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O JARDIM DOS PRAZERES / Violet Winspear
O JARDIM DOS PRAZERES / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O JARDIM DOS PRAZERES

 

O baile anual na residência do embaixador, em Reza Shahr, foi o acontecimento social mais concorrido da temporada. Os convidados sussurravam pelos cantos que Tony Wilde ia levar a esposa numa viagem pelo deserto a fim de que o calor, as moscas varejeiras e as privações de todo tipo dessem cabo da jovem milionária que desposara alguns meses atrás, deixando-o dessa forma o único herdeiro da fortuna incalculável do avô, o "rei do caramelo", como era chamado entre os moradores de Manchester, onde estavam as principais fábricas de doces e de balas.

Contavam as más línguas que Tony desejava a liberdade a fim de poder reatar o caso interrompido com uma mulher que adorava os títulos de nobreza — como era o caso de Tony — quando vinham acompanhados de uma fortuna invejável.

Grace atendia perfeitamente às ambições do jovem lorde, uma vez que ela era a única herdeira de Jonas Tillerton, o avô de setenta e cinco anos, que sonhava há muito tempo em ter uma lady na família. Por isso, no ano em que Grace terminou os estudos na faculdade, Jonas empenhou-se em descobrir um noivo para a neta que estivesse disposto a satisfazer sua pequena vaidade.

— Ela continua virgem, mesmo depois de casada — co­chichou Anita Land no ouvido de sua amiga. — A arrumadeira contou que os dois não dormem na mesma cama desde que estão hospedados no hotel.

— Não me diga!

— Aliás, isso está na cara! Qualquer pessoa percebe que Grace continua tão inexperiente nesses assuntos quanto no primeiro dia em que casou com este patife.

— Tony não faz segredo para ninguém que prefere as mulheres maduras.

— Inclusive as passadas! — comentou Anita com uma gargalhada. — Ele é um malandro de primeira. Usou a pobre coitada apenas para entrar na fortuna do avô.

— Quem é o avó?

— Você não sabe, menina? O maior fabricante de balas e bombons de Manchester. Jonas Tillerton. Um comerciante que comprou um título de nobreza para a neta.

— Faz quanto tempo que os dois estão casados?

— Uns três meses, mais ou menos. Por quê?

— Coitadinha! Virgem todo esse tempo...

— Você ouvíu falar que ela cursou a mesma escola que a princesa Irene, da Grécia?

— Sim. As duas foram colegas de classe, embora Irene seja um ano mais velha que Grace.

— Psiu. Fale baixo. Ela está olhando para cá.

Grace estava circulando pelo salão de baile com um ves­tido branco de seda natural. O feitio era tão simples que ninguém podia imaginar que pertencia à coleção exclusiva de um grande costureiro francês. Mas a etiqueta famosa, costurada discretamente nas costas, estava lá para quem quisesse ver: Pierre Cardin. De olhos azuis e cabelos cas-tanho-claros, Grace tinha a expressão pensativa e tristonha, mesmo quando sorria. Por isso, ninguém sabia quando ela estava gostando ou odiando alguma coisa. Por momentos seu belo rosto de madona italiana era tão frio e reservado que chegava a incomodar.

— Você é mais fria que um peixe! — exclamou Tony com raiva na noite de núpcias. — Eu não faço nenhuma questão de tê-la como mulher.

— Nem eu faço a mínima questão de tê-lo como marido! — retrucou Grace na mesma moeda.

Tony passou a mão no robe de chambre e foi dormir no quarto ao lado. Ele bateu a porta com tanta força que acor­dou alguns hóspedes que dormiam no mesmo corredor.

— Vá embora e não volte nunca mais! — murmurou Grace para si mesma, enfiando-se embaixo do lençol.

Aqueles que a julgavam virgem, mesmo depois de casada, estavam absolutamente certos na sua suposição. Fazia exatamente três meses que saíra de braços da igreja com Tony e a única vantagem que obtivera no casamento era a dis­tância respeitável que mantinha do marido. Isso e a pro­messa de Tony de levá-la um dia para atravessar o deserto à procura do lendário Jardim de Sabá. Grace ouvira contar que, se alguém descobrisse esse jardim, encontraria a feli­cidade nos braços de um homem — porque fora ali que o rei Salomão passara as horas mais felizes de sua vida na companhia da rainha de Sabá.

Ela estava tomando um Campari, observando distraida-mente os casais que dançavam de rosto colado no salão de baile, quando um oficial aproximou-se e convidou-a para dançar. Grace sorriu educadamente, colocou o copo de Cam­pari em cima da mesa e deixou-se enlaçar pelo bonito rapaz com a mesma frieza com que as pétalas de uma flor são espremidas entre as páginas de um livro,

— Posso fazer uma pergunta? — disse Michel, após terem dado duas voltas em silêncio pelo imenso salão.

O sorriso dele era tão cativante e cerimonioso que ela foi obrigada a sorrir de volta.

— Quantas você quiser.

— O que se passa com vocês dois?

Grace encarou-o, surpresa. Michel, em geral, era de uma discrição a toda prova.

— Por que você diz isso?

— Você é a mulher mais bonita do baile. Mesmo assim, seu marido não a tirou para dançar nenhuma vez...

— Ah, você também notou?

— Mais alguém já fez essa mesma pergunta?

— Não, mas é isso que todos pensam.

— Eu ouvi dizer que os maridos não gostam de dançar com as respectivas mulheres.

— Pois se você fosse minha mulher, eu dançaria a noite toda com você. De rosto colado!

— Muito obrigada pelo elogio — comentou Grace com um sorriso no canto dos lábios.

— Não é elogio. É a pura verdade. Você é linda e eu queria tê-la em meus braços — acrescentou Michel com animação.

— Calma, Michel. Lembre-se de que eu sou uma mulher fiel ao meu marido.

— É isso o que eu não entendo! Tony é um malandro muito grande...

— Eu sei o que os outros comentam a nosso respeito. Dizem que Tony casou comigo interessado no dinheiro do meu avô.

— E não é verdade?

— Mesmo que seja, isso não tem a menor importância. A única coisa que conta para mim no momento é a viagem que vou fazer amanhã.

A música terminou naquela instante e Michel conduziu-a à varanda da sala, que se comunicava com o jardim. Grace respirou fundo o ar fresco da noite, impregnado com o perfume inconfundível dos pés de jasmim que subiam pelas colunas.

— Você não está com frio? — perguntou Michel quando Grace atravessou o gramado e foi se refugiar embaixo de uma palmeira. — Quer que eu vá buscar um agasalho?

— Não precisa muito obrigada. Eu estou acostumada a andar no sereno sem agasalho e gosto de sentir o frio da noite no corpo, da mesma forma que gosto de me tostar ao sol do meio-día.

— Você é uma mulher de contrastes.

— Exatamente — concordou Grace com uma risada. — Gelada e quente como poucas.

— Você pode ter o homem que quiser com esses seus olhos azuis, cor de safira.

— E você pode ter a mulher que desejar com sua cantada — acrescentou Grace, bem-humorada.

Caminharam um momento em silêncio por entre os can­teiros que formavam alamedas pitorescas no jardim. O per­fume ativo das espirradeiras sobressaía-se aos demais. Era amargo e doce, ao mesmo tempo, como se quisesse advertir as pessoas desprevenidas de que havia veneno na sua seiva. Grace tocou de leve nas folhas polpudas da plantas.

— De que me adianta isso se a mulher que eu quero...

— Já sei — Grace interrompeu com vivacidade. — Se você vai me fazer uma declaração de amor, como ontem à noite, eu vou ser obrigada a voltar para o salão.

— Desculpe. Foi sem querer. Eu sempre acho que você e Tony não combinam nada.

— Você tem toda a razão. Eu me casei com Tony unica­mente para agradar ao meu avô. Eu sei que agi mal, mas o que você quer? A gente acaba fazendo alguma coisa para contentar os outros, sobretudo por uma questão de gratidão. Vovô foi meu pai e minha mãe durante anos.

— Eu entendo.

— Quando ele me perguntou "Minha filha, por que você não se casa com um lorde? Eu gostaria de ter um título de nobreza na família...", o que eu podia dizer? Recusar? Depois de tudo o que ele fez por mim?

— Não, não podia.

— Tanto mais que Tony era simpático, bonito, conversador... Michel ouviu a explicação em silêncio.

— Quer dizer que vocês vão viajar amanhã cedo? — per­guntou após um momento.

— Sim. Essa viagem é uma aventura e uma busca, ao mesmo tempo. Eu estou louca para encontrar o Jardim de Sabá. Você já ouviu falar nessa lenda?

— Já. Contam que foi nesse jardim que Salomão encon­trou o amor. E você? O que você espera encontrar lá? A felicidade?

Grace voltou-se e encarou Michel no fundo dos olhos. O rosto dela estava muito pálido, banhado pelo luar, e as som­bras formavam manchas estranhas na sua face.

— Quem sabe? Afinal, faz pouco tempo que estamos casados...

— Você não ouviu dizer que Tony tem uma aventura com uma atriz de cinema?

— Já, mas não quero saber quem é!

— E você não tem medo?

— Do quê?

— De viajar sozinha com Tony?

— Eu não vou desistir dessa viagem por nada deste mun­do! — exclamou com vivacidade. — Esse foi o único presente de casamento que me agradou realmente.

— E se eu lhe disser...

— Eu sei o que você vai dizer — Grace interrompeu com impaciência. — Que eu sou uma louca varrida de enfrentar o deserto, que o calor é terrível durante o dia e que as noites são geladas. Sem contar que falta água o tempo todo e que os viajantes se dão por satisfeitos quando encontram um poço abandonado com um resto de água barrenta no fundo. Eu sei de tudo isso. Mesmo assim, acho que vale a pena correr todos esses riscos para conhecer o deserto. As cidades gran­des me deixam indiferente. Que graça tem visitar as mes­quitas e os bazares? Estou farta de ver as mesmas coisas em toda a parte. Tudo para turista ver... Eu quero passar um mês no deserto, viver na pele a existência de um nômade. E nada me fará mudar de idéia. Nada.

— Você fala como se o deserto fosse uma estação de águas — comentou Michel com um sorriso. — O deserto é perigoso ao extremo. Você nunca ouviu falar em centenas de viajantes que foram dados por mortos? Eles simplesmente desapare­ceram no ar... evaporaram.

— Sei disso. Mas o que você quer? Cada um tem sua mania. Eu sempre fui diferente das crianças da minha idade. Perdi meus pais muito cedo e fui criada pelo meu avô. Desde menina eu sonho com o deserto. Quando Tony sugeriu essa viagem, eu aceitei na hora.

— Foi Tony quem sugeriu essa viagem? — perguntou Michel com um ar de mistério.

— Foi, por quê? O que você está querendo insinuar?

— Nada.

Michel virou a cabeça para o lado e arrancou uma flor de jasmim que subia pelo muro da varanda.

— Nós já falamos demais de mim. Agora vamos falar um pouco de você. Conte-me uma novidade.

— Gosto de ouvi-la falar — disse Michel, apoiando-se no muro de pedras. — No fundo, você é uma mulher diferente das que eu conheço.

— Isso é influência do meu avô — disse Grace com uma risada. — Ele é a pessoa mais original que eu conheço.

— Você deve ter aprendido com ele que os homens são tremendamente egoístas.

— Você está sendo egoísta no momento — interrompeu Grace, encarando-o nos olhos.

— Meu caso é diferente. Eu sinto prazer em conversar com você, embora você mantenha uma distância respeitável de mim.

— Você tem razão, Michel. Todos dizem que eu sou tre­mendamente fria.

— Quer dizer que nunca vamos ser amigos íntimos?

— Nunca. Eu sou fria por natureza. Não sinto a mínima vontade de trair meu marido. Nem mesmo ao saber que ele flerta com outras mulheres nas minhas costas. Mas te­nho outras compensações — acrescentou Grace, dando o braço a Michel. — Vamos entrar? Tenho que acordar cedo amanhã e não quero dormir muito tarde.

Michel segurou-a de leve pelo braço.

—Grace, responda com franqueza. Você é feliz no casamento?

— Eu já me habituei com essa situação, Michel. Além dísso, há mais coisas na vida que o amor. No momento, estou curiosa para conhecer o ar puro e cristalino do deserto. Talvez seja um local perigoso, como você disse, mas duvido que seja mais perigoso que nossas cidades. Nós vivemos em plena selva, onde todos se devoram uns aos outros, sem a menor piedade. No deserto, pelo menos, há grandes ex­tensões de azul, de areia dourada sob o sol, de ventos fortes que movem as dunas de um lugar para o outro.

— Você não tem medo de ser assaltada?

— Ah, não me venha com essas histórias! — exclamou Grace com impaciência. — Já me advertiram dezenas de vezes de que os nômades são criaturas lascivas como animais no cio e que ficam loucos quando encontram uma mulher europeia. Fe­lizmente eu estou bem protegida. Tony é campeão de tiro e, embora não morra de amores por mim, não vai ficar de braços cruzados se nós formos atacados. Sobretudo porque ele preza muito a sua vida. Afinal, ele é um homem como os outros...

— Eu falo por experiência — insistiu Michel. — Eu já encontrei beduínos no deserto que não respeitam nada e que se comportam como verdadeiros animais.

— Eu acredito — disse Grace sem muita convicção.

— Além disso, o deserto é uma extensão imensa de terra, onde muitas coisas acontecem sem que ninguém saiba exa-tamente como foi...

— O quê, por exemplo?

— Você pode ser sequestrada e Tony morto e deixado no deserto, onde os ossos secarão como folhas caídas no chão.

— An, não exagere...

— Você é bonita, Grace, muito moça, de cabelos claros e olhos azuis, como duas contas. Isso é uma coisa muito rara entre os orientais. O que você faria se fosse raptada por um beduíno?

— Eu morreria de medo! — Grace exclamou com uma gar­galhada. — Sua pergunta me deixou toda arrepiada. Eu sei que tudo isso é verdade. Os beduínos são homens perigosos e não respeitam lei nenhuma, a não ser a própria vontade. Mas, e daí? Toda aventura tem seu risco. Não seria aventura se não fosse excitante! Além disso, Tony e eu não vamos viajar sozinhos por esse deserto afora. Fazemos parte de uma pe­quena expedição, com homens de toda confiança e que conhe­cem o deserto como a palma da mão. Por mais irresponsável que Tony seja, ele tem amor à vida. Ele já esteve no deserto antes e sabe os riscos que uma pessoa inexperiente corre.

— Mas será que ele está realmente interessado em pro­tegê-la? — perguntou Michel com ar de mistério. — Ou será que...

— Vamos, diga o que você está pensando!

— E um assunto delicado...

— Diga mesmo assim.

— Bem, eu ouvi dizer que Tony só teria a ganhar se você desaparecesse misteriosamente no deserto.

Grace ouviu o comentário em silêncio. Era impossível saber por sua fisionomia se ela tinha alguma desconfiança ou não nesse sentido.

— E o que mais?

— Dizem também que ele deseja reatar um caso interrompido.

— Ah, já sei de quem você está falando! Tony largou dela para casar comigo, não é isso?

— Isso mesmo. Por que você não leva uma pessoa de confiança nessa viagem? Eu posso pedir uma licença...

— Muito obrigada Michel, mas eu tenho que enfrentar sozinha essa situação. Quando me casei com Tony, tinha plena consciência dos riscos que estava correndo. Eu não tenho medo de viajar sozinha com ele. Bolas, afinal Tony é meu marido. Quem sabe se nós vamos encontrar a feli­cidade juntos? Nada é impossível...

— Deus queira, mas eu tenho minhas dúvidas. Por que você não me deixa acompanhá-la? Eu prometo me comportar corretamente.

— Impossível, Michel. Tony morre de ciúme de você. Michel beijou-a na palma da mão enquanto a fitava no

fundo dos olhos.

— Se eu não fosse um homem civilizado, eu a jogaria no chão e a possuiria à força. Depois dísso Tony não teria outra alternativa senão pedir o divórcio. Essa é a melhor maneira de encontrar a felicidade. Você é uma mulher ad­mirável, Grace, mas muito romântica para os dias de hoje.

— Pode ser. Talvez seja um traço de família.

— Quer dizer que você vai partir mesmo à procura do tal Jardim de Sabá?

— Vou. Eu acredito no destino. O que tiver de ser, será. Boa noite, Michel. A gente se vê amanhã, antes da partida.

Com a cabeça erguida e o porte gracioso de um modelo de moda, Grace afastou-se do jovem oficial sem voltar a cabeça para trás. A brisa que balançava as folhas das pal­meiras colou sobre as pernas o tecido leve da saia. Michel acompanhou-a um instante com a vista até Grace subir os degraus que levavam ao salão de baile.

Por mais que negasse aos outros, Grace sabia que a via­gem que faria no dia seguinte era extremamente perigosa. O perigo não estava tanto nas privações que podia passar no deserto quanto na companhia de Tony. Ela não amava o marido nem era amada por ele, mas era impossível dis­simular mais tempo a suspeita que não lhe saía da cabeça nos últimos dias.

Sob todos os aspectos, Tony só teria a ganhar se ela desa­parecesse misteriosamente no deserto. Os dois estavam casa­dos no sistema de comunhão de bens e, com a morte de Grace, ele entraria na posse da imensa fortuna do avô dela.

 

Naquela noite, antes de dormir, Grace terminou os preparativos da viagem. Após vestir o robe de chambre por cima da camisola, tirou do armário o culote cáqui que iria usar no dia seguinte, a camisa de linho cor-de-rosa e as botas de cano longo que faziam parte das compras que fizera na semana anterior numa loja de Reza Shahr.

Estava muito excitada e ligeiramente apreensiva com a viagem do dia seguinte. Sobretudo depois da conversa que tivera com Michel no jardim da residência do embaixador.

Era a segunda vez que Grace visitava o Oriente. A primeira fora na companhia do avô, quando tinha dezenove anos. Os dois deram a volta ao mundo e visitaram dezenas de cidades interessantes. Nenhuma delas, porém, agradou mais a Grace do que uma cidadezinha minúscula em Shiraz, onde ficaram hospedados na residência de um velho conhecido de Jonas.

Grace lembrou-se com saudade da bela casa persa que tinha uma fonte de mármore no pátio interno, semelhante ao claustro de um convento, onde os passarinhos iam beber água e bater as asas no calor do dia. Ela visitou o harém e ficou perplexa com o número de mulheres que viviam unicamente para satisfazer os caprichos do dono da casa. Além disso, aprendera alguns artifícios da sedução oriental, bem como a preparar um delicioso cuscuz à moda iraniana e uns bolinhos de semolina feitos com amêndoas, nozes e avelãs. Nessa mesma ocasião, foi convidada para um casa­mento magnífico que unia a filha única do califa com o filho de um grande proprietário de terra.

Havia um detalhe que ficara gravado na sua memória e que intrigava sua imaginação até hoje. Depois das bodas na mesquita mais bela e antiga da cidade, a filha do califa recebeu os convidados num enorme salão do palácio onde morava com o pai. A moca tinha uma coroa de jóias na cabeça e estava sentada como um ídolo numa cadeira de espaldar alto, en­quanto recebia dos convidados os presentes e os melhores votos de felicidade. Todos comentavam sua fortuna em ter casado com um rapaz muito rico, escolhido pelo pai, e que a noiva só ficara conhecendo algumas horas antes da cerimónia.

Em dado momento, ligeiramente tonta com a agitação das pessoas dentro de casa, Grace procurou refúgio no pátio interno do palácio e sentou-se num banco de pedra à sombra de uma árvore, ouvindo os cantos estridentes das cigarras e dos passarinhos. Em frente da fonte de mármore havia um canteiro de gerânios coberto de flores.

Fazia alguns minutos que ela estava ali quando sua aten­ção foi chamada para o canto melodioso que vinha de um ponto distante do jardim. Alguém, que ela não podia avistar de onde estava, cantava a parte de barítono de uma ária de La Forza del Destino, uma de suas óperas favoritas.

O cantor tinha uma voz excelente e entoava as palavras com uma convicção profunda, como se ele próprio acreditasse sinceramente na força do destino.

Momentos depois, ao voltar para o salão de festa no in­terior do palácio. Grace procurou descobrir, entre os convi­dados, quem era aquele que tinha uma voz tão bela e me­lodiosa. Mas havia tantos homens conversando pelas salas do palácio que tinha sido impossível localizar a voz que estava procurando.

Depois de escovar os cabelos e passar um creme de lim­peza no rosto, Grace foi até a sacada do quarto para admirar pela última vez a pequena cidade iraniana que se estendia aos seus pés. Reza Shahr fora no passado, e continuava sendo no presente, a pérola do Oriente, o último centro de civilização antes do deserto imenso que se estendia por cen­tenas de quilómetros. Como será a viagem amanhã?, Grace pensou, percorrendo com a vista as torres e minaretes que avistava da sacada do quarto. Ela encontraria o Jardim de Sabá ou tudo não passava de um sonho de criança?

Estava tão distraída nos seus pensamentos que não ouviu Tony entrar.

— Você já vai dormir? — perguntou ele da porta do quarto. Grace voltou-se com um movimento brusco do corpo, os

olhos arregalados.

— Ah, que susto você me deu! Não ouvi você entrar...

— O que você está fazendo aí?

— Estava me despedindo da cidade.

Tony estendeu a mão e tocou no tecido fino da camisola que aparecia por entre a gola aberta do robe de chambre.

— Essa camisola de renda fica bem em você. Combina com a pureza gelada de seus olhos azuis. As vezes eu tenho a impressão de que você não é deste mundo.

— Quem sabe se eu sou marciana? — disse Grace com um risinho irônico, afastando-se da sacada.

Tony ignorou o comentário. Estava no meio da passagem e ela não podia entrar no quarto antes que ele se retirasse dali.

— Hoje à noite, no baile, você parecia uma princesa. Os rapazes tinham medo de convidá-la para dançar. Eu nunca sei se você é terrivelmente tímida ou terrivelmente convencida.

— O que você queria? — perguntou Grace com impaciência. — Que eu fosse dada e sociável como sua amiguinha Sandra?

Sandra Lennox era a aventura que Tony tinha em Lon­dres e que não era certamente um modelo de virtudes.

— Eu só queria que você fosse menos reservada e um pouco mais humana — respondeu Tony, acentuando a úl­tima palavra, — Talvez eu devesse fazer uma última ten­tativa para seduzi-la.

— Por que você não tenta?

— Eu daria tudo para vê-la consumida pelo amor.

— Pelo sexo, você quer dizer.

— Você é o exemplo típico da esposa virgem e eu sou um idiota ao permitir que isso se prolongue por mais tempo.

— O que você sugere? — perguntou Grace, procuran­do conter a irritação crescente que as palavras de Tony provocavam.

— Amanhã nós vamos entrar no deserto. Talvez o sol ardente derreta o gelo que recobre seu coração.

— Eu estou com sono, Tony, e não tenho a menor vontade de conversar sobre o que vai acontecer durante a viagem. Já basta saber que nós vamos viajar junto.

— Você já arrumou suas coisas? — perguntou Tony, afas­tando-se da sacada e entrando no quarto.

— Já. Está tudo arrumado.

Tony deu um sorriso ao ver a roupa de montaria em cima da cadeira. Todas as vezes que os dois saíam a cavalo, ele comentava que Grace parecia um menino de culote e botas longas, com os cabelos presos e enfiados embaixo do chapéu de aba larga.

— Ótimo. Pelo visto, você não esqueceu nada.

— E você? — perguntou Grace, ao surpreender o olhar irônico dele. — Está ansioso para partir?

Se Tony tinha más intenções a respeito da viagem, não deixou transparecer nada. Sua fisionomia permaneceu inal­terada ao ouvir a pergunta sarcástica de Grace.

— Há sempre compensações para um casal que viaja junto, minha querida.

— Contanto que nenhum dos dois atente contra a vida do outro — acrescentou Grace com mordacidade.

Tony não se deu por achado.

— Exatamente. Contanto que os dois saibam levar a vida. O amor é apenas um obstáculo, em certos casos.

— Eu pensei que o amor tinha alguma coisa a ver com honestidade e respeito mútuo — disse Grace, impassível.

— Você se enganou, meu bem.

No íntimo, Grace estava perturbada pela maneira como Tony a observava e pela direção que a conversa tomara. Num certo sentido, Tony tinha razão. Ela negava a ele os direitos de marido e Tony podia fazer valer esses direitos quando os dois estivessem sozinhos no deserto, a muitos quilómetros da civilização. Pela primeira vez, depois que estavam casados, Grace sentiu um certo receio de Tony. Ele podia ser fraco e sem caráter, mas era um homem ex­tremamente viril. Sem deixar transparecer sua ansiedade, dirigiu-se para a cama grande de casal e puxou o lençol.

— Boa noite, Tony.

— Posso lhe fazer companhia?

— Não, muito obrigada. Eu prefiro dormir sozinha, como combinamos antes.

Tony ficou parado ao pé da cama e passou lentamente a mão pelos cabelos, como se quisesse prolongar por mais alguns minutos a conversa.

— O que você conversou com Michel?

— Nada muito importante.

— Ele disse que tem uma quedinha por você?

— Disse. Ele me fez uma declaração de amor em regra. Se havia alguma coisa que a deixava furiosa eram as in-

diretas de Tony sobre sua fidelidade conjugal. Grace jamais faltaria com a palavra dada. Tony, no entanto, tinha o prazer sádico de acusá-la de infidelidade, unicamente para provocá-la. Isso desculpava no fundo seu comportamento libertino e era um pretexto para as brigas que surgiam entre os dois.

— Ele está sabendo que você é fria como o monte Branco ou você mostrou a ele o outro lado da moeda?

— Ele não é obcecado com sexo, como você.

— Quem disse?

— Eu sei.

Tony deu uma risada sarcástica.

— Só faltava essa! Vocês dois manterem uma relação platônica... Boa noite, querida. Sonhe com os anjos.

Depois que Tony saiu, Grace continuou deitada por alguns minutos de olhos abertos, olhando fixamente para o teto. Franziu a testa ao lembrar que o colar de pérolas venezianas estava na gaveta da mesinha-de-cabeceira e que ela iria acabar esquecendo-o no hotel.

Sentou-se na cama, acendeu a luz de cabeceira e apanhou o colar na gaveta. Era tão comprido que batia nos joelhos. Grace dava por isso três voltas em torno do pescoço ou o usava como cinto, com o vestido azul-claro de musseline. Em geral, ela não usava nenhuma outra jóia, a não ser esse colar de pérolas venezianas, que pertencera à sua avó.

O dia amanheceu aberto. O azul-pálido das primeiras horas foi se tornando cada vez mais intenso, até atingir a luminosidade ofuscante do deserto. Grace pulou da cama, escovou os dentes e passou colónia no corpo todo, antes de vestir a roupa de baixo. Faria um calor medonho no deserto e ela queria estar perfumada para enfrentar o sol. Depois de vestir o culote e a camisa de mangas compridas, sentou-se diante da penteadeira e enrolou os cabelos no alto da cabeça, a fim de refrescar o pescoço, segundo o penteado que vira na revista francesa.

Ao mirar-se no espelho grande do armário, sorriu consigo mesma ao lembrar-se do comentário irónico de Tony. De fato, ela parecia um menino com traje de montaria. Talvez fosse melhor assim. Os orientais tinham preferência por mulheres bem femininas, cheias de corpo, e não prestariam nenhuma atenção a um adolescente montado a cavalo.

Após dar uma última olhada no quarto para ver se não esquecera nada em cima da cama ou da mesinha-de-cabe­ceira, Grace fechou a mala a chave e desceu ao andar térreo, onde Tony a esperava para tomar café.

Era bem cedo ainda e o salão estava praticamente vazio. Os dois foram servidos com a cortesia de sempre pelo garçom e Grace ficou boquiaberta com a refeição copiosa que Tony pediu.

— Lembre-se de que vamos passar muitas horas sem comer nada — disse Tony, surpreendendo seu olhar de espanto.

— Também, não precisa exagerar

Antes de mais nada, Tony pediu uma tigela reforçada de cereais com leite gelado e açúcar. Em seguida, comeu dois ovos estalados com bacon. Por último, comeu meia dúzia de torradas com geléia e tomou um suco de laranja grande.

— Nossa Senhora — exclamou Grace. — Até parece que você vai passar uma semana em jejum.

— E quem sabe se não vou? A gente nunca pode prever o que vai acontecer no deserto.

Tony estava com uma jaqueta de linho e de culote cáqui. Como sempre, os cabelos lisos e finos estavam impecavel­mente assentados na cabeça. Grace deu uma mordida num pêssego e lembrou-se do dia, em Cannes, em que os dois tinham passado por irmãos. Ela sorriu consigo mesma ao recordar o episódio.

— Conte para mim por que você está rindo.

O raio de sol que entrou pela vidraça bateu em cheio no alto de sua cabeça e os cabelos claros brilharam como se fossem fios de ouro.

