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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O JARDIM DOS GIRASSÓIS / Lygia Barbiére Amaral
O JARDIM DOS GIRASSÓIS / Lygia Barbiére Amaral

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O JARDIM DOS GIRASSÓIS

 

Alberto girou a maçaneta da porta e sentiu um estranho arre­pio. Depositou a pesada pasta de couro no chão e consultou o reló­gio. Eram vinte para as oito. Estava adiantado. Pensou em não ir ao trabalho, mas logo lembrou-se da entrevista com o presidente da empresa e concluiu que não poderia faltar naquele dia. "E engraça­do", disse para si mesmo, "passei quatorze anos esperando por esse momento, sem faltar um dia sequer, e, justo hoje, quando estou prestes a alcançar a promoção que eu tanto desejava, tenho vontade de inventar uma desculpa para ficar em casa. Deve ser psicológi­co..." Consultou mais uma vez o relógio e, vendo que ainda dispu­nha de mais de meia hora, fechou de novo a porta e encaminhou-se para o interior da casa.

Alberto tinha trinta e quatro anos, mas, em função dos fios brancos que há algum tempo teimavam em se misturar a seus es­pessos cabelos castanhos, aparentava um pouco mais. Era um ho­mem bastante atraente, alto e másculo, dotado de rara inteligên­cia e perspicácia. Trabalhava numa empresa de consultoria e marketing, especializada em pesquisas de opinião pública e em fa­bricar imagens de pessoas interessadas em se projetar na socieda­de por alguma razão. Entrara para esta empresa quando ainda cursava o último ano da faculdade de publicidade e tinha verda­deira loucura pela profissão. Depois de tantos anos de dedicação, ambicionava agora o cargo de diretor executivo, o qual tinha cer­teza de que seria seu logo após aquela tão esperada reunião com o presidente.

Desde que acordara naquela manhã, contudo, sentia uma sensação estranha, uma tristeza no fundo da alma, como se algo de muito grave estivesse prestes a acontecer.

-Tudo isso só pode ser bobagem da minha cabeça - disse alto, para si mesmo, enquanto entrava no quarto.

Lenita, sua esposa, dormia profundamente, abraçada a Felipe, o pequeno filho do casal, de apenas seis anos. Alberto sentou-se na cama e ficou a admirá-los por algum tempo. Lenita, na flor de seus vinte e sete anos, era uma mulher muito bonita, de grandes cílios e feições delicadas. Felipe era uma mistura dos dois. Logo que ele nascera, Alberto e Lenita ficaram surpresos com a sua tranqüilida­de, pois, ao contrário da maioria dos bebês, o menino praticamente não chorava. Por muitas vezes acordara de madrugada e permane­cera quieto em sua caminha, esperando que Lenita se levantasse para amamentá-lo.

Alberto acariciou os cabelos da esposa com ternura e, ainda dormindo, ela dirigiu-lhe os lábios em forma de beijo.

-Tenha um bom dia, querida - disse ele, beijando-lhe os lábios.

- Você também - respondeu ela, sonada, virando-se para o outro lado.

Alberto já ia saindo do quarto, quando percebeu Felipe de olhi­nhos abertos. Sorriu para o filho, que pulou da cama e correu até ele:

- Pai! Eu te amo!

- Eu também amo vocês, filho. Nunca se esqueça disso - disse ele, com a voz embargada, abraçando o garoto.

Sentindo o peito apertado, Alberto dirigiu-se ao quarto da fi­lha Juliana, de quinze anos, fruto de uma aventura que tivera na ju­ventude. Ela dormia segurando um livro de matemática, em meio a uma bagunça generalizada. Havia roupas espalhadas por todo lado, uma mochila de livros revirada no chão, um pé de tênis sobre a escrivaninha.

-Ah, Juliana... - suspirou o pai, tirando-lhe o livro das mãos.

Ela abriu seus grandes olhos azuis e o encarou preocupada:

Pai, que horas são?

Dez para as oito. Pode dormir mais um pouco.

- Nossa! - respondeu ela num pulo. - Preciso levantar. Reza pra eu me dar bem na prova de matemática, tá?

- E eu lá sou homem de rezar? - retrucou o pai, com ar irôni­co. Deu uma batidinha no nariz da filha, como sempre fazia desde que ela era pequena, beijou-lhe os cabelos perfumados e garantiu:

-Você vai se sair bem na prova porque estudou. E veja se toma juízo e dê um jeito nessa bagunça - acrescentou, já de saída.

Pai! - gritou ela, pegando alguma coisa sobre a mesinha. Alberto virou-se e Juliana estendeu-lhe um bombom, dizendo:

Tome! Pra você se lembrar de mim, na hora do almoço! Alberto abraçou mais uma vez a filha, guardou o chocolate no

bolso e encaminhou-se para a sala. Ao abrir a porta da rua, sentiu novamente o arrepio. Era como se algo lhe dissesse que demoraria muito a voltar para casa. Muito mais do que nos outros dias. Dessa vez, porém, não deu atenção a seus pensamentos. Trancou a porta por fora e seguiu em direção ao elevador.

Tão logo chegou à rua, o mal-estar se desfez. Achou até que o mundo estava mais colorido naquele dia e sorriu satisfeito. Como de hábito, cumprimentou todos os porteiros dos prédios por que passava em seu caminho e entrou na padaria de sempre, onde pe­diu para que embrulhassem três pãezinhos com manteiga.

Na entrada do metrô, logo adiante, quatro crianças de rua o esperavam.

Ué? - brincou Alberto, entregando os pães à menina mais velha - vocês se multiplicaram de ontem para hoje?

Este aqui é o Kiko - disse a menina, mostrando o menino novo no grupo. - Encontramos ele solto por aí e agora vai andar junto com nós...

- E onde estão seus pais, Kiko? - quis saber Alberto.

O menino baixou os olhos e a menina mais velha tomou nova­mente a palavra:

- Ele num tem pai, não. E só no mundo que nem nós.

- Bom... - suspirou Alberto -, eu lamento muito por isso. La­mento também não ter trazido um pão pra você, Kiko...

- A gente divide o nosso com ele - decidiu a menina.

- Esperem! Eu tenho aqui uma coisa pra vocês dividirem tam­bém - disse Alberto, tirando o bombom do bolso.

Enquanto os quatro discutiam se deviam comer primeiro os pães ou o bombom, Alberto se afastou preocupado. Não podia en­tender como tantas pessoas tinham coragem de abandonar seus filhos por aí, na mais profunda miséria. Queria poder fazer algu­ma coisa por aquelas crianças, mas não sabia exatamente o quê. Eram tantas... Se ao menos ele ganhasse um pouco mais... Voltou então a pensar na promoção que esperava receber naquele dia. Se tudo corresse conforme imaginava, no dia seguinte traria uma cai­xa inteira de bombons para Kiko e seus amigos.

Quando desceu do metrô, já no centro da cidade, sentiu uma dor muito forte no peito. Parou por alguns instantes, respirou fun­do e a dor passou. "Deve ser a emoção", pensou ele, enquanto su­bia na escada rolante. Na calçada, olhou para o prédio da empre­sa, que ficava do outro lado da rua, e consultou mais uma vez o relógio. Como ainda faltassem quinze minutos para seu horário de chegar, sentiu vontade de passar na lanchonete onde sempre almoçava e acertar suas contas.

Se preocupe, não, doutor. Seu dia de acertar é só na próxi­ma quinta - argumentou, simpático, o rapaz do balcão.

Não tem importância, eu quero pagar hoje - insistiu Alber­to, estendendo-lhe o dinheiro. - Depois, sabe-se lá se eu vou estar vivo até a próxima quinta? - arrematou bem-humorado.

Que é isso doutor! Tenho certeza de que eu ainda vou antes do senhor. Com uma saúde dessa! - observou o balconista, devol-vendo-lhe o troco.

Nem bem saiu da lanchonete, porém, Alberto começou a sen­tir novamente a dor no peito, agora muito mais forte. Suas mãos estavam geladas, a testa suava e o estômago regurgitava, dan­do-lhe ânsias de vômito. Parou no sinal, que estava piscando, e, pensando que era melhor chegar o quanto antes ao escritório, de­cidiu arriscar.

As outras pessoas, que haviam permanecido do outro lado do passeio esperando que o sinal fechasse outra vez, levaram um sus­to ao ver aquele homem parar subitamente no meio da rua segu­rando o peito e ser colhido por um táxi que atravessava a avenida como um relâmpago.

 

Lenita abriu os olhos assustada e deu com Felipe agachado ao lado da porta, chorando baixinho. Ainda estava sob o impacto do pesadelo que tivera, mas mesmo assim correu até ele:

- O que houve, meu filho?

O menino continuou chorando, sentido, sem nada respon­der. Lenita insistiu:

- Fale com a mamãe, Lipe, você está sentindo alguma dor?

O papai - balbuciou ele. - Acho que vou ficar com muitas saudades dele...

O que você está dizendo, Felipe? Também tive um pesadelo estranho com seu pai, mas...

- Eu sei que ele não vai mais voltar, mãe...

Com os olhos cheios de lágrimas, Lenita abraçou-o com força, tentando abafar, naquele abraço, o horrível pressentimento que também cortava-lhe o coração naquele momento:

- Não fique assim, meu filho. Você teve um pesadelo, foi só isso. Vamos ligar para o papai para saber se está tudo bem?

Nem bem ela acabou de falar, o telefone tocou. Era do escri­tório. Uma voz desconhecida pedia para que Lenita fosse imedia­tamente ao local, alegando que Alberto não passava bem.

- Mas... - balbuciou Lenita - o que aconteceu? Eu não poderia falar com ele pelo menos?

Após um breve silêncio, Lenita percebeu que a pessoa do ou­tro lado da linha falava baixinho com uma terceira pessoa:

- Ela quer saber o que houve, quer falar com o Alberto, o que é que eu respondo?

- É melhor não entrar em detalhes - ponderou a outra voz. -Diga apenas para ela vir o mais rápido possível. E bom que ela chegue antes do pessoal do necrotério.

Ouvindo isso, Lenita deixou cair o fone de suas mãos e ficou lí­vida. O choque foi tão grande que ela emudeceu. Não conseguia nem chorar. Vendo-a naquele estado, Felipe, com muito custo, con­teve então as próprias lágrimas e correu até o quarto de Juliana.

Ju, aconteceu a pior coisa do mundo...

Felipe, eu estou estudando - respondeu ela, sem despregar os olhos do livro.

Felipe deixou escapar um soluço e só então ela reparou em seus olhos inchados. Deixou cair o livro e correu até o irmãozinho.

- O papai... o papai morreu, Juliana - disse Felipe, por fim, e os dois se abraçaram, chorando sem parar.

Sem sombra de dúvida, aquele foi o dia mais triste da vida da­quela família. Após o enterro, Lenita, Juliana e Felipe tinham a impressão de que nunca mais conseguiriam ser felizes de novo. Era como se a vida deles também tivesse acabado ali, junto com a vida de Alberto.

 

Só depois de duas semanas, as coisas começariam a se norma­lizar. Durante os primeiros quinze dias, embora também estivesse muito machucada, Juliana se mostrou a mais forte da família. Sua mãe, Selene, insistiu muito para que ela se mudasse para sua casa, mas Juliana preferiu ficar com Lenita e Felipe, porque sabia que eles precisavam muito dela naquele momento.

Lenita quase não falava, não comia, não queria nem tomar banho. Se, num primeiro momento, ela não tinha conseguido nem chorar, agora só sabia chorar o tempo todo, agarrada com a foto de Alberto. Enquanto isso, Juliana cuidava de Felipe, contava histórias para alegrá-lo, improvisava sanduíches com o que havia sobrado na geladeira, obrigava Lenita a se alimentar e a tomar ba­nho todos os dias. Até que perdeu a paciência e deu um ultimato à madrasta:

- Olha aqui, Lenita. Eu perdi meu pai e estou muito triste por isso. Mas eu não posso ficar ruminando essa tristeza o tempo todo, porque tenho só quinze anos e a minha vida continua. A gente não pode morrer porque o papai morreu. E o Felipe, que é uma criança? Você acha justo que ele fique sem pai nem mãe, da noite para o dia?

Lenita olhou para ela atordoada, sem saber o que dizer. Julia­na continuou:

Olhe para você. Está certo se entregar dessa maneira? Eu te­nho certeza de que o papai não ia gostar nada de te ver assim!

Eu estou horrível, não é mesmo? - respondeu Lenita, olhan­do para suas próprias roupas amassadas.

- Mais que horrível, Lenita, você está parecendo até uma mendiga descabelada... E pensar que você era uma mulher tão bo­nita, tão cheia de vida... - observou Juliana.

- Mas eu...

- Não tem mas, nem meio mas - interrompeu a moça. - Ou você reage e toca a vida pra frente, ou eu pega o Felipe e me mudo lá pra casa da minha mãe. E isso o que você quer? Poxa, Lenita! Até eu que sou bagunceira já tô ficando desesperada com a confusão que virou esta casa!

Felipe, que estava escutando tudo atrás da porta, aproveitou a deixa e completou:

- Não tem nem mais nenhuma comida na geladeira! Lenita olhou para os dois, suspirou fundo e admitiu:

- Vocês têm razão. Que péssima mãe eu estou me sain­do... - E abrindo os braços para os dois: - Mas eu prometo que vou melhorar. Vocês me perdoam?

Juliana e Felipe correram a abraçá-la. Depois disso, os três de­cidiram fazer uma superlimpeza na casa. Juliana se encarregou dos quartos, Lenita ficou com a sala e a cozinha, Felipe resolveu ajudar com o aspirador. Encerrada a limpeza, resolveram fazer uma reforma na sala. Mudaram móveis e quadros de lugar, caça­ram objetos nos quartos para substituir algumas coisas da sala que evocavam demais a memória do pai. No fim do dia, cansados e sa­tisfeitos, encomendaram uma pizza pelo telefone e fizeram planos para o dia seguinte. As crianças voltariam à escola, Lenita iria ao supermercado e depois sairia em busca de um emprego. Parecia até que tinham conseguido jogar fora a tristeza junto com a sujeira da casa.

Em minha opinião só faltavam umas flores para alegrar mais o ambiente - comentou Juliana, observando a decoração, enquan­to devorava um pedaço de pizza.

E eu acho que a flor tinha que ser amarela - completou Feli­pe, empolgado.

O pai de vocês sempre me dava flores amarelas - lembrou-se Lenita, começando a se entristecer novamente.

Não vamos começar tudo de novo, não é mesmo? - cortou Juliana.

Nesse momento, tocou a campainha.

-Já devem ser umas oito horas... Quem será? - perguntou Lenita.

- Deixa que eu abro - correu Felipe, seguido por Juliana.

- Não acredito! - exclamou Juliana, tomando nos braços o vaso de flores amarelas que o porteiro viera entregar.

- A pessoa deixou também este cartão - disse o porteiro.

Curiosos com o que consideraram 'um milagre', os três corre­ram a abrir o cartão, que dizia:

"Lenita:

"Só ontem cheguei de São Paulo e soube da notícia. Como não sabia o que dizer, decidiu enviar essas flores, em sinal do meu imenso carinho por todos vocês. Que elas possam trazer um pouco de alegria a esses coraçõezinhos tão machucados e lembrar a vocês que, apesar de tudo, a vida continua.

"Com todo o carinho do amigo de sempre,

"João Vítor."

É do meu padrinho... - disse Juliana admirada.

Lê pra mim? - pediu Felipe.

Apenas Lenita não se empolgou muito com o cartão:

- Por um instante eu pensei que... - tentou dizer, mas sua voz se embargou.

- Que fossem do papai? - perguntou Felipe - Mas será que ele pode mandar flores de onde ele está?

Lenita, por favor, não chore... Tenho certeza de que não era essa a intenção do tio João Vítor - disse Juliana.

Sabe o que é, Juliana? - respondeu Lenita - É que eu não consigo parar de pensar onde é que ele está, se ele está bem... Onde, meu Deus do céu, será que ele está?

Ouvindo as palavras de Lenita, Felipe e Juliana também en­tristeceram. Felipe foi o primeiro a quebrar o silêncio:

- Pois eu acho que o papai está num lugar que tem um jardim muito, muito grande, maior do que todos os jardins que eu já vi aqui na Terra, e que lá tem flores de tudo quanto é cor e muitos passarinhos.

Lenita e Juliana se olharam surpresas e não puderam evitar um sorriso diante da certeza do pequeno Felipe. Naquela noite, os três dormiram pensando em Alberto, passeando feliz pelo imenso jardim que Felipe descrevera.

 

Felipe, Lenita e Juliana atravessaram, ressabiados, um gran­dioso portão, o qual dava acesso a um imenso jardim. O lugar era ainda mais bonito do que Felipe descrevera, repleto de flores per­fumadas e delicadas. Entre elas, destacavam-se enormes girassóis amarelos, em torno dos quais sobrevoavam pássaros coloridos de espécies jamais vistas na Terra. Depois de muito caminharem, os três chegaram até a entrada de um bonito prédio verde-água. Era uma construção antiga, porém muito bem cuidada. Um rapaz, vestido como um enfermeiro, os aguardava, junto à escadaria que dava acesso ao prédio:

Que bom que vieram! - exclamou ele.

Isto aqui é um hospital? - perguntou Juliana, curiosa.

- Não exatamente - respondeu ele, gentil. - Digamos que seja um instituto de tratamento, bastante diferente daqueles que vocês estão acostumados a ver na Terra. Mas não deixa de ser também um hospital de pronto-socorro.

Juliana esticou os olhos para tentar ver um pouco mais além da entrada, mas foi delicadamente impedida pelo enfermeiro:

- Infelizmente, vocês não têm autorização para conhecer o in­terior do prédio, agora. Mas, não muito longe daqui, uma pessoa os espera. Venham comigo.

Num misto de desconfiança e ansiedade, os três seguiram o en­fermeiro, que contornou o instituto e seguiu por uma alameda flo­rida, inteiramente banhada de luz, a qual dava acesso a uma espécie de área residencial do instituto. Tudo era tão aprazível e acolhedor que, só de respirar o maravilhoso aroma do lugar, os três sentiam como se estivessem sendo invadidos por ondas de uma poderosa energia renovadora.

A área era composta por uma série de casinhas semelhantes, harmonicamente dispostas em torno de uma praça, em cujo cen­tro havia um simpático lago de águas cristalinas. Em volta do lago, havia aconchegantes caramanchões floridos que pareciam convi­dar à meditação e à leitura. Lenita e as crianças estavam tão des­lumbradas com a beleza e a tranqüilidade do local que nem perce­beram que, sentada sob um dos caramanchões, uma pessoa os observava. Somente quando já estavam quase frente a frente com essa pessoa, Lenita se deu conta da surpresa que os aguardava:

- Tia Geninha! - exclamou estupefata.

- Lenita, querida! Que bom vê-los aqui! - respondeu a senho­ra, indo em direção à sobrinha com os braços abertos.

As crianças se entreolharam surpresas, enquanto as duas se abraçavam longamente.

Nossa! Mas a senhora parece que remoçou uns trinta anos! -observou Lenita.

Essa é uma das grandes vantagens de se viver na espirituali­dade, querida. Aqui podemos escolher a idade que queremos apa­rentar. E eu escolhi ter sessenta anos, porque foi a idade em que me senti melhor, tanto em termos de amadurecimento quanto em termos físicos.

E isso! - observou Juliana - Eu me lembro da senhora bem velhinha, da época em que a Lenita se casou com meu pai...

A senhora conhece o meu pai? Pode me levar para falar com ele? - interrompeu Felipe, ansioso.

Tia Geninha trocou um olhar com o enfermeiro e respirou fundo, como que tentando escolher as palavras para não desapon­tar os sobrinhos.

- Na verdade - ponderou ela -, foi para conversar sobre isso que a providência divina nos deu a oportunidade deste encontro. E também pelo merecimento de cada um de vocês, é claro.

Os três trocaram um olhar interrogativo.

- Como assim? - quis saber Lenita.

- Bem, logo após o desprendimento do corpo carnal, é raro a pessoa que desencarnou poder se comunicar com seus familiares, já que tanto a pessoa quanto seus entes queridos em geral se en­contram ainda bastante perturbados emocionalmente nessa fase. Mas, como vocês são pessoas que procuram se dedicar sempre à prática do bem, gozando, portanto, de merecimento perante as leis divinas, e como estivessem muito preocupados com o estado de Alberto, Deus permitiu que viessem até aqui, enquanto seus corpos de carne dormiam, para conversar comigo sobre ele.

A senhora já morreu? - inquiriu Felipe, desconfiado.

Dentro da sua concepção, sim. Quando eu deixei a Terra, você ainda era muito pequenininho, por isso não se lembra de mim como sua irmã. Mas, na verdade, ninguém morre; as pessoas apenas vão viver em outro lugar quando terminam seu período de aprendizado na Terra, assim como o estudante, que passa para a faculdade quando termina a escola, você me entende?

- Mais ou menos - respondeu Felipe, pensativo. - Por que é que pra mudar de escola as pessoas precisam morrer no caixão?

Ele ainda está muito impressionado com a morte do pai, tia Geninha - observou Lenita, abraçando-o -, mas confesso que tam­bém não consigo entender por que as pessoas precisam morrer para continuarem vivas...

Meus amados! A única coisa que morre é o corpo de carne, jamais o espírito que o habita. O pai de vocês continua vivo e só foi embora da Terra porque já tinha terminado a tarefa que havia se comprometido a cumprir antes de nascer. Cada um de nós tem uma tarefa e um tempo para cumpri-la, ninguém vai à Terra só para passear...

Eu não concordo com a idéia de que meu pai tenha terminado essa tarefa de que a senhora fala. Ele ainda queria conquistar muitas coisas no trabalho dele, ainda precisava ensinar mais um montão de coisas pra nós, que somos seus filhos... - argumentou Juliana.

Será que não? - ponderou o enfermeiro, que até então se mantivera calado. - Será que todas as sementinhas que ele preci­sava plantar dentro de vocês já não estão plantadas? Afinal, pelo que posso observar, tanto você quanto seu irmãozinho são pes­soas bastante maduras e equilibradas, apesar da pouca idade.

Isso é verdade - concordou Lenita. - Tanto um quanto o ou­tro possuem um caráter fora do comum. Alberto sempre se preocu­pou em conversar muito com eles, em passar-lhes valores, bons exemplos...

Mas onde está meu pai? - insistiu Felipe.

O pai de vocês está se recuperando aqui neste hospital, mas, como eu já expliquei, vocês ainda não podem visitá-lo - revelou tia Geninha.

Mas nem um pouquinho? - choramingou Felipe. - Eu pro­meto que só vou olhar um segundo pra ele e...

Você já imaginou se ele acorda justamente naquele segun­do? Como é que você vai explicar pra ele que eleja morreu e que você não vai poder ficar aqui com ele? - explicou pacientemente o enfermeiro.

Ele está dormindo desde o dia do acidente? - quis saber Juliana.

Sim. Em geral, as pessoas experimentam uma fase de torpor após seu desligamento do corpo. Essa sonolência, que é mais uma prova do amor de Deus por nós, impede que haja um sofrimento muito grande no período imediato ao desencarne.

E ele não vai acordar? - tornou Felipe preocupado.

Claro que vai - garantiu o enfermeiro -, só não podemos precisar quando. Acreditamos, porém, que o efeito do magnetis­mo espiritual que o fez adormecer já esteja quase no fim.

E nós vamos poder esperar? - perguntou Juliana.

Eu vou ficar aqui até ele poder me ver - afirmou Lenita.

- Não é bem assim, Lenita - discordou tia Geninha. Dentro de poucos minutos, infelizmente, vocês terão de voltar a seus corpos.

- Mas... - decepcionou-se Lenita.

O importante é que, graças à bondade de Deus, vocês tiveram o seu pedido atendido. O que queriam não era saber como ele estava?

E quem vai falar pra ele que eleja morreu? - preocupou-se mais uma vez Felipe.

Não se inquiete com isso, meu amor. No tempo certo, ele vai descobrir - garantiu tia Geninha.

-Tadinho do meu pai... - suspirou Juliana, de olhos tristes e a gente não pode fazer nada para ajudado?

-           Podem e devem - sentenciou o enfermeiro.

E a primeira coisa é não ficar chorando o tempo todo - com­plementou tia Geninha. - Sempre que sentirem saudades dele, o ideal é canalizar essa saudade numa prece sincera, desejando, do fundo de seus corações, que ele esteja bem, que também esteja en­contrando forças para vencer os momentos difíceis.

Ontem mesmo um amigo de vocês enviou para o Alberto um bonito vaso de flores amarelas com uma forte mensagem de encorajamento - observou o enfermeiro.

-Vaso de flores amarelas?! - perguntaram juntos Felipe e Ju­liana surpresos.

- Mas como é que... - tentou raciocinar Lenita.

- Sim, aconteceu exatamente o que vocês deduziram. Trata-se do mesmo vaso que vocês receberam em sua casa. Como, porém, João Vítor o escolheu pensando no amigo, desejando que Alberto também pudesse recebê-lo, os bons espíritos que o acompanha­vam naquele momento plasmaram uma cópia e a trouxeram para alegrar o quarto de seu pai - explicou tia Geninha.

- E o que é plasmar? - quis saber Juliana.

Plasmar é modelar com fluidos espirituais aquilo que está no pensamento de uma pessoa, criar uma forma a partir de um pensamento. Na espiritualidade, podemos fazer cópias de todos os objetos humanos dessa maneira - ensinou o enfermeiro.

Que interessante... E nós vamos lembrar de tudo isso quan­do a gente acordar? - quis saber Juliana.

De tudo, eu acho um pouco difícil. Mas, certamente, esse encontro ficará, de alguma maneira, gravado na memória de vo­cês - asseverou tia Geninha.

- E quando poderemos voltar? - tornou Lenita.

-Tudo só vai depender do merecimento de vocês. Se conse­guirem manter seus pensamentos elevados, trabalhando sempre no bem e emitindo vibrações de paz e resignação, poderão voltar muitas vezes - explicou o enfermeiro.

Tonta com tantas informações, Lenita permaneceu algum tempo calada e pensativa, até que arriscou mais uma pergunta ao enfermeiro:

- Se nós conseguirmos fazer tudo como o senhor falou, pode­remos voltar todos os dias?

O enfermeiro tomou carinhosamente suas mãos e procurou escolher as palavras com o máximo de cuidado antes de instruí-la:

Lenita, querida, você precisa entender que a missão de Alber­to na Terra terminou, mas que a de vocês continua. E claro que os laços de amor construídos ao longo de todos esses anos de convi­vência não se romperão de uma hora para outra. Contudo, você precisará ser forte o bastante para construir uma vida independen­te do Alberto. Ele também terá trabalhos a fazer e, sobretudo, mui­tas coisas a aprender aqui no plano espiritual. Não seria bom para nenhum dos dois caso se mantivessem fixados um no outro o tempo todo. Portanto, para o bem de vocês dois, procure pensar em outras coisas, aproveitar a sua oportunidade de crescimento e aprendiza­do na Terra. Pode ter certeza de que nós estaremos cuidando bem do Alberto enquanto isso.

E o que será de nós? Quem cuidará de nós? - emocionou-se Lenita.

Antes, porém, que ela começasse a chorar, tia Geninha apro­ximou-se, tranquilizadora, e, tocando-lhe o ombro esquerdo com carinho, disse com firmeza:

- Eu estarei a seu lado, querida. Você sentirá a minha presença.

Lenita, Juliana e Felipe ficaram por alguns instantes cabisbai­xos, pensando nas palavras de tia Geninha e do enfermeiro, até que ele convidou:

- O tempo se esgotou. E hora de partir. Que tal se fizéssemos, agora, uma oração de agradecimento ao Pai, pedindo-lhe pelo rá­pido restabelecimento de Alberto?

Dizendo isso, ele tomou a mão de Lenita, que segurou a mão de Juliana, que, por sua vez, agarrou a mãozinha de Felipe e tia Ceninha fechou a roda. O enfermeiro, então, proferiu sentida prece em nome de todos: .

- Querido Pai de amor e bondade, nós te agradecemos por esta oportunidade de poder estar aqui, reunidos por amor a nosso irmão Alberto, e te pedimos, Pai, que ele possa acordar em breve, sem mágoas ou revoltas, conformado e restabelecido, pronto para iniciar mais uma etapa do seu desenvolvimento espiritual. Quanto a nós, Senhor, que possamos retomar nossas tarefas com alegria e resignação, e dar de nós o melhor possível para que um dia possa­mos voltar a conviver juntos na espiritualidade maior, na mais completa harmonia. Assim seja.

Após a emocionada prece do enfermeiro, embora nem Lenita nem as crianças pudessem perceber, o local havia sido inundado por flocos azulados que caíam sobre suas cabeças e penetravam-lhe os corpos, trazendo-lhes uma confortável sensação de bem-es­tar. Os três, então, abraçaram mais uma vez tia Geninha e segui­ram o enfermeiro em direção ao portão por onde haviam entrado, carregando uma imensa paz em seus corações.

 

Os mesmos flocos azulados que envolveram Lenita, Juliana e Felipe, após a prece, também surgiram no quarto onde Alberto se encontrava e penetraram seu corpo adormecido. Poucos minutos depois, ele começaria a despertar.

Sentia a cabeça pesada, o peito dolorido e muita sede. Abriu os olhos e buscou com o olhar uma garrafa d'água. Só então perce­beu que aquele não era seu quarto e que estava deitado numa cama de solteiro. Onde estaria? Como teria chegado até ali? Lem­brou-se, então, da entrevista com o presidente e tentou levan­tar-se, mas não conseguiu. Estava muito fraco. Será que estava num hospital?

Puxou pela memória, mas tudo o que conseguia visualizar eram cenas esparsas, sem muita ligação entre si. Lembrou-se da dor que sentira no metrô, do relógio marcando quinze para as nove, do balconista da lanchonete dizendo que ele tinha muita saúde. Será que passara mal na lanchonete? E Lenita? Por que não estava ali com ele? Percebeu então o vaso de flores a seu lado. Quem as teria trazido? E que fraqueza era aquela que o impedia de levantar-se? Precisava ligar urgentemente para o escritório.

Já ia tentar levantar-se novamente, quando a porta se abriu e entrou o enfermeiro, carregando uma bandeja, sobre a qual havia uma jarra, com um líquido vermelho em seu interior, e um copo.

- Bom-dia, Alberto. Como se sente?

Com muita dificuldade, Alberto conseguiu sentar-se na cama e olhou fixamente para o enfermeiro.

Quem é você? Que lugar é este? Ai... como dói a minha cabe­ça... E aqui no peito... Preciso de um gole de água...

Tome - disse-lhe o enfermeiro, estendendo-lhe o copo -, beba isto. Vai lhe fazer bem.

Mas isto não é água - retrucou Alberto. - Preciso falar com um médico. Tenho a impressão de que estou prestes a ter um enfarto.

Beba o remédio, como lhe pedi, e volte a deitar-se - aconse­lhou o enfermeiro. - Você precisa descansar.

Mas como é que eu vou beber uma coisa que eu nem sei o que é? Você está pensando que eu estou de brincadeira?

Fique tranqüilo. E apenas um fortificante. Foi o doutor Már­cio quem receitou. Vamos, beba.

Alberto olhou para o copo, desconfiado, e bebeu o líquido de uma só vez:

Até que não é ruim. Mas, escute, quem é esse doutor Már­cio? Meu médico se chama Augusto Chaves, será que você não po­deria entrar em contato com ele? O telefone está na minha cartei­ra que está... - olhou em torno, procurando algo. - Onde estão minhas roupas e minha carteira?

Por ora, você não vai precisar de nada disso. Agora deite-se e tente dormir um pouco.

Mas como não vou precisar de nada disso? E quem vai pagar a conta deste lugar? Eu... Uáaa-abre aboca de sono-, está me dando uma moleza... Acho que vocês puseram algum sonífero nesse..

O enfermeiro se aproxima, ajudando-o a deitar-se:

-           Não se preocupe com dinheiro. Você não terá de pagar nada aqui. Agora procure descansar. Você precisa se refazer. Tenho cer­teza de que, quando acordar, estará se sentindo bem melhor.

Dominado pelo sono e pela fraqueza, Alberto se viu obrigado a obedecer ao enfermeiro. Aos poucos, sentia todo o seu corpo amolecer, como se estivesse dopado. Antes de fechar os olhos, po­rém, ainda conseguiu fazer um último pedido ao enfermeiro:

-Aqui não tem um telefone? O pessoal do escritório precisa saber que estou aqui. Minha mulher se chama Lenita e o telefone dela é 543...

Alberto adormeceu antes de conseguir terminar a frase. O enfermeiro o cobriu com cuidado, recolheu o copo e saiu do quarto.

 

Naquele dia, Lenita, Juliana e Felipe acordaram extrema­mente bem dispostos. Todos tinham a certeza de que haviam so­nhado com Alberto, embora nenhum deles se lembrasse de mui­tos detalhes do que efetivamente acontecera. Apenas Juliana conseguia se recordar dos fatos daquela noite de uma maneira mais organizada, numa seqüência com começo, meio e fim que apresentava algum sentido lógico. Por razões óbvias, porém, por mais que se esforçasse, ela não conseguia se lembrar do encontro com o pai, mas apenas da conversa que tivera com alguém no lo­cal onde este se encontrava.

Os três conversavam sobre isso na mesa do café da manhã es­pecialmente preparada por Lenita, que acordara cedo e fora à pa­daria comprar os mais variados tipos de pães e biscoitos para fazer uma surpresa às crianças. Para completar a surpresa, tinha passa­do horas se arrumando diante do espelho. Escolhera um antigo conjuntinho azul que a deixava muito bonita, tendo prendido seus longos cabelos lisos com um arco da mesma cor.

Eu me lembro da gente conversando com um enfermeiro que dizia que o papai estava dormindo e não podia ser acordado -contava Juliana. - Esse enfermeiro parecia uma pessoa muito boa e pedia a nós que não chorássemos para não incomodar o papai -e fixando os olhos em Lenita: - Nossa... mas como você fica char­mosa com esse conjunto!

Obrigada, querida agradeceu Lenita. - Mas, nesse seu sonho, o enfermeiro pedia para que a gente não chorasse só no so­nho ou na nossa vida também? - interessou-se Lenita.

Juliana ficou séria e olhou para o teto, como se buscasse en­xergar alguma coisa na mente.

- Agora eu - atalhou Felipe -, no meu sonho, eu, a mamãe e a Ju estavam...

Estávamos - corrigiu Lenita.

Estávamos passeando numjardim igualzinho ao que eu falei ontem - continuou Felipe. - Aí aparecia o papai, a gente começava a brincar e ele dizia que ia pra faculdade...

Lembrei! - cortou Juliana. - O enfermeiro dizia que a gente não podia chorar enquanto estivesse lá, para não acordar o papai, e também na nossa vida, porque a gente ainda tem um montão de coisas para fazer por aqui e, se nós só ficarmos pensando no papai o tempo todo, vamos acabar atrapalhando a nossa evolução e a dele também.

Engraçado - emendou Lenita -, não sei como você conse­gue se lembrar de tantos detalhes de um sonho... Eu raramente consigo me lembrar de alguma coisa...

Eu também me lembro - afirmou Felipe. - Lembro das flo­res do jardim, do papai dizendo que ia pra faculdade e...

-           Está certo, Felipe, você já falou isso - interrompeu-o nova­mente Juliana. - Mas você não disse que tinha sonhado com ele também, Lenita?

-Eu disse - confirmou Lenita -, mas... como é que eu vou ex­plicar... é muito mais uma sensação que eu tenho do que uma lembrança... A única coisa de que eu me lembro com clareza é de alguém, talvez o próprio Alberto, me dizendo que ele tinha rece­bido um vaso de flores igualzinho a esse que o João Vítor mandou para nós e ... não sei, parece tudo tão embaralhado na minha ca­beça... Tenho a impressão de que a minha tia Geninha também estava no sonho. Você se lembra dela, Juliana?

-Claro... - concordou Juliana-, quando você fala me dá a im­pressão de que ela também estava no meu sonho, mas não consigo me lembrar direito dessa parte...

Depois de muito conversarem sobre o sonho, Juliana e Felipe foram tomar banho e Lenita ficou selecionando anúncios de em­pregos no jornal. Tinha feito três anos da faculdade de letras, pre­tendia se especializar em português e inglês, mas, quando faltava apenas um ano para terminar o curso, engravidara de Felipe.

Na época, foi a maior confusão. Ela namorava com Alberto havia apenas alguns meses, e vivia no Rio com uma tia, a tia Geni­nha, então uma velhinha já bem caduquinha, que era irmã de sua avó materna. Seus pais, Conrado e Celina, viviam na Inglaterra já há dez anos - onde ele trabalha até hoje como diplomata - e fora um custo convencê-los para que a deixassem voltar ao Rio para completar seus estudos. Embora nunca tivesse experimentado di­ficuldades com a língua inglesa, Lenita, que sonhava um dia se tornar escritora, não conseguia escrever tão bem em inglês quanto em português. Por isso, insistira tanto para voltar ao Brasil. Acre­ditava que, no curso escolhido, poderia aperfeiçoar simultanea­mente seu inglês e seu português, e argumentava com o pai que não fazia sentido permanecer na Inglaterra para aprender a es­crever melhor em seu próprio idioma.

Como o pai não admitisse, em hipótese alguma, que ela mo­rasse sozinha numa cidade como o Rio de Janeiro, e não lhes res­tasse nenhum outro parente vivo no local escolhido, a única solu­ção foi apelar para a velha e boa tia Geninha, que a acolheu prontamente, com todo o carinho.

Quando Lenita engravidou, tia Geninha prometeu guardar segredo, mas como sua esclerose já andasse bastante adiantada, não foi capaz de manter a promessa por muito tempo. Acabou contando tudo à sua mãe por telefone, numa tempestuosa tarde de domingo. Quando voltou para casa naquele dia, Lenita encon­trou a tia em prantos:

- Lenita, querida, acho que esta sua tia velha aprontou uma confusão dos diabos... - dizia ela, chorando. - Tomara que Deus me castigue e me leve daqui antes de seus pais chegarem...

Em seu desespero, Lenita só conseguia dizer:

- Mas, titia! Por que é que, em vez de esquecer que não podia contar, a senhora não esqueceu o que não podia contar?

Na tarde do dia seguinte, Conrado e Celina aterrissavam no Rio, decididos a fazer com que o rapaz assumisse 'seu erro', por bem ou por mal. A situação piorou ainda mais quando Conrado descobriu que Alberto era 'reincidente', ou seja, que já tinha colo­cado outra filha no mundo nas mesmas condições, e, ainda por cima, assumira sozinho a responsabilidade. "E como Lenita iria começar a vida com duas crianças? E se a menina rejeitasse Leni­ta?", inquietava-se Celina.

Com sua lábia de publicitário, no entanto, Alberto não teve muita dificuldade em conquistar os sogros, que logo se encanta­ram com a doçura de Juliana. Assim, dois meses depois, Lenita en­trava na igreja nos braços de um Conrado todo orgulhoso.

Tia Geninha foi madrinha do casamento, e morreu pouco tempo depois de Felipe nascer.

Agora, lembrando-se de tudo isso diante do jornal aberto, Le­nita sentia saudades da boa tia e pensava o quanto ela havia insisti­do para que não abandonasse os estudos.

- Mesmo que seu marido ganhe muito dinheiro, você tem que ter estudo - dizia ela. - Uma mulher não pode viver somente à sombra do marido, tem que ser independente. Eu não pensava as­sim quando tinha a sua idade e acabei viúva e burra!

Lenita sorriu ao lembrar-se das palavras da tia e disse alto:

- Ah, tia Geninha... Por que eu não ouvi seus conselhos? E agora? Vou arrumar emprego de quê?

Nesse momento um forte vento entrou pela janela e virou a página do jornal que estava aberto no colo de Lenita. A moça de­parou-se então com um grande anúncio no centro da página, com letras em negrito que diziam: "editora de renome procura jovens com bom conhecimento da língua inglesa escrita para trabalhos de tradução e revisão de textos originais".

Ao ler o anúncio, Lenita não pôde conter as lágrimas de emoção. Fechou os olhos e deixou sair as palavras que ecoavam em seu íntimo:

-Tia Geninha, onde quer que a senhora esteja, muito obriga­do por este auxílio, porque eu tenho certeza de que foi a senhora quem me ajudou a encontrar este anúncio! Que Deus a abençoe e a proteja sempre!

Juliana e Felipe, que entravam na sala no momento em que Lenita fazia sua prece em voz alta, ficaram parados observando-a, sem entender direito o que estava acontecendo. Em sua sensibili­dade infantil, porém, Felipe notou quando uma senhora se apro­ximou de Lenita e a abraçou, dizendo:

- Que Deus te abençoe, minha filha. Daqui por diante eu esta­rei sempre ao teu lado, te protegendo.

Em seguida, tia Geninha olhou para Felipe, sorriu para ele e desapareceu. Assustado, o menino correu até a mãe e perguntou:

- Mamãe, mamãe, quem era aquela moça que estava falando com você?

Juliana o seguiu intrigada:

- Que moça, Felipe? A Lenita estava falando sozinha... Lenita, que já estava convencida da incrível sensibilidade do

filho, apenas olhou-o admirada e perguntou:

- Então você viu a tia Geninha aqui do meu lado?

Hum, hum - concordou ele com a cabeça. - Ela parecia legal e era também um pouco parecida com a vovó.

Eu não estou entendendo nada do que vocês estão dizendo -tornou Juliana.

Depois eu te explico - disse Lenita, sorrindo para Felipe. -Agora vamos, que eu vou deixar vocês na escola, conversar com a diretora e aceitar um emprego ótimo que eu acabei de descobrir no jornal.

-Você vai trabalhar mesmo? Que legal! - comemorou Juliana.

- Se Deus quiser, Juliana, um dia eu ainda vou conseguir me tornar uma grande escritora - afirmou Lenita, contente, enquan­to passava batom diante do espelho da sala.

- E eu vou ser seu empresário! - garantiu Felipe.

Os três riram. Lenita retocou mais uma vez o penteado, pe­gou a bolsa, abriu a porta e fez sinal para os dois:

- Varm'bora cambada! A vida nos espera!

