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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O JOGO DA MENTIRA / Sara Shepard
O JOGO DA MENTIRA / Sara Shepard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Acordei dentro de uma banheira vitoriana encardida, em um banheiro desconhecido com azulejos cor-de-rosa. Havia uma pilha de revistas Maxim perto do vaso sanitário, manchas de pasta de dente verde na pia e respingos brancos riscando o espelho. A janela mostrava um céu escuro e uma lua cheia. Que dia da semana seria? Onde eu estava? Em uma república estudantil da Universidade do Arizona? No apartamento de alguém? Eu mal conseguia lembrar que meu nome era Sutton Mercer ou que eu vivia no sopé das montanhas de Tucson, Arizona. Não fazia ideia de onde estava minha bolsa, nem imaginava onde tinha estacionado o carro. Aliás, qual era o meu carro? Será que haviam batizado minha bebida?
– Emma? – chamou, de outro cômodo, uma voz masculina. – Está aí?
– Estou ocupada! – gritou outra voz ali por perto.
Uma garota alta e magra abriu a porta do banheiro, seu cabelo escuro embaraçado caindo no rosto.
– Ei! – Levantei-me rapidamente. – Tem gente!
Meu corpo estava entorpecido, como se eu tivesse acabado de acordar. Quando olhei para baixo, eu parecia tremeluzir, como se estivesse sob uma luz estroboscópica. Bizarro. Alguém definitivamente batizou minha bebida.
A garota não pareceu me ouvir. Ela seguiu em frente cambaleando, seu rosto coberto de sombras.
– Olá-á? – cantarolei, saindo da banheira. Ela não olhou para mim. – Você é surda?
Nada. Ela pegou um frasco de creme com aroma de lavanda, colocou um pouco na mão e esfregou nos braços.
A porta se escancarou novamente, e um adolescente de nariz arrebitado com a barba por fazer entrou de supetão.
– Ah. – Seu olhar foi em direção à camiseta apertada da garota, estampada com os dizeres MONTANHA-RUSSA NEW YORK NEW YORK. – Não sabia que você estava aqui, Emma.
– Será que não era por isso que a porta estava fechada?
Emma o empurrou para fora e bateu a porta. Voltou-se novamente para o espelho. Eu me coloquei bem atrás dela.
– Ei! – chamei outra vez.
Finalmente ela levantou os olhos. Meu olhar disparou em direção ao espelho para encontrar o dela. Mas, quando fitei a superfície de vidro, soltei um grito.
Porque Emma era exatamente igual a mim.
E eu não estava refletida ali.
Emma se virou e saiu do banheiro, e eu a segui como se alguma coisa estivesse me puxando junto com ela. Quem era aquela garota? Por que éramos idênticas? Por que eu estava invisível? E por que eu não conseguia me lembrar de, bem, nada? Lembranças inoportunas entravam em um foco doloroso e nostálgico – o cintilante pôr do sol sobre as Catalinas, o cheiro dos limoeiros em meu quintal pela manhã, a sensação dos chinelos de caxemira sob os meus dedos dos pés. Mas outras coisas, as mais importantes, estavam amortecidas e confusas, como se eu tivesse passado a vida inteira embaixo d’água. Eu via formas vagas, mas não conseguia distingui-las. Não conseguia lembrar o que tinha feito em período algum de férias, com quem tinha sido meu primeiro beijo ou como era sentir o sol no rosto ou dançar ao som da minha música preferida. Aliás, qual era a minha música preferida? E, pior ainda: a cada segundo as coisas ficavam mais e mais confusas. Como se estivessem desaparecendo.
Como se eu estivesse desaparecendo.
Mas então eu me concentrei o máximo que pude e ouvi um grito abafado. E, de repente, era como se eu estivesse em outro lugar. Senti uma dor atravessar meu corpo, antes da derradeira e dormente sensação de meus músculos cedendo. Conforme meus olhos se fechavam lentamente, eu via uma figura escurecida e difusa parada diante de mim.
– Ah, meu Deus – murmurei.
Não me admira que Emma não me visse. Não me admira que eu não aparecesse no espelho. Eu na verdade não estava ali.
Eu estava morta.

 

 

 

 

 

 

1

A SÓSIA

Carregando sua sacola de lona e um copo de chá gelado, Emma Paxton saiu pela porta dos fundos da casa de sua família adotiva temporária, no subúrbio de Las Vegas. Carros zuniam e rosnavam na via expressa adjacente, e no ar predominava o forte cheiro dos escapamentos dos carros e da estação de tratamento de água. A única decoração no quintal eram alguns pesos de ginástica empoeirados, um mata-mosquito elétrico já enferrujado e algumas estátuas bregas feitas de terracota.

Eu estava a um mundo de distância do meu quintal em Tucson, que era uma perfeita paisagem desértica cujo balanço de madeira eu costumava fingir que era um castelo. Como eu já disse, era esquisito e aleatório quais detalhes eu ainda lembrava e quais tinham evaporado da minha mente. Eu acabara de passar uma hora inteira seguindo Emma, na tentativa de entender sua vida para me lembrar da minha própria. Não que eu tivesse escolha. A todo lugar que ela ia, eu ia atrás. Tampouco fazia ideia de como sabia essas coisas sobre Emma... elas simplesmente apareciam em minha cabeça enquanto eu a observava, como um e-mail que surge na caixa de entrada. Eu conhecia os detalhes da vida dela melhor que os da minha.

Emma largou a sacola na mesa de ferro falso que havia no quintal e deixou-se cair numa cadeira de praia, jogando a cabeça para trás. A única vantagem daquele quintal era ser voltado na direção oposta à dos cassinos, oferecendo uma grande faixa de céu claro e desimpedido. A lua pendia não muito alta no horizonte, uma intumescida bolacha de alabastro. O olhar de Emma vagueou na direção de duas estrelas brilhantes e familiares a leste. Aos nove anos, ela melancolicamente batizara a estrela da direita de Estrela Mamãe, a da esquerda de Estrela Papai e a menor delas, um pontinho vivamente cintilante logo abaixo das outras duas, de Estrela Emma. Tinha inventado todo o tipo de contos de fadas em torno daquelas estrelas, imaginando serem sua verdadeira família e fantasiando que um dia estariam os três reunidos na terra assim como estavam no céu.

Emma passara a maior parte de sua vida sob os cuidados de famílias adotivas temporárias. Nunca conheceu o pai, mas se lembrava da mãe, com quem vivera até os cinco anos. Seu nome era Becky. Era uma mulher esbelta que adorava gritar as respostas do Roda da Fortuna, dançar pela sala ao som de Michael Jackson e ler histórias de tabloides, como BEBÊ NASCE DE ABÓBORA! e GAROTO-MORCEGO SOBREVIVE! Becky volta e meia enviava Emma em caças ao tesouro pelo condomínio em que moravam, e o prêmio era sempre um batom usado ou uma barrinha de Snickers. Ela comprava roupas de babados e vestidos rendados em brechós de caridade para Emma. Lia Harry Potter para a filha antes de dormir, inventando vozes diferentes para cada personagem.

Mas Becky era como um bilhete de raspadinha – Emma nunca sabia ao certo o que esperar dela. Às vezes sua mãe passava o dia inteiro chorando no sofá, o rosto contorcido e as bochechas encharcadas de lágrimas. Outras vezes, arrastava a filha para a loja de departamentos mais próxima e lhe comprava tudo em dobro.

– Por que eu preciso de dois pares do mesmo sapato? – perguntava Emma.

Um olhar distante cobria o rosto de Becky.

– Vai que um deles fica sujo, Emmy.

Becky também podia ser muito esquecida – como da vez que deixou Emma em uma Circle K. Desesperada, a menina vira o carro de sua mãe desaparecer pela tremulante autoestrada. Um funcionário deu a Emma um picolé de laranja e deixou-a sentada em cima do freezer na frente da loja enquanto fazia algumas ligações. Quando Becky finalmente voltou, pegou Emma no colo e lhe deu um enorme abraço. Pela primeira vez, nem sequer reclamou quando a filha deixou cair pingos grudentos de picolé no vestido.

Uma noite de verão não muito depois disso, Emma dormiu na casa de Sasha Morgan, uma amiguinha do jardim de infância. De manhã, ao acordar, deu de cara com a sra. Morgan parada à porta com um olhar aflito no rosto. Pelo que Emma soube, Becky tinha deixado um bilhete sob a porta dos Morgan informando que tinha “ido fazer uma pequena viagem.” E que viagem – até agora, estava durando quase treze anos.

Como ninguém conseguiu localizar Becky, os pais de Sasha entregaram Emma a um orfanato em Reno. Os casais não tinham interesse em uma menina de cinco anos – todos queriam bebês que pudessem moldar até se tornarem miniversões de si mesmos –, então Emma passou a viver em lares coletivos, depois em lares de famílias. Embora nunca fosse deixar de amar a mãe, Emma não podia dizer que sentia sua falta – pelo menos não da Becky Infeliz, da Becky Maníaca ou da Becky Lunática, que a tinha esquecido na Circle K. Mas sentia falta da ideia de uma mãe: alguém estável e constante que conhecesse seu passado, esperasse ansiosamente por seu futuro e a amasse incondicionalmente. Emma não tinha inventado as estrelas Mamãe, Papai e Emma com base em alguma coisa que já tivesse conhecido, mas no que desejava ter tido.

A porta de vidro de correr se abriu, e Emma virou-se. Travis, o filho de dezoito anos de sua nova mãe adotiva temporária, vinha saindo com um andar afetado e instalou-se à mesa do quintal.

– Desculpe pelo susto no banheiro – disse ele.

– Tudo bem – murmurou Emma com amargura, afastando-se discretamente das pernas abertas de Travis.

Ela tinha plena certeza de que Travis não lamentava o ocorrido. Tentar vê-la nua era praticamente um esporte para ele. Naquele dia, ele estava usando um boné azul de beisebol puxado bem para baixo até cobrir os olhos, uma camisa xadrez gasta e larga e uma bermuda jeans folgada cujo gancho quase chegava aos joelhos. Havia uma penugem irregular em seu rosto de nariz pontudo, lábios finos e olhos pequenos; ele não era homem o bastante para deixar a barba crescer de verdade. Seus olhos castanhos injetados se estreitaram lascivamente. Emma sentia o olhar dele sobre ela, escrutinando sua camiseta justa do NEW YORK NEW YORK, seus braços nus e bronzeados e suas pernas longas.

Com um grunhido, Travis enfiou a mão no bolso da camisa, pegou um baseado e o acendeu. Quando ele soprou uma nuvem de fumaça na direção dela, o mata-mosquito elétrico ganhou vida, brilhando. Com um nítido estalo e um crepitar de luz azul, aniquilou mais um inseto. Se pelo menos aquele aparelhinho pudesse fazer o mesmo com Travis...

Para trás, bafo de maconha, Emma queria dizer. Não me admira que nenhuma garota queira chegar perto de você. Mas ela mordeu a língua; o comentário teria que ir para seu arquivo de Respostas que Eu Devia Ter Dado, uma lista que fazia em um caderno de capa preta, sempre escondido em sua primeira gaveta. A Lista de Respostas (para abreviar) era cheia de comentários incisivos e petulantes que Emma desejara dizer a mães temporárias, vizinhos repugnantes, garotas esnobes da escola e muitos e muitos outros. Na maioria das vezes ela se continha – era mais fácil ficar quieta, evitar problemas, ser o tipo de garota que a situação exigia que ela fosse. Ao longo dos anos, Emma tinha adquirido algumas habilidades bastante impressionantes na resolução de problemas: aos dez anos, aperfeiçoara seus reflexos ao desviar dos objetos lançados pelo sr. Smythe, um tempestuoso pai adotivo temporário que de vez em quando tinha acessos desse tipo. Quando Emma vivera em Henderson com Ursula e Steve, os dois hippies que cultivavam a própria comida mas não sabiam cozinhá-la, Emma assumira a contragosto as tarefas da cozinha, preparando pão de abobrinha, legumes gratinados e alguns maravilhosos refogados.

Havia apenas dois meses que ela se mudara para a casa de Clarice, uma mãe solteira que trabalhava como bartender na ala para apostadores VIP do M. Resort. Desde então ela passara o verão tirando fotos, jogando maratonas de campo minado no BlackBerry detonado que sua amiga Alex tinha lhe dado antes de ela deixar seu último lar temporário, em Henderson, e operando a montanha-russa do cassino New York New York em um emprego de meio período. E, ah, sim, evitando Travis o máximo que podia.

Mas as coisas não tinham sido assim desde o início. No começo, Emma tentara se dar bem com seu novo irmão temporário, na esperança de que eles se tornassem amigos. Não que todas as famílias temporárias fossem ruins e ela nunca fizesse amizade com os outros filhos; só que às vezes era preciso muito esforço de sua parte. Ela tinha fingido interesse por todos os vídeos do YouTube a que Travis assistia sobre como ser um delinquente de segunda categoria: como abrir um carro com um celular, como pegar refrigerante grátis de máquinas de bebidas, como arrombar um cadeado com uma lata de cerveja. Havia suportado penosamente algumas competições de Ultimate Fighting Championship na TV, tentando até mesmo aprender o nome dos golpes da luta. Mas a boa vontade de Emma acabou uma semana depois, quando Travis tentou passar a mão nela enquanto estava parada diante da geladeira aberta. “Você tem sido muito simpática”, murmurou ele em seu ouvido, antes de “acidentalmente” levar um chute na virilha.

Emma só queria terminar o último ano do colégio ali. Estavam no fim de agosto, e as aulas começavam na quarta-feira. Ela poderia escolher deixar a casa de Clarice quando completasse dezoito anos, dali a duas semanas, mas isso significaria abandonar os estudos, encontrar um apartamento e arranjar um emprego de tempo integral para pagar o aluguel. Clarice dissera à assistente social que Emma podia ficar até concluir o ensino médio. Só mais nove meses, Emma entoava para si mesma como um mantra. Ela podia aguentar até lá, não podia?

Travis deu outro trago no baseado.

– Quer? – perguntou em uma voz engasgada, prendendo a fumaça nos pulmões.

– Não, obrigada – disse Emma firmemente.

Travis finalmente expirou.

– Minha doce Emma – disse ele, em um tom meloso. – Mas você não é sempre assim tão boazinha, é?

Ela ergueu a cabeça para o céu e observou novamente as estrelas Mamãe, Papai e Emma. Bem mais abaixo no horizonte estava uma quarta estrela, que ela nomeara pouco antes de Estrela Namorado e que parecia estar bem mais perto da Estrela Emma naquela noite – talvez fosse um sinal. Talvez fosse aquele o ano em que ela conheceria o namorado perfeito, o homem com quem estava destinada a ficar.

– Merda – sussurrou Travis de repente, percebendo algum movimento dentro da casa.

Rapidamente ele apagou o baseado e o jogou embaixo da cadeira de Emma, bem na hora em que Clarice saiu pela porta dos fundos. Emma olhou de cara feia para a ponta em brasa – legal da parte de Travis tentar botar a culpa nela – e pisou em cima.

Clarice ainda estava vestida em seu uniforme de trabalho: paletó, camisa branca de seda e gravata-borboleta preta. Seu cabelo pintado de louro estava arrumado em um impecável coque banana, e sua boca fora lambuzada de um vivo batom fúcsia que não combinava com o tom de pele de ninguém. Ela segurava um envelope branco.

– Sumiram duzentos e cinquenta dólares – anunciou ela monotonamente. O envelope vazio estava todo amassado. – Era uma gorjeta que o Bruce Willis deu especialmente pra mim. Ele assinou uma das notas. Eu ia colocar no meu álbum.

Emma suspirou solidariamente. A única coisa que ela percebera sobre Clarice até então fora sua total obsessão por celebridades. Ela mantinha um álbum de recortes descrevendo cada momento em que interagira com uma delas, e havia retratos em papel fotográfico brilhante alinhados na parede perto da mesa de café da manhã, todos autografados. Às vezes as duas se esbarravam na cozinha por volta do meio-dia, horário que para Clarice significava o momento de acordar, depois do seu expediente no bar. O assunto dela era sempre o mesmo: a longa conversa que tivera na noite anterior com o último vencedor do American Idol, os seios definitivamente siliconados de certa aspirante a estrela de filmes de ação ou a apresentadora de um reality show que tinha sido muito antipática. Emma sempre ficava intrigada. Ela não ligava muito para fofocas sobre celebridades, mas sonhava em um dia se tornar repórter investigativa. Não que jamais tivesse contado isso a Clarice. Não que Clarice jamais tivesse lhe feito alguma pergunta de caráter pessoal.

– O dinheiro estava dentro desse envelope, na minha cama, quando eu saí para trabalhar ontem à tarde. – Clarice olhava diretamente para Emma, seus olhos se estreitando. – Agora não está mais. Quer me contar alguma coisa?

Emma deu uma olhada para Travis, mas o garoto estava ocupado, mexendo no BlackBerry. Conforme ele passava as fotos, Emma notou uma imagem fora de foco dela própria no espelho do banheiro. Seu cabelo estava molhado, e ela segurava a toalha debaixo dos braços.

Com as bochechas queimando, ela voltou-se para Clarice.

– Não sei nada sobre isso – disse, na voz mais diplomática que conseguiu arranjar. – Mas talvez você devesse perguntar ao Travis. Vai que ele sabe.

– Como é que é? – A voz dele saiu aguda. – Eu não peguei dinheiro algum.

Emma emitiu um som de incredulidade com a garganta.

– Você sabe que eu não faria isso, mãe – continuou Travis. Ele levantou-se e puxou a bermuda até a cintura. – Eu sei como você se mata de trabalhar. Mas eu bem vi a Emma entrar no seu quarto hoje.

– O quê? – Emma se virou rapidamente para encará-lo.

– Que mentira!

– Foi, sim – retrucou Travis.

Assim que se virou de costas para a mãe, sua expressão mudou de um sorriso falso para um olhar furioso, os olhos apertados e o nariz franzido.

Emma estava boquiaberta. Era incrível como ele mentia calmamente.

– Eu vi você mexer na bolsa da sua mãe – declarou ela.

Clarice apoiou-se contra a mesa, torcendo a boca para a direita.

– O Travis fez isso?

– Não, não fiz. – Travis apontou um dedo acusador para Emma. – Por que acreditar nela? Você nem conhece essa garota.

– Eu não preciso de dinheiro! – Emma pressionou as mãos contra o peito. – Eu tenho um emprego! Estou muito bem!

Ela trabalhava havia anos. Antes da montanha-russa, fora a principal cuidadora das cabras em um zoológico; também passara uma época fantasiada de Estátua da Liberdade anunciando uma cooperativa de crédito local e até chegou a vender facas de porta em porta. Ela havia economizado mais de dois mil dólares, que escondia em seu quarto dentro de uma caixa de Tampax, embaixo dos absorventes. Travis ainda não encontrara o dinheiro, provavelmente porque absorventes íntimos eram um sistema de segurança mais eficaz que uma matilha raivosa de rottweilers em termos de proteção contra ladrõezinhos baratos.

Clarice encarou Travis, que lhe lançou um doentio sorriso afetado. Enquanto ela passava o envelope vazio e amassado de uma mão para a outra, um olhar desconfiado cruzou seu rosto. Parecia que por um momento ela tinha enxergado através da fachada do filho.

– Olhe. – Travis foi até a mãe e pousou o braço em seu ombro. – Acho que você precisa saber a verdade sobre a Emma. – Ele pegou o BlackBerry do bolso novamente e começou a mexer nos botõezinhos.

– Como assim? – Emma foi até eles.

Travis lançou para ela um olhar de pureza simulada, escondendo a tela do BlackBerry de sua visão.

– Eu ia falar com você sobre isso em particular. Mas agora é tarde demais.

– Falar comigo sobre o quê? – Emma lançou-se para a frente, fazendo a vela de citronela no meio da mesa oscilar.

– Você sabe.

Travis digitava algo no teclado com os polegares. Um mosquito zumbia ao redor de sua cabeça, mas ele não se deu o trabalho de enxotá-lo.

– Você é doente.

– O que você quer dizer, Travis? – Os lábios pintados de fúcsia de Clarice franziram-se de preocupação.

Finalmente, Travis baixou o BlackBerry para que todos pudessem ver.

– Isso – anunciou ele.

Um vento forte e quente soprou contra a bochecha de Emma, a poeira presente no ar irritando seus olhos. O céu negro-azulado da noite pareceu escurecer alguns tons. Travis respirava pesadamente perto dela, fedendo a fumaça de maconha, e abriu um site genérico de vídeos. Com um floreio, ele digitou a palavra-chave SuttonNoAZ e apertou PLAY.

O vídeo carregou devagar. Uma câmera portátil filmava uma clareira. Nenhum som saía do BlackBerry, como se o microfone da câmera tivesse sido desligado. A câmera virou-se e mostrou uma pessoa sentada em uma cadeira com uma venda preta cobrindo metade de seu rosto. Um relicário prateado e redondo pendurado em uma corrente grossa descansava sobre uma magra clavícula feminina.

A garota começou a mover a cabeça freneticamente para a frente e para trás, o relicário saltando com violência. A cena ficou escura por um instante, e de repente alguém esgueirou-se por trás e puxou a corrente, pressionando-a contra o pescoço da garota. Sua cabeça arqueou-se para trás. Ela agitou os braços e chutou o ar com as pernas.

– Meu Deus. – Clarice cobriu a boca com a mão.

– O que é isso? – sussurrou Emma.

O estrangulador puxava a corrente com cada vez mais força. Quem quer que fosse, estava usando uma máscara, de forma que Emma não podia ver seu rosto. Depois de uns trinta segundos, a garota no vídeo parou de resistir e ficou inerte.

Emma se afastou da tela. Será que eles tinham acabado de ver alguém morrer? Que diabo de vídeo era aquele? E o que tinha a ver com ela?

A câmera continuava fixa na garota vendada. Ela não se mexia. Então tudo ficou momentaneamente escuro outra vez. Quando a imagem voltou à tela, a câmera estava virada, caída no chão. Emma ainda podia ver uma parte da figura na cadeira, invertida. Alguém foi até ela e puxou a venda de sua cabeça. Depois de uma longa pausa, a garota tossiu. Lágrimas marejavam seus olhos. Os cantos de sua boca estavam curvados para baixo. Ela piscou lentamente. Por uma fração de segundo antes que a tela escurecesse, ela encarou a lente em semi-inconsciência.

O queixo de Emma caiu tanto que foi até seu All Star velho.

Clarice ofegou alto.

– Rá! – disse Travis, triunfante. – Eu não disse?

Emma encarou os enormes olhos azuis da garota, o nariz levemente arrebitado, o rosto redondo. Era exatamente igual a ela.

Porque a garota no vídeo era eu.


2

ISSO MESMO, CULPEM A FILHA TEMPORÁRIA

Emma pegou o telefone das mãos de Travis e reiniciou o vídeo, olhando fixamente para a imagem. Quando a pessoa desconhecida começou a enforcar a garota vendada, o medo começou a encher seu estômago. Quando a mão anônima retirou a venda, o rosto idêntico ao dela apareceu na tela. Emma tinha o mesmo cabelo castanho, grosso e ondulado da garota do vídeo. O mesmo queixo arredondado. Os mesmos lábios rosados que as crianças costumavam usar para zombar dela, dizendo que estavam inchados devido a uma reação alérgica. Ela estremeceu.

Eu também assisti ao vídeo novamente, horrorizada. O relicário cintilando sob a luz trouxe à superfície um minúsculo fragmento de lembrança: eu me lembrei de levantar a tampa do meu baú com recordações da infância, de tirar o relicário de baixo de um mordedor em forma de girafa com marca de dentes e um cueiro rendado e um par de sapatinhos de crochê, e de pendurá-lo no pescoço. Mas o vídeo em si não me despertou nenhuma lembrança. Eu não sabia se aquilo tinha acontecido em meu quintal... ou em outro estado. Minha vontade era dar um tapa bem na cara da minha memória pós-morte.

Mas aquele vídeo só podia ser um registro de como eu tinha morrido, não? Ainda mais considerando aquele rápido flashback que me viera à mente ao acordar no banheiro de Emma: aquele rosto próximo ao meu, meu coração batendo forte, meu assassino parado à minha frente. Mas eu não fazia ideia de como funcionava essa coisa toda de morte: será que eu tinha aparecido no mundo de Emma no instante seguinte ao meu último suspiro, ou será que dias – ou meses – haviam se passado? Além do mais, como aquele vídeo tinha sido publicado na internet? Será que minha família tinha assistido? Meus amigos? Será que aquilo era algum sórdido pedido de resgate?

Emma finalmente levantou os olhos da tela.

– Onde você achou isso? – perguntou a Travis.

– Acho que alguém não sabia que era uma estrela da internet, hã? – Travis arrancou o telefone das mãos dela.

Clarice passava os dedos pelos cabelos. Ela não parava de olhar para a tela do BlackBerry e para o rosto de Emma.

– É assim que você se diverte? – perguntou ela a Emma, numa voz grave.

– Ela deve fazer isso pelo barato. – Travis andava de lá para cá no jardim como um leão à espreita. – Eu conheci umas garotas na escola ano passado que eram, tipo, obcecadas por isso. Uma delas quase morreu.

Clarice cobriu a boca com a mão.

– Qual é o seu problema?

Os olhos de Emma iam de Travis para Clarice rapidamente.

– Esperem, não. Essa não sou eu. A garota no vídeo é outra pessoa.

Travis revirou os olhos.

– Uma outra pessoa que é exatamente igual a você? – disse ele, inexpressivamente. – Já sei: uma irmã perdida há muito tempo? Um clone do mal?

Houve o estrondo baixo de um trovão a distância. A brisa trazia um cheiro de asfalto molhado, sinal de que uma tempestade se aproximava. Uma irmã perdida há muito tempo. A ideia se acendeu na mente de Emma como os fogos de artifício do 4 de Julho. Era possível. Certa vez ela perguntara ao Serviço Social se Becky tivera outros filhos, que abandonara pelo caminho, mas eles não sabiam dizer.

Um pensamento entrou em combustão em minha mente também: eu era adotada. Disso eu me lembrava. Toda a minha família sabia; meus pais nunca tentaram esconder o fato. Eles tinham me contado que minha adoção fora um arranjo de última hora e que nunca tinham conhecido minha mãe biológica. Será? Isso explicava por que eu estava literalmente presa a essa garota que era exatamente igual a mim, seguindo-a de um lado a outro como se nossas almas tivessem sido amarradas.

Clarice tamborilou as longas unhas na mesa.

– Eu não tolero mentiras nem roubos nesta casa, Emma.

Emma sentiu como se tivesse acabado de levar um chute no estômago.

– Não sou eu no vídeo – protestou ela. – E eu não roubei você. Juro.

Emma esticou a mão para pegar sua sacola de lona na mesa. Tudo o que ela precisava fazer era ligar para Eddie, seu chefe na montanha-russa. Ele confirmaria seu horário para aquele dia. Mas Travis alcançou a sacola antes, virando-a de modo que tudo o que estava dentro caiu no chão.

– Ops! – exclamou ele alegremente.

Emma viu, desamparada, seu exemplar gasto de O sol também se levanta cair sobre um formigueiro cheio de terra. Um bilhete amassado que dava livre acesso ao bufê de churrasco no MGM Grand voou na brisa e foi parar perto dos pesos de ginástica de Travis. O BlackBerry e um hidratante labial sabor cereja foram rolando até pararem perto de uma tartaruga de argila. E, por último, mas não menos importante, viu-se um suspeito maço de notas presas com um grosso elástico roxo. O maço caiu no chão, quicou uma vez e aterrissou diante dos grossos saltos dos sapatos de Clarice.

Emma estava aturdida demais para falar. Clarice pegou o dinheiro e lambeu o indicador para contá-lo.

– Duzentos – disse, quando terminou. Ela ergueu uma nota de vinte que tinha rabiscos azuis no canto superior esquerdo. Mesmo sob a luz fraca da tarde, Emma conseguiu ver um grande “B” cheio de voltinhas, provavelmente de Bruce Willis. – O que você fez com os cinquenta restantes?

O mensageiro do vento de um vizinho tilintou a distância. Emma sentia as entranhas congeladas.

– E-Eu não faço ideia de como isso foi parar na minha bolsa.

Atrás dela, Travis soltou um risinho de escárnio.

– Flagra.

Ele estava reclinado casualmente contra o muro de estuque, logo à esquerda do grande termômetro redondo. Travis cruzou os braços no peito, e seu lábio superior curvou-se num sorriso sarcástico.

Os pelos da nuca de Emma se arrepiaram. De repente ela entendeu o que estava acontecendo. Seus lábios começaram a se contrair, exatamente como sempre acontecia quando ela estava para perder a cabeça.

– Foi você! – Ela apontou o dedo para Travis. – Você armou para mim!

Travis sorriu com malícia. Alguma coisa dentro de Emma explodiu. Que se danasse manter a paz. Que se danasse adaptar-se ao que a família temporária precisasse que ela fosse. Ela atirou-se na direção dele, agarrando-o pelo pescoço carnudo.

– Emma! – guinchou Clarice, puxando-a para longe do filho.

Emma cambaleou para trás, esbarrando em uma das cadeiras do quintal.

Clarice virou Emma, fazendo-a ficar cara a cara consigo.

– O que deu em você?

Emma não respondeu. Lançou outro olhar furioso para Travis. Ele estava colado ao muro, os braços diante do corpo como proteção, mas havia um brilho de júbilo em seus olhos.

Clarice virou-se de costas para Emma, afundou na cadeira e esfregou os olhos. O rímel manchou as pontas de seus dedos.

– Isso não está dando certo – disse ela suavemente, após um instante. Ela levantou a cabeça e olhou com gravidade para Emma. – Achei que você fosse uma garota bacana, Emma, que não fosse causar problemas, mas isso é demais para nós.

– Eu não fiz nada – murmurou Emma. – Juro.

Clarice pegou uma lixa de unha e começou a acertar a do dedo mínimo nervosamente.

– Você pode ficar até o seu aniversário, mas depois vai ter que se virar sozinha.

Emma absorveu a informação.

– Você está me expulsando?

Clarice parou de lixar a unha. Sua expressão se suavizou.

– Sinto muito – disse ela, com gentileza. – Mas é o melhor a fazer, para todos nós.

Emma virou-se e encarou o horroroso muro de tijolos nos fundos do terreno.

– Queria que as coisas tivessem sido diferentes.

Clarice abriu a porta de correr e voltou para dentro de casa. Assim que ela desapareceu de vista, Travis se desgrudou do muro e se endireitou.

Ele a contornou casualmente, recuperou a guimba do baseado que ainda estava sob a cadeira, soprou os pedaços de grama seca que tinham grudado na ponta e jogou-o dentro do bolso de sua bermuda gigante.

– Sorte sua que ela não vai prestar queixa – disse ele, numa voz melosa.

Emma não falou nada enquanto ele se dirigia para dentro de casa com seu andar pretensioso. Ela queria pular em cima dele e arrancar-lhe os olhos, mas parecia que suas pernas tinham sido preenchidas com argila molhada. Sua visão embaçou devido às lágrimas. De novo isso. Toda vez que uma família temporária lhe pedia que fosse embora, ela invariavelmente pensava no instante frio e solitário em que percebera que Becky a abandonara para sempre. Ela ficara uma semana na casa de Sasha Morgan, enquanto a polícia tentava localizar sua mãe. Ela tinha posado de menina forte, brincando de Candy Land, assistindo a Dora, a aventureira e elaborando caças ao tesouro para Sasha como as que Becky fazia para ela. Mas toda noite, sob o brilho do abajur de Cinderela de Sasha, Emma se esforçava para decifrar as partes de Harry Potter que conseguia entender – e não eram muitas. Mal tinha conseguido ler inteiro O gatola da cartola. Precisava que a mãe lesse para ela as palavras grandes. Precisava da mãe para fazer as vozes. Mesmo agora, ainda doía.

O quintal estava silencioso. O vento inclinava as samambaias e as palmeiras. Emma encarava inexpressivamente a escultura de terracota de uma mulher curvilínea na qual Travis e os amigos gostavam de se esfregar. Então era isso. Ela não ia mais ficar ali até terminar o colégio. Não ia mais cursar fotojornalismo na Universidade do Sul da Califórnia... ou mesmo em uma faculdade qualquer. Ela não tinha para onde ir. Ninguém a quem recorrer. A não ser que...

De repente a imagem do vídeo voltou à sua mente. Uma irmã perdida há muito tempo. Seu coração se alentou. Ela tinha que encontrá-la.

Se ao menos eu pudesse dizer a ela que era tarde demais...


3

VOCÊ SABE QUE É VERDADE SE ESTIVER NO FACEBOOK

Uma hora depois, Emma estava de pé em seu pequeno quarto, suas bolsas de estilo militar abertas no chão. Por que esperar para fazer as malas? Ela também segurava o telefone ao ouvido, falando com Alexandra Stokes, sua melhor amiga de Henderson.

– Você sempre pode ficar aqui em casa – propôs Alex depois que Emma terminou de contar que Clarice acabara de expulsá-la. – Posso falar com a minha mãe. Acho que ela não vai encrencar.

Emma fechou os olhos. Ela e Alex haviam sido do mesmo time de cross-country no ano anterior. As duas tinham caído na descida de uma trilha no primeiro dia de treino e se tornaram amigas rapidamente enquanto a enfermeira limpava seus machucados com uma água oxigenada superardida. Ela e Emma tinham passado todo o segundo ano entrando furtivamente nos cassinos para tirar fotos de celebridades e de aparentes sósias de celebridade com a Canon SLR de Alex, rondando lojas de penhores sem nunca comprar nada, e nos fins de semana indo ao lago Mead para tomar sol.

– É pedir demais da sua família.

Emma pegou uma pilha de camisetas vintage na primeira gaveta e jogou-as na bolsa. Ela já ficara na casa dos Stokes por algumas semanas, depois que Ursula e Steve se mudaram para as ilhas Florida Keys. Emma se divertira muito, mas a sra. Stokes era mãe solteira e já tinha muita coisa com que se ocupar.

– Que loucura a Clarice expulsar você – disse Alex. Emma podia ouvir suaves estalidos; sua amiga devia estar mastigando um pedaço de Twizzlers, seu chocolate preferido. – Não é possível que ela realmente ache que você roubou aquele dinheiro.

– Na verdade, não foi só isso.

Emma apanhou uma pilha de calças jeans e também as jogou dentro da bolsa.

– Teve mais coisa? – perguntou Alex.

Emma começou a mexer num aplique militar meio solto na velha bolsa.

– Não posso falar sobre isso agora. – Ela não queria contar a Alex sobre o vídeo a que assistira. Queria mantê-lo em segredo por mais algum tempo, para o caso de não ser real. – Mas depois eu explico, tudo bem? Prometo.

Após desligar, Emma sentou-se no chão acarpetado e olhou em volta. Ela já tinha tirado da parede todas as suas fotografias de Margaret Bourke-White e Annie Leibovitz e limpado as estantes da sua coleção de romances clássicos e thrillers de ficção científica; o lugar agora parecia o quarto de um hotel barato. Olhou para a gaveta aberta da cômoda, que continha seus pertences mais queridos, aquilo que ela levava para todos os seus lares temporários. Havia o monstrinho de brinquedo tricotado à mão que a sra. Hewes, uma professora de piano, lhe dera quando ela conseguira tocar bem “Für Elise” apesar de não ter um piano em casa para treinar. Tinha também algumas pistas das caças ao tesouro que Becky fazia para ela, o papel já quase se desintegrando e as dobras já moles. Havia também Octopus, o polvo de pelúcia puído que Becky lhe dera durante uma viagem de carro a Four Corners. Aninhados no fundo da gaveta estavam seus cinco diários encapados em tecido, recheados de poesia e que continham também a lista de Respostas que Eu Devia Ter Dado, a lista de Como se Deve Flertar (CDF), a lista de Coisas que Eu Amo e Odeio e um relatório completo de todas as lojas de artigos usados da área. Emma tornara-se perita no circuito dos brechós. Ela sabia exatamente que dias chegavam novos carregamentos, como pechinchar por preços melhores e a máxima de que sempre se deve cavar até o fundo da cesta de sapatos – assim ela conseguira, certa vez, um par de rasteirinhas Kate Spade praticamente novas.

Finalmente, Emma pegou a Polaroid velha e uma grande pilha de fotos do canto da gaveta. A câmera pertencera a Becky, mas Emma a tinha levado para a casa de Sasha na noite em que a mãe a abandonara. Não muito tempo depois, Emma tinha começado a escrever falsas manchetes para as fotos, contando sobre sua vida e as atividades de suas famílias temporárias: “Mãe temporária cansa dos filhos e se tranca no banheiro para ver A feiticeira”; “Hippies decidem ir para a Flórida de surpresa”; “Mãe temporária razoável arranja emprego em Hong Kong: filha temporária não foi convidada”. Ela era a única repórter a trabalhar em seus furos jornalísticos. Se estivesse com um ânimo melhor, teria cunhado uma manchete para aquele dia: “Irmão temporário maligno arruína vida de garota”. Ou quem sabe: “Garota descobre sósia na internet. Será uma irmã há muito perdida?”

Emma hesitou diante desse pensamento. Olhou de relance para o laptop detonado da Dell no chão, que tinha comprado numa loja de penhores. Respirando fundo, colocou-o na cama e o abriu. A tela ganhou vida, e Emma rapidamente entrou no site no qual Travis tinha acessado as imagens do falso estrangulamento. O vídeo era o primeiro item da lista. Tinha sido publicado mais cedo naquela noite.

Emma apertou PLAY, e a imagem granulada apareceu. A garota vendada resistia e tentava arranhar seu agressor. A figura escura puxava o cordão contra seu pescoço. Então a câmera caía e alguém aparecia e tirava a venda. O rosto da garota estava pálido e confuso. Ela olhava em volta freneticamente, seus olhos movendo-se para todos os lados, como bolas de gude soltas. Então ela olhava para a câmera. Seus olhos azul-esverdeados estavam vidrados, e seus lábios rosados brilhavam. Era exatamente o rosto de Emma. Tudo era igual.

– Quem é você? – murmurou Emma, enquanto um calafrio subia por sua espinha.

Eu queria poder responder. Queria poder fazer algo de útil em vez de ficar apenas flutuando acima dela em silêncio como uma aterrorizante sombra do além. Era como assistir a um filme, só que sem poder gritar ou jogar pipoca na tela.

O vídeo terminou, e o site perguntou a Emma se ela queria ver novamente. As molas do colchão rangeram quando ela se ajeitou na cama, pensando. Após um instante, ela digitou SuttonNoAZ no Google e apertou PESQUISAR. Alguns sites apareceram instantaneamente, incluindo uma página do Facebook com o mesmo nome. SUTTON MERCER, dizia. TUCSON, ARIZONA.

Pneus cantando lá fora soaram como gargalhadas. Quando a página do Facebook abriu, Emma ficou boquiaberta. Ali estava Sutton Mercer, no vestíbulo de uma casa com um bando de garotas ao lado. Usava um vestido frente-única preto, uma faixa brilhante na cabeça e sapatos de salto alto prateados. Emma ficou olhando, perplexa, para o rosto dela, sentindo-se enjoada. Ela se aproximou da tela, certa de que veria uma diferença que a dissociaria de Sutton, mas tudo, até as orelhas pequenas e os dentes perfeitamente quadrados e certinhos, tudo era idêntico.

Quanto mais Emma pensava sobre aquilo, mais acreditava que tinha uma irmã gêmea há muito perdida. Em certas épocas da vida ela se sentira acompanhada, como se alguém a estivesse observando. Às vezes acordava de manhã depois de ter tido sonhos insanos sobre uma garota que era igual a ela... mas Emma sabia que não era ela própria. Os sonhos eram sempre vívidos: cavalgando sobre um cavalo malhado na fazenda de alguém, arrastando uma boneca de cabelo preto por um quintal. Além do mais, se Becky era tão irresponsável a ponto de esquecer Emma na Circle K, talvez tivesse feito o mesmo com alguma outra criança. Talvez todos aqueles pares duplicados de sapatos que a Becky Maníaca comprava não fossem para Emma, mas para sua irmã gêmea, uma menina que Becky já tinha abandonado.

Talvez Emma tivesse razão, pensei. Talvez fossem para mim.

Emma passou o mouse sobre as garotas ao lado de Sutton na foto. MADELINE VEGA, disse uma pequena marcação em pop-up. Madeline tinha cabelos pretos brilhantes, enormes olhos castanhos e um corpo esbelto, além de um espaço entre os dentes da frente igual ao da Madonna. Sua cabeça inclinava-se sugestivamente para um lado. Havia uma tatuagem falsa – ou seria verdadeira? – de uma rosa na parte interna de seu pulso, e o vestido vermelho-sangue tinha um decote provocante.

A garota ao lado de Madeline era uma ruiva chamada Charlotte Chamberlain. Ela tinha pele clara e rosada e lindos olhos verdes e usava um vestido de seda preto que se repuxava sobre seus largos ombros. Duas louras com olhos grandes e parecidos e narizes empinados fechavam o grupo, uma em cada ponta. Lilianna e Gabriella Fiorello eram seus nomes; na marcação, Sutton as colocara como AS GÊMEAS DO TWITTER.

Olhei por sobre o ombro de Emma. Eu reconhecia as garotas nas fotos. Entendia que costumávamos ser próximas. Mas elas eram como livros que eu tinha lido dois anos antes; sabia que tinha gostado delas, mas agora não saberia descrevê-las.

Emma desceu a página. A maior parte do perfil podia ser acessado por qualquer um. Sutton Mercer ia terminar o colégio naquele ano, assim como Emma. Ela frequentava uma escola chamada Hollier. Seus interesses eram tênis, o shopping La Encantada e a loção hidratante corporal de papaia do Canyon Ranch. Em INTERESSES, ela tinha escrito: Amo Gucci mais que Pucci, mas não tanto quanto Juicy. Emma franziu as sobrancelhas ao ler a frase.

É, eu também não fazia ideia do que aquilo significava.

Depois, Emma clicou para ver as fotos e examinou uma imagem de um bando de garotas em camisas polo, saias e tênis. Havia uma plaquinha aos pés delas que dizia: TIME DE TÊNIS DE HOLLIER. Emma passou o mouse sobre os nomes das garotas até encontrar o de Sutton. Ela era a terceira a partir da esquerda, o cabelo esticado para trás em um rabo de cavalo perfeito. Emma moveu o mouse para a garota indiana de cabelos escuros à direita. A marcação sobre sua cabeça dizia NISHA BANERJEE. Havia um sorriso meloso e bajulador em seu rosto.

Fitei essa garota com atenção, enquanto uma sensação confusa e fugidia percorria meu corpo amorfo. Eu sabia que não gostava de Nisha, mas não sabia por quê.

Depois Emma passou para uma foto de Sutton e Charlotte numa quadra de tênis com um homem alto, bonito e grisalho. Não havia marcação sobre o rosto dele, mas a legenda dizia: Eu, C. e o sr. Chamberlain no Arizona Tennis Classic. A foto seguinte mostrava Sutton com os braços em torno de um garoto bonito e louro de aspecto simpático usando uma camiseta do time de futebol do Hollier. Amo você, G.!, ela escrevera. Alguém chamado Garrett tinha respondido nos comentários: Também amo você, Sutton.

Onnn, pensou Emma.

Meu coração também derreteu.

A última foto em que Emma clicou era de Sutton sentada a uma mesa num quintal, com dois belos adultos bem mais velhos e uma garota de cabelo louro-escuro e maxilar quadrado chamada Laurel Mercer. Provavelmente a irmã adotiva de Sutton. Todos estavam sorrindo e erguendo seus frozens em um brinde. Amo minha família, proclamava a legenda.

Emma ficou olhando a foto por um bom tempo, o peito doendo. Todas as suas fantasias de Estrela Mamãe, Estrela Papai e Estrela Emma eram bem parecidas com aquilo: uma família bonita e feliz, uma bela casa, uma vida boa. Se ela recortasse a própria cabeça de uma fotografia e colasse no corpo de Sutton, a cena não seria diferente. Mesmo assim, sua história era o total oposto daquilo.

Havia alguns vídeos do YouTube no perfil de Sutton no Facebook; Emma clicou no primeiro. Sutton estava no que parecia ser um campo de golfe exuberantemente verde, com Madeline e Charlotte. As três se ajoelharam e balançaram vigorosamente cilindros que seguravam nas mãos. Lenta e silenciosamente, elas pintaram desenhos em uma grande pedra com as latas de spray. SAUDADES, T., dizia a mensagem de Madeline. A de Sutton era NISHA ESTEVE AQUI.

– Cadê a Laurel? – perguntou Charlotte.

– Aposto mil pratas que ela ficou com medo – murmurou Sutton na tela. Sua voz era tão familiar que Emma sentiu a garganta se contrair.

Emma clicou nos outros vídeos. Havia um de Sutton e suas amigas saltando de paraquedas, e outro delas fazendo bungee jump. Um monte de vídeos mostrava uma das garotas virando distraidamente uma esquina, depois as outras surpreendendo-a e fazendo-a gritar. O último era intitulado “Juro solenemente pela minha vida”. Começava com Madeline fazendo piruetas ao saltar em uma piscina à noite. Assim que ela tocava a água, começava a agitar os braços.

– Socorro! – gritou ela, seu cabelo preto grudado no rosto. – Acho que quebrei a perna! Não... consigo... me mexer!

A câmera oscilava.

– Mad? – gritou Charlotte.

– Merda – disse uma outra pessoa.

– Socorro! – Madeline continuava agitando os braços.

– Espere aí – disse Sutton, hesitante. – Ela disse aquilo?

A câmera foi rapidamente para Charlotte, que tinha parado de repente. Ela segurava uma boia vermelha e branca.

– O quê? – perguntou ela, confusa.

– Ela disse aquilo? – repetiu Sutton.

– E-Eu acho que não – guinchou Charlotte. Ela então apertou os lábios e jogou a boia no chão. – Muito engraçado. A gente sabe que você está fingindo, Mad – gritou, irritada. – Que péssima atriz – disse ela baixinho.

Madeline parou de se sacudir na água.

– Tudo bem – disse ela, ofegante, nadando até a escada. – Mas eu enganei vocês por um instante. A Char parecia que ia fazer xixi nas calças.

Todas riam.

Nossa, pensou Emma. Então era assim que elas se divertiam?

Eu também estava um pouco assustada.

Emma deu uma olhada no restante do perfil, em busca de qualquer referência ao estranho vídeo de estrangulamento que Travis tinha encontrado, mas não havia uma única menção a isso. A única coisa um pouco assustadora que encontrou foi a imagem escaneada de um panfleto em preto e branco que dizia DESAPARECIDO DESDE 17 DE JUNHO, em que o rosto de um menino sorria para ela. THAYER VEGA, estava escrito em letras de forma sob a foto. Emma voltou a clicar nos nomes que havia na foto de Sutton. O sobrenome de Madeline também era Vega.

Finalmente, ela clicou no mural. Havia uma publicação de Sutton poucas horas antes: Você já quis fugir? Às vezes eu quero. Emma franziu a testa. Por que Sutton desejaria fugir? Parecia que ela tinha tudo.

Eu não fazia ideia do porquê, mas aquela publicação me dizia muitas outras coisas. Se eu tinha escrito aquilo apenas poucas horas antes, significava que eu não estava morta havia muito tempo. Será que alguém sequer sabia que eu havia sido assassinada? Olhei para o restante do meu mural que estava visível na tela. Não havia mensagens de Descanse em paz, Sutton ou indicações de uma missa em memória a Sutton Mercer. Talvez ninguém soubesse ainda. Será que não tinham me encontrado? Será que eu estava jogada em algum campo, o cordão ainda apertando meu pescoço? Olhei para o vulto tremeluzente do meu próprio corpo. Mesmo que ninguém conseguisse me ver, de vez em quando eu conseguia distinguir um pequeno vislumbre de mim mesma – uma mão aqui, um cotovelo ali, um short de tecido atoalhado e chinelos amarelos. Eu não via sangue algum. Minha pele não estava azul.

Bem na hora em que Emma ia fechar o computador, alguns outros posts no mural de Sutton chamaram sua atenção. Mal posso esperar pela sua festa de aniversário!, escrevera Charlotte. Vai ser incrível! O aniversário de Emma também estava chegando. Ela checou as informações de Sutton. O aniversário dela era em 10 de setembro, o mesmo dia do de Emma.

Seu coração batia com força. Aquela era uma coincidência e tanto.

Eu também me senti assustada e esperançosa e confusa. Talvez fosse verdade. Talvez fôssemos mesmo irmãs gêmeas.

Após um instante, Emma abriu uma nova janela e entrou na própria página do Facebook. Parecia insignificante e patética perto da de Sutton – a foto do perfil era um close desfocado dela com Octopus, e ela só tinha cinco amigos: Alex, uma ex-irmã temporária chamada Tracy, o macaquinho do sorvete Ben & Jerry’s e dois membros do elenco de CSI. Então ela buscou novamente o perfil de Sutton e clicou no botão que dizia ENVIAR UMA MENSAGEM. Quando a janela abriu, ela digitou: Isso vai parecer loucura, mas acho que somos parentes. Temos exatamente a mesma aparência e fazemos aniversário no mesmo dia. Eu moro em Nevada, não muito longe de você. Você por acaso não seria adotada, seria? Responda ou me ligue se quiser conversar.

MENSAGEM ENVIADA!, anunciou a tela. Emma olhou em volta para o quarto silencioso, o pequeno ventilador sobre a mesa soprando ar morno em seu rosto. Depois de passado aquele momento que provavelmente mudaria sua vida, ela esperava que o mundo tivesse se transformado miraculosa e drasticamente – que um duende entrasse dançando pela janela aberta, que as breguíssimas esculturas de terracota que Clarice tinha em seu jardim ganhassem vida e começassem um trenzinho de conga, qualquer coisa. Mas a longa e irregular rachadura no reboco do teto ainda estava lá, assim como a mancha difusa em forma de M no carpete, perto do closet.

O pequeno relógio no canto da tela do laptop mudou de 22h12 para 22h13. Ela atualizou sua página do Facebook. Espiou o céu noturno por uma fresta nas venezianas empoeiradas e viu as estrelas Mamãe, Papai e Emma. Seu coração saltitava no peito. O que ela tinha feito? Emma alcançou seu telefone e ligou para Alex, mas ela não atendeu. TÁ AÍ?, enviou em mensagem de texto para a amiga, mas não houve resposta.

O tráfego na autoestrada tornou-se esparso e sussurrante. Emma deixou escapar um longo suspiro, pensando no que viria depois. Talvez pudesse voltar para Henderson, morar no quarto vago de Alex e pagar um aluguel à mãe dela. Trabalharia em tempo integral – talvez durante a noite, na Target 24 horas que havia perto da casa de Alex – e, de alguma forma, terminaria o colégio. Talvez pudesse até fazer estágio no jornal local nos fins de semana...

Bzzzzzzzz.

Os olhos de Emma se abriram de repente. Lá fora, a lua estava alta no céu. O relógio na mesa de cabeceira mostrava 00h56. Ela tinha cochilado.

Bzzzzzzzz.

Seu telefone estava piscando. Ela ficou olhando para ele por um longo instante, como se tivesse medo de que saltasse e a mordesse.

Havia um ícone de envelope na tela. Seu coração batia cada vez mais rápido. Tremendo, ela clicou em ABRIR. Emma teve que ler a mensagem do Facebook quatro vezes até conseguir absorver de verdade as palavras.

MEU DEUS. Não acredito nisso. Sim, eu com certeza fui adotada. Mas até agora nunca soube da sua existência. Vc pode me encontrar na entrada do Sabino Canyon, em Tucson, amanhã às seis? O número do meu celular vai anexo. Não conte a ninguém quem você é até conversarmos – é perigoso!

Até mais!

Beijo, Sutton (sua irmã gêmea)

Havia, é claro, um problema com essa mensagem: eu não a tinha escrito.