— Lembra-se daquela vez em Cannes? Nós estávamos tomando lanche num bar, de frente para a praia, e aquelas duas mulheres pensaram que nós fossemos irmãos. "Ah, como eles são parecidos, meu Deus!" acrescentou Grace, imi­tando a pronúncia francesa das duas. — Lembra-se? Tony deu um sorriso melancólico.

— Elas tinham razão, no fundo. Você me trata exata-mente como se fosse minha irmã. Eu não entendo a quem você saiu... Não foi certamente a seu avô. Ouvi dizer que ele está mais ativo sexualmente do que nunca, aos setenta anos de idade.

Grace terminou de comer o pêssego em silêncio. Não estava disposta a aceitar a provocação, nem queria iniciar a viagem de mau humor. Mudou de conversa e fez um comentário sobre os cavalos que Tony tinha providenciado para os dois.

— Gostei muito do cavalo alazão que você escolheu para mim.

— Ele é arisco e manso, ao mesmo tempo. Sem contar que é um puro-sangue árabe.

Kharim, o guia da expedição, estava à espera deles na entrada do hotel.

— Bom dia, Kharim — disse Tony com animação ao fazer festa na cabeça do cavalo preto que o guia segurava pelo cabresto. — Eu queria apresentá-lo à minha esposa.

Kharim voltou-se para Grace e fez um movimento com a cabeça. Ela percebeu o olhar insolente que o homem lhe dirigiu, mas fingiu que não viu.

No fundo, estava muito excitada com a viagem para se deter nesses detalhes. A maneira como Kharim a olhava não ia interferir no seu prazer de conhecer o deserto. Na viagem que fizera com o avô, alguns anos atrás, os dois tinham se contentado em ver o deserto de longe, do alto do avião. Agora, no entanto, ela ia pisar de pés descalços na areia fofa que se estendia por quilómetros e quilómetros de distância. Ia respirar o odor penetrante que o vento trazia das dunas que se perdiam no horizonte.

Fora ela, aliás, quem convencera Tony a fazer essa via­gem, depois de ler a autobiografia de Rachel Leah Bourne, a mulher que vivera muitos anos no Oriente e que desaparecera em condições misteriosas. O manuscrito do livro de memórias tinha sido encontrado dentro de uma arca, na casa onde Rachel tinha morado uma época.

Grace, porém, nunca imaginou que Tony fosse concordar com a idéia. Era impossível saber o que se passava na cabeça dele. E até que ponto a sugestão de Michel era verdadeira.

— Você está realmente disposto a fazer essa viagem? Os dois estavam sentados à mesa do café, no salão vazio,

quando Grace fez essa pergunta. Tony observou-a um ins­tante em silêncio, como se, por uma fração de segundo, ele não soubesse o que responder.

— Imagine se eu vou deixar você ir sozinha!

— Por que não? Rachel Leah Bourne viajou pelo Oriente inteiro sozinha.

— Rachel é Rachel, e você é você.

— E com você, eu estou segura?

Por mais que Grace procurasse manter a voz serena, havia uma entonação especial na pergunta que levou Tony a abaixar a cabeça.

— Na medida do possível, sim.

Grace podia ser jovem e inexperiente, mas não era cega. Sabia que Tony não era nenhum anjo de bondade. Sua única dúvida consistia em saber até que ponto ele podia se revelar um marido cruel e ambicioso. Afinal, ela era a única herdeira de um homem riquíssimo.

 

A visão do oásis, pouco antes do pôr-do-sol, foi um prodígio de beleza. A caminhada fora extremamente fatigante devido ao calor intenso do dia. Pelas grandes extensões de areia amarela avistavam-se apenas, de quando em quando, alguns pés de vegetação rasteira que conseguiam sobreviver aos ardores do sol.

Grace desceu do cavalo com um suspiro e flexionou os músculos doloridos das pernas e dos braços. Perto dali, al­guns homens estavam erguendo as barracas, enquanto ou­tros reuniam gravetos e galhos secos para fazer a fogueira. Estava quase na hora do jantar.

Grace não estava acostumada a andar tantas horas em seguida a cavalo, muito menos sob um sol abrasador, e tinha a impressão de estar toda moída. Pouco depois, no entanto, sentiu-se mais bem-disposta, quando as primeiras brisas da tarde começaram a soprar e a temperatura de­clinou sensivelmente. Grace sabia que o deserto era uma terra de contrastes, mas nunca pensou que as noites fossem tão frias. Acompanhou atentamente o trabalho dos homens e sorriu quando as primeiras labaredas surgiram na lenha. Achmed, o cozinheiro, estava torrando os grãos de café num tacho grande de cobre. Depois de torrado, o café era moído à mão e jogado diretamente dentro da água fervendo, à maneira turca. O café feito desta forma era forte e incom­paravelmente mais saboroso que o café de coador, como Grace estava acostumada a tomar na cidade.

Nesse meio tempo, Tony estava providenciando o banho quente e os demais confortos de um acampamento impro­visado no deserto.

— Depois do jantar podemos jogar cartas aqui fora — disse ele, aproximando-se de Grace. — A noite ao ar livre é a coisa mais gostosa no deserto.

— Pelo jeito vai esfriar — comentou Grace.

— Você quer que apanhe seu agasalho?

— Por enquanto, não. Muito obrigada.

— Você acredita que o destino das pessoas esteja escrito nas estrelas? — perguntou Tony, levantando a cabeça para o alto e avistando os primeiros pontinhos brancos que bri­lhavam no azul negro do firmamento.

— E como a gente faz para saber?

— Ah, isso eu não sei. Podemos perguntar ao nosso guia. Ele parece mais instruído do que a maior parte dos nômades.

— Boa idéia. Eu vou perguntar a ele mais tarde. Só assim terei motivo para treinar meu francês.

— Você sabia que ele fala inglês?

— Não me diga! Ele é um homem culto, então.

— Ele fala umas três ou quatro línguas, inclusive italiano.

— Isso para um guia é um caso único.

— E. Olhe, eu já providenciei seu banho.

— Ah, muito obrigada. Estou morta de cansaço e um banho agora vai cair muito bem.

— Você sabia que os nômades passam semanas sem to­mar banho?

— Não!

— Eles passam areia no corpo e esfregam bem, com a palma das mãos. É por isso que a pele deles tem esse brilho característico.

— Você viu as mulheres? Elas são primitivas como se fossem contemporâneas do rei Salomão.

— Sem falar que são de uma indolência única. Elas não se afobam para nada... O acampamento pode estar pegando fogo que elas continuam andando bem devagar, balançando as cadeiras.

— Não se esqueça das pulseirinhas de prata que elas usam nas pernas — comentou Grace com uma risada. — Isso atrapalha o andar.

— Pois é. Mesmo no meio do deserto as mulheres não perdem o gosto pelos adornos e enfeites.

— É a vaidade feminina, meu caro.

— Algumas, por sinal, são muito bonitas por baixo do véu que lhes cobre a cabeça.

— Também é só isso que elas têm. Quanto ao mais, são tratadas como bichos. Quando o homem cansa da mulher, ele a enxota de casa como um cão vadio.

— Mas elas levam embora o dote — comentou Tony.

— O dote e os objetos preciosos que tinham quando sol­teiras. A lei muçulmana protege as mulheres nesse sentido.

— Você está entendida nesses assuntos...

— Quando eu viajei com meu avô, nós ficamos hospedados em casa de uma família rica e presenciamos um casamento típico. Eu visitei o harém das mulheres e fui informada de que a noiva fora escolhida desde pequena para casar com o tal fulano. Há porém uma cláusula no casamento, segundo o qual a mulher fica na posse de todos os bens ou objetos de valor que tinha em solteira ou que ganhou de presente. As pulseiras de prata que você viu nos tornozelos pertencem a essa categoria de bens femininos.

— São inalienáveis, por assim dizer.

— Isso mesmo. Os maridos conservam as mulheres para não perder esses bens. É essa a única garantia que as pobres coitadas têm.

— Isso é uma indireta? — perguntou Tony, com um sor­riso sarcástico.

— Não, eu não estava pensando em nosso caso.

— Você está arrependida de ter casado comigo? Grace ficou surpresa com a pergunta inesperada e hesitou

um segundo antes de responder.

— Nem me fale! — disse por fim com uma risada. — Eu e você, Tony, merecemos o que recebemos, mão é verdade?

Sem ouvir a resposta de Tony, Grace dirigiu-se à barraca que estava pronta para ser usada. As lâmpadas de azeite estavam acesas e penduradas no alto do teto. Grace pisou no tapete felpudo que recobria o chão e olhou em volta de si com satisfação. Para uma barraca no deserto, não podia ser mais confortável. A banheira de lona estava armada num canto, pronta para receber a água quente que as empregadas iam trazer. Uma toalha impecavelmente limpa estava dobrada em cima de um banquinho, à espera que ela saísse do banho.

A mala estava aberta em cima da cama e tudo o mais arrumado a seu contento. Não podia se queixar de nada. Embora o espaço fosse muito limitado, tinha todo o conforto de um pequeno apartamento na cidade. Não há porém ele-tricidade, gás nem água encanada, pensou com um sorriso, sentando-se na beira da cama para tirar as botas de cano longo que lhe apertavam os pés.

Em seguida, soltou os cabelos e começou a retirar da mala tudo o que iria necessitar — o pijama, os objetos de uso pessoal, o penhoar que as irmãs do Sagrado Coração tinham bordado para ela, no convento onde costumava visitar uma amiga que renunciara ao mundo e se tornara monja.

Grace correu os dedos pelo tecido macio e pensou se teria coragem de abandonar os confortos e o luxo que desfrutava em casa e durante suas viagens. Era rica e podia comprar tudo o que quisesse, hospedar-se nos melhores hotéis, comer nos restaurantes mais finos. Teria coragem de dar para os pobres as roupas caras que comprara nos melhores costu­reiros de Paris e vestir o hábito cinza das monjas carmelitas?

Não poderia mais dançar, usar biquini, ir aos bailes, vele­jar... Mordeu o lábio inferior com um tique nervoso. Era jus­tamente porque apreciava todas as coisas boas que a vida podia oferecer que aceitara casar-se com Tony — unicamente para agradar ao avô, sua fonte inesgotável de rendas.

— Posso entrar?

— Um minuto.

Ela vestiu rapidamente o robe e foi atender. Era a criada que trazia a água quente para o banho numa bacia grande de cobre. A moça despejou em silêncio o conteúdo na ba­nheira de tona, com o olhar cerimonioso das orientais. Feito isso, retirou-se com um andar gracioso, balançando os qua­dris e fazendo tinir a correntinha de prata que levava na perna, sem voltar os olhos para um lado nem para o outro.

Sem perda de tempo, Grace despiu-se e entrou na ba­nheira. A água lhe batia pela cintura e ela rezou para nin­guém mais lhe perturbar o banho. Depois da cavalgada pelo deserto, era bom relaxar o corpo num banho quente e per­fumado. Mesmo assim, não se demorou muito na água por­que tinha receio de que alguém pudesse aparecer de repente.

Era esse o principal inconveniente das barracas. Qualquer pessoa podia afastar os panos da entrada e olhar para dentro. Grace saiu do banho, enxugou-se vigorosamente e esfregou colónia no corpo antes de vestir a roupa de baixo. Apanhou em seguida o vestido de mangas amplas, bem decotado, que tinha separado para vestir naquela noite. Feito isso, escovou os cabelos e passou uma leve camada de pó-de-arroz no rosto. Podia ouvir a voz de Tony dando ordens no lado de fora da barraca. Mesmo em pleno deserto, Tony fazia questão ab­soluta de comer e beber do melhor, como se estivesse num restaurante de Paris. Ele insistira em levar uma caixa de vinho tinto que comprara pouco antes de embarcar e que tinha custado uma pequena fortuna. Os vinhos importados, espe­cialmente os franceses, custavam os olhos da cara no Oriente. Após ter passado o colar de pérolas de três voltas no pescoço, Grace saiu da barraca e imediatamente sentiu o ar frio da noite arrepiando os pêlos dos braços descobertos. Tornou a entrar na barraca e apanhou uma malha leve, que colocou em cima dos ombros, nus. Dirigiu-se então à mesa de armar que estava servida no centro do acampa­mento, com talheres de prata e copos de cristal.

As palmeiras altas estavam nitidamente recortadas sobre o céu negro, coalhado de estrelas. Podiam-se ver as primei­ras dunas que chegavam até a beira do oásis e que descre­viam ondulações graciosas ao luar. Grace permaneceu um instante ali, embevecida, sensível à beleza da paisagem no-turna, recebendo no rosto o brilho avermelhado das laba­redas que crepitavam na fogueira. A serenidade da noite deixou-a emocionada, se bem que ligeiramente apreensiva. A sensação de paz era tão grande que chegava a ser in-quietante. Além disso, ela estava excitada e tensa com a viagem, sobressaltava-se à toa, aos menores ruídos que as folhas das palmeiras faziam, ao tilintar dos guizos dos ca­melos, que balançavam a cabeça para afastar as moscas. Viu as sombras movediças dos homens que caminhavam de um lado para o outro, ativos como formigas, transpor­tando isso ou aquilo nos ombros, atirando mais lenha no fogo, providenciando a ração dos animais. Ouviu as conver­sas sussurradas ao pé da fogueira ou na entrada das tendas.

Estava excitada também porque tudo aquilo era real e cor­respondia exatamente ao seu sonho de menina. Desde pequena a vida primitiva e simples dos nômades exercera uma fasci­nação enorme sobre sua imaginação. Ela ficava horas sentada na cabeceira da cama com um livro de gravuras nas mãos, sonhando com o dia em que visitaria o Oriente.

Embora tivesse razões de sobra para desconfiar das in­tenções de Tony, era forçada a reconhecer que fora graças a ele que estava agora ali, acampada em pleno deserto, recebendo no rosto a brisa fresca que soprava do sul.

— Então, como estava o banho?

Tony interrompeu os últimos preparativos do jantar ao vê-la aproximar-se da mesa posta.

— Uma delícia.

— Descansou bastante?

— Sim. E você?

— Tudo bem. O que você gostaria de tomar? Uísque, gim, Campari...

— Qualquer bebida bem gelada. Estou com a garganta seca.

— Ou quem sabe uma taça de champanhe?

— Você trouxe champanhe? — exclamou Grace, boquiaberta.

— Lógico! Para comemorar nossa aventura no deserto. Em cima da mesa estava a travessa de prata com um

melão inteiro cortado em fatias, acompanhado de presunto cru enrolado em canudinhos.

— Vamos sentar?

— Vamos. Estou faminta.

— Não é para menos. Faz umas dez horas que fizemos nossa última refeição.

— Você não faz por menos — comentou Grace, ao ver os pratos de louça inglesa e os talheres de prata que tinham ganho de presente de casamento. — Até os copos de cristal vieram...

— Sem conforto a viagem não tem graça — disse Tony com um sorriso bem-humorada — Por falar nisso, diga a verdade: o que você pretende encontrar exatamente nessa viagem?

— Se eu disser, você vai rir de mim.

— Prometo que não. O que é?

— A certeza de que nem todos os sonhos da infância são ilusões gratuitas, despidas de realidade.

— Meu Deus, como você é romântica!

— Eu não disse que você ia zombar de mim?

— Eu não estou zombando. Estou constatando, apenas. Seu avô sabia desses sonhos?

— Não. Meu avô sempre foi um homem prático e nunca prestou muita atenção em mim. Ele só queria saber se eu estava apresentável, se estava em dia com minhas obriga­ções sociais e se tinha as qualidades necessárias para ser uma mulher da alta sociedade.

— Virtudes que você não aprova, evidentemente.

— Não muito.

Tony tomou um gole de champanhe antes de fazer um comentário.

— No fundo, eu tenho minhas dúvidas.

— A respeito do quê?

— Se você é a rebelde que aparenta ser.

— Que diferença faz se eu for ou não? Nós combinamos, antes de partir, que evitaríamos todas as ocasiões de briga, está lembrado?

— Claro! Eu pelo menos tenho a consciência tranquila nesse ponto. Nunca tentei contrariá-la em nada. Isso você tem que reconhecer. Você sugeriu a viagem e eu aceitei na hora, sem discutir. Se bem que tudo isso me pareça uma loucura muito grande. Visitar o Oriente, está certo. Con­cordo que é uma experiência fabulosa. Mas entrar pelo de­serto com uma caravana e expor-se a todos os perigos...

— Você está arrependido de ter vindo?

— Não, de jeito nenhum.

O agasalho de lã tinha escorregado dos ombros e Grace estava com o colo nu, uma vez que o vestido era extremamente decotado. Ela sabia que sua aparência criava uma impressão muito especial entre os homens da caravana. Os beduínos raramente viam mulheres claras, de cabelos claros e grandes olhos azuis. Por outro lado, ela não tinha a opulência das formas que os orientais apreciam nas mulheres, seu busto de adolescente era algo raro para homens acostumados desde criança com mulheres de seios volumosos.

— Você não acha que valeu a pena acampar num oásis, dormir numa tenda e acordar com a sensação maravilhosa de que tudo isso não é um sonho que se desfaz de um instante para o outro

— Claro que valeu a pena. Mas eu não me habituei ainda com a idéia. Pode ser que eu esteja cometendo uma injustiça, mas eu não confio muito nos homens do deserto.

— Por que você lembrou disso agora?

— Surpreendi um olhar estranho em nosso guia..

— Agora?

— É. Há uns cinco minutos. Quando você está de culote, botas de montaria e um chapéu de abas largas na cabeça, tem a aparência de um menino, e ninguém repara muito. Agora, no entanto, os homens da caravana estão sabendo que você é uma bela mulher de cabelos claros s de ombros roliços. Nosso guia arregalou os olhos quando viu você surgir na porta da barraca com esse vestido decotado.

— É mesmo?

— Ele está perto da fogueira. Se você olhar discretamente, com o canto dos olhos, verá se eu tenho ou não razão... Ele é um tipo sinistro. Tem a barba espessa e um turbante enrolado na cabeça.

Grace fez o que Tony sugeriu e avistou o perfil aquilino de Kharim iluminado pelas chamas da fogueira. Ele estava com uma capa comprida em cima dos ombros e bebia café de uma caneca fumegante. A barba negra terminava pouco abaixo do queixo e, no alto da boca, o nariz anguloso e enérgico dava ao rosto uma expressão severa. Os olhos ne­gros, entre as sobrancelhas espessas, tinham um brilho de­moníaco à luz da fogueira.

Grace observara antes que Kharim andava a cavalo com o porte ereto, a cabeça erguida, numa bela postura de co­mando. Como todos os homens do deserto, ele dava a im­pressão de ter nascido e crescido no lombo de um cavalo. Sem dúvida alguma, ele tinha todas as qualidades neces­sárias para o guia da expedição. Era autoritário, severo, disciplinado. Ao mesmo tempo, tinha uma maneira muito especial de dirigir-se aos homens da caravana e todos o adoravam, pelo visto.

Kharim percebeu que estava sendo observado. Nem por isso perdeu a naturalidade. Continuou impassível ao pé do fogo, olhando fixamente para as chamas que queimavam os galhos secos com estalidos altos.

— Você disse que ele é um homem educado? — perguntou Grace em voz baixa a Tony.

— Se é que falar três ou quatro línguas seja um sinal de educação — respondeu Tony com displicência.

— Pois ele me parece tremendamente insolente. Ele me dá a impressão de uma governanta que está tomando conta de duas crianças levadas.

Tony deu uma risada.

— Eu não tinha notado isso antes, mas você tem razão.

— Bolas, ele é apenas um criado, como os outros. Por que assume esse ar de superioridade?

No mesmo instante, Grace teve a sensação exata de que suas palavras sussurradas em voz baixa tinham sido levadas pelo vento aos ouvidos de Kharim. Como se quisesse com­provar a veracidade de sua suspeita, ela voltou-se direta-mente para o guia e disse em voz alta:

— Por favor, Kharim, você quer botar mais lenha no fogo Está começando a esfriar...

Quando os olhos dele se voltaram para ela, Grace ficou toda arrepiada. Kharim, de fato, era de uma insolência in­crível. Nem mesmo a presença de Tony na mesa, ao lado dela, o intimidou. Ela teve a impressão de ser observada com a atenção que um leopardo dirige à sua presa antes de lançar-se sobre ela. O olhar de Kharim, por baixo das sobrancelhas espessas, despiu-a dos pés à cabeça. Seu pri­meiro impulso foi olhar para o colo dela a fim de constatar se estava realmente nua. Ela se controlou, porém, e enca­rou-o sem pestanejar. Afinal, não ia se deixar intimidar facilmente por um simples guia, que fora pago para dirigi-los no deserto até os lendários jardins da rainha de Sabá.

Somente no instante seguinte Kharim deu um passo à frente e apanhou uma braçada de lenha que estava empi­lhada ao lado do fogo. Após ter atirado os galhos secos no alto da fogueira, ele assumiu a mesma atitude indolente de antes, os braços cruzados em cima do peito, o olhar vago e distraído de um tigre em repouso.

Grace continuou a jantar como se nada houvesse acontecido. No íntimo, contudo, sabia que provocara sem razão um homem perigoso. Afinal, Kharim era o chefe da expe­dição e os dois estavam inteiramente nas mãos dele, a mui­tos quilómetros de distância do embaixador, o único amigo e protetor que tinham em Reza Shahr.

Kharim era o empregado de Tony enquanto durasse a viagem, mas ele tinha em mãos o poder de tornar a expe­dição extremamente desagradável para os dois. Eles desco­nheciam inteiramente o deserto, não tinham a menor idéia de onde ficava o próximo oásis, nem de onde podiam en­contrar água potável para saciar a sede dos homens e dos animais que faziam parte da caravana.

— Os beduínos não gostam de receber ordens de mulheres — comentou Tony em voz baixa. — Quando você quiser alguma coisa, fale comigo. Eu transmito a ele suas ordens. Não podemos criar caso com nosso guia.

— Pelo visto, ele se julga um homem tremendamente importante e considera as mulheres criaturas inferiores.

— O que você quer. No Oriente todo é assim...

— Você pode achar ruim, mas eu não vou deixar que ele me trate como se eu fosse parte da bagagem. Ele viu que o fogo estava apagando e nem se incomodou. Bolas, ele foi pago para nos servir! E bem pago, por sinal. Agora eu en­tendo por que Michel me advertiu para tomar muito cuidado com os beduínos.

— Michel disse isso?

— Disse.

— Quando?

— Ontem à noite. No baile.

— Eu não sabia que vocês dois tinham essa intimidade. O que mais que ele falou, se não for indiscrição perguntar?

— Não me diga que você está com ciúme dele!

Tony levou a xícara de café aos lábios e tomou um gole antes de responder:

— É lógico que estou. Afinal, você é minha mulher e não é nada divertido passar por marido traído diante dos amigos.

— Desde quando Michel é seu amigo?

— Não importa, podia ser.

— Pode ficar sossegado. Eu não sou mulher de ter amantes nas costas do meu marido, muito menos em pleno deserto.

Tony deu uma risadinha de zombaria.

— Eu não confio muito nisso. Tanto mais que Michel, pelo visto, é seu tipo de homem. Atencioso, bonito, levemente romântico...

— Ele pode ter todas as qualidades do mundo. No mo­mento eu não estou interessada em traí-lo, meu querido. Por incrível que pareça, prefiro me aventurar pelo deserto do que ter uma aventura com um homem.

Você e suas manias...

— Ora, não foi você mesmo quem disse que eu sou meio louca? Você devia estar contente com isso. Só assim eu me mantenho longe dos homens e das ocasiões de cair em tentação.

— Continue assim que você vai bem — disse Tony com um riso irônico.

Grace voltou-se para o lado ao ouvir o nome dele ser pronunciado em voz baixa perto dali.

— Acho que Kharim quer falar com você.

O vulto alto estava encoberto peia sombra de uma pal­meira, mas Grace o reconheceu imediatamente por sua pos­tura inconfundível.

— Você quer falar comigo, Kharim? — perguntou Tony, levantando-se da mesa.

Grace notou no mesmo instante que Tony se sentia in­seguro na presença do outro homem.

— Eu queria saber se vamos partir amanhã cedo.

— Não foi isso que combinamos?

— Perfeitamente.

— Está mais fresco de manhã e podemos aproveitar para fazer uma boa caminhada antes que o sol esquente.

Kharim deu um passo à frente a fim de ser ouvido melhor por Tony, sem ter que levantar a voz.

— Eu rui advertido por um dos meus homens que uma tempestade de areia está a caminho do nosso acampamento.

— Como é possível? — exclamou Tony, com ar de incredu­lidade, — A lua está clara e a noite está limpa, sem nenhuma nuvem no céu. Esse homem deve estar sonhando, Kharim.

Durante o breve silêncio que se seguiu, ouviam-se apenas os estalos da lenha no fogo. Parecia que o acampamento inteiro estava prestando atenção na conversa entre os dois.

— Os sinais de tempestade não são visíveis a olho nu

— comentou Kharim, com o rosto impassível. — Somente alguns homens sabem interpretar esses sinais. Eles têm um instinto especial e percebem de longe os menores indícios de mudança no tempo.

— O que você sugere? — perguntou Tony, com o rosto fechado.

— Acho preferível aguardarmos um dia ou dois antes de levantar acampamento.

A resposta de Kharim agradou a Tony. Pelo menos, ela lhe dava a liberdade de decisão.

— Vamos resolver isso amanha cedo, Kharim. Se o dia amanhecer limpo e sem nuvens baixas, não há motivo para adiarmos nossa partida.

— Pois não.

A resposta foi tão seca que Grace sentiu um calafrio nos braços.

— Outra coisa, Kharim — acrescentou Tony, antes que o guia se afastasse dali. — Eu queria uma informação sua a respeito do tal Jardim de Sabá. Existe realmente esse jardim ou tudo não passa de invenção?

O guia refletiu alguns segundos sob a sombra da pal­meira, embrulhado no manto azul que lhe caía sobre os ombros, como se procurasse as palavras certas para expres­sar seu pensamento. Em seguida, voltou-se de frente para Grace, como se a pergunta partisse dela. Mais uma vez ela teve a impressão de que os olhos do guia a despiam sem o menor constrangimento. Procurou manter-se calma, mas in­teriormente estava uma pilha de nervos.

— No paraíso há muitos jardins. Alguns são jardins de rosas, outros são jardins de espinhos. É impossível descrever o Jardim de Sabá. Não há palavras que narrem exatamente sua beleza...

— Você já esteve lá? — exclamou Grace impulsivamente, sem conter mais tempo sua curiosidade. O clima de tensão estava agindo fortemente sobre seus nervos. — Ou você está falando isso pelo que ouviu contar?

— As pessoas que estiverem uma vez no paraíso não retornam mais de lá — disse Kharim com a voz serena.

Então voltou-se para Tony, como se a conversa estivesse encerrada. — Vou deixar tudo preparado para a partida amanhã cedo. Mas queria preveni-lo de que as tempestades no deserto não se comparam com as tempestades na cidade. Elas são terríveis, especialmente para uma mulher européia.

— Não se preocupe, Kharim. Minha mulher está acos­tumada a passar por situações piores do que essa. Ela não é nenhuma flor de estufa. Descende de homens corajosos, que estão acostumados a enfrentar tempestades em alto-mar. Foi por isso que ela desejou fazer esta viagem, para sentir na pele o gosto da aventura. Ela adora o perigo, não é verdade, minha querida?

Como se a resposta de Grace não lhe dissesse respeito, Kharim afastou-se dali, silencioso e ágil nas botas de cano longo que faziam um ruído característico sobre a areia fofa.

— Esse nosso guia é um caso sério — comentou Tony com a fisionomia pensativa. — Se fizer a vontade dele, logo estará nos dando ordens. Você tem razão, querida. Ele foi pago para nos servir, e não para dizer o que temos que fazer.

— Nesse caso, talvez ele tenha razão. Seria loucura enfrentar uma tempestade de areia sem nenhum abrigo por perto.

— Escute, como é possível desabar uma tempestade com esse tempo firme? A menos que São Pedro esteja contra a gente! Olhe a lua no céu. Veja como as estrelas estão bri­lhando. Até parece noite de São João. Não há o menor sinal de chuva. Kharim quer nos deixar nervosos. Eu me arre­pendo de tê-lo escolhido para guia. No fundo, fui na conversa dele. Todos os beduínos são iguais. Na cidade eles são uma coisa. Mas depois que entram no deserto botam as man-guinhas de fora. Você viu a cara que ele fez quando eu disse que ia decidir amanhã cedo se vamos ou não vamos partir daqui? O que ele queria? Que eu me ajoelhasse aos seus pés e lhe pedisse para afastar para longe a tempestade?

— Bem, vamos ver como amanhece o dia. Eu estou can­sada e vou dormir. Boa noite, Tony.

Grace levantou-se e fez menção de partir. Tony, porém, segurou-a pelo braço.

— Escute...

— O que é?

Grace fitou-o com expressão glacial, como se adivinhasse o pensamento dele.

— Posso dormir com você?

