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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O JARDIM DE CIMENTO / Ian McEwan
O JARDIM DE CIMENTO / Ian McEwan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O JARDIM DE CIMENTO

 

Não matei o meu pai, mas às vezes sinto que contribuí para isso. E, não fosse o facto de a sua morte ter coincidido com um marco importante no meu próprio crescimento físico, ela pareceria insignificante comparada com o que se lhe seguiu. Na semana a seguir à sua morte, as minhas irmãs e eu falámos dele e Sue chegou mesmo a chorar quando os homens da ambulância o levaram, embrulhado num cobertor vermelho--vivo. O meu pai era um homem débil, irascível e obstinado, de cara e mãos amareladas. Se conto a história da sua morte, é apenas para explicar como é que eu e as minhas irmãs ficámos de posse de uma tão grande quantidade de cimento. No princípio do Verão dos meus 14 anos uma camioneta parou em frente da nossa casa. Eu estava sentado no degrau do patamar a reler um livro de banda desenhada. O condutor e um outro homem dirigiram-se para mim. Estavam cobertos de uma poeira branca, fina, que lhes dava um aspecto fantasmagórico. Assobiavam ambos, em tom estridente, músicas completamente diferentes. Levantei-me e escondi o livro. Antes estivesse a ler a página das corridas no jornal do meu pai, ou os resultados do futebol.

- Cimento? - perguntou um deles. Enfiei os polegares nos bolsos, apoiei-me num dos pés e semicerrei os olhos ligeiramente. Quis dizer algo de conciso e apropriado, mas não tinha a certeza de ter entendido bem. Porém, demorei tempo de mais e o que tinha falado revirou os olhos para o céu e, de mãos pousadas nos quadris, fixou o olhar num ponto distante, na direcção da porta da frente. Esta abriu-se e o meu pai saiu, de cachimbo apertado entre os dentes, segurando contra a perna uma prancheta de registos.

- Cimento - repetiu o homem, desta vez num tom de voz cansado. O meu pai acenou afirmativamente. Meti o livro no bolso de trás e segui os três homens pelo carreiro até ao camião. O meu pai pôs-se na ponta dos pés para espreitar lá para dentro, tirou o cachimbo da boca e voltou a acenar afirmativamente com a cabeça. O homem que ainda não tinha falado deu um golpe violento com uma das mãos. A cavilha soltou-se e um dos lados do camião abateu-se ruidosamente. Os sacos de papel a abarrotar de cimento estavam alinhados em duas camadas que cobriam todo o chão do camião. O meu pai contou-os, olhou para o registo e disse:

- Quinze. - Os dois homens confirmaram com uns grunhidos. Agradou-me este tipo de conversa. Disse também para mim próprio: «Quinze.» Os homens puseram cada um o seu saco ao ombro e voltámos a percorrer o carreiro, desta vez comigo na frente, seguido pelo meu pai. Ao dar a volta a um dos lados da casa, ele apontou para o alçapão do depósito de carvão com a ponta molhada do cachimbo. Os dois homens atiraram com os sacos para dentro da cave e foram buscar mais ao camião. O meu pai ia tomando nota com um lápis que estava preso à prancheta por um cordel. Baloiçava nos calcanhares enquanto esperava. Encostei-me à vedação. Não sabia para que era o cimento, mas não queria ser excluído desta intensa comunidade de trabalho por mostrar ignorância. Também contei os sacos e, quando já estavam todos descarregados, coloquei-me junto do meu pai enquanto ele assinava a nota de entrega. Depois, sem uma palavra, ele voltou para dentro de casa.

Nessa noite, os meus pais discutiram por causa dos sacos de cimento. A minha mãe, que era uma pessoa calma, estava fora de si. Queria que o meu pai devolvesse aquilo tudo. Tínhamos acabado de jantar. Enquanto a minha mãe falava, o meu pai raspava o fornilho do cachimbo com o canivete, deitando as aparas queimadas para o prato da comida, em que praticamente não tocara. Ele sabia como utilizar o cachimbo para a irritar. A minha mãe argumentava que tínhamos pouco dinheiro e que, daí a pouco tempo, Tom iria precisar de roupas novas para entrar na escola. Ele voltou a meter o cachimbo na boca, como se fosse parte da sua própria anatomia, e interrompeu-a para dizer que «nem pensar» em devolver os sacos e que a conversa ficava por ali. Tendo visto com os meus próprios olhos o camião, os pesados sacos e os homens que os tinham trazido, senti que ele tinha razão. Mas que emproado, que ridículo quando tirou aquela coisa da boca e, segurando-a pelo fornilho, apontou para a minha mãe a extremidade escura. Ela estava cada vez mais zangada, a voz sufocava-se-lhe de irritação. Julie, Sue e eu escapámo-nos, escadas acima, até ao quarto de Julie e fechámos a porta. Chegavam-nos, através do soalho, as inflexões de voz da nossa mãe, mas as palavras perdiam-se.

Sue deitou-se, rindo histericamente, as mãos fechadas tapando a boca com os nós dos dedos, enquanto Julie empurrava uma cadeira de encontro à porta. Os dois, despimos rapidamente Sue e, quando estávamos a tirar-lhe as cuecas, as nossas mãos tocaram-se. Sue era magríssima. A pele colava-se-lhe às costelas e a rígida saliência muscular das nádegas assemelhava-se incrivelmente às omoplatas. Uma ténue penugem ruiva começava a despontar-lhe entre as pernas. A brincadeira consistia em eu e Julie fazermos de cientistas que examinavam um ser vindo de outro planeta. Falávamos, cuspindo as palavras, imitando a pronúncia alemã, ao mesmo tempo que trocávamos olhares por sobre o corpo nu, estendido entre nós. Lá de baixo chegava-nos a voz cansada e insistente da nossa mãe. A linha marcadamente saliente dos malares, sob os olhos de Julie, dava-lhe o ar de um estranho animal selvagem. À luz da electricidade, os seus olhos eram pretos e enormes. A linha suave da boca era apenas perturbada pela saliência dos dois dentes da frente e tinha de fazer um beicinho quando disfarçava um sorriso. Estava ansioso por examinar a minha irmã mais velha, mas isso não fazia parte do jogo.

- Orra bem... - Voltámo-la de lado e depois de barriga para baixo. Passámos-lhe as unhas levemente pelas costas e depois pelas coxas. Espreitámos para dentro da boca e entre as pernas com uma lanterna e descobrimos aquela pequena flor feita de carne.

- Que acharr disto, Herr Doctorr? -Julie passou-lhe ao de leve com um dedo molhado e um pequeno arrepio percorreu a espinha de Sue. Observei de perto. Humedeci também um dedo e fi-lo deslizar sobre o dedo de Julie.

- Nada de grave - disse por fim Julie, segurando a abertura entre o polegar e o indicador. - Mas temos de esperrarr porr futurras alterrações, ja? - Sue implorou-nos que continuássemos. Julie e eu entreolhámo-nos com ar entendido, sem perceber de facto nada do que se passava.

- É a vez de Julie - disse eu.

- Não - disse ela, como sempre. - É a tua vez. - Ainda deitada de costas, Sue insistia connosco. Atravessei o quarto, peguei na saia dela e atirei-lha.

- Nem pensar - disse eu por detrás de um cachimbo imaginário. - Não se fala mais nisso. - Tranquei-me na casa de banho e sentei-me na borda da banheira com as cuecas enroladas à volta dos tornozelos. Com a imagem dos dedos morenos de Julie entre as pernas de Sue ainda presente, entreguei-me à minha rápida e seca tentativa de prazer. Permaneci dobrado depois de o espasmo ter passado e tornei-me consciente de que as vozes lá em baixo há muito se tinham calado.

Na manhã seguinte, desci à cave com Tom, o meu irmão mais novo. Era uma grande área dividida em vários compartimentos pequenos, sem qualquer utilização. Tom colou-se a mim enquanto descíamos as escadas. Tinha ouvido falar dos sacos de cimento e agora queria vê-los. O alçapão do carvão dava para o maior dos compartimentos e lá estavam os sacos espalhados pelo chão, tal como haviam caído, sobre os restos de carvão do ano anterior. Junto a uma das paredes estava um baú pesado, de estanho, reminiscência do tempo breve que meu pai passara na tropa e que outrora servira para manter o coque separado do carvão. Levantei a tampa para que Tom espreitasse lá para dentro. Estava vazio e escuro, tão negro que mal se lhe via o fundo com aquela luz velada. Pensando que estava a olhar para dentro de um buraco fundo, Tom agarrou-se à borda do baú, gritou lá para dentro e ficou à espera de ouvir o eco da sua voz. Como não obteve resposta, pediu-me que lhe mostrasse os outros quartos. Levei-o ao que ficava mais próximo das escadas. A porta estava praticamente fora dos gonzos e, quando a empurrei, saltou completamente. Tom riu-se e, desta vez, o eco veio-lhe do quarto onde tínhamos estado. Neste compartimento havia caixotes de cartão cheios de roupa bolorenta de que já não me lembrava. Tom descobriu alguns dos seus velhos brinquedos. Virou-os desdenhosamente com o pé, dizendo que eram para bebés. Amontoada atrás da porta estava uma cama de grades, velha, de latão, onde todos nós dormíramos em seu devido tempo. Tom quis que a armasse para ele. Expliquei-lhe que as camas de grades também eram para bebés. Ao fundo das escadas encontrámos o nosso pai, que vinha a descer. Disse-me que andava à minha procura para que lhe desse uma ajuda com os sacos. Seguimo-lo de volta ao quarto grande. Tom, que tinha medo do pai, manteve-se todo o tempo escondido atrás de mim. Julie dissera-me recentemente que agora, como o pai era um semi-inválido, tinha de competir com Tom para conseguir as atenções da mãe. Mas que ideia tão extraordinária. Pensei nela durante muito tempo. Tão simples e tão estranha. Um rapazinho e um homem crescido a competirem. Mais tarde perguntei a Julie quem iria ganhar e ela, sem qualquer hesitação, respondeu-me:

- Tom, claro, e o papá não lhe vai perdoar.

E, realmente, ele era muito severo com Tom, sempre a embirrar com ele, de uma forma irritante. Utilizava a mãe contra Tom, da mesma forma que usava o cachimbo contra ela. «Não fales assim à tua mãe», ou: «Senta-te direito quando a tua mãe está a falar contigo.» Ela aguentava tudo isto em silêncio. Se o pai, por acaso, saía então da sala, ela tinha um sorriso breve para Tom, ou passava-lhe os dedos pelos cabelos. Agora, Tom mantinha-se afastado da entrada e observava-nos a arrastar os sacos e a arrumá-los em duas filas direitinhas ao longo da parede. Por causa do ataque cardíaco que meu pai tivera, estava proibido de fazer este tipo de esforços, mas eu verificava que ele carregava tanto peso como eu.

Quando nos baixávamos, para cada um pegar na sua ponta do saco, sentia-o à espera de que fosse eu a fazer o primeiro esforço. Mas eu dizia-lhe: «Um, dois, três...», e só levantava quando lhe via o braço a enrijar-se. Se ele queria que eu fizesse mais força do que ele, então que o dissesse claramente. Quando terminámos, parámos a olhar para o trabalho feito, como fazem os trabalhadores. Deliberadamente, respirei pelo nariz o mais normalmente que pude, embora isso quase me fizesse desmaiar. Deixei-me ficar descontraidamente com as mãos à cintura.

- Para que quer isto tudo? - Senti que agora tinha o direito de perguntar.

As palavras saíram-lhe, intermitentes, numa respiração entrecortada:

- É... pró... jardim. - Fiquei à espera de mais explicações, mas, depois de um momento de hesitação, virou-se e saiu. Já à porta agarrou Tompelo braço:

- Olha em que estado tens essas mãos - ralhou, sem reparar na porcaria que ele próprio tinha largado na camisa de Tom. - Vá, sobe. - Deixei-me ficar um pouco para trás e comecei a apagar as luzes. Ao ouvir os diques, pelo menos assim me pareceu, meu pai parou no fundo das escadas para me dizer, em tom ríspido, que não me esquecesse de apagar todas as luzes antes de sair.

- É o que eu já estava a fazer - respondi, irritado. Mas ele estava já a subir as escadas, tossindo com força.

O seu jardim, mais do que cultivado, tinha sido cuidadosamente construído de acordo com uns planos que às vezes, à noite, espalhava por sobre a mesa da cozinha, enquanto nós espreitávamos por cima do ombro dele. Eram estreitos carreiros empedrados que, em curvas complicadas, se iam ligar a canteiros de flores, distantes apenas alguns centímetros. Um desses carreiros subia em espiral em volta de um rochedo, como se fosse um caminho de montanha. Ficou todo aborrecido uma vez que viu Tom a escalar o rochedo usando as voltas do carreiro como se fossem os degraus estreitos de uma escada.

- Sobe isso como deve ser - gritou da janela da cozinha. Havia um canteiro de relva, do tamanho de uma mesa de jogo, a uns centímetros de altura, erguido sobre um amontoado de pedras. À volta do relvado só havia espaço para uma fileira de malmequeres. Ele, e mais ninguém, chamava-lhe o jardim suspenso. Mesmo no meio do jardim suspenso estava uma estátua em gesso de um Pã a dançar. Aqui e além, lances de escadas que ora subiam ora desciam. Havia também um lago com um fundo em plástico azul. Uma vez chegou a casa com dois peixes dourados. Os pássaros comeram-nos no mesmo dia. Os carreiros eram tão estreitos que se podia perder o equilíbrio e cair dentro dos canteiros. As flores escolhia-as pela singeleza e simetria. Tinha preferência pelas túlipas, que plantava bem separadas. Não gostava de arbustos nem de heras ou de rosas. Nada que se emaranhasse. As casas ao lado da nossa tinham sido demolidas e, no Verão, os terrenos vazios enchiam-se de ervas e de flores silvestres. Tivera a intenção de construir um muro alto, em volta do seu mundo, antes de ter o primeiro ataque.

Havia umas quantas piadas habituais entre nós, iniciadas e mantidas pelo meu pai: a propósito das sobrancelhas e das pestanas, quase invisíveis, de Sue, das ambições de Julie de ser uma atleta famosa, de Tom às vezes ainda fazer chichi na cama, da falta de jeito da mãe para as contas e das minhas borbulhas, que tinham começado a aparecer por essa altura. Uma vez, ao jantar, quando lhe estendi o prato, recomendou-me que não passasse a comida muito perto da minha cara. O riso foi imediato, como um ritual. Como era o pai que ditava este tipo de piadas, nunca era ele o atingido. Nessa noite, Julie e eu fechámo-nos no quarto dela e enchemos páginas e páginas com piadas grosseiras e muito batidas. Tudo o que nos vinha à cabeça nos parecia engraçado. Caímos da cama agarrados à barriga, dando guinchos e gritos de prazer. Lá fora, Sue e Tom batiam à porta, pedindo que os deixássemos entrar. Achávamos que as melhores piadas eram aquelas que metiam perguntas e respostas. Muitas delas faziam referência à prisão de ventre do pai. Mas nós sabíamos qual era o verdadeiro alvo. Seleccionámos a melhor, aperfeiçoámo-la e ensaiámos. Depois esperámos mais um dia ou dois. Ao jantar, ele saiu-se outra vez com uma piada acerca das minhas borbulhas. Deixámos que Tom e Sue parassem de rir. O coração batia-me com tanta força que era difícil fazer com que parecesse normal, casual, tal como tínhamos planeado. Comecei: vj

- Hoje vi uma coisa lá fora que me espantou imenso.    

- Ah, sim? - continuou Julie. - E o que era?

- Uma flor.

Parecia que ninguém nos tinha ouvido. Tom falava sozinho, a mãe deitava leite no copo e o pai continuava a barrar cuidadosamente uma fatia de pão. Nos sítios onde a manteiga saía da borda ele empurrava-a para dentro, fazendo deslizar a faca num movimento rápido. Pensei que, se calhar, o melhor seria repetir, mais alto, e olhei interrogativamente para Julie. Mas o nosso olhar não se encontrou. O pai acabou de comer o pão e saiu da sala. A mãe disse:

- Bem se podia ter dispensado isto.

- O que foi? - Mas ela não me disse nem mais uma palavra. Acabaram-se as piadas ao pai, não resultavam. Ele amuava. Sentia-me culpado quando, afinal, o que eu queria era sentir-me cheio de orgulho. Tentei convencer Julie da nossa vitória para que ela, por sua vez, me convencesse a mim. Nessa noite tivemos Sue deitada entre nós, mas o jogo não nos estava a divertir. Ela acabou por se aborrecer e foi-se embora. Julie achava que devíamos pedir desculpa ao pai, compensando-o de uma maneira qualquer. Não estava disposto a fazê-lo, mas quando, dois dias depois, ele me voltou a falar, senti um grande alívio. Depois disso não se voltou a falar sobre o jardim durante muito tempo e, quando ele encheu de novo a mesa da cozinha com os seus planos, ninguém lhes prestou atenção. Depois do primeiro ataque cardíaco não voltou a trabalhar no jardim. Cresceram ervas entre os carreiros empedrados, parte do rochedo desmoronou-se e o lago secou. A estátua de Pã tombou, partindo-se em duas, mas ninguém falou no assunto. A possibilidade de eu e Julie sermos considerados responsáveis por esta degradação encheu-me de medo e de prazer.

Logo a seguir ao cimento veio a areia. Um monte amarelo--claro ocupava um canto do jardim da frente. Tornou-se evidente, certamente porque a minha mãe o disse, que a ideia era cimentar o pavimento à volta da casa. E, uma noite, o meu pai confirmou-o.

- Sempre é mais limpo - disse. - Já não posso tratar do jardim agora - bateu com o cachimbo sobre o lado esquerdo do peito - e, assim, acaba-se com a porcaria no chão da vossa mãe. - Estava tão seguro da lógica dos seus argumentos que, mais por embaraço do que por medo, ninguém o contrariou. Para ser franco, agradava-me a ideia de uma grande extensão de cimento à volta da casa. Dava para jogar futebol. Já imaginava helicópteros a aterrarem ali. E, acima de tudo, preparar o betão e espalhá-lo por todo o jardim, acabando com todos aqueles desníveis, era assim uma espécie de violação fascinante. A minha excitação aumentou quando o meu pai falou em alugar uma betoneira.

A minha mãe deve tê-lo convencido a desistir disso, porque numa manhã de sábado, em Julho, começámos a trabalhar com duas pás. Abrimos um dos sacos na cave e enchemos um balde de zinco com aquele pó fino, cinzento-claro. Depois, o meu pai foi lá para fora para que eu lhe passasse o balde através do alçapão. Quando se inclinava, a sua silhueta recortava-se contra o céu branco e liso por detrás dele. Despejava o balde no carreiro e devolvia-mo para eu o voltar a encher.

Quando já tínhamos o suficiente, fui buscar um carrinho-de-mão cheio de areia, que juntei ao monte.

O plano dele era fazer um caminho à volta da casa, para ser mais fácil transportar a areia da parte da frente para as traseiras. À parte as raras e lacónicas instruções que me dava, não falávamos. Agradava-me que soubéssemos tão exactamente o que fazíamos e o que o outro estava a pensar que nem precisássemos de falar. Pela primeira vez sentia-me à vontade com ele. Enquanto fui buscar um balde com água, ele ajeitou o cimento e a areia num monte e fez-lhe uma cavidade no meio. Eu fazia a mistura enquanto ele deitava a água. Ensinou-me a usar a parte de dentro do joelho contra o antebraço para facilitar o trabalho. Fiz de conta que já sabia. Quando a mistura ficou consistente, espalhámo-la no chão. O meu pai ajoelhou-se e aplanou a superfície com uma pequena prancha. Deixei-me ficar de pé, atrás dele, apoiado na pá. Levantou-se e encostou-se à cerca, fechando os olhos. Quando os abriu, pestanejou, como que surpreendido por estar ali, e disse:

- Bom, então vamos lá a isto. - Repetimos a operação; encher os baldes, passá-los pelo alçapão, trazer o carrinho de mão, a água, misturar, espalhar, alisar.

A quarta volta, o aborrecimento e as minhas necessidades habituais foram-me tornando os movimentos mais lentos. Bocejava frequentemente e sentia as pernas fracas, sem força nos joelhos. Na cave aproveitava para meter as mãos nas cuecas. Onde estariam as minhas irmãs? Porque não nos vinham ajudar? Passei mais um balde ao meu pai e, dirigindo-me à sua silhueta, disse-lhe que precisava de ir à retrete. Suspirou, fazendo um ruído característico de desagrado com a língua no céu-da-boca. Quando cheguei lá acima, sabendo-o impaciente, procurei despachar-me rapidamente. Como de costume, recorri à imagem da mão de Julie entre as pernas de Sue. De lá de baixo chegava-me o som da pá a raspar contra o chão. O meu pai estava a misturar o cimento sozinho. Então aquilo aconteceu, apareceu de repente nas costas da minha mão. Embora já soubesse como era, pelas anedotas e pelos livros de biologia do liceu, e desde há meses estivesse à espera, desejando não ser diferente dos outros, naquele momento fiquei surpreendido e impressionado. Pousado sobre os pêlos macios, escorrendo pelos bordos de uma mancha cinzenta de cimento, lá estava a brilhar um bocadinho de líquido, não leitoso como eu tinha imaginado, mas incolor. Toquei-lhe ao de leve com a ponta da língua, mas não sabia a nada. Observei-o atentamente de perto, à procura daquelas coisinhas de longas caudas vibráteis. Enquanto o examinava, acabou por secar, ficando apenas uma crosta brilhante, que se quebrou quando dobrei o pulso. Decidi não o lavar.

Lembrei-me do meu pai, lá em baixo, à espera, e apressei-me a descer. A minha mãe, Julie e Sue estavam a conversar na cozinha quando eu passei. Pareceram não reparar em mim.

O meu pai estava caído, com a cara no chão e a cabeça pousada no cimento acabado de espalhar. Segurava na mão a prancha de alisar. Aproximei-me lentamente, sabendo que tinha de pedir ajuda depressa. Durante vários segundos não me consegui mexer. Olhava-o, absorto, tal como me tinha acontecido alguns minutos antes.

Uma ligeira brisa levantou-lhe uma ponta solta da camisa. A seguir houve grande agitação e muito barulho. Veio uma ambulância e a minha mãe foi nela com o meu pai, que deitaram numa maca, coberto com uma manta vermelha. O rádio tocava na cozinha. Depois de a ambulância partir voltei lá para fora, para ver o nosso trabalho. Não tinha qualquer ideia em mente quando apanhei a prancha e me pus a alisar cuidadosamente a marca que ele deixara sobre o cimento acabado de fazer.

 

No ano seguinte, Julie treinou na equipa de atletismo da escola. Já detinha os recordes dos juniores locais das corridas de 100 e 220 jardas. Não conhecia ninguém que conseguisse correr mais depressa do que ela. O pai nunca a levara muito a sério. Dizia que era uma estupidez uma rapariga correr depressa e pouco antes de morrer recusara-se a acompanhar-nos a uma competição desportiva. Atacámo-lo vigorosamente, até a mãe se juntou a nós. Ele riu-se da nossa irritação. Talvez na realidade tencionasse ir lá, mas não insistimos mais com ele e ficámos a resmungar entre nós. Chegado o dia, como ninguém lhe voltou a falar no assunto, ele esqueceu-se e não chegou a ver, no último mês da sua vida, a sua filha mais velha, a estrela de todo o estádio. Perdeu a oportunidade de ver aquelas pernas morenas e esguias cortando o verde do relvado como lâminas e eu, o Tom, a mãe e a Sue atravessando a vedação a correr para a cobrir de beijos quando alcançou a vitória pela terceira vez. Ela ficava muitas vezes em casa, à noite, a lavar o cabelo e a passar a ferro as pregas da saia azul-marinho do uniforme da escola. Pertencia ao grupo das raparigas mais atrevidas, as que usavam saiotes brancos engomados por debaixo das saias, para lhes dar volume e esvoaçarem quando rodopiavam nos calcanhares. Usava meias altas e cuecas pretas, o que era rigorosamente proibido. Todos os dias vestia uma blusa branca lavada, cinco dias na semana. Às vezes aparecia de manhã com o cabelo apanhado na nuca, preso com uma fita branca, brilhante. Tudo isto lhe levava muito tempo a preparar na véspera à noite. Costumava ficar por ali sentado a observá-la, junto à tábua de passar, o que a punha furiosa.

Tinha namorados na escola, mas, na verdade, nunca os deixava andar muito perto dela. Havia como que uma regra implícita na família, a de não trazer amigos para casa. Os seus amigos mais próximos eram raparigas, as mais rebeldes, aquelas que tinham pior reputação. Via-a às vezes, ao fundo do corredor, rodeada por um pequeno grupo barulhento. Mas Julie mostrava-se pouco, dominava o grupo e construía a sua reputação na base de uma calma distante e intimidante. Eu tinha um certo estatuto na escola por ser o irmão da Julie, mas lá dentro nunca me falava e ignorava a minha presença.

A certa altura, por essa época, a minha cara estava de tal maneira cheia de borbulhas que abandonei todos os rituais de higiene pessoal. Deixei de lavar a cara, o cabelo, cortar as unhas e tomar banho. Desisti de lavar os dentes. Na sua maneira calma, a minha mãe estava sempre a repreender-me, mas eu sentia-me agora orgulhosamente fora do controlo dela. Se as pessoas gostavam de mim, argumentava eu, aceitavam-me tal como eu era. De manhãzinha cedo, a minha mãe entrava no quarto e trocava as minhas roupas sujas por outras limpas. Nos fins-de-semana deixava-me ficar deitado na cama até tarde e só de lá saía para os meus longos passeios solitários. À noite punha-me a observar Julie, ouvia rádio ou ficava simplesmente sentado. Não tinha amigos na escola.

Ficava frequentemente a olhar para a minha imagem nos espelhos, por vezes durante mais de uma hora. Uma manhã, pouco depois do dia em que fiz quinze anos, andava à procura dos meus sapatos na penumbra do nosso enorme vestíbulo, quando dei conta da minha imagem a corpo inteiro num espelho encostado à parede. O meu pai não chegara a fixá-lo. A luz que passava através do vidro colorido, por sobre a porta da entrada, iluminava por detrás os meus cabelos despenteados. A semiescuridão, amarelada, obscurecia as deformidades e marcas da minha pele. Achei-me magnífico e incomparável. Fixei a minha nova imagem até ela se dissociar e paralisar-me com o seu olhar. Recuava e avançava para mim ao ritmo do bater do meu pulso e havia como que um halo escuro, palpitante, em redor da cabeça e dos ombros.

- Duro - falou-me a imagem. - És um duro. - E a seguir, mais alto: - Merda... porra... eu. - Lá de dentro, a minha mãe chamou-me, em tom repreensivo.

Tirei uma maçã da fruteira e entrei na cozinha. Encostei-me desleixadamente à ombreira da porta e pus-me a observar a família a tomar o pequeno-almoço, atirando a maçã ao ar e apanhando-a na palma da mão com uma pancada seca. Julie e Sue liam livros da escola enquanto comiam. A minha mãe, esgotada por mais uma noite sem dormir, não comia. Os olhos encovados eram cinzentos e aguados. Com choraminguices e birras, Tom tentava empurrar a cadeira para perto dela. Queria sentar-se no colo, mas ela protestava que ele era muito pesado. Pô-lo na cadeira e passou-lhe os dedos pelo cabelo.

Tratava-se de saber se Julie ia para a escola comigo. Costumávamos fazer o caminho juntos, todas as manhãs, mas ultimamente ela preferia não ser vista comigo. Continuei a brincar com a maçã, calculando que isto os irritaria a todos. A minha mãe não tirava os olhos de mim.

- Vá lá, Julie - disse eu por fim. Julie encheu de novo a chávena.

- Tenho ainda coisas para fazer - disse em tom definitivo. - Vai andando.

- E tu, Sue? - A minha irmã mais nova não levantou os olhos do livro.

- Não vou já - murmurou.

A minha mãe lembrou-me com bons modos que eu ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, mas eu ia já a caminho da porta. Bati com ela e atravessei a rua. Dantes, a nossa casa estava rodeada de vivendas. Agora erguia-se no meio de um terreno vazio onde cresciam urtigas por toda a parte, à volta das chapas de lata estragadas. As outras casas tinham sido deitadas abaixo por causa de uma auto-estrada que nunca chegara a ser construída. Às vezes, os miúdos dos prédios altos vinham brincar para perto de nossa casa, mas, normalmente, preferiam ir para o fundo da rua derrubar as paredes dos pré-fabricados vazios e apanhar o que encontravam por lá. Uma vez pegaram fogo a um e ninguém ligou importância. A nossa casa era grande e antiga. Fora construída para se parecer com um castelo, com paredes espessas, janelas estreitas e ameias por cima da porta de entrada. Vista do outro lado da estrada assemelhava-se à cara de alguém concentrado, a tentar lembrar-se de alguma coisa.

Nunca tínhamos visitas. Nem a minha mãe nem o meu pai, quando era vivo, tinham amigos fora da família. Eram ambos filhos únicos e nenhum dos meus avós era vivo. A minha mãe tinha uns parentes afastados na Irlanda, mas que ela deixara de ver quando era criança. Tom tinha alguns amigos com quem brincava às vezes, na rua, mas nunca o deixámos trazê-los para casa. Nem o leiteiro passava agora por ali. Tanto quanto me lembro, as últimas pessoas que tinham estado em nossa casa tinham sido os homens que levaram o meu pai na ambulância.

Parei durante alguns minutos sem saber se havia de voltar atrás para fazer as pazes com a minha mãe. Ia começar a mexer-me quando a porta se abriu e Julie saiu. Trazia o casaco preto do uniforme, muito apertado na cintura e a gola levantada. Virou-se rapidamente para segurar a porta antes que batesse e o casaco, a saia e o saiote rodopiaram em volta dela, produzindo o efeito desejado. Ainda não me tinha visto. Observava-a a prender a sacola ao ombro. Julie sabia correr como o vento, mas andava como se fosse sonâmbula, devagar, costas direitas, sempre em linha recta. Parecia muitas vezes absorta, mas, quando lhe perguntávamos em que pensava, dizia sempre que não estava a pensar em nada.

Só me viu quando estava a atravessar a estrada. Não disse uma palavra, meio a sorrir, meio amuada. Todos lhe temíamos o silêncio, mas também aí ela costumava protestar, num tom de voz modelado pela perplexidade, que era ela que estava com medo. Era verdade, era tímida, dizia-se que corava quando tinha de falar nas aulas, mas ostentava aquela força tranquila, aquele distanciamento dos que vivem isolados num mundo à parte, o mundo dos que sabem secretamente ser excepcionalmente belos. Pus-me a caminhar a seu lado. Olhava em frente, as costas direitas como um fuso, os lábios levemente crispados.

Cem metros adiante, a nossa rua cruzava com outra. Aí ainda existia uma fila de casas geminadas; de resto, todas as outras casas na rua seguinte tinham sido demolidas para dar lugar a quatro torres de vinte andares. Erguiam-se sobre uma plataforma de asfalto já cheia de rachas, por onde rompiam ervas daninhas. Tinham um aspecto mais velho e mais triste do que a nossa casa. Manchas negras, enormes, causadas pela chuva, apareciam por todos os lados, sobre as paredes de betão. Nunca chegavam a secar. Quando chegámos ao fim da rua, puxei-lhe pela mão e disse:

- Posso levar-lhe a pasta, menina ? - Julie deu um safanão com o braço e continuou a andar. Segui-lhe os passos, dançando às arrecuas. Aqueles silêncios meditativos eram como uma provocação para mim. Só fazia disparates.

- Vamos a uma luta? Vamos a uma corrida? - Julie baixou os olhos e continuou o seu caminho. Perguntei-lhe num tom normal: - O que é que se passa?

- Nada.

- Estás chateada?

- Estou.    

- Comigo?

- Sim.