4

REENCONTRO INTERROMPIDO

No final da tarde seguinte, Emma saiu, meio trôpega, de um ônibus Greyhound, a bolsa verde a tiracolo. O calor irradiava em ondas do estacionamento; o ar estava tão abafado que ela tinha a impressão de haver acabado de entrar num secador de cabelos gigante. A sua direita havia casinhas de adobe e uma construção em estuque roxo que era uma academia de ioga para homens, chamada hOMbre. A sua esquerda havia um grande prédio em ruínas chamado hotel Congress, que parecia mal-assombrado. Cartazes de futuros shows cobriam as janelas da frente. Alguns hipsters vagavam pela rua, fumando cigarros. Mais adiante, havia o que parecia ser uma loja para prostitutas dominatrixes, pois a vitrine estava cheia de manequins vestindo malhas colantes, meias arrastão e botas na altura da coxa segurando chicotes nas mãos.

Emma virou-se novamente e se viu diante da estação de ônibus da Greyhound. CENTRO DE TUCSON, dizia uma placa pendurada a uma altura baixa na frente da estação. Depois de horas sentada em um ônibus ao lado de um homem com uma barba estilo diabinho seriamente viciado em Doritos sabor pimenta jalapeño, ela finalmente chegou. Sua vontade era correr para o grande “Greyhound” da placa e lhe dar um beijo molhado, mas seu telefone vibrou em seu bolso e ela o pegou às pressas para atender. A foto de Alex aparecia na tela.

– Oi! – Emma segurou o BlackBerry contra a orelha. – Adivinhe onde estou?

– Não acredito – disse Alex do outro lado, ofegante.

– Isso mesmo.

Emma arrastou sua bolsa até um banco sob o toldo e se sentou para descansar. Alex finalmente tinha respondido à mensagem de texto que Emma lhe enviara na noite anterior. Emma tinha ligado imediatamente, despejando toda a história em uma longa frase, sem nem tomar fôlego.

– Deixei um bilhete para a Clarice – completou Emma, tirando suas longas pernas do caminho para deixar passar um casal mais velho que vinha arrastando malas de rodinhas. – O Serviço Social também não viria atrás de mim... já tenho quase dezoito anos.

– E aí, o que você vai dizer a essa tal de Sutton? Quer dizer, isso se ela for mesmo sua irmã. Acha que vai poder ir morar com ela? – Alex suspirou melancolicamente. – É que nem a história da Cinderela, só que sem aquele príncipe tosco!

Emma se recostou no banco e olhou para as montanhas arroxeadas a distância.

– Não quero me precipitar – disse ela. – Primeiro vamos ver se a gente se dá bem.

Tudo encenação. Durante toda a viagem de ônibus, Emma tinha imaginado como conhecer Sutton poderia simplesmente transformar sua vida. Talvez ela pudesse se mudar para Tucson e frequentar a escola de Sutton. Também poderia conhecer os pais adotivos da garota. Talvez até me deixem ir morar com eles, ousara considerar. Seus braços ficaram arrepiados. Ok, era uma possibilidade remota, mas por que não? Aquilo parecia mesmo uma versão mais legal de Cinderela.

Mas cada coisa a seu tempo: o encontro daquele dia. Emma viu um único táxi verde-neon do outro lado da rua e acenou na sua direção.

– Por favor, não conte para ninguém, ok? – pediu ela a Alex.

– Prometo – concordou Alex. – Boa sorte.

– Obrigada.

Emma desligou, sentou-se no banco traseiro do táxi e pediu que o motorista a deixasse no Sabino Canyon; mal conseguia conter o nervosismo. O taxista saiu com o carro e foi percorrendo as ruas de Tucson. Emma olhava pela janela suja, sorrindo para os vários prédios da Universidade do Arizona, incluindo um que tinha escrito INSTITUTO DE FOTOGRAFIA em uma grande placa na frente. Emma mal podia esperar para entrar e ver a exposição. Depois passaram pelo gramado da faculdade. Estudantes descansavam ao sol. Um grupo de corredores passou exibindo sua altivez típica de uma manada de cervos. Havia uma garota vestida de planta de maconha no meio do pátio segurando uma placa que dizia BUZINE PELA ERVA! O taxista buzinou.

Depois entraram na Highway 10 e se dirigiram para o norte. As casas se tornaram maiores, e as ruas eram salpicadas de academias chiques, bistrôs simpáticos, delicatéssens e butiques sofisticadas. Emma passou pela entrada do shopping La Encantada, depois pelo luxuoso spa Elizabeth Arden Red Door. Talvez eu e Sutton possamos fazer um dia de pedicure, pensou.

Na verdade, aquilo a deixava um pouco nervosa. Ela nunca tinha ido a uma profissional desse tipo antes. Sempre que alguém tocava seus pés, ela soltava uma risadinha aguda como a do Ênio de Vila Sésamo.

Quanto a mim, tudo o que eu sentia era torpor enquanto o carro passava por aqueles lugares. Certas emoções e sentimentos cintilavam bem abaixo da superfície – vagos traços de intensidade e emoção quando vimos um restaurante chamado NoRTH, o cheiro de jasmim quando o táxi passou pelas lojas do La Encantada –, mas nada concreto emergiu. Perguntas zumbiam em minha cabeça como um enxame de abelhas. Quem tinha respondido Emma? Alguém mais havia descoberto que eu estava morta? Eu estava desesperada para olhar outra vez minha página do Facebook, mas Emma não a abrira novamente. Um dia inteiro se passara desde a minha morte – talvez mais; onde é que as pessoas achavam que eu estava? E por que ninguém encontrara meu corpo? Se bem que, se alguém tinha me assassinado, eu agora podia estar picadinha em trilhões de pedaços.

Eu queria gritar. Queria chorar. Mas só conseguia seguir Emma, em um estado mudo de pânico e choque. Era como aqueles sonhos terríveis em que eu estava caindo, caindo, caindo... do topo de um prédio alto. Eu sempre tentava gritar, pedir que alguém me pegasse, mas ninguém nunca respondia.

O táxi virou à esquerda, e uma montanha surgiu diante dos olhos de Emma. Uma placa de madeira esburacada dizia SABINO CANYON.

– Chegamos – disse o motorista, encostando ao meio-fio.

Era isso. Emma entregou uma nota de vinte dólares ao taxista e seguiu pisando o cascalho até um banco. Ela aspirou a mistura de aromas de protetor solar, poeira e pedras ao sol. Algumas pessoas, dispostas a fazer caminhadas noturnas, alongavam as panturrilhas contra uma barreira de estacionamento a alguns metros de distância. A cadeia de montanhas cintilante cortava o céu azul. Pequenos tufos de flores silvestres cor-de-rosa, amarelas e roxas pontuavam a trilha.

É perfeito, pensou Emma. Por instinto, ela tirou sua velha Polaroid da bolsa. Não tinha levado muita coisa consigo para Tucson – apenas sua carteira, Octopus, uma muda de roupa, a câmera e seu diário, porque tinha medo de ir a qualquer lugar sem ele. Deixara quase todo o resto, incluindo suas economias, em um guarda-volumes na estação de ônibus de Las Vegas. A máquina emitiu um som oco quando ela bateu a foto. Emma ficou observando a imagem aparecer lentamente no papel. Irmãs há muito perdidas se encontram pela primeira vez, foi a legenda que ela escreveu mentalmente.

Eram 18 horas em ponto. Ela se sentou em um banco, pegou um estojinho de pó compacto da Maybelline e avaliou seu reflexo. Estava usando um vestido listrado de jérsei da Gap que encontrara no Cinnamon’s, um brechó perto da casa de Clarice, e nos lábios um bocado generoso de gloss brilhante. Disfarçadamente cheirou a si própria: não queria estar fedendo a escapamento de ônibus ou Doritos jalapeño. Encontrar Sutton lhe recordava do momento de entrar pela primeira vez em um novo lar temporário. Os pais sempre a olhavam demorada e incisivamente, decidindo no mesmo instante se ela tinha passado ou não em sua avaliação. Por favor, gostem de mim, ela sempre pensava em incontáveis cozinhas ou varandas idênticas umas às outras. Por favor, que seja tolerável. Por favor, que eu não esteja com uma meleca no nariz.

Mais pessoas saíram da trilha do cânion. Emma olhou a hora em seu celular. Eram 18h10. E se Sutton sempre chegasse atrasada para tudo? Pessoas assim deixavam Emma louca. Aliás, o que elas iam dizer uma à outra?

– Oi, Sutton – murmurou Emma, treinando um sorriso. – Então a Becky perdeu você também?

Ela estendeu a mão em uma pantomima, então balançou a cabeça e puxou o braço. Elas iriam se abraçar, não é? E se simplesmente ficassem ali paradas e constrangidas, olhando para o nada?

O estranho vídeo voltou a sua mente. Afinal, quem aceitava ser estrangulado por divertimento? Ela pensou nas garotas que Travis tinha mencionado no dia anterior.

– Oh! – exclamou alguém atrás dela.

Emma deu um pulo de susto e voltou-se: havia um homem desconhecido de short e camisa polo parado a alguns metros dela. Com seu cabelo grisalho e o físico levemente arredondado, ele lembrava a Emma o dr. Lowry, o único assistente social de quem gostara, basicamente porque falava com ela como um ser humano e não como uma aberração de criança abandonada. Mas então a foto do Facebook que mostrava Charlotte e Sutton na quadra de tênis com aquele homem lhe veio à mente. Eu, C. e o sr. Chamberlain no Arizona Tennis Classic. Era alguém do mundo de Sutton, não do dela.

Não que eu tivesse muitas lembranças dele.

Havia uma expressão perturbada no rosto do homem.

– O-O que está fazendo aqui, Sutton?

Emma ficou perplexa ao perceber do que ele a tinha chamado. Ela abriu um sorriso incerto. Sua língua parecia inchada e pesada dentro da boca. Não conte a ninguém quem você é, dizia o e-mail. É perigoso.

– Hã, nada de mais – respondeu Emma, sentindo-se ridiculamente estúpida. As palmas de suas mãos coçavam, como acontecia toda vez que ela mentia para adultos.

– Vai fazer uma caminhada? – insistiu o pai de Charlotte. – É aqui que os jovens se encontram hoje em dia?

Emma olhou adiante na estrada, esperando ver uma garota igual a ela encostando o carro ao meio-fio para esclarecer aquela situação. Alguns carros passaram, mas não pararam. Alguns garotos em bicicletas Schwinn vinham pedalando e rindo.

– Hã, não exatamente.

Um cachorro do outro lado da trilha latiu. Emma se contraiu – um chow-chow a havia mordido quando ela tinha nove anos, e desde então ela mantinha distância de cachorros. Mas o cachorro estava concentrado em um coelho que aparecera repentinamente, saído de uma curva. O pai de Charlotte enfiou as mãos nos bolsos.

– Bem, até mais. Divirta-se. – E saiu andando rapidamente.

Emma se deixou cair no banco. Estranho. No relógio de seu telefone eram 18h20 agora. Ela clicou na pasta de NOVAS MENSAGENS, mas não havia nada dizendo ESTOU ATRASADA, JÁ VOU CHEGAR! Uma inquietação começou a percorrer seu corpo, envenenando tudo. Parecia que seu estômago estava digerindo a si mesmo. De repente, os arredores já não lhe pareciam tão mágicos. As pessoas descendo a montanha assemelhavam-se a monstros escuros e distorcidos. Havia um odor acre no ar. Alguma coisa estava muito errada.

Crec. Emma girou a cabeça rapidamente ao ouvir o barulho. Antes que ela pudesse ver o que era, uma pequena mão cobriu seus olhos e a fez ficar de pé.

– O que...? – gritou Emma.

Outra mão tapou sua boca. Emma tentou escapar, mas um objeto duro e frio foi pressionado entre suas omoplatas. Ela congelou instantaneamente. Nunca sentira uma arma nas costas, mas aquilo não poderia ser outra coisa.

– Não se mexe, piranha – sussurrou uma voz áspera. Emma sentiu o hálito quente em sua nuca, mas só conseguia ver a palma da mão de alguém. – Você vem com a gente.

Eu bem queria ver quem era “a gente”, mas havia um pequeno detalhe nessa coisa de estar morta: quando Emma não conseguia ver alguma coisa, eu também não conseguia.


5

ELA SOU EU

Os pés de Emma tropeçavam, arrastando-se no chão. A arma lacerava sua pele. Ela via formas escuras e indistintas adejando através da venda que alguém amarrara depressa nela, cobrindo-lhe os olhos, e o som do trânsito rugia em seus ouvidos. Ela soltou um lamento apavorado. O bizarro vídeo do estrangulamento lampejava em sua mente como as luzes rodopiantes de uma ambulância. Aquelas mãos puxando o relicário do colar. Sutton caindo para a frente sem vida.

Eu pensava a mesma coisa. O terror me invadia.

Alguém empurrou Emma para o outro lado da estrada. Uma buzina soou, mas o pé de Emma bateu no meio-fio do outro lado. Enquanto ela seguia, vacilante, pela calçada, o barulho de carros deu lugar a uma batida alta e pulsante. O cheiro de hambúrgueres fritos, cachorros-quentes e cigarros alcançou as narinas de Emma. Houve um barulho alto de água espirrando. Alguém riu. Outra pessoa gritou: “Adorei!” As mãos de Emma se contraíram. Onde ela estava?

– Mas que droga...?

De repente o lenço foi arrancado de seus olhos. O mundo voltou a se iluminar para mim exatamente no mesmo instante. Uma garota familiar com cabelos longos e avermelhados, pele branca, ombros largos e cintura grossa pairava na frente de Emma. Ela usava um vestido azul curto com renda em volta do pescoço. Charlotte – o nome ocorreu a Emma.

– Ela já aprendeu a lição, não acham? – disse Charlotte, jogando a venda atrás de um vaso de cacto.

Alguém soltou as mãos de Emma, que estavam amarradas nas costas. Ela também não sentia mais a arma pressionada contra suas omoplatas. Emma olhou rapidamente em volta. Três lindas garotas em vestidos de festa e maquiagem brilhante estavam diante dela.

A mais alta tinha cabelos escuros, clavículas salientes, um coque de bailarina despojado e a tatuagem de uma rosa na parte interna do pulso. Madeline Vega, a menina da foto no Facebook de Sutton. Ao lado dela estavam duas garotas com cabelo cor de trigo e olhos azul-claros. Ambas seguravam iPhones. Uma era patricinha, com um vestido polo, uma faixa branca no cabelo e sandálias Anabela com tiras de gorgorão. A outra parecia saída de um clipe do Green Day – usava maquiagem pesada nos olhos, um vestido xadrez, botas de cano alto e um monte de pulseiras pretas de silicone. Só podiam ser Gabriella e Lilianna Fiorello, as Gêmeas do Twitter.

– Pegamos você! – Madeline dirigiu a Emma um sorriso bobo. As Gêmeas do Twitter também sorriam.

– Desde quando viramos ecológicas? – Charlotte suspirou alto atrás delas. – Reciclagem não faz parte das nossas regras.

Madeline puxou para baixo o vestido trapézio curto e branco que estava usando.

– Tecnicamente não foi uma repetição, Char. Sutton sabia que era a gente o tempo todo. – Ela ergueu um batom no ar, depois pressionou-o novamente contra as costas de Emma, entre suas omoplatas. – Até o chihuahua da minha mãe saberia que não era uma arma.

Emma se afastou bruscamente. Para ela, o batom tinha sido totalmente convincente. Então ela percebeu algo mais – Madeline a tinha chamado de Sutton, assim como o pai de Charlotte.

– Esperem um minuto – disparou ela, tentando com muito esforço encontrar sua voz. – Eu não sou...

Charlotte a interrompeu, o olhar ainda fixo em Madeline:

– Mesmo que a Sutton soubesse que eram vocês, ainda é fraco. E vocês sabem disso. – Ela tinha uma voz sarcástica e um olhar penetrante. Ainda que não fosse a mais bonita do grupo, era claramente a líder. – Além do mais, desde quando a gente faz esse tipo de coisa com elas? – E apontou para Gabriella e Lilianna, que baixaram os olhos timidamente.

Madeline mexia na tira de couro de seu relógio de pulso gigante.

– Mas que implicância, Char. Foi espontâneo. Eu vi a Sutton e simplesmente... fui lá e fiz.

Charlotte se aproximou minimamente de Madeline e estufou o peito.

– Fizemos as regras juntas, lembra? Ou esses coques apertados que você usa nas aulas de balé cortaram a circulação do seu cérebro?

O queixo de Madeline tremeu por um instante. Seus olhos grandes, as maçãs do rosto altas e os lábios em forma de laço lembravam a Emma a silhueta da proa de um navio. Mas Emma percebeu que Madeline massageava lentamente um chaveiro de pé de coelho rosa-choque no puxador de sua bolsa, como se toda a beleza do mundo não lhe tivesse dado muita sorte.

– Pelo menos os meus coques não são que nem as suas calças jeans apertadas, que cortaram a circulação da sua bunda – devolveu Madeline.

Tentei tocar Madeline, mas meus dedos escorregaram por sua pele.

– Mad? – gritei. Toquei o ombro de Charlotte. – Char?

Ela nem sequer estremeceu. Nada de novo sobre elas voltava à minha memória. Eu sabia que as amava, mas não sabia ao certo por quê. Mas como elas podiam pensar que Emma era eu? Como podiam não saber que a melhor amiga delas estava morta?

– Hã, gente... – Emma tentou de novo, olhando para o outro lado da ampla avenida. A entrada para o Sabino Canyon brilhava convidativamente ao pôr do sol. – Eu tenho um compromisso.

Madeline lhe lançou um olhar sarcástico.

– Ah, é? A festa da Nisha? – Ela passou o braço pelo cotovelo de Emma e a puxou em direção ao pequeno portão de ferro forjado que levava ao quintal da casa em cuja entrada para a garagem elas estavam. – Olha, eu sei que você e a Nisha têm umas questões para resolver, mas essa é a última festa antes do início das aulas, amanhã. Você não precisa falar com ela. Aliás, onde você estava? Passamos o dia todo tentando ligar para você. E o que você estava fazendo sentada em frente ao Sabino? Você parecia um zumbi.

– Bizarro – falou Lilianna.

– Muito bizarro – concordou Gabriella, em uma voz idêntica.

Então Gabriella enfiou a mão no bolso e pegou um pequeno frasco de remédio. Tirando a tampa, despejou dois comprimidos na mão e os enfiou na boca, fazendo-os descer com um gole de Coca Diet. Aquecendo para a festa, pensou Emma cautelosamente.

Ela observou as quatro garotas. Será que devia contar quem realmente era? E se fosse mesmo perigoso? De repente ela apalpou o ombro e percebeu que tinha perdido sua bolsa durante o falso sequestro. Quando olhou para o outro lado da rua, viu que ainda estava lá. Emma daria um jeito de escapulir e a pegaria assim que pudesse. E se Sutton aparecesse, talvez ao ver a bolsa ela entendesse que Emma estivera ali.

– Esperem um segundo.

Emma foi para perto de um grande e redondo cacto em flor. Soltou o braço do de Madeline e tirou o telefone do bolso: pelo menos isso não estava na bolsa também. Nenhuma mensagem nova. Ela cobriu a tela com uma das mãos e escreveu várias SMSs para o número de celular que Sutton lhe enviara ao responder à mensagem do Facebook na noite anterior: Suas amigas me encontraram. Estou numa festa do outro lado da rua. Elas acham que eu sou você. Eu não sabia o que dizer. Mande uma msg com mais instruções, ok?

Emma escreveu tudo rapidamente – ela sabia que aquele seu terceiro lugar no concurso de digitação rápida em celulares (Las Vegas, dois anos antes) acabaria sendo útil algum dia – e apertou ENVIAR. Pronto. Sutton agora poderia encontrá-la ali e esclarecer quem era quem... ou Emma podia encontrá-la mais tarde e simplesmente fingir que era Sutton durante a festa.

– Para quem você está escrevendo? – Madeline se inclinou sobre o telefone de Emma, tentando dar uma olhada na tela. – E por que está usando um BlackBerry? Pensei que você tivesse se livrado dessa coisa.

Emma enfiou o telefone de volta no bolso antes que Madeline pudesse ver. As publicações de Sutton no Facebook surgiam na mente de Emma. Ela se endireitou e lançou a Madeline o mesmo olhar recatado que vira a irmã fazer nos vídeos do Youtube.

– Vai ficar querendo saber, amorzinho.

Assim que terminou de dizer as palavras, Emma fechou a boca com força e sentiu o estômago se contrair. Ela não teria ficado mais surpresa se um buquê de margaridas tivesse saído de sua garganta. Comentários como esse costumavam ir parar em sua Lista de Respostas, não em seus diálogos do dia a dia.

Madeline soltou um suspiro arrogante.

– Tudo bem, baranga.

Então ela sacou seu iPhone. Um grande adesivo de uma bailarina colado atrás do aparelho dizia MÁFIA DO LAGO DOS CISNES.

– Pessoal, todas juntas!

Todas se apertaram umas contra as outras e sorriram. Madeline segurou o telefone com o braço estendido. Emma ficou na ponta, sorrindo debilmente.

Em seguida elas foram em direção à casa, contornando a entrada para carros. O ar da noite tinha esfriado bastante, e os aromas misturados de churrasqueira, velas de citronela e cigarros infiltravam-se nas narinas de Emma. Gabriella e Lilianna andavam e tuitavam ao mesmo tempo. Quando dispensaram a porta da frente para entrar por um caminho de pedras na lateral da casa, Charlotte puxou Emma para trás, de forma que ficassem sozinhas.

– Você está bem?

Charlotte ajeitou seu vestido de mangas borboleta para que a grossa alça do sutiã não aparecesse. Seus braços eram pontilhados de milhares e milhares de sardas.

– Estou ótima – disse Emma com alegria, mesmo que seus dedos ainda tremessem e seu coração golpeasse vigorosamente suas costelas.

– Então, cadê a Laurel? – Charlotte pegou um gloss da bolsa e passou nos lábios. – Você não disse que ia trazê-la de carro?

Os olhos de Emma dispararam de um lado para o outro. Laurel. Era a irmã de Sutton, não era? Seria bom ter um aplicativo Wiki-Sutton em seu BlackBerry ou coisa parecida.

– Hã...

Charlotte arregalou os olhos.

– Você deixou ela pra trás de novo, não foi? – Ela sacudiu o dedo de brincadeira no rosto de Emma. – Você é uma péssima irmã.

Antes que Emma pudesse responder, elas chegaram ao quintal. Alguém tinha pendurado uma faixa que dizia ADEUS, VERÃO! no pequeno galpão de depósito cor de salmão. Dois garotos musculosos em camisas ensopadas que diziam POLO AQUÁTICO HOLLIER estavam dentro da piscina, com duas garotas magras de biquíni sobre os ombros, todos prontos para uma luta. Uma garota de cabelos cacheados e longos brincos de pena ria alto demais com uma versão mais nova e mais atraente de Tiger Woods. Havia uma longa mesa repleta de cachorros-quentes mexicanos, burritos vegetarianos, sushis e morangos cobertos com chocolate. Numa outra mesa, várias garrafas de refrigerante, ponche de frutas e ginger ale, além de duas grandes jarras de Beefeater e Cuervo.

– Uau – soltou Emma sem querer quando viu as bebidas.

Emma não era muito afeita a álcool – uma vez tinha bebido demais com Alex, por causa de um jogo de bebida temático do Crepúsculo, e ficaram as duas revezando para ir vomitar no jardim de pedras japonês da mãe de Alex. Além do mais, ela nunca soubera como se comportar em festas. Sempre se sentia tímida e reservada, a garota abandonada, esquisita e sem-teto.

– Não é? – murmurou Madeline, aproximando-se de Emma. Seu olhar também estava fixo na mesa. – A Casa Banerjee decaiu muito depois que a mãe da Nisha morreu. O pai dela anda tão distraído ultimamente que a Nisha poderia vender cachimbos de crack e ele nem ia notar.

Alguém tocou seu braço.

– Oi, Sutton – chamou um garoto alto e musculoso, estilo capitão do time de algum esporte. Emma abriu um sorriso largo. Uma garota mignon de cabelo escuro acenou para Emma da mesa de bebidas, perto das portas francesas.

– Seu vestido é lindo! – exclamou ela. – É da BCBG?

Emma não conseguiu evitar sentir uma pontada de inveja. Não apenas Sutton tinha uma família como também era extremamente popular. Por que Emma se saíra com uma porcaria de vida e Sutton ficara com tudo do bom e do melhor?

Eu não tinha muita certeza quanto a isso, considerando que Emma estava viva e eu, não.

Mais adolescentes passaram, alegrando-se quando a viam. Emma sorria, acenava e ria, sentindo-se uma princesa a cumprimentar seus súditos leais. Era libertador e quase... divertido. Ela entendeu por que às vezes os alunos mais tímidos conseguiam subir ao palco nas peças da escola e perder totalmente suas inibições.

– Aí está você – murmurou uma voz sexy no ouvido de Emma.

Ela virou-se e viu um belo garoto louro usando uma camisa polo cinza e justa e uma bermuda comprida verde-oliva. Uma foto do Facebook piscou em sua mente: Garrett, o namorado de Sutton.

– Você sumiu o dia todo. – Garrett entregou a Emma um copo vermelho de plástico, cheio de algum líquido. – Eu liguei, mandei mensagem... Por onde você andou?

“Estou bem aqui!”, eu queria gritar. Breves flashes de beijos, mãos dadas e danças lentas em bailes com Garrett apareciam e logo sumiam em alguma parte do meu cérebro. Ouvi distintamente as palavras Eu amo você. A saudade me atingiu com força.

– Ah, por aí – respondeu Emma, vagamente. – Mas alguém tinha que cortar um pouco o cordão umbilical, não acha? – acrescentou ela, cutucando levemente as costelas de Garrett.

Aquilo era algo que ela sempre morrera de vontade de dizer a todo namorado superprotetor que já tivera, do tipo que mandava mensagens sem parar e surtava se ela não respondesse imediatamente. Além do mais, parecia algo que Sutton diria.

Garrett puxou-a para perto de si e acariciou seu cabelo.

– Que bom que eu encontrei você.

A mão dele desceu do cabelo dela para o ombro, depois perigosamente próxima ao seio.

– Hã... – Emma se afastou repentinamente.

Fiquei muito feliz por ela ter feito isso.

Garrett levantou as mãos, rendendo-se.

– Desculpe, desculpe.

Então o BlackBerry vibrou contra seu quadril. Seu coração deu um salto. Sutton.

– Já volto – disse ela a Garrett.

Ele fez que sim com a cabeça, e Emma ziguezagueou pelas pessoas em direção à casa. Quando Garrett se virou para falar com um asiático alto que usava um suéter da Copa do Mundo, Emma se abaixou e disparou para o portão lateral.

Ela voltou-se para olhar para a festa mais uma vez e percebeu alguém observando-a fixamente da grande mesa de teca do outro lado do quintal. Era uma garota morena com olhos grandes e a boca contraída. Usava um vestido envelope amarelo e um bracelete dourado bem no alto do braço. Era Nisha, da foto do time de tênis de Sutton. Aquela era a festa dela. Ela encarava Emma como se quisesse levantá-la pelos cabelos e jogá-la para fora.

Mesmo que todo o seu ser, repleto da essência seja-legal-e-não-cause-problemas, quisesse acenar e sorrir, ela se endureceu, pensou em Sutton e lançou a Nisha um olhar perverso. O ultraje perpassou o rosto da garota. Após um instante, ela virou rapidamente a cabeça, seu rabo de cavalo acertando o rosto da menina que estava atrás dela.

Uma sensação de receio passou por mim. Estava claro que Nisha e eu tínhamos problemas – grandes problemas.

Não que eu tivesse ideia do que era.


6

QUEM RESISTE A UM TACITURNO?

A entrada da garagem de Nisha estava silenciosa e tranquila. Grilos cricrilavam nos arbustos, e Emma sentia o ar frio contra sua pele. A luz azulada de uma TV tremeluzia na janela de uma casa a algumas portas dali. Um cachorro latiu atrás de um muro baixo de tijolos. A pulsação de Emma começou a se acalmar, e seus ombros lentamente desceram da sua posição contraída, perto das orelhas. Ela pegou o BlackBerry e olhou para a tela. A mensagem era de Clarice: LI SEU BILHETE. ESTÁ TUDO BEM? AVISE SE PRECISAR DE ALGUMA COISA.

Emma deletou a mensagem, depois atualizou a caixa de entrada outra vez. Nenhuma mensagem nova. Então olhou para o outro lado da ampla autoestrada. Um grande projetor de luz brilhava sobre o estacionamento do Sabino. Emma engoliu em seco. O banco agora estava vazio. Será que alguém tinha levado suas coisas? Onde estava Sutton? E o que ela iria fazer quando aquela festa acabasse? Sua carteira estava na bolsa. Agora ela não tinha dinheiro. Nem identidade.

Um ruído. Emma virou-se e olhou para a casa de Nisha. Não havia ninguém na entrada da garagem. Então um som seco ecoou pelo ar, uma lata de refrigerante sendo aberta. Ela virou-se novamente. Uma figura estava parada na varanda da casa ao lado. Havia um grande telescópio junto à pessoa, mas ela olhava diretamente nos olhos de Emma.

Ela recuou.

– Ah. Desculpe.

O garoto avançou, a luz incidindo em suas maçãs do rosto proeminentes. Emma notou seus olhos arredondados, suas sobrancelhas grossas e o cabelo raspado. Sua boca estava contraída em uma linha reta e tensa que parecia dizer afaste-se. Ele estava vestido de forma mais casual que os garotos da festa: uma bermuda meio desfiada e uma camiseta cinza puída que mostrava cada contorno de seu peito musculoso.

Eu o reconheci, mas, é claro – já devia estar me acostumando a isso –, não sabia por quê.

Risadas vinham do quintal de Nisha. Emma olhou para trás, depois novamente para o garoto. Estava intrigada por seu ar sombrio e pelo fato de ele parecer não se importar que uma festa estivesse bombando na casa vizinha. Ela sempre ficava caidinha por aqueles caras assim meio taciturnos.

– Por que não está na festa? – perguntou ela.

O garoto apenas a encarou, e seus olhos eram duas imensas luas.

Emma foi até a calçada e parou bem em frente à casa dele.

– O que está olhando? – perguntou, apontando para o telescópio.

Ele nem piscou.

– Vênus? – chutou Emma. – A Ursa Maior?

Um pequeno som escapou da garganta dele. Ele passou a mão pela nuca e virou-se de costas. Finalmente, Emma girou nos calcanhares.

– Tudo bem – disse ela, tentando parecer o mais alegre possível. – Fique aí sozinho. Eu não me importo.

– As Perseidas, Sutton.

Emma voltou-se novamente para ele. Então ele também conhecia Sutton.

– O que são as Perseidas? – perguntou ela.

Seus dedos se curvaram ao redor da grade da varanda.

– Uma chuva de meteoros.

Emma foi em direção a ele.

– Posso ver?

O garoto permaneceu imóvel enquanto ela atravessava o jardim dele. Sua casa era um pequeno bangalô cor de areia com um telheiro para carros em vez de uma garagem. Alguns cactos contornavam o meio-fio. De perto, ele cheirava a root beer. A luz da varanda brilhava sobre seu rosto, revelando impressionantes olhos azuis. Havia um prato com um sanduíche comido pela metade no balanço da varanda, e dois livros com capa encadernada em couro no chão. O primeiro tinha uma capa gasta que dizia The Collected Poetry of William Carlos Williams. Emma nunca tinha conhecido um garoto bonito que lesse poesia – pelo menos nenhum que admitisse isso.

Finalmente, ele olhou para baixo, ajustou as lentes do telescópio para a altura de Emma e saiu do seu caminho. Emma inclinou-se para a ocular.

– Desde quando você é astrônoma? – perguntou ele.

– Desde nunca. – Emma virou o telescópio para a grande lua cheia. – Normalmente eu só dou às estrelas os nomes que eu mesma invento.

– Ah, é? Tipo o quê?

Emma deu um peteleco na tampinha da lente, pendurada por um cordão preto que era preso à ocular.

– Bom, tipo a Estrela Vadia. Ali.

Ela apontou para um pequeno ponto cintilante logo acima dos telhados. O nome surgira alguns anos antes, em homenagem a Maria Rowan, uma garota do sétimo ano que tinha derramado limonada embaixo da carteira de Emma na aula de espanhol e saíra contando para todo mundo que Emma tinha incontinência urinária. Ela até se dera o trabalho de traduzir para o espanhol, incontinencia. Emma fantasiara que lançava Maria aos céus, assim como os deuses gregos faziam para banir seus filhos para o mundo subterrâneo por toda a eternidade.

O garoto soltou uma risada que pareceu uma tosse.

– Na verdade, acho que essa sua Estrela Vadia faz parte do Cinturão de Órion.

Emma pressionou a mão contra o peito como uma dama ofendida.

– Você fala assim com todas as garotas?

Ele aproximou-se um pouco mais dela, os braços dos dois quase se tocando. O coração de Emma saltou para a garganta diante da facilidade daquilo tudo. Por um instante ela pensou em Carter Hayes, o capitão do time de basquete do seu colégio em Henderson, que ela adorava platonicamente. Emma tinha imaginado coisas maravilhosas para dizer a Carter em sua lista de Como se Deve Flertar, mas sempre que estavam sozinhos juntos ela acabava de alguma forma falando sobre American Idol. Ela nem sequer gostava de American Idol.

O garoto ergueu a cabeça para o céu novamente.

– Talvez as outras estrelas de Órion possam ser a Estrela Mentirosa e a Estrela Traidora. Três garotas malvadas que foram arrastadas pelos cabelos até a caverna de Órion. – Ele olhou para ela de um jeito significativo.

Emma se inclinou sobre a grade, sentindo que as palavras tinham alguma conotação especial que ela não conseguia decifrar.

– Parece que você andou pensando muito sobre isso.

– Talvez.

Ele tinha os cílios mais longos que Emma já vira. Mas de repente seu olhar se tornou menos sedutor e mais... curioso, talvez.

E repentinamente um flash sobre ele surgiu em minha mente. Não era bem uma lembrança, apenas uma estranha mistura de gratidão e humilhação. Desapareceu quase que de imediato, nada mais que um vislumbre.

O garoto desviou os olhos e esfregou vigorosamente o topo da cabeça.

– Desculpe. É só que... a gente quase não tinha se falado desde que... você sabe. Faz um tempo.

– Bem, não tem melhor momento que o agora – disse Emma.

Uma insinuação de sorriso apareceu nos lábios dele.

– É.

Eles olharam um para o outro novamente. Vaga-lumes dançavam em volta deles. O ar de repente adquiriu o cheiro de flores silvestres.

– Sutton? – chamou a voz de uma garota em meio à escuridão.

Emma se virou. Os ombros do garoto se contraíram.

– Aonde ela foi? – perguntou outra pessoa.

Emma colocou o cabelo atrás das orelhas. Seu olhar cruzou o jardim e viu duas figuras na entrada da garagem de Nisha. Os Doc Martens pretos de Lilianna ressoavam conforme ela andava. Gabriella segurava seu iPhone ligado, usando um aplicativo de lanterna para iluminar o caminho.

– Fiquem aí! – gritou Emma. Ela olhou para o garoto. – Por que você não vem para a festa?

Ele emitiu um som indignado de escárnio.

– Não, obrigado.

– Ah, vamos lá. – Ela continuou sorrindo. – Eu conto para você tudo sobre a Estrela Piranha, a Estrela Nerd...

As garotas alcançaram a entrada da garagem dele.

– Sutton? – gritou Lilianna, estreitando os olhos na luz da varanda.

– Quem está aí? – chamou Gabriella.

Vupt. Emma voltou-se rapidamente. O garoto tinha sumido. A guirlanda seca que pendia na porta da frente balançava para a frente e para trás, a fechadura se trancou com um clique, e as persianas da grande janela foram rapidamente fechadas. Óóóóóótimo.

Emma saiu lentamente da varanda e atravessou o jardim.

– Aquele era o Ethan Landry? – exigiu saber Gabriella.

– Vocês estavam conversando? – perguntou Lilianna ao mesmo tempo. Sua voz transbordava intriga. – O que ele disse?

Charlotte apareceu atrás das Gêmeas do Twitter. Suas bochechas estavam vermelhas, e sua testa parecia brilhar.

– O que está acontecendo?

Gabriella parou de digitar no celular por um instante.

– Sutton estava conversando com Ethan.

– Ethan Landry? – As sobrancelhas de Charlotte se ergueram. – O Sr. Rebelde Sem Causa falou de verdade?

Ethan. Pelo menos agora eu podia ligar um nome ao rosto.

E Emma também. Mas então ela percebeu as expressões confusas das garotas. Só ela mesmo para ter uma conexão instantânea com um cara que não era um dos amigos pré-aprovados de Sutton. Diante disso, ela pegou o telefone outra vez. Ainda não havia nenhuma mensagem.

O olhar de Charlotte parecia um raio laser, quente e perfurante; Emma tinha um pressentimento de que precisava arranjar uma explicação. Rápido.

– Acho que eu bebi demais – tentou ela.

Charlotte estalou a língua.

– Ah, querida. – Ela a pegou pelo braço e a guiou pela longa fila de carros estacionados. – Eu levo você para casa.

Emma se endireitou, aliviada por Charlotte ter engolido essa. Depois percebeu o que Charlotte estava oferecendo. Ela a levaria para a casa de Sutton.

– Isso, por favor – disse ela, e seguiu Charlotte até seu carro.

Também foi um alívio para mim. Estando na minha casa, talvez finalmente conseguíssemos algumas respostas.


7

O QUARTO QUE EMMA NUNCA TEVE

Charlotte encostou seu grande Jeep Cherokee preto no meio-fio e colocou a marcha em ponto morto.

– Aqui estamos, madame – anunciou ela, com um falso sotaque britânico.

Elas estavam em frente a uma casa de estuque de dois andares com grandes janelas em arco. Palmeiras, cactos e alguns canteiros de flores muito bem cuidados cobriam o jardim de cascalho. Flores em grandes vasos de pedra ladeavam a arcada para a porta da frente, mensageiros do vento pendiam sobre a varanda, e havia um sol esculpido em terracota pendurado na garagem com vaga para três carros. Gravada na lateral da caixa de correio, na calçada, havia apenas uma letra M. Dois carros estavam estacionados na entrada da garagem, um Jetta da Volkswagen e um grande utilitário esportivo da Nissan.

Eu só conseguia pensar em uma palavra para aquilo: lar.

– Uma das gêmeas com certeza se deu mal nessa – murmurou Emma entre os dentes. Ah, se tivesse sido ela a primeira a ser abandonada...

– Hein? – perguntou Charlotte.

Emma puxou um fio solto de seu vestido.

– Nada.

Charlotte tocou o braço descoberto de Emma.

– A Mad assustou você?

Emma observou o cabelo ruivo e o vestido azul de Charlotte, desejando poder contar a ela o que estava acontecendo. Mas, em vez disso, falou:

– Eu sabia que eram elas o tempo todo.

– Ok. – Charlotte aumentou o volume do rádio. – Vejo você amanhã então, pinguça. Lembre-se de tomar muitas vitaminas antes de apagar. E, ei, quer dormir na minha casa na sexta? Prometo que vai ser legal. Meu pai ainda está viajando, e a minha mãe não vai incomodar a gente.

Emma franziu a testa.

– Seu pai está viajando? – O homem que ela vira no Sabino Canyon lhe veio à mente.

Uma expressão preocupada cruzou o rosto de Charlotte, a primeira fenda que Emma via em sua armadura aquela noite toda.

– Ele está em Tóquio vai fazer um mês. Por quê?

Emma passou a mão pela nuca.

– Por nada. – Aquele homem devia ser outra pessoa.

Ela bateu a porta do carro e seguiu até a casa. O ar tinha um cheiro cítrico, por causa das laranjeiras e dos limoeiros do jardim. Uma biruta prateada se sacudia no beiral da varanda.

Os desenhos espiralados no estuque lembravam a Emma a cobertura de um bolo. Ela olhou pela janela do vestíbulo e viu um candelabro de cristal e um piano de cauda. Pequenos adesivos refletores em um dos quartos do segundo andar diziam: CRIANÇA NO INTERIOR. EM CASO DE INCÊNDIO, POR FAVOR, RESGATE PRIMEIRO. Nenhuma família temporária jamais se dera o trabalho de colocar aqueles adesivos nas janelas de Emma.

Ela desejou poder tirar uma foto, mas então ouviu o motor de um carro atrás de si. Emma virou-se e viu Charlotte observando-a do meio-fio, uma das sobrancelhas erguida. Vá embora, desejou Emma silenciosamente. Estou bem.

O jipe não se moveu. Emma esquadrinhou a calçada, agachou-se e virou uma grande pedra perto da varanda. Para seu espanto, uma chave prateada brilhava ali embaixo. Ela quase deu uma gargalhada. Esconder chaves sob pedras era algo que ela vira na TV; não achava que as pessoas realmente fizessem aquilo.

Emma subiu os degraus da varanda e enfiou a chave na fechadura, que girou facilmente. Ela passou pela soleira da porta e deu a Charlotte outro aceno. Satisfeita, Charlotte partiu no jipe. O motor rosnou, e as luzes vermelhas da traseira perderam-se na noite. Então Emma respirou fundo e abriu a porta da casa.

Minha casa, embora eu não conseguisse lembrar muita coisa dela. O rangido do balanço da varanda, onde eu costumava me sentar e ler revistas. O cheiro de lavanda do aromatizador de ambientes: minha mãe encharcava os cômodos disso. Eu conseguia me lembrar perfeitamente do som da nossa campainha, dois tinidos agudos semelhantes a pios, e também sabia que a porta da frente às vezes emperrava um pouco antes de abrir. Mas fora isso...

O vestíbulo estava fresco e silencioso. Longas sombras desciam pelas paredes, e o alto relógio carrilhão de madeira tiquetaqueava no canto. As tábuas do piso estalaram sob os pés de Emma quando ela deu um passo indeciso em direção à passadeira listrada que levava diretamente à escada. Ela esticou a mão para ligar um interruptor próximo, depois hesitou e recuou. Esperava que alarmes soassem, que uma jaula caísse sobre sua cabeça e que pessoas pulassem e gritassem: “Pega ladrão!”

Agarrando o corrimão, Emma subiu a escada na ponta dos pés, no escuro. Talvez Sutton estivesse lá em cima. Talvez tivesse apenas caído no sono e fosse tudo um grande mal-entendido. Aquela noite podia ser salva. Ela ainda poderia ter o reencontro perfeito que imaginara.

Havia um cesto de vime marrom cheio de toalhas sujas logo do lado de fora de um banheiro de azulejos brancos, no alto da escada. Duas luzes noturnas brilhavam perto do rodapé, lançando colunas de luz amarelada parede acima. Medalhas de identificação de um cachorro retiniam por trás de uma porta fechada ao final do corredor.

Emma virou-se e olhou para a porta de um quarto. Fotos de supermodelos em uma passarela parisiense e de James Blake e Andy Roddick jogando em Wimbledon estavam penduradas ao nível dos olhos, e na maçaneta havia um aviso em glitter cor-de-rosa dizendo SUTTON. Bingo. Emma empurrou gentilmente a porta, que se abriu com facilidade e sem fazer som algum.

O aroma dentro do quarto tinha notas de menta, lírio-do-vale e amaciante de roupas. A luz da lua jorrava através da janela e se despejava sobre uma cama de quatro colunas perfeitamente arrumada. Um tapete com estampa de girafa ficava a sua esquerda, e uma poltrona oval no canto estava coberta de camisetas, partes superiores de biquínis e alguns pares enrolados de meias esportivas. No peitoril da janela havia velas em grandes potes de vidro, garrafas de vinho azuis, verdes e marrons com flores saindo das bocas e um monte de embalagens vazias de chocolate francês Valrhona. Toda superfície disponível estava coberta de almofadas – havia pelo menos dez na cama, três na cadeira e até mesmo algumas outras jogadas pelo chão. Uma longa mesa de madeira branca apoiava um laptop MacBook Air em repouso e uma impressora. Um único cartão que dizia FESTA DE ANIVERSÁRIO DE DEZOITO ANOS DA SUTTON! OBRIGATÓRIO CHEGAR ARRASANDO! estava apoiado perto do mouse. Um arquivo sob a mesa estava trancado com um grande cadeado cor-de-rosa, e na frente um adesivo dizia: JOGO DA M. Será que era algo parecido com The L Word?

Mas faltava algo crucial, pensou Emma. Sutton.

É claro que eu estava faltando. Olhei em volta do quarto silencioso juntamente com Emma, esperando que aquele lugar pudesse deflagrar uma lembrança em minha mente – ou uma pista. Havia alguma razão para a janela que dava para o quintal estar entreaberta? Será que eu tinha deliberadamente deixado um exemplar da Teen Vogue aberto num artigo sobre a Fashion Week de Londres? Eu não conseguia me lembrar de ter lido aquilo, muito menos do motivo por que parei naquela página. Não conseguia me lembrar de nenhum dos itens do quarto, de nenhuma daquelas coisas que antes eram minhas.

Emma deu uma olhada no celular outra vez. Nenhuma mensagem nova. Ela queria dar uma olhada pela casa, mas e se esbarrasse em alguma coisa... ou em alguém? Pegou o aparelho e escreveu uma nova mensagem para o número de Sutton: ESTOU NO SEU QUARTO AGORA. ONDE QUER QUE VC ESTEJA, RESPONDA DIZENDO SE ESTÁ BEM. ESTOU PREOCUPADA.

Apertou ENVIAR. Uma fração de segundo depois, um toque abafado soou do outro lado do quarto, fazendo Emma se sobressaltar. Ela foi em direção ao som, que vinha de uma bolsa-carteira prateada deixada perto do computador. Abriu o zíper da bolsa. Dentro havia um iPhone em uma capa cor-de-rosa e uma carteira Kate Spade azul. Emma puxou o telefone e arfou, sem fôlego. A mensagem que ela acabara de escrever brilhava na tela.

Imediatamente, ela começou a olhar as mensagens do dia. Lá estava a última que enviara. Acima dela, às 8h20, havia uma de Laurel Mercer, irmã de Sutton: OBRIGADA POR NADA, SUA VACA.

Emma largou o telefone e se afastou da mesa, como se repentinamente a superfície estivesse coberta de substância tóxica. Não posso bisbilhotar o telefone dela, repreendeu a si mesma, mentalmente. Sutton podia entrar a qualquer momento e pegá-la no flagra. Essa não seria a melhor maneira de começar um relacionamento fraterno.

Ela pegou novamente o BlackBerry e enviou para Sutton uma mensagem privada no Facebook dizendo a mesma coisa – talvez Sutton estivesse apenas no andar de baixo, num outro computador, e tivesse esquecido o telefone ali em cima, quem sabe? Depois Emma analisou o restante do quarto. Atrás da escrivaninha havia um mural cheio de fotos de Sutton e de suas amigas, as garotas que Emma conhecera havia poucas horas. Algumas pareciam recentes: em uma foto com Sutton, Charlotte, Madeline e Laurel em frente à jaula dos macacos no zoológico de Tucson, Charlotte aparecia com o mesmo vestido azul que estava usando na festa aquela noite. Uma outra mostrava Sutton, Madeline, Laurel e um garoto familiar de cabelo preto parados na beirada de uma queda d’água em um cânion. Laurel e o garoto jogavam água um no outro enquanto Sutton e Madeline posavam de indiferentes e faziam ar blasé. Outras fotos pareciam muito mais antigas, talvez do ensino fundamental. Havia uma do trio de amigas diante de uma tigela de massa para biscoito numa cozinha, tentando enfiar colheres grudentas no rosto umas das outras. Madeline vestia uma malha de balé e parecia, bem, ainda mais reta do que era agora. Charlotte usava aparelho nos dentes e tinha bochechas mais redondas. Emma observou Sutton: era exatamente o mesmo rosto, só que quatro anos mais novo.

Emma então foi na ponta dos pés até o closet de Sutton, no canto, e envolveu a maçaneta com a mão. Bisbilhotar o armário de Sutton seria tão ruim quanto ler suas mensagens no celular? Decidindo que não, ela abriu a porta e se viu diante de um grande espaço quadrado cheio de cabides de madeira e prateleiras organizadas. Suspirando melancolicamente, Emma esticou a mão e tocou todos os vestidos, blusas, casacos, suéteres e saias, pressionando alguns dos macios tecidos contra a bochecha.

Havia alguns jogos empilhados no fundo do closet: Detetive, Master e Banco Imobiliário. Em cima de todos havia uma caixa que dizia KIT JÚNIOR DE OBSERVAÇÃO DE PÁSSAROS. Incluía um livro sobre pássaros e um binóculo. Numa etiqueta colada na frente estava escrito: PARA SUTTON, COM AMOR, PAPAI. A caixa parecia não ter sido aberta; Emma imaginou que Sutton não gostara muito do presente. Ela tocou uma pasta de arquivo cheia do que pareciam ser testes e trabalhos antigos. Uma prova de ortografia do quinto ano exibia um 10, mas uma resenha do nono ano sobre o livro Fahrenheit 451 recebera um 5, acompanhado por um bilhete em caneta vermelha que dizia Claramente não leu o livro. Em seguida ela reparou no título de um trabalho: “A história da minha família”. Eu não conheço a história da minha família verdadeira, escrevera Sutton. Fui adotada quando bebê. Meus pais me contaram quando eu era pequena. Nunca conheci minha mãe biológica, e não sei nada sobre ela.

Emma sentiu-se envergonhada por sorrir, mas não pôde evitar.

Ela viu uma caixa de joias nos fundos do closet; abriu a tampa e examinou as grossas pulseiras de Sutton, os delicados cordões de ouro e os compridos brincos de prata. Mas não viu o relicário que aparecia no vídeo do estrangulamento. Será que ela o estava usando naquele momento?

Baixei os olhos para meu corpo tremeluzente. Não, o relicário não estava comigo. Talvez estivesse em meu corpo verdadeiro. Meu cadáver. Onde quer que estivesse.

No espelho de três faces que havia nos fundos do closet, Emma se surpreendeu com as múltiplas versões de seu reflexo atordoado. Cadê você, Sutton?, implorou ela mentalmente. Por que me fez vir até aqui para depois não aparecer?

Ela saiu do closet. Quando se sentou na cama de Sutton, a exaustão a derrubou como um trem bala. Sua cabeça latejava.

Cada músculo parecia uma esponja espremida. Ela se deitou no colchão. Era macio como uma nuvem, muito melhor do que aqueles de liquidação do Kmart que ela sempre tinha que aguentar nas casas de famílias temporárias. Ela tirou as sandálias com os próprios pés e ouviu quando bateram no chão. Podia muito bem esperar por Sutton ali mesmo. Com certeza ela apareceria mais cedo ou mais tarde.

Sua respiração ficou mais lenta. Manchetes inventadas giravam em redemoinho em sua mente. Garota personifica irmã em festa. Irmã não muito confiável. O dia seguinte certamente seria melhor. Irmãs gêmeas finalmente se encontram, talvez.

Emma virou-se de lado e se aconchegou no travesseiro com cheirinho de amaciante. As formas e sombras do grande quarto se tornaram cada vez mais indistintas.

Após mais alguns segundos inspirando e expirando, tudo se desvaneceu para nós duas.


8

CAFÉ, MUFFINS, IDENTIDADE TROCADA...

– Sutton. Sutton.

Emma acordou com alguém sacudindo seus ombros. Ela estava em um quarto claro. Cortinas listradas de verde e branco esvoaçavam na janela. O teto era liso e não tinha forro. Havia uma escrivaninha baixa e uma grande TV de tela plana no lugar onde a cômoda velha de Clarice costumava ficar.

Espere aí. Ela não estava mais na casa de Clarice. Emma ergueu o corpo, sentando-se na cama.

– Sutton – repetiu a voz.

Uma mulher loira a olhava de cima. Havia finas mechas grisalhas em suas têmporas e rugas de expressão em torno de seus olhos. Ela usava um terninho azul, sapatos de salto alto e muita maquiagem. A foto da família de Sutton fazendo um brinde com frozens surgiu na mente de Emma. Era a mãe de Sutton.

Emma pulou da cama, olhando em volta do quarto freneticamente.

– Que horas são? – exclamou ela.

– Você tem exatamente dez minutos para chegar à escola. – A sra. Mercer empurrou-lhe um vestido no cabide e um par de sapatos com tiras em T. Ela examinou Emma por um instante. – Espero que não tenha passado em frente à janela aberta desse jeito.