— De jeito nenhum! Nós vamos dormir em camas separa­das, como fazíamos no hotel. Mesmo porque as camas são pequenas e só cabe uma pessoa, como você está farto de saber.

— Só hoje!

— Eu já disse que não.

— Nossa, como você está agressiva.

— Quem manda você insistir nesse assunto? Você con­cordou, antes de partir, com as condições da viagem.

— Mas nós somos marido e mulher!

— E daí?

— E daí que você podia ser mais tolerante, mais humana...

— Para quê? Para você tomar liberdades e infernizar minha vida? Não, senhor!

— Eu prometo me comportar corretamente no futuro.

— Não adianta a gente se iludir, Tony. Nós dois conhe­cemos nossos pontos fracos. O seu foi invejar minha fortuna. O meu foi fazer a vontade de meu avô.

Grace soltou-se da mão dele e caminhou no meio da es­curidão, guiando-se apenas pela luz bruxuleante da fogueira, que já estava quase rente ao chão. Ela tinha andado uns dez metros quando levantou a cabeça repentinamente ao esbarrar num vulto que estava parado no meio do caminho, à sombra de uma palmeira.

— Que susto! — exclamou Grace, levando a mão à boca.

— Eu não o vi no escuro.

Por uma reação instintiva, Kharim segurou-a pelos braços.

— Aconteceu alguma coisa? Você está trêmula...

— Tire as mãos de cima de mim! — Grace berrou com raiva.

— Era só o que faltava! Além de me dar um susto medonho, você me segurar nos braços. Quem você pensa que é?

— O guia da expedição.

A resposta foi tão insolente que ela pensou agredi-lo fi­sicamente, no primeiro momento. Fez meia-volta, porém, louca de raiva e de frustração, e entrou na barraca. Ah, os homens! Primeiro Tony com sua obsessão sexual, e agora esse beduíno que assusta a gente!, pensou.

Grace retirou o agasalho dos ombros e atirou-o com ódio em cima da cama. Em seguida, tirou o colar do pescoço e balançou a cabeça repetidas vezes, para soltar os cabelos. Feito isso, puxou o zíper do vestido e deixou que caísse no chão, em volta dos pés.

Estava nervosa, irritada e morta de sono quando vestiu a camisola e preparou-se para dormir. No instante seguinte, ouviu passos do lado de fora da barraca e viu um braço afastar o pano da entrada. Era Tony. Tinha tirado o casaco e a gravata e estava apenas de calça e camisa. Havia porém um brilho estranho nos olhos dele, corno se estivesse em­briagado. Ele parou na entrada da tenda e percorreu Grace de alto a baixo, com um olhar insolente.

— O que você quer? — perguntou ela, sem esconder seu desagrado. — Eu vou dormir.

— Eu também vou — disse Tony, com uma risadinha irritante.

— Aqui não! Você andou bebendo e está com uma cara péssima. Favor ir embora e me deixar em paz.

Grace passou por ele, com a intenção de abrir o pano da entrada, mas Tony segurou-a pelo pulso com um gesto rá­pido. Os olhos dele estavam vermelhos e injetados. Havia um misto de desejo e de ódio na expressão de seu rosto. Sem dizer uma palavra, levantou o braço e desferiu um tapa com toda a força na face dela. Grace recuou instinti­vamente, com uma exclamação de dor.

— Eu não gosto que gritem comigo! — disse Tony com a voz empastada.

— Seu covarde! Bater numa mulher. Você não tem ver­gonha na cara!

Louco de raiva, Tony deu-lhe um empurrão que a fez rolar pela sala. Felizmente o tapete grosso amparou a queda. Embora estivesse caída no chão, indefesa, Grace encarou-o sem medo. No fundo, a única coisa que Tony lhe inspirava era desprezo. — Vá embora! Saia da minha barraca! No instante em que ele levantou a perna para lhe dar um pontapé, Grace rolou para o lado e apanhou o pequeno revólver que estava guardado na arca. Antes que Tony voltasse a si do seu espanto, ela estava apontando o revólver para ele.

— Abaixe essa arma — disse Tony, branco de medo. — Eu vou embora.

— Vá antes que eu perca a paciência. Nosso casamento che­gou ao fim. Vou voltar amanhã cedo para Reza Shahr. Não quero mais viajar na companhia de um homem bêbado e louco.

— Eu também estou farto de você. Nunca senti nenhuma simpatia por suas maneiras puritanas de virgem. Você não é absolutamente a mulher que me convém.

— Eu quero o divórcio. E quanto mais cedo, melhor.

— Está bom, eu vou lhe dar o divórcio. Mas abaixe essa arma. Ela pode disparar sem querer.

— Sua palavra não vale nada — disse Grace, sem desviar o cano do revólver do peito dele.

— Eu vou dar ordens ao guia para nossa volta amanhã cedo. No momento em que Tony saiu finalmente da barraca,

Grace passou a mão pelo rosto banhado de suor. O coração batia tão alto como se fosse estourar dentro do peito. Em volta dela, no entanto, havia um silêncio total. Permaneceu um instante deitada no chão, com o revólver apertado na mão. Os desenhos do tapete pareciam aproximar-se e afas­tar-se diante de seus olhos arregalados.

Seu avô ficaria uma fera quando soubesse de sua decisão de divorciar-se de Tony, mas não havia outra alternativa. Ela e Tony não tinham nada em comum e a única solução era a separação imediata.

Levantou-se com as pernas trémulas, amarrou os cordões que havia na entrada da barraca e caiu exausta na cama. No momento em que apagou a luz da cabeceira e fechou os olhos, teve a impressão de que havia alguém do lado de fora da barraca. Quem podia ser? Era Kharim que fazia a ronda habitual do acampamento para verificar se tudo estava em ordem?

Estava muito cansada, porém, para pensar nesse assunto. A única coisa que desejava no momento era mergulhar num sono profundo e apagar da lembrança a cena terrivelmente desagradável em que acabara de tomar parte.

Lá fora a brisa fresca soprava as folhas compridas das palmeiras. A lua reinava no céu, luminosa e bela, embora houvesse um halo estranho à sua volta, como um prenúncio de mudança de tempo.

 

Grace acordou cedo na manhã seguinte. Depois de lavar o rosto na bacia de louça e de escovar os cabelos, vestiu sua roupa de montaria e saiu da barraca. O dia estava abafado, úmido e o céu encoberto. As pal­meiras em redor do oásis tinham um aspecto melancólico com suas folhas absolutamente paradas. Do deserto vinha o aroma quente e penetrante que deixava na boca uma sensação de secura e as dunas vistas ao longe tinham a imobilidade de uma pintura.

Grace deu um suspiro fundo. Não desejava voltar do meio do caminho. Por outro lado, era impossível prosseguir na companhia de Tony. Se ele se conduzira mal no primeiro dia, era de prever que seu comportamento só podia piorar no futuro. Era penoso e humilhante ser agredida fisicamente por alguém, sobretudo pelo próprio marido. Tony não fizera aquilo movido pelo ciúme, nem no ardor da paixão. Ele lhe dera aquele tapa unicamente com o propósito de humilhá-la. O ódio que sentia por ele depois disso era tão grande que qualquer diálogo se tornara impraticável.

Minutos depois o acampamento começou a se animar. Eram os homens que preparavam os animais de carga para a partida. Da fogueira que ardera a noite inteira restava apenas um tapete de brasas cinzentas. Achmed estava fa­zendo o café da manhã que, segundo o costume no deserto, era uma refeição substancial.

As últimas sombras da noite tinham se desfeito comple-tamente, mas a manhã continuava estranhamente cinzenta, e a areia tinha uma cor feia, suja. O sol relutava em atravessar a névoa seca que se estendia no horizonte e que emprestava um ar tristonho à paisagem.

Grace estava tão distraída que mal percebeu a aproxi­mação do guia.

— Dormiu bem?

— Muito bem, obrigada.

— Não estranhou a cama?

— Não. Pelo contrário... Bastou fechar os olhos que peguei

no sono.

— Tome cuidado com os mosquitos. Eles estão famintos a esta hora da manhã.

— Ah, é bom você me avisar. Por enquanto ainda não senti nenhuma mordida. Tony já falou com você?

— Ainda não. Eu estou aguardando suas ordens.

— Nós decidimos suspender a viagem.

Kharim observou-a um instante em silêncio, o rosto com­penetrado, embora não revelasse a menor emoção.

— Posso saber o motivo dessa decisão repentina?

— Pergunte a Tony! — disse Grace com vivacidade,

— Desculpe. Eu não sabia que o assunto era do seu desagrado.

— Mas é! — Grace voltou a cabeça para o alto. — O tempo está firme, apesar de sua previsão.

—As tempestades no deserto desabam de repente, muitas vezes depois de uma calmaria.

Grace voltou-se e encarou o guia de frente. Pela primeira vez notou que os olhos dele não eram negros, mas verdes como jade, luminosos, sem nenhuma nuança de cinza. Es­tava admirando a cor dos olhos quando Kharim surpreendeu seu olhar. Ela abaixou imediatamente a cabeça e avistou de relance a túnica aberta no peito, descobrindo o pescoço forte e moreno. Havia uma beleza rude na figura do guia. Um homem desses não podia compreender o motivo que levava alguém a abandonar repentinamente uma viagem programada com tanta antecedência.

— Eu não queria voltar, mas não há outro jeito. Kharim balançou a cabeça em silêncio.

— Você e seus homens não perderão nada com isso. Nós pagaremos o salário combinado.

— Perfeitamente.

As palavras dele eram de uma frieza tão grande que Grace sentiu um arrepio.

— Eu gostaria de tomar café antes de arrumar minhas coisas. Você pode providenciar para mim? Por favor...

— A mesa está servida — disse Kharim, apontando para o local onde tinham jantado na véspera, à sombra das palmeiras.

Grace voltou a cabeça naquela direção e avistou Tony perto da barraca, fumando o primeiro cigarro do dia. Não havia ne­nhum sinal visível de ressaca em sua fisionomia. Pelo contrário, estava alegre e bem-disposto, como se saísse de um banho.

— Olá! — exclamou quando Grace se aproximou da mesa. — Como foi sua noite? Pensou alguma coisa a respeito de nossa partida?

— Olhe, faça como você achar melhor. Se você quiser continuar a viagem, posso voltar na companhia de um dos homens da caravana. Não se prenda por minha causa.

— Você está ansiosa para partir, não? — comentou Tony, com um risinho irônico. — Está com saudade de Michel?

Grace corou de raiva, consciente de que Kharim ouvira o comentário. Tony tinha dito aquilo de propósito, a fim de deixar claro que a decisão da mudança repentina partira de uma mulher volúvel e caprichosa, que tinha um amante esperando por ela em Reza Shahr.

Grace fitou Tony em silêncio, com a fisionomia impassível. Não ia aceitar a provocação nem discutir com ele diante dos outros. Sua decisão estava tomada. Ela não voltaria atrás. Tudo o que desejava agora era apressar a separação.

— Sente-se, querida — disse Tony, puxando a cadeira para ela.

— Muito obrigada.

Grace sentou-se e o copeiro serviu-lhe o café que tinha acabado de moer. Ela notou com o canto dos olhos que o homem estava nervoso e que suas mãos tremiam visivel­mente quando colocou o bule em cima da mesa. No momento seguinte, viu o copeiro aproximar-se de Kharim. Os dois confabularam em voz baixa e, pela maneira como Kharim balançou diversas vezes a cabeça, ela concluiu que estavam de pleno acordo sobre o assunto em questão.

— Foi esse copeiro quem nos advertiu sobre a tempes­tade — disse Tony. — Eu queria saber o que os dois estão confabulando.

— Você acha mais seguro continuar aqui?

— Quem sabe? — Tony virou a cabeça e encarou-a nos olhos. — Você não quer entrar num acordo?

— Que tipo de acordo?

— Vamos esquecer o que aconteceu ontem à noite. Eu prometo comportar-me corretamente no futuro. Por outro lado, você podia ser mais compreensiva. Foi sua frieza que me fez perder a cabeça. Afinal, sou um homem como os outros, não sou nenhum santo.

— A idéia de passar o resto da minha vida com você me da arrepio. Além disso, estou começando a acreditar nos rumores que correm a seu respeito...

— Que rumores? — perguntou Tony com a fisionomia repentinamente sombria.

No primeiro instante, Grace pensou em abrir-se com Tony e contar o que Michel lhe dissera. Depois decidiu não criar mais problemas. Já bastava os que tinha.

— Ah, deixe pra lá. Está tudo terminado entre nós.

— Você pretende se casar de novo?

— Eu? Você está louco. Uma vez foi o bastante!

 

Uma hora mais tarde as barracas estavam desmontadas e arrumadas no lombo dos animais de carga. Grace deu um torrão de açúcar para o cavalo alazão antes de montar com um movimento ágil das pernas, graças às aulas de equitação que tivera quando adolescente. O chapéu de aba larga en­cobria seu rosto e dava aos olhos azuis uma tonalidade mais profunda e misteriosa.

Embora o sol estivesse acima da linha do horizonte, o céu continuava encoberto, pesado, e ninguém agora tinha a menor dúvida de que estava para ocorrer uma mudança no tempo. Tony parecia relutante em deixar o oásis. Ao mesmo tempo, não tinha ânimo para voltar atrás na ordem que dera.

Grace desprezava Tony pela sua fraqueza de caráter, pela maneira como se conduzira na noite anterior, pela proposta que fizera de entrarem num acordo amigável. Mesmo assim, continuou impassível no alto do cavalo, fingindo uma sere­nidade que absolutamente não tinha.

— O que estamos esperando?

Tony voltou-se na sela como se quisesse gravar na me­mória o momento da partida. Talvez tivesse algum pres­sentimento de que não devia afastar-se dali, que era perigoso e arriscado enfrentar a tempestade num local descampado, sem abrigo de espécie nenhuma.

— Podemos partir? — insistiu Kharim.

— É, não tem outro jeito — disse Tony por fim. — Não podemos ficar aqui a vida inteira aguardando a tempestade.

Kharim fez sinal com a mão e a pequena caravana pôs-se em marcha, deixando o oásis atrás de si. Grace seguiu o cavalo tordilho de Kharim em silêncio, sem voltar a cabeça para trás. Ao longe avistavam-se as montanhas que se erguiam sobre a planície avermelhada como imensas construções desoladas.

Após uma hora de caminhada, as primeiras lufadas quen­tes começaram a levantar nuvens de areia no ar. Os animais balançavam freneticamente a cabeça sob as rajadas de vento que sopravam do oeste. Não havia mais duvida de que a ventania quente era o prelúdio da tempestade que se pre­parava desde a véspera.

— Ela está vindo na nossa direção — disse Kharim, per­correndo com a vista a paisagem desolada. — Aquelas nu­vens escuras que você está vendo são rolos de areia.

— Não podemos contorná-la? — perguntou Grace, aper­tando com nervosismo as rédeas do cavalo.

— É impossível. Temos que manter essa direção e rezar para que a tempestade não seja muito violenta. Houve casos em que a ventania destruiu caravanas maiores que a nossa. Depois que a tempestade passou, os restos da caravana foram encontrados cobertos de areia. Uma tempestade de areia é semelhante a um furacão. Destrói tudo em sua passagem.

— Era preferível ter ficado no oásis — disse Grace, ar­rependida por não ter ouvido a advertência do guia.

— Agora é tarde.

Durante uma hora a caravana continuou a marcha sob as lufadas de ar que sopravam agora com mais intensidade, como se em algum lugar do deserto um dragão estivesse soprando seu hálito medonho na direção dos viajantes, aguardando apenas o momento oportuno para devorá-los com suas chamas terríveis.

Grace olhou por cima dos ombros e viu que Tony tinha coberto o pescoço com um lenço de seda para proteger-se das nuvens de areia. Nunca sua figura lhe pareceu mais ridícula do que naquele momento. O ódio e o desprezo que nutria por ele eram tão grandes que, ela sentiu um certo prazer perverso em avançar diretamente contra a tempestade, nem que fosse apenas para castigá-lo por sua conduta execrável da véspera. Tony odiava o desconforto e teria que sofrer durante algumas horas os horrores de um calor escaldante e os golpes de vento que varriam o deserto em diversas direções.

Ela se voltou para o lado e avistou Kharim. A diferença entre os dois homens era gritante. Enquanto um era a ima­gem da fraqueza, o outro ostentava uma segurança que lhe causou inveja.

— O deserto é traiçoeiro — disse Kharim, ao surpreender seu olhar. — Oferece perigo e aventura, amor e respeito. É pena que você tenha interrompido a viagem antes de conhecer seus mistérios.

— Pretendo voltar um dia, em condições mais favoráveis — disse Grace, evasiva. — Minha vontade de encontrar o Jardim de Sabá continua de pé.

— Você acredita nessa lenda? — perguntou Kharim, fi­tando-a nos olhos.

— Você deve saber melhor do que eu se é só lenda ou se há um cunho de verdade na história que contam.

Antes que Kharim pudesse fazer um comentário, a mu­dança repentina no tempo desviou sua atenção para outra parte. Uma faixa vermelha surgiu no horizonte, tingida nas extremidades de tonalidades laranja e violeta. A paisagem assumiu de repente um aspecto ameaçador, diferente de tudo o que Grace tinha presenciado até então. Não tinha nada a ver com as tempestades que apanhara em alto-mar.

Ela prendeu a respiração instintivamente. Em questão de minutos a nuvem de areia iria envolvê-los inevitavel­mente. O calor era sufocante e Grace estava com o corpo empapado de suor.

— Lá vem a tempestade! — berrou Tony, aproximando-se deles a galope. — Nós fomos sair do único abrigo que tínhamos e agora vamos enfrentá-la num local descampado, sem nenhuma proteção. Está vendo só o que deu seguir a sua sugestão?

Grace limitou-se a observá-lo em silêncio. Ela não sentia a menor simpatia pelo homem vermelho e suado que ges­ticulava como um doido em cima do cavalo. Não havia mais nada nele do rapaz elegante e bonito que lhe prometera amor e respeito diante do altar.

— Você está com medo, Tony? Acho melhor ficar calmo, senão esses homens vão pensar que você é um covarde.

Tony ficou rubro de ódio.

— Você vai ver quem é covarde! — exclamou, partindo no galope em direção à nuvem cinza que se aproximava deles.

No primeiro instante, Grace ficou parada, boquiaberta, acompanhando com os olhos arregalados o cavalo e o cava­leiro que se afastavam do resto da caravana a todo galope.

— Onde vai ele? — perguntou por fim, voltando para Kha-rim que acompanhara a cena em silêncio, com o rosto impas­sível. Nada o abalava, pelo visto. Nem mesmo a loucura de um europeu que galopava ao encontro da tempestade.

— Ele preferiu enfrentar o perigo.

— Você sempre tem resposta para tudo! — exclamou Grace com irritação.

A areia estava começando a chicoteá-la na face e ela sentiu pela primeira vez uma contração na boca do estômago diante da tempestade que ameaçava desabar de um minuto para o outro.

Os homens desceram dos animais e cobriram a cabeça com seus mantos amplos, a fim de proteger-se da areia fina que feria os olhos. As bagagens foram retiradas dos lombos dos animais e empilhadas no chão, formando uma barreira contra o vento forte que soprava.

— Desça do cavalo! — ordenou Kharim.

Grace obedeceu em silêncio e segurou as rédeas do cavalo com firmeza. O animal sapateava nas patas de trás, tomado de um nervosismo extremo. Outros relinchavam, sacudiam as crinas compridas, arregalavam os olhos e bufavam pelas narinas dilatadas.

Kharim deu um assobio forte para chamar de volta o cavalo que partira no galope com Tony. Uma, duas, três vezes o assobio longo e estridente ecoou pelo deserto, en­coberto pelo vento que uivava.

Grace segurou com tanta força as rédeas do cavalo que as palmas ficaram vermelhas e doloridas. Ela ia perguntar a Kharim se havia alguma esperança de o cavalo voltar, quando uma névoa densa encobriu o céu e a paisagem em volta, como um toldo cinza, fazendo-a experimentar um pa­vor terrível, como se estivesse sendo sepultada viva.

Estava cega, sem ar, tomada de um pânico extremo e deu um grito de pavor quando Kharim lhe cobriu a cabeça com o manto. Ele estava ao lado dela, ajoelhado na areia.

— Cubra-se com isso. Aperte bem o capote contra o corpo e respire lentamente, sem se afobar. Não se assuste se sentir falta de ar no início. Depois você se acostuma.

Grace encolheu-se embaixo da túnica comprida e seguiu à risca os conselhos de Kharim.

No instante seguinte a tempestade desabou com uma fúria inacreditável. O uivo do vento confundia-se com os ruídos metálicos dos freios e dos arreios que os animais sacudiam nervosamente.

O suor escorria pelo corpo e colava a camisa de seda na pele. As botas estavam cheias de areia que machucavam os pés. A sensação de desconforto era tão grande que ela tinha vontade de chorar. Fazia quanto tempo que estava embaixo daquela túnica? Que fim tinha levado Tony? Estava perdido no meio do deserto, sozinho, soterrado pela tem­pestade de areia? Sem a orientação segura de Kharim, ele corria um grande perigo. Por que ele se conduzira como um doido? Somente para provar que era homem?

Grace engoliu em seco. Se alguma coisa acontecesse com Tony, a principal responsável seria ela. Não apenas sugerira a partida do oásis, como o irritara com seu comentário sarcástico. Fechou os olhos e rezou para que Tony voltasse são e salvo. No mesmo instante, como se fosse uma perversidade proposital, a fúria da tempestade dobrou de intensidade. Era impossível ouvir qualquer outra coisa a não ser o vento forte que soprava, levantando inclusive os panos amplos da túnica. A partir desse instante o tormento foi indescritível. Ela nunca tinha experimentado nada semelhante na vida.

O que seu avô diria se a visse naquele momento? Ele a perdoaria se soubesse que ela tinha a intenção de separar-se de Tony?

Grace lembrou-se do conselho que Jonas lhe deu no dia do casamento. "Esqueça o passado de Tony, minha filha. Todos os homens cometem erros na juventude. Lembre-se de que você agora é uma lady e comporte-se com a dignidade que convém à sua posição. Você já imaginou como sua avó ficaria feliz se soubesse que tinha uma neta nobre?"

Grace cobriu o rosto com as mãos. Seu coração estava tão pesado que ela mal tinha ânimo para respirar. O gosto de areia na boca, a sensação de ter agulhas em brasa na pele, o coração palpitante devido à falta de ar tudo, enfim, contribuía para produzir a angústia atroz que estava sentindo. Não ou­sava levantar o manto da cabeça com receio que lhe entrasse areia nos olhos. Prestou atenção para ver se ouvia a voz de Tony por perto, mas era impossível no meio da ventania que soprava furiosamente. A única coisa que restava era aguardar com paciência o fim da tempestade.

Em dado momento, teve a impressão de que estava fi­cando dormente com a posição forçada do corpo e mergulhou sem perceber numa espécie de sonolência entre as dobras do pano que a cobria. Não percebeu por isso o silêncio pro­fundo que desceu sobre o deserto, interrompido apenas pelos sininhos que estavam presos nos pescoços dos camelos.

A tempestade afastou-se com a mesma rapidez com que se desencadeou e, um por um, os membros da caravana começaram a sair de seus abrigos feitos com mantos e co­bertas. Somente Grace continuou encolhida no chão, dor­mindo a sono solto.

Kharim retirou o capote que a cobria com todo o cuidado, evitando que a areia acumulada nas dobras caísse sobre ela.

— Beba um gole — disse ele, levantando sua cabeça e colocando o cantil na boca. — Você vai se sentir melhor.

Ela abriu os olhos pesados de sono e bebeu sofregamente um gole de água. A sensação foi deliciosa, como se a língua tivesse soltado do céu da boca. No mesmo instante afastou os cabelos do rosto e limpou a areia que estava presa na roupa. Kharim estava ajoelhado ao seu lado, amparando com o braço o corpo enfraquecido.

— Onde está Tony? — Grace perguntou com voz rouca. — Ele já voltou?

— Ainda não. Eu mandei três homens partirem à sua procura. Vai ser uma busca difícil, pois o vento apagou todos os rastros deixados na areia. Talvez leve algumas horas.

— Ah, que horror! Também, por que ele foi partir no galope bem na direção da tempestade?

— Ele queria provar que era corajoso — disse Kharim com o rosto impassível.

Em outra circunstância, Grace teria dito um desaforo ao guia por intrometer-se na sua vida e criticá-la veladamente pelas palavras que dirigira a Tony. Naquele momento, po­rém, Kharim dispunha de um poder absoluto sobre ela.

— Como qualquer pessoa, eu tenho medo dos elementos da natureza. Eles são impiedosos e atacam sem a menor razão. Eu não gostaria que meu pior inimigo se encontrasse indefeso sob a fúria desses elementos.

— Vamos aguardar o resultado das buscas.

— E o cavalo de Tony, foi encontrado?

— O animal voltou sozinho — disse Kharim, apontando para o cavalo castanho que estava perto dali, coberto de suor. — Eu não sei se Tony desmontou do cavalo antes da tempestade ou se foi atirado ao chão. Espero que meus ho­mens o encontrem, mas não posso prometer nada.

Por mais que antipatizasse com Tony, era insuportável pensar que ele tinha enfrentado a tempestade sozinho e que tivesse morrido soterrado pela areia. Ela queria encon­trar no olhar de Kharim alguma esperança de que Tony estava vivo, mas o rosto dele era uma máscara de bronze, fria, inexpressiva, absolutamente neutra.

Grace deu um suspiro e ficou em pé. Estava tão fraca e abatida que se apoiou instintivamente no braço de Kharim para se firmar. Com a mão livre, limpou a areia da roupa. Em seguida, passou o pente nos cabelos para desembaraçar os fios grudados.

A calma estranha que se seguira à ventania continuava presente na paisagem desolada. Grace não podia afastar da mente a impressão de calamidade que era experimentada tam­bém pelos outros membros da caravana. Estavam todos silen­ciosos, tristonhos e pensativos. Em alguns pontos o céu começava a limpar e podiam-se avistar as primeiras nesgas de azul.

Ninguém dizia nada. Os minutos arrastavam-se lenta­mente. De repente, levada pelo nervosismo, Grace tomou uma decisão.

— Eu não aguento esperar mais. Vou dar uma volta à procura de Tony.

Ela rumou para o cavalo com o andar vacilante e ia co­locar o pé no estribo quando Kharim a segurou pelo braço.

— Você não está em condições de sair daqui. Eu mandei três homens à procura de seu marido. Se tiverem sorte, ele será encontrado. O resto depende de Alá.

— Eu sou responsável por meu marido! — exclamou Gra­ce com impaciência. — Tenho o direito e a obrigação de procurá-lo. Você não pode me impedir.

— Ouça o meu conselho. O deserto não é um lugar para passear a cavalo, muito menos desacompanhada. Aguarde mais um pouco. A paciência, nesse caso, é uma demonstra­ção maior de coragem do que a temeridade.

— Essa é a sua filosofia de vida. O tal fatalismo que domina o pensamento do Oriente. Como é possível deixar   um homem morrer no meio do deserto? Você não tem sen­timento humano?

— Se vocês tivessem ouvido o meu conselho, nada disso teria acontecido, Vocês dois colocaram o orgulho antes de qualquer outra consideração.

Havia uma entonação de autoridade na voz do guia que produziu uma impressão estranha em Grace. Ela voltou-se e fitou-o atentamente, em silêncio. Pelo primeira vez desde que tinham iniciado a viagem, ocorreu-lhe que Kharim era mais que um simples guia. Podia ser um chefe de tribo relegado à condição de guia para ganhar a vida. Não havia nada na fisionomia dele que denunciasse sua verdadeira condição.

— Quem é você, afinal?

— Sou o guia da expedição.

— Um guia não usa essa linguagem insolente — disse Grace, sem se conter mais tempo. — Conheci outros beduínos do deserto e nenhum deles era tão intratável quanto você. O que está querendo esconder? Por que você passa por guia? A mim você não engana! Estou desconfiada de que você é um chefe de tribo disfarçado em guia...

— Eu sou uma coisa e outra. Você não se lembra de ter me visto em outras circunstâncias, num outro ambiente mui­to diferente deste aqui?

Ela arregalou os olhos, atônita. As palavras do guia ca­laram fundo na sua memória, como se tivessem o poder de trazer à tona recordações muito antigas, da época de sua primeira visita ao Oriente.

Mas ninguém podia esquecer facilmente a fisionomia mar­cante de Kharim. Os olhos verdes, a barba curta, aparada no queixo, a expressão arrogante que o distinguia de todos os iranianos com os quais mantivera contatos. Ela não o teria esquecido se o tivesse encontrado há três anos, quando tinha dezenove anos, antes de conhecer Tony e casar com ele.

— Eu não me lembro de você — disse Grace lentamente, medindo suas palavras, com a expressão interrogativa de alguém que passa em revista uma série de fatos do passado, sem encontrar em nenhum deles uma resposta definitiva.

