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Series & Trilogias Literarias
Por esse tempo as esferas e camadas superiores da hierarquia sentiram, como sói acontecer em ocasiões semelhantes, uma satisfação simultaneamente suave e sarcástica, a que se veio agregar pouco a pouco uma certa alegria maliciosa, apenas dissimulada, traduzida em olhares furtivos e em bocas ironicamente repuxadas. Uma vez mais se haviam enchido as medidas, esgotara-se a paciência, chegara a hora de fazer justiça, e muito a contragosto, sob a pressão do Reino da Severidade (a que, de qualquer maneira, o mundo era impotente para resistir, posto que tampouco se conseguisse mantê-lo de pé sobre os instáveis alicerces de simples compaixão e doçura), Ele, o Altíssimo, em majestática aflição, vira-se forçado a intervir e a proceder à limpeza, a destruir e, antes de tudo, a fazer tábua rasa — tal como sucedera na época do dilúvio e no dia da chuva de fogo e enxofre, quando o mar Salgado engolira as cidades do vício.
Desta vez a concessão feita à justiça não chegou ao grau espantoso daquele grande acesso de arrependimento e do afogamento em massa que se seguiu. Não há sequer compará-la com a da outra ocasião em que, graças ao pervertido senso estético dos habitantes de Sodoma, quase ia sendo cobrado de dois de nós um tributo exorbitante. Não, desta vez não foi todo o gênero humano que caiu no bárbaro e no fosso; nem nos referimos a uma parte dele, cuja corrupção de costumes clamou ao céu. Tratava-se de um único espécime da raça, por sinal que guapo e presunçoso, dispondo em grau pouco comum das vantagens do nepotismo, da solicitude e de desígnios há muito feitos em beneficio seu. O Altíssimo colocara-o debaixo das nossas vistas em razão de um capricho, uma ordem de ideias bastante familiar às hostes celestes, entre as quais foi a origem de muita contrariedade, embora também da não-infundada esperança de que dentro em breve as coisas mudariam muito de figura, passando a contrariedade a ser o quinhão d'Aquele que pusera em curso essas mesmas ideias. De acordo com elas, “os anjos são criados à Nossa imagem, mas não são fecundos. Os animais, ao contrário, são fecundos, mas não são feitos à Nossa imagem. Criemos o homem, imagem dos anjos, mas fecundo!”
Absurdo. Isso era pior do que simplesmente supérfluo: era insensato, extravagante, prenhe de arrependimento e de amargor. Nós não éramos “fecundos”, não há negá-lo. Éramos cortesãos da luz, éramos uns pacatos camareiros, todos nós, sem exceção; essa história antiga de que uma vez havíamos entrado às filhas dos homens não passava de vão mexerico das esferas. Mas, bem lançadas as contas e por interessantes e superanimais que sejam as vantagens secundárias que o característico animal da fecundidade possa acarretar, em todo caso, nós, “os estéreis”, não tragamos injustiça como água, e Ele devia ponderar até onde O levavam suas ideias de anjos fecundos: talvez até uma distância suficiente para ver que para uma Onipotência, com domínio sobre si mesma e prudentemente ciosa de sua própria paz de espírito, seria preferível contentar-se uma vez por todas com a nossa decorosa e honrada forma de existência.
O poder infinito, a possibilidade ilimitada de produzir, de inventar, de criar com um mero “Faça-se” — eram dons a que não podiam faltar riscos. A própria Onisciência poderia não estar devidamente abroquelada para, na prática de qualidades tão absolutas como aquelas, evitar todos os erros e todos os impulsos supérfluos. Por puro desassossego, por mera necessidade de ação, pela incontentável ânsia de suscitar sempre “depois disso, mais aquilo”, de querer ver, depois do anjo e do bruto, que tal seria uma simbiose dos dois — por todos esses motivos e por eles impelido, Aquele que está nas alturas enredou-se na imprudência e criou um ser sabidamente precário e embaraçoso. E então, justamente por se tratar de uma criação inegavelmente errada, apegou-se a ela com esplêndida obstinação e fez tamanho cabedal da sua obra que o céu se ressentiu.
Vejamos agora: será verdade que Ele concebeu esta ideia por si mesmo e espontaneamente? Nas esferas e nas hierarquias eram correntes as conjeturas em contrário, embora feitas só à boca pequena e não suscetíveis de prova. Contudo eram plausíveis, e, de acordo com elas. a coisa toda remontava a uma sugestão feita pelo grande Semael, que naquela época, antes da sua luminosa queda do alto, havia estado muito próximo do trono. A sugestão tinha muito dele — e por quê? Porque ele tinha muito a peito executar e introduzir no mundo o mal, sua ideia peculiar, que ninguém, a não ser ele, conhecia e com que ninguém se preocupava, e porque o enriquecimento do repertório do mundo por meio do mal não podia ser obtido de nenhuma outra maneira senão pela criação do homem. Em se tratando dos animais fecundos, não há para que falemos no mal, a grande invenção de Semael, e certamente também não é de nós, imagens estéreis de Deus, que se trata. Para que o mal viesse ao mundo, era necessária exatamente a criatura que Semael. conforme a hipótese, propusera — uma imagem de Deus que ao mesmo tempo fosse fecunda, isto é, o homem. Disto não se segue necessariamente que o Onipotente tenha sido ludibriado. Semael, no seu costumeiro estilo grandioso, provavelmente não escondera as consequências da criação proposta — isto é, a origem do mal — senão que dissera a coisa sem rebuço e com toda a energia, posto que nas nossas rodas tivéssemos para nós que ele também houvesse mencionado várias circunstâncias dali resultantes que tomariam muito mais movimentada a vida para o Criador, acarretando, por exemplo, a necessidade de exercer a misericórdia e a compaixão, o juízo e o corretivo, ou dando ocasião a que surgissem no mundo o mérito e o demérito, a recompensa e o castigo, em outras palavras, dando origem ao bem — em íntima ligação com o mal. Com efeito, o bem, na dependência lógica do seu contrário, aguardava a sua existência no seio das possibilidades; desde que a criação descansava sobre a separação e havia começado com a separação da luz das trevas, a Onipotência não fana outra coisa senão ser coerente consigo se, na criação do mundo moral, progredisse para além daquela divisão exterior.
Nas diversas esferas e camadas celestes circulava a opinião de que tinham sido estes os argumentos com que o grande Semael lisonjeara o trono, ganhando-o para os seus planos, de resto bem maliciosos, tão maliciosos que não se podia deixar de rir da sua matreirice, por mais que ela estivesse disfarçada pela rude franqueza em que a malícia se embrulhara. Nem àquela malícia faltava — diga-se a verdade —, entre as rodas lá do alto, certa simpatia. A essência da malícia semaelesca consistia no seguinte: se os brutos, ainda que possuindo o dom da fecundidade, não eram criados à imagem de Deus, nós, os semelhantes do Criador, em última análise, tampouco o éramos, porque dessa propriedade, graças a Deus, estávamos imunes. No entanto, as qualidades de semelhança divina e da fecundidade que possuíamos a meias entre os nossos dois grupos estavam originariamente unidas no próprio Criador, de modo que a nova criação alvitrada por Semael seria a única realmente feita à imagem de Deus. E, no entanto, foi precisamente com este ser, isto é, o homem, que o mal entrou no mundo.
Era uma facécia que faria rir as pedras. Justamente a criatura que, se se quiser, era mais chegada à imagem do Criador do que qualquer outra introduziu o mal no mundo. Assim Deus, por instigação de Semael, criou para si mesmo um espelho de que não tinha muito que orgulhar-se. Muitas e muitas vezes, enraivecido e contrariado, teve ímpetos de fazê-lo em pedaços, mas nunca o executou, talvez porque não podia resolver-se a tomar a abismar no nada aquilo que ele produzira e mais se afeiçoava a essa obra malograda do que a qualquer outra bem-sucedida. Também é possível que não quisesse reconhecer como fracasso completo o que ele criara modelando-o tão primorosamente à Sua imagem. Finalmente, um espelho é sempre um recurso para se tomar conhecimento da própria pessoa, e mais tarde Ele verificara, vendo-se diante de um filho do homem, um tal Abiram ou Abraão, que aquela criatura equívoca tinha consciência de constituir para Ele um meio de se conhecer a si mesmo.
O homem então foi um resultado da curiosidade que a respeito de si próprio teve Deus. Semael a pressupôs astutamente e explorou-a com a sua sugestão. A indignação e a perplexidade foram o efeito inevitável e duradouro, especialmente nos casos nada raros em que o mal era acompanhado de audaz inteligência e lógica pugnacidade, como já se deu com Caim. A história do primeiro homicídio e a conversa do fratricida com Deus após o fato chegou ao conhecimento das esferas superiores com certos pormenores que foram bastante difundidos entre elas. Deus não se saiu muito bem quando perguntou ao filho de Eva: “Que fizeste? A voz do sangue de teu irmão clama por mim desde a terra, que abriu sua boca e da tua mão recebeu o sangue de teu irmão.” Pois foi esta a resposta de Caim: “Sim, matei meu irmão e é uma coisa bem triste. Mas quem foi que me fez tal como sou, ciumento a tal ponto que, provocado, todo o meu porte se muda e eu já não sei o que estou fazendo? Não és tu um Deus cioso e não me criaste à tua imagem? Quem pôs em mim o mau impulso para o ato que inegavelmente pratiquei? Tu dizes que suportas sozinho o mundo todo e não queres suportar nossos pecados?” Nada mau, como se vê. Dir-se-ia que Caim andara aconselhando-se antes com Semael, se bem que o mais provável é que o árdego biltre não precisasse de conselho. Não era coisa fácil retorquir àquela resposta. Para aquilo só um riso forçado ou o aniquilamento do atrevido. “Retira-te!”, foi o que ele disse. “Segue teu caminho! Andarás vagabundo e fugitivo, mas eu porei um sinal em ti pelo qual reconheçam que me pertences e ninguém te há de matar.” Em suma, graças a sua lógica, Caim saiu-se mais que airosamente; de castigo não havia cogitar. Mesmo aquilo de andar fugitivo e vagabundo não foi dito a sério: Caim fixou-se em Nod, país que fica ao nascente do Éden, e em paz e sossego procriou seus filhos, tarefa para a qual era urgentemente solicitado.
Noutras ocasiões, como de sobra é sabido, desceu o castigo, foram impostas punições formidáveis, houve majestática aflição diante do procedimento comprometedor da criatura “mais semelhante”. Houve também recompensas igualmente formidáveis e extravagantes, sendo suficiente recordar Enoque e os incríveis, cá entre nós, os inexplicáveis benefícios que a esse indivíduo couberam em sorte. Nas esferas celestes sustentava-se a opinião (cautelosamente passada adiante) de que no mundo de baixo não era lá muito observada a equidade na distribuição de prêmios e de castigos e que o mundo moral instaurado a conselho de Semael não era administrado com a necessária seriedade. Basta dizer que em certas ocasiões pouco faltou para que se julgasse, nas camadas da hierarquia, que Semael levava o mundo moral muito mais a sério que Ele.
Não se podia ocultar, ainda que fosse conveniente fazê-lo, que as recompensas, desproporcionadas como eram em certos casos, não passavam em realidade de pretextos moralmente disfarçados para bênçãos que no fundo se baseavam numa simpatia arraigada, numa predileção, e pouco tinham que ver com o mundo moral. E os castigos? No momento, por exemplo, estava-se verificando no Egito um castigo e um rebaixamento de posto, aplicados, aparentemente com pesar e relutância, em homenagem — aparente — ao mundo moral. Certo moço, um favorito arrogante, um sonhador de sonhos, rebento do tronco familiar daquele que tivera a ideia de constituir para Ele um meio de se conhecer a si próprio, baixara ao fosso, à prisão e ao túmulo, pela segunda vez, porque sua loucura tinha passado dos limites e ele deixara o amor (como antes deixara o ódio) exorbitar. Nós, porém, os espectadores, estaríamos iludidos na satisfação que sentíamos diante dessa versão especial do fogo e do enxofre?
Seja dito cá entre nós: na verdade não estávamos sendo iludidos, nem por um momento. Sabíamos perfeitamente ou adivinhávamos com bastante precisão que toda aquela severidade era fingida em honra do Reino da Severidade; que Ele estava usando a punição, o apetrecho do mundo moral, para abrir um beco que só tinha uma saída subterrânea para a luz; que Ele, data venia, estava desvirtuando o castigo, servindo-se dele como um meio de futura elevação e favor. Quando nós, ao passarmos um perto do outro, com as pálpebras radiosas tranquilamente baixadas, fizemos umas boquinhas irônicas, repuxando-lhes as comissuras, assim procedemos por termos logo percebido de que se tratava. A correção como veículo para uma maior grandeza — essa brincadeira do Altíssimo iluminava o passado, projetando um clarão sobre as faltas e insolências que tinham dado causa ao castigo e O haviam “forçado” a ministrá-lo. E esse clarão não partiu do mundo moral, pois que essas faltas e essas impertinências, inspiradas só Deus sabe por quem e vindas só Ele sabe donde, surgiram como meio e veículo para novas e desmesuradas exaltações.
Nos círculos da Corte estávamos convencidos de que conhecíamos mais ou menos esses ardis, quinhoando como quinhoávamos, em maior ou menor extensão, a onisciência do Criador. Ainda assim, por motivos fundados no respeito, nós só podíamos fazer uso do nosso conhecimento com a maior cautela, com muita moderação e mesmo com certo fingimento. Em voz muito baixa pode-se e deve-se acrescentar que a hierarquia julgava ter conhecimento de muito mais — coisas, medidas, empreendimentos, intenções, manobras, segredos do maior alcance, que seria descabido pôr de lado como meras intriguinhas palacianas. Não era possível aventurar nada, quase que nem um cochicho. A bem dizer, todos os comentários se reduziam quase ao mais discreto silêncio, pois o mais que se conseguia fazer era um ligeiro movimento de lábios torcidos com levíssima malícia. Que coisas eram essas? Que boatos e planos?
Giravam, naturalmente sem a menor crítica, porém com certa surpresa, em torno desse negócio de castigo e recompensa — em torno da complexa questão de favor, predileção, eleição, que surgira com o nascimento do mundo moral, essa consequência da suscitação do mal e do bem. Ademais, tudo aquilo que se relacionava ainda com uma notícia, não completamente autorizada mas também não destituída de fundamento, e que era divulgada por lábios que mal se moviam; segundo esta notícia, a criação da criatura “mais semelhante”, isto é, o homem, não fora o último conselho ou sugestão dado por Semael ao Altíssimo; as relações entre Este e o decaído não estavam totalmente rompidas ou então mais tarde (não se sabia como) seriam reatadas. Também não se sabia se às ocultas da sua corte tinha Ele baixado ao báratro para uma troca de ideias. Talvez o desterrado tivesse encontrado uma oportunidade — quem sabe se mais de uma vez — para deixar o seu lugar e ir falar de novo diante do trono.
Fosse como fosse, era certo que ele se achava habilitado para continuar sua engenhosa exposição, astutamente destinada a embair, e para apoiá-la com nova sugestão que, todavia, tal como antes, não ia além de estimular ideias já existentes, porém indecisas e que apenas exigiam ulterior persuasão.
Para entender o que se estava passando, convém recordar certas datas e fatos que formam o fundamento e o prelúdio da presente história. Aludimos àquele psicológico “romance da alma” que antes foi objeto de discussão, o romance da alma do homem — o homem primitivo — que, qual a matéria informe, foi desde o começo uma das hipóteses fixas, sendo sua “queda” a base necessária de quanto se seguiu. Devemos talvez usar o termo “criação”, pois não consistiu o pecado em ter a alma — por uma espécie de melancólica sensualidade, impressionante e pasmosa num princípio primitivo pertencente ao mundo superior — cedido a um desejo de penetrar amorosamente na matéria informe e aferrada à sua falta de forma, com o intuito de criar dessa matéria formas nas quais pudesse encontrar prazeres carnais. Foi certamente o Altíssimo que veio em auxílio da alma em luta pelo amor, o qual estava muito fora do seu alcance. Com esse fim criou o mundo onde as coisas acontecem e podem ser contadas, o mundo das formas, o mundo da morte. Fez isso por compaixão das necessidades do Seu sócio incorrido em erro, e essa compreensão deixa supor certa afinidade constitucional e sentimental entre ambos. Se essa suposição se impõe, não há por que a não façamos, ainda que isso toque as raias da impudência e da blasfêmia, uma vez que ao mesmo tempo se fala em erro e fraqueza.
Pode haver qualquer coisa de comum entre o conceito de erro e Ele? A única resposta a tal pergunta há de ser um Não bem sonoro; foi essa com efeito a resposta de todas as hostes celestes, acompanhada, naturalmente, daquele discreto torcer de todas as boquinhas. Seria, sem dúvida, ir ao extremo, seria precipitado considerar como erro a terna e prestadia piedade que o Criador teve do errado. Isto seria prematuro, porque com a criação do mundo mórfico, finito, onde há vida e há morte, não foram prejudicadas de maneira alguma, ou, quando muito, apenas insignificantemente, a dignidade, espiritualidade, majestade e absoluta perfeição de um Deus que existia antes do mundo e fora dele. Assim, até esse ponto não se podia falar a sério de erro no sentido real ou pleno do termo. Algo diferente se passava em relação às ideias, planos e desejos que então, segundo se adivinhava, deviam andar pelo ar, formando o assunto de conversas particulares com Semael. Este tomava ares de estar, na maior boa fé, brindando o sólio excelso com uma ideia nova de primeira mão, enquanto, com toda a probabilidade, sabia muito bem que o Altíssimo, caladamente, já estava pouco mais ou menos disposto a alimentar a mesma. Com certeza Semael contava encontrar a opinião, muito espalhada e não menos errônea, de que, quando dois têm a mesma ideia, esta deve ser excelente.
É ocioso continuar com rodeios. O que o grande Semael, com uma mão no queixo e a outra estendida para o trono em eloquente peroração, propôs foi a materialização do Altíssimo, sua corporalização num povo eleito, ainda não nascido, mas que ia ser criado. A ideia baseava-se no modelo de outros deuses desta terra, deuses raciais e tribais, poderosos na magia, refertos de vitalidade carnal. “Vitalidade” é uma palavra bem escolhida, pois o principal argumento do báratro. exatamente como no tempo da criação do homem, era que o Criador espiritual, existente acima e fora do mundo, experimentaria, seguindo o conselho de Semael, uma grande crescença de vitalidade — apenas num sentido muito mais enérgico e mais carnal. Este, dizemos, era o principal argumento, pois que o astuto báratro tinha outros mais e com maior ou menor justiça era de opinião que todos eles andavam já na mente divina, necessitando apenas de que alguém os estimulasse.
A esfera de emoções a que eles se endereçavam era a ambição. Não há dúvida de que era uma ambição degradante, a ambição dirigida para baixo, porque, tratando-se da camada suprema, insuscetível de galgar maiores alturas, só resta logicamente o esforço para a direção oposta. Era uma ambição de misturar-se, uma ânsia de ser como é o resto, uma vontade de deixar de ser singular. Para o báratro nada mais fácil do que apelar para uma certa sensação de enjoo, da frustração peculiar ao abstrato, em suma, sensação que Deus devia experimentar quando Ele, um Deus universal, espiritual e ultraterreno, se comparava com a magia sensual dos primitivos deuses tribais. Era isto justamente que havia de suscitar uma ambição de condescender poderosamente, de sujeitar-se a restrições que acrescentassem o sainete dos sentidos à Sua existência. Trocar uma excelsitude um tanto anêmica da onivalência espiritual pela pletórica existência carnal de um deus corpóreo, ser como os outros deuses — eis a ânsia hesitante, a aspiração obscura que Semael defrontou ao dispensar sua ladina advertência. Para esclarecer tudo isto, essa tentação e a complacência para com ela, há de ser-nos permitido citar paralelamente o romance da alma, sua aventura amorosa com a matéria e a “melancólica sensualidade” que a arrastou àquela aventura, em resumo, a sua “queda”. O paralelo aqui é tão evidente que quase não há mister citá-lo, verificando-se até na circunstância de ter sido prestado à alma desorientada o auxílio compassivo do Criador; foi isto que deu ao grande Semael coragem e malignidade para fazer a proposta que fez.
Não há dúvida de que o sentido mais íntimo da sugestão foi a malícia, o ardente desejo de criar embaraços. Sendo o homem, simplesmente como homem e falando em geral, uma fonte de constante perplexidade para o Criador, o inconveniente da situação devia ser grandemente aumentado pela Sua união carnal com uma determinada tribo humana, pelo acréscimo de vitalidade que vinha a dar na mesma coisa que tomar-se biológica. Muito bem sabia o báratro que nada de bom podia provir de uma ambição que tendia para baixo, de uma tentativa de ser como as demais divindades, isto é, de tomar-se um deus tribal, um tronco racial, sem nenhum resultado positivo, a não ser talvez após longas andanças, após grandes embaraços, desilusões e contrariedades. Muito bem sabia o báratro o que certamente Deus também sabia, isto é, que — passado o aventuroso episódio da sua vitalidade biológica como um tronco tribal e uma vez fruídos os vigorosos, apesar de dúbios, prazeres de uma existência terrestre concentrada como encarnação de um povo, nutrido, cultuado e apoiado mediante uma técnica de magia — passado tudo isto, dizemos, fatalmente havia de vir o momento do remorso e da reflexão, o abandono de todas essas limitações do dinamismo, a volta do ultraterreno ao ultraterreno, a reassunção da onipotência e da preponderância espiritual. O que, porém, Semael, e só ele, acalentava no âmago do peito era o pensamento de que exatamente essa volta, comparável ao fim de uma era, não havia de efetuar-se sem um certo pesar, e essa ideia punha na língua da fonte de toda a malícia um sabor especial.
Casualmente ou não, sucedeu que o tronco escolhido e dedicado para a corporalização era constituído de tal forma que o Deus universal, tomando-se sua divindade corpórea, não só teve de sacrificar sua posição superior às demais deidades tribais da terra e tomar-se semelhante a elas, senão que na realidade, pelo que se refere a poder e honra, lhes ficou consideravelmente inferior, causando com isso um alegrão ao báratro. Em segundo lugar, esse declínio ao estado de que nos estamos ocupando, essa experiência de satisfação biológica, era desde o começo contra o melhor conhecimento e o exame mais profundo do próprio tronco escolhido. Efetivamente, não foi sem a intensiva cooperação espiritual da raça escolhida que Deus volveu ao que era, tomando-se de novo o Ser supremo e ultraterreno, sobranceiro às outras divindades. Isto causava uma especial delícia à maliciosa alma de Semael. Representar a encarnação divina desta particular estirpe não era, por um lado, nenhum prazer especial, não era, como se costuma dizer, coisa do outro mundo, porque, entre as várias deidades terrenas, àquela cabia inevitavelmente o segundo plano. Mas, por outro lado, e em correlação com isso, à qualidade comum à raça humana de servir de meio para Deus conhecer-se a si próprio cabia nesta estirpe um papel preponderante e de singular força. Era-lhe inata uma insistente preocupação com a natureza de Deus; desde o princípio existia nela o germe de uma compreensão da qualidade extraterrena do Criador, da Sua universalidade e espiritualidade, da Sua propriedade de ser o teatro do mundo sem que o mundo fosse o teatro dele (tal qual o narrador é o teatro da narrativa sem que a narrativa seja teatro dele, circunstância que lhe confere o ensejo de poder tratá-la). Era um germe suscetível de evolução, destinado a, com enorme esforço e a seu tempo, amadurecer, penetrando no pleno conhecimento da verdadeira natureza de Deus. Será lícito supor-se que era este precisamente o fundamento de sua eleição? Que o resultado da aventura biológica era tão bem conhecido daquele que deu o engenhoso conselho como daquele que o recebeu? Que foi Ele próprio quem conscientemente provocou o dito pesar e a referida lição? Talvez sejamos levados a fazer essa conjetura. Fosse como fosse, aos olhos de Semael o verdadeiro pico da história estava no fato de que a raça escolhida tinha a esse respeito, desde o princípio, um conhecimento privado e subconsciente mais profundo do que o do Deus tribal e fez todos os esforços para ajudá-lo a sair da sua situação desajustada, volvendo ao estado de espiritualidade que lhe era próprio. Ainda assim continua sem prova a afirmação feita pelo báratro de que a volta da queda à primitiva posição de honra seria impossível sem aquele esforço humano, só podendo efetuar-se por esse meio.
Não ia tão longe a acuidade da hierarquia celeste. Suas atividades se cifravam a conversinhas sobre as conferências secretas com Semael e o assunto destas. Mas isto foi o bastante para transformar a crônica irritação angélica em relação à criatura “mais semelhante” num rancor especial contra a raça escolhida, agora em processo de evolução. Foi quanto bastou para fazer a hierarquia regozijar cautelosamente com o diluviozinho e a chuvinha de enxofre com que ele, com grande pesar Seu, foi obrigado a punir um pimpolho da raça, munido de capacidades particularmente vastas, o que fez com o mal encoberto propósito de converter o castigo num veículo que servisse a seus planos.
Foi isso que exprimiram aquelas boquinhas irônicas e de cantos repuxados, bem como as cabeças balançadas quase imperceptivelmente, com o que os coros celestes chamaram atenção para esse pimpolho, que ali, com os braços amarrados atrás das costas, era conduzido pelo rio egípcio abaixo para o seu cárcere num barco de vela impelido a remos.
1
O SEGUNDO FOSSO
JOSÉ CONHECE SUAS LÁGRIMAS
José também, segundo a lei de correspondência entre o alto e o baixo, estava pensando no dilúvio. Os dois pensamentos se encontravam, ou antes, se assim se prefere, andavam paralelos, mas a grande distância um do outro, pois este rebento da raça humana, que ali estava sobre as ondas do Jeor, curvado ao peso de graves experiências, ia recordando aquele acontecimento primevo, modelo de todos os flagelos expiatórios, com muito mais imediatismo e associativa energia do que as hostes lá do alto, as quais, vivendo sem experiências nem sofrimentos, se limitavam a mexericos refinados.
Disso nos ocuparemos daqui a pouco mais. O condenado encontrava-se instalado sem nenhum conforto no compartimento de tábuas que servia de camarote e de depósito a um barco cargueiro feito de madeira de acácia com uma coberta alcatroada. Era um daqueles a que davam a designação de “barcos de bois”, do tipo que ele próprio usara levando mercadorias num e noutro sentido do rio quando discípulo de Mont-kav e vice-mordomo. A equipagem compunha-se de quatro remeiros, que tinham de manejar os remos quando o vento amainava ou era contrário e o esguio mastro duplo se achava deitado. Estavam sobre o estrado da coberta dianteira. Da tripulação faziam parte ainda o timoneiro, na popa, e dois criados inferiores de Petepré que serviam de escolta, mas também tinham de lidar com o cordame e a sonda. Por fim lá estava ainda Cha’ma’t, o escrivão do aparador. A ele fora confiado o comando da embarcação e o transporte do prisioneiro a Zavi-Rá, a fortaleza da ilha. Levava consigo uma carta timbrada que o amo tinha escrito a respeito do seu incorreto intendente ao encarregado da prisão, que era capitão das tropas e “escrivão de ordens do exército vitorioso”, chamado Mai-Sachme.
A viagem era longa e demorada. Enquanto a fazia, José pensava naquela outra de sete e mais três anos atrás, quando pela primeira vez singrara no mesmo rio com o ancião que o havia comprado, em companhia de Mibsam, seu genro, Efer, seu sobrinho, e Kedar e Kedma, seus filhos. Em nove dias tinham ido de Menfe, a cidade do enfaixado, a No-Amun, a cidade régia. Agora porém, iam muito além do Menfe, passando pela dourada On e por Per-Bastet, a cidade dos gatos. O lugar do seu triste destino, Zavi-Rá, achava-se encravado profundamente no país de Set e da coroa vermelha, isto é, no Baixo Egito, bem no delta, num braço do rio que atravessava a comarca de Mendes, cujo nome local é Djedet. Estavam-no levando para a abominável terra do carneiro; esse fato veio acrescentar nova apreensão à sua funda depressão e melancolia. Não vinha, contudo, desacompanhado de um sentimento da sua sorte, uma alta emoção e um animado jogo de pensamentos. Ele, o filho de Jacó e de sua verdadeira e única mulher, nunca em toda a sua vida poderia deixar esse jogo, tanto agora que contava vinte e sete anos como quando era um menino inexperiente. E a espécie de jogo mais cara ao seu coração, a mais fascinante para o seu espírito, era o jogo da alusão; por isso quando sua vida atentamente observada se afigurava dominada pelas alusões, e as circunstâncias deixavam transparecer um sentido superior, inclinava-se a sentimentos de contentamento, uma vez que circunstâncias transparentes jamais podiam ser completamente sombrias.
Na verdade, suas circunstâncias atuais eram bastante sombrias, e com tristeza ele as ponderava enquanto jazia com os cotovelos amarrados às costas na esteira do cubículo, sobre o teto do qual estava amontoada a provisão da equipagem, constando de pães, melões e espigas de milho. Voltara à condição sinistra que já lhe fora familiar; encontrava-se de novo tolhido, desamparado, como outrora jazera três horrendos dias da Lua escura, no buraco do poço, tendo por companhia as lacraias e os vermes que coleavam por cima do seu corpo, e enxovalhando-se como uma ovelha com a sua própria imundície. Verdade é que seu estado presente não era tão rigoroso como aquele, pois que os laços que o prendiam pouco mais eram que uma simples formalidade para salvaguardar as aparências; não havia senão um pedaço de corda da embarcação que os tripulantes, movidos de involuntária compaixão, se haviam abstido de apertar. Mas nem por isso deixava de ser profunda e atordoante a sua queda, não menos incrível e brusca a mudança que na sua vida se operara. Daquela outra vez, o mimoso e predileto do autor de seus dias, sempre ungido com o óleo da alegria, tinha sido tratado de uma forma com que nunca pudera ter sonhado. Desta vez era Osarsif, aquele que subira tão alto na terra dos mortos, que fora o superintendente geral, habitando na câmara particular da confiança, que libava todos os requintes e encantos da cultura, trajando régio linho pregueado — e a esse Osarsif se dispensava um tal tratamento! Era simplesmente desconcertante...
Não mais o linho de caprichosas pregas, não mais o avental da moda, nada da elegante túnica de manga, agora transformada em “prova” viva contra ele. Tinham-lhe dado uma veste simples, o meio avental dos escravos, igual ao que usavam os da tripulação. Fora-se a elegante peruca, o colarinho de esmalte, os braceletes e o colar de cana e ouro. Todos estes primores de beleza haviam desaparecido, não restando nenhum enfeite, salvo no pescoço dentro duma nômina o amuleto que usara na terra de seus pais e com que aos dezessete anos de idade baixara ao fosso. O resto fora posto de lado — para si mesmo usava José essas expressivas palavras como uma frase alusiva, já que o próprio fato em si era uma alusão, numa circunstância de triste caráter e sentido. Seria inteiramente fora de propósito, indo para onde ia, usar adornos de braço e peito. Era chegada a hora de despir-se do véu, de tirar os ornamentos, a hora de descer ao inferno. Completara-se um ciclo, um pequeno ciclo percorrido muitas vezes, mas um maior também, trazendo com mais raridade a mesma coisa, pois que as revoluções dos dois coincidiam uma com a outra no centro.
Um ano pequeno estava voltando sobre si mesmo, um ano solar, quando a água, retirando-se, deixava o limo fertilizador, e (não no calendário, mas na realidade prática) era a época de semear, de arar e arrotear, de esmigalhar os torrões. Quando às vezes José se levantava da sua esteira e o vigia Cha’ma’t lhe dava licença para andar sobre o convés calafetado, com as mãos às costas como se as tivesse ali por seu querer, punha-se a passear ou sentava-se sobre um rolo de corda, no ar claro carregado de ecos, para observar os camponeses na fértil ribeira executando sua perigosa tarefa de cavar e semear, tarefa cercada de tantos cuidados e sanções. Tarefa tristonha, porque o tempo de semear é uma época de luto, o tempo em que o deus do grão é enterrado, em que Osíris é envolvido na escuridão e a esperança é entrevista de muito longe. E tempo de chorar — José também chorava vendo os camponiozinhos enterrando o grão, porque ele próprio ia ser de novo enterrado nas trevas e na esperança só vislumbrada muito longe — em sinal de que um grande ano terminara, trazendo a repetição, a renovação da vida, a viagem para o abismo.
Era o abismo onde o Filho Verdadeiro desce, Etura, o aprisco subtérreo, Aralla, o reino dos mortos. Pelo buraco do poço ele chegara à terra de baixo, ao país da rigidez cadavérica; agora de novo o caminho descia até bor e a prisão, ramo ao Baixo Egito — descer mais não era possível. Vieram outra vez dias da Lua escura, grandes dias que se converteriam em anos, e durante os quais o mundo ínfero tinha poder sobre o Formoso. Ele declinou e morreu; mas, passados três dias, tomaria a erguer-se. No poço do abismo se engolfou Attar-Tammuz como estrela da tarde; mas era certo que como estrela da manhã ele se levantaria dali. A isto chamamos esperança, e a esperança é uma dádiva preciosa. Todavia ela traz consigo qualquer coisa de defeso, porque restringe o valor do sagrado momento e antecipa as horas festivas do ciclo que ainda não estão próximas. A cada hora sua honra; não vive como deve quem não sabe desesperar. Era assim que pensava José. Sua esperança era coisa certíssima; entretanto, como um filho do momento presente, chorou.
José conhecia suas lágrimas; eram as mesmas que Gilgamech derramara quando havia zombado do desejo de Istar e esta lhe “preparara pranto”. Sentia-se inteiramente extenuado com a terrível prova a que se vira submetido, com a insistência da mulher, com o incomportável auge da crise, com a completa ruína e transformação da sua existência. Nos primeiros dias não pediu licença a Cha’ma’t para passear no convés entre o colorido e o bulício da grande artéria do Egito. Só, no seu canto, deitado sobre a esteira, teria ideias de visionário. Sonhou versos das tábuas:
Istar, a furiosa, atirou-se sobre Anu, rei dos deuses, exigindo vingança.
“— Tu vais criar o touro celeste que pisará o mundo, chamuscará a terra com o bafo ígneo das suas ventas, calcinando e destruindo o solo.
— Hei de criar o touro do céu, Senhora Achirta, pois foste gravemente ultrajada. Mas virão anos de moinha, em número de sete, anos de fome, em consequência dessa pisa e desse chamusco. Já te abasteceste de alimento, já amontoaste provisões para fazer face aos anos de escassez?
— Abasteci-me de alimento e amontoei provisões.
— Então vou criar o touro celeste, pois foste gravemente ultrajada, Senhora Achirta.”
Singular modo de proceder! Quando Achera ardia por destruir a Terra porque Gilgamech se lhe esquivara, e pedia ao céu o touro de bafo de fogo, não fazia muito sentido aquilo de armazenar mantimento para os sete anos de penúria que o touro ia causar. Mas foi em todo o caso o que ela fez aceitando a condição, porque almejava tanto a vinda do touro vingador. O que divertia e intrigava José neste caso era a previdência de que a deusa, mesmo no auge da fúria, teve de usar se quisesse obter o seu touro ignívomo. Previdência e precaução eram ideias importantes e familiares ao sonhador, conquanto ele muitas vezes com sua leviandade as houvesse atropelado. E eram por assim dizer a primeira lei da vida no país onde José crescera como junto de um manancial. O Egito era, com efeito, um país temeroso; seus habitantes viviam empenhados em intermináveis esforços, com toda a espécie de sortilégio e de encanto de que pudessem dispor, a fim de tapar todas as fendas pelas quais a desgraça, grande ou pequena, pudesse penetrar. E ele próprio já era havia muito um egípcio e assim a sua carne como a roupa do seu corpo eram de matéria tão genuinamente egípcia que a palavra de ordem da nação referente à previdência e à precaução lhe calava fundo na alma, onde encontrara um ambiente familiar, por estar profundamente arraigada na sua tradição nativa, na qual a palavra “pecado” tinha quase o mesmo sentido que imprevidência. Significava loucura, ridícula inabilidade no trato com Deus; sabedoria, por sua vez, queria dizer previdência, cautela amparadora. Por que fora Noé-Utnapichtim chamado o sapientíssimo senão porque tinha sabido prever a proximidade do dilúvio e se premunira contra ele construindo a grande arca? Essa descomunal caixa ou arca, o Arou, onde a criatura sobreviveu na época da maldição, era para José o protótipo e o mais antigo padrão de toda a sabedoria, isto é, de toda a previdência circunspecta. E assim, à força de refletir na indignação de Istar, na fera devastadora e ignívoma e na acumulação de mantimentos como salvaguarda contra a carência, os pensamentos de José seguiram trilhos paralelos aos da esfera superior relativamente ao grande dilúvio. Também se lembrou em pranto do pequeno dilúvio, aquele que lhe tocara em sorte, porque, se era verdade que ele não fora tão insensato a ponto de trair o seu Deus e de arruinar-se, tinha de penitenciar-se da sua falta de previsão e cautela.
Consigo próprio reconheceu seu pecado, tal como fizera no primeiro fosso anos antes, e seu coração sangrou à lembrança de seu pai Jacó, tremendamente envergonhado diante de seu rosto por ter caído novamente no fosso, e isso no próprio país para onde o haviam arrebatado. Ao “rapto” seguira-se a grande “exaltação”, mas logo depois a queda e o envilecimento, tudo por falta de sabedoria, de modo que o terceiro acontecimento, a “reunião no Egito”, parecia adiado, indeterminadamente. José sentia sincero pesar no seu íntimo. Humilde, exorou perdão ao espírito de seu pai, cuja imagem o havia, no derradeiro momento, salvo da ruína total. Mas em presença de seu vigia Cha’ma’t, o escrivão do aparador, tinha o cuidado de não trair o seu desalento. Quer por desafio, quer para gozar com a humilhação de um homem que se alçara tão acima dele, Cha’ma’t muitas vezes se sentava ao lado de José para conversar; José, porém, mostrava-se altivo e otimista. Vamos ver como, volvidos alguns dias, e só com o seu jeito hábil de arranjar as coisas, conseguiu que Cha’ma’t lhe tirasse as peias e o deixasse locomover-se livremente, embora com isso corresse o risco de faltar gravemente à sua obrigação.
— Pela vida de Faraó! — disse Cha’ma’t, sentando-se no cochicholo junto à esteira de José. — Como caíste no mundo, ex-mordomo, ficando por baixo de todos nós depois de teres subido tão depressa acima de todos! Mal se pode crer no que aconteceu. Quando te vejo aí com esse ar de prisioneiro líbico ou de um homem da mísera Kuch, com as mãos atadas atrás das costas, o que faço é abanar a cabeça. Um homem que tanto se pavoneava, estando à testa da casa, entregue agora, por assim dizer, à devoradora, à cadela de Amente! Que Atum, o Senhor de On, se amerceie de ti! Como curvaste tua cabeça até o pó — para usar a geringonça da tua miserável Síria que sem querer de ti recolhemos. Por Chons, que não temos probabilidade de recolher mais nada, porquanto nem um cão aceitaria um mendrugo vindo da tua mão, tão profunda foi a tua queda! E tudo por quê? Por pura leviandade e lascívia! Quiseste fazer-te importante numa casa como a nossa, mas nem sequer soubeste dominar a tua incontinência sensual. E logo em quem foste fixar as tuas vistas, querendo contentar a tua cobiça lúbrica? Na nossa sacrossanta patroa, que é afinal quase a mesma coisa que a própria Hathor. Foi rematado descoco, não há dúvida. Nunca hei de esquecer-me da tua confusão diante do amo quando ele fazia justiça na sua casa e tu ficaste de cabeça baixa, sem encontrar uma palavra de desculpa, qualquer coisa que te pudesse lavar do teu delito. Como poderias fazê-lo, se falava tão alto contra ti a túnica amarrotada que havias largado nas mãos da senhora quando em vão tentaste apoderar-te dela e cobri-la, tendo mesmo ficado patente que te mostraste muito inábil na coisa toda? Pior não podia ser! Lembras-te daquele dia em que foste ter comigo na despensa para buscar os refrescos destinados ao velho casal do andar superior? Mesmo então já parecias bem descarado; eu te adverti para que não derramasses o líquido nos pés dos velhos e senti-me um tanto mortificado quando te houveste como se tal coisa jamais pudesse acontecer contigo. Pois bem, entornaste agora qualquer coisa nos teus próprios pés, de modo que estão sujos e colados um ao outro. Deus meu! Olha: eu sabia que com o andar do tempo não havias de segurar com firmeza a bandeja. E por que não? Porque afinal de contas tu não passas de um bárbaro, uma lebre do deserto, que sabes dominar-te tão pouco quanto o desgraçado Zahi, sem a moderação e a sabedoria da vida que se usam aqui na terra dos homens. Não foste capaz de aprender os nossos preceitos segundo os quais pode a gente gozar seus prazeres no mundo, mas não com mulheres casadas, porque isso é perigoso. Mas tu que fazes? Atiras-te cegamente lascivo e insensato sobre a nossa ama e bem podes agradecer à tua boa estrela se não te puseram imediatamente lívido como um cadáver, sendo este o único motivo de alegria que ainda podes ter no mundo.
— Queres-me fazer o favor, Cha’ma’t, aluno da casa dos livros — disse José —, de não falar de coisas que não entendes? É terrível quando um assunto difícil e delicado cai nos ouvidos das massas, melindroso demais para que elas o compreendam. Todos metem a foice em seara alheia e se espraiam em comentários verdadeiramente deploráveis, que são mais deprimentes para a matéria que se discute do que para as pessoas envolvidas no caso. E ingenuidade tua e não é lá muito fino nem redunda em grande crédito para a vossa decantada cultura egípcia isso que estás aí falando. E não é porque ontem eu era teu superior e tu te curvavas diante de mim — ponho isso de parte. Afinal de contas deverias ponderar que eu devo saber melhor o que se passou entre mim e a ama do que tu, que só podes ver a coisa do lado de fora e ouvir mexericos. Assim, por que tens de estar-me interrogando a respeito? Mais uma coisa: é absurdo estares a estabelecer confrontos entre a bárbara incontinência da minha carne e a moderação egípcia, quando enfim também esta não goza lá de muito boa reputação pelo mundo. E quando falas em “cobrir”, não achando nada de mais aplicar-me tal termo, deves estar-me confundindo com esse famigerado carneiro cm cuja direção estamos caminhando, ao qual as filhas do Egito se entregam no dia da sua festa. Por aí se pode aferir, sem dúvida, o grau elevado da vossa moderação e sabedoria! Deixa que eu te diga: ainda pode acontecer que o povo venha a falar a meu respeito como de um homem que guardou castidade no meio de uma gente cuja lascívia era comparável à do garanhão e do onagro. Olha que isto pode suceder algum dia! Tempo virá em que as donzelas do mundo me deplorem antes do seu casamento, trazendo-me suas tranças juvenis e entoando uma melancólica elegia em que lamentem minha mocidade e rememorem a história do mancebo que resistiu às ardentes solicitações de uma mulher e com isto perdeu a vida e a reputação. Deitado aqui eu vou meditando e bem posso imaginar como da minha história surge essa tradição. Reflete, pois, quão estultos me devem parecer teus comentários! E como, regozijando-te com o meu infortúnio, tanto te surpreendes com ele? Eu era escravo comprado de Petepré; agora por decreto seu tomei-me escravo de Faraó. Por isso, no fundo, sou mais do que era, acrescentei alguma coisa à minha estatura. Por que és tão simplório que ris disso? Pois vamos concordar em que no momento minha sorte está em declínio. Mas será um declínio sem honra e solenidade? Este barco de bois não te parece a barca de Osíris quando desce o rio para alumiar o grande redil lá de baixo e saudar na sua passagem noturna os moradores da caverna? Para mim, permite que eu te diga, a semelhança é notável. Se pensas que me aparto da terra dos vivos, podes ter razão. Mas quem dirá que o meu nariz não vá sentir o cheiro da erva da vida e que eu não surgirei amanhã de manhã na fímbria do mundo, como um noivo que vai do seu aposento, ofuscando com o seu fulgor uns olhos tolos como os teus?
— Ah, ex-mordomo, vejo que continuas o mesmo, apesar da miséria em que estás. O pior é que no teu caso ninguém pode dizer o que realmente significa “continuar o mesmo”. E como as bolas coloridas que as dançarinas atiram para cima com rapidez incrível e tornam a aparar nas mãos, e quem vê aquilo não as distingue umas das outras, porque formam no ar um arco refulgente. Onde arranjas tanta arrogância (pouco importando o que será de ti) somente o sabem os deuses, com os quais aliás lá te avenhas e só com eles, porquanto as pessoas piedosas, ouvindo-te, sentem a pele toda arrepiada. Não tens pejo de mencionar essa história de noivas que à tua memória dedicam seus cabelos? Isso só podia acontecer a um deus. E isso de comparares esta embarcação, que afinal não é mais do que o veículo da tua vergonha, com a barca noturna de Osíris? E oxalá que se limitasse a isso a comparação! Mas não paras aí. Afirmas que este bote tem uma semelhança “notável” com aquela barca, e eu não dou muito para que acabes convencendo um simples mortal de que este bote é ela realmente e de que tu és realmente Rá quando se chama Atum e passa para a barca da noite. Não é de arrepiar? Mas o arrepio não é só de riso e de tremor; é também e ainda mais de raiva, sabes? De enfado e aborrecimento, amargo como fel, diante da tua presunção, que te toma tão atrevido que te espelhas no Altíssimo e com Ele te identificas, como se fosses Ele próprio, e continuas formando com tuas bolas um arco que me deslumbra os olhos, exasperando-me. Não há dúvida de que qualquer pessoa é livre de dizer coisas dessas e de ter igual procedimento; mas uma pessoa decente não fana assim, seria humilde e oraria. Sentei-me aqui para conversar contigo já por ter pena de ti, já por desenfado. Mas, quando queres passar por Atum-Rá e pelo grande Osíris na sua barca, tudo isso a um só tempo, então o remédio é deixar-te sozinho, porque assim me causas engulhos.
— Faze como achares melhor, Cha’ma’t da casa dos livros e do aparador. Eu não te pedi que viesses sentar-te aqui, porque gosto de ficar só, talvez mais do que em companhia, e posso distrair-me sem ti, como por ti mesmo podes verificar. Se soubesses entreter-te como eu, não terias vindo e por outra parte não levarias a mal as distrações que eu a mim mesmo permito e que tu não me queres permitir. Dás-me a entender que procedes assim por motivos religiosos, mas na realidade o fazes por inveja, não sendo a religião mais que uma espécie de folha de figueira que a tua inveja põe — se é que me perdoas a comparação pouco familiar para ti! Um ente humano se distrai, não passa a vida como os brutos; aí é que bate o ponto, nisso e em saber até onde progride nas suas distrações. Disseste mal, afirmando que todos podem fazer o mesmo que eu; todos, não. Não porque a decência o proíba, mas porque não harmonizam com as coisas superiores, falta-lhes a afinidade íntima com elas, não lhes é dado viver em sentido figurado, assim como se costuma dizer que se fala. Veem no Altíssimo alguma coisa muito diferente do que em si mesmos enxergam (no que, aliás, têm toda a razão) e a ideia que fazem do serviço do Altíssimo é só cantar hinos enfadonhos. Se veem que outro O louva em termos mais cordiais, ficam verdes de inveja, põem-se diante de Sua imagem, choram lágrimas de crocodilo e rogam-lhe perdão da blasfêmia. Atitude verdadeiramente tola, Cha’ma’t do aparador. Não faças por assumi-la. Dá-me a minha refeição do meio-dia, que é tempo e tenho fome.
— Se é hora, é claro que devo trazê-la — respondeu o escrivão. — Não posso deixar-te morrer de fome. Tenho de levar-te vivo a Zavi-Rá.
José não podia tomar a comida, tendo as mãos presas atrás das costas, de modo que Cha’ma’t, na qualidade de vigia, devia prestar-lhe esse serviço. Não havia outro meio. Acocorado perto de José, tinha de pôr-lhe o pão na boca e depois o púcaro de cerveja nos lábios. Isso não passava sem comentários de José, sempre renovados.
— Eis-te, pois, aqui de cócoras, Cha’ma’t, com as tuas pernas compridas, dando-me comida — dizia ele. — É muita bondade tua, embora te sintas acanhado e dês mostra de que não estás gostando. Bebo isto à tua saúde. Ao mesmo tempo não posso deixar de pensar como decaíste no mundo, a ponto de teres de me alimentar e de me dar de beber. Certamente nunca foste forçado a isso quando eu era teu superintendente e tinhas de inclinar-te diante de mim! Tens de servir-me como não o fizeste antes, como se eu tivesse crescido e tu minguado. É a velha questão: quem é maior e mais importante, o que vigia ou o que é vigiado? Não há nenhuma dúvida que é este último. Pois até um monarca é guardado pelos seus servos, e do justo está escrito: “Incumbirá Seus anjos de velarem por ti e de te guardarem em todos os teus caminhos.”
Por isso, passados alguns dias, disse Cha’ma’t a José:
— Olha: queres saber? Estou farto de te dar comida e de ver-te abrir o bico como um gralhozinho implume, e, quando o abres, saem dele palavras que ainda mais me enfadam. Vou livrar-te das cordas, de modo que tenhas mais jeito para as coisas e eu não necessite continuar a ser teu escravo e teu anjo, que não é esse o oficio de um escrivão. Quando estivermos próximos do teu destino, tornarei a amarrar-te e amarrado te entregarei ao governador de lá, Mai-Sachme, capitão das tropas. E o que convém. Mas vais jurar-me que não hás de dizer àquele oficial que estiveste livre durante esse tempo ou que eu afrouxei no cumprimento do dever; aliás, serei censurado.
— Pelo contrário, direi que foste um guarda cruel e me castigaste todos os dias com escorpiões.
— Asneira! Assim também seria demais. Não sabes fazer nada sem troçar dos outros. Ora, eu não sei o que está escrito na carta lacrada que comigo levo e não tenho certeza do que pretendem fazer contigo. Isso é o pior, que nunca se sabe o que fazer contigo. Mas ao governador da prisão dirás que eu te tratei com tolerável severidade e firmeza temperada de brandura.
— Assim farei — disse José e teve os cotovelos livres até o barco se entranhar profundamente no país de Uto, a Serpente, chegando ao rio de sete braços no distrito de Djedet e perto de Zavi-Rá, a fortaleza da ilha. Então Cha’ma't tornou a atá-lo.
O GOVERNADOR DA PRISÃO
O lugar designado ao castigo de José e seu segundo fosso, a que chegou após cerca de dezessete dias de viagem e onde pelo seu cálculo transcendental devia passar três anos antes de ser novamente exaltado, era um grupo de sombrias construções de forma irregular e abrangendo quase toda a ilha que surgia do braço mendesiano do Nilo. Era um agrupamento de barracas cúbicas, estábulos, casamatas e armazéns reunidos em redor de pátios e passadiços, sobressaindo num dos extremos um torreão Migdol, a indicar a residência do diretor do presídio, inspetor dos prisioneiros e comandante da guarnição, Mai-Sachme, “escrivão do exército vitorioso”. Bem no centro daquele conjunto erguia-se o pilão de um templo de Vepvavet, cujo pendão era a única coisa em que a vista podia descansar no meio daquela desolação. Cintava todas as construções uma muralha circular de uns vinte côvados, feita de adobe, com bastiões salientes e torres de vigia. A ponte de desembarque e o portão ameado e guardado por sentinelas ficavam num ponto qualquer na parte lateral. De pé, na elevada proa do barco de bois, Cha’ma’t já de longe vinha acenando com sua carta para as sentinelas. Como estas se viessem aproximando, gritou-lhes que trazia um prisioneiro que devia entregar pessoalmente ao capitão da tropa e diretor do estabelecimento.
Mercenários, chamados Ne’arin, termo militar adaptado do semítico, lanceiros com folhas de couro cordiformes sobre os aventais e com escudos nas costas, abriram o portão e deram passagem ao grupo. José teve a impressão de ter voltado aos tempos em que ele e os ismaelitas, seus compradores, tiveram ingresso às portas da fortaleza de Zel. Naquela época era um rapaz, assombrado com as maravilhas e abominações que via no Egito. Agora conhecia-as todas, abominações e maravilhas, era um egípcio completo (feita abstração das suas reservas mentais relativas às loucuras do país para onde o haviam transportado) e já passara bem da juventude e entrara na idade viril. Mas agora aqui, amarrado com uma corda, ele era como Apis, a representação viva de Ptach no átrio de seu templo em Menfe — um cativo no Egito tal qual o touro sagrado. Dois dos servos de Petepré seguravam as pontas das suas peias, precedendo-os o prisioneiro. A sua frente, Cha’ma’t transpôs o portal e dirigiu-se a um suboficial com um bastão, que era provavelmente quem dera a ordem para o ingresso e que indicou ao escrivão do aparador um oficial superior que atravessava o pátio e trazia uma maça. Este recebeu a carta, dizendo que a entregaria ao capitão, e mandou-os esperar.
Assim, sob o olhar curioso da soldadesca, ficaram à espera num pequeno quadrilátero, à sombra rala de duas ou três palmeiras secas, com tufos viridentes apenas na copa e seus redondos frutos avermelhados em torno das raízes. O filho de Jacó cismava. Estava recordando o que Petepré dissera a respeito do governador do presídio em cujas mãos ia ser entregue, isto é, que era homem que não admitia gracejos. Fácil é de compreender a preocupação e a ansiedade de José durante a espera. Ao mesmo tempo ponderava ser provável que o capitão titular não conhecesse pessoalmente o homem, apenas conjeturando que o dirigente de uma casa de correção tinha de ser uma pessoa pouco dada a gracejos — conclusão plausível mas não necessária. José consolava-se ainda com a ideia de que ao menos ia tratar com um ente humano, e a seus olhos esta circunstância equivalia, fosse como fosse, a certa acessibilidade e tratabilidade; em nome de Deus, mesmo que o homem fosse um carcereiro nato, e o cargo o tivesse endurecido, por um meio ou por outro, deste jeito ou daquele, seria afinal possível gracejar com ele!
Além disso, José conhecia os filhos do Egito, os habitantes daquele país que por trás de toda aquela fama de rigidez cadavérica e de religião tumular eram gente ingênua e inofensiva com quem se podia viver muito bem. Havia, ainda, a carta que o comandante agora estava lendo e na qual Petepré lhe falava no homem que acabara de expulsar, pondo o administrador ao corrente do negócio. Mas José confiava em que os termos não fossem tão ríspidos que chegassem a avivar os sentimentos piores do homem. Sua verdadeira confiança, entretanto, tinha um caráter mais geral; procedia, como é hábito entre os filhos da bênção, não de si mesmo extremamente, mas internamente sobre si mesmo e sobre os invejáveis mistérios da sua própria natureza. E certo que ele vencera havia muito a fase pueril da confiança cega, quando simploriamente acreditava que toda a gente devia amá-lo mais que a si mesma. O que continuava a acreditar era que lhe fora concedido constranger o mundo e os homens a apresentar-lhe seus aspectos mais lisonjeiros — e isto, como bem podemos ver, mais era confiança em si do que no mundo. Em todo caso, os dois, o seu “ego” e o mundo, segundo o seu modo de ver, andavam juntos, eram de certa maneira uma coisa só, de sorte que o mundo não era simplesmente o mundo por si mesmo e em si mesmo, mas assaz claramente o seu mundo e, em virtude disto, suscetível de ser convertido num mundo bom e amistoso. As circunstâncias eram poderosas; José, porém, cria que podiam ser plasmadas pela personalidade, acreditando piamente na preponderante influência do destino individual sobre a força universal das circunstâncias. Quando, à imitação de Gilgamech, denominava a si próprio o homem da dor e da alegria, era porque sabia que o caráter risonho que lhe coubera era capaz de suportar muito sofrimento; e, no entanto, não cria num sofrimento que fosse bastante negro e opaco para que a sua própria luz, ou a luz de Deus que nele luzia, não pudesse penetrá-lo.
Dessa natureza era a confiança de José. Falando de um modo geral, era fé em Deus e com ela se muniu para aparecer diante de Mai-Sachme, seu novo capataz. Isso se deu sem grande demora. Com efeito, ele e seus vigias foram conduzidos por um passadiço baixo e coberto até junto do torreão da cidadela, detendo-se diante da porta desse fortim, guardada por outras sentinelas de capacete. A porta gradeada foi logo aberta e o capitão da tropa saiu.
Vinha em companhia do sumo sacerdote de Vepvavet, indivíduo macilento e de crânio liso, com quem o governador estivera empenhado num jogo de tabuleiro. Mai-Sachme era homem de seus quarenta anos, achaparrado, usando uma couraça que provavelmente pusera para a ocasião, com umas figurinhas metálicas de leões pregados nela como escamas. Trazia um chinó pardo, tinha olhos castanhos e redondos sob umas sobrancelhas bastas e negras e uma boca pequena, carão moreno, ainda mais abaçanado pela barba crescida, e antebraços cabeludos. Havia naquele semblante um ar estranhamente sereno e até de sonolência, mas não despido de astúcia. O capitão tinha uma fala tão macia que chegava a ser monótona. Quando apareceu sob o portal vinha conversando com o profeta da belicosa deidade. Discutiam evidentemente os movimentos das peças da sua partida, cujo fim os recém-chegados tiveram de aguardar. O governador segurava na mão o rolo deslacrado da carta do flabelífero.
Deixou-se ficar onde estava, tornou a abri-la e releu-a. Quando levantou o rosto, José teve a sensação de que aquele era mais que um rosto humano, era a imagem de circunstâncias sinistras com a luz divina a transparecer nelas; exatamente o rosto que a vida mostra ao homem da dor e da alegria. As sobrancelhas negras estavam ameaçadoramente franzidas, mas errava um sorriso na sua boca pequena. Súbito, ameaça e sorriso varreram-se-lhe da fisionomia.
— Estava a teu cargo a embarcação que vos trouxe de Vese? — indagou com voz monotonamente calma, enquanto se virava e erguia o sobrolho na direção do escrivão Cha’ma’t. A um sinal afirmativo deste, olhou para José.
— És o antigo mordomo do grande cortesão Petepré? — perguntou.
— Eu o sou — respondeu José com toda a simplicidade. .
Era, não obstante, uma resposta um tanto rude. Poderia ter respondido: “Tu o dizes” ou “Meu senhor conhece a verdade” ou com mais floreio: “Maat fala pela tua boca.” Em primeiro lugar, já o “eu sou”, dito, é claro, com simplicidade mas com um sorriso sóbrio, era um pouco incorreto; não se falava aos superiores usando a primeira pessoa, mas dizia-se “teu servo” ou com menosprezo ainda maior “este servo aqui”. Em segundo lugar, o “eu” denotava excessiva importância; associado ao “o”, levantava uma vaga suspeita de que se referia a mais do que à mordomia apenas, única coisa atualmente em questão. Estava implícito que pergunta e resposta não se ajustavam completamente, que a resposta ia além da pergunta, desafiando o interrogante a que fizesse nova pergunta: “Que és tu?” ou mesmo “Quem és tu?” — acima e além disto... A verdade é que a resposta de José era uma fórmula, vetusta, familiar, amplamente atrativa e cheia de consonância com priscas épocas. Era a veneranda revelação de identidade, uma declaração ritual celebrada no canto, na história e na representação em que os deuses tinham os seus papéis. Numa representação destas é ela usada para ensartar toda uma gama de efeitos e enredos, desde o simples baixar de olhos até o ser fulminado ou atirado de joelhos.
As plácidas feições de Mai-Sachme, feições de um homem que não se alarma com facilidade, traíram ligeira confusão ou embaraço, fazendo branquear um quase nada a ponta do seu nariz levemente adunco.
— Bem, bem, então tu o és — disse ele. Era provável que naquele momento nem ele mesmo soubesse o que queria dizer com esse “o”; e, se assim é, a circunstância de ter diante de si a mais bela estampa de homem de vinte e sete anos que existia nos dois países pode ter contribuído para seu embaraço e distração. A formosura impressiona; produz infalivelmente um espanto suave, peculiar, no espírito mais sereno, no qual via de regra o medo não tem entrada. Um simples “eu o sou” proferido com um sorriso sóbrio pode, pela beleza de quem o fala, assumir um sentido que nos faz sonhar.
— Tu me pareces um pássaro de cabecinha leve — prosseguiu o capitão — que cai do ninho por pura tolice e falta de equilíbrio. Viver na cidade de Faraó, onde a vida é tão cheia de animação que podia ser para ti uma festa perene, e por nada, por menos de nada vir cair aqui onde também não há nada vezes nada! Reina aqui o mais completo tédio — disse ele, carregando momentaneamente o sobrecenho, mas logo abrindo-se num levíssimo sorriso, como se carranca e sorriso fossem uma coisa só. — Não sabias — continuou — que na casa alheia quanto menos se olhar para as mulheres, melhor? Não leste os preceitos do Livro dos Mortos ou os ensinamentos e máximas do santo Imhotep?
— São-me familiares — respondeu José —, pois que os tenho lido inúmeras vezes tanto em voz alta como em particular.
O capitão, porém, embora tivesse provocado uma resposta, não a estava escutando.
— Aquilo, sim, era um homem — disse, virando-se para o seu parceiro, o sacerdote —, um bom companheiro para a vida, Imhotep, o Sábio! Médico, arquiteto, padre, escrivão, tudo numa só pessoa, Tutanch-Djehuti, a viva imagem de Thot. A esse homem venero, devo dizê-lo. Se eu fosse suscetível de amedrontar-me, mas não sou (infelizmente sou demasiado calmo para isso), ficaria sem dúvida amedrontado com esse poço de ciência. Faz muitos anos que morreu Imhotep, o Divino; homens iguais a ele só existiram em remotas eras e ainda na aurora dos países. Seu soberano foi um antigo rei de nome Djoser, de cuja morada eterna consta ter sido ele o construtor, a pirâmide disposta em degraus existente perto de Menfe, de seis andares e uns cento e vinte côvados de altura, sendo, porém, de inferior qualidade a pedra calcária. Até a da nossa pedreira onde os presos trabalham não é muito pior. Naturalmente foi a de que o mestre pôde dispor. Mas a arte de construir não era mais que uma pequena parte da sua sabedoria e perícia; ele conhecia todos os recantos e escaninhos do templo de Thot. Hábil na medicina, foi igualmente versado em ciências naturais, entendendo de sólidos e líquidos. Tinha uma mão de ouro com os doentes e sabia como ninguém aliviar os que gemiam e se retorciam com dores. Também deve ter sido de índole muito pacata e nada propenso ao espanto. Como se tudo isto não bastasse, era uma cana na mão de Deus, um escritor da sabedoria. E seus talentos corriam parelhas: ele não era hoje médico e amanhã escritor, mas tanto uma coisa como outra simultaneamente. Saliento isso porque é, no meu sentir, uma grande virtude. O curar e o escrever vão bem juntos, um jorra luz sobre o outro e ambos se completam quando andam de mãos dadas. Um médico que possui o segredo de escrever saberá consolar melhor quem jaz em agonia; reciprocamente, um escritor que entenda a vida do corpo, suas funções e suas dores, seus fluidos e suas forças, seus benefícios e malefícios, leva grande vantagem sobre aquele que nada sabe destas coisas. Imhotep era um médico e um escritor assim. Um homem divino; devia-se-lhe queimar incenso. É o que farão, creio eu, quando passar um pouco mais tempo da sua morte. Verdade é que ele também viveu em Menfe, cidade que já é um estímulo.
— Tu não tens que corar diante dele, capitão — obtemperou o sumo sacerdote. — Pois, ao lado das tuas obrigações militares, exerces a arte de curar, és bondoso com os que se torcem de dor e além disso escreves com encanto assim pelo fundo como pela forma, e possuis juntas todas essas excelências em perfeita serenidade.
— A serenidade só por si não faz isso — disse Mai-Sachme, e seu semblante sereno com os sagazes olhos redondos se alterou um pouquinho, tornando-se pensativo. — Talvez eu precise que me amedrontem uma vez. Mas como podia suceder isto, neste lugar? E vós? — disse ele de repente. Ergueu as sobrancelhas e meneou a cabeça olhando para os dois escravos de Petepré que seguravam as pontas da corda que atava José. — Que fazeis aqui? Ides atrelá-lo ao arado ou brincar de boizinho como fazem os pequerruchos? Ou irá o vosso ex-mordomo entregar-se ao trabalho pesado daqui com os membros amarrados como um novilho conduzido ao matadouro? Desatai-o, imbecis! Aqui moureja-se para Faraó, quer na pedreira, quer nas novas edificações, mas não de arreata. Que falta de siso! Essa gente — explicou ele ao homem de Deus — vive na crença de que prisão é um lugar onde uma pessoa está nos grilhões. Tomam tudo ao pé da letra, segundo o seu costume, fazendo como as crianças. Se ouvem dizer que alguém está na cadeia, sendo este o modo comum de falar, acham que o sujeito foi jogado dentro de um buraco cheio de ratazanas famintas e de grilhões barulhentos, onde jaz roubando dias de Rá. Esta confusão da palavra com a realidade é, conforme o meu modo de pensar, um característico de baixo nascimento e de falta de educação. Observei isso muitas vezes entre os comedores de goma da miserável Kuch e mesmo no nosso meio rural mais pobre; nas cidades, não tanto. Certamente que existe uma certa poesia na interpretação literal, a poesia dos simples e das fábulas. No meu modo de entender, há duas espécies de poesia: uma brota da simplicidade do povo, a outra do talento literário propriamente dito! A segunda é indubitavelmente a forma mais elevada. Mas me parece que esta não pode florir separada daquela, necessitando da primeira como a planta necessita do solo, assim como toda a beleza da vida mais elevada e o esplendor do próprio Faraó precisam da argila da nossa mísera existência para florescer e causar assombro ao mundo.
— Como aluno da casa dos livros — disse Cha’ma’t, que nesse somenos se apressara em desembaraçar os cotovelos de José com suas próprias mãos — não faço nenhuma confusão entre o modo de dizer e a realidade, e só por mera formalidade é que pensei dever entregar o prisioneiro amarrado. Ele mesmo não me desmentirá se eu disser que durante a maior parte da viagem o deixei livre.
— Foi uma medida sensata — comentou Mai-Sachme — porque entre os crimes há diferenças. Homicídio, roubo, violação das fronteiras, recusa de pagar impostos ou peculato por parte do recebedor deles são transgressões que pertencem a uma classe diversa daquelas cujo objeto é uma mulher. Estas requerem um tratamento mais discreto.
Tornou a desenrolar a carta pela metade e correu os olhos por ela.
— Vejo — disse ele — que aqui entra uma mulher; e como oficial e aluno das cavalariças reais não posso pôr este caso no mesmo pé dos crimes vulgares. Ficou dito que é um sinal de puerilidade e de madureza de espírito o tomar tudo literalmente e não distinguir entre a expressão e a realidade. Mas de vez em quando essa distinção é inevitável entre a melhor gente. Por exemplo, também foi dito que na casa alheia é perigoso lançar os olhos para as mulheres. No entanto, isto se faz, porque a sabedoria é uma coisa e a vida outra, e até se poderia dizer que o risco torna a coisa até certo ponto honrosa. Mais: em toda aventura de amor há duas partes, o que não deixa de tornar um tanto obscura a questão da culpa. Visto de fora, parece então que o caso está claro; isto porque uma das partes (refiro-me ao homem, é óbvio) toma sempre sobre si a culpa inteira, e contudo talvez convenha também aqui fazer intimamente uma distinção entre modo de dizer e realidade. Quando ouço falar que uma mulher foi seduzida por um homem, rio-me comigo, porque a coisa me parece uma facécia, e penso: pela grande Tríade! Porque afinal sabemos de quem é o ofício de seduzir, o qual desde o tempo dos deuses nunca pertenceu aos estúpidos dos homens. Conheces a história dos dois irmãos?
Voltou-se para José, erguendo para ele os redondos olhos castanhos, pois era muito mais baixo do que o jovem e de compleição corpulenta. Tomou a levantar as sobrancelhas o mais possível, como se isso o ajudasse a restabelecer um equilíbrio.
— Conheço-a bem, meu senhor — respondeu José —, porque a li muitas vezes para meu amo, o amigo de Faraó, e tive também de tirar dela cópias limpas para ele, com tinta preta e encarnada.
— Ela continuará a ser copiada — disse o comandante; — é uma engenhosa invenção e um modelo de estilo. A narrativa convence, embora parte dos episódios seja incrível, quando se reflete neles calmamente, por exemplo naquele ponto onde a rainha concebe por meio de uma lasca que do pau do abacateiro lhe salta dentro da boca, o que contradiz fortemente demais a experiência médica para que possa ser tomado ao pé da letra. Mas, tirante isso, a história é perfeita e copiada da vida, como quando a mulher de Anúbis se inclina para o jovem Bata, achando grande a sua robustez, e lhe diz: “Vamos, alegremo-nos um no outro um pouco e eu te farei dois vestidos de festa”, e quando Bata grita para seu irmão: “Ai de mim! Ela transformou tudo!” e diante dos olhos deste corta sua virilidade com uma afiada folha de cana e a entrega à voracidade dos peixes — isto é comovente. Mais tarde a narrativa degenera e torna-se inverossímil; contudo é também edificante quando Bata se transforma no boi Ápis e fala: “Eu serei uma maravilha de Ápis e o país todo ao me contemplar exultará”, e dá-se a conhecer e diz: “Eu sou Bata, ainda vivo e sou o touro sagrado de Deus.” São, não há dúvida, invenções fantásticas; todavia, como é bem verdade que às vezes a vida se amolda plasticamente às formas mais extraordinárias da imaginação criadora!
Conservou-se calado algum tempo, com os olhos fitos serenamente no espaço e a pequena boca entreaberta. Depois leu um pouco mais na carta.
— Podeis imaginar, reverendo — disse, levantando os olhos para o de crânio reluzente —, que uma ocorrência como esta representa uma variação mais ou menos animadora na monotonia desta praça forte onde um homem sossegado por natureza corre risco de dormir em pé. Os que geralmente vêm parar aqui, ou já sentenciados ou apenas para prisão temporária, antes que a balança da justiça fique ouro e fio, e enquanto seus casos ainda não foram julgados, são ou saqueadores de túmulos ou salteadores de estrada ou outros amigos do alheio, e nenhum deles se presta para conservar-me desperto. Um crime passional é uma exceção interessante. Pois indubitavelmente, por mais que variem as opiniões dos homens, todos concordam em que o terreno do amor é, na vida humana, o mais fértil em lances sensacionais e misteriosos. Quem não teve na esfera de Hathor sua experiência surpreendente e memorável? Já tive ocasião de vos falar no meu primeiro amor, que foi ao mesmo tempo o meu segundo?
— Jamais, capitão — disse o homem do templo. — O primeiro e o segundo também? Tinha vontade de saber como isso se deu.
— Ou o segundo que continua sendo o primeiro — confirmou o capitão. — Como quiserdes designar a coisa. Ainda ou de novo ou para sempre — quem sabe qual a expressão certa? Isso aliás não tem importância.
E, com um ar tranquilo, senão sonolento, braços cruzados, o rolo metido debaixo de um deles, a cabeça inclinada para uma parte, as espessas sobrancelhas por cima dos olhos castanhos levemente erguidas, os beiços redondos movendo-se com medida gravidade, Mai-Sachme, calmamente, começou a contar ali mesmo a sua história, diante de José e dos guardas deste, do sacerdote de Vepvavet e de alguns soldados que tinham acudido:
— Aos doze anos era eu aluno da casa de instrução na escola de escrita das cavalariças reais. Era atarracadinho como sou hoje, sendo esta a minha estatura natural na vida como o será depois da morte. Tinha, porém, coração e espírito abertos. Um dia vi uma menina que trazia para seu irmão, condiscípulo meu, seu pão e cerveja do meio-dia, em lugar da mãe que adoecera. Ele era filho de um funcionário, Amenmose, e chamava-se Imesib. A irmã, que lhe trazia a merenda, três fatias de pão e dois púcaros de cerveja, dava ele o tratamento de Beti, do que concluí ser Nechbet o nome dela, conjetura certa, conforme vim depois a saber por Imesib. Interessei-me pelo nome porque me interessou a dona dele e não pude desfitar meus olhos da menina enquanto ela lá esteve, nem das suas tranças, nem dos seus olhinhos rasgados, nem especialmente dos seus braços, que estavam à mostra e eram cheios e todavia esbeltos, assim como devem ser. Foram eles que me fizeram a maior impressão. Mas só o notei à noite no dormitório entre meus camaradas, deitado ao lado da minha roupa e das minhas sandálias e tendo como travesseiro debaixo da minha cabeça, conforme preceituava o regulamento, o meu badameco com os livros e petrechos de escrita. Não consentiam que esquecêssemos nossos objetos escolares nem sequer dormindo; o incômodo contato com eles devia servir para os conservarmos presentes no espírito. Mas mesmo assim eu os esqueci, porque os meus sonhos acharam modo de se expandir sem darem atenção aos livros que estavam debaixo da minha cabeça. Tive a impressão vivida de estar noivo de Nechbet, a filha de Amenmose; nossos pais haviam chegado a um acordo e dentro em breve ela ia ser minha mulher, minha noiva-irmã, e nossos braços se entrelaçariam. Meu júbilo não conhecia limites. Nunca estivera tão contente em toda a minha vida. Meu coração saltou no peito com o contrato firmado por nossos pais e segundo o qual nossos narizes se juntariam numa sensação das mais aprazíveis. Tão vivo foi esse sonho, tão natural, que nem à realidade ele quis ceder. É esquisito, mas a verdade é que, mesmo acordado, mesmo depois de me lavar, eu acreditava nele. Nunca, antes ou depois disso, me aconteceu que um sonho fosse tão vivido que pudesse mais comigo acordado que a realidade. Já ia, pois, alta a manhã e eu firme e deliciosamente persuadido do meu noivado com Beti; só devagar, muito lentamente, foi que o mestre, arrumando-me pancada, conseguiu aguar um pouco o meu prazer íntimo. Saindo daquele estado de sonâmbulo, consolei-me alguma coisa com a ideia de que, se o contrato e a aproximação de nossos narizes não passavam de um sonho, nada se interpunha à sua imediata realização e que eu apenas precisava que meus pais fizessem um ajuste com os de Beti em benefício nosso. Durante alguns momentos pareceu-me que depois de um tal sonho minha expectativa em torno da sua realização era mais que natural e a ninguém causaria surpresa. Mas aos poucos, com a reflexão, percebi que a realização do sonho que tão vivo me parecera não passava de tontice e, no estado atual das coisas, era francamente impossível. Pois eu não era mais que um colegialzinho em quem batiam como num papiro, ainda no começo da minha carreira de escrivão e oficial, ademais baixote e gordo, conforme a minha constituição física; e o meu noivado com Nechbet, que era provavelmente uns três anos mais velha do que eu e podia duma hora para a outra casar com um homem muito acima de mim em posição e dignidade, figurou-se-me, com o desaparecimento da minha felicidade entrevista em sonho, uma coisa simplesmente absurda.
Por isso — continuou imperturbável o oficial — desisti daquela ideia que jamais me teria passado pela cabeça se não fosse o tal sonho vivido e formoso. Prossegui meus estudos na casa da instrução das cavalariças reais, com frequentes “afagos” admonitórios do mestre, que tinha a mão leve. Vinte anos mais tarde, quando já eu era há muito escrivão de ordens do exército vitorioso, mandaram-me com mais três companheiros à Síria, na mísera Cher, para examinar uns cavalos que deviam ser pagos como tributo e enviados em barcos cargueiros às estrebarias de Faraó. Viajei então do porto de Cazati ao subjugado Sekmen e até uma cidade chamada, se bem me lembro, Per Chean, onde tínhamos uma guarnição, cujo comandante deu uma festa ao povo das redondezas e ao pessoal da remonta: um sarau onde havia vinhos e grinaldas, dado numa casa de belas portadas. Havia lá egípcios e gente grada do lugar, tanto homens como mulheres. Vi ali uma moça, parenta daquela casa egípcia pelo lado feminino, porquanto sua mãe era irmã da dona da casa; ela viera em visita, com criados e criadas, de muito longe, de uma localidade do Alto Egito onde viviam seus pais, perto da primeira catarata. Seu pai era um negociante riquíssimo de Suenet, que comprava objetos da miserável Kasi, marfim, ébano e peles de leopardo, para revendê-los no Egito. Ora, quando vi aquela jovem, a filha do comerciante de marfim, no esplendor da sua mocidade, aconteceu-me pela segunda vez na minha vida o que me acontecera primeiro havia tantos anos na casa da instrução: não conseguia desviar os meus olhos dela; ela me causou uma impressão tão funda, renovando em mim com assombrosa semelhança o prazer infindo daquele fantástico noivado há tanto tempo desvanecido, que, vendo-a, senti no meu íntimo a mesma vibração de alegria duma época já morta. Mas senti-me tímido diante dela, se bem que um soldado não deva ser tímido, e durante algum tempo abstive-me de indagar seu nome e de tomar outras informações a seu respeito. Quando o fiz, fiquei sabendo que ela era filha daquela Nechbet, filha de Amenmose, a qual, pouco depois que eu a vira em sonho e em sonho a pedira em casamento, se tornara esposa do negociante de marfim de Suenet. Porém a jovem Nofrurê (era esse o seu nome) não tinha os traços de sua mãe nem a cor das suas tranças e da sua tez, sendo muito mais morena. O que tinha de comum com Nechbet era no máximo sua airosa figura, mas quantas jovens não são também esbeltas de corpo! Contudo, ao vê-la, imediatamente despertaram em mim os mesmos fundos sentimentos que eu sentira então e nunca mais depois; de modo que se podia dizer que eu já a tinha amado na mãe, como amara a mãe nela. Considero mesmo possível, e de certa maneira o espero, que se, passados mais vinte anos, eu der casual e inesperadamente com a filha de Nofrurê, meu coração se enterneça irresistivelmente diante dela como já se enterneceu à vista de sua mãe e de sua avó, e será sempre e eternamente o mesmo amor.
— E realmente notabilíssimo esse caso passional — disse o homem do templo, relevando compassivamente a extraordinária circunstância de ter o capitão escolhido aquele momento para contar a sua história, nesse tom modesto e sereno. — Mas, se a filha do negociante de marfim devesse ter uma filha, seria uma pena se esta não fosse tua filha; então, ainda que o teu sonho de menino, tido enquanto dormias sobre a almofada de livros, nunca se tivesse realizado, na reencarnação de Nechbet, ou seja, na renovação do teu afeto para com ela, a realidade havia de readquirir seus direitos.
— Não. Isso não — replicou Mai-Sachme, meneando a cabeça. — Uma donzela tão rica e formosa e um empregado da remonta, baixo e gordo por natureza, nunca dariam um par que prestasse. É muito provável que ela tenha desposado algum barão distrital ou qualquer outro homem da privança de Faraó, um intendente das arcas reais, condecorado com um colarinho de ouro. Também convém não esquecer que, entre um homem e uma jovem cuja mãe aquele já amou, se estabelece uma como relação paternal, de modo que o casamento nesse caso estaria fora de cogitações. Além disso, ideias como as que alvitrais passam, quanto a mim, para o segundo plano em virtude daquilo que chamais a índole notável da situação. Isto me impediu de tomar uma deliberação que acabaria no seguinte despropósito: eu, pai da neta do meu primeiro amor. Seria coisa realmente para se desejar? Isto me privaria da expectativa em que agora vivo de que algum dia, sem eu o saber, encontre a filha de Nofrurê, a neta de Nechbet, e de que ela também produza em mim a mesma impressão maravilhosa. É esta uma possibilidade que me deixa um raio de esperança a aclarar os dias da minha velhice; ao passo que, se isto não se desse, o curso das minhas repetidas emoções amorosas se veria prematuramente paralisado.
— Pode ser — concordou o sacerdote, hesitando. — Mas o menos que podias fazer era confiar ao papel a história da mãe e da filha, ou antes, o teu romance com elas, e usar a cana para dar-lhe uma forma encantadora, opulentando a nossa literatura. Na minha opinião, tu podias tirar simplesmente dos recursos da tua fantasia a terceira encarnação daquela figura e do amor que ela te inspira, dando tudo como já sucedido.
— Para isso já dei alguns passos — disse o capitão com certa indiferença —, razão pela qual posso contar a história com esse desembaraço, pois já tenho prontas as primeiras linhas. O inconveniente é que, para poder incluir o encontro com a neta de Beti, tenho de colocar a história no futuro e transformar-me num velho, o que é um esforço diante do qual recuo, apesar de que, pela regra, recuar diante de esforços não fica muito bem a um soldado. Mas o pior é que, com a placidez do meu temperamento, receio privar o meu conto do caráter emocionante que ele deve ter, que é peculiar, por exemplo, à exemplar história dos dois irmãos. O assunto me é muito caro para que eu me exponha a estragá-lo por escrito.
Interrompeu-se com um ar de quem sente um remorso e disse:
— Mas agora urge que eu me ocupe com o prisioneiro. Quantos animais de carga — indagou, voltando-se altivamente para José, apesar de fazê-lo com certa dificuldade por causa da sua estatura — seriam necessários, na tua opinião, para levarem à pedreira comida para quinhentos cabouqueiros e carregadores, além de feitores e capatazes?
— Doze bois e cinquenta burros — respondeu José — seriam bastantes.
— Mais ou menos. E quantos homens mandarias pegar na corda para arrastarem um bloco de pedra de quatro côvados de comprimento por dois de largura e um de grossura, numa distância de cinco léguas até o rio?
— Contando os homens precisos para abrir caminho, os aguadeiros que terão de regar a pista de transporte e os carregadores de toros de pau que de onde em onde se tem de pôr sob o objeto transportado — disse José —, eu diria, no mínimo, cem.
— Por que tantos?
— Trata-se de um bloco muito pesado — respondeu José — e se o patrão não quer empregar na tarefa bois mas homens, por estes serem mais baratos, deve tomar um número suficiente deles, de maneira que a meio caminho uma turma possa render a outra na corda. Então não se terão de lançar em conta mortes devidas a suor represado, ou a que a alguns deles se lhes forcem as entranhas, ou a perda de fôlego, acarretando retiradas de operários tomados de violentas dores e convulsões.
— Coisa certamente de evitar-se. Esqueces-te, porém, que temos à nossa disposição não só bois e homens mas grande quantidade de bárbaros da Terra Vermelha, da Líbia, de Punto e dos desertos da Síria. De tudo isto podemos dispor livremente.
— Aquele que está aqui entregue nas tuas mãos — respondeu José, comedido — é também ele de uma origem assim, vindo a ser o filhinho de um rei de pastores do Alto Retenu, na parte chamada Canaã, tendo sido transportado para o Egito por meio de um rapto.
— Por que mo dizes? Isto está aqui na carta. E por que a ti mesmo chamas filhinho em vez de simplesmente filho? O diminutivo dá ideia de mimo e de complacência contigo próprio, coisa que não condiz com um réu, se bem que aquilo de que o acusam não seja propriamente de natureza desonrosa senão de um caráter muito delicado. Pareces temer que eu, por seres originário do miserável Zahi, te destine aos trabalhos mais pesados, até o teu suor ficar represado e morreres uma morte inglória. Tentativa de ler meus pensamentos, tão indiscreta como canhestra. Mau diretor de presídio seria eu se não soubesse avaliar o valor de cada um e designar-lhe as tarefas convenientes. Tuas respostas mostram claramente que já administraste a casa de um potentado e entendes alguma coisa de negócios. Dás a entender que desejarias, se possível fosse, evitar que os trabalhadores se extenuassem na labuta, ainda que eles não sejam filhinhos, quero dizer, filhos de Ápis e da terra negra — o que, em rigor, não contraria os meus próprios desejos e prova algum conhecimento de economia doméstica. Vou utilizar-te como capataz de um grupo de presos que trabalham na pedreira ou talvez em serviços internos e no escritório, porque sem dúvida saberás calcular mais rapidamente que os outros quantas medidas de espelta se podem pôr numa tulha de tal ou tal tamanho, ou quanto trigo deve ser fermentado para fabricar tal ou qual quantidade de cerveja ou cozido para fazer mais ou menos pão, de modo que se saiba o valor de troca de ambos, e coisas destas... Para mim seria realmente desejável — acrescentou, numa explicação ao abridor da boca de Vepvavet — poder contar com um auxiliar que, tomando uma parte dos meus encargos, me proporcione mais ócios para burilar o estilo do meu conto dos três amores que eram um e o mesmo... quanto a vós, gente de Vese — disse, dirigindo-se aos acompanhantes de José —, podeis agora empreender a vossa viagem de retorno. Viajareis rio acima e tereis vento do norte. Tomai lá vossa corda e transmiti meus cumprimentos ao vosso amo, o amigo de Faraó... Memi! — deu, para concluir, ordem ao homem de bastão que introduzira os recém-chegados. — Esse escravo do rei cumprirá pena auxiliando na administração; mostra-lhe uma cela onde possa dormir à parte e dá-lhe uma veste de cima e um bastão que indique o seu cargo de capataz. Já ele esteve altamente colocado, mas deixou-se despenhar das alturas e conduzir até este lugar; agora terá de sujeitar-se à virga-férrea de Zavi-Rá. Quaisquer superiores predicados que tenha deverão ser aqui impiedosamente aproveitados, tal como fazemos com as forças físicas dos de qualidade inferior. E que já não pertence a si mesmo, senão a Faraó. Dá-lhe de comer. E até à vista, reverendo — disse, despedindo-se do homem do templo e encaminhando-se de volta para a sua torre.
Foi este o primeiro encontro de José com Mai-Sachme, o governador do presídio.
BONDADE E PERÍCIA
Agora, como ao próprio José aconteceu, estais tranquilizados quanto à espécie de homem que era o governador em cujas mãos pós Petepré a sorte do seu antigo mordomo. Era um homem extremamente simpático e sereno, e não foi sem razão que a nossa esclarecedora narrativa tem relutado tanto em retirar da sua figura atarracada o holofote, antes, tem-no projetado bastante tempo sobre ele para que o leitor faça uma ideia clara desta personagem até aqui ignorada. E isto porque lhe caberá um papel não sem importância (e também muito pouco conhecido) na história que está aqui sendo contada com a possível correção e verossimilhança. O fato é que Mai-Sachme, depois de ter sido superior e distribuidor de tarefas de José durante alguns anos, continuou por longo tempo a seu lado e tomou parte na encenação de grandes e gloriosos acontecimentos, para cuja descrição digna e exata nos fortaleçam as Musas.
Tudo isto seja dito de caminho. Falando do diretor do presídio, emprega a tradição a mesma fórmula já aplicada a Putifar, a saber, que ele “não tomava conhecimento de coisa alguma”, de modo que José logo se tornou responsável por tudo que sucedia no seu segundo fosso. Convém determo-nos um pouco para interpretar devidamente esta tradição, porquanto ela não tem em absoluto o sentido que tinha no caso do cortesão do Sol e veneranda torre de carne, que “não tomava conhecimento de coisa alguma” simplesmente porque toda a sua entidade era só nominal e titular; ele se achava fora da humanidade e num estado de existência sem perspectiva de mudança, alheia da realidade, puramente adstrita à forma. Pelo contrário, Mai-Sachme era um homem muito competente, que se interessava com ardor, mas também com placidez, por uma porção de coisas, sobretudo referentes à coletividade. Era um médico zeloso que cada manhã se levantava cedo para examinar na enfermaria o que saíra das entranhas dos soldados e presos doentes. Seu gabinete de trabalho, sito num ponto bem resguardado da torre de Zavi-Rá, era um perfeito laboratório, dispondo de um herbário, com almofarizes e pilões, raladores, frascos e potes de unguentos, sifões e alambiques. Com aquele mesmo rosto sonolento e finório, com que se apresentara da primeira vez que contou a história dos três amores, o capitão se curvava ali sobre decoctos, pílulas, cataplasmas e remédios para lavagens intestinais, ou consultava a obra “Para o beneficio da humanidade” e outros manuais de consumada sabedoria sobre o tratamento da retenção de urina, furúnculos no pescoço, rigidez da espinha, calor do coração e coisas destas. Enquanto ha e ponderava, seu espírito percorria toda uma área de especulações gerais. Os vasos sanguíneos que corriam aos pares do coração até os membros do corpo se mostravam tão propensos ao endurecimento, à obstrução e à inflamação que muitas vezes rejeitavam o tratamento — existiam eles somente em número de vinte e dois, ou havia quarenta e seis deles, como ele cada vez mais se inclinava a crer? Os vermes existentes no corpo, a cuja destruição ele aplicava seus electuários, seriam a origem de certas enfermidades ou talvez o seu resultado? Seria, por exemplo, possível que pelo entupimento de um ou mais vasos se formasse um tumor que, não tendo saída para descarga, acabasse por apodrecer e, evidentemente, transformar-se em vermes.
Não era nada mau que o capitão se consagrasse a tais assuntos, conquanto, como militar, eram eles menos da sua especialidade que da do seu parceiro no jogo de tabuleiro, o sacerdote de Vepvavet. No entanto, os conhecimentos deste em tal matéria se limitavam à inspeção e matança ritual dos animais destinados aos holocaustos, e seus métodos curativos se baseavam mais em encantos e filactérios que na ciência. Verdade é que também estes tinham seu préstimo, por exemplo num caso em que a afecção de um órgão, digamos, o baço ou a coluna vertebral, fosse indiscutivelmente causada pela circunstância de o ter sua divindade protetora desamparado, de boa ou má vontade, deixando o órgão à mercê de um demônio hostil que agora estava produzindo nele um efeito perturbador, e devia ser obrigado, com invocações convenientes, a deixar livre o campo. Para tal fim o sacerdote tinha uma cobra-capelo guardada num cesto, a qual, apertando-se-lhe o pescoço, podia transformar-se numa varinha mágica. Os bons êxitos que o réptil lhe proporcionava às vezes davam a Mai-Sachme a ideia de tomá-la de empréstimo ao dono. Mas de modo geral o governador tinha a inabalável convicção de que a mágica só por si não valia; era necessário que ela se deixasse embeber e especar pelos métodos mais rudes da ciência profana, por meio dos quais então lograria produzir seus efeitos. Por exemplo, Zavi-Rá tinha sofrido uma praga de pulgas que os feitiços do homem de Deus não conseguiram extirpar ou nunca ou apenas tão temporariamente que a sensação de alívio talvez se baseasse numa ilusão. Só quando Mai-Sachme combinou os ensalmos com muito borrifo de água de natro e muito carvão vegetal pulverizado e misturado com a erva bebet foi que a praga cessou. Foi também o governador quem, para acabar com os ratos, flagelo que se ia tornando quase igual ao causado pela praga das pulgas, mandou que se passasse por cima das tampas das uchas nos celeiros uma camada de gordura de gato. Calculara que os bichos, cuidando farejar o seu próprio inimigo, seriam afugentados, e foi o que sucedeu.
A enfermaria da fortaleza estava sempre cheia de feridos e doentes, porque o trabalho na pedreira, situada a cinco léguas do no, era deveras penoso, como José logo teve ensejo de verificar, porque frequentemente lhe tocava passar lá várias semanas fiscalizando uma turma de soldados e prisioneiros nas diferentes operações da canteira, do corte de pedras, do arrasto e do transporte. Era o mesmo o tratamento dispensado a soldados e presos; os que compunham a guarnição de Zavi-Rá, indígenas e forasteiros, excetuando os encarregados do serviço da guarda, faziam as mesmas tarefas que os presos e sentiam o estalar do mesmo látego. Havia apenas uma diferença: quando um soldado se contundia ou se esfalfava, era mandado para o hospital da fortaleza um pouco mais cedo que um prisioneiro, o qual só ia para lá depois de cair exausto duas e até três vezes, porque nas duas primeiras ninguém acreditava.
Todavia, sob a feitorização de José, a coisa mudou de figura, a principiar da sua turma. E por fim, quando se verificou o dito de que o governador do presídio confiou à sua vigilância todos os presos que estavam no cárcere, e ele ia às pedreiras como uma espécie de intendente superior e representante imediato do comandante, a melhora se generalizava. E que José não se deslembrava de seu pai Jacó, que tão longe estava e que o dava por morto, lembrava-se de Jacó, que abominava a servidão do Egito. Determinou que o homem que caísse duas vezes fosse afastado do serviço e reconduzido à ilha. A primeira queda continuou a passar por fingimento, a não ser, naturalmente, que o homem morresse.
Assim, não havia possibilidade de o hospital ficar vazio de homens a estorcerem-se de dor: ora era um que fraturara um osso, ora outro que “já não podia olhar para a própria barriga”, ora mais um com o corpo coberto de grandes calombos produzidos pela mordedura de moscas e mosquitos, ora um terceiro ou um quarto cujo estômago, quando se calcava com o dedo, subia e descia como azeite num odre, ora ainda outro com os olhos a purgar e lacrimejar por causa do pó da pedra. De todos esses casos o capitão tratava, não se esquivando de nenhum, e para cada um deles, se o paciente já não estivesse morto, sabia um remédio. Encanava ossos fraturados, metendo-os em talas feitas de tabuinhas; a impossibilidade de um homem olhar para a própria barriga ele procurava corrigi-la aplicando-lhe cataplasmas; os tumores purulentos provenientes das mordeduras eram untados com gordura de ganso misturada com erva emoliente pulverizada; para o abdome inchado prescrevia se mascassem sementes de óleo de mamona com cerveja, e para as frequentes inflamações dos olhos possuía um bom unguento de Biblos. Provavelmente aí entrava sempre um todo-nada de “feitiçaria” para ajudar o efeito das mezinhas e acossar o demônio insidioso; mas ela consistia não tanto nas rezas que acompanhavam a ação da cobra mágica quanto na emanação da imperturbável personalidade de Mai-Sachme, que calmava os enfermos, fazendo com que estes deixassem de ter pavor da doença, pavor esse que só pode ter influências funestas. Cessavam de contorcer-se e inconscientemente tomavam a expressão facial do capitão — os lábios arredondados e abertos, as sobrancelhas franzidas num jeito de astúcia impassível. Do fundo do seu catre, pois, os pacientes aguardavam com equanimidade ou a cura ou a morte. Pois, também desta, Mai-Sachme, com a sua atitude, os ensinava a não ter receio e, mesmo quando já no semblante do doente se estampava a palidez do cadáver, suas mãos perfeitamente compostas pareciam lembrar-se dos ensinamentos do médico. Tranquilo, numa postura quase imitativa, sobrancelhas erguidas e beiços apartados, encarava a vida que à presente se segue.
Assim, era de serenidade e destemor o ambiente da enfermaria do presídio. José às vezes ia até lá como braço direito que era do governador e mesmo prestava ali sua ajuda, pois foi logo transferido da pedreira para o serviço interno. As palavras: “O governador da prisão confiou a José todos os prisioneiros que se achavam no cárcere e tudo o que se fazia era por mandado seu” devem ser entendidas no sentido de que o ex-intendente de Putifar, uns seis meses depois da sua entrada em Zavi-Rá, se tornara, sem nenhum título especial nem promoção, o administrador-geral e provedor-mor de toda a fortaleza. Pelas suas mãos passavam os documentos e a contabilidade do estabelecimento, que eram muito complicados, como em todo o país; todas as compras de azeite, trigo, cevada e gado, a alimentação de guardas e presos; todas as atividades da cervejaria e da padaria de Zavi-Rá; até a renda e a despesa do templo de Vepvavet; tudo que se relacionava com a entrega das pedras extraídas, e mais, muito mais que isso, estava a cargo de José, com grande descanso para os que antes tinham afetos a si tais serviços. As contas ele só as prestava ao governador, esse homem de boa paz com quem desde o princípio tão bem se dera e continuaria a dar-se cada vez melhor.
Efetivamente, Mai-Sachme via confirmadas as primeiras palavras com que José lhe respondera: aquela antiga e dramática fórmula de dar-se a conhecer, a qual conseguira despertar sua alma fleumática e tanto o espantara que se lhe esfriara a ponta do nariz. Tal emoção era uma coisa rara para ele, mas tinha também um caráter vago e geral. De certo modo o capitão sentia-se agradecido a José por isso, porque no fundo de sua fleuma havia o desejo de emoções, que ele esperava, assim como suspirava igualmente pelo reaparecimento da jovem Nechbet na sua neta com o consequente terceiro abalo da sua alma, que, na sua modéstia prudente, se reputava indigno de experimentar. Mai-Sachme tinha também uma sensação vaga e indefinida de que José falara verdade quando se dera a conhecer. O governador não saberia dizer o que significava aquele “o” na sempre portentosa fórmula “eu o sou”; não sabia sequer da sua ignorância a esse respeito, porque nunca julgara desejável ou necessário ocupar-se do assunto. Essa a diferença entre suas obrigações e as nossas. Mai-Sachme no seu tempo que, se sob certo ponto de vista era primitivo, debaixo de outro aspecto era bem avançado, deve ser completamente absolvido de qualquer responsabilidade semelhante. Podia ele seguir placidamente seu caminho, restringindo-se, talvez com um és-não-és de espanto, a sentir, crer e adivinhar. Consoante a tradição original, o Senhor estava com José e fê-lo benquisto do carcereiro-mor. A copulativa poderia ser interpretada como significando que o favor que Deus mostrou ao filho de Raquel consistiu justamente na bondade que o seu chefe teve com ele. Mas bondade e favor não são exatamente a mesma coisa. Deus não fez a José a mercê de tornar-lhe benigno o capitão. A simpatia e confiança que a aparência e o comportamento de José inspiraram no guarda da prisão brotaram antes do instinto infalível que o bom do homem teve do favor divino que repousava sobre a cabeça daquele preso. E, com efeito, marca distintiva de um homem bom ter ele sensatez suficiente para perceber e respeitar a manifestação do caráter divino. Bondade e sabedoria estão aqui tão próximas uma da outra que realmente parecem ser uma só coisa.
Qual foi, portanto, a ideia que de José fez Mai-Sachme? Para ele José era qualquer coisa de justo e adequado, era o homem providencial, o esperado, o instaurador de uma nova época. A princípio, só no limitado sentido de que esse homem — réu de um crime interessante e que tinha sido mandado para aquele ermo aborrido, onde o capitão, havia muitos anos e talvez por muito tempo ainda, tinha de prestar seus serviços —, esse homem, dizemos, trouxera consigo o condão de quebrar a monotonia que era a regra ali. Mas, quando o comandante de Zavi-Rá condenava tão acremente toda confusão entre modo de dizer e realidade, seu rigor talvez proviesse de estar ele próprio envolvido nesse baralhamento; com efeito, se não se cuidasse muito, poderia incorrer ele mesmo no erro de misturar o literal com o figurado. Em outras palavras, umas leves alusões, associações de ideias, indícios que os traços de um fenômeno evocavam, eram suficientes para fazer o governador enxergar nele todo o fulgor da realidade, o que, no caso de José, significava a manifestação do esperado, do portador da salvação, que vem pôr termo ao reinado da antiqualha e da monotonia e inaugurar uma nova era no meio do regozijo geral da humanidade. Mas em torno dessa figura sugerida por José flutuava o nimbo da divindade; e nisso entra de novo a tentação de misturar o metafórico com o real, a qualidade com aquilo de que ela deriva. E será isto uma tentação assim tão desconcertante? Onde está o divino, há Deus. Há, como diria Mai-Sachme, se é que diria alguma coisa e não apenas adivinharia e creria, um Deus; num disfarce, é certo, que externamente e até mentalmente deve ser respeitado, embora mesmo como disfarce não resista nem convença muito, por ser tão gracioso, tão lindo. Mai-Sachme não seria um filho da terra negra se não soubesse que há imagens de Deus, imagens vivas da divindade, que não deviam ser confundidas com as inanimadas e honradas como imagens vivas de Deus, como Ápis, o touro de Menfe, e como o próprio Faraó no horizonte do seu palácio. O conhecimento que o governador tinha deste fato não contribuiu pouco para dar forma às suas especulações acerca da natureza e da aparência de José, e nós sabemos que, por sua parte, José não mostrava propriamente grande desejo de deter o curso de tais conjeturas, mas ao contrário gostava de ver os homens embasbacarem diante dele.
Para o escritório e o arquivo da casa a presença de José foi providencial. A tradição é injusta com o capitão quando diz que ele de nada cuidava. Mas era verdade que a ordem na secretaria, tão importante aos olhos dos seus superiores de Tebas, havia sido, como ele não ignorava, descurada por causa das suas duas tranquilas paixões: a medicina e a literatura. Até sua reputação oficial já sofrerá uns arranhões, tendo vindo da capital cartas em que à cortesia se aliava disfarçadamente a censura. E precisamente aqui José provou ser o homem há muito desejado, o estabelecedor da mudança, o homem do “eu o sou”. Organizou o arquivo, fez ver aos escrivães de Mai-Sachme, muito dados aos jogos de vinte-e-um-de-boca e da bola, que as altas preocupações do comandante não eram motivo para eles deixarem amontoar poeira nas escrivaninhas, mas ao contrário deviam servir-lhes de estímulo para um acréscimo de diligência. José providenciou para que fossem enviados com regularidade à capital relatórios e dados, daquele tipo que as autoridades liam com prazer. Na sua mão o bastão do seu cargo era qual a cobra mágica que, enrijando, se convertia em varinha de condão. Bastava que tocasse com ela uma cuba para dizer logo: “Aqui cabem trinta sacos de espeta”; e quando se queria saber quantos tijolos seriam gastos na construção de uma rampa, José chegava o bastão à testa e depois dizia: “Cinco milheiros.” Da primeira vez o cálculo tinha saído perfeitamente certo, da segunda não tanto assim. Graças, porém, ao sucesso obtido da primeira vez, o meio insucesso da segunda desaparecia e o cálculo passava igualmente por exato.
Em suma, José não mentira ao capitão ao dizer: “Eu o sou.” E sem prejuízo da escrituração e do governo da casa, frequentemente Mai-Sachme exigia sua presença também na torre onde fabricava suas drogas e compunha seus ensaios literários. Gostava de ter José ao pé de si e discutia com ele não somente assuntos como o número exato de vasos sanguíneos e se os vermes eram causa ou efeito de doenças. Encarregou-o também de copiar a história dos dois irmãos, exatamente como José fizera para o seu antigo amo, numa edição de luxo em papiro fino com tinta vermelha e preta. Mai-Sachme achou seu auxiliar o homem talhado para essa incumbência, não só porque sua letra era esplêndida mas também porque o assunto do conto tinha pontos de contato com a sorte de José. Mai-Sachme achava-o tão interessante justamente por ser uma vítima do amor. Era aquele um campo no qual se empregavam de modo ardente mas brando as simpatias do governador, sendo, com é, o principal teatro para o exercício fascinante da Literatura amena. Pode-se calcular o tempo que o filho de Jacó tirava das suas atribuições na administração da casa — sem se descuidar delas — para dedicá-lo às lucubrações tão do gosto de Mai-Sachme. Passavam os dois horas a fio discorrendo sobre o melhor modo de confiar ao papel, em estilo agradável e, se possível fosse, comovente, a singular história dos três amores que eram um — romance que em parte ainda ia ser vivido, conforme se esperava. A maior dificuldade, o ponto mais discutido era o seguinte: se se incluísse por antecipação o terceiro episódio, era mister tratar o assunto encarando-o do ponto de vista de um sexagenário, no mínimo. E os dois temiam que essa circunstância aguasse o patético do caso que, com ser tão vivo, haveria de se ressentir do temperamento natural do governador.
Passava depois a ser objeto de consideração a aventura que levara José ao cárcere. O que houvera entre ele e a esposa do cortesão solar despertava as simpatias literárias de Mai-Sachme. José narrou-lhe tudo, tendo o cuidado de poupar a aflita mulher e de não diminuir os seus próprios pecados. Equiparava-os àqueles de que antes se fizera culpado para com seus irmãos e, consequentemente, para com seu pai, o rei dos pastores. Assim, aos poucos teve de remontar à história de sua adolescência e à sua origem; os matreiros olhos castanhos do capitão deram um estranho mergulho nos primórdios do fenômeno que era aquele seu ajudante, o preso Osarsif. A Mai-Sachme agradava o nome fantástico, adrede arranjado, fruto evidente de uma combinação alusiva. Pronunciava-o quase saboreando-o, como homem bondoso que era, não o considerando nunca como o verdadeiro nome do recém-vindo, mas antes como um disfarce, um epíteto, um circunlóquio do “eu o sou”.
Seria seu desejo passar para o papel, no estilo da literatura amena, a história da mulher de Putifar e amiúde se comprazia em divagar sobre o melhor método de fazê-lo. Mas, quando o tentava, caía na conta de que o tema era o mesmo do caso dos dois irmãos e nisso malogravam as suas tentativas.
O tempo foi seguindo o seu curso, os dias multiplicaram-se, havia quase um ano que o primogênito de Raquel chegara a Zavi-Rá. Senão quando sucede na prisão qualquer coisa de influência decisiva nos grandes acontecimentos do mundo. Não imediatamente, mas, passado um pouco de tempo, ia esse caso ocorrido na prisão produzir resultados extraordinários e operar grandes mudanças na vida de José e na de seu amigo e carcereiro Mai-Sachme.
OS SENHORES
Um dia de manhã cedo José foi, na sua hora habitual, à torre do governador, com alguns papéis que devia oferecer à sua apreciação. A cena era bem parecida com a que acontecia entre Petepré e o velho mordomo Mont-kav, finalizando sempre com o mesmo “Muito bem, muito bem, meu amigo”. Dessa vez Mai-Sachme nem olhou as contas, afastando-as de si com um gesto. Suas sobrancelhas estavam ainda mais para cima que de costume, seus beiços mais apartados; era manifesto que um caso especial o preocupava e, dentro dos limites da sua calma, lhe produzia agitação.
— Outra hora, Osarsif, outra hora — disse, referindo-se aos papéis. — Agora, não. Vou-te dizer uma coisa: na minha prisão as coisas não estão hoje como estavam ontem e antes de ontem. E uma ocorrência particular. Deu-se antes do amanhecer, à capucha, com ordens especiais e secretas. Trata-se de uma entrega de prisioneiros, entrega difícil, assunto delicado. Protegidas pela escuridão, chegaram duas pessoas. Deverão ficar em custódia, são destinadas a prisão temporária — pessoas não vulgares, digo mesmo, altamente colocadas, que pelo menos o eram recentemente ainda, mas que agora decaíram. Tu também tiveste a tua queda, mas a delas é pior porque maior era a altura. Vai escutando o que te digo e preferivelmente sem pedir pormenores.
— Mas quem são essas pessoas? — perguntou José, apesar da recomendação.
— Seus nomes são Mesedsu-Rá e Bin-em-Vese — respondeu o governador com reserva.
— Será possível? — exclamou José. — Que nomes são esses? Ninguém usa nomes assim!
Boa razão tinha ele para surpresa, porquanto Mesedsu-Rá significava “Odioso ao deus-Sol” e Bin-em-Vese, “Mau em Tebas”. Pais extravagantes deviam ser aqueles que tinham dado tais nomes a seus filhos!
O capitão mexia lá com uma infusão qualquer, sem olhar para José.
— Cuidava eu — disse — que soubesses que uma pessoa não tem obrigatoriamente o nome com que se apresenta ou com que os outros temporariamente a chamam. As circunstâncias podem criar nomes. O próprio Rá muda o seu de acordo com a situação. Esses senhores se chamam como eu os chamei; assim está nos seus papéis e foram essas as ordens que a respeito deles recebi. São esses os nomes que constarão nos autos do processo que contra eles vai ser instaurado, e eles assim se chamam conforme suas atuais circunstâncias. Creio que não te será preciso saber mais a tal respeito.
José refletiu rapidamente. Pensou na esfera que gira, ficando embaixo o que estava em cima, voltando este alternativamente ao lugar superior; pensou na lei dos contrastes, como a ordem se transtorna e as coisas viram de cabeça para baixo. “Odioso ao deus-Sol” — isto antes era Mersu-Rá: “O deus o ama”; “Mau em Tebas” antes era “Bom em Tebas”: Nefer-em-Vese. Por intermédio de Putifar ele sabia muita coisa acerca da corte de Faraó e dos favoritos do paço de Merimat; e recordou-se de que Mersu-Rá e Nefer-em-Vese eram os nomes (colmados de outros títulos honoríficos) do padeiro-mor de Faraó e superintendente da sua confeitaria régia, sendo agraciado com o título de Príncipe de Menfe, e do seu administrador e escrivão do aparador real, do seu copeiro-mor, que tinha o título honorífico de Conde de Abodu.
— Provavelmente — disse José — os nomes verdadeiros dos que acabam de ser-te entregues são “Que come o meu amo?” e “Que bebe o meu senhor?”
— Sim, sim, ora! — fez o capitão. — E o caso de dizer: dão-te o dedo e tomas a mão. Ou achas que tomas. Fica-te com o que sabes e não faças mais perguntas.
— Que terá acontecido? — indagou José, apesar de tudo.
— Bom. Vá lá! — respondeu Mai-Sachme. — Dizem — continuou ele, olhando para outra direção — que foram encontrados pedacinhos de giz no pão de Faraó e moscas no vinho do bom deus. É lógico que esses dignitários, investidos de tão excelsas responsabilidades, foram acusados de tais coisas e vieram parar aqui aguardando o resultado das averiguações, com nomes correspondentes às suas circunstâncias presentes, como tu podes lá imaginar por ti mesmo.
— Giz? — repetiu José. — Moscas?
— Antes do amanhecer — prosseguiu o capitão — foram eles, sob rigorosa vigilância, metidos num barco que traz na proa e na vela a marca de suspeita. Foram-me entregues em estrita, mas também decente custódia, até serem julgados e ser proferida a sentença. Caso delicado e de responsabilidade, como vês. Coloquei-os no pavilhãozinho do abutre, aqui no canto à direita, próximo à parede dos fundos, onde se vê no cume um abutre com as asas abertas. Casualmente esse compartimento estava vago, ou melhor, vazio, segundo eles devem achar, acostumados com um mobiliário completo, e lá se acham desde hoje cedo, com um pouco de cerveja amarga, cada um sentado num mocho comum, pois que a casinha do abutre não dispõe de nenhum outro conforto. Para eles deve ser bem duro; e ninguém pode dizer qual será o remate do caso, se serão logo reduzidos à cor cadavérica ou se a majestade do bom deus tornará a exalçar-lhes a cabeça. O nosso proceder deve pautar-se de acordo com essa incerteza, sem perder de vista a sua posição anterior e dentro das nossas possibilidades. Ficas encarregado de lidar com eles. Irás visitá-los umas duas ou três vezes por dia, indagando, ainda que só por formalidade, se precisam de alguma coisa. Gente assim gosta de ver observadas as formalidades; só o fato de se lhes perguntar o que desejam lhes faz bem, pouco importando se obtêm ou não o que querem. Sabes tratar com os outros, savoir faire (aqui empregou uma expressão acádica) não te falta, e terás artes de conversá-los de uma forma que não destoe das suas elegantes convenções e ao mesmo tempo das suas atuais circunstâncias. Meus outros auxiliares seriam ou muito indelicados ou excessivamente subservientes. O que aqui se quer é o meio-termo. Respeito, com um tudo-nada de solenidade.
— Não sou muito de solenidades — retrucou José. — Talvez conviesse mais um misto de respeito e de ironia.
— Também serve — concordou o capitão. — Quando perguntares pelos seus desejos, logo verão que não falas a sério e que evidentemente não podem ter aqui as coisas com que estavam habituados, a não ser apenas simbolicamente. Em todo caso não podemos deixá-los apenas com os mochos naquele pavilhão vazio. Temos de pôr lá duas camas com travesseiros e, se não duas, ao menos uma poltrona confortável, com almofadas para os pés; poderão sentar-se nelas revezadamente. E poderás fazer como seu vizir fazia: — “Que vai comer o meu amo?” para cá, e “Que vai beber o meu senhor?” para lá — chegando mesmo a satisfazer-lhes um tantinho as vontades. Vamos dizer, por exemplo, que eles desejem pato assado; dás-lhes cegonha. Se pedem bolo, arranjas-lhes pão doce; se lhes apetece vinho, ofereces-lhes suco de uva. Não havemos de deixar passar ocasião de mostrar-lhes um pouco de boa vontade, de satisfazê-los sempre que for possível. Vai agora mesmo apresentar-lhes teus respeitos, colocando a coisa da maneira que achares conveniente. A partir de amanhã, farás o mesmo de manhã e à noite.
— Ouço e obedeço — disse José e dirigiu-se da torre ao pavilhãozinho do abutre.
As sentinelas postadas em frente levantaram suas adagas, enquanto um largo sorriso se espraiava naqueles rostos de campônios, pois o estimavam muito. Depois retiraram da porta a pesada tranca de pau e José penetrou no aposento dos cortesãos. Lá estavam eles no seu cochicholo, sentados naqueles tamboretes, vergados sobre os ventres, com as mãos cruzadas no alto da cabeça. Saudou-os com extrema distinção, mas não da afetada maneira que vira usar Hor-vaz, o escrivão da Grande Porta. Era, porém, um cumprimento à moda, com o braço erguido e um sorriso e o desejo formal de que tivessem o tempo de vida de Rá.
Ao vê-lo, tinham-se posto de pé num pulo, oprimindo-o com perguntas e queixas.
— Tu quem és, jovem? — exclamaram. — Vens com boas ou com más disposições a nosso respeito? Mas ao menos vieste, ao menos veio alguém! Tuas maneiras são boas, elas dizem que és capaz de te condoeres de nós e de ver quão absurda, quão insuportável, quão insustentável é a nossa situação! Sabes quem somos? Disseram-te? Somos o Príncipe de Menfe, o Conde de Abodu: o primeiro superintendente dos doceiros de Faraó e aquele que está acima até do primeiro escrivão do aparador, seu copeiro-mor, aquele que nas ocasiões mais solenes lhe entrega a taça; o padeiro dos padeiros e o despenseiro dos despenseiros, senhor da uva, engalanado de pâmpanos. Percebes? Vieste aqui sabendo disto? Podes imaginar a maneira como vivíamos, em pavilhões revestidos de azurite e diorito, onde dormíamos sobre penugem e tínhamos servos especiais para esfregar as solas dos nossos pés? Que será de nós nesta cafua? Puseram-nos neste quarto despido de tudo, onde estamos desde antes do amanhecer, por trás de trancas e grades, sem terem conosco a mínima consideração. Maldita prisão de Zavi-Rá! Aqui não há nada, nada, nada! Não temos espelho, não temos navalhas, nem caixinha de cosméticos, nem sala de banho, nem um lugar para satisfazer nossas necessidades, de modo que nos vemos obrigados a conter-nos, embora elas sejam mais urgentes que de costume por causa da emoção que experimentamos. Padecemos dores e espasmos — nós, o padeiro-mor e o senhor do pâmpano. Será dado à tua alma sentir uma situação como esta nossa que clama aos céus? Vieste aqui para redimir-nos e para nos exaltar a cabeça? Ou vieste somente para observar se o nosso infortúnio atingiu os derradeiros extremos?
— Altos e nobres senhores — respondeu José —, tranquilizai-vos! Venho bem-disposto a vosso respeito, pois sou porta-voz e ajudante do capitão que me confiou também o cargo de administrador da casa. Nomeou-me vosso servo, sendo obrigação minha indagar as vossas ordens, e como meu amo é bondoso e de gênio calmo, podeis dai concluir qual a minha índole, uma vez que em mim recaiu a sua escolha. Não está nas minhas mãos exaltar-vos a cabeça; isto só Faraó pode fazer, logo que fique provada a vossa inocência que, conforme presumo com o devido respeito, existe e pode ser provada...
Aqui ele fez uma pausa e esperou. Ambos fitavam-no bem na cara, um com olhos boiando em emoções vináceas, dolorosas, mas esperançadas; o outro com um olhar vidrado dentro do qual o medo e a mentira pareciam perseguir-se um ao outro.
Era de esperar que o padeiro fosse como um saco de farinha e o copeiro semelhasse uma esbelta videira. Mas, pelo contrário, o corpulento era o copeiro. Este era baixo e gordo, com uma cara rubicunda entre as pontas do pano lisamente estendido sobre sua cabeça, sobressaindo de cada lado as grossas orelhas ornadas de botões de pedra. As rechonchudas bochechas agora infelizmente estavam afeadas por uma barba esquálida; mas mostravam que, quando rapadas e oleadas, teriam um brilho alegre. Nem o atual estado de abatimento nem a consternação estampada na face do copeiro-mor conseguiam apagar completamente seu traço fundamental de jovialidade. O padeiro-mor era alto em relação ao outro e tinha a nuca curvada; seu semblante parecia pálido, talvez apenas em comparação com o do companheiro, mas também tinha a emoldurá-lo um sombrio toucado preto por entre o qual apontavam os seus grandes brincos de ouro. Indiscutivelmente o padeiro tinha feições sinistras: o comprido nariz era meio torto, a boca, mais grossa de um lado, ficava desastradamente pendente dessa banda, as sobrancelhas em arco tinham uma expressão de mau agouro.
Não se supunha que, ao notar a diferença entre as duas fisionomias, José tivesse concebido uma simpatia barata pelo agradável aspecto de uma e uma aversão igualmente fácil aos traços repulsivos da outra. Sua formação e sua religiosidade o inclinariam antes a observar os traços agradáveis tanto como os antipáticos com o mesmo respeito ao destino. Talvez fosse além, avivando em si, em relação ao homem cujas feições traziam o cunho das regiões ínferas, mais cordialidade e cortesia do que em relação àquele que tinha por natureza um aspecto alegre.
As roupas da corte, lindamente acetinadas, que os dois usavam, com seus ornamentos de fitas e laços de vivas cores, estavam sujas e amarrotadas em razão da viagem; mas cada qual trazia bem visível a insígnia do seu alto cargo — o copeiro um colarinho de parras de ouro, o padeiro uma condecoração que consistia numas espigas de ouro dobrando-se à lâmina curva de uma foice.
— Não depende de mim — repetiu José — exaltar-vos a cabeça, nem de mim nem do diretor da penitenciária. O que podemos fazer é minorar, tanto quanto possível, os desconfortos que um duro fado vos infligiu. Havereis de perceber que disso já houve um começo, porquanto nas vossas primeiras horas de permanência aqui vos faltou tudo. De agora em diante nem de tudo sentireis falta, e isto, depois de uma privação completa, vos parecerá mais doce do que tudo que tivestes quando vos ungíeis com o óleo da alegria, e que desgraçadamente este sombrio lugar nunca vos poderá oferecer. Estais vendo, meus senhores conde de Abodu e Príncipe de Menfe, quão boas foram nossas intenções proporcionando-vos umas entradas tão mesquinhas. Dentro de uma hora estarão aqui duas camas, simples, mas uma para cada um. Uma cadeira de braços, na qual vos podereis revezar, virá fazer companhia aos mochos. Uma navalha (infelizmente só uma e de pedra, pelo que de antemão vos peço desculpas) estará ao vosso dispor, e alguma boa pintura para os olhos, preta, tirante a verde, que o próprio capitão sabe preparar e que estou certo terá prazer em vos oferecer se eu lhe pedir. Quanto ao espelho, parece ter sido também intencional privarmos-vos dele para não verdes refletida a vossa imagem tal como está agora, mas só depois que vos tiverdes preparado convenientemente. Vosso servo, isto é, a pessoa que vos fala, possui um bem nítido espelho de cobre, e folgará de poder emprestar-vo-lo enquanto durar a vossa estada aqui, a qual, assim como assim, não há de prolongar-se por muito tempo. Gostareis de saber que a guarnição e o cabo do mesmo têm o formato do sinal da vida. No que se refere ao banho, podereis tomá-lo à direita do vosso quartinho, e para esse propósito porei às vossas ordens dois guardas; à esquerda podereis satisfazer as vossas necessidades; e creio que no momento é isto o que mais importa.
— Esplêndido! — exclamou o despenseiro. — Esplêndido, sim, no momento e à vista de todas as circunstâncias. Jovem, tu vens como a rósea aurora após a noite e como a sombra refrigerante depois do ardor do Sol. Saúde e robustez para ti e que vivas muito tempo! O senhor da vinha te saúda! Conduze-nos ao lado esquerdo.
— Mas que quiseste dizer — perguntou o padeiro — com aquele “assim como assim” com referência à nossa estada aqui e com aquele “não há de prolongar-se por muito tempo”?
— Com aquilo quis dizer — respondeu José — em todo o caso, certamente, sem sombra de dúvida — ou qualquer expressão equivalente, igualmente tranquilizadora. Foi o que eu quis dizer.
E despediu-se provisoriamente dos dois homens, curvando-se um pouco mais respeitosamente diante do padeiro do que diante do copeiro.
Mais tarde voltou, trazendo para distraí-los um tabuleiro de damas e perguntou como tinham almoçado. Deram uma resposta um tanto vaga e pediram pato assado. José prometeu-lhes coisa parecida, um assado de uma ave aquática qualquer, por exemplo, e o tipo de bolo que as miseráveis condições do lugar consentissem. Além disso poderiam dedicar-se durante uma hora ao tiro ao alvo ou ao jogo da bola, no pátio fronteiro ao pavilhão do abutre, sob a vigilância dos guardas. Era só ordenarem. Agradeceram-lhe muito e pediram-lhe transmitisse ao capitão seus agradecimentos pela maneira engenhosa com que tinha disposto as coisas de modo que, depois de um começo tão pouco promissor, lhes parecessem fagueiras as perspectivas abertas por um mínimo de conforto. José tinha-lhes inspirado a maior confiança e eles o detiveram para conversar o maior tempo possível, exprimindo-lhe sua gratidão e desabafando suas queixas, tanto naquele dia como nos seguintes, aproveitando cada vez que ele aparecia para indagar como passavam e que ordens lhe davam. Mas, apesar de toda a sua loquacidade, não diziam palavra acerca do motivo que os arrastara àquele lugar, mostrando a mesma reserva de Mai-Sachme na sua primeira conversa com José a respeito deles.
Desagradavam-lhes excessivamente seus novos nomes, e repetidas vezes imploraram ao mancebo que não acreditasse serem aqueles seus nomes verdadeiros, fosse em que sentido fosse.
— Mui delicado te mostras, Osarsif, caro jovem — diziam-lhe —, não nos chamando com os nomes absurdos que nos puseram quando fomos presos. Não basta, porém, que esses nomes não passem pelos teus lábios; mesmo para ti próprio não nos deves chamar assim; não deves crer que se apliquem a nós epítetos tão indecentes, sendo justamente o oposto. Isso seria de grande vantagem, pois não nos sofre o coração que estes nomes fantásticos, escritos já em caracteres indeléveis nos nossos papéis e nos autos dos nossos processos, acabem sendo-nos aplicados na realidade e passemos a ser assim chamados por todos os tempos.
— Não vos apoquenteis, meus senhores — respondeu José —; isso há de passar. Afinal, tudo bem considerado, não foi mau expediente. Com isto deram-vos um disfarce que devereis usar nas circunstâncias presentes, ficando assim salvaguardados os vossos nomes reais na escritura da verdade. De certo modo não sois vós que figurais nos papéis e demais peças acusatórias; não sois vós que estais aqui, mas “Abomínio do deus” e “Escumalha de Tebas” que sofrem vossas privações.
Era inútil. Eles estavam inconsoláveis.
— Ah, mas na realidade somos nós, ainda mesmo guardando o incógnito — lamentavam-se. — Tua delicadeza te sugere nos dês os títulos honoríficos que tínhamos na corte: Conspícuo em Menfe, Príncipe do Pão e Sua Alteza o Grão-Senhor da Prensa de Lagar das Uvas. Mas fica sabendo, se é que já não sabes, que eles nos despojaram de todos esses nomes quando nos prenderam; a bem dizer, nós estamos aqui tão nus como quando os soldados derramam água sobre nós aí à direita da casinha. Tudo o que nos ficou é “Escória da Terra” e “Abomínio do deus” — essa a horrível verdade!
E choravam.
— Como é possível — perguntou José, olhando para outra direção, exatamente como fizera o capitão ao abrir-se com ele —, como é possível e como pôde acontecer na face da terra que Faraó procedesse convosco como um leopardo do Alto Egito e como o oceano revolto? Como pôde seu coração desencadear tamanha tempestade de areia como as montanhas do Oriente, de tal sorte que da noite para o dia vos vedes despidos das vossas honrarias, presos por suspeita e arrastados para cá?
— Moscas — soluçou o copeiro.
— Giz — disse o padeiro.
Ambos desviaram os olhos, mas cada qual num rumo diferente. Como, porém, num lugar tão apertado, três pares de olhos não poderiam passear muito, sucedeu que seus olhares se encontraram por descuido e então rapidamente se desviaram, para daí a nada de novo se encontrarem com outros, fosse qual fosse a direção que tomassem.
Como se prolongasse a situação penosa, José quis pôr-lhe cobro retirando-se, mesmo porque não havia meio de se arrancar deles outra coisa a não ser giz e moscas. Não queriam consentir que ele se fosse, continuavam tentando convencê-lo de quão inconsistente era qualquer suspeita de delito, quão absurdos os nomes Mesedsu-Rá e Bin-em-Vese.
— Eu te suplico, bom moço de Canaã, querido ibrim — disse o copeiro —, ouve-me e vê se é possível que eu, bom-e-feliz-em-Tebas, tenha alguma coisa que ver com semelhante caso! E insensato, é contra toda a ordem das coisas; o razoável é que tudo se tenha originado de um mal-entendido ou da calúnia. Eu sou o chefe do pâmpano da vida e carrego a vara da videira diante de Faraó quando ele sai em procissão dirigindo-se ao banquete, durante o qual o sangue de Osíris corre em torrentes. Sou eu o seu arauto, eu quem grita Viva e Saúde e Bom Proveito, brandindo a vara por cima da minha cabeça. Eu sou o homem da coroa, da coroa da videira sobre a cabeça, da coroa que rodeia o copo espumante! Olha para as minhas faces, lisas como estão agora, a despeito da navalha barata que usei. Não semelham a uva a estourar quando o sol cozinhou o sagrado sumo dentro dela? Eu vivo e deixo viver, gritando para todos Viva e Saúde! Terei alguma semelhança com o que mede o ataúde para o deus? Terei qualquer semelhança com o asno de Set? Ninguém vai jungir esse animal ao arado com o boi, ninguém põe num vestido lã e linho ao mesmo tempo; a videira não dá figos. E, quando duas coisas não se casam, não se casam nunca! Peço-te que julgues pelo teu bom senso comum, como quem conhece as leis dos contrários e sabe fazer distinções, diferençando o possível do impossível; julga se eu posso ter qualquer parte nesse delito e numa coisa tão impossível para mim.
— Percebo — disse o Príncipe Mersu-Rá, o padeiro-mor, por sua vez olhando para o outro lado — que as palavras do conde não deixaram de produzir impressão em ti, homem de Zahi e prendado mancebo. Realmente foram convincentes; o teu julgamento tem de ser-lhe, sem nenhuma dúvida, favorável. Por isso eu também apelo para o teu senso de justiça, convicto de que, julgando o meu caso, não te faltará tino e senso comum do mundo. Notaste que a suspeita que pesa sobre nós, altos funcionários, é incompatível com o sagrado cargo que aqui o meu amigo exerce. Pois então certamente concordarás em que é ainda menos possível conciliá-la com a santidade do meu, que é, se assim se pode dizer, ainda maior. Na essência ela é a mais vetusta e a mais pia. Mais elevada que ela pode existir alguma, porém mais profunda nenhuma. Cerca-a uma auréola de perfeição que existe em redor de tudo aquilo que dá origem a um adjetivo qualificativo; é o santo, o mais santo dos santos! Fala-nos de cavernas para dentro das quais se tangem cerdos destinados ao sacrifício, arremessando-se lá archotes para alimentar o fogo primordial, a fim de que arda e aqueça e dilate as forças criadoras. Por isso eu carrego um archote na frente de Faraó, não brandindo-o por cima de minha cabeça mas segurando-o hieraticamente diante de mim e diante dele, quando o soberano vai para a mesa comer a carne do deus enterrado, que vem de baixo, ao encontro da foice, das profundezas que acolheram o juramento.
Aqui o padeiro estremeceu e seus olhos fitos se desviaram ainda mais para o lado, ficando totalmente nos cantos, um no canto externo, o outro no interno. Frequentemente lhe acontecia começar uma frase, mas parar no meio dela e procurar dar-lhe outro rumo ou retratar-se, com o que apenas piorava a situação, pois suas palavras eram como que dirigidas para o fundo, para baixo, não logrando ele trazê-las para o mundo exterior.
— Perdoa-me, não era minha intenção dizer isso — recomeçou —, pelo menos não tencionava dizê-lo dessa maneira. E minha firme esperança que não estejas fazendo uma ideia errônea. És um jovem entendido no mundo e podemos contar com o teu tino em prol da nossa inocência. Eu falo, porém, quando ouço minhas próprias palavras, assusto-me. Eu poderia dar-te a impressão de estar invocando um caráter sagrado, tão grande e tão profundo, que ele próprio é quase suspeito; por assim dizer, e invocá-lo poderia até ter um resultado contrário ao que desejo produzir. Aviva, peço-te, todo o teu intelecto, não te deixes enlear na ideia errada de que, se a evidência é demasiado forte, isso a enfraquece ou até contribui para provar o oposto. Seria medonho se viesses a ter tais pensamentos, isto poria em perigo a inteireza do teu julgamento. Olha para mim. E se eu não olho para ti, é porque olho para os meus argumentos. Eu culpado? Eu envolvido nesse caso? Não sou eu o próprio chefe e senhor do pão, o servo da mãe errante que com o archote anda à procura da filha, da que produz o fruto, da que nos propicia tudo, da que aquenta e reverdece os campos, daquela que rejeitou o sangue entorpecedor da uva e deu preferência à cerveja, daquela que trouxe para o gênero humano o trigo e a cevada e foi a que primeiro quebrou o torrão com o arado curvo, para que de um alimento mais brando surgissem costumes mais brandos, ao passo que antes os homens comiam bolbos de junco e até uns aos outros? A ela pertenço, consagrado estou àquela que na eira separa o grão da moinha, joeirando-os ao vento, apartando a honra da desonra; à legisladora que distribui a justiça e regula o livre-arbítrio. Julga agora na tua sabedoria se eu podia ter-me implicado num negócio tão sinistro. Para o teu julgamento toma por base a incompatibilidade, que não está tanto na circunstância de ser sinistro o negócio, pois a justiça, como o pão, tem pontos de semelhança com as trevas e com as entranhas da Terra onde moram as deusas vingadoras, de maneira que a lei santa podia ser chamada o cão de guarda da deusa, tanto mais que o cão é de fato consagrado a ela, e sob esse aspecto eu, que a ela sou dedicado, podia ser chamado cão...
Aqui o padeiro se assustou outra vez e com mais veemência e, ainda como antes, dirigiu os olhos para os cantos opostos. Asseverou não ser seu desejo dizer o que dissera ou ao menos dizê-lo do modo como o dissera. José, porém, tranquilizou-os a ambos, rogando-lhes que não dessem tamanha importância àqueles fatos nem despendessem tantos esforços por sua causa. Sabia aquilatar a honra, disse, e sentia-se lisonjeado de ouvi-los falar no seu caso, ou se não no caso propriamente, ao menos nas razões pelas quais não podiam estar envolvidos nele. Mas ainda menos lhe competia arvorar-se em juiz, pois que as ordens que recebera eram que fosse seu servo, que indagasse dos seus desejos, como era costume deles. E certo que ambos estavam também habituados a ver executadas as suas ordens, o que, muito a seu pesar, ele muitas vezes não estava em condições de fazer. Mas ao menos teriam uma partezinha daquilo com que estavam acostumados. E perguntou-lhes se queriam honrá-lo com alguma incumbência.
Não, responderam eles pensativamente, não lhes ocorria nada, porquanto, ainda que ocorresse, seria um desejo morto no nascedouro. Mas por que, perguntaram, deixá-los tão depressa? Não lhes diria ele acaso quanto tempo, no seu modo de ver, levaria a investigação das acusações contra eles levantadas e quanto tempo ainda teriam de ficar naquele calabouço?
A resposta de José foi que, se o soubesse, lhes diria tudo sem demora. Mas naturalmente não sabia. Limitava-se a fazer um cálculo de todo em todo arbitrário e, por isso mesmo, nada seguro: passariam, no máximo e no mínimo, uns trinta e mais dez dias até ser decidida a sua sorte.
— Ah, é muito! — queixou-se o copeiro.
— Ah, é pouco! — exclamou o padeiro, mas imediatamente estremeceu pela terceira vez e garantiu-lhes que também ele tencionara dizer que achara muito. O copeiro-mor, porém, refletiu e depois opinou que o cálculo de José lhe parecia sensato, porque dentro de trinta mais sete e mais três dias seria o feliz aniversário de Faraó, data que, como era notório, assinalava um dia de justiça e de compaixão; nesse dia, com toda a probidade, seria decidida a sua sorte.
— Nisso, que eu saiba, não tinha pensado — respondeu José —, nem havia feito meus cálculos tendo em mente essa circunstância. Foi antes uma inspiração; se, porém, o glorioso aniversário de Faraó cai justamente nesse dia, podeis ver que minhas palavras já começam a ser cumpridas.
A MORDEDURA DO RÉPTIL
Dito isto, retirou-se, abanando a cabeça ao pensar nos seus dois recomendados e no seu “caso”, sobre o qual ele sabia alguma coisa mais do que era conveniente mostrar. Ninguém nos dois países podia alardear conhecimentos superiores aos que homens decentes deviam ter, acrescentando que a notícia sobre o caso andava abafada pelas autoridades numa nuvem de circunlóquios e segredo, numa cortina de palavras relacionadas com moscas e fragmentos de giz e com nomes inidentificáveis e forjados, como Odiado de Deus e Escumalha de Vese. Sem embargo, dentro em breve no reino inteiro o caso dos dois áulicos era largamente comentado. Toda a gente, embora empregando os rodeios prescritos, sabia o que aquelas meias palavras ocultavam. A história, apesar da sua índole horripilante, não desagradava de todo à alma popular; dir-se-ia até não lhe faltar certo caráter ritual, parecendo reproduzir no presente acontecimentos que se haviam verificado num passado remoto.
Falando sem ambages: alguém estivera a conspirar contra a vida de Faraó. Eram estes os fatos, apesar de se saber muito bem que os dias da majestade desse deus idoso estavam já contados, como não se ignorava tampouco que sua propensão a unir-se novamente com o Sol não podia ser estorvada nem pela advertência dos mágicos e médicos da casa dos livros, nem mesmo pela mediação de Istar do Caminho, que Tuchrata, rei de Canigalbat ou terra de Mitani no Eufrates e irmão e cunhado de Sua Majestade, solicitamente lhe havia enviado. Mas o fato de a Grande Casa, Si-Rá, Filho do Sol e Soberano das Duas Coroas, Neb-ma-Rá-Amenhotep, ser velho e achacoso, mal podendo já respirar, não era absolutamente motivo para que não se fizesse contra ele uma conspiraçãozinha; essa circunstância era até, se se quiser, uma razão muito boa para que se conspirasse, por tremenda e arriscada que fosse uma tal empresa.
