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O JÚRI / Jonh Grisham
O JÚRI / Jonh Grisham

 

 

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O JÚRI

 

O rosto de Nicholas Easter estava parcialmente escondido por um mostruário cheio de elegantes telefones sem fios e não olhava directamente para a câmara oculta, mas um pouco mais para a esquerda, talvez para um cliente, ou para o balcão, onde um grupo de jovens apreciava as novidades de jogos electrónicos importados da Ásia. Embora tirada a uma distância de quarenta metros, por um homem que tinha de se desviar constantemente dos transeuntes no passeio, a fotografia era clara e mostrava um rosto simpático, bem barbeado, com traços fortes e uma beleza quase infantil. Easter tinha vinte e sete anos: sobre isso não havia dúvida. Não usava óculos, piercing no nariz, nem sequer um penteado estranho. Nada indicava que fosse um daqueles fanáticos por computadores que trabalham numa loja de informática a troco de um salário miserável. Na ficha a seu respeito apenas constava que estava ali há quatro meses e que era estudante, embora não tivessem encontrado nenhum registo de matrícula em qualquer uma das escolas situadas num raio de quatrocentos quilómetros. Sobre este assunto, tinham a certeza de que mentia.

Tinha de ser mentira. O seu serviço de espionagem e informações era óptimo e, se o rapaz fosse realmente estudante, já teria sido descoberto onde, há quanto tempo, em que área, se tinha boas ou más notas.

Easter trabalhava num centro comercial numa Computer Hut, uma loja de informática. Nada mais, nada menos. Talvez tivesse intenção de matricular-se. Talvez tivesse sido obrigado a abandonar os estudos mas continuasse a gostar de se dizer estudante. Provavelmente essa ideia fazia com que se sentisse melhor, dando-lhe uma espécie de objectivo na vida; além de que soava bem.

Easter não era estudante de nada, nem naquele preciso momento nem num passado recente. E, assim sendo, seria possível confiar nele? A questão fora debatida na sala nas duas vezes em que chegaram ao nome de Easter incluído na lista principal de potenciais jurados e viram o seu rosto projectado no ecrã. Tinham quase decidido que se tratava de uma mentira sem importância.

Não fumava. A loja tinha regras estritas a esse respeito, mas Easter foi visto (mas não fotografado) a comer um taco no Food Garden com uma colega de trabalho que fumou dois cigarros enquanto bebia uma limonada. Aparentemente o fumo do cigarro não o incomodava. Pelo menos não era anti-tabagista fanático.

Na fotografia aparecia um rosto magro, bronzeado pelo sol, sorrindo levemente com os lábios fechados. Sob o casaco vermelho da farda da loja usava uma camisa branca, com colarinho sem botão, e uma discreta gravata às riscas. Parecia limpo, em boa forma, e o homem que tirou as fotografias chegou a falar com ele, fingindo que estava à procura de uma peça obsoleta de computador. Disse que tinha um discurso articulado, que era atencioso, conhecia bem o ramo, em resumo, que era um jovem simpático. No seu "crachá" lia-se "Subgerente", mas foram vistos em simultâneo na loja outros dois rapazes com o mesmo título nos "crachás".

No dia seguinte ao da foto, uma jovem atraente, vestida de jeans, entrou na loja e, enquanto examinava material de software, acendeu um cigarro. Por acaso. Nicholas Easter era o subgerente que se encontrava mais próximo e, delicadamente, pediu à rapariga para apagar o cigarro. Ela parecia frustrada. Até mesmo insultada e tentou provocá-lo. Nicholas manteve uma atitude diplomática, explicando que era estritamente proibido fumar na loja. Podia fumar em qualquer outro lugar, menos ali

- O tabaco incomoda-o? - perguntou ela, dando uma passa.

- Francamente, não - respondeu. - Mas incomoda o dono da loja. - E voltou a sugerir-lhe que apagasse o cigarro.

A rapariga disse que queria comprar um rádio digital e pediu-lhe que arranjasse um cinzeiro. Nicholas tirou de baixo do balcão uma garrafa vazia de refrigerante, tirou-lhe o cigarro da mão e apagou-o. Du-

rante vinte minutos, enquanto escolhia o modelo de rádio que ia comprar, falaram sobre rádios. A rapariga tinha uma atitude abertamente provocante e Nicholas entrou no jogo. Depois de pagar o rádio, a rapariga deu-lhe um papel com o número de telefone. Nicholas prometeu telefonar-lhe.

O episódio durou vinte e quatro minutos e foi registado por um gravador escondido na carteira dela. A gravação foi ouvida nas duas vezes em que o rosto de Nicholas foi projectado na parede e estudado pelos advogados e assessores. O relatório da jovem sobre o incidente estava arquivado, seis páginas dactilografadas sobre tudo o que tinha observado, desde os sapatos (uns Nike velhos), ao hálito (pastilha elástica de canela), ao vocabulário (colegial) e à forma como tinha agarrado o cigarro. Na sua opinião, e era entendida na matéria, Nicholas nunca tinha fumado.

Ouviram a agradável voz de Nicholas, apreciaram o seu profissionalismo como vendedor, o encanto da sua conversa e gostaram dele. Era inteligente e não odiava tabaco. Não se encaixava no modelo de jurado, mas merecia certamente ser observado. O problema com Easter, potencial jurado número cinquenta e seis, era o pouco que sabiam sobre ele. Tinha chegado à Costa do Golfo há menos de um ano e não tinham uma pista sequer sobre o local de onde viera. O seu passado era um completo mistério. Alugou um TO oito quarteirões adiante do prédio do tribunal de Biloxi - tinham fotografias do prédio - e, primeiro, trabalhou como empregado de mesa num casino na praia. Rapidamente foi promovido a croupier, mas deixou o casino quatro meses depois.

Assim que o jogo foi legalizado no estado do Mississipi, da noite para o dia, surgiram na costa uma dezena de casinos, e aos casinos seguiu-se uma intensa onda de prosperidade. De todos os lados chegaram pretendentes aos novos empregos e seria lógico supor que Nicholas Easter tivesse chegado a Biloxi pelo mesmo motivo que milhares de outros. A respeito da sua mudança para Biloxi, a única coisa estranha a registar era a pressa com que se tinha recenseado como eleitor.

Nicholas tinha um carocha de 1969 e uma fotografia do carro substituiu o seu rosto na parede. Nada de mais. Um homem de vinte e sete anos, solteiro, supostamente estudante - o tipo perfeito para ter aquele tipo de carro. Nenhum autocolante nos pára-choques. Nada que indicasse filiação política, consciência social ou preferência por algum clube desportivo. Não tinha sequer um autocolante do parque de estacionamento da faculdade. Nem mesmo um autocolante desbotado do stand que lhe vendera o carro. O carro não tinha qualquer tipo de significado para aquela investigação. Nada, a não ser denunciar um estado de quase pobreza.

O homem que manuseava o projector, e que se encarregava da maior parte da apresentação, era Cari Nussman, um advogado de Chicago que deixara de exercer para abrir uma firma de consultoria de júris. Por uma pequena fortuna, Cari Nussman e a sua firma podiam escolher o júri perfeito. Coligiam dados, tiravam fotografias, gravavam vozes, contratavam louras com jeans justos para situações adequadas. Cari e os sócios movimentavam-se muito perto dos limites da lei e da ética, mas era impossível incriminá-los. Na verdade, não há nada de ilegal em fotografar possíveis jurados. Em Harrison County tinham feito investigações exaustivas por telefone, a primeira vez há seis meses, a segunda há dois e, a última, passado um mês, tudo para aferir a opinião da comunidade sobre o fumo e para esquematizar diferentes modelos de jurados perfeitos. Não ficou por tirar nenhuma possível fotografia e não houve nenhum "podre" de algum dos potenciais jurados que tivesse ficado esquecido ou que não tivesse sido classificado. Tinham um dossier completo sobre cada um dos potenciais jurados.

Cari apertou um botão e o carocha foi substituído pela fotografia de um prédio com a pintura desbotada onde, num dos apartamentos, vivia Nicholas Easter. Pressionado outro botão, apareceu de novo o rosto de Nicholas Easter.

- Assim, apenas temos estas três fotografias do número cinquenta e seis - disse Cari, num tom ligeiramente frustrado, voltando-se com um olhar de censura para o fotógrafo, um dos seus inúmeros espiões particulares que, apesar disso, explicou as circunstâncias arriscadas em que conseguira fotografar o rapaz, todas passíveis de o denunciarem. O fotógrafo estava numa cadeira encostada à parede, de frente para a longa mesa dos advogados, assistentes e especialistas em júris. Parecia entediado e pronto para sair. Eram sete horas de uma noite de sexta-feira. O número cinquenta e seis estava projectado na parede e .linda faltava analisar cento e quarenta. Ia ter um fim de semana horrível. Precisava absolutamente de uma bebida.

Uma meia dúzia de advogados com camisas amarrotadas e mangas arregaçadas, tomando infindáveis notas, olhava ocasionalmente para o rosto de Nicholas Easter projectado na parede atrás de Cari. Especialistas emjúris de quase todos os géneros - psicanalistas, sociólogos, grafólogos, professores de Direito e assim por diante -arrumavam papéis e consultavam pilhas de folhas de dois centímetros de espessura com textos impressos em computador. Não sabiam ao certo o que fazer com Easter. Era um mentiroso que escondia o passado mas, mesmo assim, parecia-lhes bem, tanto no papel como na parede.

Talvez não mentisse propriamente. Era perfeitamente possível que no ano anterior tivesse estado matriculado numa faculdade barata no Leste do Arizona, e não tivessem conseguido descobri-lo.

Dêem uma oportunidade ao rapaz, pensou o fotógrafo, mas continuou calado. A sua opinião seria a última a ser lavada em linha de conta naquela sala cheia de homens instruídos e bem pagos. Não era pago para dar opiniões.

Cari pigarreou e, olhando outra vez para o fotógrafo, disse:

- Número cinquenta e sete. - Apareceu projectado na parede o rosto suado de uma jovem mãe e pelo menos duas pessoas deixaram escapar uma gargalhada discreta. - Traci Wilkes - disse Cari, como se Traci fosse agora uma velha amiga. Levemente, moveram-se papéis sobre a mesa.

-Idade: trinta e três, casada, dois filhos, marido médico, dois "coun-try" clubes, dois ginásios e uma lista completa de clubes sociais.

Cari descrevia os itens de memória enquanto girava o botão do projector. O rosto vermelho de Traci foi substituído por uma outra fotografia sua a correr num passeio, esplêndida, com um fato brilhante muito justo, em tons de rosa e negro, ténis Reebok impecavelmente limpos, o último modelo de óculos escuros desportivos e o cabelo longo preso num perfeito rabo-de-cavalo. Empurrava um carrinho próprio para correr com um bebé a acompanhá-la. Traci vivia para suar. Bronzeada pelo sol, estava em perfeita forma física, mas não exactamente magra como seria de esperar. Traci tinha alguns maus hábitos. Outra fotografia de Traci na sua carrinha Mercedes preta, com crianças e cães em todas as janelas. Outra, ainda, em que arrumava os sacos das compras na mesma carrinha, com outros ténis, calções justos e a exacta aparência de quem pretende ficar jovem e atlética para sempre. Foi fácil segui-la porque estava sempre atarefada, quase à beira da exaustão, e nunca parava o tempo suficiente para olhar à sua volta.

Cari projectou as fotografias da casa dos Wilkes, uma construção sólida de três andares nos subúrbios, com a palavra "Médico" carimbada por toda a parte. Não se demorou muito nessas fotografias, deixando o melhor para o fim. Traci apareceu novamente encharcada em suor, a bicicleta de marca ao lado, sentada debaixo de uma árvore no parque, longe de todos, meio escondida - a fumar um cigarro!

O fotógrafo sorriu como um idiota. Essa fotografia, tirada a cem metros de distância, da mulher do médico a fumar às escondidas, era o seu melhor trabalho. Nunca imaginou que ela pudesse fumar! Estava ele calmamente a fumar um cigarro, perto da paragem para peões, quando ela passou rápida. Só depois de meia hora de passeio pelo parque é que parou e tirou uma coisa do cesto da bicicleta.

Por momentos, enquanto olhavam Traci debaixo da árvore, a atmosfera na sala aliviou. Então, Cari disse:

- Nem é preciso dizer que vamos aceitar a número cinquenta e sete - tirou umas notas numa folha de papel e bebeu um gole de café de um copo de plástico. É claro que escolheriam Traci Wilkes! Quem é que ia recusar a mulher de um médico no júri, sobretudo quando os advogados de acusação pediam milhões a título de indemnização. O facto de ela gostar de fumar não passava de um pequeno bónus.

O número cinquenta e oito era um estivador da Ingalls, em Pasca-goula-cinquenta anos, branco, divorciado, sindicalista. Cari projectou uma fotografia dapickup Ford do homem, e ia começar a fazer um resumo da sua vida quando a porta se abriu e o senhor Rankin Fitch entrou na sala. Cari parou. Os advogados sentaram-se erectos nas cadeiras. Começaram a escrever furiosamente nos seus blocos de apontamentos como se nunca mais fossem ver aquele veículo. Os consultores de júri também entraram em acção e, avidamente, e procurando não olhar para o homem, também começaram a tomar notas.

Fitch estava de volta. Fitch estava na sala.

Fechou a porta devagar, deu alguns passos em direcção à cabeceira da mesa e olhou carrancudo para todos os que se encontravam sentados à sua volta. Mais do que olhar, rosnava. As rugas da testa, horizontais e profundas, juntaram-se. O peito largo subiu e desceu lentamente e, por um ou dois segundos, Fitch era a única pessoa que respirava na sala. Os seus lábios abriam para comer e beber e, ocasionalmente, para falar, mas nunca para sorrir.

Como sempre, Fitch estava zangado. E isto, só por si, não constituía novidade, já que até a dormir o homem estava em estado de hostilidade. Que atitude iria tomar: praguejar e ameaçar, atirar coisas pelo ar ou simplesmente manter-se em estado de ebulição? Com Fitch nunca se sabia. Parou na cabeceira da mesa entre dois jovens advogados, sócios recentes e que, nessa qualidade, já ganhavam confortáveis salários de seis dígitos. Ao contrário dos jovens advogados, que já estavam perfeitamente integrados naquela empresa, Fitch era um estranho de Washington, um intruso que há um mês rosnava e latia nos seus corredores. Os dois jovens advogados não ousavam olhar para ele.

- Número? - perguntou a Cari.

- Cinquenta e oito. - Cari respondeu rapidamente, ansioso por agradar.

- Volte para o cinquenta e seis - ordenou Fitch, e Cari voltou rapidamente até o rosto de Nicholas Easter aparecer outra vez na parede. Ouviu-se o barulhinho de papéis a farfalhar por cima da mesa.

- O que é que vocês sabem? - perguntou Fitch.

- O mesmo - disse Cari, desviando os olhos.

- Formidável. Entre os cento e noventa e seis, quantos é que ainda são um mistério?

- Oito.

Fitch bufou, balançou a cabeça lentamente e todos esperaram por uma explosão. Mas, por segundos, limitou-se a alisar a barbicha grisalha meticulosamente aparada, depois, olhou para Cari, esperou que todos sentissem a seriedade do momento e então disse:

- Hoje trabalham até à meia noite. Regressam às sete da manhã. No domingo a mesma coisa. - Girou o corpo gordo e saiu da sala.

A porta bateu com força. O ar ficou consideravelmente mais leve e então, em uníssono, os advogados, consultores, Cari e todos os outros consultaram os relógios. Tinham acabado de receber ordem para passar trinta e nove das próximas cinquenta e três horas naquela sala, olhando para fotografias ampliadas de rostos que já tinham visto, memorizando nomes, datas de nascimento e estatísticas vitais de quase duzen-tas pessoas.

E não havia a menor dúvida de que todos fariam exactamente o que fora mandado.

Fitch desceu pelas escadas para o primeiro andar onde era esperado pelo seu motorista, um homem grande chamado José. José vestia um fato preto, botas pretas de cowboy e óculos escuros que só tirava quando entrava no chuveiro ou quando dormia. Fitch abriu uma porta sem bater e interrompeu uma reunião que se prolongava há horas. Quatro advogados e as respectivas equipas de apoio assistiam aos depoimentos em vídeo das primeiras testemunhas do queixoso. A gravação parou segundos antes de Fitch invadir a sala. Falou brevemente com um dos advogados e saiu. Seguido por José, atravessou uma pequena biblioteca e chegou a outro corredor, onde entrou intempestivamente por outra porta e assustou outro grupo de advogados.

Com oito advogados, a firma de Whitney & Cable & White era a maior da Costa do Golfo. Foi escolhida a dedo pelo próprio Fitch e, só por causa de ter sido escolhida, ia ganhar milhões de dólares em honorários. Porém, para merecer esse dinheiro, a firma tinha de suportar a tirania e o mau humor de Rankin Fitch.

Seguro que o prédio inteiro estava ciente da sua presença e apavorado com as suas movimentações, Fitch saiu. Parou na rua, no ar morno de Outubro, e esperou por José. Três quarteirões adiante, em metade do último andar de um velho banco, via-se um escritório com as luzes acesas. O inimigo ainda estava a trabalhar. Os advogados do queixoso estavam lá em cima, reunidos em várias salas, conversando com especialistas, vendo fotografias cheias de grão e fazendo as mesmas coisas que os seus homens. O julgamento ia começar na segunda-feira com a selecção do júri e Fitch sabia que, também ali, estavam a queimar as pestanas com nomes, caras e imaginando quem seria Nicholas Easter e de onde teria vindo. E Ramon Caro e Lucas Miller, Andrew Lamb, Barbara Furrow e Delroes DeBoe? Quem era essa gente? Só num Estado tão atrasado como o Mississipi é que ainda era possível encontrar listas tão desactualizadas de potenciais jurados. Antes deste, Fitch já tinha orientado a defesa de outros casos em oito Estados diferentes, onde eram usados computadores. Por isso, quando os funcionários judiciais entregavam a lista de potenciais jurados, não era preciso preocupar-se se alguma das pessoas incluídas naquela lista já tinha morrido: as listas estavam sempre automaticamente actualizadas.

Fitch olhou para as luzes distantes imaginando como é que os tubarões gananciosos iam dividir o dinheiro se por acaso vencessem. Como é que seria possível chegar a um acordo na divisão da carcaça? O julgamento ia ser uma pequena escaramuça, comparado com a luta de morte que se lhe seguiria se conseguissem o veredicto que desejavam e as respectivas indemnizações.

Detestava-os e cuspiu no passeio. Acendeu um cigarro, segurando-o com força entres os dedos grossos.

José parou junto do passeio o Suburban alugado, brilhante e com vidros escuros. Fitch, como sempre, sentou-se ao lado do motorista. Quando passaram, José também olhou para o escritório dos advogados inimigos, mas não disse nada porque o patrão não tolerava conversa fiada. Passaram pelo prédio do tribunal de Biloxi e por uma loja de preços módicos, agora abandonada, onde Fitch e os sócios mantinham uma suite secreta de escritórios com serradura fresca no chão e móveis alugados.

Seguiram ao longo da praia para oeste, pela Estrada 90, e entraram no tráfego intenso. Era noite de sexta-feira e os casinos estavam cheios de gente que jogava o dinheiro da comida, com grandes planos para recuperá-lo no dia seguinte. Lentamente, saíram de Biloxi, atravessaram Gulfport, Long Beach e Pass Christian. Assim que abandonaram a marginal passaram por um posto de segurança perto de uma lagoa.

 

A casa na praia era moderna, espaçosa e dava para uma praia particular. Um pontão de madeira branca avançava para a água parada e escurecida pelas algas que vinham da baía. A areia mais próxima ficava a três quilómetros. Um barco de pesca de vinte pés estava ancorado no pontão. A casa era alugada e pertencia a um industrial de petróleo de Nova Orleães - três meses, pagamento em dinheiro, sem perguntas. Estava a ser usada provisoriamente como retiro, como esconderijo para gente muito importante, ou apenas como um lugar para passar uma noite.

Num deck acima da água, quatro cavalheiros saboreavam bebidas e conversavam sobre coisas sem importância, enquanto esperavam pelo seu visitante. Embora geralmente os seus negócios exigissem que fossem inimigos acirrados, naquela tarde tinham jogado dezoito buracos de golfe, comido churrasco de camarões e ostras. Naquele momento estavam a beber e a olhar para a água escura debaixo deles. Detestavam o facto de, numa noite de sexta-feira, estar na Costa do Golfo, muito longe de suas casas.

Mas tinham negócios em andamento, assuntos cruciais que exigiam uma trégua o que tornava o golfo quase agradável. Cada um dos quatro era director executivo de uma grande empresa. As quatro empresas estavam na lista da Fortune 500 e cotadas na Bolsa de Valores de Nova Iorque. A mais pequena tinha vendido seiscentos milhões no ano anterior, a maior quatro mil milhões. Eram todas recordistas de lucros, obtinham grandes dividendos, accionistas felizes e directores executivos que ganhavam milhões pelo seu desempenho.

Cada uma destas empresas era uma espécie de conglomerado de diferentes áreas de negócio e de um número variado de produtos, grandes orçamentos para publicidade e nomes insípidos como Trellco e Smith Greer, nomes usados para desviar a atenção do facto de que, na verdade, eram pouco mais do que empresas negociantes de tabaco. Cada uma delas, As Quatro Grandes, como eram conhecidas nos círculos comerciais, podia facilmente traçar as suas raízes até aos corretores de tabaco do século XIX nas Carolinas e na Virgínia. Juntas fabricavam noventa e oito por cento dos cigarros vendidos nos Estados Unidos e no Canadá. Também fabricavam coisas como gazuas, flocos de milho e tinta para cabelo, mas bastava escavar um pouco abaixo da superfície para verificar que os seus lucros tinham origem no tabaco.

Tinha havido fusões, mudanças de nomes e esforços de vários tipos para granjear uma boa imagem pública, mas as Quatro Grandes já tinham sido atacadas e difamadas por grupos de consumidores, médicos e até por políticos.

Agora, os advogados andavam atrás delas. Os sobreviventes estavam espalhados pelo país a mover-lhes processos judiciais e exigindo somas astronómicas porque, segundo alegavam, o tabaco provocava cancro. Até à data, a Big Tobacco tinha conseguido vencer os dezasseis julgamentos em que fora arguida, mas a pressão crescia. Da primeira vez que um júri atribuísse, a título de indemnização, alguns milhões a uma viúva, as portas do inferno iam abrir-se. Os advogados iam entusiasmar-se e começar uma propaganda interminável, pedindo aos fumadores e aos sobreviventes dos fumadores para se associarem a uma campanha judicial contra as tabaqueiras, aproveitando enquanto a maré estivesse a seu favor.

Normalmente, quando estavam sozinhos, os quatro homens falavam de outras coisas, mas a bebida soltava-lhes as línguas e as amarguras começaram a vir ao de cima. Debruçados sobre a balaustrada do deck, olhando para a água, começaram a amaldiçoar os advogados e o Direito Civil americano. As suas empresas gastavam milhões em Washington, com vários grupos que tentavam revogar as leis de indemnização por danos, para que as empresas responsáveis, como as Quatro Grandes, ficassem protegidas contra eventuais processos. Precisavam de um escudo contra os insensatos ataques das supostas vítimas. Mas, ao que parece, as coisas não estavam a correr bem. Ali estavam eles, num escondido local do atrasado Mississipi, enfrentando com dificuldade outro julgamento.

Em resposta à crescente investida dos tribunais, as Quatro Grandes juntaram esforços e recursos através de uma estrutura a que simplesmente chamaram O Fundo. Não tinha limite e não deixava rasto. Era como se não existisse. O Fundo era usado para tácticas heróicas nos processos judiciais,para contratar os melhores e mais duros advogados de defesa, os especialistas mais hábeis e os mais sofisticados consultores de júri. Não havia nenhuma restrição ao que O Fundo podia fazer. Depois de dezasseis vitórias seguidas chegavam a perguntar-se se havia alguma coisa que O Fundo não conseguisse fazer. Cada uma das empresas investia cerca de três milhões por ano num produto que não existia e, por caminbs tortuosos, o dinheiro acabava n'O Fundo. Ninguém sabia da existência d' O Fundo, e nenhum auditor, nenhum contabilista, nem nenhumlegislador tinha sequer uma leve desconfiança sobre a existência d'O Fundo.

O Fundo era administrado por Rankin Fitch, um homem que todos desprezavam, mas aquém ouviam e até obedeciam quando necessário. Por ordem dele, e sob o seu comando, dispersavam e voltavam a reunir-se. Toleravam estar sempre à sua disposição desde que Fitch continuasse a ganhar. Já tinha orientado oito julgamentos sem perder nenhum. Por meiosmenos lícitos, também tinha conseguido a anulação de outros dois mas,é claro, ninguém tinha provas disso.

Chegou ao deckim empregado com uma bandeja de bebidas, preparadas segundo osgostos de cada um dos quatro homens. Estavam a servir-se quando alguém disse: "O Fitch já chegou." Num movimento sincronizado os copos subiram e desceram e os quatro beberam goles mais do que generosos.

Entraram rapidamente na sala, enquanto Fitch mandava José ficar à frente da porta. Um empregado trouxe-lhe um copo com água mineral sem gelo. Fitch nãobebia, embora em tempos já tivesse sido um consumidor mais do que ocasional. Sem agradecer ao empregado, e fingindo que nem sequer se tinha apercebido da sua presença, caminhou para a lareira falsa e esperou que os quatro se reunissem à sua volta nos sofás. Outro empregado fez menção de avançar com o que restava dos camarões e das ostras numa bandeja, mas Fitch levantou a mão recusando. Diziamque às vezes comia, mas a verdade é que nunca tinha sido apanhado a fazê-lo. No entanto, o seu corpo quadrado era a maior evidência deque comia: o peito largo, a cintura ampla e um rolo de carne debaixo da barbicha. Usava sempre fatos escuros com os casacos abotoados esabia movimentar com importância o corpo pesado.

- Um breve resumo dos últimos acontecimentos - disse ele, quando achou que tinha dado tempo suficiente para que os outros tivessem tomado os seus lugares. - Neste momento, toda a equipa de defesa está a trabalhar sem descanso. E isso inclui o fim de semana. A pesquisa sobre o júri está dentro do prazo. Os advogados que vão à barra estão prontos; todas as testemunhas preparadas; todos os especialistas na cidade. Ainda não encontrámos nada fora do normal.

Houve uma pausa, um pequeno intervalo, enquanto esperavam para ter certeza de que Fitch tinha terminado.

- E aqueles jurados?-perguntou D. Martin Jankle, o mais nervoso do grupo. Dirigia a Pynex, nome conquistado depois de uma operação plástica de marketing, mas geralmente conhecida por U-Tab, abreviatura para uma antiga companhia, a Union Tabacco. O processo em questão era Wood contra Pynex, portanto Jankle estava na berlinda. A Pynex era a terceira empresa, com vendas de quase dois mil milhões no ano anterior. Desde há três meses que apresentava a melhor liquidez no sector. Por isso mesmo, aquele era o pior momento para um processo judicial. Com um pouco de azar, podiam ser mostrados ao júri quadros ampliados sobre a situação financeira da Pynex, quadros com belas e bem ordenadas colunas indicando um lucro líquido de oitocentos milhões de dólares.

- Estamos a trabalhar nisso - disse Fitch. - Temos dados favoráveis sobre oito. Quatro deles podem estar mortos ou desaparecidos. Os outros quatro estão vivos e devem apresentar-se no tribunal na segunda-feira.

- Um jurado de duvidosa honestidade pode ser veneno - disse Jankle.

Jankle tinha sido advogado num escritório em Louisville antes de entrar para a U-Tab e, por isso, nunca perdia a oportunidade para frisar a Fitch que era mais conhecedor de leis do que os outros três.

- Eu sei isso perfeitamente - disse Fitch de modo seco. - Temos de conhecer essas pessoas.

- Estamos a fazer o melhor possível. Não temos culpa se a lista de jurados é mais desactualizada do que nos outros Estados.

Jankle tomou um longo gole da sua bebida e olhou para Fitch. Afinal de contas, Fitch não passava de um segurança muito bem pago e não chegava aos pés do director executivo de uma grande empresa. Podiam chamar-lhe o que quisessem - consultor, agente, empreiteiro -, mas o facto era que Fitch trabalhava para eles. Sem dúvida que naquele momento Fitch tinha conquistado alguma autoridade, agia com arrogância e agressividade, mas que diabo, não passava de um bruto glorificado. Jankle não exteriorizou estes pensamentos.

- Mais alguma coisa? - perguntou Fitch a Jankle, como se a pergunta deste não tivesse a mais pequena importância e insinuando que, se não tinha nada de produtivo para dizer, era melhor ficar calado.

-Você confia naqueles advogados? - perguntou Jankle. Já não era a primeira nem a segunda vez que Jankle fazia aquela pergunta.

- Já tratámos disso - respondeu Fitch.

- Se eu quiser, podemos sempre voltar a tratar.

- Porque é que está tão preocupado com os seus advogados? - perguntou Fitch.

- Bem... porque são todos desta área.

- Estou aperceber... Achava mais prudente se trouxéssemos alguns advogados de Nova Iorque para falar com o júri? Ou de Boston, talvez?

- Não, não é só isso. A verdade é que nunca defenderam um caso deste tipo.

- De que é que estava à espera? Nunca houve um processo deste

tipo na Costa.

- Não estava à espera de nada. Estou só preocupado com eles.

É tudo!

- Contratámos os melhores advogados deste estado - disse Fitch.

- Então como é que se compreende que cobrem tão pouco?

- Pouco? Na semana passada, estava preocupado com os honorários da defesa. Agora, a defesa não se cobra como deve ser. Acho melhor que clarifique as ideias e decida de uma vez por todas o que é que quer.

- No ano passado pagámos quatrocentos dólares por hora aos advogados de Pittsburgh. Estes trabalham por duzentos. É óbvio que isso me preocupa.

Fitch franziu o sobrolho para Luther Vandemeer, director executivo daTrellco.

- Será que há alguma coisa que me está a escapar? - perguntou. - Está a falar a sério, ou isto é uma brincadeira de mau gosto? Passa

pela cabeça de alguém que estou a fazer economias quando temos em mãos um processo que envolve cinco milhões?-Fitch sacudiu a mão na direcção de Jankle. Vandemeer sorriu e tomou a sua bebida.

- Gastámos seis milhões em Oklahoma - disse Jankle.

- E ganhámos. Não me lembro de nenhuma reclamação depois do veredicto.

- Não estou a queixar-me. Só estou a verbalizar a minha preocupação.

- Óptimo! Vou voltar para o escritório, reunir os advogados todos e dizer que os meus clientes estão preocupados com os seus honorários. Vou dizer-lhes: "Meus amigos, sei perfeitamente que estão a enriquecer à nossa custa, mas isso não é suficiente. Os meus clientes querem que cobrem mais. Estão de acordo? Podem mesmo explorar--nos. Estão a trabalhar por muito pouco." Parece-lhe uma boa ideia?

- Tenha calma, Martin - disse Vandemeer -, o julgamento ainda nem sequer começou. Tenho certeza de que, ainda antes de conseguirmos sair daqui, já estamos fartos dos nossos advogados.

- Com certeza, mas este julgamento é diferente. E todos nós sabemos isso - Jankle levou o copo aos lábios. Dos quatro, Jankle era o único com problemas com o álcool. Seis meses antes, discretamente, a empresa tinha-o ajudado a recuperar desse vício, mas a tensão do processo era demasiado forte. Fitch, que também tinha sido alcoólico, percebia perfeitamente que Jankle estava com problemas. E o pior é que dentro de algumas semanas seria chamado a depor.

Fitch, como se não tivesse nada mais com que se preocupar, agora ainda tinha o encargo de manter D. Martin Jankle sóbrio até à data do julgamento. Odiava-o por essa fraqueza.

- Suponho então que os advogados da acusação estão prontos - perguntou outro director.

- É uma suposição lógica - disse Fitch, encolhendo os ombros. - Também, com a quantidade de advogados de acusação que há neste

processo, era o que faltava que não estivessem...

A última vez que tinham contado os advogados de acusação enumeraram oito. Supostamente, oito dos maiores escritórios de advocacia do país tinham investido oito milhões de dólares no processo, um milhão cada, para financiar este espectáculo com a indústria tabaqueira. Primeiro, escolheram um queixoso: a viúva de um homem chamado Jacob L. Wood. Depois, escolheram a comarca: a da Costa do Golfo, no Mississipi, porque o Direito Civil neste estado regia-se por leis que lhes podiam ser favoráveis e porque era sabido que os júris em Biloxi podiam ser particularmente generosos. Só não escolheram o juiz, mas não podiam ter tido mais sorte. O Meritíssimo Frederick Harkin fora advogado de defesa até um enfarte o levar à magistratura.

Aquele não era um mero processo contra os fabricantes de tabaco e todos na sala o sabiam.

- Quanto é que eles gastaram?

- Não tenho acesso a essa informação - disse Fitch. - Ouvi dizer que já não têm tanto dinheiro como dizem, talvez tenham tido que pagar adiantado a alguns advogados. Sejacomo for, gastaram milhões. E têm uma dezena de grupos de consumidores prontos para contribuir.

Jankle mexeu o gelo no copo e tomou o que restava da bebida. Era a sua quarta bebida. Por um momento, enquanto Fitch esperava de pé e os directores executivos contemplavam a carpete, a sala ficou em silêncio.

- Vai demorar quanto tempo? - perguntou Jankle finalmente.

- De quatro a seis semanas. Aqui, a selecção do júri é rápida. Provavelmente teremos ojúri jánaquarta-feira.

- O de Allentown durou três meses - disse Jankle.

- Isto não é o Kansas. Mas porquê? Quer um julgamento de três meses?

- Não. Eu só estava, bem... - o resto da frase ficou tristemente perdido no ar.

- Temos de ficar na cidade por quanto tempo? - Instintivamente Vandemeer consultou o relógio.

- A mim tanto me faz. Podem ir agora, ou podem esperar até à escolha do júri. Se precisar de os contactar, sei onde encontrá-los. - Fitch pôs o copo com água na moldura da lareira e olhou em volta. Estava pronto para partir. - Mais alguma coisa?

Silêncio absoluto.

- Óptimo.

Quando abriu a porta da frente e saiu, disse alguma coisa a José. Em silêncio, olharam todos para a carpete, preocupados com segunda-feira e preocupados com muitas outras coisas. Jankle, com as mãos levemente trémulas, acendeu um cigarro.

Wendall Rohr fez a sua primeira fortuna no jogo do Direito Civil quando dois operários da Shell sofreram queimaduras numa plata-forma, ao largo da Costa do Golfo. A sua parte foi de quase dois milhões e imediatamente passou a considerar-se um importante advogado de processos civis. Aplicou o dinheiro, escolheu mais alguns casos e aos quarenta anos era dono de um escritório agressivo, com boa reputação, e reconhecido nos tribunais como grande lutador. Foi por essa altura que as drogas, um divórcio e alguns investimentos infelizes o arruinaram. Aos cinquenta anos, como milhares de outros advogados, verificava títulos de propriedade e defendia raptos de automóveis. Quando uma onda de processos contra a indústria do amianto varreu a Costa do Golfo, Wendall estava outra vez no lugar certo. Fez a sua segunda fortuna e prometeu a si mesmo que não a perderia. Constituiu uma sociedade, recuperou um andar para escritórios e até chegou a arranjar uma mulher jovem. Livre do álcool e dos comprimidos, Rohr empenhou toda a sua considerável energia em processos contra a indústria americana e a favor dos lesados. Na segunda fase favorável da vida, subiu ainda mais depressa nos circuitos do Direito Civil. Deixou crescer a barba, passou a usar gel no cabelo, tornou-se radical e era adorado pelas pessoas mais informadas.

Rohr conheceu Celeste Wood, a viúva de Jacob Wood, através de um jovem advogado que tinha preparado o testamento de Jacob, um pouco antes da sua morte. Jacob Wood morreu com cinquenta e um anos depois de fumar três maços de cigarros por dia durante quase trinta anos. À data da morte, Jacob era supervisor de produção numa fábrica de barcos, ganhando quarenta mil dólares por ano.

Aos olhos de um advogado menos ambicioso, o caso não pareceria mais do que o de um fumador morto: um entre tantos outros. Mas Rohr tinha formado um círculo de conhecidos com os maiores sonhos já sonhados por advogados de barra. Todos eram especialistas em qualidade de produtos; todos tinham ganho milhões na defesa de casos de implantes de seios e de amianto. Reuniam-se várias vezes por ano e planeavam a melhor forma de minar e aproveitar o filão que eram os prejuízos causados por produtos nocivos na América. Não havia outro produto em toda a história da humanidade que, fabricado legalmente, matasse tanta gente como o tabaco. E os seus fabricantes tinham bolsos tão fundos que o dinheiro chegava a criar bolor.

Rohr ganhou o seu primeiro milhão, a que imediatamente se seguiram mais sete. Sem esforço, o grupo conseguiu recrutar ajuda da Força de Trabalho contra o Fumo, da Aliança para um Mundo Sem Cigarros e do Fundo de Responsabilidade do Tabaco, para além de um punhado de outros grupos de consumidores e vigilantes das indústrias. Constituiu-se um conselho para planear o julgamento dos lesados, conselho obviamente presidido por Wendall Rohr que era também o grande trunfo em tribunal. Quatro anos antes, com a maior mediatização possível, o grupo de Rohr tinha entrado com um processo na comarca de Harrison County, Mississipi.

De acordo com os dados recolhidos por Fitch, o caso de Wood contra Pynex era o quinquagésimo quinto deste tipo. Por vários motivos, trinta e seis não tinham chegado a tribunal. Dezasseis foram a julgamento e terminaram com veredicto a favor das tabaqueiras. Dois foram anulados sem que tenham sido repetidos. Não havia memória de a indústria tabaqueira ter pago um centavo que fosse a um queixoso.

Segundo a teoria de Rohr, nenhum dos outros cinquenta e quatro tinha sido apoiado por um grupo tão poderoso de queixosos. Nunca o queixoso fora representado por advogados com dinheiro suficiente para igualar a força dos dois lados.

Fitch admitia esta interpretação.

A longo prazo, a estratégia de Rohr era simples e brilhante. Havia cem milhões de fumadores no país, nem todos com cancro de pulmão mas, sem dúvida, em número suficiente para o manter ocupado até à reforma. Ganhar o primeiro processo, e sentar-se depois à espera das repercussões. Todas as cidades do país tinham pelo menos uma viúva chorosa que haveria de telefonar a contar o seu caso de cancro de pulmão. Rohr e o seu grupo poderiam escolher à vontade.

Trabalhava num escritório que ocupava os três últimos andares do antigo prédio de um banco, não muito distante do tribunal. Na sexta-feira à tarde abriu a porta de uma sala escura e ficou de pé, encostado à parede do fundo, enquanto Jonathan Kotlack, de San Diego, lidava com um projector. Kotlack estava encarregado da investigação e selecção do júri, embora a maior parte do interrogatório ficasse por conta de Rohr. A mesa longa ao centro da sala estava cheia de copos de café e

pilhas de papéis. As pessoas à volta da mesa, com os olhos cansados, examinavam outro rosto projectado na parede.

Nelle Robert (pronuncia-se à francesa, "Ró-ber"), de quarenta e seis anos, divorciada, violada uma vez, caixa num banco, não fuma, mas como tem excesso de peso, de acordo com a filosofia de Rohr sobre a selecção de júris, é desqualificada. Rohr nunca escolhia uma mulher gorda. Não lhe importava a opinião dos especialistas, nem o que Kotlack pensava sobre o assunto. Nunca escolhia uma gorda, especialmente se fosse solteira. Achava-as geralmente mesquinhas e insensíveis.

Rohr conhecia de cor os nomes e os rostos e já não aguentava mais. Tinha estudado aquela gente até ficar farto de todos. Saiu da sala, esfregou os olhos no corredor e desceu a escada do seu majestoso escritório em direcção à sala de conferências, onde o Comité de Documentos organizava os papéis, sob a supervisão de André Durond, de Nova Orleães. Naquele momento, quase às dez horas da noite de sexta-feira, mais de quarenta pessoas trabalhavam arduamente no escritório de advocacia de Wendall H. Rohr.

Ele e Durond conversaram durante alguns minutos, observando o trabalho dos assistentes e estagiários. Rohr saiu e, com passo mais rápido, foi para outra sala. Sentia-se cheio de adrenalina.

Os advogados das tabaqueiras estavam no outro lado da rua, a trabalhar com o mesmo afinco.

Não havia nada que pudesse ser comparado à emoção de um litígio daquela importância.

 

A sala principal do tribunal de Biloxi ficava no segundo andar, com acesso por uma escada de mosaicos que ia dar a um átrio banhado de sol. As paredes, recentemente pintadas, eram brancas e o soalho encerado brilhava.

Às oito horas de segunda-feira já havia uma multidão no átrio do lado de fora das grandes portas de madeira da sala do tribunal. Num canto, estava um pequeno grupo de jovens com fatos escuros, estranhamente parecidos uns com os outros. A maior parte usava óculos. Estavam todos bem penteados, tinham os cabelos curtos com gel e, sob elegantes casacos, viam-se suspensórios. Eram os analistas financeiros de Wall Street, especialistas nas carteiras de acções das tabaqueiras e que tinham sido enviados ao Sul para acompanhar o processo Wood contra Pynex.

Outro grupo, maior, e que crescia a cada minuto que passava, estava no centro do átrio. Neste grupo, toda a gente segurava na mão um papel: a convocação para servir como jurado. Poucos se conheciam, mas os papéis serviam de identificação e a conversa corria fácil. Vozes nervosas mas discretas enchiam o átrio do lado de fora da sala do tribunal. Os fatos escuros do primeiro grupo, imóveis, observavam os potenciais jurados. O terceiro grupo, carrancudo e de uniforme, guardava a porta. Eram pelo menos sete os polícias responsáveis por manter a segurança no primeiro dia do julgamento. Em frente da porta, dois dos polícias empunhavam um detector de metais. Outros dois, atrás de uma mesa improvisada, mexiam em rimas de papéis. Esperava-se que a sala enchesse. Os outros três polícias tomavam café em copos de papel e observavam a rapidez com que a multidão crescia.

Exactamente às oito e meia, os seguranças abriram as portas do tribunal; verificaram uma a uma as intimações dos jurados; fizeram-nos entrar na sala, um a um, passando pelo detector de metais e disseram

público que devia esperar mais alguns minutos. Tal como os analistas e até mesmo os jornalistas.

A sala, com filas de cadeiras de armar montadas nas passadeiras ao lado das cadeiras estofadas, ficava com capacidade para cerca de trezentas pessoas. Do outro lado da balaustrada de madeira que dividia a sala, em volta das mesas dos advogados, estavam agrupadas mais umas trinta cadeiras. A oficial de justiça daquela comarca, eleita pelo povo, verificava as intimações, sorria, chegou a abraçar alguns dos jurados seus conhecidos e, com grande eficiência, conduziu-os aos seus lugares. Glória Lane era oficial de justiça da comarca de Harrison County há onze anos e nem lhe passaria pela cabeça perder a oportunidade de apontar, orientar, juntar rostos aos nomes, dar apertos de mãos, agir com diplomacia e desfrutar, por breve que fosse o momento, das luzes da ribalta do mais notável julgamento em que tinha estado presente. Glória tinha três assistentes, três jovens mulheres do seu escritório e, às nove horas, os jurados estavam todos devidamente instalados, sentados em sequência numérica e ocupados a preencher uma série de formulários.

Só faltaram dois. Aparentemente, Ernest Duly tinha mudado para a Flórida, onde morreu, e não havia o mais pequeno sinal da senhora Tella Gail Ridehouser, registada como eleitora em 1959, mas que não votava desde que Carter venceu Ford. Glória Lane declarou os dois ausentes. À sua esquerda, da primeira à décima segunda fila, estavam instalados cento e quarenta e quatro potenciais jurados e, à sua direita, entre a fila treze e a dezasseis, os restantes cinquenta. Glória consultou um agente da polícia armado e, obedecendo a uma ordem escrita do juiz Harkin, foram admitidos quarenta espectadores que se sentaram nas últimas filas da sala do tribunal.

Os questionários foram preenchidos rapidamente, recolhidos pelas assistentes de Glória e, às dez horas, os primeiros dos vários advogados começaram a entrar na sala. Não entravam pela porta principal, mas por um outro lugar situado atrás da cadeira do juiz, onde duas portas conduziam a um labirinto de pequenas salas e escritórios. Todos, sem excepção, usavam fatos escuros, tinham ar sério e inteligente e tentavam a impossível façanha de examinar avidamente os jurados, fingindo ao mesmo tempo desinteresse. Todos procuravam em vão parecer preocupados com outros assuntos mais importantes, examinando pastas e papéis e conferenciando em voz baixa em volta das mesas. Aos poucos foram entrando e tomando os seus lugares. À direita estava a mesa da acusação. A da defesa ao seu lado. Não havia espaços vagos. Nem um centímetro. O espaço que mediava entre as mesas e a grade baixa de madeira que separava os advogados do público estava ocupado com cadeiras muito juntas umas das outras.

Também por ordem de Harkin a fila número dezassete estava vazia e os rapazes de Wall Street sentavam-se muito rígidos na fila dezoito, observando as costas dos jurados. Atrás deles estavam alguns jornalistas, depois uma fila de advogados da zona e outros curiosos. Rankin Fitch fingia ler um jornal na última fila.

Entraram mais advogados. Os consultores de júri de ambos os lados tomaram posição nas cadeiras espremidas entre a divisão de madeira e as mesas dos advogados. Começaram a desagradável tarefa de examinar atentamente os rostos de cento e noventa e quatro desconhecidos. Os consultores estudavam os jurados porque, primeiro, era para isso que lhes pagavam regiamente e, segundo, porque afirmavam ser capazes de analisar profundamente uma pessoa através da sua reveladora linguagem corporal. Observavam, esperando ansiosos um movimento de braços cruzados sobre o peito, de dedos a limpar nervosamente os dentes, de cabeças inclinadas para um lado, uma centena de gestos que supostamente desnudavam a pessoa, exteriorizando os seus mais secretos preconceitos.

Em silêncio, examinavam os rostos e tomavam notas. O jurado número cinquenta e seis, Nicholas Easter, foi alvo de grande número de olhares preocupados. Era um jovem de boa aparência, estava no meio da quinta fila, com as calças bem engomadas e uma camisa desportiva. Ocasionalmente olhava para a sala, mas com a atenção presa num livro que segurava nas mãos. Mais ninguém tinha pensado em levar consigo um livro.

Foram ocupadas mais cadeiras ao lado da balaustrada de madeira. A defesa tinha, nada mais, nada menos, do que seis especialistas em júris examinando tiques faciais e pontadas de hemorróidas. A acusação tinha apenas quatro.

Geralmente, aquele exame não agradava aos potenciais jurados e durante quinze desconfortáveis minutos retribuíram os olhares com rostos carrancudos. Um advogado contou uma piada ao lado da bancada e o riso aliviou a tensão. Os advogados conversavam em voz baixa, mas os jurados tinham medo de falar.

Como seria de esperar, o último advogado a entrar na sala foi Wendall Rohr e, como sempre, foi ouvido antes de ser visto. Como não tinha fato escuro, vestia a sua roupa favorita para um primeiro dia de julgamento: um casaco desportivo de xadrez cinzento, umas calças desportivas noutro tom de cinzento, um colete branco, camisa azul e gravata vermelha e amarela. Passou à frente dos advogados de defesa ignorando-os e falando ao mesmo tempo zangado com um assistente como se estivesse a acabar de o repreender. Disse uma coisa qualquer em voz alta para outro advogado de acusação e, depois de captar a atenção da sala, olhou para os potenciais jurados. Aquela era a sua gente. Aquele caso era o seu caso, julgado na sua cidade natal, e ali estava para tentar obter justiça para o seu povo. Cumprimentou um ou dois com uma inclinação de cabeça, piscou um olho a outro. Conhecia aquela gente. Juntos, iam encontrar a verdade.

A sua entrada agitou os especialistas de júri do lado da defesa, que não conheciam pessoalmente Wendall Rohr, mas que conheciam extensivamente a sua reputação. Viram os sorrisos de alguns jurados, pessoas que o conheciam. Leram a linguagem corporal quando todo o grupo de jurados pareceu descontrair-se, respondendo à presença de um rosto familiar. Rohr era uma lenda local. Fitch, na última fila da sala, amaldiçoou-o.

Finalmente, às dez e meia, um polícia saiu da porta atrás da cadeira do juiz e gritou: "Todos de pé!" Trezentas pessoas levantaram-se com um salto e o Meritíssimo Frederick Harkin subiu ao estrado e pediu a todos que se sentassem.

Era bastante jovem para juiz: cinquenta anos, democrata, nomeado pelo governador para terminar um mandato interrompido e, depois, eleito pelo povo. Pelo facto de ter sido advogado de acusação, era agora considerado "juiz de acusação", embora obviamente o não fosse. Isto era o que corria como boato entre o grupo de advogados de defesa. Na verdade, Harkin começara a sua vida laboral como praticante de Direito geral num pequeno escritório, sem que se lhe tenha conhecido em tribunal qualquer vitória digna de nota. Era muito trabalhador, mas a sua paixão sempre fora a política local, um jogo para o qual tinha grande habilidade. A sorte premiou-o com uma nomeação para a magistratura, onde agora ganhava oitenta mil dólares por ano, muito mais do que alguma vez tinha ganho como advogado.

O espectáculo de um tribunal repleto de eleitores qualificados era o bastante para aquecer o coração de qualquer detentor de um cargo de eleição e o Meritíssimo não conteve um largo sorriso ao receber o jurados nos seus domínios, como se fossem todos voluntários. O sorriso desapareceu lentamente quando terminou o breve discurso de boas-vin-das, enfatizando a importância das suas presenças. Harkin não se distinguia nem pelo calor humano que irradiava nem pelo bom humor, e rapidamente ficou sério.

Aliás, tinha uma boa razão para isso. À sua frente estavam mais advogados do que geralmente se via nas mesas de acusação e defesa. Os autos do tribunal tinham averbada uma relação de oito advogados de acusação e nove de defesa. Quatro dias antes, num tribunal fechado, Harkin tinha designado os lugares para ambos os lados. Uma vez escolhido o júri, apenas os advogados de cada uma das partes teriam assento naquelas mesas. Os outros teriam de ficar na fila de cadeiras onde os consultores de júri se sentavam agora, muito atentos. Também estipulou lugares para as partes: Celeste Wood, a viúva, e o representante da Pynex. A disposição dos lugares foi anotada por escrito e incluída num pequeno caderno de regras redigido especialmente para a ocasião pelo Meritíssimo.

Desde que tinha dado entrada na justiça que o processo era activamente acompanhado e defendido. Passados quatro anos ocupava onze caixas de arquivo de processos. Para chegar até ali, cada uma das partes gastara milhões. O julgamento deveria durar pelo menos um mês. Naquele exacto momento, e naquela sala do tribunal, estavam reunidos alguns dos maiores egos e das mentes mais brilhantes do país. Fred Harkin estava resolvido a dirigir o julgamento com mão de ferro.

Falando ao microfone, e apenas com o propósito de informar, fez uma rápida sinopse do julgamento. Era importante assegurar que todos percebessem porque estavam ali. Disse que o julgamento devia durar algumas semanas e que os jurados não seriam isolados. Explicou ainda que havia uma legislação especial para isentar um jurado do seu dever e perguntou se por acaso o computador tinha deixado passar alguém com mais de sessenta e cinco anos. Ergueram-se seis mãos.

Parecendo surpreendido, Harkin olhou para Glória Lane que encolheu os ombros como se fosse uma ocorrência apenas normal. Desde que quisessem, podiam sair imediatamente. Cinco aceitaram. Restavam por isso cento e oitenta e nove potenciais jurados. Os consultores tomaram nota e riscaram os cinco nomes. Os advogados, muito sérios, também tomaram notas.

- Agora, está presente algum cego? - perguntou o juiz. - Quero dizer, legalmente cego? - Era uma pergunta bem-humorada e provocou alguns sorrisos. Porque razão haveria um cego de se apresentar como jurado? Não havia precedentes na matéria.

Lentamente, levantou-se uma mão no seio do grupo, a meio da sétima fila. O jurado número sessenta e três, senhor Herman Grimes, ci nquenta e nove anos, programador de computadores, branco, casado, sem filhos. Que diabo era aquilo? Os especialistas, em ambos os lados, juntaram as cabeças. As fotografias do processo de Herman Grimes mostravam a sua casa e havia uma ou duas dele na varanda da frente. Morava no bairro há mais ou menos três anos. Os formulários a seu respeito não indicavam nenhuma deficiência física.

- Levante-se, por favor - disse o juiz.

O senhor Herman Grimes, vestido informalmente, levantou-se devagar, as mãos nos bolsos e com óculos aparentemente normais. Não parecia cego.

- O seu número, por favor - pediu o juiz. Ao contrário dos advogados e dos seus consultores, o juiz não tinha necessidade de memorizar as informações sobre cada um dos jurados.

- Hum, sessenta e três.

- E o seu nome é? - O juiz folheava a pilha de impressos de computador.

- Herman Grimes.

Harkin encontrou o nome e ergueu os olhos para o mar de rostos.

- E o senhor é legalmente cego?

- Sim, senhor.

- Muito bem, senhor Grimes, de acordo com a nossa lei, está dispensado do dever de jurado. Pode ir.

Herman Grimes não se mexeu, não saiu. Olhou para o pouco que podia ver e disse.

- Porquê?

-Desculpe?

- Por que é que tenho de me ir embora?

- Porque o senhor é cego.

- Isso sei eu.

- Bem, as pessoas cegas não podem servir como jurados - disse Harkin, olhando para a direita, depois para a esquerda. - Pode ir, senhor Grimes.

Herman Grimes hesitou, pensando numa resposta. A sala estava silenciosa. Finalmente perguntou.

- Quem é que disse que os cegos não podem ser jurados?

Harkin estendeu a mão para um livro de Direito. O Meritíssimo preparara-se escrupulosamente para aquele julgamento. Há precisamente um mês que não presidia a nenhum outro caso e, isolado na sua sala, dedicou-se ao estudo de petições, de procedimentos probatórios, da lei aplicável e de tudo o que de mais recente havia nas normas de procedimentos no tribunal. Tinha escolhido dezenas de júris, todos os tipos de júris, para todos os tipos de casos, e achava que tinha visto de tudo. E agora estava a ser encostado à parede nos primeiros dez minutos da escolha do júri. E, como se não bastasse, o tribunal estava superlotado.

- O senhor quer ser jurado, senhor Grimes? -perguntou ele, forçando uma atitude bem-humorada enquanto folheava as páginas do livro e olhava para a riqueza de talentos legais à sua frente.

O senhor Grimes começava a demonstrar hostilidade.

- Quero que me diga porque é que um cego não pode ser jurado. Se estiver escrito na lei, então a lei é discriminatória e eu movo um processo. Se não está escrito na lei, e é apenas uma questão de uso, então movo um outro processo, e mais rapidamente ainda.

Não restaram dúvidas de que o senhor Grimes tinha alguns conhecimentos sobre litígios judiciais.

De um lado da balaustrada de madeira estavam duzentas pessoas comuns, pessoas levadas ao tribunal pela atracção do poder da lei. Do outro estava a própria lei - o juiz, numa cadeira mais alta do que as do resto da sala, as arrogantes equipas de advogados, os funcionários do tribunal, os polícias, os meirinhos. Em nome dos convocados, o senhor Herman Grimes acabava de desferir um tremendo golpe contra o sistema e foi recompensado com risos abafados e risotas dos seus colegas. Grimes não pareceu importar-se.

Do outro lado, os advogados sorriam porque os potenciais jurados

pulavam a sorrir, a mexer-se nas cadeiras e a coçar a cabeça. Murmuravam  uns para os outros: "Nunca vi nada assim."

A lei dizia que uma pessoa cega. podia ser dispensada do júri e,assim que o juiz viu a palavra PODIA, resolveu rapidamente acalmar o senhor Grimes e deixar o seu caso para mais tarde. Não fazia sentido ser processado no seu próprio tribunal. Havia outros meios de excluí-lo do Júri . Discutiria isso mais tarde com os advogados.

- Pensando melhor, senhor Grimes, acho que o senhor seria um excente jurado. Agora sente-se, por favor.

Herman Grimes fez um gesto afirmativo, sorriu e disse cortesmente.

- Muito obrigado, senhor doutor juiz.

Como é que se avalia um jurado cego? Os especialistas ruminavam a questão, enquanto viam Grimes curvar lentamente o corpo e sentar-se. Quais seriam os preconceitos de um cego? Que lado iria ele favorecer? Num jogo sem regras, um axioma muito conhecido dizia que as pessoas com deficiências e desvantagens eram óptimos jurados para os queixosos porque compreendiam melhor o significado do sofrimento. Mas havia inúmeras excepções.

Na última fila, Rankin Fitch esticou o pescoço para a direita, na tentativa vã de captar a atenção de Cari Nussman, o homem que já havia recebido um milhão e duzentos mil dólares para escolher o júri perfeito. Nussman estava no meio dos seus consultores, segurando um bloco de notas e estudando os rostos, como se desde o princípio soubesse que Herman Grimes era cego. Acontece que isso não era verdade, e Fitch sabia-o perfeitamente. Era apenas um facto sem importância que havia escapado na sua vasta teia de investigação. Que mais terão eles deixado passar, pensou Fitch. E ia esfolar Nussman vivo, e logo no primeiro intervalo do julgamento.

- Agora, senhoras e senhores - continuou o juiz, de repente com a voz agressiva e, agora que o perigo de um processo imediato de discriminação tinha passado, ansioso por prosseguir - entramos na primeira fase da selecção do júri, fase que deverá levar algum tempo. Trataremos de doenças físicas que podem excluir algum dos convocados. Não vamos embaraçar ninguém, mas se houver algum caso de deficiência física, temos de discuti-la. Começaremos com a primeira fila.

Glória Lane ficou de pé ao lado da primeira fila e um homem de uns sessenta anos ergueu o braço, levantou-se e saiu pelo pequeno portão que dividia a sala em duas partes. Um meirinho conduziu-o ao banco das testemunhas e empurrou o microfone para longe. O juiz sentou-se na ponta da cadeira e inclinou-se para falar em voz baixa com o homem. Dois advogados, um de cada lado, tomaram posição em frente da cadeira da testemunha, tapando a vista do público. A estenógrafa completou o grupo fechado e o juiz perguntou suavemente qual era o problema do homem.

Era uma hérnia discal e tinha uma carta do médico. Foi dispensado e saiu apressadamente da sala.

Quando Harkin interrompeu os trabalhos para almoço, já tinha dispensado treze pessoas por motivos médicos. O tédio era geral. Recomeçariam à uma e meia, para fazer mais ou menos a mesma coisa.

Nicholas Easter saiu sozinho do tribunal, andou seis quarteirões até um Burger King, onde pediu um Whooper e uma coca-cola. Sentou-se ao lado da janela, vendo as crianças a andar de baloiço, lendo o USA Today e comendo devagar porque tinha uma hora e meia.

A mesma loura que tinha estado na Computer Hut com jeans muito justos vestia agora uns calções e uma camisa largos, Nikes novos e um pequeno saco de ginástica pendurado ao ombro. Encontrou Nicholas pela segunda vez quando passou pela sua mesa com a bandeja e parou.

- Nicholas - disse ela, fingindo incerteza.

Nicholas olhou para ela e, por uma embaraçosa fracção de segundo, teve certeza de já a ter visto em algum lugar, mas não se lembrava do nome.

- Não se lembra de mim? - disse ela, com um sorriso simpático. - Estive na Computer Hut há duas semanas, à procura de ....

- Sim, sim, claro que me lembro - olhou rapidamente para as pernas bronzeadas de sol --, comprou um rádio digital.

- Isso mesmo. Chamo-me Amanda. Se não estou em erro, até lhe dei o meu número de telefone. Aposto que o perdeu...

- Não se quer sentar?

- Obrigada - sentou-se rapidamente e pegou numa batata frita.

- Ainda tenho o seu número de telefone -• disse ele. - Na verdade...

- Não se preocupe. Tenho a certeza de que ligou várias vezes. O meu atendedor de chamadas está avariado.

- Não. Ainda não telefonei. Mas estava a pensar telefonar.

- Imagino - disse ela, e quase riu. Tinha uns dentes perfeitos que mostrava com prazer e o cabelo preso num rabo-de-cavalo. Era graciosa e bem feita demais para praticar corrida. E, além disso, não tinha o mais pequeno sinal de suor na cara.

- Então, o que faz por aqui? - perguntou-lhe ele.

- Vou para a minha aula de aeróbica.

- E come batatas fritas antes da aeróbica?

- Porque é que não havia de comer?

- Não sei. Parece um bocado esquisito.

- Também é preciso comer hidrates de carbono.

- Claro. E também fuma antes da aeróbica?

- Às vezes. Por isso é que não me telefonou? Porque eu fumo?

- Na verdade, não.

- Diga lá a verdade, Nicholas. Não me vou ofender - disse ela, sempre sorrindo e tentando parecer tímida.

- Tudo bem, passou-me isso pela cabeça.

- Foi o que pensei. Já alguma vez namorou com uma fumadora?

- Que me lembre, não. -Porquê?

- Sei lá, talvez não queira ser fumador passivo. Não sei, nunca pensei muito nisso.

- E você? Já alguma vez fumou? - Mordeu outra batata frita, observando-o atentamente.

- Claro. Todo os miúdos experimentam fumar. Quando tinha dez anos, roubei um maço de Camels a um canalizador que tinha ido a minha casa arranjar umas coisas. Em dois dias fumei o maço todo, e pensei que ia morrer de cancro - comeu um bocado da sanduíche.

-E foi tudo? Ele mastigou e pensou um pouco antes de responder.

- Acho que sim. Que me lembre... Porque começou a fumar?

- Por idiotice. Estou a tentar deixar.

- Óptimo. Ainda é muito jovem.

- Obrigada. Deixe-me adivinhar. Quando deixar de fumar, você liga-me...

-Talvez telefone de qualquer maneira.

- Já ouvi isso tantas vezes - disse ela, toda cheia de dentes e de provocação. Bebeu um longo gole pela palhinha e disse: - Posso perguntar-lhe o que é que está a fazer por aqui?

- Estou a comer um Whopper. E a Amanda?

- Já disse. Estou a caminho do ginásio.

- Ah, é verdade. Estou só de passagem, tenho uns negócios no centro, tive fome e entrei.

- Porque é que trabalha na Computer Hut?

- O que me quer perguntar é porque é que desperdiço a minha vida a trabalhar numa loj a para ganhar uma miséria? É isso?

- Mais ou menos...

- Sou estudante.

- Ai sim? E está a estudar onde?

- Em sítio nenhum. Estou em trânsito entre uma escola e outra.

- E qual foi a última?

- No Norte do Texas.

- E a próxima, onde é?

- Provavelmente no Sul do Mississipi.

- O que é que está a estudar?

- Informática. A Amanda gosta muito de fazer perguntas...

- Mas são todas de resposta fácil, não acha? -- Sim, acho que sim. Onde é que trabalha?

- Não trabalho. Divorciei-me de um homem rico. Não tenho filhos. Tenho vinte e oito anos, voltei a ser solteira e pretendo continuar assim, mas um namoro de vez em quando também pode ser interessante. Porque é que não me telefona?

- Rico, como? Muito rico? Ela riu e olhou para o relógio.

- Tenho de ir. A minha aula começa daqui a dez minutos. - Levantou-se, pegou no saco, deixou o tabuleiro na mesa. - Adeus.

Saiu e foi-se embora no seu pequeno BMW.

O resto dos doentes foi rapidamente dispensado do júri e, às três da tarde, o número de jurados estava reduzido a 159. Ojuiz Harkin deu ordem para um intervalo de quinze minutos e, quando voltaram a reunir-se na sala de audiências, informou que ia começar a segunda fase de selecção do júri. Fez um longo discurso sobre a responsabilidade cívica, e praticamente desafiou cada um dos potenciais jurados a declarar uma dificuldade não médica. A primeira tentativa partiu do atarefado executivo de uma empresa que se sentou no banco das testemunhas e explicou em voz baixa ao juiz, aos dois advogados e à estenógrafa que trabalhava oitenta horas por semana para uma grande empresa, que estava a perder muito dinheiro e que qualquer bocadinho fora do escritório era um autêntico desastre. O juiz mandou-o voltar

para o lugar e esperar por uma decisão.

A segunda tentativa foi a de uma mulher de meia-idade que dirigia em sua casa uma creche, aliás, sem alvará.

- A minha vida é tomar conta de crianças, Meritíssimo - murmurou ela, esforçando-se para não chorar. - É tudo o que posso e sei fazer. Ganho duzentos dólares por semana, que mal me dão para viver. Se tiver de ficar no júri, tenho de contratar uma estranha para tomar conta das crianças. Os pais não vão gostar e, além disso, não tenho meios para pagar a mais ninguém. Fico completamente arruinada.

Os potenciais jurados observaram-na com grande interesse quando desceu do banco das testemunhas, passou pela fila onde antes estava sentada e saiu da sala. A sua história devia ser muito boa.

Às cinco e meia, já tinham sido dispensadas onze pessoas e outras dezasseis, falhada a tentativa de comover o juiz, tinham sido mandadas regressar aos seus lugares. O juiz mandou Glória Lane distribuir um outro questionário, mais longo do que os anteriores, e disse aos restantes jurados que o deviam entregar devidamente preenchido na manhã seguinte. Dispensou-os com uma firme advertência sobre a desvantagem de discutir o caso com estranhos.

Naquela tarde de segunda-feira, Rankin Fitch não estava na sala quando o juiz encerrou a sessão. Estava no escritório no outro lado da rua. Não havia qualquer registo de Nicholas Easter em nenhuma das faculdade do Norte do Texas. A loura tinha gravado a curta conversa no Burger King e Fitch ouviu a cassete duas vezes. A decisão daquele segundo encontro provocado tinha sido dele. Era arriscado, mas funcionou. Naquele momento, ela já estava num avião de regresso a Washington. O atendedor de chamadas de Biloxi ia continuar ligado até acabar a selecção do júri. Se Easter resolvesse telefonar, o que Fitch duvidava, não ia encontrá-la.

 

O questionário tinha perguntas do tipo "Actualmente, fuma? Em caso afirmativo, quantos maços por dia? Em caso afirmativo, há quanto tempo fuma? Em caso afirmativo, quer deixar de fumar? Já fumou por vício? Algum membro da sua família, ou alguém que conhece bem, sofreu de alguma doença directamente associada ao fumo? Em caso afirmativo, quem? (Espaço abaixo. Por favor, indique o nome da pessoa, a doença e se se curou). Acredita que o tabaco causa a) cancro do pulmão; è) doenças cardíacas; c) hipertensão; d) nenhuma das enunciadas; e} todas as enunciadas?"

Na página três estavam os assuntos mais complexos. Qual é a sua opinião sobre a utilização do imposto sobre o tabaco para a manutenção de centros médicos destinados ao tratamento dos problemas de saúde com ele relacionados? Dê a sua opinião sobre a utilização do imposto sobre o tabaco para subsidiar os plantadores de tabaco. Dê a sua opinião sobre se se deve proibir o fumo em todos os locais públicos. Na sua opinião, quais os direitos dos fumadores? Grandes espaços em branco na folha destinavam-se a essas respostas.

Na página quatro estavam os nomes de dezassete advogados inscritos para o julgamento e seguia-se-lhe arelação de oitenta ligados, de um modo ou de outro, aos primeiros dezassete. Conhece pessoalmente algum destes advogados? Já esteve envolvido em algum processo com qualquer um deles?

Não. Não. Não. Nicholas marcou as respostas rapidamente.

Na página cinco estavam os nomes de potenciais testemunhas, sessenta e duas pessoas, incluindo Celeste Wood, a viúva e queixosa. Conhece algumas dessas pessoas? Não.

Preparou outra chávena de café instantâneo e acrescentou dois pacotes de açúcar. Na noite anterior tinha ficado a trabalhar naquelas perguntas durante duas horas. Como não conseguiu acabar, ainda teve de trabalhar durante uma hora de manhã, bem cedo, assim que o sol despontou. Comeu uma banana ao pequeno-almoço. Pensou na última pergunta e respondeu a lápis, com uma letra perfeita, quase perfeita demais: tudo em letra de forma, porque a sua escrita era quase ilegível. Sabia que, ainda antes do fim do dia, as suas palavras seriam estudadas por um grupo de grafólogos de ambas as partes, grupo que pouco se importaria com o seu sentido, centrando a atenção na maneira como desenhava as letras. Nicholas queria parecer ordeiro e cuidadoso, inteligente e de mente aberta. Capaz de ouvir com os dois ouvidos e decidir com justiça, um árbitro que as partes disputassem como jurado.

Nicholas tinha lido três livros sobre análise grafológica.

Voltou para a questão do imposto sobre o tabaco porque era a mais difícil. Tinha a resposta pronta porque havia pensado muito no assunto e queria escrever com clareza. Ou talvez vagamente. Ou, talvez ainda, de um modo que não traísse os seus sentimentos, não assustando nenhum dos lados.

Muitas daquelas perguntas tinham sido usadas no caso Cimmino, no ano anterior, em Allentown, Pennsylvania. Naquele tempo, Nicholas era David, David Lancaster, um estudante de cinema, com uma verdadeira barba negra, que trabalhava numa loja de vídeo. No segundo dia da selecção do júri, copiou o questionário antes de o entregar. Era um caso semelhante, mas com uma viúva e uma tabaqueira diferentes e, embora tivesse cem advogados envolvidos, eram todos diferentes dos desse julgamento. Apenas Fitch se mantinha.

Nicholas/David conseguiu passar nas duas eliminatórias, mas estava quatro filas atrás quando o júri foi escolhido. Rapou a barba, deitou fora os óculos comprados numa farmácia e, um mês depois, saiu da cidade.

A mesa de jogo, de armar, vibrava levemente quando escrevia. Aquela também era a sua mobília de jantar: a mesa e as três cadeiras diferentes. Na salinha à direita havia uma frágil cadeira de baloiço, uma televisão em cima de uma caixa de madeira e um sofá empoeirado, comprado numa feira por quinze dólares. Provavelmente podia alugar um mobiliário melhor, mas isso exigiria formulários e era uma pista. Lá fora, praticamente revistavam o lixo que fazia para descobrirem quem ele era.

Pensou na loura e imaginou onde iria aparecer nesse dia, sem dúvida com um cigarro na mão e ansiosa para outra conversa sobre tabaco. Nem sequer lhe passou pela cabeça a ideia de telefonar, mas gostaria de saber para qual dos lados trabalhava. Provavelmente, para as tabaqueiras: era exactamente o tipo de pessoa que Fitch gostava de usar.

Nicholas conhecia suficientemente a lei para saber que era contra a ética contratar a loura, ou qualquer outra pessoa, para abordar directamente um potencial jurado. Também sabia que Fitch tinha dinheiro suficiente para fazer a loura desaparecer sem deixar traço e reaparecer noutro julgamento como ruiva, com um penteado diferente e interessada em horticultura. Há certas coisas que não são passíveis de prova.

O único quarto era quase todo ocupado por um colchão de tamanho familiar, sem estrado, também comprado numa feira. Uma série de caixas de papelão servia de cómoda. As peças de roupa espalhavam-se pelo chão.

Era uma casa provisória, do tipo das que se usam por um mês ou dois antes de sair da cidade a meio da noite, que era exactamente o que pretendia fazer. Estava ali há seis meses e o apartamento era a sua morada oficial, pelo menos a que constava no registo de eleitor e na carta de condução do Mississipi. Tinha um apartamento melhor a seis quilómetros de Biloxi, mas não podia arriscar-se a que alguém o visse lá.

Assim, vivia feliz na pobreza, outro estudante sem dinheiro, sem bens e com poucas responsabilidades. Tinha quase a certeza de que os espiões de Fitch não tinham entrado no seu apartamento, mas não queria arriscar. Era um apartamento barato, mas cuidadosamente arrumado. Não encontrariam nada de revelador.

Às oito horas terminou o questionário e fez a última revisão. O do caso Cimmino fora respondido à mão, num estilo completamente diferente. Depois de meses de prática para mudar a letra, tinha a certeza de que não poderiam encontrar nenhuma semelhança. No caso Cimmino, havia trezentos potenciais jurados; agora, eram quase duzentos. Por que razão alguém haveria de suspeitar que ele se encontrava em ambas as listas da convocatória?

Através da fronha que cobria a janela da cozinha examinou rapidamente o estacionamento para se certificar de que não havia fotógrafos nem intrusos. Três semanas antes Nicholas tinha visto um, afundado no banco de uma pickup.

Hoje, nem sombras de espiões. Trancou a porta do apartamento e saiu a pé.

No segundo dia, Glória Lane foi muito mais eficiente na tarefa de determinar os lugares. Os cento e quarenta e oito jurados restantes ficaram do lado direito, doze em cada uma das doze filas, com quatro na passagem. Com todos no mesmo lado da sala era mais fácil comandá-los. Os questionários foram recolhidos à entrada, rapidamente copiados e distribuídos a ambas as partes. Naquele momento, em salas fechadas e sem janelas, as respostas já estavam a ser analisadas pelos consultores.

No outro lado da passagem, um grupo bem comportado de jovens da área das finanças, repórteres, curiosos e outro tipo de público olhavam para os enormes grupos de advogados que, por sua vez, estudavam os potenciais jurados. Fitch estava agora na primeira fila, mais perto da sua equipa de defesa, com um acólito bem vestido de cada lado, ambos prontos para obedecer às suas ordens.

Na terça-feira, o juiz Harkin era um homem numa missão e levou menos de uma hora para completar o exame dos impedimentos não médicos. Foram dispensados mais seis, deixando ao todo cento e quarenta e dois jurados.

Finalmente chegou a hora do espectáculo. Wendall Rohr, com o que parecia ser o mesmo casaco desportivo de xadrez, o mesmo colete branco e a mesma gravata vermelha e amarela, levantou-se e caminhou para a balaustrada para se dirigir ao "seu" público. Estalou os dedos ruidosamente, abriu as mãos e disse com um sorriso largo e quase sombrio.

- Sejam bem-vindos - disse dramaticamente, como se o que estava para acontecer fosse algo cuja lembrança guardariam para sempre com carinho. Apresentou-se, depois apresentou os membros da sua equipa que iam participar no julgamento e só então pediu à queixosa, Celeste Wood, para ficar de pé. Enquanto a apresentava aos potenciais jurados, conseguiu usar duas vezes a palavra "viúva". Celeste era uma mulher pequena, de cinquenta e cinco anos, com vestido preto, meias e sapatos pretos que não podiam ser vistos debaixo da balaustrada e um leve e doloroso sorriso de quem ainda está de luto, embora o marido já estivesse morto há quatro anos. Na verdade, já tinha estado quase para casar de novo, acontecimento que Wendall se apressou a cancelar. Tudo bem, pode amar o homem, explicou-lhe, mas faça-o discretamente e, seja como for, não pode casar antes do fim do julgamento. O factor simpatia. Supostamente, a senhora está a sofrer, disse ele.

Fitch tinha conhecimento do casamento adiado, mas também sabia que havia poucas probabilidades de o facto ser tornado público.

Depois de apresentar todos os que estavam no seu lado da sala, Rohr fez um rápido sumário do caso, uma exposição ouvida com muito interesse pelos advogados da defesa e pelo juiz. Parecia que estavam todos prestes a atacar se Rohr ultrapassasse a barreira invisível entre o facto e o argumento. Ele não a ultrapassou, mas divertiu-se sobremaneira com o suspense que criou.

Seguiu-se um longo pedido para que os jurados fossem honestos, sinceros, sem medo de levantar as suas tímidas mãozinhas se tivessem a mais pequena dúvida que fosse. "Nós, os advogados, precisamos absolutamente de perceber as vossas dúvidas para podermos conduzir os interrogatórios no sentido de vos satisfazer."

Compreendem que não podemos saber o que estão a pensar olhando simplesmente para as vossas caras - disse ele, com outro flash de dentes. Naquele momento, pelo menos oitenta pessoas na sala do tribunal tentavam desesperadamente interpretar cada sobrancelha erguida, cada lábio franzido.

Para acelerar o processo, Rohr consultou um bloco de notas e disse:

-Algum dos presentes já foi jurado noutro processo de Direito Civil? As pessoas que estej am nestas circunstâncias, por favor, levantem a mão. - Ergueu-se uma dezena de mãos obedientemente. Rohr examinou o grupo e escolheu uma mulher na primeira fila. - Senhora D. Millwood, estou certo? - Ela corou e fez um gesto afirmativo. Toda a gente na sala estava a olhar para ela, ou a esforçar-se para conseguir vê-la.

- Se não me engano, a senhora fez parte de um júri num processo de Direito Civil há alguns anos - disse Rohr, com simpatia.

- Sim - pigarreou ela, preparando-se para falar mais alto.

- Que tipo de caso foi? - É óbvio que ele conhecia o caso ao mais ínfimo pormenor: tinha sido há sete anos, naquele mesmo tribunal. Era outro juiz e o queixoso não recebeu nada. O arquivo fora copiado há algumas semanas. Rohr tinha até falado com o advogado do queixoso, que era seu amigo. Começou com aquela pergunta e com aquela jurada porque era uma forma fácil de aquecimento, uma nota suave para mostrar aos outros como era indolor levantar a mão e falar sobre o assunto.

- Foi um acidente de automóvel - disse ela.

- Onde foi o julgamento?

- Aqui mesmo.

- Ah, neste tribunal - Wendall parecia surpreendido, mas os advogados de defesa sabiam que estava a fingir.

- O júri chegou a um veredicto nesse caso? -Sim.

-E qual foi?

- Foi a favor do réu.

- E o queixoso?

- Na nossa opinião, não foi gravemente ferido.

- Compreendo. Acha que estar nesse júri foi uma experiência agradável para si?

Ela pensou por um momento e depois disse:

- Não foi mau. O pior foi o tempo perdido. Muito tempo perdido, o senhor sabe, quando os advogados se põem a discutir sobre isto, ou sobre aquilo.

Um grande sorriso.

- Sim, sim, costumamos fazer isso muitas vezes. Não há nada desse caso que influencie a sua capacidade para julgar este?

- Não, acho que não. -Muito obrigado, D. Millwood.

O marido da senhora Millwood era contabilista num pequeno hospital que fechou as portas depois de ser apanhado num caso de negligência médica. A senhora Millwood tinha toda a razão para secretamente detestar grandes veredictos. Jonathan Kotlack, o advogado da acusação encarregado da selecção final do júri, há muito tempo que tinha retirado o nome dela da lista.

Entretanto, em volta da mesa, a menos de dez passos de Kotlack, os advogados de defesa consideravam que ela tinha grandes probabilidades de ser escolhida. Joann Millwood seria um valor acrescido para a defesa.

Rohr fez as mesmas perguntas aos outros veteranos de júris e a repetição fez com que a sessão fosse monótona. Foi aí que passou para o assunto delicado da reforma das leis civis, com uma série de perguntas sobre os direitos das vítimas, os processos judiciais frívolos e o preço dos seguros. Algumas daquelas perguntas deram origem a pequenas discussões, mas ele conseguiu evitar que provocassem problemas. Era quase hora do almoço e os jurados perderam o interesse. O juiz

 Harkin determinou um intervalo de uma hora e os seguranças evacuaram a sala.

Os advogados ficaram. Glória Lane e a sua equipa distribuíram caixas com pequenas sanduíches amassadas e maçãs vermelhas. Ia ser um almoço de trabalho. Precisavam de resolver moções pendentes, de todo tipo, e o Meritíssimo estava pronto para a discussão. Foram servidos café e chá gelado.

O recurso aos questionários era uma grande ajuda para a selecção do júri. Enquanto Rohr fazia perguntas na sala do tribunal, dezenas de pessoas, noutras salas, examinavam as respostas escritas e marcavam nomes nas suas listas. A irmã de um dos potenciais jurados tinha morrido de cancro do pulmão. Sete outros tinham amigos ou parentes com sérios problemas de saúde, problemas que os potenciais jurados atribuíam ao tabaco. Pelo menos metade fumava ou já tinha fumado. A maior parte dos primeiros admitia ter vontade de deixar de fumar.

Os dados foram analisados, passados para o computador e, no meio da tarde do segundo dia, os impressos estavam a ser distribuídos e revistos. Depois de ordenar um primeiro intervalo às quatro e meia, o juiz Harkin mandou outra vez evacuar a sala e dirigiu a análise dos dados. Durante quase três horas, as respostas escritas foram discutidas e debatidas e, no final, foram retirados da lista mais trinta e um nomes. Glória Lane recebeu ordem para telefonar imediatamente a essas pessoas dando-lhes a boa-nova.

Harkin estava decidido a terminar a selecção na quarta-feira. As apresentações de abertura estavam marcadas para a manhã de quinta. Chegou mesmo a insinuar que deviam trabalhar algumas horas no sábado.

Às oito da noite de terça-feira ouviu a última moção, bem curta, e mandou os advogados para casa. Os advogados da Pynex encontravam-se com Fitch nos escritórios de Whitney & Cable & White, onde um  delicioso banquete de sanduíches frias e batatas fritas engorduradas os esperava. Fitch queria trabalhar e enquanto os advogados exaustos serviam lentamente os seus pratos de papel, dois assistentes distribuíam cópias das últimas análises grafológicas. "Comam depressa “ mandou Fitch, como se alguém pudesse pensar em saborear aquela comida. O número de jurados era agora de cento e onze e a escolha começaria no dia seguinte.

A manhã pertenceu a Durwood Cable, ou Durr, como era conhecido em toda a Costa, de onde realmente nunca saiu nos seus sessenta e um anos de vida. Como sócio mandatário da Whitney & Cable & White, Sir Durr fora cuidadosamente escolhido por Fitch para se encarregar da maior parte do trabalho de defesa da Pynex. Como advogado, depois juíz,  e agora outra vez advogado, Durr tinha passado grande parte dos últimos trinta anos a olhar para jurados e a falar-lhes. Para ele, o ambiente do tribunal era relaxante porque era um palco - nada de telefone, nem transeuntes, nem secretárias atarefadas -, cada um tinha um papel, todos seguiam um guião, com os advogados como estrelas. Movimentava-se e falava com grande convicção, mas entre os passos e as sentenças os olhos não perdiam rigorosamente nada. Enquanto o seu adversário Rohr era espalhafatoso, gregário e teatral, Durr tinha uma atitude formal e bastante fria. O obrigatório fato escuro, uma gravata dou rada bastante ousada, a camisa branca, contrastando agradavelmente como rosto bronzeado. Durr era apaixonado por pesca de alto mar e passava muitas horas no seu barco, ao sol. O alto da sua cabeça era cal vo e muito bronzeado.

Houve uma época em que esteve seis anos sem perder um caso. Foi aí que Rohr, seu inimigo, e às vezes seu amigo, o venceu num caso de acidente de dois milhões.

Aproximou-se da balaustrada e olhou sério para as cento e onze pessoas sentadas nos bancos. Sabia onde morava cada uma delas, quantos filhos e netos tinha. Cruzou os braços, levou dois dedos ao queixo, como um professor pensativo e disse com voz sonora e agradável:

- O meu nome é Durwood Cable e represento a Pynex, uma antiga tabaqueira que fabrica cigarros há oitenta anos. - Pronto! Ele não se envergonhava disso! Durante dez minutos falou sobre a Pynex, apresentando-a magistralmente como uma entidade não agressiva, cheia de calor humano, quase digna de simpatia.

Passou então destemidamente para o assunto da escolha. Enquanto Rohr tinha insistido no tema do vício, ele falou sobre a livre escolha.

- Podemos concordar com o facto de que o tabaco em excesso é perigoso? - perguntou, e viu a maioria das cabeças fazer um gesto afirmativo. - Quem é que pode negá-lo? Muito bem, então. Agora, uma vez que isso é do conhecimento geral, também podemos concordar que os fumadores devem conhecer os perigos do tabaco? - Mais gestos afirmativos, ninguém levantou a mão. Cable observou os rostos, especialmente o rosto inexpressivo de Nicholas Easter, agora na terceira fila, o oitavo a partir da passagem. Devido às dispensas dos potenciais jurados, Easter tinha deixado de ser o jurado número cinquenta e seis para passar a ser o número trinta e dois, avançando mais em cada sessão. O seu rosto não revelava nada, além de uma total atenção ao que se passava.

- Esta é uma questão muito importante - disse Cable em voz lenta, as palavras ecoando no silêncio. .Com o dedo em riste, apontou-o delicadamente e continuou. - Por acaso, há alguém neste júri que não ache que quem fuma deve conhecer os perigos do tabaco?

Esperou, observando atentamente todos os rostos e, finalmente, apanhou um. Houve alguém na quarta fila que levantou a mão. Cable sorriu, deu um passo para a frente e disse: - Sim. Se não me engano é a senhora D. Tutwiler. Levante-se, por favor. - A sua provável satisfação por encontrar um voluntário durou pouco. A senhora Tutwiler era uma mulher frágil de sessenta anos e parecia muito zangada. Ficou de pé, com as costas muito direitas, levantou o queixo e disse:

- Tenho uma pergunta para o senhor, doutor Cable.

- Certamente.

- Se todos sabem que o tabaco é perigoso, porque é que os seus clientes o continuam a fabricar?

Alguns dos jurados sorriram. Todos os olhos se voltaram para Dur-wood Cable que continuou sorrindo, calmo e impassível.

- Excelente pergunta - respondeu ele, em voz alta. Não tinha intenção de responder. - Senhora Tutwiler, a senhora acha que a produção de cigarros devia ser proibida?

- Acho.

- Mesmo quando as pessoas desejam exercer o seu direito de fumar, ou de não fumar?

- Fumar é um vício, doutor Cable, e o senhor sabe-o perfeitamente.

- Muito obrigado, senhora Tutwiler.

- Os fabricantes exageram na nicotina, viciam as pessoas e, além disso, fazem campanhas publicitárias para continuar a vender os seus produtos.

- Muito obrigado senhora Tutwiler.

- Ainda não acabei - disse ela em voz alta, segurando com força a cadeira à sua frente e parecendo mais alta. - Os fabricantes sempre negaram que o tabaco vicia. É uma mentira, e o senhor sabe isso muito bem. Porque é que não o dizem nos maços de cigarros?

O rosto de Durr continuou impassível. Esperou pacientemente e, depois, perguntou com extrema delicadeza.

- Já acabou, senhora Tutwiler?

Ela ainda queria dizer outras coisas, mas de repente pensou que talvez aquele não fosse o lugar.

- Sim - respondeu, quase num murmúrio.

-Muito obrigado. Reacções como a sua são vitais para o processo da selecção do júri. Muito obrigado. Já pode sentar-se minha senhora.

Ela olhou à sua volta para ver se alguém se ia levantar para discutir a sua opinião, mas como ninguém se manifestou, sentou-se pesadamente. A senhora Tutwiler podia perfeitamente ter ido para casa naquele momento.

Cable passou de imediato para assuntos mais delicados. Fez uma quantidade de perguntas, provocou muitas respostas e deu aos especialistas em linguagem corporal muito material para trabalhar. Terminou ao meio dia, com tempo para um rápido almoço. Harkin pediu aos jurados para voltarem às três horas mas, para os advogados, a ordem foi para almoçar depressa e regressar dentro de 45 minutos.

À uma da tarde, com a sala vazia, as portas fechadas e os advogados amontoados em volta das mesas, Jonathan Kotlack levantou-se e i nformou o tribunal.

- A acusação aceita o jurado número um.

Não foi surpresa para ninguém. O número um era Rikki Coleman, uma jovem mulher, mãe de dois filhos, que nunca tinha fumado e que trabalhava na gestão de arquivos num hospital. Kotlack e a sua equipa tinham-lhe dado nota sete, numa escala de um a dez, baseando-se nas suas respostas ao questionário, no seu trabalho na área de saúde, no facto de ter completado o curso liceal e no grande interesse demonstrado por tudo o que havia sido dito até ali. A defesa deu-lhe seis como nota, não fosse uma série de indesejáveis que seguiam o seu nome na lista, tê-la-ia recusado."

-Essa foi fácil-resmungou Harkin.-Continuando: jurado número dois, Raymond C. La Monette.

O senhor La Monette foi a primeira escaramuça estratégica na selecção do júri. Nenhuma das partes o queria-ambas lhe tinham dado quatro e meio. Fumava mui to, mas estava desesperado para deixar de fumar. As suas respostas eram completamente indecifráveis e inúteis. Os especialistas em linguagem corporal, dos dois lados, declararam que o senhor LaMonette detestava todos os advogados e tudo o que com eles estivesse relacionado. Alguns anos antes quase fora morto por um motorista bêbedo. E o processo que lhe movera não deu em nada.

De acordo com as regras de selecção de júris, cada lado tinha direito a um determinado número de impugnações peremptórias, ou eliminações, como eram chamadas, por meio das quais podia recusar um jurado sem apresentar nenhuma razão. Devido à importância do caso, o juiz Harkin tinha concedido dez impugnações para cada lado, em lugar das quatro habituais. Os dois lados queriam cortar La Monette, mas precisavam de guardar as suas impugnações para outros jurados menos desejáveis.

Foi pedido à acusação para falar primeiro e, depois de uma pequena demora, Kotlack disse:

- A acusação impugna o número dois.

- Impugnação peremptória número um da acusação - disse Harkin, enquanto tomava nota.

Uma pequena vitória para a defesa. Baseado numa decisão de última hora, Durr Cable ia recusá-lo também.