 

João Vítor subiu as escadas rolantes do metrô e ficou parado diante do sinal em que Alberto morrera. O sinal estava verde. Os carros passavam depressa e João Vítor não conseguia parar de imaginar a cena da morte do amigo. Lágrimas escorriam-lhe dos olhos, mas ele estava tão concentrado em suas divagações que nem se dava conta disso. A maioria das pessoas, absortas em seus próprios pensamentos e preocupações pessoais, também não. Uma senhora bem vestida a seu lado, porém, notou-lhe a emoção e ficou encarando-o, como que para ter certeza do que estava ven­do. Era realmente estranho ver aquele homem alto e corpulento, tão elegante em seu terno de linho, com os olhos chorando como os de uma criança sentida e acuada. Pungida por aquela imagem, a senhora não resistiu e tocou-lhe os ombros:

- Meu filho, vejo que você não está bem... Posso ajudá-lo em alguma coisa?

Como que despertado de um sonho distante, João Vítor as­sustou-se com o toque. Instintivamente levou as mãos à face e só então se deu conta de que seus olhos choravam. Envergonhado, enxugou rapidamente as lágrimas com as costas das mãos e olhou com ternura para a senhora:

Muito obrigado pela sua atenção. É que sem querer eu me lembrei de um amigo que morreu aqui há pouco tempo e... veja! O sinal fechou.

Eu também vou atravessar - respondeu a senhora, acompa-nhando-o. - Me desculpe a indiscrição, mas este seu amigo por acaso se chamava Alberto?

-Sim-respondeu João Vítor, surpreso-, a senhora o conhecia?

- E como. Trabalhávamos juntos naquele prédio - respondeu ela, apontando para a empresa em frente.

- É mesmo? - tornou João Vítor, ainda mais surpreso. - Eu es­tou indo justamente para lá.

Ali! Então o senhor só pode ser o João Vítor!

Os dois chegaram ao outro lado da rua e pararam na entrada do prédio. João Vítor estendeu-lhe a mão:

- O próprio, muito prazer! Mas como a senhora sabia? -Alberto falava muito de você. Sou Catarina, a secretária do presidente. Vamos subir?

Claro! - respondeu João Vítor, acompanhando-a. - Mas que coincidência incrível!

Um dia você vai descobrir que coincidências não existem -comentou Catarina, bem humorada, fazendo um sinal para a re­cepcionista do prédio, indicando que João Vítor estava com ela.

O prédio era bastante luxuoso. João Vítor e Catarina desce­ram do elevador no décimo segundo andar e ela o conduziu até a ante-sala do presidente, onde ela trabalhava.

- Aceita uma água ou um cafezinho? - perguntou a ele, logo que entraram.

- Não, obrigado. Acabei de almoçar.

- Então sente-se um pouquinho que eu vou verificar se o pre­sidente já voltou do almoço - explicou Catarina, abrindo a porta que dava para a sala do presidente.

Em poucos segundos ela retornava, trazendo alguns papéis que encontrara sobre a mesa do presidente:

- Ele ainda não voltou, mas, antes de sair, deixou tudo isto aqui para eu digitar. Tem certeza de que não aceita mesmo um ca­fezinho?

-Obrigado, eu quase não tomo café-respondeu João Vítor.

- Pois então você não se parece nada com o Alberto. Ele toma­va quase duas jarras por dia. Posso até vê-lo batendo na porta, no final do expediente, dizendo: "Dona Catarina, por acaso não so­brou nenhum golinho de café da diretoria?" Todo santo dia era a mesma coisa...

Durante mais de meia hora, João Vítor e Catarina ficaram a conversar, enquanto ela digitava os documentos no computador. Quanto mais conversavam, mais João Vítor tinha a sensação de que já a conhecia há muito tempo. Tamanho era o carinho com que ela falava de Alberto, que ele podia intuir que o amigo e Cata­rina também tinham aquela mesma sintonia.

- E quando foi que vocês se conheceram? - quis saber Catarina.

Nós crescemos juntos. A casa de meus pais, no bairro de São Cristóvão, ficava ao lado da casa dos pais do Alberto. Ele era dois anos mais velho que eu, mas, como nós dois éramos filhos únicos, nós sempre brincamos juntos.

Mas na escola vocês estudavam em classes separadas... -imaginou Catarina.

- Por muito pouco tempo. Como meus pais trabalhavam numa fábrica e viviam ocupados, eu entrei na escola um ano antes do normal. Fui alfabetizado com cinco anos, a senhora acredita?

Mas o Alberto era pelo menos um ano na sua frente, não era? - calculou a secretária.

Era, mas acontece que no quarto ano, quando a mãe dele morreu, ele tomou bomba, e desde então nunca mais nos separa­mos. Depois que a mãe dele morreu, inclusive, ele passou a morar lá em casa, porque o pai dele não tinha o menor jeito para cuidar de crianças, e a minha mãe morria de pena do Alberto. Imagina que os dois passaram um mês comendo sardinha com salsicha, porque o pai do Alberto tinha vergonha de pedir ajuda aos vizi­nhos... Coitado... Logo depois, ele morreu. Acho que foi de sauda­des da mulher.

- E o Alberto então passou a morar definitivamente na sua casa?

- Foi. Sabe, a vida inteira a gente teve essa ligação de irmão... Por isso fiquei tão triste quando aconteceu o que aconteceu e nin­guém se lembrou de me avisar... Não pude nem me despedir dele... - lamentou João Vítor, com os olhos marejados.

Percebendo sua tristeza, Catarina tentou retomar o rumo ale­gre da conversa:

- O mais incrível é que até a faculdade vocês fizeramjuntos!

- Pois então! - recompôs-se o rapaz. - A gente só se separou quando o Alberto veio trabalhar aqui.

- E na época você trabalhava onde? - tornou Catarina.

Ah, eu demorei bastante para me fixar. Trabalhei em várias agências de publicidade, mas só conseguia arranjar vaga na área de produção gráfica, e não tinha o menor jeito para isso...

Eu me lembro que, na época em que o Alberto se casou com a Lenita, ele andou querendo que você o substituísse durante o pe­ríodo que ficaria afastado em lua-de-mel... - recordou Catarina.

-Justamente. Foi nessa época que eu fui convidado para tra­balhar em São Paulo, numa empresa como esta. Por isso, não acei­tei -justificou o rapaz.

A porta se abriu e entrou o presidente, sr. Fernão Fernandez Ferraz. Pela sua fisionomia, já se via que era um homem duro e ob­jetivo, cuja expressão facial não comportava espaço para muitas emoções. Dona Catarina apresentou-lhe João Vítor, ele o cumprimentou secamente e o convidou para entrar.

A reunião durou cerca de quinze minutos. Sempre muito obje­tivo, o sr. Fernandez Ferraz explicou que seu funcionário de maior confiança, que ocupava o cargo de diretor executivo da empresa, se aposentara. Assim, havia convocado uma reunião com Alberto, no dia em que ocorrera o acidente, justamente para discutir a possibili­dade de trazê-lo de São Paulo para assumir o cargo. João Vítor che­gou a sentir uma pontada de ódio dentro do peito, no momento em que o presidente disse isso. Teve vontade de dar-lhe um soco na tes­ta e deixá-lo falando sozinho. Afinal, mais do que ninguém, ele sa­bia o quanto Alberto estava apto para a vaga e o quanto havia lutado por ela. Pensando nisso, porém, decidiu escutá-lo até o fim, dispos­to a encontrar uma brecha para defender o amigo do discurso cíni­co e arrogante do presidente.

- Não pense que está aqui - continuou o Sr. Fernandez - em nome de sua amizade com o falecido Alberto, que Deus o tenha. Fui informado, porém, que você é um dos mais competentes dire­tores executivos na área, e ofereço-lhe o dobro de seu salário para que aceite a vaga. O que me diz?

João Vítor estava surpreso. Quando fora chamado para a en­trevista, imaginara que Alberto pudesse ter deixado algum traba­lho incompleto e que, sabendo-o seu amigo, eles o tivessem cha­mado apenas para pedir que terminasse o serviço, já que, como era sabido por todos na empresa, mesmo à distância, os dois sem­pre trocavam idéias sobre seus projetos. Todavia, o que o dr. Fer­nandez Ferraz ignorava era que, no próprio dia da morte de Alberto, João Vítor havia pedido demissão da empresa em que tra­balhava, por discordar da maneira irresponsável com que a mes­ma vinha investindo na construção da imagem de políticos cor­ruptos e inescrupulosos. Aquela, no entanto, não deixava de ser uma oportunidade de vingar o amigo, e até mesmo de homena­geá-lo, assumindo a vaga com que ele tanto sonhara. Mas valeria a pena todo aquele sacrifício? Agüentar aquele homem arrogante todos os dias só para homenagear Alberto?

- O senhor me ouviu? - chamou-o à realidade o presidente.

Se o senhor me pagar o triplo do salário, eu aceito - cartou alto João Vítor, como que a pleitear uma resposta do destino para suas indagações.

Então estamos conversados. Espero o senhor amanhã, às nove e meia, para lhe passar suas atribuições.

João Vítor deixou a sala do presidente tão desnorteado que nem se despediu direito de Catarina.

Voltou para o apart-hotel onde estava hospedado, abriu uma garrafa de whisky e pôs-se a ruminar sua revolta íntima. Lem­brou-se de todas as conversas que tivera com Alberto sobre a em­presa, da subserviência do amigo, de seu desespero por aquela vaga. Quanto mais pensava, mais aumentava seu ódio por Fernão Fernandez Ferraz.

Depois de uns quatro copos de bebida, chorava como criança, recordando-se dos bons momentos que vivera ao lado de Alberto. Quando finalmente adormeceu, já passava das duas da madrugada.

 

O enfermeiro entrou no quarto de Alberto e o encontrou sen­tado na cama, com os olhos muito tristes:

- Alberto, o que aconteceu? Você parece abatido...

E como se eu ouvisse a voz do meu amigo João Vítor. Ele di­zendo que precisa de mim... Então me vejo sendo atropelado por um táxi e meu coração começa a doer como se fosse explodir...

Isso é normal - explicou o enfermeiro. - Você está começan­do a se lembrar. Procure não pensar nisso.

Escute, eu não estou começando a me lembrar, eu já me lem­brei. Eu sei que eu fui atropelado e que tive um enfarte. Ou que tive um enfarte e fui atropelado, que importa isso? Só não entendo como eu vim parar aqui, neste hospital, por que não me deram ne­nhum medicamento e...

- Você está sendo medicado - garantiu o enfermeiro.

- Como estou sendo medicado, se nem soro estou tomando? E por que minha família não está aqui comigo? Vocês avisaram pelo menos à minha esposa que eu estou aqui?

Antes que o enfermeiro pudesse responder qualquer coisa, a por­ta se abriu e entrou o dr. Márcio, de aspecto alegre e bem-humorado:

-Alberto, como tem passado? Eu sou o dr. Márcio, soube que você queria me ver.

Finalmente! - redarguiu Alberto. - Há dias que eu lhe man­do recados! Espere... há quantos dias exatamente estou aqui?

O tempo não mais importa para você, Alberto - respondeu o médico. - Na verdade, você está iniciando um novo tempo.

- Como iniciando um novo tempo? - irritou-se Alberto - O que você quer dizer com isto? Isso aqui, por acaso, é algum hospí­cio? Exijo ser removido daqui, imediatamente, entendeu?

Aconselho-o a não se exaltar - retemperou o dr. Márcio. -Isso pode atrapalhar muito a sua recuperação.

Por quê? - tornou Alberto, ainda mais exaltado. - Por acaso es­tou aqui como prisioneiro? Quero ver minha família... Quero... Ai...

Alberto interrompeu a frase, transtornado de tanta dor no peito. Sentia-se como se fosse ter outro enfarto, empalideceu, des­maiou de dor. O dr. Márcio correu até a porta e gritou por ajuda:

- Depressa! E uma emergência! Tragam os vibradores energé­ticos...

Quatro enfermeiros entraram em seguida, carregando um es­tranho aparelho.

Um dos enfermeiros projetou, então, uma luz verde, de efei­tos calmantes, sobre o peito de Alberto, desacordado, enquanto os demais ocupantes da sala faziam uma corrente em torno da cama, muito concentrados.

Tempos depois, quando Alberto acordou, deparou-se com uma senhora sentada a seu lado. Ela segurava um pote transpa­rente com um espesso caldo dentro.

-Alberto, querido, sente-se melhor? - perguntou ela. - Veja -estendeu-lhe o pote -, trouxe isto para você.

Alberto sentou-se na cama, pegou o pote um tanto desconcerta­do e sorriu para ela, sem graça. Os dois passaram então alguns minu­tos em silêncio, ele com cara de assustado, ela sorrindo para ele.

- Experimente - convidou ela, estendendo-lhe também uma colher -, é uma sopinha, fui eu mesma quem fez. Preparei espe­cialmente para ajudá-lo em sua recuperação.

Alberto molhou a ponta da colher no caldo, olhou ressabiado mais uma vez para a senhora, e acabou por levar a colher à boca.

Ao que tudo indica, aprovou o paladar: segundos depois, sorvia avidamente todo o conteúdo do pote. Parecia estar com muita fome.

- Eu sabia que você ia gostar - observou a senhora, satisfeita. Ela caminhou até a mesa, pegou um prato de frutas coloridas

e diferentes e o levou até Alberto:

- Experimente também estas frutas que o enfermeiro acabou de deixar aqui. Tenho certeza de que vai apreciar.

Alberto pegou o prato, olhou para as frutas. Escolheu uma verde, tirou um pedaço. Antes de mordê-lo, porém, ele encarou novamente a senhora e não se conteve:

- Desculpe-me perguntar, mas... quem é a senhora?

- Ah! - respondeu ela, simpática: - Eu é que peço desculpas por não ter me apresentado antes. Sou Amaziles, amiga de tia Geninha. Foi ela quem me pediu para vir, pois encontra-se muito ocupada.

Ela sorriu novamente para ele, que forçou um sorriso de vol­ta. "Isso aqui só pode ser um hospício", pensou consigo, "e de onde surgiu essa velha maluca? Como é que ela pode ser amiga da tia Geninha, se ela já morreu há quase sete anos?"

- No começo é assim mesmo, querido - tornou a senhora tranqüila -, a gente pensa que todo mundo é maluco... - soltou uma risadinha. Quando ela ria, seus ombros se balançavam, como se todo o seu corpo compartilhasse de sua alegria.

A porta se abriu e entraram o enfermeiro e o dr. Márcio.

- Ah! Vejo que finalmente recebeu uma visita! - observou o médico, satisfeito. - Como está, dona Amaziles?

Muito bem, obrigada - respondeu ela.

E você, Alberto, sente-se melhor? - perguntou o médico.

 

Um pouco - respondeu Alberto de boca cheia. - Assim que acabar de comer, vou me vestir e ir embora. Preciso de um trata­mento adequado.

Mas se aqui você tem tudo o de que precisa, meu filho... - ar­gumentou Amaziles.

Que nada! Cheguei à conclusão de que sofri outro enfarto e eles não tomaram nenhuma providência - afirmou Alberto, apon­tando para o médico e o enfermeiro. - Eu, se fosse a senhora, tam­bém dava um jeito de sair o quanto antes daqui.

-Você está redondamente enganado, Alberto - tornou o mé­dico, paciente. - Nós fizemos o possível.

- Então, é verdade? - indignou-se Alberto. - Eu tive mesmo outro enfarto? E você. diz isso assim? Como pode brincar dessa maneira com uma vida humana? Eu podia ter morrido!

- A morte não existe, a vida continua no plano espiritual - es­clareceu o dr. Márcio.

Sei - esbravejou Alberto -, mas acontece que eu não quero morrer. Tenho dois filhos para criar e...

Ouviram-se algumas batidinhas na porta, que se abriu lenta­mente até que surgiu a cabeça de um tímido rapaz, aparentando pouco mais de vinte anos.

Com licença... Me disseram que o quarto de Alberto era aqui e...

E aqui mesmo. Tenha a bondade de entrar, irmão - convi­dou o médico.

Ao ver o rapaz, Alberto teve uma reação de espanto. Abriu a boca, mas não conseguiu dizer nada. Foi o rapaz quem quebrou o silêncio:

Primo Alberto, que alegria revê-lo!

P... p... p... Pedro? - Alberto conseguiu dizer.

Sim, sou eu mesmo, como tem passado?

B... b... b... bem... - respondeu Alberto, sem conseguir parar de encarar Pedro com espanto.

 

Pois é. Desde que chegou venho tentando conseguir um tempo para vir visitá-lo, mas só hoje foi possível.

E como vão as coisas em sua colônia, Pedro? - perguntou dona Amaziles, gentil.

-           Su... sua colônia? - estranhou Alberto.

Sim - tornou Pedro -, eu moro numa outra colônia, que fica um pouco distante daqui. Graças a Deus, tudo vai bem por lá, dona Amaziles. Mas vejo que o primo Alberto ainda não está de todo recuperado...

Recuperado... eu... - repetiu Alberto, tentando concatenar suas idéias.

Talvez seja melhor eu voltar numa outra hora - deduziu Pe­dro. - Doutor, peço que me desculpe, mas eu não sabia que...

De maneira alguma - assegurou o dr. Márcio. - O irmão che­gou na hora certa. A providência divina sabe o que faz. Volte quan­do quiser.

Alberto continuava a encará-lo como se não acreditasse em seus próprios olhos.

- Bem - disse Pedro, estendendo-lhe a mão -, a gente se vê de novo em uma outra hora, Alberto.

Alberto deixou que o primo lhe apertasse a mão, mas não pôde dizer nada. Só quando Pedro finalmente saiu do quarto, ele conseguiu revelar o que tanto o afligia:

Não é possível! Meu primo Pedro morreu de leucemia aos vinte e dois anos! Eu estive no enterro, eu tenho certeza de que...

Como eu lhe disse, Alberto, a morte não existe, a vida conti­nua no plano espiritual - repetiu o dr. Márcio.

Alberto olhou espantado para o médico, depois para o enfer­meiro, depois para Amaziles. Os três fizeram sinal afirmativo com a cabeça.

Mas então quer dizer que... não... não pode ser... - balbuciou Alberto.

E possível, sim, meu filho - confirmou Amaziles -, não só é possível como também já aconteceu a todos nós que estamos aqui.

Alberto olhou novamente para os três seres que o rodeavam, sem saber o que dizer.

-Eu preciso ir agora, querido - despediu-se a boa senhora. -Se precisar de alguma coisa, é só mandar me chamar.

-Nós também estamos de saída - informou o médico. -Alberto precisa ficar um pouco sozinho com seus pensamentos.

Em silêncio, os três abandonaram o quarto, deixando Alberto entregue a seu espanto. Ele jamais havia se sentido tão só em toda a sua vida. Neste momento, pensou fortemente em Lenita e nos fi­lhos, e pôs-se a chorar desolado. Não era um choro de revolta, mas um choro de saudades. De muitas saudades.

 

Naquela manhã, Alberto acordou mais bem-disposto. Não sentia mais dores, tinha vontade de respirar ar puro. Aos poucos, começava a acreditar que talvez o dr. Márcio estivesse falando a verdade. Aconselhado pelo enfermeiro, decidiu descer e passear um pouco no jardim. Sua cabeça, porém, estava ainda tão confusa que ele não conseguia perceber a beleza do lugar.

Em seu caminho cruzou com algumas pessoas alegres, outras pensativas, sentadas debaixo de árvores, outras estranhas, senta­das em pleno gramado, de pernas cruzadas e com a face voltada para o sol, como que congeladas numa postura de meditação. Ou­tras ainda, de aspecto bastante debilitado, caminhavam com mui­ta dificuldade, amparadas por enfermeiros. Alberto sentou-se num banco e entregou-se a seus pensamentos.

"Será que morri mesmo?", perguntava-se. "E todas essas pes­soas? Será que também morreram? No fundo eu continuo achan­do que estou num hospício..."

Sem que ele percebesse, um homem simpático, aparentando mais ou menos a mesma idade que ele, sentou-se a seu lado e res­pondeu às suas indagações:

Sim, amigo, todos nós aqui já morremos, mas este lugar não é absolutamente um hospício.

Quem é você? - assustou-se Alberto. - Como pôde ler meus pensamentos?

É uma questão de sintonia - respondeu o homem. - Mas não se assuste, não é sempre que consigo; ainda estou me aperfeiçoando. Ah! Meu nome é Laerte, muito prazer - disse, estendendo-lhe a mão.

Qualquer pessoa aqui pode ler meus pensamentos? - per­guntou Alberto, preocupado, depois de cumprimentá-lo sem mui­to entusiasmo.

 

Lenita estava extremamente feliz naquele dia. Havia dois me­ses que tinha sido contratada pela editora, estava adorando traba­lhar como tradutora e revisora. Os textos, para uma revista femini­na, traziam sempre assuntos que a interessavam. E o melhor era que ela podia trabalhar em casa. Só precisava ir à editora uma vez por semana para entregar os textos. Com isso, podia estar mais tempo perto das crianças, ajudá-las nas tarefas de casa, preparar uma comidinha especial para elas de vez em quando.

Como havia acabado de receber seu primeiro pagamento, planejava fazer uma surpresa para os dois, preparando um prato especial para o jantar: umstrogonoff de camarão com molho de co­nhaque que ela aprendera numa das receitas da revista.

Enquanto Lenita cantarolava na cozinha, Juliana fazia seus deveres de casa e Felipe brincava de carrinho num canto da sala.

De repente, porém, uma enorme tristeza se abateu sobre os três.

Primeiro foi Lenita, que, procurando uma receita de pudim nas gavetas do armário da cozinha, encontrou antigo bilhete de Alberto e começou a chorar. Quase no mesmo instante, Juliana, que revisava uma matéria do início do ano, deu com a resposta de um exercício escrita com a letra do pai e também caiu em prantos. Sintonizado com as duas, Felipe começou a lembrar dos tempos em que o pai brincava com ele de carrinho e não conseguiu segu­rar a tristeza.

Parecia que uma nuvem negra havia pousado sobre aquela casa, minutos antes tão alegre. Até as flores amarelas, que agora fi­cavam sobre a mesa da sala, murcharam um pouco naqueles instan­tes. Completamente desmotivada em meio a tanta tristeza, Lenita desligou o fogo e foi chorar na sala com as crianças. No meio da choradeira, porém, o telefone tocou. Ninguém se animava a aten­dê-lo, mas a pessoa insistiu tanto que Lenita acabou se levantando.

-Alô? - disse, enxugando as lágrimas - Sim, é ela... Oi, João Vítor, tudo bem com você? É... A gente vai indo... É... Eu sei... Já tem mais de dois meses que ele se foi...

E o tio João? - quis saber Juliana. Lenita fez que sim com a cabeça.

Deixa eu falar com ele - pediu Felipe.

Lenita fez sinal para que ele esperasse e continuou a conversa:

- No parque, no domingo? Não posso te prometer... Preciso primeiro falar com as crianças...

- Deixa eu falar, mãe! - insistiu Felipe.

- Peraí, menino! - ralhou Lenita, sem sair do telefone. - João, tem aqui uma pessoa que quer muito falar com você... - anunciou, passando o aparelho para Felipe.

-Alô, tio? Eu tô com muitas saudades de você!... Por que não vem aqui ver a gente?... Tá todo mundo triste aqui em casa hoje... Então tá. Outro.

Felipe desligou o telefone com um sorriso matreiro e anunciou:

- Ele tá vindo!

Naquele instante, sem que nenhum dos três percebesse, o es­pírito de tia Geninha apareceu perto da janela. Ela sorriu satisfei­ta e comentou para si mesma:

- Eles não imaginam o trabalho que eu tive para convencer o João Vítor a ligar para cá...

Poucos minutos depois, a tristeza já havia passado. Lenita vol­tou para seu strogonoff, Juliana resolveu dar uma geral no quarto para esperar o tio e Felipe foi procurar a camisa do Flamengo que ganhara de João Vítor no natal passado.

Quando João Vítor finalmente entrou na sala, os três não ca­biam em si de contentamento. Era como se, abraçando-o, eles pu­dessem abraçar também um pedaço de Alberto.

Mais felizes ainda eles ficaram ao saber que João Vítor havia assumido o cargo com que Alberto tanto sonhara na empresa, e que. dali por diante, estaria sempre por perto. Numa atitude de respeito à memória do amigo, João Vítor jamais contou a eles que Alberto não fora sequer cogitado para o cargo e que não iria ser promovido no dia de sua morte, como todos imaginavam.

Juliana e Felipe idolatravam aquele 'tio', que vinha de São Paulo todos os anos, especialmente para participar das festas da família. E era tão grande a afinidade que eles tinham com ele que todas as vezes em que o encontravam, mesmo depois de seis ou sete meses de afastamento, era como se o tivessem visto no dia an­terior, jamais faltando assuntos para conversar.

Naquela noite, depois de saborearem o delicioso strogonoff de camarão que Lenita havia preparado, João Vítor passou uma hora ensinando Felipe a brincar com os times de botão que ele trouxera de presente para o garoto. Depois, foi a vez de Juliana, que, não contente em tirar suas dúvidas de história e geografia com o tio, ainda trancafiou-o em seu quarto (por isso ela tinha feito tanta questão em pôr ordem na bagunça antes que João Vítor chegasse) para tratar de um assunto particular. Na verdade, ela queria saber sua opinião sobre um problema muito grave que andava tumul­tuando a sua cabeça:

Sabe o que é, tio, é que a minha mãe anda me enchendo o saco, dizendo que eu tenho que morar na casa dela, que a Lenita não é minha mãe e aquelas coisas todas... - confidenciou Juliana.

Mas a Selene sempre disse que não tinha paciência para criar filho - deixou escapar João Vítor -, quer dizer...

Eu sei, tio, ela nunca ligou pra mim, não precisa disfarçar. Mas é que eu acho que agora tem um outro interesse em jogo, você me entende?

- Outro interesse? Como assim? - quis saber o tio.

Bom, eu nem comentei isso com a Lenita, porque eu não quero que ela fique chateada. Foi uma barra conseguir que ela saísse da depressão...

Posso imaginar... - concordou João Vítor, afagando os cabe­los de Juliana. - Você é uma menina de ouro...

- Pois é. O problema agora é que a minha mãe está querendo pedir a minha guarda de qualquer jeito. Você já pensou como a Le­nita vai ficar arrasada quando souber disso? - continuou Juliana.

Eu só não estou entendendo por que ela resolveu isso ago­ra... - observou João Vítor.

Aí é que tá! A Lenita recebe uma pensão do meu pai e a mi­nha mãe tá de olho nessa pensão. Se ela conseguir a minha guar­da, ganha o direito a...

Metade da pensão! Mas que absurdo! - exclamou João Vítor. - Você acha mesmo que a sua mãe faria isso?

Ora, tio, você não conhece a mamãe?

João Vítor pensou por alguns momentos e estalou os dedos, como quem tem uma idéia:

Não se preocupe, Juliana. Eu vou conversar com a sua mãe. Agora, caso ela não queira me ouvir, eu sei o que fazer para impe­dir que ela faça essa sujeira com a Lenita.

E o que você vai fazer, tio?

Simplesmente vou contar ao juiz tudo o que eu sei sobre ela. Você acha que, ainda assim, o juiz ia dar sua guarda para ela?

Grande, tio! - disse Juliana, dando-lhe um beijo estalado no rosto.

Já eram mais de onze horas quando Juliana e Felipe final­mente foram dormir. Só então, Lenita e João Vítor puderam con­versar. Tinham muitos assuntos para pôr em dia. Sentaram no sofá e abriram uma garrafa de vinho.

Você não imagina o quanto estou orgulhoso de te ver bem, trabalhando... - comentou João Vítor.

Sabe - respondeu Lenita, estendendo-lhe o copo de vinho -, percebi que, se eu não tocasse a minha vida pra frente, iria enlou­quecer de tantas saudades do Alberto...

- Eu só não me conformo com uma coisa, Lenita... Por que você não mandou me avisar na hora em que...num pequeno campinho de areia e juntou-se a eles. João Vítor passou um tempo observando-o, depois aproximou-se de Lenita, que estava de pé ao lado de uma árvore.

Nossa, só você para me convencer a respirar este ar puro -disse ela, inspirando satisfeita. - Ah, como eu estava precisando disto... Desde que o Alberto se foi, eu...

Respirando corretamente a gente consegue extrair energias positivas do ar - comentou João Vítor.

E como é que se respira corretamente? - quis saber Lenita, respirando ainda mais fundo.

Ao inspirar, procure encher sua barriga com o máximo de ar, forçando seu diafragma para baixo. Ao expirar - ele tocou sua­vemente na barriga dela -, procure colocar tudo o que puder para fora, encolhendo a barriga assim...

Tal como acontecera da outra vez, Lenita estremeceu ao toque de João Vítor. Muito próximos, os dois sentiram novamente um cli­ma diferente se estabelecer entre eles, e ficaram imóveis por algum tempo, olhando um para o outro como se estivessem em transe.

Nossa - disse Lenita se afastando -, tem horas em que você me lembra tanto o Alberto, chega até a me dar nervoso...

Você se esqueceu de que nós fomos criados juntos? - tornou João Vítor, bem-humorado.

Ele ainda olhava fixamente para Lenita, quando Felipe che­gou, todo suado, com as bochechas vermelhas de tanto correr:

- Mãe, tio, fiz três gois! Esses garotos não são de nada!

Mas você tá todo suado, Lipe - disse Lenita, carinhosa. - Va­mos tirar essa camisa?

Nem pensar! - respondeu Felipe, segurando a camisa. - Tô com uma fome...

-Vamos almoçar? - propôs João Vítor. - Quem chegar por úl­timo é mulher do padre!

João Vítor e Felipe partiram em disparada, em direção à saída do parque. Lenita ficou ainda alguns instantes olhando para os dois correndo alegres pelo imenso jardim, sem conseguir deixar de se lembrar das outras tantas vezes em que vira aquela mesma cena, nos tempos em que Alberto ainda era vivo. Uma sensação es­tranha invadiu-lhe o peito, e ela sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. A verdade é que, desde que acordara naquele dia, ela não conseguia parar de pensar em Alberto, um minuto sequer.

"Ah, Alberto, eu gostaria tanto que você pudesse estar aqui co­nosco agora" - mentalizou com força.

A saudade voltou ainda mais forte no momento em que ela se viu sentada à mesa com João Vítor e Felipe, num pequeno restau­rante perto dali, onde Alberto também gostava muito de ir. João Vítor não tardou a perceber sua ansiedade:

- Aconteceu alguma coisa, Lenita?

- Não sei, estou sentindo uma sensação estranha... E como se o Alberto estivesse... - lágrimas pularam de seus olhos - como se ele estivesse perto de nós agora...

Felipe arregalou os olhos desconfiado, como se espreitasse algo ao redor. Também não conseguia parar de pensar no pai, des­de que haviam saído do Jardim Botânico. De fato, Alberto estava mais próximo do que eles imaginavam. Atravessara o espaço como uma bala, sintonizado com os pensamentos de Lenita e Feli­pe, e agora encontrava-se de pé no meio do restaurante, embora não pudesse ser visto por nenhuma das pessoas encarnadas ali presentes.

Alberto abriu os olhos, ainda tonto pela brusca mudança de atmosfera fluídica, e procurou identificar onde estava. Só então percebeu Lenita e Felipe sentados numa das mesas.

- Então era verdade... Lenita, meu amor, eu consegui me sin­tonizar com você... Aqui estou! - disse, aproximando-se da mesa.

Alberto chegou a esticar o braço para tocar os cabelos de Le­nita, mas estancou de repente, ao ouvir a voz de João Vítor, que se­gurava nas mãos dela ligeiramente emocionado, dizendo:

- Isso é bobagem, Lenita. Eu também sinto muitas saudades do Alberto, mas, infelizmente, ele morreu, nunca mais vai poder estar aqui conosco...

Só nesse momento Alberto notou a presença do amigo na mesa da esposa e do filho, e sentiu ódio por ele estar ali no seu lugar.

- De jeito nenhum. Somente aqueles que vibram na mesma sintonia, e haja treino para isso. Espíritos muito elevados, porem, podem saber tudo o que vai pela nossa mente sem o menor esfor­ço, embora nós não possamos sequei detectar-lhes a presença, caso eles não queiram ser vistos - explicou Laerte, vaidoso de seus conhecimentos recém-adquiridos.

Sei. Então quer dizer que você vibra na mesma sintonia que eu... - concluiu Alberto, debochado.

-Acho que sim. Entendo exatamente como está se sentindo. No começo fiquei tão perturbado como você. Na verdade, até há bem pouco tempo ainda não estava muito legal... - confessou Laerte.

E depois? - quis saber Alberto.

Depois entendi que a gente pode continuar a ser útil mesmo após a morte e me animei. Aqui podemos aprender muitas coisas. - afirmou satisfeito.

Como por exemplo? - continuou Alberto.

Ah, são inúmeras as possibilidades. O trabalho para nós é uma necessidade, assim como o alimento que sacia e o ar que se respira. Uma pessoa que não possa fazer nada para ocupar o tem­po pode até enlouquecer de tédio - explicou Laerte.

Isso lá é verdade - concordou Alberto. - Mas o que eu pode­ria fazer por aqui? Tocar harpa com os anjinhos?

Laerte não pôde conter a gargalhada antes de retomar a se­riedade para responder:

Os serviços são os mais variados possíveis, pois, assim como na Terra, também são muitas as tarefas a desempenhar, seja no campo da produção de bens, da pesquisa, das artes, do ensino, da cura... Eu, por exemplo, quero estudar enfermagem - garantiu Laerte.

Enfermagem? Aqui? Não posso acreditar nisso - rebateu Alberto.

-Você ainda é iniciante - observou Laerte. - Aposto que ainda nem fez cursos de alimentação e volitação.

- Voli... o quê? - perguntou Alberto.

-Volitação, de volitar - Laerte fez um gesto com os braços, in­dicando o vôo. - E assim que os espíritos se locomovem.

- Muito interessante - comentou Alberto, com ar irônico. -Que mal lhe pergunte, você morreu de quê?

Enfisema pulmonar - explicou Laerte.

Com essa idade? - espantou-se Alberto.

Eu fumava muito - confessou Laerte -, e você não pode ima­ginar o que eu sofri quando percebi que havia abreviado minha própria vida... Chegando aqui, tive que aprender a...

Escute uma coisa - cortou Alberto -, você que já aprendeu tanta coisa, sabe, por acaso, como fazer para voltar à Terra?

Ah, isso é muito fácil - respondeu Laerte -, mas se eu fosse você não tentaria.

E por que não? - rebateu Alberto. - Então não sente falta de sua família, se é que tinha uma?

Sim, eu tive uma família, aliás, tenho. E foi pensando nela que fiz isso uma vez e me arrependi amargamente - confessou Laerte. - Ver a família, sem estar preparado, é uma sensação hor­rível. Você não pode imaginar...

E se eu quiser tentar assim mesmo? - insistiu Alberto.

Bom, nesse caso, é só você desejar ardentemente estar junto de sua família, fixar mesmo o pensamento nos seus que, numa questão de segundos, você estará lá. Nosso pensamento tem muita força - explicou Laerte.

Então quer dizer que...

- Não aja com precipitação, amigo - advertiu Laerte, já se despedindo. - Converse antes com seu médico, vai por mim...

Depois que Laerte saiu, Alberto ainda passou longo tempo ali sentado, com os olhos iluminados, pensando em suas palavras.

 

Naquele domingo ensolarado de outono, João Vítor chegou cedo à casa de Lenita. Alegre e bem-disposto, usando tênis e ber-muda, tocou várias vezes a campainha. De olhos sonolentos e ar­rastando seu pijaminha, dois números maior do que ele, Felipe foi quem abriu a porta. Ao dar com o tio todo esportivo, o sono logo foi embora para dar lugar a um enorme sorriso:

-Tio! Vai me levar pra passear? - disse satisfeito, já pulando no pescoço de João Vítor para um abraço apertado.

-Acertou - disse João Vítor. - Te dou dez minutos para trocar de roupa!

- Oba!!! - comemorou Felipe, correndo para o quarto.

Lenita apareceu na sala em seguida. Usava uma delicada cami­sola lilás, coberta por um penhoar da mesma cor, que deixava à mos­tra o belo contorno de seu colo. Vendo-a nesses trajes, João Vítor não pôde deixar de sentir o coração bater um pouco mais acelerado.

Bom-dia, Lenita - disse ele, sem conseguir disfarçar o brilho em seus olhos. - Vim buscá-los para respirar ar puro. O que me diz?

Eu já estou pronto - atalhou Felipe, entrando na sala de short, carregando um par de tênis e a camisa do Flamengo nas mãos.

Lenita, sentindo-se queimar pelo olhar de João Vítor, levou a mão ao decote e considerou:

Não sei se eu devo... Tenho muito trabalho a fazer e...

Ah, mãe, por favor... - pediu Felipe, já calçando o tênis.

-Hoje é domingo! - completou João Vítor. - A gente passeia um pouco, depois almoça e, antes das três, vocêjá está devolta...

Por favor, mãe! - insistiu Felipe.

Bem, eu... - titubeou Lenita.

- Que tal se nós fôssemos ao Jardim Botânico? - propôs João Vítor.

Isso, mãe, você adora ir no Jardim Botânico! - emendou Felipe. Lenita respirou fundo, olhou para os dois e sorriu:

Está bem, vocês venceram. Eu vou trocar de roupa.

- Viva!!! - comemorou Felipe - Agora só falta a Ju!

João Vítor entrou no quarto de Juliana e encontrou-a sentada na escrivaninha, triste e pensativa, rabiscando um pedaço de pa­pel. Ela não percebeu a presença do padrinho.

Posso saber por que a minha menininha está assim tão juru­ru num dia tão lindo? - disse ele, beijando-a com carinho.

Oi, tio - respondeu ela, chateada. - Ouvi vocês conversando na sala...

- E então, por que ainda não se aprontou?

- Eu não vou poder ir - tornou Juliana, sem tirar os olhos do papel que rabiscava. - Hoje é dia de ir visitar a minha mãe...

João Vítor abaixou-se ao lado dela, levantou seu rosto e os dois se abraçaram, ficando assim por algum tempo.

- Quem vê pensa até que você vai a algum enterro - conside­rou João Vítor.

Juliana sorriu:

Não. E que eu não gosto de ir na casa da minha mãe. Se eu pudesse escolher, é óbvio que eu preferia...

Eu sei que você preferia passar o domingo conosco - inter­rompeu João Vítor. - Mas ela é sua mãe. Por pior que seja, eu tenho certeza de que ela gosta muito de você. E não podemos deixar de admitir que ela foi muito legal em permitir que você continuasse a morar aqui. Pelo menos, por enquanto...

- Por enquanto, né, tio. Você já conversou com ela sobre isso?

Ainda não. Você já? - quis saber João Vítor.

- Han, han - respondeu Juliana, fazendo sinal negativo com a cabeça. No outro dia ela me ligou, pra combinar esse almoço de domingo. Mas, como ela não tocou no assunto, eu também não fa­lei nada...

-Você agiu certo-ponderou João Vítor. - Quem sabe ela mu­dou de idéia? No fundo, é natural que ela sinta ciúmes de sua rela­ção com Lenita. Eu, se fosse você, tratava a Selene com muito cari­nho, para que ela entendesse que você gosta dela, mas que prefere continuar morando aqui, porque já está acostumada.

Eu não sei se gosto dela - desabafou Juliana. - A gente foi sempre tão distante... No meu coração, a minha mãe é a Lenita...

Mas você precisa levar em consideração que foi a Selene quem te botou no mundo. A Lenita, na verdade, nem tem idade para ser sua mãe, ela é só doze anos mais velha do que você.

E no entanto a minha mãe tem trinta anos e se comporta até hoje como uma adolescente da minha idade... - reclamou Juliana.

Não seja injusta, Juliana. Será que você não se deixou influ­enciar demais pelas idéias do seu pai? Você mesma acabou de di­zer que sempre viveu distante da Selene, que não a conhece tanto como deveria. Ou gostaria...

- Por mim, ela pode mor...

João Vítor tapou-lhe a boca, delicadamente, e propôs:

- Shh... Não diga coisas das quais você possa se arrepender depois. Por que você não dá uma chance à Selene? Encontre-se mais com ela, procure descobrir as suas qualidades. Acho que isso seria muito bom para vocês duas. E claro que você não vai gostar dela da noite para o dia, do mesmo jeito que você gosta da Lenita. Mas pelo menos procure respeitá-la. Sabe, por pior que sejam os nossos pais, a gente deve sempre respeitá-los acima de tudo...

- Está certo - concordou Juliana. - Eu vou tentar. Só não sei se...

- Isso a gente discute depois. Agora, mude de roupa depressa que eu deixo você lá de carro.

Assim, João Vítor, Lenita e Felipe despediram-se de Juliana em frente ao prédio de Selene e seguiram em direção ao Jardim Botânico. O dia estava realmente radioso, desses em que a gente não vê uma só nesguinha de nuvem no céu. Um dia azul de sol. No Jardim Botânico, a temperatura estava ainda mais agradável do que na rua, graças à leve brisa que brincava por entre as árvores. Felipe logo encontrou uma turminha de meninos jogando futebol num pequeno campinho de areia e juntou-se a eles. João Vítor passou um tempo observando-o, depois aproximou-se de Lenita, que estava de pé ao lado de uma árvore.

-           Nossa, só você para me convencer a respirar este ar puro -disse ela, inspirando satisfeita. - Ah, como eu estava precisando disto... Desde que o Alberto se foi, eu...

-Respirando corretamente a gente consegue extrair energias positivas do ar - comentou João Vítor.

E como é que se respira corretamente? - quis saber Lenita, respirando ainda mais fundo.

Ao inspirar, procure encher sua barriga com o máximo de ar, forçando seu diafragma para baixo. Ao expirar - ele tocou suavemente na barriga dela -, procure colocar tudo o que puder para fora, encolhendo a barriga assim...

Tal como acontecera da outra vez, Lenita estremeceu ao toque de João Vítor. Muito próximos, os dois sentiram novamente um cli­ma diferente se estabelecer entre eles, e ficaram imóveis por algum tempo, olhando um para o outro como se estivessem em transe.