Emma olhou para si mesma. Em algum momento da noite, enquanto dormia, ela tinha tirado o vestido listrado que usara na festa e naquele momento estava apenas de sutiã e uma cueca boxer. Rapidamente ela cruzou os braços sobre o peito.

Depois, olhou para as sandálias que tinha jogado no chão na noite anterior. Estavam exatamente no mesmo lugar em que as deixara. A bolsa-carteira prateada e o iPhone de capa cor-de-rosa continuavam em cima da mesa. A realidade entrou em um foco nauseante. Sutton não voltou ontem à noite, percebeu Emma. Ela não chegou para me encontrar.

– Espere um instante. – Emma agarrou o braço da sra. Mercer. Aquilo tinha ido longe demais. Alguma coisa ali estava muito errada. – Isso é um engano.

– Claro que é um engano. – A sra. Mercer cruzou rapidamente o quarto e jogou um short de malha da Champion, uma regata tipo nadador, um par de tênis e uma raquete de tênis Wilson dentro de uma grande sacola esportiva vermelha com o nome Sutton bordado na lateral. – Você não programou o alarme? – Então ela fez uma pausa e deu um leve tapinha na própria testa. – Que cabeça a minha... Claro que não. Logo você.

Observei-a enquanto ela jogava a sacola de tênis sobre a cama e fechava o zíper. Nem minha própria mãe conseguia perceber que Emma não era eu.

A sra. Mercer girou Emma em direção ao vestido que tinha colocado sobre a cama. Ao ver que a suposta filha não se movia, ela suspirou, arrancou o vestido do cabide e enfiou-o pela sua cabeça.

– Você pode calçar os sapatos sozinha, não pode? – disse a sra. Mercer em tom de repreensão, segurando um dos sapatos pela tira. A etiqueta dizia MARC BY MARC JACOBS. – Desça para o café em dois minutos.

– Espere! – protestou Emma, mas a sra. Mercer já tinha marchado para fora do quarto, batendo a porta com tanta força que uma foto de Sutton, Laurel, Charlotte e Madeline caiu do mural, aterrissando no chão com o verso para cima.

Em pânico, Emma olhou ao redor do quarto silencioso. Ela disparou para o pufe onde tinha deixado seu celular. Nenhuma mensagem nova, dizia a tela. Correu para o iPhone de Sutton, sobre a mesa. Havia uma nova SMS desde que verificara pela última vez, mas era apenas de Garrett: VOCÊ SUMIU ONTEM! T VEJO NO PRIMEIRO TEMPO? BJS!

– Isso é loucura – murmurou Emma.

A publicação que ela tinha visto no mural de Emma, no Facebook, antes de deixar Las Vegas, lhe veio à mente. Já quis fugir? Às vezes eu quero. Será que Sutton teria fugido achando que Emma poderia tomar seu lugar por tempo suficiente para ela abrir uma vantagem? Emma saiu do quarto descalça e desceu rapidamente as escadas.

O corredor do andar de baixo era decorado com imensas fotos de família emolduradas: da escola, das férias em família em Paris e San Diego, e um retrato dos Mercer no que parecia ser um casamento chique em Palm Springs. Emma seguiu o som das notícias matutinas e o cheiro de café até a cozinha. Era um cômodo enorme, com janelas reluzentes que iam do chão até o teto e davam vista para um quintal com chão de tijolinhos e para as montanhas mais além. As bancadas eram escuras, os armários, brancos, e havia um monte de bugigangas em formato de abacaxi por todo o lado – abacaxis de madeira sobre os armários, um abacaxi cilíndrico de cerâmica para guardar espátulas e escumadeiras, uma plaquinha na silhueta de um abacaxi pendurada perto da porta dos fundos que dizia BEM-VINDO!

A sra. Mercer estava à pia, pegando café. A irmã de Sutton, Laurel, dissecava um croissant à mesa, vestida com uma blusa leve e estampada que parecia idêntica à que Emma vira no closet de Sutton na noite anterior. O sr. Mercer então surgiu à porta, carregando exemplares do Wall Street Journal e do Tucson Daily Star, ambos enrolados em plástico. Emma reparou que ele usava um jaleco, com a identificação J. MERCER, CIRURGIA ORTOPÉDICA. Assim como a sra. Mercer, ele também era um pouco mais velho do que a maioria dos pais temporários que Emma já tivera, devia ser um cinquentão bem-conservado. Emma se perguntou se eles haviam tentado ter filhos antes de adotar Sutton. E quanto a Laurel? Ela tinha o mesmo maxilar quadrado da sra. Mercer e os mesmos olhos azuis arredondados do sr. Mercer. Talvez fosse filha biológica deles. Talvez os Mercer tivessem finalmente conseguido conceber logo depois de sair a adoção – Emma já lera sobre esse fenômeno em algum lugar.

Todos levantaram os olhos quando Emma apareceu à porta, incluindo um enorme dogue alemão. Ele se levantou de uma caminha de cachorro listrada perto da porta e trotou até ela. Cheirou sua mão, as grandes mandíbulas roçando sua pele. DRAKE, cintilava uma medalhinha de identificação em forma de osso em sua coleira. Emma ficou completamente imóvel. Em segundos, Drake começaria a latir freneticamente, sabendo que Emma não era quem todos pensavam que era. Mas ele apenas resfolegou, virou-se e trotou de volta para sua cama.

De repente, lembranças de Drake surgiram como flashes para mim. Seu ofegar alto. A sensação de sua língua em meu rosto. Como ele uivava como um bobo sempre que uma ambulância passava com a sirene ligada. Senti um doloroso desejo de abraçar seu grande pescoço e beijar seu focinho frio e molhado.

A sra. Mercer pousou na mesa um pote de vitaminas e foi até Emma.

– Beba. – E empurrou um copo de suco de laranja na direção dela. – Você tem dinheiro para o almoço?

– Preciso contar uma coisa – disse Emma, alta e categoricamente. Todos pararam e olharam para ela. Ela pigarreou. – Eu não sou a Sutton. Sua filha está desaparecida. Ela pode ter fugido.

Uma colher retiniu contra um prato e as sobrancelhas da sra. Mercer se arquearam. Emma se preparou para alguma coisa terrível – alarmes disparando, fogos de artifício estourando, ninjas saindo da lavanderia e derrubando-a, qualquer coisa que pudesse indicar que o que ela acabara de revelar era muito, muito perigoso. Mas o sr. Mercer apenas balançou a cabeça e tomou um gole de café de uma caneca em forma de abacaxi que dizia ALOHA DO HAVAÍ!

– E quem, por favor me diga, seria você? – perguntou ele.

– Eu sou a... irmã gêmea dela, Emma, há muito perdida. Combinei de encontrar a Sutton ontem. Mas ela... sumiu.

A sra. Mercer pestanejou rapidamente. O sr. Mercer trocou um olhar incrédulo com Laurel.

– Guarde a criatividade para a aula de inglês.

O sr. Mercer pegou um croissant de um prato no balcão e empurrou-o na direção de Emma.

– Estou falando sério. Meu nome é Emma – insistiu ela.

– Emma, hã? E qual é o seu sobrenome?

– Pa... – começou ela, mas Laurel bateu a caneca na mesa.

– Você não está acreditando de verdade, está, mãe? Ela só está tentando escapar de ir à escola.

– Claro que não. – A sra. Mercer enfiou um pedaço de papel dobrado na mão de Emma. – Aqui estão os seus horários. Laurel, você poderia pegar os sapatos e a bolsa da Bela Adormecida lá em cima?

– Por que eu tenho que fazer isso? – queixou-se Laurel.

– Porque eu não confio na sua irmã. – A sra. Mercer pegou um molho de chaves de um porta-chaves em forma de abacaxi perto do telefone sem fio. – Ela pode cair no sono outra vez.

– Está bem. – Laurel suspirou e arrastou sua cadeira para trás.

Emma fixou o olhar inexpressivamente nos brilhantes botões de metal do terninho profissional da sra. Mercer, depois no colar de cristal estilo new age em seu pescoço. Como aquilo podia estar acontecendo? Por que não acreditavam nela? Será que era algo assim tão absurdo?

Talvez. Mesmo que eu quisesse que meus pais acreditassem no que Emma estava dizendo, de fato parecia um pouco insano.

Laurel atravessou a cozinha em direção à escada.

– Valeu por ontem à noite, babaca – sussurrou ela acidamente para Emma quando passou.

Emma deu um passo para trás como se Laurel tivesse acabado de lhe dar um tapa. Então se lembrou do comentário de Charlotte na festa: Você deixou ela pra trás de novo, não foi? Você é uma péssima irmã. Havia também a mensagem de Laurel no iPhone de Sutton: OBRIGADA POR NADA, SUA VACA.

– Não fui eu que deixei você pra trás. – Emma virou-se e encarou as costas de Laurel, que ia se afastando. – Estava esperando por Sutton quando Madeline me arrastou para a festa. Eu não pude fazer nada.

Laurel voltou e parou bem na frente de Emma.

– Claro, Sutton. Ignore a única coisa que eu lhe pedi, semanas atrás. Fiquei praticamente encalhada no Red Door. Aposto que você deu um jeito de saber que a bateria do meu telefone estava para acabar, não é? – Ela tinha reflexos naturais nos cabelos e minúsculas sardas no nariz. Seu largo maxilar mastigava um chiclete Juicy Fruit que ela acabara de enfiar na boca. – Cadê seu relicário?

Emma levou a mão à clavícula e então deu de ombros, impotente.

Os lábios de Laurel se abriram. Ela soltou um som baixo de escárnio.

– Pensei que fosse muito especial para você – disse ela, friamente. – Algo que ninguém mais tinha. “Se alguém quiser tirá-lo de mim vai ter que me decapitar!” – A voz dela assumiu um tom monótono para imitar a de Sutton.

– Meninas, não briguem – repreendeu o sr. Mercer, pegando sua pasta de couro e as chaves do carro sobre o balcão.

– Isso mesmo, não briguem – ressaltou a sra. Mercer. – Vá pegar as bolsas, sim? Você tem trinta segundos. – Laurel virou-se e começou a subir a escada. – Vocês vão em qual carro? Sutton, o seu ainda está na casa da Madeline?

A sra. Mercer virou-se para Emma, esperando.

– Hã... sim? – chutou Emma.

– Vamos no meu – gritou Laurel lá de cima.

A sra. Mercer conduziu Emma até o vestíbulo. Emma sentiu o nariz coçar com o cheiro de perfume. Ela olhou profundamente nos olhos da mulher, tentando transmitir exatamente quem ela era... e quem não era. Com certeza ela reconheceria a própria filha, não é mesmo?

Mas a sra. Mercer apenas pressionou os ombros de Emma. Um tendão saltava em seu pescoço.

– Você pode, por favor, pegar leve com a gente hoje? – Ela fechou os olhos e soltou um imenso suspiro. – Vamos dar uma grande festa de aniversário para você daqui a duas semanas. Será que pelo menos uma vez você poderia fazer por merecer?

Emma estremeceu, depois assentiu depressa. Pelo visto, eles realmente não acreditavam nela.

Laurel desceu correndo as escadas com um monte de sacolas esportivas e bolsas nos braços. Ela empurrou os sapatos que a sra. Mercer tinha escolhido, a sacola de tênis e uma bolsa pouco familiar de couro bege e macio para os braços de Emma. Espiando dentro da bolsa, Emma viu a carteira azul Kate Spade e o iPhone de capa cor-de-rosa, aninhados nos bolsos internos. No fundo havia canetas, lápis, rímel Dior e um iPad novinho. Emma ergueu as sobrancelhas. Pelo menos ela finalmente iria descobrir como era um iPad.

A sra. Mercer escancarou a porta da frente.

– Andem.

Laurel saiu para a varanda com as chaves do carro tilintando nas mãos. Um chaveiro prateado com a inscrição RETURN TO TIFFANY & CO. pendia do anel. Depois de calçar às pressas os sapatos, Emma a seguiu. Ela pressentia que, se não o fizesse, a sra. Mercer a empurraria porta afora com o remo que decorava o canto da parede do vestíbulo.

Assim que Emma pisou do lado de fora, o suor salpicou sua testa. Irrigadores sibilavam no gramado do outro lado da rua, e crianças pequenas em uniformes escolares xadrez esperavam pelo ônibus na esquina. Laurel olhou para Emma por cima do ombro enquanto ia em direção à garagem, seus saltos altos produzindo estalidos entrecortados.

– Que jeito tosco de tentar fugir da aula. – Ela apertou um botão no controle remoto preso ao chaveiro. Depois de dois bipes curtos, as portas de um Jetta preto parado sob a cesta de basquete se destrancaram. – Sua irmã gêmea há muito perdida? De onde você tirou isso?

Emma olhou para o outro lado da rua outra vez. Ainda esperava ver Sutton chegar, andando pela calçada, com um pedido de desculpas pronto e uma explicação. Enxames de abelhas rondavam impassivelmente os arbustos com flores a brotar. Um caminhão de paisagismo passou lentamente. As montanhas fulguravam ao sol nascente, o Sabino Canyon em algum lugar entre elas.

– Ei, Terra chamando.

Emma sobressaltou-se. Laurel vinha em direção a ela com um pequeno envelope branco nas mãos. Na frente estava escrito SUTTON, em grandes letras maiúsculas.

– Estava preso embaixo do limpador de para-brisa. – A voz de Laurel tinha um tom amargo. – Você arranjou mais um admirador secreto?

Emma observou o bilhete por um momento. Alguns grãos de pólen tinham manchado o canto superior direito. Será que ela devia abrir algo que não lhe pertencia? Mas Laurel continuava esperando, estalando o chiclete no seu ouvido.

Finalmente, Emma lançou um olhar a Laurel.

– Se importa de me dar um pouco de espaço? – Pareceu-lhe algo que Sutton diria.

Laurel torceu o nariz e se afastou um passo. Emma deslizou o dedo por sob a aba do envelope e puxou de dentro uma folha de papel pautado.

Sutton está morta. Não conte a ninguém. Continue no seu papel... ou você será a próxima.

Emma virou-se para todos os lados do jardim, mas a manhã estava sinistramente quieta. O ônibus escolar ressoava na esquina, recolhendo as crianças. Quando partiu, os guinchos de seus freios pareceram gritos.

– O que diz aí? – Laurel se inclinou para ver.

Rapidamente, Emma amassou o bilhete na mão.

– Nada. – Sua voz mal saiu.

Laurel torceu a boca de raiva. Então ela abriu a porta do carona e apontou para o banco.

– Entra logo.

Emma obedeceu, aturdida, deixando-se cair no banco e olhando fixamente para a frente. Seu coração ameaçava explodir, de tão forte que batia.

– Você está agindo de um jeito muito esquisito – disse Laurel, dando partida no carro. – Qual o seu problema?

Enquanto eu assistia a tudo, pontinhos começaram a nublar minha visão. Um rugido soava em meus ouvidos. Qual o seu problema?, eu ouvia Laurel repetir sem parar. As palavras reverberavam em ondas, cada vez mais e mais altas. De repente, vi Laurel sentada em uma gruta escura. A luz dançando por seu rosto. Os cantos de sua boca virados para baixo. Lágrimas pontilhando seus olhos. Qual o seu problema? Qual o seu problema? As palavras ressoavam em minha cabeça como um sino badalando.

Uma minúscula chama irrompeu na escuridão de minha mente. Então veio outra chama, e mais outra. Era como um monte de peças de dominó caindo em fila, cascateando até formar uma cena completa do meu passado. Uma lembrança.

De repente, consegui me lembrar distintamente de onde e quando Laurel tinha me perguntado “Qual o seu problema?”. E não foi a única coisa que eu vi...


9

IMITAR ALGUÉM É A MELHOR FORMA DE LISONJEÁ-LA

– A festa acaba de começar! – grito, saindo de trás de uma grande pedra onde eu estava vestindo um biquíni prateado. Minhas pernas estão recém-depiladas, meu rosto não tem nenhuma mancha, e meu cabelo brilha suavemente sob as luzes do resort. Todos estão olhando para mim.

Garrett assobia.

– Você aquece as águas termais.

Abro um sorriso malicioso.

– Se você diz...

Garrett faz sinal para que eu me aproxime. Ele está submerso em meio aos pequenos turbilhões das tépidas fontes termais do resort Clayton, um spa isolado à sombra das montanhas. Tecnicamente, não temos permissão de estar aqui – a fonte é estritamente reservada para os visitantes mais ricos –, mas quem é que consegue deter meus amigos e eu? Sempre achamos uma maneira de conseguir o que queremos.

– Entre na água, amiga – exclama Madeline.

Ela também já mergulhou na fonte. Seu cabelo está preso no topo da cabeça em um coque despojado, seus braços são ágeis graças às milhões de horas por semana que ela gasta em pilates e balé, e o calor da água dá a sua pele um brilho sexy. Mad está sempre um pouco mais bonita do que eu, o que sempre me irrita. E ela está sentada perto de Garrett – um pouco perto demais. Não que eu esteja realmente preocupada que alguma coisa aconteça – tanto ela quanto ele sabem que eu os mataria –, mas gosto de ter Garrett só para mim.

Estamos namorando há apenas dois meses. Todos pensam que estou com ele porque é um dos jogadores de futebol de maior destaque na escola, porque ele fica devastadoramente maravilhoso sentado na cadeira do salva-vidas da piscina do resort W. ou porque sua família tem uma casa de praia em Cabo San Lucas, aonde eles vão toda primavera. Mas a verdade é que eu gosto de Garrett porque ele é meio... perturbado. Ele não é como todos os outros garotos convencidos daqui, vivendo suas vidas suburbanas tão charmosas, monótonas e hermeticamente fechadas.

Eu me enfio entre os dois, lançando a Madeline um sorriso frio.

– Você não estava passando a mão no meu namorado embaixo d’água, estava, Mad? Sei que você tem dificuldade em distinguir os garotos uns dos outros.

Madeline fica vermelha. Não faz muito tempo, pouco depois de seu irmão, Thayer, desaparecer, Mad estava ficando com um cara de cabelo escuro do Ventana Prep, em uma festa no deserto, quando, lá pelas tantas, ela pediu licença para pegar mais um drinque, voltou para onde estava antes e recomeçou os amassos... só que o novo garoto era louro. Madeline nem sequer notou a diferença por alguns minutos; eu fui a única a perceber. Às vezes eu me pergunto se a Mad não está empenhada em tentar dar uma de Lindsay Lohan: garota bonita enche a cara, enlouquece e estraga a própria vida.

Dou um tapinha no ombro de Madeline, sua pele quente por causa do vapor.

– Não se preocupe. Seu segredo está seguro comigo. – Passo um zíper invisível na boca e jogo a chave fora.

Depois afundo na água quente. Algumas garotas entram na fonte lentamente, soltando gritinhos conforme mergulham a pele devagar no calor. Eu gosto de imergir de uma vez. Sinto certa embriaguez com o choque térmico, o calor de fazer os olhos lacrimejarem.

Charlotte é a próxima a surgir de trás das pedras. Ela está usando uma saída de praia felpuda e cor-de-rosa, cobrindo as pernas pálidas e rechonchudas com as mãos. Todos lhe dizemos olá. Laurel vem logo atrás de Charlotte, soltando risadinhas histéricas. Eu suspiro, e meu corpo se retesa sob a água. O que Laurel está fazendo aqui? Eu não a convidei.

O celular de Garrett toca. MÃE, informa o identificador de chamadas.

– É melhor eu atender – murmura ele, e ergue o corpo para sair, respingando água nas pedras. – Alô? – diz em uma voz gentil, desaparecendo por entre as árvores.

Madeline revira os olhos com bom humor.

– O Garrett é tão filhinho da mamãe.

– Ele tem uma boa razão para isso – diz Charlotte, em um tom de sabe-tudo. Ela se empoleira em uma pedra perto das fontes. – Sabe, quando a gente estava junt...

– Por que não entra junto com a gente dessa vez, Char? – interrompo-a, antes que ela comece mais um de seus monólogos eu-sei-o-que-é-melhor-para-ele-porque-já-namorei-o-seu-namorado.

Charlotte puxa as pernas para cima, afastando-as da água.

– Estou bem assim – diz com afetação.

Eu dou uma risadinha.

– Ah, qual é. O que é uma pele manchada quando se está entre amigos? Aposto que alguns garotos acham urticárias uma coisa sexy.

Charlotte torce a boca e puxa os pés descalços para ainda mais longe da água.

– Eu estou muito bem aqui, Sutton.

– Como quiser. – Pego o iPhone de Madeline em uma pedra próxima. – Hora da foto! Todo mundo junto!

Nós todas nos apertamos para caber no enquadramento, e eu disparo o flash.

– Ficou bom, mas nada de mais – digo quando vejo a imagem que saiu. – Mad, você fez de novo a sua cara de miss. – Emolduro meu rosto com as mãos e abro um sorriso ao estilo tudo-o-que-eu-quero-é-a-paz-mundial.

Laurel olha por sobre o meu ombro.

– Eu nem apareci na foto. – Ela aponta para um braço, a única parte de seu corpo que foi incluída.

– Eu sei – digo. – Foi de propósito.

Uma expressão magoada cruza seu rosto. Madeline e Charlotte se mexem desconfortavelmente. Depois de um instante, Charlotte cutuca o ombro de Laurel.

– Adorei o colar, Laurel.

Ela se anima um pouco.

– Obrigada! Comprei hoje.

– Lindo – concorda Madeline.

Eu me inclino para ver o porquê de tanta comoção. Um grande círculo prateado pende do seu pescoço.

– Posso ver? – peço, na voz mais doce que consigo fazer.

Laurel olha nervosamente para mim, depois se inclina para mais perto.

– Bonito. – Passo o dedo sobre o relicário. – E familiar.

Estreito os olhos, levanto o cabelo do pescoço e lhe mostro um colar igual, só que em mim. Eu o tenho desde sempre, mas só comecei a usar recentemente. Anunciei ao grupo que aquilo seria minha marca registrada, assim como Nicole Richie sempre usa vestidos hippie-chiques drapeados ou como Kate Moss e sua combinação de blazer com shortinho jeans. Laurel também estava presente quando eu disse isso. E também quando eu acrescentei que dali em diante eu nunca mais iria tirá-lo. Se alguém quisesse pegá-lo de mim, teria que me decapitar.

Laurel mexe na tira da parte de cima do seu biquíni. Ela está usando o que eu chamo de seu microquíni; as tiras do sutiã são tão finas e os triângulos são tão pequenos que é como se ela estivesse dando um show erótico gratuito para todas nós.

– Não é tão igual – argumenta ela. – O seu é maior, está vendo? E o meu nem é um relicário. Não abre.

Charlotte olha com atenção para o meu pescoço, depois para o de Laurel.

– Ela tem razão, Sutton.

– É, até que são bem diferentes – concorda Madeline.

Tenho vontade de jogar água fervendo na cara delas. Como minhas amigas se atrevem a apoiar a total falta de originalidade da minha irmã? Já é bastante desagradável ter Laurel grudada em nós. Bastante desagradável minhas amigas a deixarem entrar em nosso clube só porque têm pena dela depois do desaparecimento de Thayer. E é realmente desagradável que os meus pais – especialmente o meu pai – a papariquem em casa enquanto me tratam como uma bomba prestes a explodir.

Antes que eu perceba o que estou fazendo, minha mão envolve o relicário dela e eu arranco a corrente do pescoço de Laurel. Depois o arremesso para o bosque. Ouvimos o tilintar quase inaudível do metal ricocheteando em uma pedra, depois um baixo farfalhar quando o colar pousa na vegetação rasteira.

Laurel fica atônita.

– P-Por que você fez isso?

– É isso o que você ganha por me copiar.

Lágrimas enchem seus olhos.

– Qual o seu problema?

Ela solta um lamento torturado, sai da água, salta por cima das pedras e corre para dentro do bosque.

Ninguém se mexe por alguns longos segundos. O vapor rodopia ao redor do rosto das minhas amigas, mas de repente isso parece agourento, e não sexy. Eu solto um gemido e também saio da água, sentindo uma pontada de culpa.

– Laurel – grito para dentro da mata.

Sem resposta. Enfio os pés nos chinelos, visto uma camiseta e um short felpudo e sigo na direção que ela tomou.

Os balizadores que iluminam o caminho terminam alguns metros depois das fontes, dando lugar a uma lúgubre escuridão. Dou alguns passos incertos em direção a um maciço de árvores, os braços estendidos à frente.

– Laurel? – Ouço uma agitação próxima, depois um estalido. – Laurel?

Dou mais alguns passos, abrindo caminho pela grama alta do bosque. Minúsculos espinhos de cacto espetam minha pele.

Mais passos. Um soluço.

– Laurel, por favor – digo, os dentes cerrados. – Desculpe, está bem? Eu compro outro colar para você. – Um que não seja exatamente igual ao meu, tenho vontade de acrescentar.

Depois de passar por mais algumas árvores, me vejo em uma clareira vazia – o leito de um rio há muito seco. O ar quente e estagnado rodeia pesadamente meu rosto. Sombras deformadas se derramam sobre a terra fendida. Cigarras chiam alto nos arbustos.

– Laurel? – chamo. Não consigo mais ver as luzes do resort através das árvores. Nem tenho certeza de onde fica o resort. Então, ouço um passo. – Olá? – pergunto, repentinamente alerta.

Algo pisca na grama da savana. Ouço um sussurro, seguido por uma risada distante. Então sinto uma mão em meu ombro. Alguma coisa fria e afiada é pressionada contra meu pescoço.

Meu corpo inteiro se enrijece. Mãos fortes me agarram e prendem meus braços para trás. Pressionam algo contra a minha garganta, interrompendo minha respiração, perfurando minha pele. A dor percorre o meu corpo. É uma faca.

– Se gritar, morre – arranha meu ouvido uma voz.

E depois... escuridão.


10

TODO HOMEM ADORA DELINQUENTES

De súbito me vi de volta no carro de Laurel, onde Emma estava sentada rigidamente no banco do carona enquanto elas saíam para a rua.

Sutton está morta, ela pensava. Sutton está MORTA. Era impossível entender aquilo. Morta... onde? Como? Será que tinha algo a ver com aquele vídeo? Será que realmente a tinham estrangulado?

Ela sentia como se houvesse uma bola dura em seu estômago. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Mesmo nunca tendo conhecido a irmã, mesmo tendo descoberto sua existência apenas dois dias antes, era uma perda terrível. Para ela, descobrir que tinha uma irmã gêmea era como tirar a sorte grande, algo com que nunca se atrevera a sonhar. Toda a esperança que refreara por anos tinha sido liberada e crescido progressivamente nos últimos dois dias. E agora...

Imagine como eu me senti. Eu tinha observado atentamente o bilhete quando Emma o abrira. Aliás, ver SUTTON ESTÁ MORTA escrito ali no papel, em preto e branco, tornou o fato inegável. Eu estava mesmo morta. E eu tinha sido assassinada – minhas confusas lembranças estavam corretas. A escuridão. O desespero. A faca em minha garganta. E agora quem quer que tivesse feito aquilo queria que uma irmã que eu nunca conheci tomasse meu lugar para que ninguém jamais descobrisse a verdade. Como se fosse assim tão fácil! Se pelo menos eu pudesse dar minha opinião naquela história toda... Eu não queria entregar minha vida nas mãos de outra pessoa.

E Emma também não queria tomar meu lugar. Ela fungou alto, e Laurel se virou.

– O que foi? – Os cantos de sua boca curvaram-se para baixo.

Emma apertou o bilhete com as pontas dos dedos. Sutton está morta. Laurel merecia saber, não? A própria irmã de Sutton tinha o direito de saber que ela estava morta, certo? Mesmo assim, Emma não conseguia lhe mostrar. E se Laurel não acreditasse nela, imaginando ser apenas mais uma tentativa de faltar aula? E se a segunda parte da ameaça fosse verdade? Continue no seu papel... ou você será a próxima. Se Emma contasse a alguém, algo terrível poderia acontecer.

– Nada – respondeu ela finalmente.

Laurel deu de ombros e continuou seguindo pela rua, virando à direita em um grande parque com uma área para cachorros, um imenso playground e três quadras de tênis ao ar livre. Quando ela fez outra curva, uma fila de mercados orgânicos, salões de beleza sofisticados e butiques descoladas ocupavam um dos lados; do outro, uma loja da UPS, uma delegacia de polícia em estuque e a entrada de pedra para o colégio Hollier. Carros congestionavam a pista da esquerda, esperando para entrar no estacionamento da escola. Garotas louras de Ray-Ban passavam tranquilamente em conversíveis. Uma batida pulsava dentro de um grande Escalade, que exibia um adesivo no para-choque escrito TIME DE FUTEBOL AMERICANO DE HOLLIER. Uma garota de cabelos escuros em uma Vespa azul-piscina ziguezagueou por entre os carros que esperavam para entrar, passando por alguns deles a poucos centímetros.

Emma fixou o olhar na delegacia enquanto faziam a curva para entrar na escola. Havia seis viaturas no estacionamento. Um policial de uniforme apagava um cigarro na entrada.

Laurel subiu uma pequena ladeira com o carro, passando por uma grande placa vermelha que dizia ESTACIONAMENTO DOS ESTUDANTES DE 1º E 2º ANOS. Ela lançou para Emma um olhar de esguelha.

– Você não pode continuar mentindo para a mamãe eternamente quanto a onde está o seu carro. E eu não quero ser seu chofer pelo resto do ano.

Naquele instante, algo ocorreu a Emma. Ela se voltou para a irmã de Sutton.

– Por que você simplesmente não foi com o seu carro à festa da Nisha ontem à noite?

Laurel soprou o ar pela boca com força.

– Dã. Porque o papai tinha levado para a oficina. Você sabia disso.

Elas passaram por uma fila de carros estacionados. O clima era o daqueles momentos de descontração que precedem um jogo de futebol americano. Pessoas descansavam nos para-choques tomando smoothies da Jamba Juice. Garotos jogavam bola no terreno de terra à direita do estacionamento. Três garotas bonitas calçando Havaianas em tons pastel viam o slideshow das fotos das férias em um laptop apoiado dentro de um minissedã.

Sutton está morta, pensou Emma novamente. A compreensão daquilo continuava passando violentamente sobre ela como uma série de ondas arrebentando. Ela precisava fazer alguma coisa. Não podia mais guardar aquilo para si mesma. Não importava o que o bilhete dizia. O coração de Emma começou a bater com força.

Laurel estacionou em uma vaga perto de uma grande lata de lixo já totalmente cheia de garrafas d’água e copos do Starbucks. Assim que ela desligou o motor, Emma puxou a maçaneta, saltou do carro e atravessou o campo em direção à delegacia.

– Ei! – gritou Laurel atrás dela. – Sutton? Mas que diabos você está fazendo?

Emma não respondeu. Seguiu por entre a vegetação árida que separava a escola da propriedade em que ficava a delegacia. Plantas espinhosas arranhavam seus braços, mas ela mal se dava conta disso. Emma saiu em uma estreita tira de gramado e adentrou pelas portas da delegacia.

Estava frio e escuro lá dentro. O grande ambiente, dividido em uma série de cubículos e mesas, cheirava a frango Kung Pao e suor. Telefones tocavam, walkie-talkies murmuravam e um rádio zumbia notícias de esportes ao fundo. As persianas estavam empoeiradas, e havia uma lata amassada de Fanta cheia de guimbas de cigarro no chão perto da porta. Na parede dos fundos, um grande quadro de avisos exibia pôsteres de DENUNCIE e outros com as listas dos Mais Procurados. Uma foto em preto e branco de um jovem com cabelo escuro e olhos expressivos familiares chamou a atenção de Emma. DESAPARECIDO DESDE 17 DE JUNHO. THAYER VEGA. Era o mesmo cartaz lúgubre que Emma vira no Facebook de Sutton.

Um homem mais velho com cabelos revoltos e de sobretudo ocupava quase todo o único banco. Seus pulsos estavam algemados. Quando viu Emma, ele se animou e lançou-lhe um grande sorriso de eu-sou-o-tipo-de-homem-que-mostra-suas-partes-íntimas-para-menininhas.

– Posso ajudá-la?

Emma se virou. Um policial jovem com um cabelo louro platinado raspado a observava de trás de uma grande mesa. Um pequeno ventilador oscilava em sua mesa, soprando o ar estagnado no rosto dela. O protetor de tela do monitor do policial mostrava fotos de duas crianças com olhos grandes em uniformes de beisebol e ginástica. Emma olhou de esguelha as algemas presas ao cinto dele e a arma em seu coldre. Ela umedeceu os lábios e deu alguns passos em sua direção.

– Eu gostaria de informar sobre uma... uma pessoa desaparecida. Possivelmente um assassinato.

As sobrancelhas pálidas e praticamente inexistentes do Lourinho se ergueram.

– Quem está desaparecido?

– Minha irmã gêmea. – Então ela se viu cuspindo tudo o que tinha acontecido, as palavras jorrando como sangue de uma ferida. – Ontem à noite eu pensei que tinha sido tudo só uma falha de nossa comunicação e que Sutton estava bem – terminou ela. – Mas hoje de manhã recebi isto.

Ela desdobrou o bilhete e o alisou sobre a mesa do policial. SUTTON ESTÁ MORTA. NÃO CONTE A NINGUÉM. CONTINUE NO SEU PAPEL... OU VOCÊ SERÁ A PRÓXIMA. Parecia muito real e assustador sob aquelas duras luzes fluorescentes.

Os lábios do Lourinho se moveram silenciosamente enquanto ele lia.

– Sutton – murmurou ele enfaticamente. Era como se uma lâmpada tivesse se acendido em sua cabeça. Ele pegou o telefone e apertou um botão. – Quinlan? Está livre?

Botando o fone de volta no gancho, ele deu um tapinha na cadeira laranja ao lado de sua mesa.

– Fique aqui – disse ele a Emma.

Então pegou o bilhete, foi até os fundos da grande sala e desapareceu pela porta de uma sala que dizia DETETIVE QUINLAN. Emma observou a silhueta de perfil do policial contra a grande e clara janela de trás. Suas mãos se moviam rapidamente conforme ele falava.

A porta da sala do detetive se abriu novamente, e o policial louro saiu a passos largos. Em seguida veio Quinlan, um homem mais alto, mais velho e de cabelos escuros, que segurava uma pasta de papel sob o braço e uma caneca de café da Universidade do Arizona. Quando viu Emma na recepção, ele fez uma careta.

– Quantas vezes vamos ter que repetir isso? – exigiu saber, agitando o bilhete de Emma no ar.

Ela olhou em volta. Será que ele estava falando com outra pessoa? Além do sr. Tarado, ela era a única ali no recinto.

– Como?

Quinlan apoiou os antebraços nas costas da cadeira.

– Se bem que fingir uma ameaça de assassinado é algo novo até para você, Sutton.

O nome de Sutton foi um soco no estômago de Emma.

– Não, eu não sou a Sutton. Sou a irmã gêmea dela, Emma. Ele não lhe explicou? – Ela apontou um dos polegares para o policial louro. – Algo terrível aconteceu com a Sutton, e agora seja lá quem for o responsável está me ameaçando! É verdade!

– Assim como era verdade a história do cadáver perto de Mount Lemmon no ano passado? – Os músculos em volta da boca de Quinlan se contraíram. – Ou que a sua vizinha estava criando noventa chihuahuas no quarto de hóspedes? Ou daquela vez que você jurou por Deus e o mundo que tinha ouvido um bebê chorando em uma caçamba de lixo atrás do Trader Joe’s? – Ele deu um tapinha na pasta. – Acha que eu não tenho todos os seus golpes anotados?

Emma olhou para a pasta. O nome SUTTON MERCER estava escrito na aba em letras grossas e pretas. Aquilo a lembrou David, seu irmão temporário de Carson City. David tinha o hábito de ligar para o número de emergência a cada duas ou três semanas para dizer que os banheiros químicos de um canteiro de obras próximo estavam pegando fogo, basicamente para poder ver os caminhões dos bombeiros passando. Os despachantes finalmente perceberam o trote, e não acreditaram em David quando ele ligou aos berros comunicando um incêndio que devastava o quintal deles. As chamas já tinham engolido metade da casa quando finalmente mandaram ajuda. David tinha se tornado oficialmente o Farsante do Banheiro Químico. Será que os policiais acreditavam mesmo que Sutton era a Farsante do Bebê na Lixeira?

Emma remexeu a bolsa de Sutton até achar seu iPhone cor-de-rosa. Com os dedos trêmulos, ela digitou o endereço do vídeo que Travis lhe mostrara.

– Tem um vídeo de alguém a estrangulando. Talvez vocês consigam descobrir onde é isso.

A página principal do site finalmente abriu. Emma digitou SuttonNoAZ na janela de busca. Após um instante, uma nova página apareceu: NENHUM RESULTADO ENCONTRADO.

– O quê? – guinchou Emma. Ela lançou um olhar suplicante aos policiais. – Isso é um engano. O vídeo estava aqui há dois dias, eu juro!

Quinlan grunhiu. Antes que Emma compreendesse o que estava acontecendo, ele esticou a mão e pegou a bolsa bege que ela trazia no ombro, tirando de dentro a carteira azul Kate Spade e abrindo-a. Atrás do plástico transparente de um dos compartimentos estava a carteira de motorista de Sutton. ARIZONA, estava escrito na parte superior do documento, em letras azuis. Sutton sorria para a câmera, com sua maquiagem perfeita e sem nenhum fio de cabelo fora do lugar. Uma imagem fugaz passou pela cabeça de Emma: a foto de sua própria carteira de motorista. Fora tirada em um escritório mal-iluminado e sem ar-condicionado, do departamento de trânsito, no dia seguinte à sua cirurgia emergencial de extração dos sisos. Seu cabelo estava grudado na testa, a maquiagem começara a escorrer pelo rosto, e suas bochechas estavam inchadas como as de um esquilo. Ela meio que parecia um Shrek sujo.

Quinlan agitou a carteira diante dos olhos de Emma.

– Aqui diz que você é Sutton Mercer. Não uma garota chamada Emma.

– Isso não é meu – disse Emma debilmente.

Ela se sentia como o passarinho que ficara preso na garagem de Clarice algumas semanas antes: desesperada e desamparada. Como iria fazer alguém acreditar que ela não era Sutton... sendo exatamente igual a ela? Então ela se deu conta: o assassino a ficara observando enquanto ela esperava por Sutton. Será que tinha sido ele que a atraíra até ali? Quando é que Sutton tinha morrido? Afinal, se não havia uma garota desaparecida, não havia crime.

Ela apontou para o bilhete.

– Vocês poderiam pelo menos procurar impressões digitais?

Ele inclinou-se para trás, cruzou os braços no peito e lançou a ela um olhar que dizia: está de brincadeira comigo?

– Seria de se esperar que depois de ter o seu carro apreendido você não criaria mais problemas para si mesma. Podemos aumentar aquelas multas, sabe?

– Mas... – sussurrou Emma, desamparada.

Ela não tinha ideia de como responder. O telefone do policial louro tocou, e ele foi correndo atender. Um outro policial, com chapéu de caubói marrom, tinha entrado com ímpeto pelas portas da frente e agora se dirigia a uma das salas de interrogatório.

– Aqui. – O detetive Quinlan jogou o bilhete e a carteira de Sutton no colo de Emma, com um olhar de desprezo. Então aproximou o rosto do dela. – Vou levar você de volta à escola agora. Se aparecer aqui novamente, vou fazê-la passar uma noite presa. Aí a gente vai ver como você se sai. Entendido?

Emma assentiu com a cabeça.

Quinlan conduziu-a porta afora pelo estacionamento. Para horror de Emma, ele destrancou a viatura de polícia e indicou o banco de trás.

– Entre aí.

Emma olhou-o, perplexa.

– Sério?

– Hã-rã.

Ela fechou os punhos. Inacreditável. Após um instante, instalou-se no banco de trás do carro de polícia, onde os criminosos ficavam. O cheiro era uma mistura de vômito e aromatizador de pinheiro. Alguém tinha escrito BABACA no assento de couro falso.

Quinlan enfiou-se no banco da frente e virou a chave na ignição.

– Vou dar um pulo ali no Hollier – disse ele no rádio preso ao painel central. – Volto em um segundo.

Emma afundou no banco. Pelo menos ele não tinha ligado a sirene.

Enquanto Quinlan dobrava a esquerda, saindo do estacionamento, a nova realidade de Emma lentamente começou a tomar forma. Tinha sido fácil – até divertido – desempenhar o papel de Sutton em uma festa. Mas ela queria conhecer Sutton, não assumir sua vida. E ainda que sempre tivesse desejado investigar um crime, nunca imaginara que faria parte de algo assim. Mas, se ninguém acreditasse nela – e se a própria família de Sutton e a polícia não acreditavam, quem acreditaria? –, Emma não tinha muita escolha. Caberia apenas a ela descobrir exatamente o que estava acontecendo.

Mas ela não estava exatamente sozinha nisso. Pensei mais uma vez sobre o que me fazia estar ali com Emma, observando cada movimento seu, flutuando atrás dela enquanto ela se apropriava da minha vida, saía com meus amigos e beijava meu namorado. A velha sra. Hunt, uma vizinha assustadora que tinha gatos demais, uma vez me disse que os fantasmas permaneciam em nosso mundo quando tinham questões pendentes, que os impediam de seguir em frente para o outro mundo. Talvez eu também estivesse ali por isso – para solucionar o meu próprio assassinato.


11

CUIDADO COM A GAROTA DIABÓLICA!

Dez minutos depois, Emma estava no banheiro feminino do primeiro andar do colégio Hollier. Revestido de ladrilhos cor-de-rosa, o lugar cheirava a Ajax e a cigarros velhos. Felizmente não havia pés sob as portas das cabines ou outras garotas amontoadas na pia.

Ela olhou para o próprio rosto, todo manchado de lágrimas, no espelho sujo. Estava com olheiras, rugas de preocupação na testa e manchas vermelhas nas bochechas e no queixo, que sempre apareciam quando ela chorava. Tentou sorrir, mas sua boca simplesmente voltou a se contrair com desgosto.

– Recomponha-se – ralhou ela com seu reflexo. – Você consegue. Você pode ser a Sutton.

Não havia outra escolha, pelo menos não até descobrir uma maneira de fazer alguém acreditar no que ela dizia. Tinha conseguido isso na noite anterior, claro, mas aquilo fora antes de descobrir o que estava acontecendo.

A tristeza a dominou novamente, fazendo disparar mais um rio de lágrimas por suas bochechas. Ela pegou uma toalha de papel. Quantas vezes Sutton tinha usado aquele banheiro? Quantas vezes se olhara naquele espelho? Como se sentiria se soubesse que Emma estava tomando seu lugar?

Eu não sabia ao certo, para dizer a verdade. Como Emma poderia descobrir quem tinha me matado... sendo eu? Parecia algo impossível. E ainda assim... ela era a única, sem contar meu assassino, a saber que eu estava morta. Era a minha única chance.

O sinal tocou. Emma aplicou sob os olhos um pouco do corretivo que tinha achado no fundo da bolsa de Sutton, deu uma última ajeitada em seu cabelo escuro e saiu pela porta o mais confiante que pôde, ainda que seu estômago estivesse se revirando. O corredor estava repleto de gente diante de seus armários, garotas se abraçando e dando gritinhos ao contar sobre suas férias de verão, e garotos em camisas de futebol americano e basquete empurrando uns aos outros para cima dos bebedouros.

– Oi, Sutton! – exclamou uma garota quando ela passou. Emma forçou os cantos da boca em um sorriso.

– Mal posso esperar pela sua festa na sexta que vem! – gritou um garoto para Emma da outra ponta do corredor.

Dentro de uma sala, duas garotas de cabelo escuro sussurraram e apontaram direto para ela. O bilhete lhe veio novamente à mente. Qualquer um pode tê-lo escrito... até alguém da escola.

Ela pegou a grade horária que a sra. Mercer lhe dera no café da manhã. Por sorte, estava perto da primeira aula do dia de Sutton, algo abreviado simplesmente como A-103, na sala 114. Quando Emma passou pela porta, viu uma grande bandeira preta, vermelha e amarela pendurada no mastro perto do quadro-negro. Uma placa que dizia RESPEITEM O PODEROSO TREMA! estava sobre a mesa do professor. Na parede oposta havia o cartaz de um menino de rosto rechonchudo em traje típico alemão. Num balão de diálogo perto de sua boca estavam as palavras “EINS, ZWEI, DREI!”.

Emma franziu a testa. O A no horário era de Alemão. Eins, zwei e drei eram as únicas palavras do idioma que ela conhecia. Maravilha. Ela teve que se controlar para não começar a chorar de novo.

Mais adolescentes sorriram para Emma conforme ela cruzava a sala até se deixar cair numa das últimas carteiras. Então ela reparou num garoto familiar de cabelo escuro, sentado perto da janela, os olhos fixos na pista de corrida vermelha: era Ethan, o observador de estrelas que Emma conhecera na noite anterior. O Sr. Rebelde Sem Causa.

Ethan virou-se e olhou para trás, como se tivesse sentido que Emma o estava observando. Seus olhos pareceram ganhar vida quando a viu. Emma cumprimentou-o com um débil sorriso. Ele sorriu em resposta. Mas, quando outra garota passou por ele e disse um “Oi, Ethan” ronronando, ele limitou-se a acenar educadamente com a cabeça.

– Psiu! – chamou uma voz do outro lado da sala.

Emma virou-se e viu a cabeça loura espetada de Garrett a poucas fileiras de distância. Ele acenou e piscou para ela. Emma acenou de volta, mas se sentiu uma impostora. O que ele iria pensar se soubesse que na verdade sua namorada estava morta? E agora ela nem podia contar a ele.

O sinal tocou novamente, e todos que ainda estavam de pé se apressaram para encontrar seus lugares. Uma mulher asiática de cabelo bem curto num longo vestido azul que parecia sufocante demais para o calor do Arizona entrou na sala caminhando rigidamente. Frau Fenstermacher, escreveu no quadro em uma caligrafia contundente, riscando de forma brusca uma linha embaixo. Emma se perguntou se ela tinha trocado seu sobrenome para ganhar autenticidade.

Frau Fenstermacher empurrou os óculos com moldura clara de acrílico até quase a ponta do nariz enquanto examinava a lista de chamada.

– Paul Anders? – vociferou.

– Aqui – resmungou um garoto com óculos de armação escura e uma camiseta da banda Grizzly Bear.

– Responda em alemão!

A professora tinha pouco mais de 1,50m, mas algo de duro e ameaçador nela sugeria que podia ferrar com alguém.

– Ah. – Paul corou. – Ja. – A palavra soou como “iá”.

– Garrett Austin?

– Ja, ja – disse Garrett, como o Cozinheiro Sueco dos Muppets. Todos riram.

Frau Fenstermacher chamou mais nomes. Emma passava os dedos nervosamente sobre um símbolo da anarquia que alguém tinha esculpido na mesa. Diga ja quando ela chamar Sutton Mercer, ela entoava para si mesma sem parar. Estava sentindo que ia esquecer.

Nove jas depois, Frau Fenstermacher empalideceu ao olhar para a lista de chamada.

– Sutton Mercer? – chamou ela, na voz mais furiosa de todas.

A boca de Emma se abriu, mas era como se alguém tivesse enfiado Wiener Schnitzel pela sua garganta. Todos se viraram para olhá-la. As risadinhas recomeçaram.

As sobrancelhas da professora se arquearam.

– Estou vendo você aí, Fraulein Mercer. Também sei quem você é. Uma Teufel Kind. Uma garota diabólica. Mas não em minha aula, ja? – Ela cuspia enquanto falava.

A turma inteira virou-se de Emma para Frau Fenstermacher e para Emma outra vez, como se estivessem assistindo a uma partida de pingue-pongue. Emma umedeceu os lábios secos.

– Ja – disse. Sua voz falhava.

Todos riram novamente.

– Ouvi dizer que ela quase foi presa nas férias; duas vezes – sussurrou uma garota com um colete longo de lã e uma calça jeans justa para outra garota de cabelo ondulado sentada do outro lado do corredor que havia entre as várias fileiras. – E soube também que o carro dela foi apreendido. Tinha tantas multas que finalmente o rebocaram.

– Ela hoje chegou com uns policiais aqui na escola – respondeu aos sussurros a amiga de cabelos ondulados.

A Colete de Lã deu de ombros.

– Não me surpreende.

Emma afundou em sua carteira, pensando na pasta com o nome de Sutton que vira na delegacia. Que tipo de louca ela era? Emma enfiou a mão no bolso e tocou a ponta do bilhete, querendo desesperadamente que alguém o visse, acreditasse naquilo. Mas depois o soltou, pegou o iPad de Sutton e colocou-o sobre a carteira. Quem dera ela soubesse ligar aquele troço.

Mais seis aulas de professores circunspectos. Oito erros de percurso. Um almoço durante o qual Madeline e Charlotte a parabenizaram por aparecer na escola em um carro de polícia – pelo visto, para elas isso era algo bom. Finalmente, ao terminar o dia, Emma abriu o armário de Sutton. Antes do almoço, ela sucumbira e vasculhara a carteira da irmã para ver se tinha dinheiro, dando-se conta de que não conseguiria passar o dia inteiro sem comer nada. Além de algumas notas, da carteira de motorista digna do America’s Next Top Model, de um Amex Blue e de um horóscopo de Virgem para o mês de agosto em tamanho pocket, Emma tinha achado uma pequena tira de papel com o número e a combinação do armário. Era como se Sutton tivesse colocado aquilo ali de propósito, esperando que Emma encontrasse.

Se ao menos tivesse sido mesmo de propósito. Se ao menos eu tivesse deixado para Emma um montão de pistas para ajudá-la a descobrir quem tinha feito aquilo comigo – colado um grande alvo na cabeça do assassino, talvez. Mas eu a admirei por examinar cuidadosamente cada pedacinho de papel que havia em minha carteira como se contivesse uma informação vital. Ela também tinha feito uma lista de pessoas que assistiam às mesmas aulas que eu, anotando coisas como Sienna, duas mesas depois da minha, histórico: sorriu, pareceu simpática, fez referência ao “incidente do bebê-ovo” e Geoff, sentado na diagonal, matemát.: ficou me olhando de um jeito estranho, fez uma piada (?) dizendo que eu estava “diferente” hoje. Será que eu teria conseguido investigar assim caso os nossos papéis estivessem trocados? Será que teria me empenhado em vingar uma irmã que eu nem sequer conhecia? Eu também tinha reparado numa outra coisa sobre Emma: ela andava pelos corredores com os lábios apertados, como se estivesse prendendo a respiração; ela entrava no banheiro feminino só para se olhar no espelho, como que para reunir coragem outra vez. Nós duas tínhamos segredos. Nós duas estávamos muito sozinhas.

Emma abriu o armário. Estava vazio, com exceção de um caderno embolorado lá no fundo e algumas fotos de Sutton, Madeline e Charlotte presas na parte interna da porta. Quando Emma estava prestes a juntar os livros que tinha recebido naquele dia e, de alguma forma, enfiá-los na bolsa de couro de Sutton – que tipo de retardada não vai com uma mochila de verdade para a escola? –, sentiu uma mão em seu braço.

– Pensando em matar o tênis?

Emma virou-se. Charlotte estava parada em frente a um cartaz que propagandeava POR QUE DROGAS NÃO SÃO LEGAIS. Ela tinha prendido seu cabelo ruivo em um rabo de cavalo alto e trocado de roupa: agora vestia uma camiseta branca, um short preto da Champion e um tênis cinza da Nike. Em seu ombro, uma sacola esportiva parecida com a que a mãe de Sutton pegara para Emma aquela manhã.

Tênis. Claro.

– Eu estava pensando sobre isso – resmungou Emma.

– Não estava nada. – Charlotte passou o braço pelo cotovelo de Emma e a puxou pelo corredor. – Vamos lá. Laurel colocou o seu equipamento no armário do time depois da sua tentativa de rebelião hoje de manhã. Maggie vai matar nós duas se a gente se atrasar.

Emma olhou para Charlotte enquanto andavam, surpresa por ela também estar no time de tênis. A julgar por seu físico, Charlotte tinha mais a aparência de uma lutadora. Então Emma mordeu o lábio, sentindo-se culpada. Será que aquilo tinha sido cruel?