Hesitei antes de voltar a falar e já Julie se afastava absorvida nalguma visão interior da sua zanga.

- Por causa da mãe? - perguntei. Estávamos a chegar à altura da primeira das torres e podíamos ver o que se passava no vestíbulo da entrada. Um grupo de miúdos de outra escola estava reunido junto ao elevador. Estavam encostados às paredes, sem falar. Esperavam por alguém que devia vir no elevador. Julie encolheu os ombros e fez um gesto com a mão que significava que ela não ia esperar por mim.

No regresso encontrei Sue na nossa rua. Caminhava segurando um livro aberto à sua frente. Trazia a mochila com as alças apertadas sobre os ombros. Tom vinha alguns metros atrás. Pela cara dele era fácil adivinhar-se que houvera outra vez uma cena para sair de casa. Sentia-se mais à-vontade com Sue. Era dois anos mais nova do que eu e os segredos dela, se os tinha, não me intimidavam. Uma vez vira no seu quarto uma loção que ela comprara para «dissolver» as sardas. A cara era comprida e delicada, os lábios sem cor e os olhos pequenos e cansados, com pestanas claras, quase invisíveis. Com aquela testa alta e o cabelo tufado, às vezes parecia realmente uma rapariga de outro planeta. Nenhum de nós parou, mas, quando nos cruzámos, Sue levantou os olhos do livro e disse:

- Vais chegar atrasado.

- Esqueci-me de uma coisa - murmurei. Tom estava preocupado com o seu horror à escola e nem reparou em mim. Ao perceber que Sue ia levá-lo à escola para poupar esse esforço à mãe, senti-me ainda mais culpado e apressei o passo. Contornei a casa para entrar pelas traseiras e observei a minha mãe por uma das janelas da cozinha. Estava sentada à mesa com os restos do nosso pequeno-almoço, quatro cadeiras vazias na sua frente. Diante dela estava a tigela da papa de aveia em que eu não chegara a tocar. Tinha uma das mãos pousada no colo e a outra sobre a mesa, o braço curvado como se estivesse preparado para descansar nele a cabeça. Perto dela estava um frasco preto, bojudo, com os seus comprimidos. O rosto era uma mistura de traços de Julie e de Sue, como se fosse filha delas. A pele era macia e esticada sobre os maxilares delicados. Todas as manhãs ela pintava um arco perfeito, em vermelho forte, sobre os lábios. Mas os olhos, enfiados na pele escura e enrugada, como caroços de pêssego, estavam tão afundados nas órbitas que pareciam olhar-nos de dentro de um poço fundo. Afagou os caracóis espessos e escuros sobre a nuca. As vezes, de manhã, costumava encontrar um novelo de cabelos dela a boiar na retrete. Eu fazia correr sempre a água primeiro.

Estava de pé agora e, de costas para mim, começou a levantar a mesa.

Quando eu tinha 8 anos, voltei um dia para casa fingindo que estava muito doente. A minha mãe entrou no jogo. Vestiu-me o pijama, levou-me para o sofá na sala de estar e embrulhou-me num cobertor. Ela sabia que eu tinha voltado para casa para a ter só para mim, enquanto o meu pai e as minhas irmãs estavam ausentes. Talvez que a ela também lhe agradasse ter alguém em casa durante o dia. Até ao fim da tarde fiquei ali deitado, a observá-la, às voltas com o seu trabalho, e, quando ela se afastava para outra parte da casa, eu apurava o ouvido. Estava admirado com o facto óbvio de a sua existência ser independente de mim. Ela continuava a existir, mesmo quando eu estava na escola. Eram estas as coisas que ela fazia. Tudo o resto continuava a girar. Nessa altura, essa percepção foi importante, embora não fosse dolorosa. Neste momento, vendo-a inclinar-se para apanhar as cascas dos ovos e deitá-las no caixote do lixo, o mesmo simples reconhecimento trouxe-me tristeza e ameaça, numa combinação insuportável. Ela não era uma invenção minha ou das minhas irmãs, embora eu continuasse a inventá-la e a ignorá-la. Quando pegou numa garrafa de leite vazia, voltou-se de repente para a janela. Recuei depressa. Quando ia já a descer, a correr, o carreiro lateral, ouvi-a abrir a porta das traseiras e chamar por mim. Vi-a de relance quando assomou à esquina da casa. Chamou-me novamente quando eu ia já a descer a rua. Corri todo o caminho, imaginando a sua voz a sobrepor-se ao som dos meus passos sobre o pavimento.

- Jack... Jack... - Apanhei a minha irmã Sue quando ela estava mesmo a entrar nos portões da escola.

 

Sabia que era manhã e que aquilo era um pesadelo. Fiz um esforço para acordar. Tentei mexer as pernas, tocar com os pés um no outro. A mais pequena sensação bastaria para me trazer para fora do meu sonho. Estava a ser seguido por pessoas que eu não conseguia ver. Traziam uma caixa nas mãos e queriam que eu olhasse lá para dentro, mas eu continuava a andar em passo acelerado. Interrompi por um momento e tentei mexer de novo as pernas ou abrir os olhos. Mas eles estavam a aproximar-se com a caixa, não havia tempo a perder e eu corri ainda mais. Agora estávamos frente a frente. A caixa era de madeira, com dobradiças, e antes talvez tivesse tido charutos caros. A tampa estava um bocadinho levantada, mas lá dentro era tão escuro que não se via nada. Continuei a correr para ganhar tempo, e dessa vez consegui abrir os olhos. Antes de se voltarem a fechar apercebi-me do quarto, da minha camisa pousada sobre a cadeira, de um sapato no chão, com a sola virada para cima. Aí estava outra vez a caixa. Eu sabia que havia lá dentro uma criatura minúscula que estava presa ali, contra a sua vontade, e que cheirava terrivelmente mal. Tentei chamar por socorro, esperançado em que o som da minha voz me acordasse. Não saiu nada da minha garganta e nem sequer consegui mexer os lábios. A tampa da caixa ergueu-se de novo. Não podia virar as costas e desatar a correr porque tinha corrido durante toda a noite e agora não tinha outra hipótese senão olhar lá para dentro. Com grande alívio, ouvi a porta do quarto a abrir-se e passos no chão. Alguém estava a sentar-se na beira da minha cama, mesmo junto a mim, e consegui finalmente abrir os olhos.

A minha mãe estava de tal maneira sentada que os meus braços não se podiam mexer debaixo dos lençóis. Eram oito e meia no meu despertador. Ia chegar atrasado à escola. A minha mãe já devia estar acordada há mais de duas horas. Cheirava àquele sabonete muito cor-de-rosa que ela costumava usar.

Disse-me então:

- É altura de termos uma conversa os dois. - Cruzou as pernas e descansou as mãos nos joelhos. Tinha as costas muito direitas, como as de Julie. Sentia-me em desvantagem deitado e tentei sentar-me. Mas ela disse:

- Deixa-te estar deitado.

- Vou chegar atrasado - disse eu.

- Deixa-te estar aí quieto - repetiu, acentuando a última palavra. - Quero falar contigo. - O coração batia-me com força. Pus-me a olhar para o tecto, por sobre a sua cabeça. Ainda não tinha saído bem do meu sonho. - Olha para mim - disse ela. - Quero ver os teus olhos. - Olhei-a nos olhos e os dela percorreram ansiosamente a minha cara. Via a minha imagem aumentada no reflexo dos olhos dela.

- Tens olhado para os teus olhos no espelho ultimamente? - disse ela.

- Não - menti.

- As tuas pupilas estão enormes, já reparaste? - Abanei a cabeça. - E tens olheiras mesmo quando acabas de acordar. - Calou-se. Ouvia os outros a tomar o pequeno-almoço lá em baixo. - E sabes porquê? - Abanei de novo a cabeça e de novo ela se calou. Inclinou-se para a frente e falou apressadamente: - Sabes do que eu estou a falar, não sabes? - O coração pulsava-me nos ouvidos.

- Não - disse eu.

- Sabes, sim, meu filho. Sabes bem ao que me refiro, bem vejo que sabes.

Não tinha outra saída senão confirmá-lo com o meu silêncio. Não se sentia à vontade neste papel. Esta seriedade não estava nada nos hábitos dela; havia um tom neutro, de actor, na sua voz. Era a única maneira que ela tinha de cumprir esta difícil tarefa.

- Não julgues que eu não sei o que se passa. Estás a ficar um homenzinho e eu estou muito orgulhosa de ti... isto são coisas que o teu pai te diria... - Olhámos para longe, sabíamos ambos que não era verdade. - Crescer é difícil, mas, se continuas assim, vais acabar por fazer muito mal a ti próprio, ao teu corpo em crescimento.

- Mal... - repeti eu.

- Sim, olha para ti - disse ela num tom de voz mais suave. - Não consegues levantar-te de manhã, estás cansado todo o dia, estás mal disposto, não te lavas, não mudas de roupa, és malcriado com as tuas irmãs e comigo. E os dois sabemos qual a causa disso tudo. Cada vez... - baixou a voz e, em vez de olhar para mim, fitou os olhos nas mãos, pousadas no colo. - De cada vez que fazes aquilo, é preciso quase um litro de sangue para o substituir. - Olhava-me com ar de desafio.

- Sangue - murmurei. Inclinou-se e beijou-me ao de leve na cara.

- Não te importas que te diga isto, pois não?

- Não - disse eu. Ela ergueu-se.

- Um dia, quando tiveres vinte e um anos, ir-te-ás embora e hás-de agradecer-me por te ter dito tudo isto. - Concordei com a cabeça. Curvou-se sobre mim, despenteou-me carinhosamente o cabelo e saiu rapidamente do quarto.

As minhas irmãs e eu já não brincávamos na cama de Julie. As brincadeiras acabaram depois de o pai ter morrido, embora não tivesse sido a sua morte que acabou com elas. Sue tornou-se relutante. Talvez que ela entretanto tivesse aprendido certas coisas na escola e estivesse envergonhada de nos deixar fazer aquilo. Nunca tive a certeza, porque não era coisa de que fôssemos capazes de falar. E Julie, essa, estava mais distante agora. Pintava-se e andava cheia de segredos. Na bicha para a cantina ouvi-a uma vez referir-se a mim como «o miúdo» e fiquei picado. Tinha longas conversas com a mãe na cozinha, que interrompiam quando Tom, Sue ou eu entrávamos de repente. Tal como a mãe, Julie fazia reparos ao meu cabelo ou à minha roupa, não com benevolência, mas com desprezo.

- Cheiras mal - costumava dizer, sempre que havia brigas entre nós. - Cheiras mesmo mal. Porque é que não mudas de roupa de vez em quando? - Críticas destas puxavam-me pela língua.

- Vai-te lixar - dizia-lhe então entredentes e atacava-lhe os tornozelos, decidido a fazer-lhe cócegas até ela se render de cansaço.

- Mãe! - punha-se ela a gritar. - Mãe, olhe o Jack! - e a minha mãe chamava-me lá de dentro, em tom cansado:

- Jack...

A última vez que fiz cócegas a Julie esperei que a mãe fosse ao hospital, enfiei luvas velhas, enormes, que o meu pai usara no jardim e fui ter com Julie ao quarto. Ela estava sentada na mesinha onde costumava fazer os trabalhos de casa. Fiquei parado à porta, com as mãos atrás das costas.

- O que queres? - disse ela, impaciente. Tínhamos estado a discutir lá em baixo.

- Vim para te apanhar... - foi só o que lhe disse, e lancei-me com as mãos enormes sobre ela, os dedos esticados. Bastou-lhe vê-los a avançar sobre ela para perder a força. Tentou levantar-se, mas caiu da cadeira abaixo.

- Não te atrevas - ia ela dizendo no meio de risos cada vez mais nervosos. - Nem penses.

As mãozorras estavam ainda longe e já ela se contorcia toda na cadeira, guinchando:

- Não... não... não.

- Não escaparás - disse eu. - Chegou a tua hora. - Puxei-a por um braço até à cama. Ficou deitada, com os joelhos encolhidos, as mãos no ar a proteger a garganta. Não ousava afastar os olhos das manápulas que eu mantinha sobre ela, prontas a atacar.

- Vão-se embora daqui - murmurou. Reparei na altura que era giro que ela se dirigisse às luvas e não a mim.

- Vieram à tua procura - disse eu, e baixei-as um pouco mais. - Mas não se sabe por onde vão começar a atacar. - Sem grande convicção, tentou apanhar-me pelos pulsos, mas deixei escorregar as mãos por entre as dela e as luvas engancharam-se firmemente à volta das costelas, exactamente por debaixo dos braços. Quanto mais Julie ria, sufocada, mais eu ria também, deliciado com o meu poder. Houve então um momento de pânico no meio do seu estrebuchar. Não conseguia respirar. Tentava dizer-me:

- Por favor - mas, na minha excitação, eu não conseguia parar. O resto do ar saía-lhe dos pulmões como um cacarejar. Com uma das mãos puxou pelo material áspero da luva. Ao fazer o movimento para ficar em melhor posição para a segurar, senti um líquido quente a escorrer-me pelo joelho. Horrorizado, saltei fora da cama e arranquei as luvas. Os últimos risos de Julie transformaram-se em choro. Ficou deitada na cama, as lágrimas escorrendo-lhe sobre as faces e desaparecendo por entre os cabelos. O quarto cheirava só vagamente a urina. Apanhei as luvas do chão. Julie virou a cara.

- Vai-te embora - disse ela em tom magoado.

- Desculpa -- disse eu.

- Vai-te... embora.

Tom e Sue estavam a ver à porta.

- Que aconteceu? - perguntou Sue quando passei por ela.

- Nada - respondi e fechei a porta muito devagarinho. Foi por essa altura que a mãe começou a ir para a cama cedo, à tardinha, cada vez mais frequentemente. Dizia que mal conseguia manter-se acordada.

-- Se me deitar cedinho umas poucas de noites a fio - dizia ela - fico como nova. Isto levou Julie a ficar encarregada do jantar e do deitar. Sue e eu estávamos a ouvir rádio na sala. Julie entrou e desligou-o.

- Vai despejar o balde do lixo, se fazes favor - disse ela para rnim - e leva os sacos lá para fora.

- Vai à merda - gritei-lhe -, estou a ouvir isto - e inclinei-me para o botão do rádio.

Julie cobriu-o com a mão. Ainda me sentia demasiado envergonhado para voltar a lutar com ela. Algumas palavras de resistência simbólica e estava lá fora a carregar os sacos do lixo. Quando voltei, Sue estava na cozinha a descascar batatas. Quando, mais tarde, nos sentámos a comer, havia um silêncio forçado em lugar da habitual algazarra. Quando levantei os olhos para Sue, ela mal podia conter o riso. Julie nem olhava para nós e, quando falou, foi em voz baixa, dirigindo-se a Tom. Quando deixou a sala por uns momentos para levar o tabuleiro com a comida lá acima, Sue e eu demos uns pontapés por debaixo da mesa e desatámos a rir. Mas parámos logo que a ouvimos voltar.

Estas noites sem a mãe não agradavam a Tom. Julie obrigava-o a comer tudo o que estava no prato e não podia gatinhar por debaixo da mesa, fazendo ruídos esquisitos. O que mais o irritava era que Julie não o deixasse entrar no quarto da mãe quando ela estava a dormir. Gostava de se enfiar ao lado dela todo vestido. Julie agarrava-o por um braço quando ele ia a subir as escadas.

- Lá para cima, não - dizia-lhe com muita calma. - A mamã está a dormir. - Tom soltava um berro terrível, mas não lutava quando Julie o puxava de novo para a cozinha. Também ele tinha medo dela. De repente tornara-se tão distante de nós, tão calma, tão segura da sua autoridade. Apetecia-me dizer-lhe: «Vá lá, Julie, acaba lá com isso. Nós sabemos quem tu és realmente.» Eu continuava a observá-la. Mas do outro lado não havia resposta. Estava sempre muito ocupada e os seus olhos só por momentos encontravam os meus.

Evitava ficar sozinho com a minha mãe, não fosse ela pôr-se a falar comigo outra vez. Eu tinha sabido na escola que ela estava enganada. Mas, todas as vezes que me punha a fazer aquilo agora, duas ou três vezes por dia, vinha-me a imagem de duas garrafas de leite cheias com sangue, com a chapa de metal prateada a tapá-las. Passava agora mais tempo com Sue. Parecia gostar de mim ou, pelo menos, era capaz de me ignorar. Fechava-se a maior parte do tempo no quarto, a ler, e não se opunha a que eu ficasse por ali. Lia histórias sobre raparigas da idade dela, de treze anos ou à volta disso, e das suas aventuras no colégio interno. Trazia da biblioteca pública livros enormes, ilustrados, acerca de dinossauros e vulcões ou de peixes de mares tropicais. As vezes eu folheava-os para ver as gravuras. Não estava interessado no texto. Desconfiava das pinturas dos dinossauros e disse a Sue que ninguém podia saber como é que eles realmente tinham sido. Ela falou-me nos esqueletos e nas pistas que havia e que eram utilizadas na reconstituição. Discutimos toda a tarde. Ela sabia muito mais do que eu, mas estava decidido a não a deixar ganhar. Por fim, aborrecidos e irritados, amuávamos e ficávamos calados, cada um para seu lado. Mas a maior parte das vezes conversávamos como conspiradores acerca da família e de todas as pessoas que conhecíamos, cuidadosos escrutínios do seu comportamento e aparência, o que é que «realmente eram». Interrogávamo-nos sobre a doença da nossa mãe. Sue tinha ouvido dizer a Julie que ela ia mudar novamente de médico. Concordávamos que a nossa irmã mais velha estava a exceder-se. Na verdade não consigo, passado este tempo, lembrar-me de Sue como uma rapariga. Ela era, ao contrário de Julie, apenas uma irmã, uma pessoa. Numa das longas tardes de domingo, Julie entrou quando estávamos numa daquelas conversas sobre os nossos pais. Eu tinha estado a dizer que eles, no fundo, se odiavam e que a mãe tinha ficado muito aliviada quando o pai morreu. Julie sentou-se na cama ao lado de Sue, cruzou as pernas e bocejou. Calei-me e pigarreei.

- Continua - disse Julie -, parece interessante.

- Não era nada de especial - disse eu.

- Oh - disse Julie. Corou um pouco e baixou os olhos.

Nessa altura foi a vez de Sue tossir e ficámos todos à espera. Acrescentei impensadamente:

- Estava só a dizer que acho que a mãe nunca gostou a sério do pai.

- Ah, não? - interessou-se Julie ironicamente. Estava zangada.

- Eu cá não sei - murmurei. - Talvez tu saibas.

- Porque é que eu havia de saber? - Houve outro silêncio e então Sue falou:

- Porque tu falas mais com ela do que nós.

A zanga de Julie expressava-se no silêncio crescente. Levantou-se e, depois de ter atravessado o quarto, voltou-se junto à porta e calmamente disse-nos:

- Só porque vocês os dois não têm nada a ver com ela. - Ficou calada, encostada à porta, esperando uma resposta, depois voltou-se e foi-se embora, deixando um leve cheiro a perfume atrás dela.

No dia seguinte, quando voltei das aulas, ofereci-me para ir às compras com a minha mãe.

- Não é preciso ajuda - respondeu-me. Estava de pé, no vestíbulo escuro, a atar o lenço ao espelho.

- Apetece-me passear - resmunguei.

Andámos em silêncio durante vários minutos, até que ela enfiou o braço no meu e disse-me:

- Estás quase a fazer anos.                                

- E. Falta pouco - disse eu.                                

- Estás contente por fazer quinze anos?

- Não sei.     Enquanto esperávamos na farmácia que lhe aviassem a receita, perguntei-lhe o que é que o médico lhe tinha dito. Ela estava a examinar uma embalagem de presente com um sabonete num prato de plástico. Pousou-a e sorriu divertida.

- Oh, só dizem disparates. Já não quero mais nada com eles. - Acenou com a cabeça em direcção ao balcão da farmácia. - Bastam-me as minhas pílulas.

Senti-me aliviado. A receita acabou por ser aviada, vinha num frasco castanho, pesado, que me ofereci para levar.

A caminho de casa sugeriu que fizéssemos uma pequena festa no dia do meu aniversário e que eu convidasse alguns amigos da escola.

- Não - disse eu imediatamente. - Só para a família. - Fizemos planos durante o resto do caminho para casa e estávamos ambos satisfeitos por termos acabado por encontrar um assunto de conversa. A minha mãe lembrou-se de uma festa que tínhamos dado no dia em que Julie fez dez anos. Também me lembrava, eu tinha oito. Julie chorara porque alguém dissera que depois dos dez anos já não se festejavam mais os aniversários. Durante algum tempo isso foi motivo para graça na família. Nenhum de nós se referiu ao comportamento que o meu pai tinha tido nessa e noutras festas de que eu me lembrava. Ele gostava de ter as crianças sentadas em filas, muito direitas, muito sossegadas, à espera da sua vez para entrar num daqueles jogos que ele organizava. Barulho e desordem, crianças cirandando por ali, irritavam-no profundamente. Não havia festa de aniversário em que ele não se zangasse com alguém. No dia em que Sue fez oito anos, ele tentou mandá-la para a cama porque ela andava ali a vadiar. A mãe interveio e essa foi a última festa de anos. Tom nunca tinha tido nenhuma. Quando estávamos a chegar ao portão da frente calámo-nos. Enquanto ela vasculhava na bolsa à procura da chave da porta, eu perguntava-me se ela estaria contente por irmos fazer esta festa sem ele.

- É pena que o papá não possa estar... - disse eu, e ela acrescentou:

- Coitado. Havia de ficar tão orgulhoso de ti!

Dois dias antes do meu aniversário a minha mãe ficou de cama.

- Hei-de pôr-me boa até lá - disse ela quando Sue e eu a fomos visitar. - Não estou doente. Estou só muito, muito cansada. - Mesmo quando falava connosco, os olhos mal se mantinham abertos. Já tinha feito um bolo gelado, com uns círculos concêntricos, vermelhos e azuis. No meio tinha uma vela. Tom estava muito divertido com isso.

- Não tens quinze anos - gritava ele. - Tens só um quando for o dia dos teus anos.

De manhãzinha cedo, Tom entrou no meu quarto e saltou-me para cima da cama.

- Acorda, acorda, hoje tens um ano.

Ao pequeno-almoço, Julie entregou-me, sem comentários, um estojo de cabedal que continha um pente de metal e uma tesoura de unhas. Sue deu-me um livro de ficção científica. Na capa, um enorme monstro tentacular estava a engolir uma nave espacial sobre um fundo de céu negro, salpicado de estrelas brilhantes. Subi com um tabuleiro ao quarto da minha mãe. Quando entrei, ela estava deitada de costas, de olhos abertos. Sentei-me na borda da cama e aguentei o tabuleiro sobre os joelhos. Ela sentou-se, apoiada em almofadas, sorvendo o seu chá. Só depois falou.

- Feliz aniversário, filho, de manhã não consigo dizer nada antes de beber alguma coisa.

Abraçámo-nos desajeitadamente, ela ainda com a chávena de chá na mão. Abri o envelope que me entregou. Dentro de um cartão de parabéns estavam duas libras. A gravura do cartão representava um globo, uma pilha de livros velhos de lombadas de couro, equipamento de pesca e uma bola de críquete. Abracei-a de novo e ela disse:

- Ui - segurando a chávena, que quase escorregava do pires. Ficámos ali sentados por um momento e ela apertou-me carinhosamente a mão. A dela era amarelada e esquelética, como um pé de galinha, pensei eu.

Fiquei toda a manhã na cama, a ler o livro que Sue me dera. Era a primeira vez que lia uma novela. Minúsculos germes portadores de vida, pairando em nuvens pelas galáxias, tinham sido tocados por raios especiais de um Sol moribundo e tinham-se transformado num monstro colossal que se alimentava de raios X e que aterrorizava as carreiras de tráfego regular entre a Terra e Marte. A tarefa do comandante Hunt era não só matar aquele animal, mas destruir também o seu corpo gigantesco.

- Deixar que o seu cadáver vagueie para sempre no espaço - explicava Hunt a um cientista num dos seus múltiplos relatórios - poderia não só dar lugar a uma colisão qualquer, mas quem sabe o que outros raios cósmicos poderiam provocar no seu corpo putrefacto? Quem sabe que outras mutações monstruosas não poderiam surgir daquela carcaça?

Quando Julie entrou no meu quarto e me disse que a mãe não se ia levantar e que nós íamos comer o bolo junto dela, eu estava tão absorto que fiquei a olhar sem entender o que ela queria.

Ao sair do quarto, Julie disse:

- Porque é que não lhe fazes um favor e não te lavas, ao menos hoje?

À tarde, Tom e Sue levaram o bolo e as chávenas para cima. Fechei-me no quarto de banho e fiquei em frente do espelho. Não me parecia que o comandante tivesse gente como eu a bordo da sua nave espacial. Estava a tentar deixar crescer a barba para disfarçar as borbulhas, mas os pêlos dispersos ainda chamavam mais a atenção para elas.

Enchi o lavatório com água quente e deixei-me ficar inclinado, com as mãos dentro de água, fazendo peso no fundo da bacia. Muitas vezes ficava assim meia hora, inclinado para o espelho, as mãos mergulhadas na água quente até aos pulsos. Era o máximo que eu conseguia em matéria de lavagem. Desta vez sonhava acordado com o comandante Hunt.

Quando a água ficou fria, sequei as mãos e tirei do bolso o estojo de couro. Cortei as unhas e penteei o meu espesso cabelo castanho. Experimentei diferentes estilos e acabei por me decidir pela risca ao meio, para celebrar o meu aniversário.

Quando entrei no quarto da minha mãe, Sue pôs-se a cantar os parabéns, acompanhada pelos outros. O bolo estava na mesa-de-cabeceira, com a vela já acesa. A minha mãe estava recostada nas almofadas e, embora os lábios se mexessem, a sua voz não se ouvia. Quando acabaram, soprei a vela e Tom pôs-se a dançar e a cantar em frente da cama.

- Tens um ano, tens um ano - até que Julie o mandou calar.

- É - disse eu, e cortei o bolo.

Sue encheu as chávenas com o sumo de, disse ela, dois quilos de laranjas verdadeiras.

- Todas as laranjas são verdadeiras, não são, mamã? - perguntou Tom.

Rimos todos e Tom, encantado consigo próprio, repetiu a graça várias vezes, mas cada vez com menos êxito. Não era uma festa de anos a sério e eu estava impaciente para voltar ao meu livro. Julie tinha disposto quatro cadeiras em semicírculo, viradas para um dos lados da cama, e ficámos ali sentados, mordiscando o bolo e bebendo o sumo em pequenos goles. A mãe não comeu nem bebeu nada.

Julie queria que acontecesse alguma coisa, queria que nos divertíssemos.

- Conta uma anedota - pediu a Sue -, aquela que me contaste ontem.

E quando Sue acabou de contar a anedota e a mãe se riu, Julie virou-se para Tom:

- Faz lá a tua roda.

Tivemos de afastar as cadeiras e pôr os pratos de lado para que Tom pudesse rebolar no chão em grande risota. Quando achou que já era suficiente, Julie mandou-o estar quieto e foi a vez de se voltar para mim.

- Porque não cantas uma canção?

- Não sei nenhuma - disse eu.

- Sabes, sim - insistiu ela. - Greensleeves, por exemplo! Bastou o título da canção para me deixar irritado.

- Porque não paras com essa mania de dizer às pessoas o que é que elas devem dizer? - disse-lhe eu. - Não és Deus, pois não?

Sue interveio.    

- Faz tu qualquer coisa, Julie - disse ela. Enquanto Julie e eu estávamos a falar, Tom tinha tirado

os sapatos e subira para a cama, para junto da mãe. Ela aconchegara-o, passando-lhe o braço à volta do ombro, e olhava para nós como se estivéssemos muito longe.

- É isso mesmo! - disse eu a Julie. - Faz tu agora alguma coisa para variar.

Sem uma palavra, Julie atirou-se para o espaço que se tinha aberto para Tom fazer as suas habilidades e, inesperadamente, ali estava ela, de pernas para o ar, apoiada nas mãos, com o corpo magro, esticado e perfeitamente hirto! A saia tombava-lhe sobre a cabeça. As cuecas, de um branco--brilhante, faziam um contraste com a cor morena das pernas e reparei que o tecido franzia em pequenas pregas em volta do elástico, agarrado à barriga lisa e musculada. Alguns cabelos pretos encaracolavam-se junto à linha branca da virilha. As pernas, a princípio unidas, abriam-se agora para os lados, muito devagar, como dois braços gigantes. Julie juntou de novo as pernas, deixou-as descair até pousarem no chão e ficou em pé. De repente, meio confuso, dei comigo de pé a cantar Greensleeves numa voz de tenor, trémula e apaixonada. Quando acabei, todos bateram palmas e Julie apertou-me a mão. A mãe sorria, com ar sonolento.

A seguir voltou tudo rapidamente aos seus lugares; Julie pôs Tom na cama, Sue levou os pratos e os restos do bolo, eu arrumei as cadeiras.

 

Numa tarde escaldante encontrei um malho escondido por debaixo de plantas silvestres e erva comprida. Andava, chateado, a vasculhar no jardim de uma das casas pré-fabricadas abandonadas. A casa em si fora devastada pelo fogo seis meses antes. Parei no meio do que restava da sala de estar, enegrecida, no lugar onde o tecto desabara e as tábuas do soalho tinham desaparecido com o fogo. Uma das paredes divisórias mantinha-se ainda de pé e no centro tinha um postigo que ligava à cozinha. Uma das portinholas de madeira pendia ainda das dobradiças. Na cozinha havia pedaços de cano e restos de instalações eléctricas agarrados à parede e, no chão, um lava-louças feito em pedaços. Em todos os quartos, as ervas tinham crescido altas, à procura de luz. A maior parte das casas estava ainda cheia com os objectos imóveis nos lugares que lhes tinham pertencido e cada objecto dizia-nos o que se fazia em cada lugar - aqui come-se, aqui dorme-se, aqui fica-se sentado. Mas ali, naquele lugar devastado pelo fogo, não havia ordem, tudo tinha desaparecido. Tentei imaginar carpetes, guarda-fatos, quadros, cadeiras, uma máquina de costura, naqueles quartos escancarados, em pedaços.

Agradava-me a forma irrelevante, insignificante, que aqueles objectos agora adquiriam. Num dos quartos havia um colchão amassado, preso entre as vigas enegrecidas.

A parede à volta da janela estava toda a desfazer-se e o tecto tinha descaído sem chegar a desprender-se. As pessoas que dormiam naquele colchão, pensei, estavam convencidas de que estavam «no quarto». Para eles havia a certeza de que isso nunca se alteraria. Pensei no meu próprio quarto, no de Julie, no da minha mãe, em todos os quartos que um dia haveriam de desaparecer.

Tinha subido para cima do colchão e balançava-me agarrado a uma saliência da parede partida, a pensar em tudo isto, quando avistei o martelo de malho caído na relva. Saltei para o chão e apanhei-o. Piolhos da madeira, cinzentos, que se tinham instalado por debaixo da cabeça de ferro maciço, corriam agora em grande confusão para trás e para a frente, percorrendo como cegos a sua pequena porção de terra. Baixei o martelo sobre eles e o chão tremeu debaixo dos meus pés.

Era um bom achado, provavelmente deixado ali pelos bombeiros ou pela equipa de demolidores. Pu-lo ao ombro e levei-o para casa, perguntando-me o que é que eu haveria de destruir com ele. O rochedo no jardim estava a desintegrar-se e ocupava espaço de mais. Não havia mais nada para escavacar a não ser as pedras do pavimento, e essas já estavam rachadas. Decidi-me pelo carreiro de cimento - quinze pés de comprido e duas polegadas de espessura. Não servia para nada. Agarrei o malho pelo meio do cabo e lancei-me ao ataque. À primeira pancada, um pedaço de cimento desfez-se, mas as pancadas seguintes não produziram nenhum efeito, nem uma só racha. Descansei um pouco e comecei de novo. Desta vez, surpreendentemente, abriu-se uma enorme fissura e um pedaço grande, satisfatório, de betão soltou-se. Tinha cerca de dois pés e custava a levantar. Puxei-o para o lado e encostei-o à vedação. Preparava-me para pegar de novo no malho quando ouvi a voz de Julie atrás de mim.