Nossa - disse Lenita se afastando -, tem horas em que você me lembra tanto o Alberto, chega até a me dar nervoso...

Você se esqueceu de que nós fomos criados juntos? - tornou João Vítor, bem-humorado.

Ele ainda olhava fixamente para Lenita, quando Felipe che­gou, todo suado, com as bochechas vermelhas de tanto correr:

- Mãe, tio, fiz três gois! Esses garotos não são de nada!

- Mas você tá todo suado, Lipe - disse Lenita, carinhosa. - Va­mos tirar essa camisa?

- Nem pensar! - respondeu Felipe, segurando a camisa. -Tô com uma fome...

-Vamos almoçar? - propôs João Vítor. - Quem chegar por úl­timo é mulher do padre!

João Vítor e Felipe partiram em disparada, em direção à saída do parque. Lenita ficou ainda alguns instantes olhando para os dois correndo alegres pelo imenso jardim, sem conseguir deixar de se lembrar das outras tantas vezes em que vira aquela mesma cena, nos tempos em que Alberto ainda era vivo. Uma sensação es­tranha invadiu-lhe o peito, e ela sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. A verdade é que, desde que acordara naquele dia, ela não conseguia parar de pensar em Alberto, um minuto sequer.

"Ah, Alberto, eu gostaria tanto que você pudesse estar aqui co­nosco agora" - mentalizou com força.

A saudade voltou ainda mais forte no momento em que ela se viu sentada à mesa com João Vítor e Felipe, num pequeno restau­rante perto dali, onde Alberto também gostava muito de ir. João Vítor não tardou a perceber sua ansiedade:

- Aconteceu alguma coisa, Lenita?

- Não sei, estou sentindo uma sensação estranha... É como se o Alberto estivesse... - lágrimas pularam de seus olhos - como se ele estivesse perto de nós agora...

Felipe arregalou os olhos desconfiado, como se espreitasse algo ao redor. Também não conseguia parar de pensar no pai, des­de que haviam saído do Jardim Botânico. De fato, Alberto estava mais próximo do que eles imaginavam. Atravessara o espaço como uma bala, sintonizado com os pensamentos de Lenita e Feli­pe, e agora encontrava-se de pé no meio do restaurante, embora não pudesse ser visto por nenhuma das pessoas encarnadas ali presentes.

Alberto abriu os olhos, ainda tonto pela brusca mudança de atmosfera fluídica, e procurou identificar onde estava. Só então percebeu Lenita e Felipe sentados numa das mesas.

- Então era verdade... Lenita, meu amor, eu consegui me sin­tonizar com você...Aqui estou! -disse, aproximando-se da mesa.

Alberto chegou a esticar o braço para tocar os cabelos de Le­nita, mas estancou de repente, ao ouvir a voz de João Vítor, que se­gurava nas mãos dela ligeiramente emocionado, dizendo:

- Isso é bobagem, Lenita. Eu também sinto muitas saudades do Alberto, mas, infelizmente, ele morreu, nunca mais vai poder estar aqui conosco...

Só nesse momento Alberto notou a presença do amigo na mesa da esposa e do filho, e sentiu ódio por ele estar ali no seu lugar, segurando as mãos da sua mulher daquela maneira. Sentiu mais ódio ainda de Lenita, por ela tê-lo esquecido tão depressa, e chegou até a cogitar, naquela fração de segundos, que os dois já ti­vessem um caso desde antes da sua morte. Transtornado com seus próprios pensamentos, Alberto sequer conseguia imaginar a pos­sibilidade de eles estarem ali numa atitude de apoio mútuo, como realmente acontecia.

Percebendo a atenção com que João Vítor tratava Lenita, Feli­pe, por sua vez, também sentiu-se enciumado e, com isso, acabou se ligando mentalmente a Alberto. Dada a sensibilidade extrema do garoto, os efeitos dessa ligação se fizeram sentir de imediato:

Mamãe, estou sentindo uma dor de cabeça... - disse ele, atin­gido inconscientemente pelos pensamentos negativos de Alberto.

Deve ser fome - disse João Vítor, passando a mão sobre a ca­beça de Felipe. - Já escolheu o que quer comer?

Quanto mais os observava, mais ódio Alberto sentia. Tanto ódio que ele nem percebeu quando um espírito semi-embriagado parou a seu lado e comentou, com o intuito de instigá-lo:

- Você vai deixar isso barato, camarada?

Quem é você? Como pôde me ver aqui? - perguntou Alber­to, muito bravo, ao espírito.

Hi! Já vi que é novato no ramo - respondeu o espírito, sol­tando uma gargalhada. - Há! Há! Eu já morri há muitos anos, ca­marada...

Um garçom parou ao lado dos dois, com uma bandeja cheia de copos de cerveja. Enquanto João Vítor pedia-lhe refrigerantes, o espírito se aproximou da bandeja e aspirou o aroma dos copos. Alberto ficou olhando estarrecido para ele, que ofereceu:

Está servido?

O que você está fazendo? - perguntou Alberto.

Ora essa, bebendo, enchendo a goela!

Mas como pode fa...

Alberto se interrompeu para ouvir Lenita falando:

- Puxa, João, eu nem tenho como te agradecer a força que você tem dado para nós... Desde que o Alberto foi embora, eu...

Alberto se aproximou ainda mais de Lenita, que parou de fa­lar e começou a se sentir mal. Ela ficou pálida.

- Lenita, você está bem? - preocupou-se João Vítor.

- Estou com tonteira, não sei... Minha cabeça também está doendo...

O espírito bateu nas costas de Alberto:

- E sua mulher, não é? Eu, se fosse você, não deixava... Incitado pelo espírito, Alberto se aproximou de Lenita e ten­tou enforcá-la, dizendo:

- Sua vadia.... Então é assim que você sente a minha falta? Eu te mato se você não terminar tudo com ele agora, ouviu?

- Isso mesmo, gostei de ver - comemorou o espírito.

Lenita se levantou, segurando o vômito, e correu para o ba­nheiro. Alberto a seguiu. João Vítor também fez menção de ir atrás dela, mas Felipe o segurou, já querendo chorar:

-Não vai... Eu tô com medo, não quero ficar aqui sozinho...

- O, Lipe... - ensaiou João Vítor, agachando-se a seu lado. -Procure ficar calmo... Acho que a sua mãe está trabalhando muito. Assim que ela voltar, eu vou pedir ao garçom para embrulhar a co­mida e a gente volta para casa, está bem assim?

Alberto voltou do banheiro e se dirigiu ao espírito:

- Ela está vomitando!

- Melhor vomitando do que beijando aquele canalha, você não concorda comigo, camarada?

- Não sei, ela...

Alberto se interrompeu de novo para ouvir a conversa entre João Vítor e Felipe, que parecia mais calmo.

- Quando a gente chegar em casa, você joga botão comigo?

- Jogo, Lipe - respondeu João, procurando Lenita com os olhos.

Felipe percebeu e mais uma vez não gostou.

- Aproveita, camarada, que o garoto está também disposto a atrapalhar o romance dos dois. E tem uma sensibilidade rara; qualquer coisa que você diz, ele capta no ato! - observou o espírito, perspicaz.

Atendendo à sua sugestão, Alberto então abraçou Felipe e sussurrou em seu ouvido:

-Você não quer que ele vá, filho. Eu sou seu pai e estou man­dando você dizer que não quer!

Felipe ficou pensativo por alguns instantes e disse ao tio:

Não, melhor não. Acho que a gente deve ficar sozinho.

O que você disse, Felipe? - assustou-se João.

Eu disse que não quero que você vá lá pra casa.

Mas o que deu em você? Se agora mesmo...

Antes que ele terminasse de falar, Alberto sussurrou nova­mente no ouvido do filho:

- Diga à sua mãe que você quer voltar para casa de táxi. De táxi, entendeu? Ela está vindo.

Felipe encarou João Vítor e disse:

- Não adianta. Eu não quero.

Depois, olhou instintivamente para a porta do banheiro, viu que a mãe se aproximava e correu ao encontro dela:

- Mamãe, vamos embora daqui...

João Vítor, boquiaberto, não conseguia encontrar uma expli­cação para o que estava acontecendo. Alberto se aproximou nova­mente de Lenita e disse:

- Obedeça! Saia daqui, agora! Agora, entendeu?

Lenita, embora não lhe registrasse as sugestões como Felipe, sentia, de alguma maneira, suas vibrações, por estar emocional­mente muito ligada a ele naquele dia. Acima de tudo, unia-os a re­volta por não poderem mais estar juntos como antigamente e esse sentimento só aumentava o mal-estar de Lenita, fazendo-a real­mente desejar sair dali o quanto antes. Com muita educação, ela tentou dizer isso a João:

- Olha, João, eu estou realmente muito mal. Acho melhor... -Vamos embora, mãe. A gente pega um táxi - insistiu Felipe.

- Eu levo vocês - levantou-se rapidamente João Vítor.

Você não quer - impôs Alberto ao ouvido de Lenita, que se mostrou ainda mais transtornada:

Acho melhor ir mesmo de táxi. Amanhã a gente se fala.

Mas... - ainda tentou argumentar João.

Lenita, porém, pegou sua bolsa, agarrou na mão do filho e saiu andando, muito pálida, deixando João falando sozinho. Antes de segui-la, Alberto fez um sinal para o espírito, despedindo-se.

- Falou, camarada! Meu nome é Xantipa - respondeu ele. - Se precisar de qualquer coisa, estou sempre por aqui.

 

Enquanto isso, Juliana também passava por maus pedaços na casa de Selene. Logo ao chegar, ela descobriu que a mãe não con­vidara apenas ela para o almoço, mas também uma imensa turma de moças e rapazes na faixa dos vinte anos, com quem costumava sair todas as noites. Ainda que não tivesse nada contra aquelas pes­soas, Juliana não se sentia nem um pouco à vontade vendo a mãe proceder com afetação e falsidade diante dos amigos. Selene an­dava de um lado para outro da casa, segurando um copo de cerve­ja numa das mãos e um telefone celular na outra, ligando para os convidados que ainda não haviam chegado. Como de hábito, usa­va um anel enorme com uma pedra preta no dedo indicador, que Juliana achava horrível. De tempos em tempos, parava diante de algum dos presentes e, sem tirar o fone do ouvido, perguntava:

- Está tudo como você gosta, cherie?

Sentada no almofadão mais escondido da sala, Juliana lem­brava-se de suas aulas de francês na escola e se perguntava irrita­da: "Será possível que ela não sabe que cherie é feminino? Querido, em francês, é chère, sua burra!"

Pouco depois, Selene finalmente desligou o celular e explicou a todos:

- A Martinha não vem porque está de ressaca, o Luca vai pas­sear de iate com o pai e a Cida ficou de passar mais tarde. Está es­perando um telefonema do Tony, de Nova Iorque.

Em seguida, ela aproximou-se de Juliana e dirigiu-se a ela com um certo carinho forçado:

Filhinha, querida, por que você está escondida desse jeito? Assim as pessoas vão pensar que eu não te dei nem um pouquinho de educação... - e dirigindo-se novamente aos convidados - Vocês conhecem a Juliana?

É sua filha? Nossa, mas eujurava que ela fosse sua irmã - co­mentou uma das moças, aumentando ainda mais a raiva de Juliana.

-Todo mundo diz isso, nao é, cherie? - tornou Selene, satisfei­ta com o comentário, beijando falsamente a filha no rosto.

Juliana sorriu sem graça e, assim que as pessoas pararam de olhá-la, puxou a almofada ainda mais para o canto e voltou para seus pensamentos:

"Ela só sabe se mostrar para os amigos. Irmã dela... era só o que me faltava... Coitada... Tão metida a rica e não tem nem onde cair morta... Só vive de pose... Que mal será que eu fiz a Deus para merecer uma mãe como essa?... Que saudades do meu pai!"

Selene, de fato, aparentava ter muito mais dinheiro do que real­mente tinha. Não trabalhava, vivia apenas com uma pensão do pai, avô de Juliana, já falecido, que fora oficial da aeronáutica. Mas nem por isso abria mão de seus inúmeros caprichos. Vestia-se sempre na última moda, ia ao cabeleireiro todas as semanas, só andava com gente da alta sociedade, perambulando por bares e boates caros. Como conseqüência, estava sempre endividada. Quando estava de caso com algum daqueles playboyzinhos ricos que ela adorava, as coisas se ajeitavam. Quando não, a solução era recorrer a Alberto.

Não foram poucas as vezes em que Juliana ouviu o pai chamar a atenção de Selene para que desse um jeito em sua vida desregra­da. Nessas ocasiões, a mãe invariavelmente culpava Alberto por ter destruído sua vida, ao engravidá-la com apenas quinze anos de idade; dizia que, se ele a tivesse assumido, na época, como d everia, ela jamais teria chegado ao ponto em que chegara. Depois de tro­carem muitos desaforos, Selene caía em pranto e Alberto acabava dando-lhe um cheque para que cobrisse suas dívidas. Ela então abria um largo sorriso, despedia-se rapidamente de Juliana e su­mia por mais alguns meses.

No fundo, Alberto tinha pena de Selene e não escondia isso de Juliana. Segundo ele contava, os dois tinham se conhecido na escola. Selene cursava a sétima série, Alberto, o segundo ano cien­tífico. Na época, ele não se conformava com o sucesso que João Ví­tor fazia com as colegas da classe e, numa festa junina, decidira en­tão atacar as meninas mais novas, para mostrar a si mesmo que também era capaz de conquistar uma garota. E foi com esse intui­to que ele se aproximou de Selene, tendo ficado extremamente sensibilizado quando ela revelou-lhe que também não tinha mãe desde os dez anos de idade. Assim, identificados em suas carên­cias, os dois começaram a namorar.

O namoro durou pouco mais de um ano. Logo que Alberto en­trou para a faculdade, chegou à conclusão de que Selene era imatu­ra demais para ele e resolveu terminar tudo. Mas era tarde. Selene estava grávida de dois meses. Inconformada, ela o chantageou de todas as maneiras. Ameaçou abortar a criança, tentou até o suicídio. Alberto e João Vítor, porém, seguraram todas as suas barras.

Quando o pai de Selene morreu, num acidente de avião, um mês depois de Juliana nascer, ela os chamou à casa dos parentes, onde estava vivendo, e entregou-lhes a criança, dizendo:

- Olha, Alberto, eu fiz a besteira, mas você também fez. Já car­reguei por dez meses esse fardo, agora é sua vez. Meus tios só ficam me jogando na cara que essa menina vai ser uma perdida como eu, e não dá mais pra ficar aqui por muito tempo. De modo que, ou vo­cês levam essa criança, ou eu vou ter que deixá-la num orfanato.

Assim, sempre ajudado por João Vítor e pelos pais do amigo, Alberto criou Juliana sozinho até que ela completasse nove anos de idade, quando ele conheceu Lenita e esta passou a dividir com ele os cuidados da menina, por quem se encantou desde o primei­ro momento. Nesse tempo todo, Selene a visitou muito poucas ve­zes. Aparecia somente no aniversário de Juliana, no natal ou então quando precisava de dinheiro; telefonava para saber notícias da fi­lha, no máximo, uma ou duas vezes por mês. Só depois da morte de Alberto, ela passaria a ligar com relativa freqüência.

Juliana pensava em tudo isso quando foi despertada pela voz rouca de um rapaz, com o rosto cheio de espinhas, que lhe esten­deu um prato de comida, dizendo:

-Tudo bem que você não queira falar com ninguém, mas pre­cisa pelo menos comer alguma coisa. Vamos, pegue...

Juliana sorriu para ele e pegou o prato. O rapaz, que trazia também um outro prato, puxou então uma almofada e perguntou:

- Posso sentar aqui com você?

- Se quiser... - respondeu Juliana, dando de ombros. Durante algum tempo os dois ficaram concentrados em seus

pratos, até que ele tomou coragem e perguntou:

É Juliana seu nome, não é?

Hum, hum - disse ela, fazendo sinal afirmativo com a cabe­ça, sem tirar os olhos do prato.

Meu nome é Paulo. Também não conheço quase ninguém aqui - continuou ele.

Então o que é que você tá fazendo aqui? Quer dizer... - corri­giu-se Juliana.

Não precisa ficar envergonhada. Eu sei que eu não tenho nada a ver com essas pessoas. Na verdade, eu moro aqui no prédio e todo mundo me conhece porque faço alguns serviços de eletricista.

Eletricista? - quis saber Juliana.

  1. Conserto tomadas, geladeiras, essas coisas... Daí, hoje de manhã a Selene me pediu para dar uma olhada na geladeira dela, que estava com um probleminha, e...

Você consertou? - perguntou Juliana admirada.

Era só um fio que estava com mau contato. Ela então falou que tinha uma filha mais ou menos da minha idade, que ela estava com medo de que você ficasse desenturmada. Insistiu tanto para que eu ficasse para o almoço que acabou me convencendo. E... cá estou estou eu....

Juliana sorriu satisfeita. Era a primeira vez que Selene fazia alguma coisa por ela. Paulo parecia ser realmente uma pessoa le­gal, era mesmo bem diferente daquele bando de riquinhos que circulava pela casa, bebendo cerveja sem parar. Não conseguindo conter a curiosidade, ela então perguntou:

E quantos anos você tem?

Eu? dezessete! E você? - quis saber Paulo.

- Eu tenho quinze, mas vou fazer dezesseis no final do ano, em dezembro.

Os dois passaram o resto da tarde conversando. Embora fosse um pouco tímido, Paulo se sentiu muito à vontade na presença de Ju­liana. Na verdade, ele nunca tinha conseguido conversar tanto com uma garota. Mas ela era tão doce, tão simpática, que as palavras iam lhe saindo da boca sem que ele precisasse fazer nenhum esforço. De­pois de algumas horas, descobriram uma incrível coincidência:

- Sua mãe trabalha naquela empresa? - disse Juliana, surpre­sa. - Meu pai também trabalhava lá, e agora meu padrinho. E como é o nome da sua mãe?

Catarina.

Dona Catarina? Eu não acredito! - exclamou Juliana ainda mais surpresa.

Eram tantas as afinidades entre os dois que eles nem percebe­ram o tempo passar. Só por volta das dezoito horas, quando quase todos os convidados já tinham ido embora, eles notaram que Sele­ne estava caída no sofá, completamente embriagada. Duas moças tentavam, em vão, fazê-la levantar-se dali e ir para o quarto.

Eu não posso sair daqui... - dizia Selene, bêbada. - Ainda preciso conversar com a minha filha... Juliana...

Acho que a sua mãe está precisando de você - disse Paulo.

Ai, meu Deus... - desesperou-se Juliana.

Fique calma, eu te ajudo - prometeu Paulo.

Os dois foram até Selene, que continuava gritando por Juliana.

- Você me chamou, mamãe? - disse ela ressabiada. -Juliana! Então você está aí.... Vocês conhecem a minha filha

Juliana?... - tornou Selene, puxando a mão de Juliana. - Essa me­nina vale ouro... Muito ouro... Todos os meus problemas vão aca­bar quando ela vier pra cá... Não é mesmo, Juliana?

Atingida em suas fibras mais íntimas por essas palavras, Julia­na puxou rapidamente a mão das mãos de Selene. Fazendo um es­forço enorme para segurar o choro. Ela olhou para Paulo e disse:

- Tchau, Paulo, eu tenho que ir. Outro dia a gente se fala. Paulo ainda tentou encontrar alguma coisa para dizer, mas

ela foi mais rápida do que ele. Bateu a porta e, em questão de se­gundos, ganhava a rua, com as bochechas molhadas de lágrimas.

Enquanto caminhava, com seu passo rápido, em direção ao ponto do ônibus, ela só pensava em Lenita e Felipe, no desejo enor­me que sentia de chegar em casa e abraçá-los com toda a sua força. Quem sabe até, João Vítor ainda estivesse lá, esperando por ela.

Em seu desespero, porém, Juliana não poderia imaginar o triste quadro que a esperava.

 

Sentada numa poltrona, com o olhar catatônico, Lenita ob­servava o telefone tocar sem parar. Tinha os olhos inchados de tanto chorar e apertava contra o peito o antigo porta-retratos com a foto de Alberto. Sentado no braço da poltrona, Felipe, também abalado, segurava a mão da mãe e contava as manchas de terra no seu tênis. O telefone continuava a tocar. Sem tirar os olhos do tê­nis, Felipe resolveu perguntar:

Mamãe, por que a gente não atende o telefone?

Porque eu não quero - respondeu Lenita, secamente.

E nunca mais a gente vai atender o telefone?

Não sei. Hoje, não. - determinou ela.

O telefone parou de tocar. Do sofá, em frente à poltrona, Alberto observava Lenita e Felipe. Embora eles não o vissem, era como se estivessem hipnotizados por ele, pela tristeza dele.

- Você tá triste de novo, mãe? - perguntou Felipe.

Um pouco... - respondeu ela. - Tô sentindo muita fraque­za... Muita falta do seu pai...

Ah, Lenita... - disse Alberto, indo até ela. - Eu também senti tanto a sua falta... Como você pôde me trair desse jeito? Com o meu melhor amigo...

O telefone começou a tocar novamente. Felipe levantou-se:

- Mamãe, será que não é melhor a gente atender? E se for aju?

Nem pensem em atender esse telefone! - gritou Alberto. Felipe arregalou os olhos e olhou para os lados:

Parece que eu ouvi a voz do papai... - disse ele.

-Não, você não ouviu. Você nunca mais vai ouvir - respondeu Lenita.

O telefone parou de tocar.

Ele até que podia dar um jeito de ligar pra gente de vez em quando - considerou Felipe. - E a Juliana, mãe, ela não vai voltar pra casa?

Afinal de contas, onde está Juliana, Lenita? - perguntou Alberto ao ouvido da esposa.

-Juliana... Onde está Juliana... - repetiu Lenita, com seu olhar catatônico.

- Mãe, você tá muito esquisita. Não tô conseguindo ficar aqui perto de você - disse Felipe, se afastando. - Tomara que a Juliana chegue logo.

Assim que ele se afastou de Lenita, tia Geninha, sem ser vista por ninguém, nem mesmo por Alberto, chegou perto de Felipe e o envolveu com uma luz dourada, que se manteve, por algum tem­po, em torno do menino. Geninha sumiu novamente e a porta se abriu. Já era noite, a sala estava escura.

Lenita, Lipe! Vocês estão aí? - gritou Juliana, entrando.

Ju! - respondeu Felipe, correndo a abraçá-la.

Juliana acendeu as luzes e só então deu com Lenita, sentada na poltrona, com o porta-retratos apertado contra o peito.

- Ai, meu Deus - suspirou Juliana -, este dia não pode estar acontecendo... Lenita, o que houve?

Lenita não respondeu. Alberto aproximou-se de Juliana e a abraçou, dizendo:

- Filha, que saudades que eu tava de você...

Como que sentindo, intuitivamente, a presença do pai, Julia­na, que já estava bastante abalada com os últimos acontecimentos, deixou-se cair no sofá e começou a chorar.

- Ai, agora você também - choramingou Felipe...

Ele olhou então para o corredor que dava para o interior da casa e viu tia Geninha fazendo sinal para ele. Felipe a seguiu até a porta de seu quarto, onde ela sumiu novamente. Ele então olhou para sua ca­minha e, intuído por ela, decidiu deitar um pouco para pensar no que fazer. Em poucos minutos, adormeceu profundamente. Juliana ainda permaneceu algum tempo chorando na sala, lembrando-se do pai. Alberto também chorava a seu lado. Envolta nesse clima, Lenita, que também começara a chorar novamente, começou a recordar as imagens do enterro de Alberto, de seu cor­po deformado pelo atropelamento. À medida em que Lenita vi­sualizava essas imagens, Alberto também as captava e desespera­va-se mais. Pouco a pouco, seu corpo espiritual, ainda em fase de recuperação, começou a apresentar os antigos hematomas, e ele voltou a sentir os sintomas do enfarte.

- Por favor, parem com isso - pediu ele. - Estou sentindo falta de ar...

Completamente sintonizadas com ele, Lenita e Juliana come­çaram a sentir um aperto no peito, desses que aparecem quando alguém de quem a gente gosta muito encontra-se em perigo.

Meu coração está doendo - disse Juliana.

O meu também - respondeu Lenita.

Só então as duas se encararam e correram para o abraço.

-Acho melhor a gente ir dormir - disse Juliana, recompon-do-se. - Vamos rezar para o papai e depois dormir.

As duas dirigiram-se para o quarto, abraçadas, e Alberto ficou sozinho na sala. Pouco tempo depois, sentiu suas dores aliviarem, embora sua aparência continuasse a mesma do dia em que mor­reu. Caminhou para a cozinha. Tinha muita fome.

Ao entrar na cozinha, sentiu uma sensação estranha. Era como se alguém o estivesse seguindo. Voltou até a sala, verificou se a porta estava trancada, olhou atrás das cortinas, mas não viu ninguém.

- É esquisito - disse para si mesmo. - Sou o único morto nesta casa, mas seria capaz de jurar que estou sendo seguido...

Retornou à cozinha e começou a procurar algo que pudesse comer, mas não havia nada sobre a mesa. Sua fome era tanta que ele seria capaz de comer até pó de café. Buscou com os olhos a lata onde Lenita guardava o pó de café. Estava na prateleira em cima da pia. Esticou o braço, tocou a lata, mas não conseguiu tirá-la do lugar. Depois de várias tentativas sem sucesso, ficou irritado e de­sistiu. A fome, porém, não passara. O que fazer? Lembrou-se en­tão de Xantipa, aspirando o aroma dos copos de cerveja, e decidiu fazer o mesmo com um copo de leite. Mas onde estaria o leite?

- Na geladeira, onde mais? - respondeu a si mesmo.

Para ele, porém, abrir a geladeira era tão difícil quanto tentar tirar a lata de pó de café do lugar. Tentou uma vez. Nada. Tentou de novo. Nada.

- Não é possível que eu tenha me tornado um fraco te! - disse, já bastante irritado, e tentou de novo, usando toda a sua força.

Alberto fez tanta força para tentar abrir a geladeira que come­çou a sentir novamente as dores no peito. Ainda assim, continuou tentando, até cair no chão de tanta dor.

- Arrr.... - esbravejava ele, sentindo falta de ar. - Não é possí­vel... Arrr.... E já morri... Arrr... Não posso ter um enfarto de novo... Arrr... Alguém me ajude....

Neste momento, tia Geninha se fez visível. Seu aspecto ilumi­nado contrastava com a aparência de Alberto. Ela debruçou-se so­bre ele e colocou sua mão direita sobre seu peito, dirigindo-lhe raios de intensa luz.

- Procure ficar calmo... Isso vai alimentá-lo por algum tempo - disse ela.

-Arrr... Quem é a senhora?

- Sou Geninha, a guardiã desta casa. Não me reconhece mais? -Tia Geninha! - exclamou Alberto, surpreso. - Então era a se­nhora que estava me seguindo? Mas por que eu não a vi antes?

- Os espíritos só enxergam aqueles que estão vibrando na mesma sintonia. Como o meu padrão vibratório é mais alto que o seu, você passou por mim e não me viu, embora tenha sentido a minha presença - explicou ela.

- E como é que agora eu estou vendo? - quis saber Alberto.

Muito simples. Quando você passou mal e pediu ajuda, eu abaixei meu padrão vibratório para poder socorrê-lo.

E eu vou continuar sentindo essas malditas dores pelo resto da minha vida, quer dizer, pelo resto da minha mor...

Você continua vivo - esclareceu Geninha. - Apenas não ha­bita mais um corpo de carne.

- Mas então como é que eu sinto dores? - protestou Alberto.

Porque nosso espírito conserva todas as impressões de nosso corpo de carne, as quais se farão mais fortes quanto maior for seu apego à matéria.

Por isso senti dores na hora em que Lenita e Juliana se lem­braram de minha morte? - tornou Alberto, interessado.

Exatamente. No momento, mesmo como espírito, você é um enfartado. Precisa de tratamento e repouso, precisa voltar para o hospital para receber o socorro necessário. Minha amiga Amaziles não foi visitá-lo quando estava lá? - perguntou Geninha.

Então era verdade... E eu que pensei que ela era louca varri­da... - lembrou-se Alberto, retomando, logo em seguida, seu tom transtornado. - Mas não adianta. Para lá eu não volto. Meu lugar é aqui, junto de minha mulher e de meus filhos.

Você é quem sabe - ponderou Geninha. - Só espero que te­nha noção do quanto está prejudicando sua família por estar aqui.

- Eu os amo! - refutou Alberto. - Jamais os prejudicaria.

Mas já está prejudicando. Não viu como todos ficaram de­primidos por sua causa? - continuou Geninha.

A senhora está inventando isso só para me convencer a vol­tar para aquele hospício - disse Alberto, levantando-se.

- Eu não estou inventando; você viu, Alberto!

Só porque elas estavam chorando? A senhora acha, então, que a gente morre, a família esquece e pronto? Não é bem assim não. Elas também sentem a minha falta.

Claro que sentem - concordou Geninha. - Mas não podem ficar chorando o tempo todo por sua causa. Você mesmo não sen­tiu dores quando Juliana e Lenita começaram a se lembrar de sua morte física?

Alberto concordou com a cabeça e Geninha continuou:

Se vocês permanecerem ligados dessa maneira, só irão se prejudicar. Lenita não conseguirá mais trabalhar, Juliana não vai continuar seus estudos, Felipe não terá quem cuide dele.

E por que a senhora pode ficar aqui e eu não? - quis saber Alberto.

-A situação é muito diferente. Eu estou aqui como enviada do plano espiritual para proteger Lenita e as crianças. Me preparei muitos anos para isso e...

- Pois então eu também vou me preparar - cortou Alberto.

Assim é que se fala, Alberto - animou-se Geninha. - Vamos voltar ao hospital e...

Nada disso - interferiu Alberto. - Antes de fazer essa prepa­ração que a senhora está querendo, eu preciso acertar umas contas com certa pessoa.

- Mas, meu filho... - tentou argumentar Geninha.

- Ele é um traidor, tia Geninha. Eu vi o jeito que ele estava olhando para a Lenita hoje no restaurante. Eu tenho que afastá-lo do convívio da minha família o quanto antes.

- Não é verdade, o João Vítor...

Alberto não esperou tia Geninha acabar de falar. Concen­trou-se firmemente na figura de João Vítor, conforme havia apren­dido com Laerte no jardim do hospital, e desapareceu numa fração de segundos.

 

Foi muito fácil para Alberto conseguir chegar até João Vítor, que também pensava nele naquele momento. Assim, num piscar de olhos, Alberto se viu estatelado (ele ainda não estava muito há­bil no 'manejo' daquele poderoso meio de transporte que recente­mente descobrira) em frente ao amigo. Ou inimigo, como ele ago­ra se referia a João Vítor.

Sentado em sua cama, com um copo de whisky na mão, ele olhava fixamente para o telefone, inconformado com a atitude de Lenita. Ele sabia que ela estivera em casa o dia inteiro, e só não atendera ao telefone para não falar com ele. "O que teria feito de errado?", torturava-se pensando. "E como explicar a estranha ati­tude de Felipe?" Em seu íntimo, algo lhe dizia que Alberto estava, de alguma maneira, por trás de todos aqueles acontecimentos. "Mas como?" Lembrava-se então do emprego na firma, do quanto o sr. Ferraz fora injusto com o amigo e do quanto odiava aquele ve­lho. "Devia haver alguma forma de vingança", conjecturava, vi­rando mais um gole de whisky.

Alberto levantou-se, ainda desnorteado com a queda, e deu com Xantipa a seu lado.

- E aí, camarada? Estava só esperando você chegar para se­guir meu rumo. Eu tinha certeza de que você viria - disse ele.

- Como sabia que eu viria? - perguntou Alberto.

- É elementar, camarada. O marido traído sempre acha que a culpa é do amante da mulher.

- Escute aqui - irritou-se Alberto -, eu não lhe dei o direito de...

Fica frio, camarada. Eu só estou aqui para ajudar. Também já fui traído e adoro esse tipo de vingança.

E o que você acha que nós podemos fazer para... - tentou sa­ber Alberto.

-Já levantei a ficha completa desse seu amigo da onça. Ele está realmente apaixonado pela sua mulher, embora ainda não te­nha se dado conta disso - explicou Xantipa.

- Mas como não se deu conta se...

-Você tá muito ansioso, camaradinha. Deixa eu explicar que você entende - interferiu Xantipa. - O caso é o seguinte. Pelo que eu pude captar dos pensamentos dele, o infeliz só se aproximou da família com a intenção de ajudar. Mas, depois, sabe como é que é, sua mulher é boazuda, novinha, viúva...

Ouvindo isso, Alberto se enervou e partiu para cima de Xantipa:

- Descarado, miserável, eu...

Xantipa, porém, o segurou com firmeza e olhou tão profun­damente em seus olhos que Alberto sentiu medo. Depois, enfiou o dedo no nariz de Alberto, dizendo:

- Se você não quer me ouvir, azar o seu. Devia era agradecer por ter encontrado no seu caminho alguém gente fina assim como eu. E perigoso ficar andando sozinho por aí nesse seu estado. Você tem noção? Sabe se virar? Sabe se vingar de quem pisou na bola? Se sabe, um abraço, estou indo! Depois não diga que eu não avisei!

Alberto sentiu um calafrio na espinha e resolveu chamá-lo de volta:

- Espera aí, me desculpe. E que eu fiquei nervoso quando você falou da Lenita daquele jeito...

-Tá vendo só? Você não sabe nada de nada, meu camarada. A primeira lição que você tem que aprender é não deixar o emocional falar mais alto que você. É pelo emocional que eles pegam a gente.

- Eles quem? - quis saber Alberto.

- Existem milhares espalhados por aí. Tanto do bem quanto do mal. Eu, se fosse você, passava a me cuidar - aconselhou Xanti­pa. Mas vamos ao que interessa que eu tenho mais o que fazer. O cara tá se doendo todo de culpa porque tá interessado na sua mu­lher, e mais ainda porque ficou com seu emprego, é mole?

- Meu emprego? Mas ele trabalha em São Paulo!

- Trabalhava, meu camarada, trabalhava. Agora ele tá com tudo que era teu. Mais um pouco e fica com a sua mulher e seus fi­lhos também. Tu vai deixar isso barato?

- Não é possível, eu... ai... o coração!

-Já avisei. Se deixar o emocional se meter, você se dana - rei­terou Xantipa. - Não pensa na dor, pensa no ódio que você está sentindo agora desse cara. Ele roubou a sua vaga! Você tem que ti­rar ele de lá!

- E como é que eu vou fazer isso? - perguntou Alberto.

- Muito simples. Cola nele. Atrapalha a vida dele o máximo que você puder. O cara tem mediunidade, capta os pensamentos da gente molinho, molinho. Daí é só você sugerir, que ele faz.

- Mas eu nem sei o que é mediunidade... - replicou Alberto. -Ah, é uma capacidade que o cara tem de se sintonizar com o

pensamento dos espíritos. O teu filho, por exemplo, é um mé­dium de primeira, até escutar, escuta. Mas, como ainda é criança, anda sempre com proteção. Mesmo assim você conseguiu que ele fizesse tudo o que você queria no restaurante, não conseguiu? -lembrou Xantipa.

E verdade, o Felipe sempre teve uma sensibilidade fora do comum...

Pois então. Esse cara também tem. E ainda tem a vantagem de estar deprimido e cheio de ódio pelo tal chefe lá de onde você trabalhava, o que facilita bastante a nossa aproximação...

- Como assim? - quis saber Alberto.

- Pra você poder colar num encarnado - explicou Xantipa -ele tem que ter um ponto fraco, um elo que estabeleça a sintoma, senão fica difícil. Só podemos nos apegar àqueles que, de alguma maneira, compartilhem de pensamentos semelhantes aos nossos, entendeu agora?

É... Faz sentido... - raciocinou Alberto, lembrando-se do que já ouvira de Laerte e de tia Geninha.

Vamos fazer uma coisa? Pára lá do lado dele e se concentra no pensamento dele, que eu vou te ensinar como é que se faz -propôs Xantipa.

Os dois então se aproximaram de João Vítor, que se servia de mais uma dose de whisky, e ficaram prestando atenção nos seus pensamentos. Antes, é claro, Xantipa deu uma boa aspirada no copo de whisky, no que, desta vez, foi acompanhado por Alberto.

"Não, eu não posso estar sentindo nada pela Lenita. Eu não tenho esse direito... Mas ela é tão frágil, tão indefesa... Precisa de alguém que cuide dela...", imaginava João Vítor.

- Crápula, miserável... - deixou escapar Alberto.

Eu sou mesmo um crápula miserável - repetiu alto João Ví­tor. - Como é que eu posso pensar essas coisas da mulher do meu melhor amigo... Que droga de homem que eu sou... Devia era ter morrido no lugar dele...

Coloca mais whisky nesse copo - sugeriu Xantipa, no que foi prontamente obedecido por João Vítor.

Está vendo só - disse Xantipa, depois de mais uma aspirada no whisky -, é muito fácil. Principalmente no caso de um cara trans­tornado assim, feito esse seu amigo. E só mandar que ele obedece.

Dizendo isso, Xantipa despediu-se, explicando que precisava re­solver uns assuntos pessoais, e que no dia seguinte estaria de volta, àquela mesma hora. Alberto agradeceu pela ajuda, depois deitou-se na cama e continuou a ouvir os pensamentos de João Vítor. De certa forma, até que estava achando divertida aquela 'brincadeira'.

O álcool fazia com que João Vítor liberasse ainda mais seus pensamentos. Pensava agora nos problemas que teria que resolver na empresa, no dia seguinte, na dificuldade que era lidar com o dr. Fernandez, de quem, definitivamente, ele não conseguia gostar. Alberto aproveitou para transferir-lhe conselhos errados, reco­mendando, por exemplo, que ele não tivesse paciência nenhuma com o presidente.

-Você precisa se impor - sussurrou ao ouvido de João Vítor. -Quem é esse cara pra mandar em você? Quando ele vier te dizer o que fazer, dá um passa-fora nele, mostre que você entende de tudo muito mais do que ele!

João Vítor captou a mensagem e decidiu fazer exatamente o que Alberto lhe sugerira. Em seguida, porém, lembrou-se do pro­blema de Juliana. Sabia que Selene era tinhosa e faria de tudo para tirar a guarda de Lenita. Ao mesmo tempo, porém, reconhecia que as duas eram mãe e filha e que precisavam algum dia se recon­ciliar de alguma maneira. "Talvez", considerou ele, "se Juliana, com aquela cabecinha maravilhosa que ela tem, passasse algum tempo na companhia de Selene, a mãe até pudesse se tornar uma pessoa mais equilibrada..." No fundo, João Vítor não conseguia conceber a idéia de que Selene não gostasse da filha nem um pou­quinho. Acreditava que, ao deixar aflorar seu instinto maternal, Se­lene pudesse até se transformar numa grande mãe, na mãe que Ju­liana sempre sonhara ter. "Mas... e Lenita?", inquietava-se ele, "Lenita jamais aceitaria a idéia de separar-se de Juliana." Podia até ficar com raiva dele se ele lhe dissesse o que pensava do assunto.

Ouvindo isso, Alberto teve um estalo. Já sabia exatamente como fazer para acabar de vez com aquela perigosa amizade entre Lenita e João Vítor. Se tudo corresse conforme ele imaginava, Juliana seria um pouco sacrificada, mas o resultado final seria bastante compensa­dor. Lenita, Felipe e Juliana odiariam João Vítor para sempre. De­pois que João Vítor fosse definitivamente afastado da família, ele en­tão daria um jeito de fazer tudo voltar a ser como era antes.

Assim, sentindo-se todo poderoso, quase onipotente em sua condição de espírito, Alberto adormeceu satisfeito ao lado de João Vítor, louco para que logo amanhecesse um novo dia, quando co­meçaria a pôr em prática todos os seus planos de vingança. Xanti­pa certamente iria se orgulhar dele quando soubesse.

 

Naquela noite, Lenita sonhou novamente com tia Geninha. Lenita ia até a sala buscar o retrato de Alberto que esquecera sobre a poltrona e encontrava a tia sentada no sofá. As duas abraça­vam-se longamente e então se punham a conversar.

- Eu precisava muito falar com você, Lenita - dizia tia Geni­nha, acomodando-se novamente no sofá.

- A senhora aceita um chá? - perguntava Lenita?

- Não, querida, obrigada. O que eu queria mesmo era conver­sar com você sobre o João Vítor.

- Sobre o João Vítor, titia? Mas...

- Não tente me enganar, Lenita. Eu sei de tudo o que está se passando no seu coraçãozinho e não vim aqui para te censurar, até muito pelo contrário.

- Não estou entendendo onde a senhora quer chegar, titia.

Lenita, querida, não temos muito tempo, você precisa me ouvir. João Vítor corre sério perigo, você precisa ajudá-lo.

Perigo? Não consigo entender o que a senhora está queren­do me dizer...

Telefone para ele amanhã cedo e o aconselhe a não dizer ne­nhum desaforo a seu chefe.

- Mas a troco de quê eu vou dizer isso a ele, tia Geninha?

- Faça o que estou dizendo, depois você vai entender. Use de todo o seu poder feminino para convencê-lo. Depois, procure dona Catarina e conte a ela tudo o que aconteceu na tarde de ontem.

-Assim a senhora me confunde, tia Geninha. Por que eu iria procurar a dona Catarina e me expor dessa maneira?

- Confie em dona Catarina, Lenita. Ela pode ajudá-la. Agora preciso ir.

Mas, titia, e se eu não me lembrar de tudo isso amanhã, quando eu acordar?

Você vai lembrar. E trate de se cuidar, ouviu bem? Não quero mais vê-la chorando pelos cantos, agarrada nesse retrato do Alberto.

Dizendo isso, tia Geninha beijava Lenita na testa, depois se aproximava da janela e se transformava numa intensa luz doura­da, que desaparecia em seguida.

