Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O JARDIM DAS ACÁCIAS
Sabrina foi levada até a ilha num pequeno barco que parecia a ponto de ser arrastado pelo vento a qualquer instante. O menino pôs a mala no ancoradouro, olhou-a de alto a baixo e sorriu.
- O chefão vai chegar daqui a pouco, moça. - E voltou para o barco, deixando-a completamente sozinha, a não ser pelos insetos que zumbiam entre as folhas das bananeiras.
Tinha sido informada por carta que alguém viria recebê-la, e ficou olhando em volta, tentando não parecer exageradamente apreensiva com aquele novo emprego, tão distante de sua terra natal. Tinha vindo de muito longe e não queria nem pensar na possibilidade de um desapontamento. Respirou fundo, sentindo o estranho aroma que tomava conta do ar e ficou admirando um pássaro de plumagem colorida, pousado numa árvore que parecia coberta de pompons amarelos. A encantadora beleza tropical tomava conta de seus sentidos e Sabrina rezou para tudo dar certo, para que o emprego lhe desse alguma compensação... e, talvez, até um pouco de felicidade.
Apesar do sol, havia sinal de chuva no ar, e ela começou a imaginar se não havia entendido mal, e esperavam que fosse sozinha até a residência da família Saint-Same. Não havia táxis naquele lugar remoto, mas podia tentar encontrar algum tipo de condução. Atravessou a estrada; pensou em ficar sob as árvores do outro lado para o caso de começar chover a qualquer momento. De repente, um carro apareceu na curva e veio em sua direção, como um raio. Teria sido atropelada, se o motorista não pisasse nos freios em cima da hora, derrapando.
- Você podia ter me atropelado! - gritou, furiosa.
- Não devia ficar feito uma pateta no meio da estrada - respondeu o homem no mesmo tom. - Vocês, pedestres, são impossíveis: andam com a cabeça no mundo da lua e depois a culpa é do motorista.
Os olhos castanhos de Sabrina costumavam se incendiar quando ficava furiosa, e já pareciam duas chamas. O motorista, bonito e insolente, era do tipo acostumado a mandar e ser obedecido.
- Alguns de vocês parecem ficar malucos quando estão atrás do volante e transformam qualquer estrada num perigo. Isso é um carro, não uma arma!
Ele continuou sentado, com um cotovelo apoiado no banco do carro esporte, e ergueu as sobrancelhas claras. Deu uma olhada para o porto, percorreu o ancoradouro com os olhos cinzentos, e depois virou-se para Sabrina, uma mocinha magrinha, segurando a mala, com um aspecto não muito diferente do de um gatinho faminto atirado a um mundo onde havia mais pontapés do que carinhos.
- Estou aqui para apanhar alguém. Por acaso, é a nova enfermeira?
- Meu nome é Sabrina Muir. Sou enfermeira e estou indo para uma casa chamada Snapgates.
- Muito bem, Sabrina - disse ele, estreitando os olhos, que até pareciam duas fendas prateadas, enquanto a examinavam. - Tem certeza de que quer que eu a leve até lá?
-- É claro. - Não estava gostando daquele olhar inquisidor. - Fui contratada para cuidar do neto da sra. Saint-Same. Quer ver a carta? Está aqui no meu bolso.
- Não é necessário. Afinal, parece que é a única pessoa por aqui com mala na mão e ar dedicado. O que estava querendo dizer é que Douglas, o Negro, já teve seis enfermeiras, que pareciam muito mais valentes do que você, e nenhuma delas durou mais do que algumas semanas. Se quiser um conselho...
- Nunca me passaria pela cabeça aceitar um conselho que não fosse da senhora que me contratou. Não sei quem é o senhor e nunca ouvi falar nesse Douglas, o Negro.
- Não mesmo? - O homem desceu do carro com um movimento elegante e se aproximou, com passos largos- Era muito alto, e Sabrina teve que inclinar a cabeça para olhá-lo frente a frente. - Douglas é o paciente que você foi contratada para cuidar... e pode ter certeza de que não vai ser fácil.
Sabrina ficou olhando para ele, e um pensamento passou por sua cabeça: Se ele é da família Saint-Same, é muito bom eu não ser bonita; ele parece um diabo com as mulheres: atraente demais e muito consciente desse fato.
- Esse apelido que usa para meu futuro paciente não parece muito adequado para uma criança. Será que maus modos são um traço de família? Você é um Saint-Same, não é?
Um sorriso maroto apareceu nos lábios dele e seus olhos começaram a brilhar.
- Sim, sou Ret Saint-Same. Mas, meu Deus, não está pensando que seu paciente é uma criança, está?
- Geralmente, cuido de crianças, - Sabrina franziu a testa. - Quando recebi a carta dizendo que minhas qualificações tinham sido aprovadas, não vi motivo para pensar que Douglas Saint-Sarne não seria... um menino.
- Ele nunca foi um menino como os outros. Sempre houve algo de magia negra nele... um ar sinistro. Ret pegou a mala. - Se realmente está disposta a ficar em Snapgates, é melhor irmos andando. Seu paciente costuma ser mais impaciente do que o diabo!
Sabrina deu um olhar cheio de dúvida para o porto e ficou imaginando se devia continuar com aquele emprego. Tinha trabalhado sempre em Londres e com crianças, e agora estava claro que a sra. Saint-Same tinha sido deliberadamente reticente na resposta à sua carta. Não mencionou que o neto era um homem adulto!
Ret abriu a porta do carro e não disse uma palavra, enquanto esperava que ela se decidisse. Depois de alguns segundos de hesitação, Sabrina sentou-se no banco e ouviu-o rir baixinho. Sua perna comprida encostou na dela, quando ele se sentou, e Sabrina se afastou automaticamente. Depois, corou: Que tola! Ele não era do tipo de homem que pensaria em flertar com alguém tão sem graça quanto ela.
Estava acostumada a só chamar a atenção por sua competência como profissional. Como mulher, se considerava um zero à esquerda. Não gostava de trabalhar com adultos porque tinha medo de ser magoada novamente. Uma vez, nos primeiros anos de profissão, ouviu um paciente exigir uma enfermeira mais bonita, porque não aguentava mais "ficar olhando para aquele ratinho da Muir, com seus olhos grandes de morta de fome".
Durante todo o trajeto ficou sentada, muito tensa, contando com sua dignidade de enfermeira para enfrentar as brincadeiras de Ret.
- Não me perguntou a que distância fica Snapgates - disse ele.
- Estava distraída com meus pensamentos. Mas, pelo que pude entender pela carta da sra. Saint-Same, deve ficar bastante isolada. Parece um pouco estranho,
- É um lugar adequado para uma família estranha. Logo vai notar que há muito pouco movimento na estrada. É por isso que dirijo como se estivesse numa pista de corridas. Os moradores que costumavam plantar fumo e cana-de-açúcar foram se mudando para lugares mais civilizados. Uma excelente ideia, é claro, mas meu primo tem mania de ser um senhor feudal: recusava-se, terminantemente, a se desfazer da propriedade. Se fosse minha, venderia tudo no mesmo instante. O fato é que ele não consegue perceber que ela está começando a cair aos pedaços.
- Ele é doente demais para sair de casa? - perguntou Sabrina com um olhar rápido para o belo perfil do homem que estava a seu lado.
- Não, não é um inválido. O que não consigo entender é porque tia Laura fez você acreditar que ele era um rapazinho. Deve ter pensado que não viria, se soubesse a verdade.
- A verdade? - Sabrina sentiu um aperto no coração. Será que mais uma vez tinha caído numa casa cheia de paixões e conflitos de personalidades? - Gostaria que fosse mais claro, sr. Saint-Same.
- Para ser franco, não posso dar maiores explicações. Fui designado apenas para recebê-la e servir de motorista. Tia Laura me recomendou muito para não deixá-la nervosa. O que é uma piada, claro, porque Douglas vai aterrorizar uma mocinha com você.
- Como eu? - Ficou olhando em frente, sentindo aquela antiga e conhecida pontada de dor por ser considerada sem graça e feia. - Posso não ser uma figura muito impressionante, mas acredite que sei lutar minhas batalhas.
- Não me entenda mal, enfermeira. Dogulas não vai poder notar que você não é nenhuma beleza.
- Então, deve ser um homem muito fora do comum. Sei, pôr experiência, que a maioria costuma julgar as mulheres muito mais pelo rosto do que pelo caráter.
- Parece um pouco triste, mocinha. Por acaso, veio trabalhar nos trópicos por causa de uma desilusão? Se for isso, acho que meu primo tem algo em comum com você: há muita tragédia e mistério na vida dele.
- Parece não gostar muito dele, não é?
Enquanto falava, Sabrina olhou para as mãos de Ret, que apertaram o volante com força. Pelo que estava começando a perceber, Douglas Saint-Same era quem contratava a fortuna da família, c Ret devia ser uma espécie de playboy. Com certeza, invejava um primo com muito dinheiro e sem saúde para gastá-lo.
- Douglas e eu somos como o sol e a lua. Será que estou sendo romântico demais para uma enfermeira acostumada com as realidades cruas da vida? Sou a alegria e ele é a tempestade. Sou pobre e ele é rico. Isso satisfaz sua curiosidade?
- Acho que pensa que, por ser bonito, devia controlar a conta bancária da família.
Sabrina teve que sorrir. Ret parecia pouco mais do que um menino mimado, como aqueles com que estava acostumada a trabalhar. Devia ser muito querido pela tia, mas tratado com firmeza pelo primo mais exigente. Douglas Saint-Same era o senhor de Snapgates. Agora, seria seu paciente e, pelo jeito, devia ter um temperamento muito difícil.
O sol começava a desaparecer no horizonte, quando se aproximaram de Snapgates, uma grande casa, construída numa elevação rochosa muito imponente, com colunas gregas. O potente carro esporte subiu a encosta sem qualquer esforço, atravessando os campos de cana-de-açúcar e as terras virgens que pertenciam a Douglas, o Negro, cujo nome continuava a martelar no pensamento da jovem enfermeira que ainda não o conhecia.
Quando estavam quase chegando, Ret freou de repente e olhou para Sabrina.
- Lá está. Daqui, temos uma visão muito melhor. A casa podia ser até bonita, mas, como disse, meu primo não se importa mais com a beleza. Está tudo abandonado. Veja, as janelas de trás dão para o mar. À noite, a maré sobe até perto da entrada das galerias que dão para os porões. Antigamente, eram usadas para esconder contrabando e rebeldes fugitivos. Sempre houve algo de aventuresco no sangue da família.
- Por que seu primo é chamado de Douglas, o Negro? - Sabrina ficou olhando para o rosto de Ret, enquanto fazia a pergunta.
Ele devolveu o olhar, com a testa ligeiramente franzida, e bateu as pontas dos dedos no volante. Seu terno branco caía impecável no corpo elegante. Usava os cabelos louros e cheios um pouco compridos e tinha a pele bem bronzeada. Era incrivelmente bonito, mas Sabrina não sentia a menor atração. Era como se estivesse vacinada contra o encanto de qualquer homem. A habitual indiferença de todos eles a tinha feito se recolher silenciosamente dentro de uma concha de autoproteção. Hoje em dia, ficava surpresa e até satisfeita em poder olhar friamente para alguém como Ret, apenas curiosa em saber mais sobre o dono de Snapgates.
- Há pessoas que não podem ser explicadas para um estranho. Vai ter que descobrir por si mesma. Ele tem esse apelido desde que me lembro. E, hoje em dia, é mais apropriado do que nunca.
Depois de deixar Sabrina ainda mais intrigada, ele ligou o motor e continuou até a entrada da casa. Os grandes portões de ferro batido estavam fechados. Ret buzinou, até aparecer um homem vestindo calças pretas e um paletó de algodão branco, que saiu correndo da portaria.
Sabrina não pôde evitar um ligeiro estremecimento, quando ouviu os pesados portões baterem atrás dela. Uma alameda parecia serpentear por entre as folhagens. Percorreram esse caminho sombrio por uns dez minutos e, de repente, viram-se no pátio em frente da casa. Sabrina desceu do carro, admirando as enormes colunas que formavam uma varanda no térreo e um terraço no segundo andar, todo coberto de primaveras coloridas.
Era uma casa estranha, um misto de clássico com rústico como se cada dono tivesse acrescentado a ela uma parte de sua personalidade.
- Vejo que está intrigada com a casa - disse Ret, segurando a mala e subindo os degraus. - É o esconderijo de Douglas. Aqui, ele foge do mundo, com o qual antigamente, estava muito envolvido.
- Você o faz parecer um monstro. Tendo uma saúde tão esplêndida, não consegue sentir um pouco de pena dele?
- Sentir pena de Douglas, o Negro? - Ret deu uma risada de desdém. - É melhor não fazer isso, enfermeira, ou vai acabar despedida em poucas horas. Nesta casa, há uma regra que está acima de qualquer outra: todos fingimos que ele é igual aos outros homens.
- E não é? - gaguejou Sabrina, imaginando realmente algum tipo de monstro.
- Não, mesmo antes do que aconteceu, sempre achei que ele não era como os outros.
Com essas palavras misteriosas, Ret levou-a peias portas envidraçadas.
Ela viu-se num grande saguão de mármore, decorado com estátuas colocadas em nichos nas paredes e tendo ao centro uma graciosa escadaria que levava ao segundo andar.
- Fiz uma viagem muito longa. Gostaria de me arrumar um pouco antes de conhecer o sr. Saint-Same.
Ret olhou-a de alto a baixo, mas não disse o que devia estar pensando. O encontro com Douglas teria que acontecer mais cedo ou mais tarde, e o fato de Sabrina estar ou não arrumada não ia fazer o primo se impressionar com sua aparência.
O rapaz puxou um cordão, e em poucos segundos um criado entrou no saguão.
- Charles, quais foram os aposentos escolhidos para a srta. Muir? Os de sempre?
- Sim, senhor. Quer que eu a leve até lá?
Ret hesitou por alguns momentos, distraído, como se estivesse ouvindo outra coisa além da pergunta do criado. Ia falar, quando Sabrina também ouviu... o ruído de uma bengala batendo no piso de mármore, vindo do fundo do corredor, sob a sombra da escadaria.
Ret olhava naquela direção e Sabrina olhava para ele. Podia ver claramente sua expressão. Um misto de fascinação e ódio!
Ouviu passos atrás de si, calmos, vagarosos, os passos de um homem percorrendo seus domínios. Gostaria de olhar pela primeira vez para Douglas Saint-Same com uma expressão firme e controlada, porém as coisas que o primo tinha insinuado não podiam ser facilmente esquecidas e ela se sentiu como uma figura de cera, pálida e rígida, enquanto aqueles passos chegavam cada vez mais perto...
- Cuidado! Vai bater em você com a ponta da bengala! - Sabrina levou um susto, quando Ret a puxou para perto dele.
Com os olhos arregalados, ficou olhando para o homem que ia ser seu paciente: era moreno, de ombros largos, bem mais alto do que Ret. Tinha cabelos muito pretos, sobrancelhas grossas e olhos cinzentos que pareciam emitir uma estranha radiação.
Douglas, o Negro... sua mão apertava com dedos tensos o cabo de uma bengala branca!
A verdade atingiu Sabrina como um raio. Os olhos que pareciam chegar até o fundo de sua alma eram os olhos de um cego. Inacreditável, mas não havia duvida: Douglas Saint-Same podia sentir a presença dela, mas não podia vê-la. Suas narinas tremiam ligeiramente, como se farejasse o delicado perfume que Sabrina usava. Sua cabeça poderosa, quase nobre, inclinou-se para trás, tal como a de um animal que tenta ouvir o que está se passando à sua volta, quando tem os olhos cobertos.
- Ret! - A voz era profunda e severa. - Trouxe meu novo anjo da guarda?
- Sim, a enfermeira está aqui ao meu lado.
- Ela sabe falar?
Douglas Saint-Same não devia ser muito mais velho do que o primo, mas parecia ter sido amadurecido pelo sofrimento. Rugas profundas marcavam seu rosto. Pelo aspecto dos olhos, Sabrina notou que não era cego de nascença. Não havia qualquer cicatriz visível, mas a dor tinha esculpido uma marca entre as sobrancelhas bem delineadas.
- Acho que seria muito confuso um cego ser conduzido por uma muda - continuou ele, com voz cheia de sarcasmo.
- É claro que sei falar. - Sabrina estava chocada, mas decidida a enfrentá-lo sem mostrar qualquer insegurança. - Muito prazer, sr. Saint-Same.
- Ah, quer dizer que, desta vez, é uma bem moça! Não só fala, como também vê, enfermeira. Eu ando na escuridão, seguindo a trilha dos malditos e condenados, mas meus ouvidos são agudos.
Estendeu a mão, que parecia suficientemente forte para esmagar os dedos de Sabrina. Ela não conseguiu deixar de hesitar por alguns segundos, antes de colocar a mão na dele. Em vez de apertá-la, Douglas passou o polegar pela pele jovem e macia. Parecia tatear os ossos delicados, como se eles pudessem lhe dar alguma idéía de como era ela.
- Imagino que seja muito dedicada à sua profissão. Ah, sua mão ficou tensa. Deve ter um génio muito forte. Muir? Significa "mar" no dialeto do norte da Escócia, não é?
- Acho que sim, senhor. - Sabrina falou quase com hostilidade, pois não conseguia sentir nenhuma piedade por ele. Só olhar para aquele homem bastava para perceber sua forte personalidade. Douglas, o Negro, tinha o aspecto de um feiticeiro da Idade Média. Um sorriso brincava em seus lábios, mas, em vez de confortá-la, fazia com que pensasse em se defender.
-- É escocesa? - perguntou, soltando a mão dela. - Deve ser um poço de eficiência.
Seu tom era tão sarcástico, que Sabrina teve vontade de esbofeteá-lo.
Disse, friamente:
- Talvez possa se divertir, sabendo que fui encontrada na porta de um orfanato. O sobrenome Muir estava costurado nas minhas roupas e a diretora resolveu que eu devia me chamar Sabrina... porquê, não sei.
- Sabrina, a ninfa infeliz. - Douglas levantou uma sobrancelha. Estava caçoando dela e também avisando-a de que o destino não tinha sido gentil ao trazê-la a Snapgaies. - Ret, leve a srta. Muir até o meu estúdio. Vou chamar Brutus. Ele saiu para dar uma volta e não quero que acabe caçando algum macaco. Pode se transformar num sanguinário.
- Não sei por que continua com essa fera.
- Porque ele é minha vista, primo. É minha companhia, mesmo quando tudo sai errado. Tolera meu génio e continua sempre leal. Brutus é o meu único amigo verdadeiro.
Sabrina deu uma olhada rápida para Ret e ficou surpresa ao ver um rubor colorindo seu rosto bonito. Parecia estar se sentindo culpado.
- Vamos por aqui -- disse ele, dirigindo-se a ela.
Enquanto andavam até o fim do corredor, viu o criado subindo a escada com sua mala. Sentiu um leve tremor percorrer seu corpo. Logo estaria sozinha com o paciente mais desafiador de toda sua carreira.
Ret abriu uma pesada porta de carvalho e fez um gesto na direção do estúdio.
- Vou deixá-la aqui como ele mandou. Não fique tão nervosa. Douglas não pode vê-la, mas tem um ouvido terrível, e qualquer tremor na sua voz não passará despercebido. Sente-se e relaxe. Por que sentir medo de um homem que nunca conseguiria alcançá-la, mesmo que estivesse disposto a persegui-la?
- Não seja cruel. Não é brincadeira um homem tão cheio de vitalidade, completamente cego. Quem pode condená-lo por ser impaciente com as pessoas?
- Enfermeira, não se iluda, Douglas, o Negro, nunca foi gentil com ninguém. Bem, vou deixá-la a sós com o grande senhor. Até mais tarde. - Ret se inclinou, numa cortesia cheia de desdém, e saiu fechando a porta.
Sabrina sentiu um arrepio e andou alguns passos para sair do alcance do grande ventilador que zumbia suavemente no teto. O estúdio era grande, imponente e suntuoso, e ela se sentiu muito pequena parada ali. E chocada com sua audácia em aceitar aquele emprego a milhares de quilómetros de tudo que jamais tinha conhecido em toda sua vida.
Enquanto esperava, Sabrina tirou dó bolso a carta que tinha recebido da sra. Saint-Same e releu-a, cuidadosamente.
"Há dias em que ele está bastante ativo e não mostra qualquer sinal de dor. Mas há outras ocasiões em que precisa tomar analgésicos, e não suporto a ideia de ter que aplicar as injeções eu mesma. Suas qualificações foram aprovadas pelo nosso médico, que virá vê-la, quando estiver instalada em Snapgates, para lhe fazer um histórico sobre a doença de meu neto. Ele consegue se vestir e se alimentar sem ajuda..."
Em nenhum trecho, havia qualquer referencia ao fato de o neto da sra. Saint-Same ser um adulto... Aquela frase, sobre ele ser capaz de se vestir e de se alimentar sozinho, é que tinha levado Sabrina a pensar que fosse um menino.
Ficou olhando para a escultura de uma cabeça de homem que estava sobre a mesa. O rosto era quase real, mas os olhos fitavam cegamente o espaço. Nesse instante, ouviu a bengala batendo no mármore do corredor. Ficou tensa, olhando Douglas Saint-Same abrir, a porta e vir em sua direção como se a enxergasse.
Agora que estava a sós com ele, teve certeza de que, antes da cegueira, ele nunca tinha sido um homem que gostava de ficar afastado do mundo. Estava curiosa. Por que alguém com uma propriedade tão grande como aquela não era casado? Ou teria amado alguma mulher e sido rejeitado por ser cego?
- Você não fala - disse Douglas, com sua voz profunda e quase impiedosa. - Acho que sei o que está fazendo. Deve estar me analisando, imaginando se vai conseguir cuidar de mim, certo? Não sou um homem paciente, enfermeira, e não pretendo me deixar levar. Não quero piedade. Tenho todas as minhas faculdades, exceto uma, e você só será necessária quando eu tiver uma daquelas malditas dores de cabeça. E, então, acha que terá coragem de tratar de alguém como eu?
- Não vejo motivo para o senhor falar em coragem. Já lidei com muitas crianças teimosas e não creio que seja pior do que qualquer uma delas.
- Palavras valentes, menina! Só que preciso lembrá-la de que não sou uma criança.
- Não ê isso. Estou simplesmente querendo dizer que, se tenho paciência para tratar de crianças difíceis, não vejo por que ficar apreensiva com o fato de ter que cuidar do senhor. Por acaso, é algum tirano?
- Sei que todo escocês é atrevido, mas há algo em sua voz que me diz que não é e nunca foi humilde, apesar de ler sido criada num orfanato. Como já disse, meus ouvidos são muito sensíveis, o que pode ser uma desvantagem para as pessoas que pensam que escapam à minha observação.
- Estou certa de que ignora muito pouco do que se passa em Snapgates.
- Você é esperta, mocinha, E bem provável que seja uma daquelas mulheres que se tornam enfermeiras na esperança de encontrar um bom partido. Vamos deixar tudo bem claro desde o início: não sou do tipo de ficar encantado com uma voz bonita.
- Isso nunca passou pela minha cabeça. A verdade é que escolhi a enfermagem porque gosto da profissão, não porque achei que fosse um caminho fácil para arranjar um casamento,
- Ah, uma mulher de carreira.'
- É assim que penso, sr. Saint-Same.
- Acha que vai gostar de trabalhar aqui? Olhe à sua volta. Posso me lembrar de cada detalhe deste aposento. Tudo foi mantido no lugar exato para eu não tropeçar e cair de cara. É muito bonito, não?
Sabrina olhou os lambris de madeira de lei, a lareira de mármore e o pesado damasco vermelho das cortinhas. Havia vários abajures e uma grande estante com livros elegantemente encadernados.
- Há um quadro na parede entre as janelas, enfermeira. Veja como eu costumava ser.
A pintura que mostrava uma figura poderosa, montando um cavalo com uma crina tão negra e selvagem como os cabelos do dono. Homem e animal estavam retratados galopando em uma plantação de cana-de-açúcar, sob um céu pesado de nuvens. Os olhos cinzentos do cavaleiro brilhavam, cheios de força e orgulho. O quadro era tão vívido, que os dois pareciam a ponto de saltar da moldura.
-- Agora sabe com quem vai lidar, srta. Muir. Com um homem que foi extremamente ativo e que agora é obrigado a andar lentamente. E o que acaba com minha paciência e me faz rugir como um animal enjaulado. O que me diz?
- Que o senhor é muito parecido com um leão de juba preta. Sempre soube que eles são os mais perigosos.
- Perigosos, hein? Isso significa que tem medo de mim?
- Acho que gosta que os outros tenham medo do senhor. Assim, pode mantê-los a distância.
- Muito inteligente! - Douglas aproximou a bengala, até bater na ponta do sapato de Sabrina, de modo a poder julgar a que distância ela estava. - Por que não senta? Há uma poltrona bem perto de você.
Era uma enorme peça forrada de veludo vermelho, onde Sabrina se sentiria pequenina e em desvantagem para enfrentá-lo. Preferiu uma cadeira com espaldar reto.
- E o senhor, não vai sentar?
- Por quê? Porque sou cego e doente?
- Não, porque fico com dor no pescoço de ter que olhar para cima. Douglas deu uma risada seca e tateou à procura da poltrona. Quando sentou, o paletó e os cabelos pretos formaram um contraste impressionante com o veludo vermelho.
- Já trabalhou no Caribe? - perguntou, ateando na mesinha ao lado, até encontrar uma caixa de cedro de onde tirou um charuto. - Espero que não se incomode com o fumo, enfermeira.
- Não, senhor, pode ficar à vontade - disse Sabrina, olhando-o, fascinada, acender o charuto com um isqueiro especialmente projetado para se adaptar à ponta. Seu rosto pareceu relaxar um pouco, quando deu a primeira baforada de fumaça.
Douglas Saint-Same era tão independente como podia ser... e talvez por isso ficava tão irritado por precisar de uma enfermeira quando tinha dores e precisava tomar injeções.
- E que tal trabalhar aqui no lago Colorido? Tenho impressão de que vai ser uma novidade.
- É verdade. Nunca trabalhei fora de Londres. Sou um pardal da cidade.
- Eu também costumava passar a maior parte do tempo em Londres, e devo dizer que tinha fama de ser uma águia nos negócios. - Douglas puxou a fumaça com força e suas sobrancelhas formaram um arco sombrio. Parecia sofrer intimamente com a cruel carga que o destino tinha colocado em seus ombros.
Águias cegas não podem voar, pensou Sabrina, e sentiu-se tomada por aquela compaixão que ele tanto odiava.
- O trajeto do porto até aqui deve ter lhe mostrado que estamos bem longe da cidade mais próxima e de locais de divertimento. Isso a incomoda?
-- Será uma boa mudança. Poderei andar bastante e nadar nas minhas horas de folga.
- As águas em torno desta ilha são perigosas. Há uma corrente traiçoeira que pode lhe causar problemas ainda maiores do que os que terá com seu paciente. Não posso bancar o herói, e se o valente Ret não estiver por perto, minha bela enfermeira pode morrer afogada.
Sabrina não conseguiu evitar um sorriso. Douglas Saint-Same não podia vê-la e devia estar pensando que ela era uma mocinha bonita, vestindo um uniforme engomado, decidida a flertar com o primo bonitão.
Simples palavras jamais o convenceriam de que era dedicada ao trabalho.
- Vamos conversar sobre as suas tarefas. - As palavras foram pronunciadas num tom sério, cheio de ressentimento. - Minha avó já explicou o que costuma acontecer comigo?
- Ela falou muito pouco sobre sua... doença. Aliás, tive a impressão de que o senhor era... muito mais jovem.
- Você hesitou um pouco, antes de dizer as últimas palavras. Acha que sou velho?
- Não, mas pensei que fosse bem mais novo. Estou habituada a cuidar de crianças e adolescentes.
- Quer dizer que veio a Snapgates pensando que eu era um menino? Deve ter sido um choque encontrar um homem de mais de trinta anos e, ainda por cima, cego como um morcego.
- Confesso que foi mesmo um choque. Mas já estou me recuperando.
- Ótimo. Como acabou de dizer que sempre tratou de crianças, fiquei curioso sobre sua idade. Seria deselegante perguntar?
- Tenho vinte e três anos, senhor.
- Muito jovem! É enfermeira diplomada?
- Sou. Comecei o curso de enfermagem com dezessete anos.
- Bem, acho que Nan devia ter explicado melhor as coisas. Meu único traço infantil é que às vezes costumo derrubar o que esta à minha frente. - No instante em que falava, a cinza do charuto caiu na lapela de seu paletó. - No entanto, não vai precisar cantar para eu dormir, nem beijar meus ferimentos. Acha que pode cuidar de mim? Se não, seja franca e fale agora.
- Acho que conseguirei, senhor, se for um pouquinho paciente comigo, no início.
- Pois saiba que não vai ser fácil, enfermeira. É preciso que lhe diga que meu temperamento sempre foi um pouco explosivo e tenho a tendência de exigir café às horas mais incivilizadas da noite. Também gosto de passear de carro de vez em quando, mas Ret e eu não combinamos. Sabe dirigir?
- Sim, e tenho carta.
- Otimo. Espero que saiba dirigir sem matar de susto o passageiro. Minha última enfermeira era pior do que um motorista de caminhão.
- O senhor tem medo?
Um sorriso brincou nos lábios de Sabrina. Era estranho como certos homens podiam ser tão valentes quando enfrentavam as grandes dores e totalmente covardes com simples alfinetadas. Douglas Saint-Same parecia um deles. Seria capaz de escalar uma montanha, mas ficaria furioso com uma pedra em seu caminho que não pudesse ver para chutá-la para longe.
- E você, é medrosa? Não parece. Como pôde aceitar um emprego tão longe de casa, sem fazer um monte de perguntas? O que a trouxe aqui como um pedaço de coral arrastado pela maré? Uma desilusão amorosa?
- Não. - Sabrina sentiu o sangue subir ao rosto. Aquele homem sentia o que não podia ver e sabia que ela estava fugindo de alguma coisa intolerável. - Achei que estava precisando de mudança, de modo que, quando vi o anúncio de sua avó, decidi que tinha chegado a hora. Fiquei entusiasmada com a ideia de trabalhar numa ilha do Caribe e gostei do nome da sua casa. Quando a vi, não fiquei desapontada. É muito bonita, considerando-se a mistura de estilos.
- A beleza sem um pouco de mistura fica cansativa. Tal como a música, deve ter alguns tons e notas dissonantes. Antes de ficar cego, eu não era muito interessado em música, mas, hoje em dia, ela é uma das poucas coisas que me consolam. Será que estou sendo aborrecido? - Douglas fez uma pausa e olhou diretamente para Sabrina, daquele modo que a confundia tanto... era difícil acreditar que não podia vê-la. - É claro que não, senhor. Estou muito interessada. ~ Verdade? Não posso ver seu rosto, e vozes podem ser enganosamente doces. Sei que quando um homem fica cego há mulheres que passam a achá-lo tremendamente aborrecido. Um cego não pode admirar um novo penteado ou um vestido mais sedutor. Não adianta tentar ser lisonjeiro, porque as palavras soam falsas. Conversas bonitas sob o luar se tornam absurdas, porque ele vive num tipo de noite que não tem lua nem estrelas. Ele tem raiva da compaixão, porque é a única coisa que pode esperar... especialmente se a mulher for muito bonita. Enfermeira... - a voz de Douglas estava suave e quase perigosa - você é uma moça atraente?
