiros nitidamente delimitados que a América conheceu. Os seus fundadores e meus antepassados foram, creio,  os filhos daqueles marinheiros turbulentos, pérfidos, ávidos e desordeiros : a dor de cabeça da Europa no tempo da rainha Isabel. Eles apoderaram-se das Antilhas  durante o Governo de Cromwell e estabeleceram-se finalmente na ata norte brandindo os privilégios concedidos por Carlos Stuart quando voltou ao Poder. Combinaram  com êxito a pirataria e o puritanismo, duas paixões menos dissemelhantes que à primeira vista podem parecer. Ambas detestam oposição e deitam um olhar concupiscente  à s 48 49 propriedade alheia. Onde se estabeleceram, deram o a um bando de tipos duros de roer. Soube-o pel pai. Pertencia ele àquela espécie de admirador antepassados, a 
quem, como notei, faltam as quali que tanto apreciavam os homens que eles elogiam. pai era um tolo por vezes brilhante, amável, bem finfo -        mal avisado. Sem o auxílio de ninguém, perdeu t dinheiro, prestígio e futuro. De facto, perdeu quase - que os Allen e os Hawley acumularam no decu séculos. Só conservou o nome, de resto a única coisa lhe interessava. Meu pai tinha o hábito de me dar que ele chamava  "lições de estirpe". Este é o mota que sei tanto a respeito dos "velhos". Talvez seja ta por isso que sou caixeiro numa mercearia italiana num edifício que pertenceu  aos Hawley. Gostaria de estar tão ligado a tudo isso. Não foi a depressão dureza dos tempos que nos esmagou. Tudo isto vem a propósito de eu ter dito que, Baytown é uma linda cidade. Virei à direita, para Street, em vez de voltar à esquerda, e dirigi-me Porlock Street,  que é paralela a High Street. Wee W nosso gordo policia, devia estar a dormitar no seu carr High Street e não me convinha passar a noite junto "Que faz você a pé  tão tarde, hem? Procura alguma tracçãozinha?" Wee Willie aborrece-se e gosta de A certa altura repete o que já disse. Alguns escâ bem desagradáveis nasceram da solidão  do Willie. O cia que faz serviço de dia é Stonewall Jackson Smith se trata de uma alcunha. Foi baptizado Stonewall Jati e isso distingue-o de todos os outros Smith.  Não motivo por que todos os polícias citadinos são tão rentes uns dos outros, mas quase sempre isso aco Stoney Smith nem diz o dia em que estamos, a men esteja num  tribunal a depor sob juramento. Smith o trabalho da Polícia na cidade. Está ao corrent métodos modernos e seguiu o treino do F. B. 1. em ington. Ele é o tipo, suponho,  do polícia que aprecia. Forte e calmo, tem olhos de reflexos me Quem pensar em cometer um crime tome cautela Smith. Falava da minha passagem por Porlock Street evitar Wee Willie. Os mais belos edifícios de New Ba o em Porlock. Sabem, no princípio do século xviii
 
ais de cem navios baleeiros. Quando vol
 
fintávamos m do do Antárctico ou do mar da China, após um ou dois anOS de ausência, vinham carregados de óleo, o que era uma riqueza. Mas no caminho tinham tocado em portos estrangeiros e colhido objectos e ideais. É esse o motivo r qüe Se vêem tantas coisas chinesas nas moradias de Çrlock Strt. Alguns desses capitães-armadores tinham também bom gosto. Muito ricos, chamaram arquitectos
 
o        o        1T á de Adam e da arquitectura grega em PorlockSteet. Era então moda na Inglaterra. Juntamente com os olhos de boi, as colunatas graciosas e os frontões gregos, nunca  se esqueciam de construir em cima do telhado um "passeio das viúvas", destinado às mulheres que tinham ficado em casa e que podiam lá do alto assistir ao regresso  dos navios. Algumas faziam isso, sem dúvida. Os Hawley, os Phillips, .os Elgar e os Baker eram as famílias mais antigas. Estabelecidos em Elm Street, as suas casas  do estilo a que se chama americano primitivo tinham telhados pontiagudos
- as paredes em forma de costados de navios. É assim a minha casa, a velha moradia dos Hawley. E os olmos gigantes são tão velhos como ela. Porlock Street conservou os antigos candeeiros a gás, mas agora com electricidade. Durante o Verão, os turistas vêm admirar a arquitectura e aquilo a que chamam  ao encanto do passado". Porque estarão tão unidos o encanto e o passado? Já não me lembro em que circunstâncias os Allen se aliaram aos Hawley. Isso passouse imediatamente a seguir à Revolução. Poderia informar-me, sem dúvida: devem  existir documentos no sótão. Por ocasião da morte do meu pai, Mary estava farta da história da família Hawley. Sugeriu-me que arrumasse tudo isso no sótão e compreendi - seu sentimento. Cansamo-nos depressa das aventuras da família dos outros. Mary nem mesmo nasceu em New Baytown. É de origem irlandesa, mas não católica, e gosta  de acentuar esta particularidade. Gente do Ulster, diz ela. Vieram de Boston. Estou a ver como éramos então, com mais nitidez que naquele tempo. Um segundotenente Hawley, nervoso, aterrorizado e munido de uma licença de fim-de-semana, 50 5r 52 e uma jovem adorável de faces infantis, doces comopétala de rosa. Nós estávamos sérios-oh, que sério ia morrer e ele preparava-se para dedicar a existê minha memória  heróica. Era um entre milhões de idênticos dos uniformes cor de azeitona e dos v estampados. Aquilo podia muito bem terminar tradicional carta de despedida, mas  ela consagrou seu guerreiro. As suas cartas, de uma doce const seguiram-me por toda a parte. A letra redonda, com tinta azul-escura em papel azul-pálido, era re  vida por toda a minha companhia e, coisa curiosa, homem estava contente por mim. Mesmo que não intenção minha casar com Mary, a sua perseve te-me-ia obrigado a perpetuar  o sonho universal mulher digna e fiel. O seu carácter não fraquejou por ter trocado o irlandês de Boston pela velha casa dos Hawley, em Street. A ruína dos nossos negócios, o nascimento dos filhos, a  estagnação da minha condição de caixe* mercearia, nada disso a abalou. Ela esperava... Vejo-o agora. E, lentamente, suponho, cansou-se de esperar. nunca a força do seu desejo se tinha manifestado. A e o desprezo não são as armas da minha Mary. Ela demasiado ocupada  em tirar o melhor partido de ra situações. Mas é notável que o veneno entrasse cabeça onde nunca tinha estado. As imagens formavam-se depressa no fundo sonoro passos que esmagavam a geada na rua nocturna. Não há razão para caminhar furtivamente de rn gada nas ruas de New Baytown. Wee Willie encon nisso matéria para gracejar, mas as pessoas, vendoem direcção à baía,  às três horas da manhã, pena muito simplesmente que eu ia pescar. O nosso povo numerosas teorias em matéria de pesca: algumas at conservadas secretas como receitas  de família. Essas são respeitáveis, e respeitadas.
Os candeeiros da rua faziam cintilar milhões de mantes de geada nos passeios e nos relvados. A fica com as marcas dos passos, mas ali, no meu ca não as havia. Quando  eu era criança, sentia uma c exaltação em marchar sobre a neve imaculada. Era nco como ser o primeiro a chegar a um mundo novo. te-se a unpressão profunda, Embriagadora, de des
 
algo de novo, de puro, de intacto. Os noctívag cobrir        os habituais e os gatos não gostam de caminhar na neve. Uinbro-me de ter estado um dia, por causa de uma aposta, descalço sobre um caminho gelado e sentir a impressão de uma queimadura. Mas agora, de galochas e peúgas  grossas, eu punha as primeiras nódoas nesta pnmícia cintilante. No sítio em que Porlock Street atravessa Torquay, junto da fábrica de bicicletas, um pouco depois de Hicks Street, a geada estava marcada por longos rastos de passos.  Os passos de Danny Taylor, um fantasma desassossegado e inconstante que desejava estar alhures, sempre alhures. Danny, o borracho da cidade. Cada terra tem o seu,  creio eu. Danny Taylor-quantas cabeças respeitáveis fez abanar!-, boa família, velha família, último da linhagem, boa educação. "Não teve aborrecimentos na Academia?  Porque não toma juízo? Pelo contrário, suicida-se com o álcool, e é pena, porque o Danny é um cavalheiro. Que vergonha, mendigar para beber. Felizmente os seus pais  já não estão vivos para ver. O desgosto matá-los-ia ... mas já morreram." Estes são os comentários de New Baytown. Para mim, Danny é uma fonte de tristeza, um remorso. Deveria ajudá-lo. Tentei fazêlo, mas ele não quis. Danny é o irmão que me faltou : a mesma idade, o mesmo peso,  a mesma estatura. Fomos criados juntos. Eu sou o guarda natural do meu irmão e não o salvei. Por isso sinto-me culpado. As desculpas, mesmo as mais válidas, não  me dão alívio. A família Taylor é tão antiga como a dos Hawley, a dos Baker ou outras. Da minha infância, não recordo nenhum passeio, nenhum espectáculo de circo,  nenhuma competição, nenhuma festa de Natal sem Danny meu lado tão próximo como o meu próprio bravo
 
Talvez isso não tivesse acontecido se tivéssemos ido juntos
 
Para a mesma UMversidade. Eu parti para Harvard a
 
espojar-me nas línguas, a banhar-me nas humanidades,
 
instalando-me no antigo, no belo, no obscuro, para mais
 
tarde aplicar esses conhecimentos perfeitamente inúteis, na
 
gerência de uma mercearia. Desejei sempre ver Danny
 
acompanhar-me nesta peregrinação luminosa, exaltante.
 
Mas destinaram Danny às lides do mar. A sua inscrição
 
53 #na Academia Naval já estava decidida, deter quando ainda éramos crianças. A cada mudança de tado o pai dele tratava de consolidar a inscrição. Três de êxito, e  depois a expulsão. Isto, diz-se, matou os e matou uma parte de Danny. Ficou sómente a desgosto que se arrastava... aquele desgosto erran noite, mendigando alguns  cêntimos para um co qualquer mistela alcoólica. Danny é agora um vagabundo da noite, um h da madrugada, um solitário. Quando pede qualquer para pagar um copo, os olhos suplicam que se lhe porque ele não pode perdoar  a si próprio. Dorme barracão, no fundo dos estaleiros onde Wilburs coes os barcos. Segui-lhe a pista para ver se já tinha vo para o seu nicho. Mas as marcas sobre  o gelo diziam estava fora e que eu devia procurá-lo em qualquer parte. Wee Willie não o teria metido na gaiola. vantagem teria nisso? Eu sabia bem o lugar para onde me dirigia. T" visto e sentido o seu cheiro mesmo antes de me lev O Porto Velho está quase morto agora. Depois da trução do novo esporão  e do molhe municipal, a ar o lodo invadiram aquele ancoradouro, tão grande out abrigado então pelos dentes recortados dos recife Whitesun. Ali, encontravam-se noutros  tempos d cordoarias, entrepostos, famílias inteiras de tanoeiros fabricavam os barris destinados ao óleo de baleia grandes cais onde os baleeiros prendiam as amam  encostavam as proas. Tratava-se, em geral, de navios de três mastros mastro de mezena ostentava, além das velas quadr uma vela de ré. Eram navios possantes, construídos permanecer durante  anos no mar, com qualquer te O mastro de giba era um esporão isolado e sobre podia-se, quando necessário, montar uma vela de rec Possuo uma gravura em aço do Porto Velho pejad navios e numa caixa de lata algumas fotografias a Tecidas. Mas não tenho necessidade disso. Conheço o e os navios.  O meu avô reconstruiu-o com a sua be feita de dente de nerval. Ensinou-me toda a no clatura, acentuando os termos técnicos por meio de bengalada sobre os restos  de uma abica de amam maré no sítio onde outrora fora o cais dpenterrada pela eia Hawley. Era um ancião impetuoso, de cara emoldurada por suíças be tas me E martirizassem. a ele e às suas lições, mC3mo que -Ora vamomegafone.-Dizmenos nomes d seva bem um        o aparelho ~mpleto de um navio. Em voz alta, porque eu não gosto de segredos. Dó cilmente, eu desfiava tudo aquilo e a bengala de parva1 pontuava a recitação: "Giba (zás!), giba exterior (zás!), giba interior (zás, zás!)". -Mais forte! Estás a murmurar. -Sobregatinha, vela de gávea fixa, vela de gávea volante...
Por cada nome, uma bengalada. -O mastro grande, continua ! -As sobregatas (zás!). Mas às vezes, com a idade, acabava por_ se aborrecer. -Passa à mezena ! Diz lá -Bem, capitão. Mezena, ou gata, sobregata, joanetes e sobrejoanetes. -E... ? -A vela de ré. -Como é ela aparelhada? -Cabo e retranca, capitão. Zás, zás, zás, zunia a bengala na abita de amarração. O seu ouvido enfraquecia e acusava toda a gente de falar baixo. -Que uma coisa seja verdadeira ou não, pouco me importa, mas o que se pensa deve dizer-se alto!-gritava ele. As orelhas do velho capitão talvez estivessem um pouco entupidas nos últimos anos da sua vida, mas não a sua memória. Podia citar a tonelagem e o curso de cada navio  que tivesse entrado na baía, o que tinha trazido e a maneira como a carga estava dividida. E, contudo, os grandes dias da pesca da baleia findaram antes que atingisse  o posto de Capitão. Para ele petróleo era "óleo fétido" e os candeeiros de petróleo "vasos fedorentos". Quando chegou a época da electricidade, não ligou grande  importância ao assunto apenas o suficiente para mais tarde relembrar a sua instalação. A sua morte não me chocou, pois ele preparara-me para ela tal como me tinha  instruído sobre 54 55 os navios. Eu sabia o que tinha a fazer, tanto no q peitava ao meu interior, como às minhas relações mundo exterior. A primeira pedra ainda se encontra no fim do Velho, mergulhada em lodo e areia, no local onde se estendia o cais dos Hawley. Posta a descoberto na. baixa, C coberta  pela praia-mar. A três metros do quele antigo cais encontra-se uma pequena passag um metro e vinte de largura, outro tanto de altura e e meio de profundidade. O  tecto é abobadado. T trate de um antigo esgoto. A entrada do lado da terr oculta pela areia e por fragmentos de rocha. É ali o Lugar, esse lugar que é necessário  a cada pessoa. N rior ninguém nos vê, a não ser do largo. A parte a cabanas de estivadores, desocupadas muitas del Inverno, já nada existe do Porto Velho. Mas os  esti são gente tranquila. Pouco falam e caminham de ca baixa e ombros descaídos. Era ali o meu porto de destino. Lá passei a noi teira na véspera de ser mobilizado e toda a noite ou cedeu o meu casamento com Mary, assim como parte daquela em  que nasceu Ellen e durante a a mãe tanto sofreu. Algo me ordenava que viesse instalar-me no interior, escutar as vagas batendo pedras, contemplar os recifes denteados  de Whit Deitado no meu leito, via tudo isso seguindo a dos pontos vermelhos e sabia que era necessário este Lugar. Quando há grandes mudanças na minha sou atraído  para aqui. Pessoas cuidadosas instalaram luzes ao longo da para evitarem percalços aos namorados. Muito na mente, eles passaram a ir para outros lugares. Wee deve patrulhar 
uma vez por hora, segundo esta uma postura municipal. Não havia vivalma na praia, estranho, pois em cada instante há alguém que para a pesca, que pesca ou regressa  da pesca. na caverna e sentei-me, quando ouvi o carro de Wee Era a segunda vez que o evitava. Parece desagradável e idiota estar instalado nu cho, com as pernas cruzadas como um Buda. Mas aei pedras foram feitas para mim, ou eu para elas? Venho na tanto tempo  que o meu traseiro deve ter to Quanto a ser idiota, isso não me importa. Por forma* sê-lo é um grande motivo de alegria. As crianças tl~P        brincando às estátuas, fartam-se de rir. ai _no e,m idiotice modifica um estado de espírito e permite a Mular tomar uma nova posição mental. Quando tenho aborrecimentos faço de idiota e a minha mulher não nota as  preocupações. Ela ainda não descobriu este modo de proceder, ou, se o descobriu, ê- eu s desconheço o alas h        sabe coisas de Mary q        ço e entre elas, que eJa a meu respeito? Não creio que conheça este Lugar. Como poderia conhecê-lo? Nunca falei dele a ninguém. Nenhum homem sabe verdadeiramente como são os outros. -        mais que pode fazer é supô-los semelhantes a si. Agora, aqui sentado, ao abrigo do vento, observando, graças - luzes protectoras, o subir do mar, escurecido pelo céu sombrio, pergunto a mim próprio se todos os homens têm um Lugar, se desejam tê-lo ou têm necessidade dele.  Às vezes surpreendo em certos rostos olhares de animal enlouquecido à procura de um sítio calmo, secreto, onde o espírito pudesse sossegar e o homem se reencontrasse  para fazer exame de consciência. É evidente que conheço teorias do regresso às origens, do desejo da morte. Podem ser verdadeiras para alguns, mas não para mim.  Considero isso como uma forma ligeira de falar de coisas muito complexas. No meu Lugar, "eu faço o inventário". Outros chamariam a isto rezar. E talvez as duas coisas  sejam equivalentes. Contudo, não o creio. Se quisesse fazer uma descrição do meu eu, representava-o por um pano molhado agitado pelo vento e branqueando lentamente  ao secar. Tudo -        que acontece está certo, quer seja bom ou mau. Os assuntos a considerar eram numerosos. Eles pulavam - levantavam a mão como fazem as crianças na escola. Ouvi a lenta pulsação de um motor de barco de pesca. A luz colocada no mastro dirigiu-se para o sul, passando  por detrás dos recifes de Whitesun. Esperei um pouco para ver os faróis vermelhos e verdes varrerem o canal. Era certamente um barco da região, para ter tão fàcilmente  encontrado a entrada. Lançou a âncora nas águas profundas e dois homens dirigiramse a terra numa lancha.
 
 
Pequena        l        i s vagasamberam a praia, e as gaivotas,nco modadas, levaram muito tempo a voltar a flutuar nas kuas da doca. 56 57
Assunto : tinha de pensar em Mary, a minha qu a dormir com um sorriso misterioso nos lábios. Esp que não acordasse e me procurasse. E, se o fizesse, -mo-ia ? Duvidava  disso. Mary, que parece contar fala pouco. Também havia a considerar a anu fortuna. Mary quer ser rica ou deseja-o por minha ca O facto de se tratar de uma fortuna  imaginária, ev por Margie Young-Hunt com um fim que desco não modifica o caso. Uma fortuna imaginária tem valor como qualquer outra, até porque todas elas o mais  ou menos. Todo o homem de inteligência se for esse o seu desejo, pode arranjar dinheiro. O acontece é que gasta a maior parte do seu tempo a d as mulheres, os bons  fatos ou ser admirado, e isso desviar do caminho. Os grandes campeões da fi como Morgan ou Rockfeller, não se deixaram d Queriam dinheiro, sòmente dinheiro, e tiveram-no.  O fizeram depois é outro assunto. Tive sempre a impr de que, aterrorizados pelo espectro que sempre t evocado, procuravam depois comprá-lo. Assunto : por dinheiro Mary entende cortinas n estudos garantidos para as crianças, possibilidade de e a cabeça e, digamo-lo, sentir-se orgulhosa, e não env nhada,  de mim. Disse-o num momento de exaltaç era verdade. Assunto : eu próprio desejo dinheiro? Não. Algo em detesta ser caixeiro de mercearia. No Exército, era cap Foi à minha família e às minhas relações que o devi, aos  meus lindos olhos. Mas fui um bom oficial-um oficial. Contudo, se verdadeiramente amasse o com se quisesse impor a minha vontade aos outros e faz dançar, poderia  ter ficado no Exército, e agora seria co Mas não quis. Desejava acabar com aquilo. Afi que um bom soldado pode ganhar uma batalha, mas uma guerra. Isso é reservado  aos civis. Assunto: o Marullo disse-me a verdade no que peita aos negócios, pois estes não se destinam a outra senão a arranjar dinheiro. Joey Morphy disse o m e igualmente  Mr. Baker, e o caixeiro viajante. T eles são da mesma opinião. Mas porque será que isso m volta e me deixa como que um sabor a ovos podres? eu tão bom, tão nobre,  tão justo? Não o creio. Sou orgulhoso? Sim, tenho um pouco disso. Serei pregui
 
demasiado preguiçoso, para me dedicar a qualquer
 
á? Existe uma grande quantidade de gentileza inactiva
 
ue não é outra coisa senão preguiça e temor dos aborre (l        tos, da confusão e do esforço. A madrugada tem um cheiro e uma densidade particulares. O tempo agora mudara, tornando-se o vento mais suave. Uma nova estrela, ou um planeta, iluminava o horizonte a oriente. Deveria saber o seu nome, mas ignorava-o. O vento refrescara. Precisava de voltar a casa depressa.  A estrela, que agora subia, viera muito tarde para ir longe antes que se fizesse dia. Há um provérbio que diz : "A estrela indica, mas não manda." Dizem que muitos  financeiros sérios consultam os astrólogos antes de fecharem um negócio. Serão as estrelas propícias aos jogos da Bolsa? Nada de mais gracioso, de mais longínquo  no meu destino que uma estrela. Um baralho nas mãos de uma mulher ociosa e maligna, e o destino está lançado. Também as cartas darão indicações e não mandam? Elas 
obrigaram-me a vir aqui e fizeram-me reflectir mais do que quereria sobre um assunto detestado. Chegarão elas a dar-me a astúcia comercial que nunca tive, que sempre  me foi estranha? Serei levado a desejar o que até agora não quis? Existem devoradores e devorados. Aí está uma boa regra a ter em atenção. Os devoradores serão mais  imorais que os devorados? Por fim, todos serão comidos-engolidos pela terra-, mesmo os mais impetuosos e os mais fortes. Há muito já que os galos cantavam em Clam Hill. Eu ouvira-os distraidamente. Gostaria de ficar no meu Lugar e nele assistir ao nascer do Sol. Eu disse que o meu Lugar não estava ligado a nenhum sítio? Isso não é inteiramente exacto. Às vezes, para satisfazer a minha memória, reconstruo o Porto Velho, os  cais, os entrepostos, as florestas de mastros e os locais onde se amontoavam as velas, os meus antepassados, o meu sangue-os mais novos no convés e os mais velhos  na ponte de comando. Eles estavam então longe de ter de melhorar o aspecto das couves-flores de uma mercearia de um Marullo. Conservavam a sua dignidade, a sua esta . Podiam respirar. Era essa a linguagem de meu pai, pobre louco. O velho 58 59 capitão, esse, lembrava-se das lutas pelas pari discussões acerca dos viveres, das suspeitas, dos pr judiciais, e também dos crimes! Pelas mulheres, pela ou pelas  aventuras? Nada disso. Pelo dinheiro. Era; dizia ele, ver a camaradagem resistir a uma só E o ódio subsistia quando, por vezes, a causa dele sido esquecida há muito  tempo. Havia uma amargura que o velho capitão não podia esquecer, um crime que não perdoava. tas vezes me falou disso, de pé ou sentado, à beira do Velho. Que momentos  divinais lá passámos, ele Estou a vê-lo apontando a sua bengala de narval. -Fixa o terceiro rochedo dos recifes de Whitesun" ele.-Estás a vê-lo? Agora traça uma linha entre cimo de Porty Point na praia-mar. Já traçaste? Bem. que ele se  encontra, pelo menos a sua quilha, a meio de distância desta linha. -O Belle Adair? -O Belle Adair. -O nosso navio. -Metade nosso. Era uma sociedade. Ardeu, anco até à linha de água. Nunca acreditei que fosse um dente. -Pensa que lhe lançaram o fogo, capitão? -Sim. -Quem o fez? -Não sei. -Por que motivo? -O seguro. -Mas devia haver alguém que não estivesse de a -Foi um homem só... É uma grande força... Para uma coisa daquelas não se pode depender de ou Disse-me meu pai que depois daquilo ele nunca dirigira a palavra ao capitão Baker. Mas não transf seu ódio para o filho, Mr. Baker. Não seria capaz tal como não 
seria capaz de incendiar um navio. Meu Deus, era necessário voltar a casa. Quase e cheguei a High Street sem dar por isso. Fazia ainda mas um aro de luz sobre o mar dava às vagas um cinzento. Contornei  o monumento aos mortos e edifício dos Correios. Danny Taylor estava de pé di uma porta, com as mãos nas algibeiras, a gola do sob levantada e o velho gorro com as orelhas para pado o. Estava roxo de frio, lamentável.
 
 
Eth-disse-me-, estou desolado por incomodar-te. - Y        o de um copo. Sabes que não te pediria se não fosse O.essáno.
 
 
- Estendi-lhe -Sei, ou melhor, não sei, mas acredito. ,ma nota de dólar.-Achas que chega? Os seus lábios tremiam como os de uma criança que vai chorar.        Eth sim... isto vai manter-me todo o -Obrigado, dia, e talvez toda a noite. O seu semblante ficou com melhor aspecto só por pensar no que acabava de dizer.
 
 
-Danny... deves acabar com isso. julgas que esqueci? Tu eras o meu irmão, Danny. Sê-lo-ás sempre. Farei seja o que for para te ajudar. Um ligeiro rubor apareceu nas suas faces encovadas. Contemplou a nota e foi como se acabasse de engolir o seu primeiro trago de álcool. Depois fixou em mim dois  olhos duros e frios. -Em primeiro lugar, o que faço é assunto que só a mim diz respeito. Além disso, não deves censurar-me, po~s és tão falhado como eu, só com a diferença de que falhaste  de outra maneira. -Escuta, Danny... -Não escuto nada. Se crês que este dólar te dá o direito de me pregares moral... aqui o tens. Toma-o. -Guarda-o! -Está bem. Tu não sabes daquilo que falas. Nunca foste... bêbado. Eu não tento ensinar-te a embrulhar o presunto, ouviste? Agora, se queres pôr-te a andar, vou bater  a uma janela e pedir um copo. Mas não esqueças... Cu valho mais que tu. Não sou caixeiro. Voltou-me as costas e encostou a cabeça contra a porta fechada, como uma criança que pensa que o mundo não existe desde que o não olhe. Não se mexeu enquanto o me afastei. Wee Willie parado diante do hotel, acordou e baixou o vidro do Chárolet. -Bom dia, Ethan. Levantou-se cedo ou entra tarde? -As duas coisas. -Você deve ter comido um bom pedaço. 61 6o
#-E que pedaço! Uma huri.. -Ethan, não me diga que esteve com uma da vida -Pode acreditar que sim. -Não acredito. Aposto que foi pescar. Como patroa? -Dorme. -É exactamente o que eu vou fazer. Chegou a de ser rendido. Afastei-me sem lhe fazer notar que a dormir ti estado. Subi ràpidamente os degraus das traseiras da casa e acendi a luz da cozinha. O meu bilhete sobre a mesa, um pouco à esquerda. Juraria tê-loxado ao centro. Pus café ao lume e sentei-me à espera de que esti pronto. Nesse momento Mary entrou. A minha qu quando acorda, parece uma rapariguinha. Ninguém que é já mãe de dois  matulões. A sua pele tem um c maravilhoso, parecido com o da erva recentemente co que é o perfume mais reconfortante que conheço. -Porque te levantaste tão cedo? -Bem o podes perguntar. Fica sabendo que esta pé uma parte da noite. As minhas galochas fic porta. Toca-lhes e verás que estão molhadas. -Onde estiveste? -Conheço uma grutazinha junto ao mar, meu pa desgrenhado. Meti-me nela e estudei a noite. -Oh1 Peço-te que fales a sério ! -Vi uma estrela sair do mar. Como não perte ninguém, agarrei-a para ti. Domestiqueia e depois aso para que crescesse. -Es idiota. Acabas de te levantar, e isso acordo -Se não me acreditas, pergunta a Wee Willie. -lhe. Pergunta a Danny Taylor, a quem dei um -Não devias ter-lho dado. Vai embebedar-se. -Eu sei. Foi para isso que mo pediu. Onde dormir a nossa estrela, amorzinho ? -Que bem que cheira este café. Ainda bem q vejo a fazer de parvo. És horrível quando estás apree Lamento toda aquela história da sina. Não quero penses que me sinto  infeliz. _Não te apoquentes. As cartas falaram. _O quê? _Não brinco. Estou decidido a fazer fortuna. _Nunca sei o que pensas. _ É muito difícil sabê-lo quando se diz a verdade. posso bater um pouco nas crianças para festejar a véspera da Ressurreição? Prometo não lhes quebrar nenhum osso. -Ainda não lavei a cara. Perguntava a mim própria
 
que Quando subiu lpara aa casa de banho, meti na algibeira o bilhete que lhe era destinado. E continuei sem nada saber. Nós conhecemos ao menos o aspecto exterior de outra pessoa? Com quem te pareces, Mary? Mary... ouves-me? Que és tu lá por dentro? 62
 
63 Capítulo IV
 
Este sábado parece ter um padrão. Tê-lo-ão igualmente os outros dias? É um dia à parte, um dia de espera. Parecia-me ouvir o leve murmúrio monótono da minha tia  Deborah: "Jesus morreu. Este é, entre todos os outros dias, aquele em que Ele morreu. E todos os homens e mulheres morrem também. Jesus está hoje no Inferno. Mas  amanhã ! Espera até amanhã ! Então verás." Não me lembro dela muito claramente. Como não se vê nitidamente alguém que esteja perto de nós. Lia-me os Evangelhos como se fossem jornais. E julgo que para ela  era um pouco o mesmo, uma aventura que se repetia sem cessar, sempre nova e exaltante. Na Páscoa de cada ano Jesus ressuscitava, e essa explosão, apesar de esperada,  era sempre nova. Para ela, isso não teve lugar dois mil anos atrás. Sucedia agora. E da sua convicção algo ficou em mim. Nunca, que me lembre, tive pressa em abrir a loja. Mas nesse dia tive-a. Amo Mary apaixonadamente, de certa maneira mais até que a mim próprio. Mas confesso 4ue  nem sempre a oiço com atenção. Quando desfia a crônica das modas e das doenças ou me repete conversas a entusiasmam não oiço mesmo nada. "Mas tu
 
"everias saber!" explode ela às vezes. uEu disse-to. Lem
 
me perfeitamente de ter falado disso na quinta-feira 65 #de manhã E não há dúvida. Tem decerto razão. certos géneros de assuntos, ela conta-me tudo. Esta manhã não só não a ouvi, como desejei a conversa. Talvez quisesse eu próprio falar, tivesse nada a dizer. Demos o seu ao seu dono-ela nem sempre me ouve, o  que às vezes é vantajoso. atenção ao tom e às inflexões e, assim, faz uma ideia a minha saúde e o meu estado de humor, concl estou fatigado ou alegre. Este método  é tão bom qualquer outro. Agora, que penso nisso, confesso q não pode escutar-me porque eu dirijo-me a um so ouvinte que vive dentro de mim. Do mesmo modN é para  mim que ela fala. É claro que tudo muda q se trata das crianças ou de qualquer outro assua importância prática. Muitas vezes a minha fala dirige-se a mortos, o velho capitão ou a minha tia Deborah, de Pl Rock. Discuto com eles. Lembro-me de, no dec uma batalha fatigante, ter  chamado o capitão: que devo?" E a resposta veio, muito clara: "Ce que deves. E nada de hesitações!" Ele não disc Nunca o fez. Ordena-me que aja, e eu obedeço. Isto  n nada de misterioso ou de místico. É pedir a mim p uma desculpa ou um conselho já antecipadamente fo e garantido. O meu auditório de caixas e frascos lá na m é perfeito quando desejo tagarelar-o que é um especial de fazer perguntas a mim mesmo. animal que passe, seja cão ou  pássaro, também muito bem para isso. Apresentam apreciável van sobre as pessoas, pois não respondem nem repetem o lhes diz.
-Vais já?-admirou-se Mary.-Ainda tens meia Aí está o que acontece quando te levantas tão cedo. -Tenho uma porção de caixas a despejar. E coisas a pôr em ordem antes de abrir ao público. decisões a tomar. Pode-se pôr os pickles e os to mesma secção? Os alperces  em compota não irão com os pêssegos? Tu sabes a importância que a& assumem num vestido. -Troças de tudo. Mas sou feliz. Há tantos taciturnos ! Desta maneira, eu saí cedo. Red Baker ainda não estava rua. Podia-se acertar o relógio por este cão. O seu eio majestoso começaria exactamente daí a meia ass ora. Também Joey Morphy não apareceria ainda. O banco continuaria fechado, o que não impediria Joey de ir trabalhando nos livros. A cidade estava calma, pois muitas
 
pessoas ¢de julho e na F s ao do Trabalho, é nasPásc aoque as férias são maiores. As pessoas saem da cidade mesmo que não tenham vontade disso. Os pardais de Elm  Street partem também. Vi Stonewall Jackson Smith começar o serviço. Acabava de sair do Foremaster, onde bebera o café. Era tão magro e de aparência tão frágil que a pistola e as algemas  pareciam desproporcionadas. Trazia o boné à banda, com ar conquistador, e palitava os dentes com uma pena de ganso. -Muito trabalho, Stoney. O dia vai ser duro para ganhar dinheiro. -Hem? Não há ninguém na cidade. Parecia que isso o desgostava. -Há assassínios, Stoney, ou outros horrores interessantes ? -Está tudo calmo. Uns rapazes esmagaram um carro contra a ponte. Mas, bolas, o carro era deles! Serão condenados a pagar a despesa da reparação da ponte. Ouviu falar  do assalto ao banco em Floodhampton? -Não. -Nem viu a notícia na televisão? -Ainda não temos isso. O roubo foi importante? -Treze mil. Foi ontem, um pouco antes da hora de fechar. Três tipos. O alarme foi dado em quatro estados. Willie está na estrada nacional e tenta ter os olhos bem  abertos. -Ele dormiu bem. -lsso sei eu. Quanto a mim, estive a pé toda a noite. -Acredita que os vão agarrar? -Oh! Decerto. Quando se trata de dinheiro, a coisa não falha. As companhias de seguros sabem o que fazem. Elas não deixam levar o bolo. -Então é um belo trabalho se não tiver de participar nele, não é ? 66 67 #-Assim penso. -Stoney, gostaria que se ocupasse de Danny T Ele aparenta estar bastante doente. -Aquilo é uma questão de tempo. Mas eu disso. Que vergonha. Um belo tipo, de uma mília. -lsso mata-me, pois estimo-o muito.
-Você não pode fazer nada por ele. Vai chover, Willie detesta molhar-se. Pela primeira vez, que me lembre, entrei na ruela, prazer e abri a porta de trás com entusiasmo. O estava lá. Nunca aconteceu que este animal ma diligente tenha  passado um dia sem esperar-me à para tentar entrar na loja. Também nunca deix o ameaçar com um pau e afugentá-lo. Digo " el não "ela", pois as suas orelhas, rasgadas  em consequ de muitas brigas, atestam bem o seu sexo. Os gat animais estranhos ou parecem-se tanto connosco os achamos tão curiosos como os macacos. Este g tentou  entrar na loja pelo menos umas seiscentas ou centas vezes sem nunca o conseguir. -Vais ter uma cruel surpresa-disse-lhe. Ele estava sentado no semicírculo formado pele cauda, cuja extremidade se agitava entre as pat frente. Entrei na loja escura, peguei numa lata de fiz-lhe dois buracos  e esvaziei-a numa chávena, qu no chão da parte de dentro, deixando a porta a Viu-me fazer tudo isto com gravidade. Olhou o 1 depois afastou-se, desaparecendo por  cima do muro traseiras do banco. Seguia-o com os olhos quando Joey Morphy apa na extremidade da ruela, com as chaves do banco na Parecia gasto, cansado, como se não se tivesse tado. -Bom dia, Mr. Hawley. -Pensei que não trabalhava hoje. -lsso não é comigo. Ando à procura de um e trinta e seis dólares. Trabalhei até à meia-noite. -O erro é para menos? -Não... para mais. -Então parece estar tudo bem. -Não é bem assim. É necessário que o encontre. -Todos os bancos usam de uma tal honestidade? -Os bancos, sim. Certos homens é que não. Com um ,4 -canso vou acertar        . pou-Gostaria de saber alguma coisa de negócios. -Posso ensinar-lhe tudo o que sei numa só frase: KO dinheiro atrai dinheiro." -lsso não é lá muito bom para mim. -Para mim, também não. Mas posso dar-lhe mais alguns conselhos. _Quais? -Nunca aceitar a primeira oferta. Se alguém quer vender, é porque tem qualquer razão para isso; uma coisa não tem valor senão para aquele que a deseja. -Estes conselhos que está a dar-me constituem um curso condensado? -Exactamente, mas não valem nada sem o que lhe disse ao principio. -Que o dinheiro atrai dinheiro? -lsso elimina muitos de nós. -Não há gente que empresta? -Sim, mas é preciso crédito, o qual é uma espécie de dinheiro. -Dessa forma, julgo estar condenado a manter-me na mercearia. -Assim parece. Ouviu falar do caso do banco de Floodhampton ? -O Stoney contou-me. É interessante que tivéssemos fardo de coisas dessas justamente ontem. Lembra-se? -Tenho lá um amigo. Eram três tipos... um tinha uma pronúncia característica, o outro coxeava. Três tipos. Agarram-nos, é mais que certo. Numa semana. Talvez em  duas.
-Não são espertos. E há sempre um castigo para os estúpidos. Lastimo a discussão de ontem. -Esqueça isso. Eu falo muito. Existe uma outra regra além da que lhe citei: não fale. Agora reparo que você está com esplêndido aspecto. -Pois não devia ter, porque quase não dormi. -Tem alguém doente? -Não. Há noites em que me acontece isto. Maquinalmente, varri a loja e levantei as cortinas. ~s M conselhos de Joey dançavam-me na cabeça. Discuti 68 6g com os meus amigos das prateleiras em voz alta, voz baixa. Não sei bem. -Caros sócios-disse-, se é tão simples, porque um grande número de pessoas não o fazem? Porque será quase toda a gente repete os mesmos erros? Esque sempre de alguma  coisa. A fraqueza congénita está à amabilidade e à educação? Na opinião de M - dinheiro não tem coração. Pode concluir-se que a amabilidade num homem de negócios é fraq Como se consegue que um joão-ninguém qualquer cre os outros homens numa  guerra? Evidentemente - caso é simplificado se o inimigo tem um idioma e aspecto diferentes do nosso. E nas guerras civis? Bem. -se a circular que os nortistas comiam os bebés e q rebeldes  deixavam morrer à fome os prisioneiros. chega. Já vou tratar de vocês, beterrabas às fa cogumelos enlatados. Querem que fale de vocês. a gente é assim. Lá chegarei.  Se as leis do pensa são as que regem as coisas, então a moral também em relação; do mesmo modo as criaturas e os dos. É necessário que assim seja. Não temos que  daí. E vós, cereais de dez cêntimos, com a figur Mickey Mouse na tampa e um truque de ventríl como reclamo ! Vou levar-vos para casa, mas, entre estai quietos e  escutai. Aquilo que eu disse como cejo à Mary é a verdade. Os meus antepassados, les armadores e capitães tão respeitados, receb dinheiro para fazerem incursões  durante a Revo e, depois, em 1812. Eram muito patriotas e virtuosos. para os Ingleses não passavam de piratas e tudo o que caia na mão era deles. Foi assim que começou  a f de família que o meu pai dissipou. Foi daí que veio aq dinheiro que gerou mais dinheiro. Podemos estar or de tudo isso. Abri uma caixa, donde tirei umas bonitas ia de molho de tomate, que pus em linha sobre a pra vazia. -Vocês não sabem, pois acabaram de chegar -        dinheiro não só não tem coração, como não tem nem memória. O dinheiro é automàticamente resp m" desde que se conserve algum tempo. E não julgue -        acuso. Pelo contrário, admiro-o infinitamente. sso introduzir alguns novatos na vossa comunidade? po Vejamos, ponho-os aqui, ao lado do molho de tomate pi~te. Acolhei bem, peço-vos, estas fatias de pão com man e pickles que nasceram, foram cortadas e enlatadas em Nova Iorque. Nós discutíamos o dinheiro, os meus amigos - eu. Uma das nossas famílias mais distintas... Ah, bem sabem a quem quero referirme ! Toda a gente o sabe, estou certo. Ela começou vendendo carne aos Ingleses 
quando o nosso país estava em guerra com aquela gente. Pois admira-se esta fortuna tanto como qualquer outra. Tomemos outra dinastia, a de um dos nossos maiores  banqueiros. O fundador comprou trezentas espingardas ao Exército, que as tinha rejeitado por serem perigosamente defeituosas, e, assim, ele adquiriu-as a baixo preço,  julgo que a cinquenta cêntimos cada uma. Pouco tempo depois, - general Fremont, ao preparar a sua heróica arremetida para oeste, comprou as mesmas armas a vinte dólares. Ninguém ouviu dizer que elas tenham estoirado nas mãos  dos soldados. E é isto o dinheiro que produz. Pouco importa a maneira como é adquirido, desde que se conserve e se faça frutificar. Não sou cínico. O nosso patrão  Marullo, cujo nome é romano, tem perfeitamente razão. Quando se trata de dinheiro, as vulgares regras de boa educação devem ir para férias. Porque é que eu falo  disto exactamente a vocês? Por causa da vossa discrição, talvez. Vocês não repetem as minhas palavras. O dinheiro só é um assunto aborrecido e grosseiro para aqueles  que o têm de sobra. O pobre acha-o fascinante. Mas não crêem que, quando o dinheiro interessa activamente, é necessário ter conhecimentos sobre as suas características  e as suas tendências ? Há poucos homens, creio eu, que amem o dinheiro por si mesmo. Sòmente o fazem os grandes artistas da finança e os avarentos. E os avarentos,  esses, é o medo que os impele. Uma grande pilha de caixas de cartão vazias obstruía -        pavimento. Fui arrumá-las nos fundos da loja. Muitos fregueses gostam delas para levar as compras e, como diria -        Marullo: "Isso poupa os sacos, rapaz!" E1h, esse "rapaz"! Agora isso já não me aborrece. Prefiro até que me chame "rapaz" e que me considere como Unlgaroto. Tamborilaram na porta principal quando eu estava a arrumar as caixas. Olhei o meu relógio de marinheiro 70 7r e vi que eram nove e um quarto. Pela primeira vez, cera-me de abrir às nove horas. Aquela conversa géneros alimentícios tinha-me desorientado. Mareie -Hunt esperava  diante da porta e podia vê-la atra grade metálica. Antes, nunca a tinha olhado re Talvez tivesse arranjado aquela história da fortuna, ter a certeza de que eu a  notaria. Abri as portas. -Não queria incomodá-lo. -Pelo contrário, até estou atrasado. -É verdade? -Sim. Já passa das nove horas. Entrou. As suas nádegas arredondadas bamboa suavemente a cada passo. Pela frente também estava fornecida. Não vale a pena gabar as suas prendas pois elas estão bem  à vista. Mareie é o que Joey c uma boneca, e sem dúvida que o meu filho Allen t assim a considera. Como disse, suponho que a vi p meara vez. As suas feições são 
regulares, o nariz um comprido, os lábios sensuais. Os cabelos estavam numa tonalidade de castanho impossível de encon Natureza, mas, no entanto, bonita. O queixo  era fr bom recorte, numerosos músculos moviam-lhe as faces maçãs do rosto salientes. Os olhos destacavam-se. daquela cor de avelã que muda conforme a luz, p para  o azul ou para o cinzento de aço. Tinha uma caras imutáveis que resistem a tudo, até à violência, pancadas. O seu olhar saltou de mim para a me voltou a fixar-me.  Devia ser muito observadora e ter lente memória. -Espero que não tenha o mesmo problema de -disse-lhe. Ela riu-se. -Não... Eu não apanho um caixeiro viajante tod dias. Hoje é verdadeiramente o café que me falta. -Muita gente é assim. -Que quer dizer com isso? -Os dez primeiros fregueses de cada manhã d acabar o café. -É verdade? -Certamente. A propósito, agradeço-lhe ter-m - viado o seu caixeiro viajante. -Ele é que pensou em vir. -Mas você ajudou. Que lote de café deseja? -Qualquer serve. Afinal, faço sempre uma mistela. -Não costuma medi-lo?_ -Costumo. Mas isso no impede que seja sempre mau. O café não é o meu forte. -Experimente esta qualidade. Tirei uma lata de uma prateleira, e no simples gesto que ela fez para a aceitar todo o seu corpo se mexeu, se deslocou, se apresentou... "Eu sou a perna. E eu a  coxa. Nada é melhor que eu, que sou o ventre macio." Reteve a respiração. Na opinião de Mary, uma mulher pode manifestar o que pretende sempre que queira. E era  isso. Mareie dispunha de um sistema de comunicação que começava nos artelhos e acabava nas madeixas castanhas. -Já expulsou as suas ideias negras? -Ontem não estava bom. Não sei como isso me acontece. -Eu sei o que é. E nem sempre há motivo determinante. -Você arranjou um bom sarilho com aquela história da fortuna. -lsso aborreceu-o? -Não. Mas gostaria de saber como chegou àquela conclusão. -Não acredita em nada daquilo? -Não se trata de acreditar. Você pôs o dedo justamente sobre certas coisas em que eu pensava e que desejava fazer. -Quais ? -Por exemplo, que seria tempo de eu mudar. -Pensa que eu fiz batota com as cartas, não é verdade? -Não tem importância. Se o fez... com que fim foi? Pensou nisso ? Ela fixou-me de frente nos olhos, de modo desconfiado e interrogativo. -Oh - disse docemente. - Com efeito, nunca pensei nisso. Se eu fiz batota? Porquê? Seria como preparar uma partida e revelá-la antes de a levar a efeito. Mr. Baker passou junto da porta. -Bom dia, Mareie. Ethan, pensou na minha sugestão?
-Sim. E desejava falar-lhe nisso. -Quando quiser, Ethan. 72 73 -Durante a semana não posso abandonar a loja, o Marullo quase nunca cá vem. Que diria se nos amanhã? -A saída da igreja, está bem. É uma boa ideia. a Mary lá para as quatro horas. Enquanto as se falam das suas coisas, nós estaremos à vontade e... -Tenho um grande número de perguntas a fazer. Talvez seja melhor escrevê-las. -Estou inteiramente à sua disposição. Até b portanto. Adeus, Margie. -Olá, você começa depressa-disse a jovem q ele desapareceu. -Talvez não passe de uma tentativa. Sabe o seria interessante? Porque não faz a mesma expen de ontem com as cartas, mas de olhos vendados, para se o resultado e  o mesmo? -Não. Assim não pode ser. Está a troçar de mim, fala a sério ? -Nestes casos, acreditar ou não, pouco importa. não acredito em faculdades extrasensoriais, nos rel gos, na bomba de hidrogénio ou nos raios ultravioletas. mas  sei que tudo isso existe. Não creio em fartas mas já os vi. -Está a brincar? -Não estou. -Não me parece o mesmo homem. -E não sou. Aliás, ninguém deixa de mudar coto tempo. -Que é que provocou isso, Eth? -Não sei, mas talvez esteja farto de ser caixeiro. -Já é tempo de deixar de o ser. Gosta verdadeiramente de Mary? -Decerto. Porque me pergunta isso? -Você parece ser uma pessoa bastante difer dela. -Sei o que quer dizer, mas ela agrada-me mux Gosto dela. -Eu também. -Há pessoas muito felizes. -Sei que o sou. -Refiro-me a ela. Bem, vou fazer a minha mistela café. Reflectirei sobre essa história das cartas. faça. W Ela saiu e o seu lindo traseiro estremecia como se fosse de borracha viva. Nunca a tinha visto verdadeiramente. A quantas pessoas no decurso da minha vida olhei  sem as ver? `espantoso. Aí está mais um assunto para reflexão. Quando duas pessoas se encontram, cada uma é mudada pela ,outra, e assim nascem dois indivíduos novos.  Talvez isso queira dizer... Meu Deus, como e complicado. Pensarei em tudo isto à noite, quando não puder dormir.
 
O ter-me esquecido de abrir o estabelecimento à hora devida aborrecia-me. É como perder o lenço no local onde se cometeu um crime, ou perder os óculos como sucedeu  a um tipo que conheço em Chicago. Mas porque pensei nisto ? Que tem um caso tão banal com um crime ou um assassínio? Ao meio-dia preparei quatro sanduíches: queijo e fiambre com alface e maionese. Fiambre e queijo, queijo e fiambre... Quando um homem se casa perde a sua liberdade 
e tem de suportar muita coisa. Peguei nas sanduíches e numa garrafa de Coca-Cola e levei tudo a Joey pela porta das traseiras. -Já encontrou o erro? -Ainda não. Devo tê-lo debaixo do nariz, mas não o vejo. -Porque não espera até segunda-feira? -Não posso. O banco não é para brincadeiras. -As vezes,, quando não pensamos no problema que nos preocupa, e que nos aparece a solução. -Assim é. Obrigado pelas sanduíches. Abriu-as para se certificar de que continham alface e maionese. Estar na mercearia ao sábado à tarde, nas vésperas da Páscoa, é aquilo a que o meu augusto filho chama "um frete,,. Mas dois casos vieram provar que uma modificação  profunda se produzia em mim. Quero dizer que ainda ontem não faria o que fiz agora. É como se estivesse a folhear um álbum de amostras de papéis para forrar paredes  e tivesse descoberto um novo adrão. Primeiro ponto: o MaruNo entrou. O seu artritismo fazia-o sofrer cruelmente. Não parava de dobrar os braços £omo um hércules de feira. -Como vai isso? _Quanto mais cedo melhor, antes que o assunto arre 74 75 -Sem novidade, Alfio. Era a primeira vez que o tratava pelo nome -Não está ninguém na cidade, Ethan... Gosto mais que continue a tratar-me -Pensava que não te agradava. -Reflecti melhor,  Alfio. -Andam todos pelas estradas. Os ombros deviam doer-lhe como se tivesse quente nas articulações. -Há quanto tempo veio da Sicília? -Quarenta e sete anos. Uma vida. -Nunca lá voltou? -Não. -Porque não vai lá dar uma volta? -Para quê? Tudo aquilo mudou. -Já não o tenta? -Muito pouco. -Não tem lá ninguém? -Tenho, sim. O meu irmão, os filhos dele e os dos filhos. Olhou-me como eu tinha olhado Margie, e par que também ele me via pela primeira vez. -Que ideia tens na cabeça, rapaz? -Faz-me pena vê-lo sofrer. Deve estar calor na e isso podia curá-lo. Lançou-me um olhar desconfiado. -Que tens tu? -Eu? Que quer dizer? -Mudaste inteiramente. -Foi porque recebi boas notícias. -Deixas-me? -Ainda não. Se quer ir dar uma volta pela prometo-lhe que fico. -Que boas notícias são essas? -Não posso ainda dizer-lhe. Fiz um gesto vago com a mão. -Dinheiro? -É possível. Escute, você é rico. Porque ~ à Sicília para mostrar às pessoas de lá o que é um cano rico? Vá encher-se de sol. Eu farei p negócio da loja. Sabe que  sou capaz. -Tu não te vais embora?
_Não, descanse. Conhece-me bem de mais para saber não abandonaria. neo mudaste rapaz. Porquê? - TU, -Disse-lhe o motivo. Corra a ver os bambinos. Já não sou da terra deles. Mas eu sabia que tinha semeado alguma coisa. E tam sabia que ele viria naquela noite examinar os livros. Q sujeito é desconfiado. jante Apenas acabara de sair quando entrou o caixeiro viade B. B. D. e D. Já na véspera acontecera o mesmo. -Não venho fazer negócio. Passo o fim-de-semana em Montauk.  Pensei fazer-lhe uma visitinha. -Vem mesmo a propósito. Quero devolver-lhe isto. Estendi-lhe a carteira com a nota de vinte dólares. -Mas foi uma oferta feita com boa intenção. Disse-lhe que agora não vinha tratar de negócios. -Tome ! -Porque faz isso? -Da forma como aconteceu, isto constitui um contrato. -Que é que tem? Ofendeu-se? -Claro que não. -Então? -Pegue nisto ! Só interessam os preços. -Jesus... A Weylands fez uma oferta melhor? -Não. -Quem foi então... Aquelas malditas casas que fazem descontos ? Meti-lhe a nota de vinte dólares na algibeira. Guardo a carteira porque é bonita. -Oiça, eu não posso fazer outros preços sem falar à direcção. Não decida antes de terça-feira. Telefonarei dizendo: "É o Hugo quem fala." Saberá assim de quem se  trata. -É você quem paga as chamadas telefónicas? -Boca calada, hem? -Está bem. Você vai à pesca? -Falta-me companhia. Convidei a Margie. Por pouco que não me comia. Confesso que não compreendo as mulheres. -Cada vez se compreendem menos. -Ali, pode bem dizê-lo ! 76 77 X Havia quinze anos que eu não ouvia aquilo. Ela um ar aborrecido. -Não faça nada antes de receber notícias Jesus ! E eu que pensava estar a lidar com um vivaço, -Não posso intrujar o meu patrão. -Abóbora. Suba os preços, é tudo quanto tem a -Já que insiste, digo-lhe que recusei simple deixar-me subornar. Esta conversa prova que eu tinha mudado, o começava a olhar-me com respeito, e isso agrada Supunha que eu era como ele, mas para melhor.
 
Mary telefonou-me quando eu me preparava fechar.
-Ethan, não fiques aborrecido... -De quê, pèzinho de flor? -Ela vive tão só, e eu pensei... olha, resolvi con a Margie para jantar. -E porque não? -Então não estás zangado? -Não, cos diabos ! -Não praguejes. Amanhã é Domingo de Páscoa. -Ah, isso faz-me lembrar uma coisa. Arranja vestido mais bonito. Vamos a casa dos Baker às q horas. -A casa deles? -Sim, tomar chá. -Porei o vestido com que vou à igreja. -Perfeitamente, meu raminho de feto. -Não te aborreces por causa do convite à -Amo-te -respondi. Era exacto, perfeitamente exacto. E certas lemb vinham-me à mente. Em que patife um homem tornar-se !
78 Capítulo V
 
Quando subia Elm Street e virei no passeio empedrado, parei para olhar a velha casa. Pareceu-me mudada. Era minha. Não era de Mary, nem de meu pai ou do velho capitão,  mas minha. Podia vendê-la, queimá-la ou conservá-la. Não subira mais de dois degraus da escada das traseiras quando a porta se abriu com estrépito e Allen saltou para fora gritando -Onde estão os Peeks? Não me trouxeste os Peeks? -Não. Ele não manifestou por nenhum grito o desgosto e a desilusão. Nem mesmo chamou a mãe para que fosse testemunha da minha falta de palavra. Disse "Oh!" e afastou-se com vivacidade. -Boa noite-disse eu nas costas dele. Parou. -Boa noite-repetiu, como se se tratasse de uma palavra estrangeira que acabasse de aprender. Mary entrou na cozinha. -Cortaste o cabelo-disse. Para ela, desde que sinta algo de estranho em mim, eu cortei o cabelo ou tenho febre. -Não, caracolinho. 79 a -Sabes, não parei um segundo para pôr a ordem. -Em ordem? -Eu disse-te que a Margie vem jantar. -Já sei, mas porquê tanta azáfama? -Há séculos já que não recebemos. -lsso é verdade, perfeitamente verdade. -Vestes o fato preto? -Não, o de sarja, o cinzento.  -Porque não o preto? -Porque quero leva-lo bem vincado amanhã à igr -Poderia voltar a passa-10 a ferro amanhã de ma -Vestirei o cinzento, que é o fato mais encant da cidade. -Oh! Aí estão as crianças. Não toquem em É a minha melhor louça. E tu, afinal, não queres o fato preto ? -Não. -A Margie deve vir toda chique. -Ela gosta do meu fato de sarja. -Como sabes? -Disse-mo ela. -lsso não é verdade. -Escreve uma carta ao jornal a perguntar isso. -Deixa-te de brincadeiras. Tu serás amável p com ela ? -Mais do que isso, far-lhe-ei a corte. -Pensei que preferias vestir o preto... por ela -Escuta, rapariguinha em flor, quando cheguei era absolutamente indiferente o que ia vestir. Em dois se dos, com a tua insistência, colocaste-me na impossibilid de vestir outro fato senão o cinzento.
-Apenas para me seres desagradável? -Sem dúvida. -Oh!-disse ela no mesmo tom que Allen há po: empregara. -Que há para jantar? -Frango assado. Não te cheira? -Parece-me, Mary... Eu... Mas não continuei. Para quê? Para que lutar con um instinto ancestral? Ela tinha aproveitado "o dia frango" no Safe Rite Store. Ali é mais barato que Alarullo. Apesar disso, eu tinha os frangos a preços
 
armazéns para 1 promoverem        das m certas usa ocasiões. Atraídas pelo reclamo, as pessoas adquirem um dezena de coisas cuja única vantagem consiste em encontrarem-se ao alcance da mão. Toda a gente sabe isso, mas continua a cair no mesmo engodo. As minhas lições a Mary morriam todas à nascença. o novo Ethan Allen Hawley passaria a tirar partido de todas as manias nacionais. -Espero que não creias que tenha sido desleal disse Mary: -Querj.da, como é possível pôr a questão da virtude ou do pecado tratando-se de um frango? -Era tão barato. -Fizeste muito bem... procedeste da forma mais inte ligente. -Estás a brincar. Allen esperava-me no meu quarto. -Posso ver a tua espada de cavaleiro do Templo? -Decerto. Está no canto do armário. Ele sabia bem onde a encontrar. Enquanto despi o fato, tirou-a do estojo de couro, desembainhou-a, voltou a lâmina brilhante à luz e admirou a sua nobre postura no espelho. -Como vai o teu ensaio? -Hem? -Com isso, tu queres dizer: "Como, pai?" -Sim, pai. -Eu perguntei : "Como vai o teu ensaio? -Oh, muito bem! -Fá-lo-ás realmente? -Sem dúvida. -Certamente ? -Sem dúvida, pai. -Podes pegar também no chapéu. grande sobre a estante. A pluma amareleceu. Entrei na velha banheira ampla e assente em pés de leão. Antigamente davam-se ao luxo de fazê-las muito grandes. Armado de uma escova, limpei a pele do lixo de todo o dia e do Marullo. Barbeei-me na banheira, sem Está na caixa 8o 8r
#me olhar, guiando-me pelas pontas dos dedos. Ao pentear-me, lancei um olhar ao espelho. Havia muito tempo já que não me via. Pode estar-se vezes sem fim diante  de um espelho sem realmente uma pessoa se ver. Basta não ligar a isso a menor importância. A beleza está à flor da pele e deve vir do interior. Só esta última circunstância  me deixa algumas esperanças. Não que eu seja feio. Acontece, porém, que sou vulgar e sem interesse. Ensaiei algumas expressões e pu-las de parte. Nelas, nada havia  de nobre ou de ameaçador, de orgulhoso ou de cómico. Era sempre a mesma maldita cara fazendo caretas.
 
