Biblio VT
Roberta é uma jovem livreira em plena crise existencial e conjugal - Oscar, o marido, com quem casou contra a opinião de toda a gente, revela-se incapaz de responder às suas necessidades e de assumir as responsabilidades de uma família.Uma dolorosa reflexão leva Roberta a percorrer o passado e a descobrir as raízes do seu mal-estar, que remontam à infância, passada no meio dos afectos envolventes da família paterna, onde a mãe, Malvina, brilhava pela ausência. Feminista convicta no período turbulento de 68, Malvina escolhera viver de acordo com os seus princípios e confia a filha ao companheiro. Desta situação vão nascer, ao longo do tempo, dramas, mal-entendidos, conflitos mal resolvidos e também segredos há muito guardados. E É apenas ao dissipar estas sombras que Roberta vai conseguir superar a crise e reconciliar-se consigo mesma.Uma história de ligações profundas e paixões intensas em que Sveva Casati Modignani, através do confronto entre duas gerações de mulheres, nos conta como éramos antes e como somos agora.
1
Era um domingo de Abril. Roberta acordou cedo, saboreou o café sentada à mesa da cozinha, tomou um banho relaxante, em vez do habitual chuveiro apressado, e saiu de casa, enquanto os filhos e o marido ainda dormiam. Assim que dobrou a esquina da rua, foi atingida por uma baforada de ar gelado que lhe fez lacrimejar os olhos. Havia já alguns dias que soprava sobre Milão um vento de norte que baixara bruscamente a temperatura primaveril. Enrolou a écharpe de seda à volta do pescoço e dirigiu-se à igreja. Para Roberta, ir à missa ao domingo era um hábito que a fazia sentir-se bem. O marido, pelo contrário, considerava que a religião era uma forma de opressão espiritual e os filhos, não sabendo de que lado se colocar, iam à missa com a mãe quando o pai estava fora da cidade, em trabalho.Durante a celebração acompanhou mecanicamente a liturgia, porque os seus pensamentos voavam para outro lugar e, enquanto o padre comentava o Evangelho, elaborou a ementa do almoço: minestrone de legumes, novilho cozido com molho verde e batatas a vapor.No regresso, parou na pastelaria em frente de casa e comprou umas bolas-de-berlim quentes, recheadas com creme de pasteleiro, para o pequeno-almoço de Oscar e das crianças.
Entrou em casa e ouviu imediatamente as suas vozes. Francesca, a filha de treze anos, e Matteo, de nove anos, riam e davam saltos e cambalhotas no sofá da sala. Da casa de banho chegava a voz de Oscar, que cantava o refrão de uma velha canção de amor e lágrimas de Patty Pravo.Foi até à cozinha, aqueceu o leite, preparou o café, pôs a mesa, dispôs as bolas-de-berlim num prato e anunciou com uma voz forte: - O pequeno-almoço está pronto.Os filhos abraçaram-na e depois atiraram-se aos bolos. Oscar, um bonito homem alto e loiro, com o rosto iluminado por um largo sorriso, apareceu a apertar o roupão de turco e deu-lhe um beijo na face, ao mesmo tempo que lhe sussurrava: - Obrigado, meu amor. Tu sabes como nos fazer felizes.Aquele domingo tinha começado muito bem. Enquanto o marido e os filhos tomavam o pequeno-almoço, Roberta arejou os quartos e fez as camas.Mais tarde, Oscar e as crianças foram à piazza dei Duomo ver um espectáculo de bandeiras e ela foi para a cozinha.A certa altura abriu a janela para deixar sair o vapor, mas voltou a fechá-la imediatamente, porque o vento gelado a fez estremecer.Dado o carácter excepcional daquela vaga de frio, em alguns edifícios tinha sido reactivado o aquecimento central; mas no velho prédio da via Spartaco, onde Roberta vivia com a família, a quase totalidade dos moradores decidira suportar o frio em vez de fazer aumentar as despesas de condomínio.Este facto tinha permitido a Oscar regressar mais uma vez ao assunto da casa. - Se te decidisses a reabrir a casa da via Turroni, podíamos gerir o aquecimento como nos apetecesse e poupávamos o dinheiro do aluguer - resmungara na noite anterior, com o tom amuado de uma criança.Oscar nunca se preocupara em planificar as despesas da família e defendia a mudança para a via Turroni porque isso lhe permitiria oferecer uma pensão mais generosa à ex-mulher. Roberta
tinha percebido isso há muito tempo e não estava nada de acordo, porque a ex-mulher, dezoito anos após o divórcio, continuava a exigir o seu sustento como se fosse ainda a signora Trinchese.Desaprovava a prodigalidade de Oscar relativamente a uma mulher ainda jovem, saudável e sem filhos, que se recusava a trabalhar. Ainda que com muitas cautelas, tentara por várias vezes levantar a questão, mas Oscar, que se sentia culpado, conseguia sempre mudar de assunto e ela, por vingança, opunha-se à reabertura da casa familiar. Era uma situação anómala, que lhe criava um mal-estar incomodativo; mas, para não discutir com o marido, preferia ganhar tempo convencendo-se de que, mais cedo ou mais tarde, tudo se resolveria.Ouviu o ascensor parar naquele andar e, instintivamente, olhou a sua imagem no vidro da janela. Tirou o avental e ajeitou os cabelos escuros que lhe desciam sobre os ombros em madeixas macias e onduladas. O marido, apesar dos seus muitos defeitos, sabia oferecer-lhe momentos de ternura sublime, os filhos eram lindos e saudáveis e a sua profissão de livreira satisfazia-a bastante. Correu a abrir a porta e anunciou alegremente: - O almoço está na mesa. Depressa, lavar as mãos.Francesca foi a primeira a entrar na cozinha, a saltitar sobre as pernas compridas de flamingo, e sentou-se à mesa.Roberta deitou a sopa na terrina e a cozinha encheu-se com o perfume dos legumes condimentados com manjericão fresco.- Uauuu, um minestronel Que bom, com este frio - exclamou a rapariga, a agarrar os ombros com ar de velhinha.Matteo, que tinha conseguido que o pai lhe comprasse o milionésimo carrinho, veio mostrá-lo à mãe como se fosse um trofeu, ao mesmo tempo que imitava o ruído de um motor. Oscar estava atrás do rapazinho e sorria, enquanto esfregava as mãos por causa do frio. Cheirou o ar, o sorriso apagou-se-lhe imediatamente do rosto e franziu o nariz.- Com certeza que não te foste lembrar de fazer um minestrone - queixou-se, ao ver a terrina fumegante no meio da mesa.
- Achei boa ideia, com este frio - justificou-se Roberta.- Santo Deus! Chamas a isto almoçar? Já sabes que odeio minestrone - afirmou ele, com as mãos apoiadas na cadeira, sem se decidir a sentar-se à mesa.Roberta percebeu que o marido estava apenas à procura de um pretexto para se ir embora, considerando ter já largamente cumprido os seus deveres de pai depois de ter levado os filhos a passear. Conhecia-o bem e sabia que Oscar estava a pensar em alguma coisa melhor do que continuar a fazer companhia à família. Como por exemplo ir até ao restaurante Da Gino, onde encontraria alguns colegas com quem poderia conversar e divertir-se.Roberta tentou uma bóia de salvação. t- Eu faço-te um esparguete - propôs, sabendo já a resposta.- Deixa lá. Só agora é que me lembrei que tenho de passar pela redacção para ver uns dossiers que me chegaram de Roma. - Acabou aquela frase mentirosa quando estava já no hall de entrada.- O pai, como de costume, pôs-se a andar - comentou Francesca.Roberta sentou-se à mesa e começou a servir o minestrone aos filhos, pensando que afinal aquele domingo não se estava a revelar tão bonito como ela tinha acreditado que ia ser.- sabes que um fotógrafo de um jornal não tem horários replicou, a tentar salvar o comportamento do marido.Francesca calou-se e começou a comer.Quando acabaram de almoçar, Matteo desceu ao terceiro andar, a casa do seu amigo Brunello, que fazia anos. Francesca ajudou a mãe a levantar a mesa e a encher a máquina da louça, e depois disse: - Tu nunca te zangas com o pai.Roberta sentiu-se tocada pela consternação da filha e, não sabendo como responder, perguntou: - De que é que estás a falar?- Não faças de conta que não entendes - censurou a filha, enquanto passava as mãos por água, no lava-louça. Mais uma vez, Roberta procurou uma salvação.- O pai tem os seus compromissos - afirmou.......,
- Não me contes histórias. Arranja sempre algum pretexto para ir à vida dele - declarou Francesca, traçando um perfil impiedoso do pai.Naquele momento, a porta da cozinha abriu-se de repente e apareceu Oscar, com um sorriso radioso e um grande ramo de lilases, que estendeu à mulher.Ela não mexeu um dedo para pegar nas flores e ele pousou-as na mesa, acariciou-lhe o rosto com ternura e beijou-a, enquanto sussurrava: - Flores perfumadas para a minha doce esposa.Roberta sentiu vontade de o mandar para o diabo, mas calou-se. Virou-lhe as costas e fez de conta que estava a mexer em alguma coisa no lava-louça.Oscar, abraçando-a por trás, suplicou-lhe: - Não me faças má cara. Eu não fiz nada de mal.Era este o problema: nunca fazia nada de mal, mas estava permanentemente a fugir da família.A campainha da rua tocou. Francesca, que os tinha observado em silêncio, correu até ao hall para atender, ao mesmo tempo que admoestava a mãe: - Agora vê lá se dás o braço a torcer.- Ela está zangada comigo? - perguntou Oscar, espantado, referindo-se às palavras da filha.- E com quem havia de ser?Oscar reforçou o abraço em volta dos ombros da mulher, deu-lhe um beijo entre o pescoço e o ombro e replicou: - Vá lá a gente entender as crianças de agora.Francesca apareceu à porta da cozinha, vestindo o blusão de ganga.- A Karin está à minha espera lá em baixo. A mãe vai levar-nos ao Palácio do Gelo.Oscar estendeu uma mão para a filha. Ela esquivou-se e, no momento em que ia sair, disse-lhe com um sorriso: - A mim não me enganas tu.Aquela declaração, só aparentemente brincalhona, irritou Oscar.
- Tu não dizes nada? - perguntou à mulher, agastado. Uma força nova impediu Roberta de lhe fazer a vontade.- Digo que devias olhar a realidade de frente e reflectir sobre a reacção da Francesca - afirmou.Logo a seguir também ela saiu da cozinha, agarrou rapidamente no casaco e na carteira que estavam no hall de entrada e precipitou-se pelas escadas abaixo, sem esperar pelo elevador. Não valia a pena continuar a convencer-se de que Oscar ia mudar. Também para ela tinha chegado o momento de olhar a realidade de frente e constatar que não era uma mulher serena e satisfeita.
2
Tinha necessidade de descarregar aquela tensão. Por isso caminhou durante bastante tempo e, sem se dar conta, deu por si na via Turroni, a rua da sua infância. Contemplou o conjunto de pequenas moradias anónimas, construídas por volta dos anos vinte. Um muro baixo, em tijolo, com um gradeamento de ferro forjado por cima, delimitava os pequenos jardins que existiam à frente das habitações unifamiliares. Roberta parou diante da sua casa. Tinham passado alguns anos desde que ali estivera pela última vez. No portão, uma placa em latão escurecido tinha o seu apelido gravado: MANDELLI. Através das grades observou as ervas daninhas que infestavam o jardim até aos poucos degraus que davam acesso à porta da entrada.Recordou uma tarde de Outubro, iluminada por um sol tépido. Tinha lá ido fechar a casa definitivamente, depois da morte do pai. Desactivou o contador da electricidade e fechou as torneiras da água e do gás. Parou a ouvir o silêncio das salas, em tempos animadas pela azáfama e pelo vaivém das mulheres da casa. Na varanda que dava para o jardim das traseiras, o sol procurava uma entrada por entre os vidros que agora estavam cobertos de pó, mas em tempos tinham aquecido as plantas viçosas de que o pai tanto gostava. Tinha-as oferecido aos vizinhos. Depois fechou a porta atrás de si e pensou: Um dia, vendo-a. Nunca chegou a fazê-lo,
e não voltou lá. Tinha sempre consigo as chaves da moradia e encontrou-as numa bolsa da carteira que trazia a tiracolo. Abriu o pequeno portão de ferro cheio de arabescos, subiu os degraus invadidos pelo musgo e pelas folhas e parou à frente da porta de madeira maciça. Ergueu o olhar para a fachada. As persianas estavam todas descidas e o reboco começava a desfazer-se em vários pontos. Enfiou a chave na fechadura e deu quatro voltas. O trinco blindado saltou como se tivesse acabado de ser oleado. Rodou a maçaneta de latão e abriu a porta. A luz da tarde iluminou a entrada, na qual lhe pareceu ver uma menina que vinha ao seu encontro a sorrir e lhe dizia: - Finalmente! Estava à tua espera há algum tempo.Observou aturdida aquela pequena figura imaginária e reconheceu-se a si mesma no pequeno rosto triangular iluminado por uns grandes olhos escuros, com os cabelos compridos e negros, presos por uma bandelete de metal, que pousavam na gola alta de uma camisolinha amarela, justa, enfiada numa saia de lã azul bordada com um feixe de espigas amarelas e papoilas vermelhas.A visão da menina dissipou-se e Roberta deu alguns passos. Entrou no hall deserto, sentou-se na arca coberta por uma densa camada de pó, escondeu o rosto entre as mãos e começou a chorar.Pensou que, desde que se tinha casado, se dedicara inteiramente a Oscar, aos filhos, à casa e ao trabalho, como se o casamento tivesse marcado um corte total com o passado. Onde teriam ido parar os anos da infância, da adolescência, e os seus sonhos de rapariga? Porque os tinha esquecido?Limpou as lágrimas e ficou ali, submersa nas recordações, até que se apercebeu de que o hall estava mergulhado na escuridão.Então levantou-se e pareceu-lhe que as pernas se tinham transformado em borracha. Chegou à porta a cambalear, desceu os degraus apoiando-se no corrimão de ferro e saiu para a rua. A luz dos lampiões tingia o céu de um alaranjado doentio. Dirigiu-se a casa, caminhando com dificuldade. Sentia-se pessimamente.
Assim que abriu a porta do apartamento encontrou à frente o marido, que a recebeu com agressividade, assustado: - Só agora é que apareces! Os miúdos ainda não jantaram e tu... tu... não atendias o telefone. Onde estiveste?Oscar estava furioso e não se apercebeu de que a mulher tremia.- Não vês que a mãe não está bem? - interveio Francesca.Então Oscar assustou-se ainda mais. Pousou uma mão na testa da mulher e sussurrou: - É verdade, estás com febre, meu amor.Foi com ela até ao quarto, ajudou-a a despir-se e meteu-a na cama.Mediu-lhe a febre. Estava altíssima. Telefonou imediatamente ao doutor Galli, o médico de família, que conhecia Roberta desde que ela era pequena. Morava no mesmo quarteirão e chegou ao fim de meia hora. Depois de a ter observado, diagnosticou: - É o ataque febril do costume. O pior já passou e a temperatura está a descer.Roberta, desde sempre, sofrera de episódios febris súbitos e violentos, que superava com a ajuda de algumas aspirinas. Quando o pai insistia em conhecer a causa daquelas perturbações, o doutor Galli repetia: - É uma febre criptogenética -, apesar de estar convencido de que aquele mal-estar dependia dos problemas existenciais de uma menina que tinha os pais separados, duas tias discutíveis e uma avó severa.Naquele momento o médico pensou que também a vida actual de Roberta devia ser cansativa e difícil, com marido e filhos totalmente dependentes dela. Mas, devido ao seu temperamento discreto, não fez comentários.Despediu-se de Roberta e recomendou-lhe que não se cansasse e repousasse durante alguns dias.Oscar acompanhou-o à porta e disse-lhe: - O senhor doutor não imagina o susto que eu apanhei. Esteve fora de casa toda a tarde, eu não sabia onde havia de a procurar, e depois quando chegou vinha péssima. Não lhe receita nenhum medicamento?
- Extracto de mala - respondeu o médico, pronunciando bem a prescrição.- Não percebo - balbuciou Oscar.- A Roberta precisa de preparar a mala e fazer umas férias concluiu o doutor Galli e, ao mesmo tempo que entrava no elevador, insistiu: - Mande-a embora, por favor.Pouco depois, pai e filhos improvisaram um jantar com aquilo que encontraram no frigorífico. Francesca e Matteo estavam calados, sentados à mesa, e aquele mutismo era mais pesado do que o ruído a que habitualmente se abandonavam.- Então, o que é que se passa? - perguntou Oscar, que se sentia pouco à vontade porque intuía que os filhos lhe atribuíam a culpa do mal-estar de Roberta. Com efeito, Francesca e Matteo olharam de soslaio um para o outro e não responderam.- A mãe está bem, não tem nada. Só precisa de descansar.No entanto, como os filhos continuavam com os olhos fixos nos pratos, decidiu falar com eles abertamente.Voltou-se para Francesca e disse: - Tu estás aborrecida comigo. Percebi isso esta tarde. Não é por minha culpa que a mãe não está bem.Ela não respondeu e Oscar não insistiu, porque lhe surgiam algumas interrogações inquietantes. Onde teria estado Roberta durante toda a tarde? Porque tinha regressado naquelas condições? Teria um amante? Era uma hipótese tão assustadora que Oscar empalideceu. O que seria da sua vida se ela o deixasse? Talvez as crianças soubessem de alguma coisa que ele ignorava. Por isso estavam com aquele comportamento estranho.- Parece-vos que a mãe anda descontente? - perguntou, preocupado.Matteo continuou calado e Francesca replicou: - Pergunta-lhe isso a ela.- Estou a perguntar-vos a vocês - insistiu.- Muito contente não anda - sussurrou o rapaz.- Como é que tu sabes?,
Matteo encolheu os ombros.- Bem, todos nós temos os nossos problemas - declarou Oscar, para tentar tranquilizar-se, apesar de tremer à ideia de Roberta poder ter uma história com outro homem.Levantou-se da mesa, saiu da cozinha e, em bicos de pés, entrou no quarto. A mulher estava a dormir. Voltou então para junto dos filhos. Francesca e Matteo estavam a levantar a mesa.- Eu vou para a sala. Esta noite durmo no sofá. Se precisarem de alguma coisa, peçam-me a mim. Não quero que incomodem a mãe - disse.Roberta acordou a meio da noite. A crise febril tinha passado e sentia-se bem. Oscar não estava deitado ao lado dela.Levantou-se da cama, saiu do quarto e foi espreitar os filhos, que dormiam profundamente nos seus quartos. Viu que a luz da sala estava acesa. Talvez Oscar estivesse a dormir no sofá, ou talvez estivesse acordado. Não lhe apeteceu ir verificar.Entrou na cozinha, abriu a porta envidraçada e foi à varanda que dava para o pátio. O vento gélido tinha emigrado para outro lugar. A temperatura estava mais suave e ela respirou o ar da Primavera que tinha regressado com um sumptuoso cortejo de estrelas. Preparou um café, que tomou em pé junto ao fogão, e não se espantou ao sentir uma mão que lhe pousou docemente no ombro. Ali estava Oscar, em pijama, com os cabelos loiros despenteados e os olhos inchados de sono.- Como estás, meu amor? - perguntou-lhe ternamente, e acrescentou: - Também há um café para mim?- Há, se o fizeres - respondeu.Após anos de subserviência, pela primeira vez não se sentiu na obrigação de o servir.
3
Roberta pousou a chávena vazia no lava-louça, sentou-se à mesa e segurou a cara entre as mãos, como que a sufocar o espanto de ter conseguido redefinir o seu papel. Estava decidida a não ajudar o marido. Oscar, não menos espantado do que ela, lavou a cafeteira que a mulher tinha usado, encheu-a com café e pô-la ao lume, experimentando todos os botões do gás antes de descobrir o certo. Roberta contemplou impassível o pó de café espalhado por toda a parte, as portas dos armários todas abertas na ansiosa procura de uma chávena. Perguntou a si mesma se o marido estaria a representar para ela o papel do homem desajeitado para demonstrar que tinha absoluta necessidade da sua ajuda.- Que cheiro horrível é este? - perguntou depois, olhando em volta.- É a cafeteira: a pega está a queimar-se, porque não regulaste a chama, e dentro de um momento vai explodir porque não lhe puseste água - explicou Roberta, com um ar seráfico. Por um instante, esperou realmente que explodisse a cozinha inteira com todos os móveis que, há anos, estavam a cair aos pedaços.Quando se casaram, ela e o marido optaram por uma cozinha produzida em série com a proposta, assim que fosse possível, de mandarem fazer a um marceneiro uma cozinha à medida. Tinham passado dezoito anos e ainda não tinham conseguido juntar o
suficiente para realizar aquele projecto. Os filhos cresciam lado a lado com as despesas familiares. Roberta ganhava bem com a sua livraria, mas os gastos eram muito altos e iam diminuindo as poupanças. O trabalho de Oscar, que era fotógrafo freelance, avançava entre altos e baixos. Quando arranjava uma reportagem interessante, ganhava muito dinheiro que, se dependesse dele, gastaria por inteiro. Mas Roberta, que sabia quando o marido o recebia, retirava da sua conta-corrente uma quantia suficiente para sustentar a família até ao serviço seguinte. Oscar não dava conta daqueles levantamentos, ou talvez desse, mas não dizia nada. Era essa a grande questão entre eles: nunca abordavam um problema abertamente, até ao fundo. Assim, a sua vida de casal ia seguindo entre meias mentiras e meias verdades, sempre a fazer de conta que estava tudo bem.- Ajuda-me aqui - protestou Oscar, que tinha queimado os dedos para tirar a cafeteira do lume.Roberta pegou numa bacia pequena, encheu-a de água e gelo e mandou-o meter ali a mão, enquanto lhe dizia: - Sozinho, nem sequer sabes fazer um café. Tens quarenta e cinco anos e és mais desastrado do que o Matteo. Nunca mais vais ser adulto. - Pela primeira vez olhou para ele como se fosse um estranho e, de repente, perguntou a si mesma: É este o homem por quem eu fiz tantas loucuras?- Posso finalmente saber onde e com quem estiveste, ontem de tarde? - perguntou ele.- Queres que te diga a verdade, ou preferes uma mentira? Oscar ficou irritado, tirou a mão da bacia e fez-lhe frente:- O que é que queres dizer com isso?- Fizeste-me uma pergunta e eu dei-te a possibilidade de escolheres a resposta. Se pelo menos a tua curiosidade fosse ditada pelo ciúme, já seria um passo em frente. Mas tu apenas tens medo de perder uma mulher que trata de ti, dos filhos e da casa. A tua existência é toda concentrada em ti e na tua tranquilidade pessoal declarou, aborrecida.
23
Saiu da cozinha e foi para o quarto.Deitou-se às escuras e tentou voltar a adormecer, mas os seus pensamentos rodavam em volta da pequena Roberta vestida de amarelo e azul que encontrara na moradia da via Turroni.A tia Cristina tinha confeccionado a saia que a avó bordara, enquanto a tia Aurora tinha feito a camisola. Cristina e Aurora eram as irmãs mais velhas do pai, e viviam todos juntos. Malvina, a mãe, aparecia e desaparecia com a ligeireza de uma borboleta.Roberta nunca sabia como relacionar-se com aquela mãe que estava e não estava, que era um planeta desconhecido e misterioso. Um domingo de Fevereiro, com um gelo que enrijecia as flores da magnólia do jardim, Malvina veio buscá-la para a levar para sua casa.Quando a recebeu à porta, enquanto a abraçava, Roberta sussurrou-lhe: - Mãe, diz-me que sou bonita.Malvina afastou-a de si e, depois de a ter observado atentamente, replicou: - Para mim és, mas lembra-te que o importante não é o que parecemos, mas como nos sentimos com nós mesmos. Faz apenas aquilo que te fizer sentir bem contigo mesma.Só agora, ao recordar as palavras da mãe, Roberta se apercebeu de que estava muito mal consigo mesma há muito tempo.Oscar interrompeu o curso dos seus pensamentos quando apareceu à porta do quarto. - Posso deitar-me ao pé de ti? - perguntou, com um ar de cão escorraçado. Sentia que a mulher se estava a afastar dele, e isso era uma sensação tremendamente desagradável.
4
O letreiro da livraria de Roberta era um mocho de grandes olhos que tinha as patas espetadas nas páginas de um livro aberto. A mãe, Malvina, era dona da livraria desde 68 e ofereceu-a à filha quando esta se casou com Oscar, dizendo-lhe: - Não creio que o teu marido consiga sustentar uma família com aquela pedra no sapato que é a ex-mulher. Esta actividade vai garantir-te algum rendimento.Roberta, que não aceitava críticas a Oscar, replicou: - Ele, pelo menos, gosta de mim. - Sublinhou aquele "pelo menos", carregado de significado que Malvina captou imediatamente. Sabia que tinha sido uma mãe discutível e, no entanto, não teria mudado uma única vírgula da sua vida passada.- Ele precisa de ti porque é um típico exemplar de homem inseguro - rebateu Malvina.Roberta estava convencida de que a mãe criticava Oscar só porque não o conhecia bem. Para além disso, sabia que Malvina, como fervorosa feminista que era, olhava com suspeição aquilo que para ela era a "outra metade do céu" e, portanto, também o genro. Mas estava-lhe grata por aquele presente, até porque também amava os livros a que a própria Malvina tinha ensinado a dar valor.
25
Quando era pequena, sempre que se encontravam, a mãe oferecia-lhe um livro. Lia-lhe as primeiras páginas e depois dizia: - Se queres saber o resto da história, continua tu.O Mocho era uma livraria de bairro que funcionava bem, graças também à experiência de Chiara Tizzoni, uma amiga de Malvina, que ali trabalhava há quarenta anos.Roberta viu-a na montra a reorganizar os livros expostos. Aquela mulher de aspecto imponente e ar enérgico, mas calorosa e doce como uma galinha choca, transmitia-lhe segurança. Estacionou o carro e entrou no estabelecimento. Angélica, a outra empregada, estava a limpar o pó aos livros e, entretanto, mudava-os de sítio para arranjar nos balcões o espaço destinado às novidades que iam chegar durante a tarde.Roberta entrou nas traseiras da loja e viu Messalina, a gata do prédio, enroscada sobre o peitoril da janela. Ronronava, saboreando uma lâmina de sol que iluminava o pátio e o pequeno escritório.Abriu a janela e Messalina, com um salto, aterrou em cima da secretária. Estava outra vez grávida. Roberta abriu uma latinha de comida para gatos e pousou-a no peitoril. Messalina seguiu-lhe os movimentos, mas não abandonou o seu posto, e quando ela se sentou à secretária saltou-lhe para o colo. Estava com vontade que lhe fizessem festas, e Roberta afagou-a enquanto verificava o extracto do banco.Quando Messalina se sentiu saciada de carícias, saltou para o peitoril e, com elegância e um distanciamento cheio de dignidade, começou a depenicar a comida.Roberta deixou-se cair contra as costas da cadeira estofada emergulhou nos seus pensamentos confusos.Foi assim que Chiara a encontrou, quando entrou no escritório.- Levantaste-te com o pé esquerdo? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que se sentava à frente dela.- Se calhar... - respondeu Roberta, e acrescentou: - O que é que tu queres da vida?
26
- Trinta quilos a menos, um ordenado de empresário e um rapaz giríssimo, que me diga que eu sou o máximo e me ofereça um ramo de flores - brincou Chiara.Roberta sorriu-lhe.- E tu, o que é que tu queres? - perguntou-lhe a amiga.- Eu já tenho um rapaz giríssimo, que ontem me ofereceu um ramo de lilases - respondeu Roberta com alguma hesitação.- Certamente depois de te ter deixado plantada, com a desculpa de que tinha muito que fazer. Diz-me que estou errada.- O problema sou eu, não é o Oscar - suspirou.- Descobriste a água quente.- É verdade. Só que agora meti lá a mão e queimei-me.- Arde, não é?- Nem imaginas como. Quando eu era nova, queria uma vida que fosse o oposto da da minha mãe. Desejava um marido, filhos, uma família normal, e achava que tinha realizado os meus sonhos. Se agora pudesse reescrever a minha história, garanto-te que o Oscar não seria nem o protagonista, nem a personagem secundária. - Sabe-se lá como, com Chiara perdia toda a sua reserva. Naquele momento levantou-se repentinamente da secretária, ao lembrar-se de que na noite anterior não tinha voltado a fechar a porta e nem sequer o portão da casa da via Turroni. - Preciso de sair numa corrida - anunciou.- Olha que hoje de manhã vêm os vendedores por causa das reservas para os lançamentos deste Verão - avisou Chiara.- Trata tu disso, por favor. - Agarrou na carteira e saiu da loja. Entrou no carro e, seguindo um percurso que conhecia de cor, regressou à rua da sua infância.A rua estava tranquila, como sempre. Na parte de fora das casas e dos prédios estavam alinhados os baldes do lixo.Estacionou à frente da casa dos Mandelli. Saiu do carro e viu que o portão e a porta de entrada da casa estavam encostados. Ia a entrar quando ouviu uma voz alarmada gritar: - Eh, o que é que a senhora vai fazer?
Voltou-se e reconheceu a velha signora Renzi, que morava na casa ao lado da sua. Também a mulher a reconheceu.- Oh, meu Deus, a pequena Berta voltou! - exclamou, surpreendida.Roberta voltou a descer os degraus e foi ao encontro dela. A signora Renzi tinha os cabelos grisalhos, enrolados na nuca, e trazia uns vistosos brincos de pequenas pedras de cores muito vivas que sempre tinham sido a sua paixão. A "pequena Berta", era assim que lhe tinha chamado. Roberta detestava aquele diminutivo.Em criança, quando passava os meses de Verão no Tirol, a gente da aldeia chamava-lhe Berta. - Como o famoso canhão alemão da Primeira Guerra Mundial - repetiam sempre. E as meninas que moravam nos prédios em frente às moradias da via Turroni, faziam troça dela: - Roberta, Berta, Bertuccia, uh, uh, uh!- e coçavam o peito como as macacas.Repeliu uma ponta de irritação por causa daquele tratamento e sorriu à idosa vizinha. A signora Renzi nunca tinha sido bonita, mas chegou a ter três maridos que a amaram muito, para além de que, ao morrer, cada um deles lhe deixou uma boa herança. Perguntou-lhe com uma voz afectuosa: - Como está, signora Renzi?- Como todos os velhos, cheia de achaques. Mas a questão não é essa. Eu estava a pensar em ti, sabias? - revelou-lhe, enquanto a abraçava.- Porque é que estava a pensar em mim? - perguntou Roberta, curiosa.- Vou contar-te. Portanto, ontem à tarde estava a dormitar, como de costume, no meu sofá, na sala. A certa altura senti que abriam a porta da tua casa e pensei: Ora essa! Mas se a casa está fechada há anos! Serão os ciganos? Então fiquei preocupada. Cheguei-me à janela, mas não vi ninguém. Por isso pensei que tinha sonhado - contou, sem parar.- Ontem à tarde vim dar uma vista de olhos à casa - explicou Roberta.
- Resolveste abri-la de novo? Eu ficava tão contente! Está toda a gente a ir embora daqui, pouco a pouco. A vida já não é alegre como noutros tempos, com vocês todos pequenos a fazer uma grande confusão. Diz-me que vens viver para aqui outra vez com a tua família - pediu-lhe.Roberta perguntou a si mesma quantos anos teria a signora Renzi. Já era velha quando ela era uma menina. Pelo menos era assim que se lembrava dela. Já nessa altura era alta, magra e com o rosto cheio de rugas.- Não, não me parece - respondeu Roberta, evasiva.- Então vais vendê-la? Não cometas esse erro. Digo-te isto porque ainda me lembro da grande crise de 1929. Que momentos terríveis. O meu pobre pai, que tinha investido o dinheiro todo em títulos, em pouco tempo tinha perdido tudo e a minha mãe atirava-lhe à cara o facto de não a ter escutado quando o aconselhava a investir nos tijolos. - Secou uma lágrima, depois reencontrou o sorriso malicioso de sempre e continuou: - Tu estás com ideias de voltar para aqui mas não me queres dizer, porque achas que eu vou por aí contar a toda a gente. Devias saber que eu sou um túmulo! - garantiu com solenidade.A boa signora Renzi respondia sempre assim às mães que lhe perguntavam que segredos escondiam as suas filhas, que a tinham elegido como confidente. Naquele momento Roberta lembrou-se disso e sorriu. A signora Renzi conhecia a vida amorosa de quase todas as jovens da via Turroni, que iam a casa dela para lhes ler o Tarot. Talvez soubesse interpretar as cartas, ou talvez não, mas com perguntas habilidosas conseguia arrancar confidências que guardava para si, ciosa das suas meninas palpitantes de ingénuas paixões.Também Roberta, a certa altura, se dirigiu a ela que, ao consultar as cartas, sentenciara: - Estás apaixonada por um infante lindo que te ama mas que te vai fazer sofrer, porque é muito superficial. Para além disso, está ligado a outra. Muda de caminho enquanto é tempo.
Por Oscar, Roberta estava disposta até a negar as evidências. Por isso ignorou as palavras da signora Renzi.
Agora confessou-lhe: - Acredite, por enquanto não tenciono vender nem voltar aqui. Se alguma vez chegar a tomar uma decisão, a senhora é a primeira a saber. Foi um prazer encontrá-la.
Eu já não vou a lado nenhum, porque as pernas não me aguentam - disse, e despediu-se dela.
Roberta entrou em casa e escancarou as janelas do rés-do-chão.
A entrada, com a arca poeirenta sobre a qual tinha ficado a sua marca, dava acesso a um longo corredor. À esquerda abriam-se as portas que davam para uma arrecadação transformada em roupeiro, para a casa de banho dos hóspedes, para a sala de jantar e para a cozinha. À direita havia uma sala de estar, onde a avó tinha dormido nos últimos anos da sua vida porque já não conseguia subir as escadas, o escritório do pai, forrado de livros, e uma abertura em arco pela qual se entrava na varanda. Ao fundo do corredor ficava a escada que levava ao primeiro andar, onde ficavam os quartos e as casas de banho. Roberta vagueou pelos aposentos do rés-do-chão. Depois foi à varanda e, ao abrir uma das janelas, fez cair um objecto. Baixou-se para o apanhar e sorriu: era um cubo de Rubik.
Aquele pequeno objecto de habilidade fora o seu tormento quando era pequena e tinha de se confrontar com as amigas muito mais hábeis do que ela a reorganizar as peças que o compunham. Até o pai lhe tinha mostrado várias vezes como era simples compô-lo. Mas ela não conseguia e dizia, mortificada: - Não sou capaz. Sou um desastre, não vês? Nem sequer sei fazer os orzgamzs, e tudo
o resto.
- Não é verdade. Deve haver alguma coisa que saibas fazer bem.
- Círculos na água - respondeu-lhe Roberta um dia.
O pai abraçou-a e depois sussurrou-lhe: - É preciso muita habilidade e uma certa imaginação para fazer círculos na água.
Naquele momento recordou como eram bonitos, perfeitos, evanescentes e delicados os círculos que nasciam à superfície da água da fonte ao fundo do jardim. Ergueu os olhos. A fonte continuava lá ao fundo, encostada ao muro, coberta de musgo e de terra. Trinta anos atrás flutuavam ali nenúfares, e na água saltitavam pequenos peixes vermelhos.
5
Roberta estava sentada no bordo da fonte coroada por um menino gorducho que segurava um grande peixe nas mãos. Da boca aberta do peixe escorria um fino jacto de água que caía no lago em semicírculo onde os peixes vermelhos nadavam e se escondiam, por vezes, por baixo das folhas dos nenúfares. De vez em quando, lançava na fonte uma pedrinha que, ao cair na água, formava círculos que se multiplicavam, dilatando-se, até atingir as extremidades do lago. Aborrecia-se e achava que o tempo nunca mais passava.
Erguia constantemente o rosto em direcção à varanda e gritava para se fazer ouvir pela avó, que estava lá dentro a bordar:
- Que horas são?
- É cedo - respondia a avó.
Era sempre assim, ao domingo depois do almoço, enquanto esperava que a mãe a fosse buscar para a levar com ela. Roberta tinha percebido há algum tempo que as mulheres da casa não tinham um comportamento benevolente em relação à mãe. Era um facto, porém, que com a mãe nunca se aborrecia, e quando ela faltava a um encontro sentia-se muito só.
- Avó, que horas são? - perguntou mais uma vez.
- É a hora de ontem por esta hora. Faz alguma coisa em vez de encheres o lago de pedras - respondeu a avó, sem paciência.
Roberta parou de desenhar círculos na água e começou a passear pelo meio dos canteiros do jardim, onde tinham já florido as íris azuis, os jacintos cor-de-rosa e os narcisos amarelos, à volta dos quais esvoaçava timidamente uma pequena borboleta. A avó era a vestal do jardim e zangava-se tremendamente se Roberta, a jogar a bola, pisava os canteiros. Quando o fazia, censurava "esta juventude" que não respeitava a natureza. - Não sabes que uma planta é como uma criança? Para crescer bonita e saudável precisa de cuidados. E tu, o que fazes? Consegues destruí-la! - Depois a recriminação dilatava-se em direcção a horizontes cada vez mais catastróficos até à reiterada conclusão: - Felizmente, quando chegar o fim do mundo, eu já não vou cá estar. Mas vocês, que terão nessa altura destruído a natureza, com que cara se vão apresentar a Deus? - Aquele "vocês" incluía Roberta, mas também os filhos e a nora. Quanto a Deus, esse era o seu ponto de referência constante. A quem lhe perguntava: "Como está, signora Mandelli?", invariavelmente respondia: "Bem, com a graça de Deus, à espera de morrer".
Estas e outras frases da avó faziam parte do léxico familiar. Roberta sabia-as de cor e às vezes divertia-se a repeti-las, antecipando as palavras que a avó ia pronunciar.
Da varanda, onde estava a bordar a bainha de um guardanapo, a avó mantinha a neta debaixo de olho, temendo que lhe pisasse as flores. Agora, ao ver a criança debruçada sobre um narciso, ficou desconfiada e gritou: - Berta, o que estás a fazer?
Aquele diminutivo que a irritava levou Roberta a não responder e a esconder-se no meio das hortênsias para obrigar a avó a ir a procura dela. Um pequeno estratagema para desanuviar a ansiedade da espera e encher aquelas horas que nunca mais passavam. Uma vez confessou à mãe o quanto se aborrecia enquanto esperava por ela e Malvina replicou: - Mas isso é fantástico! Pobres das crianças às quais não é concedido tempo para se aborrecerem.
A mãe tinha uma licenciatura em Medicina e uma especialização em Psicoterapia de Casal.
As tias, Cristina e Aurora, sussurravam a rir: - É um esquema. Como é que ela consegue curar os casais que se dão mal quando nem sequer foi capaz de viver com o pai da filha? - Porque era um facto que, ao fim de alguns anos de vida em comum, Malvina deixou ficar Walter Mandelli, a quem confiou também a filha, que cresceu a ouvir a avó recriminar: - Coitado do meu Walter, seduzido e abandonado. - Quando era pequena, Roberta não percebia muito bem o significado daquelas palavras.
Uma mão nodosa agarrou-lhe um ombro.
- Apanhei-te, marota feia - sibilou a avó, apanhando-a de surpresa atrás das hortênsias e usando uma das suas expressões recorrentes que há muito tempo tinham deixado de incomodar Roberta. Porém, naquele momento desatou num pranto.
A avó enterneceu-se. Abraçou a neta e sussurrou-lhe: - Não te queria assustar.
Deu-lhe a mão e levou-a para a varanda aquecida pelo sol primaveril. Da cozinha chegava o perfume de um bolo de chocolate que a tia Cristina tinha feito para a hora do chá. Esperava a visita do guarda-livros Fugazza, funcionário do Banco de Roma, desejável futuro marido. A tia tinha quarenta e cinco anos e desesperava com a ideia de morrer solteira. Naquela manhã, numa altura em que a filha não estava presente, a avó comentara com o seu habitual sarcasmo: - Tenho a certeza de que este também não vai dar certo. Fugazza! Um nome, um destino! Vai ser uma fuga ainda mais rápida do que a dos outros.
Efectivamente, a tia Cristina, que era muito bonita, tinha coleccionado um número considerável de pretendentes, os quais, no entanto, se dissolviam rapidamente no vazio. Walter Mandelli afirmava que a irmã mais velha era tão bonita quanto infantil. Roberta gostava muito de estar com ela, porque era uma companheira de brincadeiras ideal. Com a tia zangava-se e fazia as pazes como se fosse uma das suas amiguinhas. O médico de família definira Cristina como "uma personalidade imatura".
- Tiraram-ma a ferros - explicava a avó, e perdoava-lhe as birras e os comportamentos excêntricos.
Sempre que um namorado se afastava, Cristina fechava-se no quarto, escondia-se debaixo dos lençóis e, durante uma semana, não havia maneira de a tirar de lá. Recusava até a comida e só tomava chocolate quente ou alguma sopinha substancial que a mãe lhe preparava. Aceitava apenas a companhia de Roberta, que se divertia imenso a ouvir os lamentos e as recriminações da tia contra o "infame" de turno.
- Felizmente - dizia, a limpar as lágrimas -, só levou o meu coração, não o meu corpo.
Quando era mais pequena, Roberta não percebia o significado daquelas palavras que, no entanto, lhe agradavam imenso.
- A satisfação de me possuir só a darei ao homem que me levar ao altar.
Aquela linguagem de cariz oitocentista, que Cristina ia buscar às fotonovelas, fascinava a sobrinha.
Ao fim de uma semana de clausura, o luto estava feito, superado, e ela regressava ao mundo dos vivos, totalmente recomposta e livre da figura do "infame" que a tinha abandonado. Apresentava-se novamente à família e no escritório do velho notário, onde trabalhava desde sempre, e recomeçava a borboletear à espera de um novo pretendente.
Agora era o guarda-livros Fugazza, um viúvo de sessenta anos, sem filhos, míope como uma toupeira, que falava com os dentes apertados e era um aficionado do ciclismo e do montanhismo. Desportos que a tia sempre ignorara, mas que naquele momento se tinham tornado os seus preferidos.
Roberta largou a mão da avó e enfiou-se na cozinha. - Quero uma fatia de bolo - disse à tia, que estava a preparar o carrinho para servir o chá.
- Se ficares em casa, tens bolo e conheces o signor Fugazza; se saíres com a tua mãe, guardo-te uma fatia de bolo para quando
voltares - replicou a tia, enquanto afagava o jabot da camisa de seda, todo folhos e rendas.
A tia Aurora, que tinha menos um ano do que Cristina, estava a bater as natas com a batedeira eléctrica. Roberta enfiou um dedinho na taça e disse: - A mãe vem de certeza. Que horas são?
Ao contrário de Cristina, Aurora não ligava ao seu aspecto. Vestia-se como um homem, tinha o cabelo curtíssimo e nunca se pintava. Nem sequer tinha namorados e afirmava que "todos os homens são repelentes". Era instrumentista e trabalhava num hospital. Ganhava bem, até porque acompanhava muitas vezes os cirurgiões quando operavam nas clínicas privadas. Gastava muito do seu dinheiro para enfeitar a sobrinha, que considerava como a filha que ela nunca teria.
- Ouvi um carro a parar em frente ao portão. Se calhar chegou a Malvina - anunciou Aurora.
Naquele momento a campainha tocou.
- Chegou a mãe - chilreou Roberta, precipitando-se em direcção à saída. Abriu a porta de casa e caiu-lhe nos braços. Malvina apertou-a contra si e depois afastou-a para observar como estava vestida.
- Vens comigo ou vais a um casamento? - perguntou-lhe. Roberta vestia um tailleur de ganga rosa-acinzentado com a
saia a direito e a jaqueta justa da qual saíam as rendas e os folhos da camisa branca. Trazia uns collants imaculados e umas sabrinas de pele cor-de-rosa. - Vou contigo. Não gostas da minha roupa? perguntou Roberta, que estava muito orgulhosa do seu fato de senhorinha.
- Se tivesses também umas luvas e um chapeuzinho, podias mergulhar numa tela de Degas - disse Malvina, a sorrir.
- O que é uma tela de "degas"?
- Uma obra de arte, como tu - respondeu a mãe com um ar despachado, porque nunca teria vestido a filha com aquele preciosismo que raiava o ridículo, e porque lhe desagradava mais ainda que a menina se pavoneasse tanto.
- Já percebi, não gostas - ofendeu-se Roberta, que tinha antenas compridas e captava até os mais pequenos sinais.
- Eu gosto sempre, mesmo que estivesses vestida de trapos afirmou a mãe, que não lhe queria mentir, nem ofender a sua sensibilidade. Deu-lhe a mão e entrou no corredor. A avó apareceu à entrada da varanda.
- Quando ma trazes de volta? - perguntou-lhe, depois de a ter cumprimentado. Um muro de desconfiança separava Malvina das
mulheres da família Mandelli, que a consideravam uma péssima
mãe.
- Quando? - perguntou Malvina a Roberta, porque queria que
fosse a filha a decidir.
- Fico a dormir com a mãe - respondeu a menina, e esperou
que ela deixasse.
Malvina já tinha reparado numa mochila cheia de livros e
cadernos da escola que estava pousada em cima de uma cadeira da
entrada. Agarrou nela rapidamente e pô-la ao ombro quando iam
a sair.
- Até amanhã, Berta - disse a avó, à espera de um beijo da
neta que, longe disso, se escapuliu para fora de casa, irritada com
aquele diminutivo. Entraram no carro de Malvina, que lhe perguntou de repente: - O pai não está em casa?
- Foi à Hungria entrevistar uma senhora que inventou qualquer coisa para fazer crescer o cabelo àqueles que já não têm -
contou Roberta.
- Muito interessante - comentou a mãe com uma nota sarcástica que, felizmente, a criança não apanhou.
Walter Mandelli era enviado especial de um jornal de divulgação médica. Aquela escolha profissional era um dos motivos de
dissidência entre ela e o pai de Roberta.
- Pomos música? - propôs a filha e, sem esperar uma resposta, enfiou uma cassete no leitor.
Ouviu-se imediatamente a voz de Francesco De Gregori a
mantar "Buona nottefiorellino". Mãe e filha juntaram as suas vozes
à do cantor. A andar de carro com a mãe, Roberta tinha aprendido a gostar de muitas canções.
Sabia de cor letra e música das canções de De André, Celentano, Paoli, Gaber, dos Bee Gees. De Gregori, no entanto, era o preferido e, do seu repertório, destacava Alice, porque Alice era o nome que teria escolhido para si, apesar de nunca ter confessado isso a ninguém. Decidiu fazê-lo naquele momento, abordando o assunto ao longe.
- Porque me chamaste Roberta? - perguntou à mãe, ao mesmo tempo que do leitor de cassetes saíam as notas de uma outra canção.
- Foi uma escolha do teu pai. Ele gostava do Peppino di Capri e da canção dedicada a Roberta. Acho que também gostava daquela Roberta que andava com o cantor, e que ele entrevistou acrescentou.
- Eu gostava de me chamar Alice, porque não gosto do meu nome - confessou a filha.
- Achas que eu gostava do meu?
- Não sei. Nunca pensei nisso.
- Então pensa. São sempre os outros que escolhem o nome que temos de usar toda a vida. E se te tivéssemos chamado Genoveffa ou Ermenegilda? - brincou Malvina.
- Puah! - fez a criança, horrorizada.
- Faz as pazes com o teu nome, usa-o como se fosse um lindo colar e vais sentir-te melhor - sugeriu-lhe.
Roberta não sabia como fazer as pazes com um nome de que não gostava, mas não lhe disse.
6
Malvina estacionou o carro num espaço aberto em frente a um velho celeiro edificado no meio de um vasto terreno murado e coberto de relva, árvores e arbustos. Havia outros carros estacionados e algumas motorizadas encostadas às paredes do celeiro construído com tijolos. Roberta, um pouco contrariada, pensou que devia estar muita gente em casa. As mesmas pessoas que iam e vinham a seu bel-prazer, sem aviso prévio. Era assim que a mãe vivia, e isso era outra razão de divergência com Walter Mandelli. Malvina impunha a quem transpunha a porta de sua casa umas poucas regras precisas: entrava-se descalço, e o conteúdo do grande frigorífico estava à disposição dos hóspedes que, porém, deviam ir embora quando ela decidia ficar sozinha. Roberta gostava daquela antiga construção rural, com enormes janelas em arco que se abriam para o exterior, assim como dos tapetes e das almofadas de cores berrantes que cobriam o chão de tijoleira. O interior do celeiro era uma divisão única sem paredes divisórias, cheio de biombos que serviam para delimitar os espaços.
Mãe e filha entraram em casa e encontraram uma dezena de mulheres que as receberam em silêncio. Roberta conhecia algumas delas. Estavam todas vestidas mais ou menos como a mãe: uma profusão de xailes, socas, saias compridas, colares vistosos e uma miscelânea de perfumes intensos.
Algumas estavam enroscadas nos sofás, outras estendidas no chão, em cima das almofadas.
- Esta bonequinha vem de uma passagem de modelos infantil?
- perguntou uma delas, magra como um palito, com cabelo cinzento curtíssimo, uma miscelânea de colares sobre um pescoço cheio de rugas e dois olhos de aço que perscrutavam Roberta com frieza.
A menina corou, atingida por aquela crítica impiedosa ao seu vestuário. De imediato, a mão protectora da mãe pousou-lhe no ombro e Malvina disse: - Sabias que agora também fazem passagens de modelos para avós e netos? Acho que a minha Roberta tinha muito gosto em desfilar contigo.
Havia veneno suficiente naquela resposta para provocar um sorriso em todas as amigas, e Roberta sentiu-se mais tranquila.
Nesse momento, Malvina dirigiu-se à filha: - Tu não conheces a Esmeralda. De vez em quando, a perseguição do tempo transforma-a numa galinha petulante, mas garanto-te que é uma mulher de grande coragem e valor, e todas nós lhe devemos muito.
Assim está melhor, pensou Roberta, e esgueirou-se em direcção ao fundo do grande aposento, onde um biombo delimitava o quarto, dela e da mãe, esperando que aquelas mulheres se fossem embora depressa.
Levantou a tampa de um grande cesto de vime onde Malvina metia roupa, calçado e bugigangas que já não usava, e que ela estava autorizada a usar como lhe apetecesse.
Roberta gostava muito de brincar com aquelas roupas extraordinárias. Pegou num vestido às flores, adaptou-o ao seu corpo, apertando-o com um cinto de verniz vermelho, calçou umas sandálias da mesma cor com um tacão vertiginoso e depois foi sentar-se em frente ao espelho do toucador e começou a pintar-se com os batons e os lápis da mãe. Entretanto, ouvia distraidamente a discussão que se desenrolava do outro lado do biombo.
- Porquê apagar o nosso património de sedução? Teremos assim tanto medo de nos tornarmos um objecto do desejo sexual do homem? - perguntou Esmeralda.
Uma outra voz replicou: - Nós queremos ser apreciadas enquanto pessoas, não enquanto fêmeas. Portanto, devemos negar-nos a capacidade de sedução.
- Certo. Exaltar os seios e o fundo das costas é um exercício aviltante para qualquer mulher - concordou Chiara, que Roberta considerava a mais simpática de entre as amigas da mãe.
- Eu nunca seria capaz de mortificar a minha feminilidade, nem a minha inteligência - afirmou Malvina.
- Atenção, Malvina! O sistema machista que nos castiga desde há séculos está sempre à espreita, emboscado, pronto para nos subjugar - interveio outra companheira.
- A Silvana tem razão. Querer ser feminina significa deixar-se instrumentalizar - comentou Esmeralda.
- E és logo tu que nos chamas a atenção? Tu que perdeste a cabeça com um rapazito cínico que te está a usar há meses? - reagiu Malvina, e logo se seguiu um silêncio gelado.
Roberta aproximou-se do biombo para ouvir melhor a continuação do debate, que tinha criado uma certa tensão no grupo definido por Malvina como "o meu colectivo".
Naquele momento, a menina pensou que talvez aquelas mulheres se detestassem.
Foi Esmeralda quem rompeu o silêncio com uma gargalhada, e depois disse: - Se vocês soubessem como eu me divirto a deixar-me usar pelo meu rapazito, e a pena que eu tenho de algumas de vocês, agarradas àqueles chatos dos vossos maridos. É precisamente esta a ideia, minhas amigas: devemos usar o nosso fascínio para seduzir, não para sermos seduzidas e tornarmo-nos prisioneiras dos homens.
Houve um aplauso. Roberta perdeu todo o interesse pela discussão e continuou a empastelar a cara em frente ao espelho. Foi
ali que Malvina a encontrou, depois de ter despachado rapidamente as companheiras.
- Percebeste de que é que estávamos a falar? - perguntou-lhe.
- De sexo - disparou a filha, empregando uma palavra que nunca teria pronunciado em casa da avó.
- De dignidade - corrigiu a mãe.
- A tua amiga não respeitou a minha dignidade quando criticou aquele meu tailleur lindíssimo - afirmou Roberta, que não tinha ainda digerido as palavras de Esmeralda.
A mãe abraçou-a e admitiu: - Tens razão. Em vez de enchermos a boca com conceitos abstractos, deveríamos reflectir mais vezes sobre o seu significado e pô-los em prática. És uma menina muito inteligente.
- Mãe, tu gostas tanto de mim como o pai, mais ou menos? perguntou Roberta de repente, exteriorizando uma questão que a atormentava há já algum tempo.
7
Aos oito anos, Roberta deixou de afirmar que, quando fosse grande, se ia casar com o pai; mas tinha muitos ciúmes dele e perturbava-a a fotografia dos pais abraçados que se destacava em cima da secretária, no escritório de Walter, na via Turroni. Era uma imagem radiosa do jornalista e da psicóloga, em fato de banho, retratados contra um fundo marinho.
- Se já não vivem juntos, porque é que tens esta fotografia à tua frente? - perguntou-lhe Roberta, um dia.
- Houve um tempo em que gostávamos muito um do outro, e apesar de mais tarde os nossos caminhos se terem separado, não se pode apagar aquilo que existiu. Seria como apagar-te a ti, que és a prova mais evidente do facto de a mãe e eu nos termos amado.
Na sua voz, Roberta captou uma quebra, como se aquela afirmação escondesse uma verdade que lhe era calada. As palavras de Walter suscitaram nela uma sensação desagradável que por vezes a assaltava, deixando-a insegura, e que ela anulava lançando-se impetuosamente nos braços da mãe ou do pai.
O abraço do pai, sobretudo, era muito tranquilizante, e ela escondia o rosto naquele peito que cheirava a água-de-colónia e
a tabaco. Quando era pequena, Walter levantava-a pelas axilas e punha-a às cavalitas, e depois levava-a a passear assim, pela rua. Roberta contemplava o mundo de cima e sentia um arrepio
maravilhoso de omnipotência. Havia já alguns anos que o pai tinha perdido aquele hábito de que ela tanto gostava, afirmando que ela já estava muito grande.
Naquele dia, ao chegar da escola, assim que entrou em casa sentiu o "cheiro do pai".
- Já voltou - sussurrou, com o coração aos saltos. Não o via há uma semana. Nem sequer tirou a mochila que lhe pesava nas costas e precipitou-se para o escritório.
Walter Mandelli, envolvido numa nuvem de fumo, estava sentado à secretária a bater as teclas da sua máquina de escrever portátil. Viu-a, sorriu-lhe e abriu os braços para a apertar contra o peito.
- Quando chegaste? - perguntou Roberta, feliz.
- Pouco antes de ti. Se não tiras a mochila, não consigo espremer-te como queria - respondeu, a rir.
- E já estás a trabalhar? - perguntou-lhe, deixando a mochila escorregar para o chão.
Nesse momento viu um pequeno objecto muito bonito na mesinha ao lado da secretária. Era um pequeno carrossel de porcelana, decorado com flores e borboletas de cores vivas.
- É para mim? - perguntou imediatamente.
- É uma caixa de música. Se rodares a cúpula do carrossel, os cavalinhos começam a andar à volta e ouves uma música cigana.
O pai trazia-lhe um presente de todas as viagens, mas aquela caixa de música era a prenda mais encantadora que alguma vez recebera. Rodou imediatamente a cúpula e escutou arrebatada as notas que saíam da pequena engrenagem mecânica. Quando a avó os chamou para o almoço, Roberta levou a caixa de música com ela e pousou-a em cima da mesa, em frente ao prato. Sentados um diante do outro, pai e filha observaram de soslaio a avó, que estava muito amuada.
- Anda aí ar de temporal - sussurrou-lhe o pai, quando a avó entrou na sala com uma terrina cheia de esparguete fumegante.
Roberta encolheu os ombros e estendeu os braços como quem
diz: "Não sei de nada."
A avó tinha sempre uma razão para o seu mau humor. Roberta e o pai não se preocupavam muito com isso. Habitualmente, ao almoço estavam só os três à mesa, porque as tias almoçavam fora.
Walter começou a contar a viagem à Hungria, à procura de uma estranha médica que tinha inventado um medicamento para travar a queda do cabelo ou para facilitar o seu crescimento. Roberta perdeu rapidamente o interesse por aquela narrativa. Continuava a dar corda à sua caixinha, para ouvir a música. Entretanto pensava na humilhação que tinha sofrido de uma colega de turma que morava num prédio da via Turroni, em frente à casa dos Mandelli. A rua estava dividida em duas partes por uma linha invisível: de um lado sucediam-se as moradias habitadas pelos senhores, do outro erguiam-se grandes edifícios de apartamentos onde viviam famílias de comerciantes, operários e artesãos. As meninas que viviam nos prédios eram muito mais livres e independentes do que as das moradias. Reagiam às provocações dos rapazes e sabiam defender-se até usando as mãos. Bater nos colegas era a sua brincadeira favorita. Mas também sabiam formar equipa quando se tratava de agredir "aquelas ricaças das moradias", que usavam roupas compradas numa boutique de moda infantil famosa no bairro, enquanto que elas vestiam calças compridas e sapatos de ginástica comprados na feira.
Naquela manhã, quando a mãe a levou à escola, Roberta tinha ainda vestido o tailleur cor-de-rosa de domingo. Enquanto passava pelo meio das carteiras para chegar ao seu lugar, Michela anunciou em voz alta: - Chegou a lambisgóia.
Os colegas e as colegas começaram a rir e Roberta corou de raiva e de vergonha. Pensou que, no dia anterior, também uma amiga da mãe tinha zombado dela com ironia. Será que tinham razão? Decidiu que pensaria nisso depois. Naquele momento replicou: - Tu és uma estúpida e uma ignorante.
- E tu és filha de uma tipa que nem sequer é casada com o teu pai.
A estranha relação que existia entre os pais nunca a tinha incomodado particularmente, mas naquele momento fê-la desatar num pranto, enquanto toda a turma continuava a rir. Então, a professora entrou e, quando viu Roberta a soluçar, pediu uma explicação. Os alunos da primeira fila contaram o que tinha acontecido e a professora obrigou Michela a pedir desculpa a Roberta, que demorou algum tempo até se acalmar.
Agora interrompeu a conversa do pai para lhe perguntar:
- Porque é que tu e a mãe não são casados?
- A que propósito vem essa pergunta? - interrompeu a avó, sempre pronta para aparar os golpes dirigidos ao filho.
- É uma história complicada que a mãe e eu havemos de te contar quando fores mais velha. Por enquanto, contenta-te em saber que os teus pais gostam muito de ti, apesar de não serem casados - respondeu Walter Mandelli.
Era essa a questão: se gostavam assim tanto dela, por que razão esse amor não a salvava de uma acusação que soava como uma nota de infâmia?
- O que é que te falta? - perguntou a avó, como se a quisesse acusar daquele descontentamento. E prosseguiu, fornecendo finalmente a explicação do seu ar maldisposto: - A vida, minha querida, nunca é feita de rosas e beijos. Eu estou cansada de arruinar os meus dias por vossa causa. Só eu sei o que se passou ontem, quando o Fugazza não apareceu e a Cristina teve uma daquelas crises do costume. Tive de lhe dar um calmante e de a meter na cama. Com a graça de Deus, à espera de morrer, ainda estou bem. Mas se eu não pudesse tratar desta família de doidos, o que é que seria?
- O signor Fugazza não veio? - perguntou Roberta, espantada. Aquela notícia distraiu-a dos seus pensamentos, e acrescentou logo a seguir: - Então ainda há bolo de chocolate.
- Lá voltamos nós ao mesmo! Também o tal Fugazza se eclipsou - observou Walter.
- Nem sequer atendeu o telefone. Quem sabe, se calhar teve um acidente e foi parar ao hospital - admitiu a avó.
Naquele momento, precedida por um eflúvio de Eau de Parfum de Nina Rica, a tia Cristina surgiu na sala de jantar. De olhos vermelhos, o rímel a escorrer pelas faces, os folhos da camisa borratados de base, sentou-se à mesa, escondeu a cara entre as mãos e soluçou: - Acabou. Aquele infame já tinha pedido há algum tempo a transferência para a filial de Ancona. Partiu na sexta-feira passada, depois de me ter prometido que vinha cá ontem conhecer a minha família.
- A história repetiu-se mais uma vez - sussurrou a avó.
- Não tenho sorte nenhuma. O destino vira-se contra mim, que não peço mais do que um companheiro para amar e servir durante toda a minha vida - continuou a lamentar-se Cristina. Depois levantou-se e saiu da sala.
- Ela não tem sorte nenhuma, mas eu é que já estou farta de a aturar - desabafou a avó.
Walter piscou o olho à filha e disse: - Vou para ali trabalhar. Depois leva-me uma fatia de bolo.
- Não posso. Tenho de ir ter com a tia - respondeu Roberta, enquanto saía a correr da sala de jantar. Estava excitada com a repetição de um drama que conhecia de cor e que a fascinava desde sempre. Saboreou antecipadamente os desabafos da tia, intercalados com sopinhas e chávenas de chocolate quente, enquanto ela escutava, estendida na outra cama. Por vezes conseguia que Cristina lhe contasse as histórias da família, as mais singulares, que mais ninguém lhe revelaria nunca.
8
Roberta subiu até ao quarto da tia, levando consigo a caixa de música húngara e o gira-discos portátil, para que a apaixonada desiludida pudesse ouvir as canções de que mais gostava.
A tia Cristina, de roupão, estava a tirar a pintura em frente ao espelho com um algodão embebido em loção desmaquilhante e lágrimas.
Roberta sentou-se em cima da cama, deu corda à caixa de música e pousou-a na mesa-de-cabeceira.
- O pai diz que isto é uma música cigana. O que significa cigana?
Esperava conseguir distraí-la, até porque lhe parecia que as desilusões sentimentais da tia eram parte integrante da sua existência e nunca eram totalmente devastadoras. Pelo meio das lágrimas, de facto, abriam-se brechas de risadas sobre velhas histórias de família que Cristina lhe contava com o talento consumado de uma actriz de teatro. Roberta escutava avidamente as suas palavras e ria com ela, porque muitas vezes as histórias dos Mandelli, revividas pela tia, eram hilariantes.
- Então, o que quer dizer cigano? - insistiu Roberta. Cristina recomeçou a soluçar e não lhe respondeu. A sobrinha
não desanimou. Pôs a tocar um 45 rotações e explodiu no quarto a voz de Celentano, que cantava sobre uma tarde demasiado azul
para a sua solidão. Talvez se apanhasse um comboio para ir ter
com o seu amor...
Cristina enfiou-se na cama e cobriu-se até ao queixo com a colcha de cretone.
Quando a música acabou, queixou-se: - Se calhar, eu também podia apanhar um comboio para ir ter com o meu amor.
- Para que é que queres um marido? Não estás bem aqui, comigo? Se te casares, quem é que me vai contar estas histórias de que eu gosto tanto?
A tia respondeu com uma nova torrente de soluços. Então Roberta calou-se e ficou ali sentada, à espera que ela esgotasse as lágrimas, passando em revista os móveis e os objectos do quarto: os pufes forrados de veludo azul-celeste, guarnecidos com renda, o toucador carregado de frascos de perfume e boiões de creme, e a velha cómoda com o tampo de mármore branco que continha uma colecção de fotografias em molduras de madrepérola, de madeira e de prata. No meio delas destacava-se o retrato dos avós, a preto e branco, no dia do casamento. O avô estava sentado numa pequena poltrona estofada, de pernas cruzadas, fato escuro e o rosto severo de um homem maduro iluminado por um olhar cintilante. Em pé, atrás dele, a avó, muito mais jovem do que ele, vestia um tailleur claro e uma blusa imaculada fechada até ao pescoço. Na cabeça tinha um chapeuzinho com um meio-véu que lhe escurecia o olhar. Os lábios, compridos e finos, abriam-se ligeiramente num sorriso discreto. Na sua opinião, o avô era mais bonito do que a avó. Roberta sabia, porque a tia Cristina lhe tinha contado, que o avô Guido tinha amado muitíssimo aquela jovem esposa que era a sua segunda mulher. A primeira tinha morrido, amorosamente assistida pela avó que, nessa altura, fora contratada precisamente com a tarefa de tratar da mulher do professor, doente desde sempre e vítima de um "drama pancreático". Roberta desconhecia que mal era aquele, mas era uma definição que a fascinava como "doença criptogenética" e "neurastenia aguda": tudo doenças de que sofrera a primeira mulher de Guido Mandelli, o professor.
Porque assim o tratara sempre a avó, que provinha de uma família muito pobre de camponeses da região de Mântua. O avô, que tinha sido professor de Filosofia na Universidade Estatal de Milão, herdara da primeira mulher uma moradia nessa região, onde passavam juntos as férias de Verão. Aquela jovem esposa, de "saúde precária", chamava-se Ortensia e era uma loirinha frágil e delicada como a flor do mesmo nome. Tinha sido Ortensia a descobrir em Ersilia, nessa altura com treze anos, a rapariguinha certa para ter em casa, para lhe fazer companhia e tratar de muitas pequenas tarefas de que as criadas não se podiam ocupar.
Ersilia tratou dela durante dez anos com um aguçado sentido do dever, recebendo em troca uma discreta educação, apesar de nunca ter conseguido perder a rudeza do carácter camponês e o temor reverencial em relação ao severo professor. Durante toda a vida, mesmo depois de se ter casado com ele, se dirigiu a ele na terceira pessoa, usando o seu título académico.
Quando os filhos queriam alguma coisa, ela dizia: - Peçam ao professor. - Serviu o marido como se ele fosse um príncipe. Os filhos lembravam-se de quando a mãe dizia: - Professor, com todo o respeito, eu tenho três filhos para criar e não tenho tempo para estudar gramática, como o senhor gostaria.
Guido Mandelli tinha sido um pai terno, mas severo, e um marido afectuoso. Ao vê-lo tão diferente da mulher, os filhos sempre se tinham interrogado, mas nunca ousaram formular a pergunta, e que era: - Pai, o que foi que o levou a casar com a mãe? Aquela escolha permanecera um mistério também para a avó, que ele tinha amado talvez porque ela sempre o considerara como um bem inatingível.
- A camponesa, rude e iletrada, tinha exercido um fascínio misterioso sobre um homem de pensamento - explicou a tia a Roberta, ao contar-lhe daquela vez em que, para festejar os dez anos de casamento, Guido Mandelli ofereceu à mulher um colar de pérolas.
Ela, que tinha à disposição as jóias de Ortensia e as mantinha fechadas numa gaveta, porque usava como enfeite um único objecto de ouro, a aliança nupcial, observou atentamente o lindo colar e depois voltou a colocá-lo no estojo, dizendo: - Professor, agradeço-lhe muito, mas esta jóia é demasiado requintada para mim. Pô-la-ei de lado para uma das suas filhas.
Os filhos, de facto, duas raparigas e um rapaz, nunca eram definidos por Ersilia como "os nossos filhos", mas "os filhos do professor", como que a indicar a distância nunca superada entre ela e o marido.
Quando morreu, aquele homem discreto e meigo deixou um grande vazio na família.
Sempre que lhe falava do professor, das suas pequenas manias, da sua capacidade de escutar, a tia Cristina ficava comovida e chorava.
Agora, entre soluços, disse: - Se o meu pai ainda cá estivesse, ele saberia como me consolar.
- Conta-me coisas do avô - pediu Roberta.
- Não é bom dia, querida - respondeu a tia.
- Então conta-me de todos os namorados que te deixaram.
- A palavra "namorado" tornou-se detestável para mim, porque é sinónimo de traição. Sei muito bem que não sou um génio, que não tenho a inteligência da Aurora ou do teu pai. Mas estou cansada de ver pisar os meus sentimentos. Estas ofensas, acumuladas ao longo dos anos, tiraram-me a vontade de viver. Vai brincar com as tuas amigas, minha pequenina. Agora sinto-me muito cansada. Preciso de repousar.
Roberta levantou-se da cama, pegou na caixa de música e no gira-discos e preparava-se para sair do quarto quando se lembrou de uma coisa. Foi até junto da tia e propôs-lhe: - Deixo-te o meu carrossel, que dá uma música cigana muito bonita?
- Deixa-me só o gira-discos. Quero ouvir outra vez o Celentano - respondeu.
Roberta foi procurar a sua amiga Ines, a filha do engenheiro Corbetti. A gata de Ines tinha tido gatinhos e Roberta estava a namorá-los com a esperança de levar um para casa.
Estava na varanda dos Corbetti a escolher o nome mais apropriado para cada uma das crias quando se ouviu o som dilacerante da sirene de uma ambulância.
As duas meninas foram a correr até à porta. A ambulância da Cruz Vermelha tinha parado à frente da casa dos Mandelli.
- Alguém da tua família se sentiu mal - considerou Ines.
- A tia Cristina - sussurrou imediatamente Roberta, empalidecendo.
Correu até casa a tempo de ver dois enfermeiros que transportavam numa maca um corpo coberto com um lençol.
A avó, com o rosto petrificado pela dor, passou ao lado dela e, antes de entrar na ambulância, disse-lhe: - Tinha-lhe preparado um chocolate quente. Bati, bati, e ela não abria a porta, porque o coração lhe parou, de repente.
9
- Vou levar-te a ver um bom filme de desenhos animados propôs Malvina, que chegara precipitadamente a casa dos Mandelli para tomar conta da filha num momento tão dramático. Foram ao cinema e Roberta olhou para o filme sem o ver, porque não se conformava com a perda daquela tia tão amada e só pensava nela.
Depois do funeral, Walter conversou com Malvina e anunciaram-lhe os dois ao mesmo tempo: - Vamos os três para a praia. O tempo está fantástico e vamos poder tomar banho.
Roberta percebeu que o pai e a mãe estavam a tentar fazê-la sentir-se menos só, mas não havia nada que pudesse aliviar a sua dor.
A mãe dizia-lhe: - Demora o tempo que for preciso, porque o luto não se faz num dia.
Por vezes conseguia distrair-se e voltava a sorrir. Depois, bastava o perfume de um sabonete ou uma renda numa montra para que a ausência da tia Cristina voltasse a pesar-lhe no coração.
A noite, na suíte do Grande Hotel de Santa Margherita onde timha ido passar uns dias com os pais, ela fechava os olhos à espera que o sono chegasse e ouvia logo a voz de Cristina a contar-lhe as histórias da família.
Uma noite lembrou-se dela estendida na cama, enfeitada de rendas, num eflúvio de Nina Ricci, a contar-lhe: - Deves saber
que, todos os sábados, havia uma conversa com o pai. Quando acabávamos de almoçar, levantávamo-nos da mesa e a mãe mandava-nos para a casa de banho lavar os dentes e pentear o cabelo. Quando tinha a certeza de que estávamos todos apresentáveis, sentávamo-nos muito direitos na arca do hall de entrada e esperávamos que o pai nos chamasse ao escritório, um a seguir ao outro. Ele estava sentado à secretária, a mesma onde o teu pai trabalha agora. Limpava os óculos de armação de ouro com uma camurça, tirava do bolsinho do casaco o relógio de ouro e pousava-o à frente dele. Às duas em ponto, nem um minuto a mais nem a menos, chamava: - Pode entrar o primeiro. - Era sempre o teu pai, o mais pequeno de nós os três. Entrava a correr no escritório, pousava os cadernos na secretária e sentava-se muito compenetrado diante do professor. A Aurora e eu ficávamos a ouvir, atrás da porta entreaberta. O pai sabia, sorria, folheava os cadernos, comentava as notas e concordava. - Estou a ver que a caligrafia melhorou e também estamos bem com a aritmética. A tua professora está satisfeita e eu também estou. Há alguma coisa de que me queiras falar?
"Uma vez o Walter, com apenas oito anos, disse-lhe: Sim, pai. Queria falar-lhe da minha namorada. Parece-me um assunto muito interessante, sou todo ouvidos', disse o pai, a tapar a boca com a mão para que o Walter não visse o seu sorriso. E ele contou: 'É uma colega de turma. Chama-se Maruzza, e o apelido é Roccazzella. Chegou há pouco de Nápoles. O pai é hortelão. Vive no prédio ao fundo da nossa rua. É um bocadinho lenta e a professora ameaçou-a que lhe punha umas orelhas de burro na cabeça se ela não estudar. Toda a turma se riu. Mas eu fiquei furioso e, sem saber como havia de a defender, resolvi que ela ia ser minha namorada.
"A Aurora, que estava ao pé de mim, disse: Que palerma! Os homens são palermas desde pequeninos. Mas eu gostaria tanto de ter um colega de turma que fosse como o meu irmão. Daquela vez, o professor meteu-lhe umas liras na mão e disse: Muito bem, meu
filho. Hoje podes ir ter com a tua Maruzza e oferecer-lhe um gelado. Obrigado, pai. Também a posso convidar para vir a nossa casa e fazermos os deveres juntos? perguntou Walter. Para isso tens de ir falar com a tua mãe', decidiu o pai. A conversa tinha acabado e ele voltou a chamar: Venha a segunda.
"Também a Aurora entregava ao pai os cadernos dela, e a pantomina repetia-se. Um sábado, quando o pai lhe perguntou se tinha alguma coisa importante para lhe falar, ela disse: 'A mãe obriga-me a usar saias, mas eu quero calças compridas. A Aurora tinha treze anos, detestava a companhia dos rapazes e, no entanto, comportava-se como eles e queria parecer-se com eles. O pai ficou sério, olhou-a nos olhos durante muito tempo e depois concluiu: Fica descansada. Esse pedido parece-me legítimo e por isso vou falar com a tua mãe."
- O avô sabia que a tia Aurora é um bocado masculina, não sabia? - interveio Roberta.
- Nunca deves falar sobre isso com a avó. Por favor - respondeu Cristina, ao mesmo tempo que levava o dedo indicador aos lábios.
- A avó não pode saber?
- Ela não aceita as coisas difíceis.
- É difícil ser um bocado masculina?
- Imagino que sim. Mas também não é fácil ser mulher, e eu estou aqui para o demonstrar. Vivo num vale de lágrimas e não encontro um homem que mas seque.
- Seco-tas eu, tia.
- És muito querida, minha pequenina, mas para isso quero um namorado.
- Porque é que os teus namorados fogem sempre?
- Talvez seja porque eu tenho os meus princípios, enquanto que os homens são todos uns materialistas. Só querem uma determinada coisa, e quando já a tiveram difamam a mulher, acusando-a de ser leviana.
- Qual é essa coisa?
- És muito pequenina para perceberes.
Roberta só percebia que os namorados da tia, num primeiro momento, ficavam fascinados com a beleza dela, mas logo depois davam-se conta de que era muito infantil. Eles procuravam uma companheira, não uma menina.
- Continua, tia. O que é que o avô te dizia, quando chegava a tua vez?
- Eu era a preferida dele. Os meus cadernos não eram assim grande coisa, mas eu enfiava por entre as páginas um presente secreto, só para ele: um lencinho com uma bainha bordada por mim, um cartãozinho com uma flor colada, um pequeno poema. O pai sorria, fazia-me uma festa e depois também me perguntava de que é que eu queria falar. Eu respondia: "Só quero dizer-te que gosto muito de ti." E ele, a mim: "Eu também gosto muito de ti."
- E depois? - pediu Roberta.
- Depois era a vez da avó, que lhe apresentava as contas da casa. Se o pai fazia alguma observação de que ela não gostava, declarava: "Professor, quer tomar o senhor as rédeas da casa?" Então ele apressava-se a responder: "Era o que faltava. Aquilo que tu fazes é sagrado." E ela replicava: "Agradeço-lhe pela estima." Eram assim as conversas do sábado. A nossa família era muito sossegada.