Se ele a tivesse esbofeteado Sabrina não ficaria mais chocada. Oh, como seria fácil mentir, dizer que não havia um homem que ficasse indiferente à sua presença. Porém, com tranquila honestidade, confessou:
- Não, senhor. Sou baslante comum.
- E modesta demais para uma mulher. - O sorriso seco aprofundou as rugas em torno dos olhos e da boca.
- Por isso, também serei honesto com você. Quando me vir furioso com minha cegueira, deixe-me sozinho. Não tolero ser animado e detesto ter que depender das pessoas. Fico transtornado em não poder ver se minha gravata está certa e se não estou usando um paletó roxo com calças verdes.
Sabrina riu, antes de perceber que devia chorar. No entanto, ele, que teria ficado furioso com as lágrimas, permitiu que um leve sorriso aparecesse em seus lábios.
__É estranho como se consegue rir de tudo isso, não? Bem, é melhor do que chorar, o que só serve para deixar as mulheres com o nariz vermelho. - O sorriso se acentuou. - A propósito, gosta de cachorros? Estou ouvindo Brutus farejando a porta do lado de fora. Ele é preto como o diabo, como eu, e se vai ficar aqui é melhor ir se acostumando com ele. Vá e abra a porta. O danado vai entrar como um raio, mas não tenha medo que ele não morde. Você tem cabelos vermelhos? Uma das minhas enfermeiras era ruiva e Brutus não gostou muito dela.
- Não, não sou ruiva,
Sabrina levantou, sabendo que Douglas estava testando sua coragem. Cachorros de cegos geralmente eram muito dóceis, mas Ret tinha dito que aquele era uma fera. Respirou fundo, foi até a porta, abriu uma das folhas e afastou-se rapidamente, para dar passagem ao pastor alemão, grande e preto, que correu para perto da poltrona envolta na fumaça do charuto.
Douglas estendeu a mão e afagou o animal, que ganiu, mostrando sua afeição, mas não saltou em cima dele. Tinha sido treinado para respeitar as necessidades, restrições e medos instintivos dos cegos. Depois de cumprimentar o dono, Brutus olhou para Sabrina, eriçando os pelos, cheio de suspeita.
- Pare com isso. A nova enfermeira já me disse que não é ruiva. Não sei porquê, mas tenho a impressão de que é loira. Estou certo, meu velho?
Decidida a mostrar que não tinha medo de nenhum dos dois, Sabrina voltou calmamente até a cadeira. O cachorro rosnou, e imediatamente Douglas segurou a coleira.
- Quieto, Brutus. Está com ciúme? Não tenha medo, enfermeira. Fale com ele. Chame-o pelo nome.
- Alô, Brutus. - Sabrina fez o possível para manter a voz firme. - Você é muito bonito. Vamos ser amigos, não é? - Perguntou, estendendo a mão para o animal.
Douglas estava com os olhos sobre ela, como se pudesse enxergar a cena. Talvez visualizasse uma jovem loura e encantadora, absolutamente segura de si. acostumada a ser apreciada por todos. Sabrina sabia que. se quisesse ser bem-sucedida naquele emprego, teria que conquistar a confiança do cachorro. Na opinião de Douglas Saint-Same, ele era um membro mais importante da casa, e o animal parecia ter consciência disso. Um cego vivendo num casarão perto de rochedos não podia confiar apenas numa bengala. O cão estava ali para guiá-lo pelas trilhas entre os, penhascos... para evitar que morresse numa queda.
Brutus ficou olhando para a mão de Sabrina, e ninguém jamais poderá imaginar como o coração dela batia, quando o cão levantou as orelhas e encostou o focinho na pele macia, farejando-a, desconfiado.
Depois, para enorme alívio de Sabrina, Brutus lambeu sua mão e olhou-a de modo tão esquisito, que ela deu uma risadinha nervosa.
- Espero que isso seja um beijo de boas-vindas e, não, que esteja me experimentando, antes de tirar um pedacinho.
- Acho que Brutus gostou do seu leve sotaque, enfermeira. Ele foi comprado num canil da Escócia, de uma velha amiga da família que treina guias para cegos. Qual é a sua opinião sobre ele?
- Combina muito bem com o dono. Douglas riu e afagou a cabeça do animal.
- Você deve estar precisando de uma boa xícara de café; fez uma viagem longa. Foi tudo bem?
- Ah, sim, muito bem. O võo foi perfeito. Só senti um pouco de medo quando fui trazida até a ilha. O barco era tão frágil, que parecia que ia virar a qualquer momento. Agora entendi por que as águas em torno da ilha são chamadas de lago Colorido. Têm todas as tonalidades de verde e de azul.
- Sim, é como uma pedra preciosa. Porém, seria muito perigoso se o barco virasse. Há muitos tubarões que vêm atrás dos cardumes de peixes que ficam nos recifes. No tempo em que eu podia navegar sem me enfiar no meio das pedras, costumava ir até lá e cheguei a ver um enorme tubarão branco. São os mais ferozes. A beleza pode ser bastante traiçoeira. As vezes, esconde coisas muito perigosas. Douglas indicou um cordão de campainha.
- Chame Charles, por favor. Tomaremos café juntos. Como vai ter que se acostumar com a minha companhia, é melhor começar o quanto antes. Disse que seu nome é Sabrina, não? A ninfa feliz.
- Foi o senhor quem disse isso.
- Sim, e pode ser muito mais verdade do que pensa... e, pelo amor de Deus, pare de me chamar de "senhor". Faz com que me sinta um desses professores de bengala, pronto a castigar os pobres alunos. É melhor me chamar de Douglas. Deixe meu apelido para quando eu não estiver por perto.
- Eu jamais sonharia...
- Pare, Sabrina! Não diga isso! É claro que sonharia. Todas as moças sonham com o amor e todas essas bobagens.
Antes de Sabrina poder responder que o amor era algo que tinha afastado definitivamente do pensamento, Charles entrou no estúdio e recebeu ordens para trazer o café.
--- Traga também alguns doces. Mocinhas bonitas gostam muito de doces. Diga-me, como é a srta. Muir?
- Ela é clara e simpática, senhor.
O criado devia ter sido franco, pensou Sabrina. Dizendo que era simpática, estava fazendo uma descrição que podia dar uma idéia errada a Douglas. Já sabia o quanto ia ficar magoada, se um dia ouvisse Ret, com seus modos debochados, contando a verdade ao primo:
- Ela é um ratinho meu velho. O tipo de garota que ninguém notaria, a não ser que estivesse perdido numa ilha deserta.
Nos dias que se seguiram à sua chegada, Sabrina começou a descobrir; que Snapgaies tinha uma beleza que pertencia a um passado distante. Vinha dos tempos em que o açúcar era uma grande riqueza e os engenhos trabalhavam a todo vapor. Hoje em dia, o casarão estava mergulhado no silêncio, mas sua beleza irregular era um testemunho daquela época de esplendor. Tinha muito mais personalidade do que qualquer mansão cuidadosamente planejada.
Alguns salões imensos, com riquíssimos candelabros de cristal que imitavam ã brisa dos ventiladores, faziam Sabrina pensar em luxuosas recepções, onde as damas usavam longos vestidos de seda. Em contraste, havia também uma ala mais moderna, com uma piscina, quadras de ténis, terraços com trepadeiras floridas e um pavilhão para festas informais.
Porém, atualmente, era raro o dia em que havia algum hóspede nas iponentes poltronas de vime da varanda, e os jardins estavam maltratados e quase selvagens sob o sol tropical. O casarão ficava cada vez mais isolado na ilha, e Douglas Saint-Same parecia não se importar com essa falta de cuidados que permitia que a floresta fosse lentamente conquistando seu território, à medida em que os galhos das árvores se relançavam, formando sombras cada vez maiores, e que as trepadeiras cresciam selvagemente, sem serem podadas. Red ficava irritado com essa indiferença do primo. Sabrina entendia o que
ele sentia, mas achava que devia ser mais tolerante. Afinal, vivia às custas de Douglas, apesar de ostensivamente administrar, sem muito impenho, a plantação de café. Todos os outros interesses da família tinham sido abandonados e os empregados, desiludidos, foram trabalhar em outras terras.
A ilha, que lembrava uma grande serpente flutuando no mar, era agora o refugio de um cego. Um paraíso onde não havia futuro, pouco mais do que um lugar para abrigar os poucos membros restantes da dinastia dos Saint-Same.
- A história de sua família daria um bom livro de aventuras - disse Sabrina a Ret, que tinha estado lhe mostrando os cafezais. - Você tem alguma inclinação para escritor?
Gostava de conversar com Ret. Sentia-se à vontade com ele, curiosamente imune a seu charme, que teria feito qualquer outra mulher perder a cabeça. Ficava feliz por isso; teria detestado se transformar naquela figura de piadas, na menina feia apaixonada pelo belo e jovem fazendeiro.
Ret era uma companhia agradável porque tinha sempre muitas histórias interessantes a contar sobre a família Saint-Same. No entanto, era comum haver uma expressão divertida em seus olhos cinzentos, como se ele não fosse totalmente indiferente à ideia de flertar com ela. Porém, Sabrina era equilibrada demais, recolhida demais à sua concha, para se deixar envolver. Sabia muito bem que aquela atenção toda só acontecia por ela ser a única moça branca e jovem que havia em Snapgates.
- Não tenho vocação para escritor. Estou interessado em assuntos muito menos sérios. E você, não pensa em mais nada, a não ser na sua carreira de anjo da guarda?
- Nunca me considerei um anjo. Sou apenas uma pessoa habilitada, capaz de contribuir para o bem-estar dos outros. Gosto de dar um pouco de mim. Talvez não entenda isso, Ret, você é uma daquelas pessoas que vieram ao mundo para gozar a vida.
- Quer dizer que sou como a cigarra que canta enquanto os outros trabalham? Bem, Sabrina, se é do tipo que gosta de se dar, o que tem para mim? - Ret parou e forçou-a a parar também.
Estavam sob as árvores, e a sombra esverdeada punha um estranho tom nos cabelos alourados dela. Seus olhos, grandes demais para o rosto, mostravam indulgência, em vez de qualquer tipo de alarme.
- Desde muito jovem, aprendi que os homens me consideram um patinho feio; portanto, não precisava desperdiçar seus talentos comigo.
- Sabe de uma coisa? Você desperta minha curiosidade. Por que não gosta dos homens? O que aconteceu para ficar assim tão precavida contra qualquer avanço? Vamos! Prometo não contar seu segredo a Douglas.
- Acho que se tivesse que contar meus segredos a alguém, ele seria a pessoa mais indicada.
- Ah, quer dizer que está começando a se apaixonar por seu trôpego e sombrio paciente? Sei que isso às vezes acontece.
- Não comigo.
- Por que não? É uma mulher, não?
- Sim, mas...
- Cuidado, mocinha! - Os olhos de Ret caçoaram da hesitação dela. - Tratar de crianças e de um homem adulto são coisas completamente diferentes. Não esqueça: quem está na escuridão não vê como nós, que estamos ao sol.
Sabrina corou e fez um movimento para passar por Ret. Mas ele a pegou pelo pulso e puxou-a para perto do corpo elegante e musculoso.
- Olhe aqui, menina, vamos ficar um bom tempo sob o mesmo teto; portanto, é melhor sermos amigos.
- Não estou me recusando a ser sua amiga, sr. Saint-Same.
Os dedos de Ret apertaram ainda mais seu pulso e ele ficou estudando seu rosto desafiador.
- Você podia ser até engraçadinha, se usasse um pouco de maquilagem. - Levantou o rosto de Sabrina com a ponta do dedo. - Alguma vez já foi beijada?
- Como se atreve...
-- É a minha natureza, estou sempre desafiando o diabo. Todos os Saint-Same são um pouco arrogantes e autoritários. Acho que vou beijá-la, e então veremos se continua a me olhar como seu eu fosse um menino malcriado precisando de umas boas palmadas.
Quando Ret abaixou a cabeça para beijá-la, Sabrina achou a situação tão ridícula que explodiu numa gargalhada. Foi como se tivesse atirado uma cobra no pescoço dele. Ret soltou-a, chocado, e depois uma expressão de desdém tomou conta do rosto dele.
-- Quem iria querer você, afinal? É uma coisinha de nada, e só um cego poderia sentir atração! Tem certeza de que vai ficar para titia é por isso que é tão cheia de fricotes. Sabe muito bem que nenhum homem teria coragem de andar com você. Morreria de vergonha dos amigos!
Com essas palavras cruéis, Ret saiu, furioso, em direção da casa. Sabrina encostou-se numa arvore e pegou uma orquídea que florescia no tronco. Era amarela, aveludada, linda... e logo lágrimas quentes e doloridas surgiram em seus olhos. Piscou com força para afastá-las. Chorar por um homem como Ret Saint-Same era puro desperdício.
Toda a vida, ele tinha sido mimado e agora se vingava dela tocando fundo em seu ponto fraco, com toda a raiva de um homem que se vê rejeitado pela primeira vez... e por uma moça que devia ter ficado agradecida com a atenção dele!
Sabrina amava a beleza com toda a paixão secreta daqueles que são feios, e nunca conseguiria ficar magoada com a atitude de Ret. No entanto, uma frase dele ainda doía como uma chicotada.
"Só um cego..." Só alguém que vivia na escuridão podia sentir algum desejo por Sabrina Muir.
Bem, já tinha mostrado a Ret Saint-Same que não estava para brincadeiras. Colocando a orquídea no bolso de cima do uniforme, continuou seu caminho, dizendo a si mesma que, daquele momento em diante, teria que ficar atenta a qualquer rachadura no muro que tinha construído à sua volta. Como jamais havia conhecido o afeto, seria uma presa fácil para qualquer sorriso mais carinhoso, e só ela sabia como era sensível.
Chegou à casa por uma entrada lateral e atravessou o pátio sob o alegre chilrear das cigarras. Quando passou pelo caramanchão coberto de flores brancas e perfumadas, parou, muito quieta, imaginando se o homem que estava fumando perto da fonte tinha percebido sua presença.
Douglas não deu sinal de ter ouvido. Tirou uma baforada do charuto e pegou o copo que estava na mesinha a seu lado. A um observador casual, pareceria igual a qualquer outro homem, capaz de admirar toda a beleza do jardim ã sua frente. Porém, de repente, ele levantou a cabeça diretamente para o sol. Só um cego poderia fazer isso.
Havia um certo apelo primitivo em sua figura. Observando-o sem ser notada, Sabrina sentiu nele a desilusão de alguém que tinha amado e perdido. Será que a mulher não conseguira aceitar sua cegueira? Ele mesmo teria se afastado por não poder mais andar no mundo como a águia das finanças, respeitada e temida pelos outros homens?
Em sua solidão, a necessidade de afeição devia ser imensa; porém, seu orgulho era tão grande, que Sabrina podia facilmente imaginá-lo rejeitando o amor, só por pensar que estava misturado com piedade.
- Quer tomar um ponche comigo, Sabrina?
- Como sabe que estou aqui? - Cada dia ficava mais impressionada com aquela incrível capacidade de sentir uma presença e estar quase sempre certo ao adivinhar quem era,
- Porque ninguém mais nesta casa tem o dom de ficar parada em completo silêncio como você.
- Seja honesto.
- Ouvi o ruído de seu uniforme engomado, quando passou pelas folhagens. Foi um segundo antes de você parar, como uma corça que tivesse avistado um leão.
Sabrina riu, mas havia um inegável elemento de verdade na comparação. Douglas não podia saber que, mesmo cego, parecia mais vigoroso e mais perigoso do que qualquer outro homem.
Na época em que podia ver, teria passado por ela sem um segundo olhar, mas agora, Sabrina fazia parte de sua rotina diária e estavam quase que intimamente envolvidos. Ela ainda encontrava alguma dificuldade em tratar de um paciente adulto e exigente. Na noite anterior, Douglas tinha tocado a campainha que ficava no quarto dela, e, quando Sabrina correu até ele, encontrou-o, não sentindo dores como esperava, mas inquieto, querendo uma xícara de café bem quente e que ela lesse um capítulo de um livro sobre barcos a vela. Nem por um instante, pareceu pensar que Sabrina podia estar cansada e com sono. Quando ele finalmente adormeceu, o relógio da sala batia duas vezes no silêncio do casarão.
Sabrina não sabia dizer se Douglas fazia isso por arrogância ou por causa do medo solitário de não ser necessário ou amado. Se não fosse enfermeira, talvez tivesse a mesma falta de consideração pelos outros; talvez vivesse no mesmo isolamento. Essa era uma das coisas que tinha que se esforçar por combater: a tendência de Douglas de se transformar num recluso, fazendo os empregados estarem prontos a saltarem às suas ordens.
Resolveu falar com a sra. Saint-Same. Ela devia convidar pessoas. Os portões de ferro seriam abertos para deixar entrar os amigos de Ret, enchendo os jardins e terraços com risos e alegria. Não haveria nenhum mal. Tentaria convencer a avó de Douglas de que o neto precisava de companhia, de mulheres bonitas e pessoas interessantes que o fizessem sentir que não era bom ficar afastado de um mundo onde ainda havia risos e afeto.
- Vou chamar Nim para lhe trazer um copo de ponche.
Douglas ia gritar pelo rapazinho que costumava ficar sempre por perto para servi-lo, mas Sabrina o interrompeu.
- Pode deixar. Vou procurá-io para pedir que me traga um suco de laranja com bastante gelo.
- Há gelo em sua voz, enfermeira, e aposto que está de cara feia. O que eu fiz agora?
- O senhor parece pensar que todos nesta casa têm que estar sempre em alerta para servi-lo. Que todos giramos em torno do senhor e de seus caprichos.
- E é isso mesmo. Nim é um malandro que passa a maior parte do tempo dormindo embaixo das árvores ou pegando conchas na praia. A obrigação dele é ficar sempre por perto para o caso de eu precisar. A sua também.
- É mesmo?
- É sim, enfermeira.
Apesar de sua intenção de ser firme com ele, Sabrina descobriu que toda sua decisão ia sumindo, quando olhava para aqueles olhos cinzentos... tão profundos e bonitos, mas que nem mesmo podiam saber se ela estava sorrindo.
- Vou procurar Nim. Seu copo está vazio, senhor. Quer mais um pouco de ponche?
- Sinto que gostaria de me dar umas boas palmadas pelos meus maus modos, não é, Sabrina?
- Duvido de que fizessem muito efeito.
- Por que meu couro é duro e sua mão, macia? Cuidado, enfermeira! Não quero piedade de ninguém. Essa maldita cegueira já é bastante ruim de se tolerar, mas eu me tornaria menos do que um homem, se aceitasse compaixão. Poderia ficar tão furioso, que teria que provar que ainda sou homem... entendeu?
- Sim. - Sabrina falou com uma vozinha fraca e afastou-se para ficar fora do alcance dos braços dele ou da bengala.
- E melhor encher meu copo novamente.
Sabrina hesitou por alguns segundos, e um sorriso cheio de malícia apareceu no rosto moreno.
- Está com medo que eu tente agarrá-la?
- Por favor, me dê o copo, senhor.
- Covarde! - A mão de Douglas fez um daqueles movimentos calculados em direção do copo e, como se os dedos dele fossem imantados, pegou-o sem o menor erro.
Sabrina se afastou, sentindo que podia adivinhar a moça que Douglas estava criando na imaginação: magra, mas de corpo bem-feito, loira e atraente no uniforme branco. O lipo de mulher que conseguiria despertar desejos severamente reprimidos há tanto tempo. Uma enfermeira que estava sempre no quarto dele e que lhe servia café de madrugada, enquanto o resto da casa dormia,
Encontrou Nim cochilando à sombra de um jacarandá e acordou-o delicadamente, pedindo que fosse buscar o suco de laranja e dois copos. . Douglas já tinha bebido bastante rum para uma tarde, uma bebida gelada talvez pusesse um freio em sua imaginação.
O negrinho saiu correndo e Sabrina ficou sob a árvore por alguns minutos, até recuperar o sangue-frio. Quando voltou para perto de Douglas, sentou-se na beirada de mármore da fonte,
- Esteve passeando com Ret? Viu algo de interessante? - Como sempre, a pergunta foi feita num tom de ironia.
- Sim, ele me mostrou o cafezal. Nunca pensei que um pé de café pudesse ser tão bonito,
- Essa beleza dura pouco tempo. Logo os frutos têm que ser colhidos, armazenados e vendidos.
- O senhor faz tudo parecer tão comercial!
- E como foi que Ret falou?
- Ele me contou como o café foi trazido para as ilhas e toda a história dessas plantações. A ilha é um verdadeiro paraíso; é pena que tantas áreas estejam abandonadas.
- Pois é assim que vão continuar. Não me venha com palpites, entendeu?
- Sim, senhor.
- Vou mandá-la embora no primeiro barco, se não parar de me chamar de "senhor"! Já não lhe disse isso?
- Sim, mas...
- Então, quer fazer a gentileza de me chamar pelo nome? Diga, vamos... Douglas.
- Não... não posso. - Sabrina corou violentamente. - O senhor é meu patrão... meu paciente. Não ficaria bem.
- Entendo. Não quer ser minha amiga. Reserva sua amizade para o meu belo e encantador primo. Já notei que o chama de Ret, sem a menor hesitação.
- É preciso uma certa formalidade entre a enfermeira e o paciente.
Posso chamá-lo de monsieur, como fazem os empregados?
- Sabrina, por acaso, você se considera minha criada?
- Foi o senhor mesmo quem disse que estou aqui para servi-lo.
- Leva sempre tão a sério o que os homens dizem?
Sabrina podia ter respondido que os homens, na maioria das vezes, mal se preocupavam em falar com ela. Mas, de repente, começou a sentir uma certa emoção em ser o centro da atenção de um deles. Mesmo sentada longe de Douglas, sentia nele uma procura por um contato, magnética, solitária e até raivosa.
Sabia que pensava que ela era bonita e, pela primeira vez, sentiu o que era ser admirada por alguém. Tirou a orquídea do bolso e ficou olhando para ela. Há poucos instantes tinha jurado continuar fechada e protegida em sua concha, e agora já estava se deixando levar pelo desejo de ser apreciada por Douglas.
- Está de cara feia? Será que ainda não se acostumou com meu detestável senso de humor?
- Faz seis anos que trabalho como enfermeira, senhor, e já estou habituada com os mais diferentes temperamentos.
- Está bem, está bem! Pode me chamar de monsieur, em vez de Douglas. Mas, por caridade, diga "você isso", "você aquilo". Essa história de "senhor" é pedante e desagradável.
Nim chegou com a jarra de suco e dois copos. Sabrina encheu um eles e colocou-o na mão de Douglas, que tomou um gole, enquanto ela ficava esperando por uma observação sarcástica. Porém, em vez disso, ele sorriu, fazendo um movimento de lábios e sobrancelhas que foi muito mais expressivo do que qualquer palavra. - Bom e cheio de gelo. Igual à minha enfermeira, essa mão sem rosto que me oferece socorro na escuridão. Que só me toca para sentir o meu pulso, arrumar a minha gravata ou me dar uma bebida gelada para aplacar meus impulsos tropicais. Cuidado, Sabrina! Agora, você também está nos trópicos e pode perder a compostura.
- Sou muito bem treinada, monsieur.
- Posso imaginar sua chefe ensinando às enfermeirinhas como se comportarem nas mais variadas situações. Espero que não esteja pensando em me dar uma surra. Não seria fácil.
- Tenho certeza de que seria perigoso. É preciso um chicote para domar um leão, e não trouxe nenhum na bagagem.
- Você não precisou de nada para seduzir Brutus. Está sempre fazendo carinhos nele?
- Não, monsieur. Corremos pela praia, atiro pedaços de pau na água para ele buscar, nada mais. Sei que foi treinado para cumprir uma tarefa e prometo não mimá-lo.
- Vocês devem fazer um lindo par... a bela e a fera.
Sabrina corou, imaginando o que Ret diria, se ouvisse aquela observação,
- Ficou quieta como um passarinho. Por acaso, é proibido um paciente fazer um elogio à sua enfermeira?
- Já... já lhe disse desde o início: sou um tipo muito comum.
- Como posso saber? Só sei julgar os outros pelas vozes. Meu mundo é cheio de sons de portas que se abrem para deixar entrar pessoas sem rosto. Minha escuridão é absoluta. Nunca poderei ver de novo, a não ser que esteja disposto a enfrentar a morte.
As palavras foram ditas num tom tão absolutamente calmo que Sabrina sentiu um estremecimento.
- Alguém já deve ter lhe contado. Eu estava indo a Telavívi para participar de uma reunião de negócios, quando o avião foi sequestrado e desviado para o deserto, onde ficamos como reféns. Como você já sabe, tenho um péssimo génio e não consegui ficar calado. Um dos terroristas me atingiu várias vezes com a coronha da metralhadora. Quando recobrei a consciência, tudo havia terminado e eu estava no hospital, com a cabeça quebrada. A fratura foi muito grande e uma lasca de osso ficou enterrada na parte do cérebro relacionada com a visão. Se tentarem remover esse maldito pedaço de osso, poderei morrer. Ou, como se costuma dizer, me transformar num vegetal.
O silencio caiu sobre eles, pesado, prolongado, só quebrado pelo canto das cigarras, sempre presentes no meio das folhagens.
- Minha avó já deve ter lhe falado sobre isso.
- Sim, mas não dessa maneira tão crua. Tem certeza de que,..
- Os médicos foram muito francos... e é por isso que a verdade dói tanto. Odeio ser cego, mas, pelo menos, estou vivo, sabendo o que. se passa à minha volta. Porém, não me conformo, Sabrina, apesar de saber que foi por culpa minha, do meu génio, dessa semente de fúria plantada na nossa família pelo primeiro Douglas, o Negro, um guerreiro normando. Foi ele também o primeiro moreno de cabelos pretos. A maioria dos Saint-Same é loira, como Ret, mas a herança do cavaleiro negro ainda persiste. - Deu uma gargalhada irónica. - Cabelos pretos... coração negro... escuridão... é a cor do demónio.
- Por favor, não seja tão amargo. Todos os seus outros sentidos são perfeitos, melhores do que os da maioria das pessoas. Você tem uma inteligência brilhante. Ainda pode viajar, fazer sucesso nos negócios. Não está tudo acabado!
- Não, não há mais nada. Sempre planejei viver nesta ilha no final de minha vida. Bem, a aposentadoria chegou mais cedo do que eu esperava, e agora tenho que me conformar com ela. Eu era um pássaro inquieto; agora, minhas asas estão cortadas. Aqui, posso tropeçar e cair como um idiota, e só minha família e minha enfermeira verão. Não adianta, Sabrina, sou orgulhoso e nunca mudarei.
- Com o tempo...
- Não, não mudarei. Nasci nesta ilha e conheço tudo com a palma de minha mão. Posso visualizar toda a beleza que existe à minha volta, e levo uma vida razoavelmente normal. O difícil foi me acostumar a não poder saber se é dia ou noite. Tive que me habituar a esperar pelo canto dos pássaros para saber se o sol está nascendo, a sentir seu calor e o mundo acordando. De certo modo, foi como aprender a viver de novo... nascer adulto... um bebezão. - Douglas deu uma risadinha amarga.
- Um bebé que gosta mais de rum do que de leite. Acho que você é um homem de muita coragem.
Ele ficou pensativo e depois levantou os olhos diretamente para Sabrina, usando sua voz como guia.
- Posso pedir uma coisa muito pessoal?
- Pessoal? - Ela sentiu o coração acelerar.
- Conheço sua voz, mas gostaria de saber como é o seu rosto. Não posso ver, mas poderia sentir. - É só por um instante.
- Quer dizer... quer dizer que gostaria de tocar o meu rosto?
- Se você deixar. Não vai doer nada. - O sorriso irónico voltou.
Sabrína ficou olhando para ele, com o coração descompassado. Aquele era um momento decisivo. Se recusasse, estava certa de que Douglas só faria uma observação sarcástica, encolheria os ombros e mudaria de assunto. Se permitisse, ele logo perceberia que não era bonita... e ela talvez não conseguisse esquecer tão facilmente a sensação de ter sido tocada por ele.
- Está com medo de mim?
- Náo.
Tomando uma decisão repentina, Sabrina levantou e foi para bem perto de Douglas. Ajoelhou-se em frente dele e lutou consigo mesma para não tremer, enquanto ele tateava seu rosto com toques firmes e seguros. Os dedos magros e bem-feitos passaram por seus cabelos, sentindo a textura e o comprimento, e seguiram os contornos dos ossos da face. Depois, as mãos escorregaram pelo pescoço fino e pararam, quando chegaram aos ombros.
- Qual é a cor dos seus olhos?
- São castanhos.
- O cabelo é claro, não é?
- Sim.
- Foi desagradável fazer o que pedi?
- Não... mas não é uma situação muito ética. Uma enfermeira devia ter mais controle sobre o paciente.
Os dedos de Douglas tocaram os lábios de Sabrina, enquanto ela falava, procurando por um sorriso, mas encontraram apenas um leve tremor.
Sempre esqueço que você está habituada a cuidar de crianças e que deve estar estranhando ter que trabalhar para um adulto... um homem temperamental, difícil e exigente. Você é jovem e pequenina. Seu rosto cabe inteiro na minha mão.
Nesse instante, Sabrina ouviu passos no calçamento do pátio e se afastou rapidamente, mas percebeu que Ret tinha visto a cena: ela ajoelhada em frente de Douglas, que segurava seu rosto. Muito pálida, ergueu os grandes olhos, numa súplica muda para que Ret não risse do que estava vendo.
- É você, Ret?
- Sim, Douglas. Vejo que estava conhecendo melhor a srta. Muir.
- Queria saber se o rosto dela combina com essa voz tão incomum.
- E combina? - Ret olhava diretamente para Sabrina, que amassava lentamente a orquídea amarela entre os dedos.
- Você sabe melhor do que eu. Pode vê-la.
Ret continuou encarando Sabrina, até ela corar violentamente e sair correndo em direção da casa.
O mar brilhava ao luar. Encostada na grande janela do corredor que ficava perto de seu quarto, Sabrina admirava aquela vista maravilhosa, encantada demais para ter sono. Mesmo de longe, podia sentir o cheiro salgado e ouvir o suave lamento do oceano.
Seguindo um impulso repentino, entrou no quarto e pegou um maio e uma saída de banho na gaveta. Mudou de roupa e desceu a escada com os chinelos na mão, saindo por uma porta lateral que dava para o lado do pátio e para a trilha que ia até a praia.
O mar a chamava e ela não conseguia resistir a esse apelo. Passara praticamente toda a vida numa cidade cinzenta, sentindo-se quase que acorrentada ao leito dos pacientes e agora, naquela ilha, uma sensação de liberdade e uma ânsia de viver despertavam dentro dela. Parou por um instante, soltou os cabelos e saiu correndo ao encontro do mar, sentindo o vento salgado bater-lhe no rosto.
Jamais havia encontrado coisas para amar e, naquele lugar paradisíaco, já conseguia pensar sem mágoa na infância sem sol e na adolescência solitária, quando ansiava por um grande amor, enquanto passava os dias trabalhando para poder estudar à noite.
Ao chegar à praia, tirou a saída de banho e entrou na água, sentindo a carícia da espuma prateada. Sabia que havia uma corrente perigosa, perto dos recifes, e não pretendia ir tão longe. Numa noite como aquela, não podia acontecer nada de mau. Todos os seus problemas estavam como que congelados no espaço e não havia ninguém para quebrar o encantamento.