De fato, ao acordar naquele dia, Lenita recordava de quase to­dos os detalhes do sonho. A bem da verdade, era a primeira vez que ela se lembrava de um sonho tão nitidamente. Tal como acon­tecera no sonho, porém, não conseguia entender o porquê das recomendações feitas pela tia. Ainda assim, uma frase não lhe saía da cabeça: "João Vítor corre sério perigo, você precisa ajudá-lo."

Como que impelida por uma força mágica, Lenita foi até a sala e sentou-se ao lado do telefone. As palavras de tia Geninha vi­nham-lhe a cabeça como uma gravação: "Telefone para ele e o aconselhe a não dizer nenhum desaforo a seu chefe. Use de todo o seu poder feminino para convencê-lo."

Lenita tirou o aparelho do gancho e lembrou-se das tantas ve­zes em que o telefone havia tocado no dia anterior. Ela sabia que em toda; aquelas vezes era João Vítor quem estava do outro lado da linha Lembrou-se também de seu ridículo papel no restauran­te e sentiu-se envergonhada. "Pobre João Vítor", pensou ela, reco­locando o telefone no gancho." E com que cara eu vou ligar pra ele agora?" A frase de tia Geninha, porém, ecoou ainda mais forte em sua cabeça: "João Vítor corre sério perigo, você precisa ajudá-lo". Pegou novamente o telefone, dizendo em voz alta:

- Eu preciso ligar. Nem que seja apenas para pedir desculpas... João Vítor estava terminando de se vestir quando o telefone

tocou. Aberto estava ao lado da mesa do café da manhã, tentando sugar o odor de um copo de suco de laranja. Ambos estremeceram ao ouvir o primeiro toque. João Vítor correu a atender:

-Alô, Lenita? Que bom que você ligou, eu estava realmente preo­cupado com você... Não, eu não fiquei chateado... Claro que não...

Alberto correu para o lado dele e segurou-o pelo pescoço:

- Miserável... desliga esse telefone!

João Vítor sentiu um pouco de mal-estar e teve ímpetos de abreviar a conversa para desligar o telefone. A vontade de falar com Lenita, porém, foi mais forte e ele resistiu à sugestão de Alberto. Percebendo que seria impossível convencer João Vítor a cortar a conversa com Lenita, Alberto então resolveu mudar de tática:

-Você está atrasado, olhe o relógio. Lembre-se de que precisa dizer umas verdades ao presidente ainda hoje.

Registrando-lhe a sugestão, João Vítor olhou para o relógio e viu que realmente estava em cima da hora:

- Escute, Lenita, eu gostei muito de falar com você, mas preci­so desligar agora. Tenho um assunto muito importante a resolver no escritório.

Do outro lado da linha, Lenita lembrou-se mais uma vez da recomendação que recebera da tia e resolveu 'jogar verde para co­lher maduro":

- Aconteceu algum problema com o senhor Fernandez?

- Mais ou menos - respondeu João Vítor. - Resolvi dizer-lhe umas verdades...

Ouvindo isso, Lenita associou imediatamente os fatos e che­gou a ficar arrepiada. Agora começava a entender a mensagem de tia Geninha. Pensando nisso, insistiu:

- Escute, João Vítor, eu preciso lhe pedir uma coisa. Tive um sonho muito estranho esta noite e acho que você não deve ter essa conversa hoje com o presidente.

No quarto de João Vítor, nervoso por não poder ouvir o que Lenita dizia, Alberto gritava no ouvido do amigo:

- Olha a hora! Olha a hora!

Mais uma vez, contudo, João Vítor resistiu a seus apelos, cu­rioso com o pedido de Lenita:

- Mas que sonho foi esse?

- Não dá pra te explicar agora, assim, por telefone. Mas, por favor, não brigue com seu chefe hoje. Depois, mais tarde, a gente conversa.

Agoniado, Alberto fez de tudo para conseguir ler o pensa­mento de João Vítor, chegou mesmo a colar sua testa na testa do amigo, mas, por alguma razão que desconhecia, naquele momen­to não conseguia captar uma palavra sequer.

- Bom, já que você está me pedindo... - concordou finalmente João Vítor, ao telefone.

- Promete? - insistiu Lenita.

- Prometo - disse ele. - Agora realmente preciso correr... Ou­tro pra você.

Lenita desligou o telefone e respirou fundo, aliviada. "Missão cumprida", pensou. Dirigiu-se então à cozinha, onde encontrou Juliana e Felipe, que tomavam seu café da manhã. Julianajá estava arrumada para a escola.

-Com quem você estava falando, mamãe?-quis saber Felipe.

Hã? Ah, com o tio João Vítor. Liguei para pedir desculpas por toda aquela confusão de ontem - disfarçou Lenita.

Afinal de contas, será que dava pra vocês me explicarem o que foi que aconteceu ontem de tão grave pra eu chegar em casa e encontrar a Lenita naquele estado?

Felipe apressou-se em dar sua versão dos fatos:

- A gente foi no restaurante e...

- Não aconteceu nada demais - cortou Lenita. - Pra dizer a verdade, não estou com vontade de conversar sobre isso agora.

Juliana olhou para Lenita, um pouco magoada, depois deu de ombros e continuou a tomar seu café da manhã.

E ontem na casa da Selene, como é que foi? - perguntou Le­nita mudando de assunto.

Também não estou com vontade de conversar sobre isso agora - revidou Juliana, levantando-se da mesa.

Lenita foi atrás dela: -Juliana, espere, eu não quis...

- Depois a gente conversa - tornou Juliana, ainda magoada. -Estou indo pra escola.

Mas você só tem aula de tarde - insistiu Lenita.

Vou mais cedo pra fazer trabalho de grupo. Beijos.

Juliana bateu a porta e Lenita ficou parada na entrada da co­zinha. Não queria magoá-la. Lembrou-se então de mais uma frase do sonho: "Procure dona Catarina e conte a ela tudo o que aconte­ceu na tarde de ontem". "Não", pensou, definitivamente, isso ela não iria fazer. Olhou para a pilha de folhas que a esperava sobre a mesa da sala e sentou-se para trabalhar.

Alberto não conseguia entender o que estava acontecendo. Não só se sentia impedido de ler os pensamentos de João Vítor, como, sem querer, estava se deixando contaminar pelo bom-humor do amigo. João Vítor andava pelas ruas sorridente, cumprimentan­do a todos que por ele passavam. A seu lado, embora não pudesse ler seus pensamentos, Alberto sentia que ele desejava coisas boas a cada pessoa com quem se deparava.em seu caminho, e essa energia positiva de João Vítor aos poucos começava a lhe causar uma certa comoção, um sentimento estranho lá no fundo da alma, que era quase como um arrependimento por ter desejado tão mal ao amigo no dia anterior.

Sentado ao lado de João Vítor, no metrô, Alberto tentava con­centrar-se nas razões que haviam despertado seu ódio pelo amigo, no emprego roubado, nas mãos do amigo segurando as mãos de Lenita no restaurante, na segurança que Felipe sentia ao lado do tio. Por mais que se esforçasse, porém, seus pensamentos teima­vam em tomar uma direção oposta à que ele desejava. Vinham-lhe à mente imagens dos dois brincando juntos quando crianças, da alegria que sentia quando desabafava com João Vítor ao telefone, nos tempos em que o amigo ainda trabalhava em São Paulo, do apoio que este lhe dera por ocasião do nascimento de Juliana.

Alberto já estava quase se entregando àquela emoção, quan­do, de repente, voltou a ouvir os pensamentos de João Vítor, que naquele momento começara a visualizar as mesmas imagens que ele. Das imagens do companheirismo entre os dois, porém, João Vítor logo passou à culpa e à depressão, questionando-se dura­mente pelo carinho que sentia crescer em seu coração por Lenita, pela vontade enorme de assumir a paternidade de Felipe e Julia­na. Quando pensava sobre isso, sentia-se um traidor, como se estivesse querendo para si algo que por lei pertencesse ao amigo, de quem guardava tantas saudades, tinha até vontade de acabar com a própria vida, de tanta raiva que sentia de si próprio.

Bastou João Vítor começar a pensar assim para que sua fisio­nomia se alterasse, dando lugar a uma profunda tristeza. O brilho que há poucos minutos resplandecia de sua figura tornou-se opa­co. Enquanto isso, Alberto, a seu lado, também modificava seus pensamentos, recobrando rapidamente o ódio pelo amigo.

Assim sintonizados, os dois desceram do metrô, cruzaram a rua em que Alberto fora atropelado e entraram no escritório. Alberto fez o impossível para controlar sua emoção de estar ali, agarrando-se como um náufrago ao sentimento de culpa de João Vítor. Quando cruzaram a entrada da sala de dona Catarina, po­rém, não pôde resistir e ordenou ao amigo:

- Peça um café!

Estranhando a súbita vontade que lhe invadira, João Vítor abriu a porta, cumprimentou dona Catarina e fez o pedido:

- Dona Catarina, de repente me deu uma vontade de tomar um café... Será que a senhora não poderia me arranjar uma xicrinha?

Ouvindo isso, dona Catarina automaticamente se lembrou de Alberto, que fazia isso todas as manhãs quando trabalhava lá, e sentiu um arrepio gelado na espinha, intuindo que algo de errado estava acontecendo com João Vítor.

E engraçado - disse ela, servindo o café -, em quase três me­ses que você trabalha aqui, é a primeira vez em que o vejo pedir um café...

Ah... - suspirou Alberto, sentindo-se aspergido pelas pequenas gotas de café que pulavam enquanto dona Catarina derramava o lí­quido na xícara. - O que seria da humanidade se não fosse o café...

No mesmo instante, dona Catarina lembrou-se da costumeira frase de Alberto e João Vítor a repetiu em voz alta, enquanto .Alberto aspirava profundamente a fumaça que saía da xícara. Dona Catarina sentiu outro arrepio gelado:

-João Vítor... - disse ela, pálida -, por que você disse isso?

- Sei lá - respondeu ele. - Veio na minha cabeça. Por quê?

- Nada não - disse dona Catarina, desconfiada.

João Vítor experimentou o café e não pôde deixar de comentar:

- Que coisa estranha. Esse seu café estava tão cheiroso, mas não tem gosto de nada...

-Vai ver é porque já tem muitas horas que está guardado na garrafa. Se quiser, quando chegar o novo, posso levar na sala para você - respondeu ela, prestativa.

Não precisa - tornou João Vítor, terminando a xícara -, eu realmente não gosto muito de café. Só tomei este porque senti muita vontade.

Mudando de assunto - continuou dona Catarina -, você soube que a Juliana, ontem, conheceu meu filho Paulo?

Não, para dizer a verdade, eu nem sabia que a senhora tinha filhos..

Pois tenho quatro, o Paulo é temporão. É um menino muito bom, o único que ainda mora comigo. Eles se conheceram na casa de Selene - explicou dona Catarina.

E verdade, eu deixei Juliana lá ontem... - comentou ele.

Pois é, nós moramos no mesmo prédio. Acho que o Paulo se apaixonou pela Juliana - confidenciou ela. - Não fala em outra coisa desde que chegou em casa!

Mas Juliana ainda é muito nova para namorar! - protestou Alberto, que prestava atenção à conversa dos dois.

Mais uma vez, João Vítor captou seus pensamentos e repetiu a mesma frase. Dona Catarina ficou sem graça:

- Eu sei, só falei porque...

- Bom, preciso trabalhar - cortou João Vítor, influenciado pela irritação de Alberto. - Assim que o sr. Fernandez chegar, a se­nhora entregue a ele estes relatórios e me avise em seguida.

Dona Catarina concordou e João Vítor saiu da sala, seguido por Alberto. Ela ficou preocupada, achou João Vítor muito diferen­te do habitual. Suas palavras, seus ciúmes de Juliana, tudo lhe lem­brava Alberto. Alguma coisa naquela história não estava lhe chei­rando bem. Tirou da gaveta um exemplar de 0 evangelho segundo o espiritismo, que sempre carregava consigo, e o abriu ao acaso. "Não são os que gozam de saúde que precisam de médico" era o título da página que saiu, a qual explicava, entre outras coisas, que a mediunidade não implica necessariamente em relações habituais com os espíritos superiores, sendo apenas uma aptidão para servir de instrumento mais ou menos dúctil aos espíritos, em geral.[1]

Dona Catarina, que há muitojá desconfiava da mediunidade de João Vítor, entendeu a mensagem e compreendeu que era chegada a hora de encaminhá-lo na senda do espiritismo. Fez então uma senti­da prece, pedindo a Deus proteção para realização de seu intento e auxílio espiritual, tanto para João Vítor, quanto para Alberto.

Não obstante, durante a tarde inteira, os pensamentos de João Vítor e Alberto duelaram entre si. A todo instante, Alberto su­geria ao amigo que ele era bom demais para aquela empresa, que o sr. Fernandez estava exigindo muito de seu trabalho, que o presidente jamais acataria sua avaliação sobre as pesquisas, que ele, en­fim, estava sendo feito de palhaço naquela empresa. Fortalecido, porém, pela oração de dona Catarina, João Vítor esforçava-se para não dar atenção àqueles pensamentos que julgava serem seus, lembrava-se do conselho de Lenita e pedia forças a Deus para não cometer nenhuma bobagem da qual viesse a se arrepen­der depois.

No fim da tarde, quando o presidente afinal mandou chamá-lo em seu gabinete, tanto João Vítor quanto Alberto estavam exaustos. Ainda assim, Alberto mantinha-se firme em seu desejo de provocar a demissão do amigo. Para seu azar, porém, o sr. Fernão Fernandez Ferraz estava surpreendentemente bem-humorado naquele dia, e tratou João Vítor com admirável distinção:

- Antes de mais nada - disse ele -, gostaria de pedir desculpas pela demora e dizer que estou muito satisfeito com o seu trabalho. Passei o dia reunido com um de nossos clientes, o sr. Dagoberto de Almeida Mattos Sanchez, dono da emissora que nos encomendou as pesquisas, e ele se mostrou encantado com as suas sugestões.

Boquiaberto com os elogios inesperados, João Vítor dei­xou-se cair na poltrona, procurando o que dizer. Alberto também estava pasmo. Antes que algum deles conseguisse se manifestar, o sr. Fernandez continuou:

O senhor tem carta branca para começar a organizar, ama­nhã mesmo, se for possível, o grupo de telespectadores-modelo que participarão das pesquisas de audiência específica. O sr. Dagoberto anda preocupado com a queda dos índices de audiência da novela "A Rejeitada" e quer saber, o quanto antes, o que o grupo de teles­pectadores preconizado pelo senhor pensa a respeito da trama para que os autores possam fazer as necessárias modificações.

Mas essa idéia é minha! - protestou Alberto, sem que os dois pudessem ouvi-lo.

Alberto estava arrasado. A idéia das pesquisas qualitativas de audiência realmente era um antigo projeto seu, o qual discutira inúmeras vezes com João Vítor. Mas ele tinha a certeza de que o amigojamais diria isso ao presidente. Contrariando as suas expec­tativas, porém, João Vítor pressentiu seus pensamentos e fez ques­tão de dizer ao chefe:

- Sr. Fernandez, fico-lhe imensamente grato pelos elogios, mas gostaria de esclarecer que o verdadeiro autor deste projeto foi o Alberto, meu grande amigo, que trabalhava aqui antes de mim. Eu apenas coloquei no papel aquilo que nós vínhamos discutindo há alguns meses em nossos encontros e telefonemas. Mais do que ninguém, ele tinha a certeza de que este novo método revolucio­naria o conceito das pesquisas de opinião pública.

Ouvindo isso, Alberto não teve outra alternativa senão enco­lher-se na poltrona, envergonhado. Para enaltecer sua imagem, João Vítor sequer mencionara o fato de que também contribuíra muito para o projeto com sua experiência na antiga empresa onde trabalhava. O sr. Fernandez também mostrou-se profundamente sensibilizado com a atitude de João Vítor:

- Sua franqueza me faz admirá-lo ainda mais, senhor João Ví­tor. Poucas pessoas teriam essa atitude. Devo admitir, porém, que jamais valorizei devidamente a competência do sr. Alberto e que talvez tenha cometido uma terrível injustiça por isso. Na verdade, para lhe ser sincero, eu nunca consegui confiar em Alberto como confio no senhor. Ele sempre me despertou desconfianças, não sei lhe dizer por quê. Enfim, águas passadas não movem moinhos. Tenho certeza de que, mesmo não tendo sido o autor do projeto, o senhor poderá levá-lo avante com o máximo de competência.

Quando João Vítor e Alberto deixaram a sala do sr. Fernan­dez, suas visões sobre o presidente haviam se invertido. Satisfeito por ter conseguido com que o chefe reconhecesse, de alguma ma­neira, o talento e a dignidade do amigo, João Vítor começava a en­xergá-lo como uma pessoa menos prepotente, que talvez até nem fosse tão ruim quanto ele imaginava. Naquele momento, sentia mesmo uma certa ternura pelo sr. Fernandez, como se entendesse as razões mais íntimas de seu jeito de ser.

Alberto, no entanto, mesmo sem saber que o presidente ja­mais cogitara em dar-lhe o cargo agora ocupado por João Vítor, começava a perceber que o sr. Fernandez jamais o havia admira­do, como ele por tanto tempo acreditara, e o odiava com todas as suas forças por ele ter elogiado com tanta ênfase a competência de um novato na empresa como João Vítor, e ainda mais por permitir que o outro continuasse um projeto que era seu por direito. Ainda transtornado por essas idéias, ordenou a João Vítor que pedisse outro café a dona Catarina, no que foi prontamente atendido.

Cada vez mais desconfiada da súbita mudança de hábitos de João Vítor, dona Catarina aproveitou a deixa para fazer-lhe um convite, enquanto lhe servia o café:

Que bom que você se entendeu com o sr. Fernandez, João Vítor. Mas ainda estou te achando tão tenso... Até café você está to­mando! Escute, toda semana eu costumo ir a uma casa de orações, um lugar onde as pessoas sentem revitalizadas as suas energias e limpam de suas mentes todas as tensões e ansiedades. Você não gostaria de...

Uma casa de orações? - interrompeu João Vítor, curioso, deixando de lado o café para ser 'saboreado' por Alberto.

Na verdade é um centro espírita que se chama Casa de Ora­ções Maria de Nazaré. Você já ouviu falar da doutrina espírita co­dificada por Allan Kardec, que fala sobre a continuidade da vida no plano espiritual? - perguntou dona Catarina.

Imediatamente João Vítor pensou em Alberto, que não tar­dou a dar sua opinião sobre o assunto, lembrando-se do alerta que recebera de Xantipa:

- Tudo isso é bobagem. Não se deixe envolver por supersti­ções bestas ou vai acabar arrumando sarna pra se coçar!

Captando-lhe as sugestões, João Vítor respondeu:

- Não acredito muito nessas coisas.

Pois devia acreditar - tornou Dona Catarina. - A maioria das pessoas acha que a vida acaba no momento em que morre o corpo de carne. Mas isso não é verdade. Ávida continua na espiritualida­de e os espíritos daqueles que se foram podem interferir, e muito, na vida daqueles que ficaram. Sobretudo na vida daqueles que lhes são muito ligados.

E por que a senhora está me dizendo tudo isso? - perguntou João Vítor, desconfiado.

Não dê trela para as sandices de dona Catarina. Ela sempre teve mania de querer levar todo mundo para esse maldito centro espírita que ela freqüenta. O pessoal desse centro não sabe de nada e a prova maior disso é que estou aqui, fazendo o que quero e bem entendo! - insistiu Alberto, intuindo que o tal centro pudesse ter alguma ligação com o hospital de onde fugira.

Iluminada, porém, por benfeitores invisíveis, dona Catarina deu uma resposta que calou fundo tanto em João Vítor quanto no descrente Alberto:

- Estou lhe dizendo isso porque acredito que Alberto está muito mais próximo de você do que imagina. E lhe digo mais: como não tinha nenhuma religião e era uma pessoa obstinada pelo trabalho, ele provavelmente deve estar sofrendo muito por não poder estar agora no seu lugar, acreditando que você esteja roubando-lhe algo que era seu por direito.

Desta vez foi João Vítor quem sentiu um arrepio na espinha. Lembrou-se de tudo o que acontecera no restaurante no dia ante­rior e automaticamente associou os fatos. "Seria possível?", pen­sou consigo. Alberto, por sua vez, ficou pálido de susto, mas logo se recuperou e voltou-se contra dona Catarina:

-Sua velha enxerida! Como é que pode saber de tudo isso?

No momento em que ele tentou se aproximar dela, porém, de­parou-se com uma forte luz violeta, a qual circundava a secretária e funcionava como um escudo protetor que o repeliu de imediato.

- É mentira! - gritou Alberto irritado ao ouvido de João Vítor, sem se dar conta do inusitado de suas palavras. - Tudo o que ela está dizendo é mentira!

Dividido entre as duas energias opostas que dominavam o ambiente, João Vítor sentiu a cabeça rodar e por pouco não incor­porou o espírito de Alberto. Percebendo a situação, dona Catarina o amparou, estendendo até ele sua luz protetora, e considerou:

- Eu não acho, João Vítor, eu tenho certeza do que estou lhe dizendo. Você não quer vir comigo a uma reunião amanhã à noite?

-Tá... Eu vou pensar... - respondeu João Vítor desnorteado-Eu vou pensar em tudo isso que a senhora me falou... - reiterou ele, antes de deixar a sala.

 

Quando soou o sinal do último tempo na escola, Juliana foi a primeira a deixar a sala. Ao longo de todo aquele dia, havia se sen­tido triste e solitária. Dirigiu-se, como de hábito, ao outro lado do pátio, onde ficava a sala de Felipe, mas, no meio do caminho, lem­brou-se de que naquele dia ela saía mais tarde, visto que todas as segundas e sextas freqüentava o curso de francês opcional ofereci­do pela escola. Nestes dias, era Lenita quem buscava Felipe.

Ao chegar à rua, porém, teve uma grata surpresa: Paulo a espe­rava, sentado num banco da pracinha que ficava em frente ao colé­gio. Ao vê-la, ele abriu um largo sorriso e acenou para ela, que cor­reu ao seu encontro. Sem que ela entendesse o porquê, seu coração disparou e suas mãos começaram a suar tanto que, ao chegar diante dele, achou melhor esconder os braços atrás da mochila. Suas bo­chechas vermelhas, porém, denunciavam a agitação com que o san­gue circulava por dentro dela. Paulo também estava ligeiramente corado quando disse:

- Estava passando por aqui e resolvi dar um tempo para ver se você... quer dizer, para saber se você...

Juliana percebeu seu constrangimento e resolveu ajudá-lo, embora também não soubesse direito o que dizer:

-Que bom que você veio! Estava mesmo pensando em... quer dizer, estava mesmo precisando conversar com alguém e...

Que tal se a gente fosse tomar um sorvete? - propôs Paulo, encorajado pela sem-gracice dela.

Ótima idéia - respondeu Juliana, aliviada. - Tem uma sorve­teria super-legal bem ali na esquina, você conhece?

Sei, sei qual é, tem um sorvete de chocolate com pedaços de la­ranja que... nossa, só de pensar me dá água na boca! - disse ele, en­quanto pegava sobre o banco um pequeno pacote retangular e ma­grinho, embrulhado por um papel colorido, um pouco amassado.

- Sei qual é que você está falando - continuou Juliana, olhan­do curiosa para o pacote. - Também é o meu favorito!

Era a senha para que os dois retomassem a imensa série de identificações que haviam começado a descobrir no dia anterior.

Depois de muita conversa e muito sorvete, Paulo já se sentia à vontade para tocar no assunto que o trouxera até ali:

Sabe, Juliana, fiquei muito preocupado com você, ontem... Acho que a sua mãe não deveria...

Não se preocupe, não - disse Juliana, com os olhos baixos. -Selene sempre foi assim. Acho que já estou até acostumada...

É engraçado... Você quase nunca chama a Selene de mãe... -observou Paulo.

Vai ver é porque eu quase nunca me lembro de que ela é mi­nha mãe... - confessou Juliana.

Você não quer falar sobre esse assunto? - perguntou Paulo, delicado.

Não é isso. É que sempre que eu penso nela me dá uma an­gústia aqui no coração...

Você pode até não acreditar, mas todas as vezes em que eu vi a Selene falar de você, notei que ela também sentia uma dor como essa que você está dizendo... - comentou Paulo.

Agora você está parecendo até o tio João Vítor, meu padri­nho. Ele vive dizendo que a Selene, no fundo, não é má, que eu de­via aprender a gostar dela, porque afinal de contas ela é mãe. Mas você acha que ser mãe é só botar um filho no mundo e depois nem olhar mais pra cara dele? - desabafou Juliana.

-Também não é assim, né, Juliana? Ontem mesmo ela olhou um monte de vezes para você que eu vi... Depois, será que o seu tio não tem um pouco de razão em achar que...

-Você é tão ingênuo quanto o tio João Vítor, Paulo - cortou Ju­liana. - Será que vocês não percebem que ela só está interessada em mim agora porque acha que assim teria direito à metade da pensão do meu pai? Você não viu o que ela disse ontem, quando estava bê­bada? Que todos os problemas dela iam acabar quando eu fosse morar com ela?

- E será que essa história de pensão não é apenas uma descul­pa para esconder uma coisa muito mais grave do que o problema financeiro da Selene? Será que ela, no fundo, não está querendo arranjar, com essa desculpa, um jeito de consertar tudo o que ela fez de errado no passado? Será que, ainda que inconscientemen­te, ela não viu na briga por esta pensão uma maneira de chegar mais perto de você, de assumir o papel da mãe que ela nunca foi para você? Você já pensou nisso, Juliana? Afinal de contas, mal ou bem, ela sempre conseguiu se virar para arrumar o dinheiro de que precisava... - analisou Paulo.

Os olhos de Juliana se encheram de lágrimas. No fundo, ela bem que gostaria que Paulo estivesse falando a verdade. Por mais que negasse, embora nem soubesse por quê, ela sentia um carinho imenso por Selene. As vezes até se achava parecida fisicamente com ela, que tinha os seus mesmos olhos azuis, e ficava imaginan­do se um dia ficaria tão bonita quanto a mãe.

Percebendo que Juliana chorava, Paulo sentiu-se culpado e tentou consolá-la:

- Por favor - disse ele, estendendo-lhe um lenço -, não fique assim... A última coisa que eu queria na vida era magoar você...

-Tudo bem - respondeu Juliana, assoando-se no lenço -, eu não estou chateada com você. E que esse assunto me machuca muito...

- Então não vamos mais falar sobre isso - contemporizou ele, enquanto pegava o pacote que agora estava sobre a cadeira. -Tome - estendeu-lhe o pacote -, isto é para você.

Juliana enxugou os olhos e sorriu surpresa:

- Para mim?

- Espero que não repare. E um livro. Na verdade ele era meu e é um dos meus favoritos. Mas, quando você me falou que seu pai ti­nha morrido há pouco tempo, achei que ele seria mais útil para você agora... Só não sou muito bom em fazer embrulhos de pre­sente... - disse ele, justificando-se pelo papel amassado.

O livro era Céu azul, de César Augusto Melero.'-' Logo ao to­má-lo em suas mãos, Juliana ficou maravilhada com sua capa deli­cada, que mostrava uma rua limpa e arborizada, por onde cami­nhavam pessoas rodeadas por um halo de luz branca, sob um céu de intenso azul.

- Puxa, eu adoro ler! - foi tudo o que conseguiu dizer.

Esse livro foi escrito por um rapaz que morreu aos dezenove anos, o César - explicou Paulo.

Mas como ele pôde escrever um livro depois de morto? - as­sustou-se Juliana.

Aí é que está! - destacou Paulo. - Lendo esse livro você vai en­tender que a vida não acaba quando a gente morre. O César nos conta como é o dia-a-dia dos espíritos, suas atividades, suas respon­sabilidades, e mais um montão de coisas que acontecem lá no plano espiritual.

Isso me lembra um sonho que eu tive com o meu pai há um tempo atrás... Nossa, estou doida pra ler! Por falar nisso, que ho­ras são? - perguntou ela, lembrando-se de que Lenita e Felipe de­veriam estar preocupados com sua demora.

- Sete e meia - respondeu Paulo.

Meu Deus! - disse ela num pulo - Preciso correr pra casa!

Eu posso te acompanhar - ofereceu ele.

E melhor não - ponderou Juliana, já de saída. - Eu nunca cheguei ao prédio acompanhada de um garoto... quer dizer, de um homem... pode dar confusão.

Que bobagem - respondeu Paulo, divertindo-se com a preocu­pação dela. - O máximo que os porteiros poderiam pensar é que...

-Além do mais - cortou ela, nervosa -, eu moro a dois quartei­rões daqui. Se correr bastante, estou em casa em dez minutos.

 

2 O livro Céu azul, escrito por César Augusto Melero, autor espiritual, e psicogra-fado por Célia Xavier Camargo, foi lançado pela BN Editora e Distribuidora, Catanduva, SP, 1997.

 

Percebendo seu embaraço, Paulo achou melhor não insistir, para não deixá-la ainda mais constrangida.

- Então... amanha a gente se fala? - ousou perguntar, já na porta da sorveteria.

Amanhã! - respondeu Juliana correndo. - Eu te ligo...

Paulo ficou parado na porta da sorveteria, vendo Juliana su­mir na virada do primeiro quarteirão. Só uma pergunta martela­va-lhe a cabeça: "E como é que ela vai me ligar, meu Deus, se nem pegou o meu telefone?"

 

Ao sair do escritório, João Vítor sentiu uma vontade irresistí­vel de procurar Selene. Há mais de uma semana havia dito à Julia­na que o faria, mas o excesso de trabalho o vinha impedindo de cumprir o prometido. Naquele dia, porém, aliviado com o exce­lente resultado da reunião com o presidente da empresa, sentia que era chegado o momento de solucionar também aquele pro­blema. Ainda mais se Alberto estivesse mesmo a seu lado, como dona Catarina dissera. Com certeza, o amigo devia estar também preocupado com a insegurança da filha.

- Meu Deus, o que estou pensando! - disse alto, para si mes­mo, enquanto estacionava seu carro em frente ao edifício de Sele­ne. - Imagine se o espírito do Alberto ia ficar andando atrás de mim de um lado para outro. Dona Catarina realmente não deve andar muito boa das idéias...

Sentado a seu lado, no banco do carona, Alberto não pôde evitar um risinho de satisfação. Conseguira colocar na cabeça de João Vítor que dona Catarina estava maluca. Quem sabe não con­seguiria tirar ainda mais proveito da situação convencendo João Vítor de que ele próprio estava ficando maluco? Era uma idéia in­teressante. Mais tarde conversaria sobre isso com Xantipa. Por ora, no entanto, sua preocupação era dar continuidade a seu pla­no inicial: fazer com que João Vítor se unisse a Selene para tirar a posse de Juliana de Lenita.

Selene tinha acabado de sair do banho quando a campainha tocou. Usava apenas um leve roupão sobre o corpo hidratado e perfumado, e levou um susto quando abriu a porta e deu com João Vítor. A primeira idéia que lhe veio à cabeça foi do quanto ele ti­nha se tornado atraente nos últimos anos.

-Ora, ora - disse ela, sem conseguir disfarçar o olhar de ad­miração pela aparência distinta do antigo colega de escola -, quem é vivo sempre aparece...

Alberto sorriu satisfeito. Pelo que podia ler nos olhos de Sele­ne, as coisas seriam ainda mais fáceis do que ele imaginava.

João Vítor, no entanto, parecia imune aos olhares ardentes de Selene:

- Você não gostaria de trocar de roupa para que a gente pu­desse conversar? - perguntou ele, acomodando-se no sofá.

- Meus trajes te incomodam, cherie? - dardejou Selene. -Absolutamente - respondeu ele -, apenas pensei que gosta­ria de...

- Eu sempre te perturbei, não é, João Vítor? - cortou Selene. -Desde os tempos do Alberto...

Não foi para falar sobre isso que eu vim aqui, Selene - respon­deu ele, convicto.

- É claro - concordou ela, cruzando as pernas de maneira sen­sual. - Mas, enfim, a que devo a honra desta inusitada visita?

Só então Alberto percebeu que três entidades deformadas es­tavam sentadas nos almofadões que ficavam do outro lado do sofá. Não era possível distinguir-lhes os sexos, nem os rostos, cobertos por uma franja de aspecto sujo, assim como o restante de seus ca­belos, crespos, compridos e embaraçados. As três entidades tam­bém perceberam a presença de Alberto e ficaram encarando-o de maneira ameaçadora.

-Vim até aqui conversar sobre Juliana - continuou João Vítor, incomodado com a dor de cabeça que começava a sentir.

Selene abaixou os olhos e começou a brincar com o enorme anel de pedra preta que usava sempre no dedo indicador, o qual estava impregnado de fluidos negativos.

- O que você quer de mim? Pedir para que não a procure nun­ca mais, como fez no dia em que a entreguei a você e ao Alberto?

- Cuidado! - gritou Alberto para Selene, sem poder se conter ao ver que as três entidades estavam se aproximando dela.

Selene não registrou sua sugestão, mas as três entidades não gostaram nada do atrevimento de Alberto e se dirigiram até ele, ainda mais ameaçadoras. Assustado, Alberto correu para o sofá e grudou-se em João Vítor.

- Que engraçadinho! - disse a entidade líder do grupo. -Então você acha que esse seu amigo borra-botas pode alguma coi­sa contra nós? Pois veja só o que nós fazemos com ele!

Dizendo isso, a mesma entidade tirou uma agulha do bolso e espetou-a no estômago de João Vítor, que imediatamente sentiu uma pontada de dor. Vendo-a de perto, Alberto percebeu que se tratava de uma mulher baixinha, que mais parecia uma anã. Seu corpo era gordinho e atarracado, seus braços e mãos eram enco­lhidos e mal formados, cada mão tinha apenas três dedos, em vez de cinco. Toda ela estava envolta por uma fumaça escura que lhe embaçava a estranha fisionomia, onde apenas um par de olhos es­bugalhados se destacava por entre os fios de cabelo.

Ai! - gritou João Vítor, segurando o estômago - talvez seja melhor nós continuarmos esta conversa num outro dia...

Não - protestou Selene -, agora que veio até aqui, terá que me ouvir até o fim. Você pensa que eu não tenho direito nenhum a minha filha, não é? Que eu nunca seria capaz de dar um bom exemplo para ela, não é?

Percebendo que o assunto era grave, a líder das entidades passou a agulha para a outra que estava a seu lado, de aspecto bas­tante semelhante, e posicionou-se ao lado de Selene, colocan-do-lhe a destra sobre a testa. Enquanto isso, revelando-se dona de uma incrível força, a terceira das entidades, que era um pouco mais alta que as outras e bastante corpulenta, arrancou Alberto do sofá com violência e, depois de esbofeteá-lo, amarrou-o a uma ca­deira, com cordas e correntes. João Vítor, que continuava sendo espetado pela segunda entidade, ficou contorcendo-se de dor no sofá, enquanto Selene, completamente dominada pela líder das entidades trevosas, falava sem parar:

- Pois fique sabendo que eu vou recuperar a minha filha, quer você e aquela lambisgóia da Lenita queiram, quer não. Eu sou a mãe dela e eu vou dar a ela o exemplo de que ela precisa. Vou apre­sentá-la à sociedade, vou vesti-la como uma princesa, vou fazer dela tudo o que eu não pude ser nesta vida.

-Mas, Selene... - tentou dizer João Vítor, ainda sentindo mui­tas dores no estômago.

- Nem você, nem ninguém vai me convencer do contrário -disse ela, aproximando-se de João Vítor de maneira sensual. - A menos que você queira mudar-se também para cá e ocupar o lugar que Alberto nunca quis assumir...

Em seguida, ela desabotoou-lhe a camisa e começou a esfre­gar seu estômago dolorido, enquanto a entidade líder, a seu lado, dava ordens à outra para que parasse com as agulhadas. João Vítor estava tão assustado e com tanta dor que não conseguia sequer se mover. Era como se estivesse hipnotizado por Selene.

- Sabe, no fundo, eu sempre achei você um sujeito muito atra­ente... - dizia Selene, enquanto lhe acariciava o estômago. - Ainda mais agora, que se tornou um homem rico e poderoso. Já pensou como poderíamos ser felizes juntos? Eu, você e Juliana?...

Alberto não estava menos assustado. Embora tudo parecesse se encaminhar da maneira como ele planejara, a presença daque­las entidades não lhe agradava nada. Vendo a crueldade com que elas conduziam os acontecimentos, chegou mesmo a sentir uma pontinha de arrependimento, sobretudo ao pensar que, se tudo corresse como ele mesmo idealizara, dentro de poucos dias sua fi­lha Juliana também seria vítima daqueles terríveis algozes. Alber­to sentia-se agora culpado e irresponsável. Como pudera pensar em sacrificar sua própria filha, trazendo-a para aquele antro de maldade, só para separar Lenita de João Vítor? Desesperado, pensou fortemente em Xantipa, chamando-o mentalmente.

O método deu certo. Em poucos segundos, Xantipa adentrava o ambiente. Para surpresa de Alberto, porém, ao vê-lo, as três enti­dades abandonaram o que estavam fazendo e foram curvar-se dian­te dele.

Mestre, prendemos um intruso. Chegou aqui com o outro que nós esperávamos e tentou atrapalhar nossos trabalhos - infor­mou a Xantipa a líder das entidades.

Que papelão, hein, camarada? - disse Xantipa, dirigindo-se a Alberto. - Então eu armo todo um esquema pra te dar uma força e você quase estraga tudo com essa sua mania de se emocionar à toa!

Mas, Xantipa - tentou argumentar Alberto -, nós não com­binamos...

Cala essa matraca! - bradou Xantipa irritado. - Quem man­da aqui sou eu. Tentei te tratar como camarada, mas você quis fa­zer tudo sozinho! Por que não se limitou apenas a fazer o que eu mandei?

Enquanto isso, afagado por Selene, que se recostara em seu ombro, João Vítor lembrou-se das palavras de dona Catarina. Sen­tia que ali não estavam apenas ele e Selene, havia muito mais pes­soas, embora ele não pudesse vê-las. Sentia também que aquela não era a Selene que ele conhecera quando garoto. Até sua voz pa­recia alterada. Estaria ela dominada por espíritos? Seria mesmo possível tudo isso? Sem saber o que fazer, João Vítor então pensou em Deus. "Senhor", dizia ele mentalmente em sua oração, "se to­dos que morrem viram espíritos, devem existir também espíritos bons, que auxiliam as pessoas em lugar de fazer-lhes o mal. Se isso é verdade, Senhor, por misericórdia, envia até aqui um espírito bom, que me ajude a sair deste lugar. Se for o espírito de Alberto que estiver aqui causando todo esse transtorno, fazei, Senhor, com que os bons espíritos também venham em seu socorro."

Nem bem João Vítor acabou sua prece, uma intensa luz azula­da surgiu em torno dele, trazendo-lhe uma sensação de paz e tran­qüilidade. No mesmo instante, Selene tirou as mãos de sua barriga e caiu num pranto convulsivo.

Despertados pelo pranto de Selene, Xantipa e as entidades trevosas também perceberam a presença daquele ser superior e correram para o canto da sala:

- Depressa! - ordenou Xantipa. - Desamarrem o prisioneiro e vamos cair fora daqui. O miserável apelou para as forças do bem, não temos tempo a perder.

Numa fração de segundos, os quatro atravessaram a porta e sumiram, carregando Alberto como prisioneiro. Selene conti­nuou chorando no sofá, enquanto João Vítor, ainda circundado pela luz azulada, afagava seus cabelos com carinho. Num impulso, ela tirou então o anel do dedo, colocando-o sobre a mesa, e abriu seu coração:

- Não sei o que acontece comigo... - desabafou ela. - De uma hora para outra me sinto invadida por um monte de pensamentos ruins, e então digo coisas que eu não quero, faço coisas que eu não deveria... Depois me bate um arrependimento, e fico deste jeito...

Há quanto tempo isso vem acontecendo? - quis saber João Vítor?

Começou um pouco antes do Alberto morrer... Uns quinze dias antes, mais ou menos. Nessa época, eu tive um sonho estra­nho. Um homem horrível, com cara de bêbado, aparecia para mim e dizia que eu me preparasse, porque o tempo de pagar mi­nhas dívidas havia chegado, que já estava tudo preparado, que eu ia ver só.

E esse tal homem, ele falava alguma coisa sobre Juliana? -interessou-se João Vítor.

Falava - admitiu Selene. - Ele dizia que eu não pensasse que Juliana ia escapar da sua parte, que ela também ia ter que pagar o que devia. E que, se o rapazinho se metesse de novo nessa história, ele ia ver o que era bom pra tosse... Engraçado... Agora, falando contigo, tenho a sensação de que esse tal rapazinho era você...

João Vítor estava cada vez mais intrigado com aquela história. Era como se algo em seu íntimo entendesse tudo o que Selene es­tava dizendo.

Continue - pediu ele.

Bom, desde aquele dia eu comecei a pensar muito em Julia­na. Ficava lembrando das vezes em que ia visitá-la, quando Alberto ainda era solteiro...

O que não era lá muito comum... - observou João Vítor.

Ah, eu sei que eu não ia tanto quanto era esperado. Mas de vez em quando eu ia, e confesso que tenho saudades desses dias. Lembro dela pequenininha no meu colo, dela mais crescidinha, com aqueles laços vermelhos na cabeça... - seus olhos começaram a encher-se de lágrimas novamente. - Eu sei que nunca fui mãe dela de verdade, mas, de alguma maneira, pode acreditar, eu sinto amor por ela... Ao longo de todos esses anos, muitas vezes eu senti vontade de ligar para saber dela, mas, na hora "H", quase sempre perdia a coragem, porque eu sabia que ela não gostava muito quando eu ligava...

- Mas você a apoiou quando o Alberto morreu, não apoiou? -perguntou João Vítor, querendo testá-la.

Selene respirou fundo antes de responder:

Eu tentei, ninguém pode dizer que eu não tentei. Logo de­pois do enterro, liguei várias vezes, cheguei até a perguntar se ela não queria passar uns dias aqui, pra espairecer, mas ela sempre me tratava com muita frieza. Foi então que eu comecei a sentir essas coisas estranhas. De repente me dava um ódio da Juliana, por ela não querer falar comigo, um ódio maior ainda da Lenita, por ela ter passado esses anos todos cuidando da Juliana e...