A acusação usou outra impugnação para o jurado número três, a mulher do executivo de uma companhia, e também para o número quatro. As impugnações estratégicas continuaram e praticamente dizimaram a primeira fila. Só dois jurados sobreviveram. A carnificina foi menor na segunda fila, com cinco sobreviventes às várias impugnações, duas delas do próprio tribunal. Quando a selecção passou para a terceira fila estavam escolhidos sete jurados. O oitavo na fila, Nicholas Easter, jurado número trinta e dois, era matéria desconhecida; até  aquele momento tinha prestado bastante atenção e, decerto modo, parecia desejável, embora provocasse em ambos os lados verdadeiros arrepios. Wendall Rohr, falando agora pela acusação, porque Kotlack estava em conferência com um especialista sobre dois jurados da quarta fila, usou uma das suas impugnações peremptórias para o número vinte e cinco. Era a nona impugnação da acusação. A última estava reservada para um republicano muito temido e notório, na quarta fila, se chegassem até lá. A defesa rejeitou o número vinte e seis, queimando a sua oitava impugnação peremptória. Os jurados números vinte e sete, vinte e oito e vinte e nove foram aceites. O número trinta foi impugnado pela defesa com causa válida, um pedido ao tribunal para o dispensar por motivos mútuos, sem ter sido preciso usar a impugnação de nenhum dos lados. Durr Cable pediu ao tribunal que não constasse dos autos algo que queria discutir em particular. Rohr ficou um tanto perplexo, mas não se opôs. A estenógrafa do tribunal parou de escrever. Cable entregou uma pasta fina a Rohr e outra igual ao juiz. Baixando a voz, disse:

- Meritíssimo, soubemos, por meio de certas fontes, que a jurada numero trinta, Bonnie Tyus, é viciada em Ativan. Nunca foi tratada, nunca foi presa, nunca admitiu sequer ter um problema. Certamente não o revelou nos questionários nem nos nossos breves interrogatórios. Vive discretamente, tem um emprego e um marido... embora seja já o terceiro.

- Como é que sabe isso tudo? - perguntou Harkin.

- Através de uma investigação extensiva que fizemos a todos os potenciais jurados. Meritíssimo, posso garantir que não houve qualquer contacto não autorizado com a senhora Tyus.

A descoberta fora de Fitch. Encontraram o segundo marido da senhora Tyus em Nashville, onde lavava trailers de tractores numa estação de serviço que funcionava vinte e quatro horas por dia. Por cem dólares, em dinheiro vivo, contou alegremente tudo aquilo de que se lembrava sobre a sua ex-mulher.

- Tem alguma coisa a dizer, doutor Rohr? - perguntou Harkin.

Sem hesitar um segundo, Rohr mentiu.

- Temos a mesma informação, Meritíssimo. Olhou amavelmente para Joríathan Kotlack que, por sua vez, olhou zangado para outro advogado, encarregado do grupo que incluía a senhora Tyus. Já haviam gasto mais de um milhão para a selecção do júri e deixaram passar um facto crucial!

- Muito bem. A jurada número trinta está dispensada por causa justificada. De volta aos autos. Jurado trinta e um?

- Meritíssimo, pode conceder-nos alguns minutos?-pediu Rohr.

- Sim. Mas seja breve.

Depois de trinta nomes examinados, dez tinham sido escolhidos, nove eliminados pela acusação, oito pela defesa e três dispensados pelo tribunal. Era pouco provável que chegassem à quarta fila, pelo que Rohr, restando-lhe uma única impugnação, olhou atentamente para os jurados trinta e um, trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco e trinta e seis e murmurou para seu grupo:

- Qual é o mais indesejável? - Os dedos apontaram unanimemente para o trinta e quatro, uma mulher branca, grande e com cara de má, que desde o primeiro dia os assustava. Chamava-se WildaHaney e há já um mês que todos tinham resolvido evitar a vasta Wilda. Estudaram novamente a sua ficha mais alguns segundos e concordaram em aceitar os números trinta e um, trinta e dois, trinta e três e trinta e cinco e, embora nenhum deles fosse muito atraente, pareciam melhores do que a imensa Wilda.

Num grupo mais cerrado, a poucos metros deles, Cable e seus homens resolveram eliminar o trinta e um, aceitar o trinta e dois, impugnar o trinta e três - Herman Grimes, o cego -, aceitar o trinta e quatro, WildaHaney, e eliminar, se necessário, o trinta e cinco.

Foi assim que Nicholas Easter se tornou no décimo primeiro jurado escolhido para ouvir Wood contra Pynex. Quando o tribunal reabriu às três horas, com a presença do júri, o juiz começou a chamar os nomes dos doze escolhidos. Passaram pela pequena porta e sentaram-se nas cadeiras dos jurados. Nicholas ficou com a cadeira número dois, na primeira fila. Com vinte e sete anos, era o segundo jurado mais jovem. Eram nove brancos, três negros, sete mulheres, cinco homens, um deles cego. Três eventuais substitutos sentaram-se nas cadeiras de armar, muito juntas umas das outras, num canto do banco dos jurados. Então, durante meia hora, o juiz Harkin fez severas advertências aos jurados e aos advogados das partes envolvidas no julgamento. Qualquer tipo de contacto com jurados era passível de rigorosas sanções, penalidades monetárias e, talvez, de anulação do julgamento, eventual expulsão da Ordem de Advogados, e morte.

Proibiu os jurados de discutir o caso com qualquer pessoa, mesmo cônjuges ou companheiros e, com um sorriso alegre, despediu-se de todos, tenham uma boa-noite, vemo-nos amanhã de manhã, às nove em ponto.

Os advogados ouviam, desejando ardentemente poder sair com os jurados. Mas tinham muito que fazer. Quando todos saíram, excepto os advogados e os funcionários do tribunal, o Meritíssimo disse:

- Meus senhores, agora vamos discutir as moções que me foram apresentadas.

 

Nicholas Easter, por um lado devido a uma combinação de impaciência e tédio e, por outro, por causa da sensação de que alguém estava à sua espera, entrou discretamente pela porta das traseiras do prédio do tribunal, porta que não estava fechada à chave. Subiu a escada raramente usada e entrou num corredor estreito por trás da sala de audiências. A maior parte dos departamentos da Câmara Municipal abria às oito e já havia movimento e ruído no primeiro andar. Mas, no segundo, havia muito pouco. Nicholas Easter espreitou para dentro da sala do tribunal: estava vazia. As pastas com papéis já tinham chegado e estavam espalhadas em desordem sobre as mesas. Os advogados, provavelmente, estariam nas traseiras da sala, perto da máquina de café, contando anedotas e preparando-se para a batalha.

Nicholas Easter conhecia bem o terreno. Três semanas antes, um dia depois de ter recebido a intimação para fazer parte do júri, tinha estado perto da sala de audiências. Como estava vazia, aproveitara para explorar os corredores e os espaços à sua volta: o pequeno escritório do juiz, a sala de café - onde os advogados conversavam, sentados em frente das mesas antigas cheias de revistas e jornais -, as salas das testemunhas - com cadeiras de armar e sem janelas -, a sala onde os acusados perigosos e algemados esperavam as sentenças e, é claro, a sala do júri.

Nessa manhã, a sua intuição estava certa e dava pelo nome de Lou Dell, uma mulher atarracada de sessenta anos, com calças depoliester, ténis velhos e uma franja grisalha caída sobre os olhos. Estava sentada no corredor ao lado da porta da sala do júri, lendo um velho livro de ficção e esperando que alguém entrasse nos seus domínios. Levantou--se de um salto, pegou numa folha de papel sobre a qual estava sentada e disse.

- Bom-dia. Posso ajudá-lo? - O rosto maciço parecia um só sorriso. Os olhos brilhavam maliciosos.

- Nicholas Easter - disse ele, segurando a mão que ela lhe estendia. Ela apertou a dele com força, sacudiu-a vigorosamente e encontrou o nome. Outro largo sorriso - Bem-vindo à sala dos jurados. É o seu primeiro julgamento?

-Sim.

- Entre - disse ela, empurrando-o praticamente para dentro da sala. - Há ali café e bolinhos - puxou o braço dele e apontou para um canto. - Fui eu que os fiz - disse com orgulho, levantando um cesto com pãezinhos negros e engordurados. - É uma espécie de tradição. Trago sempre estes pãezinhos no primeiro dia. Até lhes chamo pãezinhos do júri. Prove um.

A mesa estava cheia de vários tipos de pão dispostos em bandejas, dois bules cheios de café ainda deitavam vapor. Pratos e chávenas, colheres e garfos, açúcar, natas, adoçantes de vários tipos. E, no centro da mesa, estavam os pãezinhos do júri. Nicholas tirou um: aliás, não teve outra alternativa senão tirar um.

- Faço estes pãezinhos há dezoito anos - disse ela. - Dantes punha-lhes passas, mas tive de desistir... -Revirou os olhos, como se o resto da história fosse escandaloso demais.

- Porquê?- perguntou ele.

- Fazem gases. Sabe que às vezes, na sala de audiências, o silêncio é tão grande que se conseguem ouvir os mais pequenos ruídos. Está a perceber a que é que me refiro?

- Acho que sim.

- Café?

- Muito obrigado. Bebo lá fora.

- Como queira - rodou o corpo e apontou para uma pilha de papéis no centro de uma mesa comprida.-Está ali uma lista de folhas de instruções do juiz Harkin. Ele quer que cada um dos jurados fique com uma: leia atentamente e assine por baixo. Eu depois recolho a folha com as assinaturas.

- Obrigado.

- Se precisar de mim, estou no corredor, perto da porta. É onde fico. Imagine que desta vez vão pôr um maldito polícia ao pé de mim. Quando me disseram, nem queria acreditar. Até me mete nojo. Deve ser algum incapaz, um estúpido qualquer que não consegue acertar num celeiro com uma espingarda. Mas, pronto, também é verdade que este é o maior julgamento que já aqui tivemos. Ou melhor, como processo civil. Não imagina os criminosos que já aqui estiveram. - Segurou a maçaneta da porta e puxou-a. - Se precisar de mim, estou aqui fora, querido.

A porta fechou-se e Nicholas olhou para o pão doce. Com muito cuidado deu-lhe uma pequena mordidela. Era quase só farelo e açúcar e, por segundos, pensou nos sons da sala de audiências. Voltou a pôr o pão no cesto e deitou um café num copo de plástico. Os copos de plástico tinham de desaparecer. Se queriam obrigá-lo a acampar ali quatro ou seis semanas, tinham de arranjar chávenas de vidro. E se o tribunal podia pagar aqueles bolinhos, também podia pagar croissants.

Não havia descafeinado. Nicholas deu logo conta. E também não havia água quente para o chá, para o caso de algum dos jurados não gostar de café. O almoço tinha de ser muito bom. Não ia passar seis semanas a comer salada de atum.

As doze cadeiras estavam dispostas ordenadamente em volta da mesa disposta no centro da sala. A espessa camada de poeira de que se tinha apercebido há três semanas fora limpa. A sala estava muito mais limpa e pronta para ser usada. Numa das paredes estava pregado um grande quadro negro, com giz novo e apagadores. Na parede oposta, do chão ao tecto, havia três janelas que davam para o jardim do tribunal, cheio de relva verde e fresca, embora o Verão já tivesse acabado há um mês. Nicholas olhou através de uma das janelas para o movimento nos passeios.

A lista do juiz Harkin versava sobre algumas coisas que deviam ser feitas e sobre uma série de coisas que deviam ser evitadas. Organizem-se. Elejam um líder e, se não for possível, notifiquem o juiz, que escolherá o vosso líder. Usem os botões vermelhos e brancos de jurados durante todo o julgamento. Lou Dell é a pessoa responsável pela distribuição dos botões. Tragam alguma coisa para ler. Não hesitem em pedir qualquer coisa. Não discutam o caso entre vocês enquanto não forem instruídos para isso pelo juiz. Não discutam o caso com ninguém. Ninguém mesmo. Não saiam do edifício do tribunal sem permissão expressa. Não usem o telefone sem autorização. O almoço será trazido de fora e servido na sala do júri. Todos os dias, antes do julgamento

rcomeçar às nove horas, ser-lhes-á apresentado um menu. Notifiquem i mediatamente o tribunal se virem ou ouvirem qualquer coisa suspeita que possa, ou não, estar relacionada com os seus deveres de jurado neste caso.

Estranhas advertências as duas últimas. Mas Nicholas conhecia os pormenores de um julgamento contra tabaqueiras no Leste do Texas, um julgamento que estourou no fim da primeira semana, quando descobriram que agentes misteriosos percorriam a pequena cidade oferecendo enormes quantias em dinheiro aos familiares e parentes dos jurados. Os agentes desapareceram antes de serem apanhados e nunca se soube para qual dos lados trabalhavam, embora as acusações partissem dos dois lados. Cabeças mais frias apostavam que era trabalho dos homens do tabaco. Aparentemente, o júri tinha grande simpatia por eles e a defesa ficou muito feliz quando o julgamento foi anulado.

Embora sem meios para o provar, Nicholas tinha a certeza de que Kankin Fitch era o fantasma responsável pelo subornos.

Assinou o papel e deixou-o em cima da mesa. Ouviu vozes no corredor: Lou Dell estava a cumprimentar outro jurado. A porta abriu-se com uma pancada surda e o senhor Herman Grimes entrou com a

bengala batendo àsua frente. A sua mulher acompanhava-o, atrás dele e sem o tocar, mas examinando a sala e descrevendo-a ao marido em voz baixa.

- Sala comprida, sete e meio por quatro e meio. Estás de frente para o comprimento; mesa longa no sentido do comprimento, no centro da sala, com cadeiras em volta; a cadeira mais próxima está a dois metros e meio de ti. - Ele ouvia, imóvel, movendo apenas a cabeça em cada direcção que ela descrevia. Lou Dell estava parada à porta, com as mãos na cintura, e cheia de vontade de dar um pãozinho-doce ao homem cego.

Nicholas avançou alguns passos e apresentou-se. Segurou a mão estendida de Herman e trocaram amabilidades. Cumprimentou a senhora Grimes, depois conduziu Herman para a mesa onde a comida estava disposta, serviu-lhe café num copo de plástico, pôs açúcar e natas, mexeu com a colher

e descreveu os bolinhos e os pães, desafiando Lou Dell que continuava à porta. Herman não estava com fome.

- O meu tio favorito é cego - disse Nicholas, dirigindo-se aos três. - Será uma honra se me permitir ajudá-lo durante o julgamento.

- Sou perfeitamente capaz de me defender sozinho - disse Her-man com um leve traço de indignação, mas a mulher não conseguiu disfarçar um sorriso de simpatia. Depois, piscou um olho e meneou a cabeça afirmativamente.

- Tenho a certeza de que pode - disse Nicholas. - Mas sei que há uma quantidade de pequenas coisas em que talvez lhe possa valer. Só quero ajudar.

- Muito obrigado - respondeu ele depois de uma breve pausa. - Muito obrigada-disse a mulher.

- Se precisarem de mim, estou no corredor - disse Lou Dell.

- A que horas é que queres que te venha buscar? - perguntou a senhora Grimes.

- Às cinco. Se acabar antes, telefono.-Quando acabou de falar, Lou Dell já tinha fechado a porta.

Os olhos de Herman estavam cobertos pelos óculos escuros. Tinha cabelo espesso, bem penteado, castanho a começar a ficar grisalho.

Quando ficaram sozinhos, Nicholas disse: - Temos de tratar de alguns papéis. Sente-se na cadeira que está à sua frente que eu explico-lhe do que se trata.

Herman procurou a mesa com a mão, apoiou o copo sobre a mesa e depois procurou a cadeira. Examinou-a com as pontas dos dedos, orientou-se e sentou-se. Nicholas pegou numa das folhas com as instruções e começou a ler.

Depois de se terem gasto fortunas na selecção do júri, as opiniões eram praticamente dadas de graça: todos tinham opinião. Os especialistas da defesa congratulavam-se por terem escolhido um júri tão bom, embora a maior parte das demonstrações de júbilo fossem em prole da legião de advogados que trabalhavam "24 horas por dia". Durr Cable tinha visto júris piores, mas também já tinha visto outros muito mais amigáveis. Aprendera há muitos anos que era praticamente impossível prever as acções de qualquer júri. Fitch estava feliz, ou tão feliz quanto se podia permitir, embora isso não o impedisse de discutir e resmungar contra tudo. Havia quatro fumadores no júri. Fitch prendia-se à crença tácita de que a Costa do Golfo, com as suas casas de topless, os casinos

e a proximidade de Nova Orleães, não era um mau lugar para se estar naquele momento, sobretudo tendo em conta a tolerância da região para com o vício em geral.

No outro lado da rua, Wendall Rohr e o seu grupo de advogados declararam-se satisfeitos com a composição do júri. Estavam especialmente felizes com a inesperada presença do senhor Grimes, o primeiro

jurado cego na história: pelo menos, tanto quanto conseguiam lembrar-se. () senhor Grimes insistiu em ser avaliado exactamente como os que possuíam visão e ameaçou processar o tribunal se o tratassem de modo diferente. A sua volúvel confiança nos processos aqueceu os corações de Rohr e companhia e a sua deficiência física era o sonho de qualquer advogado de acusação. A defesa apresentou todos os tipos possíveis de objecção, incluindo a incapacidade de ver as provas que seriam exibidas. O juiz Harkin permitiu que os advogados submetessem o senhor Grimes a um teste discreto, e ele garantiu que poderia ver se as provas fossem correctamente identificadas por escrito. O Meritíssimo decidiu então que um dos relatores do tribunal ficaria incumbido de descrever as provas exibidas. Inserir-se-ia uma disquete no computador em braille do senhor Grimes e, à noite, ele poderia ler essas descrições. O senhor Grimes ficou muito feliz com isso e parou de falar de processos contra a discriminação. A defesa amaciou um pouco, especialmente quando soube que o senhor Grimes tinha fumado durante muitos anos e que não tinha qualquer problema em relação à presença de fumadores.

Assim, as duas partes estavam cautelosamente satisfeitas com o

júri. Não tinham escolhido nenhum radical. Não foi detectada nenhuma atitude reprovável. Os doze tinham terminado o ensino secundário, dois eram licenciados e três tinham cursos médios. As respostas escritas de Easter faziam perceber que tinha de facto terminado o ensino secundário, mas não fora possível deslindar que tipo de formação teria posteriormente adquirido.

Os advogados, enquanto se preparavam para o primeiro dia de julgamento, meditavam sobre a grande questão, cuja resposta gostariam de adivinhar. Olhando para os mapas da posição dos jurados e estudando os rostos pela milionésima vez, interrogavam-se: "Quem será o líder?"

Todos os júris têm um líder e dele depende o veredicto. Iria aparecer imediatamente ou esperaria para tomar o controlo durante a deliberação? Naquela altura, nem os jurados o sabiam.

Às dez horas em ponto, o juiz Harkin olhou para a sala cheia e resolveu que tudo estava em ordem. Bateu levemente com o martelo e os murmúrios cessaram. Todos estavam prontos. Inclinou a cabeça na direcção do seu velho meirinho com o uniforme castanho desbotado e disse:

—Traga o juri.

Todos os olhos se voltaram para a porta ao lado do banco dos jurados. Lou Dell apareceu primeiro, conduzindo o grupo como uma galinha mãe, depois os doze seleccionados entraram em fila e ocuparam os seus lugares. Os três substitutos tomaram as suas posições nas cadeiras desdobráveis. Depois de todos se acomodarem — ajeitando as almofadas e as bainhas das saias, pondo malas e livros no chão —, os jurados pararam os seus movimentos e, evidentemente, notaram que estavam a ser examinados com ávida atenção.

—Bom-dia—disse o Meritíssimo com voz sonora e um largo sorriso. Quase todos inclinaram as cabeças em resposta.

— Vejo que todos encontraram a sala do júri e espero que se tenham organizado. — Fez-se uma pausa enquanto ele se levantava da mesa para receber os quinze formulários distribuídos e recolhidos por Lou Dell, devidamente assinados. — Já têm um líder? — perguntou.

Os doze menearam a cabeça afirmativamente ao mesmo tempo.

— Óptimo. Quem é?

—Sou eu, Meritíssimo — disse Herman Grimes, na primeira fila, e por uma fracção de segundo a defesa, todos os advogados, consultores de júri e representantes da companhia, sentiram uma pontada colectiva no peito. Depois, respiraram lentamente, sem a menor indicação de nada para além de um grande amor e afeição pelo jurado cego que era agora o líder do júri. Talvez os outros onze sentissem pena dele.

— Muito bem—disse o Meritíssimo, satisfeito com a prova de que o seu júri havia chegado a essa escolha de rotina sem aparente acrimó-nia. Já tinha visto coisas muito piores. Um júri, meio branco, meio negro, não tinha conseguido eleger um líder e acabara por zangar-se por causa do menu do almoço.

— Espero que tenham lido as minhas instruções. E continuou, lançando-se numa palestra detalhada, durante a qual repetiu por duas vezes tudo o que já havia escrito.

Nicholas Easter estava na primeira fila, segunda cadeira a partir da esquerda. Com o rosto inexpressivo, enquanto Harkin se expandia na sua lengalenga examinava os outros actores. Com um leve movimento da cabeça os seus olhos percorreram a sala. Os advogados, amontoados em volta das mesas como abutres, prontos para mergulhar sobre a mesa, sem excepção, examinavam os jurados. Iriam certamente cançar-se disso muito em breve.

Rankin Fitch estava na segunda fila, atrás da defesa, com o rosto gordo e a barbicha sinistra, olhando fixamente para os ombros do homem à sua frente. Tentava ignorar as instruções de Harkin e fingia não ter o mínimo interesse no júri, mas Nicholas não se deixou enganar. Fitch não perdia pitada.

Catorze meses antes, Nicholas tinha-o visto no tribunal que julgava

o caso Cimmino, em Allentown, Pennsylvania, exactamente como estava agora, maciço e misterioso. E tinha-o visto no passeio, em frente do tribunal em Broken Arrow, Oklahoma, durante o julgamento do caso Glavine. Ver Fitch duas vezes era mais do que suficiente. Nicholas estava informado de que agora Fitch sabia que nunca tinha estudado na Universidade do Norte do Texas. Sabia que Fitch estava mais preocupado com ele do que com qualquer outro jurado e que tinha razões para isso.

Atrás de Fitch estavam duas filas de fatos completos, clones elegantemente vestidos e com ar arrogante. Nicholas sabia que eram os rapazes preocupados de Wall Street. De acordo com o jornal da manhã, o mercado tinha resolvido não apresentar nenhuma reacção à composição do júri. As acções da Pynex mantinham-se estáveis, a oito dólares cada uma. Nicholas não conseguiu conter um sorriso. Se se levantasse de repente gritando: «Acho que a queixosa deve receber milhões!», os clones sairiam a correr da sala e, à hora do almoço, a Pynex teria sofrido uma queda de dez pontos.

As outras três — Trellco, Smith Greer e ConPack — também se mantinham estáveis no mercado de acções.

Nas primeiras filas estavam os pequenos grupos de almas-penadas que Nicholas achava que deviam ser especialistas em júris. Agora que a selecção estava feita, movimentavam-se para a fase seguinte: a da vigilância. Eram encarregados da desagradável tarefa de ouvir cada palavra de cada testemunha e prever como o júri absorvia cada depoimento. A estratégia baseava-se no princípio de que quando uma determinada testemunha causava no júri uma impressão considerada prejudicial, por mais leve que fosse, devia ser imediatamente mandada para casa. Talvez fosse possível usar outra testemunha mais forte para reparar o dano causado. Nicholas não estava muito certo disso. Tinha lido o suficiente sobre os consultores de júri, chegou a assistir a um seminário em St. Louis, onde os advogados de barra contavam histórias de guerra sobre grandes veredictos, mas não estava convencido de que aqueles especialistas em aparar as arestas fossem mais do que artistas de uma farsa.

Afirmavam que eram capazes de avaliar os jurados apenas observando as suas reacções corporais ao que era dito no tribunal, por menores que fossem. Nicholas sorriu outra vez. E se enfiasse o dedo no nariz e o deixasse ali cinco minutos? Como seria interpretada essa pequena expressão de linguagem corporal?

Não conseguiu classificar o resto dos espectadores. Sem dúvida havia muitos repórteres e a habitual colecção de entediados advogados locais e de outros frequentadores dos tribunais. A mulher de Herman Grimes estava numa fila do centro, sorrindo beatificamente, cheia de orgulho pelo facto de o marido ter sido escolhido para uma posição tão importante. O juiz Harkin terminou a sua ladainha e apontou para Wendall Rohr que se levantou devagar, abotoou o casaco de xadrez e, com todos os dentes falsos à mostra para os jurados, caminhou para a barra com um passo imponente. Era a sua exposição de abertura, na qual, conforme explicou, pretendia resumir o seu caso. A sala ficou em silêncio.

Provaria que o tabaco provoca cancro de pulmão e, mais exactamente, que o falecido senhor Jacob Wood, uma óptima pessoa, teve cancro de pulmão depois de fumar cigarros Bristol durante mais de trinta anos. Os cigarros mataram-no, anunciou Rohr solenemente, puxando a barbicha grisalha. A sua voz era rasante mas clara, capaz de flutuar para cima e para baixo, para alcançar o melhor tom dramático.

Rohr era um artista, um actor experiente, e o seu laçarote sempre enviesado, os dentes estalando e a roupa mal combinada eram artifícios destinados a fazer despertar a simpatia do homem comum. Não era perfeito. Deixava para os advogados de defesa, com os seus fatos escuros impecáveis e as suas caras gravatas de seda, a tarefa de se dirigir aos jurados do alto da sua importância. Mas Rohr não o fazia. Aquela era a sua gente.

Como provar que o tabaco provoca cancro? Na verdade, iriam observar um grande número de provas. Para começar, levariam a tribunal os mais eminentes especialistas e investigadores de cancro do país. Sim, isso mesmo, esses grandes homens estavam a caminho de Biloxi para se sentarem ali e conversar com o júri. Para explicarem inequivocamente e com inúmeras estatísticas que o tabaco, de facto, provoca o cancro.

Em seguida, e Rohr permitiu-se um sorriso malicioso ao preparar a revelação seguinte, a acusação apresentaria ao júri pessoas que haviam trabalhado na indústria do tabaco. A "roupa suja" ia ser lavada no tribunal, ali, naquela sala. Estavam a caminho provas indiscutíveis.

Resumindo, a acusação provaria que o tabaco, por conter substâncias cancerígenas naturais, pesticidas e partículas radioactivas, provoca cancro do pulmão.

Nesse momento havia poucas dúvidas no tribunal de que Wendall Kohr não só podia prová-lo como o iria fazer com relativa facilidade. Fez uma pausa, ajeitou as pontas do seu laçarote com os dez dedos gordos consultou os seus apontamentos e, com voz solene, começou a falar sobre Jacob Wood, o falecido. Pai adorado e homem de família, trabalhador, católico devoto, membro da equipa de softball da igreja, um veterano. Começou a fumar quando era ainda garoto e, tal como a maior parte das pessoas naquele tempo, desconhecia os perigos do fumo. Avô... e assim por diante.

Por momentos, Rohr exagerou o dramatismo mas parecia estar perfeitamente consciente disso. Discorreu brevemente sobre a área danificada e anunciou que essa avaliação era de enorme importância A acusação preparava-se certamente para pedir uma grande soma. Não só uma indemnização à família pelo valor económico da vida de Jacob Wood e pela perda do seu amor e afeição, mas também uma indemnização punitiva.

Rohr estendeu-se um pouco sobre a indemnização punitiva, perdeu o fio à meada por uma ou duas vezes e ficou claro, para a maior parte dos jurados, que estava tão confiante numa grande indemnização punitiva que perdeu a concentração.

O juiz Harkin, nas suas instruções escritas, concedia uma hora a cada uma das partes para a apresentação de abertura e prometia, por escrito, interromper qualquer advogado que excedesse esse tempo. Embora, como todos os advogados, Rohr tivesse tendência para reforçar exageradamente os seus argumentos, sabia que não era prudente desobedecer ao relógio do juiz. Terminou em cinquenta e cinco minutos com um apelo sombrio à justiça, agradeceu a atenção dos jurados, sorriu, estalou os dentes e sentou-se.

Cinquenta minutos numa cadeira, sem conversar e quase sem se mexer, são como horas e o juiz Harkin sabia disso. Anunciou um intervalo de quinze minutos, depois do qual a defesa faria a sua apresentação inicial.

Durwood Cable terminou a sua exposição em menos de trinta minutos. Fria e deliberadamente garantiu aos jurados que a Pynex tinha os seus próprios especialistas, cientistas e investigadores que explicariam com clareza que o tabaco não é responsável pelo cancro do pulmão. O cepticismo dos jurados estava previsto e Cable pediu apenas paciência e abertura de espírito. Sir Durr falou sem consultar qualquer apontamento e cada palavra proferida foi deliberadamente gravada nos olhos de um jurado: os seus olhos moviam-se pela primeira fila, depois erguiam-se levemente para a segunda, ao encontro dos olhares curiosos, um de cada vez. A sua voz e o seu olhar eram quase hipnóticos, mas honestos. Dava vontade de acreditar nele.

 

A primeira crise ocorreu à hora do almoço. O juiz Harkin determinou o intervalo às doze e dez e todos esperaram em silêncio que os Jurados saíssem da sala. Lou Dell esperava-os no corredor estreito e *conduziu-os imediatamente à sala do júri.

— Sentem-se. — disse ela — O café foi feito agora e o almoço será servido em breve.

Quando os doze já estavam na sala, Lou Dell fechou a porta e foi ao encontro dos três substitutos, separados numa sala mais pequena ao fundo do corredor. Com os quinze nos seus respectivos lugares, voltou ao seu posto e olhou carrancuda para Willis, o polícia de serviço com uma arma carregada no cinto.

Lentamente, os jurados espalharam-se pela sala, uns espreguiçando-se ou bocejando, outros continuando as apresentações formais — a maioria conversando sobre o tempo. Os movimentos e a conversa eram um tanto forçados, facto perfeitamente compreensível entre pessoas que, de um momento para o outro, se vêem fechadas numa sala com completos estranhos. Sem nada para fazer a não ser almoçar, a refeição parecia ser um acontecimento importante. O que seria o almoço? Qualquer coisa decente, com certeza!

Herman Grimes sentou-se à cabeceira da mesa, o lugar apropriado para o líder, pensou, e começou a conversar com Millie Dupree, uma boa alma de cinquenta anos que conhecia outra pessoa cega. Nicholas Easter apresentou-se a Lonnie Shaver: era o único homem negro do júri e estava visivelmente contrariado com aquela responsabilidade. Shaver dirigia um supermercado de uma grande cadeia e era o negro com a mais alta posição na empresa. Era nervoso e tenso e tinha dificuldade em descontrair. A ideia de passar as próximas quatro semanas longe do supermercado era-lhe assustadora.

Passaram-se vinte minutos sem que o almoço aparecesse. Exactamente ao meio dia e meia, Nicholas disse do outro lado da sala:

- Herman, onde é que está o almoço?

- Sou apenas o líder - respondeu Herman com um sorriso para todos que, de repente, ficaram muito quietos.

Nicholas foi até à porta, abriu-a e chamou Lou Dell.

- Estamos com fome - disse ele.

Lou Dell baixou lentamente o livro que estava a ler, olhou para os outros onze rostos e disse:

- Está a chegar.

- De onde vem? - perguntou Nicholas.

- Da O'Reilly's Deli. É já ali, na esquina. - Lou Dell não gostou das perguntas.

- Escute: estamos aqui presos como se fôssemos animais de estimação... - Disse Nicholas. - Não podemos sair para comer como gente normal. Não compreendo por que razão não confiam em nós para atravessar a rua e saborear um bom almoço. - Nicholas deu um passo para ela e olhou zangado para a franja grisalha sobre os olhos de Lou Dell. - O almoço não vai ser uma luta todos os dias, pois não?

- Não.

- Sugiro que telefone e descubra onde está o nosso almoço, ou terei de resolver o assunto com o juiz Harkin.

-Tudo bem. A porta fechou-se e Nicholas foi até à cafeteira.

- Você foi um bocado indelicado, não acha? - perguntou Millie Dupree. Os outros ouviram com atenção.

- Talvez tenha sido, e talvez deva pedir desculpa. Mas se não acertarmos as coisas desde o início, vão esquecer-se de nós.

- A culpa não é dela - disse Herman.

- A obrigação dela é tomar conta de nós. - Nicholas foi até à mesa e sentou-se ao lado de Herman. - Sabia que em quase todos os outros julgamentos os jurados estão autorizados a sair para comer? - Os outros aproximaram-se deles.

- Como é que você sabe? - perguntou Millie Dupree, do outro lado da mesa.

Nicholas encolheu os ombros, como se soubesse muita coisa que não podia dizer

- Sei um pouco sobre o sistema.

- E como é que sabe? — perguntou Herman. Depois de uma pausa, Nicholas falou.

— Frequentei a faculdade de Direito durante dois anos. — Tomou um longo gole de café enquanto os outros avaliavam essa interessante informação.

A estatura de Easter entre os seus pares aumentou imediatamente.

Era amistoso e prestativo, cortês e inteligente. Mas agora foi silenciosamente elevado de posto porque conhecia a lei.

Ao meio dia e quarenta e cinco, o almoço ainda não tinha chegado. Nicholas calou-se bruscamente e abriu a porta. Lou Dell estava a olhar para o relógio no corredor.

— Eu mandei o Willis saber... — disse, nervosa. — Deve estar mesmo a chegar. Lamento imenso.

— Onde é a casa de banho dos homens? — perguntou Nicholas.

— É já ali, à direita — respondeu ela com alívio, apontando. Nicholas não parou na casa de banho, seguiu em frente, desceu as

escadas de serviço e saiu para a rua. Andou dois quarteirões na rua Lamuese até chegar ao Vieux Marche, uma galeria pedonal com lojas elegantes, ao lado do que era antigamente o Centro Comercial de Biloxi. Conhecia bem a zona porque ficava a quatrocentos metros do seu apartamento. Gostava dos cafés e das pastelarias do Vieux Marche. Havia tambem uma boa livraria.

Nicholas virou à esquerda e entrou num prédio grande e branco onde ficava o Mary Mahoney 's, um restaurante famoso onde grande parte da comunidade dos profissionais de direito se reunia para almoçar quando havia audiências. Uma semana antes, Nicholas tinha ensaiado este passeio e chegou até a almoçar numa mesa perto do Meritíssimo Frederick Harkin.

Nicholas entrou no restaurante e perguntou à primeira empregada que viu se o juiz Harkin estava. Sim. «E onde está ele?» A rapariga apontou e Nicholas passou rapidamente pelo bar, atravessou um pequeno pátio e entrou na espaçosa sala do restaurante com janelas, muito sol e muitas flores frescas. Estava repleto mas viu o Meritíssimo numa mesa de quatro lugares. Harkin viu-o chegar e o seu garfo parou no ar com um camarão grelhado espetado na ponta. Reconheceu um dos seus jurados.

—Desculpe a interrupção, doutor... — disse Nicholas, parando perto da mesa cheia de pão quente, saladas verdes e copos grandes de chá gelado. Glória Lane, a secretária da circunscrição, também ficou muda por um momento. A outra mulher era a estenógrafa do tribunal e a terceira a secretária particular de Harkin.

— O que é que está aqui a fazer? — perguntou Harkin, com um pedaço de queijo de cabra no lábio inferior.

— Estou aqui em representação do júri.

— Qual é o problema?

Nicholas inclinou-se para evitar escândalos.

— Estamos com fome — afirmou com uma aparente fúria contida nos dentes cerrados e claramente absorvida pelos quatro rostos espantados. — Enquanto vocês estão aqui a saborear um bom almoço, nós estamos sentados numa sala apertada à espera da comida que, por algum motivo desconhecido, não consegue encontrar o caminho do tribunal. Com todo o respeito, estamos com fome, senhor juiz. E estamos zangados.

O garfo de Harkin bateu no prato com força e o camarão foi para o chão. Atirou o guardanapo sobre a mesa, resmungando qualquer coisa ininteligível. Olhou para as três mulheres, levantou as sobrancelhas e disse:

—Muito bem, vamos ver isso.

Levantou-se, seguido pelas três mulheres, e os cinco saíram do restaurante.

Lou Dell e Willis não estavam nos seus postos quando Nicholas, o juiz Harkin e as três mulheres entraram no corredor e abriram a porta da sala do júri. A mesa estava vazia — não havia o mais pequeno sinal de comida. Faltavam cinco minutos para a uma hora. Os jurados pararam de falar e olharam para o juiz.

— Já passou quase uma hora — disse Nicholas, apontando para a mesa vazia.

A surpresa dos outros jurados ao verem o juiz transformou-se imediatamente em fúria.

— Temos direito a um tratamento digno — disse Lonnie Shaver, irritado, desarmando completamente o juiz Harkin.

— Onde está Lou Dell? — perguntou o juiz, olhando na direcção das três mulheres. Todos olharam para a porta no momento em que Lou Dell entrou a correr. Parou de repente quando viu o juiz. Harkin olhou-a, furioso.

— O que é que se passa aqui? — perguntou com voz firme.

— Acabo de falar com o restaurante —justificou-se Lou Dell ofegante e assustada, com gotas de suor no rosto. — Houve uma confusão. Dizem que alguém telefonou a dizer para não trazerem o almoço antes da uma e meia.

— Estas pessoas estão com fome — respondeu Harkin, como se Lou Dell não o soubesse. — Uma e meia?

— Foi só um engano. Alguém fez confusão.

— Qual é o restaurante?

— O'Reilly's.

—Lembre-me de falar com o dono.

— Sim, senhor.

O juiz voltou-se para os jurados.

—As minhas desculpas. Isto não voltará a repetir-se. — Parou por um segundo, consultou o relógio e disse com um sorriso: — Convido-os para almoçar comigo no Mary Mahoney 's. — Virou-se para a secretária e disse: — Telefone para o Bob Mahoney e mande preparar a sala do fundo.

Almoçaram tortas de caranguejo e peixe grelhado, ostras frescas e o famoso bolo do Mahoney. Nicholas Easter era o homem do momento. Quando terminaram a sobremesa, alguns minutos depois das duas e meia, acompanharam o juiz Harkin, num passo descansado, até ao tribunal. Quando o júri estava apostos para a sessão da tarde, já todos os presentes tinham ouvido a história do seu esplêndido almoço.

Neal O'Reilly, dono do restaurante em falta, encontrou-se mais tarde com o juiz Harkin e jurou sobre a Bíblia que alguém, uma mulher jovem, que afirmou ser do tribunal, deu instruções específicas para que o almoço fosse enviado exactamente à uma e meia.

A primeira testemunha do julgamento foi o falecido Jacob Wood, num depoimento gravado em vídeo, alguns meses antes da sua morte. Dois monitores de vinte polegadas foram instalados diante do júri e outros seis em volta da sala. A instalação foi efectuada enquanto o júri se banqueteava no Mary Mahoney.

Jacob Wood estava apoiado em travesseiros, no que parecia ser uma cama de hospital. Vestia uma t-shirt branca simples e estava coberto com um lençol da cintura para baixo. Magro e pálido, recebia oxigénio por um pequeno tubo que ia da parte posterior do pescoço esquelético até ao nariz. Quando lhe disseram para começar o depoimento olhou para a câmara e disse o seu nome e morada. Tinha uma voz áspera e doentia. Sofria também de efisema.

Embora estivesse rodeado de advogados, o rosto de Jacob era o único que aparecia. Ocasionalmente ouvia-se uma pequena discussão entre os advogados, em off, mas Jacob não se alterava com isso. Tinha cinquenta e um anos, parecia dez anos mais velho e estava claramente às portas da morte.

Orientado pelo seu advogado, Wendall Rohr, começou por contar a sua história desde o nascimento, o que lhe levou quase uma hora. Infância, primeiros estudos, amigos, moradas. A Marinha, o casamento, os empregos, filhos, hábitos, passatempos, amigos adultos, viagens, férias, netos, planos para a reforma. Ver um homem morto a falar era de certa forma fascinante, a princípio, mas os jurados cedo se aperceberam que a vida daquele homem fora tão monótona como a deles. Começou a digestão do almoço pesado e logo o júri começou a mexer--se impaciente. Cérebros e pálpebras ficaram preguiçosos. Até Her-man, que só podia ouvir a voz e imaginar o rosto, ficou entediado. Felizmente, o Meritíssimo também começou a sentir os efeitos do almoço e, depois de uma hora e vinte minutos, anunciou um breve intervalo.

Os quatro fumadores do júri precisavam de um intervalo e Lou Dell, cheia de boa vontade, conduziu-os a uma sala com a janela aberta, perto da casa de banho dos homens, um cubículo normalmente usado por delinquentes juvenis à espera de comparecer perante o juiz.

— Se não deixarem de fumar depois deste julgamento, alguma coisa está errada — disse ela, tentando fazer humor. Nem um sorriso dos quatro. Saiu e fechou a porta. Jerry Fernandez, trinta e oito anos, vendedor de automóveis, com uma grande dívida nos casinos e um péssimo casamento, foi o primeiro a acender o cigarro e depois, com o seu isqueiro, acendeu os cigarros das três mulheres. Todos deram grandes passas, soltando nuvens de fumo na direcção da janela.

— A Jacob Wood—brindou Jerry.                                      ,;

As três mulheres ficaram caladas. Estavam demasiado ocupadas: Fumavam.

Grimes, o líder, já havia feito uma breve palestra sobre a ilegalidade de discutir o caso. O juiz Harkin insistira tanto nesse ponto que ele seria obrigado a não tolerar qualquer discussão sobre o assunto. Mas Herman estava na outra sala e Jerry era curioso.

— Será que o velho Jacob alguma vez tentou largar o tabaco? — disse ele para a plateia.

Sylvia Taylor-Tatum, dando uma furiosa passa num cigarro muito fino, respondeu:

— Tenho a certeza de que em breve o saberemos. — Soltou uma corrente de fumo azulado pelo nariz longo e pontiagudo.

Jerry adorava alcunhas e para ele Sylvia já era «a Poodle», por causa do rosto estreito, do nariz fino e grande e do cabelo grisalho muito crespo dividido ao meio da cabeça e caindo em camadas espessas até aos ombros. Devia ter pelo menos um metro e oitenta, era muito angulosa e a testa constantemente franzida não convidava a qualquer aproximação. A Poodle queria que a deixassem sozinha.

— Imagino quem será o próximo — disse Jerry, tentando começar uma conversa.

— Acho que todos aqueles médicos — respondeu Poodle, olhando pelajanela.

As outras duas mulheres fumavam sem qualquer reacção e Jerry desistiu.

O nome da mulher era Marlee, pelo menos esse era o nome que tinha escolhido para aquele período da sua vida. Tinha trinta anos, cabelo castanho, curto, olhos castanhos e estatura média. Era magra e tinha o cuidado de se vestir discretamente para não chamar a atenção. Ficava muito bem comjeans justos e saias curtas. Na verdade, ficava bem com roupa ou sem ela, mas nesse momento não queria dar nas vistas. Era a terceira vez que entrava naquele tribunal: a primeira, há duas semanas, durante outro julgamento, e a segunda durante a selecção do júri, neste julgamento das tabaqueiras. Conhecia bem o tribunal e os arredores, sabia onde ficava o escritório do juiz e onde Harkin almoçava. Sabia os nomes dos advogados da acusação e da defesa, o que não era fácil, dado o seu exagerado número. Tinha lido os autos e sabia em que hotel Rankin Fitch se escondia enquanto durasse o julgamento.

Durante o intervalo, Marlee entrou pela porta da frente, passando pelo detector de metais, e chegou à fila de trás da sala do tribunal. Os espectadores espreguiçavam-se e os advogados conspiravam em grupos. Viu Fitch de pé num canto, conversando com duas pessoas que deviam ser consultores de júri. Ele não a viu. Havia cerca de cem pessoas na sala.

Passaram-se alguns minutos. Observava atentamente a porta perto da cadeira do juiz e, quando a estenógrafa entrou na sala com uma chávena de café, Marlee compreendeu que o juiz não ia demorar. Tirou um envelope da bolsa, esperou um segundo e deu alguns passos na direcção de um dos seguranças que guardavam a porta. Com um sorriso encantador, falou-lhe.

— Pode fazer-me um favor? Ele quase sorriu e viu o envelope.

— Posso tentar.

— Preciso de sair. Podia entregar isto ao cavalheiro que está naquele canto? Não quero interromper a conversa dele.

O segurança olhou na direcção apontada, esforçando os olhos.

— Qual deles?

— O homem grande do meio, com a barba, casaco escuro. Nesse momento o meirinho entrou e gritou.

— Ordem na sala!

Ela entregou o envelope e apontou para o nome escrito.

— Rankin Fitch. Obrigada. — Bateu de leve no braço dele e saiu da sala.

Fitch inclinou-se, disse qualquer coisa em voz baixa a um dos seus homens, e foi para o fundo da sala quando o júri entrou. Normalmente, depois da escolha do júri, Fitch passava pouco tempo na sala de audiências. Não precisava. Tinha outros meios para assistir ao julgamento.

O segurança deteve-o à porta e entregou-lhe o envelope. Fitch sobressaltou-se ao ver o seu nome escrito. Era um desconhecido, uma sombra sem nome que não se apresentava a ninguém e que vivia sob um nome falso. A sua empresa chamava-se Arlington West Associates, tão inofensiva e impessoal quanto podia ser. Ninguém sabia o seu nome — excepto, é claro, os seus empregados, os seus clientes e alguns dos advogados que contratava. Olhou para o segurança sem um agradecimento e foi para o átrio olhando incrédulo para o envelope. A letra era sem dúvida feminina. Abriu o envelope e tirou a única folha de papel branco que lá estava dentro. Bem no centro da folha estava escrita a seguinte mensagem: «Caro senhor Fitch. Amanhã, o jurado número dois, Easter, vai usar uma camisola cinzenta com uma risca vermelha, umas calças caqui engomadas e sapatos de pele castanhos com atacadores.»

José, o motorista, afastou-se do chafariz público e ficou ao lado do chefe como um cão de guarda obediente. Fitch releu o bilhete e olhou para José. Foi até aporta, abriu-a ligeiramente e pediu ao segurança para sair da sala.

— Qual é o problema? — perguntou o segurança, consciente de que o seu lugar era lá dentro, encostado à porta. O segurança era um homem que obedecia a ordens.

— Quem é que lhe deu isto? — perguntou Fitch, com a maior delicadeza de que era capaz. Os dois seguranças encarregados do detector de metais observavam curiosos.

— Uma mulher. Não sei o nome dela.

— Quando?

— Um pouco antes de o senhor sair. Há um minuto. Fitch olhou em volta.

— Ainda aqui está?

— Não — respondeu, depois de olhar rapidamente para os lados.

— Pode descrevê-la?

Ele era um polícia e os polícias são treinados para reparar nas coisas.

— Claro. Vinte e poucos anos. Um metro e setenta, talvez um e setenta e cinco. Cabelo castanho curto. Olhos castanhos. Magra. Bonita !

— Como é que estava vestida?

Não tinha notado mas não podia admiti-lo.

—Hum... um vestido de cor clara, beige, algodão, abotoado à frente.

Fitch pensou um segundo e perguntou.

— Que é que ela lhe disse?                                             

— Nada de especial. Pediu-me para lhe entregar o envelope e foi-se embora.

— Alguma característica especial no modo de falar?              

— Não. Agora tenho de voltar para a sala.                           

— Claro. Obrigado.

Fitch e José desceram pela escada e passaram pelos corredores do primeiro andar. Saíram e andaram em volta do prédio do tribunal, fumando, como se estivessem ali para respirar um pouco de ar fresco.

O depoimento de Jacob Wood gravado em vídeo quando estava vivo durou dois dias e meio. O juiz Harkin, depois de cortar as brigas entre os advogados, as interrupções das enfermeiras e as partes irrelevantes do testemunho, reduziu-o a duas horas e trinta e um minutos.

Duas horas e meia que pareceram dias. Até certo ponto, era interessante ouvir o pobre homem contar a sua história de fumador... mas os jurados cedo começaram a desejar que Harkin tivesse feito mais cortes. Jacob começou a fumar Redtops aos dezasseis anos porque todos os seus amigos fumavam Redtops. Rapidamente passou a fumar dois maços por dia. Deixou o Redtops quando saiu da Marinha porque casou e a mulher o convenceu a fumar um cigarro com filtro. Ela queria que ele parasse de fumar. Ele não podia e começou a fumar Bristol, porque os anúncios diziam que tinha baixo teor de nicotina. Com vinte e cinco anos fumava três maços por dia. Lembrava-se bem disso porque o seu primeiro filho nasceu quando Jacob tinha vinte e cinco anos e Celeste Wood disse que se ele não deixasse de fumar não viveria para ver os netos. Ela recusava-se a comprar cigarros quando fazia as compras. Por isso, o próprio Jacob comprava o tabaco. Fumava uma média de dois pacotes por semana, vinte maços, e geralmente comprava um ou dois maços entre pacotes.

Estava desesperado para largar o tabaco. Certa vez, depois de duas semanas sem fumar, levantou-se da cama no meio da noite para voltar ao tabaco. Muitas vezes reduziu a dose: passou para dois maços por dia, depois para um maço, e chegou a procurar a ajuda de um hipnotizador. Tentou a acupunctura e até umas pastilhas elásticas de nicotina. Mas simplesmente não conseguiu. Não conseguiu deixar depois de diagnosticado o enfisema, e não deixou quando soube que tinha cancro.

Foi a coisa mais idiota de toda a sua vida, e agora, com cinquenta e um anos, estava a morrer por causa dos cigarros. Por favor, implorou entre acessos de tosse, se fumam, parem já.

Jerry Fernandez e Poodle trocaram um olhar.

Melancolicamente, Jacob começou a falar do que lhe fazia mais falta. Falou da mulher, dos filhos, netos, amigos, da pesca em Ship Is-land, etc. Celeste, ao lado de Rohr, começou a chorar baixinho e logo Mi11ie Dupree, jurada número três, ao lado de Nicholas Easter, começou a enxugar as lágrimas com um lenço de papel.

Por fim, a primeira testemunha disse as suas últimas palavras e os monitores ficaram vazios. O Meritíssimo agradeceu ao júri a sua óptima prestação no primeiro dia de audiências e prometeu outra agradável sessão no dia seguinte. Depois, muito sério, fez uma severa advertência a respeito de não poderem discutir o caso com ninguém, nem com o cônjuge ou companheiro. Além disso, e mais importante, se alguém tentar estabelecer qualquer tipo de contacto com um jurado, este deverá imediatamente informar o tribunal. Insistiu neste ponto uns bons dez minutos. Depois, dispensou-os até às nove horas da manhã seguinte.

Haja algum tempo que Fitch andava a pensar revistar o apartamento de Easter e agora era mesmo necessário. Seria fácil. Mandou José e um agente chamado Doyle ao prédio em que Easter morava. Nesse momento, é claro, Easter estava no banco dos jurados, sofrendo com a desventura de Jacob Wood. Era vigiado por dois homens de Fitch, para a eventualidade de um intervalo inesperado.

José ficou no carro, vigiando a porta da frente e Doyle entrou. Subiu um lance de escadas e encontrou o apartamento 312, no fim do corredor pouco iluminado. Não se ouvia nenhum som dos apartamentos vizinhos. Estavam todos fora: todos trabalhavam.

Sacudiu a maçaneta frouxa, depois agarrou-a com firmeza e inseriu uma fita de plástico de oito polegadas entre a porta e o batente. A fechadura estalou, a maçaneta girou. Abriu cuidadosamente a porta: alguns centímetros apenas. Esperou, para o caso de haver um alarme ou bip. Nada. O prédio era velho, os apartamentos baratos e o facto de Easter não ter um sistema de alarme não o surpreendeu.

Num instante estava lá dentro. Usando uma máquina pequena com flash, fotografou rapidamente a cozinha, a sala, a casa de banho e o quarto. Tirou fotografias pormenorizadas das revistas dispostas sobre a mesa, dos livros empilhados no chão, dos CD em cima da aparelhagem e do software disperso em volta de um PC bastante sofisticado. Tendo cuidado para não tocar em nada, encontrou uma camisola cinzenta com uma risca vermelha pendurada no armário e fotografou-a. Abriu o frigorífico e fotografou o interior, depois os armários da cozinha.

O apartamento era pequeno, com móveis baratos, mas notava-se um esforço para o manter limpo. O ar condicionado estava estragado. Doyle fotografou o termostato. Ficou menos de dez minutos no apartamento, tempo suficiente para tirar dois rolos de fotografias e determinar que Easter, de facto, morava sozinho. Não havia o menor sinal de outra pessoa, muito menos de uma mulher.

Doyle trancou a porta com cuidado e saiu silenciosamente. Dez minutos depois estava no escritório de Fitch.

Nicholas saiu do tribunal a pé e, por coincidência, parou no balcão do O'Reilly's, no Vieux Marche, onde comprou 250 gramas de peru fumado e uma dose de salada de macarrão. Voltou para casa sem pressa, aproveitando o sol depois de um dia fechado no tribunal. Comprou uma garrafa de água mineral no armazém da esquina e bebeu-a enquanto caminhava. Parou para ver os meninos negros num jogo feroz de basquetebol, no estacionamento de uma igreja. Entrou num pequeno parque e, por momentos, quase despistou o homem que o seguia. Mas saiu do outro lado, ainda bebendo a água pela garrafa, certo agora de que estava a ser seguido. Um dos mercenários de Fitch, Pang, um pequeno asiático com boné de basebol, quase entrou em pânico no parque. Nicholas viu-o através de uma cerca alta de buxo.

À porta do apartamento, tirou um pequeno cartão magnético e digitou o código de quatro números. A pequena luz vermelha ficou verde e ele abriu a porta.

A câmara de vigilância estava escondida num ventilador de ar, mesmo por cima do frigorífico, e abrangia toda a cozinha, a sala e a porta da casa de banho. Nicholas foi direito ao computador e em poucos segundos verificou que ninguém tinha tentado ligá-lo e que uma «entrada Não Autorizada no Apartamento — havia ocorrido exactamente às dezasseis horas e cinquenta e dois minutos.

Nicholas respirou fundo, olhou em volta e resolveu revistar o apartamento. Não esperava encontrar nenhuma prova da invasão. A porta não parecia diferente, a maçaneta frouxa, fácil de ser aberta. A cozinha e a sala estavam exactamente como as tinha deixado. Os únicos objectos de valor — aparelhagem estereofónica e CD, a televisão, o computador — pareciam intocados. No quarto, não encontrou sinal nem de ladrão nem de crime. De volta ao computador, sustendo a respiração, esperou o show. Procurou entre uma série de arquivos, encontrou o programa e desligou o vídeo de vigilância. Carregou em dois botões para fazer o vídeo voltar para as quatro e cinquenta e dois da tarde. Voilà! A preto e branco, no monitor de dezasseis polegadas, a porta do apartamento abriu-se e a câmara virou-se directamente para ela. Abriu muito pouco, enquanto o visitante esperava o alarme. Nenhum alarme, a porta abriu-se mais e o homem entrou. Nicholas parou o vídeo e examinou o rosto no monitor. Nunca o tinha visto antes.

O vídeo continuou. O homem tirou a máquina do bolso e o flash começou a piscar. Andou por todo apartamento, desapareceu por um momento no quarto, onde continuou a tirar fotografias. Examinou o computador por um momento, mas não tocou nele. Nicholas sorriu. Era impossível entrar no seu computador. Aquele gorila não era sequer capaz de encontrar o interruptor.

O homem permaneceu no apartamento durante nove minutos e treze segundos e Nicholas não podia imaginar porque só tinha aparecido nesse dia. O mais provável era que Fitch soubesse que o apartamento estaria vazio enquanto estava no tribunal.

A visita não era assustadora, mas inesperada. Nicholas estudou o vídeo outra vez, riu baixinho, depois guardou-o para utilização futura.

 

Fitch estava na parte de trás da carrinha de vigilância às oito horas da manhã seguinte, quando Nicholas Easter saiu para o sol e olhou à volta do estacionamento. A carrinha tinha o logotipo de um canalizador na porta e um número de telefone fictício em letras verdes.

- Lá está ele. - Doyle anunciou e todos se agitaram.

Fitch pegou no telescópio, focou rapidamente através de uma das janelas pintadas de negro e disse. -Bolas!

- O que foi? - perguntou Pang, o técnico coreano que seguira Nicholas na véspera.

Fitch inclinou-se para a janela redonda, com a boca aberta, o lábio superior dobrado para baixo.

-Macacos me mordam. Camisola cinzenta, calça caqui, meiabranca, sapatos de couro castanhos.

- A mesma camisa da fotografia? - perguntou Doyle.

- A mesma.

Pang apertou um botão no rádio portátil e alertou outro homem que estava a dois quarteirões dali. Easter ia a pé, provavelmente caminhava na direcção do tribunal.

Easter comprou um copo grande de café e um jornal no armazém da esquina e sentou-se no parque durante vinte minutos a ler as notícias. Usava óculos escuros e estava atento a qualquer pessoa que passasse por perto.

Fitch foi directamente para o escritório, na mesma rua do tribunal, para conferenciar com Doyle, Pang e um ex-agente do FBI chamado Swanson.

- Temos de encontrar a rapariga - repetiu Fitch várias vezes.

Planearam deixar um homem na última fila de cadeiras do tribunal, outro no lado de fora, perto da escada, outro perto da máquina de refrigerantes no primeiro andar e outro ainda na rua, com um rádio. A cada intervalo, trocariam de posto. A descrição imprecisa da mulher foi passada  adiante. Fitch resolveu sentar-se no lugar que ocupara no dia anterior e fazer as mesmas coisas.

Swanson, especialista em vigilância, não estava muito seguro da eficácia do plano.

- Não vai funcionar - disse Swanson.

- porquê? - interrogou Fitch.

- Porque ela é que o vai descobrir a si. Ela quer dizer-lhe alguma coisa, portanto acabará por fazer o próximo movimento.

- Talvez. Mas quero saber quem ela é.

- Relaxe. Ela encontra-o.

Fitch discutiu com ele quase até às nove horas, depois dirigiu-se apressadamente para o tribunal. Doyle falou com o segurança e convenceu-o a indicar-lhe a rapariga se ela aparecesse outra vez.

Nicholas tinha escolhido Rikki Coleman para conversar enquanto i(miavam café e comiam croissants, na sexta-feira de manhã. Rikki tinha trinta anos e era engraçadinha, casada, dois filhos e trabalhava como arquivista num hospital particular em Gulfport. Era fanática por ..u ide e evitava cafeína, álcool e, claro, nicotina. O cabelo louro curto, com corte masculino, e os belos olhos azuis pareciam ainda mais boni-tos atrás dos óculos. Estava sentada num canto, com um sumo de laranja à sua frente e lia o USA Today quando Nicholas se aproximou e lhe dirigiu uma frase simpática.

- Bom-dia. Acho que ontem não nos apresentámos oficialmente. Ela sorriu, uma coisa que fazia com facilidade, e estendeu a mão.

- Rikki Coleman.

- Nicholas Easter. Muito prazer.

- Obrigada pelo almoço de ontem - disse ela, com uma risada curta.

-Não tem de quê. Posso? - perguntou ele, indicando com a cabeça a cadeira ao lado dela.

- Claro. - Pôs o jornal no colo.

Os doze jurados estavam acomodados quase todos em pequenos ;• inpos numa descontraída conversa matinal. Herman Grimes estava so/,inho na sua querida cadeira na cabeceira da mesa, segurando o café com as duas mãos e sem dúvida atento para ouvir qualquer palavra indiscreta sobre o julgamento. Lonnie Shaver também estava sozinho sentado à mesa, examinando impressos de computador do seu supermercado. Jerry Fernandez estava com a Poodle no corredor os dois a fumar.

— Então, o que acha de ser jurada?— perguntou Nicholas.

— Acho que é fácil.

— Alguém tentou suborná-la na noite passada?    —Não. E a si?

— Não. É uma pena, porque o juiz Harkin vai ficar terrivelmente desapontado se ninguém nos tentar subornar.

— Porque será que ele insiste tanto na ilegalidade desse contacto? Nicholas inclinou-se um pouco para a frente, mas não demais Ela

fez o mesmo, olhando de soslaio para o líder, como se pudesse vê-los Com o prazer normal da proximidade e privacidade de duas pessoas atraentes, continuaram a conversa. Apenas umflirt inocente sem consequências.                                                                   

- Já aconteceu antes. Várias vezes — disse ele, quase num murmúrio.

Ao lado dos bules de café, as senhoras Gladys Card e Stella Hulic riram alto de alguma coisa que viram no jornal.

— O que é que já aconteceu antes? — perguntou Rikki.

— Contaminação do júri em casos contra fabricantes de cigarros Na verdade, acontece quase sempre, e é em geral um problema provocado pela defesa.

— Não compreendo — disse ela, acreditando e querendo mais informação do rapaz com dois anos de faculdade de Direito

—Houve vários casos em todo o país e a indústria do tabaco ainda não foi atingida por um veredicto desfavorável. Gastam milhões com a defesa porque não podem perder. Um único grande veredicto a favor da acusação e os diques abrem-se. — Parou de falar, olhou em volta e bebeu um gole no café. — É por isso que usam todo o tipo de truques

— Por exemplo?

— Por exemplo, oferecer dinheiro a membros das famílias dos jurados. Espalhando boatos na comunidade do falecido, que tinha quatro amantes, que batia na mulher, que roubava os amigos, que ia à igreja só aos funerais e que tinha um filho homossexual.

Ela franziu a testa incrédula e ele continuou:

— É verdade e é um facto conhecido em todos os círculos legais. O juiz Harkin sabe disso, tenho a certeza, por isso é que insiste tanto no assunto.

— Não podem ser desmascarados?

— Ainda não. São muito espertos, muito astutos, muito desonestos e não deixam nenhuma pista. Além disso, têm milhões. — Fez uma pausa e Rikki olhou para ele atentamente. — Espiaram-nos antes da selecção do júri.

— Não!

— É claro que sim. É o procedimento habitual nos grandes julgamentos. A lei proíbe-os de ter contacto directo com qualquer possível jurado antes da selecção, por isso fazem tudo o que é possível sem precisar desse contacto. Provavelmente fotografaram a sua casa, o seu carro, os seus filhos, o seu marido, o seu posto de trabalho. Podem ter falado com os seus colegas, escutado as conversas no escritório ou no restaurante onde costuma almoçar. Nunca se sabe.

Ela pôs o copo de sumo de laranja no parapeito da janela.

— Isso parece ilegal, ou contra a ética, ou coisa parecida.

— Coisa parecida. Mas eles conseguem, porque você não tem a mínima ideia do que estão a fazer.

— Mas você sabia?

— Sabia. Vi um fotógrafo num carro, em frente da minha casa, e mandaram uma mulher à loja onde trabalho para provocar uma discussão sobre a nossa campanha contra o fumo. Eu sabia exactamente o que estavam a fazer.

— Mas você disse que o contacto directo é proibido.

— Sim, mas não disse que eles fazem jogo limpo. É justamente o contrário: passam por cima de qualquer lei para ganhar o caso.

— Porque é que não disse isso ao juiz?

— Porque era uma coisa inofensiva e porque sabia o que eles estavam a fazer. Agora no júri estou atento a cada movimento deles.

Tendo despertado a curiosidade dela, Nicholas achou melhor deixar o resto para mais tarde. Consultou o relógio e levantou-se rapidamente.

— Vou até à casa de banho antes de começar a sessão.

Lou Dell entrou intempestivamente na sala, fazendo a porta estremecer nas dobradiças.

— Está na hora — disse ela, com voz firme, como uma conselheira de acampamento com menos autoridade do que procurava demonstrar.

O número de espectadores estava reduzido a metade. Nicholas examinou os rostos, enquanto os jurados se sentavam e ajeitavam as velhas almofadas. Fitch estava no mesmo lugar, agora com a cabeça parcialmente escondida por um jornal, como se não tivesse nenhum interesse no júri, como se pouco se importasse com o que Easter vestia. Mais tarde iria examinar Easter com atenção. Não havia nenhum repórter na sala, mas um ou outro apareceu durante o dia. Os homens de Wall Street pareciam extremamente entediados já àquela hora. Eram todos jovens, recém-formados, mandados para o Sul porque eram principiantes e os seus chefes tinham coisas mais importantes para fazer. A senhora Herman Grimes estava no mesmo lugar e Nicholas interrogou-se sobre se ela iria comparecer todos os dias, ouvindo tudo e sempre pronta para ajudar o marido na sua tarefa.

Nicholas esperava ver o invasor do seu apartamento, talvez não nesse dia, mas noutro momento qualquer. Naquela manhã não estava na sala.

— Bom-dia — disse o juiz Harkin calorosamente para o júri, quando todos estavam nos seus lugares. Sorrisos por toda a parte, do juiz, dos funcionários — até dos advogados, que interromperam as suas

efabulações em voz baixa para brindar o júri com sorrisos falsos.__

Espero que estejam todos bem. —Parou, esperando os gestos afirmativos um tanto constrangidos dos quinze jurados. — Óptimo. A encarregada informou-me que estão todos preparados para um dia cheio.__

Era difícil imaginar Lou Dell como encarregada de alguma coisa.

O Meritíssimo ergueu então uma folha de papel com a lista de questões que os jurados iriam aprender a odiar. Parou de sorrir e disse:

— Agora, senhoras e senhores do júri, vou fazer uma série de perguntas, todas muito importantes, e quero que respondam se acharem necessário. Quero lembrar também que a omissão da resposta, quando for o caso, pode ser considerada como um acto de desacato punível com prisão.

Esperou que a advertência severa flutuasse na sala. Os jurados sentiram-se culpados só de ouvi-la. Convencido de que atingira o seu objectivo, começou as perguntas. Alguém tentou falar-vos sobre este julgamento? Receberam algum telefonema fora do habitual desde o intervalo de ontem? Algum estranho os vigiou a vocês ou a algum membro da vossa família? Ouviram rumores ou boatos sobre qualquer membro deste julgamento? Sobre um dos advogados? Sobre as testemunhas? Desde o intervalo de ontem, alguém entrou em contacto com os vossos amigos ou parentes para falar sobre o julgamento? Viram ou receberam material escrito relacionado de algum modo com este julgamento?

Entre uma pergunta e outra, o juiz fazia uma pausa e olhava para cadajurado, depois, aparentemente desapontado, voltava à lista.

O que pareceu estranho aos jurados foi a expectativa que parecia envolver as perguntas. Os advogados ouviam todas as palavras, certos de que iam ouvir respostas abomináveis. Os funcionários do tribunal, geralmente ocupados com papéis ou provas a exibir, ou fazendo uma porção de coisas que nada tinham a ver com o julgamento, estavam completamente imóveis e atentos, à espera da confissão de algum jurado. A expressão severa do juiz e as sobrancelhas erguidas depois de cada pergunta desafiavam a integridade de cadajurado, como se considerasse cada silêncio como uma prova de má-fé. Quando terminou, disse suavemente:

— Muito obrigado. —E toda a sala respirou. Os jurados sentiram-se agredidos. O Meritíssimo bebeu alguns goles de café de uma chávena

alta e sorriu para Wendall Rohr.

— Chame a sua próxima testemunha, doutor Rohr.

Rohr levantou-se, com uma mancha castanha no centro da camisa amarrotada, o laçarote torto como sempre, os sapatos largos e cada dia mais sujos. Inclinou a cabeça e sorriu calorosamente para os jurados. Quase instintivamente, todos lhe sorriram.

Rohr tinha um consultor de júri encarregado de anotar tudo o que os jurados vestiam. Se um dos homens estivesse com botas à cowboy, Rohr tinha um par de reserva. Na verdade, dois pares — com ponta fina ou redonda. Estava preparado para usar ténis no momento oportuno.

Fez isso uma vez, quando apareceram ténis no banco dos jurados. O juiz, não Harkin, chamou-lhe a atenção em particular, no seu escritório. Rohr explicou que tinha um problema nos pés e mostrou uma carta do especialista que o tratava. Podia usar calças engomadas, gravatas de malha, casacos desportivos de poliester, cintos de cowboy, meias brancas, mocassins baratos (engraxados ou muito usados). O seu guarda-roupa ecléctico era propositado, para um contacto mais íntimo com aqueles que tinham de sentar-se ali e ouvi-lo falar seis horas por dia.

— Gostaríamos de chamar o doutor Milton Fricke — anunciou Rohr. O doutor Fricke fez o juramento, sentou-se e o meirinho ajustou o

microfone. Ficaram logo todos a saber que o seu currículo podia ser medido ao quilo — um grande número de diplomas de várias escolas, centenas de artigos publicados, dezassete livros, experiência de anos como professor universitário, décadas de pesquisa sobre os efeitos do fumo. Era um homem pequeno com rosto perfeitamente redondo e óculos de aros negros. Parecia um génio. Rohr levou quase uma hora a apresentar aquela espantosa colecção de credenciais. Quando finalmente todos estavam convencidos de que Fricke conhecia a fundo o assunto, Durr Cable não quis fazer nenhuma pergunta.

— Estipulámos que o doutor Fricke é especialista na sua área — disse Cable. Sem dúvida uma classificação bastante atenuada do verdadeiro valor da testemunha.

Com a passagem do tempo, a sua área de actividade ficou mais limitada e agora o doutor Fricke passava dez horas por dia a estudar os efeitos do tabaco no corpo humano. Era director do Instituto de Pesquisas Contra o Tabaco, em Rochester, Nova Iorque. O júri ficou a saber que fora contratado por Rohr, muito antes da morte de Jacob Wood, e que esteve presente na autópsia realizada ao senhor Wood, horas depois da sua morte. E que tinha tirado algumas fotografias da autópsia.

Rohr acentuou a existência das fotografias, sem deixar dúvida alguma de que os jurados as veriam mais cedo ou mais tarde. Mas Rohr ainda não estava pronto. Precisava de passar mais tempo com aquele extraordinário especialista na química e na farmacologia dos efeitos do fumo. Fricke demonstrou que era um óptimo professor. Discorreu cautelosamente sobre ponderosos estudos médicos e científicos, evitando as palavras difíceis e dando aos jurados o que podiam entender. Sempre calmo e completamente confiante.

Quando o juiz anunciou o intervalo para almoço, Rohr informou o tribunal de que o doutor Fricke ocuparia o banco das testemunhas durante o resto do dia,

O almoço esperava-os na sala dos jurados, servido pelo próprio senhor O'Reilly, que pediu desculpas pelo que tinha acontecido na véspera.                     ;

Pratos de papel e garfos de plástico? — disse Nicholas, quando todos, menos ele, estavam sentados.

O senhor O'Reilly olhou para Lou Dell que perguntou:

— Qual é o problema?

— O problema é que deixámos bem claro que queríamos comer em pratos de louça com garfos a sério. Não foi isto que conversámos? — Nicholas estava a levantar a voz e alguns jurados desviaram o olhar. Tudo o que queriam era comer.

— Qual é o problema destes pratos? — perguntou Lou Dell, nervosa, com a franja a tremer.

— Absorvem a gordura, certo? Ficam esponjosos e deixam manchas na mesa, compreende? Por isso pedi especificamente pratos de louça. E garfos. — Pegou num garfo de plástico, partiu-o e deitou-o no lixo. — E o que me deixa realmente furioso, Lou Dell, é o facto de que neste momento o juiz, todos os advogados e os seus clientes, as testemunhas, os funcionários do tribunal, o público espectador e todas as

pessoas relacionadas com o julgamento estão a almoçar num bom restaurante, com pratos e copos verdadeiros e garfos que não se partem. E estão a escolher comida boa de entre um menu variado. É isso que me deixa danado. E nós, os jurados, as pessoas mais importantes em todo o maldito julgamento, estamos aqui presos como crianças no jardim  de infância, à espera dos nossos biscoitos e das nossas limonadas.

— A comida é muito boa — disse o senhor O'Reilly, defendendo a sua parte.

— Eu acho que está a exagerar — respondeu a senhora Gladys, uma senhora pequena e empertigada com cabelo branco e voz suave.

— Pois então, coma a sua sanduíche gordurosa e não se meta — disse Nicholas asperamente, com muita agressividade.

— Será que me vai mostrar o traseiro todos os dias à hora do almoço? — perguntou Frank Herrera, um coronel reformado, de uma terra qualquer no Norte. Herrera era baixo e gordo, com mãos pequenas e, até então, com opinião formada sobre quase tudo. Foi o único que ficou realmente decepcionado por não ter sido escolhido para líder do júri.

Jerry Fernandez já o tinha apelidado de Napoleão. Nap, para abreviar. Coronel Retardado era uma alternativa.

- Ontem não ouvi ninguém reclamar — respondeu Nicholas.

- Vamos comer. Estou esfomeado — respondeu Herrera, desembrulhando uma sanduíche. Alguns outros fizeram o mesmo.

O aroma da galinha assada e das batatas fritas encheu o ar. Quando o senhor O'Reilly acabou de desembrulhar um prato com salada de macarrão, disse:

- Não há problema: na segunda-feira, terei muito prazer em trazer

pratos e garfos.

Nicholas disse «obrigado» em voz baixa e sentou-se para almoçar.

O acordo foi fácil, os pormenores foram resolvidos entre dois velhos amigos, durante um almoço de três horas, no Clube 21, na rua cinquenta e dois. Luther Vandemeer, director executivo da Trellco e seu antigo protegido, Larry Zell, agora director executivo da Listing Foods, tinham discutido as bases por telefone, mas precisavam de se encontrar enquanto comiam e bebiam onde ninguém pudesse ouvi-los. Vandemeer descreveu os pontos básicos da última grande e séria ameaça em Biloxi e não escondeu a sua preocupação. A Trellco não era uma das acusadas, mas toda a indústria estava sob fogo cerrado e as Quatro Grandes continuavam firmes. Zell sabia disso. Trabalhara dezassete anos na Trellco e há muito tempo que tinha aprendido a odiar advogados.

Uma pequena cadeia de supermercados, a Hadley Brothers, em Pensacola, tinha algumas lojas ao longo da costa do Mississipi. Uma delas ficava em Biloxi e o seu gerente era um jovem negro inteligente chamado Lonnie Shaver. Acontece que Lonnie Shaver fazia parte do júri em Biloxi. Vandemeer queria que a SuperHouse, uma cadeia de supermercados muito maior, na Georgia e nas Carolinas, comprasse a Hadley Brothers. A SuperHouse era uma das vinte e poucas divisões da Listing Foods. Seria uma transacção pequena — a equipa de Vandemeer já havia feito os cálculos — que não custaria à Listing mais de seis milhões. A Hadley Brothers era uma empresa particular, de modo que o negócio não chamaria muito a atenção. No ano anterior a Listing Foods tivera um lucro bruto de dois mil milhões, portanto seis milhões não seriam problema. A empresa tinha oito milhões em dinheiro e poucas dívidas. E para adoçar a transacção, Vandemeer prometeu que a Trellco compraria discretamente a Hadley Brothers dentro de dois anos se Zell quisesse desfazer-se dela.

Nada podia falhar. A Listing e a Trellco eram completamente independentes uma da outra. A Listing já era dona de outras cadeias de supermercados. A Trellco não estava envolvida directamente no litígio em Biloxi. Era um simples aperto de mão para selar um acordo entre dois amigos.

Mais tarde, é claro, teriam de fazer algumas modificações nos funcionários da Hadley Brothers, os ajustes normais inerentes a qualquer compra ou fusão. Vandemeer daria a Zell algumas instruções para pressionar Lonnie Shaver.

E tudo tinha de ser feito rapidamente. O julgamento tinha o fim previsto para dali a quatro semanas. A primeira semana terminaria dentro de poucas horas.

Depois de um breve repouso no seu escritório no centro de Manhatan, Luther Vandemeer telefonou para Biloxi e pediu a Rankin Fitch para telefonar a Hamptons no fim de semana.

O escritório de Fitch ficava nas traseiras de uma loja de preços baixos, fechada há alguns anos. O aluguer era barato, o estacionamento fácil, ninguém notava o local e ficava a pequena distância do tribunal. Fitch tinha cinco salas grandes, todas construídas apressadamente com divisórias de madeira prensada, sem pintura. A serradura ainda estava no chão. Os móveis baratos, alugados, consistiam especialmente em mesas dobráveis e cadeiras de plástico. A iluminação estava a cargo de um grande número de lâmpadas fluorescentes. As portas externas reforçadas. Dois homens armados guardavam ininterruptamente o conjunto de salas.

Se tinham economizado na adaptação das salas, nada foi poupado no equipamento. Havia computadores e monitores por toda a parte. Fios para faxes, copiadoras e, sem utilidade aparente, estendiam-se telefones pelo chão. Fitch tinha a tecnologia mais moderna e as pessoas certas para manipular os aparelhos.

As paredes de uma das salas estavam cobertas com grandes fotografias dos quinze jurados. Havia impressos de computador presos com punaises numa outra parede e um funcionário acrescentava dados num bloco, debaixo do nome de Gladys Card.

A sala das traseiras era a menor e o seu acesso estritamente proibido aos funcionários comuns, embora todos soubessem o que acontecia lá dentro. A porta trancava automaticamente do lado de dentro e Fitch tinha a única chave que existia. Era uma sala de projecção, sem janelas, um ecrã gigante na parede e meia dúzia de poltronas confortáveis. Na tarde de sexta-feira, Fitch e dois especialistas em júris sentaram-seno escuro, olhando para o ecrã. Os consultores preferiam não perder tempo em conversas inúteis com Fitch e este não estava disposto a fazer sala com eles. Silêncio.

A câmara era uma Yumara XLT-2, uma pequena unidade que se encaixava quase em qualquer sítio. A lente tinha meia polegada de diâmetro e amáquina toda pesava menos de meio quilo. Meticulosamente instalada por um dos homens de Fitch, estava agora numa velha pasta de couro, no chão da sala do tribunal, debaixo da mesa da defesa, vigiada discretamente por Oliver McAdoo, um advogado de Washington e o único estrangeiro escolhido por Fitch para se sentar ao lado de Cable. A tarefa de McAdoo consistia em pensar na estratégia, sorrir para os jurados e fornecer documentos a Cable. A sua verdadeira missão, conhecida somente por Fitch e poucos outros, era entrar no tribunal todos os dias sobrecarregado com os instrumentos da luta, incluindo duas grandes malas castanhas em tudo idênticas, uma das quais continha a máquina, e sentar-se mais ou menos sempre no mesmo lugar, ao lado da mesa da defesa. Era o primeiro advogado da defesa a entrar na sala todas as manhãs. Instalava a câmara na pasta de couro, de pé, virada para o banco dos jurados e ligava rapidamente para Fitch, de um telemóvel, para ajustar o foco.

Durante o julgamento, havia sempre cerca de vinte malas espalhadas pela sala, a maior parte em cima ou debaixo da mesa dos advogados, mais algumas reunidas perto da cadeira da estenógrafa, outras debaixo das cadeiras onde trabalhavam os advogados de segunda linha, outras ainda encostadas à balaustrada de madeira, aparentemente abandonadas. Embora de tamanhos e cores diversas, todas se pareciam, incluindo a de McAdoo que, ocasionalmente, abria uma das suas para retirar papéis. Mas a outra, a que continha a câmara, era fechada tão hermeticamente que só com um explosivo poderia ser aberta. A estratégia de Fitch era simples — se, por algum motivo, a câmara atraísse a atenção de alguém, na confusão que se seguiria, McAdoo simplesmente trocava as malas e esperava que nada mais acontecesse.

A possibilidade de ser descoberta era mui to remota. A câmara não fazia ruído algum e os sinais que enviava não eram detectados por ouvidos humanos. A pasta ficava perto de várias outras e ocasionalmente era empurrada ou até chutada, mas era fácil fazer o reajustamento. McAdoo simplesmente procurava um lugar tranquilo e telefonava para Fitch. Tinham aperfeiçoado o sistema durante o julgamento de ('immino no ano anterior, em Allentown.

A tecnologia era fantástica. A pequena lente capturava a largura e a profundidade do banco dos jurados e enviava os quinze rostos, a cores, para o outro lado da rua, para a pequena sala de projecção de Fitch i onde dois consultores de júri passavam o dia todo a estudar cada pequeno gesto, cada bocejo.

Conforme o que acontecia no banco dos jurados, Fitch tinha uma conversa com Durr Cable, informando-o de que a sua equipa havia verificado isto ou aquilo. Nem Cable nem os advogados da defesa jamais saberiam da existência da câmara.

A câmara gravou reacções dramáticas na tarde de sexta-feira. In-Iclizmente estava com o foco fixo no banco dos jurados. Os japoneses ainda estavam para fabricar uma câmara capaz de abranger, de dentro de uma mala fechada, vários pontos de interesse. Assim, a câmara não podia ver as fotos ampliadas dos pulmões murchos e escuros de Jacob Wood, mas os jurados sem dúvida que as viam. Enquanto Rohr e o i doutor Fricke continuavam com o seu roteiro, os jurados, sem excepção,  olhavam com horror para a devastação impressionante infligida durante trinta e cinco anos.

Rohr sabia escolher o momento certo. As duas fotos estavam montadas num grande tripé diante dos jurados e quando o doutor Fricke terminou o seu testemunho, às cinco e quinze, estava na hora do intervalo para o fim da semana. A última imagem que os jurados levariam com eles, a imagem na qual iriam pensar nos próximos dois dias e da qual não poderiam livrar-se, era a dos pulmões calcinados, retirados do corpo e colocados sobre um lençol branco.

 

Durante o fim de semana Easter fez um caminho fácil de seguir. Saiu do tribunal na sexta-feira e, uma vez mais, foi a pé até a O'Reilly's Deli, onde conversou algum tempo com o senhor O'Reilly. Os dois sorriam. Easter comprou alimentos e bebidas. Foi direito ao apartamento e não saiu mais. Às oito horas da manhã de sábado foi de carro até à loja e trabalhou num turno de doze horas vendendo computadores e acessórios. Comeu tacos e feijões fritos no Food Garden com Kevin, um adolescente que trabalhava com ele.

Não comunicou de modo visível com nenhuma mulher que tivesse alguma semelhança com a rapariga que procuravam. Voltou para casa depois do trabalho e não saiu mais.

O domingo trouxe uma agradável surpresa. Às oito horas da manhã saiu de casa e foi de carro até à marina de barcos pequenos em Biloxi, onde se encontrou com Jerry Fernandez. A última vez que os viram estavam a sair do pontão num barco de pesca de trinta pés com dois outros pescadores, supostamente amigos de Jerry. Voltaram oito horas e meia depois, muito corados, com uma caixa cheia de peixes e o barco cheio de latas de cerveja vazias.

A pesca era o primeiro passatempo de Nicholas Easter que descobriam. E Jerry o primeiro amigo que aparecia.

Nenhum sinal da rapariga. Não que Fitch tivesse esperança de a encontrar. A sua primeira pequena pista era sem dúvida a preparação para a segunda e a terceira. A espera era um tormento.

Entretanto, Swanson, o ex-agente do FBI, estava convencido de que ela ia aparecer durante aquela semana. O seu plano, fosse qual fosse, indicava a intenção de outros contactos.

Ela esperou somente até segunda-feira de manhã, trinta minutos antes do reinicio do julgamento. Os advogados já estavam na sala, confabulando em pequenos grupos. O juiz Harkin estava no seu escritório tratando de um assunto urgente relacionado com um caso criminal. Os jurados estavam a chegar à sala do júri. Fitch no escritório, no outro lado da rua, no seu bunker de comando. Um dos seus assistentes, um jovem chamado Konrad, génio em telefones, fios, cassetes e instrumentos de vigilância de alta tecnologia, entrou no gabinete e disse:

— Há um telefonema que acho que vai querer atender.

Fitch, como sempre, olhou para Konrad e analisou a situação. Todos os telefonemas, até do seu secretário de confiança em Washington, eram atendidos na mesa da frente e passados para ele por meio do sistema de intercomunicador instalado nos telefones. Funcionava sempre assim.

— Porquê? — perguntou, desconfiado.

— Ela diz que tem outra mensagem para si.

— O nome dela?

—Não quis dizer. Parece muito tímida, mas insiste que é importante.

Outra longa pausa e Fitch olhou para a luz que piscava num dos telefones.

— Alguma ideia de como conseguiu o número do telefone?

— Não.

— Está a tentar localizar a chamada?

— Estou. Dê-nos um minuto. Faça com que ela fique na linha. Fitch carregou no botão e levantou o auscultador.

—Sim... — disse, o mais delicadamente possível.

— É o senhor Fitch? — perguntou ela com cortesia.

— Sim. Quem fala? —-Marlee.

Um nome! Ele ficou em silêncio um segundo. Todas as chamadas eram gravadas automaticamente, para que pudesse analisá-las depois.

— Bom-dia, Marlee. Também tem apelido?

— Tenho. O jurado número doze, Fernandez, vai entrar na sala do tribunal dentro de uns vinte minutos com um exemplar do Sports Illus-trated. É o número de 12 de Outubro com Dan Marino na capa.

— Sim... — respondeu ele, como se estivesse a tomar notas. — Mais alguma coisa?

— Por enquanto, mais nada...

—Vai telefonar-me outra vez?

— Não sei. — Como conseguiu este número?

— Foi fácil. Não se esqueça: número doze, Fernandez... — Um clique e desapareceu.

Fitch carregou noutro botão, depois um código de dois dígitos. Toda a conversa foi repetida num altifalante por cima dos telefones. Konrad entrou apressado com um impresso.

— De um telefone público em Gulfport, uma loja de conveniência. -— Que surpresa — respondeu Fitch, pegando no casaco e compondo a gravata. — Acho que vou a correr para o tribunal.

Nicholas esperou uma pausa nas conversas, quando quase todos os jurados estavam sentados à mesa, ou perto dela, e disse em voz alta: —Muito bem, alguém foi subornado ou seguido este fim de semana? Alguns sorrisos e gargalhadas mas nenhuma confissão.

— O meu voto não está à venda, mas pode ser alugado — disse Jerry Fernandez, repetindo a piada de Nicholas durante a pesca, na véspera. Todos acharam graça, menos Herman Grimes.

— Porque é que ele está sempre a insistir neste assunto? — perguntou Milhe Dupree, evidentemente satisfeita por alguém ter quebrado o gelo e ansiosa por uma intriga. Os outros aproximaram-se, inclinados para a frente, para ouvir a opinião do ex-estudante de Direito. Rikki Coleman ficou no seu canto com o jornal. Já conhecia a história.

— Já foram julgados antes casos como este... — explicou Nicholas, relutante — e houve certas interferências com os jurados.

— Acho que não devemos falar nisso — disse Herman.

— Porquê? Não faz mal nenhum. Não estamos a discutir provas nem testemunhos. — Nicholas foi autoritário. Herman não estava muito seguro.

— O juiz disse para não falar sobre o julgamento. — Protestou, esperando que alguém ficasse do seu lado. Não apareceu nenhum voluntário. Nicholas tinha a palavra e usou-a.

— Descontraia-se, Herman. Isto não é sobre provas nem acerca de coisas sobre as quais temos de deliberar. Isto é sobre... — hesitou um segundo, para produzir mais efeito, e continuou: — Isto é sobre interferir com o júri.                                          ,

Lonnie Shaver baixou o impresso de computador com o inventário do supermercado e aproximou-se da mesa. Rikki agora estava atenta. Jerry Fernandez tinha ouvido tudo no barco, no dia anterior, mas o assunto era irresistível.

— Houve um julgamento sobre tabaco, parecido com este em Quitman County, Mississipi, há uns sete anos, lá em cima, no Delta. Alguns de vocês devem estar lembrados. Era outra empresa, mas os actores são os mesmos. Dos dois lados. E houve um comportamento abusivo, tanto antes da escolha do júri, como no início do julgamento. () juiz Harkin, é claro, já ouviu todas as histórias e está a vigiar-nos de perto. Muita gente está a vigiar-nos.

Millie olhou para os outros jurados um segundo.

— Quem? — perguntou.

— As duas partes. — Nicholas resolveu fazer jogo limpo, porque os dois lados tinham sido culpados de conduta irregular nos outros julgamentos. — Os dois lados contratam esses homens a que chamam consultores de júri e vêm de todos os cantos do país para ajudar a escolher

O júri perfeito. É claro que o júri perfeito para eles não é o que julga

com justiça, mas o que dá o veredicto que eles desejam. Eles estudam-nos antes da selecção. Eles...

— Como é que fazem isso? — interrompeu a senhora Gladys Card.

— Bem, fotografam as nossas casas e escritórios, os nossos carros, os vizinhos, os filhos e as suas bicicletas, até a nós próprios. Isso é i legal e contra a ética, mas embora chegando muito perto, não ultrapassam os limites da legalidade. Verificam registos públicos, como arquivos do tribunal e cadastro de contribuinte, procurando saber tudo a i nosso respeito. Chegam até a falar com os nossos amigos e colegas de trabalho. Hoje em dia, isso acontece em todos os grandes julgamentos.

Os onze ouviam atentos, aproximando-se e tentando lembrar-se de algum estranho escondido nos cantos, com uma máquina fotográfica. N icholas bebeu um gole de café e continuou:

— Depois de o júri ter sido escolhido, mudam de táctica. O número é reduzido de centenas para quinze e a vigilância é muito mais fácil, durante o julgamento, cada parte interessada tem sempre um grupo de consultores na sala do tribunal, observando os jurados e tentando interpretar as suas reacções. Geralmente sentam-se nas primeiras filas, mas movimentam-se bastante.

— Você sabe quem são? — perguntou Millie, incrédula.

— Não sei os nomes, mas é fácil identificá-los. Estão todos bem vestidos e não tiram os olhos de nós.

— Pensei que fossem repórteres — disse o coronel reformado Frank Herrera, incapaz de ignorar a conversa.

—Eu não notei—disse Herman Grimes e todos sorriram, até Poodle.