Seja como for, a figura do guia estava começando a pro­duzir um efeito estranho sobre ela. De maneira sutil e in-direta, Kharim dera a entender que havia alguma coisa que os unia um ao outro, nem que fosse apenas uma vaga lembrança de outros tempos.

— Outro dia nós conversaremos com mais calma sobre esse assunto.

Grace fingiu ignorar as palavras do guia. A atmosfera em volta dela assumira de repente um clima pesado, insuportável. Ela tinha vontade de gritar por Tony. Afinal, era a única pessoa conhecida que tinha no deserto. Embora ele não sen­tisse amor por ela, era um homem de sua nacionalidade e sua presença naquele instante seria uma dádiva do céu.

— Faz muito tempo que seus homens partiram à procura de Tony? — perguntou com nervosismo, esfregando as mãos úmidas.

— Uma hora, duas horas... O tempo custa a passar para aqueles que esperam. Dobre seu capote e sente-se em cima dele. Procure manter-se relaxada e confortável. Você está consumindo energia à toa, andando de um lado para o outro. Guarde suas energias para o momento oportuno.

— Eu não consigo relaxar. Estou preocupada com Tony. Você não sabe o que é isso...

Kharim ouviu o comentário agressivo em silêncio. Nada, pelo visto, tinha o poder de irritá-lo. Grace afastou o cacho de cabelos que lhe caía sobre a testa com um gesto brusco. Ela estava uma pilha de nervos e tinha receio de que sua fúria explodisse de um momento para o outro. Naquele instante, pelo menos, ela não tinha nada da moça educada num colégio de freiras. Estava com ódio do deserto e dos homens que a atormentavam com sua indiferença pelo sofrimento dos outros.

— O deserto nos ensina a paciência — disse Kharim após um momento de silêncio. Tirou um cigarro de uma caixinha de metal, colocou-o na boca e acendeu-o distraida-mente com o isqueiro dourado. Imediatamente a fumaça densa, adocicada, espalhou-se em volta e provocou um es­pasmo de náusea em Grace. Em outras circunstâncias ela apreciaria o cheiro forte do fumo turco, mas não ali, na companhia daquele homem desagradável. — Quer fumar?

Ela tossiu e abanou a fumaça com a mão aberta.

— Que fumo forte! — comentou com irritação, fazendo uma careta de enjôo.

— É o fumo de rolo que os homens do deserto fumam.

— Vai ver que é por isso que os nômades são duros, fatalistas e impiedosos — comentou Grace com mordacidade.

Kharim sorriu e soprou a fumaça para o lado, na direção oposta ao rosto dela.

— Eu nasci no coração do deserto e a primeira coisa que avistei quando abri os olhos foi uma estrela... E é essa es­trela que dirige meus passos até hoje.

Ao ouvir as palavras do guia, Grace esfregou as mãos com nervosismo e a aliança de ouro brilhou no dedo sob os raios de sol que tinham conseguido atravessar as nuvens ralas e batiam de chapa sobre a areia. Foi provavelmente um impulso involuntário, mas ela desejou lembrar ao guia que era uma mulher casada e que fazia questão de ser tratada como tal. Ele não podia aproveitar-se da situação somente porque seu marido desaparecera no deserto. Ela vinha de uma família de homens influentes e não era uma boboca qualquer, que se metera no deserto por acaso.

De repente, sem nenhuma razão aparente, ela se lembrou das histórias que ouvira contar a respeito de jovens inexpe­rientes que tinham sido sequestradas e violentadas por be­duínos. Abas, uma das mulheres que conhecera no baile na residência do embaixador advertira-a sobre essa possibilidade.

— O deserto é mais perigoso do que você imagina e você não está preparada para esse tipo de aventura — ela dissera.

— Que tipo de aventura? — perguntara Grace, procu­rando manter a voz serena, porque adivinhava perfeitamen­te quais eram as implicações que estavam subentendidas no comentário da mulher.

— Sequestros, violações, assaltos! — exclamou a mulher com os olhos brilhantes, como se estivesse presenciando uma cena de estupro na sua frente. — Ouça meu conselho. De­sista dessa viagem.

— Agora é tarde. Mesmo porque eu estou decidida a partir em busca da felicidade — acrescentou Grace com um sorriso irônico.

— A felicidade não existe, muito menos no deserto! Isso é uma idéia ridícula, minha querida. Aproveite o que você tem... Seu título de nobreza, a fortuna do seu avô, a com­panhia das pessoas amigas. Isso é muito mais importante do que ser feliz. O que pode haver de melhor do que ser recebida em toda a parte, nas casas mais fechadas da so­ciedade, nos clubes mais elegantes? Daqui a alguns anos você vai concordar comigo que a felicidade está nisso e não nesse sentimento absurdo que as pessoas chamam de amor.

— Será?

— Você jamais encontrará o amor no deserto! Não existe nem o Jardim de Sabá nem o tesouro do rei Salomão. Se existissem essas coisas, um homem esperto já teria trans­formado esses locais em centros de atração turística e estaria

milionário agora.

O cinismo das palavras atingiu Grace em cheio. Ela tinha partido realmente com a intenção de encontrar o amor e a felicidade, porque as duas coisas não podiam estar separadas uma da outra. Em vez disso, encontrara sofrimento, uma angústia terrível no coração e uma imensa solidão. Sem falar no homem inquietante que estava ao seu lado naquele instante e cuja presença tinha o dom de irritar todos os nervos do seu corpo.

Experimentara um sentimento idêntico de conflito inter­no no dia em que decidira casar com Tony. Sabia que estava dando um passo errado e que Tony não era absolutamente o homem certo para casar com ela. Mesmo assim, unica­mente para agradar ao avô, aceitou o casamento.

Agora, novamente, tinha a mesma sensação de estar numa situação crítica, em que qualquer hesitação de sua parte podia significar uma perda irreparável. Estava entre o deserto traiçoeiro de um lado e um homem inquietante do outro. Qualquer decisão que tomasse, para se ver livre de um e de outro, podia lhe custar a própria vida. Tinha que refletir rapidamente, com toda lucidez, antes de dar o primeiro passo, nessa ou naquela direção.

Voltou a cabeça para o lado, a fim de evitar os olhos penetrantes do guia, e franziu a testa, alarmada, quando avistou três cavalos que se aproximavam a galope. Um deles trazia na sela, atravessado de lado, o corpo inerte de Tony. Grace deu um grito de espanto e levou a mão à boca. O deserto tinha exigido uma vítima e os homens estavam vol­tando da busca com o cadáver do seu marido.

 

A caravana entrou num desfiladeiro estreito que contornava a montanha. Os ruídos me­tálicos dos freios e dos arreios misturavam-se às pisadas dos cascos no solo de pedra, aos murmúrios e exclamações profe­ridas pelos homens. Por medida de segurança, os animais de carga eram puxados pelos cabrestos. Qualquer passo em falso podia significar a queda vertiginosa no fundo do abismo.

Grace sabia que não estavam indo em direção a Reza Shahr, mas não disse nada, não proferiu nenhum protesto. Aguentou em silêncio a longa caminhada, como se fosse um castigo me­recido, a maneira pela qual tinha de expiar seu erro.

Tony estava enterrado na areia, numa cova funda, para que os chacais não pudessem encontrá-lo. Todos os projetos e ambições que ele nutria em vida tinham ruído por terra com o primeiro golpe de vento. O rapaz ambicioso que só pensava nos prazeres da existência mundana estava enter­rado para sempre num lugar qualquer do deserto. Muito em breve a cruz tosca de madeira, que estava espetada em cima da sepultura, seria derrubada pelo vento e nunca mais ninguém localizaria seus ossos. Grace estremeceu ao pensar nisso. Sentia-se em parte responsável pela morte de Tony. Acabrunhada, deprimida, acompanhava com a vista turva as sinuosidades do caminho estreito que contornava a montanha.

A trilha dava voltas e mais voltas, como um verdadeiro labirinto. Os penhascos eram tão íngremes que davam ver­tigem só de olhar para baixo. Em dado momento, quando a trilha fez uma curva fechada para a direita, ela tropeçou no homem que caminhava à sua frente.

— Cuidado! Um passo em falso e você pode cair no abismo.

— Eu não vi que você estava aí. Desculpe.

— Você torceu o pé?

— Não, não foi nada. Eu tropecei numa pedra.

Grace estava com o rosto pálido, abatido, como se tivesse dormido mal a noite. Duas olheiras fundas escureciam os olhos azuis.

— Você não quer tirar a bota para eu examinar o tor­nozelo? — insistiu Kharim, ao perceber que ela estava man­cando visivelmente.

— Você é médico?

— Eu sou veterinário e entendo alguma coisa de fraturas.

— Não foi nada. Logo vou estar melhor. Para onde nós estamos indo? Não foi por esse caminho que nós viemos...

— Você entrou no deserto para fugir das pessoas que conhecia em Reza Shahr. Se voltar para lá, acabará envol­vendo-se novamente com homens levianos e sem palavra. A sociedade é assim. Todos agem de acordo com seus inte­resses egoístas. Ninguém mantém a palavra dada. Tony prometeu levá-la ao Jardim de Sabá. E o que aconteceu? Acabou morrendo estupidamente e a deixou sozinha, de­samparada, no meio do deserto. Eu sou diferente. Eu cumpro minha palavra. Eu me comprometi a levá-la ao Jardim de Sabá e vou conduzi-la até lá, custe o que custar.

— Eu não quero mais saber do Jardim de Sabá! — ex­clamou Grace com vivacidade. — Eu quero voltar para a cidade, só lhe peço isso. Leve-me de volta para a cidade. Se isso for impossível, mande um de seus homens me acom­panhar até Reza Shahr, onde eu tenho amigos e conhecidos.

— Eu já dei minhas ordens e não posso alterá-las. Fui con­tratado por Tony para servir de guia. Uma vez que Tony morreu, eu assumo a responsabilidade por tudo, inclusive por você. Esta é a lei do deserto. Uma lei tão antiga quanto Adão e Eva.

— Para onde você vai me levar? — perguntou Grace com a expressão aflita.

O pressentimento que ela tanto temia estava começando a se concretizar. De maneira discreta e velada, Kharim es­tava revelando sua verdadeira personalidade, a do homem inescrupuloso que se aproveita de uma oportunidade em benefício próprio.

— Vou levá-la para o nosso acampamento.

— Mas eu não quero ir para lá! — insistiu Grace.

— Isso não depende de você. Quando a mulher perde o marido no deserto, o guia da expedição torna-se responsável por ela. Ele lhe dá casa, comida e tudo o mais que ela necessitar para sua sobrevivência. Como se assumisse os direitos e as obrigações do marido.

— Você está brincando!

Uma vaga sensação de pesadelo voltou a persegui-la. Ao mesmo tempo, sabia que eram reais as dores que sentia pelo corpo, a angústia insuportável que oprimia o coração, os receios que nutria desde a morte de Tony. Levou a mão à testa, como se estivesse tonta. Kharim segurou-a no mes­mo instante pelo braço.

— O que foi?

— Você não pode me levar à força! — berrou Grace, com a voz chorosa de uma criança pequena.

— Comporte-se — disse Kharim com impaciência, levan­tando-a nos ombros e carregando-a pelo caminho estreito, enquanto ela se debatia, tentando soltar-se.

— Você vai me pagar! — exclamou Grace, furiosa. — Eu vou acusá-lo na justiça de sequestro!

— Você tem sorte de ter caído nas minhas mãos. Eu, pelo menos, orgulho-me de ser um homem honesto.

— Estou vendo!

— O que foi que eu fiz?

— O que é isso senão um sequestro? Você vai diretamente para a cadeia por causa desse crime. Faço questão de vê-lo atrás das grades, entre quatro paredes!

Kharim deu uma gargalhada.

— Imagine se alguém ousaria prender o khan!

— Eu tenho amigos influentes em Reza Shahr.

Grace pensava evidentemente no embaixador, mas não queria mencioná-lo na conversa.

— Quem? Um de seus amiguinhos? O tal oficial da ca­valaria que você conheceu em Reza Shahr?

— É, ele mesmo! — respondeu Grace com fúria.

— Ele já se esqueceu de você a esta altura dos aconte­cimentos. Ninguém vai se dar ao trabalho de procurar um casal de europeus desaparecido no deserto no meio de uma tempestade. Isso é uma ocorrência frequente. Muitos ingleses já desapareceram no deserto antes disso e nunca nin­guém saiu à procura deles. Dá muito trabalho. A mão-de-obra não compensa...

As palavras dele eram de uma ironia atroz. Grace con-teve-se para não dizer um desaforo.

— Foi isso que você planejou? Você tinha essa intenção quando se ofereceu para guia da expedição?

— Claro!

Ela ouviu a breve resposta cínica com um nó na garganta. Fechou os olhos e deixou-se levar nos ombros dele como um objeto sem vontade própria. Pensando bem, a situação era terrivelmente cômica. Só mesmo caindo na gargalhada. Era impossível que fosse verdade. Kharim desejava apenas assustá-la e curá-la de sua paixão infantil pelas aventuras. Logo tudo voltaria ao normal. Ele a levaria de volta para Reza Shahr por um outro caminho e ela seria recebida de braços abertos pelo embaixador.

Meia hora mais tarde a caravana saiu do desfiladeiro e entrou numa planície imensa. Grace cobriu os olhos para proteger a vista da claridade ofuscante. As rochas e as pedras de granito faiscavam sob os raios perpendiculares do sol. O céu era de um azul intenso, como Grace nunca tinha visto na vida. Em outra circunstância ela teria dado uma exclamação de assombro diante da beleza incomparável da paisagem. A presença de Kharim, porém, exercia o efeito de uma ducha fria.

Enquanto os dois estavam parados no alto do morro, con­templando a paisagem, um falcão montês gritou no alto do céu e Grace ficou toda arrepiada com o pio estridente da ave sanguinária.

As dunas estendiam-se até o horizonte como um tecido dou­rado cujas dobras não tinham fim e por cima das quais deveriam cavalgar, até chegarem ao acampamento, que se avistava ao longe como um pontinho preto, perdido na imensidão desértica.

— Tudo o que acontece com as pessoas está escrito na areia do deserto — disse Kharim com a voz profunda que lhe era habitual. — Entretanto, as palavras são apagadas quando o vento sopra. Palavras de amor e de ódio, de so­frimento e de alegria, de saudade e de tristeza. Elas se transformam umas nas outras a cada instante. O que antes era desejo transforma-se em seguida em aversão. A vida é uma agitação constante, insaciável como aquele falcão que sobrevoa esta região à procura de alimento. Cruel e impre­visível. Os homens do deserto aprenderam a aceitar isso como algo natural. Você também terá que aprender a se conformar com a realidade. Não há outra alternativa.

— Como não? Se Tony estivesse vivo seria tudo diferente. Eu não estaria agora em suas mãos.

— Você se engana. Tony também entrava nos meus pla­nos — disse Kharim misteriosamente.

Grace encarou-o, atônita. Ela nunca tinha pensado antes nessa possibilidade. Tony e Kharim eram cúmplices de um plano para dar sumiço nela durante a viagem? Era a isso que Michel se referia quando a advertira contra as intenções secretas de Tony?

— O que você pretende fazer de mim? — perguntou Grace com um nó na garganta.

— Levá-la para o meu acampamento, como expliquei antes.

— Por que logo eu?

Arrependeu-se no instante seguinte da pergunta, mas era tarde para voltar atrás.

— Porque você me agrada — disse Kharim com um sor­riso, percorrendo-a de alto a baixo, como se ela fosse uma mercadoria posta à venda num bazar. — Você é a mulher mais bela que estava em Reza Shahr no baile do embaixador.

— Você estava lá? — exclamou Grace, perplexa. — Como é possível?

— Você estava tão entretida com aquele oficial que não percebeu minha presença. Quando eu soube que seu marido estava procurando um guia, eu me ofereci para essa tarefa, sem revelar minha identidade verdadeira.

— Quem é você, afinal?

Era impossível adiar por mais tempo a curiosidade que a atormentava há vários dias.

— Eu sou o khan, o chefe da tribo de Rohim.

— Não é possível!

Kharim ignorou a interrupção.

— Na minha região, eu sou mais poderoso que um go­vernador. Gozo da confiança absoluta dos meus homens.

— Eu sabia que você não era um simples guia!

O espanto e o terror estavam estampados na fisionomia dela. Kharim, porém, limitou-se a sorrir e segurou o cavalo pelo cabresto para ela montar.

— Vamos. Ainda temos um bom caminho pela frente.

Grace obedeceu em silêncio. Enfiou o pé no estribo e passou a perna com agilidade sobre a garupa do animal. Era inútil revoltar-se contra o chefe de uma importante tribo do deserto. Tinha que ser submissa até o momento em que encontrasse uma maneira de fugir.

O anel que Kharim usava no dedo brilhou ao sol do meio-dia quando ele levantou o braço e deu ordem para a caravana pôr-se em marcha. Na pedra vermelha do anel cintilava a cor do sangue e do perigo. Semelhante ao falcão que avistara momentos antes no alto do céu, Kharim tinha o perfil aqui­lino de uma ave de rapina.

Enquanto cavalgava em silêncio sob o ar quente da tarde, Grace refletiu longamente sobre os acontecimentos dos úl­timos dias. Evitava pensar no que o futuro lhe reservava. No momento, pelo menos, não estava em condições físicas e espirituais para enfrentar o poderoso khan.

A paisagem em volta era avermelhada, queimada pelos raios inclementes do sol. De tempos em tempos, no entanto, surgia à beira do caminho um olete de água que criava um contraste curioso com a desolação geral. Mais ao longe avistavam-se as primeiras montanhas azuladas, que pareciam pairar sobre a planície desértica como antigas fortalezas abandonadas.

— Os nativos chamam o vale que você está vendo lá adiante de "terra da promissão" — disse Kharim, apontando com o dedo para uma região verde-escura que surgia na extremidade da planície. — Ele é fértil como poucas terras do mundo.

— E aquele pico? — perguntou Grace, apontando para uma forma sombria que se levantava no horizonte.

— É o morro da Piedade — disse Kharim, com um sorriso misterioso. — Muitas pessoas no entanto têm medo de olhar para o alto. Dizem que aquele pico é assustador.

— É mesmo! — murmurou Grace em voz baixa. — Mais do que eu?

Ela voltou-se e encarou-o no fundo dos olhos.

— É isso o que você quer? Que eu morra de medo de você e o obedeça em tudo, ao menor movimento dos seus olhos?

— Isso mesmo! — disse Kharim com uma risada.

— Eu não sou uma mulher oriental. Sou inglesa e não vou me curvar nunca diante dos homens.

— A esperança é a última que morre. Se os homens me obedecem, por que você não faz o mesmo?

— Porque eu não sou sua escrava! Você vai ter que me matar primeiro, antes que eu dobre os joelhos diante de você. Você pode ser khan para seus homens, mas para mim você é um homem que vive no desrespeito de todas as leis. Eu sou uma cidadã inglesa e tenho uma lei que me protege.

— Aqui, no deserto? — perguntou Kharim com uma in­dolência estudada. — Quem virá procurá-la nesta imensi­dão? E mesmo que viesse, nunca iria encontrá-la. Meus domínios se estendem a perder de vista...

Grace reconheceu, aterrada, que podia ser levada para o coração do deserto entre uma tribo de nómades leais ao khan e que jamais seria encontrada em vida por mais nin­guém. Podia desaparecer literalmente e ser dada como mor­ta pelo avô, pelos amigos, pelas pessoas que conhecera no hotel em Reza Shahr.

Tinha que fugir das mãos do khan antes que fosse tarde demais. Lembrou-se do pequeno revólver de cabo de ma­drepérola que levava na mala. O avô fizera questão de lhe dar algumas aulas de tiro quando lhe presenteara com o revólver, antes da partida. Ela conhecia as partes vulnerá­veis do corpo humano, a posição exata do coração, do fígado, dos rins, e não hesitaria um segundo em disparar seis tiros contra o arrogante khan, em caso de necessidade.

— O que foi? — perguntou Kharim ao notar o brilho que transpareceu nos olhos dela. — Está se lembrando do ami-guinho que deixou em Reza Shahr?

— Exatamente. Estava pensando nele.

— Acho melhor você esquecê-lo. Ele não se dará ao trabalho de procurá-la nesta vastidão. O amor não chega a isso.

— Você zomba de tudo — disse Grace, fitando-o com raiva. A esperança de fuga deu-lhe de repente uma agres­sividade que estava adormecida desde a véspera, quando vira o cadáver de Tony ser transportado pelos homens do khan e ser enterrado na areia. A inércia e a apatia deram lugar à fúria que lhe era natural. — No fundo, você é um homem igual aos outros. Abusa de seu poder porque está numa posição de superioridade.

— Eu não estou abusando, minha querida. Simplesmente não concordo com suas opiniões românticas. Se você condena nossa maneira de ser, por que veio ao Oriente?

— Se você quer saber, eu me arrependo amargamente de ter cedido aos meus impulsos. Estava curiosa para co­nhecer o Jardim de Sabá e foi isso que me levou a vir aqui. Eu não ponho a culpa em ninguém. Sou a única responsável por tudo o que aconteceu. Fui eu que convenci Tony a me acompanhar nesta viagem.

— Agora você não tem mais nada a temer. Você é minha convidada e gozará da minha hospitalidade.

Grace suspeitou da existência de uma cilada por trás das palavras amáveis do khan. Pelo jeito, Kharim era mais ladino e traiçoeiro do que dava a parecer. Assumira uma máscara de modéstia para iludi-la sobre sua verdadeira identidade. Agora procurava ganhar sua confiança com promessas vãs.

— Suas palavras gentis não me iludem — disse Grace com franqueza. — Prefiro ouvir a verdade do que me con­solar com mentiras.

— Eu costumo falar sempre a verdade. E me sentirei ofendido se você duvidar da minha palavra.

A atenção de Kharim foi desviada naquele momento para a frente da caravana. Os dois primeiros cavaleiros tinham parado no alto de uma colina e estavam sentados de lado nas selas, aguardando a aproximação do khan.

Dali avistava-se o vale que se estendia a perder de vista. Grace experimentou uma excitação estranha, como se ti­vesse adivinhado, pela agitação dos homens e dos animais, que tinham chegado finalmente ao destino da viagem. Den­tro de alguns minutos entraria nos domínios propriamente ditos de Kharim Khan.

— Venha até aqui.

Kharim estava em pé nos estribos, com o ar de autoridade que assumia em certas ocasiões. Todos os homens da cara­vana tinham parado e aguardavam uma palavra do chefe para prosseguir.

Grace obedeceu em silêncio e subiu no alto do morrinho, onde alguns homens tinham desmontado dos cavalos e olhavam para baixo. Ela esporeou o cavalo alazão e galgou a crista,do morro.

— É ali o acampamento? — perguntou, dirigindo a vista para o aglomerado de barracas que se avistava ao longe.

— Esta é a minha tribo.

Grace ergueu-se nos estribos e contemplou fascinada o vale imenso. Várias tendas pretas estavam armadas. Vistas do alto, o alinhamento das barracas parecia um milagre de precisão, como se fossem distribuídas segundo um traçado exato. Aquelas eram as habitações dos homens e de suas famílias enquanto não estavam em viagem com os rebanhos pelas pastagens verdejantes.

— Como se chama essa tribo?

— Rohim — explicou Kharim. — É uma tribo tão antiga quanto Adão e Eva. São homens livres, orgulhosos e enérgicos. Não lhes falta casa nem comida e todos possuem famílias nu­merosas. Além disso, são muito orgulhosos das antigas tradições, que passam de pais para filhos há milhares de anos. Meus homens têm os melhores cavalos que existem por essas bandas e, vez por outra, praticam as qualidades guerreiras da tribo contra os assaltantes que tentam roubar-lhes os rebanhos. Com isso eles mantêm a forma física e o vigor da raça.

— Eles devem levar uma vida muito saudável aqui.

— De fato. Não temos cinema nem cabarés, não temos bares nem salas de jogos. Mas nenhum deles troca essa vida pela da cidade. Eu nunca ouvi um homem se queixar disso ou daquilo. — Kharim voltou-se na sela e encarou-a de frente. — Você está contente com a vida que leva?

Apanhada de surpresa, Grace hesitou um segundo antes de responder:

— Mesmo que não esteja, isso não é motivo para você me manter à força aqui. Os métodos que você aplica com os membros de sua tribo não servem para mim. Eu não sou uma mulher submissa, que aceita sem protestar as or­dens dos homens. Eu não vim ao deserto para isso.

— Para que você veio, então? — perguntou Kharim com um sorriso irônico.

Sem aguardar a resposta, voltou-se na sela e deu ordem

à caravana para prosseguir a marcha em direção ao povoado.

Ao avistarem de longe a aproximação dos viajantes, as mulheres e as crianças saíram ao encontro deles com ma­nifestações de júbilo. As crianças correram na frente e pe­garam nas botas do khan, com os olhos sorridentes, radian­tes de alegria. As mulheres cobriam o rosto, envergonhadas, ao reconhecerem os maridos ou parentes.

O aroma forte do café torrado subia das fogueiras e im­pregnava o ar da tarde de um perfume inconfundível. Al­gumas mulheres rodavam os espetos em cima das brasas e os regavam com o tempero que estava numa vasilha ao lado. A gordura da carne de carneiro pingava sobre as brasas vermelhas e levantava labaredas altas.

Todos estavam felizes com a chegada da caravana. Grace foi conduzida a uma tenda preta que se levantava no canto do acampamento, isolada das demais. A barraca era cons­truída de peles de carneiro, como todas as outras, mas era muito maior, mais luxuosa e elegante. Tinha inclusive uma passadeira na entrada, para o visitante não pisar na areia. Kharim desceu do cavalo e estendeu a mão para ela.

— Venha conhecer sua nova residência.

— Eu posso descer sozinha. Não preciso de sua ajuda.

— Não seja malcriada. Lembre-se de que você está diante de pessoas simples, que não compreendem o desrespeito nem a desobediência. Você está cansada da viagem e deve estar morrendo de vontade de tomar um banho. Vou pro­videnciar tudo o que você necessita para sentir-se em casa.

Grace ouviu em silêncio o comentário e aceitou a mão estendida para descer do cavalo. Os músculos estavam do­loridos e o corpo moído depois da longa marcha pelo deserto. Nada seria mais bem recebido no momento que um banho morno, nem que fosse na tenda do khan. Ela tinha que se submeter à vontade dele antes de recuperar as forças e preparar um plano de fuga.

O sol estava mergulhando no horizonte e as sombras das barracas faziam desenhos curiosos na areia clara. Logo seria noite e o céu estaria coberto de estrelas.

— Este vale fornece tudo o que necessitamos — explicou Kharim. — Água fresca, pasto para os rebanhos, uma tem­peratura amena durante o dia. Costuma esfriar um pouco à noite. Eu a aconselho a pôr um agasalho depois do banho quente, para não apanhar um resfriado. Vamos entrar?

— Eu não posso ficar com as outras mulheres?

— Você não quer me dar o prazer de sua companhia?

— Não é isso. Não tenho o costume de dormir no mesmo quarto com um desconhecido.

— Faz dois dias que estamos viajando juntos. Você já me conhece o bastante para aceitar minha hospitalidade. Este é o costume da tribo. O que você prefere? Entrar com suas próprias pernas ou ser levada nos meus braços para dentro?

Grace olhou em volta com a esperança de avistar alguém que tomasse sua defesa, mas não havia ninguém por perto. Aliás, mesmo que houvesse, ninguém ousaria contrariar a ordem do khan. Ela não tinha outra alternativa senão ceder.

— Eu tenho vergonha.

— Com o tempo você se acostuma — disse Kharim, abrin­do o pano da entrada de maneira a lhe dar passagem. — A vergonha não é uma virtude muito estimada no deserto.

Odiando-o de todo o coração por sujeitá-la a essa humilhação, Grace abaixou a cabeça e entrou na tenda espaçosa. Imediata­mente os pés afundaram nos tapetes grossos que cobriam o chão. No alto da tenda estavam penduradas as lâmpadas de azeite que iluminavam o ambiente com uma luz amarelada, projetando sombras escuras nas paredes, cobertas de tapeçarias.

Por mais furiosa que estivesse, Grace reconheceu que a barraca oferecia todo o conforto de um pequeno apartamento na cidade. Tudo era de extremo bom gosto, desde as tape­çarias feitas à mão que estavam penduradas nas paredes aos tapetes persas que cobriam o solo arenoso. Em cima da mesinha de centro, com incrustações de madrepérola, estava um grupo de miniaturas antiquíssimas. No canto direito havia um vaso de pescoço comprido, esmaltado a fogo, com um belo arranjo de flores secas.

Os aromas de fumo, couro cru, azeite e cera predomina­vam no ar e criavam uma atmosfera tipicamente oriental. Impregnavam as tapeçarias, os tapetes, os arreios com ador­nos de prata que estavam colocados em cima de cavaletes que serviam de bancos. Os nômades, mesmo no interior de suas barracas, sentem prazer em sentar-se nas selas em que cavalgam o dia inteiro. Grace admirou também o jogo de xadrez, feito de marfim, esculpido à mão, que estava arrumado num tabuleiro de jacarandá e pau-marfim.