 
Quando regressei ao quarto, Allen pusera o chapéu de templário. "Se ele me dá um ar assim estúpido, só me resta resignar-me." A chapeleira estava aberta no chãp
 
-, Estou a pensar se é possível branquear a pena de
 
 
avegtruz ou se tenho de pôr outra.
 
 
-Se arranjares uma nova, podes dar-me esta?
 
 
-Porque não? Onde está a Ellen? Ainda não ouvi a stta voz aguda e juvenil.
 
 
-Trabalha no seu ensaio Eu Amo a América. -E tu?
 
 
-Estou a pensar a respeito dele. Trazes-me Peeks? -Esqueço-me sem dúvida. Porque não passas pela loja para os ires buscar?
 
 
-Está bem. Posso fazer-te uma pergunta, pai ? -Terei prazer em responder. -É verdade que, à excepção de duas casas, toda a High Street foi nossa? -Exactamente.
 
 
-E que tivemos navios baleeiros? -Sim. -Então porque já não os temos? -Porque os perdemos.
 
 
-Como aconteceu isso? -Foi assim mesmo.
 
 
-É um disparate.
-Um disparate estiipidamente sério se te puseres a diss ecá-lo.
 
 
-Na aula nós dissecámos uma rã. -Muito bom para ti e muito mau para a rã. Qual destas deliciosas gravatas devo pôr? -A azul-respondeu, indiferente.-Diz-me, quando te vestires poderás... terás tempo para subir tão? ,-Posso, se é importante. -Vens? -Sim. -Bem. Eu subo imediatamente e acendo a luz. -Logo que puser a gravata, vou ter contigo.-Ouvi os seus passos soar nos degraus da escada do sótão. Sempre que dispenso a minha atenção ao nó da gravata, esta manifesta uma tendência muito nítida para a independência. Pelo contrário, se deixo os dedos cumprirem  sozinhos esse trabalho, eles realizam-no perfeitamente. Atribuí-lhes portanto a sua tarefa e consagrei os meus pensamentos ao sótão da velha casa dos Hawley-a minha  casa, o meu sótão. Não se trata de uma prisão invadida por teias de aranha. Possui janelas de pequenas vidraças tão velhas que azulam a luz e o mundo exterior surge  corno se fosse visto através da água. Os livros que ali se guardam não são para deitar fora ou para dar à Associação dos Velhos Marinheiros. Confortàvelmente instalados  nas suas prateleiras, esperam ser redescobertos. As cadeiras, algumas fora de moda por alguns tempos e outras um pouco escangalhadas, são amplas e macias. Também  não é um lugar poeirento. A limpeza da casa inclui também a do sótão. Como se pode fechar bem, a poeira não entra. Lembro-me de em criança rastejar entre livros  de capas brilhantes ou, amargurado por aquela vida meio fantástica que caracteriza a solidão, ter-me refugiado no sótão para me enrolar numa grande poltrona modelada  à forma do meu corpo numa luz azul de alfazema coada pelas janelas. Ali,podia estudar as grossas traves aplainadas que suportam o tecto-ver como estavam reunidas  por encaixes e cavilhas de carvalho. É um lugar acolhedor, maravilhoso, quando a chuva se abate sobre o telhado. E os livros inundados de luz : os livros de imagens  que serviram a crianças há muito tempo mortas de velhice; colecções de romances baratos; pilhas de estampas mostrando as manifestações do poder divino : incêndios,  inundações, maremotos e terramotos. O reino dos Infernos visto por Gustave Doré, corn legendas tiradas de poemas de Dante; Andersen e os seus contos lancinantes;  os dois irmãos Grimm, com as suas 83 ao só 82 violências terríficas e as suas crueldades; a maj morte de Artur, ilustrada por Aubrey Beardoley, criatura doente e perversa-estranha escolha para ceie zar o grande,  o viril Malory. Lembro-me de admirar a sabedoria de Ande O rei diz os seus segredos a um poço e eles ficam em s rança. Quem confia os segredos ou uma história contar com a pessoa  que o escuta ou lê, pois uma ria tem tantas versões como leitores. Cada um toma
- que quer ou o que pode, talhando-a assim à sua pró medida. Alguns aceitam uma parte e rejeitam o re outros passam-na à peneira dos seus conceitos, ou ainda transformam-na  a seu bei-prazer. Uma histó para poder agradar, deve ter alguns pontos de cont com o leitor. Só assim ele aceitará a parte maravilh O conto que eu destinar a Allen  deve ser construído forma diferente daquele que dedicar à minha pego Mary e seria ainda preciso modificá-lo se alguma tivesse de o apresentar a Marullo. Mas talvez  o poço confidências de Andersen seja o que há de melhor. Re -        eco, devolve-o, e morre. Somos todos, ou quase todos, os pupilos daquela c cia do século rrx que nega a existência de tudo qu não se sabe medir ou explicar. O que não explica nem por isso  deixa de existir, mas certamente não r a nossa bênção; não aprendemos o que não explic - assim o mundo, na sua maior parte, ficou abando às crianças, aos anormais, aos imbecis e aos místicos, to eles muito mais interessados pela existência das coisas  pela razão de ser dessas mesmas coisas. Se tantas c velhas e adoráveis foram relegadas para o sótão do m é porque não queremos que elas continuem perto de e, contudo,  não ousamos deitá-las fora. Um raio de luz crua estava suspenso no tecto. O vimento era feito de tábuas de pinho talhadas a ma medindo quarenta centímetros de largura e cinco de e sura, suportando  fàcilmente a pilha de malas e mal as fileiras de candeeiros e de vasos forrados de papel, temunhas de um luxo passado. E a luz brilhava docem sobre gerações de livros  enchendo armários a tudo isto limpo, sem um grão de pó. A minha querida é inimiga irreconciliável da poeira; é tão cuidadosa um sargento-mor. Os livros estão ordenados segundo o tamanho e a cor. Allen, com a fronte apoiada numa prateleira, olhava os livros. A mão direita apoiavase no punho da espada de templário, que estava de ponta para baixo como uma  bengala. -Representas um quadro simbólico, meu filho. Bapti zemo-lo: A Mocidade, a Guerra e o Estudo. -Desejo perguntar-te... Disseste-me que havia aqui livros que se poderiam consultar para dar efeito no meu ensaio. -Que espécie de efeito? -Uma coisa patriótica. -Já percebo. Uma coisa patriótica. Que dirias tu a esta tirada: "A vida é tão querida ou a paz tão preciosa que devam ser compradas à custa da escravidão? Não o  permitais, Deus Todo-Poderoso ! Ignoro o caminho que os outros seguirão, mas a mim dai-me a liberdade ou a morte!" -Formidável! É que nem manteiga! -Se é ! Nesse tempo a Terra estava povoada de gigantes. -Gostaria de viver nesse tempo. Barcos piratas. Ah, meu velho! Pum! Pum! Montes de ouro e mulheres vestidas de seda e belas jóias. Oh, sim, gostaria de ter vivido  isso. Houve gente da nossa família que o fez... Tu próprio mo disseste. -Uma espécie de pirataria distinta... Chamavam-lhes corsários. Não devia ser tão agradável como nos parece agora. Carne salgada e bolachas. A miséria existia também  na Terra, nessa época.
-lsso nada me importaria. Apanharia o ouro e trá-lo-ia para casa. Suponho que hoje já não é possível, pois não? -Não... Agora tudo se apresenta mais bem organizado e numa maior escala. A isso chama-se diplomacia. -Na minha escola há um rapaz que ganhou dois prémios na televisão, de cinquenta e duzentos dólares. Que dizes a isso? -Deve ser inteligente. -Ele? Nada disso. O que ele diz é uma mentira. O que é necessário é inventar uma mentira, e ganha-se a pasta. -A pasta? 84 85 -Sim. Diz-se que se é doente ou que se sustenta a criando rãs. Isso torna a pessoa interessante e faz que escolhida. Ele arranjou uma revista que trata de todos  concursos que se realizam em todo o país. Eu també podia ter uma? -A pirataria já acabou, mas tenho a impressão que o seu espírito continua. -Que queres dizer? -Algo em troca de nada. A riqueza obtida sem esforço -Arranjas-me a revista? -Pensava que isso tinha má reputação desde o últi escândalo. -Não querias mais nada? Desculpa, queria dizer: nã papá. Passou a disfarçar-se um pouco a coisa e tudo compôs. Ficaria contente se também conseguisse a parte do  bolo. -Trata-se então de um bolo? -É a massa. Pouco importa a forma como a arranja mos. -Não é essa a minha opinião. Isso não faz mal dinheiro, mas sim àquele que o adquire dessa forma. -Não vejo como. Não é contra a lei. Alguns dos tipos, mais conhecidos do país... -Charles, meu filho, meu filho... -Que história é essa de Charles? -Faz-te falta a riqueza, Allen? É-te indispensável -Tu crês que me agrada viver sem uma bicicleta motor? Na escola todos têm. E achas que tudo está be quando a nossa família não dispõe de carro, ou mesmo televisão ? -Estou profundamente chocado. -Tu não podes saber como isto é, papá. Um dia, escola, fiz uma redacção explicando que o meu bisav8 capitão de um navio baleeiro. - E era. -Pois bem, todos rebentaram a rir. Sabes como m chamam? O Cachalote. Achas bem? -Muito mal. -Outra coisa seria se fosses advogado, ou estive num banco, ou coisa parecida. Sabes o que eu vou f logo que ganhar um prémio? -Não... Que é ? -Compro-te um automóvel, e assim tu já não te sen tirás tão pelintra quando todos os outros vão passear. -Muito obrigado, Allen-disse eu, sentindo a garganta seca.
-Não tens de quê. De resto, muito em breve posso tirar a carta de conduzir. -Encontrarás todos os grandes discursos do nosso país nessas estantes. Espero que leias alguns. -Certamente. Tenho necessidade disso. -Muito bem. Boa caçada. Desci ràpidamente e humedeci os lábios. Allen tinha razão: sentia-me pelintra. Instalei-me na minha grande poltrona debaixo do candeeiro eléctrico e Mary trouxe-me o jornal. -Que reconfortante tu és, meu botão de rosa. -Esse fato fica-te muito bem. -Sabes perder e sabes cozinhar. -Essa gravata é da cor dos teus olhos. -Estás a magicar qualquer coisa. Troco um segredo pelo teu. -Mas eu não tenho nenhum. -Então descobre um para fazermos a troca. -Não posso. Oh, Ethan, diz-me ! -As crianças estão a ouvir? -Não. -Pois bem. A Margie Young-Hunt apareceu na loja hoje. Segundo parece, acabara-se-lhe o café. Mas creio que ela está muito interessada em mim. -Vamos, conta lá. -Falámos da fortuna que ela predisse. Pedi-lhe que renovasse a experiência para ver se o resultado será o mesmo. -Não é verdade. -É sim, e ela respondeu-me que isso seria interessante. -Mas tu não gostas dessas coisas! -Agradam-me, quando são bem feitas. -Crês que ela o fará esta noite? -Dá-me  alvíssaras e dir-te-ei que é exactamente o motivo da sua vinda. -Oh, não! Fui eu que lhe pedi. -Depois de ela te ter preparado para o fazeres. -Tu não gostas dela. 86 8y -Muito pelo contrário... Começo a gostar dela respeitá-la. -Gostaria de saber quando falas a sério e qua brincas. Ellen entrou tão suavemente que seria impossível sa se tinha ouvido. Mas eu suspeitei disso. É preciso no que tem treze anos. É encantadora e melancólica, ale e  delicada, doente quando lhe convém. Encontra naquele estado em que a massa começa a levedar. Pod tornar-se bonita. Gosta de encostar-se a qualquer pes apertase  contra mim, respira junto à minha cara e seu hálito é agradável. Toca em tudo o que vê. Ellen encavalitou-se no braço da minha poltro encostando o seu ombro magro ao meu. Passou um d dedos rosados sobre a minha manga e sobre os pêlos meu punho, fazendo-me  cócegas. A penugem loura d seu braço luzia como pó de ouro sob a claridade da lâmpada É complicada, mas não será um facto que todas rapariguinhas o são? -Com que então, verniz nas unhas? -A mamã dá licença, quando é cor-de-rosa. As
unhas estão mal cortadas, mas limpas. -Escovei-as. -Detesto as unhas sujas como as do Allen. -Talvez apenas detestes o Allen, talvez sintas po ele um grande desprezo. -Talvez. -Tanto melhor. Porque não o matas? -És parvo ! Fez-me cócegas atrás da orelha. Provàvelmente começava a despertar interesse nos rapazes. -Ouvi dizer que estás a trabalhar no teu ensaio. -Foi aquele nojento quem to disse? Corre-te bem? -Ah, sim. Muito bem. Hei-de dar-to a ler quan estiver pronto. -Sinto-me lisonjeado. Vejo que te vestiste a prime -Estes velhos trapos? Guardei o meu vestido n para amanhã. -Boa ideia. Hão-de lá estar rapazes. -Detesto os rapazes! Nem posso vê-los. -Eu sei. A hostilidade é a tua divisa. Eu tamb joo não gosto muito deles. Agora levanta-te, ainda quero ler rnal. Endireitou-se com um gesto sacudido como uma estrela de cinema de 1920 e logo de seguida tirou a sua desforra -Quando te decides a tornar-te rico? Sim, ela preparava-se para no futuro fazer a vida dura a algum infeliz. A minha vontade seria aplicar-lhe um bom açoite. Mas isso era o que ela desejava. Suspeitei  de que pintara os olhos. Havia tanta doçura no seu olhar como a que se pode ver nos olhos de uma pantera. -Na próxima sexta-feira-respondi. -Pois espero que te despaches. Estou farta de ser pobre. E, dizendo isto, desapareceu. Ela costuma escutar às portas. Gosto dela, o que é estranho, pois possui os defeitos que eu mais detesto... mas, no entanto, adoro-a. Não cheguei a ler o jornal. Ainda não o desdobrara quando Margie Young-Hunt chegou. Trazia tudo novo da cabeça aos pés. Mary talvez saiba como isto se consegue !  Eu não. Pela manhã, a Margie-a-quem-faltava-o-café estava à minha disposição como uma armadilha para ursos. Agora, à noite, ela visava Mary. O seu traseiro talvez estremecesse,  mas eu não vi. Se algo havia sob o seu vestido, estava invisível. Para minha mulher, ela foi a convidada perfeita - serviçal, encantadora, lisonjeira, atenciosa  e modesta. Tratou-me como se desde a manhã eu tivesse envelhecido quarenta anos. Que coisa maravilhosa é uma mulher ! Admiro tudo o que uma mulher faz, embora não  possa explicar porquê. Enquanto Margie e Mary desfiavam a sua amável litania-"Que fez aos cabelos?" <<Gosto disso." <<Essa é a sua cor, não deve usar outra."-aqueles insignificantes pormenores  próprios do sexo-, lembrei-me da história mais feminina que conheço. Duas mulheres encontram-se. Uma delas exclama: "Oh! Que aconteceu aos seus cabelos? Parecem  uma cabeleira postiça." <<Mas são mesmo." <<Ah, sim? Pois ninguém o diria." Talvez estas réplicas sejam bem mais profundas do que nós imaginamos. O jantar deu lugar a uma série de exclamações quanto
88 89 #90 à excelência do frango assado, contestadas pela afirma de que ele estava, quando muito, comestível. Ellen estudava a nossa convidada com um olhar crítico, notando cada pormenor do penteado e da maq " lage. Compreendi como elas começam desde muito novas estes exames  minuciosos, que virão a servir de base àquilo " a que mais tarde chamarão a sua intuição. Ellen evitava o meu olhar. Sabia que tinha atirado a matar, e esperava as represálias. "Muito bem, minha filhi, nha selvagem. Vingar-me-ei de uma maneira tão cruel  quc nem podes imaginar. Esquecerei." Foi um bom jantar, rico, muito abundante, aliás como deve ser quando se tem convidados. Uma profusão de pratos pouco vulgares e, para acabar, café-que nós normalmente  não tomamos. -lsso não vai impedi-la de dormir? -Nada me impede de dormir. -Nem mesmo eu? -Ethan! Depois, a guerra da louça, surda e sem quartel. -Deixe-me ajudá-la. -Nem pensar nisso. Você é a convidada. -Deixe-me ao menos levá-la. Mary cravou o olhar nas crianças e o seu pensamento atravessou-as como uma baioneta. Elas sabiam o que ia acontecer, mas estavam desarmadas. -São as crianças que se encarregam disso-disse ela. -Elas adoram fazê-lo. E fazem-no muito bem. Sinto-me orgulhosa delas. -Oh, isso é adorável ! Presentemente, é tão raro ! -Bem sei. Nós temos muita sorte em elas serem tão amigas de ajudar. Podia ler nos seus pequenos cérebros em plena acti, vidade a tentativa de conseguirem uma maneira de escapar. Iam protestar? Dizer que estavam doentes? Deixar cair  a velha e preciosa baixela? Mary também devia saber ler nos seus espíritos diabólicos, pois acrescentou: -E o mais notável é que nunca partem nada. Nem ao menos estalam um copo. -Que sorte que tem! - exclamou Margie. - Como conseguiu isso ? -Não fiz nada. São mesmo assim. Há pessoas que são desajeitadas, mas o Allen e a Ellen têm as mãos muito hábeis. Relanceei um olhar às crianças para ver como encaixavam aquilo. Estavam presas na ratoeira, e sabiam-no. Perguntavam sem dúvida a si próprias se Margie Young-Hunt  compreendera. E ainda tentaram encontrar um meio de se safarem. Então fui em sua ajuda. -Evidentemente, eles gostam de elogios-disse.Mas não devemos demorá-los. Vão chegar tarde ao cinema se não os deixamos ir. Margie teve a amabilidade de não rir e Mary lançou-me um olhar surpreendido, no qual li a admiração. Eles nem sequer tinham pedido para irem ao cinema. Mesmo quando 
os adolescentes não fazem barulho, sinto-me algo tranquilo quando saem. A volta deles a atmosfera parece estar sempre em ebulição. Logo que saíram, a casa pareceu  suspirar de alívio. Não admira que os fantasmas turbulentos só assombrem as casas onde existem adolescentes. Cada um de nós fazia um círculo à volta do assunto que todos sabíamos latente. Abri a garrafeira e peguei em três copos de pé alto em forma de flor-de-lis, vindos  de Inglaterra só Deus sabe quando. Enchi-os com o conteúdo de uma botija coberta de palha entrançada e desbotada pelo tempo. -Rum da Jamaica-disse eu.-Os Hawley eram homens do mar. -Deve ser muito velho-disse Margie Young-Hunt. -Mais velho que você, ou eu, ou mesmo que o meu pai. -Vai subir-lhe à cabeça -disse Mary.-O Ethan não lhe toca senão em casamentos ou funerais. Achas bem, querido? Logo na véspera da Páscoa? -A missa não se celebra com Coca-Cola, meu amor. -Mary, nunca tinha visto o seu marido tão alegre. -Foi a fortuna que você lhe profetizou-respondeu Mary.-Durante a noite isso transformou-o. Que coisa aterradora é o ser humano, um bloco feito de indicadores e registos que não se podem ler senão em parte e superficialmente. Uma dor súbita, atroz como  a queimadura de um ferro em brasa, subiu-me das entranhas, percorreu-me todo o corpo e acabou por fixar-se nas costelas. 9r #92 Um vento furioso soprou-me às orelhas e sacudiu~ como um navio desmantelado, os mastros partidos ante,: de se poder arriar as velas. Foi como uma advertência um  sinal de perigo, um grito de destruição. Esta tortura assaltou-me no momento em que passei entre as duas mulheres e vergou-me numa indizível agonia. Depois desapareceu  tão súbitamente como viera. Endireitei-me e recomecei a andar. Nem chegaram a notá-lo. Compreendo como outrora as pessoas acreditavam ser possuídas pelo Demónio.  Eu próprio não estou seguro de o não acreditar. Possesso ! Cada nervo resistindo ao nascimento de uma coisa estranha e depois a batalha perdida, recuando, -se para  fazer a paz com o invasor. Violação-eis a palavra exacta, se puderem imaginar uma palavra envolvida num fogo azul como o de uma lança-chamas. A voz da minha querida chegou até mim. -Nunca faz mal ouvir coisas agradáveis-disse ela. Experimentei a minha voz, e ela soou clara e forte. -Uma pequena esperança, mesmo uma esperança; sem esperança, não prejudica ninguém-disse eu. Tornei a guardar a garrafa, voltei a sentar-me, esvaziei metade do copo de velho rum perfumado, cruzei as pernas e pus as mãos sobre os joelhos. -Não o compreendo-disse Mary.-Ele sempre detestou ouvir falar em sortes de cartas. Até troçava. Não, não o compreendo. A extremidade dos meus nervos rangia como a erva enregelada pelo vento do Inverno e os meus dedos entrelaçados tornaram-se brancos com a pressão. -Vou tentar explicar isso a Mrs. Young, à Margio -disse eu. -Mary provém de uma família irlandesa nobre, mas pobre.
-Não éramos assim tão pobres. -Não o sente na sua maneira de falar? -Sim, agora que você o fez notar. -A avó de Mary, uma santa-ou que merecia sê-lo-, era boa cristã, não é verdade, querida?-Pareceu-me que uma ligeira hostilidade crescia nela. Mas prossegui:No entanto,  não tinha qualquer relutância em acreditar" em fadas, se bem que, segundo a rigorosa e inflexível lei cristã, estas duas crenças sejam incompatíveis. -Mas isso é diferente. -Decerto, querida. Mas a diferença é pequena. Pode alguém recusar-se a crer naquilo que não conhece? -Tome cautela-disse Mary.-Ele vai tentar prendê-la na teia das suas comparações. -Não é bem isso. Ignoro tudo quanto respeita a sinas e à maneira de as ler. Por que motivo não havia de acreditar nelas? Admito a sua existência, uma vez que se  manifestam. -Mas não crês que isso seja verdade? -O que é verdade é que muitas pessoas desejam conhecer a sua sorte-milhões de pessoas-, e pagam para isso. Basta sabê-lo para se ficar também interessado, não é? -Mas tu não... -Espera! Não se trata daquilo em que não acredito, mas sim do que eu não conheço. Não é a mesma coisa. Nem sei o que tem mais importância-se a fortuna ou a previsão  da fortuna. -Creio saber o que ele quer dizer. -De facto?-Mary estava satisfeita. -Ele crê que quem lê as cartas é sensível a respeito do que está para acontecer. É essa a sua ideia? -E diferente. Como poderiam as cartas sabê-lo? -As cartas não podem mover-se sem que alguém as volte-disse eu. Margie não olhou para mim, mas eu sabia que ela notava o mal-estar que crescia em Mary e desejava  instruções. -Não poderíamos fazer uma experiência?-perguntei. -Bem, é curioso. Estas coisas parecem ressentir-se com as experiências e não resultar, mas não se perde nada se tentarmos. Que propõe? -Não tocaram no vosso rum. Elas ergueram os copos ao mesmo tempo, esvaziaram-nos e tornaram a pousá-los. Eu acabei o meu e fui buscar a garrafa. -Ethan, pensas que deves? -Sim, querida.-Enchi de novo o copo.-Porque não póde você voltar as cartas com os olhos vendados? -E preciso poder lê-las. -Que aconteceria se Mary ou eu as voltássemos e você as lesse ? -Supõe-se que existe uma espécie de interligação 93 #94 entre as cartas e quem as lê, mas não sei... podemos ex,, perimentar. -Se vamos deitar as cartas, é preciso, em minha opinião, que o façamos de acordo com as regras-disse Mary.
Mary foi sempre assim, nunca gostou de alteraçõesde pequenas mudanças, quero dizer. Quanto às grandes, adapta-se melhor que ninguém. Perde as estribeiras à vista  de um dedo esfolado, mas conserva o sangue-frio à vista de uma garganta cortada. Tive uma sensação de mal-estar, pois contara a Mary a discussão que tínhamos tido  e, no entanto, parecia que falávamos disso pela primeira vez. -Nós falámos disso esta manhã. -Sim, quando eu fui buscar o café. Pensei nisso todo o dia. E trouxe as cartas. Mary tem uma certa tendência para confundir a atenção concentrada com a cólera e a cólera com a violência. E a violência aterroriza-a. Deve este medo a um certo  tio alcoólico, o que é uma vergonha. Eu podia sentir o seu terror aumentar. -Deixemos estas tolices-disse eu.-Façamos antes um jogo qualquer. Margie viu a táctica. Ela conhecia-a e provàvelmente também a usava. -Por mim, estou de acordo. -A minha sina está lida. Estou destinado à riqueza. Deixemos isso. -Como vê, eu bem dizia que ele não acreditava. Enreda-a nas suas conclusões e depois muda de assunto. Às vezes quase dá comigo em doida. -Ah, sim? Nunca o deste a entender. Mas continuas sempre a ser a minha mulherzinha querida. E estranho como por vezes temos a percepção de correntes e contracorrentes. Nem sempre, mas a maior parte das vezes Mary não usa a inteligência para reflectir e  talvez seja isso que a torna mais receptiva às impressões. A tensão cada vez aumentava mais. Fugazmente, passou-me pela mente a ideia de que Mary deixara de ser  a melhor amiga de Margie e que nunca mais se sentiria à vontade junto dela. -Sinceramente, gostava de saber tudo quanto diz respeito às cartas-disse eu.-Sou ignorante nessa matéria. Sempre ouvi dizer que as ciganas são peritas no assunto. Você é cigana? Parece-me que nunca vi nenhuma. -O seu nome de solteira é russo, mas ela é do Alasca disse Mary. Isso explicava os seus malares salientes. -Mary, tenho um segredo terrível, de que nunca lhe falei-disse Margie.-A explicação da nossa presença no Alasca -Nós comprámo-lo aos Russos, que eram os donos -disse eu. -Sim, mas sabem que era um degredo, como a Sibéria, para os crimes mais graves? -Que espécie de crimes? -Os piores de todos. A minha bisavó foi exilada para o Alasca por feitiçaria. -Que fazia ela? -Desencadeava tempestades. Comecei a rir. -Vejo que você aprendeu isso com toda a naturalidade. -A desencadear tempestades? -A ler as cartas... que é talvez a mesma coisa. -Está a brincar. Isso não é verdadedisse  Mary. -Talvez esteja a brincar, Mary, mas é verdade Esse era o crime mais grave. Pior que o assassínio. Conservei os documentos dela... mas, claro, estão escritos em russo. -Fala russo?
-Agora, só um pouco. -Talvez que a feitiçaria continue a ser o pior dos cri mes-disse eu. -Que lhe tinha eu dito? Ele passa o tempo a saltar de um lado para o outro. Nunca se pode saber o que pensa. A noite passada... levantou-se antes da madrugada è foi passear. -Sou um canalha, um patife incorrigível e incurá vel-disse eu. -Gostaria que a Margie deitasse as cartas, mas à sua maneira, sem que tu interfiras. Se continuamos a falar, as crianças voltam e já não podemos fazer nada. -Queiram desculpar-me por um momento-disse eu. Subi ao nosso quarto. A espada estava em cima da cama e a chapeleira aberta no chão. Entrei na casa de banho, molhei uma toalha com água fria e passei-a pela 95 testa, sobretudo pelos olhos, que pareciam querer sair-mdt das órbitas. A água fria fez-me bem. Depois dirigi-me aô quarto, tirei o chapéu de plumas de cavaleiro  do Templo da caixa, pu-lo na cabeça e desci as escadas. -Oh, és doido-disse Mary. Parecia feliz e aliviada. O ambiente estava agora mais leve. -Pode-se branquear as plumas de avestruz?-perguntei. -Estas amareleceram. -Creio que sim. Pergunta a Mr. Schultz. -Levar-lhas-ei na segunda-feira. -Gostaria que a Margie deitasse as cartas-disse Mary.-Tenho a certeza de que ficaria encantada. Coloquei o chapéu em cima da bola do corrimão da escada. Parecia um almirante bêbado, se acaso já houve algum. -Traz a mesa de jogo, Eth. Isto precisa de muito espaço. Tirei-a do armário embutido na parede e armei-a. -A Margie precisa de uma cadeira de espaldar. Fui buscar uma à casa de jantar. -Temos alguma coisa a fazer? Concentrem-se  -respondeu Margie. -Em quê? -Tanto quanto possível, em nada. As cartas estão na minha carteira, sobre o canapé. Sempre imaginara as cartas de uma cartomante com um aspecto gorduroso e sujo, mas estas eram limpas, luzidias, como que envolvidas em matéria plástica. Eram mais  compridas e estreitas que as de jogar e eram mais de cinquenta e duas. Margie sentou-se diante da mesa, muito direita, e pô-las em leque-figuras de cores vivas e  difíceis de identificar. Os nomes estavam escritos em francês: Pempereur, Permite, le charriot, la justice, le mât, le diable-Terra, Sol, Lua, estrelas, vários naipes de espadas, copas,  paus e ouros-talvez dinheiro, se denier quer dizer dinheiro-, e cada naipe tinha o seu roi, a sua reine e o seu chevalier. Havia também cartas estranhas, perturbantes-uma  torre atingida pelo raio, uma roda da fortuna, um homem suspenso pelos pés numa forca-le pendu-e um esqueleto armado de uma foice-la mort. -É bastante macabro-notei.-Estas figuras significam exactamente o que representam? -Tudo depende da sua posição. Se estiverem invertidas, a sua significação será contrária à que geralmente
lhes. cabe. -Há variantes no seu significado? -Sim. Isso constitui a interpretação. De cartas na mão, Margie assumira um ar solene. Sob a luz, as mãos confirmavam o que eu já adivinhara: ela era mais velha do que parecia. -Onde aprendeu isso?-perguntei. -Vi minha avó fazê-lo e, mais tarde, apliquei o seu método, servindo-me dele nalgumas reuniões. Uma maneira como outra qualquer de me tornar notada. -Você acredita nas cartas? -Não sei. Por vezes, há coisas surpreendentes... Não sei. -A leitura das cartas será uma concentração ritual... um exercício psíquico? -Por vezes estou tentada a acreditá-lo. Sempre que atribuo a uma carta um valor novo, em geral acerto. As suas mãos pareciam animadas de uma vida extraordinária enquanto baralhavam e tornavam a baralhar as cartas. Por fim deu-mas, para que cortasse. -Que querem que eu faça? -Leia o futuro de Ethan-gritou Mary.-Vejamos se condiz com o que vimos ontem. Margie olhou-me. -Cabelos louros, olhos azuis - murmurou. - Tem menos de quarenta anos? -Justamente. -O rei de paus.-Ela tinha-o na mão.-É você. . A gravura mostrava um rei coroado, envolvido num manto, tendo na mão um enorme ceptro azul e vermelho e as palavras Roi de Bâton escritas por baixo. Pousou-o e tornou  a baralhar. Depois começou a voltar as cartas ràpidamente, salmodiando em voz baixa à medida que o fazia. Colocou uma em cima da minha-esta cobre-te-, outra atravessada-esta  cruza-te-, uma mais acimaesta coroa-te-, outra mais abaixo-, esta é a tua base. Tinha formado assim uma cruz de cartas sobre a mesa. 96 97 Então, vivamente, virou quatro cartas, pondo-as em à esquerda da cruz. -Você, a sua casa, as suas esperanças, o seu futuro. Esta última era a do homem suspenso de cabeça para baixo, o enforcado. Mas do meu lugar via-o de pé., -Que grande futuro o meu. -Pode significar a salvação-disse ela, seguindo com o dedo o contorno do seu lábio inferior. -Existe dinheiro aí?-perguntou Mary. -Sim... existe-respondeu Margie com ar absorto. Bruscamente, reuniu todas as cartas, baralhou-as e dispô-las de novo, murmurando sempre as suas fórmulas rituais. Não parecia estudar as cartas uma a uma, mas sim  vê-las em conjunto. O olhar era vago e longínquo. "Um bom truque", pensava eu, "notável num clube feminino... ou em qualquer outro sítio." Era assim que as pitonisas deviam parecer : frias, calmas, perturbantes.  Se se consegue conservar durante muito tempo as pessoas; inquietas, mal respirando, elas aceitarão tudo quanto se queira. Esta mulher malbaratava o seu talento com  caixeiros viajantes. Mas que pretendia de nós, ou de mim?
De repente, recolheu as cartas, bateu-as umas em cima das outras e meteu-as na caixa vermelha, onde se lia: I, Afuller & Cie, Fabrique de Cartes. -Não posso continuar-disse ela._ Às vezes isto sucede. -Viu alguma coisa que não quer dizer?-perguntou Mary, sufocada. -Oh, posso contar-lhes tudo. Um dia, quando era pequena, vi uma cobra mudar de pele, uma cobra cascavel das Montanhas Rochosas. Segui toda a operação. Pois bem,  há pouco as cartas desapareceram e vi no seu lugar a serpente mudando de pele - uma parte poeirenta e estragada e outra fresca e nova. Estão a ver? -Certamente estava em transe-disse eu.-lsso já antes lhe tinha sucedido? -Três vezes. -E significou alguma coisa? -Que eu saiba, não. -Sempre a serpente? -Oh, não. Outras coisas, mas igualmente disparatadas. -Pode tratar-se de um símbolo de mudança de for tuna que Ethan vai experimentar!-exclamou Mary, entu siasmada. -Ele é uma cobra cascavel? -Oh! Já vejo o que quer dizer. -Fico toda arrepiada-disse Margie.-Durante muito tempo, gostei de cobras. Depois que cresci, passei a odiá-las. Apavoram-me. São horas de partir. -Ethan vai acompanhá-la a casa. -Nem pensar. -Teria muito prazer nisso. Margie sorriu a Mary. -Deixe-o ficar consigo - disse ela. - Você não pode imaginar o que é estar-se só na vida. -lsso é ridículo! - retorquiu Mary. - Para arranjar marido, bastava-lhe levantar um só dedo. -Foi o que já fiz. Mas não deu resultado. Quando os arranjamos fàcilmente, não têm nenhum valor. Guarde-o em casa, alguém pode deitar-lhe a mão. À medida que falava, ia vestindo o casaco. Que pressa de se ir embora ! -O jantar foi delicioso. Espero que voltem a convi dar-me. Quanto às cartas, lamento, Ethan. -Ver-nos-emos amanhã na igreja? -Não. Parto esta noite para Montauk. -Mas faz muito frio e humidade. -Gosto de ver nascer o Sol sobre o mar, lá. Boa noite. Saiu antes de eu ter tido tempo de ir abrir-lhe a porta. Parecia fugir de qualquer coisa. -Não sabia que ela ia para lá esta noite-disse Mary. E eu não pude responder-lhe: "Ela também não sabia." -Ethan... que pensas da revelação desta noite? -Não houve  revelação. -Tu esqueces... ela disse que havia dinheiro. Mas que pensas tu disso? Tenho a impressão de que viu algo que não quis revelar-nos. Algo que lhe meteu medo. -Talvez a serpente que viu outrora lhe tenha ficado no espírito.
-Não crês que... que isso signifique alguma coisa? -Meu pãozinho com mel, tu é que és perita em sortes e fortunas. Que sei eu disso ? -Enfim, de qualquer maneira, sinto-me feliz porque tu não a detestas. Cheguei a recear isso. 98 99 -Sou astucioso-disse eu.-E sei dissimular os mete, pensamentos. -Não para comigo. Elas terão ficado para assistir à segunda sessão? -Quem? -As crianças. Fazem-no sempre. Foste formidável quanto à questão da louça. -Sou tortuoso. E, quando posso, velo pelo teu prestígio.
100 Capítulo VI
 
Por hábito, sempre deixei para amanhã o tomar uma decisão. Então, quando um dia disponho de tempo suficiente para estudar o problema, encontro-o já completo, resolvido.  Isto deve acontecer a toda a gente, mas não tenho maneira de confirmá-lo. Pode supor-se que nas caves sombrias e ignoradas do espírito um júri composto de seres  sem rosto reúne para deliberar. Essa região secreta que nunca dorme, represento-a como uma extensão de água profunda, negra, lisa, cuja superfície apenas é aflorada  por algumas sombras. Também pode tratar-se de uma grande biblioteca onde estariam catalogados todos os acontecimentos relacionados com a vida desde que nascemos. Creio que certas pessoas têm mais acesso a tais lugares que outras. Os poetas, por exemplo. Um dia, munido de uma ordem de marcha e não tendo comigo um despertador,  idealizei um sistema que me permitiu emitir um sinal e receber a resposta. Deitado na minha cama, imaginei-me junto às margens daquela água negra de que falei. Tomei  entre os dedos uma pedra branca, redonda. Nela, em letras muito negras, escrevi (<4 horas" e lancei-a à água, vendo-a mergulhar, desaparecer. Pois isso deu resultado.  Acordei às quatro horas exactas. Mais tarde, servindo-me do mesmo método, pude acordar às quatro
101 menos dez minutos ou às quatro e um quarto. E estas experiências nunca falharam. Mas às vezes acontecia que uma coisa estranha, horrenda, fendia a superfície da água como se fosse uma serpente do mar ou um dragão saído das profundezas. Há apenas um ano, Dennis, o irmão de Mary, morreu na nossa casa de uma maneira atroz. Uma infecção das tiróides injectou nele como que os extractos do medo, da violência  e da crueldade. O seu rosto amável e comprido de irlandês tomou uma expressão bestial. Eu ajudava a deitá-lo, a acalmá-lo e a sossegá-lo depois dos seus sonhos macabros.  Isso durou uma semana, durante a qual os seus pulmões se ingurgitaram. Não quis que Mary o visse morrer. Nunca vira a morte, e esta teria obliterado a imagem que  ela guardava do homem amável que tinha sido o irmão. Um dia, em que, sentado junto ao leito, eu velava o doente, um monstro surgiu da minha água negra. Fui tomado  do desejo de matar Dennis, de o degolar com os dentes. Os músculos das minhas mandíbulas contraíram-se e senti os lábios arrepiarem-se como os de um lobo prestes  a matar. Quando tudo acabou, angustiado e com o sentimento de culpa, confessei-me ao médico que assinou a certidão de óbito, o velho Dr. Peele. -Creio que isso é frequente-disse ele.-Tenho-o lido em muitas caras. Mas poucas pessoas o confessam. -Qual é a causa? Eu gostava dele. -Uma reminiscência ancestral, talvez. Um retorno à época em que um ferido ou um doente eram um perigo para a tribo. Certos animais e a maior parte dos peixes dilaceram  e devoram um irmão enfraquecido. -Mas eu não sou um animal... nem um peixe. -Pois não. E por isso esse sentimento lhe parece estranho. O Dr. Peele é um bom velhote. Está fatigado. Há já cinquenta anos que assiste ao nascimento e à morte. Voltando a falar daquele congresso que reúne nas regiões ignoradas do espírito, penso que ele deve fazer horas extraordinárias. Acontece que um homem nos parece  ter mudado completamente. Diz-se dele : " Não pode fazer isso. É contrário ao seu carácter." Talvez não seja. Talvez o ângulo sob o qual se apresenta agora seja  dife rente ou então pode suceder que pressões interiores ou exteriores o tenham modificado. Em tempo de guerra, os exemplos abundam-um cobarde pode transformar-se em  herói e um bravo perder toda a coragem. Os jornais falam de bons pais de família que a golpes de machado matam a mulher e os filhos. Em minha opinião, um homem modifica-se  constantemente. Mas há um determinado momento no qual estas alterações se tornam visíveis. Se eu quisesse pesquisar profundamente, poderia encontrar as causas da minha evolução desde a época do meu nascimento, ou mesmo antes. Recentemente, várias pequenas coisas começaram a esboçar o desenvolvimento de questões mais importantes. Tudo leva a crer que acontecimentos e factos novos me vão 
atirar numa direcção contrária ao caminho normal ou, pelo menos, àquele que eu até aqui considerava nornal-a minha vida de caixeiro de mercearia, de falhado, de  homem sem esperanças, sem impulsos, tolhido pela responsabilidade dos ventres a encher, dos corpos a vestir, prisioneiro de atitudes que eu julgava morais, virtuosas  mesmo, e deste desejo que tinha de ser aquilo a que chamo cum homem de bem". Sabia perfeitamente o que se passava à minha volta. O Marullo não precisava de mo dizer. Não se habita uma cidade do tamanho de New Baytown sem estar ao corrente  da sua vida íntima. Nunca dei a isso muita atenção. O juiz Dorcas vendia os seus favores segundo uma tabela. O presidente da Câmara, que o era também da Budd Building  Supplies (materiais de construção e empreitadas públicas), vendia à cidade, por altos preços, material de que ela nem sempre tinha necessidade. Se se abria uma nova  rua, acontecia habitualmente que Baker, Marullo e uma meia dúzia de outros homens de negócios já tinham adquirido os terrenos antes da publicação do plano. Tais  factos eram naturais para toda a gente, mas eu continuava convencido de que o não eram para mim. Marullo, Baker, o caixeiro viajante, Margie Young-Hunt e Joey Murphy,  todos juntos, haviam-me dado, porém, tão grande safanão, que não me deixaram tempo para reflectir. A minha querida respirava e sorria no seu sono, nimbada por aquela expressão de bem-estar e de calma satisfação que sucede aos prazeres do amor. 102 103 #ro¢ Depois do passeio da noite anterior, eu deveria ter sono. Mas não. Sempre que sei que posso levantar-me tarde, não tenho pressa de dormir. Os pontos vermelhos turbilhonavam diante dos meus olhos e as luzes da rua projectavam no tecto a sombra móvel dos ramos nus dos olmos agitados pelo vento da Primavera.  As janelas estavam entreabertas e as cortinas brancas inchavam como o velame de um navio. Mary gosta de cortinas brancas e lava-as com frequência. Proporcionam-lhe  um sentimento de decência e de segurança. Finge que se zanga quando eu lhe digo que se trata da sua tendência ancestral para as rendas da Irlanda. Sentia-me também satisfeito, mas, ao contrário de Mary, não sentia o desejo de dormir. Desejava gozar inteiramente a minha boa disposição. Queria pensar nos ensaios  a que se dedicavam os meus filhos, mas também precisava de estudar o que me estava acontecendo e qual a decisão a tomar. Bem entendido, escolhi para começar a primeira  parte do programa e cheguei à conclusão de que o sombrio júri das profundezas já tinha deliberado de maneira irrevogável. Sucedia como num treino, quando, calçados  com sapatos de pregos, esperamos a partida de uma corrida. Então a escolha já não existe. Arranca-se quando se ouve o tiro da pistola. Eu estava pronto, e só esperava  o sinal. E, segundo tudo o indicava, fui o último a notá-lo. Durante o dia todos repararam no meu bom aspecto, significando isso que eu mudara, adquirira mais confiança  em mim próprio. A tarde, um abalo sacudira o caixeiro viajante. O Marullo perturbarase ao examinar-me. Joey pensou que devia pedir-me desculpa de uma falta que 
só eu cometera. Depois Margie Young-Hunt... Talvez fosse ela, sem dúvida, que se mostrara mais subtil com a sua visão da cobra cascavel. Descobrira em mim uma certeza  antes que eu dela tivesse consciência. E a cobra cascavel era o símbolo. Sorri na obscuridade. Derrotada, usara um velho truque -a ameaça de infidelidade, um engodo  deitado na praia-mar para ver como os peixes o comem. Eu esquecera o murmúrio secreto do seu corpo escondido, ficando-me sòmente a imagem das suas mãos, garras que  confessavam a idade, o nervosismo e até a crueldade que invadem aquele que perdeu o domínio de uma situação. Desejaria conhecer a natureza dos pensamentos noc turnos. Eles são parentes próximos do sonho. Às vezes, consigo dirigi-los, mas, noutras ocasiões, tomam a iniciativa e atiram-se a mim como cavalos selvagens. Danny Taylor apareceu-me. Não queria pensar nele para evitar entristecer, mas, apesar disso, ele veio. Tive de utilizar uma manha, aprendida com um velho sargento.  Foi durante a guerra, em que o tempo compreendido por determinados dois dias consecutivos e pela noite intermédia formara uma unidade de horror como tantas outras  de que se compôs aquela porcaria. Naquela altura não estou certo de ter tido verdadeira consciência disso. Estava demasiado ocupado e incrivelmente esgotado. Mas,  depois, aquele dia, aquela noite e ainda o outro dia, vieram assaltar os meus sonos até pôr-me num estado de loucura que se chama a fadiga das batalhas e não é mais  que um esgotamento nervoso. Usava todos os meios possíveis para tentar esquecer. Mas aquilo voltava sempre. Esboçando-se durante o dia, atacava-me na escuridão.  Um dia, tornado sentimental pelo whisky, confiei-me ao meu sargento-mor, um velho que tinha entrado em guerras das quais até já tínhamos esquecido a existência.  Se usasse as condecorações, não ficaria sequer espaço para um botão. Era um polaco de Chicago, chamado Mike Pulaski, mas não tinha qualquer parentesco com o herói  do mesmo nome. Por sorte, ele estava razoàvelmente embriagado, pois, de contrário, nunca confraternizaria com um oficial. Mike escutou-me, fitando-me nos olhos. -Olá!-disse.-Eu sei o que isso é. A pessoa procura esquecer, mas não dá resultado. O que tem a fazer é, pelo contrário, acolher com amabilidade os pensamentos desagradáveis. -Que diz você, Mike? -Lembre-se de tudo quanto possa, do princípio até ao fim. De cada vez que isso chegue, faça a mesma coisa, sem nada omitir. Depressa tudo se gasta, desaparecendo  aos bocados, até nada ficar. Experimentei, e deu resultado. Logo que Danny Taylor invadiu os meus pensamentos, apliquei-lhe o tratamento do sargento-mor Mike. Quando éramos crianças da mesma idade, do mesmo peso e da mesma altura, tínhamos o hábito de ir juntos ao armazém de cereais e forragens de High Street para ro5
nos pesarmos. Se um dia eu pesava mais meio quilo que Danny, na semana seguinte ele alcançava-me. Pescávamos, caçávamos e nadávamos juntos e saíamos com as mesmas  raparigas. A família de Danny, como a maior parte das velhas famílias de New Baytown, estava bem estabelecida. Os Taylor habitavam uma grande casa branca, com altas  colunas caneladas, em Porlock Street. Outrora, possuíam também uma vivenda a cerca de quatro quilómetros da cidade. O campo à nossa volta é constituído por colinas arborizadas : pinheiros raquíticos, grupos de carvalhos, nogueiras e alguns cedros. Antigamente, muito antes do meu  nascimento, os carvalhos eram gigantes. Tão grossos que os navios construídos no estaleiro local tiravam dali as suas quilhas e todo o seu cavername, pois a distância  entre as colinas e o estaleiro era pequena. E isso contribuiu muito para o desaparecimento total daquelas árvores. A vivenda dos Taylor estava edificada no centro  de um vasto prado, único lugar plano desta região, toda ela de colinas. Devia tratar-se do fundo de um antigo lago, pois a superfície era lisa como a de uma mesa,  e as colinas, com um suave pendor, cercavam-no completamente. Incendiada há sessenta anos, a vivenda nunca tinha sido reconstruída. Crianças, Danny -        eu íamos ali de bicicleta. Brincávamos na velha cave - com os tijolos das antigas fundações construímos uma cabana de caça. Os jardins deviam ter sido maravilhosos. Podiam ver-se ainda as avenidas bordadas de árvores  e a indicação dos maciços e das sebes por entre a invasão da floresta renascente. Aqui e acolá, descobriam-se vestígios de uma balaustrada de pedra. Um dia encontrámos  um busto do deus Pá sobre um pedestal em forma de pirâmide. Caído de cabeça para baixo, os cornos e a barba estavam enterrados na terra arenosa. Levantámo-lo, limpámo-lo  e rendemos-lhe homenagem durante algum tempo. Mas a cupidez e a atracção das raparigas acabaram por levar a melhor. Transportámo-lo a Floodhampton, onde - ferro-velho o comprou por cinco dólares. Devia ser uma bela peça, única talvez. Danny e eu éramos amigos como todos os rapazes devem sê-lo. A sua ida para a Academia Naval veio mudai tudo. Vi-o uma vez em uniforme, e depois nunca mais, durante  anos. New Baytown era e continua a ser uma cidade hermética. Todos sabiam da demissão de Danny e nin guém a discutia. Os Taylor extinguiram-se exactamente como os Hawley. Eu sou o único descendente e, é claro, - meu filho Allen. Danny não reapareceu antes da morte de todos os seus. E quando voltou era um bêbado. Tentei ajudá-lo, mas nada quis de mim, nem de ninguém. Apesar  disso, nós estamos próximos-muito próximos. Passei em revista tudo aquilo de que podia lembrar-me até à manhã em que lhe dei um dólar para que conseguisse um esquecimento momentâneo. A estrutura da minha mudança era feita de sensações, de pressões exteriores: os votos de Mary, os desejos de Allen, a cólera de Ellen, o auxílio de Mr. Baker. Mas 
quando a acção está preparada, montada, os pensamentos devem colocar um telhado sobre o edifício, fazendo parte desse telhado as palavras de justificação e de explicação.  Suponhamos que as minhas humildes e intermináveis funções de caixeiro não eram uma prova de virtude, mas sim de preguiça moral? O sucesso exige coragem. Talvez eu  não fosse mais que um tímido amedrontado diante das possíveis consequências... Numa palavra: um preguiçoso. O êxito comercial na nossa cidade não é complicado nem obscuro. Também não é sensacional. Os seus responsáveis souberam impor limites artificiais às suas actividades.  Os seus crimes são pequenos e os seus êxitos medíocres. Se os métodos de administração municipal e comercial de New Baytown fossem estudados com cuidado, descobrir-se-ia  a violação de cem regras legais e de mil regras morais. Mas não são mais que infracções menores, roubos insignificantes. Ignoram uma parte do Decálogo e observam -        resto. E, logo que um destes respeitáveis cidadãos obtém - que queria ou aquilo de que tinha necessidade, volta às suas virtudes com a mesma facilidade com que muda de camisa. E, como toda a gente pode verificar, não sofre  qualquer prejuízo com as suas faltas, pois não é agarrado. Algum deles pensa que o possa vir a ser? Não o sei! Se os pequenos delitos são perdoados, que acontecerá  com um grande crime, rápido e brutal? O assassínio praticado de maneira lenta e suave é preferível à misericordiosa facada? Não me sinto culpado de ter morto alguns  alemães. Durante um certo período, aboli todas as regras. Uma vez o fim atingido, não foram elas reencontradas? O comércio é uma espécie de guerra. Não há dúvidas
 
 
zo7 zo6 a tal respeito. Mr. Baker e os seus amigos não atiraram sobre o meu pai. Limitaram-se a aconselhá-lo e, quando se arruinou, herdaram-lhe os haveres. Não será isto  uma espécie de assassínio? De entre as grandes fortunas que admiramos, haverá alguma que nada deva à crueldade? Se há, eu não a conheço. É certo que tenho cicatrizes morais motivadas pelo desprezo de todas as regras durante a guerra. Mas serão piores que aquelas que a minha falência produziu? Afinal,  não é possível viver sem estar marcado. Que valem todas estas dúvidas e hesitações? São como cataventos colocados no cume do edifício da agitação e do descontentamento. A empresa podia ser realizada, visto  que outros a levaram a cabo. Mas, se eu abrisse aquela porta, poderia tornar a fechála? Ignoro-o. Só o saberei depois de a abrir. Mr. Baker tê-lo-ia sabido? O velho  capitão desconfiava de que os Baker tinham queimado o Belle Adair para receber o seguro. Seria por esta razão ou por" causa do infortúnio de meu pai que Baker quer  ajudar-me? Serão estas as suas cicatrizes? Não fará tudo isto lembrar um grande navio cercado de uma quantidade de pequenos rebocadores que o puxam,
- empurram, o rebocam, o viram, ajudados pela maré? Quando desencalhar, é necessário aproar a um novo rumo - voltar a pôr as máquinas a funcionar. Na ponte, onde se encontra o piloto-o cérebro, põe-se o seguinte problema: "Eu sei para onde vou, mas como conseguirei ir?  Onde estão os recifes que me espreitam e como estará o tempo? De todos os escolhos, um podia ser mortal: a tagarelice. Quantos se traem, se afundam, quanto mais não seda por simples vaidade,_pela amarga vaidade da expiação?  O poço de Andersen! E o único confidente seguro. O poço de Andersen ! Chamei à fala o velho capitão: "Devo fixar o rumo, comandante? Estarei seguro da boa rota? Conduzir-me-á ela ao porto ?" E pela primeira vez ele me delegou o comando: "Vê isso
 
por ti próprio e decide sòzinho. O que é bom para uns é mau
 
para outros e sòmente depois é que saberás se fizeste bem."
 
O velho maroto poderia ter vindo em meu auxílio,
 
mas talvez isso nada adiantasse: afinal, nestes casos não
 
se pede um conselho, busca-se apenas uma aprovação.
108 Capítulo VII
 
Quando acordei, Mary, a dorminhoca, já se levantara - havia descido. O belo odor do café e do presunto subia até mim. Não se poderia encontrar melhor dia para uma ressurreição: um dia azul, verde e amarelo. Da janela  podia ver como tudo renascia: a erva e as árvores. Não há dúvida de que se escolheu para a Ressurreição a melhor época. Vesti o roupão - presente de Natal - e calcei  as pantufas-presente de aniversário. Na casa de banho pus um pouco de fixador do Allen e os meus cabelos escovados -        penteados colaram-se-me ao crânio como um boné. O pequeno almoço da Páscoa é uma orgia de ovos, frituras e presunto. Aproximei-me de Mary e dei-lhe uma palmada nas nádegas cobertas de seda. -Kyrie eleison! -Oh! Não te senti chegar.-Olhou o meu roupão. -É bonito-disse.-Não o vestes muitas vezes. -Não tenho tempo para isso. -Pois olha que é bonito. -Tem de ser. Se foste tu que o escolheste. As crianças dormem, mesmo com estes cheiros deliciosos? -Não. Saíram a esconder os ovos. Que desejará Mr. Baker? A sua facilidade em saltar de um assunto para outro nunca me surpreendia.
 
 
109 -Mr. Baker? Mr. Baker? Talvez queira ajudar-me a começar a minha fortuna. -Falaste-lhe das cartas? -Claro que não, minha querida. Mas pode ter adivinhado. Diz-me uma coisa: acreditas que eu tenha cérebro de grande homem de negócios? -Que queres dizer? Ela parou no momento em que ia virar uma filhó. -O Baker é de opinião que eu empregue o que herdaste de teu irmão. -Pois bem, se Mr. Baker... -Espera! Eu não quero. Esse dinheiro pertence-te. É a tua segurança. -Mas, querido, Mr. Baker não sabe mais disso que tu ? -Não estou bem seguro. O que sei é que o meu pai acreditou no mesmo e é essa a razão por que trabalho agora para o Marullo. -Entretanto, penso que Mr. Baker... -Aceitas que eu te guie, querida? Evidentemente!... -Em tudo? -Estás a brincar? -Falo a sério, muito a sério. -Está bem. Mas tu não podes duvidar de Mr. Baker, pois ele é... ele é... -Ele é Mr. Baker. Ouviremos o que ele tem a dizer, e depois... deixarei o dinheiro no seu lugar no banco. Allen irrompeu pela porta do jardim como se fosse lançado por uma funda. - Mr. Marullo está lá fora. -O quê?-disse Mary.
-Manda-o entrar. -Já mandei, mas ele quer falar contigo lá fora. -Ethan, que é isso? Tu não podes sair em roupão no Domingo de Páscoa. -Allen -intervim eu-, vai dizer a Mr. Marullo que não estou vestido. Que venha mais tarde, ou, se está com pressa, que entre pela porta da frente se quer estar a  sós comigo. Allen partiu com a velocidade de um raio. -Não sei o que ele quer. Talvez tenham assaltado a loja. Allen regressou como uma bala. -Ele foi dar a volta. -Não o deixes estragar o nosso pequeno almoço. Estás a ouvir, querido? Atravessei a casa para abrir a porta de entrada. O Marullo estava no patamar, vestido a primor para a missa de Páscoa. Todo de preto, com a barriga atravessada por  uma grossa corrente de ouro. De chapéu preto na mão, sorriu-me com nervosismo. -Entre-convidei eu. -Não. Tenho só uma palavra a dizer-te. Parece que aquele tipo te ofereceu uma luvas. -Ofereceu, sim. -Parece também que recusaste. -Quem lho disse? -Não posso dizer.-Sorriu de novo. -Então? Está a dar-me a entender que devia ter aceitado ? Marullo avançou e apertou-me a mão, sacudindo-a cerimoniosamente de cima para baixo. -Tu és bom rapaz-disse ele. -Talvez ele não me tenha oferecido o suficiente ! -Estás a brincar? Tu és bom rapaz. Mais nada. És um bom rapaz. Vasculhou a vasta algibeira e tirou um saco. -Toma isto ! Deu-me umas palmadinhas nos ombros, extremamente confuso, deu meia volta e escapuliu-se, com as pernas curtas a trotar a toda a pressa. Tinha a nuca gorda muito  encarnada por cima do colarinho engomado. -Que é isto? Olhei para dentro do saco. Eram ovos de Páscoa, feitos de açúcar e coloridos. Haviaos em grande quantidade na loba. -Ele trouxe um presente para as crianças-disse eu. -O Marullo? Um presente? Não posso acreditar. -Pois é, mas trouxe. -Por que motivo? Nunca fez uma tal coisa. -Ele gosta de mim. -Haverá qualquer coisa que não compreendo? -Meu patinho, há oito milhões de coisas que nenhum de nós compreende.
 