— Observem hoje—respondeu Nicholas. — Geralmente no princípio ficam atrás do grupo de advogados do lado para que trabalham. Na verdade, tenho uma ideia. Há uma mulher que é consultora da defesa, tenho a certeza. Mais ou menos quarenta anos, forte, com cabelo curto. Até agora, todas as manhãs se senta na primeira fila atrás de Durwood Cable. Quando entrarmos hoje, vamos todos olhar para ela. Vamos todos olhar fixamente até ela ficar nervosa.

— Até eu? — perguntou Herman.

— Sim, Herman, até você. Vire apenas a cabeça no sentido das dez horas e olhe para ela como todos nós.

— Porquê essa brincadeira? — perguntou Sylvia «Poodle» Taylor-Tatum.

— E porque não? Temos mais alguma coisa para fazer durante oito horas?

— Gosto da ideia — disse Jerry Fernandez. — Talvez isso os faça parar de olhar para nós.

— Vamos olhar por quanto tempo? — perguntou Millie.

— Enquanto o juiz estiver a ler as advertências. Uns dez minutos. Concordaram com Nicholas.

Lou Dell apareceu às nove em ponto e saíram da sala do júri. Nicholas levava duas revistas — uma delas era o número de 12 de Outubro da Sports Illustrated. Caminhou ao lado de Jerry Fernandez até chegarem à porta do tribunal e, quando começaram a entrar em fila, voltou-se casualmente para o novo amigo e disse:

— Quer alguma coisa para ler? A revista apertada contra o seu peito e Jerry aceitou-a e disse:

—Claro, obrigado.

 Entraram na sala do tribunal.

Fitch sabia que Fernandez, o número doze, estaria com a revista, mas mesmo assim foi um golpe. Viu-o caminhar para a fila de trás e sentar-se. Fitch tinha visto a capa numa banca a quatro quarteirões do

tribunal e sabia que era Marino, o número treze da equipa, com o braço curvado, pronto para lançar.

A surpresa deu lugar à animação de uma boa ideia. Marlee trabalhava do lado de fora enquanto um dos jurados trabalhava do lado de dentro. Talvez dois, três ou quatro jurados estivesse feitos com ela. Tanto fazia para Fitch. Quanto mais melhor. Essa gente estava a pôr as cartas na mesa e Fitch estava pronto a fazer negócio.

O nome da consultora de júri era Ginger e trabalhava para a firma de Cari Nussman, em Chicago. Tinha assistido a dezenas de julgamentos. Em geral passava metade do dia no tribunal, mudando de lugar durante os intervalos, tirando o casaco ou os óculos. Era uma veterana no estudo de júris e já tinha visto de tudo. Estava na primeira fila, atrás dos advogados da defesa e um seu companheiro de trabalho na mesma fila a ler um jornal quando os jurados entraram.

Ginger olhou para o júri e esperou o cumprimento do Meritíssimo. A maioria dos jurados inclinou a cabeça, em resposta, e sorriu para o juiz. Então, todos eles, todos, incluindo o homem cego, olharam para ela. Um ou dois estavam a sorrir, mas a maioria parecia perturbada com alguma coisa.

Ela desviou o olhar.

O juiz Harkin, fiel ao seu guião — uma pergunta ultrajante depois da outra—, não tardou em notar que o seu júri estava preocupado com um dos espectadores.

Todos olhavam na mesma direcção.

Nicholas continha-se para não gritar. A sua sorte era incrível. Cerca de vinte pessoas estavam sentadas no lado esquerdo da sala, atrás dos advogados de defesa e duas filas atrás de Ginger via-se a enorme figura de Rankin Fitch. Do banco do júri, Fitch estava na mesma linha de visão que Ginger e a uma distância de cinco metros era difícil dizer para qual dos dois os jurados estavam a olhar.

Ginger achou certamente que era para ela. Começou a estudar algumas notas, enquanto Fitch mudava de lugar apressadamente.

Fitch sentiu-se despido sob os olhares dos doze jurados. Pequenas gotas de suor brotaram acima das suas sobrancelhas. O juiz fez mais perguntas. Alguns advogados olharam para trás, embaraçados.

— Continuem a olhar — disse Nicholas em voz baixa, sem mexer os lábios.

Wendall Rohr olhou para trás para ver quem era o alvo dos olhares. Ginger voltou a sua atenção para os atacadores dos sapatos. Continuaram a olhar.

Não havia nenhum precedente de um juiz ter de pedir a atenção do júri. Harkin já se sentira tentado a fazer isso antes, mas geralmente tratava-se de um membro do júri tão entediado com a testemunha que adormecia e começava a roncar. Por isso continuou apressadamente com as perguntas que restavam, depois disse em voz alta:

—Muito obrigado, senhoras e senhores, Agora, continuaremos com o doutor Milton Fricke.

De repente, Ginger precisou de ir à casa de banho e saiu da sala quando o doutor Fricke entrou pela porta lateral e voltou para o banco das testemunhas.

Cable disse cortesmente, com grande deferência para com o doutor Fricke, que tinha poucas perguntas. Não ia discutir ciência com um cientista, mas esperava marcar alguns pequenos pontos com o júri. Fricke admitiu que nem todos os danos causados aos pulmões do senhor Wood podiam ser atribuídos ao cigarro Bristol fumado durante quase trinta anos. Jacob Wood trabalhou muitos anos num escritório com outros fumadores e, é verdade, que uma parte da destruição dos seus pulmões podia ter sido causada por exposição a outros fumadores.

— Mas a causa continua a ser o tabaco — lembrou o doutor Fricke a Cable, que concordou imediatamente.

E a poluição do ar? É possível que o facto de respirar ar poluído durante trinta anos tenha contribuído para o estado dos pulmões? O doutor Fricke admitiu que era possível.

Cable fez uma pergunta perigosa e teve bom resultado.

— Doutor Fricke, considerando as causas possíveis — fumo directo de cigarros, fumo indirecto, poluição do ar e todas as outras que não mencionamos —, o senhor poderia determinar quanto do dano causado aos pulmões da vítima pode ser atribuído ao facto de ter fumado Bristol!

O doutor Fricke pensou um momento e disse:

— A maior parte.

— Quanto? Sessenta por cento, oitenta por cento? É possível um médico cientista como o senhor calcular uma percentagem aproximada?

Não era possível e Cable sabia-o. Ele tinha dois especialistas prontos a refutar se o doutor Fricke ultrapassasse os limites e exagerasse a especulação.

— Infelizmente não posso fazer isso — respondeu Fricke.

— Muito obrigado. Uma última pergunta, doutor. Qual a percentagem de fumadores que sofre de cancro de pulmão?

— Depende da pesquisa que o senhor fizer.

— O senhor não sabe?

— Tenho uma ideia.

— Então, responda à pergunta.

— Cerca de dez por cento.

— Não tenho mais perguntas.

-— Doutor Fricke, o senhor está dispensado — disse o Meritíssimo. — Doutor Rohr, por favor, chame a sua próxima testemunha.

— Doutor Robert Bronsky.

No momento em que as testemunhas se cruzavam à frente do juiz, (Ginger entrou na sala e sentou-se na última fila, o mais distante possível dos jurados. Fitch aproveitou o breve intervalo para sair. Chamou José para o átrio e os dois saíram apressadamente do tribunal, voltando para

o escritório na antiga loja.

Bronsky também era soberbamente credenciado na área de pesquisas médicas quase com o mesmo número de diplomas e de artigos publicados de Fricke. Conheciam-se bem os dois porque trabalhavam juntos no centro de pesquisas em Rochester. Com grande prazer, Rohr conduziu o doutor Bronsky através do seu maravilhoso currículo. Uma vez qualificado como especialista, enveredaram pelos pontos clínicos básicos.

O fumo é um composto extremamente complexo, com mais de quatro mil componentes identificados. Um total de dezasseis carcinógé-nios e numerosos outros componentes com actividade biológica conhecida. O fumo do cigarro é uma mistura de gases em minúsculas gotas, e quando a pessoa inala, cerca de cinquenta por cento do fumo

inalado é retido pelos pulmões e algumas gotículas ficam depositadas directamente nas paredes dos brônquios.

Dois advogados da equipa de Rohr armaram rapidamente um tripé no centro da sala e o doutor Bronsky desceu da cadeira das testemunhas para fazer uma pequena palestra. O primeiro gráfico era uma lista de todos os componentes conhecidos do fumo. Não disse o nome de todos porque não precisava. Cada nome parecia ameaçador e, quando considerados como um grupo, pareciam sem dúvida mortais.

O gráfico seguinte era uma lista dos carcinogénios conhecidos e Bronsky fez um sumário acerca de cada um deles. Além daqueles dezasseis, disse ele, batendo com a vareta na mão esquerda, pode muito bem haver outros carcinogénios ainda não detectados. E é possível que dois, ou mais, actuem em combinação, reforçando-se mutuamente para provocar cancro.

O assunto ocupou toda a manhã. A cada gráfico mostrado, Jerry Fernandez e as três mulheres fumadoras ficavam mais e mais nauseados e quando deixaram o tribunal, para o almoço, Sylvia «Poodle» sentia a cabeça vazia. Como era de esperar, os quatro foram imediatamente para «o buraco de fumo», como Lou Dell lhe chamava, para uma passa rápida antes de se juntarem aos outros.

O almoço estava servido e todas as arestas aparadas: a mesa posta com pratos de louça e o chá gelado em copos de vidro. O senhor O'Reilly serviu sanduíches especiais para os que pediram e grandes pratos de vegetais e macarrão quente para os outros. Nicholas não poupou elogios.

Fitch estava na sala de projecção com dois dos seus consultores, quando Konrad bateu à porta, nervoso. Todos tinham ordens estritas para não se aproximarem da sala sem autorização expressa de Fitch.

— É Marlee, na linha quatro — murmurou Konrad e Fitch, tenso, foi rapidamente para o seu escritório, passando por um corredor improvisado.

— Localize a chamada — disse Fitch.

— É o que estamos a fazer.

— Tenho a certeza de que é de um telefone público. Fitch carregou no botão do seu telefone e disse:

— Estou. . — Senhor Fitch? — perguntou a voz familiar.

— Sim.

- Sabe por que motivo eles estão a olhar para si?

— Não.

— Amanhã conto-lhe.

— Conte agora.

— Não. Porque vocês estão a tentar localizar a chamada. E se continuarem a fazer isso, deixo de lhe telefonar.

—Tudo bem. Não se repetirá.

— Está à espera que eu acredite nisso?

— Diga-me o que quer.

— Mais tarde, Fitch. — Desligou.

Fitch repetiu a conversa no gravador, enquanto esperava que o telefonema fosse localizado. Konrad apareceu dizendo, como era de esperar, que era de um telefone público, numa loj a em Gautier, a trinta minutos dali.

Fitch recostou-se na grande cadeira giratória alugada e olhou para a parede por um momento.

— Ela não estava no tribunal esta manhã — disse, em voz baixa, pensando alto, puxando a ponta da barbicha. — Então, como é que sabia que estavam a olhar para mim?

— Quem é que estava a olhar? — perguntou Konrad. As suas tarefas não incluíam montar guarda no tribunal. Nunca saía do escritório improvisado. Fitch explicou o curioso incidente daquela manhã.

— Então, quem é que a está a informar? — perguntou Konrad.

— Essa é que é a questão.

A tarde foi dedicada à nicotina. Da uma e meia até às três horas, depois das três e meia até ao intervalo das cinco, os jurados aprenderam mais do que queriam sobre nicotina. É um veneno contido no fumo do cigarro e para os fumadores que engolem o fumo, como Jacob Wood, mais de noventa por cento é absorvida pelos pulmões. O doutor Bronsky passou a maior parte do tempo de pé, apontando para várias partes do corpo humano mostradas num desenho de tamanho real, colorido, montado no tripé. Explicou pormenorizadamente como a nicotina provoca constrição dos vasos superficiais nos braços e pernas, aumenta a tensão e a pulsação, faz o coração trabalhar mais. Os efeitos no aparelho digestivo são insidiosos e complexos. Pode provocar náusea e vómito, especialmente quando se começa a fumar. A secreção da saliva e os movimentos do estômago e intestinos são primeiro estimulados, depois reprimidos. A nicotina age como estimulante no sistema nervoso central. Bronsky foi metódico mas sincero. Fez com que um único cigarro parecesse uma dose de veneno letal.

E a pior coisa sobre a nicotina é que ela vicia. A última hora — mais uma vez num cálculo perfeito de Rohr—foi usada para convencer os jurados de que a nicotina vicia e de que esse facto é conhecido há pelo menos quatro décadas.

Os níveis de nicotina podem ser facilmente manipulados durante o processo de fabricação.

Se, e Bronsky acentuou o «se», os níveis de nicotina fossem especificamente aumentados, então os fumadores naturalmente viciar-se-iam muito mais depressa. Mais fumadores viciados significa mais cigarros vendidos.

Era o pensamento perfeito para terminar o dia.

 

Na manhã da terça-feira, Nicholas chegou cedo à sala do júri. Lou Dell estava a preparar o primeiro bule de descafeinado do dia e, ao mesmo tempo, a dispor bolinhos e pães-doces numa travessa. Ao lado da comida, estava empilhada uma colecção de chávenas e pires novos e cintilantes. Nicholas tinha dito que detestava tomar café em copos de plástico e, felizmente, outros dois membros do júri tinham dito a mesma coisa. O juiz aprovou de imediato uma lista de compras feita para satisfazer os pedidos dos jurados.

Quando entrou, Lou Dell terminou apressadamente as suas tarefas. Cumprimentou-a com um sorriso amável, mas Lou ainda estava ressentida com as desavenças anteriores. Nicholas serviu-se de café e abriu um jornal.

Enquanto esperava, chegou o coronel reformado Frank Herrera.

Depois das oito, mas ainda assim, com quase uma hora de antecedência. Trazia dois jornais, um deles o The Wall Street Journal. Queria estar sozinho na sala, mas sorriu para Easter.

— Bom-dia, coronel — disse Nicholas calorosamente, — chegou cedo.

—  Você também.

—  Não consegui dormir. Sonhei com nicotina e pulmões negros a noite toda. — Nicholas olhou para a página desportiva.

Herrera mexeu o açúcar no café e sentou-se no outro lado da mesa.

—  Fumei durante anos, quando estava no exército — disse ele, sentando-se com as costas muito direitas, o queixo erguido. — Mas

tive o bom senso de parar a tempo.

— Há pessoas que não conseguem. Olhe o caso de Jacob Wood.

O coronel bufou com desprezo e abriu um jornal. Para ele, abandonar um vício não era mais do que um simples acto de força de vontade. Quem tem a cabeça no lugar pode fazer qualquer coisa com o próprio corpo.

Nicholas virou uma página e disse:

— Por que deixou de fumar?

— Porque faz mal à saúde. Não é preciso ser génio para saber isso. O tabaco é mortal. Toda a gente sabe.

Nicholas lembrava-se bem das perguntas dos questionários, e se Herrera tivesse sido tão agressivo assim a responder-lhes, não estaria agora ali sentado. A convicção determinada de Herrera só podia ter um significado: ele quis ser jurado. Provavelmente vivia entediado com a sua vida de reformado, talvez estivesse farto da mulher e procurasse um entretenimento. Mas isso não era tudo: era óbvio que o coronel vivia com alguns ressentimentos.

—  Acha que o tabaco devia ser proibido? — perguntou Nicholas. Com gestos lentos, Herrera pousou o jornal sobre a mesa e bebeu

um longo gole de café.

—  Não. Acho que as pessoas devem ter juízo suficiente para não fumar mais de três maços por dia durante trinta anos. Quem fuma assim o que é que pode esperar? Uma saúde de ferro? — O tom era sarcástico e não deixava dúvidas de que Herrera tinha entrado para o júri com a opinião já formada.

— Desde quando é que pensa assim?

— Desde sempre.                                                                

— Devia ter dito isso por ocasião do voire dire.

— O que é o voire direi

— O processo de selecção do júri. As perguntas cobrem todos esses assuntos. Não me lembro de o ter ouvido dizer uma única palavra a esse respeito.

—  Nunca tive vontade de dizer.

—  Mas devia ter dito.                                                           

Herrera ficou corado, mas hesitou um segundo. Afinal, Easter conhecia a lei ou, pelo menos, conhecia-a melhor do que os restantes jurados. Talvez tivesse feito alguma coisa errada. Talvez Easter pudesse denunciá-lo e expulsá-lo do júri. Talvez fosse acusado de desacato e condenado a prisão ou ao pagamento de uma multa.

Foi aí que teve uma ideia. Não deviam estar a falar naquele assunto, pois não? Então, Easter não podia denunciá-lo ao juiz! Se Easter repetisse o que ali fora dito, havia de arranjar problemas com o juiz. Herrera ficou menos tenso.

—  Deixe-me adivinhar. O senhor vai forçar as coisas a favor de uma decisão favorável à acusação... Já deve estar a sonhar com um veredicto espectacular, com várias indemnizações.

—  Está enganado, senhor Herrera. Ao contrário de si, ainda não tenho opinião formada. Ainda só ouvimos três testemunhas, todas da acusação, portanto ainda temos muita coisa pela frente. Acho que vou esperar pelo fim dos depoimentos, e só aí é que começo a organizar as ideias. Aliás, acho que foi isso que prometemos fazer.

— Foi. Eu pelo menos prometi que agiria desse modo. E é o que vou fazer. — De repente, o coronel ficou muito interessado no editorial do jornal.

A porta abriu-se violentamente e o senhor Herman Crimes entrou com a bengala a bater no chão. Lou Dell e a senhora Crimes vinham atrás. Como sempre, Nicholas levantou-se para preparar o café do seu líder.

Fitch ficou ao lado dos telefones até às nove horas. Ela tinha mencionado um possível telefonema nesse dia.

Não se contentava em brincar com ele, mas também mentia. Fitch não queria ser outra vez alvo dos olhares do júri. Por isso, trancou a porta do escritório e foi para a sala de projecção onde dois dos seus consultores estavam sentados no escuro, olhando para uma estranha cena no monitor. Alguém tinha empurrado a pasta de McAdoo e a câmara foi parar a três metros da posição ideal. Os jurados número um, dois, sete e oito estavam fora do enquadramento e Millie Dupree e Rikki Coleman só apareciam pela metade.

O júri já estava sentado há dez minutos, por isso, McAdoo, preso à sua cadeira, não podia usar o telemóvel. Não sabia que alguém tinha empurrado a sua pasta para debaixo da mesa. Fitch praguejou e voltou para o escritório. Escreveu um bilhete à pressa e entregou-o a um bem vestido moço de recados que atravessou a rua a correr, entrou na sala do tribunal como um dos vários jovens assistentes e fez deslizar o papel sobre a mesa da defesa.

A câmara foi desviada um pouco para a esquerda e todo o júri ficou visível. McAdoo empurrou a pasta com um pouco de força a mais e cortou metade a Jerry Fernandez. Fitch praguejou outra vez e resolveu telefonar para McAdoo no primeiro intervalo da manhã.

O doutor Bronsky estava repousado e pronto para outro dia de palestra sobre os malefícios do tabaco. Tendo já falado sobre os produtos cancerígenos do tabaco e sobre a nicotina, ia agora passar aos outros componentes de interesse médico, os irritantes.

Rohr dava o tom e Bronsky executava a música. O tabaco contém uma variedade de componentes com efeitos irritantes sobre a membrana mucosa. Mais uma vez, Bronsky deixou o banco das testemunhas e foi até um diagrama da parte superior do dorso e da cabeça de um ser humano. O diagrama mostrava ao júri as vias respiratórias superiores, a garganta, os brônquios e os pulmões. Nesta área do corpo, o fumo estimula a secreção de muco. Ao mesmo tempo, retarda a remoção do muco, dificultando a acção dos cílios que forram os brônquios.

Com grande habilidade, Bronsky estava a conseguir manter os termos médicos num nível acessível para um leigo, especialmente na parte em que explicou o que acontece aos brônquios quando o fumo do cigarro é inalado. Dois outros diagramas, grandes e coloridos, foram montados em frente dos jurados, e Bronsky começou a explicar, indicando com um ponteiro. Explicou que os brônquios são forrados por uma membrana equipada com fibras da espessura de fios de cabelo chamadas cílios, que ondulam em uníssono e controlam o movimento do muco na superfície da membrana. Este movimento dos cílios tem como objectivo livrar os pulmões de praticamente toda a poeira e de todos os germes inalados.

O fumo, é claro, cria um verdadeiro caos neste processo. Tendo-se certificado, na medida do possível, de que os jurados entendiam o procedimento normal das coisas, Bronsky e Rohr passaram rapidamente à explicação do modo pelo qual o fumo irrita o processo de filtragem e provoca todo o tipo de danos no aparelho respiratório.

Continuaram a discorrer sobre muco, membranas e cílios.

O primeiro bocejo visível foi de Jerry Fernandez na fila de trás. Fernandez tinha passado a noite de segunda-feira num dos casinos. Fumava dois maços por dia e não tinha dúvida de que era um hábito pouco saudável. Mas, naquele momento, precisava de um cigarro.

Seguiram-se outros bocejos e às onze e meia o juiz Harkin dispensou-os por duas bem merecidas horas.

O passeio pelo centro de Biloxi foi ideia de Nicholas, proposta numa carta ao juiz Harkin, na segunda-feira. Parecia absurdo mante-los con-fi nados o dia todo numa pequena e mal arej ada sala. Afinal, se saíssem para dar uma volta, não corriam perigo de vida, nem iam ser assaltados. Bastava assegurar-lhes companhia, definir o itinerário e proibir os jurados de falar com outras pessoas. Parecia uma ideia inofensiva e, depois de pensar no assunto, o juiz Harkin adoptou-a como sua.

Nicholas mostrou a carta a Lou Dell e, assim, enquanto acabavam de almoçar, ela explicou que o passeio fora planeado graças ao senhor Easter, que tinha escrito ao juiz. Parecia uma ideia humilde demais para merecer tanta admiração.

O dia estava lindo: Lou Dell e Willis iam na frente, apreciando a amena temperatura — abaixo dos 26 graus — e o ar fresco. Os quatro fumadores —- Fernandez, Poodle, Stella Hulic e Angel Weese—ficaram atrás, apreciando os cigarros. Estavam fartos de ouvir as deprimentes conversas de Bronsky sobre muco e membranas. E, verdadeiramente, queriam que Fricke e as fotografias pegajosas dos pulmões negros do senhor Wood fossem para o diabo. Estavam fora de casa. A luz e o ar livre eram as condições ideais para um cigarro.

Fitch mandou Doyle e um agente local chamado Joe Boy tirar fotografias a uma certa distância.

À medida que a tarde passava, Bronsky começou a cansar-se. Perdeu o talento para apresentar as coisas de modo simples e os jurados foram derrotados na luta para continuar atentos. Os diagramas e os mapas, rebuscados e obviamente dispendiosos, confundiam-se, assim como as partes do corpo e os componentes e venenos do tabaco. Não eram necessárias as opiniões dos consultores de júri, soberbamente treinados e extremamente bem pagos, para saber que os jurados estavam fartos, e que Rohr estava a fazer aquilo que os advogados simplesmente não conseguem evitar: o excesso de informação e de provas.

O Meritíssimo deu por encerrada a sessão mais cedo, às quatro horas, alegando que precisava de duas horas para ouvir algumas moções e outras coisas não relacionadas com o júri. Dispensou os jurados com as mesmas advertências rigorosas, que agora já sabiam de cor. Estavam felizes por escapar da sala e do julgamento.

Lonnie Shaver ficou especialmente feliz por sair mais cedo. Foi directo para o seu supermercado que ficava a dez minutos de carro. Estacionou nas traseiras do prédio e entrou pela porta do armazém esperando apanhar um empregado a dormir ao lado das caixas de alface. O seu escritório ficava no segundo andar, em cima dos lacticínios e das carnes e, pelo espelho de duas faces, podia ver quase todo o primeiro andar.

Lonnie era o único gerente negro numa cadeia de dezassete supermercados. Ganhava quarenta mil dólares por ano, com seguro de saúde e plano de poupança reforma. Esperava ser aumentado dentro de três meses. Também se havia insinuado que seria promovido a supervisor distrital, desde que o seu desempenho como gerente tivesse resultados satisfatórios. A empresa estava ansiosa de promover um negro. Pelo menos, foi o que lhe disseram. Mas, é claro, nenhum desses compromissos estava escrito.

O seu gabinete, sempre aberto, era geralmente ocupado por qualquer um dos seus seis subordinados. Um gerente assistente recebeu-o e depois foi até uma porta.

— Temos visitas — disse, com ar preocupado.

Lonnie hesitou e olhou para a porta fechada: dava para uma sala grande e multifuncional —festas de aniversário, reunião de pessoal, visitas dos chefes, etc.

—  Quem é? — perguntou.

—  São da sede. Estão à sua procura..

Lonnie bateu à porta e, ao mesmo tempo, entrou. Afinal de contas, aquele escritório era seu. Três homens, com as mangas arregaçadas, estavam sentados à mesa, entre uma pilha de papéis e impressos de computador. Os três levantaram-se um pouco constrangidos.

—  Lonnie, ainda bem que veio — disse Troy Hadley, filho de um dos donos da cadeia e o único que Lonnie conhecia. Trocaram apertos de mãos enquanto Hadley fazia rapidamente as apresentações. Os outros dois homens eram Ken e Ben. Tinham planeado que Lonnie se sentasse na cabeceira da mesa, com Ken de um lado e Ben do outro, na cadeira desocupada rapidamente pelo jovem Hadley.

Troy começou a conversa e parecia um tanto nervoso.

— Que tal é ser jurado?

— Uma chatice.

— Claro. Lonnie, estamos aqui porque Ken e Ben são de uma organização chamada SuperHouse, uma grande cadeia com sede em Charlotte e, por diversos motivos, o meu pai e eu resolvemos vender a nossa companhia à SuperHouse. Toda a cadeia. As dezassete lojas e os três armazéns.

Lonnie notou que Ken e Ben estavam atentos à sua respiração. Por isso, tentou receber a notícia friamente, até com um leve erguer de ombros, como quem diz «E o que é que eu tenho com isso?» Mas estava com dificuldade em engolir.

—  Porquê? — Conseguiu dizer.

— Por vários motivos, mas o principal é por causa da idade do meu pai. Já tem sessenta e oito anos e acaba de sair de uma cirurgia. O facto de a SuperHouse oferecer um preço justo — esfregou as mãos, como se mal pudesse esperar para gastar o dinheiro — também pesou. Decidimos vender, Lonnie, pura e simplesmente.

— Estou surpreendido, eu nunca...

— Tem razão. Quarenta anos no negócio é muito tempo. Não nos podemos esquecer que começámos com uma mercearia e hoje temos filiais em cinco estados e que no ano passado facturámos sessenta milhões. Não tem sido fácil. — Troy não conseguia fingir emoção. E Lonnie sabia bem porquê. Troy era um cretino, um menino rico que jogava golfe todos os dias, enquanto tentava projectar socialmente a i magem de um patrão de indústria trabalhador e rigoroso. O pai devia ter decidido vender enquanto era tempo: dali a poucos anos, Troy tomaria as rédeas e quarenta anos de trabalho árduo e prudente seriam dissipados em barcos de corrida e casas na praia.

Fez-se uma pausa e Ben e Ken continuaram a olhar para Lonnie. Ela tinha quarenta e poucos anos, cabelo mal cortado e o bolso cheio de canetas baratas. Talvez fosse o Ben. O outro era um pouco mais novo, rosto magro, tipo executivo, roupa de melhor qualidade e olhos frios. Lonnie olhou para eles e percebeu que era a sua vez de dizer alguma coisa.

— Vão mesmo fechar este supermercado? — perguntou, quase derrotado.

Troy esperava a pergunta.                                     

—  Por outras palavras, o Lonnie quer saber o que lhe vai acontecer, não é? Muito bem, posso garantir-lhe que recomendei que seja mantido no seu cargo. — Ben, ou Ken, fez um gesto afirmativo. Troy pegou no casaco. — Mas, como compreende, essa decisão já não é da nossa competência. Vou sair por um momento, para que possam conversar mais à vontade. — Troy saiu apressadamente da sala.

A saída dele provocou sorrisos em Ken e Ben e Lonnie aproveitou para perguntar:

—  Têm aí à mão os vossos cartões de visita?

—  Claro — disseram os dois, tirando os cartões dos bolsos e fazendo-os deslizar sobre a mesa. Ben era o mais velho, Ken o mais novo.

Ken liderava a reunião.

— Vou falar-lhe um pouco sobre a nossa companhia. A nossa sede é em Charlotte, com oito postos de venda nas Carolinas e na Georgia. A SuperHouse é uma divisão da Listing Foods, uma holding com sede em Scarsdale. No ano passado tivemos um volume de vendas de dois milhões. Somos uma companhia pública, com acções cotadas na NASDAQ. Provavelmente já ouviu falar de nós. Sou vice-presidente de operações da SuperHouse. O Ben é vice-presidente regional. Estamos a expandir para sul e para oeste e Hadley Brothers parece-nos interessante. É por isso que aqui estamos.

— Então vão manter esta filial?

— Sim, pelo menos por enquanto — olhou para Ben, como se tivesse muito mais para dizer.

—  E o que é que me vai acontecer? — perguntou Lonnie.

Os dois literalmente contorceram-se quase ao mesmo tempo e Ben pegou numa das esferográficas da sua colecção. Ken era o orador.

— Bem, tem de compreender, senhor Shaver...

— Por favor, chame-me Lonnie.

— Claro, Lonnie. Quando se faz uma compra, é normal que haja reajustamentos. Faz parte do negócio. Há empregos perdidos, empregos ganhos, há pessoas transferidas...

—  E o meu lugar? — insistiu Lonnie. Pressentia o pior e queria acabar rapidamente com aquilo.

Deliberadamente, Ken pegou numa folha de papel e fingiu que estava a ler:

— Bem — disse ele, sacudindo o papel —, você tem um currículo sólido.

-— E recomendações muito boas — acrescentou Ben, solícito.

— Gostaríamos de mantê-lo no seu cargo, pelo menos por enquanto.

— Por enquanto? O que é que isso significa?

Ken pôs o papel sobre a mesa e inclinou-se para a frente, apoiado nos cotovelos.

—  Vamos ser francos, Lonnie. Vemos um futuro para si na nossa empresa.

— E é uma empresa muito melhor do que esta onde você estava. — acrescentou Ben. Os dois funcionavam perfeitamente como equipa. — Oferecemos salários mais altos, benefícios melhores, direito à subscrição de acções da empresa.

— Lonnie, para nossa vergonha, não temos nenhum afro-americano num cargo de direcção. Nós e a nossa administração queremos mudar este estado de coisas o mais rápido possível. E queremos fazer essa mudança consigo.

Lonnie estudou a expressão dos dois homens com a cabeça repleta de perguntas. Em menos de um minuto tinha passado de quase desempregado para quase promovido.

—  Eu não sou licenciado. Há um limite para...

—  Não há limite nenhum. — Disse Ken — Você ainda andou dois anos na faculdade e, se for necessário, até pode acabar o curso. A empresa pode pagar as propinas.

Lonnie não conteve um sorriso, de alívio e de satisfação, mas resolveu prosseguir com cautela. Estava a lidar com estranhos.

— Estou a ouvi-los com muito interesse — disse ele. Ken tinha todas as respostas.

— Estudámos o pessoal da Hadley Brothers e seleccionámo-lo a si e a outro jovem gerente de Mobile. Gostaríamos que fossem a Charlotte, assim que for possível, para passar uns dias connosco. Vão conhecer a empresa, as pessoas, aprender tudo e depois logo se conversa sobre o futuro. Mas tenho de avisá-lo: se quiser subir na vida não pode passar o resto dos seus dias aqui em Biloxi. Tem de encarar a hipótese de trabalhar noutras cidades.

— Não tenho problemas com isso..

—  Foi o que pensámos. Quando é que pode vir a Charlotte?

A imagem de Lou Dell fechando aporta da sala dos jurados passou à frente dos olhos de Lonnie. Respirou profundamente e disse frustrado:

—  Bem, neste momento não. Faço parte de um júri. O Troy deve ter-lhes dito.

Ken e Ben ficaram aparentemente confusos.

—  Quanto tempo é que isso demora? Para aí um dia ou dois, não?

— Não. O julgamento deve durar um mês, e ainda só vai na segunda semana.

—  Um mês? — Ben não perdeu a deixa. — Que tipo de julgamento é esse?

—  A viúva de um fumador processou uma tabaqueira.

As reacções foram quase idênticas, não deixando margem para dúvidas sobre o que pensavam destes processos.

— Eu fiz tudo para me livrar — disse Lonnie, tentando suavizar as coisas.

—  Um processo para responsabilizar produtores? — perguntou Ken, visivelmente aborrecido.

—  De certa maneira, sim....

—  E ainda dura mais três semanas? — perguntou Ben.

—  Foi o que disseram. Até me custa a acreditar como é que me apanharam — disse Lonnie, de si para si.

Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual Ben abriu um maço de Bristol e acendeu um cigarro.

—  Processos — disse ele, amargamente. — Estamos sempre a ser processados por zés-ninguéns. Tropeçam, caem e põem a culpa no vinagre ou nas uvas. No mês passado, explodiu uma garrafa de água com gás numa festa em Rock Mount. Adivinhe quem vendeu a garrafa? Adivinhe quem foi processado na semana passada por dez milhões? Nós e o fabricante da garrafa. Má qualidade do produto. — Ben estava a ferver: deu uma longa passa e, depois, roeu uma unha.— Uma mulher de setenta anos, em Athens, alegou que distendeu um músculo das costas quando tentou agarrar uma lata de óleo para móveis que estava muito alta. O pior é que o advogado acha que ela tem direito a uns dois milhões.

Ken olhou para Ben como se quisesse que ele calasse a boca mas, era evidente, Ben tinha pavio curto quando se tratava daquele assunto.

— Malditos advogados. — disse soltando o fumo pelas narinas. — No ano passado pagámos mais de três milhões de seguro sobre produtos, dinheiro deitado fora por causa dos advogados famintos que vivem para nos tramar.

— Já chega desse assunto — disse Ben.

— Desculpe.

— E aos fins de semana? — perguntou Lonnie, ansioso. — Estou livre desde sexta-feira à tarde até domingo à noite.

—  Estava a pensar nisso. Vamos fazer o seguinte: no sábado de manhã mandamos um dos nossos aviões vir buscá-lo. Você e a sua mulher vão até Charlotte. Mostramos-lhe os escritórios da sede e apresentamo-los aos nossos chefes. Quase todos trabalham ao sábado. Pode ir neste fim de semana?

—  Claro.

— Está combinado: vou tratar do avião.

— Tem a certeza de que não vai interferir com o julgamento? — perguntou Ben.

—  Que eu saiba, não.

 

Até quarta-feira, o julgamento prosseguiu com uma impressionante pontualidade. Mas nesse dia aconteceu um importante obstáculo. A defesa entrou com uma moção para proibir o depoimento do doutor Hilo Kilvan, de Montreal. Este suposto especialista em análise estatística sobre a incidência do cancro de pulmão provocou uma pequena batalha entre as partes. Wendall Rohr e a sua equipa ficaram furiosos com a táctica da defesa que, desde o início, tentava impedir o depoimento de todos os especialistas da acusação. Rohr estava tão irado que chegou a acusar a defesa de ter estado quatro anos a impedir o decurso do seu trabalho e apelou ao juiz Harkin para que impusesse sanções à defesa. A guerra das sanções, com as partes a exigirem a aplicação de coimas monetárias e o juiz a negá-las, era feroz. E isto tinha começado quase em simultâneo com a entrada do processo em juízo. Neste, como na maioria dos grandes casos de Direito Civil, a submanobra das sanções geralmente consumia tanto tempo como os assuntos de facto.

Rohr esbracejava furioso em frente do banco vazio dos jurados, explicando que aquela era a septuagésima primeira moção da defesa — «Podem contar, setenta e uma!» — apresentada pela tabaqueira, numa clara tentativa de impedir a exibição de evidências.

— Já tivemos moções para excluir a referência a outras doenças provocadas pelo tabaco, moções para evitar a apresentação dos resultados de estudos epidemiológicos, moções para evitar a apresentação de análises estatísticas, moções para proibir a referência a patentes não usadas pelo acusado, moções para excluir a referência a medidas subsequentes ou terapêuticas tomadas pela tabaqueira, moções para excluir grandes partes do relatório da autópsia, moções para excluir testemunhos de vício, moções...

—  Eu vi as moções, doutor Rohr — interrompeu o Meritíssimo, antes que Rohr as citasse todas.

Rohr, quase sem respirar, continuou:

— Meritíssimo, além das setenta e uma — pode contar, setenta e uma! — moções para excluir depoimentos e apresentação de resultados de estudos e investigações, ainda deram entrada dezoito moções, exactamente dezoito, para a anulação do julgamento.

— Estou ao corrente, doutor Rohr. Por favor, prossiga com o caso. Rohr foi até à sua mesa atafulhada de papéis e arrancou uma pasta

grossa das mãos de um dos seus advogados.

— E é claro, cada vez que a defesa apresenta uma moção, fá-la acompanhar com estas malditas coisas — disse em voz alta, atirando a pasta para cima da mesa. — Como o senhor muito bem sabe, não temos tempo para ler isto. Estamos muito ocupados com o julgamento. A defesa tem milhares de advogados, a quem aliás paga à hora, e que por isso pode desperdiçar tempo e levar dias a preparar moções. É quase certo que enquanto estamos aqui a ter esta discussão, há advogados da defesa que estão a redigir novas moções, novas moções idiotas que hão-de pesar aproximadamente três quilos e que só têm o mérito de nos fazer perder tempo.

— Não se importa de se concentrar na questão central, doutor Rohr? Rohr não ouviu e continuou.

—  E, uma vez que não temos tempo para ler estas coisas, Meritíssimo, limitamo-nos a pesá-las e a responder de forma resumida: «Por favor, parem de fazer moções pesadas e frívolas.»

Sempre que o júri estava fora do tribunal, advogados, funcionários, polícias, etc., dispensavam-se de agir de forma cortês ou de, simplesmente, sorrir. A tensão era evidente nos rostos de todos os actores. Até os funcionários do tribunal e a estenógrafa pareciam tensos.

O lendário temperamento explosivo de Rohr estava em acção, mas i sso não representava perda para o lado da acusação. Há muitos anos, Rohr tinha aprendido a tirar vantagens das suas explosões de mau humor. Cable, de quem ocasionalmente era amigo, mantinha uma certa distância, mas sem se calar. E os dois ocasionais amigos protagonizavam uma luta pouco digna de uma sala de tribunal.

Às nove e meia, o Meritíssimo mandou avisar Lou Dell que deveria informar os jurados de que o julgamento começaria dentro de poucos minutos, provavelmente às dez horas, já que estava quase a terminar a análise de uma moção. Como aquele tinha sido o primeiro atraso, a primeira vez que os jurados tinham tido que esperar para entrar na sala, não houve reclamações. Refizeram pequenos grupos e retomaram o fio de conversas normais para quem está contra vontade à espera. Os grupos organizavam-se naturalmente por sexo e não por raça. Normalmente, os homens ficavam juntos numa extremidade da sala e as mulheres na outra. Os fumadores não paravam de entrar e sair. O único que mantinha sempre a mesma posição, à cabeceira da mesa, era Her-man Grimes. Aproveitava esses momentos para «ler» no seu computador os documentos que entretanto tinham sido passados para braile. O seu empenho era de tal forma grande que tinha chegado a fazer serões para se pôr a par do que era mostrado no tribunal e que, nos dias em que o doutor Bronsky tinha apresentado diagramas, vira-se obrigado a estudá-los até altas horas da madrugada.

Havia outro computador instalado por cima de três cadeiras desdobráveis: este equipamento constituía o escritório de Lonnie Shaver que, ali mesmo, analisava impressos do supermercado, inventários, verificava contas, etc. Por isso, normalmente preferia que os outros o ignorassem. Não por uma questão de antipatia, mas simplesmente porque não tinha tempo a perder.

Frank Herrera, sentado perto do computador em braile, lia as cotações da bolsa no Wall Street Journal e, ocasionalmente, trocava algumas palavras com Jerry Fernandez que, no outro lado da mesa, lia as últimas notícias de Las Vegas. O único homem que gostava de conversar com as mulheres era Nicholas Easter. Nessa quarta-feira estava a conversar sobre o caso, em voz baixa, com Loreen Duke, uma mulher negra grande e bem-disposta, secretária na base da Força Aérea de Keesler. Como jurado número um, sentava-se ao lado de Nicholas e, durante as sessões, os dois costumavam fazer comentários em voz baixa acerca da maioria das pessoas presentes. Loreen era uma mulher de trinta e dois anos, sem marido, com dois filhos e um bom emprego federal. Apesar disso, confessou que não gostava do emprego e que a desorganização era tão grande que, ainda que se ausentasse durante um ano, ninguém se importava. Nicholas contava-lhe histórias de procedimentos incorrectos de tabaqueiras no decurso de outros processos judiciais e chegou a confessar-lhe que o assunto lhe interessava tanto que, durante os dois anos de frequência na faculdade de Direito, se tinha dedicado à pesquisa sobre este tipo de atitudes e processos. Quando

el a l he perguntou por que razão tinha abandonado a faculdade, Nicholas justificou-se dizendo que tinha tido problemas financeiros. Os dois conversavam sempre suficientemente baixo para que Herman Grimes, em luta com o teclado do seu computador, não os pudesse ouvir.

O tempo foi passando e, às dez horas em ponto, Nicholas foi até à porta e interrompeu a leitura de Lou Dell. Infelizmente, Lou não fazia a mais pequena ideia a que horas o juiz pretendia chamá-los e não havia mais nada que pudessem fazer senão esperar.

Nicholas sentou-se à mesa e começou a delinear uma estratégia com Hennan. Não era justo mantê-los presos daquela maneira de cada vez que o tribunal se atrasasse. Na opinião de Nicholas, o mínimo que

o tribunal podia fazer era autorizá-los a sair do edifício, ainda que com acompanhantes, para darem um passeio matinal. Já não era a primeira vez, e Nicholas apontava como exemplo o passeio da véspera, à hora do almoço. Os dois combinaram que Nicholas ia redigir um pedido e que, durante o intervalo, o apresentariam ao juiz.

Finalmente, às dez e meia tiveram autorização para entrar na sala de audiências. O ambiente ainda estava pesado e carregado com a tensão do combate ali travado logo pela manhã. A primeira pessoa que Nicholas avistou foi o homem que invadira o seu apartamento. Estava na terceira fila, do lado da acusação, com camisa e gravata, um jornal aberto e apoiado nas costas da cadeira da frente. Estava sozinho e, quando os jurados entraram, mal os olhou. Nicholas não o fixou com insistência. Dois olhares rápidos foram suficientes para o identificar sem margem para dúvidas.

Apesar da sua reconhecida malícia, às vezes Fitch fazia coisas de uma ingenuidade impensável. Nicholas não conseguia perceber como é que Fitch tinha autorizado que aquele brutamontes entrasse no tribunal . Era demasiado arriscado e Nicholas não conseguia perceber que vantagens é que aquela presença podia trazer à acusação.

Embora tivesse ficado surpreendido por ver o homem na sala de audiências, Nicholas já tinha pensado na eventualidade de se cruzar com ele e tinha chegado ao ponto de delinear vários planos de acção a pôr em marcha em conformidade com o sítio em que o encontrasse.

Por isso, em poucos segundos, Nicholas tomou uma decisão: tinha de arranjar maneira de fazer chegar aos ouvidos do juiz que um dos bandidos que tanto o preocupavam estava sentado na sala de audiências. Era importante que Harkin reparasse na cara do homem para que o reconhecesse mais tarde no vídeo.

A primeira testemunha a ser chamada foi o doutor Bronsky. Aquele era o terceiro dia seguido em que depunha, mas o primeiro de interrogatório indirecto. Sir Durr começou, lenta e amavelmente, como se estivesse impressionado com a presença e discursos daquele reputado especialista, e fez algumas perguntas básicas a que, até a grande maioria dos jurados, poderia ter respondido. Mas, as coisas mudaram rapidamente. Ao contrário da atitude de deferência que tinha adoptado em relação ao doutor Milton Fricke, Durr estava decidido a atacar Bronsky.

Começou pelos mais de quatro mil componentes identificados no fumo dos cigarros. Aparentemente ao acaso, escolheu um e perguntou qual o seu efeito nos pulmões. Bronsky disse que não sabia e tentou explicar que era impossível medir a extensão dos danos causados por um único componente. E quanto aos brônquios, às membranas e aos cílios? O que é que aquele componente lhes provoca? Pela segunda vez, Bronsky tentou explicar que a pesquisa não podia determinar o efeito de um único componente do tabaco.

Cable não parou por aí. Escolheu outro componente e obrigou Bronsky a admitir que não podia dizer, quanto mais confirmar, ao júri o seu efeito sobre os brônquios e as membranas. Pelo menos não o podia fazer de forma específica.

Rohr protestou, mas o Meritíssimo não aceitou o protesto, justificando a sua decisão pelo facto de se tratar de um interrogatório indirecto. E nos interrogatórios indirectos as testemunhas podiam ser inquiridas em relação a todo o tipo de aspectos, relevantes ou não relevantes.

Doyle continuou sentado no seu lugar, na terceira fila dos espectadores, parecendo aborrecido e na expectativa de que surgisse uma oportunidade para sair. A sua presença ali tinha como objectivo único procurar arapariga. Mas o pior é que esta missão já se arrastava há dois dias. Já tinha ficado no corredor do primeiro andar durante quatro horas, já tinha passado uma tarde inteira sentado numa grade de Dr. Pepper, perto das máquinas de refrigerantes, a conversar com um contínuo e a vigiar a porta da frente. Já tinha bebido litros de café em todos os cafés e bares das redondezas. Sentia que estava a perder tempo: ele, Pang e outros dois homens, mas não havia nada que pudesse fazer contra. O chefe ficava contente assim!

Depois de se sentar no mesmo sítio seis horas por dia, Nicholas já tinha percebido a rotina diária de Fitch. Os seus homens, independentemente da função que exercessem, estavam sempre em movimento. Entravam e saíam silenciosamente da sala de audiências, aproveitando os pequenos intervalos. Raramente conversavam uns com os outros. Observavam com atenção as testemunhas e os jurados e, no minuto seguinte, punham-se a fazer palavras cruzadas ou a olhar pelas janelas.

Nicholas já tinha percebido que, a esta aparente distracção dos homens de mão de Fitch, seguia-se a sua saída da sala de audiências.

Nicholas escreveu um bilhete, dobrou-o e convenceu Loreen Duke a pegar-lhe mesmo sem o ler. Durante uma pausa, enquanto Cable consultava as suas anotações, Nicholas convenceu-a a inclinar-se para a frente e entregar o papel a Willis, o polícia que estava encostado à parede, junto da bandeira. Acordado bruscamente da sua letargia, Willis hesitou por um segundo até conseguir orientar-se e só então é que percebeu que devia entregar o papel ao juiz.

Doyle viu Loreen entregar o papel ao polícia, mas não viu quem é que lho tinha dado para as mãos.

O juiz Harkin pegou no papel e, no momento em que Cable recomeçava a fazer perguntas, fê-lo deslizar sobre a mesa para que ficasse suficientemente perto da sua toga. Harkin desdobrou lentamente o papel. Era de Nicholas Easter, número dois, e dizia:

«Meritíssimojuiz,

O homem que está sentado à esquerda, na terceira fila, perto da passagem, seguiu-me ontem quando saí do tribunal. Foi a segunda vez que o vi. Será possível verificar a sua identidade?

Respeitosamente, Nicholas Easter.»

O Meritíssimo olhou para Durr Cable antes de olhar para os espectadores. O homem estava sozinho e olhava para o juiz como se soubesse que estava a ser observado. 118

Para Frederick Harkin aquela situação era um novo desafio. Na verdade, naquele preciso momento, não conseguia lembrar-se de nenhuma situação parecida ou, sequer, remotamente semelhante àquela. Não era um homem com grande capacidade para formular opiniões e quanto mais pensava sobre uma situação menos ideias tinha a esse propósito.

Harkin sabia perfeitamente que ambas as partes tinham a sala de audiências, o tribunal e as proximidades sob vigilância apertada. Ele próprio já se tinha apercebido da presença misteriosa e discreta de algumas pessoas na sala e percebia que o profissionalismo com que se movimentavam só podia querer dizer que eram pessoas experientes naquele tipo de julgamento e que, por isso mesmo, não queriam chamar a atenção.

Harkin tinha experiência suficiente para saber que, num ápice, o homem podia desaparecer sem deixar rasto se decidisse fazer um curto intervalo.

Era um momento de grande tensão para o juiz. Depois de todas as histórias e rumores que tinham circulado acerca dos outros julgamentos, depois de tanta advertência feita aos jurados, o juiz via-se confrontado com a presença na sala de audiências de um daqueles agentes misteriosos de que se falava, de um detective contratado por uma das partes para seguir os jurados.

Por norma, os polícias dos tribunais vestem uniforme e é-lhes distribuída uma arma. Mas, também por norma, são completamente inofensivos. Aos polícias mais jovens são distribuídas missões de rua e aos polícias mais velhos, quase na idade da reforma, normalmente são confiados os tribunais. O juiz Harkin olhou para a sala e o leque de opções em que conseguia pensar diminuiu ainda mais.

Willis, encostado à parede junto da bandeira, parecia ter voltado a mergulhar no seu estado habitual de semi-torpor, com a boca entreaberta e um fio de saliva a escorrer. Jip e Rasco estavam posicionados na passagem, exactamente à frente de Harkin, mas a pelo menos trinta metros de distância. Eram eles que guardavam a porta principal. Naquele momento, Jip estava sentado na última fila, perto da porta, com os seus óculos de leitura postos na ponta do nariz grosso. Estava entretido a ler o jornal da região. Há dois meses, Jip tinha sido operado à anca, pelo que sentia dificuldade em manter-se de pé durante muito tempo. Por isso, tinha uma autorização especial para se sentar durante as sessões do julgamento. Rasco, apesar de ter quase sessenta anos, era o mais novo do grupo. A sua rapidez de movimentos tinha conquistado alguma fama. Por regra, designava-se um polícia jovem para guardar a porta principal. Infelizmente, o que tinha sido designado para cumprir essa missão fora destacado para o detector de metais no átrio do tribunal. Durante a selecção do júri, Harkin tinha feito questão em poder contar com uma forte presença de polícias uniformizados. Mas o entusiasmo inicial de Harkin tinha-se esbatido ao longo de uma semana de audição de testemunhas. Naquele momento, aquele era um julgamento como outro qualquer, talvez até mais entediante. A única diferença ainda visível era o montante de dinheiro em jogo.

Estudadas as competências dos polícias presentes, Harkin decidiu que não era boa ideia abordar o suspeito. Fingindo ignorar o homem, escreveu rapidamente algumas palavras num papel, segurou-o passando-o depois para Glória Lane, a Secretária da Circunscrição, que se sentava numa mesa perto da sua e de frente para os jurados. O bilhete identificava o lugar em que o homem estava sentado e continha indicações precisas: Glória devia fixar a fisionomia do homem, se bem que conviesse que tal fosse feito de forma discreta, chamar o xerife e pedir-lhe que agisse em conformidade com outras instruções que o juiz tinha anotado. Infelizmente, estas últimas instruções não chegaram a ser necessárias.

Depois de assistir ao impiedoso interrogatório a que o doutor Bron-sky foi sujeito durante mais de uma hora, Doyle estava pronto para sair. A rapariga não se encontrava no tribunal. Aliás, nunca lhe tinha passado pela cabeça que a pudesse encontrar ali. Mas, ordens são ordens. E tinha ordens para também a procurar naquela sala. Doyle não gostou daquele movimento de bilhetes à volta do juiz. Por isso, entendeu que estava na sua hora: dobrou o jornal e saiu da sala sem ser interpelado, Harkin olhou incrédulo. Chegou a segurar o microfone com a mão direita, como se estivesse na disposição de mandar o homem parar, sentar-se e responder a algumas perguntas. Mas controlou-se a tempo. Provavelmente, o homem havia de voltar.

Nicholas olhou para o Meritíssimo e cruzaram os seus olhares repletos de frustração. De repente, Cable fez uma pausa entre duas perguntas e o juiz bateu com o martelo.

— Intervalo de dez minutos. Acho que os jurados precisam de um pequeno descanso.

Willis passou a palavra a Lou Dell que, enfiando a cabeça na porta entreaberta, disse:

— Senhor Easter, posso falar consigo um minuto?

Até chegarem à porta lateral da sala do juiz, Nicholas seguiu-a através de um labirinto de corredores estreitos. Harkin estava sozinho, sem a toga, com uma chávena de café nas mãos. O juiz pediu a Willis que os deixasse sozinhos e trancou a porta.

— Por favor, sente-se, senhor Easter. — Apontou para uma cadeira em frente da sua mesa atulhada de papéis. De facto, aquele não era o seu gabinete: era uma sala partilhada pelos juizes a quem, naquele momento, estavam atribuídos casos naquele tribunal. — Café?

— Não, obrigado.

Harkin sentou-se e, apoiado num cotovelo, inclinou-se para a frente.

— Onde é que o senhor viu aquele homem?

Nicholas tinha tudo planeado ao pormenor. O vídeo ia ficar para mais tarde.

— Ontem, depois do último intervalo: ia a pé para o meu apartamento e parei para comer um gelado no Mike's. Sabe onde fica, não sabe? É logo ao dobrar da esquina. Entrei na geladaria e, distraida-mente, olhei para a rua. O homem estava a espreitar lá para dentro. Não me viu, mas naquele momento tive a sensação de que já o tinha visto nalgum sítio. Comprei o gelado e retomei o caminho para casa. Como tive a sensação de estar a ser seguido, resolvi não tomar o caminho mais directo e, aliás, até dei uma série de voltas inúteis. Só para confirmar. E a verdade é que ele estava sempre atrás de mim.

— E já alguma vez o tinha visto?

— Já! Trabalho numa loj a de computadores e houve uma noite em que esse homem passou uma série de vezes pela porta sem entrar. Mas, de cada vez que passava, espreitava lá para dentro. A loja é num centro comercial e às tantas resolvi ir ao café beber uma Coca-Cola. Assim que cheguei ao café, o homem apareceu atrás de mim.

O juiz relaxou na cadeira e passou a mão no cabelo.

— Seja franco comigo, senhor Easter, algum outro jurado mencionou uma história parecida?

— Não, senhor.

— Mas se alguém falar nisso posso contar consigo? Ou seja, o senhor conta-me?

— Claro.

— Esta nossa conversa é muito importante. O senhor compreende que tenho de estar ao corrente de tudo o que se passa...

— E como é que faço se precisar de falar com o senhor doutor juiz?

— Mande-me um bilhete através de Lou Dell. No bilhete escreva apenas que quer conversar comigo. Não precisa de dizer sobre que assunto é, até porque ninguém pode garantir que Lou Dell não sucumba à tentação de ler o bilhete.

— Esteja descansado.

Harkin respirou lentamente e começou à procura de alguma coisa numa pasta aberta. Encontrou um jornal e empurrou-o na direcção de Nicholas.

— Viu isto? É o Wall Street Journal de hoje.

— Não. Não leio esse jornal.

— Óptimo. Traz uma grande reportagem sobre o julgamento e o potencial impacto económico de um veredicto a favor da acusação na indústria do tabaco.

Nicholas não resistiu a deixar passar a oportunidade.

— A única pessoa que lê esse jornal é o Frank Herrera. Lê-o todas as manhãs, de fio a pavio.

— E hoje? Também o viu a ler o jornal?

— Vi. Enquanto estivemos à espera para entrar na sala de audiências, leu e releu o jornal.

— Fez algum comentário ?

—  Que eu saiba, não.

— Que maçada!

— Não sei porquê... — disse Nicholas fixando o olhar na parede.

— Não sabe?

— Eu não... Ele já tem a opinião formada!

Olhando atentamente para Nicholas, Harkin inclinou-se para a frente outra vez.

— O que é que quer dizer com isso?

— Na minha opinião, não devia ter sido escolhido para jurado. Não sei como é que ele respondeu ao questionário escrito mas, seja lá como for, posso garantir-lhe que não disse a verdade. Se tivesse dito, a estas horas, não estava onde está. Lembro-me perfeitamente das perguntas que nos fizeram durante a selecção do júri. E tenho a certeza de que ele mentiu ao responder.

— Pode continuar... sou todo ouvidos.

— Se não queria que o Meritíssimo ficasse zangado!... Ontem de manhã conversámos um bocado. Só estávamos nós os dois na sala do júri e, juro, não falávamos deste caso em particular. Mas começámos a falar sobre o tabaco e Frank confessou que tinha deixado de fumar há alguns anos. E também disse que as pessoas que não conseguem deixar de fumar não lhe inspiram qualquer tipo de simpatia.

O senhor sabe como é: o homem foi militar. Já está reformado, mas mantém uma atitude arrogante e rígida...

— Eu também estive na Marinha.

— Desculpe, Meritíssimo juiz. Quer que me cale?

— De modo nenhum. Peço-lhe até que continue.

— Eu continuo, mas é só porque o senhor doutor juiz me disse para continuar. Isto tudo põe-me tão nervoso que não imagina...

— Compreendo. Mas peço-lhe que continue.

— Com certeza. O coronel Frank acha que uma pessoa que fuma três maços de cigarros por dia, durante quase trinta anos, merece tudo o que lhe possa vir a acontecer. O caso não lhe inspira a mais pequena simpatia. Conversámos um bocadinho sobre este assunto, o senhor compreende que também sentimos necessidade de fazer conversa, mas veja lá que ele chegou ao ponto de me acusar de querer votar a favor da queixosa.

As palavras de Nicholas foram um rude golpe para o Meritíssimo juiz que, fechando e esfregando os olhos, com os ombros curvados para a frente, se afundou um pouco na cadeira.

— Era só o que me faltava — disse ele.

— Se soubesse não tinha dito nada.

— Não, agiu bem. Aliás, a culpa é minha.

O juiz sentou-se direito na cadeira, penteou o cabelo com os dedos e, forçando um sorriso, continuou:

— Senhor Easter. Vou pedir-lhe uma coisa, mas por favor não me interprete mal. Não quero fazer de si um delator. Mas estou preocupado com o júri... por causa das pressões externas. Como sabe, este tipo de litígio tem sido envolto em histórias estranhas. Por isso, peço-lhe que me comunique se vir ou ouvir alguma coisa, nem que seja apenas remotamente relacionada com um contacto não autorizado. Nessa altura, e com mais dados nas mãos, resolvemos o assunto de uma vez por todas.

— Pode contar comigo, senhor doutor juiz.

O artigo na primeira página do Journal era assinado por Agner l ,ay son, um repórter veterano que assistira a grande parte da selecção do júri e aos depoimentos de todas as testemunhas. Layson era formado em direito e, inclusivamente, tinha exercido advocacia durante muitos anos. Aquele artigo, o primeiro de uma série, apresentava os pontos básicos dos itens em julgamento e fazia a caracterização dos envolvidos. O artigo não veiculava nenhuma opinião sobre o andamento do julgamento, nem aventava nenhuma hipótese sobre o possível vencedor. Sobre o conteúdo do julgamento, o artigo não fazia mais do que descrever de forma correcta as conclusões médicas que a acusação tinha apresentado até àquela data.

Em consequência directa do artigo de Agner Layson, as acções da Pynex caíram um dólar na abertura da Bolsa mas, ao meio-dia, o mercado já parecia ter-se recomposto e as acções já tinham subido novamente.

O artigo provocou uma série de telefonemas com origem nas corretoras de Nova Iorque e com destino aos seus analistas deslocados em Biloxi. A decisão do júri era de importância capital para os profissionais da Bolsa mas, infelizmente, os analistas designados para acompanhar o julgamento não tinham a mais pálida ideia sobre o sentido de voto daquele júri.

 

O interrogatório de Bronsky terminou tarde na quinta-feira e Marlee atacou furiosamente na sexta-feira de manhã. Konrad atendeu o primeiro telefonema às sete e vinte e cinco, passou-o rapidamente a Fitch, que estava a falar ao telefone com Washington. Konrad ficou a ouvir o telefonema posto em sistema de alta voz.

—  Bom-dia, Fitch — disse ela, docemente.

—  Bom-dia Marlee — respondeu Fitch com voz jovial, fazendo o seu melhor para ser agradável. — Como vai?

— Fabulosamente. O número dois, Easter, vai estar vestido com uma camisa de ganga azul clara, jeans desbotadas, meias brancas, ténis velhos de corrida, Nike, acho eu. E vai ter na mão um número do Rolling Stones de Outubro, Meat Loaf na capa. Tomou nota de tudo?

—  Sim. Quando é que podemos encontrar-nos para conversar?

—  Quando estiver pronta. Adios. — Desligou. O telefonema foi localizado no pátio de um motel em Hattiesburg, Mississipi, a pelo menos noventa minutos de carro.

Pang, que estava num café a três quarteirões do apartamento de Easter, em poucos minutos estava parado à sombra de uma árvore, a cinquenta metros do apartamento, no seu antigo carocha. Exactamente às sete e quarenta e cinco, Easter saiu do prédio pela porta da frente e começou a sua habitual caminhada de vinte minutos até ao tribunal. Parou no mesmo mercado da esquina para comprar jornais e café.

Como era de esperar, estava vestido exactamente como Marlee disse que estaria.

O segundo telefonema também foi de Hattiesburg, mas de outro telefone.

— Tenho outra informação para si, Fitch. E vai adorar. Quase sem respirar, Fitch respondeu:

—  Estou a ouvir.

— Hoje, quando os jurados entrarem na sala, em vez de se sentarem, adivinhe o que vão fazer?

Fitch ficou petrificado. Mal podia mexer os lábios. Sabia que ela não esperava uma sugestão inteligente.

—  Desisto — disse.

— Vão fazer um juramento de bandeira. Fitch olhou incrédulo para Konrad.

—  Ouviu, Fitch? — perguntou ela, quase em tom de gozo.

—  Ouvi sim. Desligou.

O terceiro telefonema foi para o escritório de advocacia de Wendall Rohr que, de acordo com uma secretária, estava muito ocupado e não podia atender. Marlee compreendeu perfeitamente, mas explicou que tinha uma mensagem importante para o doutor Rohr. A mensagem chegaria dentro de cinco minutos por fax, portanto, seria possível a secretária ter a bondade de o receber e levar imediatamente ao doutor Rohr, antes de ele sair para o tribunal? A secretária concordou com relutância e, cinco minutos depois, encontrou a única folha de papel na bandeja do fax. Dactilografada a um espaço. No centro da página, a mensagem dizia:

«WR: jurado número 2, Easter, hoje vai estar de camisa de ganga azul-clara, calças desbotadas, meias brancas, Nikes velhos. Ele gosta da revista Rolling Stones e vai provar que é um bom patriota.»

A secretária correu para o escritório de Rohr onde ele estava a arrumar a sua pasta para a batalha daquele dia. Rohr leu o fax, fez um rol de perguntas à secretária, depois chamou o seu sócio para uma reunião extraordinária.

A atmosfera podia ser perfeitamente classificada como festiva, especialmente para doze pessoas que estavam ali contra vontade. Mas era sexta-feira e a conversa correu leve quando se reuniram, trocando cumprimentos. Nicholas sentou-se à mesa, perto de Herman Grimes, de frente para Frank Herrera, e esperou um intervalo na conversa. Olhou para Herman, que estava muito ocupado com o computador e disse:

— Herman, tive uma ideia.

Naquela altura Herman já conseguia distinguir as vozes dos onze jurados e a mulher tinha passado horas a descrever-lhe cada um deles. Conhecia perfeitamente a voz de Easter.

—  Sim, Nicholas.

Nicholas levantou a voz, num esforço para captar a atenção de todos.

—Quando era garoto, estudei numa escola particular e ensinaram--nos a começar o dia com o juramento de bandeira. Sempre que vejo a bandeira de manhã, tenho vontade de recitar o juramento. — Quase todos estavam a ouvir. Poodle tinha saído para fumar. — E no tribunal temos uma bela bandeira atrás do juiz e tudo o que fazemos é sentar-nos e olhar para ela.

— Não tinha reparado — disse Herman.

— Você quer fazer o juramento de bandeira na sala de audiências? — perguntou Herrera, Napoleão, o coronel reformado.

—  Isso mesmo. Porque não, uma vez por semana?

—  Não tem mal nenhum — disse Jerry Fernandez, recrutado secretamente para o acontecimento.

—  E o juiz? — perguntou a senhora Gladys Card.

—  Que mal é que tem? Porque é que alguém se há-de importar se ficarmos de pé por um momento homenageando a nossa bandeira?

—  Não está a brincar, pois não? — perguntou o coronel.

De repente, Nicholas ficou ofendido. Olhou para o coronel no outro lado da mesa e disse magoado:

—  O meu pai morreu no Vietname... Foi condecorado. A bandeira significa muito para mim.

E com isso, o caso ficou resolvido.

Quando entraram em fila na sala, o juiz Harkin recebeu-os com um caloroso sorriso de sexta-feira. Estava preparado para a rotina habitual sobre contactos não autorizados e para ir em frente com as testemunhas. Levou um segundo para perceber que não estavam a sentar-se como todos os dias. Ficaram todos de pé, depois olharam para a parede à sua esquerda, atrás do banco das testemunhas, com a mão direita sobre o coração. Easter abriu a boca e conduziu-os numa recitação vigorosa do juramento de bandeira.

A primeira reacção de Harkin foi de incredulidade total. Nunca tinha visto uma cerimónia daquelas numa sala de tribunal. Pelo menos, protagonizada por um grupo de jurados. Nem nunca tinha ouvido falar de uma coisa parecida, e neste momento da sua vida, Harkin pensava que já linha visto e ouvido de tudo. Não fazia parte do ritual diário, não fora aprovado por ele, na verdade não constava de nenhum manual ou compêndio. Assim, o seu primeiro impulso, depois do choque, foi mandar sentarem-se todos e parar com aquilo e conversar sobre o assunto mais tarde. Porém, no mesmo instante compreendeu que ia parecer horrivelmente antipatriótico, talvez até pecaminoso, interromper um grupo de cidadãos bem intencionados que homenageavam a sua bandeira. Olhou para Rohr e para Cable e o que viu foi duas bocas abertas.

Assim, o juiz ficou de pé. Mais ou menos no meio do juramento: i nclinou-se para a frente e para cima, a toga negra flutuando em volta dele, virou-se para a parede, levou a mão ao peito e entrou no coro.

Com o júri e o juiz homenageando a bandeira, de repente tornou-se imperativo que todos fizessem o mesmo, especialmente os advogados, que não podiam arriscar o desfavor do júri ou do juiz, nem demonstrar

o menor sinal de deslealdade. Levantaram-se de um salto, empurrando pastas e derrubando cadeiras. Glória Lane e sua equipa, a estenógrafa e Lou Dell, sentada na primeira fila, no outro lado, também ficaram de pé e acompanharam a recitação. Porém, o fervor perdeu o impulso mais ou menos na terceira fila dos espectadores. Desse modo, Fitch, por sorte, livrou-se de ficar de pé como um escoteiro e resmungar palavras que mal lembrava.

Estava sentado na última fila, com José de um lado, e Holly, uma sócia bonita e jovem, do outro. Pang estava fora da sala, no pátio de entrada. Doyle estava outra vez sentado sobre uma grade de Dr. Peper no primeiro andar, perto das máquinas de Coca-Cola, vestido como um operário, conversando com os porteiros e vigiando a porta da frente.

Fitch observou e ouviu completamente atónito. O espectáculo de um júri, por iniciativa própria e funcionando como um grupo, assumindo o controlo de um tribunal era simplesmente inacreditável. O facto de Marlee saber que aquilo ia acontecer era espantoso.

O facto de que ela estava a jogar era uma ideia estimulante.

Pelo menos, Fitch tinha uma ideia do que iam fazer. Wendall Rohr sentiu-se completamente encurralado. Ficou tão espantado quando viu Easter vestido exactamente como dizia a mensagem, segurando uma revista que pôs debaixo da cadeira para conduzir os jurados no juramento de bandeira, que só conseguiu dizer as últimas palavras, sem som. Fez isso sem olhar para a bandeira. Olhava para o júri, especialmente para Easter, tentando imaginar o que estava a acontecer.

Quando a última frase «... e justiça para todos» ecoou no tecto, os jurados tomaram os seus lugares e, em grupo, olharam rapidamente para a sala a fim de ver a reacção que tinham provocado. O juiz Harkin ajeitou a toga, enquanto remexia nos papéis sobre a mesa e parecia resolvido a agir como se todos os júris fizessem aquilo. O que podia dizer? Ao todo, a coisa durou trinta segundos.

A maior parte dos advogados procurava disfarçar o embaraço com aquela tola demonstração de patriotismo mas, se os jurados estavam felizes, eles estavam felizes também. Só Wendall continuou parado, aparentemente mudo de espanto. Um dos seus advogados encostou a mão ao seu braço e os dois começaram a conversar em voz baixa, enquanto o Meritíssimo seguia apressadamente com os comentários e perguntas da praxe para os jurados.

—  Acho que estamos prontos para a próxima testemunha — disse o juiz, ansioso para retomar o ritmo normal.

Rohr levantou-se, ainda atordoado, e disse:

— A acusação chama o doutor Hilo Kilvan.

Enquanto o novo especialista era conduzido da sala das testemunhas, atrás da cadeira do juiz, Fitch saiu da sala discretamente com José atrás dele. Atravessaram a rua e entraram na antiga loja que servia de escritório.

Os dois consultores de júri estavam calados na sala escura. No ecrã principal, um deles assistia ao começo do interrogatório do doutor Kilvan. Num monitor mais pequeno, o outro assistia à repetição do juramento de bandeira. Fitch parou ao lado do monitor e perguntou.

— Quando é que foi a última vez que assistiu a uma coisa parecida?

— A ideia foi de Easter — disse o consultor —, convenceu-os a fazer aquela cena..

— É claro que foi Easter—disse Fitch, irritado. — Toda a gente percebeu isso. — Como sempre, Fitch não estava a fazer jogo limpo. Nenhum dos consultores sabia dos telefonemas de Marlee, porque ele só tinha informado os seus agentes: S wanson, Doyle, Pang, Konrad e Holly.

-— Continuem a ver e rever a cena e vejam se me dizem alguma coisa que eu não saiba. — Saiu, bateu a porta e foi para o seu escritório.

Um novo advogado da acusação, Scotty Mangrum, de Dálias, encarregou-se do interrogatório directo do doutor Hilo Kilvan. Mangrum linha feito a sua fortuna processando empresas petroquímicas por acidentes provocados por tóxicos e agora, aos quarenta e dois anos, preocupava-se com produtos de consumo que causavam danos físicos e a morte. Depois de Rohr, foi o primeiro advogado a contribuir com um milhão para financiar o caso Wood, e ficou resolvido que ele devia informar-se a fundo sobre os dados estatísticos acerca do cancro de pulmão. Nos últimos quatro anos, Mangrum passou várias horas a ler todos os estudos e relatórios sobre o assunto e viajou extensivamente para conversar com especialistas. Com extremo cuidado, e sem se importar com despesas, escolheu o doutor Kilvan para visitar Biloxi e partilhar os seus conhecimentos com o júri.

O inglês do doutor Kilvan era perfeito, mas deliberadamente acrescentava-o com um leve sotaque, o que, de imediato, impressionou o júri. Poucas coisas podem ser mais persuasivas num tribunal do que um especialista que viajou de longe para estar ali e tem um nome e um sotaque exóticos. O doutor Kilvan morava em Montreal há quarenta anos, e o facto de ser de outro país acrescentava muito à sua credibilidade. O júri estava instalado muito antes de ele começar o seu depoimento. Ele e Mangrum, numa integração perfeita, descreveram o seu intimidante currículo, enfatizando especialmente o número de livros publicados sobre as probabilidades estatísticas de ocorrência de cancro do pulmão.

Finalmente, depois de questionado, Durr Cable concordou que o doutor Kilvan estava qualificado para testemunhar sobre o assunto. Scotty Mangrum agradeceu e começou com o primeiro estudo — a comparação dos índices de mortalidade por cancro de pulmão entre fumadores e não fumadores. O doutor Kilvan, que há vinte anos estudava esse assunto na universidade de Montreal, descontraiu-se na cadeira e explicou ao júri as bases da sua pesquisa. Para os homens americanos, e tinha estudado grupos de homens e mulheres em todo o mundo, mas principalmente canadianos e americanos, que fumam quinze cigarros por dia, durante trinta anos, o risco de ter cancro de pulmão é dez vezes maior do que para quem não fuma. Aumente para dois maços por dia, e o risco é vinte vezes maior. Com três maços, o número de maços fumados por Jacob Wood, o risco era vinte e cinco vezes maior do que para um não fumador.

Diagramas com cores vivas foram montados em três tripés e o doutor Kilvan, cuidadosamente e sem pressa, demonstrou perante o júri os resultados das suas pesquisas.

O estudo seguinte foi a comparação do índice de mortes por cancro do pulmão em relação ao tipo de tabaco usado. O doutor Kilvan explicou as diferenças básicas entre o fumo de cachimbo e o do cigarro e a incidência de cancro de pulmão entre os americanos que usavam estes dois tipos de tabaco. Tinha dois livros publicados sobre essa comparação e estava perfeitamente preparado para demonstrar a próxima série de diagramas e gráficos. Os números acumulavam-se e começavam a ficar confusos.

Loreen Duke foi a primeira a criar coragem para tirar o seu prato da mesa e ir comer sozinha a um canto. Como o almoço era pedido de acordo com a lista, às nove horas da manhã, e como Lou Dell e Willis, o segurança, e o pessoal da O'Reilly's Deli, além de todos os outros envolvidos na operação, procuravam ter a comida na mesa ao meio-dia em ponto, era necessária uma certa ordem. Os jurados passaram a sentar-se sempre nos mesmos lugares. Loreen ficava directamente à frente de Stella Hulic, que falava com a boca cheia e deixava grandes pedaços de pão pendurados entre os dentes. Stella era uma arrivista social, vestia-se com mau gosto e passava a maior parte dos intervalos tentando desesperadamente convencer os outros onze jurados de que ela e o marido, executivo aposentado de uma firma de canalizações chamado Cal, tinham mais dinheiro do que todos os outros. Cal tinha um hotel, um complexo de apartamentos, uma máquina de lavagem automática de carros, etc. Havia outros investimentos que saltavam para fora junto com a comida, como se ambos fossem apenas acidentes. Viajavam o tempo todo. O seu país favorito era a Grécia. Cal tinha um avião e vários barcos.

Como era do conhecimento geral, ao longo de toda a Costa, alguns anos atrás, Cal tinha usado um velho barco de pesca de camarão para transportar haxixe do México. Verdade ou não, os Hulic agora eram ricos e competia a Stella falar sobre isso com quem quisesse ouvir. Ela falava continuamente com uma voz monótona e fanhosa.

— Espero que hoje isto acabe mais cedo. Eu e o meu marido vamos passar o fim-de-semana a Miami. Abriram umas lojas fabulosas.

Todas as cabeças estavam inclinadas para os pratos, porque ninguém aguentava ver metade de um pãozinho preso entre os dentes. Cada sílaba era permanentemente acompanhada pelo som da comida colada aos dentes.

Loreen saiu da mesa antes de começar a comer. Foi seguida por Rikki Coleman, que se desculpou dizendo que precisava de se sentar perto da janela. De repente Lonnie Shaver precisou de trabalhar durante o almoço. Pediu licença e debruçou-se sobre o seu computador enquanto comia uma coxa de galinha.

— O doutor Kilvan é uma testemunha impressionante, não é? — perguntou Nicholas aos que estavam na mesa. Alguns olharam para Herman, que comia a sua habitual sanduíche de peru com pão branco, sem maionese e sem mostarda ou qualquer outro condimento. Uma sanduíche de peru fatiado e uma porção de batatas fritas podiam ser consumidos sem o benefício da visão. Por instantes, o movimento de mastigação de Herman ficou mais lento, mas não disse nada.

— É difícil ignorar aquelas estatísticas — disse Nicholas, sorrindo para Jerry Fernandez. Era uma tentativa deliberada de provocar o líder.

— Chega — disse Herman.

— Está a falar de quê, Herman?

— Das suas conversas sobre o julgamento. Conhece as regras do juiz.

— Mas o juiz não está aqui, pois não? E não pode saber sobre o que conversamos, ou pode? A não ser, é claro, que lhe conte.

— Quem sabe?... - .  /

— Quer conversar sobre quê?                                    , -

— Sobre qualquer coisa, menos o julgamento.

— Escolha um assunto. Futebol, o tempo...

— Não vejo futebol.

— Ha,ha!

Seguiu-se um pesado silêncio só quebrado pelo movimento da comida na boca de Stella Hulic. Evidentemente a breve troca de palavras entre os dois homens criou uma atmosfera de nervosismo e Stella começou a mastigar mais depressa ainda.

Mas Jerry Fernandez perdeu a paciência.

— Quer fazer o favor de deixar de fazer tanto barulho com a sua comida! — disse ele, irritado.

O comentário apanhou-a no meio de uma garfada, a boca aberta, a comida a aparecer. Olhou para Stella como se fosse agredi-la, respirou fundo e disse:

— Desculpe, está bem? Só que você tem uns modos horríveis à mesa.

Por um segundo ela ficou atónita. Depois embaraçada. Então, atacou. Muito vermelha, conseguiu engolir uma grande parte do que tinha na boca.

— Talvez também não goste dos seus modos — disse ela ofendida, e todos baixaram as cabeças. Todos queriam que aquele momento passasse.

— Pelo menos eu como em silêncio e com a boca fechada — disse Jerry, consciente da sua atitude infantil.

—Eu também — disse Stella.

-— Está enganada •— respondeu Napoleão que, por infelicidade, se sentava ao lado de Loreen Duke, em frente de Stella. — Você faz mais barulho do que uma criança de três anos.

Herman pigarreou ruidosamente e disse:

— Vamos todos respirar fundo e acabar o nosso almoço em paz. Enquanto todos se esforçavam para acabar de comer houve um

silêncio pesado. Jerry e Poodle saíram para a sala de fumadores seguidos por Nicholas Easter que não fumava, mas precisava de uma mudança de cenário. Caía uma chuva fina e o passeio diário pela cidade foi cancelado.

Encontraram-se na sala pequena e quadrada com cadeiras desdobráveis e uma janela aberta. Angel Weese, a mais calada de todos, logo se juntou a eles. Stella, a quarta fumadora, estava ofendida e resolveu ficar na sala dos jurados.

Poodle não se importava de falar sobre o julgamento. Nem Angel. O que mais tinham em comum? Aparentemente concordavam com a

opinião de Jerry: toda a gente sabe que o tabaco provoca cancro. Portanto, quem fuma está consciente do risco que corre.

Porque razão se havia de dar milhões aos herdeiros de um homem morto que fumou durante trinta anos? Não havia nenhuma razão para isso.

 

Embora os Hulic desejassem viajar num jacto pequeno e elegante, com bancos de couro e dois pilotos, tinham de se contentar com um velho bimotor Cessna que Cal podia pilotar quando o Sol estava alto e não havia nuvens. Mas Cal não ousava voar à noite, especialmente, para um lugar tão movimentado como Miami. Por isso, apanharam um avião no aeroporto municipal de Gulfport com destino a Atlanta. E de Atlanta voaram para o aeroporto internacional de Miami, em primeira classe. Stella bebeu dois martinis e um copo de vinho em menos de uma hora. Tinha sido uma longa semana. Estava arrasada dos nervos com aquele julgamento.

Depois de arrumarem a bagagem no táxi, foram para Miami Beach e hospedaram-se num Sheraton.

Marlee seguiu-os. Sentou-se atrás deles no primeiro avião e, no segundo, viajou em segunda classe. Mandou o táxi esperá-la enquanto deu voltas ao hotel para se certificar de que estavam de facto ali instalados. A seguir, instalou-se a um quilómetro, num hotel de turismo num quarto junto à praia. Esperou quase até às onze horas da noite de sexta-feira para telefonar.

Stella estava cansada e a única coisa que queria era tomar uma bebida e jantar no quarto. Uma bebida, não! Stella queria várias bebidas. No dia seguinte ia fazer compras, mas antes precisava de beber. Quando o telefone tocou, Stella estava quase inconsciente deitada na cama. Cal, de cuecas, atendeu o telefone.

— Está...

— Senhor Hulic? — disse a voz muito clara e profissional de uma mulher jovem. — O senhor devia ter cuidado.

— Como?

— Os senhores estão a ser seguidos.    

Cal esfregou os olhos.                              

— Quem fala?

— Ouça com atenção. A sua mulher está a ser vigiada por uns homens. Estão aqui em Miami. Sabem que vieram no voo 4476, de Biloxi para Atlanta, e no voo 533 da Delta, para Miami. E sabem perfeitamente em que quartos estão instalados. Vigiam todos os vossos movimentos.

Cal olhou para o telefone e bateu com a mão na testa.

— Desculpe, eu...

—Tenha atenção porque, provavelmente, vão pôr-lhes os telefones sob escuta — acrescentou. — Portanto, por favor, tenha cuidado.

— Está a falar de quem? — perguntou em voz alta. E, nesse momento, Stella ergueu-se na cama. Conseguiu pôr os pés no chão e ol liou para o marido com os olhos embaciados.

— De pessoas contratadas pelas tabaqueiras — foi a resposta. — são muito perigosas.

A mulher desligou. Cal olhou para o auscultador e depois para a mulher que estendeu a mão na direcção do maço de cigarros.

— O que foi? — perguntou Stella com uma voz arrastada. E Cal repetiu todas as palavras que tinha ouvido ao telefone.

— Oh, meu Deus!— disse Stella com uma voz estridente. Dirigiu-se à mesa onde estava a televisão e, pegando numa garrafa, serviu-se

de outro copo de vinho. — Por que é que andarão atrás de mim? — perguntou, deixando cair o corpo sobre uma cadeira e entornando o vi nho por cima do roupão do hotel. — Porquê eu?

— A mulher não disse que te iam matar — explicou Cal, num tom em que era possível vislumbrar um leve desapontamento.

— Por que é que me andam a seguir? — Stella estava quase a chorar.

— Como é que hei-de saber? — rosnou Cal. Tirou uma cerveja do

minibar e os dois ficaram a beber em silêncio durante alguns minutos, estavam confusos e evitavam olhar um para o outro.

O telefone voltou a tocar e Stella desatou aos gritos. Lentamente, Cal pegou no auscultador.

— Estou...

— Sou eu outra vez — disse a mesma voz, mas agora num tom alegre. — Esqueci-me de lhe dizer uma coisa: nem pense em chamar a polícia. As pessoas que os estão a vigiar sabem fazer as coisas. Finja que não se passa nada.

— Quem é a senhora? — perguntou ele.

— Até logo — e desligou.

A Listing Foods não tinha apenas um jacto, tinha três, e um deles fora mandado a Biloxi, no sábado bem cedo, para ir buscar o senhor Lonnie Shaver e trazê-lo até Charlotte. Lonnie ia viajar sozinho. A mulher não tinha encontrado uma baby-sitter disponível para lhe ficar com os três filhos. Os pilotos receberam-no calorosamente e, antes de levantar, ofereceram-lhe café e frutas.

Ken estava à espera dele no aeroporto com uma carrinha da firma. Quinze minutos depois de se terem encontrado estavam na sede da SuperHouse, num subúrbio de Charlotte. Lonnie foi recebido por Ben, o segundo homem que conhecera em Biloxi. Juntos, percorreram rapidamente o edifício da companhia. A sede estava instalada num prédio novo: uma construção térrea de tijolo com muito vidro que em nada se distinguia das dezenas de outras que tinham visto no trajecto desde o aeroporto. Os corredores eram largos, de azulejos imaculadamente limpos. Os escritórios pareciam esterilizados e era possível reconhecer sinais de tecnologia por todo o lado. A sensação de prosperidade era tão grande que Lonnie deu por si a imaginar que ouvia tilintar moedas.

Beberam um café no escritório de George Teaker, um dos directores executivos. O escritório era espaçoso, tinha vista para um pequeno terraço com plantas de plástico. Teaker era um jovem vigoroso. Vestia jeans e camisa, facto que mereceu uma explicação:

— É o meu uniforme de sábado. Aos domingos, uso fato de treino

Teaker fez a apologia da companhia: estava a crescer e estavam interessados em Lonnie. Logo de seguida, Teaker saiu para uma reunião.

Numa sala pequena e sem janelas, Lonnie sentou-se em frente de uma mesa sobre a qual havia café e bolinhos. Quando as luzes se apagaram e apareceu uma imagem na parede, Ben desapareceu, mas Ken ficou sentado ao seu lado. Era um vídeo de trinta minutos sobre a SuperHouse — um breve historial da empresa, a sua posição actual no

mercado e alguns minutos dedicados aos ambiciosos planos de crescimento. Os lucros previstos eram espantosos.

Quando as luzes se acenderam de novo apareceu um jovem atarefado e sentou-se no outro lado da mesa. Era especialista em regalias laborais e sabia tudo sobre seguros de saúde, planos de poupança-reforma, férias, feriados, baixas médicas e direito de opção para a compra de acções por parte dos empregados. Estava tudo explicado ao pormenor num dossier posto em cima mesa em frente de Lonnie que, mais tarde, o poderia ler e estudar com calma.

Depois de um demorado almoço com Ben e Ken num elegante restaurante daqueles subúrbios, Lonnie voltou para a sala fechada para ter mais algumas reuniões. Numa delas o tema era o programa de formação que lhe queriam oferecer. Na reunião seguinte, apresentada em vídeo, mostrava-se a estrutura da companhia, com centro na sede, e explicava-se ao pormenor a sua situação em relação à concorrência. No final desta segunda sessão de vídeo, Lonnie estava completamente entediado. Tinha passado a semana inteira sentado a ouvir discussões de advogados com especialistas de várias áreas do saber e estava farto. Aquela não era a melhor maneira de passar a tarde de sábado. Por mais entusiasmado que estivesse com a visita e com as perspectivas de trabalho e promoção, Lonnie começou a pensar que precisava de respirar ar puro.

Ken apercebeu-se da situação e, assim que o vídeo terminou, sugeri u uma partida de golfe, apesar de Lonnie nunca ter jogado golfe antes. Mais uma vez, Ken apercebeu-se da situação e rapidamente mudou de opinião, sugerindo apenas que saíssem do edifício para apanhar sol. O BMW de, Ken era azul e estava imaculadamente limpo. Ken era um condutor muito cauteloso. Passaram por quintas bem tratadas, grandes propriedades e por uma estrada ladeada de árvores que desembocava no Country Club.

Para um negro de uma família de classe média de Gulfport, a ideia de entrar num Country Club era assustadora. A princípio, Lonnie tentou defender-se e jurou a si mesmo que, se não visse outro negro no clube, saía dali a toda apressa. Mas, pensando bem, sentia-se de certo modo lisonjeado com a consideração que os seus empregadores pareciam ter por ele. Eram umas pessoas amáveis, sinceras e, aparentemente, estavam ansiosos para que ele se ajustasse à cultura da empresa. Até àquele momento, ainda não tinham falado de salário. Mas com certeza que não havia de ser menos do que aquele que Lonnie já auferia.

Entraram no Club Lounge, numa sala enorme com cadeiras de couro, animais empalhados nas paredes e uma nuvem azul de fumo a pairar perto do tecto. Era uma sala tipicamente masculina.

Encontraram George Teaker, agora vestido para jogar golfe, numa mesa grande perto da janela, com o campo de golfe por baixo. George Teaker estava a tomar uma bebida com dois homens negros, também muito bem vestidos e que, aparentemente, tinham acabado de voltar do campo de golfe. Os três levantaram-se e cumprimentaram calorosamente Lonnie, aliviado por ver aquelas almas gémeas.

Ao ver os dois negros, Lonnie sentiu que lhe tinham tirado um enorme peso de cima do peito e, de repente, sentiu-se pronto para beber uma bebida, embora fosse sempre muito cuidadoso com o álcool.

O negro maior era Morris Peei, efusivo e alegre, com um grande sorriso. E foi Morris quem apresentou o outro, Percy Kellum, de Atlanta. Tinha quarenta e poucos anos e, quando pediu a primeira rodada de bebidas, Peei explicou que era vice-presidente da Listing Foods, em Nova Iorque, e Kellum tinha um posto importante numa das filiais.

Não foi estabelecida nenhuma ordem hierárquica, nem era preciso. Estava claro que Peei, da empresa mãe em Nova Iorque, tinha um cargo superior ao de Teaker, director executivo, mas apenas de uma empresa. Kellum estava um pouco abaixo. Ken, ainda mais abaixo. E Lonnie sentia-se simplesmente feliz por estar ali. Durante a segunda bebida, e depois de já terem percorrido todos os temas recomendados socialmente, Peei, com grande prazer e humor, contou a sua biografia. Dezasseis anos antes tinha sido o primeiro negro a chegar ao cargo de gerente de nível médio e a entrar para o mundo da Listing Foods. E não tinha sido nada fácil. Contratado como um símbolo, e não como um talento, foi obrigado a lutar arduamente para subir na firma. Processou a empresa por duas vezes, e ganhou. Mas quando os administradores perceberam que Peei estava perfeitamente determinado a juntar-se a eles, e que tinha as capacidades necessárias, aceitaram-no como pessoa. Ainda agora, nem sempre era fácil, mas Peei tinha conquistado o respeito de toda a gente. Teaker, já no terceiro copo, inclinou-se para a frente e confidenciou a Lonnie que Peei estava a ser preparado para assumir um grande cargo.

— Provavelmente, estamos aqui sentados a conversar com um futuro director executivo, um dos mais importantes directores executivos de uma empresa Fortune 500.

