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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O JOVEM TROVADOR / A. J. Cronin
O JOVEM TROVADOR / A. J. Cronin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O JOVEM TROVADOR 

 

Num dia de março em que o vento soprava forte, no meio da década dos vinte, eu estava sentado no gabinete do Prefeito de Estudos esperando a minha admissão no Colégio Jesuíta de Santo Inácio e, depois de sete árduos anos nas escolas primárias gratuitas da cidade de Winton, achava-me bastante satisfeito por estar lá. Quando nasci, meu pai, nos primeiros transportes de paternidade e, também, cheio de expectativas otimistas quanto ao próprio futuro tinha feito a minha inscrição em Stonyhurst. Quando morreu, seis anos depois, após uma dolorosa e prolongada doença, sua louvável ambição não foi satisfeita: deixou apenas o suficiente para pagar os médicos e o agente funerário.

Entretanto, o Santo Inácio não era um mau substituto para a importante instituição de Lancashire. Construído, juntamente com a igreja adjacente, numa colina não muito distante do centro da cidade, dedicado à educação de filhos da burguesia católica, e também da classe trabalhadora, uma vez que as mensalidades eram razoáveis, todos os seus professores eram padres jesuítas, a maior parte deles, homens de boa linhagem e educação, mas reservados, de acordo com os princípios da Ordem, e para mim tão assustadores que me levantei de um salto quando a porta se abriu às minhas costas.

Mas foi um garoto quem entrou, bastante tranquilo, na realidade completamente à vontade. Sentei-me de novo e, com um meio sorriso, ele se sentou ao meu lado. Infinitamente mais bem vestido do que eu, estava com um terno bem cortado de flanela escura, meias boas, sapatos lustrosos e fina camisa de um branco imaculado, realçada por uma gravata de listras verdes e pretas, que calculei, corretamente, serem as cores da sua escola preparatória. Um lenço de linho se projetava do bolso superior e, como se isso não fosse suficiente, um pequeno botão de escovinha estava enfiado na casa da lapela e era usado com um ar de desinteresse zombeteiro. Além disso, ele era tão devastadoramente bonito, com sua compleição pálida, o suave cabelo louro e olhos azuis muito claros, que fui ficando cada vez mais envergonhado não apenas da minha rebelde cabeleira ruiva flamejante, das sardas, do nariz comprido, mas também das minhas roupas extremamente modestas, das velhas calças de flanela, do suéter de lã azul, tricotado por minha mãe, e de uma rachadura na altura do dedo grande do pé direito do meu sapato já usado, que eu havia feito havia pouco, com um chute descuidado numa bola que tinha corrido do pátio da escola quando eu vinha subindo a colina. Na realidade, eu o odiei, e decidi arranjar uma briga com ele na primeira oportunidade.

De repente ele me surpreendeu ao quebrar o silêncio daquele venerável gabinete de paredes cobertas de livros.

Chato, não é? A pontualidade não é uma das gentilezas dos jesuítas.

Começou a cantarolar.

"Eles nos deixaram ao desamparo, esperando na igreja."

Então disse:

Aposto que o Beauchamp está na despensa, tomando o refresco das onze. É um glutão terrível, acho. Mas muitíssimo culto. Aluno de Eaton. Convertido, é claro.

Começou a cantar de novo, mas bastante mais alto: "Eles me deixaram ao desamparo, esperando na igreja..." Naquele exato momento a porta se abriu e entrou um homem forte, bem apessoado e de aparência imperiosa, bem vestido na sua batina que, entretanto, não conseguia esconder uma corpulência pronunciada e em franco progresso. Na mão direita trazia um prato onde estava um grande sanduíche duplo de queijo, que colocou sobre a sua escrivaninha e cobriu rapidamente com um guardanapo tirado da gaveta. Então sentou-se bastante pesadamente, com as palavras, parte um pedido de desculpas, parte uma apóstrofe:

Edere oportet ut vivas.

Non vivere ut edas murmurou o bestinha ao meu lado.

Bom disse o eclesiástico, que era realmente o terrível Beauchamp. Mas, embora você conheça o seu Cícero, é desnecessário. Fez uma pausa, olhando de um para o outro. Quando me vinha aproximando do santuário do meu gabinete, fui recebido por estrofes que de clássicas não tinham nada...

Eu sou o culpado, senhor reverendo reconheceu o meu companheiro com toda a sinceridade. Tenho esse hábito absurdo, quase inconsciente, quando estou nervoso ou esperando alguém que está atrasado, de começar a cantar...

Realmente! disse Beauchamp com severidade. Então levante-se e cante agora. Mas nada de vulgar, eu lhe peço.

Contive uma risada de divertimento. Agora o pequeno pretensioso ia ter realmente que fazer papel de palhaço. Ele se levantou devagar. Houve um momento de pausa. A pausa se prolongou. Então, fixando o olhar muito acima da cabeça de Beauchamp, ele começou a cantar.

Era o Panus Angélicas, aquele hino em latim, lindíssimo e extremamente difícil. E à medida que as palavras doces e comoventes enchiam a sala, ascendendo, por assim dizer, para o céu, o sorriso idiota desapareceu do meu rosto. Nunca, nunca eu o ouvira tão bem cantado como naquele momento: claro, verdadeiro, extasiante. A contragosto, entreguei-me a ele. Quando acabou, seguiu-se um silêncio profundo e significativo.

Eu estava estupefato, estonteado. Embora meu conhecimento de música, naquela época, fosse extremamente limitado, tinha bom gosto suficiente para reconhecer que o pequeno prodígio bem vestido tinha realmente uma voz belíssima, excepcional, espetacular! Era evidente que Beauchamp também estava profundamente impressionado.

Ah! Hum disse ele, e depois de novo. Ah! Hum. Certamente temos que falar de você ao nosso mestre de coro, o bom Padre Roberts. Fez uma pausa. Você deve ser o menino Fitzgerald.

Sou Desmonde Fitzgerald. O Desmonde escrito com um "e" no fim.

Será inscrito assim respondeu o Padre Beauchamp com uma suavidade inesperada. De fato, correspondi-me muito, por cartas, com seu pai, durante anos. Era um estudioso extremamente erudito e ilustre. Foi através dele que obtive o meu Trinity College Apocalypse, a edição rara e muito valiosa do Clube Roxburgh. Fez uma pausa.. Mas, quando ele me escreveu, alguns meses antes de sua morte, dizia que você deveria ir para Downside.

O apego materno me fez ficar em casa, senhor, e tornou obrigatória a minha vinda para cá. Sem dúvida, para o alívio dos Beneditinos.

Então agora está vivendo em Winton?

Minha mãe, que é escocesa, quis voltar para a sua terra de origem. Ela alugou uma casa em Overtown Crescent.

Um local adorável, com vista para o parque. Irei visitá-la com certeza... talvez ela me ofereça um chá. Uma expressão meditativa surgiu-lhe no rosto e ele umedeceu os lábios.. Como boa escocesa ela deve conhecer aqueles deliciosos docinhos franceses gelados, uma especialidade da cidade. De fato, sobrevivência da Velha Aliança.

Procurarei garantir, senhor respondeu Desmonde com seriedade que haja uma quantidade generosa por ocasião da sua visita!

Bom! Bom! Ah! Hum! Ele se virou, inspecionando-me por sob as enormes sobrancelhas. - Agora, e você?

Muito amargurado por aquele intercâmbio íntimo e brilhante que havia feito com que eu me sentisse mais do que nunca um intruso e um forasteiro, murmurei por entre os dentes cerrados:

Sou apenas Shannon.

Ele pareceu gostar bastante disso. Sorriu de maneira quase benigna.

Ah, sim. Você nos foi enviado através da Bolsa de Estudos Kelvin.. Inclinou-se para examinar uma pasta aberta sobre a escrivaninha. - Como, a despeito de seu tamanho, você parece ser um ruivinho tímido e bastante modesto, será que lhe agradaria saber que os seus trabalhos foram considerados excepcionais? O Padre Jaeger, que os corrigiu quando do exame, considerou-os assim. Isto lhe traz satisfação?

Trará satisfação à minha mãe quando eu contar a ela.

Que ótima resposta! Agora você não é "apenas" Shannon, mas de fato alguém que se pode admirar.. Ele me olhou de cima para baixo, com simpatia, sem deixar de perceber o meu sapato furado. E, quando lhe for mais conveniente, pode procurar o tesoureiro para receber a prestação inicial da sua bolsa. A tesouraria está aberta de duas às cinco.

O cheiro agradável de pão fresco, recém-saído do forno, agora tinha penetrado através do guardanapo e se expandia deliciosamente pelo aposento. Eu já estava com água na boca e ficou evidente que o bom Prefeito de Estudos estava ansioso por atacar o seu sanduíche. Portanto, ele nos informou rapidamente que estávamos ambos matriculados na quarta série adiantada, instruiu-nos sobre como chegar à sala de aulas e mandou-nos embora.

Mas, quando íamos passando pela escrivaninha para sair. ele estendeu a mão enorme e rapidamente tirou a flor da lapela de Fitzgerald.

Durante o horário de estudos, nada de enfeites florais, por favor.

Desmonde corou, mas nada disse; apenas inclinou a cabeça. Mas, quando saímos do gabinete para o corredor, o meu companheiro sorriu.

Esse é o Beauchamp. viu só? Cérebro fantástico, estômago insaciável! Aposto como vai fazer uma salada da minha escovinha. E como fui idiota de ter cantado para ele! Agora estou enfiado num outro coro. Depois de três anos como a droga da prima-dona da escola preparatória!

- Quem sabe a sua voz não vai mudar? sugeri em tom de consolo.

Já mudou há muito tempo. Agora sou uma droga de um Don Ottavio, um Cavaradossi, um maldito Pinkerton. Segurando o meu braço, continuou: Espero que você vá gostar de mim, uma vez que vamos ter que ficar juntos. Acho que sou capaz de gostar de você. Aquele "apenas" foi muito bonito. Você joga xadrez?

Jogo futebol respondi. E você?

Eu nunca chutei uma bola em toda a minha vida. Mas irei ver você. Escute, por que não damos uma fugida e tomamos uma cerveja de gengibre antes de começarmos a labuta do dia? Há uma confeitaria de bom aspecto do outro lado da rua.

- Estou sem um tostão respondi num tom frio.

Eu não o convidei? Venha.

Ele me levou até o outro lado da rua, para o que era na realidade uma padaria que havia acabado por ser considerada a pastelaria da escola. O interior era agradável e acolhedor. Sentamos.

Duas cervejas de gengibre Schweppes, por favor, bem geladas, se possível, e cada uma com uma rodela de limão, se por acaso tiver.

A mulher atrás do balcão lançou-lhe um olhar estranho, mas poucos minutos depois surgiram dois copos borbulhantes, cada um com uma rodela de limão flutuando no alto.

Obrigado, madame. Posso-lhe pagar?

Ele pagou. Já fazia muito tempo que eu não saboreava uma cerveja de gengibre. O primeiro grande gole da bebida gelada me abrandou.

Bom. não é? Sorriu. O limão realmente faz com que fique melhor ainda. Agora fale-me a respeito de você. Além de fazer gois, o que é que você quer fazer?

Contei a ele que esperava tentar obter uma bolsa para uma universidade e, se fosse bem-sucedido, fazer medicina.

E você? perguntei. Imediatamente ele ficou sério.

Eu quero muito ser padre. E iStO também agradaria à minha mãe. Ela é uma pessoa muito religiosa a quem quero muito. Ele sorriu. Assim, quando você estiver na Rua Harley, eu serei um Cardeal em Roma. Aqueles chapéus vermelhos são tão elegantes!

Nós dois caímos na gargalhada. Era impossível resistir a ele. Há meia hora atrás eu estava louco para lhe dar um soco na cara, agora ele já me havia conquistado. Eu estava gostando muitíssimo dele. Ele esvaziou o copo.

Vamos tomar mais um tanque espumante?

Senti meu rosto ficar muito vermelho, mas disse com firmeza: Sinto muito, Fitzgerald, não posso ficar-lhe devendo mais uma. E, como não pretendo ficar vivendo à sua custa no futuro, tenho que lhe confessar que nós, minha mãe e eu, estamos em terríveis dificuldades financeiras.

Ele deu uns resmungos de solidariedade. Vi que estava morrendo de vontade de me fazer perguntas, mas eu não tinha nenhuma vontade de dar maiores esclarecimentos. E, de fato, ele teve o bom gosto de não me pressionar.

Todos os melhores santos eram pobres, e amavam a pobreza - disse.

Podem ficar com ela - retruquei. Ele sorriu.

De qualquer maneira... pelo amor de Deus, não deixe que isso interfira com a nossa amizade.

Cinco minutos depois, quando saímos da loja, não fiz objeções quando ele me tomou pelo braço e disse:

Sei que ainda é bastante prematuro, mas você ficaria aborrecido se nós nos tratássemos pelo primeiro nome? Eu realmente detesto ser chamado d" Fitzgerald. Todos nós, os Fitzes, somos sem dúvida nenhuma descendentes dos bastardos de Charles II. Ele lhes atirou Fitzes com o baton sinistre. É uma ideia repulsiva. Prefiro mil vezes Desmonde, contanto que você nunca me chame de Dês. Qual é o seu nome?

Tenho um nome horrendo. Chamaram-me Alexander numa tentativa, absolutamente inútil, de aplacar o meu avô, e Joseph, em honra do santo. Mas os meus amigos geralmente me chamam de Alec.

Entramos na sala de aula. Ele me lançou um olhar satisfeito quando vimos que nossas carteiras ficavam juntas.

O pai de Desmonde havia sido livreiro. Mas nenhum romance moderno jamais fora visto entrando no recinto da lojinha poeirenta de vidraças em forma de losango, escondida numa esquina dos Quays de Dublin e conhecida em toda a Europa e no mundo inteiro como uma mina de livros antigos e raros, de edições especiais de belas-artes, panfletos históricos, tratados de sociedades ilustres e outros tesouros semelhantes, aonde colecionadores inteligentes acorriam por um preço bem menor do que os preços exorbitantes pedidos em Londres ou em Nova York.

Embora ele não tivesse feito uma fortuna como dizia com frequência a seus clientes quando fazia um negócio - Fitzgerald vivia confortavelmente e, sendo doze anos mais velho que a esposa, havia-lhe prudentemente assegurado o futuro através de um duplo seguro de vida, que lhe proporcionaria uma substancial renda anual com a sua morte - acontecimento que, de fato, ocorrera recentemente.

A sua viúva, Elizabeth, era uma escocesa da região de Lankarshire que nunca se sentira completamente à vontade à margem do Lifpey. Após um intervalo conveniente, que lhe havia permitido vender a casa e obter uma quantia razoável pelo estoque e pela clientela do negócio, viera para Winton, onde, em seu ambiente natural, encontrara rapidamente a adorável casinha construída na encosta e à qual Desmonde havia-se referido quando o padre Beauchamp se convidara para o chá. Com a mãe que o adorava, Desmonde tinha tudo que pudesse desejar: boas roupas, tanto dinheiro quanto quisesse, uma bicicleta nova para ir para a escola...

Como a minha situação era diferente! Minha mãe, filha de um próspero fazendeiro da região de Ayrshire, havia sido repudiada pela família quando fugira com meu pai, um irlandês, e crime pior ainda se convertera ao catolicismo. Depois da morte dele, a persistência nessa fé matara qualquer chance de reconciliação. Mas a minha corajosa mãezinha não se deixava derrotar com facilidade. Após um curso rápido de preparação, obteve um emprego como inspetora de saúde da Prefeitura de Winton. Seu trabalho a levava a Anderson, o famoso bairro da cidade, região de favelas dominada pela pobreza e pelo desamparo, onde tantas crianças definhavam, deformadas pelo raquitismo. Esse trabalho esplêndido, se bem que difícil, combinava com o temperamento alegre e ativo de minha mãe. O salário, nem de perto proporcional ao esforço e aos resultados obtidos, era de exatamente duas libras por semana. Depois de deduzidos dois shillings e seis pence de taxa de aposentadoria e mais sete shillings e seis pence de aluguel semanal do nosso "apartamento" de duas peças, restavam exatamente trinta shillings para alimentar, vestir e manter, a minha mãe e a mim, até que o próximo, duas vezes bendito dia do pagamento chegasse. Mas não se imagine que vivíamos na miséria e passávamos fome no nosso "conjugado" mal mobiliado do quarto andar, ao qual se chegava por uma escadaria interminável que eu subia correndo, sabendo que estava indo para casa e que lá haveria sempre alguma coisa para um menino com fome comer. Mingau de aveia de manhã, e se necessário à noite, alternado com aquele inimitável prato escocês, sopa de ervilhas com aveia e leitelho, caldo ralo com tutano, engrossado com verduras, bolinhos ou broas de aveia feitos em casa. e no fim-de-semana um pouco de carne de vaca que depois do domingo aparecia dias seguidos no ensopado ou em pastelão de puré. Nem devo esquecer o saco de batatas que chegava infalivelmente todo mês de agosto, enviado em segredo por um velho empregado da fazenda do meu avô. Eram mantimentos roubados e como eram gostosas aquelas grandes batatas King Edward, cosidas no forno e servidas com um naco de manteiga! Eu comia até a casca.

Não obstante, meu estilo e condições de vida eram tão acentuadamente diferentes da facilidade e do conforto da existência de Desmonde, que a nossa amizade contínua e florescente se tornava ainda mais notável. Sempre nos encontrávamos com tamanho sentimento de felicidade e de renovação, sem nenhum traço de superioridade de sua parte ou de inveja de minha parte, embora ele tivesse pedalado a sua bicicleta Raleigh nova, enquanto eu andara as duas milhas até a escola porque não tinha meio penny para pagar o bonde.

Amizades muito íntimas são geralmente olhadas com desaprovação e até mesmo desencorajadas na maioria das instituições jesuítas. Mas, à medida que Desmonde e eu progredíamos e íamos passando pelas várias matérias, cada vez mais devotados um ao outro, nunca houve uma insinuação sequer de algo suspeito no nosso relacionamento. Obviamente eu não tinha temperamento para casos amorosos - eu entrara imediatamente para o time de futebol, onde, como centro-médio, o meu jogo duro havia sido observado e elogiado, enquanto Desmonde, com o seu encanto despreocupado, havia se revelado um postulante, seriamente dedicado à sua vocação. Todas as manhãs, antes que as aulas começassem, ele ia à igreja para assistir à missa e comungar. Ele me persuadiu a entrar para a Irmandade, em relação à qual eu tinha apenas inclinações muito superficiais. E quando a escola se dedicava a vários cultos como por ocasião da Páscoa e da Semana Santa, ajoelhado ao lado dele, eu via lágrimas escorrerem de seus olhos postos no crucifixo acima do altar.

De maneira geral, os padres gostavam de Desmonde, sendo que o padre Roberts tinha por ele uma predileção toda especial, considerando-o como uma dádiva dos céus. Entre os colegas de classe, era excepcional demais para ser popular, sendo considerado esnobe por alguns e uma espécie de aberração por outros. Sou obrigado a confessar que, se não fosse por mim, ele poderia ter sofrido muitas indignidades por parte dos elementos mais duros da nossa pequena comunidade.

Mas, apesar de toda a sua sensibilidade, não era um covarde. Certa ocasião, encurralado por um grupo de brigões, indecentemente insultado e desafiado a se defender, ele enfiou as mãos nos bolsos e, com um sorriso, estendeu o rosto convidativamente.

Não tenho condições de brigar com vocês. Mas, se quiserem arrebentar-me o nariz, podem ir em frente.

Por um momento, uma surpresa paralisante manteve o grupo imóvel, uma natureza morta boquiaberta, depois começaram a emitir resmungos no horrendo dialeto de Winton que poderiam ser traduzidos da seguinte maneira:

Ele num é nenhum maricas... num bate nele, Wullie... deixa ele em paz... os comentários de repente cedendo lugar a gritos e gargalhadas, mais lisonjeiras do que zombeteiras para Desmonde, que se inclinou polidamente numa mesura e, com as mãos ainda nos bolsos, se afastou calmamente. Mas eu tinha certeza de que seu coração batia como louco quando ele se sentou no muro baixo de pedras, de costas para o pátio. Aquele era o seu lugar favorito durante o recreio. Ele nunca tomava parte nos jogos brutos e violentos, uma vez que nunca havia aprendido a chutar ou a controlar uma bola de futebol. Mas, no seu poleiro, lia altaneiro o ofício do dia ou alguma coisa de Livy, seu autor predileto. Entretanto, sua preocupação principal era observar o fluxo e o refluxo da vida na ruazinha estreita, deixar cair uma moeda na mão de qualquer pedinte realmente necessitado, que o importunasse, e acima de tudo, especialmente quando o vento soprava forte, como acontecia com frequência na encosta íngreme, ficar alerta às meninas de chapéu de palha e uniforme azul que se dirigiam, vindas de todos os lados, para o colégio de freiras ali perto.

Essas meninas, todas de boas famílias, eram naturalmente consideradas pelo Colégio como intrusas tagarelas que deviam ser ignoradas com os olhos baixos. Entretanto, Desmonde não tinha tais inibições; ele as estudava com uma imparcialidade curiosa e sem preconceitos, tal como se poderia observar uma estranha raça aborigine, e seus comentários zombeteiros e frequentemente divertidos eram sem dúvida destituídos de interesse amoroso.

Lá vem a gorda baixinha. Olhem só como ela bamboleia! E lá vem a queridinha da mamãe, reparem os cachinhos enrolados. Lacinhos também, que gracinha! O, lá lá! Aí vem a grande força loura. Seria realmente um estouro se não fossem aqueles pés enormes!

Isto eram apenas bobagens de colegial mas em dias de turbulência realmente forte, quando lufadas repentinas desciam a encosta em torvelinhos fazendo chapéus voarem e levantando violentamente saias e anáguas, deixando à mostra pudicos calções de sarja azul, eu sentia que talvez ele estivesse levando a brincadeira longe demais e que aquilo talvez indicasse uma atração inconsciente pelo sexo oposto. De qualquer forma, a realidade é que se tornou evidente, a partir de alegres olhares de soslaio e risadas contidas, que aquele grupo de meninas havia ficado emocionalmente consciente do jovem Apoio bem vestido e despreocupado, empoleirado no muro e que frequentemente tirava de um bolso lateral a escovinha proibida e a enfiava na lapela.

Só uma pessoa na escola parecia realmente detestar Desmonde: era o padre Jaeger, que se ocupava da quinta série e que era o responsável pelo time de futebol, um homenzinho baixo, forte, de aspecto sadio e sempre ativo, a quem eu logo me apeguei muito e que por sua vez parecia interessar-se por mim. Um dia, quando entrei no gabinete dele, comentou de repente:

Você é bastante íntimo de Fitzgerald.

Sim, somos bons amigos.

Não gosto de garotos tolos. Você já viu como ele fica sentado no muro olhando para as meninas do Convento, quando estão indo para a escola?

Eu contive a minha resposta. Ninguém, a não ser um idiota, discutiria com Jaeger. Apenas comentei:

Aquela história do muro é só brincadeira. Ele é boníssimo. Comunga todo dia...

Isto só faz tornar mais perigoso o negócio todo. Há um bicho naquela maçã. Prevejo grandes problemas mais adiante para o seu elegante amiguinho piedoso.

A conversa se encerrou ali. Usando a manga da velha batina, ele começou a polir o seu cachimbo - seu único vício e, cerrando-o entre os dentes sem tê-lo acendido, uma vez que estávamos na Quaresma, começou a falar sobre o seu tópico favorito: a necessidade do homem de se manter limpo, rijo e em forma.

Adepto apaixonado da forma física, ele sempre recebia o amanhecer com um banho gelado, seguido de uma série de exercícios de Sandow, e me influenciou de tal maneira que adotei o hábito e o segui fielmente. Durante a sua juventude, diziam, Jaeger tinha jogado pelo Preston North End. Sem dúvida, ele era um ardente aficionado do jogo. dava duro com o time, assistia a todos os nossos jogos, e nutria a ambição extravagante de que um dia o Santo Inácio poderia ganhar o mais cobiçado dos trofeus, o Escudo das Escolas Escocesas.

O padre Jaeger, contudo, deve certamente ter ficado apaziguado quando Desmonde, contrariando a sua conduta habitual, de repente se tornou um torcedor fiel do time da escola. Nas manhãs de sábado, encontrava-se comigo na esquina da Rua Radnor para pegar o bonde que nos levava até Annesland, nos arredores da cidade, onde ficava o campo de futebol. Durante o jogo, ele se postava atrás do gol dos nossos adversários e, quando aquela cidadela era penetrada, especialmente quando por um arremesso da minha bota impiedosa, irrompia numa variação animada da jiga irlandesa.

O padre Jaeger costumava levar-me até o seu pequenino escritório em cima do presbitério para discutir as táticas antes e depois de cada jogo. Muito antes que isso se tornasse procedimento-padrão entre os clubes profissionais, ele insistia em que o centromédio (eu) não deveria agir apenas como um jogador de defesa, mas deveria também avançar com a bola no campo do adversário e chutar a gol. E, de fato, foi este conselho que me permitiu, não apenas dar alegria ao meu amigo, mas também ganhar jogos que de outra forma poderiam ter sido perdidos.

Depois do jogo, quer vitoriosos quer derrotados, Desmonde me levava para a sua casa para almoçar, e lá com frequência eu encontrava a minha mãe. Desmonde, com tato e extrema sensibilidade, havia reunido as nossas mães viúvas, tarefa não muito difícil, uma vez que ambas assistiam à missa solene dos domingos na igreja de Santo Inácio, e ficou evidente de imediato que as duas gostaram uma da outra. Sem ser pretensioso, eu também tinha razões para acreditar que a Sra. Fitzgerald aprovava a minha amizade com seu filho.

Que ocasiões agradáveis eram aquelas sempre uma refeição maravilhosa, muito bem servida naquela sala adorável e ensolarada, lindamente mobiliada, com vista para o parque! E que prazer, em especial para minha querida mãe, que havia conhecido aquele tipo de coisas no passado e sofrera a falta delas durante tantos anos! Depois do café, as duas iam para o banco da janela para conversar, ou fazer algum trabalho de costura que a Sra. Fitzgerald, que trabalhava para a igreja, tinha sempre em quantidade, enquanto Desmonde e eu saíamos na nossa peregrinação semanal, atravessando o parque até a Galeria Municipal de Arte, um belo prédio moderno de tijolos vermelhos, que não ficava muito longe da Universidade de Winton. Nós já a conhecíamos bem e, numa concessão para mim, íamos imediatamente para a sala dos impressionistas franceses, sentávamo-nos e nos entregávamos mais uma vez ao esplendor de cerca de vinte obras daquele período. Mais do que qualquer outro, eu amava o Gauguin: duas mulheres nativas sentadas na praia, tendo como fundo um complexo luxuriante de floresta tropical.

Pintado durante a primeira visita dele ao Taiti murmurou Desmonde.

Mas naquele momento meu olhar estava no pequeno e adorável quadro de Sisley: o Sena em Passy, correndo lentamente em direção ao igualmente adorável Vuillard, todo em tons de limão e vermelho-escuro, em seguida o Utrillo, uma rua simples de um bairro parisiense, deserta de pessoas, mas cheia, oh, tão cheia de Utrillo!

A melhor fase dele murmurava o meu guia. Logo no início, quando misturava gesso com as tintas.

Mas eu não estava ouvindo, e sim absorvendo a atmosfera das telas que hoje conheço tão bem e que cobicei com tanta avidez.

Então Desmonde se levantava, certo de que eu já havia visto o suficiente dos impressionistas, e se dirigia para o corredor. Eu o seguia até a última sala, dedicada às pinturas italianas do princípio e do apogeu da Renascença. Aquelas composições religiosas florentinas não me interessavam muito. Sentava-me no banco do centro, enquanto ele caminhava lentamente, dando a volta na sala redonda, parando de vez em quando diante de algum favorito especial, olhando atentamente bem de perto, suspirando em êxtase, erguendo os olhos para o céu.

Você está sendo dramático, Desmonde - eu dizia.

Não, Alec. Estes maravilhosos tesouros antigos, com sua força espiritual, sua grandeza simples de concepção, induzem-me a um estado de espírito celestial. Olhe só este Piero dela Francesca, e esta divina Madonna, obviamente parte de um tríptico de altar, escola florentina de cerca de 1500, e esta Pietà. Ah, este é o que me põe no maior dos êxtases: a Anunciação de Bartolommeo dela Porta.

Por que delia Porta?

Ele morava perto da Porta Romana. Em 1475. Era amigo de Rafael. Gosto tanto dele que consegui uma pequena reprodução.

Eu esperava com exemplar paciência enquanto ele continuava a recitar, até que eu ouvia os acordes da orquestra se afinando na sala de concertos no andar abaixo. Então eu me levantava.

Música, maestro, por favor.

Ele sorria, concordava e tomava o meu braço enquanto descíamos pela larga escadaria de pedra até o esplêndido teatro que uma sociedade beneficente havia oferecido aos cidadãos de Winton, e onde, aos sábados à tarde, a orquestra escocesa podia ser ouvida, gratuitamente, em programas de boa música.

Quando entramos, Desmonde apanhou uma das folhas datilografadas junto da porta.

Puxa vida!. exclamou quando nos sentamos no fundo do salão quase vazio. Nada de Vivaldi, nem de Scarlatti, nem de Cherubini.

Mas o glorioso Tchaikovsky e o divino Rimsky-Korsakov. Os seus russos selvagens.

Eles me induzem a um estado de espírito celestial.

Ele riu, depois ficou em silêncio. O maestro tinha aparecido, sendo recebido com aplausos modestos, e os primeiros acordes do Lago dos Cisnes flutuaram no ar em nossa direção.

Aquela orquestra, que na ocasião começava a se tornar conhecida na Europa e nos Estados Unidos, era de uma qualidade excepcional para uma cidade de província. A peça de Tchaikovsky foi magnificamente executada e, depois do intervalo, a Scherazade foi fantástica.

Depois que soaram as últimas notas, ficamos sentados em silêncio por um momento, recuperando-nos, até que Desmonde disse, num tom triste:

Acho que nesta semana não haverá nada para nós no Kings.

Que é que está em cartaz?

Uma dessas comédias musicais idiotas: Maid of the Mountains, se não me engano. Que montanhas? Everest, Kanchenjungha ou Pook's Hill? Entretanto - acrescentou - mamãe recebeu notícias de Dublin dizendo que a Rosa estará aqui dentro de pouco tempo.

Ótimo! Esta era mais uma de nossas paixões secretas, e que nunca deveria ser conhecida no Colégio, onde, sem dúvida, zombariam de nós. Nós dois adorávamos ópera, e quando havia apresentações na cidade, íamos aos sábados à noite, ficando nos assentos da torrinha de seis pence do Teatro Kings. Eu insistia naqueles lugares de seis pence, era tudo que eu podia pagar, mas de vez em quando Desmonde, que detestava a torrinha, aparecia com dois bilhetes de poltronas, tentando convencer-me que eram de cortesia, ganhos por sua mãe.

A Cari Rosa esteve boa no mês passado comentei. Realmente adorei aquela obra de Donizetti.

Lucia di Lammermour. Desmonde sorriu.. Como bom escocês, você tinha que gostar mesmo!

- Aquela moça esteve realmente fantástica. A ária nupcial é um bocado difícil.

Fico satisfeito por você chamá-la nupcial, Alec. É cruel chamá-la de Ária de Loucura. Sim, ela é Geraldine Moore. É de fato uma celebridade em Dublin.

Ela é adorável, tão moça e bonita!

Direi isso a ela, Alec disse Desmonde com ar sério - quando me encontrar com ela.

Nós dois rimos. Como poderíamos prever que aquela mulher encantadora e talentosa teria um papel importantíssimo na futura e reconhecidamente exultante carreira de Desmonde?

A maior parte da audiência agora já se havia ido embora. nós normalmente esperávamos, uma vez que Desmonde detestava "sair no bolo da multidão" de forma que naquele momento olhei para ele.

Um chá? Ele sorriu.

Com prazer, Alec.

Minha mãe, desde o início da nossa amizade com os Fitzgeralds, havia dito:

Não devemos ficar só nos aproveitando. Temos que retribuir, da melhor maneira que pudermos, a hospitalidade que recebermos.

Mas certamente... não somos bem...

Sim, somos pobres - ela interrompeu num tom impetuoso - mas nos não devemos nunca, nunca envergonhar disso.

Desde então Desmonde tomava o chá de sábado comigo, mas a sua primeira visita à minha casa o havia deixado positivamente estupefato. Quando saíamos do parque e atravessávamos o bairro miserável de Yorkhill, ele observava as lojas baratas daquele lugar com desagrado mal disfarçado, as narinas se dilatando quando passamos pela loja de peixes e batatas fritas de António Moseno, que, já de avental e na porta da loja, me chamou do outro lado da rua.

Cume que vai, seu Shannon. As ervilhas tão prontas. As batatas fritas ficam prontas daqui a uns vinte minutos.

Amigo seu?. perguntou Desmonde num tom casual.

É um bom amigo. Ele me dá quase uma porção dupla quando compro um penny de batatas fritas.

Quando íamos passando pelo pequeno açougue no fim da rua, o homem de roupa de listras azuis e cinto, lá no interior, acenou para mim com o braço, num cumprimento.

Esse é um outro amigo comentei, antecipando-me ao meu companheiro. É um escocês. E, quando a minha mãe chega pouco antes dele fechar a loja aos sábados à noite, ela consegue uma pechincha de primeira ordem.

Desmonde ficou calado e, como agora estávamos subindo a encosta íngreme do morro onde ficava o apartamento, a razão se tornou óbvia. De fato, quando chegamos à porta e subimos os quatro andares até o apartamento do último andar, ele se apoiou em mim, ofegante, sem fôlego e incapaz de falar.

- Escute, Alec arquejou afinal.. Você não acha que isso é um pouco demais para você?

Que besteira, Desmonde! Eu exagerei bastante. Depois de ter tomado o meu banho frio pela manhã e de ter corrido em volta do prédio três vezes, isto é, cerca de mil e seiscentos metros, eu realmente subo estas escadas voando.

É mesmo? - disse ele sem entusiasmo.

Tirei a chave, abri a porta, e fui na frente em direção à cozinha, onde, antes de ter de lá saído numa manobra cheia de tato, minha mãe havia posto uma toalha branca limpa na mesinha e preparado tudo para o chá, com um grande prato de bolo acabado de assar e cortado em pedaços.

Desmonde se deixou cair exausto numa das duas cadeiras, observando-me em silêncio, enquanto eu acendia o gás, fervia a água, rapidamente preparava o chá, e enchia as duas grandes xícaras.

Ele tomou um grande gole e suspirou.

Muito bom, Alec. Realmente reconfortante.

Tornei a encher a xícara dele e ofereci o bolo. Ele pegou um pedaço, mordeu hesitantemente, então se animou.

Puxa, Alec, está delicioso!

Feito em casa, Desmonde. Coma mais um pedaço.

Juntos, nós nos dedicamos ao chá. De fato, com uma pequena ajuda de minha parte, Desmonde praticamente devorou o prato inteiro.

Eu sou pior do que o velho Beauchamp com os docinhos franceses desculpou-se, hesitando antes de pegar o nono e último pedaço.

Como resposta eu lhe servi a terceira xícara de chá.

Completamente recuperado agora, Desmonde olhou em volta, o olhar demorando-se na alcova escondida pela cortina atrás de mim.

É aí que você estuda, Alec?

Afastei a cortina com o pé, mostrando uma estreita cama de ferro, cuidadosamente feita e coberta com uma colcha cinzenta.

É o quarto da minha mãe disse. Quer ver o meu? Ele concordou em silêncio. Eu o levei até o outro lado do

minúsculo vestíbulo e abri a porta do outro aposento.

Este é o meu domínio disse-lhe, sorrindo. É onde durmo, estudo e faço meus exercícios.

Ele me seguiu num estado de espanto absoluto. O quarto estava completamente vazio, exceto pela cama numa das extremidades e, junto da janela, uma pequena e velha mesa de dobrar, que se considerara sem valor para o leilão quando a nossa casa se desfez.

Como ele continuasse quieto e em absoluto silêncio, peguei uma borracha de cima do consolo da lareira, atirei-a contra a parede e, quando ela voltou num ângulo fechado, apanhei-a.

É o meu jogo de parede. Quando apanho cinquenta sem errar nenhuma, ganhei.

Ele continuou calado, mas veio na minha direção, ainda com aquela estranha expressão emocionada no rosto, e para terrível embaraço meu tomou a minha mão e se ajoelhou.

Alec. exclamou, erguendo os olhos para mim você é uma criatura nobre, bem como a sua querida mãe. Viver assim, uma vida espartana, com nobreza e alegria, é realmente uma prova de santidade. Você faz com que eu me sinta envergonhado. Caro Alec. À voz dele estava embargada. Faça sobre mim o sinal da cruz e me dê a sua bênção.

Terrivelmente constrangido, eu estava a ponto de dizer: "Pelo amor de Deus, não seja idiota!", mas por alguma razão estranha e desconhecida eu me calei, murmurei os nomes da Santíssima Trindade e fiz o sinal da cruz sobre a testa erguida para mim.

Imediatamente ele se descontraiu, levantou-se e apertou a minha mão vigorosamente.

Agora me sinto com força e coragem para poder tentar igualar-me a você. Tenho que ser duro comigo mesmo. E vou começar já. Ele refletiu. A distância daqui até a minha casa é de uns dois quilómetros, subindo a encosta a maior parte do caminho, se eu atravessar o parque.

É de um pouco mais que três quilómetros.

Ótimo! Vou começar já, andando depressa, e lhe prometo que estarei em casa dentro de vinte minutos.

Isso seria um esforço admirável, Desmonde.

- Então já vou indo.. Ele apanhou o boné no cabide do vestíbulo e se dirigiu para a porta. " Obrigado por esse chá delicioso... e por você ser como é.

Esperei por um momento enquanto ele descia ruidosamente os degraus de pedra, então fui para a janela do meu quarto. Cumprindo a palavra, lá ia Desmonde, os braços balançando, a cabeça inclinada para a frente. Ele continuou assim até que gradualmente começou a andar mais devagar, como se tivesse ficado cansado de repente. Afinal ele tinha comido uma quantidade considerável de bolo. E naquele momento ele parou mesmo, tirou o lenço imaculado do bolso do peito e o passou na testa, retomando a caminhada logo em seguida num passo mais lento, muito mais lento. Agora estava no fim da estrada do morro, defronte da rua principal. Ele parou. ficou examinando o fluxo do tráfego e, quando um táxi se aproximava lentamente, em busca de passageiros, seu braço direito se levantou. O táxi parou, a porta se abriu e Desmonde se atirou lá para dentro.

Para casa James - murmurei para comigo mesmo - e não poupe os cavalos.. Mas ele havia tentado.

Agora o sol estava-se pondo por detrás das montanhas distantes de Dumbarton, iluminando os topos dos telhados e mobiliando o meu quarto vazio com um esplendor mágico. Enquanto observava o cintilar rosado do pôr-do-sol, cogitava sobre o que o futuro reservaria para Desmonde... e para mim.

Desmonde, que nunca parecia sohbrecarregar-se com os estudos, era inteligente por natureza e, graças a seu pai, tinha a vantagem incomparável de conhecer três línguas. Dominava com fluência absoluta o francês e o espanhol, e podia até conversar, se bem que mais lentamente, em latim. Com toda simplicidade ele me explicou como seu pai, quase todos os dias à noitinha, o levava para dar um passeio a pé pelo Phoenix Park, comunicando-lhe com firmeza logo de início qual a língua em que a conversa deles deveria ser entabulada. Falar inglês era uma ofensa, não merecedora de castigo, mas olhada com desagrado pelo homem culto que era o pai, um estudioso que era constantemente chamado para organizar e catalogar bibliotecas das grandes casas da Europa.

Quando chegamos ao último ano do colégio, já se sabia de antemão que Desmonde ganharia todos os prémios de línguas, enquanto que eu, através de estudos intensivos, poderia conseguir os de matemática, ciências e com sorte, de inglês. Já estava decidido que Desmonde iria para o Seminário de Torrijos, na Espanha, enquanto eu tentaria obter a Bolsa Marshall, o único passaporte para a Universidade de Winton e para a carreira de medicina.

As minhas chances de obter a bolsa estavam prejudicadas pelo fato de o nosso time de futebol vir obtendo uma temporada de sucesso sem precedentes na competição pelo Escudo das Escolas Escocesas. Este trofeu cobiçadíssimo nunca havia sido ganho pelo Santo Inácio e, quando chegamos às quartas de final, deixando para trás um rastro de escolas derrotadas, o padre Jaeger, que me havia nomeado capitão do time no ano anterior, estava fora de si de entusiasmo e animação. De vez em quando longos treinos noturnos eram levados a efeito no ginásio e antes de cada jogo eu recebia instruções detalhadas no gabinete de Jaeger.

Acho que somos bem capazes de consegui-lo, Alec. Não podendo ficar parado, ele andava para cima e para baixo na salinha.. Somos um time jovem, muito jovem, mas forte, sim, forte. E temos você, Alec, para levar a bola adiante. Agora lembre-se...

Desmonde vinha comigo a todos os jogos, voltando radiante para o nosso almoço habitual dos sábados, em Overton Crescent, onde ele encantava minha mãe, fazendo relatos exagerados das minhas proezas.

Agora que a sua admissão no Seminário estava decidida, ele estava-se advertindo e divertindo a escola, à sua maneira. Primeiro, havia-se assegurado da data do aniversário do padre Beauchamp, consultando o Quem é Quem, e quando a data estava próxima redigiu e bateu à máquina uma carta maravilhosa, pretensamente enviada pela Madre Superiora do colégio de freiras que ficava ali perto, uma venerável senhora de idade, que raramente aparecia em público.

A carta, que circulou amplamente por toda a escola, dizia o seguinte:

Meu querido, muito querido padre. Beauchamp,

Se eu tivesse coragem, chamá-lo-ia pelo seu adorável primeiro nome, Harold, pois agora devo confessar que tenho uma antiga, profunda e apaixonada adoração por você. Sim, eu o observo com frequência, da minha janela, descendo pela calçada, uma imagem corpulenta, magnífica e nobre, e com o coração batendo muito desejaria tê-lo conhecido quando nós dois éramos mais jovens. Quando você havia acabado de deixar Eton, coberto de honras, e eu era apenas uma simples aluna solteira no Reformatório de Borstal, que ficava nas proximidades. Que alegrias não nos estariam reservadas naquela ocasião! Infelizmente o Céu não quis que assim fosse. Mas agora, muito embora esteja no claustro, eu posso com pureza e sem pecado confessar a minha paixão secreta. E, comemorando o auspicioso dia do seu natalício, ouso enviar-lhe um bolo de aniversário. A intuição, ou talvez algum boato, me diz que a despeito da rigorosa disciplina da sua Ordem, você gosta e tem licença para se permitir exageros com doces.

Deus o abençoe, meu querido.

Rezo sempre por você - um consolo para o meu amor.

Sempre sua apaixonada,

Claribel.

Grandes acessos de risos se seguiam a esta obra-prima, à medida que ia passando de mão em mão para ser finalmente colocada junto com um grande bolo de chocolate numa caixa de papelão apropriada.

Então a caixa foi entregue em segredo à divertida colegial gorducha que Desmonde havia convencido a participar do plano. Na realidade, ela é que fornecera a folha de papel timbrado do convento em que a carta fora datilografada. No dia marcado, ela tocou a campainha do colégio e entregou o presente pessoalmente a Beauchamp. Quase toda a escola viu a caixa ser entregue, e todos ficaram esperando para ver os resultados, com uma ansiedade contida a muito custo.

Durante o dia inteiro não houve nenhuma reação, mas às cinco horas, quando a escola se reuniu para as preces da noite, Beauchamp apareceu para oficiar o serviço. Antes de começar, de maneira quase casual, disse: Fitzgerald, você me faria o favor de se levantar?

Graciosamente, Desmonde obedeceu.

Você é Desmonde Fitzgerald.

Sempre fui levado a crer que sim, senhor. Se estou enganado, talvez o senhor me possa corrigir.

Chega! Fitzgerald, você me considera "corpulento"?

Corpulento, senhor? Esta é uma palavra, senhor, que tem uma variedade de significados, desde uma obesidade exagerada até uma graciosa corpulência moderada, muito apropriada para um eclesiástico da sua dignidade e da sua estatura.

Ah! Presumo que você conheça ou pelo menos já tenha ouvido falar da veneranda Madre Superiora do colégio nosso vizinho.

Quem não conhece, senhor?

Você acreditaria, por um momento sequer, que ela tenha passado o princípio de sua vida num reformatório correcional de menores?

O senhor mesmo deve estar a par de que muitos dos nossos grandes santos, que vieram a ser modelos de piedade e devoção, foram na juventude réprobos e malfeitores, coisa que não impediu que acabassem sendo canonizados. Assim sendo, se por um acaso a nossa Reverenda Madre tiver estado num estabelecimento correcional de menores, o senhor lhe atiraria deliberadamente a primeira pedra?

Uma onda de riso percorreu a escola. Estávamo-nos divertindo imensamente com aquilo.

Chega, Desmonde! A brandura do tom de Beauchamp parecia indicar que ele próprio também se estivesse divertindo com aquele jogo de inteligência. Chega, senhor. Instituição correcional ou não, você consideraria possível que aquela venerável e santa senhora fosse capaz de conceber uma paixão secreta por um homem?

Consideraria eminentemente possível, senhor.

O quê!

A palavra paixão, senhor, como a sua corpulência - aí a turma caiu na gargalhada abertamente - tem muitos significados. Há a paixão, por exemplo, que o senhor poderia sentir se, Deus não permita, eu alguma vez o aborrecesse. Então eu voltaria para junto da minha adorada mãe em prantos, exclamando em soluços: "Querida mãe, o caro Padre Beauchamp, o nosso adorável Superior, estava desalmadamente furioso comigo!" Desmonde teve que fazer uma pausa até que pudesse ser ouvido. Estávamos todos rindo histericamente. Depois, senhor, há aquele uso muito frequente da palavra em que uma mulher atraente pode dizer com naturalidade ao seu amigo, ao voltar de seu jardim carregando orgulhosamente uma cesta cheia de rosas: "Eu tenho paixão por rosas, querido." Ou ainda um marido sovina pode dizer à esposa: "Você tem paixão por roupas, que diabo! Olhe só para a nota da costureira... " Ou então...

Chega, Desmonde. Estávamos ficando fora de controle. Beauchamp levantou a mão. Diga-me, você escreveu aquela carta de aniversário que veio com o bolo?

Senhor, essa é uma pergunta capciosa. Até num tribunal de justiça me seria concedido tempo para refletir e ponderar, e se necessário consultar meus conselheiros legais.... Desmonde parou repentinamente de falar. Ele sentiu que já havia extraído divertimento suficiente da situação e que ir mais além estragaria o efeito admirável que havia criado. Assim, baixou a cabeça e disse com simplicidade: Fui eu quem mandou o bolo, senhor. E eu também escrevi a carta. Tudo isso apenas com o intuito de fazer uma brincadeira, senhor. Se o aborreceu, peço desculpas e aceitarei um castigo. E tenho certeza de que cada um de nós, que tomou parte nessa brincadeira boba, está arrependido da mesma forma. Espero apenas que o senhor tenha gostado do bolo.

Desmonde, eu prevejo, sem a mais leve hesitação e com segurança absoluta, que se você não sair do bom caminho, acabará os seus dias como Cardeal no círculo mais fechado do Vaticano. Você tem exatamente o dom para a ambiguidade diplomática, que é tido em alta conta naquela augusta instituição. Entretanto, você é um aluno submetido à minha autoridade e tem que ser punido. Portanto, o seu castigo será o seguinte. Ele nos manteve sem respiração durante um longo período.. Da próxima vez, mande-me um bolo de cereja. Gosto mais do que de chocolate.

Foi um golpe de mestre. Beauchamp sabia lidar com os garotos. Levantamo-nos todos num só movimento e, liderados por Desmonde, demos-lhe vivas entusiásticos.

Com o período de férias se aproximando, a escola inteira estava de ótimo humor. Tínhamos acabado de ganhar o nosso jogo semifinal, contra a Allan Glens, uma escola escocesa famosa que tinha um time forte por nós muito temido. E quão bem e prazerosamente me lembro do jogo, disputado no campo do famoso Clube Celta, num dia de tempo perfeito, num fim de tarde ensolarado, a grama verde bem aparada, o terreno regular, tão adequado ao nosso esquema de jogo de passes, todos os membros do time em ótima forma, a alegria da vitória e os vivas com que fomos recebidos quando entramos no pavilhão, onde o padre Jaeger me envolveu num abraço triunfante.

Uma vez superado nosso maior obstáculo, estávamos agora na reta final, onde nosso oponente seria um time pouco conhecido de uma pequena escola primária, e com razão se admitia de maneira geral que o Escudo finalmente seria nosso. Eu estava no auge do meu prestígio e o próprio padre Beauchamp me lançava um sorriso radiante, quando cruzávamos um pelo outro no corredor.

Todas as nossas provas finais haviam então acabado, os resultados já estavam no quadro de avisos. Como havíamos previsto, Desmonde tinha-se saído muitíssimo bem, obtendo a metade dos prémios, enquanto eu, estudante modesto, conseguira a outra metade. Entretanto, no quadro havia também um comunicado da universidade, declarando de maneira concisa, se bem que para minha enorme satisfação e imensa alegria para minha mãe, que eu havia obtido a Bolsa de Estudos Marshall. Finalmente também estava afixado no quadro o convite anual dirigido aos rapazes da sexta série para o baile do colégio de freiras, oferecido pelas moças do último ano, sob a supervisão da Madre Superiora. Aquele era um costume estabelecido entre as duas escolas, sem dúvida com a intenção de possibilitar o conhecimento entre rapazes e moças católicos de boa educação e altos padrões morais, o que poderia vir a ser salutar, ou mesmo proveitoso, agora que eles teriam que enfrentar a liberdade e as tentações de uma vida desprotegida. Naturalmente nós todos considerávamos aquilo uma grande patuscada.

O dia da grande final havia chegado, o jogo estava marcado para as cinco horas em Hampden Park, o famoso estádio internacional, e para uma partida de estudantes o público presente era excepcionalmente grande. Até hoje ainda me dói escrever a respeito daquele acontecimento, cuja lembrança me volta à mente com tanta frequência para me aguilhoar. Começamos em grande estilo, passando a bola de um lado para outro com precisão e absoluta confiança, e durante sete minutos fomos de maneira indiscutível os donos do campo, quase marcando tentos duas vezes. Então deu-se o incidente.

O nosso beque esquerdo, um garoto de não mais de quinze anos, tinha o hábito de correr, até de andar, com as mãos nos quadris e assim, sem querer, esbarrou num dos atacantes adversários. Seu cotovelo mal tocou o outro rapaz que, infelizmente, escorregou e caiu. Imediatamente soou o apito do juiz. Um pênalti.

O chute foi dado, um gol foi marcado e imediatamente o nosso jovem time se desfez em pedaços. Então começou a chuva, sob a forma de pancadas pesadas, atirada contra os nossos rostos por lufadas de vento, e um temporal impiedoso, que persistiu durante o segundo tempo, transformou a tarde num anoitecer prematuro. Uma escuridão quase absoluta tornou as marcações do campo e a bola praticamente indiscerníveis. É claro que a tempestade era igualmente prejudicial para os nossos oponentes, mas eles já tinham marcado um gol. Os segundos estavam-se escoando. Nos últimos minutos do jogo, a bola veio na minha direção na linha lateral, fora da área de pênalti. Dei um violento e desesperado chute contra o gol adversário. Foi uma boa tentativa e a bola ia voando diretamente para o canto superior da rede, quando uma violenta lufada de vento a apanhou e desviou, fazendo-a bater na trave e sair por sobre a mesma.

Logo em seguida soou o apito final, havíamos sido vencidos por um a zero. No vestiário, o pobre padre Jaeger, com o rosto pálido e acinzentado de tensão e expectativa, imediatamente acalmou nossas imprecações contra o juiz.

Meninos, vocês fizeram o melhor que podiam. Fomos prejudicados pela tempestade e. acrescentou com amargura. pelo fato de vocês estarem de uniforme verde. Agora andem rápido e troquem de roupa, que o nosso ônibus está esperando.

Eu não me sentia capaz de enfrentar o jantar que havia sido preparado para nós, e por isso me escondi num dos chuveiros e só de lá saí quando o ruido do motor do ônibus havia desaparecido. Então peguei a minha sacola e saí para a chuva, tendo diante de mim uma longa caminhada até o ponto do bonde e uma viagem ainda mais longa e desconfortável até chegar a casa.

De repente, na escuridão, uma mão pousou-me no ombro.

Estou com um táxi esperando, Alec. Consegui fazê-lo passar pelos portões. Dê-me a sua sacola. Não vou dizer uma palavra sobre o jogo e deixo você em casa em segurança.

Ele me levou até o táxi e me fez entrar. Aquele era Desmonde com tudo que Desmonde tinha de melhor. Agradecido, me recostei, completamente exausto, e fechei os olhos.

Depois de termos passado pelos portões e de estarmos a caminho, Desmonde murmurou:

- Está dormindo, Alec? Infelizmente, não.

- Não vou falar a respeito do jogo, Alec, mas gostaria de que você soubesse que rezei como um louco o tempo todo e que, quando o seu chute quase se tornou em gol, eu quase morri.

- Fico satisfeito de que você tenha sobrevivido.

Ele ficou em silêncio por alguns minutos, após o que disse:

Vou-me embora para Torrijos, para o seminário, depois de amanhã.

- Assim tão cedo?

Sim. Mamãe está terrivelmente aborrecida. Ela irá comigo até Madri, então é possível que não a veja senão quando for ordenado.

Sim, pelo que sei, eles são terrivelmente rígidos.

Ficou de novo em silêncio. Depois, inclinando-se na minha direção, murmurou:

Você sabe que amo você, Alec.

Gostar é a palavra que se usa, Desmonde.

Bem, então eu gosto imensamente de você e quero que me prometa manter-se em contato comigo. Lá não há nenhuma proibição com relação a cartas, e assim sendo pretendo escrever-lhe com frequência. Você se importa?

- De jeito nenhum e responderei, quando não estiver atrapalhado com a anatomia.

Obrigado, muito obrigado, caro Alec.

Assim o pacto estava feito. E é por isso que posso continuar esta narrativa com absoluta exatidão, a despeito do fato de que, continuamente, estivemos separados durante muitos anos.

O táxi freou. Agora estávamos na porta da minha casa.

Muitíssimo obrigado, Desmonde, por ter sido tão amável. Eu teria levado mais de uma hora.

Estendi a mão para ele. Tenho a vaga ideia de que ele tentou beijar-me o rosto quando eu saía do carro, mas não conseguiu.

Boa noite, Desmonde, e obrigado de novo.

Boa noite, meu caro Alec.

Dormi até tarde na manhã seguinte, de pura exaustão, e tive que me privar da minha corrida habitual no parque. Embora a entrega dos prémios na escola só fosse no fim da tarde, minha mãe havia tirado folga o dia inteiro no trabalho. Ela me trouxe o café na cama, um tratamento especial, e na bandeja, além do meu mingau, havia torradas quentinhas com manteiga e um prato de ovos com bacon. Ela não disse uma só palavra sobre o jogo, embora eu pudesse ver em seu rosto a compaixão maternal misturada com uma alegria obstinada.

Ela se sentou junto de mim enquanto eu acabava de comer, após o que disse:

Tenho uma surpresa para você, querido.

E foi buscar no vestíbulo uma caixa de papelão achatada, tirou a tampa e exibiu um terno azul novinho, de muito bom aspecto.

Olhei encantado, espantado.

Como foi que a senhora pôde comprar?

Não se preocupe com isso, querido. Você sabe que é preciso ter uma roupa decente para a universidade. Ande depressa e experimente.

Como foi que a senhora pôde comprá-lo? - repeti em tom sério.

Bem... você sabe, aquele velho broche de prata... Aquele com um círculo de pérolas.

Eu não queria mais, estava cansada dele, era uma coisa velha e sem utilidade... eu o vendi... a um judeuzinho muito decente que me conhece, lá no bairro onde trabalho.

A senhora adorava aquele broche. Disse que era de sua mãe.

Ela olhou para mim em silêncio. Então disse:

Por favor, não crie um caso, querido. Você precisava de ter um bom terno para a entrega dos prémios, e especialmente para o baile depois.

Não quero ir ao baile. Detesto essas coisas.

Você tem que ir, tem que ir... você nunca teve uma diversão ou qualquer tipo de vida social.. E acrescentou: Recebi uma carta a seu respeito, hoje de manhã: foi entregue por um dos serventes do colégio. É do Padre Jaeger.

Deixe-me ver.

É claro que não. A carta é minha e vou guardá-la com estima. Além disso, não quero que você fique muito prosa.

Ela fez uma pausa, enquanto nos olhávamos cheios de vontade de rir.

Ele diz que espera que você não esteja muito deprimido, pois você não apareceu para o jantar. E, se você tiver tempo, ele gostaria de que fosse até lá para vê-lo antes da sua partida na segunda-feira.

- Ele vai-se embora? Assim parece.

Fiquei pensando naquilo, espantado. Pelo menos, eu teria a resposta naquela noite.

Vá, experimente o terno, querido.

Eu me levantei, os músculos terrivelmente enrijecidos, e entrei no meu banho frio com alguma dificuldade. Uma camisa branca limpa e uma gravata nova azul-clara tinham sido postas ao lado do terno. Fui-me vestindo com cuidado, divertindo-me com a inspeção, perfeitamente consciente de que no mínimo há uns cinco anos eu não me vestia assim tão bem.

Minha querida mãe me olhou de alto a baixo, foi andando lentamente em volta de mim, então me olhou de novo. Não houve rompantes de admiração, nem superlativos, nem exclamações carinhosas de "oh, meu querido", mas foi agradável ver os olhos dela enquanto me abraçava e dizia em voz baixa:

Cai como uma luva. Agora você se parece com você mesmo. Durante aquele dia inteiro fiquei à toa, curando as minhas

feridas e sempre perto da minha mãe, mas às cinco horas estávamos ambos sentados no auditório do colégio, onde já se achava a maioria dos meninos com seus pais e amigos. Desmonde estava muito em evidência mas, como ele explicou, sua mãe, ocupada com os preparativos para a viagem, não pudera comparecer. Entretanto, foi ele quem deu início à cerimónia, liderando-nos no canto do hino do colégio, em nova versão composta pelo padre Roberts. O efeito foi bastante prejudicado pelo ruído dos retardatários procurando lugares vagos e arrastando cadeiras, e logo em seguida o padre Beauchamp apareceu na plataforma. Após uma prece rápida, durante a qual todos ficaram de pé, ele leu um relatório das atividades da escola durante o ano anterior, começando então a distribuir os prémios. Os pais dos alunos premiados ficaram radiantes, outros, menos afortunados, não escondiam a sua decepção. Uma mulher atrás de nós comentou com animosidade para o vizinho:

O nosso Willie tirou o quinto lugar em Religião. Como é que não ganhou um prémio?

Finalmente, falando mais devagar, Beauchamp passou para a turma mais adiantada e logo a seguir Desmonde foi chamado à plataforma para receber seus livros, sendo alvo de alguns aplausos quando fez uma pequena mesura e se retirou. Então foi a minha vez. E como fiquei aliviado e satisfeito principalmente por minha mãe com o estrondo de aplausos que me recebeu e que continuou até que Beauchamp levantou a mão! Começou a falar, presumivelmente a meu respeito, uma vez que havia mais aplausos, mas embora eu tivesse ouvido a frase "o nosso admirável Shannon", a minha atenção e os meus olhos estavam fixos num envelope em cima da pilha de livros.

Afinal acabou-se o sofrimento, Beauchamp me apertou a mão desajeitadamente e eu voltei aliviado para o meu lugar, onde a minha mãe, o rosto corado de orgulho, me apertou a mão e me envolveu com um olhar que nunca esquecerei, um olhar que me sustentou durante os anos difíceis que se seguiram.

Uma outra prece e fomos todos dispensados, saindo em grupos em direção à porta. Acompanhei a minha mãe na descida da colina até o ponto do bonde e, antes que ela embarcasse, lhe entreguei o envelope.

Isto são cinco guinéus em dinheiro, meu prémio no concurso de ensaios de língua inglesa. Será que me faria a gentileza de ir até o seu amigo judeu e pegar de volta o seu broche?

Antes que ela pudesse responder, teve que entrar no bonde que ia saindo, enquanto eu, sentindo-me terrivelmente triste, me virei e comecei a subir a colina de novo.

Na escola, o relógio da torre marcava seis e vinte. Fui imediatamente para o gabinete do padre Jaeger. Ele estava lá, sentado na cadeira de costume, não parecendo ocupado em coisa alguma e, achei, parecendo muito mais pensativo do que de hábito.

- Estava esperando que você viesse, Alec. Sua mãe recebeu a minha carta?

Sim, recebeu, e recusou-se terminantemente a me revelar qual era o conteúdo.

- Ótimo! disse ele e sorriu.. Eu queria muito ver você, Alec, não para falar sobre o jogo, que já é uma história morta, mas porque talvez eu tenha que ir-me embora dentro de pouco tempo. Ele olhou para o relógio. Mas você não deveria estar no baile?

Quanto mais eu perder daquilo, senhor, melhor. E realmente queria agradecer-lhe por ter-me dado o prémio de composição. O senhor sabia que eu precisava do dinheiro.

Que bobagem é essa? O seu ensaio estava milhas adiante dos outros. Você tem um bocado de jeito para isso.

Bem, senhor disse eu, sorrindo., Vou empregá-lo escrevendo receitas. Mas, por favor, diga-me, vai sair de férias?

"Não é bem isso. Vou-me ausentar.

Fez silêncio. Reparei que ele não estava fumando. Disse:

Quer que eu lhe prepare um cachimbo, senhor?

Fazia isso para ele com frequência, quando estávamos falando sobre futebol. Entretanto, ele sacudiu a cabeça.

Eu abandonei o cachimbo, Alec.. Fez uma pausa. Parece que tenho uma coisa esquisita na língua que está interessando um bocado os seus futuros colegas.

Dói?

Um pouco.. Ele sorriu. Mas saberei mais na segunda-feira, quando voltar para conhecer os resultados.

Fiquei calado. Não estava gostando nem um pouco daquela história.

Então eles podem querer que o senhor fique lá para operá-lo?

Saberemos disso na próxima semana. É possível que mais tarde eu vá para a nossa base em Stonyhurst. De qualquer maneira, queria despedir-me de você e desejar-lhe felicidade na sua carreira universitária. Não tenho dúvidas a seu respeito porque as suas qualidades estão aqui - ele tocou a testa e aqui. Cerrou o punho e bateu no peito com força. Não posso dizer - continuou que tenha a mesma confiança com relação ao futuro do seu amigo. Fitzgerald é como o ovo do cura, bom, muito bom, em certas partes, mas o resto... ele encolheu os ombros e sacudiu a cabeça.. Mas realmente, Alec, você tem que ir ao baile, senão eles vão pensar que você está acovardado. Acompanho você até lá embaixo, vou até a igreja um instante.

Ele veio até a porta da escola, parou, estendeu a mão e apertou a minha com força enquanto olhava fixo nos meus olhos.

Adeus, Alec.

Adeus, senhor.

Ele se virou e foi caminhando em direção à igreja, enquanto que lentamente, muito lentamente e muito triste, fui seguindo, atravessando a rua e subindo a encosta em direção ao Convento. Eu havia visto tragédia nos olhos corajosos de Jaeger. E com razão.

Ele tinha um câncer na língua, que já se alastrava pela laringe, generalizando-se. Seis meses depois, após três operações e uma agonia indescritível, estava morto. Seu único pequeno vício numa vida de total austeridade o matara.

Alguma premonição daquilo deve ter estado na minha mente quando cheguei ao Convento. O baile já havia começado, os pares circulavam lentamente, sob os olhares atentos de um grupo de freiras idosas sentadas na plataforma, e Desmonde estava fazendo o melhor que podia para animar a festa com algumas brincadeiras.

A dança não havia feito parte do meu currículo, mas tirei uma das meninas que estavam sem dançar por falta de parceiro e que se achavam reunidas num grupo tristonho, e girei com ela pela sala várias vezes, enquanto ela respirava pesadamente na minha orelha direita e nós pisávamos nos pés um do outro. Então a entreguei a um garoto distraído e me sentei junto de uma garota tranquila e bonita, de olhos cinzentos.

Graças a Deus que você não está dançando.

Não - disse ela. Vou iniciar o meu noviciado amanhã.

Para entrar neste convento aqui?

Ela inclinou a cabeça. Depois perguntou:

Aquele garoto que está dançando ali, não é o Fitzgerald, o que vai ser padre?

Sim, ele parte para o seminário na segunda-feira.. Você está brincando. Daqui a dois dias?

Por que não?

Eu não poderia acreditar que alguém pudesse continuar fazendo palhaçadas assim, praticamente na véspera de se entregar a Nosso Senhor.

Eu não disse nada, pois não queria envolver-me numa discussão a respeito do comportamento de pré-noviciado.

Você deve ser o Shannon. O bom jogador de futebol que ganhou a bolsa de estudos.

Como é que você sabe? Ela sorriu.

Nós falamos a respeito de vocês por aqui.

E no entanto você vai ser freira?. Sim, vou, não posso evitar.

Aquela resposta encantadora me fez sorrir, e começamos a conversar simpatizando muito um com o outro, até que de repente ela se refreou.

Acho que agora tenho que ir.

Mas já, logo agora que estamos começando a gostar um do outro?

Ela corou, de maneira muitíssimo atraente.

É por isso que tenho que ir... estou começando a gostar de você demais.

Ela se levantou e estendeu a mão.

Boa noite, Alec.

Boa noite, querida freirinha.

Eu a observei enquanto se dirigia para a porta do outro lado da sala. Queria que ela se virasse. Ela o fez e me olhou por um longo momento, então baixou os olhos e foi-se embora.

Decidi ir-me embora também, mas naquele momento todas as freiras na plataforma se levantaram, quando uma freira muito idosa apareceu, escoltada por uma jovem irmã e caminhando devagar com a ajuda de uma bengala. Imediatamente surgiu uma cadeira, que foi colocada no centro do palco. Ela se sentou.

Os dançarinos haviam ficado imóveis instantaneamente, pois aquela era a Madre Superiora do Convento. Depois de observá-los com benevolência, ela disse com toda a clareza:

" Será que o jovem Fitzgerald poderia vir até aqui?

Imediatamente Desmonde subiu até a plataforma, inclinou a cabeça diante dela numa mesura, abaixando-se graciosamente sobre um joelho.

É você o menino irlandês que canta? - Sim, Reverenda Madre.

O Padre Beauchamp me falou a respeito de você. Primeiro, caro Desmonde, para sua tranquilidade mental, gostaria de lhe assegurar que não recebi minha educação no Reformatório de Borstal, que, suponho que você saiba, fica perto de Eton.

Desmonde corou, enquanto as freiras que os rodeavam começavam a rir. Aparentemente, a famosa carta havia-se tornado popular no convento.

Por favor, desculpe-me, Reverenda Madre. Foi uma brincadeira idiota.

Você já está desculpado, Desmonde, mas vai ter que fazer uma penitência. Ela fez uma pausa., Sou uma velha irlandesa, que ainda chora pela sua terra natal, à qual agora nunca mais voltará. Portanto, será que você me faria o obséquio de cantar uma, só uma, canção ou balada irlandesa que me possa aliviar as saudades?

É claro que sim, Reverenda Madre. Com o maior prazer do mundo.

- Você conhece Tara? Ou O Jovem Trovador? Conheço as duas.

Então cante.

Ela fechou os olhos e virou a cabeça, esperando, enquanto Desmonde respirava fundo e começava a cantar aquelas antigas baladas, primeiro uma, depois a outra. E eu nunca o ouvi cantar melhor.

"A harpa que outrora, pelos corredores de Tara, Derramava a alma da música, Agora jaz tão muda nas paredes de Tara, Como se aquela alma tivesse desaparecido...."

"O jovem trovador foi para a guerra,

Nas fileiras da morte o encontrarão.

Ele cingiu a espada de seu pai

E sua harpa indomável levou consigo...

O trovador caiu, mas as correntes do inimigo

Não foram capazes de submeter a brava alma.

A harpa que ele amava nunca mais falou,

Pois ele arrebentou-lhe as cordas em pedaços

E disse: "Correntes jamais te desonrarão,

Ó alma do amor e da bravura,

Tuas canções foram feitas para os bravos e livres,

E nunca serão cantadas na escuridão."

Que quadro aquele! Contra um friso de freiras, a Madre Superiora muito idosa, de olhos fechados, meio reclinada na cadeira, e ao seu lado aquele jovem louro de olhos azuis e feições angelicais, pondo o seu coração numa canção.

Quando terminou, ninguém se moveu, até que a Rev. Madre falou, através das lágrimas que corriam:

Obrigada, querido trovador. Que Deus o abençoe e o guarde por ter podido fazer com que uma velha conhecesse um pedacinho do céu, antes de chegar lá.

Ela se levantou, auxiliada pelas freiras, e sorriu para nós.

Agora continuem com o baile.

Quando a Madre Superiora deixou o palco, começou a diversão de verdade, encabeçada por Desmonde, radiante com o seu triunfo e pronto para a ação. Ele tinha convencido um garoto desconhecido, alegre e rechonchudo, agora identificado como o capitão do time de hóquei, a se juntar a ele numa versão combinada de uma dança irlandesa e de outra escocesa.

Eu teria gostado de ir até ele apenas para um último adeus. Mas realmente já nos havíamos despedido depois do jogo, e ao som dos acordes alegres de Os Campbell Estão Chegando tocados no piano saí para o ar fresco da noite.

Minha mãe estava-me esperando quando cheguei a casa. Eu ainda estava tirando os sapatos no vestíbulo quando ela disse em voz alta:

Espero que esteja com fome, querido. Fiz para você uma deliciosa torrada com queijo derretido.

Eu estava com fome. Entrei na cozinha. Lá estava ela, os braços estendidos, o broche cintilando-lhe no colo.

 

Desmonde foi para o Seminário de St. Simeon, na aldeia de Torrijos, a cerca de dez quilómetros de Toledo. Depois disso, suas cartas para mim foram frequentes, mas irregulares. Logo após a primeira carta, que fazia uma descrição interessante do seminário e seus arredores, elas se tornaram bastante monótonas e repetitivas, uma vez que tinham muito pouco sobre o que falar, além das minúcias e da monotonia da vida monástica. Entretanto, mais para o final da preparação de Desmonde para o sacerdócio, recebi duas cartas realmente interessantes e que, de fato, tinham relação direta com a futura carreira de Desmonde. Portanto, reproduzirei a primeira e as duas últimas cartas em detalhe.

Quanto a mim, uma vez que acabarei por aparecer de novo na vida de Desmonde, é conveniente que se faça um breve registro de que a minha carreira na universidade prosseguia rigorosamente em circunstâncias muito pouco diferentes daquelas prevalecentes nos meus dias de colégio. O mesmo apartamento meio vazio, a mesma comida simples com mingau, a mesma devoção carinhosa de minha mãe. Só a esperança nos sustentava. Não nos queixávamos, uma vez que não estávamos sozinhos. Havia outros estudantes pobres, competindo entre si, desesperados por obter sucesso. Naquela época, agora remota, grandes subvenções de subsistência não eram concedidas com prodigalidade e indiscriminadamente. Rapazes inteligentes e ambiciosos vinham de fazendas pobres do norte trazendo uma sacola de comida para sustentá-los até a segunda-feira seguinte, um dia livre concedido pelos estatutos da universidade, para lhes permitir voltarem à fazenda paterna em busca de novos mantimentos.

Entretanto, por mais atormentado pelos duros estudos e provas frequentes que eu estivesse, sempre pensava em Desmonde, e fortalecido por suas cartas tinha uma certeza estranha de que, quando ele fosse ordenado, de novo eu o veria e estaria perto dele.

"Meu caro Alec

Eis o seu querido amigo, o seu fidas Achates, na Espanha, tendo no campo de visão a nobre cidade murada de Toledo, acariciado pelo sol benigno do Midi, mas infeliz, solitário e desolado por ter-me separado de minha mãe, e apavorado com o longo futuro sem alegria que se estende interminavelmente a minha frente.

Mas primeiro tenho que lhe servir os doces antes de lhe oferecer os bitters.

Dois dias depois do nosso último encontro, parti para Roma com a minha mãe que, embora nem de longe bem de saúde, insistiu em me acompanhar. Nossa viagem foi agradável e sem incidentes e, assim que chegamos, seguimos para o nosso hotel, o Excelsior, na Via Veneto, onde fomos levados para os nossos quartos, ambos grandes, frescos e distantes do barulho do tráfego.

O objetivo da nossa parada na Cidade Eterna não era apenas o descanso, embora isto fosse quase uma necessidade para minha mãe, mas também renovar certos contatos feitos por meu pai durante suas frequentes visitas, quando ali fora comprar manuscritos ou livros antigos e examinar e catalogar as bibliotecas das grandes casas. Foi um prazer descobrir que ele não havia sido esquecido. E, de fato, logo o nosso telefone começou a tocar e cartões foram deixados para nós, na portaria. Telefonou o Monsenhor Broglio, um velho terrivelmente chato, dono de um apetite voraz, mas que nos conseguiu permissão para visitar o Vaticano. Houve outras pessoas. A mais encantadora e hospitaleira de todas foi a Marquesa de Varese que nos recebeu diversas vezes na sua absurdamente grande e belíssima casa antiga, na Via dela Croce. Meu pai tinha passado várias semanas como seu hóspede, organizando e catalogando a enorme e valiosíssima biblioteca. Tenho certeza de que ela esteve meio apaixonada pelo meu pai, pois foi especialmente gentil comigo, prometendo ajudar-me no que quer que fosse preciso.

Foi ela que secundou os bons ofícios do velho Monsenhor na obtenção da audiência com Sua Santidade. E que encontro memorável, como foi comovente! É claro que não foi uma audiência privada, coisa que só é concedida à realeza ou a personalidades famosas, mas sim um encontro no grande salão, quinze minutos antes da audiência coletiva.

Chegamos lá na hora certa, eu no meu terno preto, minha mãe também de preto conforme o requerido, o lindo vestido e a mantilha de renda providenciados pela Marquesa. Esperamos numa pequena ante-sala, então fomos levados até a extremidade esquerda do salão de audiências, uma parte isolada por um cordão de veludo. Lá de novo esperamos, talvez uns dez minutos. Quando o Papa entrou, acompanhado pelo seu secretário, senti um tremor como de êxtase, tamanha era a dignidade, a serenidade, a impressão completa de bondade que se irradiava em nossa direção. Orientado pelo secretário, ele nos cumprimentou pelo nome, falou num inglês perfeito a respeito de meu pai. a quem havia conhecido quando ainda era o Cardeal Pacelli. e de tudo que ele tinha feito pela Igreja." Falou primeiro com a minha mãe, depois comigo, exaltando o grande bem que jovens padres ativos poderiam fazer ao mundo de hoje e, com uma expressão no olhar que parecia prever Toledo, discursou sobre as virtudes do auto-sacrifício e da penitência. Isso poderia muito bem ter continuado para além dos quinze minutos predeterminados, pois eu podia ver que Sua Santidade não se estava entediando conosco, mas de repente, atrás de nós, na extremidade mais distante do salão, as portas enormes se abriram e entrou uma horda de... adivinhe o que, Alec?... marinheiros americanos, que avançaram em massa, com exclamações animadas e nada discretas: "Lá está ele, amigos! Olhem só Sua Santidade! Agora fiquem quietos, não gritem!"

Quando o silêncio foi restabelecido e eles estavam todos agrupados na seção que lhes havia sido destinada, o secretário nos fez um sinal, indicando que deveríamos ajoelhar-nos.

Eu o fiz, mas Sua Santidade tocou de leve o ombro de minha mãe e murmurou: "Não se ajoelhe, cara,senhora."

Então ele nos abençoou, diante daquelas testemunhas silenciosas e atentas.

Você se lembra, Alec, daquela ocasião no seu quarto em que eu lhe pedi que me abençoasse? Foi o mesmo sentimento irreal, desligado do mundo, inexplicavelmente pré-santificado, ampliado, é claro, mas em essência o mesmo. Portanto, no futuro terei dificuldade em deixar de me dirigir a você como Vossa Santidade.

Fomos levados para fora pela escadaria privada, e naquela noite tivemos um jantar formal com a Marquesa. No dia seguinte, tomamos o rápido para Madri.

Como minha mãe tinha querido muito fazer aquela visita à Espanha e havia economizado uma quantia considerável do seu estipêndio anual para pagá-la, resolvi não ir diretamente para o seminário e passar mais dois dias na capital espanhola. Assim que chegamos, tomei um táxi direto para o Hotel Ritz, onde, com rapidez e extrema cortesia, fomos instalados numa suite com vista para os jardins.