— Que perfeição! — exclamou, ao examinar uma peça na mão.

— Esse cavalo foi esculpido a canivete — explicou Kharim com indolência. — É uma obra muito rara e preciosa, pas­sada de pai para filho há muitas gerações.

Ele se sentou no sofá que ocupava um lado da barraca, embaixo da tapeçaria que representava uma cena campes­tre. Grace avistou uma romazeira carregada de frutas.

— Que beleza!

— A romã é o emblema de nossa tribo.

Havia no ambiente uma espécie de sensualidade franca, que deixava as pessoas imediatamente à vontade, criada pro­vavelmente pelas mãos habilidosas das mulheres que procu­ravam receber os maridos com um sorriso nos lábios após um dia inteiro passado sob o calor inclemente do deserto. A tenda, antes de tudo, era um local de refrigério, de paz, de descanso, onde os homens desfrutavam as coisas boas da vida.

Grace sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. O am­biente acolhedor estava começando a exercer um efeito in-quietante sobre seus nervos sensíveis. Ela tinha que fazer alguma coisa para libertar-se da influência contagiante.

— E agora?

— O que tem?

— O que você pretende fazer?

— Vou deixá-la à vontade — disse o khan com indolência. — Lembre-se de que os objetos que estão aqui são bens de família que passaram de pai para filho há muitas gerações. Eu não gostaria que algum deles sofresse qualquer dano em consequência de sua raiva mal contida.

— Eu não sou uma mulher de rua para atirar coisas no chão ou nas pessoas! — disse Grace com desprezo. — A educação que recebi é mais do que suficiente para eu saber me comportar na casa dos outros. Estou vendo que sua tenda tem uma parte separada. É um outro quarto?

Kharim voltou-se e apontou para a cortina de contas que dividia a peça em dois aposentos.

— Este é meu quarto de hóspedes.

Ele se levantou do sofá, atirou o capote de montaria que trazia nas costas em cima do tapete e aproximou-se dela com duas passadas largas.

— É ali que eu vou ficar? — perguntou Grace, recuando um passo instintivamente.

— Se você preferir. Venha ver se lhe agrada.

Ele se dirigiu à cortina de contas e afastou-a para descobrir a peça ao lado. Grace continuou parada no mesmo lugar.

— Você está redondamente enganado se pensa que sinto prazer em me hospedar aqui. Eu sinto apenas uma grande aversão por tudo isso e, na primeira oportunidade, vou fugir daqui.

— Para onde?

— Sei lá! Para qualquer lugar. Não importa para onde. Uma coisa é certa: eu vou fugir daqui nem que tenha que morrer no deserto, como Tony.

— Eu vou ficar muito sentido. Todos os homens têm uma fraqueza. A minha é gostar de coisas bonitas. Não somente objetos bonitos, que posso pegar e admirar, mas também pessoas bonitas, que posso agarrar e possuir.

Ele examinou-a detidamente da cabeça aos pés, como um colecionador diante de uma peça rara, apreciando a curva dos quadris, o desenho bem-feito das pernas, o formato cheio e redondo dos seios.

— Tire as mãos de mim! — exclamou Grace quando ele fez menção de segurá-la pelo queixo.

Recuou um passo e esbarrou na mesinha de centro, onde estava o jogo de xadrez. Algumas peças rolaram no chão. Ela levou a mão à boca para abafar uma exclamação de susto.

— Desculpe. Foi sem querer.

— Não foi nada — disse Kharim com indolência. — Você está cansada e nervosa com a viagem. Depois de um banho quente, vai se sentir melhor. Eu mandei colocar suas malas no quarto ao lado. Já providenciei também uma criada para servi-la pessoalmente, enquanto você me der o prazer de sua companhia. Deseja mais alguma coisa?

— Não, muito obrigada.

— Não é só você que gosta de banho morno e de sais per­fumados. Eu sou um primitivo apenas na aparência. Fique à vontade. A casa é sua — acrescentou com um sorriso irônico.

Depois que Kharim saiu, Grace continuou um momento pa­rada no meio da sala, olhando fixamente para o pano da entrada que balançava levemente sob a brisa refrescante da noite.

 

Grace ficou tensa ao ouvir os passos leves que se aproximavam da barraca. No ins­tante seguinte o pano da entrada foi aberto e ela avistou uma moça de olhos meigos, extremamente bonita, que deu dois passos no interior da tenda antes de parar e observá-la com uma expressão de curiosidade.

Quem era aquela beleza? Uma das concubinas do khan? Ela estava de pantalona turca de seda, bem larga nas per­nas, e uma blusa de mangas compridas, com o peito bordado à mão. O véu branco estava abaixado, de maneira a revelar o rosto moreno. Os olhos dela eram pequenos e pretos, e as sobrancelhas eram delicadas e finas como as asas de uma libélula. A moça piscou os cílios, timidamente, sob o olhar penetrante que Grace lhe dirigiu. Em seguida, sorriu encabulada e Grace percebeu que os dentes eram muito brancos, pequenos e perfeitamente alinhados.

— Como você se chama?

— Shalena.

— Quem mandou você aqui?

— Foi o khan. Ele disse para eu preparar o seu banho.

— Você é muito bonita para ser uma criada. A moça sorriu sem jeito.

— Eu não me importo de servir os outros.

Grace fitou-a com pena. Como todas as orientais que co­nhecera, Shalena era tímida e submissa.

— Onde eu vou tomar banho? — No quarto ao lado.

Shalena afastou a cortina de contas e Grace acompanhou-a à peça ao lado, de onde vinha o perfume forte dos grãos de incenso que estavam queimando num turíbulo de prata.

Num canto da peça estava a banheira de lona que Grace tinha comprado em Reza Shahr, antes de embarcar. Ela estava cheia de água quente e salpicada com sais de banho que faziam espuma na superfície.

— Ah, que maravilha!

— Você precisa de mais alguma coisa?

— Não, muito obrigada.

Numa mesinha ao lado estavam os diversos apetrechos do banho, a jarra de louça com água, a escova de cabelos, uma esponja natural. Em cima do banquinho de três pernas havia uma toalha dobrada, imaculadamente limpa e passada.

— Você faz parte do harém? — perguntou Grace ao respirar o perfume forte que vinha dos cabelos negros de Shalena.

— Ah, não! — exclamou a moça com um risinho. — Eu sou apenas uma empregada. A água do banho está do seu agrado?

Grace afundou os dedos na banheira.

— Está ótima, Shalena. Seria possível eu tomar alguma coisa? Estou com a garganta seca...

— O que você prefere? Refresco de fruta? Limonada?

— Uma limonada com um pouquinho de açúcar — ex­clamou Grace com alegria.

— Eu vou buscar — disse Shalena, saindo da barraca com um movimento gracioso dos quadris. A pulseira que tinha na perna fazia um barulhinho de metal quando ela andava.

Grace sentou-se na banheira e começou a ensaboar o corpo. A água lhe batia pela cintura. A última vez que usara aquela banheira tinha sido na véspera da briga com Tony. Para afas­tar o pensamento doloroso, esfregou vigorosamente as pernas com a esponja, até ficarem vermelhas. Por mais que tentasse esquecer e não pensar mais no incidente, sentia-se em parte culpada pela morte de Tony. Ele partiu no galope em direção à tempestade, como um louco, apenas para provar aos olhos dela que era um homem corajoso e que não temia o perigo.

Grace deu um suspiro ao prender os cabelos no alto da cabeça. Ela parecia uma odalisca de Ingres dentro da ba­nheira, com água batendo pouco abaixo dos seios. Enrolou uma toalha de rosto em volta dos cabelos, como um turbante.

Shalena voltou logo depois com uma bandeja de prata, onde havia toda sorte de iguarias.

— Meu Deus, Shalena, você quer me engordar! — excla­mou Grace com uma risada ao ver a abundância de comida.

Havia biscoitos, bolachas de água e sal, diversos potes de geléia e uns bolinhos de nozes e amêndoas, que os orien­tais apreciam acima de tudo.

— A lella está muito magrinha e precisa comer.

— Deus me livre! Eu estou bem assim... Pode deixar a bandeja aí e não se prenda por minha causa.

Grace estava ansiosa para terminar seu banho em paz, sem a presença de ninguém no quarto.

— Eu não tenho nada para fazer — disse Shalena com um sorriso. — Vim aqui para lhe dar banho.

— Não precisa! — exclamou Grace com vivacidade. — Eu preferia que você apanhasse o vestido que está dentro da mala. É um vestido longo, cor de areia.

— Pois não, lella.

Enquanto Shalena procurava o vestido na mala, Grace terminou rapidamente de enxaguar o corpo e enxugou-se na toalha comprida que lhe batia nos joelhos. Em seguida, sentou-se no banquinho forrado de veludo e bebeu a limo­nada que Shalena tinha feito. O refresco continha prova­velmente algum ingrediente especial que lhe dava um sabor absolutamente oriental, diferente das limonadas com água e açúcar que Grace estava habituada a tomar.

— O que você pôs nesta limonada, Shalena?

— Uma gotinha de marasquino — disse Shalena do outro lado do quarto. — Você gostou?

— Está divina — disse Grace, colocando o copo vazio em cima da mesinha. — Agora eu vou terminar de me vestir e não preciso mais de você.

— Você não quer que lhe escove os cabelos? Shalena tinha uma expressão tão triste nos olhos que

Grace ficou com pena de recusar seus serviços.

— Muito obrigada, Shalena, mas não precisa. Eu me pen­teio sozinha.

O vestido longo que ela pôs para o jantar era um modelo exclusivo da coleção Pierre Cardin. Grace o comprara em Paris antes de embarcar para o Oriente. Estava pratica­mente novo, porque ela só o vestira uma vez para ir ao baile na residência do embaixador.

Sentou-se diante da penteadeira e escovou os cabelos pen­sativamente, imaginando como seria o jantar na companhia do khan. Nas costas da escova havia uma gravação em baixo-relevo que representava Eros, o deus do amor, o pecado sempre jovem e divino que, uma vez na vida, tenta todas as criaturas.

Tony, de certa forma, parecia-se com Eros. Era bonito, insinuante e conquistava o coração das mulheres com a maior facilidade. Mas ele morreu na flor da idade, pensou Grace com um suspiro.

Escovou os cabelos até o couro arder, como se quisesse punir-se pelo bem-estar que desfrutava na tenda do khan. Gostaria de expiar de alguma forma o sentimento de culpa que nutria pela morte de Tony. Quem sabe se a estada forçada na tenda de Kharim não era uma maneira de expiar o crime e sentir-se em paz novamente com sua consciência? Mirou-se no espelho e teve a nítida impressão de avistar o rosto de uma estranha. Estava com os cabelos puxados para trás, presos no alto da cabeça num coque, e os olhos azuis tinham uma tonalidade profunda, tristonha, em con­sequência das noites maldormidas.

Seu avó dissera uma vez, com orgulho, que ela possuía a beleza aristocrática das madonas italianas. No íntimo, porém, ela sabia ser uma criatura frágil, sensível às agres­sões dos outros, e não era absolutamente o modelo de re­beldia e de coragem que dava a parecer.

 

Fazia uma hora que terminara de se vestir e estava im­paciente, aguardando com ansiedade a vinda de Kharim de um momento para o outro. Provavelmente os dois iam jantar juntos, na intimidade da tenda. Ela tinha tomado sua de­cisão e estava disposta a pô-la em prática se Kharim ten­tasse possuí-la à força. O pequeno revólver de cabo de ma­drepérola estava escondido no bolso do vestido, pronto a desferir um tiro no homem que ousasse atacá-la.

De fora vinha o cheiro penetrante dos temperos que as mulheres usavam na preparação dos alimentos. Noz-moscada, alecrim, hortelã e muitas outras ervas aromáticas con­tribuíam para dar à comida o paladar tipicamente oriental que Grace já conhecia desde sua primeira viagem a Reza Shahr. Fazia horas que não comia nada — ela não tocara nos biscoitos nem nos bolinhos de amêndoas que Shalena trouxera durante o banho —, e estava realmente faminta. Impaciente com a espera, afastou a cortina de contas que separava as duas peças e entrou na sala maior. As lâmpadas de azeite davam ao ambiente uma luz difusa, amarelada, quente, que acentuava a preciosidade dos objetos antigos de marfim e das estatuetas de bronze.

Após admirar longamente as antiguidades que estavam arrumadas na mesinha de centro, Grace aproximou-se da escrivaninha de mogno que tinha uma tampa de correr e duas gavetas de cada lado.

O móvel era magnificamente decorado com pavões e mina­retes, mas as gavetas estavam fechadas à chave, Em cima da escrivaninha havia uma estante com uma dúzia de livros, alguns de autores ingleses, outros de autores franceses e italianos. Kha­rim, pelo visto, era um homem educado e sabia diversas línguas, além do persa e do árabe, que falava correntemente. Grace leu os títulos dos livros e constatou que tratavam de diversos as­suntos relacionados com caça, viagens, criação de cavalos árabes. Havia inclusive um manual de arco e flecha.

Estava distraída, folheando um livro de memórias, quando um ligeiro ruído de passos chamou sua atenção. Voltou-se e avistou Kharim na entrada da tenda. Ele trocara de roupa e fizera a barba. Usava pantalona turca, presa no calcanhar, uma túnica branca de seda, aberta no peito, e um turbante na cabeça.

O olhar que lhe dirigiu era ao mesmo tempo inquietante e interrogativo. Os olhos verdes tinham um brilho intenso na luz suave da sala. Os cabelos negros estavam escovados e

assentados sobre a cabeça morena, sem um fio fora do lugar. No primeiro instante Grace estranhou vê-lo sem barba. O Kharim que ela conhecia tinha a aparência severa e esse

outro parecia mais jovem e descontraído.

Os olhos azuis encontraram os olhos verdes durante uma fração de segundo e ela estremeceu como se tivesse recebido um choque.

— Você está parecendo uma debutante com esse vestido — comentou Kharim com um sorriso apreciativo.

— E você me lembra um sultão.

— Está vendo? Nós combinamos perfeitamente um com o outro.

— Na aparência, pelo menos.

— Achmed está trazendo o nosso jantar. Espero que você aprecie a cozinha oriental. Ele sabia que você era minha convidada de honra e preparou alguns pratos com um ca­rinho especial, minha querida Theldja.

— Não me chame por esse nome! — exclamou Grace com despeito. — Não basta eu estar aqui contra minha vontade? Você ainda tem que me insultar com esse nome de odalisca?

— Querida, você está redondamente enganada. Isso não é nome de odalisca. O que há de mais precioso aos olhos de um colecionador que uma mulher de pureza glacial? Theldja quer dizer "neve" em persa.

— Eu prefiro ser chamada pelo meu nome de casada — insistiu Grace com impaciência.

— Você não tem mais marido, amor da minha vida — disse Kharim com indolência. — Um capítulo de sua história foi encerrado ontem e um novo capítulo principia hoje. Além do mais, seu nome de casada lembra o de um autor que não tinha uma reputação muito limpa, não é mesmo?

— Se você está se referindo a Oscar Wilde, saiba que eu não tenho nenhum parentesco com ele!

— Ah, não? Que pena! Eu aprecio muito esse autor. Por sinal, é um dos meus dramaturgos preferidos.

— Vi que você tem as obras completas dele em inglês,

— Como você pode observar, eu sou um homem culto — disse Kharim com ironia. — Tenho livros em inglês, francês, alemão, italiano... Você não se surpreende que um beduíno, um selvagem, segundo suas palavras, tenha uma cultura tão vasta e variada?

— Pelo contrário. Isso ainda agrava mais a situação. Um homem educado não devia se conduzir como um bárbaro, sem obedecer a lei de espécie alguma.

Naquele momento Achmed entrou na barraca com a ban­deja do jantar.

— Vamos interromper um segundo nossa discussão — disse Kharim, retirando alguns objetos da mesinha de centro para que o criado pudesse colocar os pratos em cima. — Eu prometo responder suas acusações durante a sobremesa, quando estivermos de barriga cheia, está bom?

Achmed tinha preparado um verdadeiro banquete. Havia pelo menos uma dúzia de pratos, como é costume entre os orientais. Grace identificou apenas alguns no olhar que lan­çou de relance sobre a mesa. Ela preferia fazer greve de fome, mas era impossível ficar insensível ao aroma divino que vinha dos diversos quitutes. O arroz marroquino vinha acompanhado de peito de frango com uvas passas, que era um dos seus pratos favoritos.

— O que você vai querer? — perguntou Kharim, segu­rando o prato vazio na mão. — Um pouco de tudo?

— Você está doido!

— Achmed vai ficar triste se você não provar pelo menos um pouquinho de cada. Não é mesmo, Achmed?

— A lella está muito magrinha, patrão. Ela precisa comer.

— Está vendo?

— Eu já ouvi esse mesmo comentário hoje — disse Grace, sem se conter. — Vocês todos estão dispostos a me engordar como uma baleia.

— Experimente essa carne de vitela cortada em fatias, com legumes — disse Kharim, colocando uma porção no prato dela. — Depois prove o arroz marroquino e o peito de frango.

— Chega, por favor!

— Faço questão de que você prove essa lentilha com carne de carneiro assada. Está simplesmente... simples­mente indescritível.

— Vou fazer a sua vontade.

Grace acabou provando um pouco de tudo. Ela estava realmente faminta após a longa viagem pelo deserto que consumira praticamente todas as suas energias. Deu pre­ferência, porém, ao peito de frango e aos legumes cozidos na manteiga de cabra, uma especialidade árabe. Adorou também o charutinho de uva, que é um bolinho de arroz com carne moída embrulhado numa folha de parreira. — Não quer mais nada?

— Muito obrigada. Nunca comi tanto em minha vida. Devo ter engordado uns dois quilos, pelo menos.

— Nem tanto — disse Kharim com um sorriso malicioso, percorrendo-a com a vista de alto a baixo e demorando-se na altura da cintura.

A refeição copiosa teve um efeito imediato sobre a dis­posição de Grace. Saciado o apetite, ela se reclinou no sofá forrado de damasco, entre as almofadas coloridas de diversos tecidos, e deu um suspiro de satisfação. Quando Kharim lhe estendeu a xícara de café, ela saboreou lentamente a bebida quente e forte, muito diferente do café aguado que serviam na Inglaterra. Os ingleses, fora isso, desconheciam as xícaras minúsculas de porcelana, com filetes dourados, como era costume no Oriente entre as famílias ricas.

Ajeitou-se sobre as almofadas e apoiou as pernas num banquinho de madeira, como tinha visto Kharim fazer. Ele também tinha matado a fome e parecia mais indolente do que nunca. Pelo visto, ele conservava toda a sua energia para as ocasiões oportunas. No resto do tempo, desfrutava os efeitos benéficos da descontração muscular.

— Gostou do jantar?

— Adorei.

— Achmed ficará contente se você agradecê-lo pessoalmente.

— Ele é um cozinheiro excelente.

— Ele está comigo há muitos anos. Já recebeu diversas propostas, inclusive uma do seu querido embaixador, e pre­feriu continuar comigo.

— Claro. Você vicia as pessoas no seu ritmo de vida.

— A agressividade voltou à superfície — disse Kharim com um sorriso zombeteiro. — Nem mesmo a sobremesa de amên­doa e mel de abelha foi suficiente para adoçar a sua língua. Por falar nisso, o doce de nozes que você repetiu duas vezes é uma receita das mulheres que vivem nos haréns.

— Não me diga!

— Você não sentiu um gosto diferente?

— Um gosto de prisão, você quer dizer? Kharim deu uma gargalhada bem-humorada.

— Não seja malcriada, menina!

— Eu visitei um harém quando estive aqui pela primeira

vez. As mulheres enclausuradas me introduziram em alguns de seus segredos. Tomei chá na companhia delas e ouvi as queixas que tinham contra os maridos.

Kharim deu uma baforada para o alto e soltou a fumaça pelo nariz.

— Há um ditado entre nós que se aplica a esse caso. "O destino de cada um está escrito com letras douradas e pretas."

— O que significa isso? — perguntou Grace, apoiando o cotovelo no sofá.

— Em todas as situações da vida, há sempre um aspecto positivo, as letras douradas, e um aspecto negativo, as letras pretas.

— Onde você quer chegar? — insistiu Grace, confusa com o raciocínio velado de Kharim.

— O mesmo destino que a trouxe ao Oriente, com o pre­texto infantil de conhecer os jardins da rainha de Sabá, libertou-a de um homem que era marido apenas no nome. Está claro agora?

Grace corou repentinamente. As palavras de Kharim eram uma prova evidente de que ele ouvira a discussão entre ela e Tony na véspera da partida.

— Você ouviu nossa discussão naquela noite? — pergun­tou, as orelhas pegando fogo. — Era você que estava do lado de fora da barraca?

— Eu ouvi sem querer. Vocês dois falavam alto e eu escutei uma parte da discussão.

— Imagino que você fez péssimo juízo de Tony. Você está acostumado com mulheres que se arrastam a seus pés e não com mulheres que gritam e defendem seus direitos. Se espera isso de mim, pode desistir desde já. Eu jamais vou me arrastar a seus pés. Nem morta!

— Ainda bem. A imagem que eu tenho de você é bem diferente. Eu não gosto das mulheres submissas, nem com marcas vermelhas no rosto. A agressividade não me apetece a mínima. Desde menino fui um grande admirador dos po­tros bravos e as criaturas que mais se aproximam deles em rebeldia são as mulheres de temperamento forte, como você.

— Muito obrigada pelo que me toca, mas não foi isso que eu notei. Pelo contrário. Você trata as mulheres como se elas fossem bichos. Sua criadinha Shalena, que é um amor de pessoa, por sinal, morre de medo de você. Coitada, uma criatura tão meiga e doce ser tratada a pontapés... Ela faz parte do seu harém? Kharim deu uma gargalhada.

— De onde você tirou essa idéia? Eu nunca tive harém! Shalena está comigo desde os sete anos de idade. Ela e Achmed vão se casar dentro de alguns dias. Você já imaginou o que ele pensaria de mim se ouvisse a sua pergunta?

Grace olhou fixamente para a xícara de café e odiou-se a si mesma por ter feito um papel ridículo. Kharim, evi­dentemente, ia pensar que ela estava com ciúme de Shalena. O que seria o cúmulo da humilhação!

Achmed entrou na tenda no instante seguinte com um pratinho de biscoitos de araruta e perguntou se desejavam mais alguma coisa.

Grace voltou-se com o rosto corado para o criado.

— Meus parabéns, Achmed. Seu jantar estava uma de­lícia. Nunca comi tão bem na minha vida. Eu sabia que os cozinheiros iranianos eram excelentes, mas você superou a minha expectativa.

— Muito obrigado, lella — disse Achmed com um sorriso de satisfação. — Eu sabia que a lella ia gostar de pratos da cozinha persa.

— Ela repetiu duas vezes o frango com uvas passas — confirmou Kharim. — O jantar estava excelente.

Depois que Achmed saiu e fechou o pano da barraca atrás de si, o silêncio na sala tornou-se repentinamente pesado, sendo interrompido apenas pelas músicas que vinham de fora, onde os homens conversavam e cantarolavam em volta da fogueira. A música tinha uma entonação arrastada e combi­nava perfeitamente com a serenidade da noite no deserto.

— Nós tratamos o deserto a pão-de-ló — disse Kharim com um sorriso, como se tivesse lido o pensamento de Grace. — Procuramos agradá-lo de todos os modos. Cantamos para ele ouvir, batemos palmas quando garoa e as flores brotam de uma hora para a outra, como cogumelos na mata. O deserto porém nunca é inteiramente submisso a nossas sú­plicas e é exatamente por isso que nós o respeitamos. O amor não é uma paixão passiva, nem submissa. Suas pro­messas não são nunca completamente satisfeitas. Nós pas­samos a vida correndo atrás dele, mas abraçamos apenas sua sombra. Apreciamos o prazer de uma noite serena, mas suportamos com paciência um dia tórrido. A maior surpresa de todas, no entanto, é quando o deserto nos presenteia com uma chuva repentina. Nada se compara a isso. Galo­pamos sob a chuva como crianças e só ficamos contentes quando estamos com as roupas ensopadas...

Kharim inclinou-se para a mesinha de centro e apanhou um punhado de sementes de pistache. Ao lado, havia pra-tinhos com amêndoas, figos secos, tâmaras, nozes e avelãs.

— Sirva-se — disse ele, ao ver que Grace continuava pensativa no seu canto. — Eu mastigo essas sementes em lugar de beber vinho, que é proibido por nossa religião.

— Eu bebi uma limonada deliciosa quando cheguei.

— Foi Shalena quem fez. Ela é especialista em fazer sucos de frutas. Parece mentira, mas ela tem receitas que passam de mãe para filha.

— Acredito. Pelo visto, você está acostumado com tudo do melhor. Eu notei que você só usa camisas de seda e que esses tapetes que cobrem o chão são realmente peças de antiquário. Sem falar que aquele jogo de xadrez deve valer uma fortuna...

— De fato, eu aprecio o conforto. Mas esses objetos que você está vendo não são de minha propriedade exclusiva. Fazem parte dos bens da tribo que eu governo. Se um dia tivermos necessidade de dinheiro, esses objetos serão em­penhados ou vendidos. Por outro lado, todos estes tapetes que você está vendo têm um pequeno defeito, que não se percebe à primeira vista. Isso foi feito propositadamente, para não despertar a inveja nos outros. As coisas perfeitas trazem sempre a infelicidade.

— Verdade? — exclamou, com a testa franzida.

Por alguma razão misteriosa, as últimas palavras de Kha­rim calaram fundo na imaginação de Grace.

— Você se julga perfeita?

— Eu? Deus me livre! Eu sou um poço de defeitos...

Um sorriso brilhou nos olhos dele. Com as pálpebras en­treabertas, examinou-a atentamente, como se quisesse me­morizar cada um de seus traços.

— Eu suspeitei que você era uma criatura diferente quan­do a conheci em Reza Shahr. E minha opinião continua de pé. Você conhece essa poesia? "Sua boca parece uma romã madura. Cortada com uma faca de marfim."

— De quem é?

Do poeta que terminou a vida na prisão.

— De Oscar Wilde?

— Ele inspirou-se em alguém que tinha os lábios seme­lhantes aos seus.

— Um adolescente, certamente.

— Como você sabe?

— Eu vi o filme que fizeram sobre a vida dele..

— De culote e camisa de linho cor-de-rosa, com os cabelos presos embaixo do chapéu, você é um perfeito adolescente. De vestido e de cabelos soltos, no entanto, você é capaz de tentar até um santo.

— Você se julga um santo, por acaso?

— Quem dera!

— Você está farto de saber quais são os sentimentos que eu tenho por você. Eu desprezo seus elogios e suas palavras insi­nuantes. Shalena acredita piamente na mentira que você contou.

— Que mentira? — perguntou Kharim com a testa fran­zida. — Eu não tenho o mau costume de mentir.

— Você disse que estou sob sua proteção depois que Tony morreu. Isso é pura mentira! Eu preferia estar sob a pro­teção de um canibal... Pelo menos não teria que ouvir essa adulação mesquinha a respeito dos sacrifícios que você faz em benefício da tribo. Nem ouvir sua cantada melosa. Você é um homem decadente, amoral, sem a menor consideração pelos outros. Você está tão acostumado a obter tudo o que deseja, que perdeu completamente o senso do bem e do . mal... se é que algum dia o teve.

— Que retrato horrível você pintou de mim — comentou Kharim com a expressão sonhadora.

— E não é parecido, por sinal?

— Eu devia ter deixado minha barba crescida. Combinava mais com a figura horrenda que você traçou de mim. De qualquer maneira, há tempo ainda para deixá-la crescer novamente antes que a gente se despeça um do outro.

Grace ajeitou-se no sofá e encarou-o fixamente.

— Escute, eu tenho uma sugestão a fazer. Por que a gente não entra num acordo?

— Qual, por exemplo?

— Eu tenho dinheiro no banco. Quanto você quer pela minha liberdade?

— Eu também tenho dinheiro. Até sobrando. Mas prefiro a sua companhia.

— Você diz isso agora. Depois de uma semana você vai me enxotar daqui, como fez com as outras antes de mim. Você deseja apenas satisfazer o desejo físico. Mais nada.

— E que mal há nisso? É uma situação semelhante à do casamento praticado na sua sociedade. Como eu disse antes, o homem deve dominar as mulheres, sem torná-las contudo submissas em demasia. A lua é submissa? O sol é submisso? Não. Parte da beleza desses astros está em serem livres e temperamentais. De que me adiantaria tê-la como uma escrava a meus pés? Uma criatura que morresse de medo de mim? Um brinquedo passivo para meu prazer? Eu dou a impressão de ser um homem que gosta dos animais mansos? Dou?

— Você é um monstro! — Grace berrou, com raiva. — Um monstro cruel e zombador.