- E o avô era um bom pai, não era?
- Às vezes sabia ser irritante.
A tia continuou a contar.
- Deves saber que, desde pequenos, éramos obrigados a ir de férias durante todo o Verão para aquela casa de campo horrorosa na região de Mântua, quando o que queríamos mesmo era ir para a praia. O pai gostava daquele lugar, nós odiávamo-lo, mas ele não queria saber. Uma vez, conseguimos finalmente convencê-lo. Escreveu uma carta para uma pensão de Chiavari e reservou dois quartos, um para ele e para o Walter e outra para nós, mulheres. Fui eu levar a carta ao correio. Estávamos eléctricos por termos conseguido. Agora já estava feito: íamos para a praia. Mas poucos
dias depois encontrámos em cima da secretária do pai uma segunda carta pronta para ser enviada para a mesma pensão. Resolvemos lê-la. O pai anulava a reserva porque os filhos tinham reprovado e, em consequência, a família Mandelli ia passar o Verão na cidade. Foi terrível.
- O professor Guido Mandelli fez isso? - perguntou a pequena Roberta, cheia de pena.
- Não queria mesmo levar-nos à praia. E até aí podíamos entendê-lo. Mas fazer-nos passar por burros... Foi terrível - repetiu a tia.
- E ele, como se justificou?
- Nunca soube que lemos a carta. Um dia disse-nos que já não íamos para Chiavari porque a pensão estava cheia.
- Eu ia ficar a detestá-lo.
- Olha que não, pequenina. O facto é que aquelas férias iam custar um bom dinheiro, e o pai só tinha o seu ordenado de professor e três filhos a estudar. Percebes?
As recordações destas histórias passavam e voltavam a passar pela cabeça de Roberta.
Depois foram passando os dias, as semanas, e lentamente Roberta superou a dor pela morte da tia. A mãe e o pai deixaram de fingir que eram um casal perfeito e ela retomou a vida do costume na casa da via Turroni, onde nada tinha mudado, para além do facto de a tia Cristina já ali não estar.
10
- Querida, doce tia Cristina - sussurrou agora.
Foram precisos anos para perceber que aquela pobre solteirona, tão disponível para brincar com ela, tão pronta para o choro como para o sorriso e para a alegria, era apenas uma menina que tinha uma extrema necessidade de ser amada. Voltou a fechar a porta envidraçada da varanda, pousou no parapeito o cubo de Rubik e esteve quase a subir as escadas para dar uma volta pelos quartos, mas depois mudou de ideias. Fica para a próxima vez, pensou, e saiu.
Desta vez teve a preocupação de fechar cuidadosamente à chave a porta de casa e o portão. Depois regressou à livraria.
Os clientes, sobretudo mulheres, andavam por entre os escaparates, pegavam em livros, liam a contracapa, consideravam o preço e decidiam se os compravam ou não.
Roberta viu Angélica a aconselhar a uma senhora de idade um livro para a neta. Entretanto, o professor Vinciguerra, na secção da poesia americana, procurava diligentemente algum poeta pouco conhecido. Chiara discutia com um vendedor que lhe queria impingir alguns títulos, enquanto ela insistia em recusar. - Eu já sei que o crítico do Corriere também falou dele, mas neste estabelecimento esse autor não funciona - disse-lhe, por fim. Depois foi ao encontro de Roberta e sussurrou-lhe: - O teu marido telefona
com intervalos regulares. Meu Deus, é pior que um martelo pneumático. Quer saber onde estás, porque não atendes o telemóvel que deixaste na livraria.
Roberta entrou no escritório. O sol iluminava agora por inteiro o pátio e o aposento. Entrou na casa de banho para lavar as mãos. Em cima de uma toalha de turco que tinha caído ao chão, Roberta encontrou Messalina, muito concentrada no seu parto iminente. Inclinou-se para lhe fazer uma festa, voltou a fechar a porta e deixou-a sossegada.
Sentou-se à secretária e fixou o olhar, pensativa, na parede à sua frente, onde estavam pendurados os velhos cartazes de alguns romances que haviam feito chorar, sorrir e reflectir Malvina e Chiara: Love story, O Padrinho, O Estranho Mundo de Garp, A Dança da Morte, A Insustentável Leveza do Ser, Caro Michele. Lembrou-se de que, quando Malvina estava mergulhada na leitura de um livro que a agarrava, não havia maneira de a tirar dali; quando chegava ao fim, fechava-o com um estalo e dizia: - Ah, este romance deu-me um murro na cabeça. - E passava-o imediatamente a Chiara, recomendando-lhe: - Deste temos de vender pelo menos cem exemplares.
Chiara afirmava que Malvina era de entusiasmos, e às vezes pegavam-se as duas por causa de um romance de que uma tinha gostado e a que a outra não tinha achado graça.
Às vezes a tia Cristina juntava-se a elas, porque também era uma grande leitora e ousava intervir na discussão. A tia enfiava-se na livraria quase à socapa, ao fim da tarde, quando saía do escritório do notário. Andava sempre à caça de novidades. Chiara ou Malvina sabiam que livro lhe sugerir. Às vezes davam-lhe um romance demasiado audaz para ela que, escandalizada, declarava: - As personagens desta história são altamente imorais.
Recordou a tarde em que, por entre os escaparates da livraria, Cristina se abandonou a uma confidência sobre uma história antiga entre o pai e a mãe. Ela, Roberta, estava aninhada no chão a devorar as aventuras do Barão Trepador de Calvino. Malvina,
Chiara e Cristina conversavam em voz baixa, mas a certa altura levantaram o tom da voz. Roberta abandonou a leitura e arrebitou as orelhas, conseguindo assim captar a história da tia: - O pai gostava imenso da mãe, mas às vezes tinha uns pequenos devaneios que um homem tem o direito de se permitir. Não sei se me faço entender.
Malvina e a amiga não comentaram, mas trocaram um olhar de desaprovação: elas não estavam nada de acordo com a tia, uma vez que consideravam que os homens e as mulheres tinham os mesmos direitos e deveres.
Cristina continuou: - A mãe tinha ciúmes do pai, apesar de não o dar a entender, e telefonava muitas vezes para a faculdade, inventando um pretexto, para lhe controlar os movimentos. De manhã ajudava-o a vestir-se e, à noite, a despir-se. Uma noite desapertou-lhe a camisa e verificou que ele estava sem a camisola interior que ela própria lhe tinha enfiado de manhã.
- Estás a ver, o professor Mandelli? - comentou Malvina, divertida.
- Ouve, porque o melhor ainda está para vir - prosseguiu Cristina.
- A mãe perguntou: "E a camisola interior, onde é que foi parar?" Ele passou as mãos pelo peito nu e, com uma expressão incrédula, quase escandalizada, e uma impertinência sem igual, exclamou: "É verdade, não tenho a camisola interior! Devem ter-ma roubado no eléctrico."
As três mulheres desataram a rir. - Até a minha mãe se riu. Pelo menos, foi o que me disse quando me contou a história concluiu a tia.
Roberta tinha então oito anos e não conseguiu perceber por que razão aquele episódio era assim tão divertido. Ao recordá-lo agora, deixou escapar um sorriso.
- Querida, doce tia Cristina - sussurrou de novo, com o olhar fixo nos velhos cartazes pendurados. Pensou que os Mandelli eram uma bela família, e que para ela tinham representado um
modelo de referência. No seu imaginário, aquele avô que nunca conhecera tinha-se tornado uma figura mítica, e esperara que Oscar se parecesse ao menos um pouco com ele. Voltou mais uma vez a ouvir a voz da tia tão amada que, do seu "leito de lágrimas", lhe dizia: "No fundo, o que é que eu peço a Deus? Uma coisa pequena, uma coisa de nada: um amor que me mantenha acordada de noite, que me faça palpitar, que ocupe todos os meus pensamentos, porque estás a ver, pequenina, um coração sem amor é como um regato sem água."
Tocou o telefone e ela levantou mecanicamente o auscultador à espera de ouvir a voz do marido; no entanto, era a de uma desconhecida.
- A signora Trinchese?
- Sou eu. Quem fala?
Era a directora da escola primária de Matteo.
- Vai ter de vir imediatamente buscar o seu filho.
- Oh, meu Deus! O que foi que lhe aconteceu? - perguntou, apavorada.
- A ele, nada. Mas eu preciso de falar consigo.
11
Matteo estava todo encolhido em cima de um sofá, com uma almofada apertada entre os braços como se fosse um escudo de protecção contra os pais, que olhavam para ele com ar de censura.
Oscar, que não conseguia conter a amargura pelo comportamento do filho, andava às voltas na sala.
- E ainda dizem que os filhos são uma bênção! - exclamou, furibundo.
- É o pior argumento que podes arranjar neste momento disse Roberta, agressiva, exasperada com a repetição da frase do costume. Oscar, de facto, era um pai terno e afectuoso, mas perante as dificuldades, em vez de as enfrentar, procurava sempre desviar-se delas.
- Arranja tu outro melhor - replicou o marido, furioso.
- Tenho fome. Posso ir comer a lasanha, antes que arrefeça? interveio Francesca, que já tinha dito das suas ao irmão, definindo-o como um "atrasado mental" por causa do que tinha feito na escola.
Acontecera que Matteo tinha pedido licença para sair da aula. Ao regressar, passou diante do armário aberto do material didáctico e viu um spray de verniz. Pegou nele e, talvez para ver se funcionava, ou talvez pelo prazer de transgredir, borrifou o blusão de pele de um colega de turma que estava pendurado num cabide do
corredor. A empregada apanhou-o e levou-o à directora, a quem contou o sucedido.
Diante das duas mulheres que o acusavam, Matteo desatou a chorar sem conseguir explicar-se.
- Deve haver uma razão para teres borrifado o blusão do Paolo. O teu colega fez-te alguma coisa? Discutiram? Estragou alguma coisa tua?
Não houve maneira de o obrigar a falar, mas quando viu a mãe escondeu-se nos braços dela e disse: - O Paolo não me fez nada de mal e eu não lhe queria sujar o blusão.
A directora virou-se para Roberta: - Talvez o Matteo tenha algum problema. Enquanto espero um esclarecimento, vou ter de o suspender das aulas.
Matteo ouviu e exclamou, desesperado: - Não quero ser suspenso! Juro que não volto a fazer.
A directora era uma mulher simpática, compreensiva e aberta ao diálogo, e percebeu que Matteo estava a sofrer.
- Tenho a certeza disso - afirmou, para acalmar o rapazinho. Voltando-se para Roberta, prosseguiu: - Leve o seu filho para casa e tente perceber qual é o problema. Por esta vez não é suspenso.
Oscar regressou a casa depois de ter ido buscar Francesca à saída da escola e Roberta informou-o sobre o que tinha acontecido. Como sempre, posto perante uma situação difícil, escolheu a via do ataque de fúria.
- Posso ir comer? - insistiu Francesca.
- Devíamos estar todos à mesa, se o teu irmão não tivesse arranjado esta confusão - berrou o pai.
Matteo largou a almofada e tapou os ouvidos com as mãos. Nesse momento, Oscar deu-lhe uma bofetada.
Roberta levantou-se imediatamente do sofá e fez frente ao marido. - Não é com bofetadas que se resolvem os problemas.
Matteo saiu da sala a correr e foi para o quarto.
- Então trata tu disso, já que sabes tanto - sibilou Oscar para a mulher, e saiu da sala com Francesca.
Como sempre, tocava a Roberta tomar conta da situação. O acto de vandalismo cometido pelo filho afligia-a. Tinha uma única certeza: precisava de falar com ele e exigir explicações.
Tentou entrar no quarto de Matteo, mas a porta estava fechada à chave. Bateu e disse: - Querido, abre.
- Não quero ver ninguém - respondeu ele.
Então Roberta foi buscar uma almofada à sala, pousou-a no chão, em frente ao quarto do filho, e aninhou-se ali.
Naquele momento repescou das suas recordações de criança um episódio de que tinha já se esquecido. Viu-se, mais ou menos com a idade de Matteo, a bater por várias vezes com um pedaço de corda num canteiro de tulipas floridas, no jardim de casa. Estava muito aborrecida consigo mesma e afogou a sua infelicidade atingido com força aquelas flores lindíssimas. Só depois se apercebeu de que tinha cometido uma má acção. Para sorte dela, levantou-se um vento de temporal, acompanhado de um providencial granizo que destruiu as flores e as árvores do jardim, evitando-lhe uma justa punição por parte da avó.
Mas os sentimentos de culpa atormentaram-na durante muitos dias, e bastava uma coisa de nada para desatar num pranto. Agora Roberta recordou a subtil inquietação que tinha caracterizado a sua infância. Toda a gente gostava dela, se preocupava com ela, a enchia de atenções, mas dividia a sua vida entre a casa dos avós e a da mãe, sem perceber por que razão não podia ter, como toda as crianças da sua idade, uma família normal. Lembrou-se de quando a tia Aurora a tinha levado a uma loja para lhe comprar um par de patins. O empregado recomendou-lhe: - Tem de se lembrar de manter sempre o peso do corpo equilibrado para a frente. Das primeiras vezes vai ter de ser amparada pela mãe ou pelo pai.
- Pelos dois não é possível, porque a minha mãe e o meu pai não vivem juntos - replicou.
- Não precisas de falar dos assuntos de família - sussurrou Aurora, fulminando-a com um olhar.
Roberta gostaria que a tia lhe explicasse por que razão não devia dizer aquilo. Mas não era capaz de formular aquela pergunta, demasiado complicada para a sua tenra idade.
Agora Roberta perguntou a si mesma se também o filho, apesar de viver numa família normal, sofreria de insegurança por causa do comportamento dos pais.
Talvez Matteo não respirasse um ar muito tranquilizante em casa e isso lhe criasse problemas.
Francesca e Oscar tinham acabado de jantar. Saíram da cozinha e viram-na sentada no chão. Francesca ignorou-a, foi para a sala e ligou a televisão. Oscar perguntou-lhe: - O que estás aí a fazer?
- Estou à espera de falar com o meu filho - respondeu, e acrescentou: - Uma vez que o pai não tenciona tratar dele.
- Estás aborrecida comigo e andas a esconder-me alguma coisa, porque hoje de manhã também não estavas na livraria e não atendias o telemóvel - acusou-a o marido, deslocando, como sempre, a atenção sobre si próprio. Depois olhou para o relógio e prosseguiu: - De qualquer maneira, falamos sobre isso quando eu voltar. Agora tenho de ir a Bolonha. Quanto ao Matteo, vais ver que ele entra na ordem.
Debruçou-se sobre ela e deu-lhe um beijo na face.
- Não fiques de trombas comigo - acrescentou a sorrir, antes de se ir embora.
Roberta não perdeu tempo a dizer-lhe que o comportamento
e Matteo devia merecer mais atenção por parte dele, até porque
qualquer caso não a ia ouvir. Precisou de toda a sua paciência,
seu amor e do aperto da fome para conseguir tirar a criança do quarto.
quando se decidiu a abrir a porta, Matteo não estava à espera de encontrar a mãe aninhada no chão.
abriu os braços e o filho atirou-se a ela, lavado em lágrimas. Kob a meu Peluenmo lue estou a morrer de fome? - disse ela enquanto lhe limpava a cara.
- Também eu - soluçou Matteo.
- Então vamos aquecer rapidamente a lasanha no microondas
- anunciou, avançando com ele em direcção à cozinha.
- Mãe, podemos pagar o blusão do meu colega? - perguntou Matteo, quando ia começar a comer a massa.
- Devemos - respondeu Roberta.
- Mas eu tenho vergonha que ele saiba que fui eu - admitiu.
- Gosto tanto de ti, meu pequenino - disse Roberta. Comeram em silêncio. Depois o menino confessou: - Não sei
mesmo porque é que fiz aquela coisa feia. Só queria ver se o spray funcionava.
- Eu também fiz algumas coisas feias, quando era pequena como tu, e também não sabia porquê. Não te preocupes. Vamos arranjar uma maneira de sair disto - concluiu.
Naquele dia Roberta telefonou à mãe.
- Preciso de falar contigo - disse-lhe. E explicou: - Estou cheia de problemas e só tu me podes ajudar.
12
Roberta precisava de conversar com Malvina que, apesar de não ter sido a melhor das mães, se mostrara sempre disponível para escutar os seus problemas.
Quando se casou com Oscar, imaginava o seu futuro de mulher e de mãe em tons pastel, porque os filhos iam ter os pais juntos, e não separados, como acontecera com ela, e iam crescer serenamente. Os factos estavam a desmenti-la. Agora, ao volante do seu carro, percorria lentamente a estrada que se estendia ao longo das suaves encostas das colinas, pelo meio de bosques densos de árvores que o sol de Abril ao entardecer penetrava a custo.
Tinha descido os vidros e foi envolvida pelo perfume da vegetação que desabrochava. Depois de passar uma curva, viu desenhar-se no céu raiado de cor-de-rosa o campanário da pequena igreja, depois o muro do cemitério e, finalmente, as duas torres da Casa de Tavernolo. No horizonte erguiam-se, majestosas, as montanhas cobertas de neve. Roberta parou o carro junto à berma para atender o telemóvel que tinha começado a tocar.
"a a tia Aurora, que queria saber onde podia encontrar a maizena para o pudim de baunilha. Num frasco velho de café - respondeu Roberta. E onde meteste o café?
- Despejei-o num frasco de vidro, porque prefiro comprar pacotes em vez de frascos.
- E depois queixas-te porque os teus filhos são desorganizados. Avisa quando chegares.
- Jà cá estou. Vou entrar na aldeia - sossegou-a.
A tia Aurora, que andava pelos setenta e quatro anos, era tudo o que lhe restava da família Mandelli. Sempre fora uma pessoa positiva, muito enérgica, e ainda agora Roberta podia contar com a sua ajuda. A companheira de Aurora tinha morrido há vários anos e ela acabou por ficar sozinha, porque não desejava mais do que tratar dos sobrinhos.
Quando Roberta a chamava, ela apresentava-se na via Spartaco com uma mala, um grande ramo de flores frescas e uma caixa de bolos. Fazia a cama dela no quarto de Francesca, segurava as rédeas da casa com a garra de um comandante e, sabe-se lá como, tudo corria da melhor maneira. Até Oscar se tornava um cordeirinho obediente e atencioso.
Naquela tarde, Roberta pediu-lhe para lhe tratar da família durante uns dias, enquanto ela ia ter com Malvina. - É o tempo de fechar a casa e já vou - garantiu, com um ar despachado.
A tia vivia há muitos anos num apartamento do corso Monforte que pertencera à companheira, a doutora Melandri, que lho deixou em herança. Era uma casa muito bonita, de tectos pintados, e a tia já a tinha destinado a Roberta. Ela esperava que a tia vivesse muitos anos, porque gostava muito dela e era uma pessoa preciosa.
Desligou o telemóvel e voltou a ligar o carro. Por entre os perfumes da vegetação pareceu-lhe sentir também o perfume da mãe.
A casa de Tavernolo era-lhe familiar e fazia-lhe lembrar a infância. Passava ali as festas anuais, com o marido e com os filhos.
Chegou pouco depois à pequena colina onde surgia a antiga casa, constituída por uma estrutura central com dois corpos laterais que limitavam o pátio sobre o qual se abria um airoso alpendre de três arcos. Passou o portão de ferro forjado, em cujos lados
se erguiam dois pilares com uns vasos de pedra por cima, e parou diante da entrada principal.
Carlin, o caseiro que, juntamente com a mulher, tratava da casa e do jardim, estava a regar o relvado inglês.
- O vento e o frio dos dias anteriores secaram a terra, e veja como puseram esta rica relvinha - anunciou, assim que ela saiu do carro. Depois acrescentou: - A senhora presidente da Câmara está na salinha verde com uns assessores. Vou avisá-la da sua chegada.
- Não é preciso. Ela já me viu - respondeu Roberta que, do lado de dentro de uma portada de vidro, tinha visto o gesto de boas-vindas da mãe.
Entrou em casa e foi à cozinha. Damasco e Toledo, os dois pastores alemães, foram atrás dela. Venere, a mulher de Carlin, estava a preparar uma peça de carne envolta em massa folhada. Quando a viu aparecer, apressou-se a limpar as mãos no avental e foi ao encontro dela para a abraçar. Apesar do nome, nunca tinha sido bonita, nem quando era nova, mas era a pessoa mais doce e mais activa que Roberta alguma vez conhecera. Tinha entrado naquela casa com o marido quando eram ainda um jovem casal ao serviço dos avós de Malvina. Moravam num pequeno edifício adjacente à casa grande, de que continuavam a tratar apesar de, havia já algum tempo, Malvina ter confiado os trabalhos mais pesados a um homem que vivia na aldeia. Roberta deu-lhe um beijo na face, enquanto Venere lhe dizia: - Que boa surpresa vê-la Por cá. A sua mãe disse-me que vai ficar aqui uns dias, e eu já fiz aquele bolo de avelã de que a menina gosta.
- Tu sabes fazer-me feliz - replicou Roberta. Apercebeu-se de que se exprimira com as mesmas palavras que Oscar lhe tinha
lrigido na manhã do dia anterior e ficou irritada.
- Porque não trouxe os meninos e o seu Oscar? - perguntou nere, que adorava aquele mentiroso que tinha o despudor de
lhe dizer que era uma senhora lindíssima, e ela fazia de conta que acreditava.
- Porque assim já não eram férias. Eu estou a precisar de descansar um pouco - respondeu.
- Foi o que a senhora presidente me disse. Não anda bem? perguntou, preocupada, enquanto metia a carne no forno.
- Ando a trabalhar de mais - respondeu. E, para evitar mais perguntas, acrescentou: - Vou pôr o saco no meu quarto.
- Pode estar sossegada, porque a sua mãe ainda vai ter ali para algum tempo com aqueles dois teimosos - avisou a velha criada.
Roberta subiu as escadas e avançou pelo corredor, para onde davam os quartos.
Para Roberta, aquela era uma espécie de segunda casa, que frequentava desde que a mãe dissera adeus ao colectivo feminista, depois dos primeiros sinais do terrorismo, e vendera o celeiro. Com o activismo que a caracterizava, ao fim de alguns anos Malvina era presidente da Câmara de Tavernolo e, ainda que com os intervalos de lei, segurava as rédeas da terra havia já muitos anos.
Roberta arrumou a roupa no armário e depois desceu ao rés-do-chão. A mãe estava à espera dela na sala de estar, onde Carlin tinha acendido a lareira.
- Fico muito feliz por te ver - disse Malvina, abraçando-a. Com sessenta anos, estava ainda mais bonita do que quando
era jovem. Os cabelos castanhos, com reflexos acobreados, deixavam escapar uns vagos fios de prata que aumentavam o seu fascínio. O corte fazia ressaltar o rosto oval. Os grandes olhos escuros eram realçados por uma pintura leve. Tinha há muito tempo deixado de usar xailes e saias longas. Agora vestia quase sempre de cinzento, animando aquele tom apagado com écharpes e colares de cores vivas.
- Tens problemas com os teus assessores? - perguntou Roberta.
- Todos os dias, mas isso faz parte do meu trabalho - respondeu a mãe.
Tavernolo, uma vilória de dois mil habitantes, nunca tivera um administrador tão eficiente. Malvina minimizava esse facto, atribuindo o mérito aos seus colaboradores, mas o facto é que as pessoas a adoravam.
Todos os domingos, depois da missa do meio-dia, Malvina sentava-se num banco de pedra que corria ao longo da fachada da igreja e ouvia todos aqueles que não tinha conseguido receber no gabinete. Agora, ao fim de tantos anos, as audiências da presidente da Câmara no adro da igreja tinham-se tornado um hábito, e as pessoas dirigiam-se a ela para as mais variadas necessidades: queixar-se de um vizinho, solicitar o despacho de um processo que estava guardado na gaveta de um assessor, pedir opinião sobre um especialista de Medicina, convidá-la para um baptizado, pedir para lhe traduzir um artigo de uma revista americana onde se exaltava o sucesso de um filho emigrado, pedir ajuda para escolher, de entre as amostras, o tecido mais indicado para forrar um sofá.
Aquela pequena comunidade funcionava com a precisão de um relógio, e Malvina gabava-se de conhecer, um por um, todos os habitantes de Tavernolo, que a consideravam uma deles, porque tinha passado naquele lugar grande parte da sua vida.
Disse então à filha, ao mesmo tempo que a convidava a sentar-se num sofá: - O que se passa contigo?
- Tive um febrão como aqueles que tinha quando era pequena, e o doutor Galli mandou-me tirar uns dias de descanso a explicou Roberta.
- E depois? - instou a mãe. ;,,!
- Como já te disse, ando cheia de problemas e não sei muito bem como sair deles - concluiu.
Uma garça cinzenta atravessou o céu para lá da porta envidraçada que dava para o relvado. O tiquetaque de um relógio antigo marcava o tempo daquela óptima noite de Abril.
O problema é este, mãe, eu já não sei o que é correcto fazer continuou.
A filha estava em crise e Malvina imaginou que Oscar devia ter a sua parte de responsabilidade em tudo aquilo, mas teve o cuidado de não o dizer.
Roberta decidiu que, antes de abordar a questão do pequeno Matteo, devia falar da sua visita à casa da via Turroni. E assim fez.
- Foste desafiar os fantasmas do passado? - perguntou Malvina, admirada.
- Exactamente, mãe. De repente, senti necessidade de reencontrar a minha infância. E não é só isso. Ando a tentar perceber por que razão precisei de me punir quando me liguei ao Oscar. Nunca tive um espírito de enfermeira, mas ainda assim adulei-o, tratei dele, dei-lhe mimo, e continuei a sentir-me culpada por alguma coisa que não sei o que é, ou talvez para não admitir que me enganei ao escolher aquele companheiro só para ter uma família normal. E como a resposta que encontrei é que sou uma atrasada mental, achei por bem falar contigo primeiro - disse, e apercebeu-se de que era precisamente aquela a razão que a tinha levado a Tavernolo.
Tocou o telefone e Malvina ignorou, dizendo: - A Venere atende.
Aquele era um momento demasiado importante para quebrar a linha de raciocínio de Roberta. Por isso incitou-a: - Continua.
- Vou começar por te dizer que tenho de agarrar outra vez as rédeas da minha vida, e também queria saber alguma coisa mais sobre ti e o meu pobre pai. Tu e ele, quando eu era pequena, ofereciam-me um pão de côdea fragrante, mas eu nunca pude provar o miolo, por isso não sei se era macio ou pesado, bem levedado ou cru, insípido ou salgado - disse.
Malvina encaixou o golpe e não reagiu.
Venere bateu à porta e abriu-a ligeiramente, anunciando: Está tudo pronto. Ponho na mesa?
Malvina dirigiu um olhar interrogativo à filha, que assentiuTendo chegado àquele ponto, um pequeno intervalo ia ser bom para ambas.
A decoração da sala de jantar, com dois séculos de idade, tinha sido deixada pelos velhos proprietários ao avô de Malvina quando este comprou a casa. As duas credencias contrapostas, com a parte da frente trabalhada, ostentavam no centro o brasão da família para a qual tinham sido realizadas. A mesa rectangular, com o tampo levemente recortado, retomava os motivos das credencias. Assim como o grande relógio de parede e as costas das cadeiras estofadas. Nas paredes, Malvina tinha pendurado algumas aguarelas em cores vivas de autores modernos. Também na sala de jantar ; estava acesa a lareira, para contrariar o ar fresco da noite.
Com o novilho, Venere serviu uma salada ligeira, aromatizada com vinagre de maçã.
- O senhor doutor telefonou - disse ela a Malvina, ao mesmo tempo que lhes servia um vinho leve.
Referia-se a Sérgio Orombelli, médico em Lecco, filho do doutor Orombelli, que tinha sido um grande amigo do avô de Malvina. Ela e Sérgio conheciam-se desde sempre. Andavam juntos quando ela se estabeleceu definitivamente em Tavernolo. Sérgio tratava os doentes em Lecco, Caglio e Tavernolo, gostava daquelas terras e conhecia a vida, a morte e os milagres dos habitantes. Tinha-se formado em Medicina e continuava a exercer aquela profissão para respeitar a tradição da família. Na realidade, a sua paixão mais autêntica era a escrita, a que se dedicava nos tempos uvres, elaborando histórias de terras tão aprazíveis que lhe garantiam um notável séquito de leitores. Tinha até ganho alguns prelos literários. Publicava um livro de dois em dois anos e Malvina, a primeira leitora daquelas histórias deliciosas, tinha muito orgulho nele. Porém, como considerava a vida a dois muito vinculativa, decidiu-se pelas casas separadas. Assim, Sérgio continUava a viyer em Lecco e ela em Tavernolo. Esta escolha tinha-se evelado excelente para a consolidação daquela união.
Disseste-lhe que a Roberta está aqui? - perguntou a Venere. Venere anuiu.
- Se quiserem estar juntos, eu posso ir deitar-me. Estou mesmo a precisar de descansar - disse Roberta.
- Está sossegada. O Sérgio não foge e, por uma noite, também sobrevive sem mim - garantiu a mãe, com uma voz ligeira.
Observava a filha, tão aflita e tão necessitada de apoio. Pensou que se parecia com ela, mais do que Roberta estava disposta a admitir. A filha raramente lhe fizera confidências e, quando isso acontecera, retraíra-se imediatamente. Agora, pelo contrário, parecia decidida a abrir-se sem reticências. Acabaram de jantar e beberam uma tisana que Venere lhes preparou.
- Estou mesmo cansada, mãe. Acho que vou já para a cama anunciou Roberta.
Encostou o rosto ao da mãe e beijou-a numa face. Depois abraçou-a e sussurrou-lhe: - Gosto muito de ti.
- E eu ainda mais - disse Malvina.
- Podemos dormir as duas na tua cama grande, esta noite?
- Como quando eu morava no celeiro e tu tinhas a tua cama, mas te enfiavas sempre na minha? - perguntou-lhe, a sorrir.
- Como há trinta anos - afirmou a filha.
A noite em Brianza era mais fria do que na cidade, e Venere tinha acendido a lareira no quarto, uma vez que Malvina, cautelosa administradora dos seus magros rendimentos, tinha desligado o aquecimento há algum tempo.
Muita gente pensava que ela era rica porque morava naquela casa lindíssima, mas não era verdade. A antiga residência nobre era uma fonte inesgotável de despesas, o ordenado de presidente da Câmara era irrisório e Malvina continuava a ter doentes não só porque gostava daquele trabalho mas também porque era mais uma fonte de rendimento de que tinha necessidade. Mãe e filha enfiaram-se debaixo do edredão, depois de terem vestido pijamas de flanela quentes.
- Apetece-te falar? - perguntou Malvina, que se tinha tapado até ao queixo.
- Gostava que fosses tu a fazê-lo. Há coisas de ti e do pai que apenas sei por fragmentos, umas coisas de cada vez. Porque é que nunca me falaste da vossa relação?
- Sabes como se costuma dizer: em casa de ferreiro, espeto de pau - respondeu Malvina, pensativa.
Depois rodeou os ombros da filha com um braço e apertou-a
contra si.
- Chegou o momento de te contar uma longa história, que
começa quando eu tinha poucos mais anos do que a Francesca -
começou, com um sorriso.
Voltou a ver-se com dezassete anos, à saída do liceu, porque Gianni Franzini, o melhor aluno da escola, lhe tinha proposto: Apetece-te ir comigo ao cinema, hoje à tarde? Tenho bilhetes grátis para A Condessa de Hong-Kong.
Malvina
1
Porquê este nome estranho? - perguntou-lhe Gianni, ao mesmo tempo que servia o chá quente, no café Alemagna da via Manzoni.
Gianni andava no último ano do liceu e tinha já decidido que, depois do exame de aptidão, se ia inscrever em Filosofia. Frequentava um grupo católico de jovens do liceu orientado por um padre de extraordinária abertura mental e com uma profunda capacidade de escuta e de acolhimento.
O rapaz usava óculos de míope, com uma armação pesada, e os seus olhos azuis como a água do mar observavam com interesse Malvina, sentada à frente dele.
- A minha mãe chamava-se assim - respondeu a jovem.
- Chamava-se? - indagou o rapaz.
- Morreu quando eu nasci. Se não tivesse tido uma filha, hoje ainda estaria viva - suspirou Malvina.
- Nunca se sabe. Os desígnios de Deus são imperscrutáveis. Em qualquer caso deram-te um nome ossiânico, lindíssimo. Já leste os cantos gaélicos de MacPherson? - perguntou-lhe, e estendeu a mão para lhe compor uma madeixa de cabelo que lhe caía Para a testa. Este gesto terno emocionou-a.
- Sei excertos inteiros de cor. Encontrei-os no meio dos livros a minha mãe, e até há alguns anos alimentei-me da melancolia
daqueles poemas tenebrosos, das atmosferas irreais da Irlanda do século HL Talvez procurasse um contacto com a mulher que me gerou e que nunca conheci. Depois, felizmente, acabei por ultrapassar isso - contou-lhe.
- Não consigo imaginar o que será a vida de um filho sem um dos pais. Em nossa casa somos muitos. Para além do meu pai e da minha mãe, com os seus oito filhos, também vivem connosco os meus avós paternos - disse ele, alegremente.
- Em criança fui uma espécie de embalagem postal: passava da casa dos meus avós maternos para a do meu pai que, a certa altura, voltou a casar e ficou comigo definitivamente. A minha madrasta é americana. É uma excelente pessoa mas, sabe-se lá porquê, nunca temos muito para dizer uma à outra. Por isso, leio imensos livros - explicou Malvina.
- O que é que lês?
- De tudo. Pequenos romances, grandes romances, maus romances. Identifico-me com as personagens, participo nos seus dramas, elaboro as suas reflexões. Em qualquer caso, destas leituras desordenadas aprendi que um bom romance me fica gravado, enquanto que esqueço imediatamente uma história insignificante.
- É um óptimo padrão de avaliação. Considera, no entanto, que aos dezassete anos a capacidade de julgar ainda é muito incipiente.
Malvina observou-o, perplexa, sorriu e depois disse: - Mas que maneira de falar é essa? Parece que estás a escrever uma tese. Gianni riu com gosto.
- Tenho o péssimo vício de falar como um livro, eu sei. Mas não posso evitá-lo. Por outro lado, foi assim que conquistei a fama de pequeno génio, que muito me agrada. Até porque gosto que os outros reconheçam que eu sou o melhor - confessou candidamente.
- Em que é que estás a pensar neste momento? - perguntou ela.
- Que gosto de ti, mas se te dissesse isso ia sentir-me banal, superficial e óbvio, porque qualquer rapaz to podia dizer usando
as mesmas palavras. Portanto, vou ter de procurar uma expressão Aderente. Aí vai. Estou a ler Karl Kraus, que diz que os Alemães se definem como o povo de Schopenhauer, enquanto que ele era tão
odesto que não se considerava o pensador dos Alemães. Do mesmo modo eu estou fascinado pela Malvina, enquanto que a Malvina é tão modesta que nem se dá conta. Impressionei-te?
- Nem um bocadinho. Acho que tu tens boa memória, mas aquilo que disseste não me transmite nenhuma emoção - respondeu, para o meter na ordem.
- Valha-me Deus! Mas tens a certeza de que só tens dezassete
anos?
- Se queres mesmo saber, posso dar-te uma lição sobre a literatura americana contemporânea ou sobre a literatura russa entre os séculos dezanove e vinte - declarou, orgulhosa.
A sala do café Alemagna estava cheia de pessoas sentadas às mesas, a conversar e a rir, mas os dois jovens sentiam-se envolvidos numa nuvem de impenetrabilidade que excluía o resto do mundo.
A certa altura, Gianni levantou-se.
- Vou levar-te a casa - disse, e ajudou-a a vestir o casaco de grandes quadrados escoceses em castanho e bege.
Malvina morava ao fundo da via Turati, não muito longe do hospital onde o pai trabalhava. Enquanto caminhavam, ela perguntou a Gianni: - Porque foi que hoje me propuseste logo a mim a ida ao cinema?
- Sabia que ias aceitar - respondeu, seguro.
- Todas as raparigas do liceu iam aceitar o teu convite.
- Nem todas. De qualquer maneira, eu já tinha reparado em ti desde o ano passado, porque nunca vais às festas, não fazes parte de nenhum grupo e és linda de morrer - confessou Gianni.
- O que é que te levou a crer que eu ia aceitar o teu convite? provocou ela.
- Tens-me debaixo de olho há um ano. Na Primavera passada vi-te mais do que uma vez, à janela da tua sala, a olhar para mim durante a hora de ginástica no recreio.
- Meu Deus, vocês são trinta. Como é que podes pensar que eu estava precisamente a olhar para ti?
- Tenta negar - desafiou ele.
- Estava a olhar para ti - admitiu.
- Então, acabou a discussão - concluiu ele.
Quando chegaram diante do portão de casa, Malvina disse:
- Senti-me muito bem, hoje. - E esclareceu: - Quero dizer que foi muito bom, falar contigo e ouvir-te.
Ficaram assim, um em frente ao outro, a sorrir, um pouco atrapalhados.
- Estou desesperadamente à procura de uma coisa não banal para te dizer e não me lembro de nada. Nevoeiro absoluto - confessou ele, por fim.
- Para que é que te esforças tanto à procura de uma frase com efeitos especiais? - observou Malvina. E acrescentou: - Não podias simplesmente perguntar-me: "Vemo-nos amanhã?" Assim eu já tinha alguma coisa gira para pensar esta noite, antes de adormecer.
- Tenho medo de te complicar a vida - replicou ele, em voz baixa.
- Então vai para o raio que te parta - disse-lhe, provocadora, ao mesmo tempo que abria o portão.
Nesse momento Gianni agarrou-a, apertou-a contra si, beijou-a nos lábios e, sempre abraçado a ela, sussurrou-lhe: - Amo-te, nem sabes quanto.
Ela esteve quase a responder-lhe: "Eu também". Mas libertou-se daquele abraço, sorriu-lhe amavelmente e, ao mesmo tempo que entrava em casa, disse-lhe: - Eu não sei se te amo. Sabes, aos dezassete anos, a capacidade de julgar ainda é muito incipiente.
2
Malvina tinha finalmente um namorado, o melhor, que a amava e lhe dedicava todas as atenções.
Releu algumas grandes histórias de amor, captando todas as nuances dos sentimentos de Anna Karenina pelo conde Alexei Vronski, do Grande Gatsby pela lindíssima Daisy, da doce Jane Eyre por Mr. Rochester, de Catherine Barkley, a enfermeira inglesa, pelo americano Frederick Henry. Aprendia de cor trechos inteiros e repetia-os, à noite, antes de adormecer. Só não gostava de constatar que as grandes paixões se alimentam de dramas e de lágrimas, enquanto que ela não tinha nenhum motivo para chorar nem para se desesperar.
Gostaria de contar a toda a gente a sua história de amor que, pelo contrário, não confiava nem às colegas da escola. Estas, no entanto, já sabiam de tudo, por terem observado as suas manobras e as de Gianni Franzini.
O sentimento que desabrochava entre os dois jovens alunos não escapou aos professores, apesar de fingirem que não davam conta de nada, nem sequer a Susan, a madrasta, que uma noite falou sobre isso com o marido.
O doutor Leoni tinha regressado da clínica particularmente cansado. Depois do jantar, Malvina fechara-se no quarto, talvez
para estudar, certamente para sonhar. Logo a seguir, ele e a mulher retiraram-se para o quarto deles.
- Parece-me que a tua filha está apaixonada - começou Susan.
- Já era tempo. Aos dezassete anos, as filhas dos meus colegas já têm um namoradinho - declarou o pai.
- Se é por isso, as raparigas americanas têm o primeiro boy~ -friend aos treze anos. Resta saber por que razão ela faz daquilo um mistério - observou a mulher, que estava sentada em frente ao espelho do toucador a massajar o rosto com um creme de noite.
Susan Kellerman tinha nascido em Filadélfia no seio de uma família de origem alemã. Alta, esguia, loira, bonita e elegante, parecia-se com Grace Kelly. O pai era um rico empresário que distribuía generosamente dinheiro pelos filhos.
Tinha-se formado em Medicina e conhecido o pai de Malvina no Mónaco, num congresso sobre doenças de origem alimentar. O doutor Leoni era viúvo há oito anos e um novo matrimónio não entrava nos seus projectos para o futuro. Susan superara há pouco o trauma de um divórcio e, depois de o ter conhecido, decidiu que aquele seria o novo companheiro da sua vida. Foi ela que fez tudo, e ele deu por si com uma aliança no dedo e uma mulher bonita e rica ao lado.
O apartamento da via Turati foi o presente de casamento do papá Kellerman. Em Milão, Susan entrou numa clínica de médicos associados e gozava da estima dos pacientes pelo seu profissionalismo, mas também porque era americana, e os americanos estavam na moda.
Organizou a sua vida em Milão segundo o modelo americano: uma bela casa para receber os amigos, um guarda-roupa requintado, a inscrição num clube de golfe bem frequentado, a assinatura no Teatro alia Scala, a adesão a algumas instituições de beneficência. Com um dinamismo surpreendente, conseguia conciliar os compromissos domésticos com os profissionais e os mundanos, sem descurar o acompanhamento discreto do crescimento de Malvina, pela qual tinha conseguido fazer-se aceitar.
- Resta saber quem será o rapaz em causa - insistiu Susan. passara do creme de noite para a face ao creme de noite para o corpo, com o qual tinha começado a massajar os braços, detendo-se nos cotovelos.
- É importante saber? - perguntou ele, que estava na cama a tentar inutilmente concentrar-se na leitura de um romance muito divertido de jorge Amado, Dona Flor e os Seus Dois Maridos.
- Mas é claro, meu querido. Presumo que seja um aluno do liceu como ela, mas temos de saber alguma coisa sobre os resultados escolares e a família e, sobretudo, precisamos de ter a certeza de que é um bom rapaz - explicou, com uma voz suave.
- Queres tu tratar disso, por favor? - perguntou o doutor Leoni, ao mesmo tempo que fechava o livro.
- Vou fazer o que puder - concordou Susan, no momento em que se dirigia à casa de banho para tirar o roupão de turco e vestir a preciosa camisa de noite de seda brilhante.
Quando regressou ao quarto, o marido já estava a dormir. Deitou-se ao lado dele, apagou a luz da mesa-de-cabeceira e passou em revista uma série de frases de abordagem ao assunto que tinha para tratar com a enteada.
Decidiu que a melhor táctica seria tocar no assunto de forma indirecta, talvez falar de si, dos seus dezassete anos e do colega de colégio por quem se tinha apaixonado.
- Chamava-se Charles, mas nós tratávamo-lo por Charly. Era campeão de natação. Meu Deus, que ombros ele tinha! Eu pensava que o amava, porque todas as colegas do colégio andavam loucas por ele e o Charly me tinha escolhido a mim. Obviamente, os meus pais conheciam a família dele e, infelizmente, também sabiam que ele era um péssimo aluno. Engolia vitaminas, massacrava-se nos treinos, mas quando pegava na caneta para escrever Parecia que estava a empunhar uma pá. Ainda me lembro do
ilhete que me mandou no dia de São Valentim. Declarou-me o
seu amor eterno com um florilégio de erros que lhe teriam impedido o acesso a qualquer universidade. Depois foi para a UCLA,
porque o pai fez uma enorme doação. Voltei a vê-lo na televisão na altura dos Jogos Olímpicos, onde ganhou uma medalha de ouro na natação. Se fosse tão inteligente como musculoso, teria sido perfeito.
Susan contou tudo aquilo ao pequeno-almoço, enquanto barrava uma fatia de pão torrado.
Malvina percebeu que a madrasta estava a tentar induzi-la a confessar.
- Porque é que me estás a contar essa história tão linda? - perguntou, com um ar malicioso.
- Que diabo, hoje é o dia 14 de Fevereiro, dia de São Valentim
- exclamou Susan.
- Em Itália não é uma festa importante.
- Que pena. É bonito, com a tua idade, ter um namorado que nos escreve um bilhete.
- Se calhar eu até tenho - respondeu ela, enquanto deixava cair um fio de mel no pão barrado com manteiga.
- E não dizes nada? - perguntou, com um ar desiludido.
- Se calhar fico com esta história guardada para contar à minha filha, quando tiver a minha idade, só para saber da vida dela - declarou.
- E assim eu levo um atestado de abelhuda - disse Susan, a sorrir. - É verdade. Tenho a sensação de que estás a viver um momento bonito e importante e não o quero estragar. Mas gostava que convidasses o rapaz para almoçar ou para jantar.
Malvina olhou para ela, desconfiada.
- Achas que devia? Susan anuiu.
- Vou pensar nisso - disse Malvina, quando se preparava para sair.
- Eu gostava muito - afirmou Susan, enquanto a ajudava a vestir o casaco.
Gianni estava à espera dela na esquina da via Turati com a piazza Cavour. Iam apanhar o eléctrico juntos.
Bastou-lhe vê-lo para se sentir feliz. A mesma felicidade brilhava no olhar do rapaz, que lhe sorria. Quando ia quase a chegar junto dele, Malvina perguntou a si mesma para quê arriscar-se a estragar tudo convidando-o para ir a casa dela, onde Susan, tinha a certeza, o iria radiografar e, petulante como era, acabaria por lhe encontrar qualquer defeito terrível. Gianni, para ela, era perfeito tal como era e não precisava da aprovação de ninguém.
- Estás insolitamente silenciosa - observou ele, que a abraçava pela cintura, impedindo-a de vacilar de cada vez que o eléctrico travava.
- Estava a elaborar uma definição de felicidade - disse ela.
- Diz-me a tua, e eu depois digo-te a minha - desafiou Gianni.
- A felicidade é ter alguém que nos segura num eléctrico apinhado, às oito da manhã - afirmou. E acrescentou: - Agora diz-me a tua.
- Deus é a minha felicidade, porque fez com que te encontrasse a ti, que és a espantosa imagem da sua beleza - declarou o rapaz, sussurrando-lhe ao ouvido.
Os seus lábios transmitiram-lhe um arrepio de prazer, seguido por um instante de mágoa: Gianni acabava de lhe dizer que, se não acreditasse em Deus, não a teria amado. Mas ele deu-lhe um beijo na testa e a mágoa desvaneceu-se imediatamente.
3
À longa mesa rectangular podiam sentar-se não só os doze membros da família Franzini como também os eventuais convidados. A uma cabeceira estava sentado o pai de Gianni, à outra a mãe. Os velhos pais do chefe de família sentavam-se um em frente ao outro, a meio da mesa, enquanto os oito filhos, uma nora e um genro estavam alinhados por ordem de idades. Malvina tinha sido instalada entre Gianni e Perla, a irmã de quinze anos.
O apartamento dos Franzini ocupava todo o primeiro andar de um edifício na via Durini, dava para um pátio e era contornado por um longo terraço onde cresciam oleandros e limoeiros em vasos.
Duas empregadas silenciosas, uma idosa, que tinha ar de ter envelhecido naquela família, e uma mais jovem, pousaram nas extremidades da mesa duas enormes travessas que continham um risotto amarelo com ervilhas e ossobuco. Depois retiraram-se.
O professor Franzini, estimado antiquário de Milão, e a mulher começaram a servir os pratos que passavam de mão em mão. Depois o chefe de família juntou as mãos e, imitado por todos, disse: - Senhor, agradecemos-Te pela comida que nos ofereces e por teres trazido de volta o nosso Alessandra.
Todos concluíram a oração com um "Ámen" e começaram a comer.
Aquele ritual recordou a Malvina que, na casa dos avós maternos, em Tavernolo, no fim da refeição a avó dizia: "Também desta vez, com a santa ajuda de Deus, pudemos comer." E o avô acrescentava: "E um bocadinho com a minha, também."
Malvina, no meio daquela família tão numerosa, sentia-se um pouco confusa, mas os Franzini fizeram tudo para a pôr à vontade. Era um domingo de Julho, ela tinha acabado de passar no exame de aptidão e Gianni tinha feito com sucesso todos os exames do primeiro ano de Filosofia.
Malvina sentiu alguma vergonha ao pensar nos almoços e nos jantares apressados que eram servidos a Gianni em sua casa, por vezes à mesa da cozinha, quase sempre sozinhos, excepto da primeira vez, quando Susan, ao saber que o rapaz era filho do rei dos antiquários de Milão, tinha decidido exceder-se ao pôr uma mesa digna de um filme que deixou embaraçados os dois namorados e o doutor Leoni.
Aquele primeiro convite dos Franzini para almoçar surgira por acaso, depois da missa, numa reunião do grupo católico que Gianni frequentava.
Fora uma manhã muito estimulante. Gianni irradiava felicidade e, quando se preparava para a levar a casa, disse de repente: Não te deixo. Anda almoçar a casa dos meus pais. Vou estar dois meses sem te ver e hoje quero-te toda para mim.
No dia seguinte, de facto, Malvina ia partir com o pai e com Susan para Filadélfia e só regressaria em Setembro.
Naquele momento, sentada à mesa ao lado dele, perguntouhe em voz baixa: - É sempre assim, em tua casa? - Gianni olhou Para ela, perplexo.
Explica-te - disse.
É como estar na corte do Rei Artur: uma família enorme, Us que reconduziu o Alessandro ao redil... Onde foi o Alessan-
Parar, antes de regressar ao redil? - sussurrou. Agora não posso, mas depois explico-te - rematou ele.
Da cozinha, para onde tinham sido relegadas as crianças mais pequenas, chegavam gritos e gargalhadas. Havia uma nurse a tomar conta deles. Eram os filhos de um irmão e de uma irmã de Gianni. Esta última, a exemplo dos pais, tinha tido três filhos em quatro anos de casamento.
A certa altura, Perla, a irmã mais nova de Gianni, perguntou-lhe: - É verdade que a tua mãe é americana?
- Chama-se Susan e é a minha segunda mãe. A primeira morreu quando eu nasci - explicou Malvina.
- É verdade que te deram o nome da tua primeira mãe? insistiu a rapariga.
Era evidente que Gianni tinha falado dela em casa. ;
- Perla, pára de fazer perguntas - interveio a signora Franzini, que não perdia um único movimento de Malvina.
- Porquê? É preciso começar por algum lado, para fazer amizade - replicou ela, nada intimidada com o olhar severo da mãe. E logo a seguir continuou: - Trata-la por mãe ou por Susan? Falas italiano ou inglês com ela?
- Trato-a por Susan e falamos em ambas as línguas. Mas ela considera que o meu inglês é péssimo e é por isso que vou para a América - respondeu Malvina.
- Que sorte a tua! Eu não sei o que daria para lá ir. Largava casa e família - confessou a rapariga.
- Perla! - repreendeu-a a avó. Depois voltou-se para a nora:
- Ouviste a tua filha?
- Deixemo-la sonhar um pouco - sorriu benevolamente a signora Franzini.
Malvina, apesar do acolhimento afectuoso daquela família numerosa, sentia-se confusa. Quando o almoço acabou, suplicou ao namorado que a levasse a casa.
- Olha que ninguém te come. Somos apenas uma grande tribo e, com o tempo, vais habituar-te a eles e eles a ti - garantiu GianmE acrescentou: - Agora tenho de fazer uma coisa rápida. Vai ate a
varanda conversar com o Alessandro. É a ovelha que regressou ao
redil- Vou já ter contigo.
Malvina obedeceu. A varanda era coberta por uma pérgola de glicínias perfumadas e havia muitos cadeirões e mesinhas espalhados por todo o lado.
- Então és tu a namorada do Gianni - disse-lhe Alessandro, enterrado num cadeirão, com um copo de whisky com gelo na
mão.
- Há um ano e meio - esclareceu ela, sentando-se à sua frente. Malvina reparou que Alessandro era muito parecido com
Gianni.
- Não te deixes apanhar pelos Franzini - recomendou ele.
- O que é que queres dizer? - perguntou Malvina, curiosa.
- Esta família é como uma serpente, grossa e comprida. Envolve-te nas suas espirais e estrangula-te, desfaz-te e engole-te. Defende-te de nós todos, porque somos demasiado encantadores, demasiado honestos, demasiado católicos e não admitimos meias-tintas.
Tinha os olhos vermelhos, como se tivesse chorado.
- Ouviste o meu pai? Agradeceu a Deus por me ter trazido de volta a casa. Que mais poderia eu ter feito, com os sentimentos de culpa que me dominam? Chantageiam-te com o amor e não se apercebem de que te impedem de viver a tua vida. Aprendemos a defender-nos da maldade, mas como poderemos defender-nos da bondade? Eu queria uma outra vida, longe deles, e tentei vivê-la. Não consegui e regressei. Sou infeliz e, no entanto, amo-os. Tu, que ainda estás a tempo, foge para longe de nós. O teu Gianni, para além disso, ainda é mais Franzini do que o pai e o avô, é um mtegralista católico, sem salvação - declarou.
Malvina não percebeu o sentido daquelas palavras, mas apercebeu-se do sofrimento daquele jovem lindíssimo.
- Eu também sou católica - sussurrou.
- Como toda a gente. A Itália é um país católico, e católica é a nossa formação e a nossa cultura. Depois há os integralistas, aqueles
que não põe nada em causa, que dizem: "Faz-se assim." Ponto final. Consideram-se depositários da verdade.
Naquele momento chegou Gianni e ouviu as palavras do irmão. Sorriu e disse: - O Alessandro está a pôr-te em guarda quanto às nossas virtudes, não é verdade?
- Mais ou menos - respondeu Malvina, totalmente desorientada.
- Está dilacerado pela dor de ter deixado a namorada - explicou-lhe. Depois deu uma palmadinha afectuosa no ombro de Alessandro e acrescentou: - A mulher da tua vida vai chegar quando menos esperares, e com a bênção de Deus.
4
Nesse momento, Alessandro levantou-se do cadeirão, aproximou-se de Malvina, inclinou-se sobre ela, pousou-lhe um beijo na testa e disse: - Vou digerir a bebedeira para a minha cama. Quando a ti, minha linda Malvina, há-de chegar o dia em que te vais lembrar de que eu te tinha avisado.
Alessandro foi-se embora e Gianni disse-lhe: - Anda, vou levar-te a casa.
Quando saíram para a rua, Gianni deu-lhe o braço e contou:
- Sabes, o Alessandro trabalha num escritório de advogados e apaixonou-se por uma colega que é casada e mãe de dois filhos. Parece que ela também se entusiasmou com ele e despachou o marido, um pobre diabo com alguns problemas de saúde, para meter o Alessandro em casa. É claro que a rapariga, uma advogada atraente, é uma mulher que segue os seus impulsos. Não achas que uma pessoa assim poderia, um dia, despachar o Alessandro também?
- Não sei, mas isso são assuntos deles, não vossos - comentou Malvina.
- De facto, nós dissemos ao Alessandro que fazia bem em deixá-la A decisão foi dele e hoje sentimo-nos felizes por o ter de
novo connosco.
Vocês sentem-se felizes, mas ele está desesperado e acho que eviam estar muito preocupados. Não viste como ele bebe?
- Antes de se apaixonar por uma mulher casada não bebia.
- O Alessandro diz que a família Franzini é como uma serpente que tritura toda a gente.
- Achas-me com ar de quem foi triturado?
Caminhavam lentamente pela via Montenapoleone, em direcção à via Manzoni. O asfalto reverberava um calor denso de humidade.
- O teu irmão faz-me pena - disse Malvina.
- A mim também. Está a pagar pelo seu pecado de orgulho, por ter acreditado que podia gerir a vida dele fora das leis do Senhor - declarou Gianni, com uma frieza alarmante.
- E as leis do coração? - perguntou Malvina.
- Coincidem com as de Deus, se as Suas determinações forem cumpridas com humildade.
Tinham chegado à via Manzoni e o café Alemagna, na esquina com a via Crocerossa, era uma miragem de frescura no ar abafado daquela tarde de Julho.
- Vamos tomar um chá frio? - propôs Gianni.
Não eram eles os únicos a procurar algum refrigério na penumbra daquele estabelecimento com ar condicionado, onde as mesas estavam todas ocupadas..;{;,
- No balcão? - propôs Gianni.
- Tudo bem - respondeu Malvina, conformada.
- Não me dizes mais nada? - perguntou ele, preocupado, enquanto tomavam o chá.
- Estou um pouco perturbada - confessou ela. E acrescentou:
- Toda esta conversa sobre orgulho e humildade e leis do Senhor... porque não falamos de nós dois, do facto de não nos voltarmos a ver durante dois longuíssimos meses? Parecemos um casal de velhos beatos.
- Mas não somos. Os beatos realizam muitas vezes acções impiedosas durante o dia e dormem tranquilos de noite. Nada lhes perturba o sono. Nós, pelo contrário, alimentamo-nos de dúvidas, chegamos até a pôr em causa a existência de Deus. Pensa naquela
rica discussão de hoje de manhã quando, a certa altura, alguém disse que se Deus tivesse querido que não pecássemos, nos teria feito diferentes daquilo que somos. Deus quer que o homem seja livre de escolher, que seja árbitro da sua própria vida - afirmou, entusiasmado.
- Gianni, por favor, já chega. Estar contigo é como escalar o Everest - desabafou Malvina.
Ele riu-se, levou-a para fora do café, de braço dado, e disse:
- Na verdade, só queria falar-te de amor, dizer-te que estou a enlouquecer de ciúmes, porque receio que na América possas encontrar alguém que te agrade mais do que eu. Não sei como vou conseguir sobreviver sem ti durante tantas semanas. Pronto, finalmente disse tudo.
- Tu também vais para a praia, onde podes encontrar alguma menina que, sendo tu bonito como és, fique feliz por te fazer companhia - replicou Malvina.
- Estamos um bocado palermas, não estamos?
- Estamos só muito apaixonados, meu querido.
Tinham chegado à via Turati, diante do edifício onde morava Malvina.
- Porque não sobes comigo? Temos em casa um aparelho de ar condicionado ruidoso e eficientíssimo. Podes conversar com a Susan e com o meu pai enquanto eu tomo um duche, e ficar connosco até à hora do jantar - propôs ela.
Em casa encontraram apenas um bilhete de Susan, bem à vista sobre a mesa oval da entrada. Dizia: "Querida Malvina, o pai tem de trabalhar no hospital e eu vou levar a Cunegonda aos avós. Vemo-nos mais tarde."
A bagagem para aquelas longas férias estava empilhada ao lado da porta.
- JÉ estranho que a Susan tenha levado a Cunegonda para o campo depois de ter combinado tudo com o Pietro - comentou Malvina. A Cunegonda era a gata da casa e Pietro o porteiro do Prédio.
- É uma questão assim tão importante? Eu só consigo pensar que temos de nos despedir - disse Gianni, e abraçou-a.
- Só temos algumas horas - esclareceu ela, tristemente. O rapaz pousou os lábios na boca de Malvina e beijaram-se durante muito tempo, com paixão, apertados um contra o outro. Depois Gianni perguntou-lhe, sorridente: - Não querias tomar um duche?
Malvina contemplou os olhos do namorado, que brilhavam de desejo. Pegou-lhe na mão e disse: - Anda comigo.
5
Tudo aconteceu sob uma chuva acariciadora de água tépida, na cabine de duche com paredes de vidro. O acontecimento mais importante das suas vidas consumou-se entre a alegria, o espanto, a ternura e a explosão de pulsões contidas durante muito tempo. Ficaram abraçados enquanto a água continuava a correr sobre os seus corpos jovens, perfeitos.
- Amo-te tanto, Malvina - sussurrou Gianni.
- Eu também - disse ela.
As sensações que os tinham acometido desvaneceram-se lentamente, deixando-os aturdidos, emocionados e felizes. Malvina saiu da cabine do duche e vestiu um roupão. Gianni seguiu-a e enrolou uma toalha à volta da cintura.
Foi naquele momento que o doutor Leoni empurrou a porta entreaberta e entrou na casa de banho da filha. Retirou-se imediatamente, pronunciando um embaraçadíssimo: - Desculpem.
Houve um longo instante de aflição.
- Eu queria nunca ter nascido - afirmou Gianni. - A culpa é a minha. Devia controlar-me, e acabei por te fazer uma coisa
terrível - disse, em lágrimas.
- Está tudo bem, meu querido - sussurrou-lhe ela, abraçando-o.
amo-te e estou feliz com aquilo que aconteceu entre nós. -
Apertou-o contra ela e acariciou-lhe os cabelos molhados, até que ele se acalmou.
- Agora vamos vestir-nos e depois vamos ter com o meu pai decidiu.
O doutor. Leoni já lá não estava. Na mesa da entrada, ao lado da mensagem de Susan, encontraram um bilhete no qual o pai de Malvina tinha escrito: "Volto mais tarde. Gosto muito de ti. Pai."
- Ora, estás a ver? Ele não fez nenhum drama - afirmou ela. Dirigiu-se com Gianni à cozinha, pôs dois copos em cima da mesa e encheu-os de Coca-Cola.
- Meu amor, nunca me vou perdoar por não ter sido suficientemente forte para resistir à tentação de te possuir. Amanhã vais partir e eu vou continuar a perguntar a mim mesmo porque não te amei o suficiente para te respeitar, como deveria - confessou o rapaz, desolado.
- O que é que o respeito tem a ver com isto? Estás a estragar um momento lindíssimo da nossa história - reagiu Malvina.
- Fiz-te mal - disse ele.
- Não fizeste nada que eu não desejasse - sublinhou ela.
- Não deve voltar a acontecer - decidiu Giovanni, e prosseguiu: - Vou esperar pelo teu pai, porque não quero deixar-te sozinha a enfrentar esta situação. Ele tem de saber que a responsabilidade é só minha.
- Sossega, querido - sussurrou ela, abraçando-o. E acrescentou: - Durante todo o tempo em que estivermos separados, eu vou acalentar a recordação desta tarde e contar as horas e os dias que me separam do momento em que voltarei a mergulhar nos teus braços. Não precisas de falar com o meu pai. Aquilo que aconteceu apenas tem a ver comigo, com mais ninguém.
Então Gianni acariciou-lhe o rosto com ternura e revelou:
- Não sei se vou conseguir estar longe de ti durante tantas semanas-
Mais tarde, quando o doutor Leoni regressou a casa, Malvina estava sentada no sofá da sala à espera dele.
O pai debruçou-se sobre ela, deu-lhe um beijo na cara e disse: Lamento muito aquilo de há pouco.
- Eu sei, pai - sorriu ela, embaraçada.
Ele sentou-se ao lado dela. - Se tu não tivesses ido para o hospital e a Susan não tivesse levado a Cunegonda a Tavernolo, nada teria acontecido. Foi a nossa primeira vez - confessou Malvina, baixando o olhar.
O doutor Leoni estendeu um braço, rodeou os ombros da filha e puxou-a para ele.
Então Malvina contou ao pai da reunião com o grupo católico de Gianni, do almoço em casa dos Franzini, de como ela e o namorado deram por eles a fazer amor quase sem se aperceber, da reacção de Gianni e dos seus sentimentos de culpa.
- Em suma, pai, hoje foi um dia louco - concluiu.
O doutor Leoni recordou a terna face da filha quando era pequena. Tinha confiado a sua menina aos avós, desorientado como estava com a dor pela perda da sua mulher muito amada. Lançara-se no trabalho, deixando-a só durante tantos anos. No entanto, Malvina nunca se lamentara, nunca lhe pedira nada. Agora precisava da sua ajuda e ele não a ia desiludir.
Abraçou a filha com força e disse: - O amor é uma experiência perturbadora, e não só quando se descobre pela primeira vez. Mas não deves ter medo, porque na vida só o amor consegue fazer-nos sentir menos sós.
6
Malvina já tinha estado na grande casa de campo dos Kellerman, nas margens do Delaware, na Pensilvânia, por altura do casamento do pai com Susan.
Dessa vez havia muita neve, e centenas de pequenas lâmpadas coloridas ornamentavam a fachada da casa, porque o Natal estava próximo. As luzes e as decorações espalhavam-se também pelo interior. A mesa estava sempre decorada com ramos de azevinho, fitas e velas. Recordava a brancura da neve e o frio que lhe cortava a face, as chamas crepitantes nas lareiras, o bom paladar do plum cake, as latas cheias de pó de cacau e o aroma do café de manhã cedo.
Agora era pleno Verão, o calor cortava a respiração e a água gélida do Delaware, que corria perto da grande casa, não conseguia refrescar o ar.
O primeiro contacto com a casa foram as canecas de chá muito frio, as taças de gelado e aquele bando de primos americanos que falavam com o mesmo sotaque arrastado de Susan.
Os Kellerman ocupavam por inteiro a grande mansão e fui obrigada a partilhar o quarto com uma prima que tinha mais dois anos do que ela. Descobriu que a sua recente experiência de amor com Gianni era considerada pelos primos americanos como uma prática corrente a partir dos quinze anos, que a famosa "primeira
vez" era só um tributo que se pagava para ser adulto e que era
rapidamente esquecida.
Malvina defendia que o amor entre dois jovens era demasiado
importante para ser tão desprezado e falou sobre isso com a prima. - Vocês, europeus, são velhos e com tendência a dramatizar as
pequenas coisas - comentou a rapariga, dando o assunto por encerrado.
Malvina tinha crescido sem se colocar demasiadas questões. A educação que recebera previa um tempo para se alimentar, para descansar, para se divertir, e regras para respeitar, poucas, de facto, que por vezes podiam até ser ignoradas.
E Quando era pequena, aquelas regras tinham-na ajudado a transformar a raiva que a devorava por não ter uma mãe que a abraçasse, que limpasse as suas lágrimas e se risse com ela, numa espécie de hiperactividade.
Tudo correu bem até ter encontrado Gianni. Ele tinha-a envolvido no seu grupo de jovens católicos que, aos aspectos concretos do quotidiano, antepunham a experiência espiritual. Assim, as perguntas durante muito tempo ignoradas sobre o Bem e sobre o Mal, sobre o sentido da vida, sobre a capacidade de se dar aos
outros, sobre o amor e sobre a procura da fé acabaram por surgir
com prepotência no seu espírito e no seu coração.
Agora sentia-se confusa com a naturalidade com que a prima abordava as relações com o sexo oposto e perguntava a si mesma qual das duas vivia mais intensamente. Seria mais correcto satisfazer as pulsões do desejo com naturalidade, como defendia a jovem arnericana, ou seria preciso combatê-las, como Gianni se obstiInava a repetir?
Deixara Milão e o namorado num turbilhão de emoções. Na Casa dos Kellerman, em contacto com os primos e os amigos destes. Malvina confrontou-se com uma mentalidade profundamente
Crente da sua casa e daquela de que se tinha apercebido ao conviver com Gianni e os amigos dele. Entre os jovens que a rodeavam
prevalecia a aspiração ao ganho e ao sucesso. As questões afectivas, espirituais e religiosas eram consideradas adornos supérfluos.
Malvina observava os primos e perguntava a si mesma quem seria mais feliz: eles ou ela?
Exprimia as suas perplexidades nas longas cartas que escrevia a Gianni, em resposta às dele, que chegavam todos os dias. Consolava-a esta partida de ténis entre os dois, com a bolinha a voar de um lado para o outro do oceano. Informou-o também sobre a insistência com que Susan lhe sugeria que se inscrevesse numa universidade americana. - Seria uma experiência extraordinária. Depois da licenciatura, se quiseres, podes sempre regressar a Itália
- repetia a madrasta.
Também o pai apoiava aquela solução, que Malvina não se decidia a aceitar porque isso a obrigaria a estar longe de Gianni. Tanto mais que, nas suas cartas, ele nunca deixava de sublinhar o quanto se sentia desesperado longe dela. Se ficasse nos Estados Unidos, sentir-se-ia culpada relativamente ao namorado.
"Queixas-te do calor da Pensilvânia porque não fazes ideia de como Versilia é inóspita sem ti. O sol brilha para toda a gente, mas não para mim."
Era de manhã. Malvina estava sentada numa cadeira de baloiço por baixo do alpendre da casa e lia aquelas palavras que o seu apaixonado escrevera na carta que acabava de chegar. Tanto amor enchia-a de orgulho, mas perguntou a si mesma se Gianni não o utilizaria para influenciar as suas decisões.
Afastou rapidamente aquela dúvida, pensando que também ela se sentia muito só desde que o tinha deixado.
Gianni era o homem da sua vida, ela amava-o e precisava dele como do ar que respirava.
Voltou a dobrar a carta, ergueu os olhos e olhou para o jardim. Viu Gianni diante do portão de ferro forjado, a sair de um táxi. Estava lindíssimo, a sorrir-lhe. Malvina correu ao encontro dele e abraçaram-se.
- Como vês, sou um fraco. Não resisto longe de ti - sussurrou-lhe, comovido.
- Eu vou ser forte, pelos dois - garantiu Malvina, apertando-o nos seus braços.
7
Era outra vez Verão. Malvina tinha prometido a si mesma fazer outro exame até ao fim de Julho e estava agora sentada debaixo de um carvalho, com os ombros apoiados no tronco da árvore, de livro de anatomia no colo, a estudar os nomes dos ossinhos que compõem a mão. Lia, repetia, mas depressa o seu espírito navegou para outro lugar. Girava entre o polegar e o indicador a aliança que, ao fim de quase um ano de casamento, tinha perdido o brilho original. Pensou que o marido era o melhor homem que a sorte lhe podia ter reservado, enquanto que ela não se sentia digna dele. Ele queria um filho e ela não lho queria dar, porque a ideia do parto a aterrorizava.
Quando era pequena, falava com naturalidade do facto de a mãe ter morrido quando a dera à luz. Na escola, porém, quando a professora lhe pediu para falar dos pais, respondeu: - O papá é médico e a mamã morreu de pneumonia.
A professora contou aos avós, que comunicaram ao genro e, todos juntos, abordaram a questão com ela.
- Acho feio dizer que morreu de parto - justificou-se Malvina.
- O que é que há de feio na verdade? - perguntou o pai.
- Que se eu não tivesse nascido ela não tinha morrido. Finalmente conseguira verbalizar o seu sentimento de culpa -
O doutor Leoni, então, explicou a Malvina que a mãe se tinha
recusado a interromper a gravidez no sexto mês, quando as análises de sangue e de urina revelaram o risco de uma eclampsia.
- A tua mãe desejou-te com todas as suas forças, a custo da própria vida. Se mentires sobre a morte dela, é como se negasses a (; coragem dessa escolha - concluiu, com uma carícia. As palavras do pai tranquilizaram-na apenas em parte. Ao crescer, tinha começado a consultar às escondidas os livros de [Medicina do pai relativos à gravidez e ao parto. Adquiriu uma certa cultura na matéria e, deste conhecimento aprofundado, [extraiu uma certeza: ela nunca ia ter filhos.
A nível consciente, este propósito serenou-a; mas, nas pregas do seu inconsciente, persistia o horror do seu nascimento que se pnanifestava, por vezes, em pesadelos nocturnos. Depois do casamento, que os Leoni e os Franzini não tinham lapoiado mas apenas aceitado com incerteza, o medo de engravidar levou Malvina a usar anticoncepcionais às escondidas do marido, ique defendia que o amor entre os cônjuges tem como fim a proferiação.
Com as costas apoiadas no tronco do carvalho, o olhar perdido no vazio, Malvina recordou a noite de núpcias na casa de Tavernolo.
Era fim de Outubro. Tinham casado de manhã, com uma cerimónia simples, na presença dos parentes mais chegados, recusando a viagem de núpcias e as prendas, uma vez que estavam
ambos convencidos de que o matrimónio era uma coisa íntima e a
lua-de-mel uma invenção do consumismo. Tinham até recusado
uma casa só para eles, uma vez que andavam ainda a estudar e não
tinham nenhum rendimento.
Os avós maternos de Malvina concordaram em recebê-los na
grande casa de Tavernolo.
- Espero que tenhamos um bebé - disse-lhe Gianni, na noite
de núpcias, depois de terem feito amor.
- Não te parece um pouco cedo para falar em filhos? Eu só
stou no primeiro ano da universidade, e tu no segundo - objectou
ela, ligeiramente espantada, porque era a primeira vez que Gianni lhe falava de crianças.
- Os Franzini, quando se casam, querem sempre filhos esclareceu o marido.
- Como os reis, que têm necessidade de assegurar a sucessão?
- tentou ela brincar. E acrescentou: - Ainda sou demasiado jovem para ser mãe.
Gianni abraçou-a com ternura e, a sorrir, disse-lhe: - Deus fez as coisas de maneira a que a procriação nasça de uma pulsão sexual tão incontrolável quanto sublime. Sabes porque é que os nossos corpos se atraem? Porque o fim último desta atracção é criar uma nova vida. Sem esta finalidade, não existiria o amor. Agora parece-te que não estamos preparados para sermos pais, mas quando concebermos o nosso filho, dia após dia vamos aprender a ser um pai e uma mãe. - Ainda que pronunciadas com ternura, aquelas palavras foram entendidas por Malvina como uma violência sobre o seu corpo e sobre a sua vontade.
Olhou para Gianni e pareceu-lhe que se escondia nele um monstro egoísta e sanguinário.
- Talvez seja assim - limitou-se a comentar. No dia seguinte foi ao hospital ter com o pai.
- Estou desesperada - disse-lhe.
- Zangaste-te com o Gianni?
- Se calhar. Mas depois de uma zanga fazem-se as pazes. A questão é que ele quer absolutamente um filho e eu não quero - explicou.
- És tu a parte interessada, e toca-te a ti decidir. Qual é o problema?
- Como é que eu faço para lhe dizer? Ele é tão bom, tão apaixonado... consegue fazer-me sentir culpada... Pai, é assim tão terrível não querer filhos?
- De maneira nenhuma. Toma a pílula e ganha algum tempo até te sentires preparada para abordar o problema com ele. Santo Deus, vocês são tão novos, e ainda têm de acabar os cursos. Queres que fale eu com ele? - propôs o médico.
- Não, tenho de resolver isto sozinha. Obrigada, pai - respondeu, a sorrir.
Ao fim de quase um ano de casamento, Gianni não se conformava com o ventre estéril da mulher.
Recentemente tinha-lhe proposto: - Talvez seja melhor seres vista por um especialista.
Ela, que não tinha ainda arranjado coragem para abordar a questão, que era o único lado obscuro daquela união, ficou zangada. - Talvez seja melhor que tu e tua família deixem de me pressionar. - Com efeito, quando almoçavam na via Durini, a sogra começava por a abraçar com ternura e logo a seguir deixava cair com displicência a pergunta do costume: - Não há bebé à vista?
O único Franzini com quem Malvina se sentia à vontade era Alessandro, que a tinha elegido como sua confidente. Quando estavam sós, o jovem advogado escancarava as portas da sua alma para a jovem cunhada.
- Sabes o que a minha mãe fazia quando éramos pequenos e tínhamos sede? Enchia o copo de água, punha-o à nossa frente e depois dizia: "Espera para beberes, resiste o mais que puderes. O copo é teu e ninguém to vai tirar, mas tens de aprender a dominar o desejo." Eu perguntava-lhe: "Até quando?" Ela respondia: "Até quando quiseres, porque só depende da tua vontade." Uma vez bebi imediatamente e ela olhou-me com uma tal pena que eu roe senti o mais indigno dos seres vivos. Os meus pais nunca nos deram uma bofetada, mas quanto melhor teria sido se o tivessem feito, porque o método educativo que usavam era incomparavelmente mais violento.
Um dia, Malvina confiou-lhe as suas preocupações: - O Gianni nao me dá tréguas com o pedido de um filho. Quanto à tua mãe e as tuas irmãs, olham-me até com desconfiança.
A minha catolicíssima família apenas concebe o casamento
função dos filhos, razão pela qual te convém despachares-te a lazer Um.
Mas eu não quero!
- Então, minha querida cunhada, vai ser um osso duro de roer
- prognosticou.
Agora Malvina viu o marido a subir a alameda do jardim com um cesto cheio de rosas acabadas de cortar. Trazia na cabeça um velho chapéu de palha para se proteger do sol. Ao observá-lo enquanto se aproximava, pensou que o amaria ainda mais se ele não tivesse aquela fixação de conceber um filho.
Fechou o livro e sorriu-lhe, quando ele chegou junto dela. Gianni parou, depositou-lhe no colo as flores que trazia no cesto e disse: - Inundo de rosas a rainha do meu coração.
Malvina pensou que assim que a avó descobrisse aquela razia ia ficar furiosa.
Não lhe disse nada, limitando-se a sorrir-lhe, comovida com um gesto tão romântico. Era um marido apaixonado que continuava a fazer-lhe a corte como se tivesse acabado de a conhecer.
Gianni cruzou as pernas, acocorou-se na relva diante dela e fez-lhe uma festa no ombro.