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III As crianças espreitavam pela porta aberta. Estendi-lhes o saco. -Uma oferta de um admirador. Mas esperem o fim do pequeno almoço para lhe tocar.
 
-Gostaria de saber o significado de tudo isto-disse Mary enquanto nos vestíamos para ir à igreja. -O Marullo ? Também eu, querida, confesso que gostaria de o saber. -Dar um saco de guloseimas baratas... -Não podes admiti-lo como um gesto de grande simplicidade? -Não compreendo. -A mulher morreu. Não tem filhos nem amante. Faz-se velho. Talvez... pois bem, sim... talvez se sinta só. -Ele nunca aqui vem. Se se sente só, aproveita e pede-lhe um aumento. Ele não vai a casa de Mr. Baker. Tudo isto me põe nervosa. Vesti cuidadosamente o meu fato preto e uma camisa e colarinho de uma brancura que reflectiam em cheio na minha face a luz do sol. A gravata era azulada, com pintas  discretas. Margie Young-Hunt também desencadearia tempestades? Onde teria Marullo obtido as suas informações? Uma só explicação possível: Bigger a Margie, Margie a Marullo.  Não tenho confiança em Mrs. Young-Hunt. Não sei porquê, mas é assim: Mrs. YoungHunt não me inspira confiança. Com esta frase a cantar no meu cérebro, desci ao jardim  à procura de uma flor branca para a minha lapela em atenção ao dia de Páscoa. Existe um lugar privilegiado junto à porta da cave: a terra aquecida pelo calorífero  recebe também os raios de sol que haja no Inverno. Ali crescem violetas brancas trazidas do cemitério, onde nascem no estado selvagem sobre as campas dos meus antepassados.  Colhi três minúsculas florzinhas para a minha lapela e formei um raminho com uma dúzia delas para a minha amada. Rodeei-as da sua folhagem pálida e juntei os caules  com uma prata que encontrei na cozinha. -Oh, como são bonitas - disse Mary. - Espera, vou buscar um alfinete para as prender. -São as primeiras, meu passarinho. Sou o teu escravo. Cristo ressuscitou. Tudo é paz e harmonia no mundo, -Peço-te que não brinques com as coisas sagradas, meu querido. -Que fizeste aos cabelos? -Agradam-te assim? -Muito. Usa-os sempre dessa maneira. -Não tinha a certeza de que gostasses. A Margie dizia que nem sequer repararias. Mas eu vou contar-lhe. Colocou na cabeça um vaso de flores - a primeira oferenda da Páscoa. -Como o achas? -Gosto muito. Depois passou-se à inspecção das crianças: orelhas, narinas, calçado. Revista minuciosa, suportada de mau modo. Os cabelos de Allen estavam de tal maneira cheios  de brilhantina que ele mal podia mexer as pálpebras. Não engraxara os tacões dos sapatos, mas despendera cuidados infinitos para fazer descer uma mecha de cabelos  até às sobrancelhas eriçadas. Ellen é o tipo da jovem cheia de feminilidade. Tudo nela estava em ordem. Experimentei mais uma vez a sua disposição para comigo. -Ellen, tu mudaste de penteado. Fica-te bem. Mary, querida, qual é a tua opinião? -Oh, ela começa a ter também a sua vaidade-respondeu Mary.
Formámos em procissão ao longo do nosso passeio até Elm Street e depois à esquerda para Porlock Street, onde se encontra a igreja-a nossa velha igreja com o campanário  branco, de estilo roubado na íntegra a Christopher Wren. Depois juntámo-nos à torrente que engrossava. Cada mulher, ao passar, manifestava o seu entusiasmo para  com os chapéus das outras mulheres. -Desenhei um chapéu de Páscoa-disse eu.-Uma simples coroa de espinhos feita de ouro, com rubis caindo sobre a testa. -Ethan!-protestou Mary.-Se alguém te ouvisse... -Admito que talvez não gostasse. -Tu és horrível. Era-o. Pior até que isso. Perguntei a mim próprio qual seria a reacção de Baker a um comentário sobre os seus cabelos. O nosso riacho familiar, engrossado pelo encontro com 112 3 - o i. D. 113 outros, tornara-se um rio quando chegou à igreja episcopal de St. Thomas. Os Baker precediam-nos uns degraus mais acima quando subimos a escadaria da igreja. Trocámos cumprimentos. -Ver-nos-emos à hora do chá, não é verdade? -Sim. Páscoa feliz. -Mas não é o Allen? Como ele cresceu. E Mary Ellen. Desenvolvem-se a olhos vistos. Uma igreja que nos viu nascer é sempre muito atraente. Conheço todos os odores e todos os cantos de St. Thomas. Foi na sua pia baptismal que me baptizaram e recebi  a crisma na sua mesa. Só Deus sabe há quanto tempo os Hawley se sentam no mesmo banco. Devo estar profundamente impregnado da consciência daquilo que é sagrado,  pois lembro-me de todas as profanações que cometi. E foram numerosas. Estou convencido de poder encontrar todos os lugares onde figuram as minhas iniciais gravadas  com um prego. Quando um dia o reverendo Wheeler nos surpreendeu, a Danny Taylor e a mim, traçando com um alfinete um nome feio no livro de missa, e por isso nos  puniu, teve de folhear todos os outros livros de orações para ter a certeza de que o mesmo nome não se encontrava neles. Um dia produziu-se um facto atroz no coro. Coberto com uma sobrepeliz, eu conduzia a cruz e cantava com uma bela voz de soprano. O bispo que oficiava era um velho  encantador, calvo como uma cebola cozida. Aos meus olhos, tinha um glorioso halo de santidade. Quando a procissão acabou, coloquei a cruz no seu alvéolo, mas esquecime  de accionar o tranqueta que a fixava. A leitura do segundo evangelho vi com horror a pesada cruz de cobre vacilar e abater-se sobre a santa e calva cabeça. O bispo  tombou como uma vaca no matadouro e eu perdi a sobrepeliz em beneficio de um rapaz que não cantava tão bem como eu. Era um certo Skunkfoot Hill, que presentemente  é antropólogo algures no Oeste. Este acidente provou-me que as intenções boas ou más não bastam. A sorte, o destino, ou seja o que for, presidem ao infortúnio. Seguimos o ofício e ouvimos anunciar que Cristo acabava de ressuscitar. Isso, como de costume, fez-me passar um arrepio na espinha. Tomei a comunhão com todo o
fervor. Allen e Mary Ellen ainda não receberam a crisma. Eles mexiam-se sem cessar. Era preciso fulminá-los com o olhar para que deixassem de gesticular. Quando  os olhos de Mary ficam hostis, podem furar a própria couraça da adolescência. Depois, sob um sol radioso, apertámos mãos, trocámos saudações e apresentámos os votos próprios da quadra a todos os nossos vizinhos. Todos aqueles a quem falámos  ao chegar, felicitámos ao partir, numa litania monótona e sem fim. Ostentação puramente mundana, marcada pelo desejo surdo, suplicante, de ser notado e considerado. -Bom dia. Como se sente neste dia tão bonito? -Muito bem, obrigado. Como está a sua mãe? -Faz-se velha... sabe... todos os achaques próprios da idade. Dir-lhe-ei que perguntou por ela. As palavras nada significam quando não exprimem sentimentos. O acto é o resultado do pensamento, ou, por vezes, o pensamento estimula a acção, e é um meio de a realizar?  À cabeça do pequeno cortejo ao sol marchava Mr. Baker, evitando as fendas do pavimento, e Mrs. Baker, Arrelia, com o passo miudinho e rápido, esforçava-se por acertar  o andar saltitante com os passos desiguais do marido. Era uma mulher pequena, de olhos vivos de pardal, de um pardal alimentado exclusivamente de sementes. Allen, o meu filho, caminhava ao lado da irmã, mas julgar-se-ia que eram estranhos um ao outro. Creio que ela o despreza e ele a detesta. Sem dúvida será sempre  assim durante toda a vida, mas nós esforçamo-nos por dissimulá-lo por detrás de uma barreira de palavras ternas. Que minha mulher lhes dê o pequeno almoço, os ovos  cozidos com pickles, as sanduíches de geleia e de manteiga de amendoim. Depois, é soltá-los na Natureza para irem colocar os seus ovos onde lhes apetecer. E foi o que Mary fez. Afastaram-se levando os sacos de papel, cada um buscando o seu mundo separado, privado. -O ofício religioso agradou-te, querida? - Oh, sim ! Como sempre ! Mas tu... às vezes pergunto a mim própria se tu es crente... Não, eu quero dizer... Em suma, as tuas brincadeiras... Algumas vezes... -Pára um instante, querida. rr5 114 -Tenho de preparar o almoço. -A refeição dos sodomitas. -Aí está o que eu digo. As tuas brincadeiras... -O almoço não é uma coisa sagrada. Se o tempo estivesse mais quente, levava-te de barco ao outro lado do molhe e pescávamos. -Vamos a casa dos Baker. Saberás tu, Ethan, se crês ou não na Igreja? Porque é que me dás sempre alcunhas ridículas e raro utilizas o meu nome? -Para evitar repetir-me e ser fatigante, mas no meu coração o teu nome ressoa como um sino. Se eu creio? Que pergunta! Achas que devo tomar cada frase brilhante  do Credo de Niceia, carregada como um obus, e inspeccioná-la? Não. Não é necessário. É uma coisa singular, Mary. Se a minha alma e o meu corpo estivessem tão privados  de fé como um feijão seco, às palavras: o Senhor
é o meu pastor: nada me faltará. Faz-me deitar em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas, o meu estômago revoltar-se-ia, palpitações invadiriam o meu peito e o fogo o meu cérebro. -Não compreendo. Q-Minha boa pequenina. Eu também não. Quando eu não passava de um bebé de ossos frágeis e maleáveis, puseram-me numa caixinha em forma de cruz episcopal. uando saí  dessa caixa, como o pinto sai do ovo, será estranho que tenha ficado com a forma de uma cruz? Já reparaste que os pintainhos são ovóides? -Dizes coisas tão horríveis, mesmo às crianças. -Elas não me ficam atrás. Ainda ontem a Ellen me perguntou: "Papá, quando serás rico? E eu não lhe respondi o que devia: <<Sê-lo-emos bem depressa, e tu, que tão  mal usas a pobreza, usarás muito pior a riqueza." E isto é a verdade. Pobre, ela é invejosa. Rica, será desprezível. O dinheiro não cura a doença. Só modifica os sintomas. -E é dos teus próprios filhos que falas assim. Que dirás de mim? -Que és uma bênção, um ser amado, a luz de uma vida brumosa. -Tens um ar embriagado... intoxicado. -Estou como dizes. -Não estás, pois eu senti-lo-ia. rr6 -Mas tu sentes, porque o disseste. -Que te aconteceu? -Ah? Não sabes? Uma mudança ... formidável, tumultuosa. Tu não vês senão as vagas mais avançadas. -lnquietas-me, Ethan. Sinceramente, estás fora de ti. -Lembras-te das minhas condecorações? -Das tuas medalhas da guerra? -Foram-me atribuídas por actos de selvajaria. Nenhum homem sobre a Terra tem o coração tão longe do crime como eu. Mas fizeram uma outra caixa na qual me encerraram.  Essa formou-me para o massacre, e eu obedeci. -Era na guerra e lutavas pelo teu país. -Há um tempo próprio para cada coisa. De tal modo que eu esqueci o que fora. Eu era um bom soldado, inteligente, rápido, sem piedade, uma unidade eficaz para o período  da guerra. Talvez eu possa ser igualmente bom em tempo de paz. -Há qualquer coisa que queres dizer-me. -É tristemente verdade. E isto soa aos meus ouvidos como uma desculpa. Espero que não seja esse o caso. -Preciso de preparar o almoço. -Depois do que comemos esta manhã, não tenho apetite. -Ora, tu petiscarás, mesmo assim, qualquer coisa. Viste o chapéu de Mrs. Baker? Deve tê-lo comprado em Nova Iorque. -Que fez ela aos cabelos? -Reparaste? Estão quase cor de morango. -Ser a luz que ilumina os sentidos e ser a glória do povo de Israel. -Porque teria a Margie partido para Montauk nesta época do ano? -Ela gosta de ver nascer o Sol.
-Ela costuma levantar-se tarde. Por vezes brinco com ela a esse respeito. E não achas bizarro que o Marullo tenha trazido ovos de açúcar? -Estabeleces alguma relação entre o facto de a Margie se levantar cedo e o Marullo ter trazido os ovos? -Não sejas idiota. -Não sou. Uma vez mais te pergunto: se te disser um segredo, saberás guardá-lo? -Estás a brincar. rrr -Não estou. -Nesse caso, prometo. -Creio que o Marullo vai dar uma volta pela Itália. -Como o sabes? Disse-to ele? -Não, mas liguei uns factos. -Vais ficar só na loja. Precisarás de alguém que te ajude. -Posso desembaraçar-me sòzinho. -Tu já fazes, pràticamente, tudo. -Não esqueças. Isto não é certo... e é um segredo. -Eu nunca esqueço uma promessa. -Mas serás capaz de fazer qualquer alusão. -Ethan, já te disse que não. -Sabes o que tu és? Um coelhinho com flores na cabeça. -Serve-te na cozinha. Eu vou lavar-me. Quando ela saiu, refastelei-me na minha poltrona e ouvi uma voz murmurar-me aos ouvidos : "Ó Tu, meu Deus, salva - Teu servidor que se confia a Ti." E condenado eu seja se não adormeci. Em plena sala, mergulhei na inconsciencia, o que não me sucede muitas vezes. Como tinha  pensado nele, sonhei com Danny Taylor. Éramos já adultos. Achávamo-nos no fundo do lago seco que suporta as fundações da velha vivenda. Era no princípio do Verão,  pois notei a espessura da folhagem e a erva tão densa que vergava ao próprio peso. Danny passava por detrás de um zimbro novo, direito e bem lançado como uma coluna.  Ouvi a sua voz deformada, espessa como se ele tivesse falado debaixo de água. Depois encontrei-me ao seu lado - ele começou a fundir-se, a desagregar-se. Tentei com ambas as mãos agarrá-lo como se faz com o cimento fresco que escapa do molde. Tudo em vão. A sua substância  fugia-me entre os dedos. Pretende-se que um sonho só dura um momento. Este prolongava-se. Quanto mais me esforçava mais ele se fundia. Ofegava com o esforço quando Mary me acordou. -É uma febre de Primavera-disse ela.-Estes são os primeiros sintomas. Em garota, eu dormia tanto que a minha mãe chamou o Dr. Grady. Ela supunha que eu tinha a doença  do sono. Mas era apenas a Primavera e o crescimento. -Tive um pesadelo. Não o desejaria a ninguém. -lsso é o resultado de toda esta agitação. Vai pentear-te - refresca a cara com água. Tens um ar fatigado, meu querido. Sentes-te bem? E quase tempo de partir. Dormiste duas horas. Devias estar precisado disso. Gostaria  de saber
-        que pensa Mr. Baker. -Sabê-lo-ás, minha querida. E promete-me escutá-lo com toda a atenção. -Mas talvez ele queira falar-te em particular. Os homens de negócios não gostam das mulheres que escutam. -Não será assim. Eu quero a tua presença. -Eu não tenho nenhuma experiência de negócios. Tu bem o sabes. -É possível... Mas será acerca do teu dinheiro que nós falaremos.
 
Não se pode conhecer gente como os Baker sem se ter nascido na sua proximidade. Relações, amizade mesmo, nada disso basta. Conheço-os porque os Hawley e os Baker  foram semelhantes em categoria, lugar de origem, experiência e fortuna. Isto forma uma espécie de núcleo, protegido da gente do exterior por muralhas e fossos. Quando - meu pai perdeu a fortuna, não foi afastado totalmente. Na minha qualidade de Hawley, continuo aceitável pelos Baker porque eles se sentem aparentados comigo. Mas  não sou mais que o parente pobre. Desde que não tenha dinheiro, a alta burguesia perde pouco a pouco os seus direitos. Allen, sem dinheiro, não terá relações com  os Baker, e o filho dele será afastado sem consideração nem pelo seu nome nem pelos seus antecedentes. Tornamo-nos agricultores sem terra, comandantes sem tropas,  cavaleiros sem cavalos. Não podemos sobreviver. Talvez seja essa a causa da mudança que se operou em mim. Não quero nem nunca quis o dinheiro por si próprio. Mas  ele é necessário para conservar - meu lugar na categoria a que fui habituado e em que me sinto à vontade. Esta ideia desenvolveu-se naquele lugar obscuro do meu subconsciente. Não se trata de um  pensamento emergente e súbito, mas de uma convicção. -Bom dia-disse-nos Mrs. Baker.-Ainda bem que puderam vir. Você esquece-se de nós, Mary. Este dia não foi maravilhoso? Agradou-lhe o serviço religioso? Para um clérigo,  achei o oficiante um homem com muito interesse. -Não nos vemos com frequência-disse Mr. Baker. 118 zz9 #Estou a ver o seu avô sentado nessa mesma poltrona contando que aqueles patifes dos espanhóis tinham afundado o Maine; tomava o seu chá ou, mais exactamente, o  velho capitão tinha o hábito de adicionar ao seu rum um pouco de chá. Era um homem violento, zaragateiro mesmo. Notei que Mary, chocada a princípio, se deixava abandonar a esta cordialidade. Evidentemente, ela ignorava que eu a tinha promovido à categoria de herdeira. Uma  reputação de riqueza é quase tão negociável como a própria riqueza. Mrs. Baker, a quem um desarranjo nervoso sacudia a cabeça, enchia chávenas finas e frágeis como pétalas de magnólia. As suas mãos eram a única parte firme do seu  corpo. Mr. Baker, pensativo, fazia girar a colher. -Eu não sei-disse ele-se gosto de chá ou da cerimónia que ele implica. Gosto de todas as cerimónias... mesmo das mais tolas. -Creio compreender-disse eu.-Esta manhã, durante o serviço, senti-me à vontade, pois aquilo não me reservava a mimma surpresa. Conhecia todas as palavras.
-Durante a guerra, Ethan-escutem, minhas senhoras, e vejam se se lembram de algo como isto-, durante a guerra, eu servia como conselheiro do ministro da Guerra.  Passei algum tempo em Washington. -Que período odioso-disse Mrs. Baker. -Pois bem. Assisti a um grande chá dado pelos militares. Qualquer coisa de prodigioso. Havia pelo menos quinhentos convidados. A senhora que tinha precedência era  a esposa de um general de cinco estrelas, logo seguida pela esposa de um general de divisão. A anfitrioa, mulher do ministro, pediu a Mrs. Cinco Estrelas que servisse  o chá e a Mrs. Três Estrelas que servisse o café. Pois bem, a primeira daquelas senhoras recusou porque-eu cito: "Todos sabem que o café é superior ao chá." Que  dizem a isto?-Com um cacarejo, acrescentou:-E no fim provou-se que o whisky era superior a todos. -Aquilo era um lugar tão agitado-disse Mrs. Baker -que as pessoas partiam antes de poder adquirir boas maneiras. Mary falou de um chá irlandês em Boston: a água fervia em tachos numa fogueira e era tirada com conchas de estanho. -Não faziam uma infusão, mas uma cozedura. Aquele chá dissolveria o verniz de uma mesa. Toda a discussão ou acção séria necessita de preliminares e quanto mais o problema é árduo mais prolongada e leve deve ser a conversa preparatória. Cada interessado  concorre com a sua acha ou o seu toque de cor. Se Mary e Mrs. Baker não deviam participar no problema, elas estavam de há muito tempo preparadas para trocar banalidades.  Mr. Baker iniciara a conversação e a minha Mary continuara-a. Cabia a Mrs. Baker e a mim darmos a nossa contribuição, e a boa educação exigia que eu lhe cedesse  a vez. Ela apoderou-se do testemunho, que, neste caso, parecia ser o bule. -Lembro-me do tempo em que nos apresentavam dezenas de infusões a que chamavam chá-disse ela com espírito. -Há gente que tem receitas para quase tudo. Não havia  erva, folha ou flor de que não fizessem infusão. Para mim, só há duas espécies de chá: o de Ceilão e o da China. Principalmente o último. Lembram-se da camomila,  as tisanas de folhas e flores de laranja... e... a... a cambraia? -A cambraia?-repetiu Mary. -Água quente e leite quente em partes iguais. As crianças adoram-na. Não é a mesma coisa que leite misturado com água. Era a minha vez. Tinha a intenção de fazer alguns comentários sobre a cerimónia do chá em Boston. Mas nem sempre as coisas correm como se pensa e as surpresas não  pedem licença para aparecer. -Depois do serviço religioso dormi-disse eu quase sem querer.-Sonhei com Danny Taylor. Foi horrível. Lembra-se de Danny? -Um pobre homem-respondeu Mr. Baker. -Outrora, fomos mais que irmãos. Eu era filho único. Em certo sentido, fomos irmãos. Eu devia ter sido o "guarda do meu irmão Danny". Mary estava aborrecida por eu ter torcido o rumo da conversa e imediatamente tirou a sua desforra. -O Ethan dá-lhe dinheiro, mas faz mal, pois isso só o incita a beber. -Que horror!-disse Mr. Baker. -Não lhe dou mais de um dólar de vez em quando.
121 120 Com isso, que outra coisa pode fazer senão beber? Se ele dispusesse de uma boa quantia, talvez saísse de dificuldades. -Mas quem se arriscaria?-exclamou Mary.-Seria matá-lo. O senhor não é da minha opinião? -Pobre rapaz - murmurou Mr. Baker. - Os Taylor eram de uma excelente família. Não gostariam de ver como ele caiu. Todavia, Mary tem razão. Seria o seu fim. Afogava-se  em álcool. -Afogado já ele está. Mas da minha parte nada há a temer, pois eu não sou rico. -É uma questão de princípios-disse Mr. Baker. Com uma crueldade bem feminina, Mrs. Baker expôs -        seu ponto de vista. -Seria bom encerrá-lo num asilo onde alguém tomasse .conta dele. Eu tinha desagradado. Deveria ter mantido a palpitante discussão sobre o chá. É estranho como o espirito se demora pelo caminho jogando à cabra-cega, enquanto se devia concentrar, procurando abrir um caminho seguro no campo de minas - recifes onde se aventura e que precisa de atravessar. Dei todo o seu significado à casa dos Baker e à dos Hawley, às suas paredes espessas, pinturas e cortinas,  às plantas que nunca viram o sol, aos retratos de família, às velhas gravuras e a todos os vestígios do tempo passado que as isolavam da realidade da vida. As cadeiras  mudavam com - tempo, mas as mesas e os baús atestavam um passado longínquo. Os Hawley eram mais que uma família : eram uma casa. Por isso o pobre Danny se refugiara no prado  dos Taylor, sem família e bem depressa sem nome. As três pessoas sentadas na minha frente renegavam-no. Alguns necessitam de uma casa de família, de uma tradição,  para se assegurarem de que estão vivos. É certo que se trata de um elo bem frágil, bem ténue. Na loja sou um falhado, um assalariado; em casa, sou um Hawley, apesar  de a minha posição não ser segura. Ainda assim, - Baker podia oferecer o seu apoio ao Hawley. Sem casa, tal não aconteceria, pois a questão não era tratada de homem para homem, mas de casa para casa. Riscavam  Danny Taylor do mundo, e contra isso eu nada podia. Mas este pensamento, este pesar, aguçava-me o espírito, tornando-me mais perspicaz. Baker preparava-se para restaurar a casa dos Hawley em troca de uma participação na herança de Mary. Eu estava no limiar do campo de minas e sentia o coração endurecer-se para com o meu desinteressado benfeitor. Confinei-me às leis da selvajaria controlada, a primeira das quais consiste em dar à defesa a aparência de ataque. -Mr. Baker, é inútil que nos percamos em pormenores. Sabe melhor que eu a forma lenta e segura como meu pai perdeu a fortuna dos Hawley. Eu estava na guerra. Como se passou isso? -As suas intenções eram boas, mas as suas decisões... -Bem sei que ele era imprudente... mas como acon
teceu aquilo? -Bom. A época era propícia a extravagantes coloca ções de capital. Ele fez investimentos incoerentes. -Não foi aconselhado? -Ele comanditou fábricas de armas cujos contratos com o Estado foram anulados. -O senhor estava em Washington. Conhecia a exis tência desses contratos? -Apenas nas suas linhas gerais. -Mas de forma suficiente para não arriscar o seu dinheiro ? -Efectivamente. -Foi o senhor que aconselhou meu pai nas suas colo cações ? -Eu estava em Washington. -Mas sabia que ele tinha pedido empréstimos cau cionados pelas propriedades dos Hawley ~ -Sim, com efeito. -Não o dissuadiu de o fazer? -Eu estava em Washington. -Mas o seu banco executouo. -Você sabe, Ethan, que um banco não pode fazer outra coisa. -Sim, eu sei. Apenas foi uma lástima que o senhor não tivesse podido aconselhá-lo. -Não o censure, Ethan. -Agora, que compreendo o que se passou, não o censuro. Antes, eu não sabia com exactidão o que sucedera. Penso que Baker preparara a sua ofensiva. Agora, com
 
 
123 122 a primeira partida perdida, precisava de reagrupar as suas forças e reflectir. Tossiu, assoou-se limpando o nariz com um lenço de papel extraído de uma caixinha  chata tirada da algibeira, esfregou os olhos com um segundo lenço e limpou as lentes dos óculos com um terceiro. Cada qual usa o seu método para ganhar tempo. Conheço  um homem que precisa de cinco minutos para carregar e acender o cachimbo. Quando Baker já estava preparado, continuei: -Sei que não tenho qualquer direito pessoal a pedir a sua ajuda, mas o senhor mesmo evocou a longa associação das nossas duas famílias. -Gente de bem-disse ele.-E, em geral, homens de excelente critério, conservadores... -Mas não cegos. Uma vez decidido o caminho a tomar, seguiam-no. -Ah, sim. -Mesmo quando se tratava de enviar um inimigo para o fundo... ou incendiar um navio?
-Deviam estar bem escudados. -Em 18oi, creio que foram interrogados sobre o significado que davam à palavra "inimigo". -Depois de cada guerra é preciso proceder a pequenos reajustamentos. -É evidente. Mas deixemos o passado. Com toda a sinceridade, Mr. Baker, desejaria refazer a minha fortuna. -Eis uma excelente intenção, Ethan. Durante um certo tempo cheguei a acreditar que tinha perdido o espírito dos Hawley. -É certo. Ou melhor, ele não se tinha ainda desenvolvido em mim. O senhor ofereceme o seu apoio. Que devo fazer? Por onde começar? -Precisa de capital para principiar. -Está bem. Admitamos que o tenha. Que farei dele? -Nós vamos aborrecer estas senhoras. E se passássemos para o meu escritório? Mrs. Baker levantou-se. -Desejava justamente pedir a Mary que me ajudasse a escolher o papel com que vamos forrar o nosso quarto de dormir. As amostras estão lá em cima. -Mas eu gostava de que Mary seguisse a discussão. Então ela deu razão aos outros, como eu já sabia que faria. -Não compreendo nada de negócios. Mas, pelo contrário, sei escolher papel. -Mas isto diz-te respeito, minha querida. -Não farei senão embrulhar as tuas ideias, Ethan. Tu bem o sabes. -A menos que não me ajudes a classificá-las. A história do papel devia ter sido sugerida por Mr. Baker. Certamente não era Mrs. Baker que habitualmente escolhia os papéis. Não seria certamente uma mulher que  ia escolher aquele horrível papel, escuro, com figuras geométricas, que forrava o vestíbulo onde nos encontrávamos. -Sim, Ethan-disse Mr. Baker quando ficámos sós-, para começar é necessário um capital. A sua casa pertence-lhe, pode hipotecá-la. -Nunca farei isso. -Respeito os seus sentimentos. Não falemos, portanto, da sua casa. A sua mulher tem dinheiro. Não muito, mas poderia ser um princípio. O dinheiro atrai dinheiro. -Não tocarei nele. Quero que o seu futuro esteja assegurado. -Figura numa conta comum e não produz o mínimo lucro. -Suponhamos que eu venço os meus escrúpulos. Em que está a pensar? -Tem alguma ideia de quanto seja a fortuna da mãe de Mary ? -Não. Mas deve representar uma soma razoável. Ele limpava meticulosamente as lentes dos óculos. -Tudo quanto lhe digo deve ficar confidencialmente entre nós. -Evidentemente. -Felizmente, sei que não é tagarela. Nenhum Hawley o foi, salvo, talvez, seu pai. Na minha qualidade de banqueiro, sei que New Baytown vai desenvolver-se. Tem tudo  a seu favor. O seu porto, a sua praia, as suas águas interiores. Uma vez dado o primeiro passo, não parará. Um bom homem de negócios deve ajudar a sua cidade a desenvolver-se. -E tirar lucro disso. -Naturalmente. 124
125 #-E por que motivo não se desenvolveu até agora? -Sabe-o tão bem como eu. As velhas múmias do Conselho Municipal são pessoas que vivem no passado e emperram todo o progresso. Sempre tive muito prazer em ver o alto alcance filantrópico do lucro. Sob a máscara clarividente de benfeitor da cidade, Mr. Baker estava bem no seu lugar. Com alguns  auxiliares, apoiava a administração até poder adquirir ou assegurar-se a direcção de todos os elementos de progresso e de desenvolvimento da cidade. Depois expulsariam  o Conselho Municipal e o presidente da Câmara e deixariam o progresso reinar. Só depois disto se descobriria que eles dominavam todos os postos-chaves. Por puro  sentimentalismo, Mr. Baker estava disposto a introduzir-me na combinação, numa posição secundária. Ignorava se ele tinha a intenção de me descrever todo o plano,  levado pelo entusiasmo, mas este não se manifestava senão em relação a generalidades. As eleições municipais realizam-se em g de julho. Até lá, o grupo deve ter  os comandos do progresso sob o seu contrôle. Não penso que haja alguém no mundo a quem repugne dar um conselho. Diante da minha resistência, o meu professor tornou-se  mais veemente, mais formal. -Preciso de reflectir - disse eu. - O que para si é muito simples, permanece para mim um mistério. E, bem entendido, terei de falar a Mary. -Ah, isso creio que é um erro. Já existem muitas saias nos negócios dos nossos dias. -Mas trata-se da herança dela. -A melhor surpresa que você lhe poderia fazer seria arranjar dinheiro. Isso agradar-lhe-ia imenso. -Espero não lhe parecer ingrato. Penso com lentidão. Ouviu dizer que o Marullo vai partir para a Itália? Os seus olhos endureceram. -Definitivamente? -Não, apenas uma visita. -Espero que ele tenha tomado disposições para o proteger no caso de algo lhe suceder. Ele não é nenhum jovem. Fez testamento? -Não sei. -Se algum parente dele viesse instalar-se aqui, você podia encontrar-se sem emprego. Entrincheirei-me por detrás do impreciso. -Forneceu-me assunto para pensar-disse eu.-Mas não podia dar-me uma ideia sobre o momento de iniciar a acção ? -Posso dizer-lhe isto: o desenvolvimento depende muito dos meios de transporte. -As grandes estradas não faltam. -A distância é longa. O género de homens dispondo de capitais que nós queremos atrair deverá vir pelo ar. -E não temos um aeroporto. Exactamente. -Além disso, falta o lugar para construir um, a menos que arrasemos as colinas. -E uma operação dispendiosa. O preço do trabalho seria proibitivo -Então qual é o seu plano?
-Ethan, tenha confiança em mim e perdoe-me. Por enquanto, não posso dizer-lhe mais nada. Mas se você arranjar capital, prometo metê-lo no assunto. E posso asse gurar-lhe que o problema se apresenta como uma situa ção definida, apenas necessitando de ser resolvido. -Está bem. E mais do que eu mereço. -As velhas famílias devem apoiar-se. -O Marullo faz parte do grupo? -Não. Ele segue o seu próprio caminho com os seus companheiros. -Eles não se têm arranjado mal, pois não? -Pelo contrário, demasiado bem. Não gosto de ver estes estrangeiros criar raízes. -A execução do seu plano tem lugar a 7 de Ju lho ? -Eu disse isso? -Não. Devo tê-lo imaginado. -Com certeza. Mary desceu. Cumprimos os deveres de cortesia e len tamente voltámos para casa. - Não poderiam ser mais encantadores. Que te disse ele ? -A mesma coisa. Preciso de utilizar o teu dinheiro para começar, mas eu recuso-me a isso. -Tu pensas em mim, eu sei, meu querido. Mas digo-te que és louco se não segues o seu conselho. 126 127 #-lsso não me agrada. Imagina que ele se engana. Ficarias sem protecção. -Escuta-me, Ethan. Se não o fizeres, dar-lhe-ei eu própria o dinheiro. Asseguro-te que o farei. -Deixa-me reflectir nisso. Não quero envolver-te neste assunto. -Não precisas fazê-lo. O dinheiro está depositado em nome de ambos. Sabes o que dizem as cartas. -Oh, meu Deus... Outra vez isso! -Pois sim, mas eu acredito. -Se eu perco o teu dinheiro, detestar-me-ás. - Oh, não ! Tu és a minha fortuna ! É o que a Margie disse. -As palavras da Margie ficarão gravadas na minha cabeça em letras de fogo até à minha morte. -Não brinques. -Não brinco, não. Não deixes que a fortuna estrague a doçura da nossa pobreza. -Não vejo como um pouco de dinheiro possa estragar seja o que for. Não muito... apenas o necessário. Não respondi. -Então, que vais fazer? -Ó filha de príncipe, não existe aquilo a que se possa chamar dinheiro suficiente. Só existem duas medidas: não ter dinheiro e não ter dinheiro suficiente. -lsso não é verdade. -É perfeitamente exacto. Lembras-te do milionário do Texas que morreu recentemente? Vivia num quarto de hotel e a sua bagagem reduzia-se a uma mala. Não deixou testamento 
e não se lhe conheciam herdeiros, mas, na sua opinião, não tinha o dinheiro suficiente. Quanto mais se tem, mais se quer. Ela assumiu um arzinho sarcástico para perguntar: -Achas que é um pecado desejar novas cortinas para a sala e um esquentador bastante potente para que quatro pessoas possam tomar banho no mesmo dia e eu possa lavar  a louça? -Quem te fala de pecado, grande tola? Eu cinjo-me aos factos, às leis da Natureza. -Não pareces ter bastante respeito pela natureza humana. -Não falo da natureza humana, minha Mary, mas simplesmente da Natureza. Os esquilos armazenam uma quan
 
 
128 tidade de nozes dez vezes maior que aquela que lhes faz falta. O pelicano, quando tem o ventre cheio, a rebentar, serve-se ainda das bochechas como saco de provisões. E que quantidade de mel fabricam as espertas abelhas para a sua tão modesta alimentação? Quando está desconcertada ou perplexa, Mary vo mita a sua cólera como um polvo vomita a sua tinta para se esconder do inimigo. -Tu dás cabo de mim. Não podes deixar que os outros tenham um pouco de alegria. -Não é nada disso, minha querida. Tenho medo da tristeza desesperada, do receio que o dinheiro engendra, da falta de segurança e da inveja. Ela devia ter sentido inconscientemente o mesmo temor. Experimentou ferir-me, procurou um ponto sensível, e en controu-o. -Um caixeiro de mercearia sem vintém que pergunta a si próprio que mal lhe fará a riqueza! Ouvindo-te, chega-se a acreditar que podes arranjar uma fortuna logo que queiras. -Creio que posso. -Como? -Esse é que é o problema. -Tu não és capaz, senão já o terias feito. Fazes batota. Passas o tempo a fazê-la. A ânsia de fazer mal transformou-se em raiva. Eu sentia a febre invadir-me. Palavras horríveis surgiam como veneno. Um odioso rancor apossou-se de mim. -Olha! Lá em baixo! Viste?-perguntou Mary. -Onde? O quê? -Passou ao lado da árvore, além, e entrou no pátio. -Que era, Mary? Diz-mo. Que viste tu? Na sombra, vi nos lábios dela aquele sorriso incrivelmente feminino que se diz ser feito de sabedoria. Mas não é senão compreensão e torna inútil a própria sabedoria. -Não viste nada, Mary. -Sim, uma coisa... mas já desapareceu. Rodeei a sua cintura com os meus braços e puxei-a
para mim. -Vamos dar uma volta ao quarteirão antes de entrar mos em casa. Penetrámos no túnel da noite sem tornar a falar. Porque havíamos de o fazer? 9 - O I. D.
 
129 Capítulo VIII Quando eu era criança, caçava e matava alegremente pequenos animais: coelhos, esquilos e pássaros. Mais tarde, patos e aves selvagens esmagavam-se aos meus pés,  numa pobre mistura de ossos destruídos, sangue e penas. Sentia uma espécie de poder selvagem isento de ódio, rancor ou remorso. A guerra extinguiu aquela sede de  destruição. O meu caso é o da criança empanturrada de guloseimas. A explosão de um tiro de espingarda já não me causa uma sensação de felicidade. Desde os primeiros dias da Primavera um casal de coelhos saltitantes vinha fazer uma visita quotidiana ao nosso jardim. Manifestavam uma preferência especial pelos  cravos de Mary, que devoravam com ardor. -É preciso que me livres deles-disse-me Mary. Desencantei a minha velha caçadeira, pegajosa de óleo, e encontrei alguns cartuchos. Logo que caiu a noite, sentei-me nas escadas das traseiras e quando os coelhos  estavam em linha abati ambos com o mesmo tiro. Sob os velhos lilases enterrei os pequenos despojos sedosos, mas ao fazê-lo senti como que uma náusea. Tinha perdido o hábito de matar. Um homem pode habituar-se a tudo. Pode ser assassino, coveiro, ou mesmo carrasco. Quando se está acostumado, torturar uma pessoa 131 no cavalete ou com as tenazes é uma profissão como qualquer outra. -Vou sair-disse eu, depois de as crianças se terem deitado. Mary não me perguntou para onde e porquê, como o teria feito dias antes. -Vens tarde? -Não, não me demoro. -Não esperarei por ti, tenho sono. Parecia que, tendo aceitado seguir uma nova direcção, ela me precedia já. A lembrança dos coelhos perseguia-me ainda. Para um homem que acaba de destruir, talvez seja normal procurar restabelecer o equilíbrio criando alguma coisa. Seria  isto que me impelia? Tomei um caminho que me levou até ao tugúrio fétido onde vivia Danny. Um coto de vela ardia em cima de um pires junto à sua cama de campanha. Danny estava em mísero estado : azul, descarnado, doente. Tinha a pele da cor do estanho. O cheiro do casebre e do homem sebento que o ocupava era insuportável.  Danny tinha os olhos abertos, vítreos. Esperava ouvi-lo pronunciar palavras incoerentes. Fiquei chocado quando ele falou com um tom claro e grave -Que vens aqui fazer, Ethan? -Ajudar-te. -Sê razoável. -Estás doente. -Pensas que o não sei? Melhor que ninguém.-De detrás da cama tirou uma garrafa quase cheia. -Queres um copo? -Não, obrigado. Tens um whisky de luxo. -Tenho amigos. -Quem te deu isso? -Não é da tua conta, Ethan. Bebeu um trago, engolindo-o com dificuldade. Depois as cores voltaram e ele riu. -O meu amigo queria falar de negócios, mas eu esquivei-me. Já estava enfastiado antes de se ter pronunciado uma palavra. Ele não sabia quão pouco era preciso para 
aborrecer-me. Também tu vens falar-me de negócios, Ethan? E que eu dentro em breve estou embriagado. -Danny, sentes qualquer coisa por mim? Um pouco de confiança? Um pouco... enfim, alguma coisa? -Sem dúvida. Mas é preciso ver as coisas como elas são. Eu sou um bêbado, e um bêbado ama o álcool acima de todas as coisas. -Se eu arranjar o dinheiro necessário, aceitas submeter-te a uma cura? A rapidez e a facilidade com que voltou ao estado normal tinham algo de espantoso. -Posso dizer-te que sim, Ethan. Mas tu não sabes o que é um bêbado. Ficaria com o teu dinheiro e gastá-lo-ia em bebida. -Poderia pagar adiantado ao hospital ou à clínica. -Tenta compreender. Iria para lá com a melhor das intenções, e ao fim de alguns dias partiria. Não se pode confiar num borracho, Ethan. Seja o que for que se diga  ou faça... partiria. -Não queres sair daqui, Danny? -Suponho que não. Deves saber o que eu quero. Levantou a garrafa outra vez e de novo a rapidez da reacção me surpreendeu. Não sòmente ele voltava a ser o velho Danny que eu conhecia, mas os seus sentidos e a  sua intuição tinham-se aguçado a tal ponto que leu no meu pensamento. -Não te fies nisto. Dura pouco tempo. O álcool estimula, mas depois deprime. Espero que não te demores aqui o suficiente para ver. De momento não creio que isso  se vá dar. Nunca o admito antecipadamente. Levantou para mim os olhos húmidos, piscando sob a luz fraca. -Ofereces-te para me pagar uma cura, mas não tens dinheiro, Ethan. -Posso arranjá-lo. A Mary recebeu uma herança do irmão. -E dar-mo-ias? -Sim. -Mesmo sabendo que não se pode confiar num bêbado? Mesmo quando te afirmo que ficarei com o teu dinheiro e que te causarei um desgosto ? -Já mo causas agora, Danny. Sonhei contigo. Estávamos no velho jardim... lembras-te ? Ele levantou a garrafa e depois pousou-a. 132 133 -Não, ainda não, ainda não, Ethan... nunca confies num bêbado. Mesmo quando ele já é... quando eu já sou uma coisa horrível... uma coisa morta... há sempre um espírito  clarividente que continua ainda a funcionar... mas é um espírito mal intencionado. Neste momento, neste mesmo instante, eu, o homem que foi teu amigo, minto-te quanto  à maneira como me deixei embebedar. Oh, esqueci tudo, agora só percebo de bebidas. -Espera -disse eu.-As coisas podem mudar de aspecto antes que te afundes mais. Serás capaz de suspeitar de mim? Foi o Baker quem te deu esta garrafa, não foi? -Foi. -Ele queria fazer-te assinar alguma coisa? -Sim, mas eu estava incapaz disso. Riu-se para si próprio e levou outra vez a garrafa aos lábios, mas à luz da vela vi uma pequenina bolha subir
para o gargalo. Ele bebeu apenas um trago. -Essa é uma das coisas acerca das quais quero falar contigó, Danny. É a velha propriedade que ele quer? -E. -Porque é que ainda não a vendeste? -Penso que já to disse. Ela faz de mim um fidalgo, ainda que pelo aspecto já o não seja. -Não a vendas, Danny. Conserva-a. -Que representa ela para ti? Porque não? -Para salvares o teu orgulho. -Já nada me resta de orgulho. Apenas ficou a posição social. -Algum ainda te ficou. Tiveste vergonha de me pedir dinheiro. É um sinal de altivez. -Ah, não. Era um truque. Torno a dizer-te, os bêbados são espertos. Aquilo embaraçou-te, então deste-me dinheiro acreditando que eu tinha vergonha. Nada disso. Tinha  simplesmente vontade de beber. -Não vendas, Danny. A tua propriedade tem muito valor. O Baker sabe-o bem. Ele nada compra que não tenha valor. -Tem valor, porquê? -E o único sítio próximo da cidade bastante plano para fazer um campo de aviação. -Compreendo. -Se te aguentares, aquilo pode constituir um magnífico ponto de partida. Não a largues, Danny. Tu podes tratar-te e encontrar um bom pecúlio quando voltares. -Talvez a venda e beba o produto e... Quando o ramo quebrar, o berço cairá, e com ele a criança.... cantou ele numa voz aguda. Depois riu. -Queres a propriedade, Eth? Foi por isso que vieste? -Quero o teu bem. -Eu estou bem. -É necessário que te explique, Danny. Se fosses qualquer pobre diabo, poderias fazer o que melhor te parecesse. Mas tu possuis uma coisa cobiçada por um grupo de  cidadãos clarividentes. -O prado dos Taylor. Vou guardá-lo. Também eu vejo longe. -E fez um aceno na direcção da garrafa. -Danny, torno a dizer-te. É o único lugar onde se pode construir um aeroporto. É um ponto-chave. Eles querem-no... ou terão de arrasar as colinas, e não possuem  dinheiro para isso. -Então tenho-os na mão e vou fazê-los dançar. -Tu esqueces, Danny, que um proprietário é como um vaso precioso. Já ouvi dizer que a maneira mais humana de agir seria encerrar-te num asilo, onde tomariam boa  conta de ti. -Não seriam capazes disso. -Eram, sim... e ficariam convencidos da beleza do seu gesto. Tu conheces os trâmites. O juiz, que tu sabes quem é, declarar-te-ia incapaz de gerir a tua propriedade.  Designaria um tutor, e posso jurar que sei quem seria. Tudo isto implicaria grandes despesas, que deveriam ser cobertas pela venda do teu prado. Quem estaria lá  para o comprar?
Ele escutava com os olhos brilhantes e a boca aberta. Depois olhou para mim. -Procuras amedrontar-me, Ethan. Enganas-te quanto ao momento próprio. Ataca-me de manhã, quando tenho frio e o mundo é verde como um vómito. Agora, graças a esta  garrafa... tenho a resistência de dez homens. Agitou-a como uma espada e os olhos reduziram-se a duas fendas luminosas. -Já to disse Eth ? Parece-me que sim... Um bêbado 135 134 #possui uma espécie de inteligência verdadeiramente diabólica. -Eu só te previno do que vai acontecer. -Estou de acordo contigo. Sei que é verdade. Fizeste -        teu relato. Mas, em lugar de me aterrorizar, despertaste -        meu sentido de malícia. Aquele que crê que um bêbado está desarmado não passa de um louco. Um beberrão é um veiculo especial munido de aperfeiçoamentos raros. Posso lutar, e agora sinto vontade disso. -És estupendo! Era isso que eu queria ouvir. Olhou-me por cima do gargalo da garrafa como se fosse o ponto de mira de uma espingarda. -Emprestar-me-ias o dinheiro de Mary? Sim. -Sem garantias? -Sim. -Sabendo que tens uma probabilidade em mil de o reaver? -Sim. -É o que é nojento num bêbado, Ethan. Não te acredito. Lambeu os lábios secos. -Davas-me esse dinheiro para as mãos? -Quando quiseres. -Eu disse-te que não o fizesses. -Mas eu quero. Desta vez virou a garrafa e uma grande bolha rosada foi subindo até ao gargalo. Quando parou, os olhos brilhavam mais, com uma luz fria, impessoal, como os de uma  serpente. -Podes arranjar o dinheiro esta semana, Ethan? -Sim. -Quarta-feira? -Sim. -Tens algum dinheiro agora? Tinha, ao todo, uma nota de um dólar, uma moeda de cinquenta cêntimos, outra de vinte e cinco e três de dez. Coloquei tudo na concavidade da mão estendida. Esvaziou a garrafa e deixou-a cair no chão. -Nunca te considerei muito inteligente, Eth. Sabes que uma cura radical custaria, pelo menos, mil dólares? -Sei.
 
 
136 -É divertido, Eth. É xadrez, é poker. Fui bom ao poker... muito bom. Tu apostas em como eu vou dar-te
- meu prado em sociedade. Dizes a ti próprio que uma bebedeira de mil dólares acabará comigo e que então ficarás com um campo de aviação. -És indecente, Danny! -Preveni-te de que o era. -Não podes acreditar que eu pense como te digo? -Não. Mas, como disseste, tenho um meio de me manter. Tu lembras-te de mim no passado, Eth. Julgas que não me lembro de ti? Eras o garoto que tinha o costume de  calcular tudo. Está bem. Começo a ter a garganta seca. A garrafa está vazia. Vou sair. O meu preço é mil dólares. -Perfeitamente. -Em notas, na quarta-feira. -Cá estarão. -Nem recibo, nem assinatura, nada. E não penses que te recordas de como eu era, Ethan. Esta minha companheira mudou tudo. Não tenho nem lealdade nem dignidade. Nada  mais obterás que uma ruidosa gargalhada. -Apenas te peço que experimentes. -Está bem, Eth, prometo. Mas penso ter-te convencido de que a palavra de um bêbado não tem valor. Fica aqui -        tempo que quiseres. A minha casa é tua. Vou sair. Até quarta-feira, Eth. Levantou-se de cima do seu velho leito de campanha, deitou o lenço de pescoço para trás e saiu gingando, sem abotoar as calças. Fiquei sentado, olhando a vela que se derretia no pires sebento. Tudo quanto ele dissera era verdade, excepto num ponto. Estava convencido de que não mudara completamente.  Danny Taylor existia ainda em alguma parte das suas ruínas. Ele não podia aniquilarse. Amava Danny - estava pronto a... fazer exactamente o que ele dissera. Ao longe, ouvi-o cantar numa voz de falsete, alta e clara: Apressa-te, belo veleiro, voa como um pássaro. Avança!-gritam-te os marinheiros. Leva a criança que nasceu para ser rei Através dos mares, para Skye. 137 #Cansado de uma vigília solitária, acabei por soprar a vela e voltei para casa por High Street. Desta vez, Willie não dormia no seu carro. -Parece que se acostumou a sair tarde, Eth-disse ele. -Você sabe como é. -Certamente. É a Primavera, a imaginação de um rapaz novo. Mary, adormecida, sorria, mas quase acordou quando me estendi a seu lado. Sentia no peito uma dor fria, cruel. Mary voltou-se e senti o contacto do seu corpo quente,  com odor a erva. Precisava dela. Não sei se acordou completamente, mas, mesmo que estivesse a dormir, compreendeu o meu abatimento. Mais tarde, acordada, disse-me: -Parece-me que tens fome. -Sim, Helen. -Que queres? -Uma sanduíche de cebola... não, duas sanduíches, de cebola com pão de centeio. -Vou arranhar mais uma, para te fazer companhia. -Não tens apetite? -Decerto que sim. Desceu ràpidamente as escadas e voltou com as sanduíches, leite e dois copos. A cebola estava fortemente temperada com especiarias. -Mary, minha pintainha...comecei eu. -Esvazia a boca antes de falares.
-Pensaste bem quando disseste nada quereres ouvir sobre negócios? -Sim... Porquê? -Tenho um negócio. Preciso de mil dólares. -É para aquilo de que te falou Mr. Baker? -De certa maneira, sim. Mas também é um negócio privado. -Está bem. Passa um cheque. -Não, minha querida, quero que vás receber a impor tância em notas. E no banco podes dar a entender que queres comprar outros móveis ou tapetes. -Mas não será esse o caso. -Faz-me isso. -É um segredo? 138 -Disseste-me que era assim que querias. -Sim... Com efeito, é melhor. Esta cebola é fogo. Mr. Baker aprovará? -Seguramente, se fosse ele a fazer o negocio. -Quando queres? -Amanhã. -Não posso comer isto. Acho que devo já cheirar bas tante mal. -Tu és sempre a minha querida. -Não posso deixar de pensar no Marullo. -Que queres dizer? -A sua vinda aqui e os doces que nos trouxe. -Os desígnios do Senhor são insondáveis. -Não sejas sacrílego. A Páscoa ainda não acabou. -Sim. E uma hora e quinze. -Meu Deus. Fazíamos melhor em dormir. -Ah! Aí é que está o busílis... Shakespeare. -Tudo  te serve de pretexto para a brincadeira. Mas não se tratava de uma brincadeira. A dor perma necia e, em vez de diminuir, aumentava, levando-me a per guntar a mim próprio: "Porque me dói?" Os homens habi tuam-se a tudo, mas isso não acontece de repente. Há tempos, transportei nitroglicerina numa fábrica de dinamite. Era bem pago, pois tratava-se de um produto indesejável. A princípio, cada passo era um horror, mas ao fim de uma semana aquilo tornou-se um trabalho vulgar. Mas nunca me identifiquei com o mister de caixeiro de mer cearia. Uma coisa à qual nos habituamos torna-se desejá vel em comparação com outra a que não nos foi possível acostumar. Na escuridão, com os pontos vermelhos dançando diante dos meus olhos, passei em revista aquilo a que se chama casos de consciência, e não cheguei a nenhuma conclusão. Poderia eu, depois do rumo fixado, mudar de direcção ou mesmo bater em retirada? Sim, mas não queria. Estava em face de uma nova dimensão que me fasci nava. Era um pouco como se tivesse encontrado um conjunto de músculos até agora sem emprego ou como se o sonho de toda a criança de poder voar se tornasse realidade. Muitas
vezes acontece-me reconstituir cenas ou recapitular conver sas e fixar pormenores que antes me haviam escapado. Mary acha estranha a visita do Marullo, e eu confio no 139 #instinto de minha mulher. Tomei aquele gesto como um agradecimento por não o ter enganado. Mas a reacção de Mary leva-me a procurar uma razão que me escapou. O  Marullo não recompensou uma acção passada: deitou o isco com vista a um facto a vir. Ele não se interessa por mim senão na medida em que possa ser-lhe útil. Lembrei-me das suas lições de comércio e da nossa conversa sobre a Sicília. Ele perdera o seu aprumo. De uma maneira ou de outra, ele queria ou tinha necessidade  de que eu lhe desse alguma coisa. Havia um meio de saber de que se tratava. Se me atendesse um pedido que em tempo normal teria recusado, eu saberia que ele estava  profundamente perturbado. Pus Marullo de parte para me ocupar de Margie. Margie... esta canção dava uma ideia da sua idade: Margie, eu sonho contigo, Margie. Darei o mundo por... Entre os pontos vermelhos do tecto, projectei as cenas passadas com ela, esforçandome por não acrescentar nada que não fosse verdade. Durante bastante tempo, talvez dois anos, tinha havido uma Mrs. Young-Hunt amiga de minha mulher. Ela era objecto de conversas que eu não escutava. Depois, bruscamente,  aparecera Margie Young-Hunt, e em seguida Margie. Talvez tivesse entrado alguma vez na loja antes de Sexta-Feira Santa, mas não me recordo. Naquele dia foi como  se se tivesse apresentado. Pode ser que antes ela não me tivesse visto, tal como eu não a vi. Mas, depois, estava bem presente... Que desejava? Tratava-se de simples  malícia da parte de uma mulher ociosa? Agia segundo um plano determinado? Parecia-me que ela manobrava por forma a tornar-me consciente da sua existência e a reter  a minha atenção. Tinha a impressão de que fora de boa fé que começara a ler-me o futuro nas cartas, com a intenção de oferecer o espectáculo habitual e bem estudado. Depois produzirase  algo que tudo mudara. Nem Mary nem eu tínhamos dito nada que fosse susceptível de a perturbar. Talvez ela fosse realmente intuitiva e soubesse ler no espírito dos  outros. Estava bem disposto a acreditá-lo, dado que me surpreendera a meio do caminho de uma metamorfose. É certo que podia tratar-se de um acaso. Mas por que motivo,  contra o seu desejo, tinha corrido a Montauk para encontrar-se com o caixeiro viajante, para, em seguida, prestar um serviço a Marullo ? Quando ela entregava uni segredo, tinha bem a consciência do que fazia. Algures no sótão,  por entre os livros, achava-se um relato da vida de... Era Bering? Não, Baranov, Alexandre Baranov, governador russo à volta de i 8oo. Talvez ali se encontrasse  qualquer referência ao Alasca como lugar de degredo para as feiticeiras. A história que Margie contara era demasiado inverosímil para ser falsa. Preciso de a comprovar.  Poderia ir agora mesmo ao sótão sem acordar Mary. Naquele momento os velhos degraus da escada estalaram uma vez, duas vezes, três vezes. Não se tratava de uma manifestação devida à mudança de temperatura. Devia  ser a Ellen, que era sonãombula.
Evidentemente que amo a minha filha, mas por vezes ela atemoriza-me porque é inteligente, ciumenta e, ao mesmo tempo, apaixonada. Sempre foi ciumenta do irmão e  muitas vezes sinto que o é também de mim. Parecia-me que as suas preocupações sexuais começavam bem cedo. Terão todos os pais esta impressão? Quando pequenita, o  seu interesse pelos órgãos genitais masculinos era muito embaraçoso. Depois mudou. Nunca lhe conheci aquele estado romanesco em que a donzelinha é toda inocência.  Pelo contrário, a casa tremeu de ansiedade, as paredes vibraram com o temor. Li que na Idade Média eram suspeitas de feitiçaria as raparigas na idade da puberdade,  e não estou longe de o acreditar. Durante certo tempo tivemos aquilo a que chamávamos por brincadeira o nosso fantasma doméstico. Os quadros desprendiamse, a louça  quebrava-se no solo. Ouvia-se martelar no sótão e tamborilar na cave. Ignorava a causa disso, mas interessava-me pelas idas e vindas de Ellen. Esta não era responsável  pelas quedas e pelo barulho, tive a certeza disso, mas verifiquei igualmente que tudo aquilo só acontecia quando ela estava em casa. Podia estar imóvel, olhando  em frente quando o fantasma se manifestava, mas tinha de estar presente. Na minha infância ouvi dizer que o fantasma de um dos nossos antepassados, piratapuritano, frequentava a velha casa dos Hawley. Mas era, segundo parecia, um espírito  bem educado, que passeava e resmungava como devia ser. Os degraus estalavam sob o seu peso invisível e chocava com as paredes quando uma morte estava imi 140 r4r #vente. Tudo isto correctamente, com decência. O duende de há anos era muito diferente... malicioso, malévolo e vingativo. Nunca quebrou um objecto sem valor. Depois  foi-se embora. Verdadeiramente, nunca acreditei nele. Era uma brincadeira familiar, não obstante manifestar-se e ser bem real a queda dos quadros e a porcelana quebrada. Quando partiu, começou o sonambulismo de Ellen, e nesse estado se encontrava no momento a que me reporto. Ouvi os seus passos lentos mas seguros descer a escada.  Ao mesmo tempo, Mary, ao meu lado, suspirou profundamente e murmurou qualquer coisa. Uma aragem agitou a sombra dos ramos que se projectava no tecto. Deslizei suavemente para fora do leito e enfiei o meu roupão de banho. Acredito, como toda a gente, que não se deve acordar bruscamente um sonãombulo. Quando se sobe ou desce uma escada junto à parede, os degraus não estalam. Fiz essa descoberta quando em adolescente vinha tarde para casa. Este pormenor é-me útil  quando não quero incomodar Mary. Com os dedos na parede para me guiar, desci devagar. Uma luz difusa vinda dos candeeiros da rua dissipava a escuridão. Distingui Ellen, que parecia envolta num nimbo.  Talvez fosse a sua camisa de dormir branca. O rosto permanecia na sombra, mas os braços e as mãos agarravam a luz. Estava de pé diante da vitrina que contém os tesouros 
sem preço da família: bibelots esculpidos, baleias, barcos completamente equipados com remos, equipagem, arpoador à proa, tudo trabalhado em osso de baleia ou em  dente de morsa; um modelo reduzido do Belle Adair, reluzente de verniz, com as velas caçadas e o cordame brunido e poeirento. Havia também objectos chineses, trazidos  do Oriente pelos velhos capitães. Ébano e marfim, deuses risonhos ou sérios, Budas serenos e obscenos, flores talhadas em quartzo rosado, algum jade também... sim,  belo jade e taças finas, translúcidas, deslumbrantes. Alguns destes objectos devem ter muito valor... como certos cavalinhos disformes mas extraordinàriamente vivos...  mas, se o têm, é por mero acaso. Como poderiam aqueles marinheiros, aqueles homens matadores de baleias, distinguir entre o belo e o feio? Esta vitrina tinha sido sempre o lugar sagrado dos meus
 