Por causa de Peel, a Listing Foods tinha implementado uma política agressiva de recrutamento e promoção de gerentes negros. Era aí que se podia encaixar Lonnie. A Hardley Brothers era uma empresa decente mas antiquada, eivada de tradições sulistas. Por isso, era surpresa para a Listing encontrar apenas alguns negros com mais autoridade do que as mulheres da limpeza.

Durante duas horas, enquanto a noite caía sobre o campo de golfe e um pianista tocava e cantava no bar do clube, beberam, conversaram e fizeram planos para o futuro. O jantar foi servido no outro lado do hall, numa sala privada, com a lareira encimada por uma cabeça de alce americano. Comeram bifes espessos com molho de cogumelos. Naquela noite, Lonnie dormiu no terceiro andar do Country Clube e acordou no dia seguinte, com uma ligeira ressaca, mas com uma vista fantástica sobre o campo de golfe.

Lonnie só tinha duas breves reuniões programadas para a manhã de domingo. A primeira, novamente com a presença de George Teaker, que chegou com um fato de jogging, vindo da sua corrida de oito quilómetros.

— Correr é o melhor que há para curar a ressaca — disse ele.

Teaker queria que Lonnie dirigisse o supermercado em Biloxi. Queriam fazer-lhe um novo contrato e pô-lo à experiência durante noventa dias. Depois disso, reavaliavam o seu desempenho. Se ficassem satisfeitos, e tinham a certeza de que iriam ficar, transferiam-no para um supermercado maior, provavelmente na área de Atlanta. Uma casa maior significava mais responsabilidades e um ordenado melhor. Ao fim de um ano, seria reavaliado novamente e, o mais provável, era mandarem-no para outro supermercado. Durante esse período de quinze meses, devia passar pelo menos uma semana por mês em Charlotte, num programa de formação na área de gestão, que aliás estava descrito em pormenor num dos dossiers que estava em cima da mesa.

Finalmente, Teaker terminou a prelecção e pediu mais café.

O último orador era um jovem negro, magro e forte, calvo, vestido com fato e gravata. Chamava-se Taunton, era advogado em Nova Iorque, mais precisamente em Wall Street. A sua firma representava a Listing Foods. E, com ar solene, Taunton explicou que se ocupava exclusivamente dos negócios da Listing. Estava ali para apresentar uma proposta de contrato laboral, uma questão de pura rotina, mas muito importante. Entregou a Lonnie um documento de apenas três ou quatro páginas, mas que parecia muito mais pesado depois da longa viagem de Wall Street. Lonnie estava extremamente impressionado.

— Leia isso — disse Taunton, batendo com uma caneta de marca no queixo — e conversamos na próxima semana. É o contrato habitual. O parágrafo que trata das regalias tem várias partes em branco. Preenchemo-las mais tarde.

Lonnie olhou para a primeira página, depois juntou aos papéis os dossiers e a pilha de memorandos que crescia a cada momento. Taunton tirou do bolso um bloco de apontamentos, como se se estivesse a preparar para iniciar um severo interrogatório.

— São só umas perguntas sem importância — disse ele.

A imagem do tribunal de Biloxi passou como umflash pela mente de Lonnie: os advogados tinham sempre «apenas umas perguntas sem importância.»

—Claro — disse Lonnie, consultando o relógio, embora não pudesse evitar o que se seguiria.

— Já alguma vez foi parte interessada num processo criminal?

— Não. Só tive algumas multas por excesso de velocidade.

— Já alguma vez foi movido um processo contra si?

— Não.

— E contra a sua mulher?

— Não.

— Alguma vez foi à falência?

— Não.

— Já foi preso?

- Não.

— E indiciado?

—Também não.

Taunton virou a página.

— Como gerente, alguma vez se envolveu num litígio?

— Sim. Deixe-me ver. Mais ou menos há quatro anos, um velho escorregou e caiu no chão molhado. Entrou com um processo na justiça e fui chamado a depor.

- Foi julgado? — perguntou Taunton com grande interesse. Tinha investigado o registo criminal de Lonnie, tinha a pasta cheia de papéis e conhecia-os todos em pormenor. Claro que também estava ao corrente do pedido de indemnização do velho.

— Não. A companhia de seguros fez um acordo extra-judicial. Acho que pagaram mais ou menos vinte mil.

Eram vinte mil. Mas Taunton anotou a quantia no bloco. Teaker continuou a ler o seu inquérito como estivesse a ler o guião de um filme e disse a deixa seguinte:

— Malditos advogados de barra. São uma praga da sociedade. Taunton olhou para Lonnie, depois para Teaker, e disse defensivamente:

— Não sou advogado de barra.

— Eu sei! — respondeu Teaker. — O que detesto são aqueles advogados que andam sempre a ver se descobrem desgraças e acidentes para ver se tramam os potenciais culpados.

— Sabe quanto é que pagámos no ano passado de seguros de responsabilidade civil para cobrir danos potencialmente causados por produtos? — Taunton fez esta pergunta a Lonnie, embora tivesse a certeza de que ele não saberia responder. Lonnie abanou a cabeça.

— A Listing pagou mais de vinte milhões.

— Só para manter os tubarões à distância! — acrescentou Teaker. Fez-se um silêncio dramático ou, pelo menos, o silêncio foi feito com

o propósito de criar um ambiente dramático. Taunton e Teaker mordiam os lábios, demonstrando desta forma a sua aversão aos «tubarões», o que em linguagem corrente se pode traduzir por «advogados». O ar pensa-ti vo devia-se, com certeza, à indignação que lhes causava pensar no dinheiro desperdiçado na protecção contra eventuais processos.

Taunton consultou o seu bloco de apontamentos, olhou para Teaker e perguntou:

— Suponho que não falaram sobre o julgamento? Teaker ficou surpreendido.

— Acho que não é necessário. Lonnie é um dos nossos. Já vestiu a camisola.

Taunton ignorou a observação.

— O julgamento contra as tabaqueiras, em Biloxi, tem sérias implicações em toda a economia, especialmente em empresas como a nossa.

— disse Taunton dirigindo-se a Lonnie, que meneou a cabeça afirmati -vãmente, tentando demonstrar com esse simples gesto que percebia muito bem o tipo de implicações que aquele julgamento podia ter noutras empresas que não fossem a Pynex. Teaker disse a Taunton:

— Não tenho a certeza se deva falar sobre isso. Taunton continuou:

— Está coberto de razão: aliás, a lei impede-nos de conversar sobre este assunto, mas o Lonnie não se importa, pois não? Quero dizer, podemos confiar em si, não podemos?

— Claro. A minha boca não se vai abrir.

— Se a acusação ganhar esse caso e se o veredicto lhe for favorável, ficam abertas as portas para uma grande guerra contra todas as tabaqueiras do país. Os advogados de barra vão ficar loucos de entusiasmo e convencem-se que podem levar as tabaqueiras à falência. E o pior é que se as coisas forem assim, até podem.

— Ganhamos muito dinheiro com a venda de cigarros, Lonnie — disse Teaker no momento exacto.

— Provavelmente, a seguir, vão lembrar-se de processar as indústrias de lacticínios, alegando que o colesterol mata. — Taunton levantou a voz e inclinou-se para a frente no outro lado da mesa. O assunto tinha atingido um ponto sensível. —Há que acabar com este tipo de processos. Até hoje, a indústria do tabaco ainda não perdeu nenhum processo. Acho que já ganhou cinquenta e cinco processos sem sofrer uma única derrota. Tem tido a sorte de os jurados perceberem que quem fuma tem de assumir os seus próprios riscos.

— Lonnie compreende isso... — disse Teaker num tom defensivo. Taunton respirou profundamente.

— Claro. Desculpe se falei de mais. O que acontece é que nesse julgamento de Biloxi há demasiadas coisas em jogo.

— Não tem problema nenhum! Eu percebo — disse Lonnie. E, na verdade, a conversa não o perturbava. Afinal, Taunton era advogado e certamente conhecia a lei. Portanto, talvez não fosse aceitável falar dos pormenores do processo, mas com certeza que não tinha mal nenhum em falar do assunto em geral. Lonnie estava satisfeito. Já tinha vestido a camisola: era um deles. Pelo seu lado, não via problema nenhum em abordar aquele assunto.

De repente, Taunton, todo sorridente, guardou o bloco de apontamentos e prometeu telefonar a Lonnie a meio da semana. A reunião tinha acabado e Lonnie era um homem livre. Ken levou-o de carro até ao aeroporto, onde o mesmo avião, com os mesmos simpáticos pilotos, o esperavam.

A meteorologia prometia chuva para a tarde e, isso, para Stella, era

o suficiente. Cal insistia que não havia nenhuma nuvem no céu, mas ela recusava-se a olhar. Fechou as persianas e, até ao meio-dia, esteve a ver filmes na televisão. Pediu uma tosta de queijo e dois bloody niarys. Depois, dormiu com a corrente de segurança posta e com uma cadeira encostada à porta a travar a maçaneta. Cal saiu para a praia, mais propriamente para uma praia de topless, de que já tinha ouvido falar várias vezes, sem nunca ter tido a oportunidade de a visitar. Stella estava sempre demasiado perto. Desta vez, como tinha ficado em segurança no quarto do hotel, no décimo andar, estava livre para passear na areia e admirar carne jovem. Bebeu uma cerveja num barzinho de praia com telhado de palha, enquanto pensava no bem que lhe estava a saber aquela viagem. Stella estava com medo de ser vista e, por isso, e pelo menos durante aquele fim-de-semana, os cartões de crédito estavam a salvo.

No domingo de manhã apanharam o avião e voltaram para Biloxi.

Depois de passar o fim-de-semana em constante vigilância, Stella estava de ressaca e exausta. Pensava na segunda-feira e no tribunal com grande apreensão.

 

Na manhã de segunda-feira, os cumprimentos foram pouco entusiastas. Aquela rotina já começava a cansar. O pior não era a repetição; era a incomodidade de ninguém lhes saber dizer até quando é que aquilo se ia arrastar. Formaram pequenos grupos e conversaram sobre o que lhes tinha acontecido durante os dias de liberdade do fim da semana. De um modo geral, tinham-se ocupado com afazeres domésticos e familiares: fizeram compras, visitaram a família, foram à igreja, ou seja, fizeram todo o tipo de coisas que adquirem mais importância quando as pessoas estão fora de casa durante a semana.

Como Herman chegou atrasado houve comentários murmurados sobre o julgamento. Nada de muito importante, mas ficou claro um consenso geral: todos achavam que o caso da acusação estava afundado num pântano de gráficos, mapas e estatísticas.

Todos acreditavam que o tabaco provocava cancro e, por isso, teriam gostado que a acusação apresentasse novas informações. Logo de manhã, Nicholas conseguiu isolar Angel Weese. Durante o julgamento tinham trocado breves amabilidades, nada mais. Ela e Loreen Duke eram as únicas mulheres negras no júri e, estranhamente, guardavam uma certa distância uma da outra. Angel era magra, quieta, solteira e trabalhava numa distribuidora de cerveja. Aparentava suportar silenciosamente uma grande dor e não era fácil conversar com ela.

Stella chegou tarde e parecia a própria imagem da morte. Olhos vermelhos e inchados, o rosto pálido. Quando se serviu de café tinha as mãos a tremer e foi directamente para o fim do corredor, para a sala de fumadores. Jerry Fernandez e Poodle já lá estavam: como de costume, aproveitavam todos os intervalos para conversar e «flirtar» um pouco.

Nicholas estava ansioso para ouvir a descrição do fim-de-semana de Stella.

— Apetece-lhe um cigarro?— perguntou Nicholas a Angel, a quarta fumador oficial do grupo.

— Desde quando é que passou a fumar? — perguntou ela, sorrindo.

— Na semana passada. Quando o julgamento acabar, paro. — Saíram da sala do júri sob o olhar curioso de Lou Dell e juntaram-se aos outros: Jerry e Poodle continuavam a conversar; Stella, com o rosto i nexpressivo, encontrava-se à beira de um colapso nervoso.

Nicholas pediu um Camel a Jerry e acendeu-o com um fósforo.

—  EntãoMiami?Foibom?— perguntou a Stella. Ela virou a cabeça bruscamente e disse:

— Choveu! — Mordeu o filtro do cigarro e deu uma passa profunda. Não queria falar com ninguém. A conversa ficou ainda menos animada porque os presentes concentravam-se nos cigarros. Faltavam dez para as nove, ou seja, aquela era a hora certa para a última dose de nicotina antes de a sessão do dia começar.

—  Acho que este fim-de-semana fui seguido — disse Nicholas depois de um minuto de silêncio.

Continuaram todos a fumar, tentando não dar grande importância ao que tinha sido dito.

— Desculpe, o que é que disse? — perguntou Jerry.

— Seguiram-me — repetiu Nicholas, reparando nos olhos de Stella: estavam arregalados de medo.

— Quem? — quis saber Poodle.

— Não sei. Só sei que no sábado, quando saí de casa para ir trabalhar, vi um homem parado junto do meu carro. Quando cheguei ao emprego, já lá estava. Deve ser um espião ou um bandido contratado pelas tabaqueiras.

Stella abriu a boca e o seu queixo tremeu-lhe. Saiu-lhe fumo cinzento pelas narinas como se tivesse deixado de controlar os movimentos.

— Vai contar isso ao juiz? — perguntou, sustendo a respiração. Ela e Cal já tinham conversado sobre isso.

— Não.

— Porque não? — perguntou Poodle, sem muita curiosidade.

— Não tenho a certeza. Quero dizer, tenho a certeza de que fui seguido, mas não sei por quem. Por isso, que é que tenho para dizer ao juiz?

- Diga que foi seguido — sugeriu Jerry.

- Mas o que é que pode justificar que o tenham seguido? — per-

guntou Angel.

_ Não sei. Mas suponho que seja pela mesma razão porque nos

vigiam a todos.

— Não acredito nisso — disse Poodle.

Claro que Stella acreditava.... mas se Nicholas, ex-estudante de Direito achava que não devia contar ao juiz, quem era ela para ter uma opinião diferente. Também não ia contar nada.

— Mas porque é que acha que nos estão a seguir? — perguntou

Angel, nervosa.

_ porque é isso que eles fazem. As tabaqueiras gastaram milhões para nos escolher e, agora, gastam o que for preciso para nos vigiar.

— O que é que eles procuram?

- Uma maneira de chegar até nós. Amigos com quem podemos conversar. Lugares que podemos frequentar. Espalham boatos nas nossas comunidades, pequenas histórias sobre o falecido, inventam erros que tenha feito em vida... Estão sempre à procura de um ponto fraco. Por isso é que nunca perderam um julgamento.

- Como é que sabe que são as tabaqueiras? — perguntou Poodle,

acendendo outro cigarro.

- Não sei. Mas têm mais dinheiro do que a queixosa. Na verdade,

dispõem de fundos ilimitados para enfrentar estes casos.

Jerry Fernandez, sempre pronto a ajudar com uma piada ou uma

brincadeira, disse:

- Pensando bem, este fim-de-semana, também me lembro de ter visto um homem estranho e pequeno a olhar para mim numa esquina. E vi-o mais do que uma vez. — Olhou para Nicholas à espera de aprovação, mas Nicholas estava a olhar para Stella. Jerry piscou o olho

a Poodle, mas ela não viu. Lou Dell bateu à porta.

Na segunda-feira de manhã foram dispensados os juramentos e os hinos. O juiz Harkin e os advogados ficaram na expectativa: ao mais pequeno sinal de que os jurados se fossem levantar para repetir a cena do juramento de bandeira, eles próprios também se levantavam com inabalável patriotismo. Mas nada aconteceu! Os jurados sentaram-se com um ar cansado e aparentemente resignado: aquilo era o começo de mais outra longa semana de depoimentos. Harkin olhou para eles com um caloroso sorriso de boas-vindas e prosseguiu com o seu monólogo sobre contactos não autorizados. Stella olhava para o chão, sem dizer uma palavra. Cal estava presente, sentado na terceira fila, para apoiar a mulher.

Scotty Mangrum levantou-se e informou o tribunal de que a acusação gostaria de continuar com o depoimento do doutor Hilo Kilvan, saído de um recôndito lugar da sala e passado para o banco das testemunhas. Cumprimentou o júri com uma amável inclinação da cabeça. Ninguém respondeu.

Para Wendall Rohr e a equipa de advogados da acusação, o fim-de-semana não tinha significado descanso do trabalho árduo. O julgamento propriamente dito apresentava desafios suficientes, mas o fax de MM, na sexta-feira, tinha criado o caos e abalado o aparente ambiente de ordem até aí vivido por todos. Tinham conseguido descobrir que o fax fora enviado de um posto de abastecimento de camiões situado perto de Hattisburg. Um dos empregados, depois de um não muito dispendioso suborno, descreveu vagamente a rapariga que o tinha enviado: vinte e poucos anos, talvez trinta, cabelo escuro, um barrete de pescador castanho e o rosto escondido sob uns enormes óculos escuros. Era baixa, ou talvez de estatura média. Um e setenta ou um e oitenta. Talvez. Era magra, disso estava certo, e não conseguia ser mais preciso: tudo tinha acontecido às nove horas da manhã de sexta--feira, um dos períodos mais movimentados do posto. Pagou cinco dólares pelo envio do fax de uma página para um número em Biloxi, de um escritório de advogados, e foi isso que o empregado tinha achado estranho. Aliás, foi por isso que não se esqueceu. A maioria dos faxes enviados dali eram sobre licenças para abastecer e cargas especiais.

O empregado não tinha a mais pequena ideia sobre o carro em que ela seguia, mas como já tinha dito o posto estava cheio.

A opinião unânime dos oito principais advogados de acusação, que em conjunto perfazem 150 anos de experiência em julgamentos, era de que um facto assim era completamente novo. Nenhum deles se lembrava de um caso em que uma pessoa alheia ao julgamento entrasse em contacto com os advogados envolvidos adiantando previsões sobre os actos dos jurados. Todos achavam que ela, MM, voltaria. E, embora a princípio lhes tivesse sido difícil admiti-lo, durante o fim-de-semana tinham chegado à conclusão de que, provavelmente, ia exigir dinheiro. Ou seja, ia tentar negociar um acordo: dinheiro a troco de um veredicto.

A equipa de acusação nem conseguia delinear uma estratégia para negociar com a mulher. Pelo menos de momento. Talvez mais tarde, mas naquele momento não...

Fitch, pelo seu lado, não pensava noutra coisa. Naquela altura, e descontados os dois milhões destinados às despesas do julgamento, o Fundo ainda dispunha de meio milhão de dólares. O dinheiro tinha liquidez quase imediata e grande mobilidade. Fitch passou o fim-de-semana a vigiar os jurados, a conversar com os advogados, a ler novamente os dossiers compilados sobre o júri e passou muito tempo ao telefone a conversar com D. Martin Jankle, da Pynex. Ficou satisfeito com o resultado da actuação de Ken e Ben, em Charlotte. E George Teaker garantiu que Lonnie Shaver era um homem em quem podiam confiar. Chegou até a ver um vídeo filmado secretamente durante a última reunião de Lonnie com Taunton e Teaker. Praticamente só tinha faltado convencerem Shaver a assinar um compromisso.

No sábado, Fitch dormiu quatro horas e, no domingo, cinco. Fitch dormia pouco, por isso aquelas poucas horas de sono não saíam da sua média habitual. Sonhou com Marlee e com as vantagens que ainda lhe pudesse vir a trazer. Aquele podia vir a ser o veredicto mais fácil de todos.

Na segunda-feira assistiu à abertura da sessão na sala onde, através de ecrãs de televisão, se podia ver tudo o que se passava na sala de audiências. Acompanhava-o um especialista em júris. A câmara escondida estava a funcionar tão bem que resolveram experimentar uma melhor, com lentes maiores e imagem mais definida. Puseram-na dentro da mesma pasta, debaixo da mesma mesa e sabiam que ninguém, na sempre movimentada sala de audiências, imaginava sequer o que se passava.

Parecia estar tudo em ordem, mas Fitch já o esperava. Se não fosse assim, Marlee ter-lhe-ia telefonado antes.

Ouviu o resumo final do depoimento do doutor Hilo Kilvan e quase sorriu com a expressão de medo dos jurados. Os seus consultores e advogados eram unânimes na certeza de que as testemunhas de acusação não tinham conseguido cativar o júri. Os especialistas im-

pressionavam pelo método visual com que expunham as suas ideias e pelos diplomas e credenciais com que se apresentavam. Mas a defesa sabia que isso não era suficiente: já tinha assistido a situações como aquela.

A defesa seria simples e subtil. Os seus médicos argumentariam exaustivamente no sentido de provar que o tabaco não provoca cancro. Outros especialistas, com excelentes referências profissionais e curriculares, provariam que a escolha dos fumadores é perfeitamente informada. E, finalmente, os seus advogados argumentariam que se o tabaco é tão perigoso como dizem, não é aceitável que os fumadores não tenham pleno conhecimento dos riscos que correm.

Fitch já tinha passado por situações como aquela muitas vezes. Sabia de cor o que as testemunhas iam dizer. Já tinha sofrido com os argumentos dos advogados, suado enquanto os júris deliberavam, mas nunca tivera a hipótese de comprar um veredicto.

Segundo o doutor Kilvan, o tabaco mata quatrocentos mil americanos por ano e apresentou quatro gráficos para provar a sua afirmação. Para este especialista, o tabaco é o produto mais mortífero que se encontra no mercado. Nenhum outro se lhe aproxima em termos numéricos e de impacto na saúde pública. Isto, exceptuando, talvez, as armas de fogo.

Este ponto provocou um certo impacto no júri e não seria esquecido mais tarde. Às dez e meia, os jurados estavam prontos para o intervalo: precisavam de tomar café e de ir à casa de banho. Nicholas passou um bilhete a Lou Dell e ela entregou-o a Willis que, por acaso, estava acordado. Pegou no bilhete e levou-o até ao juiz. Easter queria ter uma conversa particular com o juiz. Se possível, ao meio-dia. Era urgente.

Nicholas pediu que o dispensassem do almoço, alegando que não estava bem do estômago. Queria ir à casa de banho e, assim que se sentisse melhor, voltava. Ninguém ligou importância à explicação de Nicholas. Estavam mais interessados nas movimentações em torno da mesa: a maior parte dos jurados saía da mesa antes que tivesse de ficar perto de StellaHulic.

Nicholas passou pelos corredores estreitos e entrou no escritório onde o juiz o esperava, sozinho, com uma sanduíche fria à sua frente. Cumprimentaram-se muito tensos. Nicholas tinha na mão uma pasta castanha.

—  Precisamos de conversar — disse ele, sentando-se na frente do

juiz.

—  Os outros sabem que está aqui?

— Não. Mas não posso demorar.

— O que é que tem para me dizer? — Harkin comeu um pedaço de pão de milho e empurrou o prato.

— Três coisas. Stella Hulic, número quatro, sentada na primeira fila, foi a Miami no fim-de-semana e foi seguida por pessoas desconhecidas, supostamente contratadas pelas tabaqueiras.

O Meritíssimo parou de mastigar.

— Como é que sabe?                                                      

—Esta manhã ouvi uma conversa: Stella estava a contar esta história em voz baixa a outro jurado. Não me pergunte como é que ela soube que estava a ser seguida. Não consegui ouvir a conversa toda. Mas a pobre mulher está um trapo. Tenho a impressão que antes de vir para o tribunal hoje de manhã deve ter estado a beber.

—  Continue.

— Segundo: Frank Herrera, número sete, que já lhe disse que tem opinião formada, anda a tentar influenciar as outras pessoas.

— Pode continuar.

— Preocupa-me. Compreendo que a reforma seja pesada para um homem como ele, mas uma pessoa que vem para o julgamento com a opinião pré-formada pode ser um bom jurado?

— Ele conversa sobre o caso com os outros jurados?

— Conversou comigo, como lhe disse. Não o ouvi falar com mais ninguém, mas também o Herman orgulha-se muito do título de líder e não tolera nenhuma conversa sobre o julgamento.

— Isso é bom.

— É bom, mas não chega. Sozinho não consegue controlar tudo. E, como sabe, as pessoas não resistem. Faz parte da natureza humana não aguentar o silêncio por muito tempo. Seja como for, Herrera é um veneno no meio do júri.

— Muito bem. E qual é a terceira coisa?

Nicholas abriu a pasta de couro e tirou de lá de dentro uma cassete vídeo.

— Isto funciona? — perguntou, indicando com a cabeça uma televisão e um gravador/leitor de vídeo que estava sobre um carrinho, a um canto da sala.

— Acho que sim. Pelo menos na semana passada funcionava.

— Posso?

— Esteja à vontade.

Nicholas ligou a televisão, depois o vídeo, pôs a cassete de vídeo dentro do leitor.

— Lembra-se da história do homem que estava na sala de audiên-cias na semana passada? Aquele que me estava a seguir?

— Lembro-me, claro! — Harkin levantou-se da cadeira e aproximou-se da televisão.

—Muito bem, veja-o aí. — A imagem não era muito nítida mas dava perfeitamente para ver a porta abrir-se e o homem entrar em casa de Easter. Depois de entrar, olhou à volta, nervoso, olhou directamente para a câmara que estava escondida no aparelho de ventilação de ar, ao pé do frigorífico. Nicholas parou o vídeo no momento em que se via a imagem do homem de frente e disse: — Lembra-se? O homem é este!

O juiz Harkin repetiu sem respirar.

— O homem é este!

A gravação continuou com o homem, Doyle, entrando e saindo de foco constantemente. Via-se o homem a tirar fotografias, a inclinar-se sobre o computador e a abandonar a casa em menos de dez minutos.

— Quando é que ele... — Harkin falou devagar, com o olhar ainda fixo na televisão.

— Sábado à tarde. Fui para a loja no turno da tarde e o homem entrou em minha casa enquanto estava a trabalhar. — Não era verdade, mas Harkin também não tinha maneira de confirmar este facto. Nicholas tinha reprogramado o vídeo fazendo aparecer no canto direito da imagem a data de sábado anterior.

— Porque é que tem a casa sob...

—  Há cinco anos, quando morava em Mobile, fui roubado, espancado e quase morri. Arrombaram a porta do meu apartamento. Desde aí, passei a ser muito cuidadoso.    152

Esta explicação tornava as coisas perfeitamente plausíveis. Percebia-se que, apesar de ganhar pouco, depois do que tinha vivido, Nicholas tivesse resolvido investir na sua segurança. Qualquer pessoa podia entender isso.

— Quer ver o vídeo outra vez?

— Não. Tenho a certeza de que é ele. Nicholas retirou a cassete e entregou-a ao juiz.

— Pode ficar com a cassete. Tenho uma cópia.

Fitch foi interrompido quando estava a comer uma sanduíche de rosbife. Konrad parou à porta e disse as palavras que ele queria ouvir:

— A rapariga está ao telefone.

Passou as costas da mão pela boca, cofiou a barbicha e pegou no telefone.

— Estou?

— Fitch, meu querido — disse ela —, sou eu, a Marlee.

— Sim, querida.

— Não consegui saber o nome do homem, mas é aquele que mandou ir ao apartamento de Easter na quinta-feira, dia 19, às 16:52. Para ser mais precisa: há onze dias. — Fitch ficou sem ar e teve de cuspir pedaços da sanduíche. Praguejou em silêncio e endireitou o corpo na cadeira. Ela continuou: — A seguir a isso, mandei um recado a dizer que Nicholas ia aparecer com uma camisa cinzenta e insjeans. Lembra-se?

— Perfeitamente — disse ele com voz rouca.

— Depois disso, mandou o homem ir ao tribunal. Se calhar à minha procura. Mas foi muito mal feito: Easter reconheceu o homem e mandou um recado ao juiz, que também se apercebeu de tudo. Está a ouvir, Fitch?

Fitch ouvia perfeitamente, embora tivesse cada vez com mais dificuldades de respiração.

— Estou!— respondeu, zangado.

— Óptimo. O juiz já sabe que o homem invadiu o apartamento de Easter e assinou um mandado de prisão. Por isso, o melhor que tem a fazer é mandar o indivíduo sair da cidade o mais depressa possível.

Fitch tinha vontade de fazer uma série de perguntas, mas não se atrevia. E mais, sabia que seria perfeitamente inútil fazer as tais perguntas. Nunca lhe responderia. A eventualidade de Doyle ser reconhecido e detido era preocupante. E se não aguentasse a pressão e falasse de mais? Fitch nem conseguia pensar nisso com clareza. Aliás, invasão ao domicílio era um crime suficientemente grave só por si. Fitch tinha de agir rapidamente.

— Mais alguma coisa? — perguntou.

— Não. Por enquanto, é tudo.

Supostamente, Doyle estava a almoçar num restaurante vietnamita, a quatro quarteirões do tribunal. Mas, na verdade, quando o bip soou estridentemente no seu cinto estava no Lucy Luck a jogar vinte-e-um a dois dólares. Era Fitch, do escritório. Três minutos depois, Doyle já estava na estrada 90 e dirigia-se para Leste. Tinha escolhido o Leste porque depois deveria voar para Chicago.

Fitch levou uma hora a investigar e a certificar-se de que não havia nenhum mandado de prisão contra Doyle Dunlap, nem contra nenhuma pessoa parecida com ele. Mas isso não servia de consolo. Persistia o facto de Marlee saber que tinha invadido o apartamento de Easter.

Fitch não conseguia perceber como é que ela estava ao corrente! E era aí que residia o cerne da questão. Fitch gritou por Konrad e Pang e, durante três horas, os três conferenciaram até encontrar a resposta.

Às três e meia de segunda-feira, o juiz Harkin mandou interromper o depoimento do doutor Kilvan e mandou-o para casa. Anunciou, perante a estupefacção dos advogados, que precisava de resolver imediatamente alguns problemas muito graves relacionados com o júri. Mandou os jurados para a sala do júri e a sala de audiências foi evacuada. Quando a sala ficou vazia, Jip e Rasco trancaram a porta.

Cuidadosamente, Oliver McAdoo empurrou a pasta com o pé para debaixo da mesa, de modo a que a câmara focasse a cadeira do juiz. Ao lado daquela pasta estavam mais quatro mochilas e outras pastas, para além de duas caixas de papelão cheias com depoimentos e outros papéis legais. McAdoo não sabia o que estava para acontecer, mas suspeitou, correctamente, que Fitch haveria de querer ver tudo em pormenor.

O juiz Harkin pigarreou e dirigiu-se aos advogados que o observavam com atenção.

— Meus senhores, chegou ao meu conhecimento que alguns, senão todos os jurados, desconfiam que estão a ser vigiados e seguidos. Tenho provas incontestáveis de que pelo menos um deles viu o seu apartamento invadido.

Esperou o suficiente para garantir que as suas palavras surtiam efeito. E não ficou decepcionado. Os advogados ficaram perplexos e, de imediato, começaram a alegar a sua inocência e a atribuir a culpa à outra parte.

— Muito bem, tenho duas opções. Posso anular o julgamento ou posso isolar o júri. Estou inclinado pela segunda hipótese, por mais desagradável que seja. Doutor Rohr?

Rohr levantou-se vagarosamente e, por um raro momento, ficou sem saber o que dizer.

— Pelo nosso lado, é óbvio que não estamos interessados na anulação. Quero dizer, sei que não fizemos nada de ilegal. — Olhou para a mesa da defesa. — Alguém entrou em casa de um jurado? — perguntou.

— Daqui a pouco já mostro a prova de que disponho. Doutor Cable?

Sir Durr levantou-se e abotoou o casaco elegantemente.

— É chocante, Meritíssimo.

— Estamos de acordo.                                                    <

— Não estou em posição de responder, pelo menos até saber com mais pormenores o que se passou. — Devolveu o olhar de suspeita para os óbvios culpados: os outros advogados.

— Muito bem. Tragam a jurada número quatro, Stella Hulic. — Ordenou o Meritíssimo a Willis.

Stella, rígida de medo e muito pálida, entrou na sala.

— Por favor, sente-se, senhora Hulic. Isto não demora mais de um minuto. — O juiz sorriu tranquilizadoramente e apontou-lhe uma cadeira.

Stella olhou apavorada para todos os lados e sentou-se.

—  Muito obrigado. Queria fazer-lhe algumas perguntas, senhora Hulic.

A sala estava silenciosa: os advogados seguravam as canetas e ignoravam os sagrados blocos de apontamentos, esperando a revelação do grande segredo. Depois de quatro anos de guerra, porque a pre-

paração do julgamento tinha sido uma guerra, sabiam de antemão pra-l icamente tudo o que uma testemunha pudesse vir a dizer. A perspectiva de irem assistir a depoimentos não ensaiados parecia-lhes fascinante.

Era óbvio que Stella ia revelar algum pecado hediondo cometido pelo outro lado. Stella olhou para o juiz com olhos suplicantes. Achou que alguém tinha sentido o cheiro de álcool no seu hálito e a tinha denunciado ao juiz.

— No último fim-de-semana, a senhora foi a Miami?

— Fui — respondeu devagar.

— Com o seu marido?

— Sim. — Cal saíra do tribunal depois do almoço. Tinha assuntos inadiáveis a tratar.

— E qual foi o propósito dessa viagem?

— Fui fazer compras.

— Enquanto lá esteve, aconteceu alguma coisa fora do normal? Ela respirou profundamente e olhou para os advogados, atentos e

amontoados à volta das compridas mesas. Depois, voltou-se para o juiz Harkin e disse:

— Aconteceu sim, senhor.

— Por favor, conte-nos o que aconteceu.

Stella, na iminência de se descontrolar, estava com os olhos marejados de lágrimas. O juiz Harkin apercebeu-se da situação e disse:

— A senhora não fez nada de mal. Conte-nos apenas o que aconteceu.

Ela mordeu o lábio e cerrou os dentes.

— Chegámos ao hotel na sexta-feira à noite. Passadas duas ou três horas, o telefone tocou. Era uma mulher a dizer que as tabaqueiras ti nham espiões a seguir-nos. Disse que nos tinham seguido desde Biloxi e até sabiam os números dos nossos voos. Disse que iam seguir-nos durante todo o fim-de-semana e que, provavelmente, até iam pôr os nossos telefones sob escuta.

Rohr e a sua equipa respiraram aliviados. Foram lançados um ou dois olhares malévolos em direcção à mesa onde Cable e os seus ho-| mens estavam petrificados.

— A senhora viu alguém que parecesse estar a segui-la?

— Para ser franca, eu nem saí do quarto. Fiquei muito nervosa. O meu marido, Cal, saiu algumas vezes e viu um homem, que pareciacubano, com uma câmara na praia. Depois viu o mesmo homem no sábado, quando estávamos a sair do hotel. — De repente, Stella compreendeu que aquela podia ser a sua saída, o momento em que podia fazer perceber que estava de tal forma arrasada que não podia continuar. Sem grande esforço, as lágrimas jorraram dos seu solhos.

— Mais alguma coisa, senhora Hulic?

— Não ...— disse ela entre soluços — é tão horrível. Não posso parar de... — e as palavras desfizeram-se em angústia.

O Meritíssimo olhou para os advogados.

— Vou dispensar a senhora Hulic. No lugar dela ficará o substituto número um.

Stella deu um pequeno gemido e a exibição de tamanho sofrimento tornava impossível uma argumentação a favor da sua continuação no júri. O isolamento pairava ameaçador sobre os jurados e, naquele estado, Stella Hulic não poderia desempenhar os seus deveres.

— A senhora pode voltar para a sala dos jurados, pegar nas suas coisas e ir para casa. Muito obrigado pela sua cooperação e sinto muito o ocorrido.

— Eu também sinto muito. — Stella levantou-se da cadeira e saiu da sala.

A sua partida foi um golpe para a defesa. A senhora Hulic fora muito bem cotada durante a selecção. E, depois de duas semanas de observação contínua pelos especialistas dos dois lados, a opinião quase unânime era a de que não seria favorável à acusação. Stella Hulic fumava há vinte e quatro anos sem que alguma vez tivesse tentado deixar de fumar.

O seu substituto era temido pelos dois lados, especialmente pela defesa.

— Traga o jurado número dois, Nicholas Easter — disse Harkin a Willis, que estava de pé ao lado da porta aberta. Glória e uma assistente levaram uma grande televisão e um leitor de vídeo para o centro da sala num suporte com rodas. Os advogados começaram a morder as canetas, especialmente a defesa.

Durwood Cable fingiu ocupar-se de outras coisas na mesa, mas a única pergunta na sua mente era: o que é que Fitch fez desta vez? Antes do julgamento, Fitch dirigiu tudo, a composição da equipa da defesa, a selecção das testemunhas, dos especialistas, a contratação dos consultores de júri, a investigação de todos os potenciais jurados, encarregou-se da delicada comunicação com o cliente e a Pynex e vigiava os advogados de acusação como uma águia. Mas a maior parte do que Fitch tinha feito depois do começo do julgamento era segredo. Cable não queria saber. Ele tomava conta da parte nobre do caso: o julgamento. Fitch encarregava-se dos trabalhos sujos.

Easter sentou-se no banco das testemunhas e cruzou as pernas. Se estava assustado ou nervoso, não o demonstrou. O juiz perguntou sobre o homem misterioso que o estava a seguir e Easter referiu as horas e os locais específicos em que o tinha visto. Explicou com detalhes perfeitos o que aconteceu na quarta-feira quando olhou para a sala do tribunal e viu o mesmo homem sentado na terceira fila.

Descreveu então o equipamento de segurança que tinha no apartamento e pegou na cassete de vídeo que estava nas mãos do juiz Harkin. Pô-la no vídeo e os advogados sentaram-se nas pontas das cadeiras. Todos puderam ver a gravação completa: nove minutos e meio de gravação e, quando terminou, Nicholas voltou para a cadeira das testemunhas e confirmou a identidade do intruso — o mesmo homem que

o tinha seguido, que tinha visto na sala de audiências na quarta-feira.

Fitch não podia ver a imagem no maldito monitor porque o desajeitado McAdoo, ou outro cretino qualquer, tinha empurrado a pasta com a câmara escondida para debaixo da mesa. Mas Fitch ouviu tudo, palavra por palavra e, fechando os olhos, imaginava claramente o que estava a acontecer no tribunal. Uma tremenda dor de cabeça começava a formar-se na base do crânio. Tomou uma aspirina com água mineral. (Queria fazer uma única pergunta a Easter. Para alguém tão preocupado com segurança a ponto de instalar câmaras escondidas, porque não instalava também um sistema de alarme na porta? Mas ninguém teve a ideia de fazer essa pergunta.

O Meritíssimo disse:

— Posso atestar também que o homem no vídeo é o mesmo que estava nesta sala na última quarta-feira.

Mas o homem no vídeo há muito tempo que tinha desaparecido, enquanto todos no tribunal o viam entrar no apartamento de Nicholas e andar de um lado para outro, como se nunca pudesse ser apanhado,

O homem estava escondido e em segurança, em Chicago.    

— Pode voltar para a sala dos jurados, senhor Easter.

Passou-se uma hora e os advogados apresentavam os seus fracos e improvisados argumentos contra o isolamento do júri. Assim que as coisas aqueceram mais um pouco, começaram a voar de um lado para o outro alegações de delito civil, tendo a defesa como alvo do tiroteio mais cerrado. Os dois lados sabiam coisas que não podiam provar e, portanto, não as podiam dizer, de modo que as acusações eram mais ou menos generalizadas.

Os jurados ouviram da boca de Nicholas um relato bastante aumentado de tudo o que tinha acontecido, tanto na sala de audiências como no vídeo. Na pressa, o juiz Harkin tinha-se esquecido de proibir Nicholas de discutir o assunto com os outros membros do júri. Nicholas imediatamente tirou vantagem da omissão e mal podia esperar para estruturar a história a seu modo. Tomou também a liberdade de explicar a partida intempestiva de Stella que saiu a chorar copiosamente.

Por muito pouco Fitch não teve dois pequenos enfartes enquanto caminhava furioso no escritório, passando a mão pelo pescoço e pelas têmporas, puxando a barba e exigindo de Konrad, Swanson e Pang respostas impossíveis. Além destes três, Fitch tinha a jovem Holly, Joc Boy, um detective particular local com pés incrivelmente macios, Dante, um ex-polícia negro de D.C., e Dubaz, outro garoto local com uma ficha do tamanho de um braço. E quatro pessoas no escritório com Konrad, mais uma dezena que, à sua chamada, podiam chegar a Biloxi em três horas, e montes de advogados e consultores de júri. Fitch tinha uma porção de gente que custava um monte de dinheiro, mas não mandara ninguém a Miami no fim-de-semana para vigiar as compras de Stella e Cal.

— Um cubano? Com uma máquina fotográfica? Fitch atirou um livro de telefones contra a parede quando disse isto.

— E se for a rapariga? — sugeriu Pang, erguendo a cabeça devagar, depois de a ter baixado para se desviar do livro de telefones.

— Qual rapariga?

— Marlee. Hulic disse que foi uma rapariga quem telefonou. — A calma de Pang contrastava com a agitação explosiva do seu chefe.

Fitch parou e sentou-se por um momento. Tomou outra aspirina e mais água mineral e, finalmente, disse:

— Acho que tem razão.                                     

E tinha. O cubano era um «consultor de segurança» barato que Marlee encontrou nas páginas amarelas. Pagou duzentos dólares para ele parecer suspeito, o que não era difícil, e deixar que os Hulic o vissem com uma câmara quando saíssem do hotel.

Os onze jurados e três substitutos voltaram para a sala do tribunal. A cadeira vazia de Stella, na primeira fila, foi ocupada por Phillip Sável lê, um homem esquisito de quarenta e oito anos que nenhum dos dois lados tinha conseguido definir. Segundo ele, era um cirurgião de árvores e trabalhava por conta própria. Mas não tinham encontrado nenhum registo dessa profissão na Costa do Golfo nos últimos cinco anos. Era também um soprador de vidro avant-garde cujo forte eram as criações de cores vivas e amorfas, às quais dava obscuros nomes aquáticos e marinhos. Ocasionalmente expunha nas pequenas e insignificantes galerias de Greenwich Village. Gabava-se de ser um marinheiro experiente e tinha construído um ketch em que costumava navegar até às Bermudas até o barco naufragar nas águas calmas. Às vezes apresentava-se também como arqueólogo e, depois de o barco se ter afundado, passou onze meses numa prisão hondurenha por fazer escavações ilegais.

Era solteiro, agnóstico, formado pela Grinenell, e não fumava. Todos os advogados na sala do tribunal morriam de medo de Savelle.

O juiz Harkin pediu desculpa pelo que ia fazer. O isolamento de um júri era um acontecimento raro e radical, tornado necessário por circunstâncias extraordinárias e quase sempre usado em casos sensacionais de assassinatos. Mas não tinha escolha. Houve três casos de contacto não autorizado. Apesar das suas advertências, não havia razão para acreditar que não se iam repetir. Não gostava nada da decisão que tinha tomado e sentia-se aborrecido por todo o inconveniente que isso ia causar. Mas a sua obrigação era garantir um julgamento justo.

Explicou que há alguns meses elaborara um plano para essa contingência. O condado reservara um conjunto de quartos num motel próximo, cujo nome não foi mencionado. A segurança seria reforçada. Ele tinha uma lista de regras que estudaria com os jurados. O julgamento entrava agora na segunda semana de depoimentos de testemunhas e ele encarregar-se-ia de fazer com que os advogados trabalhassem com afinco para terminar o mais breve possível.

Os quinze jurados deviam sair, ir para casa, fazer as malas, pôr em ordem os seus negócios e apresentar-se no tribunal na manhã seguinte, preparados para passar as duas próximas semanas isolados.

Não houve nenhuma reacção imediata dos jurados: estavam atónitos de mais. Só Nicholas Easter achou engraçado.

 

Como Jerry gostava de cerveja, jogos de azar, futebol e movimento, Nicholas sugeriu que, na segunda-feira, se encontrassem num casino para comemorar as suas últimas horas de liberdade. Jerry achou a ideia magnífica. Quando os dois saíram do tribunal pensaram em convidar alguns dos jurados. À partida, parecia boa ideia, mas a verdade é que não funcionou. À partida, Herman estava de fora. Lonnie Shaver saiu apressado, muito agitado, sem falar com ninguém. Savelle era novo e desconhecido. Só restava Herrera, Nap, o coronel, e eles simplesmente não queriam a companhia dele. Já bastava a ideia de passarem duas semanas fechados na mesma sala com ele.

Jerry convidou Sylvia Taylor-Tatum, a Poodle. Os dois estavam numa espécie de flirt discreto. Ela era divorciada pela segunda vez e Jerry estava no meio do seu primeiro divórcio. Uma vez que Jerry conhecia todos os casinos da Costa, sugeriu um novo, chamado O Diplomata. Tinha um bar desportivo, com um grande ecrã, e as bebidas eram baratas. Além disso, era suficientemente grande para assegurar uma certa privacidade e as empregadas tinham pernas altas e pouca roupa.

Quando Nicholas chegou, às oito, Poodle já estava a guardar uma mesa no bar completamente cheio. Estava a tomar uma cerveja e sorria, amável, coisa que nunca tinha feito no tribunal. O cabelo crespo e solto estava penteado para trás. Vestia jeans desbotados, camisola larga e umas botas de cowboy vermelhas. Não era bonita mas, de qualquer forma, parecia muito melhor num bar do que no banco do júri.

Os olhos escuros de Sylvia eram tristes e muito vívidos: olhos de uma mulher maltratada pela vida e, enquanto Jerry não chegava, Nicholas tinha resolvido aproveitar o tempo o melhor possível. Pediu outra rodada de cerveja e dispensou a conversa convencional.

— É casada? — perguntou, sabendo perfeitamente que

Sylvia tinha casado pela primeira vez aos dezanove anos e tivera dois filhos gémeos, agora já com vinte anos. Um trabalhava numa plataforma de petróleo ao largo da costa, o outro estava na universidade. Eram gémeos, mas completamente diferentes. O primeiro marido deixou-a ao fim de cinco anos de casamento, e Sylvia tinha criado os filhos sozinha.

— E você? — perguntou ela.

— Não. Tecnicamente ainda sou estudante, mas agora estou a trabalhar.

O segundo marido era mais velho e felizmente não tiveram filhos. O casamento durou sete anos e terminou quando ele a trocou por uma manequim mais nova. Nessa altura, Sylvia prometeu a si mesma que nunca mais voltaria a casar. Os Bears estavam a perder com os Packers e Sylvia assistia com interesse ao jogo. Adorava futebol e tinha orgulho pelos seus dois filhos terem sido escolhidos como os melhores atletas nos últimos anos do liceu.

Jerry chegou agitado e sempre a olhar para trás. Num ápice, e mesmo antes de pedir desculpa pelo atraso, tomou a primeira cerveja e explicou que achava que estava a ser seguido. Poodle disse que não acreditava, que era tudo psicológico: todos os membros do júri tinham passado a achar que estavam a ser seguidos.

— Esqueça o júri — disse Jerry —, acho que é a minha mulher. —A sua mulher? — perguntou Nicholas.

— Sim, a minha mulher. Acho que contratou um detective particular para me seguir.

— Sendo assim, deve estar ansioso para ficar isolado — disse Nicholas.

— Pode crer — respondeu Jerry, e piscou um olho em direcção a Poodle.

Tinha apostado quinhentos dólares na vitória dos Packers por seis pontos de vantagem, mas a aposta era só para os pontos combinados do primeiro tempo. No intervalo do jogo, fez outra aposta. Explicou aos dois novatos que estavam ao seu lado que, qualquer jogo, profissional ou amador, oferecia uma enorme variedade de apostas e praticamente nenhuma tinha relação directa com o resultado final do jogo. Jerry às vezes apostava em quem ia cometer o primeiro erro, em quem fazia o primeiro golo, em quem faria o maior número de intercepções. Jerry

assistia ao jogo com a tensão nervosa de quem tinha apostado muito mais do que aquilo que podia perder. No primeiro tempo bebeu quatro cervejas. Nicholas e Sylvia não conseguiram acompanhá-lo.

Nos intervalos da incessante conversa de Jerry sobre futebol e a arte de apostar para ganhar, Nicholas tentou em vão falar sobre o julgamento. O isolamento dos jurados era um assunto desagradável e, uma vez que nunca tinham experimentado aquela sensação, não havia muito para dizer. A testemunha daquele dia fora bastante aborrecida e a ideia de comentar as opiniões do doutor Kilvan naquele tempo livre parecia-lhes cruel. Sylvia ficou especialmente aborrecida com uma si mples tentativa de discutir o conceito geral de responsabilidade aplicado ao julgamento.

A senhora Grimes estava no átrio quando o juiz Harkin enumerou us regras para o isolamento. Quando levou Herman para casa, explicou-lhe que ia passar as próximas duas semanas num quarto de motel, em terreno desconhecido, sem a companhia dela. Assim que chegaram a casa, telefonou ao juiz Harkin e disse-lhe tudo o que pensava sobre os últimos acontecimentos. O seu marido era cego, lembrou ela mais de uma vez, e precisava de ajuda. Sentado no sofá, tomando a sua única cerveja diária, Herman ouvia furioso a conversa da mulher.

O juiz Harkin encontrou uma solução de imediato. Estava disposto a permitir que a senhora Grimes ficasse com o marido no quarto do motel. Podia tomar o pequeno-almoço e o jantar com ele, mas tinha de evitar contactos com os outros jurados. Além disso, não podia mais assistir ao julgamento porque era imperativo que não pudesse conversar a esse respeito com Herman. A senhora Grimes não ficou muito satisfeita com esta imposição. Afinal, era talvez a única pessoa que desde o início do julgamento tinha feito questão de não perder uma única palavra do que ali era dito. E, embora ainda não tivesse conversado a esse propósito com o marido, ou sequer adiantasse essa conversa no telefonema com o juiz Harkin, a verdade é que já tinha uma opinião segura sobre o caso. O juiz foi firme. Herman ficou furioso. Mas a senhora (irimes fez valer a sua decisão e foi para o quarto fazer as malas.

Na noite de segunda-feira, Lonnie Shaver fechou-se no escritório e leu o trabalho de uma semana. Depois de várias tentativas, encontrou George Teaker em casa, em Charlotte, e explicou que o júri ia ser isolado até ao fim do julgamento. Como tinha combinado falar com Taunton durante aquela semana, esta decisão do juiz deixara-o particularmente preocupado. Explicou ainda que o juiz tinha proibido qualquer telefonema directo do e para o motel e não ia ser possível um encontro até ao fim do julgamento. Teaker foi compreensivo e, durante a conversa, expressou uma sombria preocupação com o resultado do julgamento.

— Os nossos colegas de Nova Iorque acham que um veredicto contrário aos interesses da tabaqueira pode desencadear ondas de choque em toda economia do país. Especialmente no nosso negócio. Só Deus sabe onde irão parar os preços dos seguros.

— Farei o meu melhor — prometeu Lonnie.

— O júri não está a apontar para um veredicto a favor do queixoso, pois não?

— Neste momento é difícil dizer. Ainda vamos a meio da apresentação do caso da acusação. É cedo de mais.

— Tem de nos proteger, Lonnie. Sei que o que lhe estou a pedir é um grande sacrifício, mas o que é que posso fazer? Está dentro do júri. Tem de lutar pelos nossos interesses. Está a perceber?

— Percebo perfeitamente. Vou fazer o que for possível.

— Estamos a contar consigo. Não desanime. Não desanime.

O confronto com Fitch foi breve e nada conclusivo. Na segunda-feira, em que os escritórios dos advogados se preparavam para uma vigília de trabalho, Durwood Cable esperou quase até às nove horas da noite por Fitch, a quem pediu que se encontrasse com ele. Fitch acedeu, embora estivesse com pressa para voltar para o outro lado da rua.

— Gostaria de esclarecer um assunto — disse Durr, secamente, de pé em frente ao seu lado na mesa.

— Do que se trata? — rosnou, agressivo, Fitch, com as mãos na cintura. Sabia exactamente qual era o assunto.

— Esta tarde no tribunal ficámos constrangidos.

— Não ficaram constrangidos. Se bem me lembro, o júri não estava presente. Portanto, seja lá o que for que tenha acontecido, não vai influenciar em nada o veredicto final.

— Foi apanhado e ficámos numa posição desagradável.

— Não fui apanhado.

— Então, como é que considera o que aconteceu?         

— Considero uma mentira. Não mandámos ninguém seguir Stella l lulic. Por que é que havíamos de ter feito uma coisa dessas?

— Então, quem é que lhe telefonou?

— Sei lá. Mas tenho a certeza de que não foi nenhum dos nossos. Mais perguntas?

— Sim. Quem era o homem no apartamento?

— Não sei. Não é um dos meus homens. Não cheguei a ver o vídeo, portanto não lhe vi a cara, mas tenho a certeza de que devia ser um homem contratado por Rohr.

— Tem provas disso?

— Não tenho que provar nada. E não tenho de responder a mais perguntas. O seu trabalho é advogar este processo e deixar-me em paz. A segurança está a meu cargo.

— Não me embarace, Fitch.

— Não me embarace você. Veja lá se não perde o caso.

— Raramente perco.

Fitch foi até à porta.

— Eu sei. E está a fazer um bom trabalho, Cable. Só precisa de uma pequena ajuda de fora.

Nicholas foi o primeiro a chegar com duas mochilas cheias de roupa e artigos de toilette. Lou Dell, Willis e outro polícia mais novo esperavam no corredor, fora da sala dos jurados, para pegarem na bagagem e guardá--la numa sala vazia. Eram oito e vinte da manhã de terça-feira.

— Como é que a bagagem vai ser transportada para o motel? — perguntou Nicholas, desconfiado, mantendo as suas mochilas nas mãos.

— Esteja descansado. Nós encarregamo-nos disso. Levamo-la durante o dia — disse Willis —, mas antes temos de revistar tudo.

— Era o que faltava!

— Como?

— Ninguém vai revistar as minhas malas — disse Nicholas. E entrou na sala vazia dos jurados.

— São ordens do juiz — disse Lou Dell atrás dele.

— Quero lá saber! Ninguém vai revistar a minha bagagem. — Deixou as mochilas num canto, foi até ao café e falou dirigindo-se a Willis e Lou Dell, que estavam à porta. — Importam-se de sair? Esta é a sala dos jurados.

Os dois recuaram e Lou Dell fechou a porta. Passado pouco tempo, ouviu vozes no corredor. Nicholas abriu a porta e viu Millie Dupree, com a testa coberta de suor, enfrentando Lou Dell e Willis com duas enormes malas Samsonite.

— Eles julgam que podem revistar as nossas malas, mas estão enganados — explicou Nicholas. — Vamos deixá-las aqui. — Nicholas pegou na que estava mais perto de si e, com grande esforço, levantou-a do chão e levou-a para junto das suas mochilas.

— Ordens do juiz! — ouviram Lou Dell resmungar.

— Não somos terroristas — disse Nicholas, a arfar com o peso da mala. — O que é que ele pensa? Que vamos contrabandear armas, droga ou alguma coisa assim?

Millie pegou num bolinho e agradeceu a Nicholas por proteger a sua privacidade. Havia coisas naquelas malas que não queria ver mexidas por homens como Willis.

— Saiam — disse Nicholas, apontando para Lou Dell e Willis, que recuaram outra vez para o corredor.

Às oito e quarenta e cinco os doze jurados estavam presentes e a sala cheia de bagagens. Nicholas encarregou-se de evitar que as malas fossem revistadas e guardou-as num canto da sala. À medida que os jurados e as respectivas malas iam chegando, Nicholas fingia estar cada vez mais indignado e cada vez reclamava mais e discutia mais alto. O júri estava furioso e pronto para um protesto. Às nove horas, Lou Dell bateu à porta e depois girou a maçaneta para entrar.

A porta estava trancada por dentro. Bateu outra vez. Na sala do júri, só Nicholas se mexeu. Foi até à porta e disse:

— Quem é?

— Lou Dell. Está na hora de ir para o tribunal. O juiz está à vossa espera.

— Diga ao juiz para ir para o inferno.

Lou Dell olhou para Willis que, com os olhos arregalados, levou a mão ao revólver enferrujado. A rispidez daquelas palavras chocou mesmo alguns dos jurados, mas continuaram unidos na sua fúria.

— O que é que disse? — perguntou Lou Dell.

Ouviu-se um estalo e a maçaneta girou. Nicholas saiu para o corredor e fechou a porta.

— Diga ao juiz que não vamos sair daqui. — Olhou furioso para lou Dell, fixando o olhar na sua franja grisalha e suja.

— Não podem fazer isso — disse Willis com a maior agressividade possível que, aliás, não tinha nada de agressivo.

— Cala a boca, Willis.

Na terça de manhã, as notícias de novos problemas com o júri atraíram os curiosos: a dispensa de um jurado, a invasão do apartamento de outro e a notícia de que a fúria do juiz o tinha feito optar pelo isolamento do júri, espalharam-se rapidamente. Surgiram de imediato boatos, sendo o mais picante de todos um acerca de um espião a soldo da indústria tabaqueira que teria sido apanhado no apartamento de um jurado. Dizia-se que já tinha sido assinado um mandado de captura contra esse homem e que a polícia e os agentes do FBI já tinham montado um esquema para o apanhar.

Os jornais matutinos de Biloxi, Nova Orleães, Mobile e Jackson faziam as suas capas com esta notícia depois desenvolvida em extensas reportagens.

Os habituais frequentadores do tribunal voltaram a comparecer às audiências. Os advogados locais arranjaram desculpas para ter de visitar o juiz Harkin e, apesar de anunciarem que o que os movia eram assuntos breves, faziam tudo por tudo para se demorar o mais possível. Ao lado da acusação, logo na primeira fila, havia uma meia dúzia de repórteres de vários jornais. Os jovens analistas de Wall Street, que tinham abandonado a sala de audiências à medida que descobriam os encantos da região: casinos, pesca de alto mar e as longas noites em Nova Orleães, voltaram em massa.

Assim, foi bastante grande o número de pessoas que viram Lou Dell sair da porta do júri e aproximar-se do juiz na ponta dos pés. Inclinados para a frente, os dois conversaram por um momento. Num gesto instintivo, Harkin virou a cabeça para o lado e olhou para a porta de entrada do júri onde Willis estava imóvel, como se tivesse ficado congelado.

Transmitida a mensagem, Lou Dell voltou rapidamente para onde Willis a esperava. O juiz Harkin olhou para os advogados curiosos, depois para os espectadores. Rabiscou alguma coisa que nem mesmo ele seria capaz de ler e pensou um momento.

O seu júri estava em greve! O que diria o manual dos juizes a este respeito? Aproximou o microfone da boca e disse:                   

— Minhas senhoras e meus senhores, há um pequeno problema com os jurados. Antes de adiantar mais pormenores, preciso de falar com eles. Peço ao doutor Rohr e ao doutor Cable para me acompanharem. Todos os outros devem permanecer onde estão.

A porta estava trancada outra vez. O juiz bateu educadamente, três batidas rápidas, seguidas por um movimento giratório na maçaneta. A porta não abriu.

— Quem é? — perguntou uma voz de homem.

— É o juiz Harkin — disse ele em voz alta.

Nicholas estava ao lado da porta. Voltou-se e sorriu triunfante para os outros. Millie Dupree e a senhora Gladys Card estavam a um canto, ao lado de uma pilha de malas, nervosas, com medo da prisão ou de qualquer outra coisa que o juiz determinasse. Mas os outros ainda estavam indignados.

Nicholas girou a chave e abriu a porta. Sorriu amavelmente, como se não houvesse nenhum problema, como se as greves fizessem parte da rotina dos julgamentos.

— Entre — disse ele.

Harkin, vestido com um fato cinzento e sem toga, entrou com Rohr e Cable.

— Qual é o problema? — perguntou, olhando à sua volta.

A maioria dos jurados estava sentada e havia pratos vazios e jornais espalhados por toda aparte. Phillip Savelle estava sozinho ao lado de uma das janelas. Lonnie Shaver a um canto, com o computador no colo. Easter era sem dúvida o líder; provavelmente até o instigador da situação.

— Não achamos justo que a polícia reviste as nossas malas.

— Por que não?

— Parece-nos óbvio. São objectos de uso pessoal. Não somos terroristas, não somos traficantes de droga e o senhor não é funcionário da alfândega. — O seu tom era autoritário e o facto de falar com tanta desenvoltura com um juiz encheu de orgulho a maioria dos jurados.

Nicholas era um deles. Independentemente do que Herman pensava, aquele era sem dúvida o seu líder, e por mais do que uma vez já tinha ditoque eram eles — não o juiz, não os advogados, não as partes em litígio —, os jurados, as pessoas mais importantes do julgamento.

— É um procedimento de rotina nos casos de isolamento do júri — disse o Meritíssimo, dando um passo em direcção a Easter que era oito centímetros mais alto do que ele e que não ia deixar-se intimidar.

— Até pode ser. Pelo menos, na sua opinião. Ou essa decisão não depende da vontade do juiz?

— Claro que depende. Mas tenho razões ponderosas para ter tomado esta atitude.

— Nada disso é da nossa conta. Não vamos sair daqui, Meritíssimo, até prometer que a nossa bagagem não será revistada. — Easter disse estas palavras com os músculos do rosto tensos e um leve sorriso de desprezo. Tornou-se evidente para o juiz e para os advogados que falava a sério. Além disso, estava a falar em nome do grupo. Ninguém mais se tinha manifestado. Muito menos em sentido contrário ao de Nicholas.

Harkin cometeu o erro de olhar para trás, para Rohr, que mal podia esperar para dizer o que pensava.

— Desculpe, juiz, mas que importância é que tem a bagagem desta gente? — disse ele, impaciente — Não vieram para o tribunal carregados de explosivos.

— Chega—disse Harkin, mas Rohr tinha conseguido um pouco da simpatia do júri. Cable, é claro, apercebeu-se e também queria expressar a sua absoluta confiança em tudo aquilo que os jurados tinham decidido pôr nas suas malas, mas Harkin não deu tempo.

— Muito bem — disse o Meritíssimo. — As malas não serão revistadas. Mas se vier a saber que algum dos jurados tem em seu poder alguma das coisas que fiz incluir na lista de artigos proibidos que ontem vos mandei entregar, esse jurado responderá judicialmente por desobediência ao tribunal e pode ser detido. Estamos entendidos?

Easter olhou à volta, avaliando cada um dos seus jurados. A maioria parecia aliviada e alguns menearam a cabeça afirmativamente.

— Estamos combinados, Meritíssimo — disse ele.

— Muito bem. Agora, podemos continuar com o julgamento?

— Bem, há outro problema.                         

- O que é?

Nicholas pegou num papel que tinha em cima da mesa e leu-o:

— De acordo com o regulamento que nos foi dado, temos direito a uma visita conjugal por semana. Achamos que é pouco.

— Quantas é que querem?

— Tantas quanto possível.

Para a maior parte dos jurados aquilo era novidade. Alguns dos homens tinham feito alguns comentários acerca do número de visitas conjugais, especialmente Easter, Fernandez e Lonnie Shaver. Mas as mulheres não tinham dito nada. A senhora Gladys Card e Millie Du-pree ficaram embaraçadas pensando que o juiz pudesse fazer uma ideia errada a seu respeito. Parecia-lhes vergonhoso que o juiz pudesse pensar que elas, umas senhoras, achavam que deviam ter tanto sexo quanto possível. Há alguns anos, o senhor Card tinha tido um problema na próstata e a senhora Gladys Card pensou revelar esse facto, só para defender o seu bom nome. Herman Grimes adiantou-se:

— Para mim, chegam duas.

A ideia do velho Herman tacteando debaixo das cobertas, à procura da senhora Grimes, provocou risos que aliviaram a tensão.

— Acho que não vale a pena fazer uma pesquisa pormenorizada — disse o juiz Harkin. — Concordam com duas visitas? Não se esqueçam de que só estamos a falar de duas semanas...

— Talvez. Duas ou três. — Foi a contraproposta de Nicholas.

— Está bem. Estão todos de acordo? — O Meritíssimo olhou à volta. Loreen Duke estava sentada à mesa, rindo baixinho. A senhora Gladys Card e Millie faziam o possível para não se fazer notar, evitando os olhos dojuiz.

— Sim, está bem — disse Jerry Fernandez, com olhos vermelhos da ressaca. Quando passava um dia sem fazer sexo, Jerry tinha dores de cabeça. Mas também sabia que, por um lado, a sua mulher estava feliz com a sua ausência de duas semanas e, desta forma, ele e Poodle podiam arranjar-se e consumar a história que os estava a entreter.

— Não concordo com a maneira como isto está exposto — disse Phillip Savelle, dajanela. E aquelas foram as suas primeiras palavras desde o início do julgamento. Tinha na mão o papel com as regras: a definição de pessoas elegíveis para participar nas visitas conjugais deixava muito a desejar.

Em linguagem bastante clara, o ponto a que se referia determinava:

Durante cada visita conjugal, cada jurado pode passar duas horas sozinho, no quarto, com o cônjuge, namorado ou namorada.»

O juiz Harkin, os dois advogados e os outros jurados leram com atenção a ordem, imaginando o que aquele estranho homem pretendia com o seu comentário. Mas Harkin não estava disposto a descobrir.

— Posso garantir, senhor Savelle e restantes membros do júri, que não pretendo restringir de modo algum as suas visitas conjugais. Para

ser franco, não me importa o que vão fazer ou com quem.

Aparentemente aquela resposta satisfez Savelle. Mas humilhou a senhora Gladys Card.

-— Muito bem, mais alguma coisa?

— É tudo, Meritíssimo, e obrigado — respondeu Herman em voz alta, retomando a sua posição de líder.

— Obrigado — respondeu Nicholas.

Assim que o júri tomou posição, Scotty Mangrum anunciou que tinha terminado o interrogatório ao doutor Kilvan. Durr Cable começou o interrogatório indirecto com tanta delicadeza que parecia completa-mente intimidado pelo grande especialista. Concordaram com alguns dados estatísticos, mas na verdade também não eram importantes. O doutor Kilvan afirmou que, baseado nos dados apresentados, estava em posição de afirmar que cerca de dez por cento dos fumadores tinha cancro do pulmão.

Cable reforçou este ponto, como aliás vinha a fazer desde o início do depoimento.

— Então, doutor Kilvan, se o tabaco provoca cancro do pulmão, porque é que há tão poucos fumadores com cancro do pulmão?

— O tabaco aumenta consideravelmente o risco de cancro do pulmão.

— Mas nem sempre o provoca. Não é?                          

— É. Nem todos os fumadores têm cancro do pulmão.

- Muito obrigado.

— Mas para os que fumam o risco de cancro do pulmão é muito maior.

Feito o aquecimento, Cable começou a pressionar. Perguntou ao doutor Kilvan se estava a par de um estudo feito há vinte anos, na Universidade de Chicago, estudo que revelava uma maior incidência de cancro do pulmão nos fumadores que moravam nas áreas metropolitanas do que naqueles que moravam nas áreas rurais. Kilvan conhecia perfeitamente o estudo, embora não tivesse nada a ver com ele.

— Pode explicar isso? — perguntou Cable.

— Não.

— Pode fazer uma suposição?

— Sim. O estudo provocou controvérsia quando foi publicado porque indicava que outros factores, que não o tabaco, podiam causar cancro do pulmão.

— Como a poluição do ar?

— Sim.

— O senhor acredita nisso?

— É possível.

— Então o senhor admite que a poluição do ar pode causar cancro do pulmão?

— Poderá. Mas prefiro ficar com os resultados da minha pesquisa. Os fumadores das áreas rurais têm mais cancro do pulmão do que os não fumadores dessas áreas, e os fumadores das áreas urbanas têm mais cancro do que os não fumadores.

Cable ergueu outro relatório com muitas folhas e começou a virar as páginas teatralmente. Perguntou ao doutor Kilvan se conhecia um estudo feito em 1989, na Universidade de Estocolmo, no qual se declarava que havia uma relação entre hereditariedade, tabaco e cancro do pulmão.

— Eu li o relatório — disse o doutor Kilvan.

— Tem alguma opinião a este respeito?

— Não. A hereditariedade não é a minha especialidade.

— Nesse caso, não pode dizer sim ou não sobre a possibilidade de haver uma relação entre hereditariedade, tabaco e cancro do pulmão?

— Não, não posso.

— Mas não contesta este relatório, pois não? —Não tenho nenhuma posição a esse respeito.

— O senhor conhece os especialistas que conduziram esta pesquisa?

— Não.

— Então, não pode dizer-nos se são ou não qualificados?

— Não. Estou certo de que o senhor falou com eles.

Cable foi até à sua mesa, pegou noutro relatório e voltou para junto do doutor Kilvan.

Depois de duas semanas de severo escrutínio, mas pouco movimento, as acções da Pynex encontraram uma razão para alterar sua posição. Até àquela segunda-feira à tarde, o julgamento não tinha produzido nenhum episódio dramático. Um dos vários advogados de defesa confiou a um dos analistas financeiros que Stella Hulic era considerada por todos como um bom jurado a favor da defesa. Isso foi repetido algumas vezes e, a cada repetição, a importância de Stella para a indústria do tabaco aumentava um ponto. Quando foram feitos os telefonemas para Nova Iorque, a defesa tinha perdido o seu bem mais valioso — Stella Hulic, que estava agora em casa, deitada num sofá, em coma alcoólico.

A deliciosa história da invasão do apartamento de um dos jurados foi acrescentada aos rumores sobre o julgamento. Era fácil supor que o intruso fora contratado pela indústria tabaqueira e, uma vez que a indústria tinha sido apanhada, ou pelo menos considerada como a principal suspeita, as coisas não pareciam muito favoráveis para a defesa. Tinham perdido um jurado. Foram apanhados num acto anti-ético. O céu estava a cair sobre as suas cabeças.

Na terça-feira, a Pynex abriu a setenta e nove e meio, rapidamente caiu para setenta e oito à medida que cresciam os rumores sobre o julgamento. A meio da manhã, estava em setenta e seis e um quarto, quando receberam um novo relatório de Biloxi. Um analista que estava na sala de audiências telefonou para o seu escritório dizendo que o júri se tinha recusado a comparecer ao julgamento naquela manhã; na verdade tinha entrado em greve porque estava farto e cansado de fastidiosos depoimentos feitos pelos especialistas da acusação.

Em poucos segundos, a notícia foi repetida centenas de vezes e, em Wall Street, não havia dúvida de que o júri estava a revoltar-se contra a acusação. O preço subiu para setenta e sete, passou de setenta e oito, atingiu setenta e nove e, à hora do almoço, estava quase nos oitenta.

 

Das seis mulheres do júri, a que Fitch mais queria conquistar era Rikki Coleman, trinta anos, saudável e atraente mãe de dois filhos. Ganhava vinte e um mil dólares por ano como administradora dos arquivos de um hospital local. O marido ganhava trinta e seis mil como piloto particular. Moravam num elegante subúrbio com um belo relvado, numa casa com uma hipoteca de noventa mil dólares e tinham dois carros japoneses inteiramente pagos. Economizavam sem ambição e investiam com conservadorismo — oito mil dólares no ano anterior, só em fundos. Eram muito activos na igreja do bairro — ela ensinava na catequese e ele cantava no coro.

Aparentemente os Coleman não tinham vícios. Nenhum dos dois fumava e não havia provas de que gostassem de beber. Ele corria e jogava ténis, ela passava uma hora por dia num ginásio. Fitch temia-a como jurada, devido à vida exemplar e às suas preocupações com a saúde.

Os registos médicos obtidos com o obstetra de Rikki não revelavam nada de importante. Engravidou duas vezes e teve partos e pós--partos normais. Fazia devidamente os check-ups anuais. Uma mamografia realizada dois anos antes não revelou nenhuma patologia. Rikki tinha um metro e sessenta e sete de altura e pesava cinquenta e oito quilos.

Fitch tinha as fichas médicas de sete dos doze jurados. A de Easter não foi encontrada por motivos óbvios. Herman Grimes era cego e não tinha nada a esconder. Savelle era novo e Fitch estava a investigá-lo. Lonnie Shaver não ia ao médico há pelo menos vinte anos. Quanto a Sylvia Taylor-Tatum, como o seu médico tinha morrido no ano anterior num acidente de barco, tratava-se agora com um novato na profissão que não conhecia as regras do jogo.

O jogo era agressivo e sério, com a maior parte das regras determinadas por Fitch. Todos os anos, o Fundo contribuía com um milhão de dólares para uma organização conhecida como Aliança da Reforma Indiciaria, uma presença marcante em Washington, fundada por companhias de seguros, associações médicas, grupos industriais e empresas fabricantes de cigarros. A contabilidade das Quatro Grandes registava comtribuições anuais de cem mil dólares cada uma, com Fitch e o Fundo a passarem um milhão por baixo da mesa. O objectivo da ARJ era o lobby a favor de leis que restringissem o montante dos prémios nos processos de indemnização por danos. Especificamente, para eliminar as inconvenientes medidas punitivas.

Luther Vandemeer, director executivo da Trellco, fazia parte da direcção da ARJ e tinha direito a voto. Fitch fornecia-lhe discretamente as informações e Vandermeer, geralmente, pressionava os membros da organização. Sem aparecer, Fitch conseguia o que queria. Através de Vandemeer e da ARJ, Fitch pressionava as companhias de seguros, que pressionavam vários médicos locais que, por sua vez, deixavam passar informações sensíveis e estritamente confidenciais sobre determinado paciente. Assim, quando Fitch resolveu que o doutor Dow, em Biloxi, devia enviar as fichas médicas da senhora Gladys Card para uma caixa postal em Baltimore, mandou Vandemeer pressionar os seus contactos na Saint Louis Mutual, a respeito do seguro do doutor Dow de protecção contra acusações de negligência médica. O doutor Dow foi in formado pela Saint Louis Mutual que a cobertura do seu seguro para tais casos seria anulada se não entrasse neste jogo e ele imediatamente se declarou feliz por colaborar.

Fitch tinha uma grande colecção de fichas médicas, mas nada ainda que pudesse influenciar um veredicto. A sua sorte mudou durante o almoço, na terça-feira.

Quando Rikki Coleman era ainda Rikki Weld, estudava numa pequena faculdade em Montgomery, Alabama, onde era muito popular. Algumas das mais bonitas alunas da escola costumavam sair com os rapazes de Auburn. O homem contratado por Fitch para a investigação rotineira do passado de Rikki aventou a hipótese de que ela tivesse tido muitos namorados. Fitch interessou-se pela sugestão e, por intermédio da ARJ, após duas semanas de infrutíferas investigações, finalmente encontrou a clínica certa.

Era um pequeno hospital particular para mulheres, no centro de Montgomery, uma das três soluções possíveis para se fazer um aborto na cidade naquela época. Nos primeiros anos de faculdade, uma semana depois de completar vinte anos, Rikki Weld fez um aborto.

Fitch tinha os registos. Foi avisado por um telefonema de que os registos estavam a ser enviados e, rindo sozinho, recolheu as folhas de papel no seu fax. O nome do pai não constava, mas isso não importava. Rikki tinha conhecido Rhea, seu marido, um ano depois de terminar o segundo ano. Na época do aborto, Rhea estava no último ano da Texas A&M e era pouco provável que se conhecessem.

Fitch era capaz de apostar qualquer quantia em como o aborto era um segredo, completamente esquecido por Rikki e jamais revelado ao marido.

O motel era um Siesta Inn em Pass Christian, a trinta minutos do tribunal, ao longo da Costa. A viagem foi feita num autocarro alugado, com Lou Dell e Willis sentados à frente com o motorista e os catorze jurados (efectivos e suplentes) espalhados pelos bancos. Ninguém se sentou no mesmo banco. Não houve nenhuma conversa. Estavam cansados e desanimados, sentindo já a prisão e o isolamento, antes mesmo de conhecerem o seu novo lar temporário. Nas duas primeiras semanas do julgamento, o intervalo das cinco horas significava uma fuga. Voltavam apressadamente para a realidade, para as suas casas, os seus filhos, as suas refeições quentes, para as suas tarefas, alguns para os seus escritórios. Intervalo agora significava uma viagem de autocarro para outra cela onde seriam vigiados, monitorizados e protegidos contra as sombras malignas que pairavam sobre si.

Só Nicholas Easter estava feliz, mas procurava parecer tão desanimado como os outros.

Harrison County tinha-lhes alugado todo o primeiro andar de uma ala, vinte quartos ao todo, embora só fossem precisar de dezanove. Lou Dell e Willis tinham quartos separados, ao lado da porta que conduzia ao prédio principal, onde ficavam a recepção e o restaurante. Chuck, um polícia jovem e grande, tinha o quarto no fim do corredor, para guardar ostensivamente a porta que se abria para o estacionamento.

Os quartos foram designados pelo próprio juiz Harkin. As malas já haviam sido transportadas e levadas para os quartos, intactas. As chaves foram distribuídas como balas por Lou Dell, que a cada minuto se sentia mais importante. As camas foram inspeccionadas e empurradas — camas de casal em todos os quartos. As televisões foram ligadas em vão. Nada de programas, nada de noticiários durante o isolamento, apenas filmes da estação privada do motel. As casas de banho foram revistadas e as torneiras verificadas. Duas semanas ali iam parecer anos.

É claro que o autocarro foi seguido pelos homens de Fitch. Saiu do tribunal com uma escolta da polícia, motos à frente e atrás. Era fácil segui-los. Dois detectives contratados por Rohr também acompanharam a viagem. Ninguém esperava que a localização do hotel fosse mantida em segredo.

O quarto de Nicholas ficava entre o de Savelle e o do coronel Her-rcra. Os homens ficaram todos num lado do corredor, as mulheres no outro, como se a segregação fosse necessária para evitar comunicação não autorizada. Cinco minutos depois de as portas serem abertas, voltaram a ser fechadas e, dez minutos depois, Willis bateu com força, perguntando se tudo estava bem.

— Às mil maravilhas — disse Nicholas, sem abrir a porta.

Os telefones foram retirados, bem como os minibares. Os móveis de um quarto no fim do corredor foram substituídos por duas mesas redondas, telefones, cadeiras confortáveis, uma televisão com ecrã grande e um bar completo com todas as bebidas não alcoólicas imagináveis. Alguém chamou a este quarto «Sala de Festas» e a alcunha pegou. Só podiam telefonar com a aprovação dos guardiães e as chamadas de fora não eram permitidas. As emergências seriam resolvidas através da recepção. No quarto número 40, no outro lado do corredor, de frente para a Sala de Festas, as camas também foram retiradas e substituídas por uma mesa de jantar.

Nenhum jurado podia sair daquela ala sem prévia aprovação do juiz Harkin, de Lou Dell, ou de um dos polícias. Não havia hora de recolher porque não tinham onde ir, mas a Sala de Festas fechava às dez.

O jantar era das seis às sete, pequeno-almoço das seis às oito e meia e não se esperava que todos comessem ao mesmo tempo. Podiam andar à vontade. Podiam preparar o prato e voltar para o quarto. O jui/. Harkin estava muito preocupado com a qualidade da comida e todas as manhãs queria saber se havia alguma reclamação.

O jantar de terça-feira foi galinha frita ou peixe cozido, com saladas e muitos vegetais. Incrivelmente, todos demonstravam grande apetite. Para quem não fez nada durante o dia, a não ser ficar sentado a ouvir, quase todos estavam famintos quando chegaram ao motel, às seis horas. Nicholas foi o primeiro a servir-se e sentou-se à cabeceira da mesa, conversando com todos e insistindo para que todos comessem juntos. Estava animado e alegre, como se o isolamento não passasse de uma aventura. O seu entusiasmo era levemente contagioso.

Só Herman Grimes jantou no quarto. A senhora Grimes preparou dois pratos e saiu apressadamente da sala. Uma ordem rigorosa, por escrito, do juiz Harkin, proibia-a de comer com os jurados. O mesmo para Lou Dell, Willis e Chuck. Assim, quando Lou Dell entrou na sala, para preparar o seu prato, e encontrou Nicholas no meio de uma história, a conversa parou de repente. Ela serviu-se de peito de galinha, um pouco de feijão-verde, um pãozinho e saiu.

Agora eram um grupo de isolados e exilados, separados da realidade e banidos contra a vontade, no Siesta Inn. Só se tinham uns aos outros. Easter estava resolvido a mantê-los satisfeitos. Seriam uma fraternidade, ou mesmo uma família. Esforçar-se-ia para evitar discussões que pudessem levar à divisão do grupo.

Viram dois filmes na Sala de Festas. No fim, estavam todos a dormir.

— Estou pronto para a minha visita conjugal — anunciou Jerry Fer-nandez durante o pequeno-almoço, olhando na direcção da senhora Gladys Card, que corou.

— Francamente! — disse ela, revirando os olhos para o tecto.

Jerry sorriu-lhe com se fosse o objecto dos seus desejos. O pequeno-almoço era um verdadeiro banquete, havia desde presunto frito a flocos de milho.

Nicholas chegou a meio da refeição e cumprimentou todos com uma leve inclinação da cabeça, visivelmente aborrecido. •    — Não compreendo por que não podemos ter telefones no quarto — foi a primeira coisa que disse e imediatamente a atmosfera agradável da manhã desapareceu. Sentou-se de frente para Jerry, que o olhou e compreendeu a deixa.

— Por que não podemos beber cerveja gelada? — perguntou Jerry. - Em casa, bebo uma cerveja gelada todas as noites, às vezes duas.

Quem tem o direito de dar ordens sobre o que bebemos aqui?

— O juiz Harkin — disse Millie Dupree, que evitava o álcool.

— Que chatice!

— E a televisão? — perguntou Nicholas — Por que razão não podemos ver televisão? Tenho visto televisão desde o princípio do julgamento e não me lembro de ter visto nada interessante sobre o assunto.

— Virou-se para Loreen Duke, uma mulher grande, com o prato cheio de ovos mexidos. — Viu algum noticiário especial com notícias do julgamento?

— Nunca.

Ele olhou para Rikki Coleman, sentado com um pequeno prato de flocos à sua frente.

— E que tal um ginásio para descontrair um pouco depois de oito horas no tribunal? Podiam ter escolhido um motel com ginásio. — Rikki meneou a cabeça afirmativamente, concordando.

Loreen engoliu os ovos e disse:

— O que não entendo é porque é que não podemos ter telefone. Os meus filhos podem precisar de falar comigo. Até parece que algum bandido podia telefonar para o meu quarto para me ameaçar.

— Já me contentava com uma ou duas cervejas geladas — disse Jerry. — E talvez mais algumas visitas conjugais. — Acrescentou, olhando novamente para a senhora Gladys Card.

O descontentamento foi subindo de tom e, dez minutos depois da chegada de Easter, os jurados estavam à beira de uma revolta. As irritações ocasionais eram agora uma lista completa de maus tratos. Até Herrera, o coronel reformado que tinha acampado na selva, estava i nsatisfeito com a escolha de refrigerantes oferecidos na Sala de Festas. Millie Dupree queixava-se da ausência de jornais. Lonnie Shaver tinha negócios urgentes e, desde o início, foi o que mais se opôs à ideia do isolamento.

— Posso muito bem pensar sozinho — disse ele. — Ninguém me consegue influenciar. Precisava pelo menos de usar um telefone sem restrições.

Phillip Savelle fazia ioga no bosque todos os dias ao nascer do Sol, sozinho, só ele a comungar com a natureza, e não havia uma árvore num raio de cem metros do motel. E a igreja? A senhora Card era uma baptista devota que nunca perdia a oração das noites de quarta-feira, as visitas na terça, o clube das mulheres nas sextas e, como não podia deixar de ser, o seu sabbath repleto de compromissos.

— Acho melhor acertarmos isto tudo agora — disse Nicholas solenemente. — Vamos ficar aqui duas semanas, talvez três. Acho que devemos chamar a atenção do juiz Harkin para estes problemas.

O juiz Harkin estava com nove advogados amontoados na sua sala, discutindo os assuntos daquele dia, que não deviam chegar ao conhecimento do júri. Exigia que os advogados aparecessem todas as manhãs, às oito, para fazerem o aquecimento para a luta, e geralmente obrigava-os a ficar uma hora ou duas depois de o júri se ter retirado. Uma pancada vigorosa na porta interrompeu um debate acalorado entre Rohr e Cable. Glória Lane empurrou a porta, que bateu numa cadeira ocupada por Oliver McAdoo.

— Temos um problema com o júri — disse ela, muito séria. Harkin levantou-se da cadeira como uma mola.

— O que é?

— Querem falar consigo. É tudo o que sei. Harkin olhou para o relógio.

— Onde estão eles?

— No motel.

— Não podemos trazê-los para cá?

— Não. Já tentámos. Não virão antes de falar com o senhor. Harkin abriu a boca e curvou os ombros para a frente, num gesto de

desânimo.

— Isto está a tornar-se ridículo — disse Wendall Rohr, para ninguém em particular.

Os advogados olharam para o juiz, que olhava pensativo para a pilha de papéis na sua mesa. Então, esfregou as mãos e disse com um sorriso largo e forçado:

— Vamos vê-los.                                                     

Konrad atendeu o primeiro telefonema às oito horas e dois minutos. Não queria falar com Fitch, apenas queria que lhe dissessem que o júri estava outra vez perturbado e resolvido a não comparecer no tribunal enquanto Harkin não fosse ao motel para acalmar os ânimos. Konrad correu para a sala de Fitch e transmitiu a mensagem.

Às oito e nove telefonou outra vez e informou Konrad de que Easter estava com uma camisa de ganga escura sobre uma T-shirt beige, com meias vermelhas e as calças engomadas do costume. Meias vermelhas, repetiu ela.

Às oito e doze, no terceiro telefonema, pediu para falar com Fitch que estava às voltas na sua mesa, puxando a barbicha. Ele atendeu.

— Estou!

— Bom-dia, Fitch — disse ela.

— Bom-dia, Marlee.

— Já esteve no St. Regis Hotel, em Nova Orleães?

— Não.

— Fica na Canal Street, no French Quarter. Tem um bar a céu aberto no último andar, o Terrace Grill. Consiga uma mesa com vista para o Quarter. Esteja lá às sete esta noite. Chegarei mais tarde. Está a ouvir?

— Estou.

— E vá sozinho, Fitch. Vou vê-lo entrar no hotel e se estiver acompanhado, nada feito. Percebeu?

— Percebi.

— E se tentar seguir-me, desapareço.

— Dou-lhe a minha palavra.

— Por que será que a sua palavra não me convence, Fitch? — E desligou.

Cable, Rohr e o juiz Harkin encontraram Lou Dell na recepção, nervosa, assustada e dizendo que aquilo nunca lhe tinha acontecido. Sempre tinha conseguido manter os júris sob controlo. Conduziu-os à Sala de Festas, onde estavam reunidos treze dos catorze jurados. Her-man Grimes era o único que não concordava. Tinha discutido com o grupo condenando aquela táctica e Jerry Fernandez, irritado, acabou por insultá-lo. Jerry acentuou o facto de Herman ser o único que estava na companhia da mulher, que não sentia falta de jornais ou televisão, que já não bebia e que provavelmente não precisava de fazer exercício. A pedido de Millie Dupree, Jerry acabou por pedir-lhe desculpa. Se o Meritíssimo estava resolvido a agir autoritariamente, a verdade é que desistiu. Depois de alguns «como vai» e «bom-dia», começou a conversa com o pé esquerdo:

— Estou um pouco aborrecido com tudo isto. E Nicholas respondeu:

— Não estamos dispostos a aceitar qualquer tipo de abuso. Rohr e Cable, expressamente proibidos de dizer uma palavra que

fosse, ficaram perto da porta, divertindo-se com o espectáculo. Ambos sabiam que a cena a que estavam a assistir dificilmente se repetiria, era um caso único para recordar durante o resto das suas vidas de advogados.

Nicholas tinha feito uma lista das reclamações. O juiz Harkin tirou o casaco, sentou-se e foi atacado por todos os lados, um contra todos e praticamente indefeso.

A cerveja não era problema. Os jornais podiam ser censurados na recepção. Fazia sentido a ideia de telefonemas à vontade. O mesmo para a televisão, mas só se prometessem não ver o noticiário local. A sala de ginástica podia ser um problema, mas ia estudar o caso. Podiam arranjar-se as visitas à igreja.

Na verdade, tudo era flexível.

— Pode explicar-nos porque estamos aqui fechados? — quis saber Lonnie Shaver.

Ele tentou. Pigarreou e, com relutância, procurou justificar as razões para o isolamento. Falou um pouco sobre o contacto não autorizado, sobre o que já tinha acontecido com aquele júri e fez vagas referências a acontecimentos ocorridos noutros julgamentos de processos contra tabaqueiras.

As contravenções estavam bem documentadas e no passado as duas partes haviam incorrido em culpa. Alguns advogados da acusação tinham cometido falhas graves noutros casos, mas o juiz Harkin não podia falar sobre isso diante do júri. Devia agir com cautela para não prejudicar nenhuma das partes.

As negociações estenderam-se por uma hora. Harkin pediu garantias de que não haveria mais nenhuma greve, mas Easter não se quis comprometer.

As acções da Pynex abriram com uma queda de dois pontos, devido às notícias da greve que, segundo um analista que estava no tribunal, era provocada por uma reacção negativa e indefinida dos jurados a certas tácticas usadas na véspera pela defesa. As tácticas também oram indefinidas. Outro analista, em Biloxi, esclareceu um pouco mais as coisas sugerindo que ninguém no tribunal sabia ao certo o porquê da greve. As acções subiram meio ponto durante a manhã.

O alcatrão do cigarro provoca cancro, pelo menos em ratos de laboratório. O doutor James Ueuker, de Paio Alto, trabalhava desde há quinze anos com ratos e macacos. Conduziu pessoalmente vários estudos e tinha-se debruçado exaustivamente sobre o trabalho de investigadores de todo o mundo. Pelo menos seis importantes estudos, na sua opinião, demonstravam conclusivamente a relação do cigarro com o cancro de pulmão. Explicou detalhadamente ao júri como ele e a sua equipa haviam recolhido concentrados de fumo de cigarro, geralmente chamado «alcatrão», e os haviam esfregado directamente na pele de um milhão de ratos. Os quadros eram grandes e coloridos. Os ratos com mais sorte receberam apenas um pouco de alcatrão, os outros foram completamente pintados. Não foi surpresa verificar que quanto maior a quantidade de alcatrão, mais depressa se desenvolvia o cancro de pele.