- És tão bonita, minha dulcíssima esposa - sussurrou-lhe.
- Tu também és um grande borracho - respondeu ela, com alegria.
Os nossos filhos vão ser todos lindíssimos, como nós.
O sorriso de Malvina apagou-se e pensou que aquele marido tão amado tinha a capacidade de lhe estragar os melhores momentos.
8
A contestação estudantil explodiu naqueles anos. Manifestações, comícios, ocupação das escolas, actos de vandalismo e de violência abalaram a vida nas cidades, suscitando perguntas inquietantes. Eram sobretudo os mais idosos que não percebiam o que estava a acontecer.
O avô de Malvina, que era o médico da aldeia e se definia como sendo "um pouco médico e um pouco bruxo", falava sobre isso com a neta, com o marido dela e com os jovens que vinham muitas vezes visitá-los a Tavernolo.
Abordava sempre o assunto afirmando: - Os filhos dos meus camponeses já não gostam da terra dos pais, derrubam as casas rurais para construírem casas horríveis, eliminam os móveis de madeira para comprar outros em fórmica. Fórmica, um nome que só de se pronunciar faz pele de galinha.
Nesse momento intervinha a avó, que caminhava para os Atenta anos.
- Meninos, não fiquem aí a ouvir este velho profeta, que gosta de se entregar a conversas de taberna.
Disse-o também na noite em que, ao regressar de Veneza onde tinha ido discutir uma causa em tribunal, Alessandro FranZlni ficou a dormir em Tavernolo.
- Nas tabernas dizem-se coisas às quais os nossos políticos deviam dar ouvidos - disse Alessandro, que conhecia bem as tabernas.
- Vivemos num clima de loucura colectiva, e não me refiro apenas às greves dos operários, mas sobretudo às revoltas contra os docentes que são acusados de autoritarismo, enquanto deviam ser respeitados pelas noções e pelos valores que nos transmitem interveio Gianni.
- Por amor de Deus! Não me venhas com essa conversa - resmungou Malvina, que seguia com atenção as novas ideias.
- Pois olha que o teu marido tem razão - rebateu o avô. - As ocupações das universidades, tanto na América como na Europa, de Trento até ao Japão, são feitas pelos meninos ricos que nunca ganharam a vida.
Malvina zangou-se.
- Avô, tu não percebes que o poder, em Itália como no resto do mundo, está nas mãos de velhos personagens que vivem de conivências e interesses pessoais, que os operários continuam a ser mal pagos, que as mulheres contam menos do que nada? Já viste uma mulher chefe de serviço em algum hospital? Ainda há muita gente que defende que as mulheres só deviam pensar em casar e ter filhos.
Era evidente que as últimas palavras não eram dirigidas ao avô, mas ao marido. Os avós perceberam e resolveram retirar-se.
- Eu acho que já são horas de deixar descansar os meus velhos ossos - anunciou a avó, ao mesmo tempo que se levantava da mesa para se ir deitar.
- E eu vou atrás de ti. Já são dez horas e ainda tenho de ruminar as dúvidas que a minha deliciosa netinha me levantou - acrescentou o avô.
Desceu o silêncio entre Malvina, o marido e o cunhado. Venere, a jovem criada que o avô definia como sendo "feia como o pecado, mas muito honesta e diligente", levantou a mesa e perguntou:
- Vão querer café?
Declinaram a oferta e Gianni disse: - Estou cansado. Também vou dormir.
Malvina e Alessandra ficaram sozinhos e foram até ao jardim.
Venere, que conhecia os gostos dos hóspedes, levou a Alessandro um copo e a garrafa de whisky.
- Tenho a impressão de que há uma certa tensão entre ti e o teu marido - comentou ele, com um ar ligeiro.
Em vez de responder, Malvina perguntou-lhe: - Como é que estás?
- Como o escravo do amor opressivo de uma família que me força a tomar decisões opostas àquelas que eu desejaria.
Bastava olhar para ele para perceber que aquele homem tão jovem e tão bonito era profundamente infeliz.
Mudara de escritório para se afastar da mulher que amava. Tinha uma nova namorada, de que os Franzini gostavam muito. Ele, porém, não a amava, apesar de ter decidido casar-se com ela, porque assim é que devia ser.
- Alguma vez pensaste em largar tudo e emigrar para outro lado? Para Filadélfia, por exemplo. A Susan conhece meio mundo. Podia apresentar-te a várias pessoas influentes e refazias a tua vida longe dos Franzini - sugeriu Malvina.
- Olha lá, e tu alguma vez pensaste em fazer a mesma coisa? Não me parece que sejas feliz com o meu irmão - replicou o cunhado.
Malvina reagiu como se tivesse sido atingida por uma chicotada.
- Que ideias são essas? Tu deixaste a tua mulher para satisfazeres a família. Eu e o Gianni estamos juntos para nos satisfazermos a nós próprios.
- Mas entretanto ele quer filhos, tu não lhos dás e não perdes a oportunidade de lhe lançar umas farpas - observou Alessandro.
- Mas porque é que tu não te metes na tua vida? - respondeu Malvina, ao mesmo tempo que se encolhia no cadeirão de vime.
- Às ordens, capitão - brincou Alessandro, e serviu-se de um copo de whisky. Depois perguntou: - Não te apetece um gole, cunhadinha?
- Um gole, está bem - disse ela, e pegou no copo que Alessandro lhe estendia. Levou-o aos lábios e bebeu um trago generoso. Depois acrescentou: - Que bom. É mesmo aquilo que é preciso numa noite fantástica como esta.
No céu de cobalto, a lua cheia reluzia com o seu séquito cintilante de estrelas. Um copo atrás do outro, os dois cunhados iam-se embriagando alegremente, acompanhados pelo canto dos grilos. Uma pequena sombra furtiva fez mexer os ramos dos arbustos.
- Quem está aí? - perguntou Alessandro.
- Oh, é a doninha do costume à procura de comida - explicou Malvina, e logo a seguir começou a cantar uma canção de Patty Pravo: "Seperdo te".
O cunhado juntou-se a ela e, depois de algumas estrofes em voz baixa, levantaram a voz e cantaram com entusiasmo.
Não passou muito tempo até que Gianni, descalço e em pijama, aparecesse diante deles.
- Vocês estão doidos? - perguntou.
- Só um bocadinho com os copos - respondeu Malvina. Gianni sorriu e sentou-se com eles, dizendo: - Que bela noite.
- Querido irmãozinho, quem não bebe em comunhão, ou é gatuno ou espião - afirmou Alessandro, ao mesmo tempo que lhe estendia a garrafa.
- Abençoados os últimos, se os primeiros foram honestos observou o rapaz, ao constatar que tinha sobrado pouquíssimo whisky. Despejou a garrafa com dois goles.
- Imaginas se a mãe e o pai aqui estivessem? - disse depois, com uma gargalhada.
- Faziam de conta que não se passava nada. Conhece-los tão bem como eu - replicou Alessandro.
- Vocês apercebem-se de que, em lugar do superego, têm a mãe e o pai? - comentou Malvina.
- Imaginas quantos disparates teríamos feito sem aqueles dois
polícias? - brincou Gianni.
- Agora percebo porque é que tenho a sensação de que aqueles dois nos estão sempre a controlar - replicou Malvina.
- A conversa está a tornar-se um bocadinho escabrosa para o meu gosto. Vou deixar-vos e vou dormir - anunciou Alessandro, dirigindo-se para o interior da casa com um passo incerto.
- Estavas a falar a sério? - perguntou Gianni à mulher.
- Como é que eu posso saber? Estou bêbeda.
- In vino vertias - sentenciou ele.
- Mas isto é whisky. Perdão, era whisky, portanto não conta, meu amor - respondeu ela a rir.
- Amo-te - sussurrou Gianni. Levantou-se, segurou a mulher nos seus braços, levantou-a e levou-a para dentro de casa, dizendo:
- Caramba, como pesa o whisky que bebeste!
Malvina escondeu o rosto contra o peito do marido e sentiu-se plenamente feliz.
9
Numa manhã de Julho, enquanto Malvina passava no exame de anatomia com distinção e louvor, Gianni obtinha o mesmo resultado num exame de filosofia teorética. Da Universidade Católica dirigiu-se à Estatal para se encontrar com a mulher e descobriu-a no átrio, no meio de um grupo de amigas.
As raparigas estavam a discutir sobre Martin Luther King e Bob Kennedy. Malvina citava um texto de Lawrence Ferlinghetti, que Gianni não conhecia, a propósito dos problemas da sua geração, e ele perguntou a si mesmo quando e onde arranjaria Malvina tempo para aquele tipo de leituras.
Escutou-a, atónito, porque estava quase a fazer um comício com as colegas, que a seguiam com atenção.
- Ora eu acho que devemos aprender a pensar com a nossa cabeça. Devemos escutar aquilo que nos vem do coração e da história, mais do que das prédicas dos vários Ginsberg, Kerouac e Gregory Corso. É claro que têm de ser lidos, porque naquilo que dizem há aspectos importantes, mas não devem ser tomados a letra, porque não nos devemos deixar doutrinar. Eu, pessoalmente, reivindico o direito de errar por minha conta, mais do que por conta das sugestões dos outros - dizia, falando com veemência-
Uma das companheiras declarou: - A Igreja Católica, em primeiro lugar, fez de nós um rebanho de ovelha doutrinadas. Sufocou
as mulheres com sentimentos de culpa e, vejam só, tudo culpas ligadas ao sexo. Somos uma geração de mulheres frustradas, frígidas, filhas de mães frígidas e insatisfeitas.
- Fala por ti. Eu não sou nem frígida nem insatisfeita. Tenho um marido... - Não acabou a frase porque, ao erguer os olhos, viu Gianni que a escutava de testa franzida. Abandonou o grupo e foi ter com ele.
- Estavas a espiar-me - começou.
- Estava a ouvir-te. Fico contente por não seres frígida nem insatisfeita, mas quanto ao resto estou bastante perturbado. A Igreja tem o dever de doutrinar os fiéis e nem ouso pensar o que seria de nós se não observássemos as suas regras - disse, ao mesmo tempo que se dirigia à saída. Malvina seguiu-o a caminhar em bicos de pés sobre o empedrado para não estragar as sandalinhas de tacão estratosférico.
- As doutrinas metem-me medo, quer venham da Igreja, dos partidos ou dos filósofos. Tu devias saber como é importante a individualidade do pensamento - protestou ela.
Chegaram ao carro. Gianni sentou-se ao volante e baixou logo os vidros para arejar o interior escaldante.
- Estás com vontade de discutir? - perguntou, aborrecido.
- Parece-me que já estávamos a discutir - esclareceu ela. Gianni tinha ciúmes das leituras e das ideias que Malvina não
partilhava com ele. Por outro lado, tinha de admitir que não a encorajava nesse sentido. Até porque a mulher, muitas vezes, tinha ideias opostas às dele e não estava disposta a mudá-las pelo amor que lhe tinha. Esta constatação fê-lo sentir-se impotente, e Perguntou a si mesmo o que seria deles dali a alguns anos. Ou muda ela, ou mudo eu, pensou.
- Vamos encerrar a conversa? - perguntou, ao mesmo tempo que punha o carro a trabalhar.
Não sinto vontade nenhuma de arranjar discussões, até porque estou a morrer de calor, mas não posso deixar cair certos
assuntos que são muito importantes para mim só porque no meio está a nossa relação - respondeu ela.
Atravessaram a cidade e dirigiram-se à entrada da auto-estrada.
- O problema é que tu não tiveste uma mãe - observou ele, apercebendo-se demasiado tarde da banalidade daquela afirmação.
- Pensava que o meu marido era o estudante brilhante e o filósofo de talento com quem aceitei casar. Obviamente, enganei-me. O Alessandro é que tem razão quando diz que os Franzini, nas palavras, são abertos à discussão, mas nos factos se limitam às regras inoxidáveis do seu credo. Dizes que não tive uma mãe, como se eu carregasse uma mácula, uma tara hereditária. Tive uma família maravilhosa e tanto amor como tu nunca terás, e a primeira regra do amor é a de nos deixar livres de pensar e agir. O amor de que vocês, Franzini, se nutrem, é um gás asfixiante. Há os mandamentos de Deus e os dos Franzini. Entre estes, impõe-se o mais devastador: se quiseres ser feliz tens de sofrer, deves passar fome, sede, cansaço, ir contra as tuas inclinações e contra ti próprio com vista a uma meta mais alta e mais digna. Mais alto do que quem? Mais digno do que quem, do que quê? De onde vos vem esta tremenda presunção que tem a força de uma fúria devastadora? Alguma vez pensaste em decidir com a tua cabeça, em vez da dos teus pais?
Malvina tinha levantado a voz e as palavras saíram-lhe da boca como um rio transbordante.
No entanto, enquanto as pronunciava, dava-se conta de que estava irritada não tanto por causa da obtusidade do marido como pelo facto de ele a ter surpreendido no átrio da universidade a exprimir opiniões que não queria partilhar com ele, porque faziam parte da sua esfera mais íntima.
Gianni, como sempre que era encostado à parede, fechou-se num mutismo obstinado.
Malvina percebeu que tinha exagerado ao atacar os Franz>n' que eram pessoas adoráveis, e o marido, que amava profundamente.
- Armei-me em sabichona. Peço-te humildemente desculpa disse, com uma voz meiga.
- Há coisas verdadeiras naquilo que disseste - admitiu Gianni. E acrescentou: - O facto é que demasiadas perguntas não simplificam a vida, sobretudo quando são formuladas à pressa, sob o impulso de novas ideias que não se sabe como vão evoluir. Escolhi a filosofia porque é uma ciência que implica longas reflexões. Talvez eu me coloque mais questões do que tu podes imaginar, mas tenho de lhes dar muitas voltas no meu espírito antes de as colocar.
Malvina acariciou-lhe a nuca e sorriu. - Eu sei, meu amor sussurrou.
- Hoje de manhã tive a nota máxima - anunciou ele.
- Eu também - disse ela.
- Distinção e louvor - esclareceu Gianni.
Ela escondeu distinção e louvor e exclamou: - És um génio, rapaz!
- Estamos a fazer muito bem o nosso trabalho - disse Gianni, satisfeito.
- E, sobretudo, amamo-nos - completou Malvina.
Saíram da auto-estrada e começaram a subir as colinas, onde o ar se tornava mais fresco.
Quando pararam diante da casa, ficaram espantados ao ver outros automóveis estacionados.
- Será que há alguma recepção? - perguntou Gianni.
Os cães da casa, estendidos à sombra da sebe de murta, limitaam-se a levantar o pescoço em direcção a eles, abanando a cauda Viramente.
Não faço a mínima ideia - respondeu ela, ao mesmo tempo que avançava em direcção a casa.
Daquele momento a porta abriu-se e saiu um homem ainda jovem.
Sérgio! - exclamou Malvina, indo ao encontro dele.
era o filho do doutor Antonio Orombelli, um amigo íntimo do avô.Sérggio, que tinha quatro anos mais do que Malvina, era um
amigo muito querido desde o tempo em que ela era ainda uma adolescente e ele já quase um homem. Às vezes, quando ela ficava impaciente porque queria ir a um baile ou a alguma cerimónia religiosa na aldeia, a avô confiava-a a Sérgio para a acompanhar. O último encontro remontava a alguns anos atrás, quando Malvina lhe falara do seu namorado e ele estava prestes a licenciar-se em Medicina. O pai de Sérgio exercia a sua profissão na mesma zona do avô e os dois pediam opinião um ao outro, por um hábito antigo, sobre casos complexos de doentes recíprocos. O avô tinha-lhe dito que Sérgio começava aos poucos a substituir o pai.
- Minha querida Mavi - disse ele, usando o diminutivo que lhe dera quando ela era pequena.
Gianni chegou junto deles e a mulher disse: - Apresento-te o Sérgio Orombelli, um amigo muito querido que vejo muito poucas vezes. - Depois voltou-se para Sérgio e acrescentou: - Este é o Gianni, o meu marido. Porque é que estás aqui?
- O teu avô... teve um enfarte e...
- Continua, Sérgio - sussurrou Malvina.
- Morreu. A casa está cheia de gente e a tua avó queria que tu soubesses antes de entrares - explicou o jovem médico.
10
Naquela manhã, o avô tinha saído no seu velho Lancia para as habituais consultas ao domicílio. Mas, antes de iniciar o trabalho, descera até ao lago onde se encontrara no café com Aureliano Rinaldi, o seu amigo farmacêutico.
- Estávamos sentados a uma mesa a contemplar o lago, onde começava a levantar-se alguma neblina, e entretanto íamos gozando a frescura e conversando enquanto bebíamos um cappuccino contava agora o farmacêutico, enquanto recordava as últimas horas de vida do avô. - Eram conversas de dois velhos amigos que se conhecem desde sempre e já disseram tudo um ao outro, ou quase tudo, ao longo de uma vida. Como duas comadres, criticávamos os primeiros turistas que preparavam os barcos para se fazerem ao largo. Quando nos despedimos, ele disse-me: "Vou à quinta dos Bruschi. O velho tem uma anca desgraçada e não quer Ser oPerado. Anda a tomar analgésicos há meses e está a arruinar
aquele fígado. Hoje de manhã, ainda que seja com palavras desagradáveis, tenho de o convencer a deixar-se internar. Despedímonos e ele foi-se embora - concluiu o farmacêutico.
velho Bruschi contou depois que estava na eira quando viu
o "cz" do médico parar na berma da estrada de terra batida que
dá acesso à quinta. A porta do carro abriu-se, mas o médico
continuou ao volante. Ele foi então ver por que razão o doutor não
saía do carro e encontrou-o já sem vida, com a cabeça caída sobre o volante. Telefonou para o serviço de emergência a pedir uma ambulância. No hospital, os médicos diagnosticaram um enfarte fulminante. Obviamente, o velho médico tinha percebido aquilo que lhe ia acontecer e por isso parou o carro. Mas nem sequer teve tempo de sair para chamar alguém que o ajudasse.
- Teve uma morte santa - disse o seu amigo António Orombelli, que recordou os anos de juventude, quando estudavam ambos em Pavia e eram alunos internos do Colégio Ghislieri. Tinham nessa altura um criado pessoal, pago pela família, que tratava de lhes lavar a roupa interior, engraxar os sapatos, arrumar os quartos e preparar as refeições. Tomava conta deles e contava aos pais as diabruras dos dois meliantes.
Malvina estava sentada num sofá da sala e segurava entre as suas uma mão da avó, que ouvia toda a gente sem murmurar uma palavra, com o olhar perdido no vazio.
Os dois jovens caseiros, Venere e Carlin, entravam e saíam da cozinha a servir café e bebidas frescas e tinham os olhos vermelhos de chorar.
Os amigos da família continuavam a contar episódios da vida daquele homem honesto e genuíno, enquanto Malvina recordava o tempo em que era criança e o avô a levava de carro até às aldeias espalhadas pelas colinas quando ia ver os seus doentes. Com ele tinha entrado em casarões opulentos e em quintas em ruínas, onde a chegada do médico era sempre recebida como uma bênção. O avô era uma figura carismática e tratava ricos e pobres com uma benevolência idêntica e brusca.
Malvina tinha assistido aos seus desabafos contra o céu, por ter privado uma mãe de um filho, e escutado as palavras desagradáveis que dirigia aos parentes quando não tratavam bem um doente.
Enquanto iam e vinham dessas visitas, o avô fazia os seus comentários: "Estes camponeses, a maior parte das vezes, adoecem porque não sabem o que é a higiene. Quantas doenças se
poderiam evitar se aprendessem a manter-se limpos, a si mesmos e às casas onde vivem." E ainda: "Agora vamos a casa da condessa jvíalinverni. Não está doente, mas acha que está e portanto é como se estivesse. Trato-a com uma água açucarada que o meu amigo Aureliano lhe prepara e ela diz-me: Doutor, era óptimo aquele remédio que me receitou'. E como eu não ouso cobrar-lhe dinheiro, no Outono manda-me para casa os faisões da sua coutada, mortos na época da caça."
O avô, mais do que o pai, tinha-lhe transmitido o amor pela Medicina. Por um instante, Malvina pensou que gostaria de ocupar o lugar do avô e ser médica da aldeia, como fazia Sérgio Orombelli, que dava continuidade ao trabalho do pai. Através das portas envidraçadas, completamente abertas, entrava na sala o canto insistente das cigarras, que servia de pano de fundo às conversas que se cruzavam entre os presentes.
- Avó, porque é que não nos vamos embora? - sussurrou Malvina, perturbada com tantas palavras.
- A morte tem os seus rituais. Os nossos amigos estão a tentar confortar-nos e nós temos de os ouvir - respondeu a avó, em voz baixa, e sorriu-lhe.
Malvina beijou-a na face, que cheirava a lírio-do-vale, e depois esgueirou-se para fora da sala. Refugiou-se debaixo do caramanchão de jasmim e viu Gianni e Sérgio a conversar sentados a uma mesa, diante de dois copos de cerveja, como se fossem velhos amigos.
O marido levantou-se, foi ao encontro dela, abraçou-a e disse-lhe: - Sinto muito, querida.
- Eu sei. Porque não vais dar uma palavrinha à avó? - pediu-lhe.
- Agora não, com aquela gente toda. Vamos ter tempo para estar junto dela. Entretanto avisei a Susan e o teu pai. Também disse aos meus pais, e estava a pensar, com o Sérgio, pôr o anúncio n° Corriere delia Será.
Malvina sentou-se à frente deles e observou: - É melhor consultar a avó, até porque acho que ela não gosta muito dessas coisas e não devemos fazer nada que ela não queira.
- Mas não posso impedir os meus pais de porem o anúncio deles - objectou Gianni.
- Podes pura e simplesmente pedir-lhes para não o fazerem. De resto, quando os amigos se forem embora, falamos sobre isso com a avó - rematou.
- O Sérgio quer escrever um artigo sobre o teu avô para o jornal local - disse Gianni.
- É mesmo necessário? - perguntou Malvina.
- Tem de ser. Era uma pessoa conhecida, por estes lados, e prefiro fazê-lo eu do que deixá-lo ao cuidado de algum jornalista melado. A prosa floreada e redundante não liga com o teu avô explicou o jovem médico, que há anos redigia para a Gazzetta delia Brianza uma rubrica sobre factos de crónica de costumes.
- Deixas-me ler, antes de o publicares?
- Não. Vais lê-lo quando sair no jornal - afirmou Sérgio. Depois olhou-a nos olhos e perguntou: - Como estás, pequena Mavi?
Aquele diminutivo, pronunciado com tanta doçura, enterneceu-a de tal maneira que desatou a chorar.
- Rapaz, fica por perto desta criatura preciosa - recomendou Sérgio a Gianni. E prosseguiu: - Eu vi-a crescer. Depois do funeral da mãe, os meus pais trouxeram-me de visita a esta casa, como é costume nas aldeias. Nessa altura tinha apenas quatro anos mas pedi para ver a infeliz menina sem mãe. O pai da Malvina levou-me ao quarto dela. Estava a dormir numa caminha, com a chupeta na boca, e ele pôs-ma no colo. Depois tirou-nos uma fotografia, que eu ainda conservo. Desde esse dia sempre me considerei o seu chevalier. Mais tarde, quando era já um rapaz e fazia a corte às raparigas da minha idade, às vezes largava tudo para vestir a farda do irmão mais velho e ir tomar conta da pequenina.
Naquele momento Malvina parou de chorar e sorriu.
- Eras hiperprotector, e eu às vezes não te suportava - disse.
- Da mesma maneira que eu não te suportava a ti, porque nunca tiveste um temperamento fácil.
- Deixa ser o meu marido a dizer isso - respondeu ela.
- Confirmo - interveio Gianni. E acrescentou: - Mas é tão adorável que se lhe perdoa tudo.
11
O jazigo de família, no pequeno cemitério de Tavernolo, acolheu o caixão do avô, que foi depositado ao lado do da filha, falecida vinte anos antes.
A avó tinha pedido inutilmente um funeral íntimo. Das aldeias nas colinas e da cidade tinha confluído mita gente, de todas as idades e meios sociais, para cumprimentar uma última vez um homem tão amado e respeitado.
Depois, como era de tradição, no jardim da casa foi servido um almoço para os amigos e parentes mais próximos. Venere tinha pedido ajuda a algumas mulheres da aldeia, que acorreram imediatamente para o que fosse preciso.
A avó, como perfeita dona de casa que era, não deitou uma lágrima, recebeu toda a gente com um sorriso e serviu aos hóspedes galantine de peixe, verduras estaladiças e fritos variados.
Sentada ao lado da avó, Malvina acariciava-lhe a mão de vez em quando, e ela dirigia-lhe um olhar de cumplicidade.
Enquanto o presidente da Câmara propunha um busto de mármore para colocar no átrio do município de Tavernolo, para futura memória de um homem que tanto brilho tinha dado àquela terra, e o padre propunha uma placa para pôr debaixo do pórtico da igreja, a avó recordava os dias passados com o companheiro da sua vida, com quem partilhara a dor pela morte da única filha e o
amor por aquela neta deliciosa que, porém, temiam que não fosse plenamente feliz com o excelente rapaz com quem se tinha casado.
Malvina, por seu lado, recordou que, quando era pequena, o avô lhe disse um dia: - Não deves ter medo da morte, porque é um capítulo da vida. Toda a gente vive aterrorizada, mas só por não saber o quanto ela é misericordiosa. Só os doentes graves a não temem, porque a morte põe um fim ao seu sofrimento. Vi até alguns sorrir, no momento em que estavam para partir deste mundo.
- Porque já estão a ver o paraíso? - perguntara-lhe ela.
- Mas qual paraíso e qual inferno! Os mortos, pura e simplesmente, regressam ao sítio onde estiveram antes de nascer.
- Como é esse sítio, avô?
- É muito bonito, mas infelizmente nós esquecemo-nos dele quando vimos ao mundo. Se nos lembrássemos, ninguém quereria viver nesta terra um único dia.
Malvina pensou agora que o avô tinha regressado para o lugar de onde tinha vindo e desejou que um dia, quando chegasse a sua vez, o seu lugar não fosse demasiado longe do dele.
As pessoas, sentadas em volta da mesa, falavam sem descanso.
- Leram o artigo do meu filho na Gazzetta? - perguntou a signora Orombelli.
- Lemos e gostámos muito - respondeu a dona da casa.
- Falou dele tal como ele era, como todos nós o conhecemos e com o estilo do Sérgio, seco e irónico - sentenciou o padre.
- A propósito, depois do funeral, o vosso filho desapareceu constatou a mulher de Aureliano Rinaldi.
- Tinha um compromisso de saias... - explicou a signora Orombelli.
Malvina esticou as orelhas, ao mesmo tempo que o doutor Orombelli, o pai de Sérgio, resmungava: - Aquele, quantas arranja, quantas deixa. Vai ter o mesmo fim do tio Ermete: solteirão toda a vida.
- Pois eu acho que desta vez vai dar certo, e ele vai pôr a cabeça no sítio - sentenciou a mulher. "i
Malvina perguntou a si mesma por que razão o facto de Sérgio ter uma namorada lhekcausava aquela contrariedade subtil.
>? -
..
12
Em cima da mesa apareceram taças cheias de salada de fruta, enquanto os convivas falavam de Neil Armstrong, o cosmonauta americano que se preparava para desembarcar na Lua, do abatimento de duzentas plantas de loureiro que tinham ficado doentes, e das férias iminentes que iam pôr fim, durante algumas semanas, às greves.
Malvina observava a avó, que parecia exausta.
- Eu já não posso mais e tu também não. Vamos para cima sussurrou-lhe.
Com um gesto, a idosa senhora pediu à empregada para servir o café. Depois disse à neta: - Daqui a pouco vamos descansar.
Avó e neta estavam para se despedir quando a mãe de Gianni declarou: - O senhor doutor deixou-nos, mas a sua estirpe continua. Depois de uma morte, floresce sempre uma vida. Não me espanta nada se ouvir em breve a boa notícia de uma criança que virá alegrar esta grande casa.
Pronunciou estas palavras com um sorriso dirigido à nora. Nesse momento, o pai de Malvina interveio com um tom aborrecido: - E se deixássemos estes dois jovens em paz? A mim parece-me uma boa ideia. Ainda têm de acabar o curso e de se tornar autónomos.
- A meta profissional e de autonomia não tem nada a ver com o nascimento de um filho - observou, também secamente, o pai de Gianni.
Caiu o silêncio entre os presentes.
Malvina dirigiu ao marido um olhar de súplica e Gianni foi imediatamente em seu auxílio.
- Os filhos vêm quando Deus quiser - afirmou, até porque tinha a certeza de que uma mulher forte e saudável como a sua lhe iria dar uma série de crianças.
- Deus quer quase sempre, mas os jovens consideram os filhos um estorvo e recorrem à ajuda de médicos complacentes para evitar a gravidez - disparou, impiedosa, a signora Franzini.
Aureliano Rinaldi, o farmacêutico, era o único que não tinha percebido aquela troca de palavras. Com efeito, comentou: - Por amor de Deus! Com a pílula, consegue-se hoje evitar o drama do aborto. Eu mando-a vir da Suíça para as minhas clientes.
A avó levantou-se da mesa de repente e pediu à neta: - Anda comigo lá acima. - Depois voltou-se para os parentes e amigos:
- Agradeço-lhes muito. Deram-me um grande conforto. Mas agora peço que me desculpem, porque estou um pouco cansada.
Estava muito aborrecida com a indiscrição dos sogros da neta e demonstrou-o com aquela repentina saída de cena.
- Agradeço-te muito este salvamento in extremis - sussurrou-Ihe Malvina quando entraram em casa.
- Aqueles Franzini são uns abelhudos e eu já não podia mais aturá-los. Espero bem não os voltar a ver - replicou ela, enquanto subia as escadas. A defesa da neta tinha afastado por alguns instantes a dor causada pela perda do marido.
Malvina ajudou-a a tirar o tailleur de seda azul de pintas brancas e as sandálias de salto baixo e estendeu-lhe o roupão branco de pique. A senhora deitou-se na cama com um grande suspiro de alívio. Depois deu duas palmadinhas na coberta para convidar Malvina a estender-se ao lado dela. Malvina encostou o corpo às costas da avó, que se tinha virado de lado, e disse-lhe: - Gosto muito de ti.
- Eu sei, mas não me chega. Não imaginas a falta que me faz o
teu avô-
- Diz mas é que te fazem falta as quezílias que tinhas com ele
respondeu a rapariga, para tentar desdramatizar.
- Bem, aqui para nós, não é que o meu marido fosse uma pessoa fácil. E, de resto, as quezílias são o sal de um casamento. Parece-me que tu e o Gianni também não brincam - observou.
- Pois, às vezes é insuportável, mas eu gosto muito dele. Não é uma pessoa banal e dá-me bem que fazer. Espero que com o tempo se liberte daquela "franzinice" que me exaspera.
- Cá para mim, aqueles Franzini são obsessivos. Viste hoje, quando nos sentámos à mesa? O teu sogro esteve quase a rezar a oração. Parou a tempo, mas tenho a certeza de que nos considera uns pagãos.
- É isso mesmo que eu quero dizer. O Gianni está a precisar de se actualizar um bocado.
A avó não estava assim muito convencida de que isso fosse uma empresa fácil, mas guardou para si essas considerações. Apenas disse: - É bonito o artigo do Sérgio Orombelli. Se o avô o tivesse lido, tinha-se divertido.
- Sinto-me um bocadinho culpada em relação ao Sérgio, que sempre esteve muito próximo de mim quando eu era pequena. Nunca mais o procurei, a partir de certa altura, e agora tenho pena, porque é uma pessoa admirável.
- Dorme - ordenou a avó.
Malvina fechou os olhos e, vencida pelo cansaço e pelas emoÇões, caiu logo a seguir num sono pesado.
Sonhou que estava no jardim, por baixo do carvalho, a fazer Um piquenique rodeada pelos avós e pelos pais. Estavam todos sentados numa manta de veludo negro. A mãe distribuía sanduíches em pratos de papel. O avô punha a funcionar um gramofone de anivela e de um velho disco saía a voz de um cantor que, sobre as notas de uma valsa rápida, entoava: "Ne faro un Girardengo, Girarengo non mi vá ben, ora vá ora vien, Girardengo non mi vá ben."
Nesse momento surgia na alameda um velho velocípede, com uma grande roda à frente e Sérgio Orombelli no selim. Então a mãe exclamava: "Aqui está o nosso Girardengo!" Sérgio era um rapazinho e trazia umas -calças curtas e uma camisa de riscas aberta no peito. Descia do velocípede e a avó convidava-o: "Anda, querido. Eu dou-te pão com Nutella." "Vim pedir, para recordação, o cinto da Malvina", dizia ele, dirigindo-se ao doutor Leoni. E Malvina sorria-lhe, ao mesmo tempo que tirava o cinto das presilhas da saia.
Abriu os olhos e viu uma figura maciça debruçada sobre ela. Teve alguma dificuldade em reconhecer o marido, porque o quarto estava mergulhado na escuridão.
Estendeu uma mão para apalpar a cama. A avó não estava lá.
- Levanta-te! - ordenou Gianni.
- Mas quanto tempo é que eu dormi? - perguntou, confusa, regressando a custo à realidade.
- Levanta-te e sai deste quarto - disse ele com uma voz ameaçadora. Ela levantou-se da cama. Trazia ainda a roupa do funeral.
- Queres dizer-me o que se passa? - perguntou, cada vez mais
confusa.
O marido agarrou-a com força por um braço, arrastou-a para o corredor e sibilou: - No quarto dos teus avós não te podia dizer isto. Mas digo-to agora: és uma puta!
13
Malvina não percebia o que estava a acontecer. O rosto bonito de Gianni, deformado por uma cólera cuja razão não conhecia, estava irreconhecível.
- Mas tu estás louco! - berrou. Em casa reinava um silêncio irreal.
Uma mecha iridescente, aprisionada no vidro de um velho candeeiro de petróleo, zumbia freneticamente.
- Quem é que não ficava louco diante disto? - gritou o marido, agressivo, ao mesmo tempo que lhe abanava à frente da cara o pequeno disco de cartão que continha as pílulas contraceptivas.
Então Malvina cobriu o rosto com as mãos e sussurrou: - Oh, meu Deus!
Logo a seguir desviou-se para se libertar do homem que a segurava e desceu as escadas. Saiu para o jardim, atravessou-o a correr, passou o portão de ferro forjado e entrou no bosque de castanheiros. Parou então para recuperar fôlego. Na estrada asfaltada ao lado do bosque, passou um carro com o rádio ligado no máximo e Malvina ouviu a bela voz de Sérgio Endrigo a cantar "Io che amo solo te".
Quantas vezes a tinham cantado, ela e Gianni, nas suas viagens diárias entre a casa e a faculdade. Cantavam também "Ciao dão bambina", e Gianni era fantástico a imitar a voz de Modugno.
Pensou que o marido era extraordinário em tudo. Tocava piano, e quando executava uma peça, a tropeçar aqui e ali, ela pensava: é só uma questão de exercício, porque de resto teria pouco para invejar ao Rubinstein. Amava o marido e sentia orgulho nele. Mas Gianni tinha-a insultado e humilhado com uma ordinarice sem igual. Não lhe tinha dito: és uma estúpida, uma palerma, uma irresponsável. Ofendera-a deliberadamente. De repente, sentiu que dentro dela alguma coisa se tinha quebrado.
Viu Gianni, que ia ter com ela.
Malvina encostou-se bem ao tronco de um castanheiro e fechou os olhos.
- Não vim aqui para te pedir desculpa - começou ele, parando à sua frente. Ela abriu os olhos e, esticando um braço, apontou-lhe um dedo acusador.
- Está calado - ordenou-lhe, e acrescentou a seguir: - Agora quem fala sou eu. - Aquele tom de voz não admitia réplicas. - Tu deste-me a volta desde o dia em que, pela primeira vez, me convidaste para sair contigo. A partir desse dia perdi todo o poder de decisão e foste tu que trataste de tudo: fizeste-me a corte, seduziste-me, pediste-me em casamento depois de teres ido ter comigo ao outro lado do mundo, casaste comigo. Tornaste-te irresistível, enchendo-me de atenções. Eu disse sempre que sim porque te amava. Nunca desejei ao meu lado outro homem que não fosses tu. Aceitei-te a ti e à tua família, apesar de nunca ter partilhado do integralismo dos Franzini. Basta pensar na maneira como escravizaram o Alessandro, que está a morrer de infelicidade, ou a tua irmã Maria Giulia, que leva estoicamente em frente a sua quarta gravidez, apesar de os médicos a terem desaconselhado de ter mais filhos. Basta pensar em ti que, por teres encontrado os meus contraceptivos, perdeste a luz da razão, quase como se me tivesses apanhado com um amante. - Retomou fôlego e prosseguiu: - Sim> tomo a pílula! E sabes porquê? Porque fico aterrada com a ideia de ficar grávida. A minha mãe morreu ao dar-me à luz. A tua irmã arrisca-se a morrer por causa desta nova gravidez. Percebes o que
isto significa? Não, como é evidente. Vai para o diabo! Tu não me amas, nunca me amaste. Tu apenas amas os filhos que eu deveria dar-te. Consideras-me como uma égua de reprodução, que se põe a engordar para poder produzir a prole. Enganaste-te na mulher! Eu amei-te por aquilo que és, e não porque via em ti o pai dos meus filhos. E a propósito de filhos, não sei se os vou querer, mas sei que não os terei de alguém que me considera uma puta. E agora, por favor, sai depressa da minha vida.
Gianni foi-se embora, furioso, deixando-a só. Malvina atirara-lhe à cara toda a sua raiva e desilusão. Pouco a pouco, ela foi acalmando e recuperando o controlo. Continuou ali, com as costas apoiadas à grande árvore e recordou o primeiro ano de casamento, tão feliz.
Recordou as noites fantásticas daquele longo Inverno na grande cama de cortinas de damasco, muito abraçados e envolvidos por aquele calor, a elaborar sonhos e projectos para a vida que iam passar juntos, os diferentes pontos de vista sobre a sua casa do futuro, que Gianni queria na piazza Sant'Ambrogio, em frente à universidade onde daria aulas, e Malvina na via Sforza, ao lado do hospital onde iria trabalhar.
- Queres comparar isso com a maravilha de morar em Sant'Ambrogio, que é o coração mais antigo da cidade? A via Sforza tem sempre muito movimento e, de noite, as sirenes das ambulâncias não deixam ninguém dormir - afirmava ele.
- Mas a mulher sou eu, e reclamo o privilégio de ter por perto a casa e a loja, porque assim posso ficar na cama mais uns minutos de manhã - decretava ela.
- Estás a dizer que me deixavas sair sozinho, sem me preparares o pequeno-almoço nem me dares um beijo de bom-dia?
- Seria assim tão grave?
- Significaria que gostas mais do sono do que do teu marido.
- É uma maldade colocar as coisas nesse plano. Considera antes que, se fosses mais generoso comigo, eu podia gostar mais de ti.
- Estás a fazer chantagem comigo e eu vou-te matar de cócegas nos pés. - Nessa altura Gianni começava a fazer-lhe cócegas nas plantas dos pés.
- O chantagista és tu - exclamava ela, a rir e a gritar. Depois veio a Primavera. No jardim apareceram as primeiras
lagartixas, os pássaros banqueteavam-se com as sementes que caíam ao chão e chafurdavam nas poças de água para lavar as penas, enquanto no céu as garças cinzentas entreteciam danças de amor.
Os amigos vinham muitas vezes de Milão ter com eles.
- Vamos fazer de conta que já temos a nossa casa e que estamos sozinhos, eu e tu, a preparar o jantar.
Mandavam Venere embora da cozinha e, com o livro de receitas ao alcance da mão, empenhavam-se a bater a maionese, a limpar os peixes do lago, a mexer os molhos. A maior parte das vezes o resultado era um desastre do qual se riam, prometendo um ao outro melhorar com a experiência.
Às vezes Gianni dizia: - Quando tivermos a nossa casa não nos vamos poder dar ao luxo de ter uma empregada, pelo menos a princípio. Por isso temos mesmo de aprender a cozinhar, até pelos nossos filhos.
Malvina afastava aquelas últimas palavras com um gesto, como se quisesse espantar uma mosca incomodativa, e abençoava a afectuosa hospitalidade dos avós, que sabiam ser participantes sem nunca serem indiscretos.
Em Maio ganharam o hábito de estudar no cadeirão de baloiço, no jardim, ela com um livro de Medicina na mão, ele com um de filosofia. Munidos de lápis, sublinhavam e tiravam apontamentos.
- Sabes quanto mede o nosso intestino? - perguntava ela.
- Sabes o que diz Santo Agostinho a propósito de Deus? - perguntava ele.
- O que é que diz?
- Que se conhece melhor quando se é ignorante.
- Isso quer dizer que os teólogos, que são muito eruditos, não o conhecem de todo.
- Acaba lá com o teu sarcasmo. Eu estou a falar-te dos difíceis processos da mente e tu contestas só para me contradizer.
- Eu estou com a cabeça a deitar fumo, ao fim de três horas seguidas de estudo, e detesto-te pela tua capacidade de te abstraíres completamente da realidade. Às vezes é como se estivesses noutro planeta. Sinto-me muito como a Sibilla Aleramo quando escrevia a Dino Campana: "Onde estás, que me sinto tão arrancada de mim mesma? Chamas-me ou esqueceste-te de mim?"
Atirava-lhe esta ou outra citação e abandonava o livro para dar uma volta pelo jardim. Nessa altura Gianni ia atrás dela, abraçava-a e sussurrava-lhe: - Vamos rebolar um bocadinho na cama?
Foi isto que Malvina recordou, como se fosse um sonho perdido para sempre.
14
Alessandro Franzini chegou a Tavernolo com um cesto cheio de fruta, tão bonita que parecia artificial.
- Foste saquear um pomar no paraíso? - perguntou Malvina.
- Isso mesmo. Pedi um empréstimo a um grande produtor de fruta, que me garantiu que qualquer pêssego, ameixa, damasco ou cereja têm o poder milagroso de esconjurar as penas de amor explicou o cunhado, em ar de brincadeira.
Carlin tomou conta do cesto e levou-o para a cozinha, enquanto Malvina conduzia o visitante para a sala de estar. Venere chegou com um jarro de chá gelado e copos.
Era Julho, e o calor também se fazia sentir nas colinas. Durante o dia, Malvina e a avó evitavam o jardim, preferindo refugiar-se na penumbra fresca das salas.
- É redutor falar de penas de amor - confessou Malvina, ao mesmo tempo que estendia a Alessandro um copo de chá.
- Eu sei - anuiu o jovem advogado, dirigindo-lhe um sorriso. E acrescentou: - Como estás?
Ela encolheu os ombros e perguntou? - Como está ele?
- Foi para um sítio qualquer, em retiro espiritual.
Malvina escondeu o rosto nas mãos e sussurrou: - Inacreditável! O nosso casamento ficou em cacos e ele vai fazer exercícios espirituais? É louco!
- Tal como todos os Franzini. Nesta fase, já devias saber isso _ replicou o cunhado. Procurou os cigarros no bolso do casaco que tinha pousado no braço da cadeira. Malvina passou-lhe um isqueiro.
Alessandro acendeu o cigarro e prosseguiu: - Pelo que me estás a dizer, acontece que a santidade anda a par com a loucura.
- Eu ainda o amo - afirmou ela, enquanto perguntava a si mesma se o cunhado teria ido até ali para a confortar ou por encargo da família, que queria perceber quais seriam as suas intenções. Como se tivesse intuído esta interrogação, o jovem advogado Franzini disse: - Lembras-te da história do copo de água e da desilusão da minha mãe ao constatar a minha incapacidade para resistir a um desejo?
Malvina anuiu. Lembrava-se muito bem daquele episódio, revelador de um modelo de vida intransigente, no limite do fanatismo.
- Aquela história tem uma continuação aterradora, mas eu vou desafiar o teu horror e vou contar-ta. Depois de ter bebido avidamente e de ter lido a piedade no olhar da minha mãe, pedi-lhe mais água e ela voltou a encher o copo. Sentei-me então à mesa, com o copo à minha frente, e comecei a olhar para ele fixamente, sem mexer um músculo. Anoiteceu e eu continuava ali, diante do copo cheio de água. Chamaram-me para jantar e eu não me mexi. Era noite quando a minha mãe pegou em mim ao colo e me meteu na cama. Quis o copo em cima da mesa-de-cabeceira. Estava atormentado pela fome e tinha sede, mas não bebi. Dormi pouquíssimo. De manhã tinha-se evaporado alguma água, mas eu não tinha bebido. Toda a família desfilou à minha cabeceira e o meu pai afirmou: "O Alessandro está a medir a sua capacidade de controlar os impulsos." A minha mãe fez-me uma festa e constatou que eu estava a arder. Disse-me então com ternura: "Foste muito forte, meu pequenino. Agora podes beber." Não me mexi. "Tens de beber", ordenou-me então. Obrigaram-me a engolir a força água com açúcar, colher a colher. Depois a minha mãe
abraçou-me e declarou: "Estou muito orgulhosa de ti." E dessa vez, no seu olhar cheio de amor, havia uma admiração desmedida Nós, os Franzini, estamos dispostos a morrer para não desiludir quem nos ama. Agora parece que tu desiludiste o meu irmãozinho e, se ainda o amas, como dizes, já sabes o que tens a fazer para o recuperar - concluiu.
Sim, Alessandra tinha vindo em missão por encargo da família. - Porquê eu? E se fosse ele a ter de fazer alguma coisa para me recuperar a mim? - reagiu Malvina.
- O amor, minha menina, é um sentimento feroz, que não conhece meias medidas. O amor leva o pelicano a abrir o peito para que o filho se possa alimentar das suas vísceras e infunde tanta coragem ao príncipe apaixonado que o leva a vencer o terrível dragão que se intromete entre ele e a sua princesa - disse Alessandro.
- Vocês são uma família completamente louca - retorquiu a jovem.
Venere entrou na sala com duas taças cheias de salada de fruta e perguntou a Alessandro: - Fica para jantar, senhor doutor?
Malvina esperou que o cunhado declinasse o convite, porque nunca, desde o dia em que o marido se tinha ido embora, ela apreciara tanto o prazer de estar sozinha. A avó, que tinha antenas compridas, invocara o pretexto daquele calor excepcional para antecipar as suas férias na montanha e partira alguns dias antes, com uma velha prima, dizendo-lhe: - Se precisares de mim, já sabes onde estou. Aproveita esta solidão para te reencontrares. De resto, também a avó, depois do desaparecimento repentino do marido, tinha necessidade de se manter um pouco distante de Tavernolo.
- Tenho de regressar a Milão rapidamente - respondeu Alessandro, por sorte. Depois, quando se despediu, revelou-lhe: - Sei com toda a certeza que o meu irmão te quer ver. Quer falar contigo. Ouve-o e depois decide o que queres fazer. - E abraçou-a. Ela escondeu o rosto contra o seu peito e desatou num pranto torrencial.
Alessandro afagou-lhe a cabeça com ternura.
- Coragem, minha menina - sussurrou-lhe. - Há coisas piores nesta vida. Tu tens apenas vinte anos e o tempo todo para superar qualquer contrariedade.
Não eram estas as palavras que queria ouvir do cunhado. - Quando conheci o teu irmão, pensei: aqui está o homem da minha vida. Ele sabia fazer-me feliz, percebes? Depois, de repente, tudo virou tragédia. Eu ainda tenho vontade de ser feliz, mas não sei se poderei vir a sê-lo com o Gianni. Amo-o, mas não quero voltar a vê-lo - soluçou.
Alessandro emprestou-lhe o lenço para ela limpar as lágrimas.
- Adeus, Malvina - sussurrou. E acrescentou: - Eu, finalmente, decidi de que lado ficar. Imagina que até deixei de beber. Vou para a África do Sul, para a Cidade do Cabo. Tenho lá alguns amigos à minha espera. Foste tu quem me sugeriu que fosse para longe, lembras-te? A propósito, a minha companheira e os filhos dela vão comigo. Vim visitar-te também para te dizer isto.
- Vou ter saudades tuas - disse Malvina, enquanto o acompanhava até ao carro.
- Eu também.
Viu o automóvel afastar-se pela alameda, transpor o portão e desaparecer. Quando regressou a casa, o telefone estava a tocar.
Era o pai a ligar-lhe de Estocolmo. Tinha partido com Susan e com um grupo de amigos: uma caravana de quatro automóveis que se deslocava seguindo o percurso inverso dos turistas que desciam do Norte em direcção a Itália e a Espanha. Queriam viajar pelos fiordes e deitar para trás das costas o cansaço do trabalho. O doutor Leoni e a mulher tinham insistido para levar Malvina com eles, mas ela não se deixou convencer.
- Podemos desistir da viagem e passar as férias contigo em Tavernolo - propôs-lhe Susan, que estava preocupada com Malvina, tanto ou mais do que o marido.
A enteada explicou-lhe que ia levar os problemas com ela e que não iam ser umas boas férias.
O pai telefonava-lhe todas as noites para trocar algumas palavras e para lhe dar as coordenadas das suas deslocações.
- Para o caso de decidires vir ter connosco - dizia-lhe. Assim, também naquela noite Malvina tomou nota do hotel
em que tinham ficado e não disse nada sobre a visita do cunhado.
Depois foi ao jardim ter com Carlin. O caseiro estava a pulverizar com um antiparasitário as roseiras que tinham sido atacadas pelos piolhos por causa do calor.
Carlin e a mulher eram um casal simples e espontâneo que, discretamente, a estavam a ajudar a sentir-se menos infeliz.
Malvina perguntou a Carlin: - Posso fazer alguma coisa?
- A Venere quer tomates e manjericão. Pode apanhá-los, enquanto eu acabo de borrifar isto.
Malvina ia levar à cozinha aquilo que tinha acabado de apanhar quando viu Sérgio Orombelli avançar ao encontro dela.
- Aqui em Brianza corre o boato de que uma jovem e bela castelã anda para aí sozinha a regar o jardim com as suas lágrimas começou o jovem médico, em ar de brincadeira.
- Não há maneira de as pessoas se meterem na sua vida comentou Malvina, abraçando-o. Ficou contente por poder estar algum tempo com ele.
- Ainda bem, porque de outra forma eu não ia saber que precisavas de mim - rebateu ele.
Entraram em casa e dirigiram-se à cozinha, onde Malvina entregou as verduras à empregada.
- Vou levar-te a jantar fora - propôs Sérgio, com um ar decidido.
- Nem pensar! - protestou Venere. - Andei aqui toda a tarde à volta do fogão para arranjar alguma coisa de apetitoso para dar a esta menina, que não quer comer - explicou. E acrescentou: - Por que não fica para jantar, senhor doutor?
Malvina abriu os braços, a fingir resignação. Já estava escuro e o ar tinha refrescado. Sérgio e Malvina jantaram por baixo do jasmim.
- O meu marido conseguiu fazer-me sentir meia mulher, porque uma mulher que não quer filhos é incompleta. Eu nem consigo dormir de noite. Duvido da minha feminilidade, sinto-me um monstro de perversão, debato-me no desconforto e gostava de ter alguma luz sobre o emaranhado dos meus sentimentos... mas não sei por onde começar. Às vezes acho que o Gianni tem razão... confessou ela, e começou a soluçar.
- Mavi, tu precisas de ajuda - disse Sérgio, olhando-a com ternura. E prosseguiu: - Vi-te crescer, e tanto nos teus silêncios como na tua alegria, sempre reparei numa nota de perturbação. Nunca tiveste uma família normal e acho que isso tem o seu peso. Apetece-te falar com alguém que percebe destas coisas?
- Alguém, quem?
- Um psicanalista.
- Estás a dizer-me que eu devia fazer psicanálise?
- Estou apenas a propor-te uma conversa com um especialista. Conheço um médico muito sério e bem preparado, o professor Bianchi. Se quiseres, marco-te uma consulta.
Malvina seguiu o conselho do seu velho amigo.
Foi ter com o professor Bianchi, falou-lhe dos seus problemas e juntos decidiram que ela lhe diria depois se tencionava submeter-se à psicanálise.
15
Na manhã a seguir à conversa com o professor Bianchi, Malvina acordou mais serena, de tal maneira que decidiu voltar a mergulhar no mundo, ao fim de muitos dias de isolamento.
Enfiou uns calções, calçou as sapatilhas de ginástica e, aproveitando aquelas poucas horas de frescura que a noite oferece ao dia, enfiou pelo atalho do bosque para ir à aldeia comprar os jornais.
Venere e Carlin olharam para ela com uma sensação de alívio enquanto a viam afastar-se com os cães que a escoltavam.
- Pobre menina! Eu cá nunca gostei daquele marido dela afirmou Venere.
- O jovem Orombelli sempre tinha sido um marido melhor observou Carlin.
- Isso mesmo. Ele é cá dos nossos, não é como aqueles Franzini, que têm a mania - disse a mulher.
- É pena eles serem só amigos - lamentou ele.
- Vamos dar tempo ao tempo. Pronto, chega de conversa. É preciso regar o relvado antes que fique calor - replicou bruscamente a mulher.
Malvina atravessou o bosque. O ar estava ainda saturado dos cheiros da noite e ela caminhava rapidamente pela vereda, enquanto os cães corriam atrás e à frente, cheiravam o terreno, marcavam a sua passagem e inventavam cabriolas à volta das pernas dela.
Quando chegou à aldeia, comprou os jornais na tabacaria que vendia um pouco de tudo, desde produtos alimentares a brinquedos. Tomou um cappuccino e comeu um brioche, que dividiu com os cães. Respondeu aos cumprimentos das pessoas que a conheciam desde criança, entrou na praça e sentou-se num banco, à sombra das tílias, a folhear os jornais. A madeira lascada arranhou-lhe uma perna. Voltou a fechar o jornal, levantou-se e constatou o estado deplorável do banco.
Atravessou então a praça, enfiou-se no átrio da Câmara e pediu para falar com o presidente. O primeiro cidadão, disseram-lhe, tinha ido pescar no lago. Mas estava o secretário, que a recebeu com o obséquio devido à neta do doutor Leoni.
- Os bancos da praça estão uma vergonha - começou Malvina. E mostrou o arranhão na perna. - Duvido que o município não tenha fundos para os substituir. De qualquer maneira, diga por favor ao senhor presidente que estou na disposição de comprar um novo, desde que tenha o nome do meu avô.
Aquele era o banco em que o médico se sentava com ela, quando Malvina era pequena, e com ela comentava as coisas que saíam nos jornais.
- Com certeza. Quero dizer, transmitirei ao senhor presidente a sua proposta, assim que chegar ao gabinete - respondeu o secretário.
Malvina saiu da aldeia, retomou a estrada do bosque e regressou a casa. Agradava-lhe a ideia de oferecer ao município um banco que fizesse lembrar a toda a gente o seu avô tão amado.
Ia a entrar em casa quando viu o carro do marido aparecer na curva. Parou, com o coração aos saltos de emoção. Também ele a viu e travou o carro a poucos metros dela. Abriu a porta, saiu do carro e ficou imóvel a olhar para ela com intensidade. Os cães foram ao encontro dele a latir. Malvina pensou que o marido era o rapaz mais bonito e desejável que alguma vez conhecera e a comoção foi tão forte que por um instante esqueceu tudo. Se ele tivesse dado um passo em direcção a ela, Malvina ter-lhe-ia caído nos braços. Mas ele não se mexeu.
- Olá - disse simplesmente.
- Olá - respondeu ela, como um eco.
- Desprezo-me por te ter ofendido - confessou ele. Malvina anuiu, incapaz de responder.
- Posso entrar? - perguntou Gianni, indicando o portão, não.
- Entra - respondeu Malvina. : Gianni voltou a entrar no carro, pô-lo a trabalhar e percorreu
a alameda de acesso à casa.
Malvina e os cães foram ter com ele. Eram dez horas da manhã e o sol começava a aquecer o ar. Carlin, que estava a varrer o saibro diante do alpendre, viu os dois jovens que caminhavam lado a lado em direcção ao jardim. Correu para casa e informou a mulher, que comentou: - Se veio aquecer a sopa, vai ter um prato muito indigesto.
Gianni e Malvina foram sentar-se no cadeirão de baloiço.
- Peço-te perdão - sussurrou o marido, e continuou: - Não fazia ideia de que, apesar de me amares, não querias ter filhos. Agora sei-o, e uma vez que também te amo, respeito a tua vontade
- afirmou o marido.
Naquele momento, Malvina mediu a generosidade de Gianni e o seu próprio egoísmo e lamentou o facto de nunca ter abordado francamente o problema com ele.
- Tu não sabes dos meus medos e dos meus sentimentos de culpa em relação a ti, quando tomava a pílula - confessou.
- Acabou tudo, querida - disse ele, e afagou-lhe o rosto.
- Queres dizer que devemos voltar a tentar viver juntos? perguntou ela, com uma voz hesitante.
- Devemos sim. O matrimónio é um sacramento e, como tal, deve ser respeitado - respondeu Gianni e, sem deixar de lhe afagar o rosto, prosseguiu: - Continuaremos a viver juntos e a amar-nos em castidade. - Estava comovido, e nos seus olhos brilhou uma lágrima.
Malvina pensou que não tinha percebido bem as palavras do marido.
- Em castidade? - repetiu, incrédula. Gianni sorriu.
- Não somos os únicos, meu amor. Muitos jovens como nós, tendo decidido não ter filhos, vivem em castidade o seu casamento declarou.
Malvina demorou alguns segundos a assimilar aquela declaração. Depois olhou para o marido com o espanto com que teria olhado para um marciano. Pareceu-lhe quase não reconhecer, nos traços lindíssimos de Gianni, o homem que tinha amado e com quem tinha casado. Calou-se, estarrecida.
- Deus apreciará a nossa força de vontade para vivermos segundo as suas leis - garantiu ele e, dominado pela emoção, abraçou-a de repente.
Se tivesse seguido o seu instinto, Malvina tinha-lhe pregado um par de estalos. Considerava o propósito de Gianni uma obscenidade ditada pela loucura e sabia que não tinha armas para a combater. Reuniu toda a sua capacidade de autocontrolo. Afastou-o docemente de si e disse: - Estou a perceber. O facto é que Nosso Senhor ainda não me iluminou nesse sentido. Rezarei intensamente para que o faça.
- Eu sabia que ias entender. Minha querida, deves demorar o tempo que for preciso, porque vai ser duríssimo resistir ao desejo que nos domina, mas não há outra maneira de não infringir o sacramento do matrimónio - garantiu ele, com uma voz inspirada. E como ela continuava calada, prosseguiu: - O Senhor recompensar-nos-á por esta decisão tão corajosa.
- Com certeza que o fará - concordou Malvina. Depois levou-o até ao carro, ao mesmo tempo que lhe dizia: - Preciso de ficar sozinha e reflectir.
- Esperarei com impaciência - respondeu ele, dando-lhe um beijo na testa.
Assim que Gianni pôs o carro em movimento, Malvina precipitou-se em direcção a casa e procurou o número de telefone do
hotel onde se encontravam o pai e Susan, esperando encontrá-los antes de continuarem a viagem até uma nova meta.
Quando ouviu a voz do pai, disse: - Lembrei-me que o marido de uma doente tua é advogado e especialista em direito canónico Preciso de entrar em contacto com ele para lhe entregar a anulação do meu casamento.
O doutor Leoni disse-lhe o nome e depois perguntou: - Não seria mais simples pedir a separação legal?
- Pai, estás a esquecer-te de que em Itália não temos divórcio. Eu quero arrumar com o meu marido e com os Franzini.
Venere tinha vindo escutar, e quando Malvina acabou a conversa dirigiu ao Senhor duas palavras de agradecimento.
Mais tarde foi ter com Carlin à horta e anunciou-lhe: - A menina mandou para o diabo aquele marido insuportável. Espero bem que se junte com o doutor Sérgio, porque esse é que é o homem certo para ela.
,.?!--
16
A contestação estudantil ocupava agora um grande espaço em todos os meios de comunicação e também as mulheres reclamavam em voz alta os direitos que lhes tinham sido negados durante muito tempo.
Depois daquela desastrosa experiência conjugal, Malvina estava a tentar juntar os cacos da sua vida e frequentava um grupo feminista.
Estudava, fazia os exames e decidira fazer análise com o professor Bianchi.
Foi naquele período que Walter Mandelli se perfilou no seu horizonte. Walter tinha sido contratado como estagiário de um jornal diário. Desempenhava com paixão o seu trabalho de repórter, e o director estava convencido de que se tornaria um excelente profissional. Um dia, o director disse-lhe: - Tens de ir entrevistar um grupinho de feministas da Universidade Estatal que se reúnem num celeiro logo à saída de Lambrate, perto do Parque Lambro. Uma delas escreveu um artigo muito mordaz que o // Giorno publicou numa página inteira. Vê se consegues perceber alguma coisa.
- Um celeiro perto de Lambrate é um endereço um pouco vago - comentou Walter.
- Não sei ser mais preciso. A informação veio da minha filha, que faz parte de outro grupo.
- Senhor director, será que não posso meter o nariz no gruno da sua filha, sem ter de procurar em mais lado nenhum? A propósito, o que é um grupo feminista? - perguntou o jovem estagiário
- Mandelli, queres ser despedido? - replicou bruscamente o director, que não brilhava pelo sentido de humor.
Um colega fotógrafo, que namorava com uma aluna da Estatal, forneceu-lhe as coordenadas para chegar ao celeiro de Lambrate e ao grupo liderado por Malvina Leoni, autora do famoso artigo.
- A minha namorada disse-me que uma amiga dela, uma tal Chiara Tizzoni, faz parte desse grupo. É uma espécie de baleia maldisposta. Diz-lhe que és amigo da Daniela e ela apresenta-te à Leoni - aconselhou o colega.
- E quem é a Daniela?
- É a minha namorada, caramba!
- Apresenta-ma - propôs Walter, com um sorriso.
- Só se fosse parvo! Bonito como és, era bem capaz de ficar com ideias em relação a ti.
Walter bateu à porta, que de resto estava aberta, do celeiro que surgia no limite de um complexo rural. Umas dez raparigas, algumas delas enroscadas no chão, outras num sofá desconchavado, pararam de falar e olharam para ele com frieza. Vestiam saias ou calças coloridas que, quase de certeza, nunca tinham sido lavadas depois de terem sido compradas. Uma única, de entre elas, brilhava pela beleza e pelo vestuário só aparentemente descuidado. No grupo identificou imediatamente Chiara pelo seu calibre. Era a única que lhe sorria.
- Tu és a Chiara - começou Walter, dirigindo-se a ela. E acrescentou: - Um colega do jornal onde trabalho disse-me para te dizer que sou amigo da Daniela, que é a namorada dele. Tenho de fazer as crónicas e hoje de manhã encarregaram-me de escrever sobre vocês e sobre o vosso grupo.
- Então escreve! Porque é que nos vens dizer isso? - perguntou Chiara, em ar de brincadeira.
" precisava de vos fazer umas perguntas - justificou-se ele.
- Eu sou a Malvina. O que queres saber exactamente? - perguntou a rapariga bonita e requintada.
- Gostava de perceber alguma coisa sobre o vosso movimento. - Vá, deixem-no falar - disse uma rapariga que estava a tirar
uma cafeteira cheia de café de uma placa eléctrica.
- Queres? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que enchia alguns copos de plástico.
Walter agradeceu, mas declinou a oferta.
- Se calhar devias dirigir-te ao grupo da via Dogana - observou Malvina.
- A Livraria das Mulheres? - perguntou o jornalista.
- Boa! É ali que ocorrem os encontros mais estimulantes. Nós aqui perdemos tempo com frivolidades - respondeu a rapariga, que o olhava com interesse. Walter, de facto, era um homem muito bonito e tinha um sorriso luminoso.
- A questão é que me encarregaram de contar alguma coisa sobre vocês - insistiu Walter, olhando em volta. Estava nervoso e não lhe apetecia nada enfrentar aquele grupo de raparigas que o faziam sentir-se pouco à vontade.
- É a primeira vez que o teu jornal se interessa por nós observou Malvina. Esticou um pé para puxar um banco, sugeriu ao rapaz que se sentasse e disse: - Escreves para um jornal que está ao serviço do poder e tens ar de quem volta a dobrar a esquina se tropeçar de repente numa manifestação.
- Não leio revistas revolucionárias, não me interessam as vossas reivindicações, detesto as ocupações das universidades e as pessoas que se lavam pouco. Dito isto, escolham vocês: tanto posso contar aquilo que me vão dizer, como escrever o que me parecer - reagiu Walter, decidido.
Malvina apreciou aquela franqueza. - De acordo. Começa com as perguntas.
- Gostava de saber quem são, sem falar nas relações homem-mulher, no aborto, no
divórcio, na homossexualidade, na droga
" e na exploração dos operários. Porque é que estão tão zangadas? Há quem afirme que os vossos grupos são agregações momentâneas e que contestam os professores na esperança de consegui,, uma licenciatura sem estudar. Como respondem a estas acusações? - disparou o jornalista.
- Boa! Usaste a palavra certa: acusações - respondeu Malvina.
- É a segunda vez que me dizes "Boa!", e este consenso põe-me desconfiado - replicou ele.
- Problema teu. Portanto, quando entraste, só para te dizer alguma coisa, estávamos a falar de um iluminista francês que no século xix tinha um projecto de lei para proibir as mulheres de aprender a ler, porque só a mulher que não sabe ler nem escrever pode ser boa filha, esposa e mãe. Um maná para os homens, não é verdade? Uma mulher tem de saber contar os ovos no galinheiro e não as estrelas no firmamento. Era esta a mentalidade corrente e continua a ser. Ainda hoje. Não nos devíamos zangar? A história do abuso sobre as mulheres vem de longe. Já Eurípides defendia que a mulher é o pior dos males. Não te parece que os homens nos denigrem porque têm medo de nós, daquilo que poderemos exprimir em matéria de inteligência, de imaginação e de criatividade? Os homens temem que, nas nossas mãos, a Terra se torne melhor. Servem-se desde sempre da força física e do poder para nos dominarem. Até há poucos anos, no nosso país, o código civil estabelecia a subalternidade da mulher em relação ao homem, e o código penal tinha dois pesos e duas medidas mesmo em relação à infidelidade conjugal, razão pela qual se uma mulher enganava o marido cometia um delito, mas o homem tinha o direito de enganar a mulher. Tudo isto acontecia em nome da defesa da família. É sobre estas coisas que nós discutimos, e não para nos carpirmos, mas para hostilizar um poder que nos oprime. Já a palavra poder, em si, exprime qualquer coisa de terrível. Não queremos o poder das mulheres, o poder operário, o poder das massas. Queremos a harmonia, que é uma coisa muito diferente, percebes? Com a droga e com a exploração dos operários não temos nada a ver -
vplicou Malvina de uma só vez, enquanto Walter tomava notas num caderninho.
De fora chegavam até eles as vozes de uma discussão entre um homem e uma mulher e os gritos de uma criança.
- De todas nós, eu sou a única casada e separada. Seria redutor definir o meu casamento como um erro de juventude, porque foi uma coisa diferente e devastadora. Mas não é daí que nasce a minha necessidade de redefinir o papel da mulher - acrescentou Malvina.
Quando o encontro com as jovens terminou, Walter Mandelli regressou a Milão, onde escreveu e assinou a sua mais bela peça. Recebeu os parabéns do director e o artigo foi comprado por um semanário americano. Ele sabia que não tinha mérito nenhum: limitara-se a transcrever fielmente as palavras de Malvina e das amigas.
Malvina apareceu-lhe à frente no dia seguinte, quando ele ia a sair do edifício do jornal.
Trazia o cabelo apanhado e uma saia de seda florida que lhe chegava aos tornozelos finos. Nas orelhas tinha uns brincos compridos de pedras coloridas que lhe emolduravam o rosto. Estava lindíssima.
- Apetece-te dar uma volta? - perguntou ela.
- Estava mesmo a pensar: porque é que eu não encontro uma rapariga gira que me convide para dar uma volta? - respondeu ele, a sorrir.
Deu-lhe o braço e avançaram pela rua que ia dar ao centro da cidade.
17
- Sabes que, quando te vi diante do edifício do jornal, receei que me quisesses agredir? - confessou Walter.
- Tenho um olhar assim tão feroz? - perguntou Malvina.
- Tens um olhar muito doce. Mas eu aprendi há algum tempo que as mulheres são imprevisíveis.
- Queria dizer-te que escreves muito bem e que apanhaste a essência das nossas conversas. Porque não confias nas mulheres?
- Vivo com uma mãe severa e duas irmãs solteironas. Já disse tudo.
- O reino do matriarcado! - exclamou Malvina, divertida.
- Fui ler a história do feminismo desde a Sibilla Aleramo até à Margherita Sarfatti e, como homem, senti-me culpado.
Sentaram-se à mesa de um café ao ar livre e pediram um sumo de fruta.
Naquela luminosa manhã de Maio, o ar tinha a tepidez de uma carícia e o perfume das flores de tília.
- Como é que são as tuas irmãs? - perguntou, curiosa.
- São mais velhas do que eu. A Cristina é tão bonita como lunática; a Aurora é inteligente, concreta, generosa e, de feminino, só tem o nome. Eu fui tratado desde sempre como um bebé e a minha mãe considera inimigas todas as mulheres que se aproximam de mim - confessou o jornalista.
Malvina sorriu, um pouco atrapalhada com a simplicidade alegre de Walter, que concluiu: - O meu pai morreu quando eu era adolescente e ainda me faz falta.
- Pelo menos, conheceste-o. Eu só vi a minha mãe em fotografia. Nunca me pegou ao colo, nem me embalou, nem riu ou chorou comigo - explicou ela.
O jovem jornalista captou a presença de uma ferida ainda aberta e procurou mudar de assunto.
- O que vais fazer hoje?
- Daqui a uma hora tenho de estar nas aulas.
- Proponho-te um dia de férias. Apetece-te? Apetecia-lhe loucamente.
Tinham passado dois anos desde a última vez em que saíra com um homem. O homem era Sérgio Orombelli.
Malvina tinha iniciado a análise com o professor Bianchi e, uma tarde de Primavera, Sérgio levou-a a passear de barco, no lago, com alguns amigos. À noite, depois do jantar, acompanhou-a a Tavernolo. Estavam sentados no carro, em frente a casa, e Sérgio estendeu um braço para lhe rodear os ombros, puxando-a para si.
- Estou a aperceber-me de que aquela menina chata de outros tempos se está a tornar uma mulher fascinante - sussurrou-lhe.
Malvina sorriu e encostou a cara ao ombro do amigo.
- Sinto-me muito bem contigo. Estou-te grata por muitas razões, sobretudo pela terapia com o Bianchi. Sinto-me muito melhor - disse.
- Como é que está a correr o teu processo de anulação? - perguntou ele.
- Os Franzini partiram para o contra-ataque e atribuem-me a mim a culpa de tudo. O meu advogado recebeu um documento em que sou definida de uma forma pouco dignificante.
- Pensava que o teu marido era um cavalheiro - observou o Dedico.
- Também eu pensava. Até a esse respeito eu me enganei.
- E estás a sofrer por isso.
- Tenho o professor Bianchi, sobre o qual descarrego as minhas frustrações."
Sérgio tinha inclinado o rosto sobre o dela, os lábios de ambos aproximaram-se, beijaram-se e Malvina sentiu em todo o corpo uma deliciosa sensação de bem-estar.
- O teu chevalier estava cheio de vontade de te comprometer disse Sérgio.
A Malvina teria apetecido muito deixar-se seduzir, mas levantou os olhos e viu, no primeiro andar da casa, a avó aproximar-se da janela iluminada do quarto.
Foi uma chamada à realidade, tão muda quanto imperiosa.
Soltou-se do abraço de Sérgio e disse: - Ainda não superei o naufrágio do meu casamento. Tu és o meu amigo mais precioso e eu não te quero perder.
- Nem eu, minha queridíssima chata - brincou ele. - Mas sei há muito tempo que, se alguma vez tiver uma companheira, serás tu. Confesso-te que, de todas as vezes que estive em vias de me ligar seriamente a uma mulher, o teu rosto se vinha sempre sobrepor ao dela.
Quando entrou em casa, Malvina subiu até ao quarto da avó, que estava na cama a ler um livro.
- Viste que nos estávamos a beijar? - perguntou.
- Mais ou menos - respondeu a avó, sem dar importância ao assunto.
Malvina estendeu-se na cama ao lado dela.
- Bem, foi uma coisa que não voltará a repetir-se - garantiu, segura.
- Porquê? O Sérgio é um rapaz muito respeitável, conhece-te desde sempre e gosta de ti - objectou a avó.
- Não quero embarcar noutro casamento.
- Ainda és muito nova... dá tempo ao tempo - replicou a avó.
- É exactamente isso que eu quero fazer - afirmou ela e, por muito que desejasse ter uma relação com Sérgio, decidiu evitar os encontros com ele, deixou Tavernolo e voltou a viver em Milão.
Susan e o pai recebê-la-iam com alegria, mas Mahritta sentiu ". necessidade de ter uma casa só para ela.
O avô tinha-lhe deixado em herança um certo número de obrigações e títulos que lhe permitiram comprar aquele celeiro perto de Lambrate. Restaurou-o e transformou-o em habitação.
Tinham passado dois anos e agora, diante de Walter Mandelli, sentiu que tinha chegado o momento de se afastar um pouco do estudo e dos compromissos sociais para voltar a tratar de si e da sua vida.
Walter tinha ar de bom rapaz, com uma psicologia linear e, aos olhos de Malvina, isto era uma vantagem considerável, atendendo à sua desastrosa experiência com um marido complicado. Quanto a Sérgio, tinha sabido que, depois da sua partida, começara a andar com uma colega, viúva de um médico do hospital de Lecco. Olhou para Walter e pensou: é um rapaz sólido, bonito, sem veleidades intelectuais, e por isso não me vai reservar surpresas desagradáveis.
- O que é que me propões?
- Levo-te a almoçar à Osteria delia Marfisa, perto de Mântua.
- É um bocado longe - observou ela.
- O meu espada voa, e à uma estamos à mesa. A Cesira, que é a dona, viu-me crescer, porque passei todos os Verões da minha vida ali, em Castelverde. Temos uma grande casa no meio do campo, onde no Verão os mosquitos nos comem e no Inverno o gelo nos paralisa. Houve um tempo em que eu e as minhas irmãs detestámos aquele lugar, de que só o meu pai gostava. A minha mãe, apesar de ser daqueles lados, não ia para lá muito satisfeita. Mas agora gosto de Castelverde. É uma terra fora do mundo, onde as pessoas ainda se alimentam de provérbios e lengalengas - explicou-lhe com entusiasmo.
A uma hora estavam realmente sentados à mesa, no jardim da Marfisa, que se abria sobre uma extensão de campos de centeio. Cesira, a dona do restaurante, para o "pequeno" Mandelli e para
a "linda menina" apresentou o melhor da sua cozinha e das suas conversas.
- Diga-me, menina, como estão os meus tortellini? Prove esta morcela e diga-me se não é boa! Nossa Senhora, olhe este estufado, é manteiga que se derrete na boca! A Cesira, não é para me gabar, primeiro casou-se com a cozinha e só depois com o seu Piero, que não serve para nada a não ser na cama: cumpre o seu dever. Coma, menina, porque me parece fraquinha. Mas é assim, a gente da cidade é toda deslavada e tem a mania daquelas dietas que levam os cristãos ao cemitério. Depois vou dar-lhe a provar os meus biscoitos de amêndoa. O menino Mandelli comia que nem um desalmado, quando era pequeno. Sempre que passava por aqui parava à porta e piscava-me o olho. Eu enchia-lhe os bolsos de biscoitos e ele ia aos saltinhos a correr para casa como um passarito. Depois, o pai, o senhor professor, dizia-me: "Cesira, não se devem estragar as crianças com mimos!" Sabe, menina, eu tinha muito respeito pelo senhor professor, porque era um homem instruído e muito mais velho do que eu. Beba este vinhinho que lhe faz bem ao sangue, menina.
A mulher falava, alheia aos protestos dos outros clientes que reclamavam os seus serviços e não percebiam que Cesira estava a viver o seu momento de glória com uma cliente que vinha de Milão, que se calhar ia almoçar ao Savini ou ao Biffi Scala onde, com toda a certeza, não lhe serviam comida tão boa e genuína como a sua. Que fosse contar àqueles grandes chefes, com aqueles canhões brancos na cabeça, como era requintada a cozinha da Cesira!