Era um fato universalmente conhecido que Rá, o próprio deus-Sol, primitivamente fora o monarca dos dois países, ou antes, de toda a Terra e de todos os homens, havendo governado pomposamente e acompanhado de bênçãos quando jovem, homem maduro ou de meia-idade e ainda durante um considerável período da sua idade provecta. Fazendo-se, porém, velho demais, e como certas enfermidades penosas e fraquezas, embora esplêndidas na sua forma, se tivessem acercado da majestade desse deus, achara melhor furtar-se à terra e retirar-se às regiões superiores. Pois seus ossos pouco a pouco foram-se tornando de prata, sua carne de ouro e seus cabelos de genuíno lápis-lazúli, belíssima forma de senescência, mas que não deixa de vir com o seu cortejo de doenças e dores, contra as quais os próprios deuses tinham buscado milhares de remédios, mas tudo em vão, uma vez que nenhuma erva que medra pode valer contra os incômodos do douramento, da prateação e lapidificação, apanágio da idade avançada. Contudo, mesmo premido por essas circunstâncias, o velho Rá sentia apego à sua soberania terrena, embora devesse perceber que, em razão da sua própria debilidade, esta começara a afrouxar e ele deixara de ser temido e mesmo respeitado.
Agora Ísis, a Grande da Ilha, Eset, mil vezes fértil em artimanhas, percebeu que seu momento havia chegado. Sua sabedoria abarcava céu e terra, como a do próprio Rá velhíssimo. Havia, porém, uma coisa que ela não sabia, uma coisa até a qual seu domínio não chegava, e cuja ignorância lhe servia de estorvo: ela não sabia o último, o mais oculto nome de Rá, o seu nome final. Se o soubera, teria pleno poder sobre ele. Rá tinha muitos nomes, qual a qual mais oculto, mas nenhum tão oculto que fosse impossível descobri-lo, nenhum, exceto o último e mais poderoso. Este ele ainda o guardava para si; quem quer que conseguisse fazê-lo pronunciar esse nome poderia sobrepujá-lo e ultrapassá-lo uma vez por todas, espezinhando-o com a força da sabedoria suprema.
Por isso Eset concebeu e inventou uma serpente que mordesse Rá na sua dourada carne. Então a incomportável dor da mordedura, que só podia ser curada pela grande Eset, que fizera o réptil, obrigaria Rá a dizer-lhe o seu nome. E tal como a deusa ideou, assim se cumpriu.
O velho Rá foi mordido e, no meio dos seus tormentos, viu-se forçado a ir dizendo, um após outro, os seus nomes secretos, sempre na esperança de que a deusa se daria por satisfeita antes de chegar a vez do derradeiro. Ela, porém, continuou até o último extremo, até ele lhe dizer o mais oculto de todos, e então, de posse desse conhecimento, a diva teve absoluta ascendência sobre o potentado. Depois disto, nada custava a ela curar-lhe a ferida; mas o monarca apenas sentiu ligeira melhora, compatível com os acanhados limites que cerceavam a existência de uma criatura tão idosa, e pouco depois ele cedeu, preferindo o repouso celeste.
Assim rezava a tradição, conhecida na ponta da língua por todos os filhos de Keme. De acordo com ela, parecia indicado atentar contra Faraó, pois que ele foi ficando cada vez pior, até seu estado assemelhar-se tanto ao do velho deus que parecia que os dois se identificavam. Mas houve uma determinada pessoa que tomou verdadeiramente a peito aquele acontecimento remoto. Foi uma das moradoras do serralho de Faraó, o bem vigiado pavilhão particular de construção elegantíssima, contíguo ao paço de Merimat. Faraó ainda uma vez ou outra se fazia transportar até lá, apenas para fazer tagatés a uma ou outra das suas huris, talvez para bater alguma no tabuleiro dos trinta campos e ao mesmo tempo para deleitar-se com o som do alaúde, com as danças e os cantos do resto do luzido e perfumado bando. Frequentemente jogava uma partida exatamente com aquela mulher que levou tão a sério a velha lenda de Ísis e Ri, que cedeu à tentação de reproduzi-la. Ninguém, por versado que seja nos pontos mais sutis desta história, sabe dizer o nome dessa mulher. Esse nome foi aspado da tradição, amortalha-o a noite do eterno olvido. E, no entanto, a mulher tinha sido no seu tempo uma das concubinas favoritas de Faraó, e doze ou treze anos antes, quando ele ainda condescendia em gerar filhos, ela chegou a dar-lhe um, Noferka-Ptach (este nome foi conservado), que, como vergôntea da espécie divina, recebeu uma educação especial e em atenção ao qual ela, uma concubina, teve o privilégio de usar a coifa do abutre. O seu toucado não tinha o esmero do que era usado por Teja, a excelsa consorte real, mas ainda assim era de ouro e representava um abutre. Essa honra e sua fraqueza maternal por Noferka-Ptach subiram-lhe à cabeça e foram fatais à mulher. O toucado incitou-a a confundir-se com a manhosa Eset e a afagar ambições santificadas pela tradição e misturadas com a louca afeição que dedicava ao seu querido bastardo. A antiga crônica desequilibrou-lhe o cerebrozinho cheio de projetos, de modo que ela resolveu pôr perto de Faraó uma serpente que o mordesse, insuflar um motim palaciano e colocar no trono dos dois países não Horus-Amenhotep, o legítimo e sempre enfermiço herdeiro do Sol, mas o fruto de suas entranhas, Noferka-Ptach.
Os preparativos para atingir o fim que era derrubar a dinastia, instaurando uma nova era e guindando a favorita anônima à posição de mãe-deusa, já estavam bastante avançados. O conluio tivera origem no gineceu de Faraó; mas por intermédio de certos funcionários do harém e de alguns oficiais da guarda, ansiosos por uma nova ordem de coisas, a conspirata ia-se articulando, de uma parte, com o próprio palácio, onde um bom número de amigos, alguns altamente colocados — o cocheiro-mor do deus, o chefe da guarda palaciana, o intendente do pomar, o administrador das manadas de bois del-rei, o principal encarregado do depósito das pomadas de que o soberano fazia uso, e mais alguns —, foram conquistados para a causa; e por outra parte eles entraram em contato com o mundo externo, isto é, com habitantes da cidade, onde, por intermédio das mulheres dos oficiais, aderiram à conjura os parentes das huris de Faraó, que se comprometeram a levantar a população de Vese, desfazendo no velho Rá, que àquele tempo não era outra coisa senão ouro, prata e lápis-lazúli.
Eram ao todo setenta e dois os que estavam completamente inteirados do segredo da conspiração. Era um número adequado e prometedor, porque tinham sido justamente setenta e dois os que tramaram com o vermelho Set atrair Osíris para dentro da arca. E estes por sua vez tinham tido boa base cósmica para serem tantos quantos eram, nem mais nem menos. Pois é exatamente esse número de grupos de cinco semanas que forma os trezentos e sessenta dias do ano, desprezados os dias extras; e há precisamente setenta e dois dias no quinto seco do ano, quando o fluviômetro mostra que o Nutridor alcançou sua mais baixa vazante e o deus penetra no seu túmulo. Por isso, onde quer que haja no mundo uma conspiração, é costume ser de setenta e dois o número dos conspiradores. E mesmo que a conjuração fracassasse, o malogro, indubitavelmente, seria ainda pior se o número de implicados não fosse exatamente setenta e dois.
Ora, falhou a presente trama, apesar de ter-se guiado pelos melhores modelos e apesar de todos os preparativos preliminares terem sido feitos com o maior cuidado. O encarregado das pomadas régias chegara até a bifar da biblioteca de Faraó uma fórmula mágica e, seguindo as instruções, tinha fabricado algumas figurinhas de cera; estas, introduzidas furtivamente aqui e ah, se destinavam, segundo se calculava, a produzir por artes mágicas uma tamanha confusão e obcecação mental que assegurariam o êxito da empresa. Ficou decidido que se poria veneno no pão ou no vinho de Faraó ou em ambos e que se aproveitaria a consternação que daí certamente havia de originar-se para dar um golpe palaciano. Isto, combinado com um levante na cidade alta, devia levar à proclamação de uma nova era e à elevação do bastardozinho Noferka-Ptach ao trono dos dois países. Senão quando foi tudo por água abaixo. Talvez no último momento algum dos setenta e dois tenha resolvido que, preferindo a lealdade, faria mais pela sua carreira e pela beleza das pinturas da parede do seu túmulo. E possível também que um chamariz policial se tivesse insinuado desde o princípio entre os conspiradores. Fosse como fosse, uma lista de seus nomes chegou às mãos de Faraó. Foi penoso lê-la, ver ali os nomes de tantos amigos íntimos do deus, frequentadores das suas audiências matinais. Em gera] a lista tinha sido bem organizada, posto que se tivessem intrometido ali alguns nomes cuja identidade podia ser posta em dúvida; e as represálias tiveram início imediato, sendo executadas pela calada e de um modo completo. A Ísis da casa das mulheres foi incontinenti estrangulada por eunucos e seu filho mandado para os confins da Núbia, enquanto era organizada uma comissão com a incumbência de investigar toda a trama e cada delito em particular. E logo após esses fatos as pessoas neles envolvidas receberam o epíteto comum de “Abomínio dos dois países”, e viram seus nomes próprios passarem por tremendas desfigurações. Enquanto isso, os conspiradores, postos em custódia, desapareciam da circulação e ficavam aguardando a decisão do seu destino em condições inteiramente estranhas aos seus hábitos de vida.
E foi assim que o padeiro-mor e o copeiro-mor de Faraó tinham ido parar no cárcere onde José se achava.
JOSÉ SERVE DE INTÉRPRETE
Fazia já trinta e sete dias que eles lá estavam quando uma manhã José fez sua visita habitua] para indagar como tinham passado a noite e saber das suas ordens. Encontrou os dois cavalheiros numa disposição de espírito que se poderia classificar ao mesmo tempo de exaltada, abatida e mal-humorada. Já se iam acostumando à vida simples e tinham deixado de queixar-se. Enfim, não é necessário levar a vida que haviam levado, rodeados de malaquite e diorito, com escravos a esfregar-lhes a sola dos pés. Realmente, com um banheiro à direita e uma retrete à esquerda e alguma oportunidade para disparar setas e jogar bola em vez da senhoril caça às aves, a vida afinal não é tão mim. Hoje, todavia, pareciam ter voltado definitivamente à sua antiga condição de crianças criadas com mimo. Mal José apareceu, desafogaram as velhas e amargas lamúrias, dizendo que no fim das contas lhes faltavam as mais elementares comodidades e que sua vida ah, ainda que sinceramente se esforçassem por se reconciliar com ela, continuava sendo uma vida de cão.
Respondendo às compassivas perguntas de José, disseram-lhe que haviam sonhado na noite anterior. Cada qual tinha tido o seu sonho, um sonho altamente impressionante, inesquecível, de um sabor especial, parecendo uma coisa viva, real. Não havia dúvida possível: aqueles sonhos significavam alguma coisa, pareciam trazer na testa uma tabuleta com estes dizeres: “Interpreta-me direito.” Estavam quase pedindo a vozes que os interpretassem. E lá na sua morada cada um deles tivera seu explicador de sonhos, homens versados em sondar os obscuros produtos das horas noturnas, dispondo de olhos para cada detalhe de alguma importância, munidos dos melhores tratados de oniromancia, tanto babilônicos como egípcios, não lhes sendo preciso mais que folhear algumas páginas se as ideias não lhes acudiam. E se ainda assim se viam desnorteados, se os livros não lhes eram prestadios, os dois cortesãos tinham o recurso dos profetas do templo e dos doutos escrivães que, reunindo seus esforços e poderes, certamente chegariam ao fundo da matéria. Numa palavra, em cada caso semelhante tinham sido sempre servidos prontamente, com eficiência e de maneira aristocrática. Mas agora e ali? Tinham sonhado; cada um deles tivera seu sonho especial, surpreendente, de um sabor completamente estranho; aquilo não lhes saía da cabeça e não havia ninguém naquela maldita lura para lhes explicar o que haviam sonhado e servi-los como estavam afeitos a ser servidos. Esta era uma privação mais intolerável que a perda das camas fofas, do pato assado, da caça às aves; aquilo dava-lhes a medida da sua degradação e lhes arrancava lágrimas.
José, que escutava, esticou um pouco os beiços.
— Bem, senhores meus — disse ele —, antes de tudo, se pode servir-vos de consolação saber que alguém sente convosco as vossas contrariedades, vede em mim esse alguém. Mas talvez fosse possível fazer alguma coisa para suprir essa falta que tanto vos fere e molesta. Eu fui designado para servir-vos e assistir-vos e tenho de ser aqui, vamos dizer, uma espécie de pau para toda obra. Por que então não serviria também para explicar sonhos? Olhai que não é essa uma seara em que eu não meta a foice. Posso mesmo gabar-me de certa familiaridade com sonhos. Não leveis a mal o que digo, porque assim é. Na minha família e na minha tribo foi sempre um hábito nosso termos sonhos interessantes. Meu pai, o rei dos pastores, enquanto viajava, teve em certo lugar um sonho tão extraordinário que revestiu todo o seu ser de dignidade para o resto de seus dias; era sempre um prazer pouco vulgar ouvi-lo narrar sua visão. Eu mesmo, na minha vida passada, andei bastante implicado em sonhos, razão pela qual meus irmãos me puseram uma alcunha zombando dessa extravagância minha. Já vos habituastes resignadamente a tanta coisa, que talvez agora vos contenteis comigo e me conteis os vossos sonhos para que eu os tente interpretar.
— Sim, realmente — disseram. — Esplêndido! Es uma pérola de moço e, quando falas em sonhos, fitas o espaço com um olhar velado de teus olhos tão deliciosos, tão lindos mesmo, que quase podemos ter confiança na tua capacidade. Mas, vamos e venhamos, uma coisa é sonhar, outra interpretar o sonho.
— Não digais tal! — respondeu José. — Não o digais sem mais nem menos. Pois pode bem ser que o sonhar seja um só todo, no qual sonho e interpretação se completem e sonhador e intérprete apenas aparentemente sejam duas pessoas distintas, ao passo que na realidade são uma e a mesma, visto como juntas forma o todo. Quem sonha também interpreta, e quem quer que tenha interpretado é porque sonhou. Conspícuos Príncipe do Pão e Escanção-Mor, vivendo no luxo, sempre recorrestes a uma desnecessária divisão do trabalho, de maneira que, quando sonháveis, a explicação ficava a cargo dos vossos videntes e adivinhos. Mas na essência e por natureza toda a gente é intérprete dos seus próprios sonhos e só por um requinte de elegância deixa ao cuidado alheio a respectiva interpretação. Vou revelar-vos o mistério do sonho: a interpretação antecede o sonho, e, quando sonhamos, o sonho procede da interpretação. Se assim não fosse, como explicar que um homem sabe quando uma interpretação é falsa e brada: “Vai-te, parlapatão! Vou procurar outro adivinho que me diga a verdade?” Então, fazei ao menos uma tentativa comigo, e, se eu errar ou não interpretar conforme a aprovação da vossa própria consciência, expulsai-me ignominiosamente.
— Eu não contarei o meu — disse o padeiro-mor; — estou acostumado com um serviço melhor e prefiro passar sem esse como passo sem outras coisas. Não me convém tomar como intérprete um simples diletante.
— Pois eu direi o meu — falou o copeiro. — E que ando tão aflito para saber as coisas, que gostosamente estou pelo que der e vier, sobretudo porque vejo esse jovem tão familiarizado com o assunto e acho graça no seu modo de apertar e velar os olhos de uma forma tão promissora. Mancebo, apresta-te para ouvir e interpretar; mas cuidado, muito cuidado e calma, como de calma e cuidado deverei armar-me para escolher as palavras próprias e não deturpar meu sonho ao narrá-lo. Ele foi tão claro, tão vivo, tão ao natural, tão referto de inimitável sabor! Todos sabemos como um sonho assim se encolhe sob o efeito das nossas palavras, e se torna a imagem mumificada, encarquilhada, enfaixada daquilo que foi quanto o tivemos e ele era verde, florido e dando fruto como a videira que estava diante de mim naquele meu sonho... E não é que já comecei a contá-lo? Pareceu-me, pois, estar com Faraó no seu vinhedo e debaixo do telhado do abobadado caramanchel onde o soberano descansava. Eu via diante de mim uma maravilhosa cepa na qual havia três varas separadas. Ela ficou verde e tinha folhas como mãos humanas; mas conquanto o caramanchel vergasse ao peso dos cachos de uva, a videira ainda não dera frutos porque isso ia acontecer à minha frente no meu sonho. E eis que ela cresce diante dos meus olhos e começa a florir, aparecendo entre a folhagem belas flores já desenvolvidas, e as três varas deram uvas que amadureceram visivelmente e com a rapidez do vento e suas bagas purpúreas eram roliças como as minhas bochechas e mais cheias que nenhumas uvas destes arredores. Muito me regozijei e com a mão direita apanhei os cachos, enquanto com a esquerda segurava a taça de Faraó, em que havia água fria até o meio. E com toda a alma espremi o sumo das uvas dentro da taça, lembrando-me, ao fazê-lo, de que tu, mancebo, espremes um pouco de suco de uva dentro d’água e no-lo dás quando pedimos vinho. Depois pus a taça nas mãos de Faraó. Foi só isso.
E com essas toscas palavras, acanhadamente, rematou o copeiro a narrativa do seu sonho.
— E não é pouco — acrescentou José, abrindo os olhos, que conservara fechados enquanto fora todo ouvidos para o narrador. — Havia a taça, havia água dentro dela, e tu mesmo espremias o sumo diretamente da cepa com as três varas e o davas ao senhor das coroas. Foi um dom puro e nele não havia moscas. Devo interpretá-lo?
— Mais que depressa! — gritou o outro. — Mal posso esperar!
— É esta a interpretação — disse José. — As três varas denotam três dias. Passados estes, receberás a água da vida e Faraó erguerá de novo a tua cabeça e retirará de ti o nome da vergonha, de modo que serás chamado de novo “Justo em Tebas” como antes, e te restituirá ao teu antigo emprego e tu lhe darás a taça conforme o teu oficio, assim como costumavas fazer antes. Ai está.
— Estupendo! — bradou o gordo. — Uma interpretação belíssima, magistral! Nunca fui tão bem servido em toda a minha vida, e tu, doce jovem, prestaste ao meu espírito um inestimável serviço. Três varas — três dias! Como pudeste ter isso assim na ponta da língua, esclarecido jovem? E “Probo em Tebas” outra vez como antes, e tudo como costumava ser, e novamente amigo de Faraó! Obrigado, obrigado, mil vezes obrigado!
E começou a chorar de alegria.
José, porém, lhe disse:
— Conde distrital de Abodu, Nefer-em-Vese! Fiz para ti uma profecia de acordo com o teu sonho. Foi coisa fácil e feita com agrado e folgo de haver podido ministrar-te uma interpretação feliz. Em breve te verás rodeado de amigos, por teres sido declarado inocente; mas aqui entre estas quatro paredes quero ser eu o primeiro a apresentar-te os parabéns. Fui vosso servo e despenseiro durante trinta e sete dias e o serei por mais três, por ordem do governador; indaguei das vossas ordens e vos acenei com algumas das vossas costumeiras delícias, isso na medida dos nossos parcos recursos. Vim ter convosco aqui na casa do abutre de manhã e à tardinha e fui como um anjo de Deus, se me é permitido expressar-me assim, em cujo peito pudésseis depositar vossas mágoas e encontrar compaixão do fado estranho que vos tocou. Vós, porém, nem por isso me perguntastes muita coisa sobre a minha pessoa. E todavia, tal como vós, eu não nasci nesta cova nem a escolhi como mansão minha; aqui baixei nem sei como, posto aqui como escravo do rei, condenado por uma culpa que não passa de uma falsidade perante Deus. Vossos espíritos estavam muito cheios dos vossos próprios infortúnios para que vos pudesse sobrar sentimento ou interesse pelo meu. Mas não te esqueças de mim e dos meus serviços, Conde Copeiro-Mor; pensa em mim quando te vires restituído à tua antiga glória. Fala a meu respeito diante de Faraó e chama sua atenção para o fato de estar eu aqui encarcerado por puro equívoco, e intercede em meu favor para que ele benignamente me arranque desta prisão onde estou tão contra a minha vontade. Pois a furto fui tirado em menino da minha terra e trazido para o Egito, e me lançaram aqui nesta enxovia, onde sou como a Lua quando um espírito adverso lhe atalhou o seu curso, de modo que ela não pode prosseguir brilhando diante dos deuses seus irmãos. Farás isto por mim, Conde Copeiro-Mor, e falarás a meu respeito na corte?
— Sim, é claro, mil vezes sim — respondeu o gordo. — Prometo-te mencionar o teu nome na primeira vez que me vir diante de Faraó e lembrar-lho mais tarde se tiver saído da sua memória. Seria o cúmulo se não pensasse e não falasse em ti e em teu prol, porquanto me é inteiramente indiferente se furtaste ou foste trazido a furto. Tu serás mencionado e perdoado, doce, melífluo jovem!
E abraçou José e o beijou na boca e em ambas as faces.
— Mas eu também sonhei — disse o homem comprido —, embora pareça que esse fato tenha sido esquecido aqui. Se eu soubesse, ibrim, que eras um intérprete tão hábil, não teria recusado o teu auxílio. Agora propendo a contar-te por minha vez o meu sonho, na medida em que o possa fazer por palavras, e tu mo interpretarás. Apresta-te para ouvir.
— Eu ouço — tornou José.
— O que eu sonhei — disse o padeiro — foi o seguinte. Sonhei... mas bem podes ver que coisa ridícula foi o meu sonho, pois como poderia eu, Príncipe de Menfe, que nunca meti minha cabeça dentro de um forno, como poderia eu, como qualquer moço de padaria, estar entregando roscas e biscoitos? — mas basta que eu diga que lá estava, no meu sonho, carregando sobre a cabeça três cestos de roscas finas, um por cima do outro, cestos chatos, adaptando-se um dentro do outro, cada qual cheio de toda a sorte de manjares que os padeiros fazem de massa, e no que ia por cima de todos e estava destapado havia coisas confeiçoadas na padaria do palácio e destinadas a Faraó, filhós e roscas. Nisso uma revoada de aves veio revoluteando, de asas abertas, unhas à vista, pescoços estirados, olhos esbugalhados, soltando grasnidos. E, com a maior afoiteza, essas aves se despenhavam e comiam o que eu levava em cima da cabeça. Quis levantar minha mão livre e abaná-la por cima do cesto, enxotando as atrevidas, mas não pude, porque minha mão pendia ao meu lado, sem ação, como que tolhida. Retalhavam a comida toda e o bater das asas perpassava por mim como um vento e o fartum que delas se desprendia era penetrante. — Aqui o padeiro estremeceu, como sempre fazia, ficou pálido e procurou sorrir no deformado canto da sua boca. — Isto é — emendou —, não deves imaginar que as aves, com seus bicos abertos e seus olhos estourados e o cheiro pestilente que ia pelo ar, fossem coisas extremamente repugnantes. Eram simplesmente aves, pássaros comuns, e, quando eu disse que retalhavam (não me recordo bem se o disse, mas é possível), foi um termo forte demais, empregado para dar-te uma ideia do meu sonho. Eu devia dizer que debicavam no alimento. As avezinhas vieram bicar no meu cesto, pensando provavelmente que eu ia dar-lhes comida, uma vez que não havia nenhum pano cobrindo o cesto de cima. Em resumo, a situação era bem natural no meu sonho, salvo no que se refere a mim, Príncipe de Menfe, a carregar produtos de padaria em cima da cabeça, e naturalmente naquilo da minha mão estar sem jogo, conquanto seja bem provável que eu não quisesse bulir com ela para não espantar os pássaros. Foi só isso.
— Devo interpretar? — inquiriu José.
— Se te apraz — volveu o padeiro.
— Os três cestos — disse José — significam três dias depois dos quais Faraó te tirará desta casa e erguerá a tua cabeça, amarrando-te num poste e suspendendo-te numa forca, e as aves do céu despedaçarão tuas carnes. Infelizmente é isto.
— Que estás dizendo? — gritou o padeiro, escondendo o rosto com as mãos, enquanto as lágrimas se lhe escapavam por entre os dedos cheios de anéis.
José, porém, o confortou dizendo:
— Não te aflijas demasiado, eminente Padeiro-Mor, nem te desfaças tu tampouco, senhor da vinha, em lágrimas de alegria. Mas antes aceitai com nobreza o que sois e tomai o que a cada um de vós toca. Pois o mundo também, sendo inteiriço e redondo, tem um lado superior e um inferior, um bom e outro mau; entretanto, não devemos dar excessiva atenção a essa dualidade, porque no fundo o boi não é melhor nem pior que o asno, eles podem com facilidade trocar de papéis e juntos fazem um todo. Pelas lágrimas que ambos estais derramando, podeis ver que não é tão grande a diferença entre os dois cavalheiros. Tu, conspícuo Chefe-Geral dos Brindes, não te ensoberbeças, porque só és bom duma maneira relativa, e eu suspeito que a tua inocência consiste apenas em que ninguém se aproximou de ti pelo lado do mal em razão da tua tagarelice, que punha desconfiança em todos. Assim ficaste ignorando o mal. E não te recordarás de mim quando tornares ao teu reino, apesar das promessas que me fizeste; digo-te isso de antemão. Só tarde e forçadamente o farás. Quando tal se der, lembra-te do que agora te estou dizendo. E quanto a ti, Mestre Padeiro, não desesperes! Porque, segundo penso, tu entraste na conspiração julgando-a respeitavelmente amparada e confundiste o mal com o bem, o que é muito fácil de acontecer. Vê, tu és do deus quando ele está embaixo e teu companheiro é do deus quando ele está em cima; ambos sois do deus, e o erguer da cabeça não é menos erguer pelo fato de o ser na cruz de Osíris, na qual, efetivamente, às vezes se vê um asno, em sinal do que Set e Osíris são o mesmo.
Assim falou o filho de Jacó aos dois finos cavalheiros. Volvidos três dias da interpretação dos sonhos, vieram buscá-los à prisão e as cabeças de ambos foram levantadas: a do copeiro com honra, a do padeiro com infâmia, pois que este foi justiçado. Aquele, porém, esqueceu-se completamente de José, porque tinha horror em sequer recordar-se do cárcere e por isso não mais pensou no seu antigo despenseiro.
2
A CHAMADA
NEB-NEF-NEZEM
Depois destes acontecimentos José ficou ainda dois anos na prisão, no seu segundo fosso, para que alcançasse a idade madura e chegasse aos trinta anos antes que o tirassem dali a toda pressa, porque agora era o próprio Faraó que sonhara. No espaço de dois anos Faraó havia sonhado. Ele teve de fato dois sonhos, mas, como ambos vinham a dar no mesmo, podemos mencioná-los como sendo uma coisa única. Comparada com outra, a questão é ociosa, e o essencial é que, quando agora falamos de Faraó, a palavra já não tem, num sentido pessoal, o significado que tinha quando o padeiro-mor e o copeiro-mor tiveram seus sonhos. Porque Faraó se diz sempre, e sempre é Faraó, mas ao mesmo tempo ele vem e vai, tal qual o Sol é sempre e também vai e vem. Assim agora, isto é, pouco depois que as cabeças dos dois cavalheiros entregues aos cuidados de José haviam sido levantadas, mas de maneira oposta, Faraó tinha ido e vindo. Com isso aludimos a muita coisa que José não viu porque estava no cárcere e no bor, e só um débil eco do memorável acontecimento chegou até ele, a saber, a mudança de reinado, a lamentosa despedida de um dia do mundo e a exultante aurora de outro, uma nova era da qual os homens esperavam uma mudança para melhor, pouco importando quão excelente, humanamente falando, tenha sido a outra. Nesse dia, pensavam e acreditavam, a justiça espancará a injustiça, “a Lua virá a seu devido tempo” (como se antes isso se não houvesse dado) — em resumo, dali por diante a vida seria uma quadra risonha e cheia de assombros. Razão, está-se vendo, mais que suficiente para que toda a população desse pulos de alegria e durante semanas se entregasse a descabeladas libações — isso, naturalmente, após um período de luto em que se vestiam de saco e se polvilhavam de cinza, o que de maneira alguma era uma convenção hipócrita, mas sincero pesar pelo término dos tempos antigos. Pois o homem não é um ser contraditório?
Tantos anos quantos dias o principal dos seus copeiros e o intendente-geral dos seus fomos tinham passado em Zavi-Rá, isto é, quarenta, o filho de Amun, filho de Tutmés e da filha do rei de Mitani, Neb-ma-Rá-Amenhotep III, havia refulgido no esplendor do trono de Nimúria e construído seus palácios; então morreu, uniu-se ao Sol, tendo tido no fim da vida o desgosto de presenciar a conspiração dos setenta e dois que quiseram atraí-lo para dentro da caixa. Mas agora de qualquer forma ele estava dentro dela. E que caixão esplêndido era, todo tachonado de pregos de ouro puro! Lá jazia ele, conservado no sal e no betume, acondicionado para durar eternamente com madeira de zimbro, terebintina, resina de cedro, estoraque e mastique, e envolvido em quatrocentas braças de faixas de linho. Foram necessários setenta dias até que o Osíris ficasse pronto. Depois colocaram-no num carro de ouro puxado por novilhos, onde ia a barca transportando o féretro com pés de leão e coberto por um baldaquim. Precedido de aromatóforos e de borrifadores d’água e acompanhado por uma multidão de carpideiras e carpidores aparentemente transidos de mágoa, era levado à sua eterna morada nas montanhas, uma tumba de muitos repartimentos providos de todas as comodidades. Diante da porta do sepulcro era realizada uma cerimônia, o chamado “abrimento da boca”, com o pé do bezerro Horus.
A rainha e a corte já não ficavam emparedadas dentro daquela mansão de vários compartimentos, para ali morrerem à fome e apodrecerem ao lado do morto. Os dias em que isso era considerado necessário ou decente tinham desaparecido há muito na voragem do passado, o costume decaíra e ficara esquecido, e por quê? Que tinham eles contra essa usança e por que estava ela afastada de todos os espíritos? Entregavam-se largamente a observâncias antiquíssimas, praticavam encantamentos com o maior zelo, calafetavam todas as fendas do excelso cadáver com sortilégios contra o mal e praticavam fielmente a cerimônia com o instrumento do pé de bezerro, conforme o ritual inviolável. Mas do emparedamento da corte régia não queriam saber. Não somente se mostravam avessos à sua prática, como não consideravam aquele uso uma boa ideia, como antes se julgava, mas até procuravam esquecer que o costume já fora observado e reputado conveniente. Nem os tradicionalmente emparedados nem os emparedadores pensavam mais no caso. Evidentemente essa usança era incompatível com a claridade do dia presente — pertença este a uma época primitiva ou avançada —, o que não deixa de ser digno de nota. Para muitos o notável do caso será o costume em si mesmo, o enclausuramento perpétuo dos vivos. Mas certamente mais notável é que um dia, de comum acordo, tácita e talvez inconscientemente, o costume deixou de ser objeto de consideração.
Toda a corte sentou-se e pôs a cabeça sobre os joelhos e todo o povo ficou de luto. Em seguida todos levantaram a cabeça, dos confins do país dos negros até o delta e de deserto a deserto, e saudaram entusiasticamente a nova época que não mais conheceria a injustiça, em que “a Lua viria a seu devido tempo”; levantaram a cabeça em exultante acolhida ao filho e sucessor, rapaz simpático apesar de não bonito, o qual, se os cálculos estavam certos, tinha apenas quinze anos de idade, estando ainda sob a guarda de Teje, a viúva-deusa, a mãe de Horus, a quem por algum tempo estariam ainda entregues as rédeas do governo. Foi entronizado e coroado com as coroas do Alto e Baixo Egito. Houve grandes comemorações, revestidas de extraordinária pompa, realizando-se uma parte delas no Paço Ocidental de Tebas, mas a parte mais solene no local da coroação, Per-Mont, para onde o novel Faraó e sua mãe, cercados de plumas e penachos e com esplêndido cortejo, se dirigiram rio acima na celeste barca “Estrela dos Dois Países”, por entre as aclamações da multidão que se comprimia nas margens. Quando de lá tornou, trazia os seguintes títulos: “Forte Touro Pugnaz”, “Valido das Duas Deusas”, “Grande na Realeza em Karnak”, “Falcão Dourado que levantou as Coroas em Per-Mont”, “Rei do Alto e Baixo Egito”, “Nefer-Keperu-Rá-Vanre”, que significa “Belo de aparência é ele que é único e para quem ele é o único”; “filho do Sol, Amenhotep”, “Divino Soberano de Tebas”, “Grande na Duração”, “Vivo por toda a Eternidade”, “Amado de Amun-Rá, Senhor dos Céus”, “Sumo Sacerdote daquele que exulta no Horizonte em virtude do seu Nome que é ‘Ardor que está em Aton’”.
Assim foi chamado o jovem Faraó depois da sua coroação. Aquela combinação de títulos, segundo José e Mai-Sachme, resultou de um acordo a que chegaram, após renhidas disputas e concessões mútuas, os potentados do paço e do altar. Porquanto a corte se inclinava para o complacente senso solar de Atum-Rá, ao passo que as forças ciosas e opressivas do templo de Amun tinham conseguido uma ou outra inclinação profunda diante do Altíssimo tradicional, mas só depois de transigirem assaz claramente em relação ao que em On se acha no vértice do triângulo. O régio adolescente, consagrado como Grande Vidente de Rá-Horachte, achara modo de incluir ainda na cauda dos seus títulos o nome nada tradicional “Aton”. Sua mãe chamava o seu forte touro pugnaz, que de resto não tinha a mais ligeira semelhança com um touro, simplesmente “Meni”. Mas o povo, segundo contaram a José, designava-o com outro nome, um nome delicado e meigo: chamava-lhe “Neb-nef-nezem”, “Senhor do hálito doce”, não se sabia bem por quê. Talvez porque era conhecida a sua predileção pelas flores do seu jardim, com cuja fragrância gostava de deleitar o olfato.
José, pois, no seu fosso, perdeu todos esses espetáculos e todo o alegre alvoroço que os acompanhava. O único sinal de alegria na prisão era que os soldados de Mai-Sachme tinham licença de embriagar-se três dias seguidos. José não assistia a tudo isso; por assim dizer, não estava presente na Terra quando o dia mudou, o amanhã se tornou hoje, o Sol de amanhã se transformou em Sol de hoje. Só soube que isto acontecera, e lá da sua masmorra lançou os olhos para o Sol. Soube que a juvenil noiva-irmã de Neb-nef-nezem, outra princesinha de Mitani, que seu pai pedira para ele em casamento em carta escrita ao rei Tuchrata, desaparecera, indo para o ocidente, quase imediatamente depois de chegar ao seu destino. Ora, Meni, o forte touro pugnaz, estava perfeitamente acostumado a esses desaparecimentos. Tinha havido sempre muita morte em derredor dele. Todos os seus irmãos e irmãs haviam morrido, alguns antes de ele nascer, outros depois, entre estes um irmão; sobrevivera apenas uma irmãzinha, nascida mais tarde, e esta também mostrava uma tão forte inclinação para o ocidente que quase nunca era vista. Ele tampouco parecia fadado a viver para sempre, a julgar pelas figuras de arenito que os aprendizes de Ptach fabricavam representando-o. Era, porém, imprescindível que ele continuasse a linhagem do Sol antes de também partir; por isso casara, estando vivo ainda Neb-ma-Rá-Amenhotep, com uma jovem da nobreza egípcia de nome Nefertiti, que agora se tornara sua excelsa consorte e senhora dos dois países e a quem ele dera o brilhante título de “Nefernefruaton” — “Formoso além de toda formosura é Aton”.
José perdera também a festa das bodas e o espetáculo da multidão em delírio nas margens. Teve, porém, notícia dela e tomou boa nota a respeito do novo monarca. Por intermédio de Mai-Sachme, que no desempenho do seu cargo tinha de saber de muita coisa, inteirou-se, por exemplo, de que Faraó, mal levantara as duas coroas em Per-Mont, dera ordem para se rematar a toda pressa a construção da casa de Rá-Horachte-Aton em Karnak, iniciada já por seu falecido pai. Foi dada uma ordem especial para se erigir no pátio aberto do templo um gigantesco obelisco de silharia sobre majestosa base. O sentido solar desse obelisco, fundado nas doutrinas de On no vértice do triângulo, era um evidente desafio a Amun. Com isto não se quer dizer que Amun tivesse por si e em si alguma coisa contra a vizinhança de outros deuses. Bem em redor da sua grandeza existiam muitas casas e santuários em Karnak. Ptach, o enfaixado, Min, o de olhos fitos, Montu, o falcão, e alguns outros tinham templos ali, e Amun lhes tolerava o culto na sua vizinhança e não por mera benevolência, mas porque a multiplicidade de deuses egípcios parecia vantajosa e importante a seu espírito conservador, contanto, naturalmente, que ele, o principal, reinasse sobre todos como rei dos deuses e estes lhe rendessem de vez em quando seus respeitos, que ele até se dispunha a retribuir-lhes em ocasião oportuna, visitando-os. Mas no caso presente não havia cogitar de visitas; na nova arca excelsa e casa do Sol não haveria imagem, nada a não ser o obelisco que ameaçava ser arrogantemente alto. Afinal já não se estava na época dos construtores de pirâmides, quando Amun era pequeno e Rá muito grande no seu horizonte, quando Amun não tinha ainda incorporado Rá em si, tornando-se Amun-Rá, deus do império e rei dos deuses. Entre estes agora Rá-Atum, por sua parte e no seu gênero, podia, ou melhor, devia continuar a existir, não porém num sentido presunçoso, não como um novo deus chamado Aton, com ares e fumos de querer filosofar sobre si mesmo. Isto só ficava bem a Amun-Rá, ou antes, nem mesmo a ele; o pensar era, já de per si, só pouco decente, pois que a única posição conveniente nesse assunto era que Amun e nenhum outro era o rei da tradicional multidão de deuses do Egito.
Mas ainda no reinado de Neb-ma-Rá tinha havido já na corte uma boa dose de elegante especulação sobre a matéria, e agora parecia que esse abuso ia grassar em toda parte. O jovem Faraó expedira um edito e mandara gravá-lo na pedra para comemorar a ereção do obelisco. Nele se evidenciava muito esforço sutil para definir a natureza do deus-Sol duma forma nova e aberrante da tradição; na verdade, a definição era engenhosa demais, a ponto de parecer retorcida. “Vive”, dizia a inscrição, “Rá-Hor dos dois horizontes, e exulta no horizonte em seu nome ‘Chu’, que é o Aton.”
Isto era obscuro, conquanto se referisse à própria luz e tencionasse ser claro. Era complicado, embora visasse à simplificação e à unificação. Rá-Horachte, um dos deuses do Egito, tinha uma forma tripla: animal, humana e divina. Sua figura era a de um homem com cabeça de falcão sobre a qual estava o disco solar. Mas ainda como constelação celeste era triplo: no seu nascimento no seio da noite, no zênite da sua idade viril e na sua morte no poente. Vivia uma vida de nascimento, de morte e de renovada geração, uma vida que mirava a morte. Mas quem tivesse ouvidos para ouvir e olhos para ler a inscrição gravada na pedra entendia que a declaração doutrinai de Faraó não desejava que a vida do deus fosse compreendida como um ir e vir, um nascer, passar e nascer outra vez, como uma vida destruída pela morte e por isso fálica, enfim, não como uma vida, porque esta sempre visa a morte, mas como pura existência, como a imutável fonte da luz, não sujeita a altos e baixos, a cuja imagem em algum tempo futuro homens e aves se furtassem, de modo que só permanecesse o puro disco solar irradiando vida, chamado Aton.
Isto era entendido ou desentendido, mas em todo caso vivamente discutido por quantos tinham competência para fazê-lo e ainda pelos totalmente desprovidos de quaisquer luzes e que simplesmente falavam por falar. Até ao fosso onde José se achava já chegara essa conversa; discorriam sobre a questão os próprios soldados de Mai-Sachme, bem como os presos trabalhando na pedreira, sempre que para tanto lhes sobrava fôlego. E ao menos isto todos compreendiam, isto é, que aquilo devia exasperar Amun-Rá, não lhe sendo menos odioso o grande obelisco colocado bem perto do seu nariz, e ainda certas ordens de grande alcance dadas por Faraó, relacionadas com a sutil definição contida na inscrição e que iam mesmo muito mais longe. Assim, o grande terreno onde crescia a nova casa do Sol ia receber o nome de “Esplendor do Grande Aton”. Mais: espalhara-se o boato de que a própria Tebas, Vese, a cidade de Amun, ia passar a ser chamada “Cidade do Esplendor de Aton”. Isto era muitíssimo comentado. Até os moribundos sobre os catres do hospital de Mai-Sachme falavam nisso, quando já a língua se lhes entaramelava nos arrancos finais, sem falar naqueles que tinham simplesmente sarna ou tracoma, de maneira que periclitava bastante o sistema curativo do capitão, baseado na calma e no sossego.
O senhor do hálito doce, ao que parecia, não podia fazer mais nem melhor para incrementar seus intuitos e a causa do amado deus da sua doutrina, isto é, a construção do templo. Era tal o afa de se levar a cabo a obra com o máximo empenho e velocidade que foram postos a trabalhar nela todos os pedreiros de Jebu, da ilha dos Elefantes, até o delta. E todavia nem uma tão pujante concentração de forças conseguiu dar à casa de Aton a estrutura conveniente a uma morada perpétua. Era tal a pressa de Faraó, tal a sua impaciência, que ele abandonou o emprego dos enormes blocos usados para a ereção das tumbas dos deuses, por serem muito difíceis de talhar e de transportar. Deu ordem para que na edificação do templo da luz imutável se utilizassem pedras pequenas que podem ser passadas de mão em mão. Por isso foi preciso usar uma espessa camada de argamassa e cimento a fim de tornar lisas as partes destinadas a receber os baixos-relevos pintados que elas deviam ostentar. Disso Amun fizera grande chacota, segundo se dizia de todos os lados.
Foi assim que o curso dos acontecimentos chegou a Zavi-Rá e envolveu o filho de Jacó, embora este não o presenciasse. Porque a pedreira de Mai-Sachme teve de fornecer muita pedra para a apressada edificação de Faraó e a José incumbia estar prestes à testa do seu corpo de capatazes para ver que picaretas e alavancas estivessem sempre em movimento, de modo que o governador da prisão não recebesse censuras disfarçadas em floreios estilísticos na sua correspondência com o governo. Quanto ao mais, continuava a aguentar sua suportável punição em Zavi-Rá, em companhia do seu brando chefe. Era coisa monótona, como o próprio modo de falar do capitão, porém suavizada pela expectativa. Pois havia muito que esperar, tanto próxima como remotamente, e primeiro proximamente. Para ele o tempo ia passando na forma usual, nem muito depressa, nem devagar demais, porque para quem vive na expectativa passa devagar, mas, se o olhar retrocede, o tempo parece ter passado assaz rapidamente. José viveu em Zavi-Rá até chegar aos trinta anos, sem prestar muita atenção a isso. De repente chegou o grande dia e o alado mensageiro, dia esse capaz de fazer Mai-Sachme perder a calma e ensinar-lhe a sensação de espanto, se já não estivesse à espera de grandes coisas para José.
O MENSAGEIRO EXPRESSO
Chegou uma barca, com proa recurvada com lotos e com velas purpúreas; de tão leve, quase voava, tripulada por cinco remadores de cada lado e trazendo o sinal da realeza. Era uma embarcação expressa da própria flotilha de Faraó. Ancorou suavemente no desembarcadouro flutuante de Zavi-Rá e dela saltou um jovem, esguio e leve como o barco que o trouxera, de cara macilenta e compridas pernas nervudas. Debaixo da vestidura de linho arfava-lhe o peito, estava sem fôlego ou pelo menos fingia estar. Não havia motivo para se mostrar tão esbaforido. Afinal viera embarcado, não a correr pelo caminho. Seja como for, correu ou voou com extrema rapidez transpondo o portão e atravessando o pátio de Zavi-Rá, abrindo caminho e impedindo que o detivesse quem quer que fosse, soltando uma série de gritinhos, não muito altos mas desconcertantes para que os atônitos e inativos guardas não lhe embargassem o passo, e perguntando pelo capitão com quem desejava falar imediatamente. Correu, pois, ou voou com tal velocidade para a cidadela que lhe haviam mostrado, que, apesar da sua conformação delgada, o simulado esbaforimento podia bem ter-se tornado real quando ele lá chegou. Certamente de nada valiam ao seu intento as asinhas que trazia nas sandálias e no casquete, pois que ali estavam só como distintivo do seu cargo.
Ocupado na contadoria, José viu o açodamento do recém-chegado, mas não fez caso, nem quando lhe chamaram a atenção para o emissário. Continuou a folhear documentos e papéis com o principal amanuense até que um subalterno qualquer veio correndo, também esbaforido, com ordem para que José largasse qualquer coisa, por importante que fosse, e se apresentasse imediatamente ao capitão.
—Já vou — disse; mas primeiro terminou o despacho do documento que com o amanuense examinava. Depois, naturalmente sem parar pelo caminho, mas também sem correr, dirigiu-se à torre onde ficava o governador.
A ponta do nariz de Mai-Sachme estava meio branca quando José entrou no laboratório. Suas bastas sobrancelhas estavam mais levantadas que de costume, seus lábios mais apartados.
— Eis-te afinal — disse em voz baixa a José. —Já devias estar aqui antes. Ouve o que este te vai dizer.
E indicou o alado mancebo que estava de pé ao seu lado, mas não se mantinha quieto, pois seus braços, sua cabeça, seus ombros e pernas mexiam tanto que ele parecia correr de um lado para outro para ficar mais esfalfado As vezes punha-se sobre os dedos dos pés, como se quisesse desferir o voo.
— Teu nome é Osarsif? — perguntou baixinho, em voz precipitada, olhando fito para José. — Es o auxiliar do capitão que esteve encarregado de atender certos ocupantes da casa do abutre há dois anos aqui?
— Eu o sou — respondeu José.
— Então deves vir comigo assim como te achas — disse o outro, com saracoteio ainda maior. — Sou o primeiro correio de Faraó, seu veloz mensageiro e vim com o barco expresso. Deves acompanhar-me imediatamente para que eu te leve à corte, pois tens de comparecer perante Faraó.
— Eu? — perguntou José. — Como pode ser isso? Sou muito insignificante.
— Insignificante ou não, é a formosa vontade e ordem de Faraó. Quase sem fôlego a transmiti ao teu capitão e sem sequer tomar fôlego deves obedecer à chamada.
— Fui posto neste cárcere — respondeu José — certamente por engano e, falando de outra maneira, fui conduzido a furto até aqui. Mas sou em todo o caso um prisioneiro condenado a trabalhos forçados e, conquanto não possas ver meus grilhões, eu os tenho. Como poderia sair contigo, atravessando estas paredes e portões, e meter-me no teu barco?
— Isto nada tem que ver com o caso — prosseguiu à pressa o recadeiro —, nada é comparado com a formosa ordem que dissipa tudo que disseste e num santiamém quebra todos os grilhões. Nada pode opor-se à excelsa vontade do soberano. Mas não temas, pois é quase certo que não te sairás bem da prova; é muito provável que dentro em breve te reconduzam ao teu lugar de expiação. Dificilmente serás mais sábio do que os maiores letrados de Faraó, do que os mágicos da casa dos livros, e não envergonharás os videntes, adivinhos e intérpretes da casa de Rá-Horachte que descobriram o ano solar.
— Nas mãos de Deus está que ele esteja ou não comigo — respondeu José. — Faraó sonhou?
— Não estás aqui para perguntar, mas para responder — disse o mensageiro alado —, e ai de ti se o não conseguires. Nesse caso, suponho que te esteja aparelhado um lugar pior que este cárcere.
— Por que me põem assim à prova — indagou José — e como foi que Faraó ficou sabendo da minha existência, tanto que manda até aqui a sua formosa ordem?
— Citaram teu nome, chamando para ele a atenção na presente emergência — tornou o outro. — Pelo caminho ficarás sabendo mais; agora deves seguir-me sem tomar fôlego, para que estejas incontinenti na presença do monarca.
— Vese fica longe daqui — disse José — e longe fica o palácio de Merimat. Ainda que providos de asa estejam barco e mensageiro, Faraó tem de esperar antes que se obedeça à sua vontade e que eu esteja diante dele para a minha prova. Pode até ter esquecido sua formosa ordem antes da minha chegada e ter mudado de ideia.
— Faraó está perto — respondeu o emissário. — Ao belo Sol do mundo apraz brilhar agora em On, na ponta do delta; foi até lá na barca “Estrela dos Dois Países”. Dentro de algumas horas minha barca veloz alcançará sua meta. Avia-te, pois, e nem mais uma palavra.
— Mas devo primeiro aparar meu cabelo e vestir roupas apropriadas, para poder aparecer na presença de Faraó — disse José. Na prisão deixara crescer o cabelo e suas vestes eram de linho ordinário. O mensageiro, porém, respondeu:
— Isto pode ser feito a bordo enquanto voamos sobre as ondas. Já se pensou em tudo. Tu cuidas que uma coisa pode deter outra, em vez de se ajuntar tudo num só tempo para poupá-lo; mas não sabes o que é reter o fôlego quando Faraó ordena.
Então José virou-se para o capitão para despedir-se e chamou-lhe “meu amigo”.
— Tu vês, meu amigo — disse —, em que pé estão as coisas e como me tratam, passados estes três anos. Tiram-me açodadamente do buraco e arrancam-me do fundo do poço, de acordo com o velho modelo. Acredita este mensageiro que eu voltarei para junto de ti, mas eu não o creio, e uma vez que não o creio, sinal é que a coisa não será assim. De ti me despeço e te apresento meus agradecimentos pela bondade e sossego que me fizeram tolerável essa estagnação da minha vida, esse castigo, essa obscuridade, pois que me permitiste ser teu irmão no tempo da espera. Tens estado à espera do terceiro aparecimento de Nechbet e eu tenho estado à espera de que os meus negócios se realizem. Adeus, mas não por muito tempo. Alguém só pensou em mim depois de um longo olvido, quando as circunstancias o forçaram a fazê-lo. Eu, porém, pensarei em ti sem me esquecer; e se o Deus de meu pai está comigo, do que não posso duvidar sem ofensa Sua, tu também serás retirado deste recanto aborrecido. Três belas coisas há e três belos sinais que o teu servo guarda com carinho no coração: chamam-se elas “rapto”, “elevação” e “reunião”. Se Deus levantar minha cabeça (e eu recearia ofendê-lo se não esperasse isto com certeza), prometo-te que me seguirás e te tocarão em sorte circunstâncias mais estimulantes do que as atuais, onde tua serenidade não correrá risco de degenerar em sonolência e as perspectivas da terceira encarnação serão melhores. Que isto fique como um trato entre mim e ti!
— De qualquer modo, obrigado — disse Mai-Sachme, abraçando-o, coisa que até então não podia ter feito e que, conforme vagamente sentia, mais tarde não estaria em condições de fazer por motivos opostos. Só aquele, que era o momento da partida, era exatamente o momento oportuno. — Durante um minuto — disse ele — pensei que o afogadilho com que este homem chegou me havia tirado toda a calma. Mas não a perdi, meu coração bate tão compassadamente como sempre, pois como pode um homem perturbar-se com uma coisa que há muito vinha esperando? Ser calmo significa estar preparado para qualquer acontecimento e não se surpreender quando este se verifica. Mas a comoção é coisa diferente; ela é admissível mesmo quando a gente consegue dominar-se, e muito me comove saber que pensarás em mim quando chegares ao teu reino. A sabedoria do Senhor de Chmunu esteja contigo! Adeus!
O correio, saltando de um pé para o outro, mal havia deixado o capitão falar até o fim. Travando do braço a José e aparentando falta de fôlego, desceu a torre, atravessou correndo pátio e passadiços de Zavi-Rá e entrou na embarcação, que se fez de vela imediatamente. E, enquanto ela voava, José, no pavilhãozinho que ficava na coberta da popa, ia sendo barbeado, arrebicado e vestido, ao mesmo tempo que ouvia do homem de asinhas na sandália a narrativa do que acontecera em On, cidade solar, e por que o haviam chamado. O caso era o seguinte: Faraó realmente sonhara e de maneira portentosa. Mas, quando os onirócritas acudiram, não tinham dado uma explicação satisfatória, para o maior embaraço e descrédito seu. Finalmente falara o copeiro-mor, Nefer-em-Vese, mencionando-o a ele, isto é, a José, sugerindo que, como não se atinava com a solução acertada, talvez ele atinasse, pelo menos se poderia tentar. O que Faraó verdadeiramente sonhara o correio não sabia dizer, a não ser numa versão confusa e deturpada que transpirara cá fora dentre as paredes da sala do conselho onde os doutos da corte haviam sofrido sua derrota. A majestade desse deus, dizia-se, tinha sonhado primeiro que sete vacas comeram sete espigas e segundo que sete vacas tinham sido comidas por sete espigas, numa palavra, um cúmulo de absurdos que a ninguém ocorre nem ainda em sonho. Contudo, essa indicação foi de certa utilidade a José durante a travessia, e suas ideias giraram em torno dos seguintes temas: fome e comida, carestia e abastecimento.
LUZ E OBSCURIDADE
O que realmente acontecera, tendo como consequência que José fosse chamado, foi o seguinte:
No ano anterior (quase no fim do segundo ano que José passou na prisão) Amenhotep, quarto deste nome, completando dezesseis anos, atingira a maioridade; a regência de Teje, sua mãe, chegara ao seu termo, passando automaticamente ao sucessor de Neb-ma-Rá, o Magnífico, o governo dos dois países. Findara assim uma situação que o povo e as pessoas interessadas tinham visto sob o signo do sol da manhã, o novo dia nascido da noite, quando ainda o Sol brilhante é mais filho que homem independente e pertence ainda à mãe, estando, qual uma avezinha implume, debaixo de suas asas, antes de ser capaz, na plenitude do meio-dia, de desferir o voo destinado a elevá-lo à altura e à robustez. Então Ísis, a Mãe, se retira, abdicando sua soberania, embora lhe fique a dignidade materna, a dignidade de fonte e origem da vida e do poder, continuando sempre o homem a ser seu filho. Ela lhe transmite o poder, mas ele o exerce para ela, como a mãe o exercera para o filho Teje, a deusa-mãe, que estivera dirigindo e guardando a vida dos países desde os anos em que seu marido declinara na idade como Rá, tirou do queixo a entrançada barba de Osíris que, como Hatchepsut, o Faraó de seios, estivera usando, e entregou-a ao jovem filho do Sol, no qual ela igualmente não ficava bem quando, em ocasiões solenes, o novel monarca devia pô-la, segundo o ritual. Nessas ocasiões ele era também obrigado a prender um rabo de chacal ao seu saiote. Esse atributo animalesco fazia parte de um costume cerimonial estrito e primitivo de Sua Majestade, formando ainda um detalhe do sacrossanto ritual ciosamente conservado, conquanto já ninguém soubesse sua razão de ser. E na corte sabia-se que o jovem Faraó o odiava. Seu uso chegava até a estorvar-lhe a digestão, contribuindo para fazer Sua Majestade sentir-se enjoado e parecer pálido ou mesmo verde no semblante, embora, para falar com franqueza, ainda sem o rabo, era esse um característico das afecções a que seu organismo era atreito.
A não ser que todos os observadores laborem em erro, a passagem do poder real da mãe para o filho não se fez sem muitos receios; não seria melhor diferi-la ou mesmo abster-se de realizá-la, deixando de vez o jovem Sol sob a proteção da asa materna? A própria mãe do deus tinha suas dúvidas; tinham-nas seus principais conselheiros, e um homem poderoso que já conhecemos. Beknechons, o da estrita observância, o grande profeta e primeiro sacerdote de Amun, procurava alimentá-las e avivá-las. Rigorosamente falando, ele não fora um servidor da coroa nem havia, como muitos de seus predecessores, unido as funções de sumo sacerdote às de vizir, de chefe da administração dos dois países. El-rei Neb-ma-Rá-Amenhotep III tivera a inspiração de separar o braço espiritual do braço secular e nomeara homens leigos vizires do Norte e do Sul. Mas, como porta-voz do deus do império, Beknechons tinha direito a ser ouvido e a regente delicadamente o escutava, embora cônscia de estar prestando ouvidos à rivalidade política. Ela fora parte decisiva na deliberação do mando de separar as duas funções, visto lhe parecer indispensável pôr um dique à preponderância do Colégio de Karnak e eliminar uma hegemonia que desde muito vinha constituindo uma ameaça à casa real. A defesa contra essa ameaça era um problema que vinha, como herança, sendo transmitido de longa data. Tutmés, avô de Meni, tivera um sonho promissor aos pés da Esfinge e a libertara da areia, dando o nome de pai ao dono da pré-histórica estátua gigantesca, Harmachis-Chepere-Atum-Rá, a quem devia a coroa. Isto, porém, como toda a gente sabia e como José também veio a saber, não era mais que a circunscrição hieroglífica da mesma posição defensiva: a fórmula religiosa da consolidação do predomínio político. E ninguém ignorava que a recente definição de Aton como uma nova constelação do firmamento, processo iniciado já na corte do filho de Tutmés e que tamanha mossa fizera no espírito do seu neto, tinha por fim dissolver a arbitrária e despótica união entre Amun-Rá e o Sol, à qual aquele devia seu caráter universal; Amun-Rá ficaria então reduzido à categoria de um poder local, como deus urbano de Vese que fora antes do seu golpe político.
E interpretar erroneamente a indivisibilidade do mundo pensar que religião e política estão em campos fundamentalmente separados, os quais não têm nem devem ter nada de comum um com o outro, a tal ponto que um se desvalorizaria e seria tachado de falso se se encontrasse nele qualquer vestígio do outro. Porque a verdade é que as duas simplesmente trocam de vestimenta, como Istar e Tammuz usam alternativamente o véu, e é o conjunto mundial que fala quando uma fala a linguagem da outra. E esse conjunto se exprime ainda em outros idiomas, por exemplo, por intermédio das obras de Ptach, as criações do gosto, da perícia, do amor do ornamento, porquanto considerar estas coisas como coisas à parte, inteiramente divorciadas da indivisibilidade do mundo e nada tendo que ver nem com a religião nem com a política, seria igualmente errôneo. José sabia que o jovem Faraó, por sua própria iniciativa, sem nenhuma insuflação materna, consagrava a mais zelosa e até ciumenta atenção ao incremento da beleza e do adomo neste mundo, em íntima correlação com o esforço que os seus pensamentos faziam para tornar real a existência do deus Aton em toda a sua pureza e verdade. Tinha surpreendentes ideias de mudanças, de afrouxamento da tradição conservadora, tendo firmemente para si que assim o queria o seu deus querido. A ideia evidentemente falava-lhe ao coração, ele a fomentava por causa dela mesma, de acordo com as suas convicções sobre o que era verdadeiro e aprazível no mundo da forma.
Mas por tal motivo não teria aquilo nada de comum com a religião e a política? De memória de homens ou, como os filhos de Keme gostavam de dizer, desde milhões de anos, o mundo da arte havia sido regulado por rígidas convenções religiosas, cujo patrono conservador era Amun-Rá na sua capela ou, em seu lugar, seus poderosos sacerdotes, representando-o. Afrouxar ou até tirar completamente essas peias em atenção a uma nova verdade e beleza que o deus Aton tinha revelado a Faraó era um golpe na cara de Amun-Rá, cabeça e testa de uma religião e de uma política indissoluvelmente unidas a certas concepções pictóricas consagradas pelo tempo. Nas desagregadoras teorias do jovem Faraó sobre o assunto das artes pictóricas, o conjunto mundial falava a língua do bom gosto, uma linguagem entre muitas nas quais se exprime. Pois com o conjunto mundial e sua unidade o ente humano tem sempre de se entender, saiba ele disso ou não.
Amenhotep, o jovem rei, talvez soubesse disto, porém o conjunto mundial era obviamente uma coisa excessiva para ele. Suas energias pareciam mesquinhas, e o peso oprimia-o. Frequentemente estava pálido ou verde, ainda quando não tinha de usar a cauda de chacal; tinha tanta dor de cabeça que não conseguia conservar abertos os olhos; muito a miúdo vomitava o que comia. Via-se obrigado a ficar de cama no escuro dias seguidos — ele cujo único amor era a luz, o vínculo de ouro entre o céu e a Terra, aqueles raios de seu pai Aton que terminavam em mãos acariciadoras e vivificantes. Naturalmente era motivo de séria preocupação o fato de um soberano reinante verse a cada instante impossibilitado por essas crises de cumprir os deveres do seu alto cargo, tais como oferecer sacrifício, consagrar templos, receber seus sábios e conselheiros. Mas infelizmente havia coisa pior: nunca ninguém podia prever que enfermidade súbita acometeria Sua Majestade no meio de tais funções, na presença de dignitários e até diante do povo. Agarrando os polegares com os quatro dedos e revirando os olhos, com os lábios quase fechados, Faraó de repente passava a um estado de inconsciência nada normal que, se não durava muito, sempre interrompia de maneira aborrecida o ato ou a deliberação que ia em curso. Costumava o monarca explicar esses incidentes dizendo serem visitas súbitas de seu pai, o deus, as quais ele, em vez de temer, desejava. Pois voltava delas com a sua vida diária opulenta de autênticas instruções e revelações recebidas de primeira mão sobre a real e venusta natureza de Aton.
Por isso não nos deve causar surpresa nem dúvida saber que, quando o novo Sol chegou à maioridade, se discutiu se não sena melhor deixá-lo sob a asa materna, continuando tudo como antes. Mas a ideia gorou, apesar das representações de Amun em favor dela. Se havia muita coisa em seu pró, também havia muita coisa contra. Admitir que Faraó estivesse tão doente ou tão débil que não lhe fosse possível assumir o governo era coisa contrária aos interesses da estirpe dos soberanos solares e podia dar origem a ideias perigosas no reino e nos Estados tributários. Além disso, os ataques de Faraó eram de tal natureza que não constituíam uma razão para o prolongamento da sua menoridade: seu caráter santo contribuía até para a popularidade do príncipe; seria desavisado fazer deles motivo para conservá-lo afastado do trono, sendo muito mais indicado explorá-los contra Amun, cuja privada intenção de unir a dupla coroa ao seu toucado de penas e de fundar ele próprio uma nova dinastia estava latente no fundo de cada situação.
E assim a noite materna transferiu ao filho a plena autoridade do zênite da sua idade viril. Mas, observando bem, podemos ver que o próprio Amenhotep tinha sentimentos contraditórios acerca da questão. Se o esplendor do trono o enchia de orgulho e alegria, também o embaraçava não pouco, e, bem lançadas as contas, ele teria preferido continuar sob as asas da mãe. Uma coisa havia que lhe dava calafrios quando pensava na maioridade: era que cada Faraó que subia ao trono empreendia pessoalmente, como comandante-em-chefe, por tradição fixa, uma campanha militar de guerra e saque em terras asiáticas ou nas dos negros. E, após a gloriosa conclusão desta, era solenemente recebido na fronteira e acompanhado de volta à sua capital, onde oferecia como tributo a Amun-Rá, que pusera sob seus pés os príncipes de Zahi e Kuch, um bom quinhão da pilhagem. Tinha também de imolar com suas próprias mãos uma meia dúzia de prisioneiros de guerra da mais alta posição possível, sendo que em caso de necessidade eram promovidos para o intento.
Para cerimônias dessas o senhor do doce hálito sabia que era totalmente incapaz. Só de ouvir mencioná-las ou mesmo só de pensar nelas vinham-lhe contrações faciais, palidez, cor verde. Ele detestava a guerra; a guerra podia ser coisa do gosto de Amun, mas longe estava de ser do gosto de “meu pai Aton", que num dos tais santos e discutíveis estados de inconsciência de Meni expressamente se lhe revelara como o “Príncipe da Paz”. O jovem monarca não queria saber nem de corcéis nem de carros de combate. Nada de pilhagens nem de presentes de despojos a Amun, nada de degola de cativos importantes ou só teoricamente importantes. Não podia nem queria fazer nada disto, ainda que só por formalidade. Recusou ser pintado nas paredes e arcarias de templos atirando de um carro de guerra setas contra inimigos aterrorizados ou segurando com uma mão um mangote deles pelos cabelos e com a outra brandindo a clava esmagadora. Tudo aquilo era intolerável e impossível a seu deus e portanto a ele. Corte e Estado deviam capacitar-se de que a campanha inaugural de saque não se realizaria. Afinal, com boa vontade e boas palavras a questão poderia ser contornada. Podia-se dizer que todas as terras do globo jaziam já vencidas aos pés de Faraó, que os tributos choviam tão prontamente e em tamanha cópia que se tornava supérflua qualquer demonstração belicosa e que era desejo do príncipe assinalar sua ascensão ao trono com a ausência de semelhantes violências. E foi o que se fez.
Mas, ainda depois de afastado esse incômodo, continuavam intranquilos os sentimentos de Meni diante da sua chegada ao zênite. Não escondia a si mesmo que, como monarca reinante, estava em contato direto com o conjunto mundial e com todas as suas linguagens e maneiras de se exprimir, ao passo que até então havia podido encará-lo do ponto de vista que preferia, isto é, o religioso. Desembaraçado de negócios terrenos, entre as flores e as árvores dos seus jardins pudera sonhar com o seu deus querido, evocá-lo pelo pensamento, considerar como sena possível abranger com um nome único a sua essência e representá-la numa só imagem. Isso já lhe custara bastante esforço e lhe conferira suficiente responsabilidade, mas ele gostava desse esforço e suportava alegremente as dores de cabeça que daí lhe vinham. Agora tinha outras coisas que fazer e em que pensar e essas lhe davam dores de cabeça nada agradáveis. Todas as manhãs, ainda sonolento, recebia o vizir do Sul, homem alto com uma barbicha no mento e dois argolões de ouro no pescoço, chamado Ramose. O homem saudava-o com uma forma fixa, como uma ladainha, cheia de floreados e torneios, e depois durante horas intermináveis o importunava com rolos escritos com arte maravilhosa versando sobre problemas administrativos do momento: assuntos judiciais, sentenças, registros de taxas, planos para a abertura de novos canais, colocação de pedras angulares, questões atinentes a fornecimentos de material de construção, abertura de pedreiras e minas no deserto etc., comunicando a Faraó o que a bela vontade de Faraó determinava em todos os assuntos. Depois disto, com as mãos erguidas, admirava-se da beleza da vontade de Faraó. Era a bela vontade de Faraó fazer tais e tais viagens ao deserto para marcar os lugares adequados à abertura de poços e à instalação de pontos de parada, depois que tivessem sido previamente escolhidos por peritos na matéria. Era sua vontade admiravelmente bela aprazar o conde urbano de El-Kab a vir à sua presença e explicar por que pagava tão impontualmente e tão insuficientemente no tesouro de Tebas seus tributos oficiais de ouro, prata, gado e linho. Era sua excelsa vontade partir para a miserável Núbia a fim de presidir à fundação ou à inauguração de um templo, geralmente consagrado a Amun-Rá e portanto absolutamente não compensando, no modo de ver de Mem, a canseira e a dor de cabeça causadas pela viagem.
Geralmente falando, o obrigatório serviço do templo, o enfadonho ritual do deus do império tomava-lhe boa parte do seu tempo e das suas energias. Externamente tinha de ser sua formosa vontade executá-lo, porém interiormente era o avesso, pois que ficava impedido de pensar em Aton, sendo-lhe imposta ainda por cima a companhia de Beknechons, o autocrático servo de Amun, a quem não tolerava. Em vão tentara dar à capital o título de “Cidade do Esplendor de Aton”. O nome não pegou porque os sacerdotes se opuseram e o povo não o adotava. Vese continuou a ser Novet-Amun, a cidade do Grande Carneiro, que pelos braços de seus filhos reais reduzira os países estrangeiros à sujeição e enriquecera o Egito. Já desde o início Faraó ia secretamente afagando a ideia de mudar sua residência de Tebas, onde a imagem de Amun-Rá brilhava em cada parede, em cada coluna, em cada pórtico, em cada obelisco, constituindo um tormento para a sua vista. Ainda não pensava na fundação de uma nova cidade que fosse só sua, inteiramente dedicada a Aton; por ora apenas contava transferir a corte para On no vértice do delta, onde se sentia mais à vontade. Lá, nas proximidades do templo do Sol, tinha um palácio, não tão pomposo como o de Merimat na parte ocidental de Tebas, mas provido de todas as comodidades que sua delicada saúde exigia. Os cronistas da corte tiveram de registrar frequentemente as viagens do bom deus a On, em barco ou de carro. Verdade é que era ali a sede do vizir do Norte, que tinha a seu cargo a administração e as funções judiciárias de todas as comarcas entre Siut e o delta, que por sua vez se apressou em dar-lhes dores de cabeça. Mas pelo menos em On Meni poupava-se à incômoda canseira de queimar incenso a Amun sob a fiscalização severa de Beknechons. Lá sentia verdadeiro prazer em discretear com os doutos crânios espelhantes da casa de Atum-Rá-Horachte sobre a natureza de seu glorioso pai, e sobre a vida interior do deus, o qual, apesar da venerável idade, era tão fresco e vivo que se mostrava suscetível de realizar as mais formosas variações, purificações e desenvolvimentos; se se podia dizer assim, do velho deus surgia, com o auxílio da celebração humana, lenta mas tanto mais completamente, uma nova deidade, indizivelmente bela, isto é, o maravilhoso Aton, a iluminar o mundo.
Oh, quem pudera entregar-se totalmente a ele e ser seu filho, seu parteiro, seu arauto e profeta, em vez de ser também rei do Egito e sucessor daqueles que haviam dilatado os confins de Keme e feito dele um império! Meni devia tudo a eles e aos atos que tinham praticado; a eles estava votado e às suas ações; provavelmente o motivo pelo qual não podia tolerar Beknechons era que o homem tinha razão quando lhe lembrava insistentemente esse fato. Em outras palavras, o próprio Faraó, num exame particular de consciência, o suspeitava: suspeitava primeiro que uma coisa era fundar um império universal e outra contribuir para o aparecimento de um deus universal; e segundo que esta última ocupação talvez estivesse em conflito com a régia tarefa e responsabilidade de conservar e sustentar as realizações do passado. E as dores de cabeça que o obrigavam a fechar os olhos quando os vizires do Norte e do Sul o molestavam com os negócios do império talvez fossem causadas não tanto pela fadiga e o enfado como por uma consideração vaga mas inquietadora do antagonismo entre o apego à teologia do amado Aton e os graves deveres de um rei do Egito. Eram afinal dores de cabeça produzidas por inquietações de consciência e pela colisão entre gosto e dever. E a circunstância de serem conhecidas as causas da cefalalgia tornava-a pior em vez de melhorá-la e aumentava sua saudade do primitivo estado de proteção que fruía sob a asa da noite materna.
Sem dúvida não somente ele mas também o país passara melhor naquela época, pois que a mãe sempre cuida melhor da terra e do seu bem-estar, por mais que a esfera transcendental prospere nas mãos do filho. Eis a convicção íntima de Amenhotep, e quem lha inspirava era provavelmente o sentimento do próprio Egito, a crença de Ísis na terra negra. Meni fazia uma distinção entre a prosperidade material, terrena, natural da Terra, e seu bem-estar religioso e espiritual; receava vagamente que as duas preocupações podiam não só deixar de coincidir, mas até entrar num conflito fundamental. Estar encarregado de ambas ao mesmo tempo, ser tanto sacerdote como rei — eis a fonte fatal de muitas dores de cabeça. A prosperidade material e natural era atribuição do rei ou, melhor ainda, da rainha, da mãe, para que o filho do sacerdote livre e sem responsabilidade pelo bem-estar material se ocupasse exclusivamente do lado espiritual e se entregasse às suas especulações solares. Sua responsabilidade régia pelo lado material oprimia o jovem Faraó. Para ele sua realeza achava-se ligada à negra terra egípcia entre deserto e deserto — preta e fértil com a água impregnante, ao passo que sua paixão era a luz pura, o áureo mancebo solar das alturas —, e a consciência não lhe ia muito bem a tal respeito. O vizir do Sul, a quem davam conta de tudo que ocorria, até do prematuro aparecimento de Sírio que anuncia o crescer das águas, o tal Ramose constantemente chamava sua atenção para as últimas notícias sobre o nível do no, as perspectivas de uma boa cheia, a fertilização, a safra. A Meni, apesar de ouvir atenta e até conscienciosamente, parecia-lhe que o homem faria muito melhor se continuasse a transmitir como antes seus relatórios à mãe, à Ísis-Rainha. Ela entendia mais dessas coisas, os negócios andavam melhor nas suas mãos. E, contudo, tanto para ele como para os seus países tudo dependia da bênção sobre os escuros campos da fertilidade. Malogro e deficiência, se se dessem, iriam refletir nele. Não era sem razão que o povo egípcio tinha um rei que era filho de Deus e que em nome de Deus detinha qualquer interrupção nos santos e necessários processos sobre que ninguém mais exercia qualquer influxo. Erros ou danos neste setor da terra preta significavam que seu povo ficaria desiludido com aquele cuja mera existência era bastante para evitá-los. Com isso ficaria abalado o seu crédito de que precisava para tornar triunfante a formosa doutrina de Aton e sua natureza de luzeiro celeste.
Estava aí a dificuldade, o dilema. Nenhum laço o unia ao negror de baixo, uma vez que amava só a luz do alto. Se, porém, as coisas não corressem bem com o negrume nutridor, ele perdia seu prestígio como mestre da luz. Daí a fenda aberta nos sentimentos do jovem Faraó quando a noite maternal afastou de cima dele a asa e lhe transmitiu o reino.
OS SONHOS DE FARAÓ
Mais uma vez, pois, Faraó tomara o caminho da douta On, movido por um irresistível desejo de escapar do domínio de Amun e de palestrai com os crânios espelhantes da casa do Sol sobre Harmachis-Chepere-Atum-Rá, o Aton. Os cronistas da corte, franzindo os beiços e curvando-se obsequiosamente, com carinho tomaram nota da bela resolução de Sua Majestade e como el-rei subira num grande carro feito de eletro em companhia de Nefertiti, chamada Nefernefruaton, a rainha dos dois países, cujo corpo estava fecundado e cujo braço enlaçava o consorte; assentaram ainda como radiosamente se pusera a caminho, seguido em outros carros por Teje, a mãe do deus, Nezemmut, irmã da rainha, Baketaton, irmã do próprio Faraó, e muitos camareiros e açafatas, com leques de penas de avestruz às costas. A barca celeste “Estrela dos Dois Países” tinha também sido usada a trechos; os cronistas tinham registrado como Faraó, sentado debaixo do seu baldaquim, comera pombo assado, como mantivera erguido o osso de que a rainha se servia, e como o soberano lhe introduzira na boca petiscos embebidos em vinho.
Em On, Amenhotep entrou no seu paço situado no distrito do templo e dormiu a primeira noite sem sonhar, exausto como estava da viagem. Começou o dia seguinte oferecendo um sacrifício a Rá-Horachte com pão e cerveja, vinho, pássaros e incenso. Depois recebeu o vizir do Norte, que falou muito tempo diante dele. Finda a conferência e apesar da dor de cabeça que esta lhe deixara, consagrou o resto do dia aos suspirados colóquios com os sacerdotes do deus. O tema central dessas palestras, que no momento preocupava grandemente o espírito de Amenhotep, foi a ave Bennu, também chamada Filha do Fogo, porque constava que não tinha mãe e era além disso em realidade seu próprio pai, visto que morrer e nascer eram para ela uma só coisa. Dizia-se que ela queimava a si mesma no seu ninho feito de mirra e surgia das cinzas outra vez como renovada Bennu. Isto sucedia, conforme asseveravam algumas autoridades, cada quinhentos anos, no templo do Sol em On, aonde a ave, cuja figura fazia lembrar a de uma águia e um pouco a de uma garça real, se encaminhava da Arábia ou mesmo da índia para esse fim. Outros graves autores afirmavam que ela trazia consigo um ovo feito de nutra, tão grande quanto podia carregar, onde pusera seu finado pai, isto é, a si própria, e o depositava no altar do Sol. As duas asserções podiam subsistir juntas, porque enfim muitas coisas subsistem juntas, coisas diferentes, porém igualmente verdadeiras e que são apenas expressões diversas da mesma verdade. O que, porém, Faraó primeiro quis saber, ou ao menos discutir, foi quanto tempo decorrera dos quinhentos anos que havia entre o nascimento da ave e a colocação do ovo no altar, a que distância estavam eles, de um lado, da última aparição e, de outro, da próxima; em suma, em que ponto estavam do ano da fênix. A maioria dos sacerdotes era de opinião que se devia estar mais ou menos no meio do período. Raciocinavam que, se estivessem próximos do começo do período, forçosamente existiria ainda alguma memória da última aparição de Bennu, e não era esse o caso. Mas, supondo-se que estivessem perto do fim de um período e do começo do período seguinte, então deviam contar com a volta iminente ou imediata da ave-tempo. Ora, nenhum deles esperava fazer uma experiência dessas na sua vida; logo a única possibilidade restante era estarem eles mais ou menos no meio do período. Algumas das cabeças reluzentes chegavam ao ponto de desconfiar que ficariam sempre no meio, pois que o arcano da ave Bennu era precisamente este: que a distância entre o último renascimento da fênix e o seu próximo era sempre o mesmo, sempre um ponto médio. Mas não era ainda esse o mistério que intrigava Faraó. A palpitante questão a ser discutida, aquilo que era o objeto da sua visita e que ele discutiu durante uma metade do dia com as cabeças reluzentes, foi a doutrina de que o ovo de mirra do pássaro de fogo, no qual ele encerrava o corpo de seu pai, nem por isso ficava mais pesado, porquanto a ave o fizera do tamanho e do peso que lhe era possível carregar, e, se ainda o podia carregar depois de ter posto nele o corpo de seu pai, a conclusão era que o ovo com isso não aumentara em peso.
Era esse um fato estimulante e sedutor, de capital importância, que aos olhos do jovem Faraó merecia a mais circunstanciada exposição. Se a um corpo se acrescentava outro corpo e o primeiro não ficava mais pesado com o acréscimo, isto queria dizer que havia corpos imateriais ou, dito de maneira diferente e melhor, realidades incorpóreas, imateriais como a luz solar, ou, dito ainda de modo diferente e ainda melhor, existia o elemento espiritual, e este estava etereamente incorporado no Bennu pai, a quem o ovo de mirra recebia, ao mesmo tempo que com isso alterava o seu caráter de ovo da maneira mais empolgante e significativa. Com efeito, o ovo era decisivamente de natureza feminina; entre as aves só a fêmea punha ovos e nada podia ser mais feminino, mais materno do que o grande ovo do qual um dia saíra o mundo. Mas Bennu, a ave-Sol, sem mãe, pai de si mesma, fazia ela própria o seu ovo, um ovo de um mundo oposto, um ovo constante só de elementos masculinos, um ovo-pai, e o depositava como uma manifestação de paternidade, de espírito e de luz sobre a mesa de alabastro da divindade solar.
Faraó não se fartava de conversar com os homens do calendário solar do templo de Rá sobre esse caso e o que ele significava para o desenvolvimento da natureza de Aton. Ficou discutindo até alta noite, discutiu em excesso, engolfando-se na mais genuína imaterialidade e espírito paterno, e, quando já os sacerdotes se sentiam exaustos e cabeceavam com sono, ele ainda não estava cansado e não se resolvia a despedi-los, quase como se estivesse com medo de ficar só. Mas afinal os despediu, e lá se foram eles toscanejando e tropeçando de sono, enquanto o monarca também se retirava para o seu aposento. Ali estava à sua espera, à luz de uma lâmpada, o escravo que o vestia e despia, um homem idoso que já lhe prestava os mesmos serviços desde a puerícia e o tratava de Meni, posto que nunca deixasse de lhe demonstrar o mais cerimonioso respeito. Rápida e delicadamente este aprestou o amo para a noite. Depois prostrou-se com o rosto no chão e se retirou para a soleira a fim de dormir. Quanto a Faraó, encolheu-se entre as almofadas e cobertas do seu leito primorosamente guarnecido, que se encontrava sobre um estrado no meio do quarto, com a cabeceira ornada com as mais finas incrustações em marfim representando figuras de chacais, cabras e Bes. De exausto que estava, pegou no sono imediatamente. Mas foi só por pouco tempo, pois que depois de poucas horas de profundo sopor começou a sonhar. Sonhos tão complicados, angustiantes, absurdos e vívidos não os tivera desde criança, quando fora atacado de amigdalite. Não sonhou, no entanto, com Bennu pai, a ave desprovida de peso, nem com os raios imateriais do Sol; sonhou com coisas inteiramente diversas.
No sonho achava-se ele sobre a margem de Chapi, o Nutridor, num lugar solitário, inculto, pantanoso. Trazia na cabeça a coroa vermelha do Baixo Egito, no queixo a barba e atado à parte posterior de suas vestes o rabo de chacal. Estava inteiramente só, sentia o coração pesado e na mão segurava o seu cajado recurvo. E eis que de repente se percebeu um marulho não longe da ribanceira e sete vultos emergiram da água. Eram sete vacas que subiram para a margem. Provavelmente tinham estado deitadas na água como búfalos. Vinham em fila uma atrás da outra, as sete sem o touro, pois touro não havia, só as sete vacas. Eram exemplares magníficos da raça bovina, brancas, pretas com pintas brancas no dorso, cinzentas com pintas claras no ventre e duas eram malhadas. Animais luzidios, leitoados, de apojados úberes, com as longas pestanas dos olhos de Hathor e chavelhos altos e curvos, em forma de lira. Puseram-se a pastar contentes entre o juncal. Gado tão bonito nunca o rei o vira em nenhum lugar da região. Seus lustrosos corpos bem nutridos eram coisa digna de admirar-se e o coração de Meni exultaria com tal vista se não estivesse tão comido de cuidados. E daí a pouco suas preocupações se transformaram em verdadeiro horror e susto. Efetivamente, aquelas sete vacas ainda não eram bastantes; outras saíram da água, vindo juntar-se às primeiras, mais sete vacas subiram para a margem do rio, também estas sem o touro, pois que touro teria prazer em andar com estas últimas? Vendo-as, Faraó estremeceu; eram as vacas mais feias, mais magras, mais famintas que já vira em sua vida; viam-se-lhes os ossos quase a perfurar a enrugada pele, seus úberes eram como sacos vazios de que pendessem tetas filiformes. O espetáculo que ofereciam era alarmante, espantoso, os míseros animais pareciam mal poder aguentar-se em pé. E, todavia, sua atitude foi repentinamente tão atrevida, tão agressiva, como não se podia esperar de uns bichos tão decadentes; no entanto, era mais que natural, porque era a temeridade da inanição. Faraó observa: as escanzeladas avançam sobre as nédias, saltam sobre elas como fazem as vacas quando brincam de touro, as esfaimadas devoram e engolem as nutridas, varrendo-as simplesmente da face da Terra. Depois ficam no mesmo lugar, magras como antes, sem um sinal sequer de que a barrigada lhes tivesse aproveitado alguma coisa.
Aqui terminou o sonho. Faraó acordou assustado e a suar de medo. Sentou-se na cama com o coração batendo forte e girou os olhos pelo aposento fracamente alumiado. Fora apenas um sonho, mas tão eloquente, tão imediato, que parecia ter a agressividade e a petulância das vacas esfomeadas e deixou álgidos os membros do sonhador. A cama já não tinha atrativos para ele. Levantou-se, enfiou sua túnica de lã branca e pós-se a andar pelo quarto, refletindo no sonho e na natureza impertinente daquela visão absurda, mas tão viva e palpável. De bom grado teria acordado o escravo para lho contar, ao menos para tentar fazê-lo, se é que o que vira podia ser reproduzido com palavras. Mas foi bastante delicado para não incomodar o bom do velho, que tinha ficado à sua espera até altas horas da noite. Sentou-se na poltrona de pés de vaca que ficava ao lado da cama, aconchegou ao corpo a túnica de imaculada alvura e dormitou de novo, com os pés sobre o escano, achegando o rosto a um canto da cadeira.
Mal, porém, pegara no sono, sonhou de novo. De novo — ou ainda — estava ele sobre a margem do rio, com a coroa e a cauda, e agora havia ali uma faixa de terra preta arada. E vê a marga revolvida, vê que a crosta se levanta, ondula, brota uma haste, e uma, duas, até sete espigas saem dela rapidamente, sucessivamente, todas na mesma haste, espigas cheias, gradas, de um amarelo vivo e reluzente. Era de alegrar o coração uma tal vista, mas aí! a alegria logo se extingue, porque eis que a cana continua a dar espigas; são mais sete espigas, delgadas, secas, queimadas do suão; e, enquanto vão brotando ousadamente por baixo das espigas cheias, estas desaparecem como que dentro das chupadas. Foi realmente o que aconteceu: as espigas delgadas devoraram as gradas, como antes as vacas magras haviam devorado as nutridas. E nem por isso ficaram menos chochas do que antes. Isto viu Faraó com seus olhos corpóreos, e, sobressaltando-se novamente, percebeu que se tratava de um sonho.
Um sonho ridículo, confuso, inexprimível, insensato... Contudo, mostrava-se tão insistente, assediava-lhe tão impertinentemente o espírito com o peso da sua advertência, que Faraó não pôde mais conciliar o sono, nem o queria, pois felizmente já vinha raiando a madrugada. Continuou, porém, a mexer-se entre a cama e a cadeira, sempre meditando no sonho — no duplo sonho brotado de uma só haste — e na sua clara e premente exigência de uma explicação. Já estava firmemente resoluto a não deixar passar em silêncio esses sonhos, guardando-os para si. Daria importância a eles; tocaria a rebate. Durante eles usara a coroa, o cajado recurvo e o rabo; não havia dúvida que eram sonhos de rei, sonhos de caráter imperial, prenhes de sentido e de preocupação. Deviam ser tornados públicos, era preciso fazer tudo para se chegar ao fundo do seu vasto alcance, estudando-os sem perder de vista a sua significação manifestamente alarmante. Meni sentia-se acabrunhado com os seus sonhos, cada minuto que passava fazia-o odiá-los mais. Sonhos assim era intoleráveis para uma cabeça coroada, bem que, em compensação, só um rei poderia ter visões tais. Enquanto ele, Nefer-cheperu-Rá-Vanre-Amenhotep, estivesse no trono, essas coisas não haviam de acontecer; vacas tão abomináveis não devorariam outras tão belas, nem espigas tão crestadas dariam cabo de tão fulvas espigas. Na esfera dos fatos reais nada devia suceder que correspondesse àquela apavorante linguagem ideográfica. Porque, se tal se desse, seria ele o responsável, haveria uma quebra no seu prestígio, ouvidos e corações se fechariam à revelação de Aton, e com isso lucraria Amun. Um perigo vindo da terra negra ameaçava a luz, um perigo partido do lado material ameaçava o espiritual e etéreo. Não havia nenhuma dúvida a respeito disto. Grande era a sua agitação que se ia convertendo em cólera, e a cólera, aumentando, o consolidou na firme resolução de pôr a descoberto o perigo, para que, reconhecido pelo que realmente era, se tornasse possível fazer-lhe face.
A primeira pessoa a quem contou os sonhos (tanto quanto estes se prestavam a ser contados) foi o velho que dormira na soleira e agora vinha apresentar-se para vesti-lo, arrumar-lhe o cabelo e o toucado. Ouvindo-o, o escravo limitou-se a abanar a cabeça admirado e depois, como quem dá uma opinião, disse que aquilo não era mais que o resultado de ter Sua Majestade ido deitar-se tão tarde, depois de esquentar a cabeça com tantas caraminholas, como ele ingenuamente se exprimiu. E bem provável que inconscientemente o homem tivesse os tais sonhos na conta de castigo por haver o amo feito o servo idoso esperá-lo até horas mortas da noite. “Velha cabra tonta”, dissera Faraó, meio a rir, meio zangado. Deu-lhe um leve tabefe na cara e foi procurar a rainha. Mas esta, andando de esperança, não estava muito boa e deu pouca atenção ao caso. Foi então ter com Teje, a deusa-mãe, e encontrou-a ao toucador entregue às suas açafatas. Também a ela contou os sonhos, e não era dizer que fosse achando mais fácil narrá-los à medida que o tempo ia decorrendo. Pelo contrário. Tampouco lucrou com a mãe grande alento ou consolo. Teje mostrava-se sempre um pouco zombeteira quando o filho se dirigia a ela, preocupado com as coisas do império; e tão convicto estava ele de que aquilo era uma coisa de vulto que começou por declará-la tal. Foi quanto bastou para que o sorriso irônico aparecesse nos lábios matemos. A viúva del-rei Neb-ma-Rá havia, após madura reflexão, abandonado de sua livre vontade a regência e passado ao filho o poder supremo que a maioridade lhe conferia; nunca, porém, pôde esconder completamente seu ciúme, e o penoso para Meni era que ele percebia tudo, de modo que não lhe escapava toda aquela reação que ele próprio provocava, ao mesmo tempo que procurava mitigá-la com pedidos pueris de conselho e ajuda.
— Por que vens ter comigo que fui posta de lado? — costumava dizer-lhe. — O Faraó és tu e portanto mostra-te à altura do teu cargo. Confia nos teus servos, os vizires do Norte e do Sul, quando não souberes o que fazer e deixa que te digam qual é a tua vontade se não a conheceres; mas não te voltes para mim que estou velha e aposentada.
Foi assim que a rainha-mãe procedeu também em relação aos sonhos.
— Acho-me muito afastada do poder e da responsabilidade, meu amigo — disse-lhe com um sorriso — para estar em condições de julgar se tens ou não razão de dar tamanho peso a esse negócio. Escrito está: “Quando a luz é viva em demasia, a escuridão fica oculta.” Permite que tua mãe se esconda. Que até minha opinião fique oculta sobre se esses sonhos merecem atenção ou condizem com o teu posto. Comeram-nas? Devoraram-nas? Umas vacas comeram outras? Algumas espigas murchas deram cabo de outras gradas? Isto não é sonho nem visão, não é coisa que se possa ver e de que possas fazer uma ideia, quer acordado, quer (ia eu dizer) mesmo dormindo. E possível que tenhas sonhado coisa bem diversa e que em seu lugar tenhas posto esse monstruoso quadro de uma voracidade absurda.
Debalde Meni lhe asseverou que era tal qual como contara, que ele tinha visto tudo aquilo nitidamente com os olhos do seu sonho, cujo conteúdo estava cheio de significação, quase pedindo a vozes que o interpretassem. Em vão falou daquilo que internamente o ameaçava, do dano que daí podia advir para a “doutrina”, isto é, para Aton, se o sonho se interpretasse a si mesmo, sem peias, em outras palavras, se se cumprisse e tomasse a forma real de que fora a veste profética. Vinha-lhe de novo a impressão de que no fundo sua mãe não tinha simpatia pelo seu deus; que só se pusera do seu lado por motivos políticos e dinásticos, só com a razão portanto e não com o coração. Teje havia sempre apoiado o filho na sua ternura, na sua paixão espiritual por Aton. Mas novamente hoje, como há muito tempo, via ele (e graças à sua sensibilidade sempre vira) que ela fazia tudo por cálculo, explorando-lhe o coração como faria uma mulher que visse o mundo todo exclusivamente do ponto de vista do raciocínio frio, e não, como ele mesmo fazia, primeiro e antes de tudo, do ponto de vista religioso. Isto causou profundo desgosto a Meni. Retirou-se, depois de ouvir sua mãe dizer que, se ele realmente julgava de importância para o Estado sua visão das vacas e espigas, podia dirigir-se a Ptach-em-heb, o vizir do Sul, na audiência matinal. De resto, interpretadores de sonhos havia muitos no lugar.
Já ele tinha mandado chamar os oniromantes e aguardava impaciente sua chegada. Mas antes de recebê-los teve de conferenciar com o alto funcionário encarregado dos negócios da “Casa Vermelha”, isto é, do tesouro do Baixo Egito. Imediatamente depois dos hinos gratulatórios, Meni o interrompeu e começou a narrar os sonhos num tom nervoso, denotando esforço. Hesitante, escolhendo as palavras, exigiu que o homem se pronunciasse sobre dois pontos: primeiro, se ele, como o seu senhor, via nos sonhos algum significado político, relativo ao império, e seguindo, no caso afirmativo, em que sentido e a que respeito. O alto funcionário não soube pronunciar-se, ou melhor, usando muito torneio de linguagem e muita frase burilada, pronunciou-se dizendo que não sabia pronunciar-se nem interpretar os sonhos; depois tratou de levar a conversa para o assunto que ali o trouxera. Mas Amenhotep trouxe-o de novo ao seu tema, pois evidentemente não queria ou não podia ocupar-se de outro negócio que não fosse incutir no homem a impressão que os sonhos lhe haviam deixado, e não o largou enquanto não foi anunciada a chegada dos sábios e adivinhos.
Impressionado, e mais que impressionado, possesso como estava pelo que de noite lhe sucedera, o rei transformou sua recepção da manhã numa cerimônia de gala, que no fim das contas veio a dar num deplorável fracasso. Não só ordenou que Ptach-em-heb ficasse presente, mas providenciou também para que todos os dignitários da corte que o tinham acompanhado a On estivessem presentes à audiência da interpretação. Havia mais ou menos uma dúzia de cavalheiros de elevada posição: o mordomo-mor do palácio, o gentil-homem do guarda-roupa, o superintendente da lavanderia do paço, o intitulado porta-sandália do rei, um grande cargo, o principal guarda-peruca do deus que era também “guarda das deslumbrantes", isto é, das duas coroas e conselheiro privado das joias reais, o palafreneiro de todos os cavalos de Faraó, o novo padeiro-mor e príncipe de Menfe, chamado Amenemopet, o copeiro-mor, Nefer-em-Vese, que durante certo tempo fora chamado Bin-em-Vese, e vários flabelíferos à direita do deus. Todos estes tiveram de estar presentes à audiência e à sala do conselho. Formavam dois grupos ao redor do magnífico assento de Faraó, o qual estava sobre um estrado e sob um baldaquim sustentado por finos esteios ornados de fitas. Os profetas e intérpretes de sonhos foram trazidos à sua presença, em número de seis, estando todos em relação mais ou menos íntima com o templo do habitante do horizonte e alguns tinham até tomado parte na discussão do mistério da fênix, realizada na véspera. As pessoas da sua posição não mais se prostravam sobre a barriga para beijarem o chão, como já fora costume, diante do sólio do deus. Era a mesma cadeira do tempo dos construtores das pirâmides e até de épocas anteriores: uma cadeira de braços semelhando uma caixa, tendo um recosto baixo e na frente uma almofada, só mais ornamentada que em outras eras. Mas, conquanto a cadeira se tivesse tornado mais esplêndida e Faraó mais poderoso, já não beijavam o chão diante dele e dela. Era mais um costume que saíra da moda, tal como acontecera com o de enterrar-se viva a corte na tumba do rei morto. Os mágicos apenas levantaram os braços de modo reverente e murmuraram de maneira um tanto confusa e desentoada uma longa fórmula de preito e saudação, declarando ao soberano que ele se parecia fisicamente com seu pai Rá e iluminava os dois países com a sua beleza. Com efeito, o fulgor de S. M. descia até as masmorras, não havendo sítio que escapasse à penetração de seus olhos, nem onde não chegasse o apurado ouvido de seus milhões de orelhas, ele via e ouvia tudo e quanto saía da sua boca era como as palavras de Horas no horizonte, pois que sua língua era a balança do mundo e seus lábios mais exatos que o fiel da precisa balança de Thot. Era Rá em todos os seus membros, disseram em confuso e desencontrado coro, e Chepre na sua verdadeira forma, a viva imagem de seu pai Atum de On no Baixo Egito — “Ó Nefer-cheperu-Rá-Vanre, Senhor da Beleza, por cujo intermédio respiramos!”
Nem todos acabaram ao mesmo tempo. Depois guardaram silêncio e escutaram. Amenhotep agradeceu-lhes, disse-lhes primeiramente o motivo da sua reunião ali e em seguida começou, diante daquela assembleia composta de uma vintena de aristocratas e de eruditos, a narrativa, renovada já pela quarta vez, de seus complicados sonhos. Era-lhe penoso aquilo, ele corava e gaguejava. Arraigara-se-lhe no espírito o alcance portentoso do seu conto e o induzira a tomá-lo público. Agora arrependia-se da resolução, porque não escondia a si próprio que o que fora (e para ele ainda era) tão sério parecia matéria de riso quando dito em voz alta. Realmente, por que é que umas vacas tão nédias e tão fortes haviam de deixar-se devorar tranquilamente por umas companheiras tão débeis e tão mofinas? Por que e como é que estas espigas devorariam aquelas? Mas para ele fora o que se dera no seu sonho, assim e não de outra maneira. Tinha ainda a memória fresca, e os sonhos, de tão impressionantes, pareciam coisa viva, real. Eram assim de noite, mas de dia, e expressos por palavras, semelhavam múmias mal preparadas, com feições deformes; causava certo constrangimento vir revelá-los em público. Estava embaraçado e assim foi prosseguindo laboriosamente até o fim. Então olhou para os oniromantes, acanhado e ansioso.
Eles haviam a princípio cabeceado de modo expressivo, como a denotar assentimento, mas pouco a pouco um depois do outro puseram-se a menear a cabeça para um e outro lado, traindo sua perplexidade. Tomou então a palavra o decano para explicar que se tratava de sonhos verdadeiramente singulares e quase únicos, de dificultosa interpretação. Não que desesperassem de consegui-la, pois estava ainda para ser sonhado um sonho que não pudessem interpretar. Mas deviam pedir tempo para ponderar e o favor de poderem retirar-se para uma consulta coletiva. Também era preciso estudar a literatura concernente ao caso. Ninguém havia tão letrado que possuísse toda a sabença na ponta da língua. Ser sábio, pediam vênia para obtemperar. não significava ter toda a ciência na cabeça, que não havia ali lugar para tanto, mas significava estar de posse dos livros que continham a ciência e de posse destes eles estavam.
Amenhotep concedeu-lhes que se reunissem privadamente. A corte foi recomendado que se conservasse de prontidão. O rei passou duas longas horas (que tantas durou a espera) em imensa expectativa. Decorrido esse tempo, recomeçou a audiência.
“Viva milhares de anos Faraó, amado de Maat, senhora da verdade, em retribuição do seu amor para com ela que é sem dobrez!” E continuaram dizendo que a deusa em pessoa estava ao lado dos doutos enquanto davam conta do resultado a que tinham chegado nas suas interpretações perante Faraó, protetor da verdade. Em primeiro lugar, as sete vacas gordas significavam sete princesas que Nefernefruaton-Nefertiti, a rainha dos países, a seu tempo ma dando à luz. Mas aquilo das sete vacas gordas serem devoradas pelas magras queria dizer que as sete filhas morreriam todas durante a vida de Faraó. Isso não significava, apressaram-se a acrescentar, que as filhas do rei morreriam na mocidade. A Faraó seria concedido um tal número de dias que a todas sobreviveria, por mais que vivessem.
Amenhotep olhava para eles boquiaberto. Perguntou-lhes num fio de voz que é que estavam falando. Responderam que lhes era dado transmitir-lhe, naquele momento, a significação do primeiro sonho. Mas tal interpretação, retrucou-lhes Faraó, baixando ainda mais a voz, não tinha nenhuma relação com o seu sonho, nada absolutamente tinha que ver com ele. Não indagara deles se a rainha lhe daria um filho e sucessor ou uma filha e mais filhas. Pedira-lhes a interpretação das vacas anafadas e das esqueléticas. Replicaram-lhe que as filhas eram a interpretação. Não seria de esperar que, sonhando com vacas, ele quisesse interpretá-las como tais. Na interpretação as vacas passavam a ser princesas.
Faraó já não tinha a boca aberta. Tinha-a apertadamente cerrada e só a abriu um pouquinho para lhes ordenar que passassem ao segundo sonho. Encetaram, pois, a interpretação do segundo. As sete espigas cheias eram sete florescentes cidades que Faraó iria construir e as sete murchas eram... as ruínas daquelas. Era notório, acrescentaram depressa à laia de explicação, que com o tempo todas as cidades fatalmente se reduzem a ruínas. Faraó, contudo, viveria tanto tempo que com seus próprios olhos havia de ver as ruínas das cidades que ele mesmo construíra.
Aqui, porém, a paciência de Meni se esgotou. Ele não tinha dormido suficientemente; a reiterada narrativa dos sonhos, perdendo em impressão cada vez que ele os contava, havia-lhe sido penosa, irritante a espera de duas horas. O que agora preponderava no seu espírito, impedindo-o de reprimir a raiva, era a ideia de que aquelas interpretações não passavam de obra de fancaria e estavam muito longe de explicar a verdade contida no seu sonho. Propôs-lhe ainda uma pergunta: os livros diziam a mesma coisa que tinham dito os sábios? Quando eles responderam que suas explicações representavam uma adequada síntese do que estava nos livros, juntamente com os resultados das suas faculdades de combinar e inferir, o rei ergueu-se de golpe. Durante uma audiência isto era inaudito, os cortesãos se encolheram e puseram as mãos sobre a boca. Com voz que traía lágrimas, Meni capitulou os aterrados profetas de charlatães e ignorantes.
— Fora daqui! — gritou, quase soluçando. — E, em vez do ouro abundante que minha majestade vos havia de liberalizar se da vossa boca brotasse a verdade, ide-vos daqui levando convosco o desprezo de Faraó. Vossas interpretações nada mais são que mentira e falsidade, sabe-o Faraó, pois foi Faraó quem sonhou, e apesar de ele não conhecer a significação dos sonhos, é capaz de distinguir entre uma interpretação verdadeira e uma impostura desse calibre. Longe de minha vista!
Dois empregados do palácio conduziram para fora os pálidos homens da ciência. Faraó, porém, ainda de pé, havia declarado a sua corte que o malogro que acabavam de presenciar não os levaria a abrir mão do assunto. Pela sua fé e o seu cetro, no dia seguinte havia de convocar outros entendidos, dessa vez os da casa de Djehuti, o escrivão de Thot, nove vezes grande, senhor de Chmunu. Dos iniciados do Babuíno Branco podia-se esperar uma interpretação fidedigna daquilo que, sussurrava-lhe uma voz interior, tinha de ser explicado a todo custo.
A segunda audiência efetuou-se no dia seguinte e em idênticas circunstâncias, mas saiu ainda pior que a anterior. Novamente o jovem Faraó, sempre muito constrangido, hesitante na fala, fez exibição pública dos seus sonhos mumificados e novamente houve entre os luminares muita sacudidela de cabeça. Não duas mas três horas rei e corte tiveram de esperar pelo resultado da consulta privada, e ainda assim os doutos não haviam entrado em acordo, estando divididos quanto à significação dos sonhos. Havia, segundo declarou o decano dos adivinhos, duas interpretações, uma para cada sonho, mas estas eram certamente as únicas possíveis ou mesmo imagináveis. Consoante uma das teorias, as sete vacas gordas eram sete reis da linhagem de Faraó e as sete magras sete miseráveis príncipes que se revoltariam contra eles. Tudo isso estava num futuro distante. De outro lado, as vacas gordas podiam ser outras tantas rainhas que o próprio Faraó ou algum dos seus sucessores introduziria no seu harém e que, como o indicavam as vacas magras, todas desgraçadamente morreriam uma depois da outra.
E as espigas?
As sete espigas douradas significavam, numa das versões, sete heróis do Egito que numa guerra posterior cairiam às mãos de outros sete guerreiros inimigos muito menos poderosos, como o estavam mostrando as sete espigas delgadas. Outros intérpretes insistiam em que as sete espigas gradas e as sete finas eram filhos que Faraó teria daquelas rainhas estrangeiras. Mas surgiriam questões entre eles e, mercê de uma astúcia superior, os sete filhos fracos dariam cabo dos sete fortes.
Desta vez Amenhotep nem sequer se levantou da sua cadeira de audiência. Continuou sentado e, curvando-se um pouco, escondeu a face nas mãos. Os cortesãos à direita e à esquerda do dossel apuraram os ouvidos para escutar o que estaria murmurando. “Que trapalhões, que embusteiros!”, repetia ele baixinho; depois, fazendo um sinal ao vizir do Norte que era quem estava mais próximo, cochichou-lhe uma ordem. Ptach-em-heb desincumbiu-se dela dizendo em voz alta aos sábios que Faraó desejava saber se eles não se envergonhavam de si mesmos.
A resposta foi que haviam feito o que era possível.
O vizir teve de inclinar-se novamente ao lado do soberano e dessa vez parece que para receber a ordem de que S. M. dispensava da audiência os feiticeiros. Enormemente confusos, entreolhando-se como que para perguntar uns aos outros se antes já se ouvira falar numa coisa assim, deixaram a sala. Os cortesãos que lá continuavam mostravam-se perplexos, porque Faraó mantinha a mesma postura, curvado, tapando os olhos com a mão. Quando por fim a retirou e se pôs direito, lia-se na sua fisionomia a aflição e seu queixo tremia. Disse-lhes que de boa mente os teria poupado e só com relutância os mergulhava na dor, mas não lhes podia ocultar a verdade; seu rei e senhor sentia-se profundamente infeliz. Seus sonhos traziam indiscutivelmente a marca do sentido político e tinham um alcance de vida ou de morte. As explicações que havia recebido não eram mais que baboseira; não quadravam absolutamente aos sonhos, nem estes poderiam reconhecer-se naquelas como sonho e interpretação devem reconhecer-se um ao outro. Com o malogro das duas importantes tentativas via-se obrigado a duvidar se conseguiria ainda uma interpretação correspondente à verdade, a qual ele reconheceria logo à primeira vista. Isto significava que os sonhos iriam ficar entregues à interpretação de si mesmos sem nenhumas medidas preventivas que obstassem à sua desastrosa consumação, arrastando provavelmente a religião e o Estado a irreparável ruína. Um perigo ameaçava os dois países, e Faraó, a quem esse perigo era patente, via-se só, sem conselho nem ajuda.
O opressivo silêncio durou apenas um momento depois que Faraó acabou de falar. Pois aconteceu que Nefer-em-Vese, o copeiro-mor, após porfiada luta consigo mesmo, adiantou-se do grupo dos amigos do rei e solicitou a mercê de falar perante Faraó. “Hoje me lembro das minhas faltas” — tais as palavras que a tradição lhe põe na boca, nós as conhecemos, elas repercutem ainda hoje em nossos ouvidos. Mas não se referia o copeiro-mor a faltas que não cometera, porquanto uma vez fora parar injustamente no cárcere, sem, no entanto, ter tido parte na trama que entregaria o idoso Rá à mordedura da víbora de Ísis. Referia-se a uma falta diferente, a saber, que ele explicitamente prometera a alguém mencioná-lo e, esquecendo esse alguém, não tinha cumprido a palavra. Agora pensava nele e falava a seu respeito diante do sólio régio. Lembrou a Faraó (que mal se recordava da história) o desgosto por que passara havia dois anos, ainda no reinado de Neb-ma-Rá, quando, por um equívoco a respeito de nomes, ele, em companhia de outro homem, que melhor seria não citar, um maldito de Deus, cuja alma fora destruída com seu corpo, tinha sido mandado para Zavi-Rá, a fortaleza da ilha. Lá havia-lhe sido designado como assistente um jovem hebreu da Ásia, auxiliar do capitão, com o nome fantástico de Osarsif, filho de um rei de pastores e amigo de Deus no Oriente, nascido de uma linda mulher, como qualquer pessoa podia averiguar só de olhar para ele. Tinha esse jovem o mais assinalado dom de interpretar sonhos que ele, Excelente-em-Tebas, ainda vira em dias de sua vida. Pois ambos haviam sonhado, seu companheiro culpado e ele inocente. Eram sonhos importantes, portentosos, tendo tido cada qual o seu extremamente difícil de explicar. Foi quando o tal Osarsif, sem ter antes feito grande cabedal do seu talento, lhes interpretou os sonhos com toda a facilidade e na mesma hora, anunciando ao padeiro que acabaria no patíbulo e a ele, copeiro-mor, que, em virtude da sua perfeita inculpabilidade, seria reposto nas boas graças do monarca e voltaria a ocupar o antigo cargo. Sucedera exatamente o que fora predito e agora ele, Nefer, se recordava da sua falta, não tendo há mais tempo chamado a atenção de S. M. para esse gênio oculto debaixo de uma nuvem. Não hesitava em exprimir sua convicção de que, se havia alguém capaz de interpretar os importantes sonhos de Faraó, era aquele jovem, que, presumivelmente, ainda vegetava em Zavi-Rá.
Houve um movimento de sensação entre os amigos do potentado; notou-se também o que quer que fosse na fisionomia e na figura de Meni. Mais algumas perguntas e respostas trocadas rapidamente entre ele e o gordo e eis que é expedida a formosa ordem; que o primeiro e mais veloz dos estafetas fosse diretamente e a toda a pressa de barco a Zavi-Rá para trazer com o mínimo de demora possível o jovem adivinho a On, à presença de Faraó.
3
O PAVILHÃO CRETENSE
A APRESENTAÇÃO
Quando José chegou à cidade dos Piscadores, a milenária On, era mais uma vez tempo de semeação, tempo de enterramento do deus, como fora quando pela segunda vez ele havia baixado ao fosso, permanecendo ali três grandes dias em condições toleráveis, graças a Mai-Sachme, o calmo capitão. Tudo quadrava à maravilha: haviam decorrido precisamente três anos, estava-se no mesmo ponto do círculo, a semana do vigésimo segundo ao último dia de Choiak, e os filhos do Egito acabavam de celebrar mais uma vez a festa do arroteamento da terra e da colocação da divina espinha dorsal.
José sentiu-se satisfeito de rever a dourada On. Quando adolescente, atravessara-a dez e mais três anos antes com os ismaelitas em demanda do lugar aonde o estavam conduzindo. Ali todos eles tinham recebido dos servos do Sol interessantes lições sobre a formosa figura do triângulo e a branda natureza de Rá-Horachte, senhor do vasto horizonte. Uma vez mais seu caminho o levava através do recinto triangular da douta cidade com seus inúmeros e refulgentes monumentos solares. Ao lado do mensageiro dirigia-se ao topo dela, rumo ao grande obelisco no seu ápice onde os dois lados se encontravam; seu dourado cimo, cuja refulgência vencia tudo mais, já os saudara de longe.
Ao filho de Jacó, que durante tanto tempo não tinha visto outra coisa senão os muros da sua prisão, não sobravam ócios para pascer os olhos e deleitar-se com o espetáculo da ativa cidade e seus habitantes. Não era só o seu guia, o alado mensageiro, que, não lhe deixando tempo para nada, não perdia um minuto sequer e insistia sempre em que a pressa era muita. Seu próprio temperamento e seus sentimentos não lhe permitiam deliciar a vista. Mais um ciclo estava a ponto de completar-se; mais um acontecimento ia repetir-se; mais uma vez, José se acharia perante o mais alto de todos. Antes tinha sido Petepré diante de quem lhe fora outorgado falar no jardim, Petepré, o mais alto no seu círculo imediato, e de quem tudo dependia na ocasião. Agora era Faraó em pessoa, o altíssimo cá de baixo, em cuja presença ia falar e de quem tudo dependia num grau ainda mais elevado. O que, porém, lhe cumpria fazer era ser prestadio ao Senhor nos seus planos e não torcê-los com o seu desazo. Isto seria uma grande loucura, uma desastrosa negação da ordem do mundo por falta de confiança. Somente uma fé vacilante em que Deus tencionava exaltá-lo podia ser causa de imperícia, de inabilidade no aproveitamento do ensejo. Por isso José estava tão absorto na ideia dos futuros sucessos que não tinha olhos para apreciar o bulício das ruas; aguardava-os com grande confiança em si mesmo, alheio ao medo, fortalecido como se achava naquela fé que ele sabia ser a base de toda transação devota e hábil, isto é, a fé nos desígnios amorosos e transcendentes que Deus tinha a seu respeito.
Enquanto o acompanhamos, compartilhando sua ânsia e incerteza apesar de já sabermos como tudo se passou, não o chamaremos a contas pela confiança que tem em si mesmo, mas o aceitaremos por quem é e tal como já de longa data o conhecemos. Há alguns eleitos que são cheios de humildade, de dúvida, ásperos consigo mesmos, incapazes de acreditar na sua própria eleição. Na sua tacanhez de espírito, procuram afastá-la de si com um gesto de irritação; descreem dos seus próprios sentidos, parecendo-lhes até, quando se veem realmente exalçados, que se fez uma espécie de afronta à sua descrença. E outros há para os quais não há no mundo coisa mais natural que a sua eleição; acolhem conscientemente os mimos dos deuses, sem absolutamente se surpreenderem com quaisquer distinções e honrarias que lhes toquem no seu caminho. Seja qual for dentre essas duas categorias a que prefirais, a dos que não confiam em si e a dos que muito presumem de si, José pertencia a esta última. E ainda bem que não pertencia a uma terceira que também existe — a dos hipócritas diante de Deus e dos homens, que se fingem indignos até perante si próprios e em cuja boca a palavra “graça” esconde contudo mais arrogância do que toda a presunção dos pertencentes à segunda categoria.
A sede provisória de Faraó em On ficava a leste do templo do Sol, estando ligada a este por uma avenida de esfinges e sicômoros pela qual passava o deus quando ia queimar incenso diante de seu pai. Uma imaginação alegre e brilhante fizera surgir ali a casa de moradia; não fora construída de pedra, que só convém a moradas eternas, mas de tijolo e madeira como as demais moradas, embora, naturalmente, tivessem presidido à sua edificação a graça e o encanto com que só a alta cultura de Keme podia sonhar. Seus jardins eram cercados por um muro de deslumbrante alvura, em cuja entrada, sobre douradas hastes, alegres galhardetes tremulavam à branda viração.
Já passava de meio-dia e terminara o tempo da refeição. O mensageiro nem ainda de noite havia repousado; contudo, foi-lhes necessário viajar ainda na primeira metade do dia antes de chegarem a On. Havia grande movimento no largo diante das portas da muralha. Muita gente da cidade afluíra ao local por mera curiosidade, aguardando que acontecesse alguma coisa. A passagem achava-se impedida por um troço de soldados de polícia, sentinelas diante do portão e condutores de carros que estavam ali a conversar, enquanto seus cavalos pateavam, bufavam e às vezes soltavam altos rinchos. Havia ainda no mesmo ponto vendilhões e bufarinheiros vendendo doces e bolos multicores, escaravelhos como recordações do lugar e minúsculas estatuetas do rei e da rainha. Não sem dificuldade conseguiam o emissário e José abrir caminho no meio de tanta gente. “Licença! Licença! Ordem del-rei!” ia gritando aquele, procurando ao mesmo tempo intimidar o povo com o seu esbaforimento profissional, que ele, ao saltar em terra, recomeçara. Gritou novamente para os servos que vinham correndo para ele no pátio interno; até que franziram as sobrancelhas e fizeram sinal de que compreendiam; incumbiu-se então de levar José até a escadaria. No alto dela um empregado do palácio montava guarda diante da entrada de um pavilhão e olhou para eles com cara displicente. O cargo desse homem devia ser mais ou menos o de um submordomo. Do pé da escada, o esbaforido emissário foi gritando para ele que trazia de Zavi-Rá o adivinho cuja presença no paço era exigida com a maior urgência. Então o guarda, com a mesma indolência, mediu José com a vista de alto abaixo, como se mesmo depois da explicação hesitasse sobre se deveria dar-lhe ingresso ou vedar-lho. Por fim fez-lhe sinal de que subissem, ainda com um ar de quem porfia interiormente contra uma decisão. A pressa o mensageiro recomendou mais uma vez a José que se mostrasse esfalfado e sem fôlego ao chegar à presença de Faraó, para dar ao soberano a agradável impressão de que viera correndo sem parar de Zavi-Rá até ah. José, porém, não tomou a sério. Agradeceu ao homem de perna comprida tê-lo ido buscar e havê-lo acompanhado e depois subiu a escada detendo-se junto do funcionário palaciano, que por toda a saudação abanou a cabeça e convidou José a segui-lo.
Encaminharam-se pelo vestíbulo de cores alegres, com paisagens pintadas nas paredes e quatro colunas ornamentais em que se entrelaçavam fitas, e chegaram a um átrio onde havia um poço, sendo de preciosa madeira polida os pilares que sustentavam o pórtico. Via-se ali uma manga de homens armados. O átrio comunicava de um lado e de outro com passadiços cobertos, apoiados também em pilares. O homem foi conduzindo José por uma antecâmara com três portas, entrando eles pela do meio num vasto salão onde havia umas doze colunas que sustinham um teto azul celeste no qual estavam pintados bandos de pássaros. No centro via-se um pavilhãozinho aberto, vermelho e dourado, lembrando um mirante de jardim, e no seu interior uma mesa rodeada de cadeiras de braços com coxins de várias cores. Escravos de avental regavam e varriam o chão, outros retiravam fruteiras da mesa, ainda outros se ocupavam das caçoulas com incenso e das lâmpadas sobre as trípodes que alternavam com vasos de alabastro com largas asas. Alguns dispunham sobre o aparador os copos de ouro cinzelados e sacudiam os coxins. Evidentemente Faraó acabara de almoçar ali e se retirara em seguida para descansar, estando ou no jardim ou num aposento qualquer da casa que ficava mais além. Para José tudo aquilo era muito menos novidade e menos assombroso do que o seu guia provavelmente supunha, pois este de vez em quando olhava de esguelha para o seu acompanhante.
— Sabes portar-te convenientemente? — perguntou-lhe, enquanto deixavam o salão à sua direita e entravam num pátio ajardinado em cujo pavimento de mosaicos estavam embutidos quatro tanques.
— Mais ou menos, em caso de necessidade — respondeu José, sorridente.
— Pois bem, agora é necessário — retorquiu o homem. — Sabes ao menos como se saúda o deus?
— Preferia não sabê-lo — replicou José —, pois teria muita graça aprendê-lo contigo.
O palaciano fechou a cara por alguns segundos e de repente e inesperadamente riu, mas logo pôs-se sério de novo.
— Es brincalhão — comentou ele —, ao que parece. Um trocista, um ladrão de cavalos capaz de fazer rir as pedras com suas pilhérias. Não vá o teu dom de interpretar ser também uma boa peça, uma coisa parecida com as que se vê um pelotiqueiro fazer numa feira.
— Oh — disse José —, não te posso dizer muita coisa acerca de interpretação. Ela não depende de mim, e a obra não é minha. O que faço é puramente casual. Nunca prestei muita atenção às minhas faculdades de interpretante. Como, porém, Faraó me mandou chamar com tanta pressa para explicar uns sonhos, agora estou pensando no caso com mais seriedade.
— Será alguma lição para mim? — indagou o homem. — Faraó é jovem, delicado e bondoso. O fato de o Sol brilhar sobre um homem não prova que ele não seja um patife.
— O sol não somente brilha sobre nós, mas nos faz brilhar também — respondeu José enquanto ia andando. — Cada um no seu meio, é claro. Possas tu brilhar na tua esfera!
O homem olhou-o de esguelha, repetidas vezes. Depois olhou direto para a frente; mas de súbito, como se tivesse esquecido alguma coisa e houvesse de dar outra olhadela àquilo que antes vira, voltou a cabeça para o lado de José, que afinal foi obrigado a retribuir-lhe o olhar de viés. Fê-lo a sorrir e com um meneio de cabeça, como quem dissesse: “Está bem, está bem, não te espantes, pois não te enganaste.” Rapidamente e como se se houvesse assustado, o homem virou-se outra vez, pondo-se a olhar para a frente.
Atravessado o pátio em que havia os canteiros, chegaram a um passadiço cuja claridade vinha de cima e onde uma parede lateral continha pinturas representando cenas de colheita e de sacrifícios, enquanto do lado oposto se viam, através da colunata, vários aposentos. Por aí tinha-se acesso à sala do conselho e à de recepções com o baldaquim; enquanto passavam, o guia indicou-a a José. Fizera-se mais comunicativo, chegando a dizer ao companheiro onde Faraó devia estar naquele momento.
— Depois do almoço foram para o quiosque cretense — disse ele. — Dão-lhe esse nome porque as pinturas lá existentes foram feitas por artistas estrangeiros. Tem ele agora os principais escultores régios, Bek e Auta, a quem está dando instruções. Lá está também a grande mãe. Na antessala eu te entregarei ao camarista de serviço para que ele anuncie a tua chegada.
— Assim está bem — disse José. E nada mais lhe foi dito no momento. Mas, enquanto prosseguiam, o homem que ia ao seu lado primeiro abanou a cabeça, depois e de repente desatou a rir à socapa, um risinho silencioso, prolongado, quase espasmódico, que visivelmente lhe sacolejava o diafragma em súbitas sacudidelas. E, quando chegaram à antecâmara no fim do passadiço, o homem parecia não ter conseguido ainda reprimi-lo completamente. Um cortesãozinho curvado que trazia um esplêndido avental de folhos, com um abano debaixo do braço, desprendeu-se das dobras de um reposteiro com bordados representando abelhas douradas, onde parecia ter estado à escuta. Na voz do guia ainda se notava um rir reprimido; seu tom tinha variantes cômicas enquanto o homem apresentava o recém-vindo ao camareiro, que, muito afetado e com modo gingão, se lhes fez encontradiço.
— Ah, o esperado, o tão decantado sabichão! — disse o sujeitinho numa voz de falsete, quase balbuciante. — O tal que é mais douto que todos os letrados da casa dos livros! Muito bem, ótimo, es-tu-pen-do! — disse ele, sempre curvado, quer porque fosse aquele o seu jeito de nascença, quer porque as exigências do aulicismo o tivessem fixado em tal postura. — Vou-te anunciar, fá-lo-ei imediatamente, e por que não? Toda a corte está à tua espera. Hei de interromper a Faraó, seja o que for que ele esteja dizendo, no meio das instruções que está dando aos seus artistas, para comunicar-lhe a tua chegada. Isto talvez te surpreenda um pouquinho, hem? Vamos esperar que isto não te atrapalhe e não te faça dizer tolices, embora mesmo sem isso sejas capaz de dizê-las. Antecipadamente chamo tua atenção para o fato de que Faraó é muitíssimo sensível a quaisquer sandices que lhe digam a respeito de seus sonhos. Meus parabéns! Teu nome era...?
— Meu nome era Osarsif — disse o interpelado.
— Naturalmente queres dizer que teu nome é Osarsif. E singular chamares-te assim até hoje. Obrigado, meu amigo — disse ele ao guia de José, dando de ombros. O homem afastou-se, enquanto o da corcova se esgueirava de mansinho por entre as cortinas.
Do outro lado podiam-se ouvir vozes abafadas, principalmente uma voz moça, meiga e velada ao mesmo tempo. Houve uma pausa. Provavelmente o camarista se chegara todo mesureiro a Faraó e lhe sussurrara qualquer coisa ao ouvido. Daí a pouco estava de volta, com as sobrancelhas erguidas, e murmurou:
— Faraó te chama.
José entrou.
Recebeu-o uma loggia, não bastante grande para ser chamada, como chamavam, pavilhão do jardim, mas de rara beleza. Seu teto se apoiava em duas colunas com embutidos de vidro colorido e alguergues refulgentes e nas quais se entrelaçavam pâmpanos representados com tal arte que pareciam reais. O pavimento era de mosaico formando duas combinações alternadas, ora sibas, ora crianças cavalgando delfins. Três vastas aberturas ofereciam azo para que dali se abarcasse com a vista todo o jardim de maravilhoso trato. Viam-se nele lindos canteiros de tulipas, caprichosos arbustos de espécies florais exóticas, sendas polvilhadas de ouro que iam dar a tanques de lotos. Avançando longe, a vista atingia um recorte de ilhotas, pontes e quiosques, e sentia as coruscações de ornatos de faiança duma longínqua residenciazinha de verão. Na própria loggia havia um luxo deslumbrante de coloridos. Decoravam as paredes pinturas que não era possível encontrar em nenhuma outra parte do país: estavam ali representados povos e trajes estranhos. Tratava-se evidentemente de paisagens apanhadas das ilhas do mar. Mulheres de pomposas saias muito armadas e vistosas estavam sentadas ou em movimento, os peitos ao léu nos corpetes justos, o cabelo encaracolado sobre a fita que lhes cingia a testa, caindo-lhes pelos ombros em compridas tranças. Acompanhavam-nas pajens de vestidos excêntricos, carregando púcaros afunilados. Um principezinho de cintura de vespa, calção de duas cores, botas de pele de cordeiro, tendo sobre o cabelo anelado uma coroa adornada com um penacho, andava complacentemente no meio da luxuriante vegetação, ao mesmo tempo que retesava o arco para disparar a seta à caça que fugia a bom fugir, de cascos levantados, sem tocar o solo. Acrobatas davam cambalhotas sobre o lombo de furiosos touros para divertir damas e cavalheiros que de um balcão apreciavam o espetáculo.
O mesmo gosto exótico presidia os objetos de arte e de delicada execução: vasos de barro esmaltado, relevos de marfim com embutidos de ouro, taças e copos com incrustações, uma cabeça de touro em basalto preto com chifres de ouro e olhos de cristal de rocha. Quando José entrou e levantou as mãos, seu olhar sério e modesto fez um giro pelo ambiente e pelas pessoas de cuja presença o haviam advertido.
A viúva de Amenhotep-Neb-ma-Rá achava-se sentada diretamente defronte dele, de costas para a luz, entronizada sobre uma elevada cadeira de escabelo alto situada entre as duas janelas do meio. A tez bronzeada, contrastando com o vestido branco, parecia ainda mais escura na sombra. Contudo, José reconheceu seus traços inconfundíveis, tendo-a visto várias vezes por ocasião de saídas régias: o narizinho aquilino, os lábios grossos engastados entre rugas profundas denotando acerbo conhecimento do mundo, as sobrancelhas em arco, alongadas a pincel, por cima de uns olhinhos negros, cintilantes, friamente observadores e atentos. A mãe não usava a áurea coifa de abutre com que José a vira em público. Era natural que seu cabelo estivesse grisalho porque ela já devia orçar quase pelos sessenta anos. Estava, porém, coberto por uma touca prateada que deixava visível a dourada listra de um nastro que lhe cingia a testa e as fontes, e do alto da cabeça duas serpentes reais — duas, como se ela tivesse tomado também a do marido, agora com Deus — vinham descendo até a altura das sobrancelhas e aí se encurvavam em atitude desafiadora. Chapinhas arredondadas adomavam-lhe as orelhas, combinando bem com as pedrarias vistosas que guarneciam o cabeção. Era uma figura pequena, mas enérgica, empertigada quase hieraticamente na cadeira, os braços muito compostos, os pezinhos unidos sobre o alto escano. Os olhos astutos da viúva-deusa cruzaram-se com os de José quando este entrou, mas de novo se desviaram na direção do filho depois de haverem resvalado velozmente pela figura do recém-chegado, com indiferença natural e irrepreensível enquanto as fundas linhas de cada lado dos volumosos lábios mais se acentuavam com o sorriso sardônico que lhe provocara a curiosidade pueril estampada no semblante de Faraó diante do intérprete recomendado ansiosamente esperado.
O jovem rei do Egito estava sentado em frente à parede pintada que ficava ao lado esquerdo. Sua macia cadeira de braços com pés de leão era ricamente estofada e tinha um espaldar inclinado, do qual o rei se descolou com ligeireza, curvando-se para a frente. Tinha os pés debaixo do assento, cujos braços segurava com suas mãos finas cobertas de escaravelhos. Acrescente-se que essa postura de tensa expectativa, que traduzia um como ímpeto de querer pular da cadeira, esse ato de volver-se para a direita enquanto os velados olhos cinzentos se arregalavam o mais possível para contemplar o novo interpretador de seus sonhos — essa expressiva série de mudanças não se verificou toda de uma só vez, mas se desdobrou aos poucos, durando bem um minuto. Por fim Faraó chegou realmente a soerguer-se, descansando todo o seu peso sobre as mãos de cotos embranquecidos, as quais agarravam com força os braços da cadeira. E assim um objeto que estivera sobre seus joelhos — um instrumento de corda qualquer — caiu no chão produzindo um som vibrante e surdo. Um dos presentes, um dos escultores que estavam recebendo instruções do soberano, imediatamente o apanhou para entregá-lo ao soberano. O homem teve de conservá-lo consigo algum tempo até que o rei se decidisse a recebê-lo, fechando os olhos e enterrando-se de novo nas almofadas da sua cadeira, evidentemente na mesma atitude em que estivera antes, quando dirigia a palavra aos artistas. Sua postura era das mais cômodas, porquanto o assento tinha uma depressão para conter as almofadas e, sendo estas muito macias, instintivamente o soberano se afundava entre elas. Assim, estava ele sentado não só com as costas no espaldar mas também em posição um tanto acaçapada, tendo uma das mãos negligentemente pendurada sobre o encosto da cadeira, enquanto com o polegar da outra feria ao de leve as cordas da estranha harpazinha que estava sobre seu joelho. Como o monarca cruzara as pernas sob o linho do avental, um de seus pés se agitava um tanto no ar a boa altura. A correia de ouro da sandália passava entre o dedo maior e o imediato do pé.
A CRIANÇA DA CAVERNA
Nefer-Cheperu-Rá-Amenhotep tinha nessa ocasião a mesma idade que contava José (agora, homem de trinta anos) quando este último “pastoreava o gado com seus irmãos” e, com a sua lábia, se apossara da túnica de várias cores tão ciosamente guardada por seu pai. Em outras palavras, Faraó tinha dezessete anos. Mas parecia mais velho. Isso era devido não só ao fato de, naquela região, os homens ficarem maduros mais rapidamente, não só em razão da sua saúde delicada, mas também por causa das obrigações que precocemente contraíra com o universo, por causa das múltiplas impressões que, partindo de todos os pontos do céu, lhe acossavam o espírito e o coração, e finalmente por causa do seu zelo, da sua preocupação fanática relativa às coisas divinas. Descrevendo sua fisionomia, sob a redonda peruca azul que então trazia sobre o gorro de linho, o hiato de milênios não nos deve impedir de usarmos o símile adequado: ele tinha uns ares de jovem fidalgo inglês pertencente a uma família meio decadente; magro, altivo, de aspecto fatigado, com um queixo saliente mas nem por isso denotando energia, um nariz cuja cana, estreita e um tanto afundada, fazia avultar mais as amplas narículas, e uns olhos fundos e sombreados com pálpebras que ele nunca lograva abrir completamente — sua expressão de fadiga estava em desconcertante contraste com o brilho dos lábios cheios, não-arrebicados, mas morbidamente vermelhos por natureza. Havia um complicado e penoso misto de intelectualidade e sensualidade naquele rosto, ainda na fase adolescente com uns laivos de arrogância e turbulência. Não se notavam ali traços propriamente de beleza, mas era exercida uma atração inquietante, estando assim justificada a ternura com que o povo egípcio queria ao seu monarca e lhe dava nomes carinhosos.
Não era tampouco bonito, senão antes extravagante e pouco harmonioso, o corpo de Faraó. Sua altura mal chegava à mediania; isso tornava-se manifesto justamente ali, estando ele metido entre os coxins, com a sua veste leve e riquíssima. A postura de abandono não derivava de educação pouco refinada, mas era uma atitude clara de oposição. A indicá-lo ali estava o pescoço comprido, o peito estreito e delicado meio coberto por um cabeção formado pelo entrelaçamento de maravilhosas pedrarias, os braços finos cingidos por argolas de ouro; o abdome, proeminente desde a infância, com o saiote começando bem abaixo do umbigo e nas costas chegando a uma boa altura, na frente os ricos folhos enfeitados com najas e franjas. A tudo isto acrescente-se que as pernas eram não somente demasiado curtas, mas até desproporcionadas, sendo as coxas visivelmente gordas demais, ao passo que as pernas pareciam tão finas como as de uma galinha. Amenhotep recomendava aos escultores que não só não ocultassem essa particularidade sua, mas que até, em homenagem à verdade, a exagerassem. Pelo contrário, os pés e as mãos tinham uma forma delicada e aristocrática, as mãos principalmente, com seus longos dedos e sua sensibilidade de expressão. Traziam vestígios de unguento na raiz das unhas. Era estranho que a paixão dominante desse rapaz apaparicado, o qual com toda certeza reputava muito natural ao seu estado todo privilégio e todo aquele luxo, fosse o conhecimento do Altíssimo; o descendente de Abraão, estando de lado e olhando para Faraó, admirava-se de ver de quantos modos diversos, singulares e afastados um do outro, podia manifestar-se na Terra a preocupação com Deus.
Amenhotep havia-se voltado de novo para os artistas a fim de despedi-los. Eram dois homens simples e robustos, um dos quais no momento estava ocupado em envolver num pano úmido a estatueta de barro ainda incompleta e colocada sobre um supedâneo, a qual ele exibira pouco antes àquele que lha encomendara.
— Faze, pois, bom Auta — (José ouviu novamente a voz meiga e velada, bastante aguda, um tanto arrastada, mas às vezes tornando-se mais impetuosa) —, faze-o segundo as instruções de Faraó, aprazível, vivo, belo, como havia de querê-lo meu Pai, que está no alto. Há ainda deficiências na tua obra, não erros de técnica, pois és muito competente, mas erros de espírito. Minha Majestade tos mostrou e tu vais corrigi-los. Tu fizeste minha irmã, a doce princesa Baketaton, num estilo muito antiquado, num estilo morto, contrário ao Pai, cuja vontade conheço. Faze-a graciosa e leve, faze-a conforme a verdade, que é a luz, e na qual Faraó vive, pois que nela pôs o mais íntimo do seu coração! Representa-a no ato de levar à boca com uma das mãos uma roda de fruta, uma romã, enquanto a outra pende embaixo com toda a naturalidade, não com a palma rigidamente voltada para o corpo mas com a arredondada palma virada para trás: assim o quer o deus que está no meu coração e a quem conheço como ninguém mais conhece, porque dele provim.
— Teu servo — respondeu Auta, envolvendo com uma das mãos a figurinha de barro enquanto conservava a outra erguida na direção de Faraó — fará exatamente como Faraó ordena e me deu instruções com grande alegria minha, pois é ele o filho único de Rá, o formoso filho de Aton.
— A ti, Auta, os meus mais calorosos agradecimentos. E importante, entendes? Porquanto assim como o Pai está em mim e eu nele, assim tudo se tornará uma coisa só em nós, sendo esse o grande alvo. Mas a tua obra, concebida com o espírito com que o deve ser, talvez possa contribuir um pouco para tudo tornar-se uma coisa só nele e em mim. E quanto a ti, bom Bek...
— Lembra-te, Auta — soou neste ponto, do alto da cadeira da viúva-deusa, sua voz grave, quase masculina —, lembra-te sempre de que é difícil para Faraó tornar-se-nos compreensível e que provavelmente ele diz mais do que tenciona, a fim de que a nossa inteligência o acompanhe. Ele não quer dizer que devas representar a doce princesa Baketaton no ato de comer, de morder a fruta; hás de somente pôr-lhe na mão a romã e fazê-la levantar ligeiramente o braço, de modo que quem veja suponha que ela vá levar a fruta à boca. Isso já basta como inovação e é o que Faraó quer dar a entender quando diz que deves representá-la comendo. Deves também descontar um pouco do que diz S. M. sobre a mão pendente, isto é, que a palma deva ficar inteiramente voltada para trás. O que deves fazer é pô-la um pouco apartada do corpo, quase virá-la, eis o que se quer dizer e te trará suficiente louvor ou censura. E isto que é necessário dizer para tornar compreensíveis as coisas.
O filho ficou calado algum tempo. Depois perguntou:
— Entendeste?
— Entendi — respondeu Auta.
— Então hás de ter entendido — disse Amenhotep, olhando para o instrumento em forma de lira que tinha sobre os joelhos — que a grande mãe naturalmente disse alguma coisa menos do que tencionava dizer quando procurou diminuir o alcance de minhas palavras. Podes levar a mão com a fruta quase à altura da boca. Quanto à outra mão, é claro que se trata apenas de virá-la levemente, uma vez que, afastando-a do corpo, lhe voltes a palma para trás, porque não há quem vire a palma da mão completamente para fora. Assim podes ver quão acertadamente a mãe comentou minhas palavras.