Que hotel fantástico. Alec! Sem nenhuma hesitação concedo mais duas estrelas além das quatro que ele já tem. Minha mãe pôde descansar de verdade descontraindo-se sob as laranjeiras, enquanto eu dava uma boa olhada no Prado, que achei bastante desapontador, com um número excessivo de quadros enormes de reis espanhóis, embora, é claro, aquele maravilhoso, insuperável Velasquez: Las Meninas. Mamãe realmente se preocupou um pouco com a hora tardia em que o jantar foi servido, mas quando nos sentamos, tudo foi perdoado. Uma cozinha de dar água na boca.

Na manhã do nosso terceiro dia providenciei para que um mensageiro acompanhasse minha mãe, naquela noite, até o compartimento que eu havia reservado para ela no expresso Madri-ParisCalais. Partimos numa grande limusine da Hispano Suiza para Toledo e o seminário.

Diante dos portões ameaçadores daquela instituição, quando mamãe me beijou num último adeus, tive de repente um terrível pressentimento de que seria realmente uma última despedida, de que nunca mais a veria. Esperei, observando o carro até perdê-lo de vista e também, deixe-me admiti-lo, até que eu tivesse enxugado os olhos depois de uma boa choradeira, em seguida passei pelos enormes portões do seminário e pedi ao porteiro, em espanhol, que me levasse ao gabinete do Superior. Ele pareceu ficar surpreendido com o fato de eu falar a sua língua e de muito boa vontade carregou a minha mala e me acompanhou, atravessando um pátio enorme em direção à parte central do colégio, uma adorável abadia andaluza à qual, entretanto, duas horríveis alas modernas, altas e de concreto aparente, haviam sido acrescentadas. No interior, subimos por uma bela escada antiga de oliveira preta, e do lado de fora de uma porta imponente, da mesma madeira escura, ele deixou a minha mala no chão. Dei-lhe duas pesetas. De novo, se mostrou surpreendido e satisfeito.

É muito bom que o senhor fale espanhol. Todos os empregados são espanhóis.

São todos homens?

Mas é claro, senhor. O Superior Hockett não admitiria outra coisa.

Bati na porta, não obtive resposta, mas entrei, e fiquei indescritivelmente espantado e surpreendido ao ver um padre alto e moreno rezando ajoelhado num genuflexório diante de um crucifixo preso na parede. Sob o crucifixo, num receptáculo fechado de vidro, havia, acredite se quiser, Alec, uma mão humana amputada. Antes que eu me pudesse recuperar, o homem ajoelhado falou:

Saia e espere.

Saí, ainda carregando a mala, e fiquei de pé, esperando lá fora durante pelo menos uns dez minutos antes que a voz se materializasse de novo.

Pode entrar.

Entrei, pus a mala no chão e, como havia uma cadeira diante da escrivaninha e que parecia ter sido posta ali para mim, me sentei.

Levante-se.

Obedeci, observando o meu futuro superior com considerável apreensão, enquanto ele continuava sentado ali, estudando uma pasta que, com apreensão ainda mais profunda, eu sabia ser o meu dossiê. Você já viu alguma vez o desenho de Phiz do padrasto de David Copperfield? Era o próprio: a mesma estatura e aparência geral repelente, os mesmos olhos escuros, ameaçadores, sádicos. Não gostei nada dele, de fato ele fazia com que eu me sentisse exatamente como o pequeno David antes que o mandassem para a fábrica lavar garrafas.

Sabe, caro Desmonde começou no fim, que está com três dias de atraso em se apresentar a mim?

O sarcasmo em sua voz era amargo, nada divertido.

Sinto muito, Padre, mas minha mãe me acompanhou e, como parecia cansada, passamos dois dias em Roma, antes de vir para o Ritz, em Madri, onde, de novo, achei que seria prudente passar a noite.

Uma devoção filial. E o que foi que fez em Roma, meu filho?

Tivemos uma audiência com Sua Santidade, o Papa. Pensei que aquilo fosse impressioná-lo. Não impressionou.

Continuou sorrindo e, creia, Alec, não gostei nada daquele sorriso.

E o que foi que Sua Santidade lhe disse?

Tolamente eu disse a verdade.

Ele exaltou as virtudes da penitência e do auto-sacrifício.

Imediatamente, ele ergueu o punho enorme e de repente bateu na escrivaninha com tanta força que fez com que tudo que havia sobre ela saltasse. Infelizmente, eu saltei também.

Essas são exatamente as palavras que eu deveria ter-lhe dito. E lhe digo agora, pois elas são o lema deste colégio e são especialmente aplicáveis a você, um fraco, um filhinho da mamãe mimado, completamente estragado! Se eu não o vi logo escrito em seu rosto, está aqui, escrito no seu dossiê.. Olhou de relance para a pasta sobre a escrivaninha. Diga-me, você sabe alguma coisa a respeito de mortificação?

De novo tolamente, uma vez que embora ainda temeroso eu estava ficando confuso, disse:

- Sim, conheço. Meu melhor amigo toma um banho gelado todas as manhãs e corre duas milhas antes mesmo de comer o mingau de aveia.

Os olhos dele cintilaram com avidez.

Esse é o homem que eu quero. Será que poderíamos trazê-lo para cá?

Ele já iniciou os estudos para ser médico.

Que pena! Que grande missionário eu não teria feito dele! Aqui nós nos especializamos em missionários, Desmonde com "e". Nos últimos doze anos já enviei sete, dos quais três morreram na África Negra.

Agora aquele sujeito sanguinário estava-me assustando, Alec. Era pior que Jack, o Estripador.

Vamos ao que interessa. Sou obrigado a puni-lo pela sua flagrante desobediência à minha ordem. Está proibido de sair por duas semanas. E o quarto que lhe darei provavelmente não o fará lembrar-se do Ritz.

Bateu com força na campainha sobre a mesa e no mesmo instante apareceu o servente. O Estripador deu-lhe instruções. O homem pareceu surpreendido, mas apanhou a minha mala e saímos, deixando a linda abadia e indo para o lado oposto, uma parte distante do prédio de concreto. Ali, ele seguiu na frente, descendo os degraus do porão até um pequeno cubículo escuro, parecido com uma adega, com uma minúscula janela com uma vista horrenda para os banheiros externos. A cela em si estava imunda de dar nojo e numa terrível desordem.

Olhei para a cama torta e suja, e me virei para o homem que ainda estava segurando a minha mala.

Quem ocupava este quarto?

Um estudante que foi expulso ontem.

Por quê?

Acho que foi por ter fumado um cigarro, senhor. - E acrescentou em voz baixa e em tom confidencial:. Esta é a cela de punição, senhor.

Refleti um momento. Eu não iria, decididamente, ficar ali.

Não se vá! Espere aqui com a minha bagagem. Eu vou voltar.

Quase como se esperasse aquela reação, ele sorriu e pôs a minha mala no chão.

Subi os abomináveis degraus, fui direto para o gabinete do Estripador e entrei.

Ele levantou a cabeça, e eu me convenci de que me esperava.

Sim?

Não vou aceitar aquele calabouço fedorento. O mínimo a que tenho direito é limpeza e decência.

E se eu não satisfizer as suas exigências?

Sairei daqui imediatamente, irei a pé até Toledo, lá alugarei um táxi até Madri, tomarei um trem para Roma e relatarei o assunto ao Santo Padre.

Muito bem. disse ele num tom brando. Adeus, Desmonde com "e".

Fiquei ali ardendo de raiva, enquanto ele retomava o trabalho. Então me virei, saí e fui andando lentamente de volta à cela. Agora já não me sentia como o pequeno David, mas como uma das garrafas que ele havia lavado pela metade. Eu não podia, é claro que não podia fazê-lo, e o Estripador sabia. Com que pareceria eu, voltando para junto de minha mãe no Ritz? Não, nunca, nunca, eu tinha que tirar o melhor partido daquilo. Ainda me restava alguma iniciativa. O empregado me estava esperando. Sabia que eu voltaria.

O quartinho teria uma aparência muito melhor se fosse limpo, senhor.

Eu o olhei nos olhos e compreendi. Agradecendo a Deus pelo espanhol fluente, um fato que aquele desgraçado sádico no seu gabinete desconhecia, eu perguntei:

Qual é o seu nome?

Martes, senhor.

Tirei da carteira uma linda nota novinha de cinquenta pesetas e a estendi para ele. Eu sabia que para ele se tratava de uma fortuna. Ele também o sabia.

Martes! Traga um amigo, com sabão e água, tudo para limpeza. Arranje roupa de cama limpa, cortinas novas, tire um tapete de um outro quarto. Faça com que tudo fique agradável e limpo, e o dinheiro será seu.

Ele largou a mala e saiu como um raio. Esperei apenas o suficiente para vê-lo voltar com um outro servente do colégio, que ele apresentou como José. Estavam os dois carregados com uma variedade de escovas, panos e baldes de água. Quando ia subindo a escada, ouvi-os começarem vigorosamente o trabalho.

Durante cerca de uma hora ou mais fiquei vagando pelos terrenos do seminário, examinando as quadras de ténis abandonadas, pelas quais as vacas dos campos vizinhos obviamente haviam passado para deixar lembranças, um pátio com várias divisões para o jogo de pelota, um velho campo de futebol. Fui visitar a igreja, de estilo espanhol antigo, e, admiti para comigo mesmo, de fato espiritualmente inspiradora, intocada, muito bonita. Ao que parecia, estava-se em horário de aulas, pois não encontrei ninguém.

Finalmente voltei para os meus aposentos. Os dois serventes estavam-me esperando do lado de fora e me seguiram quando entrei. Numa palavra, fiquei estonteado com o que tinham feito. O quartinho havia sido esfregado e encerado até brilhar. Uma cortina nova de linho enfeitava a janelinha e um pequeno e elegante tapete espanhol cobria o chão de lajota. Um outro presente, vindo de algum quarto vazio lá de cima, era uma poltrona de vime. A cómoda, ainda exalando o aroma sadio de cera de abelha, agora se havia revelado, era uma verdadeira peça antiga de época, em estilo andaluz. E, finalmente, a cama quebrada havia sido consertada e estava feita com roupa branca e bem lavada.

Agradecido, olhei para os meus benfeitores, que estavam ambos sorridentes e ansiosos.

Agora está um quarto agradável, senhor. Tranquilo. Muito fresco e gostoso no verão.

Puxei a carteira e tirei outra nota de cinquenta novinha, vinda diretamente do caixa do Ritz. Quando entreguei uma nota de cinquenta para cada um, a alegria deles foi um prazer de se ver.

Nós viremos sempre, quando tudo estiver calmo, para que continue bonito, senhor.

Façam isso, Martes e José, pois agora são meus amigos.

Quando eles se foram, sempre se virando para mais um sorriso, desfiz a mala e arrumei as minhas coisas nas gavetas que haviam sido forradas com papel. Depois coloquei meus dois porta-retratos sobre a cómoda, enfiei a mala vazia embaixo da cama e, com um último olhar em volta, saí.

E lá fora, no pátio, caminhando em minha direção, estava o meu inimigo.

Esteve ocupado, Fitzgerald?

Não mais que o habitual, Padre.

- Vamos dar uma olhada.

Ele desceu as escadas. Não o segui. Afinal, depois de obviamente ter examinado tudo, aberto as gavetas e manuseado a minha roupa de baixo, ele saiu sorrindo. E como desconfiei daquele sorriso!

Meus parabéns, Fitzgerald. Você fez um trabalho maravilhoso. Eu não sabia que você dava para isso.. E pôs a mão no meu ombro num gesto simpático.

Evitando aquele abraço fingido, mirei-o bem nos olhos.

O senhor sabe que não fui eu quem o fez. Assim, não tente fazer de mim um mentiroso. Posso ser o que for, mas nunca isso, e o senhor jamais me levará a sê-lo através de artimanhas.

Ele ficou em silêncio, após o que disse na sua voz normal:

Nada mau, Fitzgerald. Ainda sou bem capaz de conseguir fazer de você um missionário. Agora está na hora da nossa deliciosa merenda. Venha, vou-lhe mostrar onde fica o refeitório.

Era um enorme salão no prédio novo da direita, com uma plataforma numa extremidade e, mais abaixo, umas vinte mesas compridas, onde meus futuros companheiros estavam-se preparando para encher a barriga. Hackett me levou até a cabeceira de uma das mesas, enquanto que ele foi-se sentar na cadeira do meio da mesa da plataforma onde ficou ladeado por dois padres. Então se rezou a oração de graças e, enquanto um rapaz começava a ler um atril o que parecia ser o Livro dos Mártires, o almoço foi servido. Imaginei que iria comer alguma coisa.

Infelizmente, o prato era uma olla podrida sem gosto nenhum, feita com arroz e ervilhas, semilíquida, e cheia de pedaços de carne dura flutuantes, que deveriam ter sido cortadas a machadadas. Esforcei-me por comer a minha porção, sabendo que, se não aprendesse a engolir aquela lavagem, sem dúvida nenhuma morreria de fome. Depois disso, veio um queijo de cabra com um pedaço de pão, o que realmente não era nada mau, em seguida uma tigela de líquido preto imitando café. Consegui acabar com aquela zurrapa amarga em grandes goles. Pelo menos, estava quente.

Enquanto isso, eu estivera examinando os outros internos, a maioria dos quais detestei à primeira vista. Em especial, um grandalhão abrutalhado e feio que estava sentado à cabeceira da mesa central e a quem todos chamavam de Duff.

Quanto aos padres, um, apenas um, parecia tomar conhecimento da minha existência, um homenzinho de ar desamparado, bochechas coradas e cabelo grisalho e que ficava o tempo todo fazendo caretas e momices na minha direção. Quando perguntei ao meu vizinho de quem se tratava, ele cochichou, uma vez que o silêncio era obrigatório:

Padre Petitt, o professor de música.

Bom Deus, pensei, aquilo era só o que faltava! Quando nos levantamos e fizemos a prece de agradecimento, e ele pareceu estar-me fazendo sinais, saí rapidamente da mesa, misturei-me com os outros e fui direto para o meu cubículo. Foi nessa hora livre que comecei a escrever esta carta, que estou acabando agora, mais tarde, à luz de vela, no dia seguinte.

Como não me posso arriscar a submetê-la à censura do sanguinário do Hackett, vou confiá-la ao meu amiguinho espanhol, que a porá no correio, na aldeia. Desculpe-me por esta longa arenga cansativa, caro Alec. Eu queria que você soubesse exatamente em que situação estou e o que me espera durante os próximos quatro anos, se eu sobreviver.

Dê lembranças minhas à sua mãe.

Com um abraço afetuoso, subscrevo-me,

Desmonde

  1. S.. A mãozinha amputada, segundo me foi revelado, é a relíquia de um dos rapazes, um jovem padre morto e mutilado no Congo, e cujo corpo foi recuperado por tropas belgas que embalsamaram e enviaram a mão. Isto faz com que Hackett ganhe um ponto a favor no meu livro, por tê-la preservado e por reverenciá-la.

Que conclusão se poderia tirar daquela longa carta, cheia de divagações, tão típica? Permiti que minha mãe a lesse, uma vez que ela gostava muito de Desmonde e ce interessava pelo seu progresso no caminho do sacerdócio. Ela sacudiu a cabeça.

Pobre garoto! Ele nunca conseguirá.

Mas uma longa sucessão de cartas, chegando periodicamente, parecia contradizer aquele presságio. Tristes, cheias de reclamações, iluminadas por momentos de humor ocasionais ou por rompantes de fúria contra Hackett, eram tão repetitivas e, de fato, tão indignas de Desmonde, que eu as suprimi. Comparado com os acontecimentos que se seguiriam, aquele foi um período monótono na vida de Desmonde. Nos estágios iniciais do noviciado, seu único amigo num grupo duro era um rapaz tão sensível e inteligente quanto ele, apelidado de "Lunático", com quem ele se encontrava na hora do recreio para jogar monótonas partidas de ténis com raquetes velhas e bolas gastas numa quadra muito marcada por excrementos bovinos cozidos pelo sol. Noutras ocasiões, eles caminhavam em silêncio pelo claustro da velha abadia, absorvendo a beleza e a paz daquela parte tão negligenciada do colégio. Nos dias de chuva, encontravam-se na biblioteca para ler, embora não fossem ler os volumes sobre os mártires, dos quais as prateleiras estavam abarrotadas, mas sim outros livros menos santos. Também se reuniam para compor versos grosseiros, a maioria dos quais dedicados a Hackett. Estes, escritos com a letra disfarçada, eram discretamente largados nos banheiros e outros lugares mais públicos.

Com a única exceção do padre Petitt, Desmonde não recebia quase nenhum consolo dos seus instrutores eclesiásticos, a quem ofendia com frequência por revelar que sabia mais do que eles estavam tentando ensinar. Mas Petitt, o velho padrezinho tímido, de bochechas cor-de-rosa, já descrito como "fazendo momices e caretas como apresentação", esteve desde o início extremamente bem-intencionado com relação a Desmonde, cujo boletim escolar havia sido de supremo interesse para um mestre de coral perdido num deserto em termos de música. Petitt não podia realmente apresentar reivindicações quanto a essa atribuição. Tocava o órgão da igreja, ensinava piano ou violino quando isto lhe era pedido, e conseguia reunir um número suficiente de vozes para controlar de modo decente os hinos, as litanias e o canto gregoriano, que de outra forma teriam sido uivados a ponto de não poderem ser reconhecidos. Como ele teria vindo parar no seminário era tema de conjeturas, uma vez que Petitt era não apenas reticente, mas também tão terrivelmente tímido que uma pergunta direta o faria corar.

Indubitavelmente se dedicara à música desde pequeno; quando, ainda bem jovem, havia tocado com uma das orquestras dos Midlands, e seu instrumento, bastante apropriado aliás, era a flauta. Como ou por que, de repente, decidira seguir o sacerdócio ele nunca revelaria. Da mesma forma, também, não falava das muitas mudanças, das transferências de uma paróquia para outra, às quais fora submetido depois de sua ordenação. Não era destinado a ter sucesso, mesmo no serviço do Senhor, mas seu conhecimento de música permanecera, e ele sentia que era uma bênção estar finalmente em St. Simeon. Ali era querido por todos e especialmente pelo Superior, que favorecia o "homenzinho" de muitas maneiras.

Logo após o primeiro encontro de Desmonde com o padre Petitt, ele foi gentilmente atraído à sala de música, um aposento comprido, de teto baixo guarnecido de vigas, situado no alto, acima dos claustros da velha abadia, distante do concreto armado e de todas as outras imagens e sons que pudessem distrair a atenção.

- Sente-se, Desmonde, e deixe-me falar com você.

Sentaram-se num velho sofá esgarçado, junto do piano de cauda, e Desmonde viu que o homenzinho estava nervoso e arquejando quando começou:

Meu caro Desmonde, o seu boletim do Santo Inácio fez menção especial, entre seus outros atributos, à sua voz excepcional. Quando li a respeito disso, tremi numa expectativa reprimida com dificuldade. Agora, não fique alarmado.. Ele pôs a mão no braço de Desmonde. Por nada no mundo eu o atiraria aos lobos, pedindo-lhe que cantasse com aquele bando uivante na igreja, que berra de qualquer maneira os hinos e as composições mais simples de Bach e Haydn que consegui martelar na cabeça deles. Não, caro Desmonde, tenho uma esperança que guardo como um tesouro há muitos anos.. A voz dele tremeu.. Uma possibilidade, um sonho, um projeto que cultivei e mantive através de muitos anos estéreis. Fez uma pausa. Antes que eu continue, será que me daria o prazer de cantar para mim?

Naquela altura, Desmonde já havia sido cativado pelo "homenzinho".

Que é que gostaria que eu cantasse, Padre?

Conhece a Ave Maria, de Schubert? É claro, Padre.

É difícil. Indicou o piano. Quer que eu o acompanhe?

Não é necessário, obrigado, Padre.

Desmonde adorava aquele lindo hino, e o cantou com verdadeira satisfação.

Ao terminar, olhou para o padre Petitt. O homenzinho estava sentado de olhos fechados, os lábios se movendo numa prece silenciosa. Afinal abriu os olhos lacrimejantes e, tornando a convidar Desmonde a se sentar ao seu lado, disse:

Meu caro Desmonde, eu estava agradecendo a Nosso Senhor por ter atendido a uma prece que fiz a Ele há mais de três anos. Quer ouvir enquanto explico? E, a propósito, posso continuar a chamá-lo de Desmonde?

Gostaria que o fizesse, Padre.

Era a primeira vez que Desmonde havia sido chamado assim desde que entrara para o seminário. E ouviu com atenção enquanto, durante quase dez minutos, o padre Petitt abria o coração para ele. Um longo silêncio se seguiu àquela confissão emocionada. Então:

Você vai tentar, Desmonde? Se o senhor achar que devo.

Creio que é uma oportunidade dada por Deus e que você não deveria jogar fora.

Então tentarei.

Trocaram um aperto de mãos. O homenzinho sorriu.

A minha ideia é que você venha aqui para cima durante o seu tempo livre da tarde, duas vezes por semana, digamos às terças e sextas, das três às cinco. Conversaremos e trabalharemos juntos, trabalharemos muito. Para que você descanse um pouco, tocarei Beethoven, ou qualquer outro que você preferir. E, no final, tratarei de que tragam alguma coisa aqui para cima, para você lanchar. Não o fiz hoje porque não sabia se você aceitaria.

Desmonde desceu para a austeridade inflexível da vida no seminário com um novo interesse, a perspectiva de descontração que sempre lhe agradara, e um objetivo quase impossível de ser atingido, mas que fazia seu sangue correr mais depressa quando, ocasionalmente, se permitia visualizar uma possível vitória, murmurando, saboreando as palavras, O Cálice de Ouro.

As sessões das terças e sextas começaram e prosseguiram com regularidade. Desmonde nunca tivera um professor de canto; cantava naturalmente, e havia adquirido muitas falhas técnicas. O pequeno padre Petitt dava-lhe muitas peças difíceis e não deixava de criticar.

Desmonde, não se demore nessa última nota como se você a amasse e tivesse medo de deixá-la sair. Isso é um artifício vulgar e sentimental. Tente esse trecho de novo, você cantou com um pouco de vibrato. Evite o vibrato como se fosse o pecado. É a maldição de muitos bons tenores. Não estoure as notas altas para obter efeito, acabando como um sapo moribundo.. E o padre Petitt continuava: E agora, Desmonde, que canção vai ser a sua "escolha" para o concurso? Isto é importante, pois grande parte do julgamento se baseará nela.

Desmonde refletiu apenas um momento.

- Gostaria de cantar a Canção do Prémio de Die Meistersinger. E acrescentou: - Vagner não é um dos meus favoritos, mas essa canção é magnífica. Não apenas inspiradora, mas também sublime, voltada para o sucesso, o que a torna adequada para nós.

Petitt concordou.

Sim, uma canção soberba. Mas longa, muito longa, e difícil. Bem, logo veremos o que você pode fazer com ela.

Em certos dias Desmonde não tinha permissão para cantar; descansava no sofá enquanto o "homenzinho" se sentava, com uma almofada, ao piano, e tocava; tocava seleções de Brahms, Liszt, Schubert e Mozart, muitas delas favoritas de Desmonde.

Regularmente, às quinze para as cinco, Martes aparecia com alguma coisa trazida da cozinha e normalmente reservada para a mesa dos padres. Com frequência vinha mais cedo e ficava de pé do lado de fora, escutando. De alguma despensa remota, o padre Petitt havia desencantado uma chaleira e um fogareiro a álcool onde fazia chá.

Aquele relaxamento inimaginado da rigorosa rotina do seminário, tão de acordo com o gosto e a disposição natural de Desmonde, sem dúvida o salvou de abandonar a sua vocação, ou talvez de ter um colapso. Referia-se a ele repetidamente em suas cartas, contando como, gradualmente, sutilmente, acabou por tomar posse do sótão, até poder ir para lá quando quer que estivesse livre da rotina diária. Escrevia todas as suas cartas naquela abençoada reclusão e, deitado no velho sofá, descansava durante meia hora, digerindo o almoço incomível, antes de começar o estudo da tarde. Havia descoberto uma grande pilha de músicas alemãs num armário com prateleiras no banco do piano. Começou a tocar e a cantar todas elas até que a sua leitura se tornou perfeita. Algumas das peças mais leves ele as aprendeu de cor. Havia duas canções de Schubert, Der Lindenbaum e Fruhlingstraum, de que especialmente gostava, bem como aquela doce canção de amor de Schumann, Wenn ich in deiner Augen seh. Também havia canções sérias: Der Tod das ist die kiisle Nacht e surpreendentemente, em inglês, alguns excertos do Messias, de Handel. Melhor do que tudo, achou ali a comovedora Sei que o meu Redentor vive.

Uma tarde, quando estava cantando com todo o seu coração uma das suas peças favoritas de Handel. O potro que caminhava na escuridão, não ouviu a porta se abrir às suas costas. E quando se virou lá estava o grande vulto ameaçador de Hackett. Estivera ouvindo na soleira da porta,

Desmonde quase caiu do banco do piano. Tremeu, pensando que estivesse liquidado, enquanto Hackett se aproximava dele lentamente. Mas o que era aquilo? Uma enorme mão aprovadora apertou o seu ombro, e as palavras não lhe foram gritadas, mas ditas com brandura:

Estava realmente bonito, Fitzgerald. Não sou nenhum professor, mas conheço o que é bom quando ouço. Continue, continue estudando e ganhe o Cálice, pela honra e pelo colégio.

Fez uma pausa.

A propósito, você gostaria de trocar de quarto, para um dos quartos maiores no andar de cima?

Obrigado, Padre, mas não. Gosto da minha pequena cela.

- Bom para você, Fitzgerald. Ainda farei de você um mártir.

Ele sorriu, realmente sorriu, virou-se e saiu.

Desmonde desceu a velha escada da abadia fazendo tanto barulho quanto possível, cantando uma hosana a plenos pulmões. Agora não era mais preciso rastejar. Havia sido aprovado, até mesmo consagrado; o estudiozinho do sótão agora era dele.

A antipatia de Desmonde pelo padre Hackett havia sido modificada pela inesperada gentileza que o Superior lhe demonstrara. Entretanto, não conseguia aceitar muito bem a insistente e persistente obsessão missionária que parecia ser o fator dominante nos ensinamentos do seminário e, frequentemente, a essência dos sermões curtos, mas vigorosos, do padre Hackett.

Num domingo, o sermão da manhã causou grande impressão em Desmonde. O padre Hackett começou tranquilamente, exaltando as virtudes e a necessidade do esforço missionário, em obediência ao mandamento de Cristo: "Portanto, ide e fazei discípulos a todas as nações" (Mateus 28.19). E São Paulo havia emitido a mesma ordem: "Ai de mim se eu não pregar o Evangelho" (Coríntios 9.16). Cristo havia enfatizado repetidamente a missão evangélica da Igreja, a necessidade de pregar o Evangelho e de educar seus membros para o maior conhecimento e consciência de Deus.

O âmago da Igreja Católica é missionário por natureza insistiu Hackett. É a obediência ao mandamento de Cristo no sentido de exercer uma influência moral em prol da justiça social, construir escolas, hospitais, dispensários para os pobres, os ignorantes, os oprimidos.

Então começou a falar sobre os grandes nomes da história missionária da Igreja, um tema que lhe era muito caro ao coração, começando por São Paulo, que havia levado o cristianismo aos gentios, o apóstolo Tiago Maior na Espanha, e o apóstolo Tomé, na sua conversão dos índios de Malabar. E, depois disso, São Martinho de Tours, na França, São Patrício e São Columbano na Irlanda, Santo Agostinho, o primeiro Arcebispo de Canterbury no ano de 597.

E o padre Hackett prosseguiu, falando dos grandes missionários jesuítas, citando o caso do jesuíta Matteo Ricci, que logo no início do século dezesseis fez a grande penetração na China, através do estudo intensivo do idioma e da cultura chinesa. Seus presentes de um relógio e uma espineta lhe obtiveram a proteção do Imperador Wan-li, e subsequentemente a liberdade de pregar e ensinar. E na índia, o jesuíta Robert de Nobili, adotando as vestimentas e o modo de vida dos brâmanes, os superou em termos de austeridade e fez milhares de conversões nas classes mais altas.

Não imaginem nem por um momento continuou Hackett que todo esse trabalho sublime foi realizado sem sacrifício, sem o supremo sacrifício. Em apenas um ano no Congo, cento e seis padres, vinte e seis frades e trinta e sete freiras foram cruelmente assassinados no cumprimento do seu dever sagrado.

O padre Hackett fez uma pausa e com a voz embargada declarou:

Aqui, deste seminário, um dos muitos jovens missionários que temos enviado no decorrer dos anos para todas as partes do mundo, aquele jovem nobre e distinto, o Padre Stephen Ridgeway, foi brutalmente assassinado e seu corpo esquartejado quando levava a palavra de Deus para o interior selvagem e inexplorado das florestas do Norte do Congo.

"Vocês conhecem a relíquia sagrada recuperada pelos soldados belgas e enviada para nós pelos padres belgas de Kinder, a mão daquele jovem bravo e nobre, amputada de seu braço por um golpe terrível e miraculosamente, repito, miraculosamente preservada, perfeita e sem sinal de corrupção, como se ainda fosse uma parte viva do corpo vivo de Stephen.

"Vocês já viram essa relíquia, exposta à veneração de vocês na missa que celebramos, no aniversário do glorioso martírio de Stephen. É o meu bem mais precioso e será mostrada em toda a sua miraculosa perfeição quando eu entrar com o pedido de canonização desse santo jovem, orgulho deste seminário, e exemplo, inspiração e incentivo para todos vocês aqui.

"Que alegria no Céu, e para mim, humilde defensor da vida missionária, se, além dessas boas almas valorosas que já escolheram essa via dolorosa, outros entre vocês viessem e me dissessem: "Eu também aceito a mensagem, mais que isto, a ordem de Cristo: "Ide e pregai o Evangelho"!

Tornou a fazer uma pausa e continuou:

Levantem-se e cantemos todos aquele esplêndido hino, o brado de guerra de todos os que se empenham na luta por Jesus, Avante, Soldados de Cristo.

Era evidente que agora o Padre Hackett estava mais bem disposto para com o noviço a quem antes havia tratado de maneira tão rude. Entretanto, Desmonde não conseguia corresponder de todo às aproximações feitas pelo seu Superior. Um pensamento desagradável o importunava continuamente, e na tarde seguinte ao sermão inflamado do Superior isso foi posto em palavras, na sala de música, quando de repente exclamou para o professor:

Essa obsessão missionária do Padre Hackett não lhe parece bastante mesquinha? Se realmente é tão apaixonado pelo assunto, em vez de nos instigar ao martírio, por que ele mesmo não faz uma tentativa?

Petitt deixou cair a folha que tinha na mão e olhou para Desmonde com severidade.

Esse é um comentário muito pouco caridoso e absolutamente dispensável.

Mas não é verdade?

Petitt tornou a olhá-lo de alto a baixo com uma espécie de surpresa zangada.

Você não sabe que o nosso Superior passou doze anos de sua vida como missionário? Imediatamente após a ordenação, ele foi para a índia a fim de trabalhar entre os Párias a casta mais baixa e os mais desprezados de todos os seres humanos. Com as próprias mãos construiu um pequeno dispensário, depois criou uma escolinha, começou a vestir e a ensinar as crianças famintas e esfarrapadas, cujos dias e noites eram passados nas sarjetas de Madrasta. Ele literalmente infernizava os amigos na sua terra pedindo dinheiro para vestir e dar de comer àquelas criancinhas indesejadas, a quem ensinou o catecismo, converteu ao cristianismo, enquanto durante todo o tempo vivia no bairro mais humilde e mais pobre da cidade, onde o cólera é quase que endémico.

"É claro que por causa do seu devotamento aos doentes, ele contraiu o cólera, recuperou-se, mas foi mandado de volta para casa por invalidez.

"Na sua ausência, um jovem padre americano havia continuado o seu belo trabalho e juntou suas forças com as de Hackett quando este voltou. Juntos, eles conseguiram milagres até que uma epidemia de febre amarela se alastrou na província do interior de Lingunda. Deixando o companheiro encarregado da missão de Madrasta, Hackett partiu para a região onde grassava a epidemia. Seis semanas mais tarde, depois de uma dedicação heróica aos doentes e aos moribundos, ele foi atacado pela doença, quase morreu, foi mandado de volta para a sua terra, num estado de saúde tão lamentável, tão abalado por aquela terrível doença que lhe foi recusada permissão para voltar. Uma vez que agora era imperioso que ele vivesse num país de clima quente, recebeu este cargo relativamente fácil aqui na Espanha.

Um longo silêncio se seguiu àquela breve exposição do Padre Petit, durante a qual Desmonde permaneceu completamente imóvel, com uma estranha expressão no rosto. De repente., pôs-se de pé.

Por favor, desculpe-me, Padre. Tenho que deixá-lo.

E saiu da sala às pressas.

Talvez o pequeno Petitt suspeitasse do sentido da partida repentina de Desmonde, talvez tivesse uma premonição de que ele logo voltaria. Foi para o piano e suavemente começou a tocar a sua Ave Maria favorita.

Ainda estava tocando e continuou a tocar quando Desmonde voltou. Ele se virou e, olhando para o seu aluno, murmurou astutamente:

Você parece feliz. Uma boa confissão?

E o perdão de um santo sacerdote disse Desmonde com humildade.

Agora Desmonde estava instalado no seminário, quase confortavelmente, a salvo das contrariedades iniciais, graças à voz que Deus lhe dera. Seu paladar exigente acabara até por se habituar às refeições insípidas do regime, uma vez que agora eram misericordiosamente melhoradas com frutas, especialmente pêssegos, dos pomares das redondezas. Ele estava até em termos surpreendentemente bons com o Superior, que havia começado a suspeitar de possibilidades até então desconhecidas naquele estranho noviço.

As cartas de Desmonde, naquela ocasião, eram pouco frequentes, muito menos angustiadas, na realidade, cheias de esperança e coloridas por um sentido de dedicação, um ardor que parecia crescer à medida que o tempo passava. Poder-se-ia dizer entusiasmo, não fosse o fato de que a disciplina do colégio havia moderado sua exuberância natural.

Durante aquela fase, benigna e prolongada, Desmonde transpôs os vários estágios do seu noviciado, tornando-se, primeiro, subdiácono e, depois, diácono. E como isso agradou a sua mãe, que ansiava por ver o seu filho ordenado padre.

Pelo menos uma vez a cada duas ou três semanas, íamos almoçar com a Sra. Fitzgerald no domingo. A conversa ficava sempre centralizada em Desmonde. Naquela ocasião, já quase inválida, ela só vivia para o grande evento, mas eu duvidava de que fosse sobreviver o suficiente para ver o filho ordenado. Agora eu estava perto dos meus exames finais, e os seus sintomas de problemas cardíacos, palidez, respiração arquejante e uma pronunciada inchação nos tornozelos, eram mais do que evidentes para mim, e o diagnóstico foi confirmado quando ela me mostrou o remédio que lhe havia sido prescrito: as pequenas pílulas de digitalina de Nativelle. Nessa altura eu era "assistente interno" de Sir James Mackenzie, vivendo, com pensão e alojamento, na Enfermaria Oeste, e assim aliviando a carga de responsabilidade que a minha mãe tomara sobre os ombros, heroicamente, durante tantos anos. Breve eu esperava poder recompensá-la de tudo, enviando o seu pedido de demissão à Prefeitura de Vinton e dando com isso fim ao trabalho que nos mantivera vivos durante tantos anos.

Esse estado de coisas, satisfatório, quase benigno, para Desmonde e para mim, se prolongou por mais alguns meses até que de repente, inesperadamente, chegou uma carta com o familiar carimbo do correio espanhol. Uma carta tão volumosa e escrita tão às pressas que suspeitei de algum desastre quando ainda a abria.

Meu caro Alec

Tenho estado desesperado, abatido, fui humilhado, maltratado, atirado na sarjeta, quase expulso, minha vocação para o sacerdócio foi posta em risco, e tudo, tudo, repito, na minha opinião sincera e imparcial, sem nenhuma culpa minha. Só agora sou capaz de erguer minha cabeça ensanguentada para lhe contar todas as circunstâncias do caso e invocar a sua solidariedade.

Creio que já lhe falei, numa carta anterior, que uma das poucas coisas que mitigam o nosso rigoroso regime é o passeio semanal que temos permissão de fazer até a cidade, todas as quartas-feiras à tarde. Vamos em grupo, sem acompanhante, com permissão para comprar frutas ou refrigerantes apropriados, dos vários vendedores que estão sempre nas redondezas, esperando a nossa visita. Nunca é permitido que nos ausentemos do seminário por mais de uma hora.

Não lhe preciso dizer com que ansiedade esperamos, não apenas essa breve fuga da árdua rotina, não só o contato momentâneo com o mundo exterior normal, mas também as várias frutas deliciosas que podemos comprar por umas poucas pesetas. O que mais existe neste típico vilarejo espanhol para nos estimular: uma única rua sinuosa e empoeirada, ladeada de casinhas, todas de um branco ofuscante sob um sol perene, com grupos de mulheres vestidas de preto e sentadas na frente, costurando e tagarelando. Ruelas escuras levam às lojinhas escuras que, unicamente por causa da proximidade do seminário, vendem artigos estranhos: sabão, pasta de dentes e escovas, remédios simples, cartões-postais e até balas. Durante a estação também, principalmente para atrair os estudantes, têm cachos de uvas, laranjas de Malaga e pêssegos.

Tenho uma predileção especial por pêssegos, assim como muitos dos outros noviços, e sempre somos recebidos, na entrada do vilarejo, por uma mulher - uma moça, para ser exato que, deixando os outros vendedores para trás, vem ao nosso encontro com um grande cesto achatado, pendurado no ombro, cheio de deliciosas frutas maduras. No interesse do seu negócio, ela estabeleceu um relacionamento amistoso conosco, e se tornou mais ou menos habitual para nós parar e conversar com ela por alguns momentos, praticando o nosso espanhol, antes de seguirmos para a cidade.

Naquela quinta-feira fatídica, eu havia sido detido pelo padre Petitt, meu admirável professor de música, que estava bastante entusiasmado por ter recebido notícias de Roma, há muito esperadas, a respeito do Festival da Canção. Em consequência, saí atrasado e quando, depois de me ter apressado, alcancei meus companheiros, vi para minha tristeza que todos os pêssegos haviam acabado.

Oh, Caterina! Você não guardou nada para mim.

Ela sacudiu a cabeça, sorriu, mostrando os bonitos dentes brancos.

Chegou tarde demais, meu padrezinho bonito, e nunca se deve chegar atrasado para um encontro com uma senhora.

Meus colegas, especialmente Duff, o magrela de Aberdeen, que me detesta, haviam começado a se divertir com a minha situação quando eu disse:

Estou triste. Pensei que eu fosse o seu cliente preferido.

Então está triste, realmente triste?

Sim. Realmente triste.

Então agora sorria o seu sorriso bonito. E, para minha surpresa e satisfação, ela tirou das costas dois dos maiores e mais suculentos pêssegos que eu já vi.

Os risos e gargalhadas a minha volta haviam diminuído, quando, virando o cesto para o lado, ela se aproximou de mim com um pêssego em cada mão.

Pensou por um segundo que eu o esqueceria? Tome.

Meti a mão no bolso para lhe pagar, e consternado descobri que não tinha dinheiro. Na minha pressa havia-me esquecido da carteira. O meu desapontamento deve ter sido evidente não só para os espectadores, como para ela, quando gaguejei:

Sinto muito. Não posso pagar-lhe.

Ela veio até bem perto de mim, ainda sorrindo.

Então não tem dinheiro? Fico satisfeita, pois assim vai ter que me pagar com um beijo.

Ela colocou-me um pêssego em cada mão e, enquanto eu ficava ali desamparado, me envolveu nos braços e apertou os lábios contra os meus num beijo que foi inquestionavelmente apaixonado, ao mesmo tempo murmurando no meu ouvido:

Venha qualquer noite depois das seis, meu querido padrezinho, à Calle de los Pinas 17. Para você é de graça.

Quando finalmente ela se soltou, olhando para mim com os brilhantes olhos escuros e aquele mesmo sorriso fascinante, o terrível silêncio foi quebrado por um grito de Duff.

Chega, rapazes. Vamos para a cidade.

Eu os segui num estado de euforia e atordoamento. Aquele abraço íntimo e lascivo, temperado com a fragrância dos pêssegos, havia-me deixado fraco. Mais ou menos isolado, no fim da procissão, acabei por me reanimar um pouco e comi os dois deliciosos frutos.

Mesmo na nossa caminhada de volta para o seminário, ninguém falou comigo. Temporariamente, pelo menos, e sem que eu tivesse qualquer culpa, havia-me tornado um pária.

Na manhã seguinte, parecia que o degelo havia começado, mas às onze horas recebi ordem para me apresentar ao Superior no seu gabinete. Um pouco deprimido, de novo, obedeci, minha ansiedade crescendo quando, ao entrar na sala, vi o vulto alto e cadavérico de Duff, de pé, junto à janela.

Fitzgerald, uma acusação muitíssimo séria foi feita contra você declarou imediatamente o Superior, sentado a sua mesa. Como eu ficasse em silêncio, continuou: A de ter beijado a moça Caterina e, além disso, ter relações imorais com ela.

Fiquei estupefato e, de repente, enfurecido. Olhei para o Anjo Vingador de pé junto à janela. Ele evitou o meu olhar.

Quem faz essas acusações? O Ameixa Duff?

O nome é Duff, Fitzgerald. Ele estava presente quando você beijou a moça. Nega isso?

Absoluta e completamente. Foi ela quem me beijou.

Você não opôs resistência?

Era impossível. Eu tinha um grande pêssego maduro em cada mão.

Ela lhe havia dado os pêssegos. Sem pagamento. Isso não sugere intimidade?

Ela é uma moça alegre e simpática. Éramos todos seus fregueses e num certo sentido tínhamos contato com ela. Todos nós ríamos e brincávamos com ela.

Eu não disse uma voz sepulcral vinda da janela. - Vi desde o início que era uma prostituta.

Silêncio, Am... Duff. Dentre todos os outros foi com você que ela teve intimidades especiais, você é que era o escolhido dela, na realidade. Tanto assim que ela combinou um encontro para aquela noite, ao que você respondeu O. K.

Eu estava lívido de raiva.

Nunca na minha vida usei um termo corrupto e vulgar como esse. Quem me acusa de tê-lo feito?. Duff tem ouvidos aguçados. Tem orelhas bem grandes. O Superior ignorou aquilo e retomou o ataque.

Fiz investigações. Essa Caterina Menotti, embora não seja exatamente uma prostituta, é considerada oficialmente como uma file de joie.

Eu não disse a Vossa Reverendíssima? Ela até deu o endereço a ele.

Cale a boca, seu imbecil escocês. - O aborrecimento evidente do Superior com o Ameixa me animou um pouco. Mas ele continuou: Você nega tê-la visitado antes nesse endereço?

Se eu já a tivesse visitado, por que ela me daria o endereço? Certamente eu o conheceria.

O Superior olhou inquisitivamente para Duff, que disse sem pensar:

Ela deve ter dito para lembrá-lo, caso ele se tivesse esquecido.

Um silêncio gelado seguiu aquela conjetura, após o que o Superior fez um gesto na direção da porta.

Pode ir embora, Duff.

Tenho certeza de que Vossa Reverendíssima reconhece que eu só trouxe isto ao seu conhecimento pelos mais elevados motivos pessoais de virtude e pelo bom nome do colégio e, além disso, porque não há nenhuma dúvida em minha mente de que Fitzgerald...

Saia imediatamente, Duff, do contrário serei obrigado a puni-lo com rigor.

Depois de Duff ter saído, sacudindo a cabeça, o Reitor ficou em silêncio, a olhar-me com uma expressão pensativa. Finalmente falou.

Não acredito nem por um segundo que você tenha visitado aquela casa, Fitzgerald, nem que tenha tido relações sexuais com aquela moça. Se eu acreditasse, você deixaria o colégio hoje à tarde mesmo. Mas você agiu de uma forma que o deixou exposto a uma suspeita de grave impropriedade no comportamento, e uma impropriedade que desonra o colégio. Terei que consultar os meus colegas para ver qual será a sua punição. Enquanto isso, quer você tenha que ir embora, quer você fique, dou-lhe o seguinte conselho.

"Você é sem dúvida bastante atraente para o sexo oposto. Fique em guarda, portanto, contra assaltos que lhe possam ser feitos. Mantenha o controle sobre si mesmo e sobre as suas emoções. Seja discreto, calmo, esteja sempre pronto a se retirar diante do menor sinal de perigo. Faça isso e evitará muita dor, sofrimento e o desastre subsequente. Agora pode sair. Você saberá qual o seu destino amanhã à tarde. Vá para a igreja e reze para que eu não seja compelido a mandá-lo embora.

Inclinei a cabeça e saí, direto para a igreja, onde, posso-lhe garantir, fiz minhas súplicas com fervor. Eu sabia como Hackett podia ser severo - há apenas poucos meses mandara embora um dos noviços mais jovens por ter fumado uma guimba de charuto. Tendo sido advertido anteriormente, aquele noviço havia desobedecido a ordem. Fora o suficiente.

No dia seguinte continuei a sofrer até as cinco horas, quando o bom mestre do coro, o padre Petitt, se aproximou de mim e pôs a mão no meu ombro.

Fui designado para lhe dizer, Desmonde, que você ficará. Está proibido de sair até o fim do período escolar, mas graças a Deus está salvo, não apenas quanto a sua vocação mas também - ele sorriu. para a nossa incursão a Roma no mês que vem.

Eu havia começado a agradecer quando ele acrescentou:

Sim, pode ficar grato a mim. Acho que alterei a decisão em seu favor. Eu não tenho uma voz como a sua, nem daqui a um milhão de anos.

Assim, caro Alec, aí está um relato completo da última e mais séria provação e sofrimento do seu muito dedicado amigo. Estou ansioso por notícias suas. Escreva-me imediatamente, assim que tiver os resultados dos exames finais. Você não sabe com que frequência costumo imaginar você estudando muito no seu quartinho vazio. Em troca, eu lhe contarei a visita a Roma, com todos os detalhes, tudo que até agora eu não contei a ninguém.

Seu amigo devotado,

Desmonde.

Eu já havia passado nos exames finais para o M.B.Ch.B. e (enquanto o seu sócio estava fora) ocupava por quatro semanas o posto de assistente do Dr. Kinloch, um antigo e respeitado clínico geral de Winton. Isto não era o meu objetivo principal, nem apenas o M.B.Ch.B. o único diploma que eu pretendia obter, mas me permitiria ficar perto de minha mãe ao menos por um mês e, com honorários de 40 libras, finalmente, tirá-la do seu trabalho nas casas de cómodos e amenizar as dificuldades que ela havia suportado tão bravamente durante tantos anos.

Quando visitei a Sra. Fitzgerald naquela ocasião, fi-lo na qualidade de médico. Eu estava seriamente preocupado com a piora do seu estado de saúde e, quando ela permitiu que a examinasse, o diagnóstico foi inconfundível. Constrição mitral aguda com oclusão parcial da artéria coronária. Persuadi-a a que me deixasse trazer o Dr. Kinloch para uma consulta. Ele confirmou o diagnóstico e, embora animasse a paciente e lhe receitasse remédios,

Medicine Bachelor Surgery Bachelor, Bacharel em Medicina e Cirurgia (N. da T.).

fez um prognóstico ainda mais grave: ela teria que ficar de cama aguardando uma melhora no seu edema generalizado. De fato, quando voltávamos no seu pequeno cabriolé, disse:

Com o coração daquele jeito, ela pode ir embora a qualquer minuto.

O sonho de sua vida fora ver o filho adorado ser ordenado padre. Agora era necessário dizer-lhe que, no seu estado atual, ela nunca chegaria a Roma. Eu não sentia coragem de desfechar esse golpe terrível, e minha mãe, agora livre para visitar a amiga quase todos os dias, e mais inteligente do que eu, me suplicou que esperasse pelo menos mais um mês.

Assim, aconteceu que a mãe de Desmonde, adormecendo uma noite com uma visão feliz do futuro de seu filho, não acordou mais para a realidade, o desapontamento e o desespero: Havia morrido pacificamente e sem dor.

Desmonde, chamado imediatamente por telegrama, chegou no dia anterior ao enterro, numa atitude triste mas contida, sem as manifestações espalhafatosas de dor que se poderiam ter esperado dele. Vi de imediato que ele havia mudado, que os cinco anos passados no seminário haviam deixado nele a sua impressão, tornando-o mais contido, bastante mais controlado. Minha mãe assim resumiu o fato:

Desmonde cresceu.

Mesmo junto ao túmulo ele se manteve firme, embora derramasse muitas lágrimas, e lágrimas amargas. Imediatamente depois do enterro, uma vez que lhe haviam dado apenas uma licença de três dias, falou com o advogado. A anuidade de sua mãe morrera com ela, mas ela havia economizado para ele uma quantia superior a três mil libras. Ele também receberia algum dinheiro proveniente da venda da casa. Muitas de suas belas roupas, inclusive o casaco de peles e um vestido novo, sem dúvida guardado para a ordenação do filho, ela deixou para minha mãe, juntamente com alguns de seus melhores móveis, dádivas eminentemente bem-vindas, mas que comoveram a presenteada até as lágrimas. Para mim que não esperava nada, havia uma doação de cem libras.

O trem de Desmonde só saía à meia-noite e, naquela noite, depois da minha cirurgia noturna, fiquei com ele até tarde na casa silenciosa, tão próximo dele de novo, como se nunca nos tivéssemos separado.

Inevitavelmente falou de sua mãe, concluindo com este lugar comum:

Não é surpreendente o bem que uma boa mulher pode fazer a um homem?

E o mal que uma mulher má pode fazer. Há um bocado delas por aí.

- Sempre realista, Alec. - Sorriu. Quais são os seus planos, agora que já se formou?

Disse a ele que aquilo havia sido apenas o primeiro passo, que eu pretendia escrever uma tese para o meu mestrado e depois tentar obter o M.R.C.P., acrescentando:

- Esse vai ser um osso duro de roer. Terrivelmente difícil.

Você vai conseguir, Alec.

Como é que você vê o seu futuro?

- Com menos clareza que o seu. Vou ser ordenado em questão de semanas e, como não tenho agradado sempre às autoridades constituídas, tenho o triste pressentimento de que serei enviado, para fazer penitência, a alguma paróquia difícil, provavelmente irlandesa, uma vez que sou cidadão irlandês.

Você não vai gostar disso.

Não, Alec, mas pode ser que seja bom para mim. Minhas ideias mudaram bastante, sob a influência carinhosa do bom Padre Hackett.

Olhei-o inquisitivamente enquanto ele continuava: Esse Hackett é um tipo estranho, Alec. Comecei tendo um ódio de morte dele. E ele deu todas as manifestações possíveis de me detestar. Achava que ele era um tirano e um sádico. Ele realmente não é apenas um fanático. Está imbuído, saturado de fervor missionário. Gostaria de que todos os seus alunos seguissem para a selva, a pregar a palavra de Deus. Eu achava que ele era um maníaco. Agora não acho. É uma revivescência de um dos Apóstolos, provavelmente Paulo. Acabei por gostar dele e respeitá-lo, na realidade ele me cativou.

Você se vê como um segundo São Patrício? Ele corou:

Não ria, Alec. Como é que podemos saber o que nos espera? Você poderia de repente abandonar a medicina e tornar-se escritor. Eu poderia, um dia, vir a morrer numa floresta tropical qualquer.

Era impossível não rir, alto e gostosamente. E um momento depois ele ria comigo.

De qualquer maneira, agora compreendo e respeito Hackett, e gostaria de recompensá-lo. Há uma competição em Roma, promovida pela Società Musicale di Roma, com forte apoio do Vaticano, aberta a jovens padres recém-ordenados ou noviços prestes a serem ordenados. A ideia básica é encorajar o uso da voz na missa cantada, em litanias e assim por diante. Uma ideia bastante

Member of the Royal College of Physicians, membro do Real Colégio de Médicos (N. da T.).

nobre e nobremente denominada de Cálice de Ouro. O Padre Hackett gostaria que eu fizesse uma tentativa. Fez uma pausa. Somos um colégio pequeno em Torrijos, com um complexo de inferioridade, muito menos conhecido do que o nosso correspondente em Valladolid. Que impulso não nos daria, e que publicidade, se pudéssemos colocar o trofeu - é um cálice de ouro - na nossa janela.

Quando vai ser essa feliz ocasião?

No próximo mês de junho. Assim, você pode-me imaginar seguindo uma porção de outros a Itália está cheia de jovens tenores até uma plataforma enfeitada com um maldito júri de peritos, leigos e religiosos, e cantando com todo o meu coração diante de uma audiência de, normalmente, centenas de pessoas.

- Você vai ganhar com um pé nas costas, Desmonde. Quer apostar?

Ele sorriu.

Com a minha ordenação tão próxima, Alec, estou proibido de dar moedas do reino a um escocês muito querido e muito esperto.. Olhou para o relógio. - Acho que agora temos que ir. Vamos andar até a Central.

Depois de ter dado uma última vista de olhos pela casa, pegou a mala e, parando tristemente na entrada, fechou e trancou a porta da frente.

É uma fechadura de segurança. O corretor tem a chave. Quando nos pusemos a caminho da estação, tomou o meu

braço com a mão livre.

Sinto muito ter feito você ficar acordado até tão tarde, Àlec.

Fico acordado até tarde com frequência, ou no meio da noite. Deixe-me levar a sua mala. Ele sacudiu a cabeça.

- Hoje em dia eu mesmo carrego as minhas coisas. Ouça, Alec. Posso fazer-lhe uma pergunta médica?

É claro.

Eu me perguntei o que estaria a caminho, mas não esperava nunca o que se seguiu.

É uma pergunta bastante estranha, mas responda-me com seriedade. Se uma mão humana fosse amputada no pulso, acabaria por apodrecer?

- É claro! Depois de uma semana estaria com um cheiro terrível, apodreceria, em seguida se liquefaria e finalmente se decomporia, deixando apenas os ossos, que por sua vez, com o tempo, se separariam em carpos e metacarpos pequenas juntas de cálcio em desintegração.

Obrigado, Alec. Muito obrigado.

Nada mais foi dito e logo estávamos na Estação Central. Acompanhei-o até o compartimento de terceira classe.

- Não espere, caro Alec. Estas despedidas prolongadas são terríveis. Além disso, eu sei, sei com certeza absoluta, que um dia nossas vidas serão reunidas de novo.

Trocamos um aperto de mãos, então me virei e fui-me afastando depressa da estação. Eu esperava que ele estivesse certo, que um dia fôssemo-nos encontrar de novo. Também esperava que o último bonde para Western Road não tivesse saído.

Seis semanas depois, Desmonde foi ordenado e, confirmando as suas apreensões, oficialmente notificado de que deveria seguir para a Igreja de Santa Teresa, na paróquia camponesa de Kilbarrack, na Irlanda do Sul. Mas muita coisa deveria acontecer antes disso, como agora Desmonde nos contará.

Na manhã da nossa partida, o Superior veio em pessoa a minha cela para me acordar uma hora antes do habitual. Depois que me vesti, esperou enquanto eu punha algumas coisas na mala, e fomos então juntos para a igreja, onde Petitt nos esperava. Tanto ele como o Superior já haviam celebrado missa, mas ambos ficaram no banco da frente enquanto eu dizia a minha, e pode crer que não omiti um pedido de ajuda aos céus para o empreendimento que agora estava diante de mim.

Quando acabei, o padre Hackett tomou-me pelo braço e me levou até o seu gabinete, onde Martes esperava com um bom café quente, não a habitual água suja do refeitório, e pãezinhos frescos. Meu Superior me observou em silêncio enquanto eu fazia uma boa refeição, mas recusou, muito gentilmente, quando perguntei se gostaria de tomar uma xícara.

Depois que Martes se foi, ele disse:

Tratei um carro para levá-lo até Madri.

Oh, muito obrigado, Padre! Aquele trem local é abominável.

Não é nada abominável. É um trem extremamente útil para os camponeses e fazendeiros que levam a colheita para os mercados de Madri. Entretanto, é bastante lento e o horário de chegada é incerto. Daí o carro, não um Hispano Suiza, mas em todo caso um carro.

Tem razão, Padre - disse eu imediatamente.. Estou sempre metendo os pés pelas mãos com o senhor.

Nem tanto como de hábito, padre Desmonde. Nem tanto. De fato, embora esteja longe de ser perfeito, você é um rapaz que melhorou muito. Eu tive muito trabalho por sua causa, e em troca. fez uma pausa, olhando-me com severidade quero que traga o Cálice de Ouro para o colégio. Em si, é uma ninharia, um trofeu miserável, mas traria grande prestígio, não apenas para você, o que não tem nenhuma importância, mas para o colégio.

Ele se levantou junto comigo e se dirigiu para o genuflexório. Eu o segui.

- Vou-lhe conceder um grande privilégio, segure esta santa relíquia e faça uma prece para o seu sucesso e o meu.

Ajoelhei-me e, com grande reverência, segurei a pequena mão, tão lisa, com a pele tão macia, que ao toque parecia ser uma mão viva. Apertei-a com suavidade e me pareceu que aqueles dedos corresponderam, envolvendo os meus com um toque íntimo e terno ao mesmo tempo, como se relutassem em libertá-los, relutassem em romper aquele contacto com uma vida outrora conhecida e agora lembrada com tranquilidade e alegria. Assim, fiz uma prece realmente fervorosa, não apenas para obter o sucesso imediato, mas também por uma vida boa e uma morte feliz.

Bem? - disse o padre Hackett quando me levantei.

É miraculoso. Há um toque dos céus nesses dedos.

Deve dizer isso ao seu amigo médico que quer carne podre e ossos em decomposição. Agora venha, está na hora de você ir.

O carro, um Berlierzinho valente, já estava no pátio e ao lado dele, com a minha mala e a sua, o padre Petitt. Quando estávamos no carro, a bagagem em segurança na mala, e já íamos saindo, vi o padre Hackett fazer um grande sinal da cruz, abençoando-nos. No início eu havia odiado aquele padre dedicado. Agora, embora ele repelisse deliberadamente qualquer afeição, eu realmente o adorava.

Cerca de uma hora depois, estávamos em Madri e no rápido para Roma, com o padre Petitt desvelando-se numa solicitude quase maternal para comigo, impondo silêncio, proibindo que se abrisse a janela, vendo correntes de ar inexistentes, vindas de todos os pontos cardeais, como se eu fosse um pinto acabado de sair do ovo. Na estação de Roma, entretanto, a sua segurança se desvanecera, e ele ficou satisfeito com o fato de eu ter chamado um carregador para transferir nossas malas para um táxi que devidamente mandei seguir para o Hotel Religioso, onde havia quartos reservados para nós pelo nosso Superior.

Infelizmente, o Religioso foi uma decepção. A piedade poderia ser praticada ali, mas todas as virtudes temporais estavam em completa inatividade. Enquanto eu observava a recepção nua, forrada com linóleo e sem elevador; as escadas íngremes, sem tapete, e finalmente os nossos dois quartinhos monásticos, com vista para o pátio de manobras da ferrovia, do qual em meio a uma porção de máquinas e seus apêndices, rangendo, roncando e resfolegando, nuvens de vapor e de fumaça subiam em nossa direção, meu coração se contraiu. Faltavam ainda quatro dias inteiros para o festival, e eu havia esperado tanto lazer agradável e tanta descontração naquela estada em minha cidade favorita!

Olhei para o pequeno Petitt. Ele não se importava, nem um pouco, mas eu estava amargamente decepcionado e durante a refeição do meio-dia, uma mistura de polenta, servida numa mesa coberta com um encerado, com moscas pousando nas manchas de molho, a minha depressão piorou e continuou até que as sombras da noite começaram a cair.

E então, Alec, o céu respondeu às minhas preces silenciosas. Quando estávamos sentados, olhando um para a cara do outro, no que se poderia chamar de salão de estar, um rapaz assustado, num uniforme de porteiro grande demais para ele, se aproximou de nós em passo acelerado.

Uma senhora na porta, senhor, num carro, está a sua procura.

Fui até a porta, também em passo acelerado, e lá, sim, sim, Alec, lá, num grande Hispano Suiza novo, estava a minha amiga, a Marquesa. Ela havia lido a respeito da nossa chegada no jornal da tarde Paese Será di Roma, e imediatamente entrara em ação.

Venha, venha logo, Desmonde. Não deve ficar aqui nem mais um minuto. Tenho medo até de entrar. Venha comigo.

- Tenho um amigo, um padre, Madame. Ele não tomaria muito espaço.

Traga-o, traga o padre imediatamente. Venham os dois. Inútil dizer que não recusamos, e dentro em pouco estávamos todos no grande carro com os nossos pertences, eu no assento de trás com Madame, o padre Petitt, ainda estonteado, na frente com o motorista, deslizando em direção a meios de grande distinção, deixando o jovem porteiro boquiaberto com a nossa partida e estupefato com a gorjeta que negligentemente eu lhe havia dado.

Eram mais de dez horas quando chegamos à Villa Penserosa, muito depois da hora do jantar, e embora uma refeição ligeira fosse oferecida, eu declinei.

Cara senhora, fomos entupidos com tanta polenta desde que nos hospedamos no Religioso que tudo que desejamos agora é um bom sono reparador.

Vocês o terão. Ela falou com a empregada que esperava instruções. E como evidentemente estão cansados, direi buona noite até amanhã.

Nossos quartos vizinhos, com um luxuoso banheiro no meio, eram uma perfeição até o último detalhe. Até um pijama de seda havia sido posto na minha cama. O padre Petitt não tinha o hábito de tomar banho à noite, mas eu, durante meia hora, gozei as delícias da água quente com sabão, esfreguei-me com uma toalha turca, vesti o pijama que me havia sido dado, no qual me senti mais irreal do que nunca, e caí na cama. Imediatamente o sono tomou conta de mim.

Na manhã seguinte, agradavelmente tarde, fomos acordados com o café: um grande bule de café fresco bem quente, com uma cesta, coberta por um guardanapo, contendo uma fileira de pãezinhos romanos quentes, aquela variedade especial e ainda mais gostosa dos croissants franceses. Depois que me vesti, desci e fui encontrar minha anfitrioa a minha espera na sua saleta de costura, onde todos os seus trabalhos de agulha para fins de caridade eram feitos.

Bom dia, caro Reverendo Desmonde. Vejo pela sua aparência fresca e bem disposta que dormiu bem. Seu amigo está abrigado em segurança na biblioteca, com um livro. Portanto, agora você me pertence completamente.

Ela ficou parada ali, sorrindo, encarando a luz dura da manhã sem temor. Inevitavelmente, parecia mais velha, o cabelo era agora de um branco prateado, mas os belos olhos estavam tão cheios de vida e a mente tão alerta e arguta como sempre. Que mulher absolutamente irresistível ela não deveria ter sido quando jovem! Mesmo agora ela ainda era encantadora.

Entretanto, por mais fresco e bem disposto que você esteja acrescentou ela onde, oh, onde foi que você arranjou essas calças?

Estas calças, agora com apenas três anos, são o melhor trabalho do melhor artista em alfaiataria da cidade de Torrijos.

São realmente notáveis. E o paletó?

Este paletó, embora seja venerável, é realmente um objeto religioso, cortado e adequadamente ajustado pelo alfaiate previamente mencionado, de um velho paletó que anteriormente pertenceu ao Padre Hackett.

É sem dúvida nenhuma uma relíquia. Venha, Desmonde, e veja-se a si mesmo.

Ela abriu a porta de um armário no qual havia um grande espelho embutido.

Havia muito, muito tempo que eu não me via de corpo inteiro e, embora o rosto continuasse passável, o resto do meu corpo poderia ter sido encontrado no tronco e nas pernas de um velho vagabundo decrépito.

Sim refleti pensativamente. Uma lavagem e uma passada a ferro me fariam ficar tão bom como novo.

Ela riu abertamente.

Desmonde, você é incorrigível. Ouça-me. Você deve ficar quieto e descansar até sábado, mas hoje de manhã vem comigo visitar o meu amigo Caraccini.

- Um padre?

Não, apenas o melhor alfaiate da Itália. Não se preocupe com o seu amigo, ele está satisfeito na biblioteca.

Saímos no lindo e grande conversível, não o Hispano como eu havia imaginado, mas sim um Isotta Franchisi, seguimos pela Via Veneto até o Excelsior, viramos à esquerda e paramos diante de uma vitrina que não tinha artigos em exposição mas estava enfeitada simplesmente com uma palavra, Caraccini.

Entramos e a marquesa foi logo cumprimentada com grande deferência por um homenzinho moreno e elegante num terno cinza-escuro imaculado. Minhas necessidades e a minha situação foram discutidas em profundidade, peças de fazenda foram examinadas, experimentadas e escolhidas. Fui levado até uma saletinha confortável, onde um auxiliar, em mangas de camisa, tirou as minhas medidas.

Compreende, Caraccini, tudo deve estar pronto e ser entregue na sexta-feira à noite.

Senhora Marquesa, é impossível. Mas para a senhora Caraccini fez uma mesura - será feito.

Não estava tudo acabado, uma vez que a marquesa ainda queria divertir-se mais com o que ela considerava e chamava a sua caridade para comigo, e fui levado a uma camisaria nas proximidades, de evidente e indiscutível distinção. Lá, a minha querida amiga se desinibiu e, no final, uma variedade de roupas caras e elegantes havia sido escolhida e separada para entrega imediata. Finalmente, passamos numa casa de calçados feitos sob medida, na mesma rua, onde as minhas extremidades foram diligentemente medidas e dois tipos de couro foram escolhidos, um mais fino e o outro um pouco mais grosso, ambos os pares encomendados para a sexta-feira seguinte. Como, poder-se-ia perguntar, poderia um trabalho tão fino ser executado em tão pouco tempo? A resposta está no fato de que Roma é uma cidade de artesãos, e de mulheres também, escondidos em quartinhos e becos por toda a cidade, recebendo serviços para entrega rápida e trabalhando, constantemente, noite adentro, para completá-los. Seria de se esperar que tal habilidade fosse amplamente remunerada. Infelizmente, não é assim.

Agora, apenas um almoço ligeiro disse a marquesa, quando saímos do sapateiro. " Depois, vamos para casa, para descansar, descansar até sábado.

Ela me levou para o Excelsior, onde, sentada no bar, sugeriu um xerez e um sanduíche de Parma. O carro ainda estava estacionado na porta do hotel. Logo estávamos a caminho, de volta à Villa Penserosa. Quando tentei agradecer-lhe, ela não quis ouvir nem uma palavra.

Fique calado, querido Desmonde. Você sabe da minha amizade pela sua mãe. Como senti quando você me escreveu a respeito de sua morte! - E acrescentou: - Você também sabe que eu lhe quero muito bem, meu filho.

Quando nos aproximávamos da casa, murmurou:

Gostaria de saber o que seu amigo esteve fazendo durante a sua ausência.

Entramos imediatamente, ela me deu o braço.e nos dirigimos à biblioteca.

Lá, realmente, estava o Reverendo padre Petitt, sentado na mesma cadeira, com o mesmo livro, aberto na mesma página, no colo, com um sorriso angelical no rosto e emitindo por entre os lábios uma suave sibilação ritmada.

Ele não se moveu nem um milímetro - exclamou a marquesa.

Ah, sim, Madame disse a empregada que havia aberto a porta para nós.. Ele comeu muito bem ao almoço, com uma garrafa e um ótimo Frascati.

Ele tem uma aparência suave quando está dormindo disse a marquesa.. Parece uma criança.

Ele me ensinou muita coisa. disse eu.. E, se eu tiver alguma sorte no sábado, deverei tudo a ele.

Que coisa bonita de se ouvir, Reverendo Desmonde! E agora você deve ir para o seu quarto descansar. De agora até sábado é descanso, descanso, descanso, descanso, com pouca conversa. Sabia que Enrico não dizia uma palavra entre as suas apresentações?

Não sou Caruso, Madame.

Veremos no sábado. Ela sorriu. E agora eu também devo descansar, pois estou fatigada. Como vê, agora sou uma velha.

"- Por favor, não diga palavras tão más, Madame. A senhora é tão encantadora, tão atraente e tão adorável como sempre. E hoje foi um anjo para mim.

Ela sacudiu a cabeça, ainda sorrindo, enquanto seguia a minha frente, subindo a escada, e se dirigiu para o seu quarto enquanto eu entrava no meu.

Sábado amanheceu um dia bonito e Desmonde, que tivera um sono inquieto, se levantou cedo e abriu as venezianas para deixar o sol entrar no quarto. Depois se deitou na cama durante dez minutos, a pensar nas perspectivas do dia. Estava reconhecidamente nervoso, queria ganhar o Cálice, não de todo para seu sucesso pessoal, mas também para agradar, e de fato recompensar, o padre Hackett, a marquesa e, especialmente, o pequeno Petitt. E, como ele me disse depois, seus pensamentos estavam sempre voltando àquela final do Escudo das Escolas, que eu tinha querido ganhar e que, infelizmente, havia sido perdido.

Uma batida na porta interrompeu os seus pensamentos. O homenzinho, vestido e já tendo celebrado a sua missa, entrou no quarto.

Passou uma boa noite?

Muito boa. E você?

- Perfeita!. Isto foi dito com uma ênfase que dava perfeição à mentira.

Bonito dia para nós.

Perfeito.

Deixei tudo arrumado para você lá embaixo, para quando você estiver pronto.

Lá embaixo ficava o pequeno santuário do porão, onde, todos os dias, desde que tinham chegado, haviam celebrado a missa.

Já vou descer.

Ótimo!

Desmonde não se barbeou, vestiu rapidamente o terno velho e desceu para se encontrar com o padre Petitt no santuário, uma pequena gruta rústica de pedra, equipada com um altar simples, um crucifixo, uma imagem da Virgem e dois genuflexórios, um local de retiro para oração e serviços de emergência, encontrado com frequência nas grandes casas italianas. O padre Petitt, com a sua habitual previdência, havia trazido tudo que era preciso do seminário.

Desmonde disse a sua missa, com o padre Petitt servindo de acólito, e pode-se presumir que as preces deles, as do jovem padre e as do mais velho, estavam impregnadas da mesma intenção. Mais tarde, depois de Desmonde ter dado graças, eles subiram e tomaram um café substancial, ao estilo inglês, de bacon com ovos, marmelada e torradas.

Quando estavam sendo servidos, a empregada idosa murmurou para Desmonde:

A senhora marquesa lhes pede que comam bem agora, ao café. porque o almoço terá que ser pequeno.

Nós obedeceremos - disse Desmonde, sorrindo. A senhora marquesa não vai descer?

Ela raramente desce antes das dez horas.

A resposta deu a Desmonde uma compreensão repentina de que a sua protetora, tão cheia de vida e tão encantadora, tão ativa em seu favor, era, pelo menos no que dizia respeito à idade, uma mulher que envelhecia. Agora ele sabia que tinha que fazer o máximo que pudesse para vencer, quanto mais não fosse para recompensá-la pela sua bondade.

Depois de terem tomado café, Desmonde com um bom apetite, o padre Petitt nem tanto, foram juntos para a biblioteca.

Essa é que é a parte pior disse Desmonde. Ficar esperando, pendurado por uma cordinha sobre um despenhadeiro. Imagino que não posso sair.

De jeito nenhum. E deve falar pouco.

Deus abençoe Caruso. Se ao menos eu pudesse cantar como ele...

Você vai, se se lembrar de tudo que eu lhe ensinei. Fique calmo, não se mova muito. Metade desses rapazes italianos vão-se lançar impetuosamente pelo palco com a mão no coração. Agora ouça, enquanto você estava fazendo compras com a marquesa, obtive algumas informações. Como canção de sua escolha, que cantará depois das peças obrigatórias, que é que você vai cantar?

O que nós já decidimos. A Canção do Prémio do "Meistersinger" na tradução italiana.

Não, não. Ouça. O Cardeal da Cúria na comissão do júri, um homem muitíssimo importante, é o Cardeal alemão. Assim, você deve, você tem que cantar a sua peça de Wagner no original alemão.

Prefiro que seja assim. O auditório é grande?

Muito grande, com um balcão bem alto e muito amplo. E vai estar lotado, todos os lugares ocupados. A acústica é excelente. Os juizes estarão sentados no palco, são todos pessoas importantes e cultas, professores e catedráticos de música, membros da Cúria, inclusive o Cardeal, e da Sociedade. Perguntei se a marquesa poderia sentar-se entre eles, mas a resposta foi "não". Isso seria considerado favoritismo e predisporia os juizes contra você.

Acredito. Onde é que a marquesa vai-se sentar?

Todos os competidores o número foi reduzido a vinte, na seleção se sentarão na primeira fila. E na fila seguinte, separada do público, ficarão sentados os convidados especiais, inclusive a nossa boa anfitrioa.

Ótimo! Há uma escada para chegar ao palco, não?

- Exato. Cada candidato sobe na sua vez, canta duas peças obrigatórias, é julgado, e recebe as suas notas. Depois de todos terem recebido suas notas e estas serem somadas, dez são eliminados.

E podem ir para casa, pobres-diabos.

- É claro, são dispensados. De novo, para os que continuam, uma peça obrigatória muito difícil, as notas são dadas e somadas. As seis mais baixas são eliminadas. E de novo, para os quatro restantes, a outra peça obrigatória muito difícil, depois da qual dos dois são eliminados e dois ficam. Estes dois têm que escolher uma canção cada um, sacra ou não, a partir da qual serão julgados, um será eliminado e o sobrevivente ganhará o prémio.

É um procedimento que exige um bocado de sangue-frio.

É eminentemente justo, caro Desmonde. E para que um tenha sucesso todos os outros têm que falhar. Além disso, proporciona uma tarde inteira de animação e boa música aos aficionados. E há muitos, muitos aficionados, posso-lhe garantir, prontos para aplaudir.

Ou para vaiar. Desmonde olhou para o relógio. Só dez horas. Ainda temos duas horas de agonia de espera.

Ele se levantou e começou a andar pela sala, examinando as prateleiras tão nobremente supridas. De repente, numa prateleira inferior, dedicada a livros menos importantes e mais pessoais, seu olhar foi atraído por um livrinho verde intitulado Heráldica da Irlanda. Parecia-lhe estranhamente familiar. Ele o tirou da prateleira e o abriu, até chegar à folha em branco no princípio do livro, e ali, sob a marca familiar da loja de seu pai, ele leu as palavras, escritas à tinta, agora já desbotada:

"Para a minha adorada Margherita, com a minha grande afeição e profunda estima.

Desmonde Fitzgerald."

Desmonde ficou imóvel, segurando o livro, enquanto uma profunda emoção, de descoberta e compreensão, o dominava. Ele sabia agora a razão da gentileza que lhe era tão carinhosamente dispensada naquela casa. Viu também que o livro havia sido lido e manuseado muitas vezes. Em silêncio, recolocou o volume na estante, deixando-o talvez uma fração de centímetro fora do alinhamento com os outros livros, e então se afastou.

Vai subir para trocar de roupa agora? perguntou Petitt.

Sim, já está na hora.

Subiu devagar a escadaria, e, quando estava prestes a entrar no quarto, viu a marquesa vindo em sua direção, com a aparência fresca e descansada, lindamente vestida num conjunto de seda italiana escura.

Bom dia, Desmonde querido.

Ele não respondeu, mas tomou-lhe a mão e, olhando muito sério nos seus olhos, beijou-lhe os dedos um por um. Desmonde sempre havia sido cheio desses pequenos gestos idiotas, e sempre os destinatários pareciam gostar deles. Ela sorriu.

Eu coraria, Desmonde, se não estivesse de rouge. Que foi que você andou fazendo a manhã inteira?

Estive lendo, Madame, um livro muitíssimo interessante a respeito de heráldica. Fiquei satisfeito ao descobrir que nós, os Fitzgeralds, somos mencionados nele.

Será que ela havia compreendido? Mais tarde, naquela manhã, ele viu que o livro havia sido manuseado e posto de volta no lugar. Mas naquele momento, talvez um pouco depressa demais, embora ainda sorrindo, ela disse:

Agora vá e se apronte para o combate.

Desmonde se retirou para o seu quarto, lavou-se e se barbeou com mais cuidado que de hábito, escovou o cabelo, e vestiu as roupas novas. Como a camisa era branca e macia, e como o terno era leve e lhe caía bem. Os sapatos também, de um couro macio e maleável, não tinham nada da rigidez característica de sapatos novos, ajustando a seus pés como luvas. O melhor é sempre o melhor, pensou Desmonde, e que pena que seja tão caro!

Ele não podia ver-se de corpo inteiro no pequeno espelho de quarto, mas desceu logo, esperando que estivesse tudo bem. A marquesa estava no vestíbulo com o padre Petitt, andando de um lado para outro, obviamente esperando por ele. Os dois pararam imóveis quando apareceu, e ele próprio também parou.

Não posso acreditar que seja você, Desmonde exclamou o padre Petitt.

A marquesa não havia falado, mas andava em volta dele, com um olhar crítico.

- As roupas fazem uma diferença tão grande?

Ela sorriu.