 
142 Parenti... a máscara romana dos antepassados ou os lares e os penates encontrados numa pedra caída da Lua. Nós temos mesmo uma raiz de mandrágora-um homenzinho perfeito  saído do esperma ejaculado por um enforcado-e possuímos também uma verdadeira sereia-agora já bastante gasta-, que é astuciosamente feita da reunião da parte superior  de um macaco com a parte inferior de um peixe. Ela encolheu com os anos e vêem-se as costuras, mas os seus pequenos dentes continuam a luzir num sorriso feroz. Suponho que cada família tem um objecto mágico que, de geração em geração, excita, consola e inspira. O nosso era-como direi?-uma espécie de globo de pedra translúcida,  talvez quartzo ou jade, ou mesmo esteatite. Media dez centímetros de diâmetro e os círculos determinados por cortes nas duas regiões polares tinham diâmetros de  três centímetros. Uma teia de esculturas parecia agitar-se na sua superfície. Aquilo vivia, mas não possuía nem cabeça nem cauda, nem princípio nem fim. A pedra  polida nunca parece seca quando se lhe toca, mas sim um pouco aderente como a carne, e sempre quente. Podia-se ver o interior, mas não através dela. Algum velho  marinheiro meu antepassado deve tê-la trazido da China. Era mágica, agradável de ver, apalpar, esfregar contra as faces, acariciar com os dedos. Este globo estranho vivia na vitrina. Em criança, em adolescente, e mesmo  já homem, apenas fui autorizado a tocar-lhe, mas nunca a retirá-lo dali. As suas cores, as suas rugas e a sua textura mudavam conforme os meus desejos. Um dia imaginei-o  como um seio : por mim, rapazinho, intumesceu e sofreu. Mais tarde, tornou-se cérebro, enigma, coisa móvel... pergunta que está toda em si mesma e não exige resposta  para se destruir nem princípio ou fim para se limitar. A vitrina estava munida de uma fechadura de cobre da época colonial e de uma chave, sempre no seu lugar. A minha filha adormecida segurava a pedra, acariciava-a, afagava-a como se ela vivesse. Apertava-a contra o peito ainda sem formas, punha-a sobre a face, sob a orelha, 
embalava-a como um cãozinho de mama. Trauteava uma melodia lenta, que parecia um estertor de prazer e de desejo. Ao princípio, tive medo de que ela quisesse quebrar 143 o objecto ou levá-lo para o esconder. Mas depois vi que, entre os seus dedos, ele era mãe, amante e filho. Perguntei a mim próprio como poderia acordá-la sem lhe meter medo. Mas por que motivo acordamos os sonãombulos? Com medo de que eles se magoem? Nunca ouvi dizer  que  eles tenham feito mal a si próprios antes de os tirarem daquele estado. Porque havia de intervir? Não se tratava de um pesadelo povoado de dor ou de terror, mas  antes de um prazer para além da compreensão acordada. Que direito tinha eu de estragar esse prazer? Recuei suavemente e sentei-me na minha grande poltrona, à espera. Partículas de luz pareciam turbilhonar na sala escura, semelhantes a outros tantos mosquitos. Talvez não passassem de pontos de cansaço nadando no fluido dos meus  olhos. Mas eram tão convincentes como o halo luminoso que emanava não só da camisa de dormir de Ellen, mas também da sua pele. Agora eu via-lhe a face, que não parecia  já ser a de uma rapariguinha-não porque tivesse envelhecido, mas sim amadurecido, completado. Contràriamente ao seu hábito, tinha os lábios fechados. Ao fim de alguns momentos, Ellen tornou a pôr o talismã no seu lugar com um movimento firme e seguro. Fechou a porta da vitrina e deu uma volta à chave. Depois,  passando ao lado da minha poltrona, saiu da sala e subiu a escada. Pareceu-me que não andava como uma criança, mas sim como uma mulher e que levava consigo toda a luminosidade da sala. Talvez isso não fosse mais que um produto do  meu espírito. Mas uma coisa era certa: a escada não rangia sob os seus passos. Pouco depois, subi atrás dela. Encontrei-a na cama, adormecida e bem tapada pelos cobertores. Respirava com a boca entreaberta e a sua face era a de uma criança. Sem reflectir, tornei a descer, abri a vitrina e tirei dela o globo. Estava ainda quente do calor de Ellen. Como tantas vezes fiz na minha infância, segui com o  dedo o traçado indefinido, e isso consolou-me. Senti-me mais perto de Ellen. Esta pedra aproximá-la-ia de mim... dos Hawley? Na segunda-feira, a Primavera transformou-se pérfidamente em Inverno. Uma chuva glacial e um vento raivoso sacudiram a folhagem tenra das árvores confiantes. Os  pardais, nos relvados, prontos para os divertimentos amorosos, foram arrebatados como se fossem argueiros de palha e gritavam a sua cólera à inconstante Primavera. Saudei Red Baker, que andava no seu giro pelos passeios, a cauda levantada como um estandarte de guerra. Os seus olhos piscavam por causa da chuva. " A partir de  agora", disse eu, "você e eu não podemos continuar a ser amigos senão na aparência. Sinto obrigação de dizer-lhe que por detrás dos sorrisos que trocamos se trava  uma batalha feroz, uma luta de interesses." Poderia ter-lhe dito mais, mas ele estava com pressa de acabar o seu trabalho para ir resguardar-se. Joey Morphy foi pontual. Talvez estivesse à minha espera-estava, com certeza.
-Que porcaria de tempo-disse ele, enquanto o impermeável lhe batia nas pernas.-Ouvi dizer que você teve contactos sociais com o meu patrão. -Precisava de alguns conselhos. As pessoas só os aceitam quando eles coincidem com aquilo que querem faz er. -Cheira-me a investimentos.
145 Capítulo IX
 
-Mary quer algumas novas peças de mobiliário. Quando uma mulher deseja uma coisa, apresenta-a como um bom emprego de capital. -lsso não acontece só com as mulheres-respondeu , Morphy.-Eu faço o mesmo. -Enfim, trata-se do dinheiro dela. Vai dar uma volta pelas lojas à procura de um bom negócio. Ao canto de High Street, uma tabuleta metálica, arrancada à loja de brinquedos Rapp, voou pelos ares, sibilando, e caiu estrondosamente no chão. -Ouvi dizer que o seu patrão tinha a intenção de fazer uma viagem à Itália. -Não sei. Parece-me estranho que não a tenha já feito. Habitualmente, aquelas famílias são muito unidas. -Tem tempo para uma chávena de café? -Tenho de varrer a loja. A manhã será trabalhosa, depois das férias. -Ora vamos! É preciso saber viver. Um amigo de Mr. Baker pode dar-se ao luxo de perder um pouco de tempo com uma xícara de café. Assim, escritas, as suas palavras podem parecer vulgares, mas ele tinha o talento de pôr um tom inocente, bem intencionado, em tudo quanto dizia. Nunca tinha entrado de manhã no Foremaster Grill para tomar café, e devia ser o único homem da cidade que o não fazia. Para todos os outros, era um vício, um hábito,  era como ir ao clube. Empoleirámo-nos nos tamboretes em frente do balcão e Miss Lynch-tinha andado na escola com ela-deitou o café sem que uma gota caísse no pires.  Junto de cada chávena estava uma minúscula garrafa de leite. Miss Lynch lançou-nos, como se fossem dados, dois torrões de açúcar embrulhados em papel. -Olhos de víbora-gritou-lhe Morph. Miss Lynch... Miss Lynch. A palavra "Miss" fazia parte do seu nome, formava um todo com ele. Tinha-se tornado uma parte de si própria. Penso que nunca mais poderá  desembaraçar-se de tal palavra. O seu nariz está cada vez mais avermelhado. Não é do álcool, não, apenas sinusite. -Bom dia, Ethan-disse ela.-Festeja alguma coisa? -Ele fez-me entrar à força-respondi. E, numa tentativa de ser amável, acrescentei: -Annie. Voltou a cabeça como se ouvisse o estampido de um tiro, e depois, quando a ideia atingiu o objectivo, sorriu, parecendo exactamente, apesar do nariz vermelho, a  estudante que eu conhecera. -Alegro-me de ver-te, Ethan-disse ela, ao mesmo tempo que esfregava o nariz com um guardanapo de papel. - Quando ouvi aquilo, fiquei surpreendido - disse Morph, libertando do papel um pouco de açúcar.-Temos uma ideia, ela fixa-se e depois acreditamos que é exacta.  Ficamos abalados quando o não é. -Não percebo nada do que está a dizer. -Eu, também não. Os diabos levem estes papéis. Por que razo não põem o açúcar a granel numa taça? -Talvez para que as pessoas não gastem muito.
-É possível. Conheço um tipo que viveu de açúcar durante uma porção de tempo. Servia-se nas máquinas automáticas em que cada chávena custa dez cêntimos. Bebia metade  e enchia o resto de açúcar. Isto evitou-lhe morrer à fome. Como de costume, perguntei a mim próprio se não se trataria do próprio Morph-um ser estranho, coriáceo, sem idade. Ele era bem educado, mas apenas a sua técnica  intelectual me levava a pensar que assim era. Escondia a sua erudição por detrás de expressões eivadas de calão, numa linguagem de iletrado, atrevida e dura. -É por isso que só põe um torrão?-perguntei. Sorriu. -Cada pessoa tem a sua teoria. Qualquer que seja o grau de desilusão em que se encontra, um homem terá sempre a sua teoria. Uma teoria pode conduzir a uma vereda  de jardim, mesmo que se tenha seguido a sinalização da estrada. Foi o que me fez enganar acerca do seu patrão. Há muito tempo que não bebia café fora de casa. Este não era famoso, pois nem sequer sabia a café. É certo que estava quente e tinha a cor do café, como pude verificar  ao entorná-lo sobre a camisa. -Não compreendo o que quer dizer. -Vou tentar atingir o ponto onde adquiri esta ideia. Ela veio-me porque ele disse que está aqui há mais de quarenta anos. Estou de acordo em que sedam trinta e cinco,  ou mesmo trinta e sete, mas nunca quarenta. 746 747 -Não estou muito arguto esta manhã. -Se fosse há quarenta anos, teria chegado em 1920. Ainda não percebeu? Como sabe, num banco é necessário tirar informações ràpidamente. Bem depressa se obtém uma  série de lugares-comuns que nos impedem de raciocinar. Assim, é fácil que nos enganemos. Terá vindo em 1920 ? Posso ter-me enganado. Acabei o café. -É tempo de ir varrer-observei eu. -Você também me enganou-disse Morph.-Se me tivesse feito perguntas, não me teria deixado enrolar. Mas não as fez, e eu vou falar. Foi em 1921 que saiu a primeira  lei contra a imigração. -E então? -Em 1920 ele tinha o direito de entrar livremente, mas em 1921 já não. -E depois? -Portanto... o meu cérebro indiscreto diz-me que entrou em 1921 pela porta do cavalo. Assim não pode voltar ao seu país, pois não teria passaporte para o regresso. -Meu Deus! Que feliz eu sou em não ser banqueiro. -Você seria um banqueiro bem melhor que eu, pois falo de mais. Se ele voltar, isso significa que me enganei. Espere que eu volte. Entornei café por cima de mim. -Até à vista, Annie. -Aparece por cá, Eth. Nunca te vejo. -Entendido. -Não diga àquela Eminência macaroni que farejei nele um alvo para deportação-pediume Morph quando atravessámos a rua. -Porque havia de fazê-lo?
-E porque o faço eu? Que leva nesse cofre de jóias? -Um chapéu de cavaleiro do Templo. As plumas amareleceram. Vou ver se podem embranquecê-las. -Você pertence a isso? -É de família. Nós já éramos mações antes de George Washington ser o grão-mestre. -Ah, foi? E Mr. Baker também é? -No caso dele, também é tradição de família. Chegámos à ruela. Morph procurou a chave na algi beira. -É por isso que se procede à abertura do cofre como se se tratasse de uma reunião da Loja. Por pouco não se levam círios. É uma coisa sagrada. -Diga-me, Morph, você, esta manhã, está cheio de inspiração. A Páscoa não o purificou? -Sabê-lo-ei dentro de oito dias. Não, eu falo a sério. Quando chegam as nove horas, todos nós esperamos de pé e de cabeça descoberta diante do templo sagrado. A  chave dá a volta, o irmão Baker dobra o joelho, abre o cofre e todos nos inclinamos diante do Grande Deus Dinheiro. -Você está lançado, Morph. -Talvez. O Diabo leve esta fechadura. É mais fácil abri-la com uma gazua que com a chave.-Deu uma série de pontapés na porta, que acabou por abrir-se. Depois, tirando  uma folha de papel higiénico da algibeira, comprimiu-a no fundo do buraco da fechadura. Contive-me no momento em que ia perguntar: "Isso não é perigoso? À pergunta que não cheguei a fazer, ele respondeu: -Esta porcaria não se abrirá por si. Como é evidente, o Baker assegura-se de que as portas estão fechadas quando se abre o cofre. Não fale das minhas desconfianças  ao Marullo. -Entendido, Morph - respondi quando cheguei à minha porta, onde procurei o gato que sempre tentava entrar. Desta vez, não estava ali. No interior, a loja pareceu-me mudada, nova. Vi coisas que nunca tinha visto e não notei o que antigamente me incomodava ou irritava. E porque não? Olhem o mundo  com novos olhos, ou até com novos óculos, e depressa terão um mundo diferente. A válvula do autoclismo da casa de banho chiava suavemente. Marullo não queria mandá-la substituir, pois a água não era contada e aquilo não incomodava ninguém. Fui buscar um peso de quilo ao prato da velha balança e prendi-o à corrente do autoclismo, um pouco acima da pega. O reservatório esvaziou-se bruscamente. Voltei  à loja e escutei o gorgolejar da água. É um som que não se confunde com nenhum outro. Depois tornei a pôr o peso na balança e ocupei o meu lugar atrás do balcão.  Nas prateleiras, a minha congregação esperava. Os desgraçados não podiam partir. Notei a máscara de Mickey sorrindo 148 149 #1 na prateleira reservada aos alimentos para o pequeno almoço. Lembrei-me da minha promessa a Allen. Encontrei a pinça extensível que me servia para tirar os objectos  colocados nas prateleiras superiores. Tirei uma caixa e pu-la junto do meu sobretudo, nas traseiras da loja.
Voltando ao balcão, fui ali acolhido pelo sorriso do Mickey da caixa vizinha. Meti a mão por entre os sacos de massas alimentícias e retirei do seu escaninho o saco de pano cinzento contendo os trocos para a caixa registadora. Depois, assaltado  por uma ideia súbita, estendi a mão até sentir debaixo dos dedos o velho revólver que ali se encontrava há não sei quanto tempo. Era um Iaer _7ohnson, cuja prata  da coronha tinha caído às placas. Abri-o. Os cartuchos estavam cobertos de verdete. O cilindro fora tão untado de massa consistente que só dificilmente girava. Pus  este objecto, pouco recomendável e sem dúvida perigoso, numa gaveta e agarrei num avental limpo, com o qual cingi os rins, tendo o cuidado de dobrar a parte de cima  para que se não vissem os cordões. Haverá alguém que não se sinta admirado com as decisões, os actos, as campanhas dos grandes deste mundo? Serão consequência do raciocínio, ditados pela moral, ou  então alguns deles constituirão o produto de acidentes, de sonhos, de imaginação, das histórias que contamos a nós mesmos? Eu sei com exactidão há quanto tempo represento  a minha peça, pois ela principiou com a narrativa que o Morph me fez do assalto a um banco. Eu seguira-o com um prazer infantil, raramente admitido por um adulto.  A peça desenrolava-se paralelamente à vida da loja e cada novo acontecimento parecia ter nela um lugar próprio. O autoclismo que vertia, o retrato de Mickey desejado  por Allen, a descrição da abertura do cofre. Curvas novas e ângulos inéditos inseriamse nela como o papel higiénico metido na fechadura da porta que dava para a  ruela. A pouco e pouco a peça, até então imaginária, adquiria forma. A primeira contribuição física para aquele bailado mental fora a instalação do peso no autoclismoA  segunda fora tirar o velho revólver para fora. Começava a pensar na cronometragem. Tudo se concretizava. Uso sempre o grande relógio de prata de meu pai. Os seus grossos ponteiros correm por cima de grandes números pretos. E maravilhoso não só pela precisão, como pela beleza. Naquela manhã pu-lo na algibeira da camisa antes de varrer a loja. As nove horas menos cinco,  com a porta da entrada aberta, dei as primeiras vassouradas no passeio. É espantosa a quantidade de poeira que pode acumular-se num fim-de-semana. A chuva transformara  tudo em lama. Como o relógio de meu pai, o banco é um notável instrumento de precisão. As nove horas menos cinco, Mr. Baker desembocou de Elm Street, arrostando o vento. Harry  Robbit e Edith Alden deviam estar à sua espera. Saíram do Foremaster Grill e juntaram-se-lhe a meio da rua. -Bom dia, Mr. Baker -gritei. -Bom dia, Edith. Bom dia, Harry. -Bom dia, Ethan. Você está a precisar de uma mangueira para fazer isso. Encostei a vassoura à entrada da loja, tirei o peso do prato da balança, abri a gaveta - a pantomima desenrolava-se rápida-, prendi o peso à corrente do autoclismo,  subi o avental, prendendo a aba no cinto, vesti o impermeável e caminhei para a porta das traseiras, que abri com um só gesto. Quando o ponteiro dos minutos do meu 
relógio chegou ao algarismo doze, o sino do quartel dos bombeiros começou a tocar. Contei oito passos para atravessar a ruela, depois - mentalmente - outros vinte.  Mexi a mão, mas não os lábios, concedi a mim próprio dez segundos e movi a mão outra vez. Tudo isto eu imaginei muito nitidamente-contava, enquanto as minhas mãos  faziam certos movimentos, vinte passos rápidos e seguros e depois mais oito. Fechei a porta que dava para a ruela, tirei o impermeável, pus bem o avental, penetrei  nos lavabos, retirei o peso, voltei ao balcão, abri a gaveta, cheguei à porta principal, peguei na vassoura e olhei o relógio. Eram nove horas, dois minutos e vinte  segundos. Nada mau, mas, com um pouco de treino, conseguiria fazer tudo aquilo em dois minutos. Ainda não tinha varrido metade do passeio quando Stoney, o oficial da Polícia, chegou, vindo do Foremaster. -Bom dia, Eth. Dê-me depressa duzentas e cinquenta de manteiga, meio quilo de presunto, uma garrafa de leite e uma dúzia de ovos. A minha mulher está sem nada. 150 r51 -Pronto, chefe. Como vai isso? Juntei os artigos pedidos e pu-los num saco. -Muito bem - respondeu. - Passei por cá há um minuto, mas ouvi que estava na retrete. -Vou levar uma semana para me livrar de todos os ovos cozidos que engoli. -É assim mesmo. Mas, quando é preciso, deve-se ir. Assim, aquilo dava resultado. Preparava-se para sair, mas de repente voltou atrás. -Que é que aconteceu ao seu amigo Danny Taylor? -Não sei. Apanhou alguma bebedeira? -Não. Tinha um bom aspecto, quase limpo. Eu estava no meu carro quando ele pediu para lhe abonar a assinatura. -Para quê? -Não sei. Ele tinha dois papéis, mas voltou-os, e por isso não pude ver. -Dois papéis? -Sim, dois. Assinou duas vezes e eu também. -Estava em jejum? -Parecia. Tinha cortado o cabelo e posto uma gravata. -Oh, se eu pudesse acreditar! -Sim, também eu. Pobre rapaz. Acho que eles nunca desistem de experimentar. Tenho de ir a casa. Partiu a correr. A mulher de Stoney tem vinte anos menos que ele. Voltei ao trabalho e varri do passeio as placas de lama maiores. Sentia-me mal. O primeiro momento é sempre o mais difícil. Não me havia enganado quanto ao que era costume. Todos os habitantes da cidade pareciam não ter nada em casa. Mas o nosso reabastecimento de legumes e frutos só  se faria ao meio-dia e, assim, as compras eram fracas. Apesar disso, os clientes não me deram um minuto de repouso. O Marullo apareceu às dez horas e, por excepção, deu-me uma ajuda, pesando, empacotando e fazendo trocos. Já há muito tempo que não me ajudava. Em geral, entrava, 
lançava uma vista de olhos e tornava a sair... como um patrão negligente. Mas naquela manhã trabalhou na abertura das caixas quando elas chegaram. Tive a impressão  de que ele não estava à vontade e me observava furtivamente. Não tínhamos tempo para falar, mas sentia o seu olhar pesar sobre mim. Talvez fosse por ter sabido que eu recusara as luvas. Não havia dúvida, o Morphy tinha razão. Certa espécie de homens, ao ouvirem falar de  um acto de honestidade, procuram a desonestidade que o gerou. Esta reacção: "Que vai ele ganhar com isso?" deve ser particularmente forte nas pessoas habituadas  a levar a vida como uma partida de poker. Este pensamento fez nascer em mim um pequeno gorgolejo, mas muito profundo, pois nenhuma bolha rebentou à superfície. Mary chegou cerca das onze horas, radiosa num novo vestido estampado. Estava linda, alegre e um pouco sufocada. Parecia ter feito qualquer coisa agradável mas perigosa.  E assim era. Estendeu-me um envelope castanho. -Pensei que podias precisar disto. Sorriu a Marullo com aquele sorriso muito afectado que ela reserva para as pessoas de quem não gosta. E ela nem gostava nem confiava em Marullo. Tenho notado que  uma mulher nunca gosta do patrão ou da secretária do marido. -Obrigado, querida. És muito compreensiva. Lastimo imenso não poder levar-te a um passeio de barco no Nilo, agora mesmo. -Estás muito ocupado. -Também tu deixaste acabar os mantimentos? -Sim. Aqui tens a lista. Poderás levar isto para casa esta tarde? Estás muito atarefado para arranjares tudo agora. -Nada de ovos cozidos... -Não, meu querido. Mais nenhum durante um ano. -Os coelhos da Páscoa trabalharam bem. -A Margie quer convidar-nos para jantar no Foremaster, esta noite. Ela diz que nunca poderia receber-nos em casa. -Magnifico. -Ela disse-me que a sua casa é muito pequena. -Sim? -Estou a impedir-te de trabalhar-disse Mary. Os olhos de Marullo estavam fixos no envelope castanho que se encontrava entre os meus dedos. Por debaixo do avental, meti-o na algibeira. Ele sabia que viera de  um banco. Senti o seu cérebro a trabalhar como um fox-terrier caçando ratos num depósito de lixo. -Não tive ocasião de agradecer-lhe os ovos, Mr. Ma 1-52 1-53 rullo - disse Mary. - Os meus filhos ficaram encaratodos. -Foram simples votos de Páscoa. Você está primaveril com esse vestido. -Obrigada. Estou toda molhada. Julguei que a chuva tinha passado, mas voltou. -Leva o meu impermeável. -Não. Foi só um aguaceiro. Deixo-te com os clientes. O trabalho aumentava cada vez mais. Mr. Baker assomou à porta, mas, ao ver a fila de gente que esperava,
afastou-se. -Virei mais tarde-disse ele. Aquilo durou sem interrupção até ao meio-dia. Depois tudo parou bruscamente. As pessoas almoçavam. O trânsito cessara. Pela primeira vez em toda a manhã, ninguém  veio pedir qualquer coisa. Bebi o leite de uma lata que abrira. Apontei tudo quanto levava da loja para descontar no meu ordenado. Marullo permitia que eu me abastecesse  ao preço do custo, o que representava uma grande economia. Duvido de que pudéssemos viver com o meu ordenado se ele não me fizesse essa concessão. Apoiado ao balcão, ele cruzou os braços, mas este movimento provocou-lhe dores, e então meteu as mãos nas algibeiras, até que a dor o obrigou a também tirá-las dali. -Fiquei contente com o seu auxílio. Nunca vi uma tal corrida, mas é certo que as pessoas não podem alimentar-se com os restos de uma salada de batata. -Fizeste um bom trabalho, rapaz. -É normal. -Não. Eles tornam a vir porque gostam de ti. -Estão simplesmente habituados a ver-me. Sempre aqui estive. Então tentei uma pequena experiência. -Aposto que pensa no sol siciliano. Faz calor na Sicília. Estive lá durante a guerra. Marullo voltou os olhos. -Ainda não tomei uma decisão. - Porquê ? -Sabes... estive ausente tanto tempo... quarenta anos. Já não conheço lá ninguém. -Mas tem lá parentes. -Já se esqueceram de mim. -Gostaria muito de gozar umas férias na Itália... sem espingarda nem mochila. Evidentemente, quarenta anos é muito tempo. Em que ano veio? -Em ig2o... há já tanto tempo. Morph parecia ter acertado. Os banqueiros, os polícias e os empregados de alfândega devem ter um faro especial. Isso deu-me a ideia de fazer uma certa experiência.  Abri a gaveta, tirei o velho revólver e pousei-o sobre o balcão. Marullo pos as mãos atrás das costas: -Onde foste buscar isso, rapaz? -Pensei que precisa de uma licença, se não a tem já. O Decreto Sullivan é rigoroso. -Onde é que ele estava? -Sempre esteve aqui. -Nunca o vi. Não me pertence. Deve ser teu. -Meu? Não. Nunca o tinha visto. Deve ser de alguém. Já que está aqui, não seria melhor pedir uma licença? Está certo de que não lhe pertence ? -Se eu te digo que nunca o vi. Eu não gosto de armas de fogó. -E curioso. Julgava que todos os chefes da Mafia as adoram. -Hem! A Mafia? Queres dizer que eu faço parte da Mafia? -Segundo ouvi dizer, todos os sicilianos pertencem à Mafia. -É ridículo. Eu nem mesmo conheço nenhum. Tornei a pôr o revólver na gaveta. -Aprende-se todos os dias. Em todo o caso, eu não quero cá isto. Será melhor entregá-lo ao Stoney. Digo-lhe que o encontrei por acaso atrás de uma prateleira, o  que é a verdade. -Pois-disse Marullo.-É a primeira vez que o vejo, e não o quero. Não é meu.
-Muito bem. Vou tratar disso. Para obter uma licença era necessária uma boa quantidade de documentos, quase tantos como para obter um passaporte. O meu patrão estava com azar. Tinham-se produzido demasiados acontecimentos em muito pouco tempo. A velha Miss Elgar, a princesa real de New Baytown, I54 155 #veio comprar uma dúzia de ovos. Duas lentes de vidro inquebrável separavam Miss Elgar do mundo exterior. Tinha-me conhecido garoto e não pensava em mim de outra maneira. Podia observar que ela sempre ficava encantada ao ver-me fazer os trocos. -Obrigada, Ethan-disse ela. Os seus olhos deslizaram do moinho de café para Marullo com a mesma indiferença. -Como vai o teu pai, Ethan? -Muito bem, obrigado-respóndi. -Dá-lhe cumprimentos meus. E um bom rapaz. -Sim, Miss, nao me esquecerei. É inútil tentar rectificar a sua cronologia. Parece que todos os domingos, à noite, ainda dá corda ao relógio do avô, apesar de já ter sido electrificado há muitos anos. Não deve ser desagradável viver com o tempo parado, como ela... num crepúsculo sem fim. Gravemente, antes de se afastar, cumprimentou com a cabeça o moinho de café. -Ela é louca-disse Marullo com um dedo espetado nas têmporas. -Onde não há mudanças não há desgostos. -O teu pai morreu. Porque não lho disseste? Mas por qualquer razão relacionada com a originalidade de Miss Elgar, Marullo recompôs-se. É difícil saber até que ponto um homem é difícil ou complicado. Quando se adquire uma certeza, enganamo-nos geralmente. Marullo, ensinado pela experiência, tinha reduzido a três as tentativas de aproximação que fazia com os homens: o mando, a adulação e a compra. Estes três métodos deviam ter dado resultado muitas vezes para que se contentasse com eles. Mas, comigo, o primeiro~á não servia. -Tu és um bom rapaz e também um bom amigo. -O velho capitão meu avô tinha por principio: "Se queres_ conservar um amigo, nunca o ponhas à prova." -E inteligente. -Ele era-o. -No domingo, todo o dia reflecti, rapaz... mesmo durante a missa. A história das luvas tinha-o aborrecido-ou pelo menos eu supunha isso. Para lhe evitar uma perda de tempo, fui ao encontro do assunto. -Por causa do presente do caixeiro viajante, não ?
 
 
zgó -Olá!-Lançou-me um olhar de admiração.-Tu também és inteligente.
-Não o suficiente para trabalhar por minha conta. -Há quanto tempo estás aqui... doze anos? -É isso... há demasiado tempo. Chegou o momento de mudar, não é a sua opinião? -E nunca tiraste nada da caixa, nem levaste para casa fosse o que fosse. -Em mim, a honestidade é um vício. -Não brinques. Eu digo a verdade. Verifico. Sei. -Prenda-me uma medalha na lapela. -Toda a gente rouba... mais ou menos... mas tu não. Eu sei. -Talvez espere roubar tudo. -Não ironizes. Só digo a verdade. -Alfio, você descobriu uma jóia. Não me dê poli mento demasiado, pode trazer-lhe alguma surpresa. -Porque é que não te associarás a mim? -Com quê? Com o meu salário? -Arranjaremos isso de qualquer forma. -Dessa maneira, não posso roubar sem que me roube a mim próprio. Riu apreciativamente. -Tu és esperto, rapaz, mas és honesto. -Não ouviu o que eu lhe disse há pouco. Talvez tenha a intenção de levar tudo. -És honesto, rapaz. -É o que lhe digo. E quanto mais o sou menos alguém o acredita. Alfio, quando quiser esconder as suas intenções, diga a verdade. -Não atinjo o que dizes. -Ars est celare artem. Ele mexeu os lábios, depois rompeu numa risada. -Oh!-exclamou.- Oh! Oh! Hic erat demonstrandum. -Quer um Coca-Cola? -Não é bom para isto.-Cruzou os braços sobre o ventre. -O senhor não é bastante velho para sofrer do estô mago. Nem tem cinquenta anos. -Cinquenta e dois e um péssimo estômago. -Então chegou aqui com doze anos, em i g2o. Começa cedo o ensino do latim na Sicília. 157
 
    Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano..
 
-Era menino de coro-respondeu. -Também eu transportei a cruz. Vou tonar uni Coca-Cola, Alfio. O senhor vai encontrar uma maneira de me associar a si e eu prometo estudá-la. Mas devo pre veni-lo de que não tenho dinheiro. -Tudo se arranjará. -Mas precisarei dele. Os seus olhos, fitos nos meus, pareciam imóveis. -lo Io credo-disse suavemente.
Um sentimento de poder, mas não de glória, invadiu-me. Abri o Coca-Cola, bebi-o e olhei Marullo por debaixo do cilindro castanho. -Tu és um bom rapaz-disse ele. Apertou-me a mão e afastou-se. Com um movimento impulsivo, chamei-o. -Como vai o seu braço? Voltou-se com espanto. -Já não me dói.-Depois saiu, repetindo para si próprio : <Já não me dói." Logo a seguir, voltou, muito agitado. -Tu vais aceitar aquelas luvas. -Que luvas? -Aqueles cinco por cento. -Porquê? -Aceitas, mas pedes seis por cento. Pouco a pouco, comprarás a tua quota. -Não. -Porque dizes não, se eu digo sim? -É inútil, Alfio. Teria aceitado se tivesse necessidade, mas não é esse o caso. Suspirou profundamente. A tarde foi menos trabalhosa que a manhã, mas não estive inactivo. Há sempre uma acalmia entre as três e as quatro horas. Em geral, vinte minutos ou meia hora. Não sei porquê. Depois aquílo recomeça com pessoas que voltam a casa após o trabalho ou mulheres que pensam  n.o jantar um pouco tardiamente. Mr. Baker apareceu no momento da pausa. Esperou, examinando queijos e salsichas no balcão-fri~orífco, Faltava despachar dois cfíentes daquele género de pessoas que  não sabem o que querem, pegando nant objecto para em seguida o reporem no seu lugar, alimentando a esperança r"5S #de verem as coisas saltarem-lhes para os braços ou suplicarem-lhes que as comprem. Finalmente, foram-se embora. -Ethan-disse Baker.-Sabe que a Mary retirou mil dólares da sua conta? -Sim, ela preveniu-me. -Sabe a que os destina? -Evidentemente, pois ela fala nisso há muitos meses. Sabe como são as mulheres. Com o tempo, a mobília deixa de ser nova e quando querem comprar outra declaram que  já não podem ver a antiga. -Não acha um pouco ridículo fazer essa despesa? Disse-lhe ontem que ia surgir uma magnífica oportunidade. -O dinheiro é dela. -Não lhe falei de um jogo arriscado, Ethan, mas sim de um investimento de uma segurança a toda a prova. Num ano, a sua mulher poderia mudar toda a mobília e conservar  os mil dólares. -É difícil, Mr. Baker, impedi-la de gastar o seu dinheiro como lhe apraz. -Não poderia persuadi-la, torná-la razoável? -Nunca pensei nisso. -Julgaria estar a ouvir o seu pai, Ethan. Se quer que o ajude a endireitar-se, será necessário abandonar essa fraqueza. -Sim, senhor.
-E ela não compra aqui. Não, ela vai procurar fora as casas que dão descontos e pagar a pronto. Os comerciantes locais vendem talvez mais caro, mas dar-lhe-iam crédito.  Imponha-se um pouco, Ethan. Veja se a convence a tornar a depositar o dinheiro. Diga-lhe que mo confie. Ela não se arrependerá. -Trata-se do dinheiro que lhe deixou o irmão. -Bem sei. Tentei avisá-la quando ela veio. Mostrou-se muito vaga, dizendo que ia procurar nos arredores. Ela não pode fazer isso sem ter os mil dólares na algibeira.  Seja você razoável, já que ela não o é. -Já perdi o hábito disso. Nunca tivemos dinheiro depois do nosso casamento. -Pois bem, será bom que aprenda a fazê-lo, e depressa, de contrário nunca mais terá nada. Para certas mulheres, o hábito de gastar é como a necessidade de uma droga. z5g #-A Mary não tem tido muitas oportunidades de desenvolver esse hábito. -lsso virá. Quando provar sangue, matará. -O senhor não exprime certamente o seu pensamento. -Pelo contrário, é isso que faço. -Não conheço mulher mais razoável no que toca às coisas de dinheiro. Ele agitava-se cada vez mais à medida que falava. - Você desaponta-me, Ethan. Se quiser triunfar, é necessário que mande na sua casa. Você pode esperar um pouco antes de substituir os móveis. -Eu posso, mas ela não.-Veio-me à ideia que os banqueiros talvez tivessem os olhos munidos de raios X e que ele estava a ver o envelope na minha algibeira. -Vou  experimentar trazê-la à razão, Mr. Baker. -Se já não estiver tudo gasto. Ela está em casa neste momento? -Devia tomar um autocarro para Ridgehampton. -Meu Deus! Lá se vão os mil dólares. -Fica-lhe ainda um pequeno capital. -A questão não está nisso. A única maneira de pros perar é empregar o dinheiro. -Dinheiro atrai dinheiro-disse eu suavemente. -Exacto. Se perder isso de vista, será caixeiro o resto da sua vida. -Lastimo que isso venha a acontecer. -Fará bem em impor uma regra. -As mulheres são muito estranhas. Como o ouviu ontem falar em ganhar dinheiro, supôs talvez que era fácil adquiri-lo. -Pois bem, tire-lhe as ilusões, pois ele é preciso de princípio para arranjar mais. -Deseja beber um Coca-Cola? -Sim, aceito. Ele não sabia beber pelo gargalo. Foi preciso abrir um pacote de copos de cartão. Aquilo refrescou-o um pouco, mas ele bramia como uma tempestade que vai amainando. Duas negras entraram e Baker teve de engolir a sua raiva juntamente com o Coca-Cola. -Fale-lhe! -disse com fúria. Estaria ele irritado porque desconfiava de alguma coisa? Não, o motivo era o não se ver obedecido. Detestamos terrivelmente aqueles que não aceitam os nossos conselhos.
As duas negras eram muito amáveis. Há na encruzilhada uma comunidade de gente de cor composta de pessoas encantadoras. Dispõem de lojas próprias e não vêm até nós  senão de tempos a tempos para verificar se a sua solidariedade racial não lhes custa demasiado caro. Perguntam preços mais do que compram, e percebe-se a razão...  As mulheres são bonitas, com pernas compridas e magras. É surpreendente como o corpo-e também o espírito-se pode ressentir da subalimentação na infância. Pouco antes da hora de fechar telefonei a Mary. -lrei um pouco mais tarde, minha pomba. -Não te esqueças de que jantamos com Margie no Foremaster. -Lembrar-me-ei. -Virás muito atrasado? -Dez ou quinze minutos. Vou dar uma vista de olhos à draga que se encontra no poeto. -Porquê? -Penso comprá-la. -Ali! -Queres que te leve peixe? -Se vires solhas que sejam boas. Nesta altura costuma havê-las. Mas peço-te que não te ponhas a vadiar. Precisas de tomar banho e mudar de roupa. O jantar é no Foremaster,  como sabes. -Não tenhas medo, minha doçura, meu encanto. Mr. Baker deu-me uma boa reprimenda por te deixar gastar mil dólares. -Que tem ele com isso, esse velho bode? -Mary... Mary! As paredes têm ouvidos. -Disseste-lhe o que ele tinha a fazer? -Mas ele não pode. Além disso, é de opinião que tu és um cesto sem fundo. -O quê? -E eu um molengão... o que não é novidade. Ela riu com esse riso em trinados que levanta vagas de prazer na minha alma. -Despacha-te, querido. Despacha-te. Desliguei e fiquei ao lado do telefone, fraco, vazio, 760 I I - O I. D. i6r #feliz. Experimentei lembrar-me de como era a minha vida antes de encontrar Mary. Não o pude-nem pude imaginar como seria sem ela. Só vi um quadro pintado de negro. O Sol já estava mais baixo que as colinas situadas a oeste, mas uma grande nuvem de poeira, apoderando-se da sua luz, tornou a lançá-la sobre o porto, o molhe e  o mar, pintando de cor-de-rosa as cristas brancas. A estacaria do cais é formada por toros triplos cintados de ferro na parte superior e inclinados como defesas  para cortar o gelo do Inverno. No cimo de cada um havia uma gaivota, geralmente um macho, com o corpo de uma brancura imaculada e as asas de um cinzento muito puro.  Quem sabe se cada uma não possui o seu lugar que pode vender ou alugar?
Havia alguns barcos de pesca. Conheço todos os pescadores. Sempre os conheci. Mary tinha razão. Só havia solhas. Comprei quatro a joe Logan e vi-o levantar as redes  e enfiar a faca ao longo da espinha dorsal do peixe tão fàcilmente como se fosse na água. -Como tem passado a sua filha, Joe? -Um dia está bem, depois piora de novo. Aquilo mata-me. -Que pouca sorte. Lamento muito... -Se eu pudesse fazer alguma coisa... -Eu sei... pobre criança. Aqui tem o saco, meta-lhe o peixe dentro. Dê saudades minhas à pequena, Joe. Olhou-me longamente nos olhos, como se esperasse arrancar algum remédio. -Sim, Ethan. Não me esquecerei. A draga trabalhava majestosamente, abrindo o canal, com as luzes todas acesas. As velas de um pequeno iate apoderaram-se por um momento dos últimos raios do Sol  poente. Fiz meia volta e, virando à esquerda, passei diante do velho Yacht Club e do American Legion Hall, cuja entrada era ladeada por duas metralhadoras pintadas de castanho. Trabalhava-se até tarde no estaleiro para aprontar as embarcações antes do Verão. O frio intempestivo do princípio da Primavera tinha retardado a pintura e o envernizamento. Atravessei ràpidamente o estaleiro e depois o canto do 762 porto invadido pela erva. Moderei o andamento ao chegar perto da barraca de Danny. Assobiei uma velha canção para o avisar da minha presença. A barraca estava vazia, mas eu sabia, como se o tivesse visto, que Danny estava escondido entre as altas ervas ou talvez entre as pilhas de madeira que outrora nos  divertíamos a escalar. Certo de que ele viria depois da minha partida, tirei o envelope castanho da algibeira, coloquei-o sobre o leito sujo e afastei-me sempre  a assobiar e não me interrompendo senão para dizer baixinho: -Adeus, Danny. Boa sorte. Foi assobiando que subi Porlock Street, e depois caminhei ao longo das grandes casas de Elm Street até à minha, a dos Hawley. Encontrei Mary no meio da confusão causada pelos preparativos para o jantar no restaurante. Já perdera a lembrança do nosso último jantar fora de casa. Não estamos  em condições de fazer tal despesa. A minha querida estava em combinação de nylon branco, calçada de chinelas. As crianças também tinham sido apanhadas pelo furacão  que varria a casa. Mary preparava-lhes a comida, lavava-as, distribuía ordens e contra-ordens. A tábua de passar a ferro estava instalada na cozinha. Os meus fatos  nos seus cabides, sobre as costas das cadeiras. Parando por um momento na sua correria, Mary fez deslizar o ferro sobre um vestido estendido na tábua. As crianças  estavam demasiado nervosas para comer, mas tinham ordens para isso. Possuo cinco "bons" fatos. Uma quantidade apreciável para um caixeiro de mercearia. Acariciei-os com os dedos. Chamava-lhes Old Blue, Sweet George Brown, Dorian  Grey, Burning Black e Dobbin. -Qual deles visto, carícias? -Carícias ? Ah ! Pois bem, é segunda-feira e não convém muita cerimónia. Talvez o George Brown ou o Dorian. Sim, o Dorian, pois é de meia cerimónia.
-Com o meu laço azul de pintas? -Certamente. Ellen interpôs-se. -Papá. Não ponhas laço! Estás velho para isso. -Sou jovem, alegre e volúvel. -Parecerás uma cegonha. Ainda bem que não te acompanho. z63 #-Também digo o mesmo. Onde foste buscar a ideia de que sou uma velha cegonha? -Bom. Tu não és muito velho, mas já o és para usar laço. -És uma conformista indecente. -Pretendes ter um ar de cegonha? -Mary, agrado-te como cegonha? -Deixa o teu pai sossegado. Ele tem de tomar banho. Pus uma camisa em cima da cama. -Já fiz metade do meu ensaio Eu Amo a América-disse Allen. -Ainda bem, porque quando chegar o Verão vais ter de trabalhar. -Trabalhar? -Na mercearia. -Oh! A notícia não pareceu entusiasmá-lo. Ellen emitiu um ligeiro som, mas, tendo atraído a nossa atenção, calou-se. Mary repetiu às crianças as mil coisas que tinham a fazer e as mil coisas que não podiam  fazer e eu subi para tomar banho. Estava a dar o nó do laço azul com pintas, único no género, quando Ellen se encostou à porta. -Não estarias mal se fosses mais novo-notou com espantosa feminilidade. -Tu preparas-te para fazer a infelicidade de um esposo feliz, minha querida. -Na escola, até os mais crescidos não gostam de usar isso. -O primeiro-ministro Mac Millan usa-o. -Não é a mesma coisa. Papá, é trapaça copiar de um livro ? - Explica-te -Bem, se uma pessoa... se para escrever o meu ensaio eu copiasse passagens de um livro... que é que isso seria? -Depende da forma como procedesses. -Agora sou eu que peço que te expliques. -Se puseres as frases copiadas entre aspas e ao fundo da página o nóme do autor, isso acrescentará dignidade e autoridade ao teu trabalho. Suponho que metade do  que se escreve na América são citações, quando não se trata de antologias puras e simples. Como achas o meu laço? 16¢ -E se não se põe aspas? -Seria um simples roubo. Tu não fizestes isso, não é assim? -Não. -Então qual é a tua preocupação? -Metem uma pessoa na cadeia por isso? -Sem dúvida... se daí resultar um lucro em dinheiro. Não o faças, minha filha. E agora, que tal achas o laço? -Acho que estás horrível. -Se tens a intenção de te juntares ao teu irmão, diz-lhe
que trouxe aquela porcaria da cara do Mickey e que é uma vergonha para ele. -Tu nem me escutas quando falo contigo. -Escuto, sim. -Não, e hás-de arrepender-te. -Adeus, Leda. Dá saudades ao cisne. Afastou-se. As raparigas dão comigo em doido, pois são demasiado raparigas. Mary estava bela, radiosa. A sua pele irradiava uma luz interior. Deu-me o braço e descemos Elm Street sob a abóbada das árvores e a luz dos candeeiros brincando com as nossas sombras. Caminhávamos, posso afirmá-lo, com O orgulho e a elasticidade do puro-sangue avançando para a meta. -Deves ir a Roma! O Egipto não é suficientemente grande para ti. O vasto mundo chama-te. Ela riu de uma maneira que faria inveja à nossa filha. -Sairemos mais vezes, minha querida. -Quando? -Quando formos ricos. -E seremos? -Dentro em pouco. Ensinar-te-ei a calçar belos sapatos. -Acenderás charutos com notas de dez dólares? -De vinte. -Agradas-me. -Oh, minha senhora, o seu aprumo confunde-me. Margie esperava-nos como perfeita anfitrioa. Apresen tou-nos o companheiro, um tal Mr. Hartog, de Nova Iorque, bronzeado com o auxílio da lâmpada de ultra violetas e mostrando uns dentes que pareciam teclas de piano. Mr. Hartog tinha o ar confiante de uma carta la crada, mas respondia a tudo com um sorriso apreciativo. 165 #-Como estão?-perguntou Mary. Mr. Hartog riu. -Já sabe que a sua amiga é uma feiticeira?-perguntei eu. Mr. Hartog voltou a rir. -Reservei uma mesa ao lado da janela. Aquela. -E mandou pôr-lhe flores ! -Mary, eu tinha de fazer alguma coisa para agradecer a vossa gentileza. A conversa teve este aspecto, antes e depois de Margie nos instalar. Mr. Hartog ria a cada frase. Era um homem brilhante, isso via-se. Preparei um plano para lhe  arrancar uma palavra, mas isso seria mais tarde. A toalha da mesa era branquíssima e fina e os talheres imitavam muito bem a prata. -Como sou eu que convido, peço vermute para todos, quer queiram, quer não. Mr. Hartog riu. Os vermutes chegaram, servidos em copos tão vastos como banheiras para pássaros e acompanhados por duas cascas de limão. O primeiro trago fazia o efeito de uma mordedura  de vampiro, em seguida vinha a anestesia, depois o sabor melhorava e para o fim aquilo tornava-se agradável. -Vamos repetir-disse Margie.-A cozinha aqui é boa, mas não excelente. Contei que gostaria de abrir um bar no qual cada pessoa só poderia tomar o segundo vermute. Dessa maneira, faria fortuna.
Mr. Hartog riu e quatro novas banheiras apareceram na mesa enquanto eu ainda mastigava a primeira casca de limão. O primeiro gole do segundo copo deu a Mr. Hartog o dom da palavra. Tinha voz de baixo, vibrante como a de um actor, ou de um cantor, ou ainda de um vendedor de produtos  que ninguém quer. Uma voz persuasiva. -Mrs. Young-Hunt disse-me que se ocupava de negócios aqui. Esta cidade é fascinante e ninguém ainda a estragou. Preparava-me para lhe explicar em que consistiam os meus negócios, quando Margie apanhou a bola no ar. -Mr. Hawley representa o futuro poderio desta região.
 
 
166 -Sim? Qual é o seu ramo? -Ele ocupa-se de tudo-respondeu Margie.-Mas não abertamente, compreende? Os olhos dela rilhavam com um clarão insólito. Olhei os de Mary, e neles não vi ainda nada. Margie devia ter bebido antes da nossa chegada. E talvez o companheiro tivesse feito o mesmo. -Não vale a pena protestar-disse eu. Mr. Hartog voltou ao seu riso. -Você tem uma mulher encantadora. Já é meia bata lha ganha. -E que batalha! -Ethan, vão pensar que batemos um no outro. -E batemos mesmo. Esvaziei metade do copo e uma vaga de calor desen jcadeou-se por detrás dos meus olhos. Um dos vidros da anela reflectia a chama de uma vela, que parecia girar lentamente. Talvez me tivesse hipnotizado sem o auxílio  de ninguém, pois ouvi eu próprio dizer -Mrs. Young-Hunt e a Feiticeira do Oriente. Um vermute não é uma bebida, é um filtro. A vidraça iluminada continuava a atrair-me. -Oh, meu caro! Sempre me julguei uma Ozma. Não era ela a mais perversa das Feiticeiras do Oriente? -De facto, era. -E não é verdade que ela se evaporou? Através do vidro distingui a silhueta de um homem caminhando no passeio. Por causa do vidro, a sua silhueta mostrava-se distorcida, mas via-se que inclinava a cabeça para a esquerda e metia os pés para dentro. Era o que Danny costumava fazer. Imaginei-me a levantar-me de um salto e a correr atrás dele até à esquina de Elm Street. Mas ele desaparecera, sem dúvida no jardim da segunda casa. Chamei: "Danny! Danny! Devolve-me o dinheiro. Peço-te. Danny, devolve-mo. Não lhe pegues. Está envenenado. Eu envenenei-o." Ouvi um riso. Era Mr. Hartog. -É verdade, preferia ser Ozma-dizia Margie. Limpei as lágrimas com o guardanapo. -Vale mais bebê-lo que lavar com ele os olhos-notei eu.-lsto queima.
-Tens os olhos vermelhos-disse Mary.
 