Kharim ouviu a acusação com a fisionomia pensativa. Parecia que estava muito longe dali, perdido na lembrança de uma recordação antiga.

— A primeira vez que eu a vi, você me deu a impressão de ser fria como a neve que brilha no alto das montanhas. Distante, inacessível, como o ídolo que as pessoas colocam no nicho do altar. Foi por isso que eu a trouxe para o deserto. Somente o deserto é capaz de curá-la de sua frieza e trans­formá-la numa criatura humana.

— Por que você não escolheu outra? Você sabia que eu era casada...

— A primeira vez que eu a vi você não era casada. Parecia uma menina de olhos azuis e cabelos claros como mel.

— Onde foi isso?

— Num jardim, perto de um lago. Você tinha saído da casa onde havia uma festa de casamento, para dar uma volta no jardim. Eu me escondi atrás de uma árvore e ob­servei-a de longe, sem você perceber.

— Você estava naquele casamento? — perguntou Grace,

surpresa.

— Você não me viu?

— Eu lembro que havia chefes de diversas tribos e que alguns tinham vindo do deserto em cavalos magníficos, ri­camente paramentados.

— Eu era um deles.

— Não é possível! — exclamou Grace, boquiaberta. — Isso faz tanto tempo...

— Você não pode lembrar de tudo, evidentemente. Mas eu notei que você estava deslumbrada com o ritual estranho, com as músicas que a banda tocava e com as pessoas pre­sentes. Uma festa de casamento em nosso país é um acon­tecimento inesquecível.

Grace ficou pensativa, recordando as lembranças daquele dia memorável na sua vida. Lembrou-se de uma cena que estava até aquele instante perdida na memória, entre outros fatos ocorridos na mesma ocasião.

Ela estava admirando a noiva, ricamente enfeitada como uma boneca de porcelana, quando um homem envolto num manto branco aproximou-se dela e presenteou-a com uma caixinha de veludo. A moça agradeceu o presente e entregou a caixinha à mãe, que a abriu imediatamente para todos verem a esplêndida jóia que estava no interior.

Grace afastou-se dali, entre exclamações de surpresa e de admiração, e foi dar uma volta pelo jardim. Lá, embaixo das árvores, junto a um laguinho coberto de plantas aquá­ticas, ela ouviu um homem cantando uma ária da ópera La Forza del Destino.

Kismet. Mektoub. Assim está escrito.

Ela, cuja vida até então fora traçada pela vontade do avô, tomou consciência de que existiam outras forças. Uma delas era uma força invisível, chamada "destino".

Voltou a si do seu devaneio e encontrou o olhar de Kharim fixo no seu rosto. Estremeceu sob a corrente que se esta­beleceu entre os dois numa fração de segundo, como se ele tivesse mergulhado dentro de sua alma e avistado seu co­ração a descoberto.

Ela estava tensa e nervosa com tudo o que acontecera nos últimos dias e tinha consciência de estar presa na tenda do khan como um pássaro na gaiola. Kharim tinha a vita­lidade de um touro, a energia inesgotável de um primitivo, a vontade inflexível de um chefe bárbaro. Como era possível fugir de suas mãos?

— Quando você vai me dar a liberdade? Ela tinha que fazer essa pergunta, que estava atraves­sada na garganta há várias horas.

Ele fitou-a em silêncio alguns segundos antes de responder:

— Você está impaciente para partir?

— Por mim, eu iria embora hoje mesmo. Nesse minuto,   Eu não aguento mais ficar aqui.

— Eu me arrependeria a vida inteira se a deixasse partir. Pelo menos antes de lhe oferecer a minha hospitalidade.

— E quanto tempo isso vai levar? — insistiu Grace com impaciência, esforçando-se para manter a voz serena.

— Uma noite. Uma semana. Ou um ano, quem pode saber?

— Não brinque comigo! Fale a verdade!

— Esta noite não terminou ainda e ninguém sabe o que nos trará a madrugada.

 

O beijo foi tão inesperado que a apanhou de surpresa. Grace tinha jurado a si mesma que não deixaria mais o khan tocar em seu corpo. Ela estava disposta a defender-se com as armas que tinha, inclusive a disparar o revólver em cima dele se a situação se tornasse insuportável. O breve contato físico, no entanto, surpreendeu-a sem nenhuma defesa. Ao voltar a si do seu espanto, tentou li­bertar-se dos braços dele com um gesto brusco, mas Kharim segurou-a com força pelos pulsos e dominou sua resistência.

— Tire as mãos de mim! — berrou Grace com fúria. — Eu odeio o seu contato.

— Você está berrando à toa. Ninguém virá socorrê-la.

Estão todos dormindo a esta hora.

— E por isso que você abusa de mim. Covarde.

— Eu não abusei de você, querida. Eu lhe dei apenas um beijo de despedida.

— Eu sei disso!

— Não seja criança. Você tem idade suficiente para compor­tar-se com calma nas situações difíceis. Ninguém vai imaginar que você está gritando por socorro, Pelo contrário, vão pensar que você está chorando em voz alta a morte do seu marido.

— Você é odioso com sua ironia. Mas vai se arrepender amar­gamente de me manter aquí contra a minha vontade. Ninguém ' pode sequestrar uma mulher e pensar que tudo vai continuar na mesma. A polícia vai investigar o desaparecimento de nós dois. Tony tinha amigos influentes em Reza Shahr.

— E daí? Vão encontrar apenas uma sepultura rústica no meio do deserto, ou talvez nem isso. O vento vai acabar cobrindo a cruz de madeira que espetamos no chão. O de­serto é semelhante à esfinge. Ele não revela a ninguém seus segredos, porque essa é a vontade de Alá.

— Você não tem vergonha de pronunciar o nome de Deus para encobrir um crime?

— Você também não agiu honestamente quando pronunciou os votos de fidelidade na igreja. Afinal, não sentia o menor afeto por Tony. Você se ofereceu em sacrifício num casamento j sem amor. Sua situação comigo não é muito diferente. Ou você me rejeita apenas porque eu sou um homem do deserto?

— Pouco me importa a sua origem! Eu não admito que você me mantenha aqui ã força, nem que me faça ameaças!  

— Compreendo — disse Kharim com um sorriso irónico. — Você casou com Tony para ter a liberdade de fazer o que bem entendesse, não foi isso?

— E daí? O que você tem a ver com a minha vida?

— Nada. Estou apenas procurando compreender a situação.   O casamento com Tony foi mais conveniente do que um outro, fundado no amor. O amor é abandono do corpo e da alma, o   amor é entrega de tudo, inclusive da vontade própria.

— O que você sabe do amor? Você só entende de cavalos e de sexo! O amor está além da sua compreensão...

— Será?

— Você não tem sentimentos! É um homem rude, primitivo... — Pode ser que seja. Mas eu sei excitar as mulheres. O

que você diria se eu apagasse as lâmpadas e mostrasse a você que nós dois somos semelhantes nesse ponto, que am­bos somos ardentes como o sol que aquece o deserto?

— Duvido!

— Olhe lá! Eu posso torná-la tão dependente de mim que você só se sentirá viva quando estiver nos meus braços. Você não vai querer mais nada na vida a não ser isso... ser possuída por mim, a qualquer hora do dia ou da noite,

— Você está delirando.

— Você pode me odiar no fundo do seu coração, mas o desejo a aproximará de mim, contra a sua vontade. O desejo é mais forte que tudo.

— E mentira! Você diz isso para me assustar!

— Você quer que eu lhe ensine o gosto do prazer, a pal­pitação da volúpia? Basta dizer sim...

As palavras de Kharim eram brutais na sua franqueza e Grace sabia que ele não hesitaria em pô-las em prática. Na verdade, ela conhecera algumas mulheres que viviam na de­pendência sexual de seus amantes ou maridos. Após uma noite de amor, por mais saciadas que estivessem, estavam prontas a começar tudo de novo no dia seguinte. Como mulheres pos­suídas, entregavam-se de corpo e alma ao homem que amavam e perdiam completamente o sentido da realidade.

— Posso beber um pouco de água? — Grace murmurou, com a voz sumida. — Não estou me sentindo muito bem.

— Você me provocou e ouviu o que não queria.

— Chega. Eu não quero mais falar nesse assunto. Estou enjoada.

Kharim soltou-a e levantou-se do sofá. Atravessou a cor­tina de contas que separava as duas peças e foi buscar o jarro de água no quarto ao lado. No momento em que ouviu as contas da cortina se chocarem umas nas outras, Grace ficou em pé e retirou do bolso fundo do vestido o pequeno revólver de cabo de madrepérola, que estava embrulhado num lenço de seda. Deu um suspiro de alívio ao apertar com força a coronha do revólver. Kharim tinha pensado em tudo, menos na existência dessa arma. Sentou-se ereta no sofá e aguardou com ansiedade a volta dele.

Kharim tinha criado um clima insuportável de terror com suas ameaças veladas e ela estava decidida a usar o revólver sem a menor piedade, para que ele aprendesse a lição. Afinal, ninguém tinha o direito de aterrorizar o outro impunemente!

Ao ouvir novamente o ruído das contas na cortina, Grace preparou-se para agir com a impressão de que todos os seus nervos estavam tensos, à espera do momento decisivo. Per­maneceu no mesmo lugar, segurando firmemente o revólver pela coronha. O medo tinha passado por completo e a única coisa que experimentava no momento era a impaciência de alguém que deseja terminar rapidamente uma tarefa ini­ciada. A determinação estava visível em seus olhos azuis quando ela afastou um cacho de cabelo da testa e apontou o revólver para o peito dele.

— O que é isso? — murmurou Kharim, ao avistar o pe­queno revólver na mão dela.

Imediatamente, ele adotou a atitude cautelosa do animal em perigo. A mão que segurava o copo com água, contudo, estava absolutamente firme. Ele parou a alguns passos dela e encarou-a no fundo dos olhos.

Grace sabia que Kharim era corajoso como poucos nos mo­mentos de perigo, mas ficou profundamente irritada com sua segurança. Ela esperava uma reação diferente por parte dele. Um ligeiro tremor, pelo menos. Nada, no entanto, o abalava. — Eu quero voltar para Reza Shahr — disse Grace com a voz fria. — E preciso de um guia, evidentemente. Se você fizer o que eu peço, esquecerei o incidente. — Certo.

O copo com água continuava firme na mão, mas o corpo dele estava tenso como se estivesse preparado para um ataque fulminante. Grace apertou o dedo no gatilho, pronta a disparar ao menor movimento do adversário. Ela sabia usar a arma e, naquele momento, era a neta legítima de Jonas Tillerton, o homem que nunca vacilara nos momentos de crise. Embora estivesse com os nervos à flor da pele, Grace acompanhava cada gesto dele com a atenção de um atirador profissional.

— Onde você achou esse revólver?

A pergunta distendeu momentaneamente a tensão.

— Eu não achei este revólver. Ele estava o tempo todo no bolso do meu vestido.

— Sei. Você o ganhou de alguém?

— Foi meu avô quem me deu antes de eu embarcar.

— Seu avô é um homem prevenido, pelo visto,

— Sem dúvida! Ele me ensinou algumas coisas úteis na vida. Uma delas é a posição do fígado, dos rins e do coração. Eu não terei o menor escrúpulo em colocar uma bala no seu peito se você me impedir de partir daqui.

— Acredito. Você não tem cara de quem diz uma coisa e faz outra.

A ironia era apenas perceptível no fundo dos olhos verdes. Grace, porém, fingiu ignorá-la.

— Ótimo, Estamos entendidos, então. Providencie o guia para mim.

— Hoje?

— É, agora. Neste minuto.

— Você está louca! Você não pode partir no meio da noite, nem mesmo com um guia que conheça perfeitamente a região. Além do mais, todos os meus homens estão ocu­pados com os preparativos da viagem de amanhã. Eu não posso dispensar nenhum deles.

— Nem mesmo quando sua vida está em jogo? Se você for enterrado na areia quente do deserto, o serviço dos seus homens não lhe servirá de nada.

Kharim deu um sorriso com o canto dos lábios.

— Você está realmente decidida a me matar? — Você ainda tem dúvida?

— A morte não me assusta. Minha religião ensina que os homens justos vão para o paraíso.

Grace deu uma risada de zombaria que soou terrivel­mente forçada no silêncio da sala.

— Seu paraíso é aqui na terra, Kharim. Galopando em­baixo da chuva, rolando nos braços das mulheres que se sujeitam aos seus caprichos. Basta apenas que eu aperte o gatilho desse revólver para que tudo escureça diante dos seus olhos verdes. Você não verá mais as flores que brotam de uma hora para a outra quando a chuva rega o solo, nem as pérolas pálidas entre os seios das mulheres. Você vai se apagar para a vida.

— Suas ameaças não me assustam. ~ Não mesmo?

— Pelo contrário, eu me sinto envaidecido com elas. Sua reação significa que eu despertei emoções profundas no seu coração, mais do que qualquer outro homem. Quando você apontou esse revólver para Tony, não tinha a intenção de matá-lo. Foi apenas para assustá-lo que você fez isso.

— Você viu? — exclamou Grace, atônita. Ocorreu-lhe de repente que Kharim tinha presenciado a cena

entre os dois. Nesse caso, ele sabia da existência do revólver há muito tempo. Por que não tomara nenhuma providência nesse sentido? Será que ele se sentia tão seguro assim de sua posição que nem se dava ao trabalho de proteger-se dela?

— Tony tinha motivos para se assustar — disse Grace, procurando manter a voz serena, embora estivesse começando a fraquejar diante da atitude impassível de Kharim. — Ele me viu acertar numa moeda a três metros de distância.

— Bela pontaria. Mesmo assim, eu não vou lhe dar o guia que você pediu. Nem vou permitir que você parta so­zinha daqui, no meio da noite. Está contente agora?

— Não abuse da minha paciência, Kharim! Eu posso per­der a cabeça...

No instante em que pronunciou essas palavras, Grace lembrou-se de uma outra cena muito antiga, da vez em que perdera de fato a cabeça e agredira o avô fisicamente. Ela se arrependeu tanto deste gesto rude que passou o resto do dia chorando e soluçando na cama.

Fechou momentaneamente os olhos ao mergulhar no pas­sado. Essa distração, porém, foi suficiente para uma res­posta imediata do adversário. Sem hesitar um segundo, Kharim atirou no rosto dela o copo com água que tinha na mão. Grace ficou cega no primeiro instante. Quando tornou a abrir os olhos, Kharim tinha dado um pulo à frente e derrubado o revólver no chão.

— Pronto, agora podemos conversar tranquilamente — disse Kharim, agachando-se para apanhar o revólver caído em cima do tapete. Ele se voltou em seguida com um sorriso de triunfo nos olhos. — Você se assustou, querida?

— Estúpido! Bruto! Você quase me quebrou o pulso... —E você, amor da minha vida, quase me estourou os miolos...

— O que você queria? Que eu ficasse de braços cruzados enquanto você me violentava? Você é um bandido e merece morrer!

— Eu prezo demais a minha vida e não desejo morrer tão cedo, muito menos pelas mãos de minha hóspede.

— Mentiroso! Desde quando eu sou sua hóspede? No meu país isso se chama sequestro. Você me trouxe para cá à força e me carregou em cima dos ombros como se eu fosse uma trouxa de roupa! Eu me considero sua prisioneira e vou acusá-lo na justiça de crime.

— Meu crime é ser bom demais. Se fosse outro, já teria lhe dado uma surra.

— Covarde! — exclamou Grace com fúria ao ver as marcas vermelhas deixadas no pulso pelos dedos fortes do khan.

Durante a vida inteira ela sofrera com a brutalidade dos homens e todo o seu ódio estava voltado naquele instante contra o homem que a agredira. Entretanto, sem nenhum motivo aparente, ela experimentou de repente uma atração violenta pelo corpo másculo que a estreitava nos braços.

Kharim, evidentemente, não podia adivinhar que ela era virgem, embora fosse casada há três meses quando Tony morreu. Ela não contara esse segredo a ninguém e Tony não ia revelar aos outros um fato íntimo que depunha contra ele. Agora, contudo, Grace temia que o segredo fosse final­mente descoberto por aquele homem rude, para quem a virgindade era um motivo a mais para excitar o desejo.

Tomada de pânico, ela se soltou dos braços dele com um gesto brusco e correu para o quarto ao lado, onde tinha tomado banho ao chegar de viagem naquela tarde. Não se lembrou, porém, que aquele era o quarto de dormir do khan, onde estava a grande cama de casal.

Só havia uma lâmpada acesa na peça e Grace olhou em volta com nervosismo, procurando uma maneira de fugir, o que não era possível na outra parte da tenda, sob a vi­gilância atenta de Kharim. Dirigiu-se à pequena alcova, separada por um biombo de madeira, na esperança de en­contrar uma saída. Sabia que as tendas árabes possuíam, em geral, duas entradas, sendo que uma delas é usada ex­clusivamente pelos criados.

Grace fechou os olhos e procurou concentrar-se. Shalena tinha sumido misteriosamente pelos fundos do quarto en­quanto ela estava no banho. Quem sabe se havia uma saída atrás de alguma tapeçaria?

Caminhou na ponta dos pés em direção à tapeçaria maior que as outras, pendurada na parte de trás da tenda. Le­vantou-a com cuidado e deu uma exclamação de alegria quando avistou o céu estrelado do lado de fora. Estava trê­mula de nervosismo no momento em que afastou o pano da entrada e deu alguns passos no escuro.

— Aonde você vai?

Ela deu um grito ao avistar um vulto parado na sua frente.

— Ah, é você! Que susto eu levei!

— Você ia fugir de mim?

Sem aguardar resposta, Kharim levantou-a nos braços e levou-a para o interior da tenda. Grace limitou-se a murmurar um protesto em voz baixa. Estava tão cansada que não tinha mais ânimo para defender-se.

— O que você vai fazer? — balbuciou com os olhos ar­regalados quando Kharim a deitou na cama.

— Vou tirar sua roupa e pô-la na cama.

— Não! Deixe que eu tiro.

— A vergonha é um sentimento desconhecido no deserto. Sem ouvir seus protestos, Kharim arrancou a roupa de

Grace e atirou-a no chão. Em seguida, apanhou a toalha que estava dobrada em cima do banquinho e enrolou-a nela, como se Grace fosse uma criança pequena.

— Já chega. Agora me deixe em paz.

Um langor estranho começou a se apoderar dela, como se os olhos verdes que a fitavam com cobiça estivessem roubando suas forças e a vontade de resistir. No momento em que Kharim debruçou-se sobre ela, como se fosse beijá-la, Grace virou o rosto para o lado. O hálito forte de fumo lhe provocou enjôo.

— Vá embora. Deixe-me em paz. Eu não suporto seu contato.

— Por que você me excita tanto? — Kharim murmurou junto ao ouvido dela, por entre os fios de cabelo que cobriam o rosto. — Eu devia lhe dar uma surra, em vez de tratá-la com carinho. Eu quero receber seus beijos espontâneos, e não seus arranhões. É muito mais gostoso, tanto para você quanto para mim.

Ela soltou uma exclamação de protesto quando os lábios de Kharim pousaram sobre sua nuca. A pele arrepiou-se toda. No mesmo instante, com uma reação instintiva, en­terrou as unhas com toda a força no pescoço dele. Kharim soltou-a imediatamente, com um grito de dor. Seu rosto estava vermelho de ódio.

— Agora você vai apanhar!

— Se você tocar em mim, eu vou acordar o acampamento com meus gritos.

— Você é realmente uma peste! Agora eu entendo por que Tony queria possuí-la à força. Nem mesmo ao seu ma­rido você se abandonou com amor, como fazem todas as mulheres. Você é um bicho do mato...

As palavras dele doeram mais do que os maus-tratos que recebera antes. Entraram fundo na carne e lhe arrancaram lágrimas de dor. A face pálida refletia angústia e um de­sespero extremo.

Kharim observou-a um instante em silêncio, com a testa franzida. Aquelas lágrimas não eram de ressentimento nem de rebeldia; eram lágrimas de um sofrimento atroz, acu­mulado durante anos no fundo do coração.

Ele se ajoelhou ao pé da cama e segurou o rosto dela entre as mãos, com uma ternura que ela desconhecia.

Lá fora o acampamento estava silencioso como alguém que dorme. A fogueira era apenas urna cama de cinzas ver­melhas. Todos tinham se recolhido em suas tendas. De quan­do em quando, contudo, a tranquilidade da noite era inter­rompida pelo tinir dos sinos que os camelos carregavam no pescoço, ou pelo uivo distante de um chacal.

— Você está chorando por causa dele?

Ela o fitou com os olhos arregalados, de um azul profundo sob a luz amarela da lâmpada de azeite.

— Eu não gostava dele.

— Mas você casou com ele.

— Unicamente para agradar ao meu avô. Mas eu nunca fui dele.

Kharim levou um cigarro aos lábios e acendeu o isqueiro. No instante seguinte o aroma forte de fumo espalhou-se pelo quarto. Grace continuou de olhos fechados, pacificada pelas lágrimas que lavaram a lembrança das recordações amargas.

Kharim deu um suspiro e atravessou o quarto com passos lentos, amortecidos pelos tapetes que cobriam o chão. Voltou com a camisola de dormir na mão.

— Vista isso — murmurou. — Você não pode dormir em­brulhada na toalha, como se fosse um bebê. Se bem que num certo sentido você é uma criança, mais que uma mulher madura.

— Obrigada,

Ela segurou a camisola e aguardou que Kharim tivesse

saído do quarto, para vesti-la.

Estava deitada, com o rosto afundado no travesseiro, quando ouviu os passos dele. Fingiu que estava dormindo e continuou de olhos fechados.

— Olhe para mim. Eu sei que você não está dormindo.

Ela virou a cabeça e encarou-o com os olhos entreabertos. Kharim estava com o capote de montaria em cima dos om­bros, como se fosse partir em viagem no meio da noite.

— Onde você vai? — perguntou ela com a voz sumida.

— Vou dormir lá fora, ao lado da fogueira. Nós vamos partir amanhã cedo, ao nascer do dia. Procure descansar bem esta noite. Temos uma longa caminhada pela frente.

Ao acordar na manhã seguinte, com a cabeça tonta de sono, Grace levou algum tempo para se orientar. Seu único desejo era continuar mais alguns minutos na cama, a cabeça afundada no travesseiro, relutante em admitir que estava dormindo na tenda do khan. Acordar completamente era o mesmo que reconhecer que estava com a liberdade tolhida, que seus passos eram dirigidos pela vontade de um outro. Ao ouvir passos leves no interior da tenda, Grace sen­tou-se na cabeceira da cama e aguardou com apreensão a entrada do visitante.

— Bom dia, lella. Dormiu bem?

Grace deu um sorriso e afastou os cabelos da testa.

— Dormi muito bem, obrigada, Shalena.

— Eu trouxe o seu café.

Ela recebeu a xícara de café que a moça lhe estendeu e fingiu não perceber o olhar que Shalena lançou para a cama, imaginando provavelmente que Kharim havia dormido ali. Grace tinha o costume de rolar de um lado para o outro durante a noite, o que dava a impressão de haver dormido com alguém ao seu lado.

— A que horas nós vamos partir, Shalena?

— Logo que os homens recolherem o acampamento.

— Dá tempo para tomar um banho?

— Só se for com água fria. Os homens já apagaram a fogueira.

— Não faz mal. Um banho frio agora vai bem. Vou me sentir mais disposta para a viagem.

— Vou apanhar a água — disse Shalena.

— Muito obrigada. E desculpe por todo esse trabalho que estou lhe dando.

— O que é isso, lella? Eu estou aqui para servi-la.

Shalena recolheu a xícara de café e partiu com seu andar gracioso, balançando os quadris e agitando a pulseira de prata que tinha no tornozelo. Shalena era o exemplo típico da mulher oriental: submissa, meiga, feminina ao extremo. Desde menina fora educada na obediência cega aos homens. Ela não se queixava nunca de sua condição, nem ansiava por ser uma mulher independente.

Grace apanhou na mala uma calça comprida e uma ca­misa limpas para vestir depois do banho. Feito isso, diri­giu-se à pequena alcova separada por um biombo de madeira onde estava a banheira de lona e aguardou com paciência a vinda de Shalena.

Minutos depois a moça voltou com a bacia de água na cabeça. Despejou o líquido na banheira e deu um sorriso.

— Olhe, seu banho está pronto. Precisa de mais alguma coisa, lella?

— Não, muito obrigada. Você é um amor, Shalena.

— Meu patrão mandou dizer que está esperando por você lá fora.

— Ah, sim? O que ele está fazendo?

— Está dando as ultimas ordens antes da partida. Dentro de alguns dias estaremos em Mahnaz.

— Eu não conheço esse lugar.

— É lá que fica o palácio do meu patrão. É muito mais bonito e confortável do que aqui — acrescentou Shalena com um sorriso. — Tem água encanada, luz, todo o conforto que você pode querer. Tenho certeza de que você vai gostar de lá.

Como ela podia explicar àquela moça humilde que Kha­rim a mantinha contra sua vontade, que ela era de fato sua prisioneira?

— Deus queira. Embora eu preferisse voltar ao meu país.

— Por quê, lella? Você não gostou daqui?

— Gostei muito, mas estou com saudade de casa. Depois que Shalena saiu, Grace entrou na banheira e

ensaboou-se rapidamente, ouvindo os alaridos de uma gran­de atividade no acampamento. Todos se preparavam para partir. Alguns amarravam os fardos nos lombos dos animais de carga, outros recolhiam as barracas e as enrolavam como grandes canudos de pano. As crianças gritavam e corriam de um lado para o outro, querendo ajudar os adultos.

No meio da algazarra geral, Grace reconhecia às vezes

a voz poderosa do khan que dava as últimas ordens antes da partida.

Ela tinha terminado de se vestir e de calçar as botas de montaria quando ele entrou na barraca.

— Bom dia, querida. Dormiu bem? Não estranhou a cama?

— Dormi muito bem, obrigada — disse Grace com frieza, por pura educação.

— Vamos tomar café? — perguntou Kharim, apontando para a mesinha de centro onde estava servida a bandeja habitual com uma grande variedade de biscoitos e de boli­nhos. — Achmed fez essas bolachas de água e sal para você. Ele disse que elas não engordam.

— Ah, muito obrigada.

— Por que você está tão calada? —- perguntou Kharim, servindo o café fumegante. — Perdeu a língua?

— Shalena me contou que vamos para Mahnaz.

— Exatamente. E lá que nós vamos morar.

— Nós, quem?

— Você e eu, querida. Quem mais podia ser?

— Você está louco!

— Você não está contente com a viagem?

— Eu não quero morar com você num palácio, como se fosse a sua concubina!

— E por isso que você está com essa cara pálida e desbotada como as flores do deserto? Você continua pensando em rugir?

— Na primeira oportunidade eu vou embora daqui.

— Você não aprendeu ainda que a mulher depende do homem, meu anjo?

— Algumas, talvez.

—Ah, mulher rebelde! Eu sei que você tem o sangue quente, como já senti uma vez na palma da mão. Graças a Deus você não tem nada de fria. Neste momento, por exemplo, você está com as orelhas vermelhas. De vergonha ou de excitação?

— De raiva. Seus elogios me ofendem.

— Você é uma criatura rara. As mulheres, em geral, adoram os elogios, e não fazem questão de saber de onde partiram.

— A conversa está boa, mas você não respondeu à minha pergunta.

— Qual? Não lembro mais.

— Eu lhe perguntei ontem por que você não me deixa partir antes de chegarmos à cidade. Eu não quero ser hu­milhada diante dos outros, nem arrastada para dentro do palácio como uma escrava comprada no mercado.

Kharim deu uma risada bem-humorada.

— Você é uma graça, querida, e tem uma imaginação fas­cinante, se bem que não corresponda muito à realidade. Pri­meiro, eu não vou arrastá-la para o palácio pelos cabelos. Segundo, você é minha convidada de honra e vai receber todas as homenagens de praxe. Terceiro, eu não posso abandoná-la de uma hora para a outra, em pleno deserto, sem antes ter lhe oferecido a minha hospitalidade. O que os meus amigos diriam se soubessem que a deixei partir à francesa, sem apre­sentá-la primeiro ao nosso pequeno círculo de amizades?

— Chega de brincadeira. Você me humilha com sua ironia,

— Estou falando sério. Admiro suas qualidades tanto quanto seus defeitos. Você monta a cavalo como uma ama­zona e não rola na sela de um lado para o outro. Eu gosto dessa postura, querida, tenho orgulho de andar a seu lado. Nós fazemos um belo par, você não concorda?

— Não, eu não concordo. Eu quero voltar para a minha casa.

— Você vai voltar um dia, mas não hoje.

Ela estava pensativa, de cabeça baixa, quando sentiu um objeto frio cair em cima do seu colo. Levantou os olhos au­tomaticamente e avistou uma jóia brilhante.

— Ponha esse medalhão no peito — disse Kharim. — É uma recordação dos dias que passamos juntos.

— Não posso aceitar este presente.