Caro Padre Desmonde, como é que acha que eu ficaria com uma saia velha e um xale de lavadeira? Isso não tem importância, estou satisfeita, muito, muito satisfeita com você. Eu sabia que Caraccini não nos desapontaria. Agora venha almoçar, assim como está.

Vocês dois tomaram um bom café?. perguntou a marquesa, quando eles se sentaram à mesa quase vazia da sala de jantar.

Magnífico. Petitt riu para consigo mesmo.

O melhor que já tomei desde a minha infância na fazenda!

Você nunca esteve numa fazenda, Desmonde!

É claro que não, Madame, mas tenho, custe o que custar, que dramatizar o café.

Bem, agora, por todas essas razões, vai comer pouco. E é tudo para a voz.

Foi servida uma taça de caldo de carne, bem espesso, com um ovo cru flutuando no alto e de aspecto bastante repelente, e em seguida fatias de abacaxi fresco nadando no suco da própria fruta.

- Isso limpa a garganta afirmou ela, olhando para o relógio. E agora só temos tempo para o café. É um aborrecimento, mas eles são tão exigentes e formais na Filarmónica que temos que chegar cedo.

Tomaram o café preto e bem forte, após o que entraram no carro fechado e seguiram, através das ruas ensolaradas, para o grande auditório próximo da Via di Pietra, onde já havia uma concentração de gente, que ia em direção à longa fileira de torniquetes giratórios que matraqueavam.

Nós vamos para os gabinetes. Tudo é muito feio e antiquado aqui disse a marquesa, tomando a dianteira animadamente, e dirigindo-se a uma porta estreita adiante.

Ali também havia uma multidão que se movia em círculos, mas a marquesa, armada com a carta de Desmonde, logo atraiu atenção. Foram levados para um gabinete no interior, e em seguida para o auditório propriamente dito, onde Desmonde e Petitt encontraram lugares na primeira fila, especialmente reservados para os competidores. A marquesa estava sentada num reservado especial, cercado, pouco mais para trás.

O auditório já estava com mais da metade da lotação, e havia uma multidão entrando. No palco, onde o Cálice de Ouro estava entronizado num pódio de veludo, as atividades estavam também aumentando, e a todo momento jovens padres dos mais diversos tamanhos e aparências se materializavam e sentavam nervosamente na fileira dos candidatos.

O pequeno Petitt se remexeu, inquieto.

- Que espera! Esses preparativos são muito cansativos para você, não são?

Sim - disse Desmonde. Vou fechar os olhos. Dê-me uma cutucada quando eles estiverem prontos.

Durante talvez vinte minutos Desmonde manteve os olhos resolutamente fechados, ignorando o barulho e o sentido do movimento a sua volta, até que a sua visão foi recuperada por uma pancadinha no ombro. Então ele viu que os outros candidatos estavam de pé, enfileirados ao seu lado, e que a comissão dos juizes se havia reunido nas cadeiras enfileiradas à esquerda, enquanto no fundo do palco um quarteto vocal com uma orquestra de cordas estava prestes a dar início ao programa com o Vem Creator Spiritus. Todos se juntaram a eles e cantaram aquele lindo hino, candidatos, pianista, público e membros da comissão, de forma que um grande volume da melodia suave foi crescendo e encheu a sala.

Então o secretário da Sociedade se adiantou e num rápido discurso delineou o objetivo do concurso: apoiar e desenvolver o interesse do público, em toda a Europa, pela missa cantada, dando continuidade e mantendo viva aquela que era a mais histórica, a mais bela das oferendas a Deus, que agora, infelizmente, estava ameaçada pela correria e pela pressa da era moderna, sacrificada à exigência de serviços religiosos cada vez mais curtos. Então ele agradeceu aos membros da Cúria, e em especial à Sua Eminência, o Cardeal Gratz, por participarem da Comissão, de forma que o julgamento e a atribuição de notas fossem absolutamente justos e imparciais. Olhou significativamente para o balcão lotado e suplicou aos muitos torcedores que tinham vindo apoiar seus candidatos que compreendessem que a justiça seria feita e que se abstivessem de quaisquer demonstrações. Declarou então que o concurso devia começar.

Imediatamente dez candidatos do lado esquerdo de Desmonde se levantaram e subiram os degraus até o palco, onde se sentaram num banco comprido, numa das alas. A primeira peça obrigatória foi anunciada, e os candidatos, chamados pelo nome, um a um, se adiantaram e cantaram.

Desmonde, como se pode imaginar, ouviu com atenção. Todas eram boas vozes de coro, um pouco perdidas no grande salão, mas dois dos candidatos mais jovens estavam tão manifestamente nervosos que, obviamente, não deram o melhor de si, enquanto um terceiro quase provocou gargalhadas com uma variedade de gestos sedutores, a mão no coração, primeiro um braço, depois os dois estendidos, tudo isso a demonstrar um furor dramático e sentimental.

Então chegou a hora do segundo grupo de dez. Destes, Desmonde foi o último a vir adiante, um pouco perturbado, não apenas pelo fato de o candidato imediatamente anterior, um noviço vindo dos Abruzos, ter cantado soberbamente, terminando com uma ovação de um numeroso grupo de adeptos na galeria, mas também pelo fato de que a sua aparência, tão distinta e discreta, havia provocado zombarias e risadas da mesma galeria.

Entretanto, Desmonde ficou imóvel diante do grande mar de rostos que se estendia diante dele, esperando em aparente calma até conseguir silêncio absoluto. Só então ele fez sinal para o pianista começar a adorável melodia de Brahms. Naquele momento não houve vaias ou risos da galeria, mas sim uma grande explosão de aplausos que tomou conta de toda a audiência.

Daí a pouco as notas foram anunciadas, os dez candidatos perdedores se retiraram do palco, e. o processo de eliminação recomeçou.

A peça obrigatória seguinte para os dez selecionados era a Ave Maria de Gounod, uma das peças favoritas de Desmonde. Seu aparecimento não foi mais recebido com zombarias do público da galeria, e sim aplaudido calorosamente pelo público e de todas as outras partes do teatro. Agora ele estava à vontade e cantou ainda melhor do que antes. Quando voltava para o seu lugar, sob prolongados aplausos, viu o olhar do Cardeal fixo nele com uma expressão benigna.

As notas tornaram a ser lidas em voz alta, obtendo a recepção confusa do costume, e os seis desconsolados se retiraram do palco. Agora, apenas quatro candidatos estavam habilitados a enfrentar a última peça obrigatória, e destes, naquela altura, já se tornara visível que Desmonde e o noviço dos Abruzos sobreviveriam para se confrontarem na grande final.

Houve um intervalo, durante o qual a orquestra de cordas tocou a primeira parte das Quatro Estações, de Vivaldi.

Enquanto isso, Desmonde e o rapaz dos Abruzos foram chamados para se apresentarem diante da comissão e receberam respectivamente os totais de suas notas, que indicaram que Desmonde estava na dianteira por nove pontos. Então pediu-se a eles que dissessem qual havia sido a peça "de escolha". A escolha do noviço foi o Sole Mio, um grande sucesso, de fato, uma grande favorita das multidões numa audiência italiana, embora nem tanto para aquela culta comissão de críticos, que em seguida olharam com expectativa para Desmonde. Obviamente, uma vez que ele já estava ganhando, deveria escolher uma peça simples, para evitar toda possibilidade de erro técnico. Entretanto, para surpresa da comissão ele disse:

Escolho a Ária do Prémio do Die Meistersinger.

Houve um momento de silêncio, após o que o Presidente da comissão perguntou:

Vai cantar em italiano?

De maneira nenhuma. - Desmonde permitiu que seu olhar se fixasse por um instante no Cardeal. Vou cantar no original alemão.

Outro silêncio e então a voz do Presidente:

Isto será um grande prazer para nós todos... mas... é claro que sabe, as dificuldades... o risco...

Nesse ponto o Cardeal interveio.

Se esse brilhante jovem padre deseja cantar essa magnífica canção, deve deixá-lo cantar. Ele não está com medo, nem eu.

Assim, quando Vivaldi acabou, em meio a aplausos polidos, o Presidente da Sociedade se adiantou e anunciou as escolhas dos dois finalistas. O noviço dos Abruzos deveria cantar primeiro.

E alguns momentos depois a linda melodia do Sole Mio envolveu os ouvidos italianos extasiados, há muito tempo familiarizados com uma canção popularizada, cantada por incontáveis tenores medíocres, por todo o país. A galeria enlouqueceu, inclusive cantando junto com ele. Infelizmente, o pior ainda estava por vir, pois o rapaz dos Abruzos, farejando o triunfo no seu sucesso com o público, de fato levantou o braço direito e conduziu o coro ululante. Mais, mais aplausos quando ele terminou. Voltou para o seu lugar, corado e sorridente.

Agora Desmonde deveria cantar, para uma galeria inquieta, excitada e fervilhante. Ele avançou, entregou a música ao pianista, e esperou pacientemente na frente do palco, observando calmamente a marquesa e o padre Petitt, que o olhavam com um intenso nervosismo. Afinal se fez silêncio absoluto.

Quando os soberbos acordes de abertura daquela esplêndida canção se elevaram, a canção-teste do Meistersinger, propositadamente difícil, uma estranha imobilidade, semelhante a um transe, pareceu envolver, elevar e enobrecer os ouvintes. O próprio Desmonde como que se impregnou do significado e intenção wagnerianos daquela nobre canção, a aspiração ardente que conferia ao cantor. Ele se tornou Walther, em busca de reconhecimento para sua voz esplêndida e admissão como membro da elite, dos imortais. Ele deu tudo, tudo, conhecendo e se regozijando com o esforço supremo.

Quando a canção acabou e ele ficou parado ali, os olhos erguidos, exausto e inconsciente do que o rodeava, um silêncio de morte caiu sobre os ouvintes. Um estrondo de aplausos subiu então de todos os cantos do auditório, que de pé gritava vivas.

Uma ovação do público de pé, insuperada na história da Sociedade e que continuou até que o Presidente se adiantou e, o rosto aberto em sorrisos, tomou as duas mãos de Desmonde e as sacudiu repetidamente.

Meu caro Padre Desmonde, não tenho palavras. Acredite-me, vamos conhecê-lo melhor em Roma, e dentro de pouco tempo, uma vez que cuidarei disso pessoalmente. É muito precioso para ficar perdido nos confins da Irlanda.

Então levantou a mão para fazer calar a audiência.

Membros da Sociedade, senhoras e senhores. Vossos aplausos avassaladores confirmaram as nossas notas cuidadosas segundo as quais o padre Desmonde Fitzgerald é o ganhador do Cálice de Ouro. E, como Presidente da Sociedade, tenho enorme prazer em entregar o Cálice a ele agora, junto com uma pequena réplica, que ele poderá guardar como perene lembrança do seu triunfo aqui hoje.

Em meio a mais aplausos, ele ergueu o Cálice, ao qual estava presa uma caixinha de jóias, e o entregou a Desmonde.

O público já estava deixando a sala, mas o grupo dos Abruzos e outros grupos desapontados já haviam partido tristemente. A marquesa e o padre Petitt tinham avançado até a escada do palco, tentando chamar a atenção do Cardeal.

Excelência, posso apresentar-lhe a minha anfitrioa e o meu mestre?

Apresentar! Céus! Venha já aqui, Marguerita, menina levada. Ele beijou a mão da marquesa. Vejo que voltou aos seus hábitos, de receber irlandeses distintos, e sempre bonitos, também.

O Padre Desmonde acabou de perder a mãe. Assim, eu o adotei.

Então temos que trazê-lo de volta para Roma logo, para você.

E o senhor, padrezinho.... Ele se virou para o padre Petitt Foi o senhor quem ensinou ao seu aluno alguns truques úteis.

Oh, Excelência! Entre a tensão anterior e a alegria esfuziante de agora, Petitt mal sabia o que estava dizendo. Desmonde é cheio de todos os tipos de truques.

O Cardeal sorriu.

Deixe que eles lhe entreguem a caixa para essa peça adorável, de outra forma pode ser cobiçada e roubada. Está de carro, Marguerita? Ótimo! Então vou dizer a vocês um auf wiedersehen muito feliz.

Depois que ele foi, a marquesa tomou o braço de Desmonde e o apertou contra si.

Está vendo, Desmonde querido, meu coração ainda está batendo como louco. Oh, estou tão animada, tão loucamente feliz! Não lhe posso dizer como você esteve maravilhoso, de pé diante daquela multidão, como um jovem deus, e cantando, cantando como um anjo. Mas devemos ir para casa. O Padre Petitt já está com a sua caixa e eu estou com você. Agora, vamos.

Saíram pela porta do palco. O carro estava esperando lá fora e eles partiram, exaustos mas triunfantes, para a Via dela Croce.

Juntos no banco de trás, enquanto Petitt se sentava na frente, apertando o trofeu contra o peito, a marquesa puxou a cabeça de Desmonde sobre o seu ombro.

Hoje à noite vamos descansar e amanhã também, pois você deve estar exausto por causa da tensão, e eu, uma velha, estou realmente exausta por ter torcido por você com todas as minhas forças quando estava cantando. Mas, na segunda-feira e durante toda a semana que vem, nos divertiremos, indo a uma porção de festas, e à ópera também, aqui em Roma, e ainda faremos uma viagem rápida até o Scala, onde eu tenho uma assinatura.

- Mas, querida senhora, eu preciso estar na Irlanda na semana que vem.

Os irlandeses não se vão importar, são pessoas fáceis de levar. Além disso, você ganhou e merece umas férias. Para terminar, como meu filho adotivo, você tem que me obedecer. Quero que você seja feliz.

O Padre Petitt também vai ficar?

Não poderíamos detê-lo nem que quiséssemos. Tão logo ele tenha o Cálice gravado com o seu nome e o nome do colégio, vai sair como um foguete para dar as boas novas ao Padre Hackett.

Quando chegaram à paz e ao conforto da Villa Penserosa, Desmonde foi imediatamente para o seu quarto e escreveu algumas palavras num de seus cartões. Então pegou o cartão e a miniatura de ouro, chamou a empregada e lhe pediu que colocasse ambos na mesinha de cabeceira da marquesa. Depois tomou um banho quente e relaxante e, enrolado numa toalha, se deitou na cama. Como era agradável pensar no seu sucesso e nas festividades que estavam por vir! Kilbarrack parecia estar muito distante, um mundo diferente, no qual ele voltaria às cruzes da vida camponesa, a uma igreja arruinada, cheia de horrores artísticos, vias-sacras lúgubres a ponto de ferir os olhos, pequenas imagens da Virgem, industrializadas, sem rosto, azuis e brancas, um cheiro penetrante de cera de velas, de incenso rançoso, e odores normalmente associados com os estábulos. Bem, ele tinha que suportá-los. Nesse ínterim, que houvesse alegria, música, refinamento e todos os prazeres que ele tanto havia merecido.

 

A chegada de Desmonde a Kilbarrack não foi auspiciosa, nem levantou o moral deprimido do novo cura. O dia havia amanhecido chuvoso e a viagem de trem de Dublin até Wexford fora uma lembrança dolorosa da indolência nativa dos trens irlandeses. Chegando com uma hora de atraso ao entroncamento ferroviário, teve que esperar mais uma hora pelo trem local que o levaria preguiçosamente ao seu destino. Lá, atirado para fora com a mala na plataforma varrida pela chuva, procurou em vão por um transporte. Dez minutos se passaram antes que aparecesse um tílburi, puxado por um pangaré que de acordo com todas as probabilidades nunca havia ganho o Grande Prémio da Irlanda.

EU Ei! Pode-me dar uma carona?

De sob um toldo feito de velhos sacos de batata veio a resposta:

Claro que posso. Suba, Reverendo.

Desmonde subiu, levantando a mala para a parte de trás da carruagem e sentando-se ao lado do cocheiro.

Então estava esperando por mim?

Estava.. O cocheiro chicoteou de leve as costas encharcadas do cavalo. Esperei pelo senhor no trem do meio-dia, segundo as instruções do Sr. Cónego. Sou Michael.

Desculpe-me por tê-lo feito fazer duas viagens. Michael.

Ah, não tem problema, Reverendo, não tem problema nenhum. Faço todo tipo de serviços para o Sr. Cónego, além de ser acólito na igreja. Vou levá-lo pelo Mercado de Gado e subir High Street, para que o senhor possa dar uma olhada na cidade.

Kilbarrack, em nada diferente de uma centena de outras cidades de interior pouco prósperas, não foi nenhuma surpresa para Desmonde. Ele as conhecera quando menino. Mas, enquanto seguiam sacolejando, passando pelo pátio coberto de lixo, pelos bares de esquina, pela mercearia, pelo açougue, padaria, pelos instrumentos agrícolas do ferragista espalhados pela calçada, e de novo por mais botequins, tudo isso visto através de uma cortina de névoa e de chuva, ele se sentiu muito, muito longe da Via Veneto e da adorável mansão da marquesa na Via dela Croce.

Será que o cocheiro leu os seus pensamentos?

É uma mudança e tanto para o senhor, Reverendo. E para nós também. A cidade inteira está radiante com a sorte que nos coube, de ser, o nosso novo padre, um sacerdote jovem e acabado de vir direto da Cidade Santa.

Espero fazer com que gostem de mim, Michael. Vou tentar.

Vai, sim. Quando vi o senhor de pé lá na plataforma, tão moço e bonito, debaixo daquela chuva, simpatizei muito com o senhor. Quando acabaram de virar para subir a ladeira, saindo da rua principal, ele se inclinou para Desmond, baixando a voz. Vai-me desculpar, Reverendo, se eu lhe der um conselho. O Sr. Cónego é um bom homem, um grande homem. Ele fez maravilhas por nós aqui, mas não é má ideia ir devagar e com jeito com ele, para começar. Uma vez que o conheça e que ele conheça o senhor... é capaz de brigar com o diabo em pessoa pelo senhor, se é que me compreende. Bem, lá está a igreja para o senhor, com a escola ao lado, do outro lado do pátio, e o presbitério mais atrás.

A igreja, construída de boa pedra cinzenta, com duas torres pontiagudas e surpreendentemente grande, impressionou Desmonde pelo tamanho e pela imponência. Dominava a localidade e, com a escola e o presbitério próximos, todos construídos com a mesma pedra bem talhada, era emoldurada por um arvoredo que desaparecia na floresta mais além.

É um magnífico trabalho em pedra, Michael, tanto a igreja quanto a escola.

É sim, senhor, é mesmo. E tinha que ser, para agradar à Senhora Donovan.

Mas naquele momento haviam parado diante da casa de pedra com pórtico, e o cocheiro estava levantando a mala. Desmonde desceu de um salto.

Quanto é que eu lhe devo, Michael?

Nada, Reverendo. É uma combinaçãozinha entre o cónego e mim.

Tome isto, Michael, por minha conta.

Nem que eu viva até os cem Michael tocou o chapéu e chicoteou o cavalo jamais permitirei que Vossa Reverendíssima me pague.

Desmonde viu-o ir-se afastando e experimentou uma sensação de calor agradável atrás das costelas molhadas e frias. Então se virou, apanhou a mala e tocou a campainha.

Quase no mesmo instante a porta foi aberta e uma mulherzinha bem arrumada, roliça e baixinha, de avental branco, bem lavado e bem passado, o recebeu com um sorriso que deixava à mostra os dentes perfeitos, de uma brancura espantosa para a sua idade, que deveria ser de uns cinquenta anos.

- Então, afinal é o senhor mesmo, Padre. Entre. Infelizmente o senhor perdeu o trem do meio-dia. Deve estar encharcado. Deixe-me levar a sua mala.

- Não, não, obrigado.

- Então dê-me o seu casaco, está realmente ensopado. Ele tirou o casaco e o entregou a ela. Agora vou levá-lo até o seu quarto. O cónego saiu para uma reunião do conselho escolar, mas estará de volta às seis.

Quando iam pelo vestíbulo de lajotas, onde Desmonde pôde ver de relance um cabide enorme para chapéus e guarda-chuvas, uma estátua num nicho e um grande gongo de cobre, ela continuou, depois de ter pendurado cuidadosamente o casaco dele no cabide.

Sou a Sra. O'Brien, a governanta, e já trabalho aqui, com a graça de Deus, há mais de vinte anos.

Estou muito contente em conhecê-la, Sra. O'Brien. Desmonde estendeu a mão livre. Ela a apertou com um sorriso que fez os seus olhos escuros cintilarem. Eram quase negros, contrastando com a pele lisa e clara.

Mas o senhor deve estar com frio e molhado ela se virou enquanto seguia à frente, subindo a escada de carvalho encerada e meio morto de fome, sem dúvida. Perdeu o jantar?

Tomei café no barco.

Então veja só, fez todo o caminho de Roma até Kilbarrack sem nada a não ser pãezinhos e café no estômago. Ela se virou para ele no corredor do andar de cima e abriu uma porta. Este é o seu quarto, Padre, e espero que o ache em ordem. O banheiro é no fundo do corredor. Estarei com o senhor de novo daqui a pouquinho.

O quarto era pequeno e simples. Tinha uma cama de solteiro branca, esmaltada, feita com lençóis de linho imaculados, um crucifixo acima; uma cómoda simples encostada numa parede; uma pequena escrivaninha de abrir na outra; atrás da porta um genuflexório da mesma madeira polida; um tapete de cerca de um metro quadrado ao lado da cama, sobre o chão lustroso de linóleo; e sobre tudo isso, o brilho polido de limpeza e cuidado. Um quarto como Desmonde havia tido esperança de encontrar não exatamente uma cela monástica, é claro, mas sugestivo de uma vida ascética, sem perder o conforto essencial. Ele pôs a mala sobre a cómoda, abriu-a e começou a colocar suas coisas nas gavetas.

Pôs a fotografia de sua mãe na escrivaninha, e ao lado dela a pequena réplica emoldurada da Anunciação de Bartolommeo.

Então se deu conta de que seus pés estavam desagradavelmente molhados e, descalçando os sapatos, havia começado a tirar as meias ensopadas quando bateram na porta entreaberta. A Sra. O'Brien estava ali com uma bandeja.

Estou aliviada, Padre disse ela, sorrindo. O senhor teve o bom senso de tirar os sapatos. Estavam muito molhados. Agora deixe as coisas molhadas que as levarei lá para baixo, para secarem direito. Com uma das mãos ela baixou a tábua da escrivaninha e colocou nela a bandeja. Aqui está o seu chá, com umas coisinhas para ajudá-lo a aguentar até às sete horas, hora do jantar.

Muitíssimo obrigado, Sra. O'Brien. É muito gentil.

Tem outras meias secas?

- Creio que tenho um outro par.

Um outro! Isso nunca vai ser o suficiente, Padre. Não em Kilbarrack, com as nossas estradas, para não falar no clima. Teremos que pôr as agulhas para funcionar.. Ela estivera olhando para os porta-retratos.. Vejo que já arrumou os seus tesouros.

Uma é a minha mãe, que morreu no ano passado. A outra senhora, creio que não precisa ser apresentada.

De fato, não, e o senhor o diz bem. E que seria melhor para o senhor, Padre Desmonde, do que vir para cá tão bem acompanhado? Agora tome o seu chá enquanto está bem quente.

Ela lhe lançou um sorriso realmente carinhoso, apanhou as meias e os sapatos molhados, e desceu, fechando a porta sem fazer ruído.

O chá estava realmente quente, forte, muito reanimador. Igualmente deliciosas estavam as duas broas feitas em casa, quentinhas, com manteiga e uma fatia larga de bolo Madeira que ainda tinha a fragrância do forno.

A imagem de Desmonde de Kilbarrack, preconcebida com profunda apreensão, mas já amenizada pela sua recepção, naquele momento se suavizou ainda mais, dissolveu-se, poder-se-ia dizer, sob o impacto suculento daquele bolo divino. Recuperado e fortificado, ele pensou: Vou dar uma olhada na igreja. Encontrou as meias, calçou-as e desceu.

Quando se aproximava com o inimitável Michael, havia visto um corredor envidraçado que atravessava o pátio, começando na extremidade esquerda do vestíbulo. Um momento depois ele estava a caminho da igreja.

No seu último dia em Roma, Desmonde havia feito uma derradeira peregrinação sentimental à igreja de São Pedro. A imagem daquele nobre monumento estava fresca em sua mente, quando entrou na igreja paroquial daquela cidade do interior da Irlanda, pobre e suja. Ele esperava e se preparou para um choque, uma capela de desenho tradicional, com um altar de mau gosto e pinturas grosseiras da Via-Sacra deformando as paredes.

De fato, teve um choque, que o fez sentar-se abruptamente. Não conseguia acreditar em seus olhos. A igreja era delicada e extremamente bonita, de puro estilo gótico, o trabalho em pedra da melhor qualidade e acabamento. A nave era grandiosa, com naves laterais menores. Os pilares góticos, sustentando arcos de fino traçado, atraíam os olhos para cima, para o teto grandioso. A Via-Sacra era também entalhada em pedra, com um desenho simples, mas executado com graça e delicadeza. O altar principal, ricamente trabalhado em ouro, com uma magnífica cortina ornamental enfeitada com gregas, alegrava o santuário e atraía o olhar.

Instintivamente Desmonde se ajoelhou, para agradecer por aquela inesperada bênção divina, uma igreja nobre na qual sentia que poderia fortalecer e expandir a sua sagrada vocação, aumentar o seu amor e devoção pelo Salvador. Ainda estava rezando quando, de repente, um órgão começou a tocar, e um coro de vozes de meninos começou a cantar o hino Coroem-No com muitas Coroas.

Imediatamente Desmonde se levantou e foi depressa para o fundo da igreja, subindo então uma escada circular até a galeria do órgão. Um coro de meninos, regido por um rapaz, ensaiava o hino. Com a chegada repentina de Desmonde, os meninos se calaram.

Oh, por favor não parem! Desculpem-me por interrompê-los.. Ele se aproximou do rapaz e estendeu a mão. Sou o Padre Desmonde Fitzgerald.

Sou o mestre-escola, John Lavin, Padre. Estávamos fazendo o nosso ensaio habitual.

Desculpe-me disse Desmonde.. Estou literalmente estupefato por ouvi-los cantar tão bem... e esse hino especialmente encantador também, aqui nos confins de Vexford.

É tudo graças à Sra. Donovan, Padre. Ela adora a voz dos meninos cantando partituras realmente bonitas. Assim, é claro, ela teve que consegui-las.

Você os treinou esplendidamente. E conhece bem o ritmo.

Muito obrigado, Padre. Fez uma pausa. - Quando estiver nas suas visitas, e tiver tempo, gostaria talvez de visitar minha mulher e a mim, e ao nosso beBê. Ele sorriu timidamente. Temos muito orgulho dele.

Irei, sim.. Desmonde começou a falar no dialeto irlandês, depois trocou apertos de mão, sorriu para os meninos e saiu da igreja, ainda sem se ter recuperado do que tinha visto e ouvido lá dentro.

No presbitério, a Sra. O'Brien veio ao seu encontro no vestíbulo.

O cónego já voltou, Padre Desmonde, e o verá na hora do jantar, que já vou servir. Gostaria de ir para a sala de jantar? A porta está aberta e há uma boa lareira acesa.

Desmonde lavou as mãos e foi para a grande sala de jantar, onde a lareira acesa iluminava a bela mobília antiga de mogno: mesa, cadeiras, guarda-louça, tudo daquela sólida madeira durável. No janelão, viu ao longe o mar imponente, belos campos cultivados e florestas, e com apenas o teto visível por entre as árvores - uma grande casa de campo.

Gosta da nossa vista, Padre Desmonde?

Fora o Cónego Daly quem tinha feito a pergunta. Era um homem baixo e robusto, com o tórax e os braços de um carvoeiro, a cabeça redonda como uma bala de canhão, com os cabelos grisalhos cobertos por um barrete eclesiástico vermelho, e sem as vantagens de um pescoço, enfiada nos ombros largos. O rosto era de um vermelho cor de tijolo, com os olhos muito azuis, fundos nas cavidades, a expressão sincera, aberta, mas capaz de se mostrar terrível.

Gosto muito da sua vista, Sr. Cónego. E adorei, estou completamente apaixonado pela sua magnífica igreja, que é de muito bom gosto, uma verdadeira obra de arte.

Sim, não há nenhuma que a supere. Fiquei satisfeito de que o seu primeiro pensamento tenha sido ir até lá.

A Sra. O'Brien havia começado a servir o jantar, um belo quarto de carne, acompanhado de batatas e verduras.

Sente-se disse o cónego. Ele tomou o seu lugar à cabeceira e pegou as facas de trinchar, que começou a usar com tamanho vigor e habilidade que logo Desmonde tinha a sua frente um prato cheio de carne cortada bem fina, batatas farinhentas e repolho fresco.

Aqui não somos sofisticados, mas temos bastante para comer.

Está uma delícia, Sr. Cónego - respondeu Desmonde depois das primeiras garfadas. Havia comido pouco durante a viagem e naquele momento se juntou ao cónego atacando a deliciosa comida com entusiasmo.

Observando-o disfarçadamente, o cónego parecia satisfeito.

Alegra-me que não seja um desses estrangeiros pedantes que pensei que fosse. De fato, é muito melhor do que o janota romano que me fizeram crer que viria.

Não sou italiano, Sr. Cónego, sou apenas um irlandês que viveu muito tempo na Escócia.

É mesmo? Bem, bem, é como eu. Fiquei quase vinte anos em Winton com meus pais antes de eles voltarem a sua terra natal. E pode-se ver isso pela maneira como falo.

Seu sotaque faz com que eu me sinta em casa, e combina com a sua força vigorosa.

Quando toda a justiça havia sido feita ao prato principal, a Sra. O'Brien tirou a mesa e trouxe num prato fundo uma torta de maçã. saindo depois em silêncio.

Você já conquistou as simpatias da Sra. Oh., rapaz. Ela estava toda animada quando cheguei, fazendo-lhe elogios.. Ele serviu Desmonde de um pedaço generoso de torta de maçã, com bastante calda, e se serviu da mesma maneira. E eu dou muita importância à opinião dela. Está comigo há mais de vinte anos e nunca me decepcionou.

A igreja, Sr. Cónego. A sua magnífica igreja, como foi que conseguiu arranjá-la? Conheço a Irlanda e os irlandeses. O senhor não a conseguiu com as esmolas de Kilbarrack.

Está absolutamente certo, rapaz. Todos os centavos de todas as caixas de esmolas de todo o país, em dez anos, nunca teriam chegado para construí-la. - Ele havia acabado a sobremesa e, levantando-se, foi até o guarda-louça, tirou a garrafa que ficava ali, bem à vista, e serviu exatamente dois dedos do líquido cor de âmbar.

Eu a consegui graças a isto, rapaz, e graças à mais adorável, piedosa e caridosa das senhoras da Irlanda.

Ardendo de curiosidade, Desmonde observou o cónego sentar-se e levantar o copo para que o examinasse.

Não permito bebida alcoólica nesta casa, rapaz. Mas estou velho, e isto é diferente. É a única bebida que tomo em todo o dia, dois dedos, nem uma gota a mais, de Mountain Dew.

Agora Desmonde estava terrivelmente interessado, mas não ousava pressionar o cónego, que tomou um pequeno gole de Mountain Dew, sorveu-o devagar, e pôs o copo na mesa delicadamente, dizendo:

É o melhor, o mais puro, o mais fino e diabolicamente caro uisque de malte do mundo. É feito com a melhor água de turfa e engarrafado numa destilaria especial em Donegal, envelhecido pelo menos seis anos sob guarda, e então vendido pelo escritório de Dublin para todo o mundo, para aqueles que gostam do que há de melhor. E é de propriedade, única e exclusiva, da adorável senhora que planejou, construiu, decorou e pagou a nossa adorável igreja.

Depois daquela arenga, o cónego tomou mais um golinho e olhou benignamente para Desmonde, que murmurou:

Que coisa maravilhosa que ela fez! Deve ser uma velha senhora muito caridosa.

Diante disso, o cónego irrompeu num violento acesso de riso, no qual foi acompanhado pela Sra. O'Brien, que tinha vindo tirar a sobremesa.

Sim, ela é caridosa. prosseguiu o cónego, quando recobrou a calma. Eu teria medo de lhe contar quanto custou. Só ficou faltando uma coisa, má sorte, pura falta de previsão. Reparou na mesa da comunhão?

De fato, reparei. É muito velha, e de madeira. Bastante deslocada.

Está vendo, reparou logo. Mas não tem importância, rapaz, vou mandar trocá-la, um dia destes, por uma que seja digna da igreja. É o objetivo principal da minha vida agora. Faço insinuações a respeito disso, para a Sra. Donovan, o tempo todo.

Senhora Donovan!. repetiu Desmonde.

Conhece o nome?

Nunca o ouvi na minha vida até hoje.

Bem, agora vai ouvir muito. Era a casa dela que estava vendo pela janela. E além dessa, ela tem uma outra linda residência, na Suíça.

Jesus, por que logo na Suíça?

O olho esquerdo do cónego, logo acima do copo, baixou lenta e significativamente, e ele murmurou uma única palavra:

Impostos.

Dando tempo para que aquilo fosse assimilado, ele acrescentou:

Ela é não apenas uma senhora adorável, educada e talentosa, mas também uma mulher de negócios, esperta e dura como só se encontra na City, em Londres. Se conhecesse a história dela, saberia que estou falando a verdade.

Seguiu-se um silêncio, enquanto o cónego saboreava e acabava o seu Mountain Dew. Então, num tom diferente:

- Estava preparado para um caso difícil antes que você viesse, rapaz. E para ser difícil com você. Entretanto, pelo que estou vendo, o problema é simplesmente que você teve vida social demais, saracoteando por Roma e indo a festas nesse ponto ele olhou para a Sra. O'Brien com ricas senhoras idosas. Na realidade, você tem sido uma espécie de playboy. Assim, a minha ordem é a seguinte e, se olhar bem para a minha velha cara feia vai ver que devo ser obedecido: nada de aceitar convites aqui sem a minha permissão.

Sim, Sr. Cónego.. Você compreende.

O mestre-escola, Sr, Cónego, a quem encontrei na igreja, me convidou para conhecer seu filho recém-nascido.

Com bebés é diferente. Pode ir, mas não fique, diga alguma coisa simpática e venha embora.

Sim, Sr. Cónego.

Ótimo! Agora, nós aqui nos deitamos cedo e, como tenho certeza de que está cansado depois da viagem, pode subir agora, se quiser. Vou rezar a missa das dez, e você reza a das oito. Michael está sempre na sacristia e lhe mostrará tudo. A Sra. O'Brien acordará você de manhã. Agora, boa noite, rapaz. E espero que lhe agrade saber que o que vi de você é altamente satisfatório.

No quarto de Desmonde, todas as suas roupas molhadas haviam sido secadas, passadas a ferro e arrumadas com cuidado, a cama estava aberta e uma garrafa de água quente fora colocada entre os lençóis imaculados. Depois de ter feito, ajoelhado, as suas preces habituais e olhado para as duas fotografias familiares na escrivaninha, enfiou-se na cama, e com um profundo sentimento de gratidão fechou os olhos.

Seu primeiro dia em Kilbarrack havia sido um sucesso muito surpreendente.

As sete e meia, refeito por um sono profundo, Desmonde estava na igreja, em cuja sacristia Michael havia arrumado os paramentos.

Normalmente, temos apenas uma meia dúzia de pessoas nesta missa mais cedo, Reverendo. Mas esta manhã há um bocado de gente.

Piedade, Michael? Ou curiosidade?

Talvez um pouco de ambas, Reverendo.

Agora até Desmonde estava muito curioso com relação à benfeitora da magnífica igreja.

Por acaso a Sra. Donovan assiste à missa das oito?

De fato. ela assiste, senhor, todos os dias de semana, e a das dez aos domingos. Aquele é o seu lugar marcado, no final do banco da frente.

Certo, Michael.

- Mas ela não está aqui hoje, está em Dublin, no escritório, tratando de negócios. Entretanto, dizem que ela estará de volta no sábado.

Desmonde sempre sabia quando tinha celebrado uma boa missa ou uma missa prejudicada por suas preocupações pessoais e distrações. Estava contente consigo mesmo depois de ter deixado o altar, feito o agradecimento e voltado ao presbitério.

Depois de um bom desjejum, saiu na sua primeira visita a Kilbarrack. Como era agradável ser saudado e cumprimentado enquanto ia descendo para Cross Square! Entretanto, nem todos eram tão simpáticos. Do lado de fora da taverna de Mulvaney, em Front Street, o grupo de jovens e homens desocupados na esquina ficaram calados, mal lhe dando passagem, e quando ele se afastou irromperam em risadas e comentários rudes. Desmonde não ficou perturbado, pois o Cónego o havia advertido de que aquele era o pior local da cidade.

Recordando o convite do mestre-escola, perguntou o caminho para Curran Street, onde, observado atentamente pelos vizinhos, bateu várias vezes na porta do número 29. Tinha decidido evitar ser pressionado a ficar para o chá, e assim desobedecer ao Cónego.

Agora, entretanto, não havia resposta, a não ser o barulho de um bebé chorando no interior da casinha. Assim, como a porta estava aberta, Desmonde a abriu e entrou. E lá, num canto de uma sala bem arrumada, um lindo bebezinho chorava a plenos pulmões no berço. Era embaraçador, sem dúvida, mas não para Desmonde.

Imediatamente ele se adiantou, pegou o bebé no colo e, embalando-o contra o peito, começou a andar pela sala, cantando Frúh lingslied, de Schubert, que achou ser a coisa mais parecida com uma cantiga de ninar. O resultado foi mágico. O bebezinho se aconchegou contra o seu peito e adormeceu imediatamente.

Encantado com o seu sucesso. Desmonde não ousou estragá-lo pondo o bebé no berço. Continuou, pois, cantando e andando para baixo e para cima pela sala. Nesse ínterim, a porta da frente abrira-se por completo e, em pouco tempo, um ajuntamento de mulheres das vizinhanças, a maioria ainda de robe, havia-se reunido na calçada como abelhas em volta de um pote de mel, começando a entrar na casa.

Oh, meu Deus, Janie, olhe só o Reverendo!

- Já viu uma coisa assim na sua vida? É o novo padre mocinho vindo de Roma.

Ele pode ser mocinho, mas, por Deus, como sabe segurar um bebé!

Oh, meu Deus, que linda cena! E a voz dele, que beleza! Então uma outra, mais ousada do que o resto, exclamou:

Desculpe-me, Padre. A Sra. Lavin saiu só por um minuto para ir à padaria, que é logo ali.

A sala pouco a pouco se ia enchendo, fazendo com que Desmonde ficasse ansioso, não por si, mas pela criança. Decidiu sair para procurar a mãe.

Abram alas, por favor! Abram alas para sua majestade, o bebé.

Uma vez lá fora, no ar fresco, ele se sentiu mais à vontade. Mas não se tinha libertado da sua audiência. Enquanto ia subindo a rua lentamente, ainda cantarolando para ninar a criança, seu séquito, cada vez mais numeroso e constituído de mais espectadores que saíam das casas, havia-se tornado uma legião.

O pior ainda estava por vir. Janie Magonigle, diante da cena, havia gritado para o seu garoto:

Tommy, querido, dê uma corrida até a redação do Shamrock e peça a Mick Riley para vir depressa com a câmara.

Farejando um acontecimento, Mick havia concordado e, antes que Desmonde alcançasse a padaria, respondendo a um chamado de alguém às suas costas, se virou e foi surpreendido por dois estalidos.

Obrigado, Reverendo. Nós o teremos no Shamrock de sábado.

Naquele exato momento, reanimada por uma longa conversa com a esposa do padeiro, a Sra. Lavin saiu da padaria com um pão em cada braço.

Oh, meu Deus, o que é que está havendo...!

Quando ela veio correndo ao seu encontro, Desmonde a acalmou e rapidamente explicou tudo.

Agora quer carregá-lo?

Não posso, por causa do pão, Padre. Ele está dormindo tão bem e tão tranquilamente com o senhor! Por favor, por favor traga-o de volta comigo até a casa.

Era uma procissão de se admirar e um encanto para os olhos. O jovem padre como o bebé, a jovem esposa com os pães, seguidos por uma horda de admiradores extasiados. Mick Riley já tinha acabado o filme quando chegaram ao número 29 de Curran Street.

- Entre, entre, por favor, Padre exclamou a mãe, com um tremor visível, enquanto atirava os pães na mesa do vestíbulo.

Numa outra ocasião respondeu Desmonde apressadamente. Tenho que voltar para o presbitério. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa: a senhora tem o melhor e o mais encantador dos bebés que já peguei no colo.

O bebé foi trocado de braços, ainda dormindo profunda e angelicalmente, e Desmonde saiu apressado para a zona mais afastada da cidade. Mas não sem antes ouvir três vivas que lhe foram dados, e com aquilo ainda lhe ecoando nos ouvidos entrou rapidamente no presbitério, esperando que os dias subsequentes em Kilbarrack fossem ser menos memoráveis do que aquele.

Durante o jantar, naquela noite, o Cónego comentou com naturalidade:

A velha Donovan estará de volta de Dublin no sábado, Desmonde. Sem dúvida, você a verá no domingo.

Ela lhe telefonou, Sr. Cónego?

De fato, não. E pode ser que lhe interesse saber como as notícias correm em Kilbarrack. Hoje de manhã ela telefonou para Patrick, seu mordomo. Naturalmente, Patrick deu a notícia a Bridget, sua esposa. Bridget contou para a ajudante de cozinha, que por sua vez contou ao leiteiro quando este foi levar o leite, então o leiteiro contou à Sra. O'Brien e a Sra. O'Brien me contou.

Desmonde sorriu.

O senhor sabe dos acontecimentos antes que ocorram!

Sim rapaz.. O Cónego se inclinou para a frente e deu uma palmadinha reconfortadora na mão de Desmonde. E é por isso que sei que você estará na primeira página do jornal, com fotografias, na manhã do sábado que vem. Mas, não fique aborrecido, compreendo que tudo foi feito com a melhor das intenções, e lhe dará uma boa influência sobre a comunidade.

Domingo amanheceu um dia quente e bonito, pressagiando um bom verão, estação do ano que Desmonde adorava, especialmente depois de ter conhecido o sol benigno e perene da Espanha. O Cónego havia anunciado que o seu cura celebraria a missa das dez, enquanto ele, embora fosse fazer o sermão das dez, celebraria a das oito. Aquela combinação incomum intrigou Desmonde. até que o seu superior, sentado diante dele à mesa do café, comentou com um olhar de esguelha para a Sra. O'Brien, que tinha acabado de entrar com uma travessa de torradas frescas:

Quero apresentá-lo formalmente à velha senhora. Seria conveniente aos meus propósitos se ela gostasse de você. E acrescentou: Quais são os propósitos, você saberá no devido tempo.

Aquela combinação prévia aborreceu Desmonde. Ele não tinha nenhuma vontade de ser feito de marionete nos planos do Cónego, e decidiu ignorar a cadeira particular, estivesse ocupada ou não, no final do primeiro banco.

Depois que os sinos das dez pararam de tocar, depois de estar todo paramentado e ter recebido a aprovação de Michael, seguiu os quatro coroinhas vestidos de frade até o altar, com os olhos resolutamente baixos. Entretanto, à medida que a missa prosseguia, ele se sentiu absurda e desagradavelmente consciente de um exame, penetrante e prolongado, da sua pessoa e de todas as suas ações.

Depois da leitura do Evangelho, o Cónego subiu ao púlpito para fazer o sermão; Desmonde, com dois garotinhos de cada lado, ficou sentado do lado direito do altar. Só então dirigiu um olhar frio e impassível para o assento reservado. E teve um sobressalto um sobressalto tão visível e de tamanha surpresa que os seus coroinhas olharam para ele. espantados.

No assento reservado estava uma mulher jovem, elegantemente vestida, num conjunto de tussor cinza, com um chapéu de palha de abas achatadas levemente caído para trás sobre os cabelos castanhos e, com uma expressão calma e segura, ela o examinava abertamente. Quando seus olhos cinzentos se encontraram com os dele, e não se baixaram nem se desviaram, ele afastou o olhar imediatamente. Aquela não era a Sra. Donovan, talvez fosse sua filha ou alguma parenta rica, e achou a sua curiosidade franca e rude com relação a ele, censurável e ofensiva.

Naquele momento o Cónego havia terminado o seu sermão, notadamente mais curto que o habitual, e durante o hino que se seguiu, as cestas de coleta foram passadas. Pelo canto do olho, Desmonde reparou que aquela elegante intrusa, de roupas caras, não contribuiu com coisa alguma, nem mesmo uma moedinha de prata de seis pence.

Terminado o hino, Desmonde voltou para o altar e prosseguiu com a missa. Na hora da Comunhão, não esperava que a mulher recebesse o sacramento, mas estava enganado, ela foi a última a se ajoelhar no balaústre do altar e, quando ele lhe colocou a Eucaristia na língua, viu com alívio que ela estava com os olhos fechados.

Logo acabou a missa, cantou-se um último hino e Desmonde voltou para a sacristia. Assim que terminou a sua oração de agradecimento, ele se apressou em voltar para o presbitério, ansioso pelo almoço e por esclarecimentos sobre o mistério daquela mulher.

A carne assada do meio-dia de domingo ainda não estava bem no ponto, mas a Sra. O'Brien havia preparado café e bolinhos de aveia feitos na grelha e pusera-os na mesa de jantar para que Desmonde fizesse o seu desjejum.

Sr. Cónego! exclamou Desmonde depois de ter engolido o café. Quem é aquela moça terrivelmente rude que estava no assento reservado?

O cónego trocou um olhar com a Sra. O'Brien, que havia entrado, trazendo mais café.

Está falando daquela bonita, com boas roupas e com o chapeuzinho pretensioso?

Exatamente! É a filha da Sra. Donovan?. Não poderia ser a neta?

" É bem possível! Ela parecia bastante jovem!

Desmonde! - O Cónego lançou um olhar de censura para a Sra, O'Brien. Não estamos fazendo você de bobo, e a nossa brincadeira já foi longe demais. Você imaginou que a Sra. Donovan fosse uma velha, e nós nos divertimos um pouco com isso. Aquela era a própria Sra. Donovan, na igreja, hoje de manhã.

Desmonde se ergueu na cadeira.

Não pode estar falando a sério. Ela não tinha mais do que vinte e quatro ou vinte e cinco anos.

Ponha mais uns dez aí, rapaz, e estará certo quanto à idade dela. É uma bela mulher de corpo e espírito. E jovem de coração. Além disso, ela se cuida, realmente parece jovem.

Então, na verdade ela é a chefe, a dona de... tudo...

Quando você conhecer a história da Sra. Donovan, se algum dia ela lhe contar... eu não posso, pois sou seu confessor... vai compreender de todo como ela é capaz de dirigir seus negócios, controlá-los a todos, com mão de ferro.

Posso acreditar nisso! A maneira como me encarou!

Ora vamos, não seja precipitado, rapaz! Tenho a impressão de que ela gostou de você. Quando conversamos depois da missa, ela mandou convidá-lo para o chá. na terça-feira em Mount Vernon.

Demonstra bem suas boas maneiras quando me convida por intermédio de outras pessoas...

Ora, de novo, não seja precipitado. Garanto que um convite por escrito será trazido por Patrick - é o mordomo - quando ele vier para a Bênção. Agora espere e veja se estou certo ou errado.

A previsão do Cónego estava absolutamente correta. Às seis e meia daquela tarde, Desmonde abriu um envelope lacrado, tirou dele uma folha de papel da melhor qualidade, feito à mão, com o endereço gravado em relevo, em letras maiúsculas: Mount Vernon, Kilbarrack.

Caro padre Fitzgerald,

Se suas obrigações religiosas permitirem, queira vir à minha casa para tomar chá às quatro horas na próxima terça-feira.

Atenciosamente,

Geraldine Donovan

- Que audaciosa! - murmurou Desmonde.. Que atrevimento! Queira vir. Vou mostrar a ela que não sou seu lacaio!

O tempo bom continuou e terça-feira estava um dia ensolarado, com uma brisa fresca que fazia as nuvens suaves correrem umas atrás das outras, atravessando o sol. Desmonde havia estado muito ocupado durante toda a manhã e, depois do almoço, decidiu tirar uma sesta. Deitou-se na cama com a roupa de baixo e um olho no relógio, não para se assegurar de ser pontual, mas por causa da sua determinação de chegar atrasado ao encontro autoritariamente marcado para Mount Vernon.

Ele tirou um cochilo, descansou mais meia hora, levantou-se, fez a barba, lavou-se e escovou o cabelo. Depois vestiu o belo terno de Caroccini, pôs uma camisa limpa e o colarinho eclesiástico. O resultado foi satisfatório, realmente lhe agradou, e como o relógio agora marcava quatro horas ele saiu, caminhando calmamente, para o seu destino.

Quando atravessou os grandes portões de Mount Vernon e subiu pelo caminho largo, já eram quase quatro e meia. Não se apressou. Agora a casa já estava à vista, uma bela casa georgiana, com um pórtico de colunas como se costuma ver em muitas propriedades irlandesas. Mas aquela casa era diferente pelo fato de que sua aparência imaculada indicava um cuidado e uma manutenção rara de se ver, se é que se via, nas mansões quase históricas e delapidadas da Ilha Esmeralda. A longa fileira dupla de janelas cintilava, as esquadrias haviam sido recentemente pintadas, as pesadas ferragens da porta brilhavam, o teto inclinado apresentava-se imaculado, e na frente havia um terraço de pedra entalhada com um corrimão, obviamente um acréscimo, tudo isso completando um quadro digno da capa de Country Life.

Desmonde subiu os degraus e tocou a campainha. A porta foi aberta por um empregado idoso que não vestia fraque, mas sim uma libré, e que levou o visitante até um grande vestíbulo, cujos quadrados de mármore estavam soberbamente cobertos por um tapete Kirman Lavar com motivos florais e que Desmonde, quando seus pés nele se afundaram, calculou, corretamente, que fosse do século dezessete. Havia um belo retrato de Lavery, de um homem idoso, pendurado na parede vizinha, acima de uma mesinha Chippendale, coberta de pratarias, enquanto que na parede oposta se

Referência à Irlanda. (N. da T.)

via o retrato de uma mulher em traje a rigor, pintado pela mesma mão. No fundo do salão, uma linda escadaria bem larga levava graciosamente ao andar superior, tendo na plataforma do primeiro lance uma estátua, provavelmente grega, enquanto que, embaixo, dois corredores amplos saíam do vestíbulo para a direita e para a esquerda.

Seguindo o seu guia para a direita, Desmonde não deixou de observar, através de uma porta aberta, a confortável biblioteca, adequadamente cheia de livros.

No final do corredor entrou num grande aposento abobadado que fora outrora a grande estufa da mansão, mas que, com habilidade e gosto, havia sido agora convertido numa espécie de sala de estar, conhecida na Irlanda como o saloon. De novo, tapetes persas, ou talvez chineses, desbotados pelo tempo, cobriam o chão de tacos. Um piano de cauda aberto, numa extremidade, cadeiras e poltronas forradas de seda dos dois lados, flores por toda parte, numa abundância descuidada, realçadas também pelo calor e pela luminosidade do sol de abril, compunham um cenário rococó, suficientemente dominante para o visitante não-iniciado.

Na extremidade mais adiante, uma mulher esguia e elegante estava sentada a ler, diante de uma mesa de madeira ornamentada com desenhos em marfim. Tinha a compleição pálida, muito tratada, as feições finas e regulares, a expressão, mesmo enquanto lia, firme e composta, o belo cabelo castanho cortado curto e virado para dentro, intensificando sua aparência de juventude. Ela teria talvez bem mais de trinta anos, estava vestida com simplicidade, se bem que com muito gosto, de seda cinza-escura, inteiramente sem enfeites, mas com o detalhe notável de uma écharpe oriental de seda cinza e vermelha.

Desmonde, de maneira nenhuma subjugado, havia dado o chapéu ao empregado que o recebera e estava agora de pé, numa postura rija, com as mãos ao lado do corpo. De fato, ficou assim por alguns momentos, imóvel e em silêncio, deliciosamente cônscio de que, como pretendera, o seu atraso a aborrecera.

Afinal, não tendo conseguido levá-lo a cometer alguma gaffe, ela ergueu o olhar, mas não se levantou. Depois de tê-lo examinado por mais um momento, com um olhar crítico e pouco amistoso, não deixando de notar, entretanto, o elegante corte romano de seu terno clerical, no qual, era obrigada a admitir, ele estava incrivelmente bonito, disse num tom frio:

Então é o nosso novo cura. Creio que sim, Madame. Ele não se moveu.

Ouvi dizer que para um playboy o senhor é muito bom com bebés.

Se não ouvir nada pior a meu respeito, Madame, ficarei satisfeito.

Ela esboçou um sorriso, mas o reprimiu.

Uma vez que ao que parece é conhecido na cidade, carinhosamente, por Padre Desmonde, devo chamá-lo assim?

Eu não poderia ter tal pretensão na primeira vez em que nos encontramos, Madame, mas mais tarde talvez eu venha a merecer a sua afeição.

Sentindo que estava levando a pior naquele diálogo, ela disse:

Sente-se.

Ele o fez, tranquilamente, bem à vontade, sem afetação. Ela continuou a estudá-lo, com os claros olhos cinza-aço.

Pelo menos, é diferente do último padre coadjutor. Eu o convidei para o chá. Só uma vez. Foi o suficiente. Ele se sentou na ponta da cadeira, de lábios contraídos, a xícara chocalhando na mão, mudo de medo.

Pelo menos, ele não era um playboy, Madame.

Não, não era. Era um bom padre trabalhador, maçante toda a vida. Fico satisfeita de que tenha obtido a sua própria paróquia. Gostaria de tomar o chá?

Desmonde sorriu seu belo sorriso.

- Eu vim aqui na expectativa de provar o seu chá justamente afamado. Estou feliz de que não me vá desapontar.

Ela puxou a corda da parede, ao lado de sua cadeira, e largou o livro, um exemplar magnificamente encadernado da Imitação, dizendo:

O meu Kempis veio da loja de seu pai. Eu o conhecia e gostava muitíssimo dele.

- Muito obrigado, Madame. Por meu pai e por mim.

Quase imediatamente o chá foi trazido pelo empregado. Ele baixou cuidadosamente a pesada bandeja de prata com o seu serviço Spode antigo e um tripé para o bolo.

Obrigada, Patrick.

Ele se inclinou e saiu, fechando as portas silenciosamente atrás de si. Começando a servir o chá, ela observou:

Os empregados irlandeses são os melhores do mundo, Padre, se os treinarmos. Se não o fizermos, se os estragarmos, são os piores. Lembre-se disso quando estiver lidando com o pessoal do presbitério.

É mais possível que a nossa querida Sra. O'Brien nos estrague do que ser por nós estragada.

Ela pareceu considerar aquilo uma leve censura, mas disse:

Não tenho nenhuma vontade de ser estragada. Nem de ser rodeada por lacaios bajuladores. O bom Patrick é o meu mordomo e chofer, a sua esposa, Bridget, a minha ótima cozinheira, ajudada na cozinha por Maureen, uma moça da região. O meu jardim despretensioso é cuidado pelo filho de um de meus fazendeiros que aqui vem três vezes por semana.

Ele recebeu aquela informação em silêncio absoluto, como se a considerasse redundante ou até mesmo de mau gosto.

Ela foi obrigada, portanto, a dirigir sua atenção para a bandeja.

Creme? Açúcar?

Ele fez um gesto negativo, em silêncio.

A xícara que ela lhe entregou, pura e perfeita, estava quente,

perfumada, deliciosa. Ela o observou enquanto provava o chá,

como um conhecedor, e ergueu as sobrancelhas inquisitivamente.

O chá irlandês é sempre bom, Madame. Mas este, como o maná, deve vir do céu.

Não, vem de uma plantação especial no Ceilão, embarcado diretamente para cá. Que é que gostaria de comer?

Ele se serviu de dois dos biscoitos de massa folhada. Estavam deliciosos. Então pôs o prato na mesa.

Como? Não vai comer bolo? Bridget não dormirá esta noite se o senhor não comer uma fatia. Pensei que todos os curas gostassem de bolo.

Obedientemente ele se serviu de uma fatia do saboroso bolo caseiro, dizendo:

Não apenas os curas. O clero em geral.. Ele continuou, relatando de maneira bastante divertida o episódio do Padre Beauchamp e do bolo de chocolate. Mas, lembrando-se de que havia decidido ser severa com aquele jovem padre, ela mal sorriu.

Não me agrada ouvir que um bom padre foi ridicularizado. Uma vez, ouvi o seu Padre Beauchamp fazer um sermão verdadeiramente memorável.

- Em Winton, Madame? Sim. Estive rapidamente naquela cidade. Desmonde ficou em silêncio, tomado pela estranha e, de fato, incompreensível convicção de que antes já vira uma vez, rapidamente, aquela mulher notável, que agora lhe oferecia a sua segunda xícara de chá.

Ainda estou esperando para ouvir a sua terrível impressão de Kilbarrack. Deve ser um choque para o senhor, depois de Roma. Não é um choque, Madame, pois sou também irlandês. O que é um choque, uma grande felicidade inesperada, é a belíssima, a soberba igreja em que posso servir ao nosso Bendito Senhor. Nem posso deixar de acrescentar o inesperado prazer deste convite, de tomar chá em sua casa, com a abençoada doadora da igreja.

Que profusão de palavras, Padre Desmonde!

Sim, sou um bobo quando fico profundamente emocionado, estrago tudo com uma arenga. Simplesmente amo e adoro a igreja e abençoo quem a fez.

Eu também amo a minha igreja, Padre Desmonde. É isto que me mantém aqui nessa região remota da Irlanda, isto e a minha casa, que também amo. Pois, desde a morte de meu marido, sou uma mulher de negócios, com escritório central e totalmente equipado com pessoal em Dublin. Tenho que ir lá com frequência. Entretanto, com uma linha direta particular, tomo muitas das minhas decisões aqui, e vou tão raramente quanto possível. Ela fez uma pausa.. Mas por que estou falando de mim mesma?

Porque estou ouvindo com o maior interesse e atenção. Minha senhora, talvez tenha ouvido histórias estranhas e falsas a meu resppeito em Roma. Eu fui apenas polido, e estava entediado. Mas, agora estar no meu próprio país, na sociedade de uma senhora irlandesa, tão encantadora e tão exigente, tão nobre e... oh, céus, cara Senhora Donovan, a senhora deve-me calar... eu vim decidido a ser tão rude com a senhora como foi comigo, na igreja, no domingo. Eu simplesmente gostei tanto de estar com a senhora esta tarde que já disparei a falar de novo. Ele se levantou.. E agora está na hora de ir- tenho que oficiar a Bênção esta noite e o Cónego insiste na pontualidade.

- Então deve vir mais cedo da próxima vez.. Ela sorriu carinhosamente e se levantou. Vou acompanhá-lo até a porta.

Ficou parada com ele por um momento no pórtico pavimentado. As primeiras estrelas distantes já estavam surgindo na atmosfera ainda quente.

Não é divino? exclamou.. Um anoitecer divino. Se estiver atrasado. Patrick o levará de carro.

Obrigado, mas não, Madame. Apreciarei a caminhada.

Temos um atalho que vai pela floresta até a igreja. Um dia eu lhe mostrarei. Boa noite, Desmonde.. Ela lhe estendeu a mão macia e morna.

Boa noite, cara senhora.

Ela o observou ir descendo o caminho rapidamente, esperando de repente e de maneira estranha que ele se virasse e olhasse para trás.

Ele se virou e olhou para trás.

Depois que ele desapareceu entre os altos pilares do portão, ela foi para o quarto e se olhou, toda enternecida e fulgurante, no espelho. Era uma imagem agradável de se ver, ela sorriu de leve, e então, afastando-se depressa, disse em voz alta:

Não seja tola, Gerry. Por favor, não!

Desmonde, um caminhante pouco experiente, chegou seis minutos atrasado para a Bênção. Mas, depois do serviço religioso, quando apareceu no presbitério, o digno cónego, normalmente um defensor ardente de tudo que dizia respeito à pontualidade, preferiu ignorar o pecadilho. E mais tarde, quando se sentaram para jantar, ele desdobrou o guardanapo com um floreio, enfiou-o firmemente em volta do pescoço e sorriu.

Passou uma tarde agradável com a Sra. Donovan, rapaz?

Encantadora, Sr. Cónego. Creio que me atrasei em partir.

Ah, que importância tem isso! Será que ela... bem, como se diria, gostou de você?

Depois da sua tentativa preliminar de me humilhar um pouco, ela foi gentilíssima. De fato, demo-nos muito bem.

Eu imaginei que sim, imaginei que sim. O cónego riu para consigo mesmo, enquanto pegava as facas de trinchar e começava a cortar em fatias um promissor pernil de ovelha.. Tudo por uma boa causa, rapaz.

Durante os dias seguintes, não houve nenhuma palavra de Mount Vernon. No domingo, a missa principal das dez foi normalmente oficiada pelo cónego, uma vez que a hora mais tardia lhe dava tempo para preparar os seus trovões e lhe proporcionava uma congregação muito maior sobre a qual descarregá-los. A missa anterior e pouco frequentada das oito foi, portanto, celebrada por Desmonde.

No domingo seguinte, quando se dirigia para o altar, não pôde deixar de observar que o reservado na extremidade do banco da frente estava ocupado pela Senhora Donovan, que normalmente vinha às onze horas. Estava com um casaco preto, curto, de estilo militar, com uma gola larga e bolsos com abas, uma saia de pregas, meias de seda e sapatos feitos à mão, e na cabeça trazia um elegante chapéu cloche preto, bem caído sobre a testa. Parecia bem uns dez anos mais moça do que era, e dizer que ela estava elegante seria um comentário vulgar. Em qualquer das igrejas da moda de Paris ela teria atraído olhares de admiração.

Durante a missa, Desmonde não olhou para ela nem uma vez, mas na hora da Sagrada Comunhão, quando ela se adiantou e se ajoelhou no pequeno balaústre do altar, olhando para cima enquanto ele colocava a sagrada hóstia entre os seus lábios separados, os olhos dela ficaram abertos e encontraram os dele num intercâmbio espiritual suave e comovente.

Na sacristia, enquanto ele tirava os paramentos, viu que o landô fechado de Mount Vernon estava lá fora e, quando saiu, ela o esperava, apressada e um pouco impaciente.

Vou para Dublin, hoje. Há negócios importantes de que preciso tratar. Poderia avisar ao cónego? Estarei no Shelbourne, como de hábito, por uns dez dias aproximadamente.. De repente ela sorriu, mostrando os pequenos dentes brancos perfeitos. A propósito, meus espiões me informaram que tomou um verdadeiro banho fazendo as suas visitas, outro dia, de manhã. Não tem uma capa de chuva?

- Não é uma roupa que se use muito em Roma - disse Desmonde, rindo, e seus dentes eram quase tão bonitos como os dela.

- Tenho o guarda-chuva paroquial, um tremendo dossel que se vira ao contrário com uma facilidade adorável.

Precisa de uma capa de chuva disse ela, rindo. Se não é uma vestimenta usada em Roma, aqui em Kilbarrack é muito. Agora, au revoir.

Ela estendeu a mão.

Depois do Sacramento, ele não podia fazer mais do que lhe apertar os dedos de leve. Mas, após a partida dela, ajoelhou-se e, antes de começar a recitar o breviário, fez uma prece para que ela fizesse uma viagem segura nas estradas movimentadas de domingo. E que voltasse logo.

A vida continuou normalmente nos dias seguintes, durante os quais Desmonde foi sentindo cada vez mais a ausência de sua nova amiga. Mas, na quinta-feira, a prova de que ela não o havia esquecido veio por entrega especial, sob a forma de uma linda capa de chuva. Era uma Burberry, de um cinza discreto e, quando a experimentou diante do cónego ansioso, serviu perfeitamente.

É a coisa certa para você, rapaz. Belíssima. E esse cinzento clerical está perfeito. Ele ajeitou a excelente gabardina impermeabilizada, satisfeito com aquela prova de interesse da Sra. Donovan.. Ela gostou de você, Desmonde, e mais tarde, se você for cuidadoso ela o ouvirá se você abordar o assunto da mesa da comunhão.

Desmonde ficou calado. Ele já havia decidido tratar aquele assunto premente e delicado com grande reserva.

Seis dias depois, uma evidência do retorno da Sra. Donovan chegou ao presbitério: uma chamada telefónica convidando Desmonde e o cónego para almoço no domingo seguinte.

O cónego ficou satisfeito, mas enviou suas desculpas, aceitando o convite apenas para o seu cura.

É a você que a senhora quer ver. Desmonde. E você sabe como gosto da minha sesta depois do almoço de domingo.

Assim, Desmonde partiu sozinho para Mount Vernon, a cabeça descoberta, e usando, como prova de gratidão, a sua linda capa nova. Quando ele subia a larga entrada, ela estava passeando pelo terraço, muito informal, usando uma blusa cor-de-rosa, uma saia de linho cinza, e um chapéu de palha amarrado sob o queixo. Estendeu as mãos para ele com um sorriso. - Céus! Está chovendo?

Madame, o tempo é irrelevante. Estou desfilando com o seu lindo presente para que possa admirá-lo.

Eu o admiro. E você! Está com um aspecto nada clerical, como um jovem fauno disfarçado num modelo de propaganda para a Burberry. Agora tire-a imediatamente.

Ele o fez, agradecendo-lhe com simplicidade. Ela pegou a capa, dobrando-a num braço, e lhe ofereceu o outro.

Agora temos que vadiar pelo menos por uns dez minutos, senão Bridget vai servir tudo cru.

Começaram a andar para cima e para baixo no terraço.

Ficou fora por mais tempo do que eu esperava disse Desmonde.

Houve um problema que tive que resolver.. Como ele olhasse inquisitivamente, ela continuou:. Uns japoneses empreendedores em Tóquio, que já fazem uísque escocês falsificado e o vendem sob falsos nomes escoceses, como "Highland Fling" e "The Sporran", agora voltaram a sua atenção para o uísque irlandês. Em garrafas semelhantes às nossas, praticamente com os mesmos rótulos, eles denominaram a sua beberagem de "Mountain Cream".. Ela fez uma pausa.. É claro que não tem comparação com o nosso soberbo uísque de malte envelhecido, mas a confusão é prejudicial.

Entrou com uma ação contra eles?

Em Tóquio! Por Deus, não. E já tive o suficiente de ações judiciais. Não, eu apenas enviei um S. O. S. para todos os nossos agentes, revendedores e atacadistas, dizendo que, se estocassem e vendessem a imitação japonesa, deixariam de ter o nosso produto. Ela fez uma pausa.. Antes de sair de Dublin, tínhamos recebido uma enxurrada de telegramas, rádios e cartas expressas obedientes, concordando com a medida. Abruptamente ela abandonou o assunto. Está com fome, depois do passeio?

Faminto.

É claro, devo adverti-lo de que não terá nada nem de longe tão gostoso como a refeição de domingo da Sra. O'Brien. Que é que ia ser hoje?

Carne de porco cozida, acho, com molho de cebola.

Como o cónego vai roncar depois disso! Eu admiro e estimo o cónego, Desmonde, mas às vezes ele é possessivo demais. A minha bela igreja não foi dada a ele, mas ela baixou a voz ao Todo-Poderoso, por Sua sagrada ajuda e apoio durante um período de sofrimento e provação.

Desmonde ficou em silêncio por um momento e então disse num tom calmo:

Gostaria que compreendesse, cara Sra. Donovan, que eu nunca, mas nunca mesmo, aceitaria os seus gentis e bem-vindos convites, para usá-los e aviltá-los, procurando obter qualquer vantagem pessoal ou temporal da senhora.

Ela apertou-lhe o braço, virou-se e olhou para ele.

Eu soube disso, Desmonde, a partir do momento em que o conheci.

As notas melodiosas do gongo quebraram o silêncio daquela intimidade tocante.

O meu pontual Patrick está chamando.. Eles entraram na casa.. O toalete é ali, e no fim do corredor fica a sala de jantar. Estarei com você dentro de um momento.

A sala de jantar era toda em estilo Chippendale, polido e brilhante, a longa mesa formal não estava posta, mas junto da janela, por onde o sol entrava, havia uma pequena mesa oval, muito elegantemente posta para dois.

Não é mais acolhedor?. disse ela, entrando.. Eu sempre como aqui de preferência.

Eles se sentaram. Ela ainda estava usando o atraente chapeuzinho de palha. Desmonde sentiu-se compelido a dizer.

Ainda devo usar a palavra com discrição, num sentido pessoal, mas permita-me dizer-lhe que adoro o seu chapeuzinho. É um chapéu domingueiro, um Boulters. Quero levá-la até o rio.

Poderia manobrar o barco? Na sua Burberry?

Não, mas poderia olhar para a senhora, deitada languidamente nas almofadas da popa, com uma sombrinha fechada ao lado, uma adorável mão deixando-se arrastar de leve na água fresca e límpida, enquanto deslizássemos sob os salgueiros.

Ela sorriu, olhando-o alegremente nos olhos. Então se recompôs e desviou o olhar.

Eu o advirto, Desmonde, não vai conseguir nada aqui, a não ser peixe. E estava todo no mar até as seis da manhã de hoje.

Patrick agora estava servindo a sopa, em delicadas taças de Dresden, e murmurando no ouvido de Desmonde:

Bom dia, Reverendo. Isto é a bisk domará.

A espessa sopa de lagosta estava deliciosa, cheia de pedaços de patas e servida com pedacinhos de queijo e uma colherada de creme em cima.

Quer repetir? perguntou a Sra. Donovan. Se quiser, eu também repito. Não há muita coisa mais, depois.

Sim, por favor. Está deliciosa.

Depois que a sopa foi servida pela segunda vez, houve uma pausa, enquanto o mordomo abria cuidadosamente a garrafa de vinho coberta de mofo.

Não troque de garrafa, Patrick.. Madame quer provar?

Ela fez um gesto negativo.

Deve estar bom. Já esteve esperando o suficiente.

O vinho límpido, cor de âmbar, foi servido. Desmonde provou e olhou para a anfitrioa do outro lado da mesa com respeito silencioso. Era um Chablis magnífico, amadurecido até alcançar uma fragrância adocicada.

Sim ela sorriu. Está incrivelmente bom. E é tão magnífico que temos que acabar com a garrafa.

O prato seguinte estava sendo então servido. Filés de solha grelhados, guarnecidos de anchovas e rodeados na travessa por puré de batatas irlandesas.

Coma bastante disse ela. Depois, só há salada de frutas.

O delicioso peixe, grelhado ao ponto certo, e impecavelmente fresco, estava irresistível. Desmonde não recusou a travessa quando lhe foi oferecida de novo. E tampouco o fez a senhora.

E depois, que deliciosa e refrescante estava a compota de frutas frescas, bem gelada e servida em taças de comunhão de prata antiga!

Café no solário.

Eles se sentaram no grande sofá defronte à janela para tomar o forte moca preto. Desmonde, tomado por uma euforia quase beatífica, sentiu seus olhos serem atraídos compulsivamente na direção dela.

Bem... e agora?. perguntou ela, sorrindo. Quer competir com o cónego?

Isto é um insulto, Madame... como se eu pudesse deixá-la.

Poderíamos descansar nas extremidades do sofá. É muito confortável, perfeitamente puro e conhecido, pelo que sei, como pé-com-pé.

Está com sono. De jeito nenhum.

Então preciso falar-lhe, Madame, se permitir, sobre um assunto que tem estado sempre em minha mente, desde o momento em que a vi.

Sim - murmurou ela, desconfiada. Com certeza, ajudado pelo Chabis, ele não estaria a ponto de fazer alguma declaração prematura que estragaria tudo. Não, não estaria. Tomando a mão dela, disse muito sério.

Cara senhora, desde o nosso primeiro encontro em Mount Vernon, tive a convicção de que já a vira e já a ouvira antes. E agora, depois de duas horas deliciosas passadas na intimidade da sua presença, devo-lhe dizer o quão insistentemente a senhora me recorda Geraldine Moore, que há alguns anos atrás, em Winton, me fez aplaudir de pé, como um louco, o seu sublime desempenho como Lúcia, na Lúcia di Lammermoor, de Donizetti. Ele fez uma pausa. E depois o seu belo retrato no vestíbulo... como Lúcia.

Ela pareceu um pouco desapontada, mas logo sorriu.

Ah, Donizetti, como ele conseguia penetrar no fundo do coração! Mas, meu caro Desmonde, pensei que toda a Irlanda, inclusive você, soubesse que eu era Geraldine Moore antes do meu casamento e que durante quatro anos cantei com D'Oyly Carte e a Cari Rosa. E me lembro realmente de ter cantado Lúcia durante aquela visita. E também, creio, a Tosca.

Nós a ouvimos, Madame, na Tosca, o meu amigo e eu. Deixamos o teatro em prantos.

Ela sorriu de leve:

Pode culpar Puccini por isso, não a mim.

Então por que, cara senhora...? Ela se levantou.

Um dia, Desmonde. quando nos conhecermos melhor, eu o enfadarei com a história da minha vida. Agora, o que nós dois estamos precisando é de uma boa caminhada. Dê-me um momento para trocar de sapatos, e vou-lhe mostrar o atalho de Mount Vernon até a igreja.

Partiram, subindo a encosta, através dos terrenos da propriedade, atravessando gramados bem tratados que rodeavam o roseiral e o pequeno pavilhão de verão, pseudogrego, cheio de colunas, que ficava do lado de uma quadra de ténis bem cuidada, por via das dúvidas.

Mantenho isto em bom estado de conservação, uma vez que o pessoal do meu escritório gosta de jogar, quando vem aqui. A minha sobrinha, que é estudante, também gosta.

Agora eles estavam no grande pomar.

Só há maçãs e umas poucas ameixas disse ela.. Não conseguimos cultivar muitas outras coisas por aqui.

E finalmente chegaram à floresta de pinheiros. Desmonde viu que um caminho havia sido aberto por entre as árvores.

É todo fácil de caminhar disse ela. Mando limpá-lo com regularidade. E olhe, por cima das copas das árvores pode-se ver o telhado da igreja.

É lindo disse ele. Que vista!

Sim... eu venho até aqui todo dia para admirar. - Ela estendeu as duas mãos. Agora vá e acorde o cónego. E volte breve... breve.

Ela se virou e foi-se embora.

As privações da Quaresma agora haviam caído sobre a paróquia de Santa Teresa, e o bom cónego, que adorava a sua carne fresca, o seu pernil e costelas de carneiro, a sua carne de porco cozida, e talvez, mais do que tudo, o cálice diário de Mountain Dew, sim, o bom cónego, que disciplinava os outros, era ainda mais severo consigo mesmo. Fazia abstinência e jejuava rigidamente. Numa palavra, ele sofria. Era nessa época e nesse estado de espírito que ele compunha e descarregava os seus famosos raios e trovões.

Durante o mês, como penitência suplementar, o cónego oficiava a missa das oito, e Desmonde a das dez, e depois do Evangelho dessa missa, enquanto Desmonde e seus coroinhas se sentavam ao lado do altar, o cónego subia ao púlpito para pregar.

Naquele dia, o segundo domingo da Quaresma, a igreja estava lotada, uma congregação tensa e trémula, consciente por experiência anterior do que esperar, quando o cónego, com uma longa sobrepeliz de renda sobre a batina escarlate, o gorro vermelho firmemente enfiado no crânio, subiu lentamente para o púlpito e, com o cenho ameaçadoramente franzido, olhou para a sua audiência, parado. A pausa se prolongou até que num crescendo gradual, com uma voz estentórea, lá veio, repetindo três vezes num grito:

Inferno! Inferno! Inferno!

Quando a onda de choque abaixo dele havia passado, o cónego começou.

Eu pronuncio esta palavra horrorosa como uma praga, como uma maldição suja e obscena para ser lançada de cá para lá, e entre os infiéis nas esquinas das ruas ou nos bares? Vão para o inferno! O desgraçado inferno para vocês! Foi infernal de bom! Maldito seja até o inferno! Prefiro ver você no inferno a lhe pagar mais uma!

"Não! Falo do inferno como sendo o poço ardente, sem fundo, no qual, para sua maldição eterna, Satã e seus anjos rebeldes foram lançados do céu. O lar torturado e sem esperanças dos malditos através dos tempos. O inferno, o fim inevitável dos maus, o terrível caudal para onde vão todos os que cospem no rosto de Deus, daqueles, mesmo nesta congregação ora diante de mim, que recusam persistentemente a Graça e morrem, valha-lhes Deus, em pecado mortal, e são mergulhados na Geena para se reunirem às legiões infernais dos malditos, que se contorcem enlaçados em sua agonia. Nunca pararam para contemplar a temível e interminável agonia dos condenados? Alguma vez queimaram o dedo ao segurarem um pequeno palito de fósforo, quando acendiam o cachimbo? Alguma vez gostariam de tentar experimentar manter um dedo por um minuto apenas na chama de uma simples vela? Nunca! Ninguém, a não ser um idiota, se feriria dessa maneira. Reflitam, então, sobre tamanha dor, multiplicada um milhão de vezes e sofrida no corpo inteiro. Não por um minuto, não por um milhão de anos, mas por toda a eternidade.