- Não vais fazer isso. - Vestia um biquini verde-claro. Segurava na mão uma revista e na outra os óculos-de-sol.

Daquele lado da casa estava-se totalmente à sombra. Pousei a cabeça do martelo no chão, entre os pés, e apoiei-me ao cabo.

- O que estás para aí a dizer? - perguntei. - Porque não?

- Foi a mãe que disse. - Levantei o martelo e brandi-o com quanta força tinha sobre o carreiro. Olhei para trás, para a minha irmã, que encolhia os ombros, afastando-se.

- Porquê? - gritei-lhe.

- Ela não se sente bem - disse Julie sem se voltar. - Tem uma dor de cabeça. - Praguejei e encostei o martelo à parede.

Tinha aceitado, sem perguntas, o facto de a mãe sair agora raramente da cama. Ela ficara tão gradualmente presa à cama que nós já raramente comentávamos isso. Desde o meu aniversário, há duas semanas, que ela não se levantava.

Tínhamo-nos adaptado bastante bem. Havia turnos para levar o tabuleiro lá acima e Julie fazia as compras quando vinha da escola. Sue ajudava-a a cozinhar e eu lavava a loiça.

A mãe costumava estar rodeada de revistas e livros da biblioteca, mas nunca a vi ler. A maior parte do tempo dormitava sentada e, quando eu entrava, acordava com um pequeno sobressalto e dizia qualquer coisa como: «Oh, devo ter passado pelas brasas por um momento.» Como não havia visitas, não havia ninguém que perguntasse o que é que se passava com ela, e por isso nunca me pus a mim próprio claramente a questão. Julie, como se verificou mais tarde, sabia bastante mais. Todos os sábados de manhã ia aviar nova receita e voltava com o frasco castanho de novo cheio. Nenhum médico vinha ver a mãe.

- Já fui suficientes vezes ao médico e já fiz exames que me cheguem para o resto da vida. - Parecia-me normal que se ficasse farto de médicos.

O quarto dela tinha-se tornado o centro da casa. Costumávamos ficar ali a conversar ou a ouvir rádio enquanto ela dormitava. As vezes ouvia-a dar instruções a Julie acerca das compras ou das roupas de Tom, sempre num tom baixo, suave e rápido.

«Quando a mãe se levantar», passou a ser um tempo vago e não esperado num futuro próximo, a altura em que se restabeleceriam os antigos padrões de vida. Julie mostrava-se grave e eficiente, mas eu desconfiava que ela se aproveitava da situação, que se divertia a dar-me ordens.

- Já é tempo de limpares o teu quarto - disse-me certo fim-de-semana.

- O que queres dizer com isso?

- Está um nojo. Até cheira mal. - Não respondi. Julie continuou: - Acho melhor que o limpes. Foi a mãe que disse. - Como a mãe estava doente, pensei que devia fazer o que ela pedia e, embora não fizesse nada, continuava a pensar nisso e a ficar com remorsos por não o limpar. A mãe nunca me falou no quarto e comecei a achar que ela nunca tinha falado nisso a Julie.

Depois de ter ficado uns minutos a olhar para o meu malho dei a volta até ao jardim de trás. Estávamos em meados de Julho, faltava apenas uma semana para as férias começarem e nas últimas seis semanas fizera calor todos os dias. Era difícil imaginar que alguma vez voltasse a chover.

Julie estava ansiosa por se bronzear e tinha preparado um espaço liso no cimo do rochedo desfeito. Todos os dias, quando chegava das aulas, estendia a toalha de praia durante uma hora, deitava-se de braços e mãos estendidos ao longo do corpo, colados ao chão, e mais ou menos de dez em dez minutos virava-se, ajeitando com os polegares as tiras do biquini. Ela gostava de realçar o tom moreno usando uma blusa branca do uniforme. Tinha acabado de se instalar novamente quando voltei a esquina. Estava deitada de barriga para baixo, a cabeça apoiada nos braços, a cara virada para o outro lado, na direcção do terreno baldio mais próximo, onde urtigas morriam de sede. Ao lado dela, encaixado entre os óculos e o tubo de creme-bronzeador, estava um rádio transístor, prateado e preto, de onde vinha o som fino e martelado de vozes masculinas. Os lados do rochedo desciam em escarpa a partir do sítio onde ela estava deitada. O mais ligeiro movimento para o lado esquerdo, e ela viria a rolar até aos meus pés. Os arbustos e as ervas estavam murchos e o biquini dela, brilhante e luminescente, era o único verde sobre o rochedo.

- Ouve lá - disse eu, sobrepondo-me às vozes do rádio. Não se virou para mim, mas eu sabia que ela estava a ouvir-me. - Quando é que a mãe te disse que me mandasses parar de fazer barulho? - Julie não se mexeu nem disse nada, por isso dei a volta ao rochedo para ficar em frente dela. Estava de olhos abertos. - Tens estado o tempo todo cá fora. - Mas Julie disse:

- Fazes-me um favor, pões-me creme nas costas? - Ao trepar, o meu pé desprendeu um pedaço grande de pedra que veio bater com estrondo no chão.

- Cuidado - disse Julie. De joelhos entre as pernas dela, espremi do tubo um líquido cremoso e claro que pus na palma da mão. - Em cima, nos ombros e no pescoço - disse Julie - onde é preciso mais - e, baixando a cabeça, afastou o cabelo da nuca. Embora não estivéssemos a mais de cinco pés de altura, ali em cima parecia correr uma leve brisa refrescante. Ao espalhar o creme nos ombros, reparei como as minhas mãos pareciam pálidas e sujas em contraste com as costas dela. As tiras da parte de cima estavam desatadas e caídas ondulantes sobre o chão. Se eu me mexesse um pouco para o lado ver-lhe-ia os seios, escondidos na sombra escura do seu corpo. Logo que acabei, pediu-me, por cima do ombro:

- Agora nas pernas. - Desta vez espalhei o creme o mais depressa que pude, com os olhos meio fechados. Sentia-me quente e enjoado. Julie descansava de novo a cabeça sobre o braço e a sua respiração era lenta e regular, como alguém adormecido. Da rádio vinha uma voz sibilante relatando os resultados das corridas com uma monotonia doentia. Mal acabei de besuntar convenientemente as pernas, saltei do rochedo.

- Obrigada - lançou-me Julie em tom sonolento. Voltei rapidamente para dentro e subi para a casa de banho. Mais tarde, nessa noite, atirei com o malho para a cave.

Dia sim, dia não, era a minha vez de levar o Tom de manhã para a escola. Era sempre difícil fazê-lo ir. As vezes gritava e esperneava e tinha de ser arrastado para fora de casa. Uma manhã, pouco depois de terem acabado as fitas, quando já íamos a caminho, pôs-se-me a contar, já com um ar muito calmo, que tinha um «inimigo» na escola. A palavra dita por ele soava a mistério e perguntei-lhe o que é que ele queria dizer com aquilo. Explicou-me que havia um rapaz mais crescido que o queria apanhar cá fora.

- Ele vai amandar-me uma pedra à cabeça - acrescentou ele num tom quase de admiração. Não me surpreendia. Tom era mesmo do género de ser perseguido. Era pequeno para os seis anos e débil. Pálido, um pouco orelhas de abano, com um sorriso meio idiota e cabelo preto, que lhe caía de lado numa melena espessa. E, para ajudar, era esperto à maneira mesquinha e quezilenta, o tipo perfeito da vítima de recreio!

- Diz-me lá quem ele é - disse eu, pondo o peito para fora - que eu dou cabo dele. - Parámos do lado de fora da escola e espreitámos por entre as grades pretas.

- Aquele - acabou ele por identificar, apontando na direcção de um alpendre de madeira. Era um miúdo franguelas, um par de anos mais velho que Tom, cabeça de cenoura, cheio de sardas, do tipo bera, pensei eu. Atravessei o recreio a grandes passadas, agarrei-o pela lapela com a mão direita e com a outra apertei-lhe a garganta, atirei-o de encontro ao alpendre e segurei-o lá. A cara dele tremia e parecia estar a inchar. Apetecia-me largar a rir, tal era a minha exaltação.

- Se tocas com um dedo no meu irmão - ameacei-o - racho-te ao meio. - Larguei-o então.

Foi Sue que trouxe Tom nessa tarde. A camisa pendia-lhe em tiras nas costas e um dos sapatos tinha desaparecido. Tinha um inchaço vermelho num dos lados da cara e o canto da boca ferido. Os joelhos estavam esfolados e as marcas de sangue seco corriam-lhe até ao queixo. A mão esquerda estava inchada e mole como se tivesse sido pisada. Mal entrou em casa, soltou um estranho uivo animalesco e lançou-se pelas escadas acima.

- Não deixem que a mãe o veja assim! - gritou Julie. Fomos-lhe no encalço como uma matilha de cães atrás da lebre ferida.

Trouxemo-lo para a casa de banho, cá em baixo, e fechámos a porta. Com nós os quatro ali dentro não havia muito espaço e, com a acústica daquele quarto, os gritos de Tom eram de ensurdecer. Julie, Sue e eu comprimíamo-nos à volta dele, beijando-o e acariciando-o à medida que o íamos despindo. Sue estava também quase a chorar.

- Oh, Tom - não parava ela de dizer -, coitadinho do Tom.

No meio disto tudo, eu ainda conseguia ter inveja do meu irmão nu.

Julie estava sentada na beira da banheira tendo Tom de pé, apoiado entre os joelhos, enquanto lhe esfregava a cara com algodão. Com a outra mão livre mantinha-o quieto, segurando-o pela barriga, mesmo junto à virilha. Sue punha uma flanela fria sobre a mão esmurrada.

- Foi aquele cabeça de cenoura? - perguntei-lhe.

- Não - lamuriou Tom - foi o amigo dele. - Quando ficou limpo, já não parecia tão magoado e o ar de drama desvaneceu-se. Julie embrulhou-o num toalhão e levou-o lá para cima. Sue e eu fomos à frente para preparar a mãe. Ela devia ter ouvido o barulho, porque já estava fora da cama, de roupão, preparada para descer.

- Foi uma pequena briga na escola - dissemos-lhe. - Mas agora ele já está bem. - Ela voltou para a cama e Julie deitou Tom ao lado dela. Mais tarde, quando estávamos sentados à volta da cama a beber chá e a falar do que se tinha passado, Tom, ainda embrulhado na toalha de banho, adormeceu.

Certa noite, depois do jantar, ficámos no andar de baixo. Tom e a mãe já estavam a dormir. A mãe tinha mandado Julie à escola de Tom para falar com a professora por causa daquela briga e nós tínhamos estado a conversar sobre isso. Sue disse-nos que tivera uma conversa - estranhíssima - com Tom e ficou à espera que um de nós a incitássemos a contar.

- E então o que é que ele te disse? - avancei, já a perder a paciência, passado meio minuto. Sue deu uma risadinha.

- Ele pediu-me que não contasse a ninguém.

- Então é melhor não o fazeres - advertiu Julie, mas Sue continuou: - Ele entrou no meu quarto e perguntou: «Como é que é ser-se rapariga?» Eu respondi-lhe: «E bom, porquê?» E ele então disse que estava farto de ser rapaz e que agora queria ser rapariga. E eu expliquei-lhe: «Mas, se tu és rapaz, não podes ser rapariga», e ele retorquiu-me: «Posso, sim. Se eu quiser, posso.» Então eu disse-lhe: «Mas porque é que tu queres ser rapariga?», e ele disse: «Porque não te batem se fores rapariga.» E eu disse-lhe que às vezes batiam, mas ele insistiu:   «Não, não te batem, não.» Aí eu perguntei-lhe: «Como é que podes ser rapariga se toda a gente sabe que és rapaz?», e ele disse: «Visto um vestido, penteio o cabelo como tu e entro pela entrada das raparigas.» Então eu expliquei-lhe que ele não podia fazer isso, ele insistiu que podia e depois disse que, de qualquer modo, era isso que ele queria, que ele havia de fazer...

Sue e Julie riam-se tanto que Sue não conseguia acabar de contar a história. Eu nem sequer sorri. Estava horrorizado e fascinado.

- Coitadinho - ia dizendo Julie. - Se ele quer, devíamos deixá-lo ser rapariga. - Sue estava deliciada. Batia as palmas. - Ele devia ficar tão bonito com um dos seus bibes antigos. Com aquela carinha muito doce. - Olharam uma para a outra e riram-se. Havia uma estranha excitação no ar.

- O que ele pareceria era um idiota chapado - saiu-me de repente.

- Sim? - disse Julie friamente. - E porque é que achas isso?

- Bem sabes que sim... - Houve uma pausa. Julie estava às voltas com a sua raiva. Os braços nus estavam estendidos sobre a mesa, mais morenos do que nunca sob a luz eléctrica.

- Façam-no parecer parvo - murmurei entredentes, sabendo que deveria estar calado - e assim vocês já se podem rir um bocado.

Julie falou em tom sereno:

- Achas então que as raparigas parecem idiotas, tolas, parvas...

- Não - interrompi indignado.

- Achas que é humilhante parecer uma rapariga porque achas humilhante ser-se rapariga.

- Para o Tom seria. - Julie suspirou profundamente e a voz tornou-se-lhe num murmúrio.

- As raparigas podem vestir jeans e cortar o cabelo curto, usar camisas e botas, porque ser rapaz está bem, para as raparigas é como se fosse uma promoção. Mas, para um rapaz, ter a aparência de uma rapariga é degradante, segundo a tua opinião, porque lá no fundo tu estás convencido de que ser rapariga é degradante. Que outra coisa é que te faria achar que é humilhante que o Tom ponha um vestido?

- Porque é - insisti firmemente.

- Mas porquê? - gritaram Julie e Sue ao mesmo tempo e, antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, Julie disse: - Se eu vestisse amanhã as tuas calças para ir para a escola e tu vestisses a minha saia, logo veríamos quem é que tinha mais problemas. Toda a gente apontaria para ti e desataria a rir. - Aí Julie estendeu o braço sobre a mesa, os dedos a centímetros do meu nariz.

- Olhem para ele! Parece mesmo... que horror!... uma rapariga!

- E olhem para ela - e Sue apontava para Julie - que bem que ela fica com aquelas calças. - As minhas irmãs riam-se tanto que caíram nos braços uma da outra.

Não passou de uma discussão teórica e no dia seguinte Tom voltou para a escola e a professora escreveu à mãe uma longa carta, que ela leu em voz alta enquanto eu e Sue estávamos a tentar meter a mesa da casa de jantar dentro do quarto dela.

- Tom é um aluno que não dá problemas. - A mãe leu aquela passagem várias vezes, com grande satisfação. Também lhe agradou: - Ele é uma criança viva, mas bem educada. - Tínhamos decidido passar a comer as refeições no quarto com a mãe. Levei lá para cima duas poltronas pequenas. Mal havia espaço para nos mexermos à volta da cama. Ler a carta cansou-a. Encostou-se às almofadas, com os óculos quase a caírem-lhe da mão. A carta escorregou para o chão. Sue apanhou-a e voltou a metê-la no envelope. - Quando eu estiver a pé - disse-lhe a mãe - vou redecorar a sala lá em baixo antes de voltar a pôr esta mobília. - Sue sentou-se na cama e ficaram a conversar sobre combinações de cores. Sentei-me à mesa, apoiado nos cotovelos. Era ao fim da tarde e havia ainda muito calor. Os vidros das janelas estavam abertos de par em par. Lá de fora chegavam os ruídos dos miúdos a brincar à volta dos pré-fabricados, no cima da rua. Sobrepondo-se ao murmúrio das vozes, ouviam-se gritos estridentes chamando o nome de alguém. Havia muitas moscas no quarto. Pus-me a observar uma a andar-me pelo braço. Julie estava a apanhar banhos de sol no rochedo e Tom brincava algures, lá fora.

A mãe tinha adormecido. Sue tirou-lhe os óculos da mão, fechou-os e colocou-os na mesa-de-cabeceira e depois saiu do quarto. Fiquei a ouvir a subida e descida de respiração da minha mãe. Uma mucosidade qualquer no nariz provocava um som entrecortado, fraco e agudo, como uma lâmina afiada cortando o ar. Ter a mesa da casa de jantar aqui em cima era uma novidade para mim, apetecia-me ficar ali, não conseguia deixá-la. Pela primeira vez reparei nas linhas negras ondulantes, dos nós da madeira por debaixo do tom escuro do verniz. Pousei os braços nus sobre aquela superfície fria. Aqui sentia-a mais concreta e já não conseguia imaginá-la lá em baixo. Da cama vinha o som breve, suave, que a minha mãe fazia com a língua contra os dentes, como se estivesse a sonhar que estava com sede. Por fim levantei-me e fui até à janela, bocejando inúmeras vezes. Tinha trabalhos de casa para fazer, mas, como as férias grandes estavam quase a começar, não me preocupava muito. Não tinha sequer a certeza se voltaria à escola no Outono, ainda que não tivesse quaisquer outros planos. Lá fora, Tom e outro rapaz do tamanho dele puxavam um pneu de camião até que desapareceram de vista. O facto de eles o arrastarem em vez de o fazerem rolar fez-me sentir imensamente mal.

Ia sentar-me outra vez à mesa quando a minha mãe me chamou e fui-me sentar então na cama dela. Sorriu-me e tocou-me na mão. Pus a mão entre os joelhos. Não queria ser tocado. Estava demasiado calor.

- O que é que estás a fazer? - perguntou-me ela.

- Nada - respondi-lhe com um suspiro.

- Estás chateado? - Disse que sim com a cabeça. Tentou estender a mão para me fazer uma festa. Mas eu estava fora do alcance dela.

- Esperemos que arranjes um emprego para as férias e consigas ganhar algum dinheiro para as tuas coisas. - Resmunguei qualquer coisa pouco clara e por momentos virei a cara para o outro lado. Os seus olhos, como sempre, estavam encovados e a pele escura em volta deles, franzida em círculos, era como se fosse também uma superfície que visse. Os cabelos estavam mais finos e mais cinzentos. Havia alguns caídos no lençol. Tinha um casaco de malha rosa-acinzentado que usava sobre a camisa de noite e a manga estava deformada junto ao pulso, onde ela guardava o lenço de assoar.

- Senta-te um pouco mais perto, Jack - disse ela. - Tenho uma coisa para te dizer e não quero que os outros oiçam.

Cheguei-me mais para cima e ela pousou-me a mão no braço.

Passou um minuto ou dois sem dizer uma palavra. Esperei, um pouco aborrecido, um pouco desconfiado, não fosse ela dizer alguma coisa sobre a minha aparência ou sobre o sangue que desperdiçava. Se era isso, já estava disposto a levantar-me e a sair do quarto. Por fim falou.

- É possível que eu me vá embora dentro em breve.

- Para onde? - perguntei logo.

- Para o hospital, para que eles possam descobrir afinal o que é que eu tenho.

- Por quanto tempo? - Calou-se por momentos e os seus olhos afastaram-se dos meus para se fixarem num ponto distante.

- É possível que seja por muito tempo. É por isso que eu quero falar contigo. - Interessava-me mais saber o que é que ela queria dizer com muito tempo e ansiava já pela liberdade que isso me traria. Mas ela continuou: - Isto quer dizer que Julie e tu têm de ficar a tomar conta da casa.

- Ou seja, ela é que fica... - Estava furioso.

- Ficam vocês os dois - insistiu firmemente. - Não é justo deixar toda a responsabilidade sobre ela.

- Diga-lhe isso, então - retorqui. - Diga-lhe que eu também sou responsável.

- A casa tem de ser governada como deve ser, Jack, e é preciso tomar conta do Tom. Tens de ter as coisas limpas e arrumadas, ou verás o que é que acontece.

- O quê?

- Eles vêm e levam o Tom e, se calhar, também a ti e à Sue. Julie não iria viver aqui sozinha, e então a casa ficaria vazia, e, quando isso se soubesse, aparecia logo gente, entrava aqui, levava coisas, destruía tudo. - Apertou-me a mão e sorriu. - E depois, quando eu viesse do hospital, já não haveria sítio para onde voltarmos. - Acenei com a cabeça. - Abri uma conta em nome de Julie e o dinheiro das minhas economias será lá depositado. Há dinheiro que chegue para vocês durante bastante tempo, chega bem até eu voltar do hospital. - Encostou-se às almofadas e semicerrou os olhos. Levantei-me.

- Tá bem - disse eu. - Quando é que vai para lá?

- É provável que seja só daqui a uma ou duas semanas - respondeu-me sem abrir os olhos. Quando cheguei à porta acrescentou: - Acho que quanto mais cedo, melhor.

- Sim. - A posição diferente da minha voz fê-la abrir os olhos. Eu estava parado junto da porta, pronto para sair.

- Estou cansada de estar para aqui deitada, sem fazer nada, todo o dia - disse ela.

Três dias depois morreu. Julie encontrou-a já morta quando voltou da escola, na sexta-feira à tarde, no último dia de aulas. Sue tinha levado Tom a nadar e eu cheguei poucos minutos depois de Julie. Quando ia a descer o passeio da frente, avistei-a debruçada à janela do quarto da mãe, viu-me, mas ignorámo-nos um ao outro. Não fui imediatamente lá acima. Tirei o casaco e os sapatos e bebi um copo de água fria da torneira da cozinha. Procurei dentro do frigorífico qualquer coisa para comer, encontrei queijo e comi-o com uma maçã. A casa estava muito sossegada e senti-me oprimido pelo vazio das semanas que estavam para vir. Ainda não tinha encontrado emprego, nem sequer tinha procurado. Ao contrário do que era costume, subi para dizer olá à minha mãe. Encontrei Julie no patamar, mesmo junto à porta do quarto da mãe, e, quando me viu, puxou a porta e apressou-se a fechá-la à chave. Tremendo ligeiramente, olhou-me de frente, a chave apertada na mão.

- Está morta - disse Julie sem mais.

- Que queres dizer com isso? Como é que sabes?

- Ela já estava a morrer há muitos meses. - Julie empurrou-me para o lado, para descer as escadas. - Ela não queria que «vocês» soubessem.

Fiquei magoado com aquele «vocês».

- Quero ver - disse eu. - Dá-me a chave. - Julie abanou a cabeça.

- É melhor desceres e falarmos antes que Tom e Sue voltem.

Por momentos pensei em arrancar-lhe a chave da mão, mas voltei-me e, de cabeça vazia, quase a largar uma gargalhada inoportuna, segui a minha irmã pela escada abaixo.

 

Na altura em que cheguei à cozinha, Julie já se recompusera. Apanhara o cabelo em rabo-de-cavalo e estava encostada ao lava-louça de braços cruzados. Apoiava-se num dos pés e o outro estava encostado atrás, à porta do armário, deixando o joelho à vista.

- Onde é que tens estado? - perguntou-me, mas eu não a percebi.

- Quero ver - disse. Julie abanou a cabeça. - Estamos os dois encarregados de tomar conta - fui dizendo enquanto girava à volta da mesa. - Ela disse-mo.

- Ela está morta - disse Julie. - Senta-te. Ainda não percebeste? Ela morreu. - Sentei-me.

- Eu também tomo conta - e comecei a chorar, sentindo que tinha sido enganado. A minha mãe tinha-se ido sem explicar a Julie aquilo que me tinha contado. Não para o hospital, mas tinha-se ido embora de vez e já não podia confirmá-lo. Por um momento apercebi-me claramente da sua morte e o meu choro tornou-se seco e difícil. Mas depois vi-me como alguém que tinha acabado de perder a mãe e o meu choro humedeceu e soltou-se de novo. A mão de Julie estava pousada no meu ombro. Quando me apercebi disso, como se estivesse a olhar pela janela da cozinha, vi o quadro que formávamos, um sentado outro de pé, e, por momentos, duvidei qual dos dois era eu. Havia alguém que, sentado, chorava na ponta dos meus dedos.

Não tinha a certeza se Julie esperava carinhosa ou impacientemente que eu acabasse de chorar. Nem sequer sabia se ela estaria a pensar em mim, de tal forma era neutro o toque da sua mão no meu ombro.

Esta incerteza fez-me parar de chorar. Quis ver com que cara ela estava. Julie retomou a posição junto do lava-louça.

- Tom e Sue estão a chegar. - Limpei a cara e assoei o nariz ao pano da louça. - O melhor é dizer-lhes logo que cheguem. - Acenei com a cabeça e ficámos por ali, esperando em silêncio, quase meia hora.

Quando Sue chegou e Julie lhe contou o que se passava, desataram as duas a chorar, abraçadas uma à outra. Tom tinha ficado em qualquer sítio, lá fora. Fiquei a olhar para as minhas irmãs, compreendi que pareceria mal olhar para outro lado. Senti-me excluído, mas não o quis dar a entender. A certa altura coloquei a minha mão no ombro de Sue, como Julie fizera no meu, mas nenhuma delas pareceu notá-lo, pelo que a retirei. No meio do choro, Julie e Sue iam dizendo coisas, ininteligíveis, talvez para elas próprias, ou uma para a outra. Quem me dera que eu fosse capaz de me abandonar assim como elas, mas sentia-me observado. Apetecia-me sair dali para ir ver-me no espelho. Quando Tom entrou, as raparigas separaram-se e viraram a cara para o lado. Pediu um copo de sumo de fruta, bebeu e foi-se embora. Sue e eu seguimos Julie até lá acima e, enquanto estávamos parados à espera que ela abrisse a porta, pus-me a imaginar que Sue e eu éramos um casal a quem iam mostrar o quarto de um hotel sinistro. Arrotei, Sue desatou a rir e Julie mandou-nos calar.

As cortinas não estavam corridas, como devia ser «para ninguém desconfiar», disse-me Julie mais tarde. O quarto estava cheio de luz, a mãe recostada, apoiada nas almofadas, com as mãos debaixo do lençol. Poderia estar a dormitar, porque não tinha os olhos abertos e fixos como os mortos costumam ter nos filmes, nem estavam completamente fechados. No chão, junto da cama, estavam as suas revistas e os livros, na mesa-de-cabeceira havia um despertador, que continuava a trabalhar, um copo de água e uma laranja. Enquanto Sue e eu observávamos do fundo da cama, Julie segurou o lençol e tentou puxá-lo sobre a cabeça da mãe. Como ela estava sentada, o lençol não chegava até lá acima. Julie puxou com mais força, o lençol soltou-se e conseguiu cobrir a cabeça. Os pés da mãe ficaram destapados, espreitando por debaixo do cobertor, pálidos, azulados, com os dedos todos abertos. Sue e eu rimo-nos, de novo, nervosamente. Julie puxou o cobertor para os pés e a cabeça da mãe ficou de novo a descoberto, como uma estátua destapada. Largámos a rir descontroladamente. Julie também ria; o corpo tremia-lhe entre os dentes serrados. A roupa da cama ficou por fim no seu lugar e Julie veio juntar-se a nós, aos pés da cama. O formato da cabeça e dos ombros da mãe distinguiam-se bem através do branco lençol.

- Fica tão ridículo assim - lamentou Sue.

- Não fica nada - disse Julie, furiosa. Sue esticou-se e puxou o lençol, destapando a cabeça da mãe. Quase ao mesmo tempo, Julie agarrou Sue por um braço e gritou-lhe: - Não mexas! - A porta atrás de nós abriu-se. Tom estava no quarto, ainda ofegante das brincadeiras na rua.

Mal o agarrámos, ele disse:

- Quero a mãe.

- Ela está a dormir - dissemos nós em voz baixa. - Olha, podes ver. - Tom lutava para se escapar de nós.

- Então porque é que vocês estavam a gritar? Ela não está nada a dormir, pois não, mãe?

- Ela está a dormir profundamente - disse Sue. Por um momento pareceu possível habituar Tom à ideia da morte comparando-a ao sono, um sono muito profundo. Mas nós sabíamos tanto como ele e ele pressentia que alguma coisa estava no ar.

- Mamã! - berrou, tentando arranjar maneira de chegar à cama. Segurei-o pelos pulsos.

- Não podes - disse eu. Tom desatou aos pontapés, libertou-se, esgueirou-se por detrás de Julie e correu para a cabeceira da cama. Apoiando-se com uma das mãos no ombro da mãe, tirou os sapatos e olhou para nós em grande triunfo. Cenas como esta eram usuais e, às vezes, ele levava a melhor.

Porém, desta vez eu estava com vontade de o deixar descobrir por si próprio, queria ver o que é que isso ia dar. Mas, mal Tom afastou a roupa da cama para subir para lá para dentro, Julie precipitou-se e agarrou-o por um braço.

- Vem - disse-lhe com suavidade, puxando-o.

- Não, não... - debateu-se Tom, como de costume, e com a mão livre agarrou-se à manga da camisa de noite da mãe. Ao puxar, a mãe tombou para o lado, de uma forma assustadora, como se fosse um pedaço de madeira, a cabeça bateu na mesa-de-cabeceira e o relógio e o copo de água escaqueiraram-se no chão. A cabeça ficou pendurada entre a cama e a mesa e uma mão aparecia agora junto à almofada. Tom ficou calado e quieto, quase rígido, e deixou-se levar por Julie, como um cego. Sue já tinha saído sem que eu desse por isso. Fiquei por um momento parado, sem saber se havia de empurrar o corpo para o pôr direito. Dei um passo em direcção a ela, mas a ideia de tocá-la era-me insuportável. Saí a correr do quarto, bati a porta com força, dei a volta à chave e meti-a no bolso.

Ao princípio da noite, Tom choramingou até adormecer no sofá, no andar de baixo. Cobrimo-lo com uma toalha de banho porque ninguém tinha coragem de ir sozinho lá acima buscar um cobertor. Ficámos o resto da noite por ali sentados, na sala de estar, sem dizer uma palavra. Por mais de uma vez, Sue começou a chorar, mas desistiu logo, como se o esforço fosse demasiado para ela. Julie disse:

- Provavelmente, ela morreu quando estava a dormir - e Sue e eu acenámos com a cabeça. Depois de alguns minutos Sue acrescentou:

- Não sofreu. - Julie e eu concordámos num murmúrio. Fez-se um longo silêncio e eu então disse:

- Têm fome? - As minhas irmãs abanaram a cabeça. Apetecia-me comer, mas não o queria fazer sozinho. Não queria fazer nada sozinho. Quando concordaram finalmente em comer alguma coisa, fui buscar pão, manteiga, compota e duas garrafas de leite. Fomos conversando enquanto comíamos e bebíamos. Julie contou-nos que tinha «sabido» pela primeira vez duas semanas antes do meu aniversário.

- Quando fizeste o pino? - quis saber.

- E tu cantaste Greensleeves! - disse Sue. - E eu, o que é que eu fiz? - Não nos conseguimos lembrar do que é que Sue tinha feito e ela continuava a dizer: - Eu sei que fiz qualquer coisa - até que a mandei calar. Um pouco depois da meia-noite subimos juntos as escadas, mantendo-nos muito próximos. Julie ia à frente e eu levava Tom ao colo. Parámos no primeiro patamar e chegámo-nos uns aos outros para passar em frente da porta do quarto da mãe. Parecia-me ouvir o tiquetaque do despertador. Fiquei contente por a porta estar fechada à chave. Deitámos o Tom sem o acordar. As raparigas tinham decidido, embora não tivessem falado nisso, que iriam dormir na mesma cama. Entrei no meu quarto e fiquei deitado de costas, muito tenso e, de cada vez que me vinha um pensamento ou imagem que queria evitar, voltava violentamente a cabeça de um lado para o outro. Passada meia hora fui buscar Tom ao quarto e deitei-o na minha cama. Reparei que a luz no quarto de Julie ainda estava acesa. Abracei-me ao meu irmão e adormeci.