Não mais cruel do que eu era, de acordo com a única lembrança que voltara à tona na minha mente. E de alguma forma eu tinha a impressão de que aquilo era apenas a ponta do iceberg.

Emma e Charlotte seguiam pelo corredor do anuário, que era decorado com retratos de alunos tirados em anos anteriores. Emma localizou uma foto de Sutton rindo com os amigos no que parecia ser a área da frente da escola. Perto dessa estava um flagra de Laurel e um garoto familiar de cabelo escuro entretidos numa luta de polegares na arquibancada do ginásio. Emma deu uma segunda olhada. Era o mesmo rapaz que ela vira no mural de Sutton no dia anterior... e no pôster de Desaparecidos na delegacia de polícia aquela manhã: Thayer, o irmão de Madeline. O que teria acontecido com ele?, Emma se perguntou. Para onde tinha fugido e por quê? Será que, assim como Sutton, não tinha sido uma fuga?

– Então, como foi seu dia? – O rabo de cavalo de Charlotte quicava nas suas costas.

– Hã, tranquilo. – Emma viu duas garotas vindo na direção oposta, ambas carregando scripts de Minha bela dama. – Mas parece que todos os meus professores querem a minha cabeça.

Charlotte torceu o nariz.

– Isso é alguma surpresa?

Emma passou os dedos pela áspera alça da sacola esportiva de Sutton. Sim, ela queria poder admitir. Não era todo dia que um professor a chamava de Garota Diabólica, a fazia sentar na primeira fila para poder “ficar de olho nela” ou a encarava antipaticamente, dizendo: “Todas as carteiras desta sala são pregadas no chão, Sutton. Só para você saber.” Hum, ok.

Mas Charlotte já tinha mudado de assunto e começado a reclamar de seu professor de educação física e de algo que ela chamou de Tubo de Ventilação.

– E a sra. Grady, de história, tem uma superimplicância comigo – lamentou-se a garota. – Ela me chamou para conversar depois que o sinal tocou e começou a dizer: “Você é inteligente, Charlotte. Não ande com aquele grupinho que eu sempre vejo junto com você. Faça alguma coisa da sua vida!” – E então revirou os olhos.

As duas viraram na ala de biologia. Um esqueleto humano que ficava na entrada de uma das salas de aula fez Emma estremecer. Sutton pode ser apenas isso agora, pensou ela.

Em seguida Charlotte a cutucou.

– Então, chega de falar de mim. Como você está? – Ela reparou no colo de Emma. – Cadê o seu colar?

Emma apalpou o pescoço nu.

– Não sei.

Charlotte ergueu as sobrancelhas.

– Isso é novidade. – Ela ajeitou a sacola no ombro. – Como vão as coisas entre você e o Garrett?

– Hã, tudo bem – respondeu Emma lentamente.

Ela se lembrou da foto feliz de Sutton e Garrett no Facebook. Era tudo o que tinha para se guiar.

Charlotte abriu um sorriso morno, de lábios fechados.

– Soube que ele vai te dar um presente muito especial de aniversário.

– Mesmo?

– Hã-rã. Sortuda.

A voz de Charlotte estava pouco natural. Emma a olhou com desconfiança, mas a amiga estava distraída mexendo na alça de sua sacola.

Um instante depois elas entraram no vestiário, um local cheio de ecos, o ar ali dentro repleto de sons de portas de armário batendo e líderes de torcida que se aqueciam erguendo o punho no ar e batendo na palma da mão uma da outra. Emma vestiu depressa o short e a regata que a mãe de Sutton tinha colocado na sua bolsa, depois seguiu Charlotte por um labirinto de corredores para se juntar ao restante do time. Todas as garotas estavam no chão de bumbum para cima alongando os músculos piriformes. Emma notou Laurel na segunda fila; quando ela viu Emma e Charlotte, rapidamente desviou os olhos. Uma garota bem na frente da sala olhou furiosamente para Emma. Nisha.

– Sutton? – chamou outra voz. Uma mulher de uns vinte e poucos anos vinha pela lateral da sala, sorrindo para Emma. Ela tinha um rabo de cavalo louro-avermelhado e usava uma camisa polo azul com os dizeres TREINADOR DE TÊNIS DE HOLLIER e o nome MAGGIE bordado na altura do peito. – Vamos lá! Cocapitãs na frente!

Cocapitã? Emma quase caiu na gargalhada. Quase toda a sua experiência com tênis tinha sido jogando Wii na casa de Alex. Desamparada ela olhou para Charlotte, que simplesmente deu de ombros.

– Vamos logo! – disse a treinadora Maggie, fazendo um gesto com as mãos.

Mais uma vez Emma dirigiu o olhar para Nisha. Ela estava usando uma camiseta cinza que dizia CAPITÃ DO TIME DE TÊNIS DE HOLLIER. Emma estremeceu. O universo estava definitivamente tramando contra ela.

Ela passou devagar por entre as garotas de bunda para cima até chegar à frente. Dirigiu a Nisha um sorriso cocapitanesco de vamos-ser-amigas, mas a garota retribuiu com um olhar de desprezo.

Maggie soprou seu apito, e o restante do time se sentou.

– Como vocês sabem, é uma tradição que no primeiro dia de treino do ano nós usemos nossos uniformes do Hollier como uma demonstração de espírito de equipe. – Algumas garotas gritaram “uhul!” e assobiaram. – Nisha Banerjee e Sutton Mercer, nossas duas novas cocapitãs, farão as honras, distribuindo os uniformes.

Maggie fez um gesto indicando uma caixa de plástico azul em frente a Nisha. Emma olhou lá dentro e viu roupas de tênis cuidadosamente dobradas em pilhas organizadas e regulares. Ela fez menção de pegar uma, mas Nisha a afastou com um tapa.

– Deixa comigo.

Nisha virou-se para o time e começou a chamar os nomes. Uma por uma, as garotas foram até a frente. Nisha lhes dava seus uniformes como um diretor entregando os diplomas do ensino médio aos formandos. Depois que todas as garotas tinham recebido seu uniforme, e depois que Maggie foi para a sala dos treinadores, Nisha tirou o último conjunto da caixa e o entregou a Emma.

– E aqui está o seu, Sutton.

Emma desdobrou o uniforme e o segurou diante de si. As mangas tinham cerca de dois centímetros. A blusa não cobria sua barriga. Ou alguém tinha encolhido aquilo na máquina de lavar, ou o uniforme fora desenhado especialmente para um Smurf. Várias garotas soltaram risinhos.

Emma sentiu suas bochechas arderem.

– Hã... não tem nada um pouco maior?

Nisha jogou o rabo de cavalo para as costas.

– Os outros já têm dona, Sutton. Isso é o que você ganha por não ter me ajudado com os uniformes ontem à tarde!

– Mas... eu não estava aqui ontem! – protestou Emma. Tecnicamente, ela estava no ônibus fedorento a caminho de Tucson.

Nisha deixou escapar um suspiro agudo de desdém.

– Então imagino que havia alguém exatamente igual a você na minha festa ontem. – Ela apontou para o uniforme em miniatura. – Vai logo se vestir, cocapitã! Não quer mostrar seu espírito de equipe? – E, com um giro dos quadris, ela saiu do ginásio em direção às quadras de tênis, várias jogadoras mais novas em seu encalço. As risadinhas ficaram cada vez mais fortes, reverberando nas altas paredes do ginásio.

Emma embolou o uniforme nas mãos. Ninguém nunca fora tão ostensivamente cruel com ela antes. Nisha detestava Sutton de verdade.

Eu estava pensando a mesma coisa. E, na verdade, aquilo me deixava um pouco nervosa.

Charlotte se aproximou de Emma, sua boca contraída numa linha reta.

– Não podemos deixar que ela faça isso com você – sussurrou ela acidamente no ouvido de Emma. – Está pensando o que eu estou pensando?

Emma olhou-a inexpressivamente.

– Vamos acabar com ela – completou Charlotte. – E não vai demorar.

Acabar com ela? Um vago estremecimento fez o âmago de Emma vibrar. Mas, antes que ela pudesse dizer qualquer palavra, Charlotte a empurrou em direção à porta, conduzindo-a rumo ao causticante sol do Arizona e deixando nós duas a imaginar o que ela queria dizer com aquilo.


12

O PRIMEIRO — E FRACASSADO — JANTAR EM FAMÍLIA DE EMMA

Assim que Emma passou pela porta de casa, chegando do treino de tênis, o cheiro de carne assada com batatas e de croissants invadiu suas narinas. A sra. Mercer esticou a cabeça para fora da cozinha.

– Aí está você. A comida está pronta.

Emma passou a mão pelo cabelo molhado. Agora? Ela queria ficar alguns minutos sozinha antes do jantar. Talvez subir para o quarto, se deitar em posição fetal, chorar pela irmã que nunca conhecera, decidir o que fazer...

Ela deixou a bolsa de tênis no vestíbulo e foi até a cozinha. A sra. Mercer levava copos de água para a mesa enquanto o marido abria uma garrafa de vinho e enchia duas taças. Laurel já estava sentada, mexendo no garfo distraidamente. Ela tinha ido embora, após o treino de tênis, sem oferecer carona à suposta irmã.

Emma sentou-se ao lado dela. Havia um pequeno grou de origami perto de seu copo d’água. Laurel pigarreou e indicou-o com o queixo.

– Abra.

Emma olhou para a dobradura, depois observou a cozinha cuidadosamente. Ela preferia não abrir, obrigada, ainda mais se fosse outro bilhete assustador. Mas Laurel continuava encarando-a. O brilhante papel de origami enrugava conforme Emma desconstruía lentamente o pássaro. Na face interna, toda branca, estava escrito: EU PERDOO VOCÊ. L.

– Soube que a festa da Nisha foi uma droga. – Laurel torcia um guardanapo de pano nas mãos. – E eu finalmente perguntei à Char depois do tênis. Ela me contou que elas sequestraram você.

Emma dobrou novamente o papel, recuperando a forma do pássaro, e tocou o braço de Laurel.

– Obrigada.

Não era muito, mas pelo menos alguém finalmente acreditava em alguma coisa que ela tinha dito.

– De nada – disse Laurel, e a olhou com uma pontinha de esperança.

De repente, um flash indistinto envolvendo Laurel apareceu diante de meus olhos. Estávamos diante de um portão com uma placa que dizia PISCINA DO SPA LA PALOMA – EXCLUSIVO PARA HÓSPEDES! Nós duas vestíamos um short de tecido felpudo e óculos de sol gigantes. “É só fingir que aqui é o seu lugar”, eu a instruía, pegando na sua mão. Ela então me lançava um olhar ansioso e leal em que se lia você-é-a-irmã-mais-velha-e-eu-quero-ser-exatamente-igual-a-você – aquele mesmo olhar que ela agora dirigia a Emma.

Então nós duas já tínhamos sido amigas uma época... ainda que isso fizesse muito tempo. Não era essa a impressão que eu havia tido ao me lembrar do incidente nas fontes termais.

– Mesmo assim, talvez você possa se redimir comigo – disse Laurel a Emma, cruzando os braços no peito. – Manicure no Mr. Pinky semana que vem, antes da sua festa? Talvez na quinta?

– Tudo bem – disse Emma, ainda que a quinta-feira pudesse muito bem só chegar no milênio seguinte. Será que ela estaria naquela casa dali a uma semana?

A sra. Mercer tirou um prato do forno com um ruído alto. O sr. Mercer pegou facas de carne brilhantes na gaveta. Laurel se inclinou para a frente, de forma que sua blusa se entreabriu, deixando ver a parte de cima do sutiã cor-de-rosa com ondinhas recortadas nas bordas.

– Por que você saiu correndo hoje de manhã? – sussurrou ela. – A Mad me contou que viu você saindo de um carro de polícia logo antes do primeiro tempo.

Emma enrijeceu.

– Eu estava tentando matar aula – respondeu ela, também num sussurro. – Um policial estava passando e me viu. Ele disse que, se eu não voltasse para a escola com ele, ele ia aumentar a taxa de custódia do meu carro.

– Que droga. – Um cacho de cabelo louro-mel caiu sobre os olhos de Laurel.

Elas foram interrompidas pela sra. Mercer, que chegava à mesa, apressada, com pratos fumegantes. Ela distribuiu porções de carne, espinafre e batatas assadas para todos. Disfarçadamente, o sr. Mercer deu a Drake um pedaço de croissant, que ele engoliu sem mastigar. Depois que todos foram servidos, a sra. Mercer se sentou e desdobrou o guardanapo no colo.

– Acabei de receber uma ligação da sua treinadora, Sutton. Ela disse que você jogou mal hoje.

– Ah. – Emma cortou a batata com o garfo. O tênis não tinha sido exatamente um sucesso, mas pelo menos ela não tinha precisado usar o Uniforme para Smurfs: Maggie lhe dissera que iriam resolver o problema no dia seguinte. Durante o treino, ela rebatera algumas bolas (obrigada, Wii!), mas os saques passavam direto pela sua cabeça, e quando ela estava em dupla com Charlotte foi correr para um lance e acabou se chocando contra ela. – É, acho que estou um pouco enferrujada – disse Emma. Sem contar que ela esteve ligeiramente distraída durante todo o treino.

O sr. Mercer estalou a língua.

– Deve ser porque você passou o verão todo sem praticar.

– Você devia passar algum tempo na quadra hoje à noite. – A sra. Mercer limpou a boca com um guardanapo com estampa de abacaxi.

– Talvez a Sutton tenha ido mal porque a Nisha foi uma escrota hoje – intrometeu-se Laurel.

Emma lançou-lhe um olhar de agradecimento. Que bom que ela estava do seu lado.

Do meu lado, na verdade. Mas eu concordava. Era bom ter Laurel me defendendo.

Um olhar mais ameno, melancólico, apareceu no rosto da sra. Mercer.

– Como vai a Nisha? Esbarrei com o pai dela no clube esse fim de semana. Parece que ela foi para um acampamento de tênis no verão. E ainda participou de um programa pré-universitário em Stanford. Ela tem sido muito forte, ainda mais depois do que aconteceu com a mãe.

Emma torceu o nariz. Se forte fosse sinônimo de vaca, então a sra. Mercer tinha toda razão.

– A Nisha é meio diabólica.

– Totalmente – corrigiu Laurel.

– E a Madeline e a Charlotte não são? – A sra. Mercer mordeu um pedaço de carne.

– A Madeline e a Charlotte são o máximo – disparou Laurel. – E muito legais.

A sra. Mercer tomou um gole de vinho.

– Vocês sabem como eu me sinto por vocês andarem com elas. Aquelas meninas estão sempre arranjando problemas.

Emma engoliu uma garfada de filé, lembrando-se da pasta que o detetive Quinlan tinha lhe mostrado na delegacia aquele dia. Madeline e Charlotte não eram as únicas a criar problemas.

– Até os pais delas são... estranhos – continuou a sra. Mercer, mastigando espinafre. Depois que engoliu, ela acrescentou: – Sempre achei a sra. Vega insistente demais. Está sempre enlouquecida com a Madeline e essa coisa da dança. E o sr. Vega é tão... instável. Aquelas brigas que ele tinha com o Thayer, bem em público... – Ela não completou a frase, e olhou de relance, discretamente, para Laurel, que espalhava uma camada homogênea de manteiga num croissant.

Emma inclinou-se para a frente, na esperança de que a sra. Mercer falasse mais sobre Thayer Vega. Mas em vez disso a sra. Mercer disse apenas:

– E a mãe da Charlotte? – E fez cara de nojo. – Toda vez que eu abro o jornal ela está com um vestido novo, batizando um barco no lago Havasu com uma garrafa de champanhe.

O sr. Mercer espetou um pedaço de carne.

– Os vestidos da sra. Chamberlain são muito... interessantes.

– Você quer dizer inapropriados, não? – A sra. Mercer levou a mão à boca. – Perdão, meninas, não é bonito falar da vida dos outros. Certo, James?

– Verdade – murmurou o sr. Mercer.

Então seu olhar pousou como um feixe de laser sobre Emma. Uma expressão alarmada atravessou o rosto dele. Emma inclinou a cabeça, nervosa. Seu coração começou a martelar. De repente, ele a estava encarando como se soubesse.

Então ele desviou os olhos. Emma abriu a batata assada e esmagou o interior massudo, como sempre fazia desde criança.

– Talvez Madeline e Charlotte só criem problemas porque os pais dela estão, tipo, ocupados com outras coisas.

A sra. Mercer reclinou-se na cadeira.

– Ora! Que perspicaz da sua parte, Oprah.

Emma deu de ombros com indiferença. Aquela era praticamente a primeira lição de Psicologia Básica da Criança Abandonada – a maioria das crianças agia mal quando não estava recebendo atenção ou cuidado suficientes. Não tinham pais para ajudá-las com o dever de casa ou para ir assistir aos seus jogos de futebol ou encorajá-las a participar de feiras de ciências. Ninguém lia histórias para elas na hora de dormir, nem lhes dava beijos de boa-noite ou se sentava com elas em agradáveis jantares em família.

Então algo lhe ocorreu de repente. De certa forma, aquele era o primeiro jantar em família de verdade que ela tinha desde que, bem, o primeiro de toda a sua vida. Mesmo quando ainda vivia com Becky, a maioria das refeições acontecia no carro, depois de passar em algum drive-through, ou em frente à TV, usando bandejas. Ou Emma comia uma tigela de cereais sozinha enquanto Becky fazia solilóquios de uma hora no pátio vazio do prédio.

A inveja a percorreu novamente, mas ela logo a afastou quando voltou a pensar no bilhete. Sutton está morta. Emma nunca teria um jantar em família com a irmã.

Todos ficaram em silêncio por algum tempo, garfos batendo contra pratos, colheres raspando travessas. O bipe do sr. Mercer tocou; ele o pegou e o devolveu para seu estojo. Emma o pegou olhando para ela mais algumas vezes. Finalmente, ele pressionou as palmas das mãos contra a mesa.

– Chega, isso está me deixando maluco. Quando foi que você arrumou essa cicatriz no queixo?

O coração de Emma quase saltou do seu peito. Todos se viraram para olhar para ela.

– Hã, que cicatriz?

– Aqui. – Ele apontou por cima da mesa. – Eu nunca tinha visto.

Laurel apertou os olhos.

– Ah, é mesmo. Estranho!

A sra. Mercer franziu a testa.

Emma tocou o queixo. Ela tinha arranjado aquela cicatriz ao cair de um brinquedo no parquinho do McDonald’s. Perdera a consciência por alguns segundos e, ao voltar a si, esperava ver Becky diante dela, confortando-a. Mas Becky não estava por perto. Emma finalmente a encontrou do outro lado do parquinho, chorando copiosamente enquanto se embalava para a frente e para trás em um outro brinquedo, os joelhos dobrados de forma que seus pés se encaixassem nos pequenos estribos. Ver o sangue escorrendo do queixo de Emma só fez Becky chorar ainda mais.

Emma não podia contar isso ao sr. Mercer. Ela levou o copo d’água à boca.

– Já tenho isso faz um tempo. Acho que vocês não me conhecem tão bem quanto pensam.

– Porque na verdade você é uma garota chamada Emma, não? – brincou a sra. Mercer.

Emma quase engasgou com a água. Havia um sorriso estranho, quase ardiloso, no rosto da mãe de Sutton.

– E como vai a Emma hoje, aliás? – acrescentou o sr. Mercer, com uma piscadela.

A sra. Mercer encarou Emma, esperando sua resposta. Ela estava brincando, certo? Emma não tinha mais certeza. Não tinha mais certeza sobre nada.

– Hã, Emma está um pouco desorientada – respondeu ela baixinho.

Minha família mal sabia como essa resposta era verdadeira.


13

O CORPO NO CHÃO

Uma hora e meia depois, Emma saiu da casa de Sutton e fez uma curva à direita em direção ao grande parque que havia no final do condomínio. Depois de pensar um pouco, tinha decidido aceitar o conselho da sra. Mercer e praticar seu swing de tênis. Talvez ela se aperfeiçoasse milagrosamente e, no dia seguinte, chutasse a bunda insolente sob a saia de tênis de Nisha – ou, pelo menos, não caísse de cara no chão enquanto estivesse tentando fazer um drop shot.

Seu BlackBerry, aninhado na sacola de tênis juntamente com o iPhone de Sutton, tocou. ALEX, dizia a telinha.

– Então você está viva! – gritou Alex quando Emma atendeu. – Você devia ter dado notícias ontem à noite! Achei que tivesse caído no cânion.

Emma riu amargamente.

– Não, ainda estou aqui.

– E então? – disse Alex. – Como estão as coisas? Sua irmã é incrível? Vocês se deram bem?

– Hã... – Emma desviou de um patinete que alguma criança tinha abandonado na calçada. Era difícil acreditar que só estava ali havia um dia. – Ela é ótima. Estamos nos divertindo muito. – Ela torceu para que sua voz não parecesse forçada. Por instinto, olhou para trás, certa de que alguém estava escutando.

– Então você vai ficar aí por um tempo? Vai morar com ela? Caramba, você não está morrendo de emoção?

Emma engoliu em seco quando o ameaçador bilhete SUTTON ESTÁ MORTA atravessou sua mente pela bilionésima vez. Quase isso.

– Vamos ver.

– Estou muito animada por você! – Houve um corte na linha por um segundo. – Ai, tem alguém me ligando – disse Alex. – A gente se fala mais tarde, ok? Você vai ter que me contar tudo!

E então ela desligou. Emma manteve o telefone, já meio quente, contra a orelha por mais alguns segundos, a culpa esguichando dentro dela como um hidrante quebrado. Nunca tinha mentido para Alex, ainda mais quando o assunto era tão grave. Não que ela tivesse muita escolha.

Um estalido fez Emma congelar. Seria... um passo? Ela virou-se lentamente, o silêncio reverberando em seus ouvidos. A noite tinha ficado escura e quieta. A luz vermelha do alarme piscava no painel de um utilitário esportivo parado no meio-fio. Alguma coisa se moveu perto da roda dianteira, e Emma deu um salto para trás. Um lagarto cor de areia saiu de baixo do veículo e contornou rapidamente uma grande lata de lixo com rodinhas.

Ela passou as mãos pelo rosto, tentando se acalmar. O parque surgiu no final da rua, uma grande extensão de grama bem-cuidada, áreas de recreação e campos para prática de esporte. Ela foi correndo o restante do caminho, a sacola batendo contra seu quadril. Alguns homens suados e sem camisa estavam guardando seus equipamentos na quadra de basquete. Dois corredores se alongavam perto de uma grande lata de lixo verde.

Uma máquina prateada parecida com um parquímetro ficava antes da entrada gradeada das quadras de tênis. SETENTA E CINCO CENTAVOS POR TRINTA MINUTOS, dizia uma pequena placa no poste. Emma olhou em volta, nervosa. Os jogadores de basquete tinham ido embora de repente, levando com eles quase todo o barulho. O vento zunia em seus ouvidos. Ouviu-se outro ínfimo som à sua esquerda, como alguém engolindo.

– Olá? – chamou Emma suavemente. Nenhuma resposta.

Controle-se, disse a si mesma. Endireitando os ombros, enfiou algumas moedas nas fendas estreitas do aparelho. No alto, os projetores de luz foram ligados, tão ofuscantes que Emma estremeceu e cobriu os olhos. Ela abriu a porta gradeada e olhou para as quadras azuis e verdes. E foi então que... ela viu. Um homem estendido no chão com o rosto para cima no meio da quadra, os braços e pernas esticados formando um X.

Emma gritou. O homem se levantou rapidamente, o que a fez gritar ainda mais alto e jogar a raquete na direção da cabeça dele. A raquete fez um ruído ao bater no chão da quadra e aterrissou perto da rede. O homem estreitou muito os olhos, tentando ver o rosto dela.

– Sutton? – perguntou ele, após um momento.

– Ah! – disse Emma. Ethan.

Ele pegou a raquete e foi até ela. Usava uma camiseta preta, um short azul esportivo e um par de tênis cinza New Balance.

– Ainda bem que é você – disse Emma.

Ethan fez uma leve careta.

– Você sempre joga raquetes em pessoas que está contente em ver?

Emma pegou a raquete com ele.

– Desculpe, você me assustou. Achei que fosse... – Ela não completou a frase. O assassino da minha irmã. Um perseguidor maligno dado a escrever bilhetes.

– O bicho-papão? – completou Ethan.

Emma assentiu.

– Tipo isso.

O casal de corredores passou por eles. Um carro rebaixado cruzou lentamente a rua, buzinando o tema de O poderoso chefão. Emma olhou novamente para Ethan.

– O que você estava fazendo deitado no escuro?

– Observando as estrelas. – Ele apontou para o céu. – Venho aqui quase toda noite. É um ótimo lugar para isso, porque é muito escuro. Quer dizer, até você chegar. – Ele se inclinou contra uma fonte de água coberta de pedras logo antes das quadras. – O que você está fazendo aqui? Me espionando?

Emma corou.

– Não. Eu queria praticar um pouco. Minhas habilidades passaram de “ótimas” para “regulares” durante o verão.

– Está querendo mostrar a Nisha quem é que manda?

Emma se surpreendeu. Como ele sabia daquilo?

Ethan sorriu, como se estivesse lendo sua mente.

– A rivalidade entre vocês é lendária. Até eu já ouvi falar.

Emma observou as maçãs do rosto pronunciadas, os olhos profundos e os ombros musculosos de Ethan. Na aula de alemão, ele tinha passado o tempo todo olhando pela janela, sem falar com ninguém. Fora a única pessoa que Frau Fenstermacher não tinha atormentado. No corredor, ele andava sozinho, com grandes fones de ouvido Bose grudados às orelhas. As garotas lhe lançavam olhares aprovadores quando ele passava, mas ele dava de ombros timidamente para cada uma delas e seguia em frente.

– Então, quer um parceiro para o seu treino? – sugeriu Ethan, interrompendo seus pensamentos.

Emma inclinou a cabeça para o lado, considerando.

– Você quer dizer... de tênis?

– Não, croqué. – Ele sorriu e fez um gesto em direção ao estacionamento. – Tenho uma raquete no carro. Mas se não quiser...

– Eu adoraria. – Emma sorriu. Os nervos estalavam e dançavam sob sua pele. – Obrigada.

– Então tá.

A expressão de Ethan era encabulada, talvez até um pouco nervosa. Eles viraram-se e tentaram passar pelo portão gradeado ao mesmo tempo. Colidiram um contra o outro, a lateral do corpo de Emma contra o quadril de Ethan.

– Ops. – Ela riu.

Ambos deram um passo para trás ao mesmo tempo. Então Emma tentou passar pelo portão novamente. E Ethan também. Eles se chocaram outra vez. Emma pisou no pé dele.

– Desculpe – disse ela, afastando-se rapidamente.

– Eu só estava... – Ethan saiu do caminho de novo, fazendo um gesto para que ela passasse primeiro. As bochechas de Emma queimavam.

Finalmente, ambos conseguiram passar pelo portão, e Ethan pegou sua raquete de tênis no carro. Eles ficaram rebatendo a bola de um lado para o outro por algum tempo. Depois de meia hora, Emma sentia seu swing ficando mais forte e o movimento de seus pés já não lembrava mais uma galinha decapitada.

– Quer fazer um intervalo? – gritou Ethan do outro lado da quadra.

Emma assentiu com a cabeça. Eles se deixaram cair no banco da lateral. Ethan tirou uma garrafa de água Fiji e um pacote de M&M’s de chocolate amargo de sua bolsa carteiro.

– Você não parece tão enferrujada.

Emma bebeu um grande gole da garrafa d’água, tomando cuidado para não deixar escorrer pelo queixo.

– Estou sim. Mas obrigada por me ajudar. Foi muito gentil da sua parte.

– Sem problemas. – Ethan deu de ombros.

As luzes fluorescentes zumbiam sobre suas cabeças. Ethan rolava a bola de tênis sob o pé.

– Então, por que não quis ir para a festa comigo ontem à noite? – perguntou ela após um instante.

Ethan desviou os olhos e os fixou em uma grande caixa de areia de madeira, do outro lado da cerca. Algumas pás e moldes para castelos estavam abandonados ali. Emma podia apostar que devia estar tudo cheirando a xixi.

– O seu grupo não tem muito a ver comigo.

Emma deu de ombros. Ela também não sabia ao certo se gostava das amigas de Sutton.

– Você não teria que falar com elas. Quem o convidou fui eu.

Ele mexeu em uma casquinha de machucado no joelho.

– Sinceramente? Achei que podia ser tudo uma armadilha. Tive medo de ir para a festa e... sei lá. Alguém jogar sangue de porco na minha cabeça ou coisa parecida, tipo um filme de terror.

– Eu não armaria para você!

Ethan torceu o nariz.

– Sutton Mercer não faz esse tipo de coisa? – Ele demonstrava dúvida ao olhar para ela.

Emma olhou para a rede que reluzia sob a luz no meio da quadra. Ela nem imaginava o que Sutton faria ou não. Todos aqueles comentários dos professores, a pasta na polícia... Estava começando a se sentir pessoalmente responsável por tudo aquilo, ainda que não tivesse a menor ideia do que era.

Emma enfiou a mão no saquinho de M&M’s e pegou um punhado. Distraidamente, colocou alguns em sua coxa formando uma carinha sorridente: dois olhos de M&M’s azuis, um nariz verde e um sorriso de M&M’s vermelhos e marrons.

– Você também faz isso? – perguntou Ethan.

Ela ergueu os olhos.

– Isso o quê?

– Carinhas com o que você vai comer. – Ethan apontou para a criação de Emma.

Ela baixou a cabeça.

– Faço isso desde pequena.

Ela esculpia carinhas sorridentes com pedacinhos de chocolate em sundaes, ou no prato, com o ketchup que tinha sobrado depois de comer todas as batatas fritas. Um conselheiro certa vez a pegara fazendo uma carinha feliz com cereal Cheerios durante uma sessão, e lhe disse que ela provavelmente fazia aquilo porque se sentia só. Mas Emma achava apenas que tudo o que comia merecia alguma personalidade.

Ethan atirou um M&M’s dentro da boca.

– Quando eu era pequeno, meu pai fazia um waffle belga que chamávamos de Bob. Bob era um waffle comum, só que com duas grandes uvas no lugar de olhos, um nariz de chantili...

– ... e me deixe adivinhar – interrompeu Emma, brincando. – Um sorriso de bacon?

– Errado. – Ethan apontou para ela. – Um pedaço de melão!

– Melão com waffle? – Ela botou a língua para fora. – Eca.

Ethan sorriu e balançou a cabeça.

– Não consigo imaginar Sutton Mercer brincando com a comida.

– Tem muita coisa que você não sabe sobre mim – provocou Emma. – Eu sou um grande mistério. – Mais do que você imagina, acrescentou mentalmente.

Ethan assentiu com a cabeça, em aprovação.

– Mistérios são legais. – Ele se inclinou um pouco mais na direção dela, e sua mão esbarrou no ombro de Emma. Mas ele não se afastou imediatamente. Nem Emma. Por um momento, pareceu que ele estava sorrindo para ela, não para a garota que pensava ser Sutton Mercer.

Clic. As luzes acima se apagaram, afundando a quadra em escuridão. Emma se enrijeceu e soltou um pequeno ganido.

– Calma – disse Ethan. – As luzes se apagam automaticamente depois do tempo marcado.

Ele a ajudou a se levantar, e juntos os dois foram tateando em direção ao portão. Depois de entrar em seu carro e dar partida, Ethan enfiou a cabeça para fora da janela e lançou-lhe um olhar longo e curioso.

– Obrigado, Sutton – disse ele, por fim.

– Pelo quê? – perguntou Emma.

Pela janela, ele gesticulou em direção à quadra e ao céu.

– Por isso.

Emma deu um sorriso questionador, esperando que ele dissesse mais alguma coisa. Ethan saiu do estacionamento e seguiu rumo à saída. “Fireflies”, do Owl City, saía das caixas de som. A música era uma das favoritas de Emma. Enquanto ele virava para a rua, Emma deslizou pela grade para o asfalto morno. Pelo menos alguém ali era normal. Pena que era a única pessoa que parecia não querer se envolver na vida de Sutton.

Mas, observando de cima, eu não tinha tanta certeza. Havia algo em Ethan que me fazia pensar que ele tinha mais a ver com a minha vida do que revelava.


14

EMMA VINTAGE

Agourentas nuvens carregadas tomavam conta do céu na tarde de quinta-feira, e, após o sétimo tempo, a treinadora Maggie anunciou pelo alto-falante que o treino de tênis estava cancelado. Emma ficou tão aliviada que considerou abraçar o professor de “história do Arizona”. Suas pernas doíam por causa do treino do dia anterior e do jogo com Ethan à noite.

No fim do dia, enquanto ela inseria a combinação do armário de Sutton, uma mão deslizou por sua cintura e a puxou com força. Emma virou-se rapidamente e viu Garrett empurrando um buquê de tulipas para seu rosto.

– Feliz quase-aniversário-e-primeira-semana-de-aula! – proclamou ele animadamente, inclinando-se para um beijo.

Emma se retesou quando seus lábios tocaram os dele. Ele cheirava a aguarrás por causa da aula de artes.

– Tire suas mãos dele! – gritei.

Mas, como você já deve ter imaginado, ninguém me ouviu. Quer dizer, eu entendia que Emma precisava fingir que tudo estava normal. Entendia mesmo. Mas ver Garrett acariciar outra pessoa me enchia tanto de ciúmes quanto de tristeza. Ele não era mais meu. Nunca mais seria meu. Eu continuava esperando pelo momento em que Garrett ia se afastar, cruzar os braços e dizer: Ah, meu Deus, você é outra pessoa. Eu ficava esperando por isso. Mas não acontecia.

– Você anda tão estranha ultimamente. – Garrett ajeitou a mochila no ombro.

Finalmente!, pensei. Alguém percebeu!

Emma teve a mesma reação, pensando imediatamente em uma defesa. Mas então Garrett acrescentou:

– Parece que eu não vejo você faz semanas. Que tal a gente ir comer nachos no Blanco?

Emma deu uma olhadinha dentro do armário.

– Como assim, agora?

Garrett cruzou os braços.

– É, agora. Você não vai ter tênis, não é? Eu também não tenho futebol. E não precisa surtar... um prato de nachos não vai fazer você ganhar 5 quilos. Além do quê, eu continuaria te amando mesmo se você engordasse.

Emma desdenhou daquela preocupação. Não era por causa disso que ela não queria ir – Emma ganhara menção honrosa em uma competição de quem come mais cachorros-quentes, em Las Vegas, no ano anterior. Uma japonesinha que pelo visto era um saco sem fundo a derrotara por pouco. O problema era que ela se sentia estranha saindo com Garrett... sozinha. Eu continuaria te amando, ele tinha acabado de dizer. Se realmente amasse Sutton, ele não teria percebido que Emma não era ela?

– Estou meio enrolada – murmurou ela.

Garrett pegou as mãos de Emma nas dele.

– A gente precisa muito conversar. Eu tenho pensado em... – A voz dele sumiu. – Sabe, aquilo que a gente andou falando nas férias? Acho que você tem razão.

– Hã-rã – disse Emma cuidadosamente, sentindo de repente que a conversa acontecia em uma língua que ela não falava. Era exaustivo passar o dia fingindo que entendia o que os outros diziam.

Na noite anterior, depois de jogar tênis com Ethan, ela tinha entrado no Facebook pelo computador de Sutton, desesperada para descobrir qualquer coisa sobre a irmã – quem era ela, o que gostava de fazer... quem poderia querer matá-la. Graças à ferramenta de salvar login e senha, o site tinha aberto o perfil de Sutton. Emma lera as publicações de Sutton outra vez, tentando reunir o máximo de informações que pudesse sobre sua personalidade, seu passado e seus amigos, mas não havia muito que já não tivesse visto. A única coisa nova que descobrira sobre Garrett, por exemplo, fora que Sutton torcera por ele durante os jogos do time de futebol da escola, que saía com ele e sua irmã mais nova, Louisa, e que tomava todas as decisões relacionadas a moda para ele. Sutton tinha inclusive escrito coisas como “Adorei a nova camisa que escolhi para o meu namorado. Ele é quase uma bonequinha minha!”.

A princípio, senti que precisava me defender. Quem era ela para julgar a minha vida? Mas depois fiquei me perguntando: por que eu me importava tanto com o que Garrett usava?

Seria apenas por eu querer ter alguém, além de mim mesma, que eu pudesse vestir?... Ou porque eu era mesmo muito controladora?

Emma também começara a usar o telefone de Sutton – que tinha tocado trilhões de vezes desde que ela o pegara, e provavelmente seria estranho não atender. Ela tinha lido as mensagens antigas para ver se lançavam alguma luz sobre qualquer coisa em relação a Sutton, mas todas eram instruções vagas sobre locais de encontro (MI NIDITO 7H) ou problemas de atraso (SAINDO TARDE, CHEGO EM 10 MIN) ou trocas de insultos – IDIOTA, ela havia escrito para Charlotte, que respondera com um VACA-MUU.

Quanto à noite em que Sutton tinha respondido à mensagem de Emma no Facebook, convidando-a para ir a Tucson, havia uma chamada de Lilianna, atendida às 16h23, uma chamada perdida de Laurel às 20h39 e depois três chamadas perdidas de Madeline, às 22h32, 22h45 e 22h59. Mas nenhuma mensagem de voz.

E tinha também o arquivo sob a mesa de Sutton, aquele com o grande cadeado cor-de-rosa e a etiqueta que dizia JOGO DA M. Emma procurara a chave em todos os lugares. Tinha até pegado um sapato para usar como martelo, batendo-o com força no cadeado, mas tudo o que conseguira fora fazer Laurel aparecer na porta perguntando que droga ela estava fazendo. Ela precisava abri-lo... mas como?

– O que os dois maluquinhos estão tramando?

Madeline apareceu de repente, vindo do outro corredor, e se meteu entre Emma e Garrett. Emma não a via desde o almoço no dia anterior. Ela usava um vestido verde tão curto que com certeza quebrava o código de vestuário da escola, meias arrastão pretas e botas pretas. Os cantos de seus lábios vermelho-rubi se abriram num sorriso.

– Eu estava tentando convencer Sutton a ir comer nachos comigo – disse Garrett.

Madeline fez uma careta.

– Nacho dá celulite. – Ela apertou com força o pulso de Emma. – De qualquer maneira, ela não pode ir. Vai fazer compras comigo. É uma emergência. Estou precisando desesperadamente de tudo novo.

– Mas... – Garrett cruzou os braços musculosos.

– Desculpe – disse Emma, tomando o braço de Madeline em alívio.

– Mas ainda vamos jantar no sábado, não é? – gritou Garrett para ela. – Jantar?

– Hã, claro! – gritou Emma em resposta.

Ela e Madeline pegaram o corredor para a ala de ciências. Todas as portas estavam abertas, revelando mesas maciças de laboratório, armários cheios de potes de vidro brilhantes e cartazes gigantes com a tabela periódica.

– Não se importa de eu ter roubado você, não é? – perguntou Madeline. – Amigas vêm antes de namorados, não é?

– Claro – concordou Emma. – O Garret está mesmo me sufocando um pouco.

– Bom, esse é o Garrett. – Madeline bateu contra seu quadril. – Quem é que chega primeiro?!

E saiu correndo pelo corredor, Emma atrás dela. Dispararam debaixo de chuva pelo estacionamento até o carro de Madeline, um velho Acura com o adesivo de uma bailarina colado na traseira; estava escrito MÁFIA DO LAGO DOS CISNES.

– Entre! – gritou Madeline, atirando-se para dentro do carro e batendo a porta. Emma a seguiu, rindo.

A chuva tamborilava no para-brisa e no teto.

– Nossa! – Madeline jogou sua bolsa de couro com tachinhas no banco de trás e enfiou a chave na ignição. – La Encantada?

– Claro – respondeu Emma.

Madeline acelerou e saiu do estacionamento sem olhar se outros carros estavam vindo. Uma música da Katy Perry começou a tocar no rádio; Madeline aumentou o volume e cantou o refrão com afinação perfeita. Emma ficou de queixo caído.

– O que foi? – perguntou a amiga, com brusquidão.

– Você tem uma voz incrível, só isso – deixou escapar Emma. E então, caso aquilo não fosse algo que Sutton diria, acrescentou: – Continue, gata!

Madeline prendeu atrás da orelha seus cabelos tingidos de preto e cantou mais um verso. Na metade da sinuosa Campbell Avenue, o celular de Madeline apitou. Ela o tirou do bolso e olhou a tela, um dos olhos na estrada. Seu rosto se contraiu, zangado.

– Está tudo bem? – perguntou Emma.

Madeline olhava para a frente, como se o sinal de trânsito no qual tinham parado fosse infinitamente interessante.

– Só mais palhaçada sobre essa história do Thayer. Não importa.

Ela jogou o telefone no banco de trás. O aparelho atingiu o estofado com força.

– Quer falar sobre isso? – perguntou Emma.

Madeline soltou um pequeno suspiro de exclamação.

– Com você?

– Por que não? – Não era isso o que boas amigas faziam?

Sim, com certeza; mas eu tinha um pressentimento de que minhas amigas e eu não éramos muito do tipo sensível.

O sinal abriu, e Madeline pisou no acelerador. Seus olhos estavam vidrados, como se ela estivesse prestes a chorar.

– É só que... a polícia disse aos meus pais que as buscas foram encerradas – disse ela, num tom de voz monocórdico. – Ele agora é, tipo, oficialmente um garoto que fugiu de casa. Não tem mais nada que eles possam fazer.

– Sinto muito mesmo – disse Emma.

Ela também tinha vasculhado todo o Facebook em busca de informações sobre o motivo para o irmão de Madeline ter fugido, mas praticamente não havia menções a isso. Encontrara uma página dedicada a informar sobre o seu desaparecimento, listando os detalhes do que Thayer estava usando (uma camisa polo grande demais para ele, uma bermuda cargo com estampa camuflada), onde fora visto pela última vez (nas trilhas para caminhada perto das montanhas Santa Rita, em junho) e relatando sobre a busca que não dera em nada: não acharam nem um sapato, nem uma garrafa de água vazia, absolutamente nenhum vestígio de Thayer. Havia um número gratuito para as pessoas ligarem se tivessem qualquer informação. Sutton não era amiga de Thayer no Facebook, então Emma não conseguia acessar o perfil dele para descobrir mais. Ela percebeu, no entanto, que Laurel interagia muito com Thayer – havia fotos dos dois montando a cavalo, vídeos do YouTube em seus murais e trocas de comentários sobre shows de rock que aconteceriam na Universidade do Arizona. Mas a página de Laurel não lhe dizia muito mais.

Na verdade, Laurel nem sequer comentava o desaparecimento de Thayer – seu único comentário no dia em que ele desaparecera era uma publicação em que ela dizia: “Vou ver a Lady Gaga em novembro! Surtando de empolgação!”

Os limpadores de para-brisa guinchavam e gemiam. A chuva tinha diminuído, parando quase tão rapidamente quanto começara, e o calçamento brilhava. Um arco-íris apareceu no horizonte. Emma apontou na sua direção.

– Olhe. É sinal de sorte.

Madeline torceu o nariz.

– Sorte é para os idiotas.

Emma olhou o pé de coelho no chaveiro de Madeline, imaginando se ela acreditava mesmo naquilo.

– Sabe, adolescentes que fogem de casa costumam se sair bem – disse ela gentilmente. – Onde quer que Thayer esteja, deve ter encontrado outros garotos como ele. Devem estar cuidando uns dos outros.

Os olhos de Madeline faiscaram.

– Onde você ouviu isso?

Emma passou os dedos pela bainha do vestido listrado da Anthropologie que tinha escolhido no closet de Sutton aquela manhã. Ela conhecera várias crianças abandonadas que tinham fugido para escapar de situações ruins em lares temporários. Na verdade, ela própria fugira uma vez, escapando do violento sr. Smythe. Depois de uma noite particularmente volátil, ela tinha feito a mala e ido embora, esperando chegar a Los Angeles, São Francisco ou a algum lugar bem distante. Encontrara outros adolescentes em um parque de trailers no caminho. Eles tinham feito um pequeno acampamento com várias barracas, cobertores, potes e panelas. De alguma maneira encontravam comida e tinham até mesmo surrupiado algumas bicicletas, um skate e um PSP, cuja bateria recarregavam regularmente em uma Dunkin Donuts. Como Emma mal tinha onze anos, os mais velhos a protegiam, deixando-a dormir sempre em uma barraca e garantindo comida para ela. De certa maneira, eles tinham tomado conta dela melhor que a maioria dos pais temporários. A polícia aparecera no quarto dia, logo quando Emma estava começando a se sentir à vontade. Todos foram mandados para lares temporários ou reformatórios.

– Acho que eu vi na TV – explicou Emma por fim.

– É, bem, não importa. – Madeline jogou uma mecha do longo e brilhante cabelo por sobre o ombro. Seu rosto voltou à sua habitual expressão bonita e dura. – Nada que um bom estrago no cartão de crédito não possa resolver. Quero alguma coisa nova para ficar na casa da Charlotte amanhã. Talvez um daqueles vestidos-camisa curtos da BCBG. E você não queria uma J. Brand nova para a sua festa de aniversário?

Elas pararam o carro no enorme estacionamento do igualmente amplo shopping ao ar livre. Madeline encontrou uma vaga e desligou. As duas foram em direção às escadas rolantes para o nível superior. O ar estava fresco e limpo depois da chuva. Uma música de fundo saía suavemente das caixas de som do shopping. Quando chegaram ao térreo, Emma viu a vitrine de uma loja bem no final do corredor: BRECHÓ BELLISIMO. Uma borboleta agitou-se em seu peito.

– Podemos passar ali um instante? – Emma apontou para o local.

Madeline seguiu a direção de seu dedo e fez uma careta.

– Eca. Por quê?

– Porque dá para achar coisas maravilhosas em lojas de roupas usadas.

Madeline estreitou os olhos.

– Mas a gente nunca vai lá.

Emma enganchou o braço no de Madeline.

– Chloë Sevigny é uma grande adepta do vintage. E a Rachel Zoe também. – Ela puxou Madeline pelo corredor. – Vamos. Precisamos sair da nossa zona de conforto.

Na verdade, por nada no mundo Emma compraria aquelas calças jeans skinny de duzentos dólares. Isso estava completamente fora de sua zona de conforto – ela se sentiria muito mal gastando o dinheiro dos Mercer em algo tão frívolo. Além do mais, não podia deixar toda a sua personalidade desaparecer só porque tinha entrado na vida da irmã.

Os sininhos soaram quando Emma empurrou a porta. Ali dentro o cheiro era o mesmo de todas as lojas vintage: um pouco de naftalina, caixas de papelão e senhoras idosas. Um negro careca de pele muito lisa estava sentado atrás do balcão folheando uma Cosmopolitan; ele usava o que parecia ser uma jaqueta de pele de leopardo-das-neves. As araras estavam apinhadas de roupas, e havia um grande muro de sapatos altos e botas contra a parede dos fundos.

Emma deu uma olhada numa arara de vestidos. Madeline ficou imóvel perto da porta, com os braços colados às laterais do corpo, como se estivesse com medo de germes.

– Olhe. – Emma pegou um par de óculos escuros de armação dourada de uma prateleira na parede. – Gucci vintage.

Madeline deu delicados passos de bailarina até Emma.

– Deve ser falso.

– Não é, não. – Ela passou a mão sobre os Gs interligados e apontou para o MADE IN ITALY. – É um grande achado. E também um roubo. – Ela deu um peteleco na etiqueta de preço, presa à parte dos óculos que se apoia no nariz. Quarenta dólares. – Aposto que ficariam incríveis em você. E pense o seguinte: ninguém mais teria óculos iguais a esse. Você seria especial.

Ela abriu as hastes dos óculos e os colocou no rosto de Madeline, que soltou uma leve exclamação de protesto, mas depois os ajustou e se olhou no espelho. Emma sorriu. Ela tinha razão: acentuavam o queixo arredondado e as maçãs do rosto pronunciadas da garota. Madeline virava-se para a direita e para a esquerda, parecendo uma glamorosa herdeira em férias.

Sua expressão se amenizou.

– Até que são bem legais.

– Eu disse.

– Acha mesmo que são autênticos?

– Sim, são autênticos, meu bem – disse, exasperado, o proprietário da loja, deixando sua Cosmo cair no balcão. – Eu tenho cara de quem vende artigo falsificado? Agora, compre os óculos ou tire-os desse seu rostinho encardido.

Madeline baixou os óculos escuros no nariz e lançou ao homem um olhar frio e indiferente.

– Eu vou comprar, obrigada.

O proprietário da loja passou os óculos na máquina registradora silenciosamente, os lábios contraídos com afetação. Assim que as meninas saíram da loja, agarraram-se uma à outra e caíram na gargalhada.

– O que era aquela jaqueta que ele estava usando? – Madeline balançou a cabeça. – Um gato morto?

– Agora, compre os óculos ou tire-os desse seu rostinho encardido – imitou Emma.

– Surreal.

Quando Madeline jogou o braço em volta dos ombros de Emma, houve um alento em seu peito. Por um instante ela realmente esqueceu a situação em que estava.

As duas se dirigiram ao piso superior, de braços dados. No alto da escada rolante, Emma viu o topo de uma familiar cabeça de cabelos escuros no andar de baixo e congelou. Uma garota estava parada em frente à Fetch, a sofisticada petshop, olhando uma mesa de brinquedos de borracha e coleiras tacheadas. Ela ergueu a cabeça, como se pressentisse que alguém estava olhando para ela. Nisha.

Madeline também a fitava.

– Ouvi dizer que ela é a próxima – sussurrou no ouvido de Emma. – Vamos acabar com ela amanhã.

– Acabar com ela? – Emma franziu a testa.

– Charlotte teve uma ideia brilhante. Vamos buscar você às 7h30 amanhã. Esteja pronta.

Nisha deu uma última olhada para as duas, depois jogou o cabelo por cima do ombro e foi na direção oposta. Esteja pronta?, perguntou-se Emma. Para... quê? E lançou um olhar interrogativo a Madeline, mas seus olhos estavam escondidos atrás dos seus novos óculos escuros Gucci. Emma só conseguia ver o próprio reflexo, encarando-a e parecendo mais confuso do que nunca.

Ela não era a única. Algo na voz de Madeline me deixou apreensiva. Eu tinha o pressentimento de que, seja lá o que elas fossem fazer com Nisha, seria... encrenca. Mas tanto Emma quanto eu teríamos que esperar até o dia seguinte para descobrir o que era.


15

A CENA DO CRIME

Na manhã seguinte, o SUV de Charlotte estacionou bruscamente no meio-fio em frente à casa dos Mercer, quase derrubando uma lata de lixo. Laurel correu para o banco de trás. Madeline lhe deu um copo gigante do Starbucks.

– Obrigada mais uma vez por me deixar participar – disparou Laurel.

– Você tinha algumas boas ideias dessa vez – murmurou Charlotte enquanto digitava em seu BlackBerry. – Precisamos reconhecer.

Emma entrou atrás de Laurel. Madeline também entregou a ela um copo de café quente, embora Emma não se lembrasse de ter pedido. Ela tomou um gole e estremeceu: puro e com adoçante, eca. Gêmeos não devem ter o mesmo paladar.

– O que é isso tudo, afinal? – perguntou ela.

Charlotte balançou para Emma a colher de palitinho que viera com seu latte.

– Não se preocupe com nada. É nossa vez, Sutton. Essa é para você.

Charlotte saiu do condomínio de Sutton, passando pela área onde Emma e Ethan tinham jogado tênis.

– Está tudo cronometrado perfeitamente – disse ela em voz baixa. – Estou de olho na Nisha desde segunda.

– E você deixou tudo preparado ontem de noite?

Madeline estava usando seus novos óculos escuros Gucci. A luz do sol batia na armação dourada e lançava reflexos pelo interior do carro.

Charlotte assentiu com a cabeça.

– Vocês vão amar. – Ela virou-se e olhou para Laurel. – E você falou com... você sabe?

– Hã-rã. – Laurel riu.

– Perfeito.