Deixou de olhar para o instrumento e sorriu maliciosamente, mostrando entre os lábios grossos uns dentinhos muito alvos, muito transparentes. Dirigiu então os olhos para José, que também sorriu para ele. A rainha e os artistas também sorriram.
— Quanto a ti, bom Bek — prosseguiu —, vai, conforme te incumbi, a Jebu, terra do elefante, e traze, do granito vermelho que lá existe, uma boa porção do de mais fina qualidade, daquela espécie mesclada de quartzo e de mica negra, conforme sabes que meu coração aprecia. Faraó quer adornar a casa de seu pai em Karnak para que ela possa ofuscar a de Amun, se não nas dimensões, ao menos na preciosidade das pedras e para que o nome “Esplendor do Grande Aton” se tome cada vez mais usual na sua circunscrição, até que talvez a cidade de Vese em peso um dia passe a chamar-se na boca do povo “Cidade do Esplendor de Aton”. Tu sabes os meus pensamentos e eu confio no amor que lhe tens. Vai, pois, meu bom homem, viaja imediatamente. Enquanto Faraó fica aqui sentado sobre as suas almofadas, tu viajarás para longe rio acima, suportando o incômodo de arranjar grandes quantidades da pedra vermelha e pô-la no navio até Tebas. Assim é e assim tem de ser. Quando partirás?
— Amanhã cedo — respondeu Bek —, logo depois que tenha tratado do bem-estar da minha família. E o amor ao nosso doce senhor, o formoso filho de Aton, fará tão suave a minha viagem e os meus trabalhos como se eu estivesse sentado nas mais macias almofadas.
— Muito bem; e agora ide, meus homens. É arrumar e cada um à sua tarefa. Faraó tem negócio de importância; só externamente é que ele está rodeado de almofadas, no íntimo, grande é a tensão de seu espírito, solícita e cheia de cuidados. Vossas preocupações são na verdade interessantes, mas pequenas em comparação com as dele. Adeus!
Esperou até que os escultores acabassem de fazer sua reverência e se retirassem, não deixando, entretanto, de olhar para José.
— Chega-te mais para cá, meu amigo — disse, quando se fechou sobre eles a cortina adornada de abelhas de ouro —, chega-te bem para mim, querido hebreu do Retenu, e não temas nem te assustes, mas vem ter comigo! Esta é a mãe do deus, Teje, que vive milhões de anos. E eu sou Faraó. Mas não penses mais em tal, para que isto não te ponha medroso. Faraó é deus e homem, porém tanto caso faz desta última qualidade como da primeira; sim, ele se rejubila e algumas vezes seu júbilo chega a ser desafio e zombaria por ser ele, visto de um lado, tão homem como os demais homens; Faraó alegra-se de poder ridicularizar essa gente de má morte que quisera vê-lo portar-se sempre como um deus.
E com os dedos e os olhos fez um sinal como a denotar a mofa que os tais mereciam.
— Mas vejo que não tens medo — continuou — e não tropeças enquanto animoso te encaminhas na minha direção. Isto é bom de vet, porque o coração de muitos se altera quando se veem diante de Faraó, a coragem os abandona, seus joelhos tremem e já não distinguem a vida da morte. Não sentes vertigem?
Sorridente, José sacudiu a cabeça.
— Podem ser três as razões disto — disse o rei adolescente. — Ou porque descendes de gente nobre ou porque vês o ser humano em Faraó como ele gosta que se faça, desde que também se pense no seu caráter divino. Ou será porque sentes que um reflexo da divindade pousa sobre ti, uma vez que és extraordinariamente formoso, encantador, perfeito como uma pintura. Notou-o Minha Majestade logo que aqui entraste, embora isso não me surpreendesse, porque me haviam dito que és filho de uma linda mulher. Isso afinal indica que te ama Aquele que cria a beleza da forma através de si mesmo. Aquele que empresta aos olhos vida e força de visão através de sua beleza e para ela. As pessoas formosas poderiam ser chamadas os favoritos da luz.
Olhou para José com satisfação, inclinando a cabeça para um lado.
— Ele não é maravilhosamente lindo, como o deus da luz, mãezinha? — perguntou a Teje, que descansava a face sobre três dedos da mão trigueira faiscante de gemas.
— Chamaste-o à tua presença por causa da sabedoria e do poder de interpretação que dizem que possui — respondeu ela, olhando para o espaço.
— São coisas que se relacionam — acudiu Amenhotep rápido e com ardor. — Faraó refletiu muito e ouviu muita coisa sobre esse ponto; discutiu-o a miúdo com embaixadores que o visitavam, vindo de países distantes, magos, sacerdotes e iniciados que do Oriente e do Ocidente lhe trouxeram novas dos pensamentos dos homens. Pois quanta coisa não deve ele ouvir e observar para experimentar, escolher e utilizar o que for útil, para poder aperfeiçoar a doutrina e estabelecer a imagem da verdade conforme a vontade de seu Pai do alto? A beleza, mãezinha, e tu, caro Amu, relaciona-se com a sabedoria por intermédio da luz. A luz é o meio e o centro de onde a afinidade se irradia para três lados: para a beleza, para o amor e para o conhecimento da verdade. Nela estas três coisas são uma só, e a luz é a que une as três. Com estranhos aprendi a doutrina de um deus primordial, nascido de chamas, um deus formoso de luz e amor, e seu nome era “brilho primogênito”. Eis aí uma estupenda e útil contribuição, porque aí está contida a unidade do amor e da luz. A luz, porém, é beleza tanto como verdade e sabedoria, e se quereis conhecer o meio para chegar à verdade: é o amor... Com que, então — disse, dirigindo-se outra vez diretamente a José —, consta que quando te contam um sonho sabes interpretá-lo?
O rubor que lhe ia pelo rosto traduzia seu embaraço e sua perplexidade por causa das palavras extravagantes e fanáticas que acabava de dizer.
— Não sou eu quem faço isto, meu senhor — respondeu José. — Eu não posso fazê-lo; só Deus o pode e Ele às vezes o faz por meu intermédio. Cada coisa tem seu tempo: tanto os sonhos como sua interpretação. Quando eu era rapaz, sonhei, e meus irmãos, zangando-se, alcunharam-me de sonhador. Agora que sou homem, eis que chegou o tempo da interpretação. Para mim os meus sonhos a si próprios se interpretam e certamente é Deus quem me dá o poder de interpretar os sonhos dos outros.
— Então, pelo que vejo, és um jovem profético, um cordeiro que se poderia chamar inspirado — inquiriu Amenhotep. — Parece ser essa a categoria em que se te deve incluir. Queres cair morto depois de ditas tuas últimas palavras, depois que tiveres anunciado o futuro ao rei, e morrer num estado de enlevo para que ele te enterre com solene pompa fúnebre e mande gravar tuas profecias que serão transmitidas à posteridade?
— Não é fácil — disse José — responder à pergunta da Grande Casa; nem com um sim, nem com um não, só talvez com os dois. Muito surpreende ao teu servo e lhe fala ao coração isso de te dignares ver nele um cordeiro, um inspirado cordeiro. Efetivamente, desde criança estou acostumado com este nome. Meu pai, o amigo de Deus, costumava chamar-me “o cordeiro”, porque minha meiga mãe, a donzela astral por amor de quem ele serviu em Sinear, sobre o rio que corre em sentido contrário, e que me deu à luz no signo da Virgem, chamava-se Raquel, que significa ovelha. Isto, porém, não é razão bastante, grande senhor, para que eu aceite incondicionalmente a tua ideia e diga “eu o sou”. Porque sou e não sou, justamente porque eu sou eu. Quero dizer que o geral e o típico variam quando se cumprem no particular, de modo que o conhecido se torna desconhecido e já não o podes reconhecer. Não esperes que eu, ditas minhas últimas palavras, caia morto, só por ser esta a norma estabelecida. Este teu servo que chamaste do túmulo não espera tal coisa, porque isto pertence somente ao típico e não a mim, uma variante do típico. Nem me virá espuma à boca, como acontece ao típico jovem profético, se Deus me conceder o dom de profetizar para Faraó. Quando adolescente, realmente eu me contorcia e dava a meu pai preocupação revirando os olhos como aqueles que andam nus, papagueando oráculos. Teu servo pôs de lado tais demonstrações desde que se fez homem; o que agora o possui é a razão divina, mesmo quando ele interpreta. Basta já o enlevo da interpretação, não é preciso babar. A interpretação há de ser simples e clara e não aulasaukaulala.
Enquanto falava, não tinha olhado para a mãe, mas pelo canto do olho viu que do seu alto assento ela aprovava com a cabeça. Sua voz rápida, baixa, quase masculina, saindo daquela forma frágil, fez-se ouvir assim:
— O estrangeiro fala diante de Faraó coisas confortadoras e que merecem ser ouvidas.
Com isso José podia sem dúvida continuar, porque o rei manteve-se calado e com a cabeça pendida, num amuo de criança brandamente censurada. Assim animado por Teje, José prosseguiu:
— Na minha humilde opinião, uma maneira calma no interpretar deve-se ao fato de que o típico e o tradicional vão sendo executados por meio do “eu” e de um indivíduo único, e com isso, no meu entender, é-lhes outorgado o selo da razão divina. Porquanto a norma e o que é tradicional vêm das profundezas e são o que nos obriga, ao passo que o “eu” vem de Deus e é do espírito que é livre. O que, porém, constitui a vida civilizada é que a profundeza normativa e obrigatória se encherá da liberdade de Deus, a qual pertence ao “eu”; com a exclusão de qualquer desses fatores não há civilização humana.
Amenhotep, de sobrancelhas erguidas, meneou aprovativamente a cabeça na direção de sua mãe; principiou a aplaudir, erguendo uma mão e batendo na palma com dois dedos da outra.
— Estás ouvindo, mãezinha? — disse. — Minha Majestade mandou vir aqui um moço de enorme perspicácia e grande talento. Lembra-te que por minha livre resolução ordenei que viesse aqui. Faraó também tem talento e precocidade, mas é duvidoso que ele possa ter imaginado e expresso essas coisas a respeito da norma obrigatória da profundeza e de dignidade que vem do alto. Pelo visto, tu não estás adstrito à norma obrigatória do cordeiro que espuma — perguntou — e não esmagarás o coração de Faraó com tradicionais anúncios de horríveis infortúnios por vir, invasões de povos estrangeiros e revolução total que põe por cima de tudo o que estava por baixo de tudo, não é assim? — Estremeceu. — Isso já todos conhecemos — disse, enquanto seus lábios descoravam um pouco. — Devo, porém, poupar-me um tanto, não posso tolerar a ferocidade nem a selvageria, preciso de ternura, de amor. O país se despenha na destruição, vive horas de sobressalto. Talam-no beduínos. O pobre toma o lugar do rico, ficam ab-rogadas todas as leis, o filho trucida o pai e é assassinado pelo irmão, as bestas feras do deserto bebem nas fontes, ri-se o riso da morte. Rá virou a cara, já ninguém sabe quando é meio-dia, pois não se conhece a sombra no quadrante; os mendigos devoram as oferendas, o rei é destronado; só resta um consolo e é que pelo poder daquele que é onipotente tudo há de melhorar outra vez. Faraó, pois, não terá precisão de ouvir de novo essa cantiga, não? Poderá ele esperar que a modificação do tradicional pelo particular exclua tais horrores?
José sorriu. E foi então que deu a famosa resposta, que tanto teve de cortês como de astuta:
— Deus responderá favoravelmente a Faraó.
— Falas de Deus — indagou Amenhotep. — Já o fizeste mais de uma vez. A que deus te referes? Como és de Zahi e de Amu, presumo que te refiras ao boi arador a que no Oriente dão o nome de Baal, o Senhor, não é verdade?
O sorriso de José feneceu-lhe nos lábios. Ele apenas abanou a cabeça.
— Meus pais, os sonhadores de Deus — disse ele —, fizeram seu pacto com um outro Senhor.
— Então só pode ser Adonai, o noivo — acudiu veloz o soberano —, por quem a flauta geme nos algares e que torna a erguer-se. Como vês, quando se trata de deuses, sejam quais forem, Faraó pisa em terreno seguro. Ele deve conhecer e tentar tudo e ser como um lavador de ouro que a muito custo obtém o grão da verdade, apartando-o de toda absurdeza, para que isso o ajude a aprimorar a doutrina do seu adorado pai. Faraó acha dura a tarefa, mas acha-a também boa, muito boa, tarefa digna de um rei. Minha habilidade o conseguiu. Quem suporta trabalhos deve ter também compensações, mas somente ele. E aborrecido ter somente comodidades, mas, por outro lado, não é justo passar só trabalhos. Na grande festa do tributo, no belo balcão da audiência, Minha Majestade se senta ao lado da doce consorte, e os embaixadores do povo, mouros, líbios e asiáticos, formando um séquito infinito, trazem dádivas de todo o mundo, ouro em barra e em anéis, marfim, vasos de prata, penas de avestruz, bois, bisso, lobos-tigres malhados, elefantes; e assim o Senhor das Coroas, sentado com adequada comodidade na beleza do seu palácio, no meio do mundo, recebe o tributo de todo o pensamento da terra habitada. Como Minha Majestade já houve por bem dizer, os cantores e videntes de deuses desconhecidos se sucedem uns aos outros, vindo juntos à minha corte de todas as regiões da Terra: da Pérsia, onde os jardins são afamados e onde acreditam que um dia a terra será plana e só haverá uma raça, uma língua, uma lei; da índia, a terra onde o incenso medra; de Babel, versada no conhecimento dos astros, das ilhas do mar. Todos me visitam, desfilam diante do meu sólio, e Minha Majestade conversa com eles como agora faz contigo, que és um cordeiro de espécie singular. Oferecem-me o recente e o tardio, o velho e o novo. As vezes deixam estranhas lembranças e sinais divinos. Vês este brinquedo?
E ergueu do joelho o côncavo objeto de corda, mostrando-o a José.
— Uma lira — disse o outro. — Fica bem a Faraó trazer na mão o símbolo da bondade e da graça.
Disse isto porque a lira é o hieroglífico do vocábulo egípcio “Nofert”, que significa tanto bondade como graça.
— Vejo — tornou o rei — que entendes da arte de Thot e és um escrivão. Suponho que isso tenha relação com a dignidade do “eu”, em que a norma obrigatória da profundeza se cumpre. Mas este objeto representa alguma coisa mais que a bondade e o encanto, a saber, a arteirice de um estranho deus, o qual bem pode ser um irmão do de cabeça de íbis ou o seu alter ego, e que, como criança que era, inventou este brinquedo quando encontrou certo animal. Conheces a concha?
— É uma concha de tartaruga — disse José.
— Exatamente — concordou Amenhotep. — Esse finório deus-infante nascido numa caverna entre as rochas encontrou o sábio animal e fez dele uma vítima do seu engraçado engenho. Privou-o descerimoniosamente da sua casca oca, atravessou-lhe uns cordéis, amarrou-lhe em cima dois chifres como podes ver e deu origem à lira. Não quero dizer que seja este o próprio brinquedo fabricado pelo deus mauzinho. Não disse tal o homem que o trouxe aqui e mo deu, um navegante de Creta. Pode apenas ter sido feito em memória do primeiro, por gracejo ou piedade, pois este foi um dos vários casos que o cretense contou do enfaixado bebê da cava. Parece que essa criança não fazia outra coisa senão sair do seu buraco e largar o seu cueiro para fazer das suas. Roubou (o que é quase incrível) o gado do seu irmão mais velho, o deus do Sol, tirando-o do monte onde os animais pastavam quando o deus do Sol tinha declinado. Tirou cinquenta reses e as foi tangendo em diferentes sentidos atravessados, para lhes baralhar as marcas dos cascos. Disfarçou os seus próprios passos atando aos pés enormes sandálias que tecera de ramos de árvores, de maneira que foi deixando não as suas pegadas mas as de um gigante. Nem se diga que isso lhe não quadrava, porque, se ele era uma criancinha, era também um deus; e assim esses vagos vestígios eram tais como deviam ser. Enfurnou os animais numa caverna diferente da em que nascera, pois há muitas delas por aquelas partes. Antes, porém, matou duas vacas à beira do rio e assou-as num lumaréu imenso. Comeu-as, apesar de ser uma criança de mama; foi o repasto de uma criança gigante e casava-se bem às suas pegadas.
Repimpando-se ainda mais comodamente na sua cadeira, Amenhotep continuou:
— Isto feito, o larapiozinho entrou sorrateiramente na cova dos seus pais e meteu-se caladinho nas suas faixas. Mas, quando o deus do Sol de novo subiu e deu pela falta dos seus animais, adivinhou, pois era um deus adivinhão, e descobriu que só seu irmãozinho recém-nascido era capaz de realizar tal proeza. Muito irado, foi ter com ele na cova. Mas o ladrãozinho, que lhe farejara a vinda, aconchegou-se todo aos seus paninhos que tinham um cheiro de divindade, fez-se muito pequerrucho e simulou o sono da inocência. Nos seus braços descansava o instrumento que inventara, a lira. E, com quanta naturalidade, o hipócrita não soube calar a verdade quando o deus solar, sem se deixar enganar com as suas patranhas, o acusou do roubo. “Mui outros cuidados tenho eu”, vagiu o ladino, “que estes que me atribuis: doce sono, leite materno, faixas que me esquentam e banhinhos mornos.” E depois soltou, acrescenta o marujo de Creta, um solene juramento de como nada sabia acerca do gado.
De repente interrompeu-se e, virando-se para a deusa no seu trono, indagou:
— Não te canso, mãezinha?
— Desde que me desembaracei das preocupações do governo — disse ela — tenho muito tempo livre. Posso malbaratá-lo ouvindo histórias de deuses estrangeiros. Noto, todavia, que o mundo está fora dos eixos: geralmente é o rei que permite lhe contem histórias, no entanto agora é Tua Majestade que as conta em pessoa.
— E por que não o faria? — volveu Amenhotep. — Faraó deve doutrinar. E sente-se sempre instigado a ensinar aos outros o que aprendeu. O que minha mãe com certeza estranha — prosseguiu, estendendo dois dedos na sua direção, como se lhe fosse explicar as próprias palavras dela — é que Faraó tarda a relatar seus sonhos a esse sisudo e inspirado cordeiro para afinal ouvir a verdade contida neles. Pois, que esse homem me dará uma interpretação exata estou quase certo desde agora, considerando sua pessoa e certas coisas que ele já disse. Minha Majestade nada receia, pois que ele prometeu não profetizar ao estilo dos jovens cuja boca espuma nem horrorizar-me anunciando que os mendigos consumirão as oferendas dos holocaustos e coisas desse jaez. Mas ainda não observaste o maravilhoso jeito que tem a mente humana de espontaneamente diferir um pouco a consumação do seu mais cobiçado anelo quando o vê prestes a efetuar-se? “De qualquer modo a coisa agora está próxima”, diz o homem consigo, “só está à minha espera; posso bem adiá-la um pouco, porque a própria ansiedade e o meu desejo de certa maneira se me fizeram caros e é uma pena perdê-los.” Isto não é muito humano? Pois agrada também a Faraó, que muito aprecia o lado humano existente na sua pessoa.
Teje sorriu.
— Tal como tua bela Majestade pinta a coisa, havemos de achá-la bonita. E como é provável que esse adivinho nada pergunte, perguntarei eu: valeu alguma coisa o perjúrio do nenê mauzinho ou que foi que aconteceu depois?
— Segundo meu informante — respondeu Amenhotep —, aconteceu o seguinte: o irmão-Sol levou acorrentado o ladrão à presença do pai, o deus-mor, para que aquele confessasse e o deus o punisse. Mas ali também o maroto mentiu com grande astúcia e usou de palavrinhas doces e pias. “Honro soberanamente o Sol e os outros deuses”, balbuciou, “e a ti amo, mas temo este aqui. Protege, pois, o mais novo e ajuda a mim, pobrezinho!” Assim dissimulou ele, mostrando só o seu lado infantil, piscando enquanto isto um olho ao pai, de modo que este teve de rir alto do insigne patifezinho. Ordenou-lhe que mostrasse a seu irmão o gado e restituísse a propriedade roubada, com o que o infante concordou. Quando, porém, o irmão maior soube que haviam sido degoladas duas vacas, enfureceu-se de novo. Ora, enquanto este ameaçava céus e terra, o pequeno pôs-se a dedilhar a sua lira — isto que aqui está — e seu canto casava-se tão bem com o som do instrumento, que a cólera do irmão mais velho amorteceu, tratando apenas o deus do Sol de como adquiriria para si a lira. E acabou ficando com ela, pois que fizeram uma troca: enquanto o ladrão retinha o gado, o instrumento pertenceria ao irmão, que o conserva para sempre.
Calou-se, ao mesmo tempo que contemplava sorridente o brinquedo que tinha sobre o joelho.
— Sempre conseguiu Faraó — comentou a mãe —, e de maneira bem instrutiva, diferir o cumprimento do seu mais ardente desejo.
— Instrutiva ela é — retorquiu o rei —, pois mostra que deuses infantes não são mais que crianças disfarçadas e disfarçadas por pura gaiatice. Aquele que saía da sua cova sempre que lhe apetecia, como um rapaz jovial e engenhoso, fértil em expedientes, nunca atrapalhado quando se tratava de estratagemas, prestadio a deuses e a homens. Segundo a crença popular, inventou ele muita coisa nova: o escrever e o contar, a cultura da oliveira e a arte de convencer pela fala, não vacilando em enganar, mas sempre enganando com inteligência. Tinha-o em alta conta o meu navegador cretense, de quem ele era o padroeiro. O homem dizia que ele era o deus da boa oportunidade, da alegre inventiva, e derramava bênçãos e bem-estar, adquirido honestamente e mesmo às vezes um tanto desonestamente, conforme a vida o permite; um chefe e um guia por entre as sinuosidades do mundo, de vez em quando erguendo o bastão e virando-se para trás para sorrir. Até aos mortos, dizia o homem, servia de guia no reino da lua, presidindo ainda aos sonhos, pois é o senhor do sono, é ele quem fecha os olhos do homem com o seu bastão, doce mágico que é com a sua esperteza.
O olhar de Faraó pousou em José, que estava diante dele com a sua linda cabeça inclinada para o ombro, olhando pelo canto do olho as pinturas na parede, com um sorriso natural e distraído que dava a entender que ele não precisava de ouvir nada daquilo.
— Já conhecias as histórias do deusinho malicioso, intérprete? — inquiriu Amenhotep.
O interpelado mudou logo de postura. Excepcionalmente dera ele prova de pouca cortesia e agora demonstrava estar ciente disso. Fê-lo mesmo com algum exagero, de maneira que Faraó, que sempre observava tudo, teve impressão não só de que aquela volta rápida ao momento presente era uma coisa calculada, mas que essa atitude havia sido assumida para dar essa mesma impressão. Esperou, demorando em José os seus velados olhos cinzentos, que procurava abrir o mais possível.
— Se eu já as conhecia? — perguntou o intérprete. — Sim e não, Altíssimo Senhor, se é permitida ao teu servo a dupla resposta.
— Buscas com muita frequência essa permissão — disse o rei —, ou antes, simplesmente a tomas para ti. Toda a tua fala gira sobre o sim e ao mesmo tempo sobre o não. Será que isso me agrada? És o mancebo que espuma pela boca e não és, porque tu és tu. O deus malicioso te é conhecido e não te é, porque... por que, afinal? Era conhecido de ti ou não o era?
— De ti também, Senhor das Coroas, ele foi sempre conhecido de certo modo, pois não lhe chamaste um irmão distante do de cabeça de íbis, Djehuti, o escrivão amigo da Lua, ou mesmo o seu alter ego? Era conhecido de ti ou não o era? Era-te familiar, o que é mais que ser conhecido, porque aqui o sim e o não se anulam um ao outro, passando a ser uma e a mesma coisa. Não, eu não conhecia a criança da caverna, o mestre das boas partidas. O servo mais antigo de meu pai, o sábio Eliézer, foi o meu mestre. Era ele o que podia dizer que a Terra lhe saltava ao encontro quando fazia a sua viagem para pedira mão de noiva para a vítima poupada, o pai de meu pai... perdão, perdão! Tudo isto me leva a grandes digressões. Teu servo não te pode nesta hora narrar a história do mundo. Não obstante, as palavras da Grande Mãe ainda ressoam nos seus ouvidos: o costume do mundo é que contem histórias ao rei e não que este as conte. De boas partidas como as que ouvi, poderia eu contar várias para mostrar-te, a ti e à grã-senhora, que o espírito do deus matreiro foi sempre como de casa entre a minha gente e me é familiar.
Amenhotep dirigiu um olhar à sua mãe com uma leve inclinação de cabeça que significava: “Então, havemos de dar-lhe crédito?” Depois respondeu a José:
A deusa te dá licença para nos contares uma ou duas delas, se achas que nos podem divertir, antes de passares à interpretação.
— Nossa respiração de ti vem — disse José, curvando-se. — Uso-a para entreter-te.
E com os braços cruzados, mas a miúdo levantando a mão em atitude oratória, falou diante de Faraó e disse:
— Áspero era Esaú, meu tio, bode da montanha, irmão gêmeo de meu pai, e a este disputou, vitoriosamente, a primazia de sair do ventre materno. Era ruivo e peludo, um estafermo; seu irmão era liso e fino, criado na tenda, querido de sua mãe, dado às coisas divinas. Jacó era pastor e Esaú caçador. Aquele fora sempre abençoado, muito antes da hora em que meu avô, pai de ambos, resolveu outorgar a herdada bênção, estando velho e próximo da morte. O ancião era cego, seus olhos já não lhe obedeciam, ele via só com as mãos, apalpando, não vendo. Chamou à sua presença o ruivo, o mais velho, porque se esforçava por amá-lo. “Vai, traze-me caça obtida com teu arco”, disse ele, “meu probo filho hirsuto, meu primogênito, cozinha para mim uma carne saborosa para que eu coma e depois te abençoe fortalecido com a refeição.” O ruivo saiu a caçar. Entretanto, a mãe envolveu o corpo delgado do mais moço em peles de cabra e entregou-lhe uma comida temperada, a carne fresca de um cabrito. Com ela Jacó entrou na tenda paterna e disse: “Aqui estou eu de volta, meu pai, Esaú, teu peludo, que para d cacei e cozinhei. Come, pois, e abençoa o teu primogênito!” “Chega-te para mim, meu filho, chega-te para perto de teu pai”, disse o cego, “para que eu possa sentir com minhas mãos videntes se és realmente Esaú, o meu peludo, porquanto dizer é fácil.” E com as mãos o foi apalpando, foi sentindo a pele da cabra onde o corpo não estava coberto, achando-o áspero como o de Esaú; ruivo ele não era, mas isto as mãos não podiam perceber e os amortecidos olhos não podiam ver. “Sim, não pode haver dúvida”, disse o ancião, “pelo velo te percebo. Áspero ou macio, aí está a diferença. Ainda bem que não é preciso ter olhos para notá-la, bastam as mãos. Tu és Esaú. Dá-me, pois, de comer para que eu te abençoe.” Então cheirou e comeu e deu ao falso, que contudo era o verdadeiro, a plenitude da bênção irrevogável. Vem, então, Esaú da caça, de peito alteado e todo jactancioso com a sua grande hora. Prepara à vista de todos o guisado e o tempera e com ele entra na tenda do pai. Mas lá dentro é recebido com escárnio e tratado de impostor, ele, o verdadeiro que era falso, visto como o falso, que era verdadeiro, há muito lhe antecipara graças à esperteza materna. O que lhe tocou foi uma árida maldição, pois nada mais restava depois que o outro levara a bênção. Que chufa, que galhofe houve ali quando lá ficou, choramingando, com a língua de fora e vertendo lágrimas grossas como punhos sobre o pó da terra, o pateta derrotado que a astúcia do outro ludibriara.
Mãe e filho riram, aquela com um riso sonoro em voz de contralto, este com um riso claro, quase esganiçado. Ambos sacudiam a cabeça.
— Que história grotesca! — exclamou Amenhotep. — Uma farsa bárbara, estupenda no seu gênero, embora também um tanto deprimente; não se sabe bem como encará-la, dá vontade ao mesmo tempo de rir e de chorar. O verdadeiro que era falso, dizes tu, e o falso que era verdadeiro? Era o que faltava! De tão louco, chega a ser arguto. Mas livre-nos a divina bondade de sermos verdadeiros sem deixarmos de ser falsos, de maneira que por fim não nos vejamos obrigados a andar por aí choramingando e com as lágrimas a empapar o pó da terra! Que pensas da tal mãe, minha mãezinha? Embrulhar as partes lisas em peles de cabra e ajudar o velho e suas mãos videntes a abençoar o verdadeiro, quero dizer, o falso! Dize-me se não achas original esse cordeiro que mandei vir à minha presença. Minha majestade consente que narres outra facécia, hebreu, para que eu possa ver se a primeira só prestou por acaso e se esse espírito de manha inteligente é mesmo tão familiar aos teus. Ouçamos.
— O que Faraó ordena — disse José —já está feito. O abençoado teve de fugir diante da cólera do ludibriado. Teve de viajar, chegando a Naarim no país de Sinear, onde tinha parentes: Labão, um lapúrdio, sinistro homem de negócios, e suas filhas, uma de olhos remelosos e outra mais linda que as estrelas do céu. Esta tornou-se tudo para ele e mais que tudo, salvo Deus. Mas o severo patrão fê-lo servir sete anos para conquistar a astral donzela. Os anos passaram como dias, mas no fim o tio deu-lhe no escuro a que não era amada e só mais tarde a noiva verdadeira, Raquel, a ovelha, que me gerou a mim com dores mais que naturais, e chamaram-me Dumuzi, o filho verdadeiro. Isto seja dito só de passagem. Assim que a astral donzela se recobrou do parto, meu pai quis partir comigo e com os dez que a não-amada e as escravas haviam gerado para ele. Quis partir ou deu-o a entender ao tio, o qual não esteve pelos autos porque a abençoada mão de Jacó só lhe trazia lucros a ele, Labão. “Dá-me então todas as ovelhas e cabras malhadas dos teus rebanhos e fatos”, disse ele ao tio. “Elas serão minhas, ficando tu com todas as que forem de uma só cor. É essa a minha modesta condição.” Selaram, pois, o pacto. Que fez então Jacó? Tomou varas de árvores e arbustos e tirou-lhes parte da casca, dando-lhes a aparência de manchadas. Colocou-as nos tanques onde os rebanhos iam beber e depois se acasalavam. Sempre que os animais faziam esta última operação, ele lhes punha diante as varas de diferentes cores, de modo que isso, entrando-lhes assim pelos olhos, influía neles e a seu tempo pariam anhos e cabritinhos malhados, dos quais Jacó se apoderava. Assim ele ficou riquíssimo e Labão foi posto num chinelo graças ao engenho do deus matreiro.
Novamente mãe e filho se divertiram muito. Riram e sacudiram a cabeça; uma veia doentia avultou na testa do rei e havia lágrimas nos seus olhos semicerrados.
— Mamãe, mamãe — disse ele —, Minha Majestade goza, goza deveras! Pôs-lhe diante dos olhos, como um modelo, varas descascadas a meio! Dize-me: não é de fazer a gente estourar de riso? Por isso ri Faraó. Vive ainda teu pai? Que velhaco! Com que, então, és filho de um finório e de uma mulher adorável?
— A adorável mulher era também ladra e astuta — disse José, rematando sua narrativa. — Nem por ser tão formosa, era estranha a estratagemas. Por amor do marido roubou os ídolos de seu soturno pai, jogou-os debaixo da palha de um camelo, sentou-se por cima e disse com a voz mais natural do mundo: “Hoje estou com o meu incômodo e não me posso levantar.” E Labão, furioso, foi procurando alhures, sem nada achar.
— Mais esta ainda! — exclamou Amenhotep com a voz entrecortada pelo riso. — Ouve-me, mamãe. Deves-me uma resposta. Esse que mandei vir à minha presença não é realmente um cordeiro originalíssimo, sagaz e engraçado? E agora o momento — decidiu ele subitamente —; agora Faraó está pronto para ouvir do sábio moço a interpretação dos seus sonhos difíceis. Quero ouvi-la antes que estas lágrimas de alegria se enxuguem nos meus olhos. Porque, enquanto meus olhos estiverem úmidos em razão dessa risada pouco habitual em mim, não recearei meus sonhos nem seu sentido, seja qual for. Esse filho de gente tão faceta não irá dizer a Faraó nem as estupidezes que lhe disseram os pedantes da casa dos livros nem quaisquer outras coisas horrendas. E ainda mesmo que seja má a verdade que ele vai dizer, esses lábios, onde tão amiúde erra um sorriso, dificilmente a proferirão com tal desabrimento que estas lágrimas de riso se me transformem em lágrimas de pranto. Profeta, faz-se preciso um vaso ou qualquer outro apresto para o desempenho da tua tarefa? Um caldeirão, talvez, para receber os sonhos e do qual surja seu significado?
— Nada disso — respondeu José. — Eu nada preciso entre o céu e a Terra para a minha tarefa. Vou seguindo e interpretando conforme me mover o espírito. Basta que Faraó fale.
O monarca limpou a garganta e lançou um olhar para sua mãe, desculpando-se com uma ligeira mesura por ter de obrigá-la a ouvir a história mais uma vez. Depois, pestanejando com seus olhos onde as lágrimas alegres iam secando devagar, referiu meticulosamente pela sexta vez seus dois sonhos que já agora estavam ficando requentados.
FARAÓ VATICINA
José ouviu com naturalidade, numa postura respeitosa. Enquanto o rei falou, os olhos do jovem se conservaram fechados, mas de nenhuma outra maneira traiu a profunda abstração e concentração do seu ser com referência ao que escutava. Fez contudo alguma coisa mais; manteve-os cerrados ainda um pouco de tempo depois que Amenhotep terminara, ficando à sua espera, com a respiração presa. Chegou mesmo a este extremo: deixou que o soberano o esperasse, permanecendo ele ali de pé e imóvel, sem ver, mas percebendo bem a atenção de que era alvo. Reinava perfeito silêncio na loggia cretense. Só a mãe-deusa pigarreou, fazendo tinir as suas joias.
— Estás dormindo, cordeiro? — perguntou enfim Amenhotep com voz trêmula.
— Não, estou aqui — respondeu José, enquanto sem excessiva pressa abria os olhos diante de Faraó. Mesmo então parecia atravessá-lo com os olhos em vez de olhar para ele, ou melhor, o olhar de José batendo na pessoa do rei voltava-se para o seu próprio íntimo em contemplação, o que ficava muito bem àqueles olhos formosos, os negros olhos de Raquel.
— E que dizes dos meus sonhos?
— Dos teus sonhos? — respondeu José. — Do teu sonho, queres dizer. Sonhar duas vezes não é ter dois sonhos. Tu tiveste só um sonho. O teres sonhado duas vezes, primeiro de uma forma e depois de outra, tem apenas a significação da ênfase. Significa que o teu sonho certamente se realizará e muito depressa. Mais: sua segunda forma é apenas a explicação e uma definição mais precisa do sentido da primeira.
— Foi justamente o que Minha Majestade pensou no princípio! — exclamou Amenhotep. — Mãe, o que o cordeiro diz foi a primeira ideia que tive, isto é, que no fundo os dois sonhos não são mais que um. Sonhei com os animais formosos e depois com os horrendos, e foi como se alguém me dissesse: “Entendes-me? É este o sentido.” E eis que sonho com as espigas, as cheias e as murchas. Como se um homem procurasse exprimir-se e o tentasse de novo, dizendo: “Em outras palavras, assim e assim, isto e mais isto.” Mamãe, principia bem este jovem profeta, cuja boca não espuma. Aqueles trapalhões da casa dos livros começaram baralhando tudo logo de partida e qual o resultado que daí se podia esperar? Continua, profeta. Explica. Qual é o sentido único do meu duplo sonho régio?
— O sentido é um só, como os dois países, e duplo o sonho como a tua coroa — tornou José. — Não é o que quiseste dizer há pouco, conquanto só o tenhas dito em termos vagos, sendo que todavia o disseste não inteiramente ao acaso? Com as palavras “meu sonho régio” traíste o que querias dizer. Trazias coroa e cauda no teu sonho, segundo percebi na escuridão. Não eras Amenhotep, senão Nefer-cheperu-Rá, o rei. Deus falou ao rei no seu sonho. Revelou seus futuros desígnios a Faraó para que Faraó fique sabendo e possa tomar suas providências, conforme o aviso.
— Tal qual — bradou Amenhotep. — Nada era mais claro para mim. Mãe, desde o começo nada era mais certo do que aquilo que disse este anho singular, a saber, que não era eu quem sonhava, mas o rei, tanto quanto é possível separar os dois e até o ponto em que eu sou necessário para que o rei possa sonhar. Porventura Faraó não sabia disto e não te jurou imediatamente na manhã seguinte que o duplo sonho era importante para o reino e por isso forçosamente devia ser interpretado? Mas foi enviado ao rei não como o pai dos países senão porque ele é também a mãe deles, porquanto é duplo o sexo do rei. Meu sonho teve relação com assuntos da vida e da morte e com a negra região ínfera. Eu sabia e sei disso. Contudo, mais não sei — disse ele de repente, caindo em si. — Como se explica que eu me tenha esquecido completamente de que nada mais sei e de que ando ainda em busca da interpretação? Tu tens um modo disse, dirigindo-se a José — de fazer que tudo pareça tão ameno, ao passo que até aqui só me disseste o que eu já sabia. Que significa meu sonho e que me quer ele mostrar?
— Faraó se engana — volveu José — se pensa que não sabe. Seu servo não pode fazer mais que vaticinar-lhe o que ele já sabe. Não viste as vacas saírem da água em fila, uma depois da outra, e acompanharem os passos uma da outra, primeiro as gordas e depois as magras, de tal modo que não havia interrupção na fila? Ora, que coisas são aquelas que saem do receptáculo da eternidade, uma depois da outra, não juntas mas sucessivamente, não havendo quebra entre o ir e o vir nem interrupção na sua linha?
— Os anos! — gritou Amenhotep, estalando os dedos no alto.
— E certo — concordou José. — Não foi preciso nenhum caldeirão nem nenhum revirar de olhos nem nenhuma espuma na boca para ficarmos sabendo que as vacas são anos, sete e mais sete. E as espigas que brotaram uma após outra e no mesmo número? Quererão elas dizer coisa tão diferente e tão árdua de adivinhar?
— Não! — bradou Faraó, tornando a estalar os dedos. — Elas são anos também!
— Inteiramente de acordo com a razão divina — disse José —, à qual toda honra e louvor seja dado. Mas por que será que as vacas se transformaram em espigas, sete frutíferas e sete estéreis? Creio que agora só trazendo o caldeirão. Largo e redondo como a Lua deve ser ele, para que a resposta surja de suas entranhas e nos diga que relação há entre vacas e espigas e qual a razão por que as sete primeiras vacas eram tão gordas e as outras sete tão magras. Faraó quererá ter a bondade de mandar buscar um caldeirão e uma trípode?
— Vai-te com o teu caldeirão! — gritou el-rei. — Agora é tempo de falar em caldeirões, como se coisas dessas nos fizessem míngua? A relação é tão simples como a própria simplicidade e tão clara como uma pedra de primeira água. Há uma relação entre a formosura e a deformidade das vacas e das espigas: uma significa boas colheitas e a outra más.
Parou, com os olhos cravados no espaço. Depois disse numa espécie de transporte:
— Virão sete anos de fartura e sete de carestia.
— Sem a menor dúvida nem demora — disse José —, pois não sem motivo foi dito duas vezes.
Faraó dirigiu o olhar para o seu cordeiro.
— Tu não caíste morto depois de feita a profecia — disse ele com uma certa admiração.
— Se não fosse um crime atroz dizer uma coisa destas — retrucou José —, eu diria que é de admirar que Faraó não tenha caído morto, porque foi Faraó quem profetizou.
— Não. Quem diz isto és tu — contraveio Amenhotep. — Quiseste dar a impressão de que fui eu mesmo que interpretei e vaticinei porque descendes de espertalhões. Mas por que não o fiz antes que aqui viesses? Eu só sabia o que era falso, mas não o que era verdadeiro. Porquanto essa é a interpretação verdadeira, sei disto no íntimo da minha alma; meu sonho a si próprio se reconhece na explicação, sim, tu és realmente um cordeiro inspirado, mas tens lá as tuas particularidades. Não estás servilmente apegado à norma das profundezas, não vaticinaste primeiro o tempo maldito e depois o abendiçoado, mas o contrário, primeiro a bênção e depois a maldição — está aí a tua originalidade.
— Foste tu mesmo, senhor dos países — volveu José —, e tudo dependeu de ti. Tu sonhaste primeiro com as vacas gordas e as espigas cheias e depois com as magras e vazias; és tu mesmo o único original.
Com algum esforço Amenhotep conseguiu arrancar-se do seu fofo ninho e pôr-se em pé. Foi até a cadeira de sua mãe, movendo-se com agilidade sobre aqueles seus estranhos membros — as pernas finas e as anafadas coxas que se mostravam claramente através da cambraia do avental.
— Minha mãe — disse —, está tudo claro. Meus régios sonhos foram interpretados e eu conheço a verdade. Quando penso no erudito farelório que me quiseram impingir — as filhas, as cidades, os reis e os catorze filhos —, vem-me tanta vontade de rir como antes me veio de chorar à vista da sua pobreza. Agora, graças a este jovem profeta, conheço a verdade e posso rir-me daquilo. Mas a verdade mesma é bastante séria. Foi anunciado a Minha Majestade que sete anos férteis virão para todo o Egito e depois outros sete de miséria, tal que a gente se esquecerá da anterior fartura e a penúria consumirá a região, exatamente como as vacas gordas consumiram as magras e as espigas chochas deram cabo das douradas; foi esta a mensagem, isto é, que já ninguém saberia da abundância anterior à míngua, porque a terribilidade desta consumirá a lembrança que se tinha da fartura. Isto foi revelado a Faraó nos seus sonhos que foram um só sonho e que lhe sucederam por ser ele a mãe dos dois países. Eu não atino é com a razão pela qual isto me ficou oculto até esta hora. Agora tudo se me faz claro com a ajuda deste cordeiro genuíno mas singular. Para que o rei sonhasse foi necessário que eu existisse; do mesmo modo foi necessário que ele existisse para que o cordeiro pudesse profetizar; o nosso ser é somente o ponto de reunião entre o não ser e o sempre ser; nosso temporal somente o meio do eterno. E ainda não é tudo. Devemos perguntar (é o problema que eu gostaria de apresentar aos pensadores da casa do meu pai) se o temporal, o individual e o particular tiram mais valia do eterno ou se é o etemo que mais a tira do particular e do temporal. E esta uma daquelas belas questões para as quais não há solução, de modo que não há termo na contemplação delas desde o crepúsculo da tarde até o dilúculo da manhã.
Vendo Teje menear a cabeça, parou.
— Meni — disse ela —, Tua Majestade é incorrigível. Insististe conosco a respeito dos teus sonhos, aos quais atribuíste tanta importância para o reino que sem falta deviam ser interpretados, sob pena de que por si mesmos se cumprissem se ninguém lhes fosse à mão. Mas agora que lhes tens o sentido, ou cuidas que o tens, fazes conta que está tudo terminado, esqueces-te desse sentido no mesmo momento em que a ele te estás referindo, para te perderes nas mais remotas e impossíveis especulações. Isto é próprio de uma mãe? Estou quase a dizer que nem de um pai é próprio; e mal posso esperar até que esse homem aí tome ao lugar donde veio e que fiquemos sós, para indignamente advertir-te desde o meu trono materno. E possível que esse adivinho conheça o seu ofício e o que ele diz pode acontecer. Já aconteceu no passado, já aconteceu alternarem-se quadras boas e más, já aconteceu mais de uma vez que as águas do Nutndor se conservassem baixas negando sua bênção aos campos, de modo que a penúria e a fome assolaram os países. Já aconteceu e aconteceu sete vezes em seguida, como rezam as crônicas. Pode acontecer de novo e por isso tu sonhaste. Mas talvez tenhas sonhado porque vai acontecer de novo. Se é esse o caso, então, meu filho, tua mãe se espanta de ver como te alegras com a interpretação e até te gabas de tê-la feito de certa maneira tu próprio. E agora, em vez de convocares os teus conselheiros e sábios para estudar os meios de fazer face ao perigo, vens com abstrações extravagantes como essa acerca do lugar de encontro do não ser e do sempre ser!
— Mas, mãezinha querida, temos tempo! — exclamou Amenhotep com um gesto vivo. — Onde há tempo, naturalmente ninguém pode arranjar tempo, mas nós podemos, porque diante de nós vemos tempo de sobra. Sete anos! Está aí a grande questão, o fato que nos faz dançar e esfregar as mãos de contentamento, a saber, que esse cordeiro inconfundível não ficou atado às odiosas normas antigas e não profetizou o tempo da maldição antes do tempo da bênção, mas o da bênção primeiro e por sete longos anos. Tua censura seria justa se a má quadra, a das vacas magras, devesse começar amanhã. Então é claro que não se poderia perder tempo em pensar em expedientes e medidas preventivas, embora Minha Majestade não se peje de confessar que desconhece providências adequadas contra o malogro das colheitas. Porém são-nos concedidos sete anos de fertilidade no reino da terra negra, durante os quais o amor do povo a Faraó, que lhe é uma mãe, florirá como uma árvore, debaixo da qual ele poderá sentar-se e ensinar a doutrina do seu pai. Por isso não vejo por que logo no primeiro dia... Teus olhos são tão eloquentes, intérprete — disse ele, voltando-se subitamente para José —, e trazes um olhar tão penetrante; tens alguma coisa que acrescentar à nossa interpretação comum?
— Nada — respondeu José —, exceto que o teu servo te roga lhe permitas ir agora para o seu lugar, de volta à prisão onde estava servindo, ao fosso do qual o tiraste por causa dos teus sonhos. Pois cumprida está sua missão e a sua presença já não condiz com o lugar dos potentados. Lá no seu buraco viverá ele deliciando-se com a lembrança dos momentos de ouro que passou diante de Faraó, o formoso Sol dos países, e diante da Grande Mãe, que cito em segundo lugar somente porque assim o quer a linguagem, que pertence ao tempo e deve ocupar-se das coisas umas depois das outras, diferentemente do mundo das imagens, onde dois podem estar lado a lado. Mas a fala e os nomes são coisas do tempo; assim, o primeiro que se menciona é o rei; contudo, verdadeiramente o segundo não é o segundo, pois a mãe não foi antes do filho? Isso quanto à sucessão das coisas. Mas, no lugar para onde regressa minha insignificância, continuarei em meus pensamentos esta prática com os grandes, na qual seria coisa culposa que eu me intrometesse. Faraó teve razão, direi caladamente comigo mesmo, de rejubilar com a ordem invertida e o belo prazo concedido antes do tempo da maldição e dos anos de estiagem. Mas quanta razão assistia também à mãe que antes dele existia e a quem se deve a opinião e a advertência de que desde o primeiro dia da época abençoada, desde o primeiro dia da interpretação, é necessário preocupar-se com a vinda do mal! Não para conjurá-lo, pois é impossível frustrar as determinações divinas, mas para antecipá-lo e munir-se contra ele por via de uma conveniente previsão. Com efeito, o tempo de bênção que nos é prometido significa em primeiro lugar um intervalo durante o qual possamos tomar fôlego para suportarmos a aflição. Mas em segundo lugar significa tempo e espaço para tomar providências, ao menos para cortar as asas à ave negra da calamidade, para colher, na sua aproximação sinistra, o mal e trabalhar contra ele, e não só, tanto quanto possível, pô-lo a ferros, mas talvez, e ainda por cima, tirar partido dele... Isto ou coisa equivalente estarei dizendo a mim mesmo na minha enxovia, uma vez que seria mais que impróprio estar eu introduzindo meus pensamentos na conversa dos potentados. Que grande e estupenda coisa, murmurarei comigo, é a previdência, pois é até capaz de converter a desgraça em bênção! E como Deus é bondoso por ter concedido ao rei, por intermédio de seus sonhos, um tão amplo domínio sobre o tempo, não somente sobre sete, mas sobre catorze anos! Esse prazo encerra a possibilidade e a obrigação de providenciar, porquanto os catorze anos não formam mais que um só tempo, embora este seja constituído de duas vezes sete, e esse tempo ou prazo não começa no meio mas no princípio, em outras palavras, começa hoje, porque hoje é o dia em que a nossa visão deve abarcar o todo. E encarar o problema em todos os seus aspectos é providenciar.
— Tudo isto é bem estranho — observou Amenhotep. — Tens estado a falar ou não tens? Tens estado a falar, ao passo que não falaste, mas apenas nos deixaste ouvir teus pensamentos, isto é, aqueles que ! somente pensas que pensarás. Mas figura-se-me que é como se houvesses falado. Quero dizer, lançaste mão de um expedientezinho para dizer alguma coisa que ainda não tinha sido dita.
— Cada coisa deve ter sua estreia — disse José. — Contudo, a | previdência não é nenhuma novidade. E sempre houve quem atiladamente empregasse o tempo que lhe foi outorgado. Se Deus tivesse i posto antes do bom o tempo ruim e este começasse amanhã, não haveria conselho nem cautela que valesse. O que o período da moinha operou entre os humanos não pode ser consertado por toda a fartura que se seguir. Mas o que agora se dá é o inverso. Temos tempo, não para esperdiçá-lo inutilmente, mas para arrostar a escassez vindoura, equilibrando o mais com o menos, poupando o mais para suprir o menos. Há uma lição na ordem em que se deu o sonho: as vacas gordas vieram primeiro, depois as magras. Isto signifique que aquele que previu a falta está encarregado de supri-la.
— Queres dizer que devemos enceleirar provisões e abarrotar os granéis? — perguntou Amenhotep.
— Na maior escala possível — disse José com deliberação. — Em medida maior do que já houve em qualquer tempo nos dois países! E quem tudo anteviu seja o administrador da abundância. Tudo ele regule com absoluto rigor e perfeição enquanto durar a fartura, para que depois também possa dominar a carestia; o amor que a sua gente lhe vota fará com que ela suporte a economia na fartura. Mais tarde, quando chegar a falta e o povo vir que ele tem para distribuir, como o há de amar e como aumentará a confiança que todos nele depositam! Debaixo da árvore frondosa desse amor ele poderá sentar-se e doutrinar. E o encarregado geral da vigilância será o substituto do rei.
Enquanto falava, casualmente os olhos de José se cruzaram com os da grande mãe, a escura figurinha sentada com os pés juntos, muito empertigada e hierática, na alta cadeira. Os olhos desta, astutos, penetrantes, sombrios, brilhando lá da sua penumbra, estavam cravados nele, e as comissuras dos lábios grossos formavam um sorriso zombeteiro. Diante desse sorriso José baixou sisudamente as pálpebras, que conservaram, contudo, um respeitoso pestanejo.
— Se ouvi direito — tornou Amenhotep —, és de opinião, como a grande mãe, que devo, sem perda de tempo, convocar meus conselheiros para que deliberem como se há de administrar a fartura para dominar a carestia. Não é isto?
— Faraó — respondeu José — não foi muito feliz com os conselheiros que convocou para interpretarem o duplo sonho régio. Ele próprio o interpretou, ele é que descobriu a verdade. A ele e só a ele foi enviada a profecia e revelada toda a situação; só a ele incumbe administrar os abastecimentos e regular a fartura que precederá a escassez. As providências que se impõem não podem tomar como modelo as anteriores nem no método nem no alcance, ao passo que um conselho propende a deliberar tomando como ponto de partida o curo tradicional de medidas já adotadas em circunstâncias análogas. Foi uma pessoa só que sonhou e interpretou; deve ser uma pessoa só a decidir e executar.
— Faraó não executa suas decisões — interveio aqui friamente a rainha Teje. Enquanto falava, seu olhar, sem se fixar em José ou no filho, tomava uma direção imprecisa. — Este é um conceito ignorante. Ainda concedendo que ele tome sua resolução própria acerca do que deve decidir de acordo com seu sonho, quero dizer, admitindo antes de tudo que a decisão deva ser tomada de acordo com o sonho, Faraó incumbirá da execução dela os seus administradores que para isso existem: os dois vizires do Sul e do Norte, o superintendente-geral dos abastecimentos e o diretor do tesouro.
— Justamente isto — disse José, simulando assombro — pensava eu dizer no meu fosso, na imaginária conversa que comigo mesmo estava mantendo. Na verdade, exatamente estas palavras “conceito ignorante” punha eu na boca da grande mãe e as virava contra mim para castigar-me. Encho-me de orgulho ouvindo-a proferir precisamente o que eu lá longe e só para mim mesmo a faria dizer. Comigo levarei de novo suas palavras para o meu cárcere; lá, revivendo esta hora excelsa de tão preciosas lembranças, responderei em espírito, dizendo: “Todos os meus conceitos são ignorantes, exceto talvez um: o pensamento de que o próprio Faraó, o formoso Sol dos países, devia executar em pessoa o que decidir e não deixar a sua execução a servos experimentados, dizendo: eu sou Faraó. Sê como eu, recebe de mim plenos poderes para a missão na qual te experimentei, pois serás o medianeiro entre mim e os homens, como a Lua é medianeira entre o Sol e a Terra. Assim hás de converter em bênção essa ameaça feita a mim e aos dois países.” Não. Minha ignorância talvez não chegue a ser total nesse ponto, porquanto no meu íntimo ouço distintamente Faraó dizer essas palavras, não a muitos, mas a um. E ainda, sem que ninguém ouça as minhas, direi: “Muitos conselheiros, muitas opiniões. Assim sendo, que seja só um, como a Lua, que conhece os sonhos do Sol, é uma única entre as estrelas e é a medianeira entre o alto e o baixo. A primeira dentre as medidas extraordinárias deve ser a escolha daquele que as porá em campo. Do contrário elas não serão extraordinárias, mas medíocres, corriqueiras, inadequadas. E por quê? Porque não serão postas em prática com fé e descortino consciente. Conta a muitos os teus sonhos e eles crerão e não crerão; a fé e a previdência de cada um serão apenas parciais, e de todas as partes reunidas não poderão resultar a fé e a previdência inteiras, tão necessárias e que só um pode possuir. Procure, portanto, Faraó, um varão sábio e prudente no qual habite o espírito dos seus sonhos, o espírito de ver e o espírito de prover, e ponha-o à testa da terra do Egito. E diga a este: “Sê como eu sou”, para que dele se diga como num cântico: “Ele era quem tudo provia até os confins do país e que regulou a fartura com providências que nunca havia sido adotadas, para dispensar sombra ao rei nos dias da penúria.” São essas as palavras que a mim mesmo direi no meu fosso, pois que proferi-las aqui diante dos deuses seria a mais grosseira arrogância. Quererá Faraó agora dispensar seu servo da sua presença, para que ele saia do sol e entre na sombra?
José fez um movimento em direção às sanefas bordadas de abelhas de ouro, como para pedir licença para sair. Os olhos atentos da deusa-mãe estavam pregados nele e as linhas que orlavam sua boca se aprofundaram mais, formando um sorriso de mofa, que José, intencionalmente, fingiu não ver.
"NÃO ACREDITO NISSO"
— Fica — disse Amenhotep. — Espera um pouco, meu amigo. Tocaste admiravelmente esse teu instrumento, esse pretexto de que pode uma pessoa falar sem falar, não falar e contudo não deixar de falar, fazendo com que os seus pensamentos sejam ouvidos. Não só encaminhaste Minha Majestade na interpretação dos seus sonhos régios, mas também me deste prazer com essa tua nova invenção. Faraó não pode deixar que partas sem nenhuma recompensa, certamente não acreditas nisto. A questão é saber como te hei de recompensar. Sobre isso é que Minha Majestade ainda está em dúvida. Dar-te, por exemplo, esta lira feita da concha de uma tartaruga, instrumento que é uma invenção do senhor da malícia, seria, creio eu, muito pouco, sendo esse com certeza o teu parecer também. Todavia, ao menos fica com ela no momento, meu amigo, põe-na entre teus braços, que aí te quadra bem. O deus da invenção deu-a ao seu irmão adivinho; tu és também um adivinho e ainda por cima fértil em expedientes. Estou, porém, pensando em conservar-te na minha corte, se quiseres, e em criar algum belo título para ti, como por exemplo o de Primeiro Intérprete dos Sonhos do Rei, qualquer coisa assim pomposa que cubra o teu nome real, atirando-o ao esquecimento. A propósito, qual é o teu nome real? Bem-ezne, talvez, ou, quem sabe, Nekatija?
— O meu nome atual — respondeu José — não é o meu nome antigo. Nem minha mãe, a virgem estelar, nem meu pai, o amigo de Deus, nunca me chamaram assim. Desde, porém, que o ódio fraterno deu comigo num fosso e eu morri para meu pai, sendo raptado para cá, o que de mim resta tomou outro nome, que é agora Osarsif.
— Muito interessante — comentou Amenhotep, que tornara a refestelar-se entre os coxins da sua confortabilíssima poltrona, enquanto José, com o presente do embarcadiço entre os braços, permanecia ali de pé diante dele. —Então, és de parecer que não deve uma pessoa ter sempre o mesmo nome, mas adaptá-lo às circunstâncias, segundo o que lhe acontece e conforme a situação? Mamãe, que dizes a isso? Penso que é do agrado de Minha Majestade, pois sempre aprecio opiniões surpreendentes, ao passo que aqueles que só sabem opiniões requentadas abrem espantados uma boca tão enorme como a que eu abro diante das néscias opiniões deles. Faraó também vem sendo há muito tratado pelo seu nome atual, nome esse que há muito destoa do que ele é e do que sente. E a verdade é que há algum tempo ele está acalentando a ideia de renunciar ao nome antigo, posto por equívoco, e adotar um novo e mais apropriado. Eu nunca te havia falado nisto, mamãe, porque não teria jeito de dizê-lo só entre nós. Mas na presença deste adivinho Osarsif, que também já teve outro nome, apresenta-se-me uma boa ocasião para fazê-lo. E claro que nada farei com precipitação. Isto não se dará de um dia para o outro. Mas tem de acontecer, tem, e breve, porquanto o meu nome atual é uma mentira cada vez mais flagrante e uma ofensa a meu Pai, que está no alto. E uma afronta, que aos poucos se torna intolerável, isso de meu nome conter o de Amun, o ladrão do trono, que declara ter absorvido Rá-Horachte, Senhor de On e antepassado dos reis do Egito, e agora reina como Amun-Rá, o deus do império. Hás de compreender, mãezinha, que com o correr do tempo é uma dura ofensa a Minha Majestade trazer o nome dele em vez de usar um nome que agrade a Aton, pois que eu saí daquele em quem está unido o que era e o que será. O presente é de Amun, porém o passado e o futuro são de meu Pai e nós dois somos ambos velhos e moços, somos dos tempos passados e dos tempos por vir. Faraó é um estranho no mundo, porque se sente bem no tempo antigo, naquela época em que os reis levantavam seus braços para Rá, seu pai, o tempo de Hor-em-achet, o tempo da Esfinge. Sente-se bem no tempo que está por vir e de que é ele o precursor, tempo em que todos os homens olharão para o Sol, o deus único, seu gracioso pai conforme o ensinamento do filho que conhece seus preceitos, visto como dele veio e seu sangue lhe corre nas veias. Chega-te para cá! — disse a José. — Chega-te e vê! — E, erguendo do seu braço fino o tecido de cambraia, mostrou-lhe as veias azuis do antebraço. — Isto é sangue do Sol!
O braço tremia-lhe visivelmente, conquanto Amenhotep o sustentasse com a outra mão, mas é que essa outra mão também tremia. José reverentemente olhou o que se lhe mostrava e depois afastou-se um pouco do real assento. A deusa-mãe disse:
— Tu te exaltas, Meni, e isso não faz bem à saúde de Tua Majestade. Devias ir descansar, depois da interpretação e de toda essa troca de ideias, devias tomar um pouco do tempo que te é dado para deixares amadurecer tuas decisões, não só no que se refere a medidas contra o que pode vir, mas ainda no tocante ao sério propósito de mudar teu nome, que parece ser objeto de tuas cogitações, enquanto ao mesmo tempo cuidas da recompensa adequada a este adivinho. Vai, pois, repousar um pouco.
Mas o rei parecia pouco disposto a fazê-lo.
— Mamãe — exclamou —, eu te suplico encarecidamente que não me peças isso num momento que me parece tão promissor. Asseguro-te que Minha Majestade está perfeitamente bem e não sente sombra de fadiga. Estou exaltado porque me sinto bem e me sinto bem por estar exaltado. Tu usas a mesma linguagem das amas da minha infância; quando mais alegre me sentia, diziam: “Estás cansado demais, Senhor dos Dois Países, deves ir deitar-te.” Isto me punha filio e eu começava a distribuir pontapés. Agora que estou crescido, agradeço respeitosamente o cuidado que tens comigo. Tenho, porém, a impressão nítida de que a presente audiência terá ainda outros resultados felizes e de que as minhas deliberações podem amadurecer melhor aqui do que na minha cama, enquanto converso com esse destro adivinho, a quem sou grato, quando mais não fora, por me ter dado a oportunidade de falar da minha intenção de tomar um nome real, um nome que contenha o do Único, a saber, Akhenaton, para que eu me chame de um modo agradável a meu Pai. Tudo deve tirar o nome do dele, não do de Amun. E logo que a Senhora dos Dois Países, que enche de suavidade o palácio, a doce Titi, der à luz, a real criança, seja príncipe ou princesa, será chamada Meritaton, a fim de que possa ter o amor daquele que é o amor. Pouco se me dá se com isso atraio as iras do poderoso de Karnak que virá apresentar-me sua reclamação e em palavras tediosas me ameaçará com a cólera do Carneiro! Posso suportá-la, posso suportar tudo por amor de meu Pai do alto.
— Faraó — disse a mãe —, esqueces-te de que não estamos sós. Estes assuntos que merecem ser tratados com sabedoria e moderação é melhor não ventilá-los na presença de um adivinho oriundo das camadas populares.
— Não te preocupes, mãezinha — replicou Amenhotep. — Na sua espécie, ele vem de nobre linhagem, como nos deu a entender, filho que é de um homem ladino e de uma linda mulher, o que só por si a meu ver já basta para tomá-lo atraente, além de que nos afirma que em criança lhe chamavam o cordeiro, o que também indica um certo apuro. Crianças de classes inferiores não recebem tais alcunhas, Mais: eu tenho a impressão de que ele é capaz de entender muita coisa e de dar resposta a muita coisa. Acima e além de tudo isto, parece-me que ele me ama e está pronto a ajudar-me, como já o fez interpretando os meus sonhos e também em razão da sua opinião original de que uma pessoa pode ter um nome de acordo com as suas circunstâncias e sentimentos. Estaria tudo ótimo se eu gostasse um pouco mais do nome pelo qual ele prefere ser conhecido... Não quero parecer descortês nem desejo magoar-te — disse, dirigindo-se a José —, mas contrista-me a espécie de nome que adotaste: Osarsif — eis um nome de mortos, como quando chamamos ao boi morto Osar-Ápis; ele sugere o nome do senhor dos mortos, Osíris, o terrível, no trono de juiz e com a balança, o qual só é justo mas não misericordioso, e diante de cujo tribunal a aterrada alma treme. Essa velha crença nada traz em si a não ser medo, ela própria já está morta, é uma Osar-crença, e o filho de meu Pai não acredita nisso.
— Faraó — disse de novo a mãe em voz abafada —, devo mais uma vez apelar para ti e admoestar-te para que tenhas cautela. Não ' hesito em fazê-lo mesmo na presença deste intérprete estrangeiro, desde que lhe concedes uma tão longa audiência e aceitas como um sinal da sua origem nobre sua mera asserção de que em criança foi chamado o “cordeiro”. Assim pode ele ouvir que eu te admoesto a seres prudente e moderado. Já é bastante que andes por aí cerceando o poder de Amun e rebelando-te contra o seu domínio universal, e que não percas ensejo de despojá-lo pedacinho a pedacinho da unidade com Rá, o habitante do horizonte, que é o Aton. Para chegar a tanto já é necessário grande habilidade e toda a politica do mundo, além de raciocínio muito frio, porquanto nesta matéria seria prejudicial qualquer precipitação. Mas guarde-se Tua Majestade de tocar também na crença que o povo tem em Osíris, rei das regiões inferiores, pois que a ele se apegam mais obstinadamente do que a qualquer outra divindade, porque todos são iguais perante Osíris e cada qual espera identificar-se com ele, tomando seu nome. Não percas de vista a simpatia de muitos por esse deus, porquanto o que dás a Aton diminuindo Amun de novo lhe tiras ofendendo Osíris.
— Oh! — exclamou Amenhotep. — Fica certa, minha mãe, que o apego do povo a Osíns é apenas imaginário. Como poderia agradar realmente ao povo uma crença segundo a qual a alma que se dirige à curul do juiz deve atravessar sete vezes sete regiões de terror, acossada por demônios que na sua passagem a interrogam numas trezentas e sessenta fórmulas mágicas, cada qual diferente e mais difícil de guardar que a anterior, as quais, não obstante, a pobre alma deve saber de cor, estando apta a repeti-las todas por ordem, de outro modo não passa e será devorada antes de poder achar-se na presença do juiz? E ainda que chegue até aí, tem toda a probabilidade de ser devorada se seu coração pesar muito pouco na balança, porque nesse caso setá entregue ao monstruoso cão de Amente. Onde, pergunto-te eu, há nessa doutrina qualquer coisa que agrade e console? Ela se opõe radicalmente ao amor e bondade de meu Pai do alto. Perante Osíris, o das regiões ínferas, todos são iguais! Sim: iguais no terror. Ao passo que diante de meu Pai todos devem ser iguais na alegria. Com o domínio universal de Amun e Aton se dará o mesmo. Também Amun deseja ser universal, graças ao auxílio de Rá, e quer unir o mundo em adoração a ele. Neste ponto têm ambos a mesma disposição de ânimo. Porém Amun procura fazer o mundo uno no rígido serviço do temor, unidade falsa e sinistra que meu Pai repele, porquanto ele unirá seus filhos na alegria e na ternura.
— Meni — tornou a advertir a mãe, na sua voz grave —, sena melhor que te poupasses e não falasses tanto em alegria e ternura. Por experiência sabes que estas palavras te são perigosas e te põem fora de ti.
— Estou falando, mãezinha, de crença e descrença — respondeu Amenhotep e com novo esforço desvencilhou-se das almofadas e se pôs em pé. — Disso falo e diz-me o meu espírito que a descrença é quase mais importante que a crença. Na crença deve haver um apreensível elemento de descrença, porque como pode um homem acreditar no que é verdadeiro enquanto acredita também no que é falso? Se quero ensinar ao povo o que é verdadeiro, devo primeiro extirpar dele certas crenças a que se apega. Vai nisso talvez alguma crueldade, mas é a crueldade do amor, e meu Pai no céu me há de perdoar. Sim, que coisa é mais gloriosa, a crença ou a descrença, e qual delas deve preceder a outra? Crer é a grande delícia da alma. Mas não crer é quase mais alegre do que crer: descobri isto, Minha Majestade o experimentou, e eu não creio nos reinos do medo e nos demônios e em Osíris com seus companheiros de nomes horrendos e no devorador que está lá embaixo. Eu não acredito nisso! Não acredito, não acredito — cantou e trinou Faraó, saltando com as suas pernas malfeitas, saracoteando-se com os braços estendidos e estalando os dedos de ambas as mãos.
Depois disso estava sem fôlego.
— Por que deste a ti mesmo um tal nome de morto? — perguntou esbaforido, quando, conseguindo parar, se viu ao lado de José. — Embora teu pai pense que morreste, a verdade é que estás bem vivo.
— Devo manter-me calado em relação a ele — respondeu José —, voltei-me ao silêncio com meu nome. Quem quer que esteja assim consagrado e separado o é para os ínferos. Não podes apartar o santo e consagrado dos ínferos, porque aqueles pertencem a estes, e justamente por isso jorra sobre eles a luz do alto. Fazemos oferendas aos ínferos, no entanto aí está o mistério que, assim procedendo, nós as dirigimos às alturas, porque Deus é o todo.
— Ele é a luz e o doce disco do Sol — disse Amenhotep, comovido — cujos raios abrangem os países e os ligam em amor. Ele torna frágeis as mãos pelo amor e só os maus, cuja crença se dirige para baixo, têm mãos robustas. Ah, quão melhor andariam as coisas guiadas pelo amor e pela bondade, a não existir essa crença no ínfero e na devoradora cujos colmilhos tudo estraçalham! Ninguém logrará dissuadir a Faraó de que os homens, não os dirigisse a sua crença às regiões ínferas, deixariam de fazer muitas coisas más e de considerá-las boas. Como deves saber, o rei Acheperura, avô do meu pai terreno, tinha mãos muito fortes, capazes de distender um arco que mais ninguém nos dois países podia manejar. Saindo a combater os reis da Ásia, agarrou vivos a sete deles. Amarrou-os pelos calcanhares à proa do seu navio. Estando assim com a cabeça para baixo, olhavam fito para cima com seus revirados olhos injetados de sangue. Isso foi apenas o começo do que meu antepassado fez com eles. Nem te quero contar o resto, mas ele até o fez. Foi a primeira história que minhas amas me contaram quando criança, para instilar em mim o espírito régio. E eu acordei sobressaltado, a gritar, sendo preciso que viessem os doutores da casa dos livros e me dessem um contraveneno. Achas, porém, que Acheperura teria feito tudo isso a seus inimigos se não acreditasse nos reinos do horror, nos espectros, nos horrendos companheiros de Osíris e no cão de Amente? Ouve cá: os homens são uma raça de desorientados. Não sabem fazer nada que lhes parta do íntimo; de si mesmos, espontaneamente, não lhes ocorre a mínima coisa que seja. O que sabem fazer é arremedar os deuses, e a imagem que deles pintam na imaginação, essa copiam. Purifica a divindade e terás puros os homens.
A tudo isto José nada respondeu, até que, voltando os olhos para a mãe, e nos olhos dela que o fitavam, leu que uma resposta sua seria do agrado dela.
— E coisa sumamente dificultosa — disse ele então — responder a Faraó, porque seus talentos não têm conta e o que ele diz é verdade, de modo que só nos resta balançar a cabeça e murmurar: “E exatamente isto”, ou então deixar morrer o eco da verdade que ele proferiu. Todavia sabemos que Faraó não quer que o diálogo se acabe e pare diante da verdade, mas antes deseja que o discurso se desembarace dela e prossiga, ultrapassando a verdade e possivelmente conduzindo a uma verdade nova. Com efeito, o que é verdadeiro não é a verdade. Não se conhecem limites à verdade, como não se conhecem ao discurso. E uma excursão à eternidade, não tem peias nem descanso, ou no máximo, depois de uma breve pausa e um impaciente “E isto, é isto mesmo”, afasta-se de cada parada da verdade, tal como a Lua se afasta de cada uma de suas paradas no seu eterno caminhar. Tudo isto me leva — queira eu ou não queira e seja isso próprio ou impróprio deste lugar — ao avô do meu pai terreno, ao qual em casa sempre dávamos um nome que não é muito terreno, chamando-lhe o romeiro da Lua, embora soubéssemos muito bem que o seu nome real era Abiram, o que significa “meu pai é excelso” ou talvez “pai do excelso”. Veio de Ur na Caldeia, o país da imensa torre. Lá nada lhe agradava, ele não podia suportar aquele lugar. De resto, não podia suportar lugar nenhum, daí o nome que lhe pusemos.
— Estás vendo, minha mãe — atalhou o rei —, que boas origens tem, lá a seu modo, o meu adivinho? Não só lhe chamaram cordeiro, senão que teve um bisavô a quem deram um nome que não é desta terra. Homens de baixa extração e gente das classes baixas em geral não conhecem seus bisavôs. Com que foi um peregrino que andou à cata da verdade esse teu bisavô?
— Tão infatigável e enérgico — confirmou José — que por fim descobriu a Deus e com Ele fez um pacto de que haviam de ser santos um no outro. Mas ele era vigoroso a outros respeitos ainda, era um homem de mão forte. Quando reis saqueadores vieram do oriente, incendiando e pilhando, e levaram consigo como prisioneiro a seu irmão Lot, resolutamente se pôs em campo contra eles com trezentos e dezoito homens, ou, contando com seu antigo servo Eliézer, trezentos e dezenove, e atacou-os com tal violência que os rechaçou para além de Damasco e lhes arrebatou das mãos seu irmão Lot.
A mãe cabeceou um gesto de assentimento e Faraó baixou os olhos.
— Entrou ele em campanha — inquiriu o monarca — antes de ter descoberto a Deus ou depois?
— Foi no meio da ação — respondeu José —, enquanto cumpria o seu dever e sem se deixar esmorecer pelo calor da refrega. Que se pode fazer com reis que incendeiam e saqueiam? Tu não lhes podes ensinar a paz de Deus, porque eles são demasiado estúpidos e maus. Tal gente só aprende depois de muito golpe que os fira no vivo, de modo que entendam que a paz de Deus tem mãos fortes. Afinal és responsável perante Deus de que as coisas andem na terra segundo a Sua vontade, ao menos em parte, e não inteiramente de acordo com a vontade de incendiários e saqueadores.
— Vejo — comentou Amenhotep com pueril amuo — que, se tivesse sido um de meus guardas, também tu me haverias de contar histórias horripilantes de gente dependurada de cabeça para baixo, com os olhos injetados a revirarem nas órbitas.
— Poderia dar-te — disse José, como que dirigindo-se a si próprio — que Faraó errasse e, a despeito de seus extraordinários talentos e de sua madureza, não tivesse razão em seus pensamentos? Mal o posso crer; contudo, parece que assim é, como que para demonstrar que ele tem o seu aspecto humano ao lado do divino. Aqueles que lhe crestavam o coração com narrativas de proezas marciais — prosseguiu, sempre falando como se se dirigisse a si mesmo — faziam isso movidos do seu espírito belicoso e com vistas no seu próprio interesse. Pelo contrário, este seu adivinho, descendente do romeiro da Lua, procura levar à guerra a mensagem da paz de Deus, enquanto intercede pela energia junto à paz como um parlamentário entre as esferas e intermediário entre o alto e o baixo. A espada é estúpida, todavia não me atrevo a dizer que a brandura seja sábia. Sábio é o mediador que aconselha energia a fim de que a brandura não redunde em estupidez diante de Deus e do homem. Pudesse eu dizer a Faraó o que penso!
— Eu escutei — disse Amenhotep — o que a ti mesmo andaste dizendo. É a mesma coisa que antes: a mesma engenhosa traça que inventaste, qual a de falar alto para ti próprio, como se os demais não tivessem ouvidos para escutar. Como trazes entre os braços o presente do navegador de Creta, talvez a traça te venha do presente e o espírito do deus matreiro fale pela tua boca.
— Pode ser — respondeu José. — Faraó fala a palavra da hora. Pode ser, é possível, não devemos repelir completamente a ideia de que o engenhoso deus está presente entre nós e deseja lembrar a Faraó que foi ele quem lhe mostrou o sonho que veio de baixo até o leito do soberano, ele que é também um guia ao mundo inferior, apesar do seu espírito jovial, o amigo da Lua e dos mortos. Ele não deixa de interceder amistosamente pelo mundo superior junto aos ínferos, sendo o solícito medianeiro entre o céu e a Terra. A ação direta lhe é odiosa, e melhor que ninguém ele sabe que pode uma pessoa ao mesmo tempo ser verdadeira e todavia falsa.
— Estás querendo voltar à história do teu tio — perguntou Amenhotep —, o verdadeiro que era falso, aquele cujas grossas lágrimas rolavam no pó da terra enquanto toda a gente ria em redor dele? Deixa a história no seu lugar. Ela é engraçada, porém me angustia um pouco. Talvez seja verdade que o que é cômico é sempre ao mesmo tempo um tanto triste e que nós só respiramos livremente e com desafogo com o ouro puro das coisas sérias.
— Di-lo Faraó — respondeu José — e possa ele ser o indicado para dizê-lo! A luz é séria e severa, e a força que, jorrando de baixo, procura chegar à sua claridade deve ser força realmente e de uma espécie máscula, não mera ternura; do contrário é falsa e prematura e terá como resultado lágrimas.
Depois de falar, não levantou os olhos para observar a mãe; pelo menos não o fez diretamente e em cheio. Mas foi o bastante para ver se ela balançava ou não a cabeça em sinal de assentimento. Ela não o fez, porém José teve impressão de que o olhava fixamente, o que talvez fosse ainda melhor.
Amenhotep não estivera a escutar. Estava recostado na sua cadeira, numa daquelas suas exageradas atitudes deliberadamente acintosas ao velho estilo e à rigidez de Amun. Apoiava um cotovelo no espaldar e tinha a outra mão na anca, descarregando aí todo o seu peso, ao passo que a outra pema descansava levemente sobre os dedos dos pés. Ainda estava absorto no que acabava de dizer.
— Penso — disse ele — que Minha Majestade disse uma coisa muito boa, merecedora de atenção. Refiro-me à facécia e à seriedade, à angústia e ao desafogo. Também a mediação que a Lua realiza entre o céu e a Terra é do gênero do gracejo, misteriosa, meio sobrenatural, ao passo que os raios de meu pai Aton que os ligam realmente são de uma seriedade de ouro, sem dolo, envolvidos de verdade, terminando em mãos bondosas que acarinham a criação do pai. Só Deus é toda a redondeza do Sol, de que jorram sobre a Terra verdade e amor inquebrantável.
— O mundo todo escuta as palavras de Faraó — respondeu José — e, quando ele ensina, ninguém perde uma única de suas palavras. Mas isso pode facilmente acontecer a outros, ainda quando suas palavras fossem por acaso tão dignas de consideração como as dele. Nunca, porém, há de acontecer tal ao Senhor das Coroas. Suas palavras de ouro trazem-me à memória uma de nossas histórias, a saber, a de como Adão e Eva, os primeiros entes humanos, se aterrorizaram com a aproximação da primeira noite. Recearam que a Terra se tornasse de novo vazia e informe. Com efeito, é a luz que separa as coisas e põe cada uma no seu lugar; ela cria o espaço e o tempo, ao passo que a noite torna a trazer a desordem, o caos, o vácuo. Por isso os dois ficaram profundamente aterrorizados quando o dia declinou depois do arrebol da tarde e a escuridão se foi infiltrando de todos os lados. De tanto desespero golpearam o rosto com as mãos. Mas Deus lhes deu duas pedras, uma de um negro carregado, outra como a sombra da morte. Esfregou-as uma na outra diante deles e eis que das entranhas da Terra surgiu fogo, o fogo primordial, jovem como o relâmpago e mais velho do que Rá. Foi ele ardendo no seco e tornou suave a noite para os dois.
— Muito bem, muito bem! — disse o rei. — Vejo agora que nem todas as vossas histórias são facécias. Pena foi que não tivesses falado também da grande alegria que houve na primeira manhã, quando Deus iluminou de novo o mundo para eles, espancando as formas horrendas da escuridão. Deve ter sido imenso o júbilo deles. Luz, luz! — exclamou. Deixando de um salto sua posição cômoda, pôs-se de pé e começou a andar de um lado para outro do aposento, já devagar, já apressadamente, ora levantando seus adornados braços até a altura da cabeça, ora apertando as mãos ambas sobre o peito.
— Luz bendita que para si mesma criou os olhos que a vejam, criou o olhar e a coisa olhada, a consciência do mundo que só sabe de si mesma através da luz! Luz, amorosa separação! Ah, minha mãe, e tu, caro profeta, quão glorioso acima de toda a glória e quão único no Universo é meu pai Aton! Como bate meu coração a transbordar de orgulho por ter eu procedido dele e por me haver ele concedido que eu entendesse antes de todos os outros a sua formosura e o seu amor! Pois assim como ele é único na grandeza e na bondade, assim sou eu único no amor, seu filho a quem ele confiou sua doutrina. Quando nasce no oriente e surde da terra de Deus, refulgentemente coroado como rei dos deuses, todas as criaturas exultam. Os bugios adoram de mãos erguidas e todas as criaturas selvagens o louvam, correndo e pulando, pois cada dia é seu tempo de bênção e uma festa de alegria depois do maldito tempo da noite, quando ele vira o rosto e o mundo se abisma no olvido de si próprio. É aterrador esse esquecimento de si mesmo a que o mundo se condena, por mais necessário que seja para aliviá-lo. Dormem os homens nos seus quartos, com as cabeças envolvidas e as narículas tapadas; um não vê o outro; sem que o notem, um ladrão lhes rouba as coisas que ficam sob suas cabeças. Todo leão deixa o seu covil, toda serpente morde. Mal, porém, ele surge, fecha as bocas dos homens, retira as sombras dos seus olhos. Os homens lavam-se, vestem-se, vão para o seu trabalho. Clara se torna a terra. Velejam as embarcações na correnteza em vários sentidos, todas as estradas reais se povoam com a sua luz. O peixe no mar pula diante dela e seus raios chegam até eles. Apesar de virem de longe, batem na terra como no mar e prendem todas as criaturas com o seu amor. Se ele não estivesse tão alto e tão longe, não podia estar acima de tudo e em toda parte do seu mundo ao qual deu forma e que desdobrou em tão vária beleza, na Síria como na Núbia, no Punt como no Egito. Colocou nas nuvens um Nilo para que caia sobre aquelas regiões estranhas alagando as montanhas como o oceano e regando-lhes os campos por entre as suas cidades, ao passo que para nós o rio sagrado brota de sob a terra, fertilizando o deserto para que possamos comer. Sim, como são múltiplas, Senhor, as tuas obras! Fizeste as estações e povoaste o espaço e o tempo de milhões de formas, para que vivam em ri e preencham o lapso da vida que lhes concedes nas cidades, vilas e aldeias, nos caminhos da terra e da água. Tu diferencias os homens e lhes dás várias línguas para que usem palavras diversas segundo seus costumes diferentes, mas os abarcas a todos. Uns são morenos, outros ruivos, outros pretos, e ainda outros são como leite e sangue. E em todos esses tons se revelam em ti e são manifestações tuas. Têm narizes ou aduncos, ou chatos, ou tais que saem retos e afilados do rosto. Vestem-se de cores alegres ou de branco, de lã ou de Unho, conforme sabem ou pensam; mas nada disto é motivo para que riam uns dos outros ou se odeiem, senão antes os torna interessantes e é mais um motivo para o amor e a adoração. Quão alegre e sólido é, ó Deus fundamentalmente bom, tudo o que criaste e nutres, e que íntimo deleite tão d’alma inspiraste em teu amado filho Faraó, que te proclama! Tu puseste a semente no homem e dás vida ao filho no corpo da mulher, tu o consolas para que não chore, boa ama e nutridor que és! Fazes aquilo de que as moscas possam viver e também as pulgas, o verme e o que do verme se origina. Seria já bastante para o coração e até demais que o gado viva satisfeito na sua pastagem, que árvores e plantas estejam em seiva e que as florinhas medrem louvando-te e agradecendo-te, enquanto aves sem conta adejam sobre os pauis. Mas, quando penso no ratinho dentro do seu buraco onde lhe preparas quanto lhe é preciso, quando penso naquele pequeno animal com uns olhos que parecem duas contas, limpando o focinho com as patas, meus olhos se enchem de lágrimas. Especialmente não me posso lembrar do pintainho a piar na sua casca que ele rompe quando é tempo, pondo-se logo a andar com a maior agilidade e a esgaravatar a tem, não me posso lembrar disso, repito, sem que tenha de enxugar coma mais fina cambraia o meu rosto banhado de lágrimas. Eu gostaria de beijar a rainha — disse ele abruptamente, parando com a face voltada para o teto. — Que chamem imediatamente Nefertiti, a que enche o palácio de beleza, a senhora dos dois países, minha doce consorte.
DEMASIADO FELIZ
O filho de Jacó já se sentia quase tão cansado de ficar em pé diante de Faraó como quando representara o papel de servo mudo perante o velho casal no quiosque do jardim. O jovem Faraó, apesar de toda a sua delicadeza de sentimento em relação aos mosquitos, aos pintos, ao camundongo e ao filhote do verme, não parecia lembrar-se do desconforto de José. Sua delicadeza era de uma espécie régia, tinha suas falhas. Nem a ele nem à deusa-mãe comodamente entronizada acudiu (e provavelmente não podia acudir) a ideia de dizer-lhe que se sentasse um pouco. Os numerosos, encantadores e convidativos tamboretes existentes no pavilhão cretense eram realmente uma tentação para os seus fatigados membros. Aquilo era duro de suportar, mas, quando alguém sabe o que lhe importa, toma as coisas tais como se lhe apresentam e fica firme — e aqui está um bom uso literal da expressão.
A viúva-deusa encarregou-se de bater as palmas quando o filho manifestou seu desejo. Com muitas mesuras, o camarista de serviço na antessala afastou brandamente o reposteiro e apareceu, rolando os olhos quando Teje lhe disse de supetão: “Faraó chama a grande consorte.” O serviçal tornou a desaparecer. Amenhotep estava de pé junto a uma das grandes janelas arqueadas, dando as costas para o aposento, e olhava para o jardim, com um arfar de peito e um estremecer de todo o corpo, por causa da violência com que rendera homenagem ao Sol e às suas obras. A mãe observava-o preocupada. Mas, passados alguns minutos, apareceu a que fora chamada e que não devia estar muito longe dali. Uma portinha, disfarçada entre as pinturas, abriu-se à direita, e duas criadas se prostraram por terra na soleira. Entre elas surgiu a rainha dos países, a passo cauteloso, esboçando um sorriso esmaecido, com os olhos baixos, o longo e formoso pescoço timidamente projetado para a frente. Ela levava em si a semente do Sol. Não falou. Trazia na cabeça, alongando-se a forma, um gorro azul; as orelhas grandes, finas, bem-feitas, estavam descobertas. O umbigo e as coxas apareciam debaixo das pregas diáfanas do vestido folgado; tapava-lhe o peito um tecido que descia dos ombros e um cabeção florido rebrilhante de esmalte. Com uma expressão hesitante foi-se aproximando do esposo, o qual, ainda a ofegar, muito emocionado se dirigiu ao seu encontro.
— Aqui estás, pomba de ouro, minha doce irmã de leito — disse ele com a voz trêmula; abraçou-a e beijou-a nos olhos e na boca, de modo que as duas cobras nas testas de ambos também se beijaram. — Foi-me preciso ver-te, ainda que por um momento, para te demonstrar meu amor. Foi um desejo que me veio enquanto falava. Mandando chamar-te, te importunei? Não estás neste momento sofrendo com o teu atual estado bendito? Minha Majestade só de perguntar talvez faça mal, porque com as minhas palavras posso despertar-te a náusea. Vês como o rei tudo compreende. Muito grato ficaria eu ao Pai se pudesses hoje reter dentro de ti nosso excelente almoço. Mas não falemos mais nisso... Pompeia aqui a mãe eterna, e este homem com a lira é um mágico estrangeiro, um profeta que interpretou para mim o meu sonho de grande importância política e sabe contar histórias tão amenas que sou capaz de conservá-lo comigo, num elevado cargo da corte. Ele estava no cárcere, em razão de algum equívoco, como algumas vezes pode acontecer. Também Nefer-em-Vese, meu copeiro-mor, esteve uma vez por engano na prisão, ao passo que seu companheiro, o finado padeiro-mor, era culpado. De dois que estão no cárcere, parece que sempre um é inocente, e de três, dois. Isso digo enquanto homem. Mas, enquanto deus e rei, digo que as prisões são necessárias, apesar de tudo. E, enquanto homem, eu te beijo, ó meu santo amor, nos teus olhos, na tua face, na tua boca. Não fiques surpreendida por eu fazê-lo na presença não só da mãe mas também do adivinho estrangeiro, pois, como sabes, Faraó se compraz em mostrar o seu lado humano. E creio que irei ainda mais longe nesse ponto. Ainda não sabes disso, nem tu nem mamãe, e assim aproveito o ensejo para dizê-lo a ambas. Estou planejando uma viagem de recreio na nossa régia barca “Estrela dos Dois Países”. O povo, movido pela curiosidade e até certo ponto também pela minha ordem régia, nos acompanhará aos magotes ao longo da margem, e ali na presença de todos, meu rico tesouro, sem previamente consultar o primeiro sacerdote de Amun, sentar-me-ei contigo debaixo do dossel e te porei sobre os meus joelhos e te darei repetidos e estralados beijos na presença de todo o povo. Isto desgostará o de Karnak, porém o povo vai exultar, e com o meu gesto não só lhe mostrarei a nossa grande felicidade mas ainda o instruirei na essência, no espírito e na bondade do meu Pai do alto. Folgo de não ter mencionado este meu plano. Não penses, porém, que foi por isso que te mandei chamar, pois só por acaso me veio a ideia enquanto falava. Chamei-te simples e exclusivamente por um súbito e irrefreável impulso de mostrar-te minha ternura e agora já o fiz. Vai, pois, florão da minha coroa. Faraó está assoberbado de problemas e tem de tomar conselho sobre matérias da mais alta importância com sua querida e eterna mãezinha e com este moço que, como deves compreender, é oriundo da raça do cordeiro inspirado. Vai e toma bem cuidado de ti, evitando qualquer coisa que possa melindrar tua pessoa. Dá ordem para que te entretenham com danças e cânticos. A criança, seja o que for, será chamada Meritaton, quando felizmente a deres à luz, e se assim te agradar, como vejo que agrada. Tu sempre achas bom tudo aquilo que Faraó pensa. Se o mundo todo achasse bom o que ele pensa e ensina, sairia lucrando. Adeus, pescoço de cisne, nuvenzinha da manhã, orlada de ouro. Adeus e até mais ver.
A rainha foi-se como viera. Sobre ela fechou-se a porta que ficava invisível entre as pinturas. Embaraçado com as suas próprias emoções, Amenhotep tornou à sua majestosa cadeira.
— Países venturosos — disse ele — aos quais foi concedida uma tal senhora, e um Faraó a quem ela faz tão feliz! Tenho razão de dizer isto, minha mãe? Concordas comigo, profeta? Se ficas na minha corte como intérprete dos sonhos do rei, eu te casarei aqui, é essa a minha firme intenção. Eu mesmo escolherei a noiva, uma mulher digna do teu cargo, tirada das altas rodas. Tu não imaginas como é delicioso estar casado. Para Minha Majestade, como a minha ideia da viagem de recreio em público te terá mostrado, é a própria imagem e expressão do meu lado humano, ao qual me apego mais do que sei exprimir. Pois vê tu, Faraó não é soberbo — e se ele não o é, quem no mundo o havia de ser? Mas em ti, meu amigo, eu sinto, infelizmente, uma espécie de orgulho, com todo o encanto das tuas maneiras — digo uma espécie, porque não sei a sua natureza e só posso suspeitar que tal coisa se relacione com o que nos disseste, a saber, que tu estás de certo modo separado e consagrado ao silêncio e aos ínferos, como se a coroa do sacrifício circundasse a tua testa, grinalda essa feita de uma erva chamada não-me-toque. Foi justamente isto que me deu a ideia de te casar.
— Eu estou nas mãos do que está mais alto — respondeu José. — O que ele faz será para o bem. Faraó não sabe quão necessário me foi o meu orgulho para proteger-me do mal. Fui separado só para Deus, que é o noivo da minha raça, sendo nós a noiva. Mas assim como da estrela está escrito: “De noite mulher, homem de manhã”, assim suponho que também cá da noiva pode sair, no momento preciso, o pretendente.
— Uma natureza dupla como essa bem pode quadrar ao filho do velhaco e da formosa — disse o rei, com um ar de quem conhece o mundo e as coisas. — Mas agora — acrescentou — deixemos de gracejos e falemos sério de negócios sérios. Esse teu Deus, quem é Ele e o que é? Tu omitiste ou te esquivaste de dar-me uma explicação clara sobre esse ponto. O antepassado do teu pai, segundo dizes, foi quem O descobriu, não é assim? A impressão que se tem é que ele descobriu o verdadeiro e único Deus. Será possível que um homem tão distante de mim no tempo e no espaço adivinhou que o verdadeiro e único Deus é o disco solar, o criador da vista e do visto, meu eterno Pai do alto?
— Não, Faraó — respondeu José, sorridente. — Ele não parou no disco solar. Ele era um caminhante e mesmo o Sol não foi mais que uma parada no caminho da sua árdua peregrinação. Ele era irrequieto e incansável — podes dar a isso o nome de orgulho, se quiseres, porque, fazendo-o, selas a tua censura com o sinete da honra e da necessidade. Com efeito, o orgulho do homem era que o ser humano só devia servir ao Altíssimo. Por isso seus pensamentos passaram além do Sol.
Amenhotep havia corado. Curvara-se para a frente, e sua cabeça, envolvida na peruca azul, parecia querer saltar-lhe do pescoço; com as pontas dos dedos comprimia o queixo.
— Mamãe, atenção! Por tudo o que te é caro, presta muita atenção — disse ele num sopro, sem desviar de José seus olhos cinzentos. Tão grande era sua ansiedade que parecia querer rasgar o véu que os embaçava.
— Olá, continua! — ordenou ele. — Espera, não, prossegue! Ele não parou? Passou além do Sol? Fala! Se não, falarei eu, embora não saiba o que vou dizer.
— No seu indispensável orgulho — disse José — ele dificultou as coisas para si próprio. Por isso foi ungido. Superou muitas tentações relacionadas com o que devia adorar, porque adorar ele queria, mas somente àquilo e àquele que era o Altíssimo, pois unicamente isso lhe parecia justo. Tentou-o a mãe Terra, ela que conserva a vida e produz o fruto. Viu, porém, sua penúria que só o céu pode remediar e assim voltou a face para o alto. Tentou-o a confusão das nuvens, o rugir da tormenta, o barulho da chuva, o relâmpago azul que fende as brumas, o ribombo do trovão. Ele, porém, meneou a cabeça diante dos seus reclamos, pois sua alma o ensinou a ver neles apenas elementos de segunda ordem. Não eram melhores, assim lhe falou sua alma, do que ele próprio, talvez eram menos que ele, conquanto fossem poderosos; ele mesmo — assim opinou — era poderoso, mais talvez do que aqueles, e, embora estivessem acima dele, só o estavam no espaço, não no espírito. Adorá-los, percebeu-o claramente, seria adorar coisas que estavam muito próximas e muito baixas, e antes nada do que perto demais e baixo demais, pois isso seria uma abominação.
— Bem — disse Amenhotep num fio de voz, continuando a amassar o queixo. — Bem. Espera! Não, adiante! Mamãe, presta atenção!
— Sim — prosseguiu José. — Quantos fenômenos, qual a qual maior, não tentaram o meu antepassado! Contava-se entre eles o exército das estrelas, o pastor e o rebanho. Estavam na verdade muito longe e muito alto, sendo muito vasto o seu curso. Mas viu-as debandar ante o esplendor da estrela da manhã. Esta era realmente de imensa beleza, de natureza dupla e de crônica opulenta, porém fraca, demasiado fraca para aquilo de que ela era o arauto; empalideceu diante dele e sumiu-se a pobre estrela da manhã!
— Poupa a tua compaixão! — exclamou o rei. — Há aqui matéria para triunfo. Pois dize-me que foi o que a fez empalidecer e quem apareceu depois que ela o anunciou? — perguntou ele, dando à sua voz o maior volume de orgulho e de ameaça de que era capaz.
— O Sol, certamente — respondeu José. — Que tentação para ele que tanto desejava adorar! Todos os povos da Terra se curvavam diante da crueldade do Sol e da sua benignidade. Que boa coisa, que descanso, que alívio unir a própria piedade à dos demais e curvar-se com eles! Mas grande era a cautela do meu antepassado, infinita a sua reserva. Não se trata, dizia ele, de descanso nem de alívio. O importante é evitar o grande perigo que seria para a honra do gênero humano curvar-se diante de um mais baixo que o Altíssimo. “Tu és poderoso”, disse ele a Chamach-Marduk-Baal, “grande é o poder que tem de abençoar e amaldiçoar. Mas há em mim, que não passo de um verme, alguma coisa acima de ti que me previne que não tome o testemunho por aquilo que ele testemunha. Quanto maior for o testemunho, maior será a minha falta se eu me deixar induzir a adorá-lo em vez de adorar aquilo que ele testemunha. O testemunho é divino, mas não é Deus. Eu também sou um testemunho, eu, minhas ações e meus sonhos, e tudo isso que está em mim passa além do sol, e dirige-se àquilo do qual presta maior testemunho do que o próprio Sol e cujo calor é ainda mais forte que o dele.”
— Mãe — sussurrou Amenhotep, sem desviar seus olhos de José —, que disse eu? Não, não, eu não disse, eu simplesmente o soube porque me foi dito. Quando ultimamente eu me senti arrebatado e me foi concedida a revelação para o aperfeiçoamento da doutrina (porquanto ela não está completa, jamais afirmei que ela estivesse), ouvi a voz de meu Pai, que assim me falava: “Eu sou o calor do Aton que está nele. Mas com o meu fogo eu podia alimentar milhões de sóis. Tu me chamas Aton, sabe, porém, que o próprio nome está necessitando de aperfeiçoamento. Quando assim me chamas, não me estás chamando pelo meu nome último e final. Porque o meu último nome é: o Senhor do Aton.” Foi o que ouviu Faraó, o filho dileto do Pai, e consigo trouxe esse ensinamento que lhe fora comunicado no seu arrebatamento. Mas ficou calado e o próprio silêncio o fez esquecer.
Faraó traz estampada no coração a verdade, porque o Pai é a verdade. Mas ele é responsável pelo triunfo da doutrina, a fim de que todos os homens a recebam, e o que o preocupa é que o aperfeiçoamento e a purificação levada a tal ponto que a doutrina atinja a verdade pura equivalha a tomá-la impossível de ensinar. E esta uma preocupação séria que a ninguém é dado compreender a não ser àquele sobre quem pesa tanta responsabilidade como sobre Faraó. Para muitos é fácil dizer: “Não é a verdade que está radicada no teu coração, mas a doutrina.” Todavia a doutrina é o único meio de aproximar os homens da verdade. Deve ser aperfeiçoada; se, porém, a aperfeiçoam a ponto de tomá-la inaproveitável como instrumento da verdade — pergunto ao Pai e a ti —, não será então justificada a censura de que eu fechei a doutrina no meu coração com prejuízo da verdade? Ora, Faraó mostra à humanidade a imagem do Pai venerado, feita por seus artistas — o disco de ouro do qual partem raios que descem sobre as criaturas e terminam em mãos mimosas que acariciam toda a criação. “Adorai!”, ordena ele. “Este é o Aton, meu Pai, cujo sangue circula em mim. Ele se revelou a mim, porém será Pai de todos vós, para que possais tornar-vos bons e belos nele.” E acrescenta: “Perdão, queridos seres mortais, por ser eu tão rigoroso com os vossos pensamentos. De boa mente pouparia eu vossa simplicidade. Mas assim tem de ser. Por isso vos digo: não adorareis a imagem quando adorardes, não cantareis a ela vossos hinos quando cantardes, mas àquele que ela representa; compreendeis? Ao verdadeiro disco do Sol, meu Pai no céu, que é o Aton, porquanto a imagem ainda não é ele.” Bem árduo é isto; é um desafio aos homens; de cem, doze o compreendem. Porém insta ainda o doutrinador: “Devo exigir de vós um novo esforço por amor da verdade, por mais que eu saiba que isto é duro para a vossa simplicidade. Efetivamente, a imagem não é mais que a imagem da imagem e testemunho do testemunho. Não no redondo Sol lá no alto do céu tereis de pensar quando queimardes incenso à sua imagem e cantardes suas loas, não nele, mas no Senhor do Aton, que dentro dele arde e lhe guia o curso.” Isto é ir demasiado longe, é doutrinar demais, e nem um o entende, quanto mais doze. Só o entende Faraó, que está for^ de toda conta, e contudo supõe-se que doutrine a multidão. Teu antepassado, profeta, teve uma tarefa fácil, conquanto a tivesse dificultado para si mesmo. Ele podia tomá-la difícil quanto quisesse, indo no encalço da verdade por causa de si próprio e por causa do seu orgulho, pois era apenas um romeiro. Mas eu sou rei e mestre; eu não devo pensar no que não sei ensinar. Na minha posição logo se aprende a nem sequer pensar no que não é possível ensinar.
Aqui Teje limpou a garganta, chocalhou seus ornamentos e disse de olhos fitos num ponto indeterminado do espaço:
— Faraó merece encômios por proceder com prudência em assuntos religiosos, poupando a simplicidade das multidões. Por isso foi que eu o adverti a que não melindrasse o apelo popular a Osíris, rei das regiões ínferas. Não há nenhuma contradição entre saber e poupar, e a missão de mestre não o obriga a escurecer o conhecimento. Nunca os sacerdotes ensinaram às turbas tudo o que eles próprios sabem. O que têm feito é ensinar ao povo o que lhe convém e deixar cautelosamente no domínio dos mistérios o que não seria tão benéfico. Assim o conhecimento e a sabedoria andam juntos no mundo, tanto como a verdade e a moderação. A mãe recomenda que isso assim se conserve.
— Obrigado, minha mãe — disse Amenhotep, inclinando-se modestamente para ela. — Obrigado pela contribuição. É muito valiosa e será tida na mais alta conta durante séculos sem fim. Mas estamos falando de duas coisas diferentes. Minha Majestade fala das peias que a doutrina põe nos pensamentos de Deus, a tua refere-se à astúcia política em assuntos religiosos, que separa ensinamento de conhecimento. Porém Faraó não quer ser arrogante, e não há maior arrogância do que essa divisão. Não há no mundo arrogância maior do que a de dividir os filhos do nosso Pai em iniciados e não-iniciados e ensinar palavras duplas, umas destinadas às massas, outras à roda íntima. Não, nós devemos dizer o que sabemos e testemunhar o que vimos. Faraó não quer fazer outra coisa senão aperfeiçoar a doutrina, o que se lhe torna difícil por causa do ensinamento. E, contudo, foi-me dito: “Não me chames Aton, que isto precisa de melhoramento. Chama-me o Senhor do Aton!” Mas eu, por ter-me mantido calado, esqueci. Vê agora o que o Pai faz para o seu dileto filho. Envia-lhe um mensageiro e oniromante, que lhe interpreta os sonhos, os vindos do alto e os vindos dos ínferos, importantes para o reino e para o céu; isto para despertar nele o que ele já sabe, e para explicar-lhe o que já lhe foi dito. Sim, como ama o Pai a seu filho-rei que dele proveio! Ama-o tanto que lhe manda um adivinho a quem foi transmitido dos seus antepassados o ensinamento de que ao homem cumpre avançar sempre em demanda do último, do mais alto!
— Que eu saiba — observou Teje com frieza —, o teu adivinho veio de baixo, de um calabouço, não do alto.
— Ah, na minha opinião é puro engano dizer-se que ele veio de baixo — exclamou Amenhotep. — Além disso, isso de baixo ou alto não significa muita coisa perante meu Pai, o qual, quando declina, torna alto o que era baixo, pois onde ele brilha, aí está o mundo superior. Donde resulta que seus emissários interpretam sonhos de cima e de baixo com igual perícia. Continua, profeta! Eu disse que parasses? Se disse, o que eu queria dizer é que prosseguisses. Esse peregrino do Oriente, do qual descendes, não parou então no Sol, mas continuou sua marcha para lá dele?
— Sim, em espírito — respondeu José sorrindo. — Porque na carne ele não era mais que um verme desta terra, mais fraco do que muitas das criaturas que estão por cima e por baixo dele. E, no entanto, recusou adorar e curvar-se diante de um desses fenômenos, que não eram mais que testemunho e obra, como ele próprio. Todo ser, disse ele, é uma obra e antes da obra está o espírito daquele de quem ela apresenta testemunho. Como poderia eu cometer tão grande loucura que fosse queimar incenso a uma obra, por pujante que esta seja, eu, digo, que tenho consciência de ser um testemunho, enquanto os outros que também o são simplesmente o ignoram? Não há em mim alguma coisa daquele de quem todo o ser é testemunho, do Ser dos seres, que é maior que Suas obras e está fora delas? Está fora do mundo e, apesar de envolver o mundo, o mundo não o envolve a Ele. O Sol está longe, seguramente a uma distância de trezentas e sessenta mil milhas, e, no entanto, seus raios estão aqui. Porém Aquele que mostra ao Sol seu caminho está muito mais longe que o Sol, mas ao mesmo tempo está perto, muito mais perto. Para Ele tanto faz longe como perto porque Ele não tem nem espaço nem tempo, e, conquanto o mundo esteja nEle, Ele não está no mundo, mas no céu.
— Ouviste isso, minha mãe? — perguntou Amenhotep com voz débil e com lágrimas nos olhos. — Ouviste a mensagem que meu Pai celeste me manda por intermédio deste mancebo, no qual eu imediatamente vi qualquer coisa logo que aqui entrou e que me interpreta meus sonhos? O que sei dizer é que eu não disse tudo que me foi dito no meu arrebatamento e que, guardando silêncio, me esqueci. Quando, porém, ouvi: “Não me chames Aton, mas antes o Senhor do Aton”, ouvi também isto: “Não fales ‘meu Pai do Alto’ porque isto se aplica ao Sol; deves mudá-lo para o seguinte: ‘Meu Pai, que estás no céu.’” Foi o que ouvi e guardei dentro em mim porque me preocupava com a verdade em razão da dificuldade de transmiti-la. Mas aquele que eu tirei da prisão abre a prisão da verdade para que ela apareça bela e radiante, e doutrina e verdade se abraçarão, como eu o abraço a ele.
E com os olhos úmidos arrancou-se a custo do seu fofo assento, abraçou José e beijou-o.
— Sim, sim! — exclamou. Pôs-se a andar velozmente de um lado para outro da galeria cretense, indo ora até a porta cujos reposteiros tinham abelhas bordadas, ora até as janelas, apertando a mão ao peito, — Sim, sim, que estás no céu, mais longe do que longe e mais perto do que perto, o Ser dos seres, que não olha para a morte, que não se muda nem morre, mas é a luz permanente que nem se ergue nem se põe, a fonte imutável da qual jorra toda vida, toda luz, toda beleza, toda verdade — esse é o Pai que se revela a Faraó, Seu filho, o qual se reclina em seu peito e a quem Ele mostra tudo que fez. Pois Ele fez tudo e Seu amor está no mundo e o mundo não O conhece. Mas Faraó é Seu testemunho e dá testemunho da Sua luz e do Seu amor, para que por ele todos os homens se tomem felizes e creiam, apesar de que agora eles ainda amem mais as trevas do que a luz que surge nelas. Por eles não entenderem isso, suas obras são más. Mas o filho que veio do Pai há de ensiná-los. Áureo espírito é a luz, espírito do pai; das profundezas maternas o poder emerge até ele, para ser purificado na sua chama e tornar-se espírito no Pai. Deus é imaterial, como a luz do Seu sol, Ele é espírito e Faraó vos ensina a adorá-lO em espírito e verdade. Pois o filho conhece o Pai como o Pai o conhece a ele e recompensará regiamente todos aqueles que o amam e guardam seus mandamentos. Ele os fará grandes e dourados na sua corte, porque amam o Pai no filho que do Pai veio. Minhas palavras não são minhas, mas do Pai que me enviou para que todos possam tornar-se uma só coisa na luz e no amor, tal como eu e o Pai somos uma coisa só...
Sorriu, sentindo-se demasiado feliz e ao mesmo tempo perdeu a cor; pondo as mãos nas costas, apoiou-se na parede pintada, fechou os olhos e assim permaneceu, bem ereto de corpo, mas evidentemente com o espírito longe dali.
O VARÃO SÁBIO E PRUDENTE
Teje, a mãe, levantando-se da sua cadeira, atravessou a sala e com passos curtos e decididos aproximou-se do filho em arroubo. Olhou-o um momento, deu-lhe na cara com as costas da mão um levíssimo tabefe, que ele evidentemente não sentiu, e virou-se para José.
— Faraó vai-te exaltar — disse a rainha com um sorriso amarelo. Seus beiços grossos e os sulcos que lhes rodeavam as comissuras provavelmente não lhe consentiam outro feitio de sorrir.
Um tanto assustado, José estava olhando para Amenhotep.
— Não te preocupes — disse ela. — Faraó não nos ouve. Ele não está presente, veio-lhe a sua santa indisposição, mas não é coisa de cuidado. Eu sabia que o fim tinha de ser esse quando ele entrou a falar insistentemente em alegria e ternura; termina sempre assim, embora algumas vezes com maior intensidade. Quando começou a falar em ratinhos e pintos, vi logo onde a coisa ia parar e, quando te beijou, tive absoluta certeza do resultado. Deves encarar esse resultado sob o prisma da sagrada suscetibilidade do rei.
— Faraó gosta de oscular — observou José.
— Gosta muito — confirmou Teje. — Creio que és bastante atilado para perceber o perigo que isso representa para um reino que tem dentro das suas fronteiras um deus excessivamente poderoso e fora delas muitos tributários invejosos a tramar rebeliões. Foi por isso que me agradou ouvir-te falar da energia dos teus avós, a qual não se debilitava com os seus pensamentos a respeito de Deus.
— Não sou homem de guerra — disse José —, nem o foi meu antepassado, a não ser premido pelas circunstâncias. Meu pai era um piedoso morador das tendas e homem dado à contemplação, e eu sou seu filho que lhe deu sua verdadeira mulher. E certo que entre meus irmãos que me venderam há vários capazes das maiores violências; os gêmeos foram heróis de guerra (chamávamos de gêmeos, apesar de mediar um ano inteiro entre suas idades), e Gadiel, filho de uma das concubinas, andava sempre de couraça, pelo menos no meu tempo.
Teje abanou a cabeça.
— Tens um modo — disse a rainha — de falar na tua parentela, que eu, como mãe, chamaria de amimado. Quer-me parecer que não formas mau conceito de ti mesmo. Achas que estarias em condições de aguentar uma boa promoção?
— Grande dama, não mo leves a mal — disse José —, porém presumo que nenhuma me surpreende.
— Tanto melhor para ti — tornou ela. — Eu te disse que ele te vai exaltar e provavelmente em excesso. Ele não sabe ainda, mas, quando voltar a si, é certo que assim fará.
— Faraó me exaltou honrando-me com essa prática acerca de Deus — sentenciou o mancebo.
— Qual história! — exclamou Teje, impaciente. — Foste tu quem o levou a tal conversa. Desde o princípio o fizeste. Não me venhas com essa cara de inocente, nem finjas ser o cordeiro, conforme te chamaram aqueles que, criando-te, te estragaram com mimos. Tenho intuição política e não há fachadas piedosas que me iludam. “Doce sono”, não é verdade? “E leite materno, banhos momos, faixas que me esquentam e banhos momos!” Qual carapuça! Não sou contra a habilidade política, pelo contrário, e não estou aqui a exprobar-te por teres sabido agarrar a ocasião pelos cabelos. Tua prática sobre Deus não passou afinal de uma prática sobre deuses em geral, e tua história não foi nada má, aquela do deus-ladrão malicioso e hábil em aproveitar-se das vantagens terrenas.
— Perdão, mãe excelsa — disse José —, quem contou essa história foi Faraó.
— Faraó é sugestionável e receptivo — volveu ela. — Foi a tua presença que lhe evocou tudo aquilo. Tu o impressionaste e ele falou do deus.
— Meu coração não abrigava nenhuma espécie de dobrez, grande soberana — tornou José. — E leal me manterei para com ele, seja qual for sua régia decisão a meu respeito. Pela vida de Faraó, eu nunca trairei seu ósculo. Faz muito tempo que recebi o último beijo. Foi no vale de Dotan, quando meu irmão Judá me beijou na presença dos filhos de Ismael, meus compradores, para mostrar-lhes em que alta conta tinha a mercadoria. O teu querido filho apagou com o seu aquele ósculo. Desde então me anima o desejo ardente de servi-lo o melhor que puder e na medida das forças que ele me conferir.
— Sim. Serve-o e ajuda-o — disse ela, aproximando-se de José com sua figurinha firme e pondo-lhe a mão sobre o ombro. — Prometes isso à mãe dele? Sabes da enorme responsabilidade que tenho em relação a meu filho. Tu me compreendes. Tua argúcia é tão viva que chega a doer; tu foste ao ponto de falar do verdadeiro que era falso, e ele, que é tão sensível, te entendeu perfeitamente quando alvitraste que um pode ser verdadeiro sem deixar de ser falso.
— Isso não era sabido ou não fora reconhecido antes — explicou José. — É uma instituição do destino que um homem possa seguir o caminho reto e contudo não ser o homem talhado para percorrer aquele caminho. Até o presente isso ainda não se deu, mas de agora em diante assim será. Deve-se respeitoso preito a toda instituição; deve-se-lhe preito e amor, mormente quando está em campo uma pessoa tão digna de amor como é o teu nobre filho.
Do lado de Faraó ouviu-se um suspiro; a mãe virou-se para ele. O monarca estremeceu, piscou os olhos, desencostou-se da parede e pós-se ereto. A cor voltou aos seus lábios e às suas faces.
— Urge — ouviram-no dizer — tomar deliberações. Minha Majestade percebeu nitidamente que eu não tinha mais tempo e que devia tornar sem perda de um minuto às minhas preocupações régias. Perdoai minha ausência — disse sorridente, enquanto deixava que sua mãe o reconduzisse ao seu assento, e se enterrava entre as almofadas, — Perdoa-me, minha mãe, e tu também, caro adivinho. Faraó — acrescentou com um sorriso meditativo — não necessitaria escusar-se porque não tem obrigações com ninguém e além disso não foi de per si, mas arrebataram-no. Ainda assim, porém, pede desculpas, por mera cortesia. Mas agora vamos ao que importa. Temos tempo, porém não devemos esperdiçá-lo. Senta-te, mãe eterna, se me permites respeitosamente pedi-lo. Não parece bem que fiques de pé enquanto teu filho está sentado. Somente esse moço com um nome tirado das regiões ínferas pode continuar de pé diante de Faraó mais algum tempo, enquanto dura a discussão dos temas sugeridos pelos meus sonhos. Também eles vieram de baixo, mas foram motivados por preocupações com o que está no alto; contudo, parece-me que o mancebo conta com as bênçãos das potências ínferas e também com as das supernas. Com que és de opinião, Osarsif — perguntou —, que devemos economizar o mais possível na época da fartura, prevenindo-nos contra a escassez que se seguirá e abarrotar as tulhas para termos de que distribuir nos anos da penúria, de modo que o que está por cima não venha a sofrer com o que está por baixo?
— Exatamente isto, querido amo — tornou José. O termo era inteiramente estranho à etiqueta e logo provocou lágrimas em Faraó.
— É essa a mensagem muda dos sonhos. Não há celeiros e graneis que bastem; existem muitos já pelo país, mas ainda são poucos. Devem-se construir novos em toda parte, de modo que o seu número iguale o das estrelas do firmamento. E em toda parte deverão ser designados funcionários que se ocupem com a colheita e cobrem os impostos. (Nada de cálculos arbitrários que é sempre possível frustrar com peitas. Haja um padrão único e fixo.) E amontoem trigo nas tulhas de Faraó em tal quantidade que lembre as areias da praia, e abasteçam as cidades por tal forma que se armazene o alimento para repartição nos anos ruins e o país não perca à míngua, só lucrando com isso Amun, que desmoralizaria Faraó perante o povo, dizendo: “O culpado é o rei e é este o castigo devido à nova doutrina e ao novo culto.” Falei em repartição, mas com isso não quero dizer que o trigo deva ser distribuído uma vez por todas, senão que havemos de reparti-lo com os pobre e humildes e vendê-lo aos grandes e ricos. Safras escassas equivalem a tempos difíceis, e, quando o Nilo está baixo, os preços sobem; os ricos terão de comprar caro e deverão abaixar-se todos quantos ainda se julgam grandes como Faraó no país, pois só Faraó será rico na terra do Egito e será de prata e de ouro.
— Quem irá vender? — bradou Amenhotep, alarmado. — O rei, o filho de Deus?
— Deus nos guarde disto! — acudiu José. — Refiro-me ao homem sábio e prudente que Faraó escolherá entre os seus servos, o varão cheio de espírito de previsão e de perspicácia que tudo enxerga até os confins da região e ainda além, porque os confins dela não são os dele. A este nomeará Faraó e o porá à testa de todo o Egito com as palavras: “Sê como eu”, para que ele administre a abundância enquanto ela aí está e resista à falta quando ela vier. Que ele seja como a Lua entre Faraó, nosso formoso Sol, e a Terra cá embaixo. A ele competirá construir os celeiros, dirigir o exército dos funcionários, estabelecer o padrão que regule a cobrança dos impostos. Ele deverá investigar e ver em que casos se fará distribuição gratuita e em que casos se venderá; providenciará para que os humildes tenham que comer e possam ouvir os ensinamentos de Faraó e apertará os grandes em benefício da coroa, para que Faraó se tome cada vez mais de ouro e de prata.
A mãe-deusa, lá da sua cadeira, deu uma risota.
— Tu achas graça, mamãe — disse Amenhotep —, mas Minha Majestade acha realmente interessante o que aqui o nosso adivinho prevê. Faraó olha sobranceiro lá da sua altura para essas coisas cá de baixo, porém interessa-lhe vivamente ver o que na Terra produza Lua a seu modo galhofeiro e espectral. Profeta, uma vez que estamos em conselho, fala-me mais desse medianeiro, desse mancebo arguto e brilhante, e de como porá mãos à obra assim que eu o nomear.
— Não sou filho de Keme nem do Jeor — respondeu José. — Eu vim de muito longe. Mas a veste que me cobre o corpo há muito tem sido feita de pano egípcio, pois aos dezessete anos vim para cá, trazido pelos guias que Deus designou para mim, os madianitas, tendo chegado a No-Amun, tua cidade. Apesar de não ser do país, conheço alguma coisa da sua situação e da sua história: sei como tudo se passou, como o reino proveio dos nomos e do velho o novo e como restos do velho ainda persistem desafiadoramente, em discordância com os tempos. Os antepassados de Faraó, príncipes de Vese, que esmagaram os soberanos estrangeiros e os expulsaram, tornando a terra negra uma possessão régia, tiveram de recompensar os príncipes dos nomos e os reizetes que os ajudaram nas suas campanhas dando-lhes terras e conferindo-lhes títulos honoríficos, de maneira que alguns deles ainda se intitulam reis logo abaixo de Faraó, vivem com estadão nos seus latifúndios, que não pertencem a Faraó, e resistem à passagem do tempo. Sendo tudo isto do meu conhecimento, não acho dificuldade em mostrar como o intermediário de Faraó, árbitro dos preços e administrador supremo do país, deveria agir e aproveitar a oportunidade. Fixará os preços que deverão vigorar nos sete anos de penúria para os soberbos príncipes distritais e para os reis de província que ainda se mantêm, isto quando já não tiverem nem pão nem grão, enquanto o tal superintendente os tem em abundância. Os preços serão tais que lhes levarão couro e cabelo, arrancando-lhes lágrimas de desespero e suas terras acabarão passando para a coroa, como deve ser, ficando esses principelhos rebeldes reduzidos a meros rendeiros.
— Bom! — disse a rainha mãe energicamente com a sua voz grave.
Faraó estava encantado.
— Que maroto me está saindo esse teu intermediário e mágico da Lua! — disse ele, galhofando. — A Minha Majestade jamais ocorreria uma ideia destas, mas acho-a genial. E a respeito dos templos, opulentos como são e tão gravosos ao país, que fará esse homem, meu vice-rei? Também com eles apertará e os tosquiará direito como só um velhaco sabe fazer? Eu desejaria sobretudo que Amun fosse depenado e que o meu preposto começasse logo por lançar sobre ele, que nunca os pagou, tributos em conformidade com o padrão comum.
— Se o homem for tão sensato como espero que seja — retrucou José —, poupará os templos e não incomodará os deuses do Egito durante os anos de fartura, uma vez que tem sido inviolável costume isentar de impostos sua propriedade. Acima de tudo não se há de exasperar Amun contra a tarefa da previdência nem causar agitação entre o povo prejudicando o armazenamento dos gêneros pela afirmação de que essas providências são dirigidas contra os deuses. Quando chegar a época da carestia, o templo há de pagar os preços fixados por quem tiver autoridade para fixá-los; é quanto basta. Nada lucrará o templo com o feliz resultado da empresa da coroa. Faraó ficará mais pesado e mais cheio de ouro do que todos eles se o intermediário souber levar água ao seu moinho.
— Muito sensato — aprovou com um gesto de cabeça a deusa-mãe.
— Se, porém, não me engano muito em relação ao homem — continuou José — (e como haveria de enganar-me se vai ser escolhido por Faraó?), então ele lançará os olhos ainda para lá das fronteiras do país e tratará de pôr um termo à deslealdade e de jungir os vacilantes firmemente ao trono de Faraó. Quando meu antepassado Abraão desceu ao Egito com sua mulher Sara (que quer dizer rainha e heroína), quando, pois, desceram até cá, havia fome na terra deles e preços elevados nos países do Retenu, Amor e Zahi. Mas no Egito havia fartura. Será diferente agora? Quando chegar para nós aqui o tempo das vacas magras, quem nos diz que também lá não haverá penúria? Os sonhos de Faraó foram tão prenhes de sentido e de advertência que bem podem referir-se ao mundo inteiro, sendo mais ou menos uma coisa assim como o dilúvio. Nesse caso os povos terão de vir como em romaria ao Egito a fim de comprar pão e trigo, pois quem os terá empilhados em abundância será Faraó. Virá ter aqui gente de toda parte, sabe-se lá de onde, gente que nunca ninguém pensaria vir cá. Virão impelidos pela necessidade e se apresentarão diante do teu provedor-mor e lhe dirão: “Vende para nós, do contrário estamos perdidos, pois nós e nossos filhos estamos morrendo de fome e não sabemos como viver a não ser que repartas conosco das tuas tulhas.” E o vendedor lhes dará a resposta conveniente, tratando-os como quem são. Mas como saberá lidar com tal e tal regulo local da Síria ou da Fenícia, sobre isso tenho quase plena certeza de poder profetizar. Pois sei que um ou outro deles não ama como devia seu senhor Faraó e é instável na sua lealdade, acendendo uma vela a Deus, outra ao diabo, e simulando submissão a Faraó enquanto faz olhos de carneiro morto aos hititas e negocia com vantagem própria. A gente como essa o provedor saberá a seu tempo abaixar o facho, se tudo se realizar como o prevejo. Porque não terão de pagar somente prata e madeira pelo pão e trigo que levarem; terão de entregar seus filhos e filhas como pagamento ou como garantia ao Egito, se quiserem viver. E assim ficarão atrelados ao sólio de Faraó, podendo este contar com sua absoluta lealdade e rendimento.
Amenhotep pulou de alegria na sua cadeira, como uma criança.
— Mamãezinha — gritou ele —, imagina Milkili, rei de Achdod, que é mais que instável e tão mal-intencionado que não ama Faraó de todo o coração, mas antes planeja traí-lo e abandoná-lo, segundo me escreveram. Ocupo-me com ele sem cessar. Há quem insista urgentemente comigo para que mande tropas contra ele e tinja de sangue minha espada. Floremheb, meu oficial de mais alta patente, pede isso duas vezes cada dia. Mas eu não o farei porque o Senhor do Aton não quer saber de efusão de sangue. Agora, porém, ouves o meu amigo aqui, o filho do matreiro, sugerir como podemos forçar a lealdade de príncipes tão maus e atá-los com firmeza ao trono de Faraó sem derramar sangue e apenas com uma transação comercial. Esplêndido, magnífico! — exclamou, batendo a mão repetidas vezes no braço da cadeira. De repente fez-se sério e ergueu-se solenemente do seu assento; mas logo, como se houvesse pensado melhor, sentou-se de novo.
— Há uma dificuldade — disse mal-humorado. — Mamãe, não sei como fazer em relação ao cargo e posto que devo conferir ao meu amigo e intermediário, a pessoa que ficará encarregada de ajuntar e distribuir os abastecimentos. Infelizmente não há vaga nos altos postos do governo, está tudo preenchido. Temos os dois vizires, os superintendentes dos celeiros e do gado del-rei, o escrivão-mor do tesouro etc. Onde arranjar o cargo para o meu amigo, a função para a qual o deverei nomear com um título conveniente?
— É esta a menor das tuas dificuldades — volveu sua mãe calmamente, virando a cabeça displicentemente para um lado. —Já aconteceu outras vezes e frequentemente, assim em épocas remotas como em tempos mais recentes; existe uma tradição assente que pode ser retomada a qualquer momento, dependendo apenas do arbítrio de Tua Majestade, qual a de pôr entre Faraó e os altos funcionários da sua corte um intermediário e porta-voz, chefe dos chefes e superintendente dos superintendentes, através do qual seja ouvida a palavra do monarca, na sua qualidade de representante do deus. Esse porta-voz supremo não é coisa que saia dos hábitos. Não devemos ver dificuldades onde não existem — disse ela, e virou ainda mais a cabeça para outra direção.
— E verdade — disse Amenhotep. — Eu sabia, mas me havia esquecido, porque há muito tempo que o cargo do porta-voz está vago, não existindo Lua entre o céu e a Terra e sendo os vizires do Norte e do Sul os mais altamente colocados. Muito obrigado, mãezinha, agradeço-te sinceramente.
E levantou-se de novo, com porte muito grave e solene.
— Chega-te para perto do rei — disse ele —, Osarsif, mensageiro e amigo! Põe-te aqui ao meu lado e ouve o que tenho para dizer-te. O bom Faraó receia assustar-te. Rogo-te que te fortaleças para escutar as palavras do monarca. Previne-te de antemão para que, ao ouvi-las, não te abandonem as forças e tenhas a sensação de que um touro alado te carrega para as alturas. Estás preparado? Então escuta. Th és esse homem! Tu mesmo e não outro és aquele que escolhi e ergo a um posto aqui ao meu lado para ser o provedor-mor do reino, em cujas mãos estará todo o poder, a fim de que poupes na abundância e alimentes os países nos anos da fome. Admiras-te disto? Esta minha decisão te pega completamente de surpresa? Tu me interpretaste os meus sonhos vindos de baixo, sem caldeirão nem livro, tal como eu achava que deviam ser interpretados, e não caíste morto em seguida, como soem fazer os cordeiros inspirados. Para mim isto foi um sinal de que foste reservado para tomar todas as providências que, como claramente reconheces, se seguem da interpretação. Tu me interpretaste os meus sonhos vindos do alto, justamente de acordo com a verdade latente no meu coração, e me explicaste por que meu Pai disse que não queria ser chamado Aton, mas o Senhor do Aton, e esclareceste minha alma quanto à diferença doutrinária entre “meu Pai do alto” e “meu Pai que está no céu”. Tu és não somente um profeta senão também um espertalhão; mostraste-me como, valendo-nos dos anos escassos, podemos tosquiar os príncipes distritais que já destoam da época atual, e como jungir ao trono de Faraó os titubeantes régulos da Síria. Foi Deus quem te revelou tudo isto e, assim sendo, não há ninguém mais sábio e mais prudente do que tu, de maneira que é escusado procurar em torno de mim ou a distância outro qualquer. Tu governarás a minha casa e ao mando da tua voz obedecerá todo o povo. Estás muito surpreso?
— Vivi algum tempo — tornou José — ao lado de um homem para quem a surpresa não existia, porque ele era de uma constância inabalável. Era o meu chefe na prisão. Ensinou-me que a firmeza consiste em estar preparado para tudo. Por isso não sinto excessiva surpresa. Estou nas mãos de Faraó.
— E nas tuas estarão os dois países e serás como eu perante todo o povo — disse Amenhotep, emocionado. — Em primeiro lugar toma isto — disse. E com nervoso esforço puxou do dedo um anel e colocou-o no dedo de José. Era uma lazulita oval de excepcional beleza, montada num engaste riquíssimo. Tinha um brilho celeste e gravado na pedra estava o nome Aton com o sinete real. — Será este o sinal — continuou Meni com toda a alma, tornando a empalidecer — de teus plenos poderes e de teu cargo representativo, e quem quer que o veja tremerá e há de saber que cada palavra que disseres a um de meus servos, seja ele o ínfimo de todos ou o mais graduado, será como a minha própria palavra. Quem quer que tenha de dirigir um pedido a Faraó terá de vir primeiro à tua presença. Tu serás o meu porta-voz, e tua palavra será observada e obedecida porque a sabedoria e a razão estão ao teu lado. Eu sou Faraó! Eu te coloco sobre toda a terra do Egito e sem a tua autorização não se moverá mão nem pé nos dois países. Somente pela altura do trono real estarei eu acima de ti, dispensando-te a sublimidade e o esplendor do meu sólio. Ocuparás o meu segundo coche, logo depois do meu, e pregoeiros irão ao teu lado e bradarão: “Tomai tento, tende a mão no vosso peito, que está aqui o Pai dos Países!” Ficarás de pé diante do meu trono e terás o poder ilimitado das chaves... Vejo como balanças a cabeça, mãezinha, como a viras para o lado. Ouço-te murmurar qualquer coisa parecida com “exagero”. Mas existe um encanto especial no exagero e neste momento apraz a Faraó ser extravagante. Será conferido a ti um título especial, cordeiro de Deus, tal que nunca antes se teve notícia de outro igual no Egito, ficando nele submergido o teu nome de morte. Temos já os dois vizires, mas eu criarei para ti o título de grão-vizir, até hoje desconhecido. Mas ainda não é tudo, porque serás chamado ainda “Amigo da Colheita de Deus” e “Sustento do Egito” e “Dispensador de Sombra para o Rei”, “Pai de Faraó”, e o que mais me ocorrer depois, porque no momento me sinto tão feliz e entusiasmado que de nada mais me lembro. Não balances a cabeça, mamãe, permite que desta vez eu me divirta a meu modo, pois que estou sendo extravagante de propósito e conscientemente. Grandioso é que esteja acontecendo aqui o que lá diz o cântico estrangeiro: “O Pai Julil chamou-lhe ‘Senhor dos Países’. Ele administrará todos os domínios sobre os quais meneio meu cetro: Todas as minhas obrigações tomará ele a seu cargo. Sua terra há de florir e ele gozará saúde. Sua palavra terá força, o que ele ordenar não sofrerá alteração, nenhum deus trocará a palavra da sua boca.” Tal como reza o cântico e como diz o hino estrangeiro, assim será, e isso me dá infinito prazer. “Príncipe do Interior” e “Vice-Deus” serão teus títulos na tua investidura. Não é possível procedermos ao teu douramento aqui, porque cá não temos uma câmara do tesouro adequada, de que eu possa tirar ouro, cabeções e correntes com que te recompense. Voltamos imediatamente para Vese, só pode ser lá no palácio Merimat, no imenso pátio que se estende sob o balcão. E há de se encontrar para ti uma esposa saída da melhor família, quer dizer, uma grande porção de esposas, mas à frente de todas uma que seja a primeira e a verdadeira. Estou decidido a casar-te. Verás que prazer vai nisto!
Aqui Amenhotep bateu as mãos com a irrequietude indômita de uma criança.
— Eje! — gritou exausto para o camareiro que, todo encolhido, veio avançando. — Estamos de partida. Faraó e toda a corte regressam hoje a Novet-Amun. Avia-te, que se trata de uma formosa ordem. Mantém equipada minha barca “Estrela dos Dois Países”. Nela viajarei com a mãe eterna, a doce consorte e este eleito, o Adon da minha casa, que de agora em diante será como eu mesmo no Egito. Dize isto aos outros. Vai haver uma formidável douradura!
O cortesão com certeza tinha-se conservado bem junto ao reposteiro durante toda a conferência, não perdendo sequer uma palavra, e sem, contudo, acreditar no que ouvia. Agora era obrigado a crer e bem se pode imaginar como ele se arrastou por ali, todo dengoso e servil como um bichano, beijando as pontas dos dedos.
4
O TEMPO DOS PRIVILÉGIOS
SETE OU CINCO
Ainda bem que a conversa de Faraó com José — que teve como resultado a exaltação do morto, tornando-o grande no Ocidente —, essa conversa famosa e, apesar disso, quase desconhecida a que a mãe excelsa de Amenhotep não sem fundamento deu o nome de prática sobre Deus e sobre deuses, acha-se daqui em diante restaurada do princípio ao fim, em todos os seus aspectos, pormenores e episódios. Ainda bem, repetimos, que ela está assim reconstituída uma vez por todas e com a conveniente exatidão, de modo que seja possível seguir-lhe o rumo que na realidade tomou. Com isso, caso nos caia da memória um ou outro ponto dela, é só folhear umas páginas atrás e reler. O caráter lacônico da tradição vigorante até hoje toma-a, apesar de venerável, pouco convincente. Quando, por exemplo, José acaba de interpretar os sonhos e aconselha o rei a que procure um varão sábio e prudente, Faraó responde no mesmo momento: “Ninguém tão prudente e sábio como tu. Quero colocar-te à testa de todo o Egito.” E instantaneamente, de um modo entusiástico, quase desenfreado, cumula-o das maiores honrarias e dignidades. Há aí uma concisão, um laconismo excessivo, demasiado seco; não se veem aí os traços vivos da verdade, mas apenas um resquício dela, espremido, salgado, enfaixado. Ao entusiasmo e à esplêndida munificência de Faraó parece que falta fundamento e motivo sério. Há muito tempo atrás, quando, vencido o natural arrepio da nossa pele, nos determinamos animosamente a empreender a viagem dos ínferos, através de abismos de milênios, até as regiões mais profundas, até o campo e a fonte onde José se achava, já naquela ocasião o que nos estava acenando de longe como uma promessa era o suspirado momento desse memorável colóquio, do qual havíamos de trazer conosco todos os pormenores, tal como na realidade se passou em On no Baixo Egito.
E claro que nada há que dizer contra a condensação em si. Ela é útil e até necessária. Bem lançadas as contas, é quase impossível acompanhar a vida em todas as suas peripécias, em todo o seu curso. Uma tal pretensão nos levaria ao infinito. Seria coisa fora do alcance das forças humanas. Quem quer que se deixasse conduzir por uma ideia fixa dessa natureza não só jamais chegaria a qualquer termo, senão que se sentiria asfixiar logo no começo, emaranhado na teia de uma exatidão ilusória, a mania do pormenor. Não, a supressão, o corte tem sua razão de ser no lindo festim de uma movimentada narrativa; desempenha um papel importante e indispensável. Aqui, pois, deve intervir a arte com o seu equilíbrio, visando a terminar afinal uma obra que, apesar de ter uma remota semelhança com a vã tentativa de esgotar a largos sorvos a água do oceano, não deve deixar-se arrastar à rematada loucura de querer esvaziar o mar da exatidão.
Que sena de nós se fôssemos narrar pormenorizadamente tudo que se passou, por exemplo, quando Jacó esteve servindo aquele demônio Labão sete mais treze mais cinco anos, vinte e cinco ao todo, dos quais cada mínima parcela de tempo estava cheia de vida intensa, merecedora de sua história à parte? E que seria de nós agora se não fosse aquele princípio sensato, quando a nossa barquinha, impelida pela moderada correnteza da narração, estremece de novo à beira de uma catarata do tempo formada de sete e mais sete anos profetizados? A propósito, vamos dizendo logo aqui entre nós: quanto ao número desses anos as coisas não correram nem tão bem nem tão mal, como o quisera a profecia. Não há dúvida nenhuma de que esta se cumpriu. Mas cumpriu-se como a própria vida se cumpre, não com todo o rigor de precisão. É que vida e realidade sempre reivindicam para si uma certa independência, às vezes em tal grau que torna a profecia inteiramente ou quase irreconhecível. Naturalmente a vida está atada à profecia, mas dentro desses limites move-se com tal Liberdade de movimentos que quase sempre depende da boa vontade do observador se ele quer ou não admitir que a profecia se tenha realizado ou não. No nosso caso presente tratamos com uma época e com um povo animado da melhor vontade do mundo de crer na realização, ainda que inexata. Em atenção à profecia dão de barato que dois e dois são cinco — se é que é lícito dizer-se assim num contexto em que é objeto de apreciação um número também ímpar mas superior, isto é, sete. Isto de resto não há de oferecer grande dificuldade, uma vez que cinco é um número tão respeitado como sete, e certamente nenhuma pessoa razoável insistirá em ver uma inexatidão na substituição de sete por cinco.