 

Quando já estávamos a chegar ao fim do dia seguinte, Sue perguntou:

- Não acham que devíamos dizer a alguém?

Estávamos sentados em volta do rochedo. Tínhamos passado todo o dia no jardim por causa do calor e porque nos metia medo a casa atrás de nós, cujas janelas já não sugeriam um ar de concentração, mas sim um sono profundo. De manhã houvera uma briga por causa do biquini de Julie. Sue achava que não parecia bem ela pôr-se de biquini. Eu disse que não me importava. Sue insistiu em que se Julie punha o biquini é porque não se ralava com a mãe. Tom desatou a chorar e Julie foi tirar o biquini. Passei o dia a olhar para um monte de livros antigos de histórias aos quadradinhos, alguns deles do Tom. Lá no fundo de mim mesmo, eu tinha a sensação de estarmos para ali sentados à espera de qualquer coisa terrível para depois me lembrar de que afinal já tinha acontecido. Sue ficava a olhar para os livros e, às vezes, chorava silenciosamente. Julie estava sentada no topo do rochedo, sacudindo pedrinhas na mão fechada, atirando-as ao ar e apanhando-as de novo. Estava irritada com Tom, que ora choramingava e exigia atenções, ora andava lá por fora a brincar, como se nada tivesse acontecido. De uma vez que tentou subir para o colo de Julie ouvi-a dizer, empurrando-o:

- Sai daqui. Por favor vai-te embora. - Mais tarde fui-lhe ler uma história de banda desenhada.

Quando Sue fez aquela pergunta, Julie levantou os olhos e afastou-os para longe. Comecei a dizer:

- Se falamos a alguém... - e esperei. Sue disse:

- Temos de dizer a alguém para que se possa fazer o funeral. - Olhei para Julie. Olhava fixamente para além da vedação do jardim, por sobre o terreno vazio, que ia até às torres.

- Se lhes dizemos - retomei - vêm buscar-nos e põem-nos num orfanato ou noutro sítio qualquer. Quem sabe se não tentarão fazer com que Tom seja adoptado. Calei-me. Sue estava horrorizada.

- Eles não podem fazer isso - disse ela.

- A casa ficará vazia - continuei. - As pessoas virão partir tudo, não ficará nada.

- Mas se não dizemos a ninguém - disse Sue, fazendo um gesto vago em direcção à casa - então o que é que fazemos? - Voltei a olhar para Julie e elevei a voz:

- Aqueles miúdos entram aqui e destroem tudo. - Julie lançou os seus seixos por sobre a vedação. Disse:

- Não podemos deixá-la ficar no quarto, ou acabará por cheirar mal. - Sue quase gritara.

- É horrível dizer-se isso.

- Queres dizer - falei para Julie - que não devemos dizer a ninguém.

Julie caminhou em direcção a casa sem responder. Fiquei a vê-la entrar na cozinha e refrescar a cara com água, na bacia do lava-louça. Meteu a cabeça debaixo da torneira da água fria até ter o cabelo encharcado, depois torceu-o e afastou-o da cara. Gotas de água caíam-lhe sobre os ombros quando voltava de novo para junto de nós. Sentou-se no rochedo e disse:

- Se não falamos a ninguém, então nós temos de fazer alguma coisa rapidamente. - Sue estava quase em lágrimas.

- Mas o que é que nós podemos fazer? - lamentou-se ela. Julie estava um bocado na provocação. Disse muito calmamente:

- Enterrá-la, claro. - No entanto, a voz tremia-lhe, pela contenção.

- Sim - disse eu, estremecendo de horror -, podemos fazer um funeral privado, Sue. - A minha irmã mais nova chorava agora um choro sereno.

Julie passou-lhe o braço sobre o ombro. Olhou-me friamente por sobre a cabeça de Sue. Senti-me de repente irritado com aquelas duas. Levantei-me e dirigi-me à entrada para ver o que é que Tom andava a fazer.

Estava sentado com outro rapaz num monte de areia, junto ao portão da frente. Estavam a escavar um complicado sistema de canais da grossura de um punho.

- Ele diz - o amigo de Tom olhou-me de esguelha, com desprezo -, ele diz que a mãe dele morreu, mas não é verdade.

- É verdade, é - disse-lhe eu. - Ela também é minha mãe e é verdade que morreu há pouco.

- Nha-nha, eu bem disse, nha-nha - fungou Tom, enfiando os punhos dentro da areia.

O amigo dele reflectiu por um momento.

- Bem, a minha mãe não está morta.                       :

- Não me importa - disse Tom, continuando a escavar o seu túnel.

- A minha mãe não morreu - repetia o rapaz.

- E daí? - disse eu.

- Porque eu sei que não - berrou o rapaz. - Ela não morreu! - Fiz uma cara séria, ajoelhei junto deles, na areia. Pus a mão simpaticamente sobre o ombro do amigo de Tom.

- Vou dizer-te uma coisa - disse num tom calmo. - Acabo de vir da tua casa. Foi o teu pai que me contou. A tua mãe morreu. Ela vinha à tua procura e foi atropelada por um carro.

- Nha-nha, bem feito, a tua mãe morreu - cantarolou Tom.

- Não morreu nada - insistiu o rapaz para si mesmo.

- Estou-te a dizer - gozei com ele. - Venho agora mesmo da tua casa. O teu pai está muito triste e muito zangado contigo. A tua mãe foi atropelada porque andava à tua procura. - O rapaz levantou-se. Estava pálido. - Se fosse a ti, eu não ia para casa - continuei. - O teu pai não te perdoa. - O rapaz desatou a correr pelo carreiro do nosso jardim, em direcção à porta da frente. Então lembrou-se, deu meia volta e, quando passou por nós, a correr, estava quase a chorar.

- Para onde é que vais? - gritou-lhe Tom, mas o seu amigo abanou a cabeça e continuou a correr.

Mal escureceu e nós entrámos em casa, Tom começou novamente a ficar cheio de medo e a queixar-se. Chorou quando tentámos pô-lo na cama e acabámos por o deixar ficar a pé, esperando que ele adormecesse no sofá. Berrava e chorava por tudo e por nada e era impossível conversarmos sobre o que tínhamos a resolver. Para o fazer, com ele por ali, foi preciso falarmos aos gritos para nos conseguirmos ouvir. E, enquanto Tom guinchava e esperneava por já não haver mais sumo de fruta e Sue tentava acalmá-lo, eu dizia muito rapidamente para Julie:

- Onde é que a havemos de pôr? - Ela respondeu-me qualquer coisa que se perdeu no meio dos gritos de Tom.

- No jardim, por debaixo do rochedo - repetiu. Mais tarde Tom já só chamava pela mãe e, quando procurara confortá-lo, vi Julie a tentar explicar qualquer coisa a Sue, que acenava com a cabeça, esfregando os olhos. Enquanto o distraía, falando-lhe dos túneis que ele tinha feito, surgiu-me uma ideia repentina. Perdi-me na conversa e Tom desatou a chorar alto outra vez. Não adormeceu antes da meia-noite e só então pude dizer às minhas irmãs que não achava que o jardim fosse uma boa ideia. Teríamos de cavar muito fundo, o que levaria muito tempo. Se o fizéssemos durante o dia, alguém poderia ver-nos e precisaríamos de candeeiros para o fazer de noite. Podíamos ser vistos dos blocos. E como conseguiríamos que Tom não desse conta? Calei-me à espera da reacção. Apesar das circunstâncias, estava a divertir-me. Sempre tinha admirado, nos filmes, aqueles criminosos impecáveis que discutiam o crime perfeito com uma elegância distanciada. Enquanto falava, toquei na chave, no meu bolso, e o estômago apertou-se-me. Prossegui confiante.

- E, certamente, se alguém vier ver o que se passa, é com certeza no jardim que vão procurar primeiro. Todos os dias se lêem coisas dessas nos jornais. - Julie observava-me de perto. Parecia estar a tomar-me a sério e, quando acabei, disse:

- E então?

Deixámos Sue na cozinha com Tom. Ela não estava zangada nem assustada com a ideia. Estava demasiado infeliz para se importar e abanava a cabeça devagar como se fosse uma velha senhora triste. Lá fora, só com a luz do luar, encontrámos o carrinho de mão e uma pá. Empurrámo-lo até ao jardim da frente e enchemo-lo com areia. Despejámo-lo no depósito de carvão, na cave, e ficámos à porta da cozinha a discutir acerca da água. Eu era de opinião de que se devia levá-la lá para baixo em baldes. Julie dizia que havia uma torneira lá em baixo. Finalmente encontrámo-la no quartinho onde estavam as roupas velhas e os brinquedos. Como ficava longe do quarto, a cave parecia-me menos assustadora do que o resto da casa. Sem razão aparente, sentia que devia ser eu a fazer a argamassa, mas Julie agarrara na pá e já tinha posto a areia num monte. Abriu um dos sacos de cimento e ficou à espera que eu lhe trouxesse a água. Trabalhava a grande velocidade, mexendo e remexendo o enorme monte até ele ficar numa lama espessa, cinzenta. Levantei a tampa do enorme baú de metal e Julie deitou o cimento às pás lá para dentro. O fundo do baú estava coberto com duas polegadas de cimento. Concordámos em fazer mais uma carrada, maior do que a anterior, e desta vez eu fiz a mistura e Julie foi buscar a água. Enquanto trabalhava nunca me veio à ideia a verdadeira finalidade daquilo que estávamos a fazer. Não havia nada de estranho em fazer cimento. Quando terminámos a segunda dose e a metemos no baú, tinham-se passado já três horas em que estivemos a trabalhar. Subimos à cozinha para beber água. Sue dormia numa cadeira de braços e Tom estava deitado de bruços no sofá. Cobrimos Sue com um casaco e voltámos para a cave. A caixa estava agora quase em meio. Decidimos que era melhor preparar uma quantidade grande de cimento antes de a trazermos para baixo. Levou-nos muito tempo a prepará-lo. Fomos buscar a areia lá fora e, como só havia uma pá, voltámos ambos ao jardim para ir buscar mais. O Sol já clareava a nascente. Fizemos cinco viagens com o carrinho de mão. Perguntei-me em voz alta o que íamos dizer ao Tom quando ele descobrisse que a sua areia tinha desaparecido. Julie disse, macaqueando-o:

- Voou - e rimos, cansados.

Quando acabámos a última mistura, eram cinco da manhã. Durante quase uma hora não tínhamos olhado nem falado um com o outro. Tirei a chave do bolso e Julie disse:

- Julguei que a tinha perdido e afinal eras tu que andavas com ela. - Subi atrás dela pelas escadas da cave até à cozinha. Descansámos e bebemos mais água. Na sala empurrámos alguns móveis para o lado e, com um sapato, segurámos a porta para a mantermos aberta. Lá em cima fui eu que dei a volta à chave na fechadura e empurrei a porta, mas foi Julie que entrou primeiro no quarto. Ia a acender a luz, mas mudou de ideias. A luminosidade azul-acinzentada dava às coisas uma aparência esbatida, a duas dimensões. Parecia que estávamos a entrar para dentro de uma fotografia antiga. Não olhei logo para a cama. O ar estava sufocante e pesado, como se tivesse estado ali a dormir muita gente com as janelas fechadas. Para além daquele cheiro a fechado havia um leve odor agressivo. Dava-se conta dele ao fim, da respiração, quando se enchiam os pulmões. Respirei pelo nariz, em curtas golfadas. Ela estava exactamente como a tínhamos deixado, a mesma imagem que eu tinha dela de cada vez que fechava os olhos. Julie parou aos pés da cama, tomando coragem. Aproximei-me e comecei a duvidar que alguma vez a conseguíssemos tirar dali. Esperei por Julie, mas ela não se mexeu. Disse:

- Não vamos conseguir. - Julie falou apressadamente, num tom agudo, tenso, como se quisesse parecer alegre e eficiente.

- Embrulhamo-la no lençol. Não vai ser assim tão difícil. Se o fizermos depressa, não vai custar muito. - Mas continuou parada.

Sentei-me à mesa, de costas para a cama, Julie ficou logo irritada.

- Está bem - disse ela rapidamente -, deixa isso comigo. Porque não começas tu a fazer alguma coisa?

- A fazer o quê?

- Embrulha-a nesse lençol. A ideia foi tua, não foi? Apetecia-me dormir. Fechei os olhos e experimentei uma sensação de queda abrupta. Agarrei-me aos lados da mesa e levantei-me. Julie falou com mais suavidade:

- Se estendermos o lençol no chão, podemos levantá-la em cima dele. - Dirigi-me para a minha mãe e puxei o lençol para fora. Quando o estendi e ele caiu no chão com um movimento lento, irreal, ondulando e enrolando-se nas pontas, suspirei de impaciência. Agarrei a minha mãe pelo ombro, semicerrei os olhos e empurrei-a de novo para dentro da cama. Evitei olhar-lhe para a cara. Parecia resistir-me e tive de usar as duas mãos para conseguir fazê-la mexer-se. Agora estava deitada de lado, os braços dobrados em ângulos estranhos, o corpo torcido e rígido, na mesma posição em que tinha ficado caída desde anteontem. Julie pegou-lhe pelos pés e eu segurei-a por debaixo dos braços. Quando a pousámos no lençol, parecia tão frágil e triste, ali caída aos nossos pés, como um pássaro de asas partidas que, pela primeira vez, chorei por ela e não por mim. Na cama ficou uma mancha grande, acastanhada, desbotada nos bordos amarelos. Julie também tinha a cara molhada quando nos ajoelhámos junto da mãe para tentarmos enrolá-la no lençol. Era difícil, o corpo estava demasiado torcido para lhe darmos a volta.

- Ela não vai, não vai - Julie chorava, desesperada. Por fim conseguimos enrolar o lençol em volta dela várias vezes. Depois de enrolada ia ser mais fácil. Levámo-la e carregámo-la para fora do quarto.

Trouxemo-la para baixo, de degrau em degrau, e, ao fundo das escadas, ajeitámos novamente o lençol nos sítios em que estava a fugir. Doíam-me os braços. Não precisávamos de o dizer, mas ambos sabíamos que queríamos atravessar a sala sem a pousar no chão. Estávamos quase a chegar à porta da cozinha quando olhei para a esquerda, para Sue.

Estava sentada, com o casaco puxado para o queixo, vendo-nos passar. Ia para lhe dizer qualquer coisa baixinho, mas, antes que soubesse o quê, já tínhamos passado a porta da cozinha e contornado em direcção à escada da cave. Colocámo-la, enfim, no chão, a um bom par de metros do baú.

Fui buscar um balde de água para amolecer o nosso monte enorme de cimento e, quando, mais tarde, levantei os olhos, Sue estava parada na entrada. Julguei que ela talvez quisesse impedir-nos, mas quando Julie e eu nos preparávamos para levantar o corpo, Sue avançou e segurou no meio. Como não ia ficar esticada, havia espaço de sobra para ela dentro do baú. Afundou-se uns centímetros no cimento que já lá estava. Voltei-me para ir buscar a pá mas Julie já a tinha na mão. Quando despejou a primeira quantidade de cimento fresco sobre os pés da mãe, Sue soltou um pequeno grito. E então, enquanto Julie enchia de novo a pá, Sue precipitou-se para o monte, encheu as duas mãos de quanto pôde de cimento e atirou-o para dentro da caixa. E depois foi atirando cimento tão depressa quanto podia. Julie também ia enchendo as pás cada vez mais depressa, cambaleando até à caixa sob o peso da pá carregadíssima e voltando a correr para ir buscar mais.

Meti as mãos no cimento e atirei lá para dentro uma braçada enorme. Trabalhávamos como loucos. Em breve não se viam senão algumas pontas do lençol e depois desapareceu tudo. Mas nós continuámos. Só se ouvia o som da pá a raspar e a nossa respiração ofegante. Quando acabámos, quando não havia mais do que uma mancha húmida no chão, o cimento quase transbordava do baú.

Antes de subirmos, ficámos por ali, parados, olhando para o que tínhamos feito e sustendo a respiração. Decidimos deixar a tampa da caixa aberta para que o cimento secasse mais depressa.

 

Dois ou três anos antes de o meu pai ter morrido, os meus pais tinham ido ao funeral de um dos últimos parentes vivos. Talvez fosse o da tia da minha mãe, ou do meu pai, ou talvez tenha sido um tio. Não interessava quem é que tinha exactamente morrido, provavelmente porque os meus pais não ligavam muito à morte. Certamente que a nós, crianças, não nos dizia nada. Estávamos mais interessados no facto de irmos ficar sozinhos em casa, a tomar conta do Tom, a maior parte do dia. A mãe preparou-nos com vários dias de antecedência para as nossas responsabilidades. Deixar-nos-ia o almoço feito e só tínhamos de o aquecer quando tivéssemos fome. Mostrou-nos a cada um por sua vez - a Julie, a Sue e depois a mim - como se acendia o fogão e fez-nos prometer que verificaríamos três vezes se estava devidamente fechado. Mudou de ideias e disse que nos deixava um almoço frio já preparado. Mas isso não podia ser, decidiu ela finalmente, porque era Inverno e não podíamos passar o dia todo sem uma refeição quente. O pai, por sua vez, explicou-nos o que é que devíamos fazer se alguém tocasse à porta, embora, de facto, nunca ninguém antes tivesse tocado à porta.

Ensinou-nos o que devíamos fazer se houvesse fogo. Não devíamos ficar lá dentro, devíamos correr para fora de casa até à cabina telefónica e em caso nenhum nos podíamos esquecer de Tom. Não podíamos ir brincar para a rua, não podíamos ligar o ferro de engomar nem pôr os dedos nas tomadas eléctricas. Quando levássemos o Tom à casa de banho, ficaríamos a segurá-lo o tempo todo.

Tivemos de repetir estas instruções solenemente até estarem correctos todos os pormenores, após o que ficámos todos juntos à porta de casa a ver os nossos pais a andarem até à paragem do autocarro nas suas roupas pretas. A cada passo voltavam-se ansiosamente para trás e diziam adeus e nós respondíamos-lhes acenando alegremente. Quando desapareceram de vista, Julie fechou a porta com estrondo, empurrando-a com o pé, e soltou um grito de alegria, ao mesmo tempo que rodopiava e me dava um murro forte em baixo, nas costelas. Com o abanão, fui ao chão, de encontro à parede. Julie subiu as escadas a correr, a três e três, e lá de cima pôs-se a olhar para mim e a rir. Sue e eu voámos atrás dela e lá em cima houve um terrível e violento combate de almofadas. Em seguida, com colchões e cadeiras, fiz uma barricada no cimo da escada, que as minhas irmãs atacavam violentamente da parte de baixo. Sue encheu uma vasilha com água e atirou-ma à cabeça. Tom ficou no fundo das escadas fazendo sorrisos e escondendo-se. Uma hora mais tarde, com a excitação, fez coco nas calças e um cheiro inconfundível subiu até lá acima e veio interromper a nossa luta. Julie e Sue puseram-se de fora. Disseram que devia ser eu a tratar daquilo porque éramos do mesmo sexo. Apelei pouco à vontade para a própria natureza das coisas e que cabia a elas, raparigas, obviamente, resolver o problema. Não se chegou a nenhuma conclusão e a nossa batalha continuou. Em breve Tom estava a berrar. Interrompemos outra vez. Fomos buscá-lo, levámo-lo para o quarto e metemo-lo na cama de grades. Julie foi buscar as correias e prendeu-o à cama. Por essa altura, os gritos dele eram de ensurdecer e a cara estava vermelha como se fosse rebentar. Tirámos uma das grades e apressámo-nos a sair do quarto, ansiosos por nos vermos livres do cheiro e da berraria. Uma vez fechada a porta, mal ouvíamos o barulho e continuámos calmamente, imperturbáveis, com as nossas brincadeiras.

Não foram mais do que algumas horas, mas é como se ocupassem toda uma fatia da minha infância. Meia hora antes dos nossos pais estarem para chegar, rindo-nos dos perigos em que tínhamos estado, começámos a pôr em ordem aquela barafunda. Com a ajuda uns dos outros, limpámos o Tom. Descobrimos o almoço que não tínhamos tido tempo para comer e deitámo-lo pela pia abaixo. Nessa noite estávamos delirantes com o nosso segredo. Já em pijama, juntámo-nos no quarto de Julie e ficámos a conversar, fazendo planos para uma próxima vez.

Quando a mãe morreu, para além dos sentimentos mais fortes, havia uma sensação de aventura e liberdade que mal me atrevia a permitir-me e que provinha da memória daquele dia longínquo. Mas agora não havia nenhuma excitação. Os dias eram demasiado longos, demasiados quentes, e a casa parecia ter caído num sono profundo. Nem sequer nos sentávamos já lá fora, porque o vento soprava uma fina poeira negra, vinda do lado das torres e das auto-estradas, que ficavam por detrás delas. E, mesmo enquanto estava quente, o Sol nunca chegava a romper uma neblina alta e amarelada; tudo aquilo para que eu olhava perdia a nitidez e, no meio da luz intensa, parecia-me insignificante. Tom era o único que andava contente, pelo menos durante o dia. Tinha o seu amigo, aquele com quem estivera a brincar na areia. Parecia não ter reparado que a areia tinha desaparecido, nem o amigo voltou a mencionar a história que eu lhe tinha impingido sobre a sua mãe. Brincavam longe, no cimo da rua, dentro ou fora dos pré-fabricados em ruínas. À noite, depois de o seu amigo se ir embora, Tom ficava de mau humor e chorava por tudo e por nada. A maior parte das vezes, quando queria que lhe prestassem atenção, ia ter com Julie e dava-lhe cabo dos nervos.

- Não andes sempre atrás de mim - explodia ela. - Larga-me, desaparece, deixa-me   em paz por um momento, Tom. - Mas não adiantava grande coisa. Tom achava que agora era Julie que tinha de tomar conta dele. Andava atrás dela por toda a casa, a choramingar, e não nos ligava, a Sue e a mim, quando tentávamos distraí-lo. Certa noite, ainda cedo, em que Tom estava particularmente exigente e Julie mais irritável do que o costume, de repente ela agarrou-o e começou a tirar-lhe a roupa na sala.

- Ora aí está - pôs-se ela a dizer -, já vais ver o que te acontece!

- O que é que vais fazer? - perguntou Sue no meio dos soluços de Tom.

- Se ele quer que eu faça de mãe - gritou Julie - então vai começar por fazer aquilo que eu mando. Vai já para a cama! - Ainda não eram cinco horas da tarde. Quando Tom estava despido, ouvimos-lhe os berros e o som da água a correr para o banho. Dez minutos depois, Tom apareceu-nos em pijama e, extremamente submisso, deixou que Julie o levasse para cima, para o quarto de dormir. Ela voltou pouco depois com um grande sorriso, a fazer de conta que sacudia o pó das mãos.

- Era isto que ele queria - disse ela.

- E é isto que tu sabes dar - repliquei. Saiu-me um pouco mais azedo do que eu pretendia. Julie deu-me uma biqueirada sem grande violência.

- Tem cuidado - murmurou - ou para a próxima és tu.

Logo que tínhamos acabado com aquilo na cave, Julie e eu fomos para a cama. Como Sue tinha dormido parte da noite, ficou ela a pé a tomar conta de Tom durante o dia.

Acordei a meio da tarde, cheio de sede e de calor. Não havia ninguém no andar de baixo, mas a voz de Tom ouvia-se algures lá fora. Quando me curvei para beber água pela torneira da cozinha, uma nuvem de moscas zumbiu à volta da minha cara. Caminhei nos bicos dos pés descalços para evitar sujá-los no chão, junto ao lava-louças, onde se tinha derramado qualquer coisa amarela, pegajenta, provavelmente sumo de laranja. Ainda zonzo de sono, fui até ao quarto de Sue. estava sentada, atravessada na cama, com as costas apoiadas na parede. Os joelhos estavam encolhidos e no colo tinha um caderno de apontamentos aberto. Pousou o lápis quando eu entrei e fechou o caderno. Estava abafado como se tivesse estado ali fechada há várias horas. Sentei-me na borda da cama, muito perto dela. Apetecia-me conversar, mas não sobre a noite anterior. Precisava que alguém me fizesse uma festa na cabeça. Sue estreitou os lábios finos a mostrar que estava decidida a não ser a primeira a falar.

- O que é que estás a fazer? - perguntei por fim, olhando para o caderno.

- Nada - respondeu -, a escrever, apenas. - Segurou o caderno com as duas mãos contra a barriga.

- O que estás a escrever? - Ela suspirou.

- Nada de especial. - Arranquei-lhe o caderno das mãos e, de costas para ela, abri-o. Antes que ela conseguisse tapar-me a vista com o braço, ainda pude ler no cimo de uma das páginas: «Terça-feira, Querida Mamã.»

- Dá-me isso - gritava Sue, e a sua voz era tão estranha, tão inesperadamente violenta, que lho entreguei sem resistência. Meteu o caderno debaixo da almofada e sentou-se na beira da cama, de olhos fixos na parede em frente. Tinha a cara vermelha e as sardas mais escuras. A veia na têmpora estava inchada e pulsava violentamente. Encolhi os ombros e decidi ir-me embora, mas ela nem sequer olhou para mim. Quando eu estava a sair a porta, ela fechou-a, deu a volta à chave e, ao afastar-me, ouvi-a chorar. Bati à porta e chamei-a. Por entre soluços disse-me que me fosse embora e foi o que eu fiz. Fui para o quarto de banho e lavei as mãos para tirar o cimento seco.

Durante a semana a seguir ao enterro não cozinhámos uma única refeição. Julie foi ao correio buscar o dinheiro e voltou para casa cheia de sacos com compras, mas os vegetais e a carne ficaram por ali sem ninguém lhes tocar, até que tiveram de ser deitados fora. Em vez deles comíamos pão, queijo, creme de amendoim, bolachas e fruta. Tom devorava tablettes de chocolate e parecia não precisar de mais nada.

Quando apetecia a alguém, fazíamos chá, mas a maior parte das vezes bebíamos água da torneira. No dia em que Julie foi às compras deu duas libras a cada um de nós.

- Com quanto é que ficaste para ti? - quis eu saber. Fechou a bolsa rapidamente.

- Com o mesmo que tu - disse ela. - O resto é para comida e outras coisas.

Não demorou muito que a cozinha se transformasse num lugar malcheiroso e cheio de moscas. A nenhum de nós apetecia fazer o que quer que fosse, a não ser manter a porta da cozinha fechada. Fazia imenso calor. Então, alguém que não eu deitou a carne fora. Encorajado, despejei algumas garrafas de leite, apanhei alguns sacos vazios e dei cabo de uma dúzia ou mais de moscas. Nessa mesma noite Julie disse-nos, a Sue e a mim, que já era tempo de tratarmos da cozinha.

- Já hoje lá fiz muita coisa, não repararam? - disse eu. As raparigas riram-se às gargalhadas.

- Fizeste o quê? - perguntou Sue, e, quando lhes contei, desataram a rir de novo, mais alto do que era preciso.

- Ora bem - disseram uma para a outra -, ele já fez a sua parte para umas poucas de semanas. - Decidi então que não tinha mais nada a ver com a cozinha, o que fez com que Julie e Sue determinassem que também elas não estavam para a limpar. E só se fez alguma coisa quando, alguns dias mais tarde, decidimos cozinhar uma refeição. Entretanto, as moscas tinham-se espalhado por toda a casa e formavam finas nuvens junto às janelas, fazendo um barulho constante ao baterem nos vidros.

Masturbava-me todas as manhãs e todas as tardes e deambulava pela casa, de um quarto para outro, às vezes surpreendendo-me por me encontrar no meu quarto, deitado de costas, olhando fixamente o tecto, quando a minha intenção era estar no jardim. Olhei-me cuidadosamente no espelho. O que se passava comigo? Tentei assustar-me com o aspecto dos meus olhos, mas só senti aversão e uma certa estranheza. Fiquei de pé, no meio do quarto, ouvindo o ruído constante do tráfego muito distante. Depois ouvi as vozes das crianças a brincarem na rua. Os dois sons fundiram-se e pareceram comprimir-se no alto da minha cabeça. Estava deitado de novo na cama e desta vez fechei os olhos. Quando uma mosca passeou sobre a minha cara, decidi não me mexer. Não podia suportar a ideia de ficar ali na cama e, no entanto, qualquer actividade em que pensasse antecipadamente me desagradava. Para me fazer mexer, pensei na minha mãe, lá em baixo. Ela era agora apenas um facto para mim. Levantei-me, fui até à janela e fiquei vários minutos de pé, olhando, por detrás das ervas ressequidas, para os edifícios das torres. Pus-me depois à procura pela casa, para ver se Julie já tinha voltado. Ela agora desaparecia com frequência, normalmente de tarde e durante horas a fio. Quando lhe perguntava onde tinha ido, dizia-me que não me metesse onde não era chamado. Julie não estava e Sue tinha-se fechado no quarto. Se eu batesse à porta, ela ia perguntar-me o que é que eu queria e eu não sabia o que é que lhe havia de dizer. Lembrei-me das duas libras. Saí de casa pelas traseiras e saltei sobre a vedação para que Tom não me visse e quisesse vir comigo. Sem ter qualquer razão para isso, desatei a correr em direcção às lojas. Não tinha a mínima ideia do que é que queria. Achei que havia de o descobrir quando visse e, mesmo que custasse mais de duas libras, pelo menos sempre tinha alguma coisa que me apetecesse, alguma coisa em que pensar. Fui a correr todo o caminho. A principal rua comercial estava vazia, com excepção dos carros. Era domingo. A única pessoa que encontrei foi uma mulher, de casaco vermelho, parada numa ponte para peões, que atravessava a estrada. Perguntei a mim próprio porque vestiria ela um casaco vermelho com o calor que estava. Se calhar estaria a perguntar a si própria porque viria eu a correr, e por isso estava a olhar na minha direcção. Ainda estava muito longe, mas parecia-me alguém conhecido. Podia ser uma professora da minha escola. Continuei a andar na direcção da ponte, porque ainda não queria voltar para trás. Enquanto andava, ia olhando para as montras, à minha esquerda. Não gostava de encontrar os professores na rua. Pensei que podia passar por debaixo, se ela ainda lá estivesse, e fingir que não a tinha visto. Mas, quando estava para aí a meio metro da ponte, não resisti a olhar para cima. A mulher era a minha mãe e estava a olhar de frente para mim. Parei. Tinha mudado o peso do corpo de um pé para o outro, mas não se mexeu dali. Olhei outra vez para ela. Não conseguia mexer as pernas e o coração batia tão depressa que de certeza me ia dar qualquer coisa. Quando estava quase sob a ponte, parei e olhei de novo para cima. O reconhecimento e um grande alívio invadiram-me dos pés à cabeça e ri-me em voz alta. Claro que não era a mãe, era Julie, com um casaco que eu nunca lhe vira antes.

- Julie! - gritei -, pensei que tu... - Passei por debaixo da ponte e subi a correr um lance de escada de madeira. Quando dei de caras com ela, vi que também não era Julie. Tinha uma cara magra e um cabelo grisalho, desgrenhado. Não sabia dizer se era nova ou velha. Enfiou as mãos nos bolsos e recuou levemente.

- Não tenho dinheiro nenhum - disse ela, não te aproximes!

No caminho para casa, a minha apatia voltou e o acontecimento daquele dia perdeu totalmente o significado. Fui directamente lá para cima, para o meu quarto e, embora não visse nem ouvisse ninguém, sabia que os outros estavam em casa. Despi-me todo e deitei-me debaixo do lençol. Algum tempo depois fui acordado de um sono pesado com o som de gargalhadas estridentes. Fiquei com curiosidade, mas, sem saber porquê, não me mexi logo. Preferi ficar a ouvir. Eram as vozes de Julie e de Sue. No fim de cada explosão de riso davam um suspiro profundo e cantante, que se misturava com palavras que eu não conseguia entender. E o riso recomeçava de novo. Sentia-me irritado depois daquele curto sono. Sentia um peso e uma compressão na cabeça, os objectos dentro do quarto pareciam ter ganho densidade, encerrados no espaço que ocupavam, a rebentar de tensão. As minhas roupas, antes de agarrar nelas, pareciam feitas de aço. Depois de vestido fiquei do lado de fora do quarto, a ouvir. Só me chegava o barulho de uma voz e o estalido de uma cadeira.