Nadou por longo tempo, até ficar cansada. Voltou para a areia com os cabelos molhados grudados no rosto, sentindo-se uma estranha para si mesma, com o corpo agradavelmente relaxado depois do exercício.
Quando uma pessoa está sozinha, só pode ser magoada pelos próprios pensamentos, e Sabrina esforçou-se para não pensar em nada, senão na beleza da noite tropical. A lua brilhava num céu cheio de estrelas que faiscavam como diamantes sobre o veludo negro. Negro... a palavra lhe trouxe à mente o rosto moreno de Douglas. Vários dias tinham se passado, desde que Ret vira o primo acariciando o rosto dela. Como o rapaz não tocou no assunto, parte do embaraço de Sabrina já estava desaparecendo. Afinal, não havia nada de estranho num cego tentando sentir o rosto que não podia ver.
Deitou na areia e ficou olhando as estrelas por entre as folhas das palmeiras que balançavam suavemente ao vento.
Douglas já estava mais acostumado com a presença dela e agora lhe pedia para responder as cartas que continuavam a chegar do exterior. Na véspera, enquanto procurava um envelope nas gavetas da escrivaninha, Sabrina tinha deixado cair uma pasta cheia.de fotografias. Douglas, fumando na poltrona perto da janela, distraído, não percebeu que ela estava ajoelhada no tapete espesso, juntando as fotos e examinando-as. Em todas elas aparecia a mesma moça... de braço dado com ele, saindo de um famoso restaurante, sorrindo entre várias personalidades, entrando num carro de último tipo. Sempre vestida com sedas e peles, e linda.
Então, era ela! Sabrina conhecia a moça das fotos. Nadi Danel, a modelo, filha de um famoso joalheiro, a menina dos olhos das mais sofisticadas revistas de moda do mundo; admirada e cortejada por homens de todas as idades, todos riquíssimos, Sabrina não ficou surpresa ao descobrir que aquela mulher maravilhosa era a dona do coração de Douglas e entendeu por que tinham se separado quando ele ficou cego. Nadi amava a vida social. Isso estava estampado no rosto dela. Vivia para os flashes dos fotógrafos, gostava de ser o centro das atenções de um mundo onde só havia alegria e despreocupação. Douglas Saint-Same não podia mais acompanhá-la aos clubes e restaurantes internacionais. Não podia admirar sua beleza que agora, para ele, não passava de uma lembrança.
Sabrina estava tão distraída com seus pensamentos, que quase morreu de susto, quando uma voz sussurrou perto dela.
- A lua está linda, não?
Ret estava a seu lado, vestido a rigor, com o paletó branco realçando sua pele bronzeada e os cabelos dourados levemente despenteados pela brisa.
- Está sozinha com o luar e seus pensamentos? - Os olhos cinzentos examinaram os cabelos molhados de Sabrina. - Vejo que esteve na água. Não tem medo de nadar á noite?
- Não; gosto de ficar sozinha.
- Fala isso de modo muito convincente.
Continuava olhando para ela, examinando cada detalhe de seu corpo iluminado pelo luar.
- Você fica diferente, assim, com os cabelos soltos e embaraçados, em vez de presos naquele coque de professora velha.
Estava se divertindo com o esforço que Sabrina fazia para disfarçar o medo. Medo de que ele resolvesse falar da cena que tinha visto. Ret riu baixinho.
- Meu primo teve um grande amor, sabe? Ela era morena e maravilhosa, com olhos verdes e brilhantes. Uma bonequinha mimada, amante do luxo. Quando ele ficou cego, ela se afastou, mas estou certo de que ficou com as esmeraldas, as peles e o Rolls Royce que Douglas lhe deu de presente. E, pelo que estou sabendo, também ficou com o coração dele.
- Nadi Darrel - murmurou Sabrina.
- Ele lhe contou? - Havia surpresa na voz de Ret. - Vejo que está conseguindo ganhar a confiança de meu primo. Bem, não é de admirar: você é do tipo que inspira confidências.
- Não gosta de mim, não é, Ret?
- Isso importa?
- Não. Que adianta a gente se importar com o que é inevitável? Nem todas as lágrimas do mundo podem mudar isso.
- Lágrimas, Sabrina? - A voz de Ret mudou. - Está dizendo que eu a faço ficar com vontade de chorar? Foi por causa do que eu disse no outro dia, quando fomos ver o cafezal? Ficou magoada comigo?
- Fiquei, mas já me recuperei. Há sempre um pouco de crueldade em quem tem beleza, e pessoas como eu acabam se acostumando com observações maldosas.
- Sabrina...
- Por favor, não tente se desculpar. Você estava sendo sincero e estou muito longe dos meus dezenove anos...
- Quando ficou traumatizada com alguma coisa?
- Talvez.
- Apaixonou-se por alguém e foi rejeitada?
- Nunca me apaixonei por ninguém.
Sabrina levantou-se e começou a calçar os chinelos.
Deu um gritinho de surpresa, quando Ret a pegou pela cintura, puxando-a para junto dele. Estava incrivelmente bonito, com os cabelos dourados caindo na testa e os olhos brilhando de desejo.
- Você parece uma peça de porcelana que foi estilhaçada e que está precisando ser consertada. Não lute, Sabrina. Relaxe, aproveite esta noite, este luar...
- Me larga! Não pense que sou uma bobinha que vai servir de divertimento para você, só porque está entediado. Tire as mãos de mim!
- Por quê? Só quer as mãos "dele"?
Ret agarrou os cabelos molhados de Sabrina e puxou sua cabeça para trás com tanta força que ela pensou que fosse quebrar seu pescoço. Contorceu-se, cheia de dor, tentando evitar os lábios famintos que se aproximavam. Lutou, chutando as pernas de Ret, mas ele continuava rindo. Parou, de repente, quando ouviram uma tossinha discreta e a voz de Charles.
- Com licença, sr. Ret, mas será que a enfermeira pode ir ver o patrão? Ele está com dores, e madame me pediu para vir procurá-la.
Surpreso com a chegada inesperada do criado, Ret relaxou os braços e Sabrina aproveitou a oportunidade para se soltar e sair correndo pela trilha entre os rochedos, sem se importar com as pedras que machucavam seus pés. O sofrimento de seu Douglas estava acima de qualquer dor. Não se envergonhava com o que Charles poderia estar pensando. Ele era muito dedicado a Laura Saint-Same e seria discreto. Quanto a Ret... oh, como gostaria de esbofetear aquele rosto perfeito!
Sabrina entrou correndo na casa e encontrou a sra. Saint-Same no corredor que levava aos quartos. Ofegante, começou a se desculpar:
- Sinto muito... estive nadando.
- Depressa, filha, ele está com uma daquelas dores terríveis. Fui lhe dar boa noite antes de me deitar e o encontrei caído na cama, torcendo os travesseiros. Por favor, corra!
Sabrina entrou rapidamente no quarto para pegar a caixa com as injeções. Nem passou por sua cabeça que podia ser estranho ir atender o paciente em trajes de banho. Sua única preocupação era aplicar-lhe o remédio o mais rápido possível para acabar com a dor.
Quando Douglas sentiu as mãos de Sabrina cuidando dele, deu um pequeno gemido de alívio, misturado com uma raiva surda.
- Desculpe por não estar aqui. Eu...
- Nem pense nisso. O que me deixa louco é minha própria impotência numa hora dessas. É possível um homem estar morrendo de dor e nâo poder fazer nada por si mesmo. Ah... já me sinto melhor! Você tem mãos de fada, enfermeira. Faz com que a picada da injeção pareça com uma mordidinha de amor.
- Por favor... relaxe, senhor.
- Senhor? - um sorrisinho cansado apareceu nos lábios de Douglas. Sabrina também sorriu e afastou os cabelos molhados de suor da testa dele. Estava pálido, mas as rugas de dor iam ficando menos marcadas, à medida em que o remédio fazia efeito. Quando se inclinou sobre ele para arrumar os travesseiros, Douglas disse:
- Posso sentir o cheiro do mar em você.
- Estive nadando. Por isso não estava aqui, quando você tocou a campainha. Nem sei como me desculpar...
- Não toquei a campainha. A princípio, tentei lutar contra a dor;
depois, Nim entrou e me viu.
- Douglas, querido... - Laura chegou perto da cama, desesperadamente preocupada, com o lindo penhoar de chiffon flutuando à sua volta. Podia ser uma mulher de aço, quando cuidava da administração da casa e lidava com os empregados, mas ficava totalmente indefesa, quando as crises de dor atiravam o neto num poço de tormentos. - Está melhor agora, meu bem? A dor já está passando?
- Sim, vovó. Não precisa ficar assim tão aflita.
Sabrina deu um sorriso confiante para Laura, tentando acalmá-la, e aproveitou sua presença para ir rapidamente até o quarto, trocar de roupa. Vestiu o pijama e um roupão mais quente. Pretendia ficar ao lado de Douglas até ele se acalmar e pegar no sono.
Um estremecimento percorreu seu corpo, enquanto penteava os cabelos. O pescoço ainda doía por causa da brutalidade de Ret, mas o coração doía por causa de Douglas. Sabia que uma enfermeira não devia ficar tão envolvida com o paciente, mas nunca tinha tratado de alguém tão cheio de vitalidade e, apesar disso, tão completamente à mercê da dor e da escuridão.
Sabrina se olhou no espelho. Quando tinha dezenove anos, em plena idade romântica, descobriu o que era ser rejeitada por um paciente por não ser bonita. O que diria Ret Saint-Same, se descobrisse o outro trauma que havia em sua vida... aquele que a fez sair correndo da Inglaterra, como uma lebre fugindo dos caçadores?
Respirando fundo, Sabrina endireitou o corpo, apertou o cinto do roupão e foi para o quarto de Douglas, tentando aparentar uma tranquilidade que não sentia.
Com muito tato e firmeza, conseguiu convencer Laura a voltar para a cama. Era difícil acreditar que ela já estava com quase setenta anos. Os cabelos brancos e brilhantes emolduravam o rosto de feições bem feitas, valorizando a pele fina e tratada. Laura Saint-Same tinha herdado toda a beleza da família porque era filha de um casal de primos.
Havia sido ela a primeira a falar com Sabrina sobre os Saint-Same morenos, descendentes diretos do primeiro Douglas, o Negro.
- Parece que são amaldiçoados. Raramente encontram a felicidade. Agora, olhando para o neto deitado na cama, ela hesitava em se afastar dele.
- Boa noite, Sabrina - disse finalmente, com um sorriso triste. - É em noites como esta que sinto como se Snapgates estivesse morrendo. Antigamente, havia felicidade aqui. Ainda consigo ouvir o canto dos trabalhadores cortando a cana e levando os cachos de banana para os barcos... lembranças da minha juventude. Agora, está tudo tão quieto, tão triste...
- Alguém devia escrever a história de Snapgates, sra. Saint-Same.
- Douglas poderia fazer isso. Só teria que usar um daqueles gravadores. - Laura deu um suspiro dolorido. - Poderia, mas não vai fazer. Só fica pensando naquela moça... Boa noite, meu bem, cuide bem dele!
Sabrina foi até a cama e pegou o pulso de Douglas. Já estava quase normal e, aos poucos, a cor voltava ao rosto dele.
- Como está se sentindo?
- Como se flutuasse nas nuvens. Não é muito agradável. É como estar girando num carrossel com as luzes apagadas, perdido no vazio. - De repente, pegou a mão de Sabrina e apertou-a com força. - Sabe?, quando durmo, tenho sonhos e neles eu posso ver. Vejo rostos que conheci. Nos sonhos, posso amar... viver...
- Entendo. E que nos sonhos você liberta o seu inconsciente, que não precisa dos sentidos físicos.
- Você é uma críaturinha muito inteligente. Por que, diabo, ainda está solteira, sem compromisso? Será que os homens que vêem são mais cegos do que eu?
- Sou uma mulher dedicada à carreira. - O sorriso desapareceu dos lábios de Sabrina e ela quase perdeu sua compostura profissional. - Durma, monsieur. Vai se sentir bem melhor pela manhã.
- Será mesmo, Sabrina?
- As coisas parecem sempre mais difíceis à noite.
- Para mim, é sempre noite. - A mão de Douglas subiu pelo pulso de Sabrina e encontrou a manga do roupão. - Ah, está vendo como confundo as horas? Pensei que estivesse de uniforme e agora percebo que já é muito tarde e que você já devia estar na cama. Sou mesmo um grande egoísta.
- Não diga isso! Só estou cumprindo a minha obrigação, que é cuidar de você quando sofre. Foi para isso que vim a Snapgates.
- Diga, está gostando dé viver nesta casa velha, tão afastada de tudo?
- E claro. A ilha é um verdadeiro paraíso. Todos sonham com ilhas tropicais, palmeiras e águas azuis. Estou muito feliz por ter respondido ao anúncio.
- E por que fez isso?
Sabrina não conseguiu evitar um certo enrijecimento dos músculos e sentiu os dedos de Douglas se apertando ainda mais em volta de seu pulso.
- Já disse que estava precisando de uma mudança.
- Teria vindo, se soubesse que o paciente era cego, e ainda por cima, um pouco arrogante?
- Um pouco? - Sabrina deu uma risada. - Acho que mais arrogante é impossível.
- Deve estar estranhando viver nesta casa, cheia de lagartixas andando pelas paredes, aranhas no banheiro e com a bicharada fazendo barulho o tempo todo.
- Gosto muito das cigarras e dos grilos. É como se estivesse sempre ouvindo música.
- Ah, uma enfermeira tem que ser eternamente discreta e educada, não é? - Largou-a deixando o calor dos dedos na pele macia. - Bem, acho que vou dormir agora.
Sabrina continuou sentada em silêncio, até as feições de Douglas serenarem e ele cair num sono profundo. Quantas noites tinha passado assim, em vigília, cuidando de um paciente? Só que, nas outras vezes, eram crianças doentes... e agora tinha à sua frente um homem. Forte, bonito, irresistivelmente atraente.
- Durma, Douglas, e sonhe com ela, se não puder evitar. - Murmurando essas palavras, levantou-se da poltrona sem fazer barulho e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si com todo o cuidado.
Sabrina decidiu aproveitar tudo que sua estada na ilha podia oferecer. Não sabia quanto tempo ficaria. A qualquer momento, Ret poderia tomar sua situação insustentável. Pelo menos, quando voltasse para a Inglaterra, teria bons momentos de beleza e calor para lembrar.
Douglas se recuperou rapidamente e, dentro de poucos dias, estava livre da dor e ansioso para dar um passeio. Mandou que o carro fosse tirado da garagem e informou Sabrina de que devia levá-lo à cidade, que ficava a uns vinte quilómetros de Snapgates.
O automóvel era um conversível preto, forrado de vermelho, confortável e luxuoso. Laura veio ver se o neto estava bem instalado no banco da frente.
- Tome bem conta dele - sussurrou no ouvido de Sabrina, mas Douglas não perdeu uma só palavra.
- Ora, pare com isso, Nan - gemeu, fazendo uma careta.
- Que ouvido, meu Deus do céu!
- Preciso de algum tipo de proteção contra essa mania de vocês, mulheres, ficarem me mimando. Pare de me tratar como se usasse fraldas, em vez de bengala, e ficarei muito agradecido.
Laura fez um gesto de impotência. Sua vontade era proteger o neto vinte e quatro horas por dia. Por ela, todas as pedras da ilha seriam jogadas ao mar, para Douglas não tropeçar. Sabrina entendia muito bem o que a velha senhora sentia, mas sabia que ele tinha que ser encorajado a enfrentar o mundo.
- Está tudo bem, sra. Saint-Same. Sou boa motorista e há pouco trânsito na estrada, irei bem devagar.
- Vamos parar com todos esses mimos, vocês duas. Vou falar com o gerente do banco, Nan, e depois pretendo fazer algumas compras e levar a enfermeira para almoçar. E ela vai dirigir na velocidade que eu mandar!
- Douglas, você é realmente um monstro quando quer! - Laura se inclinou e beijou o rosto do neto. - Não vá amolando essa pobre moça. Ela pode ficar nervosa e é capaz de sair da estrada ou bater em alguma coisa. Sabrina, faça o possível para ignorar as instruções dele e procure manter a calma.
- Pode ficar tranquila, sra. Saint-Same. - Olhou para Douglas, que estava muito sério, apertando com força a bengala branca. Em outros tempos, seria ele quem estaria ao volante, dirigindo em alta velocidade, como Ret, com uma mulher sentada ao lado dele.
- Podemos ir, monsieur?
- Mal posso esperar, enfermeira. Se eu ficar bonzinho, promete me comprar algodão doce e um baldinho para brincar na areia?
- Douglas! ,
- Pode deixar, sra. Saint-Same. Já estou acostumada com toda essa ironia. É sinal de que ele já está totalmente recuperado.
- Então, é melhor se cuidar, Sabrina! - Douglas deu um sorriso malicioso, enquanto ela ligava o carro. - Diga-me, Nan; Sabrina está bonita? Toda de cor-de-rosa, talvez, com os cabelos brilhando, emoldurando o rosto?
- Laura deu um olhar curioso para a moça, que vestia um casaquinho bege e uma camisa de seda branca, e estava com os cabelos presos no coque de sempre.
-- Até logo, sra. Saint-Same - disse, tentando esconder o embaraço.
- Prometo dirigir com todo cuidado.
- Até logo, filha, E comporte-se, menino!
- Ora, vovó, faz tempo que passei da idade.
Laura acenou e eles seguiram peia alameda que levava aos portões de entrada da propriedade. O porteiro apareceu para abrir, sorrindo.
- Bom dia, patrão. Esta um lindo dia para um passeio.
- Parece mesmo, Josh. Como estão passando Janie e as crianças?
- Muito bem, patrão. Nasceu mais um menino. São cinco agora.
- Uma boa conta. Transmita meus cumprimentos à sua senhora.
- Obrigado, sr. Douglas. - Os dentes muito brancos de Josh brilharam no rosto escuro.
- As acácias devem estar floridas - disse Douglas, depois de alguns minutos. - Sabe?, temos um costume na família: cada vez que há um casamento, planta-se um pé de acácia na alameda. Agora, só haverá outro, se Ret casar.
- É uma pena - murmurou Sabrina. - Devia haver uma árvore para o senhor de Snapgates.
- Não; o senhor não terá uma companheira. Não haverá uma noiva para colocar o primeiro punhado de terra sobre as raízes da acácia. Não haverá árvore, nem ramos cobertos de flores... e não me venha com aquela história de dizer que sou igual aos outros homens!
- Não ia dizer isso.
- É?
- Não há duas pessoas iguais no mundo.
-- Espertinha, hein?
-- Uma simples questão de lógica, monsieur.
- Deixe a lógica para os filósofos, Sabrina, ela não combina com moças bonitas.
- Por favor... - Estava para implorar que parasse de dizer que era bonita, quando viu uma árvore caída no meio da estrada e teve que fazer uma manobra complicada para passar por ela.
- Você dirige muito bem. Quem ensinou?
- Frequentei uma auto-escola. Sempre achei que uma carteira de motorista seria muito útil na minha profissão. Cheguei a comprar um carro, que vendi antes de vir para cá.
- Agora conte por que, realmente, saiu da Inglaterra?
- Já contei.
- Disse que estava querendo mudar de clima... mas talvez um dia me conte por que há sempre uma certa tensão na sua voz, quando menciono a Inglaterra. Não tente me enganar, sabe muito bem como são os meus ouvidos.
Sabrina ficou em silêncio e tirou os olhos da estrada para dar uma olhada rápida para o perfil do homem a seu lado. Era moreno, orgulhoso, com as feições fortes marcadas pela vida. O paletó branco assentava em seus ombros largos sem uma ruga e a gravata estava perfeitamente no lugar. Devia ter permitido que Charles o ajudasse a se vestir com tanto apuro. Os cabelos pretos estavam brilhantes e bem penteados, e a barba bem escanhoada indicava que tinha sido feito com navalha e, não com o barbeador elétrico que ele usava quando se arrumava sozinho.
Sabrina sabia que era uma tolice, mas, naquele dia, não pretendia fazer nenhum esforço para lutar contra a atração que sentia por Douglas. Por algumas horas, não ia pensar nele como seu paciente e queria ser tratada como se fosse Nadi Darrel.
Sabrina estacionou o carro perto do antigo mercado de escravos, próximo ao porto. Era dia de feira e toda a área fervilhava de gente. As barracas de frutas e verduras eram verdadeiras explosões de cor, e a enorme variedade de crustáceos e peixes brilhava como prata ao sol alegre da manhã.
- Me dè seu braço - disse Douglas. - Vai me guiar até o banco. Se estivermos bem na frente do mercado, poderá ver o banco à direita, do outro lado da rua.
- Sim, já vi onde é.
O banco ficava num antigo prédio restaurado, branco, com colunas, que devia ser tão velho como o porto. Toda a área estava preservada, mantendo o aspecto dos tempos coloniais, e os pequenos barcos a vela ancorados junto a chatas cheias de cachos de banana contribuíam ainda mais para trazer à lembrança os dias tristes, quando correntes de ferro prendiam os pulsos e tornozelos daquele povo tão jovial.
Agora, os homens vestiam camisas coloridas, indo e vindo com suas mercadorias, conversando alto, dando gargalhadas gostosas, e as mulheres formavam grupinhos alegres em volta das barracas, discutindo preços e qualidade. Os lamentos do tempo da escravidão tinham sido substituídos pelos calipsos cheios de ritmo que vinham dos rádios portáteis, e em vez do arrastar das correntes, ouvia-se o alegre tilintar dos colares e brincos de metal dourado.
Douglas parou por um instante e respirou fundo o ar carregado de aroma de flores e especiarias.
- Dia de feira é uma festa, não acha, Sabrina?
- Sim, nunca vi tantas cores juntas. Se alguém pintasse um quadro e levasse para a Inglaterra, diriam que era imaginação do artista. Cuidado com os degraus!
- Degraus, sempre degraus! - resmungou Douglas, mas conseguiu subir sem tropeçar e apertou o pulso de Sabrina, como que para mostrar sua satisfação por ela não ter deixado claro para as outras pessoas que ele era um cego, guiado por uma enfermeira.
Assim que entraram no banco, um funcionário veio recebê-los para levar Douglas ao escritório do gerente. Ele devia ter telefonado com antecedência, pois parecia estar sendo esperado. Sabrina ficou na saleta, olhando o movimento dos clientes e funcionários, observando os tipos diferentes, os trajes coloridos, querendo absorver todas aquelas impressões para o dia em que estivesse de volta à cinzenta e sombria Inglaterra.
Virou-se, surpresa, quando um funcionário veio chamá-la.
- O sr. Saint-Same pediu para a senhorita ir ao escritório do gerente. Quer sua opinião sobre um certo negócio.
- Opinião? - Intrigada, seguiu o homem, que indicou uma porta no fundo do corredor.
Douglas estava sentando em frente de uma luxuosa e pesada escrivaninha que devia estar ali desde os áureos tempos dos grandes plantadores de cana-de-açúcar e café. O gerente, apresentando-se como sr. Warren, puxou uma cadeira para Sabrina, que viu, à sua frente, sobre a mesa, uma caixa de cofre aberta.
- A enfermeira Muir é minha confidente - disse Douglas. - Já está sabendo o que acabo de lhe dizer. Afastei definitivamente a ideia de um casamento; portanto, essas jóias de família não têm mais utilidade para mim e não vejo razão para continuarem fechadas num cofre, quando poderiam ter melhor uso. Sabrina, quero que escolha um colar e um broche para minha avó e uma peça adequada para uma moça da sua idade. O resto será vendido e o dinheiro revertido para uma instituição de caridade da qual sou membro do conselho consultivo.
Sabrina olhou o tesouro à sua frente e virou-se para Douglas, muda de espanto. O rosto moreno mostrava uma sombria determinação. Algumas das jóias eram muito antigas, deviam estar na família há séculos, e o fato de ele querer se desfazer delas mostrava que não tinha mais qualquer esperança para o futuro. Teve vontade de conversar com ele, de tentar fazê-lo mudar de ideia, de dizer que nem todas as mulheres eram como Nadi Darrel e que um dia ainda poderia ser feliz. Ainda poderia encontrar alguém, mãos amorosas dispostas a guiá-lo por toda a vida. Nesse dia, talvez lamentasse a decisão de se desfazer de jóias que uma esposa teria todo o direito de usar... como aquelas pérolas sedosas que deviam ter adornado tantos vestidos de noiva.
- Vamos, Sabrina. - Douglas estava impaciente. - Escolha logo. O sr. Warren cuidará da venda do resto. Não seja sentimental com simples enfeites! Há muitas crianças passando fome, enquanto coisas como essas, que jamais serão usadas, estão fechadas em caixas de aço.
- Está certo, sr. Saint-Same. -- Ela hesitou por alguns segundos e depois começou a examinar as jóias. - Há um colar de pérolas de três voltas que tenho certeza que sua avó vai adorar. E o broche de safira com pérolas combina muito bem com ele. É lindo... Quer senti-lo? As pérolas vão diminuindo de tamanho e são encantadoras. Acho que jóias assim não devem sair de sua família.
- Ponha-as em minha mão. - Douglas segurou as pérolas, sentindo-as escorrer por entre os dedos. - Parecem seda, não? Está certo; ficarão muito bem em Nan e a safira vai combinar com a cor dos olhos dela. Agora, escolha a outra... para uma moça.
Sabrina deu um olhar de desânimo para aquele rosto tão decidido e começou a abrir as caixas menores. Uma delas era de veludo azul e, quando levantou a tampa, não pôde evitar uma exclamação de espanto e encantamento: era uma correntinhà de ouro com um pendente de jade em forma de concha, num extraordinário trabalho de ourivesaria.
- Estou... estou certa de que qualquer moça iria adorar esta - disse, pondo a jóia na mão de Douglas.
Ele passou os dedos pela peça por alguns instantes e depois colocou-a na palma da mão de Sabrina e a fez fechar os dedos sobre ela.
- É para você. Agora, continue procurando. - Sei que deve haver -um par de brincos de brilhantes em alguma dessas caixas.
Confusa com o presente e ainda não muito certa se devia aceitar, Sabrina foi abrindo as caixas, até encontrar o que ele queria. Quando viu os brincos, soube imediatamente a quem estavam destinados. Eram dois diamantes em forma de lágrimas que ficariam extraordinários numa mulher sofisticada, realçados por uma cascata de cabelos escuros e ondulados! - E então, encontrou?
- Sim, sr. Saint-Same.
- Muito bem. Ponha tudo na sua bolsa e deixe o resto com o sr. Warren. Ele já sabe o que fazer.
- Senhor, está absolutamente certo de que quer se desfazer das jóias? -- O gerente parecia muito preocupado. - Naturalmente, conseguiremos o melhor negócio. Serão levadas para nossa matriz em Londres, que se encarregará de oferecê-las aos mais renomados compradores. No entanto...
- Sem hesitações, Warren. Já sabe para onde enviar o dinheiro. Estou certo de que será suficiente para encher muitas barriguinhas durante alguns anos. É muito mais gratificante satisfazer a fome das crianças do que a vaidade das mulheres. E agora, enfermeira, está na hora de irmos.
Despediram-se do gerente e se dirigiram para a porta principal. Sabrina não pôde deixar de notar os olhares de curiosidade e pena dos clientes e funcionários e ficou feliz por Douglas não ter condições de saber o que estava se passando. De repente uma mulher tola e irresponsável não conteve uma observação e os ouvidos sensíveis captaram imediatamente as palavras.
- Como é horrível ver Douglas Saint-Same desse jeito! Ele que sempre guiou todo mundo agora tem que ser guiado!
Sabrina sentiu o estremecimento de fúria que passou pelo corpo de Douglas.
- Tire-me daqui! - murmurou, tenso. - Depressa, antes que eu mande essa mulher e sua piedade para o inferno!
Quando saíram do banco e se aproximaram dos degraus, Sabrina apertou o braço dele.
- Por favor, cuidado. Uma mulher como aquela não merece uma queda.
- Você também? Está com pena do pobre ceguinho?
- Não preciso dizer o que sinto. Sei que continua a ser um leão, mas as pessoas que não o conhecem intimamente não podem saber. Mantenha a calma e conseguiremos andar pela rua sem nenhum problema.
Douglas apertou o braço dela com força e Sabrina aceitou a dor com uma espécie de alegria. Ele podia adorar Nadi Darrel com uma paixão sem esperanças, mas precisava de Sabrina Muir. Ela era seu escudo contra aqueles que o encaravam com olhos cheios de piedade.
Provavelmente, ia ficar com manchas roxas no braço, mas isso não tinha importância, porque, de repente, teve certeza de quanto o amava. Quando atravessaram a rua, ela perguntou:
- Para onde vamos agora? Você disse que queria fazer compras.
- Mudei de ideia. Charles pode cuidar disso. O que preciso é de uma bebida! Um copo bem grande de gim com tónica. Ainda estamos em frente do banco?
- Sim...
- Então, vamos entrar na primeira travessa à esquerda, e logo você verá um bar chamado Bellafonda.
- Um esconderijo?
- O que está querendo dizer?
- Não se faça de desentendido. Está com medo de ouvir outros comentários sobre sua cegueira.
- Maldita seja, mulher!
-- Pode me amaldiçoar à vontade. Estou só dizendo a verdade.
- Quando quiser ouvir a verdade, eu peço. Faça o seu serviço e cumpra as minhas ordens.
- Você disse que íamos almoçar no Colony Club. Estou ansiosa para sentar no mesmo salão onde esteve a princesa.
- Ah, é uma pedante, também? Zé-povinho com mania de realeza?
- Pode dizer o que quiser: já estou acostumada com maus modos.
- Não sou uma das suas crianças.
- Pois está se comportando igual. Será que é tão importante o fato de uma mulher idiota sentir um pouco de pena de você? Se eu estivesse com uma perna quebrada, até que gostaria de um pouco de simpatia.
- Está bem, está bem, chega de discussão. Vamos logo a esse maldito clube! Acho que, pelo menos, merece que lhe pague um bom almoço por aturar o meu génio ruim - disse Douglas, pondo a mão nas costas de Sabrina, para indicar a direção que deviam tomar.
De repente, o toque dos dedos dele ficou surpreendentemente gentil. Estavam bem juntos, à sombra das marquises dos prédios na rua quase deserta, afastada do burburinho da feira em frente do mercado de escravos. Sabrina ouviu Douglas prender a respiração. Não sentiu medo, quando os olhos cinzentos ficaram brilhantes e escuros revelando um desejo solitário e intenso por uma mulher que pudesse tornar sua cegueira mais suportável.
Os dedos finos e morenos deslizaram pelo pescoço dela.
- Não está com a corrente que lhe dei. Não gostou dela?
- Eu... é claro que gostei. Está... está aqui na minha bolsa.
- Então, use. Uma concha é um símbolo de proteção contra o mal e é do que precisa, quando começo a maltratá-la como um bruto. Sua pele é macia e posso sentir os ossos sob os meus dedos. Você é magrinha, Sabrina; não come bem?
- Como o suficiente, monsieur. - As mãos dela tremiam de emoção por ser tocada de modo tão íntimo, e foi com dificuldade que abriu a bolsa, pegou a jóia e fechou em volta do pescoço.
- Pôs a corrente?
- Sim - disse, baixinho, emocionada, enquanto Douglas tateava a correntinha e a concha de jade, bem junto ao pescoço quase como uma gargantilha. - Foi... foi muita generosidade sua me dar um presente como este. Prometo cuidar muito bem dele. Obrigada.