"Imersos numa lava fervente, com chamas crepitando em torno e acima de vocês, sufocados pela fumaça, vapor e todos os odores fétidos e a escuma do inferno, perfurados e torturados por todos os diabinhos com forcados e espetos incandescentes, os gemidos, os gritos e as pragas de todas as outras almas perdidas em torno de vocês, uma massa fervente, retorcida e confusa de agonia infernal, e em meio a tudo isso, o mórbido, contínuo e eterno pensamento torturante de que só têm a si mesmos para culpar, porque tiveram a sua oportunidade e a atiraram de volta, com uma praga, no rosto do Todo-Poderoso, de que, se ao menos tivessem ouvido o seu pobre cónego, num certo domingo, estariam lá em cima, no céu, na companhia e no convívio dos Eleitos, onde se pode ver claramente, notem bem, onde reina a luz, a doçura e a felicidade eterna na Divina Presença do Senhor.

Um silêncio completo, mortal, seguiu-se àquela peroração. E o cónego foi rápido em se aproveitar da ocasião.

Falo para todos aqui nesta bela igreja, nesta verdadeira Catedral, dádiva da generosa, santa criatura, a Sra. Donovan. Muitos de vocês, graças a Deus, são bons católicos e verdadeiros praticantes. Mas há outros a voz do cónego se elevou vocês aí no fundo, espremidos no banco de trás, esgueirando-se para ficar junto da porta, vocês que nunca tiram o casaco para um dia honesto de trabalho, mas apenas para uma briga. Vocês que ficam com calo no traseiro, por gastarem os fundilhos das calças sentados na calçada encostados na parede do bar da esquina. E vocês, Jezebéis arrebicadas, escondendo-se com falsa modéstia atrás dos pilares, vocês que se embonecam todas, lambuzando-se com pó e pintura, que usam xales elegantes e saem passeando pelas noites, procurando a quem devorar... e que Deus tenha pena do pobre idiota quando ele acordar de manhã. A vocês eu digo, e a todos nesta igreja, embebidos na imundície do Pecado Mortal, digo de novo, o olho do Anjo Vingador está sobre vocês. E, se negarem isso, e se rebaterem isso com uma praga, então eu lhes digo: O meu está!

Sentado no banco estreito, sobrecarregado com seus pesados paramentos e ensurdecido pelos urros do cónego, Desmonde sentiu que começava a perder as forças. O parco café da manhã, escrupulosamente medido, não fazia nada para sustentá-lo. ele não tinha constituição para viver nas privações da Quaresma, e pedir uma dispensa seria pura futilidade. Saudosamente pensou na querida amiga, agora ausente de Mount Vernon há tantos dias, e se perguntou a si mesmo o que poderia estar atrasando a sua volta, dominado pelo anseio de estar com ela de novo.

Ele estava ausente nas visitas diárias, quando ela telefonara, há dez dias atrás, e o cónego recebera o recado de que ela deveria partir imediatamente para a Suíça. Será que isso poderia ser por motivos ligados ao fisco? Impossível! Os três meses consecutivos do verão, passados em sua residência perto de Vevey, certamente deveriam manter o domicílio suíço necessário, já bem estabelecido pela lei.

Intrigado e confuso, ele teve um desejo repentino de que a Sra. Donovan voltasse logo. Mas naquele momento, um longo suspiro de alívio, seguido pelo arrastar de cadeiras e de botas, o advertiu de que o sermão estava acabado. Ele se levantou enquanto o cónego se afastava, fazendo uma genuflexão ao passar pelo tabernáculo.

Imediatamente Desmonde voltou ao altar e, com um cansaço cada vez maior, conseguiu encerrar a missa. Vinte minutos depois, estava lá em cima no presbitério.

Foi imediatamente para o seu quarto e deitou-se na cama já feita e coberta com uma colcha limpa pela Sra. O'Brien. Depois de alguns momentos de inércia absoluta, seus pensamentos voltaram à Sra. Donovan e, mais uma vez, à vontade de saber se já teria voltado. A razão de sua ausência continuava um enigma. E por que, por que seus pensamentos tinham que voltar tão insistentemente àquela mulher, ela própria, de certa maneira, um enigma? Será que estava apaixonado por ela? Ele se remexeu inquieto. O amor casto era permitido entre homem e mulher, e ela era, reconhecidamente, dez anos mais velha do que ele. Mas como era doce, como era adorável, atraente e encantadora, de fino espírito também, e com uma inteligência ágil e viva...

O leve som do gongo, sempre suavizado com tato pela Sra. O'Brien durante a Quaresma, forçou-o a se levantar. Na sala de jantar, o cónego já estava sentado, olhando pesarosamente para a pequena travessa de macarrão com queijo que, com o seu correspondente no lugar de Desmonde, constituía a única decoração da mesa.

Quando Desmonde se sentava, sentiu o cónego levantar os olhos, um olhar que era cheio de consideração, quase terno.

Está pálido, rapaz. Foi uma longa missa. Vou violar as regras e dar-lhe um copo de xerez.

Só se o senhor também tomar um.

O cónego, que já tinha começado a se levantar, tornou a se afundar na cadeira, estendeu a mão até o outro lado da mesa e segurou a mão de Desmonde. Ele a apertou com ternura.

Isto é uma demonstração de verdadeiro afeto e consideração. Lembrarei com carinho. E assim sofreremos juntos.

De qualquer maneira, o senhor nos deu um sermão impressionante.

Impressionante, pode ter sido. O cónego levou um fio de macarrão cuidadosamente até a boca. Mas vou-lhe dizer francamente, a maior parte do bando desgraçado o terá esquecido antes de chegar à metade do caminho de descida da colina para o botequim de Murphy. Acha que há bastante queijo neste mingau? Está absolutamente sem gosto. E por que eles não fazem o macarrão mais grosso?

Não se esperava nenhuma resposta. O cónego continuou.

Veja bem, rapaz, eu não sou partidário ardoroso da concepção medieval de diabos com forcados ardentes, e se a utilizo é só para assustá-los. Mas existe um inferno e o castigo é o pior de todos, tristeza e desolação, a perda para sempre da visão e da presença do nosso Divino Senhor. E vou-lhe dizer, estou realmente deprimido, não apenas com o estado da paróquia, mas pela situação do mundo inteiro, de maneira geral.

Mais um fiapo de macarrão, sugado do garfo.

Atualmente não há nenhuma diferença, nenhuma mesmo, entre o que está certo e o que está errado. Vale tudo. Trapaça nos negócios, infidelidade no casamento, as irregularidades animalescas do sexo em todas as idades. Vá dar uma volta pelo cais à noite. Que é que se vê, sendo levado pela maré? Uma quantidade de preservativos imundos, como peixes doentes, flutuando no oceano do Senhor, como evidência da imoralidade do homem.

O cónego enrolou no garfo e engoliu habilidosamente o último resto de macarrão.

Vou lhe dizer francamente, Desmonde, sem meias-palavras... o mundo de hoje está abrindo caminho para o inferno, fornicando!

Tendo pronunciado essas violentas palavras, o cónego levantou o seu prato e, com um movimento circular da língua, lambeu o molho todo.

Aí está... limpinho da silva. Não precisa nem mesmo de lavar, não precisa mesmo.

Ele se levantou e deu uma palmadinha no ombro de Desmonde.

Agora saia e vá respirar um pouco de ar fresco. Vai-lhe fazer bem. Vá até o Mount e veja se a Sra. Donovan já está de volta.

Desmonde deixou o presbitério pela porta lateral, mais animado pela gentileza do cónego, um homem severo, raramente dado a expressões de aprovação ou de afeto. O caminho que levava até a floresta era íngreme. Desmonde seguiu-o devagar, parando quando alcançou o grande cinturão de árvores acima, e então, resistindo à tentação de descansar no pequeno vale estreito e gramado que marcava o fim do atalho, entrou no caminho particular que ia até Mount Vernon.

O perfume da resina dos pinheiros era reanimador, cheio da promessa da propriedade abaixo. Desmonde sentiu seu ânimo reviver e o coração bater mais depressa. Como se havia afeiçoado à adorável casa antiga que, por dentro e por fora, se ajustava com tanta exatidão à sua concepção de beleza e de bom gosto! Talvez, também, embora duvidasse disso, a dona da propriedade tivesse voltado, a Sra. Donovan, a sua amiga, a sua querida amiga, a quem amava, na melhor e mais pura expressão desse nobre sentimento.

Infelizmente, quando saiu da floresta e Mount Vernon surgiu completamente exposto abaixo, a casa estava fechada, o jardim deserto. Não obstante, ele desceu, parando para admirar o pequeno átrio grego que servia de pavilhão de ténis, e continuou até o terraço da mansão. Ali começou a andar de um lado para o outro, gozando de um divertido sentimento fictício de posse.

De repente a porta da frente se abriu e ali, nas suas melhores roupas de domingo, apareceu Bridget.

Oh, Reverendo, por favor, entre. Imagine só, vê-lo andando aí fora como um estranho!

Mas está tudo fechado, Bridget.

De maneira nenhuma, senhor. Vou levantar todos os toldos do solário num segundo. A Senhora nunca me perdoaria se eu o deixasse aí fora, sozinho. E, para completar, há uma carta para o senhor.

A perspectiva da carta foi decisiva. Desmonde seguiu Bridget até o interior da casa e, cumprindo a sua palavra, ela levantou os toldos do solário e, antes que ele pudesse detê-la, atirou um fósforo nos galhinhos sob as toras arrumadas na lareira, na extremidade do aposento.

Agora posso-lhe oferecer uma boa xícara de chá e um bom pedaço de bolo? Patrick foi passar o dia fora e a menina está em casa da mãe, mas será um prazer servi-lo.

- Se tem certeza de que não lhe dará trabalho, Bridget. Adoraria uma xícara de chá... mas bolo não.

Ah, é aquele bendito jejum da Quaresma. Vou-lhe trazer uma xícara realmente boa, assim que a chaleira ferver. E a sua carta.

Depois que ela se foi, Desmonde sentou-se junto da lareira. As boas toras secas já haviam começado a arder e a estalar. Como era bom estar ali de novo! Deixou o calor do fogo e do ambiente da sala penetrá-lo, ansioso por ler a carta, mas adiando esse prazer para depois que tivesse tomado o chá.

O chá veio depressa, uma grande xícara fumegante. Ele nunca tinha provado nada tão bom, tão fortificante, de sabor tão delicioso. De fato, quando Bridget voltou até a porta para perguntar se gostaria de uma segunda xícara, exclamou:

É a melhor xícara de chá que já tomei, Bridget. Foi alguma coisa especial?

Para dizer a verdade, Reverendo Bridget sorriu - ao ver o senhor tão cansado assim, pus um bom bocado do "Dew" nele.

Então não repito Desmonde riu. - Mas vou dizer à senhora como me reanimou bem. Bridget, posso-me sentar junto do fogo e descansar por meia hora, uma vez que teve a gentileza de acendê-lo?

Não pode, senhor, mas deve. A patroa me disse que pusesse a casa inteira à sua disposição, caso o senhor viesse.

Depois que ela se foi, fechando a porta silenciosamente, Desmonde respirou fundo e abriu a carta.

Meu querido, meu muito querido Desmonde,

Espero que me tenha honrado fazendo uma visita a Mount Vernon na minha ausência e que então receba e leia esta carta.

Quando telefonei para o presbitério para falar com você, o cónego atendeu, uma vez que você estava fora, visitando um doente, Por isso, eu não disse nada além de que estava de partida urgente para a Suíça. Agora saberá o motivo da minha partida.

Claire, a minha sobrinha, filha de minha pobre irmã que morreu, tragicamente, há uns quatro anos atrás, depois de um casamento terrivelmente desastroso, está sob os meus cuidados desde então. Não há dúvida de que ela teve uma infância infeliz, que talvez explique uma certa irresponsabilidade, pode-se até dizer turbulência, no seu carater. Durante os últimos dois anos, eu a mantive em Château-le-Roc, sem dúvida uma das melhores escolas secundárias da Suíça. A escola, magnificamente localizada acima de La Tour de Peiliz, é muito convenientemente próxima da minha casa em Burie, onde ela passa as férias comigo, no verão.

Tudo parecia estar razoavelmente bem com Claire, embora seus boletins se tenham, de fato, referido e alguns atos de indisciplina e violações dos regulamentos, a maioria atribuída a bom humor. Entretanto, na noite passada recebi um telegrama do dire tor, o Major Coulter: Claire havia sido expulsa e eu deveria ir buscá-la.

Naturalmente telefonei logo. Parece que Claire e ama outra das meninas, depois de irem para o dormitório, como de hábito, às 9:30 da noite, subiram por uma das janelas, depois de escurecer, pularam para o pátio, tiraram as bicicletas do galpão e pedalaram até Montreux. Lá, usando o uniforme do colégio foram a um salão de danças, onde logo encontraram pares, numa festa ruidosa que se prolongou até depois da meia-noite. Afortunadamente seus uniformes as haviam denunciado, e o porteiro do salão telefonou ao diretor, que apanhou o carro rapidamente, chegando bem a tempo, justamente quando as duas estavam-se preparando para sair com um rapaz de aspecto duvidoso, no seu carro esporte.

Não lhe preciso dizer, Desmonde, como estou aborrecida nem como supliquei ao Major Coulter que não fizesse nada de decisivo enquanto eu não chegasse. Espero ser capaz de convencê-lo a ficar com Claire por mais um ano, depois do que ela certamente seria menos irresponsável e mais adaptável à nossa tranquila maneira de vida. No presente momento, temo que ela seria bastante difícil de controlar aqui, caso o Major Coulter insista numa expulsão imediata.

Partirei imediatamente para Dublin, de carro, e espero chegar lá a tempo de apanhar o barco da tarde.

Enquanto eu estiver fora, dê um passeio até o Mount de vez em quando, e entre na casa será esperado e Bridget lhe franquearíá a despensa. Sente-se no solário e pense um pouco em mim, garanto que estarei pensando em você.

Afetuosamente, Geraldine

Desmonde leu a carta duas vezes, e não porque tivesse deixado de compreendê-la. Seu coração se alegrou com a intimidade, a ternura até, das frases apressadas. E enquanto lamentava a necessidade da sua viagem repentina para a Suíça, aquela ausência provava o sentimento que os unia: respeito, devoção, amor no sentido mais puro da palavra gasta pelo mau uso. Convencido de que ela rapidamente persuadiria o diretor a ficar com a sobrinha problemática, agora podia esperar o seu retorno quase imediato.

Desmonde dobrou a carta, enfiou-a no bolso de dentro do paletó, e se levantou. À euforia, produzida pela carta da Sra. Donovan e talvez por seu Mountain Dew, exigia ação, uma resposta imediata. Seus olhos caíram sobre o piano. Impulsivamente ele se sentou, abriu o teclado e correu os dedos sobre as teclas. Um Bliithner de harmonia suave exatamente a seu gosto. Há alguns meses que não cantava, mas naquele momento, atendendo a uma compulsão irresistível, encheu os pulmões e começou a cantar aquele que era o mais lindo de todos os hinos: O salutaris hóstia-

Como a sua voz soava bem no grande aposento! O descanso talvez fosse a razão; sabia que estava cantando melhor do que nunca antes. No mesmo estado de espírito, sua escolha seguinte foi o Salve Rainha, de Pergolesi, depois, despreocupadamente, para mudar de todo, cantou Passing By, de Edward Purcell.

Em seguida, começou a cantar trechos de suas óperas favoritas, melhorando à medida que prosseguia e realmente se divertindo. Finalmente deixou-se envolver pela última ária de Paço, de uma ópera que adorava: La Vida Breve. De repente, olhou para o relógio sobre a lareira. Deus do céu, eram quatro e dez, as suas crianças da Primeira Comunhão já deveriam estar-se reunindo a sua espera, no altar lateral! Tinha menos de quinze minutos para chegar lá.

Bridget estava sentada no vestíbulo, quando ele saiu do solário. Levantou-se imediatamente.

Padre Desmonde, estive ouvindo o seu rádio, absolutamente deslumbrada. Nunca ouvi Dublin com tanta clareza e tão alto. São os mesmos discos que eles tocam: John McCormack, Caruso, todos eles, os grandes.

Fico satisfeito de que tenha gostado, Bridget. E obrigado por toda a sua gentileza e hospitalidade. Especialmente pelo delicioso chá.

Venha outra vez, Padre.. Ela abriu a porta. E breve. A Senhora gostaria.

Desmonde foi pela encosta num passo rápido, recuperou o fôlego no caminho de descida, e estava na igreja exatamente às quatro e meia.

As criancinhas, uma dúzia certa, todas entre cinco e seis anos, e todas de famílias pobres, se levantaram quando ele se aproximou. Desmonde estava num estado de espírito radiante. Em vez de lhes falar do altar, ele se sentou e as reuniu a sua volta, num grupinho.

Aquela era apenas a segunda aula e ele pegou o fio da primeira, descrevendo como Jesus, ao entrar em Jerusalém, com seus discípulos, sabia que se dirigia para a Sua morte. Como logo deveria morrer, queria deixar alguma coisa através da qual Ele fosse lembrado. E que haveria de melhor, se aquele símbolo de lembrança fosse Ele mesmo? Assim, Desmonde continuou, simplificando o Mistério em palavras que fossem compreensíveis para crianças e, à medida que prosseguia, sentiu que havia captado até a atenção das criancinhas menores.

No final, propôs que fizessem perguntas, tendo cuidado para encorajar em vez de desestimular, e, quando possível, elogiar. Então marcou o dia e a hora da aula seguinte, dando a cada um de seus alunos uma bala vinda do estoque mantido no armário atrás do altar, e dispensou a turma.

Quando ia andando em direção à sacristia, uma menina das menores o seguiu e segurou-lhe a mão.

Quando Jesus me procurar, eu vou gostar Dele tanto quanto gosto do senhor, Padre?

Desmonde sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.

Ainda mais, minha querida. Você O amará muito, muito mais.

E, pegando-a no colo, ele a beijou no rosto, pôs mais uma bala no bolso do seu aventalzinho e a levou para junto das outras crianças.

A popularidade de Desmonde não se limitava às crianças da cidade que corriam para ele e lhe seguravam a mão sempre que aparecia nas ruas. Os adultos da comunidade, que de início o observavam com curiosidade e respeito temeroso, agora eram quase todos seus amigos, conquistados pelo sorriso sempre pronto, pelo bom humor constante e pelo interesse que demonstrava ao ouvir aqueles que se dispunham a relatar-lhe seus problemas e tristezas. Afinal era um irlandês igualzinho a todos eles, embora um pouco mimado pelo Papa em Roma.

Ele também era generoso, e raramente se passava uma semana sem que a Sra. O'Brien viesse procurá-lo com um sorriso de desculpas, depois de as sombras da noite terem lançado uma obscuridade amistosa na porta dos fundos do presbitério.

Estão querendo falar com o senhor de novo, Padre Desmonde.

Quem é desta vez? A velha Sra. Ryan, ou Maggie Cronin? - Não, é Mickey Turley... é que ele está sem um tostão.

Diga-lhe que vou descer em dois minutos.

O senhor é bom demais com esses vagabundos, Padre. Sorrindo contrafeita, a Sra. O'Brien sacudia a cabeça. Eles se aproveitam do senhor.

Desmonde punha a mão no seu ombro e gentil e afetuosamente a abraçava.

O que é um shilling ou dois para a causa sagrada da caridade? Aqui estou, bem abrigado e magnificamente alimentado pela melhor governanta da Irlanda, que lava e passa a minha roupa com perfeição, escova os meus ternos, mantém o meu quarto impecável e, não importa o quanto esteja trabalhando, me recebe sempre com um sorriso encantador. Quem sou eu, pois, para mandar embora uma pobre alma sem nada a não ser os parcos farrapos que a cobrem?

Eles vão gastar tudo em bebida.

Pelo menos, uma boa Guiness irá aquecê-los e fazê-los ir em frente. Agora me empreste meia coroa dessa carteira que a senhora sempre traz consigo, que eu lhe pago amanhã.

Ainda rindo, mas sacudindo a cabeça, a Sra. O'Brien entregava a moeda. Ela ainda estava lá, a esperá-lo, quando ele voltava da porta dos fundos.

Não estou tentando comprar popularidade, Sra. Ob. Há um grupo brabo nesta cidade que nunca, nunca vai querer nada comigo.

Mas não muito tempo depois de ele ter feito esse comentário, na quinta-feira anterior à Páscoa, para ser exato, houve um evento que o fez mudar de opinião.

Era o dia da feira mensal, um acontecimento de certa importância na cidadezinha do interior, quando os fazendeiros das vizinhanças vinham vender e comprar suas mercadorias. As ruas estavam cheias de carroças, carroções, caminhões e havia um movimento lento mas constante de animais sendo levados para dentro e para fora da cidade. Tudo era alvoroço, animação e confusão.

Desmonde gostava daqueles dias de mercado, e naquela Quinta-Feira Santa saiu rapidamente do presbitério para apreciar o espetáculo. Estava a meio caminho, descendo a encosta, quando, no cruzamento principal das estradas abaixo, um velho caminhão, descendo depressa demais, colidiu violentamente com uma carroça pesada que atravessava a praça, vinda de uma rua lateral. Ninguém parecia estar ferido, mas o choque quebrou a tampa traseira do caminhão, e imediatamente uma leva de leitões cor-de-rosa disparou num fluxo, saltando e cabriolando, as orelhas sedosas se

' Marca de cerveja preta inglesa. (N. da T.)

agitando, os rabinhos enrolados de satisfação, as patinhas correndo para a liberdade. Imediatamente se formou uma multidão, gritos e pragas cortaram o ar, golpes foram dados e por toda parte mãos se estendiam e tentavam agarrar os porquinhos fugitivos.

No meio da confusão, dois leitões escapuliram sem ser vistos e saíram pela rua principal a toda velocidade, ainda inobservados, indo diretamente para Desmonde. Ele viu que era preciso detê-los, a fim de que não tivessem um fim prematuro, e levantou os braços para capturá-los. Mas os dois moleques, em vez de pararem, viraram à esquerda e saíram correndo por uma ruela estreita, conhecida como Vennel. Aquilo era o pior de tudo, uma vez que ali, sem dúvida, seriam roubados para serem postos na panela. Assim, Desmonde saiu atrás deles, correndo muito, vencendo-os em todas as suas fintas e cabriolas, e finalmente os encurralou, num beco sem saída.

Tão cansados quanto ele, os porquinhos o olharam assustados, mas pareceram ficar mais tranquilos quando ele os pegou no colo, um de cada vez, e os segurou debaixo do braço, sob a capa de chuva, onde, de fato, eles se aconchegaram tranquilamente de encontro ao seu corpo. Então Desmonde esperou até recuperar o fôlego e saiu em direção à cena do desastre.

Ali, a multidão havia crescido, estava armada a maior das confusões e um policial, o Sargento Duggan, a quem Desmonde reconheceu como um de seus paroquianos, estava tentando, mas sem sucesso, controlá-los.

Sargento! - gritou Desmonde. Abra caminho para a Igreja.

Aquela estranha exigência realmente fez com que se abrisse uma passagem, e Desmonde se encontrou no centro do círculo, diante dos dois combatentes.

Michael Daly! Você me conhece e eu o conheço. A sua fazenda fica à beira da estrada, logo após a propriedade da Senhora Donovan.

Um silêncio mortal havia caído sobre a multidão enquanto Desmonde continuava.

Você perdeu dois porcos.

De fato perdi, dois dos melhores, eram porcas para criação e cruza.

Fazendeiro Daly, se pudesse tê-las de volta, faria as pazes com esse sujeito aqui, que bateu em você?

Com certeza que sim.

O silêncio era total enquanto Desmonde abria a capa e, com um gesto que teria dado crédito a Maskelyne e Devant, exibiu e, segurando um em cada mão, ergueu bem alto os dois leitõezinhos.

Durante um minuto aquele silêncio mortal continuou, quebrado apenas por uma voz fraca de mulher, reconhecível como a da velha Maggie Cronin:

Oh, meu Deus! É mesmo um grande milagre!

Então houve um pandemônio, gritos de surpresa, risos, espanto total. A Divindade e o Diabo foram igualmente invocados. E, quando Desmonde entregou os seus trofeus ao proprietário e aproximou os dois homens para que trocassem um aperto de mãos, houve um rugido de aplausos.

O senhor me tirou de uma situação difícil, Padre sussurrou o sargento no ouvido de Desmonde. Vou providenciar para que o senhor receba o que merece. Ele levantou a mão.

Ouçam vocês todos. O problema foi resolvido com perfeição. Em vez de uma briga e de uma confusão sangrenta, a paz abençoada foi restaurada e tudo através dos esforços e da inteligência de um homem... o Reverendo aqui, conhecido afetuosamente como Padre Desmonde. Agora, vamos todos vocês, três vivas para o Reverendo.

Os vivas, de fato, puderam ser ouvidos no presbitério, para onde Desmonde voltou, dividido entre o riso e, por absurdo que fosse, uma alegre satisfação e um sentimento de realização.

Quando ia passando pela porta lateral da igreja, percebeu que uma garotinha, que estava ali sozinha, havia levantado a mão fazendo um gesto tímido em sua direção. Imediatamente se dirigiu para ela, reconhecendo-a como uma das alunas mais inteligentes da sua turma de comunhão. Também viu que ela estivera chorando. Pôs o braço em volta de seus ombros.

Ora, Peggy, o que foi que houve? Ela caiu em prantos de novo.

Não vou poder vir para a minha Primeira Comunhão, Padre. Não tenho uma roupa apropriada.

Ele se lembrava de ter dito que agradaria ao Senhor se as meninas pudessem vir vestidas de branco.

Isso não é realmente importante, Peggy. Você pode vir como está agora.

Assim, Padre? As outras meninas iriam rir de mim.

Ele viu como ela estava mal vestida.

Você pediu a sua mãe?

Sim. Ela ficou zangada. As lágrimas escorreram de novo. Ela disse que, se eu quisesse um vestido novo, que podia pedi-lo a Jesus.

Desmonde ficou em silêncio. Ele havia cometido um erro. Diante de tal pobreza, não se deviam fazer exigências. Mas aquela criança não deveria sofrer. Sorriu para ela e apertou-lhe os ombrinhos magros.

Hoje à noite, Peggy, antes de ir para a cama, quero que se ajoelhe e, exatamente como a sua mãe disse, que peça a Jesus o seu vestido novo. Ela ergueu o olhar para ele com espanto. - Não conte a ninguém, apenas faça a sua oração. Promete?

- Sim, Padre. A resposta veio num murmúrio choroso.

Agora vá, e nós dois veremos o que acontece.

Rapidamente Desmonde entrou no presbitério e foi logo abordado pela Sra. O'Brien.

Oh, estou feliz por vê-lo de volta em segurança, Padre. Houve tamanha confusão na rua. O que é que estava acontecendo?

- Só um probleminha para o seu amigo, o Sargento Duggan. Ele lhe contará depois, sem dúvida. Agora, não se preocupe. Aqui está aquela meia coroa que lhe pedi emprestada. E em, troca...

Em troca? Mas não é a minha meia coroa?

Em troca. ele sorriu de modo sedutor - quero que faça uma coisa para mim...

Falou com ela animadamente durante apenas quatro minutos e, antes que ela pudesse protestar, saiu, indo depressa para o estúdio, no andar de cima.

Naquela noite, quando se estavam sentando para jantar, o cónego se inclinou para a frente, com os olhos contraídos e um tremor nos lábios que traíam alguma brincadeira terrível.

Andam-me dizendo que você é um tremendo sucesso no ramo de propriedades perdidas.

O Domingo de Páscoa amanheceu um dia bonito, em cores esplêndidas de ouro e rosa. A prece de Desmonde por um dia lindo havia sido atendida, ou talvez o controlador do tempo irlandês estivesse, pelo menos por uma vez, de bom humor. Da mesma forma estava o cónego, rejubilando-se com a festa do Cristo Ressuscitado e com o abençoado fim do seu martírio da Quaresma. Ele cumprimentou o seu coadjutor com o tradicional beijo no rosto.

Você vai celebrar a missa, Desmonde. E eu o assistirei.

Desmonde corou diante daquela honra inesperada.

Você o merece, rapaz, pela maneira como se tem ocupado das crianças. E, além disso, eu gosto de você.

Uma grande quantidade de flores primaveris havia sido mandada de Mount Vernon. O grande altar, soberbamente decorado com narcisos e lilases da Páscoa, era uma imagem de esplendor e de beleza fragrante. Michael, o acólito, também com uma flor na lapela, foi à sacristia para comunicar que a igreja estava lotada, com gente até a porta.

Nunca vi coisa assim, tem gente de pé até nas naves laterais.

Não está nervoso? - murmurou o cónego. Desmonde sacudiu a cabeça. Estou lhe perguntando porque a Sra. Donovan chegou e vai estar observando tudo acrescentou: Espero que ela repare na nossa pobre mesa da comunhão.

O órgão ressoou, as vozes do coro se elevaram no hino de abertura e a procissão entrou na igreja, Desmonde magnificamente vestido com os paramentos festivos de cetim dourado e branco, precedido por oito coroinhas vestidos de franciscanos e seguido pelo cónego em imponente humildade.

O primeiro olhar de Desmonde foi em direção aos comungantes, sentados no banco da frente: tudo estava como ele havia desejado, os meninos com braçadeiras douradas e brancas, as meninas todas de branco, algumas apenas com aventais brancos engomados, outras com vestidos brancos engomados, outras com vestidos brancos de verão e uma, especialmente bem arrumada e lindamente vestida, com uma túnica branca de voile, que poderia ser aproveitada depois. Desmonde não olhou mais além, subiu os degraus do altar, ajoelhou-se e a missa começou.

Lentamente, com uma perfeição de movimento e de cor, a cerimónia continuou, como uma tapeçaria tecida em ouro e escarlate, desenrolada aos poucos. Só quando o cónego se voltou para ler a Epístola foi que Desmonde se virou para olhar para a extremidade do reservado da frente, percebendo com um sobressalto que os olhos da Sra. Donovan estavam fixos nele. Ela parecia feliz, um bom augúrio para as notícias que ela lhe daria da Suíça, e tão fascinante como sempre no seu conjunto de tweed de Donegal.

Uma vez retomada a missa, tocou o sino na Consagração e mais uma vez, logo em seguida, anunciando o momento da Sagrada Comunhão. As crianças se levantaram, vieram em perfeita ordem ajoelhar-se à mesa da comunhão, e Desmonde sozinho veio lentamente para colocar, pela primeira vez, a Eucaristia nas línguas infantis. Depois vieram os pais das crianças, seguidos por um grande número de membros da congregação. O cónego desceu naquele momento para auxiliar Desmonde. E afinal, em último lugar, veio a Sra. Donovan, que se ajoelhou, olhando para cima para receber a comunhão, e encontrando naquele mesmo olhar de amor espiritual os olhos do Padre Desmonde.

Logo depois a missa estava acabada, o órgão tocou, o coro cantou o hino final: Cristo, o Senhor, Foi Ressuscitado Hoje. De volta à sacristia, enquanto tiravam os paramentos, o cónego murmurou:

Perfeito, rapaz. Você não vacilou nem uma vez.

No salão da escola, as crianças estavam sentadas a uma mesa comprida para o desjejum da Comunhão, uma refeição substancial de aveia, bacon e ovos, torradas, chá e bolo recheado com frutas, servida sob a supervisão do mestre-escola. A Sra. Donovan já estava lá com um livrinho de orações, A Chave do Céu, para cada criança, e logo Desmonde e o cónego entraram.

Não se levantem! exclamou o cónego, reprimindo um movimento incipiente. Continuem comendo. E Deus abençoe todos vocês.

Ele se virou para a Sra. Donovan e se inclinou.

Fico feliz de vê-la em casa de novo, Madame. Não achou, graças à senhora, que a igreja estava linda?

A missa foi linda.. Ela se virou para Desmonde. Foi perfeita. Fiquei profundamente emocionada. E essas criancinhas meigas, tão bem preparadas...

Ah, sim, Madame. interrompeu o cónego.. Foi um lindo quadro. Se ao menos os balaústres diante dos quais os pequeninos se ajoelharam fossem melhores...

Fique sossegado, Sr. Cónego riu a Sra. Donovan. É possível que consiga a sua mesa da comunhão mais cedo do que espera. Nesse meio tempo, como é que está com o seu Dew?

Não toquei nele durante a Quaresma. E, mesmo fora da Quaresma, eu tomo um gole por dia, não mais do que dois dedos, como Desmonde pode testemunhar. Entretanto, bem, tenho a impressão de estar com pouco.

Receberá outra caixa de Dublin imediatamente. O cónego fez uma grande mesura.

Agradeço à generosíssima senhora.

E você, Desmonde? Será que um convite para tomar chá seria aceitável?

É claro que sim, Madame.

Céus!. A Sra. Donovan sorriu para ele. Estamo-nos comportando como personagens de uma das horríveis óperas de Cavalli... Ormindo de preferência. Pode vir às quatro horas.

Depois que ela se foi, Desmonde deu a volta à longa mesa, antes de seguir o cónego até à porta. Quando passou pela menina do vestido de voile, viu-lhe o olhar radiante e murmurou:

Foi uma boa prece, querida Peggy.

Lá em cima no presbitério, a Sra. O'Brien, parecendo nervosa pela primeira vez, estava na sala de jantar.

Desculpem-me Sr. Cónego e Padre Desmonde, estive tão ocupada com a refeição das crianças, como podem ver, que só tenho um sanduíche de presunto para lhes oferecer. Mas vou preparar um delicioso lombo de carneiro para esta noite.

Não se preocupe, Sra. O'Brien. A senhora nunca nos deixa na mão. E vou tomar o meu gole diário de Dew com o sanduíche.

Não foi uma assistência enorme?. disse a Sra. O'Brien, pondo a garrafa na mesa.. Nunca, nunca na minha vida vi a igreja tão cheia... e com alguns dos durões de Donegan Corner.

A senhora conhece perguntou o cónego, medindo duas polegadas certas no copo aquela velha canção que começa assim: "Um dia de manhã, quando eu vinha saindo da cidade de Tipperary..."?

Não, Sr. Cónego.

Bem, acaba assim, ou mais ou menos.. E o cónego prosseguiu cantando bem alto: "Foram os porquinhos que fizeram aquilo, coim, coim... os queridos porquinhos."

Desmonde continuou o cónego, depois que a Sra. O'Brien saiu, sacudindo a cabeça vejo um caixote de Dew surgindo no horizonte, e também, se Deus quiser, uma mesa de comunhão de mármore Carrara. Vá tomar o seu chá com a Sra. Donovan e seja muito, muito gentil com ela.

No princípio da tarde, Desmonde saiu para fazer a sua caminhada até Mount Vernon. Estava feliz extremamente feliz: era a mistura de felicidade espiritual e bem-estar físico que combinava com o brilho daquele lindo dia. Tudo tinha corrido bem naquela manhã: a sua esplêndida missa, a doçura da Primeira Comunhão das crianças. Rezava todo dia ao Espírito Santo, pedindo sucesso na sua vocação. Aquela prece, de fato, havia sido atendida.

Como de hábito, chegou cedo demais a Mount Vernon: a Sra. Donovan havia saído para fazer uma série de visitas aos seus foreiros, mas Bridget, saindo das dependências dos empregados, onde parecia estar recebendo amigos, lhe assegurou que ele estava sendo esperado para o chá das quatro horas. E, de fato, Desmonde mal havia começado a passear pelo terraço quando o grande landô veio subindo pela entrada de automóveis e a Sra. Donovan saltou rapidamente, antes que Patrick pudesse chegar à porta.

- Leve todas estas coisas para Bridget disse ela logo em seguida. As broas, o pão e as verduras.

Será que poderíamos ficar com algumas das broas, senhora? Patrick falou com uma humildade incomum. A senhora tinha dito. se me permite lembrar-lhe, que poderíamos receber alguns amigos e dar uma pequena festa de Páscoa.

Fique com todas! Ela girou nos calcanhares, subiu as escadas e se dirigiu para Desmonde, que se havia inclinado para lhe beijar a mão. Agora não, por favor.

Somente depois que Patrick saiu com o carro, ela sorriu de leve, um sorriso bastante forçado, que mal deixava ver os seus belos dentes, firmemente cerrados.

Deve-me perdoar. Estou de mau humor. Quanto mais se dá, mais as pessoas lhe pedem. Novos encanamentos de água, mais telhas para os celeiros, um novo assoalho para a cozinha e, por favor, dois banheiros novos com chuveiros de água quente e água fria.

Desmonde sorriu.

Que pena, Madame, que o camponês irlandês de hoje não vá descalço até o quintal para bombear água para se lavar!

Por favor, nada de ironias. E ontem à noite, uma carta inquietante e extremamente ingrata de Claire. Mas, chega! Vá para o solário que logo irei para lá.

Ela estava, de fato, de mau humor, e não apenas pelas razões que havia declarado. Sempre fora considerada o luminar, a figura principal, o centro de atenção de todos os olhos na sua bela igreja. Mas, agora, aquele padreco bonito, vindo de lugar nenhum, ou pelo menos da Itália, havia roubado o seu impacto. Naquela manhã, havia-se sentido menosprezada, quase ignorada e, embora reprimisse o sentimento, tinha até desejado que ele cometesse algum deslize, um faux pas humano, na perfeição do seu desempenho.

Ela havia decidido, enquanto fazia a monótona vistoria dos foreiros, que Desmonde tinha que ser derrubado. Ele era, no todo, completo demais. Tinha que haver um defeito na perfeição dele e havia-se tornado seu dever expô-lo.

Estava sorrindo quando entrou no solário, segurou as duas mãos dele, e se sentou ao seu lado no sofá.

Desmonde, querido, Bridget me contou uma história extranhíssima sobre um recital de música, no rádio, naquela tarde em que eu estava fora. Ora, confesse, na realidade você estava-se regalando com algumas cançonetas estudantis.

Desmonde sorriu.

O piano estava aberto, tão convidativamente! Espero que não tenha tomado uma liberdade indevida, Madame.

Céus! É claro que não. E como ainda vai demorar um pouquinho até que nos sirvam o chá, pois eles estão dando uma festa lá nos fundos, eu adoraria que você cantasse para mim agora.

Desmonde olhou para ela com estranheza.

Até agora eu o evitei... uma vez que a senhora também não canta.

- Ora, ora! Você vai ouvir essa história um dia, talvez em breve... eu adoro ouvir um bom cantor e agora quero que me faça a vontade.

Ele fez uma pausa:

Que é que vou cantar para a senhora? Um hino, uma velha canção irlandesa, alguma coisa de ópera? - Ela o olhava inquisitivamente. - Quando estava na Itália, tive oportunidade de ouvir muitas das melhores óperas... em Roma, mas a maior parte no Scala, em Milão.

Ela deu uma risada forçada.

Fez a peregrinação a Milão a pé?

- Não. Madame. Tive a extrema boa sorte de ser levado pela Sra. Marquesa di Varese, na sua magnífica limusine Isotta. Como deve saber, ela é uma senhora idosa, tem o seu camarote particular do Scala, e é apaixonadamente devotada à música.

E a você?. Como ele ignorasse a pergunta, que era quase uma zombaria, ela continuou: Então, agora, quais são as suas preferidas, em óperas?

Eu me cansei de dramalhões lacrimosos. - Ele sorriu ao usar o termo.. Do caro Donizetti, de Bizet, e de Puccini. La Bohème, por exemplo, é uma tolice tão grande... Minha preferência se dirigiu para as grandes óperas. Verdi e Mozart. Don Giovanni é uma grande ópera. Também adoro o espanhol De Falla.

Com certeza está-se esquecendo de Wagner.

Sempre me deixo arrebatar pela imponência de Wagner a contragosto. Mas ele compôs algumas peças de extrema beleza.

Ela olhou para Desmonde carinhosamente.

Conhece a Canção do Prémio, do Die Meistevsinger?

Essa é provavelmente uma das mais belas canções que já foram compostas... Sim, senhora, eu a conheço... razoavelmente bem.

Você poderia, você a cantaria para mim? É terrivelmente difícil...?

Para a senhora, tentarei...

Ela pareceu apiedar-se dele.

Não se preocupe se não conseguir, Desmonde querido. Escolheremos alguma coisa mais fácil.

Obrigado, Madame - disse Desmonde, com simplicidade. Agora tinha plena consciência de que ela havia escolhido aquela canção, deliberadamente, para embaraçá-lo, e esse pressentimento se tornou uma convicção quando ela explicou:

Não se importa se eu chamar os empregados e os amigos deles para ficarem no corredor? Estão loucos para ouvi-lo.

Desmonde conteve um sorriso. Ela não podia saber que aquela havia sido a sua Canção do Prémio vencedor, ou que ele a cantara no salão da marquesa, para uma audiência de mais de cem pessoas da mais alta sociedade romana.

Fará com que eu fique mais nervoso, Madame, mas se quiser, por favor, chame-os.

Esperou até que ela os chamasse e os acomodasse em cadeiras do lado de fora, deixando a porta meio aberta, até que se tivesse sentado, quase ronronando como uma gatinha prestes a tomar creme.

A senhora me desculpa por antecipação se a decepcionar?

É claro, Desmonde querido. Agora comece logo, estamos todos esperando.

Ele esperou mais um momento, então tocou rapidamente a introdução e, levantando a cabeça, começou a cantar no alemão original.

Firmemente decidido a cantar bem, soube logo depois da abertura que estava dando o melhor de si e que nunca cantaria melhor.

De fato, cantou para ouvintes fascinados, e quando afinal acabou, o silêncio se prolongou por um minuto inteiro antes que um perfeito crescendo de aplausos irrompesse no corredor.

Desmonde não saiu do piano, mas, quando voltou o silêncio, disse em voz alta:

Como hoje é Domingo de Páscoa, quando louvamos com alegria o Cristo Ressuscitado, não posso deixá-los sem cantar um hino em Sua honra.

Começou, sem demora, a cantar o seu hino favorito, o belíssimo Panus Angelicas.

Não houve aplausos quando ele terminou, mas sim um silêncio respeitoso, incomensuravelmente mais impressionante. Ele lançou um olhar na direção do sofá. A Sra. Donovan estava em prantos. Às cegas, ela fez um sinal para que fechasse a porta. Ele o fez então ela tornou a fazer um gesto, indicando que deveria sentar-se junto dela no sofá. Ali, meio reclinada, tomou a cabeça de Desmonde entre as mãos e a apertou de encontro ao seu rosto, de forma que ele pudesse sentir o calor da face marcada pelas lágrimas.

Desmonde murmurou. você me subjugou. A sua beleza, o seu encanto, as suas maneiras perfeitas, a sua pureza inviolável, e agora... essa maravilhosa, maravilhosa voz. Que é que devo fazer? Gostaria que você fosse o meu confessor. mas isso feriria o bom e digno Cónego. Gostaria que você fosse meu filho...

Madame interrompeu Desmonde, ponderando isso seria uma impossibilidade física... a senhora só é uns nove ou dez anos mais velha do que eu.

Então gostaria que você pudesse oferecer alguma solução para o meu caso extremo. Sou Heloísa e você é Abelardo.

- Não, cara senhora, não sou Abelardo, que era um sujeito bastante sujo e desagradável. Sou um padre sinceramente apaixonado por uma mulher encantadora e distinta que, creio, tem a mesma afeição por mim. Não há nenhuma outra solução a não ser amar puramente, aos olhos de Deus, e se contentar com esse amor.

Ela suspirou, afastou-se um pouco dele e voltou corretamente ao seu lugar no sofá.

Desmonde, primeiro temos que tomar o chá. Quanto mais não seja, por uma questão de aparências. Depois, vou tentar explicar-lhe por que me sinto tão confusa e perdida. Toque a campainha chamando Patrick, enquanto procuro endireitar o meu rosto.

Desmonde puxou o cordão da campainha, e prudentemente ficou parado na janela, olhando para fora, de costas para a sala. Ele previu os elogios de Patrick, que, de fato, estava a ponto de explodir, só se acalmando quando Desmonde se virou e levou um dedo aos lábios.

Pouco tempo depois, a Sra. Donovan voltou, com o aspecto fresco e aparentemente composta. Ela serviu o chá e eles o tomaram em silêncio. Algumas fatias deliciosas de pão de centeio com manteiga estavam na bandeja. Ele comeu várias, comentando que há muito tempo não comia aquele pão irlandês feito em casa.

Ela disse:

Imagino que a Sra. O'Brien seja muito ocupada para assar pão.

A conversa deles se limitou àquilo até Patrick ter tornado a entrar para levar a bandeja.

Só então ela se virou para Desmonde e, numa voz firme, começou:

- Eu cantava há dois anos com a Cari Rosa quando, durante a temporada de Dublin, se tornou evidente que um senhor idoso havia ficado interessado em mim. Sempre no mesmo camarote de palco, e só quando eu cantava. Era Dermot Donovan, o dono da Destilaria Donovan, uma personalidade importante e rica de Dublin. Fiquei lisonjeada, e quando, uma noite, chegou um bilhete perguntando se eu gostaria de jantar com ele, aceitei. Fomos ao Jamme's, onde, tratado quase com reverência pelo próprio Jamme, ele encomendou um jantar delicioso. Era maravilhoso estar acompanhada por um homem como aquele, alto, solidamente bem constituído, com o cabelo grisalho cortado bem curto e um bigode grisalho. Ele só bebeu um pouquinho do seu Mountain Dew. Eu bebi meia garrafa de Perrier Jouet.

"Depois de termos comido na intimidade do nosso reservado, ele segurou a minha mão e disse muito sério: - Gerry! Estou apaixonado por você, e quero me casar com você. Estou com setenta anos, sou bastante rico e, creio, capaz de lhe dar uma vida cheia e feliz. Não lhe vou pedir que decida imediatamente. Venha a Mount Vernon, minha propriedade em Wexford, e veja você mesma.

Ela fez uma pausa.

Em poucas palavras, vim para aqui, casei-me com Dermot Donovan. Houve, é claro, o falatório habitual dos jornais: Primavera se casa com Dezembro." "Canário em Gaiola de Ouro." Mas eu nunca, nunca me arrependi de ter-me casado.. Fez uma pausa. Por mais estranho que pareça.

"Dermot era um homem de princípios elevados. Um desses irlandeses, e não são poucos na Irlanda, educados em escolas e universidades de jesuítas, ensinados a considerar o sexo uma coisa suja e ofensiva, a ser evitada a qualquer custo. Vivera a sua vida como um padre leigo, e naquela época, com setenta anos, não tinha nenhum desejo de me possuir sexualmente. Tudo isso me foi explicado com antecedência. Ele tinha o seu quarto, eu tinha o meu, uma combinação aceitável e agradável para mim, uma vez que o meu amor por ele não tinha nada a ver com sexo. Eu era a sua companheira querida, ele adorava que eu cantasse para ele toda noite e, à medida que o tempo foi passando, aprendi taquigrafia e datilografia e me tornei sua secretária particular. Nós viajávamos, geralmente para as estações turísticas da Europa, no inverno fazíamos algum cruzeiro para as índias Ocidentais, para a Jamaica, para o Taiti.

"Passamos cinco anos felizes juntos, e então, muito de repente, em Vichy, depois de ter-ce queixado apenas alguns dias de uma dor no peito, ele morreu. Foi enterrado na França.

"De volta a Dublin, o testamento foi lido. Aquele homem querido e maravilhoso havia-me deixado tudo: sua fortuna pessoal e os negócios. Naturalmente, fiquei grata, e feliz também. Mas, antes que o testamento fosse legitimado, foi levantada uma objeção por dois homens do escritório de Dublin: o gerente e o caixa. Eles exigiam uma autópsia, alegando que a morte repentina de meu marido era suspeita.

A Sra. Donovan fez uma pausa, umedeceu os lábios e os comprimiu, e continuou:

Assim, o corpo do meu pobre marido foi desenterrado, trazido para a morgue de Dublin para ser examinado. Causa definitiva da morte: ruptura de um aneurisma da aorta. Isso bastou para aqueles dois demónios do escritório? Não bastou. Entraram com uma ação alegando que o casamento não era válido, uma vez que nunca tinha sido consumado. Fui forçada pela lei a ser examinada por um médico. Ela tornou a fazer uma pausa e seus olhos estavam duros como aço. Deve compreender a tristeza e a humilhação que isto me causou. O resultado foi: eu era uma virgo intacta.

"O caso foi apresentado ao velho Juiz Murphy, um homem sábio e graças a Deus honesto. Ele arrasou aqueles dois vigaristas. Porque esta boa mulher foi fiel ao seu velho esposo, porque ela não se permitiu ser seduzida por um homem mais moço qualquer, vocês lhe negariam os direitos e recompensas por sua fidelidade? A demanda está recusada, sem possibilidade de apelo.

A Sra. Donovan respirou fundo, suspirando, mas seus olhos continuavam duros como aço.

Pode imaginar que naquela altura eu era uma ruína, com os nervos em pedaços, mas o drama ainda não tinha acabado. Pois agora era minha vez. Pus a melhor firma de auditores de contabilidade de Londres no escritório. Eles examinaram os livros com pente fino. Como eu já suspeitava, os dois pretensos beneficiários vinham desviando dinheiro sub-repticiamente, há meses, e tinham roubado ainda mais. as quantias recebidas do exterior mostravam uma diferença de quase cem mil libras. Eles ainda estão na Prisão de Mountjoy.

Como a senhora foi corajosa!

Isso é mais ou menos tudo, querido Desmonde. Segurou a mão dele.. Só que é preciso dizer que tive um colapso nervoso para acabar com todos os colapsos. Fiquei inconsciente durante dois meses e, quando voltei a mim, tinha perdido a voz, disseram-me que nunca mais poderia cantar. Mas, e daí? Ela sorriu.. Sou uma lutadora, Desmonde. Assumi o controle dos negócios, tripliquei o que havia antes, estabeleci residência na Suíça, reduzindo os impostos à metade, e aqui estou, boa como nova.

Quando Desmonde voltou para o presbitério, encontrou o cónego no andar de cima, no estúdio, tomando café diante da lareira acesa, onde as toras de turfa brilhavam incandescentes. Ninguém controlava melhor aquele combustível intratável do que o Reverendo Daniel Daly.

Eles o trouxeram de volta de carro, rapaz. Ouvi o barulho do carro.. Acrescentou de maneira inquistiva:. Há bem uns dez minutos.

Fui até a igreja. Para agradecer ao Senhor pelo maravilhoso Domingo de Páscoa. Para fazer uma prece pelas minhas criancinhas, sem esquecer a sua gentileza e a da Sra. Donovan também.

Muito bem! Não quer tomar um café comigo? Está reparando como cumpro a minha promessa? Tomei o meu Dew ao meiodia. Ele entregou a xícara a Desmonde. Vá até a cozinha, sirva-me mais um e pegue uma xícara para você. A Sra. O'B. saiu, mas o bule está no fogão.

Quando Desmonde voltou, com uma xícara em cada mão. o cónego tinha puxado uma cadeira para ele junto da lareira.

Obrigado, Desmonde. Esse negócio não é nada mau, embora deixe a gente acordado no meio da noite. Deram-lhe um bom jantar lá?

Bastante simples, Sr. Cónego. O pessoal da cozinha estava mais ou menos de férias.

Nós tivemos um grande lombo de carneiro por aqui. O melhor que já comi. A Sra. O'Brien ficou bastante aborrecida por você tê-lo perdido. Ela guardou um pedaço para você comer amanhã. E, veja bem, o lombo de carneiro frio com batata assada é ainda melhor do que quente. Ele fez uma pausa para tomar um gole de café A propósito, ouvi dizer que tiveram uma boa cantoria por lá.

Desmonde sorriu.

Sr. Cónego, o senhor sabe das notícias em Kilbarrack antes mesmo que aconteçam.

Nada disso, rapaz. Foi Patrick quando telefonou para dizer que você não viria para o jantar. Ele quase arrebentou os fios. Sabe, rapaz, quanto mais ouço falar dos seus sucessos, mais fico deprimido. Pois significa que vou perdê-lo dentro em breve. O Arcebispo tem falado de você, dos seus talentos, das suas maneiras, da sua personalidade. Quer você em Dublin, para a entourage dele, ou para o Cardeal. E o que é que nós faremos depois? Eu e a Sra. Donovan. Você sabe que ela gosta de você, Desmonde. E eu também.. Fez uma pausa. A propósito, como é que ela parecia estar hoje?

Como de hábito. Mas de fato parecia estar aborrecida logo que cheguei.

E tem toda razão para estar. O cónego acabou de tomar o café e pôs a xícara no guarda-fogo. Ela me telefonou ontem à noite, bastante tarde, e me disse que não lhe contasse nada para não estragar o seu Domingo de Páscoa.. Ele sacudiu a cabeça. No sábado à noite, tinha recebido uma carta expressa do diretor, lá da Suíça. Depois de todo o trabalho que ela teve para ajeitar as coisas, a sobrinha foi expulsa. O cónego respirou fundo com uma expressão de desgosto. Parece que há um cavalheiro italiano, se é que posso empregar essa palavra, de Milão, onde ele parece ter negócios de certo porte, de natureza desconhecida, que é rico, de idade adequada, com cerca de, digamos, vinte e oito anos, dono de um dos mais bonitos e mais caros carros-esporte italianos, hospedado, presumivelmente por causa de impostos, no hotel mais exclusivo do Lago, e que, como um cavalheiro do tipo que descrevi, por três vezes convenceu a sobrinha, Claire, a violar os regulamentos e fugir à noite, para objetivos desconhecidos, só voltando ao dormitório pouco antes de amanhecer.. Depois daquela peroração sardónica, o cónego fez uma pausa, e então, na sua voz natural, acrescentou:. Na terceira vez que saiu, a cadelinha foi apanhada, e merecidamente.

Sinto muito pela Sra. Donovan. disse Desmonde. - A menina é ruim de todo?

Parece que ela é como a mãe. Voluntariosa, atraente, e louca por homens. De qualquer maneira, aos dezoito anos, já é mais do que hora de ter acabado os estudos e de estar sob uma supervisão mais severa. E foi exatamente isto que a Sra. Donovan me pediu que lhe desse.

A Sra. Donovan não deveria ocupar-se dela, agora que vai para a casa da Suíça?

E deixar que esse cafajeste italiano continue atrás dela? Não. Não, Desmonde, ela precisa ser afastada das atenções ilícitas dele. Eu lhe juro que vou enfiar algum bom senso na cabeça dela, e você deve-me ajudar. Vou recebê-la em Dublin, depois de amanhã. Patrick me levará até lá.

É uma longa viagem para uma mocinha fazer sozinha.

Besteira! Tudo será arranjado, rapaz. Vão botá-la no trem em Genebra. Em Paris, um representante da escola a receberá e a porá no expresso de Calais. Em Calais, é só um salto para entrar no barco, e em Londres um homem do escritório da Sra. Donovan a porá no trem para Holyhead. E eu estarei na plataforma, esperando por ela, em Dun Laoghaire.

De qualquer maneira, ela já deve ter feito essa viagem antes várias vezes.. Desmonde acrescentou: A Sra. Donovan vai partir breve?

O cónego concordou com um movimento da cabeça.

Para aumentar os seus problemas atuais, os rapazes do Imposto de Renda estão perguntando se ela pretende desistir da sua residência suíça. Ela tem que ir para lá imediatamente, assim que acomodar a garota em Mount Vernon.

Quantas mudanças!.- disse Desmonde. - Não gosto nada delas. Sr. Cónego, se ainda não está pensando em ir para a cama, gostaria de lhe fazer umas perguntas a respeito de uma carta que recebi esta manhã.

- Eu vi o envelope, com o título impresso nele, na sua correspondência. Não se meta com eles, Desmonde, nem com o Movimento deles.

O senhor o conhece?

Por insignificante que seja, conheço. Estão enviando circulares para todos os membros jovens do clero: protestem contra a manutenção do celibato sacerdotal! Ba! São apenas um punhado de degenerados querendo seguidores.

O senhor é a favor do celibato, Sr. Cónego?

Minha opinião a respeito do celibato pode ser resumida em cinco palavras: "Mergulhe nele e goste dele". Nós, os padres, somos homens, Desmonde, o que às vezes torna as coisas difíceis. Mas somos seguidores, discípulos do nosso Senhor Jesus, que também era um homem, e também foi celibatário. E, do ponto de vista prático, que utilidade teria uma esposa num presbitério? Dentro de pouco tempo ela estaria usando paramentos e ouvindo confissões. Você não sabe também, a partir de suas experiências no confessionário, quantos casamentos são fracassos, trazendo infelicidade no seu rastro - a ansiedade, as discussões, as brigas, as infidelidades, o suma-já-daqui-sua-cadela-desgraçada. Menos de dez por cento dos casamentos de hoje são felizes e bem-sucedidos. E as crianças? Quer meia dúzia delas berrando, brigando, brincando de esconder, entrando e saindo dos confessionários?

A Igreja Anglicana, que é muito próxima da nossa, parece adotar o casamento com algum sucesso.

Eles estão situados de maneira diferente de nós, rapaz. Nós, padre?, vivemos ao lado ou em cima das nossas igrejas. O vicariato anglicano fica, em geral, distante uma milha ou mais, é particular e retirado. Para eles a vida de casado é uma coisa à parte. Não, Desmonde, o sonho cor-de-rosa do matrimónio de qualquer padre jovem não está baseado na realidade. É apenas uma projeção do seu próprio sexo.

Fez-se silêncio, quebrado apenas pelo som da porta lateral sendo fechada e trancada, seguido pelos passos da Sra. O'Brien se dirigindo para o seu quarto no andar de baixo, depois fechando a porta quase sem fazer barulho.

Aí está a resposta para a sua pergunta, Desmonde. Quem poderia cuidar melhor de nós do que esta mulher boa e pura, repito, pura?

Ele se levantou e se espreguiçou.

Estou cansado, vou usar o banheiro primeiro esta noite, se não se importa.

Desmonde riu.

Então vou poder ficar mais tempo de molho. Quer que eu apague a luz aqui, Sr. Cónego?

O cónego concordou.

Boa noite, meu querido, muito querido rapaz.

Boa noite, Sr. Cónego, com a minha profunda afeição e devido respeito.

Assim se acabou o Domingo de Páscoa em Kilbarrack. O mais feliz e o último que Desmonde passaria ali.

Todos os preparativos haviam sido feitos, como previsto pelo cónego, e às oito e meia na terça-feira, depois de ter celebrado a missa das sete horas para apenas um punhado de fiéis e em seguida ter tomado um café substancial, aquele nobre dignitário partiu para Dublin no conversível dirigido por Patrick. Estava usando o seu melhor terno de domingo e ia bem agasalhado com um pesado casacão comprido preto, que sem dúvida o protegeria dos elementos, caso fosse obrigado a esperar, nas plataformas descobertas de Dublin. Sua expressão estava firme e composta, embora, de fato, para um padre que raramente deixava a sua diocese, a expedição fosse ao mesmo tempo uma diversão e um sacrifício.

Saindo tudo bem comentou com Desmonde, que o acompanhou até a porta estaremos de volta em torno das quatro horas. Embora, veja bem, eu não possa garantir nada com relação ao barco postal.

- Não deixe de almoçar, Sr. Cónego disse Desmonde. com solicitude.

Se eu tiver tempo, vou dar uma passada no Hibernian. Eles me conhecem lá acrescentou o cónego, com a expressão de um homem mundano. Mas, se estiver atrasado ele fez um gesto inconsequente para a esquerda. a Sra. O'Brien preparou um sanduíche para mim.

Olhando para a esquerda, Desmonde ficou aliviado ao ver um grande embrulho no banco do carro, cuidadosamente feito com papel impermeável e repleto de várias guloseimas. Certamente o cónego não morreria de fome.

Cuide-se enquanto eu estiver fora, rapaz gritou o cónego quando o grande automóvel começou a se afastar.

Que homem bom, simples e honesto, era aquele velho vigário, forte, também, e formidável na luta pela causa da virtude! Assim pensava Desmonde enquanto se ia encaminhando para a igreja. Depois de ter celebrado a missa, dirigiu-se para a escola. Já não a visitava há algum tempo, e depois de uma conversa com o professor fez um giro pelas salas de aula, dizendo algumas palavras para os alunos de cada sala, sentindo prazer ao contemplar o frescor matinal das crianças e na recepção que todas elas lhe deram.

Desmonde ainda estava sorrindo quando foi para o presbitério, onde a Sra. O'Brien o esperava.

Há um recado para o senhor, Padre, do Mount. Foi a própria Sra. Donovan, está esperando pelo senhor para almoçar, hoje. Deve ir quando estiver livre. Um almoço leve, ela disse. A Sra. O'Brien sacudiu a cabeça. E que pena! Aqui estou eu, com dois dos mais bonitos pâncreas de vitela que já se viu, prontos para serem especialmente preparados para o senhor.

Eu sinto muito. Mas guarde-os, Sra. O'Brien. O Sr. Cónego e eu poderíamos dividi-los no jantar.

Vou guardar, pode deixar. Mas é claro, um deles não passa de duas garfadas para o Sr. Cónego. Vou ter que preparar umas costeletas também. E agora, há uma visita de doente para o senhor fazer, também. A Sra. Conroy, lá em Point. Ela está acamada, sabe, e gostaria de receber a Extrema-unção. Também lhe vou dar uma coisa para ela, é uma pobre velha, embora seja uma tagarela terrível.

Point ficava na extremidade mais afastada da cidade e, por isso, Desmonde resolveu ir de carro. Depois de ter-se lavado, voltou à igreja, tirou uma hóstia do tabernáculo e a colocou no receptáculo apropriado. Então saiu, dirigindo o velho Ford. A Sra. O'Brien já tinha colocado um embrulho no banco de trás.

A Sra. Conroy, uma daquelas senhoras idosas que gostam de aproveitar ao máximo uma visita do clero, estava sentada na cama, com o seu melhor xale nas costas e uma touca de renda na cabeça. O asseio e a ordem adornando a pobreza da casinha, ela recebeu Desmonde com efusão.

Depois de lhe ter sido ministrado o Sacramento, ela apontou para a cadeira, que a seu pedido a vizinha que cuidava dela havia posto ao lado da cama.

Bem, caro Padre, é uma grande honra. Tenho certeza de que compreende, o sujeito que estava aqui antes do senhor, não me lembro do nome dele, nunca a teve, nem nunca a mereceu, mas também ele era um cabeça-dura chato, e nunca veio cá para me ver, a não ser umas três ou quatro vezes durante todo o tempo em que esteve aqui. O senhor é lenha de outra árvore, pode-se ver claramente, mesmo com os meus pobres olhos cansados, quando se olha para o seu rosto bonito e sorridente. Disseram-me que são maravilhosas as coisas que tem realizado, os dois porcos que foram atropelados e mortos por um caminhão no mercado, e que o senhor pôs as suas abençoadas mãos sobre eles e os trouxe de volta à vida. Os vizinhos me disseram que a ovação podia ser ouvida daqui. Para que é que está chamando, Lizzie, é um embrulho mandado pela Sra. O'Brien? Deus a abençoe, aí está uma mulher bondosa que só vendo! E o que deve haver nele? Bolinhos de aveia, manteiga, a metade de uma galinha cozida e uma grande lata de chá! Ah, ora, ora, que os santos sejam louvados, e a Sra. O'Brien também, bem na hora em que estamos ficando quase sem chá, é o que tenho como companheiro e bebida. Deixe a Lizzie lhe preparar uma xícara, Padre.

Não querendo desapontar a velha tagarela, Desmonde aceitou e tomou o chá, que elogiou condignamente. Depois disso, ficou sentado e a escutou, até que sentiu que poderia ir-se embora sem ofendê-la.

Depois de ter conseguido escapar, Desmonde seguiu pelo caminho mais longo para Mount, com as duas janelas do carro abertas, julgando conveniente que a ventilação retirasse de si os odores do quarto da Sra. Conroy, antes de se apresentar à Sra. Donovan. Assim, era exatamente meio-dia quando lá chegou.

Chegou bem a tempo disse a Sra. Donovan num tom gelado. Bridget acabou de avisar que o souffle está au point. Se murchar, é claro que ficará incomível.

Estive cumprindo uma missão de caridade Desmonde se desculpou, enquanto seguia a sua anfitrioa para o interior da casa. Em casa da Sra. Conroy.

Aquela velha fofoqueira! Não está tão doente quanto finge estar. Ainda está-se queixando?

Sim, ela diz que a senhora não lhe manda bastante de seus deliciosos tomates.

Logo verá se são deliciosos. Como Patrick está fora, avisei-lhe que seria um almoço leve. Salada e souffle de queijo, seguido por - ela sorriu - café.

Eles se sentaram e quase no mesmo instante a ajudante de Bridget trouxe o souffle castanho-dourado, bem alto e túrgido, resfolegante como a respiração de um velho.

Diga a Bridget que está uma beleza disse a Sra. Donovan, já cortando a gloriosa iguaria.

Cada um dos lugares já havia sido posto com pratos ovais cheios de salada de verduras frescas.

Está incrivelmente delicioso, Madame. Desmonde deu um suspiro depois da primeira garfada. Como o beijo de um anjo.

Eles se beijam lá em cima? As asas não atrapalham?

Seguiu-se um silêncio enquanto se devotavam à comida. Um copo daquele mesmo Chablis já havia sido servido, bem gelado.

Esta manhã fomos estimulados disse a Sra. Donovan, erguendo o olhar. pelos acordes de musica marcial. Uma banda de pífaro e tambor, para ser exata.

- Creio que os irlandeses estavam a caminho da guerra.

Era uma marcha. - É possível.

A Sra. Donovan sacudiu a cabeça, sorrindo.

Desmonde, meu querido Desmonde, a ajudante de Bridget, que estava na missa das dez, contou uma história muito diferente. Você agora está incluído no grupo dos eleitos, ultrapassando até o cónego.. Ela fez uma pausa para enfiar o garfo num pedaço relutante de pepino. Ele saiu na hora certa, esta manhã?

- Sim, Madame, na hora exata, devidamente equipado e provido de rações contra todos os imprevistos e contingências.

- Que velho adorável ele é... simples, fiel, forte e sincero! Um santo, de fato. Eu o adoro. Acrescentou: Mesmo quando ele me aborrece.

Ainda tem um grãozinho de afeição sobrando? Para o cura? Não implique comigo hoje, Desmonde querido. Você sabe que se tornou metade da minha vida. E vou sentir uma falta terrível de você durante três meses inteiros. Como eu gostaria de que você pudesse vir para a minha casa em Burieri! É muito bonita e bastante grande, uma verdadeira casa de campo. Detesto ficar confinada. Tem muito terreno ajardinado e uma vista divina do Leman. Há um convento nas proximidades, em La Tour de Pelix, muito conveniente na Suíça protestante, e em cuja capelinha assisto à missa. Beleza, paz, completo isolamento. Mas não há Desmonde. E, além disso, estarei preocupada com Claire o tempo todo. Ela fez uma pausa.. Detesto a ideia de vê-la hoje. Estamos sempre a nos desentender. Ela é exatamente como a minha pobre irmã, intratável, irresponsável, imprevisível. Supliquei ao cónego que tentasse incutir-lhe um pouco de bom senso. E você também deve tentar, Desmonde. Pode ficar comigo até eles chegarem?

Estou livre a tarde inteira.

Esplêndido! Então vamos tomar café no solário e depois você tem que cantar para mim.

Não quer... tentar cantar comigo?

Ela sorriu com tristeza.

- Eu não sou Trilby, e você, Desmonde, não é Svengali, se é que essa gente existiu algum dia. Não, meu nervo frênico foi-se para sempre. Entretanto, graças a Deus, a minha dicção não foi prejudicada.

Ela se levantou, graciosamente, como sempre.

Infelizmente, isto é tudo. Não adianta oferecer-lhe um queijo depois do souffle.

A tarde havia transcorrido exatamente como havia sido planejada, e agora, passadas umas três horas depois de terem tomado chá, estavam sentados no grande sofá do solário.

Desmonde murmurou ela. Esta, creio, foi a tarde mais adorável que já passei na minha vida.

A senhora fala também por mim.

Realçada e intensificada pela agonia da separação, Desmonde. Fez uma pausa. Tenho que partir dentro dos próximos dias, primeiro para Dublin, onde passarei uma semana no escritório, passando tudo em revista, depois para Genebra. Assim, esta pode ser a única vez em que estarei com você a sós. Ela lhe segurou as duas mãos.. Portanto, quero que você saiba que, assim que eu tiver convencido os meus amigos do Imposto de Renda de que estou de volta à Suíça, tomarei o expresso que vai direto, através de Simplon, para Milão, e lá irei à firma Moreno e Calvi, especializada em todos os tipos de trabalhos e peças artísticas religiosas executadas em mármore. Desmonde, por sua causa, pretendo, afinal, embelezar a minha igreja com uma mesa da comunhão do melhor mármore de Carrara, onde me ajoelharei para receber de suas mãos a Eucaristia.

Madame, estou fora de mim. E o Sr. Cónego ficará no sétimo céu.

Você pode ter o prazer de lhe dar a boa noticia. Assim, isto está resolvido. Ela se levantou, ainda segurando-lhe as mãos.. Desmonde, apenas esta vez, pode ser um pecado, mas não me importo. Vou beijá-lo como uma mulher que ama a um homem.

Abrindo os braços, ela o trouxe para junto de si, oferecendolhe todo o seu corpo, sem negar nada. Os lábios deles se encontraram num longo, delicioso e prolongado beijo.

Onde aquilo poderia ter acabado deve continuar uma dúvida, uma vez que o ruído do grande automóvel sobre o cascalho os interrompeu. Eles se separaram, e quase no mesmo instante o cónego entrou, o casaco abotoado até a garganta, e seguido por uma moça alta e magra, com o rosto pálido e sujo, a frente do vestido manchada de vómito, os grandes olhos escuros cansados, voltados, cheios de temor, para a Sra. Donovan.

Então já está de volta, Sr. Cónego - conseguiu comentar a Sra. Donovan, pálida e respirando rapidamente.

Como vê, Madame, são e salvo. E com a sua mocinha, que está muito esgotada. É uma travessia terrível, essa de Holyhead, quando o vento está forte. Enquanto esperava no cais, fiquei feliz por ter levado o meu casacão.

Saiu-se muito bem, Sr. Cónego, e sou-lhe grata.

É um prazer servi-la, Madame, e como eu estava em Dublin, tomei a liberdade de ir até o depósito para pedir o caixote que tão gentilmente me tinha prometido.

Fez muito bem. - Ela inclinou a cabeça. Claire, pode ir para o seu quarto habitual. Tenho certeza de que não precisa comer nada. Tome um banho primeiro.

Obrigada, titia. E obrigada, Sr. Cónego. Claire virou-se e saiu.

Um breve silêncio se seguiu.

Tomei ainda a liberdade de pedir a Patrick que esperasse. Pensei que poderia gentilmente permitir que ele encerrasse o dia levando-nos para casa.

É claro, ele o fará. Tenho certeza de que também está cansado e por isso não vou detê-lo.

Ela os acompanhou até a porta da frente, onde o cónego fez uma reverência e desceu as escadas. A Sra. Donovan lançou um olhar rápido e ardente para Desmonde.

Três meses não quer dizer para sempre. Lembre-se de que o amo.

No presbitério, recebido pela Sra. O'Brien, o caixote de Dew em segurança no vestíbulo, o cónego voltou ao normal, e em resposta à pergunta da governanta sobre o jantar, detalhou:

Comi uma ou duas costeletas no Hib, e mais alguns dos seus sanduíches no cais, e acabei com o resto junto com Patrick no caminho de volta. Entretanto...?

Talvez uma coisinha leve, Sr. Cónego, um pâncreas de vitela?

Exatamente, com um pouco de queijo e uns biscoitos depois.

A Sra. O'Brien sorriu para Desmonde.

Creio que também gostaria de comer o mesmo, Padre. Durante o jantar, o cónego, à moda de Marco Polo, relatou

os rigores e imprevistos da expedição. Com relação à sobrinha, disse apenas:

Parecia uma pobre coitada, meio morta com aquela terrível viagem. Morta de fome. Tudo que comeu saiu por sobre a amurada para o Mar da Irlanda.

Ela parecia estar morta de medo da tia.

E com boa razão. Todo mundo que ofende à Sra. Donovan sabe o que esperar.. Ele fez uma pausa para tomar o seu Dew, e talvez tenha tomado uma dose um pouquinho maior que a habitual, por causa do novo estoque disponível.. Como foi que você se saiu hoje com a Sra. Donovan?

Maravilhosamente. Era o momento apropriado. Desmonde se levantou da mesa. - Sr. Cónego, fui designado pela Sra. Donovan para lhe informar que, antes do fim do ano, o senhor terá a mesa da comunhão do melhor mármore de Carrara.

Como que eletrificado, o cónego ficou sentado, imóvel, um instante, após o que se levantou de um salto.

Oh, graças a Deus! E graças a você, Desmonde. Eu sabia que você conseguiria, que a Sra. Donovan faria qualquer coisa por você. Ele pôs os braços em torno dos ombros de Desmonde e o abraçou. Oh, glória a Deus e à Sra. Donovan, nós teremos a igreja mais bonita e mais bem equipada de toda a Irlanda. Espere só até eu contar ao Cónego Mooney, em Cork. Ele vivia zombando da nossa velha mesa, o mármore Carrara vai acabar com ele. Oh, eu tenho que telefonar imediatamente para a Sra. Donovan para agradecer...

Não, Sr. Cónego, espere. Agora ela não deve estar disposta, com a sobrinha acabada de chegar. Escreva uma das suas belas cartas esta noite e mande Michael levá-la até lá de manhã.

Oh, você tem razão, rapaz, tem razão, como de hábito. Não estou no estado apropriado. Mas meu telefonema para Mooney vai fazer com que ele passe uma noite desagradável. Eu vou contar a boa nova à Sra. O'Brien imediatamente. Puxa, rapaz, nunca me vou esquecer de você por isso, nunca, nunca. Sente-se junto da lareira, volto em dois minutos, depois então vamos conversar sobre essa história do princípio ao fim.

E o cónego, esquecendo o seu Dew, saiu a toda a pressa pela porta e desceu para a cozinha.

A Sra. Donovan tinha partido e os dias pareciam ter menos cor. A sua presença encantadora e atraente não enfeitava mais a igreja. Em vez disso, no pequeno reservado do canto, só havia Patrick, com o rosto muito sério, e Claire, subjugada e a contragosto. Também fazia muita falta a generosa hospitalidade de Mount.

Não é mais a mesma coisa sem ela comentou o cónego mais de uma vez, acrescentando:. Espero que ela não se tenha esquecido da sua promessa.

A Sra. Donovan não se esquecera. Lá pelo final da segunda semana, chegaram dois arquitetos e, sem demora, começaram seus trabalhos na igreja, medindo, calculando, discutindo, e com um silêncio mais cortante do que qualquer coisa que pudessem ter dito, ignorando as sugestões e propostas do cónego, que sem dúvida teriam arruinado o projeto inteiro. Só conversavam com Desmonde, num italiano rápido que demonstrava o prazer de expatriados descobrindo a própria língua, falada com perfeição, numa cidade estrangeira. E graças a essas trocas de palavras Desmonde pôde garantir ao seu superior que tudo ficaria perfeito, tanto em qualidade como em desenho.

De fato, depois de três dias, antes que os dois estranhos partissem, eles apresentaram ao cónego um projeto habilidosamente colorido, um retrato, de fato, do trabalho final. O cónego olhou e imediatamente ficou estático.

Está lindo, está soberbo, oh, meu Deus, está divino!

Olhando por sobre o seu ombro, Desmonde ficou igualmente encantado. Uma curva soberba de mármore branco jaspeado, suportada por grupos de três delicadas pilastras amarelas, qualquer elaboração excessiva evitada por um portão de bronze batido, no meio.

Você estava certo, Desmonde, meu rapaz, em deixá-los cuidar de tudo... São peritos, artistas, ah! que felicidade quando a peça estiver aqui! Eles disseram quando é que o trabalho vai começar?

Quase imediatamente, Sr. Cónego. Eles me perguntaram onde os operários deles poderiam ficar... Pensei no Hotel Station...

Sim, eles terão quartos decentes lá. Cuidarei disso. Vou pessoalmente falar com Dolan.

Acariciando o desenho, o bom homem foi imediatamente para o pórtico da igreja e o pendurou ali para que todos admirassem.

Agora, todas as semanas, às terças e sextas, o cónego, acompanhado pelo seu coadjutor, fazia a peregrinação até o Mount para se assegurar de que as instruções da Sra. Donovan fossem estritamente observadas.

Na terça-feira seguinte à partida dos italianos, o cónego e o seu coadjutor fizeram a caminhada agradável até o Mount, e o cónego comentou quando se aproximava da casa:

É como um corpo sem alma.

Patrick, como de hábito, esperando a visita deles, os recebeu na entrada da frente.

- Bem, como é que está a sua protegida hoje, Patrick?

- Infelizmente, como sempre, Reverendo. Triste o tempo todo, sem nada para fazer, ninguém com quem falar, a não ser nós, ela fica vagando por aí como um fio sem nó.

Não escreveu, nem recebeu cartas?

- Nem uma única, Reverendo. Nem um só rabisco. eu mesmo verifico o correio cuidadosamente.

Ela não pega nenhum livro?