Em questão de minutos elas entraram em uma vaga no estacionamento da escola. Ainda faltava meia hora para o primeiro tempo, então as pistas de ônibus estavam vazias, e o time de futebol masculino, que praticava antes e depois do horário de aulas, corria no campo. As garotas pegaram Emma pelos braços e a puxaram pelo pátio até uma porta lateral. Os corredores estavam desertos. Cartazes anunciando as eleições para o grêmio estudantil tremiam à brisa do ar-condicionado. Grandes marcas redondas do esfregão do zelador brilhavam no chão.

O vestiário também estava deserto, e o cheiro ali dentro era uma mistura de desinfetante e água sanitária. Cada time de cada esporte tinha a própria galeria. Nos vestiários, as garotas mantinham o mesmo armário ao longo dos anos – Emma tinha aberto o de Sutton no primeiro dia de treino de tênis e achado algumas coisas ainda lá dentro, incluindo uma jaqueta de náilon brilhante com os dizeres TÊNIS HOLLIER nas costas.

Quando se viraram para os armários do time de tênis, Madeline parou de repente.

– Uau. – Laurel cobriu a boca com a mão.

Emma olhou ao redor e quase gritou. Havia papéis espalhados pelo chão e sobre os bancos. Um líquido vermelho cobria algumas portas e armários. A silhueta de um corpo fora delineada com fita no chão, com um grande esguicho da coisa vermelha – sangue? – perto da cabeça. Uma fita amarela daquelas de polícia estava esticada ao redor da silhueta, dizendo CENA DO CRIME: NÃO ULTRAPASSE.

A visão de Emma começou a se nublar. Ela deu um grande passo para trás. Seria possível? Ela pensou novamente no bilhete. Sutton está morta. Talvez alguém tivesse encontrado o corpo dela... ali. Talvez o vídeo do estrangulamento tivesse sido filmado em um campo próximo. O assassino teria arrastado Sutton para o vestiário e a deixado ali para que alguém a encontrasse. E se tivessem achado Sutton, o que isso significaria para Emma?

Tentei imaginar meu corpo deitado no chão frio do vestiário, saindo sangue da minha cabeça, meus olhos se fechando lentamente. Teria sido assim? Alguém havia me jogado ali? Mas o cenário do vestiário não condizia com os flashes que eu tinha visto do momento da minha morte – os gritos, a escuridão, a faca no meu pescoço. Tinha alguma coisa naquilo tudo que não batia. Então eu percebi o discreto sorriso nervoso de Laurel sob sua mão.

– Psiu. – Charlotte puxou-as para a ala dos chuveiros. O chão estava brilhante e úmido, e alguém tinha deixado um grande frasco de xampu Aveda em uma prateleira embutida dentro de um dos boxes. Charlotte espiou pelo vão da porta e, com um gesto, mandou que as outras fizessem o mesmo. Algumas garotas de vários times passaram pelos armários de tênis, olhando várias vezes para a cena do crime. Uma corredora magra de cross-country tirou uma foto com seu telefone. Assim que viu, uma asiática virou-se e foi andando na direção oposta. Quando Nisha apareceu no fim do corredor, Charlotte apertou a mão de Emma. – Que comecem os jogos.

Uma sensação fria e pegajosa tomou conta de Emma quando ela compreendeu o que ia acontecer. Mas, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Charlotte colocou o dedo sobre seus lábios. Shhh.

O cabelo escuro de Nisha caía em cascatas por suas costas. Ela carregava uma bolsa verde de tênis no ombro. Quando virou-se no corredor e notou a cena do crime, parou bruscamente. Deu alguns passos incertos naquela direção, os olhos fixos no armário rodeado pela fita policial. Um olhar desamparado percorreu seu rosto.

– Senhorita? – Uma mulher em um uniforme da polícia apareceu de repente no vestiário, fazendo todas, inclusive Emma, Charlotte e Madeline, darem um pulo. Nisha estremeceu e pressionou a mão contra o peito, como quem diz: Quem, eu? – Pode me dizer de quem é esse armário?

A pele morena de Nisha ficou pálida. Ela olhou para o distintivo da policial, depois para sua arma.

– Hã, é o meu.

Laurel deixou escapar um curto ganido que era para ser uma risada. Charlotte disparou um olhar para ela.

A policial deu um tapinha na porta do armário com a antena do walkie-talkie.

– Você se incomodaria de abrir para mim? Preciso revistá-lo.

A sacola de Nisha escorregou de seu ombro para o chão. Ela não a pegou de volta.

– P-Por quê?

– Tenho um mandato bem aqui. – A policial desdobrou um pedaço de papel e o passou rapidamente diante do rosto de Nisha. – Preciso revistar o armário.

Charlotte cobriu a boca com a mão. O corpo todo de Madeline tremia, e ela soltava pequenos guinchos, segurando o riso. Ambas viraram-se para Emma. Charlotte ergueu as sobrancelhas em um olhar que parecia perguntar: Não é maravilhoso? Emma desviou os olhos.

Mais garotas se aglomeravam no vestiário, empurrando-se e observando a cena. A policial andava de lá para cá pela galeria. Nisha abriu e fechou a boca algumas vezes, sem falar. Lágrimas brotaram em seus olhos.

– Vão me prender? Eu não fiz nada!

– Deixe que eu mesma julgue – disse a policial. As algemas em seu cinto retiniam.

Madeline cutucou as costelas de Laurel.

– Onde você a encontrou?

– Coloquei um anúncio no Craigslist. – Ela sorriu. – Ela faz teatro na Universidade do Arizona.

A policial fez mais um gesto com a cabeça, dessa vez mais enérgica. As mãos de Nisha tremiam quando ela inseriu a combinação. A essa altura, Charlotte estava dobrada sobre si mesma, os ombros sacudindo. Madeline mordia a própria língua para não rir. Quando o armário se abriu, a policial enfiou a mão lá dentro e tirou uma faca de cozinha. Mais gosma vermelha cobria a ponta afiada.

Nisha se deixou cair no banco no meio do corredor.

– E-Eu não sei como isso foi parar aí!

Emma puxava nervosamente um pedacinho de pele seca da palma da mão. Claro, Nisha era uma vaca, mas ela era tão vaca assim?

Eu também assistia a tudo em dúvida. Talvez eu aprontasse muito quando viva, mas, vendo do outro lado, um assassinato encenado definitivamente fazia revirar o estômago metafórico de uma garota que tinha acabado de ser morta. Na verdade, parecia uma sombria coincidência...

– Preciso revistar a parte de cima do armário também – exigiu a policial. – E depois eu e você vamos dar um passeio até a delegacia.

– Mas isso é um engano! – Os olhos de Nisha se encheram de lágrimas.

Emma puxou a manga da blusa de Charlotte.

– Pessoal. Qual é, já chega.

Charlotte se ergueu e virou-se rapidamente.

– O quê?

– A Nisha está parecendo meio apavorada.

Madeline inclinou a cabeça para o lado.

– Por isso é que é engraçado.

– Não queremos que ela tenha um ataque cardíaco – argumentou Emma.

– Como se você não tivesse feito coisa pior, Sutton. – Uma gota de água do chuveiro caiu na cabeça de Charlotte, mas ela a ignorou. – Não vem dar uma de sensível agora. Além do mais, a gente tinha que pegar bem pesado com ela. A Nisha sabe do que a gente é capaz. Não dava para só encher a piscina dela de sapos ou colocar cera de depilação no xampu da garota, nada dessas coisas idiotas.

– Eu achei a ideia genial – sussurrou Laurel atrás delas.

– Obrigada. – Charlotte sorriu. – Eu sabia que a gente precisava de alguma coisa especial para dar início a um novo ano do Jogo da Mentira!

Emma mordeu a parte interna da bochecha para disfarçar sua surpresa. Jogo da Mentira?

As palavras também giraram em minha cabeça. Sensações assomavam à superfície. Gritos e risadas, mãos sendo levadas à boca, a dolorosa contração no estômago que vem com a empolgação. Eu tentava me lembrar de mais coisas, mas era apenas uma cascata de sentimentos que fluía sobre mim.

No corredor, a policial pressionava a tranca para abrir o compartimento superior do armário de Nisha. Charlotte agarrou a mão de Emma.

– Prepare-se.

Quando a porta se abriu, alguma coisa disparou lá de dentro. Nisha gritou e cobriu os olhos. Emma abraçou a si mesma... e então viu um brilhante balão de gás sair flutuando preguiçosamente para o corredor e bater de leve no teto. Tinha o formato de uma banana, com grandes olhos e um sorriso insano. “Te peguei, sua banana!” uma voz robótica ressoava do balão enquanto ele quicava no teto. “Sua banana! Sua banana!” Um bilhete estava pendurado na ponta do barbante: TE PEGUEI!

Emma não pôde evitar cair na gargalhada. Aquilo era engraçado.

Nisha secou os olhos, uma pequena ruga se formando entre suas sobrancelhas. Ela olhou para trás, à procura da policial, mas a estudante de teatro tinha se mandado, com a faca ensanguentada e tudo. Nisha arrancou o bilhete de TE PEGUEI! do barbante, amassou-o e jogou no chão. “Sua banana!”, o balão berrava sem parar em uma voz robótica.

Charlotte saiu da ala dos chuveiros, onde estavam todas se escondendo, e suas botas de salto alto estalavam nos ladrilhos. Nisha virou-se e lançou um olhar furioso para ela, o rosto com um tom arroxeado.

– É melhor não delatar a gente – disse Charlotte, em um tom assustadoramente impassível. Ela sacudiu o dedo de um lado para o outro. – Ou vai ser ainda pior.

Madeline e Laurel formavam uma escolta atrás de Charlotte, olhando para Nisha daquele mesmo jeito de quem diz não-mexa-conosco. Emma passou por Nisha o mais rápido que pôde. Do lado de fora, no corredor, as garotas encostaram-se à parede e riram por um bom tempo, até cansar. Madeline segurava a mão de Charlotte. Lágrimas corriam pelas bochechas de Laurel.

– A cara dela! – disse Charlotte, sem fôlego.

– Impagável! – gritou Madeline.

Laurel cutucou Emma.

– Ah, vai. Pode admitir agora. Você adorou, não foi?

Estavam todas encarando Emma como se ela fosse a peça fundamental, aquela que as reprovaria ou aprovaria em definitivo. Emma olhava sem expressão pelas janelas do teto ao chão que cobriam a parede do corredor. Um micro-ônibus escolar partiu, afastando-se do meio-fio. Um grupo de garotas em uniformes de hóquei passaram sobre a grama, todas dando risadinhas. Então Emma virou-se e observou cada uma das amigas de Sutton. Fosse o que fosse aquilo, Sutton claramente era a líder.

Charlotte agitou a mão na frente do rosto de Emma.

– E então? Nota 0 ou 10?

Emma ajeitou a bolsa no ombro e forjou um sorriso insincero.

– Dez – conseguiu dizer, tentando incorporar a irmã. – Foi incrível.

As garotas sorriram aliviadas.

– Eu sabia.

Charlotte e Emma estalaram a palma da mão uma na outra. O sinal tocou, ao que elas deram-se os braços e seguiram pelo corredor. Emma ia sendo arrastada junto com elas, mas todo o seu corpo, até mesmo cada célula, tremia.

Jogo da Mentira. Se era algo que Sutton e suas amigas faziam com frequência, se era algo que tinham feito com muita gente da escola, talvez tivessem ido longe demais com alguém. Ela pensou no que Charlotte dissera. Como se você não tivesse feito coisa pior, Sutton. E se fosse exatamente isso? E se Sutton tivesse feito algo pior – muito pior – e alguém a tivesse matado por causa disso?

Eu me concentrei ao máximo, mas ainda não conseguia ver o que de tão terrível podia ter sido. Mesmo assim, porém, eu tinha um inquietante pressentimento de que Emma podia estar indo na direção certa.


16

ÚLTIMO ÔNIBUS PARA VEGAS

Emma abriu caminho pelos corredores congestionados até seu armário. Seu nariz ainda ardia com o cheiro do sangue falso. Por cima do ombro, ela notou que duas garotas olhavam para ela com um misto de medo e reverência. Ouviu claramente as palavras “Nisha” e “cena do crime” sussurradas. Um garoto com uniforme de futebol parado à porta da sala do conselho estudantil entoou:

– Sua banana! Sua banana!

Será que os detalhes do trote já tinham vazado? Como todos eles conseguiam rir daquilo?

– Oi, Sutton! – exclamou uma garota para Emma quando ela passou, mas seu sorriso parecia retorcido e sinistro.

– E aí, Sutton? – Era um garoto alto com calça baggy e tênis de skatista, chamando-a de dentro de uma das salas de ciências, mas seria imaginação de Emma ou a voz dele tinha um quê de dureza e raiva? Sutton podia já ter aprontado com aquelas pessoas antes – todas elas. Qualquer um podia ser seu assassino.

Dobrando para um outro corredor, ela quase colidiu com uma figura alta que carregava um grande copo de café.

– Opa – disse ele, protegendo a tampa com a mão. Emma se afastou. Ethan estava diante dela, com um casaco cinza de capuz, uma comprida bermuda verde-militar e tênis All Star desbotados. Sua expressão de mau humor inatingível se suavizou quando ele viu quem era. – Ah, oi.

– Oi – respondeu Emma, grata por ver um rosto amigável. Ela olhou adiante para o corredor. – T-Tudo bem? – Tentou parecer alegre, mas sua voz tremia.

– Tranquilo. – Ele foi caminhando junto com ela. – E você? Está de novo com aquela cara de quem anda fugindo do bicho-papão.

Emma passou a mão pela nuca. Estava repentinamente suada. E seu coração batia muito rápido.

– Só estou um pouco tensa – admitiu.

– Por quê?

Eles viraram-se novamente e atravessaram o saguão, desviando de um grupo de garotos que dançavam break perto do mostruário com os trabalhos de cerâmica.

– Digamos que estou tentada a abandonar a escola pelo resto do ano e me esconder em alguma caverna em algum lugar.

– É por causa do trote com a Nisha? – perguntou Ethan. – Tinha duas garotas na fila para comprar café falando sobre isso – continuou ele. Ele ergueu um dos ombros, num gesto meio encabulado. – Parecia... doideira.

Emma se deixou cair no banco do saguão.

– É. Minhas amigas foram meio que... longe demais.

Ethan sentou-se perto dela, pegando um panfleto que anunciava BAILE DE OUTONO! COMPRE SEUS INGRESSOS JÁ! e torcendo-o nas mãos. Um dos cantos de sua boca se ergueu num sorriso sarcástico.

– Não é meio assim que funciona? Vocês não vão sempre longe demais?

O estômago de Emma deu um nó. As palavras de Charlotte giravam em sua cabeça como roupas em uma máquina de lavar. Como se você não tivesse feito coisa pior. Será que era mesmo assim que funcionava?

Ela engoliu em seco, fixando os olhos sem expressão do outro lado, em um grande mostruário perto do auditório. Um cartaz de letras douradas dizia IN MEMORIAM. Retratos em preto e branco, tirados de anuários, de estudantes já falecidos ocupavam a página de cima a baixo, juntamente com seus nomes e a data da morte. Sutton deveria estar naquele quadro, pensou Emma. Ela se perguntou se a pessoa que a tinha assassinado passava frequentemente por aquele saguão.

Dois garotos brincavam de perseguir um ao outro pelo corredor, seus passos ressoando no piso duro. Emma pestanejou. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o sinal tocou. Ethan dirigiu-lhe um sorriso de despedida.

– Se está cansada de trotes, você tem que dizer às suas amigas que quer parar com isso. É só se afastar, sabe? Todo mundo ia agradecer. – Ele jogou o copo de café na lixeira. – A gente se vê.

Emma observou-o desaparecer no final do corredor. As palmas de suas mãos estavam suadas. Ela sabia que precisava se levantar, mas suas pernas não funcionavam. Os rostos dos mortos no cartaz IN MEMORIAM a observavam com sorrisos sinistros e astuciosos. Então, o que ela precisava fazer transpassou seu corpo como um dardo.

– Tenho que sair daqui – sussurrou ela.

Emma nunca tivera tanta certeza de alguma coisa na vida. No que quer que Sutton estivesse envolvida, seja lá o que fosse o Jogo da Mentira, era algo assustador, perigoso e intenso demais. Só ficar sentada ali, no saguão da escola, já a fazia se sentir um alvo em um estande de tiro.

E talvez, pensei com um estremecimento, alguém já estivesse fazendo a mira.

O Jetta de Laurel cantou pneu quando Emma entrou com ele no estacionamento da rodoviária de Tucson. Ela pisou no freio justo antes de bater em uma mureta de concreto. Desligando o carro, ela olhou em volta, receosa.

Estava quente como um forno, e o asfalto cintilava. Dois velhos parados em frente à estação a olharam de soslaio. Do outro lado da rua, três universitários desgrenhados que entravam tranquilamente no hotel Congress viraram-se e também olharam diretamente para ela. Até mesmo as depravadas da vitrine de SM pareciam estar observando-a. Emma colocou os grandes óculos escuros D&G de Sutton, mas ainda se sentia exposta.

A tarde já ia adiantada, e Emma deveria estar no treino de tênis. Ela tinha passado o dia todo quebrando a cabeça, pensando em como sair da cidade – e para onde ir. Não queria usar o dinheiro de Sutton ou seus cartões de crédito para custear a fuga – o assassino a encontraria muito facilmente.

E então ela se lembrou: o guarda-volumes em Las Vegas. Ela tinha guardado seu pé de meia de dois mil dólares lá, com medo de levar tanto dinheiro para Tucson. O guarda-volumes pedia uma combinação numérica, que Emma definira como a data do aniversário de Becky, 10 de março. Se simplesmente conseguisse pegar esse dinheiro, daria para se virar por algum tempo. Poderia pegar um ônibus barato para a Costa Oeste, onde ninguém a encontraria. Talvez se ela fosse embora as pessoas percebessem que Sutton tinha sumido e começassem a procurá-la.

E talvez eu finalmente descobrisse por que – e como – eu tinha morrido. Ou não? Se Emma fosse embora, será que eu iria com ela – para viver sua nova vida anônima em Nova York ou na Nova Inglaterra? O tempo todo na sua cola enquanto ela seguisse adiante? Ou será que eu desapareceria para sempre assim que ela deixasse minha vida? O que aconteceria comigo então?

Emma tinha roubado rapidamente as chaves de Laurel de seu armário de tênis, no vestiário. Por favor, me perdoe, Laurel, ela pedira em silêncio ao puxar com cuidado as chaves da sacola, deslizando-as para dentro do bolso. Menos de um minuto depois estava saindo do estacionamento, digitando violentamente Rodoviária no GPS de Laurel.

Emma entrou na estação e se posicionou na fila atrás de um homem magro e quase careca com óculos de moldura quadrada e de uma mulher com cabelo bagunçado que carregava uma mala gigante de rodinhas. A vendedora no guichê levantou os olhos desconfiados e encarou-a diretamente, depois voltou a registrar uma venda. Uma placa acima da cabeça da mulher informava o horário dos ônibus para Las Vegas. O mais cedo saía em quinze minutos. Perfeito.

O homem magro quase careca inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos no balcão, e começou uma conversa fiada sobre o tempo. A luz no alto emitia um som aflitivo e agudo. Toda vez que havia uma rajada de vento, a porta se abria e se fechava, assustando Emma. Os pelos de seus braços estavam arrepiados. Se pelo menos aquela fila andasse um pouco mais rápido...

Uma música do Paramore de repente explodiu na bolsa de Emma. Ela pegou o iPhone de Sutton: LAUREL, dizia a telinha. Emma apertou imediatamente SILENCIAR.

A mensagem de CHAMADA PERDIDA piscou na tela, mas Laurel ligou de novo logo depois. O Paramore foi silenciado novamente. Por que Laurel não estava jogando tênis? Emma achou que tinha pelo menos uma hora antes que ela desse pela falta do carro. Depois que outra mensagem de CHAMADA PERDIDA piscou, uma SMS apareceu. Emma abriu. EMERGÊNCIA, escreveu Laurel. VOCÊ PEGOU MEU CARRO? TÁ TUDO BEM? SE VOCÊ NÃO ME LIGAR EM 5 MINUTOS VOU MANDAR UM GRUPO DE BUSCA.

A mulher de cabelo bagunçado na frente de Emma olhou-a com curiosidade. A vendedora de passagens olhava de soslaio enquanto lambia um dedo para contar notas de dólar. Emma tentou engolir o bolo que tinha se formado em sua garganta. De repente, seu plano de fuga parecia bobo. Laurel devia estar surtando no treino de tênis por causa do carro.

E mesmo que Emma chegasse a pegar o ônibus para Las Vegas, logo a polícia encontraria o carro de Laurel no estacionamento. Se ela não estivesse lá dentro, todos presumiriam que a garota que pensavam ser Sutton tinha simplesmente fugido. E então Olhos Desconfiados, a vendedora, identificaria Emma como a garota que comprara a passagem para Vegas... e os policiais procurariam por Emma lá, não pelo corpo de Sutton ali.

Laurel ligou de novo bem quando Emma saía da fila. Ela apertou o botão verde de atender e disse alô.

– Finalmente, sua louca. – Laurel parecia irritada. Sua voz estava oca, como se o viva voz houvesse sido ligado. – Você roubou o meu carro?

– Pegue logo o seu carro no depósito! – gritou a voz de Charlotte ao fundo. – A gente faz uma vaquinha!

– Me desculpe – disse Emma. – Eu só... precisava fazer uma coisa. Uma coisa importante.

Ela foi até a janela e olhou para as garotas em frente à vitrine da loja, do outro lado da rua. O que poderia haver de tão importante ali? Brinquedos eróticos? Um show emo no hotel Congress?

– Estou levando a Laurel para casa, então fique tranquila – disse Charlotte. – Mas termine de resolver esse seu probleminha antes da hora de ir para a minha casa, viu? O evento seria incompleto sem o comitê executivo.

– Não esqueça a Lili e a Gabby – gritou Laurel.

– É, mas elas não contam – contradisse Charlotte.

O alto-falante da estação crepitou, e Emma levou um susto. “Partindo agora da Plataforma 3, Greyhound 459 para Las Vegas”, ribombou a voz entediada e nasalada do vendedor de bilhetes. “Las Vegas, embarcando agora.”

Emma tentou tapar o bocal do iPhone, mas era tarde demais. Houve uma pausa do outro lado.

– Eles acabaram de dizer Greyhound? – Laurel parecia confusa.

– Você está indo para Vegas? – perguntou Charlotte.

Emma empurrou a porta rangente para sair da estação o mais rápido que pôde e dirigiu-se ao carro de Laurel, com medo de que o anúncio indiscreto pudesse soar novamente.

– E-Eu só estava passando pela rodoviária. A janela está aberta. Mas já vou para casa, ok?

O estofamento já quente do carro de Laurel queimou os ombros e a parte de trás das pernas de Emma quando ela entrou, desligando o telefone. Seus dedos tremiam ao colocar a chave na ignição. O motor rosnou, e ela levantou os olhos. Um ônibus passou ruidosamente sob o toldo, uma grande placa no para-brisa indicando o destino: LAS VEGAS. As pessoas jogavam sua bagagem no compartimento da parte inferior do veículo e embarcavam.

Então, um clique leve a fez enrijecer e virar-se. A parte de trás de suas orelhas queimava. Parecia que alguém estava com os olhos fixos nela. Ela olhou em volta. Os velhos tinham sumido do banco. Na rua, o tráfego parara. Um Prius verde-neon que dizia DISCOUNT CAB buzinou. Um sedã vermelho com um grande amassado no para-lama parou atrás, e uma picape preta acelerava com impaciência atrás do sedã. Na frente de todos os carros, uma Mercedes prateada se arrastava lentamente diante da rodoviária. Emma prestou atenção ao brilhante emblema. Através das janelas escurecidas, ela conseguia perceber apenas que o motorista estava olhando para alguma coisa no estacionamento da rodoviária. Para ela.

Emma estreitou os olhos com força para ver quem era, mas não conseguiu distinguir o rosto.

O táxi verde buzinou outra vez, e o motorista da Mercedes voltou a olhar para a frente e passou pelo sinal. Emma observou o carro até que desaparecesse por cima da colina. Só depois que já tinha sumido de vista ela conseguiu soltar a respiração. Mas sua paranoia nervosa tinha uma boa razão.

Afinal, quem quer que tivesse me matado estava observando cada movimento seu.


17

EU NUNCA

Mais tarde naquela noite, Laurel dirigia com uma das mãos enquanto torcia seu longo cabelo louro em um coque bagunçado na nuca. Ela subia uma rua íngreme e ondulante em direção à casa de Charlotte, uma propriedade meio escondida, enfiada em uma estrada na subida da montanha, aninhada na rocha desértica.

Emma absorvia tudo isso enquanto Laurel pressionava o botão do interfone nos portões da casa de Charlotte e esperava. Uma voz zumbiu no aparelho poucos segundos depois.

– Laurel e Sutton! – falou Laurel no microfone. Uma tranca fez um clique, e o portão se abriu lentamente.

Um caminho pavimentado com ardósia se estendia diante delas. Um gramado exuberantemente verde as acompanhava dos dois lados, arrematado com cactos saguaro, ipês-de-jardim floridos e chaparrais. No meio da entrada circular destinada aos carros havia uma fonte de pedra cheia de querubins de pedra nus. Depois disso erguia-se a casa em si, uma sólida mansão de adobe com janelas que iam do teto ao chão e claraboias. Um sino de latão pendia de uma torre sobre a enorme porta da frente. Vários cavalos pastavam atrás de uma cerca de toras à esquerda, e um brilhante Porsche prateado em frente a uma garagem com capacidade para cinco carros.

Laurel olhou de relance para Emma enquanto colocava a marcha em ponto morto no final da longa entrada para carros.

– Obrigada por, tipo, não ficar estranha por causa da minha presença hoje.

Emma afastou o cabelo do rosto.

– Tranquilo.

Laurel se apoiou no volante. Cílios escuros emolduravam seus olhos.

– Você tem andado meio... diferente esta semana. Começou uma dieta nova ou algo do tipo?

– Não estou diferente – apressou-se em dizer Emma.

– Não me entenda mal, não é algo ruim. – Laurel tirou a chave da ignição. – Tirando aquela sua maluquice de roubar meu carro. E também o primeiro dia de aula, quando você saiu correndo pelo estacionamento. – Ela deu um sorriso torto para Emma. – E, tudo bem, mais uma ou duas coisas.

– Gosto de deixar todo mundo intrigado – resmungou Emma, baixando a cabeça.

Ainda que não quisesse que Laurel a interrogasse por seu comportamento estranho, até que era legal Laurel ter percebido que a irmã não estava agindo exatamente como costumava agir.

As duas percorreram um caminho iluminado que levava à porta principal e tocaram a campainha. Dois toques graves de gongo soaram, e uma mulher com um sorriso alegre as recebeu. Ela usava uma calça jeans cinza superjusta que não deixava nada para a imaginação, uma blusa comprida listrada que Emma vira na vitrine da Urban Outfitters e sapatos de salto alto prateados com aberturas nos dedões. Havia um par de óculos Ray-Ban Wayfarer empoleirado na sua cabeça e diamantes do tamanho de grãos-de-bico cintilando em suas orelhas. Sua pele era dourada, sem rugas, seus cabelos, volumosos e louros, e os olhos, brilhantes e da cor do mar do Caribe. Emma olhou para Laurel, perguntando-se quem era aquela pessoa. Uma irmã mais velha que passa o resto da semana estudando numa outra cidade?

– Oi, Sutton – disse a garota. – Olá, Laurel. – Ela balançou a cabeça com aprovação para a sacola listrada da Madewell que Laurel carregava. – Amei a bolsa.

– Obrigada, sra. Chamberlain – respondeu Laurel, com uma voz esganiçada.

Emma quase engoliu o chiclete que mastigava. sra. Chamberlain?

Eu também estava bastante chocada. Não me lembrava de absolutamente nada relacionado a ela.

– Meninas! – chamou Charlotte do topo das escadas.

Laurel e Emma sorriram em despedida para a sra. Chamberlain – o rosto dela tinha uma expressão de expectativa, quase como se quisesse ser convidada para ficar com elas – e subiram a sinuosa escadaria dupla, decorada com pinturas abstratas ao estilo de Jackson Pollock.

Charlotte passou por duas portas duplas até chegar a um quarto duas vezes maior que o de Sutton – e um trilhão de vezes maior que qualquer cômodo em que Emma já vivera. Madeline e as Gêmeas do Twitter já estavam sentadas em um tapete listrado no meio do quarto, roendo pretzels servidos numa tigela e tomando Coca Zero.

– Estávamos justamente contando o trote de Nisha a Lili e a Gabby. – Madeline ajeitou sua blusa de gola canoa de forma que não mostrasse metade de seu sutiã.

– Embora a gente já tenha ouvido comentários, é claro – exclamou Lili, tirando um fio de uma de suas luvas sem dedos estilo Avril Lavigne.

– Talvez um dia desses vocês deixem nós duas ajudarmos em um dos seus trotes – acrescentou Gabby, arrumando a faixa com listras de gorgorão que segurava seu comprido cabelo louro para trás. – Temos várias ideias matadoras.

Charlotte se sentou e pegou um punhado de pretzels.

– Lamento, mas o Jogo da Mentira é limitado a apenas quatro membros. Não é, Sutton? – E novamente olhou para Emma, como se fosse dela a palavra final.

Um calafrio subiu pela espinha de Emma. Jogo da Mentira. O simples nome fazia seus vasos sanguíneos virarem gelo.

– Isso mesmo – confirmou ela após uma pausa.

Gabby fez uma careta.

– Então quer dizer que a gente pode fazer parte do clube quando somos as vítimas, mas não o contrário? – Ela cutucou Lili, que fez um gesto de quem concordava. Os olhos de ambas faiscavam.

Houve uma longa pausa. Madeline trocou um olhar com Charlotte.

– Aquilo foi diferente.

– É, muito diferente.

Charlotte virou-se e olhou incisivamente para Emma, que mexeu na tira da sua sandália, desejando entender o que elas estavam falando.

Charlotte pigarreou, quebrando a constrangedora tensão.

– Bom. Existe um jogo que todas podemos jogar juntas... – Ela abriu a porta dupla de um grande guarda-roupa de madeira do outro lado do quarto. – Já que estamos todas aqui, podemos começar. – Ela tirou uma garrafa de Absolut Citron de trás das costas. – Um novo ano letivo não começa de verdade sem uma rodada de Eu Nunca.

Ela despejou o líquido transparente em copos arredondados e os passou para as outras.

– Só para relembrar, você diz alguma coisa que nunca fez. Por exemplo, eu nunca beijei de língua o sr. Howe.

– Eca! – guinchou Lili.

– E então, alguém que já beijou o sr. Howe tem que beber – concluiu Charlotte.

– Só que as coisas têm que ser reais – disse Madeline, revirando os olhos. – Não coisas que nenhuma de nós faria.

– Sutton poderia beijar o sr. Howe. – Charlotte lançou a Emma um olhar tímido. – Nunca se sabe.

Todas riram nervosamente.

– Eu começo – voluntariou-se Madeline. E olhou para todas as outras. – Eu nunca... faltei quatro dias seguidos de aula.

Ela sentou-se sobre as pernas, sem beber. Gabriella e Lilianna também mantiveram os copos no colo. Emma tampouco se moveu. Madeline deu um peteleco no joelho de Emma com o dedão e o indicador.

– Oi? E aquela vez que você fugiu para San Diego para o final de semana prolongado?

– O final de semana mais que prolongado. – Charlotte riu. – Achei que você tivesse morrido! – Então ela indicou o copo de Emma com o queixo. – Pode virar isso, amorzinho!

Emma não sabia o que fazer a não ser tomar um gole. Ela quase engasgou. O gosto era como meter a boca numa bomba de combustível e chupar um limão meio podre ao mesmo tempo.

Era a vez de Charlotte. Ela tamborilou as unhas na borda do copo, pensando.

– Vejamos. Eu nunca... roubei o namorado de alguém.

Todas ficaram muito quietas outra vez. Madeline olhou de esguelha para Laurel. Charlotte virou-se e encarou Emma, fazendo um leve cof-cof. Repentinamente, Emma percebeu o que Charlotte pretendia com aquilo. Hesitante, ela levou o copo até a boca novamente.

– Muito bem – disse Charlotte, baixinho.

Emma mordeu com força o interior da bochecha. Quem diria que uma brincadeira como aquela a conduziria a uma mina de ouro de informações sobre sua irmã?

Eu assistia a tudo hipnotizada. Já tinha descoberto duas coisas sobre meu passado. Queria que elas passassem a noite toda jogando.

– Eu nunca mergulhei nua nas fontes termais – disse Laurel em seguida.

Todas beberam, menos Charlotte e a própria Laurel. Imaginando que Sutton devia ser corajosa o bastante para fazer algo do tipo, Emma engoliu mais um gole.

– Eu nunca colei numa prova – anunciou Charlotte.

Madeline e Lili a olharam e tomaram um trago.

– O que faríamos sem você, Char? – disse a primeira.

Emma supôs que devia beber também.

– Eu nunca escrevi um falso bilhete de amor para o diretor Larson – disse Gabriella em seguida.

Charlotte e Madeline olharam para Emma e riram. Então, novamente, lá foi ela mandar mais álcool goela abaixo. Emma já não engasgava mais; estava começando a se acostumar com o sabor. Seus membros relaxaram, seu maxilar já não estava mais tenso.

Laurel se ofereceu em seguida.

– Eu nunca fiquei com um cara que já estivesse na faculdade. – Ela se recostou e inspecionou o grupo.

Madeline apontou para Emma e abriu um sorriso malicioso.

– Lembra daquele cara na Plush? Que você achou que fosse da nossa idade, mas que na verdade tinha 22?

– Uau! – exclamaram em uníssono as Gêmeas do Twitter, impressionadas.

Charlotte ergueu uma das sobrancelhas.

– Quando foi isso?

Madeline franziu as sobrancelhas.

– Julho?

A ponta do nariz de Charlotte ficou vermelha.

– O que o Garrett achou disso?

Madeline tapou a boca com a mão. Gabriella tossiu. Emma rolou o copo entre as mãos. Ótimo, então além de ladra de namorados Sutton é também uma traidora de namorados.

Tentei encontrar uma lembrança para explicar aquilo, mas minha mente apenas zumbia de estática. Eu tinha traído Garrett? Por que eu faria isso?

– Talvez eu tenha confundido as datas – disparou Madeline. – Isso foi antes de a Sutton começar a namorar o Garrett.

– É, foi – concordou Emma, torcendo para que fosse verdade, mas de alguma forma duvidando. Charlotte mexia em alguma coisa em seu iPhone e não respondeu.

Então chegou a vez de Emma. Ela olhou em volta para as amigas de Sutton. Todas elas adernavam um pouco para o lado. Havia um sorriso bobo no rosto de Madeline. O quarto tinha começado a cheirar fortemente a álcool.

– Certo – disse ela, respirando fundo e tentando pensar em como expressar a pergunta que mais queria fazer.

– Eu nunca... armei um trote no Jogo da Mentira.

As Gêmeas do Twitter trocaram um olhar amargo, mas Charlotte, Laurel e Madeline reviraram os olhos.

– Dã – reclamou Charlotte, inclinando o copo na boca. – Tipo... a Nisha? Hoje?

– Não, além da Nisha – corrigiu Emma. – Um trote bem... terrível. Alguma coisa que faria você se sentir péssima depois que tivesse acabado. – Alguma coisa que motivaria alguém a se vingar, ela desejou poder acrescentar. Alguma coisa que levaria alguém a arrastar Sutton para um campo e sufocá-la.

As meninas integrantes do Jogo da Mentira fizeram uma pausa, parecendo ter sido pegas de surpresa. Gabriella e Lilianna obviamente se abstiveram, mas Laurel pegou seu copo, olhou nervosamente para Emma e tomou um gole cheio de culpa. Então, na mesma hora Charlotte e Madeline fizeram o mesmo. Charlotte apontou com o queixo para o copo de Emma.

– Acho que você também devia estar bebendo, fofa.

Emma engoliu o restante da vodca, o líquido queimando as paredes de seu estômago. Se engolisse um fósforo naquela hora, ela provavelmente explodiria.

– Sinceramente, achei que seria você a autora do primeiro trote do ano. – Charlotte despejou mais Absolut em todos os copos. – O que houve com aquela ideia incrível que fez você passar as férias inteiras se gabando? O te-peguei-mor?

– É! – Madeline ergueu seu copo. Um pouco do líquido caiu para os lados. – Você disse que seria sensacional. Eu fiquei tensa durante várias semanas.

Um gosto amargo preencheu a boca de Emma. Então o Jogo da Mentira não se resumia a enganar pessoas na escola... os trotes também podiam ter como vítima alguém de dentro do grupo. De repente o vídeo do estrangulamento cintilou em sua mente. Ela se lembrou de como Sutton tinha ficado inerte depois que o colar cortara sua respiração. Como tinha permanecido imóvel até alguém tirar a venda de sua cabeça e ver como ela estava. E se ela não estivesse tão mal quanto parecia? Até onde Sutton iria por uma boa brincadeira?

De repente, como uma fileira de dominós, as sinapses do cérebro de Emma começaram a fazer conexões uma após a outra. Ela pensou no bilhete que Laurel tinha encontrado no para-brisa. Lembrou-se do telefone e da carteira de Sutton em cima de sua mesa; havia praticamente um X marcando o lugar onde estavam, para que Emma os encontrasse. E depois havia o fato de a própria identidade de Emma ter sumido, impedindo-a de provar quem realmente era.

Seu coração começou a acelerar. Meu Deus, pensou. E se o te-peguei-mor estivesse acontecendo naquele exato momento? E se Emma fosse a vítima da vez?

O álcool queimava em seu estômago. Ela se levantou rapidamente, correu até a porta mais próxima e a abriu de uma só vez. Do lado de dentro havia uma parede de sapatos e bolsas. Ela bateu a porta e foi tateando na direção oposta. Charlotte se levantou e girou os ombros de Emma para a esquerda.

– O banheiro é por ali, querida. – E lhe deu um leve empurrão em direção a uma porta branca do outro lado do quarto. – Não vomite na banheira como da última vez!

– Eu super vou tuitar isso. – Gabriella ria.

– Não, eu é que vou – queixou-se Lilianna.

Emma cambaleou para o banheiro e bateu a porta. Inclinou-se sobre a enorme pia de mármore, todo o peso do que estava acontecendo a dominando e oprimindo. Sutton não estava morta coisa nenhuma. Ela tinha orquestrado tudo aquilo. De alguma forma, descobrira sobre Emma e postara aquele vídeo na internet para que sua gêmea há muito perdida a encontrasse. Convocara Emma até o Sabino Canyon sabendo muito bem que Madeline a veria a caminho da casa de Nisha. Sutton tinha enganado a todas, fazendo-as pensar que Emma era ela... e também enganara Emma.

As suspeitas de Emma se chocaram contra as minhas. Será que eu sabia sobre a existência dela antes de morrer? Será que, de alguma forma, eu a tinha atraído até ali e depois me tornara vítima do meu próprio trote? A garota sobre a qual eu soubera tantas coisas naquela noite, a Sutton que todas ali conheciam tão bem, parecia definitivamente capaz de fazer isso. Mas conforme eu examinava minhas desbotadas lembranças e observava Emma, incapaz de lhe dar qualquer ajuda, não parecia ser verdade. Eu não queria que fosse verdade.

Emma pegou um rolo de papel higiênico na estante e jogou do outro lado do banheiro. Ele quicou nos azulejos da parede e caiu dentro da banheira. Então ela desabou no tapete felpudo que havia no chão. O cômodo era enorme, com uma minissauna e uma penteadeira cheia de cosméticos em quantidade suficiente para equipar a Sephora. Fotografias de Charlotte e dos amigos estavam pregadas por todas as paredes, algumas emolduradas, outras fixadas com tachinhas, outras presas nos cantos dos espelhos. Madeline fazia a quinta posição do balé sobre o vaso sanitário. Um Garrett sem camisa sorria para ela perto do boxe.

A maioria das fotos era de Sutton. Ela encarava, sorria, fazia charme e mandava beijos de todos os ângulos. Fazia reverência e gargalhava, girava com os braços abertos e fazia poses da Vogue com lindos vestidos, o relicário prateado agora desaparecido figurando em seu pescoço. De repente, Emma desprezou a imagem da irmã. Ela olhou furiosa para a foto mais próxima dela, uma espontânea de Sutton, Charlotte e Madeline em frente ao In-N-Out Burger enfiando Double-Doubles para dentro das bocas abertas. Antes que conseguisse se conter, ela pegou um lápis de olho da pia e desenhou um nariz de porco sobre o rosto de Sutton. Após um instante, acrescentou chifres demoníacos e um rabo. Pronto. Aquilo a fez se sentir um pouquinho melhor.

Ela ouviu as garotas rindo no quarto. Emma levantou-se, encarou sua expressão de animal selvagem no espelho e jogou água fria no rosto. Havia apenas uma coisa que ela podia fazer: arruinar o trote idiota de Sutton antes que ela pudesse pular de onde quer que estivesse escondida e gritar: “Peguei vocês!” Nunca que ela deixaria Sutton ganhar.

– Emma...

Como eu queria que ela pudesse ver meu corpo tremeluzente e entender que aquilo não era uma brincadeira. Que eu estava morta, morta de verdade. Uma coisa era desgostar da minha vida e torcer o nariz para o meu namorado, mas eu não queria que ela pensasse em mim como o tipo de pessoa que usaria uma irmã há muito perdida daquela forma. Eu não queria ser esse tipo de pessoa.

E então, todas de uma vez, as luzes fluorescentes do teto se apagaram.

– Olá? – chamou Emma.

Ela tateou em busca da maçaneta da porta, mas não conseguiu achar onde ficava. Seu pé atingiu a lata de lixo de metal com um blém. Alguma coisa bateu contra o outro lado da porta. Charlotte gritou.

– Sutton? Foi você? – chamou Laurel.

Um alarme soou do andar de baixo. Ouviram-se passos... e então uma sirene. Emma tremia.

De repente, a escuridão despertou alguma coisa em minha mente. Pontinhos apareceram diante de meus olhos. Escutei um rugido em meus ouvidos. E então eu estava de volta àquele leito de rio atrás do resort, chamando o nome de Laurel, alguém cobrindo meus olhos com a mão e segurando uma faca contra o meu pescoço. Se gritar, morre. E assim, de súbito, eu vi o que acontecera depois...


18

QUEM RI POR ÚLTIMO

– Se gritar, morre – sibila a voz em meu ouvido, a faca ainda em minha garganta.

Alguém prende meus braços às minhas costas e amarra um lenço com tanta força cobrindo meus olhos que sinto minhas órbitas pressionadas sob o tecido. Depois puxam uma mordaça sobre minha boca, o tecido apertando minhas bochechas. Mãos me empurram para a frente. O cascalho arenoso faz ruído sob os meus pés, e arbustos com espinhos arranham minhas pernas. Ouço passos perto de mim. Chaves tilintam.

Subo uma pequena colina, sendo empurrada. Meu dedão bate em uma pedra saliente, e uma dor fria percorre minha espinha. Eu grito, mas alguém atrás de mim belisca meu braço.

– Que parte de “se gritar, morre” você não entendeu? – A lâmina pressiona minha pele.

Após um minuto de caminhada, paramos abruptamente. Um bipe agudo pontua o ar, a porta de um carro sendo destrancada. Ouço o silvo hidráulico de um porta-malas se abrindo.

– Entre.

Alguém me empurra por trás, e eu caio para a frente. Meu rosto atinge o que parece ser o estepe, guardado ali na traseira. Minhas pernas se dobram de maneira estranha para caber no espaço. Tum. O porta-malas é fechado novamente, e tudo fica quieto.

Sorrio para mim mesma na escuridão. Que comece o próximo round do Jogo da Mentira.

Minhas amigas me enganaram por alguns minutos, mas não vão conseguir manter a farsa por muito tempo. Mal posso esperar até que elas abram o porta-malas, provavelmente doidas para tirar uma foto minha paralisada de medo. Tosco!, vou gritar, e elas é que vão levar um susto. Vocês podiam ter sido um pouco mais óbvias? “Se gritar, morre” era minha fala – usei isso com Madeline quando me escondi no banheiro dela na primavera passada e me fiz de ladrão. Deve ter sido a Laurel quem falou, ela é mesmo uma imitação barata. Mas elas vão pagar por isso. Talvez com uma massagem de 3 horas no La Paloma amanhã. Vou precisar de uma dessas para desfazer todos os nós que se formaram nas minhas costas depois de ficar espremida neste espaço mínimo.

Então o motor rosna. O carro dá marcha a ré, depois uma guinada para a direita, e o movimento me coloca numa posição ainda mais desconfortável e estranha. Faço uma careta. Estamos indo a algum lugar? Qual é o objetivo disso? Rolo novamente quando o carro parte, e meu joelho bate contra o lado de dentro da tampa do porta-malas.

– Mmmm – reclamo, mesmo com a mordaça.

Elas não podiam ser um pouco menos bruscas comigo? Se continuar assim, vou acabar sendo afastada do time de tênis este ano. Retorço as mãos para ver se consigo soltá-las e tirar o lenço dos olhos, mas quem quer que o tenha prendido deve ter aprendido a dar nós em um curso avançado de escotismo. Provavelmente a Laurel, mais uma vez. Thayer deve ter lhe ensinado, na certa. Os dois viviam fazendo essas idiotices estilo Outward Bound.

O cascalho crepita sob os pneus, e então cede lugar para o som suave e homogêneo de asfalto recém-restaurado. A autoestrada. Aonde estamos indo? Eu me esforço para ouvir alguma conversa dentro do carro, mas o interior está mortalmente silencioso. Nenhuma batida martelando no rádio. Nada de risadinhas agudas. Nem mesmo um murmúrio baixo. Tento mexer o joelho, mas está preso contra o estepe.

– Mmmm! – chamo de novo, mais alto desta vez. – Mmmm?

Chuto a lateral acarpetada do porta-malas que fica colada ao banco traseiro. Minha intenção é chutar as costas de alguém.

O carro não para. Os pneus ressoam no concreto da autoestrada. A mordaça presa em torno do meu rosto corta minha pele. Minhas costas doem. Meus dedos começam a perder a sensibilidade por causa da amarra apertada. Chuto um pouco mais, mas não adianta. O carro continua seguindo em frente.

Então um pensamento inquietante cutuca meu cérebro: talvez isso não seja um trote. Talvez eu tenha sido sequestrada.

A diversão cede lugar a um medo violento. Grito o mais alto que consigo. Faço força com os pulsos contra a corda áspera, as fibras cortando minha pele. Minhas amigas e eu fazemos coisas loucas umas com as outras, mas sabemos quando parar. Ninguém nunca foi parar no hospital por nossa causa. Ninguém nunca se machuca – pelo menos não fisicamente. Lembro-me daquela voz em meu ouvido. Parecia Charlotte tentando produzir um tom de barítono rouco... mas talvez não fosse ela. Chuto o fundo do porta-malas. Tento me mexer o máximo possível e chuto a tampa acima de mim, esperando que o porta-malas se abra. Chuto várias vezes, os chinelos saindo de meus pés. Agora, parece que já estamos bem longe, talvez tenhamos chegado ao deserto. Ninguém vai saber onde me encontrar. Ninguém vai saber nem mesmo onde procurar.

– Mmmm! – grito sem parar.

O carro finalmente para. Sou catapultada para a frente e bato com o queixo na lateral. Uma porta bate. Passos ressoam na terra. Eu congelo, lágrimas quentes em meus olhos. Ouve-se um novo bipe agudo, depois a tampa do porta-malas se abre. Eu me viro, ficando deitada de costas, para tentar enxergar através do lenço que cobre meus olhos. Consigo distinguir apenas o halo de um poste de luz na rua acima e um borrão ziguezagueante de faróis passando à esquerda. Uma silhueta de ombros largos assoma sobre mim, contra a luz da rua. Só consigo distinguir o que parece ser um cabelo avermelhado e escuro através da venda fina.

– Mmmm – grito desesperadamente.

Mas então, do nada, tudo escurece outra vez.


19

IR EMBORA NÃO É UMA OPÇÃO

De volta ao banheiro de Charlotte, eu observava Emma tateando na escuridão. Depois do que eu acabara de recordar, eu tinha que admitir que me sentia um pouco aliviada. O que quer que tivesse acontecido, não fora um trote que acabara dando errado e orquestrado por mim mesma. Eu não havia atraído Emma até ali. Não havia brincado com seus sentimentos apenas para superar minhas amigas. Isso me fazia sentir um pouco melhor em relação a toda aquela situação. Eu podia ter sido um monte de coisas quando viva, mas pelo menos não usara minha irmã gêmea há muito perdida de maneira tão frívola e descartável, como um lencinho para limpar maquiagem que as clientes experimentam na Sephora.

Emma finalmente conseguiu achar a maçaneta. Girando-a, ela saiu para o quarto de Charlotte. Cinco telefones brilhavam no meio do carpete, jogando longas sombras no rosto de minhas amigas.

– O que aconteceu? – sussurrou Emma.

– Faltou luz.

Charlotte bebeu o restante de seu copo. Ela parecia irritada.

Houve uma batida na porta, e todas soltaram gritinhos. Charlotte rapidamente enfiou a garrafa de vodca e os copos embaixo da cama. Instantes depois, a sra. Chamberlain lançou para dentro do quarto a luz de uma lanterna.

– Meninas, vocês estão bem?

– Também está faltando luz nas casas vizinhas? – perguntou Charlotte. Emma percebeu que ela estava tentando pronunciar as palavras com muita precisão, o que só a fazia parecer mais bêbada.

A sra. Chamberlain foi até a janela e olhou para fora. Uma luz dourada se derramava pelas janelas da casa mais próxima.

– Pelo visto, não. Esquisito, hein?

Emma mudou o peso de um pé para o outro, desconfortável. Sim.

– Ah, não se preocupem, meninas – disse a sra. Chamberlain. – É só falta de luz. Se vocês forem acender velas, não esqueçam de apagar antes de dormir.

Ela fechou a porta novamente. Todas se voltaram para o centro do círculo e fitaram umas as outras com olhos arregalados. De repente houve um zumbido, e as luzes voltaram a se acender. O aparelho de som, que antes da queda de energia estava tocando uma miscelânea de músicas de um iPod, voltou a funcionar com um berro, assustando a todas. No canto, a impressora de Charlotte gemeu, sendo religada. Todas as garotas esfregaram os olhos. Após um segundo, as Gêmeas do Twitter pegaram seus telefones simultaneamente e começaram a digitar.

Charlotte alcançou a tigela de batatas chips no centro do quarto e encheu a mão.

– Tudo bem, Sutton. Conte como você fez isso.

– Isso o quê? – Emma a olhou sem entender. As garotas a encaravam. – A luz? – guinchou, de repente entendendo o que elas queriam dizer. – Eu não tive nada a ver com isso!

– Sei. – Madeline se recostou em uma grande almofada redonda e listrada. – Mas, de qualquer forma, foi bem na hora. Bem quando a gente estava atormentando você por perder a mão, você dá um jeito de apagar as luzes. Não sei como fez isso, Sutton.

– Ela é uma verdadeira feiticeira – disse Charlotte, de maneira estranha. – Com vassoura e tudo.

– Não fui eu – protestou Emma. – Juro.

– Jura solenemente pela sua vida? – exigiu Madeline.

Emma hesitou, confusa. Madeline tinha falado aquilo muito rápido, como um cântico.

– Juro – respondeu ela. – De verdade.

Mas então ela se lembrou do que estava pensando no banheiro antes que a luz caísse: era possível que sua irmã estivesse por perto – muito perto. O que significava que aquela loucura podia acabar muito em breve. O ressentimento que tinha subido por suas veias imediatamente abriu espaço à expectativa. Será que ela finalmente conheceria Sutton, o ardiloso gênio do mal, cara a cara? Será que teria força o bastante para se defender e repreender Sutton por ter colocado seus sentimentos em uma montanha-russa frenética, tudo por causa de um trote... ou será que fraquejaria assim que visse sua irmã gêmea, de tanto alívio por Sutton não estar morta e gratidão por finalmente ter alguém para considerar como família?