- No dia em que nos separarmos, você já terá merecido muito mais do que isso. Bem, vamos almoçar. Temos que dar a volta no mercado para entrar na avenida principal. E a que tem as palmeiras imperiais. O clube é um prédio branco, comprido, cheio de terraços com trepadeiras e hibiscos vermelhos no jardim, pelo menos, é assim que me lembro dele.
Apesar de todo o movimento da feira, Sabrina conseguiu guiar Douglas sem maiores problemas, se bem que sentisse que ficava inseguro, quando apertava seu braço com força, sempre que alguém esbarrava nele. Como todos estavam muito ocupados, comprando e vendendo, ninguém pareceu prestar muita atenção naquele cego sendo conduzido por uma jovem de cabelos castanhos.
A avenida era larga e muito mais tranquila, e puderam andar mais à vontade, sentindo a brisa fresca que vinha do mar. Quando chegaram ao clube, foram conduzidos a uma mesa no terraço, à sombra de uma trepadeira florida. Quando o garçom entregou o cardápio a Sabrina, Douglas disse, num tom agradável:
- Escolha alguma coisa que nunca experimentou. Amor, pensou ela.
- Ostras - disse em voz alta.
- Espera encontrar uma pérola?
- Seria ótimo.
- Sem dúvida. Não há quem não goste de pérolas. - Douglas virou o
tosto em direção do garçom. - Ostras para os dois como entrada. Depois, filé à Diana, uma salada e batatas fritas... minha enfermeira nào precisa se preocupar com as calorias,.
Quando foram servidos e ficaram sozinhos. Sabrina olhou ansiosa, enquanto Douglas comia as ostras diretamente da casca.
- Não precisa ficar tensa. Seu bebé não vai derramar molho na roupinha nova!
- Não seja ridículo. Nem posso imaginá-lo como um bebezinho.
- Pois garanto que não cheguei a este mundo precisando me barbear duas vezes por dia. Por falar nisso, estou pensando em deixar crescer a barba; seria muito menos trabalhoso. Que tal?
- Acho que vai ficar com cara de bandido.
- Muito obrigado pelo cumprimento!
-- Você é tão moreno para um inglês!
- Bem, acontece que, não só sou um daqueles Saint-Same que nascem de cabelos pretos, como também sou filho de uma francesa. Meu pai ficou conhecendo minha mãe quando o avião dele foi abatido durante a guerra. Eles fugiram juntos da França e casaram em Dover, numa capelinha semi-destruída pelas bombas. Muito romântico, não? Fico feliz por ela ter morrido antes de me ver cego. Sou filho único e fui a razão de ser da vida de minha mãe, desde que meu pai morreu, pouco antes do fim da guerra.
- Quer dizer que somos ambos órfãos.
- Tem vivido muito solitária, Sabrina?
- Enfermeiras são muito requisitadas. Há sempre alguém precisando de cuidados.
- Não foi isso que eu quis dizer. Queria saber sobre os homens de sua vida. Mas agora percebo que fui extremamente grosseiro. Hum... esse bife está delicioso. A comida aqui sempre foi excelente.
- Está ótimo. Nem sei como lhe agradecer por ter me trazido a um lugar tão agradável.
- O mar deve estar muito bonito, não? Pelo barulho das ondas, noto que está calmo. Precisamos ir nadar um desses dias.
- Você...
- Sim. - O tom de voz de Douglas voltou a ficar seco. - Para mim a água é mais segura do que uma rua. Não ha trânsito nem pessoas se acotovelando. O único perigo maior que poderia encontrar seria um tubarão mais ousado, arriscando-se a vir para perto da praia. Mas, como não posso ver, não entraria em pânico... e, por isso, ele certamente me deixaria em paz.
- É interessante: você desenvolveu sentidos que fazem com que não tenha medo de coisas de que eu, por exemplo, teria. A natureza nunca é totalmente cruel. Sempre há suas compensações.
- Enfermeiras também têm que fazer curso de sabedoria?
- É uma profissão que exige que se seja compreensiva.
- E você acha que me compreende?
- Talvez, até certo ponto. Entendo que a cegueira traz uma grande amargura e, como você nunca foi uma pessoa doce e gentil, mesmo quando podia ver, não haveria motivos para começar a agir como um anjo de bondade.
- E acha que pode aguentar o oposto, o anjo do mal?
- Já vai começar de novo?
- Um dia desses, vou acabar fazendo você chorar, não é, Sabrina? - Douglas deu um sorriso amargo. - Muito bem, chame o garçom: vamos escolher uma sobremesa para adoçar a conversa.
Pediram pêssegos em calda com creme e ficaram conversando sobre a ilha, o povo, o contraste entre a vida na Europa e nos trópicos, evitando qualquer assunto mais pessoal.
Foi um almoço memorável para Sabrina, mas só depois que saíram do clube e estavam andando pela calçada que dava para o mar é que o dia tomou um significado muito mais especial.
Parte da área era usada como marina pelos membros dos vários clubes, e Sabrina estava admirando a variedade de barcos ancorados quando viu entrar um grande iate branco e azul, vindo vagarosamente em direção do ancoradouro. Uma moça morena, com os cabelos esvoaçando ao vento, estava inclinada sobre a grade do convés. Usava um conjunto de bustiê e calça bufante de seda verde-clara, fazendo um impressionante contraste com a pele queimada de sol. Quando a jovem levantou os olhos para a amurada da avenida, Sabrina viu que eram verdes, maravilhosos, quase metálicos.
Dessa vez, foi ela quem tropeçou, e Douglas teve que ampará-la.
- Cuidado, menina, não vá cair -disse, brincalhão.
Sabrina olhava fascinada para a moça no iate. Nadi Danel... chegando àquela ilha, onde Douglas lutava para esquecê-la!
Sentiu um desejo intenso de protegê-lo contra a linda e impiedosa mulher que, por alguma razão, voltava à vida dele. Inventando uma desculpa, guiou-o para o outro lado da avenida e procurou pela primeira travessa que os levasse para longe da marina. Douglas não podia ver Nadi, mas ela poderia reconhecê-lo imediatamente, mesmo a distância, e Sabrina sabia que ele não estava preparado para um encontro. No entanto, seria inevitável.
Voltaram a Snapgates numa velocidade moderada. A tarde parecia sonolenta depois de toda a atividade que tinham visto pela manhã.
- Está muito quieta, Sabrina.
Douglas fumava, e a fumaça, levada pelo vento, batia no rosto dela, dando-lhe uma sensação de intimidade que agora era quase insuportável.
- Em que está pensando? - ele insistiu.
- Que nunca vou esquecer a beleza desta ilha,
- Não fale como alguém que está esperando ir embora a qualquer momento. Estou muito satisfeito com seu serviço. E você, tem queixas de mim?
- Claro que não,., mas é que a vida pode mudar de um momento para outro. É um erro ficar gostando demais de algum lugar.
- E de certas pessoas, não é? - Uma ponta de cinismo sublinhou as palavras.
- Isso é ainda mais perigoso.
- Está pensando em alguém em particular? Ah, lá vou eu de novo, querendo saber dos seus segredos. É um péssimo costume, eu sei, mas o problema é que os sentidos ficam mais aguçados quando não se pode ver. Senti uma certa mudança em você, desde que saímos do clube.
- Estou concentrada na estrada. - Sabrina tentou parecer despreocupada. - O sol está batendo nos meus olhos e esqueci de trazer óculos escuros,
- Entendo, Lembro muito bem como é este caminho. O sol já deve estar brilhando por entre as árvores e a sucessão de luz e sombra ofusca a vista. Douglas concordava com ela, mas Sabrina sabia que continuava curioso e ia se tornar cada vez mais insistente, A relação entre eles tinha mudado sutilmente, desde o episódio da venda das jóias. Não eram mais apenas um paciente e sua enfermeira. Douglas tinha aberto uma das portas de seu íntimo e permitido que ela entrasse... portanto, ia começar a exigir o| mesmo. Acabaria por se apoderar de seu segredo; ficaria sabendo de sua ânsia de, um dia, significar algo de especial para alguém. E ia fazer isso sem nem mesmo sonhar que esse alguém era ele.
Sabrina quis implorar para que fosse distante e indiferente, mas, no íntimo, sabia que Douglas podia fazer o que quisesse com ela. Aceitaria qualquer coisa para tornar sua cegueira mais tolerável.
Ela era a mão que o ajudava na escuridão, a pessoa que servia de bode expiratório, quando estava magoado, querendo ferir alguém. Ela o estimulava a pensar, porque o intrigava com um segredo. Douglas precisava dela, mesmo que não fosse como mulher; não passava de uma mísera sombra daquela criatura sofisticada e desejável que tinha deixado lembranças inesquecíveis de seu charme e de sua alegria de viver. Sabrina Muir estava ali para mantè-lo em segurança, para cuidar dele, e nunca seria considerada mais do que sua enfermeira feinha e devotada. Ninguém jamais poderia desconfiar de quanta dor e prazer sentia, só em estar ao lado dele.
- Você acaba de tomar uma decisão - disse Douglas. - Senti isso claramente. Começou a dirigir com mais confiança e seu corpo ficou mais rígido. Por acaso, esteve pensando em me deixar à mercê de uma nova enfermeira e mudou de ideia?
- Para ser franca, sim.
- Por quê? Será que trabalhar com crianças é menos desgastante? Sabrina quis dizer que era menos perigoso, mas, como tinha tomado a
decisão de ficar e não deixar transparecer seus sentimentos, ia responder com uma palavra de confiança, quando o carro começou a perder velocidade e logo parou. Ficou olhando para o marcador de gasolina... estava a zero! -- Paramos para você admirar o panorama?
- Não. Sinto muito, parece que estamos sem gasolina.
- Não diga! - Douglas deu uma gargalhada divertida. - Sei que isso costuma acontecer, mas, geralmente, é ao contrário, com a moça no lugar da vítima.
- Sou uma boba! Fiquei conversando com sua avó quando saímos e nem reparei no marcador.
- Normalmente, o tanque permanece cheio, mas pode ser que Ret tenha usado o carro. Parece que tudo que é meu o atrai. Bem, descreva exatamente onde estamos e poderei ter uma ideia de quanto teremos que caminhar até Snapgates.
- Estamos no início da subida. Há uma mata à direita, cheia de árvores com flores roxas e cor-de-rosa, e, do outro lado, a estrada acaba numa inclinação que vai até a praia.
- O que significa uma longa caminhada debaixo desse sol... A não ser que sigamos pela praia até os rochedos. Aí, subiremos a trilha e estaremos em Snapgates. Levaremos mais de uma hora, mas, pelo menos, não morreremos de calor na estrada asfaltada. Desça, Sabrina, e vá ver se há algum caminho para descermos até a praia.
- Mas...
- Não sou tão inútil assim, enfermeira! Por acaso, está achando que vai ter que me carregar no colo?
- Não, claro que não.
Sabrina saiu do carro e foi para a beira da estrada. Abriu um espaço entre os arbustos e viu uma pequena trilha no mato que ia até uma praia de ondas muito grandes, com coqueiros em toda a extensão. A colina não era muito íngreme; poderia guiar Douglas sem grandes dificuldades. Desceriam devagar e, depois que chegassem à areia, não haveria outro obstáculo mais sério até alcançarem a baía de Snapgates. Talvez tivessem que subir no escuro, por que o sol já estava começando a descer no horizonte, mas, como Douglas tinha dito, seria muito mais agradável do que caminhar morro acima na estrada asfaltada. Voltou ao carro e explicou a situação.
- Ótimo. Acho que levaremos uma hora até a nossa praia e chegaremos a tempo de ver o crepúsculo. Isto é, você vai ver. Só poderei me lembrar de como é. Como outros quadros, está claro e vívido em minha mente.
Ele começou a descer do carro e Sabrina teve que refrear o impulso de ajudá-lo. Esta tinha sido a lição mais difícil de aprender, desde que trabalhava com Douglas Saiat-Same: nunca devia tentar auxiliá-lo, a não ser que fosse absolutamente indispensável.
- Tranque o carro, Sabrina. Charles tomará as providências para mandar buscá-lo. Tudo pronto?
- Sim.
- Então, mocinha, mostre-me o caminho.
Sabnna olhou para trás e viu as pegadas na areia sendo lentamente apagadas à medida em que as ondas passavam sobre elas. O sol já começava a baixar no horizonte e as grandes vagas que batiam nos recifes brilhavam com reflexos. Douglas parou e virou o rosto em direcão do mar.
- Ele é implacável e primitivo como o amor. Ouça essa música, Sabrina. Ela fala de tantas coisas, eternas e ilimitadas... Os recifes são como o coração do homem, que é maltratado num momento e acariciado no outro.
Sabrina sentia a vibração do mar em todo o corpo e pensou que nunca em sua vida tinha experimentado uma sensação igual de estar tão integrada à natureza.
- O pôr-do-sol está muito bonito?
- Como sabe que o sol já está se pondo?
- Porque não posso senti-lo no meu rosto. Está caindo como uma bola de ouro sobre o mar?
- É um espetáculo maravilhoso, mas acho que devemos continuar nosso caminho. Logo vai ficar escuro e...
- Então, serei eu quem irá guiá-la. A noite é minha amiga: todos os sons ficam mais nítidos e posso segui-los como se fossem pequenos sinais. Preste atenção, Sabrina: consegue ouvir os caranguejos correndo levemente peia areia á procura de comida? Acho que não, mas eu sei onde eles estão. Sabe?, é diferente poder conversar sobre isso como estou fazendo. Antigamente, não era assim. Havia sempre tanto a fazer... As pessoas com quem eu convivia naquela época nunca conseguiriam entender a mudança que houve em mím, desde que precisei usar meus outros sentidos.
Douglas ficou em silêncio, fazendo marcas na areia com a ponta da bengala. A brisa do fim de tarde balançava suavemente as folhas das palmeiras.
- Hoje em dia, a beleza de uma voz tem muito mais significado do que a beleza de um rosto. Agora, sou um homem que julga os outros pelos seus passos e perfumes. Você, por exemplo: eu a imagino como uma corça, tímida e, ao mesmo tempo, valente; graciosa e, algumas vezes, desajeitada. Seu perfume é muito delicado, e estou certo de que se veste de modo discreto... e os seus desejos estão acorrentados. - Enquanto falava, Douglas se aproximou e, subitamente, ficou muito perto de Sabrina. Ela se afastou automaticamente e abafou um grito de surpresa, quando bateu com as costas no tronco de uma palmeira.
- Você fala como se fosse... pura - continuou Douglas. - Tem medo de um cego? Se corresse de mim, não poderia alcançá-la, e sei que deve ser rápida como uma corça. - Levantou a mão, procurando o rosto dela. - Está chorando? Que bobinha! É porque a deixo nervosa?
- Foi você mesmo quem disse. - Sabrina sentia-se sufocada pelas lágrimas, tão difíceis de controlar, e pela presença de Douglas, forte, quente e vital. - As pessoas não ficam com piedade quando são magoadas.
-- Fica magoada quando falo dos seus desejos? Onde os deixou? Na Inglaterra? Ah, é mesmo, prometi que não ia mais perguntar... mas quando uma moça como você aparece em Snapgates assim, sem mais nem menos, tenho que saber o porquê. É a melhor enfermeira que já tive. Como farei para substituí-la, se algum homem a chamar de volta?
- Por que tem tanta certeza de que seria por causa de um homem? - Sabrina lutava desesperadamente contra as lágrimas. - Eu poderia ter roubado alguma coisa, ter dado um remédio errado, há tantas outras razões para...
- Nada disso combina com você.
- Acredita que me conhece tão bem assim?
- Ah, agora me pegou. Você, de todas as pessoas que vivem à minha volta, é a que menos conheço. Quando penso em Nan, Ret ou em alguém que conheci antes de ficar cego, ainda posso me lembrar de como são.
Douglas passou os dedos pelo rosto de Sabrina e novamente ela prendeu a respiração, emocionada. Os dedos fortes tocaram de leve seus lábios, subiram pelas faces tímidas e chegaram aos olhos. Ela fechou as pálpebras para que ele pudesse sentir melhor.
- Como seus olhos são grandes, Sabrina.
- São para ver você melhor - ela tentou brincar, mas estava toda tremula. Sabia onde Douglas pretendia chegar: estava tão curioso em descobrir se havia existido um homem em sua vida, que queria comprovar por si mesmo se ela já tinha alguma experiência no amor.
Ficou tensa contra a árvore, temendo aquele beijo, rezando para Douglas soltá-la, mas ele a pegou pelos ombros com mais força ainda, e ela sentiu a respiração acelerar.
- Não... por favor!
- Por quê? Não é ético... ou não é desejado?
O coração de Sabrina começou a bater alucinado, como o mar nos recifes de coral.
- Você só está fazendo isso porque tem curiosidade sobre mim. Não tem o direito de se valer disso. Não é justo, porque é mais forte do que eu, porque paga o meu salário e porque não pedi o presente que me deu!
A mão de Douglas procurou a correntinha e a concha presas no pescoço de Sabrina. O calor daqueles dedos era como uma deliciosa tortura. Ela ansiava por ser tocada, abraçada, mas sabia que isso só lhe traria sofrimentos. Douglas logo ia saber que a mulher de seus sonhos estava na ilha e, então, não pensaria nela senão como a sua enfermeira.
- Quando... quando aceitei o presente, não pensei que tivesse que pagar por ele.
As palavras foram ditas... agora era tarde demais. Como numa represália brutal, Douglas a fez gritar, quando a enlaçou com braços fortes, destruindo toda a resistência de seu corpo franzino. Tomou seus lábios entreabertos com sofreguidão, e seu beijo foi quase implacável. Estava escurecendo, e, na escuridão, ele era o senhor. Quando a soltou, Sabrina estava ofegante e trémula, sem saber o que fazer.
- Muito obrigado - disse Douglas, num tom cínico. - O que eu ganharia, se tivesse lhe dado os diamantes?
Aquele beijo tinha aberto as portas do céu para Sabrina... e aquelas palavras a levaram ao desespero.
- Acho que é melhor irmos andando.
- Há algo melhor para se fazer? - Foi a resposta irónica.
Sabrina mordeu o lábio, envergonhada, e depois notou que a bengala estava caída na areia. Abaixou-se, pegou-a e prendeu-a no braço de Douglas.
- Está me colocando no devido lugar?
- O que quer dizer?
- Um cego não pode ser objeto de amor, não é?
Com essas palavras, Douglas começou a andar, sem esperar por ela. Quando chegaram à trilha que subia pelos rochedos, foi Sabrina quem tropeçou.
- Esse é um daqueles casos patéticos: um cego guiando outro cego. Talvez seja melhor esperarmos pela lua.
- Seria bom mandar iluminar este caminho. A noite nos trópicos cai tão depressa e é tão escura! Deve ser para compensar o brilho do sol durante o dia.
- E a lua é sempre mais brilhante. Como estava ela, naquela noite em que você veio nadar?
- Muito linda, quase dourada,
- Cor-de-champanhe?
- Não sei, nunca bebi champanhe.
- Pobre menininha carente! Então, é isso! Apaixonou-se por um jovem médico... bonito e dedicado... pobre e trabalhador, que não podia...
- Por favor, pare!
- Não gosta de falar sobre seu amor perdido?
- Você também não gostaria que lhe perguntasse sobre Nadi Darrel! - Droga, mais uma vez, tinha dito o que não queria!
Haviam chegado ao alto dos rochedos e Douglas ficou parado como uma estátua, enquanto os grilos escondidos nas folhagens enchiam a noite com ruído e as estrelas começavam a surgir no azul-escuro do céu.
- Quem lhe falou sobre Nadi? - perguntou, áspero. - Como ficou sabendo sobre ela?
- Vi as fotografias na sua escrivaninha. Eu a reconheci imediatamente. É uma modelo famosa, está em todas as capas de revistas.
- Íamos casar, sabia disso também? Ela estava comigo no dia que os médicos deram a palavra final: a cegueira ou a morte. - Um tom de profunda amargura surgiu na voz de Douglas, enquanto falava, parado no alto dos rochedos, com os olhos voltados para as estrelas que não podia ver. - Nenhum homem quer morrer assim, como um galho se quebrando...
- Como uma árvore sendo abatida - murmurou Sabrina, muito pálida.
O vento tinha desmanchado seus cabelos, que esvoaçavam como uma nuvem em volta do rosto delicado, pequeno demais para os olhos grandes e expressivos. As feições de Sabrina eram incomuns. Se vivesse em outra época, poderia ter servido de modelo para um pintor como Renoir, mas ela não tinha consciência disso. Os jovens médicos a achavam esforçada, competente, mas sempre distante. Os pacientes logo percebiam que não era do tipo que gostava de brincadeiras e procuravam por enfermeiras mais atrevidas. Só as crianças sempre a tinham amado. Complexada e totalmente dedicada ao trabalho, Sabrina não fazia ideia de como era graciosa.
- Diga-me: acha que errei em escolher a vida em vez da morte, mesmo indo contra o desejo de uma mulher muito amada?
- Não. Na minha opinião, é errado alguém dizer: "Eu o amo, mas só se puder me ver". Isso não é amor, é egoísmo.
- Nadi é uma criatura maravilhosa, cheia de vida, de alegria... teria sido injusto, desastroso, pedir que continuasse a meu lado.
- Ela se ofereceu?
Douglas ficou em silêncio por alguns instantes e depois encolheu os ombros.
- Não teria durado muito tempo. Logo eu começaria a desconfiar de que estava olhando para outros homens. Um cego é desconfiado, e ela jamais conseguiria viver numa ilha, isolada de tudo. Não sou mais o homem por quem se apaixonou. Não posso comandar meu barco, participar de torneios internacionais de pólo ou levá-la a um baile de gala. Não posso praticar surfe ou jogar ténis. De repente, nós... não tínhamos mais nada em comum.
Douglas parou de falar e deu um suspiro profundo.
- Tenho minhas ânsias... ânsia por posição social, por dinheiro, por comida... por amor. Posso não ser um anjo, mas jamais teria coragem de arrastar uma mulher para viver com um cego; muito menos, alguém como Nadi. Se ela chegasse a esta ilha amanhã... O que foi, Sabrina? Levou um susto?
- Foi... foi uma mariposa -mentiu. - Saiu voando do escuro.
- Algumas são enormes, não? Muito bem, enfermeira, vamos continuar nosso caminho. Está na hora do jantar e você deve estar morrendo de fome, depois de toda esta caminhada.
Sabrina foi acompanhando Douglas, sentindo como se flutuasse numa névoa, sem poder acreditar no que tinha ouvido, que ele pudesse estar falando com tanta facilidade de alguém cuja beleza ainda permanecia em seu pensamento e perturbava seus sonhos. Que era ainda mais desejável porque sempre seria como ele a tinha visto pela última vez: provavelmente, no aeroporto, quando Douglas partia para aquela viagem trágica. Nadi estaria vestindo algum traje sofisticado, como só as modelos profissionais conseguem usar, e seu perfume não seria só uma colónia delicada...
O que ia acontecer? O que faria Douglas, quando soubesse que a ex-noiva tinha chegado à ilha?
Estava tão distraída com seus pensamentos, que nem reparou que Douglas havia errado o caminho para casa e estava entrando por outra passagem entre os canteiros do jardim. Antes que pudesse avisá-lo ou alcançá-lo, ele se embrenhou numa massa de roseiras que cresciam quase selvagens na entrada da quadra de ténis abandonada.
Os espinhos e os galhos retorcidos se agarraram nele, como se fossem coisas vivas, esperando por uma vítima.
- Diabo! Onde estou? Sabrina!
- Não se mexa, por favor! - Os espinhos arranharam as mãos dela, enquanto tentava fazer Douglas tirar o paletó para soltá-lo do meio das roseiras. Um dos galhos escapou com mais violência e ela não conseguiu reprimir um grito de dor, quando um espinho arranhou profundamente seu rosto.
- Rosas, hein? - Douglas cheirava as flores. - Pensei que tivesse caído num vespeiro. Você está bem?
- Estou. - Ele não tinha como saber que o sangue escorria pelo rosto de Sabrina, enquanto ela o guiava até a entrada do casarão. - Suas mãos estão muito arranhadas, precisamos passar um desinfetante.
- Está vendo como é? - gemeu Douglas - Um passo em falso, e estou na maior encrenca.
- Foi minha culpa. Não prestei atenção, quando tomou o caminho errado.
- Não foi culpa de ninguém... é a maldita ironia do destino! Sou um inútil!
- Não diga isso...
- Me largue! - Douglas puxou o braço. - Chame Charles, ele cuidará dos arranhões. Já estou farto de enfermeiras!
Sabrina recuou, como se tivesse sido ferida novamente, e subiu as escadas para chamar o criado. Brutos veio recebê-la alegremente e estava dividindo suas atenções entre ela e o dono, quando Laura apareceu no saguão. Vinha sorrindo, mas sua expressão logo mudou ao ver o rosto ferido de Sabrina e as mãos do neto.
- Meu Deus! O que aconteceu? Sofreram um acidente?
- Nan! - Douglas estava furioso. - Não comece com mimos, ou vou começar a xingar! Entrei no meio das roseiras, como o idiota cego que sou, e Sabrina teve que me salvar. Foram só uns arranhões sem importância.
- Mas, o rosto da menina!
- O quê?
Sabrina fez um gesto para Laura se calar, mas não foi suficientemente rápida.
- Pobre criança, se tivesse sido um pouco mais para cima, teria atingido o olho! Como foram parar no meio das roseiras? O que estiveram fazendo?
- Eu estava violentando a moça! - gritou Douglas, e, antes que Sabrina pudesse recuar, agarrou a mão dela e tateou-Ihe o rosto. - Sua bobinha! Devia ter chamado os criados! Deve estar doendo como o diabo! Sua pele é muito fina!
- Estou aqui para cuidar do senhor - ela falou, formal, quase com frieza. Laura Saint-Same jamais poderia ficar sabendo que ele a havia beijado com aquela violência e que, para protegê-lo, ela teria se atirado no meio do inferno. Afastou-se de Douglas. - Se não se importa, senhor, Charles está aqui e poderá cuidar das suas mãos, enquanto vou tratar do meu ferimento.
- É claro. Nan, quer ajudar Sabrina, por favor?
- Não, pode deixar. - Subiu a escada tentando parecer calma, mas quando se viu no corredor, correu até o quarto.
Finalmente sozinha, sentiu uma súbita exaustão tomar conta de seu corpo. Mal podia acreditar que tinha passado por um dia tão incrível e agora sentia que precisava desesperadamente de um banho relaxante. Estava toda colorida, tensa. Estava ferida, cansada da caminhada e ainda sentia a violência do beijo e do abraço de Douglas.
Um rubor de vergonha começava a tomar conta de seu rosto, fazendo latejar a ferida sob o olho esquerdo. Ele a beijara com a avidez de um homem que hã longo tempo não tinha qualquer contato com uma mulher. Sabrina sabia que não havia nada de pessoal naquele beijo: tinha sido apenas um impulso momentâneo de alguém desesperado por sentir nos braços o calor de um corpo jovem. Douglas nunca iria ficar sabendo que, para ela, aquela beijo havia sido o paraíso.
Sozinha, no quarto decorado com extrema elegância e bom gosto, tão diferente dos outros em que tinha vivido, podia admitir a si mesma que o amava e que estava completamente dominada por aquela emoção profunda. Amava Douglas com toda a força de seu coração ansioso e sensível c começava a sentir o despertar de sensações que faziam com que notasse tudo mais vivo à sua volta. Era como se nada tivesse sido real antes de conhecê-lo. Douglas não era um homem paciente, nem mesmo gentil. Havia aspectos de sua personalidade que a amedrontavam: poços profundos, desconhecidos para uma moça sem nenhuma experiência no amor. Muitas vezes, ele se revoltava contra a cegueira, mas, ao mesmo tempo, conseguia enfrentar os maiores obstáculos com enorme tenacidade.
Sabrina tinha uma batalha a lutar, que seria um desafio para sua mente, seu corpo e seu espírito. Não podia demonstrar o que sentia, especialmente agora, que Nadi Darrel tinha chegado à ilha. Ela estava ali para vê-lo! Ia atormentá-lo novamente! E Sabrina sabia que não havia nada que pudesse evitar esse encontro.
Enquanto esperara a banheira encher, lavou o rosto e passou um anti-séptico no ferimento. Fez uma carinha triste, ao se olhar no espelho. O arranhão era grande e profundo. Prendeu os cabelos comparando-se com a moça que vira chegando no iate, mostrando toda a fria arrogância de quem sabe que tem o mundo a seus pés.
Sentiu uma onda de alívio por Douglas não poder vê-la. Tinha ficado preocupado com seu rosto, mas, se um milagre acontecesse, teria um olhar de desdém, quando visse a verdadeira Sabrina Muir. Uma criatura magrinha, sem estilo nem charme. O tipo de pessoa que se perdia na multidão, cujos cabelos castanhos eram tão finos e rebeldes que tinham que ser usados curtos, o que a deixava ainda mais sem graça.
Os cabelos de Nadi Darrel eram cheios, brilhantes e macios, e seus olhos faiscavam como as asas de uma líbélula, como tinha dito Ret. Ret! Quais seriam os sentimentos dele por Nadí Darrel? Ele a descrevera com palavras quase românticas e não havia dúvidas de que era convencido de sua beleza e de seu charme com relação às mulheres... sem mencionar uma certa queda por tudo que pertencia a Douglas.
Enquanto se ensaboava, Sabrina pensava em Ret e Nadi e, em sua mente, os via como um par perfeito; ele, tão louro, ela, tão morena; Ret, tão vistoso, e a moça, tão encantadora...
Não pôde evitar uma certa curiosidade e um intenso desejo de proteger o homem que amava. Nadi era o tipo de mulher que devia se achar no direito de ter todos os homens à sua volta e Ret não teria escrúpulos de tentar uma nova conquista.
Saiu do banho e, quando começou a se enxugar, viu que tinha esquecido de trazer a roupa de baixo para o banheiro. Enrolou-se na grande toalha alaranjada e foi para o quarto. Estava escolhendo uma calcinha na gaveta, quando ouviu uma batidinha na porta. Pensou que fosse Lucille, a camareira, trazendo uma xícara de café, como era seu hábito.
- Pode entrar!
A porta se abriu, e foi tarde demais para Sabrina escapar de volta para o banheiro. Red Saint-Same entrou no quarto.
Estava vestido a rigor e sorria, os dentes brilhando, tão brancos como os babados da camisa. Mas ficou imediatamente sério, ao ver a Corrente no pescoço de Sabrina.
- Por que veio aqui? - Ela pegou a roupa de baixo e começou a andar para o banheiro. - Com licença, estava me vestindo. Pensei que fosse Lucille.
- É estranho... você parece muito mais atraente com pouca roupa. - Ret deu um sorriso malicioso e fechou a porta. Seu olhar tinha deixado a concha de jade e agora examinava o ferimento no rosto dela. - O que ele andou fazendo? Levou uma mordida?
- Não seja ridículo!
- Não é tão ridículo assim. Você é jovem e ele é homem, e nenhum membro desta família tem vocação para santo, apesar do nome. Por falar nisso, vejo que está usando uma das jóias dos Saint-Same. É a mesma que está naquele retrato no fim do corredor.
Ret deu um passo à frente e estendeu a mão, como para pegar a corrente. Sabrina levantou o braço para proteger-se e a toalha quase caiu. Virou-se rapidamente e entrou no banheiro para vestir-se. Quando ficou pronta, parou por um instante em frente ao espelho, segurando o berloque de jade.