A verdade é que o profetizado sete mais parece cinco. A vida, pela sua própria condição de vida, não fez absoluta questão de nenhum dos dois números. Os anos gordos e os magros não saíram das entranhas do tempo com uma precisão tão perfeita, tão inequívoca como no sonho. Os anos gordos e os magros que vieram tiveram de comum com a vida o não serem igualmente gordos ou magros. Entre os gordos um ou dois houve que não se podem propriamente qualificar de magros, mas que a um olho crítico se afiguram apenas como moderadamente gordos. Os magros foram todos tais, pelo menos cinco deles, se não sete; porém entre eles pode ter havido um ou dois que não chegaram ao extremo da penúria e até se aproximaram bem da mediania. Antes, a não existir a profecia, nem seriam reconhecidos como anos de fome. Mas, com ela, foram de boa mente incluídos entre os outros.
Tudo isto tirará força à profecia? Certamente que não. Seu cumprimento é incontestável porque temos o fato — os fatos da nossa narrativa, de que consta a nossa narrativa, sem os quais ela não andaria pelo mundo e sem os quais, depois do rapto e da exaltação, a reunião no Egito não se teria realizado. É certo que houve tempos de fartura como os houve de carestia tanto no Egito como nas regiões adjacentes, anos gordos e anos mais ou menos magros, tendo tido José ensejo bastante para exercer a poupança naqueles e a repartição nestes, e, como Utnapichtim-Atracasis, como Noé, o sapientíssimo, mostrar-se o varão discreto e previdente cuja arca balouça segura sobre o dilúvio. Em leal serviço ao Altíssimo ele o fez como seu ministro e com a sua atuação contribuiu cada vez mais para a douradura de Faraó.
A DOURADURA
Mas a quem douraram em primeiro lugar foi ele mesmo; a expressão usada pelos filhos do Egito — “ficar um homem de ouro” — significava exatamente o que lhe aconteceu quando, por graciosa ordem de Faraó e em companhia desse deus, da rainha-mãe, da doce consorte e das princesas Nezemmut e Baketaton, viajou rio acima na barca real “Estrela dos Dois Países”, de regresso a Vese, a capital, no meio dos aplausos das multidões apinhadas nas margens. Com a família do Sol ele fez sua entrada no palácio ocidental de Merimat, rodeado de jardins e com o seu lindo lago, bem ao sopé dos morros multicores do deserto. Lá foram-lhe reservados espaçosos aposentos, criados, ricas vestes e tudo que dizia respeito a comodidade e prazer, e já no segundo dia da sua estada realizou-se a bela função oficial da investidura e douramento, começando pelo cortejo solene, formado pela corte, em que o escravo comprado ocupou realmente o segundo coche logo atrás do do monarca. Como este, José ia cercado da sua guarda pessoal de sírios e núbios e de flabelíferos, separado do coche do deus apenas por uma manga de arautos que gritavam; “Abrekh!” “Cuidado!” “grão-vizir!” e “Vem aí o pai do país!” Por esse meio dava-se a saber ao povo o que se passava e quem vinha no segundo carro. Pelo menos viam e entendiam que Faraó magnificara muito alguém, para o que teria lá suas razões, ainda que mais não fosse do que sua graciosa vontade e capricho, que já era uma razão suficiente. Além disso, como a ideia da alvorada de uma nova era e de grande melhoramento em tudo estava de certo modo associada a uma tal investidura e exaltação, a população de Vese se regozijava imensamente no alto das casas e saltava sobre uma pema só ao longo das avenidas. Bradavam: “Faraó! Faraó!” e “Neb-nef-nezem!” e “Grande é Aton!” Podiam-se mesmo distinguir muitas vozes que pronunciavam esse nome ligeiramente modificado para “Adon! Adon!”, dirigido sem dúvida nenhuma a José. É que provavelmente já transpirara cá fora que ele era asiático, parecendo próprio — máxime às mulheres — saudá-lo com o nome do noivo e “Senhor” da Síria, principalmente porque aquele a quem assim distinguiam era tão jovem e formoso. E aqui o lugar de acrescentar que entre todos os seus títulos foi esse o nome que pegou. E no Egito inteiro ele foi chamado Adon durante toda a sua vida, tanto quando se falava com ele como a respeito dele.
Depois desse belo cortejo foram todos transportados para o outro lado do rio, para a margem ocidental e de volta ao palácio, onde ia agora realizar-se a cerimônia da douradura, sempre maravilhosa e esta vez simplesmente irresistível para a vista e para o coração. Observava ela o curso seguinte: Faraó e Nefernefruaton, a rainha, aquela que enchia de amor o palácio, assomavam à chamada janela da audiência, que não era propriamente uma janela mas uma espécie de balcão que dava para um pátio interno do paço, um terraço hipostilo defronte da grande sala de recepção. Era grandiosamente construído de malaquite e azurite e adornado de uraeus de bronze. Em frente dele havia ainda uma outra construçãozinha sustentada por colunas onde se entrelaçavam lotos com arte encantadora. Cobriam-lhe a larga balaustrada vistosas almofadas sobre as quais se apoiavam Suas Majestades para atirar embaixo presentes de ouro da mais variada forma e espécie, que lhes eram entregues por funcionários da casa do tesouro e que das mãos reais passavam às do venturoso, que de pé cá embaixo no terraço os recebia. O agraciado nessa ocasião não era outro, é claro, senão o filho de Jacó. O espetáculo e tudo mais que o acompanhava jamais caía da lembrança de quem o via uma vez. Tudo nadava num oceano de pompa e colorido, numa orgia de munificências e de férvidos arroubos. Os estupendos arrendados arquitetônicos, as bandeiras estalando com a brisa, sob um céu de sol ardente, hasteadas nas alegres colunas de madeira pintadas e douradas; os flabelos azuis e vermelhos dos graduados do séquito que coalhavam o pátio, vestidos de gala, curvando-se, serviçais e mesureiros, rejubilando e rendendo homenagens; mulheres tocando pandeiros; meninos com os anéis dos cabelos arrumados adrede para balançar incessantemente; magotes de escrivães na sua costumeira postura obsequiosa, assentando com suas canas tudo que se passava; a vista do pátio externo que por três portões escancarados se descortinava, cheio de veículos cujos briosos cavalos traziam elevados penachos multicores sobre a cabeça e, por trás deles, os cocheiros que, como seus animais, estavam de frente para a cena principal e se inclinavam profundamente e erguiam os braços; contemplando tudo isto do lado de fora, ao longe, as montanhas vermelhas e amarelas de Tebas com a sombra azul escura e violácea dos seus rochedos; no esplêndido palanque oficial o casal divino, frágil e sorridente na sua lânguida elegância, coroado das altas barretinas, com um pano apropriado protegendo-lhe a nuca, arrojando com visível prazer e ininterruptamente para o agraciado que se achava em plano inferior mil e um objetos valiosíssimos que lhes vinham de um depósito inesgotável, colares de contas de ouro, figurinhas de leões, pulseiras, adagas, diademas, cabeções, cetros, vasos, machadinhas, tudo, tudo de ouro maciço — coisas que evidentemente o agraciado não podia recolher todas ao mesmo tempo, tendo, pois, a ajudá-lo alguns escravos que iam empilhando no chão diante dele uma verdadeira montanha de ouro, refulgindo ao sol por entre os gritos de admiração dos presentes — sim, aquilo constituía por i certo o espetáculo mais soberbo que imaginar-se possa, e, não fora a inexorável lei da supressão, tudo seria descrito aqui com muito mais minudência.
No seu tempo Jacó acumulara tesouros durante sua vida com o demônio Labão na terra de onde não há retorno. Neste dia seu predileto também fez o mesmo, na alegre terra dos mortos onde morrera e fora vendido. Pois certamente todo esse ouro só existe no mundo dos ínferos. Aqui, neste lugar e neste espaço de tempo, ele se tornou um homem opulento simplesmente por obra do ouro da munificência régia. E sabido que reis estrangeiros, comerciando com Faraó para obter ouro, costumavam dizer que no Egito esse metal não era mais precioso do que o pó dos caminhos. Mas é um erro econômico pensar que o ouro diminui de valor por existir em abundância.
Sim, aquele foi um dia memorável para o raptado, afastado dos seus, um dia cheio de bênçãos mundanais. Era de desejar que Jacó estivesse ali para assistir ao triunfo do filho, sentindo, ao contemplá-lo, um misto de orgulho e desalento, no qual aquele sobrepujaria este. Foi esse o desejo de José, que mais tarde disse: “Falem a meu pai da minha glória aqui no Egito!” Nesse dia recebeu uma missiva de Faraó, não, está visto, escrita de próprio punho, mas pelo “verdadeiro escrivão”, seu secretário, por ordem do soberano. Era um tanto cerimoniosa, porém admirável como obra caligráfica e de conteúdo assaz gracioso. Ei-la:
“Ordem do Rei a Osarsif, inspetor de tudo quanto o céu dá, a terra produz e o Nilo fertiliza, superintendente de todas as coisas no país inteiro e verdadeiro administrador das obras. Minha Majestade ouviu com deleite as palavras que alguns dias antes do atual, na conversa que o Rei houve por bem manter contigo em On no Baixo Egito, falaste a respeito de coisas do céu e da Terra. Naquele ditoso dia alegraste imensamente o coração de Nefer-cheperu-Rá com aquilo que ele realmente ama. Minha Majestade ouviu de ti aquelas palavras com extraordinário enlevo porque nelas se juntou o celeste com o terrestre e através da tua preocupação por este avultou ao mesmo tempo a tua grande preocupação por aquele, contribuindo outrossim para o aperfeiçoamento da doutrina de meu Pai, que está no céu.Verdadeiramente sabes dizer coisas que encantam sobremaneira Minha Majestade e as tuas palavras conhecem o caminho do meu coração. Sabe também Minha Majestade que te comprazes em dizer o que Minha Majestade gosta de ouvir. O, Osarsif, a ti o digo vezes sem conta: Amado do seu senhor! Galardoado do seu senhor! Favorito e iniciado do seu senhor! Verdadeiramente o Senhor de Aton me ama, já que te deu a num! Tão verdadeiro como viver Nefer-cheperu-Rá eternamente, sempre que manifestares um desejo, seja oralmente, seja por escrito a Minha Majestade,Minha Majestade imediatamente tratará de que seja satisfeito.”
E antecipando-se a um tal desejo, que segundo o modo de pensar egípcio devia ser o mais ardente de todos, o escrito terminava dizendo que Faraó dera ordens para a imediata escavação, construção e decoração de uma morada eterna, convém saber, um túmulo para José nas montanhas do Oeste.
Depois que o exalçado acabara de ler esse papel, verificou-se, perante toda a corte reunida no grande salão hipostilo por trás do balcão da audiência, a grandiosa cerimônia da investidura, durante a qual Faraó, além do anel com o real sinete e todo o ouro de que o havia cumulado, colocou um riquíssimo colar de ouro em volta do pescoço de José sobre a sua imaculada túnica da corte, feita não de seda, como alguns afirmam por ignorância, mas do mais fino linho régio. O vizir do Sul leu as cartas autênticas nas quais Faraó conferia os títulos imponentes que dali por diante ocultariam o nome de morte de José. Já conhecemos muitos deles, tendo-os ouvido dos próprios lábios de Faraó ou por fazerem parte da abertura oficial da cerimoniosa carta que lhe escrevera. “Administrador do que o céu dá” etc. Provavelmente os mais impressionantes eram “Aquele que dispensa sombra a El-Rei”, “Amigo da colheita de Deus”, “Nutridor do Egito”("Ka-ne-Keme” na língua do país). “Grão-vizír”, embora fosse um título que nunca existira, e “amigo exclusivo do rei” — para estabelecer uma diferença em relação aos “amigos únicos” — empalideciam diante daqueles. Mas ainda não parava aqui porque Faraó queria mostrar-se excessivo em tudo. José foi chamado “Adon da casa real” e “Adon sobre todo o Egito”. Foi chamado “Principal porta-voz”, “Príncipe da mediação”, “Fomentador da doutrina”, “Bom pastor do povo”, “Alter ego do rei”, “Vice-Horus”. Nunca tinha havido coisa igual antes, o futuro jamais a repetiu e provavelmente só pôde acontecer sob o domínio de um rei jovem, sujeito a crises de extravagância e dado a decisões repentinas. Houve ainda um outro título, mas esse era mais um nome pessoal, destinado não tanto a encobrir como a substituir o nome de morte de José. A posteridade especulou muito sobre o assunto e ainda a tradição mais respeitável dá uma interpretação inadequada ou desorientadora. Foi dito que Faraó chamou a José seu “Conselheiro Privado”. Trata-se de uma versão errônea. Na nossa escrita o nome apareceria debaixo desta forma: Dje-p-nute-ef-onch, que nos lábios expeditos dos filhos do Egito era pronunciado “Djepnuteefonech”, com o grupo palatal ch no fim. A parte principal da combinação é onch ou onech, cujo sinal hieroglífico é a cruz ansada,
que significa vida e que os deuses põem debaixo do nariz dos homens, especialmente de seus filhos, os reis, para que possam respirar. O nome, pois, acrescentado a tantos outros títulos de José foi um nome de vida. Significava: “O deus” (Aton, nem é preciso especificar) “diz: A vida seja contigo!” Mas mesmo isso não era ainda seu significado integral. Significava, para quem quer que o ouvisse, não só “Vive tu mesmo”, mas também “Sê um vivificador, espalha a vida, dá alimento vital a muitos!” Numa palavra, era um nome que equivalia a abundância, saciedade, pois era a isso que a exaltação de José visava especialmente.Todos os seus nomes e títulos, quando não se referiam às suas relações pessoais com Faraó, encerravam de uma forma ou de outra essa ideia de conservação da vida, de nutrimento dos países; e todos eles, inclusive este, egrégio e muito disputado, podiam ser compreendidos num único epíteto: o Provedor.
O TESOURO SUBMERSO
Quando o filho de Jacó viu em volta do seu pescoço aquele lindo colar de títulos, recebeu um número incalculável de felicitações. Fica à imaginação do leitor o cuidado de pensar nas homenagens melífluas, na adulação infinita que se seguiu por parte dos cortesãos. E muito dos mortais aceitar com deleite e entusiasmo o capricho arbitrário, a escolha incompreensível, o tremendo “Eu favoreço quem quero favorecer”, que não precisa prestar contas a ninguém, chegando a desarmar a própria inveja e a conferir uma tal ou qual sinceridade ainda às palavras dos mais sórdidos bajuladores. Ninguém podia na realidade atinar com o motivo pelo qual Faraó elevava assim um estrangeiro ainda moço, mas todos de bom grado renunciaram a fazê-lo. Verdade é que a arte de predizer, de adivinhar, era tida em alta conta; e parte das distinções conferidas a José explicava-se pelo fato de ele ter brilhado nessa esfera, suplantando todos quantos no país gozavam da reputação de profetas. Além disso, era bem conhecido o fraco de Faraó por aqueles que “ouviam suas palavras”, isto é, aqueles que comungavam nas suas ideias teológicas, e ninguém ignorava que o interesse, real ou fingido, demonstrado por elas era recompensado pela mais tema gratidão. Também aqui esse sujeito extraordinário parecia bafejado da sorte, tendo aparentemente um talento inato ou um preparo especial para a coisa que mais tocava o coração do monarca. Fosse como fosse, o certo é que, tratando com o soberano, soubera fazê-lo com arguta diplomacia e o resultado ali estava — a sua vertiginosa ascensão, que o colocava acima de todos em dignidade e mando. Só lhes restava — e foi o que fizeram — zumbrir-se ante sua imensa habilidade não menos que ante o próprio arbítrio do rei. E era coisa muito de ver-se aquele porfiado curvar de espinhas, o alvoroçado beija-mão, os rapapés e salamaleques sem fim. Um homem dentre os amigos únicos do rei, que tinha fumaças de poeta, chegara a compor um panegírico em honra de José e cantou-o acompanhado pelo doce som de uma harpa. Dizia assim:
“Tu vives, tu estás são e escorreito.
Tu não és pobre nem mísero.
Tu permaneces como as horas.
Teus planos ficam, tua vida é longa.
Tua fala é deliciosa.
Teus olhos veem o que é bom.
Tu ouves o que é agradável.
Tu és elogiado entre os conselheiros.
Tu permaneces de pé, teus inimigos perecem.
Quem fala contra ti já não existe.”
Como obra de arte é medíocre. Mas, tendo sido escrito por um deles, a corte achou-o excelente.
José acolheu tudo isto como quem não se surpreende com nenhuma exaltação, com gravidade e delicadeza; às vezes, porém, deixando-se levar muito longe dali pelos seus pensamentos, chegava a sentir uma certa melancolia. Seu espírito não estava no salão de Faraó. Vagueava por uma casinha de pelo que ficava sobre um morro distante ou no bosquezinho do Senhor sito nas proximidades, andando por ali com seu irmãozinho, filho como ele da esposa verdadeira de Jacó. A esse rapazinho de cabelo em forma de capacete estava contando seus sonhos. Ou via-se à sombra de uma tenda no campo da safira com alguns companheiros aos quais igualmente relatava suas visões; ou no vale de Dotan junto a um certo poço para onde o haviam conduzido de modo não muito gentil. E, assim embebido em tais pensamentos, quase ia deixando de corresponder à saudação de um certo áulico que lhe piscava um olho e para quem seria bem penosa a desconsideração.
E que entre a turbamulta dos que lhe foram levar seus cumprimentos achava-se o Senhor da Videira, Nefer-em-Vese, que já uma vez tivera um nome oposto a este. Imagine-se o embaraço e a perplexidade daquele homem gordo vendo as partidas que a vida faz, quando aguardava a sua vez de felicitar, em circunstâncias tão inauditas, tão incrivelmente mudadas, o seu jovem servo de outros tempos já passados e ominosos. Ele podia ter esperança de que o novel favorito o tratasse como amigo e não fosse “falar contra ele”, uma vez que a ele, Nefer, devia o mancebo sua chamada e sua grande oportunidade. Mas, por outro lado, vinham-lhe remorsos por nada ter feito até a véspera da explicação profética para chamar a atenção sobre José, sendo que ainda assim só o fizera por tê-lo a ocasião como que ferido nos olhos. Talvez também pensasse que a José não agradava, como a ele próprio, que lhe estivessem recordando o cárcere; e por isso socorreu-se da cautelosa familiaridade de piscar-lhe um olho, o que podia significar muita coisa, e teve a satisfação de ver que Adon lhe correspondia, fazendo outro tanto.
E aqui o momento azado para falarmos de um outro possível encontro de amigos, grávido de sentido e não desprovido de certo sabor picante, e para justificarmos um silêncio que nem sempre foi observado por aqueles que se têm ocupado da história de José. Referimo-nos a Putifar ou Putifera ou, com mais exatidão, Petepré, o grande eunuco, antigo dono, amo e juiz de José, que com tão boa vontade o lançou na prisão. Teria ele também estado presente à douradura e à recepção e terá também prestado a José homenagem na corte, assim exprimindo talvez o respeito de um homem inapto para uma certa coisa mas que sabe apreciar que outro homem apto para ela soube deixar de fazê-la? Descrever um tal encontro é sem dúvida sedutor, mas infelizmente ele não se verificou. O lindo e fascinante motivo da reunião desempenha um papel brilhante na nossa história atual; ouviremos a seu respeito muita coisa cuja realização mal podemos esperar. Mas neste lugar só há silêncio, e o silêncio da versão adotada no Ocidente quanto ao camarista do sol e sobretudo à sua esposa honorária, a patética Mut-em-enet — este silêncio não é uma simples omissão, a não ser no sentido de que se omitiu declarar expressamente que alguma coisa não se verificou, isto é, que José, depois da sua saída da casa do cortesão, nunca mais se encontrou com o antigo amo e com a antiga ama.
O povo e, para agradar ao povo, os poetas, raça assaz complacente, imaginaram muitas variantes dessa história de José e da mulher de Putifar, que não passou de um episódio, embora importante, na vida do filho de Jacó. Toda possibilidade de uma continuação fica evidentemente excluída pela catástrofe final. Mas foram escritas continuações sentimentais e que deram lugar de relevo na história de José. Nas mãos dessa gente imaginosa ela se torna um romance açucarado, naturalmente provido de um desfecho feliz. Conforme essas obras de ficção, a mulher fatal, Zuleica — até o nome é ridículo —, depois de ter lançado José no cárcere, acolheu-se ralada de remorsos a uma “cabana”, onde viveu toda entregue à expiação de seus pecados. Entretanto, com a morte de seu marido, enviuvou. Quando, porém, Jussuf, quer dizer, José estava para ser posto em liberdade, não consentiu que lhe tirassem as “cadeias” enquanto a aristocracia feminina do país não comparecesse perante o trono de Faraó e prestasse testemunho da sua inocência. De conformidade com essa exigência, todas as mulheres da fidalguia, inclusive “Zuleica”, que saíra do seu sítio de penitência, apresentaram-se ao rei e a uma proclamaram que José era o príncipe e modelo da pureza, o mais lindo florão da sua coroa. Em seguida, Zuleica tomou a palavra e fez confissão pública de que era ela a culpada e ele um anjo. Dela era o crime vergonhoso, confessou abertamente Zuleica, mas agora estava purificada e alegremente suportava o vexame. Ainda depois da exaltação de José continuou ela a penitência enquanto ia envelhecendo e criando rugas. Só no dia festivo em que o pai Jacó fez a sua pretensa entrada triunfal no Egito (e portanto quando José já era pai de dois filhos) foi que os dois de novo se encontraram. José tinha perdoado à envelhecida mulher, a quem o céu como recompensa restituíra todo o primitivo encanto. Então José desposou-a romanticamente e assim, depois de tantas tribulações, realizou-se o velho desejo dela, “juntando eles suas cabeças e seus pés”.
Tudo isso nada mais é que almíscar persa e essência de rosas. Não tem nada que ver com os fatos. Em primeiro lugar, Putifar não morreu assim tão cedo. Por que haveria de desaparecer do mundo antes do tempo um homem como ele, cuja constituição especial o poupava ao uso de suas forças e que vivia inteiramente entregue às suas satisfações íntimas e tantas vezes ia à caça de aves para espairecer? O silêncio da história sobre sua sorte depois do grande dia do julgamento doméstico certamente indica o seu desaparecimento da cena. Mas por que tirar daí a conclusão de que morreu? Convém lembrar que, enquanto José esteve na prisão, tinha havido uma mudança de governantes, e em tais ocasiões é de regra que a corte ou parte dela sofra também suas alterações. Sabemos que Petepré tinha tido seus dissabores como comandante nominal das tropas, sem nenhuma autoridade real; com o falecimento de Neb-ma-Rá, o Magnífico, ele se retirou à vida privada, com o título e a categoria de amigo único. Não foi mais à corte ou pelo menos não tinha necessidade de ir lá e no dia da douradura de José deve ter-se abstido de comparecer, movido evidentemente do seu sentimento de delicadeza que nele era tão forte. Depois nunca se encontraram, sendo a razão disso, ao menos em parte, que, como regulador supremo dos abastecimentos, José, segundo veremos, teve sua residência não em Tebas mas em Mênfis. Do resto se encarregou provavelmente o tato de Putifar. Se, no correr dos anos, se verificou algum encontro fortuito, numa ou noutra cerimônia oficia], bem podemos supor que tudo se deu sem um pestanejar sequer, com perfeita discrição e a mais deliberada ignorância do passado de ambas as partes. É justamente esta a situação que se reflete no silêncio da tradição autorizada.
O mesmo se aplica a Mut-em-enet, e com fundamentos igualmente sólidos. José não tornou a vê-la. Isto é claro, mas não menos claro é que ela não se retirou para nenhuma cabana de penitência. Tampouco se acusou publicamente de impudência, porque, se o tivesse feito, teria dito uma mentira. Essa grande dama, o instrumento da provação de José, que ele venceu, embora não tão brilhantemente, viu-se forçada, depois do malogro da sua desesperada tentativa de passar da sua existência honorária para uma existência mais humana, a tornar para sempre à forma de vida que antes da sua aflição fora a normal e familiar para ela. Ou melhor, adaptou-se a ela com mais orgulho e concentração do que nunca. Em razão da extraordinária sabedoria de que Putifar dera prova na época da catástrofe, suas relações, em vez de esfriarem, mais se estreitaram. Portara-se ele como um deus proferindo sua sentença, pairando acima das fraquezas do coração humano; ela foi-lhe grata e daquele dia em diante se tornou uma esposa devotada e modelar. Não amaldiçoou o amado pela agonia que lhe causara ou de que fora ela própria a causa. Não, as agonias do amor são uma coisa à parte; ninguém jamais se arrependeu de as ter sofrido. “Tu tornaste rica a minha vida — ela agora floresce” — dissera Eni no meio da sua aflição; é sabido que o amor tem uma qualidade de tormento toda sua, nem sempre incompatível com uma gratidão sincera. Ao menos ela vivera e amara. Um amor infeliz, é claro; mas haverá realmente uma coisa dessas? E não nos tocará antes deitar à margem, por estúpida e importuna, qualquer piedade que possamos sentir de Eni? Ela não a implorou a ninguém e era orgulhosa demais para tê-la de si própria. Sua vida teve um surto de florescimento, seguindo-se-lhe a renúncia, que foi séria e definitiva. As linhas do seu corpo, durante algum tempo iguais às de uma enfeitiçada do amor, logo voltaram ao seu estado normal. Este já não tinha a beleza de cisne que tivera na juventude; era antes uma expressão do que havia de monacal na sua natureza. Sim, de então em diante Mut-em-enet foi uma fria monja lunar, de seio casto e pequenino, irrepreensivelmente elegante e, acrescentemo-lo, extremamente devota. Todos nos lembramos de como na fase da sua penosa florescência ela queimou incenso com o seu amado diante do deus de vistas largas, do amigo mundanal, Atum-Rá de On, Senhor do Vasto Horizonte, implorando dele um sorriso para a sua paixão. Tudo isto havia acabado. Seu horizonte se fechara em volta dela, rígido, estreito e pio. Toda a sua devoção agora se concentrava no rito de bois de Epet-Esoret e no seu conservativo sentido solar; mais que nunca prestava ouvidos aos avisos espirituais do grande chefe dos crânios espelhantes, Beknechons, que odiava toda mudança e não admitia nenhuma especulação. Por isso ela cada vez se afastava mais da corte de Amenhotep IV onde começava a ter voga um culto temo, arrebatado, universal. Aos olhos de Mut-em-enet esse culto nada tinha de comum com a religião. Suas simpatias eram todas para o sagrado estático, o eterno equilíbrio da balança, o petrificado olhar dirigido ao que sempre dura; e ela celebrava tudo isso quando na sua veste muito justa de Hathor chocalhava os guizos diante de Aniun em dança compassada, arrancando do peito chato sua voz ainda admirada que vinha aumentar o volume do coro de suas nobres irmãs de culto. E, contudo, no fundo de sua alma jazia um tesouro de que ela secretamente andava mais ufana do que de todas as suas honrarias religiosas ou seculares e que, quer ela o confessasse quer não, jamais abandonaria. Apesar de enterrado muito profundamente esse tesouro sempre lançava para cima um brilho cálido que ia atingir a luz cinzenta de sua resignada condição. Como é natural, também não a abandonava nunca a gélida consciência da derrota; mas esse sentimento era fraco comparado com o calor que vinha de baixo e que conferia ao seu orgulho mundano e religioso um indispensável elemento da parte humana — o orgulho da vida. Era uma recordação — não tanto daquele que, conforme ela ouvira dizer, agora fora feito senhor de todo o Egito. Ele era um instrumento — como o tinha sido ela, Mut-em-enet. Quase independente dele era o sentimento que lhe justificava a própria existência, o secreto conhecimento de que ela já florira e ardera, já sofrera e amara.
SENHOR DO EGITO
Senhor do Egito — empregamos essa designação movidos por um espírito convencional que se compraz na mais exaltada apoteose, e no sentido daquele belo exagero que Faraó se permitia a favor do intérprete de seus sonhos. Todavia, aquele título não é aqui usado levianamente ou só por fantasia, mas sim como um preito que rendemos à verdade. Com efeito, na nossa narrativa não nos move o capricho de fazermos de um argueiro um cavaleiro, mas apenas de relatar o que sucedeu, e estas são duas coisas bem diferentes, seja qual for a que o leitor escolha. Evidentemente a exageração logra temporariamente um efeito mais luzido, mas com certeza uma história crítica e ponderada é de mais real proveito a quem a ouve.
Não há dúvida de que José se tornou um grande senhor na corte e no país, e as relações confidenciais entre ele e o monarca depois da conferência realizada no pavilhão cretense, isto é, sua posição de favorito, deixaram um tanto vagas as limitações ao seu poder. Mas ele nunca foi realmente “Senhor do Egito” nem, como por vezes se expressam a saga e o cântico, “Regente dos Países”. Sua elevação, que foi indiscutivelmente fabulosa, e o interminável rol dos seus títulos não puderam alterar o fato de que a administração do país para o qual o haviam raptado continuou nas mãos dos dignitários da coroa, alguns dos quais já tinham iguais funções quando ainda era vivo o rei Neb-ma-Rá. Seria descabido supor que, por exemplo, tivesse passado para a alçada do filho de Jacó a administração da justiça que desde tempos imemoriais estava entregue ao supremo juiz e vizir e agora aos dois vizires. O mesmo se aplica à política externa, que na verdade contaria maiores triunfos do que aqueles de que nos fala a história, se dela se tivesse encarregado José. Convém não esquecer que no fundo ele nada tinha que ver com a glória do reino, por mais que se houvesse tornado egípcio nas maneiras e nas vestes. Por maior que fosse a energia que empenhava em beneficiar aquele povo, por mais que servisse ao bem público com ardor e sabedoria, sua vista íntima não se desfitava da parte puramente espiritual, de tão transcendente alcance para ele, não se desfitava, repetimos, da incrementação de planos e desígnios que pouca relação tinham com o bem-estar ou a ruína de Mizraim. É-nos lícito supor que José estabelecera imediatamente entre os sonhos de Faraó e o que eles vaticinavam uma afinidade com os seus próprios planos e desígnios. Certamente procurou fazê-los coincidir com suas ideias relativas a expectativa e a preparo de caminho; com efeito não podemos negar na sua atitude diante do trono de Faraó uma certa ambição, quase suficiente para fazer arrefecer a simpatia que desejáramos conservar para com o filho de Raquel, se não perdêssemos de vista a circunstância de que José considerava como dever seu fomentar esses planos e prestar a Deus a maior ajuda que lhe fosse possível na execução dos mesmos.
Seja, pois, qual for a interpretação real que se queira dar à sua fieira de títulos, ele foi devidamente empossado no cargo de ministro da agricultura e dos abastecimentos, levando a cabo, nessas funções, importantes reformas, entre as quais a lei sobre a renda fundiária é mencionada pelos historiadores. Mas nunca meteu a foice em seara alheia, muito embora seja bem provável que os assuntos da tesouraria e os da administração das tulhas estivessem tão intimamente ligados com a sua gestão que sua autoridade havia de estender-se também àqueles. Apesar disso, designações como Senhor do Egito e Regente dos Países nada mais são que hipérboles ornamentais, não correspondentes à verdadeira situação. Verdade é que se deve levar em conta alguma coisa mais. Com as condições vigentes durante os primeiros e decisivos dez (ou catorze) anos de exercício do seu cargo — condições em atenção às quais e por previsão havia ele sido investido no mesmo —, a importância de suas funções subiu tão extraordinariamente a ponto de deixar as dos outros na sombra. A fome que cinco ou sete (com mais probabilidade cinco) anos depois da sua elevação feriu o Egito e as regiões limítrofes tornou com a maior facilidade o homem que a havia previsto, e soube o modo de fazer o povo arrostá-la e vencê-la, a figura central do reino, tornando igualmente suas atividades mais importantes que as de qualquer outro. Assim acontece que o nosso julgamento, se tem base suficiente, volte a ter como resultado o reconhecimento da solidez do veredicto popular; sendo este o caso, só diremos que a posição de José, no mínimo em certo período, equivaleu de fato à de um senhor da terra do Egito, sem cujo mando ninguém pôde mover mão ou pé nos dois países.
No momento imediatamente depois da sua investidura, ele empreendeu de barco ou de carro uma viagem de inspeção através do país, acompanhado de um corpo de secretários escolhido por ele mesmo e composto na sua maior parte de moços ainda não fossilizados pela rotina do cargo. Isso fez para obter informações diretas a respeito da terra negra e para, antes de tomar quaisquer medidas concretas, tornar-se de fato superintendente do Egito. As condições de propriedade eram sobremodo vagas e imprecisas. Teoricamente, o solo como tudo o mais pertencia a Faraó. Os dois países, inclusive as províncias conquistadas ou tributárias estendendo-se até o “miserável país da Núbia” e os limites da terra de Mitani, eram propriedade privada de Faraó. Mas os domínios reais do Estado, as “terras de Faraó”, considerados como latifúndios especiais da coroa, eram distintos dos domínios que antigos monarcas tinham dado de presente a seus grandes, como da propriedade de pequenos nobres e campônios que passava como propriedade pessoal de seus donos, conquanto, para sermos exatos, a situação dessas propriedades fosse mais da natureza de terras arrendadas, que, no entanto, conservavam o direito de serem transmitidas a herdeiros. As únicas exceções eram as terras pertencentes aos templos, especialmente as de Amun, que eram todas isentas de impostos; e aqueles remanescentes de uma estrutura mais antiga formada de imunidades especiais, direitos de príncipes distritais que eram ainda poderosos e procediam como se fossem independentes; territórios herdados que avultavam cá e lá pelo reino como ilhas de um feudalismo obsoleto e como as terras do templo reivindicando o privilégio de serem consideradas propriedade intangível de seus donos. Mas, enquanto os templos eram por princípio deixados em paz pela administração de José, desde o princípio ele atacou com unhas e dentes os obstinados barões; incluiu-lhes sem mais aquela os latifúndios no seu sistema de impostos e requisições e a seu tempo chegou à simples desapropriação em favor da coroa. Não é exato dizer-se que a especial constituição agrária do denominado Novo Reino, fenômeno tão estranho para outros povos — a saber, que nos países do Nilo todo o solo, exceto o pertencente aos templos, era propriedade de Faraó —, foi criada pelas medidas tomadas pelo filho de Jacó. Pois o que ele fez apenas completou um processo já em andamento, definindo, regularizando e legalizando, de maneira a tomá-las evidentes para o povo condições que já existiam antes do seu tempo.
Suas viagens não se estenderam até as terras dos negros ou aos distritos da Síria e de Canaã, visto que, em vez disso, ele mandou até lá comissários seus; ainda assim, sua excursão de vistoria levou entre duas e três vezes dezessete dias, tanto houve que inspecionar e registrar. Depois regressou à capital, onde se estabeleceu com uma espécie de estado-maior num prédio do governo sito na rua do Filho, e de lá, bem antes da colheita, promulgou em nome de Faraó a célebre lei agrária que chegou em breve aos quatro cantos do país. Como medida de caráter geral e sem respeito a pessoa ou à qualidade da safra, fixava em um quinto a taxa da produção a ser entregue aos depósitos régios pontualmente e independente de aviso, e se fosse com aviso, seria então em termos peremptórios. Ao mesmo tempo os filhos do Egito puderam ver como por toda a região, tanto nas cidades como em quaisquer lugarejos, iam sendo amplificados e multiplicados esses armazéns, de um modo nunca visto, por obra de uma incalculável leva de trabalhadores. Pareciam estar sendo construídos em número excessivo porque no princípio naturalmente muitos deles se conservavam vazios. Contudo, cada vez se multiplicavam mais, porque a quantidade deles que parecia indevida se destinava, assim se dizia, a recolher a fartura predita pelo novo Adon da distribuição e amigo da colheita de Deus. Aonde quer que se fosse, podiam-se ver os depósitos de trigo construídos em forma de cone, ora postos em fileira bem cerrada, ora agrupados em quadriláteros em redor das eiras. Abriam pela parte superior a fim de receber o trigo e na inferior tinham portas fortes por onde saíam os cereais. Construídos com insólita solidez sobre plataformas no feitio de eirado feitas com argila bem socada, ficavam inacessíveis à umidade e aos ratos. Havia ainda numerosas escavações subterrâneas onde se depositavam cereais, bem forradas e guarnecidas, com entradas quase invisíveis guardadas por sentinelas.
Apraz-nos referir que as duas medidas — a lei da taxa e a construção dos imensos depósitos — gozaram decidida popularidade. Impostos, é claro, sempre os houvera e de muitas formas. Já o velho Jacó, que nunca tinha estado no Egito mas imaginava coisas tremendas a respeito desse país, costumava falar na casa egípcia da servidão, embora sem levar em conta, na sua desaprovação, as condições especiais do Baixo Egito. O trabalho dos filhos de Keme pertencia ao rei, isto era coisa assente, e esse trabalho era usado também para erigir enormes túmulos e edifícios públicos incrivelmente suntuários. Não pode haver dúvida de que assim era. Porém mais usado era ainda para obras necessárias: para todas as operações de guindagem e escavações indispensáveis à prosperidade desse extraordinário país de oásis; para manter em boas condições os cursos d’água, cavar fossos e canais, fazer represas e fortificar diques — coisas todas de interesse coletivo que não podiam ficar à mercê da inteligência tacanha e da problemática diligência pessoal dos súditos de Faraó. Por isso o governo mantinha seus filhos em constante atividade, eles tinham que trabalhar para o Estado. E, depois de haverem trabalhado, tinham de pagar impostos sobre aquilo que haviam feito. Pagavam-nos pelos canais, lagoas e fossos que usavam, pela maquinaria de irrigação e pelas represas que lhes prestavam serviços e até pelos sicômoros que medravam no seu solo fertilizado. Pagavam pela casa e pela eira e por tudo quanto a casa e a eira produziam. Pagavam com peles e cobre, com madeira, corda, papel, linho, e sempre, desde tempos imemoriais, com trigo. Mas os tributos eram lançados à discrição bastante irregular dos administradores regionais e inspetores das aldeias, conforme o Nutridor, isto é, Chapi, o rio, levava muita ou pouca água, o que não deixava de ser razoável. Mas entre conivência por um lado e extorsão por outro havia muita ensancha para o suborno e o favoritismo e muita razão de queixa. Podemos afirmar que desde o primeiro dia a administração de José apertou a cravelha por um lado e afrouxou-a por outro. Quer dizer, fez tenaz finca-pé na finta dos cereais e mostrou-se absolutamente branda em relação aos demais débitos. O povo podia reter para si o seu linho de primeira, segunda e terceira qualidade, seu azeite, seu cobre e seu papel, contanto que fosse conscienciosamente feita a entrega do trigo, do quinto da safra. Esta tributação, explícita e universal, não podia ser considerada como opressiva numa terra trinta vezes feraz. Além disso, tinha a quota um certo encanto lendário e um como atrativo metafísico porque fora hábil e intencionalmente tomada do sagrado algarismo intercalar dos cinco dias excedentes após os trezentos e sessenta que formam o ano. E, por fim, agradava ao povo o fato de ter José, sem um momento de hesitação, imposto o tributo também aos barões distritais ainda recalcitrantes e de tê-los obrigado a introduzir melhoramentos modernos nas suas propriedades para o bem do Estado. Efetivamente, o espírito reacionário desses homens lhes incutira a ideia de conservar suas herdades num estado verdadeiramente retrógrado: o sistema de irrigação era canhestro e impróprio; conservavam-no eles um pouco por preguiça e muito por princípio e por obstinação; e o resultado era produzir o solo menos do que devia. A esses fidalgotes José impôs explicitamente a obrigação de modificar todo o seu sistema irrigatório, lembrando-se, ao fazê-lo, de um certo Salef, tio de Eber, que Eliézer lhe citara como o primeiro homem que “desviou os arroios para a sua propriedade”, sendo o inventor da irrigação.
Agora, quanto às novas construções, às extraordinárias medidas tomadas para acumular as sobras, convém mencionar mais uma vez a ideia nacional que os egípcios faziam de prosperidade ou previdência e que é provavelmente a melhor explicação do fato de lhes terem elas agradado. A própria tradição pessoal de José a respeito do Dilúvio e a ideia luminosa da arca que salvou a raça humana, bem como toda a espécie animal da extinção completa, estavam aqui em harmonia com o instinto de segurança e defesa profundamente arraigado naquela mui vulnerável civilização que envelhecera a despeito das circunstâncias precárias em que vivia. Os filhos do Egito se dispuseram mesmo a vislumbrar qualquer coisa de mágico nos armazéns mandados construir por José, uma vez que estavam acostumados a conjurar o mal e seus diabólicos autores interpondo entre estes e eles qualquer espécie de barreira, impenetrável tanto quanto possível, de símbolos mágicos e sinais cabalísticos. Por isso no seu espírito as ideias de previdência e de mágica facilmente se entrecruzavam, não lhes sendo, portanto, coisa árdua ver uns arranjos tão corriqueiros como os grandes depósitos de José à luz de encantamentos e feitiços.
Numa palavra, prevaleceu a impressão de que Faraó, apesar da sua pouca idade, acertara em cheio ao escolher para o alto cargo aquele moço, pai da colheita e dispensador da sombra. Seu prestígio estava fadado a tornar-se imenso no decurso dos anos; mas logo de começo o bafejava a circunstância de que naquele ano o Nilo crescera muito e houve, já sob a nova administração, uma safra muito maior que de costume, sobretudo de trigo, espelta e cevada, tendo-se ainda respigado durra em abundância nas canas. Podemos ter nossas dúvidas sobre se havemos de incluir ou não nos sete anos um cuja fartura já era certa quando José se investiu no seu múnus. Talvez não seja lícito contá-lo como um dos anos das vacas gordas. Mas foi o que se fez mais tarde, provavelmente como uma tentativa para elevar a sete o número dos anos de bênção, ainda que nem assim eles atinjam aquele algarismo. Em todo caso, mal não foi para José ter assumido os negócios do reino em tais condições de prosperidade e abundância. A psicologia popular sempre foi e sempre será, digamo-lo com o devido respeito, sem tom nem som. Se um ministro da agricultura se empossa no seu cargo num período de prosperidade, a opinião pública é perfeitamente capaz de achá-lo só por isso um bom ministro.
Assim, quando o filho de Jacó saía de carro pelas ruas de Vese, a populaça o saudava com as mãos erguidas, bradando: “Adon! Adon! Ka-ne-Keme! Vive para sempre, amigo da colheita de Deus!” Muitos chegavam a gritar: “Apis! Apis!” e levavam à boca a mão direita, com o polegar e o indicador juntos — o que já era ir um pouco longe demais e deve ser atribuído em boa parte ao infantil entusiasmo deles pela formosa figura de José.
Ele, porém, raramente saía de carro, estando sempre muitíssimo ocupado.
URIM E TUMMIM
Tudo quanto fazemos na vida obedece a imposições de gostos nossos fundamentais, experiências básicas da alma, simpatias e pendores de raízes muito profundas, que dão colorido à nossa existência inteira e toma todas as nossas ações. São eles os verdadeiros responsáveis pelos nossos atos e resoluções, eles e não quaisquer outros motivos razoáveis que costumamos aduzir perante os demais e perante nós mesmos. Pouco tempo depois de assumir o cargo, o primeiro porta-voz do rei e administrador supremo de todos os seus armazéns — muito contra a vontade de Faraó, que de bom grado desejaria reter ao pé de si o novo amigo para discutir sobre seu Pai do céu e com seu auxílio trabalhar pelo aperfeiçoamento da doutrina — transferiu sua residência e todos os seus escritórios de Novet-Amun, a capital, para Menfe no Norte, casa do enfaixado. A razão exterior, embora sincera e bastante justificável da mudança, repousava na circunstância de ser Menfe, cidade de fortes muralhas, “a balança dos países”, centro e símbolo do equilíbrio do Egito, talhada para ser a residência do superintendente das provisões e abastecimentos. Naturalmente, esta designação de balança dos países não é em rigor exata, porquanto Mempi ficava realmente muito para o norte, perto de On e das cidades das sete fozes. Mesmo que se leve em conta apenas aquela parte do Egito que se estendia até a ilha dos Elefantes e a ilha Pi-lak, sem contar a Nigrícia, a cidade del-rei Mira, onde jazia sepulta sua formosura, não era por nenhum caso a balança dos países, mas ficava muito ao norte, enquanto Tebas ficava muito ao sul. Apesar disso, a vetusta Menfe continuava a ser considerada como a balança, sendo axiomático que tinha uma situação de atalaia, dominando o rio em ambas as direções. Foi esse o argumento em que o egípcio José alicerçou sua deliberação, e o próprio Faraó não podia negar que o comércio com os portos marítimos da Síria, quando viessem ter ao celeiro, como eles chamavam o país da terra negra, para comprar trigo, seria mais fácil por Menfe do que por Per-Amun.
Tudo isto era bem verdadeiro. Contudo eram estes apenas os fundamentos exteriores e racionais da decisão apresentados por José a fim de obter de Faraó permissão para viver em Menfe. As razões reais e decisivas estavam no seu peito, onde eram tão arraigadas e alcançavam tão longe que abarcavam toda a sua atitude em relação à vida e à morte. Pode-se dizer que se tratava de motivos de simpatia baseada num fundo obscuro.
Já foi há muito tempo, mas podemos todos recordar-nos de como uma vez, quando rapaz, em desinteligência com seus irmãos, solitário e desalentado, olhou de um morro situado perto de Kirjat Arba para a cidade de uma alvura de luar que dormia no vale e para Machpelach, a dupla cavidade, a tumba rasgada na rocha que Abraão comprara e onde descansavam os ossos de seus antepassados. Evocamos o estranho misto de sentimentos que lhe ia na alma, despertado com a vista do túmulo e da populosa cidade que, adormecida, jazia a seus pés — sentimentos de piedade, isto é, de reverência pela morte e pelo passado, misturados com um atrativo meio sério meio zombeteiro pela "cidade” e pela tumultuosa vida humana que durante o dia todo povoava as tortuosas mas de Hebron com gritos e cheiros de vária espécie e àquela hora roncava em suas alcovas com os joelhos encolhidos. Pode parecer ousadia e arbitrariedade associar tais sentimentos, que eram afinal tão precoces produtos de alguns momentos de contemplação, ao ponderado proceder da sua idade atual. E provavelmente será ainda mais precipitado pôr este último modo de proceder na dependência do primeiro. No entanto, militam alguns fundamentos em favor dessa associação. Queremos referir-nos à observação que mais tarde José fez ao velho, o seu comprador, quando se acharam juntos em Menfe, a grande cidade tumular. Dissera ele de passagem que o lugar lhe agradava porque ali os mortos não tinham de ser transportados para a outra margem do rio, uma vez que já se achavam na ribeira oriental onde era costume depositá-los. E acrescentou que dentre todas as cidades do Egito era aquela a de que mais gostava. Isto era muito característico do primogênito de Raquel, muito mais do que ele próprio o percebia. Causara-lhe verdadeiro prazer o modo como o povinho de Menfe, num espírito irônico conservado no meio da monotonia em que vivia, abreviara jovialmente o antigo nome sepulcral da cidade “Men-nefru-Mirá” para Menfe. Nesse prazer se revelava quase o próprio José em pessoa, pondo a descoberto o lado mais profundo da sua natureza. Chamamos a esse seu sentimento simpatia, vocábulo um tanto brando para uma emoção tão funda como realmente essa é. Pois simpatia é um encontro da vida e da morte, a verdadeira simpatia existe somente onde o sentimento de uma equilibra o sentimento da outra. O sentimento da morte em si produz rigidez e melancolia, o sentimento da vida em si produz vulgaridade insípida, sem nenhuma graça. Graça e simpatia só vêm à tona quando a veneração pela morte é moderada e esquentada pelo calor da vida, enquanto esta, por outro lado, recebe daquela profundidade e valor. Isto aconteceu no caso de José, tendo como resultado sua índole meiga e sagaz. Esta foi a bênção, a dupla bênção que lhe lançaram as alturas e as profundezas, a bênção da qual falava seu pai, no leito de morte, procedendo como se lha desse, quando o que fez foi confirmar o que já era um fato consumado. Qualquer tentativa para examinar os fundamentos morais deste nosso mundo extremamente complicado demanda uma certa soma de conhecimentos. De Jacó sempre foi dito ser ele tam, querendo-se significar que era probo e que morava nas tendas. Mas tam é um termo equívoco, que não é bem traduzido por “probo”. É tanto negativo como positivo, quer dizer sim e não, luz e trevas, vida e morte. Torna a surgir na fórmula curiosa Urim e Tummim, onde, a contrastar com o Urim, luminoso e afirmativo, representa evidentemente o aspecto torvo e sombrio do mundo. Tam e tummim é alternadamente e simultaneamente a luz e as trevas, o mundo de cima como o de baixo, ao passo que Urim só significa, no uso mais puro, a luz. Assim Urim e Tummim na realidade não exprime uma contradição; apresenta apenas a misteriosa verdade de que, quando uma pessoa separa uma parte do todo no mundo moral, continua havendo um todo em oposição à parte. Não é coisa tão fácil alcançar com o entendimento o que seja mundo moral, antes de tudo porque muitas vezes o que é brilhante nele se refere ao mundo inferior. O ruivo Esaú, por exemplo, o caçador da estepe, foi claramente um homem solar do mundo ínfero. E seu irmão gêmeo Jacó, posto em contraste com ele como um manso pegureiro lunar, passou, como bem nos lembramos, a melhor parte de sua vida no mundo ínfero com Labão, e os recursos de que se valeu para ficar de ouro e de prata não são lá muito fielmente descritos pela palavra “probo”. Urim certamente ele não foi: tam é que o pinta com exatidão: o homem que participa da alegria e da tristeza, como Gilgamech. E tal era também José, cuja rápida adaptação ao luminoso mundo ínfero do Egito não faz supor nele a existência de uma “natureza Urim” pura e simples. Urim e Tummim podia ser vertido por “sim — sim-não”, isto é, sim-não com o coeficiente de um segundo “sim”. Matematicamente falando, depois que o “sim” e o “não” cancelaram um ao outro, só resta o segundo “sim”; mas o que é puramente matemático não tem coloração nenhuma ou pelo menos não faz caso do tom escuro do “sim” resultante, que é claramente um efeito posterior do “não” eliminado. Tudo isto é complicado, como já dissemos. Melhor seria repetirmos que em José vida e morte se encontraram e o resultado foi aquela simpatia que constituiu a razão mais profunda pela qual ele pediu a Faraó permissão para morar em Menfe, a arguta metrópole das tumbas.
O primeiro pensamento do rei fora mandar construir a eterna morada do seu “amigo universal”, a qual já estava sendo feita. Em seguida dedicou a José uma morada temporal no melhor quarteirão de Menfe: uma grande casa banhada de sol, com jardim, sala de recepções, pátio dispondo de fonte e mais coisas amenas daquelas épocas, sem se falar numa verdadeira chusma de servos núbios e egípcios para a cozinha, a antessala, o estábulo e o salão, que se encarregavam de varrer, irrigar, limpar e enfeitar a vila, tudo debaixo da direção de... adivinhais quem? Seria duvidar da perspicácia dos leitores pensar que não adivinharam. José cumpriu sua palavra com mais escrúpulo e pontualidade do que Nefer-em-Vese, o copeiro-mor, fazendo questão de honrar a promessa que fizera a alguém ao se apartarem, isto é, que mandaria chamá-lo e o tomaria a seu serviço logo que se visse em condições de fazê-lo. Enquanto estava ainda em Tebas, logo depois que voltara da sua viagem de inspeção, com a aprovação de Faraó escreveu a Mai-Sachme, o diretor de Zavi-Rá, convidando-o para mordomo de sua casa, devendo ele encarregar-se de todos os negócios de que José, na sua posição, estaria impossibilitado de desincumbir-se. Sim, aquele que já fora o intendente da casa de Petepré e a quem tocara em sorte um cargo muito mais alto, ia ter um intendente para a sua casa e para tudo o que fosse dele: carruagens e cavalos, despensa e cozinha, bem como a criadagem. Este foi Mai-Sachme, o imperturbável, que não se comoveu ao receber a carta do seu ex-prisioneiro, não se comoveu porque era um homem inacessível a comoções. Sem embargo, nem sequer esperou a chegada do seu substituto; acorreu pressuroso a Menfe, cidade sem dúvida um tanto antiquada, bem inferior a Tebas no Alto Egito, mas absolutamente atraente em comparação com Zavi-Rá. Imhotep, o sábio, o homem de múltiplas habilidades, vivera e trabalhara ah, e agora ao grande admirador de Imhotep era designado na mesma cidade um cargo esplêndido Mai-Sachme pôs-se imediatamente à testa da casa de José, cercou-se de criados, comprou, forneceu e dispensou, de maneira que, quando José chegou de Vese e viu Mai-Sachme à sua espera no imponente portão da vila, achou sua casa provida de todas as coisas de que dispõe a residência temporal de um grande. Encontrou até uma enfermam pronta para receber quantos sentissem as ferroadas da dor e uma farmácia onde seu mordomo poderia a seu bel-prazer manipular ingredientes.
Foi muito cordial o encontro, conquanto naturalmente não se pudessem abraçar na presença da criadagem que também acudira pan apresentar as boas-vindas ao amo. O abraço já fora dado uma vez por todas ao separarem-se, no único momento propício para isso, a saber, quando José já não era servo de Mai-Sachme, e ainda não o amo dele. Foram estas as palavras do mordomo:
— Sê bem-vindo, Adon, a esta tua casa. Deu-ta Faraó, e aquele em quem mandas pôs-se à frente dela, arranjando-a nos mínimos detalhes. Não tens outra coisa que fazer senão banhar-te, ungir-te, sentar-te e comer. Agradeço-te efusivamente teres-te lembrado de mim, arrancando-me do meu tédio assim que te viste glorificado. Agora tudo saiu conforme teu servo sempre calculou que sairia, e chamaste-me para proporcionar-me uma vida variada e divertida, da qual procurarei tornar-me digno.
José respondeu:
— Por minha vez eu te agradeço, bom homem, teres acudido ao meu apelo e aceitado o cargo de administrador da minha casa nesta nova vida. As coisas encaminharam-se por onde deviam, porque nunca ofendi o Deus de meu pai com a menor desconfiança de que Ele não estaria comigo. Mas não quero que te chames meu servo, porque seremos amigos como antes, quando me tinhas a teus pés. Juntos aguardaremos as boas como as más horas da vida, as horas calmas como as empolgantes. Elas virão, tanto umas como outras, e eu precisarei ainda mais de ti nas horas cheias de tensão. Antecipadamente te agradeço os teus bons serviços na administração da casa. Mas eles não te deverão absorver a tal ponto que não te sobrem ócios para manejar a cana nos teus aposentos conforme te apraz, achando a forma melhor e mais adequada para a história dos três amores. Grande é a arte de quem escreve! Mas na verdade eu reputo ainda maior coisa perpetuar a si próprio dentro de uma história, e cada vez tenho mais certeza, à medida que vou vivendo, de que esta nossa é uma história estupenda. E agora figuras nela comigo, porque eu te fui buscar; e quando no futuro as pessoas lerem ou ouvirem falar a respeito do mordomo que esteve ao meu lado nos momentos empolgantes, ficarão sabendo que esse mordomo foste tu, Mai-Sachme, o homem sereno.
A DONZELA
No princípio Deus infundiu um profundo sono no homem que pusera no jardim do Oriente, e, enquanto o homem dormia, Deus tirou-lhe uma de suas costelas e tapou o vão enchendo-o de carne. Da costela fez Ele uma mulher, julgando que não era bom que o homem ficasse só, e apresentou-a ao homem para que ela fosse sua companheira e auxiliar. E foi tudo muito bem intentado.
Nossos mestres nos pintaram esta cena com cores muito lindas, foi assim e dessa forma que aconteceu, diziam eles, como quem sabia o que estava dizendo e é bem possível que o soubessem. Deus lavou a mulher, asseguram-nos eles, pô-la muito asseada, pois é natural que a antiga costela estivesse um pouco pegajosa, ungiu-a, arrebicou-lhe a face, anelou-lhe os cabelos e ataviou-lhe, a pedido dela, a cabeça, o pescoço e os braços com miçangas e pedras preciosas, entre as quais a sardônica, o topázio, o diamante, o jaspe, a turquesa, a ametista, a esmeralda e o ônix. Assim aformoseada, levou-a à presença de Adão, com um coro de milhares de anjos cantando e tocando alaúde, para apresentá-la ao homem. Houve então uma festa e um banquete, isto é, um banquete festivo, no qual parece que o próprio Deus se dignou tomar parte, e os planetas bailaram ao som da música que eles mesmos tangiam.
Foi a primeira boda que se celebrou no mundo, mas não consta que tenha sido também e propriamente um casamento. Deus fez a mulher para ser a auxiliar de Adão, simplesmente para ficar a seu lado e ajudá-lo, e manifestamente não pensou mais no assunto. Se em seguida lhe impôs a pena de gerar filhos na dor, isso só foi quando ela e Adão comeram do fruto da árvore e seus olhos se abriram. Entre a festa da apresentação e o tempo em que Adão conheceu sua mulher, dando-lhe ela o lavrador e o pastor, em cujas pegadas caminharam Jacó e Esaú, entre um fato e o outro aparece a história da árvore e do fruto, da serpente e do conhecimento do bem e do mal. Para José também as coisas observaram essa ordem. Ele também só conheceu a mulher depois de haver diferençado o bem do mal, sendo a serpente no seu caso uma mulher que tudo daria, até a vida, para ensinar-lhe aquilo que, embora sendo muito bom, não deixa de ser mau. Ele, porém, lhe resistiu e soube esperar até que a coisa fosse boa, sem já ser má.
Como deixarmos de pensar com tristeza na pobre serpente, agora que o quadrante indica a hora do casamento de José, que ele realizou com outra mulher, juntando sua cabeça e seus pés com os desta e não com os da serpente? Havíamos procurado afugentar essa natural tristeza, quando apresentamos a serpente transformada já na fria monja lunar que nada mais tinha que ver com o assunto. Toma-se mais fácil imaginá-la debaixo dessa forma; qualquer possível amargura que nos restasse arrefece diante da imagem, sob a qual a representamos, de sacerdotisa beata em que se convertera. Além de que sua tranquilidade não corria risco de ser perturbada pela boda, uma vez que esta não se realizou em Tebas, mas muito longe, em Menfe, na casa de José. Faraó, que desde o começo tomara o caso a peito, compareceu pessoalmente às festividades, dignando-se assistir ao bailado das estrelas. Ele desempenhou literalmente o papel de Deus, estando profundamente convicto de que não é bom que o homem esteja só. Dissera ele logo a José como era agradável estar casado e, à diferença de Deus, falava por experiência, pois que tinha a Nefertiti, sua nuvenzinha do dilúculo, toda orlada de ouro, ao passo que Deus estava sempre só e Sua preocupação se dirigia exclusivamente ao gênero humano. Faraó, porém, como Deus nesse ponto, também cuidava de José. Assim, tanto que o guindou às alturas, andou à cata de um enlace oficial para ele, pois tal devia ser, isto é, um casamento arranjado muito aristocraticamente, muito politicamente, sem deixar de ser agradável e deleitoso — o que não era uma combinação muito fácil. E como Deus fez para Adão, assim Faraó arranjou-lhe a noiva, conduziu-a a José ao som de harpas e címbalos, tomando parte pessoalmente no festim nupcial.
Qual era agora essa noiva, a consorte de José, e qual é o seu nome? Toda a gente o sabe, mas isto não diminui o prazer de dizê-lo ou ouvi-lo. Pode ser que alguém o tenha esquecido ou já não saiba que o sabe e não saberia que dizer se lho perguntassem. Seu nome, pois, era Aseneth, a donzela, filha do sacerdote do Sol em On.
Sim, Faraó fizera uma escolha muito elevada, a mais elevada que podia fazer. Casar com a filha do sumo sacerdote entre aqueles que serviam Rá-Horachte era uma coisa inaudita, que orçava pelo sacrilégio, ainda que, como é natural, a jovem estivesse destinada de qualquer modo ao casamento e à maternidade e ninguém desejasse vê-la levar uma vida claustral e morrer virgem. Por outro lado, ainda sendo desejável e conveniente que ela casasse, levá-la da casa paterna era considerado um ato tenebroso e equívoco. Quem o fizesse era tido como um raptor e ela não lhe era dada, mas era arrebatada por ele — essa a atitude convencional da gente do seu meio, ainda que tudo na realidade se passasse com o máximo decoro e conforme com os usos. Mas nunca houve no mundo pais que fizessem tantos quindins para entregar uma filha a um marido. A mãe sobretudo ficava ou simulava ficar fora de si. Não achava meios nem modos de exprimir convenientemente sua incapacidade de compreender o que estava sucedendo; torcia as mãos e portava-se como se ela própria tivesse sido ou estivesse sendo raptada. Chegava a jurar vingança, conquanto só da boca para fora, por ser aquele o uso em tais circunstâncias.
A razão de todo esse escarcéu era que a virgindade da filha do Sol, bem que em última análise destinada à sorte comum das outras, tinha a defendê-la o escudo e a couraça de uma santidade e inviolabilidade especial. Ela era cingida com o cinto da castidade, era a virgem das virgens, o protótipo, por assim dizer, de uma virgem donzela especial e exclusivamente donzela, a essência da donzelice. No seu caso o nome comum tornava-se próprio: “Donzela” era ela chamada a vida inteira, e o esposo que lhe arrebatasse a donzelice estava cometendo, na opinião comum, um crime divino, embora o epíteto diminuísse a culpa, enobrecendo e legitimando a façanha. As relações do genro com os pais da moça, máxime com a mãe dolorosa, podiam ser em particular perfeitamente amistosas, mas em público eram tensas para dar a impressão de que em certo sentido nunca haviam consentido em que sua filha pertencesse a um homem. No contrato de casamento se estipulava expressamente que a filha não viveria o ano todo com o seu ladrão sinistro, senão que voltaria a viver como donzela grande parte do ano em casa de seus pais. Mas também aqui a cláusula era mais simbólica do que literal; seu cumprimento significava apenas que a noiva, de um modo muito natural e regular, depois do casamento visitaria seus pais.
Se o sumo sacerdote e sua mulher tinham várias filhas, todas aquelas cerimônias se referiam em primeiro lugar à mais velha, e às outras só em grau muito menor. Mas Aseneth, jovem de dezesseis anos, era sua filha única. Imagine-se, pois, de que divina violência, de que crime anormal se tornava réu o homem que ousasse desposá-la! Seu pai, o profeta-mor de Horachte, naturalmente não era o mesmo delicado ancião que, ao tempo da primeira visita de José a On com os ismaelitas, ocupava a cadeira de ouro na base do grande obelisco que ficava diante do alado disco do Sol. Era o sucessor eleito daquele homem, também delicado, benévolo e de aparência jovial, pois tal tinha de ser todo servo de Atum-Rá em virtude do seu cargo, e, se não era assim por natureza, então por algum disfarce necessário tinha de tornar-se tal por uma segunda natureza. Como se sabe, o acaso quis que o nome desse sacerdote fosse o mesmo do antigo dono de José, o cortesão da luz, isto é, Putifera ou Petepré. E que nome podia assentar-lhe melhor no seu cargo do que este que equivale a “O Sol o deu”? O nome indica que ele nascera e fora talhado para o cargo. Presumivelmente ele era filho daquele ancião de barretinha de ouro, sendo Aseneth, se isso é verdade, sua neta. Quanto ao nome dela, escrito com os grupos consonantais Ns-nt, tinha ligação com o da deusa Neith de Sais no delta e significava “A que pertence a Neith”, estando a donzela debaixo da especial proteção daquela deusa armada, cujo emblema era um escudo com duas setas amarradas transversalmente nele e que, ainda em seu disfarce humano, usava geralmente um punhado de setas na cabeça.
Aseneth fazia o mesmo. Seu cabelo, ou melhor, a cabeleira convencional que usava por cima dele e cujo arranjo deixava um pouco duvidoso se se tratava de uma touca ou de um penteado, estava sempre enfeitado de setas quer enfiadas transversalmente quer atadas no alto, enquanto o escudo, em sinal da sua especial virgindade, aparecia como um ornamento ou no pescoço, ou sobre o peito, ou nas suas pulseiras, acentuando, juntamente com as setas cruzadas, o caráter inviolável da sua virgindade.
A despeito de toda essa armadura, dessa exteriorização de sua resistência interna, Aseneth era uma menina encantadora, de índole muito meiga e dócil, obediente aos desejos de seus aristocráticos progenitores, à vontade de Faraó e à de seu marido, podendo-se mesmo dizer que não tinha vontade própria. Pode-se dizer que exatamente essa combinação de sagrada e inviolável pureza com uma decisiva tendência a deixar que outros fizessem com ela o que lhes aprouvesse, uma tolerante aceitação do seu destino de mulher, era o que constituía a essência do caráter de Aseneth. A forma de seu semblante era tipicamente egípcia, de ossos pouco proeminentes, com o maxilar inferior um tanto avultado, sem contudo lhe faltar individualidade. As bochechas tinham ainda sua rotundidade infantil, os lábios também eram cheios, com uma suave depressão entre a boca e o queixo, a fronte casta, o narizinho talvez em tudo-nada grosso, tendo os seus grandes olhos, artisticamente pintados, a expressão de fixidez e expectativa característica dos surdos, sem que entretanto Aseneth o fosse, pois aquele olhar atento era apenas o reflexo de sua expectativa interior. Era como se, com consciente prontidão e aceitação, ela estivesse à espera de que soasse a hora do seu destino. Essa ligeira nota de sobrenaturalidade que havia no seu rosto era contrabalançada pela covinha que aparecia e desaparecia na sua face quando Aseneth falava, produzindo o conjunto um efeito realmente encantador.
Igualmente encantadora e também um pouco fora do comum era a sua figura, segundo se via através da diafaneidade dos seus vestidos: a pequenina cintura de vespa e, a contrastar com ela, as largas ancas e a ampla cavidade abdominal, demonstrando sua capacidade para a procriação; os seios sobressaíam como dois broqueizinhos, os braços eram graciosos e bem torneados, terminando em mãos grandes, cujos dedos ela habitualmente conservava abertos. Retrato de uma donzela em âmbar — tal era a impressão de conjunto que Aseneth dava.
Até o seu casamento ela passara sua vida entre as flores como se fosse uma delas. Seu lugar preferido era a margem do lago sagrado existente nos terrenos do templo de seu pai, bom trecho de relva ondulante onde os narcisos e as anêmonas formavam variegada alfombra. Aí, à beira da água espelhenta, gostava de passear com suas amiguinhas, filhas dos sacerdotes e da aristocracia de On. Aí colhia suas flores, sentava-se na relva e entretecia suas grinaldas, com o vivo olhar fito no espaço, as sobrancelhas erguidas, a covinha aparecendo e sumindo no meio da face, aguardando o que poderia acontecer. E aconteceu realmente, porquanto um dia surgiram ali os mensageiros de Faraó. A Putifera, pai e sacerdote, balançando gravemente a cabeça em sinal de assentimento, e à mãe, torcendo as mãos e inteiramente fora de si, pediram a mão da virgem Aseneth para Dgepnuteefonech, Vice-Horus, o que dava sombra ao rei. A própria donzela, possuída da única ideia da sua existência, levantou os braços ao céu implorando socorro, como se alguém, agarrando-a pela delgada cintura, a levasse consigo num carro de salteador.
Tudo isto não passava de uma comédia, uma cena simbólica ditada pela convenção. Pois não somente os desejos de Faraó eram lei, mas um casamento com seu valido e primeiro porta-voz era sumamente honroso e desejável, e os pais não podiam aspirar a um enlace mais nobre para sua filha do que o que Faraó arranjara para José. Portanto, não havia nenhum motivo para desespero ou ainda para dor, a não ser a natural contrariedade de pais que tinham de se separar de sua filha única. Mas era necessário fazer muito estardalhaço em torno da donzelice de Aseneth e do roubo de uma tal prenda; era preciso pintar o noivo como uma criatura sinistra, ainda que os pais tivessem toda a razão de estar ufanos, como realmente estavam. Faraó divulgara explicitamente que aqui a virgindade esposava a virgindade, que o noivo também era virgem a seu modo, requestado durante muito tempo e reservado, uma noiva da qual saía agora o pretendente. Para tal fim teve de entrar em entendimento com o Deus de seus pais, o noivo da sua raça, cujo ciúme durante muito tempo havia acatado mas agora já não acatava, ou só o fazia no sentido de que se dispusera a contrair um matrimônio própria e especialmente virgem — se é que a ressalva tem algum peso. Quanto a nós, não nos devemos preocupar com as consequências que esse caso envolve, uma vez que José estava fazendo um casamento egípcio, um casamento com Cheol, um casamento do tipo do de Ismael, e portanto um casamento não sem precedente, ainda que duvidoso, precisado de toda a indulgência que, segundo parece, ele tinha certeza que obteria. Mestres e expositores houve que se escandalizaram com esse casamento e até procuraram negar o fato. No interesse da pureza disseram que Aseneth não era filha de Putifera e sua mulher, mas uma enjeitada e não outra senão um rebento da inditosa Dina, filha de Jacó, que fora exposta e achada dentro dum cesto. De acordo com essa teoria, José tomou para mulher sua própria sobrinha, o que, a ser verdade, não melhoraria grandemente a situação, porque boa parte da filha de Dina era carne e sangue do turbulento Siquém, um cananeu adorador de Baal. Assim como assim, a reverência de que são credores os mestres não nos impede de qualificar a história da criança no cesto como aquilo que é, uma interpolação, uma pia fraude e nada mais. A donzela Aseneth era filha legítima de Putifera e sua mulher, e os filhos que teve com José, seus herdeiros, Efraim e Manassés, tinham, quer queiramos quer não, sangue egípcio. E ainda não era tudo. Com efeito, por seu casamento com a filha do Sol o filho de Israel entrou em estreitas relações com o templo de Atum-Rá — relações sacerdotais sem dúvida, tais como tinham sido parte do plano de Faraó quando arranjou o casamento. E quase incrível que um homem gozando em tão alto grau dos favores do soberano como José não desempenhasse uma elevada função sacerdotal e não percebesse um rédito do templo e — novamente quer queiramos quer não —, como marido de Aseneth, José fez tanto uma coisa como a outra. Em outras palavras e falando sem refolhos, ele percebeu uma renda de idólatras. Por conseguinte, ao seu guarda-roupa oficial pertenceu a sacerdotal pele de leopardo e em certas circunstâncias viu-se ele na situação de queimar incenso oficialmente diante de um ídolo — o do falcão Horachte com o disco solar sobre a cabeça.
Muito pouca gente procurou ver com clareza estas coisas, pois dizê-las assim com essa franqueza pode produzir um como choque. Mas e absolutamente certo que para José viera o tempo dos privilégios. Não tenhamos dúvida de que ele soube vir às boas com Aquele que o separara dos seus, transplantando-o para o Egito e lá engrandecendo-o. Talvez pressupusesse ele a aprovação da filosofia do triângulo, de conformidade com a qual um sacrifício feito junto à mesa de alabastro do complacente Horachte não significava desdouro para nenhuma outra divindade. Afinal isto não era um templo qualquer, era o templo do deus do longínquo horizonte. José podia ter até na conta de erro, de sandice, isto é, de pecado atribuir ao Deus de seus pais um horizonte I mais acanhado do que o de Atum-Rá. E, por fim, não devemos esquecer que ultimamente tinha surgido desse deus aquele Aton que, segundo a conversa de Faraó com José, era propriamente invocado não com o nome de Aton mas com o de Senhor do Aton, não como “nosso Pai do alto” mas como “nosso Pai que está no céu”. Tudo isto podia passar consoladoramente pelo espírito de José quando em certas ocasiões ratas ele punha a pele de leopardo e queimava incenso.
O primogênito de Raquel, o estrangeirado filho predileto de Jacó, era sem dúvida um caso muito especial. A indulgência que lhe fora dispensada tinha suas raízes nas circunstâncias especiais do mundo. Foi ela também que obstou a que se produzisse uma tribo de José, ao passo que houve tribos até mesmo de Issacar, de Dan, de Gad. Seu papel, seu lugar no plano era o de um homem posto no mundo para ser, como veremos, o guarda, o provedor, o salvador dos seus. Tudo indica que ele estava cônscio dessa função, pelo menos emotivamente, e tinha sua existência solitária e cosmopolita não na conta da de um proscrito, mas na de um homem reservado a um determinado fim. Indubitavelmente é esta a explicação da sua imensa confiança de que o Senhor do Plano o havia de tratar com indulgência.
JOSÉ SE CASA
Acompanhada, pois, de vinte e quatro escravas escolhidas, a donzela Aseneth foi enviada a Menfe para celebrar o seu virginal enlace em casa de José. Também o sumo sacerdote e sua mulher, vergando ao peso da dor diante de um rapto tão incrível, partiram de On. Faraó em pessoa viajou de Novet-Amun para Menfe, a fim de tomar parte nos mistérios da boda e apresentar pessoalmente aquela noiva excepcional ao seu valido e, como experiente homem casado que era, informá-lo mais uma vez sobre as excelências da vida conjugal. Convém dizer que doze das vinte e quatro criadas jovens e formosas que vieram com Aseneth e com ela passaram a pertencer ao noivo sinistro (involuntariamente somos levados a pensar no séquito que em tempos antigos costumava acompanhar o rei morto, passando a morar dentro da sua tumba), doze delas lá estavam para tocar, espargir flores e rejubilar-se, e as outras doze para prantear e bater no peito. Efetivamente, as cerimônias nupciais celebradas na principesca mansão de José, sobretudo no pátio da fonte iluminado por archotes e rodeado pelos demais aposentos, tinham um aspecto fortemente funéreo. Se não as descrevemos aqui descendo às últimas minúcias é em consideração ao velho Jacó, que lá na sua casa a si mesmo iludia com a crença de que o seu predileto estava guardado pela morte, sem sair dos seus dezessete anos. Jacó certamente ergueria ao céu suas mãos em desespero diante de muita coisa que se passou durante a boda. Elas cada vez mais o arraigariam nos seus cândidos preconceitos contra Mizraim, o país da lama, preconceitos que desejamos respeitar, não descrevendo portanto os ritos nupciais com tal minudência que autorizasse a supor que lhes damos nossa aprovação.
Na sua ausência e pelas costas podemos convir em que existe uma certa relação entre a morte e o casamento, entre uma alcova nupcial e um túmulo, entre um assassinato e a defloração. Não é levar muito longe a hipérbole achar pontos de contato entre um noivo e um deus da morte. Há uma semelhança entre o destino de uma noiva, vítima velada, submetida ao transe tremendo da divisão dos dois estados —o de virgem e o de desposada — e o destino do grão de trigo enterrado na escuridão para lá apodrecer e depois voltar da corrupção à claridade como outro grão de trigo, virgem e novo. Trata-se de um símile tão admissível como o da espiga ceifada pela foice, parábola dolorosa da filha arrancada dos braços de sua mãe, que por sua vez já foi donzela e vítima, também ceifada pela foice e revivendo agora a sua própria sorte na da filha.
Com efeito, na ornamentação organizada por Mai-Sachme para a grande cerimônia a foice tinha papel saliente, sendo empregada com muita prosperidade no pátio da fonte e no peristilo que o cercava; também o simbolismo do trigo, do grão e do campo semeado impunha-se no espetáculo oferecido aos convidados antes e depois da cerimônia: alguns homens juncavam de grão o pavimento e lançavam-lhe água de jarros, proferindo invocações rituais; umas mulheres levavam vasos sobre a cabeça num lado dos quais havia trigo e no outro um archotezinho a arder. Como a festa se realizava de noite, havia pelos quartos e em toda parte muitos archotes enfeitados de panos multicores e grinaldas de murta. Mas a quantidade deles era tal que a decoração para a qual contribuíam já tinha também qualquer coisa de simbólico. E que um archote é usado para iluminar os pontos onde não penetra a luz do dia. A mãe da noiva, a mulher de Putifar (se é que é possível aludir-se a ela assim, sem perigo de confusão), inteiramente amortalhada num manto roxo, imagem perfeita da dor, carregou durante algum tempo um archote ou mesmo dois numa das mãos. E todos, homens e mulheres, carregavam archotes na grande procissão que foi o ponto culminante do rito noturno. De archote em punho, puseram-se em movimento numa comprida fileira através de todos os quartos da casa e desembocando no pátio da fonte, onde Faraó, o convidado de honra, estava sentado em cômoda atitude entre José e Aseneth, envolvida também num véu roxo. No pátio da fonte a procissão passou a formar um bailado notavelmente engenhoso, ou melhor, não se desfez, pois a flamejante e fumarenta fileira de bailadores se conservou tal qual, um atrás do outro, apenas movendo-se em nove espirais em torno da fonte. Em todas as voltas labirínticas que executavam, a linha era mantida por uma fita vermelha que passava pelas mãos de cada bailador, o que não os impedia de realizar prodígios de habilidade pirotécnica, pois seus archotes ardentes também dançavam, atirados do lado de fora e apanhados do de dentro da nonupla rosca, sem que um sequer errasse o alvo ou caísse no chão.
Devia o leitor ter visto este espetáculo a fim de compartilhar a tentação que assalta o autor de descrevê-lo com mais pormenores do que seria conveniente para se harmonizar com o pensamento do ancião lá na sua casa, que indubitavelmente se horrorizaria diante de muita coisa que acontecia aqui. Mas ele achava-se distante, iludindo-se com a ideia dos eternos dezessete anos de José. Decerto teria achado algum prazer ao menos na engenhosa dança, puramente como um espetáculo, e por certo acharia muito mais prazer nela do que em algumas outras cenas. Via as coisas com os olhos de um pai e teria desaprovado (para não usar um termo mais forte) o papel saliente desempenhado pelo elemento materno nas bodas de seu filho, no papel representado pela mãe de Aseneth, enraivecida, ameaçadora, figurando na sua pessoa tanto a espoliada como a raptada. A mesma ideia expressava-se no fato de muitos homens e mancebos que tomavam parte no grande cortejo e na dança em espiral estarem vestidos de mulher e propriamente como a mãe-noiva, o que aos olhos do bom Jacó seria com certeza uma abominação de Baal. Ao usarem aquele traje, o que desejavam era ser considerados como participantes dos sentimentos dela; por isso o mesmo véu roxo lhes caía pelo corpo, e também expandiam a sua rainha, brandindo o archote na mão esquerda para poderem sacudir no ar o punho direito; sua atitude tornava-se mais medonha ainda porque essas figuras usavam máscaras, que não tinham nenhuma semelhança com o nobre semblante da mulher de Putifar, mas mostravam um ar de aflição e de cólera que fazia gelar o sangue. Alguns deles haviam dado forma bojuda às suas vestes para darem a impressão de adiantado estado de gravidez; com isto queriam representar a mãe, ainda — ou mais uma vez — trazendo dentro do seio a vítima virgem, ou talvez quisessem representar com isso a própria donzela trazendo dentro de si uma nova virgem a ser sacrificada. Provavelmente nem eles sabiam com certeza o que queriam representar.
Homens e moços que engrossavam os seus corpos — não, isto certamente não teria a aprovação de Jacó ben Yitzchak. Nem se tome qualquer ulterior descrição da festa nupcial como um sinal de aprovação. Mas para José, posto à parte e separado dentro do grande mundo, o tempo da licença havia chegado; seu casamento mesmo fora já uma grande licença e, se relatamos detalhes da cerimônia, fazemo-lo com o espírito indulgente e tolerante que a ocasião exige.
Havia em suma um certo abandono e por outro lado um sabor de túmulo, indicado, por exemplo, pelas coroas de murta com que todos os convidados e todos os quartos da casa estavam adornados. Alguns dos convidados chegavam mesmo a trazer consigo enormes ramalhetes de muna. Esta flor é consagrada tanto ao amor como aos mortos. Havia, porém, no grande cortejo um número igual de pessoas que tocavam címbalos e darabucas, dando mostras de júbilo no mesmo grau em que outras exibiam gestos e posturas de dor, como se fizessem parte de um cortejo fúnebre. Deve-se acrescentar que a alegria e a mágoa tinham seus graus diferentes. Por exemplo, certos grupos de carpidores se limitavam a indicar certa desorientação, andando de um lado para outro com alforjes e bastões; caminhavam ao acaso, passando diante do régio assento, do dos noivos e do dos pais da noiva, sem se lamentarem nem derramarem lágrimas. Do mesmo modo havia vários tipos de júbilo, alguns deles absolutamente dignos e aprazíveis; algumas pessoas, por exemplo, avançavam até os assentos de honra carregando jarros de gracioso feitio e os emborcavam cerimoniosamente nas direções do leste e do oeste, cantando alguns: “Trasborda!”, ao que outros respondiam: “Recebe a bênção!”. Até aqui, nada demais. Mas frequentemente, quanto mais avançava a noite, as risadas e outras demonstrações de alegria um tanto grosseiras traíam a ideia real, latente no fundo de toda festa nupcial, a alusão ao que iria naturalmente seguir-se. Pode-se dizer que a ideia de rapto e assassinato e a de fertilidade se encontravam no ponto da licenciosidade, de sorte que o ar estava cheio de indiretas inconvenientes, piscadelas, alusões obscenas e gargalhadas descompostas. Tinham sido trazidos para a procissão alguns animais, entre outros um cisne e um garanhão, e, ao velos, a mãe da noiva ainda mais se envolveu no seu véu violáceo. Que dizer, porém, do aparecimento ali de uma porca pejada, em cujo lombo ia montada nada menos que uma mulher velha, muito gorda e seminua, de fisionomia equívoca, que dizia um chorrilho de gracejos pesados? Esse calhamaço repelente representou em toda a cerimônia um papel popular importante. Ela acompanhara desde On a mãe de Aseneth e viera incessantemente coscuvilhando facécias salazes ao ouvido da dama com o fim de amenizar-lhe a viagem. Era essa a sua função, esse o seu papel. Chamavam-lhe a “consoladora”, título com que, no meio da alegria reinante, a brindavam constantemente e aos berros, e a que ela respondia com gestos grotescos. Durante toda a função ela quase não se moveu de ao pé da, teoricamente, inconsolável, esforçando-se apesar de tudo por consolá-la, quer dizer, por fazê-la rir, cochichando-lhe ao ouvido uma inesgotável enfiada de indecências, no que aliás se saía bem, por ser essa igualmente a norma: a ofendida mãe, furiosa na aparência com o inaudito ultraje, de vez em quando ria por trás do véu, ao escutar as chalaças da velha. Então todos os presentes riam também, aplaudindo freneticamente a “consoladora”. Como, porém, tanto a raiva como a dor da mãe não eram mais que concessões a uma velha prática, podemos conjeturar que ela também ria para condescender com a antiga usança e que pessoalmente as palhaçadas da “consoladora” só lhe haviam de causar asco. No máximo sua mostra de alegria não havia de ser mais nem menos sincera que a dor natural e não convencionalmente exagerada de uma mãe que com o casamento perde sua filha única.
Diante de tudo isso compreende-se a nossa intenção de não entrarmos em minudências quanto à boda de José. E, ainda que estejamos faltando às nossas próprias intenções, isto não significa aprovação. No que se refere aos noivos, eles, com as mãos juntas por cima dos joelhos de Faraó, estavam quase indiferentes a tudo mais, olhando um para o outro em vez de olhar para as indispensáveis cerimônias da festa. José e Aseneth sentiram-se atraídos um para o outro desde o princípio, sentindo prazer infinito na sua mútua companhia. Sem dúvida era aquele um enlace oficial e arranjado de antemão, e num arranjo destes, pelo menos no começo, o amor não entra. Ele tem de chegar mais tarde, e é o que se dá com o tempo quando estão em causa pessoas de boa índole. Já a certeza de que se pertencem e que foram feitas uma para a outra vale muito; mas no nosso caso outras circunstâncias favoreciam o acréscimo desse sentimento. Prescindindo do seu caráter naturalmente passivo, a donzela Aseneth já se regozijava com sua sorte, isto é, com a pessoa do seu raptor e assassino da sua virgindade, que a agarrara pela cintura, tão delgada que parecia feita de propósito, e a conduzira consigo para o seu reino. Já se sentia atraída para o moreno, afável, formoso e sábio valido de Faraó e não duvidava de que essa simpatia poderia tornar-se um vínculo vigoroso, enquanto a ideia de que ele seria o pai de seus filhos era como uma concha na qual a pérola do amor havia de crescer. Com José passava-se coisa semelhante. Aquele que fora reservado e agora se achava nessa situação de licença especial admirava o modo verdadeiramente amplo e sábio com que Deus, nessa escolha, se libertava do preconceito — como se a sabedoria eterna não tivesse sempre levado na devida conta o seu próprio caráter terreno — e deixava a Ele o encargo de dirimir a delicada questão que havia de surgir entre os filhos de Cheol nascidos dessa união e a raça escolhida. Mas não podemos censurar a esse pretendente que saía da virgem o fato de seus pensamentos se deterem menos nos filhos esperados, nos quais se mesclariam Deus e o mundo, do que nos mistérios aos quais eles iam ficar devendo sua existência, mistérios que até esse momento lhe estavam vedados. O que já fora um mal e coisa proibida era agora um bem. Contemplai, porém, essa criatura por intermédio da qual o mal passava a ser bem; contemplai-a demoradamente, sobretudo porque ela tem uns olhos tão atentos que parece estarem à escuta e uma forma ambarina tão eloquente como a da donzela Aseneth, contemplai-a, e estareis certos de que a vireis a amar, ou melhor, de que já a amais.
Faraó caminhou entre eles quando por fim terminou a festa, retomando a procissão a forma primitiva. Ela agora abrangia todos os presentes, que, com júbilos e lamentos, com suas grinaldas de murta e os punhos das mães mascaradas a agitar-se no ar, se dirigiram para a alcova nupcial, onde os recém-casados encontraram o tálamo entre flores e linho fino. A que montara na porca achava-se imediatamente atrás da filha do sacerdote do Sol enquanto, no umbral da porta, os pais, murmurando as palavras prescritas, se despediam da donzela Aseneth. Por sobre o ombro da noiva a velha bruxa sussurrava coisas tais que faziam a angustiada mãe misturar o riso às lágrimas. E nós também não havemos de rir e chorar ao mesmo tempo? Não encontraremos matéria tanto para riso como para lágrimas ao pensarmos no que a natureza inventou para a humanidade e no modo com que ela quer que dois entes selem o seu amor, ou, no caso de um casamento oficial, aprendam a amar? O sublime e o ridículo bailaram alternadamente à luz da lâmpada nessa noite de núpcias em que a virgindade se encontrou com a virgindade e a coroa e o véu foram rasgados — trabalho certamente dificultoso de rasgar. Pois esta donzela do escudo, acolhida nos braços escuros, era uma virgem obstinada, segundo rezava o seu apelido; e em sangue e dor foi concebido o primogênito de José, Manassés, nome que significa: “Deus me fez esquecer de todos os meus compromissos e da casa de meu pai.”
NUVENS NO CÉU
Era o primeiro ano das vacas gordas e das espigas cheias. Como é natural, o cálculo costumeiro era feito a partir do ano em que o deus subia ao trono, porém entre os filhos do Egito começou então a andar na voga o novo método de contar, conjuntamente com o outro. Na realidade o cumprimento se instalara antes da profecia. Mas somente no ano seguinte foi que ele começou de uma forma que não mais deixou lugar a dúvidas, pois esse ano sobrepujou extraordinariamente em riqueza o precedente e, enquanto o primeiro tinha sido apenas um tanto acima da média, o segundo foi um verdadeiro ano de maravilhas, magnificência e júbilo, tão fértil que excedeu todas as expectativas. O Nilo estava belo e imenso, sem estar ferozmente intumescido, sem talar os campos, e contudo nem uma fração, ainda que mínima, mais baixo do que nos anos de que se tinha melhor notícia. Inundou os campos, depositando neles tranquilamente o seu adubo; era um consolo ver a feracidade da terra ao aproximar-se o termo da estação da sega e a imensa opulência que se fora acumulando no terceiro quarto. O ano seguinte já não foi tão fértil, foi um ano mais ou menos comum, um ano satisfatório, digno, sem dúvida, de menção, sem, entretanto, ser surpreendente. O outro, porém, quase igualou o segundo, sendo ao menos tão bom como o primeiro, ao passo que o quinto mereceu o epíteto de excelente, que ainda era pouco. De modo que podemos imaginar como subiu de ponto entre o povo a reputação de José como administrador de toda aquela fartura e com que zelosa e alegre pontualidade ia sendo executada a sua lei de renda fundiária, o imposto do quinto, não somente pelos que tinham de pagá-los senão também pelos funcionários taxadores. “E, postas em molhos as searas, se recolheram nos celeiros do Egito, e toda a abundância de frutos se recolheu também em cada uma das cidades.” Em outras palavras, o tributo do trigo do país inteiro, entrava ano, saía ano, ia sendo canalizado para os mágicos celeiros de forma cônica que Adon fizera construir em todas as cidades e seus arrabaldes e que logo se viu não serem demasiados, porquanto ficaram todos cheios e tiveram de ser construídos outros novos para recolher o tributo que não cessava de entrar. Tal era o carinho com que Chapi, o nutridor, tratava a sua terra. As colheitas eram na verdade como as areias do mar, dizem-no cânticos e sagas, e com razão. Mas, quando acrescentam que “deixaram de contar, porque excederam todas as medidas”, cometem um exagero que se há de levar à conta de entusiasmo. Os filhos do Egito nunca cessaram de contar, de assentar, de escriturar, pois isso não era do seu gênio e nunca sucedeu. Conquanto a abundância das provisões fosse de fato como as areias do mar, os adoradores do macaco branco tinham como sua principal preocupação encher o pape] de cálculos meticulosamente feitos, e as contas pormenorizadas que José exigia dos seus cobradores e inspetores, ele as recebia sem falta.
Contaram cinco anos de fartura; alguns, ou melhor, muitos contaram sete. E ocioso discutir esse ponto. Os observadores que dão preferência ao sagrado número cinco talvez se deixem impressionar com os cinco dias excedentes de cada ano e com a quota a pagar que se baseou naquele algarismo. Por outro lado, cinco anos de fartura um depois do outro são em si mesmos tão dignos de ser comemorados que seria cômodo glorificá-los chamando-lhes sete. De resto, é possível que se tenha transformado sete em cinco, mas não deixa de ser humano dizer sete em vez de cinco. O narrador confessa aqui sua incerteza, pois não é de seu feitio afetar sabedoria que não possui. Isso implica a confissão que fazemos acerca da nossa ignorância da idade exata de José em determinado período dos anos de escassez. Ele teria ou trinta e sete ou trinta e nove anos. É certo que tinha trinta anos quando compareceu perante Faraó, certo objetivamente, do nosso ponto de vista, porquanto é duvidoso se ele mesmo o sabia. Mas qual seria a sua idade exata naquela fase posterior e crítica, se tinha trinta e muitos anos ou se já tinha quase quarenta, isso não sabemos e temos de nos acomodar com a incerteza. Ele, filho do seu tempo e lugar, pouca importância deu à questão, se é que a deu.
Seja como for, José já não estava na primavera da vida. Se o tivessem levado quando rapaz para Babilônia em vez de o raptarem para o Egito, usaria há muito uma cerrada barba preta, encaracolada e empomadada — excrescência que o ajudaria não pouco num certo jogo a que ia abalançar-se. Mas podemos agradecer ao costume egípcio que conservou desempachado de barba aquele semblante tão parecido com o de Raquel. Ainda assim, saiu-se bem naquele jogo, o que mostra quanto a mão cinzeladora do tempo, a mudança da matéria e o sol da sua terra adotiva influíram nas suas características originais para transformá-las.
Até o tempo em que o tiraram do seu segundo fosso para o porem na presença de Faraó, José havia conservado um aspecto francamente I juvenil. Depois do seu casamento, durante os anos de fartura, quando ' Deus o fez fecundo na donzela Aseneth, dando-lhe esta primeiro Manassés e depois Efraim no alojamento das mulheres da sua casa, ele se tornou um pouco pesado, ou talvez um tanto corpulento demais, embota sem obesidade. Sua boa altura disfarçava tudo muito bem; sua presença dominadora, a que a expressão ladina e jovial de seus olhos negros e o encanto do seu sorriso naquela boca que era tal qual a de Raquel davam um aspecto gentil, justificava o veredicto popular de que José era um homem extremamente bonito. Um tanto ou quanto fornido de carnes, é possível, mas inegavelmente bonito.
Esse aumento de peso harmonizava bem com o período de abundância geral. Efetivamente, o assombroso incremento da produção se manifestava em todos os sentidos: os rebanhos, por exemplo, se multiplicavam tanto que lembravam os eruditos das palavras da velha canção: “Tuas cabras parirão crias duplas, tuas ovelhas anhos gêmeos.” As egípcias também, tanto as da cidade como as do campo, tinham filhos — provavelmente em consequência de melhor alimentação — com muito mais frequência do que antes. Mas a natureza, quer em razão da negligência das mães sobrecarregadas, quer com o aparecimento de novas enfermidades infantis, restabeleceu o equilíbrio com um aumento de mortalidade infantil, de modo que não havia perigo de superpovoamento. Foi só a natalidade que teve um acréscimo notável.
Faraó também tornou-se pai. A senhora dos países já andava de esperanças quando se deu a interpretação e havia uma tendência para se acreditar que também o parto feliz fazia parte do cumprimento da profecia. Quem então veio ao mundo foi a doce princesa Meritaton. Os médicos, por motivos de estética, alongaram-lhe quase em excesso o crânio ainda plástico, e as manifestações de júbilo foram estridentes tanto no palácio como por todo o país, principalmente para abafar a decepção causada pelo não-nascimento do esperado herdeiro. Mas nem sequer mais tarde apareceu herdeiro algum; em toda a sua vida Faraó só gerou filhas, seis ao todo. Ninguém conhece a lei que determina o sexo: não se sabe se ele já está presente no esperma ou se a balança, após alguma hesitação, pende para um lado ou para o outro. Não podemos trazer nenhuma informação sobre o assunto, como não puderam trazê-la os sábios de Babel e de On, nem ainda entre si. Por outro lado, dificilmente nos hão de arredar da convicção de que foi alguma coisa existente na própria pessoa do simpático Amenhotep que deu em resultado gerar ele exclusivamente representantes do sexo feminino.
Seja como for, o fato deve ter sido uma nuvenzinha, por mais que se silenciasse sobre sua existência, a empanar a felicidade conjugal do monarca, embora sempre prevalecesse entre ele e a rainha a mais tema consideração. Qualquer deles podia repetir ao outro as palavras que Jacó disse à impaciente Raquel: “Estou no lugar de Deus que te privou do fruto de teu ventre?” A uma das princesinhas, a quarta, foi dado por mera ternura o nome de Nefernefruaton, título da Rainha dos Países Mas a quinta recebeu um quase idêntico, Nefernefrure — o que parece denotar um como que arrefecimento da imaginação. Poderíamos declinar os nomes das outras, sempre expressivos e bem formados, mas, participando da ligeira irritação que essa monotonia feminina naturalmente desperta, não nos sentimos dispostos a fazê-lo.
Considerando que Teje, a grande mãe, estava ainda à testa da casa do Sol; que a rainha Nefertiti tinha uma irmã, Nezemmut; que existia ainda uma irmã do rei, a doce princesa Baketaton, e que a estas vieram agregar-se no decurso dos anos às seis filhas do soberano, vemos diante de nós uma luzida corte feminina, onde só Meni era o enfermiço galo entre todo um bando de galinhas, e isto não condizia muito com o seu sonho de fênix de um imaterial espírito paterno da luz. Sem querer, lembra-se a gente de uma observação de José feita durante a célebre conversa com Faraó — uma das melhores coisas que ele disse —, isto é, que a força que a muito custo conseguiu elevar-se às altitudes da luz radiosa deve ter sido verdadeiramente uma força máscula, não feita de mera ternura.
Uma leve sombra pesava, portanto, sobre a felicidade régia de Amenhotep e de sua pomba de ouro, a doce senhora do país, por não lhes ter sido concedido nenhum filho varão. O consórcio de José com Aseneth foi também feliz e completamente harmonioso, sofrendo todavia uma restrição semelhante: só lhes nasceram filhos homens, um, dois e ainda outros sobre os quais não cai a luz da história. O fato é que a noiva raptada só deu à luz filhos varões, o que seriamente a decepcionava e provavelmente também a seu esposo, que com muito gosto gerana uma filha para ela, uma ao menos. Afinal é certo que um homem gera, mas não cria. Aseneth sonhava apaixonadamente com uma filha, não uma só, mas várias; a verdade é que, por ela, só desejava filhas. Ela, que tinha sido uma virgem do escudo, não desejava nada com maior ardor do que fazer também ressuscitar da morte da sua virgindade uma outra igual a si. E tinha a instigá-la a atitude da mãe que persistia na sua meia hostilidade do começo, fomentando assim uma ligeira mas permanente discórdia conjugal, sempre mantida, é claro, dentro de certos limites pelo afeto e a consideração.
Isto provavelmente achava-se no auge logo de começo quando nasceu o primeiro filho de José. Grande foi a decepção de Aseneth, pode-se-lhe chamar até exagerada, e tem-se a impressão de que um pouco do aborrecimento de José com as recriminações que teve de suportar se descarregou no nome que deu à criança. “Eu esqueci” (parece que tentou dizer) “tudo o que fica para trás e até a casa de meu pai; tu, porém, e tua melindrada mãe não só procedeis como se tivesses malogrado por completo, mas ainda por cima como se eu tivesse alguma culpa.” Coisa parecida com isso deve existir no fundo da extravagante escolha no nome Manassés; mas é bom acrescentar outrossim que não devemos levar muito a sério o nome nem tampouco o seu significado. Se Deus fez José esquecer todos os seus passados vínculos e a casa de seu pai, como foi então que o mesmo José deu nomes hebreus a seus filhos egípcios? Teria sido por ele calcular que nomes estrangeiros seriam tidos como elegantes na louca terra dos netos? Não; foi porque o filho de Jacó, ainda que estivesse, havia muito, trajando roupas egípcias, não tinha absolutamente esquecido mas trazia sempre presente no espírito aquilo mesmo que dizia ter esquecido. O nome Manassés era apenas uma delicada lembrança, não era uma prova de sandice mas, ao contrário, uma demonstração do extraordinário fato de que José durante toda sua vida fora mestre consumado. Era uma declaração simples do fato de que Deus o arrebatara da sua terra, o reservara e o transferira para a esfera mundana por dois motivos, sendo um deles o ciúme e o outro o compreensivo plano da salvação. Quanto ao segundo, José podia apenas fazer especulações. O primeiro estava inteiramente manifesto diante de seus olhos astutos, cuja penetração se estendia ao ponto de ver através dos desígnios de Deus e reconhecer que era realmente o primeiro e que o segundo apenas oferecia o meio de juntar a paixão e a sabedoria. Dizer “ver através” neste ponto pode parecer uma irreverência. Mas haverá ocupação mais religiosa do que estudar a vida espiritual de Deus? Enfrentar a política do céu cornada Terra é indispensável para quem quer prosseguir na existência. Se durante tantos anos José se conservara mudo como um morto em relação a seu pai, fora política deliberada e penetração compreensiva em relação à vida espiritual do Altíssimo o que o habilitara a assim proceder. E o nome que arranjou para o seu primogênito não se afastava desse plano. “Se eu devia esquecer”, parecia ser o sentido do nome, “vede, eu me esqueci.” Mas não esquecera.
No terceiro ano de abundância Efraim veio ao mundo. A princípio a mãe-donzela nem queria olhar para ele e a sogra mostrava-se mais mal-humorada que nunca. José, porém, perfeitamente tranquilo, deu-lhe o nome que significa: “Deus me fez crescer na terra do meu exílio.” E tinha razão em dizê-lo. Saía no seu leve coche, acompanhado de volantes, aclamado pela população de Menfe com o seu nome de Adon quando se dirigia da soberba residência presidida por Mai-Sachme para os seus escritórios no centro da cidade, onde estavam em atividade trezentos amanuenses, e de tal modo abarrotava as tulhas que já era quase impossível fazer quaisquer cálculos. Ele era um grande homem, o amigo universal de um grande rei, Amenhotep IV, que por essa época, com furioso desgosto do templo de Karnak, pusera de lado o seu nome amuniano e tomara o de Akhenaton (“É do agrado de Aton”). Andava também acalentando a ideia de abandonar Tebas definitivamente e edificar uma cidade inteiramente consagrada a Aton, onde tencionava residir. Naturalmente Faraó desejava ver o mais possível o intérprete da sua doutrina a fim de tratar com ele a respeito de assuntos do céu e dos ínferos. Igualmente não podia deixar de suceder que José, por motivo de seu alto cargo, viajasse várias vezes no ano por terra ou por água a Novet-Amun para dar conta da sua gestão a Hor no palácio, e nessas ocasiões os dois passavam horas em íntimo colóquio. Faraó, por seu lado, em cada ida sua à dourada On ou quando saía à procura do local apropriado para sua nova cidade, a cidade do horizonte, costumava deter-se em Menfe e hospedar-se na casa de José. E claro que isto causava tremendo incômodo a Mai-Sachme, sem, entretanto, chegar a tirar-lhe a calma.
A amizade entre o frágil descendente dos construtores das pirâmides e o filho de Jacó, a qual se alicerçara durante a palestra realizada no pavilhão cretense, cresceu com os anos, tornando-se cada vez mais íntima e cálida. O jovem Faraó chamava José de “tiozinho” e, quando o abraçava, dava-lhe tapas nas costas. Pois esse deus era infenso a formalismos, e era José quem, por natural reserva, guardava a distância prescrita pela cortesia. Muitas vezes o monarca ria da formalidade mantida por seu amigo no meio do seu trato familiar. Falavam da sua pouca sorte como pais, pois um só tinha filhas e o outro só filhos. Mas o descontentamento da donzela do escudo e de sua irritada mãe pouco influía na alegria que causavam a José os netos de Jacó que iam crescendo num mundo tão estranho e afastado do de seu avô. Do mesmo modo a falta de um herdeiro varão não lograva naquela época turbar por muito tempo a índole jovial de Faraó. Tudo ia correndo tão maravilhosamente no seio materno da terra negra que com isso só ganhava e se fortalecia a sua reputação como mestre da luz paterna. Podia ele sentar-se na sombra da prosperidade, dando testemunho ao deus a que sua alma estava afeiçoada e fazendo tudo da sua parte tanto na solidão como em conversa para cada vez pensar mais nele.
Assim debatendo, definindo e comparando as altas e santas propriedades de Aton, pai de Faraó, eles nos fazem lembrar as trocas de ideias religioso-diplomáticas que se realizaram em Salem entre Abraão e Melquisedeque, sacerdote de El Elion, o supremo ou também o único deus, trocas essas que deram em resultado acordarem em que esse El era o mesmo ou quase o mesmo que o Deus de Abraão. Era contudo digno de nota que todas as vezes que o ponto da discussão parecia aproximar-se desse acordo mais claramente se acentuava a palaciana reserva sempre mantida por José em suas relações com o seu augusto amigo.
5
TAMAR
O QUARTO
Uma mulher sentava-se ao pé de Jacó, sabedor de muitas histórias, no bosque de Mambre situado nas imediações de Hebron, no país de Canaã. Muitas vezes essa mulher ficava sentada a seus pés — ora na “casa de pelo”, perto da entrada, no próprio lugar onde certa vez o pai conversara com o seu predileto que acabara induzindo-o a dar-lhe a túnica de várias cores; ora debaixo da árvore da instrução; ora ao bocal do poço que ficava próximo e onde logo no começo fomos encontrar o arguto adolescente sob a Lua e vimos como o pai o espiava, cheio de preocupações, arrimado a um bordão. Como é que essa mulher se assenta junto dele, já num lugar já noutro, com o rosto levantado para o do patriarca, a ouvir suas palavras? De onde vem ela, essa jovem séria tantas vezes encontrada a seus pés, e que espécie de mulher é?
Seu nome era Tamar. — Circunvagamos a vista pelos semblantes de nossos ouvintes e só num ou noutro descobrimos o clarão do conhecimento. E bem visível que a grande maioria daqueles que estão aqui para saber as exatas circunstâncias desta história não recorda ou talvez desconhece os fatos tais quais se passaram. Deveríamos censurá-los por isso, se a ignorância comum, clamando pelo narrador, não viesse encarecer a importância da sua tarefa. Com que então já não sabeis ou, que vos lembre, nunca soubestes quem foi Tamar? Em primeiro lugar, ela era, nem mais nem menos, uma mulher cananeia, Fm segundo lugar, era a mulher de um neto de Jacó, nora de Judá, quarto filho do patriarca, e portanto, por uma espécie de afinidade, neta do abençoado. Em terceiro lugar era uma afetiva discípula de Jacó, homem profundamente versado nas coisas do mundo e nas de Deus, discípula que lhe pendia dos lábios e olhava para a sua solene fisionomia com uma atenção tão reverente que, por sua vez, o peito do consternado ancião se lhe abria inteiramente, chegando ele a sentir-se até um pouquinho enamorado dela.
É que na natureza de Tamar havia uma mistura estranha: numa parte do seu ser ela era austera e cheia de ambição espiritual (a que mais tarde teremos de dar uma designação mais forte), mas na outra possuía os misteriosos encantos físicos e morais de Astarte. É notória a impressão que uma mistura destas faz num homem e até que idade provecta isso pode estender-se quando, como Jacó, esse homem cede às suas emoções e as enobrece.
Após a morte de José, ou melhor, em razão desse doloroso acontecimento, que o velho a princípio parecia incapaz de aceitar, a majestade pessoal de Jacó não fez mais que crescer. Uma vez que se acostumou com o fato e sua contenda com Deus esmoreceu, tendo a cruel disposição desse Deus achado o caminho para penetrar naquele espírito que a princípio se lhe mostrara tão obstinadamente esquivo, essa disposição divina converteu-se em enriquecimento da sua vida, em acréscimo do seu opulento caudal de história. Em virtude disso o seu cismar — quando Jacó a ele se entregava — tornava-se mais expressivo, mais pitoresco do que nunca, chegando a incutir em quem o via um temor reverenciai, tanto que diziam uns aos outros: “Israel medita nos seus contos!” E bem verdade que a expressão faz a impressão. As duas andaram sempre juntas e é provável que uma tenha sempre trazido de olho a outra. Não é coisa de riso se a expressão tem atrás de si não mero embuste mas experiência real da vida e um fardo de contos. Em tal caso o máximo que podemos fazer é sorrir respeitosamente.
Tamar, a jovem do país, nem sequer conhecia um tal sorriso. Ficou profundamente impressionada com a majestade de Jacó assim que se aproximou dele, e isso não se deu apenas por intermédio de Judá, quarto filho de Lia, e dos filhos dele, dois dos quais ela desposou um depois do outro. Tudo isto sabemos, sendo também do nosso conhecimento as sinistras e um tanto equívocas circunstâncias que acompanharam esses casamentos, em outras palavras, a morte dos dois filhos de Judá. O que não é conhecido, uma vez que a crônica o passa por alto, é a relação entre Tamar e Jacó, embora seja ela o pressuposto de todo o episódio que forma uma notável ação secundária dentro da nossa história, e que intercalamos aqui, enquanto ao mesmo tempo percebemos que essa história (que se poderá chamar sedutora, visto como nos seduz a ponto de não descurarmos nenhum detalhe dela), a história de José e seus irmãos, já é em si uma graciosa interpolação numa epopeia de proporções extremamente vastas.
Tamar, a jovem do país, filha de simples lavradores de Baal, movendo-se dentro deste episódio de um episódio — teve ideia do fato?
A resposta é: ela certamente a teve. Seu procedimento, que foi extraordinariamente sério, imponente e escandaloso ao mesmo tempo, é uma prova do fato. Não foi sem motivo que empregamos há pouco a palavra “interpolação”. Esta palavra insiste em voltar-nos ao bico da pena, como se fosse dotada de vontade própria; quer-se introduzir; forma o motivo da hora, é o santo e senha, a mola real de Tamar. Ela dispôs-se a entrar na grande história e conseguiu-o, graças à sua admirável força de vontade. Essa história era o cenário mais vasto de que ela, por intermédio de Jacó, teve notícia e não quis, por nenhum preço, ficar excluída dela. Parece-nos que há pouco nos escapou também a palavra “sedução”. Não foi sem motivo. Aí está outra palavra importante, porque foi pela sedução que Tamar logrou penetrar na grande história de que esta é um episódio. Fez-se tentadora e incidentemente até se prostituiu, tudo para não se ver excluída; rebaixou-se sem medir as consequências do seu aviltamento, a fim de ser exaltada... E isto como se deu?
Ninguém sabe com precisão quando e por que prosaico acaso foi que Tamar teve acesso junto do amigo de Deus, tornando-se uma sua discípula tão devota. Isto talvez tenha acontecido antes da morte de José, sendo provável que ela tenha entrado na tribo por disposição de Jacó, desposando o jovem Her, filho mais velho de Judá. Mas as relações entre ela e o velho só se estreitaram depois do tremendo golpe e depois da demorada e involuntária cura de Jacó, quando seu coração vazio inconscientemente procurava quem o enchesse de algum novo afeto. Só então passou a prestar atenção em Tamar e atraiu-a a si, notando a admiração que a jovem por ele sentia.
Por essa época seus onze filhos estavam quase todos casados, os mais velhos havia muito, os últimos mais recentemente, tendo filhos de suas mulheres. Até a vez de Benoni-Benjamim, o filhinho da morte, chegou. Mal saíra ele da meninice, atingira a adolescência e depois a idade viril, talvez sete anos após a perda de seu irmão, Jacó pediu para ele primeiro a mão de Maalia, filha de um tal Aram, de quem se disse ser “neto de Tara”, descendendo assim, fosse como fosse, de Abraão ou de algum irmão seu, e depois a da donzela Arbath, filha de um homem de nome Simron, chamado explicitamente “filho de Abraão”, o que pode significar ter ele saído desse tronco por via de alguma concubina. Pelo que diz respeito à genealogia das noras de Jacó, a história tem procurado paliar e fantasiar muita coisa, no afã de mostrar o parentesco de sangue da raça sacerdotal, embora recorrendo a afirmações gratuitas e nem sequer o fazendo em todos os casos. As mulheres de Levi e de Issacar são consideradas "netas de Eber" e talvez o fossem; ainda assim, podem ter vindo de Assur ou de Elam. Gad e o ágil Neftali, seguindo o exemplo paterno, casaram com mulheres de Haran na mesopotâmia, mas que eram realmente bisnetas de Naor, tio de Abraão, não foram elas que afirmaram, foram outros. Azer, o amigo de gulodices, tomou para esposa uma donzela trigueira da raça de Ismael. Foi, em todo caso, um parentesco, apesar de duvidoso. Zabulon, apesar de finar-se pelas coisas da Fenícia, escolheu uma madianita. Isso aliás só tinha razão de ser sendo Madian filho de Ketura, segunda mulher de Abraão. Mas já não havia o imenso Rubem ou bem ou mal casado com uma mulher cananeia? O mesmo acontecera com Judá, como sabemos, e com Simeão, porquanto a sua Buna tinha sido furtada de Siquém. Quanto a Dan, filho de Bala, ao qual chamavam serpente e víbora, é notório que sua mulher era uma moabita, descendente daquele Moab, que a filha mais velha de Lot gerara com seu próprio pai, dando à luz o seu próprio irmão. Nada edificante, é claro, e tampouco garantia da pureza do sangue, porque Lot não era irmão mas apenas prosélito de Abraão. De Adão foi ele, sem dúvida, descendente e também de Sem, pois que veio do país dos dois rios. E sempre possível demonstrar a unidade de sangue, uma vez que se remonte bastante longe no passado.
Assim todos os filhos “trouxeram suas mulheres para a casa de seu pai”, segundo lemos; em outras palavras, o local da tribo no bosque de Mambre, perto de Kirjat Arba e do terreno comprado para a sepultura da estirpe nas imediações da casa de pelo de Jacó, cada vez se alargava mais; à medida que os dias se passavam, os descendentes, conforme a promessa, pululavam em volta dos joelhos de Jacó, sempre que o nobre ancião o consentia, e na sua bondade o consentia de vez em quando, acariciando então os seus netos. Fazia isso especialmente com os filhos de Benjamim. Turturra, homenzinho atarracado que tinha ainda os mesmos olhos cinzentos e bondosos e usava um penteado alto que lembrava um capacete metálico, tornara-se pai de cinco filhos que lhe foram nascendo em rápida sucessão, gerados de sua mulher aramaica, e entrementes de outros pequerruchos que lhe dera a filha de Simron. Os netos de Raquel eram sempre os favoritos de Jacó. Mas, apesar de sua presença e da dignidade paterna de Benoni, Jacó ainda tratava seu filho mais moço como se fosse criança, trazendo-o à rédea curta como se ele já não fosse pai de vários filhos e dando-lhe pouca liberdade de movimentos, com medo de que lhe sucedesse alguma desgraça. Ao único penhor que lhe restara do amor de Raquel mal consentia que fosse até a cidade de Hebron, até os campos, e não lhe viessem falar nalguma excursão do irmão de José pelo interior do país. Assim procedia o velho, ainda que estivesse longe de dedicar a Benoni o afeto que nutrira para com José e embora não houvesse razão positiva para temer o ciúme dos poderes do alto em relação a esse filho. Todavia, desde que o amado fora vítima dos colmilhos do porco, Benoni ficara sendo o único tesouro dos cuidados e da preocupação de Jacó, e por isso não o perdia de vista e não deixava passar hora do dia sem saber onde estava Benjamim e que estava fazendo. Essa fiscalização inflexível não podia deixar de ser incômoda para Benjamim, vindo ferir a sua dignidade de marido e de pai. Contudo, aguentava-a, apesar de constrangido, e apresentava-se ao pai várias vezes por dia em obediência a esse capricho do velho, porque, se o não fazia, lá vinha o próprio Jacó a sua procura, apoiado no seu bordão e a coxear — embora, como Benjamim bem sabia e como ficava bem patente do ambíguo proceder do ancião, os sentimentos de Jacó estivessem muito divididos, formando uma extravagante mistura de rancor oculto e senso de propriedade. É que no fundo ele nunca deixara de ver em Benoni o matricida, o instrumento de que Deus se servira para privá-lo de Raquel.
Outra importante vantagem ainda, além da de ser o mais moço, tinha Benoni sobre os seus irmãos vivos; e para a mentalidade cismadora de Jacó, sempre pronta a arquitetar associações de ideias, essa vantagem formava mais uma razão para ele conservar sempre ao pé de si o mais novo. E que Benjamim estivera em casa quando José se perdeu no mundo, e, como conhecemos Jacó, essa equivalência entre estar em casa e ser inocente, não tendo absolutamente arte alguma no crime que cometido fora, estava simbolicamente alojada no seu espírito. Destarte Benjamim devia achar-se sempre presente ali como um sinal vivo e permanente da sua inculpabilidade e do fato de que só ele, o mais moço, não estava sob a suspeita contínua e caladamente toar que, com razão, ainda que num sentido errado, Jacó alimentava no íntimo e que os outros bem sabiam que ele alimentava. Era a suspeita de que o javali que havia despedaçado José fora uma fera de dez cabeças, e Benjamim tinha de ficar em casa” para indicar que o animal positivamente não era de onze cabeças.
Mas talvez nem de dez cabeças fosse. Só Deus o sabia, e não fazia mal que Ele guardasse consigo o segredo. Na verdade, à medida que se escoavam os dias, a questão ia perdendo importância. Isto porque Jacó, desde que cessara de altercar com Deus, tinha chegado à conclusão de que não fora Deus que com a força do seu braço lhe impusera o sacrifício de Isaac, mas de que havia sido ele próprio, Jacó, quem espontaneamente o oferecera. Enquanto durou o primeiro martírio, tal ideia andava longe dele; por essa época acreditava-se vítima de cruel injustiça. A proporção, porém, que a dor diminuía e se ia fazendo o hábito, a morte fez valer suas vantagens — isto é, a percepção que seu filho estava resguardado com todo o carinho e sempre na bela idade de dezessete anos; então aquela alma meiga e patética começou serenamente a julgar-se capaz do feito abnegado de Abraão. Essa ideia brotara para honra de Deus e do próprio Jacó. Deus não o havia privado monstruosa e ardilosamente do seu predileto. Ele se limitara a tomar o que, conscientemente e com espírito heroico, lhe tinha sido ofertado, a coisa mais cara que José possuía. Acredite-se ou não, Jacó, dando a si próprio como testemunha do seu orgulho, quis fazer crer a si mesmo que na hora em que deu licença a José para ir a Siquém executara o sacrifício de Isaac e livremente por amor de Deus se desfizera do ser amado com demasiada ternura. Jacó não acreditou sempre nisso. Algumas vezes confessava a si próprio, contrito e banhado em vivas lágrimas, que nunca teria sido capaz de, pelo amor de Deus, arrancar do seu coração o dileto. Mas outras vezes prevalecia o desejo de crer em tal, e, quando isto se dava, a questão de saber quem abatera José tomava-se relativamente sem importância.
A suspeita, certamente e apesar de tudo, lá estava presente, a roer, mas com mais brandura e não a cada hora; algumas vezes em anos posteriores ficou sopitada e até adormeceu. Os irmãos tinham imaginado viver dali em diante sob suspeita, e suspeita meio errada, mas a coisa não foi tão má como temiam. O pai dava-se bem com seus filhos, não há negá-lo. Falava com eles e com eles partia o pão, tomando parte nos seus negócios, nas suas alegrias e penas domésticas. Encarava neles e só uma vez ou outra, em intervalos cada vez mais espaçados, havia uma expressão sinistra nos olhos do ancião, o olhar da suspeita e do erro, diante do qual os filhos, deixando a meio o que iam dizendo, tinham de baixar os seus. Mas qual seria o significado disto? Um homem baixa os olhos por saber que o outro suspeita dele, o que não equivale a uma confissão de culpa. Uma escrupulosa inocência e compaixão pelo homem aguilhoado pela desconfiança pode também manifestar-se com um baixar de olhos. E assim uma pessoa afinal se cansa das suas suspeitas. Acaba deixando-as em paz, sobretudo se a confirmação delas, sem referência a fatos passados, não pode modificar o futuro nem a promessa nem nada, no presente ou no futuro. Podiam os irmãos ser o Caim de dez cabeças, podiam ser fratricidas, mas eram afinal o que eram, filhos de Jacó, eram os elementos com que se tinha de contar, eram Israel. Jacó dera para usar deliberadamente o nome que havia conquistado lutando no vau de Jacó e por causa do qual coxeava de uma anca, e usa—lo não só para a sua pessoa mas com um sentido muito mais amplo. E por que não? Uma vez que era seu nome, ganho no bom combate que durara até a aurora, podia fazer com ele o que lhe aprouvesse. Israel — não só ele mas tudo o que a ele, o homem da bênção, pertencesse seria chamado assim; desde o mais próximo até o mais remoto dos membros, de todos os ramos e colaterais; a linhagem, a raça, os povos cujo número seria como o das estrelas do céu e das areias do mar. As crianças às quais por vezes permitia brincassem sobre seus joelhos eram Israel; assim as chamava coletivamente e deste nome lançava mão de bom grado, já que não conseguia recordar os nomes de todas elas. Entre os que mais lhe escapavam estavam os nomes dos filhos das mulheres ismaelitas e cananeias, inclusive a moabita e a escrava de Siquém. Mas também elas eram “Israel”, e ainda mais antes de tudo e acima de tudo o eram seus maridos, os onze. Privados de seu pleno número zodiacal por uma prematura e jamais terminada luta fraterna, continuavam sendo ainda assim uma grande estirpe — os filhos de Jacó, progenitores de inúmeras gerações às quais por sua vez haveriam de legar seus nomes; homens poderosos diante do Senhor, apesar do que cada um fosse no seu íntimo e do que cada um tivesse na sua mente quando baixava os olhos. Que importava tudo aquilo se, acima de tudo, continuavam sendo Israel? Porque Jacó sabia, muito antes de se ter escrito — e escreveu-se unicamente porque ele o sabia —, que Israel, ainda depois de haver pecado, continuava sendo Israel.
Contudo, em Israel houve sempre uma cabeça sobre a qual a bênção desceu de preferência às demais. Assim foi com Jacó de preferência a Esaú... e José estava morto. Sobre algum descansava portanto ou descansaria a promessa quando Jacó lançasse a bênção, e desse viria a salvação para a qual o pai procurava, desde havia muito, um nome. Finalmente o havia encontrado, mas ninguém o conhecia, exceto a jovem sentada a seus pés. Quem era o eleito entre os irmãos, aquele de quem viria a salvação? Quem seria o abençoado, agora que a escolha já não seria determinada pelo amor porque o amor tinha morrido? Não era Rubem, o mais velho, que se precipitara como a caudalosa torrente e fizera o papel do hipopótamo. Nem Simeão, nem Levi, pois pessoalmente não passavam de lorpas inexperientes e tinham contra si façanhas inapagáveis, tendo-se portado como pagãos selvagens em Siquém e como sátiros na cidade de Hemor. Os três estavam amaldiçoados, até o limite em que Israel podia ser amaldiçoado. Logo, tinha de ser o quarto, o que imediatamente se lhes seguia. Tinha de ser Judá. Era este o escolhido.
ASTAROT
Saberia Judá que ele era o escolhido? Podia deduzi-lo se se pusesse a contar nos dedos, o que frequentemente fazia; mas cada vez que nisso pensava estremecia, perguntando a si mesmo angustiado se seria digno de tal escolha. Pensava outrossim que esta podia arruinar-se nele. Já conhecemos Judá; vimo-lo várias vezes quando José ainda se reclinava no peito paterno, no meio do grupo de seus irmãos, com sua sofredora cabeça de leão e seus olhos cervinos. Observamo-lo por ocasião da desgraça que tocou a José. Em geral Judá não se havia saído mal de todo naquele negócio; não tão bem, é certo, como Benjamim, que tinha ficado “em casa”, mas quase tão bem como Rubem, que nunca desejou ver morto o rapaz e que até descobrira o poço para depois poder tirá-lo de lá. Judá também teve a ideia de tirá-lo do poço e dar-lhe assim a vida e foi ele quem sugeriu que se vendesse o irmão, porque naqueles tempos já não sabiam comportar-se como Lamech na canção. A desculpa era fútil, um mero pretexto, como o é a maioria das desculpas. Judá havia percebido que o fato de se deixar o rapaz perecer no poço não era nada melhor do que derramar seu sangue, e portanto tinha querido salvá-lo. Não foi por culpa sua que chegou demasiado tarde com sua proposta, quando já os ismaelitas tinham feito o seu trabalho e libertado a José. Podia dizer em boa verdade que o seu procedimento naquele funesto negócio havia sido relativamente decente, pois que seu desejo foi que o rapaz saísse com vida.
Contudo, o crime o torturava mais do que àqueles que não tinham defesa que aduzir. E por que não? Só os seres obtusos deveriam cometer crimes, pois não sentem remorsos, vivem do dia para o dia e nada os atormenta. O mal é para os broncos; todo aquele que tenha uma pouca de sensibilidade deve evitá-lo, se lhe é possível, porque mais tarde não saberá fazer-lhe frente. O fato de possuir uma consciência nada lhe adianta nessa situação, pois ele é castigado exatamente por tê-la.
O crime cometido contra José e seu pai atormentava atrozmente Judá. Sofria porque era capaz de sofrer, como se podia adivinhar nos seus olhos cervinos e nas Unhas em redor das delgadas aletas do seu nariz e de seus beiços carnudos. Aquele ato pendia-lhe sobre a cabeça como uma maldição e o castigava com cruel adversidade, ou antes, a ele atribuía Judá todos os males e adversidades que lhe sucediam, considerando-os como a paga pelo que fizera, por aquele pecado em que tinha tomado parte. E isto é também prova de uma consciência estranhamente arrogante. Sem dúvida Judá via que os demais, que Dan ou Gadiel ou Zabulon, e por certo também os ferozes gêmeos, continuavam ilesos, que nada lhes importava nem tinham de que arrepender-se; o que podia ter-lhe ensinado que seus próprios males, os dele mesmo e os de seus filhos, eram independentes do delito ou da cumplicidade e provinham do seu interior. Não, Judá preferia pensar que estava sofrendo sua punição, que era o único a sofrê-la, e olhava com menoscabo aqueles que, mercê da sua pele espessa, permaneciam incólumes. Tal é a peculiar arrogância da consciência.
Todos os tormentos que padecia traziam o sinal de Astarot, e não era de estranhar que assim ocorresse porque ele sempre fora torturado pela Senhora, estivera sempre debaixo da sua influência, em outras palavras, tinha sido seu escravo sem amá-la. Judá cria no Deus de seus pais, em El Elion, o Altíssimo, Shaddai, o Poderoso de Jacó, o Rochedo e o Pastor, Jahwe, que, quando se sentia irritado, lançava fogo rapace pelo nariz e pela boca. Judá queimava-lhe incenso e levava ao altar bois e anhos lactantes sempre que o reputava necessário. Mas cria também nos Eloim do povo, o que não era coisa muito reprovável, uma vez que não os servia. Quando alguém observa durante quanto tempo ainda os mestres furiosos deviam ter admoestado o povo de Jacó para que se afastasse os deuses estranhos — Baal e Astarot — e não praticasse as cerimônias com os moabitas, não pode deixar de sentir-se impressionado diante de sua obstinada instabilidade e de sua tendência a reincidir e a desviar-se, até a última geração. Não deve, portanto, surpreender-nos que um personagem tão primitivo, tão chegado ainda às origens como Jehuda ben Jekew cresse em Astarot, que era uma deusa sumamente popular, cultuada em toda parte com nomes diferentes. Ela era a senhora de Judá, e este se achava debaixo do seu jugo: era essa a dura realidade, dura para sua alma e para seu caráter de eleito, e como não crer nela? E verdade que não lhe oferecia sacrifícios, não lhos fazia no sentido estrito da palavra, a saber, não lhe levava oferendas de bois ou anhos lactantes, porém a lança cruel da deusa o obrigava a sacrifícios mais apaixonados e lamentáveis que ele cumpria, não com o coração leve, mas só debaixo do látego de sua ama, enquanto seu espírito gemia diante de sua própria lascívia, e cada vez que se soltava dos braços duma hieródula escondia a cabeça envergonhado, perguntando a si mesmo com angústia se seria digno da escolha.
Desde que eles todos juntos tinham apartado José do mundo, Judá dera em considerar as pragas de Astarte mais como um castigo de sua culpa, porquanto elas aumentavam, o perseguiam, não lhe deixavam paz nem descanso. Pode-se dizer que ele já tinha expiado o seu delito num dos infernos que existem — o inferno do sexo.
Alguém poderia sustentar que de todos os infernos existentes não é este o pior. O que assim pensa não conhece a sede de pureza sem a qual não há inferno, nem este nem nenhum outro. O inferno é para os puros; tal é a lei do mundo moral. Porque o inferno foi feito para os pecadores, e só se pode pecar contra a pureza própria. Se uma pessoa é como os brutos do campo, não pode pecar, não conhece o inferno. E isto que está estabelecido, sendo que o inferno é certamente habitado pelos melhores, o que não é justo; mas que é afinal a nossa justiça?
A história do casamento de Judá e do de seus filhos e de sua consequente destruição é excessivamente estranha e anormal e na realidade incompreensível, de modo que só se pode falar do assunto com meias palavras, e isto não apenas por delicadeza. Sabemos que o quarto filho de Lia se casou moço e que o passo foi dado por amor à pureza, a fim de assumir obrigações, de coibir-se a si mesmo e poder achar assim a paz. Mas foi em vão; não havia ele contado com a deusa do látego. Sua mulher — cujo nome não nos foi legado pela tradição, provavelmente porque a chamaram pouco por ele — era simplesmente a filha de Sue, o cananeu que Judá ficará conhecendo por intermédio de seu amigo e maioral de pastores, Hiras, da aldeia de Odolam. Aquela mulher teve muitos motivos para lágrimas, muito que perdoar, o que se lhe tornou um pouco mais fácil, porque três vezes conheceu a alegria da maternidade. Não obstante, esta alegria foi muito breve, porque os filhos que ela deu a Judá foram amáveis somente no começo e mais tarde tornaram-se malvados. Sela, o mais moço, nascido muito tempo depois do segundo, era ainda o melhor; era apenas enfermiço, mas os dois mais velhos, Her e Onan, eram doentios e perversos; doentios de maneira perversa e perversos de maneira doentia, conquanto fossem ambos formosos de ver e de modos petulantes. Em resumo, foram uma aflição em Israel.
Rapazes como esses, espertos e achacadiços, e todavia encantadores a seu modo, estão fora de tempo e de lugar, são um sinal da precipitação da Natureza, que nem sempre está em si e não sabe a quantas anda. Her e Onan estariam bem adaptados numa sociedade antiga e decadente, num mundo ancião de herdeiros irônicos, digamos — no simiesco país do Egito. Achando-se, porém, tão próximos dos começos de um esforço dirigido ao futuro e no espaço, foram um erro de tempo e de lugar e tiveram de ser varridos da Terra. Judá, pai deles, devena ter reconhecido o fato sem culpar a ninguém, exceto talvez a si mesmo, por tê-los gerado. Mas preferiu fazer recair toda a responsabilidade da protérvia deles sobre a mãe, a filha de Sue, e sobre si mesmo só enquanto considerava que tinha cometido uma loucura tomando para esposa uma mulher nascida entre os idólatras de Baal. Da destruição dos dois culpou a mulher, à qual os dera em casamento e a quem acusou de ser um retrato daquela Istar, que extermina seus amados para que morram por seu amor. Isto era injusto para sua própria esposa, a qual ao cabo de pouco tempo morreu de pena, e sumamente injusto para Tamar.
TAMAR CONHECE O MUNDO
Tamar era a que se sentava aos pés de Jacó havia já muito tempo, profundamente comovida com a expressão do rosto de Israel e pendente de seus lábios. Nem uma única vez recostava o corpo a um espaldar; sentava-se muito ereta sobre um banquinho ou sobre um degrau do poço ou sobre um nó de raízes, ao pé da árvore da sabedoria, com o pescoço esticado e as costas côncavas e duas rugas de atenção entre as sobrancelhas aveludadas. Vinha de um lugarejo situado numa encosta ensolarada, nas cercanias de Hebron, e cujos moradores viviam de suas vinhas e cuidavam do gado miúdo. Lá ficava a casa de seus pais, modestos granjeiros que mandaram a moça a Jacó com espigas de trigo e queijo fresco, lentilhas e cevadinha. Jacó pagou tudo aquilo com cobre. Assim chegara Tamar até ele com um pretexto qualquer, porquanto na realidade a movia um impulso mais alto.
Ela era formosa a seu modo; não bonita segundo os cânones usuais, mas bela de um modo austero e proibitivo; era como se estivesse indignada com a sua própria formosura, e não sem razão, porque era dotada de uma atração mágica que não deixava os homens em paz, sendo isto justamente o que motivava as rugas entre suas sobrancelhas, Era alta e quase magra, porém de uma magreza mais perturbadora do que qualquer corpulência, por forte que esta fosse; portanto, o desassossego que Tamar provocava não era da carne, mas de uma natureza que poderíamos chamar demoníaca. Tinha olhos castanhos, eloquentes e maravilhosamente lindos, narículas quase redondas e uma boca orgulhosa.
Não era de estranhar que Jacó se sentisse atraído por ela e que, era recompensa da admiração que ela lhe devotava, a atraísse para junto de si. Israel era já um homem idoso, que amava o sentimento e só desejava ser capaz de voltar a sentir, e, para despertar em homens velhos como nós o sentimento ou ao menos algo que vagamente e com suavidade nos recorde os sentimentos da nossa juventude, requer-se alguma coisa fora do comum, alguma coisa que nos dê força por sua admiração, alguém que, possuindo uma atração como a de Astarte, se mostre espiritualmente ávida de nossa sabedoria.
Tamar era uma buscadora. As rugas cavadas entre suas sobrancelhas não denotavam apenas ira diante de sua própria beleza, mas também uma preocupação e busca da verdade e da salvação. Em que lugar do mundo se encontra alguém sem a preocupação de Deus? Essa preocupação acha-se presente no trono dos reis e na cabana do mais humildes dos campônios. Tamar a sentia também. A inquietação que ela produzia e angustiava e exasperava exatamente por essa inquietação que nela produziam as coisas mais altas. Qualquer pessoa teria acreditado que aquela aldeã se sentiria satisfeita com o culto que a sua raça dedicava à natureza; mas não havia tal. Esse culto vulgar não lhe bastava nem ainda antes de encontrar-se com Jacó. Ela não podia satisfazer-se com os Baalim e os deuses da fertilidade, porque sua alma adivinhava a existência de alguma coisa diferente e mais alta no mundo, e a isso tendia ela. Existem almas com essa conformação, e basta que surja alguma coisa nova, que se produza alguma mudança no mundo para que sua sensibilidade solitária se sinta afetada e esteja disposta a receber essa mudança. Sua inquietação não é por certo de primeira ordem, não é como aquela do emigrante de Ur que o arrastava para o vazio, onde nada havia, e o forçava a criar de si mesmo o novo. Não. Almas assim não pertencem a esta categoria; se, porém, surge no mundo alguma coisa nova, essa lhes perturba à légua os sentimentos e a sensibilidade, e elas devem então percorrer um largo caminho até encontrá-la.
Tamar não teve de ir tão longe. As mercadorias que levava até a tenda de Jacó, e pelas quais recebia o seu peso em cobre, sem dúvida nada mais eram que um pretexto de seu espírito, um ardil de sua própria inquietação. O fato é que foi ter com Jacó e agora se sentava frequentes vezes aos pés do imponente ancião, subjugada ali pelo peso de suas histórias. Permanecia muito empertigada, com os grandes olhos penetrantes levantados para ele, tão fixa e imóvel em sua concentrada atenção que os brincos de prata que pendiam de cada lado de suas faces encovadas não se moviam. E Jacó falava-lhe do mundo, isto é, narrava-lhe suas próprias histórias que, na sua intenção de instruir, apresentava audazmente como a história do mundo, como i história dos ramos de uma árvore genealógica que se estendiam em todas as direções, como uma história familiar surgida de Deus e por Ele presidida.
Falou-lhe do começo, do caos e da antiga noite e de sua divisão pela palavra de Deus; da obra dos seis dias e de como, por ordem sua. se enchera de peixes o mar, e de aves aladas o espaço debaixo do firmamento do qual estão suspensos grandes luzeiros, e de como a terra se cobrira de erva virente e de gado, de répteis e de toda a espécie de animais. Repetiu-lhe a enérgica ordem que Deus dirigiu a si mesmo, num plural folgazão, a empreendedora proposta: “Façamos o homem.” E para Tamar tudo aquilo era como se o próprio Jacó o tivesse dito e como se Deus (que em qualquer circunstância e sempre era chamado simplesmente Deus, à diferença de outros lugares do mundo), como se Ele devesse parecer-se com Jacó. E na verdade não havia dito o próprio Deus: “à Nossa imagem e semelhança”? Ouviu falar do jardim do Oriente em Éden e das árvores que nele havia, da árvore da vida e da árvore da ciência; da tentação e do primeiro ataque de ciúmes de Deus; de como Ele se sentira alarmado ante a possibilidade de que o homem, que conhecia agora o bem e o mal, pudesse comer também da árvore da vida e ser inteiramente como “Nós”. Por isso Aquele que tinha feito o homem à sua imagem e semelhança se dera pressa em expulsá-lo e em colocar o querubim com a espada chamejante em frente à porta. E impôs ao homem o trabalho e a morte, a fim de que, não obstante haver sido feito à “Nossa” imagem, não o fosse inteiramente, mas apenas um pouco mais que os peixes, as aves e os brutos, porém conservando sempre a tarefa, privadamente marcada, de continuar assemelhando-se-nos apesar de Nossa ciosa oposição, tanto quanto fosse possível.