Foi então que você ameaçou Juliana, dizendo que ia pedir sua guarda ao juiz para ficar com metade da pensão do Alberto -deduziu João Vítor.

Foi - admitiu Selene. - Na verdade, eu não queria o dinhei­ro, eu queria a Juliana. Quer dizer... Não posso negar pra você que no momento estou passando por uma barra meio pesada e que a pensão do Alberto iria me ajudar um bocado... Mas eu não queria só isso, você me entende?

E você nunca pensou que para conquistar Juliana precisava apenas de amor? Que tudo o que ela queria de você era que a tra­tasse com carinho e atenção, que se desprendesse das coisas mate­riais e a valorizasse simplesmente? - tornou João Vítor.

E você acha que se eu conseguisse fazer isso ela ia querer vir morar comigo? - perguntou Selene.

O importante não é fazer com que ela venha morar com você, Selene, mas conquistar a amizade dela, seu amor de filha. Vocês podem até morar separadas e ter uma relação legal como mãe e filha. Só que, para isso, você teria que abrir mão de alguns excessos, se portar como mãe para ser respeitada pela sua filha... -advertiu João Vítor.

Eu sei... Acho que tenho bebido demais, saído demais, me preocupado demais com coisas que não são nem um pouco impor­tantes...

Pois, então - disse João Vítor, levantando-se -, acho que por hoje você já tem muito no que pensar. Lembre-se de que você não é mais uma adolescente e que nunca é tarde para recomeçar. Ago­ra preciso ir, que estou bastante cansado.

Selene o acompanhou até a porta e deu-lhe um beijo carinho­so na bochecha.

- Obrigada por tudo... - disse ela.

- Quando quiser conversar, é só me ligar. E vê se toma juízo, viu? - finalizou João Vítor, despedindo-se.

Mesmo depois que ele saiu, o ambiente continuou impregna­do pela mesma luz azulada que o rodeava. Um foco dessa luz irra­diou-se fortemente sobre Selene, trazendo-lhe uma certa sonolên­cia. Na verdade, embora não se tivesse dado conta disso, acabara de receber um passe dos benfeitores espirituais. Ela respirou fun­do, olhou para a garrafa de whisky no bar, mas não teve vontade de se servir de uma dose, como era habitual. Sentia-se exausta depois de toda aquela conversa e foi para o quarto deitar-se.

 

Juliana abriu a porta de casa, esbaforida, e teve uma nova sur­presa. Sentadas à mesa de jantar, Lenita e dona Catarina conversa­vam, enquanto saboreavam um delicioso chá com torradas e bis­coitos amanteigados.

-Juliana! Como você demorou! Já estava ficando preocupada - disse Lenita, levantando-se para abraçá-la.

Juliana beijou as duas, depois explicou-se, um pouco enver­gonhada:

- É que... o Paulo esteve lá na escola e...

Que danadinho! - admirou-se dona Catarina. - Nem me disse nada... Ele veio te trazer até aqui, Juliana?

Na verdade ele queria, mas eu pedi que não - justificou Ju­liana. - Fiquei com medo de que as pessoas falassem e...

-Antes falarem do que você vir sozinha pela rua a esta hora! -tornou dona Catarina.

Lenita sorriu, percebendo o brilho diferente nos olhos de Ju­liana, e acalmou dona Catarina:

Ela já tem quinze anos, dona Catarina, não é mais uma criança. De mais a mais, se achasse que tinha algum problema, te­ria me ligado, não é mesmo Juliana?

Hum, hum - confirmou Juliana, enquanto pegava um pu­nhado de biscoitos. - Vou tomar um banho. Daqui a pouco estou de volta. Cadê o Lipe?

Apagou. Chegou da escola exausto e caiu na cama - infor­mou Lenita.

Juliana encheu a boca de biscoitos e saiu cantarolando, de boca cheia, em direção a seu quarto. Dona Catarina e Lenita sorri­ram, cúmplices, uma para a outra.

- Eu não te disse, Lenita? Vai ver até já estão namorando - co­mentou dona Catarina.

Acho que não - observou Lenita. - Se tivesse acontecido al­guma coisa, a Juliana não teria cumprimentado a senhora tão nor­malmente como ela fez. Estaria morrendo de vergonha... Mas, com certeza, algum interesse ela tem nele. Li isso nos olhos dela.

Para você ver como este mundo é pequeno... - arrematou dona Catarina.

Mas a senhora sabe - continuou Lenita -, ainda estou pasma com a sua visita. Se eu lhe contasse o sonho que tive esta noite, a se­nhora não iria acreditar...

Dona Catarina mostrou-se interessada e Lenita então con­tou-lhe não apenas o sonho, mas também tudo o que havia aconte­cido no dia anterior, conforme lhe recomendara tia Geninha. Ao fim da narrativa, para espanto de Lenita, dona Catarina declarou:

- Lenita, eu não só acredito em tudo o que você está me con­tando, como tenho também uma série de explicações para lhe dar. Aliás, foi por isso que eu vim.

Foi então a vez de dona Catarina contar a Lenita tudo o que havia acontecido no escritório naquele dia. A cada trecho do rela­to, Lenita ficava ainda mais impressionada. Por fim, não podendo mais conter-se, ela perguntou:

Então a senhora acha que o espírito do Alberto estava aqui conosco ontem e que foi hoje para a empresa junto com João Vítor?

Como disse a João Vítor, minha filha, eu não acho, eu tenho certeza. E não duvido nada de que tenha sido essa sua tia Geninha quem me convenceu a vir aqui visitá-la depois do expediente, sob o pretexto de falar de Paulo e Juliana...

Sentada perto das duas, tia Geninha sorriu, mas logo teve sua fisionomia alterada, ao perceber que um estranho vulto adentrava a sala. Tia Geninha acompanhou o vulto, que foi até o quarto de Juliana e ficou observando-a, enquanto ela escolhia uma roupa para vestir depois do banho. Era Xantipa. Como Juliana estivesse muito alegre, pensando o tempo todo o quanto era feliz e o quanto Deus era bom para ela, Xantipa não conseguiu permanecer por muito tempo a seu lado. Sempre seguido por tia Geninha, ele en­trou no quarto de Felipe e concentrou-se no sonho do menino.

Felipe estava tendo um pesadelo. Em seu sonho, via o pai amarrado numa caverna, sendo chicoteado por três entidades de estranho aspecto, as mesmas que haviam estado na casa de Selene. Escondido num canto da caverna, sem ser visto pelas entidades, Felipe chorava desesperado, sem saber o que fazer para ajudar o pai. Satisfeito por encontrar tão perfeita sintonia, Xantipa aproxi­mou-se então do corpo adormecido do Felipe e projetou sobre ele fluidos escuros e pesados. Em seguida, Xantipa dirigiu-se à sala e sentou-se ao lado de dona Catarina. A energia positiva que ema­nava da secretária, porém, o incomodou e ele preferiu acomo­dar-se embaixo da mesa onde as duas estavam sentadas.

- Agora vamos ver o que é que essa enxerida veio fazer aqui -animou-se ele.

Intuindo sua presença, dona Catarina sentiu um leve mal-estar. -A senhora está sentindo alguma coisa? - preocupou-se Lenita.

Tendo cuidado para não ser notada por Xantipa, tia Geninha parou então atrás de dona Catarina e pôs-se a irradiar luz em sua direção. Sentindo-se amparada pelas forças do bem, esta fechou os olhos por alguns instantes, procurando se concentrar para ex­trair o máximo daquelas energias.

- Aconteceu alguma coisa, dona Catarina? - insistiu Lenita.

Dona Catarina abriu os olhos, respirou pausadamente e disse, com os olhos iluminados:

-Graças a Deus! Lenita, querida, quando morremos, carrega­mos conosco tudo aquilo que somos. Nossos sentimentos, nossas emoções, nossos apegos e preocupações. Aflitos e desvairados, muitas vezes retornamos a nossos antigos lares e contemplamos, ensandecidos de angústia, as propriedades de que nos julgávamos donos, nossos objetos, até mesmo as pessoas a quem amávamos, e nos desesperamos ante a impossibilidade de continuar a exercer sobre eles o mesmo domínio. Instala-se então a revolta dentro de nós e um triste sentimento de egoísmo nos impele a amaldiçoar e destruir todos aqueles que acreditamos estarem usufruindo de algo que, 'por lei', nos pertencia, seja do nosso trabalho, da nossa casa ou até mesmo do amor de nossos filhos.

Embaixo da mesa, Xantipa inquietou-se ao ouvir as palavras de dona Catarina. Sua vontade era de sair daquela casa o quanto antes, mas, ciente da tarefa que o trouxera até ali, procurou con­centrar-se nas bonitas pernas de Lenita para poder escutar aquela conversa até o fim.

O que a senhora está falando tem muito sentido - conside­rou Lenita. - Alberto era realmente uma pessoa muito dominado­ra, e muito ciumenta também...

Na verdade, minha filha, o homem só possui em plena pro­priedade aquilo que lhe é dado levar deste mundo: a sua inteli­gência, os seus conhecimentos e as suas qualidades morais - conti­nuou dona Catarina, iluminada pelas luzes de tia Geninha - são esses os verdadeiros tesouros a que se referiu o mestre Jesus, os únicos que a ferrugem e os vermes não comem, que os ladrões não podem desenterrar e roubar. Todavia, poucos de nós se lembram de cultivar esses tesouros enquanto encarnados aqui na Terra, e a grande maioria carrega para junto do túmulo a dor da frustração, diante do bem que não conseguiu realizar.

Mas o Alberto era uma pessoa boa - ponderou Lenita -, não desejava mal a ninguém, até gostava de ajudar as pessoas... Talvez seu único defeito grave fosse estar sempre questionando a existên­cia de Deus...

Quanta baboseira - deixou escapar Xantipa. - Mal sabe ela que o marido é um assassino...

Eis aí a grande questão, Lenita - prosseguiu dona Catarina -, pois, para que não façamos o mal, basta, as mais das vezes, que não nos deparemos com situações adversas. Fazer o bem, porém, requer fé e confiança no futuro. O homem que acredita em Deus sabe que é seu dever auxiliar os seus semelhantes e que de suas boas ações dependerá seu futuro na pátria celestial. Nas maioria das vezes, o homem só faz o bem na esperança de que aqueles que o cercam o reconheçam como uma pessoa generosa, satisfazendo assim, acima de tudo, o seu orgulho e o seu amor-próprio. E, mes­mo assim, esse bem quase sempre se restringe apenas àqueles que fazem parte de seu círculo mais íntimo. No entanto, quando Jesus disse "Amai o vosso próximo como a vós mesmos", ele se referia não apenas àqueles que estão ligados a nós por laços de parentes­co, amizade ou vizinhança, mas a toda a humanidade...

Entendo o que a senhora quer dizer - asseverou Lenita. - A crença em Deus é como se fosse a terra fértil e profunda, de onde bro­tam as raízes do nosso amor por todas as outras pessoas, não é isso?

Sim, Lenita, sem essa terra fértil e profunda, qualquer ven­tania pode derrubar a árvore de nossos sentimentos - concordou dona Catarina.

Mas acho que, de alguma maneira, mesmo se esforçando para parecer o contrário, Alberto tinha essa terra fértil dentro de si - argumentou Lenita. - Ele não era uma dessas pessoas que só fazem o bem por falta de oportunidade de fazer o mal. Ao contrá­rio, ele fazia mais do que a maioria e ainda tinha o cuidado de não fazer isso na frente de qualquer pessoa, só para ganhar elogios. Digo isso porque uma vez eu saí atrás dele, de manhã cedo, para tentar entregar uns documentos que ele havia esquecido em cima da mesa, e, quando cheguei à entrada do metrô, me deparei com o Alberto cercado de crianças de rua. Ele estava distribuindo pão. Confesso à senhora que eu nunca tinha visto uma cena tão bonita. Fiquei tão emocionada que nem consegui dizer nada quando entre­guei os papéis para ele. Mais tarde, quando conversamos, ele me disse que fazia isso há muitos anos e me fez prometer jamais contar isso a ninguém. Era um segredo dele, que eu respeitei até hoje...

Isso que você está me contando é uma coisa muito boa, fi­lha... Significa que Alberto, embora questionasse a existência de Deus e não tivesse uma religião, seguia os preceitos do Cristo e, com isto, agradava a Deus - inferiu dona Catarina.

Definitivamente, Xantipa não estava gostando nada daquela conversa. Embora não pudesse ver tia Geninha, agora percebia cla­ramente que as duas não estavam sozinhas. Sabendo disso, procurou fazer o mínimo de ruído possível, para que o espírito de luz ali pre­sente não percebesse a sua presença (como se isso fosse possível).

- Mas a senhora acredita - prosseguiu Lenita - que o Alberto esteja vivendo momentos de perturbação pelo simples fato de não acreditar piamente na existência de Deus?

Deus jamais se esquece de um filho. O filho é que, muitas ve­zes, por revolta, se esquece do Pai. O Alberto encontra-se em per­turbação não porque Deus se esqueceu dele, mas porque não foi preparado para admitir o fato de que a vida continua depois da morte e, sobretudo, que a vida de vocês continua depois da morte dele - explicou dona Catarina.

E será que, em nome dessa revolta, ele deixou de amar a mim, às crianças e até mesmo ao João Vítor, que sempre foi como um irmão para ele?

Não é que ele tenha deixado de amar, Lenita. Ele ama todos vocês, mas de uma maneira equivocada. Ama como se fossem pos­ses suas e se ressente ao vê-los reconstruir suas vidas independen­temente dele. De certa forma, por uma questão de imaturidade espiritual, o que ele mais amava em vocês era o amor que vocês de­dicavam a ele e, à medida que percebe que, na ausência dele, vocês podem também amar outras coisas e outras pessoas, Alberto se ressente demasiadamente, porque se considerava o centro da vida de vocês. Trata-se de um amor selvagem, capaz de se transformar em ódio no momento em que vê ameaçada a sua reciprocidade. Na cabecinha perturbada de Alberto, é como se vocês, ao se desli­garem dele, não o amassem mais, embora isso não seja verdade.

Meu Deus! Então ele deve estar sofrendo muito... Se estava mesmo conosco naquele dia, no restaurante, deve ter pensado que nós havíamos colocado João Vítor em seu lugar... - imaginou Lenita.

No caso de João Vítor, a situação é ainda mais complicada, porque, além de estar convivendo com vocês, ele assumiu o cargo que Alberto desejava na empresa. Até em função da maneira abrupta com que Alberto foi tirado da vida, ele não pode entender a atitude de João Vítor como um reflexo da amizade que existia entre eles. Ao contrário, acredita que o amigo o esteja traindo, que esteja se apossando de tudo o que outrora lhe pertencia. Nesses ca­sos, é muito comum o espírito colar-se à pessoa que acredita que es­teja ocupando seu lugar para viver, através dela, a vida que não mais lhe pertence ou, simplesmente para vingar-se, sugerindo que faça coisas que só a prejudicariam - prosseguiu dona Catarina.

- Então foi por isso que tia Geninha insistiu tanto para que eu convencesse João Vítor a não discutir com o sr. Fernandez... - de­duziu Lenita.

Se sua tia pediu isso a você com tanta ênfase, é porque pro­vavelmente Alberto estava tramando uma maneira de fazer com que João Vítor se indispusesse com o chefe, alimentando-lhe pen­samentos que poderiam até causar a sua demissão - explicou dona Catarina.

Ah! Então foi essa tal tia Geninha que atrapalhou tudo - dis­se Xantipa, cerrando os pulsos. - Mas ela também não perde por esperar...

Lenita pensou por alguns instantes, mordendo a ponta das unhas, e então desabafou, com os olhos cheios de lágrimas:

- Eu amo a Deus, dona Catarina, e amo profundamente o Alberto, as crianças, e o João Vítor também, que sempre foi mais que um amigo para nós. E é em nome desse amor que eu lhe per­gunto: o que eu posso fazer para ajudá-los?

-Antes de mais nada, querida, você precisa se fortalecer. Cer­car-se de boas energias, entender melhor o que está fazendo aqui na Terra, aprender e estudar sobre o mundo espiritual - aconse­lhou dona Catarina.

E como eu posso fazer isso? Sabe, embora eu sempre tenha acreditado em Deus, eu nunca tive uma religião, meus pais nunca ligaram muito para isso. Quando me sinto muito chateada, costu­mo ir até a igreja e pedir ajuda à Nossa Senhora, mas não gosto muito de missas. Acho que tenho trauma. Quando eu era garota, cheguei a assistir a aulas de catecismo na escola para fazer primei­ra comunhão, e sempre discutia muito com os padres, porque, sempre que eu questionava alguma coisa, eles me diziam que a igreja era feita de dogmas, e dogma a gente não questiona. Me dava uma angústia! - recordou-se Lenita.

Entendo a sua angústia. Também passei por isso, mas hoje sei que tudo tem uma explicação. A doutrina espírita me deu essa segurança. Se você quiser, posso levá-la para assistir a uma reunião na casa em que eu freqüento. Tenho certeza de que vai gostar mui­to - convidou dona Catarina.

- Eu adoraria! - exclamou Lenita. - E quando são realizadas as reuniões nessa casa?

-As reuniões abertas ao público acontecem sempre às quintas e domingos, mas eu acho que neste momento você necessita de um atendimento de emergência, que só pode ser dado nas reu­niões mediúnicas, realizadas às terças-feiras.

Reunião mediúnica? O que é isso? - quis saber Lenita.

E uma reunião fechada, em que os espíritos se comunicam através dos médiuns - explicou dona Catarina.

Então quer dizer que o Alberto poderá falar conosco?

Se ele quiser, creio que sim.

Isso é o que nós veremos - desafiou Xantipa, de seu escon­derijo, sem que nenhuma das duas atinasse.

E nas sessões abertas os espíritos não se comunicam? - vol­tou a perguntar Lenita.

Diretamente, não - elucidou a boa senhora. - Nessas oca­siões as pessoas vão até o centro apenas para ouvir palestras e to­mar passes. Em algumas casas, há espaço para a leitura de mensa­gens psicografadas, mas isto não é uma regra geral.

E quando é essa reunião mediúnica a que a senhora acha que eu devo ir?

E amanhã, às oito horas, mas costumamos chegar por volta das sete e meia. Eu, inclusive, falei também com o João Vítor, mas acho que ele não gostou muito da idéia. Se você pudesse conven­cê-lo de ir conosco...

Amanhã? Deixe comigo - prometeu Lenita, animada. - E quanto ao Felipe e à Juliana?

O Felipe pode ir conosco. Tem um grupo de jovens que cui­da das crianças pequenas, enquanto os pais participam da reu­nião. Em meio a brincadeiras, eles ensinam às crianças alguns conceitos básicos da doutrina, como o respeito aos semelhantes, a importância da caridade, a bondade de Jesus e muitas outras coi­sas. O Paulo, meu filho, faz parte desse grupo, que se chama Esco­linha de Evangelização Infantil Francisco de Paula.

- Que trabalho bonito! - comentou Lenita, maravilhada.

- Quanto à Juliana - continuou dona Catarina -, tenho certe­za de que Paulo deve estar prestes a convidá-la para assistir a uma reunião na mocidade espírita, que funciona aos sábados de tarde. Se é que já não convidou...

As duas riram satisfeitas. Pela vontade de Lenita, passariam o resto da noite ali conversando. Dona Catarina, no entanto, apres­sou-se: precisava cuidar do jantar de Paulo.

Essa sua visita foi uma bênção, dona Catarina. Nem sei como agradecer... - disse Lenita, acompanhando-a até a porta.

Agradeça a Deus e à sua tia Geninha que, com certeza, foi quem nos aproximou - brincou dona Catarina.

Antes de sair, ela ainda fez uma última recomendação a Lenita:

- Agora você se prepare, querida, porque amanhã, se o Alber­to estiver próximo, como eu imagino, vai acontecer de tudo para impedir vocês de irem à reunião. Logo ao acordar, faça uma prece a Deus, pedindo para que tenha forças para vencer todos os obstá­culos e conseguir encontrar-se comigo, no centro, às sete e meia.

- Nada me impedirá de fazer isto - garantiu Lenita. Nesse momento, ainda escondido debaixo da mesa, Xantipa

soltou uma gostosa gargalhada.

- Não tenha tanta certeza - advertiu dona Catarina. - Mas, em hipótese alguma perca sua fé, procurando sempre cultivar pensamentos de alegria e otimismo. Assim tornará mais difícil a aproximação de espíritos mal-intencionados. Como dizia o mes­tre Jesus, "orai e vigiai". E lembre-se: às oito horas em ponto as portas se fecham e não se pode mais entrar.

Após a despedida, Lenita sentia-se como se tivesse sido inun­dada por uma torrente de luz. Chegou a ir até o quarto de Juliana, louca para contar à enteada tudo o que ouvira de dona Catarina, mas Juliana estava tão mergulhada no livro que ganhara de Paulo, que nem percebeu sua presença. Intuída por tia Geninha, Lenita então fechou suavemente a porta e foi deitar-se também. Mal po­dia esperar para que chegasse o dia seguinte.

Xantipa ainda tentou aproximar-se dela e de Juliana, mas sentiu-se impedido por um escudo invisível, e não conseguiu ul­trapassar a porta do quarto de nenhuma das duas. Voltou então ao quarto de Felipe e, vendo que o menino continuava agitado em seu pesadelo, decidiu ir embora, considerando sua missão cum­prida por aquele dia.

Logo que ele saiu, tia Geninha chegou a aproximar-se de Feli­pe, disposta a anular as energias negativas com que Xantipa im­pregnara o garoto. No momento em que ela se preparava para aplicar-lhe um passe reparador, porém, o espírito doutor Márcio, o médico que cuidara de Alberto na espiritualidade, completa­mente envolto em luz azulada, se fez visível no quarto e a advertiu:

- Nem pense em fazer isso, Geninha. Não podemos fazer o que compete aos encarnados, mesmo amando-os demais. Cada um tem uma série de lições a aprender, as quais fazem parte de seu caminho evolutivo.

-Mas ele é ainda tão pequeno e indefeso-replicou Geninha.

Felipe precisa entender que não pode ir atrás do pai quando quiser, sem a nossa autorização. Além disso, ao vê-lo adoentado, Alberto fatalmente será obrigado a reavaliar suas últimas atitudes - elucidou o médico.

Mas, para evitar que isso aconteça, Xantipa e seu bando montarão guarda ao lado de Felipe - insistiu Geninha.

E bom que eles estejam por perto. Esses irmãos necessitam de doutrinação e só teremos oportunidade de fazer isso se eles acompanharem Felipe, Juliana e Lenita na reunião de amanhã -tranqüilizou-a o dr. Márcio.

Assim, diante de todas essas orientações, só restou à tia Geni­nha orar para que tudo corresse conforme o dr. Márcio previa.

 

Felipe continuava chorando, escondido num canto da gruta quando, de repente, sentiu-se envolvido por uma voz feminina, muito tranqüila, que dizia:

-Tenha fé em Deus, meu menino. Seu pai vai ficar bem. Tudo isso é apenas um pesadelo. Procure se acalmar e rezar para o papai do céu, pedindo a ele para que você possa sair desse sonho ruim.

Felipe olhou para os lados, procurando descobrir de onde vi­nha aquela voz, mas não viu ninguém. Virou-se para o lado de fora e percebeu que um homem feio e sujo, de cabelo e barba crescidos, vinha em direção à caverna, carregando algo. Ele ainda estava lon­ge, mas seus olhos brilhavam como os de uma raposa. Tomado pelo pânico, o menino então ajoelhou-se no chão e decidiu fazer o que a voz lhe recomendara:

- Papai do céu, por favor, me tire daqui depressa. Me leve de vol­ta pra minha caminha e eu prometo que nunca mais vou sair andan­do por aí, procurando pelo meu pai Alberto. Papai do céu, por favor, não deixa que nada de ruim aconteça com o meu pai Alberto...

Poucos segundos depois, Felipe acordava em seu quarto, ain­da chorando, sob o impacto do sonho. Enxugou o suor da testa e correu para a cama de Lenita.

O que houve, Lipe? - perguntou ela, vendo-o acomodar-se a seu lado, com os olhos ainda molhados.

Um pesadelo horrível, mamãe... - respondeu Felipe, já que­rendo chorar novamente.

Lenita o abraçou com carinho e procurou acalmá-lo:

-Já passou, eu estou aqui. Agora procure dormir novamente

que ainda está de madrugada. Amanhã a gente conversa sobre o

sonho, está bem assim?

Felipe se aconchegou junto à mãe e, sentindo-se seguro, logo voltou a adormecer.

Enquanto isso, Xantipa chegava à entrada da caverna, carre­gando um pequeno embrulho, e procurava pelo menino:

- Onde está ele? Tenho certeza de que vi o moleque aqui quando vinha pela estrada...

Como de hábito, a líder das entidades trevosas correu a seu encontro:

O prisioneiro está na caverna, mestre. Levou uma surra que nunca mais vai esquecer.

Não estou falando de Alberto. Estou falando do menino. Eu sei que ele estava aqui - afirmou Xantipa, continuando a procurar Felipe por entre as pedras.

O lugar era bastante sombrio e assustador. Tudo em torno da caverna estava coberto por uma névoa escura e pesada; estranhos pássaros, que mais pareciam morcegos gigantes, sobrevoavam por entre árvores secas, escuras e retorcidas, as quais circundavam uma imensa poça de lama fétida em frente à caverna.

- Não há nenhum menino aqui, mestre - garantiu a entidade.

Não ouse duvidar de mim, entendeu bem? - gritou Xantipa, com o dedo em riste.

O mestre não bebeu quase nada hoje - comentou a entida­de, depois de alguns minutos de silêncio.

Por isso estou irritado. Naquela maldita casa só tinha chá! -esbravejou Xantipa.

Logo em seguida, mudando de tom, entregou o pequeno em­brulho à entidade, dizendo:

-Tome. Isso foi tudo o que eu consegui arrumar no caminho.

A entidade pegou nas mãos o embrulho, sem conseguir es­conder sua satisfação.

- Roubei de uma velha imbecil, quando passava pelo umbral, antes de vir para cá - disse Xantipa, dando uma gargalhada. - E o prisioneiro, onde está?

A entidade conduziu Xantipa até o interior da caverna, onde Alberto encontrava-se amarrado a uma estalagmite, cheio de arranhões e hematomas. A seu lado, as duas outras entidades dormiam, exaustas, segurando, cada qual, um bastão cheio de pontas afiladas.

- E aí, camarada, passou bem a noite? - perguntou Xantipa. -Sinto muitas dores... - respondeu Alberto, quase num gemido.

- Pois isso é para você aprender a não se meter onde não é chamado. Falando nisso, trago notícias de sua casa... - provocou Xantipa.

Alberto teve de juntar todas as suas forças para conseguir per­guntar:

- Co... como está Leni... ta?

- Gostosa como nunca - tornou Xantipa. - Tem umas pernas que eu vou te dizer...

- Seu porco imundo - rebateu Alberto, reanimado pela ira. Xantipa aproximou-se, segurou-o pelo pescoço, cuspiu-lhe

no rosto e disse calmamente, soletrando cada sílaba:

- Por-co i-mun-do é vo-cê! Assassino! Eu só não te arrebento agora porque tenho uma dívida de gratidão contigo. Porque foi le­gal comigo e me devolveu a minha filha, embora ela tenha voltado para você. Mas agora ela é minha, entendeu? Minha, e vai ter que aprender a me respeitar como ela não respeitou no passado.

Alberto abaixou o rosto e pôs-se a chorar. Não entendia por que Xantipa o tratava desse jeito, por que o chamava de assassino, por que odiava tanto Selene, por que se empenhava tanto em mal­tratar seus familiares. E quem era aquela filha a quem Xantipa se referia? Pensou em Selene, mas afastou rapidamente a hipótese. Ele conhecera o pai de Selene, o oficial da aeronáutica, que era bem diferente de Xantipa. Veio-lhe à mente então a imagem de Juliana. Alberto sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo dolorido e conteve as lágrimas, paralisado de medo. Não, não podia ser. Ele ti­nha certeza de que Selene não o enganara. Juliana era sua filha. Xantipa, certamente, devia estar falando de outra pessoa.

Enquanto Alberto divagava em seus questionamentos, a enti­dade líder chamou por Xantipa:

-A mesa está pronta - anunciou ela, que havia aberto o em­brulho que lhe fora entregue pelo mestre e disposto sobre uma pe­quena mesa tosca algumas fatias de pão escuro e algumas frutam de aspecto estranho, que Alberto nunca vira.

Imediatamente as duas entidades que dormiam abriram os olhos e correram para a mesa, esfomeadas. Obedecendo a um si­nal de Xantipa, a entidade líder desamarrou Alberto e também o conduziu para a mesa. Logo que ele se aproximou, Xantipa, sen­tado na cabeceira, o alertou:

- Estou lhe dando uma chance, porque, no fundo, não tenho raiva de você. Só quero que aprenda a ser mais educado.

Dizendo isso, Xantipa apanhou o pão e começou a comer com prazer e apetite, no que foi logo imitado pelas entidades tre­vosas que o cercavam. Apesar da aparência ruim daqueles alimen­tos, Alberto decidiu experimentar. Sentia-se muito fraco e precisa­va alimentar-se. O gosto até que não era dos piores e, depois de três fatias, eleja se sentia bem melhor.

- Experimente também uma fruta - disse Xantipa, de boca cheia. - Não é como água, mas pelo menos serve para matar a sede.

Alberto obedeceu e realmente sentiu certo frescor depois de saborear a fruta.

-Agora que já encheu a pança, vamos ao que interessa - conti­nuou Xantipa. - A notícia que eu trago não é das melhores. Sua mulher confessou para aquela secretária enxerida que está com­pletamente apaixonada pelo seu amiguinho.

Alberto esbugalhou os olhos de espanto:

- Ela disse isso?

- Pra você ver quem são os seus amigos de verdade... Eu te aju­do, te dou comida, te trago notícias e você ainda me xinga... - la­mentou Xantipa, com ar sonso.

Alberto abaixou os olhos, envergonhado. Embora não com­preendesse os métodos e razões de Xantipa, tinha de admitir que ele fora a única pessoa que se dispusera a ajudá-lo desde que saíra daquele estranho hospital. Quanto a João Vítor e Lenita, seu ódio por eles crescia a cada instante. Percebendo-lhe os pensamentos, Xantipa prosseguiu em sua tática:

- Parece que os dois descobriram que você está no caminho deles e agora estão tramando para destruído. Querem te conven­cer a voltar para aquele hospital...

Eles não podem fazer isso! Eu não vou! - protestou Alberto, irritado.

Eu também fiquei revoltado, camarada - continuou Xanti­pa, cínico. - Imagine que eles estão tramando ir ao tal centro com a dona Catarina. Lenita, João Vítor e até as crianças. Vão pedir aos bons espíritos pra levarem você de vez...

Hipócritas! Miseráveis! - blasfemou Alberto. - Já que eles querem me destruir, eu também sou capaz de qualquer coisa para acabar com a raça deles!!!

Ah! - comemorou Xantipa. - Agora nós estamos falando de novo a mesma língua. Escute aqui, eu posso livrar mais uma vez a tua barra. Mas você tem que me prometer que dessa vez vai fazer tudo direitinho, do jeito que eu mandar...

-Já disse - tornou Alberto revoltado. - Faço qualquer coisa para me vingar desses traidores. Pensar que meus próprios fi­lhos... Agora começo a entender você, Xantipa... A dor da ingrati­dão é pior do que a dor da morte ...

Pois bem - disse Xantipa, referindo-se às três entidades -, todos vocês são testemunhas do que ele está dizendo. O plano é o seguinte: Carmona, Uldarico e Titânia vão voltar para a casa de Selene e dar seqüência a tudo o que já estava combinado.

E eu? - quis saber Alberto, cuja fisionomia denunciava sua imensa perturbação.

Você, camarada, vai voltar pra casa e fazer de um tudo para evitar que eles saiam na terça-feira à noite para a tal reunião. Eu até já adiantei as coisas pra você, fazendo o menino ficar doente -informou Xantipa.

- Felipe? Doente? - preocupou-se Alberto.

- Lembre que eles não estão nem um pouco preocupados com você. São uns ingratos! De mais a mais, é só uma doencinha de nada, só pra impedir a mãe de sair de casa -justificou o chefe.

-Se é assim... -concordou Alberto. - E quanto ajuliana e Lenita?

-Você deve conseguir fazer com que elas briguem, jogar Ju­liana contra Lenita - explicou Xantipa, com segundas intenções.

- Acho que não vai ser difícil - conjecturou Alberto.

- Lembre-se - continuou Xantipa -, qualquer problema, é só pensar firme em qualquer um de nós, como fez na casa de Selene.

- E João Vítor? - quis saber Alberto.

- Este fica por minha conta. Estamos todos de acordo? Carmona, Uldarico, Titânia e Alberto fizeram sinal que sim

com a cabeça. Antes de se despedirem, por via das dúvidas, Xanti­pa determinou que todos deveriam se reunir às seis e meia da tar­de do dia seguinte, na casa de Lenita.

- Seria interessante que Selene também participasse da con­fusão - imaginou Xantipa, soltando uma última gargalhada. -Mas eu ainda pretendo ter uma conversinha com ela, antes do dia amanhecer.

Por alguns instantes, Alberto chegou a sentir pena de Selene. Ao lembrar-se, porém, de tudo o que Xantipa havia lhe contado so­bre Lenita e João Vítor, achou melhor não interferir. O 'chefe', cer­tamente, deveria ter alguma razão para querer se vingar de Selene.

 

O dia já amanhecia quando Alberto se viu diante da porta de seu antigo apartamento. Agora, devidamente instruído por Xan­tipa, já sabia locomover-se pela cidade, sem precisar que alguém pensasse nele para poder se aproximar. Xantipa ensinara-lhe também como atravessar portas e paredes, a partir da força de sua própria vontade. Sendo assim, não teve nenhuma dificuldade para entrar.

Chegando à sala, lembrou-se de seu último encontro com tia Geninha e procurou-a, desconfiado, por todos os lados. Prudente­mente, porém, ela manteve-se à distância para que Alberto não pudesse pressentir sua presença. Estava ciente das razões que o traziam até ali.

Sempre desconfiado, Alberto seguiu rumo a seu antigo quarto. Por mais que estivesse sentindo raiva de Lenita, ao mesmo tempo experimentava uma enorme necessidade de vê-la. Ao passar pelo quarto de Juliana, entretanto, notou uma luz acesa e decidiu entrar.

Juliana passara a noite mergulhada no livro que ganhara de Paulo. Vendo-a tão concentrada na leitura, Alberto sentiu seu co­ração amolecer, lembrando-se da última manhã em que a vira, an­tes do terrível acidente que lhe tirara a vida. "Certamente, a po­brezinha deve estar estudando para alguma prova", pensou ele, completamente esquecido, naquele momento, das ordens e das intrigas de Xantipa.

Embora Alberto não pudesse perceber, em função de seu baixo padrão vibratório, Juliana estava cercada por amigos espi­rituais, que sempre costumam visitar aqueles que buscam conso­lo na literatura espírita, cobrindo-lhes de fluidos positivos e elucidando-lhes possíveis dúvidas.

Instigado por esses amigos espirituais, Alberto sentiu-se cu­rioso para saber que matéria a filha estava estudando. Aproxi­mou-se de sua cama e, não resistindo, deu-lhe a costumeira batidinha no nariz. Sensibilizada pela leitura, Juliana, que pensava justamente no pai enquanto lia aquele capítulo, teve um sobressal­to, levando intuitivamente os dedos à ponta do nariz. Sentiu então seu coração se apertar de saudades e teve vontade de chorar. Como havia acabado de aprender, porém, que o choro dos encar­nados fazia muito mal a seus entes queridos que viviam no plano espiritual, esforçou-se para controlar esse sentimento e procurou concentrar-se na página que tinha diante de si.

Naquele trecho, César, o autor espiritual, narrava uma con­versa com seu orientador, quando, junto com outros jovens, pre­parava-se para integrar uma equipe de auxílio àqueles que apor­tam à espiritualidade, ainda despreparados para enfrentar sua nova condição. De tão envolvida com a leitura, Juliana sentia-se um daqueles jovens a quem o orientador delicadamente explicava a diferença entre conhecimento e consciência.:< Embora bestifica-do com o teor daquelas linhas que a filha digeria tão avidamente, Alberto não pôde deixar de sentir interesse por aquelas informa­ções que pareciam dizer respeito tão de perto à sua situação.

Assim, completamente sintonizado com a filha, logo passou a escutar seus pensamentos como se ela estivesse lendo para ele:

O conhecimento é informação que recebemos e assimila­mos. A consciência é saber discernir o certo do errado, procuran­do fazer o melhor. Um exemplo disso é que sabemos que devemos perdoar e não perdoamos. Que precisamos nos reconciliar com os adversários, mas, quando chega a oportunidade, não consegui­mos vencer o ressentimento e a mágoa.

 

Juliana parou por alguns instantes para refletir sobre o que acabara de ler. Não conseguia compreender onde o orientador queria chegar. Com os exemplos dados nos parágrafos seguintes, porém, tudo ficaria mais claro, tanto para ela quanto para Alberto:

 

3 Do livro Céu azul. já citado, cap. 9: "Conhecimento e Consciência", pp. 40-44.

 

- Quando ainda na Terra - comentou uma garota de nome Márcia - graduei-me em Química e sabia exatamente o mal que as drogas causavam ao organismo humano. Ainda assim, tornei-me tão dependente delas que não conseguia deixar o vício, o que me levou à morte por 'overdose'. Creio que meu caso ilustra bem a di­ferença entre o conhecimento e a consciência.

- Exatamente - concordou o orientador.

Logo outros exemplos surgiram, enriquecendo o assunto. O colega Horácio lembrou:

- Eu também sou um exemplo disso. Quando completei de­zoito anos, papai presenteou-me com uma moto, que era o sonho da minha vida. Alertou-me para que tivesse cuidado, não saísse sem capacete, não corresse muito e tudo o mais. O jornal e a televi­são sempre enfatizavam a necessidade de determinados cuidados, mostrando a realidade do trânsito em nosso país, em que grande quantidade de pessoas perde a vida por imprudência, negligência ou imperícia. Além disso, eu era acadêmico de Direito e conhecia a responsabilidade perante os atos praticados, segundo a lei.

Fez uma pausa e, fitando cada um de nós que o ouvíamos in­teressados, finalizou:

-Apesar de tudo isso, não ligava a mínima. O resultado é que acabei perdendo a vida num acidente, por excesso de velocidade.

Ouvindo isso, involuntariamente Alberto pôs-se a pensar. Lembrou-se de que, alguns meses antes de sofrer o enfarto, vinha sentindo algumas dores no coração, mas negara-se a procurar um médico, acreditando-se imortal. Em lugar disso, esgotara-se cada dia mais no trabalho e entregara-se a excessos alimentares nos fi­nais de semana. No próprio dia de sua morte, desprezara sua dor até o momento fatal, e ainda por cima atravessara a rua com o sinal pis­cando, embora houvesse advertido os filhos inúmeras vezes para que jamais fizessem isso. Teria ele, em alguma medida, sido culpado por sua morte? Afinal, que livro era aquele que Juliana estava lendo? Fi­xou novamente seu pensamento na filha, que havia prosseguido na leitura enquanto ele se deixara levar por suas divagações:

Como podem ver-considerou o orientador Matheus - não é conhecimento que nos falta, mas a consciência para poder aplicar esses conhecimentos que possuímos. Por isso, a mensagem de Je­sus Cristo é de vital importância para todos nós, remetendo-nos à origem de nossos males e ensinando que devemos fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem.

Sensibilizada com estas palavras, Juliana fechou o livro em torno do dedo indicador e pôs-se a lembrar da mãe. Será que se ela, Juliana, estivesse no lugar de Selene, gostaria que sua filha agisse da maneira como ela agia com a mãe, tratando-a com o mais profundo desprezo? "Não, certamente que não", respondeu a si própria, em pensamento.

A seu lado, Alberto a observava, orgulhoso. Que menina boa era Juliana. Como ele gostaria de ter ao menos um terço de sua ca­pacidade de perdoar, de amar as pessoas acima e apesar de tudo... Mas não podia aceitar a traição de Lenita e João Vítor. Isso não. Com toda certeza, se estivesse no lugar de João Vítor, se fosse João Vítor quem tivesse morrido, ele jamais se aproximaria da família do amigo com vistas a tomar seu lugar.

- Eu só não queria sentir essa dor - disse alto, Juliana. - Se a Se­lene pelo menos fizesse a parte dela, tudo seria muito mais fácil... Por que é que tudo nesta vida tem que ser tão doloroso, meu Deus?

Nesse momento, porém, intuída pelos benfeitores espirituais que ali se encontravam, ela se lembrou do depoimento de César no início do livro e sentiu vontade de voltar algumas páginas para relê-lo. Mais uma vez, Alberto acompanhou sua leitura surpreso:

Parti para a espiritualidade bendizendo a doença que me pro­porcionara possibilidades de crescimento e iluminação interior. Vencera uma etapa. Dolorosa, porém muito produtiva. Aqueles me­ses que permaneci no leito compulsoriamente valeram por uma vida. Hoje sei que tudo deveria ser como foi. Estava previsto e pro­gramado. Tinha dezenove anos e ainda mal começara a viver. Deus, porém, é sábio e deu-me, não a felicidade que eu esperava, mas a dor de que precisava para progredir espiritualmente e saldar débi­tos antigos contraídos com a justiça divina.[2]

- É... - disse Juliana, acreditando-se sozinha no quarto. -Tudo tem uma razão de ser. Se eu estou passando por tudo isso, é porque alguma coisa eu fiz numa outra vida para merecer perder meu pai com esta idade e ter uma mãe como a Selene... Não devo me revoltar. Já que estou aqui, o melhor é aproveitar ao máximo essa chance que Deus me deu de reencarnar e fazer todo o bem que estiver ao meu alcance... Nossa, deve ser horrível a gente morrer e descobrir que teve mil oportunidades de fazer o bem e não fez...