O que diria Ret, quando soubesse da venda das jóias em benefício de crianças abandonadas? Nesse instante, lembrou das peças em sua bolsa e voltou rapidamente para o quarto. Ele estava em frente da penteadeira, examinando distraidamente a fotografia de um menininho. colocada entre os poucos vidros de perfume e cosméticos e uma caixinha de grampos.
- Bonitinho -- disse Ret, num tom arrastado. - Um de seus pacientes, sem dúvida. Você me disse que não tem família.
- Sim, cuidei dele por uns tempos.
Enquanto falava, Sabrina notou sua bolsa atirada sobre a cama. Ficou revoltada com aquela intromissão e palavras de fúria começaram a subir a seus lábios. Ret tinha mexido na bolsa! Ela a deixara na mesinha-de-cabeceira! Quis apanhá-la para ver se as jóias ainda estavam lã, mas achou melhor não demonstrar preocupação. Numa voz fria, perguntou o que ele tinha vindo fazer em seu quarto.
Ret encostou-se na camiseira e ficou examinando Sabrina de alto a baixo. Com o vestido branco, um broche na lapela e os cabelos bem penteados era a própria imagem da enfermeira eficiente.
- Você é uma pessoa enganadora.
- Não entendo o que está querendo dizer, - Era mentira, claro. Sabia muito bem que Ret tinha visto as caixas de jóias na sua bolsa e havia concluído que ela estava se aproveitando da siluação para ganhar presentes de Douglas.
- Parece fria e empertigada, mas acredito que não é nada do que aparenta ser. Deve haver muita coisa aí por dentro que não se percebe à primeira vista. - Ret levantou uma sobrancelha, numa expressão de desdém. Ficava extremamente atraente naqueles trajem de noite e que combinavam tão bem com sua personalidade. Na certa, tinha um compromisso importante, e Sabrina não conseguiu deixar de pensar se iria se encontrar com Nadi Darrel.
- Pode dizer o que quiser, sr. Saint-Same, não lhe devo explicações.
- Nossa, como está cheia de formalidade. Deixe disso, vamos. Sabe'?, até que é bonitinha, quando está mais... à vontade. Devia usar cores mais fortes, um quimono vermelho...
- Pare com isso! Já lhe disse que sei que não sou atraente. Não precisa desperdiçar seu sarcasmo...
- Não venha me dizer que não gosta de saber que Douglas pensa que você é bonita e charmosa. Ele está todo encantado com sua voz de feiticeira. E você, já foi seduzida por ele?
- Como se atreve?
- Ah, está se fazendo de difícil para arrancar uma proposta de casamento'.'
- Deve estar maluco!
Sabrina agarrou a bolsa e foi para a porta do quarto. Quando a abriu, Ret pegou-a pelos ombros e fez com que se virasse para ele.
- Vou dizer de novo, enfermeirinha: não pense que me engana com esse arzinho inocente. Começou a se fazer de anjo logo que soube que meu primo era cego. Uma companhia dedicada, uma verdadeira escrava! Sua fingida! Mas, de onde e que está vindo mesmo? É melhor me dizer logo, antes que eu escreva para as autoridades de Londres polindo informações. Não vão estranhar, é só dizer que estou preocupado com meu pobre primo, cego e vulnerável, à mercê de uma pessoa que talvez não seja de confiança.
- Você realmente faria isso, não?
Sabrina falou com dificuldade, sentindo a pressão da balaustrada de ferro em sua cintura. Ret a tinha empurrado através do corredor, falando num tom baixo, cheio de fúria e agora estava bem junto dela, forçando-a. contra a grade. Sentia-se impotente nas mãos daquele homem forte e musculoso, que sô precisava de um pequeno empurrão para atirá-la no andar de baixo. Estava apavorada. Havia ódio nos olhos de Ret.
- Pode ter certeza de que escreverei amanhã cedo.
- E por que não hoje?
- Porque esta noite tenho um encontro com uma mulher que faz você parecer uma freirinha abandonada. Só que você não é nenhuma santa, certo? Esses olhos grandes estão famintos pelas coisas boas da vida. não é? Pois, queridinha, se quiser alguma delas, vai ter que usar sua voz. Tenha certeza: sua voz é mesmo muito agradável. Parece feita especialmente para cantar canções de ninar para criancinhas... ou para seduzir um homem perdido numa escuridão sem saída.
- Não finja que se importa com ele! Me largue!
Sabrina começou a bater nos ombros de Ret para se libertar e a bolsa escapou por cima da grade, indo cair no piso de mármore do saguão, onde se abriu, espalhando seu conteúdo. O fecho da caixa com os brincos se soltou e os diamantes ficaram brilhando como lágrimas no chão. - O que precisou fazer para ganhar um presente desses? -
- Não são meus! - As palavras saíram, desesperadas. - São para Nadi! Ele os separou para ela! E Nadi vai ganhá-los muito mais cedo do que Douglas imaginava. Ele não sabe, mas ela está aqui, na ilha!
Ret ainda a segurava pela cintura, quando uma figura escura saiu da sombra sob a escadaria. Douglas ficou ali parado, com o rosto virado para cima.
- Sabrina? - A voz profunda ecoou pelo saguão. - Quer vir já para
baixo, para repetir o que acaba de dizer a Ret? Sim, eu sei que ele está com você!
Muito pálida. Sabrina desceu a escada enquanto Ret a observava, debruçado na grade.
Mais alguns passos, e ela estaria frente a frente com Douglas... e o início de uma amizade mais profunda entre os dois terminaria. Ia ter que contar sobre Nadi, e logo os olhos cinzentos se incendiariam com o desejo de tocá-la, de ouvir novamente a voz dela.
- É verdade, senhor.
Sabrina ficou parada, olhando para ele, com o conteúdo da bolsa espalhado a seus pés.
- Vi a srta, Darrel chegar num iate. - Foi quando saímos do clube e estávamos indo para o carro.
- E por que não me contou? - Douglas continuava com a testa franzida e tinha um ar insuportavelmente severo. Segurava a bengala branca com tanta força que os nós dos dedos apareciam sob a pele morena e arranhada.
- Eu... achei que não tinha nada com isso.
- Oh, não. Pelo contrário, foi excesso de cuidado. Pensou que seu paciente ia ficar emocionado e isso não seria bom para ele. não é? Agora, diga-me: como estava ela? Charmosa, vestindo alguma coisa sofisticada'.'
- Sim. E linda, mais linda em pessoa do que nas fotos.
- Quer dizer que resolveu não me dizer nada. Que exagero, enfermeira! Que preocupação com meus sentimentos! Não sou criança; não precisa ficar afastando de mim os brinquedos que podem me machucar. Na segunda vez, a dor não é tão grande como na primeira. Uma cicatriz é insensível e você, como enfermeira, já devia saber disso. - Douglas começou a se virar para sair do saguão e seu pé bateu num dos brincos. - O que foi isso?
- Deixei cair minha bolsa lá de cima... ela se abriu.
- Então, pegue tudo, menina! Não fique parada aí, feito uma idiota! Sabrina se ajoelhou e começou a recolher as coisas, arrasada pela presença escura, alta e assustadora a seu lado e pela batida irritada da bengala no chão. Os brincos pareceram pedras de gelo entre seus dedos e suas mãos tremiam, quando guardou as jóias nas caixas de veludo.
Ret continuava no alto da escada. Sabrina não levantou os olhos, mas sabia que ele sorria, divertindo-se com sua humilhação. Bem, se a cena servia para convencê-lo de que não significava nada para Douglas, então, seu sofrimento não estava sendo em vão.
- Como é, pegou tudo?
- Sim, senhor.
- Venha comigo ao estúdio, para me ajudar a guardar as jóias no cofre.
Douglas saiu andando na frente, com a habitual segurança que mostrava quando se movimentava pela casa. Só tinha errado o caminho no jardim porque seu pensamento estava naquela moça que não conseguia esquecer. Na mulher que tinha pedido que fizesse a operação que poderia matá-lo!
Abriu a porta e afastou-se para deixá-la passar. Os abajures estavam acesos porque, apesar da cegueira, ele nunca ficava no escuro. Sabrina foi até a poltrona de veludo e acariciou o espaldar, sentindo a vibração da presença de Douglas, que parecia impregnada nela.
Sem ser especialmente bonito, ele tinha uma aura, uma atração primitiva que outros homens de beleza perfeita, como Ret, jamais conseguiriam ter. O modo como sentava, a cabeça orgulhosa, a voz profunda faziam com que Sabrina o amasse ainda mais, com uma ânsia, um prazer e uma dor que ninguém, a não ser ela mesma, poderia jamais ficar sabendo.
Douglas abriu o cofre, que ficava atrás de um painel, e estendeu a mão, pedindo as jóias.
- Ret deve ter ficado curioso, não? Será que pensou que eu a estava recompensando por serviços não incluídos no manual de enfermagem?
- Foi mais ou menos isso.
Pensou que ele fosse abrir a caixa dos brincos para tocá-los e sentiu uma estranha satisfação quando o viu guardá-los sem nenhuma atenção especial.
Douglas tirou de uma das prateleiras do cofre uma peça pequena, branca e esculpida em formato de livro.
- Veja, isto é chinês, muito antigo. É de jade e tem umas palavras gravadas. Pegue, sinta como parece vivo, macio e, ao mesmo tempo, firme como o corpo de uma mulher jovem. - Suspirou. - É estranho como um homem solitário acaba se apaixonando por certos objetos.
- O que está escrito. Cada figurinha representa uma palavra, não é?
- Que a vida é cheia de contrastes. Que não há amor sem dor, alegria sem tristeza, ou risos sem lágrimas. Que o amor deveria ser evitado, mas que, como a morte, é inevitável...
- Que lindo! - Havia um pouco de tristeza na voz dela. Devolveu a peça a Douglas.
- É a história da vida, Sabrina.
Ele trancou o cofre e depois abriu a tampa do relógio braille para ver as horas.
- Ainda temos tempo para um copo de vinho antes do jantar. Não, é melhor um pouco de conhaque. Já tratou do seu arranhão? Pelo modo como Nan falou, parece que se machucou bastante.
- Não foi nada...
Sabrina estava se afastando em direção do pequeno bar quando ele a pegou pelo pulso. Agora, já conhecia sua altura e conseguia achar facilmente a posição do rosto.
- Foi deste lado que o espinho pegou?
- Sim, senhor. -- Fez o possível para não tremer,
- Pelo amor de Deus! Vai começar essa história de "patrão e empregada", só porque perdi a paciência com você. Ora, não sei porque imaginou que eu não tinha o direito de saber sobre Nadi. - De repente, num gesto quase brusco, Douglas abaixou a cabeça e, como se pudesse ver, pressionou levemente os lábios na pele machucada do rosto de Sabrina.
- Hum! Anti-séptico... Aposto que está toda empertigada e engomadinha e não gostou do que eu fiz. Foi um beijo de agradecimento. Você foi muito valente, entrando no meio dos espinhos para me salvar. O que faria se eu entrasse numa fogueira?
- O mesmo, acho.
Afastou-se, delicadamente, e foi servir o conhaque. Estava trémula e sentia necessidade de um estimulante.
- Será que os deveres de uma enfermeira vão até o sacrifício da própria pele?
- É só... bem, não gosto de ver as pessoas se machucarem, monsieur,
- Ah, assim está bem melhor. Você tem coração mole, Sabrina, e isso pode ser muito mais uma carga do que uma bênção. Gostaria de poder pôr minhas mãos no malvado que machucou seu coraçãozinho, na Inglaterra.
- Por quê? - A garrafa de conhaque quase escapou da mão da jovem.
- Porque nunca tive uma irmã. Se tivesse, tenho certeza de que seria parecida com minha mãe e com você: gentil, carinhosa, sempre pronta a se sacrificar pelos outros e incrivelmente valente. Nossa, mas como você demora para servir uma bebida! Acho que está mais acostumada com remédios!
- Ê verdade. - Sabrina sorriu e pôs o copo nas mãos dele. Ficava feliz em poder servi-lo, estava disposta a ser uma criada, uma escrava,
mas jamais uma irmã!
- Vai tomar um pouco também?
- Sim. - Bateu o copo de leve contra o dele e olhou para cima, com os olhos cheios de um amor atormentado. - Saúde!
- Saúde para você também. - De repente, o tom de Douglas ficou muito ríspido. - E agora, preste bem atenção. Na próxima vez que me vir em perigo, não arrisque o pescoço para me salvar. Isso é uma ordem!
Ela recuou, quase assustada, e tomou um gole da bebida para disfarçar. Era sempre assim. Douglas sempre tinha que contrabalançar os momentos de ternura com uma exibição de dureza. Tinha levado um choque quando Nadi rejeitou seu amor por causa da cegueira e agora só conseguia manter seu isolamento sendo cruel com os outros, apesar de precisar desesperadamente de um pouco de carinho.
Tomavam o conhaque em silêncio, quando Charles veio avisar que o jantar seria servido.
Durante toda a refeição, Douglas conversou sobre os mais variados assuntos e nem uma vez mencionou para a avó que Nadi Darrel estava na ilha. Seu rosto estava sem expressão e Sabrina teve a certeza de que tentava esconder as emoções, porque parecia muito tenso.
Mais tarde, quando tomavam café no salão, ouvindo música suave, Douglas relaxou na poltrona e fechou os olhos. Sabrina deu um suspiro de alívio. A tensão fazia mal a ele: podia trazer uma daquelas terríveis dores de cabeça que o deixavam de cama por dias seguidos.
Sentada fora do campo de visão de Laura, que se distraía fazendo palavras cruzadas. Sabrina pôde olhar para Douglas sem se preocupar em ocultar o que sentia, enquanto se deixava envolver pelo perfume das flores e pelos raios de luar que entravam pelas janelas que se abriam para o jardim.
- Ah, como foi bom - murmurou Douglas, quando a música terminou. - Bem que estava precisando de um pouco de repouso depois de um dia tão tumultuado. Vovó, tenho uma coisa para lhe contar.
- Estou ouvindo, querido. - Laura levantou os olhos da revista, com uma expressão pensativa. - Mas antes, me diga uma palavra de sete letras que signifique três rostos sob uma touca. Diz aqui que é algo que está no livro Alice no País das Maravilhas.
- Não se lembra, Nan? É uma flor. A violeta... tão pequenina e, no entanto, tão valente para enfrentar as intempéries.
- Violeta... Deixe-me ver. Oh, Dougias, você é tão inteligenle! Não sei a quem puxou. Seu pai só pensava em aviões. Acho que é uma exceção dos Saínt-Same.
- Eslou certo de que sou. Agora, quer prestar atenção? Quero lhe contar o que conteceu.
- Pode falar, querido. Sabrina levantou-se da poltrona.
- Com licença, posso me retirar? Vocês devem ter assuntos particulares para conversar, e estou com muito sono.
- É claro, minha filha. Vá já para a cama e veja se descansa bastante. Está um pouco abatida, deve estar exausta.
- Acho que hoje forcei Sabrina um pouco além dos limites. Precisa tentar se envolver menos com os pacientes, enfermeira. Excesso de dedicação não é bom para uma moça. Amanhã mesmo, vou contratar uns homens para fazer uma boa limpeza na quadra de ténis e na piscina. É muito mais seguro nadar nela do que no mar. - Fez uma pausa e virou a cabeça, tentando localizar a posição de Sabrina. - Vai poder jogar ténis com Ret, Se não souber, garanto que ele terá prazer em ensinar-lhe. E então, não tem nenhum comentário a fazer?
- Será ótimo poder nadar, sem ter que me preocupar com os tubarões.
Douglas deu uma risada.
- Boa noite, enfermeira. Bons sonhos,
- Obrigada. Boa noite, sra. Saint-Same.
Quando estava subindo para o quarto, Sabrina parou em frente do retrato da noiva com a corrente que agora ela estava usando. Seus dedos se fecharam sobre a concha de jade e sentiu-se um pouco culpada por estar com uma jóia tão ligada ao passado daquela família.
Com passos silenciosos, continuou andando pelo corredor. Tinha dito que estava com sono, mas, na verdade, sentia-se inquieta e nervosa. Foi para o terraço e sentou-se numa poltrona de vime.
A noite estava linda e silenciosa, como se até os grilos tivessem sido hipnotizados pelo luar. O barulho do mar, vindo de longe, a fez lembrar do que havia acontecido na praia.
Não era para ela que Douglas estava mandando fazer uma limpeza no casarão. Sabia que Nadi viria vê-lo mais cedo ou mais tarde, e queria fazer o possível para manté-la junto dele. Sabrina podia entender essa necessidade profunda e secreta. Só desejava, por amor a ele, que a moça fosse mais sincera, mais consciente da solidão e do desespero que Douglas sentia tantas vezes. Fazia pouco tempo que estava cego e ainda ia demorar muito para aceitar as mudanças que isso representava em sua vida e em sua própria maneira de ser,
Tinha necessidade de se sentir amado, com calor, simpatia e paixão, mas Sabrina compreendera imediatamente, só ao ver Nadi Darrel, que era o tipo de mulher capaz de amar uma única pessoa: ela mesma. Com um suspiro, levantou-se da poltrona e foi para a cama.
Douglas era um homem de palavra. No dia seguinte, vários trabalhadores já estavam ocupados na limpeza e reforma da quadra de ténis e da piscina.
Quando o mato e as trepadeiras foram cortados e as grades de ferro começaram a ser pintadas de branco, tudo foi mostrando sua verdadeira beleza.
Enquanto acompanhava o serviço, Laura contou a Sabrina sobre o pavilhão de festas, construído como presente para a moça que estava retratada com a corrente e a concha de jade.
- Dizem que o marido era muito mais velho do que ela, e também que... - Laura fez um gesto expressivo - a ganhou num jogo de cartas...
- Está brincando!
- Não, é a pura verdade. Os homens eram assim naquele tempo. O. pai dela era um jogador inveterado. Quando perdeu tudo que possuía, Paul Saint-Same não aceitou uma promissória. Pediu Clarice, a moça. como pagamento. Ela chegou a Snapgates no dia seguinte e eles logo se casaram. Por incrível que pareça, viveram muito felizes até a morte dele. Clarice estava só com trinta anos, mas não quis mais casar. Daí em diante, viveu só para os dois fiihos.
- Parece incrível!
- Muito romântico. As moças de hoje não conseguem entender essas coisas apesar de você parecer do tipo que acredita que o amor pode nascer nas mais estranhas circunstâncias.
- Porque sou feinha e só poderia esperar um casamento se alguém me ganhasse num jogo de cartas?
- Por que se diminui tanto, Sabrina? Não vou dizer que é uma grande beleza, mas tem seus atributos, meu bem. Posso ser franca?
- E claro.
- Por que não usa cores mais vivas?
- Porque sou enfermeira.
- Sim, entendo, mas não estou falando quando está de serviço. Certos tons mais fortes, vermelho ou laranja, combinariam melhor còm seu tom de pele e realçariam seus olhos, No entanto, você parece ter uma grande inclinação para o bege e o azul pálido, que não lhe ficam bem. Se quiser encontrar um marido, querida, precisa usar uma plumagem mais vistosa. Não está sentida comigo por dizer isso, está?
- Não, sra. Saint-Same. Só que parece que a senhora pensa que estou ansiosa para arranjar um casamento, o que não é verdade. Gosto da minha carreira e estou muito satisfeita com o meu trabalho.
- Fico feliz por saber disso. Às vezes, Douglas pode ser muito difícil. A maioria das enfermeiras que trabalharam aqui saiu quase fugida, com lágrimas. Não permita que ele a deixe perturbada.
- Estou acostumada a tratar de crianças mimadas. - Sabrina serviu uma outra xícara de chá, para não ter que ficar olhando díretamente para Laura. Ela era esperta, e a moça temia deixar transparecer seus verdadeiros sentimentos.
- Acha que ele é muito mimado?
- Bem, o sr. Saint-Same é um homem rico, que sempre teve tudo da vida, antes de sofrer o acidente. É triste ser cego, quanto a isso não há dúvida, mas há milhares de pessoas que só conhecem o sofrimento e as privações.
Laura deu um longo suspiro e ficou mexendo nos anéis.
- Preocupo-me tanto com o futuro... Ontem à noite, ele me contou que mandou vender as jóias da família, que, em circunstancias normais, deviam ser da esposa dele. Tentei conversar com ele, mas Douglas insiste em dizer que não pensa em casar, que jamais traria uma mulher para esta casa para ser um fardo para ela, Ah, Sabrina, fico tão triste em vê-lo assim, sem esposa, sem filhos, que poderiam alegrar um pouco sua vida. Mas, o que posso fazer? Como convencê-lo? Ele foi sempre tão teimoso... Acabamos brigando, quando eu quero conversar, tentanto fazê-lo entender o meu ponto de vista. "Não quero que ninguém case comigo por piedade." É só isso que insiste em dizer...
Sabrina sentiu um aperto no coração. Douglas, tão orgulhoso e obstinado, preso àquela ânsia por uma mulher que sabia que nunca conseguiria viver a seu lado.
-- É preciso ter paciência, sra. Saint-Same. Daqui a alguns anos, o sr. Douglas já terá se acostumado com a cegueira e talvez se sinta de modo diferente em relação ao futuro. Poderá começar uma nova carreira.
- Você está sempre falando em carreiras, Sabrina! Nada neste mundo pode substituir o amor, e é isso que quero para o meu neto! Alguém que goste dele, que fique a seu lado, depois que eu me for. Terei no máximo mais dez anos de vida e não podemos contar com alguém como você eternamente. Sei que está contente aqui, mas, mais cedo ou mais tarde, vai querer ir para outro lugar, para continuar a subir nessa carreira de que tanto fala.
Sabrina não conseguiu evitar uma expressão de dor, só ao pensar na possiblidade de se afastar de Douglas.
- Perdoe, querida. Acho que fui um pouco dura. É que simplesmente não consigo entender uma moça que só pensa no trabalho. Nunca pensei em nada, senão em casar e ter filhos, e não perdi muito tempo para realizar meu sonho.
- A senhora ainda é muito bonita. Imagino que havia centenas de rapazes querendo cortejá-la.
- Hummm, devo dizer que foi muito agradável. Sim, foi tudo maravilhoso. Fui a muítas festas, tive muiíos namorados e casei com um homem encantador. Meu casamento foi muito feliz e posso dizer que a minha vida foi sempre um mar de rosas... - Laura olhou fixamente para Sabrina. - Sua vida não tem sido cheia de rosas, não é?
- Não, sempre houve mais espinhos - falou num tom despreocupado, mas os olhos desmentiam as palavras,
-- Admiro alguém que sabe enfrentar a vida e ainda goste de sorrir da adversidade.
- Oh, sempre costumo dizer que não adianta chorar por causa do inevitável.
- Bem, no final das contas, o que realmente importa numa moça é a coragem, a personalidade, e não uma carinha bonita. Mas, como já disse, você faz muito pouco para ser notada. Penteia os cabelos desse modo tão severo, que não lhe fica bem, e usa roupas muito sem graça.
- São roupas que combinam comigo, sra. Saint-Same. Em primeiro lugar, sou uma enfermeira, e não ficaria bem andar por ai vestida de vermelho.
- Pois acho que vermelho ficaria muito bem em você
- Ret também... - Sabrina parou de falar e ficou muito corada.
- Acha meu sobrinho atraente?
- Só uma cega... - Novamente Sabrina se interrompeu, sentindo o rosto em fogo. - Sou uma boba, quando se trata de homens. Nunca tive uma amizade íntima com nenhum deles. Não sou atraente, sra. Saint-Same.
- E então, procura consolo na carreira?
- Todos precisamos de algum coisa e sei que sou competente no meu trabalho.
- Não preferia ser amada?
- Tento não viver de sonhos.
- A juventude é a época de sonhar, não de fazer planos para uma vida de solteirona. O que é isso, Sabrina? Por que tantos complexos? Tem medo do amor, só porque acha que não é bonita? Querida, acredite em mim: há sempre um parceiro para cada mulher neste mundo. Mas, se ficar se convencendo de que não tem encantos, vai acabar transmitindo isso aos outros, Os homens detestam esse modo frio, como se usasse uma placa dizendo: "É proibido tocar". Sabrina riu.
- Acho que a senhora devia estar muito satisfeita por eu ser feinha e fria. já que há dois jovens solteiros nesta casa.
Laura levantou os olhos para ela e ficou examinando-a com um ar pensativo.
- Há algo de misterioso em você. Algo profundo. Ret deve ter notado... é melhor tomar cuidado.
- Ret gosta de brincar comigo, é só isso. Em certos aspectos ele é muito infantil.
- E o que acha de Douglas? Ele é bem adulto e nunca foi santo.
- Não. - Sabrina deu um sorriso triste. - Ele tem outra imagem no pensamento e ninguém...
- Ninguém poderá competir com a imagem de Nadi, não era isso que ia dizer?
- Sim. Ele lhe contou?
- O quê?
- Que Nadi está na ilha'? Laura levantou de um salto.
- Não... meu Deus, vai começar tudo de novo? A dor, a saudade, o sofrimento, quando ela se for pela segunda vez? Oh, por que ela não ficou longe? Vou ter que procurar Nadi, pedir que não venha vè-lo. Douglas não pode ficar sabendo...
- Ele já sabe que ela está aqui, sra. Saint-Same. O sr. Douglas é um homem feito e não se pode querer protegê-lo ou dirigir sua vida. Ele vai querer vê-la... vai querer desesperadamente... e ninguém deve interferir.
- Mas, Sabrina...
- Sinto muito, mas tenho que ser franca. Como enfermeira, sei que tensões acumuladas podem fazer muito mais mal do que bem. A srta. Darrel é como um brinquedo perigoso, mas muito desejado. Talvez seja melhor deixá-lo brincar um pouco.,. do que ficar sofrendo.
- Sim... é isso que ela é: nada mais do que uma bonequinha. Douglas, agora, não tem mais ilusões. É inteligente demais para se deixar enganar pensando que e!a o ama de verdade. Porém, é um Saint-Same e nenhum de nós tem uma natureza fria e calculista. Temos grandes paixões, que ás vezes nos dominam.
Laura deu um suspiro dolorido e seus olhos se encheram de lágrimas. - quando os médicos me disseram que ele estava cego, quis morrer ali mesmo, antes de ver qual seria a reacão de Douglas. Sabrina foi impressionante, ele aceitou tudo num silêncio incrível e seu rosto se transformou numa máscara de aço. Pensei que Nadi fosse ficar ao lado dele, confortando-o, mas ela começou a gritar como uma histérica, implorando para que o operassem! Supliquei ao dr. Damien Williams que não fizesse isso, mesmo que Douglas exigisse a operação. Meu neto só tinha uma chance em cinquenta de viver e. mesmo que sobrevivesse, poderia ficar totalmente paralisado, Douglas tem só trinta e seis anos. Sabrina! Tudo que os Sainl-Same fizeram morreria com ele. Ret só pensa em si mesmo e nada restaria de Snapgates se ele herdasse os bens da família. Venderia tudo e, em dez ou doze anos. o dinheiro estaria acabado. Mas Douglas, mesmo cego, é um homem capaz e inteligente. Sei que às vezes é grosseiro, mas...
Sei muito bem o tipo de homem que ele é... - Sabrina mordeu o lábio para não deixar escapar palavras pessoais ou apaixonadas. - Uma enfermeira acaba por ficar conhecendo muito bem os pacientes. Sei que o sr. Saint-Same tem muito caráter e personalidade, que ninguém vai conseguir impedi-lo de ver a mulher que ama. Talvez...
- Sim?
- Talvez ele nem mesmo queira vê-la. É capaz de se fechar no estúdio. Mas. como continua a ser o chefe da família, a palavra final terá que ser dele.
- Acha, então, que devemos lhe contar, se ela aparecer em Snapgates?
- Não vai ser preciso: ele logo ficará sabendo. Será imperdoável não lhe contar. não deixar que faça a própria escolha. O sr. Douglas a ama. e todos sabem que o amor é um misto de prazer e tortura. Envolve riscos, mas também tem seus encantos.
Houve uma longa pausa e só se ouviam as abelhas zumbindo em volta das flores do caramanchão, - Minha querida...
Sabrina levantou rapidamente, retomando a atitude profissional e disciplinada.
- Bem, quer me dar licença, sra. Saint-Same? Fiquei de responder algumas cartas para o sr. Douglas, assim que ele voltasse do passeio com Brutus. Já devem estar chegando.
- É claro, minha filha.
Enquanto se afastava, sentiu que os olhos de Laura a acompanhavam e seu coração deu um salto. Teria demonstrado o que sentia? Era difícil uma mulher não perceber certas entonações de voz, certas atitudes, e tinha se arriscado muito ao falar em amor ao se referir a Douglas.
Oh, não tinha pedido por aquilo, não queria estar apaixonada por um homem que nem sabia como ela era. Um homem a quem Sabrina desejava proteger, mas que, igual a ela, não podia ser protegido das armadilhas do amor.
Durante um de seus passeios pela ilha, Sabrina descobriu uma pequena cabana coberta de sapé e, imediatamente, transformou-a num refúgio, para onde ia nas horas de folga, para ler ou simplesmente descansar na praia. Guardava lá o maio e uma toalha para poder tomar banho de mar se sentisse vontade. A piscina da casa já estava pronta, mas sentia uma certa relutância em usá-la. Tinha sido preparada para Nadi. Tudo e todos, em Snapgates, pareciam esperar por ela. Sabrina sentia-se feliz em poder escapar para sua cabana, quando Douglas não precisava dela.
Havia um sofá de vime com almofadas e algumas mesinhas; e, como o chão era de pedra, a cabana era fresca e fácil de ser mantida limpa.
Estava lá no dia que Nadi Darrel chegou, finalmente. Viu Brutus descendo pela trilha entre os rochedos e correu em sua direção, imaginando que Douglas estava com ele.
No entanto, era Ret que descia atrás do cachorro. Quando a viu, encostou-se preguiçosamente numa pedra.
- Ah, aí está, enfermeira. Meu primo mandou vir procurá-la: quer apresentá-la a uma amiga.
Sabrina ficou olhando fixamente para ele. Tinha nadado na baía e seus cabelos estavam emaranhados e molhados. Vestia jeans e uma camiseta velha cheios de areia, e sabia que estava feia e desarrumada. E cada batida de seu coração dizia que a visifante era Nadi Darrel.
- Preferia não ir. Por favor, diga a eles que não conseguiu me encontrar.
- Por que diria tal coisa, Sabrina? - Os olhos de Ret se estreitaram em duas fendas prateadas. - Douglas não vai poder compará-la com a linda Nadi. Ele julga as pessoas pela voz. e, acredite ou não, nisso você leva vantagem sobre ela!
- Pare! - Sabrina recuou tão bruscamente que não viu Brutus deitado a seus pés. Tropeçou no cachorro, perdendo o equilíbrio, e caiu de costas na areia. Surpresa, ficou deitada por alguns segundos. Então, viu o sol desaparecer, como se uma nuvem tivesse passado por ele. Mas era Ret, que tinha se inclinado sobre ela prendendo-a contra a areia, num beijo cruel e decidido.
Tudo aconteceu rapidamente e terminou antes que ela pudesse lutar. - Sua feiticeira! - Havia raiva na voz dele. - Não sei qual é o seu segredo, mas, cada vez que chego perto de você, fico tentado a quebrar esse gelo. Gostaria de,.,
Sabrina não lhe deu tempo para dizer o que gostaria de fazer. Empurrou-o com força pelos ombros e levantou-se de um salto. Ret também ficou em pé e olharam um para o outro, como dois combatentes.
- Se me tocar novamente, contarei tudo ao sr. Saint-Same. Não pense que vai me fazer de boba!