Não gosta de ler, Sr. Cónego.. Patrick hesitou. - Não acha, Reverendo, que a Senhora está sendo um pouco severa demais com ela? Com todo o respeito, esta é a opinião de todos nós, na cozinha. Ela é uma mocinha que talvez tenha sido um bocado desobediente, mas há muitos de nós que cometemos erros quando jovens. Ora, a Sra. Donovan proibiu até o copo de vinho que ela estava habituada a tomar ao almoço, na escola. Ela não tem apetite sem isso. Não acha que seria gentil deixar que ela tomasse só um copo de Barsac que nós próprios tomamos de vez em quando, e que é bem suave, do Findlater de Dublin?

O cónego ponderou e lançou um olhar para Desmonde.

Eu digo que não. A resposta foi firme. A Sra. Donovan deve ser obedecida.

- Bem. disse o cónego devagar.. Eu digo que sim. A justiça deve ser amenizada com a misericórdia.

Obrigado, Sr. Cónego disse Patrick.. Agora talvez ela comece a comer um pouco. Está lá na quadra de ténis, se quiser vê-la.

Ele seguiu à frente pelo interior da casa e saiu, atravessando o jardim em direção do pavilhão. Na quadra, vestida com a sua saia e blusa habituais, Claire estava tirando o melhor partido que podia de sua solidão, atirando seis bolas da extremidade mais distante da quadra, caminhando lentamente para a frente, apanhando as bolas, e então, negligentemente e de maneira distraída, lançando-as de novo.

Isso não é maneira de jogar! resmungou o cónego e, depois de mais uma rebatida de bolas, tocou o ombro de Desmonde.. Pelo amor de Deus, rapaz, tire o paletó, apanhe uma raquete e rebata as bolas para ela.

Não tenho raquete.

Há muitas no pavilhão. Patrick desapareceu e voltou dentro de um minuto com uma raquete nova. Esta é uma das boas, uma Spalding.

Desmonde tirou o paletó e entrou na quadra, onde foi recebido por um sorriso surpreendido, mas acolhedor.

Eu não sou muito bom disse ele.. Mas vou tentar jogar com você uma boa partida.

Eles começaram com um saque. No início, ela moderou a velocidade de seus saques, e ele por sua vez rebateu, mantendo a mão num nível inferior ao do cotovelo. Desmonde tinha boa vista e logo estavam apresentando boas rebatidas que arrancavam aplausos dos espectadores. Finalmente jogaram uma partida, que Desmonde, ainda rebatendo com a mão num nível inferior ao do cotovelo, perdeu, embora apenas por seis a quatro.

A mudança em Claire era extraordinária, ela parecia uma outra moça, quando seguiu seu adversário saindo da quadra. Corada e sorridente, agradeceu ao cónego, a Desmonde e finalmente a Patrick.

Era exatamente o que eu vinha querendo acrescentou.

O Padre Desmonde também está com melhor aspecto, agora comentou Patrick. Talvez o deixe jogar de novo, Sr. Cónego, quando ele vier.

Dou a minha aprovação. O cónego balançou a cabeça com benevolência. - Mas olhe só como ele está suando. Vai precisar de um uniforme de ténis.

Há vários deles. A Sra. Donovan mandou colocar camisas brancas, sapatos e calças nos armários... para os sujeitos do escritório, quando vêm visitar-nos. Vou pedir a Bridget que lave e passe um conjunto.

Os olhos de Claire haviam-se iluminado. Ela não é tão ruim como a Sra. Donovan acredita, pensou o cónego. A Sra. Donovan pode ser muito dura, sim, dura como aço, quando está aborrecida. E, em voz alta:

Estou vendo que tem sido monótono e triste para você. Vamos abrandar um pouco as coisas agora. Se o Padre Desmonde estiver livre, ele virá jogar uma partida na quinta-feira. Agora vá, vá trocar de roupa, está toda suada!

Eles a observaram correr até a porta dos fundos da casa, onde se virou para acenar-lhes.

Estou no mesmo estado Desmonde riu. Ensopado. Talvez Patrick nos possa levar de carro até a casa.

Para mim seria ótimo disse o cónego, que não estava muito animado com a perspectiva da caminhada de volta, encosta acima, até o presbitério.

Vou tratar de abrir a água no pavilhão murmurou Patrick para Desmonde, enquanto seguia na frente, em direção à garagem.. O senhor poderá tomar um banho decente depois do seu jogo na quinta-feira.

Os dois visitantes foram levados de volta, experimentando um agradável sentimento de terem praticado uma boa ação, com bons resultados. Observando da janela do seu quartinho, Claire se sentia feliz, pela primeira vez depois de muitas semanas.

A quinta-feira seguinte foi um dia chuvoso e a visita oficial a Mount Vernon teve que ser adiada. Na parte da tarde, Desmonde trabalhou com o cónego nas contas do trimestre, examinando as despesas do presbitério em face das coletas da igreja, O saldo foi realmente pequeno, tão pequeno que o cónego sacudiu a cabeça.

Nós nunca conseguiríamos continuar, Desmonde, se não fosse a Sra. Donovan. Pense só em todas as coisas que ela nos dá, ou então paga. As boas velas de cera, os belos paramentos, as flores, o aquecimento e a luz, até o incenso. E agora, a maravilhosa mesa da comunhão. Ele fez uma pausa. Como será que ela está agora, lá longe?

Como que em resposta à pergunta do cónego, o correio do meio-dia trouxe uma carta da Suíça, endereçada a Desmonde, que a leu imediatamente, em voz alta, para o seu superior.

Meu querido Desmonde,

Tenho estado terrivelmente ocupada desde a minha chegada aqui, mas agora aproveito um momento para aliviar meu preocupado coração solitário e também para lhe informar que todas as medidas para providenciar a nova mesa da comunhão já foram tomadas. Deve dizer ao Cónego que aprovei o projeto proposto, é muito bonito. Também escolhi os diversos mármores, também lindíssimos, e agora, o Signor Moreno, o chefe da Companhia Moreno, acabou de telefonar para dizer que todos esses valiosos materiais já foram encaixotados e serão embarcados num navio, direto para Cork, de hoje a uma semana. Acompanhando-os irão quatro de seus melhores operários que cuidarão da entrega do material, do desencaixotamento e da instalação dos mármores. deverá levar uma semana ou dez dias, de forma que sugiro que o Cónego reserve quartos para os homens. Sugiro o Hotel Station. Diga a Dolan para lhes dar pratos de macarrão e arroz é a alimentação habitual deles.

Em meio a todos os meus anseios, mal posso esperar para ver o meu belo presente pronto, na minha igreja de me ajoelhar lá, para receber a Comunhão das suas mãos, caro Desmonde, que felicidade, espiritual e, sim, temporal mas do mais puro raio sereno.

Desmonde corou e fez uma pausa, olhando para o cónego, que balançou a cabeça compreensivamente, dizendo:

Eu sei, rapaz, eu sei. Se não fosse você, eu poderia ter que esperar muito mais.... o cónego riu para consigo mesmo. Ela sabe de tudo... Que mulher!

A carta continuava:

Com relação a assuntos de menor importância, passei momentos desagradáveis entrevistando o Major Coulter, o ex-diretor de Claire, que, além de me passar um sermão, como se eu fosse culpada, pela publicidade prejudicial sofrida pela sua escola por causa das fugas de Claire, me apresentou uma pilha de contas enviadas à escola depois da partida dela: dívidas contraídas extraoficialmente pela minha querida sobrinha, relativas a vestidos espalhafatosos, um colar de contas e luvas brancas, tudo absolutamente desnecessário. Falando da maneira mais caridosa possível, ela parece não ter nenhuma noção, não apenas dos padrões de simples decência, como também do valor do dinheiro, especialmente do que não é seu. Espero sinceramente que, juntamente com o Cónego, esteja supervisionando o comportamento dela e se assegurando de que ela não se comunique com seus antigos cúmplices, nem se envolvendo em confusões aí.

O cónego tornou a intervir.

Não é isso exatamente o que estamos fazendo, ao mesmo tempo que cuidamos para que ela continue com boa saúde? Desmonde concluiu:

E agora, caros amigos, com todos os meus melhores votos, devo dizer adeus. Comuniquem-me imediatamente quando o carregamento chegar.

Sinceramente,

Geraldine Donovan

Desmonde hesitou, então dobrou a carta e a colocou de volta no envelope. Um pós-escrito, que ele julgou mais prudente não revelar, havia-lhe chamado a atenção.

Desmonde, não consigo dormir. Eu, que sempre dormi tranquilamente como uma criança, tenho ficado acordada na cama, com frequência durante horas, une nuit blanche, pensando, pensando... em quem? Escreva-me logo, meu querido.

Gerry

Deixando o cónego acabando as suas contas, Desmonde se levantou e foi para a igreja ajoelhar-se diante do tabernáculo, sempre o seu consolo e conforto, seu refúgio em todas as dificuldades. Rezou para que a insónia da Sra. Donovan cedesse ao sono revigorante, mas acima de tudo rezou para que o amor recíproco deles pudesse ser refreado e permanecesse dentro dos limites prescritos pela Santa Igreja. Por si mesmo, não tinha medo, mas quanto a sua muito querida amiga, a sua protetora, o pós-escrito da carta o preocupava. Prometeu a si próprio, e ao Céu, que a sua resposta à carta, embora não menos afetuosa do que antes, seria contrabalançada por uma prudência cautelosa.

Agora as crianças começavam a se reunir para a aula de preparação para a Crisma, entre elas os pequeninos que ele havia preparado para a primeira comunhão. A visita do Bispo só estava programada para o final de setembro, uma semana ou dez dias depois da volta da Sra. Donovan, mas Desmonde, que queria que seus alunos brilhassem diante de Sua Excelência, havia começado cedo. Assegurando-se de que a jarra de vidro, no armário atrás do altar lateral, ainda estava bem equipada, Desmonde começou a sua instrução, que continuou até o meio-dia.

O sol continuava a brilhar e durante o almoço o cónego comentou:

É melhor que você se ocupe de Vernon esta tarde, rapaz. Assim, ficaremos livres no fim-de-semana. Então, como Desmonde o olhasse inquisitivamente: Tenho uma reunião do Conselho do Condado às quatro horas, e para dizer a verdade não me agrada muito aquela caminhada encosta acima no caminho de volta, em vez da minha sesta habitual. Assim, seria bom que no futuro você mesmo fosse até lá, verificasse se está tudo bem, e jogasse uma partida de ténis.

Consequentemente, Desmonde fez sozinho a caminhada até Mount Vernon, lá chegando pouco depois das duas horas.

Claire, já na quadra de ténis, de saiote curto de bale e camiseta, cumprimentou-o com alegria.

Estou tão satisfeita de que tenha vindo, Padre Desmonde! Ontem fiquei desolada. Patrick já pôs as suas roupas no pavilhão e muito simpaticamente nos deu duas bolas novas. Assim, ande depressa e vá trocar de roupa.

Desmonde foi para o pavilhão. Como havia sido prometido, tudo estava lá, bem lavado e passado: calças brancas de flanela e camiseta, um suéter branco e sapatos brancos. Um quadro convidativo. Em exatamente quatro minutos, Desmonde apareceu, transformado.

Puxa vida, o senhor está elegante! Os olhos de Claire tinham-se arregalado. Wimbledon, sem tirar nem pôr.

Tudo exceto o jogo, Claire.

Cuidaremos disso! Agora vamos, a primeira coisa que lhe vou ensinar é a rebatida com a mão num nível acima do cotovelo. Chega de atirar a bola para cima com a mão abaixo do cotovelo, como a titia faria, se tentasse.

A aula começou. Desmonde era um aluno capaz, sentia-se tão livre e confortável com as roupas leves, que logo Claire resolveu que a partida poderia começar. Suas rebatidas vieram violentas, impiedosas, até que afinal Desmonde aprendeu a acompanhar o ritmo delas e a rebatê-las. As suas rebatidas começaram a adquirir firmeza, proporcionando-lhe a deliciosa sensação de uma bola novinha, batendo dura e com força no centro de uma raquete de primeira qualidade.

Claire ganhou o primeiro set por seis a um, e o segundo por seis a dois. Na metade do terceiro, Patrick apareceu com uma jarra de limonada gelada e copos numa bandeja, que colocou numa mesa na varanda do pavilhão.

- Você é mesmo gentil, Patrick. disse Desmonde, aproximando-se da rede. Por favor, agradeça a Bridget por ter preparado tão bem as minhas coisas. E obrigado pelas bolas novas.

- É um prazer ver o Reverendo com tão boa aparência, agora. O senhor estava bastante pálido e abatido durante um certo período, pouco antes da Sra. Donovan partir. Quanto à sobrinha, um bom exercício a transformou numa outra pessoa.

Ele esperou que o jogo fosse reiniciado e então foi-se juntar a Bridget, que tinha uma visão privilegiada da janela da copa.

Eles fazem um belo par comentou Bridget. Mas... acha que está realmente bem, que é realmente seguro, por assim dizer, deixá-los juntos... sozinhos?

Ah, só estão jogando, como duas crianças.

À Sra. Donovan não iria gostar, Pat.

O que a Sra. Donovan não vê, não vai aborrecê-la. Na minha opinião, ela tem sido severa demais com a garota. Desde que começamos a ser gentis com ela, a menina floresceu como uma rosa.

Chega de poesia, Shakespeare! Você nunca me chamou de rosa. Ah, meu bem... ah, bem. Olhe só para o Padre Desmonde, ali. Qualquer um, exceto um cego, veria que ela está caída por ele. Ele é capaz de virar a cabeça e o coração de qualquer mulher, moça ou velha.. Afastando-se, acrescentou um golpe final:. Como a Sra. Donovan lhe poderia dizer muito bem.

Quando o terceiro set terminou, os jogadores se retiraram para um banco na varanda e serviram a limonada.

Eu bem que gostei disso disse Desmonde.. E sempre desprezei estupidamente os jogos de bola.

Há um ou dois deles que merecem ser investigados. Claire pôs os dois pés na grade, reclinando-se um pouco para trás, para permitir que a brisa exercesse por completo todo o seu efeito refrescante, que foi, na realidade, acompanhado por um ligeiro levantar do saiote curto. Apressadamente, Desmonde desviou os olhos da visão adorável que assim lhe foi revelada.

Vamos jogar mais?

Não quero que exagere, Desmonde. Vai-se sentir um pouco doído amanhã, por causa daquela rebatida nova que lhe ensinei. Mas venha de novo na segunda-feira. Eu o verei no domingo, na igreja. Agora tome o seu banho de chuveiro antes de esfriar de todo. Vou trazer o meu roupão para cá amanhã, assim também poderei tomar um banho. É muito mais sociável.

Ela se levantou e, antes de descer rapidamente as escadas, beijou de leve o rosto dele.

Enquanto se dirigia para a casa, virou-se duas vezes para acenar com a raquete e soprar um outro beijo.

Agora uma grande excitação dominava Kilbarrack, uma vez que se espalhara a notícia de que "os italianos chegaram". Precedidos por vários caixotes, grandes e pequenos, quatro homenzinhos calados e corteses haviam sido recebidos pelo cónego e levados cerimoniosamente para o hotel. Quase no mesmo instante o trabalho da mesa da comunhão começou. Como tudo se desenrolava com habilidade e perícia! E silenciosamente, uma vez que o cónego, depois de algumas tentativas malogradas de interferência, foi obrigado a observar, o que ele fazia quase que o tempo todo, sem falar. E com que inveja ele via Desmonde falando com eles, fazendo-os sorrir, e falando de novo!

De que é que estavam falando esse tempo todo? resmungava o bom cónego.

Eles estão felizes por estarem aqui, contentes com as acomodações tão gentilmente providenciadas. Mas, como são técnicos altamente qualificados e experientes, não querem ser perturbados. Também trouxeram consigo a sua própria comida deliciosa e o vinho, e não querem a comida do hotel.

Meu Deus!. gemeu o cónego.. Que é que Dolan vai fazer com todo aquele suprimento de macarrão que eu o obriguei a comprar?

O cónego não estava sozinho na sua vigília silenciosa. A piedade de repente se tornou a grande moda em Kilbarrack, e multidões afluíam à igreja, para fazer o sinal da cruz, ajoelhar-se, olhar e admirar.

Já esteve lá hoje, Mick?

Já, sim, mas vou com você de novo. É tão bom como no teatro. O modo como os sujeitinhos vão deslizando de um lado para o outro com aquelas sandálias, sabendo para onde é que vai cada coisa e encaixando-se como peças de relógio. E vai ficar um trabalho bonito, quando estiver pronto.

As obrigações paroquiais foram, necessariamente, reduzidas ao mínimo, e Desmonde, dispondo de mais tempo nas mãos, era atraído com frequência ainda maior para Vernon, para a quadra de ténis. Havia-se tornado um admirador do jogo e, com o seu olho atento e reações rápidas, havia surpreendido Claire, na última visita, ganhando três seis seguidos. Longe de aborrecê-la, aquilo deixara Claire radiante. Sempre alegre, divertida e, na sua própria expressão, "pronta para tudo", ela havia demonstrado ser uma companheira animada, desinibida e despreocupada. Agora usavam juntos o pavilhão como uma sala de visitas, onde toalhas, chinelos, roupas de banho e todos os objetos estavam espalhados e jogados por todo canto.

Não é divertido? exclamava Claire, saindo do chuveiro, negligentemente vestida. Estou feliz por ter sido expulsa de Château-le-Roc. Primeiro porque eu detestava aquele maldito lugar, e segundo porque agora eu tenho você.

E começou a cantar:

Amar é maravilhoso...

Chega, passarinho, está desafinada. Isso é assim. E ele cantou para ela.

Aquele era o bom verão que às vezes, embora seja raro, cobre o sudoeste da Irlanda com um sol benigno e constante. Agora Desmonde estava bem queimado, e tinha adquirido musculatura, de forma que o cónego, ao examiná-lo, exclamara com aprovação:

Você está com ótima aparência, Desmonde, e com mais jeito de homem.

Naquela tarde, caminhando em direção ao pavilhão, para trocar de roupa antes que Claire aparecesse, Desmonde se sentia de fato extraordinariamente em forma, despreocupado e alegre, dominado por uma euforia que se devia muito às perspectivas daquela tarde adorável e ao prazer de estar com a sua alegre adversária que, de fato, estava ali mesmo quando ele subiu aos saltos os degraus para a varanda.

Fora, passarinho exclamou ele. Vou trocar de roupa.

E que diferença faz? Estou pondo um cordão novo no meu sapato. E não somos companheiros íntimos?

Então vire-se de costas.

Para quê? Você é como Nora Macarty na noite de seu casamento?

E sem sair do lugar começou a cantar:

"A pequena Nora Macarty ia dar nó, Lavou todo o enxoval e pendurou para secar, Então apareceu um bode, que viu as peças brancas, E comeu todas as suas bugigangas, na noite do seu casamento.

Oh, apague a luz depressa, gritou Nora para Pat, Pois embora eu seja a sua noiva, é claro, não sou digna de ser olhada.

Eu tinha duas peças de cada coisa, eu lhe disse quando lhe escrevi.

Mas agora não tenho mais nada, tudo por causa do bode de Paddy McGinty.

Claire explodiu numa gargalhada:

É uma grande música, Dês, você precisava ouvir os dois Bobs cantando. Assim, vamos ver você sem nada.

Desmonde sacudiu a cabeça e começou a trocar de roupa, tão discretamente quanto lhe era possível.

- E não me chame de Dês, Claire. Meu nome é Desmonde, com "e" no final.

- Ah, qual é o problema, se daqui a pouco vou estar chamando você de querido? Aqui vou eu de novo, só mais uma vez.. E cantou: "Deixe-me chamá-lo de doçura, querido, estou apaixonada por você..."

Lá fora, na quadra, Desmonde disse:

- Vou arrancar sua pele por causa disso.

Jogaram sem descanso dois seis difíceis e, depois de um curto repouso no pavilhão, os dois últimos, que ficaram empatados. Quando saíram da quadra, pouco depois das quatro horas, Patrick estava à espera deles.

Bridget achou que deviam estar cansados daquela limonada e está perguntando se não gostariam de entrar para tomar chá.

Desmonde olhou para Claire, que exclamou:

Acho que adoraríamos, não acha, Desmonde? Entraram no pavilhão para trocar de roupa, Claire, de acordo com o costume, tomando o banho de chuveiro primeiro, enquanto Desmonde ia para o vestiário dos homens. Mal ele tinha tirado a camiseta, quando um grito frenético de Claire o fez sair de novo.

- Oh, Dês, rápido, rápido, veja o meu olho.

De pé, completamente nua, molhada pelo chuveiro, como Afrodite saída da espuma, ela correu para Desmonde, pôs-lhe as mãos nos ombros e ergueu o rosto.

Tem alguma coisa no meu olho direito, uma mosca talvez, está doendo, doendo. Por favor, olhe.

Desmonde examinou o olho, pressionando a pálpebra para trás, mas não conseguiu ver nenhum tipo de inseto. Entretanto, ele viu Claire, seu belo corpo esguio, os pequenos seios rijos de bicos rosados, e a delicada penugem guardando o mistério fundamental, do qual. talvez exalava a estranha fragrância que fazia a sua cabeça girar. Ele sentiu o seu corpo reagir, violentamente, ardentemente, enquanto gaguejava:

Não estou vendo nada... talvez o jato dágua...

Oh, foi tão violento e tão de repente... Ela deixou o rosto encostar no dele. Eu estava com medo. Não se mova, querido, isto está-me ajudando. Agora ela estava quase nos braços dele. Isto é o que eu estava querendo há muito tempo, esperando que você me abraçasse, querendo você. Você sabe que estou louca por você, querido. Abrace-me assim, sempre, sempre...

Quando afinal Desmonde se libertou, seu coração batia depressa. Ele lançou um último olhar para ela, de pé ali, com os braços estendidos, e saiu cambaleante para o seu vestiário.

Quinze minutos depois, os dois estavam no solário, estranhamente silenciosos, aliviados, quase, quando Patrick, que tinha acabado de trazer uma bandeja bem equipada, pareceu hesitar antes de sair da sala.

Será que poderia dar-me um minuto, senhor, para que eu lhe peça um favor?

É claro, Patrick.

Bem, é o seguinte, Reverendo. A A. O. H. vai dar o seu concerto anual no mês que vem, para fins de caridade, compreende, e uma vez que sou um dos seus membros, pediram-me que lhe solicitasse um grande favor... se o senhor não concordaria em aparecer no programa, só para cantar umas duas canções, não clássicas, compreende, só duas daquelas boas baladas irlandesas antigas.

- Vá, Dês, diga que sim. insistiu Claire, ao ver que Desmonde hesitava. Eu mesma prometi executar um número.

De fato, ela prometeu, senhor.

Bem, então eu o farei. disse Desmonde.

Oh, obrigado, senhor, muito obrigado mesmo, os rapazes vão ficar radiantes. O senhor se tornou uma pessoa tão querida, tão popular, misturando-se com o povo, sendo um de nós, a despeito da sua posição e educação, que a casa vai ficar cheia só por sua causa.

Depois que Patrick saiu fazendo uma mesura, Desmonde se virou para Claire.

- Dê-me o meu chá, sua persuasora, e um pedaço de bolo antes que você acabe com ele.

Depois que o chá e o bolo foram servidos e consumidos, Desmonde disse num tom sério:

Claire, querida, temos que ser cuidadosos daqui para a frente. Nada dessas saídas repentinas do chuveiro. São perigosas.

Ela não respondeu, mas sorriu, seu sorriso enigmático, com os lábios quase cerrados, mal deixando ver os pequenos dentes brancos. Depois de terem acabado o chá e agradecido a Bridget na cozinha, ela disse:

Vou andando até lá em cima com você.

Ela lhe deu o braço e, em silêncio, partiram. No topo do atalho na floresta, na pequena clareira coberta de grama, ele levantou a mão.

Não ultrapassar, por favor. Isso é propriedade particular, aonde eu venho meditar.

Vai pensar em mim?

Infelizmente, sim.

Que coisa desagradável você disse! Tem que se redimir dando-me um beijo.

Ele a beijou.

Ela o seguiu com o olhar, enquanto ele caminhava encosta abaixo, sem olhar para trás.

Desmonde estava em melhor forma física do que a que até então desfrutara, e jamais estaria de novo. Infelizmente, havia uma mosca no mel. possivelmente da espécie que havia voado para fora do olho de Claire. Por mais que trabalhasse, recebendo elogios do cónego por ter executado tarefas que há muito tempo esperavam atenção, ele parecia incapaz de se cansar, e à noite, com frequência, ficava horas deitado à espera do sono que não vinha.

Mencionando o seu problema, uma noite, durante o jantar, o cónego balançou a cabeça compreensivamente.

Eu tive a mesma coisa, quando era jovem. É da natureza do homem a repressão fazendo a sua vingança. Você não tem jogado ténis com a mesma frequência, ultimamente?

Eu estava exagerando, Sr. Cónego. Um padre não tem nada que fazer numa quadra de ténis, todos os dias da semana.

Talvez... talvez disse o cónego pensativamente. Por que você não dá uma boa caminhada à noite, antes de ir-se deitar? Ou quem sabe um golinho do Dew talvez fosse capaz de derrubá-lo.

Obrigado, Sr. Cónego, Desmonde sorriu, constrangido. Creio que vou tentar a caminhada.

Ele se perguntava se o seu superior teria alguma intuição da batalha que se travava em sua mente, da luta em que estava empenhado para ficar longe de Vernon e de Claire. Não obstante, ele se pôs a caminho uma hora depois do jantar, andando até o topo da colina e descendo quase a correr. Isto, seguido por um banho quente, lhe deu algum alívio, um sono exausto de duas ou três horas de duração, antes que a agitação tornasse a se instalar.

Constantemente ele pensava na maneira indiferente com que tratara a menção da Sra. Donovan de sua insónia. O remédio brando que havia sugerido, aspirina antes de se deitar, demonstrara ser inútil. Será que estariam sofrendo, ela como mulher, ele como homem, da mesma doença? Entretanto, ele continuou com o paliativo da dura caminhada todas as noites, saindo com a lanterna quando a escuridão era muito forte, encontrando o olhar ansiosamente aprovador do cónego quando voltava. Aquele velho sábio conhecia exatamente a causa do problema de Desmonde; quando jovem celibatário, ele próprio sofrera daquilo.

Numa noite de umidade incomum, o ar quente e parado, Desmonde subiu a colina e se deitou na grama para descansar. Tinha fechado os olhos, perguntando-se instintivamente se o sono lhe viria. Não ouviu o som de passos silenciosos que se aproximavam, fazendo farfalhar as folhas caídas. Só quando seu nome murmurado e o som de uma respiração acelerada o fizeram virar de lado, percebeu que Claire estava deitada junto dele. Seria realidade ou sonho? Os braços dela o envolviam, enquanto a voz arquejante por causa da pressa murmurava de novo:

Querido, querido, por que não veio ver-me? Esperei, esperei, ansiosa por você. E, quando vi a sua lanterna hoje à noite, não pude enfrentar mais uma noite sem sono. Venha, querido, venha para mim, ame-me.

Agora ele estava em seus braços, perdido no abençoado alívio, na felicidade do beijo dela, seus lábios unidos, mãos tateando, procurando, buscando e encontrando, encontrando com a hábil orientação dela a entrada para o apaziguamento e o delírio de um prazer inimaginado.

Ela deu um longo suspiro, ficou imóvel, continuando presa nos braços dele. Então murmurou:

Querido, maravilhoso querido, foi o melhor que já... Ela se conteve.. Senti que era amor, amor verdadeiro, eu gozei com você, não sentiu como eu tremi? Eu vinha querendo você há tanto tempo!. Então, depois de um silêncio: Agora tenho que ir, querido, senão perceberão que saí.

Um outro beijo e ela se levantou e foi-se embora.

Desmonde ficou deitado por um momento, como que estonteado, os olhos ainda fechados, todo o seu ser invadido por uma calma satisfação, como se todos os nervos do seu corpo estivessem em paz. Afinal se levantou e começou a caminhada encosta abaixo.

Infelizmente, quanto mais se aproximava do presbitério, mais a consciência da sua situação se tornava clara para ele. Sua satisfação se apagou, suplantada por um medo lento e um remorso deprimente, que o levou diretamente para a igreja. Entrou pela porta lateral e, sem acender a luz, se atirou de joelhos diante do altar.

A porta lateral se abriu com estrondo e, acendendo a lanterna, o cónego entrou ruidosamente na igreja. De início, ele não viu Desmonde, mas finalmente um feixe de luz apanhou e iluminou o vulto imóvel e ajoelhado do seu coadjutor.

Então é aqui que se tem escondido. E eu procurando você por toda parte. Houve uma visita de doente para você fazer. O velho Sr. Duggan, lá em Ardbeg. Tive que fazê-la por você. E você sabe como detesto dirigir à noite.

Desmonde continuou em silêncio.

- Que é que há com você? O cónego se aproximou, zangado. Está surdo ou mudo?

Ainda não houve resposta. A lanterna iluminou o rosto de Desmonde. Um breve silêncio. Então:

- Meu Deus! Que foi que houve? Está doente? Essa maldita caminhada noturna deixou você exausto.

Um tremor tomou o vulto ajoelhado. Uma mão se levantou, protegendo o rosto de palidez mortal contra a luz. A voz do cónego se alterou.

Venha, rapaz, chega dessas vigílias no meio da noite. Deixe-me dar-lhe o braço e venha até o meu quarto. Ele ajudou Desmonde a se levantar.. A Sra. O'Brien já se recolheu há muito tempo, mas vou-lhe fazer uma boa xícara de café bem forte. Eu também estou precisando de uma.

Assim, logo Desmonde estava no quarto acolhedor do cónego, sentado na poltrona dele, os olhos baixos, engolindo o café com a mão trémula.

E agora, rapaz, o que foi que houve?

Padre, tenho que me confessar ao senhor.

Ah? O cônego levantou a mão numa negativa, quando Desmonde fez menção de se ajoelhar. - Fique sentado onde está, rapaz. Estou ouvindo.

Padre... estou apaixonado... Ah! Uma mulher?

Sim.

Bem, não há nada de tão errado nisso, agora que você já me contou. Quem é? Aquela cadelinha, Claire?

Sim, Padre.

Eu teria sido capaz de jurar. Aquela cadelinha não presta. Ela faria amor até com um poste de iluminação.

Não, Padre. Não... não... não. Ela é uma coisinha doce e inocente.

Sim, de fato. Ora, rapaz, você vai tirar essa mesma coisinha doce e inocente da sua cabeça doce, inocente e estúpida.

Silêncio. Numa voz trémula:

Não posso, Padre. Nós... nós já consumamos o nosso amor.

Consumaram... o amor. Que, em nome de Deus, está querendo dizer?

Hoje à noite, como sabe, fui passear... na floresta Kinloan... não conseguia dormir... estava muito confuso... por acaso nos encontramos...

Vocês se encontraram.

Tentamos resistir, Padre. Foi impossível. Nós... nós nos amamos.

Uma expressão chocada surgiu no rosto corado do cónego, que lentamente disse:

Quer dizer que a possuiu? Ele procurava os olhos baixos de Desmonde, o ouvido atento à resposta débil.

Nós nos amamos.

Uma união física? Oh, Deus Todo-Poderoso! Santa Maria e todos os Santos! Que confusão desgraçada! Você vai trepar na escuridão da floresta Kinloan, volta meio morto e chama isso de amor. A voz do cónego se ergueu num grito. Agora vejo tudo. Você volta para ser mimado e tomar café. Vá para o seu quarto, seu estupidozinho sujo, mas primeiro tome um banho. Não receberá nenhuma absolvição de mim por enquanto. Mas o que fazer com relação à paróquia... Ele levantou as mãos em desespero. Se isso transpirar, vai fazer todos os demónios no inferno dançarem o fandango!

Física e emocionalmente exausto, Desmonde dormiu como se estivesse morto, até que a campainha insistente do seu despertador, ajustado para as seis horas, o acordou para a consciência da sua situação. Durante alguns instantes ficou deitado imóvel, então se levantou apoiado num cotovelo. Tinha que celebrar a missa das sete da manhã dos dias de semana. Precisava levantar-se. Mas, antes que pudesse mexer-se, houve uma batida na porta, que se abriu, surgindo o cónego, já completamente vestido.

- Bom dia, rapaz. Como é que se sente?

A simpatia, a humanidade na voz do cónego deixaram Desmonde estarrecido, e ele gaguejou uma resposta.

Bem, bem, ora, isto são boas notícias. Embora você ainda esteja meio pálido. Assim não precisa apressar-se. Vou rezar a missa das sete para você. Pedi à Sra. O'Brien que lhe dê um bom café, uma vez que não jantou ontem à noite. Por causa daquela visita ao doente. A ênfase naquelas duas últimas palavras foi cruel.. E, se aparecer na igreja por volta das oito, estarei na sacristia.

Um bater de cabeça, o que poderia ter passado por um sorriso, e a porta se fechou sem fazer ruído.

Desmonde saiu da cama, ajoelhou-se de acordo com o seu hábito, para rezar, depois fez a barba, tomou banho e se vestiu. Sua aparência no pequeno espelho quadrado, acima do lavatório, era desanimadora, mas foi caminhando a passos firmes até a sala de jantar, onde, por trás do postigo que se abria para a cozinha, a Sra. O'Brien o cumprimentou.

Bom dia, Padre. Deve estar faminto. E esteve fora até tão tarde, também, em casa do pobre Sr. Duggan. Vou-lhe trazer o seu café daqui a um minuto.

De fato, com a sua eficiência costumeira, ela cumpriu a palavra. Aquela mulherzinha alegre e ativa, de olhos escuros, de cerca de cinquenta anos, que devia ter sido bonita quando jovem, e que agora, sem nenhuma outra ajuda senão a de uma menina do vilarejo na cozinha, cuidava do presbitério em todas as suas ramificações.

O desjejum foi excepcional, mesmo para uma casa conhecida pela boa mesa. Solhas fritas, que tinham vindo fresquinhas de Wexford antes do amanhecer. Broas acabadas de assar e manteiga de fazenda. Mel e requeijão. Café forte bem quente com creme.

Desmonde, enfraquecido por falta de comida, fez justiça àquela nobre exibição e, embora desconfiasse de que aquilo fosse parte de algum desígnio do cónego, quando se levantou da mesa, grande parte da angústia e da apatia havia desaparecido.

Bateu no postigo e o levantou para agradecer à Sra. O'Brien, que ele sabia ser favorável para com ele e aquele era certamente um momento em que precisava de toda boa vontade possível.

Gostou, Padre Desmonde?

Muitíssimo.

Os olhos escuros cintilaram e ela sorriu, mostrando os belos dentes brancos. Gostava de ser elogiada, em especial por aquele jovem padre, um rapaz tão bonito!

Quando Desmonde entrou na igreja, a missa já havia terminado e o cónego, tendo acabado a sua oração de graças, estava na sacristia.

Ele sorriu, um sorriso conciliatório, quando Desmonde apareceu e, surpreendentemente, estendeu a mão.

Tomou um bom café, rapaz? Eu disse à Sra. O'Brien para caprichar.

Um café maravilhoso, obrigado, Sr. Cónego.

Bom, bom. E tenho certeza de que dormiu bem. Desmonde corou, murmurando quase inaudivelmente: Sim.

Então venha sentar-se ao meu lado, rapaz, vamos conversar um pouco e, esquecendo todas as palavras desagradáveis de ontem à noite, tentar endireitar as coisas para você e para todos nós.

"Ora, não comece a pensar que o céu caiu em cima de você só porque deu um mau passo. Não é o único, há uma enorme quantidade de gente que já fez o mesmo. É duro para a natureza humana manter o celibato. Você ficaria surpreendido ao saber quantos padres decentes já cometeram um deslize, uma vez ou outra, e tiveram que se recuperar depressa e dizer ao Senhor que estavam arrependidos.

O cônego fez uma pausa, refletindo, e olhando para ele. Desmonde de repente se tornou vítima de uma estranha ilusão óptica. Ele viu, não as honestas feições coradas do cónego, mas apenas por um segundo o rosto suave, de olhos escuros, da Sra. O'Brien.

Ora, muito bem o cónego suspirou. - Uma coisa é certa, você não pode ter mais nada a ver com a garota. Fazê-lo seria fatal. Você mesmo vê isto, não é?

Sim, Sr. Cónego. É difícil...

É claro que é difícil, e se fosse mais difícil ainda -teria que ser obedecido. Quer continuar sendo padre em cujo ofício já fez tanto sucesso e onde o futuro é tão claro e promissor. Quer continuar a servir ao Senhor Deus Todo-Poderoso como seu abençoado servo consagrado.

Sim, eu devo.

Bem, então deixe tudo comigo. Providenciarei para que Claire não torne a chegar perto de você. Tenho poder e influência para fazê-lo e, acredite-me, vou utilizá-lo. Apenas tire-a da sua cabeça. Se não o fizer, seria pura loucura furiosa e o desastre pelo qual o Inferno está esperando. Ele se levantou.. Agora, pegue o carro e vá ver o pobre Duggan esta manhã. Acho que talvez seja pneumonia e, se for, ele vai ter que ser levado para a enfermaria.

Como lhe havia sido ordenado, Desmonde saiu para visitar o doente. Encontrou o velho melhor, o que achou de bom augúrio, e sendo examinado pela enfermeira distrital, que lhe assegurou que era apenas um resfriado.

A caminho de casa, viu que os cartazes do concerto da Hibernian estavam sendo colocados e conseguiu distrair a mente pensando nas canções que cantaria todas verdadeiramente irlandesas, decidiu, ternas, sentimentais, patrióticas. Estacionou o carro em Cross, a cena da sua aventura com os leitões, e foi a pé visitar um outro dos seus inválidos, cumprimentado durante todo o caminho por toques em bonés e saudações alegres, simpáticas e respeitosas. Como era bom dar-se bem com seus paroquianos, ser reverenciado, sim, até amado, naquela velha cidade do interior! Gradualmente começou a se dar conta de como a sua conduta havia sido irresponsável e perigosa.

Já era hora do almoço quando voltou para o presbitério, e depois de uma refeição leve o cónego lhe deu mais trabalho, que o manteve ocupado até bem depois do anoitecer. E como foi reconfortador, durante o jantar, ver o cónego tão bem disposto para com ele, como sempre!

Os dias que se seguiram foram cheios, de acordo com os desígnios do cónego, de deveres paroquiais, idas e vindas que mantiveram Desmonde ocupado e em atividade. Não houve sinal de Claire, não se ouviu uma palavra dela, e Desmonde, fiel à sua palavra, tentou afastá-la da sua mente.

O dia do concerto finalmente chegou, e Desmonde, com a boa disposição recuperada, resolveu dar o melhor de si, e mais ainda, uma vez que o cónego lhe dera a honra de prometer que assistiria ao espetáculo.

A noite estava seca e bonita, grupos de pessoas começavam a afluir ao teatro da cidade e, quando o cónego e Desmonde chegaram e tomaram seus lugares, reservados na primeira fila, o teatro estava com toda a capacidade lotada, com gente saindo até para a rua.

Desmonde havia recebido o lugar de honra no programa, o último número. Tinha temido, temido muito, que, conforme prometera, Claire fosse aparecer. Mas, à medida que a noite prosseguia, moderadamente divertida, não houve sinal dela. E agora era a vez dele. Subiu até o palco pela escada lateral de madeira, e entre aplausos sentou-se ao piano, logo atrás dos refletores.

Fez-se um silêncio mortal quando seus dedos se moveram sobre o teclado e ele começou a cantar:

O jovem trovador foi para a guerra, Nas fileiras da morte o encontrarão; Ele cingiu a espada de seu pai, E sua honra indomável levou consigo...

Não podia ter escolhido um número melhor. Os vivas ecoaram num estrondo, só se calando quando levantou a mão. Havia decidido dar o melhor de si, para honrar a Irlanda e sua nacionalidade irlandesa.

Em seguida, cantou Killarncy, e depois The Star of Count Down, Terence's Farewell to Kathleen, aquela linda canção composta por Lady Dufferin, The Meeting of the Waters, então, para dar um toque de brincadeira, de repente atacou com met her in the garden where the praties grow. Seu coração se dilatou enquanto ele enchia a sala com aquelas velhas canções irlandesas tão queridas. Finalmente cantou Off to Philadelphia in the morning!

Foi sensacional, um triunfo além de todos os triunfos. Ensurdecido pelo estrondo dos aplausos, no meio da grande massa de rostos que lhe davam vivas, pôde ver o cónego aplaudindo como um louco, e atrás dele a Sra. O'Brien, acenando com o lenço úmido de lágrimas. Não queriam deixá-lo sair. Teve que cantar mais. É claro que foi o seu número final favorito, seu hino predileto.

Um silêncio de morte quando começou. Um silêncio de morte quando acabou. então houve a maior das balbúrdias. Estavam todos no palco, amontoando-se em volta dele, apertando-lhe a mão, dando-lhe palmadinhas nas costas. Ele teve que ser resgatado e levado para fora às pressas pelos corredores, e descer para os camarins abaixo. Estava ali sentado, exausto, quando o cónego entrou, acompanhado pelo Sargento Duggan.

Vindo diretamente para Desmonde, o cónego lhe segurou as duas mãos.

Nunca, nunca, na minha longa vida tive tão grande prazer! E a Sra. O'Brien também. Podia-se ver no rosto dela, estava no sétimo céu.

Pode-me incluir também, Padre Desmonde disse o Sargento.. Não sou católico. Antes de vir para cá, eu era membro do Orange Lodge lá no Norte. Mas vou-lhe dizer francamente, quando cantou aquele último hino, eu teria sido capaz de cair de joelhos. E agora, para sermos francos, não posso deixá-lo sair pela porta da frente, é perigoso demais, há centenas de pessoas lá fora esperando. - Olhou para o cónego.. Mas tenho certeza de que conhece o caminho dos fundos lá por cima, senhor, pela Vennel. Eu poderia deixá-los sair pela porta lateral...

Isso seria ótimo, Sargento. O Padre Desmonde parece cansado. Gostaria de levá-lo para casa.

Lá fora, no ar fresco da noite, o cónego tomou o braço de Desmonde, guiando-o através de um emaranhado de ruelas estreitas.

Você tem Kilbarrack nas mãos, rapaz, o povo o adora. Espere só até ver a igreja no domingo, com gente saindo pela porta afora. O seu pequeno deslize está acabado e esquecido. Você está no topo do mundo.

Quando se iam aproximando do presbitério, o cónego continuou:

Eu o conheço, rapaz. Vai querer entrar aí para a sua pequena ação de graças. Vou para casa, para ver o que é que está sendo feito para o jantar.

Desmonde entrou na igreja pela porta lateral. Embora cansado, estava num estado de exaltação contida, de gratidão e de felicidade.

(*) Grupo protestante radical, pertencente à maçonaria, de Belfast. (N. da T.)

Exceto pela lamparina do altar, a igreja estava em completa escuridão, como de hábito. Não, talvez não completamente às escuras, uma vez que na nave mais além uma única lâmpada cor de âmbar havia sido acesa, acima do seu confessionário. Ele se aproximou e ali, naquela débil claridade, de pé, esperando, estava uma mulher, uma moça, Claire.

O choque foi violento, mas Desmonde seguiu aos tropeções pela igreja às escuras e se aproximou dela. Foi o primeiro a falar.

Claire, Querida Claire, fomos proibidos de nos encontrar. Você não deveria estar aqui.

Você pensa, querido, que porque o seu maldito cónego me chicoteou e me espancou com a sua língua, você acha que eu poderia ficar longe de você?. A voz dela estava perfeitamente calma e controlada quando continuou:. Você sabe que o amo, e eu sei que você me ama. Nós nunca poderíamos ser separados.

Não, Claire querida, mas...

Não tem mas, Desmonde.. Agora a voz dela estava dura.. Estamos ligados um ao outro inalteravelmente.

- Entretanto, Claire querida...

Inalteravelmente, Desmonde, pois você vai ser o pai do nosso filho. Estou grávida, Padre Desmonde, foi você quem me engravidou, e dentro de alguns meses haverá uma criancinha chamando você realmente de pai.

Mas, Claire querida - gaguejou Desmonde. Como é que você pode estar... quero dizer, foi só há três semanas que estivemos juntos.

Pensei que você diria isso, e que aquele seu maldito cónego também me atiraria isso. Agora ouça a verdade de Deus e trate de gostar dela.

"Quando eu fui procurá-lo naquela noite, na floresta, a minha menstruação estava para chegar, por isso é que fui, pois eu estava louca de paixão. Você me possuiu e fui apanhada. A menstruação não veio e, em vez disso, comecei a ter enjoos de manhã e a sensação que as mulheres têm no corpo inteiro, e especialmente aqui embaixo. Eu sabia que estava grávida.

Querida, como pode ter tanta certeza?

Ah, há dúvida, como esperei, não de você, mas do cónego. Depois de três semanas sem menstruação, tomei o trem até Cork, fui ao Dr. Dudley Martin, o médico de senhoras mais conhecido da Irlanda. Ele me examinou, por fora e por dentro, e me deu este certificado assinado.

Estonteado, Desmonde pegou o papel, uma folha de receita, escrita com tinta preta.

Não posso ler aqui, querida, vou ter que levar lá para cima. Quer esperar ou volta aqui amanhã?

- Estarei no presbitério, às onze em ponto, e faça com que vocês todos estejam lá, à minha disposição, porque estarei pronta para enfrentar todos vocês.

A voz dela se modificou, suavizando-se, para suplicar:

Agora me abrace, querido, só um minuto, e me beije só uma vez. Você sabe que eu o amo de corpo, alma e coração, exatamente como você me ama. E eu nunca o deixarei ir embora.

Ela se atirou nos braços de Desmonde, ofereceu-lhe os lábios apaixonadamente, girou nos calcanhares e, um momento depois, havia ido embora. Desmonde se virou devagar e saiu da igreja escura a cambalear. Infelizmente, era preciso contar tudo ao cónego imediatamente, e a sua felicidade se transformou em sofrimento.

Implacavelmente, o dia seguinte clareou. O cónego, que normalmente dormia como um touro abatido, havia passado uma noite inquieta. Desmonde não tinha dormido. Até a boa Sra. O'Brien admitiu que não tinha pregado olho até as três da manhã. A tristeza pesava sobre o presbitério quando o café foi tomado, o cónego insistindo em que a força tinha que ser mantida para a provação que teriam de enfrentar, as duas missas haviam sido celebradas, um telefonema para o Dr. Martin em Cork tinha, infelizmente, comprovado a autenticidade do certificado de Claire, e agora, quando as onze horas se aproximavam, a Sra. O'Brien encerou a mesa da sala de jantar, enquanto o cónego, depois de arrumar quatro cadeiras, colocando-as em posição, pôs uma enorme Bíblia no centro daquela imponente peça do mobiliário.

Temos que assustá-la murmurou ele. Então eu darei uma surra nela. E vamos todos ficar prontos, sentados como um tribunal de justiça, antes que ela entre.

Desse modo, todos eles se sentaram, o cónego na cabeceira da mesa, Desmonde do outro lado, a Sra. O'Brien à sua esquerda.

O senhor não me quer aqui realmente, Sr. Cónego. disse a Sra. O'Brien com a voz trémula, hesitando.

É mais decente ter uma mulher, uma boa mulher no conselho. Além disso, sua presença a deixará confusa. Assim, fique sentada aí onde está, Sra. O'Brien.

O silêncio da expectativa caiu sobre o grupo, quebrado apenas pelo pequeno relógio sobre a lareira, que bateu onze notas alegres.

Está adiantado. murmurou o cónego.

Não, caro Cónego, está atrasado quatro minutos. Eu me esqueci de acertá-lo esta manhã.

Silêncio de novo. O relógio atrasado marcava agora onze horas e seis minutos.

Ela se acovardou exclamou o cónego com uma nota de triunfo na voz.. Pode ser que esteja tudo bem, Desmonde.

Naquele exato momento a campainha da porta tocou, ouviram-se passos rápidos e firmes subindo as escadas, e Claire, muito bem arrumada, entrou na sala. Com um elegante vestido de verão azul-marinho, o chapéu cloche da Sra. Donovan e um casaco curto e preto, ambos apropriados, meias de seda e sapatos de verniz, ela estava encantadora, como se tivesse acabado de sair da Place Vendôme para entrar no bar do Ritz.

Desculpem meu atraso. Sentou-se e atirou as luvas sobre a Bíblia. - Eu simplesmente tinha que ir ao cabeleireiro. Então ela se inclinou sobre a mesa e beijou Desmonde de leve, nO rosto. Como é que vai, meu querido? Eu trouxe um presentinho para você. Uma linda camisa de colarinho mole. Vai precisar dela quando abandonar a coleira. E colocou um embrulho achatado, muito bem feito, diante dele.

Durante uns dois minutos, um silêncio estupefato manteve o tribunal mudo, até que o cónego pigarreou.

Sabe, moça, em que séria situação, situação terrivelmente séria nos colocou?

Eu, Sr. Cónego? Não houve nenhum cúmplice no crime?

Sim, o nosso Padre Desmonde foi induzido a participar.

Um jovem padre brilhante com um futuro muito promissor na Igreja, cometeu aquele único deslize. Quer que ele perca tudo, que sofra por isso pelo resto da vida?

Deixe o sofrimento de fora, Padre. Até o presente momento Desmonde e eu tivemos um bocado de prazer juntos e queremos que continue, não queremos, Dês?

Desmonde corou. A aparência elegante e atraente de Claire, sua classe e compostura, haviam reacendido seus órgãos vitais. Ele não rejeitou a mão que ela lhe estendeu.

O cónego se inclinou para a frente e sua voz se elevou.

Vamos deixar de lado a conversa mole. Que é que você quer tomar para deixar Desmonde livre?

Está querendo dizer tomar uma droga, Sr. Cónego, talvez fornecida por esta senhora aqui, para abortar e matar o meu bebé?

Com licença, Sr. Cónego. A Sra. O'Brien gaguejou. Tenho que ir.

Ela se levantou devagar e ninguém fez nenhuma menção de detê-la quando saiu da sala.

Estou falando de dinheiro, é isto o que estou querendo dizer! gritou o cónego. Quanto é que você vai querer para ir com o dinheiro na mão para uma boa maternidade discreta, onde tudo será feito por você?

"E voltar para casa com o meu bastardo de manhã" cantou Claire. Então, numa voz dura: Quanto é que me dá?

Duzentos... trezentos... Observando o rosto dela, o cónego continuou devagar: - quatro.... Então de maneira explosiva: Quinhentos soberanos de ouro.

Claire riu, um riso baixo, divertido e amargo.

- De fato, Sr. Cónego, é mais do que as trinta moedas de prata pelas quais venderam Nosso Senhor, mas não me vai comprar, Sr. Cónego. Não sou nenhuma criadinha suja de fazenda, seduzida pelo rapaz do arado e que pode ser comprada.e mandada embora por dinheiro sonante. Eu amo Desmonde, e sei, Sr. Cónego, sei que ele me ama. Nós daremos ao nosso lindo bebé o nosso nome, juntos.

Seguiu-se um curto silencio e então o cónego, completamente enfurecido, jogou a sua última cartada, o seu trunfo.

- Então só há uma coisa a fazer. Nós a repudiaremos, total e absolutamente. Desmonde continuará aqui, com seus deveres de Padre, e você será deixada com o seu bastardo ilegítimo.

Claire riu abertamente, atirando a cabeça para trás e mostrando todos os seus dentinhos brancos. Cerrou os dentes e seus lábios formaram então uma linha fina e dura.

Isso é exatamente o que eu esperava do senhor. Então vá em frente. E eu irei em frente! A voz dela endureceu e seus olhos se estreitaram.. Vou tomar o primeiro trem para Dublin, para o escritório do Irish Citizen, um jornal muito popular. o senhor deve saber, de tendência protestante e conhecido por suas atitudes anticlericais. Contarei a eles a história toda. Será um artigo de primeira página, com fotografias e tudo, eles virão atrás do senhor com câmaras e repórteres. O senhor será a vedete da Irlanda, ridicularizado, amaldiçoado, vão cuspir no senhor, rezar pelo senhor, desprezá-lo.

Um longo silêncio se seguiu, após o que, numa voz baixa:

Você não faria uma coisa dessas, Claire.

Claire inclinou-se para a frente, olhando bem fixamente nos olhos do cónego.

Não me conhece ainda seu maldito reverendo idiota? De novo um longo, longo silêncio. Então o cónego suspirou, levantou-se e lançou as mãos para o alto.

Fiz o que pude. Mas não adianta, Desmonde. Eu não poderia suportar a vergonha, a desonra que cairia sobre a minha linda igreja, com a nova mesa da comunhão e tudo, e com a Sra. Donovan voltando no fim do mês, e com o Bispo vindo para a Crisma. Você terá que ir-se embora com ela. E, quanto mais cedo, melhor.

Mas, de repente, como que inspirado, ele ergueu os olhos e os braços para o céu e gritou, numa voz abatida pelo sofrimento, enquanto a Sra. O'Brien de pé junto da porta, com lágrimas nos olhos, olhava, apavorada:

Ó Senhor Deus Todo-poderoso que estais nos Céus, há alguma coisa errada com a Vossa Santa Igreja Católica Apostólica Romana, quando um jovem padre, a flor do rebanho, só porque comete um único erro e então o corrige casando-se com a moça e dando um nome ao seu filho, tem que ser posto para fora da Igreja como um cachorro sarnento!

- É tudo culpa daqueles malditos velhos do Vaticano, enrolados em teias de aranha, e que, malditos sejam, acham até que é pecado segurar o próprio pinto quando vão mijar. Isso não é apenas injusto, é absolutamente insensato e contra a natureza. Terá que ser modificado, querido Senhor, esta é a minha humilde prece diante do Vosso trono celestial.

Então o cónego olhou para Desmonde com severidade.

Uma coisa devo fazer e farei, ainda que eu viole os regulamentos da Igreja, embora, Deus sabe, não o espírito. Não vou admitir que você saia daqui e vá viver e dormir em pecado com aquela garota. E não vou admitir que o seu filho venha a nascer em pecado, um bastardo. Considere isso um casamento in extremis, mas será um casamento. Portanto, traga a moça aqui dentro de uma hora. Estarei no altar lateral com a Sra. O'Brien como testemunha. Não me decepcione, Desmonde, senão nunca mais terá um momento de paz depois.

E assim, dentro de uma hora, Desmonde estava de pé, ao lado de uma Claire muito assustada, enquanto, na presença da Sra. O'Brien, o cónego oficiava solenemente o serviço religioso e fazia deles marido e mulher. Então ele os abençoou e se retirou abruptamente. Só a Sra. O'Brien ficou, e com lágrimas nos olhos ela beijou primeiro Claire, depois Desmonde.

Ajoelhem-se vocês dois e rezem para que Deus os abençoe nesse casamento, como eu mesma rezarei por vocês.

O pobre cónego, de fato, chegara ao limite de suas forças. Não opôs resistência quando o dia seguinte, sábado, foi escolhido para a partida de Desmonde. Claire fez os seus preparativos e pegou os bilhetes, enquanto a Sra. O'Brien arrumava as coisas de Desmonde na mala, chorando ao se lembrar do dia feliz da sua chegada. Desmonde impôs-se a obrigação de fazer o que pensou ser naquela ocasião a sua última visita a Mount Vernon, a fim de se despedir de Patrick e Bridget.

Tudo foi realizado discretamente e bem, uma vez que Desmonde desejava, acima de tudo, fazer a sua saída em paz. Infelizmente, no dia seguinte, quando as despedidas estavam acabadas e ele se achava no cabriolé com Claire, a caminho da estação, o som da banda de pifaro e tambor irrompeu de repente nos seus ouvidos, o veículo foi rodeado por homens que marchavam, o cavalo foi tirado dos arreios e substituído nos tirantes por homens. Então, enquanto a banda tocava Wearing o the Green, com redobrado vigor, o cabriolé continuou a rodar lentamente.

Oh, meu Deus, Dês!. exclamou Claire, muito animada. Eles vão-nos puxar até a estação, estão-nos dando a despedida real. Que honra! Que divertido! E olhe só os estandartes!

Agora que o cavalo havia desaparecido, os estandartes processionais irlandeses, erguidos ao alto, eram claramente visíveis, cada um coberto com um pano branco, nos quais, pintados em preto, os slogans haviam sido garatujados:

BOA SORTE PARA O NOSSO DÊS

NÓS TE AMAMOS, DÊS. FELIZ CASAMENTO

ADEUS, QUERIDO TROVADOR

MUDEM A LEI! DEIXEM OS NOSSOS PADRES CASAREM.

Claire estava fora de si de orgulho e satisfação. Quando, finalmente, saíram do cabriolé e entraram no trem, ela baixou a janela do compartimento, acenou e atirou beijos para o mar de rostos abaixo e, tomando a mão de Desmonde, trouxe-o para junto de si.

Como os vivas ecoaram! Três para Desmonde. Três para Claire. Então uma voz gritou: "Três para o bebé."

Aquilo lançou a multidão numa turbulência de riso e de vivas. Então, enquanto o trem começava a se mover lentamente, todos se calaram e a banda começou a tocar fortíssimo: Will ye no come back again? Dessa maneira, o padre Desmonde Fitzgerald deixou a sua paróquia de Kilbarrack.

 

Antes de deixar Kilbarrack, Desmonde havia prudentemente escrito para a antiga governanta de seu pai, Sra. Mullen, agora, de fato, muito idosa, embora ainda uma mulher ativa, pedindo-lhe que procurasse um apartamento de três peças e cozinha, bem situado nos Quays. Desmonde conhecia os Quays desde a sua meninice e sentiu que poderia encontrar ali um refúgio simples e tranquilo até que soubesse com mais clareza o que o futuro reservava para ele e para sua mulher. Na mesma ocasião escrevera ainda ao antigo diretor da sua escola preparatória, a St. Brendan's.

Quando o alegre casal chegou à estação, Desmonde tomou um táxi direto para os Quays, Claire observando as ruas movimentadas com antecipação radiante.

Querida Dublin! Aqui estamos nós!

Em casa da Sra. Mullen, os recém-casados foram recebidos com menos entusiasmo, o rosto da velha senhora expressando preocupação e espanto. Ela, porém, havia encontrado uma casa modestamente mobiliada, quase ao lado, que achava que serviria, e para onde, depois de ter-se enrolado num xale, ela os levou.

Desmonde, que ia preparado para o pior, ficou aliviado e satisfeito quando examinou as três peças, nada mal mobiliadas, e o banheiro com água quente e fria. Como o aluguel era razoável, ele decidiu ficar com a casa por uns seis meses e mandou que trouxessem a bagagem do táxi, que estava esperando à porta. A Sra. Mullen, dispensada com o presente de uma libra, prometeu dizer ao locador que mandasse o contrato de aluguel.

Bem, querida exclamou Desmonde, satisfeito.. Que tal a nossa nova casa?

Não é nada daquilo a que estou acostumada, Dês. É vulgar.

Acho que tivemos sorte de consegui-la, assim depressa.

- Você está habituado a este bairro de classe baixa, Dês. Você nasceu aqui. Mas eu fui criada em locais mais nobres. Ignorando aquilo, Desmonde disse:

Bem, que tal comprarmos uns mantimentos? Pelo que me recordo, há uma merceariazinha que não é nada má na esquina.

- Então vá você, Dês. Quero desfazer as malas e descansar. Lembre-se do meu estado.

Desmonde foi para a lojinha de esquina de Kelly, onde afortunadamente não foi reconhecido, e comprou chá, café concentrado, leite e açúcar, pão, tomates, biscoitos, um pote de marmelada Robertson's, queijo, manteiga, algumas fatias de presunto frio, bacon e uma dúzia de ovos. Satisfeito com aquela encomenda paga na hora, o proprietário de avental, não mais John Kelly, concordou em mandar o menino entregá-las imediatamente.

Se Desmonde esperava congratulações por aquele belo espetáculo de eficiência, ficou desapontado.

Olhe, Dês, olhe só! Mostrando um vestido um pouco amarrotado, Claire continuou: Aquela cadela da Bridget, a quem mandei arrumar as minhas malas, fez o meu lindo vestido de musselina virar um trapo.

O amarrotado não sai passando a ferro, querida?

E onde está o ferro? Quer-me fazer o grande favor de me dizer? Não, vai ter que ir para a tinturaria.

Nesse momento bateram na porta. Era o entregador com as encomendas.

Bem, vamos comer alguma coisa, querida. Nós dois nos sentiremos melhor depois disso. Quer preparar alguma coisa enquanto desfaço as malas?

Claire olhou com hostilidade para os pacotes sobre a mesa.

Tenho que lhe dizer uma coisa logo de início, Dês. Não sou do tipo cozinheira e lavadeira. Fui bem educada e não estou habituada a isso. Por que não vamos até o Hibernian para jantar?

E voltar e encontrar a cama ainda por fazer, todos os lençóis e cobertores ainda ali no vestíbulo, e minhas roupas ainda na mala?

Ah, Dês, você é lindo quando fica um pouco corado e nervoso. Ela esticou os braços. Venha dar-me um beijo, amor. Não foi ótimo no trem, todas as sacudidelas nos ajudando, para cima e para baixo, para dentro e para fora? E você tem razão, temos que arrumar a cama. Eu faço isso, se você fizer o jantar.

Desmonde tinha posto dois ovos para cozinhar no fogãozinho a gás e estava começando a pôr a mesa quando gemidos e lamentações o levaram correndo para o quarto da frente.

É a cama, querido. Foi desmontada, as peças estão espalhadas por aí e são tão pesadas que não consigo levantá-las.

Era uma dessas antigas camas irlandesas, de carvalho maciço e grande o suficiente para abrigar uma família. Desmonde se aproximou da cabeceira.

Vamos tentar isto aqui primeiro, e colocá-la contra a parede.

Juntos, fazendo força, eles levantaram a cama que parecia pesar uma tonelada, até que Claire, com um arquejo, largou a sua ponta. Com um estrondo violento a cabeceira voltou à posição inicial, caindo no chão.

Vamos precisar de ajuda, Dês. É demais para nós.

Temos que fazê-lo, Claire. É um desafio. Não podemos dormir no chão.

Quando Desmonde tornava a se inclinar sobre a cabeceira, a campainha tocou.

Que diabo, quem pode ser?

Sem resposta àquela pergunta, Desmonde foi até a porta da frente e a abriu.

Havia um rapaz ali, a cabeça descoberta e sorrindo.

Sou Joe Mullen, Padre, o neto da Sra. Mullen. Ela achou que talvez fosse precisar de uma ajuda para se instalar. Especialmente com a cama.

Desmonde estendeu a mão.

Entre, Joe. Estou muito satisfeito de vê-lo. É a cama, é claro.

Ele seguiu na frente até o quarto, onde Joe olhou para a cama e balançou a cabeça.

É uma das do velho time, senhor. Acho que conheço os macetes.

Ele tirou o paletó, revelando braços esplêndidos, e pegou a cabeceira com as duas mãos. Um impulso violento e ela estava erguida, encostada na parede.

Se puder segurar aquilo ali, senhor, de forma que não escorregue, eu levanto a ponta num segundo.

Cumprindo a palavra, logo Joe havia levantado a outra extremidade e posto em posição. Então, segurando-a com uma das mãos, pegou as duas tábuas laterais e as enfiou no lugar, atrás e na frente. Em seguida encaixou a peça central, e lá estava o estrado da cama pronto, à espera do colchão, um colchão enorme que Joe habilidosamente colocou no lugar.

- Aí está, senhor. Creio que vou deixar os cobertores e lençóis com a senhora.

Obrigado, Joe, mil vezes obrigado. Agora deve-me dizer quanto lhe devo.

- Nada, não, senhor. O nome Fitzgerald ainda é respeitado nos Quays. Além disso, não estou tão mal de finanças.

Que é que você faz, Joe? perguntou Claire.

Sou jogador profissional de futebol, Madame. Centroavante, no Dublin Harp. Ganho um bom dinheiro com isso, e também, uma vez que estou desocupado durante a tarde e à noite, exceto aos sábados, o Sr. Besson me contratou como garçom de vinhos no salão do Hibernian.

Sr. Besson?

É o cavalheiro suíço que comprou o velho Hibernian e, com sua boa esposa irlandesa, o transformou num lugar maravilhoso, a senhora não reconheceria o velho Hib. Apareça para me ver lá, os dois. Haverá sempre um copo de xerez por conta da casa.

Obrigada, Joe disse Claire. Nós apareceremos.

E agora vou-me embora, desejando-lhes uma boa noite de descanso na boa cama antiga irlandesa.

Quando Desmonde voltou, depois de ter acompanhado Joe até a porta, olhou para a cama e depois para Claire.

Que bom rapaz aquele, tão forte, tão bem constituído, e tão polido também!

Ele realmente o é, querida. E muito bonito também.

Na cozinha, os ovos haviam cozinhado até ficarem duros, mas cortados em fatias finas com tomate, e comidos com torrada e café, constituíram uma refeição satisfatória.

E agora vamos para a cama, querido. Estou exausta. Deixaremos os pratos para amanhã.

Enquanto se despiam e se deitavam na grande cama acolhedora, Claire murmurou:

Não é uma maravilha, querido, esta cama grande, depois da floresta e do compartimento apertado do trem, tão aconchegante e confortável? Venha, querido, por favor.

Ele a tomou nos braços, sabendo que duas vezes num só dia era um procedimento mau e triste, mas não foi capaz de resistir, e depois, de mãos dadas, adormeceram profundamente.

Nunca, em muitos e muitos anos, aquela velha cama irlandesa, que havia testemunhado tantas entradas e tantas saídas, havia jamais acolhido um casal tão estranho e tão díspar como aquele rapaz e aquela moça, que agora jaziam sobre a sua ampla extensão, profundamente adormecidos, ainda de mãos dadas.

Eram oito horas quando Desmonde acordou de uma boa noite de sono. Depois de um momento, levantou-se e abriu as cortinas, deixando o sol inundar o quarto. Claire, com um só olho aberto, deitada ali como um gato indolente, murmurou sonolentamente:

Volte, Dês. Está tão bom com todo esse sol.

- Eu voltaria, Claire, mas tenho a entrevista com o Dr. O'Hare esta manhã.

- Ah, sim. Bem, vá tomar uma xícara de café, amor, e comer torrada. Quando ele vestia o robe e se preparava para ir, ela acrescentou: - Enquanto você trata disso, querido, podia fazer a porção dupla... é tão simples como fazer uma.

Cinco minutos depois, ele estava de volta com uma bandejinha, na qual duas xícaras de café fumegavam convidativamente, ao lado de duas torradas quentes com manteiga. Colocando a sua parte do café na mesinha de cabeceira, ele entregou a bandeja a Claire, agora sentada e apoiada nos dois travesseiros.

Dês! que amor que você é! Escolhi o homem certo quando escolhi você. Nós realmente deveríamos tornar isto um procedimento regular todas as manhãs.

Tomando o café na cama suntuosamente, ela ficou em silêncio, mas depois de uma mordida substancial na torrada, sacudiu a cabeça com tristeza:

- Dês, querido, tenho uma confissão a lhe fazer, e é melhor fazê-la agora e ter a sua absolvição, do que continuar a me preocupar até não poder mais. Dês, querido, sou absolutamente inútil na cozinha. Não sei cozinhar, nem nunca o fiz, e como fui educada como uma senhora de classe... Ele ergueu o olhar rapidamente para ver se ela estava brincando, mas não estava, pois continuou com uma espécie de tristeza orgulhosa: Eu nunca pus um dedo em água de pia, nem lavei um prato sujo em toda a minha vida. Deixando que aquilo penetrasse, ela continuou:. Assim, talvez a sua amiga, a Sra. Mullen, possa dar-nos uma ajuda ou arranjar-nos uma garota para copeira.

Veremos o que se poderá fazer, querida, quando estivermos instalados.

- Se quisermos comer, há uma porção de restaurantezinhos bons e baratos logo depois da esquina, na Rua O'Connell, isto é, se o Hibernian for caro demais para você, caro Dês.

Trataremos disso também, querida. Mas agora tenho que ir.

Espero que você consiga o emprego, Dês. É terrível ter você vagando por aqui, sem fazer nada.

E o que você pretende fazer esta manhã?

Oh, só vou dar uma volta pela Rua Grafton para ver as lojas. A propósito, amor, será que você podia-me arranjar alguma coisa, para eu ter uns trocados para pequenas despesas?

- Claro, querida, vou lavar os pratos e vestir-me primeiro.

Desmonde levou os pratos do café de volta para a cozinha e os lavou juntamente com os pratos do jantar. Misericordiosamente, havia água quente. O bom Joe devia ter ligado o aquecedor na noite anterior, antes de ir embora. Depois de ter enxugado os pratos limpos, Desmonde os colocou de volta no lugar, na prateleira do armário. Então se barbeou rapidamente, diante do minúsculo espelho pendurado sobre a pia, e voltou para o quarto, onde se vestiu. Então, destrancando a mala no armário, tirou dez libras da sua reserva de dinheiro em moeda sonante, sem se esquecer de olhar a sua caderneta bancária, que mostrava um saldo inquietante de oitocentos e sessenta e duas libras. Agora ele se dava conta de quanto havia gasto ou dado como caridade das três mil herdadas de sua mãe.

Então já vou, Claire querida. Isto chega para você por enquanto?

Ela saiu de sob o lençol, de onde estivera observando todos os seus movimentos.

Quê, oh, Dês, é você! Oh, sim, querido! Pegou o dinheiro.. Eu me arranjo com isto por enquanto. Agora, boa sorte para você, querido. Vou rezar por você.

Depois que ele se foi, ela contou as notas e se enroscou para dormir mais um pouco.

Desmonde foi andando até o fim dos Quays, virou à direita, subiu a Rua Grafton, satisfeito por se encontrar de novo naquela rua famosa, justificadamente o orgulho de Dublin, e continuou até chegar à esquina que lhe permitia ver College Green. Tinha planejado ir até Ballsbridge, mas eis que uma súbita exacerbação do cansaço que sentira durante toda a manhã fê-lo resolver tomar um bonde. Ele sabia muito bem qual era a razão da sua fadiga e decidiu que deveria conversar sobre o assunto, gentil e razoavelmente, com Claire.

Logo apareceu um bonde virando a esquina e parou quando ele fez sinal. Uma vez sentado no interior do veículo, Desmonde foi tomado de novo pela nostalgia, por lembranças dolorosas da sua infância, enquanto o bonde ia seguindo ruidosamente o seu caminho, aquele mesmo percurso que ele havia feito com tanta frequência rumo à escola, e esses sentimentos se intensificaram quando desceu do bonde, no terminal de Ballsbridge, e foi caminhando pelos jardins públicos até a Escola de St. Brendan.

Alguns alunos retardatários, com os familiares blazers verdes e pretos, atravessavam apressadamente o pátio de recreio enquanto ele os seguia devagar até a porta de entrada. Não era preciso perguntar o caminho. Ele conhecia bem o seu percurso, passando pelas salas de aula e seguindo por um corredor privativo que levava a uma porta lá no fundo, na qual ele bateu discretamente. Vozes que vinham lá de dentro indicavam que o Dr. O'Hare estava ocupado, de modo que Desmonde se sentou no banco do lado de fora. Como suplicante que era, estava preparado para esperar. Dentro de cerca de um quarto de hora, a porta se abriu e uma mulher bem vestida, de aparência formal, foi acompanhada pelo diretor até o final do corredor. Ao voltar, o Dr. O'Hare viu Desmonde e em silêncio fez-lhe um sinal para que entrasse. Abrigado atrás da sua escrivaninha, indicou uma cadeira e, quando Desmonde se sentou, ele examinou o visitante durante muito tempo. Desmonde, também, retribuiu o olhar respeitosamente, quase chocado pelos sinais de envelhecimento no rosto enrugado do diretor.

Bem, Desmonde, recebi a sua carta e a li atentamente com profunda surpresa e tristeza. Eu me pergunto o que o seu caro pai, tão honrado, tão distinto, teria pensado dela? Na sua velhice isso provavelmente o teria matado. Você era infeliz como padre?

Longe disso. Eu gostava muito do meu trabalho em Kilbarrack, mas tive que escolher entre agir como homem honrado ou deixar uma moça de boa família sofrer a vergonha e a desonra sozinha.

Então a moça estava grávida. Desmonde inclinou a cabeça em silêncio.

Bem, agora vejo você numa perspectiva melhor. Então agora você está casado, é um pária da Igreja, numa situação difícil e precisando muito de trabalhar.

Como sempre, o senhor expõe o caso com lucidez e senso de justiça.

Não me lisonjeie, Desmonde, do contrário não vou querer nada com você. Agora ouça, que é que você me pode oferecer como professor?

Eu poderia ensinar Latim, Francês, Italiano e até Espanhol. Tenho fluência em todas essas línguas. E creio que sou razoavelmente bom com os meninos mais novos. Fui bastante bem sucedido com as minhas turmas de Primeira Comunhão e de Crisma em Kilbarrack.

Muito bem refletiu o Dr. O'Hare. Bem, Desmonde, eu poderia contratá-lo para ensinar Latim e Francês para as turmas mais atrasadas. Quanto ao resto, você poderia ajudar-me no escritório, corrigindo provas, ajudando na correspondência, arquivando, e assim por diante. O salário normal seria de 20 libras por mês, mas devido à nossa agradável associação anterior e porque obviamente você está precisando, vou fazer-lhe 25 libras por mês.

Oh, senhor, estou tão... O diretor levantou a mão.

Tudo isso, Desmonde, é com uma condição. De que eu esteja agora, e assim continue, ignorando completamente as circunstâncias de sua vida. Você é apenas um antigo aluno estimado que me veio procurar querendo um emprego.

Eueu acho que compreendo, senhor e é claro que concordo.

Sim, Desmonde, se chegasse aos ouvidos de qualquer dos pais que eu contratei para dar aula aos seus filhos menores, um homem com a sua reputação, tendo conhecimento do que fazia, eu ficaria numa situação muito difícil... a menos que eu pudesse despedi-lo imediatamente.

Compreendo senhor e concordo. Não houve nem uma palavra aqui em Dublin sobre... sobre Kilbarrack

Então está contratado, Desmonde, a partir de amanhã às nove horas. Vou repetir os termos, o salário normal seria de 20 libras por mês; mas, porque estou realmente penalizado com a sua situação, vou fixá-lo em 25 libras.

Oh, muito obrigado senhor de coração. O senhor era como não o desapontarei.

Ótimo, Desmonde Agora vá tenho a sexta série daqui a cinco minutos.

Desmonde saiu da escola, radiante. Estava salvo tinha um emprego fixo, um trabalho que adoraria, e um salário capaz de manter Claire e a si mesmo a salvo de quaisquer necessidades.

Já não se sentia cansado e foi andando a pé o percurso todo até Dublin Ali sentiu que devia comemorar o acontecimento e parou no Bewley's para tomar uma xícara de café e comer dois pãezinhos cada um com uma porção de manteiga fresca. Ele conhecia o cafe do Bewley's há muito tempo, era incomparável, tão cheiroso e forte, sempre com um potezinho de creme fresco e espesso para torna-lo ainda mais gostoso. Estava delicioso, embora ele estivesse mesmo era com vontade de comer um daqueles atraentes pasteis de carne de porco que o seu vizinho estava devorando mas aquilo era um gasto e deveria vir mais tarde Foi depois passeando até St. Stephen's Green, e ali se sentou num banco ao sol, entre os estudantes que costumavam passar o intervalo do meio-dia naquele agradável parque, no centro movimentado de Dublin

Ele voltou para a casinha nos Quays agora conhecida como "lar", às três horas Claire ainda não tinha voltado mas quase imediatamente a campainha da porta tocou. Um furgão vistoso estava parado lá fora e na soleira da porta se achava o motorista, num elegante uniforme verde.

A Sra. Donovan Fitzgerald mora aqui?

Embora bastante espantado Desmonde respondeu afirmativamente

É do Switzer disse o homem colocando duas grandes caixas, muito bonitas, nos braços de Desmonde Então entrou rapidamente no furgão e foi-se embora.

Desmonde entrou em casa devagar, colocou as duas caixas de aparência luxuosa na mesa da sala e as examinou com emoções contraditórias, murmurando para consigo mesmo com um espanto interrogativo: Sra. Donovan Fitzgerald!

Não ficou em dúvida por muito tempo. Às quatro horas, Claire entrou apressada, elegantíssima nas suas melhores roupas, e explodindo de animação e contentamento quando lançou os braços em torno dele e exclamou:

Oh, querido, eu me diverti tanto! Vamo-nos sentar que eu lhe conto. Bem, naturalmente fui ao Switzer, em Grafton Street, e passei uma hora maravilhosa lá. Você não tem ideia das coisas lindas que eles têm, no verdadeiro estilo parisiense, e melhores ainda. Bem, além de olhar, fiz umas comprinhas...

É isto aqui? interrompeu ele.

Sim, querido, uma parte. Dois vestidos divinos, na última moda, aos quais simplesmente não pude resistir. É claro que agora não posso usá-los, realmente a minha gravidez está começando a aparecer, mas depois você vai adorar ver-me com eles.

Mas, Claire, eles devem ter custado uma fortuna. Como foi que você conseguiu...?