Desci as escadas o mais silenciosamente possível. Apetecia-me imenso espiar as minhas irmãs, estar ao pé delas, invisível. Lá em baixo, o corredor da entrada estava completamente às escuras. Era-me possível ficar um pouco recuado junto à porta aberta da sala, sem ser visto. À Sue conseguia eu ver bem: estava sentada à mesa, a cortar qualquer coisa com uma tesoura enorme. Julie, parcialmente tapada pela ombreira da porta, estava de costas para mim e eu não conseguia ver o que ela estava a fazer. Mexia o braço para cima e para baixo com um ruído fraco e irritante. Exactamente quando eu me ia mexer para ver melhor, uma rapariguinha avançou alguns passos em frente de Julie e foi postar-se junto do cotovelo de Sue. Julie também se virou e foi-se colocar junto à rapariga, com uma mão pousada no ombro dela. Na outra mão segurava uma escova de cabelo. Ficaram assim juntas, por um pedaço, sem dizerem palavra. Quando Sue se voltou um pouco de lado, vi que estava a cortar um tecido azul. A rapariguinha estava encostada a Julie, que a abraçou por debaixo do queixo, ao mesmo tempo que lhe deu pancadinhas, ao de leve, sobre o peito.

Claro, logo que a rapariga falou, percebi que era Tom.

- Ainda demora muito tempo, não demora? - perguntou ele, e Sue disse que sim com a cabeça. Avancei alguns passos para dentro da sala e ninguém reparou em mim. Tom e Julie estavam muito entretidos a observar Sue a arranjar uma das suas saias da escola. Tinha-a posto mais curta e agora preparava-se para a coser. Tom estava com um vestido cor de laranja que não me era estranho e tinham-lhe arranjado, não sei onde, uma peruca. Era uma cabeleira loura com espessos caracóis. Como era fácil uma pessoa transformar-se noutra! Cruzei os braços num abraço a mim próprio. Não são mais do que roupas e uma cabeleira, pensei, é o Tom mascarado. Mas eu continuava a olhar para outra pessoa, para alguém que podia vir a ter uma vida muito diferente da de Tom. Esta ideia excitava-me e assustava-me. Estreitei-me com tanta força que o movimento fez com que os três olhassem para mim.

- O que é que vocês estão a fazer? - perguntei passado um bocado.

- Estamos a mascará-lo - disse Sue, e voltou à sua costura.

Tom lançou-me um olhar rápido, meio virado para a mesa onde Sue estava a trabalhar, e fixou o olhar num dos cantos da sala. Pôs-se a brincar com a bainha do vestido, rolando o tecido entre o indicador e o polegar.

- Qual é a ideia? - disse eu. Julie encolheu os ombros e sorriu. Trazia umas jeans enroladas acima dos joelhos e uma blusa desapertada sobre a parte de cima do biquini. Tinha atado o cabelo com um pedaço de fita azul e segurava outro pedaço de fita na mão, enrolado à volta do dedo.

Julie veio colocar-se em frente de mim.

- Oh, vá lá - disse ela -, alegra-te, infeliz! - Tinha um cheiro doce a óleo de bronzear e podia-se sentir o calor que se libertava da sua pele. Tinha com certeza estado todo o dia ao sol. Desenrolou a fita do dedo e passou-ma à volta do pescoço. Afastei-lhe os braços quando se preparava para me fazer um laço debaixo do queixo, mas fi-lo sem grande convicção e ela continuou, até dar o nó. Pegou-me na mão e segui-a até junto da mesa.

- Aqui está outro - disse ela para Sue - que está cansado de ser um mal-humorado. - Teria desatado a fita se não fosse o meu desejo de continuar a sentir a mão de Julie, fresca e seca. Agora estávamos todos a olhar sobre o ombro de Sue. Não sabia que ela tinha tanto jeito para coser. A mão corria-lhe de trás para a frente, sempre no mesmo movimento regular, como uma lançadeira de um tear mecânico. E, contudo, a verdade é que progredia pouco e eu sentia-me impaciente. Apetecia-me atirar tudo para o chão, tecido, agulha e alfinetes. Tínhamos de esperar que ela acabasse para podermos falar ou para que qualquer outra coisa pudesse acontecer. Finalmente, ela cortou a linha com um puxão brusco e levantou-se. Julie largou-me a mão e foi para trás de Tom. Ele levantou os braços e ela tirou-lhe o vestido pela cabeça. Por debaixo trazia uma camisa branca. Sue ajudou Tom a enfiar a saia azul de pregas e Julie pôs-lhe à volta do pescoço uma das gravatas do uniforme de Sue. Eu olhava, passando os dedos pela fita. Se eu a tirasse agora, tornava-me de novo num espectador. Tinha de decidir que atitude tomar perante aquilo que estava a acontecer. Tom calçou umas peúgas brancas e Sue foi buscar-lhe a boina dela. As raparigas riam e conversavam no meio dos preparativos. Sue contava a Julie a história de uma colega que tinha cortado o cabelo muito curto. Entrou na escola de calças e meteu-se no balneário dos rapazes, dando com eles todos nos urinóis. A vista daquela fila toda, desatou a rir-se e foi-se embora.

- Não está lindo, ele? - disse Julie. Olhámos para Tom, que estava imóvel, de mãos atrás das costas e com os olhos baixos. Se lhe agradava estar assim mascarado, não o mostrava. Foi até à entrada ver-se no espelho alto. Observei-o da soleira da porta. Colocou-se de lado e olhou para a sua imagem por sobre o ombro.

Enquanto Tom estava fora da sala, Julie pegou-me nas mãos e disse:

- E agora o que é que vamos fazer com este mal-humorado? - Os olhos de Julie percorreram-me o rosto. - Com essas horríveis borbulhas não ficas uma rapariga tão bonita como o Tom. - Sue, que estava agora junto de mim, puxou-me por uma ponta dos cabelos e disse: - Ou com este cabelo gorduroso, que ele nunca lava.

- E com os dentes amarelos - acrescentou Julie.

- E os pés malcheirosos - disse Sue. Julie virou-me as palmas das mãos para baixo.

- E com as unhas nojentas. - As raparigas examinaram-me as unhas, soltando exagerados sons de desagrado. Tom ficou a olhar da porta. Eu estava bastante divertido, ali a ser examinado.

- Olha para esta - disse Sue, e senti ela tocar-me no dedo indicador -, está toda verde e vermelha aqui por baixo. - Riram-se e pareciam encantadas com tudo o que descobriram.

- O que é aquilo? - perguntei, olhando para o outro lado da sala. Meio escondida debaixo de uma cadeira estava uma caixa grande de cartão, com a tampa levantada. De um dos cantos saía um bocado de papel de seda branco.

- Ah! - exclamou Sue - aquilo é da Julie. - Atravessei a sala a passos largos e puxei a caixa para fora. Lá dentro, mergulhado em papel de seda branco e vermelho, estava um par de botas altas em calfe. Eram castanho-escuras e desprendia-se delas um cheiro forte a cabedal e a perfume.

De costas para mim, Julie dobrava vagarosa e cuidadosamente o vestido cor de laranja que Tom despira. Segurei numa das botas.

- Onde é que as arranjaste?

- Numa loja - respondeu Julie sem se virar.

- Quanto custaram?

- Não foi muito. - Sue estava excitadíssima.

- Julie! - sussurrou ela muito baixo. - Custaram trinta e oito libras.

- Tu pagaste trinta e oito libras?

Julie sacudiu a cabeça e meteu o vestido cor de laranja debaixo do braço. Lembrei-me da fita ridícula em volta do meu pescoço e tentei tirá-la, mas não consegui desfazer a laçada, que se tinha transformado num nó. Sue começou a rir. Julie ia a sair da sala.

- Roubaste-as - disse-lhe eu, e de novo ela negou com a cabeça. Com a bota ainda na mão, segui-a pela escada acima. Quando estávamos no quarto dela, disse: - Deste-me a mim e à Sue duas notas a cada um e foste depois gastar trinta e oito libras num par de botas! - Julie tinha-se sentado em frente do espelho que ela colocara pendurado na parede e passava uma escova pelo cabelo.

- Errado - disse ela numa voz cantante, como se estivéssemos num jogo de adivinhas. Atirei com a bota para cima da cama e usei as duas mãos para rebentar com a fita à volta do pescoço. O nó estreitou-se e ficou rijo como uma pedra. Julie espreguiçou-se e bocejou.

- Se não as compraste - disse eu - então é porque as roubaste.

- Não - disse ela, e franziu os lábios à volta da palavra, numa espécie de sorriso trocista.

- Como foi então? - Eu estava mesmo atrás dela, que se mirava ao espelho, sem olhar para mim.

- Não consegues pensar noutra maneira? Abanei a cabeça.

- Não há outra maneira, a não ser que tu própria as tenhas fabricado.

Julie riu-se.

- Nunca ninguém te deu um presente?

- Quem é que tas deu?

- Um amigo.        

- Que amigo?

- Ah, ah, isso já é querer saber muito.

- Um gajo!

Julie pôs-se de pé, virou-se para olhar para mim e, apertando os lábios, fez uma boquinha.

- Pois claro que foi um gajo - disse ela por fim. Tinha a impressão de que, como irmão de Julie, me assistia o direito de lhe fazer perguntas sobre o namorado. Mas nada indicava que Julie partilhasse dessa ideia e senti-me mais abatido do que curioso. Tirou uma tesoura de unhas da mesa-de-cabeceira e cortou a fita junto ao nó. Ao puxá-la, atirando-a para o chão, disse:

- Já está - e beijou-me ao de leve na boca.

 

Três semanas depois de a mãe ter morrido comecei a reler o livro que Sue me dera pelo meu aniversário. Era espantoso o que me tinha passado despercebido. Não me dera conta antes de como o comandante Hunt era exigente em relação à limpeza da nave e meticuloso, em especial quando se tratava de viagens longas pelo espaço. Todos os dias, de tempo terrestre, ele trepava pela escada metálica luzidia para ir inspeccionar a sala de oficiais. Havia pontas de cigarros, talheres de plástico, revistas velhas, chávenas de café vazias, café entornado, numa grande desarrumação por toda a sala.

- Agora, que nos falta a força da gravidade para manter as coisas nos seus lugares - disse o comandante Hunt aos técnicos de computador, que faziam pela primeira vez este tipo de viagens - temos de fazer um esforço extra para manter as coisas nos seus lugares. - E, durante as longas horas em que não havia decisões urgentes a tomar, o comandante Hunt passava o tempo «a ler e a reler as obras-primas da literatura mundial e a escrever as suas memórias num diário de bordo, com uma pesada encadernação toda em aço maciço, enquanto o seu fiel cão, Cosmos, dormitava a seus pés». A nave espacial do comandante Hunt deslocava-se no universo, a um centésimo da velocidade da luz, em busca da fonte de energia que transformava os germes num monstro. Perguntava a mim próprio se ele se interessaria pelo estado em que estava a sala de oficiais, ou pela literatura mundial, se a nave tivesse ficado totalmente imóvel, fixada no espaço sideral.

Assim que acabei o livro, levei-o para baixo, para o dar a Julie ou a Sue. Queria que mais alguém o lesse. Encontrei Julie sozinha na sala de estar, sentada numa poltrona sobre as pernas dobradas. Estava a fumar um cigarro e, quando entrei, atirou a cabeça para trás, soprando uma nuvem de fumo em direcção ao tecto. Disse-lhe:

- Não sabia que fumavas. - Tirou outra fumaça e confirmou com um gesto breve de cabeça. Aproximei-me dela com o livro. - Devias ler isto - e meti-lhe o livro na mão.

Julie demorou algum tempo a olhar para a capa e eu fiquei de pé atrás dela, olhando também. O monstro, que se assemelhava a um polvo, estava a atacar uma nave espacial. Ao fundo, a nave do comandante Hunt corria velozmente para a salvar. Eu ainda não tinha examinado de perto a capa, e agora parecia-me ridícula. Senti-me envergonhado, como se tivesse sido desenhada por mim. Julie passou-me o livro por sobre o ombro. Segurava-o por uma ponta.

- A capa não vale grande coisa - disse eu -, mas tem umas coisas que são porreiras. - Julie abanou a cabeça e soprou de novo o fumo, desta vez em direcção ao outro lado da sala.

- Não é o meu género de livro - disse ela. Pousei o livro na mesa, de capa para baixo, e dei a volta para ficar defronte da cadeira de Julie.

- O que queres dizer com isso? Como é que sabes que género de livro é este?

Julie fez um gesto de indiferença com os ombros.

- De qualquer maneira, também não estou muito virada para a leitura.

- Ficavas se começasses a ler isto. - Agarrei de novo no livro e fiquei a olhar para ele. Não percebia porque é que estava tão ansioso por que mais alguém o lesse. De repente, Julie inclinou-se para a frente e tirou-mo da mão.

- Está bem - disse ela -, se fazes tanta questão que eu o leia, eu leio-o. - Falou como se fala para uma criança que está prestes a chorar. Fiquei zangado.

- Não o leias só para me agradar - tentei tirar-lho. Ela pôs o livro fora do meu alcance.

- Oh, não! - disse ela com um sorriso. - Com certeza que não. - Agarrei-lhe o pulso e torci-lho. Julie passou o livro para a outra mão e deixou-o cair para trás das costas.

- Estás-me a magoar.

- Devolve-mo - disse eu -, não é o teu género de livro.

- Puxei-a para o lado para poder apanhar o livro. Ela desistiu de lutar e eu afastei-me com o livro para o fundo da sala.

- Que é que se passa contigo? - disse ela quase num sussurro. - Não devias andar à solta. - Fiz de conta que não a ouvi e sentei-me.

Ali ficámos, cada um sentado para seu lado, em silêncio, durante um largo tempo. Julie acendeu outro cigarro e eu pus-me a olhar para certas passagens do livro. Os olhos percorriam as linhas impressas, mas não estava a tomar sentido. Queria dizer qualquer coisa de conciliador antes de deixar a sala. Mas tudo me parecia estúpido. E, além disso, dizia a mim próprio, ela andava mesmo a pedi-lo. No dia anterior eu fizera Tom chorar matraqueando-lhe a cabeça com a ponta dos dedos. Tinha-me acordado com uma birra à porta do meu quarto. Depois ficou deitado no chão, apertando a cabeça e gritando tão alto que Sue saiu do quarto a correr.

- A culpa é toda dele - disse eu. - A primeira coisa que faz é uma barulheira destas logo pela manhã. - Sue esfregava-lhe a cabeça.

- Pela manhã! - exclamou ela por sobre os gritos de Tom. - É quase uma hora!

- Não interessa, para mim continua a ser a primeira coisa pela manhã.

No que me dizia respeito, não havia grande razão para me levantar. Não havia nada de particularmente interessante para comer e eu era o único que não tinha nada para fazer. Tom brincava lá fora durante todo o dia, Sue ficava no quarto a ler livros e a escrever no seu caderno de apontamentos e Julie saía com quem lhe tinha oferecido as botas. Quando não estava fora de casa, estava a preparar-se para sair. Demorava-se em longos banhos que enchiam a casa com um perfume doce, mais forte que o cheiro que vinha da cozinha. Levava muito tempo a lavar e a escovar o cabelo e a pintar os olhos. Vestia roupas que nunca lhe vira antes: uma blusa de seda e uma saia de veludo castanho. Eu acordava no fim da manhã, masturbava-me e voltava a deixar-me dormir. Tinha sonhos, não exactamente pesadelos, mas sonhos desagradáveis, de que tentava sair com grande esforço. Gastei as minhas duas libras em batatas e peixe frito e, quando pedi mais dinheiro a Julie, ela estendeu-me uma nota de cinco sem uma palavra. Durante o dia ouvia rádio. Ora pensava em voltar para a escola no fim do Verão, ora pensava em arranjar um emprego. Nenhuma das hipóteses me atraía. Algumas tardes ficava a dormir na poltrona, mesmo quando tinha acordado apenas umas horas antes. Olhava para o espelho e via que as borbulhas se espalhavam agora pelo pescoço. Perguntava a mim próprio se acabariam por me cobrir o corpo todo e não me importava se isso sucedesse.

Por fim, um dia Julie aclarou a voz e disse:

- Então? - Desviei o olhar para a porta da cozinha.

- Vamos lá limpar a cozinha - disse eu repentinamente. Foi totalmente oportuno. Julie ergueu-se de um salto e fez uma imitação de uma cena de um filme de gangsters, a ponta do cigarro pendendo de um dos cantos da boca.

- Isso é que é falar, mano, assim é que é. - Estendeu-me a mão e puxou-me para fora da cadeira.

- Vou buscar a Sue - disse eu, mas Julie sacudiu a cabeça. Com uma metralhadora imaginária apoiada à cintura, lançou-se para a cozinha e desatou a disparar para todos os lados, sobre os pratos cobertos de bolor, sobre os mosquitos e as varejeiras e sobre a pilha gigantesca de lixo que tinha tombado, espalhando-se pelo chão. Julie matou-os todos, arrancando do fundo da garganta os mesmos sons de estampido que Tom costumava fazer nas suas brincadeiras. Fiquei para ali sem saber se havia de entrar no jogo. Julie deu meia volta e meteu-me umas balas na barriga. Caí no chão aos pés dela, com o papel da manteiga apenas a uns escassos centímetros do meu nariz. Julie apanhou-me um punhado de cabelos e puxou-me a cabeça para trás. Trocou a metralhadora por uma faca e encostou-ma à garganta, dizendo:

- Se voltas a chatear, enfio-ta por aqui. - Em seguida ajoelhou-se e carregou-me com o punho na virilha. - Ou aqui - sussurrou em tom dramático, e desatámos os dois a rir. A brincadeira terminou logo a seguir. Começámos a apanhar o lixo e a metê-lo em caixas de cartão que carregámos lá para fora, para os contentores do lixo. Sue ouviu-nos e desceu para ajudar. Desentupimos os canos, lavámos as paredes e esfregámos o chão. Enquanto Sue e eu lavávamos a louça, Julie foi comprar comida para o jantar. Estávamos a acabar quando ela chegou e começámos logo a cortar os legumes para fazer um guisado de todo o tamanho. Enquanto fervia, Julie e Sue foram limpando a sala e eu fui lavar as janelas pelo lado de fora. Via as minhas irmãs, através de uma cortina de água, deslocando os móveis para o meio da sala e, pela primeira vez desde há semanas, sentia-me feliz. Sentia-me protegido, como se pertencesse a um poderoso exército secreto. Trabalhámos durante mais de quatro horas, uma tarefa a seguir à outra, e quase me esqueci de que existia.

Levei para o jardim uns tapetes e uma carpete pequena e, com um pau, pus-me a sacudir-lhes o pó. Estava todo entretido nisto, quando ouvi um barulho atrás de mim. Virei-me. Era o Tom e o seu amigo das torres. Tom trazia vestido o uniforme escolar de Sue e tinha os joelhos sujos de sangue de uma queda. Era frequente agora brincar na rua vestido com a saia de Sue. Nenhuma das outras crianças fazia troça dele, como eu pensara que fizessem. Pareciam nem sequer notar. Não conseguia entender porquê. Eu não admitia, nem morto, que me tivessem visto com a saia da minha irmã, com a idade de Tom ou com qualquer outra idade. Ele ficou por ali, segurando a mão do seu amigo, e eu continuei o meu trabalho. O amigo de Tom trazia à volta do pescoço um lenço com uns desenhos que não me era estranho. Tiveram uma curta conversa que eu não consegui entender, no meio do barulho que eu fazia. Tom perguntou-me então em voz alta:

- Para que é que estás a fazer isso? - Respondi-lhe e acrescentei:

- E tu porque é que andas de saia? - Tom não deu resposta. Bati mais umas quantas vezes a carpete, parei de novo, e desta vez dirigi-me ao seu amigo: - Porque é que Tom anda de saia?

- Na nossa brincadeira - disse ele - Tom faz de Julie.

- E tu quem és?

O garoto não respondeu. Ergui de novo o pau e quando ia a baixá-lo Tom disse:

- Ele faz de ti.              

- De mim? - Ambos disseram que sim com a cabeça, Atirei o pau para longe e puxei os tapetes para fora das cordas da roupa. Depois disse:

- O que é que fazem no vosso jogo?

O amigo de Tom encolheu os ombros.        

- Nada.

- Têm lutas? - Tentei envolver Tom na minha pergunta, mas ele estava a olhar para o lado. O outro abanou a cabeça. Pus os tapetes e a carpete em cima uns dos outros. - Vocês são amigos nas vossas brincadeiras? Andam de mão dada? - Largaram as mãos e riram-se.

Tom seguiu-me até casa, mas o amigo ficou do lado de fora, à porta da cozinha. Gritou para Tom, num tom de pergunta:

- Vou para casa. - Tom acenou com a cabeça sem se voltar. Na sala havia quatro pratos sobre a mesa, uma faca e um garfo de cada lado dos pratos. No centro estava uma garrafa de molho de tomate e uma tacinha com sal. Havia uma cadeira para cada prato. Era como se fossem pessoas, pensei eu. Tom subiu as escadas à procura de Julie e de Sue e eu andei de um lado para o outro, entre a cozinha e a sala, como o comandante Hunt inspeccionando a sala de oficiais. Baixei-me por duas vezes para apanhar uns pedacinhos de cotão da carpete. Pendurado de um gancho, sobre a porta da cave, estava um saco das compras, feito de fio de cores brilhantes. No fundo do saco estavam duas maçãs e duas laranjas. Empurrei o saco com um dedo e fi-lo balançar como um pêndulo. Deslocava-se mais para um lado do que para o outro, e demorei tempo a descobrir que era por causa do formato das asas do saco. Impensadamente, abri a porta da cave, acendi a luz e desci as escadas a correr.

A pá estava tombada no centro de uma grande mancha redonda de cimento seco. Fazia-me lembrar um ponteiro de um enorme relógio partido. Tentei recordar-me de qual de nós tinha sido o último a usá-la, mas já não me lembrava bem da ordem dos acontecimentos. Apanhei-a e encostei-a à parede. A tampa da arca estava aberta, tal como a tínhamos deixado. Disso lembrava-me. Passei a mão sobre o cimento que enchia o baú. Era cinzento-pálido e sentia-se calor ao tocá-lo. Um pó muito fino ficou agarrado à minha mão. Reparei que havia uma fractura da grossura de um cabelo que percorria diagonalmente toda a superfície e que se bifurcava numa das pontas. Ajoelhei-me, aproximei o nariz e cheirei. Havia um cheiro doce muito nítido, mas, quando me levantei, apercebi-me que se tratava do cheiro do guisado que vinha do alto da escada. Sentei-me num banquinho junto do baú e pus-me a pensar na minha mãe. Esforcei-me por reconstituir a imagem do seu rosto, mas os traços não paravam quietos, misturavam-se uns com os outros e a linha oval transformou-se numa lâmpada. Quando fechei os olhos, aquilo que eu de facto vi foi uma lâmpada. O rosto da minha mãe só apareceu uma vez, sem grande pormenor, contornado pela linha oval e sorrindo de uma forma pouco natural, como ela costumava fazer quando posava para o fotógrafo. Pus-me a inventar frases e tentei fazer com que ela as dissesse. Mas não havia nada que eu conseguisse imaginá-la a dizer. As coisas mais simples, como «Dá-me o livro» ou «Boa-noite», não soavam como o género de coisas que ela diria. Ela tinha uma voz alta ou baixa? Alguma vez contara uma anedota? Morrera há menos de um mês e estava dentro daquele baú, ao meu lado. E mesmo isso não me parecia muito certo. Apetecia-me tirá-la de lá para ter a certeza.

Fiz correr a unha ao longo da fractura estreita. Não era nada claro para mim, agora, a razão por que a tínhamos metido no baú. Na altura parecera-nos óbvio, para manter a família unida. Seria essa uma boa razão? Era capaz de ter sido melhor ficarmos separados. Nem eu tinha capacidade para julgar se o que tínhamos feito era uma coisa vulgar, compreensível, mesmo tratando-se de um erro, ou se, pelo contrário, era algo tão estranho que, se fosse descoberto, seria cabeçalho de notícia em todos os jornais do país. Ou nenhuma destas coisas; apenas algo que se pode ler na última página do jornal local e em que se não volta a pensar. Tal como a imagem do seu rosto dissolvendo-se em nada.

A impossibilidade de saber ou sentir o que quer que fosse como certo deu-me uma grande urgência em masturbar-me. Meti as mãos dentro das calças e, ao olhar para baixo, vi uma coisa vermelha entre as pernas. Dei um salto, em pânico. O banquinho em que estava sentado era de um vermelho--vivo. Tinha sido pintado pelo meu pai e pertencia à casa de banho do andar de baixo. Julie ou Sue tinham-no trazido ali para baixo, certamente para se sentarem perto da mãe. Ela era o segredo de todos nós. Mesmo Tom raramente se referia a ela e só ocasionalmente chamava por ela agora. Procurei outros sinais, mas não havia mais nada. Fui-me embora e, quando comecei a subir os degraus, vi Sue a olhar para mim, no cimo das escadas.

- Calculei que eras tu que estavas aí em baixo - disse ela quando me aproximei. Segurava um prato na mão.

- Há uma racha, já viste? - disse eu.

- Está a ficar cada vez maior - acrescentou ela muito depressa. - Vê lá se adivinhas o que é que aconteceu. - Encolhi os ombros. Mostrou-me o prato. - Há mais um para o chá. - Empurrei-a para o lado para entrar na cozinha, mas não havia ninguém ali. Sue apagou a luz da cave e fechou a porta à chave.

- Quem? - Via-se que Sue estava muito excitada.

- Derek - disse ela -, o gajo da Julie. - Observei-a enquanto punha mais um lugar à mesa. Levou-me depois até ao fundo da escada, apontou lá para cima e murmurou:

- Escuta. - Ouvi a voz de Julie e, em seguida, uma voz de homem a responder-lhe. De repente falaram os dois ao mesmo tempo e riram-se ambos.

- E o que é que isso tem? - disse para Sue. - Que grande coisa. - O meu coração batia velozmente. Esparramei-me na poltrona e comecei a assobiar. Sue veio também sentar-se e limpou a testa de um suor imaginário. - Foi uma sorte a gente ter limpo isto, não achas? - Continuei a assobiar, escolhendo as notas ao acaso, numa espécie de pânico, e só a pouco e pouco a música foi surgindo.

Tom veio lá de cima trazendo nos braços o que parecia ser um enorme gato. Era a sua peruca. Levou-a até Sue e pediu-lhe que lha pusesse. Ela afastou-o e apontou-lhe para os joelhos e para as mãos. Recusou-se a pôr-lhe a cabeleira enquanto não estivesse lavado. Aproveitei Tom estar na casa de banho para perguntar:

- Como é que ele é?

- Tem um carro novo, olha - e apontou para a janela. Mas eu não fui ver. Quando Tom foi ter de novo com Sue, ela perguntou-lhe:

- Se queres fazer de rapariga, porque é que não pões o vestido cor de laranja? - Ele acenou com a cabeça e Sue colocou-lhe a peruca. Correu para o vestíbulo para se ver ao espelho e depois sentou-se em frente de mim, com o dedo no nariz. Sue estava a ler um livro e eu recomecei a assobiar, desta vez mais suavemente. Tom tirou qualquer coisa do nariz, olhou para a ponta do dedo e esfregou-o no assento da cadeira. Eu às vezes também fazia isso, mas só quando estava sozinho, normalmente na cama, de manhã. Não parece tão mal quando é uma rapariga a fazê-lo, pensei, e fui até à janela. Era um carro de sport, modelo antigo, com um painel de instrumentos de um lado ao outro e uma capota de couro puxada para trás. Era vermelho-vivo, com uma risca preta, fina, a todo o comprimento.

- Devias ir lá fora vê-lo - disse Sue. - É uma maravilha!

- Ver o quê? - disse eu. Os aros das jantes eram prateados e os tubos de escape também. Ao longo do carro, nos lados da frente, havia umas aberturas longas, oblíquas, no metal. «Para deixar entrar o ar», ouvi-me a mim próprio a explicar a um passageiro, ao fazer uma curva apertada, numa das estradas dos Alpes «ou deixar sair o calor». Quando voltei para a minha cadeira, Sue tinha desaparecido.

Pus-me a olhar para Tom. Enfiado na poltrona enorme, parecia minúsculo, os pés mal passavam a borda do assento e a cabeça ficava a meio do encosto. Ele devolveu-me o olhar por alguns segundos e depois afastou-o e cruzou os braços. Tinha as pernas escarranchadas a aparecerem por debaixo da saia. Perguntei-lhe:

- Que tal ser-se rapariga? - Tom abanou a cabeça e mudou de posição. - É melhor do que ser-se rapaz?

- Não sei.

- Sentes-te mais sexy? - Tom pôs-se a rir de repente. Não entendia o que eu queria dizer com aquilo, mas sabia que a palavra era um sinal para rir. - Vá, diz lá! - Fez-me um sorriso malicioso.

- Não sei. - Inclinei-me para ele e, com um dedo, chamei-o para perto de mim.

- Quando pões a cabeleira e vestes a saia e te vais olhar ao espelho e vês uma rapariguinha, tens uma sensação agradável na tua coisinha, fica maior, não fica? - O sorriso de Tom desapareceu. Saltou da poltrona e saiu da sala. Fiquei completamente parado, sentindo o cheiro do guisado. O tecto rangeu. Endireitei-me na cadeira. Cruzei as pernas e entrelacei as mãos por debaixo do queixo. Fez-se luz, passos rápidos na escada e Tom entrou a correr.

- Eles vêm aí! Ele vem aí! - gritou.

- Ele quem? - e tirei as mãos de debaixo do queixo. Julie disse:

- Este é Derek. Este é Jack. Apertei a mão sem me levantar, mas descruzei as pernas e pousei os pés no chão. Nenhum de nós falou quando apertámos as mãos. Depois disso, Derek aclarou a garganta e olhou para Julie. Ela estava de pé por detrás de Tom, com as mãos pousadas nos seus ombros. E disse:

- Este é Tom - de uma maneira que deixava entender que já tinha falado dele a Derek. Derek deu uns passos por detrás da minha cadeira, fora da minha vista, e disse com muita calma:

- Ah, é um Tommenina. - Sue teve um riso meio tímido e eu levantei-me. Julie foi à cozinha buscar o guisado e chamou Tom para a ajudar. Ficámos os três parados no meio da sala. Estávamos muito juntos e parecia que nos balançávamos em conjunto. Sue fez deliberadamente uma voz fraca e idiota.

- Gostamos muito do seu carro. - Derek acenou com a cabeça. Era muito alto e estava vestido como se fosse para um casamento, fato cinzento-claro, camisa creme, botões de punho e um colete com uma pequena corrente de prata. Eu disse:

- Não gosto muito. - Virou-se para mim e sorriu levemente. Tinha um bigode fino, preto. Parecia tão perfeito que podia ter sido feito de plástico.

- Ah, sim? - disse ele delicadamente, sorrindo. - E porque não?

- Dá demasiado nas vistas - disse eu. Derek baixou os olhos para os sapatos e eu continuei: - Quero dizer, a cor, não gosto de vermelho.

- É pena - disse ele, olhando para Sue, não para mim. - E tu, gostas de vermelho? - Sue espreitou para a cozinha por cima do ombro de Derek.