Emma olhou pela janela. O quintal estava vazio. Uma piscina reluzia, os balizadores no caminho estavam acesos. Então ela discretamente levantou a barra da colcha da cama e espiou lá embaixo. A única coisa que viu foi um exemplar velho da Vogue e um retrato de Garrett como jogador, uma bola de futebol aninhada sob o braço. Ela até conferiu o banheiro outra vez, pensando que talvez Sutton saltasse de dentro da sauna com um grande sorriso no rosto. Mas a única Sutton ali eram as várias versões dela pelas paredes.

Todas concordaram que estavam tontas demais para continuar a jogar Eu Nunca. Charlotte tornou a encher a tigela de pretzels e colocou a primeira temporada de The Hills no DVD player. Todas se acomodaram nos sofás, em sacos de dormir ou na cama de Charlotte. Era como se a falta de luz tivesse exercido um efeito sedativo sobre todas, menos ela. Emma se sentia mais acordada e sóbria do que antes. Sutton está nesta casa? Está por perto? A cada mínimo som, a cada movimento, Emma olhava na direção da porta, certa de que Sutton entraria no quarto com uma pirueta.

Ela estava tão convencida que até eu meio que esperava que aquilo acontecesse.

Uma a uma, as cabeças das garotas foram ficando inertes e seus olhos foram se fechando. Charlotte aconchegou-se em sua bicama, e Madeline ressonava suavemente na de baixo. Lilianna enfiou-se em um saco de dormir preto, e Gabriella entrou em um cor-de-rosa. Laurel tinha se enroscado no sofá perto de Emma; seus dedos contraíam-se lenta e sonolentamente. Emma assistiu ao DVD até o último episódio, até os créditos rolarem. Tentou fechar os olhos, mas não estava com sono. Apareça, apareça, Sutton. Como seria sua vida quando Sutton voltasse? Mais uma vez ela imaginou o primeiro encontro delas. Sua vida é muito louca!, diria a Sutton. Com certeza, depois de fazer Emma passar por uma comoção como aquela, Sutton a deixaria ficar em sua casa por algum tempo. Afinal, se aquele era algum tipo insano de teste, Emma tinha passado com louvor, não tinha? Ela previu as expressões perplexas dos Mercer quando descobrissem que Emma estava dizendo a verdade naquela primeira manhã, durante o café. Talvez a deixassem dormir no quarto de hóspedes. Talvez colocassem mais um lugar à mesa, para ela. Aquilo era esperar demais?

Eu não achava. Mas dificilmente se tornaria realidade.

Emma sentia a boca seca por causa de toda aquela vodca. Ela tateou em busca de seu copo d’água, mas não conseguiu encontrá-lo. Deslizou do sofá o mais silenciosamente que pôde, passou na ponta dos pés pela porta e desceu as escadas em direção à cozinha. O piso de mármore no vestíbulo dava a sensação de um cubo de gelo na sola de seus pés. Um anguloso cabideiro para casacos perto da porta da frente parecia uma tarântula gigante. Emma prendeu a respiração e foi em direção a uma luz incandescente no fim do corredor.

Os relógios digitais sobre o micro-ondas e o fogão emitiam um brilho verde estoico. Um candelabro de metal pendia sobre a ilha central. A pele de Emma pinicava em um misto de medo e agitação. Ela inclinou a cabeça para o lado e tentou escutar Sutton chegando de fininho. Respirando. Rindo. Esperando.

Mas não havia nada. Emma pegou um copo do armário e abriu a torneira. A água fez barulho ao cair na pia. Assim que terminou de beber, ela virou-se novamente para as escadas, e então ouviu um rangido. Parou e olhou em volta. Seu coração martelava. Com um tic, os relógios passaram de 2h06 para 2h07 em perfeita sincronia.

Outro rangido ressoou.

– Tem alguém aí? – sussurrou Emma.

Ela não conseguia enxergar muito bem por causa da escuridão. E então, de repente, houve um estrondo. A dor atravessou-lhe o quadril. Ela fez menção de se virar, mas alguém a empurrou com força contra o balcão e cobriu sua boca com a mão. O copo escorregou e se estraçalhou no chão. O medo a percorria, quente e confuso.

– Mmm! – gritou ela.

A pessoa não se afastou. Um corpo pressionava o dela, quente e próximo.

– Não se atreva a gritar – disse uma voz em seu ouvido. Era áspera e indecifrável, um mero sussurro. – O que você estava pensando? Eu disse para cooperar. Disse para não ir embora.

Emma tentou virar-se para ver quem era, mas a figura a empurrou para a frente e jogou sua face contra o balcão da cozinha.

– Sutton está morta – insistiu a voz. – Continue se passando por ela até que eu diga o contrário. E não tente fugir da cidade de novo, ou você será a próxima.

Emma choramingou. A mão apertava seu pulso com tanta força que ela achou que seus ossos iriam se quebrar. Então alguma coisa fria e metálica circundou seu pescoço e apertou sua garganta cada vez mais, até que sua traqueia começou a se fechar. Seus olhos se esbugalhavam. Ela agitou os braços, mas o arame apenas comprimia ainda mais sua garganta. Ela buscava o ar, mas não conseguia inalar, não conseguia engolir. Enquanto se debatia violentamente para todos os lados, seus pés começaram a formigar.

Eu assistia àquilo aterrorizada. Minha visão estava enevoada, assim como a de Emma; só conseguia enxergar que o estrangulador tinha ombros largos. Lembrei-me da sombra escura pairando sobre mim no porta-malas, na lembrança que acabara de voltar à minha mente. Aquela voz parecia muito com essa.

Mas então o que lhe apertava o pescoço foi se afrouxando. Quem quer que fosse, colocou-a de pé novamente. Pontos brilhantes dançavam diante de seus olhos. O ar precipitou-se para dentro de seus pulmões. Ela se dobrou para a frente e tossiu.

– Agora fique de cabeça baixa e conte até cem – continuou o estrangulador. – Não olhe para cima até acabar. Ou vai se arrepender.

Tremendo, Emma encostou a testa na bancada e começou a contar.

– Um... dois...

Passos soaram atrás dela, afastando-se. Tentei ver quem era, mas a figura era uma sombra escura.

– Dez... onze... – contou Emma. Uma porta bateu. Emma levantou a cabeça cuidadosamente. A cozinha estava silenciosa e tranquila como estivera cinco minutos antes. Na ponta dos pés, ela foi até a porta da frente e espiou para fora, mas o estrangulador tinha sumido.

Ela se curvou sobre os joelhos por um instante, ofegando. Quando tornou a se levantar, alguma coisa bateu com força contra sua clavícula. Emma apalpou sua pele com cuidado. Pendurado em uma corrente ao redor de seu pescoço estava um relicário redondo – o relicário redondo de Sutton. Aquele que ela tinha procurado na caixa de joias de Sutton, mas não conseguira encontrar. Aquele que Sutton usava no vídeo do assassinato. A corrente se encaixava perfeitamente nas marcas vermelhas de estrangulamento que agora havia no pescoço de Emma.

Seu mundo virou de cabeça para baixo outra vez. Sutton estava mesmo morta. Não havia mais dúvida quanto a isso. Lágrimas quentes e molhadas salpicaram seus olhos. Sua mão trêmula foi até a boca e abafou um soluço.

Ela girou 180 graus, olhando em desespero para a porta aberta da cozinha, para o escritório repleto de estantes de livros, a escadaria dupla, a majestosa entrada principal. Seu olhar pousou num feixe de luz vermelho que brilhava ininterruptamente sobre a entrada. Perto dele havia o teclado de um sistema de segurança, uma luz verde acesa sobre a palavra ARMADO. Emma foi até o aparelho na ponta dos pés. Ela tinha morado por um breve período com uma família em Reno que possuía o mesmo sistema – eles possuíam um armário cheio de valiosas porcelanas antigas Wedgwood; mesmo assim, as quatro crianças que viviam sob sua tutela eram obrigadas a se apertar no mesmo quarto –, e seu irmão adotivo temporário tinha lhe ensinado a usá-lo. Ao apertar a seta para baixo, apareceu uma lista de vezes que o alarme tinha sido armado e desarmado. A última entrada dizia ARMADO, 20:12. A hora em que Emma e Laurel haviam chegado, em que a sra. Chamberlain tinha fechado a porta depois de deixá-las entrar. Entretanto, não havia registro de que a falta de luz tivesse desarmado o alarme depois disso. Nem indicação de que a sra. Chamberlain tivesse precisado rearmar o sistema depois que a luz voltou. Tampouco havia registro de que o alarme tivesse sido acionado, o que teria acontecido se o estrangulador houvesse entrado por uma porta ou janela. Então... como ele tinha entrado? Como saíra?

Emma levantou a cabeça, uma sensação fria e escorregadia a trespassando. Talvez a pessoa não precisasse passar pelos alarmes. Talvez o estrangulador estivesse dentro da casa desde o começo. Ela se lembrou da voz em seu ouvido. Eu disse para cooperar. Disse para não ir embora. E então se lembrou da ligação de Charlotte e Laurel naquele dia. Você está na rodoviária?, perguntara Laurel. Seria possível?

Eu tinha plena certeza de que era possível. Pensei na lembrança que acabara de me ocorrer. A figura de ombros largos me retirando do porta-malas. A massa de cabelos ruivos quando ela ficou sob a luz. Quem quer que tivesse estrangulado Emma era mesmo alguém que estava dentro da casa: uma das minhas melhores amigas.


20

QUERIDO DIÁRIO, HOJE EU MORRI

Assim que Laurel estacionou na garagem dos Mercer, na manhã de sábado, Emma saiu correndo do carro, abriu a porta da casa com violência e subiu as escadas como um raio. Quase derrubou a sra. Mercer, que cruzava o vestíbulo com uma pilha de roupas limpas nos braços.

– Sutton?

– Eu só... – murmurou Emma, e não completou a frase.

Ao chegar ao quarto de Sutton, bateu a porta e a trancou. A primeira coisa que viu foi uma grande pilha de envelopes cor-de-rosa sobre a cama. RSVP, estava escrito no de cima. Emma observou o nome não familiar de uma garota, escritos com caneta cor-de-rosa no alto do cartão. Mal posso esperar!, acrescentara a menina. Ela o virou. FESTA DE ANIVERSÁRIO DE SUTTON MERCER. SEXTA, 10 DE SETEMBRO. PRESENTE OPCIONAL. OBRIGATÓRIO CHEGAR ARRASANDO. Havia pelos menos cinquenta cartões de RSVP na pilha.

Emma desabou na cama, empurrando alguns dos cartões para o chão. Sua cabeça parecia ter sido esmagada em um torno. Toda vez que fechava os olhos, sentia o estrangulador contra ela, aquela voz em seu ouvido.

Continue se passando pela Sutton, ou você será a próxima.

Ela tinha ficado acordada a noite inteira, deitada no quarto de Charlotte, armada com aquela nova informação e petrificada por causa do ataque na cozinha. A tela inicial de The Hills passara infinitas vezes. Alguém tinha matado Sutton – e fora uma de suas melhores amigas.

Como uma de minhas melhores amigas ou minha irmã poderia fazer uma coisa dessas? Mas então me lembrei de como eu tinha sido detestável com todas elas aquela noite nas fontes termais. E se eu agisse daquele jeito o tempo todo? E se, às vezes, eu fosse até pior?

Emma deixou-se cair deitada na cama e, com os olhos fixos na lanterna de papel cor-de-rosa pendurada perto da janela, tentou refletir sobre tudo aquilo. O assassino devia ter retirado o vídeo do ar porque sabia que Emma o mostraria aos policiais imediatamente. O assassino também sabia, claro, que Emma não era Sutton. Ela tentou organizar mentalmente o momento em que cada coisa acontecera. Será que Sutton tinha recebido a mensagem de Emma, respondido e então, coincidentemente, morrido naquela mesma noite? Será que a chegada de Emma fora uma surpresa – mas uma surpresa boa – para o assassino? Afinal, havia uma Sutton-2 em Tucson novamente. Sem garota desaparecida, não haveria buscas incessantes, nem a busca por um cadáver, não haveria crime.

Então Emma arregalou os olhos, deparando-se com uma ideia ainda mais assustadora. E se Sutton nunca tivesse chegado a receber sua mensagem? E se o assassino a tivesse atraído para Tucson, não Sutton? Uma das amigas de Sutton poderia ter facilmente hackeado a conta dela no Facebook. Poderia ter visto a mensagem de Emma e respondido imediatamente, sabendo que teria uma garota ingênua para manipular e colocar no lugar de Sutton.

Uma minúscula aranha rastejou pelo canto superior do quarto de Sutton, puxando atrás de si um fio fino e leve. Emma se levantou, jogou os ombros para trás e foi, decidida, até o arquivo que havia sob a mesa. JOGO DA M., dizia. Também conhecido como Jogo da Mentira.

Ela segurou o pesado cadeado na palma da mão. Tinha que haver uma forma de abri-lo. Revirando as gavetas de Sutton, ela procurou mais uma vez pela chave desaparecida, tateando compartimentos secretos na parte de trás, olhando em cada caixa de joias e estojo vazio de CD e até derramando um maço quase cheio de Camel Light no carpete. O tabaco cobriu suas mãos.

– Abre logo isso! – gritei para ela inutilmente.

Dane-se o ciúme que eu tinha das minhas coisas. Eu estava morta, e nós duas precisávamos saber por quê.

Então, algo ocorreu a Emma em um flash. Travis. Aquele vídeo do YouTube a que ele tinha assistido, ensinando como arrombar um cadeado com uma lata de cerveja. Durante o breve período em que eles tinham se relacionado amigavelmente, Travis a fizera vê-lo também. Não tinha parecido difícil.

Ela ficou de pé em um salto e encontrou uma lata vazia de Coca Diet no peitoril da janela de Sutton. Pegando uma tesoura, desenhou a forma da chapa que seria usada para abrir o cadeado e começou a cortar. Em instantes ela fizera uma chapa em forma de M, exatamente como o aprendiz de criminoso tinha demonstrado no vídeo do YouTube. Assim que ela enfiou a chapa na barrinha esquerda do fecho, a tranca se soltou e o cadeado se abriu. Emma não pôde evitar um sorriso.

– Obrigada, Travis – murmurou. Ela nunca imaginara que um dia diria isso.

O cadeado caiu com um baque no chão. A gaveta rangeu ao ser aberta. Emma espiou lá dentro. No fundo havia um grosso caderno de espiral. E só.

Emma pegou o caderno e o colocou no colo. Não havia nada escrito na capa – nenhum nome ou rabisco, apenas o papel cartão laminado azul. As espirais de arame estavam perfeitas, sem sinal de amassados ou ferrugem. Ela abriu na primeira página. Lá estava a letra de Sutton, redondinha e certinha e sinistramente parecida com a de Emma. 10 de janeiro, ela escrevera.

Emma contraiu o estômago. Será que queria mesmo ler o diário da irmã? Quando morava em Carson City, ela tinha entrado de fininho no quarto que pertencia a Daria, uma irmã adotiva temporária mais velha que era bonita e misteriosa e que não lhe dava a mínima atenção. Lera cada página do diário da menina, que era basicamente sobre garotos e sobre como ela achava seus braços e pernas gordos demais. Emma também tinha revistado os bolsos da calça jeans da irmã. Tinha roubado um fone de ouvido simplesmente porque era de Daria. Levava pequenas coisas todas as vezes que entrara lá depois disso: um CD de rap, uma pulseira de silicone preta, uma amostra grátis de Chanel nº 5 distribuído por uma loja de departamentos. Ao se mudar para outra casa, Emma sentira vergonha do que tinha feito. Ela então colocara todas as coisas furtadas de Daria em um envelope de papel, escrevera o nome da menina em cima e as enviara de volta para o serviço social, jurando que jamais faria algo como aquilo outra vez.

Era legal que ela estivesse sendo toda virtuosa, mas eu só queria que ela lesse o maldito diário.

Suspirando, como se tivesse ouvido meus pensamentos, Emma baixou novamente os olhos para a primeira página e começou a ler.

Cada registro era curto e cotidiano, mais pareciam postagens do Twitter e pensamentos soltos. Às vezes Sutton escrevia coisas como tamancos Elizabeth & James ou festa de aniversário em Mount Lemmon? Às vezes, escrevia exclamações como Eu odeio história! ou Vai se ferrar, mãe! Mas os registros que tinham chance de ser sobre algo mais profundo eram ainda mais confusos. C. anda muito irritante ultimamente, Sutton tinha escrito em 10 de fevereiro. Ela precisa sair dessa. Em 1º de março: Hoje tive uma visita surpresa depois da escola. Ele parece um filhotinho de cachorro, me seguindo para todo o lado. Em 9 de março: M. se superou hoje. Às vezes acho que a C. tem razão sobre ela.

Emma folheou o caderno, tentando extrair significado dos registros. Havia muita coisa sobre L., que ela só podia presumir que fosse Laurel. L. desceu hoje de manhã vestida igualzinha a mim. E Vou dar um trote incrível na L. hoje de tarde. Talvez assim ela se arrependa de ter pedido tanto por isso! E então, em 17 de maio, L. ainda arrasada por causa de T. Que isso, gata. É só um garoto. O olhar de Emma caiu sobre um registro de 20 de agosto, apenas uma semana e meia antes: Se L. falar daquela noite mais uma vez eu mato essa garota.

Que noite?, Emma queria gritar. Por que Sutton era tão ridiculamente vaga? Parecia um diário escrito para ser lido pela CIA.

Eu estava tão frustrada quanto ela.

Então um pequeno quadrado de cartolina caiu do caderno e desceu flutuando até o chão. Emma o pegou, observou a caligrafia incisiva na frente e ficou perplexa: CARTEIRINHA DE SÓCIO DO JOGO DA MENTIRA. Embaixo estava o nome de Sutton, o título PRESIDENTE EXECUTIVA E DIVA, e então uma data de maio de mais de cinco anos antes.

Do outro lado do cartão havia uma lista de regras:

1. Não conte a NINGUÉM. Quem contar será punido com a expulsão!

2. Apenas três pessoas podem fazer parte do clube de cada vez. (Mas alguém tinha riscado “três” e escrito “quatro” em cima.)

3. Todo novo trote tem que ser melhor que o anterior. Aquelas que superarem outro sócio do clube ganham um distintivo especial!

4. Se estivermos realmente em perigo, se não for um trote, diremos as palavras secretas do código: “Juro solenemente pela minha vida”. Isso significa E-mer-gên-cia!

Sob isso havia uma lista de trotes proibidos. Continha basicamente coisas como machucar animais ou crianças pequenas, estragar bens insubstituíveis ou muito caros (o Porsche do pai de Charlotte era o exemplo), ou fazer algo que faria o governo ir atrás delas (alguém tinha escrito um rá! depois disso). Em tinta azul de um tom diferente, bem no fim, alguém acrescentara Fotos sensuais por celular nunca mais, sublinhando três vezes.

Também olhei fixamente para a carteirinha, meu cérebro zumbindo. Tive um flash de Madeline, Charlotte e eu cortando os cartões e os entregando umas às outras cerimoniosamente, como se estivéssemos recebendo estatuetas do Oscar. Mas então, de repente, a lembrança desapareceu.

Emma leu e releu a carteirinha várias vezes, cada vez mais certa do que pensar. Pelo menos agora tinha uma noção clara do que era o Jogo da Mentira: escoteiras psicopatas. Ela se lembrou novamente do vídeo do estrangulamento. Também aquilo podia ter começado como um trote. Mas talvez uma das amigas de Sutton tivesse ido longe demais...

Ela deixou de lado o cartão e voltou ao diário. Bem na página seguinte, viu um registro de 22 de agosto: Às vezes acho que todas as minhas amigas me odeiam. Sem exceção. Nada mais, nada menos. Abaixo disso, Sutton tinha escrito o que parecia um pedido de suco natural da Jamba Juice: bebida desintoxicante de banana, mirtilo, adoçante e broto de trigo.

Puxa, pensou Emma.

A página seguinte estava cheia de desenhos de garotas usando vestidos e saias, intitulada “roupas ideais para o verão”. O último registro de Sutton era de 29 de agosto, dois dias antes daquele em que Travis mostrara o vídeo a Emma. Sinto que alguém está me observando, escrevera ela em uma caligrafia trêmula e apressada. E acho que sei quem é. Emma leu o registro várias vezes, sentindo que alguém tinha agarrado seu coração e apertado.

Eu me concentrei muito, mas nada me veio à mente.

Emma colocou o diário na mesa de Sutton, perto do computador. Moveu o mouse sobre o mouse pad azul-celeste, e a tela ganhou vida. Abriu o Safari e clicou no Facebook. A página de Sutton abriu automaticamente. Conforme Emma passava os olhos pelos posts e notas, certas coisas começaram a se repetir. Em agosto, Sutton tinha escrito Posso ver você no mural de Laurel. Em julho, ela escrevera para Madeline: Você é uma espiã muito perversa. Em junho, mandara a Charlotte uma mensagem privada: Está atrás de mim, hein? E postara algo similar para as Gêmeas do Twitter: Vocês duas podem parar de tramar contra mim?

– O que está fazendo?

Emma deu um pulo e se virou rapidamente. Laurel estava recostada no batente da porta, iPhone na mão. Seu cabelo louro estava puxado para trás em um rabo de cavalo alto, e ela se trocara, vestindo uma saída de praia cor-de-rosa e calçando chinelos pretos. Óculos escuros Ray-Ban escondiam seus olhos, mas havia um sorriso largo em seu rosto.

– Só vendo meu e-mail – disse Emma, na voz mais descontraída que conseguiu entoar.

O iPhone na mão de Laurel apitou, mas ela não olhou para a tela. Mantinha os olhos fixos em Emma, girando um anel prateado no dedo. Então seu olhar recaiu sobre o cadeado aberto sobre a cama. O diário no colo de Emma. A carteirinha do Jogo da Mentira sobre a mesa. O coração de Emma pulsava nas pontas de seus dedos.

Finalmente, Laurel deu de ombros.

– Estou indo à piscina, se você quiser vir junto. – E fechou a porta atrás de si ao sair.

Emma abriu em uma página do diário de Sutton outra vez: Às vezes acho que todas as minhas amigas me odeiam. Sem exceção. Emma cerrou os dentes. Nunca tinha conhecido seu pai. Fora abandonada pela mãe. E agora sua irmã também lhe fora tirada, antes que ela tivesse a chance de conhecê-la. Emma nem sequer tinha certeza de que teria gostado de Sutton, mas agora nunca saberia. E as amigas de Sutton – ou a irmã – não sairiam impunes daquilo. Não se dependesse dela. Emma ia descobrir o que tinham feito com Sutton. Faria o que fosse necessário para provar que haviam matado sua irmã. Só precisava chegar mais perto para descobrir mais.

Ela virou-se para o computador, clicou com a seta do mouse na janela de atualização de status de Sutton e começou a digitar: O jogo começou.

Três notificações apitaram na tela quase imediatamente. O primeiro comentário era de Charlotte: Um jogo? Conta, vai. Tô dentro! Depois, Madeline: Eu também! E Laurel acrescentou: Comigo são três! É segredo, né?

Mais ou menos, digitou Emma em resposta. Só que agora o alvo do trote eram elas. E dessa vez era uma questão de vida ou morte.


21

ESPIONAGEM IMPUNE

– Então, onde você quer jantar? – perguntou Garrett a Emma, guiando seu Jeep Wrangler colina abaixo.

– Hã, não sei. – Emma mordeu o dedo mínimo. – Por que não escolhe algum lugar?

Garrett pareceu chocado.

– Eu?

– Por que não?

Uma expressão apática e indecisa atravessou o rosto do rapaz. Fez Emma se lembrar do boneco quebrado do Elmo, da Vila Sésamo, que ela tinha herdado de uma garota mais velha em seu primeiro ano de adoção temporária; às vezes o Elmo olhava para o nada e não sabia o que fazer em seguida.

– Mas a gente sempre vai a algum lugar que você gosta – disse Garrett.

Emma enfiou as unhas na palma da mão. Se ao menos pudesse contar a ele que não podia escolher uma droga de um restaurante porque não conhecia nada por ali! Então ela viu um Trader Joe’s pela janela do jipe.

– Por que a gente não compra um pouco de queijo e umas outras coisas e faz um piquenique na montanha?

– Ótimo.

Garrett deu uma guinada através de três pistas para chegar ao estacionamento da loja.

Era um sábado, acabava de passar das 19 horas, e o sol pendia no horizonte. Garrett tinha aparecido na porta da casa dos Mercer meia hora antes com um buquê de flores nas mãos e diferentes fragrâncias no corpo – perfumes, sprays corporais, gel de cabelo, o pacote completo. Havia uma expressão tão esperançosa e ansiosa em seu rosto que Emma não conseguiu cancelar o encontro, mesmo que cada célula de seu corpo desejasse muito fazê-lo. Ela não queria lidar com Garrett naquele momento; queria procurar o assassino de Sutton.

Depois de ficar na fila atrás de uma velhinha que insistiu em pagar com cheque, Emma e Garrett finalmente chegaram ao Parque Estadual Catalina, Garrett carregando na dobra do cotovelo uma sacola de compras cheia de sidra sem álcool, azeitonas pretas, biscoitos salgados, uvas, mix de castanhas e frutas secas, alcaçuz australiano e um pedaço de brie. O ar estava frio e revigorante e cheirava a filtro solar. Outras pessoas subiam a trilha a passos largos. Após algumas viradas e ziguezagues, eles chegaram a um platô e se acomodaram em uma grande pedra. Emma conseguia ver toda a extensão da montanha até lá embaixo. O carro de Garrett parecia um brinquedo dali de cima.

– A noite está muito agradável – murmurou Garrett, passando a mão pelos cabelos louros.

Ele tirou a camisa de mangas compridas e a esticou no chão como uma toalha de piquenique. Seus bíceps bronzeados se salientaram. Ele girou a tampa da garrafa de sidra, que emitiu um delicioso tsss.

– Hã-rã – respondeu Emma.

Ela olhava fixamente para a frente, sem expressão. Em sua mente, no lugar em que deveriam estar os tópicos de conversa, passavam bolas de feno. Sobre o que Garrett e Sutton conversavam? Será que tinham piadas internas? O que unia os dois? Se pelo menos o diário de Sutton fosse normal, Emma poderia ter descoberto alguma coisa útil desse tipo.

Suspirando, ela tirou da bolsa os biscoitos, as azeitonas, o mix de castanhas e frutas secas e o alcaçuz. Distraidamente, colocou um biscoito no guardanapo e acrescentou azeitonas como olhos, um amendoim para o nariz e um pedaço de alcaçuz para o sorriso. Pensando em Ethan, ela cutucou Garrett.

– Gostou do meu novo amigo?

Garrett olhou por um instante e assentiu com a cabeça.

– Simpático.

– Quer fazer uma carinha também?

Garrett deu de ombros.

– Eu mal consigo desenhar um círculo na aula de artes.

Emma atirou um dos olhos de azeitona na boca. Não temos mesmo nada em comum.

Mas, de certa forma, eu estava contente por ela não gostar de Garrett. Eu não conseguia lembrar exatamente por que o amava. Não conseguia recordar o que me fizera pensar nele como perturbado, só sabia que pensava assim. E mesmo na morte, eu o queria só para mim.

Emma se recostou e olhou para o horizonte, distraidamente tocando os arranhões no pescoço que a noite passada lhe rendera. Minúsculas marcas vermelhas laceravam sua pele. Sua traqueia ainda doía por causa da pressão da corrente. Ela tinha tomado vários comprimidos de Advil e coberto os arranhões com a base da Dior que encontrara no banheiro de Sutton, torcendo para que Garrett não percebesse nada de errado. Ainda conseguia sentir em seu pescoço o hálito quente e seco do agressor. Ela fechou os olhos e estremeceu.

– Tudo bem com você? – perguntou Garrett.

Emma assentiu com a cabeça.

– Sim. Só estou cansada.

– Foi divertido ontem, dormir na casa da Charlotte?

Emma fez uma pausa.

– Na verdade, dormir não é o melhor termo. Fiquei acordada a noite toda.

– Isso é bom ou ruim?

Emma mexeu no relicário de Sutton, sem dizer nada. Ainda parecia um objeto estranho em seu pescoço.

– Ah, vai. – Ele a cutucou. – Pode me contar o que acontece nessas noites loucas de vocês. Queria que você me contasse mais.

Emma alcançou outro biscoito, tendo uma ideia repentina. Garrett poderia ser útil para sua investigação, afinal.

– Bem, não sei se “divertido” é a palavra que eu usaria – disse lentamente. – É mais como se fosse... intenso. Às vezes eu acho que as minhas amigas me odeiam. Acho que elas acabariam me apunhalando pelas costas se pudessem. – Era estranho recitar as palavras que tinha encontrado no diário de Sutton.

Um casal de estudantes universitários exalando um forte cheiro de maconha apareceu de trás da curva. A brisa mudou de direção e, de repente, o ar começou a feder a axilas. Garrett mordeu uma uva; um pouco do suco escorreu por seu queixo.

– Está se referindo àquela noite?

Emma se sobressaltou.

– Que noite?

Ele mastigou lentamente um biscoito.

– Aquela noite que você não quis me contar como foi.

Os olhos de Emma se arregalaram. O que ele queria dizer?

– Ou está falando da Charlotte? – insistiu ele, pois Emma não respondeu.

Emma baixou os olhos. Charlotte?

– Hum, é – disse ela, torcendo para que aquilo levasse a algum lugar. – Não sei qual é o problema dela.

Garrett pressionou a ponta do tênis em um tufo ressecado de grama do deserto.

– Você precisa dar um tempo à Charlotte, Sutton. Tente ver o lado dela. Eu terminei com ela... para sair com você. Muitas garotas teriam dificuldade em aceitar isso.

Emma enfiou outro pedaço de queijo na boca para esconder seu choque. Charlotte e Garrett... namoravam? O diário de Sutton definitivamente não lhe informara nada sobre isso.

Mas fazia sentido. Aquilo explicava o olhar mortal que Charlotte lançara a Emma na noite anterior, quando o assunto de roubar namorados tinha surgido no Eu Nunca. Também havia aquela foto do torso nu de Garrett no boxe do banheiro de Charlotte. E a foto dele abandonada embaixo da cama.

– Ela com certeza ainda não superou isso – concordou Emma. – Na verdade, acho que ela não esqueceu você.

Garrett suspirou e abraçou os joelhos.

– Queria que nunca tivesse acontecido. Pensei que ela entendesse a minha posição. Nós dois éramos amigos, e, quando tentamos ser algo mais, não tinha clima. Eu achei que ela também não sentisse nada. – Ele quebrou um pedaço de biscoito e o segurou na palma da mão. – Na verdade, ela já me ligou algumas vezes. Às vezes não fala nada e desliga.

Emma se empertigou.

– Como se fossem... trotes?

Garrett franziu a testa.

– Acho que não. Simplesmente não sabe o que dizer. Eu me sinto mal por ela. Quer dizer, ela é bem durona, mas deve ser difícil. E eu ainda vejo vocês duas juntas o tempo todo. Queria que ela fosse minha amiga, queria que todos nós fôssemos amigos. Além do mais, a Charlotte me ajudou durante tudo aquilo que aconteceu com a Louisa. – A voz dele falhou ao pronunciar Louisa. Uma expressão aflita cruzou seu rosto. – A gente tem muita história juntos.

As palavras a atingiam numa avalanche. Ela se sentia confusa, tentando processar tudo o que Garrett acabara de dizer. Então ele pegou sua mão.

– Mas eu não quero nada além disso com ela. Estou com você agora. Quero ficar com você.

Ele se aproximou mais de Emma e colocou o braço em volta de seus ombros.

– Mas isso me lembra... daquele nosso assunto das férias. Os nossos... planos

Emma examinou o rosto de Garrett, próximo demais do dela, e esforçou-se para não se afastar. De repente, Garrett lhe pareceu muito sério.

– Hã-rã – blefou ela, torcendo para que ele elaborasse.

– Bem, eu estava pensando em fazer acontecer para o seu aniversário. – Ele lhe lançou um sorriso acanhado, enquanto percorria o braço dela com o dedo. – O que acha?

Emma deu de ombros.

– Hum, claro – disse ela.

Garrett se aconchegou junto a ela e aproximou o rosto. Emma se retesou quando ele encostou a boca na dela, mas ele tinha gosto de uvas doces e sidra, e seus lábios eram quentes e macios. Ela relaxou um pouquinho durante o beijo.

Um galho estalou por perto. Emma se afastou dele e ficou rígida, instantaneamente alerta.

– Você ouviu isso?

Houve outro estalido.

– Ouvi.

Garrett franziu as sobrancelhas e também olhou em volta. Uma pessoa saiu de uma trilha de terra distante da trilha principal. Era uma garota de pele clara e cabelo vermelho-vivo. Emma respirou fundo.

– Opa!

Charlotte parou bruscamente e tirou os fones do iPod dos ouvidos. Seu olhar disparou de Garrett para Emma, depois para suas mãos entrelaçadas. O que Charlotte estava fazendo ali em cima? Será que estava espionando?

Garrett começou a mexer na gola da camisa, nervoso.

– Hã, oi, Char. E aí?

Charlotte mexeu na pulseira de corda em seu pulso.

– Só estava fazendo uma caminhada.

– Legal – disse Garrett.

– Ótima noite para caminhar – acrescentou Emma, estupidamente.

Um falcão lançou um grito agourento de um platô próximo. Quando Charlotte levantou a cabeça novamente, sua expressão estava plácida. Sua boca já não tremia.

– Enfim – disse ela. – Vejo os pombinhos por aí.

– A-Até mais – balbuciou Emma.

Charlotte recolocou os fones. Garrett acenou debilmente. Emma também. Assim que ela virou a curva, a escuridão cobriu seu rosto. Ao olhar para trás, ela encontrou o olhar de Emma.

De repente, Emma sentiu as mãos em seu pescoço e ouviu a voz áspera da noite anterior em seu ouvido. Sutton está morta. Será que tinha sido Charlotte?

Eu me lembrei da silhueta de ombros largos parada acima de mim no porta-malas e me perguntei a mesma coisa. Será que era Charlotte, me encarando furiosamente, conseguindo afinal sua vingança?

Então Charlotte virou de súbito a cabeça, o rabo de cavalo ruivo dando um salto. Ela balançava os quadris com a música do iPod. Quando contornou a pedra seguinte, seus passos não produziram som algum, como se ela nunca tivesse estado ali.


22

SEGREDOS SUJOS

Na terça-feira à tarde, quando o sr. Garrison, o professor de educação física, mandou a turma escolher entre fazer uma caminhada ou jogar hóquei sobre a grama – eca –, Emma tomou o caminho ladeado por cercas-vivas, passando pelas quadras de tênis e indo em direção à pista de corrida, então vazia. Soprava uma brisa, mas a tarde estava quente, cheirando levemente a grãos de café moídos, da cafeteria que havia na área do refeitório. Pedaços de grama seca aglomerados em bolas de feno rolavam pelas oito pistas delimitadas de amarelo e se aninhavam no comprido fosso de areia para prática de salto a distância. Obstáculos listrados de vermelho e branco estavam empilhados de maneira organizada no meio do campo, ao lado de um moletom cinza abandonado e de uma garrafa de Gatorade pela metade. Os únicos sons eram os de corvos crocitando nas árvores longínquas.

Emma pegou o iPhone de Sutton e escreveu uma mensagem de texto para Madeline: SPA DEPOIS DO TÊNIS?

Apertou ENVIAR. Emma estava morrendo de vontade de conversar a sós com Madeline desde seu estranho encontro com Charlotte na trilha no sábado, mas Madeline passara o final de semana inteiro em um workshop de balé em Phoenix. E Emma tinha acabado de descobrir que Charlotte iria ao médico depois do treino de tênis – “ginecologista”, Charlotte sussurrara discretamente para Emma durante o almoço, olhando-a de forma sugestiva –, o que significava que Emma e Madeline poderiam ter algum tempo só as duas.

Ela precisava desesperadamente descobrir qual era o estado de espírito de Charlotte. Durante o final de semana ela tinha examinado atentamente os diários de Sutton, procurando pistas sobre até que ponto Charlotte estava zangada. Mas havia apenas o registro que dizia C. anda muito irritante ultimamente. Ela precisa sair dessa. E, é claro, Às vezes acho que todas as minhas amigas me odeiam. Sem exceção. Aquilo seria suficiente? Talvez Charlotte tivesse ficado furiosa com Sutton por roubar Garrett dela... zangada o bastante para estrangulá-la. Zangada o bastante para matá-la. Também teria sido fácil para ela, estando na própria casa, dar um jeito de descer, estrangular Emma do mesmo jeito e voltar a subir sem ser notada. Talvez houvesse uma escadaria secreta naquela casa absurdamente grande.

A teoria de Emma me aterrorizou. Quantas vezes eu tinha provocado Charlotte como naquele dia nas fontes termais? Quantas vezes eu a humilhara? Será que a gota d’água fora o incidente com Garrett... ou teria sido outra coisa?

– Sutton – chamou uma voz.

Emma virou-se e viu uma figura assomando por entre as cercas-vivas. A pessoa estava iluminada por trás pelo sol, de forma que, a princípio, Emma não conseguiu distinguir bem quem era. Todo tipo de coisa passou por sua mente em um instante. Suas entranhas se retorceram de nervosismo.

Então Ethan assurgiu à luz. Os músculos de Emma relaxaram.

– Oi – disse ela, aliviada. Ethan foi até a pista e acertou seu passo com o dela. – Não sabia que você tinha educação física agora.

– E não tenho – disse ele. – Eu devia estar na aula de matemática. Mas estou tão perdido em funções que nem vale a pena ir.

Os passos dos dois praticamente não faziam barulho na pista porosa, adequada para qualquer tipo de clima. Da frente da escola vinha o cheiro de escapamento dos ônibus que transportavam os alunos. Um beija-flor disparou para um bebedouro de plástico que um dos jardineiros tinha pendurado perto do ginásio, as asas do pássaro batendo rápidas como um raio.

– Então, resolveu aquilo? – perguntou Ethan depois de terem completado uma volta. – Fez uma grande intervenção com as suas amigas para acabarem os trotes?

– Não exatamente. – Emma tentou dar uma risada. – Ainda estou tentando.

– Ainda acha que elas são malignas?

– Um pouco. – Mais do que você imagina, Emma desejava dizer. Então seu olhar recaiu sobre a caligrafia no braço de Ethan: COMO É FRÁGIL O CORAÇÃO HUMANO: ESPELHADO POÇO DE PENSAMENTOS. Reconheceu a frase instantaneamente. – Gosta de Sylvia Plath?

As faces dele ficaram vermelhas.

– Você me pegou. Eu leio poesia depressiva para meninas.

– É melhor do que escrever poesia depressiva para meninas. – Emma riu. – Tenho um caderno inteiro cheio delas. – Um caderno que estava enfiado no bolso de uma bolsa desaparecida. Emma sentiu uma pontada de ansiedade. Provavelmente nunca mais a veria novamente. – Já leu A redoma de vidro?

Ele assentiu com a cabeça.

– Adorei.

– Eu li três vezes essas férias – disse ela, animada.

– Sutton Mercer leu A redoma de vidro? – Ethan lançou a ela um rápido olhar de surpresa. – E tem um caderno cheio de poesia depressiva? Mas que criatura complexa.

O sr. Garrison soprou o apito, o sinal para que a turma retornasse ao ginásio. Emma voltou para o caminho ladeado de cerca-viva.

– Até mais.

Ela sorriu para Ethan, o calor subindo para suas bochechas. Então se virou e seguiu de volta para o ginásio com um sorriso no rosto.

Bipe.

Era o iPhone. Emma pegou o aparelho e abriu a mensagem. ADORARIA NOITE NO SPA, respondera Madeline. LA PALOMA 19H?

MARAVILHA, escreveu Emma em resposta. Talvez ela finalmente começasse a obter algumas respostas.

* * *

– Srta. Vega e srta. Mercer? – Uma mulher sardenta com cara de banho tomado estava de jaleco à porta da sala de espera do La Paloma. – O quarto de vocês está pronto.

– Ótimo.

A esteticista, cujo crachá a identificava como SOFIA, abriu uma porta de vidro e fez as garotas seguirem por um corredor longo e estreito. Um funcionário do spa vinha na direção delas, dando uma avaliada nas duas com o olhar e demonstrando aprovação. Madeline o fitou de volta e soltou uma risadinha. Quando ele passou, ela rapidamente lhe deu um tapa no bumbum. O homem girou, mas Madeline seguiu tranquilamente, seus longos cabelos balançando.

Sofia abriu mais uma porta de vidro e viu-se uma grande banheira de porcelana. Um suave brilho amarelo vinha de luzes embutidas no teto. Sons de floresta tropical saíam baixinho das caixas de som.

– Vou deixar que vocês se acomodem – disse Sofia, afetadamente, e fechou a porta.

Na mesma hora Madeline deixou o roupão cair no chão, ajustou os lacinhos de seu biquíni preto e subiu a miniescada de plástico para entrar na banheira.

– Você vem? – perguntou ela a Emma, olhando-a por cima do ombro.

Emma abriu seu roupão e entrou cuidadosamente na banheira. A argila tinha uma textura grossa e granulada. Era como estar sentada dentro de uma grande tigela de mingau de aveia. Madeline recostou a cabeça, uma expressão de êxtase em seu rosto. Sofia reapareceu e colocou fatias de pepino sobre os olhos das garotas.

– Aproveitem – cantarolou ela, diminuindo as luzes, aumentando o volume dos sons de floresta tropical e fechando a porta.

A argila borbulhava. Emma tentou aproveitar o momento. As fatias de pepino tinham um aroma fresco perto de seu nariz, mas a música da selva gritava tão alto nas caixas de som que era difícil relaxar. O som de chuva forte se transformou no de tambores tribais, seguidos por um inseto zumbindo. Pássaros piavam e crocitavam. Uma flauta africana tocava. Quando um macaco soltou um berro, Emma começou a rir. Ela escutou um resfolegar vindo do outro lado da banheira e tirou os pepinos dos olhos. Madeline mantinha os lábios fechados com força, como se ela estivesse se esforçando muito para não rir, o que só fez os ombros de Emma se sacudirem ainda mais. Então dois macacos começaram a guinchar juntos. Emma explodiu em uma gargalhada, e Madeline também. Emma cobriu a boca, sujando o rosto todo de argila. Um pepino caiu de um dos olhos de Madeline e se estatelou no líquido escuro.

– Cara – disse Madeline, entre uma risadinha e outra. – Acho que os macacos estão transando.

– É definitivamente um chamado de acasalamento símio – concordou Emma, jogando uma bolha de argila em Madeline.

As duas se ajeitaram novamente na argila, de vez em quando soltando mais uma risadinha ou um grunhido. Então Madeline tomou um longo gole do copo de água com limão, colocado perto de sua cabeça, e suspirou.

– Então, o que houve com você essa semana? Você parecia meio... sedada. Como se tivessem aumentado a dose dos seus remédios.

Pelo menos alguém tinha percebido alguma coisa diferente em mim.

– Eu estou bem – respondeu Emma. – Cansada, só isso. A escola sempre me faz querer hibernar.

– Bom, é melhor acordar, ursinha. – Madeline apontou para ela acusadoramente. – Seu público vai ficar muito decepcionado se você não se comportar como uma estrela de rock no seu aniversário. E por seu público quero dizer eu.

– Vou tentar não decepcionar – respondeu Emma, rindo.

O vapor subia para seus rostos, com um cheiro levemente sulfúrico. Alguém passou lá fora, sua cabeça indistinta através das portas de vidro fumê. Emma respirou fundo. Lá vamos nós.

– Se alguém parece que não anda tomando os remédios direito, é a Charlotte. Não acha?

Com um sacudir de cabeça, Madeline tirou uma mecha de cabelo dos olhos.

– Ela não está mais estranha do que o normal.

O quadril de Emma começou a coçar, mas ela não queria colocar a mão dentro da argila.

– Você sabe onde ela estava na véspera da festa da Nisha?

Madeline deu de ombros.

– Você acha de verdade que eu vou me lembrar de alguma coisa que aconteceu há mais de uma semana? Meu cérebro fritou nessa primeira semana de aula.

Mas Emma percebeu que Madeline não a olhava nos olhos. Ela mexia nervosamente com uma pulseira em seu pulso.

– Char e eu íamos sair aquela noite, e ela furou – mentiu Emma, pensando com rapidez. – Às vezes eu acho que ela está furiosa comigo. Vive fazendo esses comentários sobre o Garrett. Acho que ela estava espionando a gente no sábado.

E talvez também tramando para me matar, acrescentou mentalmente. Assim como matou Sutton.

Um músculo próximo ao olho direito de Madeline contraiu-se. O vapor formava redemoinhos ao redor de seu rosto.

– Não acho que ela esteja zangada com você. Deve estar só preocupada com o Garrett.

– Preocupada? Por quê?

A argila espirrou quando Madeline mudou de posição.

– Ah, qual é, Sutton. Você não é exatamente legal com os garotos. Você parece que destrói todo cara que toca.

– Eu não. – A voz de Emma falhou.

Mas as palavras de Madeline me abalaram. Eu queria que ela estivesse errada, só que... talvez não estivesse. Eu não sabia mais no que acreditar em relação a mim mesma.

Madeline torceu o nariz, indignada.

– Pense em todos os caras do ano passado. Você praticamente forçou o Brandon Crawford a terminar com a Sienna no baile e depois não retornou as ligações dele. Agiu como se estivesse morrendo de vontade de sair com o Owen Haas, depois tratou o cara como lixo. E o Thayer – acrescentou ela.

Thayer? Será que ele tinha ido embora por causa de Sutton?

Eu fiz de tudo para me lembrar, para sentir alguma coisa. Nada veio à tona.

Madeline encarou Emma sem piscar. De repente a sala pareceu muito pequena e apertada. Emma baixou os olhos para as quatro fatias de pepino que flutuavam na superfície da argila.

De súbito, Madeline saiu da banheira. A gosma marrom pingava de sua barriga e de suas pernas.

– O que está fazendo? – perguntou Emma, começando a se levantar.

– Esqueci completamente. – Madeline pressionou uma toalha contra a cabeça. – Eu devia estar na casa do meu pai, agora mesmo. A Laurel pode vir buscar você? – Enquanto falava, ela afastava-se de Emma. Havia espessas manchas marrons na toalha, nos pontos onde ela tinha secado os braços.

– Espere, Mad... O que está acontecendo?

Emma tateou através da argila em direção às escadas. Aquilo era exatamente como o sonho perturbador que ela tinha às vezes, no qual ficava tentando correr, apenas para perceber que a estrada era uma calçada que se movia para trás.

Madeline já tinha enfiado os braços nas mangas do roupão.

– Falo com você na escola amanhã, ok? – resmungou ela com pressa, depois escapou para o corredor, deixando pegadas enlameadas por todo o chão de azulejos.

A porta se fechou outra vez. Os únicos sons na sala eram os ocasionais arrotos da argila; até os sons da floresta tropical tinham cessado. Emma saiu da banheira e pressionou uma toalha contra o rosto. O que fora aquilo, afinal? E o que Sutton fizera a Thayer?

No momento em que ela estava pegando uma segunda toalha na mesa, algo no piso chamou sua atenção. Era um iPhone. Ela virou o aparelho e inspecionou a parte de trás. Havia um adesivo brilhante de uma garota com chifres de diabo fazendo uma pirueta. MÁFIA DO LAGO DOS CISNES. O iPhone de Madeline.

Emma olhou de relance para as pegadas enlameadas de Madeline, depois para a porta, e então de volta para o telefone. Enxaguou as mãos na pia da bancada e respirou fundo. Será que ela devia fazer aquilo?

– Sim! – gritei para ela o mais alto que pude.

Emma deslizou a barra da tela do iPhone para desbloqueá-lo. Com as mãos trêmulas, pressionou o pequeno ícone de balão de pensamento para abrir as mensagens de Madeline. A primeira da lista era dela própria, convidando-a para o spa naquele dia. Havia um monte tratando do trote de Nisha: Laurel escrevendo para dizer que encontrara a atriz perfeita para fazer a policial, Charlotte perguntando se Madeline podia comprar sangue falso na loja de artigos para Halloween que havia no shopping. Emma retrocedeu pelas mensagens mais recentes. Havia algumas das garotas discutindo como iriam à festa de Nisha na semana anterior, ainda que não houvesse nada sobre um falso sequestro.

Passos soaram do outro lado da porta, e Emma congelou. Quem quer que fosse, assobiava suavemente ao passar. Emma segurou com força o iPhone. Em seguida, tocou a tela para ver as imagens de Madeline. A foto de uma guitarra elétrica surgiu. Emma puxou a tela para a esquerda. Havia uma foto de duas bailarinas no palco, uma delas era Madeline. Uma foto do mostruário de bijuterias da Anthropologie. Uma foto de Madeline e Sutton em chaise-longues.

Ela avançou por fotos e mais fotos: um autorretrato de Madeline em um espelho de corpo inteiro. Sutton, Madeline e Charlotte perto de um ofurô ao ar livre; Sutton e Madeline em biquínis mínimos, mas Charlotte em uma saída de praia atoalhada.

Eu me aproximei, reconhecendo a cena imediatamente. Meu corpo tremeluzia diante de mim, como se estivesse estremecendo. Aquela era a foto que eu tinha tirado de nós todas nas fontes termais. Minhas palavras retiniam em meus ouvidos. Hora da foto! E quando Laurel reclamou que não tinha aparecido, eu tinha aberto um sorriso afetado e dito Foi de propósito.

Emma continuava de olho na porta, os dedos tremendo. Ela passou para a imagem seguinte. Era no mesmo lugar escuro, e mostrava Sutton correndo atrás de Laurel por um caminho escuro.

Laurel!, eu gritara. Eu compro outro colar para você, ok? Meros segundos depois, aquela faca tinha sido pressionada contra minha garganta.

Quando a foto seguinte apareceu na tela, Emma franziu a testa. Era um close de Laurel sentada em uma grande rocha vermelha, o sol nascendo atrás dela. Havia um pingente redondo em uma corrente prateada pendurada em seu pescoço. Com as mãos trêmulas, Emma puxou a corrente que ela própria agora carregava e examinou o relicário. Era exatamente igual ao da foto.

– Ah, meu Deus – sussurramos eu e Emma ao mesmo tempo.

Emma se perguntou o que Laurel estava fazendo com o relicário de Sutton – o mesmo que alguém havia usado para a estrangular. Seria possível...?

Seria. Afinal, eu tinha jogado o dela dentro do bosque. A única coisa que não fazia sentido naquele momento era, bem, por quê? Por que minha própria irmã desejaria me matar? Eu obviamente não fora a melhor irmã do mundo quando estava viva – mas poderia ter sido tão ruim assim?

A maçaneta se mexeu. Emma largou o iPhone. O aparelho caiu sobre uma pilha de toalhas na hora exata em que Madeline abriu a porta. Ela já tinha vestido sua calça jeans skinny, sua bata listrada e seu cinto largo.

– Eu estava procurando... ah. – Seu olhar recaiu sobre o iPhone no chão.

– É. – Emma tentou sorrir, mesmo que suas entranhas estivessem gritando. – Também acabei de ver. Já estava indo atrás de você.

Madeline pegou o telefone e o enfiou no bolso.

– Obrigada.

Ela encarou Emma, que prendeu a respiração.

Mas então Madeline virou-se rapidamente e abriu a porta.

– Vejo você na escola amanhã.

E passou depressa pela porta outra vez, seu cabelo comprido adejando. Emma se recostou contra a lateral da banheira e girou o relicário redondo de Sutton entre os dedos.

Eu me sentia mais confusa do que nunca. O que quer que estivesse acontecendo, era exatamente como um banho de argila. Quanto mais fundo minha irmã mergulhava, mais escuro e mais sujo ficava.


23

ALGUÉM FOI UMA MENINA MUITO, MUITO MÁ...

– Assim, como vocês estão vendo, Medeia tinha que matar os filhos – explicava a sra. Frost para a turma na quarta-feira. Ela andava pela sala como se fosse uma grande advogada de defesa rogando pela vida de uma vítima inocente. – Era a única maneira de se vingar do marido, Jasão, por sua traição.