Tudo isto ouviu Tamar. Era uma história não muito coerente e cheia de mistérios, mas era ao mesmo tempo grandiosa, como o era o próprio Jacó ao narrá-la. Ouviu falar também dos irmãos que eram inimigos e de como um matou no campo o outro. E dos filhos de Caim e de seus semelhantes e de como se dividiram em três grupos sobre esta terra: os que habitavam em tendas e apascentavam rebanhos; os que eram artífices em bronze e ferro; e aqueles que se limitavam a tocar rabeca e assobiar. Esta era uma classificação provisória. De Set, nascido para ficar no lugar de Abel, saíram muitas gerações, até Noé, o sapientíssimo. A este último, Deus, frustrando-se a si próprio e a Sua ira aniquiladora, permitiu salvasse toda a criação, e assim Noé sobreviveu ao dilúvio com seus filhos Sem, Cam e Jafet. Depois disto o mundo tornou a dividir-se, porque cada um dos três deu origem a inumeráveis gerações. Jacó conhecia-as a todas, sabia os nomes das tribos e das suas moradas na Terra, e todos aqueles nomes caíam de seus lábios nos ouvidos de Tamar. Imenso era o panorama da pululante raça e dos lugares por ela habitados, mas tudo se unia no particular e na história familiar. Porque Sem gerou Heber na terceira geração e este a Tare na quinta e assim até chegar a Abraão, um de três, que foi por sua vez o único.
Porque a Abraão infundiu Deus desassossego no coração, para o Seu bem, de modo que ele meditou incansavelmente sobre Deus para evocá-lo e lhe dar um nome. Deus criou Abraão como Seu benfeitor e recompensou com promessas de grande alcance a criatura que criara o Criador em espírito. Deus fez com ele um pacto mútuo: que um se santificaria no outro. E deu-lhe o direito de eleição, o poder de abençoar e de amaldiçoar, para que ele pudesse abençoar o abençoado e amaldiçoar o amaldiçoado. E abriu diante dele vastos horizontes nos quais se agitavam povos para todos os quais seu nome seria uma bênção. E prometeu-lhe uma paternidade sem limites, apesar de ter ele sido fértil em Sara até depois dos oitenta e seis anos completos.
Então Abraão tomou a serva egípcia e gerou com ela seu filho Ismael. Porém este engendro fora malsucedido, não na vereda da salvação; pertencia ao deserto, e o primeiro pai não creu na afirmação de Deus de que ainda teria um filho de sua verdadeira esposa, o qual se chamaria Isaac; ouvindo a palavra divina, pôs-se a rir, pois já tinha cem anos de idade e com Sara já não se dava o que se dá com o geral das mulheres. Mas fez mal de rir-se, pois que veio então ao mundo Yitzchak, a vítima impedida, e de quem foi dito desde o alto que havia de gerar doze príncipes. Isto não estava rigorosamente certo, porque ás vezes Deus errava ao falar e nem sempre suas palavras tinham o significado do que diziam. Não foi Isaac que gerou os doze, a não ser indiretamente. Na realidade o gerador havia sido ele mesmo, Jacó, de cujos solenes lábios pendia a jovem do país. Foi Jacó, irmão do Ruivo, quem, com quatro mulheres, tinha gerado os doze, sendo servo do perverso Labão em Sinear.
E Tamar ouviu uma vez mais a narrativa dos irmãos que eram inimigos, do caçador ruivo e do meigo pastor; ouviu a fraude da bênção que pôs as coisas em seus lugares, e a fuga do ladrão abençoado. Muito de passagem soube de Elifaz, filho do deposto, e do encontro de Jacó com ele; porém tudo isto foi modificado de forma que deixou Jacó bem colocado. Aqui como em outros pontos o narrador procedia com cautela, como quando falou da beleza de Raquel e do amor que ele lhe tinha. Modificando em parte a história da humilhação sofrida às mãos de Elifaz, fazia-o em defesa própria; mas, ao falar da mulher ternamente amada, fê-lo com prudência em consideração a Tamar, porquanto estava de certo modo enamorado dela e seus sentimentos lhe diziam que, em presença de uma mulher, não se devem gabar excessivamente os encantos de outra.
Por outro lado lhe descreveu, em toda a sua magnitude e esplendor, o grande sonho da escada que o ladrão da bênção teve em Luz, se bem uma exaltação tão gloriosa talvez não soasse de todo razoável nos ouvidos de quem não tinha conhecimento da tremenda humilhação que a precedera. Tamar ouviu também, com todos os seus sentidos postos nele, a história do herdeiro que trazia consigo a bênção de Abraão e tinha o poder de transmiti-la a um que seria senhor sobre seus irmãos e a cujos pés os nascidos do mesmo ventre tinham de prostrar-se. E ainda escutou as palavras: “Em ti e em tua descendência serão benditas todas as gerações da Terra.” E ela permaneceu imóvel.
Que não ouviu Tamar naquelas horas, que de histórias nanadas de forma tão impressionante! Os catorze anos de servidão na tem de lama e ouro passaram diante de seus olhos e depois os anos adicionais que completaram os vinte e cinco, e como a esposa verdadeira e a que não o era e suas escravas reuniram os onze, inclusive o filho predileto. E ouviu a narrativa da fuga, da perseguição, e de como Labão os encontrou. Ouviu da luta com o de olhos bovinos até o amanhecer, depois da qual Jacó coxeou toda a sua vida. De Siquém e suas atrocidades, de quando os selvagens gêmeos trucidaram o noivo e destruíram o gado e foram amaldiçoados... até certo ponto. Da morte de Raquel a cento e vinte e cinco passos da pousada e da pequena criatura nascida da sua morte. De como Rubem se precipitara desconsideradamente e ele também foi amaldiçoado, na medida em que Israel podia sê-lo. E logo depois a história de José — de como seu pai o havia amado com demasiada ternura, mas, como alma forte e heroica que era, tinha (sabendo muito bem o que fazia) enviado o predileto, oferecendo-o como vítima.
Este último “um dia” era ainda recente, e a voz de Jacó fazia-se trêmula ao recordá-lo, ao passo que nos episódios anteriores, já carregados de anos, sua voz se mantivera epicamente impassível solene e até jovial no tom e nas expressões, mesmo nos trechos mais tétricos e pesados, porque aquelas eram histórias de Deus, sagradas na narração. Era evidente, contudo, e não podia ser de outro modo, que Tamar, que escutava com a alma tão sôfrega, não somente se nutria daquele histórico, daquele longínquo e venerando “sucedeu uma vez”. “Um dia” é uma expressão de face dupla. Pode remontar a distâncias crepusculares, mas projeta-se também no futuro, e não é menos solene quando trata do que há de ser como quando se refere ao que foi. Muitos negam isto. Para eles “um dia” do passado é a única coisa sagrada, o futuro é mera frioleira. Esses são devotos, mas não piedosos, almas néscias envolvidas em nuvens, e a suas igrejas por certo não se sentava Jacó. Aquele que não sabe honrar “um dia” no futuro não merece o do passado, e mesmo a sua atitude em face do presente é errada. Tal é o nosso credo, se podemos interpolá-lo nos ensinamentos que Jacó transmitiu a Tamar — ensinamentos cheios de “um dia” de face dupla. E por que não havia de ser assim, se ele a estava instruindo a respeito do mundo, e falar do mundo é dizer “um dia” em ambos os sentidos, no conhecimento e na presciência? Bem podia ela replicar-lhe agradecida, como o fez: “Não te pareceu bastante, meu senhor, contar à tua serva o que foi, pois também lhe tens falado do longínquo futuro.” Assim ele tinha feito inconscientemente, porque todas as suas histórias desde o começo continham um elemento de promessa, de tal modo que era impossível contá-las sem prognosticar.
De que falava Jacó a Tamar? Falava-lhe de Shiloh.
Seria totalmente falso supor que só no seu leito de morte, sentindo a iminência da próxima dissolução, Jacó teria falado de Shiloh, o herói. Naquele momento não sentiu influência alguma; o que fez foi proferir as palavras sobejamente sabidas e preparadas, depois de tê-las considerado e estudado com toda a atenção durante boa parte da vida, palavras às quais a hora da morte apenas devia conferir nova solenidade. Referimo-nos às palavras de bênção e de maldição ditas sobre seus filhos e à imagem da promessa, a que deu o nome de Shiloh. Já na época de Tamar, essa imagem tinha ocupado os pensamentos de Jacó, apesar de não haver falado dela com ninguém a não ser com Tamar, em reconhecimento pela grande atenção que ela lhe dispensava e porque com o resto da sua capacidade de sentir estava enamorado dela. A quem ou a que se referia Jacó ao falar de Shiloh?
Era na verdade estranho e extraordinário como havia ele meditado tudo aquilo para si mesmo! Porque Shiloh não era na realidade mais que o nome de um lugar circundado de muralha, situado ao norte do país, onde a miúdo os filhos da terra, depois de haverem combatido e saído vitoriosos, se reuniam para repartir os despojos. Não era um lugar particularmente sagrado, mas era chamado lugar de descanso ou sossego, pois isto significa Shiloh: significa paz, significa recobrar o alento depois de uma luta sangrenta. E uma palavra de bênção, tão adequada para uma pessoa como para um lugar. Siquém, filho da cidadela, tirara seu nome do nome da sua cidade. Do mesmo modo, Shiloh podia servir para um homem e filho de um homem chamado portador da paz. Nos pensamentos de Jacó este era o homem da esperança prometido naqueles primeiros e sempre renovados votos e preceitos, prometido ao ventre da mulher, prometido na bênção de Noé a Sem, prometido a Abraão, por intermédio de cuja descendência todas as raças da Terra seriam abençoadas. Seria o príncipe da paz e o ungido que reinaria de mar a mar e do rio até os confins do mundo, diante do qual deveriam inclinar-se todos os reis, o herói ao qual deviam unir-se todos os povos, o herói que um dia surgiria da descendência escolhida e ao qual o trono de seu reino seria confirmado para sempre.
A este que devia vir chamou Shiloh. E agora empreguemos nossa imaginação, na medida que nos for possível, para representarmos o velho, dotado de tão opulentos meios de expressão e de visão, falando a Tamar acerca de Shiloh durante aquelas horas e ligando os mais remotos começos com o futuro mais distante. Sua linguagem era poderosa e estava prenhe de sentido. Tamar, a única criatura considerada digna de escutar aquilo, permanecia imóvel. Nem sequer observando-a com toda a atenção, podia-se perceber o menor movimento de suas arrecadas. Tamar escutava a história do mundo que nas coisas primitivas continha a promessa do porvir: era uma vasta história, cheia de acontecimentos e ramificações, através da qual corria o fio escarlate do prenuncio e da esperança desde “um dia” até “um dia”, desde o mais remoto “um dia” até o futuro mais distante. Naquele “um dia”, numa catástrofe cósmica de salvação, duas estrelas se lançariam em chamejante ira uma contra a outra, a estrela da força e a estrela do direito, e despedaçar-se-iam num choque de cujo estrondo ecoaria o Universo; depois seriam uma só, e esta resplandeceria com um suave e poderoso fulgor para sempre sobre a cabeça dos homens: a estrela da paz. Aquela seria a estrela de Shiloh, a estrela do filho do homem, do filho da eleição, que tinha sido prometido à raça da mulher e que esmagaria a serpente. Ora pois, Tamar, que era uma mulher, que era a mulher, porque toda mulher é a mulher, instrumento da queda e ventre da salvação, Astarte e a mãe de Deus — Tamar permanecia sentada aos pés do homem-pai sobre o qual, pela astúcia corretiva, havia caído a bênção e que podia transmitir essa bênção à história, a um em Israel. Quem seria este? Sobre que fronte alçaria o pai o corno da abundância, atochado de bênçãos, para ungir o seu herdeiro? Tamar tinha dedos para contar. Havia três filhos que estavam amaldiçoados, e o predileto, o filho da esposa verdadeira, tinha morrido. O amor já não podia guiar o curso da herança, e, donde o amor se foi, só a justiça subsiste. A justiça era o como do qual escorreria o óleo da unção sobre a fronte do quarto. Judá era o herdeiro.
A MULHER RESOLUTA
A partir daquele momento, as rugas que se notavam entre as sobrancelhas de Tamar tiveram outro significado. Já não falavam apenas de sua ira diante de sua própria beleza, nem de sua busca e anelo, mas envolviam também uma determinação. Vamos deixar bem claro o nosso pensamento: Tamar estava resolvida, custasse o que custasse, a introduzir-se, por intermédio da sua feminilidade, na história do mundo. Era essa a sua ambição. Naquela resolução inabalável e quase sinistra (há sempre um quê de sinistro no inabalável) tinham encontrado saída suas aspirações espirituais. Existem naturezas nas quais um ensinamento se transforma instantaneamente numa resolução, ou melhor, só procuram o ensinamento para alimentar sua vontade e dar-lhe um propósito. Tamar apenas necessitava ser instruída sobre o mundo e sua finalidade para adotar a resolução incondicional de associar sua natureza feminina a essa finalidade e converter-se num ser histórico.
Esclareçamos este ponto. Não há quem não faça parte da história do mundo. Pelo mero fato de ter nascido, cada qual deve, de uma forma ou de outra, por fãs ou por nefas, contribuir com o seu óbolo para o desenvolvimento do processo mundial. Contudo, muita gente se move na periferia, sem ter consciência da história do mundo, sem participar dela, modesta e no fundo não de todo descontente de não ser do número dos atores mais conspícuos da cena universal. Tamar desprezava essa atitude. Ainda bem não acabara de receber as instruções, tomou sua resolução, ou melhor, deixara-se instruir para aprender que ela desejava e que não desejava. Não queria mover-se na periferia. Essa moça do país tinha a firme intenção de colocar-se na linha da promessa. Queria pertencer à família, introduzir seu ventre na linhagem que conduzia, através do tempo até a salvação. Ela era a mulher, a promessa viera à sua raça. Ela seria a mãe de Shiloh, nem mais nem menos.
As rugas entre suas sobrancelhas se acentuaram. Já significavam três coisas e vinha juntar-se agora um quarto significado: significavam irado e invejoso desprezo pela filha de Sue, a esposa de Judá. Esta pateta estava já na linha, ocupava um lugar privilegiado, sem nenhum mérito nem conhecimento nem força de vontade (para Tamar estes dois elementos eram um mérito); ela era uma nulidade dignificada pela história. Tamar tinha-lhe aversão, aborrecia-a de uma forma feminina e consciente. Do mesmo modo e com plena consciência teria desejado sua morte se esta tivesse tido algum sentido; mas não tinha nenhum, porque a mulher já dera três filhos a Judá, de maneira que Tamar teria de desejar também a morte dos três para repor as coisas nos seus lugares e ensejar para si mesma uma oportunidade junto do herdeiro da bênção. Neste caráter é que ela amava Judá e o desejava: seu amor era ambição. Provavelmente nunca — ou nunca até então — uma mulher amou ou desejou um homem prescindindo de tal forma dele mesmo e tão inteiramente por causa de uma ideia, como Tamar amava a Judá. Para o amor era uma nova base, em existência pela primeira vez: o amor que provém não da carne, mas do pensamento, de sorte que bem poderíamos chamar-lhe demoníaco, dando-lhe o mesmo nome que à inquietação que a própria Tamar provocava nos homens, sem influência da sua forma carnal.
Tamar poderia ter conseguido Judá com a sua natureza de Astarte de que em outras ocasiões ela se exasperava. Até gostaria de assim fazer, pois sabia que ele era escravo da deusa e estava certa de que deste modo teria êxito. Era, porém, demasiado tarde, quer dizer, demasiado tarde no tempo. Ela chegara demasiado tarde; seu amor-ambiçào se dera fora de tempo e de lugar. Já não podia introduzir-se neste fuzil da cadeia para se colocar na linha, de maneira que era preciso dar um passo à frente ou então abaixo no tempo e nas gerações; teria de mudar sua própria geração e dirigir seus ambiciosos propósitos ao ponto em que teria preferido ser mãe. A ideia não era difícil, porque, na mais alta esfera, mãe e amada foram sempre a mesma coisa. Em resumo, teria de afastar seus olhos de Judá e pousá-los sobre seus filhos, os netos da herança, os quais, fossem outras as circunstâncias, ela desejaria suprimir para gerá-los ela mesma com melhor êxito.
No primeiro momento, como era lógico, concentrou-se unicamente no primogênito, o jovem Her, por ser este o herdeiro. Sua posição pessoal no tempo tornava muito possível a mudança de objetivo. Ela não era nem jovem demais para Judá, nem excessivamente velha para Her. Todavia deu o passo sem alegria. Sentia repulsa pela natureza enfermiça e degenerada dos irmãos, não obstante os encantos que eles possuíam; porém sua ambição acorreu em seu auxílio, porque do contrário ela a teria considerado demasiado fraca. A ambição lhe disse que a promessa nem sempre tornava o curso promissor ou o mais simpático; que às vezes costumava percorrer um largo trecho duvidoso, indigno e até depravado, sem esgotar-se; que nem sempre a enfermidade gerava por sua vez a enfermidade e que dela poderia resultar um novo vigor que levasse ao caminho da salvação, especialmente quando era gerada e desenvolvida por uma força de decisão como a que Tamar possuía. Além disso, os rebentos de Judá eram varões degenerados e nada mais. Tudo dependia da fêmea, dependia de que a pessoa indicada soubesse introduzir-se no ponto mais fraco. A primeira promessa se referia às entranhas da mulher e com isso nada tinham que ver os homens.
Assim, para alcançar seu propósito, Tamar teve de subir novamente no tempo, indo até a terceira geração; de outro modo, não seria possível atingir seu desiderato. Verdade é que pôs em prática sua sedução de Astarte com o rapaz, cuja reação foi, entretanto, infantil e viciosa. Her queria apenas brincar com ela e quando Tamar opunha a isso a escuridão das suas sobrancelhas, ele retrocedia e se mostrava incapaz de ficar sério. Certa delicadeza a impedia de ir além e de pôr em prática esses ardis com Judá, porque a ele Tamar queria na realidade ou teria querido; e, posto que Judá o ignorasse, ela mesma o sabia e sentia vergonha de pedir-lhe o filho que ela de bom grado lhe teria gerado. Por conseguinte foi ter com o chefe da tribo, seu mestre, Jacó, explorando a fraqueza cheia de dignidade que o ancião sentia por ela e que Tamar notara plenamente, sentindo-se com isso ufana, resolvida a pedir-lhe seu neto para mando. Sentaram-se na tenda, no mesmo lugar onde José tinha falado uma vez com o ancião a respeito da túnica multicor. A tarefa dela era mais fácil que a dele.
— Mestre e senhor — disse-lhe —, grande e querido paizinho, escuta agora a tua serva e inclina o teu ouvido à sua súplica sincera e ardente. Tu me distinguiste e me fizeste grande entre as filhas do país; instruíste-me no mundo e em Deus, o único Altíssimo; abriste meus olhos e ensinaste-me, de tal modo que eu sou uma criação tua. Como me foi concedido achar favor diante de teus olhos e como foi que confortaste tua serva e lhe falaste com bondade? Oxalá o Senhor te recompense e te retribua e oxalá tua recompensa seja perfeita no Deus de Israel, ao qual cheguei, conduzida por tua mão, até encontrar-me agora a salvo debaixo de suas asas! Pois cuido de mim mesma e de minha alma para não esquecer as histórias que me narraste e para não apartar delas o meu coração enquanto viver. A meus filhos e aos filhos de meus filhos, se Deus mos conceder, direi que não se destruam a si mesmos, nem fabriquem imagem alguma de homem ou mulher, nem de animal sobre a terra, nem de aves debaixo do céu, nem de répteis ou peixes; nem levantem seus olhos e vejam o Sol, a Lua e as estrelas e reneguem de Deus para adorá-los. Teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus. De maneira que, se Ele me conceder filhos, estes não me hão de ser gerados por um homem de um povo estranho. Um homem de tua própria casa poderia, meu senhor, tomar uma filha da Terra, tal como eu era, e levá-la para Deus. Porém, assim como sou agora, nascida de novo e feita à tua imagem, não posso desposar um pagão que adora imagem de pau e de pedra feitas pela mão de um artífice e que não podem escutar nem ver nem cheirar. Contempla, pois, pai e senhor, o que fizeste comigo: fizeste-me fina e delicada de alma, de tal modo que já não posso viver como vivem as maltas dos ignorantes, nem casar-me com o primeiro pretendente, nem entregar minha donzelice a quem adore um deus falso como em outro tempo, na minha simplicidade, teria feito. Aí estão os inconvenientes do aprimoramento e as dificuldades que consigo traz a elevação! Por isso não leves a mal que tua filha e serva te aponte a responsabilidade que sobre ti mesmo atraíste formando-a desse modo, e que te faça ver que agora estás em dívida com ela, assim como ela o está contigo, e que agora te compete pagar por tê-la elevado.
— O que dizes, minha filha, está ousadamente concebido e não deixa de ter lógica. Não se pode deixar de aprovar tuas palavras. Mas dize-me quais são os teus desígnios, porquanto ainda não os percebo, e confia-me os teus pensamentos que ainda me são obscuros.
— A teu povo pertenço em espírito — respondeu Tamar. — Só de teu povo posso ser na carne e em minha condição de mulher. Tu abriste meus olhos; deixa-me abrir os teus. Um ramo cresce do teu tronco: Her, filho do mais velho do teu quarto filho, que é como a palmeira junto às águas e como uma cana esbelta no canavial. Intercede, portanto, diante de Judá, teu leão, para que me dê por esposa a Her.
Jacó mostrou-se excessivamente surpreso ao ouvir isto.
— De maneira que é essa a intenção das tuas palavras e a isto eram dirigidos os teus pensamentos? Na verdade que nunca eu o teria adivinhado. Falaste-me da responsabilidade que pesa sobre meus ombros ao instruir-te e agora me deixas preocupado por tua causa. Com efeito, posso falar ao meu leão e fazer que minha palavra prevaleça diante dele. Mas como justificá-lo? Bem-vinda és à minha casa, que te abre os braços com alegria para te receber. Porém adestrei-te nas coisas de Deus para que te tomes infeliz? É com pesar que falo mal de quem quer que seja em Israel, mas os filhos da filha de Sue são má semente e inúteis diante do Senhor, e prefiro apartar deles os meus olhos. Na verdade, vacilo muito em satisfazer teu desejo, pois é convicção minha que os rapazes não são bons para o tálamo nupcial, pelo menos não o são para ti.
— Para mim mais que para ninguém — disse ela com firmeza. — Reflete nisto, meu mestre e senhor. Foi inexoravelmente decretado que Judá tivesse filhos. E eles são como são; em todo caso, no âmago eles devem ser sadios, uma vez que neles está a seiva de Israel. E não é possível prescindir deles nem deitá-los à margem, a não ser que eles mesmos se afastem e não sejam bem-sucedidos na prova da vida. E inevitável que eles, por sua vez, tenham filhos, um deles ao menos, Her, o primogênito, a palmeira junto ao regato. Eu o amo e com o meu amor o converterei num herói em Israel.
— Tu sim que és uma heroína, minha filha — tornou o ancião. — E em ti confio para que leves a cabo o teu propósito.
E assim lhe prometeu interceder junto de Judá, seu leão, se bem que, ao fazê-lo, seu coração estivesse embargado por sentimentos contraditórios, pois amava aquela mulher com o pouco de paixão que lhe restava e sentia-se contente, por uma parte, de apresentá-la a um homem do seu próprio sangue, mas ao mesmo tempo lamentava e sentia vergonha de que aquele homem não fosse digno dela. Além disso, não sabia por quê, a ideia o fazia de vez em quando estremecer.
“NÃO POR NOSSO INTERMÉDIO”
Judá não vivia com seus irmãos no bosque de Mambre, “na casa de seu pai”. Desde que travara amizade com Hirão, pastoreava na planície, numa várzea próxima a Odolam, e seu filho Her e Tamar celebraram sua boda, disposta por Jacó, que mandara chamar seu quarto filho e fizera valer diante dele sua palavra. Que motivos teria Judá para opor-se a ela? Dera ele o seu consentimento com uma expressão torva, mas sem opor grande resistência, e assim Tamar foi dada a Her como esposa.
Não é conveniente levantar o véu daquele matrimônio que nem sequer em seus começos ninguém teve vontade de descerrar. A humanidade sempre se expressou laconicamente acerca dos fatos, achando que não valia a pena suavizá-los com escusas ou comiseração. Os fatores do fracasso que estavam presentes nela eram, por um lado, a ambição de desempenhar um papel na história, combinada com os dons de Astarte, e, por outro, a fraqueza de um jovem incapaz de arrostar uma prova séria na vida. Faremos bem em seguir o exemplo da tradição e declarar com toda a lisura e simplicidade que o Her de Judá, pouco depois de celebrado o casamento, morreu, ou como reza a tradição, o Senhor o matou. Sim — o Senhor faz tudo e tudo que sucede pode ser atribuído a Ele. Foi o caso que o rapaz morreu nos braços de Tamar, de uma hemorragia que de qualquer modo o podia matar se não se tivesse afogado com o seu sangue. Para alguns talvez seja uma consolação que ao menos não morreu como um animal, mas nos braços de sua mulher, porém não deixa de ser desalentador imaginá-la manchada com o sangue vital de seu jovem marido.
Depois que este morreu, ela se pôs de pé com as sobrancelhas carregadas e imediatamente pediu por esposo a Onan, o segundo filho de Judá.
Na resolução daquela mulher havia sempre alguma coisa de pasmoso. Dirigiu-se a Jacó e se lamentou diante dele; de certo modo acusou a Deus diante de Jacó, de tal sorte que o ancião se sentiu seriamente embaraçado com relação a Jah.
— Meu marido morreu — disse ela. — Her, teu neto, morreu num abrir e fechar de olhos. Como é possível compreender isto? Como é que Deus pode fazer semelhante coisa?
— Ele pode fazer tudo — respondeu Jacó. — Humilha-te diante dele. Quando a ocasião o requer, Ele costuma fazer as coisas mais horrendas. Porque, se bem refletes, isso de se poder fazer tudo que se deseja constitui uma grande tentação. Há nisso vestígios do deserto. Trata de explicar desta maneira a coisa e a ti mesma. As vezes Ele cai sobre um homem e lhe dá a morte sem mais nem menos, sem nenhuma razão aparente. O que nos compete fazer é simplesmente acatara sua vontade.
— Eu a acato no que diz respeito a Deus — volveu Tamar —, mas não no que a mim diz respeito, pois não reconheço minha viuvez. Não posso nem devo fazê-la. Uma vez que um caiu, o que vem depois deve ocupar seu lugar, para que não se apague o meu fogo que ainda vive, nem desapareça o nome do meu marido sobre a terra. Não falo por mim nem pelo que morreu, falo em geral e para todos os tempos. Tu, pai e senhor, deves fazer prevalecer tua voz em Israel e convertê-la em lei, dispondo que, onde há irmãos e um deles morre sem deixar filhos, sua viúva não tome um homem estranho de fora, mas seu cunhado a despose. E deverá confirmar o primeiro filho que ela dê à luz com o nome de seu irmão defunto, a fim de que seu nome não seja desarraigado de Israel.
— Mas e se não agradar ao homem tomar sua cunhada? — objetou Jacó.
— Nesse caso — replicou Tamar com firmeza — ela se erguerá diante do povo e dirá: “Meu cunhado recusa suscitar descendência a seu irmão e prolongar seu nome em Israel e nega-se a casar comigo.” Então um dos presentes intercederá diante dele. E se ele insistir: “Não quero tomá-la como esposa”, ela o enfrentará na presença de todo o povo, tirará um dos sapatos dos seus pés e cuspirá nele dizendo: “Assim deverão fazer com todos os que recusem reconstruir a casa de seu irmão.” E seu nome será Descalço.
— Assim ele por certo mudará de ideia — concordou Jacó. — Tens razão, minha filha. Mais fácil me será fazer prevalecer minha palavra diante de Judá, para que te dê Onan para marido, se eu falar de um modo geral e me apoiar nas leis que proclamei ao pé da árvore da sabedoria.
Assim, por instigação de Tamar, estabeleceu-se o casamento entre cunhados, transformando-se num assunto histórico. Aquela aldeã tinha certamente queda para a história. Deixando de lado a fase da viuvez, recebeu então como marido o rapaz Onan, conquanto Judá se mostrasse pouco inclinado a esse arranjo ou matrimônio colateral, e a pessoa visada muito menos. Judá, que dos campos de Odolam foi chamado a comparecer diante de seu pai, se rebelou e discutiu largo tempo com este, dizendo não ser aconselhável repetir-se com seu segundo filho a experiência que tão funesta tinha sido para o primeiro. Ademais, Onan tinha apenas vinte anos e mesmo no caso que fosse apto para o matrimônio, ainda não estava maduro para ele, nem desejoso, nem disposto a realizá-lo.
— Se ele recusa reconstruir a casa de seu irmão, ela lhe tirará o sapato e ele será chamado Descalço para o resto de seus dias.
— Falas, Israel, como se esse fosse um costume estabelecido, embora só acabes de introduzi-lo... eu bem sei por conselho de quem.
— Deus falou pela boca da moça — respondeu Jacó. — Ele a trouxe para mim para que eu a pusesse em contato com Ele e Ele pudesse falar por seu intermédio.
Ouvindo isso, Judá não se rebelou mais e deu ordem para que se realizasse a boda.
Está por baixo da dignidade de quem isto narra penetrar nos segredos da alcova nupcial. De sorte que se limitará a acrescentar com toda a lisura e simplicidade que o segundo filho de Judá, Onan, que era a seu modo um rapaz bonito e agradável, bem que debaixo de certo aspecto duvidoso, tinha uma grande personalidade. Estava arraigado nele um espírito de oposição que equivalia a um juízo sobre si mesmo e à negação da vida. Não me refiro à sua vida pessoal, pois que amava demasiado a si próprio e se pintava e enfeitava como um casquilho. Contudo, no fundo de sua alma atirava um enfático não a todo prolongamento de vida depois de si ou por intermédio de si. Dizem que se sentiu irritado vendo-se impelido a ser esposo substituto e a fundar uma descendência que não ia ser sua, mas de seu irmão. E provável que, com palavras e no pensamento, ele tenha exposto a si próprio o assunto dessa maneira; mas na realidade, para a qual as palavras e os pensamentos não passam de meras paráfrases, todos os filhos de Judá tinham o conhecimento inato de que a sua geração era um beco sem saída; que, fosse qual fosse o caminho escolhido pela vida, este por nenhum modo poderia ser aberto por eles mesmos, os três filhos. Não por nosso intermédio!, diziam a uma voz, e não deixavam de ter razão a seu modo. A vida e a procriação poderiam seguir a sua rota, que a eles pouco se lhes dava, especialmente a Onan, cuja beleza e encanto não eram senão uma expressão do narcisismo de um homem além do qual não prosseguia a estirpe.
Obrigado a casar, resolveu zombar do ventre da esposa, mas não havia contado com a força de vontade de Tamar nem com os recursos de Astarte que enfrentaram sua perversidade como uma nuvem carregada enfrenta a outra, produzindo no choque o raio, o golpe mortal. Onan sentiu-se paralisado e desfaleceu nos braços dela de um momento para outro. Seu cérebro deixou de trabalhar e ele morreu.
Tamar levantou-se exigindo imediatamente lhe fosse dado como marido Sela, o mais moço dos filhos de Judá, que contava apenas dezesseis anos. Se alguém julgasse que ela era a figura mais sensacional da nossa história, nós não nos atreveríamos a discutir com ele.
Desta vez, porém, sua vontade não prevaleceu. O próprio Jacó vacilou, ainda que só se antecipando às enfáticas objeções que Judá não tardou a fazer. Chamavam-lhe leão, porém desta vez defendeu mais como leoa o seu último cachorro, por muito ou pouco que este valesse, sem transigir nem ceder um palmo.
— Nunca! — exclamou. — Como? Pretendes que ele também morra, afogado em sangue como o primeiro, ou sem pingo de sangue como o segundo? Deus o impedirá. Isso não há de ser. Acudi ao teu chamado, Israel, vindo às pressas da planície de Ehesib, onde a filha de Sue deu à luz este filho e onde agora ela jaz enferma. Ela sofre e se inclina para a morte, e, se Sela também morre, então ficarei sem nada. Aqui não se trata de desobediência, porque tu não me queres mandar neste assunto e só fizeste uma insinuação vacilante. Eu, porém, não vacilo; digo resolutamente que não, digo-o por d e por mim. Crê essa mulher que lhe darei o meu cordeiro para que ela mo destrua? Ela é uma Istar que mata a quem ama, uma devoradora da juventude e sua cobiça é insaciável. Além disso o último de meus filhos é ainda um menino inexperiente, e a ela um cordeiro de nada adiantará tê-lo nos braços.
Realmente ninguém teria imaginado Sela, ao menos por enquanto, no papel de um marido. Mais parecia um anjo que um ser humano, arrogante, imprestável de todo, imberbe ainda e sem voz de homem.
— Digo isso unicamente por causa do sapato e do resto — recordou-lhe Jacó, trêmulo. — Sabes o que sucederá se o rapaz se recusar a reconstruir a casa de seu irmão.
— Vou dizer-te uma coisa, meu senhor — replicou Judá. — Se essa devoradora não se retirar e não vestir roupas de viúva, se não usar um luto decoroso na casa de seu pai como convém a uma mulher que perdeu dois maridos, e se não se comportar tranquilamente, então serei eu mesmo, como teu quarto filho, quem lhe arrancará a ela o sapato na presença de todos; acusá-la-ei abertamente de ser um vampiro e direi que a apedrejem ou a queimem viva.
— Isto é ir longe demais na desaprovação da minha sugestão — disse Jacó, escandalizado.
— Longe demais? E até onde irias tu se te arrebatassem Benjamim e quisessem mandá-lo a alguma viagem muito arriscada? E afinal de contas Benjamim não é teu filho único, mas apenas o mais moço. Tu cuidas dele com o teu cajado e não o arredas da tua vista para que não se perca também e mal o deixas ir até a estrada real. Pois bem, Sela é o meu Benjamim e eu me nego a entregá-lo. Tudo em mim se revolta contra semelhante ideia.
— Vou fazer-te uma proposta justa — disse Jacó, impressionando-se muito com este argumento. — Para ganhar tempo e não ofender grosseiramente a jovem, tua nora, não repeliremos sua petição, mas procuraremos convencê-la e fazê-la mais razoável. Vai ter com ela e dize-lhe: “Meu filho Sela é ainda muito criança e não está maduro para seus anos. Conserva-te viúva em casa de teus pais até meu filho crescer e, quando estiver crescido, to darei para que possa suscitar descendência a seu irmão.” Deste modo imporemos silêncio a seu pedido durante alguns anos antes que ela possa renová-lo. Talvez assim se acostume com a viuvez e não o renove de todo. Ou, se o fizer, havemos de consolá-la dizendo, com mais ou menos verdade, que o rapaz ainda não está maduro.
— Seja assim — disse Judá. — É-me indiferente o que iremos dizer-lhe, contanto que eu não tenha de entregar aquele que é minha ternura e orgulho ao abraço ardente de Moloch.
A TOSQUIA
E tudo aconteceu de acordo com as instruções de Jacó. Tamar recebeu de cenho carregado o veredicto de seu sogro, encarando-o bem nos olhos; porém cedeu. Ficou, pois, como viúva e mulher que deplora seus maridos, em casa de seu pai, e nada se soube dela durante um ano, dois e até três. Ela encontraria justificativa se, passados dois anos, renovasse o seu pedido; mas esperou expressamente um terceiro para que não lhe fossem dizer que Sela era ainda muito criança. A paciência daquela mulher era tão notável como sua resolução. Aliás, parece que paciência e resolução são a mesma coisa.
Todavia, uma vez que Sela completara dezenove anos e alcançara a plenitude de virilidade que lhe era concedida, ela dirigiu-se a Judá e filou:
— Expirou o prazo e chegou o momento de me dares teu filho como marido e me entregares a ele como mulher, para que ele suscite descendência a seu irmão e prolongue seu nome. Lembra-te do nosso ajuste.
Ota, antes de ter passado o primeiro ano da espera, Judá também tinha ficado viúvo. A filha de Sue morrera de aflição ao ver que o mando se escravizara a Astarte e também com a perda de seus filhos, e ainda porque ele a acusara de culpada da perdição deles. Assim sendo, só lhe restava Sela e menos que nunca estava Judá disposto a mandá-lo para a arriscada viagem. Por isso respondeu:
— Ajuste? Jamais houve um ajuste, minha amiga. Com isto não quero dizer que não vale uma palavra proferida pela minha boca. Não; não é assim. Mas nunca pensei que insistirias depois de tanto tempo, já que a minha palavra não foi mais que uma palavra de adiamento. Queres que te tome a dar outra semelhante? Se assim é, dou-ta; porém não é necessário, porquanto já deves ter-te consolado. Verdade é que Sela agora é mais velho, mas muito pouco; em compensação tu estás agora muito mais distante dele do que quando minha palavra te consolou. Podias ser sua mãe.
— Ah! É assim? — perguntou Tamar. — Queres indicar-me com isso qual é o meu lugar?
— Na minha opinião, o teu lugar é em casa de teu pai, onde deves ficar como viúva que és e mulher que guarda luto por dois maridos.
Tamar curvou-se e partiu. Agora, porém, vem o resto.
Não era coisa fácil desviar aquela mulher da sua rota, nem deixá-la à beira do caminho para a posteridade. Quanto mais de perto a observamos, mais ela nos surpreende. Tratava ela com muita liberdade sua posição no tempo, descendo até os netos, aos quais amaldiçoava porque se interpunham no caminho daqueles que ela desejava dar à luz. Resolveu então mudar de geração pela segunda vez e retroceder, saltando ao membro restante da geração de netos que se negaram a entregar-lhe para que também perecesse ou a colocasse a ela e seu ventre na linha da descendência. Estava resolvida a tudo, porque sua chama não podia extinguir-se, nem ela toleraria que lhe fechassem as portas da herança de Deus.
Eis o que sucedeu a Judá, filho de Jacó. Não tinham transcorrido muitos dias depois que o leão defendera seu filho como uma leoa defende seu cachorro, quando chegou a época da tosquia, acompanhada da festa popular durante a qual pastores de ovelhas e guardadores de gado se reuniam para comer e beber e oferecer sacrifícios. A festa era celebrada em diferentes lugares. Essa vez foi nas montanhas de Timnath, aonde afluíram de toda parte pastores e donos de currais para tosquiar suas ovelhas e divertir-se. Judá subiu até lá com seu amigo Hirão, o odolamita, o mesmo por cujo intermédio conhecera a filha de Sue. Levavam a intenção de tosquiar e divertir-se; pelo menos, era essa a intenção de Hirão. Quanto a Judá, não se sentia muito inclinado aos divertimentos. Vivia numa espécie de inferno, como castigo por sua antiga participação em ações más, e a forma pela qual seus filhos tinham perdido a vida era para ele também uma forma desse inferno. Sentia-se, além disso, preocupado por ser escolhido para herdeiro e, por causa disso, teria preferido não se divertir nem tomar parte em nenhuma festa, pois, se alguém está condenado ao inferno, toda alegria adquire um caráter infernal e a nada pode conduzir, a não ser a marear a escolha. Mas como evitá-lo? Só os doentes do corpo estão dispensados de tomar parte na vida. Se alguém está enfermo apenas do espírito, isto é indiferente. Ninguém tal compreende; portanto é necessário desempenhar o seu papel no mundo e ir vivendo como os demais. Por isso Judá se deteve três dias na tosquia em Timnath, ofereceu sacrifícios, comeu e regalou-se.
De regresso a sua casa, viajou só; assim lhe agradava mais. Fê-lo a pé, pois tinha um cajado de bonito castão, assim como se usam para caminhar e não para castigar uma cavalgadura. Com este foi descendo pelas azinhagas da montanha, entre vinhas e casais, caindo já os derradeiros resplendores rubros do dia, que se retirava para o seu descanso. Estradas e veredas lhe eram familiares; ali estava Enam, o lugar de Enajim, ao sopé das colinas, por onde devia passar, a caminho de Ehesib e Odolam. A porta, os muros de barro e as casas brilhavam com reflexos purpurinos sob o esplendor dos céus aprazíveis. Junto à porta estava agachada uma figura. Ao aproximar-se, viu que se achava envolvida num ketonetpaspasim, a vestidura com que se cobrem as tentadoras.
Seu primeiro pensamento foi: “Estou só.” O segundo: “Passarei de largo.” O terceiro: “Que vá para o diabo! por que há de interpor-se a kedeche, a filha do prazer, no meu pacífico caminho de regresso? Essas coisas sempre acontecem justamente a mim. Seja como for, não me importarei com elas, porque minha natureza é dupla: por uma parte, sou homem ao qual sempre ocorrem essas coisas e por outra irrito-me por causa delas, nego-me e passo furioso de largo. A velha cantiga de sempre! Será possível que não deixe de ser cantada nunca? Assim cantam os escravos acorrentados das galeras, assim sobe seu canto desde seus corações dolentes até o remo. Assim gemi eu lá em cima e cantei a velha canção com uma dançarina; portanto devia sentir-me saciado durante algum tempo ao menos. Como se o inferno se saciasse alguma vez! Vergonhosos e absurdos e cem vezes aborrecidos são os desejos que inspira! Que irá dizer ela e como há de portar-se? O que vier depois de mim que a prove, se quiser. Eu seguirei de largo.”
E parou.
— Salve a deusa! — disse ele.
— Que ela te dê vigor! — cochichou a mulher.
O anjo do desejo já havia baixado até ele e o sussurro da mulher fê-lo estremecer de luxuriosa curiosidade.
— A quem esperas à beira do caminho? — indagou com os lábios trêmulos.
— Espero um homem cheio de vontade e luxúria que partilhe comigo o mistério da deusa — foi a resposta.
— Então, posso ser quase esse homem, pois vontade não me falta, ainda que não goste da luxúria. Não procuro a luxúria, mas ela me procura. E no teu oficio, parece-me, tampouco se deseja a luxúria, mas deve-se estar contente quando outros o façam.
— Nós somos as que damos, mas se vem alguém que saiba dar, também sabemos receber — respondeu ela. — Tens desejos de mim?
Judá colocou sua mão sobre ela.
— Espera. Que me darás? — disse a mulher detendo-o.
O filho de Jacó começou a rir.
— Em sinal do meu desejo e como vestígio da luxúria te darei um cabrito do rebanho, para que te lembres de mim.
— Mas não o tens aí contigo.
— Hei de mandar-to.
— Assim me diz antes. Depois o homem muda e não se lembra da sua palavra. Entrega-me um penhor qualquer.
— Dize qual queres.
— Dá-me teu anel, teu colar e o cajado que trazes contigo.
— Bem se vê que sabes cuidar da deusa — disse Judá. — Fica com eles.
E cantou a canção com ela junto do caminho ao clarão purpúreo do crepúsculo. Depois a mulher desapareceu por trás do muro e ele prosseguiu sua jornada. Na manhã seguinte disse a Hirão, o pastor:
— Sabes como acontecem essas coisas. Na porta de Enajim, no lugar de Enam, havia uma rameira do templo cujos olhos tinham um fulgor estranho debaixo do ketonet. Mas, para que tantos rodeios entre homens? Faze-me o favor de levar-lhe o cabrito que lhe prometi, para que me devolva os objetos que com ela deixei — meu anel, meu cajado e meu colar. Leva-lhe um robusto cabrão. Não quero ser ruim com a ruim criatura. Talvez que a encontres sentada junto à porta; se lá não estiver, indaga da gente do lugar.
Hirão escolheu um cabrito diabolicamente feio e forte, com seus chavelhos enroscados, o nariz fendido, a larga barbicha, e o levou até aporta, ao pé de Enajim. Mas ali não havia ninguém.
— Onde está a rameira que se senta à beira da estrada? — perguntou. — Onde se acha? Vós deveis conhecer as vossas meretrizes.
— Aqui não houve nem há nenhuma meretriz — responderam-lhe.— Não temos nenhuma, pois somos um povo decente. Vai procurar noutra parte a cabra para o teu cabrito, se não queres ver voar as pedras pelos ares.
Hirão foi contar a Judá o que ouvira. Judá limitou-se a encolher os ombros.
— Se não a encontraste, dela é a culpa — disse ele. — Procurei pagar e ninguém me pode censurar, conquanto eu tenha ficado sem as minhas coisas. O cajado tinha um castão de cristal. Põe o cabrito novamente com o rebanho.
E, dito isto, esqueceu-se do assunto. Todavia, três meses mais tarde se tornou patente que Tamar estava grávida.
Foi um escândalo como a gente dos arredores não havia presenciado igual havia muito tempo. Tamar tinha vivido como viúva, com seus trajes de luto na casa de seus pais, e agora aquilo saía à luz e já não era possível ocultar que se comportara com uma sem-vergonha, merecendo portanto a morte. Os homens resmungaram rancorosamente, e as mulheres vociferaram prorrompendo em mofa e maldições. Porque Tamar sempre tinha sido arrogante e procedera como se fosse superior a todas. O clamor e a grita não tardaram a chegar aos ouvidos de Judá: “Ouviste, ouviste? Tamar, tua nora, comportou-se mal e está pejada das fornicações, e já não o pode ocultar por mais tempo.”
Judá fez-se pálido. Seus olhos de cervo pareciam querer saltar das órbitas e as aletas do seu nariz tremiam. Os pecadores costumam mostrar-se extremamente sensíveis aos pecados alheios. Além disso, tinha repulsa da mulher porque lhe consumira dois filhos e porque, por causa dela, ele quebrara sua promessa relativamente ao terceiro filho.
— Ela cometeu um crime! — exclamou. — Que arda o céu sobre sua cabeça, que a terra se transforme em ferro debaixo de seus pés! Deve ser queimada viva! Talvez já merecesse a fogueira desde há muito, porém agora seu pecado está à vista de todos. Cometeu uma abominação em Israel e manchou seus vestidos de dó. Que a arranquem a força da casa de seu pai e a reduzam a cinzas! Com seu sangue deverá lavar sua infâmia!
A largas passadas pôs-se à frente dos que haviam ido informá-lo e que brandiam varas. No caminho juntaram-se-lhe outros, também agitando varas, até se formar uma multidão impaciente que, dando assobios e fazendo escárnio, chegou diante da casa da viúva, ao séquito de Judá. Dentro ouviam-se os pais de Tamar soluçando e lamentando-se, mas dela não se escutava som algum.
Três homens foram designados para sacar para fora a michela. Enrijaram os ombros, endureceram os músculos dos braços, avançaram o queixo e prepararam os músculos para tirar Tamar à força, amarrá-la a um poste e queimá-la. Mas, passados alguns segundos, voltaram sem ela, trazendo em troca alguns objetos. Um tinha um anel entre os dedos estirados. O segundo, um bordão que segurava pelo meio, e o terceiro, um colar cor de púrpura pendendo da mão.
Levaram aqueles objetos a Judá, que estava à testa da multidão, e disseram-lhe:
— Recebemos a incumbência de te dizer o seguinte da parte de Tamar, tua nora: “Do homem de quem são estas coisas estou pejada. Reconhece-as? Em tal caso, escuta: não sou mulher que se deixe destruir com seu filho, filho do herdeiro de Deus.”
Judá, o leão, olhou os objetos, enquanto a multidão se agrupava em redor dele, esquadrinhando-lhe o rosto. Até esse momento tinha estado pálido de cólera; ao ver os objetos, foi pondo-se rubro como fogo até a raiz dos cabelos e conservou-se mudo. De repente uma mulher começou a rir e logo outra e depois um homem, que foram imitados por vários homens e mulheres, até que todo o lugar pareceu estremecer com as gargalhadas que prosseguiam interminavelmente. Agachavam-se para rir e depois, com a boca aberta, erguiam a cara para o céu e exclamavam: “Com que então, foste tu, hem, Judá? Ah! ah! ah! Bonitas coisas fez Judá com sua nora! Ah! ah! ah! ih! ih! ih!”
E que disse a isto o quarto filho de Lia? Falou devagar, no meio da turba:
— Ela é mais justa do que eu.
Disse somente isso. Depois baixou a cabeça e assim se afastou.
Seis meses depois, chegando a sua hora, Tamar deu à luz dois gêmeos que vieram a ser homens poderosos. Ela destruíra dois filhos para Israel ao descer no tempo; tornando a subir, restituiu-lhe, em troca deles, outros dois incomparavelmente melhores, sobretudo Farés, o primeiro, que foi um homem valoroso e teve esplêndida descendência. E na sétima geração foi gerado outro, que veio a ser a personificação da valentia. Chamou-se Booz e foi marido de uma mulher muito formosa. Chegaram todos a ser grandes em Efrata e foram exaltados em Bathleem, porque seu neto foi Isaías, o bethleemita, pai de sete filhos e de um pequeno que guardava o rebanho e era moreno e tinha lindos olhos. Sabia também tocar alaúde e com sua funda conseguiu dominar um gigante, lá pela época em que secretamente havia sido ungido rei.
Todavia, tudo isto se encontra no futuro e pertence à grande história da qual a história de José não é senão um interlúdio. Mas nesse interlúdio foi intercalada para sempre a história da mulher que por nenhum preço esteve disposta a ser deitada à margem e que com assombrosa tenacidade e manha se introduziu na linha da descendência. Assim a vemos, alta e quase sinistra, descer pelas encostas das suas colinas nativas. Com uma mão apoiada no corpo e com a outra resguardando os olhos, contempla as férteis planícies onde se quebra a luz que cai das nuvens ameaçadoras, irradiando ondas de glória sobre a terra.
6
A COMÉDIA SAGRADA
DAS ÁGUIAS
Os filhos do Egito, mesmo os mais sábios e instruídos, tinham em geral ideias muito infantis acerca da natureza do seu deus nutrício — esse aspecto e manifestação da divindade que o povo de Abraão chamava “El Chaddai”, o deus da alimentação, e os filhos da terra negra chamavam Apis, o agitado e transbordante, a corrente que havia construído seu maravilhoso oásis entre os desertos e possibilitava sua existência e sua cômoda e piedosa filosofia da vida e da morte — em outras palavras, acerca do rio Nilo. Acreditavam, e assim o ensinavam a seus filhos, de geração em geração, que o rio tinha surgido do averno (Deus sabia como e quando) no seu trajeto para o “Grande Verde”, isto é, para o incomensurável oceano, pois como tal viam ele o Mediterrâneo, e que sua submersão, depois do curso fertilizante, era como uma volta ao mundo inferior. Em resumo, predominava a respeito desse assunto a mais absoluta e supersticiosa ignorância, e unicamente o fato de não existirem pelo resto do mundo melhores noções sobre o caso lhes permitia prosseguirem através da vida em semelhante condição de ignorância. Mas, apesar disto, construíram um poderoso e esplêndido império, admirado em toda parte e que se vinha mantendo havia vários milênios; apesar disto produziram muitas coisas belas e exploraram engenhosamente o objeto da sua ignorância, ou seja, o rio que os nutria. Nós, que sabemos muito mais do que eles, que na realidade sabemos tudo, não podemos deixar de lamentar que nenhum de nós estivesse lá naquela época para iluminar a obscuridade que reinava dentro daqueles espíritos e instruí-los sobre a verdadeira natureza do grande rio do Egito. Que alvoroço se teria produzido nos seminários e academias se alguém lhes houvesse dito que o Ápis, longe de ter suas fontes no averno (que, por sua vez, tem sido rechaçado como uma crendice sem base) não era senão a saída dos grandes lagos na Africa tropical; e que o deus da alimentação, para chegar a ser o que era, tinha de nutrir-se primeiro a si mesmo, reunindo em seu curso todos os rios que desciam até o oeste desde os Alpes etíopes. Na época das chuvas os ribeiros das montanhas, cheios de fino detrito, se precipitam das alturas e correm juntos para formar as duas grandes correntes de água que constituem, por assim dizer, a pré-história do futuro rio: o Nilo Azul e o Atbara. Mais adiante, perto de Kartum e de Berber, estes se juntam transformando-se no rio Nilo propriamente dito, que é corrente criadora; pois este seu leito comum adquire, mais ou menos em meados do verão, um tal volume de água e de limo dissolvido, que o rio se espraia pelas margens, de modo que honra o seu epíteto de Inundador. A inundação dura meses, no fim dos quais lentamente se recolhe dentro de seus limites. Mas a camada de limo, o depósito por ele deixado forma, como bem o sabiam os seminaristas, a terra fértil de Keme.
Entretanto, eles se tomariam de espanto e até de irritação contra os precursores da verdade, se ouvissem dizer que o Nilo não vem de baixo mas de cima e, em última análise, de alturas como a chuva que, em outros países menos excepcionais, desempenham o papel de fertilizantes. Nestes últimos, costumavam dizer, referindo-se aos míseros países estrangeiros e fazendo alusão à chuva, o Nilo está instalado no céu. Deve-se confessar que há uma surpreendente intuição, que quase orça pelo esclarecimento, na sua florida fraseologia; referimo-nos a uma certa compreensão das relações que existem entre todas as águas do mundo. A subida do Nilo depende da quantidade de chuva nas altas montanhas da Abissínia, mas as chuvas, por sua vez, são o produto do entrechoque das nuvens formadas sobre o Mediterrâneo e arrastadas pelo vento para aquelas regiões. Do mesmo modo como a prosperidade do Egito depende da cheia do Nilo, a de Canaã, a terra de Kenana, o Alto Retenu como se chamou outrora, ou Palestina, como designamos com os nossos conhecimentos a terra de José e de seus pais, está na dependência das chuvas que, via de regra, caem duas vezes no ano — a primeira em fins de outubro e a última na primeira parte do ano. Pois o país é pobre em mananciais e não se pode fazer grande coisa com a água dos rios que correm entre desfiladeiros e barrancos estreitos. Tudo depende, portanto, das chuvas, especialmente das últimas, e, desde os tempos primitivos, as chuvas têm sido recolhidas. Se elas não vêm, se em vez do vento de oeste, portador da umidade, sopra vento de sul ou de leste, vindo do longínquo deserto, não há esperança de colheita; vem então a aridez, o malogro da safra, a fome. E não é só ah. Porque se não chove em Canaã, não há tampouco aguaceiros nas colinas da Etiópia, as torrentes das montanhas não se precipitam das alturas, os dois confluentes do Nutrício não são alimentados, pelo menos não de forma suficiente para que ele mesmo se tome “grande”, como costumavam dizer os filhos do Egito, bastante grande para encher os canais que levam a água aos campos de nível mais alto. E vem então o malogro da colheita e a fome, mesmo no país onde o Nilo não está no céu, mas sobre a terra. Vemos assim a conexão que há entre todas as águas da Terra.
Apesar de sermos uma geração esclarecida só de uma forma geral sobre estes assuntos, não vemos nada de estranho, mas apenas muito de lamentável, no fenômeno de os tempos difíceis coincidirem “em todos os países”; não somente no país da lama, mas na Sina, na terra dos filisteus, em Canaã e ainda nos países situados junto ao mar Vermelho, e provavelmente na Mesopotâmia e em Babilônia, e de que “a escassez fosse grande em toda a Terra”. Se as coisas forem de mal a pior, a um ano de irregularidade, de fracasso e de carestia podem suceder outros numa sequência infeliz. A série do infortúnio pode prolongar-se por vários anos, até alcançarem o fabuloso número de sete, mas mesmo que sejam apenas cinco já é bastante ruim.
JOSÉ GOZA A VIDA
Durante cinco anos consecutivos ventos e águas tinham andado às mil maravilhas e as safras haviam sido tão ricas que, em sinal de gratidão, o povo transformou os cinco em sete, e aqueles cinco mereceram isso plenamente. Havia, porém, chegado o momento de virar a página. Faraó, maternalmente preocupado com o reino da terra negra, tivera um sonho obscuro e José lho havia ousadamente interpretado: o Nilo não cresceu porque em Canaã não caiu a última chuva do inverno. Deixou de cair uma vez e isto foi uma desgraça. Deixou de cair pela segunda vez e foi então motivo de lamentação. Deixou de cair a terceira vez e houve angústia, palidez e retorcer de mãos. Depois daquilo a chuva bem podia deixar de cair outras tantas vezes, passando assim aquele período aos arquivos da história como o de uma estiagem de sete anos.
Quando nós, os homens, somos tratados de forma descomunal pela natureza, procedemos sempre do mesmo modo. A princípio procuramos enganar-nos, dada a nossa mentalidade formada com um critério cotidiano, sobre a natureza do acontecimento, sem compreender o que este significa. De bom grado o tomamos como um episódio corrente, normal. Depois de termos aos poucos verificado que é extraordinário, que se trata de uma calamidade de primeira classe como nunca teríamos imaginado que pudesse acontecer durante nossa vida, ficamos assombrados com a nossa cegueira. Foi o que sucedeu aos filhos do Egito, que tardaram algum tempo em cair na conta de que aquilo por que estavam passando era o fenômeno chamado dos “sete anos magros”. Provavelmente era um fenômeno que tinha acontecido antes; nos tempos primitivos, na sua lendária história, aquele fenômeno havia desempenhado um papel horripilante; mas nunca poderiam crer que também os afetaria a eles. Sua lentidão no compreender não era sequer tão desculpável como costuma ser às vezes a falta de visão, porque Faraó sonhara e José tinha interpretado. O próprio fato de terem experimentado realmente os sete anos de fartura bem podia ter-lhes demonstrado que viriam agora os sete anos de carestia. No entanto, durante os anos gordos, os filhos do Egito tinham-se esquecido dos magros, como o homem da lenda se esquece do livro de contas do demônio. Chegara a hora do ajuste de contas. Quando o Nutrício esteve deploravelmente baixo uma vez, uma segunda e uma terceira, não tiveram outro remédio senão admitir a realidade; e o reconhecimento desta verdade aumentou grandemente o crédito de José.
Por certo esta reputação havia crescido com firmeza nos anos da fartura. E de imaginar, pois, como não havia de ter crescido sua fama ao chegarem os anos magros, demonstrando que as medidas adotadas por ele tinham sido inspiradas pela mais profunda sabedoria. Quando as colheitas são fracas ou nulas e há fome, um ministro da agricultura costuma encontrar-se numa posição bem precária. O povo, cujo entendimento é tardo, e que em geral não sabe ser nem justo nem razoável, mas até gosta de deixar-se levar por seus sentimentos, culpa do desastre o funcionário responsável que se acha no cargo mais elevado. Se, porém, esse funcionário previu o mal, sua situação torna-se muito melhor, e se até ergueu uma barreira mágica contra ele, de modo que ainda quando este acarrete grandes mudanças o tenha ao menos destituído do seu caráter catastrófico, tal funcionário passa a ser um glorioso condutor de homens, cuja presença inspira reverente pavor.
Os homens que vivem numa terra que não é a própria mas sim adotada costumam apossar-se das características nacionais de forma mais vigorosa que os próprios naturais. Durante os vinte anos que José viveu no Egito, a ideia tipicamente egípcia da preservação cuidadosa havia-se-lhe infiltrado na carne e nos ossos. José pôs em prática aquela ideia; ela foi o móbil de todos os seus atos. Era, porém, um móbil consciente, porquanto ele sabia conservar uma suficiente distância de seu princípio condutor para notar alegremente a popularidade desse princípio e para proceder de acordo com ela. E tudo isso era uma combinação de sinceridade e de sentido do humor que é ainda mais simpática do que a sinceridade por si só.
E chegara agora o seu momento de recolher o fruto, de fazer a safra do que havia semeado. A semeadura fora seu imposto de economias durante os anos bons; a messe foi a distribuição, que representou para a coroa um negócio de proporções tais que nenhum filho de Rá tinha conhecido desde os primeiros tempos desse deus. Porque, tal como passou à posteridade, como tem sido contado em canções e histórias, “houve fome em todos os países, mas em toda a terra do Egito havia pão”. É claro que isto não significa que também no Egito não houvesse carestia. O preço a que subiu o trigo como resposta à frenética procura pode ser facilmente imaginado por quem quer que tenha uma vaga ideia de como funcionam as leis econômicas. Só de pensar nisto a gente estremece, porém ao mesmo tempo se verá que aquela escassez foi regulada, como o tinha sido antes a abundância, pelo mesmo homem bondoso e astuto que teve a escassez entre suas mãos e pôde manejá-la a seu talante. Lealmente José aproveitou a situação para Faraó na medida do possível, mas fez outro tanto para os mais desprevenidos, para os pequenos e humildes, que graças a ele passaram pela carestia sem sacrifícios.
Fê-lo mediante uma combinação de liberalidade e exploração, de usura fiscal e de beneficência governamental, como jamais se haviam visto. Este misto de severidade e de brandura impressionou a todos, ainda aos mais atingidos, como se se tratasse de uma qualidade mágica e quase divina, porque os deuses procedem exatamente desta maneira ambígua que nunca se sabe se se deverá chamar cruel ou bondosa.
A situação era fantástica. A agricultura estava num estado que fez com que o sonho das sete espigas crestadas não fosse apenas uma parábola, mas a verdade nua e crua. As espigas do sonho foram queimadas pelo vento leste chamado Chamsin, que é um abrasador vento de sudeste, e Chamsin soprou incessantemente todo o verão, durante todo o período da safra denominado Chemu, que ia de fevereiro a junho. Muitas vezes era uma tempestade como um forno que enchia o ar de um pó semelhante a cinzas e que se estendia como uma capa por sobre as plantas. O pouco e débil verdor que o desnutrido nutridor tinha conseguido produzir era calcinado por aquele bafo do deserto. Sete espigas? Sim, não foram mais que sete, literalmente. Em outras palavras, não havia nem espigas nem colheita. Em compensação, havia trigo, havia quantidades sem conta e todavia escrupulosamente contadas de toda classe de grãos e cereais nas cavas e armazéns régios mais acima e mais abaixo do rio, em todas as cidades e lugarejos e seus arredores. Sim, havia trigo no Egito e só no Egito, em toda a sua extensão. No resto da Terra não tinha havido presciência nem construção de tulhas nem previsão nenhuma antes do dilúvio. Pão só existia no Egito e em nenhuma outra parte; só nas mãos do Estado, nas mãos de José, o superintendente de tudo o que os céus tinham dado, sendo ele mesmo como que os próprios céus que davam e como o rio Nilo que provê. José abriu suas câmaras de abastecimentos não de par em par, mas com circunspeção, fechando-as de vez em vez, e repartiu pão e cereais aos necessitados, que eram todo o mundo, egípcios e forasteiros, vindos de longe para obter alimento da terra de Faraó, a qual com mais justiça do que nunca foi denominada celeiro, celeiro do mundo. José deu, ou antes, vendeu àqueles que podiam pagar, aos preços por ele fixados e que correspondiam à extraordinária situação econômica, e deste modo cobriu literalmente de ouro e prata a Faraó e também pôde dar, num sentido mais literal, à gente miúda, àqueles que tinham os ossos à flor da pele. Com estes repartiu, em determinada ração, aquilo por que clamavam; deu pão e trigo aos pequenos lavradores e aos habitantes das melas miseráveis das grandes cidades, para que não perecessem à míngua.
Aquilo era próprio de um deus e era também uma previsão humana digna de todos os encômios. Sempre tinha havido bons funcionários, sobre cujos túmulos eles mesmos haviam mandado escrever com justa emoção que tinham alimentado os súditos do rei em épocas de necessidade; que tinham dado às viúvas e favorecido a ninguém, nem aos grandes nem aos pequenos; e que depois, quando o Nilo crescera mais uma vez, não haviam cobrado as dívidas dos camponeses, quer dizer, não tinham exigido o resgate das quantias adiantadas nem o pagamento dos impostos atrasados. Naquelas inscrições pensava o povo vendo os métodos comerciais de José; mas “desde os dias de Set” nenhum funcionário mostrara tal benevolência, nem dispusera de poderes tão absolutos, nem soubera fazer deles um uso tão próprio de um deus como José. O comércio do grão, fiscalizado por um pessoal composto de dez mil escrivães e escreventes, estendia-se por todo o Egito; mas todos os fios iam parar em Menfe, no palácio do Dispensador da Sombra e Amigo Exclusivo do Rei. Não havia uma única decisão final sobre venda, empréstimo ou doação que ele não reservasse para si. O rico e o proprietário de terras compareciam diante dele e suplicavam-lhe que lhes desse grão. A eles vendia a ouro e prata, realizando a venda com a condição de que modernizassem o seu sistema de irrigação, pondo fim deste modo à confusão e ineficácia feudal. Assim cumpriu sua palavra com o Altíssimo, com Faraó, a cujo tesouro afluía o ouro e a prata dos ricos. Chegava também aos ouvidos de José o clamor dos pobres, e a estes distribuía ele das tulhas a troco de nada, somente para que não morressem de fome. E nisto era fiel ainda à sua característica fundamental de compreensão humana a que já fizemos justiça e sobre a qual não necessitamos insistir, bem que pudéssemos dizer uma vez mais que aquilo tinha que ver com o seu engenho especial, porque certamente alguma coisa havia merecedora do adjetivo “engenhoso” na técnica de José de combinar a beneficência com a exploração. Apesar de seu árduo trabalho e de suas acabrunhadoras preocupações, estava sempre de bom humor e de volta a casa costumava dizer a Aseneth, sua mulher e filha do Sol: “Meu bem, estou gozando a vida!”
Também vendeu ao estrangeiro a preços altos, como sabemos, e examinou as listas dos cereais entregues aos “nobres do mísero Retenu”. Muitos reis das cidades de Canaã, entre eles os reis de Megido e de Chahuren, enviaram-lhe mensageiros pedindo-lhe trigo. O enviado de Áscalon acudiu a suplicar diante de José, sendo atendido, mas a preço salgado. Também aqui soube José estabelecer um equilíbrio entre o estrito interesse e a amizade, permitindo que os famintos povos nômades do deserto, os pastores da Síria e do Líbano — esses “bárbaros que não sabem viver”, segundo diziam os escrivães egípcios —, entrassem com seus rebanhos pelas portas bem guardadas do país, a leste do rio, na direção da Arábia pétrea, e se estabelecessem nas férteis pradarias de Zoan, sobre o braço tanítico do Nilo, uma vez que lhe prometessem não ultrapassar o território que lhes havia sido marcado.
E assim lhe chegavam das fronteiras informações que diziam o seguinte: “Deixamos passar beduínos do Edom pela fortaleza de Memeptach, com destino aos lagos de Memeptach, para que pastoreiem seus rebanhos sobre os grandes prados de Faraó, o exaltado Sol dos países.”
José lia cuidadosamente essas informações. Lia os informes de todas as fronteiras que, de acordo com suas ordens, deviam ser muito exatos, representando uma espécie de contabilidade dos portões orientais e registrando as entradas de todas as pessoas admitidas àquela terra noa que a essa época se tornara muito mais valiosa ainda. Exigia uma lista com os nomes de todas as pessoas provenientes das regiões flageladas, que vinham em busca do alimento das tulhas de Faraó. Os funcionários das fronteiras, como aquele tenente Hor-vaz da fortaleza de Zel, escrivão da grã-porta, que outrora deixara passar o próprio José com os ismaelitas, recebiam ordens de organizar essas listas com esmero, assentando nelas todos os imigrantes não só com seus nomes, ofícios e lugar de origem, mas também com os nomes de seus pais e avós. As listas deviam ser enviadas diariamente com um mensageiro rápido a Menfe, aos escritórios do Dispensador da Sombra do Rei. Ali eram passadas a limpo e em papel especial com tinta encarnada e branca e apresentadas ao Provedor. Este, ainda que tão ocupado, as ha detidamente, de fio a pavio, e com o mesmo cuidado com que haviam sido organizadas.
AÍ VÊM ELES!
Corria o segundo ano das vacas magras. Era um dia dos meados de Epifi, ou seja, maio, conforme o nosso cálculo, dia de calor horrível como todos os da estação calmosa; este, porém, estava mais quente que os outros. O Sol dardejava como fogo do céu e nós o teríamos medido como de quarenta graus à sombra. O vento soprava fazendo entrar a areia quente nos olhos de pálpebras avermelhadas dos pobres que viviam nas estreitas vielas de Menfe. Havia centenas de moscas, e tanto elas como os seres humanos pareciam igualmente pesados. Os ricos dariam grandes somas por meia hora de brisa do noroeste; estariam mesmo dispostos a permitir que também os pobres a desfrutassem.
O rosto de José, o primeiro porta-voz do rei, estava também úmido de transpiração e pegajoso de areia. Foi, contudo, para casa ao meio-dia e parecia de bom humor e muito animado — se é que se pode aplicar esta palavra a um homem conduzido com grande pompa numa liteira. Seguido pelos veículos de alguns de seus mais altos subordinados que deviam almoçar com ele, o vice-deus abandonou, consoante um costume que nem sequer naquele dia deixou de observar, a ampla avenida, para dobrar uma esquina em direção a algumas das vielas dos bairros mais pobres, onde foi saudado com uma cordial familiaridade. “Djepnuteefonech!”, gritavam os pequenos seres de costelas à mostra, atirando-lhe beijos. “Apis! Apis! Que vivas mil anos, que vivas além do final de teu destino, tu que és o nosso provedor!” E aqueles que seriam embrulhados numa esteira para serem conduzidos ao deserto desejavam para José: “Quatro excelentes botijas para as tuas entranhas, e para a tua múmia, um ataúde de alabastro!” Esta era a forma que revestia seu afeto, em resposta ao que José lhes demonstrava.
Finalmente a liteira, transpondo a porta pintada do muro que cercava a sua graciosa vila, levou-o até o jardim da frente, onde oliveiras, pimenteiras, figueiras, frondosos ciprestes e flabeladas palmeiras se agrupavam em torno do terraço situado diante da casa, cujas colunas de alegres papiros se miravam no quadrado lago de lotos. Um largo caminho coberto de cascalho rodeava o lago; os carregadores da liteira seguiram por ele, parando pouco depois enquanto os lacaios ofereciam a José os joelhos e a nuca para lhe facilitar a descida. Mai-Sachme esperava pacientemente no terraço, ou melhor, no alto de uma série de degraus, com Hepi e Hezes, dois lebréus de Punt, aristocráticos animais com coleiras de ouro e cujos corpos estremeciam nervosamente. Sem olhar para o seu séquito, o amigo de Faraó subiu os degraus baixos mais precipitadamente que de costume; fê-lo na verdade mais depressa do que o faria um nobre egípcio em presença de espectadores.
— Mai — disse, alvoroçado, em voz abafada, enquanto afagava as cabeças dos galgos que haviam colocado as patas dianteiras sobre seu peito para saudá-lo —, preciso falar contigo imediatamente e a sós. Vem ter ao meu quarto. Deixa que esperem; não há pressa para o almoço e ademais eu não conseguiria provar bocado. Há coisas mais urgentes relativas a este rolo que trago na mão, ou antes, o rolo é sobre assunto urgente. Logo te explico tudo se vieres comigo aonde possamos estar sós.
— Tem calma! — respondeu Mai-Sachme. — Que tens tu, Adon? Estás trêmulo! E lamento ouvir-te dizer que não podes comer, tu que dás de comer a tantos. Não queres que te derramem água para limpar teu suor? Não é bom deixá-lo secar nos poros e orifícios do corpo, pois logo produz comichão e ardor, mormente quando está misturado com areia.
— Farei isso mais tarde. O lavar-se e o comer não são coisas urgentes, em comparação com esta que trago entre mãos, pois deves ouvir agora mesmo o que eu ouvi, o que diz este rolo que me foi levado ao meu gabinete pouco antes da minha saída e que trago aqui comigo. Chegou o momento, ou antes, eles chegaram, o que é o mesmo, e agora pergunto a mim próprio que vai acontecer e que devemos fazer. Não sei como proceder, pois sinto-me terrivelmente agitado.
— Por que, Adon? Tem calma. Dizes que chegou. Isto significa que o esperavas e o que esperavas não pode surpreender-te. Tem a bondade de explicar-me quem chegou e eu te provarei que não há razão para te sentires transtornado; pelo contrário, a única coisa que se requer é conservar a calma.
Falavam enquanto atravessavam o peristilo a caminho do pátio da fonte, andando com passo rápido que o homem equânime procurava retardar; porém José, acompanhado de Mai-Sachme, com Hepi e Hezes, encaminhou-se a uma sala situada à direita, que tinha um teto de cor, um dintel de malaquite e alegres frisos ao longo das paredes. O aposento servia de biblioteca a José e se achava entre seu quarto de dormir e o grande salão de recepção. Era mobiliado com verdadeira graça egípcia. Havia uma camilha incrustada e coberta de peles de animais e coxins; cofres com pés deliciosamente lavrados, com embutidos e inscrições, para a proteção dos pergaminhos; cadeiras com pés de leão, assentos de junco e espaldares de couro estampado e dourado; jardineiras e mesas com vasos de louça fina e de cristal iridescente. José beliscou o braço do seu intendente e começou a balançar-se sobre os calcanhares. Tinha os olhos úmidos.
— Mai! — exclamou com uma espécie de alegria contida, com uma emoção represada em sua voz. — Eles vêm, estão aqui, estão no Egito, já passaram a fortaleza de Zel. Eu sabia. Tenho estado à espera disto e, contudo, não posso acreditar que tenha acontecido. Tenho o coração na boca; estou tão agitado que não sei onde me encontro...
— Rogo-te, Adon, que deixes de bailar diante de mim. Sou um homem de paz, um homem tranquilo; suplico-te me expliques quem é que veio.
— Meus irmãos, Mai, meus irmãos! — exclamou José, bamboleando-se ainda mais.
— Teus irmãos? Os que destruíram tuas vestiduras e te arrojaram no poço e te venderam como escravo? — inquiriu o capitão, que há muito conhecia de cor toda a história.
— Sim, sim! A eles devo toda a minha boa sorte e a minha glória nesta terra!
— Mas, Adon, isso é pintar a coisa demasiadamente favorável para eles.
— Foi Deus quem a pintou assim, meu intendente! Deus fez tudo para o bem de todos, e agora devemos contemplar os resultados que Ele tinha em mira. Estou de acordo em que as coisas pareciam mal quando só conhecíamos os fatos, mas não os resultados, e não sabíamos em que iam parar. Agora, porém, devemos julgar os fatos de acordo com os resultados.
— É um ponto de vista, meu bom senhor. Imhotep, o sábio, poderia sustentar outro diferente. Não esqueças que eles mostraram a teu pai o sangue de um animal dizendo-lhe que era o teu.
— Sim. Isso foi muito mal. E meu pai certamente deve ter-se abatido muito ao vê-lo. Mas isto também tinha de suceder, porque as coisas não podiam continuar daquele jeito. Pois meu pai, apesar de ser tão grande e brando de coração... bom, e eu mesmo não era senão um pavãozinho naqueles dias; era um verdadeiro pavão cheio de vaidade viciosa e convencido da minha importância. É uma vergonha ver como custam a crescer algumas pessoas! Isto digo na suposição de que eu agora esteja crescido. Mas talvez seja necessária a vida toda para se crescer verdadeiramente.
— Pode ser assim, Adon; pode ser que ainda haja em ti muito de infantil. De maneira que estás convencido de que são realmente teus irmãos?
— Convencido? Não há a menor dúvida. Sabes por que dei ordens tão severas a respeito dos arquivos e informações? Não era debalde, asseguro-te. Quanto à circunstância de ter eu dado a Manassés, meu primogênito, o nome que lhe dei, aquilo não passou de uma formalidade, porquanto absolutamente não esqueci a casa de meu pai. Pelo contrário, tenho pensado nela cada dia, cada hora, durante todos estes anos, e na promessa que fiz a meu irmãozinho Benjamim, no esconderijo mutilado, de que os faria vir a todos para junto de mim quando fosse exaltado e tivesse o poder de atar e desatar. Convencido? Olha isto, está escrito aqui, neste papel que me trouxe um mensageiro que se lhes antecipou na chegada um ou dois dias. São os filhos de Jacó, filho de Isaac, o do bosquezinho de Mambre que está em Hebron. São Rubem, Simeão, Levi, Judá, Dan, Neftali etc. etc. Vêm comprar trigo, e tu falas como se houvesse alguma dúvida! São os irmãos, os dez! Entraram com uma caravana de compradores. Os escrivães não podiam sequer imaginar nada quando escreveram seus nomes, nem tampouco meus irmãos têm a menor ideia de quem é aquele diante do qual deverão comparecer, nem quem é que vende em nome do rei, como seu primeiro porta-voz. Mai, Mai, se soubesses o que sinto! Não conheço a mim mesmo, dentro de mim há tohu e bohu. Se soubesses o que isto significa! E, no entanto, eu tinha certeza de que isto ia acontecer, tenho estado a esperar isto há muitos anos. Soube-o quando compareci diante de Faraó e quando interpretei seu sonho que também interpretei para mim, pois li então os desígnios de Deus e vi como Ele guia a nossa história. Que história, Mai, esta em que nos encontramos! Uma das melhores. E agora de nós depende dar-lhe uma forma magnífica e fazer dela qualquer coisa engraçada, pondo todo o nosso talento ao serviço de Deus. Como havemos de começar para fazer justiça a semelhante história? É isto o que me vem agitando. Julgas que me reconhecerão?
— Como hei de sabê-lo, Adon? Sem embargo, não creio que te possam reconhecer. Amadureceste consideravelmente desde o tempo em que te despedaçaram. Assim como assim, nunca poderiam sonhar com semelhante coisa nem dariam crédito a seus olhos se chegassem a perceber qualquer indício. Reconhecer e saber que se reconhece são duas coisas muito diversas.
— Tens razão; contudo, receio que possam fazê-lo, receio tanto que o coração me salta dentro do peito.
— Queres dizer que não desejas ser reconhecido por eles?
— No primeiro momento, não, Mai. Absolutamente não quero que isto aconteça. Devem cair na realidade pouco a pouco; lentamente ela deverá adquirir forma diante de seus olhos antes que eu pronuncie as palavras e diga: sou eu. E indispensável que assim suceda, em primeiro lugar, para dar forma e colorido a essa história divina; e, em segundo lugar, será necessário fazer muitas investigações, haverá tal quantidade de rodeios, antes de tudo o assunto de Benjamim...
— Benjamim vem com eles?
— Aí é que está o mal: não vem. Eu te disse que eram dez, não onze. E nós somos doze ao todo. Com eles vêm os filhos da de olhos avermelhados e os das escravas, porém não o que teve a mesma mãe que eu, o pequeno. Sabes o que isto significa? Es tão descansado que tua imaginação funciona devagar. O fato de não vir Bem com eles significa uma de duas coisas: pode significar — e oxalá assim seja! — que meu pai ainda vive. Imagina, que o ancião ainda viva! Nesse caso, teria conservado ao pé de si o menor, proibindo-o de realizar a viagem para não se separar dele, temendo que lhe possa suceder alguma coisa. Sua Raquel morreu numa viagem; eu também pereci noutra. Como não havia ele de ter certa prevenção contra viagens e não haveria, portanto, de conservar apartado delas o derradeiro penhor de afeto que lhe resta da sua amada? Este pode ser um dos dois significados. Mas também poderia ser que meu pai se tivesse ido e que eles tivessem procedido mal com o pequeno ao vê-lo só e desamparado, lançando-o longe deles como se não fosse seu irmão, e não querendo trazê-lo consigo por ser ele o filho da esposa verdadeira...
— Insiste em chamar-lhe pequeno, Adon, sem tomar em consideração a circunstância de que teu verdadeiro irmão também deve ter crescido durante este tempo. Se bem refletires, ele já deve ser um homem na flor da existência.
— Tens razão; é muito possível que assim seja; não obstante, continua sendo o mais moço, meu amigo, o mais moço dos doze. Por que não havia eu, portanto, de chamar-lhe pequeno? Há sempre alguma coisa de doce no mais moço da família; em todo o mundo, o mais moço é o favorito e leva uma vida de encantos, de maneira que é quase forçoso que os mais velhos sintam contra ele rancor e inveja.
— Ouvindo tua história, meu senhor, parece até que tenhas sido tu o mais moço.
— Justamente, justamente. Não negarei que há alguma verdade no que dizes. Talvez a história nesse ponto seja inexata e se afaste da regra. Mas para mim trata-se de um caso de consciência; quero que o menor tenha o quinhão e a honra que como menor lhe cabe, e se os dez o expulsaram ou se portaram mal com ele, se procederam de maneira indigna como fizeram comigo, coisa em que nem sequer quero pensar, então que os Eloim se apiedem deles, porque terão de me enfrentar a mim. Nesse caso não me revelarei a eles; não haveria bela cena do “Sou eu”; se me reconhecerem, nego-o e lhes digo: “Não, pérfidos, eu não sou aquele!” E eles só encontrarão em mim um juiz estranho e implacável.
—Já vês, Adon, agora pões um semblante diferente e entoas uma melodia diversa. Já não há brandura sentimental no teu coração. Agora recordas como se comportaram mal contigo e pareces capaz de distinguir entre o fato e o resultado.
— Não sei, Mai, que espécie de homem sou eu. Ninguém sabe de antemão como se comportará na sua própria história; quando, porém, chega o momento, isto se torna claro e a gente aprende então a conhecer a si mesmo. Eu próprio tenho curiosidade de ver como procederei e como lhes falarei. Neste momento não tenho ideia alguma. E isto é exatamente o que me faz tremer. Quando tive de comparecer diante de Faraó, não senti nem a milésima parte da agitação de agora. E todavia são meus próprios irmãos. Mas, exatamente por isto, tudo parece transtornado dentro de mim. Sinto um misto de alegria, de temor e de curiosidade absolutamente indescritíveis, tal como te digo. Se soubesses como me assustei quando vi os nomes na lista, apesar de o saber e de o esperar firmemente de antemão! Mas não, tu não podes fazer ideia, porque não há meios de te assustares Assustei-me por causa deles ou por minha própria causa? Não sei. Mas não há negar que eles deviam ter motivos suficientes para se alarmar, para se atemorizar até a raiz dos cabelos. Porque não foi coisa pequena então e, muito embora tudo tenha acontecido há tanto tempo, não diminuiu com os anos. Eu disse que fui ter com eles para ver se tudo estava em ordem, e isto foi uma desfaçatez, reconheço-o; sobretudo confesso que não devia contar-lhes os meus sonhos. Por outro lado, é verdade que se me tivessem tirado do fosso, concedendo-me a vida, eu teria contado a meu pai tudo o que se passara; logo, o que tinham de fazer era deixar-me onde eu estava. E, sem embargo e apesar de tudo, o fato de se terem mostrado surdos quando gritei desde as profundezas, amarrado, coberto de vergões, quando me lamentava e lhes suplicava que não fizessem aquilo a meu pai, que não me deixassem morrer naquele buraco e não fizessem passar o sangue de um animal como sendo o meu — sim, meu amigo, tudo aquilo foi horrendo. Não tanto para mim, disto não falo, mas para meu pai. Se ele está morto, foi de pena, e se tiver descido tristemente ao Cheol, como poderia eu mostrar-me benévolo para com eles? Não sei, não sei como procederia nesse caso; mas receio muito que não possa mostrar-lhes benevolência. Se eles causaram a morte do ancião coberto de cãs, vencido pela dor, isto também faria parte do resultado, Mai; talvez fizesse parte antes de tudo e em primeiro lugar, e escureceria a luz derramada pelo resultado sobre o fato. Seja como for, é um fato e deve ser posto em confronto com o resultado, para que, à vista deste, eles talvez se envergonhem daquele.
— Que pretendes fazer com os dez?
— Como poderia eu sabê-lo? Peço tua opinião precisamente porque não sei o que fazer. Peço conselho a ti, meu superintendente a quem introduzi nesta história para que me infundisses um pouco da tua equanimidade quando me sentisse superexcitado. Bem podes dar-me dela um pouco, pois que a tens em abundância; és excessivamente fleumático e nesta mesma hora te achas diante de mim erguendo as sobrancelhas e apertando os beiços, porque és incapaz de espantar-te, e daí sucede que careces de ideias. Todavia estamos precisando de ideias, estamo-las devendo à nossa história. Porque o encontro do fato e do resultado não é uma festa vulgar, e esta deve ser celebrada e adornada com toda a sorte de solenes ornatos e piedosas manobras, para que o mundo tenha de que rir e chorar durante cinco mil anos e mais.
— A excitação e o temor são menos produtivos que a paz e a serenidade, Adon. Vou preparar-te uma bebida calmante. Colocarei um pó na água que irá para o fundo. Se, porém, lhe acrescento um pouco de outra mistura diferente, os dois ingredientes ferverão juntos, e, se beberes a poção enquanto esteja espumante, atuará como sedativo.
— Bebê-la-ei com muito gosto, mais tarde, Mai; isso no momento oportuno, quando eu tiver maior necessidade. Escuta agora o que fiz até aqui: enviei mensageiros velozes com ordens de segregá-los dos demais viajantes e de não lhes dar trigo nas cidades fronteiriças, mas de obrigá-los a prosseguir seu caminho até Menfe, até o escritório central. Dispus que sejam vigiados durante a viagem através do país e enviados a boas casas de repouso com seus animais, que se trate deles sem que o saibam nesta terra nova e estranha para eles, como o era para mim quando morri lá em cima e fui trazido até aqui aos dezessete anos de idade. Então eu era flexível, porém eles, segundo meus cálculos, já estão deixando a casa dos quarenta, exceto Benjamim, que não vem com eles, e tudo que sei é que devem ir buscá-lo, em primeiro lugar, para que eu possa vê-lo e, em segundo, porque, se o mais moço vier, o pai também virá com ele. Dispus que se alhane o caminho que terão de percorrer, a fim de que seus pés não tropecem em nenhuma pedra. Não sei se isto tem algum significado para ti. E serão levados à minha presença no ministério, no salão de recepções.
— Não em tua casa?
— Não, ainda não. Quero vê-los primeiro, mui cerimoniosamente, no escritório. Cá entre nós, o salão lá é muito maior e mais impressionante.
— E o que farás com eles?
— Creio que então terá chegado o momento de beber tua bebida espumante. Porque não tenho a mais remota ideia do que farei no caso de eles ficarem desnorteados, quando lhes disser: “Sou eu.” Mas uma coisa sei com certeza: não serei tão desazado que deite a perder a formosa história e comece pelo fim como um narrador inexperto. Não. Dissimularei durante algum tempo e os tratarei como a estrangeiros.
— Queres dizer que serás hostil?
— Quero dizer cerimonioso, ao ponto de parecer hostil. Porque penso, Mai, que não conseguirei parecer estranho, a não ser que me obrigue a mim mesmo a ser hostil. Deste modo me será mais fácil. Devo excogitar alguma razão para poder falar-lhes com dureza e tratá-los asperamente. Devo proceder como se o seu caso fosse suspeito e como se houvesse necessidade de realizar rigorosas investigações e esclarecer todos os pormenores.
— Irás falar-lhes no seu idioma?
— Esta é a primeira observação útil que a tua calma logrou fazer — exclamou José, batendo na testa. — Certamente era necessário que me recordasses isso, porque na minha imaginação sempre falo com eles em cananeu, como um imbecil. Donde saberia eu falar cananeu? Esse teria sido um tremendo passo em falso. Falo-o com as crianças, embora suponha que lhes estou dando um sotaque egípcio. Em todo caso, é essa a menor das minhas preocupações. Parece-me estar falando ao acaso, dizendo coisas que podiam ser importantes em circunstâncias menos excitantes, mas não agora. E claro que eu não havia de saber cananeu e por isso devo falar com eles por intermédio de um intérprete; precisaremos de um e vou dar ordens no ministério para que me arranjem um bom, que conheça os dois idiomas igualmente bem, a fim de que traduza minhas palavras com toda a exatidão, sem acrescentar-lhes nem tirar-lhes força. Naturalmente eu entenderei perfeitamente o que eles disserem, o que disser, por exemplo, o grande Rubem — oh, meu Deus, Rubem foi ao poço vazio para salvar-me, soube-o eu pelo guarda, mas não sei se to contei; bom, hei de fazê-lo algum dia. Como dizia, entenderei o que eles disserem, mas não devo dá-lo a perceber nem esquecer-me de que não devo responder antes que o enfadonho intérprete tenha traduzido suas respostas.
— Uma vez ingerido o remédio, procederás como convém, Adon. E então talvez os queiras tomar por espiões que vêm ver as fraquezas do pais.
— Rogo-te, Mai, que guardes para ti as tuas ideias. Como é que abres tamanhos olhos e me fazes sugestões?
— Pensei que era o que me cumpria, meu senhor.
— Foi também o que a princípio pensei, meu amigo. Mas depois compreendi que ninguém pode nem deve aconselhar-me neste solene assunto. Eu mesmo e só eu devo desbravá-lo consoante o coração me ditar. Cuida tu de como vais utilizar a tua imaginação na história dos três amores para fazê-la a mais excitante e deliciosa que fosse possível, e deixa-me usar a minha na minha própria história. Quem te disse que eu não tinha a ideia de fingir que os tomava por espiões?
— Então tivemos ambos a mesma ideia.
— Por certo, porque é a única lógica e tão boa como se tivesse sido escrita. Por outro lado, toda esta história já está escrita no livro de Deus, Mai, e ambos a leremos juntos entre risos e lágrimas. Porque tu estarás lá, tu irás ao escritório quando eles chegarem amanhã ou depois e forem conduzidos à minha presença, no grande salão do Nutridor, onde este está pintado tantas vezes nas paredes. Sim, é claro que tu estarás entre os do meu séquito. Devo ter uma grande corte quando os receber. Ah, Mai — exclamou, escondendo o rosto entre as mãos, aquelas mãos que o cachopinho Benoni ficara a observar no bosquete do senhor Adon enquanto elas teciam a coroa de mirto, e uma das quais exibia agora o anel de lápis-lazúli de Faraó com a inscrição: “Sê como eu” — vou vê-los, ver a minha gente, os meus, porque sempre o foram, por mais que tenhamos brigado por culpa de todos nós. Falarei com meus irmãos, com os filhos de Jacó, com quem durante tanto tempo guardei o silêncio da morte, e por eles hei de saber se ele ainda pode inteirar-se de que estou vivo e de que Deus aceitou o animal em lugar do filho! Saberei tudo, saberei que foi que aconteceu durante todo esse tempo, como vive Benjamim e se o tratam fraternalmente. E eles devem fazê-lo vir aqui a ele e também a meu pai! Oh, querido Mai, que foste meu guarda e és agora o superintendente da minha casa, tudo isto é tão empolgante e solene que não pode ser expresso em palavras! E precisamente por ser tão solene deve ser tratado com alegre liberdade. Porque a alegria, meu amigo, e a troça astuta são o melhor dom de Deus ao homem, o mais profundo conhecimento que possuímos sobre essa coisa complexa e discutível que denominamos vida. Deus concedeu alegria à humanidade para que o rosto terrivelmente sério da vida se visse obrigado a mostrar um sorriso. Meus irmãos rasgaram minha vestimenta e me atiraram dentro do poço; agora deverão comparecer diante de mim, pois essa é a vida. E o problema é saber se teremos de julgar o ato pelo resultado e aprovar a má ação porque era necessária para o bom resultado. Tais são os problemas que nos propõe a vida. Não podem ser resolvidos com uma cara séria. Somente com jovialidade pode o espírito do homem elevar-se acima deles para que, ao ver-se na presença do que não tem resposta, possa, com um sorriso, fazer rir o próprio Deus, o magno Irrespondível.
A AUDIÊNCIA
José parecia realmente o próprio Faraó quando se sentava na sua cadeira sobre o estrado que se erguia no salão do Nutridor, debaixo de brancos leques feitos de pena de avestruz incrustados em broquéis de ouro e que pajens de avental e de cabelos curtos agitavam por cima da sua cabeça. Em redor dele se congregavam seus principais escrivães do ministério, um grupo de sisudos magistrados. A direita e à esquerda do estrado, os lanceiros da sua casa montavam guarda em fila. Duas fileiras duplas de colunas cor de laranja, cobertas de inscrições ornamentais, sobre bases brancas, com capitéis de loto verde, estendiam-se desde o seu estrado até as portas de entrada distantes, com quadros superpostos em esmalte de cores; sobre as largas e altas paredes laterais, por cima do plinto, Ápis, o inundador, estava muitas vezes representado: em forma humana, com o sexo coberto, um peito de homem e outro de mulher, no queixo a barba real, com juncos na cabeça, ou sustentando nas suas palmas a bandeja de apresentação carregada de flores silvestres e jarros esguios. Entre estas representações variadas do deus, havia outras formas de vida em linhas ondeantes e cores alegres que brilhavam debaixo dos raios de luz que se coavam pelas reixas de pedra das altas janelas. Havia cenas de semeação e trilhadura. O próprio Faraó aparecia arando com bois e segando a messe, embebendo a foice no grão dourado, enquanto as sete vacas de Osíris, com o touro cujo nome ele sabia, pastavam em fileira. Havia inscrições incisivas como a seguinte: “Oh, possa o Nilo dar-me alimento e nutrição e todas as coisas verdes a seu devido tempo!” Assim era na sala de recepção onde os clamores de pão e semente eram levados diante do Vice-Horus, que para si reservava todas as decisões. E ali estava ele sentado agora, dois dias depois daquela sua conversa com seu intendente, Mai-Sachme, que permanecia por detrás dele e realmente lhe preparara uma bebida espumante. José acabava de despedir uma delegação barbuda e de rabicho que usava sapatos com as pontas viradas para cima e vinha da terra do grande rei Murchili, em outras palavras, de Chatti, onde também reinava a fome. Durante todo o tempo José estava distraído e alheio a tudo, como haviam notado quantos o rodeavam, pois ditara a seu “verdadeiro escrivão" uma quota maior de trigo, espelta, painço e milho, e a um preço inferior ao que os próprios delegados de Chatti haviam oferecido. Alguns dos presentes pensaram que talvez existissem para tanto razões diplomáticas: talvez tivesse chegado o momento na esfera do mundo político de mostrar alguma atenção ao rei Murchili. Outros o atribuíram à condição física do amigo universal que, antes de começar a audiência, havia declarado sofrer de um catarro motivado pela poeira e tinha o lenço diante da boca.
Por cima do lenço seus olhos contemplaram o grande salão depois que os homens de Chatti se haviam retirado e foi por sua vez trazido outro grupo de asiáticos. Um deles era alto como uma torre; outro tinha uma tristonha cabeça leonina; outro era sólido e vigoroso; outro tinha compridas pernas ágeis; dois deles não dissimularam sua inata brutalidade belicosa; um lançou a vista ao redor com olhares perscrutadores; outro se salientava por suas articulações ossudas e outro por seus olhos e beiços brilhantes e úmidos; um tinha cabelos encaracolados, uma barba redonda e muita tintura vermelha e azul púrpura na sua vestimenta. Cada qual, em suma, se distinguia por alguma particularidade. Chegando ao meio do salão, julgaram conveniente prostrar-se com o rosto em terra, e o Amigo Exclusivo teve de esperar que se levantassem para fazer-lhes sinal com o seu cabelo para que se aproximassem. Chegaram-se e novamente se prostraram diante dele.
— Tantos? — perguntou com voz tão disfarçada que, Deus sabia porque, quase convertia num grunhido. — Dez homens de uma vez? E por que não onze? Intérprete, pergunta-lhes por não vêm logo onze ou doze. Ou talvez compreendeis o egípcio?
— Não tão bem como desejaríamos, senhor, nosso refúgio — volveu um deles na sua própria língua. Era o das pernas ágeis, que tinha também, ao que parecia, a língua mais ágil. — Tu és como Faraó, és como a Lua, pai misericordioso, que sais e apareces envolto em majestosas vestes. Es como o formoso novilho recém-nascido, Mochel, o governante! Nossos corações te exaltam a uma voz, exaltam aquele que tem aqui mercado, o nutridor das terras, alimento do mundo, sem o qual ninguém tem alento, e te desejam tantos anos de vida como o ano tem dias! Mas não compreendemos ma língua, ó Adon, não a compreendemos suficientemente para nela tratar contigo. Sê compassivo conosco!
— És como Faraó! — repetiram todos em coro.
Enquanto o intérprete repetia rápida e monotonamente as palavras de Neftali, José devorava com os olhos os homens que estavam diante dele. Reconheceu-os a todos e não teve nenhuma dificuldade em distingui-los, em que pesem as modificações que o tempo produzira na aparência de cada um. Estava ali o grande Rubem, já grisalho, com as pernas fortes como colunas, crispando os vigorosos músculos do rosto a ponto de fazer uma carranca. O Deus das dispensações! Estavam ali todos, a alcateia de lobos raivosos que caíra sobre ele aos gritos de “Abaixo, abaixo!” Como lhes tinha suplicado! “Não a rasgueis, não a rasgueis!” Mas a furiosa matilha o havia arrastado ao poço com gritos e vozearia, enquanto ele, aturdido, interrogava aos céus: “Que é isto que cai sobre mim?” E venderam-no como criminoso aos ismaelitas por vinte moedas de prata e, ante seus próprios olhos, tinham manchado com seu sangue os restos da sua túnica. E agora estavam ali, seus irmãos em Jacó, haviam emergido do tempo, aqueles mesmos que o tinham assassinado por causa de um sonho, que um sonho levara até ele, e todo o passado era como um sonho também. Ali estavam os seis de olhos vermelhos e os quatro das servas: a víbora e serpente e o fanfarrão de Bala; o vigoroso filho mais velho de Zelfa com sua túnica, o correto Gad, e seu mano glutão. Este era um dos menores depois de Issacar, a besta de carga, e do moroso Zabulon, e, sem embargo, já tinha rugas e sulcos no rosto e muita prata na barba e nos suaves cabelos oleosos. Santo Deus, como tinham envelhecido! Era comovedor, como o é a vida. Entretanto, vendo-os tão velhos, José sentiu o coração confranger-se-lhe, pois era quase impossível que o pai ainda estivesse vivo.
Com o coração cheio de risos, de lágrimas e de angústia os observou, reconhecendo a cada um apesar da barba que alguns não usavam quando José estava com eles. Os irmãos, porém, não partilhávamos mesmos pensamentos, porque seus olhos estavam velados pela cegueira que os impossibilitava de ver que aquele era José. Um dia venderam um irmão seu de sangue, um rapaz desavergonhado, tocando-o para o mundo, rumo a horizontes longínquos e a distâncias nebulosas. O que eles sabiam então era o mesmo que agora sabiam. Mas não lhes passou pela cabeça a ideia de que aquele aristocrático pagão, sentado no seu trono debaixo de flabelos de penas, vestido com vestiduras de um branco deslumbrante a contrastar com a cor egípcia bronzeada da sua fronte e dos seus braços, que aquele potentado e provedor a quem haviam recorrido na sua necessidade e que exibia em redor do pescoço o colar da graça, notável obra de ourivesaria, e sobre o peito uma peça igualmente maravilhosa, com falcões, escaravelhos e cruzes ansadas, dispostos com a arte mais requintada, que aquele que estava debaixo de leques ondulantes com o machado de prata cerimonial ao cinto, a cabeça coberta ao uso do país, pudesse ser o desterrado, o sonhador de sonhos, pranteado pelo pai até que a este se lhe secaram as lágrimas. Não. De um tal pensamento estavam eles imunes, a tal ideia eram completamente impermeáveis. Além disso, o homem conservava durante todo o tempo o lenço à frente do rosto, tornando impossível mesmo o que dificilmente era possível.
José falou de novo, e, mal ele se detinha, o intérprete repetia monotonamente em cananeu o que ele havia dito.
— Será ainda objeto de exame se poderá haver aqui algum trato ou entrega de grão — disse, mal-humorado. — Pode ser que a coisa saia de modo muito diverso. Isso de não falardes o idioma dos homens é a menor das vossas dificuldades. Dignos sois de dó se pensastes que podíeis travar conversa no vosso dialeto com o primeiro porta-voz de Faraó. Um homem como eu fala a língua de Babilônia e o ketita, mas não se expressa em hebraico ou outras algaravias semelhantes, e, se alguma vez as tivesse sabido, se apressaria em esquecê-las.
Houve uma pausa para que o intérprete traduzisse isto.
— Estais-me olhando — prosseguiu sem esperar resposta —, estais-me olhando fixamente como homens sem cultura e notais, para vosso governo, que eu tenho o lenço diante do rosto, donde concluís que eu devo estar doente. E assim é, mas que há de reparar nisso ou que conclusões se podem tirar daí? Tenho um catarro motivado pelo pó. Mesmo um homem como eu pode sofrer de catarro. Meus médicos hão de curar-me. A ciência médica está muito adiantada no Egito. O meu próprio superintendente, o inspetor do meu palácio privado, é médico e vai tratar de mim. Isto não obsta a que as pessoas, por afastadas que estejam de mim, as pessoas que tiveram de empreender uma viagem através de terras desertas, debaixo de condições anormais e pouco favoráveis como as presentes, contem com a minha sincera simpatia. Sinto profundamente o que elas devem ter sofrido durante a viagem. Vós donde vindes?
— Viemos de Hebron, grande Adon, de Kirjat Arba, a cidade quádrupla, e dos terebintos de Mambre, na terra de Canaâ. Vimos comprar alimentos no Egito. Somos... brilhantes? Por que é que ele fala e não aquele alto que está ali? Aquele ao menos tem a constituição de uma torre. Parece ser o maior e o mais inteligente do vosso grupo.
— Silêncio! Quem é o que fala? Quem é o homenzinho dos lábios brilhantes? Por que é que ele fala e não aquele alto que está ali? Aquele ao menos tem a constituição de uma torre. Parece ser o maior e o mais inteligente do vosso grupo.
— É Aser, se o permites; Aser, pois é esse o nome do teu servo, um dos irmãos. Porque somos todos irmãos e filhos de um homem, unidos pelos laços da irmandade, e, quando uma coisa diz respeito a todos nós, Aser, teu humilde criado, toma a palavra.
— Oh, de modo que tu és a boca comum dos lugares-comuns! Bem. Mas agora que vos olho melhor, não escapa à minha penetração que, ainda admitindo que sejais todos irmãos, sois diferentes: uns pertencem a um grupo e outros a outro. Este que é o orador do grupo se parece com aquele que tem uma veste curta com pedaços de bronze cosidos nela; aquele de olhos de serpente tem qualquer coisa de comum com o homem de pernas finas, que está a seu lado e que ora se apoia num pé, ora no outro. Vários de vós, não obstante, pareceis de uma mesma origem, em virtude dos olhos vermelhos que tendes em comum.
Rubem tomou a seu cargo a resposta.
— Dizes verdade, senhor, e observas tudo — ouviu-o José dizer. — As semelhanças e diferenças entre nós se devem a que somos de mães diferentes; quatro de duas e seis de uma. Mas somos filhos de um só homem, de Jacó teu servo, que nos gerou e que nos enviou a d para comprarmos pão.
— Ele vos enviou a mim? — repetiu José, erguendo o lenço até tapar quase todo o rosto e olhando-os por cima dele. — Homem, surpreende-me ouvir uma voz tão fina partindo de um corpo que parece uma torre, porém surpreendem-me ainda mais tuas palavras. O tempo prateou os cabelos e a barba de todos vós, e o mais velho de vós, que não tem barba, tem em compensação mais cabelos de prata que o resto. Vossas aparências contradizem vossas palavras, porque não pareceis gente cujo pai ainda viva.
— Com teu favor, ele vive ainda, senhor! — disse Judá, tomando a palavra. — Permite-me confirmar as palavras de meu irmão. Dizemos a verdade. Nosso pai, teu servo, vive na solenidade e afinal não é tão velho. Terá mais de oitenta ou noventa anos talvez, o que não é de estranhar na nossa raça. Porque nosso bisavô tinha cem anos quando gerou o filho verdadeiro, o pai do nosso pai.
— Que falta de civilidade! — exclamou José com voz entrecortada, virando-se para o seu superintendente e logo depois novamente para eles. Durante alguns momentos nada disse, com grande inquietação do seu auditório. Finalmente acrescentou:
— Podíeis responder às minhas perguntas de uma forma mais precisa, sem entrar em minudências escusadas. O que vos perguntei foi como suportastes a viagem debaixo de condições tão árduas, e se sofrestes muito com a seca, se tínheis suficiente provisão de água, se fostes atacados por bandoleiros ou por um abubu de pó, se algum teve uma insolação. Foi isto que vos perguntei.
— Fizemos uma viagem bem boa, Adon, e rendemos-te graças pela tua benévola preocupação. Nossa comitiva era suficientemente forte para fazer frente aos salteadores; tínhamos suficiente provisão de água e todos gozamos boa saúde. Nem sequer perdemos um burro. Um abubu de pó, medianamente severo, foi o que de pior tivemos de suportar.
— Tanto melhor. Minha pergunta não foi benévola; foi estritamente objetiva. Uma jornada como a vossa não é, afinal de contas, uma coisa tão rara. Viaja-se bastante no mundo; viagens de dezessete dias e até de sete vezes dezessete não constituem extraordinária novidade. Muito mais raro é, sem dúvida, que a terra salte ao encontro do viandante: cumpre-lhe vencê-la passo a passo. Os mercadores tomam o caminho de Galaad que vem desde a cidade de Beisan através de Yenin e do vale de... esperai, já houve tempo em que o sabia, e o nome há de acudir-me novamente à memória... sim, do vale de Dotan; ali se unem à grande caravana da rota de Damasco a Leiun e Rannch e ao porto de Cazati. O vosso trajeto foi mais simples, pois viestes apenas de Hebron a Gaza e depois ao longo da costa descendo até nossa terra.
— É tal como o dizes, Mochel. Tu sabes tudo.
— Sei bastante, parte por minha natural esperteza, parte por outros meios de que dispõe um homem como eu. Mas em Gaza, onde provavelmente vos unistes à caravana, começa a parte pior da jornada. Tem-se ali uma cidade de ferro e um maldito fundo de mar coberto de ossadas.
— Não olhamos em redor de nós e com a ajuda de Deus passamos ilesos através dos horrores.
— Folgo com isso. Tivestes acaso uma coluna de fogo para guiar-vos?
— Houve uma, certa vez, que ia adiante de nós, porém desvaneceu-se e veio logo o abubu de pó, relativamente severo.
— Vejo que evitais jactar-vos de seus terrores, mas ele bem podia significar a morte para vós. Preocupa-me que os viajantes estejam expostos a semelhantes contratempos vindo ao Egito. Digo isso objetivamente. Suponho, pois, que vos considerastes afortunados ao entrar nas regiões de nossas fortalezas e baluartes.
— Sim, consideramo-nos felizes e demos graças a Deus em altas vozes, por nos ter feito chegar sãos e salvos.
— Tivestes medo diante da fortaleza de Zel e de suas tropas armadas?
— Só no sentido de um temor reverente.
— E ali que vos sucedeu?
— Não nos proibiram de passar quando lhes dissemos que vínhamos comprar trigo neste celeiro, para que nossas mulheres e filhos possam viver e não pereçam à míngua. Contudo, separaram-nos dos demais.
— E precisamente a esse respeito que eu queria saber alguma coisa mais. Tivestes surpresa diante desta medida? Que soubésseis, isto não vos tinha acontecido antes e muito menos vós mesmos tínheis feito semelhante coisa, não é? Pelo menos permitiram que vós permanecêsseis juntos e completos, todos dez, se é que dez pode ser considerado como um número completo. Não vos separaram uns dos outros, mas somente dos demais que convosco entraram, não é assim?
— Assim foi, senhor. Disseram-nos que não poderíamos comprar pão com o nosso dinheiro, a não ser em Mempi, a balança dos países, e de ti, senhor do pão e amigo da colheita de Deus.
— Isto mesmo. Puseram-vos depois no caminho? Fizestes boa viagem desde a fronteira até a cidade do embalsamado?
— Muito boa, Adon. Durante todo o tempo cuidaram de nós. Homens que iam e vinham nos levavam a alojamentos e casas de repouso com nossos animais, e no dia seguinte, quando oferecíamos o pagamento, se recusavam a aceitar o nosso dinheiro.
— Há duas classes de pessoas que recebem alojamento e alimentos gratuitos — o hóspede de honra e o prisioneiro. Que tal vos parece o Egito?
— E uma terra de maravilhas, grão-vizir. Seu poder e magnificência são como os de Nemrod; é esplêndida de forma e adornos, quer se erga sobre o solo, quer esteja em suas vastas planícies; seus templos são imponentes e seus túmulos vão topetar com as nuvens. Muitas vezes os nossos olhos não bastavam para abarcar tudo.
— Não tanto, espero, que chegásseis a esquecer-vos da vossa missão e da vossa tarefa, nem que deixásseis de espiar e de fazer vossos reconhecimentos e tirar vossas conclusões.
— Tuas palavras, senhor, são obscuras para nós.
— Com que então fingis não saber por que fostes postos de parte e por que vos vigiaram e trouxeram à minha presença?
— Desejaríamos sabê-lo, grande senhor, mas o ignoramos.
— Fazeis uma cara de quem nunca o tivesse sonhado... Não vos diz vossa consciência que estais debaixo de uma nuvem, que uma suspeita paira sobre vossas cabeças, uma sinistra suspeita, e que vossa vilania é clara aos meus olhos?
— Que dizes, senhor? Tu és como Faraó. De que suspeita falas?
— De que sois espiões — exclamou José, batendo com a mão no traço da sua cadeira de patas de leão e pondo-se de pé e indignando-os com o seu leque. Ele dissera daialu, ou seja, espião, palavra acádica que envolvia grande ofensa.
— Daialu — repetiu o intérprete em voz surda. Sobressaltaram-se como se fossem um só homem, assombrado por um raio.
— Que dizes? — falaram em coro.
— Disse o que disse. Sois espiões, viestes espionar os pontos fracos da terra a fim de revelar o caminho para a invasão e a pilhagem. Esta é a minha convicção. Se podeis contradizê-la, fazei-o.
Rubem falou enquanto os outros gesticulavam freneticamente, pedindo-lhe que esclarecesse a situação. Ele, porém, sacudiu a cabeça lentamente, dizendo:
— Que há que contradizer, soberano senhor? Já que o dizes, tua palavra merece uma resposta; do contrário, só mereceria um encolher de ombros. Os próprios grandes se equivocam. Tua suspeita é falsa. Não baixamos os olhos diante dela, senão que, como vês, os levantamos livre e honradamente para o teu rosto, e há neles uma cortês censura pela injustiça que cometes. Nós te conhecemos na tua grandeza, porém tu não nos conheces na nossa boa fé. Contempla-nos e deixa que os teus olhos se abram ao contemplar-nos. Somos filhos de um homem excelente da terra de Canaã, de um rei de pastores e amigo de Deus. Somos homens sinceros. Viemos com outros comprar alimentos em troca de anéis de boa prata que podes pesar em balanças de precisão; desejamos alimento para nossas mulheres e nossos filhos. Não temos outro intuito. Pelo Deus dos deuses, teus servidores nunca foram daialu.
— Sim, que o sois! — replicou José, batendo no chão com um de seus pés metidos em sandálias. — Um homem como eu se aferra àquilo que tem na mente. Viestes aqui descobrir a miséria do país para depois este ser ceifado de um golpe. Minha crença é que recebestes essa missão dos pérfidos reis do Oriente; a vós toca demonstrar o contrário. No entanto, em vez de fazê-lo, a única coisa que essa alta torre acha para dizer é que a acusação não corresponde à verdade. Isto não é prova suficiente para satisfazer um homem como eu.
— Sê magnânimo, senhor, e considera que mais te compete a ti provar tua acusação que a nós outros refutá-la — disse um deles.
— Quem é o que fala tão sutilmente no meio de vós e crava em mim seu olhar? Faz algum tempo que venho observando os teus olhos semelhantes aos de uma serpente. Como te chamas?
— Dan, se te apraz, Adon. Chamo-me Dan e nasci de uma serva sobre os joelhos da ama.
— Apraz-me ouvir isto. De modo que, mestre Dan, a julgar pela sutileza das tuas palavras, tu te arvoras em juiz de ti mesmo e para teu próprio proveito. Lembra-te, todavia, de que aqui quem se senta como juiz sou eu, e o acusado deve desmentir sua acusação perante mim. Porventura vós, habitantes das areias e filhos da miséria, tendes alguma ideia do perigoso equilíbrio desta pérola de subido preço entre todos os países, cujo cuidado me foi cometido e de cuja segurança devo dar conta diante do filho do deus em seu palácio? Está este país incessantemente ameaçado pela insaciável cobiça das hordas do deserto que espreitam suas fraquezas, dos Bedu, Mentiu, Antiu e Peztiu. Irão os hebreus proceder aqui como têm feito mais de uma vez para lá dos limites das províncias de Faraó? Sei de cidades sobre as quais caíram como touros selvagens, trucidando na sua fúria os homens e destruindo o gado no seu bárbaro desenfreamento. Como estais vendo, sei mais do que teríeis imaginado. Dois ou três entre vós, para não dizer todos, me parecem capazes de façanhas destas. E pretendeis que eu creia na vossa palavra de que não intentais fazer dano algum e não tencionais descobrir as regiões secretas do país?
Houve um movimento entre eles, uma troca de opiniões com gestos excitados. Finalmente encomendaram a Judá a tarefa de responder em nome de todos. Fê-lo Judá com a dignidade de um homem experimentado.
— Permite-nos, senhor, que te exponhamos o nosso caso e condição, de acordo com a exata verdade, para que saibas que somos homens sinceros. Estes teus servos são doze irmãos filhos do mesmo pai, na terra de...
— Alto lá! — atalhou José, que se havia sentado e tornou a pôr-se de pé. — Como? Então, de repente passais a ser doze homens? Segue-se que não dissestes a verdade quando declarastes que éreis dez.
— ...na terra de Canaã — rematou Judá com firmeza. Seu rosto tinha uma expressão que parecia dizer que julgava prematuro e inoportuno ser interrompido quando estava a ponto de entrar numa explicação franca e minuciosa. — Doze filhos somos nós, teus servos, ou, melhor dito, éramos. Nunca dissemos que os que nos achávamos na tua presença éramos todos mas declaramos que nós dez éramos filhos do mesmo homem. Em nossa casa éramos originariamente doze; porém o irmão mais moço, não nascido de nenhuma de nossas mães mas de uma quarta, que morreu há tantos anos quantos os que ele conta atualmente, ficou em casa com nosso pai, e um de nós já não está conosco.
— Que queres dizer com isso, “já não está conosco”?
— Que se foi, senhor, foi-se em seus verdes anos, perdeu-se para nosso pai e para nós; perdeu-se no mundo.
— Deve ter sido um indivíduo aventureiro. Mas que tenho eu que ver com ele? Quanto ao pequeno, ao vosso irmão menor, esse não se perdeu... não se perdeu para vós, não é assim?
— Está em casa, senhor, está sempre em casa, na terra de nosso pai.
— Disto deduzo que vosso velho pai está vivo e bem.
— Já perguntaste isto antes, Adon, e com tua vênia te respondemos que assim era.
— Não há tal! Pode ser que eu vos tenha perguntado pela vida de vosso pai, mas só agora vos pergunto pela sua saúde.
— Nosso pai e teu servo está passando conforme as circunstâncias — respondeu Judá. — E estas se têm tornado penosas neste mundo desde há algum tempo, como o meu senhor bem sabe. Porque, desde que os céus negaram sua bênção em forma de chuvas, uma vez e duas, a carestia pesa cada vez mais duramente sobre o nosso país, bem coroo sobre todos os outros. Falar em carestia, senhor, é diminuir o mal, pois não é possível obter grão nem por amor nem por dinheiro, nem para semear nem para pão. Nosso pai é rico, vive folgadamente...
— Até que ponto é rico e até que ponto vive folgadamente? Tem, por exemplo, uma tumba avita?
— É como dizes, senhor. Em Machpelach, na dupla escavação, dormem os nossos antepassados.
— Vive, por exemplo, de forma tão folgada que tem, como eu, um velho servo, um intendente que seja médico ao mesmo tempo?
— Assim é, Alteza. Tinha um servo sábio e viajado, de nome Eliézer. Porém Cheol o oculta agora, pois que inclinou a cabeça e morreu, deixando dois filhos — Damasek e Elinos —, dos quais Damasek, o mais velho, ocupa agora o lugar do finado e se chama por sua vez Eliézer.
— Não digas tal — acudiu José —, não o digas. — E seus olhos se inundaram de lágrimas, enquanto seu olhar se perdia no espaço, para além das cabeças deles. Em seguida perguntou:
— Por que te interrompes, cabeça de leão, no teu intento de te justificares? Não sabes como prosseguir?
Judá sorriu indulgentemente, sem comentar que não era ele quem estava a interromper a cada passo o relato.
— E o que o teu servo estava a ponto de fazer, e ele continua pronto para contar-te todas as circunstâncias e a espécie de viagem que realizamos em ordem e fielmente, para que vejas que falamos a verdade. Numerosa é a nossa casa, não exatamente como as areias do mar, mas muito numerosa. Contamos mais de setenta pessoas, porque somos todos chefes, debaixo da chefia de nosso pai, somos casados e temos sido abençoados com...
— Sois casados os dez?
— Os onze, senhor, e temos sido abençoados...
— Como! Vosso irmão menor também está casado e é chefe de família?
— E tal como dizes, senhor. De duas mulheres teve oito filhos.
— Impossível! — exclamou José sem esperar que o intérprete traduzisse. Depois bateu com a palma da mão no braço da sua cadeira e pôs-se a rir. Os funcionários egípcios que estavam detrás dele riram também, por mero servilismo. Os irmãos sorriram com ansiedade, Mai-Sachme, o intendente de José, lhe deu dissimuladamente uma pancadinha no ombro.
— Inclinastes vossa cabeça, portanto entendi que vosso irmão menor está casado e é também pai — disse José, enxugando os olhos. — Isso é magnífico. Rio-me unicamente porque é de verdade uma coisa muito boa e que dá vontade de rir. Quando se pensa no menor, a ideia que se faz é a de um rapazinho e não de um marido e pai. Foi o que me fez rir; porém vedes que parei. Este assunto é demasiado sério e suspeito para provocar riso, e a circunstância de te teres detido novamente na tua defesa, cabeça de leão, me parece suficiente motivo de desconfiança.
— Com licença tua prosseguirei sem deter-me e de forma corrente — continuou Judá. — Por causa da careza de todas as coisas que na verdade deveria chamar-se penúria porquanto não há alimento por preço nenhum, caiu essa catástrofe sobre o nosso país, onde o gado está morrendo e aos nossos ouvidos soa o clamor de nossos filhos pedindo pão, o que é, senhor, o som mais cruel que o ouvido humano pode escutar, com exceção, talvez, do lamento da idade venerável que perdeu a comodidade diária que lhe é devida, pois também ouvimos nosso pai dizer que não estava longe o momento em que sua lâmpada se extinguiria e ele iria dormir no escuro.
— Inaudito! — exclamou José. — Isto é um vexame, para não dizer uma abominação! A este ponto deixaste chegar as coisas? Não tiveste previsão nem cálculo, não soubestes olhar para o futuro nem tomar medidas contra a calamidade que pesa constantemente sobre o mundo e pode tornar-se atual em qualquer momento? Não tendes, portanto, imaginação, nem temor, nem reservas? Viveis como os brotos dos campos que só conhecem o dia presente, sem pensar em nada que não esteja diante de vossos olhos, até o pai se ver obrigado em sua velhice a viver sem as comodidades que lhe são habituais? Que vergonha! Não tendes, pois, educação nem história? Não sabeis que em certas circunstâncias a folha não pode brotar e as coisas que florescem estão obstruídas porque os campos só produzem sal, a erva não germina nem há grão que medre? Não sabeis que então a vida está entorpecida de tristeza, que o touro não salta sobre a vaca nem o asno cobre a burra? Não ouvistes falar dos dilúvios que inundam a terra de maneira que só sobrevivem aqueles que são muito sábios porque conseguiram conservar-se à tona numa arca que singra no meio do alagamento primitivo? Porventura é preciso que tenhais tudo diante das vossas vistas e que vos encare o mal que antes vos virava as costas, do modo que o vosso amado ancião se veja necessitado de azeite para a sua lâmpada?
Os irmãos baixaram a cabeça.
— Continua! — ordenou José. — Que prossiga aquele que falava! Mas não me tomes a repetir que teu pai dormirá no escuro.
— Isto é apenas um modo de falar, Adon, e significa que também ele sofre com os tempos difíceis e não tem pão. Pois bem, vimos muitos se prepararem e empreenderem a viagem a este país para comprar nos celeiros de Faraó e depois os vimos voltar com alimentos, porque só no Egito há trigo e mercado de grão. Mas durante muito tempo não tivemos ânimo de pôr-nos diante de nosso pai e dizer-lhe que nós também devíamos fazer os nossos preparativos e vir até aqui para realizar negócios e para comprar.
— E por que não?
— Porque, na sua ancianidade, ele tem ideias fixas, senhor, tem toda a sorte de preconceitos a respeito das coisas; entre elas, a respeito desta terra dos vossos deuses. Aferra-se a suas opiniões sobre Mizraim e conserva certo desprezo por seus usos e maneiras.
— A respeito de certas coisas convém fazer vista grossa.
— E provavelmente não nos teria deixado vir se lho tivéssemos pedido. De sorte que achamos mais prudente esperar que ele próprio notasse a escassez.
— Esse procedimento tampouco me parece correto. Não fica bem aos filhos estarem a tomar deliberações acerca de seu pai e quererem impor-lhe a sua vontade.
— Não havia outro remédio. Vimos seus olhares de soslaio e como abria a boca para falar e tornava a fechá-la. Finalmente nos disse: “Por que olhais de lado? Ouvi: chegou até mim a fama de que na terra do sul o grão é barato e há por lá mercado. Levantai-vos e não fiqueis aí deitados de costas até que todos estejamos perdidos. Escolhei um ou dois dentre vós, lá a quem toque, seja Simeão ou Dan, e que este faça seus preparativos e empreenda a viagem com os viandantes e compre alimento para vossas esposas e filhos e para que não morramos todos de fome." Bem, respondemos, mas não basta irem dois, porque lá indagarão quais são as nossas verdadeiras necessidades. Devemos ir todos e mostrar o número de nossas cabeças, para que os filhos do Egito vejam que precisamos de trigo por gomor e não por efa. E ele respondeu: “Bom, nesse caso, ireis os dez.” Insistimos em que melhor seria irmos todos e mostrarmos que éramos onze casas sob sua chefia, pois do contrário receberíamos muito pouco; ele, porém, exclamou: “Estais loucos? Vejo que quereis deixar-me sem filhos. Não sabeis que Benjamim deve ficar em casa ao pé de mim? Suponhamos que lhe suceda um acidente no caminho. Ireis os dez ou então ficaremos todos na escuridão.” E assim viemos.
— E essa a vossa justificação? — indagou José.
— Meu senhor, se o meu fiel testemunho não logra vencer tuas suspeitas, se não reconheces que somos inocentes e que filamos a verdade, então devemos desesperar de poder justificar-nos — respondeu Judá.
— Receio que assim seja, porquanto tenho cá minhas ideias próprias sobre a vossa inocência — tornou José. — Contudo, com relação à suspeita debaixo da qual vos encontrais e à minha acusação de que sois espiões, acusação que por enquanto não foi abalada... pois bem, vou submeter-vos a uma prova. Dizeis que eu deveria saber, pela boa fé da vossa declaração, que procedeis com honradez e que não sois tratantes. E eu vos digo: bom. Trazei então aqui o irmão mais moço de que falais. Ponde-o diante de mim para que eu me convença de que os pormenores da vossa história são exatos e têm peso; só então cederei lentamente nas minhas desconfianças e retirarei talvez minha acusação. Do contrário, pela vida de Faraó — e suponho que saibais que este é o mais sagrado juramento deste país —, nem se cogite de entabular negociações nem por gomor nem por efa. Ficará então demonstrado que sois daialu. Deveríeis ter pensado antes na forma como são tratados semelhantes seres antes de vos entregardes a essa profissão.
Ouvindo essas palavras, os dez empalideceram; seus rostos mudaram de cor e eles permaneceram ali sem saber o que fazer.
— Queres dizer, senhor — perguntaram por intermédio do intérprete —, que temos de refazer o caminho andado, de nove ou dezessete dias, uma vez que a Terra não salta ao nosso encontro, e depois repetir a viagem até aqui trazendo nosso irmão menor à tua presença?
— Qual nada! — volveu José. — Não, certamente não. Acaso imaginais que um homem como eu apanhe espiões para deixá-los escapar? Vós sois prisioneiros. Vou pôr-vos à parte numa ala separada desta casa e ali vos guardarei por três dias, quero dizer, hoje, amanhã e parte de depois de amanhã. Durante esse tempo escolhereis um dentre vós, ou por sorte ou por combinação, e este realizará a viagem eirá buscar o sujeito da prova. Enquanto isso, os outros permanecerão como prisioneiros até que o menor compareça à minha presença, porque, pela vida de Faraó, sem ele não tornareis a ver outra vez o meu rosto.
Os irmãos olharam para os pés e morderam os beiços.
— Senhor — disse o mais velho —, o que ordenas é possível até o ponto em que o mensageiro chegue a casa e declare a nosso pai que para obter pão devemos trazer perante ti o seu filho menor. Tu não fazes ideia de como nosso pai se revoltará com isso; ele insiste em que o menor deve estar sempre em casa e nunca deve empreender nenhuma viagem. Como sabes, ele é o caçula...
— Isto é absurdo — exclamou José. — A lógica me diz que, nem pelo fato de ser o mais moço, é forçoso que se seja criança. Um homem com oito filhos tem idade bastante e juízo suficiente para deixar o lar, ainda que fosse doze vezes mais moço. Pensais que vosso pai preferirá deixar-vos aqui a todos acusados de ser espiões a permitir que o mais jovem viaje?
Novamente trocaram opiniões com olhares e encolher de ombros, até que por fim Rubem falou:
— Cremos que isto é possível, senhor.
— Pois eu penso que não — disse José, erguendo-se. — Não podeis fazer um homem como eu acreditar nisso, e, quanto ao que disse, mantenho a minha exigência. Tendes de trazer à minha presença o vosso irmão mais moço. Nisso sou inexorável. Se isto não se der, pela vida de Faraó, sereis condenados como espiões.
E fez um sinal ao oficial da guarda; este pronunciou uma palavra, ouvida a qual, os lanceiros avançaram até junto dos homens atemorizados e os levaram dali.
"O SANGUE DERRAMADO NOS ESTÁ SENDO EXIGIDO"
Não foram conduzidos a uma prisão nem arrojados a nenhum poço, mas simplesmente detidos como prisioneiros num sítio à parte do palácio, num salão com colunas de capitéis em forma de flores, a que se chegava descendo-se alguns degraus. Parecia um escritório não-utilizado ou utilizado como arquivo de documentos velhos. Havia ali espaço suficiente para dez pessoas e viam-se bancos em toda a extensão das paredes. Para pastores que moravam em tendas era aquela uma sala quase suntuosa. Nada significava o fato de terem reixas as aberturas para a luz, porque era comum terem as aberturas uma espécie de gelosia. Verdade é que do lado de fora da porta passeavam guardas.
Os filhos de Jacó puseram-se de cócoras e entraram a analisar o assunto. Tinham tempo de sobra para escolher o que havia de efetuar a viagem de regresso e de formular a proposta ao pai; tinham dois dias inteiros para deliberar. De maneira que, antes de tudo, discutiram a situação em seus termos gerais e a dificuldade em que se encontravam. Cheios de pesar chegaram à conclusão de que ela se mostrava muito má e ameaçadora. Que diabólico infortúnio era que semelhante suspeita tivesse recaído sobre eles sem que nenhum soubesse como nem por quê! Exprobraram-se uns aos outros por não terem visto que o infortúnio se aproximava, por não terem percebido que sua separação dos demais na fronteira, o fato de terem sido remetidos para Menfe e a vigilância a que os haviam submetido durante sua viagem até ali — tudo isto significava que se desconfiava deles. No entanto, tinham levado tudo aquilo à conta de uma manifestação de bondade. Na realidade havia em todo aquele assunto uma desconcertante mistura de bondade e de perigo que os deixava perplexos, ao mesmo tempo que, no meio de todos os seus cuidados e contratempos, experimentavam uma estranha sensação de prazer. Não podiam compreender o homem diante do qual tinham comparecido, o homem que alimentava aquela malfadada suspeita em relação a homens perfeitamente inocentes e sinceros como eles e que lhes havia imposto a pesada tarefa de ter que provar sua inocência. Era uma suspeita absurda, incrivelmente caprichosa, do ponto de vista de sua inocência multiplicada por dez, e da boa fé que naquele negócio os dirigia. Era absurdo tomarem-nos por espiões que tinham ido espreitar os pontos fracos do país. Mas aquilo lhe havia entrado na cabeça e, sem falar no perigo de vida ou de morte que a acusação envolvia, esta os contrariava porque, de certo modo, sentiam simpatia por aquele guardador do mercado e grande senhor do Egito, doendo-lhes que justamente esse homem fosse pensar mal deles.
Era aquele um homem que dava na vista. Podia-se dizer que era bonito e bem-apessoado. Sem ir longe demais, era possível compará-lo a um touro recém-nascido, com todos os seus adornos. E, de certo modo, era benévolo; mas exatamente aí estava a dificuldade: a mistura de simpatia e de rancor que havia na sua pessoa era característica da situação. Ele era tom: os irmãos ficaram de acordo quanto ao epíteto. Era um homem equívoco, de face dupla, um homem que era isto e aquilo ao mesmo tempo, formoso e sombrio ao mesmo tempo, estimulante e perturbador, bondoso e perigoso. Não se conseguia compreendê-lo, como tampouco era possível explicar a qualidade de tom, em que se reuniam o mundo superior e o ínfero. Sabia ser compreensivo, pois que se preocupara com os perigos de sua viagem. Julgara que valia a pena perguntar pela vida e o bem-estar do pai e tinha rido sonoramente quando soube que o mais moço estava casado. No entanto, daí a pouco, como se só tivesse querido embalá-los numa amistosa segurança, havia-lhes lançado em rosto aquela acusação totalmente arbitrária e caprichosa, e pusera-os inexoravelmente na condição de reféns até que trouxessem o undécimo filho, como prova de sua boa fé... como se isto pudesse ser considerado seriamente como uma refutação! Sim, tam era a palavra para defini-lo. Um homem do solstício, mudável e volúvel, um homem do superior e do inferior ao mesmo tempo. E também um homem de negócios, nos quais havia uma pouca de artimanha que se casava bem com o resto da sua personalidade, Mas de que valia ter observado todas essas coisas, de que valia queixar-se de que aquele homem, do qual tinham gostado tanto, houvesse sido tão duro com eles? Isto não resolveria o negócio nem os ajudaria a sair do apuro em que se encontravam e que, segundo reconheceram, era o pior em que já se haviam visto. Afinal acabaram relacionando aquela suspeita completamente destituída de fundamento com outra que era fundada: talvez aquilo que agora lhes acontecia tinha alguma relação com a suspeita debaixo da qual estavam costumados a viver em casa, isto é, que aquilo que lhes estava sucedendo podia ser um castigo pelo passado delito.
Seria um erro opinar e deduzir das fontes que eles não houvessem mencionado a suspeita senão diante de José na segunda vez que foram postos na sua presença. Não, a coisa já lhes havia acudido antes. Ali, no lugar da sua primeira detenção ela lhes subiu aos lábios e falaram até de José. Coisa estranha: nem por um instante lhes ocorreu estabelecer a menor associação mental entre aquele senhor do trigo e seu irmão vendido e enterrado, e, não obstante, falaram dele. Não foi apenas uma associação moral, não chegaram a ela por este caminho, uma suspeita não levou a outra. A princípio não foi uma questão de culpa e de castigo, foi uma questão de contato.
Mai-Sachme teve razão ao observar, com o seu modo imperturbável, que havia uma grande distância entre reconhecer e saber que se reconhece. Um homem não pode entrar em contato com seu irmão de sangue sem reconhecê-lo, mormente se alguma vez derramou aquele sangue; mas confessar isso a si mesmo é coisa muito diferente. Afirmar que os filhos, neste ponto da história, tinham reconhecido o guardador do mercado seria um modo inábil de dizer as coisas e só levaria à sua negação, porque se assim fosse, como se explica seu assombro sem limites quando José lhes revelou sua identidade? Não, não tinham isso a mais remota ideia. Também não tinham ideia da razão pela qual a imagem de José e da velha culpa deles lhes acudia ao espírito após ou mesmo durante o seu primeiro contato com aquele atraente e alarmante potentado.
Desta vez não foi Aser quem por puro deleite exprimiu em palavras os sentimentos tácitos que os uniam. Foi Judá, o homem de consciência. Porque Aser percebeu que ele não tinha peso suficiente, ao passo que Judá sabia que esta era a sua tarefa.
— Irmãos em Jacó, achamo-nos num grande perigo — exclamou. — Somos estrangeiros numa terra estranha e estamos apanhados numa cilada; caímos num poço de incompreensível mas funesta suspeita. Se Israel recusa deixar que Benjamim venha com o nosso mensageiro, como receio que o faça, seremos homens mortos, ou então nos conduzirão à casa do martírio e da execução, como dizem os filhos do Egito; ou seremos vendidos como escravos para construir túmulos ou lavar ouro nalgum lugar horrível, e nunca mais tornaremos a ver nossos filhos e o látego da escravidão egípcia deixará vergões nas nossas costas. Como foi que isso nos aconteceu? Refleti, irmãos, por que é que isto nos está acontecendo e aprendei a conhecer a Deus. Porque Deus, nosso Pai, é um Deus de vingança e não esquece. Ele não permitiu que esquecêssemos, mas sobretudo Ele próprio não esquece. Por que não nos consumiu Ele imediatamente e na ocasião com o seu fogo, senão que deixou passar toda uma vida, procrastinando fomente o juízo até este cair agora sobre nós? Perguntai-o a Ele e não a mim. Porque, quando fizemos aquilo, éramos jovens e nosso irmão um cachopinho, e agora que o castigo cai sobre nós, já nós não somos os mesmos. Não obstante isto, vos digo: fomos culpados para como nosso irmão ao vermos a angústia da sua alma quando ele clamou do fundo do fosso e não quisemos ouvi-lo. Por isso caiu sobre nós essa desgraça.
Todos inclinaram a cabeça em sinal de aquiescência, porquanto Judá exprimira em voz alta o pensamento de cada um, e disseram:
— Chaddai, Jahu, Eloah.
Mas Rubem, com a barba prateada entre as mãos e o rosto enrubescido pela preocupação que o dominava, as veias da testa inchadas, irrompeu com os lábios apertados:
— Sim, sim, recordai agora, resmungai e protestai! Não vos disse eu? Não vos disse quando vos adverti: “Não coloqueis a mão sobre o rapaz?” Mas qual de vós quis ouvir-me então? Pois aqui tendes o resultado. Seu sangue derramado nos está sendo exigido.
Não fora isso precisamente o que o bom Rubem tinha dito naquela ocasião, mas ele havia impedido alguma coisa: havia impedido que o sangue de José fosse derramado, pelo menos eles não tinham derramado mais do que é necessário para estropear superficialmente a beleza do jovem, e não era exato dizer que seu sangue estava sendo exigido agora. Ou Rubem se referia ao sangue do animal levado ao pai em lugar de José? Seja como for, os outros estiveram de acordo em que ele os havia advertido de que o pago teria de vir algum dia, Assentiram, portanto, com a cabeça, dizendo:
— É verdade, é verdade, está sendo exigido.