- Está com medo dos meus beijos? Tem medo de gostar deles? Sei que não costuma ser beijada com frequência, e há em você uma inocência selvagem que faz um homem,.. - Ret passou a mão pelos cabelos, e havia um brilho estranho em seus olhos. - É uma loucura! Você é magra como um caniço, tem olhos enormes e não faz nada para agradar um homem.
- Não quero esse tipo de atenção. Acha que, só por que é bonito e tem esse charme estudado, não há uma mulher que não caia a seus pés. Parece pensar que uma moça como eu devia desmaiar de gratidão por receber um olhar mais interessado. - Pois eu preferia ser atirada desses rochedos do que ter algum caso com você!
- Nossa, como fica violenta quando está brava, - Ret deu uma risada e endireitou o lenço no pescoço. - Fico imaginando o que aconteceria, se eu sofresse um pequeno acidente e tivesse que ficar aos seus cuidados. Quem sabe, se ficasse desamparado e à sua mercê... Sabrina ignorou a observação e calçou as sandálias.
- Venha, Brutus'.
Começou a subir a trilha. Podia ouvir Ret vindo atrás dela e, ao chegar ao alto, ofegante e com uma atitude defensiva, virou-se para encará-lo.
- Me deixe sozinha, por favor!
- Por favor? Você tem medo de mostrar quem é na realidade. Sabrina, e eu estou disposto a acabar com essa pose de santinha.
- Está sempre fazendo ameaças. No outro dia...
- Lembro muito bem o que eu disse. Mas será muito mais excitante descobrir por mim mesmo por que você se recolhe nessa casca, quando um homem se aproxima. Gostaria de poder ensiná-la que é muito melhor não se esconder.
- Ret, seu problema é que tem que estar sempre provando a si mesmo que é irresistível. Não se conforma em ver uma coisinha sem graça como eu...
- Sabrina, você é como uma flor selvagem que cresce perto da praia. Parece frágil, mas tem muita coragem e força. E daquelas mulheres que enfrentam batalhas para cuidar dos feridos, que morreriam para defender os direitos dos necessitados. É uma garota e tanto, e um homem poderá ver muito em você, se tiver chance para olhar.
Ret falou aquilo com uma estranha suavidade. Por um instante traiçoeiro, Sabrina ficou comovida. Por que não confessar? Precisava ouvir de alguém que não era uma pessoa inexpressiva. Seus olhos procuraram os de Ret, mas, quando ele deu um passo à frente, ela recuou.
- Sabrina! - Foi quase um gemido. - Por que não acredita em nada do que digo. O que terei que fazer para...
- Você está entediado, Ret. é isso. Está cansado de viver cercado de garotas que estão acostumadas a serem beijadas e elogiadas. Fica imaginando o que aconteceria, se me fizesse de idiota, mas pode ter certeza de que isso nunca acontecerá!
- Veremos, enfermeira. - Ret falou baixinho, e seus olhos brilhavam como prata. - Acho que está apaixonada por Douglas, mas depois que o vir com Nadi, vai ficar sabendo como ele é o tipo de homem de uma mulher só! Lembre-se: ele a amava antes de ficar cego. O rosto dela, cada gesto e sorriso, estão gravados no cérebro dele. Nadí está acima de qualquer imagem que ele faria de você... uma moça que nunca viu!
Sabrina ficou olhando firmemente para e!e, tentando não mostrar suas emoções.
- Você é dura na queda, não é'! Pois ouça um conselho: não perca tempo nem toda essa emoção represada com um homem para o qual você não é mais do que uma voz sem forma.
- Não se preocupe, sei ficar no meu lugar.
Virou-se rapidamente e foi embora. Dessa vez, ele não a seguiu. Sabrina pensou em entrar na casa por uma porta lateral, sem ser vista, mas eles estavam sentados no jardim!
Imediatamente, os ouvidos aguçados de Douglas captaram o som da maçaneta da porta coberta pelas trepadeiras.
- Sabrina!
Ela ficou muito quieta por alguns segundos, mas acabou desistindo de se esconder.
- Essa é a minha enfermeira. Eu a chamo voixd'or, mas só comigo mesmo. Nunca tive coragem de dizer isso em voz alta, porque ela pode ser muito brava quando quer.
Voz de ouro!
Sabrina viu as sobrancelhas sedosas de Nadi Darre! se esguerem e os olhos verdes se Fixarem nela. Havia um brilho divertido neles, enquanto examinavam a camiseta suja de areia, os jeans úmídos e os cabelos cheios de areia.
-- O sr. Saint-Same gosta de brincar. - Sabrina usou seu tom mais profissional.
Nadi realçava sua beleza impressionante com um conjunto branco de corte perfeito e um lenço de seda turquesa atirado displicentemente sobre um ombro, - Muito prazer em conhecê-la, srta. Darrel. Já vi muitas fotos suas nas revistas e devo dizer que a admiro muito.
- Está interessada em moda? - Novamente, os olhos cor de esmeralda examinaram Sabrina de alto a baixo.
Foi Laura que veio em seu socorro.
- Meu bem, você esteve nadando e tenho certeza de que gostaria de se arrumar um pouco antes do chá. Corra para cima e vista algo bonito.
- Não.., não vou me demorar.
Quando chegou ao quarto, Sabrina ficou parada por alguns instantes, com as mãos no rosto. Sentiu um arrepio passando pelo corpo, quando a tensão relaxou um pouco. A mulher que Douglas amava era linda, sensual e excitante. Seria perfeita, se tivesse um coração para fazê-lo feliz. Se conseguisse se dar, sem se importar com o fato de ele não poder vè-la.
Com um suspiro triste, Sabrina abriu a porta do guarda-roupa e levou um choque quando viu o vestido no cabide. Não era dela! Era cor-de-rosa forte, com um corte moderno e franzido. Encontrou um pedaço de papel preso no decote.
"Lucille tirou as medidas de um dos seus vestidos e Charles me levou à cidade para comprar. Por favor, não fique aborrecida comigo. Queria muito lhe dar algo bonito. Laura."
Sabrina sentiu um nó na garganta. Nunca alguém lhe havia feito uma surpresa tão linda. Ficou tão agradecida a Laura que seus olhos se encheram de lágrimas.
Depois de vestida, penteada e levemente maquilada, sentiu-se muito chique. O cor-de-rosa forte dava um brilho diferente a seus olhos e a pele parecia sedosa, valorizada pelo decote. Endireitando os ombros, desceu para o jardim, onde encontrou todos sentados à mesa do chá, que tinha sido arrumada sob uma árvore.
Dirigiu-se a Laura e sussurou um agradecimento.
- Está muito bonita - sorriu a sra. Saint-Same. - Quando vi essa cor, tive certeza de que ficaria bem em você.
- Fiquei... feliz e emocionada. - Depois, como se tivesse sido tocada, Sabrina virou-se e viu Ret olhando fixamente para ela. Ele não disse nada, mas seus olhos repetiam o que tinha falado na praia.
Quando tomou coragem de olhar para Douglas, percebeu algo selvagem em sua expressão. ele estava sofrendo; não uma dor física que ela podia controlar, mas uma dor muito mais pessoal.
O criado chegou trazendo um carrinho com bolos e sanduíches e Laura começou a servir o chá, iniciando uma conversa elegante e agradável.
Todos falaram, mas muito pouco foi dito. Havia uma alegria superficial e uma verdadeira torrente de emoções ocultas, que Sabrina não conseguia deixar de sentir, sentada ao lado de Ret - que não perdia oportunidade de encostar a perna na dela, sempre que ia pegar um docinho ou um pedaço de fruta -, tinha vontade de gritar para quebrar aquela tensão quase palpável. Laura estava sendo gentil demais com Nadi, como se a moça fosse somente uma visita. A velha senhora se recusava a acreditar que Douglas ia querer ver a ex-noiva novamente em Snapgates... muitas vezes.
Então, aconteceu o que era de se esperar naquele ambiente de nervosismo. Douglas estendeu a mão para pegar a xícara e esbarrou nela. No mesmo instante, Sabrina já estava com o guardanapo na mão. Nadi afastou as pernas, num gesto elegante, e tudo talvez ficasse por isso mesmo se Laura não tentasse se culpar pelo acidente.
- Foi minha culpa, querido. Coloquei a xícara muito perto de sua mão e enchi mais do que devia.
- Pelo amor de Deus, Nan! - Uma súbita palidez, tomou conta do rosto de Douglas. - Sou cego como um morcego e todo mundo sabe disso! Sou um perigo público, quando estou com pessoas civilizadas! Devia ser alimentado na boca com uma colher, igual às crianças. Desculpe, Nadi. Espero que não tenha sujado seu vestido.
- Não caiu nem uma gotinha, querido. - Ela tocou o rosto de Douglas com intimidade e Sabrina, limpando o chá, quase deixou cair o vaso de flores.
- Pobre Sabrina - disse Ret, num tom divertido. - Ela sempre fica com o trabalho pesado. Cuidado com seu vestido, menina. Não vai querer estragar esse tecido tão bonito.
- Deixe tudo como está, Sabrina - Havia rispidez na voz de Douglas. - Chame uma das empregadas para cuidar disso! Ja lhe disse antes que...
- Está tudo limpo - Sabrina falou, num tom despreocupado.
- É muito eficiente, enfermeira - disse Nadi. Bem, afinal acho que vocês são treinadas para não perder a calma.
- É por isso que a mantenho aqui. - Douglas parecia querer dar vazão à irritação, e Sabrina sabia que ele ia descontar nela, em vez de ferir a mulher que amava. - Ela é muito boa para manter o leão sob controle.
- Vocè costuma perder o controle muitas vezes, querido?
Nadi pegou a mão de Douglas e Sabrina deu graças a Deus por poder sair dali. Pediu outra xícara na cozinha e teve vontade de não voltar à mesa, mas sabia que não podia fazer isso. Nadi logo adivinharia por que havia fugido.
Quando voltou, todos estavam sentados sob os jacarandás. O tom violeta das flores favorecia ainda mais a beleza de Nadi.
- Estou muito interessada no vodu - ela dizia, - Ret prometeu me levar para ver os dançarinos do rogo. Quero ver o máximo possível enquanto estiver aqui.
- Quanto tempo pretende ficar? - A mão de Douglas estava firme, enquanto acendia o charuto, sem errar. Não importa o que estivesse sentindo, conseguia se controlar perfeitamente.
- Umas três semanas. Quando sair deste paraíso, vou para a Flórida, posar com casacos de pele. Imaginem só! Acho que vou morrer naquele calor, mas a Vogue achou que seria uma bela ideia fazer as fotos no meio dos laranjais.
- As mulheres são capazes de tudo pela moda - comentou Ret, num tom arrastado. - Não posso imaginar nossa enfermeira tendo paciência de posar desse jeito. E então, Sabrina? Está muito quietinhia aí, como Alice na festa do chapeleiro louco. O que tem a dizer sobre vison misturado com laranjas?
- Estou certa de que a srta. Darrel ficará maravilhosa. Acho que cada um de nós veio ao mundo com um propósito, e a moda e tão importante para algumas pessoas como o conforto para os doentes. Tudo é parte da vida, e a vida tem muitas facetas.
- Que filosófico!
Oh, Deus, o que Ret estava fazendo? Havia em sua voz uma sugestão de intimidade que podia dar aos outros uma impressão errada. Há poucos dias, estava cheio de ódio, ameaçando escrever a Londres para conseguir informações dela. Agora, flertava com ela abertamente, na frente dos outros, como se existisse uma amizade mais forte entre eles.
- Garanto que a enfermeira Muir sabe do que está falando - disse Nadi. - Ela parece muito inteligente e capaz. Eu ficaria totalmente perdida no quarto de um doente.
- Minha querida Nadi - Ret interrompeu -, qualquer um ficaria curado na hora, só de ver você.
Imediatamente, houve um silêncio constrangedor, quebrado apenas pelo canto das cigarras, como fazendo eco aos nervos de Sabrína, Ret não era o homem mais sensível do mundo, mas, pelo menos, podia se esforçar um pouco para medir as palavras. Douglas parecia não ter prestado muita atenção ao que o primo tinha dito, seu rosto era uma máscara impassível. O único movimento que fez foi levar o charuto à boca. Nadi o observava, com os olhos verdes muito brilhantes,
- Vejo que consegue fazer tudo muito bem, querido. Se eu não soubesse que você ...
- É só uma questão de prática. No início, eu ficava todo queimado. Enfim, são as, pequenas coisas que se tem que superar, para passar a vida toda na escuridão.
Douglas falou num tom claro e decidido, como se dissesse a Nadi que estava conformado com a cegueira e que não arriscaria a vida por um amor incerto Sabrina quis abraçá-lo, confortá-lo, dizer que ele era, um homem valente. Nenhuma mulher, não importava o quanto fosse bonita e desejada, tinha o direito de pedir a um homem para se submeter a uma operação que podia matá-lo. Era um amor estranho e egoísta, quase pagão, como se Nadi preferisse sacrificá-lo.
O olhar de Sabrina voltou-se para a outra. Parecia não haver qualquer falta naquela beleza. Os cabelos escuros tinham reflexo avermelhados, a pele era lisa e cuidada e a boca cheia, cuidadosamente pintada. Os olhos verdes e as pernas elegantes, o corpo sinuoso contribuíam para lhe dar um aspecto quase felino. Era uma mulher desejável sob todos os pontos de vista e fazia lembrar um gato de raça. Gostava de ser acariciada, cuidada e mimada, mas em troca só daria sua beleza.
- Você ficou mais gentil do que era, Douglas - murmurou ela,
- Talvez tenha ficado um pouquinho mais paciente. Hoje em dia não sinto vontade de me atirar no pescoço das pessoas. Meu mundo mudou nesse aspecto. Estou conformado a viverei numa noite sem fim.
- Querido... - Havia uma ponta de tristeza na voz de Nadi. - Será que minha presença não desperta lembranças que o magoam? Cuidado. Douglas, vai se queimar com o charuto!
- Sabrina! - Um brilho de desamparo apareceu nos olhos dele, mas desapareceu imediatamente.
Sabrina encostou o cinzeiro em sua mão e ele deixou cair a ponta do charuto. Calmamente, ela pôs o cinzeiro sobre a mesa e sentiu Laura olhando para ela com uma mensagem silenciosa e desesperada: "Por quanto tempo isso vai continuar? Essa moça está torturando meu neto!"
- Como se sente vivendo numa escuridão tão completa? - perguntou Nadi, sem perceber que estava sendo terrivelmente cruel.
Sabrina desejou que Douglas gritasse com a outra como costumava, às vezes, fazer com ela. Em vez disso, duas rugas irónicas apareceram no rosto moreno.
- As flores têm um perfume mais intenso, o sabor da comida e do vinho é mais acentuado e a música tem um significado maior. Acho que um cego consegue apreciar melhor as boas coisas da vida.
- Oh, Douglas! - Nadi deu uma risada rouca. - Você não me engana. Um leão não esquece da arena onde lutou contra todos os animais. Não venha me dizer que ficou domesticado de repente. Está se forçando a ser dócil, querido, e eu...
- Sim, Nadi? - A voz de Douglas tinha se suavizado e estava quase perigosa. - Está pensando numa volta ao passado? Esqueça, meu bem. Está terminado para sempre! Meu mundo não é mais o que conhecemos juntos. Agora, está limitado a esta ilha, e meu desafio é conhecer cada centímetro dela. Não insista em me fazer lembrar de coisas que gostaria de esquecer o mais rápido possível.
Com essas palavras, ditas quase com rudeza, Douglas levantou-se e pegou a bengala com um gesto decidido, como querendo mostrar sua total dependência dela, e saiu andando pelo jardim, afastando-se da casa. Enquanto o observava, Sabrina sentiu um aperto no coração. Estava ansiosa por ir atrás dele, mas achou que preferia ficar sozinho.
- Brutus devia ir com ele! - disse Laura, virando para ela, preocupada. -- Onde esta o cachorro?
- Deve ter ido a praia. O sr. Saint-Same assobiará para chamá-lo, assim que chegar aos rochedos.
- Tem certeza?
- Tenho. Por favor, não fique preocupada. Sabe muito bem como ele odeia isso.
- Tenho verdadeiros pesadelos quando Douglas sai assim, sozinho. Tenho a impressão de que vai rolar pelos degraus, que vai cair do alto dos rochedos.
- Não consigo suportar isso - sussurrou Nadi, e um tremor visível passou por seu corpo. - Douglas costumava ser tão forte e capaz, fazia os outros homens parecerem bonecos perto dele.
- Ele ainda e forte, srta. Darrel - disse Sabrina, cheia de calma e firmeza. - Está se saindo maravilhosamente bem. De certo modo, talvez seja ainda mais astuto e decidido. Seus sentidos estão mais aguçados e...
- Você não o conheceu antes de ficar desse jeito! - A outra interrompeu, quase com desdém. - Nunca foi parte do mundo em que ele vivia. Era tudo excitante, dramático, havia sempre algo acontecendo, Douglas conhecia muitas pessoas e dominava todas elas. O que pode saber sobre como ele era? Douglas a teria feito sair correndo de medo, só de olhar para você!
- Acredito que sim, srta. Darrel. Mas, como ele é agora, o sr. Saint-Same aterroriza a senhorita. Ele não está desamparado, mas a deixa sem saber o que fazer. Não é só um par de olhos que faz um homem,
- Verdade. - Nadi arqueou as sobrancelhas. - Não imaginei que fosse uma autoridade em homens.
Sabrina corou. Sabia que não era páreo para uma mulher sofisticada como Nadi, mas não tinha pensado em nada disso para defender Douglas.
- Bem - Ret olhou para o relógio -, acho que é hora de levá-la de volta para o iate. Está ameaçando chuva e a estrada nao e muito segura com os temporais que costumam cair aqui.
- Quero me despedir de Douglas...
- Por favor, deixe-o em paz, - Laura falou, com súbita autoridade.
- Não foi fácil para ele encontrá-la novamente. Se dependesse de mim, eu a proibiria de voltar a Snapgates outra vez. Vá com Ret e deixe Douglas sossegado!
Nadi ficou olhando fixamente para Laura e depois virou-se para Sabrina.
- Vejo que vocês estão fazendo tudo para protegê-lo, mantendo-o fechado nesta casa. Pois saibam que falei com o dr. Williams antes de deixar a Inglaterra e ele quer examinar Douglas novamente. Acha que. depois desse período de repouso, talvez esteja preparado para a cirurgia. Você é enfermeira! Será que não percebe que pode haver uma chance? Ou quer que ele fique cego para sempre?
- Nadi, pelo amor de Deus! - Ret pegou-a pela mão e a fez levantar da cadeira. - Você me prometeu não fazer nenhuma cena e agora está se comportando desse jeito. Vamos, vou levá-la!
Sem uma palavra de despedida, Nadi pegou o casaco que estava no encosto da cadeira e saiu com Ret, deixando atrás de si o silêncio e a opressão.
As nuvens estavam pesadas de chuva e o vento forte fazia Sabrina quase perder o equilíbrio, enquanto descia pelos degraus até a praia. O mar batia furiosamente contra as rochas, levantando nuvens de espuma. As folhas das palmeiras batiam umas contra as outras e as bananeiras balançavam para frente e para trás, como se fossem quebrar ao meio.
- Vá e faça-o voltar para casa - tinha implorado Laura. - Vai cair uma tempestade e fico apavorada só em pensar nele, sozinho na praia. Converse com Douglas, minha filha. Ele a escuta porque você não está envolvida pessoalmente. Diga-lhe que não deve ver essa moça novamente. Oh, meu bom Deus, ver. Como se diz isso tão facilmente! E como pode ser doloroso! Vá, Sabrina, antes que fique escuro!
A essa altura, a sombra já cobria a entrada das cavernas e as ondas apagavam as pegadas na areia.
A praia parecia deserta. Sabrina ficou em pé perto dos rochedos, quase no mesmo lugar onde Ret a havia beijado há algum tempo. Assobiou, chamando Brutus, mas o vento forte abafou o som. O cão não estava por perto. Franziu a testa, preocupada. Tinha olhado no estúdio antes de descer até a praia, e sabia que os dois estavam juntos.
Um raio cortou o céu, indicando que a tempestade cairia a qualquer momento. Sabrina sentiu um arrepio de medo. Não havia como saber o que um homem infeliz podia fazer. De repente, lembrou de um dia em que tinha vindo procurá-lo e o encontrou se vestindo depois de um banho de mar, na grande caverna que dava para as gaierias do porão.
Correu até lá. Estava vazia, mas encontrou as roupas que Douglas usara durante o chá atiradas no chão.
Era loucura nadar com uma tempestade daquelas se formando... mas ele não sabia! Não podia ver o céu pesado e os raios alarmantes justamente porque não faziam barulho e eram como uma carga elétrica sendo atraída pela água, Sabrina correu até a beira do mar revolto, tentanto ver se ele estava perto dos recifes. As ondas pequenas batiam em seus tornozelos, mas estavam tão fortes que molhavam a barra do vestido. Quase caiu, quando uma onda recuou com mais força, fazendo-a perder o equilíbrio,
- Douglas! Douglas! Douglas!
O nome ecoou pela praia e depois foi abafado pelo ruído das ondas, que cresciam cada vez mais,
- Douglas! Douglas! - Sua voz saiu num grito desesperado, pois agora os últimos raios de sol estavam morrendo e a praia estava começando a ficar imersa numa estranha mistura de cinza e ouro, totalmente vazia, a não der pela presença dela.
O que deveria fazer? Pensou em entrar no mar revolto para nadar atrás dele. Será que conseguiria atravessar aquelas ondas violentas, que saltavam como golfinhos furiosos, lançando nuvens de água no ar?
Imagens terríveis passaram por sua cabeça, O grande prédio de pedras cinzentas onde tinha sido criada, os hospitais em que tinha feito seu treinamento, as casas em que havia trabalhado... Naquela época, jamais poderia imaginar que um dia estaria naquela ilha. encontrando um homem que podia viver na escuridão, mas que a tinha feito ver o sol. Sua vida não valeria mais nada se não pudesse vê-lo novamente. Tomando uma decisão, tirou os sapatos, jogou-os perto da entrada da caverna e entrou no mar.
Sabia que teria que enfrentar a correnteza e os tubarões e que a tempestade ia cair a qualquer momento, mas precisava encontrar Douglas. "Nunca mais arrisque seu pescoço por mim", ele havia dito furioso. Mas era tarde: ela já tinha arriscado o coração.
Começou a nadar, furando as ondas, mas sua força física não era tão grande como sua coragem; subitamente, foi atirada de volta à praia por uma onda mais violenta. Ficou deitada, sem respiração, como um pedaço de alga jogado na areia. Sentia-se sufocada pelo desespero, pois sabia que nunca conseguiria chegar até Douglas e que ele ia continuar nadando sem parar, se Brutus não o guiasse de volta.
Tropeçando, com o rosto molhado de água e lágrimas, Sabrina entrou na caverna e ficou sentada no escuro, apertando entre as mãos a bengala como se fosse uma varinha mágica que pudesse trazer Douglas de volta.
A praia estava completamente às escuras no momento, a não ser pelo clarão dos raios. Deve ter sido num dos intervalos de escuridão que o homem e o animal saíram da água. como dois espíritos da natureza.
Sabrina enrijeceu o corpo e cada nervo entrou em alerta, quando ouviu um latido.
- Brutus? - Saiu correndo da caverna, às cegas. - Douglas?
Mãos frias e molhadas a pegaram e novamente ela grifou o nome dele. Os dedos de Douglas a apertaram e tatearam seu corpo molhado.
-- Bobinha! - disse, ríspido. - Quem lhe pediu para vir me procurar? Quem a chamou? Agora, está molhada feito um peixe. Se pegar uma pneumonia, terei que ficar com mais esse peso na consciência!
- Devia... devia ter adivinhado que ia descontar seu mau humor em mim -- gritou Sabrina, enquanto o vento rugia em volta deles e a maré subia, furiosa.
Brutus latia, excitado como se estivesse participando de uma brincadeira. Uma onda mais forte quase os atirou ao chão. Com um palavrão, Douglas arrastou-a para dentro da caverna. A água não chegava até lá e, no escuro, ele era sempre o senhor. Seguiu a direção do som que o vento fazia quando passava pela caverna e logo se abrigaram da chuva e do vento,
- Brutus, já para dentro, rapaz!
O cão latiu alegremente, balançando a cauda molhada perto de Sabrina, Um alívio louco, cheio de gratidão, tomou conta dela: riu e chorou ao mesmo tempo.
Douglas a sacudiu, violentamente.
- Nâo se atreva a ficar histérica! Não quero ter que esbofetear você. apesar de merecer.
- Não... não precisa. Não estou histérica; só feliz por saber que você não está em perigo.
- Está tremendo de frio e toda molhada! Por todos os santos, Sabrina, você é capaz de fazer as coisas mais malucas! Acha que sou criança? Conheço essas águas, e o cachorro estava comigo.
- Sim, mas estava se formando a tempestade e você podia ser atingido por um raio!
- E o que importaria? - Douglas respirou fundo e subitamente puxou-a para junto do corpo molhado e musculoso. -- Sua burrinha dedicada! O que esteve fazendo para ficar ensopada deste jeito? Vamos, conte!
- Tropeçando e nadando feito uma idiota. Ficando rouca de gritar, A maré subiu muito depressa e fiquei morta de medo. Sua avó me pediu para encontrá-lo. Sempre cuidei dos meus pacientes... não foi por minha culpa que Billy...
Parou, sentindo-se tonta, e depois fugiu dos braços molhados de Douglas.
- Suas roupas estão secas, monsieur, É melhor se vestir, antes de pegar um resfriado.
- Sou forte como um carvalho. É você, sua boba, que vai ficar doente, se não vestir alguma coisa seca. Dê minha calça e vista minha camisa e o paletó.
- Oh, mas..,
- "Mas" é uma palavra tola, que não vai ajudar em nada, enfermeira. Não posso ver você; portanto, não precisa ficar envergonhada. Tire logo essas roupas molhadas e não seja mais idiota do que já foi. Onde já se viu, deixar Nan enchê-la de pânico. O que foi que vocês duas pensaram? Que eu ia afogar minhas tristezas no oceano?
Sabrina não pôde responder porque ele tinha chegado muito perto da dor e do medo que ela havia passado na última meia hora. Enquanto um raio cruzava o céu, encontrou as roupas e deu as calças a ele,
- Vai vestir em cima do calção molhado?
- Não, enfermeira -- disse Douglas, num tom divertido.
- Ah... está bem. - Virou-se rapidamente e, dizendo a si mesma para não ser uma boba, afinal, era uma enfermeira, tirou as roupas molhadas e vestiu a camisa, que a cobriu quase como um vestido. Pôs o paletó em volta dos ombros, abotoou-o e, de repente, começou a rir,
- Qual foi a piada? - perguntou Douglas, do meio da escuridão.
- Eu! Estou parecendo uma náufraga. Suas roupas ficam enormes em mim.
- Posso imaginar. O importante é que ficará aquecida. Por falar nisso, veja se encontra alguns galhos secos para acendermos uma fogueira. Acho que ficaremos presos aqui até a maré baixar.
- Sua avó vai ficar terrivelmente preocupada.
- Sei disso, mas não há outro jeito. Foi sorte estarmos perto da caverna. Agora me dê a bengala e poderei ajudá-la a procurar alguma coisa para queimar. 0 isqueiro está no bolso do paletó e deve haver algum papel na minha carteira para ajudar a acender o fogo. Uma fogueira vai alegrar um pouco este lugar. Ouça só as ondas batendo nas pedras!
Sabrina sentiu um arrepio ao ouvir o ruído e ficou feliz com a ideia de ter alguma luz naquela escuridão. Assim, poderia ver o rosto de Douglas.
- Teria se preocupado em acender uma fogueira, se estivesse sozinho?
- Duvido. Foi loucura sua ter vindo para cá na hora que a maré ia subir, mas, apesar das suas maluquices, você não é má companhia. Ah, acabo de encontrar um monte de algas secas. E você?
- Há bastante madeira seca por aqui, mas estou com medo de pegar. Não sei o que pode estar escondido perto delas.., Ai!
- O que foi?
- Um caranguejo quase me pegou.
- Então, vamos já acender o fogo. Depois, você terá claridade para procurar mais madeira. Passe minha carteira para pegar algum papel.
Sabrina pôs a madeira no chão, pegou o isqueiro e ficou esperando, enquanto Brutus farejava os cantos da caverna. Provavelmente, estava com fome, mas não haveria saída até a maré baixar. Um trovão mais forte ecoou pelas paredes de pedra.
- Acho que os relâmpagos devem estar iluminando alguma coisa. Olhe, encontrei dois envelopes com cartas, mas não estou certo se são de alguma importância. Dê uma olhada. Sabrina pegou as cartas. Quando outro relâmpago cortou o céu, pôde ver que uma delas falava sobre livros para cegos e a outra estava num envelope colorido e perfumado. Soube instantaneamente que tinha sido escrita por uma mulher. Nadi? O envelope estava aberto e provavelmente a carta não linha sido lida, porque Douglas não pediria à avó que o ajudasse e, até aquele momento, Sabrina só tinha respondido a cartas comerciais e impessoais. Por um instante, sentiu vontade de deixá-la queimar, mas depois colocou-a na mão de Douglas,
- Essa é pessoal. Está perfumada.
- Uma carta de amor, hein? Bem. como não posso ler. é melhor usá-la para nos aquecermos. Vou ajeitar a madeira, como fazem os escoteiros, e você ficará com a tarefa de acender.
- Muito obrigada. E bom saber que sirvo para alguma coisa.
- A maioria das mulheres termina servindo para alguma coisa. - Douglas deu alguns passos sentindo a direção do vento e escolheu um lugar mais abrigado. -- Aqui. Sabrina, este vai ser o lugar da nossa humilde fogueira. Assim que eu arrumar as algas e a madeira, queime o papel e ponha em baixo.
Agora que a preocupação tinha desaparecido, Sabrina sentiu algo como uma excitação, quase como se estivesse tomando parte numa conspiração, sozinha com ele no meio da tempestade... como um homem das cavernas e sua companheira. Quando a madeira começou a queimar, ela soube que jamais trocaria aquele instante por qualquer outro, mesmo que fosse por uma ocasião com champanhe, caviar e luz de velas.
- Como está indo? Posso sentir o cheiro das algas queimando. Parece a fumaça de um caldeirão de bruxa.
- As chamas estão fortes.
Agora podia ver o rosto de Douglas, moreno e forte, com os cabelos embaraçados por causa da água do mar, os olhos tão brilhantes que parecia incrível que não vissem. A luz avermelhada da fogueira batia em seus ombros fortes e desaparecia por entre os pêlos escuros do peito. Vestido como estava, só com a calça, tinha uma masculinidade tão absoluta que fez Sabrina tomar consciência do pouco que estava usando.
- É melhor sentarmos no chão, enfermeira. Me dê a mão para me guiar. Como está fria! Está nervosa por ficar assim sozinha comigo?
- Já estive sozinha com você muitas vezes.
- Ah, mas nessas ocasiões eu não estava tão bem. Hoje a tempestade entrou em minhas veias, enfermeira. Sinto-me revigorado depois de ter nadado no mar revolto. Sempre gostei do perigo e há algo no ar esta noite... um leve cheiro de enxofre!
- Se está tentando me assustar só porque vim procurá-lo, cumprindo o meu dever, você é injusto e indelicado.
- É o jeito de ser dos homens, bela Sabrina.
- Não... por favor!