— Não seja ingrata. Faça o que eu lhe pedi. Prenda esse broche na camisa. Ou você prefere que eu espete sua pele sensível com meus dedos rudes?

Antes que Kharim pusesse em execução a ameaça, Grace apanhou a jóia em cima do sofá e observou-a atentamente. Era um medalhão muito antigo, que pertencia provavel­mente à família. As pequeninas turquesas estavam monta­das num suporte de marfim e a máscara esculpida em bai-xo-relevo era de uma perfeição sem igual.

— É um amuleto? — perguntou Grace por fim.

— É. Pertenceu à minha bisavó.

— Eu notei que você também usa uma correntinha no peito.

— A mão de Fátima. Todos os homens do deserto são supersticiosos. Há uma espécie de magia nas jóias, mas esse medalhão combina com você. A face de marfim, os olhos cor do céu, os cabelos claros. Esse amuleto vai lhe dar sorte.

— Deus queira. É disso que eu estou precisando.

— A turquesa protege as pessoas das quedas. Pode ser uma queda moral. Como a tentação espiritual, por exemplo.

Grace ouviu a explicação em silêncio.

— Quer dizer então que você não tem a intenção de me soltar tão cedo? — insistiu.

Ela tinha se levantado do sofá e encarou nos olhos o homem inquietante que tinha assumido o domínio total de sua pessoa, inclusive de seu futuro, e que pensava seduzi-la com presentes caros.

— No momento, não — respondeu Kharim com indolência.

— Você não pode me arrastar à força para Mahnaz! Eu sou uma mulher livre. Prefiro morar num barracão perdido no meio do mato a conviver com você num palácio. Eu odeio os presentes que você me dá. Você simboliza tudo o que eu desprezo. A arrogância, a autoridade inflexível, o egoísmo... Nenhum presente modificará a opinião que eu faço de você. Vou fugir na primeira oportunidade que surgir!

— Fugir para onde, amor da minha vida?

— Sei lá! Para qualquer lugar.

— A pé?

— A pé, a cavalo, no lombo de um camelo.

— Você não vai chegar muito longe.

Foi a ironia da resposta que lhe doeu mais. Kharim fazia pouco dela, mas Grace estava disposta a provar-lhe que era uma mulher de palavra.

— Eu vou tentar, mesmo assim. Você vai ver.

— Para todos os efeitos, você é minha mulher depois da morte de Tony. Se eu apanhá-la fugindo de mim, tenho o direito de puni-la. E, como você tem a pele sensível, eu preferia não ser obrigado a usar essas medidas extremas.

— Como sempre, você apela para a força bruta!

— É você que me obriga a isso. Por mim, nós teríamos um relacionamento maravilhoso...

Grace permaneceu um instante calada, mordendo o lábio, fervendo de ódio contra o homem que a tratava com tanta falta de consideração.

A mulher dele! A concubina encontrada no deserto! A pobre coitada que não tinha para onde ir...

A frustração e a impotência amarguravam seu coração. O bom senso lhe dizia, no entanto, que era inútil e arriscado fugir sem um guia. Mesmo que conseguisse roubar um cavalo, ela se perderia inevitavelmente no deserto imenso e sofreria toda sorte de horrores — o calor, a sede, a terrível solidão — antes de ser encontrada. Se é que seria encontrada...

Kharim pelo menos tinha um resquício de sentimento humano. O deserto não tinha nenhum, era absolutamente impiedoso. Uma pessoa perdida ali não tinha a quem re­correr e sofria sozinha toda sorte de privações.

— No que você está pensando? — perguntou Kharim, segurando-a pelo queixo.

— Em fugir de você.

 

Mas o deserto, no fundo, era uma prisão deliciosa, e a simples imensidão da paisagem fascinava-a e aterrava-a ao mesmo tempo. Grace observou, a caminho de Mahnaz, que o khan e sua gente adoravam o sol, como os povos pagãos. Podiam viajar o dia inteiro, embaixo de um sol escaldante, sem necessidade de parar.

Grace aprendeu a comer com as mãos durante a viagem. Abria o pão árabe ao meio e colocava lá dentro uma fatia de carne grelhada, como se fosse um sanduíche de pão francês. Mas era difícil comer dessa maneira sem lambuzar as mãos.

No íntimo, ela se orgulhava com seus progressos e com a facilidade com que se adaptava à etiqueta dos povos do deserto. Nada lhe agradava mais do que deitar numa esteira ao ar livre, no fim do dia, apôs uma viagem de léguas e mais léguas, e contemplar o céu coalhado de estrelas.

Por outro lado, ela nunca sabia o que se passava na cabeça de Kharim. Aparentemente, ele tinha o talento es­pecial para relaxar nos intervalos da atividade, embora es­tivesse sempre atento a tudo o que se passava à sua volta. A menor tentativa de fuga, ele saltaria sobre ela como um grande felino. Era o medo de ser capturada pelo khan que a impedia de tentar a fuga no meio da noite, como ela pensara tantas vezes ser possível.

O nascer do sol no deserto era uma festa que se repetia todos os dias. As crianças eram as primeiras a acordar. Corriam de um lado para o outro do acampamento, brin­cavam e corriam antes do café. Pouco a pouco os outros membros da caravana acordavam e recomeçavam os pre­parativos da viagem interrompida.

Uma manhã, inesperadamente, choveu em pleno deserto. As flores silvestres brotaram em profusão no solo arenoso, junto às encostas dos morros. Parecia um tapete que se estendia em todas as direções, vermelho, azul, lilás, branco e amarelo. As flores abriam durante um ou dois dias e murchavam tão rapidamente quanto tinham florescido.

Quando a chuva caiu naquela manhã, Kharim convidou-a para dar um galope em volta do acampamento.

Com o capote comprido esvoaçando sobre a garupa do alazão, Grace partiu no galope em direção às dunas ama­relas que ondulavam em cima dos morros baixos. As gotas de chuva rolavam pela face sorridente. Da areia molhada vinha o cheiro forte do deserto, que lembrava o da grama recentemente cortada. Em dado momento, Grace estancou o cavalo arisco e voltou-se na sela, à espera de Kharim, que galopava logo atrás.

— Que gostoso!

Ela tinha o rosto corado embaixo do chapéu branco de pano.

— Você se molhou muito?

— Só um pouquinho. É a primeira vez que ando a cavalo debaixo de chuva — acrescentou com um sorriso.

— Gostou?

— Adorei!

— O deserto tem seus momentos de lazer — disse Kharim com ironia. — Logo você não vai querer mais sair daqui.

— Duvido — disse Grace, esporeando o cavalo alazão.

 

Naquela noite, depois de acamparem e jantarem ao ar livre, Kharim despediu-se dela e deitou ao comprido ao lado da fogueira, embrulhado no capote comprido de montaria.

Grace virou para o lado na sua esteirinha de palha e afundou a cabeça no travesseiro improvisado que tinha feito com uma malha de lã.

Na manhã seguinte, depois de tomarem café e de levan­tarem acampamento, Kharim anunciou que aquela era a última etapa da viagem.

— Hoje à noite vamos acampar em Mahnaz.

— Shatena está muito animada com a festa do casamento — disse Grace, lembrando-se do sorriso que a moça lhe dirigira um dia antes, quando lhe contou que ia se casar com Achmed, o cozinheiro de Kharim.

— Ela me contou que você foi convidada para ser a madrinha.

— Pois é. Ela é um amor...

Grace tinha feito amizade com Shalena e aceitara de bom grado o convite, sem contar que estava curiosa para assistir a uma cerimônia de casamento em pleno deserto, segundo os costumes tradicionais da tribo.

— Você vai gostar da cerimônia — disse Kharim. — É uma festa ao ar livre, com barracas de comidas e de bebidas, num ambiente de grande alegria.

— Faço idéia.

— Há uma crença muito antiga segundo a qual as pessoas que se casam no deserto são abençoadas pelas forças naturais, como o vento, o sol, a lua e as estrelas. E por isso que os nômades são chamados entre nós de "os filhos das estrelas".

— Que graça!

— Como você já viu, eu tenho o vento e a tempestade nas veias — acrescentou Kharim com um sorriso. — Prefiro dormir ao ar livre, embrulhado num capote grosso, do que na melhor cama do mundo.

— Mentira! Você adora o conforto, o luxo, como eu vi na sua tenda.

— Essas coisas fazem parte da minha condição de chefe da tribo. Como expliquei a você, todos os objetos valiosos que se encontram na barraca são propriedade de todos.

— E o palácio? Também é propriedade de todos? Kharim deu uma risada bem-humorada.

— Não, o palácio é um bem de raiz.

— E você mora lá como um grão-senhor?

— Mais ou menos. Como o palácio fica perto das pasta­gens de verão, eu aproveito para passar uns dias lá e ver se está tudo em ordem. Além disso, vou tomar parte em alguns processos na justiça.

— Na condição de juiz?

— É.

— É o cumulo!

Kharim fitou-a com expressão divertida.

— Por quê?

— Você merece a cadeia por sequestro!

— Foi o destino que nos aproximou, querida. Se você não tivesse ido àquela festa de casamento, eu não a teria conhecido. E quando você voltou pela segunda vez a Reza Shahr, eu concluí, logicamente, que o destino fazia questão de nos unir.

— Bela lógica! Foi você que se ofereceu para guia da expedição.

— Claro, mas você sabia, no fundo, que eu não era um simples guia. Eu surpreendi muitas vezes o seu olhar in­terrogativo. Os guias, em geral, são indivíduos submissos e obsequiosos. Você me humilhou de propósito na frente do seu marido para ver a minha reação.

— Que absurdo! Nunca me passou pela cabeça que você era um chefe de tribo. Caso contrário eu não teria embarcado nessa viagem. Só uma louca varrida correria esse risco! Atirar-se de olhos fechados nas mãos de um seqiiestrador...

Kharim deu uma risada divertida.

— Você tem a língua afiada como poucas. As mulheres orientais, de uma maneira geral, são silenciosas e cordatas.

— Eu aprendi desde cedo a ser independente, graças a Deus. Não fui educada com a idéia de que devia agradar aos homens e satisfazer todos os caprichos do meu futuro marido. Eu sou livre por natureza. Você está farto de saber disso. Mesmo assim, não quer reconhecer que cometeu um grave erro ao sequestrar uma mulher inglesa.

— Pode ser.

— Quais são seus planos para mim no palácio? Você vai me trancar num quarto escuro até eu ter a submissão de uma odalisca?

— Prefiro aproveitar seus encantos de outra forma — disse Kharim com um sorriso. — Eu já lhe contei o que aconteceu com a minha bisavó?

— Não. Nem quero saber.

— Não seja malcriada. É uma história interessante.

— Não me interessa. Eu sou filha de gente humilde. Não nasci com colherinha de ouro na boca, como você. Se meu avô não tivesse feito fortuna vendendo balas e caramelos, eu estaria trabalhando agora como balconista numa loja. Não descendo, como você, de uma família de khans. Mas sou uma mulher livre, graças a Deus, e não entendo como alguém pode ser tão insensível e sem consideração pelos outros, como você.

— Você está sendo de uma injustiça atroz — Kharim comentou com indolência. — Foi tratada com todo respeito durante sua estada no deserto. Todos pensam, inclusive, que você é minha amante...

— Mas eu não sou! — berrou Grace com raiva. — Eu sou a viúva de um lorde e você me faz sentir como se eu fosse uma prostituta!

— Está bom, querida, está bom. Foi sem querer. Grace mordeu o lábio com despeito. Virou a cabeça para

o lado e contemplou em silêncio a extensão de areia per­corrida pela pequena caravana composta de animais e de uma população em trânsito.

Era em ocasiões como essa que Grace se sentia intimidada diante do khan. Afinal, ele era o chefe absoluto de uma tribo de nómades e, quando a ocasião se apresentava, assumia um aspecto realmente temível. Os olhos verdes infundiam respeito, a voz adquiria uma solenidade especial, e da figura dele ir­radiava uma autoridade que mantinha as pessoas a distância.

— O que você faria se eu fugisse?

A pergunta inesperada apanhou-o de surpresa. Ele voltou-se na sela e fitou-a um instante em silêncio, antes de responder

— Antes de mais nada, eu lhe daria uma surra.

Ao dizer isso, levantou-se nos estribos e estalou o chicote no ar. A ponta do chicote tocou de leve no ombro de Grace e ardeu como uma agulha em brasa. Ela o encarou com os olhos brilhantes de ódio. Teria matado aquele homem, na­quele instante, sem a menor hesitação,

O areal parecia ondular-se na sua frente como as vagas do mar. Grace tinha os olhos rasos d'água e seu ódio era tão grande que a cegou momentaneamente para tudo em volta. Seus lábios estavam trêmulos de frustração e de im­potência. Ele era bruto, arrogante, odioso — mas ela não tinha condições para agredi-lo fisicamente.

Para dar vazão à sua fúria reprimida, esporeou o cavalo com toda a força. O animal, arisco por natureza, partiu imediatamente no galope, levantando uma nuvem de poeira. Grace agarrou-se na crina, assustada inicialmente com a ideia de fugir para longe do khan. O capote comprido chicoteava a garupa do cavalo e a paisagem passava em sua volta como uma fulguração dourada. Pouco a pouco, foi assaltada pela sensação inebriante da velocidade e não lhe ocorreu que podia se perder no deserto.

Quem sabe encontraria um oásis ou um grupo de beduínos que a defenderiam do khan? Ela não diria que estava fugindo dele, evidentemente. Explicaria apenas que estava perdida no deserto e que necessitava de um guia para voltar à cidade mais próxima. Com um pouco de sorte, voltaria sã e salva a Reza Shahr.

Sua esperança, porém, foi por terra no instante em que o cavalo tropeçou numa pedra enterrada na areia e caiu de bruços no chão. Grace foi atirada para o alto e rolou sobre a areia, enquanto o animal se debatia no solo sob a violência da queda.

Ela se levantou no mesmo instante e levou a mão ã boca ao perceber que o cavalo tinha quebrado a perna dianteira no tombo. Ele estava caído no chão e não podia se levantar, embora agitasse com nervosismo a cabeça e o pescoço. Os olhos estavam saltados e uma baba escorria da boca exa-geradamente aberta.

Sem saber o que fazer para aliviar a dor do animal, Grace ajoelhou-se ao lado dele e afagou hesitantemente a cabeça suada. Embora o sol estivesse a pino, ela sentiu um arrepio ao presenciar os estertores do pobre animal e ao pensar na reação de Kharim quando tomasse conhecimento do fato.

Ela não conseguia fugir... O próprio deserto tomava o partido dele, armava-lhe ciladas como aquela pedra enter­rada na areia.

A fim de tomar coragem para enfrentar a fúria do khan, Grace apanhou o cantil que estava preso na sela e bebeu um gole comprido. Em seguida, colocou o cantil na boca do animai e afagou-lhe a cabeça. O cavalo encarou-a com uma expressão tão comovente que ela explodiu no pranto e abra­çou-se ao pescoço do animal, na esperança de aliviar um pouco o sofrimento dele com esse gesto de carinho. Era um animal tão belo, tão veloz, e agora, unicamente por culpa sua, estava inutilizado para sempre.

Grace temia a vinda do khan mais do que tudo. Era inevitável que ele a encontrasse, uma vez que as pegadas do cavalo estavam bem visíveis na areia.

De fato, alguns minutos depois, ela foi alertada pelo ruído de cascos. Levantou a cabeça e avistou ao longe o grupo de cavaleiros que vinha na sua direção. Aproximavam-se a ga­lope e os capotes compridos, presos no peito, esvoaçavam ao vento como se fossem grandes asas negras.

Kharim rumou diretamente para o local onde ela estava. Ele parecia a imagem do anjo vingador que vinha cobrar o tributo que lhe era devido. Ela se levantou, aterrada, com a intenção de se proteger de alguma forma da fúria dele. No momento porém em que o cavalo caído ouviu o tropel dos outros animais, começou a debater-se sobre a areia e a produzir sons abafados de agonia, como acontecera no instante em que quebrara a perna.

Kharim parou a alguns passos do animal ferido. O capote rodopiou em volta do tronco no instante em que pulou do cavalo e observou-a em silêncio, com a fisionomia fechada. Ela nunca tinha visto antes uma expressão tão terrível no rosto dele. Os olhos verdes lançavam faíscas de ódio.

— Sua louca! — exclamou por fim. — Você aleijou o meu cavalo!

Grace ouviu a acusação em silêncio, como se estivesse afun­dada na areia e não pudesse se mover dali. Não conseguia abrir a boca. De que adiantava, aliás? Era inútil defender-se ou des­culpar-se. Ele estava com tanta raiva que não aceitaria nenhuma explicação. Tanto fazia falar quanto permanecer calada.

Ele deu um passo na direção dela como se fosse agredi-la fisicamente. Grace recuou instintivamente e levou as mãos ao rosto, num gesto de defesa.

Kharim porém limitou-se a afastá-la do caminho com bru­talidade e aproximou-se do animal acidentado. Agachou-se ao lado dele e examinou atentamente a perna quebrada.

Alguns homens tinham descido dos cavalos e observavam a cena em silêncio, a alguns passos dali. Um deles aproxi­mou-se finalmente e confabulou em voz baixa com Kharim. Dirigiu-se em seguida ao local onde Grace continuava sen­tada no chão, com os olhos vermelhos e lacrimejantes.

— Vamos nos afastar daqui — disse o homem em voz baixa. — O animal será sacrificado.

Ela se levantou com um pulo do chão e correu na direção do khan.

— Ah, não! Você não pode fazer isso apenas para me punir. Ele poderá ficar bom...

— Não seja idiota. Já basta o que você fez — respondeu Kharim com irritação. — Nós não temos condições de trans­portar o cavalo para o acampamento. Ele está sofrendo inu­tilmente. A morte nesse caso é uma medida de piedade. Afaste-se daqui!

Grace afastou-se de cabeça baixa, com as pernas trému­las. No instante seguinte ouviu o estampido do tiro. Levou as mãos aos ouvidos e voltou-se a tempo de ver o cavalo imobilizar-se, após um último estertor.

As lágrimas saltavam dos seus olhos como gotas de chuva quando Kharim levantou-a no colo e colocou-a em cima da sela. Montou em seguida atrás dela e passou os braços em volta de seu corpo, a fim de segurar as rédeas. Imediata­mente o cavalo tordilho começou a sapatear nas patas tra­seiras, arisco, enquanto balançava a cabeça e a crina com­prida. Kharim murmurou algumas palavras e o animal par­tiu no galope, deixando para trás o cadáver do alazão.

Grace procurou manter o tronco ereto, a fim de evitar qualquer contato com Kharim. Sua mente no entanto recebia todas as impressões sensoriais que vinham da proximidade do corpo dele. Um arrepio lhe percorria a espinha toda vez que o tronco do khan roçava nas suas costas. Podia sentir inclusive a respiração regular na sua nuca, por baixo dos cabelos que esvoaçavam ao vento.

Por que ele a mantinha presa se ela só lhe dava abor­recimento? Por que não lhe concedia a liberdade? Que razão podia ter para guardar uma mulher que não suportava a prisão, que ansiava pela liberdade?

Talvez Kharim agisse assim apenas por uma questão de honra, para que os homens da tribo não pensassem que Grace se recusara a ser sua concubina.

Deu um suspiro e dirigiu os olhos para a paisagem que se descortinava à sua frente. O sol poente mergulhava no horizonte no meio de uma cortina de franjas violeta e laranja. O tempo no deserto passava sem as pessoas perceberem. Quan­do davam por si, era noite. Envolto na mortalha roxa, o astro do dia parecia desfalecer lentamente numa espécie de agonia, até ser coberto completamente pelo manto negro da noite.

O vento da tarde começava a soprar em lufadas regulares, anunciando que o dia tinha terminado e que os homens podiam se preparar para um repouso merecido.

Grace admirava a beleza e o drama do deserto como um dos espetáculos mais prodigiosos que assistira na vida. Fe­chou os olhos para saborear sua emoção em silêncio, consigo mesma, sem perceber no entanto que sua cabeça estava quase apoiada no ombro de Kharim.

Sentia uma sensação reconfortante de segurança e de bem-estar. Parecia estar flutuando numa espécie de limbo, entre a infância e a idade adulta. Embalada pelo galope regular do cavalo, mergulhou num sono profundo depois de um dia exaustivo, repleto de acontecimentos desagradáveis.

 

Grace acordou na manhã seguinte no interior de uma tenda. No primeiro instante ficou desorientada, sem saber como tinha ido parar ali. Quem a levara para lá? A última lembrança que lhe ocorria era de estar montada no cavalo, enlaçada por Kharim.

Tinham chegado a Mahnaz durante a noite, sem ela per­ceber? Com os olhos pesados de sono, olhou em volta de si e viu que a barraca estava praticamente vazia, com exceção da esteira onde estava deitada e de uma lâmpada de azeite pendurada no teto.

Estava absorta nesses pensamentos quando Kharim en­trou na tenda.

— Descansou bastante?

— Foi você quem me trouxe para cá?

— Você estava dormindo e eu não quis acordá-la.

— Onde estamos? — perguntou Grace para confirmar sua suspeita.

— Em nosso acampamento de verão, em Mahnaz.

— Ah!

— Você ainda está muito zangada comigo?

— Não. Já passou.

— Ainda bem. Você viu no que dá rebelar-se contra o destino? Você podia ter quebrado um braço na queda. Ou a cabeça...

— Podia...

— Eu vou lhe contar o que aconteceu certa vez com uma moça da sua idade. Tinha chovido na noite anterior e ela saiu do acampamento na manhã seguinte para colher as

flores que brotam nas encostas dos morros. Como fazia mui­tas horas que ela tinha saído, a família ficou preocupada e organizou uma busca. Após darem uma batida pelas re­dondezas, foram encontrá-la atirada no fundo de um poço.

— Que horror!

— Alguns homens, soldados, provavelmente, avistaram-na sozinha longe do acampamento e a levaram para o oásis onde estavam acampados. Após abusarem dela, jogaram-na no fundo do poço. Você já imaginou o que podia acontecer com você, sozinha no meio do deserto?

— Nem me fale!

— Pense nisso antes de tentar fugir novamente de mim.

O casamento de Shalena estava marcado para aquela tarde. Depois de tomar banho e fazer a maquilagem, Grace vestiu-se para a festa com um conjunto branco de seda e sapatinhos forrados de cetim. Estava terminando a pintura dos cílios quando Kharim entrou na tenda.

Os olhos verdes percorreram-na com um misto de apro­vação e de cobiça, desde o penteado à maneira grega até os sapatos decotados que deixavam os pés à mostra.

— Parabéns! Você está tão bonita quanto a noiva. Po­díamos aproveitar e fazer uma cerimônia dupla.

— Deus me livre!

— Aposto que você seria mais feliz comigo do que com Tony.

— O casamento não significa nada para você. Se a mulher se tornar um peso, você se divorcia dela com as palavras de praxe: "Vamos. Vá embora! Um, dois, três..." Está pensando que eu não sei? Eu já li o Alcorão. Como sempre, a lei protege os homens e não tem a menor consideração pelas mulheres. O mundo é o mesmo em toda a parte. As mulheres que se julgam iguais aos homens estão completamente loucas!

Kharim deu uma risada e segurou-a pelo queixo.

— Você queria ser homem?

— Que pergunta!

— Se você fosse homem, não estaria agora aqui comigo.

— Graças a Deus!

— Seja franca. Confesse que você adorou esses dias pas­sados no deserto. Eu vi a alegria estampada nos seus olhos.

Grace abaixou a cabeça para furtar-se ao seu olhar.

— O que você queria? Que eu passasse os dias chorando? Kharim levantou-lhe o queixo e ela foi forçada a encará-lo

nos olhos.

— Vamos conversar sobre isso com calma numa outra hora. Agora os noivos estão nos esperando. Lembre-se de que você é a madrinha. Faça uma cara alegre para Shalena não pensar que você está arrependida de ter aceitado o convite. Você já escolheu o presente que vai dar a ela?

— Já. Está aqui comigo.

— Vamos, então.

Shalena estava sentada numa cadeira ao lado dos pa­rentes e amigos. Tinha a face fortemente pintada, como uma imagem de igreja. Por baixo do véu comprido que lhe cobria os ombros estava com uma blusa de mangas rendadas e um colete justo no corpo. Em lugar da túnica habitual, vestia uma pantalona de seda, presa na canela. Os sapati­nhos eram forrados de cetim e bordados com fios de ouro.

O patriarca da tribo tinha feito belos desenhos com hena na palma das mãos e na sola dos pés, para lhe trazer alegria e felicidade no casamento.

Kharim deu a mão à noiva e conduziu-a em direção ao noivo, que aguardava o início da cerimônia ao lado do pa­triarca da tribo, que exercia a função de sacerdote. O livro sagrado que o patriarca segurava nas mãos, encadernado de couro e com filetes dourados, brilhava à luz da fogueira erguida no meio do acampamento.

No dia anterior, Shalena tinha mostrado a Grace os pre­sentes tradicionais que recebera do noivo. O pão de mel, um saquinho de chá, o xale de seda, um anel de diamantes e os brincos de ouro.

No momento em que o patriarca leu as palavras no livro sagrado, o noivo levantou o véu da noiva e colocou nos seus lábios um torrão de açúcar. No instante seguinte, a noiva repetiu a mesma cerimônia com o noivo.

Após serem declarados marido e mulher pelo patriarca, os recém-casados beijaram as páginas amarelas do Alcorão com todo o respeito que os muçulmanos devotam ao livro sagrado. Os beijos entre o casal, como é costume no Ocidente, eram trocados mais tarde, na intimidade do quarto.

Kharim juntou as mãos dos recém-casados e expressou os votos costumeiros de felicidade e de prosperidade. O pre­sente do khan para Shalena foi um belo pônei, que foi trazido pela mão de uma menina para o local da festa. O freio e todas as partes de metal do arreio eram de prata. Achmed recebeu do khan uma carteira de couro com a quantia su­ficiente para construir uma casa. Se preferisse levar a vida de nômade, como seus antepassados, podia comprar um re­banho de carneiros.

As notas estridentes dos violinos deram início à festa. Sha­lena voltou a sentar-se na cadeira de espaldar alto, na com­panhia dos parentes e amigos. Achmed, por sua vez. reuniu-se a um grupo de homens que conversavam perto da fogueira.

Em seguida, as mulheres da tribo começaram a servir aos convidados as comidas que tinham sido preparadas na véspera. Grace arregalou os olhos com a variedade de pratos que lhe foram oferecidos. Perdiz assada na brasa, frango de leite acompanhado de arroz marroquino com amendoim, carneiro assado, espetinho de carne, coalhada seca para pas­sar no pão, homus e uma infinidade de outras iguarias, cada uma mais gostosa e apetitosa que a outra.

— Prove um pouquinho de tudo — disse Kharim no seu ouvido com um sorriso malicioso. — Senão as mulheres vão pensar que você não gostou da comida árabe.

— Você quer me matar? — exclamou Grace, servindo-se de uma colher de arroz marroquino e de uma coxa de frango.

Depois do jantar, Grace aproxímou-se timidamente da cadeira onde Shalena estava sentada como um ídolo coberto de pedrarias. Ela tinha o véu levantado para que os con­vidados pudessem admirar as jóias que ganhara.

Grace deu-lhe um beijo no rosto e colocou na mão dela uma caixinha embrulhada em papel de seda. A bela pulseira de diamantes que herdara de sua avó aumentaria o prestígio da noiva entre os parentes e conhecidos.

— Muitas felicidades, Shalena. Você é a noiva mais bonita que eu já vi.

— Muito obrigada, lella — disse Shalena com o rosto radiante.

Grace retirou-se, comovida, e dirigiu-se ao bosque de palmeiras que cercava um lado do acampamento. Ela desejava refugiar-se alguns minutos na solidão para pôr suas idéias em ordem e pensar no futuro que a aguardava no palácio do khan.

Entretanto, mal tinha dado alguns passos, ouviu seu nome ser pronunciado em voz baixa perto dali. Voltou-se surpresa e reconheceu o vulto alto de Kharim, encostado no tronco de uma palmeira.

— Vim convidá-la para tomar café na minha tenda.

Grace obedeceu em silêncio e dirigiu-se ao local onde a barraca do khan tinha sido montada naquela tarde, isolada das demais. Uma passadeira vermelha estava estendida na entrada.

Depois de tomarem café e de beberem um licor de romã, que era uma especialidade da tribo, Kharim sugeriu que voltassem para o centro do acampamento, onde estavam os outros convidados.

Nesse meio tempo, uma moça tinha começado a dançar no círculo formado pelas fogueiras. Estava de pés descalços, com uma saia bem rodada e um colete de veludo bordado com fios de ouro. A blusa, de mangas amplas, estava coberta de rendas, como se fosse uma odalisca.

A moça dançava ao acompanhamento de uma cítara persa e dos tambores que marcavam o ritmo fortemente sincopado. Rodopiava com a graça e a leveza de uma dançarina de flamenco e batia no solo com os pés pequeninos. Tinha as pestanas e os olhos fortemente pintados, a durante todo o número não desviou o olhar do khan.