No fim do almoço, aturdida de palavras, de comida e de vinho, Malvina adormeceu por baixo do alpendre do restaurante numa espreguiçadeira que Cesira lhe pôs à disposição.
Quando voltou a abrir os olhos, já o sol declinava. Walter estava sentado ao lado dela, a sorrir.
- És tão bonita e misteriosa quando dormes - sussurrou-lhe.
- Típica frase de jornalista - brincou ela, mas sentiu-se satisfeita por o ter ali ao pé.
18
No sonho era pequena e estava encavalitada no ramo de um castanheiro, no bosque de Tavernolo. Por baixo dela estava a mãe, jovem, enérgica, sorridente, com um vestidinho às flores de cores muito vivas, a chamar por ela: - Malvina, desce. - Malvina observava aquela mãe tão bonita, de sorriso luminoso. - Malvina, desce -, repetiu uma voz masculina que pôs fim ao sonho e a acordou. Abriu os olhos e olhou em volta. Deu por si num quarto com as paredes pintadas de azul, móveis escuros e maciços e velhas fotografias emolduradas penduradas nas paredes. Estava deitada numa cama, tapada até ao queixo com uma macia coberta branca.
A voz que chamava por ela era a de Walter Mandelli.
- Já vou - gritou por sua vez, sorridente, e levantou-se muito depressa, pousando os pés no pavimento frio. O passeio pelo campo tinha-se prolongado até à manhã seguinte. Pelas gelosias encostadas entrava a luz do dia e ela estremeceu porque estava nua e a sua roupa estava em cima de uma cadeira, aos pés da cama. "avia também um roupão de homem, de flanela azul. Enfiou-o e calçou as suas sandalinhas. Saiu do quarto e desceu as escadas.
Walter estava à espera dela e estendeu-lhe um raminho de alfazema.
- Acabada de colher, para ti - disse-lhe, e deu-lhe um beijo na testa. Depois levou-a para a cozinha.
Sobre a mesa de madeira tinha estendido dois individuais à americana; tinha aquecido o leite, preparado o café e colocado os biscoitos num prato.
- O pequeno-almoço está servido - anunciou, ao mesmo tempo que afastava uma cadeira para ela se sentar. Depois ocupou o lugar à sua frente.
- Como estás? - perguntou-lhe, enquanto servia o café.
- Um bocado confusa - respondeu Malvina, e levou a mão à boca para esconder um bocejo.
- Eu também - disse ele, e acrescentou: - O meu roupão fica-te bem. - Walter já estava barbeado e vestido.
- Que horas são? - perguntou ela.
- Sete. Quando estiveres pronta, regressamos a Milão. Entretanto eu vou-te encher a banheira com água muito quente. Em Maio, aqui no campo, as manhãs ainda são frias.
A casa de banho era ampla e espartana, como o resto da casa: paredes pintadas a tinta de esmalte, banheira de cobre sustida por umas patas de leão, toalhas de linho branco.
Quando se sentou no carro ao lado de Walter, sentia-se renascida. Há muito tempo que não estava tão serena e disse-lho.
- O mérito é todo do método Mandelli: vida simples, café forte e banhos quentes - afirmou ele.
Em vez de se dirigir à estrada nacional, meteu pelos campos.
- Porquê? - perguntou Malvina.
- Passei pela Cesira há uma hora para ir buscar biscoitos frescos para o nosso pequeno-almoço. A Cesira soube que és quase médica e pediu para lhe medires a tensão - explicou.
- Ainda tenho de fazer a tese e não estou habilitada para ver doentes. O que mais soube a Cesira?
- Que és a minha namorada - anunciou ele.
- A notícia é interessante. Por quem a soubeste?
- Por ti, a noite passada, enquanto fazíamos amor.
- A sério? O que foi que eu te disse?
- Disseste textualmente: "Walter, não sei como vai evoluir a nossa história, mas sei que te amo."
- E tu respondeste-me: "Eu também te amo, minha rainha, e nunca farei nem direi nada que te possa desiludir" - acrescentou
ela.
- Portanto, és a minha namorada e eu não via a hora de dizer
isto a alguém. Disse à Cesira.
- E eu vou-lhe medir a tensão, ainda que não devesse - concluiu Malvina.
Na realidade, Cesira queria outra coisa. Arrastou Malvina até à despensa e, corando, confessou-lhe: - Senhora doutora, tenho uma massa dura por baixo do seio que me dói. Não quero ir a um médico, porque tenho medo. Pode dar uma espreitadela? Se calhar tenho uma doença má.
- Não sou médica, mas de qualquer maneira tire a blusa - respondeu Malvina, ligeiramente embaraçada com a enormidade de seio que emergiu quando Cesira se despiu.
Entre a axila e a base do seio Malvina viu uma mancha azulada que, ao tacto, era dura como madeira. Apalpou várias vezes, atentamente, o seio de Cesira e depois concluiu: - Foi uma pancada bastante forte, não é um tumor, como pensa.
- Está a falar a sério? Há três noites que não durmo com a preocupação. Mas não me lembro de ter dado pancada nenhuma.
- Pense bem. Tem mesmo a certeza?
- Mas é claro, agora me lembro: bati contra uma esquina, na cozinha... olhe que susto que eu apanhei! E agora, o que devo fazer? - perguntou, enfiando a blusa.
- Deve consultar um médico. Prometa-me, por favor. Eu sou apenas uma estudante de Medicina.
- Arranjaste uma amiga para o resto da vida - disse-lhe Walter, enquanto regressavam a Milão.
Quando chegaram à sede do jornal, onde Malvina tinha estacionado o carro, o céu enchera-se de nuvens.
- O sol foi-se embora - comentou ela.
- Daqui a pouco o céu vai-se pôr a chorar como eu, porque tenho de te deixar - afirmou Walter, com um ar teatral.
- Vai haver outras noites como esta, e eu não quero ter de limpar as tuas lágrimas todas as manhãs - replicou Malvina, a brincar. Mas sentia-se um pouco abalada com aquela volta repentina na sua vida. Até ao dia anterior não imaginava que iria cair tão facilmente nos braços de um homem. Lembrava-se perfeitamente de lhe ter dito que o amava, enquanto faziam amor. Agora perguntava a si mesma se aquilo não teria sido a paixão de um momento, ou se se tratava realmente de um sentimento mais profundo, que tinha surgido de repente.
Enquanto se dirigia ao celeiro no seu carro, rebentou um temporal com aguaceiros violentos.
Quando entrou, encontrou Chiara Tizzoni a sacudir as almofadas dos sofás.
- Olha que eu quero ser paga por este trabalho de empregada doméstica - preveniu a amiga, assim que a viu entrar. O pedido perdeu-se no fragor de um poderoso trovão.
Enquanto lá fora o temporal recrudescia, as duas amigas saborearam um café, enroscadas nas almofadas, e Malvina contou a Chiara a sua noite de paixão com o jornalista.
- Gosto mesmo muito do Walter - concluiu, brincando com o ramo de alfazema que ele tinha apanhado para ela. E prosseguiu:
- Ele cheira a trigo a amadurecer ao sol, a hortelã selvagem, a biscoitos crocantes e a rebuçados de mel. Tudo coisas de que eu gosto. E quando o observo, enquanto fala ou se mexe, transmite-me serenidade. Naquele olhar há uma alegria que nunca se apaga. Sinto a necessidade de ter um homem como ele.
- Estás a cometer um erro, Malvina. Aquilo que tu sentes não é amor mas, como acabas de admitir, a necessidade de um ombro onde te encostares - disse Chiara.
- Não me estás a ajudar.
- Para isso andas há anos a pagar a um psicanalista.
_ E tu também fazias bem em pagar, atendendo ao teu irreprimível desejo de comida - retorquiu.
- Porque é que tu és tão pérfida? - resmungou Chiara, que se desprezava por causa dos quilos que tinha a mais.
- Desculpa. É só porque gosto muito de ti e tenho pena que escondas a tua beleza por baixo dessa camada de gordura.
- Somos uma geração de mulheres frustradas, tanto quanto o eram as nossas mães. Para elas, tudo era proibido; a nós tudo é permitido, mas não somos mais felizes do que elas - observou Chiara, que conhecia bem as causas do seu comportamento em relação à alimentação. Era filha de pais separados, o pai tinha deixado a mulher por causa de outra e a mãe tinha começado a beber. Ela temia os homens como a peste e sufocava as suas necessidades afectivas com a comida.
- Chiara, eu não quero a lua. Só quero um companheiro a quem amar e que me ame, com quem possa ter uma boa relação a dois. Julgava que o tinha encontrado no meu marido, e ainda hoje me chamo estúpida por não ter percebido logo que era louco.
- Queres dizer que se ele não se tivesse revelado como tal, tu terias sido uma mulher satisfeita e feliz? - perguntou Chiara, com uma ponta de ironia.
- Claro que sim! i
- Quem é que tu queres convencer disso? Já devias saber que as mulheres cometem um erro quando fazem depender a sua felicidade do homem. Tu deves ser tranquila por ti mesma, por aquilo que és, que fazes e que pensas. Só então, talvez, poderás ter uma boa relação a dois com um homem. Achas mesmo que os homens constróem sonhos, como nós fazemos, em volta de uma mulher? Eles seguem o seu caminho com a força obtusa de um bulldozer e só querem ter por perto uma escrava que os adore. No teu caso, a verdade é bem diferente.
- Revela-me o arcano, ó minha sibila - gracejou Malvina.
- Sabes perfeitamente. Se o Gianni Franzini fosse bom da cabeça, tu tinha-lo deixado de qualquer maneira.
- Mas o que estás tu para aí a dizer?
- É simples: tu estás apaixonada por outro homem, e desde. sempre - disparou a amiga.
Nos lábios de Malvina surgiu um nome: Sérgio Orombelli. Mas apenas disse: - Agora vou trabalhar na minha tese.
19
A insinuação de Chiara impediu-a de se concentrar na tese. Desde que fazia análise, tentava desfazer e interpretar o emaranhado dos seus sentimentos. Tinha agora consciência do facto de a recusa de uma gravidez, quando era casada, esconder a sua aversão em relação ao marido.
Recordou agora o sonho que tinha tido, depois da morte do avô, quando adormeceu na cama ao lado da avó. Nesse sonho, Sérgio estava montado numa bicicleta e pedia-lhe o cinto como recordação.
Perguntou a si mesma qual seria o significado daquele sonho e decidiu que ia falar com o psicanalista.
- Finalmente, vou conseguir perceber alguma coisa - disse em voz alta.
Chiara, que estava sentada à frente dela a trabalhar na sua tese também, ligou aquelas palavras à conversa que terminara há instantes e respondeu: - Tenho a certeza disso. Mas estás a trabalhar de mais e devias fazer uma pausa.
- Se calhar tens razão. Sabes o que vou fazer? A chuva está a abrandar. Vou fazer o meu saco e depois vou visitar a avó - anunCiou. E acrescentou: - Faz como se estivesses em tua casa. Mas quando te fores embora, apaga as luzes e fecha a porta.
- E se o jornalista giro telefonar? - perguntou Chiara.
- Diz-lhe que estou em Tavernolo. Podes até dar-lhe o número de lá. •
A avó passava os dias entre os seus compromissos de assistência e os de administração de algumas instituições de beneficência, enquanto Venere e Carlin continuavam a tratar da casa e do jardim.
A dor provocada pelo desaparecimento do marido tinha-se diluído na melancolia que a envolvia, sobretudo à noite, quando ficava sozinha naquela grande casa silenciosa. Antes de adormecer, dedicava sempre um pensamento ao companheiro que já ali não estava e rezava a Deus para que lhe concedesse também a ela uma morte repentina, pedindo-lhe, porém, que lhe desse ainda algum tempo, "porque amo a vida", sussurrava.
- A senhora está na escola - disse Carlin a Malvina, assim que esta saiu do carro. A jovem sabia que, havia já alguns meses, a avó tinha à sua disposição uma sala, no município, onde dava lições aos alunos com menos possibilidades da aldeia.
- Então vou lá ter com ela - decidiu.
Dirigiu-se a pé à aldeia e percorreu a habitual vereda no bosque. Chegou à praça quando o sol estava a pôr-se e sentou-se no banco que tinha uma pequena placa em latão com o nome do avô gravado.
Àquela hora a praça estava cheia de pessoas idosas que esperavam a hora de regressar a casa para o jantar, e de jovens que conversavam para programar o serão. Toda a gente conhecia Malvina e toda a gente a cumprimentou.
Uma senhora disse-lhe: - Quando estiveres preparada, vem para aqui trabalhar como médica. Nós queremos uma mulher, porque com os homens, às vezes, fazemos cerimónia.
Ela respondeu: - Talvez, quem sabe, vou pensar nisso -> sabendo que o seu objectivo era outro: a especialização em psiquiatria. Tinha tomado aquela decisão desde que começara a análise e apercebera-se de que as dores da alma, muitas vezes subavaliadas, podem ser tão devastadoras como as físicas. Viu a avó sair do edifício
da Câmara, rodeada por uma ninhada de crianças barulhentas, e foi ao encontro dela.
Regressaram juntas a casa, pela estrada.
- Quando chegas de repente fico preocupada, porque sinto cheiro de complicações - disse a senhora, que trazia na mão um saco cheio de livros e cadernos. Apesar de os cabelos estarem cada vez mais brancos, parecia muito mais jovem do que era.
- Estou a escrever a minha tese e disse a mim mesma que precisava de fazer uma pausa - respondeu a neta, sem se descompor.
- E depois? - perguntou a avó.
- Estava um grande temporal em Milão e...
- E depois? - repetiu a avó.
- Tenho um namorado. Chama-se Walter. É jornalista. É simpático. Posso convidá-lo para vir aqui? - disse Malvina, de um só fôlego.
- Sabes muito bem que estás em tua casa - replicou a avó.
- Dá-me o saco, eu levo-to - sugeriu ela.
- Faço este caminho todos os dias e ainda não desabei - protestou a senhora.
Quando transpuseram o portão de acesso à casa, Malvina perguntou: - Tens notícias do Sérgio Orombelli?
- Por isso é que aqui estás! - exclamou a avó, com um tom malicioso.
- Então? - insistiu Malvina.
- Vem visitar-me, de vez em quando. Quanto a mim, anda mais ocupado a escrever do que a exercer Medicina - sublinhou.
- A gente de Brianza costuma ser muito inspirada - comentou Malvina.
- Anda com uma viúva muito engraçada que é alguns anos mais velha do que ele - explicou a avó, e prosseguiu: - Tu gostas do Sérgio, mas não te esqueças de que tem alma de solteirão.
Já perto do alpendre sentiram o perfume da fritura de curgetes, alcachofras e beringelas.
- Há convidados para o jantar? - perguntou Malvina.
- Alguns amigos, o Sérgio Orombelli e a sua viúva - anunciou a avó a sorrir. E acrescentou: - Não me digas que não sabias!
- Não sabia - respondeu Malvina, e correu até ao andar de cima para mudar de roupa.
Apareceu na sala de jantar no momento em que os convidados estavam já a sentar-se à mesa. Sérgio e os outros dois amigos da avó levantaram-se rapidamente para a cumprimentar. As senhoras sorriram-lhe, ao mesmo tempo que olhavam para ela com admiração, porque Malvina estava lindíssima. Tinha apanhado os cabelos num rabo-de-cavalo macio que lhe afagava o pescoço. Trazia um vestido justo de seda preto, de mangas curtas, onde tinha espetado um alfinete de ouro à altura do ombro, para impressionar os convidados.
- Peço desculpa a todos pelo atraso - começou, e explicou:
- Perdi algum tempo numa tentativa de ficar apresentável.
- Ninguém mente tão bem como tu - sussurrou-lhe Sérgio, enquanto a abraçava com uma ternura que desagradou à sua severa companheira, a viúva do médico.
Durante a refeição, Sérgio deu o melhor de si a desbobinar grotescas histórias familiares de pessoas que moravam na aldeia, sem nunca referir nomes, ainda que fossem fáceis de identificar.
A viúva, uma trintona morena com traços orientais, contou episódios da sua vida igualmente divertidos, com um toque irónico que Malvina apreciou.
- Arranjaste uma mulher inteligente e simpática - sussurrou Malvina a Sérgio. Disse-o com convicção, apercebendo-se ao mesmo tempo de que, ainda que tivesse havido uma altura em que ambos tinham desejado que aquela amizade evoluísse para uma relação mais íntima, agora cada um deles tinha enveredado por caminhos diferentes. De qualquer modo, fora importante voltar a vê-lo para afastar qualquer dúvida.
Tinham passado todos para a sala de estar, à espera que Venere servisse o café e os digestivos, quando a empregada lhe anunciou:
- Está um senhor a perguntar por si ao telefone.
Era Walter, que lhe confessou: - Tenho tantas saudades tuas,
princesa.
- A quem o dizes! Meto-me já no carro e vou para Milão. Encontramo-nos em minha casa. Se chegares antes de mim, encontras a chave debaixo do tapete.
- Mas porque te foste embora assim de repente? - quis saber.
- Tinha de tirar a prova dos nove, para ter a certeza de que não estava errada.
- Ajuda-me a perceber.
- Basta que eu perceba - rematou Malvina. Despediu-se dos convidados e da avó.
Sérgio acompanhou-a até ao carro e, enquanto lhe abria a porta, disse-lhe com um sorriso radioso: - O meu coração é uma fortaleza que só se abre para ti. Estarei aqui sempre, aconteça o que acontecer. Palavra de honra.
20
Malvina sentiu o estômago contrair-se numa dentada escaldante e, num instante, o calor subiu-lhe à cabeça e ruborizou-lhe o rosto.
Estava na faculdade, numa aula de Psicologia da Idade Evolutiva. Passou pelo meio das carteiras e saiu para o corredor. Encostou-se ao peitoril de uma janela e sussurrou: - Estou grávida. Sentia-se assustada e feliz.
Olhou para o relógio de pulso: marcava as nove e meia da manhã do dia dez de Julho.
- Estou grávida - repetiu em voz baixa, e pensou que o filho ia nascer em Março, como o lírio-do-vale, debaixo de chuva, com o sol a romper por entre as nuvens e o vento a transportar o pólen.
Esperou que a aula acabasse, regressou à sala, recuperou o bloco de apontamentos, despediu-se rapidamente de alguns colegas e foi até ao café que ficava em frente à faculdade.
Do telefone de moedas ligou a Walter que, àquela hora, estava no jornal.
- Não posso ir almoçar contigo. Vou estar ocupada todo o dia
- comunicou-lhe.
- Vejo-te logo à noite? - perguntou-lhe ele.
- Ainda não sei, mas depois digo-te - respondeu.
- Um abraço, princesa - disse Walter, sem indagar mais nada, porque já a conhecia e sabia que havia momentos em que Malvina se fechava sobre si mesma como uma ostra e era inútil forçá-la. Quando decidia reabrir-se, ele estava sempre pronto para a receber.
Ela meteu-se no carro, chegou a casa, ligou o ar condicionado, estendeu-se na cama, cobriu a cara com uma almofada e descontraiu. Imaginou-se com um ventre enorme dentro do qual havia uma criança, enroscada sobre si própria, a chupar no polegar. Não lhe atribuiu um sexo, porque não lhe importava saber se seria menino ou menina. Aquilo que imaginou inundou-a de ternura e sorriu.
Depois largou a almofada, levantou-se da cama e começou a limpar a casa: fazia isso sempre que queria reflectir. Recordou uma noite de Junho, em Tavernolo, no quarto que tinha partilhado com Gianni e que agora, quando ia visitar a avó, ocupava com Walter.
Estava uma noite clara, com uma lua que se desenhava, fantástica, no enquadramento da janela escancarada para o céu.
Uma mariposa entrou no quarto e enfiou-se por baixo do abat-jour de seda do candeeiro aceso na mesa-de-cabeceira. Walter dormia enquanto ela lia Love Story e chorava.
Teve piedade daquela mariposa enlouquecida, apagou a luz e esperou que o insecto encontrasse uma saída. Agarrou-se ao corpo de Walter e murmurou-lhe ao ouvido: - Esta noite amo-te como
nunca te amei.
Ele acordou, virou-se para ela e fechou-a num abraço.
- Aconteceu naquela noite - disse agora, em voz alta, com convicção. E voltou a sorrir, porque a ideia de uma gravidez já não a assustava.
Nesse momento pegou no telefone, ligou para a central e pediu uma chamada para a Pensilvânia. Teve de esperar quase meia hora antes de estar em linha com a casa dos Kellerman, onde o pai estava a passar férias.
Primeiro falou com a mãe de Susan, depois com Susan e,
finalmente, ouviu a voz do pai.
- Estou grávida - disse-lhe logo.
- Devo censurar-te ou posso ficar contente? - replicou ele.
- Eu estou muito contente. Sei que vou ficar gorda e feia, que vou andar como uma pata, que vou ter de fazer chichi vinte vezes por dia, e que também tenho de acertar as contas com aquele pequeno receio, mas estou contente e queria que tu soubesses. És a primeira pessoa a quem o digo.
- Parece-me que o pai da criança também devia saber - comentou o doutor Leoni, um pouco preocupado com a excitação que sentia na voz da filha. E logo a seguir perguntou: - Quando soubeste o resultado?
- Não fiz análise nenhuma, pai. Sinto-o e tenho a certeza de que não estou enganada - replicou Malvina.
- Vai a uma consulta com o meu amigo Sebastiano e toma nota de todas as análises que tens de fazer e que eu te vou ditar agora.
- Pai, não é preciso. Agora não, por favor - pediu ela.
- Imediatamente. E isto é uma ordem. Se não me obedeceres, apanho o primeiro avião e regresso a Milão - ameaçou.
Malvina obedeceu. Ligou para o doutor Sebastiano Cordani, que era um colega e grande amigo do pai, e marcou com ele uma consulta para o dia seguinte.
Depois telefonou a Walter.
- Temos de nos encontrar em algum sítio, eu e tu, sozinhos, porque tenho uma coisa para te dizer - anunciou-lhe.
- Devo ficar preocupado? - perguntou o jornalista.
- Sim, um bocadinho, se calhar - respondeu ela.
Como muitos apaixonados, também eles tinham um sítio onde trocavam carícias e confidências - os jardins da via Palestro.
Ali, sentados num banco à sombra de uma grande árvore, Malvina anunciou: - Vamos ter uma criança.
Walter pescou um cigarro do bolso da camisa, acendeu-o, aspirou profundamente e, por fim, sussurrou: - Caramba, que notícia!
Malvina sorriu.
- A coisa também me apanhou de surpresa - confessou.
- Eu achava que tínhamos tido sempre muito cuidado observou ele.
- Excepto naquela noite de Junho, em Tavernolo, lembras-te? Também Walter sorriu. Lembrava-se bem daquela noite. Deitou fora o cigarro, abraçou Malvina e disse, comovido:
- Obrigado, princesa.
",
21
Uma noite de Setembro, Malvina sentou-se à mesa, pela primeira vez, com a família Mandelli, na casa da via Turroni. Todas as análises que fazia regularmente atestavam que estava em excelentes condições e que a gestação corria pelo melhor.
Por essa altura, Walter decidiu anunciar às mulheres da casa que iam ser tias e avó.
A signora Mandelli, que desaprovava a chegada de um neto concebido fora do sagrado vínculo do matrimónio, e que tinha percebido que o filho e a companheira não tencionavam casar-se, disse: - Se forem rosas, florescerão com a ajuda de Deus.
Ninguém perguntou o que poderia significar aquele prognóstico sibilino, e todos se contentaram com o facto de não ter lançado anátemas contra aquele casal de pecadores.
Cristina encenou o desfalecimento do costume: - Uma criatura do Senhor vai chamar-me tia! É realmente grande de mais esta alegria para o meu pobre coração. Vou amar essa criança como se fosse minha, já que a sorte ainda não me concedeu um marido e a prole de que tanto gostaria.
Mais sucintamente, Aurora sentenciou: - Que bom! Faz realmente falta uma criança nesta casa decrépita.
Há muitos anos que Aurora repetia que a moradia da via Turroni devia ser remodelada, enquanto que Walter apenas naquele
momento se apercebia disso. Para Cristina e para a signora Mandelli, aqueles aposentos um pouco fane eram perfeitos. ;.. Aurora, que passava grande parte do seu tempo livre no apartamento da doutora Melandri, a sua companheira, experimentava muitas vezes uma sensação de opressão entre aquelas paredes soturnas, os móveis escuros, os candeeiros pesados, o jardim som brio onde a mãe teimava em cultivar os lírios cândidos, os cravos
perfumados, as hortênsias decadentes e as tulipas que floresciam cedo e cedo murchavam.
O apartamento da companheira era uma explosão de luz, com
grandes janelas que se abriam para o céu, paredes brancas, sofás
claros e uma decoração moderna. Quando, para não aborrecer demasiado a mãe, se resignava a passar o fim-de-semana em casa, Aurora sentia-se sufocar. Às vezes propunha-lhe: - Tenho algum dinheiro de lado e gostava de deitar fora esta tralha toda e arranjar a casa de cima a baixo.
A mãe lançava-lhe um olhar feroz e sibilava: - Assassina!
Cristina arregalava para ela os seus olhos inocentes e perguntava: - Porque é que diz essas coisas horríveis? É a casa do papá.
- Para ela, o pai estava apenas meio degrau abaixo de Deus e,
enquanto vivera, adorara-o como um santo. Por isso considerava-se
a vestal da sua memória e bastava uma pequena deslocação dos
objectos do pai para que voltasse imediatamente a repor a ordem
em que os tinha deixado.
- Exactamente, é uma casa de há sessenta anos. Nessa altura
era nova, agora é velha - insistia Aurora, e contava as horas que a
separavam de segunda-feira de manhã, quando voltaria ao hospital para trabalhar e abraçar a companheira.
Apesar de saber da relação entre Aurora e a médica da clínica,
a signora Mandelli nunca tinha pronunciado o seu nome nem
teria nunca querido conhecê-la.
Recordava, com alguma dor, o dia em que tinha visto a filha a andar de mão dada com uma mulher mais velha do que ela, por baixo do pórtico do corso Vittorio Emanuele.
Vinha dos armazéns Ghidoli, onde tinha ido comprar alguma roupa de casa, e avançava apressadamente em direcção à piazza delia Scala, onde ia apanhar o eléctrico para regressar a casa.
Enquanto atravessava o corso Vittorio Emanuele viu as duas mulheres. Aurora, alta, elegante no seu fato de calça e casaco, rosto moreno, cabelos curtos castanho-acobreados, ia de mão dada com uma mulher à volta dos quarenta anos, de cabelos loiros compridos, que trazia um vestido de seda azul de pintinhas brancas e uns sapatos de salto alto e fino.
A signora Mandelli parou atrás de uma coluna do pórtico e observou-as durante alguns instantes, levando uma mão ao peito, como se assim pudesse travar o coração enlouquecido. A filha e a companheira conversavam tranquilamente e sorriam uma para a outra. Depois viu-as virar na via Pattari. Nessa altura entrou num café e pediu ao empregado: - Um conhaque, por favor.
Era abstémia, e aquele álcool engolido de um só trago fê-la sentir-se ainda pior.
Naquela época, Aurora tinha vinte e três anos, concluíra o curso de enfermagem com um exame brilhante e tornara-se instrumentista do bloco operatório.
Desde criança, levava para casa animais feridos e macilentos de que tratava com uma habilidade que surpreendia toda a gente.
- Será possível que tenhas de ser tu a encontrar todos estes casos miseráveis? - queixava-se a mãe.
Quando um companheiro de brincadeiras se magoava, ela intervinha com ligaduras e desinfectantes, limpava, medicava e fazia curativos com delicadeza. A mãe esperava que ela viesse a ser médica, mas Aurora tinha preferido a tarefa mais humilde de enfermeira.
Foi ali, nas enfermarias da clínica, que encontrou a doutora Margherita Melandri. Conheceram-se e apaixonaram-se.
Nessa altura, Aurora juntou toda a sua coragem e decidiu enfrentar a mãe. Uma noite foi ter com ela ao quarto, na altura em que ela se preparava para se deitar.
- Mãe, sabe que eu sou diferente da Cristina, de si e das outras raparigas - começou.
- E vens-me dizer isso a esta hora, quando me vou deitar? esquivou-se a senhora, que queria evitar confissões embaraçosas.
- Sabe, não sabe? - insistiu a filha.
- Eu não sei nada, e a vida dos outros não me interessa.
- Eu não sou os outros, sou tua filha.
- E eu sou tua mãe. Respeita-me, como eu te respeito a ti.
- Só queria esclarecer algumas coisas consigo.
A mãe aproximou-se da janela para fechar a persiana. Aurora estava atrás dela e sentia necessidade de abraçar a mãe e que ela a abraçasse.
- Mãe, não me quer ouvir? - suplicou.
- Como aquilo que me queres dizer não é coisa que me agrade, prefiro não te ouvir. Faz de conta que já me disseste tudo e vamos pôr uma pedra em cima desse assunto. Eu não vou gostar menos de ti por isso mas, por favor, não falemos mais sobre esse assunto
- disse a mãe. Depois abraçou Aurora, retendo as lágrimas a custo.
Assim Aurora sabia que uma parte importante da sua vida devia ficar fora da porta de casa e fingia que continuava a viver em família, da mesma maneira que a família fingia que ela tinha uma vida regular e que fazia urgências no hospital quando não voltava para casa à noite.
Mas se a vida de Aurora deixava indiferente o irmão, angustiava a pobre Cristina, que ouvia as confidências da irmã e rezava a Deus para que operasse um milagre e invertesse as suas tendências sentimentais. Dizia à irmã: - Imagina que bom que era, Aurora, se tu tivesses um namorado, se o Walter tivesse uma namorada, podíamos estar todos juntos e era uma felicidade. Nós temos uma tamília muito bonita. Como diz a mãe, podemos dar graças a Deus porque estamos de boa saúde e temos um trabalho de que gostamos.
Eu, ainda para mais, sou linda de morrer e tenho muita vontade de ser feliz ao pé de vocês. Porque será que Deus não ouve estes meus desejos?
- Porque tudo isso são sonhos, Cristina, apenas sonhos de olhos abertos. A vida não é como tu gostarias que fosse. Anda comigo ao hospital e vais aperceber-te do que é a vida. É dor, é solidão, é miséria. Às vezes vê-se alguém que é feliz, mas a felicidade dura um instante - replicava Aurora, tentando inutilmente trazer Cristina de volta à realidade.
- Eu imagino a felicidade como uma senhora bonita que é um bocadinho parecida comigo. Vejo-a bater à minha porta: toe toe. Abro e ela diz-me: "Com licença, posso entrar?" Eu respondo: "Senhora felicidade, faça o favor. É muito bem-vinda e eu vou tratá-la com tanto respeito, delicadeza e generosidade que a senhora nunca mais vai querer ir embora de minha casa." Era isto que eu fazia, Aurora!
Aquele monólogo continuava, mas a irmã já não a ouvia. Agora, porém, com a chegada de Malvina Leoni, Cristina achou que alguma coisa poderia mudar para melhor, que valia realmente a pena seguir a sugestão de Aurora e remodelar a casa, arrumando no sótão muitas coisas velhas e gastas, até porque era preciso arranjar espaço para a criança que ia nascer na Primavera, sob o signo de Carneiro, que era um belo signo.
E disse-o ao irmão e a Malvina, enquanto Aurora levantava a mesa e a mãe tinha ido para a cozinha fazer o café.
Malvina lançou a Walter um olhar duvidoso, porque não tinha vontade de ir viver para casa dos Mandelli. Walter foi em seu auxílio.
- Tem calma, Cristina. Ainda tem de passar o Inverno e depois a Primavera. A Malvina tem uma casa enorme e, sobretudo, ainda não decidimos se vamos viver juntos - disse.
- Mas que história é essa? É claro que vão viver juntos. E quando a Malvina tiver obtido a anulação do casamento, vocês vão casar, e para o vosso casamento eu vou mandar fazer um vestido de voile,
cheio de folhos, de flores cor-de-rosa e folhas verde-pálido e depois, quem sabe, pode ser que no vosso casamento eu conheça um homem fascinante que vai ser o meu namorado. Fazem-se bons conhecimentos no casamento dos parentes - fantasiou, dando voz aos seus sonhos.
Aurora levou o café para a mesa e decretou: - A criança que vai nascer, seja rapaz ou rapariga, vai ser a luz dos meus olhos.
Malvina sentiu-se encurralada por aquelas duas solteironas desenfreadas e dirigiu novamente um olhar implorante a Walter, que tinha a capacidade de a entender imediatamente. - Agora temos mesmo de ir - disse ele, ao mesmo tempo que se levantava da mesa.
22
Malvina estacionou o carro diante da moradia da via Turroni, saiu, abriu o portão, subiu os degraus a correr, abriu a porta e precipitou-se em direcção à varanda, de onde chegavam os gritos da sua menina, que protestava porque tinha fome. Ela estava quase uma hora atrasada em relação à tabela das mamadas.
- Estou aqui, pequenina - disse, quase sem fôlego, ao mesmo tempo que a tirava dos braços da avó que tentava inutilmente acalmá-la. Desapertou os botões da camisa e ofereceu-lhe o seio. Roberta agarrou-se ao mamilo e sossegou imediatamente.
- Sinto muito. O professor obrigou-me a uma hora de sala de espera antes de me receber - desculpou-se com a sogra.
- Estudar, trabalhar, dar de mamar... Até quando achas que consegues resistir a este ritmo? - resmungou a signora Mandelli.
Havia já algumas semanas que sogra e nora tentavam em vão fazer o desmame da criança, que tinha seis meses e, segundo o que dizia o pediatra, devia intercalar o leite materno com o leite artificial. Não havia maneira de a fazer aceitar aquilo.
- Vou manter este ritmo enquanto a Roberta tiver necessidade disso - respondeu.
- Os filhos nunca deixam de ter necessidades - afirmou a sogra. Malvina sorriu, enquanto observava o rosto da sua menina
que, de olhos fechados, parecia feliz.
A signora Mandelli foi pôr a mesa para o almoço. Desde que a menina tinha entrado naquela casa, tanto Walter como as irmãs vinham sistematicamente almoçar a casa, e Aurora apresentava-se também à hora de jantar. A vida da família Mandelli girava em volta daquele bebé, como a Terra gira em volta do Sol. E, como o Sol, Roberta trouxera um toque de luz para aquela velha casa.
Durante toda a gravidez, Malvina teimara em viver no seu celeiro e programara a ajuda de uma baby-sitter para quando a menina nascesse. Porém, assim que regressou do hospital, apercebeu-se de que não gostava da baby-sitter, que o celeiro na periferia ficava demasiado longe da universidade, que o pai, Susan e os Mandelli achavam fora de mão o percurso até lá. Decidiu então transferir-se para a via Turroni.
- A decisão é tua - reforçou Walter.
- É a melhor - replicou ela.
Entretanto, a moradia tinha sido inteiramente remodelada e modernizada. Malvina sentia-se ali bem. Tinha voltado a frequentar a universidade de manhã, estudava de tarde e à noite saía muitas vezes com o companheiro.
A signora Mandelli, apesar de não o dar a entender, nutria um amor desmesurado pela neta e tremia com a ideia de, um dia, Malvina e o filho lha levarem.
Naquele momento Roberta adormeceu, saciada, e continuou a dormir, enquanto a mãe a limpava e lhe mudava a fralda.
Um a um, foram chegando todos a casa e perguntavam:
- Onde está a Roberta? Como é que ela está?
Depois iam vê-la, extasiados.
Enquanto estavam à mesa, mantinham-se atentos ao sítio onde a bebé estava a dormir e, assim que ouviam um gemido, iam a correr.
- Estão a estragá-la com mimo - dizia Malvina a Walter.
- Tens de entender, são três mulheres sozinhas com uma necessidade desesperada de alguém para amar - respondia ele.
Walter, que se tinha tornado jornalista profissional, tinha a seu cargo uma rubrica de economia. Naquele dia tinha um encontro com um docente de uma universidade privada.
Depois do almoço, preparou o saco e testou o gravador.
- Dás-me uma boleia até à livraria? - perguntou-lhe Malvina, ao mesmo tempo que enfiava num saco fraldas para mudar, um fatinho limpo, toalhitas, chupetas e guizos de plástico.
Enquanto esperava pelas suas habilitações para exercer a profissão de fisioterapeuta, Malvina trabalhava numa livraria de bairro que o pai lhe tinha oferecido. No sótão da casa de Tavernolo encontrou um velho letreiro que adoptou para a loja. A livraria, sabiamente dirigida por Chiara Tizzoni, estava a tornar-se um ponto de reunião das feministas, alternativo à Livraria das Mulheres da via Dogana.
Malvina precisou de recorrer a toda a sua capacidade de persuasão para envolver a amiga naquela empresa, porque Chiara estava decidida a ser professora.
- Porque é que eu hei-de trocar o certo pelo duvidoso? objectou Chiara.
- Ainda vais ter de entrar num concurso, estás cheia de sorte se arranjares um lugar de substituição, e vens-me falar do certo pelo duvidoso?
- Mais tarde ou mais cedo vou conseguir entrar neste bendito concurso.
- Tens a certeza de que queres ser professora? Eu não te vejo seguir com uma obediência cega os programas impostos pelo ministério. És demasiado inteligente e ias acabar por discutir com superiores e com pais. A tua vida está no mundo dos livros.
Chiara sabia que Malvina tinha razão e por isso, quando
a livraria foi inaugurada, ali estava, ao lado dela, a fazer as honras da casa. Agora dirigia o estabelecimento com uma garra #7empi"esar# e apenas consultava Malvina relativamente à escolha de livros a encomendar. Tinha também a ajuda de dois jovens universitários mas era ela a alma da livraria, onde fazia tudo: directora,
dona da casa e mulher da limpeza. O Mocho dispunha de pequenos sofás e poltronas onde os clientes se podiam sentar a tomar um café ou um chá que Chiara ou Malvina lhes ofereciam. A livraria ia de vento em popa e Chiara recebia um salário de respeito.
Walter deixou Malvina e a filha em frente ao estabelecimento. Roberta dormia no berço que a mãe trazia pendurado ao peito.
Malvina ia a entrar na livraria quando se cruzou com um cliente que vinha a sair.
Sorriu, preparando-se para pedir desculpa, mas não conseguiu dizer uma palavra. Era Gianni quem ali estava, à frente dela.
Não o via desde o dia em que, em Tavernolo, ele lhe propusera uma vida conjugal "em castidade".
Malvina sabia que, mais cedo ou mais tarde, ia ter de se encontrar com ele para a conclusão do processo de anulação do casamento, mas não estava à espera de o encontrar pela frente naquela tarde de Setembro.
Já não lhe pareceu aquele rapaz bonito de outros tempos. Trazia uma camisa branca de linho com as mangas arregaçadas até ao cotovelo, umas calças azuis um pouco desbotadas, e emanava dele o mesmo perfume com que a tinha conquistado. O rosto apresentava a palidez de sempre, os olhos azuis por trás de uns óculos de armação pesada eram ainda luminosos, mas tinha um ar cansado, sofredor.
Por um instante pensou que nos braços de Walter, que amava profundamente, nunca sentira as emoções intensas e avassaladoras que vivera com Gianni.
Emoções agora sepultadas sob um mar de papel timbrado, de piedosos relatórios escritos pelos advogados e comentados Pelos poderosos prelados de turno.
Perguntou a si mesma o que teria Gianni ido procurar à sua áraria. - Olá - disse-lhe.
- É teu filho? - perguntou Gianni, sem responder ao cumprimento.
- É uma menina - esclareceu ela.
Segundo a lei, Roberta deveria ter o apelido dos Franzini, pois
o casamento de Gianni e Malvina ainda não tinha sido anulado. Para evitar isso, tinham recorrido ao único expediente possível: Walter reconhecera Roberta como filha, nascida de mãe desconhecida. Por isso a criança apenas tinha pai. Malvina sofrera na pele a estupidez e a injustiça daquela lei.
- Uns amigos comuns disseram-me que estavas grávida disse Gianni, e acrescentou: - A maternidade faz-te bem, ficaste ainda mais bonita.
Viu-lhe nas mãos um romance de Ignazio Silone, A Aventura de um Pobre Cristão que, obviamente, acabava de comprar.
- Vieste aqui para me encontrares? - perguntou-lhe. Roberta acordou, franziu a testa e ia começar a queixar-se.
Malvina não via a hora de se despedir de Gianni, mas ainda não sabia o que ele queria dela.
- Sim, estava à tua espera e comprei um livro ao acaso. Depois, como nunca mais chegavas, resolvi ir-me embora. Vim dizer-te que vou para Bruges frequentar um curso de teologia. Daqui a pouco tempo a nossa história ficará concluída, pelo menos em termos legais. Queria pedir-te desculpa pelo mal que te fiz e desejar-te uma vida maravilhosa - disse, de um só fôlego.
- Espero realmente que o seja, e desejo-te uma vida maravilhosa também a ti. Eu também te fiz mal - respondeu ela.
Instintivamente, estendeu uma mão e acariciou-lhe a face.
- Trata de ti - recomendou-lhe, ao mesmo tempo que pensava que Gianni tinha pronunciado as palavras certas: aquela história, em termos legais, estava quase concluída. Mas nem um, nem outro, a esqueceria nunca.
23
Era véspera de Natal. Roberta tinha quase quatro anos e esperava aquela festa com muita excitação, por causa dos presentes que ia receber.
A mãe contava-lhe que em Tavernolo, quando era pequena, os avós preparavam uma grande árvore de Natal decorada com tangerinas, caramelos e chocolatinhos e iluminada com muitas lampadazinhas coloridas. A iluminação era fonte de litígio entre os avós, porque o avô queria ser ele a tratar disso, recusando a ajuda do electricista, e a instalação fazia regularmente curto-circuito. Então a avó acusava o marido de ser um incendiário que ia acabar por pegar fogo à casa. Finalmente chegava o técnico e arranjava tudo.
- E os presentes? Quando chegam os presentes? - perguntava Roberta.
- Na noite de Natal, enquanto eu dormia, a minha mãe descia do céu e pousava por baixo da árvore muitos embrulhos coloridos cheios de presentes para mim.
Malvina ainda se comovia ao recordar que o pai e os avós tinham inventado para ela essa história que, naquela noite mágica, a fazia sentir a presença da mãe.
As tias, por seu lado, contavam a Roberta a lenda do Pai Natal, que vinha do Pólo Norte, onde tinha uma grande fábrica de
brinquedos e entrava nas casas descendo pela chaminé para levar os presentes.
A avó, finalmente, protestava contra aquelas lendas pagãs e contava-lhe que as prendas eram trazidas pelo Menino Jesus.
Roberta, com o instinto próprio das crianças, tinha resolvido esclarecer o assunto dirigindo-se ao pai, porque só dele ficaria a saber a verdade.
- O mundo é muito vasto, minha querida, e uma pessoa só não chega para contentar todas as crianças. Para algumas vem o Pai Natal, para outras o Menino Jesus e, para outras ainda, são as mães que vivem no céu e que, uma vez por ano, descem à terra com as prendas para os filhos - respondeu ele.
Esta explicação deixou-a satisfeita.
- Mas eu quero que venha o Pai Natal, porque já o vi na televisão e gosto muito dele - disse Roberta.
Walter alugou um fato de Pai Natal com uma grande barriga postiça e umas barbas brancas e escondeu-o no escritório, para o usar na noite de Consoada.
Entretanto, as mulheres da casa enfeitaram as salas com grinaldas, fitas e bolas coloridas. Na sala de estar, as tias tinham preparado uma árvore cintilante de luzes. Em cima do grande aparador da sala de jantar, a avó, com a ajuda de Roberta, pousou as figurinhas de gesso do presépio.
Todos os dias, quando a avó a ia buscar ao infantário, Roberta perguntava-lhe: - Quando chega o Natal?
- Em breve - respondia a avó.
- Em breve é amanhã? - insistia ela.
- Quase - esclarecia a avó.
Naquele ano, pela primeira vez, o pai de Malvina não ia passar o Natal com eles, uma vez que se tinha transferido para Filadélfia com Susan e trabalhava no Hospital dos Pobres da cidade. A filha já não precisava dele, e quando Susan, que se tinha revelado uma companheira inteligente e preciosa, expressou o desejo de voltar a viver nos Estados Unidos, ele fez-lhe a vontade. Na Pensilvânia,
o doutor Leoni descobriu a paixão pelo voo e, depois de ter tirado o brevet de piloto, adquiriu um pequeno avião de turismo.
- Diverte-se imenso a voar - dizia Susan a Malvina, quando falavam ao telefone.
- No próximo ano quero-te aqui no Natal, com o Walter e a minha netinha - disse-lhe o pai, alguns dias antes.
Tinha enviado uma encomenda cheia de presentes que fora imediatamente escondida juntamente com o fato de Pai Natal e as outras prendas.
A seguir ao Natal iam todos para Tavernolo e Malvina e a filha ficariam ali até ao Ano Novo.
Malvina estava grata a Walter, que se revelara um companheiro compreensivo e conciliador, e agradecia ao céu pela serenidade de que gozava.
Claro que tinha de se confrontar com a signora Mandelli que, felizmente, distribuía equitativamente a sua aspereza por todos os membros da família.
Criticava Cristina, dizendo-lhe: - Arranjas-te e pintas-te como uma corista, mas nunca vais conseguir arranjar um marido enquanto não te decidires a amadurecer.
A Aurora repetia: - Agora já passou a idade de teres filhos, mas o que eu não dava para te ver arrumada com um homem honesto, civilizado e se possível abastado.
- Parece-te bem que eu tenha de ter uma neta filha de mãe incógnita só porque a tua companheira não se decide a regularizar a situação dela? - queixava-se a Walter.
- Mãe, pare com isso. Estamos aqui consigo, eu, a Malvina e a nossa filha. Que mais quer da vida? - respondia-lhe ele.
- Que se casem. Olha que Deus vê e não está de acordo com estas modernices vergonhosas.
Com Malvina, a signora Mandelli procurava ser mais diplomática: - Estou espantada com a tua capacidade de adaptação! Vens de outro nível e eu nunca imaginaria que te pudesses afeiçoar a nossa família. Tens sorte, porque o ambiente de que provéns não
liga muito a estas coisas de uma mulher não casar com o pai da filha. Enquanto que nós, no nosso meio pequeno, ficamos um bocado admirados. Sabes como é, as pessoas falam, e seria uma pena se a tua filha, ao crescer, viesse a ser criticada por uma coisa de que não é responsável. Digo isto por dizer, porque tu és mais instruída que eu e sabes melhor do que eu como são estas coisas.
Perto do Natal, no entanto, a signora Mandelli amansou e, na noite de Consoada, acabou por depor as armas.
Depois do jantar, Walter fez de conta que saiu para ir ao jornal. Apagaram-se todas as luzes da casa e as mulheres reuniram-se na sala de estar, onde acenderam algumas velas.
- Agora temos de ficar em silêncio - anunciou Cristina à pequena Roberta, enquanto se instalavam no sofá e nas poltronas. As mulheres traziam vestidos elegantes e a avó, para a ocasião, tinha posto ao pescoço o colar de pérolas que o marido lhe tinha oferecido.
Aurora sussurrou ao ouvido de Malvina: - Se a minha mãe tivesse outra cabeça, a minha companheira também podia estar aqui. Se conseguires, tenta facilitar o meu desaparecimento amanhã, depois do almoço.
Cristina meteu no leitor de cassetes umas canções de Natal e Roberta, que tinha vestido uma camisa de noite de flanela branca e um roupão de lã até aos pés, instalou-se no colo da mãe.
Do jardim chegou o tilintar de uma campainha e a menina levantou-se de um salto, como uma mola.
- Chegou o Pai Natal - gritou.
O som da campainha aproximou-se, e à entrada da porta aberta da sala perfilou-se a figura imponente de um Pai Natal que, com uma voz de barítono, disse: - Sei que mora aqui uma boa menina chamada Roberta.
Trazia ao ombro um grande saco cheio de embrulhos.
A menina, empurrada pela mãe e pelas tias, deu alguns passos receosos em direcção a ele, que entretanto pousou o saco no chão-
- Ora aqui está, estes são os teus presentes. Dá-me um beijo, porque eu tenho de ir embora. Tenho muito trabalho para fazer esta noite.
Roberta foi até junto dele, ele inclinou-se e ela, deu-lhe um beijo na barba brilhante.
- Tens o mesmo perfume que o meu pai - disse timidamente.
Naquele momento tocou o telefone. A avó foi atender e chamou Malvina e Walter aproveitou para desaparecer na escuridão do jardim.
As tias acenderam as luzes e Roberta, feliz, enterrou as mãos no grande saco cheio de embrulhos coloridos.
Malvina tirou o auscultador da mão da sogra e ouviu a voz de Susan a dizer: - O teu pai teve um acidente com o avião. Sinto muito por ti, querida.
24
A sala mortuária do Hospital dos Pobres de Filadélfia era gelada, asséptica, despida e iluminada por uma lâmpada de néon. Havia uma cadeira branca de ferro pintado a um canto. Malvina encostou-a ao caixão do pai e sentou-se.
Observou durante muito tempo o seu rosto, num silêncio atónito, e depois com uma mão hesitante fez-lhe uma carícia na face.
Tinha chegado até ali num tempo recorde, com a ajuda do editor de Walter, que tinha posto a mexer algumas pessoas para organizar uma viagem tão súbita. Reservara para ela e para o companheiro, que não quis deixá-la sozinha, os acessos prioritários para ultrapassar rapidamente todas as formalidades de embarque nos vários aeroportos: de Milão a Paris, de Paris a Nova Iorque, de Nova Iorque a Filadélfia.
Durante as longas horas de voo, Malvina adormecera de vez em quando e sonhara com o pai em situações variadas: com a bata de médico vestida numa enfermaria do hospital, de calções brancos a jogar ténis com ela, dentro de um blusão acolchoado durante um passeio na montanha. Acordava sempre sobressaltada e Walter, ao seu lado, apertava-lhe a mão e sussurrava-lhe: - Gosto muito de ti.
Quando chegaram a Filadélfia, encontraram Susan à espera deles no aeroporto.
- Gosto tanto de ti, pai - murmurou Malvina, que continuava a fitar o rosto do homem que, para ela, tinha sido pai e mãe ao mesmo tempo e que agora a deixara sozinha.
Lembrou-se de quando tinha quatro anos e ele se apresentou em Tavernolo, onde Malvina vivia com os avós, com uma cesta de ; vime. Lá dentro estava um gatinho fulvo com poucas semanas que arregalou para ela dois olhos aterrorizados. Ela ouviu a história do gatinho, que o pai tinha encontrado no parque de estacionamento do hospital, em risco de ser esmagado pelas rodas de um carro em marcha-atrás. Estava sujo, esfomeado, e nem sequer conseguia miar. Ele tinha-o levado para o seu gabinete onde o lavou e alimentou com uma seringa.
- Agora é teu. Aliás, é tua, porque é uma fêmea - disse-lhe.
- Como é que se chama?
- Ainda não tem nome.
- Cunegonda - decidiu Malvina, recordando o nome da princesa de uma história que tinha ouvido recentemente. Pegou nela ao colo e começou a fazer-lhe festinhas. Viveu com ela durante dezasseis anos, entre Tavernolo e Milão. Morreu de velhice no Verão em que Malvina estava nos Estados Unidos e Gianni foi ter com ela para a pedir em casamento.
Aquela era a primeira recordação nítida do homem que agora deixara de viver.
Voltou a ouvir a sua voz quando a prevenia: - Olha que és uma Leoni de nome e de facto, e as leoas são muito corajosas.
Malvina levantou-se da cadeira, fez uma última carícia ao pai e sussurrou: - Eu vou ser forte, pai. Vais continuar vivo e vital dentro de mim.
Saiu da sala e, no corredor, Susan, Walter e os parentes americanos estavam à espera dela. O companheiro abraçou-a sem falar. Ela conseguiu não chorar. Nem sequer chorou durante a cerimónia solene na igreja de S. Francisco, ao lado do hospital. A pobre gente que ele tinha amorosamente tratado e confortado enchia a igreja. Houve declarações de alguns doentes que falaram
do doutor Leoni como de um anjo enviado do céu para os salvar das suas misérias.
- Agradeço-te por teres aceitado que o teu pai repousasse na capela do nosso cemitério - disse-lhe Susan, quando tudo terminou.
- Era justo que assim fosse, Esteve muitos mais anos contigo do que com a minha mãe - respondeu Malvina.
Estavam todos reunidos em casa dos Kellerman e Susan entregou-lhe um envelope. - É da parte do teu pai, para ti.
Continha títulos do Tesouro numa quantia considerável e uma carta do pai que terminava com esta frase: "Usa o dinheiro para te sentires sempre livre nas escolhas que fizeres e, se puderes, não te esqueças da Susan, porque lhe devemos muito, tanto tu como eu. Trago-te no coração. Pai."
À noite, quando todos se retiraram para os seus quartos, Malvina foi bater à porta de Susan.
- Amanhã regresso a Itália, porque a minha pequena Roberta está à nossa espera - começou. E acrescentou: - Tu sabes quanto dinheiro o meu pai me deixou?
Susan assentiu.
- Peço-te que o ofereças ao hospital onde ele trabalhou, arranjando maneira de o serviço de ginecologia ficar com o nome dele.
Susan abraçou-a e disse: - Com a condição de que regresses aqui no dia em que esse serviço for inaugurado.
..":
25
- Tive uma oferta incrível da Esse. Triplicam-me o ordenado e dão-me a categoria de enviado especial - anunciou Walter, que não conseguiu guardar para si aquela notícia e foi a correr à livraria para contar a Malvina.
Esse era um novo semanário, publicado por uma grande casa editora, que tinha como modelo um jornal americano.
Malvina estava no escritório a verificar as contas com Chiara. Ergueu os olhos para ele e sorriu.
- Estás a brincar? - perguntou.
- Eu tenho que fazer - anunciou Chiara. Apressou-se a sair e fechou a porta atrás de si.
Walter sentou-se à frente de Malvina.
- Estou a falar a sério - declarou.
- Em Brescia, na piazza delia Loggia, os fascistas fizeram explodir umas bombas. Há mortos e feridos, a tensão está ao rubro, pode acontecer de tudo no nosso país, e tu tencionas esconder-te numa revista que é um poço de frivolidades! Diz-me que estás a brincar - suplicou ela.
- Nunca falei tão a sério. As greves e as manifestações só por si não resolvem nada. O que está a acontecer no nosso país é uma partida que se joga entre a política e os serviços secretos, e estes mortos têm um único mandante: o Estado. Eu já não acredito no
empenhamento civil e, se queres que te diga tudo, até tenho medo. Já não sei quais são os amigos e os inimigos. Prefiro trabalhar para aquele poço de frivolidades, como tu lhe chamas, do que acabar morto por algum imbecil manobrado pelas marionetas que elaboram as suas estratégias perversas por cima das nossas cabeças.
- Já não te reconheço - sussurrou Malvina.
- Conheces a minha história e a minha família. Não somos heróis ou, se calhar, somo-lo mais do que aqueles que se vão deixar matar, porque temos a força de sobreviver dia após dia, sem nos metermos com o poder, sem levar para casa dinheiro recebido por baixo da mesa, sem armar em delatores, sem entrar em compromissos. É preciso coragem para viver com humildade e com honestidade. E digo-te o que penso até ao fundo: se o nosso país se salvar, será graças a gente como nós que paga os impostos, acredita na poupança, não contrai dívidas e não esconde cadáveres nos armários. Depois do massacre da piazza Fontana e do de hoje, em Brescia, virão massacres ainda piores, os ricos vão ficar cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Eu sou jornalista e conto histórias. Neste momento não me desagrada nada a ideia de me entreter com a descoberta da pílula da eterna juventude e, se me pagam um monte de dinheiro para fazer isso, é lucro para a minha família. Porque é precisamente a família o valor a que me quero agarrar - declarou Walter. Levantou-se e saiu do escritório, batendo com a porta.
Logo a seguir Chiara meteu a cabeça lá dentro e perguntou:
- Houve discussão?
- Depois de termos ouvido a notícia do massacre, pusemo-nos as duas a fazer contas. A cem quilómetros daqui há gente desesperada, com o corpo e o espírito dilacerados, mães que choram, feridos que sofrem, o horror que se espalha, e nós fazemos contas: gastámos tanto, ganhámos tanto - respondeu Malvina, pensativa.
- O que mais havemos de fazer? - perguntou a amiga.
- Invadir as praças e gritar toda a nossa raiva - disse ela, de punhos cerrados.
- E depois? - perguntou Chiara.
- Mas que pergunta vem a ser essa? Falas como se nunca te tivesses batido pela afirmação de princípios sacrossantos - retorquiu Malvina.
- E continuarei a fazê-lo. Após o que ainda tenho de me confrontar com a realidade de todos os dias, fazer as compras no supermercado e pagar a renda de casa. Houve um novo massacre em Brescia, aqui no Mocho há facturas para pagar. Onde é que está a contradição?
- O Walter vai trabalhar para a Esse - sublinhou Malvina, e acrescentou: - A nossa sociedade está um caos e ele põe-se de fora. Estou furiosa! - Pegou na carteira e foi-se embora, enquanto Chiara lhe dizia: - Olha que tu não és nenhuma Joana d'Arc!
Malvina entrou na casa da via Turroni, que estava deserta. Obviamente a avó tinha saído com a neta, enquanto que as duas tias e Walter estavam a trabalhar. Vagueou pelos aposentos daquela velha casa que o restauro tinha só aparentemente melhorado. Os papéis de parede floridos, os espaços acanhados e as portas estreitas aumentaram o seu mal-estar. Perguntou a si mesma o que teria para partilhar com aquele ambiente pequeno-burguês onde uma velha senhora impunha a sua mentalidade limitada, uma solteirona aluada andava constantemente dominada por delírios de amor, uma outra se envergonhava de declarar a sua homossexualidade e o seu companheiro se vendia pela melhor oferta.
E ela nem sequer sabia onde estava a filha. Saiu para o jardim, sentou-se na beira da fonte, apanhou uma mão-cheia de pedrinhas e começou a atirá-las uma a uma para a água onde nadavam dois peixes vermelhos.
Perguntou a si mesma o que tinha feito da sua vida. Tinha havido um novo massacre terrível e não acontecia nada. Os eléctricos continuavam a passar com o seu ruído metálico, as pessoas fechavam-se nos seus pequenos egoísmos pessoais, e ela? Ela tinha perdido o pai, nunca tinha conhecido a mãe, carregava no coração
a amargura de um casamento falhado, se calhar ela própria era um falhanço. Não quisera ser médica, apesar de saber que esse era o maior desejo do pai e do avô materno, e ia-se dividindo entre o estudo e o seu trabalho de livreira.
Como se isso não bastasse, a sua amiga mais querida tinha-lhe dito que ela não era nenhuma Joana d'Arc. Seria essa a imagem que dava de si? Da varanda surgiu Walter, que vinha ao encontro dela com a menina às cavalitas. Sorriam os dois e ela esteve quase a perguntar: "O que é que há para rir? Eu só tenho vontade de chorar!" Mas limitou-se a pegar na pequena Roberta ao colo e dizer a Walter: - Se calhar exagerei. - Percebia que o seu mal-estar não tinha origem nem nele nem nos Mandelli, mas em si própria.
Tinha trabalhado durante anos sobre si mesma, para conseguir aceitar-se tal como era, com as suas contradições, as frustrações, as inquietações que trazia dentro. O que teria desencadeado aquela fúria de descontentamento, de intolerância para com os outros? Tinha o melhor companheiro que poderia desejar, um homem tão compreensivo que não lhe exigia sequer um casamento, que ele tanto desejava, e a deixava livre para fazer aquilo que queria, porque a filha era tratada e protegida pelas "santas mulheres" da casa.
- Chegou a avó! - gritou Roberta, e correu em direcção à varanda.
Walter inclinou-se sobre Malvina, deu-lhe um beijo na face e perguntou: - Já passou a tempestade?
- Acho que sim, mas ainda não veio a bonança - respondeu, e desatou imediatamente num pranto.
Walter abraçou-a.
- Pobre pequena, estás desesperada e eu sei porquê: a morte do teu pai foi uma machadada de que ainda não recuperaste. Tu és uma mulher forte, corajosa, racional, mas os sentimentos, querida, não têm nada a ver com a racionalidade. Agora, finalmente, chegam as lágrimas que devias ter despejado há uns meses, no funeral. Chora, porque precisas, e eu estou aqui para te limpar os olhos.
- Tenho tanta vergonha - sussurrou.
- De quê?
Envergonhava-se da sua fragilidade, daquelas lágrimas tardias que diziam tudo sobre a sua solidão, porque sem o pai se sentia terrivelmente só. Não tinham passado muito tempo juntos e tinham conversado pouquíssimo, mas ele estivera sempre ao seu lado e nunca lhe faltara com o seu apoio. Bastava um olhar, uma meia palavra para se entenderem.
Sabia que Walter a compreendia, mas custava-lhe dividir com ele a sua dor, tal como em geral não era fácil para ela partilhar com os outros os seus sentimentos. E esta dificuldade criava-lhe um mal-estar profundo que não tinha ainda conseguido superar. Assoou ruidosamente o nariz no lenço de Walter, que lhe disse:
- Estás magoada, insatisfeita e desiludida. Se eu pudesse, oferecia-te a lua. Mas tu não ias saber o que fazer com ela.
26
Malvina afastou-se dos Mandelli de uma forma suave e gradual.
Reabriu o celeiro para o usar como escritório, para receber os seus pacientes e para reunir as velhas amigas do grupo. Acontecia-lhe muitas vezes fazer noitadas com elas a discutir, a fazer comunicados e a elaborar programas. Nessas alturas ficava lá a dormir, sabendo que a filha estava em segurança na casa da via Turroni. Os Mandelli tinham o bom gosto de não sublinhar a sua ausência. A avó, de resto, não hesitava em declarar a sua alegria por ter Roberta só para si. Walter ficava calado, mas não estava satisfeito.
- Até quando irás resistir ao meu lado? - perguntou a Malvina, uma noite de Outono, depois de se terem amado no quarto azul da grande casa de Castelverde.
Tinham ido lá passar o fim-de-semana com Roberta, porque queriam que a criança se familiarizasse com aquele lugar.
Quando chegaram, pararam para jantar na Osteria delia Marfisa e Cesira recebeu-os afectuosamente, oferecendo-lhes o melhor do seu menu e sufocando de atenções a pequena Roberta, que se deixou beatificamente mimar por aquele mulherão de seios opulentos.
No fim do jantar, quando a menina estava quase a adormecer, Cesira afastou-se com Malvina e perguntou-lhe: - A Cristina ainda namora com aquele de que me falou no Verão passado?
- Vá directa ao assunto, Cesira - pediu Malvina, que nutria um escasso interesse pelas histórias sentimentais da cunhada.
Recordava o último grande e infeliz amor de Cristina por um jovem recentemente admitido no cartório notarial em que ela trabalhava. Era de Crotone. Tinha-se formado aos trinta e cinco anos com grandes sacrifícios para a pobre família de que provinha e chegou a Milão com o espanto de um menino que vê uma cidade das Mil e Uma Noites.
Chamava-se Domenico, mais conhecido por Mimi, e durante alguns meses tinha ido almoçar à via Turroni, grato por poder sentar-se a uma mesa verdadeira e não a uma mesa gelada de um restaurante qualquer. Dormia num lar de frades Capuchinhos e, apesar de o notário o ter prevenido sobre as miras sentimentais de Cristina, ele continuou a aceitar os convites e a escutar as conversas daquela solteirona lindíssima que estava a viver um sonho de amor novo e arrebatador.
- Aquele só vem aqui para comer - resmungava a signora Mandelli.
- Está enganada, ele ama-me, mas é demasiado tímido para se declarar - replicava Cristina.
Um dia Mimi encontrou uma mulher jovem, separada, sem filhos, professora numa escola secundária, e esqueceu-se da pobre Cristina. Seguiu-se um inevitável rio de lágrimas que ninguém se preocupou em limpar.
- Para ir directa ao assunto - disse Cesira a Malvina -, trata-se de Olmo Malinverni, uma flor de cavalheiro. É viúvo, já passou dos cinquenta e não pensava voltar a casar até que viu a bela Cristina, em Julho passado. É um homem com a cabeça bem assente nos ombros e os bolsos cheios de dinheiro. Ficou muito apaixonado, mas como é um tímido, meteu-me a mim no meio. O que é que eu lhe digo? Que pode ter esperança?
- A Cristina está outra vez sem namorado. Também a conhece, e sabe muito bem que os namorados dela fogem sempre - respondeu Malvina.
- Mas agora é a sério, digo-lho eu, que respondo pela seriedade deste homem - replicou Cesira.
- Eu falo com ela - rematou Malvina.
Ela, Walter e a menina regressaram a casa com um saco de provisões para o pequeno-almoço do dia seguinte. Os pais meteram Roberta na cama e depois refugiaram-se no grande quarto azul.
Fizeram amor com felicidade, como sempre, e depois Walter perguntou-lhe até quando ficaria ela ao seu lado.
- Sabes muito bem que não tenho outras histórias - respondeu Malvina.
- E eu também não tenho, mas chegou o momento de perceber o que queremos fazer. Tu regressas a casa uma vez sim e três não e eu começo a alimentar algumas dúvidas sobre a estabilidade da nossa relação - disse Walter.
- Temos mesmo de falar sobre isso agora? É quase meia-noite
- objectou ela, sufocando um bocejo.
Malvina não partilhava daquela ansiedade de Walter, porque lhe parecia que a vida deles estava a correr da melhor maneira. Não gostava da entediante monotonia da vida de casal e estava convencida de que, ao verem-se menos vezes, cada um deles poderia dar o melhor de si.
E era realmente assim. Mas os bons costumes requeriam que um homem e uma mulher, com uma filha, vivessem sob o mesmo tecto, se possível regularizando a sua relação.
Ao fim e ao cabo, era mesmo isso que Walter queria. Mas a ela não lhe apetecia fazer-lhe a vontade.
Walter vestiu o pijama e entrou no quarto ao lado para verificar se Roberta dormia sossegada. Depois regressou para junto de Malvina.
- Contigo nunca há um momento para falarmos do nosso futuro - observou, ao mesmo tempo que acariciava o rosto da companheira.
- Já é muito conseguirmos aguentar-nos no presente. Porque é que temos também de nos preocupar com o futuro? - perguntou ela.
- Repara que estás a falar por ti, mas não te esqueças de que eu também existo, e a nossa filha. Comportas-te como se no centro do universo estivesses só tu e tudo devesse girar à tua volta. Parece-te aceitável?
Naquele momento ela recordou o comentário de Chiara, a sua amiga mais preciosa: "Olha que tu não és nenhuma Joana d'Arc!" Aquelas palavras tinham-na atingido e obrigado a reflectir.
- Eu não sei decidir - confessou.
- Tu não queres decidir e estás à espera que aconteça alguma coisa. Sabes muito bem aquilo que eu penso e estás a ganhar tempo, à espera que o acaso decida por nós. Mas todas as acções são determinadas pela nossa vontade, e a tua é a de escapar a ligações demasiado absorventes. Se queres afastar-te de mim, eu não vou mexer um dedo para te impedir, mas dói-me a alma.
- O que é que tu estás a dizer? Nós os dois nunca vamos poder separar-nos, porque temos a nossa filha, que nos mantém unidos
- replicou, lançando a Walter um sorriso irresistível. Depois levantou-se da cama e disse: - Vou preparar uma tisana.
Encontraram-se no pátio, sob as estrelas, a bebericar uma infusão de ervas aromáticas, no silêncio do campo.
Estavam ambos calados, mergulhados nos seus pensamentos. Depois Walter argumentou: - Tu conheceste-me num momento em que precisavas de certezas. Construíste a nossa relação sobre os escombros do teu casamento, mas os escombros ainda lá estão. Nunca saberás o que queres verdadeiramente enquanto não te libertares do passado.
- Tive uma filha contigo e garanto-te que, para mim, não foi fácil - sublinhou Malvina.
- Eu sei, e apercebo-me de que também não é fácil para ti fazeres de mãe.
- As mulheres aprendem a ser mães seguindo o exemplo da sua própria mãe. Eu nunca tive uma mãe que me transmitisse um modelo de maternidade. Adoro a minha menina, mas nunca tenho completamente a- certeza de me comportar de uma maneira correcta com ela. No entanto, acho que lhe transmiti uma certeza: a Roberta sabe que eu estou sempre disponível para ela. Quanto a nós os dois, estou-te grata por uma infinidade de razões que tu nem sequer imaginas, mas tenho necessidade do meu espaço, que não está previsto numa normal vida a dois. Sinto-me feliz por te ver, por te amar, por estar contigo, mas tenho de poder dispor da minha liberdade. Sinto muito, mas a vida de casal da maneira como tu a entendes não é conciliável com a minha maneira de ser, não faz sentido para mim - explicou.
- Para a minha mãe e para o meu pai fazia sentido - observou Walter.
- Claro! Dependiam um do outro. Foi assim que nasceu a instituição do matrimónio e é assim que continua a sobreviver. Se tu escutasses as teorias que eu ouço todos os dias aos meus doentes, davas-te conta da quantidade de mulheres que passariam de boa vontade sem os seus maridos e vice-versa. Normalmente, o mais fraco agarra-se ao mais forte para atingir alguma segurança. Às vezes, o mais forte satisfaz a sua necessidade de protagonismo ao acolher o mais fraco debaixo da asa. Walter, nós os dois não temos necessidade nenhuma de nos ligarmos através de um contrato matrimonial, tanto mais que nem tu, nem eu, mudaremos os nossos ritmos de vida. Aquilo que nos une até que a morte nos separe é a nossa filha.
- E vai ter de me bastar, embora eu pense de outra maneira sussurrou Walter, ao mesmo tempo que puxava Malvina para si e a beijava com ternura. E acrescentou: - Amo-te, princesa.
- Eu também te amo, meu querido - sussurrou ela. "V" Entraram em casa, subiram as escadas e, sentada no último
degrau, estava Roberta a chorar.
- O que é que estás a fazer aqui a esta hora? Porque choras? perguntou Malvina.
Walter pegou nela ao colo e levou-a para o quarto azul.
- Acordei e vocês não estavam aqui - soluçou a criança.
- Estávamos lá em baixo e tu podias ter-nos chamado - censurou a mãe.
- Vocês dizem-me sempre que de noite tem de se dormir e não incomodar - defendeu-se Roberta.
Walter pousou-a na cama. Ela bocejou e voltou a adormecer imediatamente, feliz por poder estar na cama grande entre a mãe e o pai.
27
Passou um ano, e Malvina nunca imaginaria que uma tarde quente de Setembro, temperada com agradáveis lufadas de ar fresco, lhe reservasse duas surpresas desagradáveis.
O seu ex-analista, o professor Bianchi, tinha-lhe oferecido um espaço no seu consultório da via Salvini, no coração de Milão, para receber os seus doentes que evitavam assim uma viagem até Lambrate.
Assim, naquela tarde, Malvina chegou à via Salvini para mais um dia de trabalho. Ao fim da primeira consulta, a secretária passou-lhe uma chamada particular.
Perla Franzini, a irmã mais nova do ex-marido, disse-lhe:
- Preciso de estar contigo.
Há muitos anos que Malvina não tinha qualquer contacto com a família de Gianni, e aquele pedido deixou-a perplexa. No entanto, consultou rapidamente a agenda e respondeu: - Dá-te jeito encontrarmo-nos na terça-feira da próxima semana?
- Malvina, preciso de estar contigo já - insistiu Perla.
- É impossível. Tenho uma consulta atrás da outra e só acabo às seis horas - respondeu. E acrescentou: - A seguir tenho de ir a correr para a livraria, e logo à noite tenho um jantar com o meu editor.
Uma editora tinha publicado o seu ensaio sobre o feminismo e, precisamente naquela noite, o editor ia entregar-lhe um exemplar do livro que acabara de sair.
- Por favor! - sussurrou a jovem, e acrescentou: - Há dois dias que ando para trás e para diante na via Salvini, à espera de te encontrar. Preciso de ti.
Malvina rendeu-se.
- Há um café com umas mesinhas cá fora, mesmo aqui por baixo - disse.
- Eu sei. Estou a ligar-te desse café.
- Encontramo-nos às seis horas - prometeu.
A essa hora Malvina despediu-se de um casal de meia-idade que tinha atingido um nível de intolerância recíproca insustentável. Aquele era um caso dos que vêm nos livros: marido e mulher que se detestam, mas não se separam, porque têm necessidade de se odiar dia após dia para dar um sentido à sua vida.
Perla estava à espera dela, sentada a uma mesa. u
- O que foi que te aconteceu? - perguntou-lhe, sentando-se à frente dela.
- Tudo e mais alguma coisa - respondeu, angustiada. Malvina lembrava-se dela adolescente. Era uma rapariguinha
curiosa, desenvolta, que brilhava pela espontaneidade.
- Vamos tomar qualquer coisa? - perguntou-lhe. Pediram chá frio e depois Perla sussurrou: - Estou grávida. Seguiu-se um instante de silêncio, em que Malvina pensou
que aquele era o pior problema que podia acontecer na família Franzini.
- Os teus pais, obviamente, não sabem.
- E quem é que me dá coragem para lhes dizer? - Estava quase a chorar.
- O que esperas tu de mim?
- Uma sugestão.
- Conta-me tudo desde o princípio.
A
- É o marceneiro que trabalha para o meu pai. Chama-se Giorgio, tem quarenta anos, é lindo, fascinante e solteiro. Mas, quando eu lhe disse que estou à espera de um filho dele, respondeu-me que não tenciona casar comigo. De resto, agora já nem eu o queria para marido. Ajuda-me, por favor - implorou, desesperada.
Malvina acariciou-lhe os cabelos, pagou a despesa, levantou-se e disse: - Vou levar-te a casa.
- Queres falar com os meus pais? - perguntou Perla, assustada.
- Duvido que me abrissem a porta. Mas tu vais falar com eles e explicar-lhes a situação tal como me explicaste a mim. Chegou o momento de a tua família acordar daquele torpor medieval. Têm de perceber que as pulsões sexuais de uma rapariga saudável não têm nada a ver com pecado. E se quiseres ter a criança que trazes no ventre, não deves ter vergonha por isso; pelo contrário, deves sentir orgulho na tua maternidade.
Tinham chegado à piazza San Babila e viraram na via Durini.
- Não vai ser fácil, Malvina - sussurrou Perla.
- Eu também não disse que era, mas sei que és capaz - encorajou-a.
- Lembro-me da dor que vou provocar à minha família e falta-me a coragem - disse, e acrescentou: - Se ao menos o Giorgio se tivesse comportado como o Gianni contigo.
Malvina estacou, segurou a rapariga por um braço e perguntou-lhe: - O que queres dizer com isso?
- Ele casou contigo para remediar aquilo que tinha acontecido entre vocês. Pelo menos, foi isso que eu percebi dos sussurros domésticos. Ele tinha-te induzido ao pecado e por isso devia remediar a situação com o casamento - confessou candidamente.
Malvina ficou sem fôlego por um instante. Depois reagiu: Minha querida, deixa ver se eu entendo. O teu irmão pediu-me em casamento porque tínhamos feito amor?
- Eu era uma miúda nessa altura, mas lembro-me que o Gianni falou durante muito tempo com o confessor que foi ter com ele e com os meus pais. Depois partiu para ir ter contigo aos Estados Unidos e pedir-te em casamento - contou Perla, que não entendia o espanto de Malvina.
Ela recordou a sua relação com Gianni, o quanto o tinha amado e como se tinha sentido feliz quando ele a pedira em casamento. Agora descobria que o tinha feito para remediar o pecado de a ter seduzido. Mais uma vez, à distância de anos, sentiu as fisgadas da humilhação, e mais uma vez o detestou.
Depois reencontrou a sombra de um sorriso e disse: - Vai para casa. Não te deixes intimidar, não te sintas culpada e, se queres esse filho, agarra-o bem. Prepara-te para lutar por ele. Não desistas, Perla! E lembra-te: eu estou aqui sempre que precisares de mim.
Depois de a ter deixado, Malvina dirigiu-se à piazza Duse, onde tinha estacionado o carro.
Entrou no carro, ligou o motor e virou na via Salvini, mas foi obrigada a travar de repente porque um Porsche preto se meteu à frente dela para parar logo a seguir diante de um portão. Do carro saíram uma bonita rapariga loira, muito vistosa, e um homem que lhe pôs um braço à volta dos ombros e, abraçando-a com força, entrou com ela no edifício.
O homem era Walter Mandelli.