Deram-lhes alimentos, por sinal que muito bons, rosquinhas e cerveja, e aqui tornaram a sentir aquela mesma mistura de bondade e ameaça. Caindo a noite, dormiram sobre os bancos que eram providos de suportes para manter levantadas as suas cabeças. No dia seguinte deviam escolher o mensageiro que, de acordo com a vontade daquele homem, devia empreender a viagem em busca do mais jovem e que talvez não regressasse nunca, se Jacó recusasse aceder. A deliberação tomou-lhes o dia todo, pois não quiseram confiar a escolha à sorte, mas deixaram que a razão os guiasse naquele caso difícil, que devia ser analisado debaixo de seus diferentes aspectos.
Quem dentre eles tinha mais influência com o pai para conseguir persuadi-lo? Quem podiam dispensar aqui na grave conjuntura em que se achavam? Quem era o mais indispensável para a estirpe, para que ele sobrevivesse no caso de perecerem os outros? Tudo isto devia set considerado e pesado, os diversos pareceres e respostas deviam ser levados a um acordo, e, quando a noite chegou, ainda não haviam tomado nenhuma decisão fixa. Aqueles que estavam amaldiçoados — até o ponto em que Israel pode ser amaldiçoado — não eram os indicados. Havia muitas razões que militavam a favor de Judá. Verdade é que os demais lastimavam ter de prescindir dele; mas Judá seria talvez o mais adequado a ganhar a boa vontade do pai, e todos concordaram em que ele era o mais indispensável para a conservação da raça. Judá, porém, não foi dessa opinião; sacudiu sua leonina cabeça, confessando-se um pecador e escravo que não era digno nem tinha vontade de sobreviver.
Quem seria, logo, o designado, o indigitado por todos? Dan, o astuto? Gad, o reto? Aser, que gostava de mover os beiços úmidos e de falar em nome de todos? Tanto Zabulon como Issacar opinaram que nada podia aduzir-se em favor das suas próprias pessoas. A escolha teria afinal recaído provavelmente sobre Neftali, o filho de Bala. Seu zelo por contar o ocorrido o impelia a ir a casa, suas compridas pernas se impacientavam por fazê-lo, podendo-se dizer o mesmo da sua língua, que já lhe fazia cócegas; mas para os outros, e inclusive para si mesmo, de parecia ter pouco peso espiritual para que o papel lhe coubesse num sentido que não fosse apenas superficialmente mítico. Surgiu o terceiro dia sem que tivesse sido indigitado especificamente nenhum deles; mas era bem provável que a escolha se tivesse mesmo fixado em Neftali, se a audiência seguinte não houvesse demonstrado que todas as suas deliberações e quebra-cabeças tinham sido vãs, uma vez que o severo guardador do mercado delineara outro plano diferente.
Mal se viu José a sós com Mai-Sachme, terminada a recepção e despedido o seu séquito de homens notáveis, exclamou com o rosto resplandecente e cheio de regozijo:
— Ouviste, Mai? Ele vive ainda! Jacó vive e ainda pode vir a saber que estou vivo, que não sou do número de mortos. E Benjamim é um homem casado e tem uma boa ninhada!
— Sem dúvida cometeste um erro, Adon, quando te puseste a rir ao saberes desta última novidade e antes que o intérprete ta repetisse!
— Nem quero pensar nisso. Ainda emendei o erro no mesmo instante. Não se pode prever tudo num momento tão cheio de emoção. Mas e o resto como foi que tudo saiu? Como me portei? Enfeitei convenientemente a história de Deus? Dei-lhe detalhes impressionantes?
— Saíste-te muito bem, Adon. Esteve tudo esplêndido. Verdade é que tiveste um papel fácil e interessante.
— Sim, interessante. Para todos, exceto para ti. Tu não perdes a calma e te limitas a arregalar os olhos. Porventura não foi uma cena magnífica aquela em que me pus de pé para acusá-los? Eu vinha conduzindo a situação até aquele ponto: podia-se adivinhá-la e, sem embargo, quando se efetuou, foi impressionante. E, quando o grande Rubem disse: “Nós te reconhecemos na tua grandeza, mas tu não nos reconheces na nossa inocência!”, não foi ouro sobre azul?
— Não foste tu quem lhe pôs na boca essas palavras, Adon.
— Não, mas conduzi a situação àquele ponto. Além disso, os pormenores da festa ficam a meu cargo. Não, Mai, tu és desagradecido, e não há remédio para ti, porque não és capaz de assombrar-te. Contudo, vou dizer-te uma coisa: não estou tão satisfeito como pareço, porque fiz uma asneira.
— Que queres dizer com isso, Adon? Fizeste tudo maravilhosamente.
— Sim, mas fiz muito mal uma coisa muito importante e, quando caí em mim, era tarde demais para voltar atrás. A ideia de deter aqui nove como reféns e enviar um de volta para trazer o pequeno foi uma inabilidade, um erro pior ainda do que o meu riso. Cumpre-me retificá-la. Com que intuito vou conservar os nove se nada posso fazer para apressar a ação da história de Deus enquanto não esteja aqui Benjamim, e nem ao menos posso vê-los, uma vez que meu rosto lhes estará vedado até que tragam Benjamim à minha presença? Foi uma cinca terrível. Irão ficar aqui como penhor enquanto em casa não há comida e meu pai não tem pão para levar à boca? Não; é mister fazer outro arranjo: um ficará aqui como garantia, aquele que menos signifique para o pai, digamos, por exemplo, um dos gêmeos (e, cá entre nós, foram eles os que se comportaram com mais selvageria quando se atiraram sobre mim), e os demais voltarão, levando tudo o necessário para matar a fome que lá reina. É claro que terão de pagar, porquanto, se eu lhes desse o trigo a troco de nada, poderiam desconfiar. Nem por um momento penso que deixem o refém entregue à sua própria sorte e que se confessem culpados da acusação que pesa sobre todos sacrificando-o e não tornando com o mais moço.
— Mas isso tomará muito tempo, meu caro amo. A menos que me equivoque, teu pai não permitirá que o homenzinho casado empreenda a viagem até que todo o pão tenha acabado e a lâmpada ameace apagar-se novamente. Estás gastando muito tempo para tua história.
— Tens razão, Mai. Mas por que não havia de levar largo tempo uma história como esta e por que não havíamos de trabalhar pacientemente nela, aformoseando-a com todo o esmero? Se transcorrer um ano inteiro antes que regressem com Benjamim, isso para mim não será muito tempo. Que é, afinal de contas, um ano nesta história? Enfim, eu te encaixei nela deliberadamente por seres a própria paciência e porque podes emprestar-me um pouco dela quando eu me impacientar.
— Com prazer, Adon. É uma honra figurar nessa história. Parece-me vê-la projetada no futuro, parece-me que adivinho algumas das coisas que vais fazer para dar-lhe forma. Suponho que tencionas fazê-los pagar os alimentos que levam consigo, mas secretamente, e, antes que se ponham a caminho, farás colocar o dinheiro na parte superior dos sacos, para que o descubram na primeira parada da viagem. Isso os fará dar tratos à bola.
José olhou espantado para o seu intendente.
— Mai, essa é uma ideia estupenda! — exclamou. — Ouro e prata! Sugeres-me um detalhe a que provavelmente eu teria chegado por mim mesmo, porque naturalmente pertence à história; todavia era bem possível que me passasse despercebido. Nunca poderia ocorrer-me que um ser tão incapaz de assombrar-se diante de nada pudesse lembrar-se de uma coisa tão espantosa.
— A mim não assombraria uma coisa semelhante, meu senhor, mas a eles sim.
— É claro que os vai maravilhar muito. Hão de sentir-se desconcertados e se entregarão a toda sorte de hipóteses, sem saberem o que pensar. E terão para si que têm de lidar com um homem cheio de boas intenções para com eles, mas que lhes arma tricas. Deixo ao teu cuidado arrumar o negócio dos sacos; é uma ideia digna da história. Recomendo-te que coloques o dinheiro nos sacos de modo que cada qual encontre o seu logo que tenham de alimentar-se. Isto junto com o caso do refém os fará sentir-se mais que nunca obrigados a regressar. E agora vamos aguardar até depois de amanhã. Esgotado esse prazo, os farei sabedores da nova determinação. Mas que representam dias e anos numa história como esta!
O DINHEIRO NOS SACOS
E assim aconteceu que, no terceiro dia, os irmãos compareceram novamente ao salão do Nutridor, perante a cadeira de José, ou antes, prostraram-se diante dele tocando o chão com a fronte, erguendo as palmas para cima e murmurando em coro:
— Tu és como Faraó! Teus servos não têm culpa diante de ti.
— Sim, pensais que ides convencer-me com mesuras e salamaleques, mas não sois senão um montão de espigas vazias. Intérprete, repete para eles o que acabo de dizer: um feixe de espigas vazias. E, quando digo vazio, quero também dizer hipócrita e desonesto. Mas não há de ser a um homem como eu que enganareis com demonstrações desta espécie. Minhas suspeitas não se desvanecerão diante de vossas reverências. Enquanto não trouxerdes a prova e a puserdes diante de mim — refiro-me ao vosso irmão mais moço de que falastes —, continuareis sendo tratantes diante de meus olhos, patifes sem nenhum temor de Deus. Eu, porém, o temo. Por conseguinte,vos farei saber o que resolvi. Não quero que vossos filhos passem fome ou que vosso velho pai durma no escuro. Recebereis vossas provisões de acordo com o número de vossas cabeças e com o preço fixado para o mercado. Não ireis imaginar que vos darei este pão porque sois isto ou aquilo, ou por serdes filhos de um mesmo homem e doze ao todo. Isto não é razão para que um homem como eu não trate convosco em termos estritamente comerciais, quanto mais que, segundo todas as probabilidades, estou tratando com espiões. Recebereis, portanto, para dez famílias se pagardes as provisões, mas só permitirei que regressem nove. Um de vós deve permanecer aqui como refém até vossa volta, até que vos limpeis de toda culpa, trazendo diante de mim o undécimo que já foi o décimo segundo. E o refém será aquele sobre o qual primeiro caia o meu olhar. Em outras palavras, este!
E apontou com seu leque Simeão, que o olhou firme e desafiadoramente, como se aquilo em absoluto não lhe dissesse respeito.
Foi imediatamente carregado de ferros. Enquanto os soldados lhe punham as algemas, acercaram-se dele os irmãos e lhe dirigiram a palavra. Voltaram então a falar no que já haviam falado em particular e que não se destinava a ser ouvido por José, o qual sem embargo ouviu e entendeu tudo.
— Simeão, ânimo, homem! — disseram-lhe. — Tens de ser tu, já que ele te escolheu. Comporta-te como um homem valente e enérgico, como um Lamech. Faremos quanto estiver ao nosso alcance para voltar e livrar-te. Nada temas: as coisas não serão tão más, não irão além do que tuas forças enormes podem suportar. O homem é hostil, mas só pela metade, pois é também benévolo. Não te mandará para as pedreiras sem ter provado a ma culpa. Lembra-te de que nos serviu ganso assado na prisão. E homem de quem não se pode fiar, mas não é mau. Talvez não te conserve acorrentado todo o tempo; porém, se o fizer, sempre será melhor do que lavar ouro. Compadecemo-nos de ti, mas a sorte te designou pelo capricho deste homem; por isso nada se pode fazer. Podia ser qualquer outro de nós, e nós todos sofremos contigo. Deus o sabe. Assim ao menos não terás de apresentar-te diante de Jacó e explicar-lhe que tivemos de deixar um como refém e que temos de voltar trazendo o mais moço. Todo esse caso é uma calamidade, um castigo que nos foi enviado pelo Vingador. Recorda-te do que disse Judá, expressando o que todos nós sentimos, quando nos lembrou como o nosso irmão tinha aclamado do fundo do poço e como fomos surdos ao seu pranto quando nos suplicou em nome de nosso pai, para que a dor não o aniquilasse. E não podes negar que naquela ocasião vós dois, tu e Levi, fostes os que mais selvagemente o trataram.
E Rubem acrescentou:
— Coragem, gêmeo! Teus filhos terão que comer. Isto caiu sobre ti porque nenhum de vós me quis ouvir quando vos disse: “Não ponhais as mãos sobre o rapaz!” Mas vós não quisestes escutar a advertência, e, quando eu voltei ao fosso, o rapaz havia desaparecido. Agora Deus nos pergunta; “Onde está teu irmão Abel?”
José ouviu tudo. Começou a sentir cócegas no nariz, fungou um pouco e seus olhos se encheram de lágrimas de tal modo que se viu obrigado a desviar o rosto e Mai-Sachme teve de dar-lhe uma pancada no ombro. Mas não pôde conter-se imediatamente e, ao virar-se de novo para eles, sua voz soou vacilante e carregada de emoção.
Não vou cobrar de vós preços mais altos do que o permite o mercado — disse-lhes. — Não quero que digais que o amigo de Faraó vos explorou quando a ele recorrestes. Recebereis o que puderdes levar e o que os vossos sacos puderem conter. Dar-vos-ei cevada e trigo; recomendo-vos o que vem de Uto, o país da serpente, porque é o melhor. Também vos aconselho que utilizeis o trigo para pão em vez de semeá-lo. A seca pode continuar — na realidade continuará — e se perderia tudo. Adeus! Digo-vos adeus como a gente honrada, porque afinal ainda não sois réus convictos, apesar das minhas suspeitas, e, se trouxerdes o undécimo à minha presença, acreditarei em vós e não vos tomarei por monstros do caos mas pelos onze sagrados signos do zodíaco. E, não obstante, onde está o vosso duodécimo signo? Está escondido pelo Sol. Será assim, homens? Boa viagem! Sois uma gente estranha e misteriosa. Tende cuidado agora que vos ides e muito mais cuidado na volta. Porque agora só levais alimentos, por mais preciosos que sejam, mas, quando regressardes, trareis o mais moço. O Deus de vossos pais seja vosso escudo e couraça! E não vos esqueçais do Egito, onde Osíris foi atraído à caixa e despedaçado, mas chegou a ser o primeiro no reino dos mortos e ilumina o rebanho das regiões subterrâneas.
Ditas estas palavras, interrompeu a sessão e se levantou da sua cadeira de sob os flabelos. Os irmãos receberam as licenças de compra num escritório do edifício a que foram conduzidos. O preço foi fixado por alqueire, por moio, por carga transportável num burro. As cavalgaduras e as bestas de carga foram trazidas do pátio, sendo o preço de compra pesado pelos funcionários juramentados que vigiavam as balanças: cada um ofereceu dez anéis de prata, de modo que houve um justo equilíbrio entre os anéis e o peso; e a cevada e o trigo foram tirados das arcas e postos nos sacos até que estes quase arrebentaram de tão cheios. Eram grandes sacos duplos cheios até a boca, suspensos às ilhargas das bestas pesadamente carregadas. Os sacos de forragem foram colocados sobre os animais de montar, diante da sela. Assim que estiveram prontos, quiseram empreender a caminhada sem perda de tempo, para fazerem um bom trajeto desde Menfe até a fronteira no primeiro dia, mas os funcionários lhes tinham preparado uma boa ceia para que reforçassem suas energias enquanto a caravana esperava no pátio. Deram-lhes sopa de cerveja com passas e pernas de cordeiro. Receberam também alimentos para os primeiros dias da viagem, embrulhados em vistosos pacotes para que se conservassem frescos. Tal era o costume, disseram-lhes: as provisões estavam incluídas no preço da compra, pois assim era o Egito, a terra dos deuses, uma terra que podia dar-se ao luxo de ser generosa.
Foi Mai-Sachme, o intendente da casa do senhor, quem lhes disse isto. Presidira ele pessoalmente a todos os preparativos, erguendo as pesadas sobrancelhas negras sobre os redondos olhos pardos. Os irmãos simpatizaram muito com Mai por sua calma inabalável, especialmente depois que os tranquilizou a respeito da sorte de Simeão dizendo-lhes que sua condição seria tolerável. Os ferros eram uma coisa meramente simbólica e provavelmente não durariam. Só se eles o deixassem entregue à sua própria sorte e não voltassem com o mais moço dali a um ano o mais tardar. Nesse caso, ele, Mai, não responderia pelas consequências. Porque seu amo... bom, era um potentado; sim, na verdade era um homem muito benévolo, mas, por outro lado, era inexorável uma vez que metia alguma coisa na cabeça. Mai era de opinião que as coisas tomariam um aspecto mui sombrio para Simeão se eles não fizessem como o amo recomendara. Nesse caso, seriam dois, em vez de um, os irmãos desaparecidos, o que também não agradaria ao velho pai.
— Oh, não! — disseram. Fariam tudo quanto estivesse ao seu alcance. Mas não era coisa fácil ter de lidar com duas naturezas teimosas. E que isto fosse dito em honra do amo, pois ele era um tam, um homem do solstício que se assemelhava à divindade, na sua personalidade dupla, bondosa e temível ao mesmo tempo.
— Assim é — respondeu o intendente. — Sentis-vos fartos? Então, boa viagem! E lembrai-vos da minha palavra.
E os irmãos deixaram a cidade, silenciosos a princípio, porque se sentiam deprimidos por causa de Simeão e também por causa da preocupação de como dar ao pai a notícia de que o tinham perdido e de que só havia uma forma de resgatá-lo. Mas havia ainda muito que andar até chegarem à presença do pai, e assim, passado algum tempo, puseram-se a conversar. Falaram da deliciosa sopa de cerveja e fizeram comentários acerca do infortúnio que os colhera, conquanto todos conviessem em que afinal se haviam saído bem do seu apuro e o pai teria de se alegrar com o resultado da viagem. Falaram do atarracado intendente e acharam-no todos um homem agradável, não tam, mas inteiramente bondoso e sem arestas. Mas quem sabe como haveria procedido se em vez de ser o mais antigo dos servos fosse o amo e guardador do mercado? As pessoas simples têm menos tentações e podem facilmente ser magnânimas, ao passo que a grandeza sem limites toma fatalmente os homens caprichosos e irresponsáveis. O próprio Onipotente era um exemplo disto, e muitas vezes era difícil compreendê-lo com os seus modos misteriosos. Em todo caso, o Mochel fora muito bondoso naquele dia, exceto quando fez acorrentar Simeão. Tinha-lhes dado bons conselhos, abençoara-os e, em forma quase solene, os comparara com os signos do zodíaco, um dos quais estava oculto. Seria provavelmente um astrólogo, e talvez até um leitor e intérprete de signos. Na verdade tinha dado a entender que não precisava de meios mais altos para aumentar suas próprias percepções. Não lhes surpreenderia saber que era capaz de ler nas estrelas. Se, porém, as estrelas lhe haviam dito que eles eram espiões, o que o homem ha nelas não passava de disparates.
Falaram sobre todos esses assuntos e naquele mesmo dia avançaram um bom trecho na direção dos lagos Amargos. A boca da noite, escolheram um sítio para acampar. Era um lugar aprazível e bem apropriado, quase todo circundado de rochas argilosas, no qual crescia uma palmeira torta que mais para o cimo se endireitava, dando sombra. Havia também um poço e uma choça para abrigo, e a terra enegrecida mostrava que outras pessoas tinham acampado e acendido fogo ali. Esse local tornará a aparecer no resto desta historia; havemos de reconhecê-lo pela palmeira, o poço e a choça. Os nove irmãos instalaram-se comodamente ah. Uns descarregaram os burros e puseram juntos os sacos. Outros tiraram água e empilharam galhos secos para acender lume. Mas um deles, Issacar, quis dar de comer imediatamente ao seu animal, pois sua alcunha de “asno ossudo” lhe fazia sentir uma simpatia especial diante das necessidades da sua cavalgadura e a alimária já havia zurrado lastimosamente pedindo seu alimento.
Ao abrir seu saco, o filho de Lia soltou uma exclamação:
— Olhai! — gritou. — Olhai o que tenho aqui, irmãos em Jacó! Vinde todos!
Vieram todos dos lugares onde se encontravam, esticando o pescoço para ver. Na parte superior do seu saco de provisões Issacar tinha encontrado os seus dez anéis de prata, o preço do seu carregamento de trigo.
Ficaram um instante atônitos, sacudindo a cabeça e fazendo sinais como para esconjurar o mal.
— Então, ossudo — dissera —, como foi que isso te aconteceu?
E logo cada qual se lançou sobre seu próprio saco. Não tiveram de procurar muito, porquanto na parte superior de cada saco estava o dinheiro da compra.
Tomaram a sentar-se no chão para deliberar. Que significava aquilo? O dinheiro tinha sido cuidadosamente contado nas balanças e agora ali o tinham de novo. Sentiram um aperto no coração diante daquele fato inexplicável. Que poderia significar? Decerto era bem bom, era agradável ter a mercadoria e juntamente o dinheiro. Mas, por outra parte, aquilo tornava-se pavoroso, mormente debaixo da suspeita em que todos se achavam. Convieram em que aquilo era bom, mas suspeito em si e lançava uma luz dúbia para ambas as direções. Agradava e satisfazia por um lado, mas havia nalguma parte qualquer coisa que não andava bem. Por que, oh, por que teria Deus feito aquilo?
— Sabeis por que Deus faz isto conosco? — perguntou Rubem, fazendo um gesto com a cabeça e os músculos do rosto repuxado.
Todos entenderam o que ele queria dizer. Rubem aludia à velha história e relacionava aquela insensata boa sorte que lhes tocava com a insensata má sorte em que estavam envolvidos; porque uma vez, contra sua advertência (teria ele realmente feito alguma advertência?), tinham deitado as mãos sobre o rapaz. O fato de envolverem a Deus no assunto, interrogando por que é que Ele lhes fizera aquilo, demonstrava que todos tinham o mesmo pensamento. Enquanto, porém, matutavam no caso, perceberam que aquilo já era demais. Rubem não tinha por que mover a cabeça daquele modo. Agora que lhes sucedia mais aquele incidente, fazia-se-lhes mais difícil do que nunca comparecer diante do pai, pois viam-se obrigados a mais uma confissão. Primeiro Simeão, depois Benjamim e agora aquele negócio inexplicável. Não, com certeza que não podiam voltar para casa com a cabeça erguida. Talvez agradasse a Jacó saber que haviam obtido o trigo grátis; mas, por outro lado, aquilo podia desagradar à ideia que ele fazia da honra comercia], e eles iam aparecer diante dele debaixo de um aspecto pouco recomendável.
Por um momento sentiram o impulso de pôr-se de pé e correr cada qual para os seus respectivos burros, com a intenção de ir devolver o preço da compra. Mas logo compreenderam a inutilidade daquele gesto e resolveram sentar-se de novo. Seria inútil, disseram. E realmente havia tão pouco sentido em devolver o dinheiro como em tê-lo recebido de volta.
Sacudiram a cabeça e continuaram sacudindo-a várias vezes, mesmo durante o sono. Também suspiraram com frequência, seus peitos arfaram inconscientemente duas ou três vezes durante a noite. Contudo, um sorriso se insinuava de quando em quando nos lábios de algum dos adormecidos. Sim, vários deles sorriram ditosos no seu sono.
OS DESFALCADOS
Foi anunciada a Jacó a boa nova da volta de seus filhos. Aproximavam-se da tenda paterna com seus burros que se moviam pesadamente sob o fardo do trigo de Mizraim. A principio não se notou que eram apenas nove, em vez de dez. Nove já forma um numero bem grande e, com os animais, pareciam ser os mesmos dez da ida. Só um olho muito agudo teria notado que não eram dez. Benjamim, que os esperava à frente da casa de pelo, junto do pai, que segurava pela mão ao marido de Mahalia e Arbat como se fosse um menino, não notou nada de estranho. Não viu nove nem dez; viu simplesmente os irmãos que se aproximavam em luzido grupo. Jacó, pelo contrário, percebeu imediatamente que faltava um, o que era assombroso, porque o patriarca estava próximo já dos noventa anos e ninguém teria esperado tal agudeza de vista naqueles olhos morenos, murchos e pestanejantes com a idade, por baixo dos quais se haviam formado umas bolsas fofas. Para as coisas sem importância (e quantas coisas já haviam perdido sua importância para ele!) não eram penetrantes. Mas as deficiências da idade são mais de índole mental do que física; os sentidos haviam visto e ouvido mais do que bastante e bem podiam modorrar agora. Há, entretanto, coisas para as quais podem recuperar rapidamente o ouvido atento do caçador e o olho veloz do pastor que conta seu rebanho e, tratando-se da integridade de Israel, Jacó via melhor que ninguém.
— São só nove — disse com voz resoluta, conquanto ligeiramente trêmula, mostrando com o dedo. E depois de uma breve pausa acrescentou:
— Simeão não vem com eles.
— Efetivamente, Simeão não está com eles — respondeu Benoni depois de olhar cuidadosamente. — Eu também não o vejo. Deve vir atrás.
— Assim o esperamos — disse o ancião com firmeza, apertando mais a mão do filho mais moço entre as suas. Viu-os aproximar-se sem um sorriso nem uma palavra de saudação, limitando-se a perguntar-lhes:
— Onde está Simeão?
Não havia escapatória. Era evidente que, como sempre, o ancião estava disposto a dificultar-lhes as coisas tanto quanto possível.
— Mais tarde te falaremos a respeito de Simeão — tornou Judá.
— Saúde, Pai! Logo te falaremos dele; no momento apenas te diremos isto: que não tens motivo de preocupação por sua causa. Vê, eis-nos aqui de volta da nossa viagem, eis-nos aqui uma vez mais, em presença do chefe da nossa casa.
— Mas não estais todos — insistiu Jacó sem alterar-se. — Saúde também a vós! Porém onde está Simeão?
— Bom, no momento ele não está — disseram-lhe. — Não veio conosco. Isto tem que ver com o negócio que fizemos e foi o que dispôs aquele varão que é dono da terra do Egito.
— Acaso vendeste meu filho a troco de pão?
— Não, decerto que não. Mas trouxemos trigo, segundo nosso senhor pode ver, trigo em abundância, pelo menos para muito tempo e de muito boa qualidade. Trouxemos trigo e cevada escolhida do Baixo Egito, de modo que terás teus pãezinhos alvos para as oferendas. Isto é a primeira coisa que temos para dizer-te.
— E a segunda?
— A segunda pode parecer um pouco estranha e até mais que estranha, milagrosa, se o quiseres. Mas pensamos que te agradará. Recebemos todo este trigo a troco de nada. Quer dizer, a princípio não foi em troca de nada, pois pagamos o nosso preço, e o nosso dinheiro foi fielmente pesado nas balanças do país. Quando, porém, acampamos na primeira noite, Issacar encontrou seu dinheiro no seu saco de forragem, e quando todos fomos espiar nos nossos, achamos neles o nosso dinheiro também, de sorte que trazemos para casa os alimentos e ao mesmo tempo o dinheiro, pelo que esperamos tua aprovação.
— Mas não trouxeste meu filho Simeão. E disto devo depreender que o tendes comerciado em troca de pão comum.
— Como pode o nosso querido senhor pensar novamente em semelhante coisa! Não somos homens para essa espécie de comércio.
Queres que nos sentemos aqui contigo e te tranquilizemos a respeito de teu filho e nosso irmão? Mas permite que ponhamos primeiro um pouco de grão dourado na tua mão e que te mostremos o dinheiro que trouxemos, a fim de que possas ver juntos o ouro e a prata.
— O que desejo antes de tudo é ser informado a respeito de meu filho Simeão — insistiu Jacó.
Sentaram-se então em círculo com ele e Benjamim e lhe contaram o sucedido. Contaram como tinham sido separados dos demais viajantes e enviados a Mempi, grande cidade cheia de bulício. Como foram conduzidos, através de fileiras de animais deitados, com cabeças de homem, até o grande palácio oficial, a um salão de extraordinário esplendor, à presença do grande senhor que era como o mesmo Faraó, que era o guardador do mercado ao qual acorria o mundo inteiro em busca de pão. Era um homem estranho a quem a grandeza havia deitado a perder um pouco, um homem excêntrico e encantador. Haviam-se inclinado e prostrado diante daquele varão, que era amigo de Faraó, diante do provedor, tencionando negociar com ele; mas ele mostrara ter uma face dupla, ao mesmo tempo torva e simpática. Primeiro tinha-lhes falado benevolamente e logo depois se tornara muito severo lançando-lhes em rosto uma acusação que apenas se atreviam a repetir, ou seja, que eles eram espiões que tinham ido descobrir as secretas fraquezas do país. Eles, que eram dez homens honrados! Seriamente melindrados lhe explicaram quem eram assegurando-lhe que eram dez homens que diziam a verdade, todos eles realmente filhos do mesmo pai, um homem que era o amigo de Deus na terra de Canaã e que no total não eram dez mas sim doze, realmente, mas que o mais moço tinha ficado em casa para fazer companhia ao pai e outro se havia perdido no mundo quando ainda na flor da idade. No entanto, aquele homem, o senhor da tem, não quis acreditar que seu pai ainda estava vivo, pois nenhum deles mais era jovem. Foi preciso repetir-lhe isto duas vezes, porque no Egito, parece, não conheciam uma idade tão avançada como a de seu querido pai, e provavelmente morriam jovens por causa de seus excessos simiescos.
— Basta! — atalhou Jacó. — Onde está meu filho Simeão?
Responderam que já iam chegar a esse ponto da narração. Mas primeiro deviam referir-se, de um modo ou de outro, a mais alguém, sendo pena que esse alguém não tivesse ido com eles como tinham desejado e sugerido. Se tivesse ido, agora estariam todos de volta, porquanto aquele homem que desconfiava deles não teria exigido a prova requerida. Ele nunca abandonou a ideia de que os dez eram espias nem acreditou na solene palavra que eles lhe deram a respeito de suas honrosas origens, mas exigiu, como prova de sua inocência, que trouxessem o mais moço à sua presença. Se não o fizessem, queria dizer que eram espiões comprovados.
Benjamim riu.
— Levai-me até ele — disse. — Sinto curiosidade de ver esse estranho varão.
— Cala-te, Benoni, cessa a tua parlenda infantil! — admoestou-o asperamente Jacó. — Uma criançola como tu não deve meter-se em assuntos como este. Ainda não ouvi nada sobre o que sucedeu a meu filho Simeão.
—Já o terias sabido se nos escutasses, querido pai, e não nos obrigasses a que te referíssemos todos os pormenores — disseram. — Era natural que, achando-se debaixo de semelhante suspeita e obrigados por semelhante exigência, não lhes tivesse sido permitido regressar e muito menos comprar pão. Era necessária uma garantia. A princípio o homem queria reter a todos e enviar de volta somente um para que regressasse trazendo a prova, mas, mediante hábil persuasão, eles tinham conseguido fazê-lo mudar de ideia, de modo que só havia retido um, a Simeão, deixando partir os outros providos de grão.
— De modo que vosso irmão, meu filho Simeão, foi entregue como paga à escravidão egípcia — disse Jacó, com um domínio sobre si mesmo que chegava a ser aterrador.
Responderam-lhe que o intendente do senhor da terra, que era homem bondoso e afável, lhes garantiu que Simeão seria bem tratado, com toda a espécie de considerações, e que logo lhe seriam tiradas as algemas.
— Cada vez compreendo melhor — disse Jacó — por que me sentia pouco disposto a deixar-vos empreender a viagem. Mas vós vínheis ter comigo manifestando desejo de descer ao Egito, e, depois de ter consentido, eis que correspondeis à minha fraqueza regressando somente alguns e deixando o melhor dentre vós entre as ganas do opressor.
— Nem sempre falaste tão bem de Simeão.
— Senhor do céu — exclamou erguendo o rosto —, agora me acusam de não ter tido amor e coração para o segundo filho de Lia, para o herói guerreiro! Agora procedem como se eu o tivesse vendido por um pouco de farinha e o tivesse entregado às mandíbulas do leviatã a fim de adquirir comida para seus filhos, como se fosse eu e não eles que tivesse feito tal coisa! Agradeço-te por teres ao menos robustecido o meu coração contra o seu assalto e por me teres conservado firme contra sua petulância quando quiseram ir no seu número completo, levando também o mais moço! Teriam sido capazes de voltar sem ele e dizer-me: “Tu não te importavas muito com ele!”
— Pelo contrário, Pai! Se tivéssemos ido os onze, se o mais moço estivesse conosco e tivéssemos podido fazê-lo comparecer na presença daquele homem, do senhor da terra que assim o exigia, teríamos tornado todos juntos. Mas nada se perdeu, porque temos apenas de levar Benjamim até lá, à presença do guardador do mercado de Faraó, à sala do Nutridor, para que Simeão seja posto em liberdade e assim terás a ambos contigo novamente, o teu herói e o teu menino.
— Em outras palavras, depois de terdes deixado lá Simeão, quereis arrancar Benjamim de meus braços e levá-lo ao lugar onde se encontra Simeão.
— Se te pedimos isso, é para satisfazer o capricho daquele homem, para limpar-nos de toda acusação e com a prova resgatar o penhor.
— Corações de lobos! Ides-me privando de meus filhos e o vosso único pensamento é dizimar Israel. José já não existe, Simeão não aparece, e agora quereis levar Benjamim. O mal que por vossa culpa caiu sobre vós, quereis descarregá-lo sobre mim e todos vos voltais contra o pai.
— Não, não dizes as coisas como são, Pai e senhor! Benjamim não será entregue além de Simeão, senão que ambos retornarão para junto de ti se pusermos o mais moço diante das vistas daquele homem, para que ele veja que falamos verdade. Humildemente te suplicamos que nos dês Benjamim para a viagem, a fim de que possamos libertar Simeão e para que Israel tome a ficar como antes com o seu número completo.
— Número completo? E onde está José? Em outras palavras, pedis-me que envie o último de meus filhos para que se una a seu irmão José. Pois bem. Recuso fazê-lo.
Ao ouvi-lo, Rubem, o mais velho, exaltou-se e exclamou como se deitasse água fervendo pela boca:
— Pai, ouve-me agora a mim! Ouve-me a mim, que sou o mais velho. Não é a eles que entregarás o mais moço para a viagem, mas tão-somente a mim. Se eu não o trouxer de volta, então que caia sobre a minha cabeça o que Deus quiser! Se eu não o trouxer, poderás estrangular os meus dois filhos Hannuch e Pallu diante de meus olhos, sem que eu sequer pestaneje. Poderás fazê-lo se eu faltar à minha palavra e não livrar o que ficou como refém.
— Sim, sim, continua, solta o teu palavreado! — replicou Jacó. — Onde estavas quando a besta-fera esmagou o meu rico filho? Acaso soubeste proteger José? Para que quero eu os teus filhos? Sou porventura um anjo vingador para estrangulá-los e dizimar Israel com as minhas próprias mãos? Repilo todas as vossas propostas e pedidos. Meu filho não irá convosco porque seu irmão está morto e ele é o único que me resta. Se lhe acontecesse qualquer coisa no caminho, então o mundo veria minhas cãs descer com dor à sepultura.
Os irmãos entreolharam-se mordendo os beiços. Era maravilhosa a maneira como chamava a Benjamim “meu filho”, e não irmão deles, e como tinha coragem de sustentar que ele era o único que lhe restava.
— E Simeão, teu herói? — indagaram.
— Sentar-me-ei aqui sozinho, a chorar por ele. Agora dispersai-vos!
— Nossos agradecimentos filiais pela licença concedida e por este colóquio — disseram, deixando-o. Benjamim acompanhou-os dando palmadas no braço de um ou dois de seus irmãos.
— Não vos preocupeis nem sintais amargura porque ele se exalta na sua dignidade! — suplicou-lhes. — Credes que me lisonjeia ser chamado seu filho, ou que me jacto porque ele disse que era eu o único que lhe restava e porque recusa deixar-me partir convosco? Sei que nunca esqueceu que Raquel morreu para dar-me a vida e que é por mera amargura que me submete a essa tutela. Pensai como relutou em deixar-vos partir para o Egito sem mim e compreendereis quão caros lhe sois. Não tardará muito, pois, em ceder e deixar-me ir convosco, porque não há de querer que o nosso irmão continue em poder dos pagãos. Ademais, quanto tempo vai durar o pão que graças à vossa inteligência recebestes a troco de nada? Alegrai-vos, pois. O mais moço também empreenderá a viagem. Agora, porém, contai-me mais alguma coisa daquele guardador do mercado, do severo senhor que vos deitou uma acusação tão atroz e que tão estranhas perguntas vos fez acerca do mais moço da vossa família. Estou quase a vangloriar-me de que ele faça tanta questão de ver-me e de utilizar-me como testemunha. Falai-me mais a seu respeito. Dissestes que é ele o mais elevado entre todos aqueles inferiores. Que aspecto tem e como vos filou? Não vos cause estranheza que eu sinta tanta curiosidade a respeito de um homem que tanta curiosidade sente a meu respeito.
JACÓ LUTA NO JABOQUE
Que é, efetivamente, um ano, comparado com esta história, e quem se mostraria mesquinho com o tempo e com a paciência a tal respeito? José praticou a paciência. Enquanto isso, tinha de viver e ser estadista e homem de negócios. Igualmente os irmãos, ou bem ou mal, praticaram a paciência, conformando-se com a vontade de Jacó, e finalmente praticou-a Benjamim, que teve de reprimir sua curiosidade acerca da viagem e do estranho guardador do mercado. Nós estamos em melhor situação que eles, mas não porque já sabemos o que aconteceu. Isto é até uma desvantagem comparado com aqueles que viveram na história e a experimentaram nas suas próprias pessoas, porquanto devemos arranjar um sentimento de ansiedade onde ela na realidade não pode existir para nós. Não obstante, a nossa vantagem é podermos regular à nossa vontade a extensão do tempo, dilatando-o ou encolhendo-o. Não temos de aguardar o ano de espera com os seus altos e baixos, como teve de fazê-lo Jacó com os seus sete anos de espera na Mesopotâmia. Basta-nos abrir a boca e dizer “Passou um ano”, para que este passe. Pois bem. Passou aquele ano e Jacó cedeu.
E um fato bem sabido que as condições meteorológicas naquele ponto do globo continuaram sendo irregulares por um tempo considerável. A seca continuou oprimindo as terras que cercam o centro da nossa história. Que diabólicas sequências de desgraças não se produzem de vez em quando neste mundo! O acaso, que normalmente gosta de mudanças e prefere saltar do bem ao mal, inventa de inopino repetir uma e outra vez os mesmos acontecimentos e se ri sardonicamente dessa série de calamidades. E claro que tarde ou cedo ele tem de cessar, aliás acabaria anulando a si mesmo. Mas a verdade é que pode continuar anos a fio, e o fato de que a má sorte se repetisse por espaço de sete anos não tem, falando em termos gerais, nada de extraordinário.
Nas nossas explicações sobre os movimentos das nuvens entre o mar e os Alpes africanos da terra dos mouros onde nascem as águas do Nilo, consideramos na verdade o como mas não o porquê desta situação. Pois uma vez que se começa com o porquê, não se conclui nunca. As causas de tudo quanto acontece são como as dunas junto ao mar, em que, por detrás de cada promontório, há outro, e o “Por isso" que ofereceria repouso acha-se no confuso infinito. O Nutridor não cresceu nem trasbordou porque na terra dos mouros não choveu mais, porque não caiu chuva em Canaã, e isto sucedeu porque o mar não fabricou nuvens por espaço de sete ou pelo menos cinco anos, E por que não? Aqui também há razões de vasto alcance que raiam pelos problemas cósmicos e pelos corpos celestes que sem dúvida regulam os nossos ventos e a nossa temperatura. Existem manchas solares que constituem uma causa bastante remota; sem embargo, como toda gente sabe, o Sol não é o último nem o mais alto, e como Abraão no seu tempo recusou render-lhe culto como a causa final, pela nossa parte nos sentiríamos envergonhados de deter-nos diante dele, Há ordens mais altas no Universo que obrigam também a condição real e fixa do Sol a subordinar seus movimentos; e as manchas solares nos seus discos, por influentes que sejam, são por sua vez um “Por quê?” e não permitem a conclusão de que o lugar do repouso definitivo se ache naqueles supersistemas ou em outros sistemas ainda superiores. A causa final está evidentemente assente numa longinquidade que é ao mesmo tempo proximidade, visto que nela o distante e o próximo, a causa e o efeito são uma coisa só; é ali que, extraviando-nos, nos achamos a nós próprios, é ali que suspeitamos a existência de um plano que por amor dos seus fins renuncia até mesmo ao pão do sacrifício.
A estiagem e a penúria foram agudas e muito opressivas, e nem sequer passou um ano inteiro até que Jacó se mostrasse disposto a ceder. As provisões que seus filhos haviam conseguido para ele de um modo feliz e inexplicável tinham sido consumidas; repartidas entre tantos, começaram a escassear bem depressa e não era possível obtê-las na terra por nenhum preço. Por conseguinte, algumas luas antes de se completar o ano, Israel abordou o assunto que os irmãos haviam estado aguardando.
— Dizei-me o que pensais — disse. — Pois me parece que existe uma absurda contradição entre as riquezas que possuo e que aumentei desde que rompi as poeirentas ligaduras do reino de Labão e o presente estado de coisas. Não temos nem grão nem farinha e vossos filhos choram pedindo pão.
Eles concordaram em que assim era e o atribuíram aos ruins tempos.
— Estas são coisas estranhas — disse Jacó. — Um homem tem uma chusma de filhos adultos, aos quais, com a ajuda de Deus, nunca deixou de dar alimento, e eis que eles ficam deitados de costas sem levantar um dedo contra a necessidade que nos consome.
— Sim, isto é fácil de dizer, pai, porém que podemos fazer?
— Fazer? No Egito, segundo chegou aos meus ouvidos, há mercado de grão. Por que não fazeis os vossos preparativos e não empreendeis uma viagem até lá para comprar um pouco de pão?
— Isto seria esplêndido, pai, e já o teríamos feito, mas te esqueces do que o severo governante de lá disse a respeito de Benjamim: que não veríamos o seu rosto a não ser que vá conosco o nosso irmão mais moço e possamos assim provar-lhe a nossa boa fé. Ao que parece, aquele homem é um astrólogo. Disse ele que, dos doze, um estava oculto atrás do Sol, mas que não devem permanecer ocultos dois ao mesmo tempo e que o undécimo deverá ser levado à sua presença para que ele consinta em ver-nos. Confiai-nos Benjamim e iremos.
Jacó suspirou.
— Eu sabia que isto tinha de vir e que vós me atormentaríeis a propósito do menino.
E increpou-os levantando a voz.
— Desditosos! Sois pouco avisados. Por que fostes tagarelar e dar a conhecer estupidamente todos os vossos assuntos diante daquele homem, declarando-lhe que tínheis outro irmão, meu filho, para ele o exigir de mim? Se tivésseis sido dignos e vos tivésseis limitado ao vosso negócio sem estar a palrar, ele nada saberia de Benjamim e não teria exigido o sangue do meu peito como preço da farinha para o pão. Mereceis que eu vos amaldiçoe a todos e um por um.
— Não faças tal, senhor, porque então que seria de Israel? — disse Judá. — Considera o apuro em que nos vimos e como tivemos de dizer a verdade quando ele nos lançou em rosto sua acusação e nos submeteu a exame a respeito da nossa parentela. Pois nos perguntou expressamente: “Vive ainda vosso pai? Tendes outro irmão? Vosso pai está bom?” E, quando lhe dissemos que tu não estavas tio bem como deverias estar, repreendeu-nos em voz alta e se encolerizou conosco por termos permitido que as coisas chegassem a esse extremo.
— Hum! — murmurou Jacó, anediando a barba.
— Sua severidade nos atemorizou, mas por outro lado nos sentimos atraídos pelo seu interesse. Porque afinal não é pequena coisa que um homem tão grande no mundo, a cuja mercê nos achávamos, demonstrasse tal preocupação. Com isso se abriram os nossos corações. Tomamo-nos comunicativos, mas não tagarelas.
E Judá prosseguiu dizendo que não lhes era possível prever que o homem fosse logo exigir a presença de seu irmão e fosse obrigá-los a conduzir Benjamim diante dele.
Quem mais falou naquele dia foi Judá, o homem experimentado e maduro. Isso fora combinado previamente entre os irmãos para o caso de Jacó mostrar indícios de que ia ceder. Rubem estava fora de campo depois de ter feito tão impulsiva e canhestramente a insinuação de que Jacó lhe estrangulasse os dois filhos. Levi, ainda que estivesse muito afetado com a perda de seu irmão gêmeo e se sentisse desde então como um homem só pela metade, não podia tomar a palavra por causa de Siquém. Mas Judá falou muito bem, com persuasão máscula e calor de sentimentos.
— Vence-te a ti mesmo, Israel, ainda que tenhas de lutar contigo próprio até a aurora como certa vez fizeste com outro — disse. — Esta é uma hora no Jaboque e deves emergir dela como um herói de Deus. Pensa que a decisão do varão do Egito é inquebrantável. Não o veremos e o terceiro filho de Lia cairá na escravidão, e não há a mínima esperança de termos pão, a não ser que Benjamim vá conosco. Eu, teu leão, sei quão amargo é para ti entregar a derradeira dádiva de Raquel para a viagem, que por esta razão “esteve sempre em casa", e sobretudo tratando-se de uma viagem à terra da lama e dos deuses mortos. E possível também que não confies naquele varão, o senhor da terra, e suspeites que ele queira armar-nos uma cilada e que não entregue nem o refém, nem o mais moço, nem talvez nenhum de nós. Mas eu, que conheço os homens e não espero muita coisa de cima nem de baixo, asseguro-te que este não é dos que são capazes de tal procedimento; até onde o conheço, poria minha mão no fogo por ele. Não está na sua mente o propósito de atrair-nos a uma cilada. Pode ser um homem estranho e não muito cordato, mas é também muito simpático e, embora cheio de erros, não é falso. Eu, Judá, respondo por ele como respondo por teu filho mais moço, nosso irmão. Deixa-o ir comigo e eu serei para ele pai e mãe como tu és; tanto durante a viagem como naquele país tomarei cuidado para que seu pé não tropece em nenhuma pedra e para que sua alma não se contamine com os vícios do Egito. Confia-o ao meu cuidado, para que possamos empreender de uma vez a viagem e possamos viver e não morramos todos de fome, nós, tu e os nossos filhos. Porque a mim pedirás conta e se eu não o trouxer e não o puser diante de ti, serei para ti o culpado toda a minha vida. Tal como o tens agora o terás de novo e já poderias tê-lo há muito, porque, se não tivéssemos adiado tanto essa viagem, já estaríamos de volta duas vezes com o refém, a testemunha e o pão.
— Dai-me tempo até a aurora — respondeu Jacó.
Na manhã seguinte havia-se submetido: entregaria Benjamim para a viagem, não para uma viagem até Siquém, que estava apenas a uns dias de distância, mas para uma viagem de dezessete dias ao mundo inferior. Jacó tinha os olhos vermelhos e seu aspecto revelava quanto lhe custara tomar aquela resolução. Como, porém, lutara honrada e dolorosamente com a necessidade, e não só fingia o esforço, mas exprimia sua dor com tanta dignidade, sentiram-se muito impressionados e todos os que o rodeavam disseram comovidos: “Vede, esta noite Israel venceu-se a si mesmo!”
Jacó deixou pender a cabeça sobre o peito quando disse:
— Se há de ser assim e se está escrito no bronze que tudo há de depender de mim, tomai-o e empreendei a viagem, pois consinto. Escolhei o melhor de tudo aquilo que faz nossa terra admirada no mundo inteiro e levai-o àquele homem para abrandar-lhe o coração: levai-lhe azeite de bálsamo, goma de tragacanto, mel de uvas cozido até engrossar, para beber com água ou para adoçar a sobremesa, e também nozes de pistácia e frutas de terebinto. E dizei-lhe que todas estas coisas são insignificantes. Ademais, levai o dobro do dinheiro pata o novo grão e pela vez anterior, pois que, segundo me lembro, encontrastes o vosso dinheiro nos vossos sacos, talvez por engano. E levai convosco Benjamim... sim, ouvistes bem o que eu disse... conduzi-o à presença daquele homem. Dou-vos o meu consentimento. Vejo refletida a consternação em vossos rostos ao ouvirdes minhas palavras; mas minha decisão é definitiva. Israel dispõe-se a ser um homem despojado de seus filhos. E queira El Chaddai — exclamou com a voz entrecortada, levantando as mãos para o céu — conceder-vos misericórdia diante daquele homem, para que vos devolva vosso irmão e Benjamim. Senhor, só como um empréstimo que deve ser restituído to entrego! Que não haja incompreensão entre ti e mim; só para a viagem to ofereço e não para ser devorado como foi o meu outro filho! Este quero que me devolvas. Lembra-te do ajuste, Senhor, para que o coração do homem possa ser digno e santo em ti e tu nele! Não fiques por baixo do coração humano que sente, ó Poderoso, e não prives de meu filho na viagem, arremessado-o ao devorador. Sê moderado, to imploro, e restitui-me honradamente o empréstimo que te faço! Então te servirei com a cabeça no pó e queimarei em tua homenagem as melhores partes da vítima que deleitarão teu olfato!
Desse modo elevou ao céu suas preces. Depois ordenou a Eliézer, cujo nome em realidade era Damasek, que preparasse o filhinho da morta para a viagem e o abastecesse de todos os modos e como fina uma mãe, porque na madrugada seguinte os irmãos empreenderiam a viagem para não perderem a caravana que estava se reunindo em Gaza. Ouvindo isto, o ansioso Benoni transbordou de alegria, porque afinal ia ver-se livre do seu cativeiro simbólico e poderia ir ver o mundo. Contudo, não pulou de alegria em presença de Jacó e dos irmãos, nem sapateou com os calcanhares porque não tinha dezessete anos como José quando empreendeu a sua viagem, senão que já era um homem de trinta; por outro lado, não queria ferir aquele brando e patético coração fazendo alarde de seu entusiasmo. Além disso, as demonstrações ruidosas de júbilo mal convinham à sua existência sombria de matricida, e não podia fugir ao seu papel. Em compensação, jactou-se na presença de suas esposas e de seus filhos de sua liberdade de ação e do fato de que ia a Mizraim libertar Simeão pela sua intervenção e de que só ele tivera semelhante poder sobre o senhor da terra.
Os preparativos foram reduzidos ao mínimo, porque em Gaza podiam prover-se de tudo quanto necessitavam para a viagem através do deserto. Seus sacos continham principalmente presentes para o carcereiro de Simeão, para o guardador egípcio do mercado, presentes esses que o jovem Eliézer tirara dos depósitos e que consistiam em destilações aromáticas, xarope de uva, gomas e mirra, nozes e frutas. Foi reservado um burro para transportar esses produtos que eram o orgulho do país.
Aos primeiros alvores do dia os irmãos encetaram sua segunda viagem com o mesmo número da primeira. Entre eles ia um menos e um mais. As famílias e servos lhes deram os adeuses, agrupando-se em roda dos dez que seguravam as alimárias pelos cabrestos. No centro do grupo estava Jacó, que deixava partir tudo o que lhe ficara da amada da sua juventude. Muitos haviam acorrido a presenciar como Jacó se despediria da pessoa que mais prezava e para se sentirem fortalecidos diante da sua angústia e da majestosa expressão dela. Durante muito tempo o ancião estreitou ao peito o seu filho mais moço; depois dependurou-lhe no pescoço o amuleto que tirara do seu próprio, murmurando qualquer coisa junto à sua face com os olhos erguidos ao céu, enquanto os irmãos conservavam os seus cravados no solo, com reprimidos sorrisos de amargura.
Finalmente disse Jacó com voz que foi ouvida de todos:
— Judá! Tu me deste tua palavra de como te responsabilizarias por este menino. Juraste-me que eu podia reclamá-lo de ti. Ora bem, escuta-me: desligo-te da tua palavra e do teu juramento. Porque como pode um homem responder por Deus? Não vou depositar em ti minha confiança, porque que poderias aduzir contra a ira de Deus? Depositarei minha confiança somente nele que é a Rocha e o Pastor. Nele confio que me restituirá esta joia que lhe entrego de boa fé. Ouvi-me todos: Ele não é um monstro que escarnece dos corações humanos e os pisa como um selvagem no pó; Ele é um grande Deus, purificado e esclarecido, um Deus da afiança e da boa fé. Não é necessário que tu, meu leão, respondas por Ele, pois eu mesmo respondo por sua fé, certo de que Ele não fará a si mesmo a injúria de faltar à sua palavra. E agora ide — disse, afastando de si Benjamim —, parti em nome de Deus, o verdadeiro e misericordioso! Em todo caso, cuidai bem dele! — finalizou com voz entrecortada e voltando-se rapidamente para a sua morada.
A TAÇA DE PRATA
E assim, a seu devido tempo, José o Provedor se dirigiu do seu escritório para casa, abrigando no coração a notícia de que dez viajantes de Canal tinham atravessado a fronteira. Mai-Sachme, notando imediatamente o que acontecera, perguntou:
— De modo que, Adon, expirou o prazo da espera?
— Assim é — tornou José. — Sucedeu tudo como devia suceder e eles vieram. Dentro de três dias, a partir de hoje, deverão estar aqui... com o pequeno, Mai... com o pequeno! Nossa história de Deus teve uma pequena pausa durante a qual tivemos de esperar. Mas o tempo não se detém; apenas parece não ter peso, e a sombra do Sol se move lentamente. E preciso confiar-se ao tempo com toda a calma e não se impacientar. Assim me ensinaram os ismaelitas com os quais viajei. Porque o tempo prossegue para a sua madureza e arrasta tudo consigo em seu séquito.
— Bom, agora há muita coisa em que pensar e tudo deve ser cuidadosamente combinado. Dás-me licença para que eu faça sugestões? — perguntou Mai-Sachme.
— Ah, Mai, como se eu há muito não tivesse pensado em tudo com o maior cuidado! Tudo há de sair como se já estivesse escrito e como se fosse ser representado de acordo com o texto escrito. Não há surpresas, mas tão-somente a emoção de ver tudo o que era familiar de ontem convertido em atual. Desta vez, não me sinto tão agitado como da primeira. Ao dispormo-nos para entrar na próxima cena, sinto-me unicamente invadido por uma certa solenidade; no máximo meu coração dá um salto quando penso no momento em que lhes ditei: "Sou eu.” Quero dizer que dá um salto por causa deles. Será conveniente que tenhas uma poção preparada para eles.
— Assim se fará, Adon. Mas, posto que dispenses conselhos, vou dar-te um: tem cuidado com o pequeno! Ele não é teu irmão só pela metade do sangue, é teu irmão de sangue. Além disso, como te conheço, sei que não serás capaz de deixar certos gestos, de maneira que o porás na pista. O mais moço da família é sempre o mais perspicaz; facilmente poderia ele antecipar-se ao teu “Sou eu” com um “Es tu”, com isso deitando a perder todo o teu plano.
— Bom, e se isso acontecesse, que importância teria, Mai? Eu até gostaria desta variante. Desataríamos numa sonora gargalhada como quando as crianças edificam um castelo de areia e o derrubam e se põem a gritar de alegria. Mas acho isso pouco provável. Imaginas que um rapazito como ele tenha coragem de dizer ao amigo de Faraó e Vice-Horus, ao grande homem de negócios, na sua própria cara: “Bolas! Tu não és mais que o meu irmão José?” Seria muito desaforo! A mim compete dizer quem sou. Isso faz parte do meu papel.
— Vais recebê-los novamente na sala de recepções?
— Não, desta vez será aqui. Almoçarei com eles. Vão comer conosco. Degola e prepara, meu intendente, para onze hóspedes mais do que os que já esperavas, para dentro de três dias, a partir de hoje. Quais são os convidados para então?
— Alguns dignitários da cidade — respondeu Mai-Sachme, consultando seu canhenho. — São eles: Ptach-hotpe, sacerdote-leitor da casa de Ptach; o campeão do deus, coronel Entef-oker, da guarnição da casa do deus; Paneche, agrimensor-chefe e inspetor de limites que tem uma tumba onde descansa o Senhor; e dois escrivães do comissariado principal.
— Bem. Parecer-lhes-á uma coisa estranha sentarem-se com estrangeiros.
— Receio que estranhem muito, Adon. Devo advertir-te que existem certas dificuldades e proibições em matéria de leis e usos alimentícios. A alguns poderá parecer uma ofensa comer em companhia dos ibrim.
— Vamos, Mai, falas como Dudu, um anão que já conheci e que prestava culto a todas as fórmulas antigas do Egito! Pretendes ensinar-me o espírito dos egípcios? Como se eles ainda fossem capazes de sentir horror de alguma coisa! Em tal caso, deveriam fazê-lo quando comem em minha companhia, porque todo mundo sabe que eu não fui criado sobre as águas do Nilo. Aqui está o anel de Faraó: “Sê como eu mesmo.” Isto fará emudecer todas as objeções. Quem comer comigo deverá agradar a todos como comensal. Além disso, não esqueças que quem quer gozar do favor da corte deve professar os ensinamentos de Faraó, a saber que todos os homens são as criaturas amadas de seu pai. Todavia, para salvar as aparências, podes servir-nos separadamente. Os egípcios com os egípcios, os irmãos com os irmãos, e eu sozinho. Deverás sentar meus irmãos por ordem de idade, primeiro Rubem e Benoni o último. Toma cuidado para não cometeres equívocos. Vou repetir-te essa ordem para que a escrevas.
— Muito bem, Adon. Mas isto é um perigo. Como havias de saber tão bem suas idades sem que isto chame a atenção?
— E colocarás a minha taça no meu lugar, a taça de prata na qual leio todas as coisas.
— Ah! A tua taça? Vais ler nela suas respectivas idades?
— Eu poderia utilizá-la também para isso.
— Oxalá pudesse eu usá-la para profetizar também, Adon! Oxalá pudesse ver nela, como se veem as peças de ouro e as pedras preciosas na água clara, o que planejaste para a história e como a construíste até chegar o instante em que te darás a conhecer! Se não o sei, temo servir-te mal e devo servir-te e ser-te útil para não ficar inativo nesta história em que bondosamente me encaixaste.
— Por certo que não ficarás inativo. Não seria direito. Antes de tudo porás no meu lugar a taça na qual às vezes leio como por desenfado.
— A taça, muito bem, a taça — disse Mai-Sachme, abrindo os olhos como quem faz um esforço para se lembrar. — Eles te trazem Benjamim e tu vês novamente teu irmãozinho entre seus irmãos. Mas, uma vez que tenhas almoçado com eles e enchido seus sacos pela segunda vez, levarão consigo o mais jovem e tornarão à casa de teu pai e terminou tudo!
— Toma a olhar na taça, Mai, lê na água! Eles voltarão para casa certamente, mas talvez tenham esquecido alguma coisa, de modo que terão de voltar.
O capitão sacudiu a cabeça.
— Ou então levaram consigo alguma coisa de que nós demos falta e pomos gente no seu encalço, obrigando-os a tomar atrás.
Mai-Sachme cravou em José seus olhos redondos, erguendo as sobrancelhas; lentamente sua boca se abriu num sorriso. Quando um homem tem uma boca pequena, ainda que seja fornido de carnes e de constituição sólida, ao sorrir, é como uma mulher sorrindo. Mai-Sachme sorriu e, apesar da sua barba negra, seu sorriso foi doce e quase feminino. Deve ter-se sentido contente com o que leu na taça, porque fez um sinal afirmativo com a cabeça ao mesmo tempo que piscava um olho para José, que também correspondeu com outro sinal. Depois José levantou a mão e bateu nas costas do seu intendente. E, tendo em vista a circunstância de que aquele já fora seu prisioneiro, Mai-Sachme também ergueu a mão e bateu-lhe nas costas. Ambos permaneceram alguns instantes desse modo, fazendo mutuamente sinais compreensivos com a cabeça e batendo nas costas um do outro: era evidente que ambos compreendiam cabalmente como havia de desenrolar-se a história solene.
FRAGRÂNCIA DE MIRTO, OU SEJA, A REFEIÇÃO COM OS IRMÃOS
E aconteceram as coisas quando chegou a hora. Os filhos de Jacó fizeram sua entrada em Menfe, a casa de Ptach, parando na mesma pousada da vez anterior. Sentiam-se aliviados por terem conduzido a salvo Benjamim até ali. Durante os dezessete dias de viagem tinham cuidado dele como quem cuida de um cesto de ovos, já em atenção a Jacó, já porque ele era o elemento mais importante do seu grupo, a prova indispensável para convencer o guardador do mercado, o varão de face dupla. Sem Benjamim não poderiam ver o semblante do homem nem libertar Simeão. Estas seriam razões suficientes para tratar o mais moço como a menina de seus olhos, para proporcionar-lhe as melhores comidas e o melhor alojamento e cuidar dele do mesmo modo com que cuidavam da sua preciosa provisão d'água, O primeiro motivo desta preocupação era o temor do homem do Egito e logo depois o temor do pai. Mas havia ainda um terceiro motivo para explicar tal solicitude, a saber, o desejo de expiar por intermédio de Benjamim o pecado que tinham cometido contra José. Porque a lembrança deste e da maldade contra ele cometida despertara neles depois de todos aqueles anos, parecendo-lhes que só no dia anterior tinham vendido seu irmão e extirpado uma radícula de Israel. A retribuição estava presente em todos os seus atos, eles a sentiam como uma mão que os chamasse constantemente a contas, e a melhor maneira de fazer que essa mão afrouxasse a pressão era cuidar zelosamente do segundo filho de Raquel.
Vestiram Benjamim com uma fina camisa multicor com pregas e franjas, para apresentá-lo ao senhor do país; untaram sua abundante cabeleira até ficar brilhando como um capacete e dilataram seus olhos com um fino pincel. Quando, porém, se apresentaram a si mesmos na grande repartição onde se despachavam os abastecimentos e se entregava o grão, foram enviados à própria casa do provedor. Isto os alarmou, como os alarmava tudo o que sucedia de uma forma diferente da que haviam previsto e que parecia envolvê-los em novas e sinistras complicações. Que significava aquilo? Por que eram separados dos demais e enviados à residência particular do homem? Pressagiava isso alguma coisa boa ou má? Talvez tivesse que ver com o dinheiro que de modo tão estranho lhes fora devolvido. Talvez aquele estratagema ia dar lugar a outro e, por causa do dinheiro que tinham levado consigo, os onze iam ser escravizados. Tinham consigo aquele dinheiro, além da importância necessária para adquirir novas provisões, mas isto não os tranquilizava muito. Por um instante sentiram-se tentados a regressar, a não comparecer na presença daquele homem e a recorrer à fuga, particularmente porque temiam que acontecesse alguma coisa a Benjamim. Mas o mais moço falou animosamente e insistiu em que o levassem à presença do guardador do mercado. Disse que estava adornado e untado e que não tinha razão nenhuma para se esconder daquele homem. Na realidade, tampouco a tinham eles, pois só por equívoco haviam levado consigo o dinheiro, e não deviam comportar-se como culpados sem o serem. Ora, culpados — disseram eles. — Em geral todo mundo se sentia um tanto culpado, embora não naquele caso particular. Sucedia daí que se experimentava uma certa sensação de desconforto precisamente num caso em que todos eram inocentes. Para Benjamim era fácil falar daquele jeito; ele estava sempre em casa, nunca tivera oportunidade para cometer algum pecado, nunca encontrara dinheiro inexplicável em seu saco de forragem, ao passo que eles tinham de sair para o mundo onde era difícil alguém conservar-se inteiramente puro.
Benoni procurou confortá-los. O senhor do país era um homem do mundo, que compreenderia aquela espécie de sentimento de culpabilidade, disse-lhes. Quanto ao dinheiro, aquilo encerrava certamente qualquer coisa de misterioso e inexplicável, mas sem dúvida não havia nenhum mal nisso. Não estavam eles ah, entre outras razões, com o propósito de restituí-lo? Os irmãos sabiam, tão bem como ele mesmo, que era preciso libertar Simeão e também adquirir novas provisões. Inútil, portanto, falar em fuga. Aquilo, sim, daria motivos para que lhes chamassem espias e ladrões e até assassinos de seu próprio irmão.
Eles sabiam muito bem de tudo aquilo. Sabiam que deviam arrostar as consequências, ainda que com risco de serem feitos todos escravos. Sentiam-se um pouco encorajados ao pensarem nas gulosices que tinham trazido consigo, nos presentes e peitas de Jacó, orgulho de sua terra nativa; resolveram falar, logo que isso fosse possível, com aquele afável e cordato intendente.
Felizmente o conseguiram. Chegando à linda vila com que Faraó obsequiara seu amigo no melhor bairro da cidade, apearam-se de seus burros à porta e os foram conduzindo ao redor do lago de lotos até a casa. Ali estava o homem que lhes inspirava confiança. Fez-se-lhes encontradiço desde o terraço, dando-lhes as boas-vindas e agradecendo-lhes terem guardado sua palavra, ainda que depois de tanto tempo. Apresentaram-lhe seu irmão mais jovem, que Mai-Sachme observou com seus olhos redondos, exclamando: “Muito bem!” Em seguida, os servos conduziram os animais ao pátio onde os descarregaram, levando depois para a casa os fardos que continham a ufania de Canaã. O intendente guiou os irmãos, fazendo-os subir os degraus. Durante o trajeto eles o consultaram ansiosamente a respeito do dinheiro. Alguns até haviam começado a interrogá-lo assim que o avistaram, tão ansiosos estavam por saber a solução do caso.
— Digno mordomo da casa, senhor superintendente — disseram-lhe —, foi o que aconteceu, ainda que pareça incrível! —Mas tinham trazido consigo o dobro, porque eram homens honrados. Um deles encontrara no seu saco a prata que tinha sido previamente paga, e depois todos os demais, no primeiro lugar onde acamparam, e aquele tesouro misteriosamente achado os havia inquietado não pouco. Mas estava ali o dinheiro no seu justo peso, juntamente com mais dinheiro para as novas aquisições. Seu amigo, o amigo de Faraó, não aduziria aquilo contra eles condenando-os por esta causa?
Falavam todos ao mesmo tempo, puxando-o pelo braço na sua ansiedade, dizendo que não transporiam o belo umbral da casa se o homem não lhes jurasse que seu amo não lhes estava armando uma cilada e não faria pesar contra eles aquela inexplicável circunstância.
O intendente, que era a encarnação da serenidade, os tranquilizou dizendo-lhes:
— A paz seja convosco, meus amigos! Nada temais, pois tudo está em ordem. E se alguma coisa aparece fora da ordem natural, é um milagre benigno. O nosso dinheiro nos foi restituído e isto basta para nos satisfazer. Não há razão para que vos armemos uma cilada ou estratagema. Depois do que me haveis contado, posso apenas supor que o vosso Deus, o Deus de vossos pais, entreteve-se colocando o tesouro nos vossos sacos. Não me ocorre outra explicação. Provavelmente sois seus bons e fiéis servidores e Ele quis mostrar-vos desse modo seu reconhecimento de uma forma muito compreensível. Mas pareceis-me excessivamente agitados, o que não é bom. Far-vos-ei preparar banhos para os vossos pés, primeiro porque assim o exige a hospitalidade, pois sois nossos hóspedes e fareis vossa refeição com o amigo de Faraó; e em segundo lugar para fazer-vos baixar o sangue da cabeça, o que produzirá em vós um efeito sedativo. Entrai agora e vede quem vos espera no salão.
Lá encontraram Simeão, em plena liberdade, e não lhes pareceu magro nem alquebrado, mas tão feroz e heroico como sempre. Tinha passado muito bem, contou o refém aos irmãos, que alegremente se haviam agrupado ao redor dele; ficara num quarto do edifício oficial e tinha sido cercado de toda a sorte de comodidades, não obstante tratar-se de um cativo, e apesar de não ter visto nem uma vez mais o rosto do Mochel e de ter vivido cheio de temor de que eles não tornassem. Mas a comida farta e o vinho excelente o tinham conservado bem. Pediram ao segundo filho de Lia que lhes perdoasse terem tardado tanto por causa da obstinação de Jacó; ele devia compreender como tinha sido. Simeão certamente o compreendia e se alegrava de ver todos ali, especialmente Levi, pois os dois brigões tinham sentido muito a falta um do outro. Se não se beijaram nem abraçaram, não deixaram de dar leves punhadas nas costelas um do outro.
Depois que se sentaram e lavaram os pés, o intendente os conduziu à sala onde estavam pondo os alimentos sobre uma mesa esplêndida coberta de flores e de finitas. Ele mesmo os ajudou a amimar sobre um largo aparador as dádivas — especiarias, mel, frutas e nozes a fim de exibi-las debaixo do seu melhor aspecto aos olhos do amo. Mai-Sachme teve de deixá-los rapidamente porque chegavam os outros convivas. José voltava com os nobres egípcios que eram seus hóspedes daquele dia: o profeta de Ptach, o campeão do deus, o agrimensor-chefe e os mestres dos livros. Com eles entrou José na sala e disse: “Sede bem-vindos!”
Ao vê-lo, todos se prostraram em terra, como se tivessem sido ceifados. José parou um instante, esfregando a fronte com os dedos. Depois repetiu:
— Amigos, sede bem-vindos! Levantai-vos e deixai-me ver vossos rostos para que eu vos possa reconhecer. Vejo que me reconheceis como o guardador do mercado do Egito, que se viu obrigado a tratar-vos com severidade por um excesso de zelo por esta terra inestimável. Agora, porém, me apaziguastes e me assegurastes vossa inocência voltando no vosso número devido, de modo que todos os irmãos estão reunidos num aposento e debaixo do mesmo teto. Isto é magnífico. Notais que falo no vosso idioma? Sim, agora posso falá-lo. Da outra vez que estivestes aqui, vi que não sabia hebraico, o que muito me mortificou. Desde então aprendi-o. Um homem como eu pode fizer coisas como esta num abrir e fechar d’olhos. Mas como estais? E antes de tudo vosso pai, o ancião a que vos referistes, vive ainda? Vai passando bem?
— Vai bem o teu servo, nosso pai — responderam. — E sentir-se-ia muito comovido com a bondosa preocupação que mostras por ele.
E prostraram-se outra vez sobre o pavimento.
— Basta de inclinações e reverências, pois são excessivas. Deixai-me ver. É este o vosso irmão mais moço de que me falastes? — perguntou José, dirigindo-se a Benjamim num cananeu um tanto estropiado, pois na realidade o havia esquecido um pouco. Benjamim, muito ataviado, ergueu respeitosamente para o rosto de José seus olhos cinzentos que conservavam sua expressão de suave tristeza.
— Deus te proteja, meu filho! — disse José, apoiando uma das mãos sobre o ombro de Benjamim. — Sempre tiveste uns olhos tão bondosos e uns cabelos tão sedosos e brilhantes que parecem um capacete, mesmo quando eras um menino e cornas pelos prados?
E, ditas essas palavras, sentiu um nó na garganta.
— Voltarei dentro de um momento — acrescentou, saindo apressadamente para o seu quarto, donde voltou daí a alguns instantes com os olhos lavados.
— Estou-me descuidando de meus deveres e não fiz a apresentação dos meus convidados — disse ele. — Senhores, estes são comerciantes de Canaã; pertencem a uma distinta família e são todos filhos de um mesmo homem poderoso.
E repetiu aos egípcios os nomes dos filhos de Jacó por ordem de idade, em forma muito fluida e ritmicamente; depois de cada terceiro nome baixava a voz, omitiu naturalmente o seu e depois do nome de Zabulon fez uma pequena pausa, concluindo: “e Benjamim”. Os irmãos ficaram maravilhados vendo que sabia tudo aquilo. Em seguida José repetiu os nomes dos dignitários egípcios que conservavam uma atitude muito empertigada que fez sorrir o potentado.
Depois disto ordenou que servissem o repasto e, esfregando as mãos, dispôs-se a sentar-se à mesa, mas seu intendente lhe indicou os presentes exibidos no aparador e José os elogiou e admirou com sincero entusiasmo.
— Da parte de vosso velho pai? — perguntou. — É uma atenção que me comove. Deveis dar-lhe meus agradecimentos.
Não era nada, disseram-lhe: apenas umas insignificâncias dentre as boas coisas de que se gabava o seu país.
— Não são insignificâncias, são coisas estupendas — replicou José. — E, mais ainda, de excelente qualidade. Nunca vi tão magnífico tragacanto nem tão finas nozes de pistácia. Do lugar onde estou, posso falar do maravilhoso sabor do azeite. Só na vossa terra é que há produtos iguais. Mal posso apartar deles os meus olhos. Mas agora devemos sentar-nos.
Mai-Sachme lhes indicou seus respectivos lugares, e aqui tiveram os irmãos novos motivos de assombro, pois foram sentados exatamente por ordem de idade, apenas de modo inverso, porque o mais moço se sentou junto ao dono da casa, seguindo-se-lhe Zabulon, Issacar e Aser e assim sucessivamente até Rubem. O festim estava disposto de forma que as iguarias foram colocadas num triângulo aberto entre as colunas que rodeavam o salão, sendo o vértice do triângulo o assento do anfitrião. A direita deste agruparam-se os dignitários egípcios e à sua esquerda os estrangeiros asiáticos, de modo que José presidia a uns e outros, tendo Benjamim à sua esquerda e o profeta de Ptach à direita. Com um cordial espírito de hospitalidade os exortou a provar os bons bocados e a não privar-se de comer e de beber.
O repasto que se seguiu é famoso no mundo inteiro pela alegria que o caracterizou. A rigidez dos convidados egípcios cedeu depressa; quebrou-se o gelo e eles esqueceram que era uma abominação partir o pão com os hebreus. O coronel Entef-oker, campeão do rei, foi o primeiro que pôs de lado seu formalismo depois de várias goladas de vinho sírio. Dirigindo-se ao honrado Gad, o mais simpático dos moradores da areia, fez vibrar a sala gritando-lhe através da mesa.
Não nos deve admirar a circunstância de não ter a tradição mencionado a presença da esposa de José, a filha do sacerdote do Sol, descrevendo o banquete como inteiramente masculino, muito embora fosse um costume egípcio que os casais fizessem juntos suas refeições e que a dona da casa estivesse habitualmente presente nos banquetes. Contudo, é verdadeira a descrição que nos foi transmitida: naquela ocasião Aseneth não estava presente. Isto se poderia explicar recordando os termos do contrato matrimonial e tirando deles a conclusão de que “a donzela” estava naquela época visitando seus pais. A verdadeira explicação se encontra, entretanto, na rotina dos dias de José, a qual raras vezes permitia que o Exaltado comesse em companhia de sua mulher e filhos. Aquele almoço com os irmãos e com pessoas gradas da cidade, por alegre e ameno que tivesse sido, não era um acontecimento social, mas uma função comercial que o amigo de Faraó cumpria quase diariamente. Era costume seu tomar sua refeição da noite em companhia de sua esposa na ala da casa destinada às mulheres, depois de passar alguns momentos brincando com seus encantadores filhos, os mestiços Manassés e Efraim. Mas ao meio-dia almoçava sempre com homens, ora com altos funcionários do escritório, ora com viajantes importantes, ora com dignitários ou plenipotenciários de potências estrangeiras. Portanto aquele festim não constituía uma exceção em casa do amigo da colheita de Deus. queremos dizer, não era uma exceção exteriormente, porquanto nenhum de seus hóspedes sabia nada do seu verdadeiro significado, do seu lugar na estrutura e desenvolvimento da solene história de Deus, nem da razão pela qual o distinto anfitrião mostrava uma alegria tão intensa e comunicativa.
Nenhum dos convidados? Deveremos aceitar esta asseveração? Mai-Sachme, o homem atarracado, que, sempre de sobrancelhas erguidas, se achava no lado aberto do triângulo, pronto para prover a tudo, indicando aos ágeis copeiros e dapíferos com uma varinha branca ora uma coisa, ora outra, sabia; mas ele não era convidado. Haveria algum outro para quem aquele disfarce tinha uma perturbadora, deliciosa, enigmática e inconfessada semitransparência? A pergunta é certamente uma alusão a Turturra-Benoni, sentado à esquerda do anfitrião; porém ela deve permanecer sem resposta. Os sentimentos de Benjamim eram inenarráveis; nunca foram descritos, e esta nossa narração não intentará fazer o que nunca foi intentado; não traduzirá em palavras a vaga intuição unida a sentimentos de doçura e terror que por muito tempo nem sequer se atreveu a ser uma intuição consciente, senão que se detinha bruscamente num repentino e breve ataque de memória, semelhante a um sonho, que fazia bater com mais rapidez o coração, mas que afinal não passava de um reconhecimento deste ou daquele ponto de semelhança entre dois fenômenos totalmente diferentes e remotos, um deles dos longínquos dias da infância e o outro presente ali na carne. Experimentemos imaginar como aquilo se passou.
Estavam sentados em cômodas cadeiras com escanos, e cada um tinha ao seu lado uma mesa repleta de delícias para os olhos e para o paladar, frutas, tortas, verduras, pastéis, pepinos e melões, cornucópias cheias de flores e adornos feitos de açúcar. Ao outro lado de cada cadeira havia um elegante jogo para abluções constando de uma ânfora e de uma bacia de cobre para despejo. Cada comensal tinha o seu. Criados de avental, dirigidos por um escanção-mor, mantinham cheias as taças; outros recebiam do mordomo do bufete os pratos principais — vitela, carneiro, pescado, caça e ave — e levavam-nos aos convivas que, por causa do alto cargo do anfitrião, não tinham ordem de precedência sobre ele. Adon não só era servido primeiro mas recebia sempre o melhor e em maior quantidade para reparti-lo com os demais, conforme está escrito: “E receberam iguarias do seu próprio prato.” José servia ora os egípcios ora os hóspedes estrangeiros; enviava-lhes pato assado, geleia de marmelos ou um osso dourado, guarnecido de sonhos; mas ao mais jovem dos asiáticos, ao seu vizinho da esquerda, deu uma e mais vezes do seu próprio prato. Semelhantes provas de favor significavam muito e eram notadas pelos egípcios, que depois as comentaram entre si, motivo por que chegaram ao nosso conhecimento; disseram os que as presenciaram que a porção que o jovem beduíno recebeu da mesa do amo foi cinco vezes maior do que as concedidas a qualquer um deles.
Benjamim sentia-se confundido; rogava que não o obsequiassem tanto e olhava em torno de si como escusando-se tanto perante os egípcios como perante seus irmãos. E ainda que tivesse tido grande apetite, não teria podido comer tudo o que recebia. Achava-se tolhido por uma sensação de atordoamento e de inquietude; esquadrinhava dentro de seu íntimo, encontrava lá qualquer coisa de inexplicável, perdia-a quase no mesmo instante e daí a pouco tornava a encontrá-la de uma forma tão súbita e inequívoca que o coração lhe dava de cada vez um baque. Olhava o semblante escanhoado do seu anfitrião, emoldurado pelo alado gorro hierático, o semblante daquele homem que exigira a sua presença ali como prova, daquele grande do Egito que tinha uma figura um tanto pesada, vestido com uma alva roupagem e tendo sobre o peito uma verdadeira constelação de pedrarias. Olhava a boca que falava e sorria de um modo peculiar. Olhava aqueles olhos negros que se encontravam com os seus com uma expressão divertida para daí a pouco se velarem, como que batendo em retirada; justamente quando os olhos de Benjamim se abriam com terror e incrédula alegria, os do egípcio o olhavam com uma expressão grave e proibitiva. Olhava a mão que lhe dava alguma coisa ou que erguia a taça para beber. Examinava sua articulação e a pedra azul celeste que a adornava e sentia-se penetrado por um velho ar infantil e familiar: era um ar acre, cheio de sol, picante, repassado de um aroma essencial de amor e confiança, de segurança e adoração, de maravilhada simpatia infantil, daquela intuição e meio conhecimento que Benoni sempre havia conhecido. Era o cheiro de mirto. A recordação daquela fragrância era idêntica à que se passava no seu interior enquanto fielmente, ansiosamente, confiadamente procurava deslindar aquele encantador enigma, aquela alarmante e ditosa possibilidade de um ponto em que duas coisas se encontravam: o presente alegre e amistoso e qualquer coisa muito mais alta, um não sei quê de divino. Ah! Era por isso que o narizinho de Turturra sentia o aroma acre da infância. Porque agora era como fora então, somente passava-se o inverso; mas que importava? E, na alta e desconhecida presença, aquela impressão familiar forcejava por dar-se a conhecer em relâmpagos que quase lhe traziam o coração à flor dos lábios.
O senhor do grão cavaqueou alegremente com ele durante o almoço, falou com ele cinco vezes mais que com os dignitários egípcios sentados à sua direita. Interrogou Benoni acerca da sua vida, de seu pai, de suas esposas e filhos. O mais velho chamava-se Bela e o mais moço (o mais moço atualmente) Mofim. “Mofim!”, repetiu o senhor do grão. “Dá-lhe um beijo por mim quando voltares. Parece-me engraçado que o filho mais moço tenha por sua vez um filho mais moço.
E o que se segue ao mais moço? Chama-se Ros? Bravo! E tem a mesma mãe que o outro? E vagam ambos juntos por um mundo verde e florido? Espero que o mais velho não assuste o pequerrucho com toda a sorte de histórias de Deus e rebuscadas fantasias pouco apropriadas para ouvidos miúdos. Deves atentar nisto, pai Benjamim!” Depois falou por sua vez de Manassés e Efraim, os filhos que a filha do Sol lhe dera. Agradavam a Benjamim esses nomes? “Muito”, respondeu o interpelado e esteve quase a perguntar por que escolhera o pai uns nomes tio expressivos; porém vacilou e ficou imóvel com os olhos muito abertos. Então o potentado do Egito começou a contar-lhe anedotas sobre Manassés e Efraim, sobre as coisas divertidas que eles falavam e as travessuras que faziam. Benjamim recordou algumas histórias infantis de seus filhos e ambos puseram-se a rir.
Enquanto conversavam e riam, Benjamim armou-se de coragem para perguntar:
— Quer Vossa Excelência responder a uma pergunta que me intriga?
— Responderei como melhor possa — volveu o outro.
— Eu queria unicamente satisfazer a minha curiosidade a propósito do conhecimento que Vossa Excelência mostrou e a respeito da disposição desta mesa. Sabe de cor nossos nomes, o de meus irmãos e o meu e nossas idades em sua ordem respectiva, de modo que pode desfiá-los na forma que nosso pai diz que todos os filhos deste mundo deverão conhecê-los, pois somos uma estirpe eleita de Deus. Como sabe isto Vossa Excelência e como fez o mordomo para sentar-nos por ordem de idade, desde o mais velho até o último?
— Oh! — respondeu o guardador do mercado — é isso o que te surpreende? Pois é muito simples. Vês esta taça? E de prata e tem uma inscrição cuneiforme. Eu bebo por ela e também posso ver nela certas coisas. Naturalmente possuo uma boa inteligência, uma inteligência superior ao termo médio, pois sou o que sou, e o próprio Faraó quis ficar mais alto do que eu apenas pela altura do trono real. Mas, apesar disso, eu não poderia valer-me a mim mesmo sem a minha taça. O rei de Babilônia deu-a de presente ao pai de Faraó. Com isto não quero aludir a mim mesmo, pois podias pensar assim por causa do meu título que é “Pai de Faraó” (entre parênteses, Faraó me chama tiozinho). Não me refiro tampouco ao seu pai divino, mas ao seu verdadeiro pai, o terreno, o antecessor de Faraó, el-rei Neb-ma-Rá. O monarca babilônico enviou-lha então de presente e o meu amo e senhor mimoseou-me com ela. Sei usar esta taça, cujas propriedades me são muito úteis. Posso ler nela o passado e o futuro, posso penetrar os mistérios do mundo e descobrir as relações que existem entre as coisas, por exemplo, a ordem do vosso nascimento. Eu li nessa ordem sem a menor dificuldade. Uma boa parte da minha habilidade, tudo quanto está acima do termo médio, provém dessa taça. Naturalmente eu não confio isto a qualquer pessoa, mas tu és meu hóspede e meu vizinho de mesa e por isso to conto. Não o acreditarás, mas, quando pego desta taça como devo fazê-lo, posso ver quadros de lugares distantes e de coisas que ali se passam. Queres que eu descreva a sepultura de tua mãe?
— Sabes que ela morreu?
— Teus irmãos me contaram que ela empreendeu a viagem para o Ocidente muito cedo na vida, que era bela e que suas faces cheiravam a pétalas de rosas. Como vês, não pretendo haver obtido este conhecimento por meios sobrenaturais. Agora, porém, basta-me apenas levar esta taça mágica à altura da minha testa deste jeito para ver a sepultura de tua mãe com tanta clareza que a mim próprio surpreende. A nitidez do quadro se origina do fulgor do Sol matinal: vejo morros; sobre um deles ergue-se uma cidade que não está longe, havendo apenas um atalho a separá-la de mim. Vejo pequenos campos lavrados entre o cascalho, vinhedos à direita e, no primeiro plano, um muro de pedras soltas. Sobre este cresce uma amoreira velha e em parte oca, cujo tronco se dobra e está sustentado por pedras. Ninguém nunca viu tão claramente uma árvore como eu vejo essa amoreira, enquanto a brisa da manhã brinca com suas folhas. Perto da árvore está a sepultura com uma lousa. Ah! Alguém se ajoelha naquele lugar. Trouxe comida e água e pão sem fermento: deve ser o cavaleiro do burro que espera ao pé da árvore. E um belo animal de orelhas delicadas e com uma crina encaracolada que lhe cai sobre os olhos amistosos. Eu nunca poderia imaginar que a taça me pudesse fazer ver com tamanha clareza todas estas coisas. É essa a sepultura de tua mãe?
— Sim, é essa — respondeu Benjamim. — Mas dize-me, senhor, podes ver tão nitidamente o burro e não vês o cavaleiro?
— A este vejo mais claramente ainda, se é possível. Mas não há muito que ver. Não é senão um jovem néscio de dezessete anos que se ajoelha com a sua oferenda. Tem uma espécie de túnica de cores vistosas, o paspalho, com desenhos tecidos nela. Deve ser um cabeça de vento, pois julga que vai apenas dar um passeio quando na realidade caminha para a sua destruição. A um dia ou dois de distância dessa tumba o aguarda a sua própria.
— É meu irmão José — disse Benjamim, cujos olhos cinzentos se encheram de lágrimas.
— Oh, perdoa-me! — suplicou seu vizinho desolado, depondo a taça sobre a mesa. — Eu não teria falado tão levianamente se soubesse que era o teu irmão perdido. Quanto ao que eu disse a propósito da tumba, quero dizer, da tumba dele, não deves levá-lo demasiado a sério. Quero dizer que não deves exagerar sua importância. Certamente a sepultura é um assunto sério: consiste num poço profundo e sombrio, mas afinal a faculdade de reter que o poço tem não é tão grande assim. Saberás que está na sua natureza permanecer vazio. Vazio está o buraco quando espera a presa, e, se chegas quando ele a engoliu, fica vazio de novo, a pedra foi arredada. Não quero dizer com isto que a tumba não mereça algumas lágrimas; acho até que é necessário soltar gemidos agudos em sua honra, pois ela aí está; é um fato, uma instituição profundamente melancólica deste mundo, e forma parte da história da festa em todas as suas horas. Eu acrescentaria ainda que, em sinal de reverência pela sepultura, não deve uma pessoa trair o conhecimento que possui acerca da sua inerente vacuidade e impotência, porque isto seria tratar com excessiva leviandade um assunto sério. De sorte que choraremos e gemeremos em voz alta e penetrante; não é senão privadamente que podemos dizer a nós mesmos que não existe nenhuma descida que não seja acompanhada de uma ressurreição. Vão juntas as duas coisas, pois do contrário tudo seria fragmentário: uma festa que só chegasse até a tumba, e não soubesse o que havia de seguir-se, seria uma festa pela metade. Não, o mundo não é uma metade, mas um todo; a festa também é um todo, e no todo está a consolação que não pode ser frustrada. Não te deixes, pois, perturbar pelo que eu disse acerca da sepultura do teu irmão, mas regozija-te.
E, tomando a mão de Benjamim pelo punho, agitou-a no ar como se fosse um leque.
Benoni estava estupefato. Sua situação chegava a um extremo de singularidade indescritível. Não havia dúvida de que nunca ninguém seria capaz de descrever o que ele sentia nesse instante. Faltava-lhe o fôlego, suas sobrancelhas estavam contraídas, as lágrimas inundavam-lhe os olhos e, através delas, observava a fisionomia do dono do trigo, constituindo tudo isto um estranho conflito de expressões. Abriu 3 boca como se fosse gritar, mas não o fez; inclinou a cabeça, fechou a boca e toda a expressão de seu semblante dolorido se transformou numa expressão de sincero e urgente pedido. Diante disto, os olhos do outro puseram-se na defensiva; cobriram-se mais uma vez, e seria uma audácia afirmar que naquelas pálpebras caídas havia o que quer que fosse parecido com assentimento.
Que alguém experimente pensar ou dizer o que sucedia dentro do peito de Benjamim, o peito de um homem que estava quase a crer.
— E agora levantemo-nos — ouviu seu vizinho falar. — Espero que estejas satisfeito, e que todos tenhais comido bem e vos tenhais divertido. Infelizmente devo voltar ao escritório e ficar lá até o entardecer. Vós, os irmãos, provavelmente empreendereis a viagem de volta amanhã cedo, depois de receberdes o grão que vos destinarei. Desta vez vos darei alimento para doze casas, para as vossas e a de vosso pai.
E com muito gosto receberei a paga para o tesouro do Faraó. Que queres? Sou um homem de negócios. Adeus, porque talvez não tome a ver-te. — Mas — seja dito de passagem e com toda a amizade — por que não vos encheis de coragem e não trocais o vosso país por este? Por que não emigrais todos para o Egito — pai, filhos, esposas e crianças, os setenta que sois ou os que sejais — e não vindes pastorear na terra de Faraó? E uma proposta que formulo; pensai nela. Asseguro-vos que não seria a coisa mais absurda que poderíeis fazer. A uma palavra minha, haviam de mostrar-vos as pastagens mais adequadas, pois minha palavra aqui é lei. Não desconheço que Canaã significa muito para vós, porém, afinal de contas, o Egito é o grande mundo e Canaã não passa de um recanto, onde mal se sabe como viver. Vós sois um povo nômade, não um povo de moradas cercadas de muros. Aqui se vive bem; poderíeis comerciar e obter lucros livremente através do país. E um conselho que vos dou e que podeis seguir ou não, conforme vos pareça. Agora devo ir para escutar as súplicas dos imprevidentes.
Enquanto o anfitrião falava aos irmãos com aquele modo de homem de negócios, um servo lhe havia derramado água nas mãos. Depois se levantou, despediu-se de seus convidados e pôs termo à reunião. A tradição insinua que os irmãos se embriagaram em companhia de José durante aquele repasto. Mas isto não é exato; apenas estiveram alegres. Ninguém se atreveria a embriagar-se de verdade, nem mesmo os ferozes gêmeos. Somente Benjamim estava ébrio, mas não era de vinho.
O GRITO REPRIMIDO
Os irmãos empreenderam agora o caminho de regresso desde Menfe até os lagos Amargos e em direção à fronteira fortificada, com disposições muito melhores que da vez anterior. Tudo havia corrido tão bem que não podia ser melhor. O senhor da terra tinha-se mostrado inequivocamente encantador. Benjamim estava ileso, Simeão livre e eles tinham sido honrosamente escoimados da acusação de espionagem; tão honrosamente na verdade que até haviam partido o pão com o senhor poderoso e seus cortesãos. Tudo isso os pusera de ânimo jovial, enchendo seus corações de alegria e orgulho. Porque assim é o homem: quando foi proclamado inocente e sem mancha a respeito de algum assunto determinado, pensa imediatamente que é inocente a respeito de tudo e se esquece do mais que possa ter sobre a consciência. Todavia, podemos perdoar de bom grado aos irmãos, porquanto tinham sido acusados injustamente, e haviam involuntariamente associado a acusação com sua antiga culpa. Não é de estranhar que, mal se viram isentos da segunda acusação, se deram pressa em pensar que a velha culpa também carecia de importância.
Dentro em breve lhes tocaria saber que a coisa não lhes havia de correr assim tão fácil, que eles não se iriam tão tranquilamente com os seus sacos atestados de alimentos para doze casas, alimentos esses que tinham sido devidamente pagos. Dentro em breve ficariam sabendo que arrastavam uma corrente que os faria voltar a novos desastres. A princípio sentiam-se de ânimo tão alegre que, na sua renovada inocência e inculpabilidade, tinham ímpetos de gritar e cantar de contentamento. No depósito onde lhes deram o grão, foram de novo banqueteados, sob a serena vigilância de Mai-Sachme, que também no momento da despedida os cumulou de finezas e obséquios. Puseram-se a caminho providos de tudo quanto era preciso para que se pudessem apresentar ao pai cheios de alegria: Benjamim, Simeão e provisões para doze casas. Os alimentos que lhes concedera o grande senhor do mercado substituíam em certo sentido o décimo segundo irmão que faltava. Mas ao menos tinham voltado a ser onze graças à sua reconhecida inocência.
Era esse o curso dos pensamentos dos irmãos, ou seja, dos pensamentos dos filhos de Lia e dos filhos das servas. Não há dificuldade em descrevê-lo. Em compensação, o estado mental do segundo filho de Raquel continuava indescritível. O que ninguém no decorrer dos milênios se atreveu a analisar a nós tampouco cabe descrever. O homenzinho mal pôde dormir aquela noite na estalagem, e, se dormiu, teve sonhos absurdos, confusos, anômalos. Anômalos eram, mas não inominados, porque tinham um nome, um nome querido e bem definido, impossível e absurdo, porquanto o nome era José. Benoni vira um homem no qual estava José. Como descrever aquilo? Tem acontecido que os homens encontraram deuses que assumiram uma forma humana familiar e procederam de acordo com ela, apesar de não se mostrarem dispostos a ser tratados como tais. Aqui se dava o inverso: o humanamente familiar não era semitransparente para o divino, senão que o alto e divino é que era semitransparente para o que desde a infância era largamente familiar; isto é, a lembrança se convertera nesta forma desconhecida e exaltada. Ela não tolerava ser reconhecida como tal, mas ocultava-se por trás de suas pálpebras. Não obstante, o disfarçado não é aquele por trás do qual alguém se oculta e por trás do qual olha, senão que ambos continuam sendo dois. Reconhecer um no outro não significa aliviar o próprio peito como grito: “E ele!” E impossível sacar um do outro, ainda que o espírito lute desesperadamente para fazê-lo. O grito era sufocado no peito de Benjamim, conquanto seu coração quase estalasse ao contê-lo. Ou melhor, não é de todo exato dizer que era sufocado, porque ainda não estava ah, não tinha voz nem forma e estava nisto precisamente o indescritível da sua natureza. Seu único refugio era dissipar-se em sonhos loucos, mas logo de manhã fundia-se de novo, dando lugar a uma angústia que não existia e que não tinha outra relação com as circunstâncias exteriores a não ser a seguinte: Benjamim era incapaz de compreender como é que seus irmãos podiam concluir seus negócios, deixando atrás de si a situação no pé em que ficara. “Pelo Eterno! É-nos impossível prosseguir!”, jurou Benjamim consigo mesmo. “Devemos ficar aqui e observar esse homem, o vice-deus, o grande guardador do mercado de Faraó! Resta ainda um grito que não se desprendeu do peito. Não podemos tornar para junto de nosso pai e viver como se nada houvesse acontecido, com este grito que está a ponto de explodir e de encher o mundo inteiro com o seu som, pois é um grito tão grande que fará estalar meu coração!”
Na sua angústia, Benjamim voltou-se para o irmão mais velho. Com os olhos arregalados expôs-lhe o problema. Acreditava Rubem que deviam regressar, ou parecia-lhe talvez que não tinham concluído o seu negócio ah, que não o tinham liquidado de todo, que existiam boas e justificadas razões para ficar?
— Que queres dizer? — perguntou-lhe Rubem por sua vez. — Quais são as razões boas e justificadas? Tudo foi executado e o homem nos despediu graciosamente uma vez que lhe foste apresentado. Agora trata-se de retornar depressa para junto de nosso pai, que deve estar esperando-nos cheio de temor por tua causa, e levar-lhe o que compramos, para que possa ter novamente pão para suas ofertas. Lembras-te de como o homem se exaltou quando soube da queixa de Jacó a respeito da sua lâmpada que estava quase a apagar-se, tendo ele então de dormir no escuro?
— Sim, lembro-me — respondeu, olhando com angústia para a cara sólida, carrancuda e sem barba de seu irmão mais velho. Viu logo (ou seria ilusão?) que os olhos vermelhos do filho de Lia se retraíam por detrás das pálpebras. Somente na véspera tinha visto em outros olhos aquele mesmo movimento de defensiva e, simultaneamente, de meio assentimento.
Não acrescentou mais nada. Aquilo era talvez ilusão sua por o ter visto no dia anterior e, durante a noite, em sonho. Os planos não sofreram alteração e eles empreenderam a partida sem que houvesse argumentos com que sugerir a ideia de que deveriam ficar. Grande era, porém, o desassossego de Benjamim. Justamente o fato de o guardador do mercado os ter despedido amavelmente era o ponto penoso do caso. Não podiam prosseguir, não deviam fazê-lo por nenhum preço; mas, por outro lado, se ele mesmo os despedia, que podiam fazer? Por isso empreenderam a viagem de volta.
Benjamim cavalgava ao lado de Rubem. Os dois formavam de certo modo um par, não só por serem o mais velho e o mais moço da família, mas também porque tinham uma certa semelhança relativamente ao irmão que havia desaparecido e à razão pela qual havia desaparecido. Recordamos o fraco de Rubem, um fraco quase rude, pelo cordeiro do pai, e seu procedimento na época da mutilação e da sepultura. Segundo todas as aparências, ele tinha partilhado os sentimentos dos irmãos e o ato por eles praticado, e com eles havia participado do juramento com que os dez se comprometeram a não revelar nunca, por palavra ou por obra, mediante nenhum sinal ou som, que não fora o sangue de José mas o de um animal nos restos da sua túnica que tinham levado à presença do pai. Rubem, porém, não tomara parte na venda, não estivera presente a ela, e suas ideias sobre o que teria acontecido a José eram ainda mais vagas que as de seus irmãos, as quais já eram por si bastante confusas, bem que não fossem suficientemente vagas. Sabiam eles que tinham vendido o rapaz aos ismaelitas e isso já era saber demais. Rubem tinha a vantagem de ignorá-lo, pois, enquanto eles realizavam a venda, ele estivera junto do poço vazio; e os sentimentos de um que está ao pé de uma sepultura vazia tinham de ser totalmente diferentes dos sentimentos dos irmãos que haviam vendido a vítima ao grande e vasto mundo.
Em suma, o grande Rubem, conscientemente ou não, cultivara durante todos aqueles anos a semente da esperança e por este motivo estava mais próximo que qualquer outro de Benjamim, o que não tinha culpa, o que não tomara parte em nada e que nunca havia aceitado como um fato definitivo a ausência do irmão idolatrado. Tinha já passado muito tempo, mas ainda podemos ouvir as palavras que o menino disse ao alquebrado ancião: “Ele voltará ou então nos mandará buscar!” Haviam decorrido vinte anos, mas o som de suas palavras ainda repercute nos nossos ouvidos e Benjamim ainda não perdera a esperança. Ele não tinha, como nove dos irmãos, conhecimento da venda, nem sequer tinha, como Rubem, conhecimento do que se passara no poço. Como o pai, Benjamim sabia apenas que José morrera, fato que não deixava margem para esperança nem fé. Mas a fé parece encontrar guarida precisamente ali onde não há lugar para ela.
Benjamim cavalgava junto de Rubem e, durante o trajeto, este lhe perguntou de que lhe tinha falado o homem durante o almoço, uma vez que ele, sendo o mais velho, tomara assento na outra ponta da mesa.
— Falou sobre muitas coisas — respondeu o mais moço. — Contamos mutuamente várias histórias divertidas sobre nossos filhos.
— Sim, e vós vos ristes — disse Rubem. — Todos vimos como vos sacudistes de tanto riso. Creio que os egípcios ficaram muito surpreendidos.
— Ora, eles devem saber que ele é encantador — continuou Benjamim. — Ele sabe conversar com toda a gente e põe todos à vontade.
— Mas também pode mostrar-se completamente diferente — replicou Rubem. — Pode ser bastante desastrado às vezes. Nós o sabemos à nossa custa.
— Sim, vós o sabeis — concordou Benjamim. — Porém estou certo de que nos quer bem. A última coisa que me disse foi que devíamos vir estabelecer-nos no Egito, nós todos; convidou-nos a transferir-nos para cá com nosso pai e pastorear aqui nossos rebanhos.
— Disse isto? — perguntou Rubem. — Sim, um homem como ele sabe mesmo muita coisa a nosso respeito e a respeito de nosso pai. Especialmente a respeito de nosso pai! E sempre sabe o que se deve pedir-lhe. Primeiramente, obriga-o a deixar-te fazer esta viagem para limpar-nos de toda culpa e vir em busca da pão; depois convida-o a vir ao país da lama. Decerto ele sabe muita coisa a respeito de Jacó!
— Estás mofando dele ou do pai? — inquiriu Benjamim. — Seja como for, pouco se me dá tanto de uma coisa como de outra, pois estou triste. Ouve-me, Rubem: tenho o coração oprimido porque nos vamos embora.
— Compreendo-te. Não é todo dia que se pode partir o pão e troçar em companhia do senhor do Egito — disse Rubem. — Isto é por certo um prazer. No entanto, deves lembrar-te de que já não és criança, mas chefe de uma casa e que teus filhos choram pedindo pão.
ELA ESTÁ EM PODER DE BENJAMIM
Chegaram bem depressa ao lugar onde tencionavam descansar ao meio-dia, à espera de que refrescasse um pouco. Na sua primeira viagem de volta tinham chegado de noite àquele lugar; agora, porém, era apenas meio-dia. Reconhecemos o sítio pela palmeira, o poço e a choça e vemo-lo tão claramente como o varão do Egito viu a sepultura de Raquel com ajuda da sua taça mágica. Alegraram-se de ter chegado àquele lugar de refrigério, que na verdade lhes trazia algumas recordações de um mistério assustador, mas o fantasma havia-se desvanecido, dando lugar à harmonia e à paz, e agora podiam, à sombra da rocha, desfrutar o repouso sem mais preocupações.
Por um instante ficaram olhando em torno, sem abrir seus sacos. Mas de repente, da mesma direção de que tinham vindo, chegou até eles um rumor que crescia cada vez mais. Ouviram gritos assim: “Alto! Olá! Parem aí!” Seria com eles aquele clamor? Para escutar melhor, deixaram-se ficar no mesmo local em que se achavam, e sua surpresa era tamanha que nem ao menos se viraram para ver o que podia ser aquilo. Somente Benjamim se voltou e subitamente levantou os braços e deu um grito, um grito só. depois guardou silêncio, um silêncio profundo.
Era Mai-Sachme que se aproximava com carruagem e cavalos, seguido de vários carros cheios de homens armados que saltaram de seus veículos estabelecendo rigoroso cerco em volta do rochedo. O atarracado mordomo avançou pesadamente.
Trazia a cara torva. Tinha as sobrancelhas contraídas e mordia uma ponta do beiço, somente uma ponta, o que dava a seu rosto uma expressão desusada e sinistra.
— Com que então vos encontrei e alcancei. Vim no vosso encalço a toda pressa, obedecendo às ordens de meu amo, e vos apanho onde poderíeis acampar e esconder-vos. Como vos sentis agora que me vedes? — disse.
O atônito grupo respondeu que não sabia dizê-lo, compreendendo todavia que tudo começava de novo, que a mão se estendia uma vez mais para chamá-los a juízo, que toda a doce harmonia se transformava em dissonância.
— Não sabemos de nada — disseram. — Folgamos de rever-te, ainda que não esperávamos isso.
— Esperar, não esperáveis, mas sem dúvida o temíeis. Por que retribuíste o bem com o mal, de forma que nos obrigais a seguir-vos e deter-vos? Vossa posição é muito séria.
— Explica-te — disseram. — De que estás falando?
— Precisais perguntá-lo? — tornou Mai-Sachme. — Falo-vos da taça em que meu amo bebe e em que ele adivinha. Deu-se falta dela. Ainda ontem meu amo a tinha na mesa. E desapareceu.
— Referes-te a uma taça de vinho?
— Exatamente. A taça de prata de Faraó que agora pertence a meu amo. Ontem ao meio-dia bebeu nela. Pois bem, a taça desapareceu. E claro que foi furtada. Alguém a levou consigo. Quem? Desgraçadamente não pode haver dúvida a respeito. Homens, praticastes uma ação muito má.
Os irmãos guardaram silêncio.
— Queres dizer — perguntou Judá, o filho de Lia, com voz ligeiramente trêmula — que tiramos um objeto da mesa de teu amo e fugimos como ladrões?
— Infelizmente não existe outro nome para o vosso procedimento. O objeto desapareceu desde ontem; evidentemente foi furtado. Quem poderia ter feito isso? Só existe uma resposta. Repito-vos que fizestes muito mal e que vos achais numa situação bastante delicada.
Novamente guardaram silêncio, com as mãos nas ancas, arquejantes, expelindo com força o ar pela boca.
— Escuta-me, meu senhor — disse Judá. — Por que não pões tento nas palavras que dizes e não as consideras antes de pronunciá-las. O que dizes é inconcebível. Com toda a cortesia e ao mesmo tempo com toda a seriedade, perguntamos-te: por quem nos tomas? Acaso parecemos vagabundos e ladrões? Que opinião formas de nós para nos vires dizer que tiramos um objeto valioso da mesa do teu amo, uma taça, segundo parece, e o fizemos desaparecer habilmente? Digo-te que isto é inconcebível e falo em nome dos onze. Porque somos filhos de um mesmo homem e o nosso número total é doze. Um já não está conosco, senão também em seu nome eu te diria que isto é qualquer coisa de inaudito. Dizes que fizemos mal. Pois bem, não quero dizer que sejamos todos uns santos, que nunca tenhamos praticado o mal e que tenhamos conseguido passar pelas peripécias da vida sem uma queda. Não digo que somos inocentes, pois isto seria um sacrilégio. Mas há pecadores que se prezam, mais talvez do que os inocentes, e estes são incapazes de furtar taças de prata. Já nos temos explicado diante de teu amo demonstrando-lhe que falamos verdade quando trouxemos o nosso undécimo irmão como testemunha. Também nos desculpamos contigo pelo dinheiro misteriosamente encontrado em nossos sacos e que tornamos a trazer conosco da terra de Canaã, oferecendo-to novamente, sem que tu, entretanto, te dispusesses a aceitá-lo. Diante de tais provas de honradez não queres deter-te um instante e refletir antes de acusar-nos de termos roubado qualquer coisa de ouro ou de prata da casa do teu senhor?
Neste ponto, Rubem, que já ardia de cólera, explodiu:
— Por que não respondes, mordomo, ao convincente discurso de Judá? Por que te limitas a morder a ponta do teu beiço, da maneira ofensiva como o fazes? Aqui estamos. Revista-nos! E que morra aquele com quem for achada a tua maldita taça! Dá uma busca! E, se a achares, todos nós seremos teus escravos por toda a vida!
— Não te precipites desse modo, Rubem — advertiu-o Judá. — Nossa absoluta inocência não necessita de tais juramentos.
— Tens razão — disse Mai-Sachme. — Não há necessidade de tantas palavras. Nós também sabemos ser moderados. Aquele em cujo saco for achada a taça será nosso escravo e ficará em nosso poder. Os demais irão em liberdade. Rogo-vos que abrais os vossos sacos.
Cada qual estava já junto ao seu. Tinham corrido para eles, dando-se pressa em descê-los de seus asnos e em abri-los. “Labão!”, diziam rindo. “Labão dando busca no Monte de Galaad! Ah, ah, ah! Que sue e se esfalfe! Aqui, mordomo, vem revistar o meu primeiro!”
— Calma, calma! — observou Mai-Sachme. — Tudo se fará em ordem e cada um por sua vez, na forma em que meu amo conhece os vossos nomes. Começaremos pelo mais velho e mais exaltado.
Enquanto ele revistava os sacos, os outros zombavam, sentindo crescer seu triunfo à medida que a busca prosseguia. Chamaram-lhe Labão e zombaram dele vendo-o transpirar enquanto ia de um saco a outro, segundo a idade dos irmãos, inclinando-se e olhando de mãos nas cadeiras, depois do que sacudia a cabeça e encolhia os ombros, passando ao saco seguinte. Procurou no saco de Aser e de Issacar e chegou ao de Zabulon. Não havia nada neles. Estava já a terminar a busca, só faltando procurar no de Benjamim. Aqui a troça subiu ainda de ponto.
— Agora a busca é no saco de Benjamim! — exclamaram. — Que sorte não terá ele com o mais inocente de todos, não só a este mas a todos os outros respeitos, porque Benjamim nunca praticou o mal em sua vida! Olhem que revista o último saco. Vamos ver o que terá para justificar...
Súbito ficaram imóveis vendo brilhar qualquer coisa na mão do mordomo. Do saco de Benjamim, e não do fundo, Mai-Sachme tirou a taça de prata.
— Ei-la aqui — disse. — Encontrei-a no saco do mais moço. Se soubesse, teria começado do fim, evitando, assim, o trabalho e o escárnio. Tão moço e já ladrão! Por certo que me alegro por ter achado a taça, mas o meu prazer fica um tanto aguado por ter vindo ao meu conhecimento tão precoce corrupção e ingratidão. Moço, achas-te num grande apuro.
E os outros? Continuavam atônitos, olhando fixamente a taça até que os olhos pareciam querer saltar-lhes das órbitas. De seus lábios não podiam sair palavras; só vinham grunhidos.
— Benoni! — exclamaram finalmente com vozes iradas, quase chorosas. — Defende-te! Abre a boca! Como foi que essa taça veio cair em teu poder?
Benjamim, entretanto, permanecia silencioso, com o queixo enterrado no peito e a cabeça tão baixa que ninguém conseguia ver seus olhos. Os irmãos rasgaram os próprios vestidos. Alguns, pegando na fimbria de suas túnicas, com um puxão as abriram de alto a baixo.
— Fomos desonrados por nosso irmão menor! — gemeram. — Benjamim, pela última vez, abre a boca e justifica-te!
Benjamim, porém, continuava guardando silêncio. Não ergueu a cabeça nem disse palavra. Era um mutismo impossível de descrever.
— Logo no princípio ele soltou uma exclamação! — gritou Dan, o filho de Bala. — Agora me recordo, sim, que deu um grito ao ver este homem. O terror lhe arrancou aquele grito, pois o culpado sabia por que motivo éramos seguidos.
Então precipitaram-se sobre Benjamim com sonoras mofas e o vilipendiaram chamando-lhe ladrão e filho de uma ladra, recordando-lhe que sua mãe havia roubado os terafins de seu pai.
— Herdou-os, leva-o no sangue, o sangue da ladra! Tinhas de aplicar tua herança justamente aqui, para atrair a vergonha sobre nós todos, e para aniquilar a nossa raça, a nós e o pai e os nossos filhos?
— Vamos, não exagereis — disse Mai-Sachme. — Não é dessa forma que costumamos proceder. Todos vós, exceto um, estais isentos de toda culpa e livres. Não damos como coisa firmada o vosso delito, mas sim que vosso irmão mais moço roubou por sua própria conta. Podeis regressar livremente para junto de vosso honrado pai. Só nos pertence aquele que tirou a taça.
Mas Judá respondeu:
— É inútil que prossigas, mordomo, pois falarei com teu amo; ele há de ouvir as palavras de Judá. Estou decidido a tanto. Voltaremos contigo à sua presença e ele há de julgar-nos a todos. Porque todos somos responsáveis por esse caso e somos como uma só pessoa a respeito do que ocorreu. Este nosso irmão menor foi inocente durante todos estes anos, pois estava em casa. Mas nós, os demais, estávamos no mundo e cometemos pecados. Não é nossa intenção fingir-nos inocentes e deixá-lo no atoleiro porque caiu em culpa nesta viagem, enquanto nós, neste caso particular, fomos inocentes. Conduze-nos todos juntos diante do trono do guardador do mercado.
— Bem, seja assim — disse Mai-Sachme.
E desse modo tornaram à cidade rodeados pelas tropas de lanceiros, refazendo o caminho que acabavam de percorrer tão livres de preocupação. Benjamim, porém, não disse uma só palavra.
SOU EU
Era já à tardinha quando chegaram diante da casa de José, pois para ali os conduziu o mordomo e não ao grande escritório onde da primeira vez se haviam prostrado diante do vice-governador do Egito. José não estava no escritório, mas em sua casa.
"Ainda estava ali” — diz a história e diz bem. Depois do alegre festim do dia anterior, o amigo de Faraó voltara ao escritório; mas naquele dia não pudera deixar sua casa. Sabia que o intendente estava ocupado na sua missão e aguardava o resultado com extrema impaciência. A comédia sagrada chegava ao ponto culminante, e dos dez dependia se iriam achar-se presentes à cena ou se somente ouviriam de segunda mão o que ocorrera. Fariam regressar o menor sozinho com Mai-Sachme? Ou se solidarizariam com ele? O desassossego de José era grande: deste ponto dependiam suas futuras relações com os irmãos. Nós naturalmente não quinhoamos sua inquietude, porque sabemos muito bem todas as fases da história; mais ainda, tendo assistido à busca, vimos que os irmãos não abandonaram Benjamim no seu pecado. Mas esta circunstância permanecia ainda oculta para José. Assim, sabendo o que sabemos, podemos sorrir vendo-o caminhar da biblioteca à sala de recepção, daí ao salão de banquetes e voltar através de todos esses aposentos até o seu quarto, onde deu febrilmente um tal ou qual toque à sua pessoa, como um ator que arruma nervosamente sua caracterização antes de aparecer em cena.
Foi ver sua esposa Aseneth, a raptada, no pavilhão das mulheres; ficaram juntos os dois vendo Manassés e Efraim brincar, porém o marido não conseguia dissimular o seu nervosismo.
— Meu esposo e querido senhor, que tens? — indagou ela. — Estás nervoso, bates constantemente com os pés e pareces estar à escuta. Que levas no espírito? Queres que eu organize algum jogo de tabuleiro para entreter-te ou desejas que algumas de minhas mulheres dancem para ti?
— Não, querida — disse José —, obrigado. Mas tenho outras preocupações na cabeça, diferentes das do jogo e não estou em boa disposição de ânimo para ver dançar. Tenho de fazer meus próprios jogos de mão e de pôr em movimento minha própria dança, enquanto Deus e o mundo observam. Devo agora aproximar-me do salão que será o cenário. Tenho, não obstante, para tuas donzelas uma tarefa melhor do que bailar, pois vim para dizer-lhes que te ponham mais formosa do que já és e te vistam e adornem, e as criadas devem lavar as mãos de Manassés e Efraim e pôr-lhes suas túnicas bordadas, pois espero hóspedes muito especiais e vou apresentar-lhes toda a minha família assim que eu lhes disser quem sou eu e quem sois vós. Vejo que arregalas muito os olhos, minha donzela do escudo e da cintura pequena! Apesar disso, fazei como te peço e ponde-vos formosos, que logo vos mandarei chamar!
Isto dito, dirigiu-se novamente para a outra extremidade da casa. De bom grado se daria ao luxo da espera e ao prazer da ansiedade; mas, como sempre, os negócios estavam-no aguardando, tinha de receber os dignitários da repartição, de examinar e assinar contas e papéis que foram levados à sua sala do livro pelo seu leitor e escrivão, aos quais mentalmente amaldiçoou, não deixando, contudo, de acolhê-los com a amabilidade do costume, uma vez que necessitava de comparsas.
O Sol se punha, enquanto José despachava seus papéis, com o ouvido atento ao que esperava. Afinal ouviu uma confusão de ruídos diante da casa: chegara a hora, os irmãos estavam ah. Mai-Sachme entrou com a comissura da boca mais contraída que nunca e com a taça na mão.
— Estava com o mais moço — disse, mostrando-a ao amo. — Encontrei-a depois de demorada busca. Estão na sala, esperando tua sentença.
— Todos? — perguntou José.
— Todos — respondeu Mai-Sachme.
— Como podes ver, estou ocupado — disse José. — Estes senhores não vieram aqui à cata de diversão; estamos atarefados com os assuntos da coroa. Es meu despenseiro há bastante tempo para saberes que não posso subtrair o tempo dos assuntos oficiais urgentes para dedicá-lo a coisas supérfluas. Tu e os teus homens podeis esperar.
E inclinou-se novamente sobre o maço de papéis que lhes estendia um subordinado. Como, porém, não podia ver nada do que neles estava escrito, disse depois de uma pausa:
— Talvez pudéssemos atender a essas superfluidades primeiro. Trata-se de um caso de criminosa ingratidão e devo dar a sentença. Senhores, acompanhai-me ao salão, onde os malfeitores a aguardam.
Todos foram seguindo José, que subiu os três degraus e passou por baixo de um cortinado até o dossel armado no salão e no qual estava a sua cadeira. Com a taça na mão, sentou-se. No mesmo instante, os servos erguerem flabelos acima de sua cabeça, pois era ele sempre protegido deste modo logo que se sentava. Um raio de luz oblíquo cheio de átomos a bailar caía de uma das aberturas superiores do lado esquerdo, entre as colunas e esfinges e os leões de arenito vermelho com cabeças de Faraó. O raio caía sobre o grupo de pecadores, que se prosternaram a poucos passos da cadeira de José, com as cabeças roçando o pavimento. Lanças os resguardavam de ambos os lados. Uma multidão de domésticos curiosos, de cozinheiros e pajens, de homens que regavam o solo e de outros que cuidavam das flores da mesa se aglomerou perto das portas.
— Levantai-vos, irmãos! — disse José. — Não pensava que tornaria a ver-vos tão cedo, e muito menos em circunstâncias semelhantes. Todavia, há muitas coisas em que eu jamais teria acreditado. Nunca teria pensado que procedêsseis como procedestes, quando vos tratei como cavalheiros. Certamente folgo de haver recuperado minha taça, na qual bebo e adivinho, mas sinto-me abatido e melindrado como vosso comportamento abjeto. Como pudestes pagar tão cruelmente o bem com o mal e ofender um homem como eu, levando um objeto que ele aprecia e que lhe é útil? A vossa ação foi tão estúpida como odiosa, porque podíeis adivinhar que um homem como eu daria logo falta de tão valiosa peça e saberia de tudo. Acreditais porventura que eu não ia adivinhar, sem a taça, onde ela fora parar? E agora? Suponho que desta vez reconhecereis o vosso delito.
Judá foi quem respondeu, convertendo-se aquele dia no intérprete de todos, pois na vida tinha passado por tribulações a que os outros haviam sido poupados; estava familiarizado com o pecado e a culpa e por conseguinte podia representar adequadamente os irmãos. E que a culpa gera o espírito e, vice-versa, sem espírito não há culpa. Assim tinham combinado entre si no trajeto de volta, e Judá meditara no que ia dizer. Com as vestes rasgadas, levantou-se, pois, entre seus irmãos e falou:
— Que diremos ao meu senhor ou com que nos justificaremos? Somos culpados diante de ti, senhor, culpados, porque tua taça foi encontrada em nosso poder, foi encontrada com um de nós, o que é o mesmo dizer que foi achada em poder de todos. Ignoro como a taça foi parar no saco do menor e mais inocente de todos, daquele que sempre esteve seguro em casa. Nós o ignoramos. Somos impotentes para especular a respeito do assunto em tua presença. Tu és um potentado desta terra, és o bem e o mal, tu perdoas e condenas. Nós somos servos teus. Nenhuma defesa nossa tem valor diante de ti, e louco seria o pecador que se gabasse da sua inocência atual quando o vingador exige que pague por crime antigo. Não foi em vão que o nosso velho pai deplorou que o íamos deixar sem filhos na sua velhice. Ele tinha razão. Nós e aquele em poder do qual foi achada a taça somos escravos do meu senhor.
No discurso inicial de Judá, que, no entanto, não é o discurso que o celebrizou, houve pontos de que José preferiu não fazer caso. Por conseguinte, respondeu unicamente ao que se referia à escravidão de todos, repelindo esse alvitre.
— Nunca faça eu tal coisa — disse José. — Nada disto. Não existe proceder tão perverso que possa fazer comportar-se inumanamente um homem como eu. Comprastes alimentos no Egito para o vosso pai, e ele os espera. Eu sou o grande homem de negócios de Faraó; ninguém irá dizer que me aproveitei do vosso crime para guardar o dinheiro, os alimentos e ainda por cima os compradores. Não vou inquirir se só um de vós pecou ou se pecastes todos. A vosso irmão mais moço falei familiarmente à mesa onde todos nos regozijamos, e falei-lhe das virtudes da minha querida taça, com auxílio da qual lhe mostrei a tumba de sua mãe. Talvez ele vos tenha participado isto e entre vós combinastes o desagradecido plano de roubar o meu tesouro. Presumo que o não tenhais feito por causa da prata, senão que quisestes usar em proveito próprio a magia do objeto, talvez com o propósito de descobrirdes qual foi o fim do vosso irmão perdido, daquele que abandonou o lar... Que sei eu? Ou quiçá vosso irmão menor cometeu a falta por sua própria conta, sem dizer-vos nada a respeito da taça. Não me interessa sabê-lo. O objeto foi encontrado com o ladrão e este será meu escravo. Quanto a vós outros, ide em paz para junto de vosso pai, para que ele não fique sem filhos na sua velhice e tenha alimentos que comer.
Assim falou o vice-governador e, por um instante, o silêncio foi a resposta às suas palavras. Depois Judá, o homem atribulado, avançou dentre o grupo. Dirigiu-se ao sólio, acercou-se de José, respirou fundo e disse:
— Rogo-te, meu senhor, me permitas dizer uma palavra aos teus ouvidos e relatar-te a forma como aconteceram as coisas e o que tu mesmo fizeste, e como aconteceu com estes e comigo, com todos nós, os irmãos. Minha palavra te fará ver claramente e em primeiro lugar que não podes separar de nós nosso irmão menor, separando-o para ti. Em segundo lugar, que todos nós e particularmente eu, Judá, o quarto entre os irmãos, não podemos voltar para nosso pai sem o mais moço. E, em terceiro lugar, farei ao meu senhor uma oferta e uma proposta, para que recebas o que te toca de uma forma possível e não de uma que é impossível. Esta há de ser a ordem do meu discurso. Por conseguinte, suplico-te não deixes tua ira inflamar-se contra teu servo e não o interrompas nas palavras que pronunciará, à medida que meu espírito e minha própria culpa me permitam fazê-lo. Tu és como Faraó. Agora, começarei pelo princípio e tal como tu principiaste, pois que aconteceu deste modo:
“Quando aqui viemos, enviados por nosso pai, a fim de obter trigo deste celeiro como outros mil, não partilhamos a sorte dos mil; fomos separados do resto e tratados de modo especial e conduzidos até tua cidade e à presença do meu senhor. Aí também fomos tratados de maneira pouco usual, pois que meu senhor se portou de um modo estranho, quero dizer, foi áspero e suave ao mesmo tempo, duro e bondoso; em outras palavras, mostrou dois semblantes. Interrogou-nos de um modo esquisito acerca de nossa família. Meu senhor perguntou a seus servos: — Tendes pai ou irmão? — E nós respondemos a meu senhor: — Temos um pai idoso e um irmão moço, o mais moço de todos, que lhe nasceu na sua velhice e a quem ele preza como a menina de seus olhos e não o aparta do seu lado, porque um irmão seu caiu prematuramente e se foi. Só esse filho lhe resta de sua esposa e nosso pai o ama além de toda medida. E meu senhor replicou: — Trazei-mo aqui, que não se fará dano a um único cabelo de sua cabeça. — Isto não pode ser — respondemos nós — pela razão que te expusemos. Separar do pai o menor equivalia à morte do ancião. — Tu, porém, retrucaste duramente a teus servos: — Pela vida de Faraó! Se não trouxerdes vosso irmão menor, o sobrevivente da mãe formosa, nunca mais vereis meu rosto.”
E Judá prosseguiu deste modo:
“Pergunto ao meu senhor se foi assim e se começou deste modo, ouse não foi assim e se começou de modo diverso. Pergunto ao meu senhor se não pediu que trouxéssemos o mais jovem e se não insistiu em que ele viesse, apesar da nossa advertência. Porque o meu senhor, para nos justificarmos da acusação de que éramos espias, quis pôr como condição que lho trouxéssemos, demonstrando desse modo que falávamos a verdade. Mas que espécie de justificação e de acusação é essa? Nenhum homem pode tomar-nos por espias; nós, os irmãos em Jacó, não parecemos espiões, e o fato de havermos mostrado o menor não nos exime da incriminação, porque se trata de uma resolução arbitrária, oriunda da insistência do meu senhor em querer ver nosso irmão com seus próprios olhos. Por quê? Sobre este ponto não me posso pronunciar; a Deus compete fazê-lo.”
E Judá continuou seu discurso, sacudindo a cabeça leonina e estendendo a mão ao falar:
“Teu servo crê no Deus de seus pais e crê que todo conhecimento está nele. Porém não acredita que nosso Deus introduza sub-repticiamente objetos de valor nos sacos de seus servos, fazendo-os levar consigo o dinheiro da compra junto com as mercadorias. Isto não aconteceu nunca. Não conhecemos tradição nenhuma desta natureza. Nem Abraão, nem Isaac, nem Jacó, nosso pai, jamais encontraram em seus sacos prata de Deus que o Senhor neles introduzisse furtivamente. O que não é, não é. O que aconteceu tem sua origem numa causa estranha e provém de um e mesmo mistério.
“Mas, meu senhor, podes tu — depois que conseguimos convencer a nosso pai, em razão da fome reinante, que nos emprestasse o seu pequeno para a viagem —, podes tu, que exigiste implacavelmente a sua vinda, pois que, a não existir tão extraordinária circunstância, nunca teria ele posto os pés na terra do Egito, podes tu, que disseste: — Nenhum dano lhe acontecerá aqui embaixo — podes tu, repito mais uma vez, retê-lo como escravo porque a tua taça foi encontrada em seu saco?
“Não, não podes fazê-lo!
“Por nossa parte, e especialmente o teu servo Judá, que fala diante de ti, não podemos comparecer diante de nosso pai sem seu filho menor... nunca mais. Não podemos comparecer diante dele, como não poderíamos ter comparecido diante de ti, mas não por um capricho pessoal, senão por motivos urgentes e ponderosos. Eis o que nos disse teu servo, nosso pai: — Ide de novo comprar-nos um pouco de alimento. — E nós lhe respondemos: — Não podemos descer até lá a não ser que nos entregues nosso irmão menor, pois o senhor daquela terra insistiu em que o levássemos conosco, do contrário não veríamos seu rosto. — Então o ancião de cabelos brancos se lamentou, entoou uma canção muito conhecida que nos partiu o coração, com a flauta que soluça nos desfiladeiros, e deu princípio à sua canção dizendo:
“Raquel, a formosa e complacente, por amor da qual nos tempos da minha juventude servi a Labão, a lua negra, por espaço de sete anos; a alma da minha alma, que morreu no caminho a muito pouca distância da pousada, a que era minha esposa deu ao meu ardente desejo dois filhos, um na vida e outro na morte: Dumusi-Absu, o cordeiro, José, o brilhante, que sabia obter de mim quanto queria, e Benoni, o pequeno filho da morte, que ainda conservo ao pé de mim. O primeiro partiu de junto de mim como eu lhe ordenei, e todo o Universo se encheu com o clamor: — Despedaçado! O formoso foi despedaçado! — E eu caí prostrado e fiquei rígido desde então. Porém minha mão rígida segura com firmeza este pequeno que é tudo o que me resta, porque o filho verdadeiro foi despedaçado e destruído. Se agora me levais o único que me resta, para onde talvez o javali o ataque, fareis descer minhas cãs à sepultura com tal dor que seria demasiado para este mundo e ele não poderia suportá-la. Cheio até a borda está o mundo com o grito antigo: — Despedaçado! O amado foi destruído! E, se mais um grito se juntasse ao primeiro, o mundo cairia despedaçado e reduzido ao nada.
“O meu senhor ouviu esse planger de flautas, este lamento paterno? Julgue então, segundo seu próprio entendimento, se nós, os irmãos, podemos comparecer diante do ancião sem o nosso irmão mais moço, o homenzinho, e confessar-lhe: — Perdemo-lo; ele desapareceu. —Julgue se teremos ânimo para enfrentar a alma que se apega à alma de Benjamim e para enfrentar o mundo que está cheio de aflição e não poderia suportar nenhuma outra, pois com esse novo golpe receberia o seu golpe mortal. E julgue sobretudo se eu, Judá, seu quarto filho que fala neste momento, posso comparecer diante de meu pai. Mas o meu senhor ainda não sabe tudo, está muito longe de saber tudo. O coração do teu servo sente, nesta hora da nossa necessidade, que sua palavra deve abordar outro tema inteiramente diverso; sente que esse mistério que é a fonte de todas essas coisas singulares só poderá ser decifrado mediante a revelação de outro mistério.”
Um murmúrio passou entre o grupo dos irmãos que se agitaram inquietos. Mas Judá, o leão, sobrepôs sua voz à deles e disse:
— Eu assumi a responsabilidade diante de meu pai e respondo pela segurança do menor. Assim como me aproximei do teu trono para dizer estas palavras, assim me acerquei de meu pai e prestei juramento diante dele dizendo: — Confia-o ao meu cuidado. A mim pedirás conta dele, e, se eu não to trouxer e não o puser aqui diante de ti, serei culpado na tua presença no resto dos meus dias. — Esse foi o meu juramento. Julga agora, ó homem estranho, como poderei aparecer diante de meu pai sem o pequeno, a não ser que eu veja uma desgraça que eu e o mundo não poderíamos suportar. Aceita o meu oferecimento! Guarda-me como refém em lugar do menor, para que recebas o que te cabe numa forma possível e não numa que é impossível. Eu expiarei por todos nós. Aqui diante de ti, estrangeiro, tomo o tremendo juramento que nós, os irmãos, fizemos, tomo-o com as mãos ambas e o parto em dois sobre os meus joelhos. Ao nosso undécimo irmão, o cordeiro do pai, o primeiro filho da esposa verdadeira, não o devorou nenhuma besta-fera: nós, os irmãos, o vendemos ao mundo.”
Assim concluiu Judá o seu famoso discurso, assim e não de outro modo. E, ditas estas palavras, permaneceu em seu lugar entregue à agitação que o dominava. Os irmãos tinham-se tomado pálidos; não obstante, sentiram-se aliviados por ter sido finalmente revelado o tremendo segredo. Não é impossível empalidecer e sentir-se aliviado ao mesmo tempo. Só dois deles soltaram uma exclamação. Foram o mais velho e o mais moço. — Que ouço? — Gritou Rubem. E Benjamim fez o mesmo que havia feito antes, quando o intendente os alcançou: ergueu os braços e emitiu uma exclamação indescritível. E José? José levantara-se de seu assento, enquanto lágrimas resplandecentes lhe resvalavam pelas faces. Porque sucedeu que o raio de luz que tinha caído de soslaio sobre o grupo dos irmãos caminhara e agora vinha de uma abertura na extremidade do salão, caindo diretamente sobre o rosto de José, no qual as lágrimas resplandeciam como joias.
— Queiram sair todos os que são egípcios — ordenou. — Saiam todos! Porque convidei a Deus e ao mundo para este drama, mas agora somente Deus será testemunha dele.
Obedeceram-lhe com relutância. Mai-Sachme polidamente colocou suas mãos sobre as costas dos escrivães do estrado, empurrando-os para a porta com gestos e sinais. Também a criadagem se afastou. Os grupos desapareceram da entrada, conquanto não seja provável que tivessem ido para muito longe dali, pois ficaram na sala dos livros com as cabeças inclinadas na direção da sala. Alguns até levaram as mãos aos ouvidos.
Sem se importar com as lágrimas que lhe inundavam o rosto, José estendeu os braços e deu-se a conhecer. Várias vezes antes daquele momento tinha feito o mesmo, deixando atônitas as pessoas, pois as fazia supor que algum poder mais alto se movia dentro dele, algum poder alheio a ele mesmo, que se confundia com o seu ser dando-lhe um encanto sonhador e sedutor. Mas agora, com toda a singeleza, de braços estendidos e com um risinho modesto, exclamou:
— Meninos, sou eu. Eu sou vosso irmão José.
— Certamente é ele, certamente é ele — gritou Benjamim, sufocando quase de alegria. E, precipitando-se para José, subiu os degraus e caiu de joelhos, abraçando-se nos do irmão recém-achado.
—Jashup, José-el, Jeosif! — soluçou com a cabeça lançada para trás, para contemplar o rosto de seu irmão. — Es tu, és tu certamente! Não morreste, venceste a grande mansão de sombras da morte, levantaste-te até o sétimo umbral e foste exalçado como grande príncipe. Eu sabia-o, sabia-o! Foste guindado às alturas, o Senhor fez para ti um assento como o seu próprio! Mas a mim me conheces ainda, a mim que tive a mesma mãe que tu, a mim com cuja mão abanaste o ar!
— Pequeno! — exclamou José. — Pequeno! — E, erguendo Benjamim, juntou sua cabeça à dele. — Não fales assim, nada disso é tão grande nem tão importante nem eu possuo glória semelhante. O essencial é que nós doze estamos reunidos outra vez.
NÃO ALTERQUEIS
José passou o braço ao redor dos ombros de Benjamim e com ele desceu para junto dos irmãos, cuja reação tinha sido diversa. Uns tinham ficado com as pernas escancaradas, os braços pendendo desazadamente à altura dos joelhos, boquiabertos, com os olhos perdidos no espaço vazio. Outros levaram os cerrados punhos ao peito que arfava pesadamente com a violência da respiração. Todos se haviam tomado intensamente pálidos escutando a confissão de Judá; porém logo ganharam uma cor rubra, de um rubro obscuro como a cor do tronco do pinheiro, rubros como naquela ocasião em que, de cócoras, tinham visto José aproximar-se com a túnica multicor. Se não fosse a arroubada exclamação de Benoni, não teriam crido, não teriam sequer percebido o que o homem lhes dissera. Mas, vendo aproximarem-se enlaçados os filhos de Raquel, o que até então não fora mais que uma mera associação (pois desde muito tempo todos haviam sentido que aquele homem tinha alguma coisa de comum com José) tomou corpo e se transformou numa identificação tão palpável, que parecia que o cérebro ia estalar-lhes. Por um instante logravam unir o cordeiro de lá da sua terra com o senhor daqui em toda a sua glória; mas pouco depois as duas ideias tomavam a dissociar-se, de modo que lhes era preciso uni-las outra vez, pois que era grande o seu vexame e horror.