Sentindo-se consolada com as próprias palavras, Juliana reto­mou a leitura de onde havia parado anteriormente. Desta vez, contudo, Alberto não conseguiu acompanhá-la. O raciocínio da fi­lha o havia tocado profundamente e ele não conseguia mais con­centrar-se em outra coisa senão na torrente de pensamentos que tomara conta de sua mente, após a última frase dita por Juliana.

Assim, iluminado pelos benfeitores espirituais ali presentes -que viram aquele momento de fragilidade de Alberto como uma excelente oportunidade para reconduzi-lo ao caminho do bem -, ele passou quase uma hora recordando acontecimentos de sua úl­tima encarnação. Lembrou-se do quanto valorizava o dinheiro acima de tudo, do quanto valorizara a si próprio e o seu trabalho de maneira egoísta ao longo de toda a sua existência. Sentiu, po­rém, um certo alívio, ao pensar nas crianças de rua que ajudara. Lembrou-se também de todas as dificuldades por que passara na infância e na adolescência, da morte dos pais, da gravidez inespe­rada de Selene. Em meio a todas essas lembranças, algumas per­guntas não lhe saíam da cabeça. Juliana falara em débitos antigos. Teria ele também algum débito antigo que de alguma forma o houvesse condicionado a deixar a vida daquela maneira? Tudo o que ele estava passando poderia mesmo ter sido previsto com an­tecedência? De fato, a vida não se acabava. Tanto que ele estava ali, carregando os mesmos sentimentos e emoções, e até seu corpo pa­recia o mesmo, ainda que maltratado. Será que um dia nasceria novamente? E por que Xantipa o havia chamado de assassino? Já teria sido uma outra pessoa, antes de ser Alberto?

Nesse momento, também intuída pelos benfeitores espirituais, Juliana interrompeu a leitura e fez uma sentida prece dirigida ao pai:

"Senhor Deus, não sei o estado em que se encontra meu pai, mas peço-lhe, de todo o coração, para que ele possa estar em paz com seus pensamentos, para que ele entenda os motivos que o fizeram ir embora deste mundo tão cedo, para que se conforme e não se revol­te. Senhor, fazei com que ele entenda que pode recomeçar tudo o que fez de errado, assim como essas pessoas deste livro, e diga a ele que eu o amo muito e que sinto muitas saudades."

Alberto sentiu a forte vibração que emanava da oração de Ju­liana e chorou sentidamente por alguns instantes, confuso em seus pensamentos. Pouco depois, novamente sintonizado com a fi­lha, ele voltava a ouvir, sem qualquer esforço, tudo o que Juliana lia para si. Satisfeitos, os bons espíritos presentes no local notavam que uma pequena fagulha de arrependimento começava a acen­der no coração de Alberto. Entregue a esse momento, ele prestava atenção a cada palavra mentalmente pronunciada por Juliana, que lia agora sobre um rapaz que, tal como o pai, também deixara a vida abruptamente, após um acidente:

O espírito do acidentado, em virtude da pancada na cabeça, encontrava-se desmaiado. Uma senhora de idade, de elevada con­dição espiritual, aproximou-se e, tomando o espírito nos braços, enlaçou-o com extremo carinho, protegendo-o das emanações deletérias do ambiente físico, onde as pessoas punham-se a gritar por socorro. Gladstone continuou aconchegado ao colo da senho­ra e acompanhou a remoção de seu corpo - ao qual se encontrava ainda jungido - até o hospital. Como não houvesse mais condição de vida orgânica, os técnicos em desligamento do plano espiritual desataram os laços que o mantinham ligado ao corpo e Gladstone, livre, foi transportado pela senhora a local de refazimento e assis­tência, ainda em estado de choque.1

Ouvindo isso, Alberto tapou os ouvidos, angustiado, mas não teve como conter as lembranças que lhe invadiram bruscamente o pensamento, reconduzindo-o a um estado de desequilíbrio. Reviu a cena do atropelamento, seu despertar no hospital, a visita de dona Amaziles, ouviu a voz do dr. Márcio dizendo: "A morte não existe, a vida continua no plano espiritual". Seriam aquelas pessoas, que ele julgara loucas, os tais técnicos em desligamento a quem Juliana se referira? E por que ele não conseguia se lembrar dos detalhes que se sucederam ao momento imediato do atropelamento? Quem, afi­nal, o conduzira àquele hospital? Não, ele não queria voltar para lá. Vieram-lhe à mente então as palavras de Xantipa: "Imagine que eles estão tramando ir ao tal centro com a dona Catarina. Lenita, João Vítor e até as crianças. Vão pedir aos bons espíritos pra leva­rem você de vez..." Não, ele não podia deixar que isso acontecesse. Precisava se afastar, o quanto antes, de Juliana e daquele livro, mas era como se uma força invisível o impedisse de sair do lugar. Xanti­pa estava certo. Tudo aquilo só poderia fazer parte de um plano para reconduzi-lo àquele hospício.

Só depois de muito esforço para se concentrar em seus pensa­mentos de ódio, Alberto conseguiu finalmente deixar o quarto da filha. Suas palavras, porém, continuavam ecoando dentro dele como um disco arranhado. Exausto, ele rumou então para o quar­to de Lenita, mas sentiu seu ódio esmorecer novamente quando se deparou com a esposa dormindo abraçada ao filho, exatamente como no dia em que ele os vira pela última vez, quando ainda en­carnado. Era como se tudo conspirasse para que ele se recordasse daquele trágico dia. Pensando nisso, ele logo voltou a sentir tam­bém os sintomas do enfarte.

Desnorteado de dor, procurou então o quarto vazio do filho e decidiu descansar um pouco até que todos se levantassem.

 

Enquanto isso, na casa de Selene, muitos segredos que Alber­to não conhecia começavam a ser desvendados. Ainda dormindo, com o rosto encharcado de suor, ela revirava a cabeça de um lado para o outro. Sentado a seu lado, com olhos frios e maléficos, Xan­tipa conduzia as imagens que povoavam seu pesadelo.

Na soleira de uma casinhola pobre e escura, Selene, muito magra e usando um vestido vermelho, extremamente decotado, discutia com um homem desconhecido, muito parecido com Xan­tipa, porém mais jovem e asseado. O aspecto dela, no sonho, tam­bém era bastante diferente do atual. Tinha cabelos e olhos muito escuros, todo o seu corpo recendia a sexo.

Eu vim até aqui pedir perdão - dizia o homem. - Vim buscar você e minha filha, estou disposto a esquecer todo o passado.

Sua filha? - respondia ela numa gargalhada despudorada. -Pois fique sabendo que ela está muito longe daqui! Arranjei para ela um pai e uma mãe de verdade, um pai e uma mãe que vão dar a ela tudo o que eu jamais tive nesta vida, tudo o que você jamais foi capaz de me dar...

Eu te amo... - insistiu o homem, em prantos. - Se quiser po­demos ter outros filhos... Podemos buscar a nossa filha

- Você não pode estar falando sério...

Eu amo você.. Já disse, estou disposto a perdoar tudo, até mesmo aquele caso que você teve com o fazendeiro riquinho... Podemos recomeçar nossa vida e...

e...

-Você é um imbecil ou o quê? Será que não entende que eu te­nho nojo de me lembrar que um dia me casei com um matuto como você? Eu não te quero para nada, não quero mais filhos, só quero viver a vida que eu escolhi para mim. A vida que me restou depois que fiz a burrada de me casar com você...

Nesse momento, o homem transfigurou-se e deu-lhe uma bo­fetada no rosto, dizendo:

Sua porca! Então foi essa a vida que você escolheu? Pois mui­to que bem. Fique sabendo que eu não vou te perdoar nunca. E eu que pensava em...

Pensava! Se você tivesse a capacidade de pensar não viveria nessa miséria em que você vive, não se contentaria com tão pouco, quando o mundo tem tanto a oferecer - enfrentou ela, valente.

Leviana! Interesseira! Você ainda vai engolir todas essas suas palavras sujas... Ainda vai sentir na carne tudo o que está me fa­zendo passar... Eu te perdoei, mas você não quis o meu perdão. Agora eu te odeio e vou te perseguir pelo resto dos meus dias. Pelo resto dos meus dias, entendeu bem?

Ela bateu violentamente a porta na cara dele e pôs-se a chorar desconsolada no interior da casa, enquanto esmurrava o próprio útero, dizendo: "Eu também vou te odiar pelo resto dos meus dias..."

Deitado na cama, o corpo de Selene também chorava, como se re­vivesse, junto com seu espírito, toda aquela situação. Xantipa observa­va a cena passivamente, com um pequeno sorriso no canto dos lábios. Quando os soluços dela começaram a rarear, ele abriu a porta e cha­mou por Titânia, Uldarico e Carmona, que entraram em seguida:

-           Ela já, já vai acordar. - instruiu-os Xantipa. - Quero que passe o dia inteiro se lembrando deste sonho, que ela encha a cara de des­gosto e, no final da tarde, ligue para Juliana, entenderam bem?

-           Sim, mestre - concordaram as três entidades trevosas, sem­pre lideradas por Titânia.

-As seis horas em ponto ela deve ligar para Juliana, comple­tamente bêbada, e implorar para que ela venha para cá - determi­nou Xantipa, se despedindo.

Tão logo ele desapareceu, as três entidades postaram-se em torno de Selene, satisfeitas, e começaram a dizer-lhe palavras agressivas ao ouvido:

Cretina! - bradou Uldarico.

Vagabunda! - acrescentou Titânia.

Irresponsável! - complementou Carmona.

E assim os três permaneceram até que Selene acordasse, com­pletamente transtornada.

 

Horas mais tarde, quando Alberto acordou, encontrou Lenita e Juliana conversando animadas, enquanto tomavam seu café da ma­nhã. Sentindo-se mais bem-disposto e decidido a encontrar uma oportunidade para fazê-las brigar, conforme prometera a Xantipa, sentou-se na cabeceira, tal como sempre fazia quando ainda estava encarnado, e pôs-se a prestar atenção na conversa das duas.

Juliana estava tão empolgada com o livro que ganhara de Paulo, que não conseguia falar em outra coisa:

Nossa, Lenita, você lembra aquele sonho que nós tivemos com o papai, logo que ele morreu?

Aquele dia em que nós três sonhamos que ele estava num hospital?

Alberto arregalou os olhos, curioso, enquanto Juliana prosse­guia entusiasmada:

- Esse mesmo. Pois nesse livro que eu estou lendo, explica tudo. Papai devia estar mesmo num hospital se recuperando, na­quela época, e nós três fomos visitá-lo em sonho.

- Mentira! Nunca ninguém me visitou - protestou Alberto.

Desta vez, porém, nenhuma das duas pressentiu sua presen­ça. Ambas estavam envoltas num halo de luz protetora e continua­ram sua conversa:

Mas que livro é esse de que você está falando, Ju? - quis sa­ber Lenita.

Este aqui - respondeu Juliana, mostrando-lhe a capa do li­vro - ganhei do Paulo, ontem. Nossa, mas é tão emocionante que eu nem consegui dormir de tanta vontade de saber tudo sobre o mundo em que vive o papai... Estou encantada, Lenita...

- Pelo livro ou pelo Paulo?

Engraçadinha - respondeu Juliana, envergonhada -, eu es­tou falando do livro... Mas o Paulo também é muito legal

Vocês estão namorando?

Ainda não, quer dizer...

Ouvindo isso, Alberto não se conteve e partiu para cima de Juliana:

- Namorando? Quem você pensa que é para falar em namoro?

A três passos de Juliana, porém, ele foi repelido pela forte luz que a circundava, e quase caiu no chão, devido ao impacto.

- Quem foi que me empurrou? - gritou Alberto aborrecido, olhando para os lados.

Com todo o cuidado, ele tentou novamente chegar perto de Juliana, mas não conseguiu. Era como se ela estivesse rodeada por um escudo protetor. Tentou então aproximar-se de Lenita, e o mesmo aconteceu. Muito desconfiado, decidiu ficar onde estava e manter-se atento à conversa das duas.

-Já que você não quer falar do Paulo, então me conte mais so­bre o livro - propôs Lenita.

- Ah, Lenita, tem tanta coisa que eu nem sei por onde come­çar... O mais legal que eu descobri é que existem muitos jovens por lá e alguns moram juntos, numa espécie de república... Todos tra­balham, Lenita, ninguém vive à toa no plano espiritual e...

- República? Mas e as famílias? - quis saber Lenita.

-As famílias continuam na Terra, assim como a nossa. Alguns jovens têm avôs, avós e tios que se foram antes deles, mas não é sempre que todos habitam a mesma colônia. Além disso, no mun­do espiritual vigora a lei da afinidade e da simpatia; é assim que as pessoas se agrupam, e não de acordo com os laços de sangue, como aqui - explicou Juliana.

Colônia? - voltou a perguntar Lenita, tonta com tantas in­formações.

Sim, existem várias no plano espiritual, são como as cidades aqui na Terra - continuou Juliana, empolgada. - Existem também os postos de socorro, locais próximos à crosta, que recebem os recém-desencarnados vindos do planeta. Céu Azul, o lugar onde vive o autor do livro, na verdade é um desses postos de socorro, que cresceu tanto que acabou se tornando uma pequena cidade.

Tão surpreso quanto Lenita, Alberto acompanhava as expli­cações da filha, desconfiado. Para ele, as únicas cidades que exis­tiam eram as da Terra e o plano espiritual se resumia àquele hos­pital que teimava em continuar chamando de hospício e à região fétida onde vivia Xantipa. Lenita, porém, parecia convencida de tudo o que a enteada dizia:

- Nossa, Ju. Acho que de agora em diante vou ter que ler um bocado sobre esses assuntos para poder me entender com você...

-Ah! - lembrou Juliana, enquanto passava manteiga no pão -e você nem imagina o que o Paulo me ensinou ontem, na sorvete­ria. Sabia que a gente pode mandar flores para o papai?

- Flores? - espantou-se Lenita.

E, basta a gente escolher um vasinho e cuidar dele sempre pensando no papai. Pensando que a gente quer que ele esteja bem, que ele se recupere depressa, que ele não esqueça nunca o quanto nós gostamos dele. Daí os bons espíritos fazem uma cópia do vasinho, de um material bem delicado como o corpo dos espíri­tos, e levam lá para onde ele estiver. Não é o máximo?

Engraçado - comentou Lenita, pensativa, parece que já ouvi essa explicação em algum lugar...

Sabe que eu também tive essa mesma sensação quando o Paulo me disse isso? - confessou Juliana, enquanto terminava de engolir um pedaço de pão. - E que tal se a gente tentasse?

Vendo a harmonia entre as duas e o carinho que demonstra­vam por ele, Alberto não pôde deixar de sentir uma leve comoção. Acima de tudo, porém, mais uma vez estava curioso para entender o que Juliana estava falando, e seguiu as duas até a sala.

As duas se aproximaram do vaso de flores amarelas sobre a mesa, as quais haviam sido podadas recentemente por Lenita e co­meçavam a abrir seus primeiros novos botões:

Que tal estas? - propôs Juliana.

Ótima idéia. Seu pai adorava flores amarelas!

Só então Alberto recordou-se do vaso de flores que havia ao lado de sua cama no hospital. Quem as teria mandado? Enquanto isso, as duas seguraram o vaso e começaram a pensar nele com todo o carinho:

"Alberto, onde quer que você esteja, quero que saiba que eu sempre o amarei muito" - pensou Lenita.

"Papai querido, tomara que tenha muitos médicos bondosos em volta de você, fazendo de tudo para que você se recupere bem depressa. Tenha força, nós te amamos muito" - pensou Juliana.

Embora ambas estivessem de olhos fechados, falando apenas mentalmente, suas frases chegavam a Alberto como se estivessem sendo ditas em voz alta, tocando-lhe as fibras mais íntimas do co­ração. Ele não se conteve e pôs-se a chorar. Embora não pudesse perceber, estava rodeado de amigos espirituais, os quais segura­vam nas mãos o vaso plasmado por Lenita e Juliana.

- Foi bom que você tocasse neste assunto, Juliana - disse Leni­ta, recolocando o vaso sobre a mesa. - Estou realmente preocupa­da com seu pai...

- Você acha que ele não está bem?

- Dona Catarina conversou muito comigo ontem. Ela acha que seu pai não está onde deveria estar...

- Ela disse isso? - assustou-se Juliana. - Mas como é que ela sabe?

Dona Catarina é médium. Ela diz que seu pai está por aqui, talvez até nesta sala, conosco...

Meu Deus - disse Juliana, emocionada, lembrando-se mais uma vez do livro. - Mas isso deve ser horrível para ele, precisamos fazer alguma coisa para ajudá-lo...

Alberto não conseguia parar de chorar. Lenita sentiu uma pontada no peito.

- Não sei por que, mas tenho a sensação de que ele realmente não está bem... - disse ela, apertando o coração.

- E o que a dona Catarina acha que devemos fazer?

- Ela nos convidou para irmos ao centro com ela esta noite. Dis­se que, se seu pai estiver mesmo conosco, poderá receber ajuda lá...

- Não, isso não - dizia Alberto chorando. - Por favor, Lenita, se você me ama, não faça isso comigo...

Excelente idéia, Lenita - tornou Juliana. - Eu vou com você. A que horas é a sessão?

Às oito. Dona Catarina ficou de nos encontrar na porta às sete e meia. Mas... - titubeou ela, inconscientemente sensibilizada pelos insistentes apelos de Alberto. - Será que deveríamos mesmo mexer com isso?...

E pelo bem dele, Lenita, acredite em mim - garantiu Julia­na, intuída pelos espíritos de luz que ali se encontravam. - Vamos fazer o seguinte? Por que a gente não liga para o tio João Vítor e pede para ele ir conosco? Ele também era tão ligado ao papai...

Nossa, Juliana, eu ia falar exatamente isso com você. Que coisa incrível, parece até que nós duas estamos pensando com uma cabeça só...

Alberto estremeceu. Estava realmente confuso. Como elas po­diam amá-lo tanto e ao mesmo tempo preocupar-se com João Vítor?

Enxugou as lágrimas e pôs-se novamente a ruminar sua revol­ta íntima. Não. Elas não iriam ao centro. E muito menos com João Vítor. Ele não deixaria. Mas o que fazer se ele não conseguia se­quer se aproximar das duas e intuí-las, como estava acostumado?

- Dona Catarina me disse, inclusive, que há um grupo de jo­vens que toma conta das crianças - continuou Lenita. - Assim, po­demos também levar o Lipe...

- Por falar nisso, cadê o Lipe? - perguntou Juliana.

Só então Lenita se deu conta de que já passava das dez horas e Felipe ainda não se tinha levantado. Sempre seguidas por Alberto, as duas correram para o quarto e encontraram o menino ardendo em febre.

- Meu Deus! Ele está com quase quarenta graus de febre - ex­clamou Lenita, verificando o termômetro. - O que faremos?

- Eu vou ligar pro tio João Vítor - decidiu Juliana.

Alberto pensou em impedi-la, mas não teve coragem de sair do quarto. Embora soubesse que a doença do filho era apenas um estratagema tramado por Xantipa a fim de impedir que a família saísse de casa naquele dia, ver Felipe naquele estado o fazia sen­tir-se culpado. Aproximou-se do menino e segurou-lhe a mãozi­nha com força, dizendo:

- Não se preocupe, meu filho, papai está aqui...

Para sua surpresa, Felipe, que delirava, sentiu sua presença e respondeu:

Papai... Eu não vou deixar mais aquele homem mau bater em você...

Fique calmo, Felipe. Ninguém mais vai bater no papai - dis­se Alberto, emocionado, ao ouvido do filho. - Eu vou ficar aqui até você ficar bom.

Felipe sorriu para ele e adormeceu.

-Juliana, depressa! Felipe está delirando!!! - gritou Lenita.

Ele disse que está vindo para cá com um médico - informou Juliana, voltando para o quarto. - Não seria melhor a gente dar um banho nele?

Ele falou algumas coisas estranhas sobre seu pai, como se estivesse mesmo falando com ele, depois apagou - disse Lenita, chorando.

-Ai, papai - tornou Juliana, também chorando. - Se você estiver aqui, ajuda a gente... Não deixa nada de ruim acontecer com o Lipe...

Alberto andava de um lado para o outro sem saber o que fazer. Deveria procurar Xantipa? Não, ele certamente não atenderia a seu pedido. E como Felipe poderia saber da surra que levara na noite anterior? Talvez fosse apenas um delírio do menino, uma coincidência. Sim, só podia ser isso. Mas então por que Felipe sor­rira para ele? Pensando bem, era melhor que João Vítor chegasse o quanto antes com um médico. Talvez fosse preciso levar o meni­no para um hospital, fazer qualquer coisa para tirá-lo da mira de ação de Xantipa. Decididamente, ele não permitiria mais que nin­guém, por motivo algum, fizesse mal a seu filho. Felipe era ainda tão indefeso...

Lenita e Juliana estavam tirando Felipe do banho quando João Vítor chegou, acompanhado do médico e de Xantipa. Só en­tão Alberto se lembrou de que Xantipa encarregara-se de acompa­nhar João Vítor ao longo de todo aquele dia. Procurou pensar rá­pido antes que ele se aproximasse. Sabia que não teria como enfrentá-lo frontalmente. Neste caso, Xantipa poderia aprisio­ná-lo de novo naquela horrível caverna, e aí, mesmo que quisesse, não teria nenhum meio de ajudar a família. Felipe poderia até de­sencarnar enquanto isso. Não, Alberto não queria isso para o fi­lho. Por mais que desejasse tê-lo a seu lado, não queria que o pe­queno Lipe tivesse que passar por tudo o que ele estava passando. Convicto disso, Alberto decidiu então fingir estar de acordo com o que fora previamente combinado, de maneira a ganhar tempo para encontrar alguma solução.

- Ele continua ardendo em febre - disse Lenita, ansiosa, ao se ver diante de João Vítor e do médico.

João Vítor tomou o menino nos braços com todo o carinho e o levou para a cama, dizendo:

O, meu garoto... Procure ficar calmo. O tio João Vítor está aqui e não vai deixar nada de ruim acontecer com você...

O papai... - respondeu Felipe, em seu delírio - O papai está aqui...

Não, eu não sou o papai - tornou João Vítor, emocionado. -Com certeza o papai também deve estar preocupado com você. Mas, já que ele não pode estar aqui agora com você, eu vou fazer de tudo para que você fique bom depressa...

Neste momento, Alberto não pôde evitar que uma pontada de arrependimento espocasse fortemente em seu peito. Pela primeira vez, desde que desencarnara, reconheceu em João Vítor o irmão que o acompanhara ao longo de toda a sua existência. Seus pensa­mentos, porém, foram interrompidos pela voz de Xantipa, que se aproximou dele, irritado, enquanto o médico examinava o garoto:

- Grande palhaçada... O menino tem apenas uma febrezinha de nada... Mas é melhor que fiquem todos preocupados. Que fal­tem ao trabalho, ao centro e a todas as suas obrigações - disse, sol­tando uma gargalhada.

Alberto não conseguia tirar os olhos do médico que examina­va Felipe. Xantipa percebeu sua apreensão e não gostou:

-Você está se deixando emocionar por esta cena ridícula ou é impressão minha, camarada?

Não - rebateu Alberto, procurando disfarçar seus sentimen­tos. - Gostaria apenas que não fosse nada grave...

Não estou gostando nada desse seu ar consternado. Você fez as duas brigarem como combinamos?

Fiz - mentiu Alberto -, mas elas se esqueceram de tudo quando viram o menino doente...

-As coisas também não estão muito fáceis do meu lado. Sele­ne é fácil de influenciar, mas este seu amiguinho borra-botas... Não escuta nada do que eu sugiro. Acordou com idéia fixa na bon­dade de Deus! Agora vê se pode! Não consigo nem me aproximar dele direito!

Ouvindo isso, Alberto lembrou-se de que Juliana e Lenita também pareciam estranhamente protegidas naquele dia e teve uma idéia:

- Escute, Xantipa, estive pensando. Ficar aqui e atacar minha família é muito difícil para mim. Preferia tomar conta do João Ví­tor. Você sabe que ele escuta todos os meus pensamentos com faci­lidade. Poderíamos trocar de atribuições e assim eu não correria risco de me emocionar vendo Felipe doente...

-Até que você está ficando inteligente, camarada-disse Xan­tipa, gostando da idéia.

O que Xantipa não imaginava era que Alberto, na verdade, planejava convencer João Vítor para que levasse Felipe ao tal centro espírita o quanto antes a fim de livrá-lo das energias maléficas de seu comparsa. Embora não acreditasse muito naquelas histórias de bons espíritos, algo dentro dele lhe dizia que só alguém acostuma­do a lidar com espíritos poderia afastar Xantipa de sua família. Alberto estava muito preocupado com o filho. Tão preocupado que mudara até sua maneira de pensar. Depois de assistir ao que Xanti­pa e aquelas entidades haviam feito com Selene e de ver o filho deli­rando daquele jeito por influência deles, temia que pudessem ma­tar o pequeno Felipe com suas crueldades. Por isso, como pai, estava disposto até a sacrificar sua liberdade pelo bem do menino. Ainda que fosse preciso voltar para aquele hospital para que sua fa­mília tivesse sossego. Vendo Alberto tão quieto e pensativo, Xantipa tentou ler-lhe os pensamentos, mas, pela primeira vez, não conseguiu.

O que é que você está pensando que eu não consigo escutar? - bradou ele, irritado.

Nada... - disfarçou Alberto. - Estava apenas me lembrando do hospital onde estive, logo que...

Está querendo levar o garoto para lá? - gargalhou Xantipa. - Ain­da não está na hora, mas, se você quiser, podemos dar um jeitinho...

Não! - gritou Alberto. - Eu apenas...

Os dois interromperam a conversa para ouvir o parecer do médico sobre a doença de Felipe:

- É uma virosezinha de nada. A garganta é que parece muito inflamada. O ideal é que ele passe o dia em repouso.

- Graças a Deus - comemorou Lenita, abraçando Juliana. Alberto também respirou aliviado.

E o senhor não vai passar nenhum remédio? - quis saber João Vítor.

Apenas um antibiótico para conter a inflamação e um an-ti-térmico para abaixar a febre - respondeu o médico, já prescre­vendo a receita. - Amanhã ele estará novo em folha!

Vou ligar agora mesmo para o trabalho, avisando que não poderei entregar hoje as revisões - disse Lenita.

- E eu vou faltar à escola para ficar aqui com vocês - disse Juliana.

Bom, eu não posso deixar de dar pelo menos uma passada no escritório, mas volto assim que puder - completou João Vítor.

Não se preocupe, João - respondeu Lenita, agradecida. -Pode deixar que eu e a Juliana damos conta do recado. Qualquer coisa a gente te liga...

Tem certeza? - perguntou João Vítor, preocupado. - Então eu vou descer para buscar os remédios, a gente espera um pouco para ver se a febre cede, e então eu vou, está bem assim?

Alberto começava a se sentir envergonhado. As palavras de João Vítor eram sinceras, em nenhum momento ele demonstrara estar ali motivado somente por algum interesse por Lenita. Com medo de que Xantipa percebesse seus pensamentos, disse que es­peraria na sala até que João Vítor saísse para o trabalho, ao que Xantipa, preocupado em encontrar uma maneira para desarmo­nizar o ambiente, não opôs nenhuma resistência.

Sozinho na sala, Alberto lembrou-se de tia Geninha e decidiu pedir-lhe auxílio:

"Tia Geninha, não posso vê-la, mas sei que a senhora está aqui. Por favor, peço-lhe, de todo o meu coração, que reforce a proteção de Juliana e de Lenita, e que não deixe que nenhum mal possa atingi-las. Cuide também de meu filho. Eu sei que a senhora pode fazer isso e confio na senhora. Em troca, prometo que não fa­rei mais nenhum mal a João Vítor e que até sou capaz de voltar para aquele hospital se a senhora conseguir livrar minha família da influência de Xantipa".

Assim que ele acabou a prece, dona Geninha se fez visível diante dele e o instruiu:

Fique tranqüilo, meu filho. Fico feliz que esteja começando a enxergar as coisas de uma maneira mais racional.

Ainda estou muito confuso, mas não consigo mais sentir a mesma raiva de antes. Na verdade, estou até me sentindo um pou­co fraco por isso... - admitiu Alberto.

Pois então fortaleça-se, porque vamos precisar muito de sua ajuda - disse ela.

O que eu devo fazer?

Convença João Vítor a ir ao centro com Lenita esta noite.

Eu já pensava em fazer isso. E quanto a Felipe? A senhora acredita mesmo que ele possa melhorar indo a esse tal centro?

Não se preocupe. Eu cuidarei de tudo. E mantenha-se aten­to: não deixe que Xantipa perceba, em hipótese alguma, suas ver­dadeiras intenções. Continue agindo como está.

Dizendo isso, tia Geninha desapareceu. Poucos instantes de­pois, a campainha tocou. Juliana correu a atender, pensando que fosse João Vítor voltando da farmácia, e teve uma surpresa: era Paulo, que trazia nas mãos um exemplar de 0 evangelho segundo o espiritismo.

- Minha mãe me falou sobre o problema do seu irmãozinho -disse ele - e achei que talvez vocês estivessem precisando de algu­ma ajuda...

Nossa, Paulo... - exclamou Juliana, admirada. - E como é que ela soube?

O João Vítor ligou para o escritório, avisando por que iria chegar atrasado e aí...

Ela te avisou - sorriu Juliana. - Que bom que veio!

Um pouco incomodado, Alberto viu quando Juliana puxou Paulo pela mão, satisfeita, e o conduziu para o interior da casa. Mas não conseguiu sentir raiva. O olhar de Paulo para sua filha era tão amigo, tão puro... Por outro lado, não havia como negar o bri­lho dos olhos de Juliana no momento em que dera com o rapaz na porta. De fato, Juliana já era uma moça e, mais cedo ou mais tarde, iria se apaixonar por alguém. Alberto conhecia Paulo e, no fundo, sabia que era um bom rapaz. Além do mais, ele sabia que Lenita e Juliana precisariam de muita ajuda naquela tarde para resistir aos apelos maléficos de Xantipa. Sim, talvez fosse bom que Paulo esti­vesse lá para ajudá-las.

Foi pensando assim que, meia hora mais tarde, Alberto dei­xou a casa com João Vítor e rumou com ele para o escritório, cien­te de que tinha uma missão a cumprir naquela tarde, da qual de­penderia a segurança de seu lar e de sua família.

 

Selene acordou extremamente angustiada naquele dia. A todo momento lembrava-se de seu horrível pesadelo e sentia que ele ti­nha uma ligação maior com a realidade do que os sonhos comuns. Embora achasse que não era ela a moça do sonho, alguma coisa lhe dizia que a criança mencionada pelo homem era Juliana e que a fi­lha corria perigo naquele momento. Ao mesmo tempo, porém, que sentia vontade de ligar para saber de Juliana, estranhos pensamen­tos invadiam-lhe a mente.

"Você nunca seria capaz de ser amiga de Juliana" - suge­ria-lhe Titânia, só para provocá-la.

"Você não tem que ser amiga de Juliana. Você tem é que trà-zê-la para cá, obrigá-la a viver sob o mesmo teto que você, ainda que ela não queira" - completava Uldarico.

"Pense na pensão que poderia receber se cuidasse de Juliana. Se ela sofrer com isso, não importa. Ela nunca ligou mesmo para você, por que se preocupar com ela?" - instigava Carmona.

Assim, Selene passou a manhã oscilando entre a preocupação e a raiva de Juliana. Sua cabeça doía e tamanha era a afinidade que ela experimentava com aqueles espíritos trevosos que estes não ti­veram a menor dificuldade em convencê-la a acalmar seus ânimos com uma boa garrafa de whisky.

Em pouco tempo, ela já não se recordava de nada de sua con­versa com João Vítor no dia anterior, e entregava-se a maquina­ções absurdas, como a de casar Juliana com o filho de um rico em­presário que ela conhecera recentemente, e tirar o máximo de proveito do dinheiro e do sobrenome dos quais a filha desfrutaria com esse casamento.

Uldarico, Titânia e Carmona exultavam. Odiavam Selene e também não simpatizavam em nada com Juliana, de quem, no fundo, morriam de inveja. Não viam a hora de vê- las reunidas, discu­tindo e sofrendo muito, como era também o desejo de Xantipa.

Este, porém, não experimentava a mesma satisfação das enti­dades trevosas lideradas por ele. Por mais que tentasse, não conse­guia sintonizar-se com as idéias de Lenita e Juliana. As duas esta­vam tão entrosadas que eleja começava a desconfiar da mentira de Alberto. Afinal, nada indicava que tivessem tido a menor con­trariedade antes de descobrirem a doença de Felipe.

A presença de Paulo no ambiente também o incomodava so­bremaneira. Não bastasse o fato de um escudo invisível o impedir de aproximar-se do rapaz, este sentara-se ao lado de Felipe, envolvendo-o também com seu halo protetor, o qual repelia instanta­neamente todas as vibrações maléficas que lhe eram enviadas por Xantipa. Não contente, Paulo ainda abrira um estranho livro des­conhecido por Xantipa (o Evangelho), cujas páginas emitiam a mesma energia luminosa que emanava do rapaz, como se estives­sem impregnadas da força moral de seu caráter. Sentindo-se ex­tremamente incomodado, Xantipa queria sair dali, mas seu corpo não lhe obedecia. Na verdade, tia Geninha, de pé atrás dele, o ha­via magnetizado para que não pudesse deixar o local. Assim, sen­tindo-se tolhido por aquele magnetismo, Xantipa acabou sendo obrigado a prestar atenção às palavras que Paulo dizia:

O amor é de essência divina. Desde o maior até o menor, to­dos vós possuís, no fundo do coração, a chama desse fogo sagrado. E um fato que já haveis constatado muitas vezes: o pior dos ho­mens, o mais perverso, o mais criminoso tem, por um ser ou por um objeto qualquer, uma afeição viva e ardente, à prova de tudo que tente diminuí-la e muitas vezes adquirindo proporções admi­ráveis.''

- Nossa, Paulo. Que coisa bonita - comentou Lenita.

- Sim - complementou Juliana -, eu li que o amor verdadeiro, como o de um pai por uma filha, por exemplo, jamais se acaba, mesmo com a morte do corpo. Através do amor forte e sincero,

- Eu também amo o meu pai Alberto, e o meu tio João Vítor, que também é meu pai - disse, para surpresa de todos, Felipe, des­pertando já sem febre.

Lenita e Juliana pularam sobre o menino, enchendo-o de bei­jos, enquanto Paulo, também alegre, retomava a palavra:

- E isso aí, gente. Só que muitas pessoas, apesar de amarem muito, amam errado, pois não admitem que aquelas pessoas que amam possam amar também outras pessoas, como diz aqui, na continuação daquele trecho que eu li:

 

Para algumas pessoas, a prova da reencarnação é inaceitável e cansa horror, por acharem que outros participarão de afetuosas simpatias das quais são ciumentas. Pobres irmãos! O vosso afeto é que vos torna egoístas. Vosso amor é limitado a um círculo íntimo de parentes ou de amigos e todos os demais são indiferentes para vós. Pois bem! Para praticar a lei de amor tal qual Deus a estabele­ce, é preciso que passeis progressivamente a amar todos os vossos irmãos indistintamente.

Por mais que se sentisse irritado com aquelas palavras, Xanti­pa não conseguia evitar que certas lembranças lhe viessem à men­te, como que despertadas por aqueles ensinamentos. Sobretudo quando olhava para Juliana sorrindo, não podia deixar de pensar o quanto a amara um dia, como filha, o quanto perambulara a sua procura, por anos a fio, até encontrá-la numa fazenda distante, sob os cuidados daquele mesmo espírito que agora se dizia seu pai: Alberto.

Embora Xantipa o odiasse por ter sido ele o causador de sua grande desgraça familiar, como primeiro amante daquela que ou­trora fora sua mulher e agora se chamava Selene, sabia que tinha para com Alberto uma dívida de gratidão, já que este jamais lhe negara o direito de visitar sua filha quando quisesse. Juliana, po­rém, nunca o reconhecera como pai, tendo-o sempre tratado com desprezo e antipatia, por não querer se lembrar de suas verdadei­ras origens. De fato, fora por ciúmes que ele passara a odiá-la. Em seu íntimo, porém, jamais conseguira sentir por ela a mesma raiva que sentia de Selene. Ao contrário, ainda que se mantivesse firme em seus propósitos de vingança, sempre sentia um certo prazer ao vê-la, e até mesmo um certo orgulho de saber que ela era sua filha. Na cabeça de Xantipa, que havia parado no tempo em função de seus rancores, nada havia mudado com a reencarnação daqueles personagens que povoavam o seu passado: Juliana continuaria sendo para sempre a sua filha ingrata e Selene, a sua esposa infiel. A sua maneira, ele amava as duas, ao mesmo tempo em que as odia­va. Xantipa só despertou de seus pensamentos quando ouviu uma inesperada frase de Felipe, que o deixaria ainda mais confuso:

- Paulo, será que um dia eu vou conseguir gostar também da­quele moço mau que maltrata o meu pai Alberto?

Juliana e Lenita se entreolharam intrigadas, mas Paulo fez um sinal para que se aquietassem e, inspirado pelos benfeitores espirituais que se encontravam no local, respondeu serenamente:

Sabe, Felipe, às vezes as pessoas fazem maldades porque es­tão muito machucadas, muito feridas, achando que nunca foram amadas de verdade por ninguém. Nós, que somos muito amados, devemos ter pena dessas pessoas e orar para que um dia elas des­cubram que possuem o maior amor do mundo, que é o amor de Deus, e que esse amor dá a elas a oportunidade de apagar todas as maldades que elas fizeram, através da prática do bem.

Então eu vou rezar muito e com bastante amor para aquele moço, para que ele fique sendo uma pessoa bondosa, e também vou rezar pedindo para que o meu pai Alberto também perdoe esse moço - disse Felipe, convicto.

Suas palavras sinceras e infantis tocaram fundamente o cora­ção de Xantipa, que se encolheu num canto, envergonhado. Afi­nal, nunca ninguém demonstrara tanta consideração por ele. Como aquele garoto, a quem há pouco ele prejudicara, podia refe­rir-se a ele com tanto carinho?

 

Enquanto isso, no escritório, Alberto sentia-se também cada vez mais envergonhado diante dos atos de João Vítor. Em reunião com o sr. Fernandez e os donos da emissora que havia encomenda­do as pesquisas, João Vítor fazia questão de elogiá-lo a cada mo­mento, exaltando seu enorme empenho na elaboração daquele novo método, sua inestimável contribuição naquele projeto. Era tamanha a empolgação com que João Vítor falava do amigo que, caso não o tivesse visto trabalhando sem parar por meses a fio, o sr. Fernandez poderia até pensar que ele apenas beneficiara-se do projeto do amigo - o que não era verdade, já que João Vítor, com sua experiência no ramo, havia aprimorado bastante o trabalho que fora apenas iniciado por Alberto.

Após a reunião, João Vítor trancou-se em sua sala e dirigiu um sentido pensamento a Alberto:

"Amigo, onde quer que você esteja, quero que saiba que esta vitória é sua, que hoje, finalmente, eu consegui que todos na em­presa reconhecessem o grande homem que eles perderam. Toma­ra que você esteja tão orgulhoso quanto eu por tudo isso!"

Perfeitamente sintonizado com João Vítor, Alberto escutou integralmente sua mensagem e respondeu comovido:

- Eu é que te agradeço, amigo, e te peço desculpas por um dia ter pensado mal de você.

João Vítor sentiu as energias positivas emanadas por Alberto e imediatamente seus olhos se encheram de lágrimas:

- Ah, Alberto... - disse ele, sentido -, como eu tenho saudades das nossas longas conversas...

Embora também comovido, Alberto não perdeu tempo e aproveitou a sintonia:

- Felipe! Você precisa ligar para saber de Felipe!

João Vítor captou-lhe os pensamentos e pegou o telefone no ato, dizendo para si, enquanto discava:

- Meu Deus! Preciso saber como está Felipe! Foi Lenita quem atendeu:

-João? Sim, ele melhorou... Mas estou sentindo uma coisa tão estranha, parece até que tem uma tristeza rondando o quarto... Não sei se estou maluca, mas acho que o Alberto está aqui!

Colado ao telefone, Alberto ouviu o desabafo de Lenita e preocupou-se. Sabia que era à energia de Xantipa que ela se refe­ria. Concentrou-se em João Vítor e sugeriu:

-           Centro! Você quer ir ao centro espírita esta noite, com dona Catarina. Convide Lenita!

Sem sequer atinar direito com o que estava dizendo, João Ví­tor repetiu quase que integralmente as palavras de Alberto:

Sabe, Lenita, estou com muita vontade de ir até um centro espírita esta noite. Dona Catarina me falou muito sobre esse lugar e... Você não gostaria de ir comigo?

Que coisa incrível! - respondeu Lenita, do outro lado da li­nha - Eu estava pensando em te fazer este mesmo convite esta ma­nhã, tinha até comentado com a Juliana, mas aí o Felipe apareceu com aquela febre e...

-A dona Catarina também falou com você? - surpreendeu-se João Vítor.

- Sim - respondeu Lenita -, ela esteve aqui ontem e nós con­versamos muito. Confesso que fiquei impressionada com tudo o que ela me disse...

Insista! - pediu Alberto.

Então você aceita? - insistiu João Vítor.

- Claro que aceito - confirmou Lenita. - O Paulo, que está aqui até agora, disse que nós podemos levar o Felipe, que vai ser muito bom para ele tomar um passe no centro. Agora, por favor, não se atrase. Dona Catarina ficou de nos encontrar no portão às sete e meia.

- Então eu passo aí, por volta das seis e meia, para buscar vo­cês, está bem assim? - propôs João Vítor.

Só depois de desligar o telefone, ele se deu conta do que havia acabado de combinar:

- Que coisa engraçada... Eu não estava pensando em nada disso... De onde será que eu tirei essa idéia?

Alberto respirou aliviado e decidiu aproveitar a sintonia para pedir um café:

- Café! Você está com muita vontade de tomar um café!