28
Não foi assim tão emocionante ter nas mãos o seu primeiro livro que, no entanto, lhe tinha custado uma longa pesquisa e um trabalho árduo.
Estava sentada com o editor e os seus colaboradores mais chegados numa mesa isolada de um restaurante, no centro de Milão, e conversavam sobre a campanha promocional para o lançamento do ensaio. Ela ouvia, respondia às perguntas, anuía, sorria e, entretanto, observava Walter, que tinha querido estar presente naquele jantar tão importante para ela. Perguntava a si mesma até quando ia continuar a esconder aquela história com a loira do Porsche.
- A Malvina não só é uma psicoterapeuta genial, como também é uma mulher extraordinária. Quando a conheci, fiquei literalmente fascinado com ela. Passaram muitos anos, tivemos uma filha e eu continuo a considerá-la irresistível - dizia Walter.
Malvina corou e os presentes apreciaram aquela manifestação de modéstia. Na realidade, o rubor era provocado pelo esforço para conter a ira.
Aquele infame, que poucas horas antes tinha entrado num prédio abraçado a uma loira de gritos, tecia agora os seus elogios como se ela fosse a única mulher da sua vida.
A experiência terapêutica ensinara-lhe como era profunda a capacidade de mentir de certos homens. Mas ela nunca teria pensado
em incluir nessa categoria o pai da filha. Até porque Walter sempre se comportara como se a amasse tão intensamente que a fazia sentir culpada pela recusa de legalizar aquela união. Naquele momento percebeu que tinha passado muito tempo desde a última vez em que tinha feito amor com ele. Malvina tinha perfeita consciência da sua escassa predisposição para o sexo, ao contrário de outras mulheres, para as quais o exercício do amor é uma necessidade quotidiana.
No entanto, ao imaginar o pai da filha na cama com outra mulher, foi acometida por uma onda de amargura, de ciúme e de desilusão.
Se Walter lhe tivesse confessado que tinha um caso com outra mulher, ela teria apreciado a lealdade e talvez se tivesse finalmente decidido a casar com ele, para o reconquistar. Mas Walter mentira-lhe e ela devia agora medir forças com aquela nova realidade.
Antes de ir jantar com o editor, Malvina foi à via Turroni mudar de roupa. Roberta já tinha jantado e estava à espera da mãe para ela lhe ler uma história. A menina viu-a, saltou-lhe para o pescoço e Malvina apertou-a contra si, esquecendo aquela tarde horrível.
- É verdade que hoje à noite tu e o pai vão jantar fora com um ditador que te vende o livro? - perguntou Roberta.
- Um editor, querida, não um ditador - corrigiu-a.
- Com o dinheiro do livro compras-me Estrunfes?
- Os Estrunfes são um prémio para quando cumpres as tuas obrigações, e o dinheiro do livro não tem nada a ver com isso.
Malvina subiu com Roberta ao primeiro andar, levou-a para o quarto, meteu-a na cama e depois sentou-se ao lado dela e abriu o livro das histórias. Começou a ler e pouco depois Roberta adormeceu. Malvina ficou algum tempo a observá-la, invadida por uma ternura infinita. Roberta era a sua menina, lindíssima, e ela amava-a com toda a alma.
Depois saiu em bicos de pés e enfiou-se no seu quarto para mudar de roupa.
Vestiu uma blusa de seda branca e umas calças pretas.
Walter regressou a casa no momento em que ela descia as escadas e ficou imóvel, durante uns segundos, a olhar para ela com admiração.
- És linda de morrer - disse-lhe. Malvina preparou uma resposta fulminante, mas conteve-se e
dirigiu-lhe um sorriso glacial. Ele não se apercebeu da frieza que emanava da companheira.
- Vou mudar-me num instante e já vamos - acrescentou, ao mesmo tempo que começava a subir as escadas.
Agora, diante do editor, tecia-lhe grandes elogios.
Os empregados estavam a servir o café quando Malvina se levantou da mesa de repente e disse: - Peço desculpa, mas tenho mesmo de ir.
Saiu do restaurante em passo de marcha, deixando os seus convivas perplexos.
A responsável pelo gabinete de imprensa sussurrou ao ouvido do editor: - Os psicanalistas são doidos.
Então Walter despediu-se apressadamente de toda a gente e precipitou-se para fora do restaurante, para ir atrás da companheira.
Malvina estava à procura de um táxi. Walter agarrou-a por um braço.
- Queres dizer-me o que se passa? - perguntou-lhe.
Ela libertou-se da mão dele e berrou: - Não me toques com essas manápulas sujas!
- És doida?
- Estou furiosa e enojada.
- Mas o que é que se passa? - perguntou, aflito.
- A tua relação comigo acabou definitivamente.
- Porquê? O que foi que eu te fiz?
- És um mentiroso. Em público, teces-me grandes elogios e, às escondidas, entreténs-te com outras mulheres - gritou Malvina.
- Oh, meu Deus! - sussurrou Walter.
Um táxi parou ao lado do passeio e Malvina entrou rapidamente, dando o endereço da via Turroni.
Walter conseguiu enfiar-se no táxi, ao lado dela.
Ficaram ambos calados até que o automóvel parou em frente à casa dos Mandelli. Walter pagou ao taxista e foi ter com Malvina, que procurava desesperadamente as chaves do carro na carteira.
- Não te deixo ir embora assim - disse ele, que não ousava tocar-lhe.
- Está tudo acabado entre nós - afirmou ela, com uma voz firme.
- Se quisermos dizer tudo como deve ser, está tudo acabado há algum tempo. Nesta casa, tu só estás quando te apetece. Há quanto tempo não fazemos amor, eu e tu? Diz-me! Pretendes de mim sinceridade, mas será que tu és sincera comigo? Tanto quanto eu sei, podias ter outro homem. Não tenho espírito de polícia e não investigo. Tinha-te prometido, há muitos anos, que te deixava livre de fazeres as tuas escolhas, e tu escolheste a vida de mãe solteira. Vais e vens como e quando te apetece. Porque é que eu não posso fazer a mesma coisa?
- Porque eu não ando metida com ninguém, e tu andas.
- Pois muito bem. Eu agora ando com uma rapariga. Não estou apaixonado por ela, porque só te amei e só te amo a ti. Por que razão havia de te dizer? Malvina, por amor de Deus, tu não estás interessada em fazer amor comigo!
- Traíste a minha confiança.
- E tu as minhas expectativas de uma vida a dois. Mas o que é que tu queres de mim? Não queres casar comigo porque tens medo de ligações, não queres fazer amor, mas sentes-te humilhada porque eu tenho um caso. Muito bem, queres sinceridade e eu vou
ser sincero até ao fundo. Tive outros casos, que duraram poucos mas Sou um homem e gosto de mulheres!
Malvina foi obrigada a reconhecer que Walter tinha razão. No entanto, rebateu: -
- Nunca mais durmo na tua cama. >
- Como quiseres, princesa - respondeu ele, com uma voz gélida.
- Volto para minha casa - disse ela, ao mesmo tempo que abria a porta do carro.
- E eu vou buscar o meu carro, que está em frente ao restaurante - respondeu ele.
Quando ia a entrar no carro, Malvina abriu os braços e sorriu-Ihe, dizendo: - Vá, anda cá.
Ele foi ter com ela e abraçou-a. -
- Discutimos, foi? - perguntou ele.
- Mais do que outra coisa, esclarecemos as ideias - precisou ela, e acrescentou: - Amigos?
- Inseparáveis, daqui até à eternidade - garantiu Walter.
29
Malvina deixou para Chiara o fecho da livraria, passou por casa dos Mandelli para ir buscar a sua filha e, com ela, seguiu a estrada para Tavernolo.
- A avó ensinou-me uma canção do tempo dela - anunciou
" Roberta. - Se quiseres eu canto-ta. Ouve: "Fiorellin dei prato, mesi sager d'amore, bacia Ia bocca che non hai mai baciato"... O que quer dizer messager?
- O mensageiro é alguém que conta alguma coisa a alguém. Continua, porque eu gosto dessa cançãozinha.
Chegaram a casa a cantar.
Diante da casa, Malvina estacionou o carro ao lado de um
Mercedes.
- A avó tem visitas - disse Malvina à filha.
Naquele momento Venere apareceu à porta. - Está aqui uma pessoa à sua espera - sussurrou para Malvina, e depois voltou-se para Roberta: - Os ovos abriram e nasceram muitos pintainhos. Venha ver como são bonitos! Parecem umas bolinhas douradas.
Malvina percebeu que Venere queria afastar a menina. Entrou em casa, mas não encontrou ninguém. Saiu para o pátio. Primeiro viu em cima da mesa, dentro de um cesto, um arranjo de fruta que parecia inspirado num quadro flamengo. Depois, enterrado numa poltrona, viu Alessandro Franzini, o ex-cunhado que se tinha
transferido para a África do Sul alguns anos atrás. Ele levantou-se foi ao encontro dela e abraçaram-se.
- Há uns anos tinhas pedido um empréstimo a um grande produtor de fruta e trouxeste-me um cesto igual a este - disse Malvina.
- Agora sou muito rico e paguei a pronto - brincou Alessandro.
- Fico contente por voltar a ver-te - disse, olhando-o afectuosamente. Impressionou-a a expressão serena do rosto bonito de Alessandro e alguns fios brancos pelo meio dos cabelos muito negros. Recordou o encontro com Perla e perguntou a si mesma se a chegada do irmão da África do Sul não teria alguma coisa a ver com o problema da irmã.
- Como foi que soubeste que eu vinha para cá? - perguntou-lhe.
- Pela tua livreira. Nem vale a pena dizer-te que a tua avó me abriu os braços e que depois se afastou com uma outra convidada.
- Mas que mistérios vêm a ser estes? - perguntou Malvina, ao mesmo tempo que se sentava num cadeirão à frente de Alessandro.
- Como sabes, há uma nova borrasca em nossa casa.
- Referes-te a Perla? Foi por causa dela que regressaste a Itália?
- E porque mais havia de ser?
- Os vossos pais levaram a mal - constatou.
- Pessimamente, e a Perla pediu-me para a ajudar.
- A desonra - sussurrou Malvina, com amargura.
- Mãe, mãe, anda ver os pintainhos - gritou Roberta, que veio a correr em direcção à mãe.
A criança parou e observou com curiosidade aquele desconhecido.
- Vem cá, querida - disse a mãe. - Ele chama-se Alessandro. É um grande amigo meu.
- Também queres ver os pintainhos da avó? - perguntou a menina. Os dois ex-cunhados decidiram fazer-lhe a vontade. Enquanto acompanhavam Roberta até ao galinheiro, Malvina recordou o dia em que Alessandro tinha ido visitá-la, antes de sair
de Itália. Nessa altura era um homem desesperado, mas agora parecia-lhe tranquilo e feliz.
De resto, nas cartas que, de vez em quando, lhe escrevera ao longo daqueles anos, tinha-lhe falado de si, da companheira de quem tinha tido um rapaz, do escritório de advogados onde trabalhava, o mais importante da Cidade do Cabo, e do qual se tinha tornado sócio. Na última carta, que datava de um ano atrás, tinha-lhe escrito: "Tenho saudades do meu país. Queria ver Milão, a minha família e os meus amigos, mas acho que nunca mais volto a viver em Itália."
Perla e a avó foram ter com eles. Tinham visitado a ala desabitada da casa e Perla descobrira um berço de baloiço em ferro forjado.
- Gostei muito dele e a tua avó decidiu oferecer-mo - explicou a rapariga a Malvina, depois de a ter abraçado. Depois voltou-se para o irmão e perguntou: - Achas que se pode despachar para a Cidade do Cabo? Gostava que o meu bebé dormisse nele.
Era essa a razão da viagem de Alessandro Franzini: tinha ido buscar a irmã para a levar com ele para a África do Sul.
Depois de jantar, quando Roberta tinha já ido dormir e a avó se retirara, os ex-cunhados ficaram a conversar debaixo de um céu estrelado.
- Sabes, a Perla é uma discreta especialista em matéria de antiquários. Acho que tem grandes possibilidades de sucesso na Cidade do Cabo - explicou Alessandro.
- Ele vai-me ajudar a iniciar uma actividade - disse Perla. A profissão do meu pai sempre me fascinou. Devo dizer que deixo com alívio a universidade que frequentava só para fazer a vontade aos meus pais. E com a sua bênção! - exclamou, satisfeita.
Malvina sorriu. Ao fim e ao cabo, o problema de Perla tinha-se resolvido de uma maneira menos dramática do que o previsto.
- Aconteceram muitas coisas nesta casa. Das boas eu conservo uma recordação luminosa, as más tiveram ainda assim um efeito positivo, porque me levaram a mudar de vida. A ti, Perla, está a
acontecer a mesma coisa. Agora o teu caminho vai mudar de direcção e vais começar uma vida nova - disse à jovem.
- Sempre gostei de ti, sabes? - disse Perla, mudando de assunto, porque ainda não ousava olhar para demasiado longe no tempo.
- Eu também sempre gostei de ti - replicou Malvina, com uma ponta de melancolia, porque tinha quase a certeza de que aquele ia ser o último encontro.
30
Malvina aceitou a ajuda de um arquitecto para decorar o celeiro por altura do aniversário da filha.
Roberta fazia quinze anos e os amigos estavam a chegar aos poucos, acompanhados pelos pais que os levavam de carro.
- Este luxo vai custar-te uma fortuna - observou Walter, que trazia embrulhos com pizzas, canapés e tortas salgadas.
- Vou contar-te tudo - disse ela, ao mesmo tempo que o conduzia para o jardim, onde havia uns confortáveis cadeirões de vime. Sentaram-se, ele acendeu um cigarro e preparou-se para ouvir.
- Vou vender tudo - anunciou Malvina.
- Tudo, o quê?
- Tudo isto - explicou, com um gesto abrangente.
- Porquê? - perguntou, curioso.
- Cresci. Tenho trinta e cinco anos, percebes? O celeiro já não dá para mim.
- Nunca foste tão jovem e tão bonita - declarou Walter, acariciando-a com o olhar.
- Estás a fazer-me a corte? - perguntou ela, num tom malicioso.
Uma Primavera precoce tinha feito florir nos canteiros os jacintos azuis e as prímulas amarelas.
Malvina trazia um casaco azul de lã sobre uma saia ampla de flores. Uma fita de seda prendia-lhe os cabelos fartos e ondulados.. - Nunca deixei de te fazer a corte, princesa - sublinhou Walter.
- Se a tua professora te ouvisse, não ia ficar contente - admoestou-o, aludindo a uma nova relação de Walter com uma docente de Letras.
- Ela não tem nada a ver connosco - rematou ele, um pouco embaraçado.
- Portanto, como eu estava a dizer, vou vender isto. O arquitecto que decorou esta festa compra tudo. Diz que quer transferir para aqui o atelier. Agarrei a oportunidade do aniversário da Roberta para encerrar em beleza um capítulo da minha vida e, para dizer mesmo tudo, um capítulo que me desiludiu um pouco. Eu e as minhas companheiras acreditávamos que podíamos mudar o mundo, lutámos, escrevemos livros, organizámos seminários... não adiantou nada - confessou, com um ar melancólico.
- Adiantou, e de que maneira! - tentou ele confortá-la.
- Sim, para publicar nas primeiras páginas dos jornais uns nus femininos. Por amor de Deus! A grosseria alastra, nós mulheres contamos cada vez menos e a imagem que oferecemos de nós próprias é a de um bando de galinhas sem cérebro. Enquanto os homens formarem equipa contra nós, seremos sempre os seus brinquedos. Cinema, televisão e jornais oferecem de bandeja ao público sexo e violência. Não era este o futuro que eu sonhava entregar à minha filha. Por isso me retiro em boa ordem, sentindo-me muito frustrada.
- Mas não domada. Eu conheço-te. A propósito, para onde vais?
- Regresso a Tavernolo. A avó não está bem e precisa de mim. A nossa filha já está crescida e fica bem entregue em tua casa. O nosso grupo dissolveu-se. Uma das minhas companheiras mais queridas foi a um cirurgião plástico para refazer o nariz, outra apanha do marido e fica calada... agora pergunto a mim mesma até que ponto acreditariam nas ideias pelas quais nos batemos. Sinto-me muito amargurada - sussurrou.
- Anda cá, minha querida. Deixa-me abraçar-te - disse Walter, ao mesmo tempo que a apertava contra si com ternura.
Roberta e a sua amiga Ines surpreenderam-nos naquela atitude afectuosa.
- Aqueles dois, quem os entenda... - murmurou Roberta.
Ao ver as duas raparigas, Malvina soltou-se do abraço de Walter.
- Não vos encontrava e vim à vossa procura - justificou-se Roberta, e continuou: - Agora vamos ter com os nossos amigos.
- Espera, pequenina. Quero dar-te o meu presente de aniversário - disse Malvina, ao mesmo tempo que lhe entregava um embrulho que estava pousado num cadeirão. - É o saco-cama que querias para as férias deste Verão - explicou à filha.
- Há pelo menos três anos que eu também quero um, e os meus pais fazem ouvidos de mercador porque custa um dinheirão
- exclamou Ines.
- Eu empresto-to, porque se não que sentido faz ter amigas? replicou Roberta depois deu um beijo a Malvina e sussurrou-lhe:
- Obrigada, mãe. Agora já podemos ir?
- E o meu presente, não o queres? - perguntou Walter, enquanto lhe metia um estojo na mão. Era uma bússola que lhe serviria para se orientar na montanha, onde ia passar as férias de Verão com os escuteiros.
Roberta agradeceu ao pai e repetiu: - Vamos ter com os nossos amigos.
Tinha combinado com os pais que os adultos não participariam na festa.
- Eu e o teu pai vamos dar uma volta. Está bem para ti se voltarmos às dez? - perguntou Malvina, dirigindo-se à filha.
- Tão cedo!
- Pode ser às onze? - interveio Ines. :
- E nem mais um minuto - rematou Walter. n As raparigas afastaram-se a rir. Ele olhou para Malvina e perguntou-lhe: - Onde é que vamos até àquela hora? E depois, quem é que toma conta desta rapaziada?
- Olha, estão a chegar reforços! - exclamou Malvina, ao mesmo tempo que indicava o automóvel de Carlin, que estava a estacionar à frente do celeiro.
- Assim está melhor - disse Walter, mais tranquilo. Pousou-lhe um braço nos ombros e prosseguiu: - Apetece-te ir jantar a um restaurante tranquilo no campo?
- Talvez perto de Mântua, onde há uma tal Cesira? - perguntou Malvina.
- Pode ser - respondeu ele, abrindo a porta do carro e ajudando-a a entrar.
Para Malvina foi um regresso ao passado. Aquele campo plano, com os seus horizontes infinitos e os cheiros pesados de terra fértil e estrume que impregnavam o ar, tinha sido testemunha da sua história de amor com Walter.
Cesira, já envelhecida, supervisionava a cozinha e dava ordens às mulheres que andavam à volta dos fogões. O marido tinha morrido alguns anos atrás e aquele restaurante rústico estava a transformar-se num templo da gastronomia, sob a orientação dos dois filhos, que tinham estudado na escola de alguns chefes importantes.
Quando soube que Walter e Malvina tinham chegado, foi cumprimentá-los com a cordialidade festiva que lhe era habitual, raiada, no entanto, por uma sombra de cansaço. Levou-os até à melhor mesa, perto da lareira, e depois regressou ao seu reino no meio dos fogões.
- Tenho pena que este restaurante se tenha tornado um sítio de moda - disse Walter.
- E a vossa casa de família? - perguntou Malvina.
- É a Aurora que trata dela. Vem cá muitas vezes, com a companheira. Acho que também a remodelaram. Nada está já como noutros tempos - lamentou-se.
- Nem mesmo nós - observou ela.
- Fala por ti. Eu sou o mesmo de sempre e continuo a amar-te
- afirmou Walter.
- Nós temos uma relação perfeita, somos verdadeiros amigos. Achas pouco? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que lhe acariciava uma mão.
Um empregado serviu-lhes tortelli de abóbora "revisitados" que cheiravam a anis e a menta. - És tão jovem e tão bonita! Como é que podes não sentir necessidade de um companheiro? perguntou-lhe Walter.
- Provavelmente as minhas hormonas estão adormecidas ou, como tu dizes, sou complicada.
- Pois, é isso.
- Às vezes pergunto a mim mesma o que vou fazer quando for grande, e não encontro uma resposta. No entanto, se andasse para trás no tempo, sei que evitaria o meu primeiro marido, mas nunca renunciaria a ti. Foste um companheiro perfeito, apesar de me teres desiludido bastante quando passaste do jornalismo empenhado para o frívolo. Agora, porém, estou convencida de que fizeste uma escolha honesta: mais vale tratar de loções para o cabelo do que obsequiar os poderes corruptos que envenenam o nosso país.
- É um bonito elogio.
- Sinto-me feliz por tu seres o pai da Roberta - sussurrou ela
com ternura.
- O que vais fazer em Tavernolo? Não te imagino a dedicares-te à jardinagem.
- Não sei. Estou a seguir o meu instinto, que me sugere a reapropriação das minhas raízes. Em qualquer caso, continuarei a tratar da nossa filha e de ti, e também vou acompanhar a livraria e manter o meu consultório na via Salvini.
Quando saíram do restaurante foram recebidos pelo frio nocturno de Março. Malvina sentiu um arrepio e Walter abraçou-a para a aquecer. Os seus rostos tocaram-se e os lábios uniram-se num beijo doce e terno.
31
Como uma matrona opulenta, Julho pavoneava-se nas cores berrantes e nos perfumes das flores e dos frutos que se ofereciam ao calor do sol. O zumbido dos insectos e o canto monótono das cigarras enchiam o ar.
Malvina parou o carro em frente a casa, saiu, tirou da mala o saco desportivo e deu a volta ao edifício, sabendo que ia encontrar a avó no pátio.
A velha senhora ergueu o rosto do croché que a mantinha entretida durante uma grande parte do dia e sorriu à neta que avançava em direcção a ela. Admirou a sua silhueta esguia, as pernas compridas e harmoniosas que surgiam da saia branca muito curta. Malvina tinha ido jogar ténis com os amigos e a roupa apresentava vestígios de terra vermelha.
- Como é que correu? - perguntou a avó.
- Como de costume: o Sérgio e o seu amigo Usuelli destroçaram-nos, a mim e à Federica. Detesto-os! - declarou, deixando-se cair, exausta, no cadeirão ao lado do da avó.
Da cozinha chegava o perfume penetrante dos damascos e das cerejas que Venere e Carlin cozinhavam para transformar em requintadas compotas.
- Talvez odeies o Usuelli, mas não o Sérgio, de quem gostas muito apesar de não o quereres admitir - esclareceu a avó.
Quando Sérgio ali vinha, a senhora via-os sempre pegados como cão e gato, e aquelas quezílias amorosas, revestidas de hostilidade, divertiam-na.
- Não te ouço e quero um café - respondeu Malvina, com um ar despachado. Chamou logo Venere.
- Arranjas-nos dois cafés, por favor? - pediu-lhe.
- Só um, porque faz mal à avó - decidiu a empregada.
- Estás a ouvi-la? Agora a governanta tirou o curso de Medicina - disse a avó, irónica.
- Dois cafés - repetiu Malvina. E acrescentou: - Aqui o médico sou eu e prescrevo imediatamente um café forte para esta senhora.
Venere regressou à cozinha a resmungar.
A avó não andava bem, mas não estava doente. Era só muito idosa, e ia-se consumindo aos poucos. Comia pouquíssimo e só as poucas coisas de que realmente gostava: legumes cozidos e regados com azeite, peixe assado no forno, risotto com açafrão e café adoçado com mel. Malvina observava aquela velha tão amada e sabia que a sua chama se ia apagando lenta e suavemente.
Não a obrigava a fazer aquilo que não queria, nem a engolir medicamentos, mas deixava que a natureza seguisse o seu curso. E quando a avó dava mostras de que lhe apetecia alguma coisa, tal como um passeio por entre as suas rosas, uma taça de bom espumante gelado ou um salto à cidade para ver um filme que lhe interessava, fazia-lhe sempre a vontade.
A avó tinha deixado de ir à missa ao domingo, afirmando que se o Senhor tivesse alguma coisa para lhe dizer podia entrar na sua casa, onde ela o ouviria. Dizia: - Ao fim e ao cabo, a velhice tem os seus privilégios, e eu não tenciono renunciar a eles. - Na realidade tinha-se pegado com o padre, que decidira restaurar a igreja ornamentando-a com uns horríveis frisos de gesso. Ela censurou-o pelo mau gosto e por ter empregado mal aquele dinheiro. Ele respondeu-lhe com o mesmo tom. Ela saiu da igreja furiosa, prevenindo-o de que nunca mais lá poria os pés e ele, que era tão
velho como ela, respondeu: - Tanto melhor. - Nem sequer o recebeu para a bênção natalícia, fazendo-lhe a desfeita de chamar o pároco da aldeia vizinha.
As quezílias entre os dois anciãos tinham começado há tempos e atingiram o auge durante as eleições que tiveram lugar na Primavera, quando a avó declarou que tinha dado o seu voto ao Partido Comunista.
Malvina tinha a certeza de que aqueles dois velhos, que se conheciam desde sempre, continuavam a discutir para dar um sentido aos seus dias monótonos, mas o facto é que aquelas birras envolviam também a gente da terra.
O assunto era tão apetitoso que Sérgio Orombelli não o tinha deixado escapar e acabou por construir em volta dele o enredo do seu último romance, O Padre e a Senhora do Castelo.
Os dois directos interessados tinham sido uns dos primeiros leitores e, pelo menos no que dizia respeito ao padre, a empregada revelou tê-lo ouvido rir com gosto enquanto lia aquela história. A avó, pelo contrário, comentou: - O Dr. Orombelli quer obrigar-me a fazer as pazes com aquele velho senil, mas não vai conseguir.
Agora, enquanto saboreava com prazer o seu café, perguntou a Malvina: - A propósito do Orombelli, não o tinhas convidado para almoçar este domingo?
- Como todos os domingos, avó.
- Então porque voltaste sozinha?
- Porque ele teve uma chamada urgente.
- Este minuete entre vocês os dois começa a cansar-me. De que estão à espera para ficarem juntos?
- Avó, estou espantada contigo! Desde quando é que entras com tanto ímpeto na minha vida?
- Fiz de tua mãe durante anos e sei aquilo que é bom para ti. Vi-te cometer um erro atrás do outro. Já te disse há muito tempo e repito-to agora pela última vez: o Sérgio é o homem certo para ti. Casa-te com ele!
- Isso é uma ordem? - perguntou Malvina, a sorrir.
- É uma prece. Quando eu Já cá não estiver, quem é que vai tratar de ti?
- Achas mesmo que eu preciso que tratem de mim? Tenho uma filha, um trabalho, uma vida social. Um companheiro talvez fosse um elemento a mais.
- O teu orgulho de feminista militante mexe-me com os nervos.
- E a mim mexe-me com os nervos o orgulho machista do Sérgio, que nunca deu um passo nem disse meia palavra para dar uma volta à nossa amizade - resmungou Malvina. Pronto, finalmente tinha dito o que pensava.
A avó sorriu, pensando que o mais difícil estava feito. Agora sabia que a neta estava apaixonada pelo médico escritor.
Desde que se estabelecera em Tavernolo, Malvina voltara a encontrar-se com Sérgio regularmente. Ele estava outra vez sozinho, porque a companheira, cansada de receber poucas atenções, o tinha deixado. Vinha almoçar ou jantar a Tavernolo, Malvina e ele jogavam ténis, iam ao cinema, a um concerto, a uma exposição, mas quase sempre na companhia de outros amigos. Sérgio evitava cuidadosamente qualquer envolvimento emocional em relação a Malvina.
- Estou cansada, vou dar descanso aos meus ossos. Diz à Venere que me leve um batido de fruta. Não vou descer para almoçar - anunciou a avó à neta.
Malvina subiu com ela, porque não confiava em deixá-la subir as escadas sozinha. Depois foi à casa de banho, enfiou-se debaixo do chuveiro e, sob aquele jacto de água, ruminou a sua raiva pela atitude de Sérgio.
Pensou que, provavelmente, ele esperava que fosse ela a dar o primeiro passo, porque tinha sido ela, alguns anos atrás, a rejeitá-lo depois de se terem beijado.
Saiu do duche, secou-se e massajou o corpo com um extraordinário óleo de coco que Susan lhe mandava dos Estados Unidos. Depois foi ao quarto e escolheu um vestido leve de algodão. Tinha jogado ténis durante duas horas ao sol e agora sentia-se cansada.
Eram apenas onze horas da manhã e ela olhou para a cama com vontade. Estendeu-se e, pouco depois, adormeceu.
Uma mão doce afagou-lhe o rosto. Malvina arregalou os olhos e viu Sérgio que lhe sorria.
- O que é que estás a fazer no meu quarto? - perguntou, incrédula.
- A Venere disse-me que eu te encontraria no teu quarto. Obedeci e subi.
Ela esticou uma mão para lhe afagar o braço.
- Estás zangada porque não te deixei ganhar, hoje de manhã?
- Estaria muito mais se me tivesses dado alguma vantagem.
- A tua avó está a descansar, disse-me a Venere. Eles os dois estão lá em baixo a meter compotas em frascos. O que é que nós podemos fazer? - perguntou-lhe, enquanto se sentava na cama ao lado dela.
- Vamos para o bosque apanhar cogumelos? Deve haver imensos depois da chuva de anteontem - propôs ela, sem se mexer.
- Eu, se calhar, tenho uma ideia melhor - disse o médico, ao mesmo tempo que se inclinava e lhe dava um beijo leve na boca.
- Tens a certeza de que é mesmo uma boa ideia? - perguntou Malvina, num sussurro.
- Acredita, meu amor. É mesmo - garantiu Sérgio, abraçando-a.
Roberta
1
- Que história! - sussurrou Roberta, estendida na cama ao lado da mãe.
E logo a seguir pensou que, naquela mesma cama, Malvina tinha amado Gianni Franzini, depois Walter Mandelli e agora, certamente, passava algumas noites com Sérgio Orombelli.
- Que história! - repetiu. E acrescentou: - E depois?
- Por favor! Tenho a boca seca de falar tanto.
- Não te casaste com o meu pai, mas podias pelo menos casar com o Sérgio. Porque não o fizeste? - perguntou Roberta.
- Não há nenhum motivo preciso. A minha velha militância feminista teve provavelmente o seu peso.
- Mas continuam a amar-se.
- Exactamente - sorriu Malvina.
- Não tens ciúmes de todas as mulheres que ainda lhe fazem a corte?
- O ciúme é uma tentação muito feia, da qual é melhor ficar longe.
- No entanto, ficaste muito mal quando surpreendeste o pai com a loira do Porsche - lembrou Roberta.
- Porque nessa altura o nosso afastamento ainda não era definitivo, e depois o Walter andava com ela às escondidas. Detesto subterfúgios.
- E se fizéssemos um café com leite? - propôs a filha.
- É uma ideia. A Venere fez uns biscoitos de massa areada. Parece-me uma óptima merenda a meio da noite - concordou Malvina.
Sentiram um arrepio quando abandonaram o calor da cama. Malvina enfiou-se no seu roupão e Roberta foi a correr ao quarto dela buscar alguma coisa com que se agasalhar.
Encontraram-se na cozinha. Do exterior, os cães ouviram os seus passos, viram a luz acesa e começaram a ganir. Roberta abriu a porta e eles entraram em casa a abanar a cauda. Malvina aqueceu o leite e preparou o café. Roberta sentou-se à mesa e disse: - Eu lembro-me da história da loira.
- Impossível, eras demasiado pequena - replicou a mãe.
- Foi a tia Cristina que me falou dela, definindo-a como uma mulher ignóbil! - exclamou, divertida, recordando as expressões melodramáticas da tia. E prosseguiu: - Parece que o pai a convidou para jantar, na via Turroni, e ela se apresentou à avó dizendo: "Sou a doutora Daniela Valli Lavello." Reproduzo-te exactamente as palavras da tia, porque me marcaram. Então a avó replicou: "Doutora... em quê?" E ela: "Economia e Comércio na Universidade Bocconi." Durante todo o jantar, a avó dirigiu-se a ela tratando-a por "doutora Lavandino1". O pai percebeu que o ambiente estava carregado e nunca mais a convidou, mas de qualquer maneira a história com ela acabou quase logo - revelou Roberta.
Malvina abriu a caixa dos biscoitos e saiu de lá um delicioso perfume de baunilha.
- Então vamos encerrar a história da loira com mais um mexerico - propôs a mãe, que sorria ainda por causa da "doutora Lavandino". E acrescentou: - Quero contar-te do dia em que essa mulher se apresentou para me entrevistar sobre o ensaio que eu tinha acabado de publicar.
- Não sabia que era jornalista - disse Roberta, espantada.
- Era um zero absoluto, mas o pai dela era muito influente e
-, conseguiu metê-la no jornal onde trabalhava. O Walter era um
excelente profissional e a espertalhona percebeu logo que podia
aprender muito com ele. Armou-se o suficiente para o fascinar e
ele, que tinha um fraco por mulheres bonitas, deixou-se seduzir.
Encontrei-a pela frente uns dias depois de a ter visto na piazza
Duse com o teu pai. Por pouco não me dava uma coisa. Mas tu
conheces-me: não fiz nem uma ruga - revelou, enquanto servia
nas chávenas o leite e o café.
- Tinha ido entrevistar-te? - perguntou Roberta, ao mesmo
tempo que trincava um biscoito.
Os cães pousaram os focinhos na beira da mesa. Farejavam o
ar e esperavam a sua parte. Roberta fez-lhes a vontade., - Eu imaginava que o artigo ia ser escrito pelo Walter e, por-
tanto, valia a pena deixar-me entrevistar, porque aquilo ia dar uma bela peça.
Malvina sentou-se diante dela e começou a molhar os biscoitos no café com leite. Continuou a história.
- A loira destilava pulseiras e fios de ouro como se fosse a Nossa Senhora. Eu, pelo contrário, não trazia jóias e tinha largado
há algum tempo a bijutaria de plástico colorido.
- Eu gostava tanto daquilo! Quando te mexias, sentia um
tilintar de campainhas que me entusiasmava imenso. E os teus xailes? Eram o fim do mundo. Onde foi parar aquela tralha toda?
- Ao sótão. Um dia, alguém vai deitar aquilo fora, ou vender
ao desbarato.
- E então? Estavas a dizer que ela se apresentou como
jornalista - continuou a filha.
- Dava-se ares de grande jornalista e era agressiva, como todas as pessoas que se acham aparentadas com Deus. Começou, lembro-me bem, com esta pergunta: "O que têm de feminino todas aquelas mulheres mal-arranjadas que apregoam o amor livre?" continuou a contar.
- E tu? - quis saber a filha.
- Respondi-lhe com outra pergunta. Perguntei-lhe o que tinham de feminino as mulheres que conduzem automóveis desportivos e praticam a fornicação para fazer carreira. Perguntei-lho com uma meiguice e uma candura desarmantes. Ela corou e calou-se. Assim acabei por ser eu a sugerir-lhe as perguntas. Resultou dali uma boa entrevista. Contei tudo ao teu pai, que me definiu como uma víbora, mas que se divertiu muitíssimo. O Walter sempre se pôs do meu lado.
- Sempre esteve apaixonado por ti.
- O teu pai teria sido o companheiro ideal para uma mulher menos complicada do que eu.
Enquanto Roberta metia na máquina de lavar a loiça as chávenas sujas, Carlin abriu a porta da cozinha. Estava de pijama, tinha os cabelos despenteados e os olhos inchados de sono. Os cães saltaram à volta dele com ar de festa. - O que foi que aconteceu? perguntou, preocupado.
- Tínhamos fome e viemos fazer uma merenda - respondeu Malvina.
Carlin olhou para elas, pasmado. Depois foi-se embora, seguido pelos dois animais, a resmungar contra a cabeça tonta das mulheres.
- Daqui a poucas horas tenho uma reunião do conselho municipal. Por isso vou dormir - anunciou Malvina.
Saíram as duas da cozinha e subiram ao primeiro andar.
- Obrigada por me teres contado a tua história. Devias tê-lo feito mais cedo - disse Roberta, quando se despediu.
Malvina deu-lhe um beijo e entrou no quarto, enquanto pensava que o teria feito se, no passado, a filha tivesse sido menos severa em relação a ela. Tinha-se esforçado agora por lhe contar a verdade sobre ela e sobre os acontecimentos mais importantes da sua vida, mas calara-lhe a ansiedade e os sentimentos de culpa por não ter conseguido estar mais perto de Roberta quando era pequena.
Calara-lhe também os anos de extenuante análise com o professor Bianchi, durante os quais tinha finalmente abordado os
problemas que a tinham impedido de viver a infância e a adolescência com serenidade, como o ciúme feroz que a devorara em relação a Susan.
Recordou quando, aos oito anos, tinha sido literalmente arrancada daquele ninho envolvente de Tavernolo para ser levada para o apartamento de Milão, na via Turati, onde teria de partilhar com a madrasta o afecto do pai.
Perto do Natal, o doutor Leoni foi ao quarto dela desejar-lhe boa noite e perguntar-lhe: - Que presente queres ter?
Malvina pensou então que quereria ver Susan morrer engasgada com uma fatia depanettone, enquanto ela fingia uma dor tremenda pela sua morte.
Nesse momento cobriu a cara com o lençol e começou a chorar.
Confessou-o a Susan, depois da morte do pai, e ela, que era agora uma doce senhora que avançava serenamente para a velhice, respondeu-lhe: - Eras uma menina carregada de sofrimento. Eu sabia da tua rejeição em relação a mim, e fiz o que podia para me aceitares.
Abraçaram-se e Malvina, pela primeira vez, conseguiu dizer-lhe: - Gosto muito de ti.
2
Roberta abriu os olhos para a luz quente da manhã que penetrava no quarto através das fendas da portada. O telemóvel vibrava em cima da mesa-de-cabeceira.
- Estou - disse, com uma voz ensonada.
- Acordei-te? - perguntou Oscar.
Sim, tinha-a acordado de um sonho. Porém.., em vez de responder, perguntou-lhe: - Mas que horas são?
- São nove. Quando voltas para casa?
- Só aqui estou desde ontem à noite e já estou a fazer-te falta?
- perguntou com ironia.
- Eu ainda estou em Bolonha, mas daqui a pouco vou para Roma. Como estás?
- Estou bem, faz boa viagem - disse, e desligou a chamada. Recordou o seu sonho. Havia um poço e ela estava sentada na
beira de mármore esculpido, no centro de uma pxaceta veneziana. No ar de cristal propagava-se o som de uma música cigana. À superfície da água flutuava o pequeno carrossel de porcelana que o pai lhe tinha trazido de Budapeste, quando era pequena. O carrossel girava, os cavalinhos andavam para cima e para baixo, simulando uma cavalgada, e a caixinha de música tocava, tocava. Ia esticar a mão para pegar nele quando Oscar a acordou.
Levantou-se, abriu as portadas das janelas e foi à casa de banho, pensando que gostaria de contar à mãe o sonho do poço e do carrossel para ela lhe fornecer uma chave de leitura.
Na cozinha, Venere dispunha num tabuleiro os pratinhos de Compota, manteiga e mel para o pequeno-almoço. A velha criada, que gozava de uma saúde de ferro, continuava a gerir a casa como se o tempo não tivesse passado e o mundo fosse o mesmo de fquando tinha entrado ao serviço. As pratas brilhavam, os napperons imaculados estavam sempre engomados, e havia pontualmente uma flor fresca no tabuleiro do pequeno-almoço.
- O que foi que a menina e a sua mãe andaram para aí a fazer esta noite? - perguntou, com um ar contrariado.
- Estivemos na conversa e depois tomámos um café com leite
- respondeu Roberta, ao mesmo tempo que tirava o tabuleiro das mãos de Venere e o pousava na mesa da cozinha. Não tinha nenhuma intenção de fazer aquela refeição sozinha, na sala de jantar.
- A noite fez-se para dormir - resmungou a mulher, e começou a tratar dos legumes para o almoço.
A porta da cozinha estava completamente aberta para o jardim onde os cães brincavam, enquanto Carlin, debruçado no chão, arrancava ervas daninhas. À cozinha chegava o perfume delicado das flores da glicínia que trepava pela parede exterior.
Naquela grande casa, Roberta sentia-se segura. Comparou a sensação de serenidade que experimentava em Tavernolo com o sentimento de precariedade que a dominava na casa da via Spartaco, com dois filhos que a mantinham constantemente tensa e um marido que nunca lá estava, as contas que não batiam certo e a gestão da livraria que se tornava cada vez mais difícil a partir do momento em que tivera de se confrontar com as grandes cadeias de distribuição.
Roberta nunca tinha um minuto de paz, um pequeno espaço só para si, para ir ao cabeleireiro ou à esteticista sem ter de ir a correr para casa ou para a livraria.
Algumas semanas atrás, ao sair para levar os filhos à escola, sempre com medo de chegar atrasada, em vez do saco do lixo deitou a carteira no contentor do pátio.
Apercebeu-se do erro quando começou a procurar as chaves do carro no saco do lixo.
- Não estás nada bem da cabeça, sabias? - comentou Francesca, ao mesmo tempo que lhe arrancava da mão o saco do lixo e voltava atrás para recuperar a carteira da mãe.
Matteo, como sempre, ficou calado e observou-a com um olhar impenetrável. Ela encostou-se por um instante à mala do carro, preocupada com aquilo que tinha acabado de fazer.
Barrou uma torrada com manteiga e deu uma dentada, ao mesmo tempo que continuava a remoer as suas inquietações. Matteo era uma criança complicada e Francesca uma adolescente com raros momentos de serenidade, apesar de esconder bem o seu descontentamento. E ela, o que podia fazer? Como devia agir? Sentia que tinha chegado o momento de mudar a direcção da sua vida.
Continuou a tomar o pequeno-almoço, enquanto Venere a observava de soslaio.
- Então, qual era a questão esta noite? - decidiu-se a perguntar.
- A mãe contou-me umas coisas que eu não sabia. Conheceste o marido dela? - perguntou Roberta.
- Bonito rapaz! Um verdadeiro senhor! Fino, elegante, de boas maneiras - disse Venere.
- O meu pai também era, como tu dizes, um belo jovem, e tinha boas maneiras - sublinhou Roberta, enquanto saboreava o café com um pingo de nata.
- Nenhum dos dois dava para ela. A sua mãe nasceu para ser uma mulher livre. Dá-se bem com o doutor Orombelli porque são da mesma massa. Fazem muita companhia um ao outro, mas depois cada um vai para sua casa. Ela acha que esta é a receita do amor perfeito. Só que eu digo: agora está bem, mas depois? Quando eu e o Carlin já cá não estivermos e ela for velha, quem é
'
que fica junto dela? A pobre da sua bisavó teve a sua mãe até às últimas horas de vida. E ela quem vai ter?
Venere deitou os legumes no azeite quente e começou a mexer o refogado com a colher de pau.
- Vai ter-me a mim - respondeu Roberta.
- A menina tem uma família e a sua livraria e vive em Milão, não vive aqui em Tavernolo.
- Sabe-se lá! Não é evidente que eu tenha de continuar a viver em Milão - sussurrou Roberta.
- Ora aí está, bem me parecia que vinha aí borrasca! - resmungou a criada, referindo-se ao vento que sopra no lago e faz
linchar as velas.
- Sim, vem aí borrasca. E agora que já sabes, estás contente? - Ah, eu não sei nada destas modernices. Desta gente que priImeiro se casa e depois se separa... depois os filhos ficam ora com lum, ora com outro. Eu casei-me com o meu Carlin e só peço a Deus que mo conserve. Não tivemos a bênção dos filhos, mas gostamos um do outro na mesma. Mas como se sabe eu e o Carlin somos uns ignorantes, enquanto que com gente culta como os senhores as coisas se passam de outra maneira. A sua mãe, com Itodo o respeito, fez trinta por uma linha e continua a ter aquele Ipobre doutor Orombelli de rédea curta. A menina, que tem uma Ifamília normal, quer agora atirar tudo ao ar. Não lhes falta nada e nunca estão contentes. Pior para vocês - resmungou, enquanto punha a carne no refogado.
Roberta deslizou para fora da cozinha e deixou Venere no fogão.
Pouco depois desceu à aldeia pelo atalho do bosque. Na tabacaria, que funcionava também como minimercado, livraria e quiosque, comprou alguns jornais. Aquele estabelecimento continuava exactamente igual há anos e sobrevivia apesar de haver lojas mais modernas e funcionais.
Dentro do velho estabelecimento, os aromas do tabaco e do café misturavam-se com os do salame, do queijo e do papel impresso.
Roberta foi até à praça e sentou-se no banco dedicado ao avô. Começou a folhear o jornal, à espera que a mãe saísse do município.
- Roberta Mandelli! - exclamou uma voz masculina. Roberta levantou os olhos do jornal e viu à sua frente um
homem que conhecia mas ao qual, por um momento, não conseguiu atribuir um nome.
- Professor Rivetti, mas que prazer encontrá-lo! - disse por fim, quando o reconheceu.
O homem, com cerca de quarenta anos, era completamente careca, tinha umas fartas sobrancelhas escuras, uns olhos cinzentos sorridentes e um cómico nariz de batata que lhe dava o aspecto de um palhaço. Trazia vestidos uns jeans e uma camisola de malha.
O professor Rivetti era o responsável pela biblioteca do bairro onde ela morava, em Milão, e Roberta ia ter com ele pelo menos quatro vezes por ano para o consultar sobre a lista de livros a adquirir.
- O que é que está a fazer em Tavernolo, professor?
- Eu podia fazer a mesma pergunta.
- Vim ter com a minha mãe - explicou Roberta.
- Eu fui chamado pela presidente da Câmara, que quer reestruturar a pequena biblioteca desta vilazinha onde, ao que parece, as pessoas lêem muito - explicou o bibliotecário.
- Mas a presidente da Câmara é a minha mãe! - exclamou Roberta.
- A sério? Estou agora a sair de uma reunião com ela e com a assessora da cultura. Devo dizer-lhe também que fui convidado para almoçar em casa da doutora Leoni e ia agora buscar o casaco que deixei no carro, porque não me parece bem apresentar-me assim em casa de uma senhora.
Roberta sabia que a biblioteca do seu bairro estava associada a outras bibliotecas de província, para as quais o professor adquiria livros e coordenava actividades. Obviamente a mãe tinha decidido dirigir-se a ele para o consultar.
- Vou consigo, e depois seguimos juntos para casa - propôs ela.
3
- Hoje é o dia das surpresas: primeiro encontrei a minha livreira de estimação, e agora estou sentado diante de um dos autores mais lidos pela minha clientela! Assim que sai um livro seu, há fila na biblioteca para o requisitar - disse Rivetti a Sérgio Orombelli.
Estavam na sala de jantar da casa de Malvina, onde Venere tinha posto uma mesa sumptuosa, com linhos engomados, pratas brilhantes e cristais que emanavam reflexos. Naquela manhã a velha criada tinha preparado uma lasanha e uma taça de morangos com limão. Avisada à última hora de que ia haver três comensais a mais, inventou uma salada com canónigos da horta, uns rabanetes, um abacate, uma maçã verde, lascas de queijo curado e pedaços de nozes. E serviu-a como entrada. Para segundo prato fritou curgetes passadas por um polme com cerveja e temperou-as com raspa de limão. Sobretudo, como fazia sempre que a comida não era excepcional, tentou ofuscar os convidados com uma mesa luxuosa.
Carlin descobriu na cave, entre os vinhos que Malvina recebia dos amigos, um rose de Salento com um nome novo e antigo, Mediterrâneo, produzido por Al Bano Carrisi. Venere decidiu servi-lo quer como aperitivo, quer para acompanhar a refeição.
Sérgio Orombelli, que sabia como ela gostava de fazer boa figura com os hóspedes, piscou-lhe o olho para lhe comunicar a sua aprovação. A velha criada, que tinha um fraquinho por ele, regressou à cozinha inchada de orgulho.
A assessora da cultura era uma jovem empresária da zona que conjugava a gestão de uma empresa familiar com um interesse profundo pela literatura, a arte e a música.
- O Sérgio é a glória da nossa Brianza e a prova evidente do sentido de ironia da gente desta zona - afirmou a empresária, saboreando os fritos de curgete.
- E se deixássemos de fazer de mim a figura central desta mesa? - protestou Sérgio, que não apreciava demasiadas atenções.
Malvina, porém, sentia-se orgulhosa do consenso de que o companheiro gozava. Roberta estava calada e ouvia.
O professor Rivetti disse: - Desculpe, doutor. Tem razão, e eu não lhe vou perguntar onde vai buscar a inspiração para os seus romances, se as personagens de que nos fala são reais e todas aquelas perguntas banais que, muitas vezes, um autor ouve as pessoas fazerem-lhe.
- Que exprimem, de resto, a curiosidade legítima de quem lê os meus livros - esclareceu Sérgio.
- Eu venho de um meio onde a leitura era um luxo. Éramos tão pobres que líamos os jornais com um dia de atraso, quando os vizinhos os passavam para nós. Por isso, considero os livros uma riqueza. E, ainda hoje, conversar com um escritor é um prazer extraordinário - replicou o bibliotecário.
Roberta apreciou a sinceridade do professor Rivetti e sentiu-se grata a Sérgio que, naquele momento, começou a contar histórias curiosas sobre a gente do lago. E divertiu-se a
ouvi-lo.
Depois do almoço, enquanto os convivas se transferiam para o pátio aquecido pelo sol, ela quis mostrar ao professor Rivetti o jardim e, sobretudo, o roseiral da avó de Malvina, amorosamente tratado por Carlin.
À medida que se embrenhavam pelos caminhos cobertos com uma fina camada de saibro branco, ilustrava-lhe as características de cada planta, tal como tinha aprendido com o empregado.
- Estas são as Bourbon brancas, originárias do Oceano Índico. Conheceram o seu esplendor em fins do século xix, porque as senhoras as consideravam uma flor romântica. Estas, cor-de-rosa e carmim, oriundas da China, chegaram à Europa no século xvm. Chamam-se Old Blush. São muito generosas e florescem ainda em Outubro. E estas aqui, um bocadinho engelhadas, pertencem à família das damascenas e são utilizadas para produzir essências. As minhas preferidas são estas amarelas de cinco pétalas. Gosto delas por causa deste aspecto humilde e um pouco selvagem.
- Mais do que com as rosas, estou impressionado com a sua sabedoria - observou o bibliotecário.
- Era exactamente esse o meu objectivo - disse ela a rir, e acrescentou: - Na verdade, estava à procura de uma forma de o levar a contar-me a sua infância, e de lhe falar da minha, que passei aqui e em Milão. Fiquei muito impressionada com as poucas palavras que disse sobre a sua família. Conhecemo-nos há anos e não sabemos nada sobre as nossas vidas.
- Normalmente, é assim que funcionam as relações de trabalho. De qualquer modo, a minha biografia não é assim muito interessante. O meu pai passou a vida dentro e fora da prisão de San Vittore. Era um ladrão com muita falta de jeito e deixava-se apanhar quase sempre. A última tentativa, numa casa de peles, custou-lhe a vida. Foi morto por um guarda-nocturno. Eu tinha doze anos. Ele cultivava o mito de Arsène Lupin. Quando íamos visitá-lo à cadeia, eu e a minha mãe, ele dizia-nos: "Da próxima vez vai correr tão bem que vamos viver para um castelo." A minha mãe, que já não tinha mais lágrimas, trabalhava numa empresa de limpeza e uma grande parte do seu salário acabava nas contas dos advogados. Eu procurava nos romances uma evasão para a miséria. Saqueei as bibliotecas de todas as escolas que frequentei e passei tardes nas livrarias a ler aquilo que não podia comprar. Quando
ganhei o concurso de bibliotecário, tornei-me finalmente um homem satisfeito. É esta a minha história - contou.
- Eu acho-a fantástica... quero dizer... que história!
- Acha? Eu tinha passado muito bem sem ela.
- Se calhar devíamos tratar-nos por tu, mas dei-me conta de que nem sequer sei o seu nome.
- Aldo - respondeu ele. Do pátio, Venere chamou Roberta em voz alta. <:,
- Está a sua tia ao telefone. É urgente - comunicou-lhe, quando Roberta chegou junto dela.
Correu para dentro de casa, agarrou no auscultador e perguntou: - Tia, o que foi que aconteceu?
Aurora respondeu-lhe: - Acho que deves regressar imediatamente a Milão, porque a tua filha não foi à escola, hoje de manhã. Aliás, à escola foi, porque fui eu que a levei, mas não chegou a entrar nas aulas. E agora não sabemos onde está.
- Vou já para aí - disse Roberta, com um fio de voz. Malvina viu-a sair de casa a correr e dirigir-se ao carro estacionado. Foi até junto dela.
- O que aconteceu? - perguntou.
- Problemas em casa.
- Vou contigo - decidiu. E sentou-se no carro ao lado da filha.
4
Roberta pensou que, se não tivesse ido para Tavernolo, talvez Francesca não tivesse desaparecido. Sentia-se culpada e estava atormentada por pensamentos sombrios.
Malvina não estava menos preocupada do que ela. Os assaltos, os furtos e a violência sexual eram as terríveis situações do dia-a-dia.
A velha tia Aurora recebeu-as em lágrimas.
- Vou buscar os números de telefone das colegas de escola da Francesca - disse Roberta.
Entrou no quarto da filha e, em cima da secretária, encontrou a agenda dos telefones. Na sala, o pequeno Matteo, estendido no tapete, via desenhos animados na televisão. A avó sentou-se ao lado dele.
- Não me cumprimentas? - perguntou-lhe.
- Olá - respondeu ele.
- Temos um problema - prosseguiu ela.
- Hum-hum - anuiu ele, e continuou a ver os desenhos animados.
Malvina perguntou a Matteo o nome de algumas colegas de turma da irmã.
- Depois - disse ele.
Não, já! - ordenou a avó.
- Ufa! - protestou Matteo, como se o problema não lhe dissesse respeito.
Não era assim, e Malvina sabia que o rapaz procurava um escape para a sua angústia.
- Isabella, só para dizer alguma coisa - sussurrou. Naquele momento Roberta entrou com a agenda da filha,
ouviu o nome da colega, descobriu o número na lista e marcou. Atendeu uma voz feminina.
- Isabella? - perguntou, e acrescentou: - Sou a mãe da Francesca Trinchese.
- Olá, bom-dia. Como está? - respondeu a rapariga.
- Muito mal, porque não sabemos onde está a Francesca.
- Nem eu. Já me tinha telefonado a tia e, logo a seguir, eu liguei a outras colegas. Ninguém a viu na escola...
- Não haverá nenhuma colega que possa saber mais?
- Eu também perguntei à Karin, porque sei que vão juntas ao Palácio do Gelo. Sabe, há um ensaio de fim de curso daqui a duas semanas e a Francesca quer muito fazer as coisas bem feitas. É uma perfeccionista. Mas nem a Karin sabe onde ela está - explicou Isabella.
Roberta desligou o telefone e virou-se para Matteo.
- Queria falar um bocadinho contigo - disse-lhe.
- Que chatice! - bufou ele.
- Tem paciência, porque temos aqui um grande problema e eu preciso da tua ajuda.
Matteo desligou a televisão e dirigiu-lhe um olhar indecifrável.
- Não costumas falar com a tua irmã? - perguntou a mãe.
- Nós discutimos, sobretudo.
- Já é alguma coisa, significa que têm uma relação. Se a tua irmã tivesse um namorado, tu sabias, não é verdade? - interveio Malvina.
Matteo corou e olhou para outro lado, pondo-se na defensiva.
- Agora não é altura de guardar segredos. Se sabes alguma coisa, diz - insistiu a avó.
- Eu não sei nada - teimou Matteo.
- A Francesca não tem nenhum namorado, porque se tivesse eu sabia - disse Roberta.
- Desde quando é que nós, mães, sabemos o que é que os nossos filhos andam a fazer? - respondeu Malvina, com um sorriso.
- Meu pequenino, se souberes alguma coisa que eu não sei...
- sussurrou a mãe, inclinando-se sobre o filho.
- Eu já tenho os meus problemas - insistiu ele.
- Por favor, Matteo, diz-me tudo o que sabes - pediu Roberta,
com um ar grave.
- A Francesca gosta do Caetano, o filho da padeira, que anda no último ano do liceu, vai ao ginásio todos os dias e gaba-se dos músculos que tem - disparou o rapazinho.
- Olha, olha... - sussurrou Roberta, voltando-se para Malvina.
- Tenta saber se esse tal Caetano foi à escola hoje de manhã sugeriu a mãe.
Roberta pegou na carteira e saiu de casa. Dirigiu-se à padaria a passo rápido.
O estabelecimento estava deserto e a padeira estava a despejar para dentro de uns grandes cestos pães acabados de cozer.
- Bom-dia, minha senhora - cumprimentou Roberta, e acrescentou: - Está cá o seu filho?
- Não, acho que está no ginásio. Porque quer saber? - perguntou a mulher, que olhou para Roberta com um ar interrogativo.
- Hoje de manhã foi à escola? - insistiu Roberta.
- Julgo que sim. Quando saiu, disse-me que não vinha a casa à hora do almoço. Tanto é que levou com ele uma quantidade de minipizas e fogacinhas - explicou a mulher, que continuava a não perceber. Conhecia bem Roberta Mandelli, que era sua cliente há muitos anos, e perguntou a si mesma por que razão estaria a submetê-la àquele interrogatório.
- Não pode ligar para o ginásio e pedir para falar com ele?
- Signora Mandelli, posso saber o que é que se está a passar?
- Por favor, procure o Caetano e, se o encontrar, deixe-me falar com ele - pediu Roberta, e acrescentou: - Queria saber se a minha filha Francesca está com ele.
A padeira percebeu imediatamente a situação e ligou logo. O rapaz estava efectivamente ali e a mulher passou o telefone a Roberta.
- Sou a mãe da Francesca. A minha filha está contigo? - perguntou, ansiosa.
Quando Caetano explicou que Francesca estava ocupada a treinar um exercício difícil, Roberta deu um grande suspiro e disse: - Avisa-a de que vou já buscá-la. - Depois passou o auscultador à padeira, que desligou a chamada.
Roberta contou então à mulher o que tinha acontecido.
- Eu vou consigo buscar aqueles dois inconscientes - decidiu ela, com um ar peremptório.
5
O ginásio ficava a meio caminho entre a escola e a via Spartaco. Roberta e a padeira entraram no átrio do Perfect Body Club e encontraram Francesca sentada num banco, por baixo de uma fila de posters dos mister músculo mais famosos. Ergueu para a mãe um olhar assustado.
- Como é que estás? - perguntou a mãe.
- Péssima - sussurrou a rapariga.
- Onde está o Caetano? - perguntou a padeira, que sentia uma grande vontade de dar uns sopapos ao filho.
Depois do telefonema das duas mães, o rapaz tinha-se vestido a correr, anunciando a Francesca: "Vou ter com a minha mãe."
- Foi para casa - respondeu Francesca.
- Signora Mandelli, eu não sei o que aquele palerma foi arranjar, mas peço-lhe desculpa. Agora vou para casa e já lhe trato da saúde - declarou a mulher, e saiu do ginásio. Também Roberta queria falar com a filha, mas aquele não era o sítio mais apropriado.
- Vou levar-te para casa e, pelo menos agora, não quero explicações. Mete-te no carro e não digas nada, porque eu estou furiosa - ordenou, enquanto avisava Malvina e a tia pelo telernóvel de que tinha encontrado Francesca.
- Mamã, desculpa - murmurou a filha quando iam a subir no elevador.
- Disse-te para não dizeres nada! - replicou Roberta com agressividade e, assim que entraram no hall, ordenou-lhe: - Vai para o teu quarto e não saias de lá até nova ordem.
Malvina e Aurora, na cozinha, estavam a preparar o jantar, enquanto Matteo, sentado à mesa, fazia os deveres.
- Então? - perguntaram as duas mulheres.
- Enfiei-a no quarto dela - anunciou Roberta.
- Já comunicámos às colegas e à professora que ela tinha aparecido - disse Malvina. Depois voltou-se para Matteo: - Meu querido, vai-me buscar uma aspirina. Procura no armário da casa de banho.
O pequeno afastou-se e ela perguntou à filha: - Não me dizes o que aconteceu?
- Não sei... uma criancice, suponho... mas estou furibunda! Não esperava isto da Francesca... Não sei o que lhe deu.
- Queres que fale eu com ela?
- De maneira nenhuma. Preciso de me acalmar e depois vou ter com ela.
Roberta e Malvina sentaram-se à mesa, enquanto a tia Aurora grelhava umas beringelas na chapa.
- Onde está o Oscar? - perguntou Malvina à filha.
O marido era a última coisa em que estava a pensar. Roberta continuava a perguntar a si mesma o que teria levado Francesca a faltar à escola com aquele Caetano, que lhe parecia um rapaz desprovido de qualquer atractivo.
- Anda por aí... em qualquer parte - respondeu Roberta, vagamente.
- Telefonaste-lhe? Disseste-lhe o que aconteceu?
- Porquê? Achas que ia adiantar?
- É o pai destas crianças! - exclamou Malvina.
- Ele evita os problemas, até porque não saberia como resolvê-los. De resto, tu também o conheces.
Matteo regressou, pousou a aspirina em cima da mesa e perguntou: - Agora que já estiveram a conversar às escondidas, posso continuar a fazer os trabalhos de casa?
- Pedido autorizado - respondeu a avó, a sorrir. Depois voltou-se para a filha e disse: - Deixa-me ir falar com a Francesca.
- Queres resolver o problema por mim?
- Estou menos zangada do que tu.
Malvina entrou no quarto da neta. Eram já seis horas da tarde, e pela janela escancarada entrava a luz declinante de um dia que tinha sido cansativo para toda a gente, até para aquela rapariga que, estendida na cama, de sweat-shirt e jeans, dormia agora profundamente. A avó sentou-se numa cadeira de vime cor de glicínia e deixou o olhar vaguear por aquela decoração de cores ténues, de sabor vitoriano, com cortinas de tule branco guarnecidas com rendas e fitinhas de seda cor de marfim e quadrinhos de flores nas paredes. Era uma encenação patética de Roberta, que se obstinava a agarrar-se a um mundo que só existia nas ilustrações de fins do século xix e nos seus desejos irracionais.
Entretanto pensava que talvez Francesca se estivesse a tornar rebelde, precipitando a família no desespero, porque, inconscientemente, queria chamar sobre si a atenção dos pais. Também a cena de Matteo na escola poderia ser interpretada da mesma maneira.
Malvina pensou em Oscar, o grande ausente, que usava o trabalho como um biombo por detrás do qual podia esconder o seu medo de enfrentar os problemas. Quando conheceu Roberta, encantou-a com histórias aventureiras, fazendo-a sonhar com viagens das Mil e Uma Noites no dorso de um camelo, tendas berberes e tapetes voadores, para a convencer a casar com ele e logo a seguir se comportar como uma criança egoísta que reclama só para si as atenções da mulher.
No entanto, era errado atribuir a Oscar a culpa de tudo. Também a filha tinha a sua parte de responsabilidade.
Naquele momento Roberta entrou no quarto.
- Estás a velar a Bela Adormecida? - perguntou-lhe, ao ver Francesca mergulhada num sono profundo.
- Ela está a carregar as baterias após um dia stressante observou Malvina.
- Bem, o jantar está na mesa e agora a menina vai ter de me contar o que se passou - disse Roberta, ao mesmo tempo que abanava a filha para a acordar.
- Calma, querida. Não é preciso agredi-la - disse Malvina, e deixou-a sozinha com Francesca, que se tinha sentado na cama.
- Vamos conversar? - perguntou a mãe, com uma voz cortante.
- É como se tivesse tido um sonho mau. Tenho tanta vergonha - sussurrou a rapariga.
- Quero que me digas o que aconteceu.
- Estive com o Caetano. Porquê? Não sei. Estou tão infelijp, mamã!
- Quando e como? - insistiu Roberta.
- Depois de a tia me deixar em frente à escola, encontrei o Caetano. Ele não é nada mau e tem imensas atenções comigo. De manhã oferece-me bolas-de-berlim com creme. No dia de S. Valentim ofereceu-me uma rosa. Hoje de manhã disse-me: "Francesca, é Primavera e não me parece bem fecharmo-nos numa sala de aula com aqueles nossos professores tão chatos. Porque não vamos dar uma volta de moto? Depois vamos comer a qualquer lado e a seguir passamos a tarde no ginásio. E eu disse que sim. É o único pretendente que tenho e não quero perdê-lo, até porque os outros rapazes não me ligam nenhuma. Para todos eles, eu sou Francesca, a Seca, Miss Perfeitinha, e até houve alguém que me pôs a alcunha Se-a-conheces-evita-a. Percebes?
- O que foi que vocês fizeram? - insistiu a mãe.
- Nada, zero absoluto! Montei na moto dele, fomos até ao jardim, comemos um iogurte no Bar Bianco, estivemos no Museu de Ciências Naturais e ao meio-dia almoçámos, sentados num banco, as pizas do Caetano. E depois fomos para o ginásio.
- Não te lembraste que podíamos estar preocupados, a partir do momento em que não te dignaste a comunicar-nos o teu programa?
; - Sim, mas naquela altura já não tive coragem para dar sinais de vida e, uma vez que o Caetano não tinha problema nenhum, eu... como é que hei-de dizer, adaptei-me. Mas sentia-me mal, mamã. Sentia-me tão mal! - choramingou, abraçando a mãe.
- Mas de que é que estavas à espera com esta fuga? - perguntou Roberta, já mais calma com tanta ingenuidade.
- Que ele me falasse de amor - respondeu Francesca. Roberta respirou fundo. - Agora anda comer e depois vais
estudar.
- Não quero voltar à escola. A minha imagem vai andar pelas ruas da amargura.
- Pois, ficou um bocado borratada e isso está a roer-te. Mas deixa que te diga que os salpicos de lama, se os deixares secar, desaparecem com uma escovadela. Já pensaste nisso? - disse Roberta, ao mesmo tempo que lhe fazia uma carícia.
6
Eram dez horas da noite. Malvina tinha decidido ficar na cidade e foi dormir ao consultório, na via Salvini. Roberta e a tia estavam sentadas na sala de estar. Aurora bebia um whisky, a sobrinha um chá de tília.
- Fui até ao campo para me afastar dos problemas da família e olha só o que aconteceu - comentou Roberta, e continuou:
- A propósito, a mãe contou-me uma série de coisas que eu não sabia. Porque foi que os Mandelli me esconderam a existência de um primeiro marido da minha mãe?
- O meu irmão não queria que tu soubesses. De resto, era uma coisa sem importância - respondeu Aurora.
- Isso é o que tu dizes. As crianças percebem logo que na família se guardam segredos não revelados. E sofrem com isso.
- Com ou sem segredos, crescer é difícil para toda a gente e, depois de crescer, as dificuldades aumentam. A vida é complicada, Roberta. Quem te diz isto é alguém que sabe do que está a falar. E, em qualquer caso, os problemas não se resolvem sozinhos disse Aurora, acendendo um cigarro.
- A minha mãe teve uma vida que não foi simples, e no entanto é uma mulher tranquila.
- Ela sempre teve a coragem de olhar a realidade de frente. É uma mulher inteligente e gosta muito de ti.
- Não pensavas assim, há muitos anos - disparou Roberta.
- Só os imbecis é que não mudaram de ideias - respondeu Aurora, e prosseguiu: - Antes de abordares o mal-estar dos teus filhos, tens de resolver os teus problemas. És uma mulher inquieta. Pergunta a ti mesma porquê.
- Por causa do Oscar?
- Isso só tu é que podes saber.
- Mas também não é justo concluir que os meus filhos fazem disparates só porque eu não ando bem - observou Roberta.
Ouviram uns passinhos apressados no corredor. Matteo entrou na sala, descalço, com os olhos inchados de sono, e atirou-se para os braços da mãe.
- Porque é que não estás a dormir? - perguntou ela.
- Tenho sede - respondeu ele, encostando-se mais a Roberta. A tia foi buscar-lhe um copo de água, a criança bebeu apenas
um gole e depois abraçou a mãe outra vez.
- Eu vou deitar-me - anunciou Aurora.
- Posso dormir contigo na tua cama? - perguntou Matteo. Roberta anuiu e abraçou o filho com força.
- Hoje de manhã denunciei-me à turma inteira - confessou-lhe.
- Já soube pela tia. Foste muito bonito. Sabes, eu acho que é preciso muita coragem para fazer uma confissão dessas diante dos colegas.
- Mas eles são antipáticos - afirmou Matteo. E acrescentou:
- São uma seca.
- Explica-te melhor - pediu a mãe.
- Têm a mania.
- Tipo?
- Estão sempre a dizer-me: o meu pai ensinou-me a acertar nos frascos com a fisga, o meu pai vê os meus trabalhos de casa todas as noites, o meu pai isto e o meu pai aquilo. São uma seca, Pronto. Percebeste?
Roberta tinha percebido perfeitamente.
- O teu pai, no domingo, levou-te a ver o espectáculo das bandeiras - disse.
4:0 - Hum-hum - bocejou o pequeno.
- Matteo tinha inveja dos colegas que tinham pais mais disponíveis do que o seu, que nunca estava em casa.
O rapazinho adormeceu, ela levou-o para o quarto e instalou-o ternamente na cama de casal. Aconchegou-lhe os cobertores e estendeu-se ao lado dele.
Ficou durante algum tempo a observar aqueles cabelos loiros e fartos, o rosto rosado, o desenho perfeito das sobrancelhas do filho. Era, de facto, uma criança bonita e ela amava-o imenso.
Como poderia conceber a sua vida sem os filhos? Se Oscar não se tivesse oposto, queria ter tido mais dois, porque os filhos transmitiam um sentimento de segurança.
Recordava com alguma dor a sua infância de filha única, sem um irmão ou uma irmã com quem se comparar, brincar e discutir.
Acendeu-se uma luz no corredor e pouco depois Francesca apareceu à porta do quarto.
Roberta levou um dedo aos lábios para lhe recomendar silêncio.
- Tenho sede - sussurrou Francesca.
A sede nocturna dos filhos era uma maneira de reclamar as
atenções da mãe.
Roberta deslizou para fora da cama e foi à cozinha com a filha, deu-lhe um copo de água e disse: - Mas agora vamos dormir, que é quase meia-noite.
- Acordei porque tenho dentro de mim uma raiva que me devora - confessou Francesca.
Então Roberta pôs ao lume uma cafeteira cheia de leite no qual dissolveu açúcar e cacau, abriu a caixa dos biscoitos e pousou-a em cima da mesa com duas chávenas. Depois sentou-se à espera que o leite aquecesse.
- Sabes, eu também estou muito zangada - afirmou, olhando a filha nos olhos.
- Que estranho, normalmente és tu quem nunca se zanga replicou Francesca.
- Desliga o lume, antes que o leite entorne - disse, e acrescentou: - Se calhar atingi o meu limite de paciência e agora decidi que, quando for caso disso, também me zango a sério.
- Então porque é que não me dás um par de estalos? - provocou.
- Porque não adianta. Mas vais ter um castigo exemplar.
- A sério? Qual?
Francesca deitou nas chávenas o leite com cacau.
- Tenho de pensar nisso - replicou.
- Então despacha-te, porque eu quero saber de que morte vou morrer.
Roberta levou uma mão à cara para esconder o sorriso que lhe surgiu nos lábios.
- Prefiro deixar-te na expectativa mais algum tempo.
- Mas quem é que tu queres tentar convencer? A avó é que tem razão quando diz que tu és uma mulher indecisa.
Francesca provocava-a de todas as maneiras, porque queria ser castigada. Aquela rapariga de língua comprida estava a tentar encostá-la à parede. Naquele momento devia-lhe uma resposta.
Mergulhou um biscoito dentro do leite a ferver e meteu-o na boca. Depois disse: - Olha lá, menina sabichona, eu não estou em nenhum exame.
- Tens mesmo a certeza?
Roberta bateu com a palma da mão na mesa.
- lá chega! - gritou.
- Grita mais, porque assim acordas o Matteo e a tia. Mas também quem é que se importa? Toda a gente sabe que isto é uma casa de doidos. Zangas-te comigo porque não és capaz de te zangar contigo mesma, nem sequer com o pai, nem com o Matteo, que é o teu preferido. E agora não me digas que tenho ciúmes dele! Tu de mim não queres saber. Só repetes: "A Francesca é boa em
tudo, a Francesca é uma senhorinha." Nunca dizes: "A Francesca é linda!" Bem vejo pela maneira como olhas para mim. Tens sempre ar de quem pergunta a si mesma o que será daquela filha marrona e tão feiinha - gritou ao mesmo tempo que as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
- Oh, meu Deus! - sussurrou Roberta. E recordou quando, em pequena, pedia a Malvina com uma voz suplicante: "Mãe, diz-me que sou bonita!" Tinha-se esquecido de como era importante ter alguma segurança relativamente ao aspecto físico.
- Desculpa, querida - disse, afagando-lhe o rosto molhado de lágrimas. - Desculpa, a sério. A tua beleza é tão evidente que eu nunca achei que valesse e pena sublinhá-la. És lindíssima, Francesca - constatou, enquanto lhe limpava o rosto.
Ouviram rodar uma chave na porta de entrada e, um instante depois, Oscar entrou na cozinha. Tinha um ar cansado.
- Será que perdi algum episódio de uma nova telenovela? perguntou.
Mãe e filha trocaram um olhar de entendimento.
- Vamos querer preocupá-lo? - perguntou Francesca a Roberta.
- Nunca se sabe - replicou ela.
- Dormi num hotel horrível, falhei um serviço e não me apetece nada deixar que vocês me gozem - disse ele, ao mesmo tempo que saía da cozinha.
- Ora aí está um bom momento para eu me zangar a sério anunciou Roberta à filha.
- Vamos dormir. É melhor - aconselhou Francesca, com um tom maternal. Depois, porém, perguntou-lhe angustiada: - Com que cara é que eu vou chegar à escola amanhã de manhã?
- Com a mesma com que o teu irmão hoje enfrentou os colegas de turma.
- Ele não tem uma reputação para defender.
- O que sabes tu disso? De qualquer maneira, a reputação salva-se com a sinceridade. Não concordas?
- Devo confessar que fugi com o Caetano? - perguntou, quase escandalizada.
- Amanhã de manhã pensamos nisso - disse Roberta. Deu-lhe um beijo na testa e concluiu: - És muito bonita, Francesca. Digo-te isto como mulher, não como mãe.
7
Às sete horas da manhã Malvina estava já em casa da filha com o saquinho dos brioches acabados de sair do forno, comprados na padaria cuja dona não sabia mais como havia de se desculpar por causa daquele filho inconsciente.
- A senhora, no meu lugar, o que fazia com um palerma daqueles? - perguntou-lhe.
- Todos são mestres com os filhos dos outros, e portanto eu não me quero pôr no seu lugar - rematou Malvina.
Em casa estavam todos a levantar-se, excepto Oscar, que dormia profundamente.
Malvina e a tia Aurora repartiram as tarefas: uma ia levar Matteo à escola e combinar com a directora o pagamento do blusão danificado, a outra ia justificar a ausência de Francesca no dia anterior.
Roberta encontrou-se com a mulher-a-dias que a ajudava a limpar a casa algumas vezes durante a semana.
- Não faça barulho, Tilde, porque o meu marido ainda está a dormir - disse-lhe, ao mesmo tempo que avançava à frente dela em direcção à cozinha, onde tinha feito o café para as duas.
- A senhora como está? - perguntou a empregada, ao reparar no ar cansado de Roberta.
- Sinto-me feita em pedaços.
A mulher-a-dias conhecia-a há dez anos e era a primeira vez que Roberta lhe respondia com tanta franqueza.
- Vê-se - constatou. E acrescentou de seguida: - Tudo por culpa das nossas mães, que nos educaram para termos um marido e filhos. Sabe o que lhe digo? Se voltar a nascer, em vez de me casar vou para freira.
Roberta não lhe revelou que tinha uma mãe que nunca a empurrara para o casamento. Em vez disso, concordou com ela:
- Sábias palavras, Tilde.
Deixou-a a arrumar a cozinha e fechou-se na casa de banho. Enquanto estava debaixo do chuveiro, ouviu o toque de aviso de uma mensagem no telemóvel que Oscar tinha esquecido em cima do lavatório. Embrulhada na toalha, olhou para o ecrã, no qual leu o nome do remetente: Cinzia.