Há uma grande distância entre tumores superficiais em roedores e cancro do pulmão em seres humanos e o doutor Ueuker, conduzido por Rohr, não conseguiu estabelecer uma relação entre os dois. A história da medicina está repleta de estudos nos quais os resultados da pesquisa de laboratório se aplicam aos seres humanos. São raras as excepções. Embora ratos e homens vivam em ambientes extremamente diversos, os resultados de alguns testes em animais são inteiramente consistentes com os resultados epidemiológicos dos testes feitos em seres humanos.

Todos os consultores de júri disponíveis estavam no tribunal durante o testemunho de Ueuker. Pequenos roedores nojentos eram uma coisa, mas coelhos e cães podiam ser animais de estimação. O estudo seguinte de Ueuker consistia em esfregar o alcatrão em coelhos, praticamente com os mesmos resultados. O último teste foi feito em trinta cães beagles que ensinou a fumar através de tubos na traqueia. Os maiores fumadores chegaram a nove cigarros por dia, aproximada-mente o equivalente a quarenta cigarros para um homem de setenta e cinco quilos. Nos cães foram detectados tumores invasivos nos pulmões depois de 875 dias consecutivos de uso de tabaco. Ueuker usou cães porque eles reagem exactamente como os humanos ao fumo do cigarro.

Mas não chegou a contar ao júri as suas experiências com coelhos e beagles. A qualquer amador, bastaria olhar para Millie Dupree para saber que estava a morrer de pena dos ratos e revoltada contra Ueuker por matar os animaizinhos. Sylvia Taylor-Tatum e Angel Weese demonstravam também o seu desagrado. A senhora Gladys Card e Phillip Savelle expressaram verbalmente a sua reprovação. Os outros homens ficaram impassíveis.

Posto isto, durante o intervalo do almoço, Rohr e a sua equipa resolveram desistir do resto da explanação do doutor James Ueuker.

 

Jumper, o segurança do tribunal que, treze dias antes, entregara o bilhete de Marlee a Fitch, foi abordado durante o almoço com uma nota de cinco mil dólares para inventar uma doença, cólica, diarreia, . qualquer coisa parecida e, vestido à paisana, ir com Pang a Nova Orleães para uma noite de boa comida, divertimento, talvez uma mulher. Jumper ficou interessado. Pang só ia precisar de algumas horas de trabalho leve. Jumper precisava do dinheiro.

Saíram de Biloxi mais ou menos ao meio dia e meia numa carrinha alugada. Quando chegaram a Nova Orleães, duas horas depois, Jumper deixou-se convencer a trocar o uniforme por trajes civis e trabalhar durante algum tempo para a Arlington West Associates. Pang ofereceu-lhe vinte cinco mil dólares por seis meses de trabalho, mais nove mil do que aquilo que ganhava num ano.

Hospedaram-se no St. Regis, em dois quartos separados, um de cada lado do quarto de Fitch, que só tinha conseguido quatro quartos. O quarto de Holly ficava mais adiante no corredor. Dubaz, Joe Boy e Dante estavam a quatro quarteirões do St. Regis, no Royal Sonesta. Instalaram Jumper num banco do bar, de onde poderia vigiar a porta de entrada do hotel.

Começou a espera. Nenhum sinal dela quando a tarde começou a transformar-se em noite, o que não surpreendeu ninguém. Jumper mudou de lugar quatro vezes e rapidamente se fartou daquele trabalho de vigilância.

Fitch saiu do quarto alguns minutos antes das sete e apanhou o elevador para o bar no terraço. A sua mesa ficava num canto com uma bela vista do Quarter. Holly e Dubaz estavam a três metros, numa outra mesa. Joe Boy era o responsável pelas fotografias.

Às sete e meia ela apareceu, vinda não se sabe de onde. Nem Jumper nem Pang a tinham visto perto do hall de entrada do hotel. Ela entrou pelas portas de vidro do bar e num instante estava sentada na mesa de Fitch. Mais tarde, Fitch calculou que devia ter feito o mesmo que eles — devia ter conseguido um quarto no hotel usando outro nome e recorrendo à escada em vez do elevador. Usava calças informais e era muito bonita — cabelo escuro curto, olhos castanhos, queixo forte e pouca maquilhagem. Na verdade não precisava de maquilhagem. Fitch calculou que devia ter entre vinte e oito e trinta e dois anos. Sentou-se tão depressa que ele nem teve oportunidade de lhe oferecer uma cadeira. Sentou-se de frente para ele, de costas para as outras mesas.

— É um prazer conhecê-la — disse ele em voz baixa, olhando em volta para ver se alguém o estava a ouvir.

— Sim, um verdadeiro prazer — respondeu ela, apoiando os cotovelos na mesa.

O empregado apareceu rápida e eficazmente e perguntou se ela ia tomar alguma coisa. Não, não. O empregado fora muito bem pago para retirar imediatamente da mesa qualquer coisa em que ela tocasse — copos, pratos, talheres, cinzeiros, qualquer coisa. Mas não teve oportunidade de o fazer.

—Está com fome?—perguntou Fitch, bebendo a sua água mineral.

— Não. Estou com pressa.

— Porquê?                                                                    

— Porque quanto mais tempo aqui ficar, mais fotografias os seus homens me tiram.

— Eu vim sozinho.

— É claro que veio. Gostou das meias vermelhas?

Uma banda dejazz começou a tocar, mas ignorou esse facto. Não tirava os olhos de Fitch.

Fitch inclinou a cabeça para trás com um sorriso de incredulidade. Ainda não podia acreditar que estava a falar com a amante de um dos jurados. Tivera contacto indirecto com jurados, antes, várias vezes, de formas diferentes, mas nunca tão perto.

E foi ela que o procurou!

- De onde é ele? — perguntou Fitch.

— Que diferença faz?

— É seu marido?

- Não.

— Namorado?

— Faz muitas perguntas.

— E você levanta muitas questões, minha jovem, e espera que eu faça as perguntas.

— É apenas um conhecido.                                                     ;

— Quando é que adoptou o nome de Nicholas Easter?

— Que diferença faz? É o seu nome legal. É residente no Estado de Mississipi, eleitor recenseado. Pode mudar de nome uma vez por mês, se quiser.

Mantinha as mãos cruzadas sob o queixo. Fitch sabia que Marlee não cometeria o erro de deixar impressões digitais.

— E você? — perguntou ele.

— Eu?

— Sim, não está registada como eleitora no Mississipi.

— Como sabe?

— Fazemos investigação. Supondo, é claro, que Marlee é o seu verdadeiro nome e que o escrevemos correctamente.

— Está a supor muita coisa.

— É o meu trabalho. É da Costa?                                            :

— Não.

Joe Boy inclinou-se para a frente, entre as folhagens o tempo suficiente para tirar seis fotografias de perfil. Uma vista mais completa exigiria um acto de malabarismo no parapeito de tijolos. Ia ficar entre as folhagens, esperando por um ângulo melhor quando ela saísse.

Fitch sacudiu o gelo no copo de água.

— Então, porque estamos aqui?—perguntou ele.

— Um encontro leva a outro.

— E para onde nos levam todos os encontros?

— Para o veredicto.

— Através de uma remuneração, tenho a certeza.

— Remuneração parece muito limitado. Está a gravar esta conversa? — Sabia perfeitamente que Fitch estava a gravar tudo.

— É claro que não.

Para Marlee, Fitch podia ouvir a gravação mesmo quando dormia. Não tinha nada a ganhar se a mostrasse a qualquer outra pessoa. Com a bagagem que carregava, ele não podia recorrer à polícia ou ao juiz, afinal, esse não era o seu modus operandi. A ideia de chantagem com ameaça de denunciá-la às autoridades jamais ocorreu a Fitch, e ela sabia-o.

Podia tirar todas as fotografias que quisesse e com os seus homens espalhados pelo hotel podiam seguir, espiar e ouvir. Faria o jogo deles por algum tempo, evitando-os e escondendo-se para que fizessem jus ao dinheiro que estavam a ganhar. Não iam descobrir coisa alguma.

— Não vamos falar de dinheiro agora, está bem, Fitch?

— Vamos falar do que quiser. Este espectáculo é seu.

— Porque é que invadiu o apartamento dele?

— Porque é isso que fazemos.

— O que acha de Herman Grímes? — perguntou ela.

— Porque é que pergunta? Sabe exactamente o que está a acontecer na sala dos jurados.

— Quero ver se você é mesmo esperto. Estou interessada em saber se o trabalho de todos aqueles especialistas em júris e advogados valo o que lhes paga.

— Nunca perdi, portanto recupero sempre o meu dinheiro.

— Então, o que acha de Herman?

Fitch pensou um segundo e pediu outro copo de água.

—  Ele vai ter muita importância na decisão do veredicto: é um homem de opinião. No momento, ainda está com a opinião em aberto. Absorve cada palavra pronunciada no tribunal e provavelmente sabe mais do que qualquer outro jurado,com excepção, é claro, do seu amigo. Acertei?

— Chegou muito perto.

— É bom ouvir isso. Com que frequência conversa com o seu amigo?

— Ocasionalmente. Herman foi contra a greve esta manhã. Sabia?

— Não.

— Foi o único.

— Qual a causa da greve?

— As condições do isolamento. Telefones, televisão, cerveja, sexo, igreja, os desejos comuns da humanidade.

— Quem liderou a greve?

— A mesma pessoa que lidera tudo desde o primeiro dia.

- Compreendo.

- É por isso que estou aqui, Fitch. Se o meu amigo não estivesse a controlar as coisas, não teria nada para oferecer.

- E o que é que tem para oferecer?

— Já disse que não vamos falar de dinheiro agora.

O empregado pôs o copo na frente de Fitch e perguntou outra vez a Marlee se queria tomar alguma coisa.

- Sim, uma Coca-Cola Light num copo de plástico, por favor.

— Não temos copos de plástico—respondeu o empregado, olhando confuso para Fitch.

- Então esqueça. — Ela sorriu e olhou para Fitch. Fitch pressionou.

— Qual é o estado de espírito do júri neste momento?

— Estão todos fartos. Para eles, todos os advogados de barra são lixo e acham que devia haver severas restrições a processos legais frívolos.

— O seu amigo é o meu herói. Podia convencer os companheiros?

— Não. Não tem companheiros. É desprezado por todos, é definitivamente o mais ignorado membro do júri.

— E entre as mulheres, quem é a mais amistosa?

— Millie é a mãe de todos, mas não terá nenhuma influência. Rikki é bonitinha, popular e muito preocupada com a vida saudável. Pode ser um problema para vocês.

— Isso não é surpresa.

— Quer uma surpresa, Fitch?

— Quero, avance

— Qual o jurado que começou a fumar no primeiro dia do julgamento?

Fitch semicerrou os olhos e inclinou a cabeça para a esquerda. Será que tinha ouvido bem?

— Que começou a fumar?

— Isso mesmo.

- Desisto.

— Easter. Está espantado?

— O seu amigo?

— Exactamente. Tenho de ir. Telefono-lhe amanhã. — Levantou-se e desapareceu tão depressa como tinha aparecido.

Dante, com a mulher contratada, reagiu antes de Fitch, que ficou atónito um segundo com a rapidez daquela partida. Dante comunicou por rádio com Pang e este viu-a sair do elevador e do hotel, Jumper seguiu-a a pé dois quarteirões antes de a perder numa rua movimentada.

Durante uma hora procuraram-na em vão nas ruas, nos estacionamentos, nos hotéis e nos bares. Fitch estava no seu quarto no St. Regi s quando Dubaz telefonou do aeroporto. Ela estava à espera do voo da ponte aérea que devia sair dentro de uma hora e meia e chegava a Mobile às dez e cinquenta. Não a siga, ordenou Fitch, e depois telefonou para dois agentes em Biloxi, que correram para o aeroporto de Mobile.

Marlee morava num apartamento alugado, de frente para a Back Bay, em Biloxi. Quando faltavam vinte minutos para chegar, ligou do telemóvel para a polícia de Biloxi e explicou que estava a ser seguida desde Mobile por dois homens num Ford Taurus, que eram assaltantes perigosos e que temia pela sua vida. Com o polícia ao telefone a ordenar os seus movimentos, Marlee deu uma porção de voltas num bairro tranquilo e parou de repente num posto que ficava aberto a noite toda. Enquanto enchia o depósito, um carro da polícia parou atrás do Taurus, que estava a tentar esconder-se na esquina, em frente de uma tinturaria fechada. Os polícias mandaram os homens descer do carro e caminhar com eles até junto da mulher que estavam a seguir.

Marlee desempenhou maravilhosamente o papel de vítima apavorada. Quanto mais chorava, mais os polícias se irritavam. Os homens de Fitch foram levados para a cadeia.

Às dez horas, Chuck, o polícia grande e carrancudo, instalou uma cadeira de armar no fim do corredor, à frente do seu quarto, e sentou-se para a vigília da noite. Era quarta-feira, a segunda noite do isolamento. De acordo com o plano, Nicholas telefonou para o quarto de Chuck às onze e quinze. Assim que o polícia deixou o posto para atender, Jerry e Nicholas saíram dos seus quartos e dirigiram-se calmamente para a porta da frente do motel, perto do quarto de Lou Dell, que àquela hora dormia profundamente. Quanto a Willis, embora dormisse constante-mente no tribunal, estava também debaixo dos cobertores a roncar furiosamente.

Evitando o pátio de entrada e procurando as sombras, encontraram o taxi que os esperava, como haviam combinado. Quinze minutos depois, entraram no Nugget Casino, em Biloxi Beach. Beberam três cervejas no bar e Jerry perdeu cem dólares num jogo. Tentaram seduzir duas mulheres casadas, cujos maridos estavam a ganhar ou a perder fortunas na mesa de dados. A sedução começou a ficar mais séria e, à uma hora, Nicholas saiu do bar para jogar o «vinte e um» a cinco dólares e tomar um descafeinado. Jogou e esperou, esperou, enquanto o casino esvaziava aos poucos.

Marlee sentou-se na cadeira ao seu lado e não disse nada. Nicholas empurrou uma pilha de fichas para junto dela. O único jogador na mesa era um estudante embriagado.

— Lá em cima — murmurou ele entre as mãos, quando o croupier se virou para falar com o gerente do jogo.

Encontraram-se numa varanda, com vista para o estacionamento e para o oceano. Novembro tinha chegado e o ar estava leve e frio. Não havia ninguém por perto. Beijaram-se e abraçaram-se sentados num banco. Ela contou tudo sobre a viagem a Nova Orleães, todos os pormenores, palavra a palavra. Riram dos dois homens de Mobile que estavam agora na cadeia. Ao nascer do dia, ela ia telefonar para que Fitch tratasse de os libertar.

Conversaram brevemente sobre negócios porque Nicholas queria voltar para o bar e apanhar Jerry antes que ele bebesse demais e perdesse todo o dinheiro ou fosse apanhado com a mulher de alguém.

Os dois tinham telemóveis de bolso não inteiramente seguros. Combinaram novos códigos.

Nicholas despediu-se com um beijo e deixou-a sozinha na varanda.

Wendall Rohr percebeu que o júri estava cansado de ouvir estudiosos a descrever as suas descobertas e a dar aulas com os seus gráficos e mapas. Os consultores diziam que os jurados tinham ouvido o suficiente sobre cancro de pulmão e fumo, que provavelmente já estavam convencidos antes do julgamento que o cigarro vicia e é perigoso. Rohr tinha a certeza de ter estabelecido uma relação causal bastante forte entre os cigarros Bristol e os tumores que mataram Jacob Wood. Estava na hora de rematar o caso. Na quinta-feira de manhã anunciou que a acusação gostaria de chamar Lawrence ICrigler para depor. Era visível a tensão na mesa da defesa durante o breve tempo utilizado para chamar o senhor Krigler, sentado bem ao fundo da sala. Outro advogado da acusação, John Riley Milton, de Denver, levantou -se e sorriu docemente para o júri.

Lawrence Krigler tinha quase setenta anos, estava bronzeado e era saudável, apresentou-se bem vestido e caminhou com passos rápidos. Era a primeira testemunha sem doutor antes do nome, desde o vídeo do depoimento de Jacob Wood. Morava na Flórida desde que se aposentara da Pynex. John Riley Milton passou rapidamente pelas informações preliminares para chegar depressa à parte mais saborosa.

Formado em engenharia pela universidade da Carolina do Norte, trabalhara durante trinta anos na Pynex, até deixar a empresa no meio de um processo legal, treze anos antes. Processou a Pynex. A empresa, por sua vez, moveu-lhe um processo. Fizeram um acordo extra-judicial cujos termos não foram revelados.

Quando Krigler entrou para a empresa, que então se chamava Union Tobacco, ou simplesmente U-Tab, foi mandado para Cuba para estudar a produção de tabaco. Desde então tinha trabalhado na produção, ou pelo menos até ao dia em que deixou a empresa. Conhecia a fundo as folhas de tabaco e milhares de modos de incrementar a sua produção. Krigler considerava-se um especialista nesse campo, embora não fosse testemunhar como tal, nem dar opiniões. Apenas factos.

Em 1969, ainda na empresa, completou um estudo de três anos sobre a possibilidade de cultivar uma folha de tabaco experimental conhecida apenas como Raleigh 4. Tinha um terço da nicotina do tabaco comum. Krigler concluiu, com o apoio de um generoso orçamento para pesquisa, que a Raleigh 4 podia ser cultivada e produzida com a mesma eficiência de todos os outros tipos de tabaco então cultivados e produzidos pela U-Tab.

Foi um trabalho monumental, do qual se orgulhava, e ficou arrasado quando o seu estudo foi ignorado pelos directores da empresa. Com grande esforço, abriu caminho através da burocracia hierárquica, sem resultado. Ninguém parecia interessar-se pelo novo tipo de tabaco com baixo teor de nicotina.

Foi então que descobriu que estava errado: os seus chefes preocupavam-se muito com os níveis de nicotina. No Verão de 1971 chegou às suas mãos um memorando interno instruindo a administração para desacreditar discretamente o trabalho de Krigler com o Raleigh 4. A sua própria gente estava a apunhalá-lo pelas costas. Krigler procurou manter a calma, não contou a ninguém que tinha lido o memorando e elaborou um plano para descobrir o motivo daquela conspiração contra si.

Nesse ponto do seu depoimento, John Riley Milton introduziu como evidência duas provas — o estudo completado por Krigler em 1969 e o i nemorando de 1971.

A resposta tornou-se clara como cristal e condizia com as suas suspeitas. A U-Tab não podia dar-se ao luxo de produzir uma folha com menos nicotina porque esta significa lucro. Desde os anos 30 que a indústria sabia que a nicotina cria dependência.

— Como é que sabe que a indústria tem conhecimento desse facto? — perguntou deliberadamente Milton. Com excepção dos advogados de defesa, que faziam o melhor possível para parecer entediados e indiferentes, toda a sala do tribunal ouvia com a maior atenção.

— É do conhecimento geral neste meio — respondeu Krigler. — No fim dos anos 30 foi feito um estudo secreto, pago por uma tabaqueira, e o resultado provou, sem sombra de dúvida, que a nicotina do cigarro vicia.

— Chegou a ver esse relatório?

— Não. Como devem imaginar, foi muito bem escondido. — Krigler fez uma pausa e olhou para a mesa da defesa. A bomba estava a chegar e ele saboreava o momento. — Mas vi o memorando.

— Protesto! — gritou Cable, levantando-se. — Esta testemunha não pode declarar o que pode ou não ter visto num documento. As razões são inúmeras e explicadas minuciosamente nos dossiers que apresentámos a este respeito.

Os dossiers continham oitenta páginas e há um mês que estavam a ser discutidos. O juiz Harkin já tinha dado o seu parecer por escrito a esse respeito.

— O seu protesto será anotado nos autos, doutor Cable. Senhor Krigler, pode continuar.

— No Inverno de 1973, vi um memorando de uma página com o sumário do estudo sobre a nicotina realizado nos anos 30. O memorando foi copiado várias vezes, era muito velho e estava bastante alterado.

— Alterado em que sentido?

— A data foi apagada, bem como o nome da pessoa que o enviou.

.    — Para quem é que foi enviado?

— Era dirigido a Sander S. Fraley, naquele tempo presidente da Allegheny Growers, a predecessora de uma empresa que hoje se chama ConPack.

— Uma tabaqueira?

— Basicamente, sim. Supostamente é uma empresa que produz vários tipos de produtos de consumo geral, mas o seu forte é o tabaco.

— Quando é que ele foi presidente da empresa?

— De 1931 a 1942.

— Seria certo supor que o memorando foi enviado antes de 1942?

— Sim. O senhor Fraley morreu em 1942.

— Onde é que o senhor estava quando viu esse memorando?

— Na Pynex, em Richmond. Quando a Pynex era ainda Union Tobacco, a sede da empresa era em Richmond. Em 1979 mudou de nome e mudou a sede para Nova Jérsia. Mas os prédios em Richmond ainda são usados e era lá que eu trabalhava. A maior parte dos antigos arquivos da empresa está lá e um conhecido meu mostrou-me o memorando.

— Quem era esse seu conhecido?

— Um amigo que já morreu. E prometi-lhe que jamais revelaria a sua identidade.

— O senhor teve o memorando nas mãos?

— Tive. Na verdade, até fiz uma cópia.

— E onde é que está a sua cópia?

— Não durou muito. Guardei-a na gaveta da minha secretária e no dia seguinte fui chamado para tratar de negócios fora da cidade. Enquanto estava fora, alguém revistou a minha secretária e tirou de lá várias coisas, incluindo a cópia do memorando.

— Está lembrado do que dizia o memorando?

— Perfeitamente. E compreende-se: há algum tempo que tentava descobrir uma confirmação para as minhas suspeitas. Ver o memorando foi um momento inesquecível.

— O que dizia o memorando?

— O memorando era curto: três parágrafos, talvez quatro, uma coisa breve e directa. O redactor do memorando explicava que acabara

de ler o relatório sobre nicotina fornecido confidencialmente pelo chefe de pesquisas da Allegheny Growers, uma pessoa cujo nome não era rilado. Na sua opinião, o estudo apresentava pró vas conclusivas, e acima de qualquer dúvida, de que a nicotina vicia. Se bem me lembro, esse era o ponto principal dos dois primeiros parágrafos.

— E o seguinte? Era sobre quê?

— O relator sugeria a Fraley que a empresa devia pensar seriamente em aumentar o nível de nicotina nos cigarros. Mais nicotina significa mais fumadores, o que quereria dizer mais vendas e mais lucro.

Krigler disse estas palavras com um tom discretamente dramático e todos as absorveram avidamente. Os jurados, pela primeira vez em muitos dias, observavam cada movimento da testemunha. A palavra ••lucro» pairou sobre a sala como uma neblina suja.

John Riley Milton fez uma pequena pausa e disse:

— Muito bem, agora vamos esclarecer isto. O memorando foi feito por alguém de outra empresa e enviado ao presidente daquela. Não é assim?

— Uma empresa que naquele tempo, como agora, era concorrente da Pynex?

— Exactamente.

— Como é que o memorando foi parar à Pynex em 1973?

— Não sei: nunca consegui descobrir. Mas a Pynex certamente sabia do estudo. Na verdade, no início dos anos 70, ou até antes, toda a indústria do tabaco sabia.

— Como é que sabe?

— Não se esqueça que trabalhei trinta anos nesta indústria. E passei todo esse tempo na produção. Falei com muita gente, especialmente com os que nas outras empresas trabalhavam na produção. Digamos que, às vezes, as tabaqueiras podem ser solidárias umas com as outras.

— Alguma vez tentou obter outra cópia do memorando junto do seu amigo?

— Tentei, mas não funcionou. Vamos parar por aqui.

Apesar do intervalo de quinze minutos para o café, às dez e meia, Krigler testemunhou durante as três horas da sessão da manhã. Foi como se tivesse durado apenas alguns minutos e foi um momento crucial no julgamento. O drama de um ex-funcionário revelando segredos condenáveis foi desempenhado com perfeição. Os jurados chegaram a esquecer o seu apetite para o almoço. Os advogados observavam-nos mais atentamente do que nunca, e o juiz parecia anotar cada palavra que ele dizia.

A atitude dos jornalistas era de invulgar reverência e a dos consultores de júri de atenção fora do vulgar. Os vigilantes de Wall Street contavam os minutos até ao momento em que poderiam sair apressa para fazer os seus telefonemas tensos para Nova Iorque. Os advogados locais, sempre entediados, iam comentar aquele testemunho durante anos. Até Lou Dell, na primeira fila, interrompeu o seu tricot.

Fitch observava e ouvia, na sala dos monitores ao lado do seu gabinete. O testemunho de Krigler fora originalmente marcado para a semana seguinte e por momentos houve até a possibilidade de não testemunhar. Fitch era uma das poucas pessoas ainda com vida que tinha visto o memorando escrito por Krigler com espantosa correcção. Era evidente para todos, até para Fitch, que a testemunha estava a dizer a verdade.

Uma das primeiras tarefas de Fitch, nove anos antes, quando foi contratado pelas Quatro Grandes, consistiu em localizar cada cópia do memorando e destruí-las todas.

Nem Cable, nem nenhum advogado da defesa contratado por Fitch, tinha visto o memorando.

O problema da admissão da existência do memorando no tribunal provocou uma pequena guerra. Por motivos óbvios, as regras da evidência normalmente proibiam a descrição de documentos perdidos. A melhor prova é o próprio documento. Mas, como em todas as áreas da lei, havia excepções e excepções às excepções e Rohr e a sua equipa realizaram um magnífico trabalho junto do juiz, convencendo-o de que o júri devia ouvir a descrição de Krigler daquilo que era, na realidade, um documento perdido.

Naquela tarde o interrogatório indirecto de Cable seria brutal, mas o mal estava feito. Fitch desistiu do almoço e trancou-se no escritório.

Na sala do júri, a atmosfera durante o almoço era completamente diferente. A conversa habitual sobre futebol e troca de receitas foi substituída por um silêncio quase total. Como um grupo deliberativo, o júri fora exposto até quase à apatia a fastidiosos testemunhos científicos de especialistas regiamente pagos para viajar até Biloxi e fazer as suas palestras. Agora, era sacudido pela sensacional revelação de segredos feita por Krigler.

Comeram menos e pensaram mais. A maior parte queria estar noutra sala com o seu amigo favorito e rever o que acabava de ouvir. Teriam ouvido bem? Será que todos tinham compreendido o que o homem acabara de dizer? Os altos níveis de nicotina eram intencionalmente mantidos para viciar os fumadores?

Conseguiram o que queriam. Os fumadores, agora reduzidos a três desde a partida de Stella, e Easter, apesar de não ser fumador inveterado e de preferir ficar com Jerry, Poodle e Angel Weese, comeram rapidamente, pediram licença e saíram. Sentaram-se nas cadeiras de armar, fumando e olhando para fora pela janela aberta. Sabendo do alto nível de nicotina, o tabaco agora parecia um pouco mais pesado. Mas quando Nicholas disse isso, ninguém achou graça.

A senhora Gladys Card e Milhe Dupree saíram para a casa de banho ao mesmo tempo. Depois de um longo momento sozinhas, demoraram-se a lavar as mãos, conversando diante do espelho. Loreen Duke entrou na casa de banho, encostou-se no rolo das toalhas e despejou todo o seu espanto e descontentamento em relação às tabaqueiras.

Depois de levantada a mesa, Lonnie Shaver abriu o seu computador portátil, separado por duas cadeiras de Herman, que digitava rapidamente no seu computador braile. O coronel disse a Herman:

— Acho que não precisa de tradutor para este depoimento, pois não?

Herman resmungou e depois disse:

— Realmente é espantoso. — Foi o mais perto que Herman chegou de uma possível discussão sobre qualquer aspecto do caso.

Lonnie Shaver não estava espantado ou impressionado por coisa alguma.

Phillip Savelle pediu cortesmente, e foi atendido pelo juiz, para passar parte do intervalo de almoço a fazer ioga, debaixo de um grande carvalho atrás do tribunal. Foi escoltado por um polícia até à árvore, tirou a camisa, as meias e os sapatos, e sentou-se na relva macia, enroscando o corpo como uma enguia. Quando começou a cantilena, o polícia afastou-se discretamente, sentou-se num banco de cimento e baixou a cabeça para não ser reconhecido.

Cable cumprimentou Krigler como se fossem velhos amigos. Kri-gler sorriu e disse:

— Boa-tarde, doutor Cable — disse perfeitamente confiante.

Sete meses antes, no escritório de Rohr, Cable e a sua equipa passaram três dias a gravar em vídeo o depoimento de Krigler. O vídeo foi visto e estudado por nada menos do que duas dúzias de advogados, vários especialistas em júris e até por dois psiquiatras. Krigler estava a dizer a verdade, mas agora a verdade tinha de ser encoberta. Isto era um interrogatório indirecto crucial, portanto a verdade que fosse para o diabo. A testemunha tinha de ser desacreditada.

Depois de centenas de horas de planos, haviam desenvolvido uma estratégia. Cable começou por perguntar a Krigler se ele estava zangado com os seus antigos patrões.

— Estou — respondeu ele.

— O senhor odeia a empresa?

— A empresa é uma entidade. Como é que se pode odiar uma coisa?

— O senhor odeia a guerra?

— Nunca estive na guerra.

— Odeia o abuso de crianças?

— Tenho a certeza de que é nauseante, mas felizmente nunca tive nenhum contacto com essa realidade.

— O senhor odeia a violência?

— Tenho a certeza de que é horrível mas, também nesta matéria, tenho tido sorte.

— Então, não odeia nada?

— Brócolos.

Risotas discretas de vários pontos da sala e Cable percebeu que tinha as mãos cheias.

— O senhor não odeia a Pynex?

— Não.

— Odeia alguém que trabalha na empresa?

— Não. Não gosto de alguns deles.

— Quando trabalhava na empresa, odiava alguém que lá traba lhava?

— Não. Tinha inimigos, mas não me lembro de odiar ninguém.

— E as pessoas que foram alvo do seu processo?

— Não. Nesse caso também eram inimigos, mas só estavam a fazer o seu trabalho.                         

— Então, o senhor ama os seus inimigos?

— Na verdade, não. Sei que devia tentar, mas é difícil. Não me lembro de ter dito que os amava.

Cable esperava marcar um pequeno ponto sugerindo a possibilidade de retribuição ou vingança da parte de Krigler. Talvez se insistisse na palavra «ódio» chegasse a impressionar alguns dos jurados.

— Qual é o seu motivo para depor neste processo?

—  É uma questão complicada.

— É dinheiro?

— Não.

— O doutor Rohr, ou alguém relacionado com a queixosa, paga-lhe para o senhor testemunhar?

— Não. Concordaram em reembolsar as minhas despesas de viagem, mas mais nada.

A última coisa que Cable queria era uma porta aberta para Krigler expor as suas razões para testemunhar. Havia tocado levemente no assunto durante o interrogatório directo de Milton e este passou cinco horas a explicar pormenorizadamente cada razão. Era de importância crucial fazer com que Krigler falasse sobre outros assuntos.

— O senhor alguma vez fumou, senhor Krigler?

— Sim. Infelizmente fumei durante vinte anos.

— Então, desejaria nunca ter fumado?

— É claro.

— Quando começou?

— Quando entrei para a empresa, em 1952. Naquele tempo encorajavam todos os empregados a fumar. Ainda fazem isso.

— Acredita que prejudicou a sua saúde por fumar durante vinte anos?

— É claro que sim. Só por sorte não estou morto, como o senhor Wood.

— Quando deixou? • >

— Em 1973, depois de saber a verdade sobre a nicotina.

— Acha que a sua saúde actual foi abalada de algum modo pelo facto de ter fumado durante vinte anos?

— É claro.

— Na sua opinião, a empresa foi, de algum modo, responsável pela sua decisão de começar a fumar?

— Sim. Como já disse, encorajavam-nos. Todos fumavam. Comprávamos cigarros por metade do preço na loj a da empresa. Todas as reuniões começavam com uma caixa cheia de cigarros a passar à volta da mesa. Era uma parte importante da cultura da empresa.

— Os escritórios eram ventilados?

— Não.

— Qual a intensidade do efeito de inalação passiva?

— É enorme. Havia sempre uma névoa azulada a pairar não muito acima das nossas cabeças.

— Então, hoje, o senhor culpa a empresa por não ser tão saudável quanto devia ser?

— A empresa tem muito a ver com isso. Felizmente consegui deixar o vício. Não foi fácil.

— E guarda ressentimentos contra a empresa por isso?

—Digamos que teri a preferido trabalhar numa outra indústria quando me formei.

— Indústria? Guarda ressentimento contra toda a indústria?

— Não sou um admirador da indústria do tabaco.

— É por isso que está aqui? •   —Não.

— Cable consultou as suas notas e mudou rapidamente de direcção.

— Muito bem, o senhor teve uma irmã, não teve, senhor Krigler? . —Sim, tive.

— O que é que lhe aconteceu? ,   — Morreu em 1970.

— Como é que morreu?

— Com cancro do pulmão. Fumou dois maços por dia durante mais ou menos vinte e três anos. O tabaco matou-a, doutor Cable, se é isso que quer ouvir.

— O senhor e a sua irmã eram muito unidos? — perguntou Cable com compaixão suficiente para aliviar um pouco a crueldade de lembrar uma tragédia.

— Éramos muito unidos. Não tínhamos mais irmãos.

— E a morte da sua irmã abalou-o, não foi?

— Foi. Era uma pessoa muito especial e ainda sinto a sua falta.

— Lamento estar a falar nisso, senhor Krigler, mas é relevante.

— A sua compaixão é comovente, doutor Cable, mas não há nada de relevante nisso.

— Qual era a opinião dela a respeito de o senhor fumar?

— Não gostava. Quando estava a morrer, pediu-me para largar o tabaco. Era isso que queria ouvir, doutor Cable?

— Só se for a verdade.

— Oh, é verdade, doutor Cable. Um dia antes de morrer, fez-me prometer que ia deixar o tabaco. E eu deixei, embora tenha levado três longos anos para o conseguir. Estava viciado, tal como a minha irmã, porque a empresa que fabricava os cigarros que a mataram, e que me teriam matado também a mim, mantinha intencionalmente o mais elevado nível de nicotina possível nos cigarros.

— Agora...

— Não me interrompa, doutor Cable. A nicotina isolada não é cancerígena, o senhor sabe isso, é apenas um veneno, um veneno que vicia o fumador e que permite que os elementos cancerígenos possam mais tarde tomar conta do nosso corpo. Por isso o cigarro é inerentemente perigoso.

Cable ouviu, com perfeita calma.

— Já terminou?

— Estou pronto para a próxima pergunta. Mas não me interrompa outra vez.

— Certamente, e peço desculpa. Agora diga-me, quando é que se convenceu de que o tabaco é inerentemente perigoso?

— Não sei exactamente quando. É um facto conhecido há algum tempo. Naquele tempo, como hoje, não era preciso ser um génio para entender isso. Mas diria que foi no começo dos anos setenta, quando terminei o meu estudo, depois da morte da minha irmã e pouco antes de ver o infame memorando.

— Em 1973?

— Mais ou menos por aí.

— E quando é que deixou de trabalhar para a Pynex? Em que ano?

— Em 1982.

— Então continuou a trabalhar para a empresa fabricante de um produto que o senhor considerava inerentemente perigoso?

— Continuei.

— Quanto ganhava em 1982?

- Noventa mil dólares por ano.

Cable fez uma pausa, foi até à mesa, pegou num outro bloco de apontamentos que estudou alguns segundos, mordendo a ponta do aro dos óculos de leitura, depois voltou-se para Krigler e perguntou por que razão tinha processado a empresa em 1982. Krigler não gostou da pergunta e olhou para Rohr e Milton, pedindo ajuda. Cable continuou a perguntar sobre pormenores dos acontecimentos que levaram ao litígio, um litígio de ordem pessoal e extremamente complicado, interrompendo definitivamente o curso do depoimento. Rohr protestou, Milton protestou e Cable reagiu como se não tivesse a mínima ideia do motivo dos protestos. Os advogados reuniram-se para confabular em frente da mesa do juiz Harkin e Krigler começou a ficar cansado com a demora.

Cable continuou a martelar na tecla do desempenho profissional de Krigler nos seus últimos dez anos na Pynex, sugerindo claramente que outras testemunhas podiam ser chamadas para o contradizer.

A estratégia quase funcionou. Incapaz de abalar os aspectos prejudiciais do testemunho de Krigler, a defesa resolveu confundir o júri. Se uma testemunha não pode ser abalada, então é preciso procurar anulá-la com pormenores insignificantes.

Porém, a estratégia foi explicada ao júri por Nicholas Easter, que tinha dois anos de direito e que no intervalo para o café, ao fim da tarde, resolveu lembrar aos seus companheiros esse facto. Ignorando as objecções de Herman, Nicholas expressou o seu ressentimento contra a tentativa de Cable de desacreditar a testemunha e confundir o júri.

— Ele pensa que somos burros — disse, revoltado.

 

Reagindo aos telefonemas frenéticos de Biloxi, as acções da Pynex fecharam a setenta e cinco e meio na quinta-feira, uma queda de quase quatro pontos, atribuída aos acontecimentos dramáticos no tribunal.

Noutros julgamentos de fabricantes de cigarros, ex-empregados tinham testemunhado sobre pesticidas e insecticidas usados nas plantações de tabaco e os especialistas tinham relacionado esses produtos com o cancro. Isso não impressionou os júris. Num dos julgamentos, um antigo empregado revelou que os seus ex-empregadores visavam os jovens adolescentes com anúncios onde idiotas charmosos e magros com queixos e dentes perfeitos se deliciavam com o prazer de fumar.

IA mesma empresa visava os adolescentes mais velhos com anúncios onde cowboys e pilotos de automóveis enfrentavam a vida com um cigarro entre os lábios.

Mas os jurados nesses julgamentos não premiaram os queixosos.

Porém, nenhum ex-empregado provocou tanto prejuízo como Lawrence Krigler. O infame memorando dos anos 30 fora visto por um pequeno número de pessoas, mas jamais citado num processo legal. A versão apresentada por Krigler ao júri era a mais próxima do verdadeiro memorando que qualquer advogado da acusação já havia conseguido. O facto de o juiz Harkin ter permitido a descrição do memorando em frente dos jurados seria calorosamente contestado na apelação, independentemente de quem vencesse o julgamento.

Krigler foi rapidamente escoltado para fora da cidade pelos segu-ranças de Rohr e, uma hora depois de terminar o seu testemunho, estava num avião particular de regresso à Flórida Várias vezes, desde que saiu da Pynex, Krigler se viu tentado a entrar em contacto com a acusação dos processos movidos contra os fabricantes de tabaco, mas nunca tinha tido coragem.

A Pynex tinha pago extra-judicalmente trezentos mil dólares só para se livrar de Krigler. A empresa insistiu para que ele concordasse em nunca testemunhar num julgamento semelhante ao de Wood, mas ele recusou. E quando recusou, tornou-se um homem marcado.

Eles, fossem quem fossem, garantiram que o matariam. As ameaças foram poucas e com grandes intervalos ao longo dos anos, sempre feitas por vozes anónimas e quando menos esperava. Krigler não era homem para se esconder. Escreveu um livro, uma denúncia que, segundo ele, seria publicada no caso de ter morte suspeita. O livro estava com um advogado em Melbourne Beach. O advogado era um amigo que arranjou o seu primeiro encontro com Rohr e que tinha também um diálogo aberto com o FBI, para o caso de acontecer alguma coisa com o senhor Krigler.

O marido de Millie Dupree, Hoppy, era dono de uma pequena imobiliária em Biloxi. Certamente não do tipo agressivo, tinha poucas propriedades para vender e poucos negócios em andamento, mas trabalhava arduamente com o pouco que conseguia. Uma parede da sala da frente tinha as fotografias das oportunidades disponíveis, pregadas compunaises num quadro de papelão — a maioria eram casas pequenas com belos relvados e alguns velhos duplex.

A febre do jogo atraiu para a Costa um novo grupo de ousados vendedores de imóveis, que não tinham medo de fazer grandes empréstimos para desenvolver o negócio. Hoppy e os pequenos vendedores continuaram com o seu jogo seguro, cada vez mais envolvidos com o tipo de mercado que melhor conheciam: pequenos e encantadores imóveis para «início de vida», para «recém-casados» e pequenas «adaptações» para os mais desesperados que não tinham condições para contrair um empréstimo.

Mas conseguia pagar as suas contas e sustentar a família -— a mulher, Millie, e cinco filhos, três numa universidade que só oferecia os dois primeiros anos, e dois no liceu. A certa altura, tinha adicionado ao seu escritório as licenças de meia dúzia de vendedores associados, que trabalhavam à comissão, na sua maioria um punhado de perdedores desanimados que partilhavam a sua aversão por dívidas e pela agressividade nos negócios. Hoppy gostava de jogar cartas e muitas das suas horas eram passadas na mesa dos fundos. Os vendedores de imóveis, independentemente do talento, gostam de sonhar com o grande negócio. Hoppy e o seu grupo não se furtavam a uma pequena bebida ii (arde, jogando cartas e falando em grandes negócios. Pouco antes das seis horas, na quinta-feira, quando o jogo estava quase no fim e se preparavam para encerrar outro dia improdutivo, um jovem homem de negócios muito bem vestido com uma pasta negra e brilhante, entrou no escritório e perguntou pelo senhor Dupree. Hoppy estava com pressa para ir para casa, uma vez que Millie estava isolada no motel. Foram feitas as apresentações. O jovem apresentou um cartão comercial que o identificava como Todd Ringwald, do Grupo de Propriedades KLX, de Las Vegas, Nevada. O cartão impressionou Hoppy o suficiente para mandar embora o último dos seus sócios vendedores e trancar a porta do escritório. A simples presença de alguém tão bem vestido, vindo de tão longe, só podia significar assuntos muito sérios.

Hoppy ofereceu-lhe uma bebida, depois café, que podia ser feito num instante. O senhor Ringwald declinou e perguntou se tinha chegado numa hora imprópria.

—Não, de modo nenhum. O nosso horário de trabalho é completa-mente louco, como deve saber. É um negócio louco.

O senhor Ringwald sorriu e concordou, porque também tinha estado naquele negócio até há poucos anos. Primeiro, umas palavras sobre a sua empresa. A KLX era uma empresa privada com holdings numa dúzia de estados. Embora não fosse proprietária de casinos e não pretendesse ser, havia desenvolvido uma especialidade relacionada com eles, uma especialidade muito lucrativa. A KLX era «rastreadora» de casinos. Hoppy meneou vigorosamente a cabeça, como se conhecesse a fundo esse tipo de negócio.

Quando os casinos chegam a um sítio, o mercado imobiliário muda drasticamente. Ringwald tinha a certeza de que Hoppy sabia tudo a esse respeito e Hoppy concordou, como se acabasse de fazer uma fortuna na sua cidade. A KLX trabalhava discretamente — e Ringwald fez questão de enfatizar a característica secreta da empresa — um passo atrás dos casinos, promovendo o desenvolvimento de áreas comerciais, dispendiosos condomínios e complexos de apartamentos da classe alta. Os casinos pagam bem, geram muitos empregos, muita coisa muda na economia local e havia muito mais dinheiro flutuando e a KLX queria a sua parte.

— A nossa empresa é um verdadeiro abutre — explicou Ringwakl com um sorriso malicioso. — Nós sentamo-nos e observamos os casinos. Quando eles se mexem, nós entramos para reclamar a presa.

— Brilhante! — exclamou Hoppy, sem poder controlar-se. Entretanto, a KLX demorou muito a mudar-se para a Costa e, confidencialmente, isso custou alguns empregos em Las Vegas. Mas ainda havia oportunidades incríveis e Hoppy disse: — Certamente. Ring-wald tirou da pasta um mapa de propriedades que deixou dobrado sobre os joelhos. Ele, como vice-presidente de desenvolvimento, preferia tratar com pequenos vendedores locais. As grandes firmas tinham gente a mais, muitas donas de casa obesas lendo os anúncios à espera do menor sinal de boato.

— Disse muito bem! — concordou Hoppy, olhando para o mapa. — Além disso, consegue um melhor serviço se recorrer a uma pequena empresa como a minha.

Você foi especialmente recomendado — disse Ringwald, e Hoppy não pôde conter um sorriso.

O telefone tocou. Era o filho mais novo para saber o que era o jantar e quando voltaria a mãe para casa. Hoppy foi amável, mas breve. Estava muito ocupado, explicou, e devia haver uma lasanha no frigorífico.

O mapa foi aberto sobre a mesa de Hoppy. Ringwald apontou para um terreno marcado a vermelho em Hancock County, ao lado de Har-rison e dos três condados, o mais próximo do extremo oeste. Os dois homens aproximaram-se da mesa, um de cada lado.

— A MGM Grand está a chegar— disse Ringwald, apontando para uma baía. — Mas ainda ninguém sabe e você não deve contar isto a ninguém.

Hoppy meneava a cabeça, «claro que não!», antes mesmo de Ringwald acabar de falar.

—Vão construir o maior casino da Costa, provavelmente em meados do próximo ano. Dentro de três meses começarão a anunciar a construção. Vão comprar aproximadamente cem hectares deste terreno aqui.

— Um belo terreno. Praticamente intacto — Hoppy nunca tinha estado perto da propriedade, mas morava na Costa há quarenta anos.

— Nós queremos isto — disse Ringwald, apontando outra vez para o terreno marcado a vermelho. — Quinhentos hectares, para fazer isto: — Tirou a folha de cima do mapa, revelando o desenho artístico de um esplêndido plano de uma unidade de desenvolvimento. O nome Still-water Bay estava escrito em letras grandes e azuis na parte superior do desenho. Condomínios, prédios de escritórios, grandes residências, residências mais pequenas, parques infantis, igrejas, uma praça central, uma galeria comercial, uma rua só para peões, um cais, uma marina, um quarteirão comercial, parques, pista para correr, ciclovias, até um liceu. Era uma utopia planeada para Hancock County por pessoas de Las Vegas com muita visão.

— Fantástico! — disse Hoppy. Uma verdadeira fortuna estava sobre a sua mesa.

— Quatro fases diferentes durante quatro anos. A coisa toda vai custar trinta milhões. É de longe o maior plano de desenvolvimento urbano jamais visto nesta região.

— Não há aqui nada que se pareça com isso.

Ringwald virou outra página revelando outro desenho da área do cais, depois outro com um plano aproximado do bairro residencial.

—Estes são apenas desenhos preliminares. Mostrarei outros quando puder ir ao nosso escritório.

— Vegas?

— Sim. Se chegarmos a um acordo sobre a sua representação, então gostaríamos que passasse alguns dias em Las Vegas para conhecer o pessoal, ver os desenhos de todo o projecto.

Hoppy sentiu as pernas moles e respirou profundamente. Vai devagar, pensou.

—Sim, e que tipo de representação têm em mente?

— Para já, precisamos de uma imobiliária que se encarregue da compra das terras. Uma vez compradas, precisamos de convencer as autoridades locais a aprovar o nosso plano. Isso, como sabe, pode levar algum tempo e provocar controvérsias. Levamos algum tempo até à elaboração dos planos de comissões e ao planeamento dos lotes. Vamos até aos tribunais, se necessário. Mas é apenas uma parte do nosso negócio. Você ficará envolvido nessa fase do negócio. Uma vez aprovado, precisamos de uma empresa imobiliária para o marketing de Still-water Bay.

Hoppy recostou-se na cadeira, fazendo os cálculos.   

— Quanto vai custar o terreno? — perguntou.

— É caro, muito caro para esta área. Dez mil por hectare, por uma terra que vale apenas metade disso.

Quinhentos hectares a dez mil dólares o hectare perfaz um total de cinco milhões de dólares, dos quais seis por cento, ou trezentos mil, seriam a comissão de Hoppy, supondo, é claro, que não haveria mais imobiliárias envolvidas no negócio. Ringwald observou, com olhar inexpressivo, Hoppy a fazer a matemática mental.

— Dez mil é de mais — disse Hoppy, com autoridade.

— Sim, mas o terreno não está no mercado. Os proprietários realmente não querem vender, portanto temos de entrar rapidamente, antes que fiquem a saber da vinda da MGM. É por isso que precisamos de uma empresa local. Se chegar ao conhecimento do público que uma grande empresa de Las Vegas está interessada naquelas terras, o preço sobe para vinte mil o hectare. É o que acontece sempre.

O facto de o terreno não estar no mercado fez disparar o coração de Hoppy. Nenhum outro corretor estava envolvido. Só ele. Só o pequeno Hoppy e os seis por cento de comissão. O seu navio tinha finalmente chegado a bom porto. Ele: Hoppy Dupree, após décadas a vender apartamentos a reformados, estava prestes a fazer o negócio da sua vida.

Sem mencionar o «marketing de Stillwater Bay». Todas aquelas casas, condomínios, propriedades comerciais, trinta milhões em propriedades com as tabuletas de Dupree Imóveis em todas elas. Hoppy podia ficar milionário em cinco anos.

Ringwald apertou o cerco.

— Estou a calcular a sua comissão em oito por cento. É o que pagamos normalmente.

— É claro — disse Hoppy, as palavras passando velozes na língua muito seca. De trezentos mil para quatrocentos mil, assim sem mais nem menos. — Quem são os proprietários? — perguntou, mudando rapidamente de assunto, agora que tinham concordado com oito por cento.

Ringwald suspirou dramaticamente e curvou os ombros, mas só por um instante.

— É aí que a coisa se complica.

O coração de Hoppy caiu-lhe aos pés.

— A propriedade fica no sexto distrito de Hancock County... — disse Ringwald lentamente —... e o sexto distrito é dominado por um supervisor chamado...

— Jimmy Hull Moke — adiantou Hoppy, com desânimo.

— Conhece-o?

—Toda a gente conhece Jimmy Hull. Está nesse lugar há trinta unos. O ladrão mais desonesto de toda a Costa.

— Conhece-o pessoalmente?

— Não. Só de nome. E fama!

— Que, segundo soubemos, é bastante duvidosa.

— Duvidosa é um elogio para Jimmy Hull. A nível local, o homem controla tudo na sua parte do condado.

Ringwald olhou para Hoppy confuso, como se ele e a sua empresa não soubessem como deviam proceder. Hoppy esfregou os olhos tristes enquanto pensava num meio de conservar a sua fortuna. Durante um minuto não olharam um para o outro, então Ringwald disse:

— Não é prudente comprar terrenos, a não ser que tenhamos alguma garantia do senhor Moke e das autoridades locais. Como sabe, tem de haver um labirinto de papéis que devem ser aprovados para o projecto.

— Planeamento, loteamento, arquitectura, erosão do solo, tudo o que se possa imaginar — disse Hoppy, como se lutasse contra essas coisas todos os dias.                                                                

— Soubemos que o senhor Moke controla tudo isso.

— Com mão de ferro. Outra pausa.

— Talvez fosse bom conseguirmos uma entrevista com o senhor Moke — disse Ringwald.

— Não, acho que não.

— Porquê?

— Entrevistas não funcionam.

— Não entendendo.

— Dinheiro. Puro e simples. Jimmy Hull gosta do dinheiro por baixo da mesa, grandes malas com notas não marcadas.

Ringwald fez um gesto afirmativo com um sorriso solene, como se fosse uma pena, mas nada inesperado.

— Foi o que ouvimos dizer — disse, quase para si mesmo. — Na verdade, isso não é invulgar, especialmente nas áreas em que aparecem casinos. Há muito dinheiro estrangeiro e as pessoas ficam gananciosas.

— Jimmy Hull já nasceu ganancioso. Começou a roubar trinta anos antes dos casinos aparecerem.

— Nuncafoi apanhado?

— Não. Para um supervisor local, Hull é bastante inteligente. Tudo a dinheiro, nenhuma pista, protege-se com cuidado. Hoppy enxugou a testa com o lenço. Inclinou-se e retirou dois copos de uma gaveta da mesa e depois uma garrafa de vodka. Serviu duas bebidas generosamente e colocou uma na frente de Ringwald—Saúde! — disse Hoppy, antes que Ringwald tocasse no copo.

— Então, o que fazemos? — perguntou Ringwald.

— O que é que fazem normalmente em situações como esta?

— Normalmente procuramos um meio de trabalhar com as autoridades locais. Há demasiado dinheiro envolvido para desistir.

— Com as autoridades locais, como?

—Temos os nossos meios. Contribuímos para campanhas de reeleição. Honramos os nossos compromissos oferecendo férias dispendiosas. Pagamos consultas de saúde às mulheres e aos filhos...

— Alguma vez pagaram um suborno em dinheiro vivo?

— Bem, prefiro não falar nisso.

— É isso que vão precisar. Jimmy Hull é um homem simples. Apenas dinheiro. — Hoppy bebeu um longo gole e estalou os lábios.

— Quanto?

— Sabe-se lá! Mas é bom que seja suficiente. Se forem mesquinhos com ele de início, ele mata o seu projecto mais tarde e ainda fica com o dinheiro. Jimmy Hull não devolve nada.

— Fala como se o conhecesse muito bem.

— Todas as pessoas que têm negócios na Costa conhecem o jogo dele. Hull é uma espécie de lenda local.

Ringwald meneou a cabeça, incrédulo.

— Bem-vindo ao Mississipi — disse Hoppy e bebeu mais um gole de vodka.

Ringwald não tocou na bebi da.

Durante trinta e cinco anos, Hoppy tinha feito jogo honesto e não pretendia comprometer-se agora. O dinheiro não valia o risco. Tinha filhos, família, uma reputação, era bem visto pela sociedade. Ia à igreja ocasionalmente e ao Rotary Clube. Quem seria exactamente aquele estranho sentado à sua frente com um fato elegante e sapatos de marca, oferecendo-lhe o mundo caso concordasse com o que eles queriam? Ele, Hoppy, certamente ia telefonar e verificar o tal Grupo de Propriedade KLX e o senhor Todd Ringwald, assim que ele saísse do seu escritório.                                                                              

— Isso é habitual — disse Ringwald. — Temos tempo.

— Qual é o vosso procedimento?

— Bem, acho que o seu primeiro passo deveria ser procurar o senhor Moke e estudar a possibilidade de um acordo.

— Ele está sempre pronto para um acordo.

—Então, determinamos os termos do acordo. Como disse, decidiremos quanto dinheiro vamos oferecer. — Ringwald parou para beber um pequeno gole de vodka. — Está disposto a envolver-se nisto?

— Não sei. De que modo?

— Não conhecemos ninguém em Hancock County. Tentamos não aparecer. Somos de Vegas. Se começarmos a fazer perguntas, o projecto vai por água-abaixo.

— Quer que fale com Jimmy Hull?

— Só se quiser envolver-se. De contrário, seremos obrigados a procurar outra pessoa.

— Tenho uma boa reputação — disse Hoppy, com espantosa firmeza, depois engoliu em seco à ideia de um competidor entrar na posse dos seus quatrocentos mil dólares.

— Não esperamos de si nenhuma desonestidade. — Ringwald fez uma pausa, procurando as palavras certas. Hoppy estava a pressioná-lo. — Digamos que temos meios para entregar ao senhor Moke aquilo que ele pedir. Você não precisa de tocar em nada. Na verdade, quando a coisa acontecer, nem vai saber.

Hoppy endireitou o corpo na cadeira, como se tivessem tirado um peso dos seus ombros. Talvez houvesse um meio termo em tudo aquilo. Ringwald e a sua empresa eram experientes nestas coisas. Provavelmente tratavam com aldrabões muito mais sofisticados do que Jimmy Hull Moke.

— Estou a ouvir — disse Hoppy.

— Você tem pulso nesta terra. Somos de fora, portanto vamos confiar em si. Que tal marcar um encontro com o senhor Moke, só vocês os dois, e falar em termos gerais sobre o nosso plano? Os nossos nomes não serão mencionados, diz-lhe apenas que tem um cliente interessado em trabalhar com ele. Vai dizer-lhe um valor e, se estiver dentro das nossas possibilidades, diz-lhe que o negócio está fechado. Nós encarregamo-nos da entrega e você nunca saberá se o dinheiro chegou a mudar de mãos. Você não faz nada de errado. Ele fica feliz e nós também porque estamos em vias de ganhar muito dinheiro, juntamente consigo, devo acrescentar.

Hoppy gostou! Nenhuma lama ia chegar às suas mãos. O negócio sujo ficava por conta do cliente e de Jimmy Hull. Ficava fora e simplesmente olhava para o outro lado mas, mesmo assim, queria agir com cautela. Disse que gostaria de algum tempo para pensar.

Conversaram mais um pouco, examinaram os planos outra vez e despediram-se às oito horas. Ringwald ficou de voltar na sexta-feira de manhã.

Antes de ir para casa, Hoppy ligou para o número no cartão de Ringwald. Atendeu-lhe uma eficiente recepcionista de Las Vegas.

— Boa-tarde. Grupo Propriedade KLX.

Hoppy sorriu, depois pediu para falar com o senhor Todd Pvingwald. A chamada foi transferida, com música rock suave ao fundo, para o escritório do senhor Ringwald e Hoppy falou com Madeline, uma assistente. Ela informou-o de que o senhor Ringwald estava fora da cidade e que não o esperavam antes de segunda-feira. Perguntou quem queria falar com ele e Hoppy desligou rapidamente.

Pronto. A KLX existia.

As ligações de fora eram atendidas na recepção, registadas em folhas amarelas de um bloco de mensagens e enviadas para Lou Dell, que as distribuía como o coelho da Páscoa distribuindo ovos de chocolate. A mensagem de George Teaker chegou às sete e quarenta da noite, na quinta-feira, e foi entregue a Lonnie Shaver, que, em vez de ver o filme na televisão, estava a trabalhar no seu computador. Telefonou imediatamente para Teaker e, durante os dez minutos seguintes, tudo o que fez foi responder a perguntas sobre o julgamento. Lonnie confessou que não tinha sido um bom dia para a defesa. Lawrence Krigler causou um grande impacto em todos os jurados, menos em Lonnie, é claro. Lonnie garantiu a Teaker que não estava impressionado. Todos em Nova Iorque estavam preocupados, disse Teaker repetidamente. Era um grande alívio saber que Lonnie estava no júri e que podiam contar com ele em qualquer circunstância, mas as coisas pareciam não ir muito bem. Estariam enganados? Lonnie disse que era muito cedo para confirmar.

Teaker disse que precisavam de atar as pontas soltas do contrato de trabalho. Lonnie só sabia de uma ponta solta: a remuneração. Actualmente ganhava quarenta mil dólares por ano. Teaker afirmou que a SuperHouse pagaria cinquenta mil, com direito a subscrição de algumas acções e um prémio, baseado no seu desempenho, que podia chegar a vinte mil.

Eles queriam que Lonnie fizesse um curso de reciclagem para gerentes, em Charlotte, assim que o julgamento terminasse. A referência ao julgamento provocou uma nova série de perguntas sobre o estado de espírito do júri.

Uma hora depois, Lonnie estava à janela, olhando para o estacionamento, tentando convencer-se de que estava prestes a ganhar setenta mil dólares por ano. Três anos antes, ganhava vinte e cinco mil.

Nada mau para um garoto com um pai que conduzia uma carrinha de entrega de leite a três dólares por hora.

 

Na sexta-feira de manhã, o Wall Street Journal trazia um artigo de primeira página sobre Lawrence Krigler e o seu depoimento da véspera. Escrito por Agner Layson, que até então não havia perdido nem uma palavra do julgamento, o artigo descrevia com precisão o que o júri tinha ouvido. Layson especulava sobre o impacto do depoimento de Krigler no júri. A outra metade do artigo tentava mostrar o outro lado da questão, citando observações dos bons e velhos rapazes da Con-Pack, antiga Allegheny Growers. Como era de esperar, negavam veementemente tudo o que Krigler tinha dito. A empresa não fez nenhum estudo sobre nicotina nos anos 30, pelo menos ninguém da actual Con-Pack sabia desse estudo. Muito tempo tinha passado. Ninguém da ConPack tinha visto o infame memorando. Provavelmente uma criação da imaginação de Krigler. Não era do conhecimento geral na indústria tabaqueira o facto de a nicotina contribuir para criar dependência. O veneno não era mantido artificialmente em altos níveis pela ConPack, ou por qualquer outro fabricante de cigarros. A empresa não admitia, na verdade negava uma vez mais e por escrito, que a nicotina fosse um factor de dependência.

A Pynex também deu alguns tiros para o ar, todos de fontes anónimas. Krigler era um desajustado. Considerava-se um cientista de investigação, quando na verdade não passava de um engenheiro. O seu trabalho com o Raleigh 4 tinha apresentado falhas graves, a produção dessa folha era completamente impraticável. A morte da irmã afectou seriamente o seu trabalho e a sua conduta. Não demorou a ameaçar com um processo legal. Havia claras insinuações de que o acordo feito fora dos tribunais, treze anos antes, tinha sido completamente favorável à Pynex. Seguia-se uma breve descrição do desempenho das acções da Pynex, que tinham fechado a setenta e cinco e meio, três pontos abaixo, no mercado comprador, depois da última recuperação.

O juiz Harkin leu o artigo uma hora antes da chegada do júri. Telefonou para Lou Dell, no Siestalnn, para se certificar de que os jurados não leriam aquele jornal. Ela garantiu que só recebiam os jornais locais, todos censurados, de acordo com as instruções. Lou Dell adorava recortar as reportagens e artigos sobre o julgamento. Ocasionalmente, também recortava reportagens que nada tinham a ver com o assunto, só para se divertir, para lhes causar curiosidade sobre o que estariam a perder. Nunca o saberiam.

Hoppy Dupree dormiu pouco. Depois de lavar os pratos e de passar o aspirador na sala, falou quase uma hora com Millie ao telefone. Ela estava muito bem disposta.

Hoppy levantou-se da cama à meia-noite e foi sentar-se na varanda, pensando na KLX, em Jimmy Hull Moke e na fortuna que estava lá fora, quase ao alcance da sua mão. O dinheiro seria utilizado com os filhos, Hoppy decidiu isto antes de sair do escritório. Era o fim das faculdades de segunda classe. Era o fim dos empregos a meio tempo. Iriam para as melhores escolas. Também não seria mal pensado uma casa maior, mas só porque a deles era demasiado pequena para as crianças. Ele e Millie podiam morar num sítio qualquer: eram pessoas com exigências e hábitos simples.

Ficaria sem dívidas. Depois de pagar os impostos, faria dois investimentos: fundos do tesouro e imóveis. Compraria pequenas propriedades comerciais com sólidos contratos de arrendamento. Podia começar já a enumerar uma meia dúzia.

O acordo com Jimmy Hull Moke preocupava-o. Hoppy nunca se tinha envolvido em subornos. Um primo seu que vendia carros usados passou três anos na prisão por acumular duas e três hipotecas. Destruiu o casamento e arruinou a vida dos filhos.

A certa altura do seu pensamento, antes do nascer do dia, Hoppy acabou por se convencer de que a reputação de Jimmy Hull Moke garantia a sua segurança. O homem tinha de tal maneira refinado a prática da corrupção que a transformara numa forma de arte. Enriqueceu com um escasso salário de funcionário público. E toda a gente o sabia!

Moke saberia certamente como fazer o acordo sem ser apanhado. Hoppy não ia sequer chegar perto do dinheiro, nem saberia com certeza se ou quando seria entregue.

Comeu umapop-tart ao pequeno-almoço e resolveu que o risco era mínimo. Teria uma conversa sem compromisso com Jimmy Hull. Seguiria o rumo escolhido por Jimmy, porque tinha a certeza de que rapidamente estariam a falar em dinheiro. Depois, falaria com Ringwald. Descongelou torradas de canela para os filhos, deixou o dinheiro para o almoço deles na mesa da cozinha e, às oito horas, foi para o escritório.

No dia seguinte ao depoimento de Krigler, a defesa adoptou um estilo mais suave. Era imperativo aparentar descontracção, não se mostrarem atingidos pelo golpe severo desfechado pela acusação na véspera. Toda a equipa estava com fatos de cores mais claras, cinzento e azul--claro e até um caqui. Desapareceram os fatos negros e o azul-mari-nho. Desapareceu também a seriedade de homens sobrecarregados com a sua própria importância. Assim que a porta se abriu e o primeiro jurado apareceu, largos sorrisos cheios de dentes cintilaram na mesa da defesa. Até um ou dois risos breves e abafados. Não eram mais do que um bando de homens tranquilos.

O juiz Harkin disse «olá», mas foram poucos os sorrisos no banco dos jurados. Era sexta-feira, o que significava o início do fim da semana, um fim-de-semana que passariam encarcerados no Siesta Inn. Durante o pequeno-almoço tinham resolvido que Nicholas mandaria entregar um bilhete ao juiz, pedindo que considerasse a possibilidade de trabalhar no sábado. Os jurados preferiam estar no tribunal, tentando acabar com aquele sofrimento, a ficar nos quartos sem fazer nada e a pensar no julgamento.

A maioria dos jurados notou o sorriso idiota de Cable e da sua equipa. Reparou nos fatos de Verão, o ar jovial, os murmúrios bem-humorados.

— Por que diabo estão tão felizes? — murmurou Loreen Duke enquanto Harkin lia a sua lista de perguntas.

— Querem fingir que está tudo sob controlo — murmurou Nicholas. — Olhem para eles com insistência.

Wendall Rohr levantou-se e chamou a sua próxima testemunha.

—Doutor Roger Bunch—disse solenemente, observando a reacção do júri ao nome anunciado.

Era sexta-feira. Não haveria nenhuma reacção do júri.

A fama de Bunch tinha dez anos, começara quando, como chefe supremo do serviço de saúde dos Estados Unidos, combateu incansavelmente a indústria tabaqueira. Durante os seis anos em que ocupou o cargo, incentivou inúmeros estudos, vários ataques frontais, fez milhares de discursos contra o fumo, escreveu três livros sobre o assunto e pressionou as agências do governo para uma regulamentação de controlo mais severa. As suas vitórias foram poucas e espaçadas. Depois de deixar o cargo, continuou a sua cruzada, com grande talento para a publicidade.

Era um homem de muitas opiniões e estava ansioso por partilhá-las com o júri. A prova era conclusiva — o tabaco causa cancro do pulmão. Todas as organizações médicas profissionais do mundo que estudaram o assunto haviam determinado que os cigarros causam cancro do pulmão. As únicas organizações com opinião contrária eram as dos fabricantes e dos seus porta-vozes, aliás pagos para isso — lobbies e coisas parecidas.

O tabaco vicia. Pergunte a qualquer fumador que tenha tentado deixar de fumar. A indústria afirma que fumar é uma questão de escolha. «Pura palermice, típica das empresas tabaqueiras», disse, com desprezo. Na verdade, durante os seus seis anos como ministro da saúde tinha publicado três estudos separadamente: todos provavam conclusivamente que o tabaco vicia.

As empresas tabaqueiras gastam milhões para enganar o público. Conduzem estudos para provar que o fumo é praticamente inócuo. Gastam dois mil milhões por ano em publicidade e depois afirmam que a escolha entre fumar ou não fumar é uma opção perfeitamente informada. Isso não é verdade. As pessoas, especialmente os adolescentes, recebem sinais confusos. Fumar parece divertido, sofisticado, até saudável.

Gastam toneladas de dinheiro com todo o tipo de estudos idiotas que, segundo eles, provam o que afirmam. A indústria no seu todo é famosa pelas suas mentiras e dissimulações. Anunciam e promovem como loucos, mas quando um consumidor do seu produto morre de cancro do pulmão, afirmam que a pessoa devia saber que o fumo faz mal.

Bunch fez um estudo que provava que o tabaco contém resíduos de insecticida e pesticida, fibras, material não identificado e lixo. Embora não se poupem a despesas em publicidade, as empresas não se dão ao trabalho, nem fazem nenhuma despesa para eliminar adequadamente os resíduos venenosos do seu produto.

Bunch dirigiu um projecto para demonstrar como os fabricantes de cigarros escolhem especialmente como alvo os jovens e os pobres, como desenvolvem e anunciam marcas diferentes para sexos e classes diferentes.

Como ex-ministro da saúde, o doutor Bunch podia partilhar as suas opiniões sobre uma vasta gama de assuntos. Em vários momentos, naquela manhã, deixou bem claro o seu ódio pela indústria do tabaco e, quando esse ódio se tornou evidente, a sua credibilidade foi prejudicada. Mas conseguiu interessar o júri. Não se viam bocejos, nem olhares perdidos no espaço.

Todd Ringwald achava que o encontro devia ser no escritório de Hoppy, no seu território, onde Jimmy Hull Moke teria menos defesas. Hoppy supôs que isso fazia sentido. Na verdade, não tinha a menor ideia de como essas coisas eram feitas. Teve sorte em encontrar Moke em casa. Estava a tratar do jardim e disse-lhe que já estava a pensar ir a Biloxi. Moke disse que tinha ouvido falar em Hoppy. Hoppy respondeu que era um assunto muito importante relacionado com um plano de desenvolvimento potencialmente grande em Hancock County. Combinaram um almoço, uma sanduíche rápida no escritório de Hoppy. Moke disse que sabia exactamente onde ficava.

Perto da hora do almoço, três dos seus sócios de vendas estavam na sala da frente do escritório. Um deles conversava com um amigo ao telefone. Outro lia os anúncios. O terceiro parecia estar a fazer horas para o jogo de cartas. Com grande dificuldade, Hoppy despachou-os para a rua, onde estavam as verdadeiras oportunidades imobiliárias. Não queria ninguém por perto quando Moke chegasse.

O escritório estava deserto quando Jimmy Hull entrou com calças de ganga e botas de cowboy. Hoppy recebeu-o com um aperto de mãos nervoso e voz esganiçada e conduziu-o à sua sala, nas traseiras, onde, em cima da mesa, já os esperavam duas sanduíches e chá gelado. Enquanto comiam falaram sobre política local, casinos e pescaria, embora Hoppy estivesse completamente sem apetite. O seu estômago contraía-se de medo e as suas mãos não paravam de tremer. Retirou os pratos da mesa e abriu sobre ela o desenho artístico de Stillwater Bay que Ringwald havia levado mais cedo e que não continha nenhuma pista sobre quem estava por detrás do projecto. Em dez minutos Hoppy fez um rápido sumário do projecto proposto e, à medida que falava, sentia-se mais seguro. Na sua opinião, foi uma óptima apresentação, limtny Hull olhou para o desenho, passou a mão pelo queixo e disse:

- Trinta milhões de dólares?

- Pelo menos — respondeu Hoppy. De repente, o seu estômago relaxou.

- E quem é que vai fazer isto?

Hoppy tinha ensaiado a resposta e falou com convincente autoridade. Simplesmente, não podia revelar o nome, pelo menos naquele momento não. Jimmy Hull gostava de segredos. Fez perguntas, todas relacionadas com dinheiro e financiamentos. Hoppy respondeu a quase todas.

— O loteamento pode vir a ser um grande problema—disse Jimmy l lull, franzindo atesta.

— Certamente.

— E a comissão de planeamento vai lutar furiosamente contra isto.

— Já estamos a contar com isso.

— É claro que a decisão final é dos supervisores. Como sabe, as recomendações para loteamento e planeamento são apenas consultivas. Nós os seis damos o resultado final, de acordo com o que queremos. — Riu divertido e Hoppy riu também. No Mississipi, os seis supervisores dos condados eram reis absolutos.

— O meu cliente sabe como as coisas funcionam e está ansioso por trabalhar consigo.

Jimmy Hull tirou os cotovelos da mesa e recostou-se na cadeira. Semicerrou os olhos, franziu a testa, passou a mão pelo queixo e os seus pequenos olhos negros lançaram raios laser para o outro lado da mesa, atingindo o pobre Hoppy no peito, como balas. Hoppy apertou os dez dedos sobre a mesa para conter o tremor das mãos.

Quantas vezes teria Jimmy Hull estado nesta situação, avaliando a presa antes do golpe de misericórdia?

— Sabe que controlo tudo no meu distrito?! — disse ele, quase sem mexer os lábios.

— Sei exactamente como as coisas funcionam — respondeu Hoppy, com a maior calma possível.

— Se quiser que isto seja aprovado, o projecto passa sem problemas. Se não gostar, já está liquidado.

Hoppy limitou-se a mexer afirmativamente a cabeça.

Jimmy Hull queria saber quais as outras imobiliárias locais que estavam envolvidas, quem sabia o quê e qual o grau de secretismo do projecto até ao momento. >    —Não há ninguém envolvido localmente. Só eu—garantiu Hoppy.

— O seu cliente tem alguma coisa a ver com o jogo?

— Não. Mas são pessoas de Las Vegas. Sabem como são feitas as coisas a nível local. E estão ansiosos por agir rapidamente.

Vegas foi a palavra chave e Jimmy Hull saboreou-a com prazer. Examinou o escritório pequeno e pobre. Era simples e espartano, indicando uma certa inocência, como se nada de importante acontecesse ali e nada de importante fosse esperado. Tinha telefonado para dois amigos em Biloxi e ambos informaram que o senhor Dupree era um homem inofensivo: vendia bolo de frutas no Natal para o Rotary Clube. Tinha uma grande família e conseguia evitar controvérsias e o comércio em geral. A pergunta óbvia era: porque razão os tipos do projeclo Stillwater Bay queriam associar-se a um escritório tão conservador como a Dupree Imóveis.

Hull resolveu não perguntar isso.

— Sabe, o meu filho é um óptimo consultor para projectos deste tipo.

— Não sabia. Mas tenho a certeza de que o meu cliente adoraria trabalhar com o seu filho.

— Ele está em Bay St. Louis.

— Quer que lhe telefone?

— Não, eu encarrego-me disso.

Randy Moke tinha dois camiões de cimento para pavimentação e passava a maior parte do tempo a tratar de um barco de pesca que alugava a turistas para pesca no alto mar. Deixou a escola muito cedo, dois meses antes de ser condenado por tráfico de droga.

Hoppy insistiu. Ringwald tinha exaltado a importância de conseguir a adesão de Moke o mais depressa possível. Se não chegassem logo a um acordo, Moke podia voltar para Hancock County e começar a falar sobre o projecto.

— O meu cliente está ansioso para determinar os pagamentos preliminares antes de comprar o terreno. Quanto é que o seu filho cobra pelos seus serviços?

— Cem mil.

Hoppy não mexeu um músculo e ficou orgulhoso com a própria calma. Ringwald tinha calculado um suborno na faixa de cem a duzentos mil. A KLX pagaria alegremente. Na verdade era barato, comparado com Nova Jérsia.

— Compreendo, é...pagável...

— ...Em dinheiro.

— O meu cliente está disposto a discutir o assunto.

— Nada de discussão. Dinheiro adiantado ou nada feito.

— E quais são as condições?

— Cem mil em dinheiro agora e o projecto está em andamento. Tem a minha palavra. Um centavo a menos e anulo tudo com um telefonema.

Era incrível. Não havia o menor sinal de ameaça na voz dele. Mais tarde, Hoppy disse a Ringwald que Jimmy Hull simplesmente expôs os termos do negócio como se estivesse a vender pneus na feira da ladra.

— Preciso de fazer um telefonema — disse Hoppy. — Fique à vontade.

Foi para a sala da frente, que felizmente estava ainda vazia, e ligou para Ringwald, que estava no hotel, sentado ao lado do telefone. Os termos foram expostos, discutidos durante alguns segundos, e Hoppy voltou para o seu escritório.

— Negócio fechado. O meu cliente paga. — Hoppy falou devagar, e francamente era uma boa sensação a de fechar um negócio em que se falava de milhões. A KLX de um lado, Moke do outro, e Hoppy no meio de tudo, no centro do fogo e completamente fora do trabalho sujo.

Jimmy Hull descontraiu-se e sorriu.

— Quando?

— Telefono-lhe na segunda-feira.            

 

Na tarde de sexta-feira, Fitch ignorou o julgamento. Tinha assuntos urgentes para tratar: assuntos sobre um dos jurados. Fechados na sala de conferências do escritório de Cable, Fitch, Pang e Cari Nussman observaram durante uma hora as imagens projectadas na parede.

A ideia foi de Fitch e só de Fitch. Era um tiro no escuro, um dos palpites mais malucos que já tivera, mas era pago para cavar debaixo de pedras em busca de coisas que ninguém mais conseguia encontrar. O dinheiro proporcionava o luxo de sonhar com o improvável.

Quatro dias antes havia dado ordem para Nussman enviar no dia seguinte, de Biloxi, todos os documentos do julgamento Cimmino, que decorrera um ano antes, em Allentown, Pensilvânia. O júri do caso Cimmino ouviu as testemunhas durante quatro semanas e deu mais um veredicto favorável à indústria tabaqueira. Trezentos jurados potenciais foram convocados em Allentown. Um deles era um jovem chamado David Lancaster.

A ficha de Lancaster era pequena. Trabalhava numa loja de vídeo e dizia-se estudante. Morava num apartamento em cima de um supermercado coreano de segunda categoria e, aparentemente, deslocava-se de bicicleta. Não havia indícios de outro veículo, e no registo do condado não constava o pagamento de nenhuma licença, nenhum carro ou camioneta em seu nome. A ficha de informação do júri dizia que tinha nascido em Filadélfia a 8 de Maio de 1967, mas isso não foi verificado na época do julgamento. Não havia motivo para suspeitar que estivesse a mentir. Os homens de Nussman chegaram à conclusão de que a data de nascimento era fictícia. A ficha dizia também que nunca fora condenado; não tinha servido em nenhum júri no condado no ano anterior; não tinha nenhum motivo de ordem médica para não servir e era eleitor devidamente qualificado. Recenseara-se cinco meses antes do início do julgamento.

Não havia nada de estranho nos documentos, excepto o memorando de um consultor, escrito à mão, dizendo que, quando Lancaster se apresentou no júri, no primeiro dia, a secretária do tribunal verificou que o .u nome não constava da lista dos que tinham sido chamados. Ele apresentou uma intimação aparentemente válida e foi incluído no grupo de possíveis jurados. Um dos consultores de Nussman notou que Lancaster parecia ansioso para servir no júri.

A única foto do jovem foi tirada a uma certa distância e mostrava-o a raminho do trabalho na sua mountain bike. Estava de boné, óculos escuros e barba espessa. Uma das agentes de Nussman conversou com Lancaster quando foi alugar vídeos na loja onde ele trabalhava e informou que estava de calças de ganga desbotadas, ténis Birkenstocks, meias de lã e camisa de flanela. O cabelo estava penteado para trás e preso num rabo-de-cavalo enfiado no colarinho. Foi gentil, mas de poucas palavras.

Lancaster não teve sorte quando os números foram sorteados, mas passou nas duas primeiras eliminatórias e estava quatro filas atrás quando o júri foi escolhido.

A sua ficha foi fechada imediatamente.

Agora estava aberta outra vez. Nas últimas vinte e quatro horas, tinham descoberto que David Lancaster simplesmente desaparecera de Allentown um mês depois do fim do julgamento. O coreano, seu senhorio, não sabia de nada. O seu chefe na loj a de vídeo disse que um dia não foi trabalhar e nunca mais souberam dele. Não encontraram mais ninguém na cidade que admitisse saber da existência de Lancaster. Os homens de Fitch estavam a procurar, mas não esperavam encontrar nada. Ainda estava registado como eleitor mas, segundo o escrivão do condado, as listas só seriam actualizadas dentro de cinco anos.

Na quarta-feira à noite, Fitch estava certo de que David Lancaster era Nicholas Easter.

Bem cedo, naquinta-feira, Nussman recebeu do seu escritório em Chicago duas grandes caixas com os documentos do julgamento Gla-vine, em Broken Arrow, Oklahoma. O caso Glavine fora uma briga furiosa no tribunal, dois anos antes, contra a Trellco, com Fitch garantindo o seu veredicto muito antes de os advogados acabarem de se digladiar. Nussman passou a noite de quinta-feira em claro, examinando os documentos da pesquisa do júri do caso Glavine.

Em Broken Arrow havia um jovem branco chamado Perry Hirsch, com vinte e cinco anos na época, supostamente nascido em St. Louis, numa data que as investigações verificaram ser falsa. Disse que trabalhava numa fábrica de lâmpadas e nos fins-de-semana entregava pizzas. Solteiro, católico, não tinha terminado o liceu, nunca fora jurado, tudo de acordo com as suas declarações num breve questionário entregue aos advogados antes do julgamento. Registou-se como eleitor quatro meses antes do julgamento e, supostamente, morava com uma tia num parque de caravanas. Era um dos duzentos que responderam à chamada para servir no júri.

Havia duas fotografias de Hirsch. Numa delas estava a transportar uma pilha de pizzas para o carro, um Punto muito usado, com uma camisa azul e vermelha e um boné nos mesmos tons. Usava óculos com aro de metal e barba. Na outra, estava de pé ao lado da caravana onde morava, mas o rosto mal aparecia.

Hirsch quase foi escolhido para o júri de Glavine, mas foi cortado pela acusação, por motivos que não ficaram muito claros na época. Como era de esperar, deixou a cidade algum tempo depois do julgamento. A fábrica onde trabalhava tinha o registo de um homem chamado Terry Hurtz, mas nenhum Perry Hirsch.

Fitch estava a pagar a um investigador local para trabalhar intensamente na matéria. A tia sem nome não foi encontrada. Ninguém em Rizzo se lembrava de nenhum Perry Hirsch.

Fitch, Pang e Nussman, sentados no escuro, passaram a tarde de sexta-feira a olhar para as imagens na parede. As fotos de Hirsch, Lancaster e de Easter foram ampliadas e focadas o melhor possível. Easter, é claro, estava agora sem barba. A foto foi tirada quando estava a trabalhar, sem óculos escuros e sem boné.

Os três rostos eram da mesma pessoa.

O grafólogo de Nussman chegou de DC na sexta-feira depois do almoço, num jacto da Pynex. Em menos de trinta minutos tinha opinião formada. As únicas amostras disponíveis eram as fichas de informações do júri de Cimmino e Wood e o curto questionário de Glavine. Era mais do que suficiente. O especialista não teve dúvidas em afirmar que Perry Hirsch e David Lancaster eram a mesma pessoa. A letra de Easter era muito diferente da de Lancaster, mas cometeu um grave erro quando tentou diferenciar-se de Hirsch. As letras quadradas, cuidadosamente

desenhadas, foram usadas por Easter como disfarce. Trabalhou arduamente para criar um estilo completamente novo, que não tivesse nenhuma ligação com o passado. O seu erro estava no fim da ficha, na assinatura. O «t» era muito baixo e inclinado da esquerda para a direita.

I lirsch tinha usado um estilo cursivo descuidado, sem dúvida para insinuar pouca instrução. O «t» em St. Louis, seu suposto local de nascimento, era idêntico ao «t» em Easter, embora para um leigo nada nas duas letras parecesse semelhante.

— Hirsch e Lancaster são a mesma pessoa — disse o especialista sem a menor dúvida. — Hirsch e Easter são a mesma pessoa. Logo, Lancaster e Easter são a mesma pessoa.

— Os três são a mesma pessoa—disse Fitch lentamente, avaliando

o valor dessa descoberta.

— Exacto. É muito, muito inteligente. Brilhante mesmo.

() grafólogo saiu do escritório de Cable. Fitch voltou para o seu escritório, onde ficou toda tarde e parte da noite de sexta-feira com nng e Konrad. Tinha agentes a trabalhar em Allentown e em Broken Airow, investigando, subornando, na tentativa de conseguir fichas de emprego e impostos retidos na fonte em nome de Hirsch e Lancaster.

— Você já tinha visto alguém com a mania de «caçar» julgamentos? — perguntou Konrad.

— Nunca! —rosnou Fitch.

O regulamento para as visitas conjugais era simples. Entre as sete e nove horas da noite de sexta-feira, cada jurado podia receber a visita dos cônjuges, companheiros ou fosse quem fosse, nos seus quar-

tos. Os visitantes podiam entrar e sair a qualquer hora, mas só depois de serem registados por Lou Dell, que os examinava de alto abaixo como se só tivesse o poder de aprovar o que iam fazer.

O primeiro a chegar, pontualmente, às sete horas, foi Derrick Males, o belo namorado da jovem Angel Weese. Lou Dell escreveu o seu nome, apontou para o corredor e disse:

— Quarto cinquenta e cinco.

Ninguém mais o viu até às nove horas, quando saiu para tomar ar.

Nicholas não ia ter visitas naquela noite. Nem Jerry Fernandez. A mulher de Jerry estava a dormir num quarto separado há um mês, e não ia perder tempo a visitar um homem que desprezava. Além disso, Jerry e Poodle exerciam os direitos conjugais todas as noites. A mulher do coronel Herrera estava fora da cidade. A de Lonnie Shaver nãoen-controu uma baby-sitter. Assim, quatro homens viram o filme de John Wayne na Sala de Festas, lamentando o estado das suas vidas amorosas. O velho e cego Herman tinha uma vida amorosa, mas eles não.

Phillip Savelle teve uma visita, mas Lou Dell recusou-se a revelar aos outros homens o sexo, a raça, a idade ou qualquer outra coisa sobre o visitante. Acontece que era uma jovem muito amável que parecia indiana ou paquistanesa.

A senhora Gladys Card viu televisão no quarto com o senhor Nelson Card. Loreen Duke, que era divorciada, recebeu a visita das duas filhas adolescentes. Rikki Coleman exerceu os seus direitos conjugais com o marido Rhea, depois falou sobre os filhos durante a hora e quarenta e cinco que sobrou.

E Hoppy Dupree levou flores para Millie e uma caixa de bombons que quase esvaziou, enquanto ele saltava pelo quarto, num acesso de entusiasmo como ela nunca tinha visto. As crianças estavam óptimas, todos tinham saído com os namorados e os negócios iam de vento em popa. Na verdade, os negócios nunca tinham estado tão bons. Hoppy tinha um segredo, um segredo enorme e maravilhoso sobre um negócio que ia fazer, mas ainda não podia contar-lhe. Talvez na segunda-feira. Talvez mais tarde. Mas agora não. Ficou uma hora e, a seguir, voltou a correr para o escritório, para trabalhar mais.

O senhor Nelson Card saiu às nove horas e Gladys cometeu o erro de entrar na Sala de Festas, onde os homens bebiam cerveja e comiam pipocas assistindo a uma luta de boxe. Tirou um refrigerante e sentou--se à mesa. Jerry olhou para ela desconfiado.

— Sua marota — disse ele. — Vá, conte-nos tudo.

Ela abriu a boca e ficou muito vermelha. Não podia falar.

— Vá lá, Gladys. Nós não tivemos nada disso. Elapegou na garrafa e levantou-se de repente.

— Paciência — disse zangada e marchou para fora da sala. Jerry riu. Os outros homens estavam cansados e desanimados de mais para esboçarem qualquer reacção.

O carro de Marlee era um Lexus alugado em Biloxi, com um leas-ing de três anos a seiscentos dólares por mês em nome do Rochelle Group, uma empresa novinha em folha, sobre a qual Fitch não conseguiu descobrir nada. Um transmissor de quase meio quilo foi preso com um íman debaixo do pára-lamas da roda traseira esquerda, de forma a que Marlee pudesse ser vigiada por Konrad sentado à secretária. Joe IJoy tinha instalado o transmissor algumas horas depois de começarem a segui-la.

O espaçoso condomínio onde morava era alugado em nome da mesma empresa por quase dois mil dólares por mês. Marlee tinha grandes despesas gerais, mas a equipa de Fitch não conseguiu encontrar nenhum sinal de emprego.

Ela telefonou já tarde na noite de sexta-feira, minutos depois de Fitch se esparramar na cama, em boxers largos e com meias pretas, como uma baleia encalhada na praia. Estava na suite presidencial, no último andar do Colonial Hotel, em Biloxi, na estrada 90, a cem metros do Golfo. Quando se lembrou de olhar, viu que tinha uma bela vista da praia. Ninguém fora do seu pequeno círculo sabia onde estava.

O telefonema para a recepção do hotel, com uma mensagem urgente para o senhor Fitch, criou um dilema ao recepcionista da noite. O hotel estava a ser pago regiamente para proteger a privacidade e a identidade do senhor Fitch. O recepcionista não podia admitir que ele era um dos hóspedes. Mas a jovem ao telefone tinha planeado tudo.

Quando Marlee voltou a telefonar, dez minutos depois, a ligação foi transferida imediatamente, obedecendo às ordens do senhor Fitch. Fitch estava agora de pé com as cuecas puxadas quase até ao peito, mas, mesmo assim, descendo até ao meio das suas coxas gordas. Coçava a testa e imaginava como é que Marlee o teria encontrado.

— Boa-noite — disse ele.

— Fitch, desculpe estar a ligar tão tarde. — Na verdade, não se incomodava nada com isso. O «Fitch» foi pronunciado deliberadamente forte, uma coisa que ocasionalmente acontecia com Marlee. Era um esforço para imitar um pouco a fala arrastada do sul. As gravações de todos os seus telefonemas, por mais breves que fossem, juntamente com a gravação da conversa em Nova Orleães, tinham sido ouvidas minuciosamente por técnicos de Nova Iorque, especializados em vozes e dialectos. Marlee era do centro oeste, do leste de Kansas ou oeste do Missouri, provavelmente de alguma localidade a cento e cinquenta quilómetros de Kansas City.

— Não faz mal — respondeu ele, verificando o gravador na pequena mesa de armar ao lado da cama. — Como está o seu amigo?

— Solitário. Esta noite foi a noite conjugal, sabia?

— Foi o que me disseram. «Conjugaram-se» todos?