A turma inteira anotava. De repente, Emma sentiu uma vibração dentro de sua bolsa. Enfiou os dedos na bolsa até sentir as laterais lisas do iPhone. Qualquer coisa seria uma distração bem-vinda da versão obsessiva da sra. Frost para Medeia. Algo na impetuosidade das interpretações literárias da professora de inglês levava Emma a se perguntar se a sra. Frost tivera um marido não muito fiel.

– Srta. Mercer? – vociferou uma voz. Emma levantou os olhos e viu a sra. Frost parada bem diante de sua carteira. Ela balançava seu exemplar gasto do livro para Emma. – Largue o telefone agora mesmo, ou vou tomá-lo pelo resto do ano.

Emma levantou as duas mãos vazias no ar.

– Eu me rendo. – Todos riram.

Felizmente, o sinal tocou nessa hora, e inglês era a última aula do dia. Emma escapuliu para o corredor, olhando a tela do iPhone para ver quem tinha ligado. Mesmo depois de todo aquele tempo, mesmo sabendo o que sabia, ela ainda carregava uma pequena semente de esperança de que a nova mensagem podia ser de Sutton.

Mas era apenas um e-mail da mãe de Sutton. CARDÁPIO FINAL DA FESTA DE ANIVERSÁRIO era o assunto. Emma examinou a lista de crudités, aperitivos e sobremesas. PARECE BOM, ela começou a escrever como resposta, mas então percebeu que havia cupcakes de cenoura na lista. Bolo de cenoura sempre lhe causara nojo – as passas a lembravam cocô de rato. MELHOR TROCAR POR CUPCAKES VELUDO VERMELHO, digitou na tela.

Nos corredores apinhados, alunos esvaziavam seus armários, e garotos em uniformes esportivos dirigiam-se às pressas para seus jogos. Um grupo de garotas que Emma não reconheceu estava no canto perto do armário de troféus, cochichando. Emma olhou rapidamente pelo corredor, seu coração pulando sempre que via uma cabeça loura que se parecia com a de Laurel ou uma silhueta esbelta como a de Madeline. Ela evitara as amigas e a irmã de Sutton o dia todo, alegando que tinha um trabalho de fotografia para fazer durante o almoço – “Usando o Photoshop para desenhar monocelhas nas fotos do anuário outra vez, Sutton?”, brincara Charlotte –, e ignorara suas mensagens raivosas. A ideia de encará-las naquele momento fazia sua pele coçar. Por que Laurel teria usado o relicário de Sutton? E por que Madeline tinha tirado aquela foto? Seria uma espécie de troféu?

Emma enfiou-se no banheiro feminino para jogar um pouco de água no rosto. Quando foi pegar papel-toalha, uma mão tocou seu ombro. Emma soltou um gritinho e virou-se.

– Nossa. – Nisha estava a seu lado na pia, protegendo o rosto com a mão. – Nervosa, hein?

Emma virou-se de volta e, tremendo, girou a torneira.

– Ah. E aí?

Nisha colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha.

– Você já esqueceu?

– Esqueci o quê?

Nisha botou as mãos na cintura e encarou Emma com desprezo.

– De decorar os armários? Todos os capitães fazem isso no começo de cada ano!

Emma piscou. Como ela saberia aquilo?

– Argh. – Nisha soltou um som de frustração do fundo da garganta. – Sabe, ninguém consegue fazer todo o trabalho sozinho. Algumas pessoas estão ocupadas se inscrevendo em faculdades.

Emma se endireitou. Ei.

– Eu quero fazer faculdade – disse ela, indignada. – Quero ir para a USC.

Nisha hesitou por alguns instantes, como se estivesse esperando o desfecho da piada. Então começou a gargalhar.

– Essa é a coisa mais engraçada que eu ouvi hoje.

Ela abriu a porta do banheiro com um empurrão e seguiu pelo corredor em direção ao vestiário da ala de esportes. Emma a seguiu. Nisha andava rapidamente. Seu rabo de cavalo balançava de um lado para o outro, e suas mãos estavam fechadas com força. Elas dispararam degraus abaixo e passaram rapidamente por Jason e Kendra, o casal espinhento que vivia aos amassos debaixo das escadas. Ao passar, Emma percebeu que a mão de Jason tinha sumido sob a blusa de Kendra.

Decidida, Nisha entrou no vestiário, passando por várias garotas que vestiam seus maiôs, seus uniformes de esgrima e suas saias de líder de torcida e dirigindo-se diretamente para a pequena sala privada. Pilhas de cartolina, canetinhas, areia em cores vivas e adesivos ocupavam a maior parte da ampla e gasta mesa. Um frasco de purpurina vermelha tinha virado, espalhando minúsculos fragmentos cintilantes por todo o chão. Emma fantasiou que era sangue de fada.

Vinte e cinco etiquetas de nomes, um para cada menina da equipe de tênis, tinham sido dispostas no meio da mesa. “Brooklyn Killoran” estava escrito em nuvens cor-de-rosa e rodeado de adesivos de estrelas cadentes. Um pedaço preto de cartolina exibia “Isabella McSweeny” escrito a tinta que brilhava no escuro. Nisha desenhara flores brotando de cada uma das letras de “Laurel” e traçara arabescos nas bordas. E então Emma notou a etiqueta de Sutton: seu nome estava escrito com letras simples, em um quadrado branco. Não havia purpurina, tinta em alto-relevo ou adesivos dizendo VAMOS LÁ!, ou CRAQUE!. Mais parecia uma etiqueta de nome numa cela de prisão.

– Eu praticamente já acabei. – Nisha pegou a etiqueta que estava mais perto dela, a que exibia o nome Amanda Pfeiffer. – Mas você pode ajudar a colocar nos armários, se acha que consegue.

– Quando você fez isso? – perguntou Emma.

– No final de semana. – Com um peteleco, Nisha tirou uma partícula de purpurina do pulso.

– Por que não me pediu ajuda?

Nisha encarou Emma por um instante, e então soltou uma penetrante risada de bruxa.

– Como se eu fosse pedir a sua ajuda em alguma coisa.

Ela puxou uma das etiquetas da mesa, derrubando alguns lápis de cera no chão. Quando Nisha passou pela galeria de tênis, Emma percebeu que pequenas manchas de sangue falso, do trote da semana anterior, cobriam as paredes, os armários e o chão. Nisha parou bem em cima de uma delas para prender a própria etiqueta – seu nome fora desenhado ao redor de duas raquetes de tênis entrelaçadas – na porta de seu armário.

Emma mordeu o lábio.

– Desculpe pelo que fizemos na semana passada.

Nisha passou calmamente para o armário seguinte e pendurou a etiqueta de Bethany Howard.

– Não importa – respondeu ela, indiferente.

– Você não merecia aquilo – continuou Emma.

Ela queria acrescentar que talvez também não merecesse que Nisha lhe tivesse reservado um uniforme de tênis tamanho infantil na semana anterior, mas provavelmente seria forçar a barra.

Nisha arrancou um novo pedaço de fita crepe e virou-se novamente para encarar Emma. Seus olhos estavam furiosos.

– Aquele sangue falso idiota arruinou o meu casaco de tênis preferido. – Ela apontou severamente para o peito de Emma. – Aquele casaco era da minha mãe. Eu tive que jogá-lo fora por causa de vocês.

Emma deu um passo para trás, pisando no protetor bucal de alguém. Mas enquanto Nisha estava ali parada, fervilhando de raiva, Emma percebeu que não havia apenas raiva em sua voz. Havia tristeza.

Com os ombros curvados e a boca contraída, Nisha parecia pequena e nova. Emma se perguntou como a mãe dela morrera. Era o tipo de pergunta que a Antiga Emma teria feito. Muitas crianças que estavam sob cuidados temporários tinham perdido os pais. E, mesmo que Emma soubesse que nunca teria certeza do que tinha acontecido com Becky, às vezes se sentia como uma dessas crianças. Às vezes, ainda que se sentisse culpada em admitir até para si mesma, ela desejava que Becky tivesse morrido, porque isso significaria que ela não a tinha abandonado por escolha própria.

Senti uma pontada de culpa por tudo o que eu obviamente tivera em minha vida, mas parecia não dar valor. Houvera perdas à minha volta, mas a morte não parecera algo que pudesse tocar uma garota como eu. Eu estava muito enganada.

Suspirando, Emma pegou a etiqueta sem graça de Sutton e a prendeu na porta de seu armário. Ficou patética perto das outras, todas chamativas e alegres. Após um instante, ela puxou a maçaneta e observou mais uma vez o conteúdo do armário de tênis de Sutton. Uma jaqueta brilhante do time pendia de um cabide. Uma garrafa vazia de água Propel estava amassada no fundo. Havia um par de meias esportivas enrolado na prateleira superior, encrustada de suor. Emma queria poder contar a Nisha que também perdera a mãe.

Nisha rasgou mais fita e pendurou silenciosamente mais etiquetas. Emma ia fechar o armário, mas hesitou. Alguma coisa fazia volume no bolso da frente da jaqueta do time. Após um instante, ela enfiou a mão ali e tirou um grande guardanapo de papel dobrado. Do lado de dentro havia um bilhete escrito em caligrafia masculina desleixada: Oi, Laurel! E o desenho de uma carinha sorridente segurando uma caneca de cerveja espumante, com olhos bêbados saltados e uma língua pendente. Estava assinado Thayer.

– O que é isso?

Emma virou-se rapidamente. Nisha estava bem atrás dela, seu hálito gelado de pastilhas Altoid bem no pescoço de Emma. Ela começou a dobrar o guardanapo antes que Nisha pudesse vê-lo, mas os olhos dela já tinham se estreitado, lendo as palavras.

– Então você também rouba os bilhetes da sua irmã?

Emma ficou perplexa.

– Eu...

Nisha apontou o dedo para ela.

– Eu soube que a Laurel quis te matar pelo que você fez.

– Me matar? – repetiu Emma.

Ela se lembrou da foto de Laurel usando o cordão de Sutton, que ela vira no iPhone de Madeline.

Nisha a observava atentamente. Um minúsculo brilho preso a sua bochecha cintilava sob a luz sobre suas cabeças.

– Não se faça de boba, Sutton. Você sabia que a Laurel tinha uma queda por ele.

Emma piscou. Mas, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Nisha girou nos calcanhares e voltou para a salinha, deixando em seu rastro uma trilha de purpurina vermelha.

E deixando Emma e eu desesperadas para saber mais.


24

TODA GAROTA ACHA QUE A IRMÃ QUER MATÁ-LA, NÃO É?

Na quinta-feira, depois de mais um horrível treino de tênis, Emma se sentou na cama de Sutton com um caderno e um lápis no colo. Extra, extra, escreveu ela. Garota tenta encontrar o assassino da irmã gêmea. Intenso demais para colocar em palavras.

Ela largou o lápis no colchão e fechou os olhos. Tinha esperanças de que escrever aquilo como uma manchete de jornal poderia colocar a situação em perspectiva, fazê-la parecer mais normal. Mas nada daquilo era normal. Decidiu escrever outra lista, enumerando as amigas de Sutton e os motivos potenciais para cada uma delas querer matá-la. Já devia ter feito umas dez versões da mesma lista até então, rabiscadas em cadernos, amassadas em latas de lixo ou usando abreviações no próprio iPhone de Sutton, que de certa forma era a mais irônica de todas. O problema era que todas as integrantes do Jogo da Mentira tinham motivos – Charlotte, por Sutton ter roubado Garrett; Laurel, por Sutton ter... bem, ter feito alguma coisa com Thayer. Será que isso também não enfurecera Madeline?

O antigo celular de Emma apitou de seu esconderijo embaixo da cama. Ela colocou de lado o caderno e esticou a mão para baixo para pegá-lo. Depois de usar um iPhone novo, seu BlackBerry lhe parecia velho e gasto. Era como ver um vira-lata vagando na rua depois de passar algum tempo exclusivamente com reluzentes cães de competição.

Alex lhe enviara uma mensagem de texto: TUDO BEM NA TERRA DAS IRMÃS?

CLARO, respondeu Emma. Ela já nem se incomodava mais por mentir. Ela e Alex tinham trocado mensagens de texto mais algumas vezes durante a semana, e Emma não revelara absolutamente nada sobre o que estava acontecendo de fato. Pelo que Alex sabia, Emma estava hospedada com os Mercer enquanto ela e Sutton se conheciam, exatamente como em um conto de fadas.

Uma resposta apitou de imediato na caixa de entrada de Emma: E AS COISAS QUE VC DEIXOU NAQUELE GUARDA-VOLUMES? VAI PEGAR OU QUER QUE EU MANDE PRA VC?

Emma deixou-se cair na cama outra vez e apertou o rosto. Ela não tinha ideia do que fazer com aquelas coisas que deixara no guarda-volumes – muito menos com o dinheiro. PODE DEIXAR LÁ POR ENQUANTO, respondeu.

Nesse momento, a porta do quarto se abriu lentamente. Emma virou-se na cama, enfiando o BlackBerry embaixo de um travesseiro. Laurel apareceu à porta. A sra. Mercer estava atrás dela com uma cesta de roupas nos braços.

– Tá fazendo o quê? – perguntou Laurel, entrando no quarto.

As bochechas de Emma ficaram quentes.

– Já ouviu falar em bater na porta?

A expressão de Laurel se desfez.

– Desculpe.

– Seja gentil, Sutton – ralhou a sra. Mercer.

Ela foi até a cômoda de Sutton e deixou uma pilha de roupas perto da TV. Entre elas estava o vestido listrado de Emma. Emma queria agradecer a ela – ninguém lavava suas roupas havia anos –, mas tinha a sensação de que aquilo era algo que a sra. Mercer fazia para Sutton o tempo todo.

Laurel ficou por ali depois que a sra. Mercer saiu do quarto. Emma ajeitou o cabelo para trás das orelhas. A adrenalina percorria suas veias, e suas mãos começaram a tremer. Ela só conseguia pensar na foto de Laurel usando o cordão de Sutton.

– O que você quer? – perguntou ela.

– Queria saber se você está pronta para fazer as unhas no Mr. Pinky. – Laurel botou as mãos na cintura. – Quer dizer, se ainda quiser ir.

Emma olhou inexpressivamente para a poltrona ovo no canto. Ainda estava coberta com os biquínis e meias que Sutton tinha deixado ali antes de morrer; Emma não tivera coragem de mexer em nada daquilo. Depois do comentário vago de Nisha na noite anterior, ela tinha entrado na conta do Facebook de Sutton e examinado mais uma vez a página de Laurel. Emma tinha entendido antes que Laurel e Thayer eram amigos, mas não imaginara que ela gostasse dele. Mas, conforme relembrava as fotos, ficava óbvio. Em todas as fotos de grupo, Laurel estava perto de Thayer. Em uma foto na qual Thayer ria de alguma coisa com Charlotte, Laurel espreitava ao fundo, olhando para ele. Um link do YouTube mostrava Thayer e Laurel dançando tango em um baile da escola. Quando Thayer a baixou, ela exibia um sorriso satisfeito e encantado no rosto. Era o sorriso de alguém que queria algo mais que amizade. Mas em maio, um mês antes de Thayer supostamente fugir de casa, as mensagens do mural entre os dois cessaram abruptamente. Não havia mais imagens de Laurel e Thayer juntos. Era como se alguma coisa – ou alguém – os tivesse afastado.

Não se faça de boba, Sutton, dissera Nisha. Você sabia que ela tinha uma queda por ele. E havia o diário de Sutton, que escrevera, em 17 de maio: L. ainda arrasada por causa de T. Que isso, gata. É só um garoto. T. obviamente era Thayer. Mas não havia respostas fáceis. Ninguém tinha escrito exatamente o que acontecera.

E eu não me lembrava de nada. Esperava não ter feito alguma coisa que houvesse magoado minha irmã mais nova, mas realmente não sabia.

Emma observou Laurel pegar um frasco de perfume na cômoda de Sutton e o cheirar. Ela sorria simpaticamente, como se não tivesse uma célula de maldade no corpo. Então Emma pensou no grou que Laurel tinha colocado em seu prato na semana anterior. Talvez ela estivesse tirando conclusões precipitadas. Só porque Nisha dissera que Laurel a mataria, não significava que ela o fizera. É apenas algo que as pessoas dizem por dizer. E talvez houvesse uma boa razão para Laurel estar usando o relicário de Sutton naquela foto que Emma vira no telefone de Madeline. O mesmo relicário agora pendia do pescoço de Emma.

– Vou só vestir uma calça – decidiu Emma.

Laurel sorriu.

– Encontro você lá embaixo. – Mas antes de chegar à porta, ela parou e arregalou os olhos para alguma coisa na cama. – O que é aquilo?

Emma seguiu seu olhar e entrou em pânico. Seu caderno estava aberto sobre o colchão, virado para cima. Rabiscadas na primeira folha estavam as palavras Garota estrangulada em mansão. Talvez tenham sido as amigas. Ela pegou rapidamente o caderno e cobriu-o com a mão.

– É só um trabalho para a escola.

Laurel hesitou por um momento.

– Você não faz trabalhos para a escola! – E, balançando a cabeça, saiu do quarto. Mas antes de descer as escadas lançou mais um olhar para Emma.

De onde eu observava, era difícil dizer se era um olhar interrogativo... ou algo mais.

O Mr. Pinky era um salão pequeno escondido no sopé das colinas, em um centro comercial que também tinha uma loja de iogurtes orgânicos, uma creche holística para gatos e um lugar que anunciava ULTRALIMPEZA DE CÓLON! PERCA 2KG EM QUESTÃO DE MINUTOS! na vitrine. Pelo menos Laurel não a tinha arrastado para lá.

O salão era parte spa de luxo, parte Jornada nas estrelas. Todas as manicures usavam macacões colados que supostamente deveriam ser modernos, mas para Emma parecia que elas estavam prontas para embarcar em uma nave espacial e pilotar o salão inteiro para a Nebulosa do Caranguejo.

As duas jovens se jogaram em um macio sofá cinza para esperar.

– Então, pronta para a sua festa? – Laurel pegou da bolsa um hidratante labial e passou nos lábios.

– Acho que sim – mentiu Emma.

Mais cartões de RSVP estavam esperando no quarto de Sutton quando Emma chegara do tênis naquele dia. Todos diziam coisas como Mal posso esperar! e A festa do ano!

– Acho bom. – Laurel cutucou-a nas costelas. – Você está planejando isso há muito tempo! E o Garrett, já contou qual vai ser o seu presente?

Emma balançou a cabeça.

– Por quê? Ele contou para você?

O sorriso de Laurel se alargou, com ar de astúcia.

– Que nada. Mas eu ouvi rumores...

Emma beliscou um pedaço de tecido do sofá. O que havia de tão especial no presente de Garrett?

Secadores de unhas zumbiam do outro lado do salão. O cheiro de removedor de esmaltes e de creme de aloe vera para as mãos enchia o ar. Emma enfiou a mão na bolsa e tocou o bilhete que Thayer escrevera no guardanapo. Seu estômago se agitava de nervosismo. Ela pretendia tocar no assunto quando terminassem de fazer as unhas, mas não conseguia mais esperar.

– Laurel? – Laurel levantou os olhos e sorriu. Emma colocou o guardanapo na almofada vazia entre elas. – Encontrei isso no meu armário de tênis.

Uma ruga se formou entre as sobrancelhas de Laurel enquanto ela olhava para a carinha sorridente e bêbada de Thayer. Seus dedos mexiam num pequeno furo em sua calça jeans. Houve um abrupto som de algo se rasgando, e de repente o furo se abriu.

– Ah – sussurrou ela.

– Me desculpe. – A voz de Emma tremia. – Não sei como foi parar lá. – Tecnicamente, não era mentira.

Laurel amassou o bilhete em sua mão e olhou sem expressão para os frascos multicoloridos de esmalte na prateleira. Emma segurou com força o braço do sofá. Será que Laurel ia explodir? Gritar? Persegui-la com uma tesourinha de unha?

– Relaxa – disse finalmente Laurel. – Até parece que eu não tenho um milhão de bilhetes do Thayer iguais a esse no meu quarto.

Então ela pegou seu iPhone calmamente para acessar o e-mail.

– Você sente saudades dele? – soltou Emma.

Laurel continuou a digitar em seu iPhone.

– Claro. – Sua voz não se elevou nem baixou de tom. Era como se estivessem falando sobre a diferença entre manteiga de amendoim cremosa e crocante. Então ela indicou com a cabeça a garrafa de Snapple que Emma pegara na geladeira dos Mercer. – Posso tomar um pouco?

Emma deu de ombros, e Laurel tomou um longo gole. Assim que ela recolocou a garrafa na mesinha de centro, seus ombros começaram a convulsionar. Sua cabeça arremessou-se para trás e ela caiu sobre o sofá. Agarrou o próprio pescoço e olhou para Emma com olhos apavorados e esbugalhados.

– Eu... não... consigo...

Emma ficou de pé de um salto.

– Laurel? – Laurel fez um som de engasgo, curvou-se uma vez e ficou inerte. Seu cabelo louro espalhava-se sobre a almofada do sofá. Sua mão direita se contorcia em espasmos. – Laurel? – gritou Emma. – Laurel? – Ela balançou os ombros.

Os olhos de Laurel estavam cerrados. Sua boca estava aberta, mole. O iPhone que ela segurava se soltou lentamente de sua mão e caiu no carpete com um baque.

– Socorro! – gritou Emma. Ela se inclinou para ver se Laurel respirava. Nenhum som saía dos seus lábios. Emma apertou com os dedos o pulso de Laurel. – Acorde – insistiu, sacudindo-a, ao que a cabeça da garota se agitou como a de uma boneca de pano. Suas grandes pulseiras prateadas tilintavam todas ao mesmo tempo.

Emma ficou de pé em um salto e olhou em volta. Uma garota negra as encarava de uma cadeira do outro lado do salão, uma Vogue no colo. Uma pequena mulher hispânica correu até as duas.

– O que houve?

– Não sei – disse Emma freneticamente.

– Ela está grávida? – sugeriu a mulher.

– Acho que não...

– Ei. – A hispânica sacudiu o braço de Laurel. – Ei! – gritou em seu rosto, dando-lhe um tapa na bochecha.

Emma encostou o ouvido à boca de Laurel novamente. O tópico sobre respiração boca a boca, das suas aulas do sexto ano, lhe veio à mente. Tem que apertar o nariz e respirar dentro da boca ou o contrário?

Então algo frio e molhado tocou o lóbulo de sua orelha. Emma se afastou, alarmada. Seria... uma língua? Ela encarou o rosto de Laurel. E então, de repente, os olhos da menina se abriram.

– Bu!

Emma gritou. Laurel caiu na gargalhada.

– Eu total enganei você! Você achou que eu tinha morrido!

A mulher fez um estalido de desagrado com a língua.

– Você enganou todos nós! Qual o seu problema? – E afastou-se rapidamente, balançando a cabeça.

Emma endireitou-se. Sentia seu coração como uma bandeira agitando-se freneticamente ao vento.

Laurel ajeitou a camiseta, suas bochechas ganhando cor.

– Você soube me ensinar, irmãzinha. Mas nunca pensei que fosse cair numa pegadinha tão boba! – Então ela se levantou, colocou a bolsa no ombro e foi até a parede de esmaltes para escolher a cor.

Emma encarava as costas retas e esbeltas de Laurel; sua cabeça girava. Uma forma inovadora de fugir do assunto Thayer, definitivamente. Mas alguma coisa a perturbara. Uma garota cuja irmã mais velha fizera algo para arruinar suas chances com o garoto de quem gostava não se limitaria a deixar aquilo para trás com uma simples risada e uma pegadinha. Se alguém tivesse feito o mesmo com Emma, ela a repreenderia. Se defenderia. Revidaria.

E então Emma levantou a cabeça. As luzes quentes do teto queimavam seu couro cabeludo. Ela conseguia imaginar uma razão para Laurel não estar mais zangada.

Pensei isso exatamente ao mesmo tempo: talvez Laurel já tivesse conseguido sua vingança.


25

UM ACRÉSCIMO DE ÚLTIMA HORA À LISTA DE CONVIDADOS

“Eu quero conseguir adivinhar, Pat,” dizia na TV uma daquelas “supermães” de sorriso colado no rosto. A tela passou a exibir uma tomada do painel da Roda da Fortuna. Quase todas as letras já tinham saído, faltava só uma. “Colhendo flores frescas?”

Uma música triunfante tocou enquanto Vanna virava a última letra. A supermãe pulava sem parar, em êxtase por ter ganhado 900 dólares. Já era tarde na noite de quinta-feira, e Emma estava na cama de Sutton, assistindo a uma reprise do programa no Game Show Network. Roda da Fortuna normalmente a acalmava. Lembrava-lhe dos tempos em que assistia com Becky, na gasta poltrona La-Z-Boy – ela praticamente conseguia sentir o cheiro do lanche para viagem do Burger King e ouvir Becky gritando as respostas e criticando o vestido de lantejoulas de Vanna.

Mas agora, quando via aquela roda na tela, Emma só conseguia pensar que parecia uma metáfora para sua vida – uma roda do acaso. Risco ou recompensa. Uma das gêmeas ficando com a vida boa, a outra ficando com a ruim. Uma morrendo, a outra continuando viva. A gêmea viva escolhendo entre perseguir a pessoa que ela tinha quase certeza de que matara sua irmã... ou cair fora discretamente.

Laurel matou Sutton.

Esse pensamento aparecia em sua mente toda hora e ainda assim causava-lhe um novo sobressalto a cada vez. Ela agora tinha certeza. Todos os sinais apontavam para Charlotte antes, mas agora Laurel parecia ser a única resposta. Quando chegara em casa, ela tinha procurado mais pistas, e coisas demais se conectaram: a conta do Facebook de Sutton estava em preenchimento automático, o que significava que Laurel podia ter entrado sorrateiramente no quarto da irmã, acessado a conta, encontrado a mensagem de Emma e escrito uma ávida resposta, chamando-a a ir até ali. E também havia o bilhete de SUTTON ESTÁ MORTA que Laurel tinha encontrado em seu carro. Além de um pouquinho de pólen no canto, o papel não mostrava rugas, dobras ou marcas de sujeira como deveria caso Laurel realmente o tivesse tirado de sob o limpador de para-brisa de seu carro. E, na verdade, Emma não tinha visto o bilhete preso no carro – como ter certeza de que Laurel não tinha mentido sobre o fato de alguém tê-lo deixado ali? Ela poderia facilmente tê-lo tirado da bolsa.

Laurel estava na casa de Charlotte aquela noite. Dormira perto de Emma no imenso quarto de Charlotte, portanto facilmente teria notado quando Emma descera para buscar água. Ela podia tê-la seguido discretamente e a estrangulado com o relicário de Sutton. E por falar naquele relicário, no telefone de Madeline havia a foto de Laurel usando-o. Parecia idêntico ao que agora estava no pescoço de Emma.

Pareciam idênticos para mim também. Pensei nas lembranças que eu guardava naquele momento. Em como eu perdera a cabeça com uma rapidez incrível, lançando seu cordão de imitação para a mata escura. A expressão arrasada de Laurel. Então pensei naquelas mãos me agarrando e me jogando dentro do carro. O porta-malas era pequeno e apertado, provavelmente compatível com o do Jetta de Laurel.

Mas eu continuava me lembrando do dia em que Laurel e eu ríamos juntas na piscina do La Paloma. De mãos dadas. Amigas. O que tinha nos afastado? Por que eu não tentara recuperar aquela relação? Eu não queria acreditar na possibilidade de Laurel ter me assassinado. E quanto à massa de cabelos ruivos que eu tinha visto através da venda quando o agressor me tirara do porta-malas? Será que meus olhos estavam me pregando peças?

Emma se levantou da cama e começou a andar pelo quarto. Ela ainda não tinha nenhuma prova concreta, mas o vídeo do assassinato só podia ter sido filmado na noite em que Sutton morrera. Fazia sentido. Talvez, ao tirar a venda da cabeça de Sutton, Laurel houvesse descoberto que ela não estava morta e tivesse enrolado o cordão no pescoço da irmã e terminado o serviço. Talvez o verdadeiro assassinato tivesse acontecido depois do momento em que o vídeo terminava... Se pelo menos o vídeo ainda estivesse no ar... seria o suficiente para fazer a polícia acreditar que o que Emma estava dizendo era verdade. E, afinal, como aquele vídeo fora parar na internet? Por que o assassino postaria algo que condenaria a ele próprio?

A não ser, é claro, que Laurel o tivesse colocado na internet para atrair Emma. Talvez, de alguma forma, ela soubesse que sua irmã adotiva tinha uma outra irmã; uma gêmea. E talvez soubesse que o vídeo chegaria aos olhos de Emma... que entraria em contato. Tinha acontecido.

Emma pousou as mãos abertas na parede lisa e branca. Uma música abafada vinha do quarto adjacente, que era o de Laurel. Pelo que Emma sabia, Laurel podia estar em seu quarto naquele exato momento tramando o que fazer em seguida. Emma foi até a TV e a desligou. De repente, pareceu-lhe perigoso permanecer tão perto da assassina. Ela se sentiu como uma prisioneira em seu quarto – uma prisioneira na vida de sua irmã morta. Abriu a porta bruscamente e se lançou escada abaixo. Quando estava prestes a abrir a porta da frente, alguém pigarreou atrás dela.

– Aonde você vai?

Emma virou-se. O sr. Mercer estava sentado no escritório, ao lado do vestíbulo, digitando em um netbook. Havia um fone Bluetooth em seu ouvido.

– Hã, vou caminhar um pouco – disse Emma.

O sr. Mercer a espiou por cima dos óculos.

– Já passou das 21 horas. Não gosto que você fique andando sozinha por aí no escuro.

Os cantos da boca de Emma se contraíram num sorriso. Pais temporários nunca tinham se importado com a hora em que ela chegava ou saía. Nunca se preocupavam com sua segurança. Até Becky deixava a filha perambular à noite – se estivessem em um hotel barato, ela mandava a pequena Emma ir até as máquinas de salgadinhos para comprar Mountain Dew e biscoitinhos em forma de peixinhos dourados.

Se bem que... ele não estava preocupado com a segurança de Emma. Estava preocupado com sua filha, Sutton. Emma não conseguia suportar encará-lo, sabendo que sua filha estava longe de estar segura, e que isso podia ser culpa de sua outra filha. Emma precisava dar o fora dali. Ela viu a raquete de tênis de Sutton encostada contra o armário do hall e a pegou.

– Preciso treinar meu saque.

– Tudo bem. – O sr. Mercer voltou-se para a tela do computador. – Mas quero você de volta em uma hora. Ainda precisamos discutir as regras para a sua festa.

– Tudo bem – gritou Emma.

Ela bateu a porta e correu pelo meio da rua. Todos tinham arrastado suas grandes latas de lixo verdes para o meio-fio, e o ar cheirava a legumes apodrecendo e fraldas sujas. Quanto mais se afastasse da casa de Sutton, melhor – mais segura – se sentia. Ela parou no parque, percebendo vagamente a silhueta de uma figura familiar deitada na quadra de tênis formando um X. Seu coração teve um alento.

– Ethan? – chamou ela. Ethan levantou-se ao ouvir sem nome. – Sou eu, Sutton!

– Legal encontrar você por aqui. – Estava escuro demais para ver o rosto de Ethan, mas Emma detectou alegria em sua voz. De repente, ela também se sentiu mais alegre.

– Posso ficar aqui junto com você?

– Claro.

Ela abriu o portão gradeado sem colocar moedas no aparelho para ligar as luzes. A porta bateu com um estrondo. Emma sentiu o olhar de Ethan sobre ela enquanto andava até a rede e deitava-se ao lado dele. A quadra ainda estava aquecida por causa do calor do dia e tinha um leve cheiro de asfalto cozido e Gatorade derramado. As estrelas brilhavam como partículas de quartzo em uma calçada. As estrelas Mamãe, Papai e Emma pulsavam logo abaixo da lua. Era frustrante que, mesmo depois de tanta coisa mudar, as estrelas estivessem exatamente no mesmo lugar de sempre, rindo dos conflitos inúteis de Emma na terra.

Lágrimas brotaram em seus olhos. Eram mesmo conflitos inúteis. Todas as fantasias que sua mente tinha forjado durante a viagem de ônibus até ali. Todos os bons momentos que ela imaginara para si própria e para Sutton como irmãs.

– Você está bem, Sylvia Plath? – provocou Ethan.

O ar ficara mais frio, e Emma aproximou os braços do corpo para se aquecer.

– Não muito.

– O que está acontecendo?

Emma passou a língua sobre os dentes.

– Nossa, sempre que vejo você estou completamente louca.

– Tranquilo. Loucas não me incomodam.

Mas Emma balançou a cabeça. Ela não podia contar a ele o que estava realmente acontecendo, por mais que quisesse.

– Meu aniversário é amanhã – disse ela, então. – Vou dar uma festa.

– É mesmo? – Ethan se ergueu um pouco, apoiando-se em uma das mãos. – Bom, feliz aniversário.

– Obrigada. – Emma sorriu na escuridão.

Ela acompanhou um avião que cruzava lentamente o céu noturno. Em alguns aspectos, aquele seria o melhor aniversário de sua vida; a maioria dos anteriores fora simplesmente nulo – tinha comemorado seus dezesseis anos sentada no escritório da assistência social, esperando para ser realocada em um novo lar temporário; e aos 11, estava morando como fugitiva com os garotos no acampamento. A única celebração verdadeira que teve foi quando Becky a levou para a feira medieval perto de onde moravam. Emma tinha percorrido lentamente um círculo montada num burrico, comido uma coxa de peru gigante e feito um brasão em cartolina verde-neon e turquesa, suas cores favoritas na época. A caminho do estacionamento, no final do dia, Emma perguntou se elas podiam fazer aquilo outra vez no seu aniversário seguinte. Mas no ano seguinte Becky tinha partido.

Emma olhou para o céu. Uma nuvem passou na frente da lua, escondendo-a por um instante.

– Você vai?

– Aonde?

– À minha festa. Quer dizer, se não tiver outro compromisso. E se quiser.

Emma mordeu a unha do polegar. Seu coração saltava no peito. De repente, convidá-lo parecia algo importante.

A lua iluminou o perfil anguloso de Ethan. Emma esperou pacientemente que ele decidisse. Se ele recusar, não fique chateada, disse a si mesma. Não leve para o lado pessoal.

– Ok – disse Ethan.

Emma sentiu seu estômago dar uma cambalhota.

– Mesmo?

– Claro. Eu vou.

– Legal! – Emma sorriu. – Você vai ser a única pessoa normal lá.

– Não tenho tanta certeza. – Pela maneira como ele disse isso, Emma percebeu que Ethan estava sorrindo. – Não acho que nenhum de nós seja normal, você acha? Todo mundo guarda segredos bizarros.

– Ah, é? Quais são os seus?

Ethan fez uma pausa por um momento.

– Sou caidinho pela Frau Fenstermacher.

Emma riu em silêncio.

– Totalmente compreensível. Ela é muito sexy.

– É. Morro de tesão por ela.

– Bem, boa sorte – disse Emma. – Espero que os pombinhos encontrem a verdadeira felicidade.

– Obrigado.

Ethan mudou de posição para se deitar de novo, e sua mão esbarrou na dela. Emma olhou para as mãos deles dois juntas, os dedos apenas se tocando. Após um instante, Ethan enrolou o indicador no dela e apertou uma vez, antes de afastar a mão.

De repente, na segura e densa escuridão, o mundo insano e perigoso de Emma parecia tão distante quanto as estrelas.


26

UM ROSTO DO PASSADO

Plinc. Plinc. Plinc.

Horas depois, Emma acordou de um sono sem sonhos e olhou em volta. O que era aquilo?

Plinc. Ela virou-se rapidamente para a janela que dava para o jardim. Uma pedrinha bateu no vidro e caiu no chão. Emma correu até a janela e olhou para baixo. Havia alguém sob o grande projetor de luz perto da varanda. Emma esfregou os olhos com força.

– Mãe? – gritou ela.

Ela mal sentia os degraus sob seus pés enquanto descia correndo. A porta rangeu quando ela abriu-a às pressas e saiu para a noite. Becky estava no meio da entrada para carros, perto do Jetta de Laurel.

Eu olhava embasbacada para a mulher na entrada. Era a primeira vez que eu via nossa mãe. Ela tinha cabelos escuros e sedosos na altura do queixo e olhos azul-esverdeados. Seu corpo era magro – quase magro demais –, e ela vestia uma calça jeans larga furada no joelho e uma camiseta desbotada que dizia RESTAURANTE CASUAL CLAM. Uma pessoa por quem eu simplesmente passaria na rua. Eu não sentia nenhuma conexão com ela, nenhum laço instantâneo. Não parecia real.

Mas, quando Emma a alcançou, seus braços passaram diretamente através do corpo dela. Emma deu um passo para trás, perplexa.

– Mãe? – chamou outra vez. Tentou tocar Becky, mas era como se ela fosse feita de vapor. Então Emma tocou o próprio rosto, para ter certeza de que ela própria ainda era real. – O que está acontecendo?

– Não é o que você está pensando, querida – disse Becky, em sua voz áspera de fumante. – Você precisa tomar cuidado – acrescentou. – Precisa ficar na sua. As coisas estão prestes a ficar muito perigosas.

– O-O que você quer dizer com isso? – perguntou Emma.

– Shh.

– Mas...

Então Becky deu um passo à frente e pressionou a mão sobre a boca de Emma. Pareceu uma mão real para Emma, sólida e estável.

– Você precisa fazer isso por mim.

De repente, uma visão surgiu em minha mente. Eu ouvi aquela mesma voz dizer Você precisa fazer isso por mim, em alto e bom som. Pelo menos eu pensei que fosse a mesma. Não sabia ao certo se a voz estava falando comigo... ou com outra pessoa. Mas, justo quando eu tentava recuperar essa lembrança, ela se dissolveu.

De repente, os olhos de Emma se abriram.

Ela estava novamente no quarto escuro de Sutton. As cortinas adejavam na brisa. O copo d’água que ela enchera antes de ir dormir estava na mesinha de cabeceira. O sonho ainda latejava em sua cabeça. Ela se sentou, e sua visão clareou. Havia uma figura parada diante dela.

Becky?, pensou Emma de imediato. Mas o cabelo dessa pessoa era louro, não castanho. Seu nariz se arrebitava na ponta, e sardas salpicavam suas faces. Emma fitou diretamente os olhos verde-turmalina de Laurel. A mão de Laurel espalmou-se com força sobre a boca de Emma.

– Grite! – berrei em desespero para Emma.

E foi exatamente o que Emma fez. Ela afastou os lençóis com os pés e golpeou os braços de Laurel com as mãos. Laurel se afastou com uma expressão perplexa no rosto. Em segundos, a porta do quarto se abriu, e o sr. e a sra. Mercer entraram bruscamente. O sr. Mercer estava sem camisa. A sra. Mercer usava calças de pijama xadrez e uma camiseta regata rendada. Drake também pulou para dentro, emitindo alguns latidos curtos e baixos.

– O que está acontecendo? – exigiu saber o sr. Mercer.

– Laurel está tentando me matar! – gritou Emma.

– O quê? – Laurel se afastou da cama como se os lençóis estivessem pegando fogo.

Emma se arrastou para trás até encostar na cabeceira. Seu peito ofegava em soluços.

– Ela estava tentando me sufocar.

Laurel soltou um guincho indignado.

– Não estava, não! – E apontou para o relógio digital ao lado da cama. Os números vermelhos piscavam 00h01. – Entrei aqui porque queria ser a primeira a lhe desejar feliz aniversário.

– Não negue. – Emma segurava os lençóis contra o peito. – Eu vi!

– Sutton, querida, Laurel não faria algo assim – disse gentilmente o sr. Mercer.

– Você deve ter tido um pesadelo, só isso. – A sra. Mercer esfregou os olhos. – Está preocupada com a sua festa de aniversário?

– Por que eu estaria preocupada com uma festa de aniversário? – vociferou Emma. Ela apontou um dedo na direção de Laurel. – Ela. Tentou. Me. Matar!

Mas, quando olhou novamente para os Mercer, um ceticismo sonolento era evidente em ambos os rostos.

– Querida, por que não desce e toma um copo de leite? – sugeriu a sra. Mercer.

E então, bocejando, eles voltaram-se para a porta. Drake e Laurel os seguiram. Mas, antes que Laurel passasse para o corredor, ela virou-se e encontrou o olhar de Emma. Seus olhos se estreitaram. Os cantos de sua boca se curvaram para baixo. Emma sentiu suas veias pegarem fogo. As palavras que Becky dissera no sonho lhe voltaram à mente. As coisas estão prestes a ficar muito perigosas.

As palavras rodopiavam em minha mente também. Isso é que eu chamo de um sonho que se torna realidade.


27

FELIZ ANIVERSÁRIO, AGORA MORRA

– Aí está a aniversariante! – exclamou Madeline, trotando pelo quintal em sapatos stilettos de um azul vivo, um vestido de festa prateado e uma coroa de papel laminado. Ela colocou na cabeça de Emma uma coroa quase idêntica, que tinha o número 18 escrito em cor-de-rosa.

– Sorria! – disse Charlotte, disparando na direção delas.

Ela usava um vestido listrado curto e espadrilhas. Grudou em Emma e segurou uma câmera digital afastada. Quando o flash estava disparando, Laurel saltou para dentro do enquadramento, jogando o braço ao redor de Emma e sorrindo largamente.

– Diga xis! – falou Laurel com entusiasmo exagerado, seu sorriso tão branco quanto a bata diáfana que ela usava sobre leggings pretas.

Emma se esforçou ao máximo para sorrir, mas tinha o pressentimento de que parecera apenas assustada.

As amigas de Sutton desfizeram o abraço e começaram mais uma rodada de “Parabéns pra você”. Charlotte soltou a voz o mais alto que pôde. Madeline incorporou Marilyn Monroe cantando para JFK. E Laurel cantava com doçura e inocência. Emma deu um pequeno passo para longe dela.

Eram 21 horas, e a festa de aniversário de Sutton estava a toda. Um DJ girava discos na mesa do quintal, perto da churrasqueira. Uma verdadeira multidão agitava-se e rodopiava na pista de dança. Garotas do time de tênis seguravam pratos de canapés. A sra. Mercer tinha pendurado pequenas luzes cor-de-rosa de Natal por todo o pátio e enchido tigelas de ponche com sangria sem álcool. Pelo menos vinte e cinco câmeras digitais baratas estavam espalhadas pelo local. Três laptops ficavam em uma mesa perto da porta, todos com cabos USB para enviar fotos pelo Facebook ou pelo Twitter. Os Mercer tinham delineado uma pista de obstáculos para carros por controle remoto na parte do quintal coberta de vegetação rasteira do deserto. O ar cheirava a uma mistura dos perfumes e produtos para cabelos de todos, com um leve toque de álcool. Uma grande mesa de jogos perto da porta sustentava uma pilha de presentes de aniversário embrulhados, mais do que Emma jamais vira na vida.

Não que ela estivesse conseguindo aproveitar algo daquilo. Ela podia estar vestida com um minivestido rosa-claro que tinha encontrado pendurado no closet de Sutton com a palavra aniversário escrita no cabide, podia ter passado uma hora no salão ondulando levemente os cabelos e podia estar usando botinhas de salto que provavelmente tinham custado mais que um ano inteiro de sua verba para roupas. Mas isso não significava que ela se sentisse exatamente alegre. Toda vez que um flash disparava, ela estremecia e virava-se rapidamente. Toda vez que alguém a cutucava para dizer oi, ela se enrijecia. Todos os fogos de artifício que o sr. Mercer e alguns garotos detonavam nos fundos do quintal a sobressaltavam. Pareciam tiros. Era como se cada minuto pudesse ser seu último.

Eu torcia para que ela estivesse enganada.

Depois que terminaram de cantar parabéns, Madeline, Charlotte e Laurel se puseram a avaliar a foto na tela da câmera.

– Madeline está com cara de bêbada – disse Charlotte.

– E eu, de drogada. – Laurel esgueirou-se para perto de Emma e lhe mostrou a câmera. – Você foi a única que saiu normal. Se colocar essa foto no Facebook, vai ter que apagar nós todas no Photoshop.

Emma se afastou lentamente do corpo definido de Laurel; estar tão perto dela a deixava trêmula de apreensão. Tinha observado Laurel a noite inteira. Viu que ela passara a maior parte da festa na pista de dança, pedindo músicas rápidas e animadas que mantinham todos dançando. Uma hora antes, ela tinha encurralado Emma perto da piscina e lhe dado um presente de aniversário, dois ingressos para uma nova montagem de Os miseráveis, na semana seguinte.

– Pode levar quem quiser, mas eu adoraria ir – disse Laurel, timidamente. – Lembra que a gente interpretava as cenas quando éramos pequenas? Você sempre insistia em ser a Cosette.

Lembro, eu queria gritar. Não que eu realmente lembrasse, mas gostaria de lembrar. Alguma coisa ali parecia muito errada. Como Laurel e eu brincávamos de Os miseráveis e agora odiávamos uma à outra? Como minha irmã podia ter me matado?

Mas Emma estava convencida de que tinha sido ela – a lembrança de Laurel tentando sufocá-la aquela madrugada ardia vivamente em seu cérebro. O que ela não conseguia entender era por quê. Não seria do interesse dela manter Emma viva para que ninguém soubesse que Sutton estava desaparecida? Talvez Emma não estivesse interpretando Sutton bem o bastante. Talvez estivesse fazendo perguntas demais, cutucando em lugares demais.

Algo do outro lado do quintal chamou-lhe a atenção. Um garoto alto, de cabelo raspado e vestido com uma camisa social preta justinha e calça jeans, abria o portão dos fundos. Havia uma caixa de chocolates Godiva sob um de seus braços e uma expressão tensa em seu rosto. Ele perscrutou as muitas pessoas em volta, como se estivesse procurando alguém. O coração de Emma saltou. Ethan.

Emma devolveu a câmera digital a Madeline.

– Volto já.

– Mas, Sutton – reclamou Charlotte. – A gente ainda não deu o nosso presente.

– Só um minuto – gritou Emma, por cima do ombro.

Enquanto abria caminho entre a aglomeração de pessoas, ela ouviu Charlotte suspirar e comentar:

– O que está havendo com ela?

Todos estavam ou reunidos em torno da mesa de comidas, ou se contorcendo na pista de dança. O forte cheiro de rum fazia cócegas nas narinas de Emma enquanto ela ziguezagueava por entre a massa de adolescentes, mantendo em foco a cabeça de Ethan. Ele mal conseguia atravessar o portão. Gabriella notou sua presença e riu do Godiva.

– Parece que alguém ainda tem uma paixonite violenta pela aniversariante, hein? – E cutucou as costelas de Emma.

Emma a ignorou, colocando-se na ponta dos pés. Ethan estava imprensado entre Jennifer e Julia, o único casal assumido – e popular – de lésbicas da escola, e três jogadores de futebol que aparentemente estavam reencenando um lance de um jogo recente. Emma via que a paciência dele estava se esgotando rapidamente, como a bateria de um celular.

Emma contornou em ziguezague as garotas entretidas na mesa de mudança de visual. E finalmente lá estava ele, colocando os chocolates em um lugar vago da mesa de presentes e voltando-se outra vez em direção ao portão. Ela o segurou pelo pulso. Os ombros de Ethan se contraíram, mas, quando viu que era ela, ele sorriu.

– Você veio! – exclamou Emma.

Ethan deu de ombros com indiferença.

– Estava passando por aqui. Não posso ficar muito tempo.

– Ah. – Ela deixou os ombros caírem.

Os olhos de longos cílios de Ethan percorreram rapidamente o restante da festa. Então ele tocou a caixa de chocolates.

– Bom, isso é para você. Feliz aniversário. Espero que seja ótimo. – Ele inclinou-se para mais perto. – Ouvi falar que todas as grandes poetisas têm uma obsessão por chocolate.

– Obrigada. – Emma passou os dedos pela tampa quadrada da caixa dourada. Ethan tinha escolhido um mix de chocolate amargo, seu favorito. – Fiquei muito contente por você ter vindo.

Um sorriso também cruzou o rosto de Ethan. Mas então, com a mesma rapidez, sua expressão murchou quando ele notou algo atrás dela. Emma virou-se bem a tempo de ver Garrett abrindo caminho por entre os garotos e garotas. Ele a segurou, envolveu sua cintura com os braços, girou-a e lhe deu um demorado e sedutor beijo.

Emma agitou os braços desamparadamente, resistindo à sensação dos lábios de Garrett contra os dela. Suas bochechas queimavam. Ela conseguia sentir os olhos de todos sobre ela.

– U-hu! – gritou uma garota próxima a ela.

– Yeah! – fez um dos jogadores de futebol.

– Alguém apaga esse fogo! – berrou Madeline ali perto.

Finalmente, Garrett se afastou e a soltou. Emma procurou Ethan... mas ele tinha desaparecido.


28

SEDUÇÃO E ASSASSINATO SEMPRE ANDAM JUNTOS

Garrett já tinha conseguido puxar Emma até dentro da casa antes que ela se recusasse a seguir em frente.

– O que você fez lá fora foi muito grosseiro. Você não pode simplesmente me arrancar de uma conversa daquela maneira. Eu sou a anfitriã.

Garrett virou-se e pegou sua mão.

– Foi um resgate, Sutton. O Ethan estava prendendo você.

Emma riu de escárnio.

– Não estava, não!

– Estava sim. – Havia um tom cavalheiresco mas um tanto condescendente na voz de Garrett. Como se ele soubesse o que era melhor para ela.

Emma ficou de boca aberta por um longo instante. A música pulsava lá fora. As molas do trampolim produziram um toing quando alguém pulou.

– Não sou sua donzela em apuros – disse ela finalmente, suas bochechas queimando.

Uma expressão confusa apareceu no rosto de Garrett.

– Desculpe. – Ele pegou nas suas mãos. – Droga. Eu só queria um momento a sós com você. Não a vi a noite toda.

Emma encostou-se ao relógio carrilhão, relembrando a expressão acanhada no rosto de Ethan quando lhe entregara os chocolates.

– Quando eu der o seu presente, você vai me perdoar – disse Garrett, com confiança. – Prometo. – E, dizendo isso, ele a segurou pela mão e a conduziu para o andar de cima.

Emma o seguiu, passando por cima de uma pilha de camisetas dobradas que a sra. Mercer tinha deixado em um dos degraus. O que Garrett iria lhe dar que não podia mostrar lá embaixo mesmo?

– Aqui vamos nós – disse Garrett, num sussurro.

Ele abriu a porta do quarto de Sutton. Velas tremeluziam em todas as superfícies possíveis. O cheiro de óleo de lavanda invadiu as narinas de Emma. A suave voz de Billie Holiday tilintava nas caixas do som. Garrett tinha fechado as cortinas e espalhado pétalas de rosas por todo o chão e pela cama. Havia uma caixa de chocolates Valrhona no travesseiro e duas taças de champanhe na mesinha de cabeceira.

Emma ficou boquiaberta. A conversa dos dois na trilha da montanha lhe veio à tona. Isso me lembra aquele nosso assunto das férias. Os nossos planos. Eu estava pensando em fazer acontecer para o seu aniversário.

– Ai, meu Deus – murmurou ela.

A música de Billie Holiday se transformou em uma canção de amor acústica de Jack Johnson. Garrett sorriu fervorosamente para Emma. Então, como se estivesse em uma competição de striptease, ele arrancou a camiseta e a jogou no chão. Chutou os sapatos em seguida e abriu o cinto.

– Ai, meu Deus, pare! – gritou Emma.

Garrett congelou, suas bochechas ficaram intensamente vermelhas, e suas mãos tremiam levemente. As velas tremeluziam contra a parede.

– Hã... – Emma começou a rir de nervoso. Alguma coisa naquilo parecia ridiculamente... ridícula. Ela conhecia Garrett havia quanto tempo, duas semanas? E agora ela devia ficar com ele? – Desculpe, não posso fazer... – disse ela, apontando para a cama – isso.

Confuso, Garrett sentou-se com cuidado na beirada da cama, encarando Emma como se sua pele tivesse ficado roxa.