A curiosidade venceu a discrição e foi ler o texto que dizia: "Bom-dia, querido! Preciso pasta p pagamento 2a prestação a.t.e f. Beijos
- Que raio significa a.t. e f.? - perguntou em voz baixa, sabendo já que com "pasta" a ex-mulher queria dizer dinheiro.
Lembrou-se então de que tinha ouvido Oscar falar ao telefone com Cinzia sobre certas despesas extraordinárias de condomínio, de que ele se encarregaria. - Mas é claro! - sussurrou com os dentes cerrados. lá não bastava ter-lhe dado o apartamento da via Solferino, ainda tinha de arcar com as despesas do arranjo do tecto e da fachada. Roberta estava cansada daqueles desembolsos humilhantes.
Num impulso, atirou o telemóvel pela janela fora. Depois vestiu-se e disse à empregada: - Tilde, vou sair. Se precisar de alguma coisa, ligue-me para o telemóvel.
Foi ao banco e levantou uma quantia da conta-corrente do marido a que também tinha acesso. Depois estacionou o carro numa garagem do centro. Foi a pé até à boutique dos seus sonhos e ofereceu-se um tailleur primaveril lindíssimo. Depois foi a vez de
Nrc
uma loja onde comprou uns patins para Matteo e outros, de botas brancas, para Francesca.
Ainda lhe sobrava muito dinheiro. Gastou uma parte numa florista, num soberbo ramo de peónias de um branco rosado. Pensou que o dinheiro para pagar a segunda prestação "arranjo tecto e fachada" já não existia porque ela o tinha gasto. Sentiu-se muito pérfida e feliz.
Carregada de embrulhos e sacos regressou à garagem, para ir buscar o carro, e seguiu para a livraria.
- Reunião a duas - anunciou logo a Chiara.
Fecharam-se no escritório, deixando Angélica e a outra empregada a tratar dos clientes.
- Esvazia o saco - disse a amiga, ao mesmo tempo que se sentava num cadeirão à frente dela.
Roberta estendeu-lhe o ramo de flores.
- São para ti - disse-lhe, com um sorriso. -
- O que foi que eu fiz de mal? - indagou Chiara, em ar de brincadeira.
- Tens de agradecer ao meu marido. Comprei-as com o dinheiro dele.
- Então, decides-te a esvaziar o saco?
Roberta contou tudo, desde as patifarias dos filhos até à mensagem da ex-mulher de Oscar no telemóvel e ao levantamento de dinheiro da conta-corrente do marido. - Confesso-te que aquilo que fiz me faz sentir muito bem - concluiu.
- Mas não consideraste a reacção do Oscar. Quanto a mim, vai ficar muito mais furioso por teres atirado o telemóvel pela janela fora do que pelo dinheiro que não vai poder dar à sua Cinzia - comentou a amiga.
- Há outra coisa que tu não sabes: reaja como reagir, não me importo nada - garantiu Roberta.
- Se a tua mãe te ouvisse, ficava orgulhosa de ti, tal como eu estou.
Roberta baixou os olhos e disse: - Mas eu não estou. Não é preciso assim tanta coragem para deitar fora um telemóvel, nem para gastar em frivolidades um dinheiro que não me pertence.
- Não sejas parva. Já te arrependeste?
- Não sei. Valha-nos ao menos que, ao fim de tantos anos, é a primeira vez que reajo, em vez de deixar correr, como sempre fiz. Mas eu gosto do Oscar. O que é que eu posso fazer?
- Também gostas dele quando te humilha, insistindo em manter uma fulana que já não é mulher dele há anos, ou quando se recusa a tratar dos vossos filhos, ou quando não te ouve se lhe falas dos teus problemas?
- Mas é um marido fiel.
- Sim, fiel a si mesmo, às suas necessidades, ao seu trabalho.
- Estás a deitar lenha para a fogueira para me obrigares a discutir com o Oscar?
- Então, vai passear! Volta para ele, cobre-te de vergonha e pede-lhe perdão por te teres rebelado. Escuta, minha menina, tens duas possibilidades: a primeira é salvar o teu casamento, continuando na ilusão de que és uma mulher satisfeita e sofrendo com os teus filhos as consequências disso; a segunda é baralhar as cartas para ver se ele muda de atitude e se torna num marido aceitável e um pai atento. Não acho que o Oscar possa mudar, porque é muito dedicado ao seu papel de macho egoísta a quem tudo é devido. Portanto, a escolha é tua.
- O Oscar é o único homem da minha vida. Nos momentos em que estamos os dois sozinhos e ele me abraça, eu derreto-me. Não é pouco para duas pessoas que estão casadas há tantos anos admitiu, quase com ar de quem se desculpa.
Chiara sorriu-lhe, apertou contra o peito aquelas flores lindíssimas e sentenciou: - Todas as mulheres estão dispostas a renunciar ao seu orgulho por um homem de quem gostam. É esta a nossa condenação.
Esticou-se por cima da secretária e deu um beijo a Roberta.
- Obrigada, querida. Quando chegar a casa vou dizer àquele idiota daquele meu marido que foram um presente de um admirador. Não te importas, pois não?
- Não, mas pareçe-me um expediente ridículo.
- Eu sei. Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. De resto, nunca fui bonita, e no entanto o Arturo nunca me traiu e ainda tem ciúmes de mim.
Roberta entrou na casa de banho. Por baixo do lavatório, dentro de um caixote cheio de farrapos, Messalina estava a dar de mamar aos cinco gatinhes. Conhecendo o ciúme das gatas, coibiu-se de os acariciar.
8
Roberta regressou à secretária e leu os e-mails que tinham chegado. O último, assinado por Aldo Rivetti, dizia: "Cara Sr.a Mandelli, espero que tenha corrido tudo bem depois da sua partida precipitada de Tavernolo. Os meus cumprimentos."
Por um instante, Roberta perguntou a si mesma se Aldo Rivetti poderia ser o homem capaz de a ajudar a baralhar as cartas. Foi um pensamento fugaz que repeliu imediatamente. Respondeu: "Caro Professor, correu tudo bem. Espero, por minha vez, que a colaboração com a biblioteca de Tavernolo se processe sem entraves. Afectuosamente, Roberta." Depois acrescentou um post-scriptum: "Não tínhamos decidido tratar-nos por tu?"
Releu o texto antes de o enviar e disse: - Porque será que complicamos a nossa vida com todas estas formalidades?
Apagou então a mensagem e escreveu simplesmente: "Obrigada pelo seu interesse. Está tudo em ordem. Um bom dia."
Depois respondeu aos outros e-mails, aos telefonemas de trabalho e, finalmente, ao de Oscar, que lhe perguntou, preocupado:
- Por acaso não viste o meu telemóvel?
Roberta susteve a respiração e não respondeu. ; a
- Estou? Estás a ouvir-me? - perguntou o marido. ;u
- Atirei-o pela janela fora - respondeu Roberta.
Foi a vez de Oscar suster a respiração.
- Ouviste-me? - perguntou.
- Porque fizeste isso? - perguntou ele, com uma voz de gelo.
- Estou zangada, muito zangada - disse, e prosseguiu: - E não é tudo. Quase te esvaziei a conta bancária. - Ouviu o clic da chamada a ser desligada.
Nesse momento considerou duas possibilidades: ir a correr para casa e falar com ele, ou criar uma manobra de diversão e deixar que a situação seguisse o seu caminho.
Criou uma manobra de diversão. Saiu da loja, entrou no carro e dirigiu-se à escola de Matteo. Enquanto esperava pelo fim das aulas, pensou que o marido nem sequer se tinha preocupado em perguntar-lhe por que razão estava tão zangada com ele. Oscar, como sempre, evitava enfrentar situações que pudessem perturbar a sua tranquilidade.
Ouviu o toque da campainha e logo a seguir o portão da escola abriu-se. As crianças da primária saíram do edifício e foram ao encontro das mães, avós e empregadas que estavam à espera delas. Matteo foi ter com a mãe a correr e entregou-lhe logo a mochila cheia de livros.
- Pensava que era a avó que me vinha buscar - disse.
- Vais ter de te contentar comigo, que não estou com a melhor das disposições - respondeu Roberta.
Matteo reagiu como Oscar. Não prestou atenção às palavras da mãe e perguntou: - Hoje posso ir para casa do Michele fazer os trabalhos de casa?
Entraram no carro e Roberta pôs o motor em marcha.
- Estava a pensar irmos comer qualquer coisa na casa das sandes. Depois vais para casa do Michele.
- Eu quero um pão com hambúrguer, maionese e ketchup.
- Ou então?
- Batatas fritas com maionese e ketchup. Depois compras-me um pacotinho de cromos dos Gormitis?
- Isso costuma ser um prémio por alguma coisa. Mereces
algum prémio? - perguntou, enquanto conduzia.
- Mereço, porque fiz as pazes com os meus amigos e isso não
foi fácil - afirmou ele, com ares de gente grande.
Roberta estacionou o carro perto da livraria, quase em frente à
casa das sandes.
- Ouve uma coisa, o teu pai comprou-te uns patins - anunciou, optando por atribuir a aquisição ao marido. - Mas que fique bem claro que não são nenhum prémio. Com a ajuda do pai, vais aprender a usá-los. Agora podes pegar neles, estão no banco de trás - disse Roberta.
Matteo abriu o embrulho e exclamou: - Fixe! Também trazem
joelheiras e luvas. Super fixe! - exclamou, entusiasmado.
- Telefona ao teu pai, que está em casa, e pergunta-lhe se te
Bleva a patinar - sugeriu Roberta, estendendo-lhe o telemóvel.
O rapazinho marcou rapidamente o número, ao mesmo tempo
que perguntava à mãe: - Achas que ele me vai levar? - Não sei, mas tens de lhe perguntar.
Em casa atendeu Tilde e disse-lhe que o pai tinha saído.
- Encontra-lo mais tarde - animou-o a mãe. Saiu do carro e,
como se se tivesse materializado do nada, encontrou à frente um Oscar furibundo, que sibilou: - És uma louca histérica.
- Pai, pai! - intrometeu-se Matteo, que não sabia nada do que
tinha acontecido entre os pais.
Já fui, mas estou a começar a recuperar a razão - respondeu
Roberta, e prosseguiu: - Acabou-se. É verdade, atirei o teu telemóvel
Bpela janela fora e levantei o dinheiro. Finalmente arranjei coragem Para reagir e agora estou irritada contigo, que és um exemplar
de macho egoísta empedernido.
Matteo, com os patins na mão, olhava alternadamente para o
pai e para a mãe, sem perceber o que estava a acontecer.
Oscar tinha passado da cólera ao espanto e olhava para a
mulher, estarrecido. Não era aquela a Roberta que ele conhecia,
amava e temia perder.
Onde teria ido parar a rapariga doce, paciente, pronta para o ajudar, na qual ele sempre confiara? De onde tinha surgido aquela víbora agressiva?
- Quem é que me ensina a andar de patins? - perguntou Matteo, a tentar obter a atenção dos pais.
- Estás a dar um rico exemplo ao teu filho - disse Oscar, acutilante.
Miraculosamente, ao lado deles surgiu Chiara, que pousou uma mão tranquilizadora no ombro de Matteo.
- Vamos embora, querido. Parece que os teus pais têm qualquer coisa para conversar - sussurrou-lhe, e levou-o para a livraria, enquanto o miúdo lhe perguntava: - Porque é que eles estão a discutir? Nunca vi a mãe tão furiosa.
- Deixa-os lá entenderem-se. Tenho a certeza de que vão fazer as pazes depressa - garantiu Chiara, enquanto dirigiu o olhar para Oscar e Roberta, que iam a entrar no carro dela.
- Até agora dei aos nossos filhos o péssimo exemplo de uma mulher que faz os possíveis e os impossíveis por esconder o desinteresse do marido pela família. A partir de agora já não te desculpo mais nem vou aguentar outras violências da tua parte - afirmou Roberta, furiosa.
Oscar estava sentado ao lado dela e, pela primeira vez, não tentou furtar-se ao confronto com a mulher.
- Eu... violento? Mas tu és realmente uma louca histérica! Quando foi que eu alguma vez usei de violência contigo? - reagiu, convencido de que a mulher estava efectivamente a enlouquecer. Havia já quatro dias, desde que tinha regressado a casa cheia de febre, que ele não percebia o que estava a acontecer com Roberta.
- A violência não é só física, é também psicológica. É obrigares-me a enfrentar sempre sozinha os problemas dos nossos filhos e forçares-me a aceitar que continues a manter a tua ex-mulher subtraindo dinheiro à tua família. Atirei o teu telemóvel pela janela fora porque li a mensagem daquela tua deliciosa primeira mulher a solicitar o pagamento das prestações do condomínio tratando-te
por querido e mandando-te beijos. Ando a aguentar isto desde os
vinte anos. Agora chega.
Oscar, desorientado com aquele desabafo, tentou reagir: - Agora também estás irritada com aquela pobre mulher? O que é que ela devia dizer, depois de eu me ter divorciado dela para casar contigo?
Roberta deixou escapar um sorriso.
- De facto, ela não diz. Limita-se a bater à porta, dia após dia, há dezoito anos, e tu abres a carteira. A propósito, gastei o teu dinheiro em roupa e presentes para as crianças, hoje de manhã. Estou muito feliz por o ter feito, quando penso em todo o dinheiro que já deste e continuas a dar àquela "pobre mulher", como tu a defines.
- A Cinzia existia na minha vida antes de eu te conhecer. Não a posso apagar para te fazer a vontade.
Subitamente, Roberta olhou para ele com ar grave e disse: - És um pobre coitado e, nisso, eu tenho a minha parte de responsabilidade. Devia ter posto as cartas na mesa há muitos anos. Agora sai da minha vida e da dos meus filhos.
Oscar disse mal de si por não se ter esquivado a tempo daquela discussão. Se o tivesse feito, teria evitado uma polémica desagradável com a mulher e tudo teria corrido como sempre. Apesar de não poder ignorar que, há alguns dias, Roberta tinha mudado a ponto de ele já não a reconhecer. A mulher estava apaixonada por outro homem: era a única explicação possível. E este pensamento aterrorizou-o. Saiu do carro sem dizer uma palavra e dirigiu-se à livraria, ao mesmo tempo que Matteo ia ao encontro dele.
- Pai, obrigado pelos patins. A mãe disse-me que foste tu que os deste. Ensinas-me a andar? - Oscar abraçou-o e o filho perguntou-lhe ainda: - Fizeram as pazes?
O pai não lhe respondeu. Abraçou-o com força e pensou, pela Primeira vez, que não conseguiria viver sem os filhos.
9
Sentada no carro, Roberta viu o marido e Matteo abraçados e
ficou a olhar para eles, pensativa.
Depois pegou no telemóvel e telefonou a Chiara.
- Vou à escola buscar a Francesca - disse-lhe. E prosseguiu:
- Quando o Oscar te entregar o Matteo, e não vai tardar a fazê-lo, leva-o à casa das sandes, por favor. Eu tinha-lhe prometido. Vemo-nos logo à tarde.
Francesca, com um grupinho de raparigas, estava sentada em cima do muro da escola. Riam e brincavam entre elas. Roberta achou que a filha era a mais bonita, até porque, apesar daquelas sapatilhas horríveis, dos jeans rasgados e da camisola deformada, possuía uma elegância inata que as outras não tinham.
Tocou a buzina para chamar a atenção da filha, que lhe acenou com a mão. Roberta perguntou-se que temas poderiam suscitar a hilaridade daquelas raparigas, que reservavam para as famílias maus humores e melancolias. Interrogou-se se também teria sido assim com a idade de Francesca.
- Olá, mamã - cumprimentou a filha quando entrou no carro, afastando-a das suas reflexões.
- Como estás, querida? - perguntou-lhe.
- Correu melhor do que eu esperava. A tia Aurora, como sempre, foi fantástica. Contou àquela professora horrorosa que o pai
tinha de fotografar o Vasco Rossi e que tinha pegado em mim, antes de entrar na aula, para me levar com ele, sabendo que o Vasco é o meu ídolo. Mas que depois o pai tinha perdido o telemóvel e não tinha podido avisar ninguém. Em suma, deu-lhe a volta que foi uma maravilha. A propósito, aquela professora horrorosa diz que quer falar com o pai - contou Francesca, enquanto se dirigiam a casa.
A professora em questão era a de Latim, odiada pela severidade e desprezada pela falta de abertura mental.
- Em suma, salvaste a face - considerou Roberta.
- A tia é que ma salvou. É o máximo! Não fazes ideia da vivacidade com que lhe espetou uma história toda inventada. Parecia mesmo que estava a dizer a verdade. Depois, na aula, a professora disse que o Cícero ficou na História porque era um génio, enquanto que ninguém se vai lembrar do Vasco Rossi. A seguir virou-se para mim e disse-me: "Não te esqueças de que quero falar com o teu pai." Por favor, vai tu ter com ela, não mandes o pai.
- Não estou com grande vontade de me tornar cúmplice dessa mentira sórdida - disse Roberta.
- A verdade é ainda mais sórdida, e tu bem sabes - confessou Francesca, e acrescentou: - Quando eu encontrar o Caetano, o que é que lhe vou dizer?
- Talvez ele tenha feito a mesma pergunta a ele próprio observou Roberta.
- Ele não se questiona, porque tem um cérebro de galinha.
- Enquanto que o teu...
- Talvez eu não seja melhor do que ele. Mas percebi que ao Caetano apenas interessa ser forte e musculoso, quanto ao resto não sabe construir uma frase que faça sentido. Pensei bem, hoje de manhã, e acabei a perguntar a mim mesma: Onde é que eu estava com a cabeça? Como pude ir atrás dele naquela estúpida aventura?
Tinham chegado a casa.
Subiram e encontraram a mesa posta. Tilde tinha preparado massa com quatro queijos. Roberta meteu-a no microondas.
- E o Matteo? - perguntou Francesca.
- Hoje vai almoçar umas sandes com a Chiara - respondeu a mãe, reparando que a filha não se tinha referido à ausência do pai.
Sentaram-se as duas à mesa, sozinhas, em silêncio. A certa altura Roberta anunciou: - Logo vou à livraria. Há já uns dias que estou a descurar o meu trabalho.
- Com tudo o que está a acontecer... - comentou Francesca, e prosseguiu: - Eu e o Matteo provocámos-te uma crise. Mas agora está tudo bem. Será que não podemos fazer de conta que não aconteceu nada? - perguntou a rapariga.
- A partir deste momento vamos inaugurar um jogo novo, muito mais giro e interessante, ainda que cansativo: não escondemos mais nada uns dos outros, mesmo que se trate de coisas desagradáveis - declarou Roberta com firmeza.
- Tudo bem. Então começo eu. Não te cheguei a dizer, porque não me parecia bem e o pai não ia achar graça, que a ex-mulher se apresentou à saída da escola, uma vez que ele me foi buscar.
- Quando?
- Este Inverno. Eu fui ter com o pai, que estava à minha espera ao pé do carro, e ela fez de conta que ia a passar ali por acaso. Cumprimentaram-se e o pai disse-me: "Esta é a Cinzia, a minha primeira mulher." Ela sorriu-me e tentou fazer-me uma festa. Eu afastei-me e ela comentou: "Que bonita filha tu tens, Oscar. Eu não tive a alegria de ter filhos. A vida foi muito avara comigo.! Depois despediu-se de nós e foi-se embora. O pai ficou atrapalhado e eu percebi que tinham ensaiado um teatrinho, porque ela devia tê-lo azucrinado sei lá quanto para me poder conhecer - contou Francesca.
- Não posso acreditar! - balbuciou Roberta.
- Acredita, porque é assim mesmo.
- Que tipo é? - perguntou, curiosa.
- Trazia um casaco comprido debruado a raposa e na testa um gorro de pele. Ah, nem te conto dos saltos, vertiginosos. Pareceu-me um bocado ordinária e ridícula.
Roberta esteve quase a rir-se. Depois pensou que tinha sido Oscar a pagar o casaco debruado a raposa e ficou furiosa. Mas calou-se.
- Tu não a conheces? Nunca a viste?
Também Francesca tinha as suas curiosidades e Roberta, fiel à linha que tinha traçado, decidiu responder com sinceridade.
- Uma vez. Eu tinha vinte anos e ela, julgo eu, mais cinco do que eu. Já então, como tu dizes, era um bocado ordinária e vestia-se como uma Barbie.
- Conta-me tudo - pediu a filha, interessadíssima.
Roberta pensou que tinha chegado o momento de se abrir com a filha, tal como Malvina tinha feito com ela.
Ainda Roberta
1
As raparigas estavam no jardim, sentadas na beira da fonte, a conversar umas com as outras.
A avó estava a fazer malha e, de vez em quando, observava-as da varanda onde estava sentada à frente do filho, que lia o jornal.
- O que será que elas têm sempre para contar - perguntou-lhe. Walter levantou os olhos do jornal e replicou: - Sonham de
olhos abertos.
Roberta, Ines e Liliana eram apelidadas "As Três Graças", porque eram engraçadas e inseparáveis. Naquela definição escondia-se também uma certa inveja em relação àquela solidariedade inoxidável e impenetrável. Comportavam-se como irmãs: estudavam e divertiam-se juntas, confiavam segredos umas às outras e até trocavam de roupa.
Atingiam o auge do divertimento quando dormiam as três em casa dos Mandelli.
Ao contrário de Ines, que se dava com Roberta desde os tempos do infantário, Liliana tinha entrado na vida dela só no início do liceu. Era a melhor aluna da turma e a sua inteligência brilhante suscitara o interesse dos professores.
A professora de Letras, ao reparar nas roupas modestas da rapariga, perguntou-lhe um dia: - O que faz o teu pai?
- É carregador no mercado abastecedor - respondeu Liliana.
- E a tua mãe?
- Morreu há três anos, ao dar à luz o meu irmão mais pequeno. Liliana era uma bonita rapariga, de cabelos vermelhos como o
fogo, olhos verdes e um corpo perfeito.
Naquele entardecer de Junho, as três raparigas festejavam a passagem para o último ano do liceu e contavam umas às outras os seus projectos para o Verão.
Ines ia para a montanha com os pais, Liliana teria "um mês de estouro", assim o definiu, porque o irmão mais novo ia frequentar uma colónia de férias e ela não ia ter de tratar dele, e Roberta ia fazer uma viagem de carro, por França e Espanha, com a mãe e com o pai.
- Já estou a imaginar os passeios nas montanhas do Tirol, com a minha mãe a queixar-se de dois em dois passos e os refúgios infestados de ursos alemães gordos. Não vejo a hora de ser maior e de ir para a praia, de ficar todo o dia na água, conhecer gente nova e arranjar um namorado com mais graça do que os nossos colegas de liceu - sonhou Ines, logo interrompida por Roberta que, com um prazer sádico, sublinhou: - Em vez disso vais deitar-te com as galinhas e com o estômago cheio de "kartofen, krauti e kaisersmarren".
- És mesmo pérfida. Só me consola pensar que, contigo, as coisas não vão correr melhor. Vais ser obrigada a comer quilómetros de estrada e de visitas enfadonhas a castelos, ruínas e museus
- retorquiu Ines.
- Eu desprezo-vos às duas, porque não sabem aproveitar aquilo que a sorte vos oferece todos os dias - resmungou Liliana, que era mais madura do que as duas amigas, sabia o que custava sobreviver com o pouco dinheiro que o pai ganhava e tinha em casa um irmãozinho de quem tinha de tratar. Ines e Roberta calaram-se, porque a companheira conseguia sempre colocá-las numa situação difícil. Estimavam-na também por isso.
- Então, o que é que vamos fazer agora? Ficou em suspenso o encontro na pizaria com o resto da turma - disse Ines.
- Se não formos, vão dizer que somos as palermas do costume
- comentou Liliana, que já tinha feito as contas da piza e da Coca-Cola e tinha estabelecido que se podia permitir aquela despesa sem pedir dinheiro ao pai.
- Uff, quero lá saber! Tenho alguma dificuldade em aguentar os nossos colegas durante as aulas e não morro de vontade de os ter à minha volta agora que a escola acabou - rebateu Roberta, com um ar enfadado.
- Para que é que estás a contar essas histórias? Tu não queres é ver a Randazzi, que anda com o Minicapilli - provocou Liliana.
- Pára de dizer disparates - replicou ela, arreliada, porque andava desde o início do ano perdida pelo Minicapilli, um siciliano moreno como um sarraceno, que vinha de Marsala, era mais velho um ano do que os outros colegas e tinha um ar de homem feito. Tinha-se integrado rapidamente na turma e entre todas as raparigas escolhera a Randazzi.
- Aqueles dois vão acabar por casar. Praticamente, já estão casados - insinuou Ines.
- Mas tu és parva? - reagiu Roberta, desesperada.
- A sério! Disse-me a Bianchi, que soube pela Piazza, que é amiga do peito da Randazzi - esclareceu Ines.
- Problema deles - disse Liliana, sem dar importância.
- Deste-me uma facada no coração - disse Roberta, que durante todo aquele tempo tinha acalentado a ilusão de que o belo sarraceno ia acabar por se fartar da Randazzi e, nesse momento, ela cair-lhe-ia nos braços. Passara meses a sonhar com aquele dia e imaginava uma esplanada junto ao mar, a luz do luar, e eles os dois, de traje de noite, a dançarem uma canção dos Beatles: "Love me do". Tinha-a cantado muitas vezes com a mãe, que era muito afinada. No seu sonho de olhos abertos, o Minicapilli sussurrava-Ihe: "You know I love you". E ela respondia: "Yes, I do".
- De vez em quando, uma sã chamada à realidade não faz mal a ninguém - sentenciou Liliana.
- Odeio-te! - declarou Roberta.
Liliana era lindíssima e todos os colegas de escola, mesmo os mais velhos, eram loucos por ela, que não lhes ligava. Não porque lhe desagradasse que lhe fizessem a corte, mas porque lhe faltava tempo para cultivar sentimentos que a iriam afastar das responsabilidades familiares, do estudo e dos projectos para o futuro.
- Eu às tantas vou lavar a cabeça - disse, e começou a cantarolar, nada preocupada com a declaração de Roberta.
- Está à vontade - disse a dona da casa.
- És um anjo - agradeceu Liliana, que aproveitava sempre as instalações da casa dos Mandelli, porque em casa dela, num bairro social, as condições de higiene não ofereciam propriamente o máximo da comodidade.
- Mas odeio-te na mesma - esclareceu Roberta, enquanto a amiga se afastava.
Roberta pegou num punhado de pedrinhas e começou a atirá-las para a fonte, enquanto cantava uma canção sobre as ilusões perdidas.
- Vá lá - brincou Ines.,,
- Estou destroçada - prosseguiu.
- Pára com isso! Mais cedo ou mais tarde alguém tinha de te dizer do Minicapilli e da Randazzi - observou a amiga.
- Já se vê que não era o destino - afirmou ela, com um tom de actriz dramática de terceira ordem. - Estou destinada a ficar solteira como a pobre tia da Cristina. A mim, ninguém me quer.
- Os rapazes não te querem porque têm medo de ti. Estás sempre com uma cara carregada e, se alguém te dirige a palavra, em vez de responderes, ladras.
- Porque não me abordam da maneira certa - afirmou.
- A sério? E qual é a maneira certa, quanto a ti?
- Um rapaz deve lançar-se aos meus pés, suplicar-me que o ame, dizer-me que não pode viver sem mim... mas depois se algum fizesse isso, eu ia pensar que estava a gozar comigo e ladrava-lhe na mesma. Como é que se faz para sermos amadas?
- A verdade é que ninguém quer as três graças. Eu não estou melhor do que tu. Quanto à Liliana, essa nem quer saber. Mas eu
sofro tanto como tu. Se calhar devíamos dissolver esta amizade.
- Estás parva?
I - De qualquer maneira, eu já decidi: logo à noite vou à pizaria
com os outros e depois vou atrás deles para a discoteca. - O teu pai dá-te a discoteca - observou Roberta.
- Vais ver se eu não vou - teimou Ines.
Walter Mandelli chamou a filha, que foi ter com ele à varanda.
- Eu já me vou embora. O Trinchese veio buscar-me.
" Levava a tiracolo um pesado saco de viagem. Ia à Suécia com o
fotógrafo do jornal, Oscar Trinchese, que Roberta só conhecia ;, através das palavras do pai. Deitou-lhe os braços ao pescoço.
- Faz boa viagem, pai, e traz-me muitas coisas bonitas - disse. ela.
Walter apertou-a contra si e disse-lhe: - Vou trazer-te os filmes do Bergman em versão original. - Ia entrevistar o realizador na sua casa de Faro, num ponto impreciso da Suécia.
- Vá lá, pai, acaba com essas ameaças - replicou ela, e acompanhou-o à porta. À entrada estava Oscar, o homem mais bonito que alguma vez vira.
3
Oscar Trinchese tinha os cabelos muito loiros e uns olhos azuis que cintilavam num rosto bronzeado.
Sorriu-lhe e disse: - Tu és a pequena Roberta.
Ela continuava a olhar para ele, arrebatada, e não conseguia sequer pronunciar uma palavra. Era então aquele o tal Oscar Trinchese que, há algum tempo, formava equipa fixa com o pai nas viagens de trabalho?
- Ainda têm tempo para um café? - perguntou a avó, que surgira à entrada.
- A esta hora vamos apanhar movimento na circunvalação. É melhor partirmos imediatamente - decidiu Walter.
- Adeus, pai. Faz boa viagem - disse Roberta, regressando à realidade. Beijou o pai e voltou para o jardim.
- Viste algum fantasma? - perguntou Ines.
- Vi o Sol - murmurou, com um ar alucinado. Ines olhou para ela, perplexa, sem entender.
- Sabes, o fotógrafo que trabalha com o meu pai veio buscá-lo para irem para o aeroporto. É lindíssimo... preciso de ficar sozinha para pensar nele - declarou com um ar sonhador.
- Continuo a achar que és parva - martelou Ines.
- Tu também ficavas assim, se o tivesses visto.
- Há um instante choravas por causa do teu belo sarraceno e agora estás a esvair-te por um fotógrafo.
- Só é pena ser velho. Acho que tem vinte e quatro anos.
- E certamente uma mulher ou uma namorada. Em qualquer caso, não vai reparar em raparigas como nós - afirmou Ines, para chamar Roberta à realidade.
- Isso torna-o ainda mais interessante - observou. E acrescentou: - Vocês vão à pizaria e eu fico em casa porque agora tenho um homem, um verdadeiro homem em quem pensar.
Liliana, que tinha acabado de lavar a cabeça, regressou ao jardim e pôs-se ao sol para deixar secar o cabelo.
- Será que perdi alguma coisa? - perguntou, ao reparar no ar conspirador das duas amigas.
- Esta diz que viu o Sol - anunciou Ines, a rir.
- Ah, está bem - rematou a rapariga, que não estava interessada nem nos mexericos nem nos sonhos irrealistas das duas amigas. E prosseguiu: - Pois eu usei um champô espectacular que encontrei no armário da casa de banho. É muito caro?
- És tão prosaica! - disse Roberta com desprezo.
Liliana não respondeu à provocação e continuou: - Agora vou a casa mudar de roupa. Como é que combinamos sobre a pizaria?
- Ela não vai - afirmou Ines.
- Tudo bem, vamos só nós as duas - disse, e dirigiu-se à varanda para se despedir da avó de Roberta.
- Eu também vou vestir alguma coisa mais apresentável anunciou Ines, e foi atrás dela.
Roberta não fez comentários. Entrou em casa, por sua vez, e dirigiu-se ao andar de cima.
- Não estás bem? - perguntou a avó.
Não lhe respondeu, porque não lhe apeteceu. Os seus pensamentos estavam todos voltados para Oscar Trinchese, para a sua beleza, para a sua voz suave. Entrou no quarto e estendeu-se em cima da cama. Fechou os olhos e esperou adormecer para poder
sonhar com ele. Lamentou não ter prestado mais atenção ao pai, quando lhe falava dele.
Recordou um dia de Primavera em que Walter partiu para a Líbia, depois de Kadafi ter lançado os mísseis contra a ilha siciliana de Lampedusa.
- Se eu conseguir entrevistar o Kadafi, será tudo mérito de um fotógrafo que chegou ao jornal há pouco e que fala árabe - explicou a Malvina, que tinha vindo buscar a filha para a levar para Tavernolo.
- Pensava que um encontro tão importante devia ser combinado com os órgãos diplomáticos - observou ela.
- De facto, mas o impulso definitivo para obter a entrevista foi do Oscar Trinchese, que falou ao telefone com o criado pessoal do Kadafi. O pessoal menor, por vezes, é determinante para superar os obstáculos - explicou Walter.
- Esse fotógrafo é de Tripoli?
- Eu sei lá! Ele diz que o avô construiu em Tripoli o Hotel Europa, em finais do século xix. Parece que teve uma vida cheia de aventuras.
Algumas semanas depois o pai regressou tarde a casa. Ela estava a preparar-se para um teste oral de História, no escritório dele.
- Porque foi que ocupaste abusivamente a minha secretária? perguntou ele a brincar.
- A avó não está lá muito bem. Diz que comeu alguma coisa que lhe fez mal. Por isso instalei-me aqui para a ouvir chamar, no caso de precisar de ajuda - explicou Roberta.
A avó, havia já alguns anos, tinha deixado o seu quarto, no andar superior, porque lhe custava subir as escadas, e tinha posto na sala de estar um sofá-cama onde dormia.
- E tu, de onde vens? - perguntou Roberta ao pai.
Walter serviu-se de um pouco de whisky num copo e sentou-se no sofá.
- Estive a jantar em casa do Oscar Trinchese.
- O que foi que comeste?
- ah... umas coisas esquisitas. Cuscuz, uma salsicha picantíssima e depois uma carne muito temperada com batatas, curgetes e beringelas. Como doce serviu-me uma coisa que se chama halvah e que se cola à boca - respondeu o pai. E acrescentou: - O Oscar é um bom rapaz e eu não o podia desiludir. Parece que aquilo era comida da sua infância, quando morava em Roma com a avó, viúva de um oficial do exército.
- A avó era líbia? Oficial de quê?
- Minha menina, é meia-noite. Vai dormir para o teu quarto. Esta noite eu trato da avó. A propósito, chamaste o médico?
- Já a conheces. Não quis.
- Subvaloriza os problemas de coração. Eu trato disso amanhã de manhã - concluiu o pai.
Arrependeu-se agora por não ter pedido mais pormenores sobre Oscar Trinchese. No entanto, o pouco que sabia era suficiente para colocar sobre os ombros da figura fantástica do fotógrafo uma capa e um turbante e imaginá-lo montado num camelo, tendo como fundo um céu do Oriente iluminado pela lua.
O sono não vinha e, a certa altura, Roberta deu por ela a sorrir destas fantasias, porque pensou na tia Cristina que, de alguma maneira, a tinha contagiado com os seus sonhos.
Saltou então da cama e disse, em voz alta: - Já chega! Se eu contasse as minhas fantasias a alguém, internavam-me num manicómio.
Desceu as escadas a tempo de atender o telefone que estava a tocar. Era o pai a ligar-lhe de Malpensa, prestes a embarcar para Estocolmo.
- Minha pequerrucha, esqueci-me de te recomendar que tomes conta da avó - começou Walter.
- Fica sossegado, já chegou a tia Aurora. Está com a avó na cozinha. Acho que estão a preparar o jantar. Tu vais comer no avião? Gostava de estar contigo - disse, perguntando a si mesma se Oscar estaria perto do pai.
- Ias aborrecer-te de morte, sem as tuas amigas. O Oscar está a dizer-me para te mandar cumprimentos.
Roberta corou. Era uma sorte o pai não poder vê-la.
- Retribui - sussurrou. E desligou a chamada. Foi à cozinha, onde a tia e a avó estavam a fazer o jantar. Levantaram os olhos para ela.
- Estás com uma cara esquisita - observou a avó.
- Exactamente. Estás apaixonada? - perguntou a tia.
- Porque é que não se metem na vossa vida? - protestou. E acrescentou: - Hoje à noite vou comer uma piza com a turma toda.
Naquela noite, sentada a uma mesa da pizaria com os colegas, Renata observou sem inveja o casal Randazzi-Minicapilli e ele já não lhe pareceu tão bonito, depois de ter visto o fotógrafo. Que pena, pensou, o Oscar ser um bocadinho velho.
As três amigas estavam no quarto de Roberta, na via Turroni, com a janela escancarada sobre o jardim que, em Maio, estava já em pleno florescimento. Chegava até elas o perfume intenso dos jasmins e o outro mais ténue e envolvente das rosas. O chapinar da água na fonte conciliava as conversas entre as três raparigas, que tinham passado o serão em cima dos livros e que agora precisavam de descansar, - Se uma de nós ficasse grávida, o que é que vocês acham que ia acontecer, para além da carga de pancada que íamos receber dos tais? - perguntou Liliana, de repente.
- Grávidas? Com dezoito anos? Ora bem, eu acho que os
meus pais iam ficar desnorteados, mas que depois acabariam por
se resignar - replicou Ines, que era considerada por toda a gente
como o único exemplar que restava das raparigas de um tempo
passado, a menina angelical e idealizada pelos poetas do século
xiv, a virgem plácida e satisfeita com o seu papel de boa rapariga,
afectuosa com os pais, obsequiosa com os professores, leal com os
amigos, sem inquietudes nem perturbações.
- A minha mãe e o meu pai nem reagiam - afirmou Roberta. Quando muito, ajudavam-me a superar o incidente.
- Então a mais tramada sou eu, que provavelmente estou grávida e tenho de me amanhar só com as minhas forças - confessou Liliana.
- Provavelmente estás grávida? - repetiram, em uníssono Roberta e Ines.
- Estou com um atraso de dez dias, portanto posso estar grávida - explicou Liliana.
- Queres dizer que fizeste... fizeste...? - balbuciou Ines, consternada, sem conseguir formular uma eventualidade na qual não ousava sequer pensar.
- Fiz amor. Querem saber com quem? Com o Gino Conti disse Liliana.
- O Porquinho Cor-de-Rosa? - perguntaram de novo em coro as duas amigas. Gino Conti era o professor de História e Filosofia que tinha tomado conta da turma como substituto, depois que a professora efectiva ficara em casa para concluir uma primeira gravidez, algo arriscada para os seus quarenta anos. O substituto fora imediatamente baptizado como Porquinho Cor-de-Rosa por causa do tom de pele rosado, dos cabelos ralos e loiros e de uma barriguinha incipiente que denunciava o amor pela comida.
- Esse - confirmou Liliana. E prosseguiu: - Foi um amor tão breve como devastador, considerando que era a minha primeira relação com um homem.
Naquele momento, Liliana, a rapariga fantástica que toda a gente admirava pela sua força moral e pela tenacidade com que enfrentava a vida, explodiu num pranto irrefreável.
Roberta e Ines olharam uma para a outra, incrédulas e aflitas. A amiga tinha conseguido perturbá-las mais uma vez, até porque nunca deixara transparecer nem um comportamento nem um olhar que as levasse a suspeitar de uma história de amor com o professor Conti.
- Eu não quero saber nada dessa história horrível - afirmou Ines.
- Não é evidente que seja horrível. Eu quero saber tudo - disse Roberta. -
- Mas é horrível - soluçou Liliana.
- Vou descer e arranjar um chá para esta imbecil - anunciou Ines.
Enfiou o roupão de Roberta e saiu do quarto.
- Anda lá, conta - pediu Roberta.
Liliana assou ruidosamente o nariz e explicou: - Encontrámo-nos por acaso na biblioteca Sormani. Eu estava a fazer uma pesquisa sobre a Campanha da Rússia durante a Segunda Guerra Mundial. Ele estava sentado na mesa ao lado da minha. Sorriu-me, e a certa altura fez-me sinal para sair. Fomos ao bar tomar um café e começámos a conversar. Ele estava a documentar-se para um ensaio sobre Estaline e as mulheres, e eu, que por acaso tinha tropeçado em bastante material sobre Svetlana, a filha de Estaline, armei-me em sabichona. O Gino apanhou a bola no ar e perguntou-me se eu lhe dava uma mão.
O facto de ouvir chamar Gino ao Porquinho Cor-de-Rosa provocou um efeito estranho em Roberta, que deixou escapar um sorriso.
- Não te conto mais nada, porque estás a gozar com a minha desgraça - disse Liliana, e recomeçou a chorar.
- Desculpa. Continua, por favor. Quero saber o que se passou a seguir, porque eu também tenho uma coisa para te contar.
- Sobre o Gino? - perguntou Liliana, desconfiada.
- De maneira nenhuma. Continua.
Aquilo que a elas parecia uma história muito perturbadora era apenas a eterna repetição do caso entre a aluna e o professor. Com a desculpa da pesquisa, o professor Conti convidou Liliana para ir a casa dele, nas tardes em que a muito jovem mulher estava a trabalhar. Entre uma releitura de apontamentos e uma discussão, o professor contou-lhe a história de um casamento infeliz com uma mulher que lhe tinha sido destinada quando eram ambos adolescentes. - Agora já não é uma mulher, mas apenas uma irmã querida - explicou o infame, despejando sobre Liliana toda a sua infelicidade. Até lhe acenou com o propósito de a associar ao livro que estava a escrever. Nessa altura já ela estava perdidamente apaixonada pelo insigne estudioso, que assim teve a tarefa facilitada Para a seduzir.
Liliana passou semanas de trabalho intenso e de grande paixão até que, uma noite, ao sair da biblioteca onde recolhera uma série de informações interessantes, viu o professor com a mulher, que exibia um ventre enorme. A mulher-irmã estava inequivocamente grávida.
- Foi como receber uma pancada na cabeça. Senti uma náusea tremenda e enfiei-me na casa de banho de um café onde despejei a alma - acabou de explicar.
- Isso foi há três semanas, quando faltaste às aulas durante quatro dias? - perguntou Roberta.
- Estava um farrapo. Ele telefonou-me para me dizer que também me tinha visto, naquela noite, e que lamentava profundamente. Teve a coragem de me dizer, textualmente: "No deserto da minha vida tinha encontrado uma rosa, e perdi-a." Depois, quando a Ines me telefonou a dizer-me que o Porquinho Cor-de-Rosa estava doente e que não vinha mais, eu voltei à escola. Mas agora estou com medo de me ter metido numa alhada e de não conseguir continuar a guardar esta história só para mim. A Ines já me lançou os cães. Não o faças tu também, por favor - soluçou, refugiando-se nos seus braços.
- Lágrimas de crocodilo - disse Ines, que reapareceu no quarto com o chá para a amiga.
- Mas se realmente estás à espera de um filho, o que tencionas fazer? - perguntou Roberta, enquanto Liliana pegava na chávena das mãos de Ines.
- Mais vale atirares-te de uma torre da catedral, assim morres com a tua vergonha - resmungou Ines.
- Achas? - perguntou Liliana.
- Tu ainda ouves esta palerma? - disse Roberta, impaciente.
- A Ines tem razão. O meu pai trabalha como uma mula para que eu e o meu irmão possamos ter uma vida melhor do que a dele, e eu retribuo-lhe com um filho ilegítimo. Mais vale matar-me.
- Espera pelo menos até saberes se estás mesmo grávida comentou Roberta.
- Grávida ou não, comportaste-te de uma forma imoral - sentenciou Ines.
, - Tu és mesmo doida - lamentou Roberta. - Uma rapariga deve chegar virgem ao casamento. Só aquele Iporcalhão do Voltaire podia defender que a virgindade é uma superstição e não uma virtude. Se calhar não é nem uma coisa [.nem outra, mas é certamente uma regra que nos permite viver sem angústias - afirmou Ines.
- És beata, reaccionária, obscurantista e hipócrita. Mas o que me incomoda mais é que realmente pensas aquilo que dizes e acreditas que o amor, fora do casamento, é uma coisa imoral. A virtude está no coração e não na mente. Acorda, Ines - disse Roberta, exaltada.
- Eu não quero continuar a falar convosco, porque são duas inconscientes - queixou-se Ines.
- Entretanto eu estou metida numa trapalhada e vocês, em vez de pensarem em mim, estão para aí a discutir o sexo dos anjos protestou Liliana, entre soluços.
- Ouve lá, nesta vida há remédio para tudo, menos para a morte. Portanto, fica sossegada e vais ver que se arranja uma solução para o teu problema - disse Roberta. E acrescentou: - Mas agora eu queria dormir, porque amanhã de manhã vou ser chamada a Latim e a Grego.
Enfiou-se na cama, fechou os olhos e, antes de adormecer, pensou em Oscar Trinchese. Tinham passado dois anos desde que o vira à porta de casa e não conseguia esquecer a ternura com que tinha olhado para ela e lhe tinha sorrido. Não voltara a encontrá-lo. No entanto, através das histórias que tinha arrancado ao pai, reconstruíra a sua biografia.
Oscar
1
Oscar tinha vinte anos quando a irmã, Egle, se casou com Saverio Cioni que, em Roma, tinha uma loja de óptica e fotografia. Considerou-se com sorte, porque Saverio, viúvo e sem filhos, era o proprietário do apartamento onde vivia.
Quando recebeu aquela proposta de casamento, Egle disse:
- Só aceito se o meu irmão puder ir viver connosco. Estamos sozinhos no mundo e ele precisa de mim.
- Tudo bem - respondeu Saverio, que tinha conhecido Oscar e o considerava um mandrião, embora também lhe tivesse parecido honesto e inteligente.
Pô-lo imediatamente a trabalhar no seu estabelecimento, onde o rapaz descobriu uma habilidade inata para a fotografia.
Um dia, por acaso, apareceu na loja o chefe de redacção de um jornal de Roma.
- Preciso urgentemente de uma fotografia tipo passe - disse ele. E acrescentou: - Uma fotografia em que, de preferência, eu não pareça alguém que é procurado pela polícia.
Oscar orientou a luz da forma correcta e o resultado foi realmente
satisfatório.
- Fizeste-me parecer quase bonito - comentou o jornalista. Algum tempo depois telefonou-lhe.
- A minha filha casa-se hoje de manhã. O fotógrafo do jornal que devia fazer o serviço teve um acidente e os outros fotógrafos estão todos fora, em trabalho. Achas que consegues tratar disso?
- Vou tentar - disse ele.
Foi um serviço excelente. Nesse momento, a vida de Oscar mudou. Foi contratado pelo jornal e a sua habilidade foi premiada com a carteira profissional.
Arranjou um pequeno apartamento só para ele e deixou a casa do cunhado.
- O teu irmão vai fazer-me falta na loja. Julgava que ia carregar um peso morto e afinal agora estou com pena de o perder confessou Saverio à mulher.
- Eu sei que só o recebeste para me fazer a vontade. Nem eu fazia ideia da garra que ele tinha - replicou Egle, cheia de orgulho pelo sucesso do irmão mais novo, que tinha quase dez anos menos do que ela.
Oscar e Egle não tinham tido uma vida fácil, depois de os pais terem morrido num acidente de automóvel. Nessa altura Egle tinha quinze anos e Oscar apenas seis. Foram acolhidos na propriedade agrícola da tia Tuma, na região de Gallipoli. Também Tuma não tinha uma vida fácil. O campo rendia pouco e ela tinha-se endividado para transformar a propriedade em agroturismo. Os dois órfãos dormiam num quartinho e aguentavam os lamentos da tia, que tinha de manter dois filhos universitários em Roma e um marido atingido por um acidente vascular cerebral. Blasfemava num dialecto árabe que tinha aprendido com a mãe e não sabia que os dois sobrinhos o entendiam, porque o tinham por sua vez aprendido com o pai, irmão da tia Tuma.
Oscar devia à generosidade da tia o ter conseguido frequentar o liceu em Gallipoli. Egle trabalhava no agroturismo como empregada: limpava os quartos dos hóspedes e servia à mesa. Assim que conheceu Saverio Cioni, que ali esteve hospedado e viu naquela bonita e trabalhadora mulher de trinta anos uma companheira fiável para o resto dos seus dias.
Saverio tinha quase quarenta anos, era viúvo há cinco e não pensava voltar a apaixonar-se. Porém, com Egle foi amor à primeira vista.
- Quero tomar conta destas tuas pobres mãos consumidas pelo trabalho - disse-lhe então.
Ela sentiu que aquele homem ia manter a sua promessa. Oscar, que não tinha nem dinheiro nem vontade de se inscrever na universidade, ajudava a tia Tuma no agroturismo e dedicava o tempo livre às turistas estrangeiras.
A mudança do campo para Roma foi um grande passo em frente. O trabalho na loja do cunhado pareceu-lhe fantástico e a passagem para uma profissão de que gostava e que o fazia sentir-se parte de uma elite privilegiada foi para ele uma espécie de milagre.
Agora andava à caça de reportagens fotográficas. Quando regressava a casa, encontrava tudo em ordem e comida no frigorífico. Tudo mérito da irmã, que conseguia sempre passar por casa dele e resolver as suas necessidades.
Oscar sentia-se feliz com as atenções de Egle, apesar de, por vezes, ela lhe aparecer de repente em casa quando ele estava na cama com alguma rapariga. Depois telefonava-lhe e dizia-lhe: - Não me quero meter na tua vida, mas se arranjasses uma companheira a sério eu ficava mais contente.
- Ainda sou muito novo e não tenho nenhuma intenção de arranjar uma mulher - respondia ele.
Egle olhava para o "irmãozinho" com a ternura de uma mãe e imaginava para ele uma companheira bonita, honesta e culta. Esperava também que Oscar seguisse o exemplo do bisavô que, em África, se tinha transformado num personagem abastado, respeitado e temido.
Cinzia entrou na vida de Oscar durante uma tentativa de captar imagens de uma festa privada em Roma, completamente exclusiva.
A rapariga tinha sido contratada por uma empresa de caterttlg para servir às mesas durante uma recepção oferecida por um
pato-bravo muito rico, na sua residência sobre a Appia antiga convidados muito seleccionados.
Cinzia ajudou Oscar a introduzir-se no parque do palacete e ele, escapando ao serviço de vigilância, conseguiu tirar uma série de fotografias que o jornal publicou com grande clamor.
O fotógrafo subiu assim mais um degrau na sua carreira e também nas suas finanças.
Poucos dias depois, Cinzia apresentou-se em sua casa a pedir hospitalidade por algumas noites, uma vez que perdera o trabalho e não tinha com que pagar um aluguer.
- Assim que eu arranjar outro emprego, desmonto a tenda disse-lhe.
Oscar, que se sentia em dívida para com ela, disse-lhe: - Tudo bem. Há um sofá-cama na sala e comida no frigorífico. - Depois telefonou a Egle: - Tenho uma hóspede que vai tratar da casa durante alguns dias. Não precisas de vir fazer a limpeza.
Cinzia limpou a fundo o apartamento e tratou-lhe da roupa. Depois reorganizou o arquivo fotográfico, atendeu os telefonemas e tomou notas, preparou-lhe impecavelmente o saco de viagem e pôs-lhe na mesa refeições quentes. E Oscar, quase sem se dar conta, deu por ele a conviver com a empregada de mesa.
- Não é o máximo das minhas aspirações tropeçar numa mulher em casa, mas a Cinzia sabe ser discreta, não pretende uma recompensa e, quando voltar a ter um emprego, vai-se embora. E aí... amigos como dantes - contou aos colegas.
- Olha que ela já arranjou emprego, e agora também está à espera de arranjar lugar na tua cama - preveniu-o o chefe.
- Imagina! É mais velha do que eu, não é o meu tipo e entre nós não há nem nunca haverá nada - replicou.
No entanto, nas raras vezes em que passava um serão em casa, não lhe desagradava tê-la por ali, trocar duas palavras, ser servido de um café.
Uma noite, Cinzia contou-lhe que tinha nascido numa aldeia aos pés do penhasco de San Leo. Tal como Cinderela, tinha tido
uma madrasta e dois irmãos adoptivos que a maltratavam. O pai via, mas ficava calado. Com quinze anos foi trabalhar para Bolonha, para casa de um alfaiate solteiro e misógino que tentou seduzi-la. Fugiu a meio da noite, foi até à estação e entrou no primeiro comboio que partiu. Chegou a Roma, e na pequena pensão onde se hospedou pagava o quarto fazendo limpezas e servindo o pequeno-almoço aos hóspedes. Roma fascinava-a e achou que poderia equilibrar as finanças fazendo de figurante num filme qualquer. Todas as manhãs ia até à Cinecittà pedir a esmola de um dia de trabalho e ali, entre uma ou outra participação, teve algumas histórias pouco felizes com rapazes que, como ela, viviam ao dia. Quando não conseguia entrar num casting, aceitava um lugar como empregada para catering ou recepcionista em muitos eventos mundanos.
Era a história triste de uma infância infeliz, de uma adolescência não vivida, de uma juventude difícil que, pensou Oscar, se parecia muito com a sua. Teve pena, mas no entanto começava a ficar impaciente, porque já não podia convidar para o apartamento as suas conquistas e também não tinha coragem de dizer a Cinzia que saísse dali.
Todos os dias lhe perguntava: - Arranjaste trabalho?
- Incomodo-te assim tanto? - perguntava ela.
- Não, imagina - respondia.
Entretanto estava em casa dele há quase um mês, ainda que parecesse estar sempre pronta para ir embora.
2
- Esta noite, quando estava no restaurante, saltaram-me, um a
um, os botões todos da camisa. Tens alguma coisa a dizer sobre isso? - perguntou Oscar, com uma voz feroz.
Cinzia estava estendida no sofá-cama, na penumbra, a fazer de conta que dormia.
- Ouviste o que eu disse? - insistiu ele, acendendo a luz.
Ela deixou escapar um sorriso de satisfação e, com uma voz ensonada, perguntou: - Estavam assim tão soltos? Devia ter dado conta, quando passei a camisa a ferro. Desculpa, não vai voltar a acontecer.
Ele foi dormir, furioso, e ela arquitectou uma nova maldade, porque se tinha apercebido, pelo tom e pela frequência dos telefonemas, que Oscar estava interessado numa rapariga.
Com efeito, tinha programado um fim-de-semana excitante na companhia de uma jovem actriz à procura de popularidade. Iam passar uns dias na Costa Esmeralda, a convite de um rico árabe explorador de petróleo que, no seu iate ancorado ao largo de Porto Cervo, hospedava a fina flor da sociedade. Ia pagar aquilo com alguns serviços fotográficos gratuitos, mas perfilava-se também a possibilidade de tropeçar numa qualquer reportagem interessante e, sobretudo, tinha a garantia de algumas noites escaldantes
com a jovem actriz que, apesar de não ter uma inteligência brilhante, era de uma beleza sem igual.
No aeroporto apercebeu-se de que o envelope dos bilhetes de avião estava vazio e pensou que se tinha esquecido deles em casa. Paciência. Pediu uma nova reserva. Mas quando procurou o cartão de crédito, também não o encontrou.
- Acho que vais ter de partir sozinha - disse à actriz, desesperado, porque o seu glorioso fim-de-semana tinha ido ao ar. Regressou a casa e atirou-se a Cinzia numa fúria. Ela ergueu os olhos das palavras cruzadas e lançou-lhe um sorriso inocente.
- Estás zangado comigo? - perguntou-lhe.
- Não, estou zangado comigo mesmo, porque te recebi em minha casa, quando te devia ter mandado embora. Porque estou há várias semanas a fazer de conta que acredito que tu estás à procura de emprego, enquanto que a verdade é que estás firmemente decidida a impores-me a tua presença até sabe-se lá quando. Entre nós dois não há nada, nada, nada, e nunca haverá nada de nada. Queres tentar meter esta ideia na tua cabeça de abóbora vazia? Tens de ir embora, tens de me deixar viver a minha vida. O que querias demonstrar ao impedires-me de ir à Sardenha?
- Que também existo e que não me podes deixar sozinha todos os fins-de-semana. Primeiro limpo a casa, depois vou ao cinema, depois volto para casa e fico à espera. Mas que vida é a minha? - protestou ela.
- E perguntas-me a mim? O que é que eu tenho a ver com isso? É por minha culpa que tu não tens vontade de fazer mais nada?
- Queres que volte a trabalhar como empregada de mesa, ou que me ponha numa fila da Cinecittà à espera de um dia de trabalho? Se é isso que queres, diz-me, e eu vou-me já embora - gritou.
- É exactamente isso que eu quero! Junta os teus trapos e desaparece, antes que eu faça algum gesto de que me possa envergonhar mais tarde - gritou Oscar, por sua vez.
Então Cinzia começou a soluçar e, pelo meio das lágrimas dizia: - Não tenho um tostão, não tenho uma casa, não tenho nada. Só tenho humilhações, tantas que as podia pôr à venda Queres comprar algumas? Vendo-tas barato... Ainda era uma menina e já era tratada como um capacho. Cresci, e não mudou nada. Encontrei-te a ti, que tinhas boa cara, e esperei dias melhores. Por isso disse para mim mesma: Cinzia, os tempos difíceis acabaram. Agora tens um tecto por cima da cabeça e um frigorífico cheio de comida, vê lá se não perdes tudo isto. Arregacei as mangas e comecei a lavar, a varrer, a passar a ferro, e só Deus sabe como eu detesto estas tarefas. Mas fi-las de boa vontade, para demonstrar a mim mesma que sei fazer alguma coisa e a ti que não me estavas a hospedar de graça. E para que fiz eu tudo isto? Para ser posta na rua. - Entretanto ia enchendo um saco com as suas roupas.
Oscar sentiu-se um verme. Foi até junto dela, pousou-lhe as mãos nos ombros e disse: - Não é preciso ires embora já esta noite. Mas tens de perceber que não podes continuar a viver aqui, porque eu preciso da minha liberdade. Ainda és jovem, porque não aprendes uma profissão em vez de me despregares os botões da camisa ou de me tirares os bilhetes de avião e o cartão de crédito?
Ela limpou as lágrimas e disse: - Se eu te prometer que não faço mais disparates, deixas-me ficar contigo?
- Não.
- Não gostavas de ter alguém em casa para te fazer festas quando chegas?
- Não.
- Trabalhei muito em pequena. Mandavam-me para os campos apanhar erva para os coelhos, para a floresta buscar lenha para a lareira. Regressava a casa a cambalear sob o peso dos feixes que trazia aos ombros. De Inverno mandavam-me para o rio lavar a roupa quando a água estava gelada. Tinha as mãos inchadas por causa das frieiras. Uma dor lancinante que não me largava nem de dia nem de noite. E à noite, quando estavam todos sentados a
mesa, eu comia a minha malga de sopa, relegada para um canto da cozinha, tratada pior do que uma criada. E também o primeiro rapaz com quem fiz amor me afastou e me mandou embora, exactamente como tu estás a fazer - disse-lhe.
- Eu não te levei para a cama, não me aproveitei de ti de modo nenhum. E tu queres amarrar-me de pés e mãos. Que sentido faz comportares-te assim? Será possível que não tenhas um objectivo, um sonho?
- Isso eu tenho. Gostava de ser uma boa esposa, tratar da casa e dos filhos, remendar as meias do meu marido e sentir-me protegida por ele.
Eram pobres sonhos de uma mulher infeliz. Oscar deixou-a ficar com ele e, dia após dia, acabou por se afeiçoar a ela. Depois recebeu-a na sua cama, mais por piedade do que por amor.
3
Cinzia recebia com uma alegria festiva cada regresso de Oscar, grata pelo facto de ele lhe oferecer um tecto, comida e algumas carícias.
Quando estavam juntos, conseguia ser invisível. Silenciosa e nada invasiva, limitava-se a estar ao lado dele, acorrendo feliz sempre que ele lhe pedia alguma coisa. Oscar chamava-lhe a sua fiel cadelinha.
Durante as viagens de trabalho esquecia-se da sua existência mas, antes de partir, deixava sempre em cima da cómoda o dinheiro para a sua sobrevivência.
Quando conseguia um bom serviço, oferecia-lhe quantias mais generosas e dizia-lhe: - Compra qualquer coisa de que gostes.
Habitualmente, Cinzia comprava roupa e cosméticos. O seu conceito de elegância era um pouco vulgar: muito vistosa e de gosto duvidoso. Ele não ligava. Não se apercebia de que tinha caído na armadilha que ela lhe montara com a dedicação e a discrição, reduzindo-o ao papel de uma bolinha nas suas mãos ###sapientes de prestidigitadora. Mas apercebeu-se Egle Trinchese assim que a conheceu. Plenamente consciente das limitações daquela companheira, Oscar tinha tido o cuidado de não a apresentar
àirmã.
- Até parece que tens vergonha dela - insinuou Egle, que nunca se demitira do papel de irmã mais velha. Aquela observação apanhou-o desprevenido.
Replicou: - Estás enganada. Não tenho problema nenhum em apresentar-ta.
Assim Oscar decidiu convidar Egel e o cunhado para jantar num pequeno restaurante perto de casa.
Cinzia abanou a cauda de felicidade e apresentou-se àquele encontro acabada de sair do cabeleireiro.
O casal Cioni olhou para Oscar com alguma ternura no momento em que o viu aparecer ao lado de uma camponesa vestida para uma festa, que achou por bem exibir um tailleur de seda negro enfeitado com uma enorme rosa de organza espetada na lapela, de um vermelho idêntico ao dos sapatos de salto vertiginoso e da bolsinha que trazia ao ombro.
- Muito prazer - disse Cinzia, com um sorriso acompanhado por uma espécie de vénia ondulante.
Os Cioni foram simpáticos com ela, que não era sequer capaz de manter uma conversa elementar, limitando-se, sempre que lhe dirigiam uma pergunta, a responder: - Eu não sei. É o Oscar que decide tudo.
O facto mais extraordinário foi que Oscar achava natural a limitação intelectual da companheira e, por vezes, parecia até não se aperceber de que a tinha ao lado.
Com a perfídia ditada pela desilusão quanto à escolha insensata do irmão, Egle ia atirando umas perguntas ao acaso. - Diga-rne, Cinzia, em que trabalha?
- Mais do que outra coisa trabalho para o Oscar. Ele está sempre fora e eu fico à espera. Para não me aborrecer faço paciências com as cartas, faço palavras cruzadas e vejo televisão. Às vezes, vou dar uma volta. Mas depois penso: e se o Oscar chega e não me encontra? Então vou a correr para casa, para afinal descobrir que ele não está.
Oscar não a ouvia, mas Egle sim, e ficou preocupada com a devoção daquela pobre mulher, que dependia em tudo e para tudo do seu jovem e lindíssimo irmão. No dia seguinte telefonou-lhe.
- Vocês formam o casal mais mal combinado que pode existir. Esta Cinzia não serve para ti, como tu não serves para ela.
Não lhe apeteceu explicar-lhe que para ele estava bem assim, por enquanto. Não existia amor naquela relação, que se baseava unicamente na conveniência: ela estava feliz porque tinha alguém que a sustentava, e ele sabia que encontrava uma presença viva sempre que regressava a casa. Nenhum dos dois pedia ao outro mais do que isso.
- Arranja-lhe um emprego, e talvez assim ela encontre um companheiro mais apropriado - sugeriu Egel.
- Mas se ela não sabe fazer nada! E nem sequer tem vontade de trabalhar. Considera-se satisfeita a lavar a roupa e a arrumar a casa. Já tentei meter-lhe na mão alguns livros para lhe abrir os horizontes, mas nem sequer gosta de ler. Em compensação, é uma pessoa boa e ingénua.
Sobre essa ingenuidade, a irmã nutria sérias dúvidas.
- É uma história que não pode durar - concluiu Egle.
- Não quero complicações e deixo que as coisas sigam o seu curso - rematou Oscar.
Cinzia, por seu lado, tentou espremer algumas lágrimas, enquanto dizia: - Nem a tua irmã nem o teu cunhado gostaram de mim. Fizeram-me sentir uma estúpida e eu nunca mais os quero ver.
Oscar não lhe respondeu. Ao fim e ao cabo, os problemas de Cinzia e de Egle tinham a ver com elas e não com ele.
4
- Arranja uns caixotes e começa a enchê-los de roupa, tachos e talheres - ordenou-lhe uma noite em que chegou a casa mais cedo do que o costume, com os olhos a brilhar de alegria.
- Porquê? - perguntou Cinzia, aflita.
- Vou para Milão. Um colega meu já me arranjou um apartamento perto da editora.
- Porquê? - continuou ela a perguntar.
- Vou mudar de jornal e vou deixar esta casa.
- E eu? - perguntou, alarmada.
- E tu, o quê? :;A
- E eu o que faço?
- O que quiseres - concluiu Oscar, e agarrou-se ao telefone, porque tinha de contactar algumas pessoas por causa da mudança.
Cinzia sentou-se num sofá e esperou pacientemente que ele acabasse o telefonema. Depois voltou a interrogá-lo.
- Eu não quero nada. Tu é que deves decidir - disse.
- Mas tu ainda aqui estás? Pedi-te uns caixotes para meter as minhas coisas - disse, impaciente.
- E as minhas, onde as meto? - perguntou, à beira de se desfazer em lágrimas.
- Cinzia, o que é que tu queres de mim? - perguntou, saturado.
- Vais deixar-me?
- Claro que não, mas não és obrigada a vir atrás de mim, se não quiseres - disse, e foi ao quarto mudar de roupa.,
- Tu é que me deves querer contigo, porque eu só faço o que tu me mandas fazer - replicou, e acrescentou: - De resto, eu posso ser ignorante, mas entendo certas coisas. Tu disseste: "Vou para Milão." Se tivesses dito: "Vamos para Milão", eu tinha respondido: "Que bom" - martelou ainda, a saltitar atrás dele enquanto lhe chegava roupa lavada para ele se mudar.
- Oh, meu Deus, desculpa. E agora desaparece, vai arranjar caixotes.
- Não, os caixotes vais arranjá-los tu, porque eu não vou mexer um dedo. Eu sou uma pessoa e tenho a minha dignidade. Tu fazes e desfazes a teu bel-prazer e nunca, nem por engano, me pedes uma opinião - berrou, repelindo o pranto.
Oscar olhou para ela, espantado. Não percebia mesmo a razão de tanto ressentimento. Mas Cinzia ainda não tinha acabado de dizer o que pensava.
- Não sou uma esposa, nem sequer uma namorada. Sou uma criada que levas para a cama quando te apetece. Aprendi a fechar os olhos às tuas escapadelas. Calo e obedeço, sempre, dia e noite. Mas tu alguma vez pensaste que eu também tenho sentimentos? Aliás, de nós os dois, a que tem sentimentos sou só eu. Tu és uma máquina: comes, dormes, lavas-te, vais trabalhar. Ponto final. Se eu tivesse instrução, um trabalho, uma vida independente, o tanas é que estava aqui. Mas não tenho nada e sou obrigada a depender de ti até para comprar um par de sapatos. Achas bem? Tens ideia do que significa estar nas minhas condições: calar e obedecer, como os guardas. Eles, porém, recebem um ordenado. Eu não recebo nada, e estou sempre aqui a agradecer-te pelo que me dás. Agora já não vou estar. Não pego nem num copo. Queres ir para Milão? Então vai. Eu não vou atrás de ti. Sei que vou acabar na rua, mas mais vale ser puta declarada do que puta disfarçada de criada - berrou. E acrescentou: - Ainda não acabei. Há dois anos que vivo nesta casa, se é que se pode chamar vida a esta clausura
a que me dediquei, e tu nem uma única vez me perguntaste como estou, se estou triste, se estou feliz, se estou bem ou se estou mal. Nunca me perguntaste o que penso. Porque eu penso, olha lá! Sim senhor, sou capaz de pensar, ainda que tu não o saibas. E agora estou a pensar que te aproveitaste de mim desde o dia em que entrei na tua casa. Porque é claro que esta é a tua casa e não a minha. Eu não tenho uma casa, nunca tive, nunca conheci o prazer de me encontrar dentro de quatro paredes com a satisfação de poder dizer: esta é a minha casa. Eu sempre me mexi em bicos de pés na tua casa. E concluo: faz tu essa mudança, porque agora eu vou ver televisão e não tenciono tocar num copo sequer.
Virou-lhe as costas e, a bambolear-se em cima dos seus saltos vertiginosos, foi para a sala, instalou-se no sofá e ligou a televisão.
Oscar estava sem fôlego. Pensou que um homem podia apanhar um par de estalos sem que o adversário levantasse sequer uma mão. Cinzia acabava de o fazer. Tinha de encontrar uma saída para restabelecer rapidamente um equilíbrio que se tinha quebrado. Estava aterrorizado com a ideia de ter de ser ele a tratar da mudança, até porque não sabia por onde começar.
Foi muito depressa à sala e perguntou-lhe: - O que queres que te ofereça para vires comigo para Milão?
Sempre a olhar para o televisor, ela respondeu: - Um ordenado.
Ele sorriu.
- Correu-me bem. Era capaz de jurar que me ias pedir para casar contigo.
- Eu não sou parva, já te disse. Peço coisas que são possíveis e o casamento, para ti, não é uma delas.
- Então vai haver ordenado, a partir de hoje, que é dia vinte e sete.
Abriu a carteira e meteu-lhe na mão um monte de notas.
Também ela sorriu e concluiu: - Para além do mais, não tenho bem a certeza de querer casar contigo.
Meteu o dinheiro no bolso e saiu de casa para ir arranjar caixotes.
5
O apartamento de Oscar em Milão ficava num edifício do século xix, na via Solferino, numa mansarda que Cinzia decorou a o seu gosto. Era uma profusão de flores artificiais, cortinas de renda, tapetes impossíveis e almofadas cheias de fitinhas e veludos.
O fotógrafo tinha-o comprado através de um empréstimo e posto em nome da companheira, para lhe demonstrar o seu reconhecimento. Aos poucos, ela foi-se familiarizando com a gente do bairro, que a conhecia como a signora Trinchese, apesar de não ser casada. Ele fazia a mesma vida de sempre: nunca estava em casa e, quando tinha uma noite livre, preferia passá-la na companhia dos amigos.
Os colegas do jornal sabiam da existência de uma companheira que vivia com ele e que ele definia como "aquela pobre mulher" com uma espécie de condescendência afectuosa. Por vezes, um jornalista convidava-o para jantar e dizia-lhe: - O convite e extensivo também à pobre mulher.
- Obrigado, em nome dela também, mas ela prefere ficar por casa - respondia.
Assim, no ambiente de trabalho, aquela Cinzia era sentida como um fantasma sobre quem mais valia não perguntar nada, até
porque o fotógrafo, bonito e admirado, ia tecendo as suas aventuras galantes sem sequer as esconder.
- Os equilíbrios sobre os quais se baseia a estabilidade de um casal continuarão sempre a ser um mistério insondável - comentou Walter Mandelli, que tinha elegido Oscar como seu fotógrafo predilecto, no dia em que o jovem se decidiu a contar-lhe a sua vida.
- O facto é que não fui eu que a escolhi a ela. Dei com ela em minha casa, porque não sabia a que porta havia de bater, e ela teve a capacidade de me simplificar a vida. Neste sentido, estou-lhe reconhecido. Administra-me a casa, que de resto é dela, e anda feliz por se dar com a dona da mercearia, com os da loja de electrodomésticos, o do quiosque e a mulher. Não lê um livro nem por engano, mas vê muita televisão. À sexta-feira à noite vai para as danças de salão e de vez em quando dá uns passeios com os comerciantes da zona. Ela anda contente e eu também. Não há aqui mistérios insondáveis - explicou Oscar.
- Mas eu vejo-os, porque já tens idade para constituir uma família a sério, com uma mulher por quem estejas apaixonado.
- Olha quem fala - replicou o jovem, a quem Walter tinha também contado a sua história.
- A minha história com a Malvina foi lindíssima. Nós os dois amámo-nos a sério e a nossa filha está ali para o demonstrar. Tu precisas de te apaixonar; mas, nessa altura, o que vai ser da pobre mulher?
- Não me parece que me vá acontecer encontrar um grande amor mas, se assim fosse, nunca abandonaria a Cinzia, e ficaria sempre com o encargo de todas as suas necessidades. Não sou do tipo de dar um pontapé a alguém no momento em que já não me faz falta - declarou Oscar, sem saber que o relâmpago do amor estava prestes a atingi-lo à traição.
Aconteceu quando estava de partida para a Suécia com Walter. Foi buscar o jornalista à via Turroni e, de repente, apareceu-lhe uma visão: a pequena Roberta Mandelli, de quem já tinha ouvido falar.
A rapariga surgiu no hall de entrada e aquilo que o impressionou nela foi a harmonia de um corpo apenas esboçado, o perfil doce do rosto, a suavidade dos ombros, o desenho de duas pernas perfeitas e a marca de uma feminilidade inata. Depois captou a musicalidade da voz em que persistiam uns sons infantis e, sem se dar conta, a sua mente formulou uma afirmação espantosa: "Esta vai ser a mulher da minha vida." E apaixonou-se por ela.
O serviço fotográfico na Suécia foi muito árduo, porque estava a viver uma tempestade de emoções que tentava exprimir através da máquina fotográfica, captando atmosferas rarefeitas e intensas como o sentimento que se tinha apoderado de si. Tirou fotografias memoráveis, e a imagem de Bergman, o grande dramaturgo sueco, que Oscar captou por detrás dos vidros, enquadrado por uma janela da sua casa, valeu-lhe um prestigiado prémio internacional.
Em Estocolmo, Walter comprou pequenas lembranças para a filha e Oscar, num impulso, comprou um cavalo de madeira, laçado de azul, e deu-o ao jornalista.
- É para a tua filha - disse-lhe.
Tinha parecido a Walter, que andava acompanhado pelo fotógrafo havia já alguns meses, encontrar nele um comportamento mais reflexivo e pacato. À noite, depois do trabalho, em vez de andar pelos bares à procura de companhia, entretinha-se a conversar com ele e quando Walter dizia: !Vou dormir", Oscar replicava: Também eu" e, juntos, subiam até aos seus quartos de hotel.
Terminado o trabalho, quando regressaram a Milão, Oscar foi levar o jornalista a casa.
Era noite, e na via Turroni as luzes estavam todas acesas.
- Queres entrar para comer alguma coisa antes de regressares a casa? - perguntou-lhe Walter.
Ele saiu do carro, observou a luz suave que provinha do interior da casa e sentiu uma emoção tão forte ao recordar a silhueta e o rosto da pequena Roberta que se assustou e disse a Walter: - Fica para outra vez.
Voltou a entrar no carro e foi para casa, onde Cinzia estava à espera dele.
Efectivamente ela ali estava, aninhada no sofá, a ver um programa de televisão.
Recebeu-o alegremente e perguntou-lhe logo: - Que presente me trouxeste?
Tinha-lhe comprado um casaco de lã azul com a parte da frente bordada de estrelas de Natal.
- Que lindo! Faz mesmo uma atmosfera nórdica. Obrigada, querido. Vou metê-lo em naftalina para o próximo Inverno disse.
Oscar observou-a durante muito tempo, como se nunca a tivesse visto, e apercebeu-se de que nunca tinha olhado a sério para ela. Viu uma mulher insignificante, com uma maquilhagem vistosa, seios pesados e aquele ar apagado das pessoas que não têm interesses reais. Pensou que Cinzia poderia viver num museu sem olhar para um quadro, porque era incapaz de assimilar qualquer expressão artística. Tinha-a apreciado uma única vez, quando se revoltara, antes da mudança de Roma para Milão. Foi como uma lâmpada que se tivesse acendido de repente, mas que se apagou logo a seguir. Mais uma vez a sua mente enquadrou a visão da pequena Roberta, que evocava uma vivacidade elegante, e elaborou um propósito: "Tenho de esperar que cresça."
- Fiz um ragu com pouca manteiga, como tu gostas - dizia Cinzia. - Enquanto te mudas, vou por a massa a cozer.
Tinha abandonado a sua posição preferida, em cima do sofá, para se dirigir à cozinha.
Quando passou junto dele, envolvida por um perfume intenso que o incomodou, sacudiu-lhe uma mão à altura do rosto.
- Estás a dormir em pé? - perguntou, e afastou-se a bambolear as ancas.
Oscar não estava a dormir, estava a sonhar de olhos abertos. O toque do telefone devolveu-o à realidade.
O seu cunhado Saverio estava a ligar-lhe de Roma e aquilo que lhe disse deixou-o sem palavras.
- Quando chegam?
- Na próxima semana. Podes arranjar-nos onde ficar, num hotelzinho confortável?
- Vou já tratar disso - garantiu Oscar. Depois foi ter com Cinzia à cozinha.
- Quem era, a esta hora?
- A minha irmã não está bem. Na próxima semana vem a Milão fazer uma série de exames no hospital.
- Sinto muito - sussurrou ela.
- Tenho de lhes arranjar um hotel simpático.