— Não. Na verdade, é muito triste: os homens viram filmes de John Wayne, enquanto as mulheres faziam tricot.

— Ninguém acasalou?

— Poucos. Angel Weese, mas ela está no meio de um romance muito quente. Rikki Coleman. O marido de Millie Dupree apareceu mas não se demorou muito. Os Card estiveram juntos. Não posso dizer nada sobre Herman. E Savelle teve uma visita.

— Que tipo de humanidade é atraída por Savelle?

— Não sei. Ninguém viu.

Fitch descansou o traseiro avantajado na ponta da cama e apertou a parte superior do nariz.

— E você? Não visitou o seu namorado? — perguntou Fitch.

— Quem disse que somos namorados?

— São o quê?

- Amigos. Adivinhe quais os dois jurados que estão a dormir juntos?

—  Como é que posso saber?

— Advinhe.

Fitch sorriu para o espelho, feliz com tanta sorte.

— Jerry Fernandez e alguém.

— Muito bem. Jerry está para se divorciar e Sylvia está muito só. Os seus quartos ficam um na frente do outro e, bem, não há muito para fazer no Siesta Inn.

— O amor é lindo, não é?

— Tenho uma coisa para lhe dizer, Fitch. Krigler fez um óptimo trabalho para a acusação.

—E eles ouviram-no, não foi?

— Palavra a palavra. E acreditaram. Ele virou-lhes a cabeça.

— Conte-me uma coisa boa.

— Rohr está preocupado. — Fitch ficou tenso.

— Que é que o incomoda? — perguntou ele, vendo a sua curiosidade no próprio rosto reflectido no espelho. Não devia surpreender-se pelo facto de ela estar a falar com Rohr. Então porque razão teria ficado chocado? Sentia-se traído.

— Você. Ele sabe que anda à solta nas ruas, a inventar coisas para chegar ao júri. E se fosse você no lugar dele? Não ficaria preocupado se uma pessoa como você estivesse a trabalhar arduamente para a acusação?

— Ficaria apavorado.

— Rohr não está apavorado. Só preocupado.

— Com que frequência fala com ele?

— Muita. Ele é mais doce do que você, Fitch. É um homem muito agradável, além disso não grava os meus telefonemas, não manda espiões seguir o meu carro. Nada disso.

— Ele sabe como encantar uma mulher, não é?

— E. Mas é fraco naquilo que interessa.

— E o que é que interessa?

— A carteira. Não pode competir com os seus recursos.

— Quanto dos meus recursos é que quer?

— Mais tarde, Fitch. Tenho de ir. Há um carro suspeito parado do outro lado da rua. Deve ser um dos seus palhaços. — Desligou.

Fitch tomou um duche e tentou dormir. Às duas da manhã foi de carro até ao Lucy Luck, onde jogou o «vinte e um» a quinhentos dólares a mão, bebeu Spríte até ao nascer do dia e saiu com quase vinte mil dólares de lucro.

 

O primeiro sábado de Novembro chegou com temperaturas abaixo dos 15 graus, frio de mais para o clima quase tropical da Costa. Uma brisa leve do norte sacudia as árvores e espalhava folhas nas ruas e nos passeios. O Outono geralmente chegava tarde e durava até ao primeiro dia do ano, quando cedia o lugar à Primavera. A Costa não tinha Inverno.

Algumas pessoas faziamjogging de manhãzinha. Ninguém notou o Chrysler negro parado à entrada de uma modesta casa de tijolos com varanda. Era muito cedo para que os vizinhos vissem os dois jovens com fatos escuros iguais descer do carro, tocar a campainha, esperar pacientemente. Era muito cedo, mas em menos de uma hora começaria nos jardins o movimento dos ancinhos recolhendo as folhas e, nos passeios, o movimento das crianças.

Hoppy acabava de pôr água na cafeteira eléctrica quando ouviu a campainha. Apertou o cinto do velho roupão e tentou pentear o cabelo com os dedos. Àquela hora deviam ser os escoteiros a vender bolinhos. Esperava que não fossem outra vez testemunhas de Jeová. Se fossem, ia perder a paciência. Um serviço religioso àquela hora era de mais! Movimentou-se rapidamente porque no segundo andar havia uma série de adolescentes que ainda dormia. Na última contagem: seis. Cinco e um amigo da faculdade de algum deles. Uma típica noite de sexta-feira em casa dos Dupree.

Hoppy abriu aporta e viu dois jovens muito sérios que imediatamente tiraram do bolso e mostraram distintivos dourados sobre couro negro. Um deles começou a falar muito depressa e tudo que Hoppy ouviu, pelo menos duas vezes, foi «FBI» e quase desmaiou.

— O senhor chama-se Dupree? — perguntou o agente Nitchman.

Hoppy engoliu em seco.

— Sim, mas...

- Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas — disse o agente Napier, dando um passo na sua direcção.

— Sobre quê? — perguntou Hoppy secamente. Tentou olhar entre os dois para o outro lado da rua, onde, sem dúvida, Mildred Yancy devia estar a espiar atrás da janela.

Nitchman e Napier trocaram um olhar de conspiradores e Napier disse:

— Podemos falar aqui ou, se preferir, noutro lugar qualquer.

— São apenas perguntas sobre Stillwater Bay, Jimmy Hull Moke, coisas deste tipo — explicou Nitchman e Hoppy segurou com força no batente da porta.

— Oh, meu Deus — disse ele, sentindo que todo o ar lhe saía dos pulmões e que os seus órgãos vitais estavam a congelar.

— Podemos entrar? — perguntou Napier.

Hoppy baixou a cabeça e esfregou os olhos, como se fosse chorar.

— Não, por favor, aqui não. — Os filhos! Normalmente dormiam até às nove ou dez horas; quando Millie deixava até ao meio dia, mas ouvindo vozes em casa, certamente iam acordar. — No meu escritório — conseguiu dizer.

— Nós esperamos — disse Napier.

— Mas não demore — respondeu Nitchman.

— Muito obrigado. — Hoppy fechou e trancou a porta rapidamente. Atirou-se para o sofá, olhando para o tecto, que lhe parecia girar no sentido dos ponteiros do relógio. Nenhum som do andar de cima. Os filhos ainda dormiam. O seu coração batia com força e, por um minuto, pensou que ia morrer. Naquele momento a morte seria bem-vinda. Queria poder fechar os olhos e voar para longe dali; dentro de horas, um dos filhos encontrá-lo-ia e chamaria a polícia. Hoppy tinha cinquenta e três anos e na sua família materna já tinha havido casos de acidentes cardíacos. Millie receberia cem mil dólares do seguro de vida.

Quando percebeu que o coração tinha resolvido continuar a bater, levantou-se devagar. Ainda atordoado, foi até à cozinha e serviu uma chávena de café. O relógio digital do forno marcava sete horas e cinco minutos. Quatro de Novembro. Sem dúvida um dos piores dias da sua vida. Como podia ter sido tão idiota?

Pensou telefonar para Todd Ringwald e também para Mi llard Putt, o seu advogado. Mas resolveu esperar. De repente, ficou com pressa. Queria sair da casa antes de os filhos acordarem e queria aqueles dois agentes longe da sua casa antes de os vizinhos os verem. Além disso, Millard Putt só tratava de casos relacionados com negócios de imóveis, e mesmo nisso não era um grande especialista. Este caso era um caso criminal.

Um caso criminal! Sem tomar banho, vestiu-se em segundos. Estava a escovar os dentes quando olhou para o espelho. Tinha a palavra «traição» escrita no rosto e gravada nos olhos para quem quisesse ver. Não podia mentir. Mentir não era próprio da sua natureza. Muito menos enganar alguém. Era apenas Hoppy Dupree, um homem honesto com uma bela família e boa reputação. Nunca tinha mentido nas suas declarações de impostos!

Sendo assim, porque razão estariam dois agentes do FBI à sua espera para o levarem até à cidade, para um lugar discreto, onde, como um pequeno-almoço, o devorariam ao mesmo tempo que lhe revelassem a sua fraude? A viagem ainda não era para a cadeia, mas isso certamente viria mais tarde. Resolveu não fazer a barba. Talvez fosse boa ideia telefonar para o pastor da igreja. Escovou o cabelo e pensou em Millie, na desgraça pública, nos filhos e naquilo que toda a gente iria pensar a seu respeito.

Antes de sair da casa de banho, Hoppy vomitou.

Lá fora, Napier insistiu em ir no carro de Hoppy. Nitchman seguiu-os no Chrysler negro. Não disseram uma palavra.

Imóveis Dupree não era o tipo de negócio que atrai os madrugadores. E esta máxima tanto era válida aos sábados como no resto da semana. Hoppy sabia que o lugar estaria deserto até pelo menos às nove horas, talvez mesmo até às dez. Abriu a porta, acendeu as luzes e só falou quando chegou o momento de perguntar se queriam café. Declinaram e pareciam ansiosos para começar a carnificina. Hoppy sentou-se no seu lado da mesa. Eles ficaram muito juntos, como gémeos, no outro lado. Hoppy evitava os olhos dos dois homens.

Nitchman começou por dizer:

— O senhor sabe o que é StillwaterBay?     

— Sei.                                                       

— Conhece um homem chamado Todd Ringwaláf

— Conheço.

— Assinou qualquer tipo de contrato com ele?

— Não.

Napier e Nitchman trocaram um olhar, como se soubessem que estava a mentir. Napier disse suavemente:

— Ouça, senhor Dupree, isto seria mais fácil se dissesse a verdade.

— Juro que estou a dizer a verdade.

— Quando é que se encontrou pela primeira vez com Todd Ringwald? — perguntou Nitchman, tirando um bloco de apontamentos do bolso e começando a escrever.

— Na quinta-feira.

— Conhece Jimmy Hull Moke?

— Conheço.

— Quando é que esteve com ele pela primeira vez?

— Ontem.

— Onde?

— Aqui mesmo.

— Qual foi o objectivo desse encontro?

— Discutir o projecto de Stillwater Bay. Supostamente, deveria representar uma empresa chamada Propriedades KLX. A KLX quer construir Stillwater Bay, que fica no distrito supervisionado pelo senhor Moke, cm Hancock County.

Durante alguns minutos, que pensou terem sido horas, Napier e Nitchman olharam para Hoppy digerindo a informação. Hoppy repetiu mentalmente as suas próprias palavras. Teria dito alguma coisa errada ou ilegal? Alguma coisa que fosse apressar a sua viagem para a prisão? Talvez fosse melhor parar com aquilo e procurar um advogado.

Napier pigarreou.

— Há seis meses que estamos a investigar o senhor Moke e há duas semanas ele concordou em reconhecer a sua culpa e colaborar connosco a troco de uma pena reduzida: a mínima prevista por lei para estes casos.

O calão legal significava muito pouco para Hoppy. Ouviu o que lhe disseram, mas não conseguiu perceber o sentido das palavras.

— O senhor ofereceu dinheiro ao senhor Moke?—perguntou Napier.

— Não. — Não podia dizer que sim. Falou rápida e quase automaticamente, sem força ou convicção. — Não — repetiu. Na verdade, não tinha oferecido dinheiro. Apenas abriu caminho para o seu cliente fazer a oferta. Pelo menos, era assim que interpretava o que tinha feito.

Com gestos lentos, Nitchman procurou no bolso do casaco e tirou um pequeno volume que pôs no centro da mesa.

— Tem a certeza? — perguntou, em tom quase jocoso.

— Claro que tenho — disse Hoppy, olhando boquiaberto para aquela coisa pequena e sinistra.

Delicadamente Nitchman carregou no botão. Hoppy parou de respirar e fechou os punhos. Não havia dúvida: aquela era a sua voz, tagarelando nervosamente sobre política local e casinos e esperando que Moke abordasse o assunto.

— Ele gravou a nossa conversa! — exclamou Hoppy, ofegante e completamente derrotado.                                                   ;.

— É verdade — disse um deles solenemente. Hoppy olhava atónito para o gravador.

— Nem sei o que dizer... — murmurou.

As palavras tinham sido ditas e gravadas há menos de vinte e quatro horas, ali mesmo, na sua mesa, em frente das sanduíches de frango e chá gelado. Jimmy Hull sentou-se onde Nitchman estava agora e aceitou o suborno de cem mil dólares com um gravador do FBI preso em alguma parte do corpo.

A conversa arrastou-se dolorosa e desastradamente até ao final, quando Hoppy e Jimmy Hull se despediram com pressa.

— Quer ouvir tudo outra vez? — perguntou Nitchman tocando no botão.

— Não, por favor — disse Hoppy, apertando a parte superior do nariz —, devo procurar um advogado? — perguntou, sem levantar os olhos.

— Não é má ideia — disse Napier amavelmente.

Finalmente ergueu os olhos vermelhos e molhados. O seu lábio tremia, mas Hoppy levantou o queixo e tentou ser corajoso.

— Então, o que é que estou a enfrentar? — perguntou ele. Napier e Nitchman descontrairam-se ao mesmo tempo. Napier levantou-se e foi até uma estante de livros.

— É difícil dizer — respondeu ele, com se a solução do caso dependesse de outra pessoa. — No ano passado investigámos uma dezena de supervisores. Os juizes estão fartos deles. As sentenças estão a ficar mais carregadas.

— Mas não sou supervisor — disse Hoppy.

— Tem toda a razão. Diria que as sentenças vão de três a cinco anos. Prisão federal; não estadual.

— Conspiração para subornar um funcionário do governo — acrescentou Napier prestimosamente e voltou a sentar-se ao lado de Nitchman. Estavam nas beirinhas das cadeiras, como se estivessem prontos a saltar sobre a mesa e punir Hoppy por todos os seus pecados.

O microfone estava na tampa de uma Bic azul, inocentemente misturada com uma dúzia de lápis e canetas baratas, amontoadas num copo empoeirado sobre a mesa de Hoppy. Ringwald tinha-a deixado ali na sexta-feira, enquanto Hoppy foi à casa de banho. As canetas e os lápis pareciam nunca ter sido usados, eram o tipo de colecção que passa meses sem ser tocada. Se Hoppy ou outra pessoa resolvesse usar a Bic azul, teria visto que estava sem tinta e tê-la-ia deitado fora. A tampa da caneta só podia ser desmontada por um especialista. E só um especialista seria capaz de encontrar o microfone.

As palavras eram enviadas da mesa para um transmissor pequeno e potente, escondido junto do purificador de ar que se encontrava no armário debaixo do lavatório da casa de banho que fica ao lado do escritório de Hoppy. Do transmissor, as palavras seguiam para uma carrinha não identificada, parada no outro lado da rua, junto de um centro comercial. As palavras eram gravadas na carrinha e depois levadas até ao escritório de Fitch.

Jimmy Hull não tinha nenhum gravador, não estava a trabalhar para o FBI e apenas tinha feito aquilo que melhor sabia fazer: pedir um suborno.

Ringwald, Napier e Nitchman eram ex-polícias que agora trabalhavam como detectives particulares para uma firma internacional de segurança de Bethesda. Uma firma a que Fitch recorria muitas vezes. O golpe contra Hoppy ia custar ao Fundo oitenta mil dólares.

Uma ninharia!

Hoppy mencionou outra vez a possibilidade de procurar um advogado. Napier desconversou e fez uma longa exposição sobre os esforços do FBI para acabar com a desenfreada corrupção na Costa, atribuindo toda a culpa à indústria do jogo.

Era imperativo evitar que Hoppy procurasse um advogado. Um advogado ia querer nomes e telefones, registos e documentos. As credenciais falsas de Napier e Nitchman eram suficientemente boas para enganar o pobre Hoppy. Mas não chegavam para enganar um bom advogado.

De acordo com a longa exposição de Napier, o que tinha começado por ser uma mera investigação de rotina de Jimmy Hull transformara-se numa investigação de peso sobre o jogo e, nas suas palavras mágicas, sobre «o crime organizado». Na medida do possível, Hoppy prestava atenção. Mas era-lhe difícil. A sua mente agitava-se pensando em Millie, nos filhos e num meio de sobrevivência para os seus três anos na prisão.

— Portanto, o senhor não era o nosso alvo, não é verdade — interrogou Napier.

— E francamente, nunca ouvimos falar da KLX Propriedades — acrescentou Nitchman. — Tropeçámos nela por acaso.

— Não podem ir tropeçar para outro lado? — perguntou Hoppy, com um sorriso suave e desanimado.

— Talvez — disse Napier intencionalmente. Depois, olhou para Nitchman como se tivessem algo ainda mais dramático para dizer a Hoppy.

— Talvez o quê? — perguntou.

Os dois afastaram-se da mesa ao mesmo tempo num ritmo perfeito, como se tivessem ensaiado durante horas ou feito isso centenas de vezes. Olharam muito sérios para Hoppy, que se encolheu e olhou para a mesa.

— Sabemos que não é desonesto, senhor Dupree — disse Nitchman suavemente.

— Apenas cometeu um erro — acrescentou Napier.

— É isso mesmo —murmurou Hoppy.

— Está a ser usado por escroques extremamente sofisticados. Chegam, falam de planos grandiosos, de muito dinheiro... estamos cansados de ver situações como esta nos casos de drogas.

Drogas! Hoppy ficou chocado mas não disse nada. Outra pausa enquanto os dois continuavam a olhar para ele.

— Podemos oferecer-lhe um acordo daqui a vinte e quatro horas? — perguntou Napier.

— Não posso recusar!

— Vamos manter isto em sigilo durante vinte e quatro horas. O senhor não diz uma palavra a ninguém. Não conta nada ao seu advogado e não o processamos. Pelo menos, não o processamos nas próximas vinte e quatro horas.

— Não compreendo.

— Não podemos explicar tudo. Precisamos de tempo para avaliar a situação.

Nitchman inclinou-se para a frente, outra vez com os cotovelos na mesa.

— Ainda pode haver uma saída, senhor Dupree. Hoppy começava a animar-se.   •

— Sou todo ouvidos.

— O senhor é um peixe pequeno e insignificante apanhado numa rede muito grande — explicou Napier. —-Talvez possamos dispensá-lo.

Hoppy achou que era uma boa ideia.

— Que é que vai acontecer nestas vinte e quatro horas?

— Encontramo-nos aqui amanhã outra vez às nove.

— Combinado.

— Claro que se disser uma palavra que seja a Ringwald, ou mesmo à sua mulher, o seu futuro corre sério perigo.

— Dou-lhes a minha palavra de honra.

O autocarro alugado saiu do Siesta Inn às dez horas com os catorze jurados, a senhora Grimes, Lou Dell e o marido, Benton, Willis e Ruby, a sua mulher, cinco polícias à paisana, Earl Hutto, o xerife de Harrison County e a mulher, Claudelle e dois assistentes do escritório de Glória Lane. Vinte e oito pessoas ao todo, mais o motorista. Todos aprovados pelo juiz Harkin. Duas horas depois estavam na Canal Street, em Nova Orleães, após o que desceram do autocarro na esquina de Magazine. O almoço foi numa sala reservada nas traseiras de um antigo bar de marisco em Decatur, no French Quarter, e pago pelos contribuintes de Harrison County.

Tiveram permissão para passear no Quarter. Fizeram compras nos mercados ao ar livre, passearam com os turistas na Jackson Square,

olharam para os corpos nus nas espeluncas, em Bourbon, compraram camisas e outras lembranças. Alguns descansaram nos bancos na mar gem do rio. Outros entraram em bares para ver o futebol. Às quatro horas reuniram-se na margem do rio e apanharam um barco para fazer um passeio turístico. Às seis horas jantaram numapizzaria do Canal. Às dez, estavam fechados nos seus quartos em Pass Christian, cansa dos e prontos para dormir. Jurados ocupados são jurados felizes.

 

No fim da tarde de sábado, com o êxito do projecto Hoppy garantido,

Fitch resolveu desferir o próximo assalto ao júri. Era um golpe cuidadosa-

mente planeado e tão chocante quanto o de Hoppy fora astuto.

Na manhã de domingo bem cedo, Pang e Dubaz, com camisas beges  o cartão de uma firma de canalizadores nos bolsos, abriram a fechadura da porta do apartamento de Easter. Não soou nenhum alarme. Dubaz foi direito à conduta de ar, por cima do frigorífico, retirou a tela, depois a câmara escondida que havia filmado a intrusão de Doyle no apartamento. De seguida, guardou a câmara na caixa de ferramentas que tinham levado.

Pang encarregou-se do computador. Tinha estudado as fotografias de Doyle e treinado num aparelho idêntico que Fitch instalara ao seu lado no escritório. Soltou os parafusos e removeu a parte de trás do computador. O disco rígido estava exactamente onde tinham previsto

que estivesse. Em menos de um minuto, tinha retirado o disco do apare-

lho. Numa estante ao lado do monitor, Pang encontrou duas pilhas com dezasseis disquetes de três polegadas e meia.

Enquanto Pang se encarregava da delicada tarefa de remover o

disco rígido, Dubaz abriu gavetas e, silenciosamente, revistou os móveis a procura de outras disquetes. O apartamento era tão pequeno e tinha tão poucos sítios que potencialmente servissem de esconderijo que a tarefa foi fácil. Revistou as gavetas da cozinha, os armários e as caixas de papelão onde Easter guardava meias e a roupa interior. Mas não encontrounada.

Aparentemente, todos os aparelhos ligados ao computador estavam ao seu lado.

— Vamos embora — disse Pang, arrancando os fios do computador do monitor e da impressora.                                

Atiraram o computador para cima do sofá velho e puído onde Dul já tinha empilhado almofadas e roupas. A seguir, regaram tudo com gás de isqueiro. Quando o sofá, a cadeira, o computador, os tapetes e as peças de roupa ficaram suficientemente encharcados, os dois homens foram para a porta e Dubaz atirou um fósforo aceso lá para dentro. O fogo pegou rápida e silenciosamente, pelo menos para quem estivesse do lado de fora. Esperaram até que as chamas chegassem

ao tecto e o apartamento ficasse cheio de fumo escuro e saíram trancando a porta. Desceram pela escada e no primeiro andar accionaram o alarme de incêndio. Dubaz subiu outra vez a escada, correndo até onde já se via fumo a sair debaixo da porta e começou a gritar e a bater nas outras portas. Pang fez o mesmo no primeiro andar. Os corredores encheram-se imediatamente de gritos e de moradores em pânico, vestidos com roupões e fatos de treino. O ruído estridente dos antigos alarmes de incêndio aumentava a histeria.

«Vejam se têm cuidado e não matam ninguém», tinha dito Fitch à medida que o fumo ficava mais denso, Dubaz insistia batendo nas portas. Certificou-se de que todos os apartamentos próximos do de Easter estavam vazios. Puxava as pessoas pelos braços, perguntava se todos tinham saído e apontava para as saídas de emergência.

Os moradores começaram ajuntar-se no parque de estacionamento, e Pang e Dubaz separaram-se e começaram a afastar-se lentamente. Já se ouviam as sirenes dos bombeiros. O fumo apareceu nas janelas de dois apartamentos do segundo andar — o de Easter e o do vizinho Moradores envoltos em cobertores e carregando crianças e bebés foram abandonando o prédio e juntando-se aos outros. Todos esperavam impacientes pela acção dos bombeiros.

Quando finalmente chegaram, Pang e Dubaz recuaram mais ainda e desapareceram.

Ninguém morreu. Ninguém ficou ferido. Quatro apartamentos foram completamente destruídos, onze seriamente danificados, quase trinta famílias ficaram sem casa. Pelo menos, até que fossem feitas obras de limpeza e recuperação.

Não conseguiram entrar no disco rígido de Easter que o tinha barrado da melhor forma contra curiosos e vírus. Os especialistas de Fitch em informática não puderam fazer nada. Tinham vindo expressamente para este efeito de Washington no sábado. Eram pessoas honestas e não faziam a mais pequena ideia do modo como Fitch tinha arranjado aquele disco e as disquetes. Sem grandes explicações, Fitch trancou-os numa sala com um sistema idêntico ao de Easter e disse o que queria. A maioria das disquetes tinha a mesma protecção do disco. Porém, quando estavam mais ou menos a meio da análise da totalidade das disquetes, a tensão desfez-se: conseguiram identificar as passewords que Easter tinha utilizado. Uma disquete antiga protegida inadequadamente foi o meio de acesso encontrado. A lista de arquivo mostrava dezasseis entradas com nomes de documentos que não revelaram nada. Fitch foi informado quando o primeiro documento estava a ser impresso. Era um sumário de seis páginas com dados sobre a indústria do tabaco, com data de 11 de Outubro de 1994. Eram mencionadas reportagens do Time, do The Wall Street Journal e da Forbes. O segundo documento era uma narrativa, uma divagação a propósito de um documentário a que Easter tinha assistido. O tema era um processo judicial movido num caso de um implante de seios. O terceiro documento era um poema escrito por ele: um texto idiota sobre rios. O quarto era outra compilação de artigos recentes sobre julgamentos em torno de casos de cancro do pulmão.

Fitch e Konrad leram atentamente todas as páginas. A redacção era clara e corrente, apesar de se perceber que tinha sido tudo escrito á pressa: erros ortográficos absurdos denunciavam esta situação. Escrevia como um repórter imparcial. Parecia impossível determinar se Easter estava a favor dos fumadores ou apenas interessado naquele tipo de litígio.

Havia mais poemas horríveis. Um conto não terminado. E, finalmente, encontraram aquilo que procuravam. O documento número quinze era uma carta de duas páginas dirigida à mãe, a senhora Pamela Blanchard, residente em Gardner, no Texas. A carta tinha a data de 20 de Abril de 1995 e dizia: «Mãe querida: estou a viver em Biloxi, Mississipi, na Costa do Golfo», e continuava descrevendo como gostava do mar, das praias, e afirmando que nunca mais poderia viver no campo. Pedia mil desculpas por não ter escrito antes, desculpava-se também pelos dois longos parágrafos que demonstravam a sua tendência para a divagação e prometia escrever mais vezes. E melhor. Fazia várias perguntas sobre Alex, dizendo que não falava com ele há já três meses, pelo que não sabia se já teria chegado ao Alasca e encontrado emprego de guia de pesca. Ao que parecia, Alex era o irmão de Nicholas. A carta não fazia menção ao pai. Nem a nenhuma rapariga chamada Marlee.

Nicholas dizia que tinha conseguido um emprego num casino e que, embora sem futuro, pelo menos por enquanto, era divertido. Acrescentava que gostaria de ser advogado, pelo que pedia desculpa por ter abandonado a faculdade de Direito. Fosse como fosse, duvidada que alguma vez voltasse a estudar. Confessava estar feliz, vivendo simplesmente, com pouco dinheiro e com poucas responsabilidades. Acabava atabalhoadamente: "Tenho de ir. Gosto muito de si. Dê um beijinho à tia Sammie e diga-lhe que assim que puder telefono."

A carta terminava com uma simples assinatura: "Jeff". Em nenhuma parte da carta havia referência ao seu apelido.

Uma hora depois da primeira leitura da carta, Dante e Joe Boy embarcaram para Gardner num jacto privado com instruções de Fitch para que contratassem todos os detectives particulares da cidade.

Os técnicos de informática conseguiram entrar noutra disquete:

na penúltima das dezasseis. Conseguiram novamente iludir as barreiras de protecção criadas por Easter seguindo uma complicada série de pistas de descodificação de passewords. Apesar disso, ficaram muito impressionados com os conhecimentos informáticos de Easter.

A disquete continha parte de um único documento — o registo de eleitores de Harrison County, por ordem alfabética, mas apenas de A a K. Imprimiram mais de dezasseis mil nomes e respectivos endereços. Fitch verificava o trabalho dos dois, cotejando a informação impressa com a sua própria lista de todos os eleitores registados no condado. Não era uma lista secreta. Na verdade, Glória Lane vendia-a por trinta e cinco dólares. Nos anos de eleições, os candidatos a cargos políticos compravam-na sem discutir.

Havia duas coisas estranhas na lista de Easter: primeiro, percebia-se que tinha copiado a informação a partir de um disco rígido, o que significava que tinha conseguido entrar no computador de Glória Lane e roubar a informação. Em segundo lugar, por que razão quereria um estudante/pirata informático aquela lista?

Se Easter conseguia entrar no sistema informático do tribunal, então também poderia ter incluído o seu próprio nome na lista de potenciais jurados para o caso Wood.

 (Quanto mais Fitch pensava sobre este assunto, mais esta hipótese parecia fazer sentido.

No domingo de manhã, pelas nove horas, com os olhos vermelhos e

húmidos, Hoppy tomava café no seu escritório. Estava à espera. Desde a manhã de sábado que só tinha comido uma banana: tudo tinha mudado no momento em que Hoppy ligara a máquina do café e que a campainha da porta tinha tocado. Tinha sido aí que Napier e Nitchman tinham entrado na sua vida. O seu aparelho gastrintestinal estava arruinado; os nervos em frangalhos. Na noite de sábado até tinha bebido vodka em casa, coisa que Millie proibia.

No sábado, os filhos dormiram quase o dia todo. Hoppy não contou nada a ninguém: na verdade, nem teve vontade de contar. A humilhação ajudava-o a manter em segredo o vergonhoso caso.

Exactamente às nove horas, Napier e Nitchman entraram com um terceiro homem, mais velho, também com fato escuro e rosto severo, como se estivesse ali para castigar pessoalmente o pobre Hoppy. Nitchman apresentou-o como George Cristano. De Washington! Departamento de Justiça!

O aperto de mão de Cristano foi frio. Não era pessoa para muita conversa.

- Diga-me Hoppy, importava-se se conversássemos noutro lugar?

- perguntou Napier olhando com desprezo para a sala.

— É mais seguro — acrescentou Nitchman, a título de explicação.

— Nunca se sabe. Esta sala pode estar cheia de microfones — disse

Cristano.

— A quem o diz!... — comentou Hoppy, mas ninguém percebeu o seu amargo sentido de humor. Além disso, Hoppy não estava em posição de recusar as propostas que lhe fizessem. — Claro, tem toda a razão — concedeu.

Saíram num Lincoln Town Car negro imaculadamente limpo. Nitchman e Napier iam à frente; Hoppy atrás com Cristano, que começou a explicar que era uma espécie de assistente do procura-dor-geral, um cargo de muita importância no Departamento de Justiça. Quanto mais perto chegavam do Golfo, mais odiosa se tornava a sua posição. Depois disso, calou-se.

— Hoppy, você é democrata ou republicano? — perguntou Cristano em voz baixa durante um longo intervalo na conversa. Napier entrou na estrada da praia e seguiu para oeste, acompanhando a costa.

Hoppy não queria ofender ninguém.

—Eu? Não sei. Voto sempre na personalidade dos candidatos! Não ligo a partidos. Percebe o que quero dizer?

Cristano olhou para fora, como se não fosse esta a resposta que

queria ter ouvido.

— Tinha uma secreta esperança que fosse um bom republicano —

afirmou, olhando para o mar.

Hoppy podia ser qualquer coisa, qualquer coisa que quisessem que fosse. Qualquer coisa! Um comunista fanático, membro do partido, o que fosse, desde que isso agradasse ao senhor Cristano.

— Votei em Reagan e Bush — disse, com orgulho. — E em Nixon.

Até em Goldwater.

Cristano meneou a cabeça ao de leve e afirmativamente. Hoppy

conseguiu soltar o ar dos pulmões.

Fez-se outra vez silêncio no carro. Napier parou num cais perto da baía St. Louis, a quarenta minutos de Biloxi. Hoppy seguiu Cristano no pontão e entraram num barco de aluguer de sessenta pés, chamado Afternoon Delight. Nitchman e Napier esperaram ao lado do carro, onde não podiam ser vistos do barco.

— Sente-se, Hoppy. — Cristano apontou para um banco com uma almofada de espuma no convés.

Hoppy sentou-se. O barco balançava levemente. A água estava quase parada. Cristano sentou-se de frente para ele e inclinou-se, de modo que as suas cabeças ficaram a uma distância de um metro.

— Belo barco — comentou Hoppy, passando a mão pela imitação

de couro do banco.

— Não é nosso. Ouça, Hoppy, você não tem nenhum microfone,

pois não?

Hoppy ficou tenso, chocado com a insinuação.     .

— É claro que não!

— Desculpe, mas estas coisas acontecem. Acho que devia revistá-lo.

— Rapidamente, Cristano olhou-o de alto abaixo. Para Hoppy, a ideia de ser revistado por aquele estranho era terrível. E pior: estavam os dois sozinhos no barco.

— Juro que não tenho microfones escondidos. A minha palavra não lhe chega? — disse Hoppy, orgulhoso com a firmeza da própria voz. Cristano relaxou.

— E você? Quer revistar-me? — perguntou.

Hoppy olhou em volta disfarçadamente, para ver se havia alguém por perto. Ia parecer um bocado estranho se alguém visse dois homens adultos num barco ancorado apalpando-se mutuamente emplenaluz

do dia.

— Tem microfones escondidos? — perguntou Hoppy.

— Não.

— Jura?

— Juro.

— Óptimo. — Hoppy ficou aliviado e, ao mesmo tempo, ansioso por acreditar naquele homem. A alternativa era simplesmente inimaginável.

Cristano sorriu mas de repente franziu a testa. Inclinou-se outra vez para a frente A conversa de circunstância tinha acabado.

— Vou ser breve, Hoppy. Vamos fazer-lhe uma proposta que lhe permite sair disto completamente ileso. Sem um arranhão. Sem uma beliscadura. Sem prisão, sem condenação. E, claro, sem fotografias nos jornais. Se aceitar a nossa proposta ninguém vai saber de nada.

Parou para respirar e Hoppy atacou.

— Sou todo ouvidos.                                           

— É uma proposta bizarra que nunca fizemos a ninguém. Não tem nada a ver com a lei, a justiça, ou punições. É uma proposta política, Hoppy Puramente política. Não haverá nenhum registo em Washington desta proposta. Ninguém saberá, anão ser eu, você e aqueles dois homens que estão à nossa espera no carro. E talvez mais umas dez pessoas do Departamento de Justiça. Chegamos a acordo, faz a sua parte e fica tudo esquecido.

— Já me convenceu. Diga-me o que quer que faça.

— Hoppy costuma preocupar-se com os índices de crimes, com os problemas de droga, com factores de insegurança? Que pergunta mais parva. Claro que se preocupa. Está farto de histórias de subornos e de

corrupção?

Estranha pergunta. Naquele momento, Hoppy sentia-se como a criança fotografada num cartaz de uma campanha contra a corrupção.

— Sim! Claro que estou!

— Em Washington há muitos bandidos, Hoppy. No Departamento de Justiça ainda há gente, como eu, que dedica a sua vida à luta contra o crime. Estou a falar de crimes graves, Hoppy, de dinheiro ganho com drogas, subornos ajuízes e congressistas que aceitam dinheiro de inimigos estrangeiros. Estou a falar de um tipo de criminalidade que pode ameaçar a nossa democracia. Percebe o que quero dizer?

Embora sem muitas certezas sobre o assunto ali em causa, Hoppy já simpatizava com Cristano e com os seus amigos de Washington.

— Sim, sim — confirmou.

— Hoje em dia, tudo é política, Hoppy. Estamos constantemente a lutar contra o congresso e contra o presidente. Quer saber do que precisamos em Washington, Hoppy?

Fosse o que fosse, Hoppy queria que tivessem o que precisavam. Cristano não esperou pela resposta.

— Precisamos de mais republicanos. Mais bons e conservadores republicanos que nos dêem dinheiro e saiam do nosso caminho. Os democratas estão sempre a criar problemas, sempre a ameaçar com cortes no orçamento, têm a obsessão das reestruturações, sempre preocupados com os direitos daqueles pobres criminosos que combatemos. Em Washington há uma guerra sem quartel, Hoppy. E estamos lá todos os dias a batalhar.

Olhou para Hoppy, como se fosse o momento indicado para ele dizer alguma coisa. Mas Hoppy estava a tentar ajustar-se àquela guerra. Meneou gravemente a cabeça, concordando com tudo o que tinha sido dito, e olhou para os pés.

— Temos de proteger os nossos amigos, Hoppy. E é aí que o seu papel pode ser importante.

— Com certeza!

— Volto a dizer-lhe que esta é uma proposta estranha. Aceite-a e a gravação da sua oferta de suborno ao senhor Moke será destruída.

— Aceito. Tem é de me dizer do que se trata.

Cristano fez uma pausa e olhou para o cais. Alguns pescadores falavam alto a certa distância do barco. Chegou-se mais perto e tocou no joelho de Hoppy.

— É sobre a sua mulher — disse, quase num murmúrio. Depois recuou e esperou o efeito das suas palavras.

— A minha mulher?

— Sim. A sua mulher.

— Millie?

— Isso mesmo.

— Mas o que é que...

— Vou explicar.

— Millie? — repetiu Hoppy, perplexo. O que tinha a doce Millie a ver com aquela baralhada toda?

— É o julgamento, Hoppy — disse Cristano, e a primeira peça do puzzle encaixou-se.

— Adivinhe quem é que contribui com mais dinheiro para os candidatos republicanos ao congresso?

Hoppy estava confuso e espantado de mais para tentar adivinhar.

— Isso mesmo, as tabaqueiras. Investem milhões nas campanhas políticas porque têm medo da FDA e estão fartos dos regulamentos do governo. Patrocinam a livre iniciativa para pessoas como você, Hoppy. Acreditam que as pessoas fumam porque querem fumar e estão fartas do governo e dos advogados que tentam tirá-las do mercado.

— É política—disse Hoppy, olhando incrédulo para o Golfo.

— É só política. Se a Big Tobacco perder este julgamento, vai haver uma avalanche de processos iguais. As tabaqueiras perderão milhares de milhões e nós, em Washington, perderemos milhões. Pode ajudar-nos, Hoppy?

Arrastado de volta à realidade, Hoppy só conseguiu dizer:

— Não se importa de repetir?

— Pode ajudar-nos?

— Claro, claro... mas como?

—Millie. Fale com sua a mulher: faça tudo para que ela compreenda como este caso é absurdo e perigoso. É preciso que Millie assuma o controlo dos jurados e que se oponha com firmeza aos liberais que fazem parte do júri. Tenho razões para acreditar que podem estar a querer decidir-se por um veredicto insuportável. Pode falar com a sua mulher?

— Claro que posso.

— Eu sei que pode. A questão é: vai falar com ela, Hoppy? Não queremos usar aquela gravação... por isso, ajude-nos, e a gravação desaparece para sempre.

De repente, Hoppy lembrou-se da gravação.

— Está combinado. Logo à noite vou estar com Millie.

— Então, comece já a trabalhar. Isto é extremamente importante: para nós no Departamento de Justiça, para o bem do país e, para si, claro. Se tudo correr bem fica livre de cinco anos de cadeia. A última frase foi dita com uma gargalhada e uma palmada na perna. Hoppy ri n também.

Falaram sobre estratégia durante uma hora. Quanto mais tempo ficavam no barco, mais perguntas afloravam o pensamento de Hoppy. E se Millie votasse a favor da tabaqueira, mas o resto do júri votasse a favor de um pesado veredicto? O que iria acontecer-lhe a ele, Hoppy, se as coisas se passassem assim?

Cristano prometeu honrar a sua parte do acordo, independentemente do veredicto, desde que Millie votasse a favor da tabaqueira.

Ao saírem do barco, Hoppy andou pelo cais num passo quase saltitante. Quando se encontraram com Napier e Nitchman, Hoppy era um novo homem.

Depois de ter levado três dias para deliberar, o juiz Harkin voltou atrás e na tarde de sábado resolveu proibir a ida dos jurados às suas igrejas no domingo. Harkin estava convencido de que os catorze jurados iam demonstrar um repentino e intenso desejo de comungar com o Espírito Santo e a ideia dos seus jurados espalhados pelas várias igrejas do condado causava-lhe arrepios. Telefonou para o seu pastor que, por sua vez, fez alguns telefonemas e conseguiu encontrar um jovem estudante de religião. Planearam um serviço religioso para as onze horas da manhã de domingo na sala de festas do Siesta Inn.

O juiz Harkin enviou uma mensagem escrita e pessoal a cada um dos jurados, mensagem que foi posta debaixo das portas dos quartos, antes de voltarem do passeio a Nova Orleães, no sábado à noite.

Seis pessoas compareceram ao serviço religioso que, por sinal, foi bastante enfadonho. A senhora Gladys Card estava presente e surpreendentemente mal-humorada. Há dezasseis anos que não faltava à escola dominical na Igreja Baptista do Calvário. A sua última ausência tinha tido como motivo a morte da irmã, em Baton Rouge. Dezasseis anos seguidos sem uma falta. Tinha as medalhas de Assiduidade Perfeita enfileiradas sobre a cómoda. No Calvário, o recorde de assiduidade pertencia a Esther Knoblach, da União da Missão Feminina, com vinte e dois anos de assiduidade contínua, mas Esther tinha setenta e nove anos e era hipertensa. Gladys tinha sessenta e três e gozava de perfeita saúde. Por isso, ainda tinha grandes hipóteses de vir a alcançar o recorde de Esther. Embora não confessasse a ninguém esta sua secreta esperança, todos no Calvário suspeitavam das suas intenções.

Mas agora, graças ao juiz Harkin — um homem que lhe desagradava desde a primeira hora e que agora desprezava —, estava tudo perdido. E, além disso, a senhora Gladys não gostou do estudante de religião.

Rikki Coleman compareceu com o seu fato de treino. Millie Dupree levou consigo o seu exemplar da Bíblia. Loreen Duke era uma devota frequentadora da igrej a e ficou escandalizada com a brevidade do serviço religioso. Começou às onze e acabou às onze e meia, com o estilo (ipicamente apressado dos brancos. Já tinha ouvido falar deste tipo de situações, mas era a primeira vez que assistia a um serviço religioso celebrado daquele modo. O seu pastor costumava demorar uma hora a subir ao púlpito e, geralmente, não o abandonava em menos de três horas. Quando estava bom tempo, faziam um intervalo para o almoço no terreno da igreja e depois voltavam para outra dose. Loreen Duke, comendo devagar um pãozinho-doce, sofria em silêncio.

O senhor e a senhora. Herman Grimes estavam presentes. Não por razões religiosas, mas apenas porque as paredes no quarto cinquenta e oito estavam a tornar-se numa prisão. Desde a infância que Herman não ia à igreja voluntariamente.

Durante a manhã ficaram a saber que Phillip Savelle se irritava apenas com a ideia de uma qualquer reunião religiosa. Disse a alguém que era ateu e a notícia espalhou-se rapidamente. O seu protesto consistiu em sentar-se na cama despido, ou quase, com as pernas e os braços musculados enrolados numa posição de ioga, recitando os seus cânticos em voz alta. E fez estes exercícios com a porta aberta.

Phillip Savelle falava tão alto que, durante o serviço religioso, podia ser ouvido na perfeição na sala de festas. E, sem dúvida, que esse foi um dos factores decisivos para que o estudante de religião apressasse o serviço.

Lou Dell marchou decidida pelo corredor para mandar calar Savelle mas, perante a sua nudez, recuou imediatamente. Willis foi a seguir, mas Savelle, sem abrir os olhos e sem fechar a boca, simplesmente ignorou-o. Willis manteve a distância.

Os outros jurados fecharam-se nos seus quartos com o volume da televisão no máximo.

Às duas horas, começaram a chegar as visitas com mudas de roupas e alimentos para a semana. Nicholas Easter era o único jurado sem contacto com o exterior. O juiz ordenou que Willis conduzisse Easter ao seu apartamento num carro da polícia.

O fogo estava dominado há várias horas. Os bombeiros já tinham ido embora há muito tempo. O estreito relvado e o passeio em frente do prédio estavam cheios de escombros chamuscados e pilhas de roupas encharcadas de água. Os moradores, ainda atordoados, esforçavam-se por começar a limpeza.

— Qual é o seu? — perguntou Willis, quando parou o carro e olhou boquiaberto para a cratera aberta pelo fogo no centro do prédio.

— É lá em cima — disse Nicholas, tentando apontar e balançar a cabeça ao mesmo tempo. Com as pernas bambas, desceu do carro e aproximou-se do primeiro grupo de pessoas: uma família vietnamita que examinava em silêncio um candeeiro de mesa derretido.

— Quando é que isto aconteceu? — perguntou. O cheiro enjoativo de madeira, tinta e alcatifas queimados enchia o ar.

Ninguém lhe respondeu.

— Esta manhã, mais ou menos às oito — disse uma mulher que passava carregando uma caixa de cartão.

Nicholas olhou para os vizinhos. Não sabia o nome de nenhum deles. Na estreita portaria, uma senhora atarefada com um bloco de apontamentos nas mãos, tirava notas e, ao mesmo tempo, falava para um telemóvel. A escada principal para o segundo andar estava sob vigilância de um segurança particular que, naquele preciso momento, ajudava uma mulher de idade a arrastar um tapete molhado.

— O senhor mora aqui? — perguntou a mulher.

— Moro. O meu nome é Easter. Vivo no 312.

—Lamento muito, mas o seu apartamento estácompletamente destruído. Provavelmente o fogo começou aí.

— Gostaria de ver o apartamento...

O segurança conduziu Nicholas e a mulher até ao segundo andar, onde os danos eram mais evidentes. Pararam ao pé de uma fita amarela

que protegia a cratera aberta pelo fogo. O fogo tinha avançado atravessando a argamassa dos tectos e as vigas baratas e tinha aberto dois enormes buracos no telhado, exactamente por cima do quarto de Easter. Depois, tinha alastrado para baixo, danificando severamente o apartamento por baixo do de Nicholas. Não tinha sobrado nada do 312, excepto a parede da cozinha, onde o lavatório, pendurado para um dos lados, parecia estar quase a cair. Mais nada! Não tinha sobrado o mais pequeno vestígio dos móveis baratos ou da sala. Do quarto, apenas tinham restado as paredes queimadas.

para horror de Nicholas, não havia o mais pequeno vestígio que fosse do seu computador.

O soalho, as paredes e o tecto do apartamento tinham praticamente desaparecido, ficando em seu lugar apenas um buraco escancarado.

— Alguém ficou ferido? — perguntou Nicholas em voz baixa.

— Não. Você estava em casa? — perguntou ela.

— Não, não estava. E quem é a senhora?

— Trabalho para a empresa que administra o condomínio. Tenho aqui uns inquéritos e uns formulários para o senhor preencher.

Voltaram à portaria, onde Nicholas preencheu apressadamente os fornulários e foi-se embora com Willis.

 

Phillip Savelle, num bilhete bastante agressivo, chamou a atenção do juiz Harkin para o facto de que a palavra «conjugal», segundo o dicionário Webster, apenas abrangia o sentido de marido e mulher, e que tinha objecções em relação ao uso deste termo. Não era casado e tinha pouco respeito pela instituição casamento. Savelle sugeria que, em vez de «conjugal», fosse usada a expressão «encontros amorosos», e continuava criticando a cerimónia religiosa daquela manhã. Acarta foi enviada por fax para o juiz Harkin que a recebeu em casa durante o quarto tempo do jogo dos Saints. LouDell enviou o fax através de um aparelho instalado no balcão da recepção do motel. Vinte minutos de pois recebeu a resposta do Meritíssimo que tinha mudado a palavra «conjugal» para «pessoal» e transformado a expressão «visitas conjugais» para «visitas pessoais». Mandou-a fazer cópias para todos os jurados. Por ser domingo, concedeu que as «visitas pessoais» tivessem mais uma hora: das seis da tarde às dez da noite, em vez das seis às nove. Finalmente, Harkin telefonou para saber se, por acaso, o senhor Savelle queriamais alguma coisa e perguntou sobre o estado de espírito dos jurados em geral.

Lou Dell não teve coragem de contar ao juiz que tinha visto o senhor Savelle quase nu sentado na cama. Achou que o juiz já tinha muito com que se preocupar. Estava tudo bem, afirmou ela.

Hoppy foi o primeiro a chegar e Lou Dell levou-o rapidamente para > o quarto de Millie onde, mais uma vez, presenteou a mulher com chocolates e flores. Trocaram um rápido beijo no rosto e, sem sequer pen sarem em qualquer actividade conjugal, deitaram-se a ver o «60 Minutos». Aos poucos, Hoppy conduziu a conversa para o julgamento e, durante algum tempo, conseguiu mantê-la interessada no assunto.

— Não faz sentido as pessoas moverem este tipo de processos. Quero dizer, na verdade, isto é tudo uma palermice. Toda a gente sabe

que o tabaco vicia e é perigoso. Por isso, quem fuma tem que assumir as suas responsabilidades. Lembras-te do BoydDogan que fumou «Salem» durante vinte e cinco anos e deixou de fumar com a maior facilidade?

— Estalou os dedos.

— É verdade... quando o médico lhe disse que tinha cancro de pulmão, deixou de fumar num instante — lembrou Millie, acrescentando um divertido estalar de dedos.

— No caso dele foi por causa disso, mas há muita gente que deixa de fumar só porque lhe apetece. É o domínio do pensamento sobre o

corpo. O que não está certo é fumar durante anos afio e depois, quando o vício está a ponto de matar o fumador, mover um processo de milhões de dólares.

—Hoppy, cuidado com a linguagem.

— Desculpa, não queria falar de mortes. — Hoppy perguntou à mulher que reacção tinham tido os outros jurados aos argumentos da acusação. O senhor Cristano achava que o melhor era tentar convencer Millie pondo em evidência a vacuidade dos argumentos da acusação i; nunca aterrorizando-a com a verdade. Tinham conversado sobre isso durante o almoço. Hoppy sentia-se como um traidor, conspirando contra a mulher, mas cada vez que essa sensação de culpa se manifestava era acompanhada pela ideia de cinco anos na prisão.

Durante o segundo intervalo do jogo daquela noite Nicholas saiu do

quarto. O corredor estava vazio: não havia sinal nem de jurados nem de polícias. Ouviu vozes na sala de festas — ao que parecia, amaior parte

era de vozes de homens. Uma vez mais, os homens estavam a beber cerveja e a ver futebol na televisão. As mulheres aproveitavam ao máximo as suas «visitaspessoais» ou «encontros amorosos», conforme »terminologia adoptada.

Silenciosamente, no fim do corredor, passou pela porta dupla de vidro e passou para o outro lado. Passou pelas máquinas de refrigerantes e subiu a escada em direcção ao segundo andar. Marlee esperava-o num quarto pago em dinheiro e alugado sob o nome de Elsa Broone, um dos seus muitos nomes de guerra. Foram directamente para a cama, com um mínimo de palavras e preliminares.

Tinham percebido que aquela separação de oito noites consecutivas era não só um recorde, mas também pouco saudável.

Marlee conhecera Nicholas quando ambos tinham outros nomes. O ponto de encontro tinha sido um bar em Lawrence, Karisas, onde trabalhava como empregada e onde ele passava grande parte das noites com colegas da faculdade de Direito.

Quando foi viver para Lawrence, Marlee já tinha dois diplomas e como não se sentia ansiosa para iniciar uma carreira, estava a ponderar inscrever-se na faculdade de Direito. Marlee não tinha pressa.

Alguns anos antes de conhecer Nicholas, tinha perdido a mãe e herdado quase duzentos mil dólares. Tinha aceite aquele emprego num bar porque o sítio era sofisticado e, se não fizesse nada, rapidamente ficaria farta. O trabalho mantinha-a em forma. Tinha um velho Jaguar, administrava sensatamente o seu dinheiro e só saía com estudantes de Direito.

Muito antes de trocar as primeiras palavras, os dois já se tinham apercebido da presença do outro. Ele chegou tarde com o seu pequeno grupo, os rostos de sempre, e sentou-se numa mesa, num canto propício a um debate abstracto e incrivelmente fastidioso sobre teorias judiciais. Ela serviu cerveja em caneca e tentou flirtar com distintos graus de sucesso. No primeiro ano do curso, Nicholas estava apaixonado pelo Direito e quase não dava atenção às mulheres. Ela procurou informar-se e conseguiu saber que Nicholas era bom aluno, o terceiro da turma, mas mais nada de excepcional. Sobreviveu ao primeiro ano e voltou para o segundo. Ela cortou o cabelo e, embora não precisasse, perdeu cinco quilos.

Quando Nicholas terminou o liceu, inscreveu-se em trinta faculdades de Direito. Foi aceite por onze, mas nenhuma entre as dez melhores. Para escolher, tirou à sorte deitando uma moeda ao ar e foi de carro para Lawrence, lugar que não conhecia. Alugou um apartamento de duas assoalhadas nas traseiras de uma casa muito velha de uma viúva. Estudava com afinco e tinha pouco tempo para a vida social, pelo menos durante os dois primeiros semestres.

No Verão, depois do seu primeiro ano, trabalhou para uma grande firma em Karisas City, empurrando um carrinho com correspondência que entregava de andar em andar. A firma abrigava sob o seu tecto trezentos advogados e, às vezes, parecia que todos estavam a trabalhar num único julgamento — a defesa de Smith Greer num caso de tabaco e cancro de pulmão, em Joplin. O julgamento durou cinco semanas e terminou com um veredicto a favor da defesa. Mais tarde, a firma deu uma festa onde compareceram mil pessoas. Diziam que a Smith Greer tinha pago oito mil dólares pelo bufet e pela organização da festa. Mas ninguém ligava a mais pequena importância a esse facto: o Verão tinha sido uma experiência terrível.

Nicholas detestava a firma e, a meio do seu segundo ano, estava farto do Direito em geral. Não estava disposto a passar cinco anos fechado num cubículo a escrever e reescrever os mesmos documentos para cobrar quantias enormes a grandes clientes.

A primeira vez que saíram juntos foram a uma festa com cerveja, depois de um jogo de futebol. A música era ensurdecedora, a cerveja tthundante, o haxixe distribuído como se fosse um rebuçado. Saíram cedo porque Nicholas não gostava de barulho e ela não gostava do cheiro de haxixe. Alugaram vídeos e cozinharam esparguete no apartamento dela que era bastante espaçoso e bem mobiliado. Ele dormiu no sofá.

Um mês depois ele mudou-se para o apartamento dela e, pela primeira vez, começou a falar em deixar a faculdade. Ela estava a pensar recomeçar a estudar Direito. À medida que o romance crescia, o interesse dele por assuntos académicos diminuiu a ponto de Nicholas quase não completar os exames do Outono. Estavam loucamente apaixonados e não importava mais nada. Além disso, como Marlee tinha algum dinheiro, não viviam sob pressão. Entre os semestres do seu segundo e último ano, passaram o Natal na Jamaica.

Quando Nicholas deixou a faculdade, ela já estava há três anos em lawrence e pronta para mudar. Ele estava disposto a segui-la para onde quer que fosse.

Marlee tinha pouca informação sobre o incêndio de sábado. Suspeitavam de Fitch, mas não podiam imaginar o motivo. A única coisa de alor era o computador e Nicholas tinha a certeza de que ninguém comseguia violar o seu sistema de segurança. As disquetes importantes estavam num cofre no apartamento de Marlee. O que poderia Fitch ganhar incendiando um velho apartamento? Intimidação talvez, mas não lhe parecia que fosse uma atitude muita lógica. Parecia pouco provável que se tratasse de incêndio criminoso.

Já tinham dormido em sítios melhores e piores do que o Siesta Inn. Em quatro anos tinham vivido em quatro cidades, conhecido uma meia dúzia de países e percorrido quase toda a América do Norte. Visitaram o Alasca e o México, viajando com a mochila às costas. Por duas vezes, fizeram canoagem no Colorado e, uma vez, chegaram a percorrer de barco o Amazonas. Tinham acompanhado os processos contra as tabaqueiras e isso obrigou-os a viver em sítios como Broken Arrow, Allentown e agora Biloxi. Juntos, sabiam mais sobre níveis de nicotina, produtos cancerígenos, probabilidades estatísticas de ocorrência de cancro de pulmão, selecção de júris, tácticas de tribunal e Rankin Fitch do que qualquer grupo de poderosos especialistas.

Depois de uma hora debaixo dos lençóis, acendeu-se uma luz ao lado da cama e Nicholas apareceu, despenteado, procurando a sua roupa. Marlee vestiu-se e olhou para o parque de estacionamento através da persiana fechada.

No quarto debaixo do deles, Hoppy tentava do melhor modo possível diminuir a importância das revelações escandalosas de Lawrence Krigler, a testemunha que, aparentemente, mais havia impressionado Millie. Esta relatou ao marido o depoimento e as conclusões de Krigler e sentia-se bastante intrigada com o vigor dos argumentos contrários de Hoppy.

Só por diversão, Marlee estacionara o seu carro a meio do quarteirão do escritório de Weridall Rohr. Tanto ela como Nicholas agiam supondo que Fitch seguia todos os seus movimentos. Era divertido imaginar Fitch a contorcer-se com a ideia de que ela estava no escritório de Rohr, falando pessoalmente com ele e fazendo algum acordo cujo conteúdo só Deus podia conhecer. Para a «visita pessoal», Marlee chegara num carro alugado, um dos muitos que tinha usado no último mês.

De repente, Nicholas ficou farto daquele quarto, uma réplica exacta daquele a que estava confinado. Deram um longo passeio de carro seguindo a Costa: ela conduzia e ele bebia cerveja. Caminharam num pontão por cima do Golfo e beijaram-se enquanto a água balançava suavemente sob os seus pés. Falaram pouco sobre o julgamento.

Às dez e meia, Marlee saiu do carro a dois quarteirões do escritório de Rohr. Caminhou apressadamente pelo passeio e Nicholas acompanhou-a de perto. O carro dela era o único estacionado naquela rua. Joe Boy viu-a entrar no carro e passou a informação a Konrad via rádio. Assim que ela saiu dali, Nicholas voltou rapidamente para o motel no carro alugado.

Rohr estava no meio de uma reunião do conselho, o encontro diário dos oito advogados de barra que haviam contribuído com um milhão cada um para aquele processo. O assunto da noite de domingo era o número de testemunhas que a acusação ainda ia chamar e, como sempre, havia oito opiniões diferentes sobre o que deveria ser feito. Havia oito tendências muito firmes e muito diferentes sobre o que seria mais eficaz.

Contando os três dias para a selecção do júri, o julgamento estava agora na terceira semana. No dia seguinte começaria a quarta semana e a acusação tinha especialistas e testemunhas para pelo menos mais duas. Cabie tinha o seu exército particular de especialistas, embora normalmente nestes casos a defesa usasse menos de metade do tempo da acusação. Seis semanas era uma previsão razoável até ao fim do julgamento, o que significava que ojúri ficaria isolado por mais quatro semanas, e esta possibilidade deixava todos preocupados. Era óbvio que mais dia menos dia o júri havia de rebelar-se e, como a acusação tinha usado a maior parte do tempo do julgamento, seria esta parte quem mais tinha a perder com a situação. Por outro lado, uma vez que a defesa era a última a apresentar-se e nessa altura o júri já estava cansado, talvez dirigisse a sua má vontade para Cable e a Pyriex. A discussão seguiu acalorada durante uma hora.

Wood versus Pynex era um caso único por ser o primeiro julgamento deste tipo com ojúri isolado. Na verdade, era o primeiro júri civil isolado na história do estado. Rohr era de opinião que o júri já tinha ouvido o suficiente. Só queria chamar mais duas testemunhas e, na terça-feira, dar o caso por terminado. A seguir, descansaria e esperaria pela actuação de Cable. Scotty Mangrum, de Dálias, e André Durond, de Nova Orleães, concordavam com ele. Jonathan Kotiack, de San Diego, queria mais três testemunhas.

A opinião contrária era vigorosamente defendida por John Riley Milton, de Denver, e Rayner Lovelady, de Savana. Não viam razão para pressas, sobretudo tendo em consideração que tinham gasto tanto tlinheiro para conseguir a maior colecção de especialistas do mundo. Ainda faltavam alguns depoimentos cruciais de testemunhas muito importantes. Ojúri não podia fazer nada. Claro que os jurados haviam de ficar cansados, mas isso era o que acontecia com todos os jurados e em todos os julgamentos. Era muito mais seguro continuar com o plano delineado desde a primeira hora e deixar as coisas correr do que saltar do barco no meio da corrente, só para evitar que alguns jurados se cansassem.

Em todas as reuniões, Carney Morrison, de Boston, repetia cons-tantemente: «Este júri ainda não está convencido!» À luz das leis do Mississipi, para um veredicto precisavam de nove dos doze jurados. Morrison tinha a certeza de que ainda não tinham nove jurados do seu lado. Carney achava que Rohr não dava a devida atenção ao modo como Jerry Fernandez esfregava os olhos, ao facto de Loreen Duke mudar constantemente de posição na cadeira e ao movimento que o pobre Herman fazia com o pescoço quando o doutor fulano de tal estava a testemunhar. Para ser franco, Rohr estava farto dos consultores de júri e especialmente farto das obscenas quantias que recebiam. Uma coisa era contar com a sua colaboração para investigar potenciais jurados; outra, muito diferente, era ter de aguentar a sua presença em todo o lado, durante todo o julgamento, sempre ansiosos por preparar um relatório diário para informarem os advogados sobre o desenrolar do caso. Rohr sabia interpretar as reacções de um júri muito melhor do que qualquer um dos consultores.

Arnold Levine, de Miami, falou pouco porque o grupo já conhecia a sua opinião. Chegou a defender a General Motors num julgamento que durou onze meses, portanto, para ele, seis semanas eram um mero aquecimento.

Quando empatavam, as decisões não eram tomadas à sorte. Muito antes da selecção do júri ter terminado, tinha ficado resolvido e assumido que o responsável por aquele julgamento era Wendall Rohr. O processo dera entrada na justiça na sua cidade natal, era disputado no seu tribunal, com o seu juiz e os seus jurados. O conselho de julgamento da acusação era um corpo democrático, mas só até certo ponto. Rohr tinha poder de veto e esse poder não podia ser contestado.

No fim da tarde de domingo, Rohr tomou uma decisão e os egos mais acesos sofreram algumas equimoses, mas nada de permanente. Havia coisas de mais em jogo para ficarem horas a discutir e a aventar hipóteses.

 

O primeiro ponto da agenda para a manhã de segunda-feira era um rncontro particular do juiz Harkin com Nicholas, para falar sobre o i ncêndio e o seu bem-estar. Encontraram-se, só os dois, na sala do juiz. N icholas garantiu que estava bem e que tinha roupa suficiente no motel. Era apenas um estudante e não tinha perdido muita coisa, apenas um bom computador e algum equipamento de vigilância muito caro. E, claro, nada disso estava no seguro.

Falaram brevemente sobre o incêndio e, uma vez que estavam sozinhos, Harkin perguntou:

— Então, como vão os seus amigos?

Conversar assim com um jurado, fora dos autos, não era impróprio, mas situava-se certamente na área cinzenta do procedimento legal. O mais correcto seria ter os advogados presentes e uma estenógrafa do tribunal para registar tudo o que fosse dito. Mas Harkin só queria alguns minutos de informação. Podia confiar naquele rapaz.

— Está tudo óptimo — disse Nicholas.

— Nada fora do normal?

— Não. Que me lembre, não.

— O caso tem sido comentado?

— Não. Quando estamos juntos, tentamos evitar o assunto.

— Óptimo. Alguma desavença ou discussão?

— Ainda não.

— A comida é boa?

— As «visitas pessoais» são suficientes?

— Acho que sim. Não ouvi nenhuma reclamação.

Harkin adoraria saber se havia algum caso amoroso entre os jurados. Não porque isso tivesse algum significado legal, mas apenas porque o juiz tinha a mente suja.

— Óptimo. Avise-me se houver algum problema. E vamos manter esta conversa em segredo.

— Claro — disse Nicholas. Apertou a mão do juiz e saiu. Harkin cumprimentou os jurados calorosamente, dando as boas-vindas

a mais uma semana. Pareciam ansiosos por começar o trabalho e acabar rapidamente com o sofrimento.

Rohr levantou-se, chamou a sua próxima testemunha, Leon Robi lio, e começou outro acto da peça. Leon foi conduzido à sala por uma porta lateral. Passou cauteloso na frente do júri a caminho do banco das testemunhas, onde o ajudaram a sentar-se. Robilio era velho e pálido, usava um fato escuro, camisa branca, sem gravata. Tinha um orifício no pescoço coberto por um fino curativo branco e disfarçado com uma écharpe de linho branco. Jurou dizer a verdade segurando junto ao pescoço um microfone que parecia um lápis. A sua voz tinha o tom monótono, típico das vítimas de cancro da garganta que já perderam a laringe.

Mas as palavras que dizia eram audíveis e claras. O senhor Robil io segurava o microfone muito perto do pescoço e a voz ecoava pela sala toda. Era assim que agora falava. Agora e para o resto da vida. Queria ser compreendido.

Rohr foi directo ao assunto. O senhor Robilio tinha sessenta e quatro anos, era um sobrevivente de cancro. Tinha perdido o órgão vocal havia oito anos e aprendera a falar pelo esófago. Durante quase quarenta anos fumara exageradamente e esse vício quase o matou. Agora, para além dos efeitos secundários do cancro, sofria também do coração e tinha efisema. Tudo por causa do tabaco.

Os ouvintes habituaram-se facilmente à voz amplificada. Conquistou a atenção de todos quando disse que durante duas décadas tinha feito lobby para a indústria do tabaco. Deixou o emprego quando o cancro foi diagnosticado e descobriu que, mesmo doente, não conseguia deixar de fumar. Era viciado em nicotina, física e psicologicamente. Durante dois anos, depois de a sua laringe ter sido retirada e da quimioterapia lhe ter arrasado o corpo, continuou a fumar. Só deixou o vício após um enfarte quase fatal.

Embora com saúde precária, ainda trabalhava em horário integral em Washington, mas agora estava do outro lado da barricada: era conhecido como sendo um activista anti-tabagista, feroz e intensamente devotado. Muita gente lhe chamava guerrilheiro.

Numa vida anterior, o senhor Robilio tinha trabalhado para a Tobacco Focus Council. — Uma organização de «lobistas», financiada inteiramente pela indústria — disse com desdém. — A nossa missão era aconselhar os fabricantes de cigarros sobre a legislação em vigor e tentar regulamentar a indústria. Tínhamos um orçamento generoso com recursos ilimitados para oferecer jantares e todo tipo de animação a políticos influentes. Fazíamos jogo duro e ensinávamos aos apologistas do fumo o que era «in» e «out» na luta livre da política.

No conselho, Robilio tinha acesso a inúmeros estudos da indústria tabaqueira. Na verdade, parte da missão do conselho consistia na assimilação meticulosa de todos os estudos conhecidos, projectos e experiências. Sim, Robilio tinha visto o infame memorando sobre a nicotina descrito por Krigler. Vira várias vezes, mas não tinha nenhuma cópia. Era sabido no conselho que os fabricantes mantinham altos níveis de nicotina para garantir a dependência do fumador.

Dependência foi a palavra que Robilio repetiu mais vezes. Tinha visto estudos pagos pelas empresas que descreviam a rápida criação de dependência em vários animais através da nicotina do tabaco. Viu e ajudou a esconder estudos que provavam, acima de qualquer dúvida, que entre os adolescentes viciados o índice dos que deixavam de fumar era extremamente baixo. Tornavam-se clientes para toda a vida.

Rohr apresentou uma caixa cheia de pastas grossas com relatórios para Robilio os identificar. Os estudos foram considerados uma prova, como se os jurados tivessem tempo para examinar dez mil páginas de documentos antes de tomar uma decisão.

Robilio estava arrependido de muitas das coisas que tinha feito como «lobista», mas o seu maior pecado, do qual se arrependia diariamente, era a negação vigorosa, apresentada em frases astutamente construídas, de que a indústria do tabaco tentasse visar os adolescentes nos seus anúncios.

— A nicotina vicia. O vício significa lucro. A sobrevivência da indústria depende do vício adquirido por cada nova geração. Os jovens recebem mensagens disfarçadas através dos anúncios. A indústria gasta milhões para dar ao cigarro uma conotação de produto sofisticado, charmoso e até inofensivo. Os jovens viciam-se com mais facilidade e ficam mais tempo viciados. Por isso é imperativo seduzir os jovens. Robilio conseguiu transmitir amargura através da sua caixa de voz artificial, conseguiu olhar com desdém para a mesa da defesa e, ao mesmo tempo, olhou calorosamente para os jurados.

— Gastávamos milhões para estudar os comportamentos dos jovens. Sabíamos que eles conseguiam referir os nomes das três marcas de cigarros que mais apareciam nos anúncios. E o que faziam os fabricantes? Reforçavam os anúncios.

— O conselho sabia quanto ganhavam os fabricantes de cigarros com as vendas a crianças? — perguntou Rohr, certo da resposta.

— Cerca de cem milhões por ano. É claro que sabíamos. Estudávamos o lucro ano a ano, mantínhamos as nossas empresas bem informadas. Nós sabíamos tudo. — Calou-se, balançou a mão na direcção da mesa da defesa, com ar de desprezo, como se fossem todos leprosos. — Eles bem sabem. Sabem que todos os dias há três mil adolescentes que começam a fumar, e podem dar uma relação precisa das marcas que compram. Eles sabem que praticamente todos os fumadores adultos começaram a fumar na adolescência e querem lançar o anzol à próxima geração. Também sabem que um terço dos três mil jovens que começam a fumar hoje acabam por morrer por causa do vício.

Robilio cativou o júri. Para manter a intensidade do drama, Rohr examinou os seus apontamentos por um momento. Deu alguns passos atrás e à frente, como se precisasse de exercitar as pernas. Coçou o queixo, olhou para o tecto e perguntou:

— Quando trabalhava para o Tobacco Focus Council, quais os argumentos que usava para provar que a nicotina não cria dependência?

— As empresas fabricantes de cigarros têm uma linha comum, que ajudei a formular. É mais ou menos assim: os fumadores escolhem o vício. Portanto, é uma questão de escolha. O cigarro não vicia mas, mesmo que vicie, ninguém obriga ninguém a fumar. É tudo uma questão de escolha.

— Naquele tempo eu próprio formulava este raciocínio de forma muito convincente e hoje são eles que fazem com que tudo isto pareça convincente. O problema é que não é verdade.

— Porque é que não é verdade?

— Porque estamos a falar de vício e nesse caso o viciado não tem grande escolha. Além disso, os jovens viciam-se muito mais depressa do que os adultos.

Rohr, pela primeira vez, evitou a compulsão típica dos advogados pura exagerar o volume das provas. Robilio era eficiente com palavras e o esforço para ser claro e ouvido cansou-o ao fim de uma hora e meia. Rohr entregou-o a Cable para um interrogatório indirecto e o juiz Harkin, que precisava de tomar café, ordenou um intervalo.

Hoppy Dupree fez a sua primeira visita ao tribunal na segunda-feira de manhã. Entrou a meio do depoimento de Robilio. Ele e Millie trocaram um olhar, ela satisfeita com a visita do marido. Contudo, era estranho aquele interesse repentino pelo julgamento. Na noite anterior Hoppy não tinha falado de outra coisa.

Depois de vinte minutos para o café, Cable aproximou-se da testemunha e atacou ferozmente. O seu tom era estridente, quase agressivo, como se Robilio fosse um traidor à causa, um vira-casacas. Cable marcou imediatamente um ponto com a revelação de que Robilio estava a ser pago para testemunhar e que tinha sido ele a procurar os advogados da acusação. Estava também a receber para depor em dois outros julgamentos contra fabricantes de cigarros.

— Sim, estou a ser pago para estar aqui, doutor Cable, tal como o senhor — disse Robilio, dando a típica resposta dos especialistas. Mas a nódoa do dinheiro manchou levemente a sua imagem.

Cable fê-lo confessar que começou a fumar quando tinha quase vinte e cinco anos, casado e com dois filhos. Ou seja, já não era um adolescente que pudesse ser seduzido pela arte charmosa dos anúncios. Durante a maratona de cinco dias de gravação dos depoimentos, cinco meses antes, os advogados tiveram a prova do temperamento fervilhante de Robilio e Cable estava decidido a explorar isso. As suas perguntas eram agressivas, destinadas a provocar a testemunha.

— Quantos filhos tem? — perguntou Cable.

— Três.

— Algum deles já fumou?

— Sim.

— Quantos?

— Três.

— Que idade tinham quando começaram? — Várias.

— Em média?

— Começaram pouco antes dos vinte.

— Que anúncios considera responsáveis por isso?

- Não me lembro exactamente.

— Não pode dizer ao júri quais os anúncios responsáveis por os seus filhos terem começado a fumar?

— Havia tantos... ainda há. É impossível apontar um ou dois que realmente os tenham influenciado.

— Então foram os anúncios?

— Tenho a certeza de que os anúncios foram eficazes. Ainda são.

— Então, a culpa foi de outras pessoas?

— Eu não os encorajei a fumar.

—- Tem a certeza? Está a dizer ao júri que os seus filhos, os filhos de um homem que durante vinte anos trabalhou para encorajar o mundo a fumar, começaram a fumar por causa de alguns anúncios insidiosos?

— Tenho a certeza de que os anúncios ajudaram. É para isso que existem.

— O senhor fumava em casa, à frente dos seus filhos?

— Fumava.

— A sua mulher também?

— Sim.

— Alguma vez pediu a uma visita que não fumasse em sua casa?

— Não. Naquela altura não

— Então podemos dizer que o ambiente da sua casa era favorável aos fumadores?

— Naquele tempo, sim.

— Mas os seus filhos começaram a fumar por causa dos anúncios insidiosos? É isso que está a afirmar perante o júri?

Robilio respirou fundo, contou devagar até cinco:

— Eu gostava de ter feito muitas coisas de outra forma, doutor Cable. Gostava de nunca ter fumado, por exemplo.

— Os seus filhos deixaram de fumar?

— Dois deles, mas com grande dificuldade. O terceiro está a tentar há dez anos.

A última pergunta fora feita impulsivamente, e por um momento Cable desejou não a ter feito. Estava na hora de passar para a outra parte.

— Senhor Robilio, o senhor está a par dos esforços da indústria do tabaco para reprimir o fumo entre os adolescentes?

A risada de desprezo de Robilio soou como um trovão ampliado pelo seu pequeno microfone.

— Nenhum esforço sério — disse.

— Quarenta milhões de dólares no último ano para a campanha Jovens Livres do Fumo.

— Parece uma das coisas que eles gostam de fazer. Insinuando vagamente um pouco de calor humano, não acha?

— O senhor sabe que a indústria apoia a legislação que proíbe as máquinas de vender cigarros nas áreas frequentadas por jovens?

— Acho que ouvi falar nisso. Parece encantador, não parece?

— O senhor sabe que no ano passado a indústria deu dez milhões de dólares ao estado da Califórnia para um programa de âmbito nacional, nos cursos primários, com a finalidade de advertir os menores contra os perigos do tabaco?

— Não, não sabia. E para advertir os maiores? Por acaso disseram as crianças que é correcto fumar depois de completar dezoito anos? Provavelmente disseram.

Cable tinha uma lista e parecia contentar-se em disparar as perguntas, ignorando as respostas.

— O senhor sabe que a indústria apoia um projecto de lei no Texas para proibir o tabaco em todas as pastelarias e noutros locais frequentados por adolescentes?

— Sei. E o senhor sabe por que razão fazem isso? Vou dizer-lhe porquê. É para poderem contratar pessoas como você para virem contar isso a jurados como estes. Esse é o único motivo: soa bem dizer estas coisas num tribunal.

— O senhor sabe que a indústria apoia oficialmente a legislação que impõe penalidades às lojas de conveniência que vendem tabaco a menores?

— Sim, também ouvi falar nisso. É uma camuflagem. Espalham dólares aqui e ali para fazer pose e comprar respeitabilidade. E se o fazem é porque conhecem a verdade... e a verdade é que dois milhões de dólares por ano, em anúncios, garantem a dependência da próxima geração. E o senhor é um tolo se não acredita nisso.

O juiz Harkin inclinou-se para a frente.

— Senhor Robilio, isso foi inoportuno. Não repita. Quero que seja retirado dos autos.

— Desculpe, Meritíssimo. E o senhor também, doutor Cable. Peço-lhe que me desculpe. Está só a fazer o seu trabalho. O que não suporto são os seus clientes.

Cable perdeu o impulso do ataque. Perguntou apenas:

— Porquê? — E imediatamente desejou ter ficado calado.

— Porque são muito desonestos. Essa gente da indústria do tabaco é brilhante, inteligente, instruída, implacável. Olham as pessoas nos olhos e dizem com toda a sinceridade que o cigarro não vicia. E sabem que é mentira.

— Não tenho mais perguntas — disse Cable, voltando para a sua mesa.

Gardner é uma cidade de dezoito mil habitantes, a uma hora de Lubbock. Pamela Blanchard morava na parte velha da cidade, a dois quarteirões da Rua Principal, numa casa construída no princípio do século e restaurada com bom gosto. Árvores de folhagem vermelha, dourada e brilhante, sombreavam o jardim. Viam-se crianças a andar de bicicleta e de skate pela rua.

Às dez horas da manhã de segunda-feira, Fitch sabia o seguinte: Pamela Blanchard era casada com o presidente do banco local, que perdera a primeira mulher dez anos antes. Não era o pai de Nicholas Easter, ou de Jeff, ou de fosse quem fosse. O banco estivera quase falido durante a crise do petróleo, no início dos anos 80, e muitas pessoas ainda tinham medo de pôr o seu dinheiro no banco. O marido de Pamela era natural da cidade. Ela não! Podia ter vindo de Lubbock, ou talvez de Amarillo. O seu casamento no México, há oito anos, foi referido brevemente no semanário local, mas sem fotografia. Apenas um anúncio ao lado dos obituários dizendo que N. Forrest Blanchard Jr. tinha casado com Pamela Kerr e que, depois de uma curta lua-de-mel em Cozumel, iam morar em Gardner.

A melhor fonte da cidade era um detective particular chamado Rafe, polícia na cidade durante vinte anos. Garantia conhecer toda a gente. Rafe, depois de receber uma boa quantia em dinheiro, trabalhou sem dormir durante toda a noite de domingo. Sem dormir, mas com muito wiskey, e de madrugada cheirava a malte azedo. Dante e Joe Boy trabalharam no sujo escritório do detective, na Rua Principal, declinando repetidamente a oferta de wiskey.

Rafe consultou todos os polícias de Gardner e finalmente encontrou um que conseguiu falar com uma senhora que moravano outro lado da rua, em frente da casa dos Blanchard. Bingo! Pamela tinha dois filhos de um primeiro casamento que terminara em divórcio. Não falava muito sobre eles, mas sabia-se que um estava no Alasca e que o outro era udvogado, ou estudante de Direito, ou qualquer coisa do género.

Como nenhum dos dois tinha crescido em Gardner, a pista arrefeceu. Ninguém os conhecia. Na verdade, Rafe não encontrou ninguém que já tivesse visto os filhos de Pamela. Foi então que telefonou para o seu advogado, especialista em divórcios. O advogado conhecia uma secretária do banco do senhor Blanchard. Rafe falou com a secretária particular do senhor Blanchard e descobriram que Pamela não era de Lubbock, nem de Amarillo, mas de Austin. Quando conheceu o senhor Blanchard trabalhava para a Associação de Banqueiros em Austin. A secretária sabia do casamento anterior e era de opinião que havia terminado muitos anos antes. Não, nunca tinha visto os filhos de Pamela. O senhor Blanchard nunca falava neles. O casal levava uma vida tranquila e raramente tinha visitas.

Fitch recebia relatórios de Dante e Joe Boy de hora a hora. No final da manhã de domingo, telefonou para um conhecido de Austin, um homem com quem tinha trabalhado num julgamento de fabricantes de tabaco, em Marshall, Texas. Era uma emergência, explicou Fitch. Em poucos minutos, uma dúzia de detectives estava a pesquisar listas telefónicas e a fazer telefonemas. Os cães de caça não demoraram a encontrar a pista.

Pamela Kerr era secretária-executiva da Associação dos Banqueiros do Texas, em Austin. Um telefonema levou a outro e encontraram uma antiga colega de trabalho que era agora conselheira de uma escola particular. Dizendo que Pamela era um dos potenciais jurados num julgamento de crime capital em Lubbock, o detective apresentou-se como assistente do promotor distrital: estava a tentar conseguir informações legítimas sobre os jurados. Ela sentiu-se obrigada a responder a algumas perguntas, embora não visse Pamela nem tivesse qualquer contacto com ela há anos.

Pamela tinha dois filhos, Jeff e Alex. Alex, dois anos mais velho, fez o liceu em Austin e foi para Oregon. Jeff também terminou o liceu em Austin, com distinção, e foi para Rice, a fim de fazer a faculdade. O pai abandonou a família quando os rapazes ainda eram muito pequenos e Pamela tinha feito um trabalho magnífico na educação dos filhos.

Dante desembarcou de jacto particular e acompanhou um detective à escola onde tiveram autorização para consultar os livros do ano na biblioteca. A foto de formatura de Jeff Kerr era colorida — um smoking azul, grande papillon, também azul, cabelo curto, rosto muito sério, olhando directamente para a câmara. O mesmo rosto que Dante havia estudado durante horas, em Biloxi. Sem hesitar, disse:

— Este é o nosso homem — e disfarçadamente rasgou a página do livro. Escondido entre as estantes telefonou para Fitch do seu telemó-vel.

Três telefonemas para Rice revelaram que Jeff Kerr se tinha formado em 1989 em Psicologia. Fazendo-se passar por representante de um empregador em perspectiva, Dante encontrou um professor de ciências políticas que se lembrava muito bem de Kerr. Disse que o jovem fora para a faculdade de Direito em Karisas.

Fitch contactou por telefone com uma empresa de segurança que, a troco de uma boa soma em dinheiro, se dispôs a largar tudo o que tinha em mãos para procurar em Lawrence, Karisas, algum sinal de Jeff Kerr.

Para uma pessoa sempre tão animada, Nicholas estava calado de mais durante o almoço. No O'Reilly's não disse uma palavra enquanto comia uma batata assada com recheio. Evitou os olhares dos outros jurados e parecia extremamente triste.

Os jurados compartilhavam esse estado de espírito. A voz de Leon Robilio continuava a acompanhá-los, uma voz mecânica substituindo a verdadeira, perdida para a devastação provocada pelo fumo. Uma voz robótica revelando a imundice que no passado Robilio ajudara a esconder. Ainda soava aos seus ouvidos: «Três mil jovens por dia, um terço dos quais acaba por morrer por causa do vício.»

Loreen Duke cansou-se de mexer com o garfo na sua salada de galinha. Olhou para Jerry Fernandez, no outro lado da mesa, e disse:

— Posso perguntar uma coisa? —- A sua voz quebrou o silêncio.

— Claro — disse ele.

— Com que idade começou a fumar?

— Catorze.

— Porque é que começou?

— Por causa do homem da Marlboro. Todos os rapazes com quem me dava fumavam Marlboro. Éramos rapazes do campo, gostávamos de cavalos e de rodeos. Não era possível resistir à sofisticação do homem da Marlboro.

Nesse preciso momento, todos os jurados viam mentalmente os cartazes — o rosto de traços fortes, o queixo, o chapéu, o cavalo, o couro muito usado, talvez as montanhas e um pouco de neve, a independência no acender um Marlboro enquanto o mundo o deixava em paz. Por que é que um rapaz de catorze anos não havia de querer ser o homem da Marlboro?

— Você é viciado? — perguntou Rikki Coleman, mexendo com o garfo no prato sem gordura, cheio de alface e peru cozido. A palavra «viciado» saiu-lhe dos lábios como se estivessem a falar de heroína.

Jerry pensou por momentos e percebeu que o estavam a ouvir. Queriam conhecer a força que mantinha a pessoa presa ao vício.

— Não sei — respondeu ele. — Suponho que posso deixar de fumar. Já tentei algumas vezes. Sem dúvida que seria bom abandonar o tabaco. É um hábito muito desagradável.

— Não tem prazer quando fuma? — perguntou Rikki.

— Bem, há certos momentos em que o cigarro acerta no alvo, mas agora estou a fumar dois maços por dia: é de mais.

— E você, Angel? — perguntou Loreen a Angel Weese, sentada ao seu lado e que geralmente falava o mínimo possível. — Que idade linha quando começou?

— Treze — informou Angel, timidamente.

— Eu tinha dezasseis — admitiu Sylvia Taylor-Tatum antes que lhe perguntassem.

— Eu comecei com catorze — disse Herman, à cabeceira da mesa, para entrar na conversa. — Deixei quando tinha quarenta.

— Mais alguém? — indagou Rikki, continuando a hora da confissão.

— Comecei com dezassete anos, quando entrei para o exército — esclareceu o coronel. — Mas larguei há trinta anos. — Frisou, como sempre, orgulhoso da sua autodisciplina.

—Mais alguém?—perguntou Rikki novamente, depois de um longo silêncio.

— Eu. Comecei com dezassete e deixei dois anos depois. — Ni cholas estava a mentir.

— Alguém aqui começou a fumar depois dos dezoi to anos?.

Nem uma palavra.

Nitchman encontrou-se com Hoppy para comerem rapidamente uma sanduíche. Hoppy, nervoso com a ideia de ser visto na companhia de um agente do FBI, ficou aliviado quando o viu aparecer de jean.s e camisa de xadrez. Não era provável que os conhecidos de Hoppy pudessem identificar um agente federal, mas mesmo assim estava nervoso. Além disso, Nitchman e Napier tinham dito que pertenciam a uma unidade especial de Atlanta.

Hoppy repetiu o que tinha ouvido no tribunal naquela manhã. Disse que Robilio, o homem sem voz, causou uma forte impressão e aparentemente havia conquistado o júri. Nitchman, não pela primeira vez, demonstrou pouco interesse no julgamento e explicou novamente que estava apenas a cumprir ordens dos seus chefes em Washington. Entregou a Hoppy uma folha de papel dobrada, com números e palavras em letras pequenas espalhados na parte superior e na parte inferior e disse que fora enviado por Cristano, da Justiça. Queriam que Hoppy visse o papel.

Na verdade, era uma criação da equipa de Fitch encarregada dos documentos, dois ex-agentes da CIA aposentados que circulavam em Washington e que tinham prazer em práticas escusas.

Era uma cópia enviada por fax de um relatório com aparência sinistra sobre Leon Robilio. Não trazia indicação da fonte, nem da data: apenas quatro parágrafos sob um título misterioso «Memorando Confidencial». Hoppy leu rapidamente comendo batatas fritas. Robilio estava a receber uma fortuna para testemunhar. Robilio foi expulso do Tobacco Fo-cus Council por desvio de fundos, chegou a ser indiciado, porém, mais tarde, as acusações foram retiradas. Além disso, tinha uma história de problemas psiquiátricos e fora acusado de assédio sexual a duas secretárias do conselho. A causa do cancro de garganta era provavelmente o alcoolismo e não o fumo. Robilio tinha fama de mentiroso, odiava o conselho e estava empenhado numa cruzada de vingança.

— Nossa Senhora! — comentou Hoppy, enchendo a boca com batatas fritas.

— O senhor Cristano acha que você deve entregar isto à sua mulher — disse Nitchman. — E ela só deve mostrar aos jurados em quem tem confiança.

- Tudo bem - concordou Hoppy, dobrando o papel rapidamente e guardando-o no bolso. Olhou para o restaurante cheio como se se sentisse culpado de alguma coisa.

Trabalhando a partir dos anuários da faculdade de Direito e com as limitadas informações fornecidas ficaram a saber que Jeff Kerr se havia matriculado no primeiro ano de Direito da Universidade de Karisas no Outono de 1989. O seu rosto sério aparecia na fotografia da turma do segundo ano, em 1991, mas depois disso não havia qualquer sinal dele. Não se formou em Direito.

No segundo ano jogou rugbi na equipa da faculdade. Uma fotógrafa da equipa mostrava-o de braço dado com dois amigos — Michael Dale e Tom Ratliff — que haviam terminado a faculdade no ano seguinte. Dale trabalhava para os serviços judiciais em Dês Moines. Ratliff era funcionário de uma firma de advogados em Wichita. Foram enviados detectives para as duas cidades.

Dante chegou a Lawrence e foi levado à faculdade de Direito, onde confirmou a identidade de Kerr nos anuários. Passou uma hora a examinar fotografias de 1985 a 1994 e não viu nenhuma mulher parecida com a jovem que se dizia chamar Marlee. Foi um tiro no escuro. Muitos alunos não eram fotografados. Os anuários referiam-se ao segundo ano com fotografias de jovens adultos muito sérios. O trabalho de Dante consistia apenas em dar vários tiros no escuro.

No fim do dia, na segunda-feira, um detective chamado Sinali encontrou Tom Ratliff muito ocupado no seu modesto escritório mal mobilado da Wise & Watkins, uma importante empresa no centro da cidade de Wichita. Concordaram em encontrar-se uma hora depois num bar.

Small falou com Fitch para conseguir toda a informação possível, ou pelo menos tudo o que Fitch estivesse disposto a revelar. Small era um ex-polícia com duas ex-mulheres. Intitulava-se especialista em segurança, o que significava que fazia de tudo, desde vigilância de motéis a testes com polígrafo. Não era brilhante e Fitch percebeu logo isso.

Ratliff chegou tarde e pediram as bebidas. Small esforçou-se ao máximo para tornar o seu bluf convincente e para parecer informado, Ratliff ficou desconfiado. A princípio falou pouco, o que era de esperar de uma pessoa interrogada por um estranho sobre um antigo conhecido.

— Não o vejo há quatro anos — informou Ratliff.

— Tem falado com ele?

— Não. Nem uma palavra. Deixou a faculdade no fim do nosso segundo ano.

— Eram muito amigos?

— Conheci-o bem no primeiro ano, mas não éramos muito amigos. Afastou-se depois disso. Jeff está metido nalguma confusão?

— Não. De modo algum.

— Talvez deva dizer-me por que razão está tão interessado nele. Small recitou em termos gerais o que Fitch queria que dissesse,

conseguiu acertar em quase tudo e chegar muito perto da verdade. Jeff Kerr era um potencial jurado num grande julgamento algures no país, e Small foi contratado por uma das partes para investigar o seu passado.