Muito simples, querido, eu disse a eles que era a sobrinha da Sra. Donovan e que queria abrir uma conta. Você não faz ideia, o nome dela é uma palavra de ordem em Dublin. Você precisava ter visto, todos eles em volta de mim, fazendo mesuras e me bajulando.

Mas essas coisas terão que ser pagas.

Ah, lá no Switzer, eles não mandam as contas antes de seis meses especialmente para alguém com o sobrenome Donovan.

Vejo que o adotou. Ela riu.

Ah, qual é o problema, querido? Tenho o direito de fazê-lo.

Isso conclui as suas aventuras? - perguntou ele, depois de uma pausa.

Não, de jeito nenhum.. Ela riu.. Lembrando-me do convite de Joe para ir até o Hib, passei lá e tomei o prometido copo de xerez. Joe é um amor. Ele deve ter falado de mim para o Sr. Maley, o gerente, o homem mais gentil que se pode esperar conhecer. "Joe me disse que a senhora é a sobrinha de uma de nossas clientes mais distintas". "Sim", respondi. "Sou a Sra. Donovan Fitzgerald." Trocamos um aperto de mãos. "Vai almoçar conosco?" "Tinha pretendido fazê-lo", respondi descaradamente. "Infelizmente, descobri que, na pressa de sair, esqueci a carteira."

"Oh, Madame, não se preocupe. Vou reservar a sua mesa agora, e pode almoçar à Ia carie como convidada do hotel."

- Bem, Dês, para encurtar a história, tive o melhor almoço da minha vida: patê de foie gras, salmão grelhado, mousse de morango e café irlandês. Depois, fui levada até a porta com mesuras e sorrisos. E assim aqui estou eu, querido, de volta a casa e morrendo de vontade de fazer pipi, tenho que ir depressa. Você prepara uma xícara de chá para nós, Dês, enquanto estou ocupada no banheiro?

Depois que ela se foi para executar aquela louvável função, Desmonde dirigiu-se devagar para a cozinha a fim de fazer chá. Nem uma vez ela lhe perguntara se tinha sido bem sucedido na sua entrevista com o Dr. O'Hare. Agora, pela primeira vez, ele se dava conta da loucura do seu casamento e teve, com um impacto terrível, pressentimento do desastre.

Independentemente do salário mensal, por si só um recurso indispensável à subsistência, Desmonde estava feliz com seu novo emprego, e à medida que as semanas e meses passavam ele foi sendo aceito e como sempre havia sido bom com crianças pequenas, foi-se tornando querido na escola. Não via muito os colegas, uma vez que quando estava fora da sala de aulas o Dr. O'Hare o mantinha ocupado no escritório, com frequência, além das horas de trabalho. Observando os esforços para agradar, feitos pelo novo professor, o diretor acabara por se interessar por Desmonde, sugerindo que mais tarde talvez ele pudesse estudar para o doutorado.

Claire, também, a sua maneira, recebia bem e aprovava o esforço de Desmonde para ganhar a vida.

- Vai ser uma bênção, Dês, não ter você vagando pela casa como um cachorro doente, quando estou fora passeando pela cidade.

Entretanto, Claire saía e passeava cada vez menos, uma vez que agora sua gravidez era muito perceptível e se achava próxima a data do parto. O desejo de Desmonde, de que ela fosse ter a criança no Hospital Mater Misericórdia, havia sido repelido com brusquidão.

Não quero nada com aquele Convento.

Mas o Mater é de reputação internacional, Claire. O meu amigo Alec fez o treinamento em obstetrícia lá.

- Pode ser bom para estudantes, Dês. Mas, para as pacientes... pare do lado de fora e ouça só os gritos. Não quero freiras em volta, atirando água benta em mim. Tive uma longa conversa com a Sra. Mullen. Ela já trouxe muitas crianças ao mundo e o mesmo fará com a nossa.

Desmonde, naturalmente, se viu constrangido a concordar, embora com reservas, mas estava impressionado com a coragem de Claire. Mais tarde teve uma conversa com a antiga governanta de seu pai, que o reconfortou um pouco. E de fato, quando se deu o evento, tudo correu com a maior facilidade e calma. Desmonde, que não tinha passado mais de uma hora andando ansiosamente, para cima e para baixo, do lado de fora, foi chamado pela Sra. Mullen, vestida, com toda a formalidade, com uma bata branca engomada, para ser presenteado com uma linda filhinha, ainda quente do banho, os olhinhos escuros, enquanto ela estava no seu colo, pousados nele com terno encantamento. Claire, que assistia àquela cena tocante da sua posição de indolência confortável, na cama, exclamou:

- Então, acha que me saí bem, Dês?

- Maravilhosamente, obrigado, querida, querida Claire. É uma linda criança, com os seus belos olhos escuros.

Obrigada, Dês querido. Vou-me lembrar dessas palavras gentis quando tivermos a nossa próxima briga.

Espero que não tenha sido muito difícil para você, querida. Nesse ponto a velha senhora interveio profissionalmente.

Vou-lhe dizer uma coisa, senhor, com toda a honestidade. Nunca tive uma paciente assim em toda a minha vida. Ela aguentou firme sem um grito, e quando o bebé saiu, esse é o pior momento, senhor, ela não fez-mais do que dar um gemido. E vou-lhe contar, pois tenho certeza de que lhe interessa, não ficou nem um corte, nada além de um arranhãozinho na... o senhor sabe, dela. Está nova e boa como sempre.

A velha senhora estava na sua melhor forma e, quando havia feito tudo de maneira satisfatória, sorriu para Desmonde.

Isto é tudo, senhor. A mãe está arrumada, o bebé já tomou banho e está dormindo, o bercinho colocado ali junto da sua cama, todo arrumadinho para ela, a mãe está confortável na cama, semiadormecida, assim já vou indo, até amanhã de manhã bem cedo.

Boa noite e obrigada, Sra, Mullen disse Claire. A senhora é um amor.

Desmonde seguiu a velha até o corredor, abraçou-a e lhe beijou o rosto enrugado.

Querida Sra. Mullen, a senhora é um anjo, e nos fez muito felizes com a sua bondade e a sua prática. O dinheiro nunca será o suficiente para recompensá-la, mas por favor diga-me quanto é.

Duas libras é o que costumo cobrar, senhor. Mas do senhor só quero uma.

Desmonde sentiu as lágrimas brotarem nos seus olhos. Tirou do bolso as duas notas de cinco libras que tinha tirado do armário e as entregou em silêncio.

Oh, mas eu não poderia, senhor, realmente não poderia mesmo...

A senhora tem que aceitar, insisto, depois de tudo que fez, arranjando o berço emprestado para nós e tudo.

Bem, senhor... vou aceitar uma e lhe agradecer muito, mas nada mais.. E ela enfiou uma das notas no bolso do peito de Desmonde. E agora, boa noite. Passo aqui amanhã bem cedo. Na porta ela se virou. Teria sido um momento de felicidade para o seu pai se ele tivesse podido ver a sua linda neta, só ela, e mais nada.

Desmonde foi para o banheiro e se preparou para ir deitar. Quando se deitava ao lado de Claire, murmurou:

Está dormindo, querida? Se não está, quero-lhe dizer como você me fez feliz. Sinto que o bebé nos vai aproximar mais, que vai apagar a distância que parece ter-se desenvolvido entre nós.

E quem criou essa distância? E o que qualquer esposa pensaria de um marido que aparece uma noite e lhe diz na cara que não a quer seis noites por semana?

Foi idiota e rude da minha parte. Adoro amar você. Mas sou um fiapo inútil, se fizer demais.

Há alguns homens para quem nunca é demais. Mas ainda há muito de padre em você, Dês. Bem, agora que estou amamentando e não há perigo, talvez você seja mais assíduo. Ela o beijou, acrescentando: Se a nenen acordar durante a noite, levante-se e traga-a para mim.

Quase no mesmo instante ela adormeceu, e Desmonde a seguiu, abraçando-lhe o corpo macio e cálido.

Agora, aos sábados e domingos, quando o tempo estava bom, a pequena família podia ser vista tomando ar ao longo do cais, do outro lado da ponte, e até mesmo no Parque Phoenix; Claire muito bem arrumada num dos vestidos novos da Switzer, o bebé no lindo carrinho que seu pai lhe havia comprado e, é claro, Desmonde saboreando os olhares de admiração dirigidos ao seu grupo. Claire havia-se aproveitado daquele período feliz para presentear Desmonde com a conta dos vestidos, cerca de sessenta e poucas libras, enviada com uma carta ameaçadora. Ele não podia protestar, especialmente quando ela, sozinha, teve que cuidar do caso difícil do batismo da criança.

Você não quer fazê-lo, Dês? Ele hesitou.

Mas tem que ser feito.

- Dê-me a certidão de casamento que o cónego lhe deu e eu cuidarei disso no domingo, nos Carmelitas. Há sempre uma multidão por lá, depois das onze. Você ainda está de acordo com o nome Geraldine?

Claire havia insistido nisso, como agrado à tia, a quem tinha esperança de apaziguar, com a ajuda da linda criança.

Assim, Claire havia partido, enquanto Desmonde esperava numa agonia de dolorosa expectativa, encerrada quando Claire reapareceu, sorrindo, feliz da vida.

Está acabado, rapaz. À pequenina agora já é cristã, Deus a abençoe.

Foi então que ela lhe entregou a conta da Switzer. Sim, Desmonde estava feliz, pelo menos tão feliz como se poderia estar na sua posição invejável. As suas aulas em St. Brendan o haviam salvo pelo menos do pior dos remorsos, e quando estes às vezes o atormentavam, quando estava sozinho, exclamava: "Jogaste-me fora como a uma maçã podre. Por que eu haveria de voltar para Ti?"

Seu relacionamento melhor com Claire era intensificado pela ajuda que ele lhe dava com Geraldine. Toda noite, quando voltava da escola, dava banho, secava e punha talco na pequenina e lhe trocava as fraldas. Aos sábados e domingos, ele era exclusivamente babá da criança, sendo agora recompensado com um sorriso carinhoso de reconhecimento que lhe enternecia o coração.

Um dia, quando estava assim ocupado, enquanto Claire lia o jornal da manhã, ela perguntou negligentemente:

O que é uma nota promissória?

Um pedaço de papel, uma espécie de compromisso que se assina de próprio punho.

É só isso?. Ela riu e pôs de lado o jornal, para observá-lo passar talco e pôr a fralda na criança. Você tem mesmo jeito para lidar com ela, Dês. Ela fica feliz da vida e já adora você, dá para ver na maneira como ela o olha.

Desmonde sorriu.

Você está pronta para o nosso passeio?

Só vou trocar de vestido. É uma pena que não possamos ir todos almoçar em algum lugar, causaríamos sensação no Hib!

Ela ainda é um pouco pequena para isso, querida.

Ah, sim, é claro. Mas, falando de almoço no Hib, Dês, você não tinha prometido levar-me para uma grande comemoração quando eu parasse de amamentar?

Sim, de fato, Claire querida, e vou cumprir a palavra. Que tal sábado que vem? Pediremos à Sra. Mullen para cuidar de Gerry.

Está combinado, Dês. E vou querer tudo com a maior solenidade. Sábado é o melhor dia no Hib. Está todo mundo lá.

Nos dias seguintes, a perspectiva do almoço nunca se afastava da mente de Claire. Sempre recordando Desmonde da sua promessa, e preparando-se à sua maneira para a comemoração ela partiu para missões desconhecidas, diversas vezes durante a semana, voltando com vários embrulhos que fizeram com que Desmonde se perguntasse quanto ela havia gasto naqueles luxos aparentes, e qual seria a fonte daquela riqueza desconhecida. Entretanto, ele se absteve de insistir no assunto, ansioso por preservar a harmonia benigna que reinava como uma doce melodia sobre a casa.

Agora que Claire estava amamentando e se declarava "fora de perigo", Desmonde foi induzido, mais ou menos por Ordem Real, a cumprir com os seus deveres conjugais com mais frequência do que antes.

- Você realmente é um ótimo amante "- Claire o elogiou depois de um desempenho extenuante. Eu não quero que você se envaideça, querido, mas você deixa uma mulher satisfeita e realizada. Há alguns, Deus sabe, que deixam a gente no ar, esperando pelo que a gente não tem. Mas você é ótimo. Eu soube disso logo na primeira vez, na floresta de Kilbarrack.

Aquele foi um episódio rápido e ele acrescentou depressa terno.

Não tenho tempo para esses que ficam prolongando o negócio, querido, como largar um charuto e depois voltar a ele. Além disso, é uma perversão pecaminosa aos olhos da Igreja. Não, não. prefiro à sua maneira, rapaz, você dá pra coisa.

Sempre fico com medo de machucar os seus seios. murmurou Desmonde, num esforço, talvez, para sair da berlinda. Devem estar inchados e sensíveis, querida.

Estão, querido, e é gentil de sua parte pensar nisso. Assim, da próxima vez, por que é que você não vem por trás? Dizem que é ainda melhor.

Assim sendo, duas noites depois, apropriadamente exortado, Desmonde, se bem que tentando adiar o evento, fez conforme lhe fora pedido, mas foi perseguido o tempo todo pela terrível recordação de um casal de vira-latas que certa vez havia observado com desagrado, fazendo de maneira idêntica, na rua principal de Kilbarrack.

Afinal o sábado amanheceu um pouco nublado, se bem que cheio da promessa de sol. Enquanto Desmonde fazia o café e cuidava de Gerry, tarefa em que agora era perito, Claire descansava na cama, levantando-se às onze horas, para se preparar para os prazeres do dia. Enquanto isso, Desmonde tinha-se vestido e fora até à casa da Sra. Mullen, que prometeu cuidar do bebé aquela tarde.

Pouco depois do meio-dia, Claire entrou na sala e fez uma pose, exigindo a admiração de Desmonde. Estava com um elegante vestido verde que ele não tinha visto antes, luvas verdes novas e um grande chapéu verde espalhafatoso, novo também.

Que tal, Dês?

Estonteante. murmurou ele com tristeza.. Você parece uma prostituta francesa muito cara, pronta para o ataque.

Ela riu.

Gostei dessa, Dês. Eu recebi um dinheiro que não esperava e resolvi gastá-lo todo. Hoje quero especialmente chamar atenção. Há uns sujeitos lá no Hib que pensam que não tenho marido. Você chamou um táxi?

Está um dia tão bonito hoje, que pensei em irmos a pé.

Está bem, pão-duro. Pelo menos, daremos o que falar aos vizinhos.

Saíram de braço dado. depois que a Sra. Mullen apareceu, sendo seguidos pelo olhar chocado e penalizado da velha senhora. Exatamente à uma hora entraram no hotel, passaram pelo bar e foram para o restaurante. Ali, o maítre se aproximou de Claire obsequiosamente.

" Tem uma boa mesa para nós, Jules?

A melhor, minha senhora. A sua mesa habitual, junto da janela. Ele os levou até lá e os acomodou, murmurando: Permite-me dizer-lhe, minha senhora, como está encantadora hoje?

Nada de lisonjas, Jules querido. Que é que tem para nós comermos? E vamos querer uma garrafa de Perrier Jouet. É uma comemoração atrasada do nosso casamento. Este é o meu marido, Desmonde.

Oh, prazer em conhecê-lo, senhor. Quer escolher? Ele pegou dois menus muito enfeitados, oferecendo um a Claire e o outro a Desmonde. Agora, se me permitem, vou instruir o garçom com relação ao champanha.

Finalmente a refeição escolhida foi encomendada, o champanha aberto, provado e servido. Enquanto isso, Claire examinava o salão, fazendo comentários a respeito das várias personalidades que havia reconhecido. Suas próprias roupas e maneirismos afetados atraíam atenção, olhares, cochichos, risadas contidas, que também pareciam ser inspirados por Desmonde. Um homem vestido discretamente, num sóbrio terno azul-marinho, e que estava almoçando sozinho na mesa vizinha, havia encontrado várias vezes os olhares risonhos de Claire, e naquele momento, inclinando-se polidamente na direção dela, disse:

Desculpe-me, cara senhora, mas por causa da proximidade das nossas mesas, depreendi, sem querer, que estou na presença de uma comemoração de um feliz casamento.

Sim, de fato, senhor respondeu Claire, radiante por afinal ter alguém com quem falar. E atrasada de muito tempo por causa das circunstâncias extraordinárias do nosso amor e do nosso casamento. Gostaria de tomar um pouco de champanha para comemorar conosco?

Não devo beber ao almoço, uma vez que sábado é um dia muito cheio, mas, cara senhora, se me permite tomar um golinho do seu copo...

De boa vontade Claire ofereceu o copo, que o desconhecido apenas levou aos lábios.

Estava falando, cara senhora, de circunstâncias difíceis.

Sim, realmente estava, senhor. Acreditaria, olhando para ele agora, tão alegre e feliz, que o meu marido foi outrora...

Desmonde apertou o braço dela e tentou virá-la na sua direção, mas ela o afastou.

.. foi outrora um jovem e muito querido padre em Kilbarrack?

Não me diga, cara senhora, que ele é o famoso coadjutor de Kilbarrack, a quem todo mundo tem procurado há quase dois anos, e que a senhora deve ser portanto a sobrinha da nossa Sra. Donovan?

Pelo amor de Deus, Claire, cale a boca!, gemeu Desmonde.

Mas Claire estava com a corda toda.

Acertou em cheio os dois fatos, senhor. Mas esta não é a história toda, de jeito nenhum. Desmonde, querido, tire os pés do caminho, está-me chutando o tempo todo. Eu poderia contarlhe, senhor, das dificuldades do nosso namoro, nós dois perdidamente apaixonados. Pensei que nunca o conquistaria, até que uma linda noite estrelada eu fui atrás dele na linda floresta de Kilbarrack.

Garçom, a conta! gritou Desmonde, furioso. Mas o garçom, de braços cruzados, de costas e ouvindo com toda a atenção, não perderia aquilo nem por uma nota de cinco libras.

Sim, senhor, a linda floresta de Kilbarrack, onde costumávamos passear à noite. E foi lá, que consumamos o nosso amor, com uma paixão tão incontida que, embora eu apanhasse Desmonde de jeito, fui apanhada também.

Oh. meu Deus! Cale a boca, sua bêbada idiota! sibilou Desmonde no ouvido dela.

- Ficou grávida, cara senhora? perguntou o simpático desconhecido.

- Acertou, senhor. E logo da primeira vez, para mostrar a força e a profundidade do nosso amor.

Oh, mas que coisa, que coisa! suspirou o gentil cavalheiro. E foi quando os seus problemas começaram.

Isso mesmo, senhor. Mas eu tinha escolhido o homem certo. Este padre bonito, jovem e brilhante, famoso e recém-chegado de Roma, abandonou a Igreja e fez de mim sua esposa.

Verdadeira honradez, cara senhora. E como foi que a sua tia, a cara Sra. Donovan, recebeu a notícia?

Como uma das fúrias do inferno, senhor. Pois vou-lhe contar um segredo, ela própria estava perdidamente apaixonada por Dês. Dês, pelo amor de Deus, pare de me chutar. E o que é que Joe está fazendo ali, careteando para nós como um louco?

Só mais uma coisa, cara senhora. Como foi que se deu com a vida fora do sacerdócio?

Uma perfeição, senhor. Temos o mais lindo bebezinho do mundo, que se chama Geraldine, como a minha tia, uma casa confortável nos Quays, perto do lugar onde o famoso pai de Desmonde vivia, enquanto o meu bravo marido conseguiu um esplêndido emprego...

Cale a boca, Claire, sua maldita idiota!. disse Desmonde num cochicho furioso no ouvido dela. - Pare imediatamente.

um esplêndido emprego continuou Claire calmamente ensinando línguas na Escola de St. Brendan.

Senhora, estou realmente cheio de admiração. Desmonde se inclinou por sobre a esposa e interrompeu, furioso.

Senhor, infelizmente minha esposa e eu estamos um pouco exaltados. Talvez numa outra ocasião.

Para falar a verdade, senhor ele olhou para o relógio o prazer de ouvi-los fez com que eu me atrasasse, me atrasasse muito em ir para o escritório. Mas permita-me que lhes ofereça um presente de casamento um pouco tardio, e um pequeno honorário em sinal de reconhecimento pela magnífica informação que me deram gratuitamente.

Ele fez sinal para o garçom e pediu as duas contas, a dele e a da mesa vizinha. Ambas foram trazidas e assinadas pelo generoso cavalheiro. Então ele se levantou.

Novamente obrigado, senhora, por uma experiência realmente notável e muito afortunada. Não preciso desejar-lhe felicidades, prevejo uma carreira sensacional para a senhora. E para o senhor também - ele ofereceu a mão a Desmonde o senhor conta com a minha profunda e sincera simpatia.. Virando-se para ir embora, ele acrescentou: Acrescentei a gorjeta à conta.

Ele se virou e saiu apressado em direção à porta. Imediatamente Joe se aproximou da mesa. Estava com o uniforme de garçom e obviamente tinha acabado de entrar em serviço.

- Alo, Joe Claire riu para consigo mesma. Venha beber à nossa saúde com champanha.

- Eu nunca toco esse negócio, senhora, e se me permite dizê-lo diante do seu marido, a senhora já bebeu demais hoje. Ele se virou para Desmonde.. Não me viu fazer-lhe sinal para que ela calasse a boca?

- Ele deve ter visto, Joe querido. Ele me chutou como um doido.

Bem, vou-lhe dizer logo, senhora. Aquele cavalheiro que estava estimulando a senhora a falar é o redator-chefe do Sunday Chronicle. E cada palavra que a senhora disse a ele, multiplicada por dez. estará no jornal amanhã.

Meu Deus, Joe!

Tem toda a razão, senhor. Vai-se ver bem na primeira página amanhã.

Claire cedeu a um acesso de riso deliciado.

Finalmente fiz você ficar famoso, querido Dês. Não sou um amor de esposa?

No esforço para encher o copo, ela virou a garrafa, encharcando a mesa com o resto do champanha.

Que é que acha, senhor, de eu lhe dar uma mãozinha com ela e arranjar um táxi? Ela vai começar a cantar daqui a um minuto.

Com a ajuda de Joe, Desmonde levantou a sua querida esposa e, segurando-a com firmeza por um dos braços, enquanto Joe segurava o outro, seguiram atabalhoadamente em direção à porta, enquanto Claire distribuía seus orgulhosos olhares sorridentes para todos os lados. Mas não estava tudo acabado.

Quando chegaram às escadas da entrada, dois fotógrafos estavam esperando por eles, com flashes e câmaras estalando. Mas afinal conseguiram enfiá-la num táxi. No caminho de casa, de fato ela começou a cantar tolices sentimentais de bebedeira, apertando-o contra si, enquanto lhe dava um beijo voluptuoso. E ele teve o terrível pressentimento de que um outro táxi os seguia.

Afinal, chegaram à intimidade da casa, onde a boa Sra, Mullen os esperava.

Por Deus, leve-a para a cama exclamou Desmonde, soltando-a, de forma que ela caiu, em toda a sua elegância absurda, esparramada no sofá. Já chega para mim! E não vou aguentar mais essa cadela bêbada.

Ele se virou e saiu da casa, indo, inevitavelmente, para o seu refúgio habitual, para o silêncio e a solidão do Parque Phoenix. Sabia que tinha que se livrar dela. E logo.

Desmonde não saiu do parque senão ao anoitecer, quase na hora de fechar. Enquanto caminhava devagar, de volta para casa, pareceu-lhe que havia mais gente do que os visitantes habituais de fim-de-semana nos Quays. E a Sra. Mullen, com o seu melhor xale, caminhava para cima e para baixo na calçada, como se o esperasse.

Estou feliz de que já tenha voltado, senhor. Houve uma verdadeira confusão por aqui. Já viu o jornal? Uma edição extraordinária do Chronicle.

Não, não vi.

Bem, pode ver. Um sujeito do Chronicle acabou de abrir a sua porta e jogar um exemplar.

Más notícias?

As piores, senhor. Oh, meu Deus, estou doente de pena do senhor! Eu que vivi para servir o seu honrado pai. E que carreguei o senhor no colo quando era criança.

Oh, bem! Vou entrar e olhar. Cuidou da nenen?

Já sim, senhor. Tomou a mamadeira, já tomou banho e está arrumadinha, dormindo no berço.. Ela fez uma pausa. A senhora também está na cama, roncando muito alto.

Obrigado, Sra. Mullen, de coração. Que é que eu faria sem a senhora?

Ele entrou na casa, trancou a porta e apanhou o jornal que estava sobre o tapete. Na sala, acendeu a luz e abriu o jornal, ficando imediatamente chocado, assustado e horrorizado com a manchete escandalosa, que gritava na primeira página.

PADRE FUGIDO FINALMENTE DESCOBERTO

O belo e jovem ex-padre que toda a Irlanda tem procurado foi finalmente descoberto regalando-se luxuosamente com a sua esposa, pretensamente elegante, mas na realidade vestida com exagero, num almoço de grande pompa... Salmão e champanha... comemoração atrasada do casamento... Enquanto a champanha rolava na direção de Madame, ouvimos a história toda de seus doces lábios pintados... "Eu o quis desde o primeiro momento em que pus os olhos nele" confessou ela, "... uma inocente colegial saída da minha selecionada escola preparatória na Suíça... Minha querida tia, a famosa Sra. Donovan, já há algum tempo andava atrás dele... De fato, quando voltei inesperadamente da escola, apanhei-a abraçada com ele, num beijo apaixonado."

Desmonde fechou os olhos, agoniado. Mas esforçou-se por continuar a ler, encolhendo-se diante das letras garrafais dos cabeçalhos de cada parágrafo.

"Ténis â deux... passeios na linda floresta... ele já era meu... eu o vi nos olhos dele. õ primeiro beijo... Mas infelizmente sua sagrada missão... Adorado por toda a paróquia... Certo privilégio prometido pelo Arcebispo. Será que ele seria promovido para uma outra paróquia? Tremi diante da ideia. Era agora ou nunca... eu sabia que ele saía para passear à noite... lutando contra o seu amor apaixonado... Eu o apanhei naquela mesma linda floresta! E ali, na relva verde, sob as estrelas, eu o fiz meu!"

Desmonde não podia continuar. Sentia-se fisicamente doente, mas quando ia afastando o papel nojento seus olhos angustiados viram mais dois cabeçalhos:

"Gravidez timidamente confessada a ele no Confessionário... Ele ficou ao meu lado. O amor conquistou tudo."

E as fotografias, realçando o cambalear bêbado dela, quando eles iam saindo do hotel. E o pior ainda vinha:

"Agora, vivendo nos Quays, disfarçado de professor de idiomas na seleta Escola de St. Brendan, este rapaz, filho de um famoso irlandês, lutando desesperadamente para recuperar o respeito próprio, conseguiu fazer-se passar por um bom rapaz solteiro..."

Era o golpe final. Desmonde se recostou no sofá, dominado pela vergonha, pelo desgosto e pela raiva cega.

Seu casamento tinha sido, desde o início, um erro trágico, ao qual a sua própria loucura o levara. Tinha feito todos os esforços e sacrifícios para que fosse um sucesso. E falhara. Não podia continuar, de fato, agora já era mais do que evidente que Claire estava cansada dele, que embora ele certamente não tivesse sido o primeiro homem a possuí-la, seria, mais cedo ou mais tarde, substituído por um outro, mais rico ou mais atraente.

Eram esses os seus pensamentos quando os sons de movimentos lentos no quarto, seguidos por passadas arrastadas e o abrir da porta, o fizeram virar-se. Claire estava ali, num robe largo sobre a camisola, de chinelos nos pés. Ela se arrastou até o sofá e se sentou.

i Prepare-me uma xícara de chá.

Ele havia resolvido, acima de tudo, manter a calma. Deu-lhe o jornal.

Não quer ler isso primeiro?

Ela lançou um olhar para o jornal, com os olhos enevoados até que as manchetes lhe atraíram a atenção. Então começou a ler, em voz alta e enfaticamente para si mesma.

Enquanto isso, ele foi para a cozinha e preparou uma xícara de chá. Continuando a ler, ela tomou o chá, ainda meio adormecida, ainda sob os efeitos do álcool no sangue.

Bem. disse ela afinal pus você na primeira página, Dês.

Fazendo um papelão ridículo de bêbada, e me ridicularizando também. Com certeza, serei despedido da escola na segundafeira, e nunca, nunca mais arranjarei um emprego decente em Dublin. Estarei na rua, sem um tostão para sustentá-la e à nossa filha. Ele fez uma pausa e continuou numa voz controlada.. Não acha, Claire, que é hora de fazermos um intervalo no nosso casamento? Levar Gerry para a casa de sua tia e ficar lá por algum tempo até vermos como as coisas estão conosco?

Então você está cheio de mim. Bem, Dês, também estou cheia de você. Você é um sujeito muito chato e, para falar a verdade, já não é tão bom na cama. Há outros que são muito melhores que você nisso. Você nunca me leva ao cinema, mas fica me chateando para ir passear no Parque Phoenix. E estou cheia até não poder mais do tipo de vida reles para o qual você me trouxe, este apartamentozinho de casa de cómodos, eu que estava acostumada a viver como uma dama, com criados e tudo. Para não falar na carteira vazia quando vou fazer compras, o que me obriga a comprar tudo fiado. Há semanas já que ando com a ideia de voltar para a casa de minha tia com Gerry. Seremos bem-vindas lá.

Desmonde segurou a mão dela.

Realmente sinto muito ter sido tamanho fracasso, Claire. Entretanto, de certa maneira, estou aliviado. Isso faz com que a minha sugestão de nos separarmos por algum tempo seja mais razoável.

- Oh, chega de falatório, Dês. Você é cheio de lengalenga. Estou tão pronta para uma mudança quanto você, e estou satisfeita por podermos fazê-lo sem brigar. Agora vá para a cozinha e prepare-me alguma coisa para jantar. O almoço já foi há muito tempo e estou morta de fome. Pode-me preparar umas fatias de toucinho defumado e uns dois ovos?

- Acho que é só o que sobrou mesmo - disse ele, levantando-se.

Hesitou. Há uma hora atrás, ter-se-ia recusado a servi-la, mas agora, diante da perspectiva de uma separação amistosa, achou melhor atendê-la.

- Frite um pouco de pão também, vou-me deitar um pouco, ainda estou meio tonta.

A despensa realmente estava vazia, só restava bacon, uns dois ovos e um pedaço de pão velho, mas ele preparou o que ela havia pedido, separando duas tiras de bacon para fazer um sanduíche para si mesmo. Não tinha comido nada desde o café da manhã.

- Fiz de você um bom cozinheiro, Dês - comentou ela, raspando o prato com um pedaço de pão. - Antes de vivermos juntos, você mal sabia fazer um ovo cozido. Ah, agora me sinto melhor. Mas você se importaria de dar a mamadeira da nenen hoje à noite? Está tudo ali no armário. Vou ter tanto que fazer amanhã que vou voltar já para a cama.

Depois que ela se foi, Desmonde se dedicou a preparar a mamadeira da criança, uma operação à qual agora já estava acostumado. Mais tarde, com o bebé no colo, sugando a mamadeira, mas sempre olhando para ele com os olhos escuros bem abertos, cheios de ternura, sentiu uma tristeza imensa invadi-lo. Adorava a filha e sentiria uma falta terrível dela. Entretanto, era melhor que ela fosse ficar com a Sra. Donovan, que, quaisquer que fossem seus sentimentos com relação a ele, faria com que ela fosse bem tratada. Entretanto, aquilo não deveria ser mais que uma solução provisória. Quando ele estivesse estabelecido de novo e houvesse recuperado sua posição na vida, reclamá-la-ia outra vez.

Acabada a mamadeira, ele trocou a fralda e colocou a criança no berço. Mamãe já estava dando sinal de novo, com roncos regulares que indicavam estar dormindo novamente.

Desmonde voltou para a sala, improvisou uma cama no sofá e, tirando o terno, deitou-se com as roupas de baixo. A perspectiva de enfrentar o Dr. O'Hare o preocupava muito, mas afinal adormeceu.

Na segunda-feira de manhã, Desmonde acordou descansado e refeito, mas com muita fome. Quase não tinha comido nada durante o fim-de-semana. Levantou-se, fez um chá e comeu uma fatia fina do pão que havia sobrado com duas xícaras de chá forte. Então foi para o banheiro, lavou-se, fez a barba com todo o cuidado e voltou para a sala, onde escovou o terno e se vestiu. Não havia sinal de movimento no quarto quando ele saiu e começou a longa caminhada até a escola.

Foi andando devagar, uma vez que estava adiantado, tentando afastar os pensamentos da entrevista com o Dr. O'Hare, que certamente o esperava. E mais uma vez foi tomado por um impulso incontrolável de rezar, de implorar a ajuda do Céu, enfim algum ato de intervenção divina que pudesse ajudá-lo. Mais uma vez resistiu.

Chegou afinal à escola, onde alguns garotinhos da sua turma, levantando os bonés, acenando para ele e sorrindo, se dirigiam à sua frente para a sala de aula. Alguns momentos depois, estava prestes a segui-los, quando no portão um dos monitores, um rapaz do sexto ano adiantado, levantou a mão.

- O senhor não deve entrar, por ordem do Dr. O'Hare. Ele quer que o senhor vá ao gabinete dele imediatamente.

O coração de Desmonde se contraiu. Ficou parado ali, fitando o rapaz, que desviou o olhar, e então, sem dizer uma palavra, se afastou cheio de humilhação e foi a passos lentos para o gabinete do diretor. Bateu na porta e lhe disseram imediatamente que entrasse. Obedeceu.

O Dr. O'Hare estava sentado à escrivaninha, diante de duas mulheres, ambas muito bem arrumadas em roupas domingueiras, ambas armadas de guarda-chuvas fechados e com uma expressão de dignidade ultrajada.

- Sr. Fitzgerald - começou o Dr. O'Hare, sem demora estas duas senhoras, ambas mães de meninos da sua turma, me surpreenderam e me chocaram com uma história terrível que aparentemente saiu ontem no Sunddy Chronicle, um jornal que nunca leio. Fitzgerald, responda-me com sinceridade, o senhor já foi padre da paróquia de Kilbarrack? O senhor seduziu uma moça da sua congregação e, quando ela ficou grávida, desposou-a e abandonou a Igreja?

- Sim, senhor.

- Então por quê, em nome dos céus, não me contou quando eu o contratei?

Uma pausa, murmúrios entre as mulheres:

- Eu tinha certeza de que o doutor não sabia de nada.

Bem, senhor disse Desmonde lenta e dolosamente tive medo de que, se lhe contasse, não me contrataria.

Tínhamos certeza, doutor, de que o senhor nunca teve a mais leve suspeita - disse uma das mulheres. Mas, e agora?

. Sim, e agora, minha senhora. Fitzgerald, sou obrigado a dizer-lhe que as suas funções nesta escola estão acabadas. Partirá imediatamente, sem voltar à sala de aula. Aqui está o seu salário, estou pagando o mês inteiro.

Desmonde pegou o envelope que lhe havia sido estendido, ficou parado por um momento num silêncio angustiado, e disse, numa voz surda:

Sinceramente sinto muito, senhor, ter-lhe causado este aborrecimento, e agradeço toda a sua gentileza para comigo. Virou-se.. Quanto às senhoras, permitam-me cumprimentá-las pelos seus esforços caridosos, que efetivamente destruíram a minha única chance de me salvar e de me regenerar. As crianças da minha turma não receberam nada a não ser uma boa influência de minha parte, e creio que elas gostavam de mim.

Desmonde deu-lhes as costas e saiu, fechando a porta silenciosamente, e então, lenta e tristemente, se dirigiu para a sua casa, nos Quays. Não podia mais pensar nela como lar, uma vez que estava tão doentiamente identificada com a sua infelicidade e a sua ruína.

Ao chegar já, já eram quase onze horas e a Sra. Mullen, mensageira do bem ou, mais frequentemente, do mal, andava para cima e para baixo, aborrecida com alguma coisa na porta da casa.

Oh, que bom vê-lo de volta! A senhora saiu, toda arrumada, e trancou a porta. Agora estou ouvindo o choro da nenen e não posso entrar.

Obrigado, Sra. Mullen. Eu tenho a chave. Vou entrar e cuidar da criança.

Ele abriu a porta e entrou. Quando o bebé o viu, reduziu seus gritos para um pequeno choramingo. Ele se pôs logo em ação e, uma vez que não havia leite na despensa, esquentou um pouco do mingau comprado pronto, que o bebé parecia preferir ao leite, e deu-lhe em pequenas colheradas até que a nenen estivesse satisfeita. Tinha que trocar a fralda em seguida. Tirou-a do berço e levou-a para a sala, onde a iluminação melhor das grandes janelas lhe permitiriam ver o que fazia durante aquela operação complicada.

Mal tinha acabado de tirar a fralda suja e começado a limpar o pequeno traseiro, quando a campainha da porta tocou. Pensou, com alívio, que a Sra. Mullen tinha vindo ajudá-lo, e gritou:

Entre!

Mas não foi a vizinha prestativa quem entrou. Ali, na soleira da porta, estavam a Sra. O'Brien e o cónego.

Podemos entrar, Desmonde? A Sra. O'Brien e eu estamos de passagem pela cidade para comprar toalhas de boa qualidade para a nova mesa da comunhão. E não podíamos ir-nos embora sem vê-lo.

Por favor, entrem disse Desmonde, com a voz fraca. Como vêem, no momento estou bastante ocupado.

- Gozando os prazeres de ser pai. disse o cónego, enquanto o bebé, nu e esquecido, começava a chorar.

Por favor, deixe que eu o faça, Desmonde. Por favor, onde é o banheiro? Por aqui? A Sra. O'Brien se adiantou rapidamente, pegou a criança no colo, tirou a fralda suja da mesa e desapareceu. O cónego entrou e fechou a porta, sentou-se e em silêncio examinou o resto de pão velho, o vidro semivazio de geléia barata e a xícara suja de chá.

Bem, rapaz disse ele afinal. Vejo que você não está apenas nas manchetes de toda a Irlanda, mas também em casa e, ao que tudo indica, prestes a morrer de fome. Está pálido, magro, abatido, uma sombra triste do que era quando tive o prazer de conhecê-lo. Mas em compensação teve todas as alegrias de uma esposa fiel e amorosa. Nós a vimos de relance quando saímos do Hib, tomando um drinque no bar. Parecia a Rainha de Sabá, e estava acompanhada por três dos rapazes mais corpulentos que já vi até hoje.

Desmonde continuava em silêncio.

É maravilhosa, pois não, a verdadeira nobreza do sacrifício em nome do amor. Abandonar a religião, a vocação, a esplêndida situação e correção na igreja, na realidade tudo, tudo por causa de uma cadelinha lânguida que levou a melhor sobre você num momento de fraqueza na escuridão. Ainda se orgulha disso? Ou agora acha que foi besteira?

Desmonde não ergueu a cabeça.

Besteira não murmurou. Loucura. E como fui violentamente punido!

Se ao menos, quando você sentiu a necessidade de um pouco de amor, por que não procurou a Sra. Donovan? Ela estava completamente caída por você. E então, depois que a paixão tivesse passado, poderiam ter-se acomodado tranquilamente, numa amizade carinhosa, e ninguém teria perdido nada com isso. Afinal, alguns dos nossos melhores Papas não tiveram suas mulheres, nos bons tempos? Mas não, você preferiu desempenhar o papel do cavalheiro, do herói, tudo por uma cadelinha vulgar que o arrastou para o nível dela, na sarjeta, e que agora lhe vai dar, tão certamente como Deus está no Céu, uma despedida de soldado. - Desmonde continuava em silêncio. O cónego prosseguiu: Ela é igualzinha à mãe, que abandonou um marido decente para fugir com um patife, com um vagabundo que fez o que quis com ela durante alguns meses, rodando por toda a Europa, e depois a deixou sem um tostão e sem ter onde cair morta. - Fez uma pausa. Ela se atirou debaixo de um trem na estação de Bregenz.

Um longo silêncio se seguiu, e então o cónego exclamou com um suspiro tão profundo que foi quase um gemido.

Se ao menos você estivesse comigo lá em Kilbarrack, rapaz. Acabando de voltar da sua missa, ou da sua aula das crianças da Primeira Comunhão, e estivéssemos sentados à mesa e eu estivesse enfiando o facão de trinchar numa boa perna de carneiro, toda sequínha e estalando, preparada pela Sra. O'Brien, e "você tivesse que dar uma caminhada à tarde, até Mount Vernon, para tomar chá e ouvir música com a Sra. Donovan, e o Arcebispo tivesse acabado de me mandar uma carta cheia de elogios a você... fazendo com que eu ficasse orgulhoso como se você fosse meu filho... Oh, meu Deus. realmente me parte o coração pensar nisso...

Ele se calou. Um longo silêncio doloroso se seguiu, e só foi quebrado quando a Sra. O'Brien voltou, quase sorrindo.

Abruptamente o cónego se levantou.

Então vamo-nos embora, Sra. O'Brien. Não há mais nada que possamos fazer aqui. O mal está feito e não pode ser desfeito. Adeus caro Desmonde, e que Deus o ajude.. Ele fez o sinal da cruz sobre o vulto inclinado sobre a mesa e se virou para a porta.

Adeus, querido Desmonde murmurou a Sra. O'Brien.. Rezo por você todas as noites e nunca o esquecerei.

Depois que eles se foram, Desmonde fez um esforço para se livrar da tristeza em que o melancólico solilóquio do cónego o mergulhara. Levantou-se e foi para o quarto, onde a garotinha. acabada de tomar banho e bem acomodada no berço, dormia profundamente. O quarto tinha sido arrumado e a cama havia sido feita, o que era uma novidade, uma vez que normalmente os lençóis ficavam jogados de qualquer maneira num emaranhado. O banheiro também havia sido limpo, as toalhas dobradas, o sabão e a esponja tirados do fundo da banheira e arrumados corretamente na pia. E ali, na pequena prateleira sobre a pia, enfiada sob o tubo de pasta de dente, estava uma nota de cinco libras novinha.

Aquilo foi a última gota, o toque final de compaixão e carinho, que penetrou no controle que Desmonde se impusera. Ele voltou para a sala, sentou-se à mesa, pôs a cabeça nas mãos e chorou amargamente.

Afinal se dominou e procurou pensar no futuro. O envelope do Dr. O'Hare continha vinte e cinco libras. Suas cinquenta libras de reserva, cuidadosamente guardadas na mala, e as cinco libras da Sra. O'Brien, completavam um total de oitenta libras. O aluguel da casa estava pago até o fim do ano. Pelo menos, ele não estava insolvente. Destrancou a mala, pôs as vinte e cinco libras no bolso do forro, junto com as cinquenta originais, trancou a mala e, com a nota de cinco libras no bolso, saiu e desceu a rua para pagar a conta da mercearia.

Estava com medo de que se tivesse esquecido, senhor comentou o comerciante quando a nota foi posta sobre o balcão. Agora, vamos ver. O senhor tem dezessete shillings e dezenove pence de troco. Quer que eu mande o leite amanhã de manhã?

Sim, por favor. E algumas daquelas maçãs ali. Desculpe-me o atraso.

Não tem mal nenhum. O que quer que digam do senhor, o nome Fitzgerald é o suficiente para mim. Deixe que eu lhe ofereça uma maçã por conta da casa. São as primeiras desta estação.

Com a maçã e os dezessete shillings e nove pence no bolso, Desmonde saiu da loja e foi para casa, aliviado, quando chegou, por encontrar a Sra. Mullen ali.

Achei que podia estar precisando de uma mãozinha, senhor. Teve uma porção de visitas. Posso fazer alguma coisa?

Se desse uma olhada no bebé, Sra. Mullen, eu gostaria de sair por umas duas horas. Vou-lhe dar a chave da casa.

Sim, senhor, vá e tome um pouco de ar fresco, pois não está com muito boa aparência.

Desmonde entregou a chave e saiu, com uma estranha sensação de fuga, enquanto se dirigia para o seu inevitável refúfgio, onde, quando menino, tantas vezes passeara com seu pai.

A tarde estava fresca e bonita, o parque deserto e, embora sentisse que devia andar, logo se sentou no seu canto isolado de costume, com árvores em volta e o canto dos passarinhos para consolá-lo. Comeu a maçã, com casca e tudo, atirou o miolo para alguns pardais amigos, recostou-se no banco e fechou os olhos. Logo estava dormindo.

Não foi um sono de indolência, mas sim, tão depauperado era o estado físico de Desmonde, um sono de pura exaustão, uma inconsciência benigna que durou três horas. A noite estava caindo quando ele acordou e saiu correndo para os portões do parque, para não ficar preso ali a noite inteira. Então, num passo mais moderado, começou a jornada de volta para casa e para a realidade. Sentia-se melhor e mais capaz de enfrentar o que quer que lhe estivesse reservado.

Quando se aproximava de casa, viu que a Sra. Mullen se achava novamente de patrulha, agora sempre um mau presságio. Ela quase correu ao seu encontro.

Oh, meu Deus! Senhor, graças a Deus que já voltou! Eu estava a ponto de ficar maluca. O que aconteceu não é digno de ser repetido. Ela fez uma pausa para recuperar o fôlego. Logo depois que saiu, a sua senhora apareceu num carrinho elegante, com um cavalheiro elegante. Entrou na casa às carreiras e saiu logo depois com a bagagem, depois entrou de novo e tornou a demorar. Aí, saiu com mais coisas e o bebé embrulhado num cobertor. Eles puseram tudo na mala do carro e o que não coube no banco de trás. "Para onde está indo, Madame?" aventurei-me a perguntar. "Para o Píer Cobh" respondeu ela, com jeito de embrigada. "E vá para o inferno você, e todo o resto, sua maldita velha Mullen." E eles foram embora com uma buzinada.. A Sra. Mullen tornou a fazer uma pausa. Dei uma olhada na casa, senhor. É como se as fúrias do inferno se tivessem soltado lá.

Desmonde entrou na casa. A sala parecia um campo de batalha. a mesa virada, cadeiras caídas, talheres e louça espalhados no chão. No quarto, o berço estava virado de lado, os cobertores e lençóis embolados numa pilha no chão, e na cómoda, seus dois porta-retratos de estimação, um com a gravura da Anunciação de Bartolommeo e o outro com a fotografia de sua mãe, estavam totalmente destruídos. Haviam sido atirados, sem dúvida, contra a quina da cómoda, o vidro estava quebrado, as molduras tortas e partidas, o retrato e a gravura rasgados e furados de maneira irreparável.

Desmonde se sentou no colchão e em silêncio examinou os estragos causados por tamanha demonstração de fúria, crueldade e ódio que o coração se lhe contraiu no peito, de tanta amargura e sofrimento. De repente um pensamento lhe ocorreu. Levantou-se de um salto, correu para a sala e abriu violentamente a porta do guarda-louça.

A sua mala ainda estava lá, mas a tranca fora forçada e estava quebrada. Ele se ajoelhou e levantou a tampa. O seu dinheiro tinha desaparecido todo, até a última libra. Ela havia acabado como começara, com um egoísmo indescritível e desonestidade a toda prova. Ela o deixara sem um tostão.

Ele ainda estava de joelhos e imóvel, uma imagem petrificada, quando a Sra. Mullen entrou na sala.

- Levante-se, senhor disse ela em tom consolador., Vou mandar o Joe vir arrumar a bagunça. Ele vai logo endireitar as coisas.

Ele permitiu que ela o levantasse, e o levasse para uma cadeira, que ela ergueu colocando de volta sobre as quatro pernas. Desmonde sentou-se ali, com um azedume acre na boca e um frio de medo no coração. Ex-padre, professor despedido e caído em desgraça, ele tinha exatamente dezessete shillings e nove pence para não morrer de fome.

- Não fique assim, senhor. Vou endireitar tudo em dois minutos.

Joe tinha entrado e, em mangas de camisa, havia começado o trabalho de restaurar a decência e a ordem. Desmonde simplesmente continuou sentado ali, num estado de inércia atordoada. Mas, quando Joe acabou e os dois aposentos tinham recuperado a aparência e a ordem habituais, ele fez um gesto para que Joe se sentasse a seu lado.

- Obrigado, Joe, de coração. Não consigo compreender por que você e a sua avó são tão gentis comigo. Não mereço.

O senhor merece. E sentimos sinceramente pelo senhor. Além disso, lembramo-nos de que seu pai foi muito bom conosco. Quando minha mãe viúva morreu, ele comprou a nossa casa para nós, para que vovó sempre tivesse um teto sobre a cabeça.

Desmonde ficou em silêncio. Sempre a virtude, a distinção e a nobreza de seu pai reapareciam para confundi-lo, e agora mais do que nunca.

Gostaria de lhe poder dar alguma coisa, Joe. Mas estou sem um tostão.

Eu imaginei que ela o depenaria, senhor. Nós. garçons no Hib, vemos e ouvimos mais do que o senhor jamais poderia imaginar. Nós a classificamos como sendo realmente da pior laia! Ele fez uma pausa. Agora que está em apuros, tem alguma ideia do que vai fazer?

Desmonde sacudiu a cabeça devagar.

Estou totalmente quebrado. Não tenho nenhuma maneira de me recuperar.

Acho que está enganado quanto a isso, senhor. exclamou Joe e hesitou. Está-se esquecendo do dom que tem, a sua voz... li tudo a respeito disso no Chronicle, e creio que poderia arranjar-lhe um emprego.

Desmonde olhou para ele com incredulidade.

É o seguinte, senhor. Lá no Hib, no grande salão, depois do jantar, normalmente fica uma quantidade enorme de gente, e o Sr. Maley, o gerente, com frequência contrata um artista, para cantar ou tocar para os fregueses. No inverno passado, tivemos Albert Sammons, o violinista. Assim, se me permitisse falar com o Sr. Maley, ele talvez o contratasse.

Desmonde ficou em silêncio. Cantar num bar, será que ele tinha descido tanto? Melhor cantar na rua. E por que não? Sentiu um impulso de se degradar mais ainda. Entretanto, a realidade não era assim tão má: o Hibernian era um hotel de primeira classe, prestigiado pela melhor sociedade de Dublin e por muitos visitantes de distinção. Acima de tudo, precisava urgentemente de trabalhar, não apenas porque estava privado de recursos, mas também como uma fuga da solidão melancólica que pairava sobre si.

Joe, você é um amigo de verdade disse ele afinal. Irei ao hotel com você a qualquer hora que quiser, e farei uma tentativa com o Sr. Maley.

Certo. Ele é um bom homem, o Sr. Maley,- e tenho a impressão de que o ajudará nas suas dificuldades. Fez uma pausa.. Será que poderia dar um jeito de aparecer por volta das quatro horas, amanhã à tarde? Vá bem vestido e arrumado, o melhor que puder.

Desmonde assentiu e estendeu a mão.

Estarei lá.

Depois que Joe se foi, Desmonde olhou para o relógio. Quase oito horas. Exausto física e mentalmente, só queria descansar. Mas primeiro se esforçou por comer: uma tigela de mingau de aveia com leite, seguida por uma das maçãs entregues anteriormente naquele dia e que a Sra. Mullen havia guardado no armário. Então tomou um banho quente e se deitou na grande cama, imediatamente consciente da paz, do abençoado silêncio e do espaço, da divina solidão de estar deitado sozinho e sem ser perturbado, na lenta busca do sono.

Às dez para as quatro, no dia seguinte, Desmonde saiu para ir para o Royal Hibernian Hotel. Tinha-se barbeado e se arrumara com mais cuidado do que o que ultimamente costumava dar à sua aparência. Engraxara os sapatos, negligenciados de dar pena, até brilharem, e pôs o seu melhor terno italiano com uma camisa de colarinho macio e uma gravata escura. Era evidente: embora terrivelmente pálido, estava tão bonito como antes e com a aparência tão jovem que parecia pouco mais que um adolescente. Na realidade, ainda não tinha trinta anos.

Do lado de fora do hotel estendia-se a fileira habitual de carros, alguns pequenos e comuns, outros maiores e de linhagem mais distinta. Entrou passando pelo vestíbulo e foi para o bar, guiado até ali pelo matraquear e pelo zumbido de vozes. De fato, o local estava cheio, principalmente de mulheres, pois aquela era a hora elegante de tomar chá em Dublin, e o Hibernian o lugar da moda. Desmonde ficou de pé do lado de fora. Andando de um lado para outro entre as mesas, podia ver Joe que, obviamente à espera de Desmonde, logo o avistou e dentro em pouco se aproximou dele.

Está com ótima aparência, senhor. E hoje há uma ótima afluência. Vou mandar avisar ao Sr. Maley que está aqui.

Desmonde esperou, ainda de pé, e logo o Sr. Maley veio em sua direção. O gerente do hotel era um homem bem apessoado de cerca de cinquenta anos, com uma presença e uma expressão a indicarem com firmeza que não suportava tolices. Olhou para Desmonde de cima a baixo e por fim disse:

Teve os seus problemas, Joe me disse que está praticamente desprovido de recursos.

A sua informação é correta. disse Desmonde.

Uma pausa. A resposta tinha criado uma impressão favorável.

Bem, aí está a sua audiência. Entre e mostre-me o que pode fazer com eles. Vou-me sentar aqui para assistir e ouvir.

Desmonde inclinou a cabeça, e sem dizer uma palavra foi andando com passos firmes até a plataforma, de cerca de trinta centímetros de altura, onde estava um piano de cauda. Seu aparecimento havia feito com que o burburinho cessasse imediatamente, seguido pelo murmúrio de muitos cochichos. Desmonde esperou que aquilo também cessasse. Então fez uma mesura e, em completo silêncio, se sentou ao piano.

Sua primeira escolha, dirigida ao Sr. Maley, foi aquela linda canção de Schumann, Wenn ich in deiner Augen seh. Cantou no alemão original, com suavidade e doçura, como convinha à letra, e em seguida sem fazer nenhuma pausa, passou direto para a mais terna das canções, Jeannie with the light brown hair. Quando acabou esta canção, num silêncio de atenção fascinada, foi obrigado a parar, tão animados foram os aplausos. Além de todos os rostos erguidos, Desmonde podia ver que Maley sorria e aplaudia vigorosamente.

Desmonde não deu nenhum sinal de agradecimento pelo seu sucesso, mas continuou com o seu programa, intercalando prudentemente as suas baladas irlandesas com as baladas alemãs, Der Lindenbaum, e Friihlingstraum. Com que frequência era obrigado a parar por causa dos aplausos prolongados e espontâneos, não é preciso dizer-se. Mas, quando encerrou com a sua favorita Tara e saiu imediatamente do palco, os pedidos de bis foram tão insistentes que ele se viu obrigado a voltar e cantar de novo o último verso. Só então ficou livre para fugir pela portinhola lateral, no fundo do palco, que dava para a sala de refeições dos garçons. E ali se encontrou cara a cara com o Sr. Maley, que puxou duas cadeiras de uma das mesas.

Sente-se, Desmonde. Está cansado?

Um pouco, senhor. E com muita fome.

Cuidaremos de tudo isso, rapaz. Agora ouça. Sou conhecido como homem justo e honesto, e não vou, digo que não vou, tirar proveito das suas necessidades. Você deu um espetáculo maravilhoso e sei do que estou falando. Creio que você seria capaz de encher essas salas até ter gente amontoada querendo entrar! Fez uma pausa, fitando Desmonde bem nos olhos. Ora, o que proponho é o seguinte: Se você cantasse na hora do chá, por uma hora, e não mais do que isso, pois não quero matá-lo, e depois descansasse num quarto que vou reservar para você e fosse servido lá com o nosso jantar completo à la carte -e um vinho adequado, e então, após outro descanso, cantasse de novo apenas por uma hora para o público depois do jantar, eu estaria disposto a lhe pagar trinta libras por semana, desde que você ficasse comigo a temporada inteira, até depois do Festival da Primavera.

Desmonde tinha ficado muito pálido. Murmurou:

É muito generoso, realmente generoso. Sabe da minha necessidade imperiosa.

Maley sorriu.

Pois é, eu poderia tentar explorá-lo. Mas isso não é papel para James Maley. Além disso, tenho o pressentimento de que você vai encher o hotel. Agora ele se levantou vou mandar Joe trazer-lhe um chá. Ele o levará até o seu quarto.

Ele tomou a mão flácida de Desmonde num aperto firme, virou-se e saiu.

Sozinho, Desmonde se sentiu dividido entre uma maré crescente de alívio satisfeito e a reação nervosa das lágrimas. A entrada de Joe, com um sorriso de uma orelha à outra no rosto, livrou-o de ceder à crise de choro que o ameaçava.

Sei como se sente, senhor. Fez um grande sucesso e estou radiante. Agora tome o seu chá, está bom e quente.

Obrigado, Joe. Mil vezes obrigado. Com a voz embargada, ele nada mais pôde dizer.

Joe observou com uma expressão paternal enquanto Desmonde tomava, agradecido, o chá quente.

Há duas senhoras, a Sra. Boland e sua irmã de Ballsbrídge, pessoas realmente agradáveis, senhoras de distinção, eu as conheço bem. Elas perguntaram se lhes daria a honra de ir até à mesa delas.

Desmonde sacudiu a cabeça.

Não, Joe. Por favor, agradeça-lhes, mas quero que se saiba que tomei a resolução de nunca, nunca aceitar esses convites.

Compreendo, senhor, e o respeito por isso. É claro que essas senhoras, e outras como elas, que nos vêm procurar, são gente de primeira classe, gente boa mesmo. Agora, se já acabou, vou levá-lo até o seu quarto.

O quarto, convenientemente perto, no andar térreo, era pequeno, com uma pia e uma cama de solteiro bem feita, uma janela que dava para o pátio, em completo silêncio àquela hora. Dêsmonde se atirou na cama e fechou os olhos.

Tem mais de uma hora até o jantar, senhor disse Joe, quando fechava a porta.

Desmonde dormiu até as sete horas, sendo acordado por Joe, que lhe trazia o jantar.

O próprio Sr. Maley escolheu para o senhor disse Joe, pondo a bandeja bem servida sobre a mesinha junto da janela.

- Ele achou que algo leve talvez fosse adequado para a sua primeira noite.. Acrescentou, a caminho da porta: Precisava ver os jornais da tarde, senhor. São uma verdadeira festa!

Desmonde não tinha nenhum interesse no que os jornais pudessem dizer a seu respeito. Endurecida pelo tratamento cruel que já havia recebido, sua mente mostrava-se passiva, seu estado de espírito, envolto numa capa de total indiferença, era de curiosa insensibilidade. Bom ou mau, tudo era superficial, nada era importante.

No entanto, foi perfeitamente capaz de saborear o jantar: uma taça de um delicioso caldo de carne, seguida por uma fatia grossa de rodovalho e batatas, adequadamente acompanhados por dois copos de vinho branco. A sobremesa era souffle de chocolate com creme batido.

Havia muitos e muitos meses, desde a sua alegre estada em Roma com a marquesa, que não saboreava uma refeição assim, e uma refeição que exatamente por sua qualidade o revigorasse e fortificasse tanto. Sorriu de leve quando pensou no que ofereceria ao público naquela noite, e em como lidaria com ele com habilidade e naturalidade. Ainda estava fazendo planos quando a porta se abriu e o próprio Maley em carne e osso entrou, um Maley sorridente, esfregando as mãos, gentil e solícito.

Estava tudo bem, Desmonde, o jantar estava a céu gosto? - E então reafirmou:. Você precisava ver os jornais da tarde, estão extasiados, dizem que você ainda é melhor que John McCormadk. Estamos com a lotação esgotada, com reservas para o restaurante, e tivemos que colocar mais trinta cadeiras no bar. Espero que a multidão não o preocupe.

Não, de maneira nenhuma. Mas, se eu me sentir cansado, poderia passar a noite aqui neste quarto?

É claro, é claro, homem. E amanhã lhe arranjarei um melhor.

Obrigado, Sr. Maley, mas eu gosto bastante deste aqui. Faz com que eu me lembre de um quartinho que tive na Espanha durante o meu noviciado.

Bem, bem, é só me avisar. Você sabe que eu quero vê-lo satisfeito. Fez uma pausa.. Estará pronto às oito horas?

Desmonde apenas sorriu, um sorriso agradável e indiferente, sintomático do seu estado de espírito naquele momento. E às oito horas ele estava pronto, arrumado e com ótima aparência, por ter-se lavado com água fria. Saiu do quarto impassivelmente, sem ter pensado em dizer uma pequena prece para que o sucesso continuasse, estava calmo e não se deixaria perturbar pelo zumbido de muitas vozes que chegava até ele, decidido a manter aquela calma, a nunca sorrir, mas a usar sem restrições ou reservas o magnífico dom que tinha, a usá-lo como uma resposta amarga àqueles que o tinham tratado tão cruelmente.

Quando Desmonde já cantava no Hibernian há três semanas houve um evento que poderia ser considerado incomum. Foi o Festival da Primavera, a grande festa de Dublin que atrai várias centenas de visitantes à cidade. Maley estava fora de si de animação, não apenas providenciando acomodações para seus muitos clientes ricos, que exigiam os melhores quartos do hotel, mas, em resumo, tentando lidar com a incrível popularidade de Desmonde. Tinha aumentado o bar acrescentando mais duas salas e, astutamente, havia estabelecido um convert de dois guinéus por pessoa. Estava, portanto, não apenas impedindo um motim, mas também ganhando rios de dinheiro, e sua atitude para com Desmonde havia-se tornado mais cheia de deferências do que nunca.

Mais alguma coisa que eu possa fazer por você, Desmonde, é só dizer. Sabe, é claro, que lhe vou dar um prémio no fim do Festival.

Ótimo, Sr. Maley. Sabe, é claro, que nessa ocasião estarei indo embora.

Maley teve um sobressalto.

Por Deus, homem! Não pode fazer isso! Ainda não chegamos nem perto do auge!

Mesmo assim, irei embora. Lembre-se dos termos do nosso acordo. O senhor disse, de maneira clara, "até o fim do Festival da Primavera".

Mas, não vê, Desmonde...

Eu não vejo, Sr. Maley. E, como o senhor é, segundo suas próprias palavras, um homem honesto, estou-lhe pedindo que cumpra a sua palavra.

Eu lhe pagarei o dobro... e mais até.

A resposta é não. Não pode esperar que um cantor do meu gabarito continue sem um intervalo. Além disso Desmonde baixou a voz. tenho um motivo pessoal para partir.

Então voltará, Desmonde, tem que voltar.

Veremos, Sr. Maley. Veremos.

Naquela noite, Desmonde estava na sua melhor forma, cantando com um olhar distante, como se, esquecido da audiência, fitasse uma felicidade que ainda estava por vir. No final do espetáculo, encontrou Joe na sala dos garçons, aparentemente tirando um momento de folga do movimento cansativo do seu trabalho.

Ouça, senhor. Há uma mulherzinha gorda, sentada bem junto do canto do palco, que me mandou pedir-lhe para ir falar com ela.. De maneira ansiosa, ele mostrou uma nota de cinco libras. Gostaria que fosse, senhor, por mim. Ela nem de longe é bonita, posso-lhe garantir, e sou capaz de apostar esta nota como é alguém importante.

Então irei, Joe. Só desta vez. Por você.

Depois que o movimento diminuiu, Desmonde atravessou o palco rapidamente e desceu, indo até a mesa que Joe havia indicado. A mulher, tal como Joe havia descrito, estava sentada com um copo de uísque com soda, que mal havia sido tocado, diante de si. Estava com um vestido decotado que realçava o busto gordo e lhe caía mal. Desmonde ficou parado, em silêncio, com uma expressão de desagrado, esperando que ela fizesse o seu pedido, ao que imaginava, de um autógrafo. Ela também o examinou em silêncio. Afinal, com um forte sotaque americano sulista, ela disparou:

Então você é o padreco Fitzgerald que eles expulsaram por adultério.

O rosto dele se endureceu.

Exato, Madame.

A fornicação foi boa?

Muitíssimo. Ele disse a palavra de maneira cáustica, quase como se estivesse cuspindo.

E parece que você também é cantor.

Exato, Madame. Uma pausa.

Não usa o traseiro para sentar?

Prefiro apreciar as suas gentilezas de pé, Madame. E agora que já demonstrou a sua espirituosidade, posso ir embora?

Mas, antes de fazê-lo, permita-me dizer-lhe que você é a criatura mais imunda, gorda, obscena, vulgar e, numa palavra, repelente que até hoje encontrei em toda a minha vida.

De maneira surpreendente ela explodiu em gargalhadas e, embora ele já tivesse começado a se afastar, ela estendeu rapidamente um braço gordo e seus dedinhos rechonchudos, um deles enfeitado por um brilhante do tamanho de uma avelã, o puxaram, fazendo-o sentar-se ao seu lado.

Não fuja, Desmonde. Acho que gosto de você, muito. Estou tão acostumada com gente alcovitando, mentindo, lambendo os meus pés, tentando desesperadamente obter as minhas graças, que é revigorante, pelo menos por uma vez, ouvir a verdade. Fez uma pausa. - Sabe, é claro, quem sou eu?

Não tenho a mais remota ideia, Madame. E não tenho nenhum desejo de saber.

Sou Bedelia Basset. Conhecida em todos os Estados Unidos como Delia B. Agora sabe quem sou?

Desmonde sacudiu a cabeça em silêncio.

Meu Deus! Você é mesmo um caipira, rapaz. Não sabe que sou publicada em sessenta dos jornais mais vendidos da América, que os maiores diretores de Hollywood tremem na minha presença, que estrelas famosas me imploram e suplicam palavras gentis com que torná-las mais famosas, ou têm pavor das palavras que podem mandá-las de volta para a rua, vendendo balas?

Madame, eu não sei, nem estou interessado em nada disso. O único conhecimento que tenho do seu fabuloso reino vem de um amigo, meu querido amigo, o único que tenho no mundo inteiro. É Alec Shannon, um romancista, que esteve em Hollywood e de fato vendeu seus dois primeiros romances para o cinema.

Alec Shannon! Acho que conheço o nome. Mas romancistas são fichinhas em Hollywood, nós os consideramos ralé! Diz que é seu único amigo?

Sim, a não ser o Joe, o garçom. Sou considerado um pária por todos os outros.

E a sua esposa?

Eu a odeio disse Desmonde com simplicidade. Sim, com a mesma intensidade com que amo a minha querida filhinha. Vou vê-la breve. Ela está com a tia da minha mulher, a Sra. Donovan, cujo uísque a senhora está bebendo.

Meu Deus, Desmonde, sou dura na queda, mas você me espanta. A Sra. Donovan deve ter uma fortuna de milhões de dólares, ela doa catedrais, entretanto aqui está você...

Cantando num bar por algumas libras por semana. Fez uma pausa. É por minha própria escolha, não me importo com mais nada. E, é claro, vou deixar o Sr. Maley para ir visitar a minha filhinha.

- Ele não o deixará ir. Você é o maná caído do céu para ele. A menos que... você não assinou nada?

Desmonde sacudiu a cabeça.

- Graças a Deus. Isso teria sido um mau começo. Agora me ouça, Desmonde, não costumo gostar, mas quando gosto... gosto mesmo. E o que tenho que lhe dizer é o seguinte: está perdendo o seu tempo e o seu talento aqui. Seu magnífico talento! Sei que você foi ferido e que quer-se esconder. Mas isso tem que parar. Amanhã vou partir para o interior, no Oeste, para visitar um vilarejo de onde acho que vieram os meus ancestrais, mas estarei de volta numa semana, mais ou menos. Antes que eu vá, será que você faria uma coisinha para mim?

Desmonde inclinou a cabeça.

Vou estar nesta mesma mesa, hoje à noite. Não cante essas lindas cançõezinhas irlandesas. Cante algo grandioso, clássico, tirado de óperas. Faça isso e saberei que está comigo! Agora vá e jante. Vou ficar aqui mais um pouco, enviar alguns telegramas e acabar o uísque da titia.

A despeito da sua indiferença habitual, Desmonde ficou um pouco impressionado com aquela mulher. Quando acabou de jantar, sentiu-se compelido a escrever uma de suas cartas periódicas ao amigo.

"Esta tarde fui abordado por uma estranha mulherzinha gorda, coberta de jóias e dizendo chamasse, com grande pompa, Bedelia Basset. Acredite ou não, ela parece ter simpatizado comigo, ou melhor, com as minhas perspectivas. É uma piada, é claro, mas ela conhece você, embora despreze todos os escritores e os ponha de lado com um palavrão impublicável. Sabe, vou largar o meu emprego aqui no bar. A deliciosa comida, fornecida gratuitamente por Maley, já me fortaleceu bastante, e vou para Vevey, a fim de ver a minha filhinha. Gosto muitíssimo dela, Alec, embora com certeza você vá considerar isto mais uma prova da minha fraqueza. O que aconteceu com minha mulher eu não sei, nem me interessa. Estamos irremediavelmente separados, e não tenho nenhuma dúvida de que ela esteja encontrando seus divertimentos por aí. Será que por acaso lhe agradaria tirar umas férias curtas e ir comigo para Vevey, só por uns dois ou três dias? Já faz tempo demais que não nos vemos, e o ar das montanhas da Suíça lhe faria um bem incrível..."

Quando a carta estava terminada, o envelope fechado e selado, Desmonde a entregou a Joe para que a pusesse no correio. Ele tinha acabado de entrar para buscar a bandeja do jantar, parecendo estar particularmente satisfeito.

Conhece aquela estranha gorducha ianque, senhor?. Intimamente, Joe!

Bem, senhor, ela acabou de me dar uma gorjeta para guardar aquela mesma mesinha de canto para ela. Adivinhe quanto?

Seis pence, Joe.

Não, senhor, isto... - Joe exibiu uma outra nota de cinco libras. E ela me pediu para lembrá-lo das músicas de ópera.

Ela será obedecida, Joe.

Talvez pela primeira vez, desde que fora contratando para o Hibernian, Desmonde estava num estado de espírito alegre quando entrou no palco já familiar, às oito horas. Ele chegou até a sorrir quando encarou a plateia, que, grande como de hábito, era de natureza um pouco diferente das precedentes. O Festival da Primavera havia acabado, a maioria dos elementos mais estranhos se tinha ido embora, e ali, naquela noite, estavam membros da pequena nobreza irlandesa, que tinham ficado mais um pouco, fosse para ouvi-lo, fosse por motivos outros.

Espero não desapontá-los esta noite começou Desmonde com muita suavidade.. Como devem saber, canto muitas canções e baladas irlandesas. Entretanto, hoje à noite, a pedido de uma ilustre visitante americana muito famosa, concordei em cantar dois números de ópera. O primeiro será do querido Puccini, da Tosca, a última canção, muito triste e tocante, cantada por Cavaradossi antes da sua execução. A segunda será a Canção do Prémio do Die Meistersinger, que, talvez lhes interesse saber, eu cantei em Roma quando, sacerdote recém-ordenado, ganhei a competição do Cálice de Ouro. Ele fez uma pausa, esperando que o burburinho que se seguiu a sua declaração cedesse, e então disse: Vou cantar a primeira no italiano original, e a segunda em alemão, exatamente como Wagner a escreveu.

Sentou-se ao piano e de memória, em parte improvisando, tocou a melodia angustiada da Tosca, o tema que acompanha o último ato da ópera, e então começou a cantar.

Naquela noite, talvez por causa das férias que se aproximavam, ele estava numa forma extraordinária. Naquele último grito apaixonado, ardente, desesperado e, no entanto, corajoso do condenado, Caravadossi, ele pôs todo o sentimento que Puccini havia idealizado.

Quando acabou, os aplausos, embora disciplinados, foram ensurdecedores, acompanhados de uma série de "Bravos" vindos da mesa do canto perto do palco. Desmonde se inclinou repetidamente, agradecendo, e então se sentou ao piano para descansar. Não podia deixar de ver a americana baixinha que, tendo abandonado o charuto, escrevia como louca, num bloco de formulários de telegrama.

Completamente descansado, estava pronto para cantar de novo. Silêncio absoluto. Esperou só um momento, então atirou a cabeça para trás e começou a entoar aquele sublime volume ascendente de deliciosa e fascinante melodia, a melhor escrita por Wagner, e na qual a mística fatalista alemã estava tão profundamente enraizada.

 

É uma canção longa e cansativa, e Desmonde deu tudo que tinha dentro de si. Quando acabou, sentiu-se exausto e, em vez de deixar o palco imediatamente, ele se sentou com a cabeça baixa e deixou que uma onda de aplausos após outra rolassem sobre ele.

Todo mundo estava de pé. De maneira vaga, viu a sua amiga americana lutando para abrir caminho até a porta e pensou: nunca mais a verei. Afinal ele se levantou e se inclinou repetidamente, abrindo os braços e repetindo vezes sem conta: Obrigado, obrigado, obrigado. Então se virou, foi para o quarto e se deitou na cama.

Joe demorou mais do que de hábito a vir, mas afinal chegou, as mãos cheias de cartões e pedaços de papel rasgados.

Nunca se viu tamanha comoção na vida, senhor, pelo menos eu nunca vi, em todos os meus dias de Hibernian. Nem, tampouco, a metade da grã-finagem da Irlanda, falando sobre o senhor, mandando cartões com todo tipo de recados, suplicando-lhe para visitá-los, e para ficar também. Quer que eu leia para o senhor?

Não, Joe, jogue-os na lata do lixo.

Deus me proteja, senhor, não está falando sério! Aqui está um do Governador da Irlanda e sua senhora. "Venha visitar-nos, Desmonde, queremos muito conhecê-lo."

Jogue esse primeiro, Joe.

E aqui está um, senhor. Joe baixou a voz para um murmúrio respeitoso que é nada mais nada menos de Sua Excelência o Arcebispo Murphy, que diz: "Meu filho, agora sem dúvida você expiou o seu pecado. Venha procurar-me, Desmonde, e verei o que poderá ser feito por você."

Pegue esse aí, Joe. disse Desmonde com amargura rasgue-o em pedacinhos e jogue na latrina.

De maneira nenhuma, senhor disse Joe, ultrajado. Isto seria um pecado mortal para mim. Quer goste ou não, vou colocá-lo na bolsa da sua mala.

Nada daquela ianquezinha simpática e engraçada?

Há sim, senhor, escrito num formulário de telegrama da Western Union. Quer que eu jogue este na latrina também?

Pare de implicar comigo, Joe. Leia, leia, leia, leia!

De maneira provocante, Joe pigarreou várias vezes, antes de ler:

"Caro Desmonde, você me deu o furo do ano. Amanhã seu nome estará fazendo estardalhaço em trinta jornais por todos os Estados Unidos, anunciando a minha descoberta, jovem ex-padre bonito, irlandês, novo, melhor do que Caruso, cantando por tostões num bar, uma história que arrancaria lágrimas de uma pedra. Não assine, absolutamente, nenhum contrato antes de eu tornar a vê-lo. Até lá, continuo com amor e beijos a criatura mais imunda, gorda, obscena, vulgar e, numa palavra, repelente que você já encontrou em toda a sua vida."

Essa é uma pessoa de verdade, Joe disse Desmonde.

"- É mesmo, senhor. Antes de sair correndo, ela me deu outra nota de cinco e me disse para cuidar do senhor.

E você o tem feito, Joe, desde o início. Ponha essa mensagem na mala, ao menos merece ser guardada como lembrança.

E agora, senhor Joe se inclinou obsequiosamente que é que eu poderia providenciar para o senhor como jantar?

Pare com isso, Joe! Traga-me alguma coisa gostosa. Estou com fome e cansado. E, se puder, afane uma meia-garrafa de champanha para mim.

Não é preciso afanar, senhor, o Sr. Maley lhe dará o que há de melhor na adega. Estarei de volta em meia hora.

Desmonde se levantou, tomou um banho quente, bem demorado, depois se enxugou, calçou os chinelos, vestiu o pijama e o robe. Não sabia o que pensar, e assim resolveu não pensar nada.

 

O trem-correio irlandês estava atrasado, fazendo com que eu passasse quase uma hora na umidade desagradável da Estação Euston. Mas afinal chegou, a máquina arfando e roncando como se tivesse escalado o Snowdon no caminho. E lá estava Desmonde andando pela plataforma, carregando uma maleta de mão que parecia quase vazia. Nós dois queríamo-nos abraçar, mas nos contivemos. e trocamos um aperto de mãos.

A sua bagagem está no compartimento de carga?

Não, está aqui.

Esplêndido, então podemos ir já.

Dê-me o braço, Alec, Ainda estou bambo do balanço do mar.

Estava ruim? Como de hábito?

Uma tempestade.

Eu tinha vindo para a estação de ônibus. não querendo jogar a minha riqueza na face de Desmonde. Rapidamente achamos um táxi e nos sentamos um defronte do outro, enquanto íamos sacolejando.

Você está em ótima forma, Alec.

Você também, Desmonde. menti de forma casual. Ele ainda era fascinantemente bonito, mas estava triste e, é claro, cansado.

E a sua querida mãe?

Está bem e feliz. Tem um apartamentozinho agradável, de frente para o mar, em Hove, a três minutos apenas da igreja. É claro, quando meus garotos estão em casa, ela está sempre conosco.

Para onde me está levando?

Para casa. É só uma casinha em Kensington, mas é agradável, tranquila e bem perto do parque.