Os brincos de ouro balançavam e prendiam-se entre os fios de cabelos que caíam sobre as orelhas. No tornozelo tinha uma correntinha de prata cheia de moedas, que ti­lintavam ininterruptamente, como se fossem guizos.

Ela não era tão bela nem tinha as feições delicadas de Shalena, mas seu corpo elástico irradiava uma sensualidade como Grace nunca tinha visto em mais ninguém.

A moça morena, contudo, ignorou a presença de Grace e continuou olhando diretamente para Kharim, enquanto rodopiava a saia e mostrava as pernas bem-feitas. Como se estivesse tomada por um transe, ela girava cada vez mais rapidamente, cada vez mais perto do khan. No instante em que o acompanhamento frenético dos tambores atingiu seu ponto culminante, Kharim enfiou a mão no bolso e atirou algumas moedas de prata aos pés da dançarina.

A moça morena agachou-se, ao compasso da música, apa­nhou uma das moedas que estava caída no chão e atirou-a em cima de Grace.

— Que insolência! — exclamou Kharim, com o rosto ver­melho de raiva. — Você viu só o que ela fez?

Grace segurou-o pela manga da camisa antes que ele se levantasse.

— Por favor, não faça nada. Vamos fingir que eu não vi. Hoje é dia de festa.

— Ela foi de uma insolência extrema — murmurou Kha­rim, segurando as dobras do capote comprido junto ao corpo.

— Ela merecia uma lição de bons modos. Onde já se viu? Faltar ao respeito a uma convidada na minha frente!

— Ela ficou com ciúme de você.

Antes que Kharim pudesse comentar alguma coisa, Ach-med apareceu no centro do acampamento na companhia dos amigos. Com os capotes compridos encobrindo as feições morenas, pareciam um bando de cavaleiros que iam raptar a moça. Shalena observou a cena com uma certa apreensão. De fato, havia um elemento primitivo na cerimónia, ao mesmo tempo excitante e levemente assustador. Os amigos de Achmed levantaram Shalena no colo e levaram-na para a tenda que estava preparada para receber os recém-casados. Na entrada havia um cortinado de contas, entremeado de guizos e de amu­letos que tinham por função afastar os maus espíritos.

Os tambores estavam rufando freneticamente quando os panos da barraca se abriram de par em par para dar pas­sagem ao casal. Sob a lâmpada de azeite que bruxuleava no interior da tenda, Grace avistou Shalena estender os braços finos e passá-los em volta do pescoço de Achmed. No instante seguinte, os panos da entrada foram abaixados, encobrindo da vista a intimidade do casal.

Grace quase pulou quando sentiu o contato de uma mão em seu braço.

— Você está morrendo de sono — disse Kharim. — Vamos dormir.

Ela o encarou com os olhos arregalados.

— Juntos?

— Se você preferir — disse Kharim com indolência. Ela queria fugir dali, mas o corpo recusava-se a mover.

Queria gritar, pedir a ele para deixá-la sozinha, mas a língua estava colada no céu da boca.

Antes que voltasse a si de seu espanto, Kharim levantou-a nos braços e transportou-a no colo como se fosse uma criança pequena. Ele abriu os panos da entrada com os ombros e levou-a diretamente ao quarto de dormir, onde deitou-a na cama grande de casal, sob o cortinado que estava descido para protegê-la dos mosquitos.

— Por que você está tão calada? — perguntou Kharim, fitando-a com atenção.

— Não sei — murmurou Grace, sem afastar os olhos de sua boca sensual.

— Amanhã, no meu palácio, você terá um quarto com chave na porta. E, na primeira oportunidade, vou levá-la de volta para Reza Shahr. Eu sei que você está ansiosa para rever seus amigos. Nossa aventura no deserto terminou esta noite... com o casamento de Shalena.

Sem aguardar resposta, Kharim fez meia-volta e retirou-se do quarto de dormir. Grace ouviu durante alguns segun­dos o tilintar da cortina de contas, balançada de um lado para o outro, ferindo seu coração.

Ela nunca tinha experimentado antes uma sensação terrível de solidão. O vazio repentino que se fez no quarto, depois da partida de Kharim, era a prova evidente da dependência que havia se criado entre os dois nos últimos dias.

 

Lá embaixo estendia-se o areal amarelado, a perder de vista. No alto da serra, contudo,

tinha-se a impressão de entrar numa mata luxuriante. A pequena caravana deixou a areia quente do deserto para trás e, passo a passo, galgou os morros íngremes de Mahnaz. Mahnaz! A pequena cidade parecia acariciada pela brisa que balançava as folhas das árvores seculares. Ao nascer do dia os pastores tinham conduzido os rebanhos aos pastos de verão, onde as cabras e os cabritos regalavam-se com o capim-gordura que brotava ali depois das chuvas recentes. Em alguns pontos o capim era tão alto que encobria os carneirinhos que pastavam ao lado das mães.

Era ali, no alto daquele morro, que se erguia o palácio dos khans, homens enérgicos que passavam o poder de pai para filho há muitas gerações. Khan Rahi, o fundador da dinastia, fora um guerreiro ilustre que se sobressaíra nos combates com as tribos nômades que tentaram apoderar-se de suas terras à força das armas.

Grace estava com o coração disparado no instante em que galgou a encosta do morro no meio da pequena caravana li­derada pelo khan. Era naquele palácio que iria ficar hospedada durante alguns dias, ou semanas, até que Kharim tivesse um tempo livre para conduzi-la de volta a Reza Shahr.

O cavalo preto que Kharim lhe dera, após o acidente no deserto com o alazão, espumava ao calor do meio-dia. Com o olhar voltado para a frente e as rédeas passadas entre os dedos, Grace refletia sobre os acontecimentos recentes e fazia planos para o futuro.

Dentro de alguns dias reveria os amigos que deixara em Londres, o avô, as tias e os tios, as amigas que frequentavam sua casa. Voltaria a fazer programas com os rapazes, a jogar tênis, dançar e jantar fora. Reataria a vida social que fora bruscamente interrompida pelo casamento com Tony. Entretanto, nenhum dos seus conhecidos tinha a persona­lidade enérgica e dinâmica do khan. Era bem provável que sentisse saudade dessa época passada no Oriente.

De uma fornia inesperada e misteriosa, Kharim deixara de ser o homem arrogante e insuportável que ela conhecera e se transformara numa figura amável, atenciosa, cheia de solicitude por seu conforto.

Grace sentiu uma pontada no fundo do peito. Durante alguns segundos a sensação foi tão forte que ela mordeu o lábio para não gritar de dor. O que estava acontecendo con­sigo? A idéia de voltar para casa era tão insuportável assim?

Mas estava tão habituada a esconder suas emoções pro­fundas que ouviu com a fisionomia impassível as palavras que Kharim lhe dirigiu naquele instante:

— Logo depois daquela curva no caminho, vamos avistar o palácio no alto do morro. Mais alguns minutos e sua aven­tura no deserto terá terminado.

— Pois é.

A face pálida, emoldurada pelo pano de linho que protegia a pele contra os raios do sol, não refletia em absoluto os sentimentos que ferviam no seu coração. Nem a emoção que experimentava ao perceber que estava derretendo fi­nalmente após muitos anos de frieza e de reserva. Ela o rejeitara tantas vezes antes que não podia admitir, sem um sentimento terrível de vergonha, que capitulara finalmente ao encanto irresistível do khan.

No momento em que Kharim voltou-se na sela e obser­vou-a atentamente, para ver se descobria algum vestígio de emoção na sua face, Grace recompôs-se rapidamente e assumiu a atitude fria e reservada que lhe era habitual.

— Você vai sentir saudade daqui?

— Quem sabe?

— Mas não muita... pelo visto.

— Eu não costumo me apegar às pessoas... nem aos lugares — Grace mentiu, afastando a cabeça para Kharim não perceber sua confusão.

— Seu quarto no palácio é mais confortável do que a tenda que lhe ofereci no deserto — acrescentou Kharim, com um sorriso irônico. — Agora, pelo menos, você terá plena liberdade de ação. Poderá inclusive fugir de mim, se quiser.

— Eu estou cansada de fugir.

— Ainda bem. Reconheço que você se comportou maravilho­samente bem na última parte da viagem. Não são todas as mulheres que suportam com paciência os incômodos do deserto...

— Foi você quem me ensinou a aguentar as privações — disse Grace com um sorriso brejeiro. — Eu estava muito mal-acostumada no início. Você me passou um pouco de sua energia. A quem você saiu, Kharim? A seu avô ou a seu bisavô, o Khan Rahi?

Kharim deu uma risada bem-humorada.

— Não zombe de mim, pequena. Se eu fosse um homem charmoso e insinuante, teria provavelmente mais sucesso com as mulheres do seu tipo. Por outro lado, se eu tivesse apenas essas qualidades, não poderia governar minha tribo. Para dirigir meu povo eu tenho que ser severo, firme e inflexível. São homens primitivos, rudes, criados na liber­dade e acostumados a agir por conta própria. Se eu fraquejar um instante, eles perderão o respeito por mim.

— Acredito.

— E duro ser realista e aceitar as pessoas como elas são e não como gostaríamos que fossem.

Naquele momento, chegaram à curva do caminho de onde se avistava o palácio. Kharim ficou em pé nos estribos e apontou para o alto do morro. Grace soltou uma exclamação de espanto quando enxergou a construção grandiosa que se erguia a pequena distância dali. No mais autêntico estilo barroco, frisando o rococó, o palácio era uma obra fascinante de pedras e tijolos. As torres e os minaretes brilhavam como ouro à luz forte do dia e as cúpulas de ardósia resplandeciam como jóias cravejadas de lápis-lazúli. O edifício era majes­toso, imponente, suntuoso como uma imagem de sonho.

Um bando de pombos sobrevoou o pátio interno no ins­tante que alguém bateu palmas de uma janela, alertando para a aproximação dos viajantes.

As romãzeiras, carregadas de frutos, formavam alas na entrada do palácio. O portão principal foi aberto de par em par para recebê-los. Enquanto Kharim conversava com os funcionários da casa — homens de turbantes e de túnicas brancas como neve e de calças justas no corpo — no pátio externo, Grace continuou sentada na sela do cavalo, atur­dida pela beleza do edifício. Aquela, sem dúvida alguma, era a residência do senhor poderoso de uma tribo de nô­mades, do chefe adorado por sua gente.

O piso do pavilhão da entrada era de lajotas verdes, lus­trosas, cobertas de desenhos e de arabescos coloridos. As colunas eram decoradas com plantas e animais. Em volta dali, as árvores e os canteiros de flores rivalizavam uns com os outros em perfume e opulência. As trepadeiras co­briam os muros de pedras, enroscavam-se umas nas outras, faziam uma verdadeira balbúrdia de cores vivas — amarelo, lilás, branco e vermelho. As campainhas que subiam pelas paredes da varanda perdiam-se nas janelas do andar de cima. Todos os quartos da casa tinham janelas de treliças, à maneira árabe, a fim de que as mulheres não fossem vistas de baixo por olhos indiscretos.

Grace imaginou que o Palácio das Romãzeiras tinha sido construído muitos séculos atrás por um senhor feudal, cujo sangue circulava nas veias de Kharim. Os homens que le­vavam vidas esforçadas e duras possuíam uma energia vital que se irradiava sobre seus descendentes. Aquele palácio era certamente um sonho encantado, um refúgio de beleza e de paz onde o khan repousava uma parte do ano dos trabalhos estafantes no deserto, onde as flores abriam com um viço incomparável e onde as abelhas preparavam o mel com as flores perfumadas das laranjeiras.

O palácio possuía a magia dos jardins secretos e dos verões passados ao ar livre nos anos dourados da infância. Grace en­contrara finalmente o jardim de Sabá, se bem que em condições inteiramente imprevistas e com o pressentimento de que, dentro de alguns dias, partiria dali para nunca mais voltar.

— Está gostando? — perguntou Kharim, após terminar a conversa com os funcionários da casa.

— É lindo demais! Eu nunca vi tantas flores na vida. Até parece que estamos no Éden...

— Você ainda não viu nada. Minha avó era apaixonada por jardinagem e recebia sementes de diversas partes do mundo. Você vai visitar mais tarde, com calma, os pomares que ela criou. Vamos... vou conduzi-la a seus aposentos. Sua bagagem não chegou ainda, mas dei instruções a Ha-thaya para providenciar uma muda de roupa nesse meio tempo. Ela vai preparar também seu banho, com sais e perfumes, como você gosta.

— Ah, que maravilha! Não vejo a hora de tomar um banho e trocar de roupa! — Grace exclamou com animação, esquecida momentaneamente de todas as brigas que tivera com Kharim nos últimos dias.

Ela o acompanhou por baixo de figueiras antiquíssimas, cujos galhos tinham vários metros de comprimento e eram da grossura de troncos. Atravessaram a porta da entrada, que era feita de madeira de lei ricamente trabalhada, como o portal de uma igreja, e foram recebidos com alegria pelos empregados da casa.

No teto abobadado do salão da frente havia pinturas que ilustravam os temas populares da tradição persa. As tape­çarias penduradas nas paredes, ao lado de arandelas de prata, eram ainda mais preciosas e belas do que aquelas que Grace tinha admirado na tenda do khan. Tudo refletia um extremo bom gosto. No canto da sala, grãos de incenso queimavam num turíbulo de prata, atirando para o alto pequenos rolos de fumaça azul.

Grace estava subindo a escada em caracol ao lado de Kharim quando tropeçou num ferro da passadeira e quase rolou do alto. Imediatamente ele estendeu o braço e segu­rou-a com firmeza pela cintura. O contato íntimo acendeu uma chama dentro dela.

Ela recuou instintivamente um palmo antes que cedesse ao impulso de atirar-se nos braços dele.

— Você se machucou?

— Não, não foi nada. Escorreguei na passadeira. Estou estranhando o chão firme depois de andar todos esses dias na areia fofa.

— É assim mesmo no início. Depois a gente acostuma. Kharim conduziu-a pela galeria rococó do segundo andar.

As paredes eram caiadas de branco com frisos de estuque, e refletiam a luz intensa que penetrava pelas janelas ovais, em cujos parapeitos uma pessoa podia sentar para admirar a paisagem.

As portas dos arcos eram pintadas de azul-celeste. No fim do corredor Kharim abriu uma porta e afastou-se da entrada para Grace passar.

— Este é o seu quarto. A porta tem uma boa fechadura, como você pode ver, e não há perigo de ser importunada por visitas indesejadas... nem mesmo por mim — disse Kha­rim, com um sorriso irônico. — Hathaya está preparando o seu lanche. Eu vou estar ocupado a tarde inteira, mas hoje à noite podemos jantar à luz das estrelas, como se estivéssemos no deserto.

— Que delícia!

— Até à noite, então. Salaam alaykum. — Com essas palavras lançadas da porta, Kharim despediu-se e foi cuidar dos seus afazeres.

Grace permaneceu no meio do quarto por alguns segun­dos, com a fisionomia pensativa. De que adiantava fechar a porta à chave se Kharim não ia visitá-la naquela tarde, e talvez em nenhum outro dia da semana? A aventura no deserto terminara, como ele próprio tinha dito.

Como as malas não tinham chegado ainda, Grace abriu um armário à procura de uma roupa para vestir depois do banho. Encontrou apenas uma túnica de seda, de um feitio tipicamente oriental, com as mangas bem amplas e os pu­nhos rendados. Examinou em seguida o quarto de dormir e abriu todas as portas que se comunicavam com o corredor ou com outras peças. Uma delas dava para um quarto de vestir. As janelas estavam fechadas e o assoalho de tábuas largas era coberto com um enorme tapete persa.

Abriu a veneziana de treliças que dava para uma saca-dinha, onde havia uma grade de ferro rendada. Lá do alto avistava-se o pomar de árvores frutíferas no fundo do quin­tal e ouvia-se o canto confuso de uma dezena de passarinhos.

Grace tornou a fechar a janela e saiu à procura do ba­nheiro. Sabia que os orientais davam grande importância aos banhos de imersão, mas nunca podia imaginar que a banheira fosse tão grande e confortável. Abriu as duas tor­neiras, de água quente e fria, e atirou um punhado de sais para perfumar o banho. Imediatamente os cristais se dissol­veram e deram à água uma tonalidade azulada, com filetes mais escuros que pareciam veios. Grace despiu-se rapidamente e afundou na banheira com uma exclamação de alegria.

A banheira era tão comprida que podia mergulhar o corpo inteiro sem dobrar as pernas. Fechou os olhos e afundou na água morna, sentindo os músculos doloridos relaxarem pouco a pouco, com uma sensação deliciosa de leveza.

Depois do banho ela voltou ao quarto de dormir, embru­lhada na toalha, e ficou surpresa ao avistar uma mulher morena, de cabelos negros, que a aguardava ao pé da cama com uma bandeja na mão.

— Bom dia, lella — disse a mulher, com um sorriso ca­tivante. Ela era bonita e estava vestida com uma simplici­dade extrema, embora os dedos das mãos estivessem cober­tos de anéis, como é costume no Oriente, mesmo entre as pessoas da classe pobre. — Eu trouxe o seu lanche.

— Ah, já sei, você é Hathaya — disse Grace, procurando conquistar a simpatia da empregada. — Kharim me falou que você está aqui há muitos anos.

— Exatamente. Eu sou a empregada mais velha da casa — confirmou Hathaya com orgulho, — Minha patroa tinha a pele clara como a sua e esses cabelos claros que a gente não vê por aqui.

Hathaya apanhou a escova em cima da penteadeira e, sem a menor cerimónia, começou a escovar os cabelos de Grace com um carinho de mãe.

— Como se chamava sua patroa, Hathaya?

— Rachel. Ela era uma mulher muito ativa.

— O que ela fazia, além de cuidar da casa? — perguntou Grace, curiosa para conhecer detalhes sobre a dona do ma­ravilhoso palácio onde estava hospedada.

— Ela fazia bordados, tecia tapetes e escrevia livros nas horas de sossego.

— Escrevia livros? — exclamou Grace, surpresa, viran-do-se no banquinho da penteadeira para fitar Hathaya nos olhos. — Que tipo de livro?

— Romances, memórias...

— Em inglês? — insistiu Grace, arregalando os olhos. — É, alguns em inglês.

— Não é possível! Ela se chamava Rachel Leah Boume, a romancista que viajou pelo Oriente e que desapareceu misteriosamente?

— Ela mesma. Por que você está trêmula, lella? Venha, sente-se aqui no sofá e tome esta limonada com açúcar que eu fiz para você.

Grace segurou a mulher pela mão e fitou-a no fundo dos olhos.

— Hathaya, eu preciso saber mais coisas a respeito de Rachel Leah Bourne. Ela era realmente a mãe de Kharim ou apenas a madrasta? Ela morava aqui, neste palácio?

— Ela morava aqui mesmo, se bem que ficou viúva pouco depois do casamento, quando o marido foi morto num com­bate travado no deserto. Mas estava grávida e foi neste mesmo quarto que minha patroa deu à luz o filho. O velho khan, o avô, estava vivo ainda nessa época e ele governou a tribo até meu patrãozinho completar dezesseis anos.

— Não me diga! Ele assumiu as funções tão moço assim? Grace não podia entender que um menino de dezesseis

anos governasse uma tribo que contava com milhares de homens espalhados pelo deserto, em locais muitas vezes desolados e de difícil acesso.

— Pois é. O khan atual tinha dezesseis anos quando perdeu a mãe e assumiu o governo da tribo. E quando eu soube pelos mensageiros que meu patrão tinha encontrado uma moça inglesa em Reza Shahr, e que estava vindo com ela para o palácio, não fiquei surpresa com a notícia. Eu sabia que, mais dia menos dia, ele gostaria de conhecer uma moça com quem pudesse conversar na mesma língua que conversava com a mãe.

Grace ouviu com atenção as confidências da velha em­pregada. Pouco a pouco estava começando a desvendar o enigma que envolvera sua existência nas últimas semanas. Era isso que os orientais denominavam mektub — o destino inevitável a que ninguém pode fugir.

O destino dela estava traçado desde o dia em que lera a autobiografia de Rachel Leah Bourne e que partira para o Oriente à procura do lendário Jardim de Sabá. Agora entendia o significado oculto do jardim... era o local paradisíaco onde a autora tinha encontrado o amor. Rachel conhecera o marido no deserto e fora ali, naquele palácio, que se apaixonara por ele. Após perdê-lo estupidamente, alguns meses depois do ca­samento, dedicou-se exclusivamente à educação do filho e es­creveu as memórias da sua vida nas horas livres.

Grace terminou de beber o chá de jasmim e pediu a Ha-thaya para lhe servir uma outra xícara.

Hathaya atendeu o pedido e insistiu para que Grace pro­vasse as costeletas de carneiro, o homus e a coalhada seca que estavam em uma travessa de prata. O pão árabe vinha num pratinho à parte e parecia uma boina. Grace aprendera a comê-lo no deserto e não se fez de rogada.

— Está bom, Hathaya, eu vou fazer sua vontade — disse, servindo-se um pouquinho de tudo.

— Você viajou muitos dias no deserto e precisa recuperar as energias, lella. Coma tudo. Eu quero dizer ao patrão que você raspou o prato.

— Nossa Senhora, Hathaya, até você quer me engordar à força?

Após as primeiras garfadas, porém, Grace sentiu-se com mais disposição para enfrentar o que o futuro lhe reservava. O receio inicial de encontrar pessoas hostis no palácio des­fez-se completamente após sua entrevista com Hathaya.

— E sua família, Hathaya, é toda daqui?

— Eu tenho três filhos, lella. Davoud, o mais velho, é ordenança do khan e você deve conhecê-lo, provavelmente.

— Claro que conheço. Conversamos muito na viagem. Ele é um rapaz encantador.

— Até demais — acrescentou Hathaya, com um sorriso. — Ele adora namorar e me confessou que não vai casar enquanto o khan permanecer solteiro. Os dois cresceram juntos. São quase irmãos de criação. Aprenderam a andar a cavalo ao mesmo tempo e são inseparáveis desde meninos. É por isso que meu filho não quer se casar primeiro, para não perder o amigo.

— Que graça! — exclamou Grace, com o coração batendo. — Quer dizer que o khan não é casado?

Na qualidade de chefe da tribo, ele tinha direito a ter quatro esposas, e era pouco provável que não tivesse pelo menos umas duas, nem que fosse apenas para garantir um herdeiro.

— Ele continua solteiro até hoje. Quando o khan era menino, o avô queria casá-lo com uma prima em segundo grau, mas minha patroa bateu o pé e foi contrária ao ca­samento. Ela disse que o filho tinha sangue inglês nas veias e que era livre para escolher a mulher de sua preferência, quando tivesse idade para isso. O velho khan concordou com a idéia e ficou decidido entre os dois que Kharim só casaria depois de atingir a maioridade.

— Entendo — disse Grace, pensativa.

— E até hoje ele não encontrou a mulher que lhe agrada.

— Pelo que ouvi contar, Hathaya, o khan pode ter até quatro esposas, não é verdade?

— Poder, pode, mas quem quer sustentar quatro mulheres hoje em dia? — exclamou a empregada, com uma risada bem-humorada. — Do jeito que a vida está cara, ninguém mais pensa nisso. Esse costume era bom antigamente, quando havia fartura de tudo, inclusive de mulheres. Além disso, o khan aprendeu com a mãe que o amor é um sentimento exclusivo. Minha patroa amava o marido e mais ninguém. Mesmo depois de perder o marido, ela não quis saber de mais ninguém.

— Você sabia que eu também sou viúva, Hathaya?

— Eu ouvi dizer — disse a empregada, corn a fisionomia repentinamente séria. — Mas espero que a lella não siga o exemplo da minha patroa. Você é muito moça e tem a vida pela frente...

A tarde tinha caído e o quarto estava mergulhado na penumbra quando Grace abriu os olhos, após algumas horas de sono profundo. Ficou desorientada no primeiro instante, sem saber onde estava. Pouco a pouco foi tomando cons­ciência dos acontecimentos das últimas horas.

Deu um suspiro e levantou-se da cama. Enquanto estava dormindo, alguém tinha colocado suas malas em cima da arca que estava encostada na parede. Ficou na dúvida se ia vestir uma roupa ocidental para o jantar ou se ia ficar com a túnica de seda, bordada com fios de ouro, que en­contrara no armário do quarto.

Após um instante de hesitação, optou pela túnica oriental e calçou os sapatinhos forrados de cetim que estavam na mala. No momento em que terminou de escovar os cabelos e fazer a maquilagem, a noite tinha descido completamente sobre o jardim do palácio- A animação de antes dera lugar a um silêncio profundo.

Ela foi até a sacada do quarto e debruçou-se na grade de ferro. O perfume dos jasmins era tão forte que chegava a dar tontura. Como as estrelas que brilhavam no céu, al­gumas flores só inundavam o ar com seu perfume à noite.  

No momento em que o relógio da torre deu as horas, Grace estremeceu de nervosismo. A qualquer instante um criado iria bater à porta do quarto para anunciar que o jantar estava servido e que o khan esperava por ela no alto do terraço.

O que ele diria de sua roupa oriental? Acharia graça de vê-la com uma túnica de seda, bordada com fios de ouro e profusamente rendada, que pertencera provavelmente a al­guma hóspede da casa? De uma coisa pelo menos Grace tinha certeza: as duas eram quase do mesmo tamanho. A túnica lhe caía à perfeição.

Estava mirando-se pela última vez no espelho grande da penteadeira quando bateram à porta. Grace foi atender com o coração na mão. Entretanto, em vez do criado da casa que pensava encontrar, deparou-se com Kharim em pessoa. Ele estava vestido com um terno de feitio europeu, escuro e formal, e com uma camisa azul-clara que acentuava a cor morena da pele. Os cabelos estavam impecavelmente as­sentados na cabeça e o rosto tinha a frescura de alguém que acabara de sair do banho.

Os dois caíram ao mesmo tempo na gargalhada.

— Qual! Você de terno e gravata!

— E você de veste turca! Esse vestido era da minha mãe!

— Eu estou muito ridícula com esta roupa? — perguntou Grace, com um sorriso sem graça. — Posso mudar num minuto...

— Não, de jeito nenhum. Você está mais bela e desejável do que nunca.

— Mas nós não estamos combinando um com o outro — insistiu Grace.

— Que importância tem? O jantar é íntimo. Não temos nenhum convidado. Vamos jantar os dois sozinhos no terraço, ao ar livre, para lembrar as noites que passamos no deserto. Kharim segurou-a pelo braço e conduziu-a ao grande terraço que ocupava uma parte da casa. No momento em que subiram a escada em caracol, Grace pensou mencionar a conversa que tivera com Hathaya, especialmente a parte que se referia a Rachel Leah Bourne. Entretanto, quando chegaram ao terraço descoberto, e ela debruçou-se no parapeito para admirar a paisagem, Grace sentiu-se inibida em mencionar o assunto íntimo na primeira noite que passava no palácio.

Era ali que Rachel subia depois do jantar para contemplar a imensidão do céu estrelado e o deserto que se estendia a seus pés, onde conhecera o único amor de sua vida.

Ao lado de Grace, debruçado sobre o parapeito, Kharim tinha o semblante pensativo e ela suspeitou de que ele tam­bém estava recordando os dias felizes de sua juventude.

Em dado momento, os dois se voltaram ao mesmo tempo e observaram-se em silêncio, com o olhar interrogativo. No ins­tante seguinte, como a estrela cadente que risca o céu e logo se apaga, um clarão relampejou entre os olhos azuis e os verdes, numa fração de segundo que pareceu durar uma eternidade.

A incandescência da verdade iluminou-os de sua luz intensa e Grace se sentiu tão certa do que ia acontecer que não desviou os olhos nem recuou a cabeça para trás quando Kharim se inclinou e beijou-a com paixão. O corpo inteiro ardeu sob o beijo. A sensação era ao mesmo tempo voluptuosa e sofrida. Embora Kharim fosse filho de uma inglesa, era no fundo do coração um homem do deserto, selvagem, primitivo, para quem o amor era um sentimento tão violento quanto os fenômenos naturais, a chuva, as rajadas de vento, a tem­pestade que matara Tony.

Kharim era o descendente dos antigos persas, o chefe de uma tribo de nômades, um homem em tudo estranho a ela. Mesmo assim, fora o único homem até então por quem Grace se apaixonara de todo o coração. Ela sabia que Kharim ia desrespeitar a tradição dos antepassados e que se casaria com uma mulher inglesa, como era o desejo de sua mãe.

Muito tempo atrás, num jardim igualmente encantado, onde havia uma fonte de mármore, um homem misterioso, que Grace nunca soubera identificar com certeza, cantara uma ária famosa de La Forza del Destino... E agora ali, no alto de um terraço descoberto que dava para um outro jardim, desta vez o verdadeiro Jardim de Sabá, Grace realizou o destino que estava traçado para ela desde o início dos tempos, e o destino foi glorioso como o nascer do sol no deserto.

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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