— Onde é esse julgamento? — perguntou Ratliff.

— Não posso dizer. Mas garanto que nada disto é ilegal. É advogado e certamente compreende.

Sim, compreendia. Ratliff tinha passado a maior parte da sua breve carreira a trabalhar como escravo para um sócio especialista em litígios. A investigação do júri era algo que aprendera a detestar.

— Como é que posso verificar isso?—perguntou, como um verdadeiro advogado.

— Não tenho autoridade para divulgar dados específicos sobre o julgamento. Vamos chegar a um acordo. Se fizer alguma pergunta que o senhor ache que possa prejudicar Kerr, não responde. Está de acordo?

- Podemos tentar! Mas se ficar nervoso, saio daqui.

- Está bem. Porque é que abandonou a faculdade?

Ratliff bebeu um pequeno gole de cerveja e tentou lembrar-se.

— Ele era bom aluno, brilhante até. Mas depois do primeiro ano, de repente, começou a detestar a ideia de ser advogado. Naquele Verão trabalhou no escritório de uma grande firma em Karisas City e ficou farto. Além disso, apaixonou-se.

Fitch queria desesperadamente saber se havia uma mulher na vida de Jeff.

— Quem era a mulher? — perguntou.

— Claire.

— Claire quê? Mais um gole de cerveja.

— Já não me lembro.

— Conheceu-a?

— Eu sabia quem era. Claire trabalhava num bar no centro de Law-i cnce, um lugar frequentado pelos estudantes de Direito. Acho que foi onde se conheceram.

— Pode descrevê-la?

— Para quê? Pensei que o caso era sobre o Jeff.

— Pediram-me para obter uma descrição da namorada dele na faculdade. É tudo o que sei. — Small encolheu os ombros, como se não dependesse de si.

Os dois estudaram-se algum tempo. «Quero lá saber!», pensou Ratliff. Nunca mais ia ver aquela gente e Jeff e Claire não passavam de lembranças distantes.

— Altura média, cerca de um metro e setenta. Magra, cabelo escuro, olhos castanhos, bonita e com tudo o que pode atrair numa mulher.

— Era aluna da faculdade?

— Não tenho a certeza. Talvez fosse. Ou talvez já estivesse formada.

— Pela universidade de Karisas?

—  Não sei.

— Qual era o nome do bar?

— Mulligan's, no centro da cidade.

Small conhecia o bar. Ia lá frequentemente para afogar os problemas e admirar as estudantes.

— Já bebi uns copos no Mulligan's.

— Também eu. E tenho algumas saudades... — confessou Ratliff

— O que é que ele fez depois de deixar a faculdade?

— Não tenho a certeza. Ouvi dizer que ele e Claire tinham saído da cidade, mas nunca mais tive notícias deles.

Small agradeceu e perguntou se podia telefonar para o escritório se ti vesse mais dúvidas. Ratliff disse estar muito ocupado, mas que podia tentar.

O chefe de Small em Lawrence tinha um amigo que conhecia o homem que fora dono do Mulligan's durante quinze anos — vantagens de uma cidade pequena. Os registos de emprego não eram exactamente confidenciais, sobretudo para o dono de um bar que declarava menos de metade das suas vendas. O nome dela era Claire Clement.

Quando recebeu a informação, Fitch esfregou as mãos gorduchas de satisfação. Adorava aquela caçada. Marlee era agora Claire, uma mulher que tinha trabalhado arduamente para esconder o seu passado.

— Conhece o teu inimigo! — disse Fitch em voz alta para as paredes. Era a primeira regra das operações de guerra.

 

Os números voltaram com toda a força na tarde de segunda-feira. () mensageiro era um economista treinado para investigar a vida de Jacob Wood e determinar o seu valor exacto em dólares. Chamavam-lhe doutor Art Kallison, professor aposentado de uma escola particular, em Oregon, que ninguém conhecia. A matemática não era complicada e os tribunais não eram uma realidade desconhecida para o doutor Kallison. Sabia como testemunhar, como expor os números com si mplicidade. Escreveu tudo com muita clareza num quadro de ardósia.

Quando morreu, aos cinquenta e um anos, o salário-base de Jacob Wood era de quarenta mil dólares por ano, mais o fundo de pensão pago pelo seu empregador, além de outros benefícios. Supondo que poderia ter vivido e trabalhado até aos sessenta e cinco, Kallison calculou os seus ganhos futuros em setecentos e vinte mil dólares. De acordo com a lei, a inflação podia ser calculada nessa projecção, o que dava um total de um milhão, cento e oitenta mil dólares. Então, a lei exigia que esse total fosse reduzido para os valores actuais, um conceito que perturbou um pouco a clareza dos cálculos. Nesse ponto, Kallison fez uma breve dissertação para ojúri sobre o valor actual. O dinheiro podia valer um milhão e cento e oitenta mil dólares se fosse pago num espaço de quinze anos, mas para fins do processo em julgamento era necessário determinar o seu valor naquele momento. Assim, teriam de fazer um desconto. A nova quantia era então de oitocentos e trinta e cinco mil dólares.

Kallison fez um trabalho magnífico, garantindo ao júri que essa quantia dizia respeito apenas ao salário perdido. Como economista, era-lhe complicado avaliar o valor não económico da vida de uma pessoa. O seu trabalho nada tinha a ver com a dor e o sofrimento do senhor Wood. Nem tinha nada a ver com a perda sofrida pela família.

Um jovem advogado da defesa, chamado Felix Mason, falou pela primeira vez. Era um dos sócios de Cable, especialista em previsões económicas e, infelizmente para ele, o seu único papel no drama ia ser breve. Começou o interrogatório indirecto do doutor Kallison, perguntando quantas vezes por ano testemunhava em tribunais.

— Ultimamente é tudo o que faço. Sou professor aposentado — respondeu Kallison. Respondia à pergunta em todos os julgamentos.

— Pagam-lhe para testemunhar? — Uma pergunta tão cansada como a resposta.

— Sim. Sou pago para estar aqui, tal como o senhor.

— Quanto?

— Cinco mil dólares para consultoria e depoimento. — Nenhum advogado duvidou de que Kallison era o especialista mais barato do julgamento.

Mason tinha um problema com o índice de inflação usado por Kallison nos seus cálculos e, durante trinta minutos, os dois discutiram sobre a inflação. Se Mason marcou um ponto, ninguém notou. Ele queria que Kallison concordasse que o total dos ordenados não pagos ao senhor Wood era de seiscentos e oitenta mil dólares.

Na verdade, isso não era importante. Rohr e o seu bando de selectos advogados aceitariam os dois números. Os pequenos ordenados eram apenas o ponto de partida. Rohr acrescentar-lhes-ia a dor e o sofrimento, a falta do prazer de viver, a perda de camaradagem e alguns outros factores, como o custo do tratamento médico do senhor Wood e o preço do seu enterro. Aí Rohr iria direito à mina de ouro: mostraria aos jurados qual a dívida da Pynex e pediria uma grande parte dessa dívida como indemnização punitiva por danos causados.

Com uma hora pela frente, Rohr anunciou orgulhosamente:

— A acusação chama a sua última testemunha, a senhora dona Celeste Wood.

O júri não esperava que a acusação estivesse quase no fim do seu desempenho. Sentiu subitamente um certo alívio. O ar pesado e húmido do fim de tarde ficou mais leve. Vários jurados não conseguiram esconder um sorriso. Vários outros desfranziram as testas. As suas cadeiras balançaram quando voltaram à vida.

Aquela noite seria a sétima do isolamento. De acordo com a última teoria de Nicholas, a defesa não levaria mais de três dias para terminar.

Fizeram as contas e calcularam que passariam o fim-de-semana em casa!

Durante as três semanas em que permaneceu sentada na mesa comprida, Celeste Wood mal deixou escapar um murmúrio. Demonstrou uma capacidade espantosa para ignorar os advogados, ignorar os rostos dos jurados e olhar directamente para as testemunhas, com o rosto inexpressivo. Tinha usado todas as tonalidades de negro e cinza, sempre com meias e sapatos pretos.

Na primeira semana Jerry chamara-lhe viúva Wood.

Celeste estava agora com cinquenta e cinco anos, a mesma idade que o marido teria se não fosse o cancro do pulmão. Era muito magra, pequena, com cabelo grisalho curto. Trabalhava numa biblioteca regional e tinha criado três filhos. Retratos da família foram mostrados ao júri.

Celeste fizera o seu depoimento há um ano, orientada pelos profissionais contratados por Rohr. Estava controlada, nervosa, mas não agitada, e resolvida a não demonstrar emoção. Afinal, o marido tinha morrido há quatro anos.

Ela e Rohr seguiram literalmente o script. Celeste falou da sua vida com Jacob, como eram felizes, os primeiros anos, os filhos, depois os netos, os sonhos da reforma. Alguns solavancos na estrada, mas nada importante, nada até ele ficar doente. Ele queria tanto deixar de fumar, tentou várias vezes sem sucesso. A dependência era forte de mais.

Celeste despertou simpatia sem grande esforço. A sua voz não tremeu nem por um momento. Rohr tinha imaginado, e estava certo, que lágrimas falsas não seriam bem recebidas pelo júri. De qualquer modo, ela não chorava com facilidade.

Cable dispensou o interrogatório indirecto. Que poderia perguntar-lhe? Levantou-se e, com expressão triste e humilde, disse simplesmente:

— Meritíssimo, não temos perguntas para esta testemunha.

Fitch tinha um monte de perguntas para a testemunha, mas não podiam ser feitas em pleno tribunal. Depois de um período convencional de luto, na verdade mais de um ano depois do funeral, Celeste começou a sair com um homem divorciado, sete anos mais novo. Segundo fontes fidedignas, estavam a planear um casamento discreto assim que terminasse o processo. Fitch sabia que o próprio Rohr a tinha proibido de casar antes do julgamento.

O júri não ia ouvir isso no tribunal, mas Fitch estava a trabalhar num plano para passar essa informação pela porta dos fundos.

— A acusação encerra o seu caso — anunciou Rohr, depois de levar Celeste até à cadeira ao lado da mesa. Os advogados das duas partes formaram pequenos grupos, conferenciando muito sérios.

O juiz Harkin olhou para a papelada na sua mesa, depois para os exaustos jurados.

— Senhoras e senhores, tenho boas e más notícias. A boa notícia é óbvia. A acusação terminou e estamos na metade final do julgamento. A defesa deverá chamar um número de testemunhas menor que o da acusação. A má notícia é que neste ponto do processo devemos discutir uma grande quantidade de moções. Faremos isso amanhã, provavelmente durante todo o dia. Lamento, mas não temos escolha.

Nicholas levantou a mão. Harkin olhou para ele alguns segundos e por fim perguntou:

— O que deseja?

— Quer dizer que amanhã vamos ficar no motel o dia todo?

— Receio que sim.

— Não compreendo porquê.

Os grupos de advogados desfizeram-se, interrompendo as suas pequenas reuniões e todos olharam para Easter. Era raro um jurado falar em pleno tribunal.

— Porque temos muitas coisas para fazer sem a presença do júri.

— Sim, isso compreendo. Mas porque razão temos de ficar inactivos no motel?

— Que é que o senhor quer fazer?

— Sei lá, montes de coisas. Podemos alugar um barco, dar um passeio no Golfo, pescar se quisermos.

— Não posso pedir aos contribuintes do condado para pagar isso, senhor Easter.

— Pensei que éramos contribuintes.

— A resposta é não, sinto muito.

— Esqueça os contribuintes. Tenho a certeza de que estes advogados não se vão importar se o senhor os envolver nesta causa: peça a cada parte para contribuir com mil dólares. Podemos alugar um barco grande e passar um dia maravilhoso.

Cable e Rohr reagiram no mesmo instante, mas Rohr, levantando-se de repente, conseguiu falar primeiro.

— Teríamos muito prazer em pagar metade, Meritíssimo.

— Uma grande ideia, Meritíssimo! — acrescentou Cable rapidamente, erguendo a voz.

Harkin levantou as duas mãos.

—  Um momento — disse ele. Passou as mãos nas têmporas, procurando lembrar um precedente. É claro que não havia nenhum. Nenhuma regra ou lei que proibisse aquele passeio, nenhum conflito de interesses.

Loreen Duke tocou levemente no braço de Nicholas e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O Meritíssimo disse:

— Muito bem, não há dúvida de que nunca ouvi falar numa coisa assim. Parece encaixar-se na categoria discricionária. Doutor Rohr?

— É inofensivo, Meritíssimo. Cada parte paga metade. Não há problema.

— Doutor Cable?

— Não me lembro de nenhum estatuto ou regra que possa impedir. Concordo com o doutor Rohr. Se as duas partes dividirem a despesa, e Qual é o problema?

Nicholas levantou a mão outra vez.

— Com licença, Meritíssimo. Fui informado de que alguns jurados preferem fazer compras em Nova Orleães a passear de barco.

Mais uma vez Rohr ganhou por uma fracção de segundo.

— Teremos muito prazer em dividir o custo de um autocarro, Meretíssimo. E do almoço.

— Nós também — disse Cable. — O jantar também.

Glória Lane aproximou-se dos jurados com um papel. Nicholas, Jerry Fernandez, Lonnie Shaver, Rikki Coleman, Angel Weese e o coronel Herrera escolheram passear de barco. Os outros preferiram as compras.

Incluindo o vídeo de Jacob Wood, Rohr e a sua equipa levaram treze dias para apresentar ao júri dez testemunhas. Foi construído um caso sólido. Agora cabia aos jurados determinar, não se o tabaco era perigoso, mas se estava na hora de punir os seus fabricantes.

Se o júri não estivesse isolado, Rohr teria chamado pelo menos mais três especialistas. Um para falar sobre a psicologia da publicidade, um especialista em dependência do cigarro, o terceiro para descrever em pormenor a aplicação de insecticidas e pesticidas nas folhas de tabaco.

Mas o júri estava isolado e Rohr sabia que era chegado o momento de parar. Evidentemente aquele não era um júri habitual: um cego; um desajustado que fazia ioga à hora do almoço; duas greves até àquele momento; listas de exigências a toda hora; pratos de louça e talheres normais para o almoço; cerveja depois do trabalho, pagamento pelos contribuintes do condado; encontros amorosos e «visitas pessoais».

Realmente, para Fitch, não era um júri habitual. E já tinha sabotado mais júris do que qualquer outra pessoa na história da jurisprudência americana. Fitch tinha usado as armadilhas de sempre e conseguira informações sujas. Apenas a jovem Marlee conseguira mudar tudo. Por seu intermédio, poderia comprar um veredicto, um julgamento pago a favor da defesa que humilharia Rohr e os seus amigos e assustaria a legião de advogados famintos que pairavam como abutres à espera dos cadáveres.

Nesse julgamento, o maior contra os fabricantes de cigarros, com os melhores advogados de acusação recebendo milhões, a sua adorada pequena Marlee iria dar-lhe o veredicto. Fitch acreditava nisso e a ideia consumia-o. Pensava nela a toda a hora e via-a em sonhos.

Se não fosse Marlee, Fitch não poderia dormir. Era o tempo certo para um veredicto a favor da acusação — o tribunal certo, o juiz certo, o estado de espírito certo. Os especialistas eram os melhores que Fitch tinha encontrado nos seus nove anos de organização da defesa. Nove anos, oito julgamentos, oito decisões a favor da defesa. Por mais que detestasse Rohr, apenas o admitia para si mesmo, ele era o advogado certo para finalmente condenar a indústria do tabaco.

Uma vitória sobre Rohr em Biloxi seria uma forte barricada em qualquer processo contra o tabaco. Podia salvar a indústria.

Quando Fitch calculava os votos do júri, começava sempre por Rikki Coleman, por causa do aborto. Tinha o voto dela no bolso, mas Rikki não o sabia ainda. Então, acrescentava Lonnie Shaver. Depois o coronel Herrera. Millie Dupree ia ser fácil. Os seus consultores de júri estavam convencidos de que Sylvia Taylor-Tatum era praticamente incapaz de qualquer simpatia. Além disso, fumava. Mas os especialistas não sabiam que andava a dormir com Jerry Fernandez. Jerry e Easter eram amigos. Fitch previa que os votos dos três — Sylvia, Jerry e Nicholas — seriam iguais. Loreen Duke sentava-se ao lado de Nicholas e os dois conversavam muitas vezes em voz baixa durante o julgamento. Fitch achava que acompanharia Easter. E, se Loreen o acompanhasse, o mesmo faria Angel Weese, a única mulher que faltava, negra. Era impossível definir Weese.

Ninguém duvidava de que Easter ia liderar as deliberações. Agora que Fitch já sabia dos dois anos de Easter em Direito, era capaz de apostar que todo o júri o sabia.

Era impossível prever como Herman Grimes ia votar. Mas Fitch não estava a contar com ele. Nem com Phillip Savelle. Fitch confiava na senhora Gladys Card. Era idosa, conservadora e provavelmente não concordaria quando Rohr pedisse uma indemnização de vinte milhões ou mais.

Assim, Fitch tinha quatro no bolso, possivelmente cinco, contando com a senhora Gladys Card. Quanto a Herman Grimes, era um caso de cara ou coroa. Talvez tivesse de descontar Savelle, uma vez que alguém tão sintonizado com a natureza não devia certamente gostar dos fabricantes de cigarros. Sobrava então Easter e o seu grupo de cinco. Cada lado do veredicto precisava de nove votos. Menos do que isso criaria um impasse e Harkin seria obrigado a anular o julgamento. Julgamentos anulados são julgamentos futuros e Fitch não queria tal coisa naquele caso.

O grupo de analistas e estudiosos que observavam o julgamento concordava em pouca coisa, mas era unânime na previsão de que doze votos a favor da Pynex ia arrefecer, ou mesmo congelar por completo, os processos contra a indústria do tabaco por uma década.

Fitch estava resolvido a ter esse veredicto, custasse o que custasse.

O ambiente no escritório de Rohr mostrava-se muito menos carregado na noite de segunda-feira. Sem mais testemunhas para chamar, no momento estavam livres de pressão. Um bom scotch foi servido na sala de conferências. Rohr bebia a sua água mineral e comia queijo e biscoitos.

Agora abola estava do lado de Cable. Iriam passar alguns dias a preparar as testemunhas e a identificar documentos. Rohr só precisava

 de reagir e fazer o interrogatório indirecto. Já tinha visto e ouvido dezenas de vezes todos os depoimentos das testemunhas da defesa gravados em vídeo.

Jonathan Kotlack, o advogado encarregado da pesquisa do júri, também só bebia água e especulava com Rohr a respeito de Herman Grimes. Ambos achavam que podiam contar com ele e também com Mil lie Dupree e Savelle, o mais estranho dos jurados. Herrera preocupava-os. Os três negros — Lonnie, Angel e Loreen — estavam garantidos. Afinal, era um caso de uma pessoa insignificante contra uma empresa grande e poderosa. Sem dúvida os negros votariam contra a força, votavam sempre assim.

Easter seria a chave, porque era o líder, todos o sabiam. Rikki iria acompanhá-lo. Jerry era seu amigo, Sylvia Taylor Tatum era passiva e ia acompanhar a maioria. Bem como a senhora Gladys Card.

Só precisavam de nove votos e Rohr estava certo de que os tinha.

 

Em Lawrence, o detective Small verificou todas as pistas da sua lista e não encontrou nada. Na segunda-feira à noite foi até ao Mulligan's para beber, contrariando as ordens, e conversar ocasionalmente com as empregadas e os estudantes de Direito. A única coisa que conseguiu foi levantar suspeitas aos olhos de todos.

Na terça-feira de manhã, fez uma visita extra. O nome da mulher era Rebecca e alguns anos antes, quando ainda aluna da universidade de Karisas, tinha trabalhado no Mulligan's com Claire Clement. Segundo uma fonte descoberta pelo chefe de Small, eram amigas. Actualmente era gerente de um banco na cidade. Small apresentou-se um tanto hesitante e ela ficou desconfiada.

— Trabalhou com a Claire Clement há alguns anos, não trabalhou? —perguntou, olhando para um bloco de apontamentos, de pé em frente

da mesa, porque ela estava de pé no lado oposto. Small não tinha sido convidado para entrar e ela estava muito ocupada.

— Talvez. Quem é que quer saber?—perguntou Rebecca, de braços cruzados, com a cabeça inclinada para o lado, enquanto o telefone tocava atrás de si. Ao contrário de Small, estava bem vestida e atenta a tudo.

— Sabe onde é que ela está agora?

— Não. Por que pergunta?

Small repetiu o que tinha decorado. Era tudo o que tinha.

— Bem, ela é potencialmente jurada num grande julgamento e a minha empresa foi contratada para efectuar uma investigação pormeno-rizada sobre o seu passado.

— Onde é o julgamento?

— Não posso dizer. Trabalharam juntas no Mulligan's, não foi?

— Sim. Mas foi há muito tempo.

— De onde é que ela era?          

— Porquê? Isso é importante?

— Bem, para ser franco, está na minha lista de perguntas e nós só estamos a verificar as coisas. Sabe de onde era?

— Não.

Esta pergunta era importante porque a pista de Claire tinha começado e acabado em Lawrence.

— Tem a certeza?

Inclinou a cabeça para o outro lado e olhou para o idiota.

— Não sei de onde era. Quando a conheci trabalhava no Mulligan's e a última vez que a vi estava a trabalhar no Mulligan's.

— Falou com ela recentemente?

— Não. Nos últimos quatro anos, não.

— Conhecia Jeff Kerr?

— Não.

— Quem eram os amigos dela aqui em Lawrence?

— Não sei. Estou muito ocupada e o senhor está a perder o seu tempo. Não conhecia a Claire muito bem. Sem dúvida que era boa rapariga, mas não éramos grandes amigas. Agora, por favor, tenho muito que fazer. — Estava a apontar para a porta quando acabou de falar e Small, com relutância, saiu do escritório.

Com Small fora do banco, Rebecca fechou a porta do escritório e ligou para um apartamento em St. Louis. A voz gravada do outro lado da linha era a da sua amiga Claire. Conversavam pelo telefone pelo menos uma vez por mês, mas há um ano que não se viam. Claire e Jeff levavam uma vida estranha, nunca paravam no mesmo sítio, nunca estavam dispostos a revelar onde estavam. Só o apartamento em St. Louis se mantinha.

Claire tinha-a avisado de que apareceriam pessoas com perguntas estranhas. Mais de uma vez insinuara que ela e Jeff trabalhavam para o governo numa função misteriosa.

Rebecca deixou uma mensagem no gravador de chamadas sobre a visita de Small.

Marlee verificava as gravações no seu telefone todas as manhãs e a mensagem de Lawrence deixou-a gelada. Passou uma toalha molhada no rosto e tentou acalmar-se.

Telefonou a Rebecca e conseguiu parecer perfeitamente normal, embora estivesse com a boca seca e o coração tivesse disparado. Sim,

o homem chamado Small tinha mencionado Jeff Kerr. Com a ajuda de Marlee, Rebecca conseguiu repetir a conversa toda.                       ;,

Rebecca sabia que não devia fazer muitas perguntas.

— Vocês estão bem? — Era o máximo que perguntava.

— Estamos óptimos — garantiu Marlee. — Estamos a viver na praia por uns tempos.

Seria interessante saber em que praia, mas Rebecca não perguntou. Despediram-se com as habituais promessas de manter contacto. Nem ela nem Nicholas tinham alguma vez imaginado chegarem a

Lawrence. Mas agora que tinham chegado, as perguntas choviam em torno de si. Quem é que os teria encontrado? Qual seria aparte interessada: Fitch ou Rohr? O mais provável era que fosse Fitch, simplesmente porque tinha mais dinheiro e era mais astuto. Qual teria sido o erro deles? Como é que uma pista poderia ter saído de Biloxi? Que saberiam? E até onde pretendiam ir? Precisava de falar com Nicholas, mas no momento estava num barco, algures no Golfo, à pesca da cavala e a conviver com os companheiros do júri.

É claro que Fitch não estava a pescar. Na verdade, há três meses que não tirava um dia para descansar ou para qualquer prazer. Quando o telefone tocou estava sentado à secretária a arrumar cuidadosamente uma pilha de papéis.

— Estou, Marlee? — disse para a mulher dos seus sonhos.

— Olá, Fitch. Perdeu mais um.

— Mais um quê? — Mordeu a língua para não a tratar por Claire.

— Um jurado. Loreen Duke ficou encantada com o senhor Robilio e agora está a liderar um movimento para indemnizar a queixosa.

— Mas ela ainda não ouviu o nosso caso.

— Certo. Há quatro fumadores: Weese, Fernandez, Taylor-Tatum e Easter. Adivinhe quantos começaram a fumar depois dos dezoito anos?

— Não sei.

— Nenhum. Todos começaram a fumar em pequenos. Herman e Herrera também já fumaram. Adivinhe com que idade começaram?

— Não sei.

— Catorze e dezassete. Estamos a falar de metade do júri, Fitch, e todos começaram a fumar em pequenos.

— O que é que posso fazer sobre isso?

— Continuar a mentir, acho eu. Quais são as hipóteses de nos encontrarmos para uma pequena conversa, particular, sem os espiões escondidos atrás das moitas?

— As hipóteses são excelentes.

— Outra mentira. Vamos fazer uma coisa: encontramo-nos e conversamos... e se a minha gente descobrir os espiões por perto, será a nossa última conversa.

— A sua gente!?

— Qualquer pessoa pode alugar capangas, Fitch. Devia saber isso.

— Está certo.

— Conhece o Casella's, o pequeno restaurante de marisco com mesas ao ar livre, ao fundo do cais de Biloxi?

— Não conheço, mas posso procurar.

— É onde estou agora. Por isso, quando chegar ao cais já estarei a vigiá-lo. E se achar que há alguma coisa suspeita, nada feito.

— A que horas?

— Agora mesmo. Estou à sua espera.

José abrandou a marcha por um segundo no estacionamento perto da marina e Fitch praticamente atirou-se para fora do Suburban. O carro afastou-se e Fitch, completamente sozinho, sem nenhum microfone, caminhou pelo cais, as vigas pesadas de madeira balançando suavemente com o movimento da água. Marlee estava sentada diante de uma mesa de madeira com um guarda-sol, de costas para o Golfo, voltada para a entrada do cais. A hora do almoço já tinha acabado há uma hora e o lugar estava vazio.

—Olá, Marlee — disse Fitch, aproximando-se. Parou e sentou-se de frente para ela.

Marlee estava de calças e camisa de ganga, boné de pescador e óculos escuros.

— Muito prazer, Fitch — disse ela.

— É sempre assim rabugenta?—perguntou, acomodando o corpo pesado na cadeira estreita, tentando do melhor modo possível sorrir e parecer amistoso.

— Trouxe algum microfone escondido, Fitch?

— Não. É claro que não.

Com gestos lentos, ela tirou da mala grande um aparelho pequeno e negro, parecido com um gravador. Carregou num botão e pô-lo sobre a mesa, virado para a ampla barriga de Fitch.

— Com licença, Fitch, estou só a confirmar se teve ou não tempo de se prevenir com algum tipo de escuta.

— Eu disse que não tenho nada — respondeu Fitch extremamente aliviado. Konrad tinha sugerido um pequeno microfone ligado a uma carrinha estacionada por perto, mas Fitch, com pressa, não quis esperar.

Ela olhou para o pequeno monitor digital na extremidade do sensor, depois guardou outra vez o aparelho na carteira. Fitch sorriu, mas só por um segundo.

— Recebi um telefonema de Lawrence esta manhã — disse ela, e Fitch engoliu em seco. — Evidentemente você tem alguns cretinos por lá a bater às portas e a dar pontapés nos caixotes do lixo.

— Não sei do que está a falar — afirmou, inseguro e sem convicção. Não havia dúvida, era Fitch! Os olhos traíram-no. Fitch olhou para

os lados, para baixo, para longe, antes de voltar para ela, tudo num segundo, mas foi o bastante para provar que era culpado. Por um instante a sua respiração ficou mais curta e os ombros estremeceram levemente. Fora apanhado!

— Certo. Outro telefonema dos seus amigos e nunca mais vai ouvir a minha voz.

Mas ele continuou a tentativa de disfarce.

— Afinal, o que é que há em Lawrence? — perguntou, como se a sua integridade estivesse a ser questionada.

— Desista, Fitch. E chame os sabujos dos seus empregados.

Ele soltou ruidosamente o ar dos pulmões, erguendo os ombros, completamente atónito.

— Óptimo. Esqueça. Só queria saber do que é que está a falar.

— Você sabe. Mais um telefonema e está tudo acabado, combinado?

— Certo. Tudo o que quiser.

Fitch não podia olhar para os olhos dela, mas sentia-os atrás das lentes espessas dos óculos escuros. Marlee ficou calada por um minuto. Um empregado estava ocupado na mesa ao lado, mas nem tentou servi-los. Por fim, Fitch inclinou-se para frente e disse:

— Quando é que vamos parar com este jogo?

— Agora.

— Óptimo. O que é que quer?                      

— Foi o que pensei. Quanto?

— Digo o preço mais tarde. Suponho que está disposto a negociar.

— Estou sempre disposto a negociar. Mas preciso de saber o que vou receber em troca.

— É muito simples, Fitch, depende daquilo que quer. E este júri pode fazer quatro coisas. Pode dar um veredicto a favor da acusação. Pode separar-se, criar um impasse e ir para casa, e você estará de volta a Biloxi mais ou menos daqui a um ano, a fazer o mesmo de sempre. Rohr não se vai embora. O júri pode regressar para dar uma vitória de nove a três a seu favor, uma grande vitória. E também pode voltar com doze a zero e os seus clientes vão descansar por uns anos.

— Eu sei.

— É claro que sabe. Se dispensarmos o veredicto a favor da acusação, teremos três escolhas.

— Qual delas me pode dar?

— A que eu quiser. Incluindo um veredicto a favor da acusação.

— Então o outro lado está disposto a pagar.

— Estamos só a conversar. Vamos ficar por aqui.

— Isto é um leilão? O seu veredicto vai para o lance mais alto?

— Pode ser o que eu quiser que seja.

— Sentia-me melhor se ficasse longe de Rohr.

— O que sente não me interessa.

Apareceu outro empregado, viu-os e perguntou, relutantemente, se queriam beber alguma coisa. Fitch pediu chá gelado. Marlee uma lata de Diet Coke gelada.

—Diga-me como funciona. — Fitch soltou a sua curiosidade assim que o empregado se afastou.

—É muito simples. Combinamos o veredicto que quer. É só consultar a lista e fazer o pedido. Nessa altura acordamos um preço. Tem de ter o dinheiro pronto. Esperamos até ao fim, até os advogados terminarem os seus argumentos e o júri se retirar para deliberar. Nesse momento, dou-lhe instruções escritas e o dinheiro é enviado imediatamente para um banco, digamos, na Suíça. Assim que tiver a confirmação do depósito, ojúri volta com o seu veredicto.

Fitch passou horas a imaginar um discurso igualzinho àquele, mas ouvir as palavras dos lábios de Marlee, com tanta precisão, fez o seu coração disparar e a cabeça girar. Este podia ser o caso mais fácil de todos!

— Não vai funcionar — disse, com um ar superior, como se estivesse habituado a este tipo de negociação de veredictos.

— Não? O Rohr acha que funciona.

Que chatice, ela era esperta. Sabia exactamente onde enfiar a faca.

— Mas não há nenhuma garantia — protestou ele.

Marlee ajustou os óculos escuros e, apoiando os cotovelos na mesa, mclinou-se para a frente.

— Então duvida de mim, Fitch?

— Não é isso. Está a pedir-me para enviar uma ordem de pagamento sem garantias; tenho a certeza de que será uma grande quantia, apenas com uma prece e a esperança de que o seu amigo possa controlar as deliberações. Os júris são muito imprevisíveis.

— Fitch, o meu amigo está a controlar as deliberações neste preciso momento, enquanto conversamos. Ele terá os seus votos muito antes de os advogados pararem de falar.

Fitch ia pagar. Há uma semana, tinha resolvido pagar o que ela pedisse e sabia que quando o dinheiro saísse do Fundo não teria mais nenhuma garantia. Mas não se importava. Confiava na sua Marlee. Ela e o seu amigo Easter, ou fosse qual fosse o nome dele, tinham acompanhado pacientemente a Big Tobacco para chegar àquele ponto e entregariam alegremente o veredicto pelo preço combinado. Há muito tempo que viviam para esse momento.

Fitch tinha tantas perguntas! Gostaria de começar por perguntar de quem fora a ideia, quem engendrara o engenhoso e astuto plano de estudar os processos do julgamento civil, acompanhar os julgamentos pelo país inteiro e infiltrar-se no júri para poder negociar um veredicto. Era, sem dúvida, brilhante. Fitch poderia interrogá-la durante horas, talvez dias, sobre os detalhes específicos, mas sabia que não obteria qualquer resposta.

Sabia também que a mercadoria seria entregue. Marlee tinha trabalhado muito e chegara muito longe para falhar agora.

— Não sou inexperiente nestas coisas! — Fitch tentava ainda defender a sua posição.

— É claro que não, Fitch. Tenho a certeza de que preparou armadilhas suficientes para prender no mínimo quatro jurados. Quer que lhe diga os nomes?

As bebidas chegaram e Fitch bebeu um longo gole de chá. Não, não queria que ela dissesse os nomes. Não ia brincar às adivinhas com alguém que conhecia os factos reais. Falar com Marlee era como falar com o líder do júri, e, embora Fitch adorasse o desafio, esse facto tornava a conversa estritamente unilateral. Como poderia saber se ela estava a fazer blufou a dizer a verdade? Não tinha uma resposta.

— Sinto que ainda tem dúvidas sobre o meu poder neste assunto — disse ela.

— Duvido de tudo.

— E se despachar um elemento do júri?

— Já despachou a Stella Hulic — disse Fitch, conseguindo o primeiro e breve sorriso de Marlee.

— Posso repetir a proeza. Que tal, por exemplo, se mandar Lonnie Shaver para casa? Ficaria impressionado?

Fitch quase se engasgou com o chá. Enxugou a boca com as costas da mão e disse:

— Tenho a certeza de que Lonnie ficaria feliz. É provavelmente o mais chateado dos doze.

— Devo mandá-lo embora?

— Não. É inofensivo. Além disso, uma vez que vamos trabalhar juntos, acho que devemos manter Lonnie.

— Ele e Nicholas conversam muito, sabia?

— Nicholas fala com todos?

— Sim, a vários níveis. Dê-lhe tempo.

— Parece muito confiante.

— Não confio na habilidade dos seus advogados mas confio em Nicholas e é isso que importa.

Ficaram calados enquanto dois empregados arranjavam a mesa do lado. Quando os empregados terminaram e se foram, Fitch disse:

— Não vou fazer negócio nenhum sem conhecer os termos. Sem a menor hesitação, ela garantiu:

— E eu não vou fazer negócio enquanto estiver a investigar o nosso passado.

— Tem alguma coisa a esconder?

— Não. Mas tenho amigos e não gosto que me façam certos telefonemas. Pare agora e este encontro levará ao seguinte. Mais um telefonema e nunca mais falo consigo.

— Não diga isso.

— Estou a falar a sério, Fitch. Chame os sabujos dos seus empregados.

— Não são meus empregados, juro.

— Chame-os na mesma ou terei de passar mais tempo com Rohr. Ele pode querer um acordo e um veredicto para Rohr significa que você fica desempregado e que os seus clientes perdem milhões. Não se pode dar a esse luxo, Fitch.

Estava certa. Fosse qual fosse a quantia que ia pedir, não seria nada comparada com o custo de um veredicto a favor da acusação.

— Temos de agir depressa — disse ele. — Este julgamento não vai durar muito mais tempo.

— Quanto tempo? — perguntou ela.

— Três ou quatro dias para a defesa.

— Fitch, estou com fome. Por que é que não se vai embora para preparar as coisas? Telefono-lhe daqui a dois                         dias.

— Que coincidência, também estou com fome.

— Não, obrigada. Vou comer sozinha. Além disso, quero-o longe daqui.

Fitch levantou-se e disse:

— Claro, Marlee. Você manda. Bom-dia.

Ela viu-o avançar pelo cais em direcção ao estacionamento ao lado da praia. Ele parou e fez uma chamada do telemóvel.

Após várias tentativas para falar com Hoppy ao telefone, Jimmy I lull Moke chegou de surpresa ao escritório da Dupree Imóveis, na Terça-feira à tarde, e a recepcionista, com cara de sono, disse que o senhor Dupree estava nas traseiras. Saiu para o procurar e voltou quinze minutos depois, dizendo que o senhor Dupree não estava no seu gabinete. Tinha saído para uma reunião importante.

— Estou a ver o carro dele lá fora - disse Jimmy Hull, apontando para a velha camioneta de Hoppy, no estacionamento diante da porta.

— Saiu no carro de outra pessoa — mentiu a recepcionista.

— Para onde foi? — perguntou Jimmy Hull, como se estivesse disposto a ir atrás de Dupree.

— Para um sítio qualquer perto de Pass Christian. É tudo o que sei.

— Porque é que ele não responde aos meus telefonemas?

— Não faço ideia. O senhor Dupree é um homem muito ocupado. Jimmy Hull enfiou as duas mãos nos bolsos das calças de ganga e

olhou furioso para a mulher.

— Diga-lhe que cá estive e que estou muito irritado. O melhor é ele telefonar-me. Entendeu?

— Sim, senhor.

Saiu, entrou na sua carrinha Ford e foi-se embora. Quando teve a certeza de que ele estava longe, correu para tirar Hoppy de dentro do armário das vassouras.

A lancha de sessenta pés, com o capitão Theo no comando, navegou cinquenta milhas para o interior do Golfo onde, sob o céu sem nuvens e acariciado por brisas suaves, metade do júri pescou cavala e peixe vermelho. Angel Weese nunca tinha estado num barco, não sabia nadar e começou a enjoar quando estavam a cem metros da praia, mas com a ajuda de um marinheiro experiente e um vidro de Dramamina ficou boa e na verdade foi quem apanhou o peixe maior do dia. Rikki estava uma graça de shorts, Reeboks e pernas bronzeadas. O coronel e o capitão eram inevitavelmente espíritos irmãos e não demorou para que Nap estivesse na ponte de comando a falar sobre estratégia naval e a contar histórias.

Dois marinheiros prepararam um bom almoço de camarão grelhado, sanduíches de ostras fritas, patas de caranguejo e sopa de peixe com legumes. A primeira rodada de cerveja foi servida com o almoço. Só Rikki preferiu água.

A cerveja continuou durante toda a tarde, enquanto a pescaria alternava entre frenesi e monotonia, quando o sol ficou mais quente no convés. O barco era suficientemente grande para assegurar privacidade. Nicholas e Jerry encarregaram-se de fazer com que Lonnie Shaver tivesse sempre uma cerveja gelada na mão. Estavam resolvidos a conversar com ele pela primeira vez.              

Um tio de Lonnie tinha trabalhado num barco de pesca de camarão durante muitos anos, até o barco naufragar numa tempestade e a tripulação ser dada como desaparecida. Quando era garoto, Lonnie pescava naquelas águas com o tio e, francamente, ficou farto de pesca. Na verdade, desprezava essa actividade e há anos que não entrava num harco. Mesmo assim, o passeio era um pouco mais tolerável do que a viagem de autocarro até Nova Orleães.

Foram necessárias quatro cervejas para aparar as arestas e soltar a língua. Estavam numa pequena cabina no convés superior, aberta de todos os lados. No convés principal, abaixo deles, Rikki e Angel observavam os marinheiros que limpavam os peixes apanhados.

— Imagino quantos especialistas a defesa vai chamar — disse Nicholas, mudando o assunto de pesca e quase perdendo a paciência.

Jerry estava deitado num sofá de plástico, descalço, com os olhos fechados e a cerveja gelada na mão.

— No que me diz respeito, não precisam de chamar ninguém. — disse Lonnie, olhando para o mar.

— Para si já chega, não é? — perguntou Nicholas.

— Parece-me tudo ridículo. O homem fuma durante trinta e cinco anos, depois quer que o Estado pague milhões por se ter matado.

— Percebeu o que eu disse? — perguntou Jerry, sem abrir os olhos.

— O quê? — indagou Lormie.

— Jerry e eu achamos que você é um jurado favorável à defesa — explicou Nicholas. — Mas foi difícil perceber isto porque quase não fala.

— E vocês são o quê? — perguntou Lonnie.

— Eu ainda estou com a mente aberta. O Jerry é que está inclinado a pronunciar-se a favor da defesa, não é Jerry?

— Eu não discuti o caso com ninguém. Não tive nenhum contacto não autorizado. Não aceitei subornos. Sou apenas um jurado do qual o juiz Harkin se pode orgulhar.

— Ele está inclinado para a defesa — assegurou Nicholas a Lonnie e continuou: — É viciado em nicotina, não consegue largar o vício, está convencido de que o larga quando quiser mas não pode porque é um fraco. No entanto, quer ser um homem a sério, como o coronel Herrera.

— Quem não quer? — disse Lonnie. — Jerry acha-se capaz de deixar o vício se quiser e pensa que qualquer pessoa o poderá fazer, mas a realidade é que não é capaz. — E portanto Jacob Wood devia ter parado muito antes de ter cancro.

— É mais ou menos isso — concordou Jerry —, mas não gosto da parte em que faço de fraco.

— Para mim faz sentido — disse Lonnie. — Como é que consegue ser tão imparcial?

— Bom, não sei. Talvez porque ainda não ouvi todas as testemunhas. Sim, é isso. A lei diz que não devemos chegar a um veredicto antes de ver e ouvir todas as provas. Peço desculpa.

— Está desculpado — aprovou Jerry. — Agora é a sua vez de ir buscar outra rodada.

Nicholas esvaziou a lata de cerveja e desceu a estreita escada para o frigorífico, no convés principal.

— Não se preocupe com ele — disse Jerry. — Vai estar do nosso lado na hora certa.

 

O barco voltou um pouco depois das cinco horas. O animado grupo de pescadores desceu do convés para o cais, posou com o capitão Theo e os seus trofeus, o maior deles um tubarão de quarenta e cinco quilos pescado por Rikki e desembarcado por um marinheiro. Saíram do cais escoltados por dois polícias, deixando para trás os peixes porque, no motel, não lhes serviam para nada.

O autocarro onde tinham ido os que foram fazer compras ainda ia demorar uma hora. A sua chegada, como a do barco, foi atentamente observada e filmada. Depois, a gravação foi entregue a Fitch — embora ninguém soubesse exactamente para quê. Fitch só queria ver as imagens e manter os homens ocupados. Tinha sido um dia lento, com pouco para fazer, excepto esperar o regresso do júri.

Fitch estava fechado no seu escritório com Swanson que passou a maior parte da tarde ao telefone. Os «cretinos», como Marlee lhes chamava, foram dispensados das suas tarefas. Na sua ausência, Fitch tinha contratado os profissionais da mesma firma de Bethesda encarregada da operação Hoppy. Swanson tinha trabalhado nessa firma e muitos dos seus profissionais eram ex-agentes da CIA ou do FBI.

Os resultados eram garantidos, embora o trabalho não fosse suficiente para os entusiasmar — descobrir o passado de uma jovem era pouca coisa. Dentro de uma hora, Swanson ia voar para Karisas City, para coordenar aquela missão.

Tinham a garantia de não serem apanhados. Fitch estava num dilema — precisava de apanhar Marlee e, ao mesmo tempo, de saber quem era. Havia dois factores que o faziam continuar a tentar. Primeiro, era extremamente importante para ela que Fitch interrompesse as investigações, e isso queria dizer que escondia alguma coisa crucial para aquele caso. Segundo, ela tinha-se esforçado tanto para não deixar nenhuma pista que isso o espicaçava.

Marlee havia deixado Lawrence, há quatro anos, depois de lá ter vivido durante três. Quando chegou a Lawrence não se chamava Claire Clement e, sem dúvida, quando saiu da cidade também tinha outro nome. Durante a sua estada em Lawrence conheceu e recrutou Jeff Kerr, que agora se chamava Nicholas Easter — e só o Deus e ele próprio podiam saber o que fazia no meio do júri.

Angel Weese estava apaixonada e queria casar com Derrick Ma-ples, um rapaz alto e forte de vinte e quatro anos que vivia no intervalo de empregos e de esposas. Perdera a posição de vendedor de telefones para automóveis quando a empresa em que trabalhava foi vendida. Neste momento estava no meio do processo de dispensa da primeira mulher. No final, dar-se-ia por terminado um romance de adolescência que não dera certo. Tinham dois filhos pequenos. A sua mulher e o advogado queriam que ele desse seiscentos dólares por mês como pensão de alimentos para os filhos. Derrick e o seu advogado con-tra-argumentavam com o facto de ele estar desempregado, como se isso fosse uma bandeira em chamas. As negociações tornaram-se amargas e, por isso, ainda faltavam alguns meses para encerrar o divórcio.

Angel estava grávida de dois meses, mas só o tinha confessado a Derrick.

O irmão de Derrick, Marvis, ex-xerife, era agora pastor e activo comunista. Marvis foi procurado por um homem chamado Cleve que lhe disse querer falar com Derrick. As apresentações foram feitas.

Na ausência de uma melhor descrição para o seu trabalho, Cleve era conhecido como «o mensageiro». Descobria trabalhos para Wendal e Rohr. A sua tarefa consistia em encontrar bons e sólidos casos de morte, de danos graves e permanentes e encaminhá-los para o escritório de Rohr. Um bom             trabalho de «olheiro» era uma arte, e é óbvio que Cleve era muito bom, porque Rohr só aceitava o melhor. Como todos os mensageiros, Cleve movimentava-se em círculos escusos. Procurar clientes ainda era uma profissão contra a ética, embora qualquer acidente de carro atraísse mais mensageiros do que profissionais de emergência médica. Na verdade, o cartão comercial de Cleve apresentava-o como «Investigador».

A mando de Rohr, Cleve também entregava papéis, distribuía intimações, verificava testemunhas, potenciais jurados e espiava os inúmeros advogados. Ou seja, desempenhava as funções normais de um mensageiro. Recebia um salário pelas suas investigações e Rohr pagava-lhe um extra em dinheiro quando lhe trazia um caso especial.

Enquanto bebia uma cerveja num bar falou com Derrick e logo se apercebeu que o homem tinha problemas financeiros. Por isso, conduziu a conversa para Angel e perguntou-lhe se alguém tinha chegado antes dele. Não, disse Derrick, ninguém o tinha procurado para falar sobre o julgamento. Mas a verdade era que Derrick estava a viver com um irmão, tentando não chamar a atenção do ganancioso advogado da ex-mulher.

Óptimo, disse Cleve, porque fora contratado como consultor por alguns advogados e o julgamento era muito importante. Cleve pediu uma segunda rodada e falou da importância do julgamento.

Derrick era inteligente: tinha o liceu quase completo e queria ganhar dinheiro. Por isso compreendeu rapidamente o que Cleve pretendia.

— O melhor é ir directo ao assunto — disse. E isso era exactamente o que Cleve pretendia.

— O meu cliente está disposto a comprar alguma influência no caso. Com dinheiro vivo e sem deixar nenhuma pista.

— Influência — repetiu Derrick, e bebeu um longo gole de cerveja. O sorriso dele encorajou Cleve a adiantar mais pormenores sobre o acordo.

— Cinco mil em dinheiro — disse, olhando à volta. — Metade agora, o resto quando acabar o julgamento.

O sorriso alargou-se com outro gole de cerveja.

— E o que é que faço?

— Durante a sua «visita pessoal» fala com Angel e certifica-se de que ela entende bem a importância deste caso para a acusação. Não fale nem do dinheiro, nem de mim. Pelo menos, agora. Talvez mais tarde. Quem sabe?

— Por que não?

— Porque isto é ilegal. Estamos de acordo sobre isso, não? Se o juiz descobrir que estive a conversar consigo, que lhe ofereci dinheiro para falar com Angel, vamos os dois direitinhos para a cadeia. Percebeu?

— Percebi.

— É importante que tenha consciência do quanto tudo isto é perigoso. Se não quiser ir em frente, é agora o momento de o dizer.

- Dez mil.

Oquê?                                                                  ,., ,   ,

— Dez. Cinco agora, cinco no fim do julgamento.

Cleve resmungou, fingindo-se aborrecido. Se Derrick soubesse quanto dinheiro estava em jogo!

— Tudo bem. Dez.

— Quando é que recebo?

— Amanhã.

Pediram sanduíches e conversaram mais uma hora sobre o julgamento, o veredicto e o melhor modo de convencer Angel.

A tarefa de manter D. Martin Jankle afastado da sua querida vodka coube a Durwood Cable. Fitch e Jankle tinham discutido acaloradamente sobre o facto de Jankle poder ou não poder beber na terça-feira à noite, a noite anterior ao seu depoimento. Fitch, o ex-alcoólico, acusou Jankle de ter um problema. E Jankle ofendeu-o com pesados palavrões por lhe ter tentado dizer a ele, o director administrativo da Pynex, uma empresa citada pela Fortune 500, se, quando e quanto podia beber.

Cable foi posto em causa por Fitch e insistiu com Jankle para que fosse ao seu escritório preparar o depoimento. Fez um exame directo simulado, depois o indirecto, e Jankle saiu-se muito bem. Depois, Cable obrigou-o a assistir ao vídeo do seu próprio depoimento, acompanhados por um grupo de especialistas em júris.

Quando foi levado para o seu quarto de hotel, já depois das dez horas, Cable descobriu que Fitch tinha substituído todas as bebidas alcoólicas do minibar por refrigerantes e sumos de frutas.

Praguejando, Jankle dirigiu-se à sua mala, onde escondia uma garrafa numa capa de couro. Mas não havia garrafa nenhuma. Fitch também a tinha feito desaparecer.

À uma hora da manhã, Nicholas abriu silenciosamente a porta e olhou para os dois lados do corredor. Não viu o polícia no seu posto: devia estar no quarto a dormir.

Marlee esperava-o num quarto no segundo andar. Abraçaram-se e beijaram-se, mas não passaram disso. Marlee deixara claro ao telefone que havia um problema e contou a história toda, começando pela sua conversa de manhã com Rebecca, em Lawrence. Nicholas ouviu calmamente.

Além da atracção natural em dois jovens, o relacionamento entre ambos carecia de demonstrações de afecto. E, quando as coisas se tornavam mais emocionais, quase sempre partiam de Nicholas, que às vezes também perdia a calma. Marlee nunca se permitia demonstrar qualquer tipo de emoção. Pelo lado de Nicholas, o máximo que conseguia fazer era levantar a voz quando ficava zangado. Mas era raro. Marlee não era fria, apenas calculista. Nicholas nunca a viu chorar. A única excepção foi no fim de um filme que ele detestou. Nunca tiveram uma verdadeira zanga e as pequenas desavenças eram logo resolvidas, porque Marlee o tinha ensinado a controlar-se. Ela não tolerava desperdício de sentimentos, não ficava amuada nem guardava ressentimentos por coisas mesquinhas. E, caso ele tentasse enveredar por esse caminho, não o encorajava.

Marlee descreveu a conversa com Rebecca e tentou lembrar-se de todas as palavras ditas no seu encontro com Fitch.

O facto de terem sido parcialmente descobertos foi um rude golpe para eles. Tinham a certeza de que era obra de Fitch e tentaram imaginar o que é que ele sabia. Sempre admitiram que Jeff Kerr teria de ser descoberto para se encontrar Claire Clement. O passado de Jeff não tinha nenhum segredo. Mas Claire devia ser protegida. Por isso, agora, o melhor era fugir.

Havia pouco que pudessem fazer para além de esperar.

Derrick entrou no quarto de Angel pela janela. Desde domingo que não se viam, um intervalo de quase quarenta e oito horas e, simplesmente, não conseguia esperar até à noite seguinte. Amava-a loucamente, sentia a falta dela e queria abraçá-la. Angel notou que tinha bebido. Caíram juntos na cama e, em silêncio, consumaram uma «visita pessoal» não autorizada.

Derrick virou-se para o lado e adormeceu.

Acordaram de madrugada e Angel entrou em pânico porque tinha um homem no quarto e isso era contra as ordens do juiz. Derrick não se preocupou. Disse que esperaria que todos saíssem para o tribunal, indo embora depois disso. Mas isso não a acalmou. Angel tomou um longo duche.

Derrick estudou o plano de Cleve e enriqueceu-o ainda mais. Quando saiu do bar, comprou seis latas de cerveja e passeou de carro pelo Golfo durante horas. Devagar, indo e voltando pela estrada 90, passando por hotéis e casinos, ancoradouros de barcos, desde Pass Christian até Pascagoula. Continou a beber cerveja e a expandir o plano. Cleve, depois de algumas bebidas, deixou escapar que os advogados da queixosa pretendiam conseguir milhões. Para obter um veredicto favorável só precisavam de nove dos doze jurados, portanto, pensou Derrick, o voto de Angel valia muito mais do que dez mil dólares.

No bar, dez mil tinha-lhe parecido uma óptima soma, mas se estavam dispostos a pagar, e Cleve tinha concordado com esse número sem hesitações, então, sob pressão, pagariam muito mais.

Enquanto Derrick pensava, conduzindo o seu carro, o valor do voto de Angel crescia na sua cabeça. Já tinha chegado a cinquenta e, de hora a hora, subia ainda mais.

Derrick pensou em percentagens. Por exemplo, qual seria a percentagem se o veredicto valesse dez milhões? Um por cento, e um miserável por cento seriam cem mil dólares. Um veredicto de vinte milhões? Duzentos mil dólares. E se Derrick fizesse a Cleve uma contraproposta: agora recebia um tanto em dinheiro a título de adiantamento. Depois do veredicto, uma percentagem sobre o total conseguido. Podia argumentar a seu favor dizendo que isso o motivaria a si e à sua namorada. E se estivessem motivados fariam melhor pressão sobre os restantes membros do júri. Seriam verdadeiros actores daquela peça. E essa era uma oportunidade única nas suas vidas.

Angel voltou vestindo o roupão e acendeu um cigarro.

 

A defesa do bom nome da Pynex começou pessimamente na manhã de quarta-feira, mas não por culpa dos advogados. Um analista chamado Walter Barker, num artigo na Mogul — uma popular revista de economia — apostava dois contra um em como o júri em Biloxi ia votar contra a Pynex e decidir a favor de uma grande indemnização. Barker era um «peso pesado» do jornalismo económico. Formado em Direito, era o mais famoso analista de Wall Street, capaz de perceber com antecipação os processos judiciais com capacidade para afectar a economia. A sua especialidade era o acompanhamento de julgamentos, ape-los e acordos, e prever os seus resultados antes do final. Geralmente acertava, e fizera fortuna com este tipo de investigação. Walter Barker tinha muitos leitores e o facto de ter apostado contra a Pynex foi um choque em Wall Street. A acção da Pynex abriu a setenta e seis, caiu para setenta e três e, a meio da manhã, estava em setenta e um.

Na quarta-feira o número de espectadores tinha aumentado consi-deravelmente. Os jovens de Wall Street voltaram em massa: liam a Mogul e, de repente, todos concordavam com Barker, pese embora uma hora antes, durante o pequeno-almoço, terem chegado a um consenso contrário, ou seja, todos tinham achado que a Pynex tinha enfrentado muito bem as testemunhas de acusação, pelo que seria normal que chegasse ao fim do julgamento numa posição fortalecida. As coisas mudam: por isso, todos liam com atenção o artigo e corrigiam os relatórios que deviam enviar para as suas respectivas sedes.

Barker estivera no tribunal na semana anterior: tinha-se sentado sozinho na última fila. O que poderia ele ter visto que nenhum dos outros tivesse notado?

Às nove em ponto, os jurados entraram em fila: Lou Dell segurava a porta aberta como se estivesse a reunir a sua ninhada depois da dispersão da véspera, devolvendo-a agora ao seu lugar. Harkin recebeu-os como se se tivessem ausentado durante um mês. Disse algumas piadas sem graça sobre pesca e entrou rapidamente na rotina das perguntas do tipo «Foram incomodados?» Prometeu aos jurados um rápido fim para o julgamento.

Jankle foi chamado a depor e a defesa começou. Livre dos efeitos do álcool, Jankle estava em óptima forma e muito bem preparado. Sorria com facilidade e parecia feliz por ter a oportunidade de defender a sua tabaqueira. Cable conduziu-o facilmente através das perguntas preliminares, sem que a testemunha encontrasse qualquer tipo de obstáculo.

Sentado na segunda fila estava D. Y. Taunton, o advogado negro de Wall Street que tinha conversado com Lonnie em Charlotte. Ouvia o depoimento de Jankle, olhando ocasionalmente para Lonnie até que conseguiu estabelecer contacto visual com ele. Lonnie olhou-o distrai-damente uma primeira vez, insistiu e, à terceira, inclinou a cabeça levemente e sorriu. Sorrir parecia-lhe a coisa mais adequada. A mensagem foi clara — Taunton era uma pessoa importante vinda de longe e estava em Biloxi porque aquele era um dia importante. A defesa estava no uso da palavra e era imperativo que Lonnie ouvisse, compreendesse e acreditasse em cada uma das palavras agora pronunciadas no banco das testemunhas. É canja, pensou Lonnie.

A primeira manobra defensiva de Jankle foi o argumento da livre escolha. Admitiu que muita gente considerava que o tabaco criava dependência, mas disse-o apenas porque, tanto ele como Cable, tinham achado que se dissesse o contrário arriscavam-se a que o considerassem parvo. No entanto, não deixou de acrescentar que talvez não fosse possível afirmar que houvesse uma relação de causa e efeito entre tabaco e dependência. Ninguém tem certezas absolutas sobre a matéria e os cientistas estão tão confusos sobre este assunto como qualquer leigo. Um estudo pendia para um lado, o seguinte para o outro, e nunca tinha visto uma prova conclusiva e indesmentível acerca da capacidade viciante do tabaco. Pessoalmente, ele, Jankle, não acreditava nessa capacidade: fumava há vinte anos, mas apenas porque gostava. Fumava vinte cigarros por dia, por escolha própria. Fumava uma marca com alcatrão, também por preferência pessoal. E não se considerava um viciado. Aliás, não era viciado. Era livre para deixar de fumar assim

que quisesse. Fumava pelo simples prazer de fumar. Jogava ténis quatro vezes por semana e o seu exame médico anual não revelava nada

com que devesse preocupar-se.

Derrick Maples estava sentado na fila atrás de Taunton. Era a primeira vez que ia assistir ao julgamento. Saiu do motel alguns minutos

depois do autocarro, disposto a passar o dia à procura de emprego.

Naquele momento, sonhava com dinheiro fácil de ganhar. Angel viu-o, mas não tirou os olhos de Jankle. O interesse repentino de Derrick pelo socesso parecia-lhe estranho. Desde o isolamento do júri que Derrick não fazia outra coisa senão queixar-se.

Jankle descreveu as várias marcas fabricadas pela sua tabaqueira, desceu do banco das testemunhas e, de pé e ao lado de um cartaz colorido, mostrou as oito marcas, indicando para cada uma os respectivos níveis de nicotina e alcatrão. Explicou que alguns cigarros têm filtro e outros não, porque alguns têm mais alcatrão e mais nicotina. Para Jankle, resumia-se tudo à livre escolha de cada um. E orgulhava-se da sua linha de produção.

Chegaram assim a um ponto crucial e Jankle aproveitou-o bem. ( Merecendo uma variada selecção de marcas, a Pynex permitia que o consumidor escolhesse o nível de nicotina e alcatrão que preferisse. Escolha! Escolha! Escolha! O consumidor era livre de escolher o número de cigarros que fumava por dia, como se travava o fumo ou não. O consumidor podia fumar fazendo uma escolha inteligente e satisfazendo o próprio corpo.

Jankle apontou para o desenho colorido do maço de Bristol, a marca que estava em segundo lugar em termos de níveis de nicotina e de alcatrão. Admitiu que se o fumador abusasse de Bristol, o resultado podia ser prejudicial para a sua saúde.

Os cigarros eram produtos perfeitamente seguros, desde que usados com moderação. Como muitos outros produtos — o álcool, a manteiga, o açúcar e as armas de fogo, e isto só para citar alguns —, podiam tornar-se perigosos quando usados abusivamente.

Hoppy estava no outro lado da passagem, mas na mesma fila de Derrick. Tinha resolvido passar pelo tribunal para ver o que estava a acontecer. Além disso, queria ver Millie e sorrir-lhe.

Millie ficou encantada quando o viu mas, ao mesmo tempo, intrigada com a repentina obsessão do marido pelo julgamento. Nessa noite os jurados teriam as suas «visitas pessoais» e Hoppy mal conseguia esperar para passar três horas no quarto de Millie, e isto apesar de o sexo estar distante dos seus pensamentos.

Quando o juiz Harkin ordenou que se fizesse um intervalo para o almoço, Jankle estava a completar o seu raciocínio acerca da publicidade. Sim, era verdade que a sua tabaqueira gastava rios de dinheiro em publicidade, embora não tanto quanto os fabricantes de cerveja, de automóveis ou a Coca-Cola. Num mundo ferozmente competitivo, o recurso à publicidade era um imperativo para a sobrevivência. E esta máxima aplicava-se a qualquer tipo de produto. É claro que as crianças viam os anúncios da tabaqueira. Mas também não parecia possível fazer um cartaz ou um anúncio e garantir que os mesmos não fossem vistos por crianças. Aliás, Jankle gostaria que lhe explicassem de que forma seria possível impedir as crianças de ver as revistas que os seus pais assinavam? Era simplesmente impossível! Jankle admitiu já ter visto estatísticas que demonstravam que oitenta e cinco por cento das crianças que fumam compram uma das três marcas mais anunciadas. Mas acontece o mesmo com os adultos! Repetindo, não se pode fazer publicidade tendo como alvo os adultos, sem também atingir as crianças.

Fitch observou todo o depoimento de Jankle sentado ao fundo da sala. À sua direita estava Luther Vandemeer, director-executivo da Trelico, a maior tabaqueira do mundo. Vandemeer era o chefe não oficial das Quatro Grandes e o único que Fitch tolerava. Vandemeer, por sua vez, possuía o incrível dom de tolerar Fitch.

Almoçaram os dois no Mary Maioney's, numa mesa de canto. Sentiam-se aliviados com o sucesso de Jankle, pelo menos até àquele momento, mas sabiam que o pior ainda estava para vir. A coluna de Barker no Mogul tinha-lhes arruinado o apetite.

— Que influência é que já tem sobre o júri ? — perguntou Vandemeer, enquanto comia sem vontade.

Fitch não tinha intenção de dizer a verdade. Vandemeer também não esperava que ele a confessasse. Toda a gente conhecia os seus métodos de trabalho sujo e discreto.

— A de sempre — respondeu Fitch.                     

— Se calhar não é suficiente.

— O que é que quer dizer com isso? Em vez de responder, Vandemeer apreciou as pernas de uma jovem

empregada que servia a mesa ao lado.

— Estamos a fazer o melhor possível — disse Fitch com voz simpática, coisa incaracterística nele. Vandemeer estava assustado, e com razão. Fitch sabia que a pressão era enorme. Um veredicto a favor da acusação não seria o suficiente para levar a Pynex ou a Trelico à falência, mas os resultados seriam desagradáveis e abrangentes de mais. Um estudo interno apontava para uma perda imediata de vinte por cento de accionistas em todas as tabaqueiras, e isso era só o início. No mesmo estudo, um cenário mais pessimista previa para os cinco anos subsequentes a um veredicto contra a Pynex um milhão de processos judiciais por cancro de pulmão, com uma média de um milhão de dólares para cada processo só para o pagamento dos advogados e especialistas. O estudo não ousava fazer uma previsão acerca do custo global de um milhão de julgamentos. O estudo aventava a hipótese de um cenário próximo de uma catástrofe: a instituição de processos movidos por toda e qualquer pessoa que fumasse ou já tivesse fumado e que se sentisse prejudicada pelos efeitos do tabaco. Aí, sim: a falência seria uma forte possibilidade. E, se assim fosse, seria necessário prever que o congresso desenvolveria sérios esforços para proibir definitivamente a produção de tabaco.

—Tem dinheiro que chegue? — perguntou Vandemeer.

— Acho que sim. — Pela centésima vez Fitch fez a si próprio a mesma pergunta: qual seria exactamente o montante que a sua querida Marlee lhe iria pedir.

— O Fundo está em forma?

— Sim, está.                                                                          

Vandemeer mastigou uma pequena porção de frango grelhado.

— Porque é que não escolhe nove jurados e dá um milhão a cada um? — Sorriu discretamente, como se estivesse a brincar.

— Já pensei nisso. Mas é perigoso de mais. Pode levar-nos à cadeia.

— Só estava a brincar.

— Temos outros meios. O sorriso desapareceu.   

— Não se esqueça de que temos de vencer, Rankin. Temos mesmo de vencer. Gaste o que for preciso.

Uma semana antes, o juiz Harkin, atendendo a outro pedido escrito de Nicholas Easter, mudou um pouco as normas para o almoço, declarando que os dois substitutos podiam almoçar com os doze jurados efectivos. Nicholas argumentava que, como agora os catorze jurados viviam juntos, viam filmes juntos, tomavam o pequeno-almoço e o jantar juntos, era ridículo separá-los à hora do almoço. Os dois jurados substitutos eram homens: Henry Vu e Shine Royce.

Henry Vu era sul-vietnamita e ex-piloto de caça. Mergulhara com o seu avião no mar da China no dia a seguir à queda de Saigão. Foi resgatado por um barco de salvamento americano e tratado num hospital em São Francisco. Levou um ano para conseguir trazer a mulher e os filhos para São Francisco. O percurso não foi simples e obrigou-os a passar pelo Laos, Camboja e Tailândia. Reunidos em São Francisco, ficaram a viver nessa cidade durante dois anos. Em 1978 instalaram-se em Biloxi. Vu comprou um barco de pesca de camarão e juntou-se ao grande número de pescadores vietnamitas que estavam a expulsar os locais do seu território. No ano anterior, a filha mais nova tinha sido escolhida como porta-voz da sua turma de liceu. No fim do ano, aceitou uma bolsa de estudo integral para Harvard. Henry comprou o seu quarto barco pesqueiro.

Vu não fez nenhum esforço para se livrar de prestar serviço como jurado. Era tão patriota como qualquer outro jurado, mesmo incluindo o coronel.

É óbvio que Nicholas fez imediatamente amizade com ele. Tinha resolvido que Henry Vu devia sentar-se com os doze escolhidos e estar presente no momento da deliberação.

Com o júri isolado do mundo real, a última coisa que Cable queria era prolongar o caso. Reduziu para cinco a sua lista de testemunhas e calculou que os depoimentos não demorariam mais de quatro dias.

No pior momento do dia para um interrogatório directo — a primeira hora a seguir ao almoço —, Jankle sentou-se no banco das testemunhas e recomeçou o seu depoimento.

— O que é que a sua empresa está a fazer para combater o tabagismo entre os menores? — perguntou Cable. Em resposta, Jankle

O Júri falou durante uma hora e referiu um milhão para um bem-intencionado movi mento, outro milhão para uma campanha de prevenção e por aí adiante. No ano anterior, e só para esta luta, a tabaqueira tinha gasto onze milhões.

Em certos momentos, Jankle falava como se desprezasse o tabaco.

Só depois de um longo intervalo para café, às três horas, Wendall Kohr leve a sua oportunidade de interrogar Jankle. Começou com uma pergunta agressiva e as coisas foram de mal a pior.

É ou não verdade que a sua empresa gasta centenas de milhões de dólares para convencer as pessoas a fumar? É ou .não verdade que quando os fumadores adoecem em consequência do tabagismo a sua empresa se recusa apagar indemnizações que os possam ajudar?

— Isso é uma pergunta?

— É! Claro que é. Responda, por favor!

— Não. Não é verdade. Nem uma coisa nem outra.

— Óptimo. Quando é que foi a última vez que a Pynex pagou um centavo que fosse das despesas médicas de um fumador?

Jankle encolheu os ombros e murmurou alguma coisa.

— Desculpe, senhor Jankle. Não ouvi o que disse. Perguntei quando é que foi a última vez...

— Eu ouvi a pergunta.

— Então responda. Dê apenas um exemplo, um único exemplo de um caso em que Pynex se tenha responsabilizado pelos danos provocados pelos seus cigarros.

— Os nossos produtos não provocam danos.

— Não provocam doenças e a morte?—perguntou Rohr, incrédulo e balançando os braços no ar.

— Não. Não provocam.

— Vamos ver se compreendi bem o que acabou de afirmar. O senhor disse ao júri que os cigarros que a sua companhia produz não são causadores de doenças e morte?

— Isso só acontece em casos de abuso.

Rohr repetiu a palavra «abuso» com uma gargalhada de desprezo.

— Para se fumar os seus cigarros é preciso acendê-los? —É óbvio!

— E o fumo produzido pelo tabaco e pelo papel deve ser aspirado pela ponta oposta àquela que é acesa?

—Sim.

— E é suposto que o fumo entre na boca do fumador?

— Sim.

— E é suposto que sej a inal ado pelo aparelho respiratório?

— Depende da escolha do fumador.

- O senhor inala o fumo, senhor Jankle? ;     —Inalo.

— Então, pode dizer-se que o senhor sabe que o fumo do seu cigarro vai ser inalado?

— Suponho que sim.

— Na sua opinião, as pessoas que inalam o fumo dos cigarros estão a fazer um uso abusivo do produto que o senhor fabrica?            ;

— Não.

— Então, senhor Jankle, diga-nos por favor o que é para si um uso abusivo do tabaco?

— É fumar de mais.

— E, para si, quanto é que é de mais?

— Depende da pessoa.

— Vai desculpar-me, mas como não tenho possibilidade de conversar individualmente com todos os fumadores do planeta, falo consigo que é director-executivo da Pynex, uma das maiores tabaqueiras do mundo. Por isso, volto a perguntar-lhe: na sua opinião, quanto é que é de mais?

— Eu diria que mais de dois maços por dia.

— Mais de quarenta cigarros por dia?

— Sim.

— Muito bem. Em que estudo é que o senhor se baseia para fazer essa afirmação?

— Em nenhum. É apenas a minha opinião pessoal.

— Ou seja, na sua opinião, fumar menos de quarenta cigarros por dia não faz mal à saúde! Mas se se fumar mais de quarenta cigarros, quer dizer que se está a fazer uma utilização abusiva do produto. É este o sentido do seu depoimento?

— Essa é a minha opinião. — Jankle começava a ficar agitado, olhando para Cable que, furioso, não olhava para ele. A teoria do abuso era nova, uma criação de Jankle que tinha insistido em usá-la em tribunal.

Rohr baixou a voz e estudou os seus apontamentos. Sem pressa. Tinha preparado bem aquela caçada e não queria estragar o golpe final.

— Não se importa de dizer, a mim e aos senhores jurados, que medidas é que tem tomado, na sua qualidade de director-executivo da Pynex, para advertir o público de que fumar mais de quarenta cigarros por dia é perigoso?

Jankle tinha uma resposta na ponta da língua, mas achou melhor não dizer nada. Abriu a boca e parou, pensando durante uma longa e dolorosa pausa. Controlou-se e disse:

— Acho que o senhor não me entendeu.

Rohr não tinha a mínima intenção de permitir que ele se explicasse.

— Está enganado. Entendi-o perfeitamente. E acho que nunca vi em nenhum dos seus produtos a mais pequena advertência que fosse sobre a perigosidade de fumar mais de dois maços por dia. Importa-se de explicar porquê?

— Porque não somos obrigados a fazê-lo.

— Obrigados por quem?

— Pelo governo.

— Como o governo não os obriga a avisar os consumidores que os vossos produtos são perigosos quando usados abusivamente, os senhores não o fazem voluntariamente...

— Seguimos os preceitos legais!

— E também seguiram os preceitos legais quando gastaram quatrocentos milhões de dólares no ano passado em publicidade?

— Não.

— Mas gastaram esse dinheiro, não foi?

— Sim, foi mais ou menos isso.

— E se quisessem advertir os fumadores sobre o potencial perigo do tabaco também o poderiam fazer, não é verdade?

— Suponho que sim.

Rohr passou rapidamente para a manteiga e o açúcar, dois produtos mencionados por Jankle como potencialmente perigosos. Com grande satisfação, Rohr indicou as diferenças entre esses produtos e o tabaco, fazendo Jankle passar por parvo.

Reservou o melhor para o fim. Durante um curto intervalo, os monitores de vídeo foram mais uma vez instalados na sala. Quando o júri voltou as luzes estavam apagadas e Jankle aparecia no ecrã com a mão direita erguida enquanto o faziam jurar que diria a verdade e nada mais do que a verdade. As imagens tinham sido gravadas durante uma audiência perante uma subcomissão do congresso. De pé, ao lado de Jankle, estavam mais dois directores-executivos das Quatro Grandes. Tinham sido todos intimados, contra vontade, para depor perante um grupo de políticos. Pareciam quatro chefes da mafia prontos para afirmar perante o congresso que o chamado crime organizado não existia. O interrogatório foi brutal.

O filme apresentado aos jurados tinha sido habilmente cortado e mostrava os quatro directores-executivos a negar enfaticamente o efeito viciante da nicotina. Jankle foi o último a prestar declarações e quando pronunciou sua negativa, o júri, tal como a subcomissão do congresso, teve a certeza de que ele estava a mentir.

 

Durante quarenta minutos de uma tensa conversa com Cable, Fitch desabafou e disse quase tudo o que lhe desagradava no modo como o caso estava a ser defendido. Começou por Jankle e a sua nova e brilhante defesa do tabaco: a estratégia do abuso era uma abordagem cretina que podia acabar com eles. Cable, não disposto a ouvir repri-inendas, especialmente vindas de um leigo que detestava, explicou repetidamente que tinham pedido a Jankle para não falar sobre o uso abusivo do tabaco. Mas numa outra encarnação Jankle fora advogado e considerava-se um pensador original a quem fora dada a grande oportunidade de salvar a Big Tobacco. Jankle estava agora a caminho de Nova Iorque num jacto da Pynex.

Fitch também achava que o júri podia estar farto de Cable. Se Rohr tinha dividido o trabalho da acusação pelo bando de advogados que o acompanhavam, porque razão insistia Cable em assumir a defesa sozinho? Para além dele, apenas Felix Mason tinha podido interrogar algumas testemunhas. Fitch não percebia, sobretudo porque, Deus era testemunha, tinham advogados de sobra. Seria o seu ego? Gritaram um com o outro dos dois lados da mesa.

O artigo na revista Mogul, além de lhes abalar os nervos, tinha acrescentado pressão sobre todos eles. O ambiente era agora muito mais tenso.

Cable lembrou a Fitch que o advogado ali era ele e que tinha trinta anos de notável desempenho nos tribunais. Entre os dois, era ele, Cable, quem melhor conseguia perceber os estados de espírito dos jurados, quem melhor dominava a situação no tribunal.

E Fitch lembrou a Cable que aquela era a nona vez que dirigia um julgamento contra tabaqueiras. E isto sem contar com duas anulações promovidas por ele. Ele, Fitch, de certeza que já tinha visto mais advogados em tribunais do que aqueles que Cable tinha podido apreciar ao longo de toda a sua carreira.

Quando acabaram de gritar e praguejar, e depois de tentarem controlar-se, concordaram que a defesa devia ser breve. Cable planeava demorar mais três dias, incluindo o interrogatório indirecto de Rohr. Três dias. Nem mais um, disse Fitch.

Saiu do escritório batendo a porta. José esperava-o no corredor. Juntos, passaram quase a correr pelos escritórios ainda cheios de advogados em mangas de camisa, estagiários a comer pizza e secretárias atarefadas, querendo acabar o trabalho e ir para casa, para junto dos filhos. A mera passagem de Fitch, apressado, com passo duro, e o gorducho José atrás dele, fazia aqueles homens adultos estremecer e esconder-se atrás das portas.

No Suburban, José entregou a Fitch uma pilha de faxes. E, enquanto seguiam velozmente para o quartel-general, Fitch examinou-os. O primeiro era a lista dos movimentos de Marlee desde o encontro da véspera no cais. Não relatava nada fora do comum.

O seguinte era um resumo do que estava a acontecer em Karisas. Uma tal Claire Clement tinha sido encontrada em Topeka, mas numa casa de repouso. A Claire Clement de Dês Moines atendeu o telefone no escritório do parque de carros usados do marido. Swanson dizia que estavam a seguir várias pistas, mas o relatório era pobre em detalhes. Um dos amigos de Kerr na faculdade de direito foi identificado em Karisas City e estavam agora a tentar marcar um encontro com ele.

Passaram por uma loja de produtos variados e o reclame luminoso na montra, anunciando cerveja, chamou a atenção de Fitch. Sentiu nitidamente o cheiro e o gosto da cerveja gelada e uma intensa vontade de beber. Só uma. Apenas uma gostosa cerveja gelada numa caneca dupla. Há quanto tempo não bebia nenhuma?

A vontade de parar foi muito grande. Fitch fechou os olhos e tentou pensar noutra coisa. Podia mandar o José comprar uma garrafa bem gelada, só uma. Mas seria possível ficar-se por aí? O mais certo era que, depois de nove anos de abstinência, fosse capaz de se controlar. Porque é que não podia beber apenas uma? Se calhar porque já bebera um milhão de cervejas e se José parasse ali teria de parar outra vez dois quarteirões adiante. E quando chegassem ao escritório, o Suburban estaria cheio de garrafas vazias e Fitch atirá-las-ia de encontro aos carros que por eles passassem. Fitch não era nada agradável quando estava bêbado.

Mas se calhar, se bebesse só uma cerveja, podia acalmar os nervos e tentar esquecer aquele dia miserável.

— O senhor está bem, chefe?

Fitch resmungou qualquer coisa imperceptível e parou de pensar na cerveja. Onde estava Marlee? Por que razão ainda não tinha telefonado? O julgamento estava a chegar ao fim. E um acordo levava tempo a ser negociado e posto em prática.

Fitch pensou no artigo da Mogul e teve vontade de falar com Marlee. < Ouviu a voz idiota de Jankle expondo a sua nova teoria de defesa e teve novamente vontade de falar com Marlee. Fechou os olhos, viu os rostos dos jurados e ainda teve mais vontade de falar com Marlee.

Uma vez que agora Derrick se considerava uma personagem importante naquela peça, escolheu um novo local para o encontro da noite de quarta-feira. Era um bar duvidoso no bairro negro de Biloxi que, por acaso, Cleve já conhecia. Derrick imaginou que se o encontro fosse no seu território ficaria em vantagem. Cleve insistiu para se encontrarem no parque de estacionamento.

O parque estava quase cheio. Cleve chegou atrasado. Derrick viu-o estacionar o carro e foi até à janela do lado do condutor.

— Não acho que esta seja uma boa ideia — disse Cleve, abrindo apenas uma fresta no vidro e espreitando lá para fora. Só conseguia ver um prédio escuro com barras de aço nas janelas.

— Está tudo bem — respondeu Derrick, procurando disfarçar a sua própria preocupação. — O lugar é seguro.

— Seguro? Só no último mês houve aqui três rixas com facas e tudo. Vou ser o único branco no bar... e você quer que eu entre por ali com cinco mil «mocas» em dinheiro e lhas entregue lá dentro? Quem é que vai ser esfaqueado primeiro: eu ou você?

Derrick concordou com ele, mas não queria ceder facilmente. Chegou-se mais perto da janela do carro e olhou atentamente para o estacionamento. De repente estava com medo.

— Acho que o melhor é entrar — disse, tentando fazer-se passar por forte.

— Esqueça — disse Cleve. — Se quer o dinheiro, encontre-se comigo na Waffell House, na Rua 90. — A seguir, ligou o motor e fechou ajanela.

Derrick viu-o partir, levando os cinco mil dólares em dinheiro, e correu para o seu carro.

Comeram panquecas e beberam café ao balcão. Falavam em voz baixa porque o cozinheiro estava a estrelar ovos e a fritar salsichas numa frigideira a menos de três metros. Parecia atento a cada uma das palavras que diziam.

Derrick sentia-se nervoso e tinha as mãos trémulas. Os mensageiros transportavam diariamente dinheiro de subornos. Por isso, aquela era uma tarefa comezinha para Cleve.

— Tenho andado a pensar que se calhar dez mil não chegam. Está a perceber o que quero dizer? — disse Derrick finalmente, repetindo a frase ensaiada durante quase toda a tarde.

— Pensei que estávamos combinados — respondeu Cleve, impassível, mastigando um pedaço de panqueca.

— Sabe o que eu acho? Acho que estão a tentar enganar-me.

— É assim que está habituado a negociar?

— O que me ofereceu é pouco. Tenho andado a pensar, e acho que é pouco. Hoje de manhã até fui ao tribunal e fiquei ali durante um bocado a assistir ao julgamento. Agora já percebi tudo: sei perfeitamente o que é que está a acontecer...

— Percebeu o quê?

— Percebi que vocês não fazem jogo limpo.

— Ontem à noite, quando concordou que eu lhe desse dez mil dólares, não parecia incomodado. Ou escapou-me alguma coisa?

— Agora a coisa é diferente. Ontem à noite fui apanhado desprevenido.

Cleve limpou a boca com o guardanapo de papel e esperou que o cozinheiro fosse servir uma pessoa sentada na outra extremidade do balcão.

— Afinal de contas, o que é que você quer? — perguntou ele.

— Quero mais. Muito mais. — Não temos tempo para conversas. Diga quanto quer.

Derrick engoliu em seco e olhou rapidamente para trás. Em voz baixa e tensa, disse:

— Cinquenta mil, mais uma percentagem sobre o veredicto.

— Que percentagem?

— Calculo que dez por cento esteja bem.

— Ah, você calcula!... — Cleve atirou com o guardanapo para cima do prato. —Você deve é estar maluco — acrescentou. Pôs uma nota de cinco dólares em cima do balcão e levantou-se. — Fechámos o negócio por dez mil. É tudo. Além disso, se a quantia fosse maior arris-cávamo-nos a ser apanhados.

Cleve saiu apressadamente. Derrick procurou nos bolsos e só encontrou moedas. De repente, o cozinheiro estava à sua frente, assistindo à sua procura desesperada.

— Eu pensei que ele ia pagar — desculpou-se Derrick, procurando no bolso da camisa.

—Quanto é que tem? — perguntou o cozinheiro ao mesmo tempo que guardava os cinco dólares de Cleve.

— Oitenta cêntimos.

— Chega.

Derrick correu para o parque de estacionamento. Cleve estava à sua espera com o motor ligado e ajanela aberta.

— Aposto que o outro lado paga mais — disse ele, aproximando-se do carro.

— Se acha... experimente. Amanhã vá ter com eles e diga-lhes que quer cinquenta mil dólares por um voto.

— E dez por cento sobre o total da indemnização.

— Não percebe nada disto. — Cleve desligou o motor e saiu do carro. Acendeu um cigarro. — Veja se percebe: um veredicto para a defesa significa que o dinheiro não muda de mãos. Zero para a acusação significa zero para a defesa. Não há percentagens para ninguém. Os advogados de acusação recebem dez por cento de zero. Faz sentido o que estou a dizer?

— Faz — Derrick falou devagar, mas ainda estava confuso.

— Ouça, o que estou a oferecer-lhe é ilegal. Por isso não seja ganancioso. Quem muito quer, muito perde, nunca ouviu dizer?

— Mas dez mil é pouco: parece-me um preço muito barato para uma guerra deste tamanho.

—Não pode ver as coisas assim. Pense no seguinte: à partida, ela não tem direito a nada, nada de nada. Zero. Certo? Ela está a cumprir o seu dever cívico e, para ser uma boa cidadã, recebe quinze dólares por dia dos contribuintes. Os dez mil são um suborno, um presentinho que deve ser esquecido assim que o receber.

— Mas se me der uma percentagem, ela pode sentir-se mais moti-vada para convencer os outros jurados.

Cleve, balançando a cabeça, deu uma longa passa no cigarro e soltou o fumo devagar.

— Você ainda não entendeu nada. Se o veredicto for a favor da queixosa, só daqui a mui tos anos é que o dinheiro muda de mãos. Der rick, você está a tornar a coisa muito complicada. Aceite o dinheiro. Fale com Angel. Ajude-nos.

— Vinte e cinco mil.

Outra longa passa, o cigarro caiu no chão e Cleve apagou-o com o sapato.

— Tenho de falar com o meu chefe.

— Vinte e cinco mil por voto.

— Por voto?

— É isso mesmo. Angel pode conseguir convencer outros jurados.

— Quem?

— Não vou dizer.

— Deixe-me falar com o meu chefe.

No quarto 54, enquanto a sua mulher, Qui, estudava as novas apólices de seguros para a frota de barcos pesqueiros, Henry Vu lia as cartas da filha que estava a estudar em Harvard. O quarto 48 permanecia vazio porque Nicholas estava na sala a ver um filme. No 44, e pela primeira vez em praticamente um mês, Lonnie e a mulher estavam juntos na cama. Mas tinham de se apressar: as crianças tinham ficado com a irmã dela. No 58, enquanto Herman digitava uma descrição do julgamento no seu computador, a senhora Grimes estava a ver uma série na televisão. O quarto 50 estava vazio. O coronel fora à sala de festas. Tinha ficado outra vez sozinho porque a mulher estava no Texas: tinha ido visitar uma prima. E o 52 também ficara vazio porque Jerry bebia cerveja com o coronel e Nicholas. Tinha uma secreta esperança de poder ir mais tarde ao quarto de Poodle. No 56, Shine Royce, substituto numero dois, deliciava-se com pão e manteiga levados do restaurante num saco. Estava a ver televisão e, uma vez mais, agradecia a Deus a uma boa sorte. Royce tinha cinquenta e dois anos, estava desempregado, morava com uma mulher jovem e os seus seis filhos numa caravana alugada. Há anos que não conseguia ganhar quinze dólares por dia. Agora, tinha apenas de se sentar e ouvir um julgamento e o condado, aléin de lhe pagar diariamente, ainda o alimentava. No 46, Phillip Sav-ollc e a sua companheira paquistanesa bebiam chá de ervas e fumavam erva com as janelas abertas.

No outro lado do corredor, no quarto 49, Sylvia Taylor Tatum falava ao telefone com o filho. No 45, a senhora Gladys Card jogava luiruco com o senhor Nelson Card, o homem com a tal história da próstata. No 51, Rikki Coleman esperava por Rhea que estava atrasado e talvez não chegasse a vir: a baby-sitter não tinha telefonado. No 53,LoreenDuke, sentada na cama, comia biscoitos e ouvia, cheia de inveja, Angel Weese e o namorado. Os dois faziam tremer as paredes do quarto 55.

Finalmente no 47, Hoppy e Millie Dupree faziam amor como nunca tinham feito. Hoppy chegara cedo com uma cesta cheia de comida chi nesa e uma garrafa de champanhe, coisa que não provava há anos. Em circunstâncias normais, Millie teria feito um reparo à bebida alcoólica, mas aqueles dias não tinham nada de normal. Bebeu um bocadinho de champanhe no copo de plástico e comeu uma generosa porção de carne de porco agridoce. Foi então que Hoppy a atacou.

Quando terminaram, deitados no escuro, conversaram sobre os filhos, a escola e o lar em geral. Ela estava farta daquela experiência e ansiava voltar para casa, para a família. Hoppy falou tristemente sobre a ausência dela. As crianças estavam irritadas. A casa parecia um caos. Todos sentiam falta de Millie.

Hoppy vestiu-se e ligou a televisão. Millie, com o roupão de banho, bebeu outro pequeno gole de champanhe.

— Nem vais acreditar no que te vou mostrar—disse Hoppy, tirando do bolso do casaco um papel dobrado.

— O que é?—perguntou Millie, pegando no papel e abrindo-o. Era uma cópia do documento forjado por Fitch com a lista dos vários pecados de Leon Robilio. Millie leu devagar e depois olhou desconfiada para o marido. — Onde é que arranjaste isto? — Quis saber.

— Chegou ontem por fax — respondeu Hoppy com sinceridade. Tinha ensaiado aquela resposta porque não suportava a ideia de mentir a Millie. Sentia-se pessimamente, mas Napier e Nitchman estavam lá fora escondidos nalgum sítio à sua espera.

— Quem é que te mandou isto? — perguntou ela.

— Não sei. Parece que veio de Washington. •— Porque é que não deitaste isto fora?

— Sei lá. Eu...

— Sabes perfeitamente que não podes mostrar-me coisas deste género, Hoppy. — Millie atirou o papel para cima da cama e, com as mãos na cintura, deu alguns passos em direcção ao marido. — O que é que queres fazer com isto?

— Nada. Mandaram-mo para o escritório... foi só isso.

— Que coincidência! Alguém, sabe-se lá quem é essa pessoa, estava em Washington e por acaso sabia o número do teu fax, e por acaso sabia que a tua mulher estava no júri, e por acaso sabia que Leou Robilio testemunhou, e por acaso achou que se te mandasse esse papel serias suficientemente idiota para mo trazer para aqui, tentando influenciar-me. Quero saber o que é que está acontecer!

— Nada. Juro — protestou Hoppy, ofendido.

— Porque é que de repente começaste a interessar-te pelo julgamento?

— Acho fascinante.

— Há três fins-de-semana que é fascinante e praticamente nem o tinhas mencionado. O que é que está a acontecer, Hoppy?

— Nada. Fica descansada.

— Eu sei perfeitamente quando estás preocupado.

— Calma, Millie. Estás nervosa. Estou nervoso. Este caso está a dar-nos cabo da vida. Peço desculpa por ter trazido a porcaria do fax.