- Eu? Oh, eu adoro vermelho, especialmente nos carros. - Agora, que ele estava a olhar para mim outra vez, repeti:

- Não gosto de vermelho nos carros. Parecem brinquedos. - Derek afastou-se uns passos de nós. Com as duas mãos enfiadas nos bolsos balouçava-se nos calcanhares. Falou muito devagar.

- Quando fores um pouco mais crescido, hás-de perceber que é isso que eles são, apenas brinquedos, brinquedos caros.

- Porque é que são brinquedos? - perguntei. - São úteis para andar por aí. - Ele concordou com a cabeça e olhou em volta da sala.

- Estas divisões são grandes. É uma casa realmente grande. - Sue disse:

- O meu quarto é bastante pequeno. - Cruzei os braços e insisti.

- Se os carros são brinquedos, então tudo aquilo que se compra é para brincar. - Nessa mesma altura entrou Julie com o guisado, seguida por Tom, que trazia um pão e o pimenteiro.

- Hei-de pensar nessa, Jack - disse Derek, e virou-se para afastar uma cadeira para Julie passar.

Antes de nos sentarmos reparei que Julie trazia as botas novas, a saia de veludo e a blusa de seda. Ela e Derek sentaram-se ao lado um do outro. Eu sentei-me a um canto perto de Tom. A princípio estava demasiado irritado para ter fome. Quando Julie me passou o prato, disse-lhe que não queria.

- Não sejas parvo - disse ela, pousando o prato entre a minha faca e o meu garfo e sorrindo para Derek. Ele acenou com a cabeça, percebendo tudo. Enquanto comíamos, só Julie e Sue falaram. Derek estava sentado muito direito. Estendeu um lenço vermelho e azul sobre o colo e, quando acabou, limpou o bigode com ele. Depois dobrou-o cuidadosamente antes de o meter no bolso. Eu queria vê-los tocarem-se. Julie pousou-lhe a mão no cotovelo e pediu-lhe que passasse o sal. Alcancei o saleiro antes de Derek e, ao estendê-lo à minha irmã, o sal espalhou-se pela mesa.

- Cuidado - disse Derek com suavidade. As raparigas começaram uma conversa desconexa acerca de entornar sal sobre o ombro e passar por debaixo de escadotes. A certa altura vi Derek a piscar o olho a Tom, que baixou a cabeça de modo que os caracóis lhe escondessem a cara. No fim, Julie levou Derek até ao jardim e Sue e eu ficámos a lavar a loiça. Não fiz mais do que ficar ali de pano da louça na mão. Observávamos pela janela da cozinha. Julie apontava para os carreiros e degraus, que eram agora quase invisíveis sob a confusão de ervas queimadas. Derek apontou para os blocos das torres e fez um gesto com o braço como se os estivesse a mandar deitar abaixo. Julie acenava com um ar muito sério. Sue disse:

- Ele tem uns ombros mesmo largos, não tem? Deve ter mandado fazer aquele fato por medida. - Olhámos atentamente para as costas de Derek. A cabeça dele era pequena e redonda, o cabelo todo do mesmo tamanho, como uma escova.

- Ele não é assim tão forte quanto isso - disse eu. - É mesmo bastante magro.

Sue tirou os pratos molhados de dentro do lava-louça e procurou um lugar para os pôr.

- Derrubava-te com o dedo mindinho - disse ela.

- Ah - gritei. - Ele que tente.

Um pouco mais tarde, Julie e o namorado sentaram-se no rochedo. Sue tirou-me o pano das mãos e pôs-se a limpar os pratos. Prosseguiu:

- Aposto que não adivinhas o que é que ele faz - e eu respondi:

- Estou-me nas tintas para o que ele faz.

- Nunca adivinharás, é jogador de snooker.         ;

- E daí?

- Joga snooker a dinheiro, é inacreditavelmente rico. Olhei de novo para Derek e fiquei a pensar nisso. Ele estava sentado de lado para mim, prestando atenção ao que Julie dizia. Tinha arrancado uma haste comprida e cortava-a com os dentes em pedacinhos pequenos e cuspia-os fora. Passou o tempo todo a acenar com a cabeça ao que Julie ia dizendo e, quando, por fim, falou, pousou-lhe a mão ao de leve sobre o ombro. O que ele disse fez Julie rir-se.

- E houve qualquer coisa acerca dele no jornal - ia dizendo Sue.

- Que jornal? - Sue disse o nome do semanário local e eu ri-me.

- Escreve-se sobre toda a gente nesse jornal - disse. - Basta estar-se vivo.

- Aposto que não sabes que idade tem. - Não dei resposta.

- Vinte e três - disse Sue, toda orgulhosa e sorrindo para mím. Apetecia-me bater-lhe.

- O que é que isso tem de espantoso? Sue secou as mãos.

- É a idade perfeita para um namorado.

- Quem é que disse isso? De que é que estás a falar? - disse eu.

Sue hesitou.

- Foi Julie que disse.

Saí da cozinha a bufar. Na sala parei para procurar o comandante Hunt. Tinha sido arrumado numa prateleira da estante. Subi a correr para o meu quarto com o livro, bati a porta com força e atirei-me para cima da cama.

 

Os sonhos desagradáveis transformavam-se cada vez mais frequentemente em pesadelos. Havia no corredor da entrada uma enorme caixa de madeira a que eu nunca tinha prestado atenção quando por ali passava. Desta vez parei para a ver. A tampa, que costumava estar bem segura com pregos, pendia agora solta, alguns dos pregos estavam arrancados e a madeira à volta deles estava lascada, sem verniz. Parei tão perto da caixa que quase podia ver o que havia lá dentro. Sabia que estava a sonhar e que era importante não entrar em pânico. Havia qualquer coisa dentro da caixa. Fiz o possível por abrir um pouco os olhos e vi um canto dos pés da minha cama antes que, com o peso, eles se fechassem de novo. Estava outra vez no corredor, um pouco mais próximo da caixa, e espreitava insensatamente lá para dentro. Quando voltei a tentar abrir os olhos, consegui-o com facilidade. Vi o canto da minha cama e algumas roupas. Numa poltrona larga, ao lado da cama, estava sentada a minha mãe, olhando-me fixamente, com uns olhos enormes e vazios. É porque ela está morta, pensei eu. Era muito pequena e os pés mal tocavam no chão. Quando falou, a voz era-me tão familiar que não percebia como é que a podia ter esquecido tão facilmente. Mas não conseguia entender muito bem o que dizia. Usava uma palavra estranha «sovar» ou «tovar».

- Não podes parar de «sovar» - disse ela - ao menos enquanto eu estou a falar contigo?

- Não estou a fazer nada - disse eu, mas reparei, ao olhar para o fundo da cama, que a roupa tinha desaparecido e eu estava nu a masturbar-me em frente dela. A minha mão movia-se para cima e para baixo, como uma lançadeira de um tear. Disse-lhe: - Não consigo parar, não tem nada a ver comigo.

- O que diria o teu pai - disse ela com tristeza - se fosse vivo? - Acordei a dizer em voz alta: «Mas vocês estão os dois mortos.»

Contei este sonho a Sue, uma tarde. Quando ela destrancou a porta e me deixou entrar, dei-me conta de que segurava o caderno de apontamentos, aberto, numa das mãos. Enquanto me escutava, fechou-o e enfiou-o despercebidamente por debaixo da almofada. Para minha surpresa, o meu sonho fê-la rir-se.

- Os rapazes estão sempre a fazer isso? - perguntou ela.

- A fazer o quê?

- Ora, tu sabes, a...

Em lugar de lhe responder, disse-lhe:

- Lembras-te quando costumávamos jogar aquele jogo?

- Que jogo?

- Quando Julie e eu fazíamos de médicos que te examinavam e tu eras de outro planeta. - A minha irmã disse que sim com a cabeça e cruzou os braços. Eu não fazia a mínima ideia do que é que ia dizer a seguir.

- Está bem, e o que é que isso tem? - Eu tinha vindo para falar do meu sonho e da mãe e já estávamos a falar de outra coisa.

- Não te apetecia - disse eu devagar - brincar ainda àquele jogo? - Sue abanou a cabeça e olhou para longe.

- Mal me lembro disso.

- Julie e eu tirávamos-te a roupa toda. - Ao dizer isto, parecia impossível que tivesse acontecido. Sue abanou de novo a cabeça e disse, sem convicção:

- Ah, sim? De facto não me lembro lá muito bem, eu era muito pequena. - Depois, a seguir a um silêncio, acrescentou calorosamente: - Estávamos sempre a inventar brincadeiras parvas.

Sentei-me na cama. O chão do quarto estava coberto de livros, alguns abertos e virados para baixo. Muitos deles eram da biblioteca e ia para apanhar um quando, de repente, me tornei consciente de toda esta mania dos livros. Disse então:

- E nunca te cansas de ficar para aqui sentada a ler todo o dia?

- Eu gosto de ler - disse Sue - e não há mais nada para fazer. - Eu disse-lhe:

- Há montes de coisas diferentes para se fazer - só para a ouvir de novo dizer que não havia nada para fazer. Mas ela chupou os lábios finos, pálidos, fazendo o mesmo movimento com a boca que as mulheres fazem depois de porem o batom, e acrescentou:

- Não me apetece fazer mais nada. - Depois disto ficámos sentados em silêncio durante bastante tempo. Sue pôs-se a assobiar e pareceu-me que queria que me fosse embora. Ouvimos a porta das traseiras abrir-se lá em baixo e as vozes de Julie e do namorado. Desejei que Sue detestasse Derek tanto quanto eu e aí teríamos muito para falar. Ergueu as sobrancelhas, que mal se viam, e disse:

- Devem ser eles - e eu disse:

- E depois? - e senti-me totalmente isolado.

Sue retomou o seu assobio, eu folheei uma revista, mas ambos estávamos atentamente à escuta. Não vinham cá para cima. Ouviu-se o som da água a correr e o tilintar de chávenas de chá. Disse para Sue:

- Mas ainda continuas a escrever naquele caderno, não continuas? - Ela disse:

- Um pouco - e olhou para a almofada, como que preparada para me impedir de o tirar de lá. Esperei um pouco e depois disse com uma voz muito triste:

- Como eu gostava que me deixasses ver aquelas partes sobre a mamã, só essas. Podias ser tu a ler-mas, se não te importasses. - Lá em baixo, o rádio estava no máximo volume. «If you... ever plan to motor weat, take my way... thafs lhe bighway thafs lhe best...» A canção irritava-me, mas continuei a olhar para a minha irmã com um ar triste.

- Não compreenderias nada.

- Porque é que não compreenderia? Sue falou rapidamente:

- Nunca percebeste nada a seu respeito. Foste sempre horrível com ela.

- É mentira - disse eu, elevando a voz, e, passados uns segundos, repeti: - É mentira. - Sue estava sentada na beira da cama, com as costas muito direitas e a mão pousada sobre a almofada. Quando falou, fixou pesarosamente o olhar em frente dela.

- Nunca fizeste nada do que te pediu. Nunca fizeste nada para a ajudar. Estavas sempre demasiadamente cheio de ti próprio, tal como estás agora. - Eu disse:

- Eu não sonharia com ela como sonho se não me preocupasse com ela.

- Tu não sonhas com ela - disse Sue -, sonhas contigo. É por isso que queres que te mostre o meu diário para ver se está lá alguma coisa sobre ti.

- Vais lá abaixo à cave - disse eu com uma gargalhada -, sentas-te naquele banquinho e escreves sobre nós todos naquele teu livrinho preto?

Continuei a rir às gargalhadas, forçadamente. Sentia-me perturbado e precisava de fazer muito barulho à minha volta. Enquanto me ria, pus as mãos nos joelhos, mas não os senti. Sue olhava para mim com um olhar distante, como se estivesse mais a recordar do que a ver-me. Tirou o livro debaixo da almofada, abriu e procurou uma determinada página. Parei de rir e esperei.

- Nove de Agosto... Morreste há dezanove dias. Hoje ninguém falou em ti. - Calou-se e os seus olhos percorreram várias linhas. - Jack estava com uma disposição horrível. Magoou Tom nas escadas por ele estar a fazer barulho. Fez-lhe um grande arranhão na cabeça, que deitou muito sangue. Ao almoço preparámos duas latas de sopa misturadas. Jack não falou com ninguém. Julie falou do seu namorado, que se chama Derek. Ela disse que havia de trazê-lo um dia cá a casa e se nós nos importaríamos. Disse-lhe que não me importava. Jack fingiu que não ouviu e foi lá para cima. - Sue escolheu outra página e continuou a ler, com mais expressão: - Ele não mudou de roupa desde que morreste. Não lava as mãos, não lava nada e cheira horrivelmente. Detestamos que mexa no pão. Não lhe podemos dizer nada porque nos bate. Está sempre a bater em alguém, mas Julie sabe como lidar com ele... - Sue calou-se e parecia que ia continuar, mas mudou de ideias e fechou o livro com força. - Aí está - disse ela. Durante bastante tempo discutimos exaustivamente aquela parte em que Julie tinha falado à hora do almoço.

- Ela não disse que ia trazer alguém cá a casa - disse eu.

- Disse, sim!

- Ah, isso é que não disse. - Sue acocorou-se em frente dos livros e fingiu que não se deu conta quando saí.

Lá em baixo, o rádio estava ligado no máximo. Um homem berrava freneticamente, fazendo o relato de um jogo. Encontrei Tom sentado no cimo das escadas. Estava vestido com um bibe azul e branco atado com um laçarote atrás. Mas não tinha a cabeleira. Ao sentar-me junto dele dei-me conta, sem grande certeza, de um cheiro fraco, desagradável. Tom estava a chorar. Esfregava os olhos com os nós dos dedos, como fazem aquelas meninas nas tampas de certas caixas de bolachas. Um comprido fio de ranho esverdeado pendia-lhe de uma das narinas e, quando fungava, voltava a desaparecer. Fiquei a olhar para aquilo por uns momentos. Para além do som do rádio, parecia que ouvia outras vozes, mas não estava certo. Quando perguntei a Tom porque chorava, pôs se a gritar ainda mais alto. Depois recuperou e choramingou.

- Julie bateu-me e ralhou comigo - e recomeçou a chorar.

Deixei-o e desci as escadas. O rádio estava no máximo, porque Julie e Derek estavam a discutir. Parei perto da porta e tentei escutar. Derek parecia implorar qualquer coisa a Julie, a sua voz tinha um tom de lamúria. Falavam ao mesmo tempo, quase aos gritos, quando eu entrei e calaram-se imediatamente. Derek estava encostado à mesa com as mãos nos bolsos e os pés cruzados. Vestia um fato verde-escuro e uma gravata larga presa por um alfinete de ouro. Julie estava junto da janela. Passei entre eles em direcção ao rádio e desliguei-o. Voltei-me então e esperei que algum deles falasse primeiro. Perguntava a mim próprio porque não iriam eles lá para fora, gritar no jardim. Julie disse:

- O que é que queres? - Não estava vestida a rigor como Derek. Trazia umas sandálias de plástico e uns jeans e atara a camisa com um nó por debaixo do peito.

- Só desci para ver o que era este barulho todo e quem - disse eu olhando directamente para Derek - bateu no Tom. - Julie pôs-se a bater lentamente com o pé para dar a entender que estava à espera de que eu me fosse embora.

Voltei para trás, passando por eles devagar, encostando um pé ao outro, como se faz para medir uma distância sem régua. Derek aclarou a garganta em tom baixo e puxou pelo relógio preso à corrente. Observei-o a abri-lo com um estalido, a fechá-lo e a guardá-lo de novo. Não o tinha voltado a ver desde a primeira vez que ele viera a nossa casa, há mais de uma semana. Mas tinha vindo buscar Julie várias vezes de carro. Ouvira o motor do carro lá fora e Julie a correr pelo caminho da frente, mas nunca fora espreitar pela janela, como Tom e Sue costumavam fazer. Por duas ou três vezes, Julie tinha ficado a noite fora. Nunca me tinha dito onde, mas Sue sabia. Na manhã seguinte sentavam-se na cozinha e ficavam a conversar e a beber chá. Se calhar Sue registava isso tudo no seu diário sem Julie saber.

De súbito, Derek sorriu para mim, dizendo: - Como estás, Jack? - Julie suspirou ruidosamente.

- Não faças isso - disse-lhe ela, e eu respondi muito friamente:

- Estou bem.

- O que tens feito nestes dias?

Olhei para Julie ao mesmo tempo que respondia.

- Não tenho feito grande coisa. - Percebi que a irritava que eu estivesse a falar com Derek. Continuei:

- E você? - Derek fez uma pausa antes de falar e então suspirou.

- Praticando. Uns joguinhos. Nada de importante, sabes como é... - Acenei com a cabeça. Derek e Julie estavam a olhar fixamente um para o outro. Olhei para um e para outro e tentei pensar em alguma coisa mais para dizer. Sem tirar nunca os olhos de Julie, Derek disse:

- Tu já alguma vez jogaste? - Se não fosse ela estar ali, tinha-lhe dito que sim. Já uma vez assistira a um jogo e conhecia as regras. Respondi:

- Nem por isso. - Derek voltou a puxar do relógio.

- Devias aparecer por lá e experimentar. - Julie descruzou os braços e saiu da sala em passos rápidos. Ao sair, soltou um pequeno suspiro. Derek esperou que ela se fosse e disse: - Estás muito ocupado agora? - Pus um ar pensativo e respondi:

- Nem por isso. - Derek levantou-se e sacudiu o pó do seu fato com umas mãos muito pequenas e muito pálidas. Foi até ao corredor de entrada para endireitar o lenço do pescoço ao espelho. Falou por cima do ombro.

- Deviam pôr uma luz aqui fora. - Saímos pelas traseiras e, ao atravessarmos a cozinha, reparei que a porta da cave estava escancarada. Hesitei, tinha vontade de ir lá acima perguntar a Julie porque era aquilo. Mas Derek fechou a porta com o pé e disse: - Vamos embora. Já estou atrasado - e saímos apressadamente, subindo o carreiro da frente em direcção ao carro vermelho e rasteiro.

Estava surpreendido por Derek conduzir tão devagar. Ia sentado, muito direito, segurando o volante, à distância do braço esticado, entre o polegar e o indicador, como se lhe desagradasse tocar-lhe. Não falou comigo. Havia duas filas de mostradores negros no painel de instrumentos, todos eles com uma agulha branca, num constante movimento de vibração. Fiquei a olhá-las durante a maior parte da viagem. Nenhuma delas mudava realmente de posição, excepto as do relógio. Demorámos um quarto de hora na viagem. Deixámos a estrada principal e seguimos por uma estrada estreita com armazéns de. legumes de ambos os lados. Em alguns sítios havia vegetais estragados empilhados na sarjeta. Um homem com um fato todo amarrotado estava parado no passeio a olhar para nós com um olhar vazio. Tinha o cabelo oleoso e do bolso saía-lhe um jornal dobrado. Derek parou o carro junto dele e saiu, deixando o motor a trabalhar. Por detrás do homem estava uma ruela estreita entre dois edifícios. Ao cruzarmo-nos com ele para passar, Derek disse para o homem:

- Arruma o carro e vai ter comigo lá dentro. - Ao fundo da viela havia umas portas verdes giratórias com «Salão Oswald» inscrito sobre a pintura. Derek entrou primeiro e segurou a porta com um dedo, sem se voltar, para me deixar passar. Nas mesas mais afastadas de nós decorriam dois jogos, mas as mesas mais próximas estavam vazias e às escuras. Havia uma mesa, no centro do salão, que tinha a luz acesa. Parecia mais iluminada do que as outras duas e as bolas de um colorido brilhante estavam preparadas para começar o jogo. Estava alguém encostado à mesa, de costas para nós, a fumar um cigarro. Por detrás de nós havia na parede uma abertura quadrada, luminosa, e através dela um homem velho, de casaco branco, olhava-nos. Numa prateleira em frente dele havia chávenas e pires debruados a azul e uma tigela de plástico com um bolo lá dentro. Derek inclinou-se lá para dentro para falar ao homem e eu afastei-me alguns passos para perto das mesas. Li o nome do seu fabricante e o lugar da fábrica escritos sobre uma placa de latão aparafusada ao bordo direito, por baixo da bolsa central.

Derek chamou-me com um estalido da língua, segurava uma chávena de chá em cada mão e fazia-me um sinal com a cabeça para o seguir. Com o pé abriu uma porta daquele mesmo lado da parede. Junto à porta reparei pela primeira vez na janela a que faltava um vidro. Uma mulher com lentes grossas estava sentada por detrás de uma secretária a escrever num livro de contas e do outro lado daquele quarto minúsculo estava um homem sentado numa poltrona, com um maço de cigarros na mão. Via-se mal por causa do fumo. Havia apenas luz fraca na beira da secretária. Derek pousou as chávenas perto do candeeiro e fingiu que dava um murro no queixo do homem. O homem e a mulher fizeram uma festa à chegada de Derek. Chamavam-lhe «filho», mas ele apresentou-mos como:

- O Sr. e a Sra O, de Oswald. E este é o irmão de Julie - disse Derek, mas não lhes disse o meu nome.

Não havia lugar para nos sentarmos. Derek tirou um cigarro do maço do Sr. O. A Sra O esperneou e fez uma choraminguice, estendendo a boca como um passarinho bebé pedindo comida no ninho. Derek tirou outro cigarro e colocou-lho na boca e ela e o Sr. O riram-se às gargalhadas. O Sr. O fez um gesto em direcção às mesas.

- O Greg está lá fora à espera há mais de uma hora, filho. - Derek acenou com a cabeça. Estava sentado na beira da secretária e eu estava de pé junto à porta. A Sr.a O agitou o dedo na cara de Derek.

- Quem é que é um menino mal-comportado? - Ele afastou-se um pouco dela e agarrou a chávena de chá. Não me deu a minha. A Sr.a O disse, marcando as palavras: - Então ontem não apareceste, filho.

O Sr. O piscou-me o olho e disse:

- Teve outras coisas para fazer... - Derek sorvia o seu chá em pequenos goles e não dizia nada. O Sr. O continuou: - Mas esteve aqui imensa gente à tua espera para o espectáculo.

Derek acenou com a cabeça e disse:

- Ah, sim? Óptimo. - A Sr.a O virou-se para mim:

- Ele vem aqui desde os doze anos e nós nunca lhe levamos nada pelo aluguer de uma mesa, pois não, filho?

Derek terminou o seu chá e levantou-se. Disse para o Sr. O:

- Taco, por favor. - O Sr. O ergueu-se e enfiou os chinelos. Ao longo da parede, por detrás dele, estava uma prateleira-suporte com tacos de bilhar e numa das pontas estava, fechado a cadeado, um estojo de couro, pontiagudo e comprido. O Sr. O limpou as mãos a um pano amarelo, abriu o cadeado e retirou do estojo o taco. Era de um castanho-escuro, quase preto. Antes de o dar a Derek disse para mim:

- Eu sou a única pessoa que pode mexer nos tacos dele. A Sr.a O interveio.

- E eu - mas o Sr. O sorriu para mim e sacudiu a cabeça.

O homem que tinha arrumado o carro estava à espera do lado de fora do escritório.

- Este é Chás - disse Derek. - Este é o irmão de Julie. - Chás e eu não olhámos um para o outro. Enquanto Derek se encaminhava vagarosamente para a mesa do centro com o taco, Chás caminhava na ponta dos pés ao lado dele, segredando-lhe ao ouvido. Eu ia mesmo atrás deles. Apetecia-me ir embora. Chás disse qualquer coisa sobre um cavalo, mas Derek não lhe respondeu nem mesmo virou a cabeça para olhar para ele. Mal Derek se aproximou da mesa, Greg baixou-se para fazer pontaria para o lance de abertura. Vestia um casaco de couro castanho com um rasgão enorme num dos braços e o cabelo estava atado atrás, num rabo-de-cavalo pequeno. A minha vontade era que ele ganhasse. A bola branca voou a todo o comprimento da mesa, desalojou uma das vermelhas e voltou ao ponto de partida. Derek despiu o casaco e deu-o a Chás para o segurar. Prendeu as mangas com braçadeiras de prata para manter os punhos da camisa afastados das mãos. Chás virou o casaco do avesso e dobrou-o sobre o braço, abrindo em seguida o jornal na página das corridas. Derek inclinou-se e bateu a bola branca sem parecer que estava a fazer pontaria. Quando a bola vermelha deslocada bateu no fundo da bolsa, jogadores das outras mesas ergueram os olhos e encaminharam-se para nós. Os calcanhares de Derek rasparam o chão quando se dirigiu a passos largos para o outro extremo da mesa. A branca tinha afastado todas as vermelhas e estava em linha com a preta. Antes de fazer o lance, Derek olhou para mim para verificar se eu estava a ver e eu afastei o olhar.

Nos poucos minutos seguintes, ele meteu as vermelhas e a preta nas bolsas do fundo. Entre cada batida andava rapidamente de um lado para o outro da mesa e dirigia-se a mim numa voz calma, sem olhar na minha direcção, como se estivesse a falar consigo próprio.

- Vocês formam um conjunto giro - disse ele ao abater a primeira preta. Greg e os outros jogadores observavam e escutavam a nossa conversa.

- Não sei - disse eu.

- Os pais morreram ambos - disse Derek para Chás - e eles os quatro estão a viver sozinhos.

- Como órfãos - disse Chás, sem levantar os olhos do jornal.

- É uma casa grande - continuou Derek quando roçou por mim para ir atacar de novo a branca.

- Bastante grande - disse eu.

- Deve valer umas massas. - Uma vermelha desapareceu devagarinho por sobre a aba de uma das bolsas e ele podia fazer pontaria à preta sem ter de mudar de posição. - Com todos aqueles quartos - disse ele -, vocês podiam transformá-los em apartamentos.

- Não estamos a pensar nisso. - Derek esperou que Greg tirasse a preta de dentro da bolsa e a colocasse no seu lugar.

- E aquela cave, não há muitas casas que tenham caves como aquela... - Deu a volta toda à mesa e Chás suspirou na leitura do seu jornal. Desapareceu outra vermelha. - Vocês podiam... - Derek seguia atentamente com o olhar a bola branca para ver onde iria parar. - Vocês podiam fazer qualquer coisa daquela cave.

- O quê, por exemplo? - disse eu, mas Derek encolheu os ombros e atirou a preta com força para dentro da bolsa.

Quando Derek acabou por falhar a preta, fez um som como um assobio prolongado por entre os dentes. Chás desviou os olhos do jornal e disse:

- Quarenta e nove. - Eu disse para Derek:

- Vou andando - mas ele tinha-se virado para pedir um cigarro a um dos jogadores. Depois foi para o outro lado da mesa para seguir o jogo de Greg. Sentia-me mal. Encostei-me a um pilar e olhei para cima, para o tecto. Havia vigas de ferro à vista e por detrás delas, colocados junto à telha, painéis de vidro pintados com uma tinta castanho-amarelada. Baixei os olhos e Derek estava de novo a jogar com apenas algumas bolas que tinham ficado na mesa. Quando o jogo acabou, Derek dirigiu-se a mim, vindo por detrás, segurou-me o ombro e disse:

- Vamos a um jogo? - Disse-lhe que não e afastei-me.

- Vou para casa. - Derek parou à minha frente e soltou uma gargalhada. Descansou a extremidade mais larga do seu taco sobre o pé e balançou-o de um lado para o outro.

- És um tipo giro - disse ele. - Porque é que não te descontrais um pouco? Porque é que nunca sorris? - Encostei-me, muito direito, ao pilar. Algo pesado e escuro fazia pressão sobre mim e voltei de novo os olhos para o tecto, quase esperando ver essa tal coisa.

Derek continuava a balançar o seu taco e teve então uma ideia. Encheu o peito de ar e chamou por cima do ombro.

- Chás! Greg! Venham ajudar-me a fazer rir este infeliz deste gajo. - Sorriu e piscou-me o olho ao dizer isto, como se eu fizesse parte da piada. Chás e Greg apareceram, de um e do outro lado de Derek, e ficaram um pouco atrás dele. - Vá lá - disse Derek - dá lá uma gargalhada, ou eu conto à tua irmã. - As caras deles tornaram-se maiores. - Ou então Greg conta-te uma das suas anedotas. - Chás e Greg riram-se. Toda agente queria estar de bem com Derek.

- Vão-se foder! - disse eu. Chás interveio.

- Ora, deixem o tipo sossegado - e afastou-se. A maneira como ele disse aquilo deu-me vontade de chorar e, para lhes mostrar que isso era a última coisa que eu faria, pus-me a olhar fixa e ferozmente para Derek, sem pestanejar. Mas já a água estava a subir a um dos olhos e, embora eu tivesse limpo a lágrima mal ela caiu, eu sabia que eles a tinham visto. Greg estendeu-me a mão para que eu a apertasse.

- Não foi por mal, amigo. - Não lha apertei porque a minha mão estava húmida. Greg foi-se embora e éramos de novo os dois, Derek e eu.

Virei-me e dirigi-me para a porta. Derek deixou o taco sobre uma das mesas e veio comigo. Caminhámos tão próximos que parecia que tínhamos algemas.

- Realmente és mesmo como a tua irmã, não há dúvida - disse ele. Como eu não podia afastá-lo tive de virar para a esquerda da porta, em direcção ao postigo do chá.

Mal nos viu chegar, o velhote que lá estava pegou no enorme bule de metal e encheu duas chávenas. Tinha uma voz muito aguda.

- Estes são por minha conta - disse ele - pelos quarenta e nove pontos que marcou. - Dirigia-se tanto a mim como a Derek e tive de tirar uma das chávenas. Derek também tirou a dele e encostámo-nos à parede, de frente um para o outro. Durante vários minutos pareceu estar para dizer qualquer coisa, mas ficou calado. Tentei beber o chá rapidamente e isso fez-me sentir quente e enjoado. Sentia um formigueiro e uma comichão na pele, por debaixo da camisa, os pés suavam e os dedos escorregavam dentro dos sapatos. Encostei a cabeça à parede.

Greg tinha saído com Chás por outra porta e os outros jogadores haviam voltado para as suas mesas. Através da parede ouvia a Sr.a O falando ininterruptamente. Passado um bocado pensei que pudesse ser o rádio.

- A tua irmã é sempre assim ou passa-se alguma coisa que eu deva saber?

- Assim como? - quis eu imediatamente saber. O meu coração pulsava, mas muito devagar. De novo Derek teve de pensar por um momento. Passou a mão pelo queixo e tocou no alfinete da gravata.

- Só aqui entre nós, de homem para homem, estás a perceber? - Concordei com a cabeça. - Esta tarde, por exemplo. Ela estava a fazer qualquer coisa, por isso pensei que podia dar uma vista de olhos pela cave. Não havia mal nenhum nisso, mas ela teve uma reacção muito esquisita. Quer dizer, não há nada lá em baixo, pois não?

E eu disse:

- Não, não. Eu quase nunca lá vou, mas não há lá nada.

- Então porque é que ela ficou tão zangada? - Derek olhou-me fixamente e ficou à espera de uma resposta, como se tivesse sido eu que tivesse ficado zangado.

- Ela é sempre assim - disse-lhe eu. - Julie é assim. Derek baixou por um momento os olhos para os sapatos,

levantou-os e disse:

- E de outra vez... - mas o Sr. O saiu do escritório exactamente nessa altura e começou a falar com Derek. Acabei o meu chá e fui-me embora.

Em casa, a porta das traseiras estava aberta e eu entrei muito silenciosamente. Havia na cozinha um cheiro a fritos antigos. Tinha uma estranha sensação de ter estado fora vários meses e de muitas coisas terem acontecido na minha ausência. Na sala, Julie estava sentada à mesa, onde havia pratos sujos e uma frigideira. Parecia toda satisfeita consigo própria. Tom estava sentado ao colo dela, com o polegar metido na boca e, ao pescoço, um guardanapo atado como se fosse um babete. Olhava inexpressiva e fixamente para o outro lado da sala, com a cabeça encostada ao peito de Julie. Não parecia ter dado conta de que eu entrara e continuou a fazer pequenos ruídos, chuchando no dedo. Julie segurava-o pela cintura.