— Chegai-vos a mim — disse-lhes José. — Sou eu, com efeito, sou eu o vosso irmão José, que vendestes ao Egito; isto, porém, carece de importância agora, porque com tal ação não me causastes dano. Dizei-me: vive ainda verdadeiramente meu pai? Falai-me. Não temais. Tu, Judá, pronunciaste um grande discurso, um discurso para toda a eternidade. Por ele te felicito e te abraço; dou-te as boas-vindas e beijo tua cabeça de leão. Eis aqui o beijo que me deste diante dos mineus; devolvo-to hoje, meu irmão, e com este beijo fica tudo esquecido. Beijando-te, beijo a todos. Não temais que eu esteja irado por me haverdes vendido. Tudo tinha de suceder assim, porque Deus o quis, não vós. El Chaddai me afastou da casa de meu pai na minha adolescência, separou-me de acordo com seus projetos, enviando-me adiante de vós para que eu fosse vosso despenseiro e, na sua formosa providência, fez as coisas de modo que, quando chegasse a época da penúria, eu pudesse dar de comer a Israel e a todos os estrangeiros. Foi este um negócio simples e prático, ainda que fisicamente importante, é claro. Mas não é o caso de prorromperdes em exclamações e alaridos, porquanto vosso irmão não é um deus nem um herói, não é um precursor da salvação espiritual, mas simplesmente um administrador. Recordais como os vossos feixes se inclinaram diante do meu naquele sonho que vos contei sendo eu um rapazinho? Lembrai-vos das estrelas que faziam reverências? Pois bem, aquele sonho não teve como resultado nada de muito extraordinário, senão simplesmente que meu pai e meus irmãos iam agradecer-me pelo que eu podia dar-lhes. Quando um homem recebe pão, não diz “Hosana!” Diz apenas “Muito obrigado!” Não obstante, o pão é necessário. O pão vem primeiro, antes de todos os hosanas. Compreendeis agora quão simples foi o significado da intenção do Senhor e vos convenceis de que eu estou vivo? Vós sabeis que eu não fiquei no poço, porque os filhos de Ismael, a quem me vendestes, me tiraram de lá. Ponde vossas mãos sobre mim, tocai-me e senti-me para que vos certifiqueis de que sou vosso irmão José e estou vivo!
Dois ou três o tocaram de verdade, cautelosamente, deslizando as mãos sobre suas vestes e fazendo tímidos esgares.
— De modo que, quando te comportaste como um príncipe, foi apenas um gracejo? — perguntou Issacar. — E não és verdadeiramente senão o nosso irmão José?
— Senão? — perguntou José. — Essa é a melhor parte do que sou; porém deveis compreender que também sou o outro, ou antes, ambas as coisas: sou José, a quem Deus exaltou como pai de Faraó e senhor de todo o Egito. Sou José adornado com todo o esplendor deste mundo.
— Então não devemos dizer que és só um e não o outro, pois na verdade és ambos em um — disse Zabulon. — Sempre tivemos um vislumbre disso. E bom é que não sejas senhor do mercado unicamente, porque do contrário as coisas teriam um aspecto sombrio para nós outros. Felizmente, debaixo das tuas formosas roupagens, és nosso irmão José, que nos protegerá da ira do guardador do mercado. Mas deves entender, meu senhor...
— Estúpido! Queres deixar uma vez por todas esse tratamento de senhor?
— Compreende, entretanto, que temos de procurar a proteção do guardador do mercado contra nosso irmão, pois em outro tempo fomos com ele injustos.
— Vós o fostes — disse Rubem furiosamente, com os músculos das maxilas como que saltando-lhe fora. — É incrível, Jeosif, que eu tenha permanecido até hoje na ignorância disso. Eles te venderam por detrás das minhas costas e nunca, em todos estes anos, me disseram a verdade. Eu nunca soube que se livraram de ti e que receberam dinheiro em troca...
— Basta, Rubem! — interrompeu-o Dan, o filho de Bala. — Tu também fizeste uma coisa por detrás das nossas costas quando foste secretamente ao poço com a intenção de raptar o rapaz. Quanto ao preço da compra, não foi uma grande quantia, como José bem sabe. Vinte siclos fenícios — foi só isso, graças ao agudo sentido comercial do velho. Em qualquer momento podemos acertar as contas e tu receberás o que te toca.
— Homens, não alterqueis! — disse José. — Não alterqueis acerca do que um de vós fez sem o conhecimento do outro, porque Deus converteu tudo em bem. Graças te dou, Rubem, meu irmão mais velho, por teres ido ao poço com a corda, com a intenção de tirar-me e entregar-me a meu pai. Mas eu já não estava lá, o que foi bom, porque as coisas não deviam suceder desse modo e não teriam bom resultado. Em compensação, agora tudo é satisfatório e só devemos pensar em nosso pai...
— Sim, sim — concordou Neftali, agitando a língua palreira e fazendo tremelicar as pernas. — O que o nosso exaltado irmão diz é verdade, porque não é possível que Jacó fique sentado lá longe, na sua tenda ou fora dela, sem ter a mais remota ideia do que aqui se passou, sem saber que José vive, que apareceu no mundo e que ocupa um posto resplandecente entre os pagãos. Pensai nisto, pensai em que Jacó se acha abismado na ignorância de que nós estamos aqui falando cara a cara com o desaparecido e que tocamos em suas vestes para nos convencermos de que é ele. Tudo foi um mal-entendido e uma informação errônea, e as sonoras lamentações do pai ficam reduzidas a nada como a nada fica reduzido o bicho que há roído as nossas vidas. Tudo isto é tão sensacional que é de fazer um homem saltar da sua pele. E absurdo que nós estejamos aqui e saibamos, enquanto ele não sabe, só porque é longo o caminho até lá e porque imensas distâncias separam o seu conhecimento do nosso; de forma que a verdade só pode avançar alguns passos e logo tem de parar e ficar imóvel. Oh! Pudesse eu pôr as mãos na boca e gritar através de dezessete dias de distância, dizendo: “Ouve, pai: José vive e é como Faraó na terra do Egito; eis aqui a última notícia!” Por muito forte que se pudesse gritar, ele continuaria sem ouvir nem comover-se. Oxalá fosse possível enviar uma pomba cujas asas tivessem a velocidade do raio e que levasse esta mensagem debaixo delas: “Fica sabendo que assim estão as coisas” — para que todo aquele absurdo desaparecesse da Terra e todo mundo, tanto aqui como lá na nossa terra, soubesse da mesma coisa! Não, não posso permanecer aqui nem um instante mais, não posso suportá-lo. Enviai-me, enviai-me! Eu o farei. Correrei, desafiando o alígero cervo, para comunicar ao pai em belas palavras o que sucedeu. Porque, poderia acaso haver uma narração melhor do que esta grande notícia?
José acalmou-lhe o zelo, dizendo:
— Deixa ficar, Neftali, não te precipites, pois não deves correr só. Ninguém deve ter o privilégio de transmitir a nosso pai a mensagem que eu lhe envio, conforme tenho disposto há muito tempo, quando gastei noites meditando nesta história. Todos vós ficareis aqui comigo pelo espaço de sete dias, durante os quais partilhareis todas as minhas honrarias e eu vos levarei à presença de minha esposa, a donzela do Sol, e meus filhos se inclinarão diante de vós. Depois carregareis novamente vossos animais e subireis com Benjamim e direis a meu pai: “José, teu filho, não está morto; ele vive e te fada com sua voz viva e assim te diz: — Deus me deu um alto posto entre estrangeiros; povos que eu não conhecia me estão sujeitos. Vem a mim, querido pai, não te detenhas nem temas a terra das sepulturas aonde Abraão também veio em tempo de fome. Dois anos há que não se lavra a terra e isto continuará certamente por três ou cinco anos mais. Mas eu cuidarei de ti e te estabelecerei em terras férteis. Se me perguntares se Faraó o permite, responderei que teu filho o maneja com seu dedo mínimo. Eu pedirei a Sua Majestade licença para que possais instalar-vos na terra de Gessen e nas planícies de Zoan, olhando para a Arábia, e ali cuidarei de vós, de ti e de teus filhos e dos filhos dos teus filhos, com teus gados e rebanhos e aves e tudo que é teu. A terra de Gessen é o lugar que há muito tempo escolhi para quando chegasse o momento da reunião, porque ainda não é o Egito, não é totalmente egípcia, e ali podereis viver dos peixes do delta e da fertilidade da terra sem terdes de misturar-vos com os filhos do Egito, e assim o refinamento deles e os vossos costumes antigos não terão de entrar em conflito. E todavia estareis perto de mim.” — E assim que deveis falar com meu pai em meu nome e fazê-lo com habilidade, homens, para que ele entenda, sem assustar-se, na sua rígida velhice, primeiramente, que eu estou vivo e, em segundo lugar, que deve descer até aqui, acompanhado de todos vós. Oh, se eu pudesse ir convosco e convencê-lo com astúcia! Não duvido de que o conseguiria. Mas isso é impossível, não posso afastar-me nem sequer por um dia. Portanto vós deveis fazê-lo por mim. Falai-lhe com muita ternura e delicadeza, dando-lhe a conhecer pouco a pouco a notícia de que eu vivo e de que ele deve vir até mim. Não lhe digais bruscamente: “José está vivo.” Começai por perguntar-lhe: “Supondo que José não tivesse morrido, como se sentiria o nosso pai e senhor?” E assim ele se acostumará gradualmente à ideia. Depois não lhe digais abruptamente que deveis vir todos instalar-vos na terra dos deuses-múmias; dizei-lhe antes: nas cercanias de Gessen. Sereis capazes de fazer sem mim como vos digo, de uma forma sagaz e carinhosa ao mesmo tempo? Nos dias que se seguem falaremos a respeito disso e da maneira como se deverá proceder. Agora vos mostrarei à minha esposa, a donzela do Sol, e aos meus filhos Manassés e Efraim. E comeremos e beberemos os doze juntos e nos regozijaremos. E recordaremos os velhos tempos, embora esquecendo certos pormenores. Ah! ainda uma coisa: quando tomardes para junto de nosso pai, fazei-o sabedor de tudo o que vistes e não estejais medindo palavras na descrição da minha glória cá embaixo. Porque seu coração foi cruelmente ferido e deve ser curado mediante a música suave da magnificência de seu filho.
FARAÓ ESCREVE A JOSÉ
Seria lamentável que agora, depois de ter escutado todas estas coisas, o nosso público tivesse de dispersar-se ou virar o ouvido, pensando:
“Ora bem, está tudo acabado. A grande revelação foi feita, passamos pelo ponto culminante, agora não pode vir nada de melhor; só resta o final da narração e nós já sabemos como foi, e já não há sensações inesperadas.” Vede bem o que dizeis e o que fazeis. E melhor não debandardes. O autor desta história, com o que me refiro Àquele que fez todas as histórias, deu-lhe muitos desfechos e Ele sabe superar seus efeitos, um mediante o outro. Com Ele verifica-se sempre que o melhor está ainda por vir. Sempre nos reserva alguma coisa que esperar ansiosamente. Foi um lindo episódio aquele em que José soube que seu pai ainda vivia. Mas haverá alguma coisa mais comovedora do que aqueloutro em que o velho Jacó, cujo corpo e cérebro estavam entorpecidos pelos sofrimentos, abre lentamente seus sentidos à canção da primavera e da ressurreição e se apercebe para realizar a descida e abraçar seu filho? Os que ficarem para ouvi-lo poderão dizer aos demais quão comovedor foi, e estes lamentarão, todos os dias da sua vida, não terem estado presentes quando Jacó abençoou seus netos egípcios com suas mãos trocadas e quando o venerável ancião se defrontou com a sua última hora. Dirão que já o sabemos? Eis aqui uma ideia néscia. Todo mundo pode conhecer a história. O importante é havê-la presenciado. — Parece, entretanto, que a recomendação era desnecessária, pois ninguém arredou pé.
Então prossigamos. Quando José acabou de falar desse modo com os onze, saiu com eles do lugar onde se dera a conhecer, dirigindo-se para a donzela Aseneth, sua mulher, a fim de que eles lhes rendessem suas homenagens. E viram seus sobrinhos Manassés e Efraim com os juvenis cachos egípcios em seus cabelos. Em toda a casa houve muita animação e alegres risos, pois toda a criadagem tinha escutado junto às portas e José não necessitou de fazer nenhuma comunicação especial. Toda a gente sabia do ocorrido e gritavam uns para os outros que os irmãos do Provedor tinham chegado e os filhos de seu pai haviam encontrado o seu caminho até lá, vindo da terra de Zahi. Para todos aquilo foi um grande acontecimento, sobretudo porque era certo que ia haver distribuição de tortas e cerveja para comemorá-lo. Também os funcionários do escritório tinham ouvido e se encarregaram de espalhar a notícia por toda a cidade. O coração do ágil Neftali rejubilaria vendo-a correr, como fogo numa mata seca, através de toda Menfe, de maneira que dentro em breve cada um sabia igualmente da história inteira. Quase ao mesmo tempo todos tiveram a alegre noticia da chegada dos irmãos do Amigo Exclusivo de Faraó. Nas mas houve pulos de contentamento, e uma multidão se agrupou diante da casa de José, situada no melhor bairro de Menfe, prorrompendo em aclamações e pedindo para vê-lo rodeado de seus parentes asiáticos. Quando os doze se mostraram no terraço, os manifestantes viram realizados os seus desejos. Pena é que o povo de Menfe não soubesse jogar com os raios de luz, como hoje fazemos nós, para perpetuar o grupo num quadro. Deram-se, não obstante, por satisfeitos com suas próprias lentes naturais, pois nem sequer teriam concebido semelhante ideia, e não se ressentiam da falta de outras.
A sensacional notícia não ficou dentro dos muros da metrópole das tumbas, mas voou como uma pomba sobre a terra até chegar aos ouvidos de Faraó, o qual, com a sua corte, ficou grandemente encantado. Faraó, que renunciara ao desagradável nome de Amun, tomando outro que continha o do seu pai celeste, chamava-se agora Akhenaton. Alguns anos antes havia-se trasladado para mais perto da cidade do seu ministro e favorito. Deixara de residir em Tebas, a casa de Amun-Rá, transportando-se para o norte do Alto Egito e fixando-se num distrito chamado “Distrito da Lebre”. Aí, depois de detentosa procura, encontrara um lugar adequado para erigir uma nova cidade inteiramente dedicada à sua divindade predileta. Este local achava-se um pouco ao sul de Chmunu, casa de Thot, onde uma ilhota se erguia no meio da corrente, oferecendo o sítio ideal para a edificação de elegantes pavilhões de prazer. Os rochedos da margem oriental se prolongavam numa curva que deixava espaço para a ereção de templos, palácios e terraços, muito próprios para um meditador de Deus, acabrunhado por graves preocupações e que devia, em compensação, desfrutar momentos de deleite. O senhor do doce hálito que não necessitava mais conselho que seus próprios pensamentos e os daquele que habitava neles, daquele em cuja honra, e só em honra sua, se elevariam naquele aprazível lugar cânticos de louvor, tinha encontrado um sítio de sua inteira satisfação. Sua Majestade distribuiu suas formosas ordens a seus artistas e pedreiros, fazendo construir, com a máxima urgência, a cidade de seu Pai, a cidade do horizonte, Achet-Aton. Foi um duro golpe para Novet-Amun, para Tebas, a “de cem portas”, porque, com a partida da corte, ela corria o risco de baixar à categoria de uma cidade provinciana. Aquela iniciativa foi também uma enérgica advertência ao deus do império em Karnak, com cujo dominante sacerdócio o temo entusiasmo de Faraó por seu amado tudo-em-um havia estado em crescente conflito durante os anos da abundância.
A delicada constituição de Faraó não podia suportar aqueles repetidos choques com a força do belicoso deus nacional, equipado com todas as armas da tradição. Cada vez sofria mais com as contradições entre a índole pacífica da sua alma e a necessidade de combater o todo-poderoso numa batalha ofensiva pelo seu próprio e mais alto conceito de Deus. Fugir dessa necessidade era também a maneira de causar maior dano ao inimigo; por isso resolveu, por sua própria pessoa consagrada, sacudir de suas sandálias o pó de Vese, embora sua mãezinha, já para manter vigilância sobre Amun, já por lealdade à residência do saudoso rei Neb-ma-Rá, seu defunto marido, tivesse deliberado permanecer no seu velho palácio. Durante dois anos teve Echnaton de dominar sua impaciência por escapar da esfera de Amun, pois dois anos durou a construção da cidade, apesar do trabalho dos escravos recrutados com esse fim e implacavelmente submetidos debaixo de açoites. E ainda quando o rei se transportou para lá com grande pompa e cerimônia e oferendas de pão e cerveja, de touros de chifre e sem chifre, de gado miúdo, de aves e pássaros, de vinhos, incensos e toda a sorte de ervas aromáticas, não podia chamar-se ainda uma cidade, mas um acampamento improvisado, de um luxo só terminado pela metade, constando de um palácio para o monarca e para a grande consorte Nefernefruaton-Nefertiti e as princesas reais, onde podiam dormir, mas não viver adequadamente, porque por toda parte pintores e decoradores continuavam trabalhando. Havia também um templo erigido a Deus o Senhor, muito brilhante e alegre, perfumado com flores e adornado com rubros galhardetes tremulantes; tinham além disso sete pátios, esplêndidos pilões e magníficas colunatas, parques maravilhosos e esconderijos engenhosamente resguardados, lagos artificiais e árvores e arbustos transplantados ao deserto, da região onde medravam à fértil região do Nilo. Brancos desembarcadouros resplandeciam ao longo das margens e uma dúzia de moradas absolutamente novas tinham sido construídas para a corte real desejosa de render culto a Aton, bem como uma fileira de rochas para confortáveis sepulturas, convenientemente colocadas nas colinas adjacentes. No conjunto, estas estavam quase prontas para ser ocupadas.
Isto era no momento tudo quanto havia de Achet-Aton, mas esperava-se que a corte atrairia bem depressa para lá uma população crescente, enquanto iria prosseguindo com todo o zelo o aformoseamento da cidade, uma vez que Faraó já ali se achava no seu trono, servindo a seu Pai, que estava no céu, realizando festividades em sua honra e gerando filhas para aumentar os departamentos de suas mulheres. Já havia chegado a terceira, chamada Aunchsenpaaton.
José enviara um mensageiro especial para anunciar oficialmente ao deus a chegada de seus irmãos, dos quais estivera separado desde o começo de sua adolescência. Contudo, antes de o mensageiro chegar ao palácio, onde tudo cheirava a novo, a notícia tinha chegado lá de boca em boca e havia sido acaloradamente discutida por Faraó com sua rainha Nefertiti, com a irmã desta Nezemmut, com sua própria irmã Baketaton e com seus cortesãos e com os artistas. Imediatamente respondeu à carta de José com outra que assim rezava:
“Mandado ao administrador de tudo o que os céus outorgam, verdadeiro inspetor das operações, doador da sombra a el-rei, seu amigo exclusivo e seu tio. Hás de saber que Minha Majestade leu tua carta com sincera alegria. Faraó derramou abundantes lágrimas de regozijo com a notícia que de ti recebeu. Também a grande consorte Nefernefruaton e as doces princesas Baketaton e Nezemmut misturaram suas lágrimas às do amado filho de meu Pai do céu. Tudo o que me contas é extraordinariamente magnífico e o que me anuncias faz vibrar de alegria meu coração. Quanto ao que me escreves, que teus irmãos vieram ter contigo e que teu pai vive ainda, é uma notícia com a qual os céus se alegram e a Terra rejubila e os corações dos homens bons se sentem inundados de ventura, sendo que, de ouvi-la, até os corações dos maus sem dúvida se suavizam. Hás de saber igualmente que o formoso filho de Aton, Nefer-cheperu-Rá, senhor dos dois países, se acha, como resultado de tua missiva, de ânimo extraordinariamente gracioso, e que os desejos que manifestas na tua carta estavam satisfeitos de antemão, ainda antes de os expressares. E minha formosa vontade e outorgo meu gracioso consentimento para que todos os teus, por numerosos que sejam, venham para o Egito, onde tu és como eu mesmo, e para que lhes destines, conforme achares mais conveniente, um lugar onde possam estabelecer-se e que contenha riquezas para alimentá-los. Dize a teus irmãos: — Fazei isto, que assim o ordena Faraó, em cujo coração está o amor de seu pai Aton: carregai vossas bestas e tomai carros dos depósitos reais para vossos filhinhos e vossas mulheres e tomai vosso pai e vinde. E nada se vos dê de vossas propriedades, porque na terra do Egito sereis providos de tudo quanto precisardes. Faraó sabe que a vossa cultura não é muito elevada e que as vossas necessidades são simples de satisfizer. Voltai à vossa terra, tomai vosso pai e vossas famílias e vinde a mim para que pastoreeis perto de vosso irmão, o governador de toda a Terra, porque vos darei o que há de bom no Egito. — Eis aqui as instruções que Faraó, entre lágrimas, dá a teus irmãos. A não se interporem múltiplos e importantes negócios que me retêm em Achet-Aton, capital única dos dois países, e minha cidade real, eu subiria ao meu grande carro feito de eletro e voaria a Men-nefru-Mirá para ver-te no meio de teus irmãos e para que os fizesses comparecer em minha presença. Todavia, quando regressarem, deverás trazer alguns até mim. Não todos, porque isso seria fatigante demais para Faraó, mas um grupo escolhido, a fim de que eu possa interrogá-los, bem como teu velho pai, que trarás diante de mim para que eu possa mostrar-lhe favor com minhas palavras e para que ele possa viver com honra por ter falado com Faraó. Adeus!”
José recebeu esta carta, enviada por um mensageiro veloz, em sua casa em Menfe e mostrou-a aos onze que beijaram as pontas dos dedos. Os irmãos ficaram em sua casa um quarto de lua. Fazia vinte anos que o pai o julgava dilacerado, e um dia mais ou menos não importava, nem tampouco o momento exato em que devia saber que José estava vivo. Ali os criados de José os serviam, sua esposa, a filha do Sol, dirigia-lhes palavras de amizade e seus aristocráticos sobrinhos Manassés e Efraim lhes falavam na sua própria língua. Efraim, o menor, parecia-se mais com José e com Raquel do que Manassés, tendo este, mais acentuados, os traços egípcios de sua mãe. E por isso disse Judá:
— Logo vereis como Jacó favorecerá mais a Efraim e na sua boca a ordem não será Manassés e Efraim, mas Efraim e Manassés. — E aconselhou ao irmão que, antes da chegada de Jacó, cortasse os infantis cachos egípcios que cobriam as orelhas dos meninos, porque o velho podia tomar aquele uso como ofensa.
Ao findar a semana, arrumaram seus sacos e se dispuseram para a viagem. Uma caravana de mercadores preparava-se para partir do reino, saindo de Menfe, a balança dos países, com destino à terra dos mitanos e passando por Canaã, e os irmãos deviam unir-se a ela com os carros dos depósitos reais, carros de duas e de quatro rodas, que lhes foram dados juntamente com mulas e seus respectivos condutores. Se se acrescentarem os dez burros, carregados de toda a sorte de especialidades exuberantes do Egito, exemplares exclusivos e custosos de uma cultura elevada e de um gosto exigente, que José enviava a seu pai como presente, e as dez burras também destinadas a Jacó e carregadas de grãos, vinhos, conservas, carnes defumadas e unguentos, compreender-se-á que o séquito dos irmãos se tomara um séquito imponente. As suas posses pessoais se tinham acrescentado ainda os presentes de que seu irmão os cumulara. E sabido que deu a cada qual um traje de gala, mas a Benjamim, além de trezentas peças de prata, deu não menos de cinco trajes de gala, um para cada um dos cinco dias especiais do ano. Foi talvez por isso que lhes disse ao despedir-se: "Não brigueis pelo caminho.” Mas o que na realidade quis dizer-lhes com isso foi que não insistissem no passado, nem se exprobrassem mutuamente pelo que cada qual tinha feito por detrás das costas dos outros, pois jamais passou pela cabeça de José ou pela deles a ideia de que se deviam sentir enciumados por causa de Benjamim, por ter José obsequiado com tanta prodigalidade seu irmão menor. Eles agora eram como cordeiros: achavam tudo bem. Na época em que eram jovens e indisciplinados tinham-se rebelado diante da injustiça, porém agora a aceitavam de boa mente e nunca mais tinham intentado fazer qualquer objeção àquele “Favoreço a quem quero favorecer e mostro piedade a quem desejo mostrá-la.”
COMO HAVEREMOS DE DIZER-LHO?
O espírito detém-se prazenteiramente diante da maravilhosa simetria em que se desenvolve esta história, na qual cada peça se reflete em outra e cada cena tem sua continuação na seguinte. Assim como em outro tempo, sete dias depois que Jacó recebera o sinal da morte de José, os irmãos tinham voltado do vale de Dotan para chorar com o pai, dominados pelo temor de como iam encontrá-lo e de como poderiam conviver daí por diante com ele debaixo da suspeita, errônea em parte e em parte fundada, de que eles eram os assassinos do rapaz, voltavam novamente a Hebron, agora que alguns tinham entre seus cabelos negros algumas madeixas brancas, acabrunhados com a tarefa de como comunicar ao ancião a notícia não menos monstruosa de que José não morrera, senão que vivia rodeado de glória e opulência. Porque o que é pavoroso, pavoroso fica, e o que esmaga, esmaga, quer seja o seu conteúdo a vida ou a morte. Os irmãos temiam que Jacó desmaiasse ao ouvir a nova, tal como sucedera antes; mais ainda, desta vez podia literalmente “morrer de alegria”, ou seja, com o choque, ao escutá-la, porquanto em vinte anos envelhecera, de maneira que a vida de José poderia vir a ser a causa da sua morte e ele não chegaria a ver o vivo com seus olhos, nem o vivo a ele com os seus. Além disso, inevitavelmente se faria agora luz sobre a verdade de que eles não tinham assassinado o rapaz como Jacó acreditara pela metade durante todo aquele tempo e que, não obstante, o haviam matado pela metade e só o acaso impedira que José morresse de todo, graças à intervenção dos ismaelitas que o levaram para o Egito. Estes pensamentos contribuíam para confundir ainda mais seus sentimentos nos quais se misturavam a alegria e o receio. Contudo encontravam uma espécie de consolação no pensamento de que Jacó se sentiria impressionado ao ver como Deus os tinha livrado de cometer o crime por intermédio de seus mensageiros, os madianitas, e este favor que Deus havia demonstrado aos irmãos impediria o ancião de condená-los e lançar uma maldição contra eles.
Durante sua viagem de dezessete dias discutiram sobre todos estes pontos e, não obstante sua impaciência por chegar depressa ao seu destino, o tempo lhes pareceu breve para decidirem qual seria a forma menos perigosa de dizer a verdade a Jacó e como apareceriam diante de seus olhos uma vez que a tivessem dito.
— Meninos! — diziam uns aos outros, pois, desde que José lhes dissera: “Meninos, sou eu!”, usavam frequentemente esta expressão para confabular entre si, embora nunca a tivessem empregado antes. — Meninos, vereis como ele desmaiará quando lho dissermos, a não ser que o façamos com muito tato e cautela. Mas, bem ou mal que lho digamos, achais que ele acreditará em nós? O mais provável é que não nos queira acreditar, pois que em tantos anos a ideia da morte se incrustou firmemente na cabeça e no coração, e não é coisa fácil desalojá-la de lá ou trocá-la pela ideia da vida. O espirito tende a aferrar-se ao hábito, resistindo a qualquer troca. Nosso irmão José crê que a noticia causará uma grande alegria ao ancião, e assim há de ser certamente, uma alegria imensa. Esperamos, sem embargo, que não seja excessiva para suas forças. Saberá um homem apoderar-se diretamente de uma alegria quando a tristeza foi sua companheira durante anos intermináveis? E desejará ele realmente perceber que toda a sua vida transcorreu num engano e seus dias num erro? Sua aflição tinha sido até aqui a razão de ser de sua existência, agora já não há motivos para ela. Será estranho quando tivermos de desmentir aquilo de que o convencemos um dia mediante uma túnica tinta de sangue; teremos de destruir a ideia à qual ele se havia aferrado. E eis que nos vemos a sofrer mais por ter de destruí-la que por tê-la forjado antes. Certamente ele fechará seu espírito e não nos crerá, e bem é que assim seja, porquanto, se acreditasse tudo de repente, a notícia poderia aniquilá-lo. O problema consiste em como dizer-lho de forma que a alegria não seja brusca demais e que não desiludamos repentinamente sua amigada tristeza. O melhor seria não dizer-lhe nada, mas conduzi-lo simplesmente ao Egito e pô-lo diante de José, seu filho, de modo que ele pudesse vê-lo com seus olhos e todas as palavras se tomassem supérfluas. Mas, ainda depois de saber que José habita em Mizraim, não será coisa fácil levá-lo àquelas férteis planícies e pastagens. Será preciso, portanto, que o saiba de antemão, porque, a não ser assim, não irá. Todavia, a verdade não tem somente palavras, mas também sinais, tais como as dádivas do Exalçado e os carros que Faraó pôs a nossa disposição. Talvez o melhor seja mostrar-lhos antes de lhe dizer qualquer coisa e explicar-lhe os sinais depois. Pelos sinais ele há de ver quão magnânimo foi o Exalçado conosco e como somos um só coração e uma só alma com aquele que vendemos, e assim, quando chegar o momento da explicação, o velho não poderá altercar conosco muito tempo nem maldizer-nos, pois como pode ele amaldiçoar dez dos doze que formam Israel? Não o fará, porque isto seria um desafio aos planos de Deus, que enviou José para lá à nossa frente, para que nos encontre moradas no Egito. Por isso, não nos deixemos atemorizar, meninos! Quando soar a hora, ela mesma nos inspirará o que havemos de dizer. Primeiramente exibiremos diante dele os nossos presentes, o orgulho do Egito, e lhe perguntaremos: “De onde achas que provêm, Pai, e de quem? Adivinha. Pois bem, provém do grande guardador do mercado lá de baixo que tos envia. Quer isto dizer, portanto, que te ama grandemente. Deve amar-te quase tanto como um filho ama a seu pai, não é verdade?” E quando chegarmos à palavra “filho”, já teremos feito mais da metade do caminho, teremos passado o pior. Jogaremos então um instante com essa palavra e, finalmente, em vez de dizer: “O guardador do mercado te enviou tudo isto”, diremos: “Teu filho José to enviou, pois vive ainda e é o senhor de todo o Egito.”
Assim discorreram os onze e trocaram opiniões e conselhos debaixo de sua tenda noturna. Depois empreenderam, com demasiada pressa para suas apreensões, o caminho que já lhes era familiar: desde Menfe à fortaleza da fronteira, através do deserto, e daí à terra dos filisteus, a Gaza e ao porto de Cazati, onde se separaram da caravana de mercadores em cuja companhia tinham feito a viagem. Em seguida meteram-se por entre as colinas rumo a Hebron, mediante breves marchas diurnas e viajando principalmente de noite, porque reinava uma florida primavera quando chegaram e as noites eram belas e prateadas por uma Lua quase cheia. Fazia-se-lhes incômoda a curiosidade que por toda parte despertava seu séquito, aumentado pelos carros egípcios, as mulas e muleteiros e por uma récua de cerca de cinquenta burros. Por conseguinte, costumavam descansar de dia e viajar de noite, e assim se aproximaram de sua terra, dos terebintos do bosquezinho de Mambre, onde se erguia a tenda do pai e as choças da tribo.
No último dia, porém, empreenderam a jornada ao amanhecer, chegando aproximadamente às cinco da tarde perto da sua meta, conquanto esta permanecesse ainda oculta pelas colinas familiares quando ganharam o último morro. Tinham deixado o séquito a curta distância dali, e os onze, montando em seus burros, se adiantaram em silêncio, enquanto o coração parecia querer saltar-lhes do peito, pois, apesar de tudo quanto haviam combinado, nenhum tinha uma ideia clara acerca do modo de dar a notícia ao pai sem perturbá-lo demasiado. Agora que era chegado o momento de fazê-lo, todos os planos lhes pareciam maus, estúpidos e inadequados, em particular aquela tontice de dizer-lhe: Adivinha e “Quem pode ser?” Era evidente que isto era totalmente descabido. Em seu foro interno cada um desaprovava a ideia e no último minuto alguns procuraram discutir sobre alguma coisa diferente. Talvez o melhor seria mandar um deles na frente, a Neftali, o veloz mensageiro, por exemplo, para anunciar a Jacó que os outros se aproximavam com Benjamim e que eram portadores de uma grande, de uma incrível notícia, incrível ora no sentido de que não se podia acreditar nela, ora também no outro de que ia contra todos os hábitos do pensamento, a tal ponto que se relutava em aceitá-la e que, no entanto, era a verdade viva de Deus. Desse modo, pensaram alguns, o coração do pai estaria mais disposto e mais bem preparado, com o auxílio de um porta-voz, para receber a notícia antes de chegarem os demais. Os onze foram cavalgando a passo.
A NOTÍCIA
Era uma encosta áspera e pedregosa por onde os animais a custo abriam passagem, mas estava toda coberta de flores primaveris. Havia pedras de todo o tamanho, porém onde quer que aparecesse um pedaço de terra e entre as próprias pedras emergiam irresistivelmente as flores silvestres formando uma vasta alfombra de várias cores, branca, amarela, azul celeste, púrpura e rosa. Irrompiam em abundância flores e mais flores, como um brado de alegria e de beleza. A primavera as fizera brotar como por encanto e elas pompeavam agora a seu devido tempo. Mesmo na ausência das chuvas do inverno, conseguiam extrair umidade do orvalho matinal, ainda que fosse apenas para um fugaz esplendor que rapidamente se extinguia. Também os arbustos exibiam seu esplendor cor-de-rosa e branco. No alto do azul celeste apenas se vislumbravam tênues nuvenzinhas.
Sobre uma pedra, circundada de uma como espuma de florinhas, tal como a espuma das ondas orla as penedias, estava sentada uma figura que, vista de longe, lembrava também uma flor. Logo perceberam que era uma menina, sozinha debaixo do céu imenso, vestida com uma túnica vermelha e tendo no cabelo umas margaridas. Sobre um braço sustentava uma citara, enquanto seus dedos morenos e ágeis pulsavam as cordas. Era Sara, a filha de Aser, e seu pai foi o primeiro a reconhecê-la, exclamando com paternal orgulho:
— É a minha pequena Sara que está sentada na pedra e toca para si mesma alguma melodia acompanhando-se com a sua citara. A menina gosta de ficar só e de tocar música. Pertence à linhagem dos assobiadores e rabequistas. Sabe Deus de onde herdou esse gosto. Gosta de compor salmodias e salmos e sabe tocar as cordas até fazê-las vibrar, juntando a elas sua voz em hinos de louvor, com uma sonoridade mais poderosa e clara do que era possível supor num corpo tão frágil. Algum dia será famosa em Israel. Olhai. Já nos viu, levantou os braços e deita a correr para nós. Então, Sara! Estamos aqui, teu pai, Aser, e teus tios.
Já a donzelinha estava junto deles; tinha corrido com pés descalços por entre as flores e pedras, fazendo soar as argolas de prata de seus pulsos e tornozelos e agitar-se a grinalda em sua cabeça. Rindo de prazer e ofegante, a pequena balbuciou palavras de saudação, mas mesmo os sons anelantes que emitia tinham qualquer coisa de sonoro, e custava-se crer que provinham de uma criatura tão frágil.
Sem ser uma criança nem tampouco ainda uma donzela, Sara era propriamente uma menina. Teria no máximo doze anos. Dizia-se que a mulher de Aser era bisneta de Ismael. Teria, pois, Sara herdado acaso, através da mãe, alguma coisa do selvagem e formoso meio-irmão de Isaac, alguma coisa que a impelia a cantar, ou —já que as características dos homens sofrem as mais estranhas transformações na sua descendência — ter-se-iam os olhos e os beiços úmidos e sensuais de seu pai Aser, sua voraz afeição pelas sensações e sentimentos, convertido numa qualidade musical na pequena Sara? Talvez seja demasiado atrevido e rebuscado relacionar desse modo o amor da menina à arte do canto com a gula do pai. Não obstante, deve existir alguma explicação (e por que não esta?) do estranho dom da pequena Sara.
Olhando para ela do alto de suas cavalgaduras, os onze a saudaram e acariciaram, enquanto seus olhos tomavam uma expressão pensativa. Alguns se apearam e rodearam Sara, com as mãos às costas, fazendo sinais de aprovação com as cabeças e dizendo: “Com que então, pequena dos lábios musicais, estavas sentada ali tocando tua citara e correste ao nosso encontro para seres a primeira em cumprimentar-nos?” Finalmente, Dan, a quem chamavam serpente e víbora, disse: — Escutai, meninos, vejo em vossos olhos que todos tendes o mesmo pensamento. A Aser competiria dizer o que vos vou dizer; mas, uma vez que ao pai da menina não ocorre fazê-lo, o farei eu, que sempre demonstrei ser bom juiz. Minha astúcia inata me diz que não foi somente por um acaso que a pequena, que esta Sara inventadora de canções veio ao nosso encontro antes de mais ninguém. Deus enviou-a como um sinal, para mostrar-nos o que devemos fazer. Bem sabeis que tudo o que tínhamos combinado acerca de como dizê-lo ao pai, de como insinuar-lhe a notícia que trazemos, sem assustá-lo, é absurdo. Sara lhe dirá à sua própria maneira, de sorte que a verdade lhe será expressa por intermédio de uma canção, e esta foi sempre a melhor maneira de exprimi-la, quer se trate de uma verdade doce ou amarga, ou das duas coisas ao mesmo tempo. Sara nos precederá e cantará para ele, e, ainda que ele não queira acreditar, teremos suavizado ao menos o terreno de sua alma e o encontraremos preparado para a semente da verdade quando nós a secundarmos com as palavras e os sinais e ele se vir obrigado a reconhecer, como nós outros nos vimos, que a canção e a verdade são uma só, e que o guardador do mercado de Faraó e nosso irmão José são a mesma pessoa. Eis aí; enunciei a verdade; plantei em terreno sólido o que estava suspenso no ar diante de vossos olhos mal vistes a cabecinha sonhadora de Sara.
Sim, responderam, Dan tinha julgado bem. Tal como ele dissera, devia-se fazer: via-se naquilo a mão de Deus, o que para eles era um grande alívio. Em seguida instruíram a menina, procurando gravar na sua mente a verdade. Não era coisa fácil, porque todos falavam ao mesmo tempo e nenhum queria deixar o outro falar, enquanto Sara os olhava com seus olhos penetrantes, visivelmente divertida com aqueles rostos agitados e aquelas mãos gesticuladoras.
— Sara — disseram-lhe —, é assim e assim o caso. Ainda que não o creias, canta e depois nós chegaremos e o provaremos. Mas seria melhor se tu o cresses, pois assim cantarás melhor, e dizemos-te que é verdade, por inverossímil que pareça. Tu não podes deixar de acreditar em teu pai e em todos os teus tios juntos, não é mesmo? Tu não conheceste teu tio Jeosif, que se perdeu e desapareceu, o filho da esposa verdadeira, o filho de Raquel, a qual foi chamada a donzela estelar, sendo que a ele chamavam Dumuzi. Pois bem, ele ficou perdido para teu avô muito antes de tu nasceres, o mundo o engoliu, desaparecendo ele para nós, e o coração de Jacó deu-o por morto durante todos estes anos. Mas sabe-se agora, ainda que seja difícil crê-lo, que a verdade é muito diferente...
“Oh maravilha estranha! A verdade é bem outra,
Pois tudo sucedeu de modo mui diverso”,
começou Sara, prosseguindo em tom seguro, cantando e rindo com voz tão sonora e musical que logo se sobrepôs às vozes ásperas dos tios.
— Cala-te, pequeno prodígio! — exclamaram. — Não deves começar a cantar enquanto não saibas o que vais dizer. Escuta e aprende antes de taramelar: teu tio José ressuscitou, ou por outra, nunca esteve morto. Está vivo e não somente vivo, senão que vive deste modo e deste. Vive em Mizraim e é lá tal e tal pessoa. Foi tudo um equívoco, compreendes? A túnica ensanguentada foi um equívoco. Deus fez que tudo tivesse um belo desfecho, contra toda a nossa expectativa. Entendeste isto? Nós estivemos com ele no Egito e ele se nos deu a conhecer, de modo que não existe sombra de dúvida. “Eu sou o vosso irmão”, eis o que ele nos disse. Disse-nos mais que deseja que todos nós desçamos até lá, inclusive tu, pequena Sara. Apanhaste bem tudo isto, de modo que possas traduzi-lo numa canção? Então irás cantá-lo a Jacó. Nossa Sara é uma donzelinha muito hábil e saberá fazê-lo bem. Toma a tua citara e vai na nossa frente, cantando em voz alta e sonora que José vive. Vai por entre as colinas diretamente ao acampamento de Israel, sem olhar para a esquerda nem para a direita, mas cantando todo o tempo. Se alguém te sair ao encontro e te perguntar que queres dizer e que é o que tocas e cantas, não lhe responderás, mas continuarás teu caminho cantando e proclamando: “Ele vive!” E irás onde está teu avó Jacó, sentar-te-ás a seus pés e lhe cantarás docemente, na forma que tu sabes fazê-lo: “José não está morto, mas vive!” Ele te perguntará então o que queres dizer e que é o que temerariamente dás a entender no teu canto. Mas também a ele não responderás; continuarás fazendo vibrar tua citara e cantando. Depois nós chegaremos e lhe explicaremos tudo nas devidas palavras. Serás nosso hábil pássaro cantor e farás o que te indicamos?
— Com todo o gosto o farei — respondeu Sara com sua voz sonora. — Nunca tive palavras como estas para fazer vibrar minhas cordas, e eis aqui minha oportunidade de mostrar o que elas podem fazer. Muitos cantam, na tribo e na cidade, mas agora eu tenho um tema muito melhor e vencerei a todos com o meu canto.
Dizendo isto, apanhou seu instrumento da pedra na qual estivera sentada e, sustentando-o com um braço, deixou correr os finos dedos morenos sobre as cordas, colocando aqui o polegar e ali os outros quatro dedos. Depois pôs-se a andar com passo firme por entre as flores, estugando-o ou retardando-o, conforme o ritmo da sua canção:
“Oh! Deixai que minha alma entoe uma canção,
Uma nova canção que meu peito desfere
Nas oito cordas flébeis do meu alaúde.
Deixai que o verso exprima o que me vai no peito,
E coisa mais preciosa e fina que ouro e prata:
A mensagem vernal de que sou portadora
E mais doce que o mel.
Escutem todos esta melodia,
Prestem ouvidos ao que nela digo,
Coube-me em sorte a dita de contá-lo,
A escolha recaiu nesta criatura.
Jamais sonhei fazer vibrar minha harpa
com os acordes estranhos de um tal tema.
As cordas já dedilho para dar
Ao caro avô velhinho a boa nova.
A harmonia que as notas espalham
Aligeiram os horrores do mundo,
E o sentido profundo que encerram
Sobe até as alturas silentes.
Cada som tem alcance, tem senso,
Mas a loa e a salmódia alternadas
Fazem jus a maiores encômios.”
Assim cantava a menina enquanto se dirigia através das pastagem em direção aos morros e ao espaço aberto existente entre eles, tocando suas cordas, arrancando-lhes vibrações sonoras:
“A música se impõe um fardo digno,
Som e palavra lutam à porfia,
Rivalizando em mútua gentileza
Para dizer que teu filho está vivo!
Eis a nova que ouvi. Homens vindos do Egito
A esta menina transmitiram assombrada
A grande novidade.
De meu amado pai e de meus nobres tios
As palavras ouvi, assunto deste cântico,
Que celebra o varão que no Egito encontraram.
Escuta, amado avô, conquanto não a entendas,
A novidade incrível que logo hás de crer.
Que é como um belo sonho e, entanto, é bem real.
Custa crer tal maravilha Que num só se juntem dois,
Que o belo seja a verdade E a poesia seja a vida!
Aquilo que tua alma anseia Tens afina1 alcançado;
Crê no que diz meu refrão,
E belo, é doce, é real:
O teu rapaz está vivo!
Mas bom é que só aches isso belo
E não creias por ora que é verdade,
Pois a notícia é tão inesperada
Que pode ser funesta a ti e a nós.
Inda lembras da túnica sangrenta
E do efeito que em ti a mentira causou:
Pesada escuridão cobriu tua alma,
Em coluna de sal te transformaste.
Ah, que dores, que angústias tu curtiste!
Pensaste não ver mais o filho amado,
Ele jazia morto no teu peito
E agora ali ressurge de repente.”
Ao chegar a este ponto, um homem tentou interrogá-la. Era um pastor que cobrira a cabeça com um chapéu para proteger-se do sol e que, vendo-a aproximar-se do lado de um morro, escutou intrigado as palavras de sua canção. Acercando-se dela, caminhou ao seu lado e perguntou-lhe:
— Que é isso que cantas, menina? Tua canção é, na verdade, estranha. Tenho-te ouvido muitas vezes entoar salmos e hinos de louvor e sei que sabes arrancar notas a tuas cordas, mas nunca havia escutado nada tão misterioso como isto. E que ritmo é esse a que acomodas teu passo? Diriges-te a Jacó, o amo, e tua canção tem que ver com ele? Foi o que me pareceu. Mas a quem aludes quando falas do formoso e da verdade, e que significa o teu estribilho, o rapaz está vivo?
Sara continuou caminhando sem olhar para ele; sacudindo a cabeça, limitou-se a sorrir. Por um instante, tirou sua mão das cordas para passar um dedo sobre seus lábios e depois continuou:
“Sara, filha de Aser, canta o que te disseram
Os onze que do Egito hão regressado alfim.
Canta como de Deus as bênçãos compassivas
Os guiaram ao varão que lá é quem governa.
Este homem é José, que davam como morto,
Meu tio, irmão de Aser, mais formoso que nunca.
Escuta a história, ancião, do que é Vice-Faraó.
O nome que lhe dão é de senhor do orbe,
De grande servidor de todo o Estado egípcio.
Ressoa seu louvor em países remotos,
Povos estranhos vão prestar-lhe seu tributo,
Seu poderio imenso abarca longes terras,
Com os recursos que tem alimenta nações,
De mil celeiros pão extrai com que sacia
A fome, a negra fome que devasta o mundo.
Foi sábio e previsor, soube poupar, guardar,
Ouvem-se bocas mil abençoar-lhe o nome.
Há em suas vestes o odor da mirra, do aloé;
Palácios de marfim são sua moradia,
Deles agora surge como um noivo esbelto.
Do teu cordeiro, ancião, contempla o resplendor!”
O pastor continuava junto de Sara, escutando com assombro crescente as palavras da sua canção. Vendo outras pessoas a distância, fez sinal a todos, homens e mulheres, para que também ouvissem, e daí a pouco viu-se Sara convertida no centro de um pequeno grupo de homens, mulheres e crianças, que crescia à medida que se aproximavam do acampamento. As crianças dançavam ao compasso do ritmo, enquanto os adultos ajustavam por ele seu passo e todos tinham o rosto virado para Sara, que prosseguiu:
“Como o julgaste morto e espedaçado,
Com lágrimas molhaste o pão diário,
De cinzas esparziste teu cabelo
E o choraste vinte anos sem consolo.
Aprende agora, ancião, como o Senhor
Sabe também curar as chagas que abre.
Sabe obrar maravilhas nosso Deus
Pra promover o bem das criaturas.
Misteriosos às vezes são seus fins,
Nem sempre percebemos seu alcance:
Como lhe pareceu, assim agiu
Contigo, que és seu servidor e amigo;
De ti troçou, a ti enganou,
Mas agora a criação toda se alegra,
Com a troça divinal se rejubila,
Exultam de prazer Tabor e Hermon.
Ele te arrebatou o predileto
E agora o restitui à tua guarda.
Pobre velho, se a dor te confrangeu,
Alegra-te, que aí tens o que perderas,
Embora um tanto gordo, sempre belo.
Tu ainda não conheces o seu rosto,
Adivinhar não logras o seu nome,
Farás tua saudação balbuciando,
Sem saber quem cairá aos pés de quem.
São estes os desígnios com que Deus
Quis provar meu avô na sua idade.”
Chegando aqui, Sara, cujo séquito crescera sempre, estava já muito próxima do seu lar debaixo dos terebintos de Mambre. Viu Jacó, o homem da bênção, majestosamente sentado sobre sua esteira, diante dos cortinados da sua morada. Erguendo a citara, susteve-a mais alto e mais firmemente no braço. Até aquele momento, gracejando, tinha experimentado em suas cordas acordes e dissonâncias outras vezes experimentados. Mas agora arrancou às cordas ressonantes uma arrebatadora harmonia, e cantou com voz cheia:
“Ó palavra de rara beleza
A que a minha canção perpetua
E que diz: Teu rapaz está vivo!
Deve haver uma santa porfia
Entre a música de ouro da citara
E a alegria que inunda o meu peito.
Regozija-te e canta, ó minha alma,
Pois a tumba entregou seu tesouro,
O que foi pranteado sem fim
E por quem a Terra clamou,
O que foi atraído ao caixão,
O que a fera cruel devorou.
Desolada ficou toda a Terra
Quando dela o formoso partiu,
Mas um brado soou: Ele vive.
Pai querido, não sejas incréu.
Parece um deus no porte majestoso,
Aves canoras giram-lhe ao redor,
E, vencendo os espaços florescentes,
Ele te cumprimenta com um sorriso.
Na saudação que a ti ele dirige
Não se vislumbra angústia ou dor de morte
Em seus lábios, na face, em sua testa
O Eterno derramou bênçãos a flux.
Podes ler-lho nos traços risonhos:
Não foi mais que um gracejo celeste,
Bem que, pois, num abraço tardio,
Contra o peito paterno o conchega.”
Jacó havia muito que vira aproximar-se daquele modo sua neta, a pequena de lábios musicais, e ouvira encantado a sua voz. Muitas vezes aplaudira-a benevolamente, como se fosse o espectador num teatro. Finalmente a pequena chegou até junto dele e sentou-se sobre a esteira a seus pés, sem outro cumprimento a não ser a sua canção, enquanto os que a tinham seguido permaneciam a certa distância. Contudo, à medida que escutava, o ancião foi deixando cair lentamente suas mãos, que juntara para aplaudir, e sacudiu com um movimento de dúvida sua cabeça, que antes havia inclinado em sinal de complacência. Quando ela concluiu o último verso, disse-lhe:
— Belíssimo e encantador, minha netinha. E uma delicada lembrança vires, minha pequena Sara, dar um pouco de prazer a este solitário ancião. Vês quão bem conheço o teu nome, o que não se dá com todos os meus netos, pois são muitos. Mas tu te distingues dentre eles pelo teu dom de cantar, que faz de ti uma pessoa à parte, de modo que a gente se recorda de teu nome. Todavia, devo dizer-te uma coisa, minha talentosa pequena: se bem tenha escutado com verdadeiro prazer a música e os versos, não aprovo de todo o sentido. A poesia, minha querida, é sempre uma coisa tentadora, sedutora e perigosa. A licença poética e a licenciosidade estão muito próximas, e as canções costumam unir facilmente todas as coisas de uma forma equívoca; a graça e o encanto são propensos a degenerar em dano se não são refreados pelo temor a Deus. E belo o jogo do pensamento, mas só o espírito é santo. A poesia é um jogo do coração e da mente e eu a aplaudo de bom grado sempre que não perca de vista o espírito e saiba conservar-se no temor a Deus. Ora bem, que dizias na tua xácara e nos teus gorjeios, e que tenho eu que ver com um homem que é como um deus, que avança pelos campos enquanto os pássaros canoros giram em torno de sua cabeça e que ri do seu próprio gracejo celeste?
Ele me parece um desses deuses pagãos que há por aí e que me são bastante suspeitos. A gente rústica chama-lhe “Senhor” e perturba os conselhos dos filhos de Abraão com suas sandices. Por certo que também nós falamos do Senhor, mas o nosso significado é totalmente distinto. Nunca será excessiva a preocupação que me causa a alma de Israel, nem jamais pregarei suficientemente debaixo da árvore da sabedoria que esse “Senhor” não é o Senhor, porquanto o nosso povo está sempre a ponto de confundir ambos e cair na idolatria. Deus é uma tarefa alta e difícil; “os deuses”, pelo contrário, são um pecado agradável. Posso por conseguinte, querida menina, aplaudir vendo-te desperdiçar o dom que possuis de compor formosos salmos a serviço dos costumes dissolutos do país?
Sara se limitou a sacudir a cabeça com um sorriso, tornou a pulsar suas cordas e cantou:
“Pra quem podia ser meu canto, avô querido,
Senão pra José, o belo, aquele que é meu tio?
Escuta bem, ancião, é teu filho querido,
Mais alto que ele, só o monarca do Egito.
Se por ora, vovô, não podes entender,
Depressa entenderás, pois que é fato evidente.
Ó palavra de rara beleza
A que a minha canção perpetua
E que diz: Teu rapaz está vivo!”
— Criança! — gemeu Jacó grandemente comovido. — É muito belo e agradável que venhas cantar-me sobre meu filho José, a quem nunca conheceste, e que dediques teu dom a procurar distrair-me. Contudo, o teu canto é enigmático; o verso está bom, mas não tem razão de ser e portanto não tem nem tom nem som e não posso deixá-lo passar por alto, pois como podes tu cantar “teu rapaz está vivo”? Tais palavras não me podem proporcionar alegria, são floreios embusteiros, pois José morreu há muito tempo. Foi dilacerado; foi dilacerado e morto.
A isto Sara respondeu fazendo vibrar suas cordas:
“Regozija-te e canta, ó minha alma,
Do alaúde nas cordas vibrantes,
Pois a tumba entregou seu tesouro,
Coração, dize enfim: ressurgiu.
Desolada ficou toda a Terra
Quando dela o formoso partiu,
Mas um brado soou: ele vive,
Ai querido, não sejas incréu.
De mil celeiros pão extrai com que sacia
A fome, a negra fome que dizima o mundo.
Previu como Noé, foi sábio, foi poupado.
Ouvem-se bocas mil abençoar-lhe o nome.
Há em suas vestes o odor da mirra, do aloé;
Palácios de marfim são sua moradia,
Deles agora surge como um noivo esbelto.
Do teu cordeiro, ancião, contempla o resplendor!”
— Sara, minha neta, menina temerária, que hei de pensar do teu ousado canto? — disse Jacó com modo imponente. — Tenho aguentado muito como licença poética, conquanto me pareça pouco respeitoso chamares-me “ancião”. Mas a licença poética não é a única do teu canto; ele encerra também um chorrilho de conceitos desrespeitosos e falsos. Acreditas lisonjear-me com eles, mas o prazer que se funda na falsidade não é prazer verdadeiro nem pode ser de proveito à alma. Deverá a poesia prestar-se a isso e é esse o seu domínio? Porventura não estás profanando o dom que Deus te concedeu empregando-o em coisas que não têm relação com a realidade? Acho que deve existir alguma razão aliada à beleza, do contrário, ela só serve de mofa para o coração.
“Custa crer (continuou Sara a cantar) tal maravilha
Que num só se juntem dois,
Que o belo seja a verdade
E a poesia seja a vida!
Aquilo que tua alma anseia
Tens afinal alcançado;
Crê no que diz meu refrão,
É belo, é doce, é real:
O teu rapaz está vivo!”
— Criança! — exclamou Jacó com voz trêmula que o fazia sacudir a cabeça. — Criança querida...
Mas a voz dela subiu alegremente, como se fosse sustentada pela música impetuosa e vibrante das cordas:
“Aprende agora, ancião, como o Senhor
Sabe também curar as chagas que abre.
Sabe obrar maravilhas nosso Deus
Pra promover o bem das criaturas.
Ele te arrebatou o predileto
E agora o restituí à tua guarda.
Pobre velho, se a dor te confrangeu,
Alegra-te, que ai tens o que perderas,
Embora um tanto gordo, sempre belo.
São estes os desígnios com que Deus
Quis provar meu avô na sua idade.”
Voltando a cabeça para que ela não visse os cansados olhos castanhos cheios de lágrimas, Jacó estendeu uma mão como para detê-la. “Criança!”, repetiu, mas nada mais pôde dizer. Não prestou atenção ao súbito alvoroço produzido entre as tendas, nem tampouco à alegre comunicação que lhe traziam naquele momento, pois o grupo que tinha chegado até ali com Sara aumentara com outros que se aproximavam trazendo a grata nova. Servos e outros membros da tribo se acercaram de Jacó vindo de todos os lados, e dois deles se dirigiram ao patriarca nestes termos:
— Israel, os onze regressaram do Egito. Teus filhos chegaram com homens e carros e muitos burros mais do que levaram ao partir.
Não tinham acabado de falar quando os irmãos fizeram sua aparição. Apeando-se com rapidez, avançaram com Benjamim ao centro. Todos o empurravam, querendo cada qual ser o primeiro a apresentá-lo ao pai.
— Saúde e paz ao nosso pai e querido senhor! — exclamaram. — Aqui está Benjamim. Trouxemos-to são e salvo, ainda que em certo momento esteve em perigo. Mas agora poderás tê-lo de novo sob o teu domínio. E aqui está Simeão, o teu herói. Trouxemos também grande quantidade de alimentos e ricos presentes do distribuidor do pão. Estamos todos bem e voltamos felizes, ainda que esta palavra não seja suficiente para exprimir nossa condição.
— Filhos! — exclamou Jacó, pondo-se de pé. — Filhos! Sede bem-vindos!
E, num gesto possessivo, pôs a mão sobre o braço de Benjamim, mas com um ar alheado e uma expressão de perplexidade em seus olhos.
— Então estais aqui novamente — disse ele —, voltastes sãos e salvos à vossa casa depois da perigosa viagem! Noutras circunstâncias, este seria um grande momento que havia de encher a minha alma se ela não estivesse possuída de outras emoções. Sim, encontrais-me grandemente comovido, porque esta donzelinha aqui — tua filha, Aser — veio sentar-se junto de mim e tocar citara, cantando com grande doçura e dizendo ao mesmo tempo coisas tão absurdas a respeito de meu filho José, que não sei como defender-me dela. Estou tentado a dar-vos as boas-vindas unicamente porque espero me protejais dessa criatura e da linguagem enganadora que sua música possui, pois sei que não permitireis se zombe das minhas cãs.
— Jamais o consentiremos, enquanto estiver em nosso poder impedi-lo — respondeu Judá. — Mas, pai, na opinião de todos nós, e trata-se de uma opinião bem fundada, farias bem em considerar — ainda que a princípio pareça absurdo — se não existe alguma verdade no seu canto.
— Alguma verdade! — repetiu o ancião, empertigando-se. — Ousais vir a mim com tão cobarde conselho e falar a Israel de meias medidas e meias verdades! Onde estaríamos nós e onde estaria Deus se alguma vez tivéssemos tolerado as coisas pela metade? Porque a verdade é una e indivisível. Três vezes esta criança me cantou: “O rapaz está vivo!” Não pode haver nada de verdade nas suas palavras, a não ser que elas sejam a própria verdade. Que é, pois, o que ela quis dizer?
— A verdade! — disseram os onze em coro, levantando as mãos para o céu, e a assombrada concorrência que se agrupara acompanhando-os repetiu também em coro jubiloso:
— A verdade!
Todos, homens, mulheres e crianças repetiram triunfalmente: — Ela cantou a verdade!
— Paizinho — disse Benjamim abraçando Jacó —, deves crer no que ouviste porque nós também tivemos de crer. O homem de lá de baixo que exigiu minha presença e que insistia em perguntar: “Vive ainda vosso pai?” é José. José e ele são uma só pessoa. O que teve como mãe a mesma mãe que eu nunca havia morrido. Um grupo de viandantes o arrancou das garras da fera conduzindo-o ao Egito, onde ele floresceu como junto de uma fonte, chegando a ser o primeiro entre os filhos daquela terra. Os filhos dos estrangeiros os adulam, porque, se não fosse ele, desfaleceriam e morreriam. Queres uma prova desse milagre? Olha o nosso séquito. Vinte asnos te enviou ele, carregados de alimentos e riquezas do Egito, e os carros de Faraó para conduzir-nos todos novamente a ele. Porque, desde o começo, ele dispôs que irias ter com ele. Quer que nos alimentemos da fartura daquela terra, não longe dele, na terra de Gessen, que não é inteiramente egípcia.
Jacó havia conservado uma compostura quase severa.
— Deus há de dispor! — respondeu com voz firme. — Somente dele Israel recebe instruções e não dos grandes desta terra. Meu Damu, meu filhinho! — exclamou. E, levando as mãos ao peito, ergueu a fronte para o céu, sacudindo lentamente sua velha cabeça. Depois deixou-a pender de novo.
— Filhos — prosseguiu —, esta menina que agora abençoo e que não provará a morte, mas viverá no reino dos Céus se Deus há de ouvir-me, me cantou que o Senhor me restituía o primogênito de Raquel, sempre formoso, conquanto um tanto gordo. Isto significa provavelmente que com os anos e com as carnes do Egito se tornou obeso.
— Não, querido pai, não está gordo, não muito — disse Judá, tranquilizando-o. — Só dentro dos limites da dignidade. Deves levar em conta que não to restitui a morte, mas a vida. A morte to restituiria tal como era, a ser isso possível; mas, uma vez que deverás recebê-lo das mãos da vida, não esperes ver nele o cabritinho de outros tempos, mas um verdadeiro varão. E deves dispor-te para achá-lo também um pouco estranho e um tanto mundano em seus hábitos e vestindo uma túnica cheia de pregas como as neves que cobrem o Hermon.
— Irei e o verei antes de morrer — disse Jacó. — Se ele não tivesse vivido, não estaria vivo. Bendito seja o nome do Senhor!
— Bendito seja! — repetiram todos, precipitando-se para felicitá-lo e aos irmãos e a beijar a fímbria da veste de Jacó, que não baixou os olhos para eles, mas os conservou levantados para o céu, enquanto sacudia a cabeça. Então Sara, a menina que tinha os lábios feitos para cantar, sentou-se na esteira e cantou:
“Podes ler-lho nos traços risonhos:
Não foi mais que um gracejo celeste;
Bem que, pois, num abraço tardio,
Contra o peito paterno o conchega.”
7
O PERDIDO É ACHADO
IREI E O VEREI
Assim a vaca rebelde ouviu a voz do seu bezerro e o astuto lavrador levara ao campo que cumpria arar, para que também ela se encaminhasse ali. E a vaca dobrou a cerviz ao jugo e obedeceu. Foi-lhe bastante duro fazê-lo, pois lhe desagradava o campo que ela considerava como terreno de morte. A resolução deliberada e manifesta de Jacó não foi para ele mais fácil de tomar que para a vaca a submissão; por isso sentiu-se satisfeito de ao menos ter tempo para ponderar nela, porquanto a execução do seu propósito, que implicava a separação de tudo aquilo que para ele constituía o enraizamento do hábito, e a transferência da tribo e de tudo quanto lhe pertencia era tarefa que demandava tempo, e isto lhe proporcionava uma trégua para amadurecer sua decisão. Os Bene Israel não eram pessoas que fossem tomar ao pé da letra a palavra de Faraó, que lhes mandava dizer que abandonassem suas propriedades, na certeza de que seriam abastecidos de tudo na terra de Gessen. “Abandonar” significava apenas “não levar tudo”, deixar atrás certos utensílios de casa, bem como o gado miúdo. Por outro lado, essa garantia não significava por certo que deviam viajar sem levar nada, deixando tudo à disposição do primeiro que chegasse. Venderam, pois, grande parte de seus bens, sem pressa e só depois de muito regatear, e Jacó os deixou agir como quisessem, o que prova que mantinha sua decisão em suas linhas principais, embora a maneira como costumava aludir a ela deixasse margem para diferentes explicações.
“Irei e o verei”, costumava dizer, o que podia significar: “Visitá-lo-ei e verei seu rosto antes de morrer e depois voltarei.” Todavia, era claro para todos, inclusive para o próprio Jacó, que não podia ser este o verdadeiro significado de suas palavras. Se se tratasse de uma simples visita para contemplar o rosto do todo-poderoso José, a este é que competiria visitar seu pai a fim de lhe poupar os enormes incômodos de uma viagem a Mizraim. Por outro lado, tal pensamento se opunha à ideia da reunião no Egito, e Jacó compreendia perfeitamente que era esta que as estrelas tinham decidido em seu curso. José não fora separado e arrancado do seu lado nem o semblante de Jacó se intumescera com o seu pranto só para que agora ambos se visitassem mutuamente. Não, o propósito mais alto de tudo o que ocorrera era trazer Israel para o lado de José, e Jacó era bastante versado no conhecimento de Deus para ignorar que o rapto do formoso e sua exaltação lá embaixo e a fome persistente que arrastara os irmãos ao Egito eram disposições de um plano vastíssimo, e que ignorá-lo teria sido uma estupidez crassa.
Mais de uma pessoa poderia sentir-se tentada a achar Jacó excessivamente arrogante e vaidoso por ver uma calamidade como a da prolongada seca, que atingia todos os povos e causava fundamentais transformações econômicas, meramente à luz de um plano destinado ao progresso da sua própria história tribal. Evidentemente Jacó julgava que, quando ele ou sua raça estavam em causa, o resto do mundo devia aceitar os fatos de bom ou de mau grado. Mas arrogância e egoísmo são apenas denominações negativas para designar uma atitude altamente positiva e frutífera a que poderíamos dar o nome mais compreensivo de piedade. Provavelmente não existem virtudes que não possam ser chamadas com nomes depreciativos e nas quais não haja contradições internas, tais como, no presente caso, a humildade e a arrogância. A piedade é a subjetivação do mundo exterior, sua concentração no eu e em sua salvação; sem a convicção, exagerada ao ponto de tomar-se chocante, da especial, da exclusiva preocupação de Deus com esse eu, sem a sua fixação no próprio centro de todas as coisas, não há piedade. Piedade é, em resumo, o nome que damos a essa grande virtude. A ela opõe-se o desprezo do próprio eu e sua relegação à periferia sem importância, da qual nada de bom pode vir. Aquele que a si próprio não toma a sério bem depressa se vê perdido; pelo contrário, aquele que pensa de si mesmo como pensou Abraão quando concluiu que só ele e o homem nele existente podiam servir ao Altíssimo assume por certo uma atitude presunçosa, mas essa presunção pode transformar-se numa bênção para muitos, porquanto nesse ponto se vê manifesta a conexão que existe entre a dignidade do eu e a dignidade da humanidade. A pretensão do eu humano ao centro de importância foi a condição prévia da descoberta de Deus; e só com a perdição completa de uma humanidade que não toma a si própria a sério, é que ambas as descobertas podem ser novamente frustradas.
Mas aqui devemos prosseguir, porquanto subjetivação não significa restrição, nem estimação própria significa desestimação, isolamento ou insensível despreocupação do geral, do exterior e do suprapessoal, em suma, de tudo que se estende para lá do eu. Pelo contrário, em tudo isto ele se reconhece solenemente a si mesmo. Em outras palavras, se a piedade consiste em estar penetrado da importância do eu, então a solenidade é a extensão e a assimilação do eu no eterno do ser que nele retoma e em que ele se reconhece a si mesmo. Isto equivale a uma perda de unidade e de caráter individual, que, no entanto, não faz violência à sua própria dignidade, a que até acrescenta o extremo da consagração.
A esta luz podemos, pois, considerar a atitude de Jacó na época da partida, que foi tão solene como é de supor. Jacó estava a ponto de pôr literalmente em prática aquilo que sonhara no auge da sua aflição e de que falara febrilmente ao ouvido de Eliézer: ia baixar até seu filho no mundo inferior. Aquele era um procedimento cósmico, e, quando o eu abre seus limites ao cósmico e neste se perde até o ponto de ficar diluída a sua própria identidade, pode acaso existir alguma ideia de isolamento ou desestimação? A ideia mesma da partida estava cheia de importantes fatores extensivos: o fator da permanência e o da volta, e ambos erguiam o momento acima e além do episódico e do atômico. O ancião Jacó volvia a ser o jovem Jacó, aquele que, depois do logro que pusera as coisas em seus lugares, partira de Bersabé para Naaraim. Era Jacó o homem que com suas mulheres e seus rebanhos conseguira fugir de Haran depois de uma permanência de vinte e cinco anos. Não era, porém, somente Jacó, o homem cuja vida se repetia em diferentes alturas da espiral. Era também Isaac, que procurou Abimelech em Gérara, na terra dos filisteus. Mais uma vez e como no passado via ele repetir-se a partida primitiva, o êxodo do nômade Abraão de Ur na Caldeia, e nem sequer aquela havia sido a primeira forma, mas o reflexo e imitação terrestre de uma peregrinação celestial, a peregrinação da Lua, que seguia seu caminho de uma estação a outra; Bel Haran, o Senhor do Caminho. Abraão, o primeiro peregrino terrestre, fizera uma pausa em Haran; portanto, era evidente que Bersabé devia representar Haran e que Jacó faria ali sua primeira estação lunar.
Jacó sentia-se confortado ao pensar em Abraão, ao lembrar-se de que, por ocasião de uma fome, também Abraão tinha ido para o Egito e ali residira como estrangeiro. Por outro lado, tinha necessidade de ser confortado. Verdade é que a expectativa era de uma alegria tão grande que quase igualava a dor; e, depois de experimentá-la, bem podia partir em paz, pois nada comparável a ela lhe restaria por provar. Era também verdade que a licença de emigrar para o Egito e de pastorear ali com o consentimento de Faraó em terra fértil era um privilégio invejável e como tal a julgavam muitos. Ainda assim, a decisão era penosa para Jacó. Era-lhe difícil submeter-se à ordem de Deus de deixar a terra de seus pais e trocá-la pelo repulsivo pais da lama, o pais dos deuses-animais, o país dos filhos de Cam. Ele se estabelecera na terra por onde Abraão tinha vagado; fizera-o em caráter provisório como seus antepassados, tendo sido sempre ali um estrangeiro. Não obstante isso, alimentara a esperança de morrer, como eles tinham morrido, naquele lugar. Sempre referira à terra em que nascera, e na qual descansavam seus mortos, a profecia feita a Abraão de que sua descendência seria estrangeira em terra alheia. E eis que agora aquela profecia, à qual andavam unidos presságios de terror e de grande obscuridade, visava a terra para a qual se dirigia agora — a Mizraim, a casa da servidão egípcia. Como sabemos, era este o temeroso nome que Jacó sempre dera à governada com severidade que se estendia ao sul. Certamente nunca havia pensado que ela poderia converter-se em recinto de escravidão para a sua própria raça, como agora lhe era penosamente manifesto. Por este motivo sua partida estava acabrunhada pela visão da sentença divina: “E eles os afligirão durante quatrocentos anos”, que se referia ao país para o qual se dirigiam. Era provável que ele ia levar o seu povo a uma escravidão que duraria gerações e gerações. O plano da salvação poderia dar bom resultado, ou talvez o bem e o mal se anulariam no grande conceito de destino e de futuro. Fosse como fosse, esta nova partida estava prenhe de destino, de um destino ao qual Jacó se entregava agora em Deus e como tal cie o sentia.
Sim, iriam para o país das sepulturas, o que era certamente mau; porém, mais que esse pensamento, atormentava-o o das sepulturas que com o máximo pesar ele deixava atrás: a de Raquel à beira da estrada e o jazigo de Machpelach, a dupla caverna que Abraão tinha comprado para sepultura, com o campo que se estendia em frente, de Efron, o hitita, por quatrocentos siclos, pesados segundo o costume. Israel, como todos os pastores, tinha livres os pés, mas possuía ao menos aquela herdade, o campo com a caverna, e este havia de continuar sendo seu. Os emigrantes dispuseram de muitos bens móveis, mas aquele imóvel, o campo com a sepultura, era inalienável. Para Jacó era a garantia da sua volta. Porque, por muitas gerações que se arraigassem em solo egípcio, à medida que sua estirpe se propagasse, ele havia resolvido, fiado em Deus e nos homens, que, uma vez que tocassem ao seu fim os dias de vida que lhe restavam, seria conduzido de volta ao lar permanente que ele, o pastor nômade, possuía na terra e que jazeria no sítio onde jaziam seu pai e as mães de seus filhos, todos os seus, com exceção da amada e prematuramente desaparecida que jazia junto do caminho, a mãe do seu predileto que fora levado para longe dali e agora o convocava a reunir-se a ele.
Bom era, portanto, que Jacó tivesse tempo para refletir na sua partida para o país onde estava o raptado, pois que aquela tarefa de compreender os desígnios de Deus em relação ao estranho destino do filho querido arrancado de ao pé dele era uma tarefa pesada. A conclusão de Jacó sobre esse tema pode ser ouvida de seus próprios lábios. Cada vez que aludia agora a José, falava dele como “o senhor meu filho” e acrescentava: “Pretendo viajar até onde está o senhor meu filho, até o Egito, onde ele ocupa uma alta posição.” Aqueles que o escutavam provavelmente riam do ancião por detrás das costas e escarneciam da sua vaidade paternal. Ignoravam quão sério era o esforço para chegar à objetividade e quão grande renúncia e severa resolução se ocultavam por trás daquela frase de Jacó.
EM NÚMERO DE SETENTA
Terminara a risonha primavera e já estava bem entrado o verão quando Israel se deu por inteiramente prestes e sua caravana encetou a jornada desde o vale de Mambre junto de Hebron. Bersabé era a meta mais próxima, e naquele lugar limítrofe, onde Jacó e seu pai tinham nascido e onde Rebeca, sua resoluta mãe, havia preparado o ladrão da bênção para a viagem à Mesopotâmia, deviam permanecer alguns dias para consagrá-los a diversas cerimônias.
Jacó partiu do seu lugar e iniciou a viagem com toda a sua progênie e seus bens, com seus filhos e os filhos de seus filhos, com suas filhas, e os filhos de suas filhas, ou, conforme reza a história, com suas mulheres, suas filhas e seus filhos, se bem que este seja um modo de dizer pouco claro, porque por mulheres se entendiam as esposas dos filhos e por filhas também isto, além das filhas dos filhos, como por exemplo Sara, a cantora. Foram, portanto, setenta os que partiram, isto é, reconheceram-se a si mesmos como setenta, embora não contados de fato, mas por uma espécie de cálculo sentimental, por uma espécie de conclusão mental em que prevaleceu esse grau lunar de exatidão que, como sabemos, não é igual aos nossos cálculos, mas que era perfeitamente lógico e justificado em sua época e lugar. Setenta foram os povos da terra catalogados nas tábuas de Deus. Por conseguinte, não se exigiam algarismos no preto e branco para demonstrar que setenta era o número de descendentes que tinham saído das ilhargas do patriarca. Tratando-se das ilhargas de Jacó, todavia, as mulheres dos filhos não deviam ter sido contadas e portanto não o foram. Porque, se não há conta, não pode haver soma, e o número a que se chegou não era questão de computo; apoiava-se num resultado determinado de antemão. E ocioso, pois, especular o que foi contado e o que não o foi. Nem sequer sabemos se o próprio Jacó era um dos setenta ou se o contavam separadamente como setenta e um. Temos de contentar-nos de pensar que a época permitia ambas as possibilidades. Muito mais tarde, por exemplo, um dos descendentes de Judá, ou, mais exatamente, de seu filho Fares, com que Tamar deliberadamente o obsequiara, aquele descendente chamado Isaías teve sete filhos e um menor que cuidava do rebanho e sobre o qual foi erguido o corno da unção. Que significa aí este “e”? Terá esse filho sido incluído como o menor dos sete, ou teve Isaías oito filhos? E mais provável a primeira hipótese, pois é mais belo e mais justo ter sete filhos que oito. Porém é muito provável, ou antes, é certo que o número sete como número dos filhos de Isaías não se transformou em oito quando veio o menor e que o menor logrou ser incluído entre os sete, ainda que na realidade era um mais da conta. E houve também uma vez outro homem que teve setenta filhos, de grande número de esposas. O filho de uma daquelas mães matou todos os seus irmãos, os setenta filhos, sobre uma e mesma pedra. De acordo com o nosso cálculo prosaico, ele só pôde matar sessenta e nove, sendo irmão dos assassinados. Ou melhor, sessenta e oito, uma vez que outro irmão cujo nome sabemos, Joatão, continuou vivo. Não é fácil engolir essa afirmação. Contudo, aqui um dos setenta matou os setenta, ficando, entretanto, vivos ele e outro irmão, o que é outro exemplo instrutivo, embora assombroso, de como se pode “incluir” e ao mesmo tempo “não contar no número de”.
Jacó foi, pois, verdadeiramente o número setenta e um entre os setenta peregrinos, no sentido em que é possível considerar esse algarismo à luz do dia. Porque, na verdade prosaica, o número era ao mesmo tempo inferior e superior, o que constitui outra contradição, conquanto infelizmente uma contradição inevitável. Jacó, o pai, era o número setenta e não o setenta e um sobre a base do fato de que os varões da linhagem eram sessenta e nove. Contudo, isto era possível, incluindo José, que estava no Egito, e os seus dois filhos nascidos ali. Certamente estes três varões da raça não faziam parte do séquito que desceu ao Egito; portanto, devemos deduzi-los, apesar de pertencerem ao número dos setenta. Esta dedução, todavia, não é suficiente, porque o algarismo dos setenta inclui evidentemente um bom número de pessoas ainda não-nascidas no momento da partida. Isso se pode justificar no caso de Jochebed, filha de Levi, cuja mãe já estava pejada na época da viagem, sendo que ela nasceu “dentro dos muros”, provavelmente entre os da fortaleza limítrofe, na sua entrada no Egito. Mas ainda há mais, pois a quantidade total inclui não somente os netos e bisnetos que não tinham nascido, mas aqueles que não haviam sequer sido concebidos e que eram apenas previstos. Eles vieram para o Egito, como se exprimiram os piedosos eruditos, in lumbis patrum, e só tomaram parte na viagem num sentido metafísico.
Isto no que diz respeito às subtrações que é necessário fazer. Existem, porém, razões igualmente poderosas para aumentar a soma total.
A descendência masculina de Jacó perfazia este algarismo; mas se, ou melhor, já que todos os seus descendentes imediatos devem ser incluídos, hão de ser levadas em conta, se não as mulheres dos filhos, pelo menos as filhas dessas mulheres, por exemplo, Sara, para mencionar somente uma, com destaque sobre as outras. Seria de todo injusto não levar em conta a pequena que dera a Jacó a boa nova de que José vivia. Sua fama foi grande em Israel, e nunca existiu a menor dúvida acerca do cumprimento da bênção que Jacó lhe conferira em sinal de gratidão, isto é, que ela não conheceria a morte, senão que subiria viva ao céu. Na verdade ninguém sabe quando morreu Sara, e a história de sua vida tem visos de que prosseguirá eternamente. De acordo com uma versão corrente, muitas gerações mais tarde, quando Moisés andava em busca da sepultura de José, Sara lhe indicou o lugar, isto é, no meio do Nilo. E muito mais tarde ainda ela parece ter continuado sua existência entre a gente de Abraão com o nome de “Mulher Sábia”. Como quer que seja, ou se tratasse durante todo o tempo da mesma Sara ou de outras donzelas que tomaram o nome daquela primeira portadora de notícias, ela deve ser incluída e nenhuma voz se erguerá para objetar, qualquer que seja a forma em que sua inclusão possa afetar o algarismo total.
Nem sequer a respeito das esposas dos filhos, isto é, das mães dos netos de Jacó, pode-se afirmar que não cabe incluí-las na conta. Neste sentido a palavra “mães” é preferível a “esposas” por causa de Tamar, a qual, de conformidade com a ordem “onde tu fores, irei eu”, incorporou-se no séquito com os dois robustos filhos que teve de Judá. Com sua figura alta e morena, o nariz de aletas redondas, a boca orgulhosa e aquele seu estranho olhar perdido no espaço, percorreu a pé a maior parte do trajeto, com passadas bem largas para uma mulher e apoiada no seu bordão. Essa resoluta mulher, que por nenhum preço se dispunha a ficar de fora, não deverá ser incluída? Quanto aos seus dois maridos, Her e Onan, não podiam ser contados por nenhum cálculo nem diurno nem noturno, pois estavam mortos, e, conquanto Israel contasse criaturas que ainda não haviam nascido, certamente não incluía as que já não existiam. Por outro lado, Sela, o marido que não foi concedido a Tamar e de quem ela já não necessitava, uma vez que lhe tinha dado em troca dois robustos e esplêndidos meios-irmãos, figurou entre os trinta e dois netos de Lia.
“TRAZEI VOSSO PAI"
Com o número convencionado de setenta, saiu, pois, Israel do vale de Mambre, o amorreu. Contando os que não estavam incluídos neste cálculo, como pastores, arrieiros, guias, carregadores de equipagem e escravos, a tribo migratória se compunha de uma centena ou mais de pessoas, e se desdobrava pelos caminhos como uma ruidosa lagarta de vivo colorido, avançando lentamente, por causa dos rebanhos envoltos em nuvens de pó, que a acompanhavam. Seus componentes fizeram a jornada empregando diversos meios, e cá entre nós deve-se dizer que os veículos egípcios enviados por José foram de bem pouco préstimo. Isto não se aplica aos chamados agolt, cujos serviços merecem ser reconhecidos. Estes eram pesados carros de duas rodas puxados por bois e deram excelente resultado no transporte dos utensílios domésticos, das bolsas de couro para a água e a forragem, bem como das mulheres e crianças. O contrário se dava com os carros mais ligeiros como os merkobt, alguns dos quais estavam luxuosamente equipados; eram tirados por uma parelha de cavalos ou mulas e estavam cobertos de couro estampado cor de púrpura, abertos atrás e muitas vezes consistindo num balaústre curvo de madeira dourada, mas eram veículos meramente vistosos que, apesar da boa intenção que José e seu real senhor tinham tido ao enviá-los, se mostraram muito pouco práticos e voltaram ao Egito tão vazios como haviam partido. A ninguém serviu de nenhum proveito o serem alguns deles cobertos por dentro e por fora de linho e estuque e conter o estuque deliciosos relevos em miniatura que representavam a vida da corte e do campo, ou terem os pregos das rodas a forma de cabeças de mouros esquisitamente modeladas. Só duas ou três pessoas cabiam apertadamente de pé naquelas carruagens que eram desprovidas de molas e que por isso, com o andar do tempo, se tomavam cansativas sobre os ásperos caminhos. Ou se alguém se sentava nelas, tinha de fazê-lo sobre o chão e com os pés a balançar do lado de fora. Alguns, como Tamar, preferiram por isso o modo imemorial de viajar dos peregrinos e fizeram-no a pé, apoiando-se num bordão. Mas a maioria montou em camelos de pés chatos, em mulas ossudas, em burros cinzentos ou brancos, todos enfeitados com grandes contas de cristal, xairés bordados e flores de lã pendentes. Eram aqueles os animais de sela que levantavam o pó nos caminhos, e neles cavalgavam os componentes da casa de Jacó que José chamara para junto de si, formando uma tribo alegre e variegada, com seus trajes de lã tecida. Os homens, barbudos, vestiam pesadas roupas de burel para o deserto e traziam turbantes que em muitas cabeças eram firmados com uma espécie de aro de feltro. As mulheres, com suas negras tranças caindo-lhe sobre os ombros, com braceletes de prata e bronze nos punhos, moedas na testa e com as unhas avermelhadas com hena, levavam nos braços suas crianças de peito, enfaixadas em grandes panos macios com orlas de brocado. À medida que iam descendo as distâncias, todos mastigavam cebolas assadas, pão azedo e azeitonas. A maior parte do tempo tomaram o caminho das serras que descia de Jerusalém e das altura de Hebron até a árida terra baixa do Sul, chamada Nageb, rumo a Kirjat Sefer, a cidade dos livros, e a Bersabé.
A nossa principal preocupação é por certo a comodidade de Jacó, o pai. Como o acomodaram? Teria José pensado, enviando seus canos, que o venerável ancião faria a viagem de pé sobre alguma daquelas carruagens ornamentadas, por trás de um balaústre dourado? É claro que não; Tampouco assim pensara Faraó, seu senhor. A ordem partida do palácio inteiramente novo do belo filho de Aton fora: “Tomai vosso pai e trazei-o. ” O patriarca devia ser levado como em triunfo — essa era a expressão empregada. E, entre os numerosos veículos inservíveis que José enviara, só havia um de tipo diferente, destinado exatamente àquele uso solene: transportar Jacó. Tratava-se de uma liteira egípcia como as que as classes altas de Keme usavam nas ruas e para viajar. Era um exemplar muito elegante, com um recosto de canas trançadas e os lados adornados com lindos escritos, ricas colgaduras e varais de bronze, sendo ainda provida de uma espécie de dossel de madeira na parte de trás para proteger o ocupante contra a poeira e o vento. Esse veículo podia ser conduzido por moços ou sobre o lombo de animais, sustentado aí por varas cruzadas. Jacó viajou muito comodamente nele, uma vez que se decidiu a usá-lo, a partir de Bersabé, pois, no seu modo de ver, era esta a linha limítrofe entre sua terra e o país estrangeiro. Até ali fora conduzido por um dromedário, sábio animal de olhar meigo, sobre uma sela que tinha a protegê-la uma espécie de guarda-sol.
Rodeado de seus filhos e balouçando sobre seu alto sólio ao moroso passo de seu hábil animal, o ancião oferecia um espetáculo magnífico e cheio de dignidade, e ele sabia disso. Tinha a cabeça coberta por uma coifa de lã cujas franjas desiguais lhe caíam sobre a testa, o pescoço e os ombros e sobre a veste de cor vermelha escura, aberta na frente para deixar ver a outra veste bordada que trazia por baixo. A brisa brincava com sua barba prateada. A expressão concentrada de seus brandos olhos de pastor demonstrava claramente que o velho meditava nas suas histórias passadas e futuras, e ninguém se atrevia a interromper sua meditação; o máximo a que se abalançavam era perguntar-lhe respeitosamente se se sentia à vontade. O que mais preocupava seu espírito era a visão que o aguardava da árvore sagrada em Bersabé, plantada por Abraão, e sob a qual tencionava oferecer sacrifícios, dar instruções e dormir.
JACÓ ENSINA E SONHA
O gigantesco tamariz se erguia sobre um morro de altura regular perto da populosa colônia de Bersabé, que os nossos viajores passaram margeando. À sua sombra levantava-se uma primitiva mesa de pedra e uma coluna reta ou massebe também de pedra. Falando com rigor, a árvore não fora plantada pelo avô de Jacó; ele a recebera dos filhos do país, como árvore de Deus e élôn môreh ou árvore oráculo, e transformara-a de um altar de Baal no ponto central de um culto destinado ao Deus altíssimo e único. Era provável que Jacó soubesse disto, mas nem assim arrefecia sua fé na crença de que a árvore havia sido plantada por Abraão. E, num sentido simbólico, o fora realmente. Por outro lado, os processos mentais do pai eram mais amplos e flexíveis do que os nossos, que ou bem aceitam uma coisa ou a coisa oposta e nos provocam o ímpeto de gritar, esmurrando a mesa: “Se aquela foi uma árvore de Baal, então não a plantou Abraão!” Semelhante zelo da verdade mais encerra precipitação e estolidez do que sabedoria, e muito mais dignidade existe na serena conciliação dos dois pontos de vista, tal como a conseguiu Jacó.
Entretanto, a maneira como Israel prestou culto ao Deus eterno debaixo da árvore não se diferenciava muito do culto dos filhos de Canaã, exceção feita dos escabrosos excessos com que estes o terminavam invariavelmente. Ao pé e em torno do montículo sagrado foram armadas as tendas para o descanso e foram feitos os preparativos para os sacrifícios de animais que deveriam realizar-se sobre o dólmen, a primitiva mesa de pedra, e que depois seriam distribuídos como alimentos tomados em comum. Tê-lo-iam feito de modo diverso os filhos de Baal? Porventura não deixavam também eles correr o sangue das ovelhas e cabras sobre o altar, manchando com ele as pedras laterais? Sem dúvida; mas os filhos de Israel o faziam com o espírito diferente e de um modo mais esclarecido, como se evidencia do fato de que, depois da refeição sagrada, não se entrelaçavam aos pares ou, ao menos, não o faziam em público.
Debaixo da árvore Jacó também os instruiu sobre Deus, o que nunca os aborrecia. Até os jovens achavam suas palavras interessantes e ponderáveis, porque todos eram mais ou menos talentosos nesse sentido e apanhavam avidamente até as sutilezas de suas observações. Mostrou-lhes Jacó a diferença entre os numerosos nomes de Baal e os de seu Pai, o altíssimo e único. Aqueles formavam uma verdadeira pluralidade; não havia só um Baal, mas muitos; eram eles os ocupantes, possuidores e patronos dos sítios em que se assentava o seu culto e que eram os bosquetes, altares, fontes e árvores; em suma, uma multidão de deuses do solo e das moradas que amavam sós e em forma local e que, na sua coletividade, não tinham semblante nem personalidade nem nome próprio e no máximo se denominavam Melkart, como o rei da cidade, se pertenciam a este tipo de divindade, como acontecia com o de Tiro. Um chamava-se Baal Peor segundo o seu lugar, outro Baal Hermon ou Baal Meon, e havia um Baal da Aliança que tinha sido útil a Abraão em seu serviço de Deus. Um havia até chamado absurdamente Baal Dança. Certamente havia nisso pouca dignidade e nenhuma majestade coletiva. Precisamente o oposto sucedia com os numerosos nomes de Deus, o Pai, os quais não se opunham em absoluto à sua qualidade de Único. Ele era chamado El elion, o Altíssimo, El ro’i, o Deus que nos vê, El olam, o Deus dos eões, e, depois da grande visão de Jacó originada pela sua humilhação, Elbethel, o Deus de Luz. Mas todos esses nomes não eram senão designações aplicáveis a um só e único Deus altamente pessoal, existente em todas as coisas, e não dependentes de um sido, tal como a multiplicidade com suas respectivas designações dos deuses Baal de campos e povoados, cuja propriedade individual era atribuída a eles. A fertilidade que concediam, a tempestade em que rugiam, a primavera medrançosa, o abrasador vento leste — Ele era tudo aquilo que os outros eram separadamente, a Ele pertencia tudo, nEle estavam compreendidas todas as coisas, Ele abarcava tudo quando dizia Eu, Ele que era o Ser dos seres, Eloim, o múltiplo que é só um.
Jacó se espraiava sobre o tema deste nome. Ao falar, arrebatava os seus setenta ouvintes e não o fazia sem sutileza. Quem o escutava compreendia de onde Dan, seu quinto filho, havia herdado seu tipo especial de mentalidade, embora se tratasse apenas de um pobre derivado de segunda geração das qualidades mais altas de seu pai. O tema que Jacó discutiu era se se devia considerar Eloim no singular ou no plural, se se devia dizer: “Eloim quer” ou “Eloim querem”. Admitindo-se a importância da sintaxe correta, era preciso resolver a questão, e Jacó parecia fazê-lo corretamente decidindo-se pelo singular. Deus era um, e o que pensasse que Eloim era o plural de El ou Deus cometia um erro grave. O plural de Deus devia ser Elim. Eloim era uma coisa bem diferente. Não significava uma multiplicidade, como não a significava o nome de Abraão. O homem de Ur fora chamado Abrão e depois teve a honra de ver seu nome ampliar-se para Abraão. O mesmo acontecia com Eloim. Tratava-se tão-somente de uma ampliação honorífica que não tinha a manchá-la a corrupção que se condenava como politeísmo. O mestre insistiu neste ponto. Eloim era um. Mas não tardou muito que desse um surgissem três. Três homens vieram ter com Abraão no vale de Mambre, quando ele se sentou na porta da sua tenda no calor do dia. E os três homens eram, como o impaciente Abraão depressa verificou, Deus, o Senhor. “Senhor”, disse, inclinando-se até a terra. Chamou-lhe “Senhor” e “tu”, mas também e de vez em quando “Senhores” e “vós”. E tinha-lhes suplicado que se sentassem à sombra e renovassem suas forças com leite e carne de vaca. E eles comeram. Depois disseram: “Voltarei dentro de um ano.” Aquele era Deus. Era um, mas era explicitamente triplo. Praticava a multiplicidade, mas sempre e em princípio dizia “eu”, enquanto Abraão se dirigia a ele no singular e no plural sucessivamente. O uso do nome Eloim no plural, explicou Jacó, tinha, portanto, apesar da sua insistência no contrário, alguma coisa a seu favor. E, à proporção que ele prosseguia, seus ouvintes vislumbraram a ideia de que sua experiência de Deus, como a de Abraão, tinha sido tríplice e compreendia três homens, três pessoas independentes e que, sem embargo, coincidiam. Primeiro Jacó falou de Deus Pai; em segundo lugar, de um Bom Pastor que alimentava seu rebanho; e finalmente de alguém a quem chamava o “Anjo" e do qual os setenta tiveram a impressão de que abrangia tudo com sua sombra como com asas de pombas. Todos eles juntos eram Eloim, a unidade tripla.
Não sei se tudo isso vos interessa; mas para os ouvintes de Jacó debaixo da árvore era fascinante e cheio de emoção, porque possuíam gosto e afeição por essas coisas. Depois se dispersaram, mas antes de dormir discutiram em suas tendas larga e apaixonadamente sobre o que tinham ouvido. O tema da ampliação honorífica e do tríplice hóspede de Abraão e a proibição de cair no politeísmo que lhes fora imposta em consideração a um Deus, de cuja múltipla existência emergia, entretanto, certa tentação nesse sentido, constituíam uma prova para a sua capacidade de pensar em Deus, uma prova à qual toda a gente de Jacó, ainda a mais jovem, se julgava alegremente capaz de submeter-se.
Durante as três noites que passou em Bersabé, o chefe mandou que preparassem seu lugar de descanso debaixo da árvore sagrada. Nas duas primeiras noites não sonhou, mais a terceira lhe trouxe a visão que desejara pondo-se a dormir naquele local, visão que lhe proporcionou o necessário consolo e força. Sentia-se receoso do Egito e necessitava urgentemente a segurança de que, descendo àquele país, nada tinha que temer, já que o Deus de seus pais não era uma divindade local e o acompanharia ao mundo inferior, como o acompanhara à terra de Labão. No seu íntimo sentia a necessidade de uma confirmação de que Deus não só desceria com ele, senão que, depois de o ter feito chefe de uma grande nação, tomaria a trazê-lo (ou ao menos à sua descendência) de volta à terra de seus pais. Aquela era a terra situada entre os reinos de Nemrod, terra ignorante na verdade e cheia de aborígines imbecis, mas, mesmo assim, diferente do reino de Nemrod, e ali, melhor que em nenhuma outra parte, uma pessoa podia servir a um Deus espiritual. Em resumo, o seu desejo ardente era a segurança de que a promessa do grande sonho da escada que lhe fora feita no Gilgal de Bethel não se anularia com o fato de ir ele para o Egito, senão que Deus, o Rei, cumpriria a palavra que tinha cantado com acompanhamento de harpas. Para escutar isto Jacó dormiu e em seu sonho o ouviu. Falou-lhe Deus com voz solene e lhe prometeu aquilo por que sua alma suspirava. Mas o mais doce de tudo foi para Jacó ouvir estas palavras: “José porá sua mão sobre teus olhos” — expressão profunda e prenhe de sentido, a qual podia significar que o seu poderoso filho o protegeria e cuidaria da sua velhice entre os pagãos, e bem assim que o amado cerraria um dia seus olhos, sonho a que havia muito tempo Jacó não se atrevera a entregar-se.
Mas agora entregava-se a ambos: a este e àqueloutro sonho que se desenrolou debaixo de suas pálpebras adormecidas. Ao despertar, sentiu-se mais tranquilo e confortado e ansioso por prosseguir a jornada com os setenta. Subiu, pois, à bela liteira egípcia que foi colocada sobre o lombo de dois dos asnos brancos adornados de flores de lã; sentado nela, o patriarca parecia ainda mais belo e imponente do que sobre o camelo.
DO AMOR DESINTERESSADO
Um caminho comercial ia do noroeste do delta, através do árido sul de Canaã, passando por Bersabé, a Hebron. Os filhos de Israel foram por esse caminho, desviando-se assim ligeiramente da estrada que os irmãos tinham utilizado nas suas viagens anteriores. A região era bem povoada no seu começo, vendo-se localidades maiores ou menores; mas depois, à proporção que os dias avançavam, a estrada passava por terrenos áridos nos quais não crescia nem um fio de erva; eram lugares de maldição, totalmente desertos, em que só divisavam, a distância, figuras fugazes que nada de bom pressagiavam, de modo que os homens da caravana que andavam armados tinham quase sempre ao alcance das mãos seus arcos e flechas. Contudo, nunca os abandonou de todo a civilização. Deus também ia com eles, e a confiança nele era a única coisa que lhes restava em certos trechos tenebrosos da jornada. A mor parte do tempo, porém, ela se manifestava na forma de protegidas cisternas do deserto, de postos de atalaia e de pontos de repouso estabelecidos e conservados mediante contínuas reparações pelo espírito comercial do povo, até se chegar à meta final, isto é, à região onde a esplêndida terra do Egito postara suas guardas avançadas, bem dentro do deserto. Vinha depois a legítima fronteira e o lugar exato da entrada complicada por formalidades, as muralhas da fortaleza de Zel.
Chegaram aí ao cabo de dezessete dias ou pouco mais. Em todo o caso, calcularam em dezessete dias o tempo empregado. Fosse como fosse, era um número muito semelhante a este, talvez mais, talvez menos, provavelmente mais, contando os dias passados em Bersabé, porquanto o Sol estivai ainda ardia, e para preservar o velho de seus raios abrasadores só viajavam de manhã muito cedo e ao entardecer. Sim, tinham passado pelo menos dezessete dias desde que deixaram Mambre para empreender a viagem, entregando-se durante aquele período de suas existências a uma vida de viagens e de tendas transitórias, até chegarem finalmente à fortaleza de Zel, que lhes abria o caminho ao reino de José.
Se há aí alguém um tanto preocupado com as dificuldades que pudessem encontrar os nossos viajantes ao chegarem a esse reduto vedado, pode tranquilizar-se imediatamente, pois que eles estavam providos de toda a espécie de licenças, documentos e escoltas oficiais. Nunca nenhuma gente que batesse às portas do Egito, proveniente de terras miseráveis, viajara acompanhada daquele modo. Para eles não havia portões, nem muralhas, nem grades. As obras exteriores e as torres de Zel foram leves como o ar e, em vez dos rigores habituais, o que encontraram foi uma sorridente cortesia. Os funcionários do Faraó tinham recebido instruções especiais concernentes àqueles viandantes e não faziam mais que respeitá-las. Os filhos de Israel haviam sido convidados a exercer o pastoreio e a estabelecer-se no país nada menos que pelo senhor do pão em Menfe, pelo dispensador da sombra do rei, por Djepnuteefonech, o amigo exclusivo de Faraó. Dificuldades? Embaraços? Não era possível, pois até a cadeirinha em que conduziram o velho chefe dentro das muralhas falava por si mesma e pelo seu ocupante, ostentando, como ostentava, o uraeus, sinal de que provinha dos depósitos do Faraó. E o amável, solene e fatigado ancião que nela vinha era conduzido ao seu próprio encontro com o seu filho, com aquele personagem altamente colocado que podia dar a cor de cadáver a qualquer pessoa que se atrevesse a formular a menor pergunta, embora cortês, àqueles filhos de Israel.
Fácil é de imaginar, portanto, a atitude obsequiosa e servil dos funcionários encarregados de recebê-los. Os portões de bronze se abriram de par em par e entre fileiras de mãos estendidas as tribos de Jacó passaram a ponte com suas equipagens e gado rumo às pantanosas pastagens em que se viam grupos de árvores, diques, fossos e vilórios. Aquela era a terra do Faraó, era Gessen, também chamada de Kosen, Kesen Gosem e Gochem, pois com estas diferentes pronúncias a denominavam os que mourejavam naquela estreita faixa de terra que marginava juncais e valas. O itinerário seguido pelos viandantes os levou ao longo dessa estrada, e eles perguntaram à gente daqueles sítios se estavam no caminho certo. Foram então informados de que, prosseguido para oeste, chegariam, depois de um dia de viagem, ao braço do Nilo nas proximidades de Per-Bastet e à própria cidade desse nome, a cidade da Gata. Mais perto se achava, entretanto, a cidadinha de Pa-Kos, que era mercado e sede de jurisdição e que provavelmente dava seu nome ao distrito. Contemplando a vastidão da comarca, seus prados e pântanos, suas lagoas que pareciam espelhos, suas ilhotas de arbustos e as férteis planícies, viram o pilão do templo de Pa-Kos erguido ao céu matinal. Era cedo quando Israel entrou no Egito, depois de haver acampado diante do forte na noite anterior. Durante mais algumas horas continuaram em direção ao monumento no horizonte. Então pararam e a liteira de Jacó foi baixada do lombo dos asnos, pois que nas cercanias do mercado de Pa-Kos, não longe dali, achava-se o lugar designado por José como ponto de reunião, onde ele tinha dito que se acharia presente para dar as boas-vindas á sua família.
Houve realmente essa combinação prévia e definida. A história diz a respeito: “Jacó enviou Judá diante de si a José, para que este o instalasse em Gessen.” Sena, entretanto, um erro tirar disso a conclusão de que Judá foi à cidade do embalsamado e que só então José preparou sua escolta para ir ao encontro de seu pai em Gessen. Não. O Exalçado já se achava nas proximidades havia um par de dias, e Judá foi mandado muito perto dali para buscá-lo e conduzi-lo a seu pai.
— Aqui esperará Israel ao senhor seu filho — disse Jacó. — Descei-me desta liteira. E tu, Judá, meu filho, toma três servos e sai ao encontro do teu irmão, o primogênito de Raquel, e dize-lhe onde nos achamos.
Judá obedeceu. Não tardou muito, talvez uma hora no máximo, em voltar, logo depois de ter encontrado José, conquanto não tivesse chegado com este, conforme se depreende da pergunta que Jacó lhe fez quando José se aproximou.
O ponto onde Jacó ficou esperando era um lugar encantador: três palmeiras cresciam aparentemente de uma só raiz, esparzindo sombra sobre o seu assento, e um lago de que emergiam altos papiros e flores azuis e róseas de lotos dava frescura ao sítio. Sentou-se aí rodeado de seus filhos, dos dez que voltaram a ser onze assim que Judá esteve de volta. Diante de Jacó estendia-se o campo aberto e a pastagem que as aves do céu cruzavam em todas as direções. Seus velhos olhos podiam abarcar um bom trecho, alcançando o lugar onde devia aparecer o duodécimo.
Estava ali havia pouco quando viu Judá aproximar-se depressa, seguido dos três servos; eles, sem dizer uma palavra, faziam sinais para qualquer coisa que ficava atrás deles. Jacó firmou a vista na direção que indicavam e viu algo mover-se na distância. Houve um alvoroço e um revérbero, um débil resplendor colorido que vinha chegando rapidamente, convertendo-se pouco a pouco num grupo de carros tirados por fogosos corcéis guarnecidos de brilhantes arreios e alegres penachos. Na frente e de ambos os lados vinham os volantes. Todos tinham os olhos fitos no primeiro carro sobre o qual se erguiam varas com flabelos. A medida que se ia aproximando essa carruagem, puderam distinguir claramente as figuras dos seus ocupantes. Jacó olhou anteparando os olhos com suas encarquilhadas mãos e disse a um dos filhos que se achava junto dele:
— Judá!
— Eis-me aqui, pai — respondeu Judá.
— Quem é aquele homem, regularmente fornido de carnes e ataviado com todo o esplendor deste mundo, que desce do seu coche, do dourado interior da sua carruagem, e que tem no pescoço um adorno que é como o arco-íris e cuja vestidura é como o resplendor do céu?
— É teu filho José, meu pai — tornou Judá.
— Se é ele na verdade, me levantarei e irei dar-lhe as boas-vindas — disse Jacó.
Benjamim e os outros quiseram impedir que ele fizesse isso, porém, antes que eles pudessem ajudá-lo, ergueu-se da cadeirinha com bastante dificuldade e ao mesmo tempo com imponência, puxando mais que nunca da coxa, porque de propósito exagerava sua honrosa coxeadura. Depois se dirigiu sozinho para o outro, que estugou seus passos para encurtar a distância entre ambos. Os lábios risonhos de um murmuravam a palavra “pai” e José abriu os braços para acolher Jacó. Este, porém, tinha os seus estendidos como um cego que apalpasse no vácuo; suas mãos moveram-se como para fazer-lhe um sinal, e ao mesmo tempo para proteger a si mesmo, pois, quando estiveram próximos, não permitiu que José se lhe enlaçasse ao pescoço e ocultasse o rosto no seu ombro como seria do gosto do filho fazer, mas procurou-o com seus velhos olhos cansados. Atirando a cabeça para trás e tombando-a um pouco, examinou detidamente e com atenção aquele rosto egípcio com um olhar em que se misturavam o amor e a tristeza, tristeza, sim, de não reconhecer seu filho. Sob o olhar do ancião, os olhos de José foram-se enchendo lentamente de lágrimas Seu negror se inundou de pranto que caiu sobre suas faces e então, sim, Jacó viu neles os olhos de Raquel, viu as faces úmidas de Raquel nas quais outrora ele havia sorvido as lágrimas com seus beijos. Então reconheceu o filho e, deixando cair a cabeça sobre o ombro do estrangeiro, derramou copiosas lágrimas.
Muito tempo permaneceram assim os dois, porquanto os irmãos se mantinham a respeitosa distância, o mesmo acontecendo com os do séquito de José, composto do seu marechal, dos seus escudeiros, dos seus lacaios e dos flabelíferos. Fizeram a mesma coisa todos os curiosos que tinham vindo do vizinho povoado.
— Perdoas, pai? — indagou José. E com aquela pergunta pedia perdão por muitas coisas — pela maneira como se comportara com ele, causando-lhe tanta aflição, por sua arrogância de filho predileto e por suas incorrigíveis travessuras, pela estima que tinha de si mesmo e por sua cega presunção e por mil outras loucuras que havia expiado com o silêncio da morte, vivendo longe do velho que também sofreu com ele. — Podes perdoar-me, pai? — repetiu.
Então Jacó endireitou-se, recuperando inteiramente o domínio de si mesmo.
— Deus nos perdoou — respondeu o velho. — Podes ver que Ele o fez, visto como me restituiu o meu filho e agora Israel pode morrer em paz, porque tu voltaste.
— E a mim restituiu meu pai — disse José. — Paizinho, posso tomar a chamar-te assim?
— Se isso te agradasse, meu filho — respondeu Jacó, solene, curvando-se, apesar dos seus anos e da sua dignidade, diante do homem mais moço; — eu preferiria que me chamasse somente pai, para que o coração mantenha uma atitude digna e não só de gracejo.
José compreendeu perfeitamente.
— Ouço e obedeço — disse, inclinando-se por sua vez. — Mas deixemos de pensar na morte. Falemos da vida, pai! Viveremos juntos, agora que foi cumprida a pena e que terminou a longa privação.
— Foi amargamente longa — concordou o ancião. — Porque poderosa é a ira de Deus, como corresponde à ira de um Deus grande e poderoso. Tão grande e poderoso é Ele que não pode experimentar nenhuma outra espécie de ira, nenhuma menor, e a nós, frágeis criaturas, nos castiga fazendo-nos derramar lágrimas como água.
— Seria compreensível se Ele não pudesse, na sua grandeza, medi-la em todo o seu alcance e não pudesse, Ele que não tem rival, pôr-se no nosso lugar — disse José em tom de conversa. — Pode ser que sua mão seja um tanto dura, de tal forma que seu peso quase nos aniquila, ainda quando não seja essa a sua intenção e apenas deseje apalpar-nos e espertar-nos.
Jacó não pôde deixar de sorrir.
— Vejo — disse — que meu filho, mesmo vivendo entre deuses estrangeiros, conserva sua antiga e deliciosa agudeza de percepção sobre os assuntos atinentes à divindade. O que te aprouve dizer pode encerrar alguma verdade. O próprio Abraão, no seu tempo, a miúdo exprobrou a Deus sua violência e eu também lhe falei uma vez nesse sentido: “Devagar, devagar, Senhor, não tão depressa!” Todavia Ele é como é e não pode ficar mais moderado em favor de nossos débeis corações.
— Uma reprimenda amistosa por parte daqueles que Ele ama em todo caso não pode causar dano — respondeu José. — Louvemos, pois, Sua misericórdia e Seu espírito de perdão, por mais que tenha tardado em mostrar as duas coisas. Porque Sua grandeza só pode ser comparada à Sua sabedoria; refiro-me à amplidão do Seu pensamento e ao profundo sentido dos Seus atos. Em tudo quanto Ele decreta há múltiplas ações e isto é o que é admirável. Quando castiga, Sua intenção é na verdade castigar, e este propósito rigoroso obedece à própria finalidade, ao mesmo tempo que é um meio de promover grandes acontecimentos. A ti, meu pai, e a mim tratou-nos Ele desabridamente, separando-nos de tal forma que eu estive morto para ti. Assim Ele quis e assim o fez. Mas seu intuito era ao mesmo tempo trazer-me um dia à tua presença para que eu te pudesse salvar, para que eu provesse às tuas necessidades, às dos irmãos e de toda a tua raça, uma vez que chegasse a época da fome que Ele decretou também com múltiplos propósitos e como um meio de atingir vários fins, especialmente para que nós nos tomássemos a reunir. Tudo isto é altamente admirável em seus entrelaçamentos. Nós sabemos irritar-nos ou ficar frios; mas a paixão de Deus é a providência e Sua ira, em última análise, é bondade. Ter-se-á teu filho exprimido de forma mais ou menos adequada a respeito de Deus, o Pai?
— Mais ou menos — confirmou Jacó. — Ele é o Deus da vida, e nós nos expressamos a respeito da vida somente de forma mais ou menos adequada. Digo isto como louvor e ao mesmo tempo como desculpa. Mas tu não necessitas de elogios da minha parte, pois os recebes de rainhas. Oxalá que a vida que tens levado no lugar para onde te arrebataram não necessite de desculpas!
Dizendo isto, correu com os olhos receosos pela figura do egípcio José, pela coifa com franjas verdes e amarelas, pelos resplandecentes adornos, o custoso traje talhado à moda, as ricas joias que ostentava na cinta e na mão e nas fivelas de ouro de suas sandálias.
— Meu filho! — perguntou Jacó com insistência. — Conservaste tua pureza no meio de um povo cuja luxúria é como a do jumento e do garanhão?
— Oh, paizinho... quero dizer pai! Por que se inquieta desse modo o meu querido senhor? — replicou José, ligeiramente embaraçado. — Não te preocupes. Os filhos do Egito são como os outros povos, nem essencialmente melhores nem piores. Acredita-me: só Sodoma na sua época se distinguiu especialmente no mal. Desde que foi tragada pelo fogo e o enxofre, as coisas são, neste ponto, mais ou menos parecidas em qualquer parte. Uma vez tu mesmo advertiste a Deus, dizendo-lhe: “Não tão depressa.” Logo, não será demais que eu, teu filho, te advirta e queira com todo o meu amor aconselhar-te a que, visto como estás aqui, não deixes que as pessoas deste país percebam o que delas pensas. Não as repreenda do seu procedimento à luz da tua inteligência, e não te deslembres que somos estrangeiros, que aqui somos genm e que Faraó me fez grande entre esse seu povo. Toma, portanto, entre os do lugar uma posição conforme com a vontade de Deus.
— Sei disso, meu filho, sei — respondeu Jacó, fazendo de novo uma ligeira reverência. — Não duvides do meu respeito ao mundo. Dizem-me que tens filhos? — acrescentou.
— Sim, pai. Da minha donzela, a filha do Sol, mulher de alta linhagem. Seus nomes...
— Donzela? Filha do Sol? Isto não me escandaliza. Tenho netos de Siquém, de Moab e de Madian. Por que não também netos de uma filha de On? Afinal não descendem eles de mim mesmo? Como se chamam os meninos?
— Manassés e Efraim, pai.
— Efraim e Manassés. Bem, meu filho, meu cordeiro; bom é que tenhas filhos, que tenhas dois filhos e lhes tenhas dado semelhantes nomes. Hei de vê-los. Assim que for possível, traze-os diante de mim se é essa a tua vontade.
— Como o ordenas, pai — disse José.
— Sabes, filho querido, por que é bom diante do Senhor que tenhas filho? — prosseguiu Jacó em voz baixa, com os olhos úmidos, passando um braço em redor do pescoço de José e falando-lhe ao ouvido, que o filho chegou junto à boca do pai, virando o rosto.
— Jeosif, um dia deixei que visses a túnica de várias cores e dei-ta quando ma pediste. Sabes que isto não significava o direito da progenitura nem a herança?
— Sei — respondeu José com igual suavidade.
— Mas essa era minha intenção de certo modo. Assim ao menos imagino que foi o que se passou no meu coração — disse Jacó —, porque o meu coração te amava e sempre te há de amar, vivo ou morto, mais que a teus irmãos. Deus, porém, destruiu tua túnica e me admoestou com sua mão poderosa, contra a qual não há rebelião. Tirou-te de ao pé de mim e te enviou para longe de minha casa, separando o ramo do tronco para plantá-lo no mundo. Diante disto só há lugar para a submissão. A submissão do raciocínio e das ações, porque o coração não conhece submissão. Ele não pode extrair meu coração do meu corpo nem a eleição do meu coração sem tirar-me a vida. Se, porém, este coração não inventa nenhum propósito nem procede de acordo com o seu amor, isto é submissão. Compreendes?
José voltou sua cabeça para o pai, anuindo. Ao fazê-lo, viu lágrimas nos velhos olhos castanhos. Os seus também estavam úmidos.
— Ouço e sei — murmurou, virando de novo o ouvido para escutar.
— Deus te deu ao mundo e te tirou e agora te restituiu, mas não de todo, porque Ele também te conservou — murmurou Jacó. —Ele fez que o sangue do animal fosse tomado como o teu próprio; todavia tu não és, como Isaac, uma vítima poupada. Mencionaste a vastidão do Seu pensamento e do duplo significado de Suas intenções e falaste inteligentemente. Porque Sua é a sabedoria; porém ao homem coube em sorte a inteligência por meio da qual deve interpretá-la. Ele te ergueu e rejeitou ao mesmo tempo. Digo-to ao ouvido, querido filho, e tu és bastante inteligente para escutá-lo. Ele te levantou acima de teus irmãos, tal como sucedeu no teu sonho, e eu, meu querido, sempre tive os teus olhos no meu coração. Mas Ele te elevou de um modo mundano, não no sentido da salvação nem da herança da bênção. Não és portador da salvação e a herança não caberá a ti. Sabes disto?
— Ouço e sei — repetiu José, apartando o ouvido para voltar para o pai sua boca e falar-lhe no mesmo tom.
— Bendito és, meu querido — continuou Jacó —, bendito desde os céus e desde as profundezas da Terra, bendito com a alegria e com o destino, com o engenho e com os sonhos. E, contudo, esta é uma bênção terrestre, não uma bênção espiritual. Ouviste alguma vez a voz do amor obrigado a negar? Escuta-a falar agora junto ao teu ouvido com toda a submissão. Deus te ama, meu filho, conquanto ao mesmo tempo te negue a herança e me tenha castigado porque, secretamente, eu a queria para ti. Tu és o primogênito nas coisas terrenas e um benfeitor para os estrangeiros bem como para o pai e os irmãos. Mas a salvação não chegará aos povos por teu intermédio e a primazia te é negada. Sabes disso?
— Sei — respondeu José.
— Está bem — disse Jacó. — Convém olhar para o destino com olhos admirativos e alegres e que estes sejam os nossos próprios olhos. Eu, porém, farei como Deus fez, que, ao negar-te, te deu, tu és o separado, o arrancado do teu tronco; não és e não serás tronco. Mas eu te exaltarei, te porei como chefe de povos, pois teus filhos, os dois primeiros, serão como meus filhos. Os que depois deles gerares serão teus, mas estes serão meus, pois eu os tomarei como filhos. Tu não és como os pais, meu filho, porque não és um príncipe espiritual, mas terrestre. Contudo, hás de assentar-te ao meu lado, ao lado do progenitor da estirpe, como pai de tribos. Estás contente?
— Agradeço-te desde o mais íntimo do meu ser — disse José suavemente, virando mais uma vez o ouvido e aproximando a boca do ouvido de Jacó. Então Israel o soltou do seu abraço.
A RECEPÇÃO
Os circunstantes, os que formavam parte do séquito de José a um lado, e a gente de Jacó ao outro, haviam observado respeitosamente e a distância aquela conversação íntima entre os dois. Viram depois que ela chegava ao fim e que o amigo de Faraó convidava seu pai a prosseguir a viagem. Voltando-se para seus irmãos, aproximou-se para saudá-los. Por sua vez eles se apressaram a inclinar-se diante dele, enquanto José apertava ao peito Benjamim, seu irmão germano.
— Agora vou ver tuas esposas e teus filhos, Turturra — disse ao homenzinho. — Vou ver as esposas e os filhos de vós todos; travarei conhecimento com eles. Apresentar-me-eis todo o vosso povo na presença do pai, a cujo lado me sentarei. Fiz instalar uma tenda perto daqui para receber-vos. Lá foi buscar-me meu irmão Judá e de lá vim ao vosso encontro. Levai de novo o pai e vós montai em vossas cavalgaduras e segui-me. Irei adiante no meu carro; se, porém, algum de vós quiser vir comigo, por exemplo, Judá, que teve a gentileza de ir buscar-me, há lugar para dois além do condutor. Convido-te, Judá; queres vir comigo?
Judá lhe agradeceu e subiu ao carro que José, com um sinal, fez chegar perto de si; acompanhou, pois, o Exalçado, no seu carro revestido de ouro que era tirado por fogosos ginetes adornados de alegres penachos e arreios de couro cor de púrpura. Seguiu-os o cortejo de José, vindo atrás deles os filhos de Jacó, a cuja testa ia Israel na balouçante liteira. A gente do mercado de Pa-Kos correu atrás deles ansiosa de ver o que aconteceria.
Deste modo chegaram a uma bela e espaçosa tenda, alegremente pintada e atapetada, em cujo interior aguardavam criados. Ao longo das paredes havia talhas de vinho rodeadas de grinaldas e colocadas sobre elegantes suportes de junco; por toda parte viam-se almofadas e esteiras, vasos e recipientes de água e muitas espécies de tortas de frutas. José fez entrar seu pai e seus irmãos e ali lhes deu novamente as boas-vindas e lhes ofereceu refrescos, auxiliado por seu intendente Mai-Sachme, que os irmãos já conheciam. Jovialmente José bebeu com eles em vasos dourados que os criados enchiam de vinho coado por panos. Depois sentou-se com Jacó em duas cadeiras dobradiças à porta da tenda, e toda a estirpe de Jacó, seus filhos, as esposas e os filhos de seus filhos, ou numa palavra: Israel, passaram diante dele para que ele conhecesse os que ainda não conhecia. Rubem, seu irmão mais velho, ia dizendo seus nomes, e José falou cordialmente a todos. Jacó, porém, evocava das profundezas do passado outra cena semelhante: a cena que se verificou no dia seguinte à noite da luta em Pení-el, quando apresentou sua família a Esaú, o peludo; primeiro as servas com seus quatro filhos, depois Lia com seus seis filhos e por último Raquel com aquele que agora estava sentado a seu lado e cuja cabeça fora erguida tão alto no mundo.
— São setenta — disse orgulhosamente a José. Seu filho não lhe perguntou se com isso queria dizer setenta com ou sem Jacó e se incluía a ele, José, naquele número; não lhe perguntou nem os contou, mas olhou-os alegremente enquanto passavam diante dele, atraindo ao seu joelho os filhos mais moços de Benjamim, Mofim e Ros, e mostrou-se profundamente interessado e satisfeito quando lhe foi apresentada Sara, a filha de Aser, e soube que ela havia sido a primeira que cantara para Jacó que José vivia. Agradeceu à menina dizendo-lhe que logo que lhe fosse possível, logo que tivesse tempo, ouviria a canção que ela cantava sobre suas oito cordas. Entre as esposas dos irmãos que desfilavam perante ele, encontrava-se Tamar com os dois filhos que teve de Judá. Ao dizer-lhes os nomes, Rubem omitiu sua história; era muito comprida e seria preferível deixá-la para uma ocasião mais propícia. Alta e trigueira, levando pela mão seus filhos, Tamar saudou altivamente o dispensador da sombra enquanto dizia de si para si: “Eu estou na linha da descendência e tu não, apesar de todo o teu brilho.”
Depois que todos foram apresentados, as mulheres e os filhos dos irmãos de José tomaram refrescos na tenda, enquanto este conservava junto de si os chefes das respectivas casas e seu pai, e com sábia visão e circunspeção os instruía nos pormenores das disposições tomadas.
— Estais agora na terra de Gessen, nas belas pastagens pertencentes a Faraó — disse-lhes. — Disporei as coisas de forma que fiqueis aqui, porque os costumes dessas localidades não são inteiramente egípcios e vivereis aqui como gerim, livres e à vontade, como vivíeis em Canaã. Apascentai vossos rebanhos somente nesses prados, construí choças e alimentai-vos. Para ti, pai, fiz instalar uma tenda cuidadosamente copiada da tua casa em Mambre, para que de nada sintas falta e tudo seja conforme era teu costume. Está situada a pequena distância daqui, próxima ao mercado de Pa-Kos, pois é conveniente viver no campo, mas não muito longe do povoado. Assim fizeram nossos pais, que viveram debaixo de árvores e não entre muros, mas perto de Bersabé e de Hebron. Em Pa-Kos, Per-Sopd e Per-Bastet, neste braço do Nilo, podereis vender vossas mercadorias. Será do agrado do Faraó, meu senhor, que pastoreeis aqui e aqui realizeis vossas transações comerciais, pois solicitarei uma audiência a Sua Majestade para falar-lhe de vós. Dir-lhe-ei que chegastes a Gessen, e que vossa permanência aqui é altamente desejável porque sempre fostes pastores de gado ovino, como foram vossos pais antes de vós. Devo explicar-vos que todo pastor de ovelhas é sempre um pouco malvisto pelos filhos do Egito, não tanto como os porcariços, isso não, mas sempre existe uma tal ou qual aversão com que não vos deveis importar; deveis antes aproveitar-vos dessa circunstância mantendo-vos um tanto apartados deles, porquanto os pastores pertencem ao país de Gessen. Afinal vive aqui o gado do Faraó, as próprias ovelhas e cabras do deus. E como vós, irmãos, sois espertos pastores e criadores, nada mais lógico (e é o que vou sugerir a Sua Majestade de modo que ele acredite que a ideia é sua) que designe alguns de vós maiorais de seus pastores. Faraó é muito acessível e agradável e, como sabeis, ordenou que eu lhe apresente alguns de vós (somente alguns, porque toda família seria demasiado) para que possa formular-vos perguntas e vós possais responder às mesmas. Quando ele vos interrogar acerca de como viveis e de que vos ocupais o fará certamente por mera formalidade, pois ele sabe por mim o que fazeis e eu já lhe terei insinuado a ideia de que vos nomeie maiorais de seus rebanhos. Será esta a ideia que predominará por detrás de suas perguntas e vós confirmareis enfaticamente o que eu tiver expressado, dizendo-lhe: “Pastores têm sido teus servos desde a mocidade até agora, tanto nós como nossos pai.” Então ele decidirá que habiteis na terra de Gessen, a terra baixa, e será de parecer que eu devo colocar seus rebanhos sob a fiscalização dos mais capazes entre vós. Vós mesmos tereis de decidir quais sejam esses, ou talvez convenha deixar a escolha ao nosso querido pai e senhor. Uma vez que tenhamos atendido a tudo isto, combinarei também uma audiência especial para ti, meu querido pai, com o filho de deus, pois é conveniente que ele te veja em toda a tua dignidade e com todo o peso de tuas histórias de Deus, e que tu também vejas aquele que tão ternamente se preocupou com todos vós, e que se acha no caminho da verdade, embora não seja talhado para trilhá-lo. Numa carta que me escreveu, diz-me que te verá e falará contigo. Não calculas como almejo apresentar-te a ele, para que contemple o neto de Abraão, o homem da bênção, em sua solene grandeza. Já ele sabe algumas coisas a teu respeito, por exemplo, o caso das varas descascadas. Mas quando compareceres à sua presença, rogo-te recordes que ocupo uma elevada posição entre os filhos do Egito e portanto não critiqueis por razões religiosas os costumes deles em presença de Faraó, seu rei, porque isto seria um erro.
— Não temas, meu querido filho e senhor, que não o farei — respondeu Jacó. — Teu velho pai sabe como portar-se diante dos grandes deste mundo, porque eles também provêm de Deus. Graças te damos pela residência que engenhosamente me preparaste na terra de Gessen. Nela morará Israel e meditará em todas estas coisas para introduzi-las em suas histórias.
JACÓ COMPARECE DIANTE DE FARAÓ
Observamos com assombro que esta história se aproxima do seu termo. Quem poderia crer que ela alguma vez terminasse ou que o poço secasse? A verdade é que seu termo está tão distante como seu começo; porém ela não pode prosseguir indefinidamente, em algum ponto tem de despedir-se e os lábios do narrador têm de cerrar-se. De acordo com o sentido comum, ela deve fixar um fim para si mesma, já que não tem limite. Tendo diante de si o infinito, cabe à razão ceder; é proverbial que a parte mais razoável assim proceda.
Apesar de certas declarações prévias sobre seu caráter imoderado, a história conserva um sentido das proporções e, ao chegar a este ponto, começa a concentrar sua atenção na sua última hora, como fez Jacó quando se aproximaram do seu término os dezessete anos que ainda lhe restavam para viver e ele se preparou para pôr a sua casa em ordem. Dezessete anos constituem também o limite fixado para a nossa história, ou antes, o limite que a história para si mesma fixou, obedecendo ao seu inato sentido das proporções. Nunca, nem nos seus dias de maior expansão pensou em viver mais que Jacó ou pelo menos só pensou em durar o tempo suficiente para narrar-lhe a morte. Suas proporções no tempo e no espaço são já bastante patriarcais. Velha e farta de vida, contente de que exista um limite para todas as coisas, juntará seus pés e ficará imóvel.
Mas, enquanto durar, não faltará ao que deve nem se cansará; há de encher o tempo, relatando vigorosamente o que o mundo já sabe, isto é, que José cumpriu sua palavra e levou um grupo de irmãos, cinco deles, à presença de Faraó. Em seguida apresentou oficialmente Jacó, seu pai, ao famoso filho de Aton, diante do qual o patriarca se comportou com grande dignidade, ainda que talvez com certo ar de condescendência, segundo os cânones mundanos. Disto falaremos adiante. José subiu a solicitar pessoalmente a audiência ao senhor do doce hálito, e não é fora de propósito observar aqui quão familiarizada se mostra a tradição a respeito do uso dos termos “subir” e “descer”. Quem se dirigia ao Egito para lá descia: assim os filhos de Israel tinham baixado às pastagens de Gessen. Se, porém, uma pessoa continuava descendo nessa direção, então subia, quer dizer, subia a corrente rumo ao Alto Egito, e diz bem a história que José subiu até Achet-Aton, a cidade do horizonte no chamado distrito de Lebre e capital única dos dois países, a fim de contar a Hor no palácio que seus irmãos e a família de seu pai tinham vindo ter com ele, e para lembrar-lhe a conveniência de confiar àqueles experimentados pastores o cuidado dos rebanhos reais na terra de Gessen. Faraó ficou encantado com esse pensamento que lhe ocorrera e, quando os cinco irmãos compareceram à sua presença, falou-lhes a respeito e nomeou-os maiorais de todos os seus pastores.
Sucedeu isto poucos dias depois da chegada de Israel ao Egito, assim que Faraó visitou On, sua amada cidade, e resplandeceu no horizonte do seu palácio como fizera quando José foi levado pela primeira vez à sua presença para interpretar-lhe os sonhos. Esta curta pausa tinha por objeto poupar ao idoso Jacó a necessidade de uma longa viagem até a residência oficial de Faraó. Por esse tempo achava-se Jacó em casa de José em Menfe, junto com os cinco irmãos escolhidos, que foram os dois filhos de Lia: Rubem e Judá; um de Bala: Neftali; um de Zelfa: Gad e Benoni-Benjamim, o segundo filho de Raquel. Tinham eles ido com seu pai à cidade do embalsamado, na margem ocidental, onde ficaram como hóspedes na casa de seu Exalçado irmão. Aí Aseneth, a donzela, deu as boas-vindas ao pai do seu raptor e foram levados à presença do velho os seus netos egípcios para que ele pudesse falar-lhes. O ancião sentiu-se profundamente comovido ao vê-los. “Grande é a misericórdia do Senhor”, disse ele. “Não pensava mais ver teu rosto e eis que Deus me fez ver também tua descendência.” E perguntou ao maior o seu nome.
— Manassés — respondeu ele.
— E o teu qual é? — perguntou depois ao menor.
— Efraim — foi a resposta.
— Efraim e Manassés — repetiu o velho, dizendo primeiro o nome que escutara por último. Colocou então Efraim junto ao seu joelho direito e Manassés junto ao outro joelho, afagou-os e retificou-lhes a pronúncia hebraica.
— Quantas vezes vos ensinei a ambos a pronunciar desse modo? — repreendeu-os José.
— Efraim e Manassés não têm culpa — disse o velho. — A tua própria boca, meu filho, já está um pouco deformada. Quereis ser uma multidão em nome de vosso pai? — perguntou aos dois.
— De bom grado o queríamos — respondeu Efraim, que notara ser ele o favorito. E Jacó deu a ambos uma bênção provisória.
Depois foram informados de que Faraó tinha chegado à morada de Rá-Horachte em On, e José se dirigiu de carro a ele, acompanhado dos cinco irmãos escolhidos. Jacó, porém, foi conduzido numa liteira. Se alguém tem a curiosidade de saber por que é que Jacó, o homem cheio de dias e de majestade, não foi recebido em audiência por Faraó antes dos filhos, como sabemos que aconteceu, respondemos que isso foi para aumentar o interesse. Quando se organiza alguma festa, raras vezes se coloca primeiro o ponto culminante. Habitualmente ela começa com alguma atração menor, depois vem uma melhor e só no fim surge o que há de mais fino e excelente à medida que recrudescem os aplausos e o vozerio chega ao seu ponto máximo. A luta pela precedência é uma velha contenda, porém, do ponto de vista cerimonial, foi sempre vã. A atração menor tem a primazia, e, se continua a insistir, as atrações superiores lhe cedem o lugar com um sorriso.
Além disso, a audiência com os irmãos era de caráter prático, era uma audiência comercial na qual havia assuntos por discutir e resolver, ao passo que a apresentação de Jacó ao jovem deus era meramente uma formalidade graciosa de tão pouco alcance que Faraó sentiu-se embaraçado por falta de assunto e não descobriu outra coisa melhor do que perguntar ao patriarca a sua idade. Sua conversa com os filhos teve mais sentido; por outro lado, foi, como todas as audiências do rei, preparada de antemão pelos ministros.
Os cinco irmãos foram introduzidos pelos afetados camaristas na sala do conselho e das audiências, onde o jovem Faraó se achava rodeado de um grupo de áulicos que estavam de pé. Empunhava o cajado, o látego e um emblema da vida e estava sentado debaixo de um baldaquim adornado de fitas, numa cadeira lavrada bastante incômoda, segundo o estilo antigo e tradicional; ele, porém, conseguia de algum modo assumir uma atitude displicente, porquanto não aprovava a postura hierática dos membros, a qual, a seu ver, estava em desarmonia com a naturalidade amável do seu deus. Seu primeiro porta-voz, o senhor do pão, Djepnuteefonech, o provedor, aparecia no primeiro plano à direita e cuidou de que a entrevista, realizada por intermédio de um intérprete, se desenvolvesse segundo foi prevista.
Os recém-chegados se prostraram, pondo devidamente suas frontes em contato com o pavimento; depois engrolaram um hino de adulações, não excessivamente largo, pois haviam sido adestrados por José, que o compôs conforme os requisitos da corte e sem contradizer suas próprias crenças. Este hino não foi traduzido, pois era mero floreio de apresentação. Faraó lhes agradeceu imediatamente com sua voz roufenha de adolescente e acrescentou que Sua Majestade estava muito satisfeita de poder dar as boas-vindas, diante do seu trono, aos dignos parentes de seu fiel tio e dispensador da sombra.
— Qual é o vosso ofício? — perguntou-lhes em seguida.
Judá respondeu que eram pastores, tanto eles como seus pais e que eram peritos na criação de gado de toda espécie. Tinham vindo para o Egito porque não havia pasto para suas ovelhas e a fome era grande na terra de Canaã. Se podiam atrever-se a formular um pedido a Faraó, era o seguinte: que lhes permitisse habitar na terra de Gessen, onde provisoriamente haviam armado suas tendas.
A fisionomia sensível de Akhenaton traiu um ligeiro desagrado quando o intérprete pronunciou a palavra equivalente a “pastor”; contudo, voltou-se para José com a frase prescrita: “Teu pai e teus irmãos vieram a ti. A terra do Egito está diante de ti e deles; instala teu pai e teus irmãos na melhor parte desta terra, na terra de Gessen pois assim apraz a Minha Majestade.”
Sob o olhar estimulante de José, Faraó continuou: — Meu Pai que está no céu também inspirou a Minha Majestade uma ideia com a qual o coração de Faraó se regozija: tu, meu amigo, conheces melhor que ninguém teus irmãos e suas ocupações; vais, por conseguinte, estabelecê-los de acordo com suas atividades e colocará os mais capazes de entre eles como maiorais dos meus rebanhos. Minha Majestade ordena graciosamente e cordialmente que sejam lavrados os respectivos contratos. Sinto-me muito satisfeito.
Depois foi a vez de Jacó.
Sua entrada foi ao mesmo tempo imponente e propositadamente dificultosa. Deliberadamente exagerou sua idade e seus achaques para que sua dignidade de ancião igualasse a majestade de Nemrod e seu Deus não tivesse de ceder terreno. Percebia muito bem que seu filho cortesão, o qual explicitamente o pusera de sobreaviso, estava receoso de que ele assumisse uma atitude condescendente perante o Faraó ou começasse a falar a respeito do carneiro Bindidi. Jacó não tinha a intenção de frisar esse ponto; mas, por outro lado, estava resolvido a não se humilhar e por isso ergueu como defesa aquela imponente aparência de sua avançada idade. Em consideração a ela haviam-no dispensado de fazer genuflexões e também se combinara abreviar a entrevista para evitar que o ancião permanecesse muito tempo de pé.
Durante um momento entreolharam-se em silêncio; o elegante e o moderno jovem sonhador de sonhos acerca de Deus, que, cheio de curiosidade, se levantou um pouco da sua pequena cadeira dourada e adornada e da sua cômoda postura, e o filho de Isaac, o pai dos doze. Olharam-se, entrelaçados naquela única hora e, não obstante, separados por séculos: o jovem enfermiço, herdeiro de uma coroa imemorial, lutando com suas débeis forças para destilar da acumulação milenária de ideologias religiosas o azeite rosado de uma tema e sentimental religião de amor, o velho sábio experimentado, cuja posição no tempo se achava na própria origem de um processo que se desenvolveria no rumo do distante porvir. Imediatamente Faraó sentiu-se invadido de embaraço. Estava acostumado às entrevistas que começavam com o habitual hino de saudação, segundo o protocolo, e a não ter de dirigir-se à pessoa que estava diante dele. Todavia, como sabemos, Jacó não esqueceu de todo a fórmula inicial, pois, ao entrar e quando saiu, “abençoou” solenemente Faraó. O termo deve ser tomado ao pé da letra; o patriarca substituiu com a bênção a rotineira e banal rima da lisonja; não erguendo ambas as mãos como sempre fazia diante do seu Deus, mas somente a direita, que estendeu com firmeza na direção de Faraó (ao fazê-lo, a mão tremia-lhe de um forma impressionante), como se da sua distância colocasse uma mão paternal sobre a cabeça do jovem.
— Que o Senhor te abençoe, rei do Egito! — disse com uma voz muito velha que impressionou grandemente Faraó.
— Que idade tens, avozinho? — perguntou-lhe este, assombrado.