O dr. Márcio - que, desde que Alberto se lembrara do hospital naquela manhã, permanecera todo o tempo ao lado dele para im­pedir que ele tivesse uma outra recaída - não pôde deixar de sor­rir. Segundos depois, dona Catarina entrava com o café pedido por João Vítor.

Vejo que também está começando a ficar viciado em café -brincou ela.

Se eu contasse à senhora que a minha vontade de tomar café é algo puramente mental, que nada tem a ver com a minha vontade física, a senhora não acreditaria, não é verdade? Aliás, tantas coisas estranhas andam acontecendo por aqui... - comentou João Vítor.

-Acho que, se eu lhe explicasse, você é que não entenderia - ata­lhou ela. - Pelo menos, por enquanto. A propósito, como está Felipe?

Acabei de falar com Lenita, ele melhorou, mas ela está cis­mada que o espírito do Alberto está lá com eles... A senhora acha que o Alberto teria coragem de fazer o filho ficar doente?

De maneira alguma. Alberto era louco por aquele menino. Além do mais, ele não está lá.

Ouvindo isso, Alberto parou de aspirar o café e sorriu orgulhoso.

- Como a senhora pode dizer isso com tanta segurança?

- Um dia você também vai poder, João Vítor, escute o que es­tou lhe dizendo.

"Será que ela pode me ver aqui?" - pensou Alberto.

-           O que eu sei é que quando a senhora quer uma coisa, não há nada que a faça mudar de opinião, não é mesmo? Eu e Lenita com­binamos de ir ao centro com a senhora, hoje à noite. Satisfeita?

- Isso é uma ótima notícia! Fico feliz por vocês. Acho que vão se sentir realmente bem naquela casa de que eu gosto tanto. Te­nho certeza de que lá encontrarão muitas respostas que estavam procurando há muito tempo.

Ontem eu me lembrei muito da senhora na casa de uma amiga. Aliás, a senhora sabe quem é, a Selene, mãe de Juliana...

Como sei... Ela é minha vizinha há muitos anos. Coitada, é uma pessoa que precisa muito de ajuda...

-A senhora acredita que até rezar eu rezei quando estava lá?

Fez muito bem, João Vítor. A prece sincera, além de nos ali­viar o coração, sempre atrai a proteção de espíritos superiores.

Sabe que eu realmente senti um alívio incrível na hora em que acabei de orar? O clima estava pesadíssimo, mas, no momento em que eu concentrei meu pensamento em Deus, a própria Selene se modificou, não sei explicar...

Alberto se mantinha atento à conversa. Nunca ouvira falar nesses 'poderes mágicos' da oração, mas lembrou-se de seu encon­tro com tia Geninha naquela manhã e começou a achar que tudo aquilo que dona Catarina dizia - e que ele sempre se negara a ou­vir - realmente fazia algum sentido.

- Mas não se iluda, João Vítor - alertou dona Catarina. - Por muitas vezes já estive na casa de Selene, levando-lhe palavras de consolo, ensinando-lhe a orar. Mas ela, infelizmente, ainda não está preparada para beneficiar-se desses ensinamentos. Prefere a companhia de espíritos ainda muito fortemente ligados à matéria, assim como ela...

Alberto recordou que, de fato, o próprio Xantipa já havia co­mentado com ele o quanto era simples estabelecer uma ligação com Selene. Lembrou-se também da facilidade com que aquelas três entidades trevosas conseguiam se comunicar com ela e da difi­culdade que ele próprio experimentara naquela manhã ao tentar aproximar-se de Juliana e Lenita. "Sim, provavelmente elas deve­riam estar sintonizadas com os tais espíritos superiores", disse para si mesmo.

-           E nós não podemos fazer nada para ajudar Selene? - quis sa­ber João Vítor, mais uma vez sintonizado com os pensamentos de Alberto.

- Olha, João Vítor - ponderou dona Catarina -, dificilmente se pode fazer alguma coisa por alguém quando este alguém não crê estar precisando de ajuda... Para poder receber a ajuda, é pre­ciso, antes de mais nada, querer, desejar esta ajuda.

-A senhora tem razão... - avaliou João Vítor. - Selene parece mais interessada em outro tipo de ajuda...

- É uma questão de evolução, João Vítor. Existem pessoas que só consideram como metas importantes a atingir nesta vida o su­cesso material, simbolizado por posses, posições, satisfações físi­cas e mentais. Outras, mais desprendidas, já conseguem ter uma visão mais abrangente, mais espiritualizada, enxergando a paz, o amor, a alegria e a felicidade como os maiores tesouros que Deus pode nos conceder...

Tanto João Vítor quanto Alberto ficaram a meditar nas pala­vras de dona Catarina.

-Tomara que um dia eu possa me tornar uma pessoa tão evoluída quanto a senhora - deixou escapar João Vítor. - Quanto a Selene...

Não se preocupe - replicou a boa senhora -, o tempo é um santo remédio. Ele cura todas as feridas. Assim, um dia, quando você menos esperar, Selene também encontrará o seu caminho...

Eu só espero que hoje, quando sair desse centro, eu consiga entender pelo menos metade das coisas que a senhora diz... - di­vagou João Vítor.

-Vai entender - disse ela, recolhendo a xícara. - Bem, eu já lhe expliquei o endereço. Espero vocês às sete e meia na entrada. Por favor, não se atrasem.

- Pode deixar que nós vamos chegar antes da senhora!

- Ah! - emendou ela, já de saída. - Antes que eu me esqueça, meus parabéns pelo seu discurso sobre o Alberto na reunião de hoje. O dr. Fernandez ficou tão sensibilizado com as suas palavras que está disposto até a dar uma gratificação à família, em sinal de seu reco­nhecimento pelo trabalho do Alberto ao longo de todos esses anos...

- A senhora fala sério? - admirou-se João Vítor.

- Sim - respondeu ela -, mas não comente com ninguém que eu lhe contei... Parece até que 'o homem' mudou depois que você veio trabalhar aqui...

Alberto recebeu a notícia sem maiores entusiasmos. Estava ainda tão impressionado com as palavras anteriores de dona Cata­rina que não conseguia fixar seu pensamento em outra coisa. João Vítor, porém, exultou. Não via a hora de dar a notícia à Lenita. Juntou seus papéis e decidiu sair mais cedo. Ainda queria passar em casa para tomar um banho antes de ir buscá-los. Por pouco, Alberto, de tão absorto em seus pensamentos, não ficou sozinho no escritório.

Contrariamente ao que era esperado por Xantipa, dentro de Alberto começava a crescer uma vontade de conhecer o tal centro de que dona Catarina tanto falava e uma delicada desconfiança de que Deus realmente existisse.

 

Lenita, Juliana, Felipe e Paulo, que, a pedidos da família, acei­tara ficar por lá até a hora da sessão, já estavam terminando de se arrumar quando o telefone tocou. Ao ouvir o primeiro toque, Pau­lo, que acabara de sair do banho e estava vestindo uma antiga ca­misa de Alberto, que lhe fora dada por Lenita, teve um estranho pressentimento. Felipe, ainda um pouco fraco, estava deitado no sofá, enquanto Lenita preparava alguns sanduíches na cozinha. Juliana teve de vir correndo do quarto para atender. Era Selene.

- Mãe? - perguntou Juliana, com um olhar assustado.

Ao ouvi-la, Xantipa, que passara toda a tarde adormecido (gra­ças aos fluidos calmantes que lhe haviam sido aplicados por tia Ge­ninha), levantou-se sobressaltado e correu para perto de Juliana. Só então ele percebeu que eram seis horas e que não havia cumprido nenhuma de suas metas para aquela tarde. Uma leve lembrança do que ocorrera antes que ele caísse naquela sonolência passou-lhe pela cabeça, mas seus pensamentos de vingança desta vez falaram mais alto e ele não se deixou dominar pelas faíscas de amor que Fe­lipe semeara em seu coração. Assim, com esperança de que Alberto, Uldarico, Titânia e Carmona tivessem realizado suas tarefas a con­tento, postou-se ao lado de Juliana, pronto a influenciá-la tão logo ela manifestasse o menor sinal de desequilíbrio.

Não foi preciso esperar muito. Ao fim da segunda frase dita por Selene ao telefone, Juliana já chorava descontroladamente:

Mãe, por favor, não fale assim... - dizia ela, em soluços. -Você bebeu?

Se eu bebi ou não bebi, não é da sua conta - gritou Selene do outro lado da linha. - O que interessa é que eu sou sua mãe e você tem a obrigação de me obedecer!

Mas eu não quero, eu não posso me mudar para aí agora, do jeito que você quer...

Não quer? - berrou Selene, bêbada. - Pois fique sabendo que se não vier por bem, virá por mal! Ah, se não vem... Agora mesmo eu vou ligar para o... Para quem mesmo que eu vou ligar?... Ah! É claro! Agora mesmo vou ligar para o advogado! O melhor, ouviu? O melhor advogado desta cidade...

Juliana tapou a boca do telefone para que Selene não ouvisse seus soluços. Lenita e Paulo se aproximaram. Lenita tirou-lhe o aparelho das mãos, enquanto Paulo a abraçava.

Fique calma, Ju - disse ele. - Deixe a Lenita tentar falar com ela...

Não deixe! - gritou Xantipa ao ouvido de Juliana. - Ela vai machucar a sua mãe! Selene é sua mãe! Será que você não tem nem um pouco de pena dela?

Juliana pressentiu suas sugestões, empurrou Paulo e arran­cou o telefone das mãos de Lenita, dizendo, ainda em prantos:

- Não! Ela é minha mãe! Eu é que tenho que falar com ela! Lenita afastou-se assustada, sem saber o que dizer ou fazer.

Selene, enquanto isso, esgoelava-se do outro lado da linha:

-Juliana! Juliana! Não ouse bater o telefone na minha cara! Você não sabe do que eu sou capaz... Eu...

- Estou aqui, mãe... - respondeu Juliana, num soluço.

- Olha - acalmou-se Selene -, eu não quero brigar com você... Quero apenas conversar... Estou me sentindo tão sozinha...

-Você tem que ir para lá! - ordenou Xantipa. - Ela é sua mãe, pode até cometer alguma besteira se você não for...

-Tá... - respondeu Juliana, confusa. - Eu vou arranjar um jeito de ir até aí... Mas você promete que não vai beber mais até eu chegar?

Lenita e Paulo se entreolharam confusos, até que Lenita to­mou a iniciativa de interferir novamente:

Não vai adiantar nada você ir para lá agora, Juliana. Selene não está em condições de conversar com ninguém...

Ela não gosta da sua mãe! - provocou Xantipa. - Lenita pou­co se importa com Selene! Selene precisa de sua ajuda!

Juliana mais uma vez captou-lhe as sugestões, despediu-se ra­pidamente da mãe e encarou Lenita:

-Você não gosta da minha mãe! Nunca gostou! Está pouco se importando se ela precisa ou não de ajuda!

- Eu não disse isso, Juliana - tornou Lenita, já começando a se exaltar.

Paulo tomou-lhe a frente e segurou com força as mãos de Juliana:

Não brigue com a Lenita, Juliana, ela só quer o seu bem, nós só queremos o seu bem...

Não deixe que esse garoto decida o que você deve fazer -instigou Xantipa.

Me solta! - gritou Juliana, transtornada. - Você não manda em mim!

Paulo afastou-se assustado. Felipe começou a chorar, nervoso. Lenita correu até ele, esforçando-se ao máximo para manter o equilíbrio. No momento em que Juliana abriu a porta para sair, porém, deu de cara com João Vítor, que acabava de chegar, acom­panhado de Alberto.

-Juliana? O que está acontecendo?

-Sai da minha frente, tio. Eu preciso ir ver a minha mãe!-res­pondeu ela, empurrando-o.

- Calma aí - disse ele, segurando-a pelo braço. - Antes de qualquer coisa nós precisamos conversar!

Percebendo a gravidade da situação, Alberto abraçou a filha com força e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Fique. O papai está aqui.

Imediatamente a imagem de Alberto veio à mente de Juliana, ela sentiu muitas saudades do pai e caiu num pranto convulsivo. João Vítor a amparou até o sofá, enquanto Xantipa, irritado, par­tia para cima de Alberto:

- Você estragou tudo, seu imbecil!

Foi sem querer - disfarçou Alberto. - Eu não podia deixá-la sair de casa naquele estado, podia até ser atropelada no caminho.

Até que não seria uma má idéia. Assim ela iria ter que se en­tender comigo frente a frente - imaginou Xantipa.

- Não foi esse o combinado - argumentou Alberto.

E você, por acaso, cumpriu com o combinado? O que é que esse imbecil deste seu amigo borra-botas está fazendo aqui?

Eu não tive como evitar - mentiu Alberto. - Ele está realmen­te estranho hoje, não obedeceu a nenhuma das minhas sugestões.

Mais essa agora! - protestou Xantipa. - Ainda por cima o borra-botas veio protegido pelos bons! Você estragou tudo!

Enquanto os dois discutiam, Juliana, mais calma e fora do ân­gulo de influência de Xantipa, bebia um copo de água com açúcar que Lenita lhe trouxera, abraçada a João Vítor.

E se ela fizer alguma besteira, tio? - perguntou preocupada.

Ela não vai fazer nada. Daqui a pouco vai ficar com sono e vai apagar - garantiu João Vítor.

E como é que você pode ter tanta certeza disso? - quis saber Juliana.

Simplesmente porque toda pessoa que ameaça muito quase sempre só quer chamar a atenção. Quem quer se matar de verda­de, Juliana, não coloca anúncio no jornal - ponderou João Vítor.

Mas ela não disse que queria se matar. Eu é que..

- Está vendo? - aproveitou Lenita. - Mais uma razão para você não se preocupar. Quando seu pai era vivo, Selene fez isso muitas vezes.

- Mãe, por que a Juliana tava chorando? - perguntou Felipe.

- Depois a gente fala sobre isso - desconversou João Vítor, pegando-o no colo - E você? Está melhor?

Hum, hum! - respondeu Felipe. - A gente não ia sair?

Ia não, vamos! - afirmou João Vítor - Estão todos prontos?

Mas, tio - insistiu Juliana -, e se ela falar mesmo com o tal advogado?

Não se preocupe com isso. Ontem mesmo eu conversei com um advogado lá da empresa e descobri que a Selene não tem ne­nhum direito sobre você - garantiu João Vítor. - Afinal, já faz mais de quinze anos que ela te abandonou e você já vive com a Lenita há mais de sete.

Os olhos de Lenita se iluminaram. A cada minuto que passa­va, ela se surpreendia mais com João Vítor. Ele era realmente for­midável.

-Você jura, tio? - perguntou Juliana, aliviada. -Juro. Mas isto não impede que você tente conversar com ela de uma maneira civilizada.

- Se você qui... qui... quiser - arriscou Paulo, que até então se mantivera calado -, eu posso ir até lá amanhã com você...

Juliana olhou para ele, comovida, e só então se deu conta do quanto havia sido grosseira. Tocou nos braços dele envergonhada e disse:

- Eu quero sim, mas só se você me perdoar...

Paulo teve vontade de tomá-la nos braços e beijá-la ali mes­mo, na frente de todos, mas achou melhor se conter.

Eu nunca vou ficar aborrecido com você - disse ele, do fun­do da alma, com os olhos brilhando para ela.

Bom - atalhou João Vítor -, acho melhor a gente encerrar essa conversa por aqui senão a gente vai chegar atrasado...

Xantipa não cabia em si de tanta irritação e descarregou sua raiva contra Alberto:

- Está vendo o que você fez, seu miserável?

- E o que você queria que eu fizesse se nem você consegue se aproximar deles? - respondeu Alberto.

- E o pior é que Uldarico, Titânia e Carmona estão atrasados!

Não entendo... Vocês também, quer dizer, nós também va­mos ao centro com eles?

Claro que sim, seu idiota! A única coisa que nos resta a fazer é tentar hipnotizá-los durante a reunião para que não escutem as baboseiras que aqueles outros idiotas vão tentar botar na cabeça deles!

- Como assim? - surpreendeu-se Alberto.

- Nós vamos fazer com que eles durmam durante a sessão, en­tendeu? Agora vamos andando que eles já estão saindo.

Os dois entraram no elevador junto com Lenita, João Vítor, Felipe, Juliana e Paulo. Embora não pudessem ser notados por ne­nhum deles, tia Geninha e o dr. Márcio também faziam parte do grupo, e sorriam satisfeitos por tudo estar se encaminhando con­forme fora planejado.

Na entrada do prédio, Titânia, Uldarico e Carmona, que ha­viam perdido a hora por terem ficado bebendo com Selene, junta­ram-se a eles e o grupo finalmente partiu, apertado no carro de João Vítor, sob a chuva de impropérios lançados por Xantipa.

 

Tia Geninha e o dr. Márcio foram os primeiros a entrar no centro, e logo se dirigiram a um grupo de amigos desencarnados que trabalhava na casa para notificar-lhes a presença de Xantipa, Alberto, Uldarico, Titânia e Carmona.

-Já esperávamos por eles - explicou o dirigente desencarna­do. - O mentor espiritual da reunião mediúnica da qual dona Ca­tarina participa já nos havia avisado sobre as visitas desta noite.

- Graças a Deus, irmão - comemorou tia Geninha. - Enquan­to isso, em que poderíamos ser úteis?

-Venham conosco - propôs o dirigente. - Uma fila de desen­carnados necessitados nos espera na secretaria.

Pouco depois, Paulo, Juliana e Felipe seguiram para a salinha de evangelização infantil, enquanto Lenita, João Vítor e dona Ca­tarina, seguidos pelo grupo de desencarnados que os acompanha­va, subiam as escadas que davam acesso ao local onde se realizaria a reunião daquela noite.

No caminho, Xantipa ia explicando a Alberto como proceder para ajudá-lo na hipnose de Lenita e João Vítor:

- Você precisa usar toda a sua força para convencê-los a dor­mir. Primeiro, sugira cansaço, depois, que fechem os olhos por apenas alguns minutos enquanto a sessão não se inicia...

Ele ainda não havia acabado sua explicação quando foi sur­preendido por uma gentil mocinha vestida de branco, que barrou a entrada do grupo desencarnado na pequena sala onde dona Ca­tarina, João Vítor e Lenita haviam acabado de entrar.

- Sinto muito, mas vocês devem seguir por ali - disse ela, apontando para uma outra escada, invisível a olhos humanos, que dava acesso a um andar superior, que também não podia ser visto pelos encarnados.

Sobre aquele andar fluídico, havia ainda mais três outros, cu­jas portas de acesso estavam fechadas.

Quem é você? - enervou-se Xantipa. - Como pôde nos ver?

Sou apenas uma trabalhadora desta casa - respondeu ela, com delicadeza. - Por favor, queiram fazer o que eu pedi.

Ela também já morreu? - quis saber Alberto.

Ora, cale essa matraca! - bradou Xantipa, voltando-se nova­mente para a moça, em seguida. - Escute aqui! Não me interessa se você é encarnada ou desencarnada. Só quero que saia da minha frente e não atrapalhe o nosso trabalho!

Neste momento, o grupo de desencarnados foi rodeado por dez espíritos de luz, que só então se fizeram visíveis. Com a sim­ples força do olhar, estes trabalhadores hipnotizaram Xantipa e seus companheiros e os conduziram para uma fila de desencarna­dos que subia em direção ao andar superior.

Lá de cima, sentado ao lado de Xantipa, Uldarico, Carmona e Titânia, em cadeiras plasmadas que flutuavam acima do solo ma­terial, Alberto, o único do grupo que mantinha plena consciência do que estava acontecendo (já que, dada sua aparente tranqüilida­de, não fora hipnotizado pelos irmãos superiores), observava cu­rioso tudo o que se passava na pequena sala localizada no andar de baixo, onde se concentravam os encarnados. João Vítor e Lenita haviam se acomodado em duas cadeiras de madeira no canto da sala, enquanto dona Catarina conversava baixinho com dois se­nhores sentados diante de uma mesa coberta por uma toalha azul-piscina, no centro da qual havia um vaso de flores coloridas e vários livros sustentados por dois suportes.

Depois de terminar de falar com os dois senhores, dona Catari­na tomou dois pequenos livros, intitulados Pão nosso e Fonte viva,1 e dirigiu-se a João Vítor e Lenita, enquanto outras pessoas iam entran­do na sala e se acomodando nas cadeiras dispostas em volta da mesa.

- Pelo menos quinze minutos antes do início da reunião, é aconselhável que todos os presentes se concentrem na leitura de mensagens edificantes como as que poderão encontrar nestes li­vros - disse ela, estendendo um exemplar a cada um.

Qualquer pessoa pode assistir a uma reunião como esta, dona Catarina? - perguntou Lenita baixinho.

De forma alguma. Uma reunião mediúnica é como uma sala de cirurgia. Você já imaginou se os médicos deixassem entrar ali qualquer pessoa?

Seria um tumulto... Com certeza a cirurgia e a própria saúde do paciente correriam sério risco por isso... - imaginou Lenita.

Pois então. Da mesma maneira, para que uma reunião me­diúnica funcione a contento, é necessário que haja todo um treina­mento, a fim de que, na hora exata, ocorra um perfeito entrosa­mento entre todos os participantes, os quais deverão formar uma corrente vibratória forte e equilibrada. Na verdade, à exceção de vocês, todos nós que integramos esta mesa fazemos parte de um grupo de estudos de mediunidade - explicou dona Catarina.

Se é assim, como é que eu e Lenita, que não entendemos nada do assunto, vamos poder participar desta reunião? - inquiriu João Vítor.

Na verdade, antes de convidá-los para vir até aqui, eu pedi autorização ao mentor espiritual do grupo, que concordou em re­cebê-los dada a gravidade da situação que estão vivendo. Só pode­mos fazer isso em casos de emergência e com autorização do plano espiritual - grifou dona Catarina.

- Quer dizer que não poderemos voltar? - deduziu Lenita. -Talvez até antes do que imaginam. Pelo que pude observar,

embora não saibam, vocês dois também são médiuns e, se eu não estiver enganada, logo, logo estarão fazendo parte deste mesmo grupo de trabalhadores encarnados.

- Médiuns? Nós? - perguntaram ao mesmo tempo João Vítor e Lenita, encarando-a surpresos.

Dona Catarina, porém, não teve tempo de responder à per­gunta dos dois. O relógio no fundo da sala marcava sete horas e quarenta e cinco minutos e o dirigente encarnado fazia sinal para que ela fosse se juntar às outras nove pessoas que já haviam ocupa­do seus lugares em torno da mesa. Algumas mantinham-se de ca­beça baixa, outras concentravam-se na leitura de uma página, tal como dona Catarina aconselhara a João Vítor e Lenita.

Ao acompanhar dona Catarina com o olhar. Alberto percebeu que, numa das paredes da sala, havia uma espécie de telão, o qual só podia ser visto pela platéia desencarnada.

Às oito horas em ponto, uma das pessoas da mesa levantou-se e disse:

- Graças a Deus, a Jesus e a Maria de Nazaré.

Em seguida, a mesma pessoa abriu um pequeno livro e come­çou a lê-lo em voz alta:

 

A hora que passa é preciosa demais para que lhe percamos a grandeza.

Saibamos abraçar a fé viva que o Cristo nos legou com a re-nunciação aos caprichos inferiores e, transformando-nos em sin­ceros trabalhadores, no aperfeiçoamento de nós mesmos pelo tra­balho infatigável no bem, aniquilaremos as montanhas agressivas que nos separam do Mestre Divino e d'Ele receberemos o salário da luz com que assimilaremos os dons das mais altas revelações nos domínios da vida eterna.

Emmanuel8

 

Enquanto o trecho era lido, imagens de paisagens belíssimas eram projetadas na tela, emolduradas por uma suave e doce melo­dia, que também não podia ser captada pelos ouvidos dos encar­nados. Inspirado por este contexto, Alberto sentiu uma incrível sensação de bem-estar e relaxou na poltrona.

Dando prosseguimento à reunião, outra pessoa da mesa se le­vantou e abriu, ao acaso, 0 evangelho segundo o espiritismo, passando a ler a página em voz alta:

 

A obsessão é a ação continuada que um mau espírito exerce so­bre um indivíduo. Apresenta características muito diversas, desde a simples influência moral, sem sinais exteriores que se percebam, até a completa perturbação do organismo e das faculdades mentais. Ela obstrui todas as faculdades mediúnicas. Na mediunidade psicográfica, isto é, da escrita, ela se traduz pela teimosia de um espírito em se manifestar, não permitindo que outros se manifestem.

Ao redor da Terra, há grande quantidade de maus espíri­tos, devido à inferioridade moral dos seus habitantes. Sua ação maléfica faz parte dos flagelos dos quais a humanidade é alvo na Terra. A obsessão, como as doenças, e como todas as tribulações da vida, deve, pois, ser considerada como uma prova ou uma ex­piação, e aceita como tal.

Da mesma forma que as doenças são o resultado das imper­feições físicas que tornam o espírito acessível às más influências exteriores, a obsessão é sempre o resultado de uma imperfeição moral que dá acesso a um Espírito mau. A uma causa física se opõe uma força física; a uma causa moral é preciso opor uma força mo­ral. Para se preservar das doenças fortifica-se o corpo; para se ga­rantir contra a obsessão, é preciso fortificar a alma; daí, para o ob­sediado, a necessidade de trabalhar a sua própria melhoria, o que muitas vezes basta para livrá-lo do obsessor sem o socorro de pes­soas estranhas. Esse socorro torna-se necessário quando a obses­são degenera em subjugação e em possessão, porque o paciente perde, por vezes, a vontade e o livre arbítrio.

A obsessão, é quase sempre o resultado de uma vingança exercida por um espírito, a qual muitas vezes tem sua origem nas relações que o obsediado teve com ele em uma existência anterior.

(...) Em todos os casos obsessivos, a prece é o mais poderoso auxiliar na ação de esclarecimento do espírito obsessor."

 

- Meus irmãos - disse o dirigente, logo depois que o orador en­cerrou sua fala -, existem duas mensagens importantes que deve­mos extrair desta passagem de 0 evangelho. A primeira delas é que ninguém pode se dizer ou se sentir vítima de um irmão obsessor.

"Quantas pessoas - prosseguiu ele -, inclusive médiuns, che­gam a esta casa revoltadas, acreditando estarem sendo injusta­mente prejudicadas por 'espíritos malfeitores', sem nada terem feito para merecer este castigo.

"Na verdade, sempre que somos vítimas da perturbação de al­gum espírito, é porque de alguma maneira estamos ligados a ele. Seja por uma simples afinidade momentânea de pensamentos, seja em função de dívidas do passado. Na maioria dos casos, esses espíritos a quem julgamos malfeitores são seres a quem nós muito magoamos em encarnações anteriores e que só invadem as nossas casas para nos perturbar porque a mágoa que lhes causamos no passado foi tão grande que eles, agora, cegos em sua imensa dor, se sentem no direito de nos cobrar pelo mal que lhes fizemos. Por­tanto, ninguém deve se julgar 'coitadinho' por estar sendo obse-diado. Ao contrário, devemos nos sentir responsáveis por ter cau­sado uma ferida tão grande naquele pobre espírito e encontrar um meio de reparar nossos erros.

"Como fazer isso? Esta é a segunda lição importante da passa­gem lida. Através do nosso exemplo moral. Sim, é verdade que nos esquecemos completamente do passado quando aportamos na Terra para uma nova existência. No entanto, devemos ter sempre em mente que cada nova existência é uma chance que Deus nos concede para reparar nossos erros do passado e, cientes disso, procurarmos nos aprimorar moralmente a cada dia. Perdoando os nossos irmãos da mesma maneira como gostaríamos de ser per­doados por nossas faltas, não fazendo aos outros aquilo que não gostaríamos que fizessem conosco, amando ao nosso próximo as­sim como amamos a nós mesmos.

"Só através do bom exemplo, do proceder reto, é que pode­mos convencer nosso irmão obsessor de que estamos mudados, de que merecemos uma nova chance, e de que ele também pode mu­dar, inspirado no nosso exemplo.

"E, sobretudo, devemos dar o exemplo do amor, orando por esses irmãos que nos incomodam, pedindo a Deus para que tam­bém tenha misericórdia para com eles, para que lhes ilumine o ca­minho, a fim de que possam enxergar os débitos que eles também estão acumulando ao insistir em seu desejo de vingança. Devemos entender que, somente através do amor sincero e despretensioso, podemos fazer com que esses espíritos compreendam que eles, as­sim como nós, têm tudo a perder praticando o mal, e tudo a ga­nhar, fazendo o bem.

"Não basta, porém, que digamos palavras bonitas em nossas preces, se o nosso procedimento não puder espelhar a essência dessas palavras.

"Em uma de suas inesquecíveis palestras gravadas em vídeo, nosso venerável irmão Divaldo Pereira Franco, por exemplo, nos narra o caso de um obsessor que o perseguiu durante anos a fio. Divaldo nos conta que tentou todas as formas de prece e de doutri­nação para tentar ajudar aquele irmão sofredor, mas nada surtia o efeito desejado. Até que um dia, um dos membros da Mansão do Caminho[3] foi chamá-lo em sua casa para avisar que uma criança recém-nascida fora encontrada na lata do lixo. Divaldo correu até lá e, no momento em que subia com a criança nos braços, o irmão obsessor se fez visível no alto da escada e perguntou a ele:

"Você ama essa criança feia, essa criança suja desse jeito?"

"Ainda não amo, mas pretendo aprender a amá-la" - respon­deu Divaldo.

"Então", prosseguiu o irmão desencarnado, "a partir de ago­ra eu vou deixar você em paz. Porque essa criança é minha mãe."

"Como vemos, o simples exemplo moral de Divaldo Franco não foi suficiente para afastar aquele irmão perseguidor. Foi preci­so que a este exemplo se juntasse um verdadeiro ato de amor para que aquele irmão fosse tocado em suas fibras mais íntimas. Que esta história nos sirva de modelo para as nossas lutas do dia-a-dia.

"Que a Paz do Senhor esteja com todos vocês."

Enquanto o dirigente proferia seu discurso, imagens na tela in­visível a olhos humanos ilustravam suas palavras, de maneira a tor­ná-las ainda mais claras para a platéia de desencarnados, que assim podia acompanhar a narrativa como se estivesse assistindo a um fil­me. No momento em que ele encerrou sua fala, muitos desses de­sencarnados choravam comovidos, inclusive Alberto. Xantipa, Ti­tânia, Uldarico e Carmona, no entanto, mantinham-se calados, como se estivessem indiferentes a tudo o que lhes fora mostrado.

Embora nem a platéia de encarnados nem a de desencarna­dos pudesse perceber, ao fim da palestra, uma chuva de pétalas co­loridas e perfumadas descia sobre todos os presentes, espalhando fluidos de amor e luz pelo local, e dissolvendo-se ao contato com os seres, como se absorvidas pelo organismo espiritual de cada um conforme as suas necessidades.

 

Após uma comovida prece de agradecimento feita pelo diri­gente encarnado da sessão, as luzes então se apagaram, ficando a sala iluminada apenas por uma lâmpada avermelhada, e teve iní­cio a segunda parte da reunião. Orientados pelos trabalhadores da casa, os desencarnados se organizaram em uma fila e começa­ram a ser conduzidos, um a um, à mesa no andar de baixo, onde os médiuns mantinham-se concentrados.

Entre as diversas histórias narradas naquela noite por inter­médio da incorporação desses irmãos nos médiuns que compu­nham a mesa, a de Xantipa foi uma das que mais comoveu a todos os encarnados e desencarnados ali presentes. Ao aproximar-se da médium, já praticamente liberto dos efeitos da hipnose que o obrigara a permanecer no recinto até então, ele se mostrava bas­tante revoltado:

Cambada de imbecis! Não vêem que não adianta me dopar para me obrigar a ouvir essas baboseiras? Meu ódio é maior do que tudo! - gritou ele pelos lábios da médium.

Procure se acalmar, irmão - tranqüilizou-o o doutrinador. -Estamos aqui para ajudá-lo a livrar-se desse ódio que tanto o pre­judica. Não gostaria de falar um pouco sobre as razões que o man­têm preso aqui na crosta por tanto tempo?

Eu sei que estou obsediando uma pessoa e que vocês acham que eu estou errado por fazer isso - respondeu ele, um pouco constrangido pela firmeza do doutrinador. - Mas vou contar a vo­cês tudo o que eu passei por causa dela para que no final me digam se eu tenho ou não tenho razão de estar fazendo isso...

E claro que você tem suas razões, irmão - incentivou-o o doutrinador, instruído por seus mentores. - Estamos aqui para ou­vi-lo. Para ajudá-lo, a espiritualidade maior vai projetar agora, na tela que se encontra diante de você e que não pode ser vista pelos encarnados, as imagens de tudo o que aconteceu no seu passado, para que você possa reavaliar cada detalhe e observar em que me­dida também foi responsável por seu trágico destino.

Enquanto o doutrinador o instruía, um trabalhador desen­carnado da casa aproximava-se do espírito da médium que em­prestava-lhe a voz, o qual estava ligado por um fio invisível ao espí­rito de Xantipa. Sem ser notado por este, o trabalhador empostou suas mãos sobre o espírito da médium, dirigindo-lhe uma forte luz branca e esta luz passou a ser transmitida a Xantipa, por intermé­dio daquele mesmo fio. Aos poucos, a luz começou a surtir efeito em Xantipa, que foi assim induzido a uma espécie de estado de re­gressão de memória. Em segundos, sua mente foi invadida por uma série de imagens, que apareciam também na grande tela visí­vel apenas aos olhos dos desencarnados, e, condicionado por es­sas imagens, o próprio Xantipa começou a narrar seu passado:

- Não sei dizer exatamente em que ano tudo aconteceu, pois já faz muito tempo que eu morri e minha cabeça anda um pouco embaralhada com esses negócios de data. Mas o fato é que eu era casado com uma moça e nós vivíamos numa cidadezinha do inte­rior. Não tínhamos muito dinheiro, é verdade, mas eu era comple­tamente apaixonado por ela.

"Só que essa moça tinha mania de grandeza. Para ela, o meu amor não valia nada. Ela queria ser rica, ter posição, e por isso vi­via me humilhando. Mas eu nem ligava. Até que um dia ela sumiu. Fiquei doidinho atrás dela, revirei a cidade toda procurando. De tanto apertar o pessoal das fazendas que eu conhecia, acabei des­cobrindo que ela tinha se amigado com o filho de um fazendeiro muito rico.

"No princípio, tentei me conformar, achando que aquela era a lei da vida, que ela merecia um homem muito melhor do que eu, que não tinha nem onde cair morto. E fiquei por aí, enchendo a cara pelos bares. Até que, conversando aqui e ali, eu descobri que o cara era um safado. Que tinha tomado do pai a parte dele na heran­ça da família e saído pelo mundo gastando tudo, se envolvendo com tudo quanto é mulher que encontrava pelo caminho. Quer dizer, não era um cara decente, um cara melhor do que eu, como eu pensa­va no início. Tanto que, quando ele descobriu que a minha mulher estava esperando um filho meu, deu logo um chega pra lá nela.

"Na época, ela chegou a me procurar, pedindo perdão e coisa e tal, mas eu tava muito ofendido, não queria nem ver mais a cara dela na minha frente. Pensava até que o filho era dele e que ela ti­nha me procurado só porque precisava de alguém pra ajudar a criar a criança. Mas, depois que a menina nasceu, eu fiz as contas e cheguei à conclusão de que era minha mesmo. No fundo eu ainda era apaixonado pela minha mulher e acabei engolindo o meu or­gulho para ir atrás dela. Ela tinha virado mulher da vida, mas, mesmo assim, eu quis dar uma chance pra ela.

"Aí ela me tratou que nem um cachorro sarnento, me humi­lhou até não poder mais, e ainda disse que tinha dado a minha fi­lha para um casal rico criar. Eu fiquei doente de tanto desgosto. Passei a odiar aquela mulher como nunca tinha odiado ninguém na minha vida... Jurei que nunca mais ia perdoar pelo que ela me fez e saí catando a minha filha.

"Depois de muito andar, eu descobri que ela tinha dado a me­nina pro irmão daquele aventureiro, só para se vingar do desgra­çado. Só que, no dia que eu cheguei lá, eu vi uma coisa que eu nun­ca mais vou me esquecer. Eu tava escondido pelos matos da fazenda, tentando arranjar um jeito de ver a minha menina de longe, quando, de repente, eu vi o tal aventureiro enterrando dois corpos. Ele tinha acabado de matar o pai e o irmão, só pra ficar com o restante da fortuna e com a mulher do irmão. Depois, eu fiquei sa­bendo que ele sempre tinha sido apaixonado pela mulher do ir­mão, e que tinha saído pelo mundo só porque não tinha se agüenta­do de ciúmes no dia que nasceu o primeiro filho dos dois, que, por sinal, era este mesmo menino que agora é filho dela com ele.

"E o pior é que o pai dele, o velho assassinado, era louco por esse filho, a ponto até de ser injusto com o outro, que tinha ficado dentro de casa. Não precisava ele ter feito isso. Era só ele pedir que o velho dividia o restante da herança de novo com ele, o velho fa­zia tudo por ele. Pelo menos, era o que o povo dizia.

"Fiquei muito assustado com aquela cena, revoltado mesmo com aquilo, mas resolvi sumir por uns tempos, com medo de de­nunciar o assassinato e acabar envolvido com a polícia. Só voltei lá uns dois anos depois, disposto a tirar minha fdha daquele lugar de qualquer jeito..."

E nesse período, você não teve medo de que o aventureiro matasse também a sua filha? - perguntou o doutrinador.

Pra dizer a verdade, eu nem pensei nisso. Na hora, eu só que­ria mesmo salvar a minha pele - respondeu Xantipa, um pouco en­vergonhado. Depois - continuou ele - comecei a me sentir muito sozinho e resolvi buscar o que era meu. Procurei o aventureiro e...

Espere um pouco - interrompeu o doutrinador -, você deci­diu buscar sua filha porque estava se sentindo sozinho ou porque queria alguém para cozinhar e lavar roupas de graça para você?

Imagens na tela mostravam o barraco de Xantipa todo revira­do, com roupas sujas e garrafas de bebida espalhadas por toda a parte. Vendo essas imagens, Xantipa foi obrigado a admitir:

- Bem, eu achava que, já que ela era minha filha, não custava nada me dar uma mãozinha...

Certo, continue - determinou o doutrinador. - E o que aconteceu quando você chegou na fazenda?

Na verdade, eu tive uma surpresa, porque tinha chegado lá armado, disposto a acabar de uma vez com a vida do cara se ele não quisesse me ouvir. Mas daí ele me tratou com todo o respeito e consideração. Acreditou que a menina era minha filha, mas pediu muito para que eu a deixasse ficar. Explicou que a mulher do ir­mão, com quem, a essas alturas, eleja tinha se casado, estava mui­to doente, que era muito apegada à menina e que podia até piorar da doença se eu levasse a garota de lá...

- Então a família amava a menina... - considerou o doutrinador.

- A mulher, parece que sim. Mas ele não parecia ligar muito para ela, sua única preocupação era evitar que a mulher sofresse. Imagine, camarada, que ele me disse, com a maior cara-de-pau, que o pai e o irmão tinham sido misteriosamente assassinados, e que não sabia mais o que fazer para consolar a infeliz da esposa...

  1. quando ele disse isso, você fingiu que não sabia de nada... - deduziu o doutrinador.

E o que é que eu ia fazer? Além do mais, eleja estava casado com a cunhada, e eu não queria confusão pro meu lado...

E ele não te deu nada por isso? - perguntou o doutrinador, enquanto imagens na tela mostravam o fazendeiro dando muito dinheiro a Xantipa.

Ele foi legal, sim - concordou Xantipa - tanto que eu até per­di um pouco da raiva que tinha dele depois daquele encontro. Me deu um bom dinheiro para eu ajeitar as minhas dívidas e disse que eu podia voltar na fazenda sempre que quisesse, para ver a menina.

E você nunca disse a ele o que tinha visto? - quis saber o dou­trinador.

Não, isso nunca. Tinha medo de que ele ficasse com raiva e resolvesse me apagar também...

E você voltou muitas vezes para ver a menina? - insistiu o doutrinador.

Xantipa já ia dizer que sim, mas foi surpreendido mais uma vez pelas imagens na tela, que o mostravam voltando à fazenda só no momento em que o dinheiro que recebera do fazendeiro havia acabado.

- Na verdade, eu só voltei lá quando o dinheiro acabou - admi­tiu ele, constrangido. - Ia pedir mais, mas o fazendeiro me disse que sua mulher havia morrido, e que agora eu até podia levar a me­nina se eu quisesse. Ele estava muito triste com a morte da mulher.

- E você levou a menina? - perguntou o doutrinador.

-Fiquei um pouco assustado quando ele me fez essa proposta. Não estava preparado para isso e pedi um tempo para pensar. Uma semana depois, quando eu cheguei à conclusão de que esta­va disposto a terminar de criar a garota, voltei lá e procurei pelo fa­zendeiro para conversar. Ele tinha saído, mas eu queria resolver tudo naquela hora mesmo. Daí, encontrei a garota na varanda e resolvi contar toda a verdade para ela na bucha. Ela então come­çou a chorar, disse que era mentira e que não queria me ver nunca mais. Eu fiquei muito bravo e até dei uns tapas nela.

Quantos anos ela tinha na época? - quis saber o doutrinador.

Acho que uns onze ou doze, mais ou menos.

E você acha que ela poderia ter agido de uma outra forma? Pense bem! Ela nunca tinha visto você, já tinha perdido aqueles que acreditava serem seus pais de verdade, já tinha se acostumado a ser criada pelo tio. De repente você aparece lá, bêbado e maltra­pilho, dizendo aquele monte de coisas, e ainda bate nela. Você acha, sinceramente, que depois disso tudo ela poderia gostar de você? Se você fosse ela, teria coragem de pegar todas as suas coisas e ir embora com um homem naquele estado só porque ele dizia que era seu pai?

Xantipa abaixou a cabeça pensativo. Começava a perceber que criara para si próprio uma história que não continha a pura verdade dos fatos. Lágrimas escorriam pelo rosto da médium. Vendo que conseguira sensibilizá-lo, o doutrinador prosseguiu:

- E depois disso? O que você fez?