 
167 #Não pude verdadeiramente fazer companhia aos demais, mas, quase sem o sentir, falei, contei histórias e ouvi o riso cristalino de Mary. Devia ter estado engraçado,  encantador mesmo, mas, na verdade, não estava à mesa. Estou certo de que Margie o notou, pois não cessava de me fitar com uma muda interrogação nos olhos. Que os  diabos levem aquela feiticeira! Ignoro o que comemos. Lembro-me do vinho branco que devia ter acompanhado o peixe. O copo frágil girava como uma hélice. Houve também aguardente, o que significa  _que devo ter bebido café. E é tudo. A saída, Mary e Mr. Hartog adiantaram-se. -Onde estava você?-perguntou-me Margie. -Que quer dizer? -Durante uma boa parte do tempo não esteve connosco -Para trás, feiticeira! -Entendido, anjinho. A caminho de casa, busquei as sombras dos jardins. Mary, com o passo um pouco vacilante, dera-me o braço. -Que noite agradável-disse ela.-Nunca me senti tão bem. -Foi encantadora. -A Margie é uma perfeita anfitrioa. Pergunto a mim mesma se poderia igualá-la. -Sim. Ela pôs-se no seu lugar. -E tu, Ethan, sabia que eras engraçado, mas não a esse ponto! Mr. Hartog já não podia rir mais com a tua história do cão de Mr. Baker. Tinha-a contado? Qual? "Oh, Danny... devolve-me o dinheiro ! Peço-te! -Tu vales um espectáculo-acrescentou a minha Mary. Abracei-a no limiar da nossa casa, tão fortemente que ela gemeu. -Querido, magoas-me. Por favor, podemos acordar as crianças. Tinha a intenção de esperar que adormecesse para ir à barraca e, se necessário, avisar a Polícia. Mas eu estava seguro de que Danny tinha partido. Deitado na escuridão, olhava os pequenos pontos vermelhos e amarelos que nadavam no líquido dos meus olhos. 168 Eu sabia o que fizera, e Danny também. Pensei no massacre dos coelhos. Talvez só seja horrível a primeira vez. É necessário olhar em frente. Nos negócios, como na  política, deve-se abrir caminho a golpes de machado. Uma vez triunfante, pode-se ser magnãonimo e amável... mas primeiro é preciso atingir o objectivo.
170 Capítulo X
 
A base aérea de Templeton não fica a mais de quarenta quilómetros de New Baytowncinco minutos de voo para os aviões a jacto. Eles sobrevoam-nos com uma regularidade  cada vez maior. E um enxame de abelhas mortais. Gostaria de poder gostar deles, admirá-los como o faz o meu filho Allen. E sem dúvida o faria se a sua única função  não fosse matar, e disso já eu me fartara. Não aprendi ainda, como Allen, a conhecêlos pelo som. Ultrapassam a barreira sonora com um estrondo que me faz pensar  que o calorífero acaba de explodir. Logo de manhã muito cedo uma esquadrilha passou ribombante e eu tremi, sobressaltado. Deve ter-me feito lembrar aqueles canhões alemães de oitenta e oito milímetros,  que nós tanto admirávamos e tanto temíamos. Suando de medo debaixo do lençol, apurei o ouvido para escutar o sussurro hostil que se perdia ao longe e pensei no calafrio que devia agitar cada homem por esse  mundo fora, comunicando-lhe um medo mais físico que moral. Afinal, não é o avião que aterroriza, mas sim o objectivo final. Quando um problema se torna demasiado vasto, o homem tem sempre o recurso de tentar ignorá-lo. Mas ele infiltra-se, penetra no espírito, mistura-se ao que já ali  se encobria e dá origem ao descontentamento e à inquietação, a um sentimento de culpa, a um desejo de se manifestar antes que seja demasiado tarde. Talvez os nossos  psicanalistas se não ocupem já de complexos, mas simples 171 #mente daquelas ogivas prestes a transformarem-se em terríficos cogumelos de fumo. Parece-me que cada um de nós se agita com uma alegria forçada e barulhenta, como  aquela que exibem os foliões numa noite de fim de ano. Esqueçamos o passado e beijemos a mulher do vizinho. Voltei a cara para a minha. Ela não sorria no seu sono. Os cantos da boca estavam descaídos e viam-se rugas de cansaço junto aos olhos. Estava com a cara dos dias  maus. Estava doente. É a mulher com melhor aspecto quando se sente bem, mas a doença fá-la ràpidamente passar ao pólo oposto. Uma outra esquadrilha passou numa explosão de som. Foram precisos meio milhão de anos para nos habituarmos ao fogo, mas bastaram quinze para familiarizarmos o pensamento  com uma força que ultrapassa infinitamente a do fogo. Saberemos usá-la, domesticála? Se as leis do espírito são idênticas às da matéria, conhecerá a alma humana  a desintegração? Será isso que acontece a todos? A mim, a vocês? Lembro-me de uma história que me contava a tia Deborah há muito tempo. No princípio do século passado, alguns dos meus antepassados pertenciam à seita de Campbell.  A tia Deborah era nessa altura uma criança, mas lembra-se de que anunciaram o fim do mundo. Os seus parentes distribuíram todos os bens, ficando apenas com a roupa 
da cama. No dia indicado pela profecia, vestiram-se para ir para as colinas aguardar o momento derradeiro. Vestidos de branco, centenas de homens e mulheres reuniramse  ali para orar e cantar. Quando veio a noite, cantaram mais alto e dançaram. A hora fatídica aproximava-se e, súbitamente, uma estrela cadente atravessou o céu. Foi  uma explosão de gritos. Pareciam lobos ou hienas, dizia a minha tia, apesar de nunca ter ouvido uma hiena. Depois chegou a hora predita. Homens, mulheres e crianças,  cobertos pelos sudários, retinham a respiração. O tempo passava. A angústia empalidecia as faces... e súbitamente todos sentiram despeito e decepção. Fora-lhes negado  o aniquilamento. De madrugada desceram a colina e esforçaram-se por encontrar os seus bens, roupas, tachos, caçarolas, vacas e burros. Ao ouvir a minha tia, compreendi bem os sentimentos daquela gente. Lembrei-me de tudo isto por causa dos aviões a jacto,
 
 
172 de todo este esforço enorme, deste tempo e dinheiro per didos a empilhar a morte. Também nós sentiremos decep ção de que aquilo não sirva? Lançamos mísseis no espaço mas não podemos curar o descontentamento e a cólera. Mary abriu os olhos. -Ethan-disse ela-, tu falas contigo mesmo. Não sei de quê, mas em voz bastante alta. Não penses mais, Ethan. Ia aconselhá-la a nunca mais beber, mas senti pena dela. -Dói-te a cabeça?-perguntei. -Sim. -E o estômago? -Também. -Dói-te tudo? -Tudo. -Vou buscar-te qualquer coisa. -Sim. Um caixão. -Fica na cama. -Não posso. Tenho de preparar as coisas para as crianças irem para a escola. -Eu encarrego-me disso. -E o teu trabalho? -Também me encarrego dele. -Ethan-continuou ela depois de um silêncio-, não sei se posso levantar-me. Sinto-me muito mal. -Chamo o médico? -Não. -Não posso deixar-te só. A Ellen vai ficar contigo. -Não. Hoje vai ser chamada. Chamarei Margie Young-Hunt. Ela virá. -O telefone dela não funciona. Estão a mudar o aparelho. -Passarei lá por casa e peço-lhe que venha. -Acordá-la a estas horas? Nem penses nisso... -Posso meter-lhe um bilhete por debaixo da porta. -Não quero que faças  isso. -No entanto... -Não, peço-te. Não quero. -Mas eu não posso deixar-te só. -É engraçado. Sinto-me melhor. Fizeste-me gritar, e isso fez voltar a boa disposição. Sinceramente ! E, para me convencer disso, levantou-se e vestiu o roupão. Na realidade, tinha melhor aspecto. 173 #-És desconcertante, minha querida.
Cortei-me ao fazer a barba e desci para tomar o pequeno almoço com um adesivo no queixo. Quando ia para a loja, não encontrei Morph palitando os dentes. Como não me apetecia conversar com ele, fiquei contente e estuguei o passo para ter a certeza de  que ele não me alcançaria. Abrindo a porta do armazém que dá para a ruela, vi o envelope de papel castanho do banco. Estava cuidadosamente fechado e os envelopes dos bancos são de papel muito  forte. Tive de recorrer ao meu canivete de algibeira para o abrir. Três folhas de papel, arrancadas a um caderno escolar de cinco cêntimos, escritas a lápis. Um testamento : "Eu, abaixo assinado, são de corpo e de espírito..." "Em  consequência, eu ..." Noutro papel estava: "Comprometo-me a reembolsar e dou como garantia..." Os dois papéis, escritos com letra firme e bem legível, estavam assinados.  O terceiro dizia: "Caro Eth, aí está o que desejas." A pele da minha cara endureceu como a carapaça de um caranguejo. Fechei a porta com o cuidado com que se fecha a porta de um cofre-forte, dobrei metòdicamente os  dois primeiros papéis, metendo-os na carteira, e do outro fiz uma bolinha, que deitei na retrete. Puxei o autoclismo e a bola de papel andou à roda, hesitou um momento  na borda do tubo de descarga e desapareceu. Naquela manhã não houve sermão às latas de conserva. Teria sido incapaz disso. Desenrolei uma mangueira para lavar o passeio. Depois varri a loja, mesmo os cantos  tantas vezes esquecidos. E cantei: Eis o Inverno do nosso descontentamento Tornado Verão glorioso por este sol de York (1).
 
Não era uma canção, mas, mesmo assim, cantei-a. (1) Now is the winter of our discontent Made glorious summer by this sun of York. (RICARDO III) Há nestes versos um trocadilho de Shakespeare entre as palavras sun (Sol-símbolo heráldico da Casa de York) e son (filhoRicardo III, filho de Eduardo IV), do qual  Steinbeck tira efeito na p. 285 deste livro.
 
174 SEGUNDA PARTE 1 Capítulo XI New Baytown é um sítio encantador. O seu porto, que foi grande no passado, é protegido das borrascas do nordeste por uma ilha próxima da costa. A cidade tem as casas  espalhadas nas margens de um conjunto de rias que ali se alimentam das águas do mar e que na maré baixa ficam reduzidas a uma rede de canais estreitos que vai do  porto até ao mar. Não é uma aglomeração concentrada. À excepção das grandes casas dos baleeiros das épocas passadas, só se vêem vivendas bem conservadas no meio  de velhas árvores : carvalhos de todas as espécies, bordos, olmos e nogueiras. Existem também alguns ciprestes, mas o carvalho domina, se não se tiver em conta as  filas de velhos olmos que orlam as ruas. Outrora o carvalho abundava de tal maneira que vários estaleiros tiravam cavernames, vergas, quilhas e sobrequilhas da floresta  vizinha. As comunidades, tal como os homens, têm os seus períodos de saúde e de doença, de juventude e de velhice, de esperança e de desalento. Houve um tempo em que poucas  cidades contribuíam tanto como New Baytown para o fornecimento do óleo de baleia que iluminava o mundo ocidental. As candeias dos estudantes de Cambridge e de Oxford  recebiam o seu combustível deste posto avançado americano. Depois o petróleo, brotando aos jactos dos poços da I2-O I. D. 177 #Pensilvânia, invadiu os mercados a baixo preço e imobilizou os caçadores do mar. O desespero abateu-se sobre New Baytown-uma atitude da qual talvez não quisesse  curar-se. Não longe dela, outras cidades cresceram e prosperaram, fornecendo outros produtos, outras energias, mas New Baytown, cuja força vital tinha residido inteiramente  nos seus navios e nas baleias, mergulhou no torpor. A corrente de população que no Estio abandona Nova Iorque ignorou New Baytown, deixando-a com as suas reminiscências.  As pessoas da pequena cidade convenciam-se elas próprias de que era melhor assim. Isso evitava-lhes os ruídos, a vaga dos veraneantes, a luz viva dos reclamos de  néon, o dinheiro dos turistas e o seu barulho. Não houve mais que algumas poucas casas novas nas praias. Mas o afluxo dos citadinos assumiria proporções de vaga,  e cedo ou tarde New Baytown estaria submersa. Os habitantes desejavam e, ao mesmo tempo, temiam essa maré. As cidades vizinhas enriqueciam, adornando-se com vivendas  luxuosas dos novos-ricos. New Baytown ia fabricando ceramica, tecia os seus panos e as suas pequenas intrigas domésticas, evocava os bons tempos e discutia o aparecimento  da solha.
Nos canaviais da ria, os patos bravos faziam os ninhos, criavam os filhos e comandavam depois as juvenis flotilhas; os ratos almiscarados cavavam as suas aldeias  e nadavam ágeis logo de manhãzinha. As águias marinhas perseguiam e pescavam o peixe que vinha à superfície, enquanto as gaivotas arrebatavam pelos ares as ostras  e as amêijoas, deixando-as cair no solo para as poderem comer depois de partidas as conchas. Algumas lontras sulcavam sorrateiramente a água, os coelhos dissimulavamse  pelos jardins e os esquilos cinzentos apareciam em vagas nas ruas. Os faisões machos, batendo as asas, lançavam os seus gritos, as garças azuis picotavam as águas  dos fundões e à noite os alcaravões faziam ouvir os seus queixumes lancinantes. A Primavera e o Verão são tardios em New Baytown, mas têm uma doçura e um perfume especiais. No princípio de junho o mundo das ervas, das folhas e das vergônteas  explode e não há um pôr-de-sol que se pareça com o da véspera. Ao crepúsculo, as codornizes emitem os seus sons breves e os noitibós erguem uma muralha de som. Os  carvalhos adensam-se de folhas e estendem os ramos 178 carregados de glandes. Enfim, os cães dos diversos bairros reúnem-se para um passeio e às vezes dormem fora de casa vários dias seguidos. No mês de junho, o homem, guiado pelo instinto, corta a erva, semeia a terra e declara guerra a todos quantos querem roubar-lhe o jardim: toupeiras e coelhos, formigas,  baratas, pássaros. A mulher, essa, admira a rosa, comove-se e suspira: as faces tornam-se pétalas e os olhos estames. Junho é alegre, fresco e quente, chuvoso, e protege o crescimento e a reprodução tanto do bom como do mau, tanto do construtor como do destruidor. As raparigas,  de calças que lhes moldam as formas, medem a passos largos High Street, de mãos dadas, e o pequeno rádio que trazem pendente do ombro geme-lhes ao ouvido uma canção  de amor. Os rapazes, plenos de seiva, ocupam os tamboretes do Tanger"s Drugstore, aspirando com uma palha a futura acne, examinando as raparigas com olhares insistentes  de bode e trocando observações desdenhosas enquanto o desejo os tortura. Em junho, os homens de negócios param no Aln" Sue"s ou no Foremaster, começando pela cerveja, demorando-se no whisky, e à tarde estarão a cair de bêbados. Também  à tarde, filas de carros poeirentos entram no pátio de uma casa isolada, cujos muros há muito tempo não são pintados, cujas cortinas estão sempre cuidadosamente  fechadas, ao fundo de Mill Street, onde Alice, a prostituta municipal, resolve os problemas angustiosos dos homens mordidos pelos ardores de junho. E todo o dia  os barcos vêm amarrar ao quebra-mar, homens e mulheres acarinham as águas para delas tirarem o seu sustento. Junho é o mês em que se pinta e se aplaina, o mês dos planos e dos projectos. Bem raro é aquele que não traz para casa um saco de cimento ou qualquer ferramenta,  que não traça nas costas de um envelope desenhos do Taj Mahal. Cem pequenos barcos jazem, de quilha para o ar, na praia, rutilantes da pintura fresca, e os donos 
sorriem às pequeninas ondulações que perpassam na água. A escola retém ainda as crianças impacientes até aos últimos dias do mês e, quando vêm os exames, a rebelião  ferve, a gripe torna-se epidemia, para desaparecer de repente no dia do encerramento. Em junho, a alegre semente do Verão germina. "Onde 179 #passaremos o 4 de Julho?... Temos de fazer os nossos planos de férias." Junho é o pai de todas as possibilidades: o patinho nada despreocupadamente, talvez para  as mandíbulas submarinas da tartaruga devoradora, a alface vai a caminho de secar, o tomate alonga os pecíolos num desafio à lagarta e as famílias calculam e comparam  os méritos da areia e do vento com os das noites na montanha cheia de mosquitos. "Este ano vou repousar. Não me fatigarei. Este ano não deixaremos as crianças transformar  num inferno sobre rodas os meus quinze dias de licença. Trabalho todo - ano e é a minha vez de gozar a vida." Os projectos de férias triunfam das más recordações e cada um reconcilia-se com o mundo. New Baytown dormiu muito. Os homens que a dirigiram politicamente, moralmente, econòmicamente, estão há tanto tempo nos seus lugares que os processos são imutáveis.  O presidente da Câmara, os conselheiros municipais, os juízes e a Polícia são eternos. O presidente da Câmara vende material à cidade e os juízes estabeleceram - montante das multas referentes ao trânsito, esquecendo-se de que se trata de uma prática ilegal-pelo menos a lei assim o pretende. Sendo eles próprios homens normais,  nada do que fazem poderia ser imoral. Todos os homens são virtuosos, os seus vizinhos é que o não são. A tarde dourada tem o hálito quente do Verão. Os primeiros turistas, aqueles que não têm filhos em idade escolar que os retenham em casa, percorrem as ruas com ar  de estrangeiros. Os automóveis passam, rebocando pequenos barcos sobre atrelados. Ethan adivinharia, mesmo de olhos fechados, que se trata de turistas, e isto só  pelas compras-presunto às fatias, queijo seco, biscoitos -        sardinhas em conserva.
 
Joey Morphy veio tomar o refresco da tarde, como era seu costume na estação quente. Com um movimento da garrafa que tinha na mão, designou o balcão. -Você deveria ter um distribuidor de soda-disse ele. -E arranjar quatro braços ou cortar-me em dois. Esquece-se, amigo Joey, de que a loja não é minha? -Pois podia ser. -Devo contar-lhe a minha triste história? -Conheço-a. Você não sabia distinguir os espargos de um erro de contabilidade. Teve uma dura escola, mas com o tempo aprendeu a profissão. -Pelo lucro que disso tenho tirado... -Se a loja fosse sua, você faria dinheiro. -Mas ela não me pertence. -Abra uma nas proximidades, e todos os seus clientes o seguirão. -Por que razão acredita nisso? -As pessoas compram àquele que conhecem. É o que
se chama uma clientela, e isso, no comércio, conta. -Conheciam-me bem na cidade e, apesar disso, abri falência. -Falta de técnica. Você não sabia comprar. -E agora? -Agora, sabe. Não se dá conta dos progressos que tem feito porque a sua mentalidade é ainda a de um vencido. Desperte, Mr. Hawley. Desperte, Ethan. -Obrigado. -Simpatizo muito consigo. Quando parte o Marullo para a Itália? -Não me disse nada. Diga-me, Joey, qual é a posição económica dele? Não, não diga nada. Você tem por obri gação não falar dos clientes. -A favor de um amigo, posso esquecer um pouco os meus princípios. Não conheço todos os seus negócios, mas, a julgar pela conta bancária, ele é rico. Mexe um pouco em tudo : um terreno aqui, um lote acolá, algumas casas junto ao mar e um grosso maço de acções no bolso. -Como sabe? -Ele alugou-nos um cofre. Não pode abri-lo senão na minha presença; sou eu que tenho a segunda chave, e sou curioso por natureza. Arrisquei uma olhadela. -Tudo isso obtido de modo regular, sem dúvida. Nada daquelas falcatruas de que falam os jornais: a droga, os rackets ? -lgnoro-o. Ele não fala dos seus negócios. Limita-se a levantar fundos ou a depositá-los. Trabalha talvez com outros bancos. Note bem que eu não lhe disse nada a res peito do saldo da sua conta. -Não lho perguntei. -Pode dar-me uma cerveja? r8o r8r #-Só para a levar. Posso metê-la numa caixa. -Não lhe peço que transgrida os regulamentos. -Oral-Ethan fez dois buracos na lata.Se vier alguém, esconda-a. -Obrigado. Tenho pensado muito em si. -Porquê? -Talvez porque sou um curioso. A falência é um estado de espírito. E como aqueles buracos que a formiga-leão faz na areia. Trepa-se pela rampa, mas cai-se sempre  no fundo. É necessário um grande salto para sair. Pois bem, salte, Ethan. Quando tiver saído, você perceberá que o êxito também é um estado de espírito. -Se é para cair noutra armadilha... -Só Deus vê o pardal descer, mas, mesmo assim, desconhece o motivo por que ele o faz. -Não sei o que quer dizer com isso. -O que eu quero dizer é mais ou menos isto: "Agarra tudo o que está ao teu alcance. A ocasião não se apresentará porventura uma segunda vez." -Você é um filósofo, Joey. Um financeiro filósofo.
-Não vale a pena insistir. Quem não tem determinada coisa tem de pensar nela. Só o homem pensa nas coisas. A maior parte das pessoas pensa noventa por cento nas  coisas do passado, sete por cento nas do presente e não ficam senão três por cento para as do futuro. O velho Satchel Paige disse acerca disto algo de muito certo.  Afirmava ele: "Não olhes para trás, porque te atrasas." E agora é preciso que eu volte ao trabalho. Mr. Baker parte amanhã para Nova Iorque, onde vai passar alguns  dias. Está mais atarefado que um percevejo. -Que vai ele fazer? -Como posso sabê-lo? Sou eu quem separa o correio. Ele recebe muitas cartas de Albany. -Assuntos políticos? -Eu separo o correio, mas não o leio. O negócio aqui é sempre assim tão calmo? -Por volta das quatro horas, sim. Isto volta a animar-se dentro de um quarto de hora. -Está a ver como aprendeu? Aposto que você ignorava isso quando faliu. Adeus. Agarre a oportunidade pelos cabelos. Como estava previsto, o momento de animação veio
 
 
182 entre as cinco e as seis. O Sol estava ainda alto e as ruas tão claras como ao princípio da tarde quanto Ethan recolheu os mostruários das frutas, fechou as portas  da frente - correu as cortinas verdes. Depois consultou uma lista e fez um grande embrulho com aquilo que tinha de levar para casa. Depois de tirar o avental, vestir o casaco  e pôr - chapéu, sentou-se sobre o balcão e olhou sèriamente as prateleiras: "Não tenho nada a dizer-lhes!", declarou. "Lembrem-se das palavras de Satchel Paige. Vai custarme  a habituar a não pensar no passado." Tirou da carteira os documentos que lá pusera horas antes e envolveu-os em papel encerado. Depois, abrindo a porta esmaltada do motor do frigorífico, colocou o embrulho  por detrás do compressor e fechou a porta. Agarrou num velho anuário dos telefones, poeirento e sem capa, que se encontrava debaixo da caixa registadora, e abriu-o na letra U. UMted States, Ministério da  Justiça... Serviço de Alfândegas... Repartição Federal de Inquéritos... Serviços de Imigração e de Naturalização: Broadway zo W, telefone BA 7-O30O. A noite, domingos  ou dias feriados OL 6-5888. -OL 6-5888-repetiu em voz alta.-Serviço de noite. -E, voltando-se para as latas de conservas que guarneciam as prateleiras, mas sem as olhar, murmurou : - Se tudo  estiver em ordem, isto não fará mal a ninguém. Saiu pela porta que dava para a ruela, fechando-a depois à chave. Com o cesto debaixo do braço, atravessou a rua - entrou no Foremaster. O restaurante estava ruidoso, cheio de gente, mas o pequeno desvão onde se encontrava a cabina telefónica não tinha ninguém. Também ninguém  se encontrava na recepção. Fechou a porta envidraçada, pousou o cesto no chão, meteu uma moeda de dez cêntimos no aparelho e marcou um O. -Telefonista de serviço. -Desejo ligar para Nova Iorque.
-Marque o número. Ele assim fez.
 
Ethan voltou do trabalho com o cesto no braço. Que belas as longas tardes de Verão! A erva do relvado estava tão alta que nela ficavam os sinais dos passos. Beijou  Mary na boca.
 
 
183 #-Queridinha, a erva está a tornar-se bravia. O Allen deve cortá-la. -Tem exames de passagem. Bem sabes que a escola vai fechar dentro de dias. -Que ruídos estridentes são estes aqui ao lado? -Está a praticar com o megafone. Terá de se servir dele na distribuição de prémios. -Está bem, eu vou cortar a relva. -Que queres! Tu sabes, as crianças de hoje... -Sim. Começo a conhecê-las. -Estás de mau humor? O dia foi trabalhoso? -Deixa-me pensar. Não, creio que não. Estive sempre de pé e a ideia de ter de empurrar a máquina de aparar a relva não me faz pular de alegria. -Precisamos de uma máquina a motor. Os Johnson têm uma, não podias pedi-la emprestada? -Deveríamos ter um jardineiro e um ajudante, como tinha o meu avô. Com a máquina dos Johnson trabalha-se sentado, isso não fatigaria muito o Allen. -Não sejas mau para ele. Tem apenas catorze anos. Na sua idade, são todos assim. -Quem foi o idiota que fez correr o boato de que todas as crianças são inteligentes? -Estás de mau humor, vê-se logo. -É possível. E aqueles guinchos são de enlouquecer. -Está a praticar. -Tu o dizes ! -Não descarregues a tua má disposição sobre o pobre do rapaz. -Pois olha que me faria bem. Ethan passou pela sala, onde Allen extraía palavras vagamente reconhecíveis de um vibrador posto sobre a língua. -Que é isso? Allen cuspiu o objecto no côncavo da mão. -lsto veio no pacote de Peeks -disse. -Serve para fazer de ventríloquo. -Gostas de Peeks? -Não. Mas preciso de exercitar-me. -Um momento-disse Ethan, sentando-se.-Que pensas fazer na vida? -Hem?
 
 
184 -Refiro-me ao teu futuro. Falaram-te disso na escola? O futuro está nas tuas mãos. Ellen entrou e enroscou-se no divã. Com um ar de troça capaz de cortar o próprio aço, ela disse: -Ele quer ir à televisão.
-Houve um rapaz de catorze anos que ganhou cento e trinta mil dólares num concurso de adivinhas. -Estava tudo combinado-disse Ellen.Soube-se de pois. -lsso não o impediu de receber as cento e trinta mil notas. -E o lado moral da questão? Que pensas disso? murmurou Ellen. -É uma bonita importância. -Mas não achas desonesto? -Toda a gente faz isso. -E que acontece àqueles que se oferecem sobre uma bandeja de prata e ninguém os quer? Ficam sem honra e sem dinheiro. -É um risco que se corre. Temos de estar do lado onde o bolo se come. -Se come, sim - disse Ethan. - E as tuas maneiras também. Endireita-te na cadeira, peço-te. Riscaste a pala vra "pai" do teu vocabulário? O rapaz sobressaltou-se e, assegurando-se de que o pai não brincava, endireitou-se, cheio de rancor. -Não, pai. -Como te portas na escola? -Bem, creio eu. -Tens uma redacção a fazer. Deves dizer como e porque amas a América. O teu desejo de a destruir impe de-te de escrever. -Eu quero destruir a América? -Podes amar uma coisa desonesta? -Toda a gente a ama, papá. -lsso torna-a mais decente? -Ninguém discute isso. Já acabei o meu ensaio. -Gostaria de vê-lo. -Já o enviei. -Deves ter um rascunho. -Não, papá. -E se o ensaio se perde?
 
 
185 -Não pensei nisso. Papá, eu queria ir ao acampamento de ferias com os meus camaradas. -Não nos podemos permitir isso. Aliás, nem todos lá vão, mas apenas alguns. -Gostaria de ter algum dinheiro. O rapaz, com ar amuado, olhava para as mãos. Ethan observava-o com atenção. -Posso arranjar isso-disse ele. -Como, papá? -Trabalharás na loja, este Verão. -Trabalhar, eu? -Pois claro. Podes levar os embrulhos, arrumar as prateleiras, varrer o chão, e talvez mesmo, se tiveres jeito, servir os fregueses. -Quero ir ao acampamento de férias. -Também queres ganhar cem mil dólares. -Talvez ganhe o concurso com o meu ensaio. Isso dará direito a uma viagem a Washington. Umas belas férias depois de um ano de escola. -Allen! Há regras imutáveis de conduta, cortesia,
honestidade, e mesmo energia. É a altura de eu tas ensinar. Tu vais trabalhar. -Não podes fazer isso-disse o rapaz, levantando os olhos. -Que dizes? -Há leis sobre a protecção devida à infância. Não dão licença para trabalhar com menos de dezasseis anos. Queres que transgrida a lei? -Julgas que todos os rapazes ou raparigas que ajudam os pais são delinquentes? A cólera de Ethan era tão visível, tão ameaçadora, que a criança desviou os olhos. -Não foi isso que quis dizer, papá... -Espero que assim seja. E não recomeces. Olha que esbarras com vinte gerações de Hawley e de Allen. Era gente honrada. Qualquer dia terás o direito de te considerares  um deles. -Sim, pai. Posso ir para o meu quarto? -Podes. Allen saiu lentamente. Quando desapareceu, Ellen agitou-se no lugar, cruzou as pernas e, como uma senhora, puxou a saia. -Papá, li os discursos de Henry Clay. São lindos. -São. -Lembras-te deles? -Não muito bem. Há muito tempo já que não tenho ocasião de os ler. -São formidáveis. -Não me parece que sejam próprios para raparigas da tua idade. -Apesar disso, são formidáveis. Ethan levantou-se pesadamente da cadeira, cansado por um longo dia de trabalho. Na cozinha, encontrou Mary amuada e com os olhos vermelhos. -Ouvi tudo-disse ela.-Não tens vergonha? Sabes ao menos o que fizeste? Ele é ainda tão novo... -Já é tempo de começar, minha querida... -Oh, não me chames querida, peço-te. Não suportarei um tirano. -Um tirano, eu? Meu Deus! -Ele é ainda uma criança. Tu magoaste-o. -Penso que ele agora se sente melhor. -Não compreendo. Esmagaste-o como se fosse uma mosca. -Não, querida. Fiz-lhe ver o mundo como ele é. Ele tinha ilusões. Ethan caminhou para a porta das traseiras. -Onde vais? -Cortar a relva. -Julgava que estavas cansado. -Estou... ou melhor, estava. Ele olhou-a por cima do ombro. Mary tinha-o seguido, parando no limiar da porta. -O homem está bem só na vida-disse Ethan. E sor riu-lhe durante muito tempo antes de tirar a cortadora do seu lugar. O zunido das lâminas cortando a relva tenra e flexível
parou bruscamente perto da porta. -Mary, Mary!-chamou Ethan.-Amo-te, minha que rida... A máquina voltou ao seu ruído, cortando a relva alta. z87 186
 
188 Capítulo XII Margie Young-Hunt era uma mulher atraente, observadora, inteligente. Bastante esperta para saber quando e como devia esconder a sua esperteza. Os seus casamentos  falharam porque os seus maridos falharam. O primeiro era um fraco, o segundo ainda mais... porque morrera. Os acontecimentos não vinham até ela. Pelo contrário, provocava-os telefonando muito, escrevendo cartas e bilhetes, arranjando encontros que pareciam acidentais.  Tinha sempre remédios para qualquer doença e lembrava-se dos dias de aniversário. Desta maneira ela mantinha as pessoas bem conscientes da sua existência. Mais que qualquer outra mulher na cidade, conservava o ventre liso, a pele limpa e fresca, os dentes brancos e o queixo firme. Gastava uma boa parte do seu dinheiro  com os cabelos e as unhas e em massagens, cremes e pomadas. As outras mulheres diziam: "Deve ser mais velha do que parece." Quando os músculos que suportavam os seios deixaram de reagir aos cremes e aos exercícios, confiou o peito a soutiens, que o mantinham elevado e orgulhoso. A pintura  exigia-lhe cada vez mais tempo. Os cabelos tinham o brilho e o ondulado prometidos pelos produtos elogiados pela televisão. Numa saída, vendo-a jantar, dançar, diver 189 #tir-se, atrair o companheiro para uma rede apertada, quem poderia adivinhar que ela se repetia friamente? Depois de um intervalo decente e de certas despesas, dormia com a sua nova conquista, discretamente se fosse possível. Depois voltava a reedificar as fortificações. A cama era a armadilha destinada a capturar a segurança, o futuro, o bem-estar. Mas a caça abandonava ràpidamente a ratoeira acolchoada. Cada vez mais os seus companheiros  eram casados, doentes ou prudentes. O tempo fugia, e Margie sabia-o melhor que ninguém. Quando pedia ao baralho das cartas, este já não respondia. Margie conhecera muitos homens, muitos deles feridos no seu orgulho ou desesperados. Acabou por desprezar as suas presas como acontece sem dúvida com os caçadores  profissionais de vermes. Esses homens deixavam-se manobrar fàcilmente por causa do seu medo e do seu orgulho. Eles tinham tanta necessidade de ser enganados que  ela não podia sentir-se triunfante, mas sim desgostosa. Eram os seus amigos e associados. Até os protegia, evitando que se descobrisse que eram seus amigos. Dava-lhes  o melhor de si mesma, pois eles não lhe pediam nada. Danny Taylor era um deles, Alfio Marullo outro, Stonewall Jackson Smith um terceiro. E não eram só esses. Tinham  confiança nela, e ela retribuía-a. Os seus amigos falavam-lhe livremente e sem receio, pois ela era, para eles, uma espécie de poço de Andersen, receptiva, silenciosa,  não dando opiniões. A maior parte das pessoas têm vícios escondidos. Margie YoungHunt dissimulava uma virtude secreta. E, sem dúvida por isso, conhecia melhor que  ninguém New Baytown, e mesmo todo o Wessex. Era imparcial e não queria-nem podia-usar em seu proveito o que sabia. Mas tudo quanto chegava até ela era utilizável.
O seu projecto uEthan Allen Hawley" nasceu na ociosidade. De certa maneira, ele não se enganara vendo nisso certa malícia e uma maneira de ela experimentar o seu  poder. A maioria dos homens desiludidos que vinham buscar junto dela consolação e conforto sofriam de um traumatismo sexual que deformava todos os outros aspectos  da vida. E ela achava fácil, por meio de palavras lisonjeiras e algumas garantias, pôlos novamente aptos para tornar a enfrentar as respectivas e exigentes esposas.  Gostava sinceramente de Mary Hawley e foi por intermédio dela que começou a interessar-se por Ethan, que se encontrava diminuído por uma outra espécie de traumatismo-um constrangimento, social e económico, que o privava da  sua energia e da sua força. Sem trabalho, sem amor, sem filhos, perguntou a si própria se poderia curar e dirigir esse doente para um novo caminho. Era um jogo,  uma experiência, produto não da gentileza, mas da curiosidade e da ociosidade. Ele era um ser superior. Dirigi-lo seria provar a si própria o seu valor, e cada dia  precisava mais disso. Talvez fosse ela a única a conhecer a profundidade da mudança que se operara em Ethan. Acreditou que tinha sido obra sua, e ficou aterrorizada. Uma juba de leão  crescia no rato. Ela viu os músculos moverem-se sob as roupas dele e os olhos tornarem-se impiedosos. O doce Einstein devia ter experimentado a mesma sensação quando  a sua teoria da relatividade se transformou em furacão de fogo sobre Hiroxima. Margie gostava muito de Mary Hawley, mas tinha por ela pouca simpatia e nenhuma piedade. O infortúnio é um facto que as mulheres aceitam com facilidade, principalmente  quando a atingida é a vizinha. Na sua pequenina casa, imaculada, situada dentro de um grande jardim emaranhado de plantas, próximo do Porto Velho, inclinada diante do espelho, ela passava em revista  as suas armas. Para além do pó, do creme e do cosmético, ela via as rugas escondidas, a falta de elasticidade da pele. Sentia os anos crescerem lentamente como a  maré cobrindo um rochedo quando o mar está calmo. A maturidade dispõe de um arsenal mas é precisa uma técnica que não possuía ainda e devia aprender antes que os  atributos da sua mocidade desaparecessem, deixando-a nua, descomposta, ridícula. Nunca, nem mesmo quando estava só, deixara de se arranjar com esmero, e isso era  a razão do seu sucesso. Agora, a título de experiência, autorizou à sua boca que descaísse como desejava, às suas pálpebras que se fechassem um pouco, ao seu queixo  altivamente erguido que baixasse, fazendo descansar um tendão que não pedia mais que isso. Viu no espelho vinte anos abaterem-se sobre ela. Estremeceu com o segredo do vidro que anunciava aquilo que, afinal, já sabia. Tinha perdido muito tempo. Uma mulher  deve ter uma vitrina na qual possa envelhecer: muletas, ve r9o 191 #ludo negro, filhos, cabelos grisalhos, gordura, amor, protecção, dinheiro para os alfinetes, marido sereno e pouco exigente, ou então-ainda mais sereno e menos 
exigente-o seu testamento ou a guarda dos seus fundos. Uma mulher que envelhece vivendo sem companhia é um resíduo inútil, uma obscenidade doente, sem guarda, coxeando,  cacarejando e resmungando acerca das suas dores. Uma onda de calor devida ao medo formou-se-lhe no estômago. Tivera sorte com o primeiro marido. Era um fraco e cedo ela descobrira a origem da sua fraqueza. Amava-a  desesperadamente e de tal maneira que quando ela se divorciou deixou-lhe uma pensão sem condições. O segundo marido acreditava que ela tinha fortuna pessoal. Quando morreu, pouco lhe deixou, mas com a pensão do primeiro marido ela podia viver decentemente, vestir-se  bem e seguir as suas inclinações. Mas se morresse o primeiro marido, terminando com ele a pensão? Essa era a origem do seu terror. Em janeiro, tinha-o visto no cruzamento da Madison Avenue com a Rua Cinquenta e Sete. Parecia velho e descarnado. Se aquele bastardo morresse, o dinheiro deixaria  de vir. Ela pensava, e talvez com razão, ser a única pessoa que sinceramente lhe desejava saúde. Uma face magra, silenciosa, uns olhos sem vida, apareceram diante dela, e essa lembrança tornou mais viva a dor da suas entranhas. Se aquele filho de uma cadela  morresse!... Margie, inclinada sobre o espelho, tomou uma decisão como quem lança um dardo. Reergueu o queixo, os tendões desapareceram, os olhos animaram-se com novo brilho,  a pele tornou firmes os contornos do rosto. Levantou-se e deu alguns passos de valsa no tapete vermelho. As unhas dos pés nus eram rosadas e brilhantes. Tinha de  despachar-se antes que fosse tarde. Abriu o guarda-fato, acariciou um vestido provocante que tinha comprado para o fimde-semana do 4 de julho, os sapatos de saltos finos e uma combinação transparente  como o vácuo. Pressa, mas não precipitação. A caminho, sem mais demora, do homem que não esperaria, e depois... a lentidão desenvolta, elegante, da senhora de lindas pernas e  luvas imaculadas. 192 De todos os homens que se cruzaram com ela, nenhum deixou de voltar-se à sua passagem. O condutor do camião de Miller Brother"s assobiou quando a viu e dois estudantes  do liceu ergueram para ela olhares à Valentino e engoliram com dificuldade a saliva que lhes invadia as bocas entreabertas. -Que dizes àquilo?-perguntou um. -Caramba! -replicou o outro. -Agradava-te, não? -Ainda o perguntas ! Uma senhora não deve vadiar, principalmente em New Baytown. Deve dirigir-se a um lugar determinado, ter qualquer coisa a fazer, por pouco que seja. Caminhando com  decisão pela High Street, ela correspondia aos cumprimentos das pessoas, passandoas automàticamente em revista. Mr. Hall... vivia de crédito já há muito tempo.
Stoney, um duro, um macho. Mas que mulher pode viver com o ordenado ou a pensão de um polícia? Aliás, era seu amigo. Harold Beck era, sem dúvida, rico. Mas Harold era excêntrico, e apenas ele o não sabia. Mac Dowell... impossível... escocês, fechado, unido à mulher... uma inválida... daquela espécie que vive eternamente. Era uma enigma... Ninguém sabia o seu valor. -É um prazer vê-lo. Como vai a Milly? Donald Randolf, de olhar vago... magnífico, um tamborete de bar. Um fidalgo que não perdia as boas maneiras quando se embriagava. Mas sem préstimo para marido, a  menos que quisesse abrir um salão num bar. Harold Luce... Passava por parente do editor da revista Time... mas era ele que o dizia. Um homem duro, que devia a reputação de sensatez à falta de eloquência. Ed Wantoner, mentiroso, falador e ladrão. Era suspeito de usar dados viciados e a mulher estava moribunda. Ed não dava confiança a ninguém, nem mesmo ao cão, que  prendia e deixava ganir. Paul Strait... Uma personalidade do Partido Republicano. Tinha uma mulher chamada Butterfly (1). E não era alcunha, era o nome próprio. Butterfly Strait! Paul estaria
 
(1) Butterfly-borboleta. 13 -O I. D. 193 bem como governador do estado de Nova Iorque. Era a ele que pertencia o depósito de lixo da cidade. Custava vinte e cinco cêntimos descarregar ali uma carroça de  detritos. Quando os ratos, muito gordos, se tornavam perigosos, dizia-se que Paul vendia licenças para caçá-los. Alugava lanternas e espingardas e fornecia cartuchos.  Tinha um porte de tal maneira presidencial que muitos lhe chamavam Ike. Mas Danny Taylor, num dia de bebedeira, chamara-lhe "nobre Paub. Nobre Paul tornou-se o  seu nome quando não estava presente. Marullo... cada vez mais doente. Tinha os olhos de um homem atingido no estômago por uma bala de calibre quarenta e cinco. Nesse momento ele passava diante da porta  da sua loja sem entrar. Margie entrou bamboleando as belas nádegas. Ethan falava a um desconhecido de cabelos negros, calças estreitas e chapéu de aba estreita. Tinha cerca de quarenta  anos, ar duro, resistente e muito compenetrado do que fazia. Debruçado sobre o balcão, parecia examinar as amígdalas de Ethan. -Bom dia-disse Margie.-Você está ocupado. Voltarei mais tarde. Para uma mulher que passeia, há mil coisas a fazer num banco. Margie atravessou a ruela e penetrou no templo de mármore e aço polido. Ao vê-la, Joey Morphy levantou a rede metálica que tapava o guichet. Que sorriso, que tipo, que companheiro agradável, mas que marido em perspectiva ! Para Margie,  era um celibatário nato e bater-se-ia até à morte para se conservar assim. Não haveria túmulo duplo para Joey. -O senhor diz-me, por favor, tem dinheiro fresco, não salgado?-perguntou ela. -Um momento, minha senhora, que eu vou ver. Estou quase certo de que temos algum de reserva. De quanto precisaria ? -Cerca de duzentos gramas. Tirou um livro de cheques da mala e preencheu um cheque de vinte dólares.
Joey riu. Gostava muito de Margie. De vez em quando, mas não muito amiúde, convidava-a para jantar e dormia com ela. Mas também gostava da sua conversa e do seu  alegre humor. 194 -lsto lembra-me um dos meus amigos que esteve no México com Pancho Villa -disse ele.-Recorda-se de Pancho Villa? -Nunca o conheci. -Deixe-se de brincadeiras. Vamos à história que o tipo me contou. Quando Pancho estava no Norte, mandou imprimir notas de vinte pesos. Fê-las em tal quantidade que  os seus homens não as podiam contar. É preciso dizer que eles não eram muito fortes em cálculo. Punham as notas em monte numa balança e pesavam-nas. -Joey, você não pode deixar de fazer a sua autobiografia ? -Santo Deus, não, Mrs. Young-Hunt. Naquela época eu tinha cinco anos. Ouça a história. Uma bela dama foi vê-lo e disse: "Meu general, o senhor executou o meu marido  e deixou-me viúva, sem amparo e com cinco filhos. Acha que é essa a maneira de tornar popular uma revolução N Pancho passou em revista os bens naturais da dama,  como eu estou a fazer agora. -Você não tem hipoteca, Joey. -Bem sei. Pancho voltou-se para um ajudante-de-campo: "Pesa-lhe cinco quilos de notas." Era um bom maço. Ataram-no com um arame e a mulher saiu com ele. Então aproximou-se  um tenente, fez a continência e disse "Meu general, nós não fuzilámos o marido daquela mulher. Ele estava bêbado. Metemo-lo na cadeia." Pancho, que não tinha desviado  os olhos da mulher que se afastava com o seu pequeno fardo, disse: "Vão e fuzilemno. Não podemos desiludir aquela pobre viúva." -Joey, você é incrível. -Pois olhe que é uma história verídica. Eu acredito nela. -E continuou, virando o cheque:-Quer em notas de vinte, cinquenta ou cem? -Pague-me em quatro maços. Divertiam-se um ao outro. Mr. Baker assomou a cabeça pela porta envidraçada do seu gabinete. Ali estava uma coisa a tentar. Um dia, Baker tinha feito a Margie uma proposta gramaticalmente correcta mas de sentido obscuro. Baker era o Senhor Dinheiro. Era  certo que tinha mulher, mas Margie conhecia os Baker deste mundo. Tinham sempre uma razão moral para jus 195 tificar o que pretendessem fazer. Ela estava satisfeita por se ter feito desentendida, pois agora era mais um na lista. Agarrou nas quatro notas de cinco dólares que Joey lhe dera e dirigiu-se para o banqueiro. Mas neste momento o homem que ela vira a falar com Ethan entrou, passou-lhe pela frente, apresentou um cartão e desapareceu no gabi nete de Baker, que fechou a porta. -Bem, beije o meu pé-disse ela a Joey. -O pé mais lindo do Wessex-afirmou este.-Quer
sair esta noite? Dançar, jantar e o resto? -Não posso. Quem é este? -Nunca o vi. Tem ar de inspector bancário. É em casos como este que eu me sinto feliz por ser honesto, e ainda mais por saber somar e subtrair. -Joey, você acabará por tentar até uma mulher fiel. -É esse o meu mais piedoso desejo. -Até à vista. Ela saiu, atravessou a rua e entrou na mercearia de Marullo. -Bom dia, Eth. -Bom dia, Margie. -Quem é aquele belo desconhecido? -Não trouxe a sua bola de cristal? -Um agente secreto? -Pior do que isso. Porque será que toda a gente tem medo dos polícias, Margie ? Eles apavoram-me, e eu não tenho nada na consciência. -Que tolice fez você, Ethan? -Uma tolice? Eu? Porquê? -Que é que ele queria? -Sei o que me perguntou, mas não o que queria. -E que perguntou? -Há quanto tempo conheço o meu patrão. Quais as outras pessoas que o conhecem. A data da sua chegada a New Baytown. -Que lhe respondeu? -Que não o conhecia quando fui para a guerra. E que ele estava aqui quando voltei. Que me comprou a loja quando fali e me empregou nela. -Que há por detrás de tudo isso? -Só Deus o sabe.
 
 
196 Margie esforçava-se por ler-lhe nos olhos. "Ele faz-se parvo", pensava ela. "Pergunto a mim mesma o que queria realmente aquele tipo." -Você não me acredita-disse ele tão suavemente que lhe causou medo.-Sabe, Margie, que nunca acreditam em mim quando digo a verdade? -Toda a verdade? Quando você trincha um frango, só encontra frango, mas uma parte da carne é clara e a outra escura. -Evidentemente. Com franqueza, Margie, estou abor recido. Se alguma coisa acontece a Alfio, fico sem emprego. -Esquece-se de que vai ser rico? -É muito difícil lembrar-me disso quando o não sou. -Você ainda se lembra.  Foi na Primavera, nas vés Jperas da Páscoa. Vim aqui e você chamou-me "filha de erusalém". -Foi na Sexta-Feira Santa. -Encontrei a citação no Evangelho de S. Mateus. É belo e... assustador. -Sim? -Quem lhe meteu isso no cérebro? -A minha tia-avó Deborah. Crucificava-me uma vez por ano, e ainda continua. -Está a brincar. Naquele dia você não brincava. -Não. Nem então, nem agora. -A fortuna que lhe anunciei começa a desenhar-se, sabe? -Sei.
-Não pensa que está em dívida para comigo? - Certamente. -Quando pensa pagar-me? -Vê algum inconveniente em vir comigo ao fundo da loja ? -Acho que não seria capaz de fazer isso. -Na verdade? -Sim, Ethan, e você também o sabe. Você nunca deu um passo em falso na vida. -Mas posso aprender. -Você não poderia fornicar, mesmo que o quisesse. -Posso experimentar. -Apenas o amor ou o ódio poderiam excitá-lo, e, tanto num caso como no outro, isso requereria um processo lento. 197 -Talvez tenha razão. Como o sabe? -Nunca sei o motivo por que o sei. Ele abriu a porta do frigorífico, tirou uma garrafa de Coca-Cola, extraiu a cápsula, deu-lha e agarrou noutra para si. -É isto que pretende de mim? -Nunca vi um homem assim. Talvez eu queira conhecê-lo a fundo, ser amada ou odiada loucamente. -Você é feiticeira. Porque não sopra o vento? -Não sei soprar. Posso provocar uma pequena tempestade em relação a muitos homens, e para isso limito-me a levantar as sobrancelhas. Que devo fazer para acender  o seu fogo ? -Talvez já esteja aceso.-Ele examinou-a com aten ção, sem qualquer disfarce.-Construída como um barra cão de tijolo. Terna, doce, sólida e boa. -Como sabe, se nunca me tocou? -Se alguma vez o fizesse, você fugiria como o Diabo. -Meu amor! -Ora vamos. Há qualquer coisa que não joga certo. Tenho bastante senso para conhecer o grau da minha atracção. Que pretende de mim? Você é um belo bocado, mas muito  inteligente. Qual é a sua intenção? -Predisse-lhe uma fortuna, e ela começa a tornar-se realidade. -E você quer também alguma coisa? Sim. -Agora já posso acreditar em si.-Levantou os olhos e disse : -Mary do meu coração, olha o teu esposo, o teu amante, o teu amigo, salva-me do demónio interior e do  mal exterior. Mary, peço o teu auxílio, pois um homem tem desejos inconfessáveis e a necessidade secular de espalhar por toda a parte a sua semente. Ora Pro me. -Ethan, você é um mistificados. -Eu sei. Mas não posso ser humilde? -Agora tenho medo de si, e antes não sentia isso. -Mas porquê? Ela tinha a mesma expressão de quando tirava as cartas. - O Marullo ? -Que tem ele? -Estou a fazer-lhe uma pergunta.
-Estarei ao seu dispor dentro de um momento. Meia dúzia de ovos? Manteiga? Deseja café? -Sim. Uma lata. Gosto de tê-lo na despensa. Que tal é esta carne enlatada Wh~dum ? -Nunca a provei. Dizem que é boa. já vou atendê-lo, Mr. Baker. Mrs. Baker não gosta desta carne? -Não sei, Ethan. Como o que me põem na mesa. Mrs. Young-Hunt, a senhora está cada dia mais deslumbrante. -É muito amável. -Só digo a verdade... veste-se com tanto gosto... -Penso a mesma coisa de si. Não porque seja deslum brante, mas porque tem um bom alfaiate. -E deve sê-lo, pois é muito caro. -já não pode dizer-se que o hábito não faz o monge. Um alfaiate transforma os homens. -O aborrecido de um fato bem feito é que ele dura muito. Este tem dez anos. -Custa a acreditar. Como está Mrs. Baker? -Suficientemente bem para não se queixar. Porque não vai fazer-lhe uma visita, Mrs. Young-Hunt? Ela está muito só e não há muita gente da sua geração capaz de sus tentar uma conversa elevada. É a divisa do Winchester College. Foi Wickham que o disse. Margie voltou-se para Ethan. -lndique-me outro banqueiro americano que saiba isto.-Baker corou. -A minha mulher lê muito. Peço-lhe que a visite. -Com todo o prazer. Meta tudo isto num saco, Mr. Hawley. Levá-lo-ei quando for para casa. -Entendido, minha senhora. -É uma jovem notável-disse Baker. -A Mary e ela dão-se muito bem. -Ethan, aquele funcionário  veio cá? - Sim. -Que desejava ele? -Não sei. Fez-me a respeito de Mr. Marullo perguntas a que não soube responder. Mr. Baker esqueceu a imagem de Margie com a mesma lentidão com que uma anémona se abre para expelir a carcaça de um caranguejo esvaziada da sua substância. -Ethan, viu Danny Taylor? Não. 198 199 -Sabe onde está? -lgnoro-o. -Preciso de vê-lo. Tem alguma ideia do lugar onde possa encontrar-se ? -Não tornei a vê-lo desde... desde o mês de Maio. Tinha a intenção de tentar uma cura. -Sabe onde? -Não mo disse. Mas queria tentar. -Era num estabelecimento público? -Não creio, porque me pediu algum dinheiro. -O quê?
-Emprestei-lhe algum dinheiro. -Quanto? -Desculpe ! -Perdoe-me, Ethan. Somos velhos amigos, perdoe-me. Ele tinha mais algum dinheiro? -Penso que sim. -Não sabe quanto? -Não. É uma simples impressão. -Se souber onde ele está, diga-me. -Fá-lo-ei. Porque não arranja uma lista de todos os estabelecimentos de cura e telefona a cada um deles? -O empréstimo foi em dinheiro? -Sim. -Fez mal. Ele deve ter mudado de nome. -Porquê ? -Fazem-no sempre que se trata de boas famílias. Ethan, esse dinheiro era de Mary? -Era. -Ela não viu inconveniente nisso? -Não sabe de nada. -Você tornou-se inteligente. -O senhor ensinou-me a sê-lo. -Pois bem, não o esqueça. -Vou-me instruindo pouco a pouco, e quanto mais aprendo mais vejo que sei pouco. -lsso é salutar. Mary está bem? -Oh, ela é forte e rija. Gostaria de levá-la a passar umas férias em qualquer sítio. Há anos que não deixamos a cidade. -lsso virá, Ethan. Eu penso partir para o Maine depois do 4 de julho. Não posso suportar este barulho.
 
 
20O -Vocês, os banqueiros, têm uma bela vida. Não esteve em Albany últimamente ? -Quem lhe falou nisso? -Não sei... ouvi em qualquer parte. Talvez Mrs. Baker o tivesse dito a Mary. -Não poderia fazê-lo, pois ignora-o. Experimente lembrar-se de onde o ouviu dizer. -Teria eu imaginado? -lsso aborrece-me, Ethan. Procure bem nas suas recordações. -Não posso. Mas, afinal, que importância tem isso, se não é exacto ? -Mas é exacto, e é isso que me aborrece. Vou confiar-lhe um segredo. O governador chamou-me. O assunto é altamente confidencial e pergunto a mim próprio quem cometeu  a indiscrição. -Alguém o teria visto lá? -Que eu saiba, não. Fui e vim de avião. Isto é sério. Vou dizer-lhe uma coisa. Hei-de saber quem foi. Vou explicar-lhe. -Então não quero ouvir nada. -Você não pode opor-se a ouvir, agora que sabe que eu fui a Albany. O Estado interessa-se pelos negócios da cidade e da região. -Porquê? -Suponho que em Albany devem ter farejado qualquer coisa. -Coisas de política? -Penso que tudo o que o governador faz pode ter esse nome.
-Porque não actuam abertamente? -Vou dizer-lhe a razão. É que a maior parte dos dossiers referentes aos assuntos da cidade desapareceram. -Estou a ver. Preferia que não me tivesse dito nada. Não sou falador, mas teria gostado mais de não o saber. -Também eu, Ethan. -As eleições terão lugar em 7 de julho. O que me contou será tornado público antes dessa data? -Não sei. O governador decidirá. -Julga que o Marullo está metido nisso? Não me convém nada perder o emprego.
 