Sorriu-me e eu pus a mão no puxador da porta para me manter firme. Sentia-me como se não tivesse peso e pudesse flutuar.

- Não fiques admirado - disse Julie - Tom quer fazer de bebezinho. - Pousou o queixo na cabeça dele e começou a embalá-lo muito devagarinho. - Portou-se tão mal esta tarde - continuou ela, a falar mais para ele do que para mim - que tivemos uma longa conversa e decidimos montes de coisas. - Os olhos de Tom estavam a fechar-se. Sentei-me à mesa perto de Julie, mas de onde não pudesse ver a cara de Tom. Fui tirando uns pedacinhos de bacon que estavam na frigideira. Julie embalava e cantava baixinho, de lábios fechados.

Tom tinha adormecido. Tencionava falar-lhe de Derek, mas ela já estava levantada com Tom ao colo e segui-a pelas escadas acima. Julie empurrou a porta do quarto com o pé. Trouxera da cave a cama de grades antiga e tinha-a posto mesmo ao lado da cama dela. Estava tudo preparado com um dos lados para baixo. Fiquei aborrecido de ver o berço tão perto da cama.

- Porque é que não o pões no quarto dele? - perguntei, fazendo um gesto para o berço. Julie estava de costas para mim, deitando Tom no berço. Ele sentou-se a choramingar um pouco enquanto Julie lhe desapertava o vestido. Tinha os olhos abertos.

- Ele quer ficar aqui, não queres meu amor? - Tom acenou com a cabeça, ao mesmo tempo que se enfiava por entre os lençóis. Julie foi até à janela fechar os cortinados. Avancei na semiescuridão e parei aos pés do berço. Ela afastou-me para o lado, deu um beijo na cabeça de Tom e subiu com cuidado a grade. Tom pareceu ter adormecido instantaneamente.

- Que lindo menino - sussurrou Julie, agarrando-me na mão e levando-me para fora do quarto.

 

Pouco depois de Sue me ter lido aquela parte do diário comecei a sentir um cheiro nas minhas mãos. Era adocicado e ligeiramente fétido, mais nos dedos do que nas palmas das mãos, ou talvez mesmo, ainda mais, entre os dedos. Era um cheiro que me lembrava a carne que tinha deitado fora. Deixei de me masturbar. Também aquilo já não me apetecia. Quando acabava de lavar as mãos, elas cheiravam a sabonete, mas, se voltasse a cabeça e passasse a mão rapidamente pela frente do nariz, o mau cheiro lá estava outra vez, por debaixo do cheiro a sabonete. Ficava horas a tomar banho, no meio da tarde, totalmente quieto, deitado no fundo da banheira, sem um pensamento, até que a água arrefecesse, Cortei as unhas, lavei a cabeça e pus roupas limpas. Passada meia hora, o cheiro tinha voltado, tão distante que mais parecia a memória de um cheiro. Julie e Sue brincavam com a minha nova aparência. Diziam que eu andava todo arranjadinho por causa de alguma namorada. Mas, com este meu novo aspecto, Julie passou a ser muito mais simpática comigo. Comprou-me duas camisas em segunda mão, quase novas e em bom tamanho. Pus-me em frente de Tom e passei-lhe um dedo por debaixo do nariz.

- É um peixinho - disse ele no seu novo tom de voz, a imitar um bebé. Fui procurar a enciclopédia médica e estive a ver em «cancro». Pensei que talvez estivesse a apodrecer com uma doença lenta. Olhei-me no espelho e procurei sentir o meu hálito dentro das mãos fechadas em concha. Por fim, uma noite choveu fortemente. Tinha ouvido dizer que a chuva era a água mais limpa do mundo, por isso tirei a camisa, os sapatos e as meias e pus-me em pé no cimo do rochedo, de braços abertos. Sue veio à porta da cozinha e, gritando mais alto do que o barulho da chuva, perguntou-me o que é que eu estava a fazer. Foi para dentro e voltou com Julie. Chamavam-me rindo e virei-lhes as costas.

Ao jantar tivemos uma discussão. Eu disse que era a primeira vez que chovia desde que a mãe tinha morrido. Julie e Sue diziam que desde então já tinha chovido muitas vezes. Ao perguntar-lhes quando exactamente, responderam-me que não se lembravam. Sue disse que já se tinha servido do guar-da-chuva porque o tinha agora no quarto e Julie dizia que se lembrava do barulho dos limpa-pára-brisas no carro de Derek. Disse-lhes que isso não provava nada. Ficaram zangadas, o que me pôs calmo e determinado a torná-las ainda mais zangadas. Julie desafiou-me a provar que não tinha chovido e eu disse-lhe que não precisava de o fazer porque   sabia que não tinha chovido. As minhas irmãs bufavam de irritação. Quando pedi a Sue que me passasse o açucareiro, fingiu que não me ouviu. Dei a volta à mesa para o ir buscar e, quando ia a agarrá-lo, ela pegou nele e pô-lo no outro lado da mesa, mesmo junto ao lugar onde eu estava sentado. Ia mesmo para lhe dar uma boa palmada na nuca, mas Julie gritou-me:

- Atreve-te! - com tanta rispidez que eu me encolhi surpreendido e a minha mão passou, a rasar, sobre a cabeça de Sue. Nesse mesmo instante, o cheiro veio-me de novo. Sentei-me à espera de que Julie e Sue me acusassem de estar a dar «puns», mas começaram uma conversa com a intenção clara de me pôr à parte. Sentei-me em cima das mãos e pisquei o olho a Tom.

Tom olhava me de boca entreaberta, com comida mastigada a aparecer sobre a língua. Estava sentado ao lado de Julie. Enquanto estávamos a discutir por causa da chuva, ele tinha lambuzado a cara com comida. Agora estava à espera de que Julie lhe prestasse atenção, lhe limpasse a cara ao babete e lhe dissesse que se podia levantar da mesa. Então já poderia andar de gatas por debaixo da mesa e sentar-se no meio das nossas pernas enquanto acabávamos de comer.

Outras vezes atirava o babete fora, corria para a rua, para brincar com os seus amigos, e só voltava a ser um bebé quando regressava a casa e encontrava Julie. Enquanto fazia de bebé, quase não falava nem fazia barulho. Ficava simplesmente à espera do próximo movimento dela. Se o tratava como um bebé, ficava então com os olhos esgazeados e muito distantes, a boca descaída, e parecia perder consciência de si próprio. Certa noite, quando Julie o foi buscar para o levar para cima, eu disse:

- Os bebés a sério esperneiam e gritam quando os levam para a cama. - Tom lançou-me um olhar por cima do ombro de Julie e os seus olhos e a sua boca readquiriram imediatamente a expressão normal.

- Não fazem isso, não -- explicou ele. - Nem sempre fazem - e deixou-se ser levado para o quarto.

Não resistia a ir vê-los juntos. Segui-os, fascinado, à espera de ver o que iria acontecer. Parecia que Julie gostava de ter espectadores e deu piadas a esse respeito.

- Estás com um ar tão sério - disse ela a certa altura. - Parece que estás a assistir a um funeral. - Tom, claro, queria Julie toda para ele. Na noite seguinte tornei a segui-los até lá acima, na hora de ir para a cama, e fiquei encostado à ombreira da porta enquanto Julie despia Tom, que estava de costas para mim. Julie lançou-me um sorriso e pediu-me que lhe trouxesse o pijama de Tom. Este virou-se no berço e berrou:

- Vai-te embora! Vai-te embora! - Julie riu-se, passou-lhe a mão pela cabeça e disse:

- O que é que eu hei-de fazer com vocês dois? - Recuei para fora do quarto e deixei-me ficar encostado à parede a escutar Julie a contar uma história. Quando, por fim, saiu do quarto, não pareceu muito surpreendida por me ver ali. Fomos para o meu quarto e sentei-me na minha cama. Não acendemos as luzes. Tossi levemente e disse que talvez fosse mau para Tom continuar a fingir que era um bebé.

- Se calhar não consegue um dia sair daquilo.

Julie, a princípio, não deu resposta. Calculei que estaria a sorrir para mim. Pôs-me a mão no joelho e disse:

- Acho que alguém está com ciúmes. - Rimos e deitei-me de costas na cama. Atrevidamente passei a ponta dos dedos pela curva das suas costas. Ela arrepiou-se e carregou com mais força no meu joelho.

Nessa altura Julie disse:

- Pensas muito na mãe?                          

- Sim - murmurei - e tu?

- Claro. - Parecia não haver mais nada para dizer, mas apetecia-me continuar a conversar.

- Achas que está certo aquilo que fizemos? - Julie retirou a mão do meu joelho. Ficou calada durante tanto tempo que pensei que se tinha esquecido da minha pergunta. Toquei-lhe de novo nas costas e respondeu imediatamente:

- Na altura parecia óbvio, mas agora já não sei. Talvez não o devêssemos ter feito.

- Agora já não adianta - disse eu, à espera de que ela discordasse. Tal como esperava que a sua mão voltasse ao meu joelho. Fiz correr o indicador ao longo das suas costas e interroguei-me sobre o que teria mudado entre nós. Teriam os meus frequentes banhos feito assim tanta diferença para ela? Finalmente acabou por dizer:

- Não, suponho que não - e cruzou os braços com uma determinação que dava a entender que estava ofendida. Ora estava ao ataque, ora ficava em seguida silenciosa, esperando ser atacada.

Falei em tom impaciente.

- Deixaste o Derek entrar na cave. - De imediato tudo mudou. Julie atravessou o quarto, acendeu a luz e ficou de pé junto da porta. Atirou a cabeça para trás num gesto irritado para afastar os cabelos da cara. Sentei-me muito direito na borda da cama e pousei a mão em cima do joelho onde estivera a dela.

- Foi isso que vocês conversaram quando estiveram a jogar... bilhar?

- Só assisti.

- Ele encontrou a chave e foi lá para baixo espreitar - disse Julie.

- Devias tê-lo impedido. - Sacudiu a cabeça. Não era seu costume defender-se e a voz soava-lhe pouco natural.

- Mas ele tirou a chave. Não havia nada para ver lá em baixo.

Continuei:

- Tu ficaste toda zangada por causa disso e ele agora quer saber porquê. - Pela primeira vez eu estava a levar a melhor numa discussão com Julie. Comecei a tamborilar com os dedos nos joelhos e, por momentos, veio-me de novo o cheiro adocicado, a podre.

De repente, Julie disse:

- Sabes, não fui para a cama com ele, nem nada dessas coisas. - Continuei com o meu ritmo e nem ergui os olhos. Depois parei e, com ar triunfante, disse:

- E o que é que eu tenho a ver com isso? - Mas Julie já saíra do quarto.

 

Esticando-me para o outro lado da mesa, deitei mão ao babete de Tom e puxei-o. Soltou um gemido e depois um grito. Julie interrompeu a conversa e tentou soltar-me os dedos. Sue levantou-se.

- O que é que tu estás a fazer? - gritou Julie. - Larga-o. - Já ia a meio da mesa quando o larguei e foi cair nos braços de Julie.

- Ia limpar-lhe a boca - disse eu - já que estavas tão ocupada a conversar. - Tom escondeu a cara no colo de Julie e pôs-se a chorar, uma boa imitação do choro de um bebé.

- Porque é que não deixas as pessoas em paz? - disse Sue. - O que é que se passa contigo?

Vagueei pelo jardim, de um lado para o outro. A chuva parara. Os blocos das torres estavam feios, todos manchados, mas as ervas no terreno vizinho já pareciam mais verdes. Passeei pelo jardim fazendo exactamente como o pai queria que fizéssemos, seguindo os pequenos carreiros, descendo os degraus até ao lago. Era difícil encontrar os degraus sob as ervas e os cardos e o lago não era mais do que um pedaço de plástico azul. O fundo estava coberto por restos de água da chuva. Ao caminhar à volta do lago, senti uma coisa mole esmagar-se sob o meu pé. Tinha pisado uma rã. Estava caída de lado, com uma perna partida, esticada para cima, estrebuchando em pequenos círculos. Uma substância verde, cremosa, escorria-lhe do estômago e o saco por debaixo do pescoço inchava e esvaziava em movimentos rápidos. Com um dos olhos salientes, olhava para mim, um olhar penoso sem acusação. Ajoelhei junto dela e peguei numa pedra grande e achatada. Aguardei, na esperança de que recuperasse ou morresse depressa. Mas o saco do ar enchia-se e esvaziava-se cada vez mais depressa e tentava desesperadamente usar a outra perna de trás para se endireitar. As pequenas pernas da frente faziam movimentos como se nadasse no ar. O olho amarelado fixava-me.

- Basta! - disse eu em voz alta e baixei rapidamente a pedra sobre a pequena cabeça esverdeada. Quando a levantei o corpo da rã veio agarrado a ela e depois caiu no chão. Desatei a chorar. Agarrei noutra pedra e escavei uma vala pequena e funda. Ao empurrá-la lá para dentro, as pernas da frente tremeram-lhe. Cobri-a rapidamente com terra e alisei a sepultura.

Ouvi passos atrás de mim e a voz de Derek.

- O que é que tens? - Estava parado com as pernas afastadas, ao ombro uma gabardina branca, que ele segurava com um dedo.

- Nada - disse eu. Derek aproximou-se. - O que é que tens aí no chão?

- Nada. - Derek remexeu a terra com a biqueira quadrada da sua bota polida. - É uma rã morta que estive a enterrar - disse eu. Mas Derek continuou a escavar até dar no corpo da rã, todo sujo.

- Olha - disse ele -, não está nada morta. - Enfiou o calcanhar na minha rã e calcou-a, cobrindo-a, em seguida, com terra. Fez isto tudo servindo-se apenas de um pé e sem tirar a gabardina do ombro. Cheirava a perfume, qualquer coisa como água-de-colónia ou after-shave. Afastei-me para o fundo do jardim, em direcção ao carreirinho que circundava o rochedo. Derek seguia mesmo atrás de mim e subimos em espiral, passando um pelo outro em pequenos círculos apertados, como crianças num jogo.

- Julie está em casa, não está? - disse ele. Respondi-lhe que estava a deitar Tom e, em seguida, quando já estávamos muito perto um do outro, balançando no cimo, acrescentei:

- Ele agora dorme no quarto dela. - Derek acenou com a cabeça, como se já soubesse, e passou a mão pelo nó da gravata.

Dirigimos o olhar para a nossa casa. Estávamos tão próximos que, quando falava, eu podia sentir o cheiro a hortelã-pimenta do seu hálito.

- É um tipo muito estranho, o teu irmão, não é? Com aquela mania de se vestir de menina... - Sorriu e pareceu ficar à espera de que lhe sorrisse também. Mas eu cruzei os braços e disse:

- O que é que isso tem de estranho? - Derek desceu do rochedo, servindo-se dos carreiros como degraus, e, quando chegou ao fim, demorou algum tempo a dobrar a gabardina, que pendurou no braço. Tossiu e disse:

- Pode vir a afectá-lo mais tarde, na sua vida. - Desci também e caminhámos juntos até casa.

- O que é que quer dizer com isso? - perguntei-lhe. Estávamos parados do lado de fora da porta da cozinha. Derek ficou a olhar pela janela e não respondeu. A porta da sala estava aberta e podíamos ver Sue sentada a ler uma revista, sozinha.

De súbito, Derek perguntou:

- Quando é que os vossos pais morreram exactamente?

- Há muito tempo -, murmurei, empurrando a porta da cozinha para entrarmos. Derek segurou-me no braço.

- Espera - disse ele. - Julie disse-me que foi há pouco tempo. - Sue chamou-me da sala. Soltei o braço e entrei. Derek, atrás de mim, disse-me em voz baixa que esperasse e depois ouvi-o limpar cuidadosamente os pés antes de entrar na cozinha.

Logo que Derek entrou na sala, Sue largou a revista e correu para a cozinha para lhe fazer um chá. Tratava-o como se fosse uma estrela de cinema. Deu uns passos à procura de um lugar para pousar o casaco dobrado e Sue olhava-o da porta, como um coelho assustado. Sentei-me e pus-me a ver a revista de Sue. Derek pousou o casaco no chão, junto a uma cadeira, e sentou-se também.

Sue disse da cozinha: - Julie está lá em cima com o Tom. - A voz soou tremida.

- Então eu espero aqui por ela - respondeu-lhe Derek. Cruzou as pernas e puxou os punhos da camisa. Fui voltando as páginas da revista sem prestar atenção ao que estava nelas. Quando Derek recebeu a chávena de chá da mão de Sue, disse-lhe:

- Obrigado, Susan - numa voz esquisita. Ela riu-se nervosa e sentou-se o mais longe possível dele. Foi só quando estava a mexer o chá que ele lançou um olhar direito para mim e disse: - Há um cheiro esquisito aqui. Já repararam? - Sacudi a cabeça, mas senti-me corar. Derek observava-me bebendo o chá. Levantou a cabeça e fungou alto. - Não é um cheiro muito forte - disse ele -, mas é muito estranho. - Sue levantou-se e pôs-se a falar rapidamente.

- É o esgoto que dá para o lado de fora da cozinha. Entope-se com muita facilidade e no Verão... sabe como é... - E, depois de uma pausa, repetiu: - É o esgoto.

Derek acenava com a cabeça enquanto ela falava e continuava a olhar para mim. Sue voltou para a sua cadeira e durante algum tempo ninguém falou.

Nenhum de nós ouviu Julie entrar na sala e, quando ela falou, Derek deu um salto.

- Está tudo muito calado - disse ela suavemente. Derek pôs-se de pé, muito direito, como um soldado, e disse, muito delicado:

- Boa-noite, Julie. - Sue deu uma risadinha. Julie estava com a saia de veludo e tinha atado uma fita branca ao cabelo. Derek disse: - Estávamos a falar de esgotos - e, com um pequeno gesto formal, fez menção de dar o seu lugar a Julie. Mas ela veio sentar-se no braço da minha cadeira.

- Esgotos? - repetiu ela como se falasse para si própria, mas não pareceu querer saber mais.

- E como é que tens passado? - perguntou Derek. Sue voltou a soltar um risinho e todos nos voltámos para ela. Julie apontou para o casaco de Derek.

- Porque é que não o penduras antes que alguém o pise? - Derek levantou o casaco e pousou-o no colo e fez-lhe umas festinhas.

- Que lindo gatinho - disse ele, mas ninguém se riu. Sue perguntou a Julie se Tom já estava a dormir.

- Como uma pedra - disse Julie. Derek tirou o relógio para fora e olhou para ele. Todos sabíamos o que ele ia dizer.

- É ainda um pouco cedo para Tom, não é? - Desta vez Sue teve um ataque de riso. Tapou a cara com as mãos e dirigiu-se para a cozinha. Ouvimo-la abrir a porta e sair para o jardim. Julie estava muito distante.

- De facto - disse ela - é um pouco mais tarde do que o costume, não é, Jack? - Concordei, embora não fizesse a mínima ideia de que horas seriam.

Julie passou-me a mão pelo cabelo.

- Não notaste nenhuma diferença nele? - disse ela para Derek.

- Está mais limpo, mais elegante - disse ele logo. Virou-se para mim. - Atrás das miúdas, hem? - Julie deixou ficar a mão sobre a minha cabeça.

- Oh, não - disse ela -, não temos nada disso por cá. Derek riu-se e puxou dos cigarros. Quando ofereceu um a Julie, ela recusou. Fiquei muito quieto com medo de que ela tirasse a mão de cima da minha cabeça. Ao mesmo tempo, pressentia que estava a fazer figura de parvo perante Derek. Ele recostou-se na cadeira e fumou o seu cigarro sem tirar os olhos de nós. Ouvimos Sue abrir a porta das traseiras, mas não saiu da cozinha. De repente, Derek sorriu e eu perguntei a mim próprio se Julie estaria a sorrir também por detrás de mim. Levantaram-se os dois ao mesmo tempo sem falar. Antes de tirar a mão, ela deu-me uma pancadinha na cabeça. Mal eles subiram, Sue voltou e sentou-se na borda da cadeira de Derek. Riu-se nervosamente e disse:

- Já sei o que é este cheiro.

- Não sou eu. - Levou-me até à cozinha e abriu a porta da cave. Era, sem dúvida, o mesmo cheiro. Reconheci-o imediatamente, mas era diferente por se ter tornado mais intenso. Agora era fora de mim. Havia qualquer coisa de doce e, para além disso, ou envolto nisso, um outro cheiro mais forte, mais suave que era como um dedo enorme enfiado até ao fundo da minha garganta. Subia pelos degraus de cimento, vindo da escuridão. Respirei pela boca.

- Vá - disse Sue -, desce. Eu sei o que é. - E ela abriu a luz e empurrou-me.

- Só se tu também vieres - disse eu. Havia um restolhar vindo de um lugar qualquer ao longo do corredor que ligava o fundo da escada ao último quarto. Sue voltou para a cozinha e foi buscar uma lanterna de brincar, em plástico, que pertencia a Tom. Tinha o formato de um peixe. A luz saía-lhe da boca e era muito fraca. - Há luz que chegue. Não precisamos disso. - Mas Sue empurrava-me nas costas com aquilo.

- Vá, vai ver - sussurrava ela.

No fundo da escada parámos para acender mais luzes. Sue pôs um lenço no nariz e eu cobri a cara com a fralda da camisa. A porta ao fundo do corredor estava entreaberta. O restolhar vinha de lá.

- Ratazanas - disse Sue. Quando chegámos à porta, o barulho desapareceu e eu parei. - Abre - disse Sue por detrás do lenço. Não me mexi, mas a porta estava agora a abrir-se sozinha. Dei um grito, recuei e vi então que era a minha irmã que estava a forçar com o pé junto à dobradiça da porta. Parecia que tinham estado aos pontapés ao baú. Estava todo deformado para fora, mesmo ao meio. A superfície do cimento tinha uma racha enorme, em alguns sítios com mais de um centímetro de largo. Sue queria que eu olhasse lá para dentro. Pôs-me a lanterna na mão, apontou e disse qualquer coisa que eu não percebi. Quando passei a luz sobre a racha, lembrei-me de uma altura em que o comandante Hunt e a sua tripulação sobrevoavam a superfície de um planeta desconhecido. Milhares de quilómetros de deserto plano, apenas perturbado por grandes fissuras provocadas pelos tremores de terra. Nem uma colina, nem uma árvore ou casa, nenhuma água. Não havia vento porque não havia ar. Afastaram-se sem aterrar e não falaram durante horas. Sue destapou a boca e murmurou corajosamente:

- Do que é que estás à espera? - Inclinei-me sobre a racha e baixei a luz para iluminar o lugar onde ela estava mais aberta. Vi uma superfície cinzento-amarelada, irregular. Em volta dos bordos havia uma coisa preta, esfiapada. Ao olhá-la fixamente, a superfície transformou-se por breves instantes numa cara, num olho, em parte de um nariz e numa boca negra. A imagem dissolveu-se e voltaram a ser apenas superfícies irregulares. Julguei que ia desmaiar e passei a lanterna a Sue. Mas a sensação desapareceu ao vê-la inclinar-se sobre o baú. Viemos para o corredor e fechámos a porta atrás de nós.

- Viste? - disse Sue. - O lençol está todo enrodilhado e vê-se a camisa de noite por baixo. - Por momentos ficámos muito excitados, como se tivéssemos descoberto que a nossa mãe estava viva. Tínhamo-la visto em camisa de noite, tal e qual como ela costumava estar. Ao subirmos as escadas, disse: - O cheiro não é assim tão mau quando nos acostumamos a ele. - Sue vinha meio a rir meio a chorar e deixou cair a lanterna. Por detrás de nós ouvíamos de novo o barulho dos ratos. Respirou fundo várias vezes e inclinou-se para apanhar a lanterna. Quando se endireitou, disse:

- Temos de arranjar mais cimento - e a sua voz estava agora bastante controlada.                  

Encontrámos Derek no cimo da escada. Por cima do seu ombro, eu podia ver Julie, no meio da cozinha. Derek bloqueou-nos a passagem.

- Ora bem, vocês não têm muito jeito para guardar segredos - disse ele em tom amigável. - O que é que vocês têm aí em baixo que cheira tão bem? - Empurrámo-lo para passar e não respondemos. Sue chegou-se ao lava-louça e bebeu água por uma chávena. Ouvia-se bem o som da água a escorrer-lhe pela garganta.

- Não é nada que seja da sua conta. - Virei-me para Julie, esperançado em que ela tivesse alguma coisa para dizer. Foi até junto de Derek, que estava parado à porta da cave, e tentou puxá-lo, delicadamente, por um braço.

- Vamos fechar esta porta à chave - disse ela. - Este cheiro dá-me cabo dos nervos. - Mas Derek sacudiu o braço e voltou a dizer no mesmo tom amigável:

- Mas vocês ainda não me disseram o que é. - Sacudiu a manga do casaco no lugar onde Julie o tinha agarrado e sorriu para nós. - Sou muito curioso, sabem? - Ficámos a vê-lo voltar-se e descer as escadas. O barulho dos passos deixou de se ouvir quando chegou ao fundo da escada, se pôs à procura do interruptor e recomeçou depois em direcção ao quarto, no fim do corredor. E, então, fomos atrás dele, primeiro Julie, depois Sue e a seguir eu.

Derek tirou um lenço azul-claro do bolso de cima do casaco, sacudiu-o e segurou-o, não sobre a cara, mas perto dela. Eu estava decidido a não usar nada e a respirar rapidamente por entredentes. Derek deu com a bota no baú. As minhas irmãs e eu parámos em semicírculo atrás dele, como se alguma cerimónia importante se fosse realizar. Seguiu com o dedo a linha da fractura e espreitou lá para dentro.

- O que quer que seja que está lá dentro, está mesmo podre.

- É um cão, morto - disse Julie rápida e simplesmente. - A cadela de Jack. - Derek fez um sorriso.

Eu disse:

- Tinhas prometido guardar segredo.

Julie sacudiu os ombros e disse:

- Agora já não tem importância. - Derek inclinou-se sobre o baú. Julie prosseguiu: - Foi o que ele arranjou para... túmulo. Meteu-a aí dentro quando ela morreu e deitou-lhe cimento por cima. - Derek arrancou um pedaço de cimento e brincou com ele, atirando-o ao ar.

- Não fizeste uma mistura como devia ser - disse ele - e este baú não aguenta com o peso.

- O cheiro invade a casa toda - Julie dirigia-se a mim. - Tens de resolver isto. - Derek limpou as mãos cuidadosamente ao lenço.

- Acho que isto está a precisar de um reenterro - disse ele - talvez no jardim. Junto da tua rã. - Cheguei-me ao baú e dei-lhe uma biqueirada sem força, como Derek fizera.

- Não quero que saia daqui - disse eu com firmeza - depois de todo este trabalho.

Derek dirigiu-se para a saída. Quando chegámos lá acima, fomos todos para a sala de estar. Derek perguntou-me o nome da minha cadela e, sem pensar, respondi: Cosmo. Veio pôr-me a mão sobre o ombro, dizendo-me:

- Temos de fechar aquela racha com mais cimento então e esperar que o baú aguente. - Passámos o resto da noite sentados por ali, sem fazer nada. Derek falou de snooker. Mais tarde, quando eu ia a deitar-me, disse-me:

- Desta vez hei-de mostrar-te como é que se faz uma boa mistura - e das escadas ouvi Julie dizer-lhe:

- É melhor deixá-lo sozinho a fazer isso. Ele não gosta que lhe digas o que é que ele deve fazer. - Derek disse qualquer coisa que não consegui ouvir e depois riu-se durante muito tempo.

 

O tempo quente voltou. De manhã, Julie estendia-se ao sol, no rochedo, desta vez sem o rádio. Tom, que, pela primeira vez depois de muitos dias, voltava a andar vestido com as suas roupas, brincava no jardim com o seu amigo das torres. De cada vez que fazia qualquer coisa que ele considerava particularmente arriscada, como, por exemplo, saltar sobre uma pedra, queria que Julie o visse.

- Julie! Julie! Olha Julie! Vê! - Toda a manhã o ouvi. Fui espreitá-los pela janela da cozinha. Julie, deitada numa toalha azul-celeste, não lhe prestava atenção. A pele dela estava tão escura que eu pensei que com mais um dia ficava preta. Havia um monte de vespas pousadas no lixo que estava espalhado pelo chão da cozinha. Lá fora, uma nuvem de moscas rondava os caixotes que transbordavam de lixo que não era despejado há semanas. Pensámos que devia ter havido uma greve, mas não tínhamos ouvido falar de nada. Um pacote de manteiga tinha-se derretido numa pasta. Enquanto olhava pela janela, fui molhando o dedo e chupando. Hoje estava demasiado quente para se limpar a cozinha. Sue veio dizer -me que ouvira na rádio que se tinha batido o recorde do dia mais quente do ano desde 1900.

- Julie devia tomar cuidado - disse Sue, e foi lá fora avisá-la. Mas nem Tom e o seu amigo nem Julie pareciam muito incomodados com o calor. Ela continuava estendida muito quieta e eles corriam atrás um do outro pelo jardim, chamando-se aos gritos.

Ao fim da tarde fui com Julie comprar um saco de cimento. Tom também veio. Veio sempre junto a Julie, agarrado a uma ponta da sua saia branca. A certa altura tive de me proteger do sol debaixo da cobertura de uma paragem de autocarros. Julie parou em frente de mim, ao sol, abanando com a mão para me refrescar.

- O que é que se passa contigo? - disse ela. - Parece que estás muito fraco. O que é que tens andado a fazer? - Olhámo-nos e desatámos a rir. Parámos do lado de fora da loja para nos vermos reflectidos nos vidros da montra. Julie agarrou-me na mão e disse: - Olha como a tua mão está branca. - Tirei a mão e, ao entrarmos na loja, falou-me como se eu fosse uma criança.

- Tu devias era apanhar sol. Fazia-te bem. - No caminho para casa pensei que algum tempo antes Julie só falava quando se lhe dirigia a palavra. Agora ela conversava animadamente com Tom sobre circos e a certa altura parou e agachou-se para lhe limpar a boca suja de gelado e assoá-lo com um lenço de papel.

Quando chegámos ao portão de entrada, decidi que não me apetecia entrar em casa. Julie tirou-me das mãos o saco de cinco quilos de cimento e disse:

- Está bem, ficas cá fora a apanhar sol. - Ao subir a nossa rua, reparei de repente que tinha um aspecto comple-tamente diferente. Já quase nada tinha a ver com uma rua, mais parecia uma estrada no meio de um depósito de lixo. Além da nossa, já só havia mais duas casas de pé. Lá adiante, um grupo de operários estava parado à volta de um camião, preparando-se para voltar para casa. Quando lá cheguei, o camião estava a começar a andar. Três dos homens iam de pé na parte aberta, agarrados às barras por detrás da cabina do condutor. Um deles viu-me e fez um gesto com a cabeça para me saudar. Depois, quando o camião pulou sobre os bordos da calçada, apontou para a nossa casa e encolheu os ombros. Dos pré-fabricados já só restavam as placas das fundações. Fui-me pôr em cima de uma delas. A toda a volta das placas podia ainda ver-se as ranhuras dos encaixes das paredes. Ervas como alfaces cresciam dentro delas. Caminhei ao longo das linhas das paredes, colocando um pé à frente do outro, pensando em como era estranho que uma família inteira vivesse dentro daquele rectângulo de betão. Era difícil identificar agora se este pré-fabricado era o mesmo onde estivera dias antes. Não havia nada que os tornasse diferentes uns dos outros. Tirei a camisa e estendi-a no chão, no meio do quarto maior. Deitei-me de costas, com as mãos todas esticadas no chão para apanhar sol entre os dedos. Senti-me imediatamente abafado pelo calor, a pele coberta de suor. Mas, teimoso, ali fiquei, a sonhar acordado.