– Mas... a gente passou as férias todas falando sobre isso.

O queixo de Emma caiu.

– Quer dizer, eu pensei bastante – continuou Garrett, passando as mãos pelo cabelo espetado. – E percebi que você tinha razão: não havia por que esperar. Quero que a minha primeira vez seja com você. Não quer que a sua seja comigo, Sutton?

Emma olhou para todos os lugares do quarto, menos para a grande faixa de cueca aparecendo por cima da calça jeans de Garrett. Eu não sou a Sutton, ela queria gritar. Mas, em vez disso, falou:

– A-Acho que mudei de ideia.

– Mudou de ideia? – Garret examinava seu rosto desesperadamente. Depois espalmou as mãos no colchão coberto de pétalas. – Espere um minuto – disse ele, em uma voz baixa e trêmula. – Todas as nossas conversas sobre sexo eram só um grande trote? Foi isso o que você fez com o Thayer?

– Não, é claro que não! – Emma balançou a cabeça rapidamente, perguntando-se o que Sutton tinha feito com Thayer. – Eu só... Eu não posso...

Ela deu um grande passo para trás. O cheiro do óleo estava começando a deixá-la enjoada.

– Desculpe – repetiu ela.

Então abriu a porta depressa e saiu desajeitadamente para o corredor. Em vez de correr escada abaixo para a festa, ela virou na outra direção e enfiou-se no quarto ao lado.

Fechou a porta exatamente quando Garrett saiu para o corredor.

– Sutton? – chamou ele. Emma se agachou perto da porta. Ela ouviu-o virando-se para todos os lados, seus passos suaves no carpete. – Sutton? – chamou ele de novo.

Emma não se moveu, obrigando-se a respirar calmamente e rezando para que ele não entrasse.

Após um momento, Garrett suspirou. Uma porta bateu e, alguns segundos depois, se abriu novamente. Emma ouviu-o descendo a escada, depois escutou seus passos soando pesados através do vestíbulo.

Ela virou-se e se jogou de costas contra a porta, suspirando de alívio. O quarto no qual ela entrara tinha duas luzes noturnas em forma de diamante que iluminavam a cama, coberta com uma colcha preta e branca. Uma poltrona ovo branca e cor-de-rosa ficava no canto. Um móbile avant-garde pendia da janela e milhões de fotos de garotas decoravam as paredes. Emma ficou perplexa ao ver o espelho triplo na parede perto do closet. Franziu as sobrancelhas para o MacBook Air sobre a mesa e para a TV de tela plana na escrivaninha baixa. Era exatamente igual ao quarto de Sutton, só que ao contrário. Então esse era... o quarto de Laurel?

Seus joelhos estalaram quando ela se levantou lentamente. Ela nunca tinha visto aquele quarto por dentro – Laurel sempre mantinha a porta fechada. Emma acendeu uma luz na mesa e espiou as fotos pregadas no mural. A imagem que mostrava Sutton e as amigas em frente à jaula dos macacos no zoológico lhe pareceu estranhamente familiar. Assim como em uma de Sutton, Madeline e Charlotte empurrando colheres de massa de biscoito uma no rosto da outra. Eram exatamente as mesmas fotos do quarto de Sutton – Laurel nem sequer aparecia na maioria delas.

Havia algo de sinistro no fato de o quarto de Laurel ser uma imitação tão precisa do quarto de sua irmã. Quase como se ela tivesse estudado Sutton, pensou Emma. Preparando-se para se tornar ela.

Emma foi na ponta dos pés até a cama e enfiou a cabeça por baixo da colcha. Além de uma raquete de tênis sobressalente, havia apenas meias enroladas e alguns elásticos de cabelo. Ela espiou dentro do closet. De lá saiu um leve cheiro de perfume e de jeans novinho em folha. Enquanto tudo no closet de Sutton tinha seu lugar, as blusas e vestidos de Laurel estavam todos bagunçados nos cabides, alças e mangas caindo pelos lados, calças e camisetas empilhadas no canto. Os sapatos se espalhavam pelo chão.

Emma fechou a porta do closet e esfregou as têmporas. Tinha que haver algo ali. Alguma prova do que Laurel fizera.

Eu torcia para que não houvesse. Torcia para que não tivesse sido ela.

Uma única luz azul no monitor do computador brilhava do outro lado do quarto. Engolindo em seco, Emma foi até a mesa e se sentou. O protetor de tela era uma montagem de fotos de Sutton, Laurel e o restante do grupo em bailes e restaurantes ou na casa umas das outras. Tudo dissolveu-se rapidamente quando Emma tocou o mouse, mostrando uma área de trabalho escura lotada de ícones e arquivos. A maioria era nomeada como TRABALHO SHAKESPEARE ou FESTA DA C.

Algo rangeu do outro lado da porta. Emma congelou e inclinou a cabeça. Um grito soou na festa lá embaixo. O telefone de alguém tocou. Ela concentrou-se para ouvir qualquer som próximo; cada terminação nervosa de seu corpo formigava. Lentamente, ela soltou o ar.

Voltando-se novamente para o computador, ela abriu o Finder e digitou depressa Jogo da Mentira no campo de pesquisa. A pequena rodinha de arco-íris rodopiou. Uma pasta apareceu, enterrada no fundo de um arquivo temporário. Emma clicou no ícone várias vezes. O computador emitiu um bipe agudo.

A pasta listava uma série de vídeos. Emma clicou no primeiro, ao que se abriu um clipe curto de Madeline fingindo se afogar em uma piscina. Era o mesmo que ela tinha visto no Facebook. Outro vídeo mostrava Sutton, Charlotte e Madeline em um campo de golfe verde à noite, pintando uma rocha com spray. “Aposto mil pratas que a Laurel não vai aparecer”, dizia Sutton. Mais um do Facebook dela.

Emma abriu mais vídeos: um de Sutton ligando para a polícia e dizendo que tinha ouvido um bebê chorando em uma caçamba de lixo. Um de Madeline roubando o carro da sra. Mercer enquanto ela fazia compras no AJ’s Market; as outras garotas, escondidas nos arbustos com a câmera, riam quando a sra. Mercer saía da loja e entrava em pânico. Uma das garotas virando todas as carteiras para baixo numa sala de aula e pendurando a bandeira americana de cabeça para baixo no mastro. E por aí vai. Trotes e mais trotes. Parecia não ter fim.

Eu também assistia, sentindo-me cada vez mais enojada. Todos os trotes eram engenhosos – e cruéis. Tínhamos magoado muitas pessoas. Talvez nem todos achassem aquilo engraçado.

Emma clicou então no último vídeo, o último da lista, um arquivo intitulado A RAINHA CAI. Uma tela preta apareceu. Por alguns segundos a câmera ficou sacudindo, filmando árvores, arbustos e a lua, depois girou de volta para o chão. Alguém respirava perto do microfone. Houve um estalo agudo, e a câmera ficou nivelada e imóvel, como se tivesse sido acoplada a um tripé. Uma cadeira no meio de um campo vazio foi focalizada em close. Então, com um som brusco, uma figura caiu na cadeira como se tivesse sido empurrada. Ela tinha uma venda preta sobre o rosto. Um relicário redondo prateado quicou em sua clavícula. Emma espalmou a mão sobre a boca, tomada de terror e alívio.

Aquele era o vídeo com o qual tudo tinha começado para Emma. O vídeo que a levara até ali. Aquela era sua prova.

Uma figura apareceu na tela. Emma arquejou quando a pessoa se aproximou da câmera e ajustou a lente. A luz da lua, vinda de cima, produzia um halo sinistro em torno de sua cabeça. Com as configurações de iluminação ajustadas, seu rosto entrou em foco. Emma levou as mãos à boca. Sentia-se em uma montanha-russa que tinha acabado de mergulhar na descida. Laurel.

Eu também ofeguei silenciosamente. Então era... verdade?

Os olhos verdes e vazios de Laurel encaravam inexpressivamente a câmera. Havia um sorriso sinistro em seu rosto. Ao fundo, Emma podia ouvir os lamentos débeis de Sutton. Seus olhos se arregalaram quando ela percebeu que aquela versão do vídeo tinha som. Suas mãos tremiam. Seu coração disparou. Seu corpo todo gritava para que corresse, mas ela não conseguia desgrudar os olhos da tela.

– Shhh – disse uma voz atrás da câmera.

Sutton virou a cabeça na direção do barulho. De repente, Charlotte apareceu; foi até Sutton e ajeitou a venda em sua cabeça. E então Madeline entrou em enquadramento, puxando outra vez Charlotte para fora de vista.

O coração de Emma estava tão acelerado que ela conseguia senti-lo batendo atrás de suas costelas. Aquilo não podia estar acontecendo. Todas elas tinham estado lá aquela noite?

Laurel apareceu no vídeo mais uma vez e colocou uma máscara de esqui na cabeça. Esperou, a imagem vacilando para a direita e para a esquerda. Após um momento, alguém sussurrou “Agora!” de trás da câmera. Então Laurel assentiu com a cabeça e se aproximou por trás da cadeira. Calmamente, ela puxou o relicário com força contra a garganta da irmã, e nesse momento o vídeo finalmente batia com a versão que Emma tinha visto quase duas semanas antes. Sutton chutava cegamente. Seus ombros iam para a esquerda e para a direita, lutando para se livrar. Laurel puxava e puxava, sem parar.

Eu assistia, horrorizada. Como todas elas podiam ter feito aquilo comigo? Como era possível que todas as minhas amigas tivessem se unido para me matar?

– Mais forte! – Emma ouviu alguém sussurrar fora da tela. Parecia a voz de Madeline. Laurel puxou com mais força.

– Um pouco mais para cima! – sussurrou Charlotte em seguida.

Aquilo continuou por agonizantes vinte segundos. As garotas fora da imagem zombavam e riam, e Sutton continuava arranhando o ar e se debatendo. Então ela ficou inerte, e sua cabeça caiu para a frente. Emma pressionou a mão contra a boca.

A câmera correu para Laurel. Ela estava a alguns passos de distância de Sutton, os olhos fixos nela, horrorizada. Ela esticou a mão para tocar a irmã, mas depois puxou o braço, nervosa.

– Gente... – A voz dela falhou.

– Mas que merda...? – Madeline parecia à beira do pânico. – O que você fez, Laurel?

– Como assim? – O queixo de Laurel tremia. – Eu fiz exatamente o que vocês mandaram!

Os passos de Charlotte faziam ruído sobre a grama ressecada.

– Sutton? É melhor você não estar zoando a gente. – Quando percebeu que Sutton não respondia, Charlotte soltou uma combinação aguda de choro e grito. – Que merda, gente. Que merda.

E então, ali perto, alguém soltou um grito alto. A câmera perdeu o foco por um instante, e após um baque estava no chão, a imagem de Sutton agora de lado. Um tumulto de passos soou através da grama, tornando-se cada vez mais baixo até ficar inaudível.

Outra figura apareceu na tela quase instantaneamente. Quem quer que fosse, puxou a venda da cabeça de Sutton e a mordaça de sua boca. O cabelo dela estava emaranhado e suado, e seu rosto, pálido. Após um instante, Sutton abriu os olhos e encarou a lente da câmera com ar confuso. Emma examinou o rosto da irmã, que mal parecia estar consciente.

Então o monitor ficou escuro. Emma se enrijeceu na cadeira.

– Estavam todas lá – disse ela, com a voz trêmula. – Foram todas elas.

De repente as duas últimas semanas ganharam um foco repugnante. Ninguém tinha percebido que Emma não era Sutton porque todas sabiam que não era – estavam todas envolvidas naquilo. Madeline tinha sequestrado Emma no Sabino e a levara para a festa de Nisha. Charlotte levara Emma para a casa de Sutton após a festa e a acompanhara até o treino de tênis no dia seguinte. Laurel tinha levado Emma à escola e a trouxera de volta. Todas tinham dormido na casa de Charlotte, e Laurel e Charlotte haviam descoberto que Emma fora à rodoviária, então sabiam que precisavam impedi-la de ir embora.

Elas precisavam que Emma se passasse por Sutton. Afinal, não existe crime sem cadáver.

– Sutton? – chamou alguém do corredor.

Emma deu um salto, batendo com o joelho na escrivaninha. Era a voz de Charlotte.

Emma vasculhou desesperadamente a área de trabalho em busca do navegador, para que pudesse abrir seu Gmail. Precisava enviar aquele vídeo para si mesma. Mas sua visão estava embaçada. Todos os ícones pareciam hieróglifos.

– Olá? – chamou Charlotte outra vez. E então, mais suavemente, para alguém atrás dela: – Será que ela está aqui?

– Sutton? – chamou uma segunda voz. Garrett. Ele bateu na porta do quarto de Laurel.

Emma afastou-se do computador como um relâmpago, e nisso acabou derrubando a cadeira. Ela hesitou no meio do quarto de Laurel por um instante, tentando decidir para onde ir. Debaixo da cama? Dentro do closet? Foi até a janela e ficou de costas contra a parede.

Mais uma batida.

– Sutton? – chamou Garrett.

A maçaneta começou a girar. Ela moveu-se lentamente para mais perto da janela e olhou para fora. O quarto de Laurel dava para uma longa fileira de cercas-vivas no quintal. A festa acontecia a apenas alguns metros de distância.

Tremendo, ela tocou o caixilho da janela e o levantou. O ar frio da noite soprou para dentro.

– Sutton? – chamou a voz de Charlotte. – Você está aí?

Emma olhou para trás. A faixa de luz sob a porta começou a se ampliar. Ela vislumbrou o cabelo louro de Garrett. Aqui vou eu, pensou ela. Então voltou-se para a janela e respirou fundo.

– Sutton? – soou uma voz de dentro do quarto de Laurel. Mas nesse momento Emma já tinha alcançado o chão.


29

A GRANDE FUGA

Emma caiu diretamente sobre a cerca-viva, abrindo um grande buraco na barra de seu vestido. Uma pedra arranhou sua mão, e, estando de salto, seu tornozelo se torceu ao bater na terra dura. Soltando um gemido, ela arrancou os sapatos e os escondeu sob um cacto.

Ela olhou através da cerca. Os garotos continuavam a jogar Speed Racer com os carros de controle remoto. Garotas riam e passavam adiante um cantil cromado. Gabriella e Lilianna estavam a apenas alguns metros dali, de costas para ela, cochichando loucamente, com expressões frustradas no rosto.

A porta de correr se abriu. Garrett e Charlotte saíram da casa. Garrett foi por um lado, mas Charlotte encontrou Madeline e Laurel, e as três se juntaram em um grupinho perto dos arbustos. Emma estava agachada ali perto. Não se atrevia a mover um músculo.

A voz de Madeline soou acima dos outros ruídos da festa:

– Ela estava lá em cima?

– Olhei até no quarto da Laurel – disse Charlotte. – Ela sumiu.

– Ela não pode ter sumido. – Madeline fez uma careta.

As garotas se viraram para o portão. Emma ficou de quatro e engatinhou para o arbusto ao lado, depois para o seguinte. Seus joelhos nus afundavam no cascalho. Quando chegou ao muro que circundava a casa, ela içou-se por ele. A superfície áspera arranhou seus braços e a parte de cima de suas coxas.

O cascalho do outro lado machucou seus pés descalços. Ela olhou em volta freneticamente. Não tinha dinheiro nem telefone. Nem sapatos. Aonde poderia ir?

À sua frente havia um muro de carros estacionados, impedindo a passagem para a rua. Um Jeep Cherokee era o mais próximo; havia um Toyota a sua esquerda, e um Subaru Impreza mal estacionado bloqueava sua direita. Então Emma viu uma estreita rota de fuga do outro lado do Subaru, ao longo do muro de tijolos que separava a casa dos Mercer da dos vizinhos. Tudo o que ela precisava fazer era contornar o Subaru e estaria livre. Encolhendo a barriga, ela se espremeu entre o espelho retrovisor, rezando para que o carro não tivesse um daqueles alarmes que disparavam ao mínimo toque.

Um estrondo a fez parar no meio do caminho. Três figuras estavam no portão dos fundos. Uma era alta e magra, com cabelos escuros e pele dourada. Outra era mais baixa e compacta, com uma pele branca que brilhava luminosamente à luz da lua. A terceira garota tinha um rabo de cavalo louro familiar. Todas elas olhavam em volta. Laurel estava com uma lanterna. Emma estremeceu, momentaneamente paralisada.

– Sutton? – gritou Madeline, com uma voz fria e hostil.

Então Laurel ofegou.

– Lá está ela! – E apontou a lanterna através do quintal na direção de Emma.

Todas correram na direção dela, pisoteando os canteiros de flores e passando pela varanda. Emma disparou pela passagem, o coração tamborilando nos ouvidos.

– Sutton! – Charlotte, Madeline e Laurel contornavam os carros. – Volte aqui!

Emma corria o máximo que podia, o olhar fixo na rua a apenas alguns metros à frente. Exatamente quando chegou ao fim da entrada para carros, seu pé pisou em algo afiado e quente. Ela gritou e caiu de joelhos.

– Levante-se, anda! – gritava eu inutilmente para ela. – Levante-se!

Emma conseguiu pôr-se de pé. As garotas também tinham se espremido para passar pelo Subaru, e vinham pela passagem. O olhar de Emma encontrou o de Laurel. Seus ombros estavam curvados em fúria. Emma soltou um gemido e cambaleou até a rua.

Então o timer automático fez a luz da garagem se apagar, banhando a entrada da propriedade e a rua em total escuridão. Emma congelou, seu coração quase pulando da garganta. Ela tateou para encontrar o final do muro de tijolos que rodeava a casa dos Mercer, depois foi abaixada até o outro lado, sumindo da vista delas.

– Sutton? – chamavam as garotas.

Seus sapatos de salto alto retiniam no asfalto. Elas se aproximavam cada vez mais na escuridão. Parecia que estavam bem ao lado dela.

Uma mão disparou do nada e agarrou seu pulso. Emma pulou e soltou um grito. Ela caiu de joelhos e foi arrastada mais para dentro do quintal dos vizinhos. As palmas de suas mãos batiam no cascalho duro e afiado. Lágrimas lhe vieram aos olhos. Seu pé latejava de dor. Seu nariz coçava com o forte cheiro de um cigarro aceso. Ela olhou para a silhueta escura a sua frente, esperando ver o rosto furioso de Charlotte ou o olhar ardente de Laurel. Mas o que ouviu foi uma voz masculina, perguntando:

– O que você está fazendo?

Emma se surpreendeu.

– Ethan? – sussurrou ela, enquanto seus olhos se adaptavam ao escuro.

Ela conseguiu distinguir a cabeça raspada e o maxilar anguloso do rapaz. Ele segurava um cigarro entre os dedos, a ponta vermelha brilhando sinistramente na escuridão.

Ethan apagou o cigarro no cascalho e fitou o rosto suado e aflito de Emma, olhou para seu vestido rasgado, viu que ela estava descalça.

– Que diabos está acontecendo, afinal?

– Sutton? – gritou Madeline na mesma hora. Ela estava bem ao lado deles, separada apenas pelo muro de tijolos. – Cadê você?

Emma agarrou a mão de Ethan com força.

– Pode me tirar daqui? Agora?

– O quê?

– Por favor – sussurrou Emma desesperadamente, apertando as mãos dele. – Pode me ajudar ou não?

Ele a encarou. Um olhar que Emma não conseguiu discernir muito bem passou por seus olhos. Ele assentiu com a cabeça.

– Meu carro está a algumas casas daqui.

De mãos dadas, eles deslizaram para dentro da escuridão.

Eu só esperava que ele conseguisse tirá-la dali antes que a pegassem.


30

ALGUÉM SABE...

Ethan levou Emma até um velho Honda Civic vermelho estilo sedã, com uma porta cinza e uma rachadura no para-brisa. O interior cheirava a McDonald’s e sapatos velhos, e o banco do passageiro estava coberto de livros e papéis. Emma os colocou de lado e prendeu o cinto de segurança. Ethan se sentou ao volante. Virando-se, Emma viu Laurel parada no final da entrada para carros, olhando para todos os lados.

O som do carro começou a berrar assim que Ethan girou a ignição. Era uma música rápida e furiosa, e Ethan abaixou-se rapidamente e desligou o aparelho. O volante guinchava conforme ele manobrava para a rua e começava a dirigir. Emma pressionou as unhas nas coxas com força. Ela ficou vendo a casa dos Mercer diminuir de tamanho no espelho retrovisor, até não estar mais visível.

– O que foi isso tudo? – perguntou Ethan, sua voz baixa perfurando o silêncio.

– É difícil explicar – respondeu Emma.

Eles passaram pelo parque onde os dois tinham jogado tênis. Grandes projetores de luz iluminavam uma das quadras, mas não havia ninguém lá. Depois passaram pelo centro comercial que tinha o salão de beleza onde ela e Laurel haviam feito as unhas. Depois pelo La Encantada, onde ela e Madeline tinham feito compras. A estrada para o Hollier dobrava para a esquerda; um grande cacto de um braço apontava o caminho.

– Aonde estamos indo? – perguntou Ethan.

Emma afundou no banco. Para onde ela poderia ir? Que tal a polícia? Acreditariam nela agora? Será que conseguiria fazê-los revistar o quarto de Laurel e encontrar o vídeo?

Então ela respirou fundo.

– Para a rodoviária, no centro.

As sobrancelhas de Ethan ergueram-se e caíram rapidamente.

– Aquela perto do hotel Congress?

– É.

– Você vai viajar?

Emma abraçou a si mesma.

– Mais ou menos.

Ele fez um gesto de cabeça em direção aos pés dela.

– Descalça?

– Eu dou um jeito.

Ethan lançou um olhar de dúvida para ela, depois fez uma curva para a esquerda no cruzamento seguinte e pegou a autoestrada. O trânsito era escasso àquela hora da noite, as pistas de concreto vazias a perder de vista. Placas de neon para estabelecimentos à beira da autoestrada salpicavam o percurso. GREAT DANE TRAILERS. MOTEL SIX. Um alto chapéu de caubói para a Arby’s. Luzes cintilavam na montanha. Um helicóptero zumbia acima.

– Posso perguntar por que você está fugindo da sua própria festa? – perguntou Ethan quando eles estavam deixando a autoestrada por uma saída.

Emma encostou a cabeça contra o banco.

– Eu só preciso... ir. É loucura demais para explicar.

O sinal ficou verde, e ele virou à esquerda em um cruzamento. Dirigiram em silêncio por algum tempo na estrada escura e íngreme. Por alguns minutos não passaram por uma única luz em lugar algum. Nenhum carro vinha na direção contrária. Nenhuma casa assomava nas laterais da estrada. Emma franziu as sobrancelhas e olhou para a via que desaparecia atrás deles. As luzes da cidade estavam todas na direção oposta.

– Acho que você errou o caminho.

– Não errei, não.

Emma continuou vendo a cidade desaparecer no espelho retrovisor. A rua subia e descia. Ethan pegou outra estrada, que era ainda mais desolada que a anterior. Os pneus esmagavam cascalho e terra. Cactos altos passavam a centímetros do carro. De repente, o coração de Emma começou a bater com força.

– Ethan, não é por aqui – insistiu ela.

Ele não respondeu. Subiu uma pequena ladeira com o carro. Luzes tremulavam a distância, tão longe quanto as estrelas. Emma apalpou o próprio pescoço, tocando os arranhões do quase estrangulamento que sofrera no final de semana anterior. Sua boca ficou seca imediatamente. Ela olhou de soslaio para o perfil de Ethan. Seus olhos estavam estreitados. Seu maxilar projetava-se. Suas mãos seguravam o volante com força.

– Emma... – exclamei debilmente. De repente, alguma coisa ali parecia muito errada.

O estômago de Emma se revirou. Lenta e cuidadosamente, ela tentou alcançar a maçaneta da porta e começou a puxar.

Clic. O pequeno pino que trancava a porta baixou sozinho. Emma apertou o botão para destrancar a porta, mas ele não se movia.

– Pare o carro! – gritou ela, repentinamente tonta de medo. – Pare o carro agora!

Ethan pisou no freio com tanta força que Emma foi lançada para a frente, seu braço batendo no porta-luvas. O carro deu uma guinada para trás outra vez. O motor rosnava alto. Ela apertou os olhos para enxergar na escuridão cerrada. Pelo pouco que podia ver, eles estavam no meio de um deserto estéril e vazio. Aquilo nem sequer era uma estrada.

– O que foi? – perguntou Ethan. – Qual é o problema?

Ela se virou para Ethan, tremendo. As lágrimas corriam abundante e livremente por sua face.

– Eu quero sair. Por favor, abra a porta. Por favor.

– Acalme-se – disse Ethan gentilmente. Ele tirou o cinto de segurança e virou-se, ficando de frente para ela. Então segurou seu pulso. Não exatamente com força, mas tampouco com suavidade. – Eu só queria ir a algum lugar bem longe, para que ninguém pudesse nos ver ou ouvir.

– Por quê? – gemeu Emma. Todo tipo de terríveis possibilidades passavam por sua cabeça.

– Acho que eu sei de uma coisa – A voz de Ethan caiu meio tom. – Algo que eu acho que você não quer que mais ninguém saiba.

– Do que você está falando?

O pomo de adão de Ethan se agitou quando ele engoliu.

– Você não é quem diz ser.

Emma ficou perplexa.

– C-Como é que é?

– Você não é a Sutton. Não pode ser.

As palavras transfixaram o cérebro de Emma. Ela abriu a boca, mas nenhum som saiu. Como ele poderia saber aquilo? Lentamente, ela apalpou a maçaneta da porta com a mão livre. Ainda não estava aberta.

– Claro que eu sou a Sutton – disse ela, com a voz trêmula. Seu coração martelava.

– Você não está agindo nem um pouco como ela.

Emma engoliu em seco. Ela estava começando a se sentir enjoada.

– C-Como você poderia saber?

Ethan se inclinou um pouco mais para a frente.

– Por algum tempo, pensei que a Sutton tinha mudado, desde aquela noite em que você apareceu na entrada da minha casa. Mas hoje você está totalmente diferente. Você é outra pessoa – disse Ethan, em uma voz solitária e triste. – Isso está me enlouquecendo. Então é melhor você me contar o que está acontecendo.

Emma o encarou, seu corpo abalado pelo medo. Mas, conforme Ethan falava, as coisas começaram a turbilhonar em minha cabeça. O sorriso perdido e atordoante de Ethan. O cheiro das plantas do deserto, a terra. A sensação de alguém colocando algo macio sobre minha cabeça e apertando algo fino e afiado em torno de meu pescoço. Uma risada.

De repente, uma reação em cadeia disparou em minha mente. Luzes acendendo outras luzes. Imagens conduzindo a novas imagens. E, subitamente, uma lembrança nova e lúcida desenrolou-se diante de mim, como um tapete vermelho se abrindo para uma rainha. Tudo o que eu podia fazer era assistir, impotente...


31

NÃO TEM GRAÇA, SUAS VACAS

A figura embaçada e mal iluminada agarra meus ombros e me puxa para fora do porta-malas. Bato o joelho contra a lateral do carro e torço o calcanhar no chão duro. Mãos pressionam minhas omoplatas e me empurram para a frente. Baixo a cabeça, tentando enxergar o chão, mas está escuro demais. Sinto o cheiro de um incêndio no deserto em alguma parte distante, mas não tenho ideia de onde estou. Posso estar em Tucson. Posso estar na Lua.

As mesmas mãos me fazem sentar. Os ossos de meu traseiro são pressionados contra o que parece uma cadeira dobrável de madeira. Solto alguns gritos abafados; a mordaça em minha boca está encharcada de saliva.

– Cala a boca – sibila alguém.

Tento chutar quem quer que esteja perto de mim, mas meus pés acertam o ar. Mais passos crepitam pelo cascalho, e então ouço um leve ping eletrônico. Através da venda vejo um pequeno feixe de LED apontado para mim. Mordo a mordaça com força.

– Agora – sussurra uma voz.

Uma garota. Mais passos ressoam. E então as mãos de alguém agarram meu pescoço. A corrente do relicário que eu sempre uso é puxada contra minha garganta. Minha cabeça é arremessada para trás. Agito as mãos presas pelas amarras, mas não consigo soltá-las. Meus pés descalços se debatem, atingindo o chão frio e áspero.

– Mais forte – ouço uma voz sussurrar.

– Um pouco mais alto – diz outra.

A corrente perfura a pele de minha garganta. Tento respirar, mas minha traqueia não consegue se abrir. Meus pulmões imploram por ar. Meu corpo inteiro começa a queimar. Jogo a cabeça para a frente e vejo a luzinha vermelha ainda me observando. Duas silhuetas pairam atrás da luz. Consigo ver o branco dos dentes e o brilho das bijuterias. Estou morrendo, penso. Elas estão me matando.

Minha visão começa a ficar nublada. Pontos aparecem diante de meus olhos. Minha cabeça lateja, meu cérebro está desesperado por oxigênio. Quero reagir, mas de repente me sinto fraca demais para chutar ou me debater. Meus pulmões estremecem, querendo desistir. Talvez seja mais fácil eu me entregar. Um por um, cada músculo se rende. É como um delicioso alívio, como cair na cama depois de uma longa partida de tênis. Todos os sons a minha volta se dissipam. Minha visão se estreita até se tornar um túnel de luz. Nem mesmo a corrente fechando minha traqueia dói tanto. Sinto minha cabeça cair para a frente, meu pescoço já não está rígido. A escuridão me envolve. Não tenho visões. Ainda estou com medo, mas o medo parece amortecido agora. Lutar é um esforço grande demais.

Nas profundezas da minha cabeça, ouço sussurros bruscos. Alguém chama meu nome. Então há um grito abafado, depois mais passos. Algo pesado atinge o chão com um baque surdo. Segundos depois, minha pele registra vagamente a sensação de alguém puxando a venda de minha cabeça e a mordaça de minha boca.

– Sutton? – chama uma voz suave. Uma voz masculina. O vento bate em meu rosto. Sinto o cabelo fazer cócegas em minha testa. – Sutton? – chama novamente a mesma voz.

A consciência começa a voltar a mim lentamente. As pontas de meus dedos formigam. Meus pulmões se expandem. Um ponto aparece diante de meus olhos, depois outro. Uma de minhas pálpebras palpita. Olho em volta, zonza, me sentindo exatamente igual ao momento em que acordei da anestesia após a cirurgia de retirada das amígdalas. Onde estou?

Minha visão clareia e vejo um tripé vazio diante de mim. Uma câmera de vídeo está derrubada de lado sobre a grama, e o botão vermelho de ligar e desligar agora pisca. Estou em alguma espécie de clareira, ainda que não veja nenhum carro ou luz. O ar cheira levemente a cigarro. Então percebo alguém agachado bem a meu lado. Tenho um sobressalto e enrijeço.

– Tudo bem com você? – exclama quem quer que seja. Ele toca a corda que amarra minhas mãos. – Minha nossa – diz entre os dentes.

Eu o observo, ainda muito desorientada. Ele tem o cabelo bem curto e surpreendentes olhos azuis e usa uma camiseta preta, uma bermuda cargo verde e tênis All Star pretos. A venda que ainda há pouco cobria meu rosto está em sua mão esquerda. Por um instante eu me pergunto se foi ele quem fez isso comigo, mas a expressão em seu rosto é um misto tão evidente de desprezo e preocupação que descarto imediatamente a ideia.

– Não estou conseguindo enxergar muito bem – digo, em uma voz áspera e arranhada. – Quem está aí?

– É o Ethan – diz ele. – Ethan Landry.

Não compreendo. Ethan Landry. Parece que meu cérebro está abrindo caminho pela lama. Por um minuto não consigo conceber quem é ele. Lembro-me de um garoto bem fechado perambulando pelos corredores. Um rosto esperançoso me observando do outro lado do estacionamento.

– O-O que aconteceu? – pergunto debilmente.

– Não sei. – Ethan se inclina para desamarrar minhas mãos. – Vi alguém estrangulando você. Corri para a clareira, e eles fugiram.

– Eles me jogaram em um porta-malas – murmuro. – Alguém me arrastou até aqui.

– Você viu quem foi?

Balanço a cabeça negativamente. Então olho para Ethan, tentando descobrir o que sei sobre ele. Por que não gosto dele. Talvez seja só uma daquelas coisas... não gostamos dele há tanto tempo que esquecemos qual foi o motivo. Mas, de repente, parece que ele é meu único amigo no mundo.

Crec. Galhos estalam atrás de mim, e eu me viro. Três figuras saem das árvores e correm na minha direção.

– Pegamos você! – exclama Charlotte, assurgindo à luz.

Madeline vem atrás dela. E então Laurel aparece com uma máscara de esqui na mão. Parece prestes a cair no choro.

Ethan olha perplexo para elas.

– Isso era uma brincadeira?

– Humm... dã! – Madeline pega a câmera de vídeo do chão. – Sutton sabia o tempo todo.

Ethan coloca-se na minha frente em um gesto de proteção.

– Vocês quase a mataram.

As garotas hesitam e trocam um olhar. Laurel umedece os lábios. Madeline enfia a câmera na bolsa. Finalmente, Charlotte suspira com desdém e joga o cabelo por cima do ombro.

– Aliás, por que você estava nos seguindo?

Ethan olha para mim por um momento. Eu desvio os olhos, sentindo-me vulnerável e humilhada. Ele faz com a mão um gesto de repúdio e volta-se em direção às árvores. Mas, quando Madeline se inclina para cortar os nós em torno das minhas mãos, eu reencontro o olhar dele. Obrigada, murmuro discretamente, meu coração batendo constante mas firmemente em meu peito. Ethan assente com a cabeça, resignado. De nada, ele murmura.

E então, de repente, tudo desaparece mais uma vez. Minha memória chegou a mais um beco sem saída.


32

A AMARGA VERDADE

No carro, Ethan ainda olhava incisivamente para Emma.

– O que está acontecendo? – perguntou ele de novo.

– Eu sou a Sutton – respondeu Emma, tremendo. – Juro.

– Não é. – Um sorriso triste surgiu no rosto dele. – Por favor, me diga a verdade.

Emma olhou para os dentes dele, que brilhavam na escuridão. Olhou em volta para o deserto escuro diante deles. Um pensamento terrível crepitou em sua cabeça como um relâmpago: ele parecia seguro demais do que afirmava. Mas como ele podia ter certeza a não ser que...

– Você... Você a matou? É por isso que sabe?

Ethan caiu para trás. Ele pestanejou, e seu rosto empalideceu.

– Matar? Sutton está... morta?

Emma mordeu o lábio com força. Ethan parecia arrasado.

– Ela foi assassinada – admitiu Emma, numa voz ínfima. – Acho que alguém a estrangulou. Alguém que ela conhece. Eu vi em um vídeo.

Ethan franziu as sobrancelhas.

– Estrangulou?

– Com este cordão. – Ela puxou o relicário de baixo do vestido e o mostrou a ele. – No bosque. As amigas dela filmaram tudo. Até colocaram na internet.

O olhar de Ethan voltou-se para a direita. Uma expressão horrorizada de compreensão cobriu seu rosto.

– Ah. Ah.

– O que foi?

Emma voltou a afundar no banco e cobriu o rosto com as mãos.

– Ela estava vendada nesse vídeo?

– Estava...

Ethan respirou fundo e olhou para ela novamente.

– Eu estava lá aquela noite.

Emma estava chocada.

– Você estava lá?

– Eu estava andando de bicicleta quando vi um carro familiar passando depressa – explicou ele. – Reconheci pelo adesivo da MÁFIA DO LAGO DOS CISNES no vidro de trás... Madeline e eu tínhamos vagas marcadas perto um do outro no ano passado. Aquilo ficou na minha cabeça.

Emma engoliu em seco.

– Não sei por quê, mas alguma coisa me fez segui-las colina abaixo até uma clareira – continuou Ethan. – Quando cheguei lá, a câmera tinha sido armada e elas haviam começado a estrangular Sutton. Eu não sabia o que estava acontecendo ou por que estavam fazendo aquilo, mas realmente parecia que iam matá-la.

Emma permaneceu completamente imóvel enquanto Ethan explicava o que tinha acontecido: assim que Sutton perdeu a consciência, ele correu até a clareira. As garotas gritaram e se esconderam, derrubando a câmera do tripé. Ele correu até Sutton e tentou soltar suas mãos.

– Sutton ainda estava respirando – contou ele a Emma. – Ela voltou a si.

Emma olhou pelo para-brisa escuro.

– Então... você é a pessoa que aparece no final do vídeo tirando a venda dela? Você a salvou?

Ethan deu de ombros.

– Acho que sim. – Ele pigarreou e prosseguiu: – Mas entenda, depois daquela noite, eu não tive mais notícias de Sutton. Não que achasse que ela me devia alguma coisa, mas teria sido legal ter... não sei. Um agradecimento de verdade, talvez. Então, quando você se aproximou de mim lá na festa da Nisha, imaginei que isso fosse acontecer. Mas alguma coisa parecia estranha aquela noite. Diferente. O jeito como você falou sobre as Estrelas Vadias... seu senso de humor. E todas as vezes que eu te vi depois daquilo, tive a mesma sensação perturbadora. Você era... simpática. E engraçada. E interessante. E... capaz de sentir remorso. A Sutton que eu conhecia, que todo mundo conhecia, não teria se arrependido de nada, nunca. Por isso, comecei a me perguntar se ela não teria múltiplas personalidades. Ou talvez tivesse passado por algum tipo de despertar espiritual que a tornara não tão... dura. – Ele pressionou os polegares contra os olhos. – Seja lá o que tivesse acontecido, eu comecei meio que a me apaixonar por ela.

– Era eu – disse Emma calmamente, os olhos fixos no colo. – Era eu a garota na festa da Nisha. E todas as vezes depois daquele dia. Não a Sutton.

Ethan passou a língua por cima dos dentes, assentindo lentamente com a cabeça.

– Então... quem é você?

Um fogo de artifício estourou a distância. Depois que o crepitar parou de soar, Emma tomou fôlego.

– Sou a irmã gêmea da Sutton. Bom, fomos separadas na infância. Não chegamos a nos conhecer. Eu não a vi nem uma única vez.

Ethan a encarava sem piscar.

– Calma aí. Irmã gêmea? Tipo, sério? – Ele balançou a cabeça. – Comece do começo.

E então a história toda explodiu de dentro de Emma, desesperada para sair.

– Eu tentei ir embora – explicou ela quando terminou de contar sobre o bilhete SUTTON ESTÁ MORTA. – Não queria ficar presa na vida dela. Mas o assassino me viu na rodoviária, eu acho. E ele me encurralou na casa da Charlotte e disse que me mataria se eu tentasse ir embora outra vez. – Ela fechou os olhos; a sensação do relicário contra seu pescoço estava tão recente e vívida como se aquilo tivesse acontecido apenas momentos antes. – As amigas e a irmã da Sutton eram as únicas pessoas que sabiam que eu tinha tentado sair daqui. E a casa da Charlotte é uma fortaleza. Deve ter sido alguém que já estava lá dentro, uma das amigas da Sutton. Elas tentaram me estrangular exatamente como estrangularam Sutton naquela noite no bosque. Na noite em que a mataram.

Ethan balançou a cabeça com veemência.

– Não estou dizendo que as amigas da Sutton não a mataram, mas, se fizeram mesmo isso, não foi na noite em que o vídeo foi filmado. Aquilo aconteceu duas semanas antes de você chegar aqui. E todo mundo foi embora depois que eu interrompi a “brincadeira”. Incluindo Sutton. Ela estava bem.

– Sutton foi embora com elas? – perguntou Emma, chocada.

Uma expressão conflituosa cruzou o rosto de Ethan.

– Ela e as amigas faziam asneiras desse tipo o tempo todo.

– Eu sei. – Emma esfregou as têmporas. – Mas eu não sabia que tinham chegado a um ponto tão perigoso.

De repente, começou a chover. O barulho das gotas do lado de fora do para-brisa era como o de minúsculas bombas explodindo. Emma olhou para Ethan.

– Preciso dar o fora daqui.

Ethan franziu a testa.

– Para onde você vai?

– Qualquer lugar. – Mais lágrimas rolaram pelas faces de Emma, lágrimas de pavor. – Vou entrar no primeiro ônibus que aparecer. Não posso ficar aqui. Isso é loucura.

Ethan se recostou no banco, o couro emitindo um ruído ao ser amassado.

– Tem certeza de que é uma boa ideia?

– Como assim?

Ele virou-se para ela, mordendo o polegar com força.

– É só que... você já tentou ir embora uma vez, e não deu certo. Quem garante que dessa vez vai ser melhor?

– Mas... – Emma olhou pela janela, para todas as silhuetas de cactos. – É a minha única chance.

Ambos ficaram em silêncio por um momento. Um carro de polícia passou veloz por uma estrada distante. Suas luzes azuis e vermelhas pontuaram a noite negra como carvão.

– Mas... – começou Ethan, incerto. – E se o assassino quiser justamente que você vá embora?

– Não. – Emma cruzou os braços sobre o peito. – O assassino quer que eu fique aqui e seja ela.

– Preste atenção. Se Sutton está mesmo... morta, talvez quem quer que tenha feito isso esteja tentando colocar você como a assassina. Eles sabem que você não tem família. Sabem que a sua vida provavelmente foi bem difícil. Não vai ser complicado provar. Se você for embora, todos vão saber que Sutton está desaparecida. Não acha que a pessoa que fez isso vai dar a dica aos policiais de que você a estava representando havia duas semanas? E não acha que você será a pessoa de quem a polícia vai suspeitar imediatamente pela morte dela?

Emma deixou as mãos caírem frouxas no colo. Será?

– É que Sutton tinha uma vida realmente boa – disse Ethan calmamente, olhando pela janela para a lua crescente. – Ela era popular, rica, tinha tudo o que queria. E por tudo o que disse... você, não. Enquanto a Sutton foi mandada para uma bela casa em Scottsdale, você acabou sob cuidados adotivos temporários. Realmente não é justo, Emma. Muita gente na sua posição faria qualquer coisa para trocar de lugar com a sua irmã gêmea.

Emma ficou de boca aberta.

– Eu nunca a mataria!

Ethan acenou com as mãos em rendição.

– Eu sei que não. Mas... algumas pessoas são terríveis. Algumas pessoas presumem automaticamente o pior. Podem julgá-la sem procurar saber quem você realmente é.

Emma piscou. As paredes do carro começaram a se fechar sobre ela. Ela com certeza conhecia pessoas terríveis nesse mundo que faziam julgamentos. Clarice, por exemplo – ela deduzira que Emma roubara seu dinheiro, em vez do ladrãozinho que era seu próprio filho, simplesmente porque pensava que era isso o que crianças e adolescentes abandonados sempre faziam.

– Ah, meu Deus – sussurrou Emma, cobrindo a cabeça com os braços.

Ethan tinha razão. Ele se inclinou para perto dela e, após um instante, puxou-a para um abraço. Apertou-a com força e enterrou a cabeça na curva de seu pescoço. Soluços balançavam o corpo de Emma.

Eu assistia a tudo; eles ficaram assim por alguns minutos, segurando-se um ao outro. Eu queria tanto, mas tanto, ser Emma. Também queria abraçar alguém – talvez Ethan – naquele momento.

Então Ethan se recostou e olhou para Emma. Seus olhos claros estavam enrugados de preocupação. Os cantos de seus belos lábios rosados se elevaram em um sorriso compassivo. Ele estava com uma mancha escura na bochecha, que ela queria limpar.

– Nossa – sussurrou ele. – Você é exatamente igual a ela.

– Gêmeos idênticos são assim – disse Emma suavemente. Sua boca começou a formar um sorriso vacilante, mas um novo soluço chegou de repente.

Ethan tocou seu queixo.

– Fique. Se Sutton foi mesmo assassinada, vamos descobrir o culpado.

– Não sei – murmurou Emma.

– Você não pode deixar a pessoa que fez isso se safar – insistiu Ethan. – Eu vou ajudá-la. Prometo. E quando tivermos provas, podemos voltar à polícia, e eles vão ter que acreditar em você.

A chuva parou abruptamente. A distância, um coiote uivou. Emma sentia que estava prendendo a respiração havia horas.

Ela encarou os olhos infinitamente azuis de Ethan.

– Está bem – sussurrou ela. – Eu fico.

– Que bom.

Ethan se inclinou para a frente e apertou seu ombro. Emma fechou os olhos; o toque das mãos dele em sua pele enviava faíscas por suas costas. Ela esperava que essa fosse a decisão certa. Esperava que não tivesse acabado de cometer um erro.

Eu também esperava.


33

CUIDADO, SUTTON ESTÁ DE VOLTA

Algum tempo depois, Ethan deixou Emma em frente à casa de Sutton. A maioria das luzes ainda estava acesa, embora todos os carros tivessem partido. Quando Emma abriu a porta, Drake pulou sobre ela e lambeu seu braço. Seus músculos já não ficavam mais paralisados de medo como antes. Ela chegou à conclusão de que estava se acostumando com ele.

– Aí está você! – Laurel veio correndo da sala e jogou os braços ao redor do pescoço de Emma. – A gente procurou você por todo canto! – Então ela afastou-se e olhou Emma de cima a baixo. – Por que você fugiu daquele jeito? Você saiu correndo da gente como se o jardim estivesse pegando fogo!

– Eu só precisava ficar sozinha – admitiu Emma, torcendo para que a mentira que tinha inventado no carro de Ethan parecesse crível. – Eu... aconteceu uma coisa esquisita com o Garrett.

Os olhos de Laurel se arregalaram.

– O quê?

Emma afundou na namoradeira e abraçou uma almofada contra o peio.

– É uma longa história.

Ela olhou para o aparador do outro lado da sala. Alguém tinha trazido todos os presentes do quintal. Emma se perguntou se o quarto de Sutton ainda parecia uma suíte de lua de mel.

– Fora isso, você se divertiu hoje? – perguntou Laurel. Uma expressão apreensiva cruzou seu rosto.

Emma desviou os olhos.

– Ah, sim. Com certeza – mentiu ela. Uma noite agitada, sim. Aterrorizante, definitivamente. Mas divertida? Nem pensar.

– Você não ficou... chateada com alguma coisa? – Laurel dava petelecos nas borlas da almofada. – A Charlotte disse que você podia ter entrado no meu quarto. E que você podia ter... visto alguma coisa. E aí você correu da gente como louca lá na entrada...

Emma recostou-se nas almofadas. Mesmo que quisesse admitir que tinha visto o vídeo, mesmo que quisesse acreditar que Laurel, a irmã de Sutton, era inocente de tudo aquilo, confiar nela era perigoso.

Seu cérebro turbilhonava com o que ela precisava fazer. De acordo com Ethan, o filme do estrangulamento tinha acontecido quase um mês antes – não no dia anterior à chegada de Emma. Isso significava que Sutton continuara viva durante semanas depois que aquele vídeo fora filmado. Pelo que Emma sabia, o vídeo do assassinato tinha sido filmado havia muito tempo. Mas o que tinha acontecido nesse meio-tempo?

Emma ergueu os olhos e observou Laurel friamente, seu rosto isento de sentimentos. De repente ela soube o que devia fazer.

– Eu vi mesmo uma coisa no seu quarto – disse sem entonação.

A cor sumiu do rosto de Laurel.

– O quê?

Emma levantou-se e avançou lentamente em direção a ela. Laurel ofegou quando Emma segurou seu pescoço com as duas mãos. Seus olhos se esbugalharam.

– Sutton! – choramingou ela.

Emma congelou por um longo momento com as mãos pousadas levemente em torno do pescoço de Laurel. Então se afastou, revirou os olhos e deu um tapinha brincalhão na bochecha da irmã de Sutton.

– Peguei você.

Demorou alguns segundos para o alívio inundar o rosto de Laurel. Ela se recostou na cadeira e passou as mãos pela garganta.

– Você é muito cruel.

– Eu sei. Mas agora estamos quites.

Emma retornou alegremente para onde estava sentada. Mas suas mãos tremiam quando ela afastou as almofadas. Nada seria fácil. Ela voltara ao ponto de partida: todos eram suspeitos.

– Aí está nossa aniversariante! – veio a voz da sra. Mercer, do corredor.

Ela entrou na sala. O marido a seguia com quatro cupcakes em um prato cor-de-rosa. Uma vela em forma de estrela estava espetada no maior deles, que o sr. Mercer colocou na mesinha de centro bem em frente a Emma. Veludo vermelho. O favorito dela.

A sra. Mercer aboletou-se no pufe, levantando as mãos como se estivesse regendo uma orquestra.

– Todos prontos?

Eles começaram uma animada versão de “Parabéns pra você”, com o sr. Mercer gorjeando as notas mais altas e Laurel cantando alto e forte fora do tom. Era a primeira vez que tantas pessoas ao mesmo tempo cantavam parabéns para Emma.

Quando a música acabou, a sra. Mercer abraçou a suposta filha adotiva. Depois foi a vez do sr. Mercer. E então Laurel.

– Feliz aniversário, menininha – disse a sra. Mercer. – Nós amamos você.

– Agora faça um pedido – instruiu o sr. Mercer.

A vela crepitava e estalava no cupcake. Emma se inclinou para a frente e fechou os olhos. Seu pedido de aniversário era o mesmo desde que Becky desaparecera: uma família. E agora, incrivelmente, reversamente, tecnicamente, isso afinal se tornara realidade. Mas havia algo maior que Emma devia desejar naquele momento, algo que ofuscava tudo aquilo: descobrir quem tinha assassinado sua irmã gêmea, Sutton. De uma vez por todas.

Eu me aproximei. Aquilo também era o que eu queria. Mesmo garotas mortas merecem desejos de aniversário.

Emma repetiu o desejo uma, duas, três vezes em sua cabeça e soprou com força, como se estivesse mandando embora todo o seu passado. A vela estrela tremeluziu e se apagou. Todos aplaudiram, e Emma sorriu.

Eu também. Minha irmã soprou a vela num só fôlego. Isso significava que com certeza nossos desejos se realizariam.


EPÍLOGO

Eu estava em meu quarto esperando, pensando, enquanto Emma se preparava para dormir aquela noite. Observava as coisas que já tinham sido minhas. Esperava que lembranças me viessem à mente. Mas não vinham.

Os três flashbacks que haviam me ocorrido se repetiam na minha cabeça sem parar: as risadas cruéis de minhas amigas. O cordão sendo puxado contra minha garganta. A expressão desesperada nos olhos de Ethan enquanto ele esperava que eu voltasse a respirar. Mas o que acontecera depois do ponto em que aquela lembrança – e aquele vídeo – terminava? Minhas amigas podiam não ter me matado aquela noite, mas alguém fez isso depois. Podia ter sido Madeline, Charlotte ou Laurel... mas também podia ter sido outra pessoa.

Fosse quem fosse, estava atuando muito bem. E ainda havia muitas possibilidades e questões. O que eu tinha feito, afinal, para merecer um trote tão terrível por parte das minhas melhores amigas? O Jogo da Mentira era baseado na ideia de superar os trotes anteriores – então, o que precedera o meu quase assassinato? E quanto às nossas pobres Gêmeas do Twitter, excluídas do círculo de iniciados do Jogo da Mentira? Elas alegavam que tinham na manga várias ideias matadoras para trotes – matadoras sendo a palavra perfeita. E também havia o misterioso e desaparecido Thayer Vega. Será que um dia teríamos notícias dele novamente? Será que algum dia descobriríamos o que eu tinha feito? Um garoto que desaparece pouco antes da morte de uma garota parecia terrivelmente suspeito...

Fiquei observando Emma cair flutuando no sono, seu rosto tranquilo e confiante. Eu queria ter tido um dia junto com ela, uma hora que fosse. Queria poder sussurrar em seu ouvido e lhe contar aquilo de que eu tinha certeza: Sempre durma com um dos olhos aberto. Dê valor ao que você tem. Seus melhores amigos podem simplesmente ser seus inimigos. E o mais importante: ela não devia acreditar em nada que soubera sobre mim até então. Eu não tinha ideia de como sabia, mas algo lá no fundo, algo de certa forma incompreensível, me dizia que eu era de longe o membro mais complexo do Jogo da Mentira.

Bons sonhos, minha irmã gêmea há muito perdida. Eu a verei pela manhã... ainda que você não me veja.

 

 

                                                                  Sara Shepard

 

 

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