- Passei a perseguir minha filha. Ela tomou horror de mim, e começou a me humilhar toda vez em que me via... - respondeu ele, chorando.

- E o tio dela? Não fez nada?

Não quis se meter e eu até fiquei grato a ele por isso. Mas ela tomou raiva dele, fugiu da cidade e depois disso ninguém nunca mais soube dela... Coitada da minha filha-finalizou ele, num soluço.

E no entanto agora há pouco você queria se vingar dela... -ponderou o doutrinador.

Não! - protestou Xantipa. - Dela eu até que tinha um pouco de pena, mas eu queria mesmo era me vingar da mãe dela...

- E o que você fez? - continuou o doutrinador.

- Logo depois eu morri e fui para a casa dela. Chegando lá eu conheci três espíritos, que estão comigo até hoje e, juntos, nós in­fernizamos a cabeça dela até que ela ficasse doida...

Ela ficou louca por causa de vocês? E quem eram aqueles três espíritos? Por que a odiavam tanto? - insistiu o doutrinador.

Ela tinha abortado os três, na época em que virou mulher da vida... Mas, depois, ela voltou aqui pra Terra e foi ser mãe de novo da minha filha...

Mas nem assim vocês a deixaram em paz, não é mesmo? Será que já não tinha sido suficiente faze- la ficar louca naquela en­carnação? - perguntou o doutrinador.

Ela me magoou muito! - protestou, Xantipa. - Além disso, por causa dela, Uldarico, Titânia e Carmona não puderam nascer.

Talvez, se vocês não tivessem prosseguido tanto tempo na­quela vingança, pudessem também ter tido uma nova chance de voltar à Terra e esquecer as mágoas do passado, iniciando uma nova vida... - avaliou o doutrinador.

Mas ela não se modificou! Continua sendo interesseira e le­viana! -justificou Xantipa.

E você também não foi interesseiro e leviano no caso da sua filha? Amigo, se vocês chegaram até mesmo a se casar naquela vida, foi porque alguma coisa vocês tinham em comum. Não jul­gue os outros para não ser julgado...

Xantipa abaixou novamente a cabeça envergonhado.

- Em todo caso - prosseguiu o doutrinador -, para que você não se sinta tão injustiçado, vamos voltar um pouco mais no tem­po, para tentar descobrir por que a sua mulher te prejudicou tanto naquela encarnação...

Imediatamente surgiram na tela imagens de um homem mal­tratando uma mulher com uma criança no colo. Depois de muito humilhá-la, ele abria a porta e corria para os braços de uma moça rica, que o esperava na cama de um luxuoso quarto.

- Chega! - implorou Xantipa. - Eu me arrependo! Não conti­nue mais me torturando desse jeito, eu imploro! Não quero ver mais essas imagens! Quero esquecer de tudo isso! Pelo amor de Deus, me ajude a esquecer de tudo isso...

Dois enfermeiros se aproximaram da médium, e ele foi então conduzido a uma outra fila de desencarnados, que aguardavam o término da sessão para serem levados a um posto de socorro na es­piritualidade.

Segundos depois, quando os trabalhadores da casa se aproxi­maram de Alberto para avisar-lhe que era chegada a hora de sua manifestação, ele soluçava como uma criança e pediu para nao ir até a mesa:

- Eu entendi tudo - disse ele, chorando -, me lembrei de tudo enquanto ele falava... Fui eu o homem que matou o pai e o irmão, fui eu quem causei a desgraça daquela menina que hoje é minha filha...

-Acalme-se, irmão - abraçou-o o socorrista. - Você não preci­sa se manifestar, se não quiser...

Eu não quero que a Lenita e o João Vítor me vejam neste es­tado... - chorava ele. - Fui eu quem atrapalhou a vida deles... João Vítor era meu irmão e tinha apenas trinta e quatro anos quando eu o matei... Por isso eu tive que morrer com trinta e quatro anos, por isso ele agora terá de assumir tudo aquilo que era seu por direito, tudo o que eu roubei dele no passado...

Não pense mais nisso - aconselhou o socorrista. - Você se arre­pendeu e é isso o que importa. Deus, nosso Pai, em sua infinita bonda­de, perdoa a todos aqueles que se arrependem de seus erros... Além disso, em sua última encarnação você acumulou muitos méritos...

Eu não mereço perdão - insistia Alberto -, não mereço nem voltar para aquele hospital de onde eu saí... O dr. Fernandez nun­ca acreditou em mim nessa encarnação, porque eleja tinha sido meu pai e eu o matei... Eu matei meu pai e meu irmão... O meu pai que me adorava e fazia tudo por mim... - repetia sem parar.

Dado seu estado, o socorrista foi obrigado a aplicar-lhe um passe calmante, que fez com que Alberto adormecesse rapidamen­te. Acomodado numa maca por dois outros socorristas, ele foi então conduzido à fila de desencarnados onde se encontrava Xantipa. Uldarico, Titânia e Carmona, também envergonhados e arrepen­didos após ouvirem a doutrinação de Xantipa, chegaram logo em seguida. Como Alberto, haviam preferido não se manifestar e ir di­reto para a fila de irmãos candidatos ao socorro no plano maior.

Na verdade, a maioria dos desencarnados presentes conscien-tizara-se de sua situação após acompanhar o relato de Xantipa. Assim, após mais três manifestações apenas, o dirigente encarnado encerrava os trabalhos daquela noite com uma sentida prece:

"Querido Pai celestial de amor e bondade, querido mestre Je­sus, querida irmã Maria de Nazaré:

"Que esta sessão de hoje possa ter servido a todos nós, encar­nados e desencarnados, como exemplo da misericórdia infinita de nosso Pai Maior, na qual nós devemos nos inspirar para perdoar também a todos os nossos irmãos. Que as histórias aqui contadas nesta noite possam funcionar como luzes no coração de cada um de nós, abrindo-nos os olhos da mente para as verdades eternas, para a essencial finalidade de nossa passagem aqui na Terra, para a nossa urgente necessidade de aprimoramento moral.

"Com o coração inundado por esta luz, nós vos rogamos, ó Pai, por todos os irmãos desencarnados que foram socorridos nes­ta sessão de doutrinação. Que cada um deles possa receber o auxí­lio e o apoio necessários na espiritualidade, que cada um deles possa ser acolhido com amor e bondade por nossos amigos do pla­no maior, a fim de que, em breve, eles também possam reiniciar sua caminhada evolutiva.

"Quanto a nós, Pai, só nos resta agradecer por tantas dádivas e, sobretudo pela oportunidade de crescimento que agora experi­mentamos. Dai-nos a força e a luz para que, amanhã, possamos acordar um pouquinho melhores do que éramos ontem; e a perse­verança para que possamos continuar trabalhando na nossa refor­ma íntima. Que a vossa bênção possa nos acompanhar ao longo de toda esta semana, e que todos aqueles que de nós se aproximem possam sentir uma fagulha da imensa luz que esta noite foi acesa dentro de cada um de nós. Assim seja."

Lenita e João Vítor tinham os olhos rasos d'água quando deixa­ram a sala de mãos dadas, embora não atinassem para o fato. Dona Catarina os seguia e não pôde deixar de esboçar um sorriso de con­tentamento ao vê-los assim. Juntos, os três seguiram até a salinha de evangelização infantil para buscar Felipe, Juliana e Paulo.

 

Só depois de deixar Paulo e dona Catarina em casa, de levar Juliana e Felipe para jantar, e de finalmente acomodar os dois em suas camas com todo o carinho, Lenita e João Vítor puderam con­versar sobre tudo o que havia acontecido naquela noite. Embora tivessem apenas uma vaga e pálida intuição de sua participação em toda a trama narrada por Xantipa, ambos ainda se sentiam fortemente impressionados por seu relato.

Sabe, João - confidenciou Lenita -, à medida que ele falava, eu tinha a sensação de que também tinha vivido, de alguma ma­neira, toda aquela história. Não sei se é loucura da minha cabeça, mas, na hora em que ele falou do apego da mulher do fazendeiro com a menina, eu só conseguia me lembrar da minha relação com a Juliana, como se nós duas fôssemos as verdadeiras personagens daquela história... Você acha isso possível?

Não sei... Também tive uma sensação muito esquisita quan­do o espírito contou que o tal fazendeiro tinha matado o pai e o ir­mão, e que o pai tinha uma preferência descarada pelo assassino... Depois, quando ele falou que o fazendeiro tinha se casado com a mulher do irmão, eu senti um aperto no peito, uma vontade de gritar como se fosse a mim que ele tivesse traído... - recordou João Vítor com uma certa angústia.

- Eu também... - disse Lenita. - Mas... por que será que o Alberto não se manifestou? Dona Catarina tinha tanta certeza de que ele estava conosco...

-Talvez ele estivesse lá e não tenha podido se manifestar. Ou não quis, por alguma razão... - imaginou João Vítor.

- Estou aqui pensando uma coisa - continuou Lenita. - Se, por acaso, eu fosse mesmo a tal moça e você o irmão do fazendeiro assassino, o que morreu junto com o pai, então...

Nesse momento os olhos dos dois se encontraram, cheios de lágrimas. Depois de alguns instantes assim, João Vítor segurou as mãos de Lenita e ela, também sentindo alguma coisa queimar dentro de si, pela primeira vez se deixou ficar, experimentando o calor daquele contato.

- Não sei se nós fomos aquelas pessoas - disse João Vítor, sem parar de encarar Lenita. - Só sei que estou com muita vontade de te beijar agora...

Não conseguindo mais resistir à atração que sentia por ele, Lenita apenas fechou os olhos e se deixou beijar longa e terna­mente por João Vítor. Como que despertados por aquele beijo, seus corpos se abraçaram com tal força que era como se suas almas estivessem esperando há séculos por aquele reencontro. Para João Vítor, era como se jamais houvessem existido outros lábios no mundo senão aqueles, dos quais ele parecia conhecer cada recan­to. Para Lenita, o beijo tinha gosto de saudades. Saudades de um tempo em que fora profundamente feliz, um tempo de que ela já nem se lembrava mais que existira. Somente mais de uma hora de­pois, os dois conseguiram se largar, com muita dificuldade.

E agora? Como é que eu vou explicar isso para as crianças? -disse ela, sem conseguir parar de sorrir.

Eu te ajudo. Depois que a gente se casar, eles se acostumam-respondeu ele.

Casar? Você não está falando sério... - admirou-se ela, com os olhos brilhando de felicidade.

Acho que eu nunca falei tão sério em toda a minha vida - ga­rantiu ele. - No fundo, agora eu tenho a certeza de que eu sempre te amei. Só não podia admitir isso antes por causa do Alberto...

- Meu Deus! O Alberto! Será que ele era...

João Vítor tapou-lhe a boca delicadamente com a ponta dos dedos, antes de beijá-la mais uma vez.

- Não pense mais nisso - pediu ele, após o beijo. - Dona Cata­rina me disse que não é bom a gente ficar fazendo conjecturas so­bre o passado, e que Deus nos concede o esquecimento justamente para que não venhamos a sofrer com essas lembranças. Depois, não dá pra ter certeza de nada...

-A única certeza que eu tenho agora é a de que eu te amo e quero ficar com você pelo resto da minha vida - disse Lenita, beijando-o novamente.

No dia seguinte, Lenita acordou cedo e pôs-se a arrumar a casa. Trouxe todas as plantas da área para a sala, mudou alguns móveis de lugar, pendurou na parede algumas casinhas pintadas que comprara numa feirinha de artesanato recentemente. Sen­tia-se tão feliz que não conseguia parar de cantar.

Juliana e Felipe acordaram com o barulho do martelo e corre­ram até a sala para ver o que estava acontecendo.

O que você está fazendo mamãe? - quis saber Felipe.

Nossa! A sala ficou o máximo - exclamou Juliana.

- Reformas, queridos. Ontem descobri que é uma bênção a gente estar vivo neste mundo, se modificando a cada minuto, e, a partir de hoje, quero aproveitar cada minuto desta bênção! - res­pondeu Lenita, enquanto pendurava a última casinha na parede.

-Você está diferente, Lenita... - observou Juliana.

-Acho que ela acordou mais bonita - complementou Felipe.

-É que hoje estou muito, muito feliz! - disse Lenita, abraçan­do os dois.

-Aconteceu alguma coisa? - desconfiou Juliana.

- Bem, acontecer, aconteceu... - rodeou Lenita, enquanto procurava as palavras para contar a verdade aos dois.

- Fala, Lenita! - incentivou Juliana.

- Bom... Não sei como vou dizer isso para vocês, mas ontem, quer dizer... O João Vítor, ele...

-Já sei! - comemorou Felipe - Você vai se casar com o tio João Vítor!

Lenita engoliu em seco. Não esperava que Felipe deduzisse tão depressa.

E verdade, Lenita? - perguntou Juliana, séria.

Você ficaria chateada se fosse? - arriscou Lenita.

Oba! - gritou Felipe, agarrando as pernas da mãe.

Claro que não! - disse Juliana sorrindo. - Para dizer a verda­de, outro dia, vendo vocês dois conversando, eu bem que pensei nesta hipótese. Que legal...

Nossa! - respirou Lenita aliviada. - Então quer dizer que vo­cês não estão bravos comigo?

E por que nós ficaríamos? - respondeu Juliana, abraçando-a com carinho - Você não podia ficar viúva a vida toda. Você não tem nem trinta anos!

Ah, no começo eu fiquei com um pouquinho de ciúmes de vocês dois - confessou Felipe com um olhar matreiro -, mas depois daquele dia em que o tio veio aqui quando eu estava doente, eu não fiquei mais... Fiquei até querendo que ele fosse nosso pai pra sempre...

Nosso outro pai pra sempre, né, Felipe? - consertou Juliana.

Claro, sua boba! - respondeu ele, metido.

Obrigada, crianças! Vocês não imaginam a alegria que eu es­tou sentindo... Foi tudo tão mágico, tão de repente... - confiden­ciou Lenita com os olhos brilhantes.

Pouco depois, na mesa do café da manhã, Juliana abandonou o pão no prato e fixou os olhos no teto, esforçando-se para não chorar. Lenita logo percebeu:

O que houve, Juliana? Você ficou triste de repente...

E que eu estava pensando uma coisa... - ensaiou ela.

Aqui em casa vive todo mundo pensando - reclamou Felipe.

O que foi, meu amor? - quis saber Lenita.

- É que... Depois que você se casar com o tio João Vítor... eu... eu vou poder continuar morando aqui com vocês?

Lenita correu a abraçá-la:

- Que bobagem é essa? E claro que sim. Você não é a minha fi­lhinha?

Juliana sorriu, mas Felipe ficou com ciúmes:

- E eu, mãe?

Ora, vocês são dois bobões - respondeu Lenita, puxando-o também para o abraço.

Sabe - disse Felipe, satisfeito -, desde que o papai morreu que eu não via você tão feliz!

Desta vez foi Lenita quem ficou séria. Seus olhos estavam cheios de lágrimas quando ela perguntou:

-Vocês acham que ele ia ficar muito triste comigo se soubesse?

- Claaaaro que não! - respondeu Felipe, com sua desenvoltu­ra habitual. - Aposto que ele também já deve ter arrumado uma namorada lááá no céu onde ele mora. Depois, o tio João Vítor sempre foi nosso pai também, não é Ju?

As duas sorriram.

Falando sério - acrescentou Juliana. - Acho que, se o papai pudesse escolher alguém para casar com você, ele certamente ia escolher o tio João Vítor. Os dois sempre foram tão amigos...

É... - ponderou Lenita. - Talvez vocês tenham razão...

Naquele dia, depois da aula, Juliana também tomou uma de­cisão muito importante. Pegou um ônibus na porta da escola e se­guiu rumo à casa da mãe.

Foi a faxineira quem abriu a porta para Juliana. Selene estava deitada num quarto escuro, curando-se da ressaca do dia anterior. Estava muito abatida. Ao ver a filha, seus olhos se encheram de lá­grimas.

Vim conversar com você - disse Juliana.

Com certeza vai me dar uma bronca... - respondeu Selene, deprimida.

Não, eu não vim brigar com você - tornou Juliana, sentan­do-se na cama a seu lado. - Vim fazer uma proposta.

- Uma proposta? - surpreendeu-se Selene.

  1. Acho que não adianta nada você ficar me chantageando, dizendo que vai falar com o advogado para me obrigar a morar aqui com você e...

Eu sei que você nunca vai me aceitar como sua mãe de verda­de, não é mesmo?

- Não, não é mesmo - rebateu Juliana, de olhos baixos. - Eu quero te considerar como minha mãe de verdade. Apesar de você não acreditar, no fundo do meu coração eu gosto de você. Só que eu acho que ser mãe não é simplesmente morar junto. Ser mãe é ser amiga, dividir segredos, ajudar nas horas difíceis e até bri­gar de vez em quando... Mas a gente não é isso, você me enten­de? A gente nunca conviveu como mãe e filha de verdade...

Selene chorava, sem saber o que dizer. Juliana, porém, continuou:

- A proposta que eu quero te fazer é a seguinte: que tal se a gente passasse a se encontrar toda semana, toda quarta-feira por exemplo? Daí a gente podia bater papo, passear no shopping, sei lá... Fazer essas coisas de mãe e filha... Eu podia até dormir aqui de vez em quando...

Selene abraçou Juliana comovida e, pela primeira vez na vida, as duas choraram juntas, sentindo-se amadas uma pela outra.

Tá - disse Selene fungando -, eu aceito a sua proposta. Acho que eu nem merecia ter uma filha tão legal como você, mas prome­to que vou me esforçar para ser pelo menos um pouquinho pareci­da com uma mãe de verdade, tá bom assim?

Hum, hum - respondeu Juliana, ainda emocionada, acari­nhando os cabelos da mãe. - A única coisa que eu queria era que você não bebesse mais daquele jeito...

Está certo - concordou Selene, envergonhada. - Eu prometo.

E também queria que você não usasse mais esse anel - conti­nuou Juliana, olhando para o anel de pedra preta, que Selene ha­via deixado em cima da mesinha de cabeceira.

O anel? - perguntou Selene enxugando as lágrimas. - Mas eu já tenho esse anel há tanto tempo... O que há de errado com ele?

Não sei - respondeu Juliana -, tem alguma coisa que me in­comoda, me faz lembrar de um monte de vezes que eu te vi e você não estava legal...

Bom - Selene deu de ombros -, se ele te incomoda tanto, pode jogar fora...

Não - disse Juliana pegando o anel. - Eu vou guardar comi­go para me lembrar pra sempre desse dia. Posso?

- Acho melhor não - discordou Selene, tirando-lhe o anel das mãos. - Eu realmente fiz muitas bobagens enquanto usava este anel, ele não vai ser uma boa recordação. O melhor mesmo é jogar fora.

Dizendo isso, ela lançou o anel numa pequena latinha de lixo para papéis que havia no quarto. Depois, abriu a gaveta da mesi­nha de cabeceira, de onde tirou uma pequena caixinha. Dentro dela havia um delicado anel de ouro.

- Tome - disse ela colocando-o no dedo de Juliana -, fique com este para você. Meu pai me deu quando eu tinha a sua idade, pouco antes de você nascer. Foi o último presente que ele me deu...

Juliana sorriu comovida e beijou o anel. Era o primeiro pre­sente que ganhava da mãe. Iria usá-lo para sempre. As duas se abraçaram mais uma vez e Juliana se despediu, prometendo voltar na quarta seguinte.

Quando saiu de lá, sentia como se houvesse removido uma pedra do fundo de seu coração. Pensou em procurar Paulo, já que estava no mesmo prédio, porém a vontade de voltar para casa foi mais forte. Estava doida para contar a Lenita e João Vítor aquele encontro tão maravilhoso que tivera com a mãe. Além do mais, Paulo ficara de ligar para ela naquela noite e ela achou que seria mais elegante ficar em casa esperando pelo telefonema do que ba­ter pessoalmente na porta do apartamento dele.

Na verdade, assustada com os próprios sentimentos, Juliana estava começando a sentir um certo medo de Paulo. Só de pensar que ele poderia se declarar para ela, de uma hora para outra, sen­tia dor de barriga.

Pensando assim, atravessou depressa a portaria do prédio e correu para o ponto do ônibus, torcendo para que ele não apare­cesse em seu caminho.

 

Alberto tomava seu café da manhã diante da janela de seu quarto no instituto de tratamento, quando ouviu três batidinhas na porta. Já estava praticamente recuperado e gostava muito de receber visitas, sobretudo de dona Amaziles, com quem agora adorava conversar. Tia Geninha e Laerte, o rapaz que conhecera nos jardins do hospital antes de sua 'aventura' na Terra, também costumavam vir sempre visitado.

E a senhora, dona Amaziles? - perguntou ele, enquanto a porta se abria.

Não - respondeu uma voz de homem. - Mas espero que também seja bem-vindo...

Primo Pedro! - sorriu Alberto, correndo a abraçá-lo. - Que bom revê-lo!

Vejo que já está pronto para sair deste quarto e iniciar uma nova vida! - observou Pedro.

Sim - concordou Alberto, satisfeito. - Não vejo a hora de co­meçar a ser útil. Dr. Márcio prometeu me dar alta até o final desta semana.

- E você já tem onde morar? - perguntou Pedro.

Dona Amaziles e tia Geninha me ofereceram um quarto na casa onde elas moram, aqui mesmo, no alojamento dos trabalha­dores do instituto. Fiquei até emocionado com o convite, elas duas são duas mãezinhas que eu ganhei na espiritualidade... E por falar nisso, você tem tido notícias de meus pais?

Sim - disse Pedro -, esta, aliás, foi uma das razões por que vim. Estive com a minha mãe por estes dias e ela me trouxe um re­cado da sua. Tia Eudóxia manda dizer que tem orado muito por você e que, assim que for possível obter uma licença, ela virá visitá-lo. Mas que você não pense que ela o esqueceu. Apenas não veio ainda porque anda muito ocupada com os trabalhos de auxílio a seu pai no umbral.

Ah, minha mãe querida... Sempre preocupada comigo e com papai... Tomara que um dia eu possa evoluir o suficiente para viver na mesma colônia que ela... E o papai também, é claro...

Se fizermos a nossa parte, logo, logo, esse dia chegará - ga­rantiu Pedro. - Mas, mudando de assunto, a outra razão que me trouxe até aqui é um rapazinho que vive lá na minha colônia e que estava ansioso para vê-lo.

- Um rapazinho? - estranhou Alberto.

- Sim, ele está lá fora, esperando que eu o chame. Posso man­dá-lo entrar?

- Claro! - concordou Alberto, curioso.

Poucos instantes depois, Pedro introduzia no quarto um jo­vem, de quatorze anos aproximadamente, muito sorridente.

- O senhor ainda se lembra de mim, 'seu' Alberto?

Ao ouvir isso, os olhos de Alberto se encheram de lágrimas e a voz quase não saiu, de tanta emoção. O rapaz era Pingolim, um dos menores que vivia na porta do metrô e que, meses antes de sua morte, fora brutalmente assassinado de madrugada por um gru­po de policiais.

Eu jamais poderia esquecer esse sorriso, Pingolim. Como você está forte e bonito. Sem querer ser irônico, como a morte te fez bem...

Sabe, seu Alberto, o que me fez bem foi a minha última en­carnação, e principalmente pessoas como o senhor, que me ensi­naram a importância do amor e da gente não guardar revolta den­tro de nós. Foi por isso que eu vim aqui. Para lhe agradecer por todo o carinho que recebi do senhor. Pensando nesse carinho, eu tive forças para perdoar os homens que me fizeram passar por aquela experiência tão dolorosa, a qual, no entanto, era necessária para a minha evolução - admitiu, humilde, o rapaz.

Eu é que te agradeço por estas palavras - respondeu Alberto com o rosto banhado em lágrimas - e peço a Deus que te abençoe hoje e sempre.

Depois que Pingolim e Pedro se despediram, Alberto ainda passou muito tempo sob o impacto daquela emoção, pensando como era misericordioso aquele Pai que ele tanto havia questiona­do em sua última existência. Quantas oportunidades Ele nos dava a cada existência para que pudéssemos nos aprimorar moral e es­piritualmente através da prática do bem... No fim do dia, quando o dr. Márcio chegou para ver como ele estava passando, havia to­mado uma decisão:

Doutor, eu gostaria de trabalhar com as crianças carentes que desencarnam na Terra. Será que isto é possível?

Mas isto é ótimo! - comemorou o dr. Márcio. - Não sei se você sabe, mas aqui mesmo, neste hospital, temos uma área reser­vada para essas crianças, onde até bem pouco tempo atrás Geni­nha atuava como coordenadora. Se eu não me engano, Amaziles está para assumir suas funções ainda esta semana, já que Geninha encontra-se ainda bastante ocupada na Terra...

E o senhor acha que elas me aceitariam como membro da equipe? Olha, eu prometo me empenhar o máximo em qualquer função, por mais humilde que seja...

-Vamos falar com elas. Se depender de mim, você já pode co­meçar amanhã. Acredito que a resposta das duas será a mesma, afinal, seja o aceitaram em sua própria casa quase como um filho, com toda certeza ficarão orgulhosas do seu pedido.

Alberto abraçou o médico, agradecido. Jamais imaginara que alguém pudesse ser tão feliz na espiritualidade quanto ele estava se sentindo naquele momento.

 

Seis meses depois, no dia em que Juliana completava dezes­seis anos, Lenita e João Vítor se casaram. Avessos a muita badala­ção, os dois optaram por uma cerimônia simples, realizada no novo apartamento que João Vítor comprara para morar com a fa­mília. Dona Catarina e o sr. Fernandez Ferraz foram os padrinhos e presentearam o casal com um bonito jogo de cozinha que, além dos armários, incluía também um fogão de seis bocas, uma gela­deira duplex e um liqüidificador.

Dona Catarina resistira bastante à compra de um presente tão caro, mas o sr. Fernandez insistira em arcar com todas as despesas sozinho, exigindo apenas que ela assinasse o cartão que ele redigi­ra, expressando seus sinceros desejos de felicidade aos noivos. Como fizesse questão de dar pelo menos uma lembrança àqueles amigos a quem tanto amava, dona Catarina então resolveu com­prar o liqüidificador e enviá-lo junto com o jogo de cozinha.

Por mais que tentasse encontrar explicações em seus livros es­píritas, dona Catarina não conseguia entender o que ocorrera com o sr. Fernandez depois daquele dia em que João Vítor surpre­endera a todos com seu discurso sobre Alberto. Não contente em homenagear o antigo funcionário com uma polpuda gratificação, a qual entregara pessoalmente à Lenita e às crianças, o velho soli­tário encantou-se com a doçura de Juliana e Felipe e passou a visi­tá-los com freqüência. Olhando-o agora, sentado no sofá com Felipe no colo, dona Catarina não reconhecia mais aquele homem ranzinza para quem trabalhara durante tantos anos.

Para seu espanto ainda maior, poucos minutos depois, ele le­vantou-se do sofá e, após cochichar qualquer coisa ao ouvido de Felipe, veio tirá-la para dançar. Viúva há tantos anos, dona Catarina nem se lembrava mais do que era dançar, mas ele mostrou-se tão gentil que ela não teve como resistir.

A festa estava muito animada. Embora os pais de Lenita não tivessem podido vir da Inglaterra, a casa estava lotada de amigos do casal. Além do pessoal do escritório e da editora onde Lenita trabalhava, os dois haviam convidado também os colegas do curso de estudos de mediunidade, que agora freqüentavam assidua­mente. Lenita e João Vítor haviam se encontrado no espiritismo. Assistiam sempre às palestras da sessão aberta ao público, aos do­mingos, às segundas realizavam o estudo do evangelho no lar com Juliana e Felipe, às terças freqüentavam a reunião de estudos me­diúnicos. As sextas à tardinha ainda trabalhavam na cantina do centro, integrando a equipe que preparava a sopa para os pobres, a qual atendia a muitos menores carentes.

- Nós recebemos tanta ajuda nesta casa que tudo o que fizer­mos para retribuir será pouco. Além disso, trabalhar na sopa para os pobres foi a maneira que encontrei para homenagear o Alberto. Chego a sentir sua presença a meu lado cada vez que estou servin­do uma criança carente - costumava dizer Lenita.

Juliana também não perdia uma reunião da mocidade espíri­ta, nos sábados à tarde, onde havia conquistado uma animada tur­ma de amigos, os quais, assim como Paulo, ajudavam também na evangelização infantil.

Talvez por ciúmes da afinidade de Juliana com seus novos amigos, Paulo fosse o único da festa que não parecia satisfeito. Na verdade, desde a época em que Lenita e João Vítor haviam assu­mido publicamente seu namoro, Paulo e Juliana continuavam vi­vendo intensamente aquela brincadeira de gato e rato.

Enquanto quase todos os convidados dançavam em torno de Lenita e João Vítor, ele mantinha-se calado e triste num canto do sofá, apertando nas mãos um pequeno embrulhinho de papel colo­rido. Selene percebeu que ele não estava bem e foi ao seu encontro:

E aí, Paulo? Por que não está dançando com o resto do pessoal?

Você também não está - observou Paulo, cabisbaixo.

- Ah... E que eu tô me sentindo meio perdida no meio desse pessoal, sabe como é que é, rnon chère? Não é a minha turma... Mas você...

De tão chateado, Paulo nem percebeu que Selene finalmente aprendera com Juliana a pronunciar corretamente o adjetivo francês de que tanto gostava. Depois de alguns minutos em silên­cio, ele desabafou, nervoso:

- Puxa, Selene, você acha justo isso? Eu vivo paparicando a Juliana, fui... fui eu que apresentei todo mundo pra ela e agora ela nem liga pra mim...

Selene leu em seus olhos a paixão que ele sentia pela filha e teve pena dele. Sabia que Juliana não era indiferente a Paulo, em­bora não admitisse seus próprios sentimentos. Lembrou-se, então, dela mesma, na idade de Juliana, e resolveu dar uma mãozinha:

Sabe o que é, Paulo, eu acho que a Juliana está com medo de assumir o que ela sente por você...

Ela só foge de mim, Selene! Sempre que acaba a reunião, ou ela sai correndo, ou então fica de segredinho com as meninas do grupo...

Mas você também nunca mais ligou pra ela... - contempori­zou Selene.

E ela foi na sua casa várias vezes e nunca passou nem pra me dizer um oi! - cobrou Paulo.

Selene coçou a cabeça, pensativa. Por que os adolescentes sempre tinham que complicar tanto as coisas? Mais do que nin­guém, ela tinha a certeza de que Juliana estava apaixonada por Paulo e ele por ela, mas por que os dois não se entendiam?

- Escute, Paulo - arriscou ela. - Porque você não toma cora­gem, agarra de uma vez a Juliana e diz pra ela tudo o que você está sentindo?

E... e... eu? - assustou-se Paulo. - Ma... mas e se ela não gos­tar e nunca mais quiser falar comigo por causa disso?

Você acha mesmo que ela não ia gostar? - provocou Selene. - Bom, eu já falei o que eu tinha para dizer. Aliás, já falei até mais do que devia. Agora é com vocês, mon chère...

Ela se dirigiu à cozinha e ficou observando Paulo de longe. Viu quando ele se levantou decidido e caminhou até Juliana, que dan­çava no meio do grupo de amigos. Paulo a olhou por algum tempo, até que um dos rapazes do grupo entrou na roda com Juliana e, não conseguindo se conter de ciúmes, ele virou-se de costas e caminhou até a porta. Prevendo o que estava prestes a acontecer, Selene cor­reu até Juliana e puxou-a da roda para um canto da sala.

Mãe? O que houve? - perguntou Juliana, ofegante.

O Paulo está indo embora.

- O que tem demais? Ele nem falou comigo quando chegou... - respondeu ela, com despeito.

-Vocês são dois tolos - suspirou Selene. - E ele está chateado porque você não falou com ele.

- Mas o aniversário é meu! - protestou Juliana.

- E por acaso a Lenita não te ensinou que quando a gente dá uma festa tem a obrigação de receber os nossos convidados?

- Mas... - tentou argumentar Juliana.

-Você é quem sabe, Juliana. Ele está abrindo a porta. Sincera­mente, se eu fosse ele, nunca mais te procurava...

Juliana olhou para a porta e viu que a mãe estava dizendo a verdade. Olhou mais uma vez para Selene e decidiu correr até lá. Paulo já estava entrando no elevador quando ela gritou por ele, que se virou de imediato.

- Eu não acredito que você está indo embora sem ter me dado nem os parabéns! - reclamou Juliana, enquanto se aproximava dele.

-Você quer mesmo que eu te dê os parabéns? - desafiou Paulo.

- Claro que sim, eu...

Juliana não teve tempo de terminar a frase. Paulo agarrou-a ali mesmo, na porta do elevador, e sapecou-lhe um demorado bei­jo na boca, ao qual ela correspondeu com paixão.

- Puxa... - suspirou ela, envergonhada, depois do beijo - Eu...

- Trouxe isso para você - conseguiu dizer ele, estendendo o pequeno embrulhinho, que Juliana pegou e rasgou ansiosa.

Era um delicado colar de contas azuis.

- Paulo, mas é lindo... - admirou-se Juliana.

- Quer namorar comigo? - perguntou ele, olhando fixamen­te para seus olhos.

Juliana enlaçou-o num abraço e os dois começaram a se beijar novamente até que foram despertados por uma salva de palmas que vinha da porta do apartamento. Selene, Lenita, João Vítor, Fe­lipe, dona Catarina e todos os convidados aplaudiam satisfeitos o feliz desfecho do casal.

Embora não pudessem ser vistos pelos presentes, um grupo de espíritos também comemorava a felicidade da família. Eram os tra­balhadores da Casa Espírita Maria de Nazaré, que lá estavam para prestigiar a festa com seus fluidos de paz e de luz. Entre eles esta­vam tia Geninha e Alberto, além do dr. Márcio e de dona Amaziles, os quais tinham vindo especialmente para acompanhar Alberto em sua primeira visita autorizada à crosta. Findos os aplausos, o dr. Márcio convocou Alberto e dona Amaziles para que retornassem ao plano espiritual:

E hora de partirmos. Alberto ainda não se encontra em con­dições de permanecer por muito tempo aqui na crosta.

Não tenho nem palavras para agradecer a vocês por terem me trazido até aqui... - disse Alberto, emocionado.

Agradeça a você mesmo - disse o dr. Márcio. - Caso não ti­vesse merecimento, mesmo que quiséssemos, não poderíamos realizar seu desejo.

E verdade - complementou dona Amaziles. - Alberto tem se revelado um excelente colaborador no plano espiritual. Não sei o que seria de mim sem a sua ajuda no atendimento aos irmãozi­nhos carentes que chegam à colônia!

Sem contar o empenho com que vem se dedicando aos estu­dos, não é mesmo, dr. Márcio? - acrescentou tia Geninha. - Sim, Alberto, estamos todos muito orgulhosos de você! Quem sabe em breve não poderei ter você como ajudante aqui na Terra?

Alberto abaixou a cabeça, envergonhado. Sabia que, por en­quanto, não poderia auxiliar os seus, pois encontrava-se ainda en­tre os necessitados de ajuda. Olhou mais uma vez com ternura para aqueles a quem tanto amava e sumiu no espaço, na compa­nhia de seus amigos espirituais.

 

No dia seguinte, Alberto estava cuidando dos jardins da casa onde vivia em companhia de dona Amaziles e de tia Geninha, no plano espiritual, quando foi surpreendido pela visita de Laerte e do dr. Márcio. Os dois mostraram-se surpresos com a beleza das flores que Alberto estava plantando na terra.

- São girassóis - explicou ele. - Chegaram esta manhã, envia­dos por Lenita e Juliana.

- Elas sempre te mandam flores? - quis saber Laerte.

- Pelo menos uma vez por semana - confirmou Alberto. -Estão vendo aqueles vasos na entrada da casa?

Os dois olharam para a soleira da porta, onde havia dezenas de vasos de flores coloridas, entre os quais dois de flores amarelas, quase iguaizinhos.

- São lindos - observou Laerte.

Quase todos foram elas que me mandaram. Menos aquele primeiro, de flores amarelas, que recebi quando ainda estava no hospital. Aquele veio de João Vítor.

Daquele eu me lembro - afirmou o dr. Márcio. - Aliás, dos dois amarelos... Fui eu quem trouxe o segundo para cá, na época em que você andava perambulando por sua antiga residência...

E afinal, como foi a festa? - interrompeu Laerte, notando o constrangimento de Alberto. - Estou ansioso para saber...

O dr. Márcio ainda não te contou? - estranhou Alberto.

Não quis te tirar esse prazer - emendou o dr. Márcio.

-Ah, foi maravilhoso... - recordou-se Alberto. - Juliana esta­va linda, parecia até uma princesinha... Agora está namorando com Paulo.

Soube que é um bom rapaz - considerou Laerte. - E Selene? Como estava?

Achei-a bem melhor - comentou Alberto. - Parece mais tranqüila, mais centrada. A convivência com Juliana está lhe fa­zendo muito bem, as duas estão se tornando muito amigas. Ape­nas lamento que ela continue saindo com aqueles seus amigos da alta sociedade... E quejamais tenha aceitado um convite de Julia­na para ir ao centro...

-Amigos - interferiu o dr. Márcio -, as pessoas não mudam da noite para o dia. A verdadeira transformação se opera lentamen­te, e é sempre conduzida pelo amor. Tenho certeza de que, na me­dida em que for se sentindo fortalecida pelo amor de Juliana, Se­lene também acabará por abandonar seus antigos hábitos...

- O senhor tem razão - refletiu Alberto. - Como diz em O livro dos espíritos, todo homem se desenvolve por si mesmo, natural­mente. Mas nem todos progridem simultaneamente e do mesmo modo, cabendo aos que estão mais adiantados a tarefa de auxiliar a evolução dos mais atrasados...[4]

Exatamente - concordou o dr. Márcio. - Vejam o caso de Xantipa, por exemplo. Ele demorou quase um século para reco­nhecer seus erros do passado.

Nossa, quanto mais converso com vocês, mais eu percebo o quanto ainda me falta aprender - considerou Laerte.

E por falar em Xantipa - quis saber Alberto -, o senhor tem notícias dele?

Ele está se recuperando em um posto de socorro localizado no umbral. Pediu para reencarnar como filho de Paulo e Juliana, quando os dois se casarem.

- E o pedido foi aceito? - perguntou Laerte.

-Ainda não - informou o dr. Márcio -, mas é provável que seja. Xantipa está se preparando para isso. De qualquer forma, acredito que Juliana e Paulo ainda vão demorar bastante a se casar...

E eu inicio meu estágio como enfermeiro na semana que vem - informou Laerte, todo orgulhoso. - Mas - continuou ele, di­rigindo-se a Alberto - e Lenita e João Vítor? Você não me contou nada sobre eles...

Lenita e João Vítor estão bem, estão muito bem... - afirmou Alberto, com os olhos distantes.

Agora me diga a verdade, Alberto - inquiriu Laerte, ven­do-o tão meditativo. - Você não sentiu nenhuma pontinha de ciú­mes ao vê-los juntos?

Mas que pergunta indiscreta, Laerte! - repreendeu-o o dr. Márcio.

Laerte já ia pedir desculpas quando Alberto, depois de pen­sar por alguns instantes, fez questão de responder:

- Não, Laerte, eu não senti. Primeiro, porque estou feliz por eles terem conseguido reconstruir, de uma maneira tão bonita, tudo aquilo que eu destruí tão levianamente no passado. Depois, porque sei que, aconteça o que acontecer, eu sempre ocupará um lugar especial no coração de cada um deles, já que, nesta última encarnação, todos nós nos amamos muito...

Laerte e o dr. Márcio sorriram, comovidos pela bela lição que Alberto aprendera. Este, porém, interrompeu os pensamentos de ambos, estendendo uma enxada para Laerte:

-Já que você ainda não iniciou seu estágio como enfermeiro, me ajude aqui... Estou disposto a plantar girassóis por todo este quintal. Quero cultivar um jardim de girassóis em homenagem a todos aqueles que amo, um jardim tão bonito quanto aquele que eu via da janela de meu quarto no hospital!

Mas eu não entendo - protestou Laerte. - Há tantas flores bonitas por aqui, uma infinidade de espécies que nem existe na Terra e você quer plantares justamente girassóis?

Sabe o que é, Laerte? - interveio o dr. Márcio. - Para Alberto os girassóis significam muito mais do que qualquer outra flor do plano espiritual, porque o fazem lembrar-se de sua família, não é verdade, Alberto? Além de que, os girassóis trazem em si uma sim­bologia muito especial. Como diz o nome, essas flores, de fato, viram-se para seguir o curso diário do sol, de leste a oeste. Da mesma maneira, nós deveríamos sempre canalizar nossas mentes e nossos pensamentos em direção a Deus, que é nossa fonte de luz maior, o verdadeiro sol de nossas vidas. Fazendo isso do nascer ao poente de cada uma de nossas existências, estaremos sempre evoluindo.

Alberto sorriu com admiração para o dr. Márcio e estendeu novamente a enxada a Laerte.

- Tudo bem, tudo bem. Não está mais aqui quem falou. A dona Amaziles e a dona Geninha certamente vão adorar essa idéia - respondeu ele, vencido, tomando a sua enxada.

 

Enquanto isso, na Terra, Lenita, João Vítor, Felipe e Juliana escolhiam o lugar mais florido da nova sala para botar um por­ta-retratos com a foto de Alberto. Felipe e Juliana optaram por co­locá-lo justamente embaixo do vaso de girassóis que Lenita ga­nhara de João Vítor naquela manhã.

 

[1]   O evangelho segundo o espiritismo, cp. XXIV. 11. FEB.

Idem, cap. 1: "Enfrentando a Realidade", p. 13.

[3] Nota da editora: a Mansão do Caminho é uma instituição modelar, criada e pre­sidida por Divaldo Franco, que abriga crianças órfãs em núcleos que mantêm o ambiente familiar.

0 livro dos espíritos, compilado por Allan Kardec. cap. VIII: "Da Lei do Pro­gresso", pergunta 779. Edição FEB.

 

                                                                                Lygia Barbiére Amaral  

 

                      

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