 
207 -Penso que não. Mas aquele homem do Departamento de Justiça... Você pediu que lhe mostrasse o cartão? -Não pensei nisso. Ele mostrou-me um documento, mas eu nem olhei. -Devia tê-lo feito. -Não sabia que o senhor tencionava partir. -Oh, isso não tem importância. Nada acontecerá durante o fim-de-semana do 4 de julho. Os japoneses atacaram Pearl Harbour durante um fim-de-semana porque sabiam  que ninguém estaria a postos. -Bem, eu desejaria levar a Mary a qualquer parte. -Talvez o possa fazer mais tarde. Pense bem e esforce-se por saber onde está o Danny. -Porquê? É assim tão importante? -É, mas agora não posso dizer-lhe a razão. -Gostaria, realmente, de poder encontrá-lo. -Se o encontrar, talvez você não precise de continuar neste trabalho. -Vou fazer tudo quanto possa. -Está bem, Ethan. Tenho a certeza disso. Se o localizar, chame-me imediatamente, seja de dia ou de noite. As pessoas que dizem não ter tempo para pensar surpreendem-me. Pela minha parte, posso pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Pesar legumes, falar da chuva e do bom  tempo com os fregueses, discutir com Mary ou amá-la, zangar-me com as crianças... nenhuma destas actividades impede a marcha de um segundo conjunto de pensamentos,  de reflexões, de conjecturas. Isto deve acontecer com toda a gente. Não ter tempo de pensar deve equivaler a não ter vontade de pensar. Talvez eu não tivesse já possibilidade de escolha na região estranha e ilimitada em que penetrei. E era um mundo tão novo para mim que fiquei estupefacto perante  os problemas que os outros deviam ter resolvido enquanto crianças. Tinha pensado em utilizar um padrão de procedimento que eu controlaria a cada passo e em que me fosse possível parar quando quisesse. Mas adquiri a terrível certeza  de que um tal método pode tornar-se uma coisa, quase uma pessoa, tendo os seus próprios desígnios, as suas intenções, independentemente do seu criador. Um outro 
pensamento perturbante me assaltou. Fui eu que pus isto em marcha, ou muito simplesmente não resisti? Agi, ou fizeram-me agir? Uma vez lançado na grande rua, parecia  não haver cruzamentos, bifurcações ou escolha. 202
203 Capítulo XIII
 
A escolha só existiu na primeira opção. Que é a moralidade? Uma simples palavra? Foi honesto contar com a fraqueza de meu pai, cujo espírito generoso acreditava  na generosidade dos outros? Cavar um buraco para ele foi simplesmente um bom trabalho. Caiu lá dentro por si só, sem que ninguém o empurrasse. Foi imoral pisá-lo  quando ele estava no chão? Aparentemente, não. Estava agora em curso em New Baytown uma lenta e deliberada operação, na qual se jogavam grandes interesses, dirigida por cidadãos proeminentes. Se tal operação  tivesse êxito, ninguém veria senão a habilidade com que fora urdida, esquecendo-se tudo o resto. E se alguém se aproveitasse de um pormenor esquecido por eles, seria  isso imoral, desonroso? Na minha opinião, também desta vez tudo dependeria do sucesso ou do insucesso. Para a maior parte das pessoas, o sucesso nunca merece censura.  Quando Hitler triunfava, apareceu muita gente que nele encontrou virtudes. De Mussolini dizia-se que fazia partir os comboios à hora. Vichy, se colaborou, foi para  bem da França. Quanto a Estaline, uma só coisa interessava: era poderoso. Poder e sucesso estão acima da moralidade e acima da crítica. O que se faz não é nada,  mas a maneira como se age e o nome que se dá aos nossos actos é que é tudo. Os homens são munidos de um dispositivo interno que os faz parar e os castiga? Parece  que não. O único castigo é o insucesso. Não há crime se o criminoso não é apanhado. Na operação que se preparava em New Baytown, alguns homens ficariam prejudicados,  alguns mesmo arruinados, mas essa ideia não faria deter os seus autores. Não podia chamar a isto um debate de consciência, uma vez que compreendera e aceitara o meu novo padrão de conduta. O caminho foi nitidamente traçado e os perigos  são evidentes. Tudo parecia criar-se por si mesmo, e isto era o que mais me surpreendia. Cada pormenor gerava um novo, que se adaptava bem aos restantes. Via-os  desenvolver-se sem quase os dirigir. Sentia intensamente que as minhas acções, os meus projectos, me eram estranhos, ainda que indispensáveis, como os estribos para montar um cavalo alto. Mas, uma vez  na sela, pode-se passar sem estribos. Talvez não possa parar no caminho que estou a percorrer, mas não terei necessidade de me lançar noutro. Não tinha nenhuma vontade de pertencer à cinzenta e terrível legião daqueles que vivem perigosamente. Era estranho à tragédia do  próximo 7 de julho. Mas podia prevê-la e servir-me dela. Um dos nossos mais velhos e discutidos mitos pretende que se pode ler os pensamentos no rosto dos homens e que os olhos são o espelho da alma. Não é verdade. Apenas  a doença transparece. Raras pessoas podem aperceber-se de uma mudança, entender um sinal secreto. Creio que Mary sentiu a minha mudança, mas interpretou-a mal. Margie  sabia... mas era uma feiticeira. Tinha tanto de inteligência como de instinto da magia, e isso mais aumentava a sua perturbação.
Mr. Baker partiria para férias provàvelmente na tarde da sexta-feira anterior ao feriado do 4 de julho. A tempestade rebentaria talvez na sexta ou no sábado. Ela  teria assim tempo de produzir efeito antes das eleições e Baker não tinha a mínima vontade de estar presente no momento do escândalo. Evidentemente, para mim, isso  tinha pouca importância. Era apenas uma operação de antecipação, mas tornaria necessários muitos movimentos na quinta-feira, caso ele partisse nessa noite. O que  eu tinha a fazer no sábado tinha sido tão ensaiado que era capaz de o executar mesmo a dormir. Se sentia algum medo, não era mais que um ligeiro nervosismo que precedia  o momento da acção. Na segunda-feira, 27 de junho, Marullo chegou à hora de abrir. Passeou de um lado para o outro, olhando com um ar estranho as prateleiras, a caixa registadora, o  balcão-frigorífico. Depois foi ao fundo da loja e olhou ao derredor. A julgar pela sua expressão, poderia acreditar-se que a via pela primeira vez. -Vai dar uma volta no 4 de Julho?-perguntei. -Porque perguntas isso? -Porque todos os que podem o fazem. -Ora! Onde iria eu? -Onde vai toda a gente, a Catskill ou a Montauk para pescar. Estamos na época própria. Bastou a evocação de um peixe de quinze quilos a debater-se na extremidade de uma linha para acordar a sua artrite. Dobrou o braço e gemeu. Estive quase a perguntar-lhe quando pensava partir 204 205 #206 para a Itália, mas achei que seria demasiado. Aproximei-me e toquei-lhe suavemente no cotovelo direito. -Alfio-disse-lhe -, você é um velho casmurro. Porque não vai a Nova Iorque consultar o melhor especialista? Deve haver maneira de fazer parar essas dores. -Não o creio. -Mas que perde você? Experimente. -Que te importa isso? -Na realidade, não devia importar-me, mas há muito tempo que trabalho aqui para um macaroni indecente. Se um cão o morde, sou eu que sinto a dor. Quando você vem  aqui e mexe o braço, passa-se meia hora antes que eu consiga acalmar. -Estimas-me assim tanto? -Claro que não. Estou a dar-lhe manteiga, pois assim talvez consiga um aumento de ordenado. Levantou para mim uns olhos de cão orlados de ver melho, cuja íris era de um castanho tão escuro que não se podia ver a pupila. Pareceu-me que ia dizer qualquer coisa, mas mudou de opinião. -Tu és um bom rapaz. -Não se fie nisso. -Um bom rapaz!-exclamou. E, dizendo isto, saiu precipitadamente, envergonhado por ter manifestado a sua emoção.
Estava a pesar um quilo de feijão para Mrs. Davidson quando ele voltou, ofegante. Parando no limiar da porta, gritou -Podes levar o meu Pontiac. -O quê? -Vai a qualquer lado no domingo e na segunda. -Não tenho dinheiro para isso. -Leva os garotos. já disse na garagem que podes levar o carro. O depósito está cheio. -Espere um minuto. -Vai para o Diabo! Leva os garotos. Atirou-me qualquer coisa semelhante a uma pequena bola, que caiu entre os feijões, e afastou-se. Mrs. Davidson olhou-o até desaparecer. Eu agarrei a bola verde: três notas de vinte dólares amachucadas. -Que tem ele? -E um italiano muito nervoso. -Deve estar, na verdade, bastante excitado, para deitar o dinheiro fora. Não voltou a aparecer no resto da semana, e foi melhor assim. Dantes, nunca se afastava sem mo dizer. jamais esperara que ele alguma vez me emprestasse o Pontiac. Nunca o fizera a ninguém. Era extraordinário. Uma força exterior parecia ter Tomado a direcção dos acontecimentos, que se precipitavam, se empurravam como um bando de carneiros à entrada  cio curral. Qualquer que seja o grau de perfeição de um plano, ele pode ser aniquilado por uma influência estranha. E por isso, creio eu, que nós acreditamos na  sorte e no azar. Na quinta-feira, 3o de junho, acordei, como habitualtnen.te, com a luz nacarada da aurora. A cadeira e a secretária não passavam de massas sombrias e os quadros  de manchas leves. As cortinas brancas, tremendo suavemente, pareciam respirar. A aurora é quase sempre acompanhada de uma pequena brisa. Saindo do sono, eu desfrutava as vantagens de dois mundos : o das regiões do sonho e o do pensamento acordado. Estirei-me voluptuosamente. A pele, encolhida durante  a noite, deve, segundo parece, voltar ao seu lugar durante o dia, accionada pelos músculos esticados. Há nisso uma sensação de prurido que dá prazer. Comecei por passar em revista os sonhos de que me lembrava, como se estivesse a percorrer o jornal à procura de uma notícia importante. Depois explorei o dia que  ia viver, à caça de acontecimentos ainda por vir. Para acabar, usei o método do melhor oficial que conheci. Era o major Charley Edwards, homem de meia-idade, que  estava longe de ser um bom combatente, mas que, no entanto, era um excelente oficial. Tinha uma numerosa família, composta por uma mulher encantadora e quatro crianças  com pequenas diferenças de idade. O seu coração transbordava de amor por elas e ansiava por vê-las. Falou-me nisso um dia. Na sua profissão de morte, não podia permitir  que os seus afectos lhe distraíssem a atenção e, assim, arranjara um método. De manhã, se não era arrancado ao sono por um alerta, abria o coração e o espírito à 
família. Revia uma de cada vez, lembrando-se do seu aspecto e das suas feições. Em pensamento acariciava-as, afirmando-lhes o seu amor. Era um pouco como se retirasse
 
 
207 de um armário objectos preciosos para os apalpar, os beijar antes de tornar a colocálos no lugar e de fechar a porta com um ligeiro adeus. Tudo isto levava-lhe  uma meia hora e não pensava mais nisso durante todo o dia. Podia então consagrar toda a sua capacidade de pensamento e de acção ao trabalho de matar outros homens.  Pedi-lhe autorização para usar o seu método e concedeu-ma. Quando foi morto, só pensei uma coisa: ele tivera uma vida útil e boa. Tinha gozado os seus prazeres,  saboreado a amor e pago as dívidas. Quantos poderão dizer o mesmo? Eu nem sempre usava o método do major Charley. Mas sabia que nesta quinta-feira precisaria de toda a atenção. Apenas o dia entreabriu a sua porta, também eu fui  fazer uma visita à minha família. Segui a ordem cronológica e curvei-me diante da tia Deborah. Ela devia o nome a Deborah, juiz de Israel. Segundo o que li, um juiz era também chefe militar. Talvez  o nome de baptismo tivesse influenciado a minha tia-avó, pois ela era capaz de comandar um exército. Punha em fila coortes de pensamentos. A minha alegria de aprender  sem lucro palpável provinha dela. Apesar de austera, era curiosa e tinha pouco interesse por quem o não fosse. Reverenciei-a. Levantei um brinde espectral ao velho  capitão e inclinei a cabeça diante do meu pai. Apresentei também os meus respeitos àquele lugar desabitado do pas= sado que representava minha mãe. Não cheguei a  conhecê-la. Morreu antes de eu poder tomar consciência dela, deixando um vácuo no seu lugar. Um facto perturbou-me. A tia Deborah, o velho capitão e meu pai não quiseram apresentar-se com nitidez. Os seus traços, que deviam ser precisos, firmes, eram fluidos,  vagos. Talvez a memória descolore as imagens como uma velha fotografia. Mary devia vir em seguida. Pu-la de lado, para mais tarde, e apoderei-me de Allen. Não pude encontrar na sua antiga face aquela cuja alegria e vivacidade me convenciam  da perfeição humana. Ele apareceu-me tal como se tornara : desagradável, autosuficiente, rancoroso, inclinado para a dor e a perplexidade da puberdade. Período  terrível, torturante, durante o qual experimentava o desejo de morder tudo quanto lhe estava próximo, como um cão preso numa armadilha. Mesmo na imagem que dele  fiz no meu pensamento, não pôde sair do seu doloroso descontentamento, e despedi-me dele dizendo-lhe : <<Eu sei o que isso é. Lembro-me até que ponto era terrível. Nada  posso fazer, nem ninguém pode. Mas asseguro-te que isso passará, apesar de tu não acreditares. Vai em paz... vai com o meu amor, apesar de neste momento não nos  podermos suportar um ao outro." Ellen provocou-me uma onda de prazer. Ela deve vir a ser bonita, mesmo mais que a mãe. Quando a sua face for completamente moldada,  terá a surpreendente autoridade da minha tia Deborah. As suas constantes mudanças de disposição, as suas maldades, os seus nervos à flor da pele são os ingredientes 
da beleza amada. Sei-o por tê-la visto, adormecida, beijar o talismã rosado apertado contra o seu pequenino seio, tendo no rosto a expressão de uma verdadeira mulher.  O talismã é importante para Ellen, pelo mesmo motivo e tanto como é para mim. Talvez seja Ellen quem herde e transmita aquilo que em mim há de imortal. Apertei-a  nos braços e ela fez-me cócegas na orelha. A minha Ellen. A minha filha. Voltei a cabeça para Mary, que, adormecida, sorria à minha direita. É o seu lugar. Por vezes repousa a cabeça sobre o meu braço, deixando-me a mão livre para acariciá-la. Alguns dias antes, tinha dado um golpe no dedo indicador quando no armazém cortava um cacho de bananas. Uma cicatriz calosa coroava a ponta do dedo. Servi-me portanto  do médio para seguir a curva graciosa desde a orelha ao ombro. Suavemente, para não a acordar, mas com suficiente firmeza para não lhe fazer cócegas. Suspirou como  sempre, profundamente, voluptuosamente. Algumas pessoas não gostam de que as acordem, mas isso não acontece com Mary. Começa um dia com a firme certeza de que ele  será bom. Sabendo isso, ofereço-lhe um pequeno presente para que a sua convicção seja confirmada. Abriu os olhos ensonados. -,Já?-perguntou olhando a janela para ver em que altura estava o dia. Por cima da secretária pendia um quadro representando nuvens, um lago e uma vaquinha junto da água. Podia ver da minha cama o rabo da vaca, e saber, assim, que já era dia. 208 209 -Dou-te a notícia de uma grande alegria, esquilo voador. -ldiota! -Já te menti alguma vez? -Talvez. -Estás bem acordada para receber a grande nova? -Não. -Então não ta darei. -Estás sempre na brincadeira. Se ainda queres cimentar o relvado... -Nada disso. -Ou instalar uma criação de grilos... -Não. Vejo que te lembras bem dos projectos abandonados. -O que tens agora para dizer é uma nova brincadeira? -É uma coisa tão extraordinária que terás dificuldade em acreditar. Agora os olhos estavam bem vivos e os cantos dos lábios tremiam um pouco, prestes a rir. - Conta. -Conheces um homem de origem italiana, chamado. Marullo ? -Estás a fazer-te idiota? -Já vais ver. O Marullo partiu por uns tempos. -Para onde? -Não me disse. -Quando volta? -Deixa de me fazeres perguntas. Também não mo, disse. O que ele me disse e, como eu protestei, me ordenou,, foi que pegasse no seu carro e desse uma passeio durante  as festas. -Estás a troçar de mima -Poderia eu dizer-te uma mentira que te causasse mágoa? -Mas, então, porque fez isso?
-lgnoro-o. Ms afirmo-te sob palavra de escuteiro ou juramento devido ao papa que o Ponti", com o depósito atestado de gasolina, espera as ordens de Sua Alteza.. -Onde iremos? -lsso decidirá a minha deliciosa mulherzinha. Podes pensar hoje todo o dia, amanhã e sábado. -Segunda-feira é feriado. Teremos assim dois dias.. -Certamente. -Poderemos fazer essa despesa? O hotel... -Possamos ou não, fá-la-emos. Tenho um pé-de -meia. -Não posso imaginar o Marullo a emprestar-nos o carro. -Também eu não posso, mas fê-lo. -Não esqueças que pela Páscoa nos trouxe ovos. -Deve tratar-se de senilidade. Pergunto a mim própria que deseja ele. -Esse pensamento não é digno da minha mulher. Tal vez ele queira simplesmente que o estimemos. -Vou ter mil coisas a fazer. -Bem sei. Podia ver o seu pensamento revolvendo todas as possi bilidades como um tractor revolve a terra. Deixara de me R restar atenção e tão cedo não voltaria a conceder-ma. rã sempre assim. Ao pequeno almoço, antes de eu ter bebido a segunda chávena de café, já ela tinha estudado e rejeitado metade dos locais de divertimento da América Oriental. A minha po bre querida já há anos que não tinha tal prazer. -Cloe-disse eu-, sei que vou ter dificuldades em conseguir que me escutes com atenção. Ofereceram-me um negócio muito importante. Mais uma vez preciso de ter dinheiro. O primeiro que te pedi faz progressos. -Mr. Baker sabe disso? -A ideia é dele. -Então segue-a. Assina um cheque. -Não queres saber qual será o montante? -Posso calcular. -Não queres saber em que consiste o investimento? A taxa de emissão, o rendimento provável, os encargos fiscais e tudo o resto ? -Não compreenderia. -Oh, certamente que compreendias. -Mas supõe que não quero compreender. -Não me admiro de que algum dia te chamem a raposa de Wall Street. Que espírito de negócios, frio como o gelo e capaz de cortar o diamante ! Es terrível. -Vamos viajar-disse ela.-Vamos viajar durante dois dias. 210 211 212 Como seria possível não a amar, não a adorar? Quem é Mary, que é ela? Cantando, recolhi as garrafas cheias de leite e dirigi-me à loja.
Senti a necessidade de trocar impressões com Joey, para ter uma ideia dos seus sentimentos. Mas, ou eu estava atrasado, ou ele adiantado, pois entrava no café quando  virei a esquina de High Street. Segui-o e instalei-me no taroborete ao lado do seu. -Você pegou-me um hábito, Joey. -Bom dia, Mr. Hawley. O café é bastante bom. Saudei a minha antiga companheira de escola. -Bom dia, Annie. -Vais tornar-te freguês, Eth? -Sou capaz disso. Dá-me café bem negro e forte. -É o que ele é. -Forte e negro como o olho do desespero. -O quê? -Negro. -Se achas que não é bem escuro, dou-te outro. -Como vão os seus negócios, Morph? Sempre para pior. -Quer trocar as nossas ocupações? -Sim, nas vésperas do fim-de-semana. -Você não é o único a ter preocupações. Lembre-sei de que os meus clientes têm de fazer reservas de alimentos. -lsso é verdade. Não tinha pensado nisso. -Sanduíches, salsichas, pickles. Convém-lhe? -Com o dia 4 a  calhar a uma segunda-feira e com este belo tempo, você ainda troça? E o pior para mim é que Deus Todo-Poderoso sentiu desejos de distrair-se e repou sar na montanha. -Mr. Baker? -Quem queria que fosse? -Gostaria de vê-lo. Preciso de lhe falar. -Pois bem, tente agarrá-lo, se puder. Ele salta como uma bola. -Posso levar sanduíches ao seu campo de batalha. -Talvez lhe peça isso. -Hoje sou eu quem pago. -Magnífico. Atravessámos a rua juntos e penetrámos na ruela.. -Você parece um tanto em baixo, Joey. -Pois estou. Começo a estar aborrecido de só os outros terem dinheiro. Tenho uma entrevista no fim da semana e estou muito liso para estar à altura do acontecimento. Introduziu um papel de embrulhar goma elástica na fechadura, entrou e disse:-Até à vista.-Depois fechou a porta. Eu reabri-a. -Joey! Quer hoje uma sanduíche? -Não, obrigado-gritou ele do interior escuro e cheirando a desinfectante.-Talvez na sexta-feira, com certeza no sábado. -No sábado não fecha ao meio-dia? -Já lhe disse. O banco, sim, mas Morphy não. -Não tem mais que chamar-me. -Obrigado... Obrigado, Mr. Hawley. Naquela manhã não tive mais nada a dizer às minhas tropas enfileiradas na prateleira senão: "Bom dia, senhores... descansem." Alguns minutos antes das nove, cingido pelo avental e empunhando a vassoura, estava a limpar o passeio. Mr. Baker é tão pontual que quase se ouve o seu tiquetaque, pois estou certo de que tem uma corda no peito. Entre as oito horas e cinquenta e seis e as oito e cinquenta 
e sete desceu Elm Street, às oito e cinquenta e oito atravessou a rua, às oito e cinquenta e nove... estava junto da porta envidraçada, onde o interceptei de vassoura  na mão. -Bom dia, Mr. Baker. Preciso de falar-lhe. -Bom dia, Ethan. Pode esperar um minuto? Entre. Segui-o. Como Joey tinha dito, aquilo parecia-se com uma cerimónia religiosa. Eles puseram-se literalmente em sentido quando o ponteiro do relógio marcou as nove  horas. Houve um estalido e um sussurro vindos da grande porta de aço do cofre. Depois Joey formou os números místicos e deu a volta à manivela que acciona os ferrolhos.  O templo sagrado abriu-se e Baker recebeu a saudação do dinheiro empilhado. Eu estava do outro lado da mesa como um humilde comungante esperando o santo sacramento. Baker voltou-se. -Então, Ethan. Em que posso ser-lhe útil? -Gostaria de falar-lhe a sós-disse-lhe suavemente.E não posso deixar a loja. 213 -lsso não pode esperar? Julgo que não. -Você precisa de quem o ajude no serviço. -Bem sei. -Se tiver um momento, darei lá um salto. Teve notícias de Taylor? -Ainda não. Mas já fiz algumas diligências. -Tentarei ir falar consigo. -Obrigado. Sabia que ele não faltaria, e de facto apareceu antes de passada uma hora, ficando à espera de que os clientes saíssem. -Então... de que se trata, Ethan? -Mr. Baker, um médico, um advogado e um padre respeitam um segredo. Acontece o mesmo com um banqueiro ? Sorriu. -Já ouviu alguém discutir os segredos de um cliente, Ethan ? -Não. -Então exponha o seu caso. Além disso, lembre-se de que sou seu amigo. -Bem sei. Eu talvez seja um pouco impressionáv mas já há muito tempo que não recebia um golpe rude. -Um golpe rude? -É preciso olhar as coisas de frente, Mr. Baker. O Marullo tem complicações. Ele aproximou-se. -Que espécie de complicações? -Não sei exactamente. Creio que deve tratar-se d imigração ilegal. -Como sabe? -Ele disse-mo... ainda que de uma forma imprecisa. O senhor conhece-o. Era fácil imaginar o seu cérebro a trabalhar. -Continue. Isso significa repatriação. -Tenho esse receio. Ele tem sido bom para mim, Mr. Baker, e eu não queria fazer nada que o prejudicasse. -Pense em si, Ethan. Que lhe propôs ele? -Não foi uma proposta pura e simples. Extraí essa convicção de uma confusão de frases. Mas creio que, se ti
vesee cinco mil dólares em dinheiro, ràpidamente a loja seria minha. -O que leva a acreditar que ele quer ir-se embora... mas você não está bem seguro. -Não sei pràticamente de nada. -Pode não ter havida acusação de ilegalidade. Ele nada lhe disse ao certo. -Não, senhor. -Então, como chegou àquela quantia? -Fàcilmente. A mercadoria que temos vale cinco mil dólares. -Mas você podia ficar com o negócio por menos. -Talvez. Com um golpe de vista rápido, avaliou a loja. -Se as suas desconfianças têm fundamento, você está em boa posição para regatear. -Não tenho jeito para isso. -Posso falar com ele. -Não está na cidade. -Quando volta? -Não sei. Não esqueça que é uma simples impressão. Se tiver o dinheiro, ele pode aceitar. Gosta de mim, como sabe. -Sei. -A ideia de que posso tirar partido disso desgosta-me. -Ele pode vender a qualquer pessoa pelo preço que você indicou, e até mesmo por dez mil dólares. -Nesse caso, estou a alimentar ilusões. -Não pense nisso, rapaz. Olhe para os seus inte resses. -E para os de Mary. O dinheiro é dela. -Tem razão. Bem, qual é a ideia? -Sabe, penso que o senhor poderia redigir os do cumentos, mas deixando a data e o montante em branco. E depois eu passarei na sexta-feira para levantar o dinheiro. -Porquê na sexta-feira? -Não é mais que uma simples suposição, mas ele disse-me qualquer coisa acerca de toda a gente partir para férias. Concluí que aproveitaria para aparecer. Não tem uma conta dele no banco? -Não, valha-me Deus. Extinguiu-a recentemente. Não 214 215 liguei importância, pois de vez em quando ele faz isso e volta a depositar mais ainda do que levantara.-Olhava de frente a Miss Rheingold de corpo inteiro e a cores  do balcão-frigorífico, mas não respondeu ao seu convite sorridente.-Você arrisca-se terrivelmente, sabe? -Que quer dizer? -Em primeiro lugar, ele pode vender a meia dúzia de pessoas ao mesmo tempo. Por outro lado, pode estar hipotecado até aos cabelos sem que ninguém o saiba. -Poderia verificar na repartição de registo. Sei como o senhor está ocupado, mas apelo para a amizade que liga as nossas duas famílias. Além disso, o senhor é o 
único amigo meu que está ao corrente destas coisas. -Vou perguntar a Tom Watson acerca do registo da propriedade. E pena que o momento seja mau. Vou dar uma volta amanhã à tarde. Se ele tiver feito alguma trapaça,  você pode ser tomado como cúmplice. -Então, talvez seja melhor eu desistir. Mas a verdade é que começo a estar farto de ser caixeiro de mercearia. -Não lhe disse que renunciasse, mas apenas que corre certo risco. -A Mary seria muito feliz se a loja me pertencesse. Mas o senhor tem razão. Não devo arriscar o dinheiro dela. O melhor que tenho a fazer é chamar os homens da Polícia  federal. -lsso fá-lo-ia perder todas as vantagens. -Como? -Se for repatriado, pode encarregar um agente çle lhe vender as propriedades e pedirão por esta loja muito mais que o que você pode dar. Você não sabe que ele tem  a intenção de dar o salto. Como poderia dizer o que ignora? Você nem mesmo sabe que ele não está em regra. -É verdade. -De facto, não se sabe nada a seu respeito... verdadeiramente nada. Tudo o que me diz não passa de suposições vagas, não é verdade? -Sim. -Que fará melhor em esquecer. -Não produziria mau efeito pagar em dinheiro sem nada ficar registado? -Pode escrever no cheque... ora... qualquer coisa como : "Para investir no negócio de mercearia de A. Ma rullo." Isso seria uma prova da sua intenção. -E se não faço o negócio? -Torna a depositar o dinheiro. -Acha que devo correr o risco? -Ora... tudo é arriscado, Ethan. Até é arriscado andar com tanto dinheiro. -Tomarei cuidado. -Preferia não ter de me afastar por estes dias. Durante todo este tempo não viera nenhum freguês. Bruscamente, chegaram seis : três mulheres, um velho e dois rapazes. Mr. Baker aproximou-se de mim e disse num tom de confidência -Dar-lhe-ei notas de cem dólares, de cujos números tomarei nota. Desta maneira, se lhas roubarem, você tem probabilidades de reavê-las. Saudou gravemente as três mulheres, disse "Bom dia, George" ao velho e passou os dedos pelos cabelos ema ranhados das crianças. Mr. Baker é um homem muito inteligente. 1 216
217 Capítulo XIV
 
Primeiro de Julho. O dia que divide o ano como uma risca ao meio divide o cabelo. Tinha-o previsto como uma linha-limite em mim próprio: ontem uma personalidade,  hoje outra. Agira sem pensar voltar atrás. O tempo e os acontecimentos tinham desempenhado o seu papel, parecendo colaborar comigo. Não procurava cobrir com uma  aparência de virtude actos conscientes. Ninguém me obrigara a tomar a estrada que escolhera. Provisòriamente, trocava uma maneira de agir pelo bem-estar, a dignidade  e a segurança. Seria fácil admitir que o fazia pela minha família, pois eu sabia que no seu conforto e segurança encontraria a minha dignidade. Mas o meu objectivo  era limitado e, uma vez atingido, poderia voltar à minha maneira de ser. Sabia que isso era impossível. A guerra não fizera de mim um assassino, embora durante algum  tempo eu tivesse matado. Enviar patrulhas, sabendo que alguns dos meus homens iam morrer, não suscitava em mim nenhuma alegria, como sucedia com alguns outros. Nunca  pudera achar prazer no que fazia, nem desculpar-me ou indultar-me. O principal era conhecer o objectivo da acção para poder sustê-la a tempo. Mas isso só poderia  ser se eu soubesse o que desejava obter sem me deixar iludir... segurança, dignidade, e parar tudo ime 219 t diatamente. O combate ensinara-me que os mortos e os feridos não são vítimas da cólera, do ódio ou da crueldade. Em minha opinião, no próprio instante do sacrifício,  o amor vem unir vencedores e vencidos, os assassinos e as vítimas. Mas o pedaço de papel de Danny e os olhos reconhecidos de Marullo torturavam-me. Não estive acordado, como seria lógico na véspera de uma batalha. O sono viera rápido,  poderoso, total, e acordara antes da alvorada, retemperado e fresco. Não fiquei estirado na obscuridade, como era meu hábito. Deslizei suavemente para fora da cama,  vesti-me na casa de banho e desci a escada encostado à parede. Surpreendi-me a ir direito à vitrina. Abri-a e reconheci o globo pelo tacto. Pu-lo na algibeira e  tornei a fechar o móvel. Nunca em toda a minha vida o tinha levado e não sabia o que faria naquela manhã. A memória guiou-me, através da cozinha escura, até à porta  e ao pátio cinzento. Os olmos em abóbada estavam carregados de folhas. Se tivesse à mão o Pontiac de Marullo teria deixado New Baytown em direcção ao mundo das minhas  primeiras recordações. Na algibeira, os meus dedos seguiam o desenho sinuoso, sem fim, do talismã morno como a carne. Um talismã? Aquela Deborah que me enviou, em criança, para o Gólgota, era, nas suas palavras, uma máquina de precisão. Não admitia que se brincasse com elas, não me autorizando  nenhuma imprecisão de linguagem. Que força tinha essa mulher, essa velha ! Se ela buscava a imortalidade, encontrara-a sobrevivendo no meu cérebro. Vendo-me um dia  a acariciar com a ponta do dedo este enigma, dissera-me": "Ethan, essa coisa estranha podia tornar-se o teu talismã."
"Que é um talismã?" "Se eu to disser, a tua meia atenção não reterá senão metade. Procura por ti próprio saber o que é." Muitas palavras pertencem-me porque a tia Deborah começava por excitar a minha curiosidade e forçava-me a satisfazê-la por mim próprio. Naturalmente, eu replicava.  "Quem se importa com isso? Mas ela sabia que aquilo caminhava por si e soletrava para que o não esquecesse: "T-a-1-i-s-m-ã". As palavras contavam muito para ela.  Detestava vê-las mal empregadas, tanto como teria sofrido
 
 
220 ao ver um objecto delicado ser agarrado com falta de cuidado. Agora, tantos lustros mais tarde, posso rever a pagina - a mim próprio dissecando a palavra "talismã". As letras árabes não representavam para mim senão uma escrita contornada com uma rodela no fim. A pronúncia grega  fora-me ensinada por aquela velha destemida. Lá vira o significado da palavra mágica: "Uma pedra ou qualquer outro objecto com números gravados ou caracteres aos  quais são atribuídos poderes ocultos, influências planetárias - configurações celestes. Usam-se geralmente como amuletos destinados a afugentar o mal ou a dar a fortuna àquele que o traz." Tivera igualmente de procurar a significação das palavras "oculto", "planetário", "celeste" e "amuleto". Era sempre assim. Uma palavra fazia surgir outra como um  rosário de foguetes. Quando, mais tarde, lhe perguntei: "Acredita em talismãs?", ela respondera-me: "Que tem aquilo em que eu acredito a ver com isso?" Também lhe pus o objecto na mão,  ao mesmo tempo que perguntava: "Que significam estas imagens, estes caracteres?" "É o teu talismã, e não o meu. Representa o que quiseres. Torna a colocá-lo na vitrina. Ele esperará ali por ti." Agora, ao caminhar sob a abóbada dos olmos, ela está tão viva como a conhecera, e esta é a verdadeira imortalidade. A escultura enrolava-se sobre si própria. Uma serpente sem cauda nem cabeça, sem princípio nem fim. Pela primeira vez a levava comigo. Para afastar o mal? Ou para  atrair a fortuna? Não acredito em profecias e a imortalidade deu-me sempre a sensação de uma promessa doentia destinada às pessoas falhadas. A franja luminosa a leste era julho. Junho tinha partido durante a noite. Julho é cobre onde junho é ouro - chumbo onde junho é prata. A folhagem de julho é pesada, grossa, amontoada. O canto dos pássaros em Julho são estribilhos pretensiosos, sem entusiasmo, pois os  ninhos estão vazios. Os pássaros, novos e rechonchudos, volitam desajeitadamente. Não. Julho não é um mês de promessas nem de conclusões. Os frutos estão formados,  mas azedos -        sem cor; o trigo é um caule verde e mole encimado por
 
 
221 #222 uma borla amarela. As abóboras têm ainda um umbigo de flores secas.
Dirigi-me para Porlock Street, Porlock gorda e satisfeita. A luz acobreada da aurora revelava moitas de roseiras carregadas de flores de meia-idade, a lembrar mulheres  cuja cinta não consegue já dissimular um ventre espesso, enquanto as pernas se conservam ainda graciosas. Caminhava suavemente e surpreendi-me não a dizer, mas a sentir, "até à vista, e não "adeus. Adeus tem como que o som doce de um lamento. Até à vista é breve  e defi-: nitivo. E uma palavra munida de dentes aguçados para cortar os elos que ligam o passado e o futuro. Cheguei ao Porto Velho. Até à vista a quê? Não sei. Não me lembro. Queria, pareceme, chegar ao meu Lugar. Mas um apaixonado do mar devia saber que naquele momento  a maré estava alta e que o Lugar se encontrava debaixo de água. Na noite precedente tinha visto a Lua tão fina como uma agulha de cirurgião, contando apenas quatro  dias, mas suficientemente forte para lançar a vaga na boca escancarada do Lugar. Era inútil visitar a barraca de Danny. A claridade era já suficiente para mostrar as ervas bem erguidas na vereda onde Danny as pisava. O Porto Velho estava juncado de embarcações de Verão, de cascos finos e velas nos seus estojos de tela tripla. No novo porto, tudo era actividade. Barcos de passageiros encostados ao cais à espera de viajantes, os pescadores entusiastas do Verão que pagam para encher a ponte  de peixes e que à tarde perguntam a si próprios o que irão fazer deles: sacos, cestos, montanhas de polvos, cães do mar e cações. Tudo votado à destruição e que  acabará por ser lançado às gaivotas ávidas. Elas esperam em grande número, sabendo muito bem que os pescadores de domingo não saberão que fazer da abundância do  seu pescado. Quem quer lavar e escamar um saco de peixe? É mais difícil vermo-nos livres deles que pescá-los. O mar estava tranquilo como um lago e a luz acobreada  espalhava-se em todas as direcções. As bóias e marcas de referência flutuavam sobre a sua própria imagem, imóveis à entrada do canal. Parei junto do pau de bandeira colocado em frente do monumento aos mortos. Encontrei o meu nome na lista dos heróis sobreviventes. Liase em letras de prata - CAP. E. A. HAWLEY-e por baixo, a dourado, os nomes dos  dezoito cidadãos de New Baytown que não regressaram ao lar. Conheci a maior parte deles. Nada os distinguia dos demais a não ser que os seus nomes estavam escritos  a ouro. Por um momento desejei figurar naquela lista. Capitão E. A. Hawley a dourado. Choramingas e intemeratos, cobardes e heróis, havia de tudo naquela lista de  ouro. Não é só o bravo que morre, ainda que tenha mais probabilidades disso. O gordo Willie veio arrumar o carro ao lado do monumento e tirou uma bandeira de debaixo do assento ao lado do seu. -Salve, Eth-disse ele. Enfiou a corda pelos anéis de cobre e içou lentamente a bandeira até ao tope do mastro, onde ela pendeu flácida como um enforcado. -Por pouco tempo mais a vemos-disse Willie, sufocado. - Olha-a. Daqui a dois dias já hastearemos a nova. -O pavilhão de cinquenta estrelas? -Exactamente. Uma grande bandeira de nylon com o dobro desta e pesando metade.
-Como vai o serviço, Willie? -Não há razão de queixa. Mas este glorioso 4 de julho e sempre uma fonte de sarilhos. Como calha numa segunda-feira, vai haver uma série de acidentes, de rixas e  de bebedeiras. Quer que o deixe na loja? -Não, obrigado. Preciso de parar nos Correios e também vou tomar uma chávena de café. -Magnifico. Eu levo-o e ofereço-lhe um café, mas o Stoney anda chato que nem um cão. -Que é o que o preocupa? -Só Deus o sabe. Ausentou-se por dois dias e voltou mau como o Diabo. -Onde foi? -Não me disse, mas voltou numa desgraça. Eu espero enquanto vai buscar o correio. -Não se incomode, Willie, tenho de enviar umas coisas. -Como queira. Recuou o carro e meteu por High Street. 223 O correio estava ainda escuro e haviam encerado pavimento. Tinham posto o aviso: PERIGO. PAVMEIENM ESCORREGADIO. Desde que o velho correio entrou em serviço, a nossa, caixa postal tinha o número sete. Marquei no quadrante "G I /z R" e tirei para fora uma pilha de folhetos e  recta., mos dirigidos ao "Proprietário da Caixa". Tudo muito boro, para o cesto dos papéis. Subi High Street na intenção de ir tomar uma chávena de café. No último momento, desisti disso, pois não tinha a, menor vontade de tagarelar. Ninguém me faria agora,  penetrar no Foremaster. Que mistura de impulsos contradi tórios pode ser o homem-e a mulher também, creio eu Varria o passeio quando Mr. Baker, sempre exacto como um relógio, dobrou o ângulo de Elm Street e entrou paraa presidir à cerimónia da abertura do cofre. Eu alinhava  sem grande pressa as melancias no mostruário quando o velho; carro blindado de cor verde parou à porta do banco. Dois: guardas, armados como comandos, saíram pela  parte de trás e transportaram para o banco sacos cinzentos. Uma dezena, de minutos mais tarde saíram, subindo para a fortalez de chapa de ferro, que se afastou ràpidamente.  Deviam ter esperado que Morph contasse o dinheiro, sob a vigilância de Mr. Baker, que, para terminar, assinava o recibo. Como dizia Morph : "Nada nos aborrece mais  que o dinheiro dos outros." E, a avaliar pelo tamanho e pelo peso dos sacos, o banco devia ter previsto importantes levantamentos para os dias feriados. Se eu fosse  um vulgar arrombador, de cofres, esse seria o momento de meter mãos à obra. Mas, não o era e tudo quanto sabia o devia ao amigo Joey. Ele, sim, que o podia ser,  se quisesse. E admiro-o porque o; não quer, nem que fosse apenas para verificar o acerto da sua teoria. O trabalho aumentou naquela manhã. Pior do que tinha previsto. O sol estava ardente e quase não havia aragem. Era a espécie de tempo que leva as pessoas a irem parati  férias, quer queiram, quer não. Havia uma grande bicha de fregueses esperando a vez de serem servidos. De uma coisa eu estava certo: pro-)F, cisava de alguém que me ajudasse na loja. Se Allen não  fosse capaz disso, arranjaria outra pessoa.
Mr. Baker chegou cerca das onze horas, extremamente apressado. Tive de fazer esperar alguns clientes e segui-lo ate ao fundo da loja. JuPôs-me na mão um envelope grande e outro pequeno. Faltava-lhe de tal forma o tempo que empregou uma espécie de estenografia: "Tom Watson diz que o registo da propriedade  está legal. Não se sabe onde ele está transcrito. lga que não está em parte alguma. Eis os contratos de venda. Assine onde eu fiz um sinal. Tenha um cheque pronto.  Só precisará de o assinar. Desculpe tanta pressa, Ethan. Detesto este género de negócios." -Pensa realmente que devo desistir? -Diabos o levem, Ethan, depois da maçada que eu tive para... -Desculpe, desculpe. Bem sei que tem razão. Pousei o cheque sobre uma caixa de latas de leite e assinei-o. Mr. Baker não teve pressa em verificá-lo. -Ofereça dois mil para começar. Aumente a proposta de duzentos em duzentos. Acho que sabe que só lhe restam no banco cinco mil dólares. Que Deus o ajude se isso  não chegar. -Se tudo estiver em ordem, não poderei pedir um empréstimo sobre a loja? -Evidentemente, se estiver disposto a ser devorado pelos juros. -Não sei como agradecer-lhe. -Não se enterneça, Ethan. Não se deixe enganar. Ele sabe falar como todos os macaroni. Lembre-se do seu próprio interesse. -Estou-lhe muito reconhecido. -Vou-me embora-disse ele.-Quero estar já na estrada antes do grande aperto do meio-dia. Saiu e por pouco que não derrubou Mrs. Willow, que auscultava duas vezes cada melão. O dia continuou a ser trabalhoso. O calor que os pavimentos exalavam tornava as pessoas nervosas e quezilentas. Ao vê-tas fazer compras, podia-se pensar que acumulavam  provisões em vista de uma catástrofe, e não de uma simples partida para férias. Mesmo que quisesse, não teria podido preparar uma sanduíche para o Morph. Não sòmente tinha de aviar, mas também de conservar os olhos bem abertos, pois muitos clientes eram forasteiros que tentariam roubar se eu não os vigiasse. A ten 224 I5-o i. D. 225 tação é mais forte que eles. Aliás, não pegam de preferên- cia naquilo de que têm mais falta. São os pequenos frascos de alimentos finos que exercem mais atracção:  pasta de fígado, caviar, cogumelos. Foi por isso que Marullo me mandou pôr estas mercadorias no fundo do balcão-fri,. o rífico, num lugar onde os clientes não podem  chegar. "Não é de boa política apanhar um ladrão em flagrante, disse ele. "Isso incomoda toda a gente, talvez porque... cada um se considera culpado." A única  maneira de resolr ver o caso é fazer pagar as perdas aos outros fregueses. Entretanto, quando veio alguém aproximar-se demasiado de certas prateleiras, refreio-lhe  o impulso dizendo: "Esse cocktail de cebolas é uma bagatela." O cliente salta como se lhe tivessem lido os pensamentos. O que eu detesto mais é a suspeita. É muito  desagradável suspeitar. Isso enche-me de cólera.
O dia escoava-se de maneira triste. O chefe Stoney chegou depois das cinco horas, magro, severo, ulcerado. Comprou o necessário para fazer um jantar dos que se vêem  na televisão: bife, cenouras, puré de batata, tudo cozido e refrigerado numa espécie de bandeja de alumínio. -Dir-se-ia que você apanhou uma insolação, chefedisse eu. -Nada disso. Sinto-me até muito bem - respondeu com modo lúgubre. -Quer dois como este? -Não, um só. A minha mulher saiu para fazer uma visita. Um polícia não goza férias. Pouca sorte. -Talvez seja melhor assim. Com esta multidão a pas sear, não ficarei muito tempo em casa. -Ouvi dizer que esteve ausente. -Quem lhe disse isso? -O Willie. -Seria melhor que aprendesse a fechar a boca. -Não foi com má intenção. -Não tem miolos para isso. Talvez nem os tenha sufi cientes para deixar de ir parar à cadeia. -Quem os tem?-disse eu ao acaso. E recebi uma res posta maior do que esperava. -Que quer dizer com isso, Ethan? -Que temos tantas leis que não se pode respirar sem se infringir alguma. -É verdade. Há sempre uma ou outra que ignoramos. -Chefe, desejo perguntar-lhe uma coisa... Ao fazer a limpeza, encontrei um velho revólver sujo e ferrugento. O Marullo diz que não é dele e eu tenho a certeza de que não me pertence. Que devo fazer-lhe? -Se não quer tirar a licença, dê-mo. -Levar-lho-ei amanhã. Meti-o numa lata com óleo. Que faz você dessas coisas, Stoney? -Verifica-se se elas não conduzem a uma pista e deitam-se ao oceano. Ele parecia sentir-se melhor. -Lembra-se daquele caso de há anos? A Polícia vendia armas confiscadas. Stoney teve um sorriso doce e inocente como o de um crocodilo. -Eth, tive uma semana infernal. Sim, verdadeira mente infernal. Não venha com coisas desagradáveis, pois eu acabo de passar dias bem aborrecidos. -Desculpe-me, chefe. Há alguma coisa que um honesto cidadão possa fazer para o auxiliar, nem que seja embebe dar-se consigo ? -Oh, oh, bem gostaria de poder fazer isso. Preferiria embebedar-me a ter de pensar. -Porque não o faz? -Não sabe? Não, como poderia saber! Se eu ao menos compreendesse para que serve ou donde vem. -De que está falando? -Esqueça o que eu disse. Não... não esqueça. Você é
amigo de Mr. Baker. Ele tem algum negócio entre mãos? -Não entro nos segredos dele, chefe. -E o Marullo? Onde está ele? -Foi a Nova Iorque tratar-se da artrite. -Deus Todo-Poderoso! Não sei. Não sei nada. Se eu tivesse ao menos um indício, uma ideia do lugar onde devo saltar. -Você não é fácil de compreender, Stoney. -Não. Eu falo demasiado. -Eu não sou muito esperto, mas se você tem necessidade de desabafar... -Não! Não! Nunca me acusarão de indiscrição. Es 226 227 queça tudo isto, Ethan. Estou apenas aborrecido, nada mais. -Não há indiscrição comigo, Stoney. De que se trata... tribunal correccional ? -Mas, então, você está ao corrente? -Um pouco. -Que há por detrás de tudo isto? -O progresso. Stoney aproximou-se de mim e, com a sua mão de ferro, agarrou-me o braço com tal força que me magoou. -Ethan-disse ele com ar feroz.-Crê que eu seja um bom polícia? -O melhor. -Faço tudo para isso, Ethan... Acredita que é decente fazer falar um homem sobre os seus amigos para salvar-se a si próprio? -Não. -Eu também não. Não posso admirar um Governo que assim procede. O que me preocupa, Ethan, é que... eu já não serei um bom polícia, pois deixei de me orgulhar do  meu trabalho. -Puseram-no de lado, chefe? -É como disse. Tantas leis que não se pode respirar sem infringir alguma. Você vai fechar, Ethan ? -Sem dúvida! Não se esqueça do seu jantar, chefe. -Ora, vou para casa, tiro os sapatos e vejo a televisão, como todos os policias. Por vezes, uma casa vazia é uma boa coisa. Até à vista, Eth. Eu gostava de Stoney. Era um polícia consciencioso. Perguntei a mim próprio o que o preocupava. Preparava-me para fechar a loja e recolhia os mostruá rios dos frutos quando Morph chegou. -Depressa! -disse-lhe. Fechei a porta e puxei as cortinas verdes. -Fale baixo. -Que é que lhe aconteceu? -Pode alguém ter a ideia de vir comprar qualquer coisa... -Ah, sim. Estou a ver. Meu Deus! Como eu detesto o feriados ! As pessoas mostramse sob o seu pior aspecto. Fogem como loucos e voltam arrasados e sem dinheiro. -Uma bebida fresca enquanto cubro estas coisinhas queridas ? -Tem cerveja? -Apenas para levar. -É essa a minha intenção. Abra a lata.
Fiz dois buracos triangulares na tampa. Joey abriu a boca e esvaziou na garganta o conteúdo da lata, que colocou em seguida sobre o balcão com um "ah" de satisfação. -Nós vamos dar uma volta. -Você, pobre diabo? Onde? -lgnoro. Ainda não decidimos. -Prepara-se qualquer coisa. Sabe de que se trata? -Dê-me um indício. -Não posso. É uma simples impressão. Os meus cabelos eriçam-se no pescoço. E um sinal infalível. Toda a gente está um pouco mudada. -Você tem, talvez, demasiada imaginação. -Talvez. Mas Mr. Baker nunca vai para férias, e agora fugiu como se levasse uma porção de diabos a morder-lhe nas nádegas. Ri. -Já verificou os livros? -Sabe alguma coisa? Eu sei. -Está a brincar. -Uma vez, conheci o chefe dos Correios de uma pequena cidade. Tinha um empregado. Um pobre rapaz chamado Ralph, de cabelos incolores, óculos, um queixinho fugidio,  adenóides grossos como se tivesse papeira. Prenderam-no por ter roubado selos, nada menos que mil e oitocentos dólares. Não deve ter feito nada. Era um aborto. -Quer dizer que não foi ele o culpado? -Que tenha sido ou não, isso dá na mesma. Eu possuo reflexos e não tenho a menor intenção de me deixar apanhar. -Foi por isso que não se casou? -Meu Deus, quando penso nisso, creio que foi essa uma das razões. Dobrei o avental e pu-lo em cima da gaveta, debaixo da `caixa registadora. -As desconfianças tomam muito tempo, Joey. Eu não tenho ocasião para isso. -Num banco, é necessário. Só se perde uma vez e um murmúrio basta. 228 22,9 -Não me diga que é desconfiado. -É instintivo em mim. Um pormenor que fere a min atenção, e fico alerta. -Que vida! Você certamente não faz o que diz. -Faço, sim. Pensei que, se você ouvisse qualquer coisa me diria... quero dizer, se isso me dissesse respeito. -Eu digo a toda a gente o que sei. É talvez por isso que ninguém me diz nada. Você vai para casa? -Não. Vou comer ali defronte. Apaguei as luzes da fachada. No fundo, imagino que, apenas por viver só, ele não era mais solitário que qualquer outra pessoa. Deixei-o à porta do Foremaster, e por um momento desejei poder  segui-lo. Em minha casa devia ser uma balbúrdia. E era mesmo. Mary tinha preparado a viagem. Do outro lado de Montauk Point encontra-se um rancho de opereta, provido de todos os elementos que se podem ver nos filmes  do Oeste para adultos. Antes da descoberta do Texas, era uma quinta de criação de gado, a mais antiga da América, Os primeiros privilégios datavam de Carlos II. 
A princípio, engordavam-se ali rebanhos que se destinavam à alimentação de Nova Iorque. Os vaqueiros eram tirados à sorte, como os jurados, para um serviço temporário  Naturalmente, agora não há senão esporas de prata ;e equipamentos de cow-boys, mas os rebanhos vermelhos pastam ainda nos campos. Mary julgava que seria dele: cioso  passar a noite de domingo num dos pavilhões. Ellen desejava ir a Nova Iorque, ficar num hotel consagrar dois dias a Times Square. Allen não desejava ir a nenhum sítio. É um dos seus métodos para atrair a atenção  e provar que existe. A casa palpitava de emoção... Ellen, afogada em lágrimas; Mary, fatigada e decepcionada; Allen, rabujenta, e metido consigo próprio, com o seu aparelho de rádio;  berrando-lhe aos ouvidos um canção de amor plangente. e tumultuoso espremida por uma voz histérica : Tinhgd prometido não me mentir e pegaste no meu coração solitário amoroso para o atirares ao chão. -Estou quase a deixar cair tudo-disse Mary. -Eles procuram ajudar-te. -Fazem tudo o que podem para se tornarem insu portáveis. -Nunca possa fazer nada-disse Ellen, fungando. Na sala, Allen aumentou o volume do aparelho... meu coração solitário e amoroso... lançado por terra. -Não poderíamos fechá-los na cave e partirmos só nós, querida? -Gostaria de poder fazer isso-respondeu ela em voz alta para cobrir os rugidos do coraçãozinho solitário. A raiva invadiu-me. Dirigi-me ao salão decidido a fazer o meu filho em pedaços, a deitar o seu coração solitário e amoroso ao chão e a calcar tudo aos pés. Quando  passei o limiar, a musica parou. Interrompemos este programa fpara transmitir um boletim especial. Funcionários de New Baytown e do condado de Wessex compareceram esta tarde no tribunal correccional para responder à acusação  de tráfico de multas de trânsito e extorsão; teriam aceitado luvas no exercício das suas unções... O presidente da Câmara, o Conselho Municipal, os magistrados... Escutei sem ouvir, triste, acabrunhado. Talvez fossem culpados daquilo que os acusavam, mas faziam-no  há tanto tempo que esqueciam até que procediam mal. No caso de estarem inocentes, não poderiam ser ilibados antes das eleições locais. E, de toda a maneira, da acusação  alguma coisa ficaria. Estavam encurralados, e deviam sabê-lo. Não mencionaram Stoney, e daí concluí que ele os tinha vendido a troco da sua imunidade. Por isso,  não era estranho que ele se sentisse só e infeliz. Mary escutava à porta. -Oh-disse ela.-Há muito tempo que não havia um tal sarilho. Acreditas que seja verdade, Ethan? -lsso não tem importância -respondi. -Não é isso que conta! -Que pensará de tudo isto Mr. Baker? -Partiu para férias. Na verdade, gostaria de conhecer as suas impressões.
Allen impacientou-se porque lhe tinham interrompido a música. As notícias, o jantar e a louça adiaram os problemas da viagem. E bem depressa foi demasiado tarde quer para tomar uma decisão, quer para chorar ou discutir. Já deitado, pus-me a tremer. A selvajaria implacável do ataque gelou-me apesar do calor da noite de Verão. 230 231 -Mas tu estás todo arrepiado, meu querido Mary.-Terás apanhado gripe? -Não, meu amor. Meti-me na pele dos outros e ima. gino as suas impressões. Deve ser horroroso. -Pára com isso, Ethan. Tu não podes carregar Co os aborrecimentos dos outros. -Posso, visto que o faço. -Pergunto a mim própria se chegarás algum dia aK ser um verdadeiro homem de negócios. Es demasiado seu, sível. Tu não tens culpa do que aconteceu. -É sobre isso que me interrogo... julgo que toda a gente tem culpa. -Não compreendo. -Eu também não, minha querida. -Se eu tivesse alguém que quisesse ficar com eles.. -Repete, se fazes favor, pombinha! -Como eu gostaria de ir para férias só contigo! Sempr desejei isso. -Não temos parentes livres e de uma certa idade Reflecte bem. Se ao menos os pudéssemos meter numa caixa ou salga-los por algum tempo. Mary, madona, pensar nisso.  Anseio por estar só contigo num lugar desconhecido Caminhávamos nas dunas, nadávamos nus de noite e beijava-te num leito de fetos. -Querido, eu sei, meu querido. É duro para ti não poderes realizar todo o teu desejo. Não penses que o não seu -Aperta-me com força. Tentemos arranjar um aa solução. -Tremes ainda. Tens frio? -Tenho frio e calor, sinto-me vazio e cheio... sobretudo, fatigado. -Vou procurar uma solução. É preciso. Evidentemente, eu amo-os, mas... -Bem sei. Até poderia usar o meu laço sem ser contrariado. -lrão metê-los na cadeia? -Gostaria muito de poder fazer isso. -Refiro-me aos homens processados. -Não. Nem será necessário. Não estarão livres antes da próxima terça-feira, e as eleições serão na quinta. TudW foi calculado. -Ethan, tu és cínico. Nem pareces tu. E não estás &" brincar. Eu sei quando brincas. Agora falas seriamente. O medo apoderou-se de mim. Tinha-me traído. Não podia deixar transparecer assim os meus pensamentos. -Oh, diga lá, menina ratinha, quer casar comigo? -Uh! Uh!-respondeu Mary.
A ideia de que poderiam ler em mim aterrorizava-me. Estava convencido de que os olhos não são o espelho da alma. Algumas das fêmeazinhas mais viciosas que conheci  tinham olhos e rosto de anjo. São raros aqueles que são capazes de ler através da pele e dos ossos. A maior parte das pessoas só sentem curiosidade por si próprias.  Um dia, uma jovem canadiana de origem escocesa contou-me uma história que a tinha marcado, e a narração que fez marcou-me também a mim. Adolescente, via toda a gente  olha-la sem indulgência. Corava e chorava sem cessar. O seu avô escocês, notando a sua tristeza, disse-lhe secamente: "Não te preocuparias tanto com a opinião dos  outros se soubesses que raramente têm alguma." Isso curou a rapariga e sossegoume, pois, na realidade, é uma observação bastante sensata. Mas Mary, que habitualmente  vive numa casa de flores cultivadas pelas suas próprias mãos, ouviu um som ou sentiu um vento cortante. Isso era um perigo que devia desaparecer até amanhã. Se o meu projecto tivesse surgido completo e implacável, tê-lo-ia rejeitado como uma estupidez. As pessoas não procedem dessa maneira; entregam-se, sim, a jogos  secretos e complicados. O meu começou com a lição de Joey acerca de como assaltar um banco. Para lutar contra o enfado do meu trabalho, entrei no jogo, e tudo quanto  aconteceu depois veio em auxílio dele... o autoclismo avariado, o revólver ferrugento, as férias próximas, o papel metido por Joey na fechadura da porta que dava  para a ruela. Eu tinha cronometrado, repetido, ensaiado a minha peça. Mas não é verdade que os bandidos que lutam com os polícias a tiros de pistola começaram quando  garotos por se exercitarem com pistolas de brinquedo, servindo esse treino para mais tarde? Não saberei dizer quando o meu jogo deixou de ser um jogo para se tornar em coisa séria. Talvez fosse quando soube que poderia comprar a loja e precisava de dinheiro  para explora-la. Sem dúvida, custa muito renunciar a um plano perfeito sem experimentar o seu funcionamento. 232 233 Quanto à desonestidade, ao crime que projectava, não se tratava de um crime contra os homens, mas apenas contra o dinheiro. Ninguém sofreria. O dinheiro não sofre.  O verdadeiro crime é contra os homens, e esse já eu o tinha cometido. Contra Danny e contra Marullo. Mas, depois do que fizera, o roubo não era nada. Tudo isto era  passageiro, temporário. Nada disto teria repetição. Antes que se soubesse que não se tratava de um simples jogo, já este era tão perfeito nos seus pormenores quanto  possível. O garoto da pistola de fulminantes tinha encontrado uma de calibre quarenta e cinco. Evidentemente que um acidente é sempre possível, mas o risco também existe quando se atravessa uma rua o se caminha debaixo das árvores. Não julgava ter medo: Mas  faltava-me o ar, que é a espécie de medo que sente um actor quando espera nos bastidores em noite de estreia: E eu estava perante uma peça bem estudada. No meu receio de não conciliar o sono, dormi profun, damente e, que me lembre, não sonhei. Tinha decidido utilizar as horas que precedem a aurora usando a medicina  calmante da contemplação. Mas quando abri os olhos já a cauda da vaca na margem do lago se via há meia hora pelo menos. Acordei com um estremeção, como se fosse 
atingido pela deslocação de ar provocada por uma explosão. -Que é que se passa?-perguntou Mary, acordada pelo meu brusco sobressalto. -Dormi de mais. -É ridículo o que dizes. É muito cedo. -Não, meu ablativo absoluto. O dia será monstruoso para mim. O universo vai hoje invadir a mercearia. Não te levantes. -Tens necessidade de um bom pequeno almoço. -Sabes o que vou fazer? Tomar um café ao Foremaster e fazer uma razia nas prateleiras do Marullo. -Deveras? -Repousa, ratinha, e tenta encontrar uma maneira de nos livrarmos dos nossos queridos filhos. Temos neves cidade disso. -Bem sei. Vou reflectir. Vesti-me e saí antes que ela tivesse podido sugerira qualquer coisa tendente a assegurar o meu bem-estar e protecção. O Joey estava no café. Indicou-me o lugar vizinho do seu dando-lhe uma palmada. -Não posso, Morph. Estou atrasado. Annie, podes arranjar-me dois cafés bem quentes em copos de cartão? -Posso, sim. Nem que se fosse mais. -Óptimo. Ela encheu e tapou os pequenos copos de papel e colocou-os num saco. Joey saiu comigo. -Hoje terá de dizer a missa sem o bispo. -Creio que sim. Que me diz das notícias? Ainda não estou em mim depois da surpresa. -Lembre-se de que eu lhe disse que  sentia qualquer coisa. -Lembrei-me quando ouvi. Você tem faro. -lsso faz parte do ofício. O Baker pode agora regres sar. Mas não sei se o quer fazer. -Voltar ? -Você. não sente nada? Olhei-o, desarmado. -Sim, há qualquer coisa, mas não sei de que se trata. -Jesus ! -Quer dizer que eu devia ver algo? -Exactamente. A pena de Talião não está revogada. -Senhor! Há muitas coisas que me escapam. Agora mesmo estou a pensar se você gosta de alface ou de maionese nas suas sanduíches. -Gosto das duas coisas. Arrancou o celofane que cobria um maço de Camel e fez com ele uma bolinha, que meteu na fechadura. -É preciso que isto marche - disse eu apontando a loja Temos um chá que faz uma publicidade formidável: "Devolva-nos a tampa da lata e ser-lhe-á enviado um bebé em troca." Conhece algumas senhoras? -Sem dúvida que conheço, mas essa é a espécie de prémios que elas menos desejam. Não se incomode em trazer-me as sanduíches, pois eu virei buscá-las. Passou a porta sem que a fechadura desse qualquer
estalido. Fiz votos para que Joey nunca descobrisse que era o melhor professor que eu já tive. Não só me ensinava, mas fazia também demonstrações e, sem o saber, prepa rava-me o caminho. 234 235 As pessoas experientes em negócios, os peritos, estão de acordo em afirmar que o dinheiro atrai dinheiro. O melhor processo é sempre o mais simples. A simplicidade  chocante da coisa fazia a sua força. Creio realmente que não havia senão um sonho pormenorizado até ao momento em que, não pensando na sua falsa posição, Marullo  cegamente passeou sobre o abismo. O sonho a flutuar na atmosfera só tocou o solo quando adquiri a quase-certeza de que a mercearia poderia pertencer-me. Podia fazer  uma pergunta pertinente, mas ingénua : (<Se podia adquirir a loja, porque precisaria de dinheiro?" Mr. Baker compreenderia, o Joey também... igualmente o Marullo.  Ter a loja sem capital para explorá-la era pior que não a ter. A Via Ápia da falência está ladeada elos túmulos das especulações não garantidas. Eu já ali tinha uma tumba. O soldado mais estúpido não desencadearia um ataque  sem artilharia, nem reservas, nem possibilidade de recuo, mas muitos homens de negócios fazem-no. O dinheiro de Mary, em notas cujos números foram apontados, enchia  a minha algibeira, mas Marullo pediria tanto quanto pudesse. As casas que vendem por grosso não concedem" crédito aos retalhistas desconhecidos. Precisaria de dinheiro,  e este esperava-me por detrás de umas portas de aço. A maneira de me apoderar dele, considerada como uma fantasia da imaginação, resistia notàvelmente ao exame.  Que o roubo fosse ilegal era coisa que pouco me impor-tava. O Marullo não oferecia problemas. Se não fosse ele a vítima, era bem capaz de planear isto mesmo. O Danny  perturbava-me, se bem que eu pudesse afirmar que ele se liquidaria a si mesmo de qualquer forma. A desastrosa tentativa de Baker junto de Danny fornecia-me mais  justificações que aquelas que seriam suficientes para muitos homens. Mas a lembrança de Danny queimava-me e tinha de aceitar isso como se aceita uma ferida num combate  coroado de êxito. Tinha de viver com ela. Talvez o tempo a curasse ou a isolasse como as cartilagens envolvem um estilhaço de granada. O mais premente era o dinheiro, e tudo estava cronometrado, calculado com tanta precisão como um circuito eléctrico. As regras de Morphy eram boas. Lembrava-me muito bem delas e juntei-lhes mesmo mais uma. Primeira: não ter cadastro judiciário. Magnífico, eu não o tinha. Segunda: nem cúmplices nem confidentes. Não tinha nenhuns. Terceira: nada de damas. Margie Young-Hunt era a única  que podia corresponder a este qualificativo, e eu não estava disposto a beber champanhe pela sua pantufa. Quarta: nada de ostentação. Pouco a pouco, servir-meia  do dinheiro para pagar as facturas dos grossistas. Tinha um lugar onde escondê-lo. A caixa do meu chapéu de templário continha um suporte de cartão coberto de veludo  do tamanho e da forma da minha cabeça. Desligado, com os bordos cobertos de cola, podia, num instante, voltar ao seus aspecto primitivo.
jPara não ser reconhecido... uma máscara de Mickey. Ninguém repararia noutra coisa. Um velho impermeável de algodão pertencente a Marullo - todas as capas para chuva  de cor castanha se parecem-e um par de luvas de celofane. A máscara fora recortada há vários dias e iria untar-se, com as luvas, à caixa de cereais e ao seu conteúdo,  na retrete. O velho Iaer , ohnson fora passado por negro de fumo. Uma lata com óleo de cártere esperava-o também na retrete. Tudo destinado a ser entregue a Stoney  na primeira oportunidade. Tinha acrescentado a minha regra pessoal: não ser parvo. Não roubar demasiado e evitar as notas grandes. Se houvesse à mão seis a dez mil dólares em notas de dez  e de vinte, isso seria suficiente e fácil de levar e esconder. Uma caixa de bolos sobre o balcão-frigorífico serviria momentaneamente e pouco tempo depois voltaria  a ter doces. Ensaiara a ventriloquia para mudar de voz, mas abandonei-a, preferindo o silêncio e os gestos. Tudo estava pronto. Quase lamentei a ausência de Baker. Não haveria senão Morphy, Harry Robbit e Edith Alden. Previra tudo até aos segundos. Às nove horas menos cinco colocaria a vassoura  à entrada. Repetira muitas e muitas vezes. Avental levantado, peso ligado à corrente do autoclismo. Todos os que entrassem ouviriam a descarga de água e tirariam  daí as suas conclusões. Impermeável, máscara, caixa de bolos, revólver, luvas. Atravessar a ruela ao bater das nove, empurrar a porta das traseiras, pôr a máscara,  entrar imediatamente após a abertura do cofre por Joey. Fazer com a arma sinal aos três empregados para se deitarem 236 237 no chão. Eles não provocariam sarilhos. Como dissera Joey, o dinheiro estava seguro, mas ele não. Agarrar nas notas e colocá-las na caixa de bolos, tornar a atravessar  a ruela, lançar a máscara e as luvas na retrete, deitar a arma na lata do óleo, despir o impermeável. Descer o avental, pôr o dinheiro na chapeleira, os bolos na  caixa e, de vas soura na mão, limpar o passeio, visível e disponível quando dessem o alarme. Tudo isto num minuto e quarenta segundos, cronometrado, verificado e  reverificado. Mas, por mais minuciosa que fosse a minha preparação, sentia-me um pouco sufocado e varri a loja antes de abrir a porta principal. Trazia o avental  da véspera para que não se vissem nele novos vincos. E, acreditam-me? O tempo fez uma pausa como se Josué tivesse parado o Sol na sua marcha. O grande ponteiro do  grande relógio de meu pais resistia à manhã. Havia já muito tempo que eu não arengava aos meus companheiros. Nessa manhã, filo talvez por nervosismo. -Meus amigos, ides ser testemunhas de um mistério. Sei que posso contar com o vosso silêncio. Se algum de vocês sente qualquer escrúpulo quanto ao lado moral da  questão, desafio-o a que se vá embora.-Fiz uma pausa.-Não há objecções? Muito bem. Se me chega aos ouvidos que uma ostra ou uma couve discutiu isto com estranhos,  será punida com a morte por meio do garfo. E quero agradecer a todos vós. Juntos, fomos humildes trabalhadores na vindima e eu sou um servidor da mesma maneira que  vós. Mas isto vai mudar. De hoje em diante, serei o dono disto. Prometo-vos ser um patrão bom, compreensivo e suave. A hora aproxima-se, meus amigos, o pano sobe... 
Adeus ! Quando atingia a porta da entrada com a vassoura, ouvi a minha própria voz gritar: "Danny, Danny, sai das minhas entranhas!" Um grande frémito sacudiu-me e tive de apoiar-me na vassoura antes de poder abrir a porta. Sobre o mostrador do relógio de meu pai, o ponteiro das horas, pequeno e atarracado, indicava nove horas, e o dos minutos, longo, fino, dizia faltarem seis minutos.  Podia sentir-lhe o coração bater-me na palma da mão enquanto olhava para ele. Era um dia tão diferente dos outros como o cão o é do gato ou ambos o são dos crisântemos, das vagas do largo ou da escarlatina. É uma regra em muitos estados, e  é observada no nosso, que deve chover nos dias feriados. De outra forma, como ficariam encharcadas e miseráveis as multidões? O sol de julho empurrava uma série  de nuvenzinhas leves como plumas. Mas outras, grandes e carregadas de chuva, perfilavam-se a oeste, vindas do vale, armadas de raios e trovejando já entre elas.  Se observassem estritamente o regulamento, aguardariam que houvesse o máximo de formigas humanas nas grandes estradas e nas praias. A maior parte das outras lojas não abriam antes das nove e meia. Tinha sido uma ideia do Marullo abrir meia hora mais cedo que os outros para arredondar um pouco  mais os lucros. Mas ia pôr isso de parte, pois indispunha os concorrentes, sem grande vantagem para nós. O Marullo ter-se-ia rido se soubesse disso. Era um estrangeiro,  um macaroni, um criminoso, um tirano, um explorador dos pobres e mais oito qualidades de filho da mãe. Depois de o esmagar, era bem natural que os seus defeitos  e os seus crimes viessem a surgir em plena luz e se tornassem evidentes. Tinha consciência do ponteiro dos minutos a deslizar velozmente sobre o mostrador do relógio de meu pai e 238
 