- Não precisa entrar em pânico. Já é bastante ruim ser cego. Náo vou acrescentar a isso a indignidade de tentar seduzir uma mulher que náo posso ver. A arte da sedução pertence aos homens que têm "todas" as faculdades. Por exemplo: como pode um cego dizer a uma moça que gosta muito do sinalzinho aveludado que ela tem no pescoço?
- Como sabe... - Sabrina se interrompeu, corando, pois ele podia estar simplesmente se referindo a uma coisa hipotética e ela havia tomado como algo pessoal.
- Digamos que as pontas dos meus dedos têm olhos.
Sabrina sentiu o pescoço muito quente como se o rubor tivesse descido. Ele havia sentido o sinal quanto tateou seu rosto e lembrava dele. Nada poderia ser mais arrasador... era como uma dessas pequenas coisas de que um homem lembra da mulher com quem fez amor.
- Por favor, sente aqui - disse, esforçando-se para falar com a voz fria e composta de uma enfermeira treinada. -- Não vai ficar perto demais do fogo, mas poderá se aquecer.
-- Tire esse gelo da voz ou vou morrer congelado, enfermeira.
Douglas sentou no chão e Brutus veio deitar perto dele, com o focinho no meio das patas. No lado de fora da caverna, a tempestade rugia furiosamente e as ondas se atiravam contra as pedras.
- Onde está sentada, enfermeira? - Douglas estendeu a mão e encontrou a perna magra de Sabrina,- Não está na correnteza da entrada da caverna, não é?
- Não... estou bem.
- Relaxe, mocinha. Quase posso ver gravadas na sua testa as palavras "não me toque". São parte do seu trauma? Há cenas frases que ficam gravadas no nosso cérebro. No meu, está sempre escrito: "você não vai poder me ver... está cego!" Acho que todas as mulheres gostam de que os homens lhes sirvam de espelho.
- Não sou assim, por favor, acredite. - Sabrina lutou contra as lágrimas.
- Está sozinha comigo numa caverna isolada e com medo de que eu tente usá-la para me vingar de Nadi. - Douglas suspirou e apoiou-se no cotovelo. - Não precisa nem pensar nisso. Você não é Nadi, de modo que pode relaxar e esquentar essas mãos na fogueira.
Sabrina afastou o olhar do rosto de Douglas para não ver a ironia que devia estar estampada nele. Chegou a sentir quase pena de Nadi, tão superficial, tão fraca.
- Está com fome? - ele perguntou, depois de vários minutos de silêncio, só cortado pela tempestade, pelo crepitar do fogo e pelos pequenos ganidos de Brutus, que cochilava.
- Humm, bem que gostaria de um pedaço de torta de queijo com cebolas. E um bule de café quentinho.
- Pois estou pensando em costeletas com batatas. Vou fumar um charuto. Não quer um? Ajudaria a fazê-la esquecer a sua fome.
- Acredito, mas vou deixar esse prazer para outro dia. Aqui estão os charutos e o isqueiro.
- Obrigado. - Douglas abriu a caixa de couro e tirou um charuto, que acendeu, com evidente prazer. - Ah, você não sabe o que está perdendo! Já avisei que vai demorar para sairmos daqui. Sabe cantar?
- Só canções para crianças, e não acho que sejam adequadas para este lugar.
- Talvez não. Então, fale sobre Billy.
Ela ficou muda de espanto. Nem sonhava que Douglas pudesse saber daquilo!
- Quem é Billy? - ele insistiu.
Sabrina sentiu um estremecimento... é claro, agora lembrava. Tinha gritado o nome na praia, transtornada de tanta preocupação.
- Billy era um menininho de quem cuidei.
Sentiu um alívio imenso em poder falar nele, ali, naquele lugar deserto, com um homem que não podia ver sua expressão chocada... a mesma expressão que tinha no dia em que Lester Nader, furioso, a chamou de solteirona complexada, que não tinha cuidado direito do filho de outra mulher porque sabia que nunca encontraria um homem para lhe dar um que fosse só seu!
- Continue - Douglas pediu suavemente. -- Este é um momento para confidências, e ninguém melhor para escutar do que um cego. Estou ouvindo, Sabrina.
- Ele tinha dois anos e era loiro e de olhos azuis, tâo lindo que não havia quem não parasse para olhar, quando eu o levava para passear. Tinha um pequeno sopro no coração e os pais o amavam tanto que não hesitaram em arranjar uma enfermeira permanente. O pai era muito rico e muito mais velho do que a esposa. Era um homem duro. severo e frio, que só amava ao filho. A mãe era muito moça, fez um casamento por conveniência e tinha um temperamento romântico e nervoso. Foi ela quem... quem levou o bebe para passear naquele dia. Ficou lendo um romance no parque, enquanto ele brincava na grama. Estava sempre lendo romances, acho que para compensar o fato de ter casado com um homem só para lhe dar um herdeiro. Quando levantou os olhos, Billy tinha sumido. Alguém o levou e a mãe, distraída com a leitura, não viu nada.
Sabrina ficou olhando para o fogo e toda a aflição daqueles momentos voltou. O pânico de Berenice Nader. o modo como insistiu com a polícia e com o marido que Sabrina é quem estava cuidando do menino. Morria de medo do marido...
- Ela me ofereceu jóias e dinheiro. Eu conhecia o génio de Lester Nader: ele a teria estrangulado se soubesse da verdade. Que estava lendo histórias de amor, enquanto o único filho era raptado.
- E você aceitou a culpa. Sabrina deu um sorriso triste.
- Billy ficou desaparecido por vários dias e Berenice quase enlouqueceu. Ficava histérica cada vez que o marido entrava no quarto. Acho que teria enlouquecido mesmo se ele não tivesse outra pessoa em quem descarregar a raiva. Ouvi coisas horríveis, que jamais esquecerei. Finalmente, a polícia encontrou o menino abandonado num pequeno apartamento, num dos bairros mais pobres da cidade. Mais tarde, conseguiram capturar a raptora, uma empregadinha irlandesa que estava precisando de dinheiro. Depois... bem, acho que você pode imaginar.
- Sim, acho que posso.
- Fui intimada a comparecer diante de uma junta de investigações do conselho de enfermagem e não sei o que teria me acontecido se a sra. Nader não confessasse, finalmente, que era a culpada. Acho que a volta de Billy a fez recuperar a coragem. Eu podia ter perdido minha licença para trabalhar. Apesar de tudu ter terminado bem, fiquei abalada, e foi então que respondi ao anúncio de sua avó. Queria me afastar de tudo.
- Pobre Sabrina, deve ter sido terrível levar a culpa por uma coisa como essa. Imagino exatamente como aconteceu; conheço muito bem sua vocação para Joana D'Arc.
- Acha que devia entrar para um convento? - Agora que tinha tirado aquele peso do coração, Sabrina podia brincar novamente.
- Não, você não seria um boa freira, não é muito disciplinada. Tropeçaria nas saias compridas toda vez que fosse salvar alguém.
- As saias das freiras estão mais curtas.
- Verdade? É estranho como os cegos vivem um pouco no passado. Lembram de coisas que viram há tempos, antes das luzes se apagarem. - Douglas atirou a ponta do charuto na direção do fogo. - Sabe do que sinto mais falta?
- Deve haver muitas coisas.
- Uma delas é a mais importante. É o sorriso de uma mulher. Daria tudo para ver uma mulher sorrir. É a coisa mais linda que existe, principalmente quando vem do fundo do coração, passa pelos lábios e fica nos olhos. Acredite ou não, um sorriso de mulher é uma das coisas mais sensuais para um homem.
- Vou pegar mais lenha para o fogo - disse Sabrina, querendo evitar que a conversa passasse para assuntos mais pessoais.
Quando voltou com os braços cheios de pedaços de madeira, viu Douglas com os olhos voltados na direção do fogo... estava lembrando do sorriso de Nadi, tão cheio de sedução e promessas, iluminando os olhos verdes como esmeraldas.
- Parece que os trovões estão diminuindo - disse Sabrina, pondo a lenha no fogo e sentando no chão duro. - Ai, gostaria de ter uma almofada!
- Pobre criança. Posso fazer uma sugestão?
- Se não for muito irónica...
- Vindo de mim, é extremamente gentil. Ponha o paletó no chão e eu a aquecerei nos meus braços.
Por um instante, Sabrina ficou em pânico. Se recusasse a oferta, ele ficaria ofendido. Se aceitasse, estaria num paraíso perigoso, experimentando uma alegria que, para Douglas, era apenas uma gentileza.
- Sabrina?
Ela sorriu, timidamente. Só de ouvi-io dizer seu nome sentia as pernas bambas. Se Douglas a tocasse, se a tomasse nos braços musculosos... Ela tirou o paletó e sentou-se em cima dele.
- Assim está bem.
- Nunca vi uma enfermeira tão pudica! - Quase com raiva, Douglas estendeu os braços e puxou-a para perto, deitando a cabeça dela no peito. A batida firme do coração dele deu-lhe calma e confiança. Sabrína podia sentir sua pele, os pêlos do peito, a pressão firme dos músculos,
- Moças boazinhas sempre complicam as coisas, quando um homem quer ser delicado. Porque são puras, logo acham que estão sendo perseguidas. Ficam todas cheias de não-me-toques.
Enquanto ficassem naquela conversa, podia lutar contra o desejo de se entregar a ele. Douglas era um homem faminto por afeição, que procurava o amor na escuridão. Mas, logo que a paixão terminasse, lembraria de quem ela era e não a acharia mais uma moça boazinha.
- Parece que você vive de chá de limão e flores de lótus. - As mãos dele apalpavam suas costas. - Menina, você quase chega a me assustar. Só santos e iogues deveriam ter um corpo como esse.
- Isso é um cumprimento muito duvidoso, monsieur. Douglas riu baixinho.
- Nessas circunstâncias, enfermeira, é muito mais seguro para você ser mais espírito do que matéria. Lembre: sou cego e estou em jejum há muito tempo.
- Sinto muito... pelo aborrecimento que passou esta tarde. A srta. Darrel é tão linda...
- A Bela e Douglas, o Negro. Todos diziam que éramos o par perfeito, como duas metades de um talismã do amor. - Um suspiro fez seu peito se levantar contra o rosto de Sabrina. -- Durma um pouco, menina. Apesar de a tempestade já estar passando, a maré não vai começar a baixar antes da meia-noite.
- Você está confortável?
- Sempre de serviço, não é, Muir? Feche esses olhos vigilantes e durma. Sonhe com algum rapaz bonito... mas não permita que seja Ret. Não a aconselharia a dar seu coração a ele.
- Por quê? - murmurou, sonolenta, aquecida pela proximidade de Douglas e meio tonta por estar nos braços dele.
- Porque um anjo e um sátiro não devem se misturar.
- Não sou nenhum anjo.
Sabrina sorriu. Douglas jamais poderia imaginar os pensamentos que estavam passando por sua cabeça enquanto a aninhava nos braços, tratando-a como uma criança, sem perceber que ela era uma mulher.
Saíram da caverna e se encontraram sob a maravilhosa noite tropical, onde as estrelas pareciam ainda maiores e mais brilhantes depois da tempestade. O ar estava limpo e agradável, e andaram lentamente até a trilha nos rochedos, batendo os pés para reativar a circulação nas pernas dormentes, antes de iniciarem a subida até a casa. Os degraus estavam úmidos e cheios de folhas caídas, e Sabrina insistiu com Douglas para que se apoiasse em seu braço. A certa altura, pararam para tomar fôlego e ele levantou a cabeça para o céu.
- Há estrelas, Sabrina?
- Sim. Parecem jóias cintilando no vestido de uma deusa. Milhões delas.
- Que romântico. - Apertou mais o braço de Sabrina. - Quase posso vê-las. Deve ser triste uma pessoa que não tem um pouco de imaginação, não acha?
- É sempre melhor ser romântico.
- E eu que pensei que você fosse uma enfermeira impassível e composta! Gostou do drama da tempestade, não foi?
- Quando soube que você... que nós estávamos a salvo na caverna, pude até apreciar o que aconteceu. Mas agora é melhor nos apressarmos, sua avó deve estar muito preocupada.
- Sim, a qualquer momento, ela vai mandar grupos de salvamento à nossa procura. Bem, Sabrina, agora vai ter alguma coisa para contar a seus filhos; que uma vez precisou ficar escondida numa caverna com um homem chamado Douglas, o Negro. Vão pensar que era um pirata.
- Tem cada ideia, monsieur! - Riu e continuavam subindo, sentindo o cheiro do oceano, ainda mais forte por causa do ar muito limpo.
- Quantos filhos pretende ter, Sabrina?
- Uma dúzia, talvez.
-- Uma família muito grande para uma moça tão pequenina. Não acha que vai ficar ocupada demais? Não vai sobrar muito tempo para fazer carinhos no seu marido, coitado.
- Não haverá monsieur. Cuidado com os galhos.
- Sem marido? E o que dirão os vizinhos? Sabrina deu uma risada gostosa.
- Terei um de cada vez. Depois de Billy, pensei... pensei que não teria mais coragem de cuidar de crianças. Mas, desde que lhe contei o que aconteceu, sei o que vou querer fazer, quando deixar a ilha.
- Não poderia suportar outro paciente adulto depois de mim? - Havia um tom estranho na voz de Douglas.
Atravessaram o jardim escuro e entraram pela porta lateral. As luzes do saguão ainda estavam acesas. Quando Sabrina se virou para ele, viu a ironia estampada em seu rosto, as rugas profundas em volta dos olhos claros e brilhantes. Sentia vontade de suavisá-las com uma mão amorosa. Sabia que, no dia em que se separasse daquele homem, ficaria triste e vazia, como uma estrela apagada. Porém, teriam que se separar, porque Douglas amava Nadi e, inevitavelmente, ele acabaria fazendo o que ela queria. Douglas se submeteria à operação porque não era homem de conseguir viver sem amor.
Na escura e estranha intimidade da caverna, Sabrina tinha estado mais perto dele do que jamais estaria novamente, e agora sabia que um homem tão viril não havia sido feito para ficar solteiro nem para ter paixões momentâneas. Douglas era o tipo que respondia às forças da natureza como uma árvore obedecendo aos instintos de deitar raízes e criar galhos poderosos.
A fúria com que disse a Nadi para não ficar lembrando de coisas que deviam ser esquecidas era um indício de quanto ele ainda a desejava.
Naquele instante, a porta do estúdio se abriu e Laura veio correndo para abraçar o neto. Depois, virou-se e olhou surpresa para Sabrina, vestindo a camisa e o paletó de Douglas.
- Minha pobre menina! - Laura teve que rir. - O que aconteceu com você? Caiu no mar e Douglas precisou salvá-la?
- Digamos que um salvou o outro, Nan. Olhe, minha doce senhora, estamos mortos de fome e desesperados por uma xícara de café. Brutus também está de barriga vazia. Pode mandar preparar alguma coisa para nós, pobres náufragos?
- Nurn minuto, querido. - Laura passou os dedos pelos cabelos emaranhados do neto. - Charles está acordado... queria sair atrás de vocês, mas eu impedi. A maré estava alta e a tempestade foi horrível; seria muito perigoso. Tive as visões mais pavorosas. Imaginei os dois afogados e sendo levados peio mar... Oh, queridos, vocês estão péssimos! Precisam de um banho quente e uma boa refeição. Mandarei levar alguma coisa no quarto. Imagino que tenham se abrigado na caverna grande, não foi?
- Até acendemos uma fogueira. Por isso, não ficamos tão mal. Enquanto puxava o cordão da campainha para chamar Charles, a velha
olhou ínquisidoramente para Sabrina, passando os olhos pela camisa de seda que cobria seu corpo magro. Eles tinham ficado sozinhos por várias horas, numa situação incomum, enfrentando o perigo, e no olhar de Laura havia uma pergunta muda que fez a moça corar.
Sabrina sentiu um enorme alívio quando se viu sozinha, relaxando na banheira cheia de água quente, tomada de sentimentos de dor e felicidade. Aquelas horas passadas na caverna a tinham feito perceber que amava Douglas desesperadamente. Cada nervo do corpo gritava seu amor por ele e, no fundo do coração, sabia que nunca haveria outro homem em sua vida.
Douglas também devia estar tomando um banho quente naquele momento. Com timidez, Sabrina fechou os olhos tentando afastar a visão dos músculos poderosos de seu peito moreno. Abraçada àquele homem, tinha sentido toda a potência e todo o perigo que havia nele e sentiu-se perdida. Sem nem mesmo tê-la beijado, Douglas, agora, a possuía.
Não se atreveu a pensar nos dias que estavam por vir, nas manhãs cheias de sol ou na tarde dourada pelo crepúsculo, em que Douglas lhe diria que estava voltando para a Inglaterra para consultar seu médico, sir Damien Williams.
Na caverna, tinha sentido a ânsia por amor que havia nele... o desejo de viver fora das barricadas impostas pela cegueira. Agora que Nadi estava de volta, sabia que não poderia viver sem ela e era por isso que tinha entrado no mar raivoso: para provar a si mesmo que era capaz de enfrentar tudo e voltar vivo e triunfante.
Sabrina sentiu um frio enorme, enquanto se enxugava e vestia o pijama e o roupão. Ficou um pouco mais alegre ao entrar no quarto e ver que a mesa estava preparada para uma refeição. Charles voltou depois de cinco minutos, trazendo uma bandeja e um grande bule de café. Puxou uma cadeira para ela, gentil como sempre, e havia uma expressão de alívio em seu rosto que mostrava a satisfação de saber que seu patrão estava a salvo.
- Muito obrigada, Charles. - Sabrina descobriu a bandeja e viu fatias de presunto, ovos fritos e um puré de batatas com um aspecto delicioso. - Você é um mágico!
- Coma bastante, enfermeira, deve estar precisando, - Serviu o café. - devo dizer que foi muito corajosa, saindo atrás do sr. Douglas.
- Era meu dever, Charles. - Sorriu e tomou vários goles do café quente e delicioso. - Espero que ele tenha tomado um banho bem relaxante.
- Sim, senhorita, eu mesmo cuidei de tudo. Deixei-o comendo.
- Charles, você é um tesouro inestimável! - Sorriu novamente para ele e notou que o criado estava com uma expressão diferente da máscara impassível que costumava mostrar. - O que aconteceu? Está querendo dizer alguma coisa?
- Fiquei muito preocupado, enfermeira. Se alguma coisa acontecesse ao patrão, seria o fim de Snapgates. Esta casa está aqui há tantos séculos, seria uma pena vê-la demolida.
- Acha que isso aconteceria?
- O sr. Ret não é como o patrão. Hã rumores de que um grupo americano está querendo comprar a ilha para fazer um centro turístico. Para isso, seria preciso construir um aeroporto, e ouvi dizer que o lugar ideal é aqui, nas terras dos Saint-Same. Sinto um arrepio, só em pensar!
- Tem razão, Charles, seria horrível ver toda esta beleza destruída em nome do lucro. Porém, estou certa de que nada acontecerá ao sr. Saint-Same.
- Quem pode dize? - O criado ficou olhando para ela, com uma expressão infeliz. - A senhorita precisava ter conhecido o sr. Dougias, antes de ele ficar cego. Sempre que vinha à ilha saía no barco, enfrentando as ondas como se fosse um brinquedo. E tínhamos os melhores cavalos para ele cavalgar pelas terras. Como era diferente! Díga-me, enfermeira: há alguma esperança de operação?
- Não posso dizer. Charles. só sei que seria muito arriscado. Ele está cego agora, mas ainda tem a força e o cérebro perfeitos. Se perdesse isso... quem sabe, com o tempo, talvez se acostume com a cegueira e volte a ser um homem ativo, dentro das novas limitações. No entanto, só ele pode fazer a escolha.
Depois que Charles saiu. Sabrina continuou a comer sem realmente saborear a comida e depois foi se deitar. Demorou a pegar no sono, sentindo o coração pesado. Tinha a estranha convicção de que Douglas tinha tomado uma decisão na caverna, durante a tempestade.
Os dias que se seguiram foram de céu claro e sol muito quente. O mar tranquilo parecia uma turquesa líquida e nenhuma veia no horizonte quebrava a solidão que havia naquele lado da ilha.
A tarde, o sol era tão quente que chegava a ser um tormento. O único lugar para escapar dele era sob as árvores frondosas do jardim.
Certa manhã, Lucille torceu o tornozelo e não pôde levar o almoço de Ret no cafezal. Sabrina se ofereceu para ir em seu lugar. Estava fazendo o possível para evitar o rapaz e pensou em deixar o cesto com a refeição no bangalô que ficava no meio da plantação sem ser vista por ele. No entanto, quando entrou. Ret estava sentado numa poltrona de vime. sob o ventilador.
- Que grande honra receber a visita da valorosa enfermeira Muir. Está servida a almoçar comigo?
Sabrina não respondeu. Enquanto colocava a cesta na mesa. viu várias revistas com os mais modernos modelos de automóveis. Teve certeza de que Ret não tinha passado a manhã trabalhando muito.
Ele abriu a cesta e olhou.
- Há mais do que suficiente para dois e tenho tuna garrafa de vinho no armário. Vamos, a galinha e as casquinhas de siri devem estar deliciosas. Estou um pouco solitário e morrendo de calor você parece tão calma e fresca. Não sente calor, enfermeira?
- É claro, mas procuro não pensar muito nele.
- Ah, a força da mente!
Ret tinha sorriso malicioso, enquanto a examinava de alto a baixo. Sabrina usava um vestido de algodão listrado e estava com os cabelos penteados como de costume. O sol forte da ilha começava a dar um tom rosado a sua pele clara, que combinava com a cor dos seus olhos e com os cabelos clareados pelos banhos de mar.
- E então, enfermeira, quer comer comigo? Pode perder uma hora com este pobre solitário?
Ela hesitou, pois os trabalhadores estavam do outro lado do cafezal e o bangalò parecia muito isolado. No entanto, pela expressão de Ret, adivinhou o que diria se recusasse, que ela não se incomodava de ficar sozinha com seu primo,
- Sente-se - disse ele, indicando uma poltrona. - Está muito quente para ficarmos brincando de esconde-esconde. Seja sociável e deixe-me contar sobre o jantar que Nadi está planejando dar a bordo do iate. A propósito, o barco não é dela, pertence a um amigo que o emprestou para esta viagem.
O nome de Nadi agiu como um imã, puxando Sabrina para a poltrona. Ele abriu o armário e pegou a garrafa de vinho e uma taça de cristal.
- Tome, eu beberei da garrafa.
- Não, não quero.
- Não seja indelicada, Sabrina, quando estou lhe oferecendo minha humilde hospitalidade. - Encheu a taça e deu a ela. - Dizem que o vinho é o macho è a taça, a fêmea. Estranho simbolismo, não?
- Bastante. - Tomou um gole. - É muito bom.
- Da melhor safra. Douglas é um conhecedor - disse Ret, com um sorriso, malicioso. - Nadi está planejando dar um jantar no dia em que os moradores fazem a celebração anual do que conseguiram da terra e do mar. Há um verdadeiro carnaval e praticamente todos participam. Antigamente, era uma festa louca e havia muita gente por aqui. Mas, do jeito que as coisas vão, logo esta ilha voltará a ser uma selva.
- Você bem que gostaria que seu primo a vendesse, não é? Para os americanos que querem transformar tudo isto num parque de diversões para turistas.
- E o que há de mal? Aqui há tudo o que um turista poderia desejar:
sol, praia e selva. - Ret sentou na ponta da mesa e começou a comer uma coxa de frango. - O problema com vocês, sonhadores, é que acham que têm direitos .exclusivos sobre o paraíso.
- E melhor do que ver tudo estragado por cassinos e estacionamentos, sem falar nessas praias lindas e selvagens cheias do barulho de rádios portáteis e cada centímetro de espaço ocupado por corpos oleosos e lixo atirado na areia.
- Sabrina, você é uma pedante.
- Não é isso. Amo a natureza. Amo a beleza pelo que ela é: não como um meio de obter lucros.
- Antes de ficar cego, Douglas só pensava em dinheiro.
- Mas nunca em relação com a ilha. Tenho certeza de que jamais pensou em vendê-la para aproveitadores.
- Você defende tudo que ele faz, não é?
- E você deveria fazer o mesmo. Afinal, leva uma boa vida aqui. Sabe muito bem que, em qualquer outro lugar, seria apenas mais um rapaz bonito. Na ilha, você é importante, por ser o primo do patrão.
- Não hesita em dar golpes baixos quando luta pelos direitos dele, não é, Sabrina? Acho que ficaria feliz em vê-lo sempre como está. Douglas não precisaria mais de você, se recuperasse a visão.
- Quando luta, Ret, seus golpes são cruéis. Não gosto de ver alguém se aproveitando de um cego.
-- Está insinuando que me aproveito da cegueira dele?
- Estou acredito que foi ideia sua trazer Nadi para cá. Você queria revolver velhas memórias, reabrir as feridas de Douglas para deixá-lo desesperado. Sabe que ela é a única pessoa que pode realmente magoá-lo.
- Tem ciúme dela. enfermeira?
- Seria pura perda de tempo para alguém como eu. Só gostaria que Nadi tivesse um coração tão lindo como o rosto, um pouco mais de compaixão e menos egoísmo.
- É melhor não deixar Douglas ouvi-la falar em piedade. Talvez seja por isso que ama Nadi: ela é só paixão.
- Agora, sei muito bem do que ele gosta ou não gosta.
- Ficou sabendo de tudo, quando estavam presos naquela caverna escura e solitária?
- Sabia que, mais cedo ou mais tarde, você ia mencionar isso,
- Não tenho conseguido pensar em outra coisa. Estou morto de inveja por não ser eu quem estava lá.
- Pois estou aliviada por não ter sido você.
- Como é malvada comigo! Será uma forma de autodefesa? Sabe que acabaria gostando de mim, caso se permitisse ser você mesma?
- Ret, você é incrível. Faz lembrar a história de Apolo, o deus grego, que queria fazer amor com todas as mulheres que encontrava e conseguia conquistar a todas, até conhecer Dafne, que preferiu se transformar numa árvore a se entregar a ele. Você é bonito como Apolo e sei que tem feito muitas conquistas, mas não pretendo ser uma delas. Já lhe disse antes; não vai virar minha cabeça com suas mentiras charmosas. Simplesmente, não sou suficientemente bonita para acreditar numa só palavra.
- Quando fala comigo desse jeito, sinto uma coisa estranha. Tenho vontade de sacudir você, de comprometê-la de tal modo que não possa procurar ninguém, a não ser a mim. - A voz de Ret ficou áspera e ele tomou outro gole de vinho. - Sabe muito bem do que estou falando. Você é enfermeira, não pode dizer que é totalmente inocente sobre esses assuntos.
- Ret, gostaria que não falasse desse jeito!
- Está chocada? Bem, já era hora de alguém lhe dizer que muitos homens gostariam de vê-la se derreter em seus braços. Feia... bonita? São simples palavras. Seu problema, enfermeira santinha, é que é tímida demais... ou reprimida demais. Acho que é por causa daquele maldito orfanato. Passou muito tempo lá. não foi?
- Sim, mas foi há muito tempo e isso é irrelevante.
- Pelo contrário, é muito importante. Você foi ensinada a esconder sua verdadeira personalidade e a demonstrar eterna gratidão por quem lhe dava um prato de arroz e um pouco de verdura. Não ria! É verdade, e sabe disso melhor do que eu! - De repente, Ret se inclinou e, com inesperada suavidade, tocou o rosto de Sabrina. - Acha Nadi Darrel a mulher mais atraente do mundo, não é?
- Ela é linda.
- Nadi trabalha para isto. Sabe exatamente quais os cosméticos que deve usar e o tipo de roupa que realça sua beleza. De muitos modos, ela é um produto dessa nova era artificial. Por acaso, pensou que aqueles cílios de dois centímetros de comprimento eram naturais? Minha cara, já a vi sem eles e...
Ret parou de falar e. com um palavrão em voz baixa, saiu da mesa e foi se encostar no batente da porta. Ficou parado lá com as mãos no bolsos das calças, e Sabrina sentiu a tensão em seu corpo magro e elegante. Ele quase tinha falado demais, e o silêncio entre eles ficou pesado.
- Acho que o que falei soou pior do que devia - disse Ret, depois de alguns minutos. - Quando levei Nadi para o iate, ela estava muito nervosa. Então, a chuva começou, com todos aqueles raios e trovões e ela me pediu para passar a noite no barco. Vou lhe contar a pura verdade: fiquei na minha cabine e ela na dela. Lá pelas duas da madrugada, escutei alguém se atirando na água e corri para a coberta. Nadi estava nadando! Ajudei-a a subir a bordo e foi então que a vi completam ente sem maquilagem e com um mínimo de roupa. Parecia uma menina desamparada. Sempre imaginei que fosse uma mulher sofisticada e segura de si, mas, quando a vi tremendo na coberta, sem nenhuma pose, soube que ficou com medo de casar com Douglas, não porque ele não podia mais admirar sua beleza, mas porque era ela quem precisava de um guia seguro. Senti pena dela... É até chocante ver uma boneca sem a pose e os modos estudados e, principalmente, sem pintura. Ret fez uma pausa para acender um cigarro.
- Nadi é muito menos real do que você. Sabrina. Eu a vi com o rosto lavado desde o primeiro dia que nos encontramos. Seus olhos não precisam de retoques... seus cílios não se soltariam depois de alguns beijos.
- Você beijou Nadi? - A pergunta tinha que ser feita, por Douglas, não por ela.
- Fiquei com pena dela... sim, eu a beijei e depois a levei para a cabine e a coloquei na cama. Não fiquei com ela. palavra de honra.
- Nadi queria que ficasse?
- Sim.
- Por acaso, foi por respeito a Douglas que você não ficou?
- Para ser brutalmente franco, foi por pura falta de desejo. - Virou-se para Sabrina e seus olhos tinham um brilho estranho. - No dia seguinte, quando voltei a Snapgates. fiquei sabendo que você tinha passado todo o tempo da tempestade, sozinha, com Douglas na caverna. Tive ódio dele... por estar com você. Fiquei imaginando-a nos braços dele e senti ciúme. Sabrina, você fica sentada aí, tão fria e comportada, tão serena e inocente... Droga, não estou pedindo por compaixão... não preciso dela. Mas quero que sinta algo por mim, ou a obrigarei a sentir!
- Está me ameaçando ou exigindo? - Sabrina se levantou, tentando esconder o nervosismo. Estava sozinha com Ret e sabia que ele não tinha escrúpulos, quando queria conseguir algo. - Seja sensato, não sou seu tipo. Sou uma enfermeira empertigada e engomada de quem você sente vontade de judiar. E tudo. Agora, se já está satisfeito, vou levar o cesto de volta para casa.
- É você quem precisa ser sensata. Meu primo criou uma imagem sua que está muito longe da realidade. - Ret enfatizou a observação, amassando a ponta de cigarro com o calcanhar. - Porém, eu posso ver a verdadeira Sabrina, seus olhos prometem o céu. você é uma garota que pensa que os homens são cruéis. Gostaria de lhe provar que eles também podem ser gentis.
- Seja gentil agora. Ret, e pare de falar todas essas coisas. Preciso voltar ao trabalho. O sr. Saint-Same está me esperando para responder algumas cartas.
- Só isso?
Sabrina arrumou a cesta, recusando-se a perder a paciência.
- Seu controle é verdadeiramente admirável, enfermeira. Acho que deve ser um tanto lisonjeiro ser considerada um anjo... mas, na verdade, você é um daqueles génios da floresta a quem os irlandeses costumam dar as sobras. Você deve ter juntado um monte de sobras, enfermeira: cartões de Natal das crianças de quem cuidou, programas de teatro das peças que foi assistir sozinha, alguns discos românticos para lembrá-la das vezes que não foi convidada para dançar. Por falar nisso, sabe dançar? Irá à festa no iate, se Nadi a convidar?