- Estás a brincar? Ficam cá hospedados. Damos-lhe o nosso quarto. Tu instalas-te no escritório e eu cá me arranjo na sala decidiu ela.
Oscar afagou-lhe o rosto e disse-lhe: - És uma querida.
Egle era toda a sua família e, pelas poucas palavras de Saverio, tinha percebido que a situação era séria. Pela primeira vez sentiu com força o medo de a perder.
Recordou imagens suas de criança, no pequeno quarto da propriedade rural da tia, com as paredes caiadas, na cama ao lado da da irmã. Lembrou-se de quando acordava a meio da noite e chorava a chamar pelos pais, e ela o reconfortava e o tranquilizava dizendo-lhe: "Nunca te vou deixar." E acrescentava, para o distrair, versos de algum poeta sobre um futuro melhor em que teriam com que viver sem precisarem de estender a mão. Ele divertia-se sempre com as citações poéticas de Egle.
Ela fora sempre uma aluna diligente e renunciara aos estudos para favorecer o irmão, que estudava de má vontade para lhe fazer a vontade, mais do que por ele próprio. Agora lamentava não ter concluído a universidade, mas depois consolava-se ao pensar que uma licenciatura em Direito o teria certamente orientado para uma profissão menos estimulante do que a que tinha actualmente.
- Não sou querida. Apesar de não sermos casados, a Egle é sempre uma cunhada, e pela família temos de arregaçar as mangas
- disse Cinzia então.
- Vou tomar um duche - anunciou Oscar.
Fechou-se na casa de banho, segurou a cara entre as mãos e chorou. O sentimento pela pequena Roberta tinha-se desvanecido para dar lugar à dor provocada pela doença da irmã.
6
Cinzia tratou da cunhada com uma dedicação de que ninguém a acharia capaz. Quando o marido de Egle regressava a Roma para controlar o andamento da sua actividade, Cinzia não abandonava a doente nem de dia nem de noite e quando, após uma intervenção complicada, ela teve alta do hospital com uma sentença que não dava lugar a grandes esperanças, quis recebê-la novamente em casa. Levava-a ao hospital, onde era submetida a uma quimioterapia pesada, reconfortava-a e abria-lhe o coração
para a esperança.
A vida de Oscar mudou radicalmente. Todo o seu tempo livre era passado em casa com a irmã e com Saverio que, naquela altura, andava constantemente entre Roma e Milão.
Assim que se apercebia de que Egle estava melhor, Cinzia arrastava-a com ela para a cidade, incitando-a a comprar um vestido que lhe agradasse, a ver um filme alegre ou a escolher uma peruca divertida quando, na sequência da quimioterapia, ficou sem cabelo.
Oscar estava-lhe grato pelos cuidados que dedicava à irmã e, quando ela lhe disse: - Nunca iria imaginar que a Cinzia pudess ser tão generosa comigo -, ele replicou: - Nem eu.
Os dois irmãos estavam no quarto. Egle sentia-se cansada tinha-se deitado para descansar um pouco. Cinzia tinha saído para
levar Saverio à estação, uma vez que este devia regressar a Roma,
Antes de sair, porém, preparou o almoço para os dois.
- Na cozinha há lasanha e legumes. Levanta-te e vamos para a
. mesa - disse Oscar.
- Agora não me apetece comer. Talvez mais daqui a bocado.
Vai comendo - respondeu a irmã.
Ele sorriu-lhe, sem lhe mostrar a sua preocupação por causa
da respiração dela, um pouco ofegante.
- Eu também não tenho muita fome. Vou esperar - decidiu
ele.
- Deita-te aqui, então. E conta-me qualquer coisa.
Estendeu-se ao lado da irmã, que continuou: - Gostava tanto
que tu tivesses uma família, que os Trinchese se perpetuassem. Lá
no céu, a mãe e o pai desejam a mesma coisa. Desde que adoeci,
penso muito neles. Estou convencida de que, lá em cima, nunca
nos abandonaram. A mim fizeram-me encontrar um companheiro simpático e generoso, a ti deram-te sucesso profissional,
sem contar com aquela santa mulher que é a Cinzia. Tem um cérebro
pequenino, mas possui um grande coração.
- Estás a dizer-me que devia casar com ela?
- Isso só tu é que podes decidir - sussurrou ela.
Naquele momento Oscar lembrou-se de Roberta. Há dois
anos, desde que começara o calvário de Egle, que se tinha obrigado
a não pensar nela. Quando Walter Mandelli se referia à filha, ele fugia. Naquele momento pensou: agora tem dezoito anos e
;deve estar uma mulher.
- Lembras-te de quando andavas no liceu e me lias os poemas
de amor dos poetas provençais? - perguntou então à irmã.
- O amor à distância pela mulher angelical. Na verdade, eu
. acho é que eles contavam um monte de mentiras. Fornicavam
como ouriços, digo-te eu.
Riram-se os dois. Depois ele disse: - O teu espírito profanador
desconcerta-me. Posso garantir-te que realmente não era como tu
Um dia, há muito tempo, vi uma rapariga e tive uma sensação
eléctrica que me percorreu todo o corpo. Se fosse um poeta, ter-lhe-ia dedicado canções e baladas, porque vê-la e amá-la foi uma e a mesma coisa. Depois tive outras coisas em que pensar, mas agora voltei a pensar nela e vejo-a como um anjo em que eu não ousaria sequer tocar.
Egel sorriu-lhe, deu um longo suspiro e fechou os olhos. A irmã tinha deixado a vida a falar de amor.
Alguns dias depois, Walter Mandelli surpreendeu Oscar em lágrimas. Estava sozinho, no gabinete de fotografia. Com a cabeça escondida entre as mãos, soluçava desesperado. O jornalista pousou-lhe uma mão no ombro.
- Estou só, Walter. Estou desesperadamente só - sussurrou Oscar.
- Eu sei - respondeu o amigo, recordando a dor que sentira pela perda da sua irmã Cristina. Tinham passado muitos anos, mas sempre que pensava nela experimentava uma sensação de vazio que nada colmataria nunca.
- A Egle era toda a minha família. Agora ando à toa à procura de alguma coisa onde me agarrar, um ponto de apoio - confessou Oscar.
- Acho que devias mergulhar no trabalho para não pensar, meu amigo. Não pensar, às vezes, ajuda a viver - sugeriu Walter. E acrescentou: - Coragem, agora temos de partir, como sabes. Vamos a Genebra consolar a vista com a Sophia Loren.
Oscar deixou escapar um sorriso.
- Quando é que deixas de te armar em galispo com as mulheres bonitas? - tentou brincar.
- Nunca. Sempre fui muito sensível à beleza feminina. Uma mãe lindíssima, duas irmãs espectaculares, uma filha que é um estrondo, já para não falar da mãe. As mulheres bonitas, normalmente, também são boas e generosas, são o mel da vida.
- Quando queres partir? - perguntou Oscar.
- Amanhã de manhã. Vamos no teu carro. Vai buscar-me por volta das nove, assim tomamos o pequeno-almoço juntos-
O pequeno-almoço que a Roberta prepara é digno da cozinha de
um grande hotel.
- Não! - Foi um "não" quase de terror, que alarmou o jornalista.
- Não, o quê?
- Quero dizer que não me sinto com vontade de enfrentar outras pessoas. Eu buzino e fico à tua espera cá fora.
Para Walter também estava bem assim. Despediram-se no átrio do edifício onde ficava a redacção do jornal.
- Obrigado - disse Oscar, e foi a pé para casa, onde o esperava uma surpresa: Cinzia tinha trocado o quarto com a sala, transportando os respectivos móveis de um aposento para o outro, e tinha comprado uma cama de casal nova.
Percebera que não ia ser fácil, para ele, reapropriar-se de um quarto onde a irmã tinha sofrido durante tanto tempo e onde tinha morrido. A sensibilidade da companheira comoveu-o. Acariciou-lhe o rosto e declarou: - Merecias alguém melhor do que eu, alguém que soubesse apreciar-te pelo que vales.
- Tu aprecias-me muitíssimo e eu nunca vou encontrar ninguém melhor do que tu. A questão é que tu, apesar de gostares de mim, não consegues amar-me, enquanto que eu te amo há algum tempo.
- Só uma mulher apaixonada era capaz de fazer aquilo que tu fizeste pela minha irmã, mas...
- Chega, Oscar querido. Percebo que uma pessoa não pode decidir amar alguém. Para mim chega e chegará sempre aquilo que me ofereces. E é muito, acredita. À tua irmã não dei sequer nietade do que recebi de ti.
Oscar abraçou-a.
Naquela noite fizeram amor e depois ele adormeceu como uma criança abraçado a ela.
Na manhã seguinte abriu os olhos e olhou para Cinzia, que Dormia ao seu lado. Fez-lhe uma festa no cabelo e levantou-se.
Ela continuou a dormir. Quando parou o carro diante do portão da casa dos Mandelli, buzinou, conforme o combinado.
A porta abriu-se imediatamente e, na soleira, apareceu Roberta.
- Entra - disse-lhe a sorrir, e acrescentou: - Estamos à tua
espera.
7
Naquele momento Oscar percebeu que a sua vida se estava a complicar. A vontade de proteger a sua vida tranquila sugeria-lhe
que se mantivesse pregado ao volante, mas o desejo de estar perto de Roberta obrigou-o a sair do carro.
Ela vestia umas calças amarelas de linho fresco e uma T-shirt branca com uma frase escrita a azul: TENHO A CABEÇA NAS NUVENS,
MAS OS PÉS NA TERRA.
Oscar leu a frase e sorriu. Naquele sorriso, Roberta reencontrou as emoções dos seus dezasseis anos e uma onda de rubor subiu-lhe até ao rosto.
- O meu pai ainda não está pronto. Vamos ficar à espera dele
- disse-lhe, lançando-lhe um olhar tão doce como uma carícia.
Encolheu-se para o deixar entrar, ofuscada pela beleza daquele homem de corpo forte que vestia uns jeans desbotados e um pólo amarelo.
Ele subiu lentamente as escadas e foi ter com ela.
- Ainda te lembras de mim? - perguntou-lhe.
- Mas é claro. Nunca te cheguei a agradecer um cavalinho de
madeira que conservo ainda na estante do meu quarto. Como estás? Estavam no hall e Roberta levou o indicador aos lábios, sussurrando: - Temos de falar baixo, porque a minha avó está a descansar. O meu pai está no duche. Temos o pequeno-almoço na mesa.
Oscar pensou que ainda estava a tempo de fugir. Que diabo, era um homem de vinte e seis anos e aquele sonho de rapariga, a filha de Walter Mandelli, não era pão para os seus dentes. Mas não fugiu.
Ela avançou à frente dele pelo corredor, conduzindo-o até à sala de jantar, e ele foi atrás dela, aparvalhado.
O sol de Julho, contido pelas portadas ligeiramente encostadas, desenhava riscas de luz dourada sobre a mesa, sobre as louças do pequeno-almoço e sobre o rosto de uma jovem mulher morena que, com os cotovelos apoiados na mesa, bebia o café segurando a chávena com as duas mãos.
Oscar olhou alternadamente para ela e para Roberta, porque se pareciam como irmãs.
- É a minha mãe - explicou Roberta. E continuou com as apresentações: - É o Oscar, o fotógrafo que trabalha com o pai.
O homem esperou que Malvina lhe estendesse a mão e apertou-lha então, dizendo: - Bom-dia, minha senhora. Não queria incomodar.
- Junte-se a nós para o pequeno-almoço - convidou Malvina, com um sorriso distante, ao mesmo tempo que com um gesto do braço bronzeado, envolvido numa série de minúsculas argolas de ouro, lhe indicava um lugar à mesa.
Oscar constatou que a mãe tinha transmitido à filha a marca de um estilo que não se consegue imitar. Malvina estava a avaliá-lo, sem ter ar disso, e Oscar sentou-se, embaraçado.
- A sério que não quero incomodar - repetiu.
- Deixe-se de coisas e sirva-se - disse Malvina, com um tom meigo que contradizia aquela ordem peremptória.
Roberta serviu-lhe café, um pouco preocupada, porque sabia que a mãe estava a analisar impiedosamente aquele loiro fantástico.
- Coma um brioche - insistiu Malvina. E acrescentou: - É uma espécie de gâteau maison feito pela minha filha que, quando se entretém na cozinha, dá o melhor de si. Estávamos justamente a falar sobre isso quando chegou. A Roberta devia ir para uma
escola de cozinha, porque poderia aprender uma profissão que lhe
está nos genes.
Oscar pegou num brioche recheado com compota e observou-o,
como se hesitasse em trincá-lo.
Roberta disse: - Não ligue ao que a minha mãe diz, porque ela
não morde, estraçalha.
Malvina dirigiu à filha um sorriso encantador e replicou: -
Estás a assustar de morte este pobre rapaz.
- O que é que eu hei-de fazer? Como ou não como? - perguntou Oscar, com um ar aflito.
, Nesse momento a tensão esfumou-se e Malvina exclamou: -
Saboreie o seu pequeno-almoço em paz!
Fez-se silêncio e, de soslaio, Roberta contemplou o homem
dos seus sonhos. Não tinha deixado de pensar nele de vez em
quando e agora, ao observá-lo, apercebeu-se de que gostava muito
mais dele do que imaginava.
De um aposento que dava para o corredor, em frente à sala
de jantar, chegou a voz rouca da avó que chamava: - Cristina,
Cristina!
Aquele apelo chegava no momento certo.
Roberta, que estava sem assunto, anunciou: - Vou à avó.
- É a mãe do Walter. Chama continuamente por uma filha que morreu há dez anos - explicou Malvina a Oscar, enquanto barrava com manteiga uma fatia de pão.
Através da porta entreaberta chegou o ruído abafado de uma conversa entre a avó e a neta. Oscar e Malvina ouviram Roberta dizer, com uma voz extremamente doce: - Está sossegada, vovó. Queres uma chávena de café?
- A minha filha tem espírito de enfermeira, para além do talento culinário. Eu mal sei fritar um bife. A Roberta, pelo contrário, como cresceu nesta casa de mulheres trabalhadoras, tornou-se uma perfeita dona de casa. E você? Quero dizer, quem cozinha em sua casa?
- A minha companheira, nas raras vezes em que comemos juntos. Na realidade, eu sou um homem de restaurante. Quando gosto, é aí que faço as refeições.
- Vida de solteiro, portanto.
Oscar perguntava a si mesmo se aquela senhora bonita o estaria a entreter para passar o tempo ou se realmente sentia alguma curiosidade em relação a ele.
- Não tenho um comportamento assim muito virado para a vida familiar - admitiu ele.
- Se por família entender um casamento, efectivamente é uma situação que requer um grande envolvimento das pessoas, e que não pode ser encarada com ligeireza - afirmou Malvina.
Oscar, que através das palavras de Walter conhecia a sua história, esteve quase a replicar: "E a senhora teve o cuidado de não se envolver." Mas disse: - A senhora é realmente surpreendente. Normalmente as pessoas querem saber do meu trabalho: as personalidades que fotografei, os sítios onde estive. Mas agora tenho a sensação de que me está a tentar levar para um terreno difícil, o privado.
- As viagens que se realizam em volta de nós mesmos são muito mais interessantes do que as que se fazem à volta do mundo
- afirmou ela.
Tinha conseguido encostá-lo à parede mais uma vez. Roberta não regressava e Walter fazia-se esperar.
- Não tenho um espírito introspectivo - desculpou-se. Malvina sorriu-lhe, serviu-lhe mais café e disse: - Sei que o
Walter gosta muito de trabalhar consigo.
- Dá-me essa honra. Eu admiro-lhe o profissionalismo e invejo-lhe a capacidade de escrita. Porque eu pego na caneta como se fosse uma pá, e diante de uma folha branca os meus pensamentos como çam a fugir, não sei se por uma questão de pudor ou de horror.
- Não exagere, porque se não eu vou pensar que anda a cav de elogios. Parece-me que você se exprime muitíssimo bem a vês da objectiva da sua máquina fotográfica.
Oscar já não podia mais. Aquela mulher bonita, de grande classe, era absolutamente detestável. Como podia Walter falar dela em termos tão exaltantes? Talvez estivesse a desempenhar de propósito o papel da mulher odiosa.
Ouviram passos a aproximar-se e Walter entrou na sala de jantar. Cumprimentou Oscar e dirigiu-se a Malvina.
- Achas que posso ir sossegado? - perguntou-lhe, referindo-se à doente.
- Olha, eu há pouco medi-lhe a tensão e está estável. A respiração está um pouco lenta, mas não tem dores. A Aurora regressa amanhã à noite e até lá eu fico aqui com a Roberta. Em suma, a situação está sob controlo - garantiu-lhe.
Walter serviu-se de uma chávena de café.
- Não me parece justo que a pequena se sacrifique pela minha mãe - disse. E depois acrescentou: - E tu também, que andas sempre a correr de Tavernolo para aqui. Sinto-me culpado.
- A Roberta é uma querida e eu sinto-me feliz por passar aqui algum tempo com ela - afirmou Malvina.
Pela porta aberta, Oscar viu Roberta sair em bicos de pés da sala ao lado. Tanta gentileza impressionou-o. Comportava-se com a avó como Cinzia tinha feito com a sua irmã. Impressionara-o também o comentário de Walter sobre o sacrifício da "pequena". A pequena era uma mulher, para todos os efeitos, e que mulher! O que estaria ela a sacrificar? As férias? A companhia dos amigos? A relação com um namorado? Era normal que houvesse um namorado pelo meio, pensou.
Roberta entrou na sala de jantar no momento em que Oscar e
o pai se preparavam para sair. Olhou para Oscar de fugida e sorriu Para o pai.
- Está sossegado, voltou a adormecer. Telefona quando chegares a Genebra - recomendou-lhe.
- Anda cá, pequenina - pediu Walter, abrindo-lhe os braços. Roberta deixou-se abraçar e pousou um beijo ligeiro na sua
ace barbeada de fresco e perfumada, ao mesmo tempo que oferecia a Oscar um olhar afectuoso.
- Tome conta do meu pai - disse-lhe, e estendeu-lhe a mão. Ele apertou-lha e ela estremeceu.
Os dois homens saíram. Roberta e Malvina começaram a
levantar a mesa.
- Não percebo como é que o teu pai pode gostar tanto daquele fotógrafo, que é tão bonito como insignificante - afirmou Malvina.
- E tu consegues ser tão querida como odiosa. Ouvi-te do quarto da avó. Trespassaste-o como a um frango e puseste-o no espeto. Em qualquer caso, é uma coisa que não me diz respeito rematou a filha, com um tom irritado.
- Eu acho que te diz respeito, porque te conheço o suficiente para saber que achas imensa graça àquele patarata. Queres um conselho?
- Não. Como tu sempre fizeste, também eu prefiro cometer os meus erros sozinha.
8
Desde criança, Roberta passava sempre o mês de Agosto com
o pai e com a mãe, que a levavam a dar uma volta pela Europa.
Agora que tinha acabado o liceu, com excelentes notas, rebelou-se
contra aquela imposição dos pais.
- Em Agosto quero ir para a praia com a Ines e com a Liliana,
gostava que não interferissem nesta decisão - declarou aos pais,
no início de Julho.
Uma tia de Ines geria um pequeno hotel em Alassio e concordou em receber a sobrinha e as amigas por um preço razoável.
Assim Roberta decidiu que ia passar o mês de Julho na cidade, a tratar da avó, enquanto Ines ia para a montanha com a família e Liliana trabalhava numa farmácia perto de casa para pagar as férias. Depois partiriam para Alassio.
Depois que o pai saiu com Oscar, ela foi a correr ter com Liliana, à parte de trás da farmácia.
A amiga estava a arrumar nas prateleiras os medicamentos que tinham acabado de entregar. Viu o rosto carregado da amiga e assustou-se, receando uma mudança de planos para o mês de Agosto. Aquelas férias de Alassio iam ser as primeiras da sua vida e estava com grandes expectativas, incluindo a de aprender a nadar.
- O que é que se passa? - perguntou logo, com um ar aborrecido, porque estava à espera do pior.
- Não adivinhas? - sussurrou Roberta.
- Mas que raio é que eu hei-de adivinhar? Não me faças perder tempo- disse.
- Voltei a vê-lo - revelou Roberta, com uma voz sonhadora. Liliana respirou com alívio, porque aquela afirmação não
tinha nada a ver com o projecto de Agosto, e tentou perceber aquilo a que a amiga se estava a referir.
- Quem?
- O Oscar. Oscar tinha sido o tema do Verão de dois anos atrás e Liliana
não se tinha esquecido dele.
- Outra vez! - exclamou, e retomou o trabalho.
- Tens de me ouvir - disse Roberta.
- Como vês, tenho que fazer e, para além do mais, se o doutor Mambretti te encontra aqui fica aborrecido comigo, porque não podem entrar aqui estranhos. Queres fazer com que eu perca o emprego? - disse, impaciente.
- Por favor, preciso de falar contigo, porque estou péssima suplicou-lhe.
- Está bem. Vou pedir licença para me ausentar durante dez minutos.
Roberta ficou à espera dela no pátio das traseiras, enquanto Liliana fechava à chave a porta de acesso à farmácia.
- Conta-me tudo - pediu, resignada, quando chegaram à avenida.
- O Oscar foi lá a casa buscar o meu pai para irem à Suíça. Entrou, tomou o pequeno-almoço comigo e com a minha mãe e é ainda mais fascinante do que aquilo de que me lembrava. A mãe não lhe acha graça nenhuma, diz que é um patarata. De qualquer maneira, foi-se embora sem se dignar olhar para mim, como se eu não existisse. E, efectivamente, para ele eu não existo. Tem uma mulher com quem já vive há anos e que, de certeza, é horrível e antipática. E eu estou louca de amor por ele - declarou de uma só vez.
- Tu estás louca e ponto final - disse Liliana num tom provocatório.
Depois do incidente com o Porquinho Cor-de-Rosa, que quase lhe custara a vida, por causa das complicações surgidas durante a intervenção para provocar o aborto, Liliana decidira que nunca mais se ia deixar seduzir por um homem. A sua beleza radiante atraía os homens e a sua frieza tornava-a ainda mais desejável. Mas a desilusão sentimental e o trauma de um aborto tinham-na ferido profundamente. Este último tinha sido uma experiência dura que ainda não superara mas, aos olhos de Ines e Roberta, tinha assumido o semblante de uma rocha. Respeitavam-na pela sua força, reconheciam-lhe uma maturidade que elas não tinham e apelavam muitas vezes à sua sensatez.
- Não me digas que estou louca - suplicou. E acrescentou:
- Estou apaixonada. Tu nunca o viste, mas se o visses, percebias. É lindo de morrer, e quando olha para mim e me sorri, perco qualquer contacto com a realidade.
- Por amor de Deus! Também gostavas do Minicapilli. Tu passas-te sempre com os fulanos menos recomendáveis. Daqui a duas semanas vamos para a praia e eu tenho a certeza de que vais encontrar um rapaz maravilhoso que se vai apaixonar por ti e tu vais esquecer-te deste Oscar, como te esqueceste do Minicapilli.
- Porque é que me queres impedir de sonhar?
- Que raio de sonho pode ser o de um homem que tem mais oito anos do que tu e uma mulher na cama?
Nesse momento Roberta poderia ter-lhe lembrado que também ela tinha embarcado num sonho com o professor que tinha mais dez anos do que ela e uma mulher. E percebeu imediatamente que a hostilidade de Liliana nascia precisamente da experiência sofrida. Mas parecia-lhe que Oscar não tinha nada a ver com aquele ignóbil Porquinho Cor-de-Rosa.
- Ele é um homem lindo, simples, límpido como a água. Não Queria mais do que poder falar-te dele e das sensações que me suscita, porque, quanto ao resto, tenho a certeza de que nem sequer
pensa em mim. Eu também não queria pensar nele, mas como é que faço? Não consigo mesmo tirá-lo da cabeça e do coração.
- És chata, repetitiva, monocórdica, e estás a fazer-me atrasar
- disse Liliana.
- És pior do que a minha mãe - protestou Roberta.
- A tua mãe, que não é parva, conheceu-o e não lhe achou graça. Alguma razão deve haver. Porque não pensas o que queres da vida, em vez de te agarrares a um capricho? Eu tenho de voltar ao trabalho, e por isso vou despedir-me de ti - concluiu Liliana.
Roberta dirigiu-se a casa ainda mais descontente do que quando tinha saído. Transpôs o portão e, em vez de subir os degraus da entrada, pegou na bicicleta e dirigiu-se à livraria, a pedalar sob um sol furioso.
Gostava daquele espaço coberto de estantes atulhadas de livros. Gostava das cores das capas, do cheiro do papel impresso, daquelas torres, construídas com os best-sellers, que assumiam o aspecto de enormes bolos de casamento, dos cartazes que publicitavam títulos e autores, dos expositores giratórios que pareciam sempre prestes a desabar mas que sustinham, impávidos, pilhas de volumes.
Uma cliente estava a conversar com Angélica, a empregada. Roberta passou ao lado dela no momento em que a senhora estava a dizer: - Imagine que, para mim, o mesmo livro comprado aqui ou noutro lugar é diferente. Se o comprar aqui, acho-o mais interessante.
- É essa a magia de O Mocho - replicou Angélica, enquanto Roberta entrava no escritório.
Chiara estava a lamber um gelado de menta, sentada diante do computador. Levantou os olhos e perguntou: - Tudo bem?
Roberta deixou-se cair na cadeira diante dela e perguntou, por sua vez: - Porquê, não se vê?
- O que é que é suposto eu ver?
- Queres saber se está tudo bem? A minha avó está mal o meu pai passa a vida pelo mundo fora, a minha mãe considera-me
uma idiota, a minha melhor amiga chama-me louca e eu não sei o que quero fazer da minha vida. Não podia correr melhor, não achas?
- Queres um gelado? - perguntou Chiara, sem perder a calma.
- Só se tiveres algum de cianeto, porque quero morrer.
- Males de amor? - deitou-se a adivinhar, com um ar plácido. i - Tu realmente nunca perdes a compostura.
- Foi por isso que vieste ter comigo, porque eu não me assusto fàcilmente. Sabes, minha menina, se tu tivesses vivido o Maio de 68, e tivesses acreditado nos sonhos que contávamos umas às outras e pelos quais nos batemos inutilmente, tiravas esse véu que tens à frente dos olhos e vias a realidade tal como ela é: nós, mulheres, estamos destinadas a sofrer por homens que não querem saber de nós. E não é tudo, quando por desgraça encontras um que te diz que sim, o desastre está garantido. Nós procuramos o amor, eles procuram a comodidade. Mas estou a falar para as paredes, porque tu não me ouves e, se me ouves, não acreditas em mim. Quem é ele?
- É o homem dos meus sonhos.
- Então continua a sonhar até bateres com o focinho contra uma parede e gritares de dor. Entretanto, porque não ficas por aqui e me dás uma mão? Ainda há gente que compra livros para levar de férias e estamos com bastante trabalho.
- Tudo bem. Por onde começo?
- Pela abertura dos caixotes que estão lá em baixo. Olha que os livros pesam e logo à noite vais estar com a espinha quebrada disse Chiara.
9
Era uma cabana de madeira encostada ao tronco de um antigo cedro-do-líbano. O telhado era formado por camadas de palha sobrepostas que constituíam uma espécie de chapéu de cogumelo. Foi o chilrear dos pássaros que anunciavam a manhã que a acordou. O ar cheirava a resina e a alfazema. Teve apenas um instante de confusão e depois lembrou-se de tudo: a festa na praia, o jovem Filippo Anselmi, o convite para casa dele, o parque mergulhado na escuridão e a cabana de madeira. Abriu os olhos. Viu um véu rosado que, caindo de cima, encerrava a pequena cama onde estava deitada. Aninhado ao seu lado, estava ele próprio, Filippo, a dormir.
Roberta afastou uma colcha de algodão, deslizou para fora da cama e apercebeu-se de que estava nua. A sua roupa estava no chão de madeira, ao lado das sandálias. Apanhou-a, deu dois passos cautelosos em direcção à abertura da cabana e saiu para debaixo dos ramos do cedro, onde havia duas cadeiras, uma pequena mesa redonda com restos de uma vela enfiada num copo e duas latas de laranjada. Os seus movimentos calaram os pássaros. Recomeçou a vestir-se rapidamente. Estava furibunda por causa daquilo que tinha feito com Filippo e perguntava a si mesma como pudera acontecer.
Tudo começara alguns dias depois da chegada a Alassio. Ela estava tranquilamente na praia, a bronzear as costas sob o sol da
manhã, quando uma voz masculina a interrogou: - Queres vir ao nosso churrasco, logo à noite?
Virou a cabeça e, protegendo os olhos com a mão, viu debruçado sobre ela um rapaz alto, magro e negro como um africano. Nessa altura sentou-se.
- Já nos conhecemos? - perguntou com um ar pouco simpático.
- Não, mas já que me cruzo contigo e com as tuas amigas há vários dias, achei que nos devíamos conhecer - disse ele, estendendo-lhe a mão.
- Eu não - replicou ela, ao mesmo tempo que punha os óculos de sol, ignorando aquela mão estendida.
- Eu ia jurar que eras engraçada.
Ela ficou calada, à espera da continuação. Então o rapaz acocorou-se na areia, ao lado dela, e prosseguiu: - Sou o Filippo Anselmi e moro em Génova. Aqui vivo numa casa lá em cima, perto do santuário, onde passo estas férias infames, uma vez que não passei nos exames finais e me atiram o chumbo à cara todos os dias. Os meus pais estão num cruzeiro no Mediterrâneo e eu estou aqui de castigo, com os meus avós a tomarem conta de mim. Em suma, sou um desgraçado.
Naquele momento Roberta deixou escapar um sorriso.
- Eu sou a Roberta - disse, e estendeu-lhe a mão. Depois acrescentou: - Pois eu e as minhas amigas estamos de férias precisamente porque passámos nesses exames.
- Parabéns. Então, vens ao churrasco?
- E onde é?
- Aqui na praia. Já combinámos tudo com o gerente. Vens?
- Nós somos três, como já reparaste - sublinhou, indicando Ines e Liliana, que vinham na direcção deles.
- Então é um sim - exultou Filippo.
Ines e Liliana viram naquele convite uma ocasião para fazer Roberta esquecer a sua obsessão por Oscar. E assim foi, porque naquela noite Roberta fez faísca com o grupo de jovens de Génova
que, ao fim da festa, arranjaram uma espécie de taça-prémio com
, as latas das bebidas e lha entregaram, elegendo-a miss Simpatia.
- Achas que a paixão pelo Oscar já se esfumou? - perguntou Ines a Liliana.
- Não sei, mas o facto é que deixou de falar nele. Esperemos que dure - replicou Liliana.
O grupo de jovens adquiriu o hábito de se encontrar regularmente, depois de jantar, para ir dançar ou pura e simplesmente para passear na marginal.
Roberta e Filippo estavam a tornar-se inseparáveis. Assim ela ficou a saber que a casa onde ele estava pertencia aos avós maternos, que viviam ali todo o ano, que a mãe era sócia de um escritório de advogados em Génova e que o pai era um dos directores de uma empresa muito importante, que Filippo tinha uma irmã mais velha casada com um jornalista do Secolo e uma irmã pequenina que estava no barco com os pais, que ele era considerado "a cruz" da família, porque era avesso à escola e a qualquer outra actividade que não fosse tocar clarinete: a sua paixão desde pequenino.
- E tu, o que é que gostas de fazer? - perguntou-lhe Filippo.
- De ler. Eu era capaz de passar os meus dias numa cama de rede, com uma Coca-Cola numa mão e um livro na outra - respondeu ela.
- Não gostavas de ter um namorado? - perguntou-lhe ele, de repente.
Então Roberta pensou em Oscar e apercebeu-se de que estava inutilmente a tentar sentir alguma atracção por Filippo, que era uma pessoa agradável, simpática e sincera.
- Gostava, mas aquele em quem eu penso é inatingível respondeu.
- Um cantor, um actor de cinema?
- É apenas um fotógrafo, e nem sequer é famoso, chama-se Oscar.
- Então é mesmo amor - comentou ele, com um ar desconsolado.
- Eu também acho - sussurrou ela.
- Porque é que ele não está aqui contigo?
; - Porque tem a mulher dele e além disso é muito mais velho do que eu.
- E tiveram... alguma relação?
- Mas o que é que tu estás a dizer? Ele nem sequer sabe que eu existo. Ou seja, sabe, porque trabalha com o meu pai, mas não repara minimamente em mim.
- Como eu gostava de ser o Oscar - suspirou ele. Depois sorriu.
- Tu estás muito bem assim como estás. És o Filippo, que na vida só quer tocar clarinete - afirmou Roberta, a sorrir-lhe.
- Mas vou ter de me decidir a fazer outra coisa, porque se não os meus pais vão deixar-me negro de pancada - lamentou-se.
- Estou cá eu para te defender - declarou ela, e abraçou-o com um ar maternal. O rapaz escondeu o rosto no ombro de Roberta, afagou-lhe os cabelos e depois, inesperadamente, encostou os lábios aos dela. Beijaram-se e, efectivamente, não foi nada desagradável.
Estavam no jardim da casa dos avós. Era noite, eles já tinham ido dormir, e Filippo disse: - Agora quero que tu conheças o meu refúgio secreto.
Deu-lhe a mão e conduziu-a até ao fundo de uma alameda comprida onde, junto a um cedro-do-líbano, havia uma cabana de madeira.
- Queres entrar? Esta cabana tem sessenta anos. Foi o meu avô que a construiu para os filhos. Os meus tios, quando eram pequenos, às vezes dormiam aqui nas noites de Verão e eu, quando estou chateado, refugio-me aqui a tocar - explicou-lhe.
- Parece que se está numa fábula - disse Roberta, fascinada com aquela habitação minúscula.
Tudo era silêncio à volta dos dois jovens. Filippo acendeu a vela que estava pousada numa mesinha, em frente à cabana.
- Não te mexas. Vou buscar umas coisas.
Regressou pouco depois com uma provisão de laranjadas e biscoitos, que consumiram a conversar. Depois entraram na cabana e, com a cumplicidade daquele refúgio tão sugestivo, beijaram-se durante muito tempo e depois fizeram amor. Foi a primeira experiência para ambos e deixou-os atrapalhados e confusos. Um sono providencial pôs fim àquele embaraço recíproco.
- Como é que isto pôde acontecer? - perguntou-se então, esforçando-se por recuperar um ar de dignidade. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou: - E agora, o que é que eu faço?
A fuga pareceu-lhe a única solução possível. Enquanto calçava as sandálias pensou nas duas amigas, que a tinham visto afastar-se com Filippo mas que não sabiam onde tinha ido parar.
Tenho de regressar imediatamente ao hotel e contar tudo à Liliana e à Ines, decidiu. A Ines vai lançar-me os cães e a Liliana, que já passou por esta experiência... Oh, meu Deus! Ela até ficou grávida... e se calhar eu também estou! Senhor Jesus, faz com que não seja assim!
Estava quase a desatar num pranto quando dois braços magros e fortes a agarraram.
- Roberta! Acordei e tu já lá não estavas - disse Filippo com ternura.
Ela virou-se de repente e atingiu com uma sonora estalada o rosto ensonado do rapaz.
Ele olhou para ela, perplexo, e perguntou, de lágrimas nos olhos: - O que foi que eu te fiz?
Não lhe respondeu, até porque não saberia o que lhe responder. Fugiu, perseguida pela voz de Filippo, que lhe suplicava que parasse.
10
O fim do Verão anunciou-se com violentos aguaceiros e marés fortes. Muitos dos hóspedes do hotel onde se encontravam as três amigas tinham partido. Filippo Anselmi estava ainda em Alassio e todas as manhãs fazia com que Roberta encontrasse, em cima da mesa do pequeno-almoço, uma rosa vermelha e um bilhete que dizia: AMO-TE.
- Porque é que não o queres voltar a ver? - resmungou Ines, enquanto mergulhava um biscoito no cappuccino.
- Porque é que não te metes nos teus assuntos? - perguntou Liliana.
- Eu não tenho assuntos. Acho que tenho bom senso suficiente para não andar atrás de complicações - replicou, com ar grande dignidade.
- Não tens coragem para viver, para viver novas experiências. Tu és uma pessoa que, tomada por um impulso, pergunta a si próPria: os meus pais iriam achar bem? E como não iam, não ages. Mas nunca vais conseguir enfrentar a vida se continuares a anular-te e a fazer a vontade aos outros - martelou Liliana.
- Eu não tenho segredos, nem sobressaltos de coração, e de noite durmo sossegada. E não gasto dinheiro em velinhas - reagiu Ines, aludindo ao facto de Roberta, desde que fizera amor com
Filippo, ir todas as manhãs a correr à igreja acender velas a Nossa Senhora para lhe pedir a graça de não estar grávida.
Roberta sorriu e proclamou, aliviada: Nuntio vobis gaudium magnum: não estou grávida. - E trincou com voracidade uma fatia de pão barrada com compota.
- Quase que tenho pena, porque assim passas incólume, quando deverias pagar pela tua leviandade. Não se faz amor com um rapaz que não se ama - declarou Ines que, no entanto, partilhava da alegria da amiga.
- Baixa a voz, porque os outros hóspedes estão de orelhas esticadas a ouvir as nossas conversas - sussurrou Roberta.
- Assim vão ter alguma coisa para contar - disse Liliana, em voz alta.
Como fazia todas as manhãs, Roberta deixou a rosa em cima da mesa, rasgou a declaração de amor, levantou-se e anunciou:
- Enquanto espero que o sol seque mais a areia, vou à igreja agradecer a Nossa Senhora e depois vou para a praia apanhar sol. Hoje sinto-me de coração leve.
- E de consciência suja - sibilou Ines, enquanto acabava de beber o seu cappuccino.
Na realidade, Roberta não estava assim tão radiosa como pretendia mostrar. Sentia-se culpada porque tinha feito amor com Filippo quando amava Oscar. Enquanto percorria a beira-mar, pelo meio das poças de água que o sol da manhã ia secando, perguntava a si mesma o que a teria empurrado para os braços daquele rapazinho tão simpático e atencioso por quem apenas sentia amizade.
Enganara Filippo e precisava de arranjar uma maneira para se fazer perdoar.
Estava agora no velho centro da pequena cidade, perto igreja, quando viu chegar o autocarro com destino ao santuário. De repente levantou um braço, o condutor parou e ela entrou. Saiu em frente à casa dos avós de Filippo. Tocou à campainha
e pouco depois viu o rapaz a correr ao longo da alameda para vir ao encontro dela. i
- Finalmente! - saudou-a.
- Precisamos de conversar - respondeu ela. Devia-lhe uma explicação.
- Não me portei nada bem contigo - começou, enquanto avançavam pela alameda. - Tu sentes por mim uma coisa que eu não posso retribuir. É difícil para mim encontrar palavras para não te magoar.
- Estás a dizer-me que fui uma desilusão? Já te tinha dito que era a minha primeira vez!
- Não é disso que se trata. Eu acho que para fazer amor se deve sentir a mesma emoção. Mas o meu coração está noutro lugar, como tu sabes.
- Pensei que alguma coisa pudesse mudar, depois de termos estado tão bem juntos - sussurrou ele, com ar de menino que sofreu uma contrariedade.
- Se calhar eu também pensei, se calhar até esperei - respondeu ela.
- Então serviste-te de mim como uma cobaia - retorquiu Filippo, com um olhar carregado de cólera.
- Se pões as coisas a esse nível, eu também fui a tua cobaia. Mas parece-me uma maneira realmente muito feia de conversar sobre aquilo que fizemos na cabana. Nunca vou esquecer o teu afecto, a tua simpatia, os nossos movimentos desajeitados e as emoções novas e profundas que senti contigo. Foste muito meigo e muito atencioso e eu estou-te grata por isso. Mas quando acordei apercebi-me de que tinha cometido um erro e zanguei-me apenas comigo. Dei-te uma bofetada para te castigar por qualquer coisa de que tu não eras responsável. Peço-te desculpa - concluiu num sussurro.
- Eu moro em Génova, tu em Milão. Nunca se sabe se nos voltaremos a ver, mas será que podemos continuar amigos?
Roberta anuiu.
- Desde que estivemos juntos, todas as noites, antes de adormecer, eu penso em ti. A nossa noite na cabana foi lindíssima. Por
isso gostaria que, se um dia nos voltarmos a ver, pudéssemos abraçar-nos como dois amigos que têm em comum um pequeno segredo maravilhoso que recordarão para sempre. E agora, o que é que estás a fazer? A chorar?
- Foi só um mosquito que me entrou no olho - soluçou ela.
- Anda, Roberta. Vou contigo até ao portão.
Depois de se despedirem, ela desceu a pé até à vila, dominada por uma comoção que deu lugar a um pranto solitário.
Filippo não era aquele inútil de quem a família se queixava. Era um rapaz generoso, terno, rico de sentimentos. Quanto desejaria poder amá-lo! Se ao menos não estivesse tão incorrigivelmente presa pela obsessão por Oscar!...
Quando chegou à praia, as amigas já estavam estendidas ao sol.
- Demoraste na igreja - observou Ines.
- É verdade - respondeu Roberta, enquanto tirava o vestido de algodão.
- Sabem uma coisa? Começo a estar farta destas férias - comentou Liliana.
- Faltam cinco dias para o fim de Agosto - disse Roberta.
- Cinco dias de uma rotina aborrecidíssima: pequeno-almoço, praia, almoço, sesta, passeio, banho, jantar, mais passeio... e não se passa nada - enumerou Liliana.
- Não sentem no ar um presságio de Outono? - perguntou Ines.
- E se fizéssemos as malas e voltássemos para Milão? - sugeriu Roberta.
- Tu és louca? Pagámos até ao fim do mês - observou Ines.
- Vou tomar banho. E vocês as duas não gozem comigo se eu chapinar como uma pata - brincou Liliana, e correu em direcção
ao mar.
- Não confio em deixá-la nadar sozinha - disse Ines. E foi
atrás dela.
Roberta estendeu uma toalha de turco na espreguiçadeira e deitou-se. Cruzou os braços atrás da nuca, fechou os olhos e pensou naquelas férias que se diluíam na monotonia, mas que tinham sido importantes.
Pensou em Filippo, que tinha a capacidade de experimentar e traduzir sentimentos verdadeiros, que lhe tinha dito que a amava, enquanto ela amava Oscar. E perguntou a si mesma: E se eu estivesse a baralhar tudo? E se o Filippo fosse o homem da minha vida?
Uma mão forte pousou-lhe no ombro, fazendo-a estremecer. Abriu os olhos.
Lindo, bronzeado, com os olhos azuis cintilantes e a cabeleira loira um pouco despenteada, Oscar estava ali, ao lado dela, imponente.
Roberta levantou-se de um salto.
- Assustei-te? Julguei que estavas a dormir - começou ele, com um sorriso quase imperceptível.
Ela fitou-o, atarantada. Ele prosseguiu: - Estava na Cote d'Azur com o teu pai, em trabalho. Ele apanhou um avião para Nice, para regressar a Milão, e pediu-me para te vir aqui buscar.
Ele falava e ela sentia um formigueiro delicioso em todo o corpo.
- Percebeste o que eu disse? - perguntou-lhe.
- O meu pai pediu-te para me vires buscar. Porquê? - perguntou, atarantada.
- Vou levar-te para Milão, já. A tua avó...
O formigueiro desapareceu. Roberta sentiu-se gelar. -A avó... Oscar anuiu.
11
A avó tinha partido a meio do sono.
Aurora, que dormia na sala ao lado, levantou-se a meio da noite para espreitar, e nesse momento pareceu-lhe que ela estava a dormir; no entanto, reparou que respirava com dificuldade. Foi então acordar Malvina que, depois de lhe ter auscultado o batimento cardíaco, sussurrou para a cunhada: - Está no fim.
- Podemos fazer alguma coisa? - perguntou Aurora.
- Claro. Tu fazes-lhe festas e eu aperto-lhe a mão.
- É preciso telefonar ao Walter e avisar a Roberta - disse Aurora.
- Fazemos isso depois. Agora vamos ficar aqui com ela - respondeu Malvina num tom firme mas meigo.
Às primeiras luzes da madrugada, o coração da signora Mandelli parou de bater.
Malvina telefonou a Walter, para o hotel de Cannes onde estava alojado com Oscar.
- Vou apanhar o primeiro avião que saia de Nice - disse ele.
- E a Roberta? - perguntou ela.
- O Oscar tem aqui o carro dele e vai buscá-la a Alassio para a levar para casa - decidiu.
Malvina tinha preferido que a filha regressasse a Milão de comboio, em vez de ir de carro com aquele rapaz bonito que ela nem sequer sabia como conduzia, mas não contestou.
Acolheu com alívio o regresso da filha, que vinha também acompanhada pelas amigas.
Ines e Liliana, efectivamente, tinham decidido não abandonar Roberta num momento tão doloroso.
A viagem de carro com Oscar foi muito silenciosa. Roberta pensava na avó, que tinha tido um papel tão importante na sua vida, e lamentava não ter ficado em Milão, em Agosto, para tratar dela juntamente com Malvina e com a tia Aurora.
Depois do funeral, reuniram-se todos na via Turroni.
Aurora não parava de agradecer a Malvina pela assistência afectuosa que tinha prestado à mãe, uma mulher que sempre a olhara com suspeição. Malvina perguntava a si mesma como deveria gerir dali para a frente a vida da filha, agora que a avó partira.
Com a ajuda de Oscar, convenceu Roberta a acompanhá-la até Tavernolo mas, diante de um mutismo que interpretou como uma recusa em relação a ela, levou-a novamente à via Turroni. Depois abordou Walter.
- Estou seriamente preocupada com a nossa filha, que se deixa afogar na tristeza. Agora que a Aurora voltou para casa dela, o que é que tu e a Roberta vão fazer sozinhos, naquela casa tão grande? perguntou-lhe.
Walter pensou que tudo se resolveria se Malvina voltasse a viver com eles, mas não lhe disse. Respondeu: - Parece-me ter percebido que a Roberta está com vontade de trabalhar no Mocho. Herdou de ti a paixão pelos livros. Quanto à tristeza dela, só posso esperar que passe. A Roberta já tem dezanove anos, é uma mulher, e tem de resolver os problemas sozinha.
- A Roberta está apaixonada - disse Malvina.
- Foi ela que te disse?
- Não se abre facilmente comigo, como tu sabes.
- Então como foi que ficaste a saber?
Malvina esteve quase a pô-lo em guarda contra Oscar, mas preferiu ficar calada, sabendo que aquele aviso só iria servir para dar mais uma preocupação a Walter.
- Instinto materno - limitou-se a dizer. E acrescentou: - Arranja maneira de a levares a Tavernolo todos os fins-de-semana. O ar do campo vai fazer-vos bem aos dois e, se tu também vieres, ela vai com mais vontade.
À noite foram jantar juntos, a um restaurante perto de casa. Diante de uma salada de cogumelos e parmesão, Walter anunciou:
- Deixei o meu cargo de enviado para um colega mais jovem. A partir da próxima semana vou ser chefe de redacção, e assim vou estar em casa com a minha menina todas as noites.
- Vais renunciar àquelas viagens de que tanto gostas? - perguntou Roberta.
- Estas deslocações contínuas já começam a aborrecer-me. Se me apetecer fazer uma viagem, fazemo-la juntos, eu e tu - respondeu ele.
A filha esteve quase a perguntar: "Então o Oscar nunca mais vai trabalhar contigo?" Mas apenas afirmou, com um sorriso:
- Vamos ficar muito bem os dois.
Malvina não fez comentários e aproveitou aquela aparência de serenidade para concluir: - A casa de Tavernolo é grande e estará sempre aberta.
- Vamos ter contigo ao sábado e ao domingo - prometeu Walter.
Sabia que Malvina manteria Sérgio Orombelli à distância durante as suas permanências, e não se importava nada de lhe causar algumas complicações. Regressaram a casa a pé.
Walter e Malvina sentaram-se no jardim a beber um whisky sob um céu estrelado. Roberta sentou-se na beira da fonte a comer um gelado.
- Quem havia de dizer que a morte da minha mãe ia perturbar os nossos hábitos? Sempre foi uma presença muito importante nas nossas vidas - reflectiu Walter, tristemente.
- Era uma mulher inteligente, com um temperamento forte. Nunca estivemos em sintonia, e no entanto eu sempre a respeitei e gostava dela.
- Ela admirava-te. Lembro-me que uma vez me disse: !Se eu tivesse nascido neste tempo, gostava de ter sido como a Malvina, porque tem a coragem de ser sincera com ela própria e com os outros.
Roberta ouvia esta conversa, o som da água da fonte, e os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas. Chorava pela perda da avó e porque não ia voltar a ver Oscar.
Recordou-o ao volante do seu Rover, quando a trazia de volta para Milão com Ines e Liliana. Por vezes, tinha sentido sobre ela o seu olhar intenso, azul e luminoso. Dirigira-lhe a palavra raramente e só para algumas banalidades: - Na próxima área de serviço vamos meter gasolina... Olha que ultrapassagem tremenda está a fazer aquele imbecil... há rebuçados no porta-luvas, se vocês quiserem...
De vez em quando ela observava a mão firme e bem modelada que mexia nas mudanças, e sentia-se envolvida por uma onda de emoção tão forte e intensa que, por alguns instantes, esquecia a dor pela morte da avó.
Agora o pai acabava de lhe dar uma notícia terrível: não ia voltar a trabalhar com Oscar e ela não voltaria a ter oportunidade de o ver. O último olhar que Oscar lhe dirigira tinha sido junto ao portão de casa, ao mesmo tempo que lhe acariciava os cabelos e dizia: - Coragem, Roberta. Dá cumprimentos meus ao teu pai, não o quero incomodar neste momento.
Vemo-nos no funeral.
Ao jardim chegou o toque do telefone proveniente do interior da casa.
- Quem será, a esta hora? - disse Walter. E acrescentou:
- Roberta, vai lá atender.
A jovem levantou o auscultador no escritório do pai e sentiu o coração acelerar, ao mesmo tempo que uma voz lhe dizia: - Olá, é o Oscar. Como é que estás?
- Bem. Queres o meu pai?
- Quero-te a ti. Queria-te a ti.
Um longo silêncio. Depois ela respondeu: - Também eu.
Com um gesto lento e doce desligou a chamada e regressou ao jardim, ao pé dos pais.
- Quem era? - perguntou o pai.
- Alguém que se enganou no número - respondeu.
12
Começou com uma mentira a relação que a desorientou e a levou a aceitar uma situação que teria posto em fuga qualquer rapariga dotada de um mínimo de bom senso, mas ela considerava Oscar uma divindade.
Uma tarde de Setembro encontraram-se nos jardins da Guastalla. Roberta, que tinha decidido ficar a trabalhar na livraria, estava a aprender com Chiara.
- Tenho uma consulta médica e vou sair durante umas horas
- anunciou-lhe Roberta.
Chiara não acreditou, porque a tinha visto chegar ao trabalho vinda do cabeleireiro e perfumada como uma manhã de Verão.
- Tenho a certeza de que o médico não te vai receitar nenhum medicamento, porque estás sã como um pêro - disse-lhe, com um sorriso malicioso que ela não captou, porque já tinha saído a correr.
Percorreu as ruas do centro, sentindo-se leve como uma pena enquanto ia de encontro a uma aventura que, sentia-o com todas as suas forças, ficaria profundamente marcada na sua vida.
Chegou aos jardins e viu Oscar sentado num banco de pedra encostado a uma árvore de folhas reluzentes devido à chuva da manhã, que tinha lavado o ar.
Trazia um casaco e umas calças de linho cor de tabaco louro, uma camisa azul e uma gravata de riscas. Estava a fumar um cigarro
e tinha uma expressão grave e pensativa. Fez-lhe lembrar o Grande Gatsby, personagem complicado e infeliz que Fitzgerald tão bem delineara num dos seus mais belos romances.
Abrandou o passo, arrebatada pela beleza de Oscar. O mundo em volta desaparecera, desapareceram as pessoas que circulavam pelos caminhos do jardim, desapareceram as crianças que corriam umas atrás das outras, os velhos que discutiam sobre a carestia da vida, o mendigo que falava sozinho enquanto comia um pão. No seu campo de visão só existia ele, um homem lindíssimo que estava à espera dela. Viu-o apagar o cigarro, levantar os olhos e sorrir. Aquele sorriso provocou-lhe uma tontura. Parou, e Oscar foi ao encontro dela.
- Estou um pouco atrasada - começou Roberta. ""
- Estou um pouco emocionado - respondeu Oscar. Pegou-lhe numa mão, levou-a aos lábios e depois enfiou-a no
seu braço, dizendo: - Anda, vamos dar uma volta.
Começaram a caminhar lentamente, em silêncio. O braço de Oscar, encostado ao seu, dava-lhe conforto, segurança e prazer.
- De que é que vamos falar? - perguntou-lhe a certa altura.
- Temos mesmo de falar? - retorquiu Roberta.
Ele reforçou o aperto sobre o braço dela e deu-lhe um beijo no cabelo.
- A primeira vez que te vi, fiquei ofuscado. Impressionaram-me sobretudo os teus olhos escuros, grandes, velados por uma sombra de melancolia. Eras uma rapariguinha maravilhosa. Naquele dia pensei que eras uma rosa ainda em botão que gostaria de ter colhido e guardado comigo, para sempre - confessou Oscar.
- Não imaginas o efeito que tiveste sobre mim! Senti uma paixão tremenda por ti.
- Sabes que nunca me tinha apaixonado até este momento? revelou Oscar, afastando-se de Roberta e olhando-a de frente.
- E agora? - perguntou ela.
- Estou doido por ti - sussurrou ele, e abraçou-a. : - !
Roberta sabia que ele vivia há anos com uma companheira e perguntou-lhe num sopro: - Como é que vais fazer?
- Dá-me tempo, Roberta, porque isto é mais complicado do que tu imaginas.
- Em Alassio, fiz amor - disse ela, de repente.
- Fizeste o quê? - perguntou, atónito.
- Sim, fiz amor com um rapaz. Foi a minha primeira vez.
- Quem era ele? - Tinha-se afastado dela e observava-a com uma expressão indefinível.
- É o Filippo, um rapaz que conheci em Alassio. Tudo se conjugou
para me lançar nos braços dele: a sua simpatia, o céu estrer lado e as minhas amigas que insistiam em dizer-me que eu era louca por me ter apaixonado por ti.
- As tuas amigas tinham razão. Quanto tempo durou essa tua
história com o Filippo?
- Uma noite. Depois fugi.
- E soube-te bem? - perguntou, hesitante.
- Porque é que me estás a fazer sentir como se estivesse a ser
julgada?
- Porque estou com ciúmes. É assim tão difícil de entender?
- Ciúmes de sentido único, porque aquilo que vale para mim não vale para ti - censurou-o.
- Nunca me tinha apaixonado antes de te encontrar, não sabia
o que queria dizer pensar numa mulher todas as noites, antes de adormecer, e todas as manhãs, ao acordar. Sinto-me dominado
por emoções que não conhecia.
Roberta pousou o rosto no peito dele e sorriu de alegria. - Estou demasiado feliz - sussurrou.
- Vou sentir-me péssimo enquanto não voltar a estar contigo
- disse ele.
Apertou-a nos braços, encostou o rosto ao dela e os seus lábios
estavam quase a tocar-se quando Oscar a afastou de si.
- Estou demasiado metido em confusões... tens de me dar tempo... Eu...
- Tu... o quê?
- Tenho de me casar com a minha companheira - confessou num sussurro. :(
Roberta ficou gelada.
- Será que percebi bem?
- Está à espera de um filho meu - explicou.
- Diz-me que não é verdade - balbuciou Roberta, recordando a desconfiança da mãe em relação a Oscar e as advertências das amigas. E acrescentou: - Sou mesmo uma imbecil por estar a perder tempo contigo.
Soltou-se dos seus braços e começou a correr em direcção à saída do jardim. Oscar foi atrás dela, sem se preocupar com os olhares curiosos que convergiam sobre eles. Finalmente segurou-a por um braço e obrigou-a a virar-se para ele.
- Tens de me ouvir, porque eu amo-te.
- Não te quero ouvir. Deixa-me ir embora imediatamente!
- Não deixo. Vou casar-me com aquela pobre mulher, não por amor, mas porque lhe devo isso. Já não vivo com ela há um mês. Ela sabe que eu só me vou casar com ela para dar um nome ao nosso filho e também sabe que, logo a seguir, nos vamos divorciar. Só precisas de ter alguma paciência, querida - explicou com entusiasmo.
- Vai para o diabo! - gritou Roberta, e foi-se embora.
13
Oscar não se deu por vencido. Estava demasiado interessado em Roberta para se arriscar a perdê-la. Foi atrás dela e apercebeu-se de que a rapariga tinha uma passada de recordista de cem metros, enquanto que ele, apesar de ter as pernas mais compridas,
>. tinha alguma dificuldade em acompanhá-la. Tudo por causa daqueles malditos cigarros, pensou.
Viu-a entrar num autocarro para o qual também subiu, no momento em que se fechavam as portas. O veículo estava cheio de gente.
- Tens de me ouvir - disse-lhe.
Ela levou as mãos às orelhas e uma travagem brusca tê-la-ia
feito cair se ele não a tivesse segurado com força.
- Larga-me! - sibilou ela.
Ele largou-a, enquanto os passageiros observavam com curiosidade aquela cena entre namorados.
- Agora queres ouvir-me? - repetiu Oscar. -Não!
- Juro por Deus que caso contigo, porque estou apaixonado por ti e tenho ciúmes daquele Filippo com quem estiveste, enquanto to que eu nem sequer te beijei nunca, nem te vou beijar enquanto não entenderes as minhas razões. Que espécie de homem seria eu
se abandonasse a minha companheira, que está à espera de um
ufilho meu? Seria um patife, tu não me ias estimar e eu desprezar-me-ia. Só que eu nunca estive apaixonado pela mãe do meu filho. Mas amo-te a ti, mais do que a minha vida. O que queres que faça para to demonstrar? Queres que te declare o meu amor de joelhos? Faço-o já, diante de toda a gente, e não tenho vergonha - declarou, enquanto os passageiros observavam, curiosos e divertidos, aqueles dois jovens apaixonados a discutir. Uma mulher idosa, talvez recordando os seus anos distantes, sussurrou: - Que sorte a deles.
Roberta procurou uma abertura pelo meio das pessoas, que olhavam alternadamente para ela e para Oscar, para fugir dele. Naquele momento ele estava prestes a pôr-se de joelhos. O motorista fez uma travagem brusca, ele perdeu o equilíbrio e foi bater violentamente com a cara num assento. Alguém se apressou a socorrê-lo. Quando se levantou outra vez, Roberta olhou com horror o seu rosto: o nariz estava a sangrar e começava a inchar a olhos vistos.
Nesse momento, preocupada e assustada, ofereceu-lhe um lenço para estancar o sangue que lhe pingava na camisa e no casaco. Um dos passageiros gritou, o motorista parou o autocarro e espreitou do seu posto para ver o que estava a acontecer.
- Abra, por favor. Temos de sair - pediu Roberta.
- Coitadinho, partiu o nariz! - disse uma senhora, dirigindo a Roberta um olhar acusador.
- É preciso levá-lo ao posto médico - interveio outro passageiro, que desceu com os dois jovens no momento em que a porta se abriu.
Oscar balbuciou para Roberta: - Agora acreditas em mim?
- Posso ajudá-los? Há ali um telefone público, chamo uma ambulância? - perguntou o passageiro solícito.
- Muito obrigada, mas parece-me que basta uma farmácia, e há uma mesmo aqui em frente - disse Roberta, ao mesmo tempo que dava o braço a Oscar e se afastava com ele.
Sentaram o fotógrafo na parte de trás da farmácia. Estava pálido e lindíssimo, apesar do nariz inchado e de um vistoso papo na testa. Roberta, preocupada e comovida, sussurrou-lhe: - Acredito em ti -, enquanto o farmacêutico tamponava as narinas e lhe oferecia um saco de gelo para pôr na cara.
- Foi uma rica pancada, mas parece-me que não há nada partido. De qualquer maneira, era melhor fazer um exame médico sugeriu o farmacêutico. E acrescentou: - Há uma clínica aqui atrás, não vale a pena chamar uma ambulância, mas também não precisam de ir a pé. A minha mulher pode levá-los de carro.
Os dois jovens agradeceram e aceitaram a boleia.
Na sala de espera da Urgência, com o rosto coberto pelo saco de gelo, Oscar contou a Roberta a história da gravidez de Cinzia, a partir da noite em que, ao chegar a casa do trabalho, encontrou o seu escritório transformado num quarto para um recém-nascido.
Tinha acontecido em Junho, apenas três meses atrás. Oscar tinha regressado da China, onde tinha permanecido durante quatro semanas a realizar uma série de reportagens.
Cinzia não estava em casa. Pensou que, como acontecia muitas vezes, tivesse ido dançar com o casal proprietário da loja de ferramentas. Eram todos apaixonados pelas danças de salão.
Oscar entrou no escritório para pousar o material fotográfico e, de repente, pensou que se tinha enganado no apartamento. A secretária e os seus aparelhos tinham sido amontoados atrás de um biombo a imitar o chinês antigo, as paredes tinham sido pintadas de cor-de-rosa e, no meio do aposento, havia num berço de bebé.
Cinzia regressou a casa naquele momento e foi a correr ao encontro dele. Abraçou-o e exclamou, feliz: - Vamos ter um bebé.
Oscar sentiu o mundo cair-lhe em cima.
- É alguma brincadeira? - perguntou, aflito.
- O que é que estás a dizer, meu querido? Olha, já comecei a preparar o quarto. Gastei um dinheirão! E ainda está tudo por Pagar. Tu tratas disso, não é, meu papá querido?
- Não me chames papá! - protestou Oscar, furioso, e saiu de casa, batendo a porta atrás de si. ">'
Enquanto se dirigia ao jornal, recordou o único momento de amor daquela vida em comum, ditado pela gratidão quanto à forma como Cinzia se tinha dedicado à irmã. Aquele instante de abandono ia agora arruinar-lhe a vida.
Trabalhou até muito tarde naquela noite, para não pensar. Depois, quando saiu da redacção, perguntando a si mesmo se não devia ir dormir a um hotel, parou a fumar um cigarro ao lado do placar que existia no átrio do jornal onde se afixavam anúncios de todos os géneros, desde a oferta de cachorros até à venda de uma autocaravana. E leu: "Aluga-se apartamento amplo em edifício de época, zona Vittoria. Seguia-se o contacto telefónico para mais informações. Tomou nota dos dados e regressou a casa.
Cinzia, estendida no sofá, estava a ver um filme na televisão e tinha os olhos vermelhos de chorar.
Ergueu para ele o olhar do costume, cheio de consternação.
- Porque não me disseste logo? - perguntou-lhe Oscar.
- Queria fazer-te uma surpresa.
- E fizeste. Na verdade, o que aconteceu foi que ficaste calada, porque tinhas medo que eu te pedisse para abortar. Nesta altura, é evidente que já é tarde de mais. De qualquer maneira, se pensavas que me ias encostar à parede, ficas a saber que conseguiste o resultado oposto. Assim que puder, vou-me embora.
- E que diferença faz que vás ou que fiques? Nunca estás em casa e eu aborreço-me. Agora estou numa idade em que, se não tiver já um filho, nunca mais o tenho. Ele vai preencher os meus dias.
- Podias tê-los enchido procurando um emprego. Há anos que vives à minha custa sem fazer nada. É verdade, limpas a casa e passas-me as camisas. E depois?
- É por minha culpa que não tenho uma profissão?
- Tinhas muito tempo para aprender alguma, mas não tens vontade de trabalhar.
Oscar estava a dizer a verdade e ela sabia-o. Em mais do que l uma ocasião tinha-lhe dado a possibilidade de frequentar uma escola profissional, tinha-lhe oferecido livros para a obrigar a ler tinha até tentado envolvê-la no seu trabalho, ensinando- os rudimentos da fotografia. Cinzia era avessa a tudo. Para ela bastavam os jogos de cartas, as palavras cruzadas e as danças de salão para além do prazer de gastar o dinheiro que Oscar lhe dava. - Não vou mexer um dedo para te deter. Vai lá para onde qiseres. Para mim chega o nosso filho - declarou. Oscar alugou o apartamento da via Spartaco e mudou-se para lá, pondo fim àquela vida em comum.
Em Agosto, depois de ter visto Roberta de novo e de Se ter
apercebido de que a amava apaixonadamente, confessou a Cinzia:
- Quero casar-me com uma rapariga que amo, mas não tenhas
receio pela criança: nunca te vai faltar nada e eu vou tomar conta
dela.
Cinzia fez-lhe uma cena, condimentada com lágrimas e chantagens. Oscar seria capaz de fazer qualquer coisa para acalmar a ex-companheira, menos renunciar a Roberta. Por isso perguntou-lhe: - O que queres que faça?
- Que cases comigo. Quero ser a signora Trinchese para todos os efeitos. Depois fazes o que quiseres.
Foi então pedir conselho a um advogado, que lhe sugeriu uma solução um pouco incómoda, mas eficaz: casar com Cinzia e ao mesmo tempo, apresentar uma instância de divórcio.
Agora, na sala de espera da Urgência, Oscar disse a Roberta:
- Têm de passar dois anos até eu voltar a ser um homem livre. Depois disso vou suplicar-te que sejas minha mulher, porque te amo, pequenina.
Quando saíram da clínica, Oscar tinha um penso no nariz
- O médico que me tratou disse-me que vai levar algumas semanas até que a cara fique completamente bem - disse a Roberta.
- Sinto-me lisonjeada por ter recebido uma declaração que te custou a cara - brincou ela.
- Mas a minha cara tinha passado bem sem isso - lamentou-se ele.
Meteram-se num táxi e Roberta insistiu em levá-lo a casa. Quando saíram em frente ao prédio da via Spartaco, quase tropeçaram numa mulher que trazia um vestido muito vistoso. Era Cinzia, que olhou para Oscar e lhe perguntou: - O que foi que te aconteceu?
- Tive um acidente num autocarro.
- É ela o objecto do teu amor? - perguntou Cinzia e, sem esperar pela resposta, dirigiu a Roberta um olhar malévolo, ao mesmo tempo que lhe perguntava com uma voz aflautada: - És tu que vais ocupar o meu lugar? Tens a certeza de que te contentas com um homem em segunda mão?
- O que vieste aqui fazer? - perguntou Oscar, agressivo.
- O mealheiro lá de casa está vazio. Não estavas no jornal e vim procurar-te a tua casa - explicou, com candura.
14
Roberta regressou a casa e contou tudo ao pai.
Walter Mandelli observou a sua menina maravilhosa e pensou que, por muito que ele dissesse ou fizesse, Roberta não ia alterar a sua decisão, entusiasmada como estava com o bonito fotógrafo. Nem sequer tinha a certeza de que se tratasse apenas de um entusiasmo. Se calhar os dois jovens estavam realmente apaixonados. Walter tinha muita afeição por Oscar e considerava-o um excelente profissional, um homem generoso e honesto, mas alimentava sérias dúvidas sobre a sua fiabilidade como marido, porque sempre o tinha visto passar de uma aventura para outra com uma grande ligeireza. Agora, como se não bastasse, propunha à filha que aceitasse o casamento com a companheira, seguido de um divórcio que lhe ia permitir casar com Roberta e, para complicar ainda mais a situação, havia pelo meio o nascimento de uma criança que, obviamente, Oscar deveria ter a seu cargo.
- Acho que esta história te vai fazer sofrer - comentou com amargura. Depois telefonou a Malvina e contou-lhe tudo.
- Vem cá com ela este fim-de-semana, porque temos de fazer alguma tentativa para a trazer de novo à razão - disse ela.
Não nutria grandes esperanças relativamente ao sucesso de convencer a filha a rever a situação, mas considerava um dever
demonstrar-lhe a insensatez daquela história. E fê-lo, com uma veemência que contradizia as regras mais elementares da psicoterapia.
- O Oscar está prestes a casar com a mãe do filho e tu insistes em acreditar que é o homem certo para ti. Não percebes que é uma loucura?
- Ele, pelo menos, ama-me - replicou Roberta, impermeável a qualquer raciocínio.
- O que significa esse "pelo menos"?
- Vê tu que significado lhe podes atribuir - provocou Roberta, para a fazer sentir-se culpada.
As alfinetadas da filha não eram uma novidade, e Malvina não se deu por vencida.
- Vai chegar o dia em que também havemos de discutir a nossa relação, mas agora queria evitar que cometas um grande erro. O homem que dizes que te ama, na realidade, é um egoísta. Viu um brinquedo que se chama Roberta e decidiu tê-lo a qualquer preço. Diz-me que garantias de serenidade, estabilidade, fiabilidade pode dar-te um homem que se casa com a companheira com quem vive para depois se divorciar e casar contigo. Alguma vez se viu uma embrulhada assim? Não há coerência.
- Coerente és tu, que nunca casaste com o meu pai e me deixaste ser educada por uma avó, por duas tias e por um pai que tanto estava como não estava e que tinha de fazer também o papel de mãe! Onde estavas tu enquanto eu crescia e passava por tristezas e problemas de que tu nunca soubeste? És tu quem me vem falar do egoísmo do Oscar? E o teu egoísmo, o que lhe fazes? Eu quero uma família verdadeira, com um marido e muitos filhos. Estou apaixonada pelo Oscar há anos, e agora acontece que ele também está apaixonado por mim e me pediu para casar com ele. Tem fortes razões para casar com a ex-companheira na segunda-feira. Ele é um homem responsável. Portanto, não tentem contrariar-me porque eu não vou mudar a minha decisão.
Malvina calou-se. Roberta tinha despejado em cima dela uma série de acusações, maturadas durante muito tempo, que eram
a sua verdade, e seria inútil contar-lhe como tinham realmente corrido as coisas na sua vida, porque a filha não a ia ouvir. Encaixou as acusações e replicou: - Gosto muito de ti, minha querida. Só tenho pena que, com dezanove anos, estejas a embarcar numa relação que já nasce complicada. O Oscar vai ter de sustentar duas famílias e de tratar também daquele filho que vai nascer. Vais aguentar em cima dos ombros um fardo pesado que a outra signora Trinchese não vai contribuir para aliviar. Por isso quero que saibas que eu vou estar sempre aqui.
Gostaria de poder abraçar a filha para lhe dar coragem, mas sentia a sua hostilidade e não se mexeu.
Foi Walter quem a abraçou e animou.
- Isto é realmente uma história sem pés nem cabeça e a tua mãe, que tem o sentido prático de todas as mulheres, não consegue digeri-la; mas, se está bem para ti, também está bem para nós.
No domingo à noite, quando chegou a hora de regressar a Milão, Roberta não quis ir com o pai.
- Vou ficar aqui uns dias - decidiu.
Na realidade, temia a segunda-feira de manhã, quando o seu apaixonado se ia casar com Cinzia.
Oscar tinha-lhe dito que o casamento se realizaria às oito horas da manhã.
Às sete ligou-lhe para Tavernolo. ',
- Daqui a pouco vou sair para ir ao notário. Assim que este sacrifício chegar ao fim, vou ter contigo. Amo-te, e vou contar os dias a partir de agora e até quando for outra vez um homem livre para poder casar contigo.
Depois de ter falado com ele, Roberta refugiou-se por baixo do terraço com um livro para ler. Pouco depois, a mãe foi ter com ela. Venere serviu o pequeno-almoço, que tomaram em silêncio.
Roberta olhou para o jardim, onde as rosas da avó tinham recuperado o vigor, depois da canícula de Agosto.
No céu, um gavião voava lento e solene. Carlin estava a sachar a horta. Na cozinha, Venere começava a preparar o almoço. Tocou
o telefone e Roberta estremeceu: eram oito e um quarto. Esperou que fosse Oscar a anunciar-lhe a conclusão da cerimónia, mas não se mexeu e esperou que Venere atendesse na cozinha. A empregada chegou ao pátio para chamar Malvina: era Sérgio Orombelli. Malvina entrou em casa para falar com ele e voltou para lhe dizer:
- Hoje vou almoçar com o Sérgio. Assim, quando o Oscar chegar, têm a casa só para vocês.
Roberta sorriu-lhe e agradeceu-lhe.
A mãe apoiou-se nas costas do cadeirão de vime e disse: - Até há algumas dezenas de anos, quando os pais se apercebiam de que um filho ou uma filha se iam meter em complicações, faziam as malas e partiam para uma longa viagem com o filho ou a filha em questão. Regressavam apenas quando o perigo se tinha afastado.
- A verdade é que tu és como os cães, não largas o osso - observou Roberta.
- Os métodos educativos dos bons velhos tempos não são nada de deitar fora.
- Dito por uma pessoa que fez o Maio de 68...
- E que se bateu pelo divórcio. Se esta lei não tivesse sido alterada, como é que te ias arranjar com o Oscar? Porque, não sei se estás a ver, a tua geração dá tudo como adquirido, mas estas conquistas fomos nós que as vivemos e sofremos e não imaginávamos que as nossas filhas se iriam servir delas para fins menos nobres, como o de usar um casamento para pôr a consciência em paz e o divórcio para depois fazer aquilo que mais agradar - martelou.
- Não me queres deixar sossegada? Até porque não há nada que tu possas dizer ou fazer para mudar os meus sentimentos - protestou. Levantou-se, entrou em casa e foi refugiar-se no seu quarto.
Quando ouviu o carro da mãe afastar-se, desceu novamente ao rés-do-chão. Da cozinha chegava a conversa dos dois empregados. Parou, indecisa quanto a ir ter com eles ou seguir até à sala para se sentar ao lado do telefone, pronta para atender assim que tocasse. Por isso ouviu o diálogo entre Venere e Carlin.
u - Mas tu explicas-me o que é que está a acontecer? - pergunpava Carlin à mulher.
i - Ó meu querido homem... estas modernices de hoje não são do céu nem da terra - lamentou-se Venere.
- Mas será que eu percebi bem? É verdade que o apaixonado da Roberta se casa hoje de manhã?
- É verdade... é verdade...
- Então perdeu o namorado!
: - Não senhor. Porque depois ele vai divorciar-se e casar com ela. Mas entretanto vai nascer um filho daquela com quem ele se
casa hoje. Percebeste, agora?
- Não.
- Nem eu. Mas é assim como te estou a dizer.
- Às vezes sinto-me feliz com a minha ignorância.
- Sábias palavras. A gente instruída é doida e vive mal. E agora sai daí para fora, porque eu tenho de cozinhar para o noivo, que vem aí almoçar.
- E a noiva? - insistiu Carlin.
- Rua, deixa-me trabalhar - rematou a mulher.
Roberta refugiou-se na sala de estar. Eram quase nove horas e
Oscar ainda não tinha ligado.
Ouvia as pancadas do relógio que marcava os quartos de hora, um atrás do outro, enquanto que o telefone continuava calado.
Podia telefonar-lhe ela, uma vez que Oscar tinha um telemóvel, mas duvidava que o tivesse com ele. De qualquer maneira, ligou-lhe às onze horas e, como era de prever, ele não atendeu. Ligou então para casa, e ele também não respondeu. Procurou-o no jornal e disseram-lhe que estava fora. Ao meio-dia julgou que ia enlouquecer. E, finalmente, o telefone tocou.
- Querida - disse-lhe Oscar.
- Estou a ouvir - respondeu ela, a conter a alegria e a raiva.
- Estou um farrapo. Mas depois da tempestade vem a bonança.
- Explica-te.
''"' - Tinham acabado de nos declarar marido e mulher quando a Cinzia se sentiu mal. Chegou a ambulância e eu levei-a ao hospital. Perdeu o bebé.
-.-.
Roberta
<-";
1
Francesca seguiu a narração da mãe, fascinada com aquela história incrível.
- O Oscar Wilde dizia que não é preciso beber a pipa inteira para saber que o vinho não é bom. Depois daquele primeiro trago, devia ter percebido que o homem por quem estava apaixonada me ia causar problemas - concluiu Roberta.
- Aquela Cinzia não precisa do dinheiro do pai - disse então Francesca.
- Mas digo-te eu que precisa - insistiu Roberta.
- E eu garanto-te que não é assim, porque trabalha na loja de ferramentas da via Moscova - revelou a filha.
- Quem foi que te disse?
- Confessou-me o pai, em grande segredo.
- Tenho de ir à via Turroni. Anda comigo, porque eu quero saber tudo - propôs Roberta.
Entraram no carro e a filha continuou: - O pai contou-me que a Cinzia é amiga, desde sempre, dos donos de uma loja de ferramentas. Há alguns anos, a mulher morreu e ela substituiu-a na loja. Parece que tem um bom ordenado, porque o negócio vai de vento em popa - contou-lhe.