239 Capítulo XV
 
surpreendi-me a varrer brutalmente, com os músculos ten,, sos, à espera da hora fixada para a minha missão. Res rava pela boca e o meu estômago fazia pressão sobre  os pulmões, o que me recordava o que sucedia antes de um ataque. Para um sábado de manhã anterior ao 4 de Julho, havia poucas pessoas na rua. Um desconhecido-um velhopassou carregando uma cana de pesca e uma caixa verde feita  de matéria plástica. Ia para o dique, onde esperaria toda a manhã vendo a bóia da isca balouçar na água Não virou os olhos para o meu lado, mas eu chamei-lh a atenção. -Desejo-lhe boa pesca. -Nunca apanho nada. -Alguma vez será. -Não creio muito nisso. Um autêntico optimista, cuja atenção eu tinha cone guido fisgar. E Jennie Single chegou rolando sobre o passeio. Andava como se tivesse rodas em lugar de pés. Era, sem dúvida a testemunha menos digna de confiança de New Baytown.  Um dia abriu a torneira do gás e esqueceu-se de acendê-lo. Teria explodido juntamente com a casa se se tivesse lem brado donde guardava os fósforos. -Bom dia, Miss Jennie. -Bom dia, Danny. -Chamo-me Ethan. -Pois claro. Vou fazer um bolo. Tentei gravar-lhe uma marca na memória. -De que espécie? -Juro-lhe que não sei, pois a etiqueta que estava n pacote caiu. Que testemunha seria ela se eu tivesse necessidad de uma? E por que motivo me chamara Danny ? Um pedaço de papel prateado resistia à vassoura r pavimento. Tive de baixar-me e soltá-lo com a unha Os ratos empregados no banco beneficiavam da ausênciá do gato  Baker. Assim é que eu os queria. Faltava apenas" um minuto para a hora quando surgiram do café e atravée saram a rua em passo de corrida. -Corram, corram, corram-gritei-lhes enquanto ele# carregavam em direcção à porta do banco. Agora o momento aproximava-se. Não pensar em tudo ao mesmo tempo... um passo de cada vez e pela ordem que tinha ensaiado. Remeti o estômago inquieto para o lugar  que lhe é devido. Em primeiro lugar, encostei a vassoura ao caixilho da porta onde a poderiam ver. Pus_Tne a caminho, lentamente, deliberadamente. Pelo canto dos olhos, vi um carro subir a rua e parei para o deixar passar. -Mr. Hawley! Dei meia volta, como fazem os gangsters encurralados no cinema. Um Chevrolet verde-escuro, poeirento, dava a volta para a ruela e-Santo Deus!-o homem do Governo 
saía dele. Paralisado, vi-o atravesar o passeio. Isso pareceu-me durar um século. O meu edifício desfazia-se em pó diante dos olhos. Pensei em precipitar-me para  a retrete e acabar com tudo. Mas era impossível. Não podia abolir a regra de Morphy. O pensamento e a luz devem ter a mesma velocidade. É doloroso renunciar a um  projecto tanto tempo estudado e repetido tantas vezes que a execução parece não ser mais que um outro ensaio. Mas rejeitei-o, afastei-o. Não tinha qualquer hipótese  de escolha. Louvado seja Deus por ele não chegar um minuto mais tarde. Seria o acidente fatal de que falam os romances policiais. E durante este tempo o homem não tinha dado mais que os quatro passos necessários para atravessar o pavimento. Deve ter notado qualquer coisa em mim. -Que há, Mr. Hawley? Tem aspecto de doente. -lntestinos -disse eu. -Então é inútil tentar lutar. Corra. Eu espero por si. Precipitei-me para a retrete, fechei a porta e puxei o autoclismo. Não acendi a luz e fiquei sentado na escuridão. O meu ventre angustiado obrigou-me a fazer aquilo  que eu não tencionava. Lentamente, a dolorosa pressão diminuía. Juntei um apêndice ao código de Morphy. Em caso de acidente, mudar de plano intantâneamente. Já uma vez me aconteceu, num momento de perigo grave, sair de mim mesmo e, tal como um estranho curioso, observar-me, estudar os meus gestos tendo o espírito imunizado  contra as emoções do objecto examinado. Sentado na obscuridade, vi o "outro" dobrar o seu tão perfeito plano, metê-lo numa caixa, fechar a tampa e guardar 240 16-o,.,,. 247 tudo não só fora da vista, mas fora do pensamento. Le tei-me, e o tempo de que precisei para abotoar-me e a a porta foi o suficiente para voltar a ser um caixeiro  mercearia preparado para um dia de trabalho. Já havia nada a esconder. Realmente nada. Perguntei mim próprio o que desejaria o homem, mas apenas co a leve apreensão  que se sente sempre diante de u polícia. -Lamento muito tê-lo feito esperar. Gostaria de sa que teria eu comido que me fez mal. -É um vírus que anda a passear -respondeu. -A mulher apanhou-o a semana passada. -Pois este vírus parecia ter uma espingarda, porq me atirou abaixo. Em que posso ser-lhe útil? Pareceu-me embaraçado, confuso, quase tímido. -Há pessoas que fazem coisas bizarras-disse el Resisti à tentação de dizer: "Isso acontece a toda gente." Mas fiquei contente por não o ter dito, pois acrescentou -Na minha profissão encontra-se de tudo. Verdadeiramente estranho. Cinco minutos antes e via-me pelos olhos dos outros. Era preciso. O que el viam importava muito. Quando este homem atravesso o passeio,  pareceu-me ser o destino imenso, negro, se piedade: um inimigo, um papão. Mas, rejeitado o m plano, partido como se fosse um bocado de mim mesm olhava-o como a alguém 
que não podia trazer-me ne bem nem mal. Penso que era mais ou menos da mi idade, mas talhado segundo uma regra, com maneiras, tal vez mesmo um culto : uma cara magra,  cabelos curtos a espetados. Vestia uma camisa branca de tecido Beiro com um colarinho abotoado e uma gravata c mente escolhida pela mulher e ajeitada por ela antes  sair. O seu fato era cinzento-escuro, as mão bem arranj das, talvez tratadas por manicura, uma aliança de ouro no anelar esquerdo, uma minúscula fita na botoeira,  sugerind a condecoração que não trazia. Os olhos azul-escuros a boca estavam acostumados a exprimir uma firmeza q ele não mostrava neste momento, o que era estranh  Por qualquer motivo, tinha-se produzido nele uma falh já não era o homem de perguntas curtas, incisivas, co outras tantas barras de aço separadas a intervalos igu -O senhor ià veio aqui-disse eu.-Qual é a sua profissão a Sou do Ministério da justiça. -O seu trabalho é a justiça? Sorriu. -Sim, pelo menos espero que sim. Mas não estou em serviço oficial... Nem mesmo estou certo de que o serviço aprovaria. Mas é o meu dia de folga. -Em que posso ser-lhe útil? -É, de certa maneira, complicado. Não sei por onde começar. Há doze anos que estou ao serviço, Mr. Hawley, e nunca tinha visto tal coisa. -Talvez eu possa ajudá-lo, se me disser de que se trata. Dirigiu-me um sorriso. -É difícil pôr isto de pé. Guiei durante três horas para vir de Nova Iorque e vou precisar de mais três horas ao volante com o trânsito das férias. -Parece coisa séria. -E é. -Disse-me, julgo eu, que se chama Walder? -Richard Walder. -Não tarda que esteja submerso pelos clientes, Mr. Walder. Estou admirado de como ainda não apareceram. Fale: trata-se de mim? -Na minha profissão, vê-se de tudo. Gente dura, mentirosos, scrocs, descarados, embrutecidos e espertalhões. Geralmente, o caso resolve-se adoptando uma atitude.  Percebe? -Não, verdadeiramente não. Escute, Mr. Walder, que é que o incomoda? Eu não sou completamente estúpido. Falei com Mr. Baker, o banqueiro. Você procura Mr. Marullo,  o meu patrão. -Já o apanhei-disse ele suavemente. -Por quê? -Entrada ilegal. Não é o meu trabalho. Deram-me um processo e estudei-o. Não o julgo, nem tento fazê-lo. -Vão repatriá-lo? -Sim. -Não pode defender-se? Posso ajudá-lo? -Não. Não quer. Considerou-se culpado. Deseja partir. -Que me leve o Diabo! 242
243 Entraram seis ou oito clientes. -Tinha-o prevenido-disse eu. Ajudei-os a escolher aquilo de que tinham necessidade, ou de que julgavam ter necessidade. Graças a Deus, tinha encomendado uma montanha de "cachorros" quentes de  bifes. -Quanto custam os piccalilli ? - perguntou Walder -Está marcado na etiqueta. -Trinta e nove cêntimos, minha senhora-disse el Pôs-se a trabalhar, pesando, embrulhando, recebendo o dinheiro. Passou diante de mim para se servir da caie registadora. Quando se afastou, peguei num saco, abri  gaveta e, utilizando-o como se fosse um esfregão, agarrei no velho revólver, levei-o para a retrete e deixei-o cai;t na lata de óleo que o esperava. -Você entende disto - disse eu a Walder, quand voltei. -Depois da escola, trabalhei no Grand UMon. -Vê-se logo. -Você não tem ninguém para o ajudar? -Tenciono trazer o meu filho. Os fregueses vêm sempre aos magotes, e nunca um um. Outra observação : quando dois homens trabalhai* juntos, tornam-se semelhantes, esbatendo-se as difere nçx_ de  ideias. O Exército descobriu que os brancos e os negr não lutavam uns contra os outros se combatiam junto" pela mesma causa. O meu receio subconsciente do poli desapareceu  à vista de Walder pesando meio quilo de to tes e alinhando uma série de números num saco de pa -A primeira horda desapareceu. -Você faria bem se me contasse ràpidamente o que t para me dizer-notei eu. -Prometi a Marullo vir aqui. Ele quer dar-lhe a loj -Você está a divagar. Desculpe, minha senhora, e estava a falar com o meu amigo. -Ah, sim. Sem dúvida. Nós somos cinco... três crianç Quantas salsichas devo levar? -Cinco por cada criança, três para o seu marido duas para si. Somam vinte. -Acredita que comerão cinco? -Pensarão poder fazê-lo. Trata-se de um piquenique -Ah, sim. -Então leve mais cinco para descontar as que caem ao fogo. -Onde guarda os piaçabas para as retretes? -Lá atrás, ao pé dos detergentes e do amoníaco. Walder resolveu-se a falar. -Suponho que estou sob um choque emocional. Nunca fiz senão o meu dever. Quando se está habituado aos crápulas, aos mentirosos e aos scrocs, um homem honesto pode  perturbar-nos. -Que quer dizer com isso de honesto? O meu patrão nunca ofereceu fosse o que fosse a alguém. É um velho macaco astucioso. -Bem sei. Fomos nós que o fizemos assim. Ele disse-mo, e eu acredito. Antes de vir para cá, conhecia a inscrição gravada na Estátua da Liberdade. Tinha-a traduzido  para a língua natal e aprendera a Declaração da Independência. Depois, o direito de entrada foi-lhe recusado. Então entregou-se nas mãos de um homem encantador... 
que lhe ficou com tudo quanto possuía e o deixou desembaraçar-se sòzinho. Gastou algum tempo a aprender a lição americana, mas conseguiu... Ah, sim. Ele não foi  parvo. Soube aprender que os outros não contam. As interrupções feitas na narrativa pelos clientes transformaram-na numa série de afirmações curtas e evitaram que a atmosfera se tornasse dramática. -Foi por isso que não ficou muito impressionado quando alguém o tramou. -O tramou? -Sim. Bastou um telefonema. -De quem? -Sabe-se lá. O serviço é automático. Marca-se um número e tudo se processa como numa máquina automática de lavar roupa. -Porque não fugiu ele? -Está fatigado até aos ossos. E também está desgostoso. Tem dinheiro e quer voltar para a Sicília. -Mas continuo a não perceber a respeito da loja. -Ele é como eu. Sei como proceder com os crápulas, pois esse é o meu trabalho. Um homem honesto desconcerta-me. Foi o que lhe aconteceu. Nunca ninguém conseguiu  ludibriá-lo, roubá-lo, vigarizá-lo ou sequer fazê-lo lamentar-se. Experimentou ensinar um ingénuo a defen 244 245 der-se, mas o outro não quis aprender. Ele quis s qual era a sua força, e descobriu que era a honestida b -E se ele se tivesse enganador -Não o crê. Ele quer fazer de si uma espécie d monumento à memória de uma coisa na qual outro acreditou. Os documentos de cessão estão no meu autora vel. Você só  tem que completá-los. -Não compreendo. -Também eu não sei se compreendo. Conhece dec a sua maneira de falar... como um disco falhado. Ten traduzir o que ele se esforçou por explicar. Um honre é feito de uma certa maneira, para ir numa direc determinada.  Se muda, a engrenagem escangalhaqualquer coisa explode, ele cai doente. E como um... be um tribunal privado em que toda a infracção se p Você é, de qualquer forma,  o seu modo de pagamen Assim, a chama não se extinguirá. -Por que motivo veio aqui? -Não o sei ao certo. E preciso... talvez... Assim, chama não se extinguirá. -Oh, meu Deus! Uma nuvem de crianças esganiçadas e mulheres cob tas de suor invadiu a loja. Não haveria mais folga, p menos até ao meio-dia. Walder foi ao carro e, quando voltou, teve de p através de um grupo de mulheres atarefadas para alcan o balcão, sobre o qual pousou um envelope de papel fo fechado  com fita gomada. -Tenho de partir. Com esta circulação, são qua horas de trajecto. Minha mulher está impaciente. Não urgente, disse ela. Mas era. -Há dez minutos que espero para ser aviada. -Estou imediatamente à sua disposição, minha senti -Perguntei-lhe se tinha alguma mensagem para transmitir. Ele respondeu: "Diga-lhe adeus." E você?
-Diga-lhe adeus. A maré de estômagos esfomeados não parou de su e isso foi bastante bom para mim. Deixei cair o envelo na gaveta sob a caixa registadora, e com ele... o desespero.
246  Capítulo XVI
 
O dia passou depressa mas, no entanto, pareceu interminável. A hora a que fechei já não tinha qualquer relação. com a hora a que abrira. Esta estava tão afastada  que mal podia já lembrar-me dela. Joey apareceu quando me preparava para fechar as portas da frente. Sem nada lhe perguntar, entrei e estendi-lhe uma lata de cerveja.  Depois, e pela primeira vez, furei uma para mim. Tentei falar-lhe de Marullo e da mercearia e verifiquei que nem mesmo podia contar-lhe a história que eu tinha aceitado  em troca da verdade. -Você tem um ar cansado-disse ele. -Não é para menos. Olhe as prateleiras e veja como foram devastadas. As pessoas até compram coisas que não querem e de que não têm falta. Esvaziei o conteúdo da gaveta da caixa registadora num saco de pano cinzento, juntei-lhe o dinheiro trazido por Mr. Baker e em cima de tudo pus o envelope de Walder.  Depois fechei o saco com um cordão. -Você não devia deixar isso aqui. -Talvez não. Outra cerveja? -Certamente. -Eu também. -Você é um bom ouvinte. Consigo, chego a acreditar nas minhas próprias histórias. -Por exemplo? 246 247 -A força do meu instinto. Esta manhã acordei ele. Devo ter sonhado, mas era verdadeiramente níti4 Tinha os cabelos eriçados na nuca. Nunca pensei podiam assaltar hoje o banco. Tinha a certeza disso. pomos calços  nas campainhas de alarme para o caso alguém as pisar por engano. A primeira coisa que fiz es manhã foi retirá-los, de tal maneira estava persuadido que a coisa viria.  Como explica isso? -Alguém tinha a intenção de o fazer. Você leu-lh no pensamento, e esse alguém renunciou ao projecto. -Consigo, uma pessoa, quando se enganou, sai honro- samente das dificuldades. -Estou muito fatigado, meu velho, mesmo para varre -Não deixe toda essa massa aqui, esta noite. Leve-a consigo. -Está bem. Concordo. -Continuo a ter maus pressentimentos. Abri a chapeleira, pus nela o saco com o meu cha de plumas e fechei-a cuidadosamente. Joey viu-me fazê-lo -Corro a Nova Iorque-disse ele.-Arranjo um quarto, num hotel e ponho-me a olhar para a cascata através d Times Square. Dois dias sem sair dali e sem ter de calç os sapatos. -E a sua entrevista? -Adiei-a. Mandarei subir uma garrafa de whisky e uma senhora. Não terei necessidade de falar nem com úni
nem com a outra. -Já lhe disse, creio eu, que íamos dar um pequeno passeio. -Oxalá. Faz-lhe imensa falta. Onde vai? -Tenho ainda umas pequenas coisas a tratar. Não se demore por minha causa, Joey. Vá tirar os sapatos. Antes de mais nada precisava de telefonar a Mary preveni-la de que chegaria atrasado. -Sim, mas despacha-te, despacha-te. Há novidades. -Não podes dizer-me o que é, querida? -Não, quero ver a tua cara. Prendi a máscara de Mickey pelo elástico à caixa" registadora e ela ficou a tapar a pequena janela através" da qual se vêem os números. Depois pus o impermeável  e o chapéu, fechei a luz e sentei-me sobre o balcão com as pernas pendentes. Negra e nua, a espinha dorsal de um cacho de bananas empurrava-me para um lado e a caixa registadora ajustava-se ao meu ombro esquerdo como um cerra-livros. As cortinas estavam levantadas e a luz da  tarde passava através das grades. Tudo estava calmo, e era disso que eu tinha necessidade. Tacteei na algibeira esquerda a excrescência empurrada contra a minha  anca pela caixa. O talismã. Peguei-lhe com as duas mãos e olhei-o intensamente. Ontem, pensara que tinha necessidade dele. Tinha-me esquecido de tornar a pô-lo no  lugar ou guardara-o conscientemente? Não sei. Como sempre, enquanto seguia os seus desenhos com o dedo transmitiu-me o seu poder. Durante o dia era rosado, mas a noite dava-lhe uma cor mais escura, um tom ligeiramente  púrpura, como se lhe tivesse introduzido um pouco de sangue. Não era de reflectir que eu precisava, mas de fazer um reajustamento, de mudar de plano. Tinha a impressão de me encontrar num jardim cuia casa tivesse sido deslocada  durante a noite. Precisava de edificar um abrigo provisório antes de poder reconstruir. Tinha mergulhado no trabalho esperando o momento de poder acolher os factos  novos, enumerá-los, identificá-los. Depois de um assalto que durara todo o dia, as secções deixavam ver numerosas brechas que nelas tinham feito as hordas esfaimadas.  Dir-se-ia uma dentadura defeituosa ou a muralha de um forte depois de um bombardeamento. -Oremos, meus irmãos, oremos pelos nossos amigos que já cá não estão: a estreita linha das garrafas de tomates, os valentes pickles e os condimentos, os frasquinhos  de alcaparras em vinagre. Não podemos fazer votos nem consagrar... não, não é isso. Alfio, desejo-te boa sorte e o fim das tuas dores. Tu enganaste-te, sem dúvida,  mas o erro talvez possa ser para ti uma cataplasma consoladora. Fizeste um sacrifício porque foste sacrificado. Gente que passava na rua fez vacilar a luz na loja. Procurei lembrar-me das palavras de Walder e da sua expressão ao pronunciá-las. " Um tribunal privado. É preciso  pagar todas as faltas. Você é, de qualquer forma, o seu modo de pagamento. Assim, a chama não se extinguirá." Fora isso o que aquele homem dissera. Walder, no seu  universo povoado de crápulas, tocado pelo clarão glorioso da honestidade. 248
249 Assim, a chama não se extinguirá. Alfio teria dito aq dessa maneira? Walder ignoravao, mas sabia que era o pensamento de Marullo. Segui o relevo da serpente no talismã e voltei ao prl." cípio, que era o fim. A chama não era coisa nova... Marull de há três mil anos tinham caminhado para monte  Palatino para apresentar as suas oferendas a Luperw cus, protector dos rebanhos contra os lobos. E a cha não se tinha extinguido. Marullo, o macaroni, sacrificava  aos mesmo deus e pela mesma razão. Tornava a vê-lo ergu a cabeça, apesar do peso da sua nuca gorda e dos se ombros doloridos. Via a face nobre, os olhos de um fulgoe  intenso... e a chama. Qual seria a minha conta e quan teria a pagar? Se eu levasse o meu talismã ao Porto Ve e o deitasse ao mar... isso seria aceitável? Não baixei as cortinas. Durante os feriados fica levantadas para que os polícias possam olhar para interior. A escuridão invadira o fundo da loja. Fechei porta que  dá para a ruela e já atravessara metade do pa mento quando me lembrei da chapeleira. Não voltei atr para ir buscá-la. O vento começava a soprar com força do sudeste, com não podia deixar de ser para que não faltasse a chuv destinada a encharcar a gente que estava em férias. N terçafeira  prepararia leite para o gato cinzento e co vidá-lo-ia a entrar na loja.
 
250 Capítulo XVII
 
Não sei ao certo como são as outras pessoas por dentro-todas diferentes e todas semelhantes ao mesmo tempo. Não posso senão calcular. Mas sei de que maneira me torço  e me revolvo para escapar a uma verdade dolorosa, e quando, finalmente, não a puder negar, iludo-a, esperando que ela se vá embora por si mesma. As outras pessoas  também dirão com afectação : "Pensarei nisso amanhã, quando estiver repousado"? Depois sacarão sobre o futuro que esperam ou sobre um passado longínquo, como as  crianças ao rebelarem-se contra a inevitabilidade de ir para a cama a determinada hora? Voltei a casa com passo pachorrento, caminhando sobre o campo minado da verdade. O futuro estava semeado de dentes-de-dragão. Era bem natural procurar um esteio  seguro no passado. Mas a tia Deborah conservava-se atravessada na estrada com uma grande asa estendida sobre uma ninhada de mentiras e os olhos brilhantes com pontos  de interrogação. Olhei demoradamente a vitrina do joalheiro, com o seus mostruário de relógios de pulso. A tarde húmida e ventosa incubava uma tempestade. No princípio do século passado as tias Deborah pululavam. Eram montanhas de curiosidade e de ciência. Talvez fosse o facto de estarem separadas do mundo de 250 251 seus pais que impelia algumas delas a ler. Ou talvez fogo a espera interminável, por vezes três anos, ou mesmo t a vida, da volta do barco, que as incitava a mergulhar  leitura das obras que enchiam o nosso sótão. Ela era maior das tias-avós: sibila e pitonisa ao mesmo tem Atirava-me com palavras mágicas, destituídas de sentido  que no entanto conservavam a sua magia quando eu adoptava. O presidente da Câmara de New Baytown cruzou-se comigo caminhando como um caranguejo e levando a," cabeça pendida para o chão. Ao meu cumprimento res pondeu com  um vago "boa tarde". Eu sentia a presença da minha casa, a velha casa doe Hawley, a alguns metros. Ontem à tarde, ela embrulha, va-se num manto de tristeza, mas esta tarde irradiava  exci. Cação. Uma casa, como uma opala, toma as cores do dia.:, Mary ouviu os meus passos e irrompeu da porta com uma chama. -Nunca adivinharás-disse ela avançando as má com as palmas para cima, como se conduzisse um embrulho -Algum admirador secreto ofereceu-nos um divos sauro ? -Não. Mas é também maravilhoso. Esperarei que t laves para te contar. Deves estar limpo para ouvir isto. -Tudo o que eu ouço é o canto de amor de babuíno com o rabo azul. No salão, Allen importunava a sua alma, cheio revolta : Quis pedir-te que me ficasses fiel, e disseste que eu sabia o que queria. Oteu olhar faz passar um frémito na m2 carne e já nem sei o que desejo...
-Vou queimá-lo vivo, divina esposa. -Não. Não o farás quando souberes. -Não posso saber, assim sujo? -Não. Atravessei a sala. O meu filho respondeu à saudação com a expressão subtil de um pedaço de go mastigada. -Espero que tenhas varrido o teu coraçãozinho so tário e amoroso, não? -Hem? -Hem, pai! A última vez que ouvi falar nele, algo o tinha agarrado e deitado ao chão. -Primeiro prémio-disse ele.-Em todo o pais. Venderam um milhão de exemplares em quinze dias. -Prodigioso! Sinto-me feliz de ver que o futuro está nas tuas mãos. A meio da escada o coro alcançou-me : Oteu olhar faz passar um frémito na minha carne e já nem sei o que desejo... Ellen procurava-me com um livro na mão e um dedo entre as páginas. Conhecia-lhe o método. Ela far-me-ia uma pergunta que julgasse dever interessar-me e deixaria  escapar a novidade que Mary desejava dar-me. Ellen sente uma espécie de triunfo em ser a primeira a contar qualquer coisa. Desagrada-me reconhecer que é uma linguareira,  mas isso é inegável. Agitei na sua direcção dois dedos cruzados numa figa. -Fora, pequenina bruxa. -Mas, papá... -Disse fora, meu pequeno ruibarbo, e é mesmo fora.Fechei a porta com estrondo e gritei:-A casa de banho de um homem é o seu castelo. Ouvi Ellen rir. Não dou confiança às crianças quando riem das minhas piadas. Ensaboei vigorosamente a cara e escovei os dentes até fazer sangrar as gengivas. Barbeei-me,  vesti uma camisa nova e, em sinal de revolta, pus o laço detestado pela minha filha. A minha Mary agitava-se com impaciência. -Não acreditarás. A Margie é a amiga mais encantadora que eu já tive. -Quantas vezes o tens dito? -Nunca adivinharás... ela fica com as crianças para que possamos fazer a viagem a sós. -Estás a brincar? -Não lho pedi. Propôs-mo espontâneamente. -Eles devoram-na mesmo crua. -São loucos por ela. Leva-os de comboio no domingo a Nova Iorque. Passarão a noite no apartamento de um amigo; na segunda-feira admirarão a nova bandeira de cinquenta  estrelas hasteada no Rockfeller Center, verão o desfile... e tudo. -Até me custa acreditar nisso. -Não é uma notícia agradável? -A mais agradável de todas. E nós voaremos para Montauk, Miss Ratinha? 252 253 -Já telefonei a reservar um quarto. -lsso é um delírio. Vou rebentar. Sinto-me impa,; de alegria. Tinha pensado em falar-lhe da mercearia, mas excesso de notícias provoca prisão de ventre. Valia m esperar e dizer-lho em Montauk. Ellen penetrou, deslizando, na cozinha.
-Papá, o objecto cor-de-rosa não está na vitrina. -Tenho-o eu aqui na algibeira. Toma-o e torna colocá-lo na lugar. -Disseste-nos que nunca o podíamos levar connos -Disse e repito, sob pena de morte. Ellen apoderou-se dele quase àvidamente e com duas mãos transportou-o para a sala. Os olhos de Mary estavam fixos em mim, estranhos sombrios. -Porque levaste aquilo, Ethan? -Para me dar sorte, meu amor. E deu resultado.
254 Capítulo XVIII
 
No domingo, 3 de julho, caía uma chuva mais grossa que habitualmente. Abrimos caminho pelo meio das filas de carros molhados. Sentíamo-nos orgulhosos, ainda que  desamparados e perdidos como pássaros criados em gaiolas que ficam amedrontados quando a liberdade lhes sorri. -Sentes-te feliz ? Estás contente? -Ainda penso que ouço as crianças. -Bem sei. A tia Deborah chamava a isto a solidão feliz. Voa, meu passarinho! São asas o que tens nos ombros, tolinha ! Sorriu e chegou-se a mim. -É bom, mas, apesar disso, penso no que estarão agora a fazer as crianças. -Quase tudo o que podemos pensar, excepto perguntar o ue estamos agora a fazer. -~ natural. Isso não lhes interessa. -Façamos portanto como eles. Quando vi a tua barca aproximar-se, ó serpente do Nilo, soube que chegara o nosso dia. Esta noite, Octávio mendigará o seu pão junto  de qualquer cabreiro grego. -És louco. O Allen nunca olha para onde vai. Pode atravessar a rua sem prestar atenção aos sinais luminosos. -Bem sei. E aquela pobre Ellen, que tem os pes alei 255 fados. Como tem bom coração e uma bonita cara, Sem encontrará alguém que goste tanto dela que lhos amp -Oh, deixa-me inquietar-me um pouco. Isso faz. bem. -Nunca ouvi coisa melhor. Queres que enumere juntos todas as possibilidades de desastre? -Sabes o que quero dizer. -Sim. Mas Vossa Alteza trouxe essa inquietação família. É uma doença transmitida por linha femin* Esses pequenos vampiros... -Ninguém gosta mais das crianças que tu. -A minha culpa é multiplicada por dez, pois eu so um sujeito desprezível. -Amo-te. -Eis uma forma de inquietação que eu aprovo. V esta extensão? Olha os juncos, as estevas e a areia em forrrí de pequenas vagas. A chuva bate na terra e torna a su  numa leve bruma. E assim que eu sempre imaginei D moor ou Exmoor, sem nunca as ter visto. Os prim homens do devoniano devem ter-se sentido aqui como sua terra. Pensas  que isto é um lugar assombrado? -Se o não for, tu o assombrarás. -Não deves atirar piropos, a não ser que os sin -Não pensemos nisso agora. Toma atenção ao des Deve haver uma placa com a indicação de Moorcroft., Havia de facto. O que é agradável na extremid adelgaçada de Long Island é que, por mais que chova, há lama. Tínhamos uma casa de bonecas só para nós fresca, com cortinas de ramagens e camas gémeas nais, fofas como papos-secos.
-Não aprovo isto-disse eu. -ldiota... basta-te estender o braço. -Poderei fazer bem melhor que isso, pequenina desav gonhada. Jantámos, cheios de dignidade, lagostas do Maine re das com vinho branco, uma enorme quantidade de branco para fazer brilhar os olhos da minha Mary, e tei-a com  o conhaque de forma tão sedutora que por fi minha própria cabeça já zumbia. Foi ela, afinal, que co guiu lembrar-se do número da nossa casa de bonecas e q encontrou  o buraco da fechadura. Não estava toc de maneira que me fosse impossível obter o que desejava, mas creio que ela poderia escapar-se se o tivesse querido. Depois, confortàvelmente instalada, aninhou a cabeça sobre o meu braço direito, sorriu e soltou um bocejo. -Estás preocupado com alguma coisa? -Que ideia! Sonhas mesmo antes de adormecer. -Trabalhas tanto para me tornar feliz. Não consigo ler em ti. Estás aborrecido ? A lucidez é estranha no limiar do sono. -Sim, estou. Ficas sossegada? Não digas a ninguém, mas o céu partiu-se em bocados e um deles caiu-me em cima do rabo. Ela afastou-se suavemente, com o seu sorriso de deus Pá. Deixei pender o meu braço livre, que ficou entalado entre as duas camas. A chuva cessara; apenas os telhados  pingavam, e a Lua, em quarto crescente, repetia a sua imagem num milhão de gotinhas. -Bons sonhos, minha querida. Não deixes o céu cair sobre nós. A minha cama estava fria e demasiado mole, mas eu podia ver a Lua pontiaguda vogar num mar de nuvens. Um alcaravão lançou o seu pio lamentoso. Cruzei os dedos das  duas mãos em forma de figa. E nem o céu, nem nada, caiu em cima do meu rabo. Se o dia nasceu com o barulho do trovão, eu não o ouvi. Ao abrir os olhos vi uma mistura de ouro e verde. Também havia o escuro dos j unos, o pálido dos fetos, o  vermelho-amarelado das dunas húmidas e, não longe, o Atlântico brilhando como prata cinzelada. Junto da nossa casa erguia-se uma velha nogueira torcida, com as raízes  cobertas de líquen cinzento-pérola. Uma vereda ensaibrada ligava o conjunto de casas de bonecas à casa-mãe. Era ali que se encontrava o escritório, onde se viam  lembranças, bilhetes-postais e selos, e também a sala de jantar, cujas mesas eram cobertas por toalhas de quadrados azuis, onde nós, as bonecas, podíamos tomar as  refeições. O gerente estava no escritório verificando uma lista. Já o tinha visto na véspera, quando nos inscrevemos. Os seus ca= belos eram emaranhados e mostrava uma evidente  necessidade de se barbear. Os seus gestos eram furtivos e estava de tal maneira certo, baseado na nossa alegria, de que o nosso encontro era clandestino, que tive  ganas de escrever no 256 I7-o. I. D. 257 registo : " John Smith e mulher." Isto apenas para lhe prazer. Farejava o pecado e, na realidade, o seu órg < tacto parecia ser o comprido nariz, como acontece os 
papa-formigas. -Bom dia-disse-lhe eu. Aproximou de mim o nariz. -Dormiu bem? -Perfeitamente. Será possível que eu leve à mulher uma bandeja com o pequeno almoço? -Servimos apenas na sala de jantar, das sete e m às nove e meia. -Mas se eu próprio o levar? -É contra o regulamento. -Não se poderia infringi-lo por uma única v O senhor sabe como é... Era o que ele esperava. Esperançado numa boa gorj os seus olhos humedeceram e o nariz pôs-se a tremer. -Sente-se um pouco incomodada, não? -Bem, o senhor sabe como são estas coisas. -Não sei o que o cozinheiro vai dizer. -Pergunte-lhe e diga-lhe que há um dólar que em bicos de pés no cume brumoso da montanha. O cozinheiro era um grego que achava um dólar tante atraente. Dali a pouco transportava eu uma im bandeja, coberta com um guardanapo, ao longo da ver Pousei-a num  banco rústico durante o tempo sufis" para colher um ramo de pequeninas flores camp para adornar o real repasto da minha bem-amada. Talvez estivesse acordada, mas, em todo o caso, os olhos. -Sinto o cheiro do café-disse ela.-Oh! Oh! delicioso marido. Até flores. Comemos, bebemos e tornámos a beber café. A mt Mary, sentada na cama, estava mais jovem e mais ino que a própria filha. Cada um falou respectivamente maneira como  dormira. A minha hora chegara. -lnstala-te bem. Tenho novidades a dar-te, más ao mesmo tempo. -Meu Deus! Terás comprado o oceano? -O Marulio está metido num sarilho. -De que espécie? -Há muito tempo, veio para a América sem autori= zação. -E então ? -Agora mandam-no embora. -Vão repatriá-lo? -Sim. -Mas é horrível. -De facto, não é nada divertido. -Que vamos nós fazer? Que farás tu? -Vendeu-me a loja, ou melhor, vendeu-ta, visto que o dinheiro é teu. Precisava de transformar em dinheiro os seus bens e, como gosta de mim, deu-ma prilticamente... três mil dólares... -É horrível! Mas tu queres dizer que... a mercearia te pertence ? -Sim. -Então já não és caixeiro! Já não és caixeiro! Deixou tombar a cabeça no travesseiro e rompeu em soluços tumultuosos. Era como um escravo a quem tirassem
a coleira. Sentei-me ao sol, no limiar, esperando que ela se re compusesse. Quando acabou de chorar, banhou a face, escovou o cabelo, vestiu o roupão e, por fim, abriu a porta e chamou-me. Já não era a mesma, e nunca mais o seria. Não tinha necessidade de o dizer. A posição da sua nuca falava por ela. Podia agora erguer a cabeça, pois torná vamos a ser pessoas de categoria. -Não podemos fazer nada para ajudar Mr. Marullo? -Receio que não. -Como aconteceu isso. Quem o denunciou? - Ignoro-o. -É um bom homem. Não lhe deviam ter feito isso. Como reagiu ? -Com dignidade, honrosamente. Fomos à praia como tínhamos pensado fazer e, sentados na areia, juntámos pequenas conchas brilhantes que mostrámos um ao outro. Entretivemo-nos com a admiração convencional  de coisas naturais-o mar, o ar, a luz, o sol e o vento- um pouco como se o Criador estivesse com as orelhas atentas à espera de elogios. A atenção de Mary estava dividida. Desejava, segundo Penso, voltar a casa na sua nova condição, para ver os olha 258 259 rés que agora lhe lançariam as mulheres e a diferença cumprimentos em High Street. Já não era a "pobre Hawley que trabalha tanto". Tornara-se Mrs. Ethan Hawley,  e assim ficaria. Para que sempre o fosse, de eu velar. Ficámos o resto do dia porque já o tính pago, mas as verdadeiras conchas que revirava e exa nava eram os dias  brilhantes que estavam para vir. Almoçámos na sala de jantar dos quadrados az As boas maneiras e a segurança de Mary desapon o Senhor Papa-Formigas. O seu nariz sensível teve decepção acerca do  que tinha alegremente farejado c um perfume de pecado. Uma chamada telefónica p Mrs. Hawley acabou de dissuadi-lo. -Quem sabe que estamos aqui? -A Margie, naturalmente. Tinha de lhe dizer o estamos por causa das crianças. Oh, meu Deus... ele n sabe para onde vai! Voltou trémula como uma estrela. -Não adivinharás nunca. Não poderás adivinhar -Posso calcular que é coisa boa. -Ela disse-me: "Ouviu as notícias? Escutou a rã Pela sua voz, compreendi que se tratava de boas notí -Não podes dizer já o que é e dizer-me depois o ela te disse ? -Nem posso acreditar naquilo. -Deixa que eu tente fazê-lo. -O Allen recebeu uma menção honrosa. -Quê? O Allen? Diz depressa! -Pelo ensaio... em todo o país... menção h -Não! -Sim. Houve apenas cinco menções... ganha um gio e vai à televisão. Vê lá tu! Uma celebridade na -Não, não posso acreditar. Com todas aquelas Ia ces. Que actor ! O seu coraçãozinho solitário e amo nunca foi atirado ao chão.
-Não brinques ! Reflecte um pouco. O nosso um dos cinco rapazes que em todo o território dos Es UMdos ganharam menção honrosa... e vai à tel -E um relógio! Pergunto a mim mesmo se ele sa ver as horas. -Ethan, se troças, as pessoas vão pensar que ia o teu próprio filho. -Só estou admirado. Julgava que o estilo dele era do género do do general Eisenhower. O Allen não tem as musas ao seu serviço. -Conheço-te, Eth. Divertes-te a esmagá-los. Mas és tu que os estragas. É a tua maneira de ser. Gostaria de saber... ajudaste-o no ensaio? -Ajudei-o? Pois se ele nem mesmo mo deixou ver! -Então, é magnífico. Não gostaria que te sentisses frustrado por tê-lo escrito para ele. -Não posso imaginar uma coisa destas. Assim se vê como conhecemos mal os próprios filhos. Como recebeu a Ellen a notícia? -Está orgulhosa como um pavão. A Margie estava de tal maneira comovida que mal podia falar. Os jornais querem entrevistá-lo... e a televisão... ele apresenta-se  na televisão. Já reparaste que nem mesmo temos um aparelho para o ver? A Margie diz que nos podemos servir do dela. Uma celebridade na família. Ethan, precisamos  de um aparelho de televisão. -Teremos um. É a primeira coisa que comprarei amanhã. Porque não o compras tu mesma? -Podemos fazê-lo? Oh, Ethan, esquecia-me de que a loja é tua. Esqueci-me completamente. Podes acostumar-te a isto? Uma celebridade ! -Espero que, mesmo assim, possamos viver com ele. -Tens de deixá-lo gozar o seu dia. Eles voltam entre as sete e as oito horas. Temos de lá estar para recebê-los. -E para fazer um bolo. -Certamente. -E para pendurar i,,-,Ias grinaldas de papel. -Tu não és ciumento, pois não? -Não. Estou acabrunhado. Penso que na nossa casa as grinaldas ficarão bem por toda a parte. -Mas não exteriormente, pois isso daria um ar de... ostentação. A Margie sugere que devemos fingir que não sabemos nada para deixá-lo contar-nos o que se passou. -Não estou de acordo. Isso poderia torná-lo esquivo. Daríamos o aspecto de não nos interessarmos. Não, que ele volte a casa ao som das aclamações e que encontre  um bolo. Se estiver alguma loja aberta, compro foguetes. -As que estão à beira da estrada... 260 261 -Naturalmente. Quando regressarmos... a menos tenham sido assaltadas. Mary curvou a cabeça como se rezasse. -A loja é tua e o Allen é célebre. Quem Do imaginar que tudo aconteceria ao mesmo tempo ! Eth voltemos para casa. É preciso que estejamos lá quan chegarem. Porque  me olhas dessa maneira? -Tenho a impressão de ter sido engolido por u onda... Como sabemos pouco dos outros ! Isto provocacalafrios. Lembro-me de um Natal em que, em vez de es alegre, sentia  o rato de Gales. -Que é isso?
-Era o que eu sentia quando a tia Deborah p nuneiava a palavra Weltschmerz. -Mas que é isso? -Um ganso passeando sobre o nosso túmulo. -Oh! Não! Este dia é o melhor da nossa vida. Seria, uma ingratidão deixar de reconhecê-lo. Ri e expulsa rato. É uma tolice, Ethan. Paga a conta enquanto eu arranjar  as nossas coisas. Paguei com as notas que o Marullo me atirara e ladas. Depois perguntei ao Senhor Papa-Formigas: -Ainda tem alguns foguetes? -Penso que sim. Vou ver... Aqui estão. Quantos qu -Todos os que tem - respondi. - O nosso filho nou-se uma celebridade. -Verdadeiramente? De que género? -Só há um género. -Quer dizer como Dick Clark? -Ou Chessman, ou Dillinger. -Está a brincar. -Apresenta-se na televisão. -Em que estação? A que horas? -Não sei... por enquanto. -Hei-de ver. Qual é o nome dele? -O mesmo que o meu. Ethan Allen Hawley. C mam-lhe Allen. -Foi de facto uma honra tê-lo tido na nossa casa co Mrs. Allen. -Mrs. Hawley. -Desculpe. Espero que volte cá. Muitas gente céle tem vindo aqui. Vêm para... descansar. Mary sentava-se direita e orgulhosa, ao meu lado, quando na estrada dourada nos juntámos à longa serpente brilhante dos outros carros. -Arranjei uma caixa inteira de foguetes. Mais de uma centena. -Ah, começas a parecer-te mais contigo próprio, meu querido. Ficaria contente se os Baker já tivessem voltado. 262 263 -Naturalmente. Quando regressarmos... a menos q tenham sido assaltadas. Mary curvou a cabeça como se rezasse. -A loja é tua e o Allen é célebre. Quem po imaginar que tudo aconteceria ao mesmo tempo ! E voltemos para casa. É preciso que estejamos lá quais chegarem. Porque  me olhas dessa maneira? -Tenho a impressão de ter sido engolido por u onda... Como sabemos pouco dos outros ! Isto provocacalafrios. Lembro-me de um Natal em que, em vez de es alegre, sentia  o rato de Gales. -Que é isso? -Era o que eu sentia quando a tia Deborah p nuneiava a palavra Weltschmerz. -Mas que é isso? -Um ganso passeando sobre o nosso túmulo. -Oh! Não! Este dia é o melhor da nossa vida. Seria: uma ingratidão deixar de reconhecê-lo. Ri e expulsa rato. É uma tolice, Ethan. Paga a conta enquanto eu arranjar  as nossas coisas. Paguei com as notas que o Marullo me atirara e
ladas. Depois perguntei ao Senhor Papa-Formigas: -Ainda tem alguns foguetes? -Penso que sim. Vou ver... Aqui estão. Quantos quer -Todos os que tem - respondi. - O nosso filho t nou-se uma celebridade. -Verdadeiramente? De que género? -Só há um género. -Quer dizer como Dick Clark? -Ou Chessman, ou Dillinger. -Está a brincar. -Apresenta-se na televisão. -Em que estação? A que horas? -Não sei... por enquanto. -Hei-de ver. Qual é o nome dele? -O mesmo que o meu. Ethan Allen Hawley. C mam-lhe Allen. -Foi de facto uma honra tê-lo tido na nossa casa co Mrs. Allen. -Mrs. Hawley. -Desculpe. Espero que volte cá. Muitas gente céle tem vindo aqui. Vêm para... descansar. Mary sentava-se direita e orgulhosa, ao meu lado, quando na estrada dourada nos juntámos à longa serpente brilhante dos outros carros. -Arranjei uma caixa inteira de foguetes. Mais de uma centena. -Ah, começas a parecer-te mais contigo próprio, meu querido. Ficaria contente se os Baker já tivessem voltado. 262
 