- Não creio que ela me convide.
- O que a faz ter tanta certeza? Nadi não a vê como uma rival. Você é contida demais para ela perceber seu fascínio. Nadi não sabe que você pode lançar encantamentos.
- Não diga bobagens, Ret. e deixe-me passar.
- Se Nadi convidar, prometa que vai dançar comigo.
- Não... não sei dançar.
- É fácil, como fazer amor ao som da música. Você simplesmente se entrega ao homem e o deixa tomar todas as iniciativas. Vamos, prometa, e a deixarei voltar ao seu paciente.
- Isso é uma forma delicada de chantagem?
- Pode pensar o que quiser. Na verdade, eu a estou cortejando. - Com aquele sorriso enigmático e um brilho malicioso nos olhos, Ret a cumprimentou com uma inclinação da cabeça e se afastou para deixá-la passar. - Até logo, Sabrina. Não corra nesse calor.
- Até logo.
Sabrina esforçou-se para andar calmamente pela trilha entre o cafezal, e enquanto a gargalhada de Ret sumia na distância, sentiu-se melancólica. Mordeu os lábios e olhou para trás. Depois, disse a si mesma para não ser boba. Ret conhecia todos os truques para brincar com as emoções de uma mulher e provavelmente tinha feito alguma aposta consigo mesmo ou com algum amigo de que, em pouco tempo, a feia e solitária enfermeira Muir ia sucumbir a seus encantos.
Quando chegou em casa, descobriu que estava ofegante e que seus pés tinham acompanhado o ritmo acelerado dos pensamentos. Era absurdo, mas, ao entrar no saguão, parou em frente do espelho para se examinar cuidadosamente.
- Ah, aí está você, Sabrina! - Laura saiu da sala de visitas.
A última semana tinha sido indolente e calma, como se Snapgates estivesse isolada do resto da ilha. Agora, havia música vinda do estúdio... uma sonata de Beethoven.
- O clima da ilha lhe fez muito bem. sabe? - Laura estudou Sabrina com olhos francos e sorridentes. - Quando chegou aqui, estava muito pálida e abatida. Parecia tão franzina que, confesso, duvidei de que conseguiria lidar com Douglas. Mas agora, sei que você tem muito mais força do que aparenta à primeira vista. É um modo de se fazer "sentida" não, vista. E está muito mais saudável, corada; seus cabelos estão brilhantes, mais cheios de vida, e até engordou um pouco. Gostaria... - Laura deu um suspiro, - Sei que é tolice, mas fico pedindo a Deus que permita que nossa vida continue assim, sem interferências de estranhos!
Sabrina sabia a quem ela se referia e sabia, também, que logo aquela calma seria perturbada. Talvez, no dia seguinte, chegaria o convite de Nadi para o jantar no iate e Douglas não conseguiria resistir ao desejo de estar com ela novamente. Quando Nadi se visse sozinha com ele, passaria os braços em volta dele e pediria num sussurro que, por favor, por favor, se submetesse à operação, porque o dr. Williams achava que o perigo agora era menor.
- Douglas precisa de uma esposa... - As palavras de Laura fizeram eco aos pensamentos dela. - Mas, não de alguém como aquela moça, aquela modelo, com suas roupas sofisticadas e seu coração egoísta!
Houve um silêncio súbito, quase terrível... a música tinha parado e Douglas estava na porta do estúdio. Não usava a bengala e, sem ela, ninguém diria que era cego. Parecia que, a qualquer momento, ia sair andando pelo corredor, como se visse por onde andava.
Porém, ele não se mexeu e seu rosto estava sombrio.
- Sabrina. - O nome foi dito quase com rispidez. - Há uma carta aqui que gostaria que lesse para mim. Acredito que seja da srta. Darrel. Lembro do perfume que ela costumava usar no envelope.
- Já estou indo. - Enquanto se aproximava de Douglas, já sabia qual era o conteúdo da carta e qual seria a resposta.
As persianas do estúdio estavam fechadas e o ventilador zumbia suavemente no teto. Douglas fechou a porta e entregou a carta a ela.
- Abra as persianas. Não vá forçar a vista.
Ela obedeceu e o sol entrou, iluminando o salão e todas as coisas bonitas que ele continha. Teria Douglas precisado da tranquilidade da música, antes de enfrentar as palavras escritas por Nadi?
- Querido... - começava a carta, e Sabrina percebeu um ligeiro estremecimento nele, quando falou a palavra. Olhou para Douglas, mordendo os lábios, e o viu lutando para manter o rosto controlado e quase severo.
- Continue.- disse ele.
Enquanto escutava a leitura da carta de Nadi, passava as pontas dos dedos num pequeno Buda de jade, cego como ele, mas muito mais sábio do que Douglas jamais seria, pois o amor não é uma emoção sabia.
O mar estava colorido e inquieto, e as ondas pequeninas e cheias de espuma faziam um barulho engraçado quando batiam nos cascos dos barcos. As velas coloridas aumentavam o ar festivo que havia no porto, com a avenida e as casas enfeitadas com bandeirinhas que dançavam alegremente ao vento. Havia uma enorme animação no ar e de todos os lugares vinha o som de música e risos.
Vista da coberta do Lady Fay, a cena na praia era ainda mais excitante, e Sabrina batia a ponta do pé, acompanhando o ritmo dos sons de calipsos que chegavam até o iate.
Tinham sido convidados para passar o dia todo no barco para não perderem nenhum momento da festa, e agora Douglas conversava com Nadi e outros convidados, enquanto tomavam aperitivos no bar que tinha sido montado perto da proa.
Nadi tínha escrito na sua carta que Douglas podia levar sua "pequena guia". Quando Sabrina quis recusar o convite, ele respondeu que "já era suficientemente desagradável o fato de a avó ter inventado uma desculpa para não ir. Não deixaria Sabrina ofender Nadi com outra recusa. Por isso, lá estava ela, parada no mesmo lugar onde a moça tinha estado no dia em que a viu pela primeira vez.
Porém, alguém que olhasse da amurada não veria uma figura sofisticada e impressionante, mas uma mocinha clara, com um vestido cor-de-rosa e com os olhos escondidos atrás de óculos escuros. Sabrina sentia-se desprotegida sem eles. Ninguém poderia adivinhar, muito menos Nadi, que seus sentimentos por Douglas eram mais do que profissionais. Precisava tomar todo o cuidado para não se trair. Tinha que vigiar cada olhar, cada sorriso.
O dia estava quente, muito claro, um cenário perfeito para o festival.
Acima dos mastros enfeitados do iate, o céu azul mostrava algumas nuvens douradas.
Sabrina olhou para cima pensando que seria uma pena se chovesse, e depois foi para o outro lado do iate, de onde teria uma vista melhor do mar. Sentia uma estranha inquietação. Queria ficar a bordo e ao mesmo tempo, lutava contra o desejo de fugir. De repente, uma gargalhada alegre vinda da popa a fez apertar com força a grade da coberta, tentando ignorar a pontada de inveja no coração.
Nadi estava maravilhosa, quando foi recebê-los, com um sofisticado vestido de seda verde. Afastou Douglas de Sabrina assim que desembarcaram da lancha que os levou até o iate.
- Querido... - A voz era uma verdadeira carícia. - Venha, quero lhe apresentar umas pessoas sensacionais. Sabrina, quer um aperitivo?
- Ainda não. srta. Darrel.
- Pode me chamar de Nadi - disse a outra, por cima do ombro coberto de seda, e se afastou de braço dado com Douglas, de modo a poder guiá-lo sem chamar muita atenção.
Sabrina olhava o alegre movimento de muitos barcos que passeavam pela baía e seguia o vôo preguiçoso das gaivotas. Nunca tinha estado num iate antes e ficou imaginando como seria ir para o mar, longe de todos os problemas.
Sim, seria muito bom. Talvez, quando deixasse a ilha, voltasse à Inglaterra de navio. Escolheria um cargueiro, que custava mais barato e parava em vários portos. Hoje. por algum motivo, não conseguia afastar do pensamento o dia de sua partida. Ele estava como uma nuvem pesada e cinzenta no horizonte. De repente, ficou tensa. A uns quinze metros do iate, viu uma figura na água, enquanto uma lancha se aproximava dela em alta velocidade. 0 homem nadava com braçadas poderosas, mas a qualquer momento seria atingido pela embarcação.
Sentiu o coração dar um salto. Arrancou os óculos escuros para ver melhor e percebeu, com pavor, que o nadador era Ret!
Ele não tinha ido com ela e Douglas porque já havia combinado um encontro com um amigo no clube para tomar alguns aperitivos antes do almoço. Descera do carro com um sorriso malicioso, acenando para Sabrina. E agora, estava na água, a poucos metros de uma lancha que poderia fazê-lo em pedaços!
Subitamente, a lancha fez uma curva fechada, quando o piloto viu Ret, e ele mergulhou em direção de um catamarã que estava perto, com as velas coloridas enfunadas pelo vento. Foi puxado para bordo e, enquanto Sabrina dava um suspiro de alívio, sentiu uma ponta de raiva pelo modo atrevido como o viu rir, olhando para o iate, com a água escorrendo peio corpo musculoso.
O barco o trouxe até a escada do iate e um dos marinheiros o ajudou a subir. Ainda ria. quando passou por cima da amurada.
- Não estaria com essa cara, se tivesse sido feito em pedaços por aquela lancha! - Sabrina falou furiosa. - Será que não tem nenhum sentido de perigo?
- Eu a assustei, queridinha? Foi uma aposta que fiz. Disse que nadaria do clube até o Lady Fay. Claro, todos sabíamos do movimento de barcos que há hoje, mas, se não fosse assim, não haveria graça na aposta.. Gosto de fazer coisas que envolvam algum risco. Por que não experimenta algo assim, enfermeira? Talvez colocasse um pouco mais de cor na sua vida cheia de deveres.
- Já enfrentei uma aventura, quando vim para esta maldita ilha! - Sabrina pôs os óculos, com um gesto decidido. -- Vai ficar na festa vestindo só um calção?
- E por que não? Acha que Nadi se importaria? Pelo que vejo, ela está tão feliz e distraída que nem notaria se um escocês de saiote entrasse no iate para almoçar. Nadi conseguiu o que queria: convenceu Douglas a começar de novo, de onde eles pararam, e você sabe o que isso significa.
- Acho que sim.
- Se amasse alguém, Sabrina, esperaria que ele a amasse mais do que a própria vida?
- Gostaria... de ser mais razoável do que isso.
- Com você. seria o contrário, hein? Amaria um homem mais do que sua própria vida, não é?
- Ret, não acha que devia se enxugar?
- Ou calar a boca, hein? - Ele sorriu e tirou os pingos de água dos braços com as mãos. - MacQueen, o amigo com quem fiz a aposta, deve chegar de lancha a qualquer momento com minhas roupas.
- Faz apostas sobre tudo?
- Elas dão algum tempero à vida, embora deva confessar que nem sempre ganho.
- Quer dizer que deve dinheiro?
- Exatamente, querida enfermeira. Sabe de uma coisa? Esse vestido fica muito bem em você, mas gostaria que tirasse os óculos escuros. O que está tentando esconder?
A pergunta deixou-a mais nervosa. Ainda estava abalada por causa do incidente da lancha. Um dia, Ret iria longe demais e não se salvaria no último minuto. Sua audácia não o ajudaria numa crise real. Se ficasse aleijado ou cego, não teria a coragem e a força de Douglas.
- O sol está forte demais e o reflexo na água faz meus olhos lacrimejarem.
- Lágrimas? Porque teve que entregar seu paciente aos cuidados menos misericordiosos de Nadi? Bem, o amor é mais feito de paixão do que de piedade, como já lhe disse. Na sua inocência, você seria bem capaz de confundir as duas coisas.
- Não sou tão infantil assim!
Sabrina virou-se com alívio para o garçom que veio avisar que o almoço seria servido em meia hora, convidando-a para ir se juntar ao grupo para tomar um aperitivo. Ela olhou para Ret, que ergueu as sobrancelhas, numa expressão de caçoada.
- Agora está pedindo meu apoio moral, certo? Vestido do jeito que estou?
- Você conhece a maioria dos convidados.
- Sinto até as pernas moles ao saber que você deseja a minha companhia, meu bem.
Seguiram o garçom até a coberta superior, onde havia sido estendido um toldo colorido. Sabrina deu uma risadinha nervosa.
- Vamos fazer uma figura muito estranha no meio de todos esses convidados!
- Você é uma quadrada. Está tão acostumada a andar sempre de uniforme, que nem sabe que num iate como este todos se vestem como querem. Ninguém repara se alguém está de fraque ou de tanga!
Sabrina riu novamente e parou de repente, quando Ret tirou seus óculos.
- Ret!
- Não vai precisar deles embaixo do toldo, boneca. Seus olhos são muito bonitos: não vou deixar que os esconda.
Depois, com todo seu charme displicente, Ret a pegou pelo braço e levou-a até um círculo de convidados. Cumprimentou meia dúzia deles e pediu dois drinques ao garçom.
- Venha para cá, meu bem - disse Nadi, indicando para Sabrina uma cadeira de lona perto dela e Douglas. - Hoje não é dia para formalidades. Vou chamá-la pelo primeiro nome. E lindo.
Enquanto Sabrina se sentava, sentiu os olhos verdes passando por ela, como se dissessem: "Um nome como Sabrina devia pertencer a alguém bonita e excitante".
- Sabrina é a enfermeira de Douglas. Uma moça extremamente dedicada.
Nadi fez uma apresentação para todos em geral, e a moça foi cumprimentada por vários casais extremamente bem vestidos, com os sotaques mais variados: franceses, italianos e americanos. Todos pareciam ricos e tranquilos, exatamente os tipos de pessoas com quem Nadi gostaria de andar, mundanos e seguros de si. Mas, e Douglas? Será que passavam a maior parte do tempo sendo decorativos e divertidos? Na opinião de Sabrina, essas pessoas combinavam mais com Ret.
Então, como uma resposta a seus pensamentos, Ret se aproximou deles trazendo o copo de Sabrina e Nadi lhe deu um daqueles olhares charmosos, levantando as sobrancelhas sedosas.
- Ret, você sempre faz as coisas mais inconvencionais. Veio nadando?
- Sim, e quase não chego. Por pouco, não fui estraçalhado por uma lancha. E, ainda por cima, levei um puxão de orelhas de Sabrina. Ela parece um anjinho, mas é terrível quando fica brava. Não é, Douglas?
- Já levei alguns cascudos. - Douglas virou o rosto na direção da voz de Ret, e Sabrina não resistiu à vontade de olhar para ele. Parecia relaxado e era uma figura impressionante que dominava todos os homens presentes.
- Está bebendo alguma coisa, Sabrina. - perguntou, de repente.
- Sim, obrigada. - Como se controlava para não mostrar nenhuma emoção, fez a voz soar fria como o gelo que tilítiava em seu copo!
A frieza funcionou como um radar e fez Douglas voltar os olhos paraela... aqueles olhos incríveis, brilhantes, que não pareciam cegos.
É injusto, gritou seu coração, um homem com a inteligência e vitalidade de Douglas, vítima da escuridão total, sem poder ver o mar azul, os barcos alegremente pintados passando por entre os iates e escunas, cheios de frutas e peixes, e o movimento das pessoas no ancoradouro.
Sabrina tentou imaginai o que seria ficar sentado na escuridão entre pessoas que podiam ver, e teve vontade de pegar a mão dele para deixá-lo saber que ela o compreendia. Quis descrever tudo que estava vendo... mas, naquele dia, ele pertencia a Nadi. Olhou para a outra, mas, em vez de estar contando o que acontecia a sua volta, a moça falava com Douglas como se ele pudesse ver.
- Acho que será uma boa ideia irmos para terra mais tarde - sugeriu alguém. - Assim, poderemos participar do carnaval. - O que diz Nadi?
- Será maravilhoso. Por favor, alguém quer encher o meu copo?
O amigo de Ret chegou com as roupas e ele desceu para se vestir. Sabrina deu uma olhada para Douglas e viu que estava com o testa franzida.
- Terá que me desculpar. Nadi. Não irei à praia. Serei um estorvo no meio de toda aquela alegria.
- Mas, querido, não posso deixá-lo sozinho aqui!
- Pode e vai deixar, meu bem. - Sua voz era firme com uma rocha - Eu serei um transtorno. Prefiro continuar aqui no iate.
- Douglas, meu amor. você fala como se fosse um inútil!
- E é o que sou no meio de uma multidão. O barulho me confunde, não há nenhum encanto em se levar cotoveladas e empurrões por causa de alguma coisa que não se pode ver.
- Meu pobre querido! - Nadi abraçou-o pelo pescoço, trazendo a cabeça morena para perto do peito coberto de seda verde. - Então, ficarei com você. Sentaremos à sombra e conversaremos, enquanto esses malucos estiverem dançando no meio da bagunça.
Douglas afastou-se.
- Nadi, nunca passaria pela minha cabeça impedi-la de se divertir. Acredite: se eu pudesse ver, estaria tão ansioso como vocês em me juntar a tanta alegria. Faço questão de que vã e não quero discussões.
- Como o meu querido ê bravo! - Nadi beijou os cabelos pretos de Douglas. - Tem certeza? Sabe é o meu primeiro carnaval.
- Sim. Ficarei bem e em segurança aqui. E o almoço? Estou com tanta fome que, daqui a pouco, vou dar uma mordida na primeira mulher apetitosa que passar por perto.
- Então, serei eu. - Com uma risada rouca, Nadi se afastou para ver a mesa que os garçons tinham arrumado. - Achei melhor servir o almoço à americana. No salão, lá embaixo, ficaria muito formal. E hoje, também, está muito quente. - Sirvam-se, todos, venham! Douglas, o que gostaria de comer? Temos salada, camarões fritos, pernil, peru, batatas assadas...
- Quero um prato cheio de tudo.
Todos riram e houve um alegre tilintar de taiheres quando os convidados se reuniram em volta da mesa, onde grandes pratos de madeira, típicos da ilha, estavam cheios das coisas mais apetitosas. As bebidas e o café estavam numa mesa separada. Instintivamente, Sabrina encheu uma xícara de café preto, como Douglas gostava.
- Monsier - disse, baixinho - achei que gostaria de um pouco de café.
- Sabrina - o sorriso de Douglas estava um pouco tenso - ainda de serviço?
- É o hábito. Pegue - colocou a xícara entre as mãos dele. - Está muito quente, tome cuidado.
- Sabrina, deixe, eu cuidarei de Douglas. - Pequeninas chamas de fogo iluminavam os olhos verdes de Nadi, que chegava acompanhada por um garçom carregando uma bandeja. - Vá logo almoçar, antes que a comida acabe.
Dispensada e sem fome, Sabrina serviu-se de um pouco de presunto, salada e uma fruta e escapou para um cantinho no convés inferior. Não tinha nada em comum com aquela gente. Só Douglas importava, e ele estava com Nadi. Lembrou do modo como sorriu quando lhe deu o café. Havia um pouco de melancolia em seu rosto, como se ele também se sentisse deslocado.
De repente, Sabrina ouviu passos e alguém chamando. Era Ret, e não queria que ele a encontrasse. Escondeu-se atrás de uma vela dobrada e ouviu-o aproximar-se com passos largos e elásticos, feito um felino atrás da presa. Ficou muito quieta, prendendo a respiração, mas alguns grãos de areia entraram em suas narinas e ela espirrou. Ret se virou rapidamente e a viu. Com uma expressão de raiva, ele se inclinou, puxou-a e sacudiu-a com força.
- Estava se escondendo de mim? Está querendo brincar comigo? Se é isso...
- Ret! - Todas as emoções represadas faiscaram nos olhos de Sabrina, num misto de dor e fúria.
- Por que não me deixa sossegada? Será que não consegue entender que quero ficar em paz?
- Você está se escondendo aqui para poder ficar sozinha com Douglas quando todos forem à praia! Sua pateta! Sabe que ele vai fazer a operação e que, se não morrer, poderá ver de novo? Aí, nem olhará para você. Quer ficar com ele enquanto puder, não é? Está tão desesperada que suporta ver Nadi abraçando-o.
A cada palavra, Ret apertava os braços dela com mais força, empurrando-a contra a grade do iate. Sabrina ficou com medo.
- Ret, o que esta fazendo?
-- Por uma vez na vida, enfermeira, você vai admitir o que está guardado no fundo do seu coração. - Apertou-a contra a grade. - Tem medo de tubarões. Sabrina? Eles estão lã no fundo, esperando por uma presa, nadando em silêncio.
- Ret! - A voz dela estava aguda, com uma nota de súplica e incredulidade. - Não faça brincadeiras tolas...
- Gosto de jogar, mas detesto que me enganem. Você me prendeu com esses olhos grandes e não liga para mim. Posso atirá-la lá embaixo como um pedaço de papel.
- Não! Você está me machucando!
- Pois é isso mesmo que quero fazer! Diga que ama Douglas! Confesse que não pode viver sem ele, e então ficarei satisfeito. Saberei que estamos no mesmo barco, sofrendo por amar alguém que não podemos ter...
- Solte a moça!
As palavras cortaram o ar como uma chicotada, vindas da escada que levava à cobertura superior. Ret virou-se, surpreso. Por cima de seu ombro, Sabrina viu a figura alta de Douglas delineada contra o sol. Seu coração quase parou de bater. Ele estava muito perto do primeiro degrau! Mais um passo, e cairia.
- Douglas! Não se mova... não...
Foi tarde demais. Naquele exato instante em que ele podia ter atendido o alerta e se afastado do perigo, Nadi apareceu atrás dele e pegou sua manga. Douglas puxou o braço com força e perdeu o equilíbrio, caindo de cabeça pela escada de metal.
Alguém gritou e gotas de sangue mancharam a vela branca. Tudo começou girar à volta de Sabrina que se soltou dos braços de Ret e correu, como se estivesse num pesadelo, até onde Douglas estava caído, muito quieto.
Nas horas e dias que se seguiram, houve muito o que fazer. No entanlo, para Sabrina, foi como se ficasse imóvel como um ídolo, aos pés de seu deus ferido, rezando todo o tempo.
O aviso do furacão tinha chegado às seis horas daquela manhã e as notícias eram tão alarmantes que todas as janelas do hospital foram reforçadas.
Pouco depois, o dr. Damien Williams chegou de helicóptero, com seu anestesista e uma enfermeira. Era um homem magro, claro, com olhos azuis muito vivos e mãos fortes, de dedos quadrados.
Enquanto a sala de operações era preparada, tudo em volta do hospital parecia parado, numa estranha calma. As longas folhas das palmeiras permaneciam caídas, como línguas secas sob o calor. A qualquer momento, o furacão podia chegar.
Os olhos de Laura Saint-Same mostravam o pavor que sentia. Um quarto perto do de Douglas tinha sido colocado á sua disposição e ela implorou a Sabrina para que ficasse com ela.
- Preciso de você, minha filha. Quero que fique comigo enquanto eles estiverem operando meu neto. e não na sala de espera, com Ret e aquela moça. Fique comigo, Sabrina; preciso da sua calma, ou vou enlouquecer.
Ninguém jamais saberia, nem mesmo a própria Sabrina, como conseguia parecer composta, quando cada batida de seu coração gritava o nome de Douglas. Só Laura tinha podido vê-lo, desde que foi internado no hospital.
- Ele estava tão quieto, Sabrina... E sempre tão estranho vê-lo assim.
- Laura torcia um lenço de cambraia por entre as mãos. - Oh, meu Deus, o que vai acontecer?
Tudo estava muito quieto e a velha senhora olhava, assustada, para a porta, quando ouvia passos abafados no corredor. A operação tinha começado, apesar da ameaça do furacão, porque o dr. Williams disse que não podia esperar mais, se quisessem salvar a vida de Douglas.
Algumas horas depois, ou até poderiam ser minutos, uma jovem enfermeira entrou no quarto, trazendo duas xícaras de café. Falou baixinho, dizendo que havia uma esperança do furacão se desviar para o mar.
- Oh. Deus, só espero que, se ele chegar, seja mais tarde, depois que a operação tiver terminado. Quanto tempo mais vai demorar?
- Não há previsão - disse a enfermeira, com um sorriso. - Coisas assim não podem ser apressadas. - Saiu, fechando a porta silenciosamente. Sabrina tomou o café sem nem mesmo sentir o gosto ou perceber se estava quente ou frio.
- Você o ama, Sabrina?
A pergunta repentina deixou-a tonta, sem saber o que responder. Podia . dizer que não, mas estaria negando tudo que sentia por Douglas e que continuaria sentindo, quer ele vivesse para casar com Nadi. ou morresse. Sentiu um arrepio quando um inseto com grandes e delicadas asas verdes pousou em seu braço. Ela o soprou e ele saiu voando para a persiana, onde ficou pousado, trémulo como seu coração.
- Não... não pude deixar de amar. - Foi um enorme alívio conseguir, finalmente, dizer aquelas palavras, as mesmas que Ret queria arrancar dela à força. - Ele é o primeiro homem forte e real que já conheci, o primeiro que se dignou a me notar... porque... porque não podia me ver.
- Menina, você não deve se diminuir assim!
Sabrina pensou no desejo de Ret. que não podia ser chamado de amor. Desde aquele terrível momento em que Douglas rolou os degraus do iate, o rapaz não tinha tido coragem de encará-la.
- Vai ficar conosco, não é. Sabrina? Se Douglas sobreviver... se for essa a vontade de Deus...
- Eu... não sei.
- Ele vai precisar dos cuidados de uma enfermeira e de muito carinho para se recuperar de tudo isto.
- Eu sei, mas, e Nadi? Ela não gostará que eu fique.
- Ela ainda não é a dona de Snapgates. - Por um rápido instante, Laura Saint-Same ficou extremamente parecida com o neto: obstinada e decidida a ter o que queria. - Você é bem-vinda em nossa casa por quanto tempo desejar ficar.
- Muito obrigada.
- Sabrína só respondeu para acalmar aquela mulher idosa e muito preocupada, de quem gostava tanto. No fundo do coração, sabia que seus dias na ilha estavam contados. Se, com a graça de Deus, Douglas sobrevivesse e recuperasse a visão, não precisaria mais da enfermeira Muir. Ela sairia de lá sem fazer alarme, lal como tinha chegado, e continuaria seu trabalho em outro lugar.
Eram cerca de três horas quando Ret veio ficar com Laura, enquanto Sabrina saía para andar um pouco no corredor. As venezianas estavam fechadas e tudo parecia muito quieto e sombrio. De repente, uma porta se abriu e uma figura vestida de branco saiu, tirando da cabeça o gorro verde-azulado usado pelos médicos nas saias de operação. Por um momento terrível, Sabrina pensou que ia desmaiar: aquele era o dr. Williams, o neurologista, e estava pálido e abatido.
- Ah, você é a moça que vi com a sra. Saint-Same. Enfermeira Muir, não é?
- Sim, senhor. - Olhou para ele, suplicante. Não seria ético perguntar, porque não era da família.
- O paciente está na sala de recuperação, enfermeira. - De repente, o médico sorriu. - Ele vai ficar bom, é claro. Nunca tive um paciente com tanto desejo de viver. Diga-me: seu nome é Sabrina?
- Sim, senhor. Oh, estou tão contente, tão feliz!
- Acredito... Sabrina. Ele repetiu seu nome enquanto dormia. Bem, agora, se me der licença, vou dizer à sra. Saint-Same que o pior já passou.
- Dr. Williams?
- Sim, enfermeira?
- Ele vai se recuperar... totalmente?
- Se está querendo saber se ele vai ver de novo... sim, por etapas. Em cinco ou seis meses, estará completarnente curado e voltará a ser o homem forte e ativo de antes.
O médico saiu andando em direção do quarto de Laura, enquanto Sabrina se apoiava na parede para não cair. Estava tudo acabado. Douglas havia escapado da escuridão. Douglas, que agora dormia e recuperava as forças... Pobre querido! Desperdiçando energias repetindo o nome dela!
O nome dela? Sabrina cobriu o rosto com as mãos, cambaleou e saiu correndo para fugir dali. Estava chegando na escada, quando todo o prédio do hospital começou a balançar, como sacudido por mãos gigantescas. O furacão! Ele chegou, furioso, vindo do nada, para arrancar árvores, virar barcos e elevar telhados de casas.
Durou várias horas e, por causa dele, Sabrina teve que ficar no hospital. Por volta da meia-noite quando, finalmente, o vento amainou, Douglas Saint-Same começou a ficar inquieto. Chamou por ela e foram buscá-la.
Sabrina ficou parada por alguns instantes ao lado da cama. Depois, puxou uma cadeira para perto e segurou a mão dele.
Douglas estremeceu e agarrou os dedos de Sabrina. Sua cabeça e rosto estavam enfaixados deixando apenas o nariz e os lábios livres.
- Sabrina...
Sorriu e voltou a dormir.
Nos dias seguintes, ele não perguntou nem uma vez por Nadi nem falou no nome dela. Numa certa manhã de sol, o Lady Fay partiu do ancoradouro.
- O verdadeiro amor - disse Laura a Sabrina - tem a ver com o coração, e Douglas descobriu o caminho para o seu, como um falcão que encontra o ninho no meio da escuridão. Agora, vai ficar tudo bem em Snapgates. Haverá novamente o riso de crianças e poderei desfrutar a minha velhice em paz,
Porém, Sabrina continuou temerosa, até o dia em que Douglas a viu claramente pela primeira vez.
- Sempre soube - disse ele - que seus olhos seriam capazes de conter tudo que há de bom no céu e na terra. Venha para os meus braços, querida. Quero que se sinta amada, segura, como sempre me senti com você. Quero que fique segura no meu coração, nos meus braços e na minha casa.
- Douglas... - Segurou a cabeça enfaixada com extremo cuidado. - Olhe para mím e veja bem se não está cometendo um erro. Você sempre viveu cercado de mulheres bonitas e sofisticadas, e amou Nadi, a mais linda de todas.
- Naquela época, Sabrina, eu só via rostos. Só depois de ficar cego é que aprendi a sentir a essência das pessoas, o que havia de realmente verdadeiro nelas,
- Pensei... que ainda amava Nadi, no dia em que fomos ao iate.
- Minha querida enfermeira, aceitei o convite porque senti vontade de levá-la a uma festa. Você não tinha oportunidades de se divertir, estava sempre tão sobrecarregada de trabalho. Querida, há muito tempo Nadi não significava mais nada para mim.
- Mas ela é tão linda!
- Pode ser, mas você é o meu amor. A princípio, foi a sua voz que me cativou. Depois, aos poucos, passei a amar você por inteiro. Tive certeza disso naquele dia em que ficamos presos na caverna, quando pude, por algumas horas preciosas, protegê-la como costumava- fazer comigo.
- Sofri tanto, Douglas, imaginando que você só tinha Nadi no pensamento. Aqueles brincos de brilhante... você os separou para ela.
- Não, meu amor. Você não podia saber, mas guardei aqueles brincos porque foram o último presente de meu pai à minha mãe, antes de morrer. Ela os adorava e eu jamais poderia vendê-los.
- Oh, Douglas...
- Sabrina, minha doce criança, perdoe se a fiz sofrer. Eu a amo tanto! Quero-a todinha para mim. Sabe, querida? Afinal, vai haver mais uma acácia no jardim dos Saint-Same. A mais linda de todas.
Violet Winspear
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