Ele queria saber mais, mas, como sempre, era educado demais para perguntar. Dentro de pouco tempo paramos em frente à casinha branca que eu amava tanto, uma casa num quarteirão tranquílo, totalmente livre de ruído de tráfego. Mandei o táxi embora e abri a porta da frente com a minha chave.

Eu o levei para o andar de cima, para o quarto de hóspedes que dava para o jardim da casa.

Pode-se acomodar aqui, seu banheiro é bem ali. Agora, que tal comer alguma coisa?

De jeito nenhum, Alec. Adoraria um bom banho, depois muita conversa.

Sorri, pus minhas mãos nos ombros dele e lhe dei uma boa sacudida para quebrar o constrangimento que havia entre nós. Afinal, já transcorrera muito tempo desde que havíamos estado juntos pela última vez. Então desci e fui até a cozinha para ver a Sra. Palmer, a minha ótima diarista, que havia concordado em ficar além das quatro horas, a sua hora habitual de partida.

Está tudo pronto para o jantar, senhor... As costeletas estão na grelha, as batatas descascadas e prontas, a salada está feita e na geladeira com a torta de maçã.

Obrigado, Sra. Palmer. E foi muito gentil de sua parte ficar além da sua hora.

É um prazer, senhor, quando é para o senhor. Ela apanhou as suas coisas e saiu, dizendo:

A sua correspondência está na mesa do vestíbulo, senhor.

Lá em cima, passei os olhos pelas cartas, que pareciam promissoras, e fui para a sala de visitas. Desmonde já estava lá, de pé, olhando em volta de si.

Oh, venha, Desmonde, pare de olhar em volta e sente-se aqui perto de mim.

- Não posso, Alec, é uma sala tão bonita, tudo, tudo, e os seus quadros...

Eu o tomei pelo braço e o trouxe para o sofá ao meu lado. Mas ele continuava olhando.

Aquele lindo Sisley, aquele Utrillo da primeira fase, o Mary Cassatt, aquele admirável conversation piece violeta, é um Vuillard?

Assenti.

Madame Melo, a atriz, e sua filha. Mas pare, Desmonde. você está-me deixando terrivelmente constrangido.

- Não posso parar, Alec, estou gostando tanto e. meu Deus! Acho que é um Gauguin ali! Pont Aven, logo depois que ele voltou do Taiti, sem um tostão.

É isso mesmo, Desmonde. Ele não tinha dinheiro suficiente para comprar uma tela. Aquela coisa linda foi pintada em aniagem. É claro que mandei pôr-lhe novo fundo, em Nova York, onde o comprei. E está encaixado numa moldura Luis XVI autêntica, simplificada, é claro. Agora e você, Desmonde, o que...?

Só mais uma, Alec, aquela coisa linda, do Sena, acho.

Não me importo de falar daquela obra-prima, Desmonde, pois é o meu favorito. É o Sena em Pâssy, a última paisagem pintada por Christopher Wood. Há uma carta da mãe dele nas costas.

Logo antes... na Estação de Salisbury, não foi? Sim... Que grande perda!

Desmonde ficou em silêncio, um instante, após o que disse:

Você parece estar sozinho aqui, Alec.

Sim, estou. Minha querida esposa e os meus dois filhos, dois meninos, estão em Sussex.

Num hotel?. perguntou Desmonde, examinando a fotografia numa mesinha.

É claro que não. Tenho uma velha cabana lá. Nós a usamos muito.

Despreocupadamente, Desmonde perguntou:

Aquela é uma bela casa georgiana antiga, com magníficos estábulos velhos de tijolos, transformados numa galeria e com uma vista, parece, de Downs.

Aquilo é a Antiga Reitoria, é claro, pertence ao Vigário. Um bom sujeito. E, pouco mais acima na rua, fica a Igreja de Mellington. Estilo normando autêntico, pode ver o trabalho de alvenaria típico. Não lhe posso dizer como é bonita. Um dia destes eu lhe mostro.

Obrigado, Alec. Talvez o vigário nos deixe ficar na Antiga Reitoria. Então disse: - Alec, você continua, como sempre, o melhor e o mais querido dos amigos que um homem jamais poderia esperar ter. Mas, pelo amor de Deus, só por causa do terrível fracasso que fiz da minha vida, não tente minimizar o sucesso da sua.

Pare com isso, Desmonde! O seu sucesso está bem na sua frente.

Não vou parar. Você fez o seu curso na escola e na universidade quase sem um tostão. Não tinha dinheiro, por isso teve que arranjar um emprego de assistente. Era trabalho duro, constantemente passava a noite em claro, mas conseguiu passar nos exames com distinção, e em dois tempos fez uma clínica muito bemsucedida. Pouco tempo depois, faz um grande sucesso, e agora aqui está você, um escritor famoso. Você realmente conseguiu um milagre. E eu... eu sou um padre expulso, abandonado, graças a Deus, pela cadela da minha esposa, sem nada além de trinta libras no bolso.

Por favor, cale-se, Desmonde. - Cheguei mais para perto dele e pus o braço em volta de seus ombros. Tive uma sorte infernal. E agora vamos fazer um milagre para você. Diga-me, o que foi que Bedelia B. disse quando voltou?

Disse muita coisa, e depois que a gente se acostuma com ela, a gente acaba apreciando-a um bocado. Bem, aqui está, sem rodeios: eles estão definitivamente resolvidos a fazer um filme baseados na vida de Enrico Caruso. Não será chamado assim, é claro, mas alguma tolice no género de A Voz de Ouro, ou A Voz que Encantava o Éden, De qualquer maneira, eles já estão com um excelente roteiro pronto, mas a ideia original de usar discos de Caruso foi abandonada. Todos os discos antigos são terríveis e, além disso, mesmo que ainda fossem utilizáveis, o resultado seria evidentemente mecânico e fraco. Assim, eles estão procurando intensamente alguém para viver o papel e cantar, se possível, parecido com Caruso. Bedelia acha que o papel é feito para mim e, preste atenção, ela não é nenhuma idiota e conhece Hollywood de trás para a frente. Parece gostar de mim, só Deus sabe por que, e vai tentar conseguir-me o contrato.

Tomei as duas mãos de Desmonde e as apertei.

Aí está o seu milagre, Desmonde. Que oportunidade divina! É uma dádiva de Deus, Com um começo como esse, nada poderia detê-lo. Agora eu lhe prometo o seguinte, Desmonde, farei tudo para ajudar. É claro que vou com você. Tenho alguns negócios meus a tratar lá. Vamos fazer umas compras amanhã. Vou tomar conta de tudo, bilhetes, reservas, acomodações, tudo.

Mas, primeiro tenho que ir ver a minha filhinha. Ela está com a Sra. Donovan, na Suíça.

Faremos isso no caminho. Tomaremos o navio em Génova.

Eu ainda lhe estava segurando as mãos. Ele levantou as minhas e as beijou. Vi com constrangimento que ele estava lutando contra as lágrimas.

Alec, você é sempre tão gentil com um desgraçado de um sujeito arruinado e acabado, e eu o amo por isso, como sempre amei.

Chega, Desmonde. Venha e me ajude a tirar o jantar. Descemos até a cozinha, onde liguei a grelha elétrica e acendi

o gás sob a travessa de batatas.

Achei que você preferiria comer em casa, hoje à noite. Está com fome?

Morto de fome, agora que parei de sacolejar. Passei metade da viagem vomitando.

Ele estava sentado à mesa da cozinha, e eu fui para perto dele. Que ideias fantásticas aqueles romanos antigos tinham para recuperar o apetite!

Mas dolorosamente, sem dúvida.

Você se lembra do velho Beauchamp e o bolo? Ele tinha tamanho apetite que com certeza ainda deve estar vivo.

Desmonde sorriu.

De fato, ele se alimentava bem. Mas acho que a velha Madre Superiora deve ter morrido.

Oh, sim! Certamente ela está no céu. Desmonde, nunca me esquecerei da cena, na ocasião em que você cantou para ela. A partir daquele momento, você estava destinado ao cinema.

Nunca me esquecerei daquela jogadora de hóquei gorducha. Que boa praça ela era! E que ancas!

Quando as batatas ficaram prontas, eu as servi e desliguei a grelha.

Vamos comer aqui, Alec. Dá tanto trabalho carregar tudo até lá em cima.

Nem sonhe com isso. Suba para a sala de jantar, vai ver que a mesa já está posta.

Ele olhou para mim com indecisão por um momento, então obedeceu. Rapidamente pus a comida no pequeno elevador embutido e fui-me juntar a ele no andar de cima.

Onde está a comida, Alec?

Apertei o botão na parede, houve um leve zumbido, imediatamente as duas portas embutidas se abriram e lá estava o nosso jantar.

Que ideia genial!

Não se tem mais empregados que corram para baixo e para cima nessas escadas vitorianas, hoje em dia. A nossa Sra. Palmer é muito boa, mas ela se recusaria!

Nós nos sentamos para jantar. Tudo muito simples, mas gostoso. Desmonde devorou duas costeletas com uma rapidez elogiável e um bom pedaço de torta.

Não lhe posso oferecer um vinho, Desmonde. Não temos o hábito de tomá-lo aqui.

Esta Perrier está muito boa.

Mais um pedaço de torta?

Só um pedacinho. Está deliciosa.

Depois que acabamos, eu disse:

Agora a receita é a seguinte: um banho quente e cama, de maneira que amanhã você esteja descansado e bem disposto.

Pus os pratos no elevador e os mandei para baixo para que a Sra. Palmer cuidasse deles pela manhã. Então subimos.

Tem tudo de que precisa? Pijama, escova de dentes, aparelho de barbear, etc....?

Tudo, obrigado, Alec. E o meu quarto e o banheiro são adoráveis.

Então, boa noite, Desmonde. Durma bem. Boa noite, caro Alec.

Na manhã seguinte eu me levantei, como de hábito, às sete horas, tomei um banho frio e fiz a minha caminhada-corrida diária, subindo Victoria Road, atravessando o parque até a Igreja dos Carmelitas, para chegar bem a tempo para a missa das oito.

A caminho de casa comprei o jornal e broas frescas. A Sra. Palmer, sempre pontual, já tinha chegado e o meu café já estava pronto, bem quente.

Creio que o Sr. Fitzgerald gostaria de tomar o seu café no quarto. Eu o levarei para cima, Sra. Palmer, dentro de uns dez minutos.

Depois de ter passado os olhos no jornal, esperando sem sucesso ver alguma menção do meu novo romance, peguei a bandeja que a Sra. Palmer tinha preparado, acrescentei a minha segunda xícara de café e subi para o quarto de Desmonde. Ele estava acordado, mas ainda na cama. Pus a bandeja na mesinha de cabeceira enquanto ele se levantava num cotovelo.

Que ideia gentil! Não tomo café na cama há pelo menos uns cem anos.. Ele bebeu. E um café tão gostoso! Foi você que eu ouvi saindo?

Minha caminhada matinal de costume. Até a Igreja dos Carmelitas para a missa das oito.

Ele pareceu recuar um pouco, mas obrigou as palavras a saírem:

- E para a comunhão.

É claro. Isso também é rotineiro. E um excelente começo para um dia.

Ele ficou em silêncio, e após um momento, disse:

Sou forçado a lhe dizer, Alec, que me afastei completamente da Igreja. Nunca mais voltei. Acho que o Todo-Poderoso me tratou muito mal.

Você não acha que O ajudou bastante? De qualquer maneira aposto um novo livro de orações como você vai voltar um dia destes. Bem. está uma manhã linda e não vamos desperdiçá-la discutindo teologia. Vista-se e vamos até a cidade.

Meia hora depois, Desmonde entrou no meu quarto, vestido e arrumado. Eu tinha posto o meu terno escuro, sapatos pretos e chapéu coco.

Puxa vida, Alec, você é alguma coisa na City? Ri.

Na minha primeira visita a Hollywood, uma mulher muito importante, que tinha acabado de escrever e produzir The Big House, me puxou de lado discretamente. Eu estava todo vestido de twecd, com uma camisa colorida, uma gravata vistosa e sapatos de camurça. "Alec, pelo amor de Deus, não se vista como um escritor, você não chegará a lugar nenhum. Vista-se como um homem de negócios". Segui o conselho dela.

Descemos e saímos. A manhã estava deliciosa, fresca, bonita e ensolarada. As ameixeiras nos jardinzinhos da rua tranquila já estavam todas em flor.

Andamos até o final de Victoria Road e tomamos o ônibus número 9, no ponto perto de Kensington Gardens.

Os jardins estavam lindos, muito verdes, algumas babás madrugadoras já passeando com os carrinhos. O parque também estava todo bem verde e com folhagem nova. Passamos por Marble Arch e entramos em Piccadilly, com suas lojas maravilhosas. Que cidade adorável era Londres, naquela época: sem problemas de tráfego, os ônibus rápidos seguindo sem dificuldades, as calçadas limpas, vazias, os policiais fazendo a sua ronda, os leiteiros entregando sua mercadoria, tudo realçado por uma sensação de atividade honesta, beleza e ordem.

Saltamos em Burlington House e viramos à esquerda, entrando em Savile Row.

- Agora o seu trabalho vai começar mesmo, Desmonde. Tudo que vamos fazer agora é só janotismo, mas todo mundo que eu conheço o faz, assim eu apenas fui atrás dos outros.

Não o levei ao meu alfaiate habitual, mas a Bluett, uma alfaiataria mais nova, que eu frequentava de vez em quando.

A mola da porta, quando entramos, produziu um som delicioso, reconfortante, antiquado, combinando com o cheiro e a visão de fazendas de boa qualidade, em pilhas e pilhas de peças, na mesa comprida e pesada de mogno, e o cavalheiro gentil com a fita métrica no pescoço.

- Creio que me conhece como cliente?

Sr. Shannon, não é, senhor?

Impassível, mas radiante por dentro, eu disse:

Gostaríamos de dois ternos, se nos pudesse fazer o favor de entregá-los dentro de uma semana, e enviá-los sem falta aos escritórios da Italian Line em Génova.

Ele pensou por um momento, foi então até a oficina, voltando com um sorriso.

Como é um cliente da casa, senhor, tenho certeza de que poderemos servi-lo. Creio que os ternos são para o cavalheiro que o acompanha.

Então o divertimento começou, a longa e cuidadosa escolha, a demorada tomada de medidas, o pedido para só uma prova, para dali a dois dias, e por fim fomos acompanhados até a porta com a maior das cortesias, Desmonde já como o dono potencial de um terno cinza muito bonito e de um preto azulado de lã de merino, mais adequado para a noite.

Bond Street ficava perto, sempre uma rua interessante, se bem que estreita, e ali, no Turnbull, compramos camisas-esporte de mangas curtas, seis pares de meia e meia dúzia de gravatas de seda, de padrão conservador, na Macclesfíeld.

Eu realmente estou precisando muito de algumas camisas, murmurou Desmonde.

Aqui não, Desmonde. Primeiro os chapéus, depois as camisas.

Do outro lado da rua entramos na Hilhouse, onde, com facilidade, encontramos um chapéu xadrez escuro de tweed, que Desmonde colocou logo e um macio panamá.

Quer que eu mande o chapéu de seu amigo junto com o panamá?. perguntou o Sr. Hilhouse, segurando a relíquia já muito gasta pela aba.

Oh, não! disse Desmonde depressa. Por favor, jogue fora.

Já foi um bom chapéu na sua época, senhor. Mas agora... vou queimá-lo.

- Está cansado?, perguntei a Desmonde, quando saíamos da lojinha. Ainda há mais duas medidas para serem tomadas. Por isso acho melhor almoçarmos agora.

Boa ideia! Descobri um A.B.C, com boa aparência do outro lado da rua.

Quieto, Fitzgerald! Acha que vou estragar o nosso dia levando você para tomar chá com bolo?

Tornamos a atravessar a rua e entramos em Grosvenor Street. Quando o Claridges apareceu, guardado por dois gigantes uniformizados, Desmonde hesitou.

Eu não vou entrar ali, Alec. Não vestido com estes trapos, eu desmoralizaria você para sempre.

Ande, menino, segure a minha mão e pare de fazer manha. Entramos pelos magníficos portais e fomos para o andar de

baixo. Sentada do lado de fora do restaurante, num dos fofas, e obviamente esperando algum convidado, estava aquela mulher maravilhosa, Lady Crayford.

Bem, Alec. ela nos cumprimentou quem é o seu amigo bonito, com essas roupas horríveis?

É Desmonde Fitzgerald, e ele vai para Hollywood comigo, na semana que vem. Acabou de sair do estúdio e não se deu ao trabalho de trocar de roupa.

Que é que estão fazendo?

Uma versão moderna de Hamlet, Madame Desmonde me apoiou, dando o seu maravilhoso sorriso. Eu faço o terceiro coveiro.

Mas não eram só dois?

É uma cova muito funda, Madame.

Bem, limpe as botas antes de entrar. Vejo que meu convidado está chegando. Cuide-se, Àlec, e envie-me um exemplar autografado do seu livro novo.

O maítre tinha-nos visto conversando com Lady Crayford. e por isso nos deu uma mesa de primeira ordem, quando, não fosse por isso, poderíamos ter sido enfiados num canto do grande e simpático salão. Estudamos o menu impresso a ouro em páginas duplas de papelão ornado com borlas em relevo.

Vamos simplificar e comer o prato do dia? Costuma ser muito bom.

Desmonde concordou.

E nada de vinho. Alec, por favor. Perrier, se você quiser. Quem é a sua bela amiga?

Sybil Crayford. Ela tem sido muito gentil com a minha esposa e comigo. Tem-nos convidado para festas e almoços. Mesmo quando tínhamos acabado de chegar a Londres e éramos muito inexperientes.

O almoço, como era de se esperar, foi muito bom. Não falamos muito, uma vez que eu não me queria demorar. Havia mais trabalho diante de nós. Pouco depois das duas tínhamos devorado a sobremesa, mousse aux framboises à Ia creme, tomado o café e com a conta paga e a gorjeta dada ao garçom, fomo-nos embora.

Vamos tomar um táxi, Alec e dê uma gorjeta ao porteiro. Não posso sair deste lugar com os meus sapatos velhos.

Obedeci, dizendo, enquanto nos afastávamos:

A propósito de gorjetas, há uma história de um potentado oriental fabulosamente rico, que frequentemente se hospedava no Oaridges por meses, que nunca dava gorjeta ao porteiro, mas repetida e afetuosamente lhe prometia que ele seria lembrado com generosidade no seu testamento. Quando Maomé o levou embora, o testamento foi lido. Adivinhe quanto o porteiro recebeu?

Meio milhão.

Absolutamente nada.

Que vigarice! murmurou Desmonde, com pena.. Mas nem todas as pessoas ricas são mesquinhas.

- Não sou rico, Desmonde ri. Gosto de gastar dinheiro. E nunca, nunca poderei esquecer como você foi gentil comigo quando os meus sapatos eram velhos.

Agora estávamos na extremidade mais distante da Galeria Burlington, levados gentilmente pelo motorista pelo caminho mais longo por St. Jame's. Mas ele recebeu a gorjeta que lhe era devida nenhum londrino discute com um chofer de táxi, esse erro fatal é deixado para os turistas.

Na extremidade da Galeria que dava para Piccadilly, entramos numa lojinha que tinha na sua placa o nome Budd. Ali retomamos o nosso trabalho: olhando, examinando, tocando e finalmente escolhendo vários tecidos: seda, popelina, algodão. E de novo Desnonde teve que deixar que tirassem suas medidas.

- Agora sapatos, rapaz. exclamei quando íamos saindo, com a garantia de que tudo seria despachado a tempo.

Pelo amor de Deus, Alec! Tudo isso é demais, demais mesmo. Você faz com que eu me sinta como se estivesse indo para o colégio interno.

Você está indo para Hollywood, meu querido idiota. Quer chegar lá descalço? Eu sei por experiência própria que essas coisas que você está usando não vão durar muito mais.

Bem perto, umas poucas portas além do Lobb's, sapataria fornecedora da Casa Real, a cujos produtos eu não aspirava, entramos na loja Churchill, menos famosa, mas igualmente boa.

Minha condição de cliente corrigiu imediatamente o choque causado pelos pés dignos de horror de Desmonde. Ele se sentou, os sapatos foram-lhe tirados e a habitual e cuidadosa tomada de medidas começou. Fiquei satisfeito ao observar que ele só tinha vim buraquinho no dedo de uma das meias. Finalmente, depois de feita a encomenda de dois pares de sapatos pretos, dois marromescuros e um de verniz para a noite, Churchill sugeriu com tato:

Tenho alguns sapatos em estoque, senhor, que serviriam para o cavalheiro até que a sua encomenda fique pronta.

Ele foi até os fundos da loja e voltou com um par de sapatos pretos novinhos.

- O velho cavalheiro que os encomendou, um cliente antigo e distinto para quem fazíamos os sapatos há quase cinquenta anos, morreu antes de serem entregues. É claro que não fizemos questão de entregá-los à família.

Os sapatos serviram muito bem em Desmonde, embora Churchill dissesse depreciativamente:

Nada maus, senhor. Um pouco largos na altura da base dos metacarpos, mas devem servir por enquanto.

Agradeci a Churchill e disse que os levaríamos e que os pusesse na conta.

Esses que está usando, senhor, nos seus pés, parecem estar durando admiravelmente bem. Não me diga que mandou pôr sola nova.

- Por Deus, não, Churchill! - menti.. Nem pensaria nisso!

Então é o meu bom couro, senhor. disse Churchill, acrescentando com tristeza: Dura toda a vida.

Quando saímos da loja, perguntei:

- Como é que se sente, calçando os sapatos de um homem morto. Desmonde?

Completamente rejuvenescido. Nem lhe posso dizer que bênção é ter algo de sólido nos pés!

O escritório da Italia Line era a nossa última escala e tivemos sorte. O capitânia da linha, o Cristoforo Colombo, estava com a partida prevista de Génova dentro de dez dias. Reconheci a moça no balcão.

Tem um camarote duplo disponível, na parte central do navio, a bombordo?

Ela examinou o plano do navio.

Pode ficar com o C19, se quiser, senhor. É o mesmo que o senhor e sua esposa ocuparam no ano passado.

Seria esplêndido.

Quer que eu lhe reserve uma mesa no restaurante, senhor?

Oh, por favor, não se preocupe. Verei Giuseppe a bordo... tenho certeza de que me reconhecerá.

Com tudo tratado, virei-me para Desmonde quando íamos saindo para a rua.

Agora você está cansado, por isso chega de beijocas, vamos para casa, James, e não poupe gasolina.

Chamei um táxi e dentro em pouco estávamos de volta e ávidos por tomar chá, que pedi à Sra. Palmer para servir no escritório, um aposento aconchegante, de paredes cobertas de livros, que havia sido acrescentado à casa e dava para o primeiro lance de escadas.

Algum recado, Sra. Palmer?. perguntei quando ela apareceu com a bandeja equipada.

A Srta. Radleigh telefonou de Mellington, senhor. Disse que não era nada importante, só alguns contratos para o senhor assinar, os meninos voltaram para Aylsford e Madame está bem e espera que o senhor vá até lá breve.

Obrigado. Sra. Palmer. E obrigado também por estes lindos bolinhos.

- Não tinha assim tanta coisa a fazer, senhor, por isso euos fiz. São bem simples, como o senhor gosta.

Muito obrigado de novo pela sua gentileza. Ela corou e pareceu ficar satisfeita.

Ficamos em silêncio, saboreando a delícia da primeira xícara de chã. Quando entreguei a segunda xícara a Desmonde, ele disse:

Que maneira agradável você tem de tratar com as pessoas, Alec! Estive notando isso o dia inteiro. E como a sua vida se tornou feliz e alegre!

Sim. agradeço a Deus, de joelhos, todas as noites.

De novo notei aquele leve recuo diante da simples menção da Divindade. Mas ele continuou.

Agora você deve realmente estar muito bem de vida, Alec.

Não estou. Tenho uma boa renda e gasto toda ela. Levantei-me e fui até a porta. -" Tenho que ir telefonar para a minha esposa.

Lá embaixo no vestíbulo, telefonei para Mellington. Foi a Srta. Radleigh quem atendeu.

- Mamãe está aí, Nan?

Acabou de sair para dar uma volta no jardim. Quer que eu vá chamá-la?

Não, Nan, é só para dizer que estarei aí amanhã.

Ah, bom tenho boas notícias para o senhor.

Não posso acreditar. Diga a Mamãe que pode ser que eu leve um amigo comigo. Será ró por um dia. Como é que está o jardim?

Está ficando lindo. Os morangos estão quase maduros. Andou apalpando-os?

Patrão! É o senhor que tem esse hábito delicioso. Além disso, Dougal os cobriu com uma rede.

Nan, vou levar o carro grande e o deixarei. Volto com o Morris. Você se importa de voltar conosco para dirigi-lo de volta?

É claro que não, Patrão. Mas... não vai viajar de novo, espero?

Só por três ou quatro semanas, Nanno.

Oh, que pena! E é tão agradável aqui no princípio do verão! Sentirei falta das nossas caminhadas.

Eu voltarei, Nanno. Descanse e cuide-se. Haverá muito trabalho a fazer quando eu voltar. Pode dizer a Mamãe para preparar um almoço gostoso e leve, com muita verdura, para amanhã?

Pode deixar que digo, caro Patrão.

Desliguei o telefone, pensando: Que moça esplêndida, tão boa. digna de confiança e trabalhadora! Que é que eu faria sem ela? No sopé da escada, gritei:

Gostaria de ir até Mellington comigo, amanhã? Adoraria - respondeu ele.

Fui para o meu quarto, fechei a porta e me deitei na cama. Ainda tinha que examinar a minha correspondência. Mas primeiro ia tirar um cochilo.

Na manhã seguinte, depois do desjejum de café e broas frescas para os dois, saímos com destino a Mellington. O dia estava lindo e prometia continuar assim, com um sol quente e o céu cinza azulado. Contente por estar indo para casa, pois Mellington era a minha casa, a casinha de Londres nada mais que um posto avançado, eu sentia vontade de cantar, mas fui inibido pela presença do maestro ao meu lado. Como ia ser bom ver a minha querida esposa, e Nanno, e ter notícias dos meus dois garotos e ver, com Dougal, como o meu adorado jardim ia progredindo. Não pude resistir ao impulso.

Cante, Desmonde. Alguma coisa suave e comovente.

Desmonde nunca recusara um convite daqueles. Adorava cantar. E assim seguimos pelas estradas de Sussex. eu conhecia todos os atalhos deixando atrás de nós a melodia de The Bonnie Banks of Locs Lomond e um rastro de aldeões espantados, olhando assustados através da poeira, perguntando-se intrigados se teriam visto uma miragem ou a vanguarda do Circo Barrum & Bailey.

Mas tudo era calma expectativa quando entramos na estrada de Mellington e finalmente passamos pelo portão branco da fazenda que estava aberto, o qual eu havia insistido em preservar, e paramos diante da velha Reitoria. Imediatamente houve uma explosão vinda do interior da casa, quando Paddy, o setter irlandês, se atirou em cima de mim, quase me derrubando no chão, depois veio a minha esposa, de braço dado com Nan, seguidas por Annie, a empregada camponesa, gorducha e forte, toda sorridente a perguntar se havia bagagem. Atrás, espiando da sombra do pórtico, estava Sophie, nossa cozinheira austríaca, enquanto no canto do celeiro avistei Dougal, atacando dramaticamente o canteiro de goivos amarelos.

Abracei e beijei a minha querida esposa, que estava com ótima aparência, estendi a mão para Nan, e disse:

Querida, aqui está afinal Desmonde Fitzgerald. Ela sorriu.

Meu marido tem falado do senhor com tanta frequência e com tanto carinho que quase já o conheço.

Madame. Desmonde se inclinou e lhe beijou a mão livre. Seu marido tem falado tanto na senhora e tão apaixonadamente, que estou encantado por conhecê-la.

Encantado? Não sou nenhuma bruxa, Desmonde. Guarde as suas belas palavras e maneirismos para Hollywood. Conhece a nossa querida Nan?

Bastante sem graça, e merecidamente, Desmonde murmurou:. Certamente já conheço a Srta. Radleigh de nome.. Então vamos entrar em casa. Gostaria de um café? Não? Então talvez prefira dar uma volta pelo jardim.

Primeiro fomos até o antigo jardim murado, meu orgulho e alegria, onde. no abrigo junto dos lindos muros cor-de-rosa do século dezoito, Dougal havia cuidado e levado à perfeição todas as nossas plantações recentes. A bordadura herbácea estava em flor, a horta mostrava-se nobremente produtiva com alface, aipo, rabanetes, chicória, grão-de-bico e o orgulho de Dougal. o canteiro de ervilhas, carregado de vagens verdes que, sem dúvida, dentro em pouco seriam reduzidas a uma única monstruosidade para a exposição de flores da cidade. Depois vinham as uvas, vermelhas e amarelas, as groselheiras, bastante estragadas por uma razão da qual eu desconfiava, mas ainda assim viçosas, com suas bolinhas cor de âmbar, em seguida as framboeseiras, escoradas e engradadas em segurança, carregadas de framboesas maduras, os renques de pessegueiros, infelizmente com poucos frutos ainda verdes, muitos queimados pela ferrugem do Sussex, e finalmente o canteiro de morangos Royal Sovereigns, que amadureciam.

Virei-me para Dougal que nos tinha seguido em silêncio. Meus parabéns, Dougal. Está tudo maravilhoso, especialmente os morangos.

Sim, ficaram bonitos, senhor. Sei que gosta deles. Mas tive um pouco de trabalho para manter os meninos longe deles. Sorriu. Até apanhei a Srta. Radleigh enfiando um dedo maroto pela grade.

Ela será devidamente castigada, Dougal. As framboesas também estão magníficas, Dougal.

Sim, senhor, estão esplêndidas. Desde que o senhor me deu permissão para pôr a grade.

Olhei para Nan, que estava tentando não rir. Você tinha razão, toda razão, Dougal, e eu estava errado. Não estão nada feias.

Ele pareceu ficar satisfeito, e escolhi aquele momento para dizer persuasivamente.

Dougal, sei como você detesta colher os frutos antes de estarem maduros, mas será que poderia tentar encontrar só alguns morangos maduros para o nosso almoço? Meu convidado é um homem muito importante de Hollywood.

- Eu imaginei que ele fosse importante, senhor, apesar das roupas velhas que está vestindo. Muito bem, senhor, vou fazer o que puder para o senhor ter um bom cestinho. E se puder vir comigo um momento, senhor, eu queria falar-lhe sozinho ali, junto da porta do celeiro.

É claro, Dougal. Irei com você agora.

Saindo pelo canto do celeiro, olhei com raiva crescente para os destroços do meu canteiro de groselheiras.

Que diabo, homem, quem foi que fez isso? Foi Paddy?

Achei que o senhor também ia ficar zangado, senhor, como eu. Não, senhor, não foi Paddy, ele é um animal bem treinado. Foram aqueles danados dos seus dois filhos, jogando futebol. Implorei para eles pararem, mas ficaram rindo e não pararam.

De fato, eu estava furioso, mas prudentemente exagerei a minha raiva.

Minhas lindas groselhas! Eles vão ver só, eu lhe prometo Dougal. Vão jogar futebol lá fora no campo e em nenhum outro lugar, eu lhe prometo. Pode fazer alguma coisa?

É muito fácil, senhor. Vou pegar umas duas dúzias de brotos no viveiro e mando eles cobrarem do senhor. Ele sorriu. Quem sabe o senhor não me deixa encomendar uma dúzia pra mim? Como o senhor, eu também gosto delas, as groselhas!

É claro, Dougal disse eu com sinceridade. Duas dúzias, se quiser.

- Não, não, senhor. Uma dúzia chega. E não fique muito zangado com os meninos. Meninos são sempre meninos, sabe? E obrigado, de novo.

Vi que ele estava não apenas apaziguado, mas satisfeito, também. Dei-lhe um aperto de mãos e o vi sair imediatamente em direção ao canteiro de morangos. Dougal era uma dádiva preciosa da grande propriedade vizinha, que também me fornecia faisões. Era um homem treinado e habilidoso e um bom trabalhador, e viera para mim depois de uma discussão azeda com o jardineiro-chefe, de quem era o ajudante imediato, numa equipe de seis. Eu o apreciava e fazia todos os esforços para apaziguar o seu temperamento rabujento. Ele gostava de mim porque eu era obviamente escocês, se bem que disfarçado com um sobrenome irlandês. Agora eu tinha certeza de que ele ficaria comigo. Meia hora depois, ele entregou à minha esposa um grande cesto de deliciosos morangos grandes e maduros.

Nesse ínterim, tornei a me reunir aos outros, que saiam do caminho que serpenteava pela nossa pequena floresta.

Por que é que o chama de Caminho do Cónego. Alec?

- Há uma história que diz que um beneficiado anterior, o Cónego Herbert, passeava por aqui todo dia lendo o seu breviário. Os faisões do meu vizinho gostam muito. Eles normalmente encontram o caminho para a nossa mesa de jantar.

Demos uma parada no orquidário, as duas mulheres tinham seguido para casa.

Diga-me, Alec, por que a Srta. Radleigh o chama de Patrão? Ri.

É uma história boba. Logo que Dougal veio para cá, ele queria pôr uma grade nas groselheiras. Eu disse "não". Houve uma discussão bastante acirrada, que encerrei dizendo em bom dialeto escocês: "Você não se esqueça, Dougal, que sou o Patrão". Nan, que estava conosco, achou isso muito engraçado e me presenteou com esse nome desde então. Naturalmente, no ano seguinte, Dougal me convenceu a pôr a grade, um grande sucesso. é claro. Ele é um ótimo sujeito.

E que moça maravilhosa é a Srta. Radleigh! disse Desmonde melancolicamente.

O almoço estava pronto quando chegamos a casa. O sol iluminava a sala de jantar quando nos sentamos para comer uma das omeletas Imperador de Sofia, e uma grande salada de verduras frescas vindas do jardim. Depois vieram os morangos servidos com creme fresco vindo da fazenda vizinha. Estavam indescritivelmente gostosos. Por fim veio o café.

Por estranho que fosse, a conversa não fluiu com facilidade, e então se tornou evidente para mim que nem minha esposa, nem minha secretária estavam de muito boa vontade para com Desmonde, um formalismo que ele mesmo parecia sentir, uma vez que se foi tornando cada vez mais ansioso por agradar.

Quando nos levantamos da mesa, ele olhou simpaticamente para Nan.

Se estiver com disposição para dar um passeio, Srta. Radleigh, gostaria de me mostrar as Colinas?

Ela o olhou bem nos olhos.

Vou estar muito ocupada, Sr. Fitzgerald. Mas, se sair pelo nosso portão, virar à esquerda e seguir em frente, estará nas colinas em exatamente dois minutos.

Obrigado disse Defmonde com polidez. Pode-me dispensar por uma hora, Alec?

É claro, companheiro. Faça um bom passeio, mas esteja de volta antes das três.

Depois que ele se foi sozinho, eu disse:

Que pena! Todo mundo o trata como um pária. Por que vocês também?

Ele não é bom, querido disse minha esposa. Há alguma coisa errada com ele por dentro.

Olhei para Nan, que disse, num tom de desculpa:

Acho a mesma coisa que Mamãe. E não aguento as mesuras salamaleques e beija-mãos dele.

- Isso é porque ele está nervoso. O pobre-diabo foi atirado na lama, esfregaram-lhe o nariz no chão, ele está completamente arrasado. Nunca poderei esquecer a nossa amizade de quando éramos garotos. Estou tentando ajudá-lo a se recuperar. Espero consegui-lo.

- Você é sempre gentil demais, querido - disse minha esposa.

- Tolice! Vá-se deitar por uma hora, depois iremos até Aylsford e veremos os meninos, só por cinco minutos.

Oh, vamos! disse ela.

Subi com Nan para o meu estudiozinho que dava para o jardim e os prédios anexos. Dougal estava dando duro nas groselhas. Todos os papéis que precisavam ser vistos estavam sobre a escrivaninha. Eu os examinei rapidamente e assinei onde era necessário.

Por que os italianos querem quatro vias de cada contrato? Estou vendo que há uns dois avisos prévios aqui.

Que pena, Patrão, que vai viajar de novo! Mamãe não gosta. Ficamos um bocado solitárias quando está fora.

Prometo que estarei de volta em duas semanas. Talvez antes, se eu vender os direitos para o filme. Então vão ter que me aguentar durante os próximos cem anos. Vou levar Mamãe para dar uma passada rápida em Aylsford. Quer vir?

Às duas e meia, saímos para Aylsford, um percurso de cerca de dez quilómetros. Desmonde tinha acabado de voltar, parecendo bem disposto, mas bastante entediado com as Colinas. Ele se sentou na frente comigo, Mamãe e Nan foram atrás. Num instante estávamo-nos aproximando da grande casa de campo convertida em escola, com campos de jogos em volta e uma piscina do lado. Nossos dois filhos nos avistaram logo e vieram correndo do pavilhão de críquete. Um jogo sem importância estava sendo disputado e eles resolveram interrompê-lo.

Tiveram uma boa oportunidade? perguntei.

Robert respondeu:

A minha vez foi curta e completamente rotineira.

- Em outras palavras disse James - ele teve uma contagem de zero. Eu fiz vinte e sete.

Todas batidas com a ponta da pá. Perdeu duas com escorregões.

Três.

Não podemos ficar, meninos, mas eu realmente queria vê-los e lhes dizer, se forem para casa antes de eu voltar, para não me estragarem de jeito nenhum o canteiro de goivos amarelos. Se prometerem não fazê-lo, Nan vai dar uma coisa boa para vocês.

Os dois juntos:

Prometemos, Papai.

Agora, primeiro venham dar um beijo na Mamãe e dizer a ela que gostam dela, depois cumprimentem o meu amigo, Sr. Fitzgerald, que vai-me levar para Hollywood.

Isto foi feito e Nan também foi beijada. Então ela mostrou o saco de groselha.

Puxa vida, que lindas, Nan! James, pensei que tínhamos "limpado" todos os galhos.

Estas devem ser novas, seu burro.

Não melem o carro todo, meninos. Sinto muito, mas temos que ir. Podem-se sentar ali debaixo daquela árvore e acabar com elas.

E num instante estávamos de volta a Mellington. Assim que guardei o carro, fui procurar Dougal e lhe disse que tinha ido até a escola especialmente para repreender os meninos.

Puxa! Não devia ter feito isso, senhor. Mas ele sorriu.

Pode contar comigo para cuidar do jardim direito enquanto o senhor estiver fora.

Então estava na hora de pensar em ir embora, se fosse para Nan voltar com o carro antes que escurecesse. Trouxe o Morris Oxford até a porta da frente e fui procurar minha esposa, que estava descansando deitada no sofá no seu quarto. Ajoelhei-me ao seu lado.

Sinto muito já ter que ir, querida. Estarei em casa de novo dentro de umas três semanas, e depois disso vamos passar um período delicioso juntos. Está parecendo tão melhor, continue a se cuidar.

Nan cuida de mim. Ela é um amor.

Você é um amor, querida. E eu a amo com todo o meu coração.

Eu a beijei de leve. Os lábios dela estavam macios, passivos, ternos como os de uma criança. Antes que eu alcançasse a porta, ela havia fechado os olhos.

Saímos cinco minutos depois, Desmonde à vontade no banco de trás, Nan e eu na frente. Dirigi a grande velocidade, muita velocidade, sem cometer imprudências, mas calculando justo. Conhecia a estrada muito bem e ela estava praticamente sem trânsito naquela hora. Nenhum de nós disse nada, nem uma palavra. Às quatro horas em ponto, paramos na porta da minha casa de Kensington.

Espero não tê-lo assustado disse eu a Desmonde, depois que esticamos as pernas e começamos a entrar em casa.

- Nada me assusta agora, Alec respondeu ele com aquele mesmo tom triste. De qualquer maneira, você é um magnífico motorista. Faz isso muito bem, como tudo mais.

Ora, ora, Desmonde, deixe disso. Você está precisando de um chá.

Quando íamos subindo devagar, disse a Nan para pedir â Sra. Palmer que trouxesse um chá para três no estúdio.

Vou tomar uma xícara depressa com a Sra. Palmer, na cozinha, quero sair e estar em casa antes que o trânsito comece. Quer que eu leve a sua correspondência para arquivar?

Sim, querida Nan, e responda como achar melhor. Olhamos um para o outro. Então eu soube que a amava e

que ela me amava. Tive um desejo avassalador de tomá-la nos braços.

Adeus, querido Patrão, volte depressa.

Ela sorriu de leve, havia visto o amor nos meus olhos.

Adeus, minha querida Nan.

Toquei-lhe o rosto de leve com os lábios. Então subi para o meu quarto.

Só quando ouvi o ruído do carro partindo é que fui para o estúdio. Desmonde já estava lá, assim como a bandeja do chá. Servi a xícara dele e lhe dei, depois servi a minha.

Desmonde, estou com a terrível impressão de que a minha ideia de fazê-lo respirar ar fresco no campo foi um fiasco, uma correria de automóvel, simplesmente um dia desperdiçado.

De jeito nenhum, Alec. Vi a sua linda propriedade e a admirei.

Por Deus, homem, eu não levei você lá para isso!

Também vi os seus dois belos meninos e os admirei.

Oh, cale a boca, rapaz! Que foi que deu em você?

Também conheci a sua adorável esposa que o ama, e a boa Srta. Radleigh, que também o ama e o respeita. E cheguei à triste conclusão de que na sociedade de mulheres boas e puras eu não passo de um maldito, desgraçado, vulgar, pretensioso, derrotado, desagradável e lascivo.

Eu estava a ponto de comentar que ele conheceria poucas mulheres boas e puras em Hollywood quando vi, com um sobressalto de dolorosa surpresa, que ele estava com a mão,sobre os olhos para esconder as lágrimas que pingavam na sua xícara. Imediatamente me aproximei dele e pus o braço em volta de seus ombros.

Por favor, Desmonde, por favor não, meu querido e velho amigo. Você sabe que tudo isso está acabado. Você está no limiar de uma nova e brilhante carreira. Apenas acabe com todas essas mesuras, genuflexões e beija-mãos... pare com isso e seja você mesmo de novo. Que diabo, homem, pense em como eu preparei você para um grande sucesso, tudo que fiz por você, todo o trabalho que me dei. Vai desistir quando temos a terra prometida à vista? Você é esse tipo de covarde nojento?

Lentamente ele descobriu os olhos e me entregou a xícara.

Mais chá, depressa, seu católico apostólico romano, escocês, irlandês, sucesso de vendas americano, comungante diário, e sujeito incrivelmente decente. Minhas feridas vão sarar, desaparecer, quando eu tiver Hollywood aos meus pés.

Essa é que é a maneira correta de ver as coisas, continue assim, DeS.

- Então lhe agradecerei por todas as coisas maravilhosas que você fez pelo seu amigo que o ama.

Já chega, Dês. Não vá cair no velho erro. Aqui está o seu chá, e vou tomar o meu. Quando é que você quer ir para a Suíça para ver a sua menininha? Não temos muito tempo antes de embarcarmos no Cristoforo Colombo.

Vamos agora.

Não seja burro, meu amigo recém-recuperado e refortalecido. Se você se levantar bem cedo quando eu o chamar amanhã, faço você chegar a Genebra amanhã à noite.

Combinado, companheiro disse ele, estendendo a xícara para pedir mais chá.

Na manhã seguinte, levantamo-nos bem cedinho e saímos imediatamente para a Estação Victoria. Eu tinha pago a Sra. Palmer na noite anterior e dera a ela as chaves da casa. Ela remeteria toda a correspondência para Mellington.

O trem diário partiu na hora certa, bem como o vapor para atravessar o Canal, quando paramos no píer de Dover para fazer a transferência, dispondo de apenas cinco minutos. A travessia não foi extraordinariamente difícil, e às dez e meia estávamos no cais de Calais, fazendo a longa caminhada para o trem de Paris. Ali houve algum atraso, devido ao carregamento da bagagem, mas quando partimos, sob o acompanhamento de apitos agudos, o trem seguiu direto o caminho inteiro, sem paradas. Na Gare du Nord era necessário, é claro, trocar de estação, mas um táxi lento nos levou até à Gare de Lyon, onde o expresso continental, soltando vapor na sua plataforma, já estava pronto, à espera. Ao meio-dia em ponto, partimos, num lento esplendor, gradualmente ganhando a velocidade, notável para a época, de cem quilómetros por hora.

Almoçamos no vagão-restaurante, uma refeição tão diferente da sua equivalente britânica quanto o Ritz é diferente do Trocadero. Aparentemente Desmonde estava com pouco apetite, ficava olhando para fora pela janela, ocupado com seus pensamentos que, sem dúvida, tinha como figura central a sua filhinha. Ele havia-me agradecido tantas vezes pela minha gentileza de ter vindo com ele que eu já não respondia, mas apenas sacudia a cabeça e sorria. Depois do almoço, nós dois cochilamos até as quatro horas e tomamos um chá bastante sofrível. Às cinco e trinta e quatro, paramos, envoltos em nuvens de vapor, na estação de Lausanne. Hoje em dia, é claro, o transporte aéreo faz da nossa viagem uma piada quando os aviões voam, não se atrasam por greves, desastres ou sequestros no trajeto. Mas, para a época e a ocasião, aquilo era um bom desempenho.

Desmonde parecia pensar assim quando descemos na plataforma da estação de Lausanne. Ele sorriu.

"Não consigo acreditar que estamos aqui. E agora, Alec?

Um táxi para Burier, pouco depois de Vevey. Creio que há um hotel perto de Burier, não é grande, mas é bom.

Se for pequeno e bom, deve estar cheio.

Bem, veremos.

Eu não disse que o meu telegrama pedindo reserva havia sido confirmado.

Encontramos um homem que concordou em nos levar até Burier pela modesta soma de trinta francos. É um percurso bonito, o lago de um lado, no outro as encostas cobertas de vinhas, grandes extensões de famosos vinhedos, onde as uvas já estavam grandes como groselhas. O sol, que ainda não atingira o poente, estava baixo, comunicando às águas tranquilas um brilho cintilante. Passamos pela adorável cidadezinha de Vevey, sempre tão calma, às margens do lago, depois por La Tour de Peliz, onde Courbert viveu e morreu, mas ainda um vilarejo, dominado pelo seu castelo, tal como uma pedra preciosa num engaste antigo. Ali saímos da estrada principal, subindo a encosta por uma estrada rural que nos levou através de extensas pastagens até o vilarejo de Burier, um punhado de casas numa faixa de terra elevada, quase um penhasco, dominando o lago. Do outro lado ficava a estação do vilarejo, envolta por uma profusão de roseirais, com vastas pastagens mais além.

Que lugar lindo!. murmurou Desmonde quando nos aproximamos do hotel.

Este, embora chamado Rainha do Lago, não era um estabelecimento grande nem pretensioso, mas quando entramos deu evidência manifesta de classe. Nossos quartos, separados por um banheiro, davam para o lago, com uma vista soberba dos Dents du Midi, ainda cobertos de neve e agora banhados num pôr-de-sol rosa, vermelho e purpúreo.

E todo aquele terreno aberto atrás continuou Desmonde.. Como é lindo!

Estávamos os dois com fome e decidimos jantar cedo. Ficamos com ótima mesa, junto de uma das janelas. À maioria das outras pessoas que jantavam cedo eram velhas senhoras ricas, para quem aquele hotel era obviamente um excelente refúgio. Uma tinha um diminuto pequinês toy, extremamente bem-comportado, no colo, ao qual ela alimentava com minúsculos bocadinhos do seu prato.

O jantar estava excelente, o peixe inacreditavelmente gostoso, uma truta grelhada, que o maítre descreveu como "nadando no lago até esta tarde". Então, a inevitável galinha, macia e muito bem preparada. A sobremesa, um creme caramel muito bem feito. Finalmente, quando tomávamos o café, a lua começou a subir com uma lenta imponência, sobre as longínquas Lês Roches. Embora já no começo do minguante, visualmente o grande disco branco era lindo como novo.

Como seria bom pascar o resto da vida aqui! disse Desmonde.

É isso que a Sra. Donovan parece estar fazendo. Pelo que compreendi, ela não passa mais de três meses por ano na Irlanda.

Vamos sair e ver se descobrimos a casa dela.

Lá fora, naquela luz radiosa, estava quase tão claro como dia. Atravessamos a rua até a pequena estação de telhas vermelhas que, naquela única linha, servia a talvez três ou quatro trens por dia. No jardinzinho, o chefe da estação, facilmente reconhecível oelo quepe característico, estava tomando ar. Aproximamo-nos dele e Desmonde o cumprimentou em francês. Eu gostaria de ter podido gravar a conversa naquela língua, tão extremamente engraçada foi ela, mas a tradução deve servir.

Chefe da Estação, posso incomodá-lo pedindo que me responda a uma pergunta?

Não me está incomodando, senhor. Como vê. não estou ocupado com as minhas obrigações oficiais, que já foram devida e efetivamente cumpridas no dia de hoje. Estou olhando as minhas alcachofras que, infelizmente, vão mal.

Lamento que as suas alcachofras vão mal, senhor. Eu também, senhor. Qual é a sua pergunta?

Estamos procurando uma senhora chamada Donovan.

Ah, ah, a irlandesa.

Exatamente! Então a conhece?

Quem não conhece a Sra. Donovan?

Ela é muito conhecida aqui?

Não acabei de dizer isso, senhor?

Por que é que ela é muito conhecida, Chefe da Estação?

Por tudo, senhor.

Tudo?

Tudo que é bom, senhor. Desmonde olhou para mim e disse: Devo continuar? Assenti.

Chefe da Estação, que é que a Sra. Donovan faz de bom, exatamente?

Eu não disse, senhor, que ela dá a todos, a aldeia, à escola, ao asilo de velhos ali, no fim da estrada, que o senhor pode ver daqui. Até as menores coisinhas. Há um velho carvalho onde as pessoas de idade costumavam reunir-se para conversar. Este mês mesmo, ela mandou pôr um banco forte em volta da árvore onde, agora, eles se sentam confortavelmente.

Podíamos ter continuado agradavelmente no delicioso ar fresco, mas Desmonde estava fazendo a última pergunta.

Onde é que a boa senhora irlandesa mora?

O chefe da estação tirou o cachimbo da boca e fez um gesto longo com ele, enquanto respondia:

Olhe para o outro lado da minha estação, senhor. Olhe para a direita lá bem longe, depois para a esquerda, até chegar à aldeia. Então procure à distância a grande floresta à esquerda, a casa de fazenda com vacas ainda no pasto, à direita. Então veja a casa grande no meio, na elevação cercada. Terá visto assim os domínios da Sra. Donovan.

Desmonde olhou para mim em silêncio.

Muito obrigado, Chefe da Estação.

Foi um prazer, senhor. Vai visitar a Sra. Donovan?

Amanhã, Chefe da Estação. Boa noite.. Boa noite, senhor.

One domínios!. comentei quando nos afastamos.. Temos que penetrar neles, Alec.

De volta ao hotel, revezamo-nos no banheiro. Às camas eram excelentes, os lençóis de linho lavados à mão, suavemente acariciantes. Adormeci imediatamente.

As sete horas da manhã seguinte, fui acordado por uma batida na minha porta. Uma camareira entrou silenciosamente com o café numa garrafa térmica e pãezinhos frescos e pôs a bandeja na mesa, murmurando:

Service, monsieur.

Ela pareceu ficar surpreendida, quase triste, quando eu disse que tomaria o café mais tarde. Eu também fiquei triste, pois sabia que o café devia estar bom e gostoso, enquanto que os pãezinhos, não os horríveis ballons, eram croissants genuínos, sinal inconfundível, entre outras coisas de um hotel de primeira classe.

Depois que ela se foi, saí da cama, tomei um banho de chuveiro frio, e me vesti depressa. Então desci e, seguindo as indicações recebidas do maitre na noite anterior, saí em passo acelerado para La Tour de Peliz.

Nos arredores daquele adorável vilarejo, encontrei o pequeno convento para onde eu havia sido encaminhado. Temo que os leitores que me têm acompanhado até aqui estejam realmente cansados das minhas devoções matinais. Entretanto, esta determinada ocasião de piedade não deve ser omitida, uma vez que, ao entrar na capelinha onde as freiras do convento, umas vinte ao todo, estavam reunidas no fundo, observei que um outro membro do laicato, além de mim, tinha vindo assistir à missa das oito, que começava naquele momento.

Era uma mulher de uns quarenta anos, possivelmente mais, discreta mas ricamente vestida de preto, e com uma capa de pele de marta. Era, sem dúvida, bonita, mas tinha a expressão tão distante, concentrada e severa, que impressionava mais pela sua devoção que pela beleza. Como eu tinha passado por um Rolls-Royce antigo, mas magnificamente cuidado, no pátio, com um motorista uniformizado no banco da frente, concluí que devia ser dela, bem como que provavelmente ela era inglesa.

Nós nos ignoramos durante a missa, embora uma ou duas vezes eu sentisse o olhar dela sobre mim. Mas, quando todas as freiras comungaram e nós nos levantamos simultaneamente para receber a comunhão, ela sorriu de leve quando permiti que me precedesse.

Terminada a missa, saí da capela e fui andando em passo acelerado para Burier. A senhora ainda tinha ficado mais um pouco para falar com as freiras. Entretanto, eu ainda não ia muito longe quando o Rolls antigo ronronou ao meu lado.

Posso oferecer-lhe uma carona, rapaz? Para onde está indo?

Para o hotel em Burier. Ela abriu a porta.

Oh, então entre.

Eu teria preferido mil vezes andar, mas a oportunidade era boa demais para desperdiçá-la. Entrei.

É inglês? - perguntou ela.

Não, Madame. Sou um escocês-irlandês.

E o que é que está fazendo nesta bela região, graças a Deus, ainda remota, da Suíça?

Estou a caminho de Hollywood.

Céus! Você é ator?

Não, Madame, apenas escritor. E estou prestigiando um amigo que, numa vida admirável, cometeu um terrível erro pelo qual tem sofrido atrozmente. Agora ele tem uma oportunidade de, literalmente, sair da sarjeta.

Em Hollywood!

Ele é cantor, e seu único bem, seu talento oculto é uma voz soberba.

Naquele momento vi a compreensão surgindo nos olhos dela. Continuei.

Ele quer ver a filha antes de ir. Eu lhe suplico que o permita. É só por um dia.

Ele o mandou à capela especialmente, com devoção fingida, para se aproximar de mim.

Olhei firme para ela.

Se pensa, Madame, que eu aviltaria dessa maneira a Eucaristia, só posso ter pena da senhora.

Ela ficou pálida. O carro parou diante do hotel. Abri a porta. Quando ia saindo, ela disse, em voz baixa:

Ele pode vir.

Minhas aventuras, que certamente eu não havia previsto, ainda não tinham acabado. Quando o velho Rolls se afastou, uma voz me chamou da extremidade mais distante do pátio do hotel, onde um homem limpava o pára-brisa do carro. Então, a um sinal dele, eu me aproximei.

Era um sujeito corpulento, num terno marrom caro e extravagante, e o seu carro bastante diferente do veículo que eu havia acabado de deixar. Era um Alfa Romeo, baixo, construído para alcançar grandes velocidades, e incrivelmente rápido, o mais refinado produto da Itália.

Bom dia! ele falava um ótimo inglês. Vejo que conhece a Sra. Donovan.

Oh, muito pouco, ela me deu uma carona de La Tour.

Conheço a sobrinha dela muito bem. - Ele mostrou os grandes dentes num sorriso. Meu nome é Munzio. Pretendo casar-me com ela quando ela obtiver o divórcio.

Parabéns disse eu e depressa acrescentei: Estava admirando o seu carro. É muito rápido, imagino.

É o melhor carro do mundo. Se é rápido? Vou-lhe contar. Depois do café, que em geral tomo no hotel, uma vez que guardo o meu carro aqui, vou para o meu escritório em Milão, dou a volta no lago, uma estrada estreita e cheia de curvas, faço a subida do Gotthard, não vou pelo túnel, depois atravesso a fronteira, de novo muitas estradas ruins, e chego a Milão, trato dos meus negócios, almoço e estou de volta aqui a tempo para tomar o chá. Parecia impossível, entretanto acreditei nele.

Deve ser um motorista de primeira categoria.

Sou o melhor.. Ele tornou a mostrar os dentes. Dirijo este carro como monto e controlo um bom cavalo, um puro-sangue, entre os joelhos.

Vai agora?

É claro.

Então vou procurá-lo na hora do chá. Ele tornou a sorrir.

Nós nos veremos mais tarde. Vou-lhe mostrar.

Entrei no hotel, bastante satisfeito com as minhas recentes experiências. Depois de ter tomado o café, relatei-as imediatamente a Desmonde, que, tendo feito o desjejum e estando já vestido, se sentara na sacada de seu quarto.

Creio que já vi o sujeito disse ele num tom calmo. Deve ser do Norte da Itália, é muito grande e forte.. É preciso alguém assim para controlar Claire. Aduziu em seguida:. Que sorte você ter encontrado a Sra. Donovan! Agora não seremos mandados embora do portão. Embora eu tenha certeza de que ela não me vai receber.

E assim foi, quando, às dez horas descemos a pé a ruazinha da aldeia, passando pelos velhos sentados em volta da árvore, e nos apresentamos diante dos pesados portões de ferro da propriedade. Eles foram abertos imediatamente, mas o guardião disse para Desmonde em italiano:

A senhora não vai receber ninguém hoje, senhor. Mas o senhor pode seguir até o terraço.

Fomos andando devagar em direção à casa, sob o sol forte, com as gralhas voando em círculos e crocitando nas árvores altas que guarneciam a entrada da propriedade. O caminho havia sido limpo há pouco tempo, as bordas bem aparadas, o gramado estendendo-se para os dois lados. Um grande jardim cercado surgiu à esquerda quando chegamos ao topo da leve elevação do fim do caminho. A casa em si, de pedra cinzenta simples, era grande e quadrada, absolutamente sem enfeites, e rodeada por aquela inestimável proteção contra o inverno suíço, um terraço coberto.

No lado sul do terraço, haviam sido feitos preparativos que fizeram com que Desmonde apressasse o passo. Um cobertor fora estendido no chão e sobre ele havia um cercado, ao lado do qual, sentada bem ereta numa cadeira dura, estava uma babá suíço-alemã idosa, de ar severo, num imaculado uniforme de linho, com um pequeno relógio preso no busto, e em volta do pescoço uma gola alta de linho engomado, insuportavelmente justa e dura, revelando por essas características a força implacável da sua portadora. E dentro do cercado um tiquinho de gente de fraldas já estava brincando com Desmonde, ajoelhado ao lado do cercado.. Ela me conhece, a minha querida murmurou Desmonde, quando eu cheguei, as lágrimas lhe enchendo os olhos, e acrescentou, igualmente enganado: - No instante em que ela me viu, sorriu, com o reconhecimento se espalhando por todo o seu rostinho.

No entanto, quem sabe? Ele dera banho naquela criança e a pusera para dormir tantas vezes, que isso poderia de fato ter feito vibrar alguma ténue nota de reconhecimento. Ele tinha trazido um presente para a sua filha, um pequeno chocalho de prata e marfim, e prudentemente, na verdade com muita sabedoria pois Desmonde conhecia as mulheres ele o deu à babá, que o aceitou com um sorriso empertigado de agradecimento, examinou-o, limpando-o cuidadosamente com um pedaço de pano limpo, e então o deu à criança. Imediatamente o barulho do chocalho e risadas deliciadas encheram o ar. Deixei Desmonde ocupado com aquilo, consciente de que ele acabaria por ganhar a aprovação, senão a simpatia da babá, obtendo permissão para tocar e carregar no colo a sua filha. Ele já tinha diminuído a separação entre ambos dirigindo-se a ela, com a humildade devida, em dialeto suíço-alemão. De volta ao hotel, pedi na recepção um almoço para levar, subi e troquei de roupa, vestindo um short, um suéter e sandálias. Quando desci, o pacote bem feito já estava no balcão que bom hotel era o Reine du Lac!

Voltei para a propriedade, coloquei o almoço num banco no parque, sob uma das árvores, e saí em passo acelerado. Não fazia exercício há algum tempo, e estava sentindo muita falta disso.

Dei a volta na propriedade em passo de escoteiro, correndo uns cinquenta metros e em seguida andando outros cinquenta em passo acelerado, um método admirável de desenvolvimento, através do qual a gente não se exaure e pode manter-se em forma indefinidamente. Nas minhas voltas constatei que Desmonde estava progredindo à sua própria maneira. Primeiro, conseguiu uma almofada para os joelhos depois uma cadeira em que se sentou, com a menina no colo. Eu também tinha uma aguda desconfiança de que estava sendo observado de detrás das longas cortinas de uma das janelas superiores.

Eu ainda prosseguia bem quando o sino do meio-dia tocou, não para o Ângelus naquele cantão, mas para chamar os velhos para o almoço no Asilo. Então senti que estava na hora do meu almoço, ainda mais que Desmonde, a babá e a criança tinham desaparecido do terraço. Eu bem que gostaria de ter tomado um banho de chuveiro. Em vez disso, esfreguei-me com o guardanapo que envolvia o meu almoço, vesti o suéter e me sentei no banco.

Que almoço gostoso! Evitando os excessos indesejados do costume, um delicioso sanduíche de presunto, uma fatia de queijo Emmenthaler entre dois biscoitos digestivos com manteiga, e frutas: maçã, laranja e uma grande e deliciosa pêra. Como saboreei tudo, depois da minha corrida! Então, tendo embrulhado cuidadosamente o bagaço das frutas e outros restos, no guardanapo, me deitei no banco sob a sombra da árvore. De boa vontade eu passaria o verão inteiro naquele lugar adorável. Devo confessar que em momentos como aquele eu me sentia bastante cansado de Desmonde. Eu o vinha acompanhando bastante ultimamente, e no seu presente estado de espírito, tão amargurado, ele não era uma companhia estimulante. Mas eu tinha dado a minha palavra ao pobre coitado e, acontecesse o que acontecesse, eu a manteria.

Devo ter adormecido, pois o meu relógio mostrava duas e meia quando acordei. E eis que uma encantadora procissão estava em curso na aven:da que levava ao jardim murado. A babá, Desmonde empurrando um carrinho aberto e dois terriers Kerry seguindo-os obedientemente nos calcanhares.

Observei-os durante alguns minutos, satisfeito por tudo ter sido conseguido sem raiva ou rancor. Então, como obviamente eu não era mais necessário, resolvi ir-me embora. Tinha já atravessado o parque e alcançado a alameda principal, quando vi um vulto fazendo sinais para mim do terraço oeste. Embora não tivesse nenhuma vontade de ver a Sra. Donovan outra vez, não podia ignorar aquele convite.

Não podia deixar que se fosse sem me desculpar pelo meu comentário desagradável desta manhã.

Por favor, não se preocupe, Madame. Estou habituado a golpes duros na minha profissão.

Ela fez uma pausa, inclinando-se para a frente, como se numa atitude conciliatória.

Permite que eu lhe ofereça um chá? Aqui, no terraço.

De novo, eu não podia recusar.

Obrigado, Madame.

Ela sorriu.

Tenho certeza de que está com sede depois de toda aquela corrida. Sente-se um pouco enquanto falo com a Maria.

Ela voltou, alguns minutos depois, seguida por uma robusta empregada italiana carregando uma bandeja. Quando aceitei a primeira xícara, perguntei a mim mesmo: como devo começar a conversa?

Tem uma belíssima propriedade aqui, Madame. E muito grande também.

Sim, quando vim para cá, os preços não eram altos, e pensei que seria uma pena dividir a propriedade. Fiquei inclusive com a fazenda, e estou muito satisfeita por tê-lo feito.. Ela fez uma pausa. Tenho empregados italianos, que são excelentes. Creio que sabe que muitos italianos vêm trabalhar na Suíça, felizes por terem trabalho e salários decentes.

Então está realmente estabelecida aqui, Madame?

- Eu adoro a Suíça. Principalmente, é claro, pela sua beleza. Mas sob todos os aspectos é um país admirável e feliz, onde as pessoas trabalham arduamente, os trens estão sempre no horário, de fato, onde tudo está em ordem. Ela fez uma pausa. Naturalmente, vou à minha terra, a Irlanda, por dois ou três meses cada ano.

Constantemente me sinto tentado pela Suíça. Mas por uma razão muito mesquinha. Impostos.

Sim, eles são gentis conosco e com o povo deles também. - Sorriu.. Não viveria em Hollywood?

Nunca, Madame. Escritores não são persona grata lá. São tratados com desprezo. Meros lavadores de pratos!

E no entanto vai para lá amanhã.

Estou indo por duas razões. Principalmente por causa de Desmonde. Mas também para tentar vender o meu novo romance.

É triste que Desmonde não se redima de maneira mais apropriada, mais nobre. Hoje estive lendo de novo a respeito de um jovem padre que passou a sua vida no interior remoto e pobre da China, entregue menos à conversão do que ao alívio do sofrimento, da doença e da fome.

Infelizmente, Madame, para Desmonde, tentar uma dessas missões de redenção seria uma negação completa do seu caráter. Ele não iria além de Hong-Kong, voltando no primeiro navio com um esplêndido sortimento de porcelana Kang Hsi. Não, Madame, ele deve encontrar o caminho da sua salvação através do canto.

Ela sorriu de leve:

Como é que podemos saber o que está a nossa espera, ou à espera de qualquer pessoa? O futuro é imprevisível. E acrescentou: Não posso compreender por que o senhor é tão bom para com ele.

Nós fomos grandes amigos na escola, e ele foi muito generoso comigo quando eu não tinha nada. Devo a Desmonde ter estado sentado nas poltronas do Teatro Kings, encantado pelo magnífico desempenho de Geraldine Moore na Tosca. À expressão dela não se alterou.. Além disso, ele tem passado por grandes sofrimentos desde que se envolveu com a sua atraente sobrinha.

Foi ele quem o escolheu. Sabe que Claire está requerendo o divórcio civil? Ela já está vivendo com Munzio.

Não faz diferença. Vamos partir amanhã cedo para Génova. Ele nunca mais a verá.

Houve um silêncio. Eu me senti atraído por aquela mulher e, de repente, com uma imensa pena dela. Não era feita para uma vida virginal, entretanto se entregava a ela. Que é que se poderia dizer? Eu me levantei.

Agora tenho que ir, Madame. Imagino que Desmonde vá ficar para ver o banho da criança. Eu lhe agradeço mais uma vez pela cortesia.

Ela sorriu e disse:

Não deixe de me avisar, caso venha estabelecer-se na Suíça. E vá-me visitar na Irlanda, quando estiver lá.

E a senhora, se for a Londres, vá-nos visitar em Sussex. Minha esposa adoraria conhecê-la. Ela não sai muito e gostaria de recebê-la.

-Eu irei. disse ela. E naquelas duas palavras estava o começo de uma longa e valiosa amizade.

Trocamos um aperto de mãos, após o que me virei e voltei para o hotel. E lá, sem dúvida, do lado de fora dos portões, todo enlameado, à espera de uma lavagem, estava o Alfa Romeo. No escritório, providenciei para que um carro nos levasse até Génova no dia seguinte, partindo às seis e meia. Eu também pedi que preparassem a minha conta para aquela hora do dia seguinte.

Então subi para o meu quarto, sentindo-me inexplicavelmente deprimido, talvez por saber que tinha passado uma semana inútil. Assim, me sentei e melhorei meu estado de espírito escrevendo uma longa carta para casa, perguntando com ternura, entre outras coisas, pelo bem-estar do novo canteiro de goivos amarelos. Que bênção de Deus era para um homem ter uma casa, uma mulher e filhos que o amavam! Desmonde não tinha nada disso, assim eu tinha que ser tolerante com o seu entusiasmo extravagante e pouco viril com relação a sua filha.

Ele voltou tarde para o hotel. Eu já estava na metade do jantar quando ele chegou. Parecia estar sem apetite, e comeu em silêncio absoluto. Finalmente me olhou cem uma expressão de dor nos olhos.

Pelo que compreendi, minha mulher está prestes a se divorciar de mim e tornar a se casar. Se ela pleitear a custódia da menina, será o fim.

Que é que se poderia responder? Nada. Diante da perspectiva da nossa partida bem cedo na manhã seguinte, nós dois nos deitamos cedo.

O Cristoforo Colombo deslizou para fora do grande porto com as bandeiras desfraldadas, afastando-se rapidamente do seu porto de origem sob o gemer de sirenas e o repicar dos sinos das igrejas. Tínhamos chegado a Génova duas horas antes da partida, tempo de sobra para apanhar os embrulhos que nos esperavam nos escritórios da Italian Line. Tudo que tínhamos encomendado estava lá, bem embrulhado e à espera de passar pela alfândega. Que triunfo da perícia profissional, da habilidade, da eficiência e da integridade inglesa! Traços normais e característicos daquela época, sem dúvida, mas será que poderiam ser reproduzidos hoje? A simples pergunta é absurda.

Eu tinha deixado Desmonde ocupado em desembrulhar as coisas no camarote, enquanto eu ia até o convés de popa, para observar a linha da costa que se distanciava e reavivar o meu conhecimento daquele adorável navio, no qual eu havia viajado uma vez antes. Eu gostava muito daqueles navios italianos, não apenas porque seguiam a rota do sul, mas por tudo mais velocidade, conforto, e um serviço italiano típico, caracterizado pela boa vontade e pela simpatia. Lá embaixo, o maítre já estava fazendo reservas para as mesas, e eu tratei a mesa lateral a bombordo, à qual minha esposa e eu nos havíamos sentado anteriormente. Então fiz uma visita à capelinha, uma característica encantadora daquela linha. Já havia um padre italiano ajoelhado lá, o que indicava que teríamos missa todas as manhãs. Uma última visita ao convés descoberto onde reservei duas cadeiras bem situadas. Nada de convés coberto para mim, naquela viagem de sol perene.

De volta ao camarote, encontrei Desmonde sentado e olhando fixo para as roupas novas, todas estendidas sobre a sua cama. Desde que havíamos deixado a Suíça, ele estivera num estado de espírito estranho, quase sempre sombrio. Conseqúentemente, aproximei-me dele com uma animação discreta.

- Já experimentou alguma coisa, para ver a queda, o tamanho, a cor e o corte?

- Não! Só estou pensando que casquilho eu não vou ficar com elas. Sabe que esta é a segunda vez, na porcaria da minha vida, em que sou vestido pela caridade dos outros? Ri.

Então fique com as suas roupas velhas, se se sente mais confortável.

E desperdiçar tudo que você fez por mim. Será um desperdício de qualquer maneira.

Ora vamos, Dês! Controle-se. Você tem andado muito estranho ultimamente.

Você queria que eu não estivesse! Desmonde raramente usava linguagem de baixo calão, mas naquele momento ele o fez.. Minha filha está sob os cuidados de uma velha virgem perpétua que me odeia. Minha mulher está na cama com um cafajeste italiano dando uma boa trepada toda noite e adorando. Ele pôs a mão na cabeça.. Oh, meu Deus, eu ainda a amo, mesmo tendo ela sido a cadela que foi, ainda é e será sempre. E aqui estou eu, maldito suíno que sou, aproveitando-me de você, vivendo às suas expensas, custando-lhe uma fortuna e tudo isso para nada. Aquela vigarista da publicidade não me vai arranjar onde cantar, e mesmo que arranje, vou cair de cara no chão.

Só havia uma coisa a fazer, e foi o que fiz. Saí do camarote e fechei a porta com calma. Naturalmente eu estava preocupado. Se ele entrasse em colapso agora, como é que eu me iria sentir, apostando num cavalo que se recusava a correr? Não obstante, eu estava com fome e às 12:30 desci para almoçar. O meu camareiro da viagem anterior rne cumprimentou com carinho devo ter-lhe dado uma boa gorjeta.

Mas está sozinho, senhor?. perguntou delicadamente, acomodando-me com ternura na cadeira.

Não, de jeito nenhum. Tenho um amigo...

Exatamente naquele momento Desmonde apareceu, um outro Desmonde, lavado, de barba feita, penteado, vestido com o alinhadíssimo terno cinza novo, a camisa nova de colarinho macio e a gravata estilo Eaton, os sapatos novos marrons, feitos à mão e as meias de seda. O camareiro, ainda mais impressionado com o italiano perfeito de Desmonde e seu conhecimento, igualmente perfeito, de todos os pratos italianos do menu, anotou os nossos pedidos numa atitude de prece e se retirou, andando de costas.

Desculpe-me, Alec disse Desmonde, desdobrando o guardanapo com firmeza. De fato, lamento muitíssimo. Mas não se repetirá, eu lhe prometo.

Ele cumpriu a palavra, e nunca mais caiu naquele estado depressivo durante a viagem. Entretanto, não era o Desmonde alegre e despreocupado que eu havia conhecido. Melancólico e irritável, parecia obcecado por uma preocupação íntima.

O vento soprava ameno, o sol brilhava, Desmonde fazia o que queria, a maior parte do tempo ficava deitado na sua cadeira do convés, com os olhos fechados, sorumbaticamente evitando todas as tentativas de camaradagem de bordo. Eu seguia a minha rotina agradável: levantava-me bastante cedo para dar uma corrida em volta do convés e fazer alguns exercícios fáceis no ginásio, um mergulho na piscina, depois a missa e a comunhão na capela. Então eu estava pronto para um bom desjejum e um dia de lazer, muito lazer, ao sol. Infelizmente, o simpático padrezinho se grudou em nim, Ele vinha de uma ilustríssima instituição em Roma, com a qual eu havia ficado encantado durante uma visita àquela cidade alguns anos antes, e que era dirigida por padres jovens que ensinavam trabalhos manuais úteis a meninos abandonados, recolhidos nas ruas. O objetivo da sua visita aos Estados Unidos era, inevitavelmente, coletar dinheiro das várias comunidades italianas de Nova York e outras cidades grandes. Eu o teria tido ao meu lado durante toda a viagem, se não lhe tivesse dado uma nota de cinquenta, confidenciando-lhe num sussurro que os meus médicos haviam recomendado silêncio e repouso absoluto devido a uma afecção do fígado. Mas, antes que ele me deixasse, perguntei-lhe o que achava de Desmonde, explicando rapidamente a situação atual de meu amigo. A resposta dele foi enfática e imediata.

Ele nunca ficará em paz, nunca, nunca, nunca, enquanto não voltar à Igreja. Uma vez que a pessoa se indisponha com o Senhor, nunca será feliz enquanto não fizer as pazes com Ele e Lhe pedir perdão.

Logo havíamos completado a travessia, as máquinas cessaram o movimento violento e passamos lentamente pela Estátua da Liberdade, entrando no porto de Nova York. Como é agradável desembarcar quando se tem pouca bagagem! Carregando cada qual uma mala leve, caminhamos livremente, passando pelas multidões de passageiros reunidos na maior confusão em torno de enormes pilhas de grandes baús, carrinhos de bebés, sacolas de golfe e outros componentes da parafernália de viagem en famille. O pessoal da Imigração havia feito o controle no navio; nós simplesmente tomamos um táxi para a Estação Penn e o trem da manhã para Chicago que fazia conexão com o Super Chief, no qual reservamos um compartimento duplo.

Aqueles que só conhecem os trens utilitários, movidos a eletricidade, dos dias de hoje, ou que só viajam de avião, não podem conceber o esplendor e o luxo daquele trem transcontinental. Trocamos de estação em Chicago, e lá, esperando por nós, estava o Super Chief, brilhante de velocidade potencial, um enorme galgo à espera de ser solto. O tapete vermelho já estava desenrolado, e ao som de música preâmbulo de Hollywood, ridículo, mas agradável. entramos a bordo do monstro. O nosso compartimento estava pronto, indescritivelmente imaculado, com capas protetoras limpas nos assentos, os dois leitos fechados na divisória, o banheiro impecável, e o camareiro, com os dentes brancos brilhando num sorriso, a perguntar se queríamos tomar café. Quando tomávamos o café, o trem partiu silenciosamente na sua rapidíssima travessia da América.

Eu já tinha feito aquela viagem duas vezes antes, mas aquilo era uma novidade para Desmonde. Entretanto, ele em nenhum momento esteve interessado ou descontraído olhando sombriamente pela janela, e quando nos fomos aproximando do nosso destino começou a demonstrar sinais de ansiedade e de tensão, afastados apenas em parte por um telegrama da Western Union que lhe foi entregue em Albuquerque e que dizia concisamente:

DESEMBARQUE EM PASADENA ME ENCONTRAREI COM VOCÊ LÁ

Pelo menos, ela espera por nós murmurou Desmonde.

Espera você corrigi. Eu vou levar um coice!

Em Pasadena, onde a maioria da elite de Hollywood deixa o trem, nós obedecemos ao telegrama e desembarcamos". E ali, na plataforma, em carne e osso, estava a pequena Delia B. Ela se esticou toda e abraçou Desmonde, eu ouvi o estalo do beijo.

Estou feliz por vê-lo, querido. Está tudo preparado. Você está com ótima aparência., Então para mim: Por que diabo você está aqui, Ruivo?

Sou o pajem.

Então continue pajem. Só reservei um quarto de solteiro para Desmonde no Beverly Hills.

Nesse caso, vou-me contentar com o bangalô de quatro peças que reservei no jardim do Beverly Hills. Ela riu com vontade.