263 Capítulo XIX
 
O meu filho portou-se bem. Descontraído, foi amável connosco. Não tirou nenhuma desforra nem ordenou nenhuma execução. Aceitou como coisa natural os nossos elogios,  não mostrando nem vaidade, nem humildade excessiva. Dirigiu-se à sua cadeira na sala e ligou o aparelho de rádio antes que os cem foguetes tivessem sido reduzidos  a cotos enegrecidos. Era evidente que perdoara as nossas ofensas. Nunca vi um rapaz aceitar a grandeza com mais elegância. Foi, na realidade, uma noite espantosa. Se a facilidade da ascensão de Allen tinha qualquer coisa de surpreendente, que dizer da reacção de Ellen? Alguns anos de  observação tinham-me preparado para ver Miss Ellen, movida pela inveja, procurar diminuir o êxito do irmão. Mas deixou-me estupefacto, pois, pelo contrário, transformou-se  na sua sacerdotiza. Foi ela quem nos contou como, instalados num elegante apartamento da Rua Sessenta e Sete, depois de uma noite encantadora, eles seguiam, indiferentes,  o relato das últimas notícias na televisão, quando anunciaram o triunfo de Allen. Foi Ellen quem repetiu o que eles tinham dito e sentido. Allen, sentado, distante  e calmo, não reagiu quando Ellen informou que ele teria de comparecer com os outros quatro para ler o seu ensaio a milhões de ouvintes. Mary fungava de alegria.  Olhei Margie Young 265 #266 -Hunt. Ela estava concentrada como quando tirava cartas. Uma calma penumbra invadira o compartimento. -Que venham bebidas frescas para toda a gente disse eu. -Ellen encarrega-se disso. Mas onde está ela? Entra, e sai como se fosse fumo. Margie levantou-se, nervosa. -É uma reunião de família. Vou-me embora. -Mas, Margie, você pertence à família. Onde a Ellen? -Mary, não me obrigue a confessar que estou comg tamente desfeita. -Ah, sim, deve estar, minha querida. Esquecia-m disso. Nós descansámos tanto... obrigada, mil vezes obrigad -Gostei muito de lhes ser prestável. Era uma oportu muade única. Ela queria afastar-se, e ràpidamente. Aceitou os no agradecimentos e os de Allen e escapou-se. -Não falámos da mercearia-lembrou Mary. -Não tenhas pressa. Isso faria mal a Sua Excelê Rosada. É verdade, onde está a Ellen? -Foi-se deitar. É compreensível,, meu querido, e tens razão. Allen, o dia foi fatigante. E tempo de ires p a cama. -Acho que vou ficar sentado aqui um pouco mana disse A11en em tom amável. -Mas tu tens necessidade de repousar. -Estou repousando. Mary procurou o meu auxílio com o olhar.
-São momentos assim que temperam a alma dos hom Posso bater-lhe, ou então deixá-lo saborear a sua vitó sobre nós. -Mas é um rapazinho. Precisa de repouso. -Faltam-lhe muitas coisas, mas não o repouso. -Toda a gente sabe que ele é necessário às criar -O que toda a gente sabe é muitas vezes err Conheceste alguma vez uma criança que tenha mo de cansaço? Não... isso só acontece aos adultos. As ças são muito mais  espertas para que tal lhes suceda. descansam quando é necessário. -Mas já passa da meia-noite. -Que tem isso, querida? Dormirá até ao meio-dia. g nós temos de nos levantar às seis. -Queres dizer que te vais deitar e o deixas aqui? -Ele precisa de vingar-se de nós por o termos feito nascer. -Não percebo nada do que dizes. Que é isso de vingar-se ? -Tenho de fazer uma combinação contigo, pois estás a deixar-te invadir pela cólera. -Na verdade, estou. Começas a mostrar-te idiota. -Se meia hora depois de estarmos deitados ele não estiver já no ninho, pago-te quarenta e sete milhões, oitocentos e seis dólares e oitenta cêntimos. Afinal perdi e tenho de lhe pagar. Havia trinta e cinco minutos que estávamos na cama quando a escada rangeu sob o peso da nossa vedeta. -Detesto-te quando tens razão-declarou Mary, que estava preparada para passar a noite de ouvido à escuta. -Mas eu enganei-me, querida. Perdi por cinco minutos. Adormeceu então e não ouviu Ellen descer. Vi os meus pontinhos vermelhos flutuar no escuro. Não a segui. Apercebi-me do ligeiro barulho da chave na fechadura da  vitrina e compreendi que a minha filha carregava as suas baterias. Os pontos vermelhos multiplicavam-se. Caminhavam daqui para acolá e desapareciam quando sobre eles me concentrava. O velho capitão evitava-me. Nunca mais se apresentara  depois... bem, depois da Páscoa. Não é a tia Deborah-que o Céu a tenha na sua santa guarda... Sei que, quando não estou em paz comigo mesmo, o velho capitão se esfuma.  Serve-me assim de pedra de toque das relações que tenho comigo mesmo. Naquela noite concentrei-me. Hirto, estiquei todos os músculos, sobretudo os do pescoço e os do queixo. Apertei os punhos contra o ventre e forcei o velho a aparecer.  Os olhos eram escuros, o bigode branco e os ombros protuberantes provavam que tivera um corpo possante e havia feito bom uso dele. Fi-lo mesmo pôr o boné azul de  pala curta encerada com um H dourado feito de duas âncoras cruzadas. já há muito tempo que eu não "via" aquele boné. O velho bem resistia, mas eu obriguei-o e instalei-o  sobre as ruínas do dique do Porto Velho, ao lado do meu Lugar. Sentei-o firmemente num monte de cascalho e 267 pus-lhe as mãos cruzadas sobre a bengala de dente de val. Aquela bengala capaz de abater um elefante. -Tenho necessidade de um motivo para odiar, timar e compreender... isso são papas. Preciso de um dadeiro ódio para poder afastar de mim a cólera.
A memória é reprodutora. Se lhe dermos uma refer claramente detalhada, ela começa a trabalhar, para e para diante, como um filme. O velho capitão agitou-se. Levantou a bengala:-T ça uma linha partindo do terceiro rochedo atrás do que, -mar em direcção ao extremo de Porty Point na pra -mar.  Ele está lá, a meio cabo dessa linha, ou pelo me o que dele resta. -Quanto é meio cabo, capitão? -Quanto é? Cinquenta braças, evidentemente. estava ancorado por causa da vazante. Dois anos de alar Metade dos tonéis estavam vazios. Encontrava-me em te quando começou o fogo. Quando o óleo se incendiou cidade ficou iluminada como se fosse de dia e as cha corriam sobre a água até Osprey Point. Era imposs encalhá-lo pelo receio de lançar fogo aos cais. Ardeu à linha de água. A quilha e a sobrequilha estão ainda fundo, intactas. Eram de carvalho virgem de Shelter Is -Como começou aquilo? -Não sei, estava em terra. -Quem poderia tê-lo incendiado? -Os proprietários, com mil  diabos! -O proprietário era o senhor. -Só de metade. Eu não seria capaz de queimar u navio. Eu gostava de lhe ver o costado e as linhas. -Agora pode ir-se embora, capitão. -É muito pouco para odiar. -É melhor que nada. Eu porei a flutuar aquela quilha quando for rico. Fá-lo-ei por si... do terceiro rochedo Porty Point na praia-mar, a cinquenta braças. Os meus punhos e antebraços, rígidos, haviam-se ap tado contra o meu estômago para impedir o velho capa de se esfumar, mas, depois de o deixar partir, o sono v ceu-me. Qundo o faraó sonhava, chamava os entendidos pata Me explicarem o significado do que vira e as consequên que haveria para o seu reino. Era de toda a justiça, vis que o reino era dele. Quando nós agora temos um sonho vamos a um especialista para nos explicar o que se passa em nós. Para o meu não era preciso nenhum perito.  Como a maior parte das pessoas modernas, não acredito nem na magia nem nos profetas, mas desperdiço metade do meu tempo com isso. Na Primavera, Allen, sentindo-se deprimido e solitário, proclamou-se ateu para punir Deus e os pais. Disse-lhe que não tentasse o Diabo, que não passasse debaixo  de uma escada, que escarrasse levantando o polegar quando encontrasse um gato preto e que invocasse a lua nova. As pessoas mais aterrorizadas com os seus sonhos esforçam-se por convencer-se de que não os têm. Eu posso explicar fàcilmente os meus, mas eles nem por isso aterrorizam  menos. Danny transmitiu-me, não sei como, uma ordem. Partia de avião e queria de mim certas coisas, coisas que eu próprio teria de fabricar. Desejava que eu fizesse uma  boina para Mary. Tinha de ser de pele de carneiro forrada inteiramente de lã como um par de pantufas que eu possuía e em forma de boné de basebol, com uma longa  pala. Também queria um anemómetro, não como aqueles pequenos hemisférios metálicos que giram com o vento, mas de cartão dos bilhetes-postais e armadura de bambu. 
Ordenou-me que o visitasse antes de ele partir. Levei comigo a bengala do velho capitão, que estava arrumada num bengaleiro feito de uma pata de elefante que adornava  o nosso hall de entrada. Quando nos ofereceram este pé de elefante admirei as enormes unhas cor de marfim e disse aos meus filhos: "O primeiro que puser verniz de unhas ali já sabe que apanha  uma bordoada, perceberam?" Obedeceram, e então fui eu próprio pintá-las com verniz vermelho-vivo que fui buscar ao arsenal de Mary, na gaveta do toucador. Fui encontrar-me com Danny, levando o Pontiac de Marullo. O aeroporto estava situado no edifício dos Correios de New Baytown. Parei e pus a bengala no assento de  trás. Dois polícias com ar pachorrento aproximaram-se num carro de patrulha. -Não ponha isso no assento- disseram. -É contra a lei? -Quer armar em esperto? 268 269 -Não. Estou a fazer uma simples pergunta. -Pois bem, não deixe isso sobre o assento. Danny, no fundo do edifício, separava encom Trazia a boina de pele de carneiro e fazia girar o atte metro feito de bilhetes-postais. A cara estava magra e lábios rtad g e os, mas as mãos, inchadas como sacos de quente, pareciam ter sido picadas por vespas. Levantou-se e senti a minha mão envolvida por massa quente e mole. Meteu-me qualquer coisa entre dedos. Era um objecto pesado e frio, do tamanho de u chavemas não  era uma chave-, metálico, de a vivas e polido. Ignoro o que era ao certo, pois não o o Inclinei-me e beijei Danny na boca e os meus lábios tiram os dele, secos,  rugosos e gretados. Então acorri gelado e trémulo. A aurora chegara. Podia ver o lago, mas não a va e sentia ainda o contacto dos lábios secos. Levanteiimediatamente. Não queria pensar em tudo aquilo. N fiz o café,  mas verifiquei que o perigoso cacete a "q chamava bengala estava ainda no pé do elefante. Era a hora palpitante da madrugada, quente e húmidái,y, e o vento da manhã não soprava ainda. A rua esta cinzenta e prateada e o passeio gorduroso dos vestfgi da  humidade. O Foremaster ainda não abrira e, de resto eu não desejava tomar café. Atravessei a ruela e abri minha porta... Um só olhar mostrou-me a chapeleira detrás  do balcão. Peguei numa lata de café e deitei o conteúdo no bal dos despejos. Abri dois buracos na tampa de uma lata de leite condensado e despejei-a na de café, que fui no  limiar da porta das traseiras. O gato, é claro, esta na ruela, mas não se aproximou sem que eu tivesse entra na loja. Podia ver perfeitamente o gato cinzento lambend  o leite na ruela cinzenta. Quando levantou a cabeça, tinh9 os bigodes brancos. Sentou-se e limpou a boca e as patas Abri a chapeleira e tirei dela a receita de sábado composta de notas separadas conforme o seu valor reunidas em maços presos por clips. Do envelope cast do banco  retirei trinta notas de cem dólares. Estes três dólares representariam uma margem de segurança até que os negocios da loja estivessem equilibrados. Os dois rng dólares 
restantes voltariam para a conta de Mary e substi" ruiria os outros três mil quando o pudesse fazer sem perigo. Meti as trinta notas na minha nova carteira, o que fez inchar o bolso. Depois fui buscar caixas ao fundo  da loja, arranquei-lhes as tampas e dediquei-me a tornar a guarnecer as prateleiras vazias, ao mesmo tempo que sobre um pedaço de papel tomava nota das mercadorias  que necessitava de encomendar. Empilhei as caixas vazias na ruela e tornei a encher de leite a lata do gato, mas este não voltou a aparecer. Ou ele já tinha bebido  bastante ou então só tinha prazer naquilo que podia roubar. Deve haver anos diferentes dos outros, tão dissemelhantes no clima, nos acontecimentos, nas tendências, como um dia do outro. O ano de i g6o foi um ano de mudanças,  em que os receios secretos se deram a conhecer, em que o descontentamento deixou de estar adormecido para se transformar pouco a pouco em cólera. Isto não era só  comigo ou apenas em New Baytown. As eleições presidenciais aproximavam-se e sentia-se no ar o descontentamento a transformar-se em cólera. E não era só no interior  das nossas fronteiras : o mundo inteiro agitava-se inquieto, o mal-estar acumulado manifestava-se em acções violentas na África, em Cuba, na América do Sul, na Europa,  na Ásia, no Próximo Oriente. Toda a gente estava desassossegada como cavalos diante de uma barreira. Eu sabia que esta terça-feira, 5 de julho, seria um dia mais comprido que os outros. Sabia mesmo o que iria passar-se. Mas alguma vez se pode estar certo do futuro?  Sabia que Mr. Baker, um autêntico relógio de dezassete rubis, insensível aos choques, que media infalivelmente as horas, viria parar com grande ruído à minha porta  uma hora antes da abertura do banco. Chegou antes de eu ter levantado as cortinas da loja. Fi-lo entrar e fechei a porta atrás dele. -Que horrível coisa-disse.-Não sabia de nada. Logo que soube, regressei. -Que foi? -Mas... este escândalo! Estes homens são meus amigos, meus velhos amigos. É preciso que eu faça qualquer coisa. -Não serão interrogados antes das eleições. Pelo menos, não serão inculpados. -Bem sei. Mas não podíamos fazer uma declaração 270 2qr pública s a seu fávor ? Proclamar a nossa fé na sua inocên Pagar, sole for necessário, a sua publicaçã li o 4        -E n que jornal? O Bay-Harbour Messenger só sai quinta-f èfeir1. -Erunfm, é preciso fazer qualquer coisa. -Etuu sei. Tudeuo ato era puramente formal. Ele devia calo que eu sabia. E, apesar disso, sustentava o meu o parece~osinoeramente aborrecido . -Se : àc) fizermos qualquer coisa, esta estúpida hist vai corr1 npr~ter as eleições municipais Precisamos . formar uurna lista de novos candidatos Não temos ou . Solução. Éum terrível golpe assestado em velhos amig mas ele serão os primeirosh 11        a reconecer que nos poemos s deixar esturrar a omeleta.
-VÃ á vè_los e falar-lhes. -Es catão como loucos. Nem são capazes duas idei idas, o Marullo veio? dól-Enviviou um amigo. Comprei a loja por três ares . -Bonmr1egócio. Vantajoso. Tem os documentos? -Sirüui. -Benun, se ele fugir, os nümeros das notas estão ap tados . -Não.o há perigo. Ele deseja partir. Está cansado. -Nunca, tíve confiança nele, nem nunca soube certo o gwaue ele fazia. -SerHaum crápula? -Era a astucioso e usava utn jogo duplo Ele pesa mutt . ~e se puder uspox das propriedades, mas três mil dólares. é dado . -Gos-Estava muito de mim. -Assi.iarn parece. Quem mandou ele? A Mafia ? -Um n homem do Governo. Veja como o Marullo confiança i ern ruim. Mr. B2Baker franziu o cenhei o que não lhe era habito -Poro-que náo pensei nisto mais cedo? Você é o honre de que prrecisarnos Boa famu di        d féit ,.lagnoe propre ,, comerciarunte, respeitado. Não conta um só inimigo cidade. Snern a menor dúvida, você é a pessoa que nos falta. -Faltais para quê? -Para presidente da Câmara. -Não tenho loja senão depois de sábado. -Sabe o que quero dizer. ,Ã sua volta podemos agru par novas figuras respeitáveis. É o melhor caminho. -De caixeiro de mercearia subo a presidente da Câmara ? -Nunca ninguém considerou um Hawley como cai xeiro de mercearia. -Eu sim, e a Mary também. -Mas você não o é. Podemos anunciá-lo hoje, antes de esta história insensata se propagar. -Preciso estudar isso bem desde a quilha até ao topo do mastro. -Não temos tempo para isso. -Em quem tinha pensado antes? -Antes de quê? -Antes de o Conselho Municipal se ter queimado. Falarei consigo um pouco mais tarde. Sábado foi um dia trabalhoso. Poderia ter vendido a própria balança. -Você pode fazer qualquer coisa de muito bom desta loja, Ethan. Recomendo-lhe que lhe arranje fama e depois a venda. Está destinado a ser demasiado importante para atender fregueses. Há noticias de Danny? -Ainda não.
-Você não devia ter-lhe dado o dinheiro. -Talvez, mas eu julguei praticar uma boa acção. -Mas fê-lo! Fê-lo! -Mr. Baker... Que é que aconteceu ao Belle Adair? -Que lhe aconteceu? Incendiou-se. -No porto... Como começou aquilo? -Que estranho momento você escolheu para fazer uma pergunta dessas. Não me lembro do que ouvi a tal respeito. Era muito garoto para me lembrar. Esses velhos barcos estavam saturados de óleo. Um marinheiro qualquer teria deixado cair um fósforo. O seu avô era o capitão. Ele estava em terra, creio eu. Acabava de chegar. -A viagem tinha sido má. -Foi o que me disseram. -Houve dificuldade em receber o dinheiro do seguro? -Bem, eles mandam sempre inspectores. Não, que eu saiba, levou tempo, mas nós recebemos, os Hawley e os Baker. 273 -O meu avô pensava que tinha sido fogo posto. -E porquê, Deus do Céu? -Para arranjar dinheiro. A industria baleeira esta acabada... -Nunca ouvi falar nisso. -Nunca? -Ethan... Que quer você? Porque ressuscita história do passado? -É uma coisa horrível incendiar um barco. É co um assassínio. Qualquer dia, vou pôr a quilha a íiut -A quilha? -Sei onde ela está. A meio cabo da praia. -Por que motivo vai fazer isso? -Gostaria de verificar se o carvalho está ainda bo Era carvalho virgem de Shelter Island. O navio não inteiramente morto se a quilha estiver viva. Era me que se  fosse embora, se quer abençoar a abertura do co E eu também tenho de abrir. Sem responder, Baker dirigiu-se para o banco. Penso que também adivinhei que Biggers viria ver-m O pobre tipo devia passar a maior parte do tempo a as portas. Decerto esperava a um canto a saída Baker. -Espero que não queira estrangular-me. -Porque havia de fazê-lo? -Compreendo porque é que você adoptou uma ati reservada. Eu não fui... digamos, muito diplomata. -Talvez. -Já digeriu a minha proposta? -Sim. -Que pensa dela? -Que seis por cento seria melhor. -Não sei se B. B. D. e D. estará de acordo. -Vamos a ver. -Eles podem fazer cinco e meio. -E você o outro meio. -Jesus ! E eu que o tomava por um novato. V tem vistas largas. -É pegar ou largar. -Bom. Qual será a importância da encomenda? -Em cima da caixa está um começo de lista. Ele observou o pedaço de papel. -Parece que estou filado. Meu velho, fico a sangrar.
Pode dar-me hoje a encomenda total? -Amanhã será melhor e maior.        ? -Quer dizer que vai comprar apenas a -Se você cumprir o que acordai°pagão bem seguro. -Meu velho, você deve ter o sea Pode de facto conseguir isso? -Vai ver.        lotícia para a ami -Então eu terei talvez uma boa você deve ser frio guinha deste seu amigo. Meu velOP pequena é um bom como um arenque. Digo-lhe que aquela bocado.
 
-É uma amiga da minha mulher- siado perto do lar -Ah, agora compreendo. É dera ão tne ivesse aperpebido antes, sabe"-oÇiaeagora. Seis po Cento! Meu Deus! c Amanhã de manhã. -Pode ser esta tarde, se houver temPo" -Digamos amanhã de manhã.        e Agora a velo No sábado o trabalho foi feito a géStávamapressadas. cidade mudara. As pessoas já não cardo a notícia de Desejavam falar do escândalo, classiO otiando entretanto  má, horrível, triste, ignominiosa, mas ámos um escândalo. com ela. Há muito tempo que não tír Partido DemoNinguém prestou atenção à convença édmacidade repucrático.  Evidentemente, New Baytow%tefessa verdadeirablicana, mas eu creio que ela só se to. Nós conhecíamos mente por aquilo que a toca de pe        osO os homens sobre cujos túmulos dança jo jaeio-dia, com ar c11        kson ch tonewa ac        egou cerca j, triste e fatigado.        o e pequei Pus a lata de óleo sobre o bale revólver com um bocado de arame. leve-lo? Enerva-me. -Eis o corpo do delito, chefe. Queira isto! É o que se -Está bem. Enxugue-o. Olhe P is dólares-um Iaer costuma chamar um revólver de do ateir ól alguém que ,7ohnson com o fecho por cima. Vote        q possa guardar a loja? -Não, ninguém. -Onde está o Marullo? -Não está na cidade,        aj mtempo. -Você tem de fechar a porta por 275 o velho 274 #-Que é que aconteceu, chefe? -Sabe, o garoto do Charley Pryor fugiu de casa manhã. Você tem qualquer coisa fresca para beber? -Certamente. Laranjada, limonada, Coca-Cola. -Dê-me um Seven-Up. O Charley é um tipo curioso O petiz dele, o Tom, tem oito anos. Imagina que o mun está contra ele e quer fugir para tornar-se pirata. Qual u  outra pessoa dava-lhe um par de açoites, mas o Char não. É capaz de abrir isto? -Desculpe-me. Já está. Que é que o Charley tem a comigo? Evidentemente, eu gosto muito dele. -Resumindo: o Charley não pensa como as ou pessoas. Imagina que a melhor maneira de curar o Tom ajudá-lo. Então, depois do pequeno almoço pegaram ntieü saco-cama 
e comida em abundância. O Tom queria le um sabre japonês para se defender, mas ele arrastava p chão. Contentou-se, por isso, com uma baioneta. O CharW" meteu-o no  carro e conduziu-o para fora da cidade para lhe dar um ponto de partida. Deixou-o no prado dos Taylor você sabe, a velha propriedade dos Taylor. Isto passou cerca  das nove horas desta manhã. O Charley ficou a vigiár"d rapaz por algum tempo. A primeira coisa que ele fez f sentar-se, engolir seis sanduíches e dois ovos cozidos.  De pos-se a caminho através do prado com o embrulho baioneta, e o Charley voltou para casa. Aquilo sempre acontecera. Eu sabia, sabia. E quase um alívio. -Cerca dos onze horas o garoto chegou soluçando k, estrada e pediu que o levassem a casa. -Julgo adivinhar, Stoney... trata-se de Danny? -Receio que sim. Em baixo, na cave da velha casa Uma caixa de wisky, só duas garrafas vazias e um de soporífero. Lastimo ter de pedir-lhe isto, Ethan. O casa passou-se  há muito tempo e... aconteceu qualquer coisa à cara dele. Talvez ratos... Lembra-se se ele tem um sinal particular ou uma cicatriz qualquer? -Eu não quero vê-lo, chefe. -E quem quereria? Tem cicatrizes? -Cortou-se acima do joelho com arame farpado c - e-levantei a manga-tem um coração tatuado como este. Fizemo-lo juntos quando éramos garotos, com uma lâminá de barbear  e tinta. Ainda se vê, não é verdade? -Bem... isso pode servir. Mais alguma coisa? -Sim... uma grande cicatriz debaixo do braço esquerdo. Falta-lhe um bocado de costela. Teve uma pleuresia antes das novas drogas e precisaram de fazer-lhe um dreno. -Evidentemente, isso pode verificar-se, se o morto tem uma costela cortada. Eu não quero lá voltar. O coroner que se arranje. Se for ele, você terá de prestar juramento  por causa dos sinais que indicou. -Entendido, mas não me obrigue a vê-lo, Stoney. Ele era, como você sabe... era meu amigo. -Está bem, Eth. Diga-me, parece que você vai ser o novo presidente da Câmara. -Primeira novidade, chefe... poderia ficar aqui por dois minutos? -Tenho de ir-me embora. -Só dois minutos. O tempo de atravessar a rua e beber um copo. -Oh, decerto! Eu fico. Vá. Eu preciso de estar em boas relações com o novo presidente da Câmara. Tomei um copo e trouxe uma garrafa comigo. Logo que Stoney partiu escrevi num cartão: Volto às duas horas. Fechei as portas e desci a cortina. Sentado em cima da chapeleira, atrás do balcão, fiquei a olhar a penumbra verde da minha loja. 276
277 Capítulo XX
 
Às três menos dez saí pela porta das traseiras e, depois de voltar a esquina, encontrei-me defronte do banco. Morph, na sua gaiola gradeada, manipulava maços de  notas, pilhas de cheques e talões de depósito. Com os dedos separados, mantinha abertos os pequenos livros do banco, onde escrevia números na sua escrita miudinha  e pontiaguda com um aparo de aço que rangia sobre o papel. Empurrou os livros para mim e lançou-me um olhar cauteloso. -Não lhe falarei naquilo, Ethan. Ele era seu amigo, bem sei. - Obrigado. -Despachando-se depressa, você pode evitar o patrão. Mas eu não fiz nada para isso. Pela simples razão de que Morph, discretamente, o havia chamado. A porta de vidro despolido do gabinete directoria) abriu-se e Mr.  Baker apareceu, sòbriamente vestido de cinzento. -Pode conceder-me um momento, Ethan? Que vantagem havia em adiar uma explicação indispensável? Entrei no antro severo, cuja porta ele fechou tão suavemente que eu não ouvi o estalido da fechadura. A  secretária estava coberta com uma placa de vidro, sob a qual tinham metido listas de números. Duas cadeiras estavam à disposição dos clientes e a sua posição relativamente 279 à poltrona do director fazia lembrar dois vitelos gé mamando na mãe. Eram confortáveis mas baixas e, minha, para ver Mr. Baker, precisava de levantar os o Era uma  posição de suplicante. -Triste acontecimento. -Sim. -Você não tem de que censurar-se. Aquilo aeont de qualquer maneira. - Provàvelmente. -Você agiu conscientemente, certo de que estava fazer bem. -Deixei-o tentar a sorte. -Sem dúvida. O meu ódio subia-me à garganta como um Sentia mais nojo que cólera. -Pondo de parte o drama humano, isto traz uma d f: culdade. Sabe se ele tinha parentes? -Não creio. -Quem tem dinheiro tem sempre parentes. -Ele não tinha um cêntimo. -Tinha o terreno de Wilbur Meadow livre de qualquer,,", hipoteca. -A sério? Ora, uma terra e uma cave... -Você sabe, Ethan, que nos propomos construir aeródromo que servirá toda a região. A terra dele é rosamente plana. Sem ele, teríamos de gastar milhões p aplanar  as colinas vizinhas. Não há herdeiros legais, e preciso tratar com a justiça. Isso vai demorar meses. -Estou a compreender. A sua cólera expandiu-se.
-Dá-se bem conta do que acontece, Ethan? Com na suas boas intenções, arranjou uma bela trapalhada. E digo muitas vezes que de boas intenções está o Inferna cheio.  Uma boa intenção : nada é mais perigoso. -O senhor talvez tenha razão. Tenho de voltar à loja -Ela agora é sua. -Não consigo acostumar-me. Esqueço-me sempre. -Sim, você esquece-se. O dinheiro que você lhe dew era de Mary. Ela não tornará a vê-lo. Você deitou-o janela fora. -O Danny gostava muito de Mary e sabia que o" dinheiro era dela. -lsso é um bom consolo, não há dúvida. -Pensei que ele brincava quando me deu isto... Tirei da minha algibeira as duas folhas de papel que ali tinha metido sabendo que teria necessidade delas. Mr. Baker espalmou-as sobre o vidro da mesa, começou a lê-las, e um músculo da orelha pôs-se a palpitar de tal maneira que a orelha dançava. Depois tornou a ler  em busca de um defeito. Quando aquele patife levantou os olhos, li neles o medo. Tinha diante dele um ser humano de cuja existência ele nunca suspeitara. Precisou de algum tempo para se  dominar, mas tinha topete, e conseguiu-o. -Quanto pede por isto? -Cinquenta e um por cento. -De quê? -Das acções da sociedade ou da companhia. Chame-lhe o que quiser. -lsso é ridículo. -O senhor quer um aeroporto. Não há outro senão o meu. Limpou as lentes dos óculos a um bocado de camurça e depois tornou a pô-los. O seu olhar evitou-me, cercando-me sem me ver. -Sabe bem o que está a fazer, Ethan?-perguntou-me, após um breve silêncio. -Sei. -Não tem remorsos? -Não devo tê-los mais que aquele que lhe deu uma garrafa de whisky e tentou extorquir-lhe uma assinatura. -Ele contou-lhe isso? -Sim. -Um mentiroso, era o que ele era. -Ele disse-me que era mentiroso. Não me escondeu isso. Haverá alguma trapaça nestes papéis? Peguei delicadamente nas duas folhas sujas escritas a lápis e dobrei-as. -Há de facto uma, Ethan. Esses documentos estão datados, testemunhados e são indiscutíveis. Mas talvez ele o odiasse. Talvez a trapaça consista em provocar a desintegração  de um homem. -Mr. Baker, ninguém, na minha família, incendiou um navio. 280 281 -Estamos a conversar, Ethan. Faremos o negócio e ganharemos muito dinheiro. É uma cidade que vai nascer à volta do prado. O lugar de presidente da Câmara é seu.
-lmpossível. Haveria conflito de interesses. Algumas pessoas começam a aprender isso à sua própria custa, Suspirou-um suspiro prudente, como se tivesse medo de acordar qualquer coisa na garganta. Levantei-me e pousei a mão no couro arredondado da poltrona de suplicante. -O senhor sentir-se-á melhor quando se convencer de que eu não sou um imbecil agradável. -Por que razão não me meteu no segredo? -Um cúmplice é sempre perigoso. -lsso quer dizer que você sabe que cometeu um crime? -Está enganado. Só é crime o que faz o nosso vizinho, e nunca o que nós fazemos. Tenho de ir abrir a loja, apesar de ela ser minha. Tinha a mão no puxador da porta quando Mr. Baker perguntou calmamente -Quem atirou o Marullo ao chão? -Se não estou enganado, foi o senhor. Ele deu um pulo, mas eu fechei a porta atrás de mim e voltei para a loja.
282  Capítulo XXI
 
Ninguém sabe animar uma festa como a minha Mary. Como acontece às pedras preciosas, não é o que dá, mas o que recebe, que faz o seu brilho. Os seus olhos cintilam, - sorriso dá expressão à boca, o seu riso torna boa uma piada medíocre. Com Mary, cada pessoa sente-se mais agradável e mais espirituosa, e consegue sê-lo. E a sua  única contribuição, mas chega. A casa dos Hawley respirava alegria quando eu entrei. Bandeiras de plástico de cores vivas decoravam tudo desde -        lustre às molduras do tecto e grinaldas adornavam o corrimão da escada. -É inacreditável-exclamou Mary.-Ellen arranjou-as na estação de serviço da Esso. George Sandow emprestou-lhas. -Por que motivo é isto? -Por tudo. É a glória. Não teria ela ouvido falar de Danny Taylor-ou resolveu esquecê-lo? Claro que eu não o convidei para a festa, mas sabia que ele rondava perto da casa. Precisaria  de ir vê-lo... mais tarde... -Não se pensaria que foi a Ellen quem recebeu uma menção honrosa?-disse Mary.Está mais orgulhosa do que se fosse ela que atingisse a celebridade. Olha para -        bolo que fez.
 
283 Era um grande bolo com a palavra HERÓI escrita cima a vermelho, amarelo, verde e azul. -Temos frango assado guarnecido, molho branco e puré de batata. -Muito bem, querida, muito bem. E onde está a jovem celebridade ? -Também ele está muito mudado. Está lá em cima,, a tomar banho para ser mais digno de participar na festa.. Bati ao passar pela porta de Allen. Respondeu-me com um grunhido e eu entrei no quarto. De pé em frente do espelho e com o auxilio de um outro de algibeira, admirava o perfil. Por meio de uma substância escura, tinha desenhado um bigodinho e enegrecido  as sobrancelhas, alongando-as e subindo-as satânicamente. Dirigia ao espelho um olhar enfastiado e, superior. Pusera a minha bela gravata azul com pintas. A minha  entrada, não deu mostras de embaraço. -Um pequeno ensaio-disse ele, pousando o espelho de algibeira. -Estou orgulhoso de ti, meu filho. -Ora... isto não é mais que o princípio. -Francamente, não pensava que eras tão bom escritor como o presidente. Estou tão surpreendido como encara. tado. Quando irás ler o teu ensaio ao mundo ansioso? -Domingo, às quatro e meia, e será transmitido em cadeia pela televisão nacional. Vou a Nova Iorque em avião especial. -Estás bem preparado? -Oh ! Tudo há-de correr bem. Não é mais que o começo -Já é mais que o começo estar entre os cinco primeiros do país.
-Em cadeia nacional-disse ele, limpando o bigod com um bocado de algodão. Nesse momento vi, com estupefacção, que tinha diante de si um estojo completo de caracterização-sombreado  para os olhos, ocre e creme. -Tudo nos chega ao mesmo tempo, Allen. Sabes que comprei a loja? -Sim, ouvi falar nisso. -Quando toda esta agitação, toda esta balbúrdia sossegar, precisarei de ti. -Como? -Já te disse, preciso que me ajudes na loja. -lmpossível -murmurou, ao mesmo tempo que ins peccionava os dentes no espelho. -Porquê impossível? -Tenho uns filmes pequenos onde apareço e depois entro no "Objectivo da Minha Vida" e no "Hóspede do Mistério". Depois, muito em breve, há um novo concurso que se chama: "Para os Espertinhos". Poderei fazer comen tários na rádio. Estarei muito ocupado, vais ver. Vaporizou os cabelos com brilhantina. -Em resumo, a tua carreira está traçada. -Está no principio, como te disse. -Esta noite não vou lançar-te cães de guerra às canelas. Falaremos mais tarde. -Há um tipo da rádio que procurou falar contigo pelo telefone. Talvez seja a propósito de um contrato para mim, pois eu sou menor. -Esqueces a escola, meu rapaz? -Para que é que isso serve, se me arranjarem um con trato ? Saí vivamente para acalmar a cólera corra a água gelada de um duche. Saí limpo, leve e a cheirar ao perfume de Mary. A minha calma voltara. Esperando o jantar, Ellen veio sentar-se sobre o braço da minha poltrona, depois instalou-se nos meus joelhos e abraçou-me o pescoço com os braços. -Amo-te tanto-disse ela.-Não é espantoso? O Allen é formidável. É um predestinado. Eis a rapariga que eu julgara egoísta, sem nobreza de coração. Antes do bolo brindei pelo jovem herói e desejei-lhe boa sorte. "Eis", disse a terminar, oo Inverno do nosso descontentamento, tornado Verão glorioso por este filho de York." (1) -lsso é de Shakespeare-notou Ellen. -Sim, minha doçura, mas em que peça e qual a personagem que assim fala? -Não sei-disse Allen.-Boa pergunta para desempatar dois finalistas num concurso. Ajudem a levar a louça para a cozinha. Mary conservava toda a sua alegria. (1) Now is the winter of our discontent Made glorious summer by this son of 2ôrk. 284 285
-Não te inquietes-disse-me ela.-Ele há-de encontrar" o seu objectivo. Sê paciente com ele -Entendido, querida consciência. -Alguém telefonou de Nova Iorque. A respeito de Allen, sem dúvida. Não é formidável que lhe enviem um avião? Não posso habituar-me à ideia de que a mercearia seja  tua agora. Na cidade consta que vais ser eleito presidente da Câmara. -Não é verdade. -Ouvi-o em toda a parte. -Tenho um contrato que torna isso impossível. Tenho de sair, minha querida. Uma reunião. -Vou ter saudades do tempo em que eras um simples empregado. Passavas as noites em casa. Que devo respon der ao homem de Nova Iorque, se ele voltar a telefonar? -Que espere. -Parecia muito apressado. Voltarás tarde? -Não posso dizer. Depende. -Pobre Danny Taylor. Não é lamentável? Leva um impermeável. -Sim. Com efeito, é muito lamentável. No vestíbulo, pus o chapéu e qualquer coisa incitou-me a tirar do pé de elefante a bengala de dente de narval do velho capitão. Ellen surgiu ao meu lado. -Posso ir contigo? -Esta noite, não. -Bem sabes que gosto muito de ti. Olhei-a com toda a atenção. -Eu também te amo. Hei-de trazer-te jóias. T alguma preferência? Ela riu. -Levas uma bengala? -Para defesa própria. Esgrimi a pesada bengala como se fosse uma espada. -Estarás fora muito tempo? Não. -Então, porque levas a bengala? -Pura ostentação, gabarolice, ameaça, medo, nec dade ancestral de andar com uma arma. -Espero por ti. Posso pegar na coisa cor-de-rosa -Oh, não, deita-te, flor dos campos. A coisa corda -rosa? Queres dizer, o talismã? Claro que podes. -Que é um talismã? -Vê no dicionário. Como escreves isso? -T-a-1-e-s-m-ã. -Não. T-a-1-i-s-m-ã. -Porque não queres dizer-mo? -É melhor procurares no dicionário. Ela rodeou-me com os braços, apertou-me e, brusca mente, largou-me.
 
A noite fechou-se sobre mim, espessa e húmida. Tinha a consistência da pasta para alimentar frangos. Os candeeiros de iluminação pública escondiam-se atrás da folhagem 
dos olmos da avenida inundada pela bruma, salpicando-a de halos difusos. Um homem ocupado vê tão pouco do mundo que o cerca! Não admira que a mulher o informe e determine as suas atitudes. Ela sabe o que se passa e o que se diz, mas a  sua feminilidade deforma tudo. À noite, depois de fechar o escritório ou a loja, é um mundo novo que se oferece ao homem. Sentia-me bem com a bengala. A minha mão apertava -        castão de prata polido pela palma do velho capitão. Outrora, quando eu vivia num mundo iluminado pela luz do dia, ele parecia-me demasiado vasto e procurava a relva. Com a face na terra e o nariz na erva, refugiava-me  num mundo à minha medida, o das formigas, pulgões e escaravelhos. E na feroz selva verde eu achava a distracção que significa paz. Naquela noite desejava tornar a ver o Porto Velho e -        lugar onde a eternidade palpável dos ciclos de vidas, de tempo e de marés poderia adoçar o meu infortúnio. Segui ràpidamente por High Street e apenas lancei um olhar à minha loja e às suas cortinas verdes quando passei pelo Foremaster. Diante do posto dos bombeiros, -        gordo Willie metia-se no carro da Polícia, congestionado -        suando como um porco. -Então, passeia-se, Eth? -Sim. -Pobre Danny Taylor. Foi estúpidamente triste, não? Um belo rapaz. -Terrível-disse eu, estugando o passo. Alguns carros passaram agitando o ar, mas não havia 286 287 #288 nem um transeunte. Ninguém se arriscaria à transpiração provocada pela marcha. Dei a volta ao monumento e caminhei para o Porto Velho, onde brilhavam as luzes dos  iates e as dos barcos que pescavam ao largo. Depois vi uma silhueta sair de Porlock Street e caminhar na minha direcção. Pela maneira de andar e pela figura, reconheci  Margie Young-Hunt. Parou diante de mim, tapando-me a passagem. Era impossível evitá-la. Algumas mulheres podem dar a impressão de frescura mesmo numa noite tórrida. Talvez se tratasse  simplesmente da aragem produzida pela deslocação do seu vestido vaporoso. -Aposto que você me procurava-disse ela, ajeitando uma mecha de cabelos. -Que é que a faz dizer isso? Pegou-me no braço e com uma pressão dos dedos fez-me retomar a marcha. -Nada. Foi uma ideia. Estava no Foremaster, vi-o passar e pensei que você me queria ver. Atalhei rápidamente o caminho para lhe cortar o passo. -Como adivinhou que me dirigia para este lado? -Não saberia dizer-lhe. Sabia, e é quanto basta. Escute as cigarras. Vai fazer mais calor, e nada de vento. Não se inquiete, Ethan, dentro em pouco estaremos fora  das luzes. Convido-o a vir a minha casa. Você terá um copo alto e gelado, servido por uma mulher alta e quente. Permiti aos seus dedos que me conduzissem para a sombra de uma grande moita de flores. Apenas -algunsramos amarelos junto ao solo quebravam a escuridão.
-Aqui está a minha casa. Uma garagem e um terraço por cima. -Que é que a fez pensar que eu a procurava? -A mim ou a alguém da minha espécie. Já viu uma corrida de touros, Ethan? -Sim, uma vez em Arles, pouco antes da guerra. -O meu segundo marido levava-me a isso muitas vezes. Ele gostava muito. Na minha opinião, as corridas são feitas para os homens que não são muito valentes mas desejariam  sê-lo. Se você já viu uma, deve compreender-me. Lembra-se do jogo da capa, quando o touro procura matar uma pessoa que não está ali? -Sim. -Lembre-se. Ele não compreende e fica inquieto. Por vezes pára e com os olhos procura uma resposta para o seu problema. Nesse momento e preciso dar-lhe um cavalo,  senão o seu coração rebenta. Ele tem de meter os chifres em qualquer coisa sólida, de contrário a sua coragem morre. Pois bem, eu sou o cavalo. E os homens que eu  encontro são os irresolutos, os desorientados. Mergulhar -        seu chifre em mim é para eles uma vitória, um triunfo zinho. Depois disso, eles podem voltar à muleta e à espada. -Margie ! -Um momento, que eu procuro a chave. Você sente -        perfume da madressilva? -Mas eu acabo justamente de triunfar. -Na verdade? Arrebatou uma capa e pisou-a? -Como sabe? -Sei simplesmente que um homem me procura ou a qualquer outra Margie. Cuidado com os degraus, que são estreitos. Aqui, o comutador... está a ver? Um lugar de prazer  com luzes suaves, perfume leve e lá em baixo um mar sem sol ! -Você é uma verdadeira feiticeira. J-Sabe bem o que eu sou. Uma pobre, uma lastimável feiticeira de uma pequena cidade. Sente-se junto da janela. á ligo a ventoinha. Vou pôr aquilo a que se chama  algo de confortável. Depois trago-lhe um desperta-pensamentos bem fresco. -Onde ouviu essa expressão? -Você bem sabe onde a ouvir. -Conheceu-o bem? -Parte dele. A parte de um homem que a mulher pode conhecer. Por vezes, é a melhor parte, mas nem sempre. Era o caso de Danny. Ele tinha confiança em mim. O quarto era um memorando de outros quartos, bocados de outras vidas como notas ao fundo de uma página. O ventilador na janela ronronava, suspirava. Ela voltou, envolvida num longo penteador azul, acompanhada de uma onda de perfume. Quando eu o aspirei, ela disse -Não se inquiete. É uma água-de-colónia que a Mary nunca cheirou em mim. O seu copo : gin tónico. Esfreguei -        copo com tónico. O resto é gin puro. Se sacudir o gelo, pode pensar que está fresco.
 
 
I9-O I. D.        289
#290 Esvaziei o copo de um trago como se fosse cerveja e o calor seco do álcool percorreume o corpo até aos braços. Fiquei com a pele toda arrepiada. -Você tem necessidade disso-disse ela. -Creio que sim. -Acabo de fazer de si um touro : terá coragem suficiente para acreditar que venceu. É disso que precisa o animal na arena. Olhei para as minhas mãos, sulcadas por esfoladelas e pequenos cortes provocados pela abertura de latas de conservas, e para as unhas mal tratadas. Ela pegou na bengala de marfim que eu pusera sobre a cama. -Espero que não terá necessidade disto para me provar a sua paixão. -Você é minha inimiga, agora? -Eu, a companheira de jogo de New Baytown, sua inimiga? Fiquei silencioso tanto tempo que poderia sentir o seu nervosismo crescente. -Não se apresse-disse ela.-Tem a vida toda para responder. Vou encher o seu copo. Peguei-lhes nas mãos e os meus lábios estavam tão secos que precisei de molhá-los com a ponta da língua antes de falar. A minha voz era rouca. -Que é que deseja? -Um pouco de amor. -O amor de um homem que ama a sua mulher? -A Mary? Você nem mesmo a conhece. -Ela é terna, suave e indefesa. -lndefesa? Ela é dura de roer. Há-de enterrá-lo, meu velho. Ficará firme muito tempo depois de você ter que brado a sua màquinazinha. E como a gaivota que se eleva no vento sem bater as asas. -lsso não é verdade. -Que venha um revés, e ela ficará intacta onde você deixará a pele. -Que me quer? -Não deseja ser gentil com a sua pequena Margie? Ou ao menos sacudir o odioso para cima dela? Pousei na mesinha o copo meio cheio e, rápida como uma cobra, ela pôs-lhe por debaixo um cinzeiro. -Fale-me de si, Margie. -Não brinque. O que você quer saber é o que eu penso do seu êxito. -É impossível saber o que quer antes de saber quem é. -já vejo que pretende uma espécie de visita de um dólar, com máquina fotográfica e tudo. Não se trata agora da visita a um castelo ou a um museu, mas é a mesma coisa.  É a visita a Margie Young-Hunt. Pois seja. Fui uma boa pequena, bonita, má bailarina. Encontrei um homem mais velho, e casei com ele. Ele não me amava. Estava era  louco por mim. O que ele queria era uma garotinha numa bandeja de prata. Eu não gostava muito da dança e tão-pouco gostava de trabalhar. Quando me divorciei, ele  ficou tão abalado que nem mesmo pensou em inserir uma cláusula impeditiva de novo casamento no acordo em que me era estipulada uma pensão. Depois casei com um rapaz  e levámos uma tal vida que ele morreu. Há vinte anos que em todos os primeiros dias de cada mês chega um cheque. Há vinte anos que eu não mexo uma palha e apenas 
recebo alguns presentes dos meus admiradores. Não parece que há vinte anos, mas há. Eu já não sou uma boa pequena. Foi à cozinha e trouxe três cubos de gelo na cova da mão, deitou-os no copo e verteu em cima um pouco de gin. O ventilador continuava o seu murmúrio, trazendo o  cheiro do lodo posto a descoberto pela maré. -Você vai arranjar muito dinheiro, Ethan-disse ela suavemente. -Está ao corrente? -Não é preciso ser muito esperto. -Continue. Ela fez um gesto largo com a mão e o copo voou. Os cubos de gelo foram projectados contra a parede e depois rolaram pelo chão. -O meu amiguinho teve um ataque a semana passada. Quando esticar, param os cheques. Estou a ficar velha e preguiçosa. Tenho medo. Pensei em si como fundo de reserva.  Mas não tenho confiança em si. Você poderia romper o pacto e tornar-se honesto. Por isso, tenho medo. Levantei-me com as pernas pesadas-não moles, mas simplesmente pesadas e como se não me obedecessem. -É tudo?
-O Marullo também era meu amigo. -Estou a ver. -Não quer dormir comigo? Dizem que não sou raL -Eu não a detesto. } -É por isso que eu não tenho confiança. -Vamos experimentar outra coisa. Odeio o Baker., Não poderá tosquiá-lo? -Que linguagem. O álcool não agiu sobre si? -Só age quando estou alegre. -O Baker sabe o que você fez ao Danny? -Sabe. -E como reagiu? -Muito bem. Mas eu não gostava de dar-lhe á opo tunidade de me apanhar de costas. -Como o Alfio lhe fez. -Que quer dizer? -Apenas o que penso. Mas apostaria que não estou, enganada. Mas não se inquiete, eu não lhe direi nada.,, O Marullo é meu amigo. -Creio que a compreendo. Você busca um pretexto, para odiar e ferir, mas o seu sabre é de madeira, Margie. -Pensa que não sei isso, Eth? Mas, apesar de tudo, fiz boa pontaria. -Explique-se. -Porque não? Dez gerações de Hawley andam a, persegui-lo e quando eles o deixarem só lhe restarão o8," olhos para chorar e sal para esfregar as feridas. -Admitindo isso, que lucro tirará daí? -Você terá necessidade de um amigo para se confiar. E eu sou a única pessoa nessas condições. Um segredo é uma coisa terrível para se carregar quando se está só,  Ethan. E isso não lhe custará muito caro. Apenas uma pequena percentagem. -Vou-me embora. -Acabe o seu copo.
-Não tenho vontade. -Não parta a cabeça ao descer, Ethan. A meio da escada, ela alcançou-me. -Você deixa a sua bengala? -Meu Deus, não! -Aqui a tem. Pensei que era uma espécie de... sacri fício. Chovia. As madressilvas rescendiam. As minhas pernas estavam moles, tão moles que a bengala de narval era uma boa ajuda. O gordo Willie tinha no assento ao lado do seu um rolo de guardanapos de papel para enxugar a cara, sempre molhada. -Aposto que sei quem é ela. -É inútil, porque ganha. -Eth, há um tipo que anda à sua procura. Um tipo que veio num grande Chrysler com motorista. -Que é que ele quer? -Não sei. Perguntou-me se eu o tinha visto. Não lhe disse nada. -Você vai receber um presente pelo Natal, Willie. -Diga-me, Eth, que é que tem nas pernas? -Joguei uma partida de poker e elas adorme ceram. -São coisas que acontecem. Se eu vir o tipo, devo dizer-lhe que você foi para casa? -Diga-lhe que vá ver-me amanhã à loja. -Um Chrysler Imperial, comprido como um vagão de mercadorias. Que grande filho de uma cadela. O amigo Joey esperava no passeio diante do Foremas ter. Tinha um ar flácido e molhado: -Julguei que você tinha ido a Nova Iorque buscar uma garrafa fresca-disse eu. -Faz muito calor. Não tive coragem. Entre para tomarmos um copo, Ethan. Sinto-me em baixo. -O calor não convida a beber, Morph. -Nem mesmo uma cerveja? -A cerveja põe-me em ebulição. -Que raio de sorte a minha! Não tenho para onde ir nem com quem falar. -Você deveria casar-se. -lsso não mudaria nada. -Talvez você tenha razão. -Se tenho razão ! Não há ninguém mais solitário que um homem casado. -Como sabe? -Para saber isso, basta-me olhar em redor. Vou buscar algumas cervejas e ver se a Margie Young-Hunt quer brincar. Ela não tem horas. -Julgo que não está na cidade. Disse à minha mulher... 293 294 ou pelo menos parece-me que ela disse que ia para o Maine até o calor passar. -Que o Diabo a leve. Pois bem, a ausência dela vai dar lucro ao homem do bar. Vou contar-lhe os tristes episódios de uma vida desbaratada. Aliás, ele não a escutará. 
Até a vista, Ethan. Vá com Deus, como se diz no México. A bengala de narval batendo no pavimento pontuava o meu espanto. Por que motivo disse eu aquilo ao Joey? Ela não teria falado. Isso estragaria o seu fogo. Precisava  de conservar a cavilha na sua granada. Não, não percebia porque o dissera. Ao virar para Elm Street, vi o ChUsler diante da velha casa dos Hawley. Parecia mais um catafalco que um vagão de mercadorias. Negro, mas sujo de lama. Tinha as  luzes de estacionamento acesas. Devia ser muito tarde. Já não se via nenhuma luz nas casas adormecidas de Elm Street. Os meus pés deviam ter encontrado uma poça, pois ouvia-os chapinhar. Através do pára-brisas vi um homem com boné de motorista. Parei junto do enorme carro e bati no vidro. Este baixou com um ligeiro ruído e recebi em plena face um  sopro de ar condicionado. -Eu sou Ethan Hawley. Procurava-me? A porta abriu-se e um homem alto e bem vestido saiu. -Dunscombe, Brook e Schwin, Televisão. Preciso de falar consigo.-E, lançando um olhar ao motorista, acrescentou:-Aqui não. Podemos entrar? -Suponho que sim. Devem estar todos a dormir. Se falar baixo... Seguiu-me caminhando sobre as lajes colocadas entre a relva. A lanterna iluminava o vestíbulo. Ao passar, coloquei a bengala de narval no pe de elefante. Acendi o candeeiro por cima da minha grande poltrona. A casa estava calma, mas parecia-me que se tratava de uma quietude nervosa. Pela escada, olhei para as portas dos quartos. -O assunto deve ser de importância para que o senhor se incomodasse a esta hora. -Efectivamente, assim é. Agora já podia vê-lo. Os dentes eram os seus embaixadores, mal ajudados pelos olhos fatigados mas prudentes.
 
-Desejamos que isto fique entre nós. Tem havido bastantes escândalos nos concursos de televisão. Temos de verificar tudo. Os tempos são perigosos, pois até há o perigo de inquéritos por parte de comissões do Congresso. -Gostaria que me dissesse o que pretende. -Leu o ensaio do seu filho intitulado Eu Amo a América? -Não. Ele queria fazer-me uma surpresa. -E conseguiu. Pergunto a mim mesmo como foi possível que não tivéssemos notado nada, mas foi assim. Estendeu-me um envelope azul dobrado. -Leia o que está sublinhado. Deixei-me cair na poltrona e abri o envelope. O texto estava impresso ou escrito por uma daquelas novas máquinas cujos caracteres fazem lembrar tipo de imprensa.  Grandes traços de lápis irritado enchiam as margens de cada lado.
EU AMO A AMÉRICA POR
ETHAN ALLEN HAWLEY JUNIOR
Que é um indivíduo? Um átomo, quase invisível sem microscópio... um simples ponto na superfície do universo. Um segundo apenas no tempo, se o compararmos ao incomensurável,  à eternidade que não tem principio nem fim, uma gota de água no oceano, que é evaporada e levada pelo vento, um grão de areia, que bem depressa volta à poeira donde  veio. Um ser tão fraco, tão insignificante, tão efémero, tão evanescente, pode opor-se à marcha de uma nação destinada a perpetuar-se pelos tempos do porvir, pode  opor-se à longa linha da posteridade, que, saída das nossas entranhas, durará o que o mundo durar? Tenhamos os olhos postos no nosso pais, elevemo-nos à dignidade de patriotas puros e desinteressados e salvemo-lo de todos os perigos que o ameaçam. Que somos nós...  Que vale um homem que não está, de alma e coração, preparado para se sacrificar pela sua pátria?
 
Virei as páginas e em todas elas vi os mesmos traços marginais. -Reconhece isso? 295 296 -Não. Parece-me familiar, entretanto... julgo que é uma obra do século passado. -É isso. É de Henry Clay e foi publicado em i85o. -E o resto? Também é de Clay ? -Não... Um pouco de tudo. De Daniel Webster, de Jefferson e, Deus me perdoe, até parte do discurso de Lincoln ao candidatar-se pela segunda vez à Presidência. Não  sei como isto pôde escapar. Sem dúvida porque havia milhares. Felizmente ainda vamos a tempo... Depois dos escândalos dos concursos, de Van Doren e do resto. -lsto não se parece nada com a prosa de um rapaz. -Não sei como isso aconteceu. E teria possivelmente passado despercebido se não tivéssemos recebido um bilhete-postal. -Um bilhete-postal? -llustrado. Com a gravura do Empire State Building.. -Quem o enviou? -Um anónimo. -Onde o meteram no correio? -Em Nova Iorque. -Mostre-mo. -Está guardado para o caso de haver aborrecimentos. O senhor certamente não os quer arranjar. Não é verdade? -É isso que pretende? -Gostaria que esquecesse tudo isto. Não se incomode mais com o assunto e esqueça... se faz favor. -Não é fácil esquecer. -Meu Deus, o que eu quero dizer é que guarde isto para si... e que não nos cause dificuldades. O ano tem sido péssimo. No momento das eleições as pessoas desenterram  seja o que for. Fechei o rico envelope e entreguei-lho. -Não lhe causarei nenhum aborrecimento. Os dentes dele brilharam como outras tantas pérolas. -Já o sabia. Foi o que lhes disse. Já tinha estudado as suas referências... boa família. -E agora, vai-se embora?
-Gostaria que soubesse que eu compreendo o que sente. -Obrigado. Compreendo também a sua impressão. O que pode deixar de ter dito não existe. -Não quero afastar-me deixando-o zangado. Sou o encarregado das relações públicas. Podemos arranjar qual quer coisa. Uma boa bolsa... qualquer coisa agradável. -lsso seria como se a desonestidade estivesse em greve pedindo um aumento de salário. Não, vá-se embora... se faz favor! -Nós arranjaremos alguma coisa. -Estou certo disso. Acompanhei-o até à porta, voltei a sentar-me, apaguei a luz e pus o ouvido à escuta dos ruídos da minha casa. ELA palpitava como um coração. Talvez fosse, afinal,  o meu. Precisava de ir à vitrina buscar o talismã. De repente ouvi um baque surdo, um gemido de potro amedrontado, um barulho de passos rápidos e depois o silêncio. Os meus sapatos rangeram ao subir os degraus da escada. Entrei no quarto de Ellen e acendi a luz. Envolvida num cobertor, ela tinha a cabeça debaixo do travesseiro  e agarrou-se a ele quando pretendi afastá-lo. Um fio de sangue corria-lhe do canto da boca. -Escorreguei na casa de banho. -Compreendo. Estás gravemente ferida? -Penso que não. -Por outras palavras, não tenho nada com isso. -Não queria que ele fosse para a prisão. Allen estava sentado à beira da cama, nu, com excepção das cuecas. Os seus olhos lembravam os de um rato que num canto está prestes a lutar contra a vassoura. -Espia indecente ! -Ouviste tudo? -Ouvi o que fez essa maldita denunciante. -Mas ouviste também o que fizeste? O rato encurralado passou ao ataque. -E depois? Que tem isso? Toda a gente faz o mesmo. Foi assim que os tipos importantes subiram. -Acreditas nisso? -Não lês os jornais? Toda a gente se desenrasca... e vai como pode direita ao fim. Lê os jornais. Aposto que também já fizeste o mesmo, como toda a gente. Não tenho  a intenção de aceitar as migalhas seja de quem for. Os outros não me interessam, excepto aquela denunciante indecente. Mary acordou lentamente, mas acordou. Talvez não tivesse dormido. Foi para o quarto de Ellen e sentou-se aos 297 #pés da cama. A luz da rua iluminava-a completamente, fazendo passear as sombras das folhas sobre a sua cara. Era uma rocha. Um grande rochedo de granito afrontando  as vagas. Na verdade, era dura de roer, irredutível e segura. -Vens deitar-te, Ethan? Portanto, também ela havia escutado. -Ainda não, minha querida. -Sais de novo? -Sim... para andar. -Precisas de dormir. Continua a chover. Precisas mesmo de sair?
-Sim. Tenho de ir a um certo sítio. -Leva o impermeável. Há pouco esqueceste-o. -Sim, minha querida. Não a beijei. Não o podia fazer com a pequena figura retorcida anichada a seu lado. Mas toquei-lhe na face e nos ombros. Era sólida. Fui à casa de banho para levar dali um pacote de lâminas de barbear. Estava já no corredor, procurando o impermeável, uma vez que Mary assim o desejava, quando,  gemendo e fungando, Ellen se lançou a mim. Anichou o nariz, que ainda sangrava, no meu peito, e imobilizou-me os cotovelos, abraçando-me. Todo o seu pequenino corpo  tremia. Agarrando-a pela franja, levantei-lhe a cabeça. -Leva-me contigo! -Tolinha, não posso. Mas, se quiseres vir comigo à cozinha, limpo-te. -Leva-me contigo. Tu não voltas! -Que dizes tu? Com certeza que volto. Sempre o faço. Tu deves ir para a cama e descansar. Depois sentes-te melhor. -Não me levas? -Não te deixariam entrar onde eu vou. Queres ficar de fora, em camisa de noite? -Não podes fazer isso. Deitou-se de novo a mim, acariciando-me, apertando os meus braços, metendo os pequeninos punhos nas minhas algibeiras. Tive receio de que ela encontrasse as lâminas.  Ellen sempre fora uma rapariguinha terna, carinhosa e surpreendente. Bruscamente, soltou-me, recuou, ergueu a cabeça e secou as lágrimas. Beijei-a na face e senti o sangue seco nos meus lábios. Depois dirigi-me para a porta. -Não queres a bengala? -Não, Ellen. Esta noite, não. Deita-te, minha querida. Vai para a cama. Saí quase a correr. Fugia dela e de Mary, que descia as escadas a passos rápidos. 299
Capítulo XXII
A maré subia. Chafurdei na água morna e trepei até ao meu Lugar. Uma vaga entrou e saiu, atravessando as minhas calças. A grossa carteira, que estava na algibeira  de trás, inchou contra a minha anca e adelgaçou-se sob o meu peso. O mar de Verão fora invadido por pequenas alforrecas do tamanho de uma groselha, que vibravam  com todos os cílios e agitavam os filamentos urticantes. Sentia-lhes as picadas dolorosas nas pernas e no ventre. A água arfava brandamente. A chuva não passava de um fino nevoeiro que absorvia a luz das estrelas e dos candeeiros de iluminação pública, para a redistribuir equitativamente  numa claridade esbatida e difusa. Eu avistava o terceiro rochedo, mas do meu Lugar ele não ficava no alinhamento que determinava a jazida da quilha do Belle Adair.  Uma onda mais forte levantou-me as pernas, libertou-as de certo modo do meu corpo e separou uma da outra. Um vento impaciente, vindo não sabia donde, empurrou as  nuvens como se fossem um rebanho de carneiros. Depois vi uma estrela que apareceu tarde, tarde de mais, acimada superfície das águas. Um navio chegou, equipado com velame, a julgar pelo reduzido ofegar do seu motor. Vi a luz do mastro por cima do denteado irregular do quebra-mar, mas as luzes verde e vermelha ficaram fora do alcance da minha vista. A minha pele ardia com as picadas das alforrecas. Ouvi uma âncora mergulhar e a luz do mastro apagou-se. O facho de Marullo continuava a arder, tal como o do velho capitão e o da tia Deborah. Não é verdade que haja uma luz comum, uma chama universal. Cada pessoa tem a sua. Um buliçoso cardume de peixinhos ávidos entrou e prosseguiu o seu caminho ao longo da costa. A minha luz extinguiu-se. Não há nada mais negro que um morrão. "Quero voltar para casa, disse a mim mesmo, "não propriamente para a parte da casa que até há pouco habitava, mas sim para aquela parte donde vem a luz." Quando uma luz se apaga, a escuridão é maior do que se nunca tivesse brilhado a claridade. O mundo está cheio de destroços enegrecidos. O melhor caminho-os Marulli  da velha Roma conheciam-no-consiste em saber que há um tempo em que se impoe uma decente e honrosa retirada, sem drama nem castigo para si mesmo ou para os seussimplesmente  um adeus. Um mar tépido e uma lâmina de barbear. A vaga entrou sussurrante no Lugar, ergueu-me as pernas e as ancas, empurrou-as para o lado e, ao sair, levou-me o impermeável. Rolando sobre uma anca, quis agarrar as lâminas, e senti o globo. Depois, súbitamente, lembrei-me das carícias do portador do facho. Por um momento o globo resistiu  aos meus esforços para o tirar da algibeira molhada. Na cova da mão, captando tudo quanto podia restar de luz, surgiu-me todo vermelho-vermelho de sangue. Uma onda atirou-me para o fundo do Lugar. A maré apressava-se. Precisava de lutar para sair, e era necessário que saísse. Arrastando-me, agarrando-me às saliências  dos rochedos, mergulhei na ressaca e as vagas impacientes atiraram-me para cima do quebra-mar. Tinha de voltar para entregar o talismã ao seu novo proprietário. Senão, uma outra luz poderia apagar-se.

 

 

                                                                  John Steinbeck

 

 

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