- Olha, olha... a senhora tem um rendimento - sussurrou Roberta, entre dentes. E prosseguiu: - Estás a ver porque é que eu
me zango com o teu pai? Tenho imensa dificuldade em aguentar as contas da casa, e ele oferece dinheiro a uma pessoa que não precisa - sibilou e, naquele momento, gostaria de ter o marido à frente para lhe dizer tudo o que pensava.
Tinham chegado à casa dos Mandelli e, da janela da casa ao lado, a signora Renzi viu-as e cumprimentou-as.
- Hoje trouxeste também a tua menina! - exclamou. E acrescentou: - Fico muito contente. Ainda que não me queiras dizer, agora sei que vais voltar a viver aqui.
- Quem sabe, tudo pode acontecer - rematou Roberta e, com a filha, entrou na casa poeirenta.
- Vamos mesmo mudar de casa? - perguntou Francesca.
- Ando a pensar nisso - respondeu Roberta, escancarando as janelas e, com a filha atrás, examinava portadas e fechos.
Francesca conhecia bem aquela casa, onde ia muitas vezes quando o avô ainda era vivo. Ele recebia-a no escritório e mandava-a fazer os trabalhos de casa. Depois dava-lhe umas moedas e dizia: "Linda menina. Agora vai comprar um gelado."
Walter Mandelli tinha deixado o trabalho porque sofria do coração. Passava os dias a juntar os escritos do pai para organizar um volume que pretendia editar. Morreu antes de conseguir realizar o seu projecto.
- Vamos dar uma volta pela casa, para ver em que condições é que está - propôs Roberta.
- Eu realmente precisava de fazer os trabalhos de casa e depois... - disse a rapariga.
- Se calhar era melhor trazer aqui a Tilde para fazer uma limpeza - acrescentou a mãe, seguindo o fio dos seus pensamentos.
- Depois tenho uma hora de treino no Palácio do Gelo - prosseguiu Francesca.
- Até porque ao fazer a limpeza se viam melhor as mazelas destes velhos aposentos...
- Depois vou jantar a casa da Silvia e fico lá a dormir.
Mãe e filha seguiam pensamentos diferentes, enquanto percorriam os quartos do andar superior.
Havia velhos papéis de parede para substituir, mas Roberta pensou que os ia tirar e pintar as paredes de branco. O toucador do quarto da avó era uma peça valiosa, que precisava de um restauro num bom marceneiro. As camas eram todas para deitar fora, excepto, talvez, a da tia Cristina, com uma bonita cabeceira em ferro forjado, que conservava intacta a pintura e as bolas de latão brilhante. E as casas de banho, pensou, quando espreitou para a principal, tinham de ser feitas de novo: ia mandar retirar aqueles horríveis azulejos cor-de-rosa e as louças amarelecidas. Tinha folheado na livraria um volume de design moderno onde viu pavimentos de linóleo fantásticos para as casas de banho. Claro que era mais caro do que os azulejos, mas também era mais fácil de limpar e... tinha de falar com um arquitecto, pedir um orçamento e... e o dinheiro?
Podia fazer uma hipoteca da casa. Mas se depois não conseguisse pagar? Não queria pedir ajuda à tia Aurora, e muito menos à mãe. Mas decidiu que ia voltar a viver ali, onde tinha passado a sua infância. No fundo, nunca tinha gostado do apartamento da via Spartaco.
- Mãe, podemos ir embora? - perguntou Francesca.
- Claro, querida, vamos já para casa. Mas, diz-me sinceramente, não gostavas que nos mudássemos para aqui? i
- Não sei, parece-me tudo tão estragado...
- Ajuda-me a fechar as janelas.
- Os quartos são pequenos.
- Deitamos umas paredes abaixo e de dois quartos pequenos conseguimos um grande. É a nossa casa e podemos fazer tudo o que quisermos.
- E o dinheiro?
- Pois, esse é que é o problema. O dinheiro, o maldito dinheiro. Odeio o dinheiro e quem o inventou - declarou, ao mesmo tempo que fechavam a porta e se dirigiam ao portão.
Iam a entrar no carro quando o telemóvel de Roberta tocou. Era Aldo, o bibliotecário.
- Estás na livraria? - perguntou-lhe.
- Estou na rua com a minha filha - respondeu.
- Queria convidar-te para um aperitivo. E se eu fosse buscar-te à hora de fechares a loja?
- É uma proposta aliciante - respondeu. Desligou o telefone e pôs o carro a trabalhar.
- Então, mamã, achas bem o meu programa para esta noite?
- Que programa, querida?
- Pois, estás a ver como tu és? Eu falo e tu não me ouves. Pois eu ouvi bem a história que me contaste e percebi muitas coisas sobre ti e sobre o pai.
- Diz-me uma.
- Percebi que ele está muito apaixonado por ti, enquanto que tu já não tens a certeza se o amas. Até ontem, julgava que era ao contrário.
- Mas o que é que tu estás para aí a dizer? - balbuciou a mãe, parando o carro em frente à porta da via Spartaco.
- Aquilo que penso. Então, posso dormir em casa da Silvia?
- Sim, claro. Verifica se o Matteo fez os trabalhos de casa, por favor. O teu pai, apaixonado por mim? - perguntou, mais a si própria do que à filha, que já tinha saído do carro e entrava em casa naquele momento. - Ele está apaixonado pela vida cómoda que eu lhe servi durante dezoito anos numa bandeja de prata. Mas, a partir de hoje, a música vai mudar - disse, a destilar indignação por causa daquilo que a filha lhe tinha revelado. Cinzia tinha um emprego, há muitos anos, e recebia um ordenado, Oscar sabia disso mas continuava a dar-lhe dinheiro e até pagava as despesas de condomínio do apartamento que lhe tinha oferecido.
- que vontade de dar cabo dele - sibilou, enquanto entrava na livraria, onde Chiara olhou para ela, preocupada.
- Posso saber com quem vens tão zangada? - perguntou-lhe.
- Com toda a gente, mas sobretudo comigo mesma - afirmou, e fechou-se no escritório.
Trabalhou durante algumas horas e depois telefonou à tia Aurora, que estava na via Spartaco.
- Como é que estão a correr as coisas por aí? - quis saber.
- Espera um instante - respondeu a tia.
Ouviu o som dos seus passos e o ruído de uma porta que se fechava. - Estou a falar-te do teu quarto, porque o Oscar está do outro lado com o Matteo. A Francesca vai passar a noite em casa da Silvia e eu volto para minha casa. O jantar está pronto. Imagino que, esta noite, tu e o teu marido devem ter alguma coisa para conversar - concluiu a tia.
- Avisa-o de que vou chegar tarde - disse Roberta.
Entrou na casa de banho para mudar de roupa e vestir o fato que tinha comprado de manhã. Olhou-se ao espelho e viu uma mulher elegantíssima e zangadíssima. Messalina, que tinha elegido como residência temporária para si e para os seus gatinhos o espaço por baixo do lavatório, esticou o focinho para ela.
- Não achas que estou um espanto? - interrogou Roberta, fazendo-lhe uma festa.
A gata, satisfeita com a atenção que acabava de receber, voltou a lamber os gatinhos.
- Vais a alguma recepção? - perguntou Chiara, quando a viu.
- Vou sair com um amigo para tomar um aperitivo - disse, com uma indiferença estudada.
Estavam a fechar as grades quando Aldo Rivetti apareceu à porta da livraria.
- Ah, então o amigo é o bibliotecário! Parece-me uma elegância desperdiçada - resmungou Chiara.
Roberta, escondida atrás de uma estante, viu-o. Ele trazia, como de costume, um pólo amarelo por baixo de um casaco azul e calçava umas sapatilhas. Roberta sentiu-se ridícula naquele elegante fato novo. Foi a correr à casa de banho, mudou-se rapidamente e voltou a vestir o velho tailleur. Depois foi ao encontro de Aldo.
2
Oscar apercebia-se de que a mulher estava a atravessar um período complicado, mas até para ele era difícil perceber por que razão, de repente, estava tudo a correr mal naquela relação.
Roberta tinha-o deixado sem telemóvel e sem dinheiro, e a seguir tinha-o derrubado com a sua fúria verbal.
Depois de almoço regressou a casa com Matteo, que andava a saltitar à volta dele, feliz e um pouco incrédulo por ter o pai só para ele. Na sala encontrou a tia, que estava a ler o jornal.
- Onde é que ela foi? - perguntou-lhe, referindo-se à mulher.
Aurora encolheu os ombros.
Oscar deixou-se cair no sofá. "
- Já não posso mais. Anda aqui uma tempestade há vários dias e eu já não percebo nada - suspirou, com ar de mártir.
- Não me perguntes a mim, não sei de nada e não quero entrar nas vossas disputas - afirmou ela.
Tilde apareceu à porta para se despedir.
- Já arrumei tudo. Até amanhã - anunciou, e reparando no olhar incomodado de Oscar e da tia Aurora, escapuliu-se rapidamente.
- E eu ainda sei menos - lamentou-se Oscar, assim que a empregada fechou a porta de casa.
- Pai, ajudas-me a fazer o trabalho de aritmética? - perguntou Matteo, que vinha do quarto onde tinha deixado os sapatos e o blusão.
Se tivesse podido seguir o seu impulso, Oscar ter-lhe-ia dito: "Fá-lo tu sozinho, porque eu tenho mais em que pensar, mas o olhar cheio de esperança do seu menino levou-o a fazer-lhe a vontade. - Está bem, vamos sentar-nos à mesa da cozinha - respondeu, interrompendo a conversa com a tia.
Aurora olhou quase com ternura para aquele homem de aspecto forte e seguro que estava a sofrer qualquer coisa que ia para além da sua compreensão. Fechou o jornal e foi à cozinha espreitar.
- Incomodo-vos se fizer um café? - perguntou.
- Não, se me oferecer uma chávena - respondeu Oscar, que estava sentado à mesa com o filho.
- Se vão tomar café eu posso ter o meu Kinder? - perguntou Matteo.
- Vai comprar-me cigarros, por favor - disse o pai, metendo-lhe uns euros na mão. - Depois vais ter o teu lanche - acrescentou.
Assim que ficaram sozinhos, virou-se novamente para a tia.
- Não me diz o que é que a Roberta anda a tramar nas minhas costas?
Aurora começou a encher a cafeteira.
- Mudou como do dia para a noite - prosseguiu.
- Talvez sinta falta de atenção - comentou Aurora, enquanto apertava a cafeteira.
- Assim... de repente? Durante dezoito anos tudo correu direitinho, e agora não há nada que esteja bem para ela. Está a ver que eu até tive de dizer no jornal que estou doente, porque não consigo trabalhar nestas condições?
- Deve ser a crise dos quarenta anos - observou Aurora.
- Ela só tem trinta e sete - esclareceu ele.
- É preciso ver que o peso da casa e dos filhos cai todo em cima dos ombros dela - afirmou a tia, enquanto esperava que o café subisse.
- E acha que isso explica a mudança?
- Só falo daquilo que vejo, porque a Roberta não é pessoa para espalhar o seu descontentamento aos quatro ventos.
- Acha que ela tem um... um... outro? >;>"! Estava decidido a apertar com ela para a fazer falar.
- Não sei. Espero que não. Mas, se assim fosse, devias fazer um bom exame de consciência e perceberes o quanto negligenciaste a tua família.
Deitou o café nas chávenas no momento em que Matteo e a irmã entravam de rompante no apartamento.
O rapazinho pôs um maço de cigarros e as moedas do troco em cima da mesa.
- Onde estiveste até esta hora? - perguntou Oscar a Francesca, enquanto Matteo lanchava.
- Na via Turroni, com a mãe - confessou, candidamente. Oscar tirou um cigarro do maço, acendeu-o e disse: - Vou à
casa de banho fumar.
Saiu da cozinha e levou a filha atrás dele. Fê-la entrar na casa de banho, sentou-se num banco depois de ter aberto a janela e perguntou-lhe: - Na via Turroni, a fazer o quê?
- A ver as obras que são precisas para a tornar habitável. Está a fazer grandes projectos, mas há um problema: o dinheiro. Não há dinheiro, porque tu és um mãos-largas com a tua primeira mulher que, já que tem um emprego, podia muito bem passar sem a tua esmola - concluiu Francesca.
- Então contaste tudo à tua mãe.
Francesca ficou calada.
- A partir deste momento, vou ter de tomar as rédeas da situação. Por muito que isso me repugne, vou ter de impor alguma ordem - afirmou.
- Eu vou para o meu quarto fazer os trabalhos de casa - decidiu Francesca.
Matteo estava diante da televisão a ver um filme.
- Vou ter de ir comprar um telemóvel novo. Por favor, não se importa de tratar do jantar? - perguntou à tia Aurora.
Ela sorriu ao constatar que os papéis em casa estavam a mudar: agora Oscar preocupava-se com as pequenas questões domésticas.
- Faz tudo aquilo que precisares - sossegou-o.
Oscar comprou um telemóvel novo na loja ao lado de casa e depois meteu-se no carro para ir à via Solferino.
Durante o trajecto, remoeu as palavras de Roberta e pensou que não podia deixar de lhe dar razão. Cinzia pesava-lhe como um rochedo há demasiado tempo. Com aquele ar aflito e indefeso de mulher maltratada pela vida, tinha conseguido que ele lhe oferecesse um apartamento que agora valia uma pequena fortuna e continuava a extorquir-lhe dinheiro. Chegara o momento de fechar as torneiras, até porque tinha de pensar nos filhos. Tinha a certeza de que Cinzia ia compreender a situação.
Estacionou o carro na esquina com a via Moscova, perto da loja de ferramentas. Sabia que, àquela hora, a ia encontrar atrás do balcão. Mas ela não estava.
- É quinta-feira, dia de dança - disse o dono da loja, que o conhecia. E explicou: - A Cinzia saiu mais cedo, e o Attilio também. Têm de se arranjar para ir dançar. Quer que lhe diga alguma coisa, amanhã?
Oscar despediu-se rapidamente, dizendo: - Não é preciso. Vou dar um salto a casa dela, se é que ainda a encontro lá, como espero.
Virou na via Solferino e entrou no hall do prédio onde tinha morado durante anos. O cubículo do porteiro estava deserto e ele subiu as escadas a pé.
Chegou ao último andar com uma respiração ofegante. Tocou à campainha que, absurdamente, tinha ainda a tabuleta com o seu nome. Ao fim de um tempo que lhe pareceu uma eternidade, ouviu a voz de Cinzia perguntar: - Quem é?
- Estás a ver-me através do olho mágico e perguntas-me quem sou? - replicou, impaciente.
- Oscar? - disse ela, sem se decidir a abrir.
- Então?
Ouviu o ruído do cadeado e a porta abriu-se poucos centímetros apenas.
- Não sabia que vinhas cá. Eu... ia tomar um duche - balbuciou, olhando-o como se ele fosse um fantasma, enquanto cobria o corpo nu com um roupão às flores.
- Eu sei, é quinta-feira e eu também estou com pressa. Só queria dar-te uma palavrinha - replicou ele.
Do fundo do corredor chegou até eles uma voz de homem.
- Cinzia! Quem é?
Oscar abriu a porta com um gesto decidido e, ignorando a ex-mulher, avançou decidido em direcção ao quarto onde, estendido na cama, encontrou Attilio, que se cobriu rapidamente com o lençol.
Os dois homens olharam um para o outro, desconcertados. Depois Oscar não conseguiu conter uma gargalhada, enquanto o outro corou vistosamente.
- Fica à vontade - escarneceu o fotógrafo, e saiu do quarto. Cinzia tinha ficado colada à porta da entrada e olhava para ele,
aterrada.
Ele foi até junto dela e sorriu-lhe.
- De que tens medo, pobre mulher?
- É que eu... queria dizer-te... - balbuciou Cinzia. Trazia um perfume que lhe provocava náuseas.
- É evidente que, a partir deste momento, acabou o tempo das vacas gordas. Não me telefones mais e nunca mais apareças - concluiu.
Foi-se embora e bateu a porta com uma pancada tão clamorosa que ressoou na caixa de escadas.
Pela primeira vez, ao fim de tanto tempo, sentiu-se um homem livre.
3
Era um local cheio de jovens e de alegria, a pouca distância da livraria.
Há quantos anos não se concedia Roberta uma pausa tão relaxante? Esforçou-se por recordar quando tinha sido a última vez em que saíra com o marido para tomar um aperitivo antes de ir ao cinema ou ao teatro. Tinha sido na noite em que lhe anunciara, diante de uma taça de champanhe, que esperavam o primeiro filho.
Sentou-se com Aldo a uma mesa um pouco afastada. Ele pediu dois sumos de ananás.
- Vens aqui muitas vezes? - perguntou ela.
- Nunca. Foi um amigo que me falou disto e decidi que era o sítio certo para conversar contigo - respondeu ele.
- Normalmente, como passas as noites?
- Fico na biblioteca até tarde, depois como uma sanduíche onde calha e vou ao cinema ou a algum concerto, se não tiver nenhum convite para jantar em casa de amigos. Eles são todos casados e eu sou o tio dos filhos deles e o confidente das suas mágoas - explicou.
- E este físico musculoso, de onde te vem?
- Do ginásio. Vou lá três manhãs por semana, desde que era rapaz. Como não posso competir com a beleza dos meus amigos, tento rivalizar com o físico. Os meus colegas de faculdade tinham
o fascínio e o dinheiro, eu salvava-me com o físico e um monte de notas máximas. E depois havia os livros. Lembras-te do Tio Patinhas, que sonhava mergulhar numa piscina cheia de moedas de ouro? Pois eu sonhava atirar-me para uma piscina cheia de livros. Quando penso em todas as emoções, aventuras e surpresas que estão contidas num bom livro, sinto um frenesim incontrolável, de maníaco... Mas agora chega de falar de mim, até porque não sou um tema interessante. Conta-me de ti.
- Eu gostaria de ter uma vida marcada por serenas rotinas familiares. Há mulheres que sonham com cruzeiros nos mares do Sul, jóias e roupas de marca; eu, pelo contrário, sempre desejei uma existência normal, que nunca tive.
- Talvez não quisesses mesmo - observou ele, e prosseguiu:
- És demasiado inteligente e imaginativa para te contentares com a normalidade. Por aquilo que eu entendi, cresceste num contexto fora dos esquemas tradicionais que influenciou a tua maneira de ser e as tuas opções de vida.
- É verdade. Como é que me conheces assim tão bem? - perguntou Roberta, curiosa.
- Há já muitos anos que nos encontramos, de vez em quando. E como és uma pessoa interessante, sempre te ouvi com atenção.
- Estás a pôr em prática a velha política da adulação para me seduzires? - brincou Roberta.
- Exactamente, apesar de saber muito bem que não sou o protótipo do homem atraente.
- Isso de te diminuíres também faz parte da tua estratégia?
- Se calhar. Admito que estou a tentar fazer-te a corte. És a primeira mulher que, ao fim de tanto tempo, consegue outra vez interessar-me.
- Fala-me dela, daquela que tinha monopolizado o teu coração.
- Estivemos casados três dias. No quarto dia, ainda estávamos em lua-de-mel, ela sofreu um acidente vascular cerebral que a matou em poucas horas. Tinha vinte e seis anos e era o retrato da saúde e da vontade de viver. Tinha um curso superior de Piano
e sonhava ser concertista. Amava-a mais do que a minha vida ••, contou, num sussurro.
- Quando é que isso aconteceu?
- Já passaram quinze anos - respondeu ele, tristemente.
- Vamos sair daqui? - propôs Roberta. De repente, aquele sítio alegre e barulhento começou a incomodá-la.
Seguiram pela rua a pé, lado a lado.
- Nunca mais te apaixonaste? - perguntou.
- Uma vez tive uma história com uma rapariga, mas não conseguia libertar-me da recordação da minha mulher. Ela percebeu e separámo-nos. Desde aí, fechei-me a essas coisas. Só agora, contigo, me parece finalmente ter superado aquele capítulo dramático da minha vida. Sinto-me um bocado ridículo, a exprimir-me assim, na minha idade. Também sei que és uma mulher casada, mas isso não me importa nada. Em suma...
- Em suma, o quê?
- Deixo-te a ti a escolha da página seguinte, podes escrevê-la ou deixá-la em branco.
- Como muitos autores nos contam, escreve-se quando se tem alguma coisa interessante para contar. Neste momento, eu apenas tenho um vazio mental e entrego-te a ti a página em branco.
Tinham chegado perto da livraria, que estava já fechada. Roberta entrou no carro e baixou o vidro para se despedir de Aldo.
Ele inclinou-se e disse: - Obrigado pela companhia. Sei que vamos voltar a ver-nos... por questões de trabalho.
Roberta anuiu com um sorriso e seguiu em direcção a casa.
A tia Aurora já se tinha ido embora, Matteo estava no quarto dele e Oscar estava a limpar as máquinas fotográficas que tinha pousado em cima da mesa da sala de estar.
Recebeu-a com um sorriso e disse-lhe: - O teu jantar está pronto, na cozinha.
- Quero ligar para casa da Silvia a saber se está tudo bem com a Francesca - respondeu ela, pousando a carteira no sofá e aproximando-se do telefone.
- Eu já fiz isso. De qualquer maneira, se quiseres, liga tu também.
Roberta olhou para ele, espantada.
Desde quando é que o marido telefonava para casa dos pais das amigas da filha para se certificar de que não havia problemas? No entanto, não disse nada e esperou que Oscar lhe perguntasse onde tinha estado. Mas ele apenas anunciou: - Vou contigo para a cozinha e faço-te companhia enquanto comes.
4
Roberta não tinha fome e voltou a meter o jantar no frigorífico. Em vez disso, decidiu comer uma boa laranja sanguínea, de paladar extremamente doce, que não apreciou plenamente porque aquele encontro extemporâneo com o professor Aldo Rivetti, motivado talvez pela sua necessidade de vingança em relação ao marido, a tinha perturbado.
Oscar estava sentado à mesa, em frente a ela, aparentemente ocupado a limpar as objectivas com uma camurça. Sentia a curiosidade dele em saber onde ela tinha estado e a sua determinação em não fazer perguntas.
- A Francesca falou-me dos teus projectos sobre a moradia da via Turroni - disse ele.
Roberta começou a descascar outra laranja.
- Gostava de voltar a viver ali - respondeu ela.
- Também me falou do dinheiro que era preciso para a restaurar.
- Desde que estamos casados ainda não conseguimos ter uma cozinha decente, como eu gostaria. Imagina aguentar um restauro daqueles.
- A verdade é outra: que tu nunca quiseste uma cozinha nova porque nunca sentiste este apartamento como verdadeiramente teu.
- E não o é, a partir do momento em que pagamos uma renda. - Libertei-me de um peso e acho bem que tu fiques a saber -
afirmou Oscar.
Roberta ficou calada, à espera da continuação.
- Disse à Cinzia que a pensão vitalícia se tinha esgotado. Nunca mais vai telefonar, não vai pedir mais nada.
- Não posso acreditar - respondeu Roberta, espantada, ao mesmo tempo que olhava para o marido com um sorriso carregado de ironia.
Oscar estava com uma vontade louca de lhe contar a cena de Attilio apanhado na cama de Cinzia, na via Solferino, mas sabia que Roberta não tinha o mesmo sentido de humor que ele e que ia ficar ainda mais irritada ao pensar em todos aqueles anos em que a "pobre mulher" andara a enganar Oscar. A verdade era mesmo essa: tinha sido ludibriado por uma camponesa finória, que tinha conseguido servir-se dos seus sentimentos de culpa como alavanca. Por isso, limitou-se a dizer: - Falei com ela, e ela entendeu.
Esperou o aplauso de Roberta.
Mas, em vez disso, a mulher atirou-se a ele como uma fúria.
- Com que coragem, ao fim de dezoito anos, me vens contar que acabaste com a Cinzia? O que é que estás à espera que eu te diga? Obrigada por teres finalmente percebido que a tua família te merece mais respeito? Escondeste-me durante anos que a Cinzia trabalha e recebe um salário suficiente para viver. Só soube disso hoje, pela nossa filha. Como pudeste esconder-me esse facto e continuar a sustentar aquela mulher? Não se trata só de uma questão de dinheiro, apesar de isso ter a sua importância, mas de dignidade. Durante todos estes anos ofendeste-me, por continuares a sentir-te na obrigação de sustentar uma mulher com quem já não tinhas mais nada a partilhar. Como é que tu achas que eu me senti durante este tempo todo? E agora, como é que achas que eu devo reagir? Sei muito bem o que tu querias que eu dissesse: vamos pôr uma pedra sobre este assunto e não se fala mais nisso. Não o vou fazer, porque estou farta. Percebo que também eu tenho a minha
parte de responsabilidade, porque sempre me calei, deixei correr, sorri. Mas agora o copo está cheio. E não tentes defender-te, porque eu dou cabo de ti - berrou.
- Queres que me ponha de joelhos e te peça perdão? - disse ele.
- Estás a ver? Não percebes! Nunca percebeste nada! Deitou as cascas da laranja no balde do lixo e lavou as mãos.
- Há certas coisas que me podias ter dito há dezoito anos reagiu Oscar.
- A sério? E quando? Quando batias com a porta de casa para não me ouvires? Quando fazias noitadas com os teus colegas ou com os teus amigos polícias que te davam as dicas para um serviço fotográfico? E eu, estúpida, em casa à espera, a tratar das crianças, a fazer os impossíveis para te arranjar desculpas, repetindo para mim mesma que, ao fim e ao cabo, eras um marido fiel. Sabes o que te digo? Tinha sido melhor se me tivesses enganado mas tivesses assumido os problemas da família.
- Estás a ser ordinária!
- Estou furiosa!
- Já não te reconheço.
- Que importância é que isso tem, agora?
- Não digas isso! - protestou Oscar.
Matteo, com uma cara ensonada, apareceu à porta da cozinha.
- E tu, o que é que queres? - perguntou o pai, com agressividade.
- Tenho sede - queixou-se a criança, a esticar o casaco do pijama.
- Não agridas o meu filho dessa maneira! - disse Roberta, empertigada. Foi até junto do rapazinho, pegou-lhe na mão, deu-lhe um copo de água e levou-o outra vez para a cama.
- Estão a discutir? - perguntou Matteo, enquanto ela lhe aconchegava o lençol.
- Sim.
- Por minha causa?
- Tu não tens nada a ver com isto, meu pequenino - tentou
sossegá-lo.
- Mas vocês nunca discutiram.
- Mas estamos a discutir agora. Achas assim tão estranho? Tu nunca discutes com a tua irmã?
- Só quando a Francesca é má. Mas o pai hoje foi bom comigo.
- Eu sei. Ele gosta muito de ti.
- Tenho sono.
- Então dorme.,-
- Não consigo... sinto-me esquisito...
- Ouviste-nos levantar a voz e é por isso que não estás sossegado. Não te deves preocupar, porque eu e o pai vamos ser sempre bons amigos, garanto-te. (.; ;,
Matteo abraçou a mãe, a bocejar. -,
Roberta ficou ao lado dele, a afagar-lhe os cabelos, até que o filho adormeceu.
Depois deslizou silenciosamente para fora do quarto. Oscar tinha saído, deixando em cima da mesa da cozinha uma folha onde tinha escrito: "Vou procurar rosas para a minha mulher.
- É esta a solução que ele encontra para os nossos problemas: as flores e o silêncio, porque não se deve perturbar a sua tranquilidade - resmungou Roberta, dirigindo-se à casa de banho. Tomou um duche e depois deitou-se, exausta.
5
Roberta acordou de um sono profundo em que tinha caído e demorou alguns segundos a recuperar o contacto com a realidade. Olhou para o despertador: eram sete horas da manhã. Apalpou a cama do lado de Oscar. Não estava lá. Mas encontrou, bem à vista em cima da mesa da cozinha, um ramo de peónias brancas fragrantes enfiado numa horrível jarra de cristal que ela e Oscar definiam como "a prenda de casamento que esperamos que se escaque rapidamente", mas que ao fim de tantos anos sobrevivia intacta.
Ao lado da jarra estava um papel que dizia: VAMOS FAZER AS PAZES?
Noutros tempos, ela teria sorrido e sentido uma grande ternura. Mas agora disse em voz alta: - Já não me encantas.
Na sala de estar, uma almofada e um cobertor insolitamente bem dobrado denunciavam o facto de Oscar ter dormido no sofá, temendo que ela pudesse mandá-lo embora do quarto.
Devia ter saído há pouco tempo, porque quando voltou à cozinha para fazer o café viu vestígios daquilo que ele tinha entornado no fogão e no lava-loiça.
Só então se recordou do aperitivo com Aldo Rivetti e perguntou a si mesma como teria sido a sua vida se se tivesse casado com o bibliotecário.
Mas naquela altura estava loucamente apaixonada por Oscar. Porquê?, perguntou-se agora. O que tinha o marido de tão especial, para além de ser um homem lindíssimo?
Ela tinha amado tudo em Oscar: o rosto, o corpo, as mãos, o perfume da pele. Sentou-se à mesa da cozinha a tomar o café e lembrou-se de que gostava de pousar o ouvido sobre o peito dele e escutar o ribombar da sua voz, porque Oscar falava e falava, até ao infinito.
Só agora se dava conta de que raramente falava de si. Oscar tinha enterrado no fundo do coração a sua infância difícil e construíra uma personalidade cujas raízes se fixavam no vazio. Daqui provinha aquela tendência para fugir perante qualquer problema.
- Ele não precisava de uma mulher, mas de um psicanalista £ concluiu em voz alta.
Acabou o café, lavou a chávena, ligou para casa da amiga de Francesca a saber se tinha corrido tudo bem, pôs a aquecer o leite de Matteo e foi acordá-lo.
Depois de se terem arranjado e vestido, mãe e filho encontraram-se na cozinha para tomar o pequeno-almoço.
- Onde está o pai? - perguntou o rapazinho, diante da taça de leite com cacau onde ia mergulhando uns biscoitos.
- A trabalhar, imagino, a partir do momento em que saiu antes de eu acordar - respondeu Roberta.
- Prometeu-me o livro dos Gormitis, e o DVD também. Achas que se vai lembrar?
- Eu gostava de saber o que fizeste de tão extraordinário para mereceres esses presentes todos - questionou Roberta.
- Hum... deixa-me pensar... lavei os dentes sem ninguém me mandar.
- Não chega.
- Já imaginava. Mas o papá é melhor do que tu, porque só compra aquilo que eu lhe peço.
- Não vou responder à tua provocação. Despacha-te, vai buscar a mochila e vamos depressa para a escola - pediu-lhe, enquanto vestia o casaco.
Depois de ter deixado o filho na escola foi à livraria. Chiara barrou-lhe a passagem antes que ela pudesse entrar no escritório.
- Ele está ali - sussurrou. Obviamente, referia-se a Oscar. Roberta virou-se e dirigiu-se à saída. Chiara, com a sua figura
corpulenta, conseguiu segurá-la quando estava já na rua.
- Não é a fugir que vais resolver os teus problemas - preveniu-a.
- Até pareces eu a falar com ele - replicou Roberta.
- Mais uma razão para o enfrentares. Despacha-te a voltar para dentro.
- A minha livraria é sagrada e não vou fazer dela o teatrinho dos meus problemas - declarou e meteu-se no carro.
- Aonde vais? - perguntou a amiga.
- A qualquer lado. Não o quero ver.
- Estás realmente a fugir - constatou a amiga. Roberta não a ouviu porque já tinha arrancado, com os pneus a chiar.
Não sabia realmente onde ir. Assim que chegou ao centro, deixou o carro num parque de estacionamento e dirigiu-se ao corso Monforte.
Os seus passos, e não a vontade, conduziram-na aos jardins da Guastalla. Desceu as escadas e ficou ali a observar as árvores cheias de botões, o prado de um bonito verde-esmeralda e dois namorados que se beijavam.
Quantas vezes ela e Oscar se tinham encontrado ali, e quantas vezes aquele pequeno jardim, no coração da cidade, tinha sido testemunha discreta das estúpidas palavras de amor que tinham trocado.
Com as mãos enterradas nos bolsos do blusão, Roberta estava em pé, diante da fonte seca e lamacenta, a olhar para o infinito e a pensar como teria sido a sua vida sem o marido. Talvez não tivesse mudado muito, a partir do momento em que ele nunca estava em casa.
E, no entanto, pensou que seria difícil para ela separar-se de Oscar. Mas também não era fácil a vida que estava a levar há anos.
Recordou-se de Aldo Rivetti e murmurou: - Tenho uma vontade louca de voltar a apaixonar-me.
- Estou aqui para isso - disse Oscar, atrás dela. Ela virou-se e olhou para ele.
- Sou mesmo eu. Fugiste da livraria quando soubeste que eu estava à tua espera, e então vim até aqui, provavelmente pela mesma razão que tu. Procurava os nossos dias felizes, quando tu me amavas. Eu nunca deixei de te amar - sussurrou.
- À tua maneira, continuando a preferir o trabalho e a companhia dos teus amigos às crianças e à tua mulher.
- Houve um tempo em que fizeste loucuras por mim - constatou ele, com amargura.
- Estás a atirar-me isso à cara, ou estás apenas a recordar-me? Porque eu sei perfeitamente que me casei contigo contra a opinião de toda a gente, até do meu pai que, no entanto, gostava de ti e te estimava. Ele, mais do que ninguém, sabia o quanto eu desejava ter uma família normal. Talvez eu não me tenha apaixonado por ti, mas por um projecto acalentado durante muito tempo que tu, porém, não podias realizar, não por má vontade mas porque não se coadunava contigo.
- Deus é testemunha de que nunca mais olhei para outra mulher depois que me apaixonei por ti - disse, arrebatado.
- Depende daquilo que se entende por amor. Onde estiveste, durante todos estes anos, enquanto eu criava os nossos filhos, tratava deles quando estavam doentes, os consolava quando tinham os seus aborrecimentos, os levava ao infantário e à escola, ia trabalhar e esperava com um sorriso o regresso do guerreiro exausto que tinha andado por aí a trabalhar? Depois tu chegavas, com a tua cara lindíssima, fazíamos amor, a infelicidade desaparecia e renascia a alegria. Mas bastavam poucas horas juntos para tu recomeçares a escoicear como um cavalo enfurecido. As paredes da casa oprimiam-te, as crianças enervavam-te, a ideia de te confrontares
comigo aterrorizava-te. E fugias, dizendo para contigo: Em qualquer caso eu amo-a, e ela sabe. Andavas pelo mundo a fotografar divas ou soldados, gente rica ou crianças famintas, e entretanto sabias que, quando regressasses, havia um ninho quente pronto para te receber, a tua mulher que te ia encher de atenções e os teus filhos, que amas mais de longe do que de perto. Porque os filhos subtraíam-te uma parte de mim que tu querias em exclusivo. E isto, querido Oscar, não é amor. Chama-se egoísmo.
- Serviste-me um prato tão indigesto que não vou conseguir digeri-lo em algumas horas, nem sequer em alguns dias - disse ele.
- Tens todo o tempo para o digerir, porque eu vou mudar-me para a via Turroni com os meus filhos assim que a casa estiver pronta. - Finalmente tinha arranjado forças para tomar a sua decisão.
Ele olhou para ela, incrédulo, e tudo aquilo que conseguiu dizer foi: - Gostava de saber com quem estiveste ontem à noite.
- Finalmente, perguntaste. E isso é a prova de que não percebeste nada daquilo que te disse.
6
Oscar tinha de ir a um país árabe fotografar o palácio de um emir.
Antes de partir, declarou a Roberta: - Não te quero perder. Dá-me ainda algum tempo e a possibilidade de recuperar a nossa relação.
- Quando me pediste para casar contigo, disseste-me: "Dá-me tempo." Passaram tantos anos e continuas a pedir-me sempre as mesmas coisas. Tu não vais mudar nunca - replicou ela, esquivando-se ao seu abraço.
Oscar foi-se embora e, pouco depois, a tia Aurora passou por lá para ir buscar Roberta e os filhos para irem a Tavernolo passar o fim-de-semana. Pelo caminho pensou em Aldo, que continuava a fazer-lhe a corte com discrição, enviando-lhe e-mails divertidos. No último tinha-lhe escrito: "A presidente da Câmara de Tavernolo convidou-me para lá ir passar o fim-de-semana. Espero que também lá estejas."
Malvina pensou que a mãe o tivesse convidado para trabalhar com ele no projecto da biblioteca, mas não podia excluir que, sabendo-a em crise com Oscar, quisesse facilitar um conhecimento mais profundo entre a filha e o bibliotecário. Excluiu rapidamente esta segunda hipótese, porque Malvina não desempenharia nunca o papel de alcoviteira.
O carro entrou pelo portão da casa. Os amigos dos filhos que viviam naquela zona já ali estavam à espera deles. Eram os dois filhos do director do Clube de Golfe e a filha do dono do horto que tratavas das flores do jardim. Francesca e Matteo saíram do carro e juntaram-se logo a eles. Seguiram todos pelo caminho do bosque, enquanto a tia Aurora recomendava pontualidade para a hora do jantar.
Naquele momento surgiu a velha Venere lavada em lágrimas.
- A senhora está ao pé dos limoeiros - disse, a soluçar.
- O que foi que aconteceu? - perguntou Roberta, alarmada.
- O Carlin está com ela e com o senhor doutor - soluçou a criada, em vez de responder.
- Pode-se saber o que aconteceu? - resmungou Aurora.
- O pobre Damasco comeu alguma coisa venenosa e está a morrer - decidiu-se a revelar.
Aurora rodeou os ombros de Venere, que dizia: - Já não consigo assistir à morte de ninguém, nem sequer à de um pobre cão como o Damasco.
- Vamos para casa - sugeriu a tia, enquanto Roberta se dirigia aos limoeiros.
Damasco estava estendido no seu cestinho e o doutor Orombelli enfiava-lhe a agulha de uma seringa na perna que Carlin mantinha quieta. Malvina estava debruçada sobre o cão e acariciava-o.
Roberta abraçou a mãe e cumprimentou os dois homens.
- Está a sofrer muito? - perguntou ao doutor Orombelli.
- Daqui a pouco já não sofre mais - suspirou o médico, e afagou a mão de Malvina, que desatou num pranto.
- Acabou - anunciou Sérgio, com uma voz comovida.
- Tenho tanta pena - disse Roberta baixinho. Malvina abraçou a filha.
- Querem enterrá-lo no jardim? - quis saber o médico. - Se não...
- Se não? - perguntou Carlin.
- Levo-o para a incineradora - respondeu.
- Nunca! - respondeu o velho criado, indignado.
- E as crianças? Temos de os avisar que o Damasco morreu interveio Malvina.
- A eles dizemos que morreu a dormir - sugeriu Sérgio.
- Sou eu que o vou enterrar, no fundo do jardim - decidiu Carlin. Malvina e ele dirigiram-se a casa, enquanto Roberta pousava uma mão no ombro de Sérgio Orombelli. Nunca se tinha permitido um gesto tão íntimo com ele.
- Obrigada - sussurrou-lhe.
- Por quê? - perguntou ele.
- Por estares assim perto da minha mãe, há tantos anos, por não a deixares sentir-se só, por teres percebido a sua necessidade de independência. Obrigada por tudo, em suma.
- Anda cá, menina palerma - respondeu o médico, abraçando-a, e prosseguiu: - Demoraste tempo, até me aceitares.
- Vinte anos - concordou ela. E prosseguiu: - Sou um bocadinho dura, como a minha avó paterna. Durante muito tempo tive ciúmes da vossa relação. Às vezes a adolescência prolonga-se no tempo e é difícil superá-la - brincou Roberta, e acrescentou: - Está sossegado, agora já estou crescida.
/"
Roberta pensou que, de alguma maneira, Sérgio se parecia com Walter Mandelli, o seu pai.
Depois daquele primeiro erro de menina do liceu, quando se casara com Gianni Franzini, Malvina tinha escolhido dois companheiros seguros e fiáveis, e Roberta ainda não conseguia entender por que razão não se tinha casado com nenhum deles. Não bastava a definição de espírito livre para explicar o seu comportamento. E se Malvina não tivesse querido humilhá-la ao casar com Sérgio depois de ter recusado o casamento com o seu pai?
- Nós, mulheres, não somos assim muito fáceis de interpretar
- argumentou então, seguindo o fio dos seus pensamentos.
Sérgio anuiu, a sorrir, e disse: - Vai ter com a tua mãe que, como eu já sei, se vai andar a lamentar durante dias. Já uma outra
vez tive de lhe abater um cão. Era uma rapariguinha de quinze anos quando o labrador que ela tinha quebrou a espinha dorsal a correr atrás de uma raposa. O teu bisavô não teve coragem de intervir e chamou o veterinário. A Malvina insurgiu-se. Disse que se o Modi tinha de morrer, devia ser pelas minhas mãos. Eu tinha acabado de me matricular em Medicina e tive de pedir instruções ao teu bisavô, que se retirou depois de me ter dado os medicamentos. Em suma, por amor à tua mãe, eliminei dois cães.
- E por piedade para com eles - precisou Roberta, enquanto se dirigia a casa com Sérgio. E acrescentou A A mãe nunca me disse que tinha tido um labrador.
- Tinha-lhe chamado Modigliani-, por causa do pescoço comprido e fino. Dei-lho eu, que já a amava e não lhe podia dizer contou-lhe. Entraram em casa e Sérgio disse: - Vou lá acima tomar um duche.
Roberta foi até à cozinha, onde Venere e a mãe estavam a chorar e Aurora tinha começado a picar a carne de novilho para o bife tártaro que ia marinar em sumo de limão, sal e salsa fresca. Roberta achou que era preciso um café para toda a gente. Toledo, o outro cão, andava às voltas pela cozinha com um ar perdido, porque sentia a falta de Damasco.
Sérgio apareceu no pátio no momento em que as mulheres estavam a tomar o café. Roberta ofereceu-lhe uma chávena.
Ele tinha-se vestido com casaco e gravata.
Malvina observou-o e disse-lhe: - É preciso abrir uma cova por baixo do carvalho, ao fundo do jardim.
- E agora é que me dizes isso? - replicou ele.
- Não é um trabalho que o Carlin possa fazer sozinho - replicou Malvina.
- Acabei de tomar um duche - protestou o médico.
- Não sabias que tínhamos decidido enterrá-lo? - perguntou ela. Sérgio bufou, entrou em casa a resmungar contra a exploração
intensiva a que certas mulheres submetem os homens, e Aurora
disse à cunhada: - Aquele homem é um santo, quanto não seja pela paciência com que te atura.
- Entre nós vigora a lei do intercâmbio: ele atura-me a mim e eu aturo-lhe o mau humor quando emperra durante a escrita de um romance e fica intratável até desbloquear - explicou Malvina.
Sérgio apresentou-se novamente, com uma camisa de trabalho.
- Eu faço-te companhia - ofereceu-se Roberta.
Enquanto Sérgio cavava por baixo do carvalho, no limite do bosque, Roberta ergueu os olhos para os ramos densos, onde os pássaros faziam os ninhos, e recordou, ao fim de tanto tempo, a cabana de madeira, junto de um cedro-do-líbano. Disse então: Tive a minha primeira relação sexual com um rapaz que se chamava Filippo e estava apaixonado por mim. Mas eu já amava o Oscar. Quem sabe como teria sido a minha vida se me tivesse casado com aquele óptimo rapaz de boas famílias.
Nunca antes acontecera Roberta fazer confidências a Sérgio.
- Certamente não terias tido aqueles filhos maravilhosos que tens - respondeu ele.
Naquele momento viram as crianças, que regressavam a casa pelo caminho do bosque.
Roberta olhou para os filhos, que eram realmente muito bonitos, até porque tinham um pai lindíssimo, pensou ela, com um longo suspiro.
7
Aldo Rivetti chegou depois de Damasco ter sido enterrado com todas as honras. Venere decidiu, contra a opinião de Malvina, que o banquete fúnebre devia ser à base de bife tártaro, salame, vinho tinto para os adultos e Coca-Cola para as crianças.
Estes últimos atiraram-se aos pãezinhos com salame, porque eram uma iguaria que não era permitida em casa.
Foi um jantar animado e os convivas divertiram-se com os números de ilusionismo que o bibliotecário lhes apresentou: despejava água num guardanapo que continuava seco e fazia-os encontrar nos bolsos os pãezinhos que desapareciam da mesa. Depois de jantar sentou-se ao piano e deu vazão às suas qualidades de músico diletante, tocando algumas canções que as crianças conheciam e cantaram em coro. Depois cedeu o lugar a Sérgio que, em memória do pobre Damasco, tocou "The New Orleans Function".
Malvina ficou com os olhos humedecidos, Venere, que estava a servir o café, limpou as lágrimas ao avental e as crianças consideraram seu dever ostentar uma expressão sofrida.
Roberta observou aquele quadro familiar de outros tempos e pensou que era demasiado convencional para ser verdadeiro. Só faltava Oscar para completar um conjunto tão harmonioso. Mas ele nunca estava presente, constatou com rancor.
Ouviu tocar o telemóvel e saiu da sala de jantar para atender. Era Oscar a ligar-lhe do outro lado do mundo. Repetiu-lhe: - Não te quero perder.
Naquela noite, Matteo e Francesca quiseram partilhar a cama grande com ela. No meio dos dois filhos, Roberta adormeceu rapidamente e sonhou com um poço no centro de uma praceta veneziana deserta. Ela estava sentada na beira de mármore e tinha a saia molhada, porque a água transbordava e era tão límpida e fresca que sentiu vontade de a beber. Acordou com sede.
Deslizou para fora da cama, saiu do quarto em bicos de pés para não acordar as crianças e desceu ao andar inferior.
Encontrou a porta da cozinha aberta e a luz acesa. Aldo tirava uma garrafa de água mineral do frigorífico. Estava em pijama e, quando a viu, teve um sobressalto. Por um instante olharam um para o outro, embaraçados, mas depois a comicidade da situação sobrepôs-se e acabaram por se rir. Roberta penteou o cabelo com os dedos e avançou com um passo decidido, sem se importar com o facto de trazer um velho pijama de flanela, um pouco deformado pelo uso.
- Tive sede - disse Aldo, e acrescentou: - Percorri um labirinto de corredores antes de encontrar a cozinha.
- Mas encontraste-a. Eu também tive sede. Tudo por causa daquele salame que a Venere nos arranjou - declarou ela.
Tirou dois copos do armário e pousou-os no tampo de mármore da mesa. Aldo encheu-os de água, e depois sentaram-se um em frente ao outro.
- Quando acordei estava a sonhar com um poço de água. É um sonho que eu tenho há muito tempo. Quem sabe o que significará
- disse, falando mais consigo mesma do que com o seu interlocutor.
- Quem melhor do que a tua mãe para to explicar? - sugeriu ele. E, considerando o assunto encerrado, prosseguiu: - Esta casa é lindíssima e tu tens muita sorte em a teres.
- Não é minha, é da minha mãe.
- Não muda muito, a partir do momento em que podes gozá-la.
-?- Também tu a estás a gozar.
- Estou grato à presidente da Câmara por me permitir passar este fim-de-semana na companhia da filha, numa casa.magnífica
- A minha mãe não é rica e tem alguma dificuldade em manter tudo isto. A ala norte está fechada há anos, e começa a ficar muito degradada. Não podes imaginar o dinheiro que era preciso para a restaurar.
- Porque é que estás nervosa? - perguntou Aldo, à queima-roupa.
- Eu, nervosa?
- Sim, tu.
- Eu estou calmíssima. Tu é que estás nervoso e não ouves aquilo que eu te estou a contar - protestou.
- Não, eu não estou nervoso... ou seja, estou... - afirmou em voz alta.
- Estás a levantar a voz - censurou-o.
- Foste tu quem a levantou primeiro - sublinhou Aldo.
- Queres discutir? - perguntou Roberta.
- Não. Ou sim? Não sei. Temos algum motivo para discutir às duas da manhã? - perguntou.
- Diz-me tu. Eu acho que não. Não temos razão nenhuma.
- Então porque é que estamos aqui a eriçar as penas como dois galispos?
- Encontra a resposta sozinho - disse Roberta, que conhecia bem o motivo das sua própria agressividade.
Agarrou na garrafa de água mineral e, com ela apertada na mão como se fosse um ceptro, saiu da cozinha em passo de marcha, com o ar altivo de uma princesa.
Aldo foi atrás dela, segurou-a pelos ombros e obrigou-a a virar-se para ele.
Os seus rostos aproximaram-se e estavam a ponto de se beijarem quando uma voz disse: - Ups... não queria incomodar.
Era Sérgio. Em pijama como eles. Também tinha descido à procura de água.
- Não incomodas nada. Eu já ia voltar para a cama - disse Roberta, um pouco perturbada por ter sido surpreendida numa atitude tão íntima com um homem que não era o marido.
O médico avançou em direcção ao frigorífico, a resmungar:
- De quem foi a ideia do pão com salame para o jantar?
Ela afastou-se, deixando os dois homens sozinhos. Entrou no quarto e enfiou-se na cama ao lado dos filhos, enquanto perguntava a si mesma: Mas que confusão é que eu estou a arranjar? Como se já não tivesse problemas que me chegassem.
Tentou inutilmente conciliar o sono. Pensava no bibliotecário, no seu rosto de palhaço um pouco melancólico, ao qual sobrepôs o belo rosto de Oscar.
Recordou então os seus dezasseis anos quando, pela primeira vez, o viu à entrada da casa da via Turroni.
Oscar tinha sido o sonho maravilhoso que a acompanhara desde os dezasseis anos, até ao momento em que se apercebeu de que aquele fotógrafo lindíssimo não passava de um egoísta.
Ao rosto do marido sobrepôs-se novamente o de Aldo Rivetti, que não era bonito nem fascinante mas que não lhe desagradava, de tal maneira que estivera quase a beijá-lo, se Sérgio não tivesse chegado.
Deveria abençoar ou amaldiçoar o aparecimento imprevisto do companheiro da mãe?
Disse para si mesma que, graças a ele, se tinha livrado de boa. E adormeceu.
8
No domingo de manhã, quando acordou, os filhos tinham desaparecido do quarto e a casa parecia mergulhada no silêncio.
Olhou para o relógio e ficou horrorizada. Eram quase dez horas.
Levantou-se e abriu a janela. Estava um fantástico dia de Primavera. Vestiu um roupão e desceu à cozinha.
- Isso é que foi dormir! - disse Venere.
- Onde é que estão os outros? - perguntou Roberta.
- A sua mãe foi ao funeral de uma pessoa de cá, os meninos estão no lago com o senhor doutor e o careca... como é que ele se chama... está ao pé dos limoeiros com a sua tia - comunicou-lhe a criada.
- O careca chama-se Aldo Rivetti e é um bibliotecário - disse Roberta, enquanto pegava na cafeteira para preparar o primeiro café do dia.
- Seja quem for, não gosto dele - resmungou Venere.
- Porquê? - perguntou Roberta, curiosa.
- A menina também sabe muito bem que ele lhe anda a fazer olhinhos, e eu acho que já temos problemas que cheguem sem ir buscar outros novos - declarou, com o seu ar rude.
- Porque é que não te metes na tua vida? - protestou Roberta.
- Oh, desculpe, minha senhora, se eu tomei esta liberdade.
- E não gozes comigo.
- Pois claro. Esta pobre velha deve ver e calar. Mas eu não me calo. Não gosto daquele careca nem um bocadinho. Primeiro andou à volta da sua mãe, depois armou-se em grande amigo dos meninos e agora está a fazer-se de engraçado com a sua tia. E tudo para chegar a si, que é uma mulher casada e que, atendendo à idade que tem, devia andar com a cabeça mais em cima dos ombros.
- Também não gostavas do Oscar. Já te esqueceste?
- Pois bem, ainda gosto menos deste. Pelo menos o Oscar é bonito e faz-me rir... mas este aqui... - Pousou um frango depenado na tábua e pegou numa grande faca para lhe cortar a cabeça.
Roberta estremeceu ao perceber que, se pudesse, Venere também decapitava o bibliotecário. Ela era assim mesmo. Ao fim de tantos anos sentia-se parte da família e considerava seu dever dizer aquilo que pensava, mesmo quando não lhe perguntavam.
Tomou o café, regressou ao andar de cima para se vestir e depois decidiu ir até à aldeia pelo caminho do bosque. Queria ir ter com a mãe. Encontrou-a à saída da igreja, a abraçar um a um os parentes do defunto.
O carro funerário partiu em direcção ao cemitério e Malvina foi sentar-se no banco de pedra para a habitual audiência dominical.
Roberta teve tempo para ir comprar um jornal, dar dois dedos de conversa com alguns conhecidos da terra e sentar-se na praça, no banco dedicado ao bisavô, a folhear o jornal e a ler os títulos.
A mãe foi ter com ela depois de se ter despedido da directora da escola primária, que tinha vindo pedir o seu parecer sobre a ampliação do ginásio.
- Obrigada por teres vindo ter comigo - disse-lhe.
- Está sol, mas ainda está frio. Apetecia-me tomar um cappuccino - propôs Roberta.
Em frente ao balcão do café, enquanto esperavam que as servissem, Malvina observou a filha com um ar pensativo.
- Estás a ver se descobres alguma coisa de errado? - perguntou Roberta, pondo-se na defensiva.
- Pois é - anuiu a mãe. ;,,.•"
- Estou a pensar deixar o meu marido - confirmou. Malvina não disse nada e começou a tomar o cappuccino que
acabavam de lhe servir.
- Fui escrava dele durante todos estes anos - explicou.
- Sempre pensei que esse papel te agradava - observou a mãe.
- Nunca me agradou, só que considerava que era o preço a pagar para ter uma família normal. Mas agora já não aguento este papel - afirmou. E acrescentou: - Por favor, não me digas que já me tinham avisado.
- Não estava a pensar nisso, de todo.
- Mas é verdade. Já me tinham avisado. Em qualquer caso, como se costuma dizer, mais vale tarde do que nunca.
Saíram do café e dirigiram-se à pequena rua por trás da praça onde Malvina tinha estacionado o carro.
- O teu marido sabe? - perguntou Malvina, enquanto se sentava ao volante.
- Não quer acreditar.
- E os miúdos?
- Vão comigo para a casa do meu pai. Quero arranjá-la bem e viver ali com eles. Já sei, apesar de ainda não lhe ter falado nisso, que a tia Aurora vai querer juntar-se a nós. Desde que ficou sem a companheira, sente-se muito só.
- Isso é aquilo que tu queres achar. A Aurora é um vulcão e tem mil e um projectos. Não te iludas quanto ao facto de ela se deixar amarrar. Mais uma vez, queres dobrar toda a gente em função dos teus desejos. Pensa bem antes de desfazeres uma família, até porque o Oscar não é o pior dos maridos.
- Não posso acreditar que sejas precisamente tu a dizer-me isso.
- Acreditas porventura que o Aldo Rivetti ia ser melhor?
- O que é que ele tem agora a ver com isto?
- Tem, e tu bem sabes.
- Porque não pões o carro a trabalhar?
- Porque aqui dentro pode conversar-se em paz. > - Mas eu não tenho mais nada para te contar.
- Eu se calhar tenho. Ouve bem o que te vou dizer, e depois, como sempre, farás aquilo que quiseres. O Aldo é uma pessoa notável, quanto mais não seja pelo facto de amar os livros. Mas é notável apenas como organizador de bibliotecas. Quanto ao resto, tal como o Oscar, mais vale perdê-lo do que achá-lo. Os livros não são a sua única obsessão. Traz agarradas a ele, como uma desonra, as suas origens humildes. Tinha conseguido casar com uma jovem concertista de óptimas famílias, mas com uma personalidade instável, fazendo a corte aos pais, que ficaram contentes por poder despachar aquela filha estranha. Quando ela morreu, acho que sofreu mais pela perda do estatuto social do que pela da mulher. Sei, de fonte segura, que tentou seduzir a viúva de um médico famoso, que frequentava e ainda frequenta as famílias bem de Milão. Tinha quase conseguido as suas intenções quando os pais da jovem e rica viúva intervieram em força, impedindo-o de continuar. A senhora em questão casou depois com o deputado Ghisalberti e tem todo o ar de ser uma mulher feliz. Agora encontrou-te a ti, que não és viúva, não és rica, não frequentas os salões que contam, mas tens uma mãe que ele considera poderosa e abastada e, sobretudo, sabe que estás em crise com o teu marido. Ele tem antenas especiais para captar as situações favoráveis. A infância desesperada empurra-o para soluções que lhe permitem conquistar uma ribalta social. Está a fazer-te uma marcação cerrada, mas duvido fortemente que esteja apaixonado por ti - disse Malvina.
- Caramba, que retrato delicioso! Porque escolheste um fulano assim para lhe ofereceres uma consultoria?
- Porque sabe do seu trabalho. Profissionalmente, está muito bem preparado.
- Não acredito numa única palavra dessas coisas horríveis que disseste.
- Eu sei que não acreditas, mas era meu dever informar-te.
- Entre mim e ele não há nada.
- Ainda não.
- Eu até o acho simpático.
- Não era preciso dizeres, porque eu já tinha percebido.
- De qualquer maneira, eu não ando à procura de um novo marido, nem quero substituir o Oscar por outro homem, mas apetece-me voltar a apaixonar-me. Que mal faria se esse novo amor fosse o Aldo Rivetti?
- Quereria dizer que estás a confundir com amor a necessidade de vingança em relação aos anos frustrantes que passaste com o Oscar. E agora, que já cumpri o meu dever ao dizer-te toda a verdade sobre o bibliotecário, vamos para casa - concluiu.
- Será que eu não posso ser considerada desejável independentemente do facto de ser tua filha? - reagiu Roberta.
- Certamente que o és para o teu marido e para muitos outros homens, mas não para o professor Rivetti - declarou Malvina com segurança.
- Não consegues evitar ser assim tão ácida com ele?
- Estou apenas a tentar defender-te, porque és a minha única filha e eu gosto muito de ti.
- Então ama-me um pouco menos e deixa-me respirar um pouco mais - concluiu Roberta.
Quando transpuseram o portão da casa, as crianças estavam no terreiro de saibro a jogar uma partida de andebol com Sérgio e com Aldo.
O bibliotecário jogava com a mesma energia dos miúdos e Roberta admirou, mais uma vez, o seu corpo atlético.
9
No avião que o trazia de volta a Itália, Oscar vinha sentado ao lado de Manfredo Gentilini, o jornalista autor de uma série de entrevistas que seriam depois ilustradas com as imagens captadas pelo fotógrafo. Era uma viagem esgotante e, felizmente, o jornal pagava as passagens em primeira classe.
Manfredo dormia enquanto Oscar pensava na mulher, naquela rebelião imprevista e injustificada que se traduzira em acusações rancorosas em relação a ele, e perguntava a si mesmo se realmente seria o marido desastroso que ela tinha definido.
Sabia perfeitamente que Roberta era o motor da família, como era justo que fosse, a partir do momento em que ele tinha um trabalho que o obrigava a estar fora de casa durante dias, por vezes semanas.
Quanto aos filhos, ultimamente também eles se comportavam de uma forma estranha. E, no entanto, quando estavam com ele pareciam felizes e satisfeitos.
Amava aqueles filhos e achava-os muito simpáticos. Gostava de Matteo, porque quando estavam juntos tentava imitar o seu comportamento e nutria por ele uma admiração desmedida. Francesca, petulante como uma sogra, hipercrítica e mordaz, sempre perfilada do lado da mãe, fascinava-o pela inteligência viva, pela prontidão de comentários e pelo carácter sincero.
Mas a mulher, de repente, mudou profundamente. Tudo começou naquele domingo em que teve a ideia de pôr na mesa um minestrone de legumes, que lhe fazia lembrar a infância difícil na propriedade rural da tia. Para além disso, naquele momento chegou-lhe uma mensagem de um colega que lhe propunha um Audemars Piguet de ocasião, um negócio a não perder. Toda a vida sonhara com um Audemars Piguet, o rei dos relógios de pulso. Obviamente, não podia falar sobre isso com Roberta, que seria capaz de o matar.
Arranjou o pretexto do minestrone para se pôr a andar, ao mesmo tempo que via já no pulso aquele relógio fantástico. Foi ter com o colega ao restaurante ao lado do jornal e, de coração apertado, acabou por renunciar ao negócio, porque era caro de mais e ele já tinha prometido a Cinzia pagar-lhe as despesas do condomínio.
Cinzia! Ali estava uma das razões do mau humor da mulher. Pensando bem, tinha de admitir que Roberta tinha razão. Efectivamente, Cinzia tinha-se comportado muito mal. Esperava não voltar a encontrá-la até ao fim dos seus dias.
- Acabou; a-ca-bou - pronunciou em voz alta.
Manfredo abriu os olhos e perguntou: - Estás zangado comigo?
- Desculpa se te acordei. É que eu estou um bocado nervoso.
- Um bocado? Andaste intratável durante estes dias todos - declarou.
Oscar sabia-o, mas não podia fazer nada. Também tinha a consciência de não ter dado o melhor de si em termos de trabalho.
Se havia alguma fotografia decente, era apenas mérito do acaso e da profissão, não certamente do empenhamento.
- Estou com uns problemas com a minha mulher - deixou escapar.
- E quem é que não tem problemas com as mulheres? Com a minha discuto dois dias sim e um não - confessou o outro, ao mesmo tempo que se espreguiçava, ainda um pouco ensonado.
- Eu, com a minha, nunca tinha discutido até agora. Sempre estivemos de mil amores, sempre de acordo, mas de repente tudo mudou e ela vira-se a mim assim que abro a boca, desaparece durante horas e não me diz onde vai... já não percebo nada. ;,",
- Sabes como são as mulheres...
- Não, não sei. Como é que são? <
- Indecifráveis.
- A Roberta sempre foi um livro aberto.
- Vê-se que agora o fechou. Pois, se Roberta tinha fechado o livro, isso significava que
havia páginas que não queria que ele lesse. Portanto, tinha outro homem.
- Não posso acreditar - sussurrou, agitando-se no assento, dominado por uma ansiedade incontrolável.
Roberta era todo o seu universo, era a sua mulher, a sua família, a sua segurança. Podia trabalhar, andar pelo mundo, estar com os amigos, fazer tudo aquilo que queria, porque ali estava ela, a representar um ponto firme na sua vida. O que seria dele se ela lhe faltasse?
No início da sua vida de casados, por mais do que uma vez a levou com ele pelo mundo fora. Tinham sido viagens fantásticas, dias cheios de alegria e de aventura. Recordava a viagem ao Brasil, a África, à Noruega. Ela comunicava-lhe entusiasmo e vontade de viver. Depois vieram os filhos e Roberta, de repente, deixou de ter tempo para ele.
Algumas vezes conseguira arrancar-lhe uns fins-de-semana só para os dois, entregando as crianças a Malvina ou à tia Aurora. Então reencontrava a Roberta de sempre, disponível, desejável. Mas ao fim de um dia começava a ficar agitada. As crianças, sempre as crianças, sem as quais parecia não poder passar. Conseguia sempre acabar mais cedo umas férias já de si tão breves.
Os filhos tinham entrado na sua vida com prepotência, numa invasão sem limites. Ele enternecera-se na primeira vez que lhe
chamaram papá; se fosse preciso, teria dado a vida por eles, mas tinham-lhe subtraído uma grande parte das atenções de Roberta.
Havia já alguns anos que começara a desejar que o tempo passasse mais depressa, que Francesca e Matteo crescessem rápidamente, se tornassem autónomos, para assim recuperar Roberta só para si.
Mas... de repente ela tinha deixado de o amar... teria outro homem? E quem seria esse outro homem que tinha transformado a sua mulher tão doce num general petulante e enraivecido?
Quando o avião aterrou em Malpensa, ele estava extenuado por todas aquelas dúvidas, pelo cansaço, pelas inúmeras horas de sono atrasado.
Nem sequer tinha telefonado à mulher, com medo de ouvir alguma coisa desagradável.
Passou pelo jornal para entregar os negativos da reportagem fotográfica, apanhou um táxi e foi para casa.
Foi Tilde quem lhe abriu a porta e ficou imóvel, durante alguns instantes, a arregalar em direcção a ele uns olhos cheios de compaixão.
- Meu Deus! O que foi que lhe aconteceu?
Também ele se assustou quando se viu no espelho do elevador.
- Estou apenas morto de cansaço - cortou Oscar. Afastou a empregada com um braço, para poder entrar, e por pouco não deu • um trambolhão ao tropeçar no fio do aspirador.
- Está alguém em casa? - perguntou, enquanto pousava o saco de viagem no tapete.
- Os meninos estão na cozinha, a fazer os trabalhos de casa.
- E a senhora?
- Não vai chegar antes das nove. Pediu-me para fazer o jantar e ficar à espera dela.
Os seus pressentimentos mais sombrios estavam a tornar-se realidade. Dirigiu-se à cozinha com um ar exausto, abriu a porta e viu os filhos, sentados um de cada lado da mesa, ocupados a escrever.
- Olá, pai - acolheram-no, alegres. Ele abraçou-os e manteve-os apertados contra si. Eram
bonitos e tão meigos, e ele gostava tanto deles.
- Os meus meninos - sussurrou, comovido.
10
Uma grande casa editora de Milão tinha organizado um seminário de três dias para livreiros independentes. Os cursos intensivos, que se realizavam num hotel da cidade, tinham como objectivo actualizar as pessoas inscritas sobre as novas técnicas de venda num período de estagnação da economia, que se estava a tornar mais difícil com a concorrência das grandes cadeias de distribuição que ameaçavam deixar de rastos as pequenas livrarias.
Na verdade, a livraria de Roberta tinha uma clientela que se tinha consolidado ao longo dos anos, conseguindo captar sobretudo os jovens. Mas como nunca se deixa de aprender, Roberta decidiu frequentar aqueles cursos, que começavam de manhã e se estendiam durante todo o dia. Iam acabar naquela noite com um jantar de gala em que participariam alguns escritores. Ela tinha declinado o convite para jantar, porque os filhos estavam sozinhos em casa. Não sabia, de facto, que Oscar ia chegar da sua viagem ao Oriente.
Às sete horas, quando acabou o curso, os livreiros dirigiram-se ao salão onde ia ser servido um aperitivo. E foi ali, naquele salão, que encontrou o bibliotecário à frente dela.
- Estava com vontade de te ver outra vez - disse-lhe.
Também eu, pensou ela, mas não lhe disse.
- Tenho algumas coisas para discutir com os meus colegas, e não tenho muito tempo para ti - respondeu.
Naquele momento ligou o telemóvel e viu que tinha uma chamada de casa. Telefonou imediatamente e atendeu a filha.
- Era só para te dizer que o viking regressou cansadíssimo. Agora está a tomar um duche. E tu, quando chegas? - perguntou Francesca.
- Cansadíssimo? Porquê?
- Sei lá! Quando me viu a mim e ao Matteo quase começou a chorar.
- De qualquer maneira, ele vai tratar de vos aconchegar os cobertores. Diz à Tilde que pode ir embora. Assim eu já posso alterar o programa e ficar aqui para jantar - disse Roberta, a pensar em voz alta.
Então a voz de Francesca transformou-se num sussurro, enquanto lhe dizia: - Acho que o pai precisa de ti.
- Isso não é novidade nenhuma - respondeu ela, e desligou a chamada. Pensou que se realmente o marido precisasse dela deveria ir ali, ao hotel, buscá-la para a levar para casa.
Roberta tinha-se afastado para falar ao telefone com a filha e, quando regressou ao salão, encontrou Aldo à sua espera. Pegou-lhe na mão e, a sorrir, disse-lhe: - Esta noite podia ser só para nós dois.
Puxou-a para dentro de um elevador e subiram até ao último andar.
As portas do elevador abriram-se sobre o jardim suspenso do hotel.
Foram até à varanda do terraço, que dava para os telhados da cidade.
- Milão está aos teus pés, e eu também - acrescentou o bibliotecário, rodeando-lhe ternamente os ombros com o braço.
O que tinha dito Malvina, a propósito de Aldo? Não se lembrava das palavras exactas, mas do seu significado: o professor
Rivetti não a desejava a ela, mas aquilo que ela representava aos seus olhos.
Enquanto ele lhe afagava o pescoço, Roberta pensou na sua vida sentimental e na das suas amigas.
Liliana trabalhava na universidade como investigadora. Ainda não se tinha casado, e de vez em quando embarcava em relações a que punha termo assim que o companheiro de momento se tornava demasiado possessivo. Tinha guardado bem a sua primeira e dolorosa experiência, e decidira que nunca mais nenhum homem a faria sofrer.
Ines tinha-se licenciado diligentemente, após o que pendurou na parede, emoldurado, o diploma de doutora de Letras, casou com o director de uma multinacional e vivia agora nos Estados Unidos, depois de ter passado cinco anos em Inglaterra e outros tantos na Austrália.
Era esposa e mãe a tempo inteiro, nunca conhecera incertezas nem perturbações. A sua vida ordenada conhecia apenas os traumas das mudanças.
Roberta estava entre as duas como um peixe fora de água. Às vezes invejava a pacatez de Ines, a maior parte das vezes a independência de Liliana.
E ela? Sempre se sentira insegura com os homens. Primeiro tinha fugido do jovem Filippo para se refugiar nos braços do marido. Agora fugia dele para cair na rede de Aldo. Faria tudo isto algum sentido?
- Marquei um quarto só para nós - estava a dizer o bibliotecário.
Roberta soltou-se das suas reflexões.
- Um quarto? - perguntou.
- Uma pequena suíte, lindíssima, aqui no hotel - sussurrou-lhe, quase a tocar-lhe os lábios.
Roberta afastou-se dele e imaginou-se nua, entre os lençóis, com um homem que não conhecia e com quem não tinha nada para partilhar.
Olhou para Aldo com uns olhos de gelo e disse: - Um quarto de hotel para nós os dois parece-me uma coisa completamente despropositada.
Ele não conseguiu conter um trejeito de desapontamento.
- Sou um estúpido... Segui unicamente o meu desejo sem me questionar se tu...
- Estou de acordo contigo, também acho que és um estúpido
- declarou ela. Apanhou o elevador de repente e deixou Aldo no jardim suspenso, a meditar sobre a sua necessidade de redenção social.
O aperitivo dos livreiros estava a terminar. Roberta despediu-se dos colegas, explicando que tinha de regressar a casa a correr porque os filhos estavam à sua espera.
Saiu, entrou num táxi e deu ao motorista o endereço de casa.
11
Roberta entrou em casa e viu que, da sala de estar, chegava uma ténue luz azulada e o som de vozes abafadas de um televisor ligado. Espreitou pela porta. Aninhados no tapete, os filhos estavam a assistir à nova saga do Senhor dos Anéis. Quando a viram, levaram o indicador aos lábios para lhe recomendar silêncio porque o marido, estendido no sofá, dormia profundamente.
Com gestos, mandou as crianças desligar o aparelho e segui-la até à cozinha.
- São quase nove horas. Acho que já deviam estar na cama disse, pousando a carteira em cima do balcão.
- O pai deixou-nos ficar acordados - protestou Matteo.
- Também nos tinha prometido ver o filme connosco, mas adormeceu logo - explicou Francesca.
- Já jantaram? Fizeram os trabalhos de casa? Lavaram os dentes? - perguntou a mãe.
- Ufa, que seca! - protestou Francesca.
- Fizemos tudo, mamã, mas o pai não comeu - disse Matteo, com voz, de mimo, ao mesmo tempo que estendia os braços para a mãe, que o abraçou com ternura.
- Mãe, metes-me na cama? - perguntou Matteo.
- Olha que a mãe está tão cansada como o pai - observou Francesca.
- Mas ainda tenho energia suficiente para dar um beijo de boa-noite aos meus dois filhos - replicou, enquanto se dirigia ao quarto de Matteo.
O pequeno deslizou para dentro da cama, ela aconchegou-lhe a roupa e ele voltou a abraçá-la.
- Gosto tanto de ti, mamã - sussurrou-lhe.
- Como é que correu a escola?
- A professora elogiou-me porque eu fiz bem os trabalhos e ainda ajudei o Andrea, o meu colega de carteira, a resolver o problema. É uma trapalhada que eu não sabia fazer antes de o pai me explicar. Acho que o Andrea não tem um pai tão bom como o meu.
- Está bem, mas agora dorme - rematou ela. Apagou a luz da mesa-de-cabeceira e saiu do quarto.
Depois enfiou a cabeça no quarto de Francesca, que estava alerta.
- Não serão horas de apagar a luz? - perguntou Roberta.
- Não consigo largar este romance. É demasiado bom - justificou-se. Era um romance de Pearl S. Buck que também tinha feito muita companhia a Roberta, quando era jovem.
- Vê se não ficas a ler até muito tarde - respondeu a sorrir, e mandou-lhe um beijo com a mão.
Roberta despiu-se, tomou um duche e entrou no quarto. Em cima da almofada viu um papel, aproximou-o do candeeiro e leu-o. Era uma carta do marido: "Roberta querida, fazes-me tanta falta. Trabalhei mal, dormi pouco, pensei muito. Não tenho a certeza de ter percebido completamente os motivos do teu descontentamento, mas alguma coisa entendi. Apercebi-me de que te ofendi em muitas situações que subvalorizei e que, afinal, eram importantes para ti, para a nossa relação. Não te faço uma lista das minhas culpas, porque ia ser tão comprida como a do supermercado, mas fica a saber que os teus recentes ataques de fúria me acordaram de um torpor obtuso. Agora estou pronto para mudar. Temo que tenhas outro homem e tenho a certeza que deve ser alguém melhor do que eu. Não te incomodo mais com a minha
presença na nossa cama. Se te perdi, espero ao menos que continuemos a ser amigos. Amo-te, sempre te amei e continuarei a amar-te."
Roberta sentou-se na cama, tapou a cara com as mãos e abandonou-se a um pranto reparador.
Depois voltou à cozinha, abriu o frigorífico e encontrou o minestrone que tinha cozinhado na véspera.
Aqueceu-o, pôs a mesa para dois, foi à sala de estar e acordou o marido.
- Que horas são? - perguntou ele, que não sabia quanto tempo tinha dormido.
- Dez da noite, e o jantar está pronto - anunciou ela, e regressou à cozinha.
Ele apresentou-se com uma cara ensonada e os cabelos despenteados.
- Um minestrone? Que bela ideia, e que bem que cheira! Quando cheguei estava tão cansado que não consegui jantar com as crianças.
Sentou-se à mesa diante dela, que lhe estendeu uma garrafa de vinho tinto.
Oscar encheu os copos e depois tocou no de Roberta com o dele.
- À tua - disse.
- À nossa - respondeu ela, e sorriu-lhe. Beberam alguns goles em silêncio.
Ela serviu o minestrone e disse: - Onde é que tínhamos ficado?
- No minestrone - respondeu ele, prontamente. Começaram a comer. Pela porta envidraçada, completamente
aberta, entravam os ruídos dos televisores ligados e a frescura da noite.
Roberta pensou novamente na casa da via Turroni, onde a sala de jantar ficava no rés-do-chão e das janelas se viam as sebes de loureiro e o jasmim que inundava de perfume os aposentos da casa. A casa da avó, das tias, do seu pai, depois de uma longa letargia, ia voltar a viver.
- Como estás? - perguntou Oscar.
- Como alguém à espera de tempos melhores - respondeu.
- Está mesmo bom, o teu minestrone.
- Eu sei - anuiu Roberta.
- Dizes-me alguma coisa do homem por quem te apaixonaste?
- perguntou, hesitante.
- É muito imperfeito, mas, como o amo, aceito-o tal como ele é - respondeu com uma voz ligeira.
- Certamente não se parece comigo.
- Olha que sim. São duas gotas de água.
- Pobre Roberta... um clone do Oscar... - balbuciou ele.
- Não é possível clonar o Oscar Trinchese, que foi um pai e um marido muito discutível; mas tenho a impressão de que com o tempo pode melhorar, se não em tudo, pelo menos em parte. E, no fundo, sabes qual é a verdade? Mesmo como ele é, vou continuar a amá-lo, como sempre amei.
Oscar deu uma gargalhada para esconder a comoção que lhe apertava a garganta.
- Não sabes o susto que me fizeste apanhar! Pensava quê te tinha perdido - exclamou, esticando uma mão sobre a mesa para apertar a da mulher.
- Eu também estava assustada - confessou ela.
- Dá-me mais um bocadinho de minestrone. Está excelente! Exclamou ele, com uns olhos que lhe brilhavam de alegria.
Sveva Casati Modignani
O melhor da literatura para todos os gostos e idades