Ganhou, Ruivo. Quer ficar com ele, Dês?

Não acha que é melhor?. perguntou Desmonde secamente.. Compreende, eu não estaria aqui, se não fosse Alec. Ele pagou tudo, até as roupas que estou vestindo.

Nada mau, Ruivo, nada mau. Tem alguma coisa sua para tratar aqui?

É claro, estou aqui para vender o meu novo livro. Acho que ouvi falar desse. A Cutícula, não é?

É esse mesmo, Delia B. A história de uma Unha Encravada.

Entramos no carro dela, não a opulência que eu havia esperado, mas um Ford muito usado, que ela dirigia com toda a impetuosidade e abandono da sua personalidade. Estacionou no hotel e, depois que nos registramos, veio pelos jardins até o bangalô para se assegurar de que eu não tinha mentido.

Nada mau, Ruivo, nada mau. Você é o dono dos acontecimentos. Isto vai-lhe custar um bocado caro.

Minha mulher e eu ficamos aqui no ano passado.

Por que não me avisou que estava na cidade? Ah, bem, isto vai-lhe servir direitinho, Dês. Não faça nada, apenas descanse durante o fim-de-semana. O grande dia ainda está incerto, mas pode ser que venha logo.

Depois que ela se foi, desfizemos as malas e nos deitamos nas espreguiçadeiras ao sol. Naquela época, quando o crescimento da população, os automóveis e as fábricas ainda não haviam escurecido a leve bruma da costa até que ela se tornasse o smog, Beverly Hills era uma das localidades mais encantadoras da Califórnia do Sul, e o hotel em que estávamos, um dos melhores.

Nós ficamos apenas deitados por ali, naquele dia, mas depois do jantar no restaurante do hotel telefonei para o meu agente, Frank Hulton, em sua casa.

Que tal está achando o seu novo emprego, Alec? É muito mais fácil do que escrever best-sellers.

Bem, se puder parar de passar calças amanhã de manhã, quer vir até aqui para tomar o café?

Adoraria, Frank. Vou lustrar todos os sapatos hoje à noite. Ouça, eu gostaria de levar um novo cliente comigo. Atualmente ele é apenas uma perspectiva, mas acho que pode vir a ser um grande negócio.

Traga-o com você, Alec. Pelo que compreendi, ele tem o apoio de Bedelia B. De qualquer maneira, gostaria de ver você.

Nós dois dormimos bem naquela noite. Por mais que se louve o Super Chief, não há escapatória para a sinfonia dos trilhos.

Na manhã seguinte, às nove horas, estávamos no apartamento do centro de Frank Hulton, e pelo menos eu estava consciente da estima manifestada no convite para ir à sua casa, em vez do escritório movimentado. Frank, um homem honesto, escravo dos mais elevados princípios, que nunca fizera um contrato com seus clientes que fosse além da palavra dada, era dedicado a sua saúde, uma idiossincrasia tipicamente exemplificada na sua escolha do desjejum. Depois de ter perguntado o que nós queríamos, telefonou para a cozinha, fez o pedido e acrescentou:

O do costume para mim, por favor.

O "do costume", que subiu com o nosso café e pãezinhos, era uma variedade convidativa de verduras e legumes crus: rabanetes cortados, cebolinhas verdes, cenourinhas especiais, alfaces tenras, pedaços escolhidos de couve-flor e fatias perfumadas de aipo, tudo fresco, vindo naquela manhã do Mercado dos Agricultores. Depois concordamos em que poderíamos muito bem ter dispensado os nossos deliciosos pãezinhos com manteiga em troca de uma variedade de dar água na boca como aquela.

Enquanto isso, falamos primeiro das perspectivas do meu livro, depois de Desmonde, cujo dossiê desenrolei enquanto Frank ouvia atentamente.

É de fato evidente ele sorriu para Desmonde que Bedelia B. está absolutamente caída por você. E isto, incidentalmente, é uma boa sorte muito rara, pois quando Bedelia apoia alguém ou alguma coisa, ela geralmente vai até o fim. Preste atenção, ela não é a Rainha. Este título pertence a Louella Parsons, um tipo de pessoa muito diferente e uma grande senhora. Mas Bedelia está sempre mais alto, é uma matadora, que nunca deixa passar uma coisa, uma vez que tenha enfiado os dentes nela. Há dias que ela vem fazendo insinuações, que obviamente, na sua maioria, são dirigidas ao grupo jovem do Caruso. Assim, o próximo movimento é dela.

Que é que acha que vai ser? perguntou Desmonde.

É fácil de adivinhar. Bedelia tem uma terrível influência junto às pessoas realmente importantes do cinema: Selznick, Sam Goldwyn, Meyer, mas especialmente Sam. Da próxima vez que um deles der uma festa grande, ela levará você, Desmonde. Meu palpite é que ela vai arranjar uma apresentação realmente espetacular para você. Aceite, rapaz, e você terá sido admitido. E, se for admitido, não assine contratos apressados, do contrário se arrependerá amargamente. Eu estarei aqui, esperando para ajudá-lo a fazer aquele primeiro milhão.

Quando deixamos Frank, uns vinte minutos depois, senti que Desmonde havia ficado impressionado.

Gostou dele?

Quem não gostaria?. sorriu secamente. Gostei um bocado do desjejum dele.

Frank me fez muito bem. Eu não me importo com o que ele come.

Agora não havia nada que pudéssemos fazer a não ser esperar. E como era agradável, naqueles áureos tempos, ficar à toa nos jardins do Hotel Beverly Hills! A grande piscina azul ali estava para um mergulho de manhã cedo, depois uma caminhada rápida até o ponto de reunião dos fiéis das redondezas. E com que frequência, e sempre em vão, eu chamava Desmonde para me acompanhar, em vez de ficar olhando para mim com ar sombrio quando eu saía. Ele me esperava no sol, e me examinava lentamente quando eu voltava.

Conseguiu que todos os seus pecados fossem perdoados? perguntou de maneira sarcástica, uma manhã, quando cheguei mais tarde que de hábito.

Não, Desmonde! Mas tive uma conversa boa e, espero, útil com o Padre Devis.

Felizmente naquele momento o desjejum chegou, pão fresco enrolado num guardanapo, mel, café num bule de prata e, melhor do que tudo, os grandes grapefruits cor-de-rosa, descascados e prontos para serem comidos.

No quinto dia da nossa estada, quando eu tinha começado a me preocupar com a conta, recebemos uma visita curta, porém significativa, de Bedelia, que apareceu de repente, como se num passe de mágica, caiu como uma águia sobre Desmonde e, agarrando-o pelo braço, andou com ele para baixo e para cima falando-lhe rapidamente ao ouvido. Intermitentemente Desmonde balançava a cabeça concordando. Finalmente, Bedelia o trouxe de volta ao bangalô, onde, com empressement, ela tirou um grande cartão magnificamente ornamentado.

- Tome cuidado com isto, Dês, pois embora você vá acabar sendo a estrela da festa, sem ele nunca conseguirá entrar.

E o meu bilhete, Delia B.?

Ah, Ruivo!. disse ela com gentileza. Você não quer bilhete. As festas de Sam são coisas importantes. Escritores estão absolutamente excluídos.

Ora, vamos, D.B. Dê-me. Tenho direito de ver a diversão. Vou ficar quieto como um camundongo num canto.

Camundongos também estão excluídos, Ruivo.. De repente ela riu, entregando-me um outro convite. Acho que você também deve ir. Mas arrume-se direito e nem mencione a palavra livro, senão será posto para fora no mesmo instante.

Depois que Delia B. foi-se embora, examinamos os belos convites: cartões formais com a orla dourada, as letras em baixo-relevo, também douradas, convidando para uma festa oferecida por Sam Goldwyn, em sua casa de Beverly Hills, na noite de 12 de junho. Olhei para Desmonde:

Só mais quatro dias de espera!

Depois da nossa longa viagem, parecia muito pouco tempo.

Já decidiu o que vai cantar? perguntei. A peça de sempre, a Canção do Prémio?

Por Deus! Será que sou um garotinho de colégio que só aprendeu uma canção? Vou cantar o que me vier à cabeça. Depois de uma pausa, acrescentou: Estou cansado dessa maldita ária e tenho certeza de que você também está. Não vamos falar nisso, Alec. Simplesmente vamos ver o que acontece.

A regra do silêncio foi estritamente observada, embora a iminência daquela noite decisiva pesasse sobre nós. Quando finalmente chegou, tratamos de nos arrumar direitinho, nas palavras de Delia B. Eu nunca, em nenhuma ocasião, teria a aparência soigné, mas Desmonde, de banho tomado, barba feita, no seu terno escuro e outros acessórios novos, estava realmente formidável, o sonho da vida de uma estrelinha. Na sua melhor forma, ele era um homem sensacionalmente bonito, e o descanso, o sol e o bom tratamento do Beverly Hills haviam-lhe dado uma nova vida.

Quando nós dois estávamos prontos, ficamos sentados, olhando um para o outro em silêncio, uma vez que Delia B. havia ordenado estritamente a Desmonde que chegasse atrasado, muito atrasado. Desmonde estava calmo, com aquela expressão de extrema indiferença, agora quase habitual. Será que ele tinha tomado algum comprimido? perguntei-me a mim mesmo. Se o fizera, eu não o culpava. Aquele era o seu momento de verdade, o ponto crucial de uma carreira que lhe poderia trazer um sucesso estonteante ou um fracasso total. Até para mim, a quem tudo aquilo era estranho, a espera era um inferno.

Às dez e meia, depois de várias falsas partidas anteriores, reprimidas com severidade, passamos pelo hotel e tomamos um táxi que esperava. A corrida foi curta, curta demais, e logo paramos diante da grande casa toda iluminada. O nosso humilde táxi era claramente suspeito para o destacamento policial de serviço na porta, mas os nossos convites acabaram sendo aceitos e entramos na casa. onde nossos chapéus foram guardados por um outro detetive, disfarçado de mordomo, que nos acompanhou até o grande salão de festas da casa. Na soleira da porta, olhamos um para o outro, respiramos fundo, e entramos.

A enorme sala, muito iluminada por dois grandes candelabros venezianos, mobiliada e decorada, atapetada e encortinada com o bom gosto e o luxo que a grande riqueza pode produzir, e ostentando dois pianos de cauda Steinway, um em cada extremidade, estava ocupada por cerca de quarenta seres humanos, os sexos separados, de acordo com o costume americano, de forma que as mulheres elegantemente vestidas conversavam num grupo alegre num dos lados, enquanto os homens, muito imediatamente reconhecíveis como astros internacionais, estavam espalhados, algo constrangidos, desempenhando o papel do homem varonil uns para os outros.

Entre os dois grupos, num átrio um pouco elevado, estava sentado o inimitável Sam, senhor de todos os que ele observava, rodeado por alguns íntimos, entre os quais, ao lado de dois homens mal-encarados, e vestida com toda a pompa, com uma pena de avestruz vermelha no cabelo, estava Delia B. A um dos pianos de cauda estava sentado Richard Tauber, ao outro, para meu alívio, John McCormack e, atrás de John, num banquinho, a esposa de John. Aquelas duas pessoas esplêndidas eram amigas minhas, e por isso imediatamente atravessei a sala e fui sentar-me junto de Lily, que me recebeu com um sorriso. Nunca uma mulher tão bonita e tão meiga quanto ela pôs os pés em Hollywood! Ela então murmurou:

John me disse que estão preparando alguma.

Desmonde, sozinho na soleira da porta, era naturalmente uma figura conspícua, mas depois de examinar a sala com absoluta compostura, ele foi andando calmamente para um canto vazio daquela magnífica sala, sentou-se numa poltrona Luís XVII dourada, cruzou as pernas e, com uma expressão de interesse distante, deixou os olhos pousarem sobre um estupendo Andreo dei Sarto na parede defronte retratando em detalhe o Rapto das Sabinas. De fato, enquanto Desmonde o examinava, um leve soerguimento da sobrancelha esquerda pareceu indicar que na sua ilustre opinião não se tratava de uma obra executada pela mão do mestre, mas mais provavelmente por um de seus discípulos, talvez Jacopo Fellini.

Era imaginação minha ou houve uma calmaria na conversa animada, quase um silêncio, à medida que os olhos eram atraídos na direção daquele vulto elegante, imperturbável e solitário? Nada atrai mais as mulheres em Hollywood do que a atração, quando desconhecida, de um homem. Naturalmente todas as beldades tinham seus belos olhos fixos em Desmonde. Aquelas eram estrelas da tela de prata, mundialmente famosas, algumas sem talento, mas que, manobradas por diretores inteligentes, haviam alcançado algo de semelhante à arte histriónica, atrizes que podiam ser ensinadas a imitar as emoções requeridas a pedido vou deixá-las incógnitas. Mas havia outras, de talento magnífico. Eu estava vendo Grace Moore, Carole Lombard, Jane Novak, Dia Lee e, sentadas um pouco afastadas das outras, Ethel Barrymore e Norma Shearer.

De fato, pouco mais havia de atraente. Tauber e John tocavam trechinhos líricos e os lançavam um para o outro, numa espécie de jogo competitivo. Mas a festa tinha, de fato, minguado até aquele ponto decisivo, nas festas de Hollywood, em que todo mundo já esgotou a conversa e está esperando que alguma coisa aconteça antes do jantar.

Foi então que uma mulher se afastou do grupo no sofá e, com todos os olhos voltados para ela, se aproximou lentamente de Desmonde. Era Grace Moore, jovem, esbelta, atraente e já bastante conhecida como cantora. Ela fez uma pausa e estendeu a mão quando chegou junto de Desmonde, que se levantou imediatamente. Naquele momento, Puccini assumiu o comando, habilmente conduzido por John, ao piano, e Grace aproximando-se mais de Desmonde, começou a cantar aquela incomparável ária nupcial da Butterfly.

"Quest obi pomposa di scioglier mi tarda si vesta la sposa."

Ela cantou lindamente a primeira parte do dueto de amor, e Desmonde continuou.

"Con moti di scoiattolo i nodi allenta e scioglie! Pensar che quel giocattolo è mia moglie..."

Não é preciso acrescentar que esse belo e comovente dueto de amor prosseguia com a gesticulação amorosa apropriada. Tão inesperada, quão graciosamente realizada, e com tamanha perfeição, foi a participação da voz masculina, que os aplausos foram imediatos.

Desmonde - disse Grace foi delicioso, gostei muito mesmo, foi tão gentil de sua parte refrear-se e não me abafar completamente! Agora! Você tem que cantar sozinho para ganhar o seu jantar.

Com um sorriso, Grace se afastou dali e se sentou.

Desmonde também sorriu, mas com modéstia estudada. Havia conseguido um bom começo e não ia correr riscos: Eu sabia que seria a canção-teste. Ele disse:

Se não for entediar todas as pessoas famosas e ilustres aqui presentes, gostaria de apresentar uma grande ária, que quando menino ouvi ser cantada por uma voz infinitamente melhor do que a minha: a voz de Enrico Caruso.

Fora uma jogada brilhante. Logo de início ele se propunha a ser comparado com o máximo em termos de perfeição. Uns poucos risinhos femininos, seguidos por um silêncio absoluto. Então, com total domínio de si mesmo aquele estado de espírito de indiferença despreocupada que ultimamente se apossara dele - Desmonde começou a cantar. Eu havia tido a esperança de que ele fosse jogar no seguro e cantar a Canção do Prémio, mas ele não o fez.

Foi aquela última ária violenta e tristíssima de Cavaradossi, na Tosca, quando ele é levado para a execução.

"Amaro sol per te mera il morire

Da te prende la vita ogni splendore..."

Eu já tinha ouvido aquela ária várias vezes antes, mas nunca, nunca como Desmonde a cantava naquele momento, com todo o sentimento e a amargura que havia em seu coração.

Agora não havia risinhos, nem sussurros, quase não havia movimento. Desmonde estava realmente mostrando a eles a sua arte. E quando aquele último grito, "Avrà sol da te você e colore", alcançou o teto, os aplausos, para um grupo daqueles, foram estarrecedores. Todo mundo estava de pé, John se levantou do piano gritando: - Bravo! Bravíssimo! - Tauber acompanhou o tumulto nas teclas graves do piano. Delia B., com as mãos em concha, tentava fazer-se ouvir. Eu estava fazendo a minha parte a plenos pulmões, mas ao mesmo tempo me esgueirando em direção à porta. Desmonde tinha conseguido! Agora eu já não era necessário, mas um mero acessório do fato. Quando parei por um momento na soleira da porta, ouvi a voz de Delia B. dizendo:

Agora cante a Canção do Prémio, Dês.

Sim, cante, Desmonde gritou John. Mas primeiro, agora que Cavaradossi se foi, vamos ouvir alguma coisa simples e terna para as senhoras. Cante "Passing By".

Fez-se silêncio, enquanto Desmonde parecia refletir. Então ele sorriu para John. Eu esperava que fosse a canção de Edward Purcell, a mais doce e terna de todas elas. E era. Meio virado na direção das senhoras, ele elevou a voz:

"There is a lady sweet and kind, Was never face so pleased my mind; I did but see her passing by, And yet I love her till I die!"

Nada poderia ter sido mais cativante, mais íntimo. E tão diferente da Tosca! Um olhar para aquelas fisionomias fascinadas e atentas me assegurou que era uma escolha perfeita.

Então, discretamente, fui-me embora.

Saí daquele grande salão resplandecente, em meus ouvidos ainda ressoando as aclamações crescentes de todos que o enchiam, e me dirigi em passo acelerado para o Beverly Hills. Eu sabia que corria o risco de ser preso caminhantes noturnos são suspeitos naquele bairro de elite mas era apenas uma curta distância até o hotel, e eu sentia que precisava exorcizar violentamente o meu turbilhão interior.

(*) Há uma senhora doce e gentil, / Nunca houve um rosto que me agradasse tanto / Eu apenas a vi passar / E no entanto amá-la-ei até morrer. (N. da T.)

Desmonde vencera, mais do que vencera, havia-se finalmente justificado, e como o seu futuro seria glorioso de agora em diante, E naquele momento, ao mesmo tempo em que eu exultava só queria uma coisa: voltar para casa, logo, tão depressa quanto trem e navio me pudessem levar. Tinha feito o que me propusera a fazer, tinha ajudado o meu amigo, às custas de algumas inconveniências para mim, nada mais me era pedido. As framboesas e groselhas em breve estariam em plena estação, as ameixas e as rainhas-cláudias, logo em seguida as rosas em todo o esplendor, no auge.

Cheguei ao hotel em tempo recorde, e na recepção pedi informações com relação à possibilidade de uma partida imediata. Não tive sorte de apanhar um Super Chief voltando, mas o trem comum para Chicago tinha a partida prevista para as 6 da manhã naquele mesmo dia. já passava de 4 da madrugada. Imediatamente paguei a conta do bangalô até o fim da semana, obtendo assim uma cooperação total do empregado da noite, que telefonou para a Estação Los Angeles e me reservou um lugar na primeira classe do trem de Chicago. Então examinamos os navios transatlânticos que partiam de Nova York. Com sorte eu poderia estar a bordo do Queen Mary, que partia no sábado seguinte. Então dei uma gorjeta ao empregado, explicando que o meu amigo provavelmente voltaria mais tarde naquele dia, e fui para o bangalô, passando pelo hotel e pelo jardim.

Ali fiz as minhas malas, sentei-me e escrevi um bilhete para Desmonde, que deixei na recepção. Então telefonei para Frank e, surpreendentemente, ele atendeu logo.

Frank disse sei que você detesta ser acordado. Aqui é Alec, eu precisava muito falar com você.

Não se preocupe, Alec. Recebi quatro telefonemas nesta última hora.

Então sabe que ele conseguiu. Foi um sucesso.

Eu sei, Alec. Só estou esperando os jornais matutinos.

Frank, estou telefonando para lhe dizer que vou partir no trem das seis. Já fiz a minha parte e agora conto com você para cuidar do novo astro.

Eu faço isso. Ouça, Alec, agora que você fez tudo e mais alguma coisa pelo rapaz, não quer ficar e colher as glórias?

Acho que não, Frank. Ultimamente tenho visto Desmonde demais, preciso de um pouco de descanso, lá em casa.

Entendo, Alec. Ouça, seu livro vai para as livrarias e bibliotecas hoje. Conte comigo para cobrar isso.

Muito obrigado, Frank. Boa sorte e até à vista.

O mesmo para você, Alec.

Com que facilidade a gente adota o dialeto de Hollywood! Desliguei com uma sensação de calor em torno do pericárdio e, como estava excitado demais para descansar, voltei para a recepção e pedi ao encarregado para chamar um táxi. Ele o fez, o porteiro da noite trouxe as minhas malas do bangalô, e eu saí.

Na estação, apanhei e paguei o meu bilhete no escritório de reservas. Meu trem estava na Plataforma 2, a máquina, não uma Super Chief, mas uma sólida locomotiva, já soltando nuvens de vapor, mas fiquei por ali, esperando que os jornais da manhã saíssem. Pouco antes de partirmos, consegui apanhar um exemplar do Hollywood Star, e lá estava em letras garrafais na primeira página:

NOVO ASTRO BRILHA NO CÉU DE HOLLYWOOD

Na noite passada, numa esplêndida recepção oferecida pelo Rei de Hollywood, o nosso querido Sam Goldwyn, com a presença de todas as principais estrelas de seu Reino, Desmonde Fitzgerald, um rapaz de, reconhecidamente, grande atração pessoal, poder-se-ia até dizer beleza, mas completamente desconhecido, salvo de um trabalho árduo e vil em Dublin, manteve a sua audiência de estrelas, todas elas experientes, conhecedoras da vida e do mundo e talentosas por direito nato, completamente fascinada, por mais de uma hora. graças à magia de sua voz. enquanto as emocionava profundamente cantando seleções de Grandes Óperas, árias italianas e alemãs, no idioma original, e acima de tudo, em meio a repetidos pedidos de bis, as comoventes canções da sua Irlanda.

Quando afinal, forçosamente, o recital acabou, embora tivessem desejado que continuasse, todos os seres humanos naquele magnífico salão, sem excetuar o nosso querido Sam, se levantaram e homenagearam Desmonde de coração, com uma grande ovação. Nunca mais, desde que Caruso tomou de assalto os Estados Unidos, uma voz tão magnífica tinha sido ouvida na América, igual ou, ousamos dizer, sim ousamos, ainda melhor do que a do grande cantor italiano.

Seguia-se muito mais. tudo no mesmo tom. cada vez com maior exuberância, e li cada palavra, sendo obrigado a confessar que, à medida que um horrendo superlativo cedia lugar a outro, o calor no meu peito se ia expandindo. Que todas honras fossem dadas a pequena Trombeteira, mas eu também tinha ajudado, à minha maneira, ajudado a salvar do desespero e da ruína aquele esplêndido talento.

Seguíamos agora sobre os trilhos numa velocidade constante. Eu me enrolei no casaco e, como o assento na minha frente estava vazio, pus os pés para cima e adormeci.

Aquele trem era na realidade uma penitência depois do luxo do Super Chief. Mas eu tenho uma estranha tendência masoquista, que me confere a capacidade de suportá-los: sofrer em silêncio sempre foi, na minha opinião, uma ótima admoestação.

Omitirei, portanto, de minha viagem até Chicago, maiores comentários, exceto que cheguei em segurança ao expresso de Nova York, que me levou rapidamente até a Estação Penn, apenas com tempo suficiente para embarcar no Queen Mary, feito este.que me leva a exaltar mais uma vez as virtudes de viajar com pouca bagagem.

Minha primeira ação a bordo foi tomar um prolongado banho quente. Depois pedi ao camareiro que me trouxesse os jornais ingleses. Ele trouxe o Times, o Daily Telegraph e o Daily Mail. Com aquela seleção eu tinha que me fortificar para suportar as críticas ao meu romance. Mas, primeiro, estava morrendo de curiosidade para descobrir se as notícias de Desmonde se tinham espalhado. E de fato lá estava, na primeira página do Daily Mail, uma fotografia razoável de Desmonde e a seguinte arenga embaraça dora:

Jovem tenor irlandês, Desmonde Fitzgerald, que sob os auspícios de seu amigo, o escritor Alec Shannon, estourou em Hollywood como uma bomba na semana passada, acabou de assinar contratos para desempenhar o papel principal em O Jovem Caruso, programado para filmagem imediata pela Paramount. A única dificuldade inesperada é que, segundo a opinião geral, Fitzgerald canta melhor do que Caruso!

Aquela era uma boa notícia, visto que dava o toque final, duro e prático à nossa aventura conjunta. Frank Hulton se asseguraria de que o contrato de Desmonde fosse muito seguro, na terminologia de Frank, uma mina de ouro.

Eu não estava com vontade de estragar aquele momento agradável virando direto para as páginas de literatura. Resolvi, com uma covardia desprezível, que primeiro iria fazer um pouco de exercício. O convés de barlavento estava completamente deserto, a brisa soprava fresca, e eu me dispus a gozar de uma caminhada rápida. Nenhum navio era mais adequado para esse exercício do que o Queen. Não posso garantir quais as medidas reais, mas a enorme extensão do convés parecia tão longa quanto um campo de futebol.

O camareiro-chefe do convés, no seu posto agradável no canto do convés, me observara, de tempos em tempos, com uma expressão divertida e, quando eu finalmente me aproximei dele, disse:

 

- O senhor realmente gosta um bocado de andar, Sr. Shannon. Eu me lembro muito bem do senhor, há uns dois anos atrás, na viagem de ida. Meu companheiro disse que o senhor praticamente foi até Nova York andando a pé.

É porque sou nervoso. Ele riu.

Nunca vi um homem em melhor forma. A propósito, senhor, acho que talvez lhe interesse fazer uma caminhada lenta pelo convés de bombordo.

Por quê?

Estamos bem leves nesta viagem e não está uma manhã ensolarada, mas há cerca de trinta passageiros nas espreguiçadeiras e, acredite ou não, estão quase todos lendo o mesmo livro. Por que não vai dar uma olhada?

Fui ver, andando lentamente ao longo do convés, e descobri que o camareiro estava certo. Fiz o percurso mais uma vez, para saborear de novo um momento que, por si só, valia a longa viagem.

Para o camareiro, que sorria, eu disse com tristeza:

É um inferno! Já começaram a dar os exemplares de presente!

Então desci e, sentado sozinho à minha mesa habitual, saboreei um excelente almoço. Quando voltei para o camarote, tornei a apanhar os jornais, se bem que relutantemente. De repente meus olhos foram atraídos e se fixaram num parágrafo que tirou todos os pensamentos de crítica literária da minha cabeça.

DUPLA FATALIDADE EM GOTTHARD.

Ontem de manhã cedo, um casal italiano, Signor e Signora Munzlo, atravessando o Passo Gotthard num Alfa Romeo esporte, foi atirado para a morte por uma repentina e violenta tempestade de gelo.

O Signor Munzio, muito conhecido naquela estrada como um excelente motorista, muito rápido no volante, foi advertido do perigo no lado suíço, e insistentemente aconselhado a seguir pelo túnel. Mas, como ainda não havia barreiras, ele insistiu numa tentativa de passar antes da tempestade. Infelizmente, foi malsucedido. Os dois corpos já foram resgatados. O carro ficou completamente destruído.

As notícias da carreira meteórica de Desmonde chegaram todas ao nosso conhecimento através da imprensa. Seu primeiro filme, O Jovem Caruso, foi um espetacular sucesso internacional, seguido quase imediatamente por uma adaptação hollywoodiana, igualmente bem sucedida, do Rigoletto. Enquanto isso, vinham discos, discos de preciosidades líricas, de canções irlandesas, de canções de amor, lançando a voz de Desmonde pelo ar e para dentro de uma infinidade de casas.

Do próprio Desmonde só recebíamos trechos curtos e pouco frequentes, escritos apressadamente em cartões postais: "Estou trabalhando muito aqui fazendo as externas, e detestando, e de novo: "Depois de três refilmagens sob holofotes Klieg como o mundo parece escuro! Estou exausto, mas decidido a ficar firme."

Eu tinha começado a pensar que ele me havia esquecido e tudo que eu tinha feito por ele, quando uma tarde, quase um ano depois, um grande caixote revestido de metal me foi entregue em Mellington, as marcas indicando que vinha de Nova York. Com a ajuda de Dougal, eu o abri no celeiro e, dentro, depois de remover um número infinito de envólucros de papel, encontrei um Degas de tirar o fôlego, de pelo menos um metro e meio por um e vinte, Après lê Bain, reconhecível imediatamente como sendo do último e melhor período do Mestre, em que ele usava a cor sem restrições para realçar o limpo corpo nu da mulher que saía graciosamente do banho, com um braço estendido para pegar a toalha que lhe era entregue pela criada.

Até Dougal ficou impressionado enquanto nós dois olhávamos para o quadro em silêncio, meu coração batendo loucamente de alegria.

Deve ter custado um bocado de dinheiro, senhor disse ele afinal.

Uma fortuna, Dougal! Na realidade, não tem preço. Muito além das minhas possibilidades. E exatamente o quadro de que eu precisava para a minha coleção.

É uma coisa linda, senhor. Até eu posso ver isso. Mas. ele olhou para mim com malícia o que é que as senhoras vão dizer quando o senhor o pendurar?

Elas simplesmente vão ter que aprender a gostar dele, Dougal.

Eu ri, perfeitamente cônscio dos comentários que seriam feitos a respeito do belo traseiro da senhora.

Depois que o levamos para casa, sentei-me e escrevi uma longa carta extasiada a Desmonde, agradecendo-lhe o magnífico presente e pedindo que tirasse tempo para me escrever com calma. Nós todos tínhamos ouvido falar do seu sucesso, mas não sabíamos nada dele pessoalmente. Então contei todas as novidades que julguei lhe pudessem interessar. Recentemente eu recebera a visita da Sra. Donovan, podia assegurar-lhe que estava tudo bem com a sua filhinha, mas o Cónego Daly estivera doente e fora afastado da Igreja de Santa Teresa numa licença. Meus filhos tinham feito um ataque ao canteiro de goivos amarelos. Eu tinha começado um outro romance, que Nan estava datilografando. Minha esposa agora estava melhor, depois de uma crise recente, muito inquietante.

Terminei tornando a insistir com ele para que me escrevesse longamente e breve.

Então selei a carta e, chamando Nan, que gostava como ninguém de uma boa caminhada, fomos para a cidade para colocá-la no correio.

Que é que acha da nova obra-prima, Nanno?

É muito bonita. Mas francamente, Patrão, para mim é um pouco demais.

Você teria preferido uma vista da Igreja Paroquial de Sleaford?

Sim, se tivesse sido pintada por Utrillo.

Nós dois rimos. Segurei o braço dela e disse:

Sem pensar mais em quadros, estou muito satisfeito por ter tido notícias de Desmonde. Entretanto, tenho a impressão de que ele não está feliz.

Tenho certeza de que não está.

Por que não?

Quando ele era padre e servia ao Senhor, ele estava feliz. Agora ele é apenas um servo da Indústria Cinematográfica Americana.

Que pena que ele tenha encontrado e amado aquela moça! Não posso falar mal dela, agora que está morta.

A pena é que ele tenha sido fraco o suficiente para cair por ela. O amor é uma coisa muito diferente.

Gostaria de dar uma explicação com relação à natureza desse terno sentimento, Professora?

Claro. Eu o amo, e estou feliz por pensar que me ama. Mas nós dois temos a virtude, a força e a decência, sem falar em nosso amor por Mamãe, de continuar castos. Desmonde, o fraco, não teve isso. Agora ele é um pária, culpando o Senhor pelo que foi unicamente culpa dele. Ele nunca encontrará paz enquanto não se atirar com a sua carinha bonita no chão e implorar perdão.

Isso é exatamente o que um padre italiano me disse no Cristoforo Colombo, quando lhe falei sobre Desmonde.

Agora estávamos no vilarejo. Selei a carta e coloquei-a no correio.

Que tal um café no Copper Kettle? E um daqueles deliciosos bolos de gengibre feitos em casa?

Oh, bom! E vamos levar alguns para Mamãe. Ela gosta desses bolos de gengibre.

Voltamos para casa pelo Caminho do Cónego, de mãos dadas e em silêncio.

Minha esperança de receber uma resposta imediata de Desmonde foi-se gradualmente desfazendo. Depreendi da leitura das revistas semanais que ele estava ocupado, começando o seu terceiro filme, e me resignei a esperar. E, de fato, não tive.nenhuma notícia por mais três meses, quando então recebi esta longa e extraordinária carta:

Meu caro Alec,

Retive minhas cartas por tanto tempo simplesmente porque não tenho tido nada de bom para dizer. De fato, meu estado de espírito tem andado tão permanentemente deprimido, confuso e infeliz que me abstive de aborrecê-lo com ele.

Você sabe, creio, que a concepção romântica que o povo tem de Hollywood é uma farsa, cultivada por aqueles para quem glamour é o lema de êxitos de bilheteria. Agora posso-lhe assegurar que a verdadeira vida dos estúdios é um trabalho duro, triturante e incomparavelmente exaustivo, onde sob refletores ofuscantes a gente repete, com frequência muitas vezes, uma única cena de ação ou diálogo que forma uma parte minúscula do filme completo, ou que na análise final pode até ser cortada de todo. Quando não se está em cena. sob esses refletores ofuscantes, fica-se no enorme estúdio sombrio, observando melancolicamente, esperando a vez de ser chamado, ou lendo os jornais em busca de notícias do mundo exterior. É uma vida desumana que leva muitos atores, se é que posso chamar assim os fantoches controlados pelo diretor com megafone, a excessos todas as noites, que chegam às manchetes, acrescentando brilho à concepção popular de uma vida gloriosa e dourada.

Tudo isso ficou evidente para mim quando comecei a trabalhar no meu primeiro filme. Nessa ocasião, decidi que suportaria esta vida anormal, uma existência completamente deserta de tudo que eu experimentara antes e amara, durante três anos e não mais que isso. Então, eu teria cumprido o meu contrato de três filmes e adquirido uma grande fortuna que me permitiria desaparecer, de repente e para sempre, desta cidade oca do cintilante faz-de-conta.

Até o presente momento fui bem-sucedido na realização dos meus projetos, e Frank Hulton, um dos meus poucos amigos nesta selva, tem-me aconselhado bem e dirigido os meus negócios extraordinariamente bem. Frank está sempre insistindo comigo para que eu faça alguma coisa que me descontraia, como jogar golfe em Bel Air, ou entrar para o Clube de Ténis em Palm Springs. Ele até sugeriu que eu arranjasse uma namorada bonita do rebanho de lindas starlets, as pobres bonequinhas, que vivem à minha volta, esperando serem notadas e escolhidas para a chance que as leve à fama e à fortuna. Infelizmente, elas estão sem sorte comigo. Aprendi a minha lição amarga, muito amarga. Por esta mesma razão eu nunca, mas nunca mesmo, vou a festas.

Como, então, eu passo o tempo livre que os meus chefes supremos me concedem? Vivo permanentemente num dos bangalôs do Beverly Hills, onde tudo é feito para mim e estou livre de todas as preocupações domésticas. Nos meus dias de folga, vou de carro até Malibu, no meu discreto Rover, estaciono, então ando, ando milhas e milhas pela praia de Malibu. aquela grande e larga extensão de areia onde as ondas do Pacífico rebentam interminavelmente. Poucas pessoas usam esse local, distante do mar onde se pode nadar e das cabanas de banhistas, e só encontro dois frequentadores assíduos: Charles Chaplin, envolto demais na sua própria genialidade para ter consciência de qualquer outra pessoa que não ele mesmo, e um homem alto. forte, que anda devagar, lendo, mas que às vezes me cumprimenta e sorri quando cruzamos. A parte esses dois, pode-se encontrar solidão, e ali eu caminho, lutando comigo mesmo e com os meus pensamentos tristes.

Você sabe, é claro, que abandonei todas as minhas crenças religiosas, no início por causa de um sentimento de raiva e de ressentimento contra o injusto castigo que me foi imposto por um erro que não foi só meu. Ora, a raiva vai diminuindo depois de muito tempo, assim como o ressentimento, e confesso que várias vezes, de início de maneira débil, depois com mais força, tive o incentivo de buscar o silêncio da igreja em Beverly Hills que você frequentava, não para rezar, mas por uma espécie de curiosidade de ver como me afetaria, ou se de fato, de alguma maneira, aliviaria a agonia que se bate violentamente, como uma coisa viva, dentro de meu peito.

Agora preste atenção a isto, Alec, e você sabe que não sou e nunca fui um mentiroso. Em três ocasiões distintas, quando me aproximei da igreja e subi as escadas com a intenção de entrar, um espasmo assustador tomou conta de mim; tremi, senti-me terrivelmente nauseado e achei que tinha que vomitar, mas não consegui. Embora incapaz de passar mal fisicamente, uma sucessão de palavras fluía dos meus lábios. Você sabe que nunca fui dado ao uso de palavrões. Mas aquelas palavras eram incrivelmente vis, blasfemas e obscenas. Meus espasmos eram tão violentos que pensei que fosse ter um acesso, virei-me e desci as escadas, cambaleando. Só quando meus pés estavam na calçada da rua é que a minha agitação e as minhas vituperações pararam. Senti o sangue tornar a circular nos meus braços e nas minhas pernas; em resumo, poucos momentos depois eu havia tornado a adquirir o controle de mim mesmo.

Da primeira vez que isso aconteceu, fiquei não apenas assustado, mas tão abalado que decidi nunca arriscar uma repetição da experiência. Não obstante, estava curioso quanto à natureza do ataque, e finalmente cheguei à conclusão de que havia sido vítima de uma reação física, possivelmente de origem cardíaca.

Para testar esta teoria, fui de carro até o topo de Bel Air. Lá estacionei o carro, andei pela encosta abaixo cerca de cem metros, e comecei a subir aquela encosta íngreme a toda velocidade. Quando alcancei o meu carro, estava um pouco sem fôlego, mas não mais do que teria esperado normalmente.

Voltei dirigindo para o meu bangalô, pensativo e realmente preocupado. Com certeza, eu era vítima de alguma estranha fobia, ligada à igreja de Beverly Hills. Você deve-se lembrar de que eu me recusei a acompanhá-lo àquela igreja específica.

Durante as semanas seguintes estive ocupado no estúdio, representando as cenas de amor, na versão hollywoodiana da Aida. Mas no meu primeiro sábado livre atravessei a cidade de Los Angeles de carro e fui à nova e grande igreja católica, logo depois do Sunset Boulevard. Estacionei o carro e, encarando a igreja com calma, reafirmei a mim mesmo que estava são de mente e corpo, e cerrando os dentes comecei a subir as escadas da grande igreja.

Meu Deus, Alec! Como é que vou poder escrever-lhe sobre a minha experiência? Esta foi pior, muito pior do que antes, tão violenta que caí num acesso, rolei as escadas abaixo e voltei a mim no centro de uma multidão, com um policial segurando a minha cabeça.

Felizmente ele me conhecia e percebeu que eu estava completamente sóbrio.

O senhor levou um tombo feio. E não foi o primeiro aqui. Eles fizeram esses degraus muito inclinados.

Eu me levantei, agradeci a ele e lhe assegurei que não estava machucado. Mas, quando ia dirigindo de volta a Beverly Hills, estava profunda e terrivelmente preocupado.

Nesse estado de espírito, apresentei-me ao trabalho no estúdio, onde tive que passar pelas refilmagens de algumas cenas de amor idiotas com a atriz principal que há semanas vem tentando sair comigo.

No dia seguinte, domingo, fui para Malibu, caminhei muito pela praia, e me sentei para examinar a minha situação. Sem dúvida, eu não tinha mais sob certas circunstâncias, o controle de mim mesmo e das minhas ações. Uma frase de um poema aprendido na infância veio-me à cabeça: "Ele era o senhor da sua alma." Eu não era mais o senhor da minha alma. E, se era assim, o que é que me esperava agora?

Abatido e preocupado por esse pensamento, pus as mãos na cabeça, lutando para manter o autocontrole. Sem dúvida eu devia procurar ajuda. Um médico, um psiquiatra? Eu não conhecia nenhum.

Nesse momento, dei-me conta de que havia alguém falando comigo.

Está doente? Posso ajudá-lo?

O homem alto. com quem eu tinha cruzado tantas vezes nas minhas caminhadas, estava inclinado em minha direção.

Não... não, obrigado. Estarei bem num minuto.

Ele olhou para mim com ar incrédulo e se sentou junto de mim.

Você é Desmonde Fitzgerald, não é? O astro de cinema?

Concordei em silêncio. Aquele homem não era nenhum chato caçador de autógrafos. Ele tinha expressão forte, o rosto marcado e um ar intelectual. De repente, tive o pressentimento de que não se tratava de um encontro casual.

Gostei do seu primeiro filme. Em parte porque com frequência eu tinha ouvido Caruso cantar, na Itália, Achei difícil decidir qual era a melhor voz. a dele ou a sua.. Ele fez uma pausa. Creio que. você também já cantou na Itália.

Agora já não havia sombra de dúvida. Aquele homem me conhecia. E às minhas origens remotas. De repente tive um impulso de me desabafar. Eu estava com problemas. Talvez ele me pudesse ajudar. Então veio a contracorrente: não faça papel de palhaço com um total desconhecido. Eu me levantei.

Vou voltar agora disse eu.

Irei com você, se me permite. Muitas vezes tenho tido vontade de falar com você, tantas vezes... desculpe-me... tantas vezes tenho visto tristeza e infelicidade no seu rosto.

O senhor é médico?

De certo modo.

Parece conhecer-me bastante intimamente.

Sim. conheço respondeu com simplicidade.

Sou o pastor da Igreja de São Beda, em Beverly Hills. O seu amigo, escritor e médico, que o trouxe para cá, foi-me ver. Ele estava ansioso por sua causa, preocupado com a mudança total da sua maneira de ser habitual e do seu temperamento. Tivemos uma longa conversa. Ora, é claro que eu não podia intervir, os nossos encontros têm sido puramente casuais, ou será que devo dizer providenciais? Com frequência venho aqui para ler o meu breviário e respirar um pouco de ar marinho. Agora que nos conhecemos, venha sentarse comigo, no meu carro, ou no seu, e vamos conversar um pouco.

Resistindo ao impulso de dizer a ele que fosse para o inferno, sentei-me com ele no seu velho Ford e, compelido pela força da sua personalidade, contei a ele a história toda. Ele me ouviu em silêncio.

Que é que há comigo? Será que estou possuído pelo demónio? Ou apenas estou ficando maluco?

Não diga mais nem uma palavra - ordenou. Entre no seu carro e me siga.

Obedeci. Aonde é que ele me estava levando? Para o pátio do presbitério de São Beda. Ali nós dois saltamos. Ele se aproximou de mim, segurou a minha mão e literalmente me arrastou até a escada que levava à igreja. Então, antes que eu pudesse protestar ou resistir, ele me levantou do chão, me carregou pelas escadas acima, e aí, num último esforço, para dentro da igreja e subiu até o altar, onde, subitamente, ele me largou.

Caí de cara no chão, literalmente me contorcendo numa série de convulsões, o suor aflorando na minha testa sem parar. Afinal, após um último espasmo, fiquei imóvel.

Não se mova, Desmonde.

Ele tinha uma toalhinha, com a qual enxugou meus lábios, minha testa, então me levantou e fez com que eu me sentasse a seu lado.

A narrativa foi interrompida aí. Abaixo, Desmonde tinha escrito:

Tenho que parar agora para ir até o estúdio. Espero que esta longa arenga não o tenha entediado. Eu simplesmente tinha que escrever para você, meu amigo muito querido. Mais tarde continuarei.

Quando terminei, dei a carta a Nan para que a lesse. Ela ficou profundamente comovida, como eu. Afinal disse:

Mas o que teria sido? Será que ele estava realmente possuído pelo demónio?

Quem sabe? Satã tem muitos ardis. Entretanto, poderia ser explicado racionalmente. Um prolongado e violento crescendo psicológico de ódio, logo em seguida ao seu casamento infeliz. Ódio e repulsa pela Igreja, por Deus.

Que horror!

Sim, mas pode acontecer. Estou feliz por ter falado com o Padre Devis.

Foi uma bênção.

E agora teremos que esperar e ter esperança.

Mais uma vez eu estava esperando por Desmonde, não em Euston, mas desta vez na Estação Victoria, e mais uma vez eu estava adiantado. Em vez de me sujeitar aos empurrões de carregadores e de passageiros, que já se dirigiam para o trem, fui para a sala de espera e comecei a reler a surpreendente carta escrita no estilo do Desmonde sentimental e esfuziante de antigamente, que eu levara até ali e que, datada da semana anterior, trazia por incrível que fosse, como cabeçalho: Seminário de St. Simeon, Torrijos, Espanha.

Meu caríssimo Alec,

Estou de joelhos diante de você, suplicando perdão pela minha negligência, meu atraso imperdoável em lhe relatar tudo que tem estado acontecendo com o seu velho amigo, as provações e dificuldades, e finalmente a maravilhosa solução, ou, dizendo melhor, a resolução divinamente inspirada que me ergueu a cabeça e me proporcionou renovado incentivo, vigor e inspiração. Desmonde é ele mesmo de novo, buscando um novo começo, um futuro aventuroso dedicado ao serviço da humanidade sofredora e do Senhor. Como lhe poderei agradecer adequadamente, caro Alec, pela sua sabedoria e previsão ao alertar o padre. Devis para o fato de que eu poderia precisar dele? Ele me trouxe de volta a mim mesmo, como eu era antes, e embora eu tenha perdido irreparavelmente os meus privilégios sacerdotais, sou novamente um membro praticante da Igreja.

E com que gentileza e atenção o bom padre. Devis me levou a tomar o curso que a minha vida agora tem que tomar, um curso que, de fato, esteve adormecido em mim desde os meus dias árduos em St. Simeon. Entretanto, quem teria acreditado no padre Hackett quando disse: "Ainda vou fazer de você um missionário, Fitzgerald."

Você deve saber que eu nunca poderia ser ordenado padre novamente. Mesmo que isso fosse possível, que chance eu teria de pregar numa paróquia irlandesa ou inglesa, onde o meu passado seria assunto de falatórios de esquina? O padre Devis foi muito enfático com relação a esse ponto, e assim obrigatoriamente eu também fui. Chegamos à conclusão de que qualquer trabalho de expiação ou de redenção, que eu pudesse fazer, deveria ser no exterior. Foi então que o padre Devis disse aquelas palavras decisivas: "Você deve ir procurar o padre Hackett para ver o que ele pode fazer por você."

É claro que concordei, pois a mesma ideia estava em minha mente.

Fiz a minha fuga, com grande dificuldade, dos estúdios de Hollywood, onde nunca conheci um só momento de felicidade. Eles se esforçavam muito para me laçar com um novo contrato, mas com a ajuda do padre. Devis escapei da forca, sob o pretexto de que a minha voz precisava de descanso. E assim fui para St. Simeon como penitente, levando, num gesto de aplacamento e de submissão, uma réplica exata do Cálice de Ouro que, durante apenas um ano, havia ficado sob a custódia do Colégio.

Eu lhe pouparei, caro Alec, os sentimentos comoventes e as profundas emoções do meu retorno a minha alma mater. Desnecessário dizer que fiquei profundamente tocado, tanto mais que a pequena cela monástica que eu havia ocupado outrora fora preparada e destinada a mim de novo.

O querido Petitt, infelizmente, já se foi. Derramei lágrimas sobre o seu túmulo. Meu inimigo, o execrável Duff, provou ser um homem melhor que eu. Agora está no Congo, um local não especialmente confortável para dirigir as forças do movimento cristão.

O padre. Hackett não mudou quase nada, para um homem continuamente atacado por uma febre periódica; ele é não apenas corajoso, mas também de uma notável resistência. Recebeu-me com calma e ficou muito satisfeito com a minha oferenda do Cálice.

Uma vez que começamos a examinar juntos o meu problema, ele não teve dificuldade em chegar a uma decisão. Disse calma e seriamente:

Sei exatamente, Desmonde, o que vou fazer com você. Uma vez que não é mais padre, é inútil na esfera de ação missionária. De qualquer maneira, você não está apto fisicamente para as selvas da África Central. Entretanto ele fez uma pausa, examinando-me atentamente. há uma oportunidade esperando por você, muitíssimo apropriada, na Índia. Continuou: Você tem conhecimento, Desmonde, do trabalho que eu iniciei em Madrasta, entre os filhos dos Intocáveis, aqueles pequenos seres seminus, que se amontoam nas calçadas e até nas sarjetas da cidade, abandonados, desamparados e sem lar. Eu havia começado a tomar providências para criar um dispensário e uma escola para eles e quando fui obrigado a partir, esse trabalho foi maravilhosamente desenvolvido por um excelente sacerdote americano, o padre Seeber. Ele se saiu bem. e agora tem uma escola de tamanho considerável onde muitos desses refugos humanos foram vestidos, educados e transformados em membros felizes e úteis da sociedade. Alguns até se tornaram professores, padres, médicos.

"Agora o padre Seeber já não é jovem. Sei, pela sua correspondência comigo, que acha o trabalho excessivo para ele. Um assistente seria bem-vindo, especialmente um que gostasse de crianças e soubesse lidar com elas. Que bênção seria se ele pudesse encontrar a pessoa certa, que o ajudasse a expandir e desenvolver a sua escola, alguém que lhe pudesse dar assistência financeira, pois eu lhe garanto que ele está sempre precisando de dinheiro! O padre Hackett fez uma pausa e olhou para mim significativamente. Você gostaria de que eu passasse um telegrama para ele a seu respeito?"

Como poderei descrever, Alec, a flecha de felicidade que penetrou no meu coração?

Que oportunidade enviada pelos céus! Você sabe que eu sempre adorei dar aulas a crianças, e se dizia em Kilbarrack que eu "tinha jeito para lidar com elas". E agora ter essa oportunidade de exercitar o meu talento e numa terra estranha, temperada com o sabor de novidade e aventura! Imediatamente implorei ao padre. Hackett que telegrafasse.

Ele o fez e, durante aquele dia inteiro e a maior parte do dia seguinte, fiquei andando pelos terrenos do seminário, numa agonia de suspense. Então chegou a resposta. Eu tinha sido aceito. Devia seguir imediatamente! Fui logo para a igreja a fim de render graças a Deus.

Então vieram os preparativos para a minha partida assunto nada simples, pode crer, Alec, uma vez que havia muita coisa exigindo minha atenção. Um cargueiro tinha a partida prevista de Southampton para Bombaim dentro de seis dias, e imediatamente, por telegrama, reservei minha passagem nesse navio. Em Madri, eu compraria algumas roupas apropriadas para os trópicos e seguiria de trem diretamente para Paris, de lá para Londres, onde espero encontrar você. Achei melhor não interromper a viagem para ir à Irlanda, mas um dia voltarei lá, quando me tiver redimido. Assim, direto para Londres, onde estarei com você. E que encontro feliz não vai ser!

Deveria explicar que o meu período de purgatório em Hollywood não foi inutilmente desperdiçado, e, sob a direção judiciosa de Frank Hulton, uma fortuna substancial está bem investida, fornecendo-me uma renda anual adequada não apenas às minhas necessidades filantrópicas no futuro aventuroso que me espera, mas também às obrigações pessoais que são meu dever e prazer cumprir.

É preciso que você saiba que foi determinada uma renda anual para a minha filha que lhe garantirá o futuro. Também enviei um presente à Sra. Donovan, que espero ela aprecie. É uma linda pequena imagem de prata da Virgem, século quinze puro, não de Benevenuto Cellini, é claro, mas de um artífice semelhante, que achei na Rua 57, em Nova York, antes de tomar o navio para Génova. Na mesma rua descobri por acaso um adorável Mary Cassat, uma maternidade, é claro, ao qual não pude resistir. Este foi enviado a você, caro Alec, e sei que o adorará. Também não me esqueci da Sra. Mullen, de Joe, que foram tão gentis comigo em Dublin. Foram bem recompensados. O Cónego Daily foi um caso mais difícil de solucionar. Eu lhe teria enviado o "Dew", mas sei que ele tem um bom fornecimento do produto. Assim, em vez disso, enviei-lhe, com a minha afeição, alguns belos panos de linho bordados para o altar.

Oh, meu Deus, como me é doloroso lembrar aqueles dias felizes em Kilbarrack, e o prelibar do céu que atirei fora através da minha própria loucura! Mas farei a minha penitência nas favelas e becos malcheirosos de Madrasta. Já peguei emprestado um livro de expressões idiomáticas em hindustani do padre. Hackett!

Mas chega, Alec, eu lhe mandarei um telegrama d;zendo a data prevista da minha chegada e onde nos poderemos encontrar. Talvez abrigue por uma noite este alegre peregrino, o seu amigo que lhe tem muito afeto.

Dobrei e guardei no bolso aquela arenga sentimental e efusiva, tão típica, com o telegrama que a seguiu: ATRASADO UM DIA POR CAUSA VACINA FEBRE AMARELA EM PARIS. FAVOR ME ENCONTRE VICTORIA 10 MANHA SEXTAFEIRA PARA ÚLTIMA DESPEDIDA DESMONDE. A hora da chegada do trem estava próxima. Certamente logo ele deveria aparecer. Levantei-me e saí da sala de espera.

E ali, de repente, meu olhar foi atraído e se fixou em alguém. Com um sombrero preto puxado sobre o rosto e que tinha alguma coisa de clerical, mas que parecia mais próprio de um bandido, um casaco preto curto, fortemente ajustado na cintura por uma tira de couro de dez centímetros, calças pretas de boca estreita na altura dos tornozelos, botas de couro macio, e caminhando com o ar sério de um pioneiro atrás de dois carregadores, que cambaleavam sob uma enorme mala de viagem com fechos de cobre sim, ali estava Desmonde, vestido a caráter para o seu novo papel e já o desempenhando com a máxima seriedade.

Ele me viu e imediatamente veio em minha direção, estendendo as duas mãos.

Meu querido Alec! Que bom ver você de novo! E que pena e que falta de sorte que o nosso encontro tenha que ser aqui! Aquelas terríveis vacinas de febre amarela! Ele olhou para o seu enorme relógio de pulso, onde se viam os signos do zodíaco e que parecia ser também uma bússola. Venha! Temos pelo menos dez minutos.. Ele me levou para a sala de espera deserta. Já paguei os carregadores, eles porão a minha bagagem no compartimento.

Sentamo-nos, um em frente do outro.

Você está o mesmo, Alec. Não parece nem um dia mais velho. São esses terríveis banhos frios. Que é que acha de mim? Vi que ele estava o mesmo Desmonde que tinha enviado o bolo de aniversário ao padre Beauchamp, mas respondi:

Muito mudado no aspecto exterior. Ele me deu um sorriso satisfeito.

Passei pelos fogos do inferno, Alec, mas agora sou um outro homem.

Você teve que se apressar muito para vir para cá. tomou café?

Tomei o chota hazri no trem de Dover respondeu ele com afetada indiferença. Café da manhã, sabe. A propósito, recebeu o Mary Cassatt?

Recebi, Desmonde, muito obrigado. É lindo!

Espero que a Srta. Radleigh goste.

Ela gosta. E a minha esposa também. Alegrou-a bastante. Ela não tem passado muito bem ultimamente.

Sinto muito, Alec. Ele tinha aberto o casaco parcialmente, revelando, para minha surpresa, uma enorme faca embainhada, confortavelmente ajustada ao seu quadril.

Está armado, Desmonde!

Dacoits murmurou ele laconicamente. Ficam nos arredores da região de Madrasta. É preciso estarmos preparados.

(*) Bandidos assassinos da índia que agem em grupos. (N. da T.)

E terrivelmente incómoda, machuca bastante, mas quero habituarme a usá-la. Fez uma pausa. Tem notícias da Irlanda para mim?

-Sim, Desmonde. Vemos a Sra. Donovan com frequência, ultimamente. Ela seguiu a sugestão que fiz por ocasião do nosso encontro na Suíça, e quando está em Londres vem visitar a minha esposa. Elas gostam muito uma da outra. Muito gentilmente me convidou para pescar quando chegou a temporada de salmão em Blackwater. Posso-lhe dizer que ela está bem, que a sua filha está crescendo inteligente e bonita, e que o querido cónego ainda continua forte.

Ele ficou um momento em silêncio, e então disse:

- Conte a eles como me viu. Ele falou com um entusiasmo teatral. Partindo com a minha pintura de guerra, decidido e destemido.

Achei difícil conter um sorriso. Aquele, de fato, era Desmonde. que nunca, nunca cresceria. Que sorte ele tivera em Hollywood de ter Frank Hulton, e o padre Devis também! Não fosse isso, os lobos o teriam devorado. Sem dúvida, ele se sairia bem na índia, se houvesse uma audiência qualquer para assistir e aplaudir. Talvez alguma jovem maharani precisasse de esclarecimento e instrução. Mas interrompi o pensamento e disse:

Você deve voltar à Irlanda, um dia.

"- Sim, Alec, quando, como Clive, eu tiver conquistado a índia!

Então olhei para o meu relógio de pulso, bastante decorativo mas de puro níquel garantido, que me custara cinco libras numa ocasião.

Não acha, Desmonde... o seu trem?

Ah, sim! Ele se levantou. Venha comigo até a cerca Alec.

Obedeci, seguindo-o enquanto ele caminhava, como Cavaradossi para a sua execução. E ali, sob os olhares estupefatos de uma dupla de bilheteiros, ele me beijou nos dois lados da face, antes de se encaminhar, resolutamente, para o seu compartimento.

Achei que devia contracenar com ele, esperando que o trem partisse. Mas eu estava bastante cansado de esperar, minha mulher se achava doente, meu novo livro estava dando sinais de que ia ser um fracasso e, como eu tinha vindo sem o meu chota hazri, resolvi ir para casa.

Tínhamos acabado o nosso habitual almoço dos domingos, preparado rapidamente depois de irmos ã igreja: salada verde com queijo Gruyère tostado em pão de centeio, seguido de frutas e café, e estávamos sentados junto da grande janela do solário que dava para o grande jardim e para os distantes Dents du Midi e o Lago Leman muito mais abaixo. O sol brilhava no céu azul, um vento frio agitava os galhos finos das árvores, e de novo pensei em como havíamos sido abençoados, há cinco anos atrás, ao encontrar aquele lugar adorável, a casa baixa, lindamente projetada, quase nova, o jardim já plantado, com arbustos e árvores escolhidas a dedo. À Sra. Donovan tinha ouvido falar da casa e me atraíra a ir para a Suíça.

Mais café disse Nan.. Uma outra xícara, Patrão, senão vai acabar dormindo.

Quieta, menina. Você sabe que eu prometi podar as azaleas. Se eu não o fizer, não haverá flores no ano que vem.

Eu tinha a intenção de lhe dizer, Patrão, cuidei delas ontem. Mas as peônias estão precisando de ser mondadas.

A minha mente estava firmemente concentrada nas azaleas, e você a desviou delas.

Olhe! Lá está o lindo chapinzinho azul na minha caixa de alpiste.

O seu querido vai comer todas as cerejas, o danadinho. E aquele melro gordo que você adora, o Sr. Pickwick, lá está ele, cavando buracos no gramado.

De repente a campainha da porta tocou.

Droga!

Vou abrir disse Nan.. Gina saiu, hoje é a tarde de folga dela.

Não, não vá. Deve ser algum chato querendo ver o jardim. Não responda que ele irá embora.

A campainha tornou a tocar.

Dois toques disse.. Agora eles irão embora.

Mas, depois de um breve silêncio, a campainha tocou de novo, desta vez demoradamente.

Agora temos que abrir disse Nan e, levantou-se, saiu apressada em direção à porta. Quase no mesmo instante se iniciou um diálogo que eu não conseguira ouvir distintamente, após o que Nan voltou, parecendo preocupada e hesitante.

Patrão. disse ela, em voz baixa. - Há um homenzinho estranho lá fora, vestido de preto, com uma longa barba branca arrepiada. Ele quer falar com o senhor. Acho que é sacerdote. O nome dele é Padre Keever.

Keever?. Então saltei da cadeira e corri para a porta. Não poderia ser Seeber?

E era mesmo! Eu o teria reconhecido em qualquer lugar, não apenas pelas frequentes descrições de Desmonde, mas também por causa da fotografia que sempre autenticava os seus divertidíssimos pedidos de contribuições em dinheiro.

- Entre, Padre disse eu, estendendo a mão. Que magnifica surpresa!

Sim, vou entrar. - Ele sorriu. - Mas, apenas para tranquilizar a sua mente, não vou poder ficar. Estive em Colónia visitando o meu irmão, mas não podia voltar sem interromper a minha viagem de retorno para visitá-lo.

Mas tem que se hospedar conosco.

- Não, não, doutor, não posso. Meu avião parte de Genebra às seis e meia.

- Então deixe que eu providencie um almoço para o senhor.

Não, doutor. Fiz uma ótima refeição no avião de Colónia. Mas, se me oferecer um café, não vou dizer que não.

Nan imediatamente serviu uma xícara do café que estava na garrafa térmica. Ao aceitá-la, ele sorriu.

Srta. Radleigh, não é? Ouvi falar a seu respeito através de Desmonde. Não gosta dele?

Não é ele. São as mesuras, genuflexões e beija-mãos.

Nunca conseguirá fazê-lo abandonar isso. O homenzinho riu.. Não receberam notícias dele ultimamente?

- Não. Há muito tempo que não. E estamos ansiosos por notícias.

- Bem, vocês as terão. Mas primeiro vamos ter notícias de vocês. Vocês dois estão bem?

Não parecemos estar em boa forma?

Parecem, parecem, sim. E a coitada da sua esposa?

Ela também está bem, fisicamente. Mas... tudo mais se foi. Agora ela já não me reconhece, nem aos seus filhos. Entretanto, está feliz e, posso-lhe garantir, uma vez que está proibida de ficar em casa, tem toda a assistência com duas enfermeiras e o seu médico numa linda propriedade no campo... a melhor clínica existente para alguém no seu estado.

Oh, meu Deus, meu Deus! Que pena! Ele suspirou, acrescentando: E não é uma despesa terrível para você?

Aquela era uma pergunta que não precisava de resposta. Mas era a minha principal razão para viver na Suíça.

Houve um silêncio enquanto o nosso visitante nos examinava com os olhos gentis.

E vocês dois, agora vocês estão realmente sozinhos aqui... Estiveram na igreja esta manhã, não?

Naturalmente, Padre. Em Vevey. Nossas igrejas ficam a cem metros uma da outra... a minha é a de Santa Teresa, e a de Nan a linda igrejinha anglicana de Todos-os-Santos.

Bom disse ele.. Assim ainda estão mantendo a fé. O castelo não caiu.

Bem, Padre, as muralhas sofreram alguns ataques esmagadores, mas a porta levadiça continua inviolada. Em geral, quando passamos um longo dia celestial juntos e à noite temos que ir para nossos quartos separados, eu brinco um pouco, e divirto Nan com aquela estrofe abominável do Adeus de Tosti:

"Adieu, o último triste instante, a hora da separação está próxima."

Ele sorriu.

Sim, é difícil. Mas vocês dois se aperfeiçoarão com isso. E amarão ainda mais. Além disso, têm tanta coisa para se sentirem gratos, este adorável jardim e a casa. Toda esta paz também: domas parva, magna, quies. Ele lançou um olhar apreciativo em volta, pela sala, e exclamou: Mas, onde estão os seus quadros? Desmonde fala com tanta frequência dos seus lindos impressionistas. Não os vejo.

Eles foram retirados pela polícia suíça. Por Deus!. Ele se ergueu na cadeira, estupefato. Por causa de dívidas?

Não! Têm havido tantos roubos de pinturas valiosas ultimamente, que, como nos ausentamos constantemente para visitar minha esposa, fui constrangido, quase obrigado, a removê-los para um lugar seguro. Agora estão nos cofres do Banco Credit Suisse, aonde podemos ir admirá-los sempre que desejamos.

Sim.. Depois de um momento de reflexão: Sem dúvida, uma sábia precaução. Mas, que evidência triste do mundo de hoje! Não devo contar a Desmonde. Ele tem muito orgulho dos quadros que lhe deu.

Não, por favor não conte a ele. Padre. E certamente não conte a ele que o Mary Cassatt que me enviou não é verdadeiro.

Quê! Uma cópia!

Uma cópia muito bem feita. Sem registro. E sem qualquer indicação de proveniência.

Não, não devo contar. Senão, para se redimir, ele imediatamente lhe enviaria alguma coisa extremamente valiosa.

Nós dois olhamos para ele, surpreendidos.

Está brincando, Padre?

Ele sacudiu a cabeça, dizendo:

Vejo que estão loucos para terem notícias de Desmonde. Bem, vou-lhes contar. Ouçam, pois, o que pode ser o grande final da sua carreira variada e aventurosa. Após uma pausa, ele começou:

Quando Desmonde me procurou, estava ardentemente ansioso e transbordante de desejo de se testar de todas as maneiras, em resumo, de se redimir. Com muito tato, foi persuadido a se desarmar nós lhe asseguramos que a sua faca não seria necessária, exceto na cozinha, onde de fato demonstrou ser ótima para cortar presunto. Então, apresentamo-lo à sua turma. Ele adorou os garotinhos imediatamente, e se tornou evidente que as crianças estavam prontas para gostar dele. Entretanto, foi desencorajador para ele descobrir que os meninos estavam prontos para tudo, exceto instruir-se, como ele havia esperado, em grego e latim. Em vez disso, tinham primeiro que ser ensinados a soletrar, ler e escrever. Um outro choque para Desmonde foi a nossa dieta, que consiste em geral de duas variedades de painço: ragi e varagu, ambos de alto teor nutritivo, mas longe de serem atraentes para um paladar sofisticado. Neste ponto, o padre Seeber fez uma interrupção para se permitir uma risadinha para si mesmo. Era engraçado observar o rosto de Desmonde quando via aqueles pratos. Mas com determinação ele os engolia, uma resolução suavizada pelo fato de que aos sábados, na hora do almoço, ele era observado se esgueirando na direção do Commercial Hotel.

"Agora, como pode imaginar, Desmonde não se satisfazia em patjir em "gato" se soletra "g a t o" e "dois e dois são quatro". Que foi que ele fez? Começou, é claro, a ensinar os meninos a cantar. E como eles adoravam! Logo ele os tinha gorjeando suavemente hinos e canções de ninar. Isso era suficiente? De maneira nenhuma. Escolhendo oito meninos com as melhores vozes, ele os retinha depois das aulas e. ensinando na igreja ou na sala de aulas vazia, começou a formar um coro. E teve sucesso? Na nossa reunião trimestral, no grande salão, ele apresentou o coro. Pode crer: foi um imenso sucesso. Valha-me Deus! Eles cantaram até duas de suas canções favoritas. Of í in the Stilly Night e Passing By, e receberam uma grande ovação. Até eu fiquei comovido com aquelas vozes puras, lindas e jovens, se elevando em perfeita harmonia.

O padre Seeber fez uma pausa. Nós dois ouvíamos com atenção, cônscios de que ainda havia mais por vir.

Continue, continue exclamou Nan.. Mais café? Ainda está bem quente.

Uma outra xícara de café foi servida e aceita com muito agrado.

Sim prosseguiu o padre See - ber.. Como adivinharam, nada poderia deter Desmonde agora. Madrasta é uma cidade grande, mas as notícias correm depressa. Comentários sobre o coro de Desmonde se espalharam e não demorou muito para que recebêssemos um convite para que o coro se representasse num concerto vespertino de caridade a ser realizado na Universidade Governamental de Arte. Com a minha permissão, Desmonde aceitou. Ora, obviamente, os meninos não podiam ir com as suas modestas roupas improvisadas. Assim, Desmonde entrou em ação, encomendou e mandou fazer... nunca adivinharão o quê... oito pequenas sotainas escarlates e oito chapéus vermelhos. O seu coro recebeu então o nome de Pequenos Cardeais.

Via-se de imediato que naquilo estava a expressão do desejo subconsciente de Desmonde. Mal podíamos esperar até que o padre Seeber acabasse o seu café.

- Agora, não vou aborrecer vocês com o sucesso dos Pequenos Cardeais. Logo de início, decidimos que deveríamos aceitar apenas os poucos convites que fossem absolutamente impecáveis e selecionados. Em Madrasta, a terceira cidade da índia, onde existe uma miséria indescritível, também existe uma riqueza fabulosa, manifestada principalmente nas grandes casas e propriedades agrupadas na área de Adayar. Muitas dessas pessoas ricas são cristãs, e não raramente, quando um almoço de alta sociedade ou uma festa ao ar livre eram oferecidos, os Pequenos Cardeais eram chamados para distrair os convidados. Eles iam, e Desmonde, o professor deles. Cardeal manque, ia com eles, não apenas para dirigir a apresentação, mas também para cuidar de que não fossem mal habituados com doces e carinhos. Naturalmente ficava para almoçar e era considerado encantador, de fato ainda mais atraente que os meninos.

Ele fez uma pausa, com um ar de reminiscências e um meio sorriso.

Oh, pare com o suspense, Padre implorei. O senhor está fazendo isso de propósito.

Ainda sorrindo, ele continuou:

Uma das anfitrioas de Adayar que manifestou o maior e o mais persistente interesse nos Pequenos Cardeais era uma eurasiana, a Sra. Louise Pernambur, cristã, mas uma Rani de verdade, viúva de um juiz do Supremo Tribunal de Madrasta e que havia herdado uma enorme fortuna de seu pai, cujas fábricas de algodão, com muitas centenas de teares, floresceram durante muitos anos em Calicut. Louise Pernambur, proprietária de muitas coisas além da sua magnífica propriedade em Adayar e uma casa em Poona, para onde se retirava durante o verão tórrido de Madrasta, estava naquela ocasião com trinta e cinco anos, era mulher lânguida e indolente, em termos de corpo com uma leve tendência talvez para um agradável embonpoint, tinha, como é frequente nas eurasianas. a pele clara e langorosos olhos escuros e era por demais atraente. Mas, como muitos pretendentes em potencial haviam logo descoberto, aqueles olhos sonhadores também sabiam ser duros. A Sra. Pernambur conhecia o seu valor e nunca se venderia barato.

"Quão surpreendente, quão admirável era que aquela mulher dura, extremamente rica e bonita estivesse tão ternamente interessada em oito garotinhos cantores de coro! E mais surpreendente ainda era o fato de que quando os Pequenos Cardeais não tinham permissão de ir, o professor deles era convidado para almoçar, e até para jantar, sendo a refeição deliciosa servida no terraço do jardim sob uma grande lua resplandecente.

De repente o padre. Seeber fez uma pausa e olhou para o relógio.

Meu Deus! Quase três e meia. O carro deve estar vindo buscar-me, acho até que o estou ouvindo aproximar-se na sua entrada de carros. Agora não me alongarei mais com vocês. Não podia haver qualquer dúvida. Embora nenhuma palavra ainda tivesse sido dita, Louise tinha-se apaixonado profunda e ardentemente.

"Num sábado, quando eu estava em Adayar visitando um de nossos benfeitores, resolvi ir visitar a Sra. Pernambur. Eu sabia que Desmonde havia sido convidado para o chá e, como eu estava com calor e sede. esperava poder conseguir uma xícara reconfortante e um pãozinho para mim.

"Eram talvez três e meia, o dia estava uma verdadeira fornalha típica de Madrasta, muito diferente das chuvas persistentes e das terríveis enchentes que devastavam Bihar, ao norte. Como então eu já estava familiarizado com a casa, era quase persona grata, entrei pela porta do terraço, segui pelo corredor até o grande salão. Ali parei, sem ser visto, à sombra da porta.

"Sentados lado a lado, no grande sofá baixo, sob o punkah balançado ritmicamente por um dos empregados, estavam Desmonde e a sua anfitrioa, esta num lindo chambre de voile azul.

"Desmonde, é preciso que se diga isso em seu favor, ocupara a extremidade mais distante do sofá, enquanto a Sra. Pernambur. como se através de algum processo de gravitação, havia chegado bastante perto dele e o olhava nos olhos com afeição. De repente, baixinho, ela murmurou alguma coisa no ouvido dele. Ele respondeu com um sorriso polido que, entretanto, mal escondia uma expressão de fadiga, poder-se-ia até dizer tédio, ante o que ela esticou o braço e apertou um botão.

"Eu sabia o que estava a caminho, uma vez que recentemente um enorme órgão elétrico havia sido importado de Nova York e. equipado com as gravações de Desmonde, colocado num recesso do lado de fora do salão. E naquele momento, com um estrondo de advertência, atacou:

"You are my heart's delight,

And where you are I long to be..."

"Enquanto aquela voz jovem e incomparável se espalhava pela sala, ela se aproximou dele ainda mais. E se eu alguma vez vi

(*) Ventilador manual hindu operado manualmente. (N. da T.)

casamento nos olhos de uma mulher, foi ali, naquele momento eu conhecia bem Louise, e com ela aquilo nunca poderia ser qualquer outra coisa.

"Assim, dei meia-volta e saí, na ponta dos pés, por onde tinha entrado, e fiz o percurso até a porta principal, onde deixei um recado com o mordomo."

Enquanto o padre Seeber concluía, nós olhamos para ele em silêncio, parcialmente estonteados pela sua narrativa.

Bem - disse eu. afinal confie em Desmonde para fazer uma boa aterrissagem. Espero que ele seja feliz."

Espere, espere! exclamou o padre Seeber. Não vamos pôr os carros na frente dos bois. Naquela noite, quando Desmonde voltou, bem mais cedo do que o habitual, foi direto para a sala de aulas. Ali, seus alunos se tinham reunido para esperá-lo. Imediatamente ele entrou e foi recebido por uma canção que eles tinham composto em conjunto; versinhos infantis de carinho e admiração mas que, cantados por aquelas doces vozinhas, eram realmente comoventes.

"Desmonde estava com os olhos úmidos quando saiu da sala, e reparei que foi para a capela. Eu sabia que ele viria ver-me e, de fato, meia hora depois, ele bateu na porta do meu gabinete. "Entre, Desmonde." Ele entrou e imediatamente se ajoelhou aos meus pés. "Levante-se, seu bobo, e sente-se naquela cadeira." Depois que ele obedeceu, com relutância, continuei: "E não precisa me contar. Já sei. e a culpa é só sua. Com os seus beija-mãos e genuflexões, os seus olhares prolongados com esses olhos azuis apaixonados, você fez com que a pobre mulher pensasse que você estava perdidamente apaixonado por ela, e que era tímido demais, humilde demais para se declarar. Assim - fiz uma pausa.. ela o fez por você. Estou certo?" "Sim, padre" disse ele com tristeza. "Ela quer-me levar para Poona para um casamento discreto." "E você quer ir?" Ele sacudiu a cabeça lugubremente. "Não quero acabar a minha vida miserável no boudoir dela. Além disso - acrescentou o pobre idiota - não suporto o cheiro dela.

Nan e eu tivemos um impulso irresistível de rir, mas um olhar do padre Seeber nos conteve.

Desmonde estava fora de si. Assim, eu disse a ele com muita firmeza que, se quisesse evitar futuros problemas, devia ir embora imediatamente. Estavam implorando ajuda em Bihar, onde as enchentes haviam provocado uma terrível devastação e o rio tinha transbordado, arrastando no seu curso uma cidade inteira. Disse a ele que fosse fazer as malas e que levasse um colchão, uma vez que seria uma viagem longa e demorada pela costa acima até Calcutá. "Não quero deixar os meus meninos e o senhor, padre." "Então a Sra. Pernambur nunca o deixará em paz." Depois de um longo momento ele se levantou, dirigiu-se em silêncio para o seu quarto, fez a mala e obedientemente trouxe o colchão. Às dez e meia daquela noite, eu o pus a bordo do trem postal que se dirigia para o norte, na estação de Madrasta.

Um silêncio se seguiu àquela longa e, para nós, interessantíssima narrativa.

Afinal ele foi mesmo para Bihar? perguntou Nan.

Sim, e pelos relatórios enviados pelo telégrafo, se conduziu com excepcional coragem e iniciativa.

- E a Sra. Pernambur?. tornou a perguntar Nan.

Achei conveniente fazer a tão adiada visita ao meu irmão - disse o Padre Seeber com brandura. Quando voltar, ela estará em Poona, local adorável para onde enviarei uma longa carta, tão agradável e simpática quanto possível, de explicação.

O carro lá fora já estava buzinando há algum tempo. O padre se levantou.

Gostaria de poder ficar mais tempo, mas agora tenho que ir. Estou satisfeito por tê-los encontrado bem e felizes. E contarei isso a Desmonde.

Quando o acompanhávamos até a porta, ele tomou o braço de Nan e, sorrindo, sussurrou algo no ouvido dela. Apertamo-nos então as mãos, ele entrou no táxi e se foi.

Que homenzinho maravilhoso e simpático! disse Nan.. Um amor mesmo!

É, sim concordei afetuosamente. Tenho que lhe mandar um cheque decente. Mas, meu Deus, aquele Desmonde! Quem podia imaginar! A propósito, que foi que o Padre Seeber cochichou para você?

Ela baixou os olhos e murmurou:

Seja boa, querida moça, e vocês ambos continuarão a ser felizes.

 

 

                                                                                            A. J. Cronin  

 

                      

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