Novamente aqui Jacó exagerou. Sabemos que declarou ter cento e trinta anos, número totalmente arbitrário, porque, em primeiro lugar, não o sabia com exatidão; mesmo hoje, lá por aquelas partes do globo, o povo não tem ideias muito claras nessa questão de idade, e, ainda prescindindo disso, sabemos que Jacó tinha de viver no total cento e seis anos, idade dentro dos limites do possível, apesar de próxima do limite extremo. Segundo este cálculo, devia ter chegado por aquela época aos noventa anos, conquanto estivesse bem conservado para uma idade tão avançada. Mas a pergunta deu-lhe uma oportunidade para revestir-se da solenidade máxima na presença de Faraó. Seu gesto foi de cego e de vidente e seu modo de falar deliberadamente lento.
— O tempo da minha peregrinação terrena são cento e trinta anos — disse ele. E acrescentou: — Poucos e ruins têm sido os dias da minha vida e os meus anos não se comparam com os da vida de meus pais na sua peregrinação.
Faraó estremeceu. Estava ele fadado a morrer jovem e sua natureza sensível se harmonizava com esta ideia, de sorte que o mero pensamento de toda aquela massa de vida parecia horrorizá-lo.
— Poderes celestiais! — exclamou alarmado. — E sempre viveste em Hebron, no mísero Retenu, avozinho?
— Quase sempre, meu filho — respondeu Jacó, de uma forma que sua resposta foi como que um golpe para o cortesão que estava ao lado do dossel. José fez com a cabeça um gesto de advertência a seu pai. Jacó percebeu-o, porém fingiu não ter visto e continuou obstinadamente a tratar de lapsos de tempo de um peso esmagador.
— Dois mil e trezentos são, segundo os homens sábios, os anos de Hebron, e nem sequer Mempi, a cidade das tumbas, pode retroceder tão longe.
Outra vez deu-se pressa José em sacudir a cabeça, mas o velho não lhe prestou a menor atenção, enquanto Faraó se comportava com grande condescendência.
— É possível, avô, é possível — apressou-se a dizer. — Mas como podes dizer que têm sido maus os dias da tua vida se geraste um filho a quem Faraó ama como a menina dos olhos, de modo que ninguém é maior nos dois países, exceto unicamente o senhor da dupla coroa?
— Gerei doze filhos e ele foi um desse número — tornou Jacó. — Entre eles há maldição e também bênção, bênção e também maldição. Alguns foram rejeitados e não obstante continuam escolhidos. Como, porém, um foi escolhido, continua rejeitado no amor. Assim como o perdi, o encontrei, ao encontrá-lo, o perdi. Ele foi erguido sobre um pedestal e se apartou do número daqueles que gerei, mas em seu lugar vêm aqueles que ele gerou para mim, primeiro um e depois outro.
Faraó ouviu boquiaberto aquelas sibilinas declarações que ainda mais obscuras ficaram passando pelos lábios do intérprete. Olhou para José como a pedir-lhe auxílio, mas José conservou os olhos baixos.
— Sim, sim, avozinho. Isto está perfeitamente claro — disse ele. — Falaste muito bem e com muita sabedoria, como é do gosto de Faraó. Mas não deves cansar-te permanecendo mais tempo de pé diante de Minha Majestade. Vai em paz e vive, enquanto isto te trouxer alegria, anos sem fim para acrescentar aos teus cento e trinta!
Jacó tornou a abençoar Faraó com a mão erguida e depois, sem ter cedido sequer um palmo de terreno, saiu de sua presença com a mesma formalidade majestosa e o mesmo andar dificultoso com que entrara.
O SERVO ASTUTO
E aqui, segundo nos parece, o lugar de entrarmos numa descrição correta do modo como José se houve no desempenho do seu cargo de governador do Egito, para desmentir uma vez por todas o falatório de pessoas semi-informadas, que nunca deixou de correr a seu respeito e frequentemente degenerou em calúnia. A responsabilidade destes julgamentos errados que muitas vezes chegaram ao extremo de descrever como “atroz” o procedimento de José ao desobrigar-se de suas funções cabe, em primeiro lugar (não há fugir a esta declaração), à primeira versão da presente história, cujo estilo lacônico se assemelha tão pouco à maneira pela qual esta se narrou a si própria, quer dizer, à realidade dos acontecimentos.
Os fatos a que alude a primeira narração escrita que existe sobre as atividades do grande homem de negócios de Faraó são fatos sóbrios; eles nem permitem se faça uma ideia da admiração que suas medidas originariamente provocaram, nem dão o porquê dessa admiração que muitas vezes raiava pela idolatria. Alguns dos títulos de José, como os de Provedor e de Senhor do Pão, eram tomados ao pé da letra pelas grandes massas do povo que pensavam confusamente em José como numa espécie de deidade do Nilo, como numa autêntica encarnação do próprio Ápis, o preservador e outorgador da vida.
Aquela lendária popularidade alcançada por José, e com a qual ele provavelmente contara desde o princípio, repousava sobretudo no aspecto irisante das suas medidas, do seu sentido duplo explorado com bom humor e de um modo que lhe era inteiramente peculiar. Em resumo, utilizava a magia da sua inventiva para conciliar propósitos contraditórios. Empregamos a palavra “inventiva” porque este princípio ocupa seu lugar no pequeno cosmos da nossa narração em cujo começo ficou dito que a inventiva tem a natureza de um mensageiro de uma parte para outra e de um intermediário entre o poder do Sol e o da Lua, entre a herança paterna e a materna, entre a bênção do dia e a da noite, e por fim, para dizer a coisa direta e sucintamente, entre a vida e a morte. Este espírito de meditação vivo e alegre que executava agilmente sua conciliadora tarefa não era representado por nenhuma divindade no panteão do país de adoção de José, o país da terra negra. Somente Thot, o escrivão e condutor dos mortos, inventor de múltiplas tretas, se aproximava levemente dele, e unicamente Faraó, ao qual eram trazidos de países longínquos informes a respeito das coisas de Deus, tinha vislumbres de um desenvolvimento mais consumado dessa natureza divina. Na realidade, o favor que José achou diante de seus olhos foi devido, de forma preponderante, à circunstância de Faraó ter reconhecido nele traços da astuta criança da caverna, do mestre da manha, e com razão dissera de si para consigo que nenhum rei podia desejar nada melhor do que ter como ministro uma manifestação e encarnação daquela felicíssima natureza divina.
Exatamente debaixo da forma do próprio José se familiarizaram os filhos do Egito com a figura alada, e, se não a levaram para o seu panteão, foi unicamente porque o lugar já estava ocupado por Djehuti, o cinocéfalo branco. A experiência significou todavia para eles um enriquecimento de sua religião, principalmente pela modificação alegre que sofreu a ideia da magia; modificação essa que por si só bastava para causar uma sensação de assombro mítico a esse povo infantil. Para os filhos do Egito a feitiçaria era uma assunto sério e solene que muito os preocupava. A missão exclusiva dela era erigir muros contra o dragão do mal, paredes o mais espessas que fosse possível, para conservá-lo do lado de fora e tolher-lhe a entrada. Era este o único significado que a palavra tinha para eles e sob este prisma foi que viram as medidas tomadas por José contra a fome, o trigo que entesourou e as numerosas tulhas cônicas que construiu para guardá-lo. Mas agora, pela primeira vez, viam a magia como uma conjunção do mal e da previsão. Com isto queremos dizer que, segundo o modo de pensar dos egípcios, o dispensador da sombra, graças ao seu descortino, conduzia o dragão pelo nariz e o utilizava em benefício e vantagem própria e para fins em que o monstro, sempre e exclusivamente pendendo para a destruição, nunca teria pensado. Isto era um tipo alegre de magia que os filhos do Egito não conheciam até então, e os fazia rir em vez de chorar.
Houve realmente muito riso entre o povo, riso admirativo pela maneira como José explorou friamente a situação ao tratar com os ricos em proveito do seu amo, Hor no Palácio, a quem cobriu de ouro e prata, acumulando vastas somas no erário de Faraó, adquiridas em troca do trigo que dava aos proprietários de terras. Nisto deu mostras de uma astuta lealdade para com o divino, lealdade que é a essência de todo serviço devotado e agradecido. Mas, juntamente com este serviço, estava a livre distribuição do grão entre as populações famintas das cidades em nome do jovem Faraó, do sonhador de Deus, a quem deste modo fez ganhar muito mais que com o ouro de que o cobriu. Era uma combinação de política da coroa e de preocupação pelo povo. Tratava-se de uma política nova, engenhosa, vigorizadora, cujo atrativo somente podem deduzir da narração original aqueles que estudam com certo cuidado seu estilo e sabem ler nas entrelinhas.
A relação da nossa fonte com o original (refiro-me aos acontecimentos que em si contêm sua própria explicação) é traída por certas frases toscas, de caráter cômico, que parecem sobreviventes de um entremez popular: através delas vislumbra-se o caráter dos acontecimentos originais. Quando, por exemplo, todo o povo faminto foi ter com José exclamando: “Dá-nos pão, pois por que haveremos de morrer na tua presença por falta de dinheiro?” Eis aqui um modo mesquinho de exprimir-se que não se repete em nenhuma parte do Pentateuco. José, porém, lhes respondeu no mesmo estilo, com as seguintes palavras: “Dai-me vosso gado, e eu em troca vos darei alguma coisa.” E claro que os povos necessitados e o guardador do mercado de Faraó não falaram nesse tom, mas o estilo faz pensar antes na maneira como o povo experimentou o acontecimento real, isto é, como uma comédia desprovida de comiseração moral.
Apesar disto o venerável documento não logrou esquivar-se à censura de exploração e dureza nos processos de José; chegou mesmo a despertar a condenação moral de espíritos sérios, e nada mais natural do que isto. Sabemos que José, no decorrer dos anos das espigas chochas, reuniu primeiro sob seu domínio, isto é, no tesouro de Faraó, todo o dinheiro do país, depois tomou o gado do povo como garantia, em seguida suas terras e por último os expulsou de suas terras e de seus lares, mandando-os trabalhar noutras terras como servos do Estado. Esta história é antipática. Mas a verdadeira situação era bem diversa, como pode depreender-se de certos curiosos giros das frases que a narram. Eis o que se lê: “Deu-lhes pão em troca dos cavalos, dos burros, dos rebanhos e do gado, e em troca do gado sustentou-os com pão durante aquele ano.” Essa tradução é inexata, pois nos priva de uma certa alusão que o original não deixa de fazer, porquanto em lugar de “sustentou” está lá uma palavra que equivale a “conduziu”. O que lá verdadeiramente se diz é: “E em troca do gado conduziu-os com pão durante aquele ano.” Está aí uma estranha expressão, deliberadamente escolhida e tomada à linguagem dos pastores e significa proteção ou pasto, cuidado extremo de criaturas indefesas, especialmente de um rebanho timorato. Para um ouvido habituado à mitologia, a missão e qualidade de bom pastor são atribuídas ao filho de Jacó nestas tradicionais e notáveis palavras: referem-se elas ao pastor que cuida das ovelhas e as conduz aos verdes prados e às águas frescas. Aqui, como na frase convencional de comédia citada acima, chama atenção o colorido do acontecimento original: esta estranha palavra “conduziu”, que parece ter escapado sorrateiramente da realidade para o texto da narrativa, nos revela debaixo de que luz o povo via o grande favorito de Faraó. O juízo do povo é inteiramente diferente daquele que certos moralistas políticos querem aplicar a José, porque cuidar, alimentar e conduzir são as atividades de um deus conhecido como “senhor do aprisco subtérreo”.
E inútil querer desvirtuar os fatos que se depreendem do texto. Para aqueles que tinham propriedades, isto é, para os arrogantes barões de distrito e possuidores de grandes herdades, José vendeu ao mais alto preço que o mercado permitia e pôs “dinheiro”, a saber, mercadorias do troca no erário real, de sorte que dentro em pouco já não havia dinheiro no sentido estrito da palavra, não havia metal precioso sob nenhuma forma, entre o povo. Não havia dinheiro no sentido de moeda cunhada, e, por outro lado, o gado figurou sempre entre os valores entregues em troca de trigo.Tal entrega não se realizava depois de esgotados todos os outros recursos; toda afirmação no sentido de que José aproveitou a escassez da moeda corrente para se apoderar dos cavalos, bois e ovelhas dos habitantes é uma afirmação errônea. Gado também é dinheiro; dinheiro no sentido mais preciso, como se depreende da nossa moderna palavra “pecuniário”; e ainda antes que os abastados pagassem com seus luxuosos vasos de ouro e prata, pagavam com seu gado grosso e miúdo. E todavia não existe menção de que até a última vaca tenha passado para os estábulos e currais de Faraó. José não construíra estábulos nem pocilgas para sete anos, construíra celeiros; portanto, não haveria local nem uso para todo aquele gado-dinheiro. Se alguém desconhece os métodos dos prestamistas, não pode acompanhar uma história como esta. O gado foi penhorado ou empenhado, como se quiser dizer. Na sua maior parte, continuou nas fazendas e granjas, mas deixou de pertencer aos ocupantes, na antiga acepção da palavra. Era propriedade deles e, contudo, não o era; tinham-no eles sob condição, como que gravado com uma hipoteca; e, se a nossa primeira e autorizada fonte de informação é falha em algum ponto, o ponto é exatamente este, porque não dá a impressão clara, que é tão importante se tenha, de que os processos de José tiveram como intuito consistente a deslocação do conceito de propriedade e sua transformação em alguma coisa que não era nem propriedade nem deixava de o ser, sendo antes uma posse feudal, sujeita a certas restrições.
Com efeito, enquanto um ano de seca e de águas baixas no Nilo se ia juntar a outro, enquanto o rosto da rainha da colheita continuava desviado, enquanto não havia pasto nem grão e o ventre da mãe Terra se fechava e não deixava nenhum de seus filhos prosperar, foram passando à coroa grandes extensões da terra negra que até então tinham estado em mãos de particulares.Assim o afirma o texto:“E José comprou toda a terra do Egito para Faraó, pois os egípcios venderam cada um o seu campo.” Em troca de quê? De grão para semear. Os entendidos estão de acordo em que isto deve ter sucedido pelo fim da série dos anos de fome quando os laços da esterilidade começaram a afrouxar e as chuvas voltaram de modo mais ou menos normal e os campos podiam produzir se se lançava neles a semente. Isto explica as palavras dos peticionários:“Por que haveremos de morrer diante de teus olhos, nós e nosso campo? Compra-nos a nós e nossa terra em troca de pão, e seremos nós e nossa terra servos de Faraó; e dá-nos semente para que vivamos e não morramos, e para que a terra não seja assolada.” Quem fala assim? Estas são palavras proferidas, não um clamor do povo. É uma proposta, uma oferta feita por indivíduos, por um grupo, por uma classe de homens que até então tinham sido muito pouco submissos e tratáveis — os grandes latifundiários e príncipes de distrito a quem o Faraó Achmose, no começo da dinastia, se vira obrigado a conferir grandes títulos, como o de “Primeiro Filho do Rei da Deusa Nechbet”, bem como vastas possessões independentes. Eram os recalcitrantes senhores feudais cujos métodos antiquados e prejudiciais ao bem-estar geral tinham sido, havia muito tempo, um espinho cravado na carne do Estado moderno. José, o estadista, explorou a crise para obrigar aqueles arrogantes senhores a curvar-se ao espírito da época. Foram eles os mais atingidos pelas explorações e emigrações de que ouvimos falar; porque, no governo daquele sábio e enérgico ministro, foram divididos os grandes latifúndios ainda existentes; as parcelas assim obtidas foram arrendadas a lavradores que eram responsáveis perante o Estado por uma administração moderna, pelo melhoramento dos canais e pela irrigação do solo. O resultado foi uma distribuição mais equitativa da terra entre o povo e uma melhora na agricultura debaixo da fiscalização da coroa. Muitos “primeiros filhos do rei” passaram a ser meros arrendatários ou se transferiram para a cidade; muitos camponeses viram-se arrancados do solo que haviam cultivado e foram instalados nalguma das pequenas propriedades recentemente divididas, enquanto as suas passavam para mãos estranhas. E, se aquelas transmutações eram praticadas em outros casos, se nos informam de que o Senhor do Pão distribuiu o povo “por cidades”, quer dizer, em distritos rurais que se estendiam em torno das cidades, e o trasladou de um lugar para outro, fez isso de acordo com uma política deliberada de educação, que dava como resultado a transformação do conceito de propriedade em alguma coisa que era ao mesmo tempo conservação e ab-rogação.
A condição essencial para todos os fornecimentos de semente por parte do Estado era a continuação da cobrança do quinto, do mesmo imposto mediante o qual, durante os anos da abundância, José fora acumulando a mágica fartura na qual agora nadava; era a promulgação da permanência daquele imposto, sua confirmação por toda a eternidade. Observe-se que esta imposição, sem a dita transferência da população, teria sido a única forma pela qual a “venda” das terras junto com seus ocupantes (porque estes eram incluídos no trato) podia ter-se manifestado. Nunca se frisou suficientemente que José só fez um uso nominal da tal venda de si mesmos a que os lavradores humildes se sujeitavam para não ficarem arruinados. Ninguém assinalou o fato de que, por sua parte, nunca José empregou a palavra “escravidão” ou outra semelhante que, por motivos facilmente compreensíveis, lhe desagradava. A imposição do tributo significava, em si mesma, que a terra e o povo já não eram livres no antigo sentido; não que lhe adviesse qualquer ênfase especial, porém na prática significava que aqueles que recebiam trigo para semear já não trabalhavam exclusivamente para si mesmos, mas em parte para Faraó, isto é, para o Estado, para a fazenda pública. Nesse sentido o trabalho deles era o trabalho obrigado de servos, e qualquer amigo da humanidade é livre de empregar esta palavra, uma vez que esteja disposto ao mesmo tempo a aplicá-la a si próprio.
Se, todavia, analisarmos a medida da servidão que José estendeu sobre aqueles que a ela se submeteram, chegaremos à conclusão de que é um exagero chamá-la com este nome. Se ele os tivesse obrigado a entregar três quartas partes ou apenas a metade de suas colheitas, teriam a impressão de que seus campos não mais lhes pertenciam nem eles pertenciam a si mesmos. Mas, uma vez que só se tratava de vinte por cento, devem até os críticos mais mal-intencionados reconhecer que a exploração se mantinha dentro de certos limites. Para semente e para a manutenção própria e a de seus filhos ficavam-lhes quatro quintos de suas colheitas. Por isto bem se pode qualificar essa servidão de apenas simbólica. Através dos séculos repercutem as palavras de gratidão com que os que estavam debaixo do jugo aclamavam o seu opressor: “Conservaste-nos a vida; que possamos achar graça diante dos olhos de nosso senhor e ser servos de Faraó.” Que mais se pode desejar? Se alguém deseja alguma coisa mais, saiba que o próprio Jacó, com quem José repetidas vezes discutiu o assunto, aprovava o imposto, ao menos no que se refere à sua quantidade, se não ao seu destino. Quando ele — assim costumava dizer — se houvesse transformado numa multidão de povos para os quais fosse preciso promulgar uma constituição, esses povos deveriam considerar a si mesmos unicamente como arrendatários do seu solo e pagar o imposto do quinto, mas não a nenhum Hor no Palácio, senão a Jahwe, o único Rei e Senhor a quem pertenciam todos os campos e que concedia todos os bens. Mas naturalmente ele entendia que o senhor seu filho, o separado, que governava um mundo pagão, devia tratar dessas coisas lá a seu modo. Ouvindo-o, José sorria.
Quanto aos que se sujeitavam ao imposto, mal cairiam na conta do verdadeiro estado de coisas enquanto continuassem residindo nas terras que já não lhes pertenciam. Justamente por causa da sua brandura a imposição era incapaz de fazê-los perceber a situação modificada. Daqui é que resultavam as medidas de transmutação: elas eram o necessário complemento do tributo que não bastava por si mesmo para fazer os lavradores compreenderem a “venda” de suas terras e a nova relação em que ficavam perante elas. Um agricultor que permanecesse no mesmo solo que cultivara durante tantos anos podia facilmente fazer uma confusão com os velhos conceitos e lá um belo dia, num momento de descuido, seria capaz de levantar a cabeça contra os direitos da coroa. Se o obrigavam a deixar sua terra, dando-se-lhe em troca outra das mãos de Faraó, o caráter quase usufrutuário que pesava sobre a sua propriedade se lhe fazia bem mais perceptível.
Mas o que é mais notável é que a propriedade não deixava de ser tal. O critério da propriedade livre e pessoal é o direito de venda e de herança, e José permitiu que continuasse tanto uma coisa como a outra. Em todo o Egito, a partir daquele tempo, toda a terra ficou pertencendo a Faraó, mas ao mesmo tempo podia ser vendida e herdada. Por isso foi que aludimos à maneira mágica como José abordou o conceito de propriedade, colocando em seu lugar um quadro equívoco de face dupla, de modo que, quando o homem comum procurava fixar esse quadro na mente, ele se tomava uma visão que se desvanecia. Nada havia sido destruído ou anulado; existia, porém, um sentimento geral de imprecisão que era extremamente confuso até que uma pessoa se habituasse a ele. O sistema econômico de José, em resumo, era uma curiosa mistura de socialização e de livre propriedade do detentor individual, mistura essa que os filhos do Egito consideravam engenhosa, sendo a manifestação de uma divindade ao mesmo tempo benigna e astuta.
A tradição chama atenção para o fato de que a reforma não se estendeu aos bens terrestres do clero e de que os sacerdócios de numerosos templos, os quais recebiam subvenção do Estado, especialmente os bens pertencentes a Amun-Rá, não foram incomodados e permaneceram isentos de impostos. “Só não comprou as terras dos sacerdotes.” Esta foi uma providência sábia, se sabedoria consiste em habilidade levada ao ponto de enganar os outros, de desarmar o inimigo enquanto exteriormente se lhe presta respeito. Faraó é que não estava de acordo com esta deferência para com Amun e com os numes locais de menor categoria, pois seu desejo era ver o deus de Karnak tosquiado e despojado, e a esse respeito resmungava infantilmente diante do seu dispensador da sombra. Sua mãezinha, a progenitora do deus, porém, estava de acordo com José e, com o apoio dela, o provedor fez prevalecer sua ideia de não ir contra a crença do homem comum nos velhos deuses do país, ainda que Faraó de boa mente a teria destruído de vez em favor da doutrina de seu Pai celeste. Procurou então obter este desiderato por outros meios aos quais José não pôde opor-se. Faraó não percebeu que o povo receberia com muito melhor sombra a novidade se o deixassem conservar seus hábitos tradicionais de fé e de forma. Quanto a Amun, José julgou ser um erro dar ao cabeça de carneiro a impressão de que toda a reforma agrária era dirigida contra ele com a intenção de diminuir seu poder. Isso só serviria para que o deus se pusesse a agitar as massas contra a dita reforma. Era preferível conservá-lo quieto com um rasgo de cortesia. Os acontecimentos de todos aqueles anos, a abundância, a previdência e a preparação para salvar o povo da fome eram suficientes para inclinar a balança em favor de Faraó e do prestígio da sua doutrina, ao passo que as riquezas que a venda do trigo ia incessantemente acumulando para a grande casa significavam de modo indireto uma perda tão considerável para o deus oficial que aquela complacência com o seu antiquado e sagrado direito de isenção de impostos até parecia uma ironia. Este foi outro exemplo daquela política de face dupla que os filhos do Egito não puderam deixar de admirar no seu bom pastor.
O pacifismo de Faraó, sua aversão à guerra, tinha posto uma arma contra ele nas mãos do deus de Karnak. Mas essa arma foi retirada ou pelo menos perdeu grande parte do seu fio graças ao sistema de concessões e hipotecas de José que, ao menos por algum tempo, logrou reprimir a arrogância que no comum da humanidade provocava um governante pusilânime e pouco desejoso de empregar a violência. Grandes eram os perigos que impendiam sobre o reino de Tutmés, o conquistador, por causa da branda natureza do seu sucessor no tempo. Em toda parte correra a voz e em todas as chancelarias era sabido que no Egito as chaves já não estavam em poder de um Amun-Rá de coração de ferro, mas no de uma divindade afeiçoada por temperamento às flores primaveris e aos pássaros chilreantes, de um deus que por nenhum preço queria tingir de sangue a sua espada. Ora, seria evidentemente exigir demais do senso comum que não fosse escarnecer de semelhante deus. Ganhava terreno uma tendência para o desrespeito, a defecção, a traição. As províncias tributárias orientais, desde Seir a Carmel, encontravam-se em efervescência. Entre os príncipes sírios havia um inconfundível movimento para a independência, no que eram apoiados pelo belicoso Chatti, na sua marcha para o sul. Ao mesmo tempo os beduínos do deserto do Leste e do Sul que tinham ouvido falar do reino da doura e da luz acossaram as cidades de Faraó e de certo modo tomaram posse delas. Os cotidianos requerimentos de Amun no sentido de se adotarem medidas enérgicas, posto que visassem em primeiro lugar uma política interna dirigida contra a “doutrina”, estavam plenamente justificados no que se referia aos assuntos exteriores. O passado heroico clamava aqui de forma efetiva e convincente contra a nova tendência afeminada, e Faraó sentia-se grandemente preocupado com seu Pai celeste. Mas a penúria e José vieram em seu auxílio, tirando força aos gritos de guerra de Amun e atando os vacilantes reizetes da Ásia com laços econômicos. Verdade é que a brandura de Aton não ficou completamente preservada com esse processo; mas muito pouca foi a dureza existente se se leva em conta a circunstância de que livrou Faraó de ter de desembainhar sua espada. Quanto ao clamor dos que se viram atados daquele modo com cadeias de ouro ao trono de Faraó, foi tão agudo que ainda hoje podemos ouvi-lo. Contudo, não é provável que, ouvindo-o, nos deixemos comover. E certo que para obter grão não somente era necessário entregar prata e madeira, senão que jovens parentes tinham de ser enviados ao Egito para servir de reféns e garantias. Isto sem dúvida era duro, mas não é preciso que fiquemos com o coração sangrando, pois sabemos que os filhos dos príncipes asiáticos foram muito bem tratados nos elegantes internatos de Tebas e Menfe e que desfrutaram ali uma educação melhor do que a que teriam recebido em casa. “Foram-se”, ouvimos dizer, “seus filhos e suas filhas e os móveis de madeira de suas casas.” Mas de quem se diz isto? De Milkili, por exemplo, rei da cidade de Achdod. E a respeito dele já sabemos que seu amor a Faraó não merecia muita confiança e que era talvez conveniente reforçá-lo um pouco com a presença de sua mulher e de seus filhos no Egito.
Em suma, em nada disso logramos enxergar qualquer prova convincente de alguma manifesta crueldade da parte de José, que aliás estaria em completo desacordo com a sua índole. Sentimo-nos antes inclinados a pôr-nos de acordo com o povo que ele “conduziu” e a ver em tudo isto um ardilzinho realizado com um brejeiro piscar de olhos por um hábil e astuto deus-servidor. Era este o consenso geral a respeito do procedimento de José em matéria de negócios, consenso que se estendia muito além dos limites do Egito. Esse seu modo de proceder provocava risos e admiração, e que outra coisa melhor pode um homem receber dos outros homens do que essa espécie de admiração, a qual, ao mesmo tempo que liga os corações, os alegra a ponto de fazê-los rir?
DE ACORDO COMO DEVER
Na parte que resta da nossa narrativa será conveniente lançarmos um olhar realista às idades das personagens que nela figuram, porquanto tem havido muita confusão e erro sobre este ponto. As artes da poesia e da pintura não contribuíram para elucidá-lo e parece que até fizeram o contrário. Não nos referimos a Jacó. No seu derradeiro período o patriarca foi sempre apresentado como carregado de anos e quase cego, e realmente sua vista piorou muito na parte final, fraqueza de que ele logo se valeu tomando como seu modelo a Isaac, o cego dador da bênção, a fim de aumentar a impressão de solenidade. Mas no que se refere a José, a seus irmãos e filhos, a tendência da tradição tem sido conservá-los todos numa idade mais ou menos fixa e perenemente juvenil, de modo que já não existe relação entre os seus anos e os que pesavam sobre a cabeça do pai.
Urge corrigir essa imprecisão lendária e a falsa impressão que dela deriva, observando que somente a morte, ou seja, a antítese de tudo que acontece, pode deter o curso do tempo e preservar uma personagem histórica. Pelo contrário, a vida, isto é, a personagem que vive numa história, não pode ficar estacionária; ela tem de envelhecer à proporção que a história avança. Nós também fomos envelhecendo enquanto narrávamos esta história, sendo isto mais uma razão para que tenhamos uma ideia clara a respeito. Pela nossa parte confessamos que nos foi mais aprazível conversar acerca do encantador rapaz de dezessete anos ou ainda sobre o homem de trinta do que sobre aquele que orça pelos cinquenta e cinco. Contudo, em homenagem à vida e aos processos da vida, temos de insistir em que os leitores se deem conta da situação verdadeira. Enquanto viveu no país de Gessen, honrado e querido por seus filhos e netos, Jacó acrescentou dezessete anos mais aos que tinha, de modo que somaram o limite venerável e ainda possível de cento e seis, e seu amado filho, o que tinha sido apartado, o amigo universal de Faraó, transformou-se de homem maduro em homem entrado em anos, cujos cabelos e barba (se não houvesse coberto aqueles com uma primorosa peruca e não rapasse esta segundo o costume do país) haviam de estar bastante grisalhos. Verdade é que os olhos negros, iguais aos de Raquel, conservaram o mesmo fulgor amistoso que sempre havia causado tanto prazer à humanidade. Por isto, e apesar da mudança natural, José conservou o atributo Tammuz da beleza, graças à dupla bênção com que sempre tinha sido favorecido e que não era apenas uma bênção do alto, manifestando-se em forma de engenho, mas também uma bênção do abismo de baixo e que distribui o favor materno à forma corporal.
Não é raro as naturezas desta espécie experimentarem uma segunda juventude que devolve ao perfil a antiga esbelteza de suas formas. Se os quadros que representam José de pé junto ao leito de morte de Jacó o mostram sob a forma de um jovem, a violência que aí se faz à verdade se firma em que o primogênito de Raquel, que alguns anos antes engordara um pouco, depois emagreceu notavelmente, lembrando mais a sua figura de quando tinha vinte anos do que a de quando tinha quarenta.
Mas é incoerência e fantasia pintar os jovens egípcios Efraim e Manassés, na cena da bênção junto ao avô moribundo, como meninos de sete ou oito anos, de cabelos encaracolados. E claro que, por aquela época, eram janotas principescos que tinham completado os vinte anos e estavam ataviados com garridos trajes de corte, cheios de rendas e laçarotes, com sandálias de bico e flabelos de camaristas. Por outro lado, a incompreensível insensatez de tais retratos só se explica por intermédio de certas frases não de todo realistas dos primeiros textos, que dizem que Jacó pôs os netos sobre seus joelhos, ou melhor, que José “os tirou de entre seus joelhos” depois que o ancião “os abraçou e beijou”. Aquele tratamento havia de ser pouco agradável aos jovens; é lamentável que a tradição provoque essas ideias absurdas que se devem unicamente ao desejo de deter o tempo para a mor parte das personagens da história, deixando que só Jacó envelheça, fora de toda a lógica, até chegar a completar cento e quarenta e sete anos!
Vejamos o que realmente ocorreu durante a visita em questão, a segunda das três que José fez a seu pai na última parte da sua vida. Contudo, será conveniente lançar antes um rápido olhar aos dezessete anos decorridos, durante os quais os filhos de Israel se estabeleceram na terra de Gessen, apascentaram, tosquiaram, mungiram, realizaram seus negócios, deram bisnetos a Jacó e se multiplicaram numa tribo numerosa. Nunca se poderá dizer com exatidão quantos daqueles dezessete anos caíram na época da escassez, porque não está bem claro se estes foram sete ou “somente” cinco (as aspas são irônicas, pois o número cinco é tão fértil em associações de belas ideias como o número sete). Como já ficou assinalado atrás, a incerteza se deve às variantes havidas quanto ao grau da aflição. No sexto ano o provedor subiu em Menfe não menos de quinze alnas durante a quadra do aumento. Suas águas alternativamente se tingiram de vermelho e de verde, como sucede sempre que as coisas correm bem, e depositaram abundância de fertilizante. O ano seguinte, porém, foi escasso além de todo cálculo, de modo que era motivo de discussão se aqueles dois anos deviam ser contados ou não entre os cinco anos de penúria, como o sexto e o sétimo. Em todo caso, pela época em que este problema era discutido em todos os templos e esquinas, a reforma agrária de José estava concluída e ele foi governando sobre essa base como primeiro porta-voz de Faraó e continuou alimentando suas ovelhas, ao mesmo tempo que as tosquiava com o quinto.
Não se pode dizer que visse com frequência seu pai e irmãos. Eles tinham suas tendas muito próximas em comparação com a distância que noutro tempo os separava; mas, ainda assim, era preciso realizar uma longa viagem desde o lugar em que moravam e a residência de José, a cidade do embalsamado. Por outro lado, era uma existência atarefada a dele, repartida entre suas obrigações administrativas e suas funções de cortesão. Viram-no, pois, muito menos do que se poderia depreender das últimas três visitas que fez a seu pai em rápida sucessão. Mas Jacó e os seus não se ressentiam com isto, e o silêncio que a respeito guardavam expressava mais do que apenas o reconhecimento dos obstáculos exteriores. Nós que escutamos aquela conversa a meia voz entre Jacó e o primogênito de Raquel durante seu primeiro encontro, enquanto permaneciam muito juntos, com os setenta a um lado e o séquito de José ao outro, sabemos dar àquela mútua reserva — pois que foi mútua — seu verdadeiro significado, ligeiramente melancólico. Ela significava submissão e renúncia. José era o apartado, o que havia sido exaltado e rebaixado ao mesmo tempo. Foi separado da tribo e portanto não viria a ser chefe de tribo. O destino de sua formosa mãe, “repelida apesar da boa vontade”, também era, com as variantes do caso, o destino do filho, e sua fórmula individual a do “amor que nega”. A verdade era compreendida e aceita, e isto, mais que a distância ou as preocupações, constituía a razão da reserva.
Quão clara, quão friamente foi expressa essa reserva na frase que Jacó usou ao formular certo pedido a seu filho; referimo-nos ao floreio retórico que a acompanhou: “Se agora achei graça diante de teus olhos.” E ela a prova evidente da distância fria, acentuada e quase humilhante que existia entre pai e filho, entre José e Israel, e nos recorda, como recordava a Jacó, aquele primeiro sonho, o sonho da eira, em que os onze kokabim, juntamente com a Lua e o Sol, se haviam inclinado diante do sonhador. O sonho de José fizera surgir um ódio mortal entre os irmãos e os impelira a cometer o ato monstruoso por causa do qual haviam sofrido. E estranho pensar (como eles pensavam sem dizê-lo) que aquele ato lograra seu intento e conduzira todos ao desejado desenlace. Embora as coisas se tivessem desenvolvido contra toda lógica e eles houvessem acabado prostrando-se diante de José, todavia não fora em vão que o tinham vendido não só para estranhos, mas ao próprio Estrangeiro, ao qual ele pertencia daí por diante. A herança que o homem do sentimento tinha querido, na sua obstinação, dar a José ficara perdida para sempre, e de Raquel, a amada, passara para Lia, a repelida. Isto não mereceria algumas genuflexões e zumbaias?
“Se agora achei graça diante de teus olhos...” Assim falou Jacó, na primeira das três visitas, ao amado e perdido, quando sentiu que sua vida se extinguia e compreendeu que ela se achava no seu último minguante e que se erguia no horizonte, baixa e tardia, purpurina e fatigada, antes da escuridão final. Não estava doente; podia afirmar que o fim não estava iminente, pois soubera regular bem sua vida e suas forças, sabia bem o que lhe restava e que ainda não era preciso apressar-se. Não obstante, chegara o momento de impressionara única pessoa que tinha poder para satisfazer um desejo que ele afagava no coração, um desejo que dizia respeito pessoalmente a ele, Jacó.
Por isso enviou alguém a José, rogando-lhe viesse ter com ele. Enviou quem? Certamente Neftali, o filho de Bala, o de pernas ágeis, porque, a despeito dos anos, ele conservava a agilidade dos membros e da língua. Devemos insistir neste ponto da idade dos irmãos, porque aqui também a tradição se mostra descuidada e confusa. Se nos detivermos a analisar, chegaremos à conclusão de que todo o lapso abrange um período entre quarenta e sete e setenta e oito anos. Porque Benjamim não era menos de vinte e um anos mais moço de Zabulon, o mais moço depois dele e de José, e Zabulon tinha sessenta e oito anos. Mencionamos isto para que, quando Jacó reunir seus filhos em torno do leito nas suas últimas horas para maldizer e abençoar, não vamos pensar que sua tenda se tenha enchido de jovens na flor da idade. Neftali, repetimos, não obstante seus setenta e cinco anos, tinha agilidade nas pernas longas e musculosas e na língua que parecia um badalo de sino. Tampouco se atenuara seu desejo de estabelecer um nível de conhecimento entre os reinos da Terra e de levar recados de um lugar a outro.
— Rapaz! — disse Jacó ao musculoso velho. — Vai à grande cidade onde mora o meu filho, o amigo de Faraó, e dize-lhe: “Jacó, nosso pai, deseja falar com tua graça sobre um assunto importante.” Não deves assustá-lo nem fazer-lhe pensar que eu estou morrendo. Dir-lhe-ás: “Nosso velho pai está bem de saúde em Gessen, se se levar em conta a sua idade, e ainda não pensa em deixar este mundo; acha, porém, que é chegada a hora de falar contigo sobre um assunto que lhe diz respeito e vai além da sua própria vida. Por conseguinte, roga-te que vás até o seu leito, do qual quase que não se levanta, embora passe sentado a maior parte do tempo, na casa que para ele fizeste.” Vai, rapaz, depressa e repete-lhe o que eu te disse.
Neftali repetiu expeditamente o recado e pôs-se em marcha. Fez a pé o trajeto que lhe tomou vários dias, do contrário José estaria lá imediatamente, pois que ele viajou no seu carro com uma pequena comitiva em que figurava Mai-Sachme, seu intendente, que estava muito empenhado em aparecer na história para ficar em casa quando José saía. Naquela ocasião, Mai-Sachme ficou esperando do lado de fora com os outros da casa de José, enquanto o Exalçado conversava a sós com seu pai no aposento bem guarnecido onde o ancião morava e dormia e que é o reduzido cenário onde agora se concentra a nossa narrativa. Ali, na sua cama ou perto dela, passava Jacó os últimos dias da sua vida, servido por Damasek, filho de Eliézer, que agora se chamava também Eliézer; ele vestia uma túnica de cinto branco e era homem de feições juvenis, conquanto calvo no alto da cabeça e com cabelos grisalhos em redor.
O homem era propriamente sobrinho de Jacó, porquanto Eliézer, o preceptor de José, filho de uma criada, era meio-irmão do abençoado. Sua posição, sem embargo, era a de um servo, ainda que mais graduado que os outros da casa. Como seu pai, dava a si próprio o título de servo mais antigo de Jacó e desempenhava em casa deste as funções que José desempenhava na de Faraó e as do capitão Mai-Sachme na de José. Por esta razão se dirigiu ao capitão depois de anunciar a chegada de José e conversou com aquele como de igual para igual.
O Governador do Egito ajoelhou-se ao entrar no aposento, tocando com a fronte o feltro e a alcatifa que cobriam o chão.
— Não faças isso, meu filho, não o faças! — objetou Jacó. Ele estava sentado na cama, no fundo do quarto, e tinha uma pele sobre os joelhos. De cada lado havia lâmpadas de louça de barro sobre mísulas de madeira. — Estamos no mundo e o homem de idade e de religião respeita demasiado a grandeza do mundo para consentir na tua ação. Sê bem-vindo, bem-vindo a mim na minha fraqueza e velhice, em consideração à qual se me pode perdoar o não ter eu saído ao teu encontro com respeito e sentimento paternal, meu exaltado cordeiro! Toma um escano e senta-te aqui junto de mim, meu querido. Eliézer, meu servo mais velho, bem podia oferecer-te um quando te fez entrar, mas ele não é como seu pai, o que pediu para Isaac a mão de Rebeca, aquele a cujo encontro a Terra saltava, nem pode ser para mim o que seu pai foi no tempo em que derramei lágrimas de sangue. A que tempo me refiro? Ao tempo em que ficaste perdido. Ele enxugou meu rosto com um pano úmido e ternamente me censurou os sentimentos de revolta que brotaram em mim contra Deus. Tu, porém, estavas vivo... Graças te rendo por tua solicitude! Eu estou bem. Neftali, o filho de Bala, deve ter-te dito que eu não te chamei para junto do meu leito de morte. Ou antes, este será por certo o meu leito de morte, porque pouco a pouco começa a adquirir esse caráter, conquanto não o tenha ainda de todo, pois ainda me resta um pouco de vida. Não chegou ainda a hora, e tu voltarás duas ou três vezes para tua casa egípcia e para teus negócios de Estado antes que eu parta. Na verdade estou resolvido e obrigado a poupar com medida e cautela as forças que me restam, pois necessitarei delas em diferentes ocasiões, especialmente para o fim, quando terei de pronunciar minhas derradeiras palavras. Por conseguinte, meu filho, nossa conversação será breve e se limitará ao assunto importante e necessário que temos entre mãos, pois seria contra Deus exaurir-me em palavras supérfluas. Creio mesmo que já falei mais do que é necessário. Quando eu tiver dito o que me cumpre e o tiver formulado diante de ti no estilo de uma fervorosa súplica, poderás, se te sobrar tempo, sentar-te em silêncio à cabeceira do meu futuro leito de morte, apenas pelo prazer de estarmos juntos, sem me induzir a que eu desperdice minhas forças falando. Silenciosamente reclinarei minha cabeça sobre teu ombro e recordarei que és tu quem agora está aqui e como minha única esposa verdadeira te deu à luz na Mesopotâmia com dores extra-humanas; como te perdi e como, de certo modo, te recuperei pela extraordinária bondade de Deus. Quando nasceste, estando o Sol a pino, e eu te vi reclinado no berço no qual te embalava ao lado da donzela que, ainda ofegante, te acalentava, havia uma como deslumbrante doçura em torno de ti que eu sabia apreciar em toda a sua plenitude; e, quando toquei em teus olhos e os abriste, eles eram azuis como a luz do céu e só mais tarde tornaram-se negros com esse fulgor malicioso na sua negrura que é a razão pela qual eu cedi, entregando-te o véu nupcial. Talvez eu volte a falar sobre isto no fim, mas agora é desnecessário e contra a economia das palavras. Para o coração é difícil distinguir economicamente entre as palavras necessárias e as supérfluas. Eis que tu me acaricias suavemente em sinal de teu amor e de tua lealdade e por isso vou começar; no teu amor e na tua lealdade basearei a súplica que desejo fazer-te e neles confiarei para formular o meu pedido, evitando as palavras desnecessárias. Porque José-el, meu cordeiro exaltado, aproxima-se o momento em que hei de morrer, e ainda que de modo algum esteja na etapa final, Jacó vê aproximar-se o momento de sua partida e o instante da sua última vontade e testamento. Quando eu juntar os pés e me reunir a meus pais, não desejo ser sepultado na terra do Egito. Não mo leves a mal, mas eu não quisera que tal sucedesse. Seria também contrário aos meus desejos repousar na terra de Gessen, onde agora nos encontramos, embora ela não seja totalmente egípcia. Bem sei que, quando um homem está morto, já não tem desejos e lhe é indiferente o lugar onde jaz. Porém, enquanto está vivo e os tem, toma a peito que suceda com os mortos de acordo com a vontade dos vivos. Também sei que muitos de nós, aos milhares, serão sepultados no Egito, quer tenham nascido aqui, quer na terra de seus pais. Mas eu, pai de todos eles e de ti, não posso resignar-me a dar-lhes o exemplo nessa matéria. Com eles vim para o teu reino e para o país do teu rei, pois Deus te enviou na frente para que abrisses o caminho. Mas na morte é meu desejo apartar-me deles. Se agora achei graça diante de teus olhos, rogo-te que ponhas tua mão por baixo da minha coxa, como fez Eliézer com Abraão, e usarás comigo amor e lealdade e não me enterrarás no país dos mortos, porque desejo jazer com meus pais e reunir-me a eles. Por isso, levarás daqui os meus ossos e os depositarás no sepulcro deles chamado Machpelach ou dupla caverna em Hebron, no país de Canaã. Ali jaz Abraão, cuja descendência se multiplicou com honra, Abraão, digo, que na lapa onde nasceu foi amamentado por um anjo em forma de cabra; jaz ali junto de Sara, a heroína e rainha mais alta do céu. Isaac, a vítima vedada, o que foi concebido tardiamente, jaz ali junto de Rebeca, a sábia e resoluta mãe de Jacó e de Esaú, que pôs as coisas em ordem. Ali jaz também Lia, a que conheci primeiro, a mãe dos seis. Junto de todos estes quero jazer. Vejo que ouves o meu desejo com respeito filial e pronto a obedecer, ainda que uma sombra de dúvida e de muda interrogação passe pela tua fronte. Meus olhos não são tão bons como em outros tempos, pois entrei na época da morte e o meu olhar se turva progressivamente. Contudo, vejo claramente a sombra que atravessa o teu rosto, pois eu sabia que ela havia de aparecer. E por que não? Há uma sepultura junto do caminho, apenas a poucos passos de Efrata, a que agora chamam Bethleem, onde depus no seu último sono aquela que foi para mim a criatura mais querida sobre a terra de Deus. Será possível que eu não vá repousar junto dela quando me levares para a pátria conforme te ordeno? Não, meu filho, não é esse o meu desejo. Ameia estremecidamente, mas as coisas não acontecem de acordo com os sentimentos e com a brandura do coração, mas segundo sua importância e de acordo com o dever. Não fica bem que eu descanse à beira do caminho, porque Jacó deve jazer ao lado de seus pais e junto de Lia, sua primeira esposa, da qual nasceu o herdeiro. Eis que teus olhos negros agora se enchem de lágrimas: posso vê-los com muita clareza, e são tão semelhantes aos olhos da mulher ternamente amada que quase não dou crédito aos meus. E lindo, filho meu, pareceres-te tanto com ela neste momento em que usarás comigo de misericórdia pondo tua mão por baixo da minha coxa em sinal de que, em atenção à importância e ao dever, me sepultarás em Machpelach, a dupla caverna.
José jurou. E, depois de o ter feito, Israel se inclinou sobre a cabeceira da cama e fez uma oração de graças. Depois o separado ficou um instante em silêncio junto ao leito de seu pai, e o ancião inclinou a cabeça sobre seu ombro, poupando suas energias para o que havia de vir.
EFRAIM E MANASSÉS
Algumas semanas mais tarde Jacó caiu doente. Um ligeiro ardor coloriu suas centenárias faces, sua respiração tornou-se entrecortada e ele ficou de cama permanecendo nela meio sentado, apoiado em almofadas para facilitar a respiração. Desta vez não foi necessário que Neftali corresse a dar a notícia a José, pois este havia organizado um serviço de mensageiros entre Gessen e a sua cidade, e diariamente ou duas vezes por dia tinha notícias do ancião. Dessa vez lhe disseram: “Teu pai acha-se doente, está com uma ligeira febre.” No mesmo momento chamou José seus dois filhos e lhes disse em língua cananeia:
— Preparai-vos para irdes em minha companhia às terras baixas em visita a vosso avô.
— Mas, pai e senhor, temos um compromisso para caçar gazelas no deserto — responderam.
— Ouvistes o que eu disse ou não? — perguntou em egípcio.
— Alegramo-nos muito de ir fazer uma visita a nosso avô — responderam, e mandaram dizer aos seus amigos, ricos peraltas de Menfe, que, por questões de família, não podiam reunir-se a eles na caçada. Eles dois também eram uns janotas sob todos os aspectos, produtos de alto trato, manicurados, com os cabelos frisados, perfumados e pintados, as unhas dos pés luzentes como madrepérolas, cinturas espartilhadas e saiotes adornados com fitas coloridas na frente, atrás e aos lados. Não eram maus moços; sua elegância era o resultado da sociedade em que viviam, não se podendo, portanto, culpá-los por ela. Manassés, o mais velho, era por certo muito altivo e se orgulhava da reputação de seu pai e ainda mais do sangue sacerdotal do Sol que lhe vinha do lado materno. Efraim, pelo contrário, com seus olhos parecidos com os de Raquel, era inofensivo, modesto, e alegre, se devemos crer na teoria que supõe que uma natureza modesta é mais dada à alegria que uma natureza altiva.
Os dois foram atrás de seu pai no carro que ia aos solavancos, entrançando os braços adornados de pulseiras pelos ombros um do outro para mutuamente se ampararem. E assim se dirigiram para o norte, rumo à região do delta. Ia com eles Mai-Sachme, com a esperança de que sua perícia médica pudesse ser de alguma utilidade ao enfermo.
Jacó dormitava sobre suas almofadas quando Damasek-Eliézer lhe anunciou a chegada de seu filho José. O ancião mandou ao expedito servo que o acomodasse no leito e mostrou extraordinária presença de espírito. “Se achamos graça”, disse ele, “diante dos olhos do senhor meu filho, que ora nos vem honrar com sua visita, não nos devemos mostrar abatidos por causa de uma ligeira febre.” E espalhou por sobre o peito a barba de prata.
— Vêm com ele também os dois moços — disse Eliézer.
— Muito bem, está muito bem — comentou Jacó, sentando-se muito empertigado para recebê-los.
Sem demora, José entrou com seus jovens herdeiros. Manassés e Efraim cumprimentaram graciosamente o avô, permanecendo perto da porta, enquanto José se aproximava da cama e com ternura tomava entre as suas as descoradas mãos do venerável ancião.
— Querido e santo Pai — disse. — Vim com meus filhos porque me disseram que estavas levemente enfermo.
— Só levemente, porque costumam ser leves as enfermidades da velhice — disse Jacó. — As doenças graves e as febres altas atacam os jovens e os homens robustos. Atacam-nos com violência e se divertem implacavelmente com suas vítimas até levá-las à tumba; mas não ficava bem proceder assim com os velhos. Sobre o homem carregado de anos basta apoiar um dedo ligeiramente, e débil é a febre que vem apagar o seu fogo. Contudo, eu ainda não estou apagado, meu filho. Esta febre é mais fraca do que eu, ela deixou-se enganar pelos meus numerosos anos e não é suficientemente forte. Voltarás mais uma vez para tua casa depois desta segunda visita ao meu leito de moribundo, que ainda não se converteu em meu leito de morte. A primeira vez mandei-te chamar, supliquei-te que viesses. Esta vez, vieste por tua própria iniciativa, mas hei de convocar-te uma vez mais, que será a terceira e última, para o serviço da morte.
— Oxalá isto esteja muito distante do meu senhor e ele tenha ainda muitos jubileus!
— Isso como poderia ser, filho? Basta que ainda não tenha soado a hora, a hora de reunir-nos todos. Falas assim em obediência à tua cortesia palaciana; eu, porém, estou vizinho dos dias da minha morte, à qual não convêm as flores da linguagem, mas unicamente a severidade e a verdade. E, quando soar em breve a hora da reunião final, elas serão o único tema. Por isso digo-te isso antecipadamente.
José curvou-se.
— Como estás, meu filho, diante do Senhor e diante dos deuses do país? — perguntou Jacó. — Como vês, tão ligeira é a minha doença que chego a indagar da saúde de outrem. Pelo menos, daqueles que amo. Recebes devidamente teus impostos dos filhos do país? Isto não está bem, Jeosif, pois só ao Senhor deveria pertencer o quinto e não a nenhum rei. Mas compreendo, compreendo tudo, meu exaltado filho. Talvez queimas incenso ao Sol e às estrelas como compete à posição que tens na vida?
— Querido Pai...
— Eu sei, cordeiro que me foste arrebatado, sei muito bem! Quão belo é teres vindo por tua própria e livre vontade ver o velho, entre a primeira vez e a terceira, apesar das exigências de tuas múltiplas preocupações e do incenso que queimas! Aproveitarei tua visita para mencionar um assunto de que não falamos desde que apareceste diante de mim na planície, quando tamanha falta sentia eu de ti e tomei a encontrar-te. Disse-te então ao ouvido, meu dileto, que te dividirei em Jacó e te dispersarei em Israel e te multiplicarei nas tribos dos netos, para que os filhos dos filhos da esposa verdadeira sejam como os filhos de Lia, e tu serás um de nós e te alçarás à categoria dos pais de estirpe a fim de que se cumpram as palavras: Ele é o exaltado.
José baixou a cabeça.
— Vê tu: há um lugar em Canaã — começou Jacó com voz mais sonora e os olhos levantados; estava excitado pela febre e sentia-se agradecido a ela porque lhe tornava mais forte o pulso —, um lugar, digo, antes chamado Luz, onde fazem um azul maravilhoso para tingir lã. Já não se chama Luz, mas Beth-el e E-sagila, a casa do levantamento da cabeça. E que ali me apareceu Deus Onipotente num sonho quando dormi no Gilgal com a cabeça apoiada numa pedra. Em cima, no alto da escada que ligava o céu e a Terra, e pela qual anjos siderais subiam e desciam entre harmonias, Ele me apareceu em toda a sua majestade e me abençoou com o sinal da vida e me anunciou copiosas consolações ao som das harpas, pois, além do seu precioso favor, me prometeu fazer-me crescer e multiplicar com filhos incontáveis de sua eleição. Por conseguinte, agora, Jeosif, os teus dois filhos Efraim e Manassés, que te nasceram antes que eu viesse ter contigo na terra do Egito, são meus, serão meus como Rubem e Simeão, e serão chamados de acordo com o meu nome; porém os que gerares depois deles serão teus e terão o nome de seus irmãos para que sejam iguais a seus filhos. Porque tu foste banido do teu lugar no círculo dos doze, mas com tanto amor que o quarto assento foi preparado ali para ti, ao lado dos três mais majestosos.
José dispôs-se então a apresentar-lhe seus herdeiros, mas o ancião começou a falar de Raquel. Uma vez mais contou como a esposa amada morrera, deixando-o ao sair ele da Mesopotâmia para a terra de Canaã; como morrera no caminho de Efrata, não longe deste lugar, e como ele a enterrara ali, perto da cidade de Efrata, que agora se chamava Bethleem. Disse aquilo como de passagem, pois nada tinha que ver com o assunto de que estava tratando. Talvez quisesse invocar naquela hora a presença da amada. Ou talvez fosse sua ideia apontar aos descendentes de Raquel qual devia ser seu sagrado jazigo, uma vez que Machpelach, a dupla caverna, era o lugar de romaria dos outros irmãos. É possível que estivesse pensando no joguinho de mãos que durante todo o tempo tinha em mente e procurasse justificá-lo. Os nossos mestres estão em desacordo acerca de suas intenções a tal respeito, mas o mais provável é que não tivesse nenhuma e que falasse da formosa unicamente porque, achando-se num estado de espírito solene, pensava em suas histórias e gostava imensamente de falar de Raquel, o que fazia também sem motivo, assim como falava de Deus. É mesmo provável que tenha mencionado a esposa porque temia ser esta a última oportunidade de fazê-lo.
E agora, depois de tê-la enterrado pela derradeira vez na sua tumba à beira do caminho, olhou em redor, passou a mão pelos olhos e perguntou:
— Estes quem são?
— São meus filhos, querido e venerado Pai, aqueles que, como sabes, Deus me deu aqui neste país — tornou José.
Não era preciso trazê-los. Eles próprios por sua conta se aproximaram, requebrando os quadris e curvando-se numa profunda e exagerada reverência.
O velho moveu a cabeça e deu pequenos estalos com a língua.
— Jovens formosos, até onde posso vê-los — disse. — Formosos e encantadores diante de Deus são ambos. Inclinai-vos para mim, tesouros meus, para que eu possa acariciar o sangue jovem de vossas faces com minha boca centenária. O que beijo é Efraim ou Manassés? Pouco importa. Se foi Manassés o primeiro, agora beijo Efraim na face e nos olhos. Eis — disse dirigindo-se a José e conservando Efraim ainda abraçado —, eis que vi teu rosto que não pensava ver, e não só isto; Deus me fez ver também tua prole. Será excessivo chamar a Ele fonte de infinita bondade?
— Certamente que não — volveu José, distraído, pois se preocupava com que seus filhos estivessem na ordem devida diante de Jacó, o qual evidentemente não os distinguia.
— Manassés — disse em voz baixa ao mais velho —, toma cuidado! Vem ficar na ordem que te cabe. Tu, Efraim, coloca-te aqui.
E, tomando com a mão direita Efraim, o empurrou para o lado esquerdo de Israel, e com a mão esquerda tomou Manassés e o colocou à direita de Israel, para que tudo estivesse em ordem. Mas que viu com surpresa e desgosto, ao mesmo tempo que com um sorriso reprimido? Viu o seguinte: o pai, com seu rosto cego levantado, apoiou sua mão esquerda sobre a cabeça inclinada de Manassés e, pondo o braço direito sobre o esquerdo, colocou a mão direita sobre a cabeça de Efraim. E com os olhos cegos, fixos no espaço, começou a falar e a abençoar antes que José pudesse interrompê-lo. Invocou o Deus trino, o Pai, o Bom Pastor e o Anjo, para que abençoasse os jovens e para que o seu nome e os nomes de seus pais fossem proferidos sobre eles e a fim de que se multiplicassem como os peixes em número. “Sim. Assim seja. Corre, bênção, sagrado dom, corre do meu coração, através das minhas mãos, sobre vossas cabeças, dentro da vossa carne e do vosso sangue. Amém.”
Não foi possível a José interromper a bênção, e seus filhos não caíram na conta do que sucedia. Estavam um tanto distraídos e ligeiramente mal-humorados, sobretudo Manassés, porque aquela cerimônia os tinha feito perder a caçada de gazelas no deserto. Ambos sentiram sobre suas cabeças a mão que abençoava, mas, ainda que tivessem notado que as mãos se achavam cruzadas e que a direita estava sobre a cabeça do menor e a esquerda sobre a do maior, não teriam dado importância ao assunto, julgando tratar-se de mais um daqueles estranhos costumes do avô. E nisto não teriam andado muito errados. Porque Jacó, irmão do peludo, repetia um precedente. Estava imitando seu próprio pai, o cego da tenda que dera a ele a bênção antes de dá-la ao ruivo. E, no seu modo de ver, a bênção não dava resultado, a não ser que fosse lançada de mistura com algum ardil. Devia haver uma troca; por isso ele trocou as mãos para que a direita descansasse sobre a cabeça do mais moço e este se tornasse o legítimo. Efraim tinha os olhos de Raquel e era evidentemente o mais agradável dos dois, o que provavelmente influenciou Jacó. Circunstância, porém, ainda mais importante é que Efraim era o mais moço, tal como ele, Jacó, que foi trocado graças à pele do cabrito. No trocar as mãos, percebeu nos ouvidos o murmúrio dos encantamentos que sua voluntariosa mãe havia pronunciado enquanto o preparava, mas que vinham de muito antes e eram, em suas origens, mais antigos que sua própria experiência. “Cubro a criança, cubro a pedra, que o senhor prove, que o pai coma; que os irmãos dos abismos sejam teus servos!”
José, como ficou dito, ao mesmo tempo achou graça e sentiu-se melindrado. Tinha um grande sentido do humor, porém o estadista que havia nele viu-se obrigado a acudir em defesa de tudo quanto ainda se pudesse salvar da ordem e da justiça, e, assim que o velho concluiu a bênção, lhe disse:
— Perdoa-me, pai; mas eu havia colocado os jovens na devida ordem diante de ti. Se soubesse que tencionavas cruzar as mãos, os teria colocado de modo diferente. Ser-me-á permitido chamar tua atenção para o fato de que pousaste tua mão esquerda sobre Manassés, meu filho mais velho, e a direita sobre Efraim, que nasceu depois? Creio que a luz ruim que há aqui fez com que te equivocasses na bênção. Não queres corrigi-la rapidamente, trocando outra vez as mãos e dizendo simplesmente: amém? Porque a mão direita não cabe a Efraim, mas sim a Manassés.
E, enquanto falava, pegou nas mãos do velho que permaneciam imóveis sobre as duas cabeças e tentou respeitosamente trocá-las. Jacó, porém, as reteve onde estavam.
— Sei disto, meu filho, eu sei. Deixa que seja assim. Tu governas o Egito e tomas o teu quinto; mas nestas coisas governo eu e sei o que me compete fazer. Não te aflijas. Este — disse e ergueu ligeiramente a mão esquerda — virá a ser também um povo e também será grande. Mas seu irmão mais moço será maior que ele e sua descendência se transformará numa multidão de nações. Como fiz, está feito e quero até que isto se converta num dito em Israel, de modo que, quando um homem abençoe a outro, diga: “Deus te faça como Efraim e Manassés.” Toma nota disto, Israel!
— Seja como ordenas — disse José.
Os jovens afastaram suas cabeças das mãos que abençoavam, ajustaram suas cinturas, arrumaram o cabelo e sentiram-se felizes de poder novamente endireitar-se. Não estavam muito impressionados com o incidente e tiveram razão, pois a tradicional ficção de direito que os tinha feito filhos de Jacó e os igualava aos descendentes de Lia não produziu efeito em seus destinos individuais. Sua vida decorreu como a do resto dos nobres egípcios; somente seus filhos, ou antes, alguns de entre seus netos é que passaram gradualmente, mediante afianças matrimoniais e adesões religiosas, para o lado hebreu, de modo que certas famílias que se mudaram de Keme para Canaã atribuíram sua origem a Efraim e Manassés. Houve ainda outro ponto que veio justificar a indiferença dos jovens, porquanto nossas investigações indicam que, na maior pujança da sua propagação, a tribo de Manassés compreendeu vinte mil almas mais que a de Efraim. E, no entanto, Jacó executara o seu pequeno jogo com a bênção.
Depois da cerimônia o patriarca sentiu-se realmente exausto e com a cabeça um tanto confusa. José lhe rogou que se recostasse, mas ele continuou ereto no leito e falou ao amado acerca de uma parte de terra que lhe destinava e que “conquistara da mão dos amorreus com a força da sua espada e do seu arco”. Com isto só podia referir-se ao pedaço de terra de semear, diante de Siquém, junto à porta da cidade, que Jacó adquirira do gotoso Hemor por cem peças de prata, e certamente não com sua espada e seu arco. Com efeito, como pôde Jacó, o homem da tenda e da paz, chegar a empregar uma espada ou um arco? Armas nunca lhe haviam agradado nem ele as tinha jamais manejado e não cessou nunca de exprobrar aos filhos seu selvagem procedimento em Siquém. Na realidade, justamente em razão desse procedimento era pouco provável que a compra continuasse sendo válida e que Jacó ainda pudesse dispor desse pedaço de terra.
Em todo caso, foi o que ele fez, débil como se sentia, e José, com sua fronte nas mãos do pai, lhe agradeceu aquele dom especial. Sentia-se comovido ante aquela demonstração do amor de Jacó e também impressionado com o estranho fenômeno de que precisamente a fraqueza do ancião o fizesse ver a si próprio no papel heroico de um guerreiro. José teve para si que aquilo significava que o fim estava próximo e por isso decidiu não regressar a Menfe, aguardando em Pa-Kos a citação para a reunião final.
A ÚLTIMA REUNIÃO
“Juntai-vos, filhos de Jacó! Juntai-vos todos em torno de vosso pai Israel, para que ele vos declare quem sois e o que há de acontecer-vos em dias futuros!”
Foi este o chamamento que Jacó fez questão que chegasse até seus filhos quando julgou ter chegado a hora na qual devia pronunciar suas derradeiras palavras. Tinha sua vida nas mãos e sabia exatamente a força que lhe restava para gastá-la toda na declaração das suas últimas vontades e depois morrer. O chamamento foi feito por intermédio de Eliézer, o rapaz velho, seu servo principal. Ensinou-lhe as palavras fazendo que ele as repetisse várias vezes para que Damasek as pronunciasse não só em forma mais ou menos correta, mas com perfeição. — Não é, dizia-lhe ele, “vinde aqui“, mas “juntai-vos todos“, e não “apresentai-vos diante de Israel”, mas “reuni-vos, em massa”. Repete o que vou dizendo e não esqueças duas coisas: “quem sois” e “o que há de acontecer-vos”. É assim; afinal disseste bem. Mas despendi demasiada força instruindo-te. Agora vai!
Damasek arrumou suas vestes e correu em todas as direções com tal velocidade que a Terra parecia saltar ao seu encontro. Pondo as mãos na boca, gritou: “Juntai-vos, filhos de Israel, reuni-vos todos quantos sois, para que o bem possa vir a vós dia a dia!” Correu desse modo às colônias, aos campos, às tendas dos pastores, aos currais onde estavam os rebanhos reais ao cuidado dos cinco, e a todos os outros; correu através de pântanos e poças, salpicando de água barrenta as magras pernas, pois era a época do refluxo, o quinto dia do primeiro mês da estação invernal, ou seja, o que nós outros chamaríamos começos de outubro, e no delta, depois do dilatado período dos últimos calores, tinha chovido bastante. Damasek continuou gritando com as mãos colocadas junto à boca, pelo campo aberto e às portas das casas: “Quem quer que sejais, juntai-vos, filhos de Jacó, reuni-vos todos em torno dele para ouvir o que vos há de acontecer!”
Sempre correndo, dirigiu-se a Pa-Kos, onde se achava José em casa do magistrado da localidade. Havia guardas diante da porta. Com uma absoluta falta de correção, berrou Damasek as palavras que Jacó tão cuidadosamente compusera para a posteridade. Mas isso pouco importava, porque seu efeito era o mesmo e consternados obedeceram a elas sem demora todos quantos as ouviram. Também o amigo de Faraó dirigiu-se a toda a pressa à casa de seu pai, em companhia de Mai-Sachme, seu mordomo, e muitos curiosos que escutaram o chamado vieram também e os foram seguindo.
Os onze esperavam o irmão à entrada da tenda, velada por uma cortina. José os saudou com um ar imponente e grave, beijou Benjamim, então com quarenta e sete anos, e conversou com todos em voz baixa acerca do estado do pai e da sua intenção de pronunciar o seu último discurso e de partir em seguida. Responderam-lhe com os olhos baixos e os beiços apertados, porque, como sempre, sentiam-se receosos da língua do velho e sabiam que o severo pai-tirano provavelmente não os pouparia naquela hora final. Cada um deles dizia de si para si, como costumam fazer os homens: “Deus nos acuda que agora boa nos espera!” Rubem, aquele descomunal pastor que contava então setenta e oito anos, tinha os maxilares apertados e os músculos do rosto contraídos numa carranca. Portara-se mal com Bala e por certo teria de ouvir falar explicitamente no assunto naquela solene ocasião. E, assim, dispunha-se a arrostá-la. Por seu lado, Simeão e Levi, que na sua mocidade tinham procedido como selvagens em Siquém por causa de sua irmã (havia um tempo enorme que aquilo passara, mas com toda a certeza e com a devida solenidade o fato ia ser trazido à baila), se apercebiam para a dura prova. Achava-se entre eles também Judá, que por equívoco tinha pecado com sua nora. Ele igualmente não duvidava de que o ancião fosse mostrar-se duro e cruel lançando-lhe em rosto aquilo, a despeito de achar-se no seu leito de morte, sobretudo porque ele próprio, Jacó, andara um pouco enamorado de Tamar. Estavam todos ali, e todos, menos Benjamim, que tinha ficado em casa, haviam certa vez vendido Dumuzi ao Egito. Naquela ocasião Jacó era até capaz de mencionar também isso; assim o esperavam e cerravam os dentes dispostos para o que desse e viesse, os filhos de Lia especialmente, pois nenhum deles perdoara ao pai o não ter escolhido, na morte de Raquel, a Lia, sua mãe, como esposa primeira e favorita, mas sim a Bala, escrava de Raquel. Jacó tinha tido certamente seus defeitos e sempre se comportara de maneira arbitrária quando dava larga aos próprios sentimentos. Por isso chegavam a pensar com algum atrevimento que o pai fora tão culpado como eles no caso de José e que faria bem em recordar aquilo antes de aproveitar a ocasião para a sua grande arenga final, durante a qual os cumularia de censuras e exprobrações. Numa palavra: a expectativa da cena que se avizinhava deixava-os recalcitrantes e todos tratavam de pôr má cara antecipadamente. Percebendo-o, José falou-lhes de maneira amistosa. Foi ter com um e com outro, estendendo-lhes a mão e dizendo-lhes: — Vamos a ele, irmãos, e suportemos com toda a humildade o juízo que o nosso querido pai vai proferir a respeito de cada um de nós. Suportemo-lo, se necessário for, com indulgência. Propriamente a indulgência devia descer de Deus ao homem e do pai ao filho; se, porém, ela não faz assim, aos filhos cabe usar de reverente indulgência para perdoar ao maior que se mostra fraco no perdão. Entremos; ele nos julgará procurando ser fiel à verdade, e todos receberemos o que nos toca, inclusive eu mesmo, crede-me.
Entraram então cautelosamente na tenda, entrando com eles o egípcio José. Este não entrou primeiro, conquanto os demais insistissem para que o provedor os precedesse: preferiu seguir com Benjamim atrás dos filhos de Lia e adiante dos filhos das servas. Mai-Sachme, o mordomo, entrou também, já com a justificativa de que desde algum tempo pertencia à história e desempenhava seu papel no aformoseamento da mesma, já porque a reunião era de certo modo pública, e quem quer que desejasse entrar podia fazê-lo. Por isso é que a câmara mortuária estava cheia de gente quando os doze entraram, porque, além de Damasek-Eliézer, o arauto, rodeavam o leito do amo os servos de sua casa, e muitos dos seus descendentes achavam-se ali, de pé ou prostrados. Estavam também as mulheres com suas crianças, algumas dando-lhes o peito. Os rapazes se sentaram nas arcas ao longo das paredes e seu procedimento a princípio não foi lá muito satisfatório, mas todas as irregularidades foram prontamente sanadas. As colgaduras e cortinas que velavam a tenda tinham sido retiradas, de modo que as pessoas dos campos vizinhos e da aldeia de Pa-Kos, que haviam acorrido em grande número, podiam ver perfeitamente o que se passava dentro e, de certa forma, estavam incluídas na reunião. O Sol se punha e a multidão que estava lá fora se perfilava contra um céu crepuscular tingido de um tom alaranjado, formando uma massa sombreada de figuras e caras imprecisas. Mas as duas lâmpadas de azeite colocadas em altos pedestais, à cabeceira e ao pé da cama, derramavam lá de dentro sua luz, fazendo destacar a estranha silhueta de uma descarnada matrona vestida de preto, entre dois homens de ombros muito largos. Seus cabelos grisalhos estavam cobertos com um véu. Era Tamar, a mulher resoluta, com seus valorosos filhos. Não entrara; tinha-se conservado do lado de fora, porque era possível que em seu discurso de morte Jacó mencionasse o pecado que Judá havia cometido com ela. Todavia estava ali presente. Como não havia de estar agora que era chegado o momento em que Jacó ia lançar a bênção sobre aquele ao qual ela se entregara à beira da estrada, colocando-se assim na linha da sucessão? Ainda mesmo sem a luz que as lâmpadas entornavam, seu altivo perfil seria inconfundível contra o céu pálido e chuvoso.
Aquele que noutros tempos a instruíra nas coisas do mundo e na grande história na qual ela se intrometera, aquele que havia convocado essa última reunião, Jacó bem Yitzchak, abençoado antes de Esaú, jazia apoiado sobre suas almofadas, coberto por uma pele de carneiro, no seu leito de morte situado no fundo da tenda, dispondo precisamente de tanta força quanto a ocasião requeria. A palidez de cera da sua pele parecia ligeiramente tingida pela luz crepuscular e pelo resplendor do carvão que ardia numa bacia próxima. Seu aspecto era simultaneamente grandioso e suave. Cingia-lhe a fronte uma faixa branca que ele usava habitualmente quando sacrificava; por baixo dela apareciam alguns anéis das suas cãs que caíam das têmporas até a barba patriarcal que lhe cobria o peito todo, espessa e alva no seu começo, rala e cinzenta mais abaixo. Por entre ela aparecia a boca fina, sábia e com uns traços de amargura. Não movera a cabeça, mas volveu para a porta os meigos olhos de glândulas intumescidas, de maneira que deixaram ver grande parte do globo de um branco amarelento. Com o olhar procurou seus filhos, os doze em número completo, e os presentes se apressaram a abrir caminho para eles até o leito. Damasek e os servos se afastaram, e os que haviam sido gerados do outro lado do Eufrates bem como aquele cuja mãe morrera na terra de Abraão ao dá-lo à luz fizeram uma profunda reverência e, depois de se porem eretos, permaneceram em redor de seu pai e chefe. Fez-se completo silêncio no aposento, e todos os olhares se cravaram nos lábios descorados de Jacó.
Esses lábios se abriram várias vezes num esforço para falar, antes de poderem proferir qualquer palavra. Penosamente e em voz baixa começou o seu discurso e, à medida que falava, sua voz adquiria maior volume e somente no final, quando abençoou Benjamim, foi-se extinguindo aos poucos.
— Sê bem-vindo, Israel — falou —, cinto do mundo, zona do curso, baluarte e dique do céu, ordenado nos quadros sagrados! Eis que vieste aqui na tua legião e te reuniste resolutamente em teu número completo em torno do meu leito de morte, para que eu te possa julgar conforme a verdade e, com a sabedoria da minha hora derradeira, prediga o que te há de acontecer. Louvor a ti, meu anel de filhos, por tua presteza e por tua coragem! Abençoado seja cada um pela mão do moribundo e abençoados sejam todos em conjunto! Abençoa-te minha força que guardei para este instante e abençoa-te por toda a eternidade! Toma nota: o que tenho de dizer a cada um por sua vez será dito dentro do vínculo da bênção geral.
Aqui chegando, deteve-se e moveu por um instante os lábios como se consigo mesmo falasse, mas sem emitir nenhum som. Depois suas feições se contraíram e sua testa se enrugou com o esforço que fez ao juntar as sobrancelhas para combater a fraqueza que o acometia.
— Rubem! — disse com voz imperiosa.
O homem descomunal avançou com suas pernas cingidas como fortes colunas. Tinha a cabeça completamente branca e sua cara vermelha e rapada era como a de um menino à espera da repreensão e pronto para chorar. Os olhos com as pálpebras inflamadas não cessavam de piscar debaixo das sobrancelhas brancas; as comissuras da boca estavam contraídas com tanta amargura, tão violentamente que formavam grossas rugas aos lados. Ajoelhou-se à beira da cama e curvou-se sobre ela.
— Rubem, tu és o meu primogênito — começou Jacó —, minha fortaleza e o princípio do meu vigor, principal na dignidade e grande no privilégio, pois teu foi o direito de primogenitura. Foste o mais alto no círculo, o mais próximo ao sacrifício, o mais vizinho da realeza. Mas foi por engano. Um deus pagão mo advertiu em sonho, no campo. Era um bicho, metade rapaz, metade cão, de belas pernas, sentado sobre uma pedra. Foste gerado por engano, gerado com a falsa, dentro da noite, para a qual tudo é o mesmo e que não sabe fazer distinções no amor. Assim te gerei, meu primogênito, na noite desabrida, com a falsa, a forte; gerei-te enganado. A ela dei a flor, mas tinha havido uma troca, o véu fora mudado e a luz do dia me mostrou que eu apenas havia gerado quando erroneamente julgara amar, e meu coração e minhas entranhas se revolveram e eu desesperei da minha alma.
Durante alguns momentos não se entendiam suas palavras: movia os lábios e falava, mas sem emitir som algum, de si para si. Depois recuperou a voz, ela tornou-se mais sonora que antes, e parte do tempo falou de Rubem na terceira pessoa, já não se dirigindo a ele.
— Brotou como água — disse. — Como água jorrando de um pote. Não será ele o principal, o esteio da minha casa. Não terá a preeminência porque subiu ao leito de seu pai e, assim fazendo, manchou esse leito. Pôs a descoberto e escarneceu a vergonha de seu pai, chegou-se a ele com a foice e cometeu maldade com sua mãe. Como Cam, é negro de cara e anda nu com a sua vergonha nua, porque se portou como o dragão do lodo e seguiu os usos do hipopótamo. Escutas, princípio do meu vigor, o que te digo? Maldição sobre ti, meu filho, quero dizer, maldição dentro da extensão da bênção! A primazia te é arrebatada, revogado o sacerdócio e anulada a dignidade do poder; como não és digno da chefia, o direito de primogenitura te é arrebatado. Viverás do outro lado do mar Salgado; limitarás com Moab. Tuas ações são fracas e teus frutos pecos. Graças te rendo, meu filho mais velho, por teres vindo a esta reunião com ânimo intrépido e haveres-te submetido corajosamente ao julgamento. Entre os pastores és como uma torre e moves tuas pernas como as colunas vivas de um templo, pois eu dispersei minha primeira força e vigor com tanta exuberância na loucura da noite. Recebe a maldição de um pai e adeus!
Aqui parou e o velho Rubem voltou às filas, com todos os músculos de seu rosto contraídos, imponente de dignidade e com os olhos baixos, tal como costumava baixá-los sua mãe para ocultar seu estrabismo.
— Os irmãos! — ordenou em seguida Jacó. — Os gêmeos, inseparáveis no céu!
Simeão e Levi curvaram-se diante dele. Tinham setenta e sete e setenta e seis anos de idade (porquanto na realidade não eram gêmeos, eram apenas inseparáveis), mas tinham conservado de um modo notável sua aparência rude e seu ar feroz.
— Oh, oh, que pujantes, que marcados de gilvazes e cicatrizes pelo corpo! — exclamou o ancião, que até se chegou um pouco para trás, como se lhes tivera medo. — Eles beijam os instrumentos da crueldade, e nada quero saber deles, pois não amo a crueldade. E o que digo a esses selvagens. Que minha alma não tome parte nos seus conselhos nem minha honra se meta com a deles. Na sua sanha mataram o homem e por capricho mutilaram o gado. Por isso a maldição dos prejudicados caiu sobre eles e ficaram marcados para a destruição. Que disse eu a eles? Maldita seja sua ira que foi tão feroz e seu furor que foi tão implacável! Foi o que eu vos disse. Sede malditos, meus queridos, malditos dentro da bênção! Sereis divididos e espalhados para que nunca mais tomeis a cometer erros juntos. Sê dispersado em Jacó, meu Levi. Teu será, contudo, um destino e uma terra, intrépido Simeão, porém vejo que não permanece independente, mas é consumido em Israel. Ocupa agora teu lugar no fundo, astro duplo, depois de teres escutado a segunda visão do leito de morte do abençoado. Ide-vos!
Assim o fizeram, não de todo transtornados com o julgamento. Havia muito que sabiam qual seria este e não esperavam nada melhor. O fato de ter sido exposto uma vez mais e numa reunião pública não os perturbava, pois todo mundo o sabia de antemão e, por outro lado, eles continuavam sendo “Israel”. Sua rejeição não podia sair de dentro dos limites da bênção coletiva. De mais a mais, tanto eles como todos os presentes partilhavam a opinião de que a repulsa é um destino como outro qualquer e possui sua dignidade própria. Toda condição é uma condição honorífica — era este o ponto de vista deles, e era também o dos demais. E, afinal, era evidente que parte do que seu pai dissera não se referia a eles, mas à constelação dos Gêmeos. Quer graças ao seu gosto pelas alusões, quer à confusão mental oriunda do seu estado, à qual solenemente se entregava, tinha-os misturado com os Gemini e trazido à baila alusões babilônicas conhecidas de todos, até dos rapazelhos sentados ali sobre as arcas ao longo das paredes. De modo deliberado e insistente havia-os por vezes confundido com Gilgamech e Eabani, personagens celebrados na epopeia, os quais na sua fúria por causa de sua irmã despedaçaram o touro celeste e por esse crime foram amaldiçoados por Istar. Eles não tinham prestado especial atenção aos touros de Siquém, cidade que fora o cenário da carnificina, nem se lembravam de haver mutilado nenhum. Jacó, porém, tinha tido desde o começo aquela ideia fixa acerca de um touro e a mencionava cada vez que volvia ao assunto. Pode alguém, todavia, ser mais honorificamente amaldiçoado que sendo confundido com os Dioscuros, com o Sol e a Lua? E essa uma rejeição que se pode deixar passar mesmo em público, pois que é apenas meio pessoal, sendo a outra metade forjada pela fantasia de um moribundo.
E necessário acentuar aqui que muitos dos juízos proferidos por Jacó a respeito de seus filhos andavam misturados daquele modo com alusões astrais. Elas conferiam elevação ao seu discurso, ao mesmo tempo que lhe davam um como toque de imprecisão humana. Era conjuntamente fraqueza e premeditação, com muito de premeditação na fraqueza. Havia uma insinuação de Aquário no que ele dissera a Rubem. Veio depois a vez de Judá, e de tal forma se exauriu Jacó na decisiva e tremenda bênção que sobre ele lançou, que depois dela teve de invocar repetidamente a Deus em sua ajuda, receando não poder durar até o final e sobretudo não chegar até José. Judá sempre tinha sido chamado o Leão. Mas as palavras dirigidas a ele ao morrer, Jacó as bordou incansavelmente com esse epíteto e pintou o atormentado Judá de maneira tão explicita na forma leonina que nenhum dos presentes pôde deixar de reconhecer a alusão zodiacal. Uma boa quantidade de Câncer tocava a Issacar; a constelação dos pequenos asnos que se encontra neste signo no zodíaco foi posta em conexão cósmica com o seu apodo diário de “asno ossudo”. Em Dan toda a gente adivinhou a Libra ou Balança, metáfora da lei e da justiça, ainda que a ele dizia também respeito a najá. Quanto a Neftali, suas pernas de cervo correspondiam, de uma forma que se tornou inteligível para todos os presentes, a Aries. O próprio José não constituiu uma exceção. Pelo contrário, era dupla, no que a ele se referia, a metáfora astral, alternando-se nela a Virgem e o Touro. O julgamento a respeito de Benjamim pareceu estar na dependência do Escorpião, e o bondoso homenzinho foi declarado lobo arrebatador só porque o Lobo se acha ao sul do signo, perto do aguilhão do rabo.
Aqui foram mais evidentes a coloração mitológica sideral, e a abstração da parte pessoal, que tornaram mais fácil para os gêmeos suportar com equanimidade a sua condenação. Eles viveram numa época antiga mas também numa época avançada; a certos respeitos, possuíam bastante visão, por exemplo, para apreciar o caráter não de todo digno de confiança das profecias proferidas daquele leito de morte. O olhar que todo aquele que deixa esta vida costuma dar ao futuro é impressionante e santificado, e convém depositar-se nele muita fé. Contudo, essa fé não deve ser excessiva porque nem sempre é plenamente justificada e parece que a condição extraterrena da morte costuma ser ao mesmo tempo uma fonte de erro. Jacó cometeu alguns erros solenes, como também proferiu alguns vaticínios, os quais vieram a ser assombrosamente exatos. Os descendentes de Rubem nunca foram grande coisa e a estirpe de Simeão nunca foi independente, sendo absorvida pela de Judá. Em compensação, Jacó foi evidentemente incapaz de prever na sua derradeira hora que o sangue de Levi alcançaria a mais alta honra com o tempo e obteria a eleição permanente ao sacerdócio, como sabemos nós que estamos simultaneamente dentro da história e fora dela. A este respeito e a alguns outros, as profecias que enunciou foram um grande fracasso. De Zabulon disse que habitaria na praia do mar e no ancoradouro dos navios, sendo Sidônia o seu limite. Isso não era difícil de adivinhar, dada a conhecida afeição de Zabulon ao oceano e ao cheiro de breu. Mas a localização da sua tribo não esteve junto à água verde nem lindou jamais com Sidônia; esteve entre Sidônia e o mar de Galileia, separada deste último pela porção de Neftali, e do mar pela de Aser.
Erros destes são valiosos para nós, pois há muita gente maliciosa que afirma que o discurso da bênção de Jacó foi composto depois da época de Josué e não podia ser considerado senão como “profecia posterior ao acontecimento”. Diante disto podemos encolher os ombros não só porque nós outros estamos presentes junto ao leito mortuário e escutamos as palavras do moribundo com os nossos ouvidos, senão também porque para profecias aventadas à base dos fatos históricos já ocorridos é fácil evitar quaisquer erros. A melhor demonstração do caráter genuíno de uma profecia é precisamente sua não-realização.
Em seguida Jacó chamou Judá para junto de si. Foi um grande momento aquele. Dentro da tenda e fora dela reinava profundo silêncio. Raras vezes sucede que um grupo tão numeroso possa guardar um silêncio tão profundo e absoluto, tão completa imobilidade. O ancião ergueu a mão pálida na direção do seu quarto filho, e Judá permaneceu ali envergonhado até o fundo do seu ser, curvando a cabeça sobre a qual pesavam setenta e cinco janeiros. Jacó apontou para ele um dedo dizendo:
— Judá, és tu o escolhido!
Sim, era ele, o torturado, o homem totalmente indigno, segundo sua própria opinião, o escravo da deusa, que não desejava o desejo mas era presa do desejo, o homem pecador e religioso ao mesmo tempo. Poder-se-ia supor que aos setenta e cinco anos aquela escravidão ao desejo já não possa ser muito dura. Quem tal supõe labora em equívoco. Ela perdera até o último suspiro. A lança pode embotar-se mais ou menos, mas nunca se ouviu dizer que a ama liberte seu escravo; isto nunca acontece. Profundamente abatido, Judá se inclinou para receber a bênção. E então aconteceu qualquer coisa de estranho: à medida que a maré passava por cima dele e o óleo da promessa era derramado sobre a sua cabeça, seus tumultuosos sentimentos se acalmaram, ele foi escutando e, cada vez mais ufano, disse de si para si: “Ora veja, apesar de tudo! Com que então não foi tão mal e, ao que parece, não influi na bênção. Talvez não se haja de tomar tão a sério a coisa... talvez que a pureza a que eu aspirava não era tão indispensável para a salvação; talvez tudo deva entrar nela, inclusive o inferno. Quem o teria imaginado! Porque o azeite goteja sobre a minha cabeça neste momento. Deus tenha misericórdia de mim, mas eu sou o escolhido!”
O azeite não gotejava; corria a frouxo. Jacó se esgotou de uma forma temerária quando abençoou Judá; o esforço por ele então despendido foi causa de que vários irmãos fossem despachados com uma rápida e vaga menção e de que sua voz vacilasse debilmente ao fazê-la.
— Tu és o escolhido, Judá! Tua mão subjugará a cerviz de teus inimigos, teus irmãos te adorarão. Os filhos de teu pai e os de todas as mães louvarão em ti o ungido! — Seguiu-se a ladainha do leão. Durante bastante tempo falou de leões, enunciou tremendas metáforas relacionadas com leões. Judá era um cachorro de leão, provinha da ninhada de uma leoa, era um verdadeiro rei de animais, da presa se levantava, voracíssimo; bufava, rugia. Para a sua deserta montanha se redrou, lá se deitou e se estirou como um rei de juba, como o filho de uma feroz leoa. Quem se atreverá a despertá-lo? Ninguém. Era assombroso ver o pai louvar como feras devoradoras os filhos que abençoava, enquanto culpou sem dó nem comiseração aqueles que não abençoou, exatamente por terem eles familiaridade com os instrumentos da crueldade. Assim como, por causa da sua debilidade de moribundo, vira a si mesmo no papel de um herói com espada e arco, elogiou seus filhos, primeiro o atormentado Judá e depois o mais moço Benjamim como guerreiros selvagens e animais carniceiros que se regozijavam com o sangue. E que, por uma circunstância curiosa, o tipo brando e intelectual costuma ter um fraco pelo tipo heroico.
Contudo, Jacó não visava ao heroísmo rapace naquela cena que tinha Judá como principal figura. O herói que tinha em vista, aquele a quem procurava havia muito tempo, não era dos que pela sua valentia berrante arrebatam os fracos. Seu nome era Shiloh. Dos leões até ele havia um largo trecho; por isso o velho fez uma transição na sua bênção introduzindo um grande rei. Esse monarca estava sentado no seu trono, com o cetro entre os pés, e não devia mover-se nem ser afastado dali enquanto não aparecesse “o herói”, enquanto não chegasse Shiloh. Para Judá, o rei com o cetro entre os pés, aquele nome de promessa era inteiramente novo; na verdade, aquilo foi uma surpresa para todos os presentes, que o ouviram com espanto. Só uma pessoa entre as que ali se achavam o sabia e tinha esperado ansiosamente ouvi-lo. O nosso olhar se volta instintivamente para a figura perdida nas sombras. Ali permanecera ela ereta, resplandecendo de orgulho, para ouvir Jacó anunciar a descendência da mulher. De Judá não passaria para outro o favor, ele não havia de morrer, seus olhos não se fechariam até sua grandeza fazer-se imensa, porque dele ia sair um de quem todos os homens deviam depender, o portador da paz, o homem da estrela.
Desse modo prosseguiu além de toda a expectativa sobre a cabeça abatida de Judá. Sua própria figura, ou melhor, sua tribo, se misturava — quer fosse intencionalmente, quer como resultado de uma confusão mental ou talvez por ambas as coisas, isto é, sendo a confusão empregada para acentuar o sublime efeito poético —, misturava-se e fundia-se com a figura de Shiloh, de sorte que, ao surgir aquela visão da plenitude da bênção e da graça, ninguém soube se Jacó estava falando de Judá ou do prometido. Tudo nadava em vinho; tudo brilhava com o rubro esplendor do vinho diante dos olhos da tribo que escutava. O reino daquele monarca era um país onde atavam à vinha o seu jumentinho e à videira a sua jumenta. Seriam as vinhas de Hebron, os parreirais de Engadi? Na sua cidade entrava “ele” montado num jumento e no poldro de uma jumenta de carga — e outra coisa não havia senão o ébrio desejo de vinho rubro despertado só de vê-lo, sendo ele próprio uma espécie de ébrio deus do vinho, pisando com entusiasmo o lagar e tendo o saiote arregaçado; lavou sua túnica no vinho e sua capa no sangue da uva. Pisando o lagar, dançando e banhando-se no vinho, via-se formoso, mais formoso que a humanidade toda, branco como a neve, rubro como o sangue e negro como o ébano.
A voz de Jacó sumiu-se. Sua cabeça se inclinou sobre o peito e o olhar voltou-se para cima. Aquela bênção o extenuara. Parecia estar pedindo numa prece que se lhe renovassem as forças. Percebendo que sua bênção havia chegado ao seu termo, Judá retrocedeu assombrado e envergonhado ao comprovar que a impureza não era um obstáculo. Não puderam os presentes reprimir sua agitação diante da anunciação de Shiloh, diante daquela revelação totalmente inesperada e de todas as declarações que essa bênção trouxera consigo. Cresceu um murmúrio dentro da tenda e fora dela. Do lado de fora ouviram-se mesmo vozes repetindo alvoroçadamente o nome de Shiloh. Mas tudo cessou quando Jacó ergueu de novo a cabeça e o nome de Zabulon lhe assomou aos lábios.
Zabulon colocou sua cabeça debaixo da mão do moribundo. Como seu nome significava ao mesmo tempo morada e habitação, a ninguém surpreendeu ouvir Jacó indicar-lhe uma habitação e morada: em portos de mar habitaria, perto dos tesouros dos navios, sendo Sidônia o seu limite. Muito bem: aquilo era o que Zabulon sempre tinha desejado e agora o recebia daquela voz fatigada e quase mecânica. Quanto a Issacar...
Issacar seria como um asno ossudo deitado no meio do curral. Os burricos do Câncer eram seus padrinhos, mas, apesar dessa relação, Jacó não parecia esperar muito dele. Falou concisamente de Issacar e no tempo passado, o que equivalia ao futuro. Issacar viu que o descanso era bom e que a terra era excelente. Era homem robusto e fleumático. Não se lhe dava de fazer-se burro de carga. Servir era-lhe fácil e por isso inclinava os ombros para receber o fardo. Isso pelo que diz respeito a Issacar. Ele tocou no Jordão, conforme Jacó declarou estar vendo. E dele basta. Depois foi a vez de Dan.
Dan levava a balança e julgava com sabedoria. Tinha um espírito e uma língua tão sutis que era como uma víbora que ferra os colmilhos. De dedo erguido, Jacó aproveitou a ocasião para dar a seus ouvintes uma liçãozinha de zoologia: no princípio, quando Deus criou os animais, cruzou o ouriço com o lagarto e assim produziu a cerasta. Dan era uma cerasta. Era uma víbora junto ao caminho e uma cerasta na vereda, não facilmente visível na areia e fértil em manhas. Nele o heroico revestia a forma de perfídia. Ele mordia as unhas do cavalo, fazendo cair de costas o cavaleiro. Tal era Dan, o filho de Bala. “Tua salvação espero, ó Senhor!”
Extenuado, Jacó deu um suspiro e disse uma curta prece, receoso de não poder chegar até o fim. Tinha gerado tantos filhos que na sua última hora o número deles quase excedia as forças do pai. Mas, com a ajuda de Deus, havia de sair vencedor.
Chamou o atarracado Gad, cujas vestes tinham guarnições de bronze.
— Gadiel, um exército te acometerá, mas no fim tu o acometerás a ele. Firmeza, meu sólido filho! Agora Aser!
A Aser, o glutão, deu terra gorda da montanha até a próxima Tiro. As planícies estavam cheias de trigo ondulante e tinham azeite em profusão, de forma que seu pão seria também gordo e Aser fabricaria finos unguentos daqueles que os reis enviam uns aos outros para mútuo prazer. De Aser vinha o prazer e o amor ao asseio do corpo, o que também significa alguma coisa. “Hás de ser alguém, Aser. E como de ti vieram as canções e as alegres notícias, sê por isso louvado antes de teu irmão Neftali, a quem chamo agora para debaixo da minha mão.”
Neftali era uma corça saltadora de fossos. Tinha passos ágeis e era um bode veloz quando recolhe os chavelhos e arremete para a frente.
Sua língua também era expedita, ela dava informação rápida e os frutos da planície de Genesaret amadureciam depressa. “Tuas árvores, Neftali, sejam cheias de frutos que amadurecem velozmente, e êxito rápido, conquanto não de grande importância, seja teu destino e tua sentença.”
Recebida a bênção, Neftali também voltou à fila. O ancião descansou com os olhos fechados, num profundo silêncio, com a barba sobre o peito. Ao cabo de um instante sorriu. Todos viram aquele sorriso e se comoveram, pois sabiam a quem era dirigido. Era um sorriso feliz, um sorriso manhoso, com uns longes de tristeza; manhoso precisamente porque a ternura e o amor contidos nela superavam a tristeza e a renúncia. “José!”, disse o ancião. E um homem de cinquenta e seis anos, que também tinha tido trinta e dezessete e nove, e estivera deitado no berço como um cordeiro da ovelha mãe, um filho do seu tempo, formoso de rosto, trajando alvas vestes egípcias, com o anel azul celeste de Faraó no dedo, favorito da fortuna, curvou-se debaixo da lívida mão que abençoava.
— José, rebento meu, filho da virgem, filho da mais cara, filho da árvore frutífera junto à fonte, ramo florido que se estende pelo muro, eu te saúdo! A ti pertence o equinócio da primavera, touro primogênito no seu esplendor, a ti saúdo!
Jacó pronunciara com voz clara e sonora aquelas palavras solenes que deviam ser ouvidas por todos. Depois baixou-a quase a um sussurro, com o evidente propósito se não de isolar o público, ao menos de restringir seu número durante esta bênção. Somente os que estavam mais próximos escutaram as palavras de despedida que dirigiu ao separado; os que estavam mais distantes pegaram apenas uma ou outra palavra e os que se achavam do lado de fora não ouviram nada durante alguns instantes; mas depois tudo o que disse foi repetido mais de uma vez, repetido e comentado.
— Meu muito amado! — disseram os lábios com um doloroso sorriso. — Eleito e preferido pelo coração ousado em atenção à única amada, que viveu em ti e com cujos olhos me estás mirando como ela me olhou uma vez junto do poço, quando surgiu entre as ovelhas de Labão e eu arredei a pedra do poço para ela. Ela deixou que eu a beijasse e os pastores gritaram exultando: “Lu, lu, lu!” em ti, querido, a conservei quando o Todo-poderoso a afastou do meu lado; ela sobreviveu na tua beleza, e que coisa é mais doce do que o que é duplo e duvidoso? Eu bem sei que o que é duplo não é do espírito que nós defendemos, mas é a loucura dos povos. E contudo eu cedi ao antigo e poderoso feitiço. Pode alguém ser algum dia e inteiramente do espírito e evitar a loucura? Eis que eu mesmo agora sou duplo, sou Jacó e sou Raquel. Sou Raquel, que a duras penas se afastou de ti para a terra que a chamava e que hoje chama também a mim para afastar-me de ti; ela nos chama a todos. Tu também, minha alegria e minha preocupação, já realizaste metade da viagem para essa terra e, sem embargo, uma vez foste pequeno e depois jovem, foste tudo quanto o meu coração soube compreender de beleza e encantamento. O meu coração era severo, mas brando; por isso foi fraco diante da beleza. Chamado às alturas e ao espetáculo dos precipícios cheios de arestas como os diamantes, amei secretamente as colinas suaves.
Sua voz falhou durante alguns minutos, enquanto jazia sorridente, com os olhos fechados, como se o seu espírito vagasse pela encantadora e amena paisagem que ante eles surgira ao dar a bênção a José.
Quando de novo começou a falar, parecia ter esquecido que a cabeça de José estava debaixo da sua mão, porque dele falou como de uma terceira pessoa.
— Dezessete anos viveu comigo e depois, pela misericórdia divina, outros dezessete; entre eles jazeu minha rigidez e o destino do separado. Estiveram eles armando ciladas à sua formosura e isto foi insensato, porquanto sabedoria e formosura andaram intimamente concordes. Nisto seu ardente desejo viu-se frustrado. Mais atraentes do que nunca são as mulheres que trepam bem alto para olhar para ele do alto das casas, das torres e janelas, sem, no entanto, lograrem o que queriam. Eis que os homens lhe tornaram árdua a vida e acometeram-no com as setas da maledicência. Mas o arco dele manteve-se forte, fortaleceram-se os seus músculos e as mãos do Eterno o sustentaram. Não sem emoção será recordado o seu nome, pois que conseguiu o que poucos conseguiram: encontrar favor diante de Deus e dos homens. Esta é uma bênção muito rara, porquanto as mais das vezes tem-se a escolha de agradar ou a Deus ou ao mundo; mas a ele foi dado o espírito de encanto e mediação com que agradou tanto a Deus como ao mundo. Não fiques orgulhoso, meu filho. Será necessário que eu te advirta? Não. Eu sei que a tua sagacidade te salva da presunção. Porque é uma bênção encantadora, mas não a mais alta nem a mais séria. A tua vida querida jaz aberta na sua verdade diante do olhar moribundo. A tua vida foi jogo e brinquedo, foi familiar e dotada da amistosa qualidade de atrair as simpatias, esteve próxima da salvação sem ser propriamente uma vocação ou um dom. Meu coração sente-se inundado de amor à vista desta mistura de alegria e de tristeza; ninguém pode amar-te, meu filho, nem ver, como pode vê-lo o coração de um pai, a tristeza, mas unicamente o brilho da tua vida. Por isso eu te abençoo, abençoado, com toda a força do meu coração e em nome do Eterno que te deu e tomou e te deu de novo e agora me separa de ti. Mais alto subam minhas bênçãos do que as bênçãos de meus pais sobre minha própria cabeça. Sê bendito, como já és, com as bênçãos do alto céu, com as bênçãos do abismo inferior, com as bênçãos que jorram dos seios do céu e das entranhas da Terra! Bênçãos, bênçãos sobre a cabeça de José e com o teu nome fulgirão aqueles que de ti procederem. Por toda parte brotarão abundantes canções cantando a história da tua vida, sempre e sempre, porque ela foi afinal um drama sagrado e tu sofreste e pudeste perdoar. Por isso te perdoo também por me teres feito sofrer. E que Deus nos perdoe a todos!
Assim concluiu e hesitante retirou sua mão de cima daquela cabeça. Desse modo uma vida se separa de outra e deve terminar; mas em breve a outra também se irá.
José voltou para junto de seus irmãos. Não andara errado quando dissera que havia de receber o seu quinhão e que seria julgado com a veracidade dos que morrem. Em seguida tomou com as mãos ambas a Benjamim e o levou para diante, visto o ancião ter deixado de chamá-lo. Evidentemente Jacó achava-se no fim de suas forças e José teve de guiar sobre a cabeça do irmãozinho a mão que abençoava, porque, sem alheia ajuda, ela não poderia encontrar o seu caminho. Provavelmente o moribundo sabia que quem agora aguardava a sua sentença era o mais moço, mas o que seus lábios débeis murmuraram pouco teve que ver com o homenzinho, e talvez conviesse mais aos seus descendentes. Segundo o que todos ouviram, Benjamim era um lobo arrebatador que pela manhã devoraria a presa e à tarde repartiria os despojos. Benjamim ficou perplexo com o que ouviu.
O último pensamento de Jacó voltou então à cova, à cova de dois repartimentos situada no campo de Efron, filho de Seor, e ao seu desejo de ser sepultado ali entre seus pais. “Ordeno-vos”, disse com um sopro. “Está paga, pagou-a Abraão aos filhos de Heth com quatrocentos siclos de prata, pesados como é...” Aqui o interrompeu a morte, estendeu os pés, afundou-se no leito e sua vida parou.
Todos contiveram a respiração e pareceu que também suas vidas se houvessem detido por alguns instantes. Então Mai-Sachme, o mordomo de José, que era também médico, se aproximou silenciosamente da cama. Colocou o ouvido junto do coração parado, observou com a boca franzida uma pena que havia colocado sobre os lábios mudos — a pena não se agitou —, e ateou uma chamazinha diante da pupila que não reagiu. Voltou-se então para José, seu amo, e anunciou-lhe:
— Foi unir-se ao seu povo.
Com um gesto de cabeça, José lhe indicou Judá, a quem devia fazer o anúncio e não a ele. E, enquanto o bom homem se dirigia a Judá, repetindo-lhe: “Foi unir-se a seu povo”, José aproximou-se do leito e fechou os olhos do morto, pois com este propósito fizera aquele aceno a Mai-Sachme encaminhando-o a Judá. Depois pousou a sua fronte junto da fronte do pai e chorou amargamente.
Judá, o herdeiro, começou a tomar as necessárias providências: deu ordem para que fossem convocados carpidores e carpideiras, cantores e cantoras, bem como flautistas, e que o corpo fosse lavado, ungido e envolto. Damasek-Eliézer acendeu uma oferenda de perfumes no aposento, feita de estoraque, azeite de unha de vaca proveniente do mar Vermelho, gálbano e incenso misturado com sal. E, enquanto as nuvens aromáticas vagavam em torno do morto, os hóspedes saíram, misturando-se com os que se achavam fora, e se retiraram discutindo ansiosamente o julgamento e a sentença que Jacó proferira sobre cada um dos doze.
JACÓ ENFAIXADO
E desse modo agora a história, grão de areia por grão de areia, foi passando caladamente pelo gargalo da ampulheta e depositando-se no fundo, num montículo, ficando ainda por passar uns poucos grãos apenas. De todos os acontecimentos nada mais resta a relatar senão o que se fez com um defunto. E, contudo, isto não é pouco, e bem faríeis em olhar reverentes enquanto os derradeiros grãos deslizam e caem suavemente sobre o montículo de baixo. Porque o que aconteceu ao invólucro mortal de Jacó foi extraordinário, foi um processo honorífico quase único no seu gênero. Nunca nenhum rei foi conduzido à sua última morada como o foi Jacó, o homem majestoso, por mandado e disposição de seu filho José.
Verificado o desenlace, José deixou, como era natural, a Judá, o herdeiro da bênção, as primeiras e imediatas providências, porém, depois, se ocupou pessoalmente do assunto, uma vez que só ele podia fazê-lo, e tomou certas medidas com a aprovação dos irmãos, que apressadamente se reuniram em conselho e deram o seu consentimento a tudo. As medidas se acomodaram às circunstâncias — à ordem e última vontade de Jacó — e José folgou que assim fosse, porque o separado pensava como egípcio e era seu ardente desejo honrar seu pai da maneira melhor e mais dispendiosa, adaptando-se de um modo natural ao pensamento egípcio.
Jacó não quis ser sepultado no país dos deuses mortos. Fez com que o filho jurasse que lhe dana sepultura na sua terra, junto de seus pais na cova onde eles descansavam. Isto importava uma longa viagem, para a qual José tinha planos extravagantes, de vasto alcance, e que exigiam certo tempo para serem levados a cabo. Antes de tudo, era mister tempo para o próprio transporte, o que significava um período de pelo menos dezessete dias. Para este intento tinha-se de conservar o corpo, conservá-lo mediante a arte do Egito, era preciso embalsamá-lo; e se aquele que acabava de partir deste mundo tivesse repugnância por semelhante ideia, deveria abster-se de insistir em que o trasladassem para a sua terra. A sua própria ordem rezava que ele não devia ser sepultado no Egito; ora, para isso, cumpria sepultá-lo à maneira egípcia, devendo ser esplendidamente empalhado e enfaixado como uma múmia de Osíris. A ideia pode ser desagradável a alguns de nós. E que nós não vivemos, como seu filho José, quarenta anos no Egito, nem nos embebemos do espírito e da seiva daquele estranho país até eles constituírem a medula e a essência do nosso ser. Para ele foi uma alegria, uma consolação no meio da sua dor que a última vontade de seu pai lhe permitisse tratar os restos mortais deste de acordo com os costumes mais honrosos e requintados do país e conferir-lhes uma permanência que só se podia conseguir mediante métodos muito dispendiosos.
Portanto, assim que esteve de volta a sua casa em Menfe, onde passou o período do nojo, enviou a Gessen uns homens a quem os irmãos chamaram seus “médicos”. Na realidade, eles não eram médicos mas embalsamadores profissionais, mestres na arte de conservar eternamente os mortos; eram os mais procurados e peritos nesse oficio que então viviam — e não por mera casualidade — na cidade de Menfe. Foram acompanhados de pedreiros e carpinteiros, ourives e gravadores, que se puseram a trabalhar perto da tenda da morte, enquanto dentro dela os “médicos” faziam no corpo o que os irmãos chamavam untura. Mas não era esta a palavra própria. Extraíram o cérebro pelas fossas nasais com um ferro curvo e encheram com especiarias o espaço vazio formado no crânio. Tinham um cutelo etíope, feito de obsidiana e extremamente afiado, que manejavam com grande elegância, de dedos esticados, para abrir o lado esquerdo do abdome e remover as entranhas. Estas foram conservadas em vasos especiais de alabastro que tinham desenhado na tampa uma espécie de retrato do morto. A cavidade foi cuidadosamente lavada com vinho de tâmaras e, no lugar dos intestinos, colocaram os melhores materiais: mirra e casca aromática do renovo de um loureiro. Aqueles homens se orgulhavam da sua perícia, pois a morte constituía sua especialidade e tinham gosto em deixar o corpo de um homem mais limpo e atraente do que fora em vida.
Depois coseram cuidadosamente o que haviam cortado e colocaram o cadáver num banho de nitro pelo espaço de setenta dias. Durante esse tempo estiveram descansando, comendo e bebendo, enquanto recebiam altos salários por hora. Quando expirou o prazo e o corpo foi salgado, teve começo a operação do amortalhamento, tarefa bastante difícil. Envolveram o corpo de Jacó com faixas de bisso de quatrocentas varas de comprimento untadas de goma, intermináveis tiras de linho, colocando o mais fino mais próximo ao corpo, em torno deste e ao comprido, uma sobre a outra. No encarquilhado pescoço colocaram um colar de ouro e no peito outro adomo que representava um abutre de asas estendidas, feito de ouro, em baixo-relevo.
E que, durante os setenta dias de descanso, outros artistas tinham continuado seu trabalho fabricando aqueles ornamentos; fizeram também faixas de lâminas de ouro nas quais estava escrito o nome do morto com frases encomiásticas. Estas foram colocadas em redor das faixas, em volta dos ombros, da cintura e dos joelhos e atadas a outras tiras de ouro colocadas verticalmente na frente e nas costas. Não contentes com isto, o que outrora tinha sido Jacó e se transformara num adornado e perdurável boneco da morte, purificado de toda a corrupção, foi envolto, da cabeça aos pés, em delgadas lâminas flexíveis do mais puro ouro, e depois foi depositado num aron, numa caixa em forma de figura humana que os pedreiros, joalheiros e escultores haviam fabricado sob medida e que estava ricamente decorada com pedras preciosas e pasta vítrea. A figura de Jacó se encaixava ali à maravilha, a cabeça exterior estava lavrada em madeira e coberta com unia máscara feita de uma grossa lâmina de ouro com a barba de Osíris.
Assim procederam com Jacó, com toda a honra e esplendor, não inteiramente de acordo com os seus desejos, mas com os de seu filho aclimatado no Egito. Todavia, provavelmente não está mal fazer as coisas de acordo com os sentimentos daquele que ainda tem vivas no corpo as entranhas, pois para o outro nada disto tem a menor importância.
Honrar seu paí na morte e fazer do seu último desejo o pretexto para uma grande pompa, tal era o mais caro desejo de José e o móbil de todos os seus atos. Enquanto o corpo ia sendo preparado para a viagem, o Exalçado dera os passos necessários para tornar aquela expedição uma cerimônia memorável, um triunfo de espavento. Para tanto necessitava do consentimento de Faraó; porém o nojo oficial e o descuido da sua pessoa, obrigatório durante algumas semanas, o impediram de falar na presença do monarca. Por isso enviou-lhe uma embaixada, à cidade do horizonte no chamado distrito da Lebre, suplicando ao formoso filho de Aton permissão para acompanhar o corpo de seu pai além da fronteira, até a terra da sua última morada.
A Mai-Sachme, seu mordomo, cometeu José aquela missão, a fim de proporcionar ao bom do homem a oportunidade de figurar na história até o fim. Na verdade podia confiar na lealdade de Mai-Sachme e em seu tato para cumprir aquela missão diplomática que significava obter de Faraó ordens que só podiam ser-lhe insinuadas, não solicitadas. Aquilo equivalia a obter seu consentimento para um funeral oficial altamente solene para o progenitor do seu primeiro servo, em outras palavras, para fazer que o monarca ordenasse a realização do que era chamado um “Grande Préstito”.
Aqui podemos ver mais uma vez como o cordeiro de Raquel se havia familiarizado com os costumes egípcios. O “Grande Préstito” era um conceito peculiar do Egito, uma festa e um cerimonial predileto dos filhos de Kerne. Da ordem de Jacó tirara José não somente a conclusão de que lhe cumpria embalsamar o corpo de seu pai pelo mais alto preço, mas também de que devia organizar um cortejo de proporções tais que se tornaria famoso para lá do Eufrates e das ilhas do mar. Essa procissão devia rivalizar com a mais célebre embaixada que algum dia tivesse sido enviada a Babel, Mitani ou ao rei Chatuchili das terras de Chatit, e ser digna de figurar nos anais do reino para a posteridade. Para isto era necessário que Faraó lhe concedesse uma permissão oficial por setenta dias, a fim de que ele, com seus onze irmãos, seus filhos e os filhos de seus irmãos, conduzisse seu pai até sua tumba, atravessando a fronteira e indo pelo caminho especial que para isso escolhera. Isto, porém, era somente uma parte, a parte menos importante do programa, pois que até esse ponto não constituía aquilo um “Grande Préstito”, não era uma procissão real, e o mundano filho de Jacó se propunha levar o pai até seu túmulo como são levados para os seus os reis. Era preciso que Faraó consentisse e dirigisse; devia ordenar um séquito composto de representantes oficiais, da corte e de militares, o que exigiria uma considerável força de tropas que devia estender-se por todo o imenso trajeto do deserto. E, com efeito, essa ideia veio a Faraó; assim o dispôs o soberano depois que o mordomo falou diante dele. Deu ordens nesse sentido, instigado em parte por seus sentimentos e pelo desejo de mostrar amor e mercê a seu servo mais benemérito, que tanto havia feito por ele. Mas fê-lo também por temor de que, se José não fosse protegido pelo poder do Egito, até o seu país de origem, poderia não regressar. Que Meni temia seriamente essa hipótese e que José percebeu tal receio depreende-se das palavras que a tradição básica lhe põe na boca quando se entendeu com a corte: “Tenho, pois, de ir sepultar meu pai e, isto feito, voltarei." Pode ser que ele de antemão tivesse feito a promessa voluntariamente; pode ser também que Faraó lhe houvesse solicitado. O que, em todo caso, é óbvio é que a suspeita estava presente, e deve ter sido uma grande satisfação para Faraó poder combinar o favor com a previsão e, por intermédio de uma grande escolta egípcia, assegurar-se contra a perda do insubstituível.
O senhor das duas coroas já não era tão jovem; os anos de sua vida tinham passado de quarenta e sua existência era triste e precária. Estava familiarizado com a morte: uma de suas filhas, a segunda das seis, Meketaton, a mais anêmica de todas, morrera aos nove anos,e Akhenaton, o pai de filhas, derramou mais lágrimas por aquela perda que a própria Nefernefruaton, sua rainha. Chorou muito; as lágrimas afluíam facilmente a seus olhos em qualquer ocasião, pois se sentia solitário e inditoso e o sibaritismo da sua existência, os suaves requintes no meio dos quais vivia tornavam-no cada vez mais sensível à soledade e à incompreensão. Gostava de dizer que um homem que sofria muito devia viver bem. Mas no seu caso a boa vida só ia bem com as lágrimas; viviam bem demais para poder suportar o sofrimento e chorava copiosamente por si próprio. A sua rainha, nuvem da aurora, debruada de ouro, e suas transparentes filhas tinham de estar constantemente enxugando com lenços de fina cambraia as lágrimas que lhe deslizavam pelo rosto, o qual, a despeito dos anos, conservava um aspecto infantil.
Seu maior prazer consistia em oferecer flores em funções religiosas realizadas no esplêndido pátio do magnífico templo que havia erigido em Achet-Aton, a capital única, a seu Pai do céu, aquele bondoso amigo da natureza, o qual, segundo sua concepção principesca, também vivia chorando abundantemente. Porém seu prazer era aguado pela desconfiança que lhe inspiravam seus cortesãos de cuja sinceridade duvidava. Viviam eles na dependência do soberano, e haviam aceitado “a doutrina”, mas tudo demonstrava que nem a compreendiam nem eram capazes de compreendê-la. Ninguém era capaz de compreender o ensinamento de seu Pai no céu, que estava infinitamente distante e todavia se preocupava com ternura de cada ratinho que existia, de cada verme, da terra; daquele Pai, de quem o disco do Sol no céu era apenas um símbolo e uma parábola, o qual se dignava sussurrar a verdade acerca da sua natureza e essência aos ouvidos de Akhenaton, seu filho predileto. Ninguém (e ele não ocultava a si próprio esta circunstância), ninguém tomava a peito essa doutrina. Por isso conservava-se afastado do povo e receoso de todo contato com ele. Vivia numa discórdia inconciliável com a religião oficial do seu país, com os templos e sacerdotes, não só com Amun, mas também com o resto das vetustas divindades tradicionalmente honradas, e excluía da sua aversão unicamente a casa do Sol em On. No seu angustiado zelo pela sua própria revelação, fora ao ponto de tomar medidas para a sua supressão e dissolução, não somente contra Amun-Rá mas também contra Osíris, o senhor do Oeste, e Ísis, a mãe, contra Anúbis, Chnum.Thot, Setech e até Ptach, o mestre das artes. Assim, alargou-se ainda mais o abismo entre ele e o seu povo, povo profundamente conservador e propenso à lealdade para tudo que era antigualha.Tudo isto contribuiu para fazer dele, encerrado no seu luxo real, uni estrangeiro no seu próprio país.
Não é, pois, de estranhar que seus olhinhos cinzentos, olhos de sonhador, estivessem quase sempre vermelhos de chorar. Quando Mai chegou à sua presença para dar-lhe a notícia da morte de Jacó e para solicitar, em nome de José, permissão para se ausentar, rompeu imediatamente em pranto, pois estava sempre predisposto às lágrimas e aquela era uma ocasião para derramá-las.
— Que imensa tristeza! — exclamou. — Com que então morreu o velho! Isto é um golpe para Minha Majestade. Lembro-me de que certa vez me fez urna visita que me deixou funda impressão. Na sua mocidade, o morto foi um grande magano. Sei de algumas maroteiras que fez, por exemplo, a das peles e a das varas. Recordando-as, Minha Majestade seria ainda capaz de rir até chorar. Então seus anos chegaram ao seu fim e o meu pequeno tio, que administra todos os dons do céu, está penalizado! Que lástima! Porventura teu amo, o meu amigo universal, permanece em sua casa chorando? Sei que ele não é estranho às lágrimas e chora facilmente, no que meu coração o acompanha, pois é bom sinal num homem. Sei que, quando se deu a conhecer a seus irmãos e lhes disse: “Eu sou um de vós”, também chorou. E pede licença para se ausentar? Licença por setenta dias? E um prazo muito dilatado para sepultar um pai, por muito grande maroto que este tenha sido! É necessário que sejam setenta dias? Ele é quase indispensável. Naturalmente é mais fácil que ele o faça agora do que na época das vacas gordas e das magras; porém, mesmo nestes anos que são mais normais, é bem duro para mim prescindir daquele que governa o reino da negrura, porquanto Minha Majestade tem muito pouca prática dessas coisas. Minha especialidade sempre foi o reino do alto e da luz. Ah, que tarefa ingrata! Os mortais sabem compreender melhor um homem que se encarrega da negrura do que um que é arauto da luz. Não vás pensar que tenho inveja do teu querido amo. Ele será como Faraó até o fim de seus dias porque ajudou Minha pobre Majestade mais do que ela é capaz de lhe agradecer, isto é, até o ponto que é possível me ajudar.
Tornou a chorar um pouco e depois prosseguiu:
— Certamente deve sepultar seu venerando pai, o brejeirão ancião, com todas as honras que o caso pede, e transportá-lo ao estrangeiro em companhia de seus filhos e irmãos e dos filhos de seus irmãos e de toda a descendência masculina da casa. Será uma grande procissão, será como uma emigração, e o povo poderia pensar que ele deixa o Egito com toda a sua família para voltar ao lugar donde veio. Deve-se evitar uma ideia tão errônea, pois era possível que ela provocasse inquietação no país e poderiam verificar-se cenas e desordens se o povo supusesse que o provedor partia de vez. Creio que sentiriam muito menos que Minha Majestade partisse e abandonasse o país acabrunhado de dor pela sua ingratidão. Escuta, amigo! Que espécie de cortejo seria um cortejo composto unicamente dos filhos e dos filhos dos filhos? Na minha opinião, só é possível uma coisa, e este enterro é um esplêndido ensejo para tal, para fazer um Grande Préstito. Deve ser dos maiores que tenham saído do Egito, devendo regressar com igual pompa. Que seria eu se, ao conceder um favor ao meu amigo universal, não fizesse essa mercê exceder em muito a que foi solicitada? Irás dizer-lhe, portanto: “Faraó te concede setenta e cinco dias e te cobre de beijos, para que possas sepultar teu pai na Ásia, e não só tua família e séquito formarão o cortejo que acompanhará a ti e ao cadáver, mas Faraó até dará ordens para que se organize um Grande Préstito, um cortejo de extraordinária pompa, sendo que a flor e nata do Egito conduzirá teu pai à sua derradeira morada. Akhenaton te manda dizer que dará suas ordens a toda a sua corte, aos seus mais altos servidores e aos nobres de todo o país, aos chefes de Estado com os seus servos, carros e homens armados. Irão todos contigo, ó menina dos meus olhos, adiante, aos lados e atrás do féretro, e, uma vez que tenhas depositado tua querida carga no lugar do seu destino e repouso, te escoltarão no teu regresso.”
O GRANDE PRÉSTITO
Foi essa a resposta que Mai-Sachme levou de Achet-Aton a José e tudo foi disposto de acordo com ela. Os convites, que equivaliam a uma ordem, foram feitos por um alto funcionário do paço, denominado conselheiro privado do aposento da manhã e das decisões secretas, e transmitidos por velozes mensageiros, fixando-se também o dia em que os participantes deviam acorrer de todas as partes do país para reunir-se no deserto, nas abas de Menfe. Aquela honra conferida aos servidores de Faraó e aos grandes de sua casa e do Egito era uma pesada honra; mas nenhum deles ousaria decliná-la. Antes, muitos dignitários que não receberam o convite e tiveram de ouvir as chufas dos agraciados por pouco não adoeceram de ressentimento. Não era empresa fácil organizar a imensa procissão que devia reunir-se no deserto por membros e grupos; essa tarefa coube a um coronel de tropas cujo título regular era “Auriga del-Rei, excelso no Exército”. Para aquela ocasião, contudo, e enquanto durasse o imponente cortejo, recebeu outro título: “Organizador do grande préstito fúnebre do Osíris Jacó ben Yitzchak, pai do Dispensador da Sombra do Rei”.
Esse oficial superior organizou o desfile de acordo com a lista dos integrantes que lhe foi entregue, e pôs em ordem a confusão de carros e liteiras, de animais de sela e de carga, transformando-a numa ordenada procissão de grande imponência e beleza. A seu cargo estavam também as forças militares que seguiam para proteger o séquito.
A ordem era a seguinte: à frente de uma tropa de soldados iam trombeteiros e tambores; seguiam-nos archeiros núbios, líbios armados com espadas em forma de foice, e lanceiros egípcios. Vinha depois o orgulho da corte de Faraó, tantos quantos podiam ser dispensados da sua roda sem desdouro para a pessoa do deus, amigos e amigos únicos do monarca, flabelíferos à destra, funcionários palacianos do posto de chefes do conselho privado e conselheiros privados das ordens reais; personagens altamente colocados, tais como o padeiro e o copeiro-mor de Sua Majestade, o superintendente do paço, o encarregado do guarda-roupa do rei, o chefe da lavanderia real, o porta-sandálias de Faraó, seu cabeleireiro-mor, que era também conselheiro privado dos dois reinos, e assim sucessivamente.
Aqueles elegantes aduladores formavam a guarda avançada diante do catafalco, que se uniu à procissão quando esta chegou a Gessen, e foi conduzido desde ali em lugar de destaque, com deslumbrante esplendor. O ataúde de Jacó, que tinha a forma de uma figura humana, resplandecia de pedrarias e com a barbuda máscara de ouro que o cobria. Estava colocado sobre um féretro que por sua vez vinha sobre uma padiola dourada, estando esta ainda depositada num carro de rodas cobertas, puxado por doze bois brancos. O majestoso veículo se movia com imponência pela estrada, acompanhado amiúde pelo lamento das flautas e pelo cântico dos carpidores profissionais. Seguiu-o a família do morto, sua estirpe que se incorporou ao séquito: José com seus filhos e os membros da sua casa, da qual Mai-Sachme era o chefe e servo mais antigo, assim como os onze irmãos de José com seus filhos e os filhos de seus filhos. Todos quantos tinham nomes masculinos em Israel acompanharam o féretro de Israel, com os servidores mais chegados ao morto, entre eles Eliézer, seu servo mais antigo, e uma comprida e numerosa comitiva. Mas que chusma imensa se juntou ainda a esta!
Pois vinha agora a burocracia administrativa dos dois países: os Vizires do Alto e Baixo Egito, os subordinados imediatos de José, os principais guarda-livros do ministério das provisões; o inspetor dos touros e de todo o gado do rei no país (que também tinha o título de superintendente de todos os animais de chifre, garra e penas), o comandante da frota, o mordomo da câmara privada, o guarda das balanças da casa do tesouro, o inspetor-geral de cavalos, e numerosos juízes e escrivães. Quem seria capaz de assentar todos os títulos e cargos cujos portadores se sentiram honrados com a ordem de acompanhar a terras estrangeiras a múmia do pai do provedor? Militares, com estandartes e clarins, seguiam os funcionários do Estado. E depois deles ia o séquito de carga com as equipagens e tendas e carroças carregadas de forragem, as mulas e seus condutores, pois pode-se calcular a imensa quantidade de comida e de bebida que semelhante comitiva exigia para a viagem no deserto.
Houve um concurso não pequeno, como bem diz a tradição, e fácil é imaginar aquela imensa caravana formada por esplêndidos cavalos e carros, com variegados penachos e armas resplandecentes; todo aquele ruído e rolar do cortejo; os relinchos dos ginetes, o ornejar dos asnos, o vibrar dos tambores, o estridor dos clarins, os gemidos dos carpidores profissionais e, no meio de tudo aquilo, a assombrosa e colossal armação do féretro com o corpo embalsamado dentro. José podia dar-se por satisfeito: o coração de seu pai o havia perdido uma vez no Egito, mas agora o Egito em peso devia render tributo àquela agonia e conduzir sobre os ombros e até sua tumba o defunto Jacó.
O admirável e muito admirado cortejo seguiu o seu caminho ziguezagueando para o leste, rumo à fronteira. Entrou nas desoladas regiões que era necessário percorrer indo da terra baixa de Ápis, nas províncias orientais de Faraó, até a terra de Charu e de Emor. Seguiu pela orla superior da terra plana de Sinai e ali tomou uma direção que poderia surpreender a todo aquele que conhecesse o seu destino, pois não tomou a estrada habitual mais curta que ia ter a Gaza, no mar, através do país dos filisteus e passando por Bersabé até Hebron, mas acompanhou o declive de terra que se estende ao sul do porto de Chazpati, a leste, para Amalek em direção a Edom até o ponto extremo sul do mar Morto. Costeando este, seguiu ao longo das suas praias orientais até a embocadura do Jordão, subindo o vale do rio e dali, isto é, de Galaad e de leste, atravessando o rio, entrou no país de Canaã.
Um enorme rodeio para o igualmente enorme préstito fúnebre de Jacó! Era uma viagem que tomava duas vezes dezessete dias, sendo esta a razão pela qual José pedira uma licença de setenta dias. Ainda assim, não pedira o suficiente e até passou dos setenta e cinco que Faraó, no amor que tinha ao seu favorito, lhe concedera. Havia, contudo, muito tempo que José resolvera fazer aquela volta, dando a conhecer sua intenção ao oficial que organizou o préstito, o qual imediatamente aprovou o seu desejo. E que esse oficial não estava muito certo do efeito que podia causar uma irrupção egípcia de tal porte e com tantos soldados pela estrada real e estratégica desde Gaza, e receava que surgissem dificuldades, complicações e desconfiança. De seu lado, ele preferia passar por países mais pacatos e, quanto a José, a grande volta significava maior honra para a procissão. Por mais que se fizesse, nunca a solene procissão podia ser excessivamente laboriosa sem gastar demasiado tempo para lhe comprazer; não havia distâncias demasiado grandes através das quais os orgulhosos egípcios tivessem de carregar-lhe o pai. Foi esse o pensamento que o decidiu a fazer toda aquela volta.
Depois de rodearem o mar Salgado e de subirem ao longo do Jordão, chegaram a um lugar próximo à sua margem, chamado Goren Atad. Em outros tempos não havia ali mais que uma eira rodeada de espinhos, mas agora aquilo era um populoso mercado. Perto, acima do rio, existia um grande prado relvoso e ali acamparam, observados com curiosidade pelo povo das redondezas. Nesse lugar se detiveram sete dias, durante os quais realizaram uma lamentação, o que equivale a dizer que renovaram cada dia um oficio fúnebre, consistindo num pranto tão prolongado e clamoroso que os filhos do país se sentiram muito impressionados, sendo essa aliás a intenção, pois que até os animais estavam de luto. “Acampamento bem importante é este”, disseram os habitantes, erguendo as sobrancelhas, “e grande é o pranto dos egípcios!” Por isso dali por diante chamaram aquele lugar “Abel-Mizraim” ou “Prado da Lamentação do Egito”.
Depois daquela pausa cerimonial, a procissão tomou a formar-se passando o Jordão por um vau que os filhos do país tinham ajeitado para seu próprio uso, colocando no local alpondras e troncos de árvores. Para a travessia, a padiola em que vinha a múmia de Jacó foi tirada do carro e os doze filhos a transportaram para a outra margem revezando-se nos banzos.
Penetraram então no seu país e continuaram subindo desde o brumoso vale do rio até as alturas mais frescas. Alcançada a serra, seguiram por caminhos bem tratados e, ao terceiro dia, chegaram diante de Hebron. Pelos morros que circundavam Kirjat Arba desceu uma grande multidão desejosa de ver aquele esplendor que se movia com a sua sagrada carga até o sítio do vale onde se achava a dupla caverna, o vetusto jazigo da estirpe. Adaptada pela natureza, mas construída e ampliada pela mão do homem, não era dupla na parte exterior e tinha apenas uma porta. Mas, se se abria o muro de alvenaria como se fez naquele momento, aparecia uma espécie de galeria que conduzia para baixo, e dali, à esquerda e à direita, para dois corredores fechados por lajes e que se bifurcavam levando às celas onde estava a tumba, duas abóbadas que davam ao lugar o seu nome de dupla cova. Se alguém pensar em quantos acharam sua eterna morada naquela câmara colocada numa encosta de montanha, empalidecerá de terror, como empalideceram os irmãos ao abrirem-na. O espetáculo, entretanto, não causou impressão nos egípcios; alguns deles até teriam lançado um olhar de desdém a um sepulcro tão primitivo. Mas todos quantos pertenciam a Israel empalideceram.
Galeria e corredores eram muito baixos e estreitos. Somente duas pessoas da casa de Jacó, o seu servo mais antigo e o que se lhe seguia em antiguidade, um adiante e outro atrás, puderam entrar, e mesmo a eles foi difícil baixar a múmia à câmara, já não se sabe mais se à direita ou à esquerda. Se pó e ossos pudessem surpreender-se, certamente teria havido grande assombro naquele fosso vendo-se aquele recém-vindo engalanado com tão estranhos e tão tolos atavios. Mas reinava ali a mais absoluta indiferença, e os dois portadores se apressaram a sair daquele lugar infecto, subindo pela claraboia para o ar puro do mundo dos vivos. Lá escravos artífices estavam prestes com argamassa e trolha e, num abrir e fechar de olhos, foi novamente tapado o recinto, pois ele a ninguém mais receberia depois de Jacó.
Uma vez cerrada a casa dos mortos, uma vez depositado o pai na sua última morada, dez irmãos permaneceram imóveis a olhar os tijolos que tapavam a entrada. Em que estariam pensando? Estavam pálidos, esses dez, e mordiam os beiços. Atiravam olhares de soslaio ao undécimo e depois baixavam os olhos. Vamos dizer a coisa com franqueza: tinham medo. Viam-se perdidos, desamparados. O pai se fora, o pai centenário daqueles filhos de setenta anos. Até aquele momento estivera presente, embora somente como uma múmia; agora, porém, estava por trás de uma parede, e diante deste pensamento eles sentiam um aperto no coração. Caíram imediatamente na conta de que o pai havia sido seu escudo, só ele; ele ocupara um lugar que agora nada nem ninguém ocupava, entre eles e a expiação do delito.
Puseram-se muito juntos e cochicharam à luz minguante do dia. Depois a Lua surgiu, os quadros eternos se desenharam no céu, das regiões das montanhas subiu a umidade numa neblina fria entre as tendas do séquito de Jacó. Então chamaram o duodécimo. Benoni, o filho de Raquel.
— Escuta, Benjamim — disseram tartamudeando. — Temos do defunto um recado para José, teu irmão, e quem melhor lho pode transmitir és tu. Pouco antes da sua morte, nos seus derradeiros dias, não estando José presente, o pai nos chamou e nos disse: “Quando eu tiver morrido, direis da minha parte a vosso irmão José: ‘Rogo-te que agora perdoes a maldade de teus irmãos e seu pecado, pelo qual eles te fizeram tanto mal. Porque entre vós e ele estarei eu, na morte como na vida, e ordeno-te, como meu último desejo e vontade, que não lhes faças mal nem tires vingança por coisas passadas, ainda que pareça que eu não estou aqui. Deixa que eles tosquiem suas ovelhas, mas tu não os tosquies a eles’.”
— Isto é verdade? — perguntou Benjamim. — Eu não estava presente quando ele disse tal coisa.
— Tu nunca estiveste presente em coisa alguma — responderam —, portanto não podes falar. Um homenzinho como tu não tem de estar metido em tudo. Mas não te negarás a comunicar a sua graça, teu irmão José, o último desejo e vontade do pai. Vai, pois, ter com ele incontinenti; nós te acompanharemos e esperaremos sua resposta.
Benjamim entrou na tenda do Exalçado e disse com alguma vacilação:
— José-el, perdoa que eu te venha importunar, mas os irmãos desejam dizer-te, por meu intermédio, que em seu leito de morte nosso pai te suplicou solenemente que não lhes fizesses mal depois que ele tivesse partido desta vida, porque, ainda depois de morto, ele estaria entre vós e os protegeria e te proibia vingar-te deles.
— Isto é verdade? — perguntou José com os olhos úmidos.
— E possível que não seja exatamente assim — respondeu o interpelado.
— Não, porque ele sabia que não era necessário — acrescentou José, enquanto as lágrimas lhe escapavam por entre os cílios. Acrescentou ainda: — Estão aí fora? Provavelmente te acompanharam.
— Sim, esperam aí fora — tomou o homenzinho.
— Então vamos aonde eles estão — disse José. E saiu para a noite estrelada e banhada pelo luar. Lá estavam. Vendo-o, prostraram-se diante dele e disseram:
— Eis aqui os teus servos e servos do Deus de teu pai. Perdoa-nos nossos pecados, como te disse teu irmão, e não nos pagues conforme está no teu poder fazê-lo. Assim como nos perdoaste quando Jacó vivia, perdoa-nos agora depois da sua morte.
— Mas, irmãos, velhos irmãos meus! — exclamou José, inclinando-se para eles com os braços estendidos. — Por que falais assim, como se tivésseis medo? Falais como se o tivésseis e quisésseis que eu vos perdoasse. Porventura eu estou no lugar de Deus? Lá no Egito dizem que eu sou como Faraó e a ele chamam deus, quando na verdade ele não é mais que um ente patético e doce. Quando me falais de perdão, é como se não percebêsseis o significado de toda esta história na qual nos achamos. Não vos culpo por isso. Pode facilmente uma pessoa estar numa história e não compreendê-la. Talvez é assim que deve ser e só a mim se deva culpar por eu saber sempre bem demais do que se trata. Não ouvistes dos próprios lábios do pai quando me deu sua bênção que a minha vida foi sempre um jogo e um brinquedo? Acaso lembrou ele, quando pronunciou seu julgamento sobre vós, todo o mal que aconteceu entre vós e mim? Não, o pai guardou silêncio porque ele também estava no jogo, o jogo de Deus. Ele, o pai, me protegeu a mim quando, com o meu espírito pueril que clamava ao céu, vos irritei a todos, provocando-vos a que procedêsseis mal. Mas Deus encaminhou tudo para o bem, pois me destinou a salvar a muitos povos e por isso tive de amadurecer um pouco. Se, porém, se trata de perdão entre nós como seres humanos, então sou eu que devo implorá-lo, porque vós fostes obrigados a representar o papel vil para que tudo saísse como saiu. Deverei, pois, para vingar-me dos três dias de castigo que passei no poço, empregar o poder de Faraó que me foi conferido, convertendo em mal o que Deus transformou em bem? Isso me dá vontade de rir! Porque um homem que, contra a razão e o direito, usa do seu poder tão-somente porque o tem é um homem ridículo. Se hoje não o é, sê-lo-á mais tarde. E o que nos interessa é o futuro. Dormi em paz! Amanhã, com o favor de Deus, empreenderemos a nossa viagem de volta ao engraçado país que é o Egito.
Assim lhes falou José e todos riram e choraram juntos e estenderam para ele suas mãos e o tocaram, e José também estendendo as suas, os acariciou. E assim termina a linda história inventada por Deus de José e seus irmãos.
Thomas Mann
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