Quando voltei a mim, não percebi porque é que não estava na minha cama. Estremeci de frio e procurei cobrir-me com os lençóis. Quando me levantei, a cabeça começou a doer-me. Peguei na camisa e voltei para casa a passo lento, parando a certa altura para apreciar o tom avermelhado da minha pele, mais marcado agora à luz do fim da tarde. O carro de Derek estava parado cá fora. Ao entrar na cozinha, vi a porta da cave aberta e ouvi vozes e ruídos de raspar.

Derek tinha enrolado as mangas da camisa e estava a encher a racha com cimento fresco, usando uma espátula. Julie, parada, de mãos à cintura, observava-o.

- A fazer o teu trabalho! - disse Derek quando eu entrei, mas era evidente que isso o divertia. Julie parecia encantada por me ver, como se eu acabasse de chegar de uma longa viagem.

- Olhem para ele - disse ela. - Estás mesmo queimado. Estás com um aspecto maravilhoso. Não está? - Derek emitiu um grunhido e inclinou-se sobre o seu trabalho. O cheiro já se notava menos. Derek assobiava baixinho entredentes enquanto amassava o cimento. Quando estava de costas para nós, Julie piscou-me o olho e eu fingi que lhe ia dar um pontapé no rabo. Pressentindo que se passava qualquer coisa, Derek perguntou, sem se voltar:

- Que se passa?

- Nada, nada - respondemos ao mesmo tempo, e começámos a rir. Derek dirigiu-se a mim com a espátula na mão. Para minha surpresa, parecia estar magoado.

- Talvez seja melhor que sejas tu a fazer isto - disse ele.

- Oh, não! - disse eu. - Você faz isso melhor que eu. - Derek tentava meter-me a espátula na mão.

- Afinal o cão é teu - disse ele. - Se é que é um cão.

- Derek - disse Julie num tom apaziguador. - Por favor. Tu disseste que o fazias. - Levou-o de novo até junto da arca. - Se for o Jack a fazê-lo, volta a estalar e a espalhar o cheiro por toda a parte. - Derek encolheu os ombros e recomeçou o trabalho. Julie deu-lhe uma palmadinha no ombro e foi buscar-lhe o casaco, que estava pendurado num prego. Dobrou-o no braço e deu-lhe também umas palmadinhas. - Gatinho lindo - disse baixinho. Desta vez Derek ignorou os nossos risinhos.

Afastou-se quando acabou o trabalho. Julie disse:

- Perfeito! - Derek fez uma pequena vénia e tentou pegar-lhe na mão. Eu disse qualquer coisa de parecido, mas ele nem sequer olhou na minha direcção. Lá em cima, na cozinha, Julie e eu ficámos à espera de que Derek lavasse as mãos. Julie estendeu-lhe uma toalha e, quando ele estava a limpá-las, tentou puxá-la para junto de si. Mas Julie veio pôr a mão sobre o meu ombro e admirar-me o tom de pele da cara.

- Estás com muito melhor aspecto - disse ela -, não está? - Derek estava a fazer o nó da gravata, com movimentos rápidos e bruscos. Julie parecia ter um completo controlo sobre os seus humores. Ajustou os punhos da camisa e estendeu o braço para apanhar o casaco.

- A mim parece-me que exagerou - disse ele. Dirigiu-se para a porta e por momentos pensei que se ia embora. Em vez disso, abaixou-se e apanhou um pacote de chá, usado, por uma das pontas e atirou-o para o caixote do lixo. .Julie encheu a chaleira e eu fui buscar as chávenas à sala.

Quando ficou pronto, bebemos o chá, de pé, na cozinha. Agora, novamente com o seu fato e a sua gravata, Derek era mais ele próprio, de pé, muito direito, segurando a chávena numa mão e o pires na outra. Fez-me perguntas sobre os estudos e sobre os empregos. Depois disse com um certo cuidado:

- Devias estar muito ligado àquele animal. - Acenei com a cabeça e esperei que Julie mudasse de assunto. - Quando é que ele morreu? - perguntou Derek.

- Não era um era uma - disse eu. Fez-se um silêncio e então Derek insistiu, um pouco mal-humorado:

- Está bem, quando é que ela morreu?

- Há cerca de dois meses. - Derek voltou-se para Julie, olhando-a em tom suplicante. Ela sorriu e encheu-lhe a chávena. Ele falou virado para o espaço entre ela e mim.

- De que raça era?

- Ah, sabes como é - disse Julie - uma mistura de diferentes raças. - E eu acrescentei:

- Labrador, principalmente - e, sem demora, vindo não sei de onde, a figura de um cão parecia olhar-me com os seus olhos descaídos. Sacudi a cabeça.

- Não te importas de falar nisto? - perguntou Derek.

- Não.

- De onde te veio a ideia de a pôr ali em baixo?

- Era uma forma de a preservar. Como os Egípcios. - Derek baixou a cabeça de forma brusca, como se não houvesse necessidade de mais explicações.

Tom entrou exactamente nessa altura, correu para Julie e agarrou-se-lhe à perna. Mudámos de posição para alargar um pouco o círculo. Derek tentou fazer uma festa na cabeça de Tom, mas ele afastou-lhe a mão e o chá de Derek salpicou o chão. Ficou a olhar para os salpicos por um momento e disse:

- Gostavas da Cosmo, Tom? - Segurando-se sempre à perna de Julie, Tom virou-se para trás para Derek e riu-se como se aquilo fosse uma piada habitual entre eles.

- Lembras-te da Cosmo, a nossa cadela - acrescentou Julie rapidamente.

Tom acenou com a cabeça.

- Sim, Cosmo. Ficaste triste quando ela morreu? - De novo Tom se virou, desta vez para olhar para a sua irmã.

- Sentaste-te no meu colo a chorar, lembras-te?

- Sim - disse ele, com ar malandro. Estávamos todos de olhos postos em Tom. - Eu chorei, não foi? - disse ele para Julie.

- É verdade e eu levei-te ao colo para a cama, lembras-te? - Tom encostou a cabeça à barriga de Julie e pareceu mergulhar em profunda reflexão.

Ansiosa por afastar Tom de Derek, Julie pousou a chávena e levou Tom para o jardim. Ao saírem a porta, Tom disse em voz bem alta:

- Uma cadela! - e riu-se com ar de gozo.

Derek chocalhou as chaves do carro dentro do bolso das calças. Julie corria pelo jardim atrás de Tom e ambos a olhávamos pela janela. Estava tão bonita ao virar-se para trás para chamar por Tom, que fiquei irritado de ter de partilhar aquela visão com Derek. Sem se virar da janela, ele disse com uma esperança longínqua:

- Quem me dera que vocês todos... bom, confiassem um pouco mais em mim. - Bocejei. Sue, Julie e eu nunca tínhamos falado sobre a nossa história da cadela. Não tínhamos tido cuidado com Derek. O que estava na cave a maior parte das vezes não nos parecia suficientemente real para que o escondêssemos dele. Quando não estávamos de facto lá em baixo, a olhar para aquela arca, era como se estivéssemos a dormir. Derek tirou o relógio para ver as horas.

- Tenho um jogo agora. Talvez volte logo à noite.   - Encaminhou-se lá para fora e chamou Julie, que parou só por um momento na sua brincadeira com Tom para lhe dizer adeus com a mão e lhe mandar um beijo. Ele esperou ainda um pouco antes de se afastar, mas ela já estava de costas.

Fui para o meu quarto, tirei os sapatos e as meias e deitei-me de bruços na cama. Pela janela via um rectângulo perfeito de céu azul-claro, sem uma nuvem. Menos de um minuto depois sentei-me a olhar em volta. No chão havia latas vazias de Coca-Cola, roupa suja, embrulhos vazios de batatas fritas, diversos cabides de metal, uma caixa que antes servira para guardar elásticos. Levantei-me e olhei para o lugar onde tinha estado deitado, os lençóis amarrotados e enrugados, manchas largas com os bordos bem marcados. Senti-me sufocado. Tudo aquilo para que olhava me lembrava eu próprio. Escancarei as portas do guarda-roupa e atirei lá para dentro toda a cangalhada que estava no chão. Tirei os lençóis, os cobertores e as almofadas da cama e pu-los também lá dentro. Arranquei das paredes as fotografias que em tempos recortara das revistas. Debaixo da cama encontrei pratos e chávenas cobertos de bolor. Fui enfiando no guarda-fato tudo quanto estava por ali espalhado até o quarto ficar vazio. Incluindo a lâmpada e o quebra-luz. Depois despi-me todo, atirei com a roupa lá para dentro e fechei as portas. O quarto estava vazio como se fosse uma cela. Fiquei de novo deitado a olhar o meu pedaço de céu limpo até que adormeci.

Quando acordei, estava frio e escuro. De olhos fechados, tacteei à procura das roupas da cama. Tinha uma vaga memória de estar deitado no chão do pré-fabricado. Ainda lá estava? Não tinha a mínima ideia de como tinha ido ali parar, deitado nu num colchão sem roupas. Estava alguém a chorar. Seria eu? Pus-me de joelhos para fechar a janela e de repente lembrei-me de que a minha mãe morrera há muito tempo. De repente tudo voltou aos seus lugares e eu fiquei deitado, tremendo, à escuta. O choro era suave e contínuo como um gemido e vinha do quarto ao lado. Era calmante e, por um momento, fiquei apenas a ouvir o som. Não me interessava saber o que havia por detrás dele. Parei de tremer, fechei os olhos e imediatamente, como se o espectáculo estivesse à minha espera para começar, formou-se diante dos meus olhos um conjunto de imagens nítidas. Abri os olhos por momentos e as mesmas imagens destacaram-se no escuro. Perguntei-me porque precisaria eu de dormir tanto. Na minha frente estava uma praia cheia de gente, numa tarde escaldante. eram horas de ir para casa. A minha mãe e o meu pai iam à minha frente, carregando as cadeiras de lona e o molho das toalhas. Eu não conseguia acompanhá-los. Os seixos grandes, redondos, feriam-me os pés. Levava na mão um pauzinho com um moinho de papel na ponta. Chorava porque estava cansado e queria que me levassem ao colo. Os meus pais pararam à minha espera, mas, quando estava a poucos passos deles, viraram as costas e continuaram a andar. O meu choro transformou-se num longo lamento e as outras crianças largavam o que estavam a fazer para olhar para mim. Deixei cair o moinho de papel e, quando alguém o apanhou para mo dar, abanei a cabeça e chorei mais alto. A minha mãe deu ao meu pai a cadeira que trazia na mão e veio ter comigo. Quando me pegou ao colo, vi-me a olhar para trás, por cima do seu ombro, para uma rapariguinha que segurava no meu moinho sem desviar os olhos de mim. A brisa fazia girar as velas brilhantes e eu queria desesperadamente tê-lo de novo, mas ela já estava a ficar para trás de nós, a uma grande distância, e agora tínhamos chegado ao pavimento e o passo da minha mãe era cadenciado. Continuei a choramingar, mas a minha mãe parecia não ouvir. Desta vez abri os olhos e fiquei completamente acordado. Com as janelas fechadas, o quarto estava quente e sem ar. No quarto ao lado, Tom continuava a chorar. Levantei-me e encostei-me atordoado à porta do guarda-fato. Abri-o e procurei as minhas roupas. A lâmpada rolou e rebentou no chão. Praguejei em voz alta, entredentes. Sentia-me demasiado abafado pela escuridão e pela falta de ar para continuar à procura. Encaminhei-me para a porta com os braços esticados para a frente e a cara franzida. Parei no patamar à espera de habituar os olhos à luz. Lá em baixo, Julie e Sue conversavam. Com o barulho da porta do meu quarto a abrir-se, Tom tinha-se calado, mas agora recomeçara, numa espécie de choro forçado, nada convincente, a que Julie não costumava dar atenção. A porta do quarto dela estava aberta. Entrei sem fazer barulho. O quarto estava iluminado por uma luz fraca e, a princípio, Tom não se apercebeu da minha presença. Tinha empurrado com os pés os cobertores e os lençóis para o fundo da cama e estava deitado de costas, nu, a olhar para o tecto. Fazia um som que era uma espécie de canto repetitivo. Às vezes parecia ter-se esquecido por completo de que estava a chorar e ficava calado, depois lembrava-se e recomeçava mais alto. Fiquei a ouvir, por detrás dele, durante cinco minutos ou mais. Tinha um braço esticado por detrás da cabeça e com a outra mão entretinha-se a brincar com o pénis, puxando-o e fazendo-o rolar entre o polegar e o indicador.

- Ora vejam - disse eu. Tom virou a cabeça para trás e olhou-me sem mostrar surpresa. Depois voltou a fixar o olhar no tecto e retomou o seu choro. Inclinei-me sobre o lado do berço e perguntei-lhe rispidamente: - O que é que tens? Porque não te calas? - O choro tornou-se real, sacudido, as lágrimas a molharem o lençol. - Espera aí - disse eu, e tentei descer a grade. Na penumbra não conseguia ver como é que se soltava o gancho. O meu irmão engoliu uma enorme golfada de ar e desatou a gritar. Era difícil concentrar-me, dei uma pancada no gancho com o punho, segurei com força as grades verticais e sacudi-as com tanta força que todo o berço estremeceu como se fosse desmoronar-se. Tom começou a rir, houve uma parte que cedeu e a grade do lado baixou-se. Imitando a voz de um bebé, ele pediu:

- Mais outra vez! Faz mais outra vez! - Sentei-me numa ponta do berço, sobre o monte de cobertores e lençóis. Olhámo-nos e nessa altura ele disse no seu próprio tom de voz: - Porque é que não tens roupa nenhuma vestida?

- Porque tenho calor - disse eu. Ele acenou com a cabeça.

- Também tenho calor. - Estava deitado com o braço debaixo da cabeça e parecia mais um banhista do que uma criança.

- Era por isso que estavas a chorar? Porque estavas com calor? - Ficou por um momento a pensar antes de acenar com a cabeça. Disse-lhe: - Chorar ainda faz mais calor.

- Queria que Julie viesse cá acima. Ela disse que vinha cá acima ver-me.

- Porque é que querias que ela viesse?

- Porque queria que ela viesse.

- Mas porquê? - Tom deu uns estalos com a língua, impaciente.

- Porque queria.

Cruzei os braços. Apetecia-me fazer perguntas.

- Lembras-te da mãe? - Ele abriu um pouco a boca e acenou. - Não a queres?

- Está morta - disse Tom, indignado. Acomodei-me no berço. Tom encolheu-se para arranjar espaço para as minhas pernas. - Mesmo estando morta, não sentes desejo de que seja ela a vir dar-te as boas-noites, em vez de Julie?

- Estive no quarto dela - gabou-se Tom. - Eu sei onde é que Julie guarda a chave. - Quase nunca me lembrava do seu quarto fechado. Quando pensava na mãe, pensava na cave.

- E o que é que fizeste lá? - perguntei.

- Nada.

- O que é que há lá? - Houve um ligeiro lamento na voz de Tom.

- Julie tirou de lá tudo. Todas as coisas da mamã.

- O que é que querias fazer com as coisas dela? - Tom olhou-me como se a minha pergunta não fizesse sentido. - Brincavas com as coisas dela? - perguntei. Tom acenou com a cabeça e franziu os lábios, imitando Julie.

- Mascarávamo-nos e assim.

- Tu e Julie? - Tom riu-se.

- Eu e Michael, parvalhão! - Michael era o amigo de Tom que morava nas torres.

- Vocês mascaravam-se com as roupas da mamã?

- Às vezes fazíamos de conta que éramos a mamã e o papá e de outras vezes éramos Julie e tu ou Julie e Derek.

- O que é que vocês faziam quando eram eu e Julie? - De novo a minha pergunta parecia não fazer sentido nenhum para Tom. - Quer dizer, o que é que vocês realmente faziam?

- Brincávamos - respondeu Tom num modo vago. Quer fosse por causa da maneira como a luz lhe batia na cara, quer fosse pelos seus segredos, Tom parecia um minúsculo sábio velho, deitado aos meus pés. Perguntei-me se ele acreditaria no céu.

- Sabes onde é que está agora a mamã? - Tom olhou para o tecto e disse:

- Na cave.

- O que é que tu queres dizer com isso? - murmurei.

- Na cave. Naquela arca, por debaixo daquela coisa toda.

- Quem te disse isso?

- Foi o Derek. Ele disse que foste tu que a puseste lá. - Tom voltou-se de lado e pôs o polegar, não dentro, mas perto da boca. Abanei-o pelo tornozelo.

- Quando é que ele te disse isso? - Tom sacudiu a cabeça. Ele nunca sabia se uma coisa tinha acontecido ontem ou na semana passada. - Que mais é que Derek disse? - Tom sentou-se e arreganhou os dentes num sorriso.

- Ele diz que tu continuas a fingir que é uma cadela. - Soltou uma gargalhada. - Uma cadela!

Tom cobriu-se com uma ponta do lençol e virou-se outra vez de lado. Meteu a ponta do polegar entre os lábios, mas continuou de olhos abertos. Pus uma almofada por detrás das costas. Estava a gostar de estar ali na cama de Tom. Nada daquilo que eu acabara de ouvir me interessava, apetecia-me subir a grade do berço e ficar ali sentado toda a noite. Tinha sido todo arranjado e reparado desde a última vez que eu dormira nele. Quando eu tinha quatro anos, acreditava que era a minha mãe que arranjava os sonhos que eu tinha à noite. Se ela me perguntava de manhã, como às vezes fazia, o que é que tinha sonhado, era apenas para ver se eu falava verdade. Deixei o berço a Sue muito antes disso, quando tinha dois anos, mas estar agora ali deitado era-me familiar - o seu cheiro forte, salgado, húmido, os desenhos das grades, um prazer envolvente de estar ternamente aprisionado. Passou-se bastante tempo. Tom abriu por momentos os olhos e fechou-os de novo. Chupava o polegar, agora bem enfiado na boca. Ainda não me apetecia adormecer.

- Estás a esmagar-me. - Empurrou-me com os pés, por debaixo do lençol, sem grande força. - Estás a esmagar-me e esta é a minha cama... tu... - A voz foi-lhe desfalecendo e os olhos fecharam-se por completo, ao mesmo tempo que a respiração ganhava um ritmo mais profundo. Observei-o durante alguns minutos, até que um leve som me deu a entender que estava a ser observado da entrada do quarto.

- Olhem para isto - murmurou Julie para si mesma ao atravessar o quarto. - Olha-me só para ti. - Deu-me um safanão no ombro com o cotovelo e pôs a mão na boca para não deixar escapar o riso.

- Dois bebezinhos nus! - Levantou e segurou a grade do lado e, apoiando-se nos cotovelos, sorriu deleitada. Tinha prendido os cabelos para cima e alguns deles caíam soltos, em longos e finos caracóis junto às orelhas, de onde lhe pendiam brincos de coloridos pedacinhos de vidro. - Minha coisinha doce. - Fez-me uma festa na cabeça. A blusa de algodão branca estava desabotoada até ao rego do peito e a pele era de um moreno escuro, sombrio. Franziu os lábios, mas o sorriso mantinha-os afastados. O cheiro doce, forte, do seu perfume envolveu-me e eu fiquei ali sentado com um sorriso tolo, com os olhos fixos nos dela. Por graça pensei em enfiar o dedo na boca e ergui-o até à altura da cara.

- Vá - encorajou-me ela - não tenhas medo. - O gosto vulgar da minha própria pele fez-me voltar a mim.

- Vou sair daqui - disse eu, e ao ajoelhar-me Julie apontou para mim por entre as grades.

- Olhem que grande que ele é - e riu-se, fazendo de conta que me ia agarrar.

Passei por cima da grade e, enquanto Julie cobria Tom com um cobertor, aproximei-me da porta, lamentando já ter feito com que as coisas terminassem assim. Julie agarrou-me por um braço e guiou-me em direcção à cama.

- Não te vás ainda embora - disse ela. - Quero falar contigo. - Sentámo-nos frente a frente. Os olhos de Julie tinham uma expressão selvagem, brilhante. - Ficas encantador, sem roupa - disse ela. - Cor-de-rosa e branco como um gelado. - Tocou-me no braço queimado do sol. - Dói?

Abanei a cabeça e disse:

- E a tua roupa? - Ela despiu-se num ápice. Quando as suas roupas estavam num pequeno monte sobre a cama, entre nós, ela fez um movimento com a cabeça em direcção a Tom e disse:

- O que é que pensas dele? Não achas que ele é feliz? - Eu disse:

- Sim - e disse-lhe o que ele me tinha contado. Julie abriu muito a boca, fingindo estar surpreendida.

- Derek já sabe há montes de tempo. Não fomos muito bons a guardar segredo. O que o chateia é que não o deixemos entrar nisto. - Riu-se, tapando a boca com a mão. - Ele sente-se excluído quando continuamos a dizer-lhe que é uma cadela. - Ela veio para mais perto de mim e cruzou os braços em volta do corpo. - Ele quer ser da família, sabes como é, o papá espertalhaço. Está-me a dar cabo da paciência.

Toquei-lhe no braço da mesma maneira que ela tinha tocado no meu.

- Uma vez que ele sabe - disse eu - também lhe podíamos dizer. Sinto-me a fazer figura de parvo com aquela história da cadela. - Julie abanou a cabeça e enfiou os dedos nos meus.

- Ele quer tomar conta de tudo. Está sempre a falar em mudar-se para cá. - Endireitou os ombros e esticou o peito para fora. - O que vocês os quatro precisam é de alguém que tome conta disto. - Segurei na mão de Julie e mudámos de posição de maneira a ficarmos sentados com os joelhos a tocarem-se. Do berço, que estava mesmo encostado à cama, chegou-nos o som de Tom a murmurar no seu sonho e a engolir em voz alta. Julie falava agora em voz baixa.

- Ele vive com a mãe numa casa muito pequena. Já lá estive. A mãe chama-lhe Doodle e manda-o lavar as mãos antes do chá. - Julie soltou as mãos e agarrou-me na cara. Olhou para baixo de relance, para entre as minhas pernas. - Ela contou-me que passa quinze camisas a ferro, por semana.

- É muito - disse eu. Julie espremia-me a cara entre as mãos de maneira a que os meus lábios fizessem um bico como o de um pássaro.

- É assim que tu pareces todo o tempo - disse ela. - E agora pareces assim. - Deixou de fazer pressão. Queria que ficássemos assim a conversar.

Disse:

- Há muito tempo que não corres.

Julie estendeu uma perna e pousou-a sobre o meu joelho. Olhámos ambos para ela como se fosse um animal de estimação. Segurei-lhe o pé entre as minhas mãos.

- Talvez faça alguma coisa no Inverno - disse Julie.

- Vais voltar para a escola para o ano? - Julie sacudiu a cabeça.

- E tu, vais?

- Não. - Abraçámo-nos e os nossos braços e pernas embrulharam-se de tal modo que caímos de lado na cama. Ficámos deitados com os braços à volta do pescoço um do outro e as caras muito juntas. Durante muito tempo falámos de nós.

- É engraçado - disse Julie -, perdi por completo o sentido do tempo. Parece que sempre foi assim. Não consigo lembrar-me de como era quando a mamã estava viva e não posso imaginar que realmente alguma coisa mude. Tudo parece parado e fixo e isso faz com que não tenha medo de nada.

- Excepto quando vou lá abaixo - disse eu -, sinto-me como se andasse sempre a dormir. As semanas passam sem que eu me dê conta e, se me perguntasses o que se passou há três dias, não seria capaz de te dizer. - Falámos da demolição no fundo da nossa rua e como seria se eles deitassem a nossa casa abaixo.

- Viria alguém por aí remexer - disse eu - e não encontraria senão alguns tijolos partidos no meio da relva crescida. - Julie fechou os olhos e cruzou as pernas à volta da minha cintura. Parte do meu braço estava encostado ao peito dela e sentia-lhe o bater do coração.

- Não tinha importância - murmurou ela -, pois não? - Ela começou a mexer-se, subindo na cama até ficar com os seios pálidos à altura da minha cara. Toquei com a ponta do dedo num dos mamilos. Era duro e enrugado como um caroço de pêssego. Julie segurou-o entre os dedos e amassou-o. Depois empurrou-o até à minha boca.

- Vá - murmurou ela. Senti-me a cair no espaço, sem peso, sem direcção. Ao prender o mamilo de Julie entre os meus lábios, um estremecimento suave percorreu todo o meu corpo e uma voz atravessou o quarto dizendo pesarosamente:

- Agora já vi tudo.

Tentei imediatamente soltar-me. Mas Julie continuava com os braços à volta do meu pescoço e apertava-me com força. O corpo dela protegia-me de Derek. Apoiando-se num cotovelo virou-se para olhar para ele.

- Viste? - disse ela cheia de indulgência. - Oh, meu caro. - Mas o coração dela, a alguns centímetros da minha cara, batia com força. Derek voltou a falar e parecia agora mais perto.

- Há quanto tempo é que isto dura? - Estava satisfeito por não poder vê-lo.

- Há séculos - disse Julie - há séculos e séculos. - Derek fez um som de surpresa e raiva. Imaginava-o parado, quieto e muito direito, de mãos nos bolsos. Desta vez a sua voz saía rouca e sobressaltada.

- Todo este tempo... nunca me deixaste sequer aproximar de ti. - Fez um ruído a aclarar a voz e depois um curto silêncio. - Porque é que não me disseste? - Senti Julie sacudir os ombros. Em seguida disse:

- Na verdade, não é nada da tua conta.

- Devias ter-me dito - disse Derek. - Eu teria desaparecido, deixava-te à vontade.

- Típico! - disse Julie. - É mesmo típico. - Agora Derek estava zangado. A sua voz afastava-se ao longo do quarto.

- É nojento -- disse ele bem alto. - É teu irmão.

- Fala mais baixo, Derek - disse Julie rispidamente - ou ainda acordas o Tom.

- Nojento! - repetiu Derek, e a porta do quarto fechou-se com força.

Julie saltou da cama, fechou a porta à chave e encostou-se a ela. Ficámos à espera de ouvir o carro de Derek, mas à parte a respiração de Tom, estava tudo silencioso. Julie sorria para mim. Foi até à janela e afastou um pouco as cortinas. Derek tinha estado tão pouco tempo no quarto que agora parecia que era fruto da nossa imaginação.

- Provavelmente está lá em baixo - disse Julie ao instalar-se de novo junto a mim. - Provavelmente a lamentar-se junto de Sue. - Ficámos calados por um minuto ou dois, esperando ouvir os ecos da voz de Derek à distância. Então Julie pousou a mão sobre a minha barriga. - Olha que branco que tu és - disse ela - em comparação com a minha mão. - Peguei-lhe na mão e comparei o tamanho com a minha. Era exactamente o mesmo. Sentámo-nos e comparámos as linhas das mãos, e essas eram inteiramente diferentes. Começámos uma longa investigação do corpo um do outro. Deitados de costas, lado a lado, comparámos os nossos pés. Os dedos grandes dela eram mais compridos do que os meus e mais delgados. Medimos os braços, as pernas, os pescoços e as línguas, mas nada era tão parecido como os umbigos, a mesma fenda estreita no nó do umbigo, que era repuxado para um dos lados, com o mesmo desenho de pregas na parte funda. Continuámos até eu ter os dedos dentro da boca de Julie e contava-lhe os dentes e então começámos a rir com o que estávamos a fazer.

Dei a volta e fiquei de costas e Julie, ainda a rir, sentou-se em cima de mim, segurou-me no pénis e puxou-o para dentro dela. Foi tudo muito rápido e de repente ficámos quietos e incapazes de olhar um para o outro. Julie tinha a respiração suspensa. Havia algo de macio no meu caminho e à medida que eu aumentava dentro dela o caminho alargava-se e eu penetrava mais fundo. Ela soltou um pequeno suspiro e ajoelhou-se inclinando-se para a frente e beijando-me ao de leve na boca. Ergueu-se ligeiramente e deixou-se cair. Um arrepio frio alastrou-me pela barriga e suspirei também. Por fim olhámos um para o outro. Julie sorriu e disse:

- É fácil. - Ergui-me um pouco e comprimi a minha cara entre os seus seios. Ela segurou de novo um dos mamilos entre os dedos e procurou a minha boca. Enquanto eu sugava e aquele mesmo arrepio percorria o corpo da minha irmã, ouvi e senti um pulsar fundo, regular, uma batida forte e sinistra que parecia erguer-se do fundo da casa e sacudi-la. Deixei-me cair e Julie curvou-se para diante. Movíamo-nos devagar, ao mesmo tempo que o som, até parecia que era ele que nos movia, empurrando-nos. A certa altura olhei para o lado e vi a cara de Tom por entre as grades do berço. Pensei que ele nos estava a observar, mas, quando voltei a olhar para lá, ele tinha os olhos fechados. Fechei os meus. Um pouco depois Julie decidiu que era tempo de nos voltarmos. Não era fácil. A minha perna estava presa debaixo das dela. As cobertas da cama estavam todas enroladas em nós. Tentámos rolar para um dos lados, mas quase caímos da cama abaixo e tivemos de rolar para o outro lado. Prendi o cabelo de Julie com o cotovelo contra a almofada e ela gritou: «Ui!», muito alto. Começámos a rir e esquecemo-nos do que estávamos a fazer. Logo a seguir estávamos deitados lado a lado e ouvíamos as pancadas cadenciadas que agora adquiriam um ritmo mais lento.

Então ouvimos Sue a chamar Julie e a bater à porta. Quando Julie a deixou entrar, Sue abraçou-se à volta do pescoço de Julie e ficou agarrada a ela. Julie trouxe-a até à cama onde ficou sentada, entre nós, tremendo e cerrando os lábios finos com toda a força. Segurei-lhe na mão.

- Ele está a partir tudo - disse ela por fim. - Encontrou o malho e está a partir tudo. - Ficámos à escuta. As batidas agora não eram tão fortes e havia pausas entre cada pancada. Julie levantou-se e foi fechar a porta à chave ficando parada junto a ela. Por um momento não ouvimos nada. Então ouviram-se passos descendo o caminho da entrada. Julie foi até à janela.

- Ele está-se a meter no carro. - Houve então outra pausa comprida antes de ouvirmos o motor a trabalhar e o carro afastou-se. O barulho dos pneus a chiar no asfalto era como um grito. Julie correu as cortinas e veio sentar-se junto de Sue, segurando-lhe a outra mão. Ficámos assim sentados, em fila, na borda da cama. Durante muito tempo nenhum de nós falou. Depois parecia que tínhamos acordado e começámos a falar em sussurro, sobre a mamã. Falámos da sua doença, de quando a levámos para baixo, pela escada, e de quando Tom tentou meter-se na cama com ela. Recordei-lhes aquele dia da luta de almofadas, quando ficámos em casa sozinhos. Sue e Julie tinham esquecido por completo. Lembrámo-nos de um dia que passámos no campo antes de Tom ter nascido e discutimos o que teria pensado a mamã sobre Derek. Concordámos que o devíamos ter mandado embora. Não estávamos tristes, estávamos excitados e aterrorizados. Continuávamos, esquecendo os sussurros de vez em quando, e então um de nós mandava-nos calar. Falámos da festa de aniversário junto à cama da mãe e do pino de Julie. Dissemos-lhe que o fizesse outra vez. Afastou com os pés algumas roupas caídas e atirou-se de cabeça para baixo. Os seus membros, muito morenos, quase tremiam e, quando ela se endireitou, batemos as palmas sem fazer barulho. Foi o som de dois ou três carros a travarem lá fora, a batida das portas e os passos apressados de várias pessoas a subirem o caminho da frente que acordaram Tom. Através de uma nesga da cortina, a luz azul da sirene, volteando, desenrolava um desenho na parede do quarto. Tom sentou-se e ficou a olhar para ele, pestanejando. Juntámo-nos à volta do berço e Julie dobrou-se e beijou-o.

- Ora aí está - disse ela. - Foi um sono muito lindo.

 

                                                                                Ian McEwan  

 

                      

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