Millie acabou o champanhe e sentou-se na beira da cama. Hoppy sentou-se ao lado dela. O senhor Cristano, do Departamento de Justiça, tinha sugerido, com bastante veemência aliás, que Hoppy devia convencer Millie a mostrar o fax a todos os colegas do júri. Hoppy temia dizer ao senhor Cristano que provavelmente isso não ia acontecer. Por outro lado, como é que o senhor Cristano podia saber o que realmente tinha acontecido?                                                           

Enquanto Hoppy pensava nisso, Millie começou a chorar:

— Tudo o que eu quero é ir para casa — gemeu, olhos vermelhos e lábios trémulos.

Hoppy abraçou-a com força.

— Desculpa — disse, e Millie chorou ainda mais.

Hoppy também estava com vontade de chorar. Aquele encontro não tinha servido para nada, exceptuando o sexo, claro. Segundo o senhor Cristano, o julgamento ia terminar dentro de poucos dias. Era imperativo que Millie fosse imediatamente convencida de que o único veredicto possível seria a favor da defesa. Uma vez que não tinham muito tempo, Hoppy teria que lhe contar a terrível verdade. Não naquele momento, não naquela noite, mas certamente durante a próxima visita.

 

A rotina do coronel nunca variava. Como bom soldado que era, levantava-se todas as manhãs exactamente às cinco e meia e fazia cinquenta flexões e cinquenta abdominais, antes de um duche rápido, Às seis, ia para a sala de jantar, onde era bom que já houvesse calo fresco e muitos jornais. Comia torradas com geleia e sem manteiga e cumprimentava todos com um «bom-dia» vigoroso e bem-disposto, à medida que entravam e saíam. Todos, sonolentos, tinham pressa do voltar à privacidade dos seus quartos, onde podiam tomar café e ver o noticiário na televisão. Era uma má forma de começar o dia, obrigados a cumprimentar o coronel e a retribuir o cumprimento. Quanto mais tempo passavam isolados, mais animado ficava antes do nascer do Sol. Vários jurados esperavam até às oito para tomar o pequeno--almoço: era a hora em que o coronel saía da sala e voltava para o quarto.

Às seis e um quarto da manhã de quinta-feira, Nicholas cumprimentou o coronel enquanto se servia de café, depois conversaram um pouco sobre o tempo. Depois, saiu da sala de jantar improvisada e seguiu silenciosamente pelo corredor sossegado e vazio. Já estavam ligadas várias televisões e ouviam-se no corredor. Alguém falava ao telefone. Nicholas abriu a porta do seu quarto, pousou a chávena de café, tirou uma pilha de jornais e saiu.

Com uma chave roubada na recepção, Nicholas entrou no quarto cinquenta, o do coronel. O cheiro de loção de barba barata pairava no ar. Vários pares de sapatos enfileiravam-se, em perfeita ordem, contra a parede. As roupas estavam penduradas impecavelmente no armário, dobradas e engomadas. Nicholas ficou de joelhos, levantou a ponta do colchão e pôs os jornais e revistas debaixo da cama. Uma das revistas era o número da véspera da Mogul.

Nicholas voltou para o seu quarto. Uma hora depois, telefonou para Marlee. Supondo que Fitch estava a ouvir todos os seus telefonemas, apenas disse:

— Darlene, por favor.

E ela respondeu:                                     

— Enganou-se no número.

Desligaram. Nicholas esperou alguns minutos e digitou o número do telemóvel que Marlee guardava escondido num armário. Estavam quase certos de que Fitch tinha posto escutas nos seus telefones e no apartamento de Marlee.

— Entrega feita — disse ele.

Trinta minutos depois, Marlee saiu do apartamento e encontrou um telefone público numa confeitaria tipo drive-in. Telefonou para Fitch e esperou que a ligação fosse transferida.

— Bom-dia, Marlee — disse ele.

— Olá, Fitch. Oiça lá uma coisa: eu adorava falar ao telefone, mas sei que a conversa está a ser gravada.

— Não, não está, juro.

— Okay. Há um Kroger's na esquina da rua Catorze com a Beach l Umlevard, a cinco minutos do seu escritório. À direita, perto da entrada, há uns telefones públicos. Vá ao telefone do meio. Ligo dentro de sete minutos. Depressa, Fitch! — Desligou.

— Filha da mãe! — gritou Fitch, atirando com o telefone e correndo para a porta. Chamou José com um berro e os dois saíram pela porta das traseiras para se acomodarem no Suburban.

Como Fitch esperava, o telefone estava a tocar quando chegou.

— Olá, Fitch. Oiça: Herrera, número sete, está a fugir-nos. Acho que vamos perdê-lo hoje.

— O quê?!                                         ,,'...

— Você ou viu.

— Não faça isso, Marlee!

— O tipo é um chato. Estão todos fartos dele.

— Mas está do nosso lado!

— Vão estar todos do seu lado quando o julgamento terminar. Veja se chega ao tribunal às nove para não perder o suspense.

— Não, ouça. Herrera é vital para... — Fitch parou de falar quando ouviu o clique no outro lado da linha. Começou a puxar o telefone-como se quisesse arrancá-lo. Depois largou-o e, sem praguejar nem gritar, voltou calmamente para o Suburban e mandou José ir para o escritório. Tudo o que ela quisesse. Não tinha importância.

O juiz Harkin morava em Gulfport, a quinze minutos do tribunal. Por razões óbvias, o seu telefone não estava na lista local. Ninguém quer receber telefonemas de prisioneiros condenados a toda a hora.

Quando estava a beijar a mulher e a tomar uma chávena de café para lhe dar forças para a viagem, o telefone da cozinha tocou e a senhora Harkin atendeu.

— É para ti, querido — disse ela, estendendo o telefone. O Meri-tíssimo deixou o café e a pasta sobre a mesa e consultou o relógio.

— Estou?

— Juiz, peço desculpa por incomodá-lo em casa — disse uma voz nervosa, quase num murmúrio. — É Nicholas Easter e se o senhor quiser eu desligo agora mesmo.

— Não! Qual é o problema?

— Ainda estamos no motel, quase a sair, e acho que preciso de falar consigo agora.

— O que é, Nicholas?

— Não queria telefonar-lhe, mas receio que os outros jurados estejam desconfiados dos nossos recados e conversas no seu escritório.

— Talvez tenha razão.

— Foi por isso que resolvi telefonar. Assim, ninguém vai saber que conversámos.

— Vamos tentar. Se achar que devemos interromper a conversa, eu digo. — Harkin queria perguntar como é que um jurado sozinho tinha conseguido o seu número de telefone, mas resolveu esperar.

— É sobre Herrera. Acho que anda a ler coisas que não estão na lista aprovada por si.

— O quê?

— A Mogul, por exemplo. Quando entrei na sala de jantar esta manhã, estava sozinho e tentou esconder um exemplar da Mogul. Não é uma revista de economia?

— Sim, é. — Harkin tinha lido o artigo de Barker. Se Easter estivesse a dizer a verdade, então Herrera seria mandado para casa imediatamente. A leitura de material não autorizado era passível de dispensa,

até considerada desobediência ao tribunal. A leitura da Mogul da véspera por qualquer jurado podia até levar à anulação do julgamento. — Acha que ele comentou o que leu com alguém?

— Duvido. Como disse, tentou esconder a revista para que não a visse. Por isso desconfiei. Não acredito que tenha comentado com alguém. Mas vou ouvir com atenção.

— Faça isso. Assim que o senhor Herrera chegar, vou interrogá-lo, provavelmente vamos revistar o quarto dele.

— Por favor, não lhe diga que fui eu que lhe contei. Sinto-me pessimamente por ter feito isto.

— Está bem.

— Se os outros jurados souberem que estamos aqui na conversa, é o fim da minha credibilidade.

— Não se preocupe.

— Estou nervoso, juiz. Estamos todos cansados, queremos ir para casa.

— Estamos quase no fim, Nicholas. Estou a fazer o máximo de pressão possível junto dos advogados.

— Eu sei. Lamento, juiz. Por favor não deixe que ninguém saiba que estou armado em espião. Nem posso crer que estou metido nisto.

— Está a fazer o que está certo, Nicholas. E muito obrigado. Vemo--nos dentro de poucos minutos.

Harkin beijou a mulher, desta vez com pressa, e saiu. No telefone do carro ligou para o xerife e pediu-lhe para o esperar no motel. Telefonou para Lou Dell, coisa que fazia quase todas as manhãs a caminho do tribunal, e perguntou se a revistaMogw/ era vendida no motel. Não, não era. Telefonou para a sua oficial de justiça, mandou localizar Rohr e Cable para pedir-lhes que o esperassem no seu escritório. Enquanto ouvia uma estação de rádio local com música country, imaginava como era possível um cidadão isolado conseguir uma revista de economia que não era facilmente encontrada nas ruas de Biloxi.

Cable, Rohr e a oficial de justiça esperavam-no quando entrou no escritório e fechou a porta. Harkin tirou o casaco, sentou-se e fez um resumo das alegações contra Herrera, sem divulgar a fonte. Cable ficou aborrecido porque Herrera era considerado por todos um sólido jurado da defesa. Rohr ficou irritado porque estavam a perder outro jurado e isso podia levar a uma anulação do julgamento.

Ojuiz sentiu-se muito melhor com o descontentamento dos dois advogados. Mandou a oficial de justiça à sala dos jurados onde o senhor Herrera tomava a sua enésima chávena de descafeinado, enquanto conversava com Herman, ao lado do computador em braile. Frank olhou para a porta, surpreendido por ouvir Lou Dell a pronunciar o seu nome, e saiu da sala. Seguiu Willis pelos corredores das traseiras do prédio do tribunal. Pararam em frente a uma porta e Willis bateu delicadamente antes de entrar.

O coronel foi recebido amavelmente pelo juiz e pelos advogados que lhe indicaram uma cadeira na sala apertada, muito perto da estenó-grafa do tribunal. O juiz Harkin explicou que ia fazer algumas perguntas que deviam ser respondidas sob juramento e os advogados imediatamente tiraram dos bolsos os blocos de apontamentos e começaram a escrever. Herrera sentiu-se como um criminoso.

— O senhor tem lido material expressamente não autorizado por mim? — perguntou o juiz Harkin.

Uma pausa e os advogados olharam para Herrera. A oficial de justiça, a estenógrafa e o juiz esperavam pela resposta. Até Willis, junto da porta, estava acordado prestando atenção.

— Não. Não que eu saiba — respondeu o coronel, como se dissesse a verdade.

— Especificamente, leu uma revista semanal sobre economia chamada Mogul?

— Não, desde que fomos isolados, não. — O senhor lê a Mogul regularmente ? ,-   — Uma ou talvez duas vezes por mês.

— No seu quarto, no motel, possui material de leitura não autorizado por mim?

— Que eu saiba, não.

— Confirma que tem uma revista no seu quarto?

Frank ficou muito vermelho e os seus ombros estremeceram.

— A que é que se refere? — perguntou em tom autoritário.

— Tenho motivos para crer que o senhor esteve a ler material não autorizado e que isso aconteceu no motel. Acho que uma rusga rápida ao seu quarto pode resolver o caso.

— O senhor está a questionar a minha integridade? — disse Herrera, ofendido e zangado. A integridade era coisa vital para ele. Um rápido

olhar aos rostos à sua volta revelou que todos o consideravam culpado de uma transgressão abominável.

— Não, senhor Herrera. Simplesmente acredito que uma rusga nos permitirá dar andamento a este julgamento.

Era apenas um quarto de motel, não uma residência cheia de objectos particulares escondidos. Além disso, Frank sabia muito bem que nada no seu quarto podia incriminálo.

— Pois então, façam a rusga. —Muito obrigado.

Willis conduziu Frank para o corredor e o juiz Harkin telefonou para

o xerife no motel. O gerente abriu o quarto número cinquenta. O xerife e dois polícias orientaram uma rusga discreta no armário, nas gavetas e na casa de banho. Debaixo da cama encontraram uma pilha de Wall Street Journal, revistas

Forbes e um exemplar da véspera da revista Mogul. O xerife telefonou para o juiz Harkin, descreveu o que tinham encontrado e foi instruído para levar de imediato o material não autorizado à sala do juiz.

Nove e um quarto e nada de júri. Fitch estava muito rígido sentado na última fila. Por cima de um jornal aberto, olhava fixamente para a porta de entrada dos jurados, sabendo que, quando aparecessem, Henry Vu já teria substituído Herrera. Vu era razoavelmente tolerável sob o ponto de vista da defesa porque era asiático e os asiáticos, de um modo geral, não costumavam gastar grandes quantias em processos civis. Mas Vu não era Herrera e os especialistas em júri do grupo de Fitch já há semanas que garantiam que o coronel estava com eles e que seria uma grande força durante as deliberações.

Se Marlee e Nicholas podiam dispensar Herrera só por capricho, e quem seria o próximo? Se faziam isso só para atrair a sua atenção, sem dúvida que estavam a conseguir.

O juiz e os advogados olharam incrédulos para os jornais e revistas enfileirados sobre a mesa de Harkin. O xerife descreveu brevemente, para ser gravado nos autos, como e onde o material foi encontrado e depois disso saiu da sala.

— Meus senhores, não tenho outra opção: vou dispensar o senhor Herrera—informou o Meritíssimo, e os advogados não disseram nada.

Herrera foi conduzido novamente à sala do juiz e foi-lhe indicada a mesma cadeira.

 

— Para que conste nos autos — disse o juiz Harkin para a estenó-grafa. — Senhor Herrera, qual é o número do seu quarto no Siesta Inn?

— Cinquenta.

— Este material foi encontrado há poucos minutos debaixo da cama do quarto cinquenta. — Harkin mostrou os jornais com um gesto amplo. — São todos recentes, a maior parte com data posterior à do isolamento do júri.

Herrera estava perplexo.

— E, é claro, são todos não autorizados, alguns altamente prejudiciais.

— Não são meus — disse Herrera devagar, crescendo de fúria.

— Compreendo.

— Alguém os pôs lá.

— Quem é que podia ter feito isso?

— Não sei. Talvez a mesma pessoa que fez a denúncia.

Um bom argumento, pensou Harkin, mas não para ser investigado naquela fase. Cable e Rohr olharam para o juiz, como se quisessem perguntar: «Quem é que fez a denúncia?»

— Não podemos fugir ao facto de que foram encontrados no seu quarto, senhor Herrera. Por esse motivo, não tenho escolha senão dispensá-lo do júri.

Agora Frank começava a focar as suas ideias e havia uma série de perguntas que queria fazer. Pretendia erguer a voz e dizer a Harkin o que pensava, mas de repente compreendeu que estava a ser libertado. Depois de quatro semanas de julgamento e nove noites no Siesta Inn, ia sair daquele tribunal e voltar para casa. Estaria no campo de golfe à hora do almoço.

— Não acho justo — disse, sem muita convicção, tentando não exagerar.

— Lamento. Mais tarde estudarei o caso que desrespeito ao tribunal. Para já, temos de continuar com o julgamento.

— O senhor manda, juiz — declarou Frank. Jantar marisco no Vraze's, com a lista de vinhos à sua frente. No dia seguinte podia ver o neto.

— Um polícia vai escoltá-lo até ao motel para que faça as suas malas. A minha recomendação é a seguinte: não comente nada disto com ninguém, especialmente com a imprensa. Até nova ordem, o senhor está obrigado ao silêncio no âmbito do segredo de justiça. Compreende isso?

— Sim, senhor.

O coronel foi escoltado para a escada da parte de trás do prédio e saiu pela porta das traseiras, onde o xerife o esperava para a rápida e final viagem de Herrera para o Siesta Inn.

— Proponho uma moção para que se anule o julgamento — disse Cable, na direcção da estenógrafa. — Com base no facto de que este júri pode ter sido indevidamente influenciado pelo artigo ontem publicado na Mogul.

— Moção negada — disse o juiz Harkin. — Mais alguma coisa? Meneando a cabeça, os advogados levantaram-se.

Os onze jurados e os dois substitutos ocuparam o seus lugares alguns minutos depois das dez na sala silenciosa. A cadeira de Frank, na segunda fila, extremidade esquerda, estava vazia, o que foi imediatamente notado por todos. O juiz Harkin cumprimentou-os com ar solene e foi directamente ao assunto. Erguendo um exemplar da véspera da revista Mogul, perguntou se alguém tinha visto, lido ou ouvido alguma coisa sobre o seu conteúdo. Ninguém se manifestou.

Então disse:

— Por razões esclarecidas na minha sala e gravadas nos autos, o jurado número sete, Frank Herrera, foi dispensado e será agora substituido pelo jurado seguinte, o senhor Henry Vu.

Nesse momento, Willis disse qualquer coisa a Henry, que se levantou da cadeira de armar e com quatro passos chegou à cadeira número sete, onde se tornou membro oficial dojúri, deixando Shine Royce sozinho como eventual substituto.

Ansioso por prosseguir com os trabalhos e desviar a atenção do júri, o juiz Harkin disse:

— Doutor Cable, chame a sua próxima testemunha.

O jornal de Fitch desceu quinze centímetros, encostado no peito, e o seu queixo caiu também quando olhou atónito para a nova composição dojúri. Estava assustado com a saída de Herrera e, ao mesmo tempo, impressionado porque a sua amiga Marlee, com a varinha de condão, acabava de cumprir a sua promessa. Fitch não se conteve e olhou para Easter que, certamente, percebeu e retribuiu o olhar. Durante cinco ou seis segundos, uma eternidade para Fitch, os seus olhos encontraram-se, separados por uma distância de trinta metros, Easter mostrava um sorriso superior e orgulhoso, como quem diz: «Veja o que eu posso fazer. Está impressionado ?» Os olhos de Fitch diziam: «Estou. Agora, diga-me o que quer!»

Na fase de preparação do processo, Cable tinha ouvido vinte e duas testemunhas possíveis, praticamente todas com o título de doutor antes do nome e sólidas credenciais. A sua colecção incluía experientes veteranos das guerras de outros julgamentos, investigadores bem informados, subvencionados pela Big Tobacco e imensos outros, todos reunidos para contra-atacar o que o júri já tinha ouvido.

Nos últimos dois anos, os vinte e dois tinham sido usados como testemunhas por Rohr e pela sua equipa. Não haveria surpresas.

O consenso era de que os golpes mais vigorosos da acusação foram desfechados por Leon Robilio e pelas suas afirmações de que as crianças eram o alvo preferido da indústria. Cable achou melhor começar o ataque por esse ponto.

— A defesa chama a doutora Denise McQuade — anunciou.

Entrou por uma porta lateral e os presentes, na maioria homens de meia-idade, pareceram um pouco mais animados quando a doutora caminhou para o banco das testemunhas. Sorriu para o Meritíssimo, que se derreteu num sorriso de retorno, e sentou-se. A doutora McQuade era uma bela mulher, alta e magra, com um vestido vermelho curto poucos centímetros acima dos joelhos e cabelo louro severamente penteado para trás até cair nos ombros. Fez o juramento com um sorriso simpático e, quando cruzou as pernas, garantiu a total atenção da audiência. Parecia demasiado jovem e bonita para se envolver numa disputa tão desagradável como aquela.

Os seis homens do júri, especialmente Jerry Fernandez e Shino Royce, o substituto, observaram-na com atenção quando ela puxou o microfone para perto da boca. Baton vermelho, unhas longas e encarnadas.

Se esperavam uma beldade tola, ficaram desapontados. A voz discreta informou sobre o currículo académico, a família, a experiência e a especialização. Era notável em psicologia comportamental, com uma empresa particular em Tacoma. Tinha quatro livros publicados, mais de três dúzias de artigos e Rohr não fez nenhuma objecção quando Cable apresentou a moção para que fosse aceite a qualificação privilegiada da doutora McQuade.

Foi directa ao assunto. A publicidade faz parte da nossa cultura. Os anúncios dirigidos a um grupo etário ou uma classe são naturalmente vistos e ouvidos pelos que não pertencem ao grupo visado. Isso não se pode evitar. As crianças vêem os anúncios de cigarros, tal como vêem os jornais, as revistas, os cartazes e as montras das lojas de conveniência, mas isso não significa que as crianças são o alvo. As crianças também vêem os anúncios de cerveja geralmente apresentados pelos seus heróis favoritos. Por acaso isso significa que os fabricantes de cerveja estão a tentar, de modo subliminar, viciar a próxima geração? É claro que não. Simplesmente querem vender mais cerveja ao seu mercado. As crianças estão apenas no caminho, mas nada podemos fazer, excepto proibir toda a publicidade a esses produtos. Cigarros, cerveja, vinho, outras bebidas, e o que dizer do café, dos preservativos e da manteiga? Os anúncios a cartões de crédito encorajam as pessoas a gastar mais e a economizar menos. A doutora McQuade enfatizou várias vezes o ponto de que a liberdade de expressão é um valioso direito da sociedade actual e que eventuais restrições à publicidade devem ser cuidadosamente seleccionadas.

Os anúncios de cigarros não diferem dos outros. O seu objectivo é reforçar o desejo de comprar e usar o produto. Boa publicidade estimula a resposta natural para comprar o que é anunciado. A publicidade ineficaz não tem esse efeito e é rapidamente retirada. Usou como exemplo o caso da McDonald's, uma empresa que tinha estudado. Tinha um relatório desse estudo à disposição dos jurados. Qualquer criança de três anos é capaz de cantarolar, assobiar ou cantar o último jingle da McDonald's. A primeira ida da criança à McDonald's é uma ocasião de festa. Isso não é ocasional, a empresa gasta milhões para atrair as crianças antes que os seus competidores o façam. As crianças americanas consomem mais gordura e colesterol do que as da geração anle-rior. Comem mais cheese burguers, batatas fritas e pizza, e bebem mais refrigerantes e sumos açucarados. Alguém acusa a McDonald's e a Pizza Hut de práticas de publicidade insidiosas por ter como alvo crianças e jovens? Deveríamos processá-las porque os nossos filhos são mais gordos?

Não. Como consumidores, fazemos escolhas informadas sobre a comida que damos aos nossos filhos. Ninguém pode dizer que fazemos a melhor escolha. Da mesma forma, como consumidores, fazemos escolhas informadas sobre o tabaco. Somos bombardeados com anúncios de milhares de produtos e respondemos a essa publicidade que reforça as nossas necessidades e os nossos desejos.

Cruzava e descruzava as pernas mais ou menos de vinte em vinte minutos e cada movimento era devidamente registado pelos bandos de advogados em volta das duas mesas, pelos seis jurados e também pela maioria das mulheres.

Era agradável olhar para a doutora McQuade e fácil acreditar nela. O seu depoimento fazia sentido e conseguiu estabelecer contacto com a maioria dos jurados.

Rohr debateu-se com ela com cortesia durante uma hora no interrogatório indirecto, mas não conseguiu desferir-lhe nenhum golpe importante.

 

De acordo com Napier e Nitchman, o senhor Cristano, do Departamento de Justiça, esperava ansiosamente por um relatório completo sobre a conversa entre Hoppy e Millie na sua última «visita pessoal».

— Tenho de contar tudo? — perguntou Hoppy.

Os três estavam debruçados sobre uma mesa de equilíbrio precário, num restaurante de estrada cheio de fumo,tomando café a ferver em copos de papel e à espera de umas gordurosas sanduíches de queijo.

— Menos a parte pessoal — disse Napier, duvidando que houvesse muito a relatar sobre esse capítulo.

Se eles soubessem, pensou Hoppy, ainda orgulhoso do seu próprio desempenho.

—Bem, mostrei o memorando sobre Robilio a Millie — foi dizendo, sem saber ainda se ia contar toda a verdade.

— E...?

— E ela leu-o.

— Claro que leu. E depois? O que é que fez? — perguntou Napier.

— Qual foi a resposta dela? — quis saber Nitchman.

Podia mentir e dizer que ficara atónita, que acreditara em tudo e que mal podia esperar para mostrar o memorando aos seus companheiros do júri. Era o que queriam ouvir. Mas Hoppy não sabia o que fazer. Mentir podia piorar as coisas.

— Não reagiu muito bem — informou, e então contou a verdade.

Quando as sanduíches chegaram, Nitchman saiu da mesa e foi telefonar para o senhor Cristano. Hoppy e Napier comeram sem olhar um para o outro. Hoppy sentia-se como a própria imagem do fracasso. Estava certamente a um passo da prisão.

— Quando é que vai vê-la outra vez? — perguntou Napier.

— Não sei bem. O juiz ainda não disse. É possível que o julgamento termine já esta semana.

Nitchman voltou para a mesa.

— O senhor Cristano vem a caminho — informou solenemente, e Hoppy sentiu um aperto no estômago. — Deve chegar esta madrugada. Amanhã de manhã fala consigo.

— Com certeza.

— Não está nada satisfeito.

— Nem eu.

Rohr passou a hora do almoço trancado no escritório com Cleve, fazendo o trabalho sujo que tinham de fazer às escondidas. A maioria dos outros advogados usava mensageiros como Cleve para distribuir dinheiro, descobrir casos e encarregar-se de algumas tarefas não ensinadas na faculdade de direito. Mas nenhum deles admitiria que era culpado de uma actividade tão anti-ética. Os advogados de barra mantinham os nomes dos seus mensageiros em segredo.

Rohr tinha várias escolhas. Podia dizer a Cleve para que mandasse Derrick Maples desaparecer. Podia pagar vinte e cinco mil dólares em dinheiro a Derrick Maples e podia prometer outros vinte e cinco mil por cada voto a favor da acusação no veredicto final, desde que fossem no mínimo nove. Isso custaria duzentos e vinte e cinco mil dólares no máximo, uma quantia que Rohr estava perfeitamente disposto a pagar. Mas duvidava que Angel Weese fosse capaz de conseguir mais de dois votos — o dela, e talvez o de Loreen Duke. Angel não era uma líder. Podia manipular Derrick para que procurasse os advogados da defesa e aí apanhá-los-ia em flagrante. Isso provavelmente provocaria a dispensa de Angel do júri, uma coisa que Rohr não queria.

Rohr podia pôr Cleve sob escuta, gravar declarações incriminadoras de Derrick e depois ameaçá-lo com um processo criminal se não pressionasse a namorada. Mas isso também era arriscado porque a conspiração de suborno teria nascido no escritório de Rohr.

Estudaram todas as possibilidades e decidiram-se por um plano híbrido.

— Vamos fazer o seguinte — disse Rohr —, damos-lhe quinze mil agora, prometemos mais dez para depois do veredicto e gravamos a conversa dele. Marcamos algumas das notas e preparamos-lhe uma armadilha para mais tarde. Prometemos vinte e cinco pelos outros votos e, se conseguirmos uma decisão favorável, caímos-lhe em cima quando

exigir o resto. Teremos a gravação e, quando ele começar a fazer barulho, ameaçamos chamar o FBI.

— Gosto disso — disse Cleve. — Recebe o dinheiro, nós o veredicto, e ele fica na pior. Parece-me justo.

— Arranje o microfone e o dinheiro. Isso ainda tem de ser feito hoje.

Derrick tinha outros planos. Encontraram-se no bar escuro do Re-sort Casino, cheio de perdedores consolando-se da má sorte com bebidas baratas, enquanto lá fora o Sol brilhava e a temperatura chegava quase aos 21 graus.

Derrick não estava disposto a ser ignorado depois do veredicto. Queria os vinte e cinco mil de Angel em dinheiro, agora, adiantados. E também queria um «sinal», era assim que lhe chamava, por cada um dos outros jurados. Um sinal pré-veredicto. Em dinheiro também, é claro, alguma coisa razoável e justa, digamos, cinco mil por cada jurado. Cleve fez a soma rapidamente e enganou-se no resultado. Derrick estava a falar de uma decisão unânime, assim o depósito de cinco mil, vezes os outros onze jurados, somava cinquenta e cinco mil dólares. Se somasse o de Angel, Derrick queria oitenta mil dólares em dinheiro.

Conhecia uma funcionária da secretaria do tribunal e a rapariga tinha consultado o processo.

— Vocês processaram a tabaqueira e pediram milhões de indemnização — disse, e cada palavra que proferia era captada por um microfone escondido no bolso da camisa de Cleve. — Oitenta mil é uma gota no meio do oceano. Uma insignificância.

— Você é louco — disse Cleve.

— E você é desonesto.

— Não podemos pagar oitenta mil em dinheiro. Não percebe que quando há demasiado dinheiro em jogo aumentam os riscos de sermos apanhados?

— Óptimo. Então vou negociar com a tabaqueira.

— Esteja à vontade. E não se mace a contar-me os pormenores. Depois fico a par pelos jornais.

Não chegaram a acabar as bebidas. Mais uma vez Cleve saiu à frente, mas Derrick não correu atrás dele.

O desfile de beldades continuou na tarde de quinta-feira, quando Cable chamou para testemunhar a doutora Myra Sprawling-Goode, mestra e investigadora negra da Rutgers, que fez virar todas as cabeças da sala quando se apresentou para depor. Tinha quase um metro e oitenta e cinco de altura e era tão bonita e bem-vestida como a última testemunha. A pele moreno-clara, macia, franziu-se em linhas perfeitas quando sorriu para os jurados: um sorriso que se demorou um pouco mais em Lonnie Shaver, que lho retribuiu.

Quando começou à procura de especialistas, Cable tinha um orçamento ilimitado, de modo que podia dispensar testemunhas que não fossem suficientemente inteligentes, articuladas e capazes de comunicar com o homem comum. Antes de contratá-la, Cable gravou-a em vídeo duas vezes, e outra ainda no escritório de Rohr, já durante o julgamento. Dois meses antes do julgamento, e como todas as outras testemunhas, a doutora passou dois dias a ensaiar num tribunal simulado. Cruzou as pernas e a sala toda respirou fundo.

Myra Sprawling-Goode era professora de marketing, tinha feito dois doutoramentos e vinha especialmente bem credenciada. Mas isso não foi surpresa para ninguém. Trabalhara oito anos em publicidade, na Madison Avenue, até terminar os seus estudos. Depois voltou para a academia. A sua especialidade era publicidade para o consumidor, tema que ensinava a nível pós-graduado, aprofundando cada vez o nível das investigações que conduzia. O objectivo da sua presença no tribunal ficou logo claro. Um cínico poderia dizer que ela estava ali para enfeitar, para estabelecer contacto com Lonnie Shaver, Loreen Duke e Angel Weese, para que sentissem orgulho daquela afro-americana capaz de proferir opiniões abalizadas num julgamento de importância crucial.

Mas, na realidade, estava ali por causa de Fitch. Seis anos antes, depois de um susto em Nova Jérsia, quando o júri levou três dias para voltar com o veredicto a favor da defesa, Fitch resolveu encontrar uma investigadora atraente, de preferência de uma universidade famosa, para, com uma parte do dinheiro do Fundo, estudar a publicidade ao tabaco e os seus efeitos nos adolescentes. Os parâmetros do projecto seriam vagamente definidos pelos fmanciadores e Fitch tinha esperança de que os resultados do estudo ainda pudessem vir a ser úteis no julgamento.

A doutora Sprawling-Goode nunca ouvira falar em Rankin Fitch. Recebeu um subsídio de oitocentos mil dólares do Instituto de Produtos de Consumo, um instituto obscuro e desconhecido, de Otava, que segundo os próprios existia para estudar as tendências de marketing de milhares de produtos de consumo. Sabia muito pouco sobre o Instituto de Produtos de Consumo. Rohr também não sabia grande coisa. Ele e os seus investigadores procuraram informações mais detalhadas sobre o assunto durante dois anos. Mas não tinham sido bem sucedidos: tratava-se de uma instituição cercada de secretismo que reunia um conselho de sábios convidados pelo governo para estudar comportamentos sociais. Por isso, até certo ponto, esta instituição era protegida pelas leis canadianas. Aparentemente era financiada por grandes empresas de produtos de consumo e, ao que parecia, os fabricantes de cigarros não entravam nesse grupo.

Os resultados dos seus estudos estavam compilados numa pasta, com uma bela capa, que Cable pediu para que passasse a constar como prova. Juntou-se à pilha de outros documentos, como uma peça essencial dos autos. Para ser exacto, era o documento número oitenta e quatro, acrescentado às, mais ou menos, vinte mil páginas de provas que deviam ser estudadas pelo júri durante a deliberação.

Depois de descrever com muita eficiência as bases do estudo, os resultados eram surpreendentemente sem surpresa. A não ser por certas excepções claras e bem definidas, toda a publicidade de produtos de consumo é dirigida aos jovens adultos. Carros, pasta de dentes, sabonetes, cereais, cerveja, refrigerantes, roupas, água-de-colónia —todos os produtos mais intensamente anunciados têm os jovens adultos como alvo principal. O mesmo se aplica aos cigarros. Sem dúvida que são mostrados como produto de escolha dos magros e belos, dos activos e despreocupados, dos ricos e «charmosos». Porém, acontece a mesma coisa com centenas de outros produtos.

Aí citou uma lista específica de produtos, começando pelos automóveis. Quando foi a última vez que viram um anúncio de televisão de um carro desportivo com um condutor de cinquenta anos? Ou uma rninivan conduzida por uma dona de casa obesa com seis filhos e um cachorro sujo pendurados nas janelas? Não se lembram? Pois não. Isso não acontece nunca. E a cerveja? Temos dez homens sentados numa sala confortável a ver o campeonato de futebol na televisão.

Todos têm cabelo, linha do queixo bem definida, jeans perfeitas e nenhum tem barriga. Ora, isto não é a realidade, mas é publicidade eficiente.

O depoimento adquiriu humor à medida que descrevia os itens da sua lista. Pasta de dentes? Alguma vez viram uma pessoa feia com dentes feios a sorrir-lhes no ecrã da televisão? É claro que não. Todos têm dentes perfeitos. Até nos anúncios de produtos para combater o acne, os adolescentes só têm uma ou duas borbulhas.

Sorria com naturalidade e às vezes ria divertida com os seus próprios comentários. O júri sorria com ela. O seu entusiasmo acertou o centro do alvo várias vezes. Se, para que a publicidade seja eficiente, é necessário ter como alvo os jovens adultos, como é que se pode pedir aos fabricantes de cigarros que ajam ignorando este dado?

Parou de sorrir quando Cable a conduziu para a publicidade a tabaco que tinha como alvo crianças. Ela e a sua equipa de investigadores não tinham encontrado nenhuma prova de que isso acontecesse. E tinham analisado milhares de anúncios de tabaco feitos nos últimos quarenta anos. Tinham observado, estudado e catalogado todos os anúncios de cigarros produzidos desde o advento da televisão. Quase a título de aparte, ainda comentou que o número de fumadores tinha aumentado depois de proibirem a passagem de anúncios na televisão. Passara quase dois anos à procura de provas que lhe confirmassem que os fabricantes de cigarros visavam os adolescentes porque, confessou, tinha começado o projecto com esse infundado preconceito. Mas verificou que não era verdade.

Na sua opinião, o único modo de evitar que as crianças sejam influenciadas pela publicidade é proibindo todos os tipos de publicidade — cartazes, anúncios em autocarros, nos jornais, revistas, etc. E, na sua opinião, isso não contribuiria de forma nenhuma para diminuir a venda de cigarros. Não teria nenhum impacto nos hábitos dos fumadores menores de idade.

Cable agradeceu-lhe como se ela fosse uma testemunha voluntária. A doutora Sprawling-Goode já tinha recebido sessenta mil dólares para testemunhar e ainda ia mandar uma conta de mais quinze mil. Rohr não era exactamente um cavalheiro, mas sabia que era perigoso atacar uma mulher tão bonita em pleno Sul. Preferiu agir devagar e delicadamente. Tinha muitas perguntas sobre o Instituto de Produtos de Consumo e sobre os oitocentos mil dólares pagos para aquele projecto de investigação. Era uma entidade académica, criada para estudar tendências e sugerir meios de acção. Além do mais, era subsidiada por indústrias particulares.

— Algum fabricante de cigarros?

— Não. Que eu saiba, não.

— Alguma subsidiária das tabaqueiras?

— Não tenho a certeza.

Fez muitas perguntas sobre as empresas relacionadas com os fabricantes de cigarros, casas-mãe, filiais, divisões e holdings, e não sabia nada a esse respeito.

Não sabia nada porque Fitch tinha planeado as coisas dessa maneira.

A pista de Claire tomou um caminho inesperado na quinta-feira de manhã. O ex-namorado de uma amiga de Claire recebeu mil dólares em dinheiro e disse que a sua ex-namorada estava agora em Green-wich Village, trabalhando como empregada de balcão na esperança de conseguir trabalho em novelas de televisão. A sua ex-namorada e Claire tinham trabalhado juntas no Mulligan's e supostamente eram boas amigas. S wanson tornou um avião para Nova Iorque. Chegou na quinta-feira ao fim da tarde e apanhou um táxi para um pequeno hotel no SoHo, onde pagou em dinheiro um quarto para uma noite e começou a fazer telefonemas. Encontrou Beverly que trabalhava mmapizzaria. Atendeu o telefone apressada.

— Estou a falar com Beverly Monk?—perguntou S wanson, numa imitação quase perfeita da voz de Nicholas Easter. Tinha ouvido dezenas de vezes a gravação da voz dele.

— Sim. Quem fala?

— Estou mesmo a falar com a Beverly Monk que trabalhou no Muiligan's, emLawrence?

Uma pausa e então:

— Sim. Quem fala?

— Jeff Kerr, Beverly. Há tanto tempo que não nos falamos. — Swanson e Fitch esperavam que, depois de saírem de Lawrence, Claire e Jeff não tivessem mantido contacto com Beverly.

— Quem? — perguntou ela, e Swanson ficou mais calmo.

— Jeff Kerr. O namorado de Claire. Eu estudava Direito.   

— Ah, sim. — O tom era de que talvez estivesse lembrada, talvez não.

— Vim a Nova Iorque e gostava de saber se tens tido notícias da Claire.

— Não estou a perceber — disse ela devagar enquanto tentava mentalmente juntar o nome a um rosto e descobrir por que razão lhe estaria a telefonar aquele homem.

— Bem, isto é uma longa história, mas a Claire e eu separámo-nos há um mês. E ando à procura dela.

— Há quatro anos que não falo com a Claire.

— Estou a ver...

— Desculpe, mas estou muito ocupada. Fica para outro dia, está bem?

— Claro. — Swanson desligou e telefonou para Fitch. Resolveram que valia a pena oferecer dinheiro a Beverly Monk

para saber alguma coisa sobre Claire. Se não falava com ela há quatro anos, não poderia localizar Marlee rapidamente e contar-lhe que a tinham procurado. Swanson devia segui-la e esperar até ao dia seguinte.

Fitch exigia que todos os consultores de júri lhe entregassem um relatório de uma página no fim de cada dia do julgamento. Uma página, a dois espaços, sem palavras com mais de quatro sílabas, descrevendo em linguagem clara a impressão que cada uma das testemunhas tinha causado no júri naquele dia. Fitch exigia opiniões honestas e já havia censurado os seus especialistas quando a linguagem não era suficientemente clara. Insistia que os relatórios deviam ser pensados e redigidos com um certo pessimismo. Os relatórios deviam chegar à sua mesa exactamente uma hora depois do juiz Harkin determinar que o julgamento ficava suspenso até ao dia seguinte.

Os relatórios de quarta-feira sobre o depoimento de Jankle variavam de regulares a maus, mas as apreciações sobre os depoimentos das doutoras Denise McQuade e Myra Sprawling-Goode eram simplesmente magníficos. Além de dar nova vida a um tribunal sombrio, cheio de homens fastidiosos vestidos com fatos escuros, as duas mulheres tinham tido um óptimo desempenho como testemunhas. Os jurados prestaram atenção e pareciam acreditar no que estavam a ouvir. Especialmente os homens.

Mas isso não serviu de consolo a Fitch, que nunca se tinha sentido tão inseguro numa altura como esta. Com a saída de Herrera, a defesa perdia um dos jurados mais simpáticos para a sua causa. De repente a i inprensa económica de Nova Iorque resolveu dizer que a defesa estava na corda-bamba e, evidentemente, preocupada com a possibilidade de um veredicto a favor da acusação. A coluna de Barker na Mogul era o tópico mais quente da semana. Jankle foi um desastre. Luther Vandemeer, da Trellco, o mais esperto e mais influente dos directo-res-executivos das Quatro Grandes, telefonou zangado, à hora do almoço. O júri estava isolado e, quanto mais demorasse o julgamento, mais os jurados descarregariam a culpa no lado que no momento estivesse a apresentar as suas testemunhas.

A décima noite de isolamento passou sem incidentes. Nada de amantes fora de horas. Nenhuma escapadela para os casinos. Nada de ioga espontânea e em altos berros. Ninguém sentiu falta de Herrera. Fez as malas em poucos minutos e foi-se embora, repetindo várias vezes ao xerife que aquilo era uma cilada e prometendo investigar o caso a fundo.

Depois do jantar, os jurados improvisaram um campeonato de damas. Herman tinha um tabuleiro em braile com espaços numerados e na noite anterior tinha ganho onze partidas a Jerry. Foram feitos os desafios, a mulher de Herman levou o tabuleiro para a sala e todos se reuniram em volta dele. Em menos de uma hora, Herman venceu Ni-cholas três vezes seguidas, Jerry outras três, três vezes Henry Vu, que nunca tinha jogado damas, três vezes seguidas Willis e estava a prepara-se para jogar com Jerry outra vez, por uma aposta menor, quando Loreen Duke entrou na sala para se servir novamente de sobremesa. Loreen jogava damas com o pai desde pequena. Quando venceu Herman, na primeira partida, ninguém demonstrou a menor simpatia pelo cego. Continuaram a jogar até à hora de apagar as luzes.

Como sempre, Phillip Savelle ficou no quarto. Falava ocasionalmente durante as refeições no motel mas, nos breves intervalos para o café, na sala dos jurados, ficava o tempo todo com o nariz enfiado num livro, ignorando todos os outros.

Nicholas tentou em vão por duas vezes comunicar com ele. Savelle não suportava conversa oca e não queria que ninguém soubesse nada a seu respeito.

 

Depois de trinta anos dedicados à pesca do camarão, Henry Vu raramente dormia para além das quatro e meia da manhã. Na sexta-feira tomou o seu chá quente muito cedo e agora, sem o coronel, sentou-se à mesa sozinho, lendo um jornal. Nicholas entrou cedo na sala. Como sempre fazia, Nicholas começou com amabilidades e perguntou como ia a filha de Vu, em Harvard. Ela era motivo de imenso orgulho e os olhos de Henry dançaram quando falou da sua última carta.

Outros entraram e saíram da sala. A conversa passou para o Vietname e para a guerra. Nicholas, pela primeira vez, contou a Henry que o pai tinha morrido no Vietname em 1972. Não era verdade, mas Henry ficou profundamente comovido com a história. Então, quando ficaram sozinhos, Nicholas perguntou:

— Afinal, o que é que acha deste julgamento?

Henry bebeu um longo golo de chá com muito leite e passou a língua pelos lábios.

— Podemos falar sobre isso?

— Claro. Só entre nós dois. Toda a gente fala, Henry. Faz parte da natureza do júri. Toda a gente menos o Herman.

— O que é que os outros acham?

— Creio que a maior parte ainda está imparcial. O mais importante é ficarmos unidos. É crucial chegar a um veredicto, de preferência unânime, mas pelo menos com uma votação de nove a três, para um lado ou para o outro. Um impasse seria desastroso.

Henry tomou mais um pouco de chá e pensou no assunto. Compreendia muito bem o inglês e falava perfeitamente, embora com sotaque; porém, como a maioria dos leigos, nativos e imigrantes, sabia muito pouco sobre leis.

— Porquê? — perguntou. Confiava em Nicholas, como praticamente todos os jurados, porque Nicholas tinha estudado Direito e aparentemente tinha uma incrível aptidão para compreender os factos e os pontos importantes que passavam despercebidos aos outros.

— Muito simples. Este é o maior de todos os julgamentos de um processo contra os fabricantes de cigarros — Gettysburgjwo Jima, Armagedom. Aqui as duas partes encontraram-se para descarregar a sua artilharia mais pesada. Tem de haver um vencedor, tem de haver um perdedor. De modo claro e decisivo. A questão da responsabilidade dos fabricantes pelos efeitos do cigarro deve ser resolvida aqui e agora por nós. Fomos escolhidos e cabe-nos chegar a uma decisão.

— Sim, compreendo — disse Henry, balançando a cabeça afirmativamente, mas ainda confuso.

— A pior coisa que podemos fazer é criar um impasse, dividir o júri ao meio e determinar a anulação do julgamento.

— É assim tão mau? Porquê?

— Porque seria uma desistência. Estaríamos a passar a responsabilidade para o próximo júri. Se criarmos o impasse e voltarmos para casa, isso vai custar milhões de dólares a cada uma das partes porque terão de se reunir dentro de dois anos e repetir tudo. O mesmo juiz, os mesmos advogados, as mesmas testemunhas, será tudo igual, excepto o júri. Na verdade, estaríamos a dizer que não somos capazes de chegar a uma decisão e que o próximo júri de Harrison County será mais inteligente.

Henry inclinou-se um pouco para a direita, na direcção de Nicholas.

— O que é que vai fazer? — perguntou, no momento em que Millie Dupree e a senhora Gladys Card entraram a rir e se serviram de café. Conversaram com eles por um momento e saíram para ver Katie no «Today Show». Adoravam Katie.

— O que vai fazer? — repetiu Henry em voz baixa, olhando para a porta.

— De momento, ainda não sei e não é importante. O que importa é ficarmos unidos. Nós todos.

— Tem razão — concordou Henry.

Durante todo o julgamento, Fitch habituou-se a trabalhar na sua mesa antes do início da sessão, olhando constantemente para o telefone. Sabia que Marlee ia telefonar na sexta de manhã, mas não tinha a mais pequena ideia sobre que plano ou brincadeira iria ela inventar e que lhe faria parar o coração.

Às oito horas em ponto, a voz de Konrad soou no intercomynicador dizendo apenas:

— É ela. Fitch mergulhou em direcção ao telefone.                      

— Estou... — disse, suavemente.

—Olá, Fitch, oiça: adivinhe quem está agora a incomodar o Nicholas? Fitch abafou um gemido e fechou os olhos com força.          

— Não sei.

— Bem, está mesmo a dar um trabalho danado ao Nicholas. Vamos ter de dispensá-lo.

— Quem? — implorou Fitch.

— Lonnie Shaver.

— Oh, não! Não podem fazer isso!

— Porquê, Fitch?

— Não faça isso, Marlee! Que inferno!                             

Ela deixou-o desesperar por uns segundos.

— Deve gostar muito de Lonnie.                                       

— Têm de parar, Marlee, está bem? Onde é que isto nos vai levar? — Fitch percebia que estava a revelar o seu desespero, mas não conseguia controlar-se.

— Nicholas precisa de harmonia no júri. É só isso. Lonnie tornou-se uma rosa com espinhos.

— Não faça isso, por favor. Vamos conversar primeiro.       

— Estamos a conversar, Fitch, mas não por muito tempo. Fitch respirou fundo, uma, duas vezes.

— O jogo está quase no fim, Marlee. Agora, o que é que quer?

— Tem uma caneta?

— Claro.

__Há um prédio na Fulton, número cento e vinte. Tijolo branco, dois

andares, um prédio velho remodelado para escritórios. O número dezasseis no segundo andar pertence-me, pelo menos por mais um mês. Não é bonito, mas é onde vamos encontrar-nos.

— Quando?

— Dentro de uma hora. Só nós dois. Vejo-o entrar e sair se vir algum capanga por perto nunca mais falo consigo.             

—  Como quiser. "

— E vou verificar se tem gravadores e microfones.

— Não vai encontrar nenhum.

Todos os advogados da equipa de defesa de Cable eram de opinião de que Rohr tinha gasto muito tempo com os seus cientistas: ao todo, nove dias. Mas com os sete primeiros, o júri pelo menos tinha podido voltar para casa à noite. As coisas estavam muito diferentes agora. Resolveram escolher dois dos seus melhores cientistas e fazer com que os seus depoimentos fossem os mais breves.

Resolveram também ignorar a questão da dependência da nicotina, um afastamento radical da defesa normal nos casos de processos contra tabaqueiras. Cable e a sua equipa tinham estudado cada um dos dezasseis julgamentos anteriores. Conversaram com a maioria dos jurados que tinham decidido aqueles casos e ouviram repetidamente que a parte mais fraca da defesa foi quando os especialistas descreveram uma série de teorias sofisticadas para provar que a nicotina não vicia. Toda a gente sabia que o contrário era verdade. Tudo se resumia a isso. Não se deve tentar convencer os jurados do contrário.

Para isso precisavam da aprovação de Fitch, e a aprovação foi dada com relutância.

Na sexta-feira de manhã a primeira testemunha foi um homenzinho feio e desengonçado com uma barba rala e grossas lentes bifocais. Aparentemente o desfile de beleza tinha acabado. O seu nome era Gunther, doutor Gunther, e a sua opinião era de que o tabaco não causa cancro. Só dez por cento dos fumadores tinham cancro; nesse caso, o que acontecia aos outros noventa por cento? Como se fosse uma praxe, Gunther tinha uma pilha de estudos e relatórios relevantes e mal podia esperar para ficar de pé na frente do júri com um tripé e um ponteiro para explicar com detalhes sensacionais as suas últimas descobertas.

Gunther não estava ali para provar nada. A sua tarefa consistia em contradizer o doutor Hilo Kilvan e o doutor Robert Bronsky, especialistas da acusação, e em turvar um pouco as águas para criar na mente dos jurados uma considerável dúvida sobre a natureza letal do cigarro. Não podia provar que o fumo não provoca cancro do pulmão e argumentou que nenhuma investigação científica tinha provado indubitavelmente o contrário.

— Precisamos de mais investigações, de mais pesquisa — dizia de dez em dez minutos.

Para o caso de ela estar a vê-lo, Fitch percorreu a pé o último quarteirão até ao número cento e vinte da Fulton Street, um passeio agradável na calçada, à sombra das árvores com as folhas caindo suavemente. O prédio ficava na parte antiga da cidade, a quatro quarteirões do Golfo, numa fileira de prédios de dois pisos, caprichosamente pintados, quase todos com ar de escritórios. Mandou José esperar três ruas antes.

Nem pensar em escutas ou microfones. Marlee fê-lo perder esse hábito no encontro anterior, no cais. Fitch estava sozinho, sem microfones, sem gravador, sem câmara e sem nenhum agente por perto. A sensação era de liberdade. Teria de sobreviver à custa do cérebro e da vontade, e o desafio agradava-lhe.

Subiu a escada de madeira em frente à porta sem nenhum sinal do escritório de Marlee, olhou para as outras portas sem identificação no corredor estreito e bateu ao de leve.

— Quem é? — perguntou ela.

— Rankin Fitch — respondeu em voz alta para ser ouvido lá dentro. Ouviu o ruído do fecho de segurança a abrir e Marlee apareceu

com uma blusa cinzenta e calças de ganga, sem sorrir, sem dizer uma palavra. Fitch entrou, ela fechou a porta e foi até à mesa. Fitch examinou a sala, um cubículo sem janelas, uma porta, tinta descascada nas paredes, manchas escuras de infiltrações no tecto.

— Está limpo, Fitch. Nenhum telefone para armadilhar, nenhuma abertura de ventilação para câmaras, nenhum fio nas paredes. Vou examinar todas as manhãs e se encontrar alguma pista de que passou por aqui, simplesmente saio por aquela porta e nunca mais volto.

— Está a fazer um mau juízo de mim.

— Você merece.

Fitch olhou para o tecto outra vez, depois para o soalho.

— Gosto deste sítio.

— Serve para o que quero.

 — E o que é que quer?

Marlee tirou da carteira, a única coisa que estava sobre a mesa, o mesmo sensor do outro encontro e com ele examinou Fitch dos pés à cabeça.

Vá lá, Marlee... — protestou. — Euprometi.

— Está limpo. Sente-se. — Indicou uma das duas cadeiras em frente à mesa. Fitch balançou a cadeira desdobrável e frágil para ter certeza de que suportaria o seu peso. Sentou-se, inclinou o corpo para frente, com os cotovelos apoiados na mesa e quando sentiu que ela não era muito estável segurou-a com força nas duas extremidades. — Estamos prontos para falar em dinheiro?—perguntou com um sorriso maldoso.

— Sim. Na verdade, é uma proposta muito simples, Fitch. Envia-me uma ordem de pagamento e prometo entregar o veredicto.

— Acho que devemos esperar até ao veredicto.

— Sabe que não sou burra.

A mesa tinha um metro de largura. Estavam os dois apoiados na mesa, com os rostos muito juntos. Fitch geralmente fazia uso do seu tamanho, dos seus olhos malévolos e da sua barbicha sinistra para intimidar fisicamente as pessoas, especialmente os jovens advogados das firmas que contratava. Se Marlee estava intimidada, não o demonstrou. Olhou-o nos olhos, sem pestanejar nem uma vez, uma tarefa realmente difícil.

— Então, não há nenhuma garantia — disse ele. — Os júris são imprevisíveis. Podemos dar o dinheiro e...

— Deixe-se disso, Fitch. Ambos sabemos que o dinheiro deve ser entregue antes do resultado.

— Quanto?

— Dez milhões.

Fitch deixou escapar um som gutural, como se estivesse engasgado com uma bola de golfe, depois tossiu, erguendo os cotovelos, revirou os olhos e a gorda papada estremeceu de puro assombro.

— Deve estar a brincar — conseguiu dizer com a voz rouca e áspera, procurando com os olhos um copo de água, um frasco de comprimidos, qualquer coisa que o ajudasse a suportar aquele choque tremendo.

Marlee observou calmamente o espectáculo, sem piscar, sem desviar o olhar.

— Dez milhões, Fitch. É uma pechincha e não é negociável.

Ele tossiu outra vez, o rosto mais vermelho. Depois controlou-se e pensou numa resposta. Tinha pensado na casa dos milhões e sabia que ia parecer idiota se tentasse negociar alegando que o seu cliente não podia pagar. Provavelmente Marlee tinha o relatório dos lucros do último trimestre das Quatro Grandes.

— Quanto têm no Fundo? — perguntou ela e Fitch instintivamente semicerrou os olhos. Pelo que sabia, Marlee ainda não tinha piscado.

— Quanto temos no quê? — perguntou ele. Ninguém sabia da existência do Fundo!

— No Fundo, Fitch. Não brinque comigo. Sei tudo sobre a sua caixinha. Quero a ordem de pagamento dos dez milhões enviada do Fundo para um banco em Singapura.

— Acho que não posso fazer isso.

— Pode fazer o que quiser, Fitch. Pare com esse jogo. Vamos resolver as coisas agora e continuar com o nosso negócio.

— E se mandar cinco agora e cinco depois do veredicto?

— Esqueça. Dez milhões agora. Não me agrada a ideia de ter de andar atrás de si para receber a segunda parcela depois do julgamento. Não sei porquê, mas acho que isso me vai fazer perder muito tempo.

— Quando é que mandamos o dinheiro?

— Tanto faz, desde que seja recebido antes de o júri ter o caso resolvido. De contrário, nada feito.

— O que acontece se desistirmos do acordo?

— Podem acontecer duas coisas: ou Nicholas cria um impasse no júri ou manda nove contra três a favor da acusação.

O escudo protector rachou acima das sobrancelhas e duas rugas verticais uniram-se no centro, enquanto Fitch considerava as duas possibilidades apresentadas com tanta segurança. Fitch não tinha a menor dúvida sobre o que Nicholas podia fazer, porque Marlee não tinha dúvida alguma. Passou a mão lentamente pelos olhos. O jogo estava a terminar, não havia já qualquer reacção exagerada ao que ela dizia, qualquer incredulidade fingida para defesa dos seus interesses e exigências. Marlee controlava a situação.

— Negócio fechado — disse ele. — Enviaremos a ordem de pagamento, de acordo com as suas instruções. Mas devo avisar que isso pode levar algum tempo.

— Sei isso melhor do que você, Fitch. Explicarei exactamente como deve ser feito. Mas mais tarde.

- Sim senhora.

- Então, negócio fechado?

— Fechado. — Fitch estendeu a mão que ela apertou ao de leve. Os dois sorriram do absurdo. Dois malfeitores selando um acordo que nenhum tribunal autorizaria, porque nenhum tribunal jamais iria saber.

O apartamento de Beverly Monk era um sótão, no quinto andar de um antigo armazém do Village. Ela morava com quatro outras actrizes sem dinheiro. Swanson seguiu-a até ao café da esquina e esperou que estivesse sentada numa mesa perto da janela com um café expresso, um pão doce e a secção de anúncios classificados de um jornal, de costas para as outras mesas. Ele aproximou-se e disse:

— Com licença. Você é Beverly Monk? Ela ergueu os olhos, sobressaltada.

— Sou. E você, quem é?

— Um amigo de Claire Clement —apresentou-se, sentando-se rapidamente na cadeira do lado oposto da mesa.

— Esteja à vontade — disse ela. — Que quer? — Estava nervosa, mas sentia-se segura àquela hora. Ele não parecia perigoso.

— Informações.

— Telefonou-mé ontem, não foi?

— Sim, telefonei. Menti, dizendo que era Jeff Kerr. Mas não sou.

— Então quem é?

— Jack Swanson. Trabalho para uns advogados de Washington.

— Claire está com algum problema?

— Nenhum.

— Então, o que é que você quer?

Swanson contou rapidamente que Claire fora convocada para servir no júri de umjulgamento muito importante e que o seu trabalho era investigar o passado de alguns jurados. O caso era sobre um depósito de lixo contaminado em Houston, com milhões de dólares em jogo, por isso estavam dispostos a gastar algum dinheiro na investigação dos possíveis jurados.

Swanson e Fitch estavam a contar com duas coisas. A primeira, o facto de, na véspera, Beverly se ter demorado a lembrar do nome de Jeff Kerr ao telefone. A segunda, a afirmação de que há quatro anos não falava com Claire. Partiam do pressuposto que as duas coisas eram verdade.                                                                                     

— Pagaremos pela informação.                   

- Quanto?

- Mil dólares em dinheiro para me dizer tudo o que sabe sobre Claire Clement. — Swanson tirou um envelope do bolso e pôs sobre a mesa.

— Tem a certeza de que ela não se meteu em encrencas? — perguntou Beverly, olhando para uma mina de ouro na sua frente.

— Tenho a certeza. Aceite o dinheiro. Se não vê a Claire há quatro ou cinco anos, não tem motivos para se preocupar.

— Tem razão — pensou Beverly e guardou o envelope na mala.

— Não há muito para contar.

— Quanto tempo trabalhou com ela?

— Seis meses.

— Durante quanto tempo se deram?

— Seis meses. Eu já era empregada de mesa no Mulligan's quando ela começou. Ficámos amigas. Depois saí da cidade e fui para o Leste. Telefonei-lhe uma ou duas vezes, quando estava a morar em Nova Jérsia, depois esquecemo-nos uma da outra.

— Conheceu Jeff Kerr?

— Não. Claire não andava com ele naquele tempo. Falou-me nele mais tarde, depois de ter deixado a cidade.

— Claire tinha outros amigos, homens ou mulheres?

— Sim, claro. Não me pergunte os nomes deles. Saí de Lawrence há   cinco, talvez seis anos. Na verdade, não lembro exactamente quando.

— Não pode dizer o nome de nenhum dos seus amigos? Beverly bebeu um pouco de café e pensou. Depois disse os nomes

de três pessoas que tinham trabalhado com Claire. Uma delas fora   . verificada, sem resultado; outra estava a ser procurada no momento. A terceira não foi encontrada.

— Em que liceu estudou Claire?

— Num qualquer do Centro-Oeste.

— Sabe o nome do liceu?

— Acho que não. Claire era muito discreta sobre o seu passado. Dava a impressão de que havia alguma coisa que não queria comentar. Nunca me disse nada. Pensei que fosse um romance infeliz, talvez até mesmo um casamento, ou alguma zanga com a família, uma infância miserável, qualquer coisa assim. Mas nunca cheguei a saber.  .,

— Ela falava do passado com alguém?

— Que eu saiba, não.

- Sabe de onde ela é?

— Ela dizia que estava sempre a mudar. Nunca fiz muitas perguntas sobre isso.

— Ela era de alguma terra perto de Kansas City?

— Não sei.

—Tem a certeza de que Claire Clement é o verdadeiro nome dela? Beverly franziu a testa, pensativa.

— Pode não ser?

— Temos motivos para crer que ela era outra pessoa antes de chegar a Lawrence, Kansas. Lembra-se de alguma coisa sobre outro nome?

— Não! Para mim ela era Claire. Porque razão iria mudar de nome? -— Swanson tirou do bolso um pequeno bloco de notas e verificou uma lista. Beverly era outro beco sem saída.

— Alguma vez foi ao apartamento dela?

— Uma ou duas vezes. Cozinhávamos e víamos filmes. Não saía muito, mas convidou-me algumas vezes e apresentou-me alguns amigos.

— Alguma coisa estranha no apartamento?

— Sim. Era muito bonito, um condomínio moderno, bem mobiliado. Era evidente que Claire tinha outra fonte de rendimento para além do Mulligan's. Ganhávamos três dólares à hora, mais gorjetas.

— Então Claire tinha dinheiro?

— Tinha. Muito mais do que eu. Mas era também muito discreta sobre isso. Claire foi uma amiga casual, uma companhia agradável. Não do tipo a quem se faz perguntas.

Swanson procurou saber mais pormenores mas não conseguiu nada. Ele agradeceu a ajuda, ela agradeceu o dinheiro, e quando ele estava a sair ofereceu-se para fazer uns telefonemas. Era um pedido claro de mais dinheiro. Swanson disse que estava bem e advertiu que não devia contar nada daquilo a ninguém.

— Isso é fácil! Sou actriz, não se esqueça.

Hoppy pensou que o senhor Cristano estava a ser duro de mais. Mas na verdade a situação estava a deteriorar-se, segundo os misteriosos homens de Washington aos quais o senhor Cristano tinha que dar satisfação. Estavam a discutir na Justiça a conveniência de desistir do plano e enviar o caso de Hoppy para o grande júri federal.

Se Hoppy não podia nem convencer a mulher, como diabo podia influenciar todo o júri?

—- Quando é que vai voltar a vê-la? — perguntou.

— Esta noite, acho.

— Pois então chegou o momento, Hoppy, de contar a verdade. Conte-lhe o que fez, conte tudo.

Os olhos de Hoppy encheram-se de lágrimas, os lábios tremeram. Olhou para o vidro colorido da janela e pressentiu os belos olhos da mulher quando lhe abrisse a alma. Amaldiçoou a própria estupidez. Se tivesse uma arma seria quase capaz de liquidar Todd Ringwald e Jimmy Hull Moke, mas definitivamente seria mais fácil acabar com a própria vida. Talvez pudesse liquidar aqueles palhaços primeiro, mas tinha a certeza de que podia estoirar os próprios miolos.

— Acho que vou fazer isso — murmurou.

— A sua mulher deve tornar-se defensora da nossa causa, Hoppy. Compreende isso? Millie Dupree precisa de ter forçanaquele júri. Uma vez que não conseguiu convencê-la dos méritos que defendemos, agora precisa de usar o medo de ir parar à cadeia como motivação. Não tem escolha.

Naquele momento, Hoppy preferia ir para a prisão a enfrentar Millie com a verdade. Mas não tinha escolha. Se não a convencesse, ela ia ficar a saber de tudo e ele iria para a prisão.

Hoppy começou a chorar. Mordeu os lábios, cobriu os olhos com as mãos, tentou fazer parar as malditas lágrimas, mas em vão. Dentro do carro, por vários quilómetros, ouviam-se os soluços abafados de um homem arrasado.

Só Nitchman não conteve um leve sorriso.

 

O segundo encontro no escritório de Marlee começou uma hora depois de ter terminado o primeiro. Fitch chegou novamente a pé com uma pasta e um grande copo de café. Fitch achou graça ao vê-la examinar cuidadosamente a sua pasta à procura de escutas ou gravadores.

Quando ela acabou, Fitch fechou a pasta e bebeu um gole de café.

— Tenho uma pergunta — disse ele.

— O que é?

— Há seis meses, nem você nem Nicholas moravam nesta cidade, provavelmente nem sequer neste estado. Vieram para cá por causa deste julgamento?

Ele sabia a resposta mas queria ver se, agora que eram sócios e supostamente trabalhavam para um mesmo fim, ela era capaz de admitir a verdade.

— Pode dizer-se que sim — respondeu ela.

Marlee e Nicholas supunham que Fitch tivesse seguido a sua pista até Lawrence, o que não era muito inconveniente. Assim, Fitch daria valor ao engenho do plano que tinham delineado e à sua determinação em executá-lo. O que lhes tirava o sono era a vida de Marlee antes de Lawrence.

— Vocês usam nomes falsos, não é? — perguntou ele.

— Não. Usamos os nossos nomes verdadeiros. E chega de perguntas a nosso respeito, Fitch. Não somos pessoas importantes. O tempo é curto e temos trabalho a fazer.

— Que tal se começasse por me contar até que ponto é que chegou com o outro lado? O que é que Rohr sabe?

— Não sabe nada. Ameaçámos, mas não chegámos a fazer contacto com eles.

— E se eu não aceitasse, teria feito um acordo com ele?

— Claro. Estou nisto pelo dinheiro, Fitch. Nicholas está naquele júri porque foi assim que planeámos. Trabalhámos muito para chegar aqui. E vai correr tudo bem porque todos os actores desta peça são corruptos. Você é corrupto. O seu cliente é corrupto. O meu sócio e eu somos corruptos. Corruptos, mas espertos. Fizemos as coisas de tal forma que nunca seremos apanhados.

— E Rohr? Será que quando perder não vai ficar desconfiado? Será que não vai pensar que você fez um acordo connosco?

— Rohr não me conhece. Nunca nos encontrámos.

— Não me venha com essa história.

— Estou a dizer-lhe. Fiz tudo para que você pensasse que me tinha encontrado com ele, mas isso nunca aconteceu. Teria acontecido se você não quisesse negociar.

—  Isso quer dizer que você sabia que eu estava pronto para negociar?

— Claro que sim. Sabíamos que estava mais do que ansioso para comprar o veredicto.

Afinal, ele tinha muitas perguntas. Como é que tinham descoberto que existia? Como é que conseguiam os números de telefones? Como tinham a certeza de que Nicholas ia ser convocado para o júri? Como é que conseguiram fazer com que fosse aceite? E como é que sabiam da existência do Fundo?

Um dia, quando tudo tivesse terminado e a pressão tivesse desaparecido, far-lhes-ia aquelas perguntas. Gostaria de conversar com Marlee e Nicholas durante um demorado jantar e obter respostas para todas as perguntas. A sua admiração por eles crescia a cada momento.

— Prometa que não vão dispensar Lonnie Shaver — disse ele.

— Prometo se me disser porque é que gosta tanto de Lonnie.

— Está do nosso lado.

— Como é que sabe?

— Temos os nossos meios de informação.

— Se estamos a trabalhar para o mesmo fim, temos de poder falar francamente.

— Tem toda a razão. Porque é que eliminaram Herrera?

— Já lhe disse. É um cretino. Não gostava de Nicholas e Nicholas não gostava dele. Além disso, Henry Vu e Nicholas são amigos. Portanto, não perdemos nada.

— E StellaHulic?

- Foi só para tirá-la da sala dos jurados. É muito inconveniente. Tudo nela é destrutivo.

— Qual será o próximo?

— Não sei. Sobra-nos um. Quem é que devemos eliminar?

— Lonnie não.

- Então explique porquê.

— Digamos apenas que Lonnie foi comprado e já está pago. O patrão dele é uma pessoa que ouve o que temos para dizer.

— Quem mais é que comprou?

— Ninguém.

— Deixe-se disso. Quer ganhar ou não?

— Claro que quero.

— Então diga a verdade. Sou o seu caminho mais fácil para um rápido veredicto.

— E o mais caro.

— Não estava à espera que fosse barato, pois não? O que é que ganha escondendo essa informação?

— O que é que ganho se lhe der essa informação?

— Isso devia ser óbvio. Você conta-me. Eu conto a Nicholas. E ele fica a saber onde é que estão os votos. Fica com uma noção mais clara da forma como deve planear as coisas. Que me diz de Gladys Card?

— Ela segue a maioria. Não temos nada sobre ela. O que é que Nicholas acha?

— Acha a mesma coisa. E Angel Weese?

— Fuma e é negra. Ou seja, é fácil de influenciar. O que é que Nicholas pensa?

— Que ela fará o mesmo que Loreen Duke.

— E quem é que Loreen Duke vai seguir?

— Nicholas.

— Neste momento, quantos jurados é que seguem o que ele decidir? Quantos são os membros do seu pequeno culto?

— Para começar, Jerry. E uma vez que Jerry tem um caso com Sylvia, pode contar com ela. Acrescente Loreen e terá Angel.

Fitch susteve a respiração e contou rapidamente.

- São cinco. É tudo?

— EHenry Vu: ou seja, seis. Seis já cá cantam. Mas não nos ficamos por aqui. O que é que sabe sobre Savelle?

Fitch consultou rapidamente as suas notas como se não tivesse a certeza. Estava tudo naquela pasta que fora lida uma dúzia de vezes.

— Nada. É esquisito de mais — disse, com tristeza, como se considerasse um fracasso total não ter conseguido coagir Savelle.

—  Herman tem algum telhado de vidro?

— Não. O que é que Nicholas acha?

— Vão ouvir Herman, mas não vão necessariamente seguir o seu sentido de voto. Não fez muitos amigos, mas também não fez inimigos. Provavelmente o seu voto vai ficar isolado.

— Para que lado é que parece que ele se inclina?

— Até agora, Herman tem sido o jurado mais difícil de definir: está decidido a obedecer às ordens do juiz e não fala a respeito do caso.

— É corajoso!

— Nicholas terá nove votos antes das alegações finais, talvez até mais de nove. Só precisa de forçar um bocadinho mais as coisas com alguns dos jurados.

— Com quem, por exemplo?

— Rikki Coleman.

Fitch bebeu um bocadinho de café sem olhar para o copo que pôs em cima da mesa e passou a mão pela barba à volta da boca. Marlee observava cada movimento de Fitch.

— Talvez tenhamos alguma coisa.

— Porque é que está a fazer este tipo de jogo, Fitch? Ou tem alguma coisa ou não tem. E ou me diz, para que eu possa dizer a Nicholas a fim de garantir o voto dela, ou fica aí sentado a fazer caixinha com as suas anotações à espera que ela salte do barco.

— Digamos que é um segredo pessoal desagradável que ela prefere esconder do marido.

— Porque é que não me conta o segredo, Fitch? — disse Marlee, zangada. — Estamos a trabalhar juntos ou não?

— Estamos, mas não tenho a certeza que tenha de lhe contar isto agora.

— Tudo bem. É uma coisa do passado dela, não é? Um caso de amor, um aborto, um aparelho contraceptivo?

— Vou pensar nisso.

— Pense. E continue a fazer os seus joguinhos por um lado, que eu continuo pelo meu. O que é que me diz de Millie?

Fitch parecia calmo mas estava num turbilhão. Quanto é que lhe devia contar? O instinto mandava-o ser cauteloso. Iam encontrar-se de novo no dia seguinte e outra vez no dia a seguir a esse. Se na altura achasse prudente logo lhe contaria sobre Rikki e Millie e, quem sabe, talvez até sobre Lonnie. É preciso ter calma, pensou.

— Nada sobre a Millie — disse, olhando para o relógio e pensando que naquele exacto momento o pobre Hoppy estava dentro de um carro com três homens do FBI, provavelmente em lágrimas.

— Tem a certeza, Fitch?

Há uma semana, Nicholas tinha encontrado Hoppy no corredor do motel, em frente à porta do seu quarto, com flores e gelado para a mulher. Tinham conversado por um momento. No dia seguinte, Nicholas viu Hoppy no tribunal, acompanhando tudo com profundo e repentino interesse, num momento em que o julgamento estava quase no fim da sua terceira semana.

Partindo do princípio de que Fitch estava em acção, Nicholas e Marlee presumiam que cada um dos jurados era um alvo potencial de influências externas. Por isso, Nicholas vigiava-os a todos. Às vezes, quando as visitas chegavam, passeava no corredor e, outras vezes ainda, voltava depois de partirem. Procurava ouvir tudo o que diziam na sala dos jurados. Durante os passeios pela cidade depois do almoço chegava a ouvir três conversas ao mesmo tempo. Tomava notas sobre quem estava na sala do tribunal e até tinha alcunhas e nomes de código para todos.

A ideia de que Fitch estava a tentar influenciar Millie através de Hoppy não passava de um palpite. Pareciam um casal excelente, de coração aberto, do tipo que Fitch podia facilmente enredar numa das suas tramas insidiosas.

— É claro que tenho certeza. Nada a respeito de Millie.

— Ela anda estranha — mentiu Marlee.

Maravilha, pensou Fitch. A «trama Hoppy» estava a funcionar.

— O que acha Nicholas sobre Royce, o último substituto? — perguntou.

— É lixo. Não tem nada na cabeça. É facilmente manipulável. Por cinco mil faz o que se quiser. Esse é outro dos motivos pelo qual Nicholas quer garantir Savelle. Royce já nós temos. É fácil.                     

A naturalidade com que falava em suborno aquecia o coração de Fitch. Muitas vezes noutros julgamentos tinha sonhado encontrar um anjo como Marlee, pequenos salvadores com mãos ávidas, desejando subornar os jurados a seu favor. Aquilo parecia-lhe bom de mais para ser verdade.

— Quem mais é que pode aceitar dinheiro? — perguntou esperançoso.

— Jerry está na bancarrota: tem muitas dívidas de jogo e tem pela frente um divórcio difícil. Precisa de mais ou menos vinte mil. Nicholas ainda não fez nenhum acordo com ele, mas vai fazer no fim de semana.

— Isso pode ficar muito caro — disse Fitch, tentando falar sério.

Marlee riu alto e continuou até Fitch ser obrigado a rir discretamente do próprio humor. Acabava de prometer dez milhões e Marlee estava a sugerir gastar mais dois milhões. Os seus clientes tinham à disposição perto de onze mil milhões.

O momento passou e durante algum tempo ignoraram-se mutuamente. Então, Marlee olhou para o relógio.

— Escreva, Fitch. São agora três e meia no Oriente. O dinheiro não vai para Singapura. Quero os dez milhões enviados para o Banco Hanwa, nas Antilhas Holandesas, e quero que isso seja feito imediatamente.

— Banco Hanwa?

— Sim. É coreano. O dinheiro não vai para a minha conta, mas para a sua.

— Não tenho conta nesse banco.

— Vai abrir uma com a ordem de transferência do dinheiro. — Tirou da carteira uns papéis dobrados e passou-lhos sobre a mesa. — Estão aqui os formulários e as instruções.

— É muito tarde para fazer isso — disse ele, pegando nos papéis. — E amanhã é sábado.

— Cale a boca, Fitch. Leia as instruções. Vai dar tudo certo se fizer o que estou a dizer-lhe. O Hanwa está sempre aberto para clientes especiais. Quero o dinheiro no banco, na sua conta, neste fim-de-semana.

— Como é que vai saber que o dinheiro lá está?

— Por si. Vai mostrar-me a confirmação que o banco lhe mandar. O dinheiro fica no Hanwa até o júri se retirar. Depois sai do banco e vai para a minha conta. Isso deve acontecer na segunda-feira de manhã.

— E se o júri se retirar antes?

- Pode ter a certeza de que não haverá veredicto enquanto o dinheiro não estiver na minha conta, É uma promessa. E se por algum motivo tentar enganar-nos, juro-lhe que o veredicto a favor da acusação será uma maravilha: uma indemnização enorme.

— Não vamos falar nisso.

— Não, não vamos. Foi cuidadosamente planeado, Fitch. Não estrague tudo agora. Faça o que lhe digo. Trate disso agora.

Wendall Rohr berrou com o doutor Gunther durante uma hora e meia e, quando acabou, estavam todos impacientes e aborrecidos. Provavelmente o próprio Rohr era a pessoa mais relaxada no tribunal porque a sua agressiva algazarra não o perturbava nada. Mas todos os outros estavam fartos. Eram quase cinco horas de sexta-feira e outra semana chegava ao fim. Outro fim-de-semana no Siesta Inn.

O juiz Harkin estava preocupadocom ojúri. Todos os jurados pareciam cansados e nervosos, fartos de ficar ali sentados a ouvir discursos que não lhes interessavam.

Os advogados também estavam preocupados. Ojúri não respondia aos depoimentos como esperavam. Quando não se moviam impacientes nas cadeiras, dormitavam. Quando não examinavam a sala com olhos inexpressivos, estavam a esforçar-se por não dormir.

Mas Nicholas não se sentia nada preocupado com os seus companheiros. Queria todos fatigados, à beira de uma revolta. Uma multidão irada precisa de um líder.

Durante o intervalo do fim da tarde, Nicholas preparou uma carta para o juiz Harkin pedindo que o julgamento continuasse no sábado. Tinham discutido o assunto durante o almoço, num debate que durou poucos minutos, porque Nicholas tinha todas as respostas cuidadosamente planeadas. Porque razão haviam de ficar sentados no quarto do motel, quando podiam ficar sentados no tribunal para terminar aquela maratona?

Os outros doze apressaram-se a assinar a carta e Harkin não teve escolha. Eram raras as sessões de julgamento ao sábado, mas já tinha havido precedentes, especialmente em casos de isolamento do júri.

O Meritíssimo perguntou a Cable qual era a sua previsão para o dia seguinte e o advogado garantiu que a defesa encerraria o seu caso.

Rohr assegurou que a acusação não faria nenhuma réplica. Uma sessão no domingo estava fora de questão.

— Este julgamento deverá terminar na tarde de segunda-feira — disse Harkin ao júri. — A defesa encerra o seu caso amanhã, depois teremos as alegações finais na segunda logo de manhã. É o melhor que posso fazer, amigos.

Sorrisos iluminaram os rostos dos jurados. Com o fim tão próximo, podiam suportar outro fim-de-semana juntos.

Jantariam num famoso restaurante em Gulfport, depois teriam quatro horas de «visitas pessoais» na noite de sábado e na de domingo. Dispensou-os pedindo desculpas.

Depois de o júri ter saído, Harkin reuniu os advogados durante duas horas para estudar uma dúzia de moções.

 

Chegou tarde, sem flores ou chocolates, sem champanhe ou beijos, nada além de uma alma atormentada espelhada nos olhos e no rosto. Segurando a mão dela, sentou-se na beira da cama e tentou dizer alguma coisa antes de ser tomado pelos soluços. Cobriu o rosto com as mãos.

— O que aconteceu, Hoppy ? — perguntou ela, alarmada e certa de que ia ouvir uma confissão terrível. Ultimamente Hoppy estava mudado. Sentou-se ao lado do marido, bateu carinhosamente no joelho dele, pronta para ouvir.

Hoppy começou por contar como fora idiota. Repetiu várias vezes que ela não ia acreditar que tivesse feito uma coisa daquelas, depois repetiu que fora estúpido até ela perguntar com firmeza:

— O que é que fizeste, Hoppy?

De repente ele ficou zangado — zangado por ter caído num golpe tão ridículo. Cerrou os dentes, franziu o lábio superior, franziu as sobrancelhas e começou a falar sobre o senhor Todd Ringwaldeo e o Grupo de Propriedades KLX; sobre Stillwater Bay e Jimmy Hull Moke. Uma cilada! Estava a tratar da sua própria vida, não estava à procura de problemas, cuidava dos seus negócios com propriedades insignificantes, tentando apenas ajudar recém-casados a encontrar pequenos ninhos para começar as suas vidas em comum. Foi aí que um homem entrou no escritório: vinha de Las Vegas, tinha um fato de boa qualidade, um molho de plantas de arquitectos que, desenroladas sobre a mesa de Hoppy, pareciam uma mina de ouro.

Como é que podia ter sido tão idiota! Hoppy começou a soluçar.

Quando chegou à parte da visita dos homens do FBI, Millie não se conteve.

— Foram à nossa casa?

— Sim,sim.

- Oh, meu Deus! Onde estavam as crianças?

Hoppy contou então como conseguira tirar os agentes Napier e Nitchman da casa levando-os para o escritório, onde lhe mostraram a gravação!

— Foi horrível. — Com esforço continuou a sua narrativa. Millie também começou a chorar e Hoppy ficou aliviado. Talvez ela

não fosse censurá-lo de mais. Mas ainda não era tudo.

Chegou ao encontro com o senhor Cristano no barco. Em Washington ainda havia gente boa preocupada com o julgamento. Os republicanos e mais uns quantos. O crime é um grande problema nos dias que correm. Por isso, tinham chegado a um acordo.

Millie enxugou o rosto com as costas da mão e, subitamente, parou de chorar.

— Mas não tenho a certeza se quero votar a favor da tabaqueira — disse, ainda atordoada.

Hoppy também parou de chorar.

— Essa agora é formidável, Millie. Vais mandar-me cinco anos para a cadeia, só para votar de acordo com a tua consciência? Acorda!

— Isso não é justo — lamentou ela, vendo a própria imagem no espelho atrás da cómoda. Estava atónita.

— Claro que não é justo. Também não vai ser justo quando o banco ficar com a casa porque estou na cadeia. E as crianças, Millie? Pensa nos nossos filhos. Temos três na universidade e dois no liceu. Além da humilhação, quem é que vai pagar os estudos dos nossos filhos?

Hoppy estava em vantagem: tinha tido muitas horas para ensaiar aquele momento. A pobre Millie tinha a impressão de estar a ser atropelada por um autocarro. Não conseguia pensar suficientemente rápido para fazer as perguntas certas. Noutras circunstâncias, Hoppy sentiria pena dela.

— Não posso acreditar — choramingou ela.

— Sinto muito, Millie. Sinto muito. Fiz uma coisa terrível e não é justo para ti. — Estava inclinado para a frente, os cotovelos nos joelhos, a cabeça baixa: era um homem completamente derrotado.

— Não é justo para as pessoas envolvidas neste julgamento. Hoppy pouco se importava com as outras pessoas interessadas no

julgamento, mas mordeu a língua.

— Eu sei, querida. Eu sei. Sou um fracasso total.

Millie apertou a mão dele. Hoppy resolveu desferir o golpe de misericórdia.

— Eu não devia ter-te contado isto, Millie, mas quando o FBI foi à nossa casa pensei comprar uma arma e acabar com tudo ali mesmo.

— Querias dar-lhes um tiro?

— Não, queria dar um tiro em mim mesmo. Estourar os miolos.

— Hoppy!...

— Estou a falar a sério. Durante esta semana pensei nisso várias vezes. Prefiro puxar o gatilho a humilhar a minha família.

— Não digas essas coisas — disse ela, e começou a chorar outra vez.

A princípio, Fitch pensou em falsificar a ordem de pagamento, mas depois de dois telefonemas e dois faxes trocados com os seus falsifica-dores em Washington, convenceu-se de que não era seguro. Ela parecia saber tudo sobre transferências de dinheiro e provavelmente sabia muita coisa sobre o banco nas Antilhas Holandesas. Rigorosa como era, talvez tivesse alguém nas Antilhas à espera da remessa. Porque é que havia de arriscar?

Depois de vários telefonemas, localizou em Washington um ex-funcionário do tesouro, dono de uma firma particular de consultoria e que supostamente sabia tudo sobre movimentação rápida de dinheiro. Fitch contratou-o por fax, deu-lhe as informações essenciais e mandou uma cópia das instruções de Marlee. Definitivamente, ela sabia o que estava a fazer, disse o homem, e garantiu a Fitch que o seu dinheiro estaria seguro, pelo menos durante a primeira fase da transacção. A nova conta seria aberta em nome de Fitch. Marlee não teria acesso à conta. Marlee queria uma cópia do comprovativo da abertura de conta e o homem aconselhou Fitch a não lhe mostrar os números das contas do banco de origem e do Banco Hanwa, nas Caraíbas.

Quando Fitch fechou o acordo com Marlee o Fundo tinha um saldo de seis milhões e meio. Na sexta-feira, Fitch telefonou para os directores-executivos das Quatro Grandes e deu ordem para cada uma enviar mais dois milhões de dólares. E não havia tempo para perguntas. Explicaria mais tarde.

Às cinco e um quarto de sexta-feira, o dinheiro saiu da conta anónima do Fundo, num banco em Nova Iorque, e em poucos segundos chegou ao Hanwa, nas Antilhas Holandesas, onde era esperado. A nova conta, identificada apenas por um número, foi aberta quando chegou o dinheiro e a confirmação imediatamente enviada por fax para o banco de origem.

Marlee telefonou às seis e meia e, como Fitch esperava, já sabia que a transacção fora efectuada. Mandou Fitch apagar o número da conta da confirmação, o que ele ia fazer de qualquer modo e enviá-la por fax para a recepção do Siesta Inn exactamente às dezanove e cinco.

— Isso não é um pouco arriscado? — perguntou Fitch.

— Faça o que lhe digo, Fitch. Nicholas vai estar ao lado do fax. A recepcionista acha que ele é um amor.

Às sete e quinze, Marlee telefonou outra vez informando que Nicholas tinha recebido a confirmação e que parecia autêntica. Mandou Fitch estar no seu escritório às dez da manhã no dia seguinte. Fitch concordou, satisfeito.

Embora o dinheiro não tivesse mudado de mãos, Fitch estava eufórico com o seu sucesso. Chamou José e ambos saíram caminhando a pé, uma coisa que raramente faziam. O ar era fresco e estimulante. Os passeios estavam desertos.

Nesse exacto momento, um jurado solitário tinha nas mãos um pedaço de papel com a quantia «10 000 000» de dólares impressa duas vezes. Esse jurado e o júri pertenciam a Fitch. O julgamento chegara ao fim. Claro que até ouvir o veredicto não ia conseguir dormir e ia continuar a ter suores frios mas, para efeitos práticos, o processo tinha acabado. Fitch vencia de novo. Outra vitória, arrancada de uma quase derrota. Desta vez o preço fora bem maior, mas o dinheiro que estava em jogo também era muito mais. Ia ouvir reclamações de Jankle e dos outros sobre o valor da operação,mas tudo não passaria de mera formalidade. Era normal que se queixassem; tinham de se queixar do preço. Eram executivos de grandes empresas.

De qualquer forma, nem sequer mencionavam o preço real da operação. Se houvesse um veredicto a favor da acusação certamente que o seu preço excederia os dez milhões, e isto sem contar com o custo incalculável de uma torrente de processos legais.

Fitch merecia aquele momento especial de prazer, mas o seu trabalho ainda não estava terminado. Não descansaria enquanto não descobrisse a verdadeira Marlee, de onde tinha vindo, o que a motivava, como e porquê tinha elaborado aquele plano. Havia alguma coisa no seu passado que Fitch precisava de saber, o desconhecido enchia-o de medo. Se, e quando, descobrisse a verdadeira Marlee, encontraria todas as respostas para as suas inquietações. Até esse momento, não conseguia assumir que o seu precioso julgamento estivesse seguro.

Depois de percorrer quatro quarteirões a pé, tinha voltado a ser o Fitch nervoso, aflito, atormentado.

Derrick chegou ao terraço e estava a enfiar a cabeça numa porta entreaberta quando uma jovem perguntou delicadamente o que queria. Com uma pilha de pastas na mão, a jovem parecia muito ocupada. Eram quase oito horas da noite de sexta-feira e o movimento continuava intenso nos escritórios dos advogados.

O que ele queria era um advogado, um dos que tinha visto no tribunal, representando os fabricantes de cigarros, um com quem pudesse sentar-se e fazer um acordo protegido por portas fechadas. Derrick tinha-se informado e conhecia os nomes de Durwood Cable e de alguns dos seus sócios. Encontrou o endereço do escritório e tinha esperado duas horas no carro, ensaiando o que ia dizer, acalmando os nervos e ganhando coragem para sair do carro e entrar por aquela porta.

Não havia nenhum outro rosto negro à vista.

Seria verdade que todos os advogados eram corruptos? Derrick imaginou que, se Rohr estava disposto a oferecer dinheiro, era lógico concluir que todos os advogados envolvidos no julgamento estariam igualmente dispostos a subornar jurados. Derrick tinha algo para vender e aqueles eram compradores ricos. Uma oportunidade de ouro.

Mas não encontrou as palavras certas quando a secretária parou, fitando-o, tendo depois começado a olhar em volta, à procura de auxílio. Cleve tinha dito mais de uma vez que aquilo era altamente ilegal, que seria apanhado se quisesse de mais e, de repente, o medo atingiu-o como um tijolo.

— Hum... o doutor Gable está? — perguntou, incerto.

— O doutor Gable? — Ela ergueu as sobrancelhas.

— Sim, esse mesmo.

— Não existe nenhum doutor Gable aqui. Quem é o senhor?

Um grupo de jovens em mangas de camisa passou vagarosamente por trás dela, examinando Derrick de alto abaixo, todos percebendo que ele estava perdido. Derrick não tinha mais nada para oferecer. Tinha a certeza de que estava na firma certa, mas o nome era errado, e não queria ser preso.

— Acho que me enganei — disse, e o sorriso sugestivo da jovem respondia: Claro que se enganou: agora, por favor, vá-se embora.

Parou ao lado da mesa no átrio de entrada e tirou alguns cartões de um pequeno suporte de bronze. Mostraria a Cleve como prova da sua visita.

Agradeceu à rapariga e saiu apressadamente. Angel estava à sua espera.

Millie chorou, agitou-se na cama e até à meia-noite afastou os cobertores; depois vestiu a sua roupa favorita: um fato de treino vermelho muito velho, muito largo, um presente de Natal de um dos filhos há alguns anos, e abriu a porta silenciosamente. Chuck, o guarda, estava na outra extremidade do corredor. Chamou-o em voz baixa. Ia buscar alguma coisa para comer, explicou Millie, seguindo pelo corredor pouco iluminado até à sala de festas, de onde vinha um leve ruído. Nicholas estava sentado sozinho num sofá, comendo pipocas feitas no microondas e bebendo soda. Estava a ver na televisão um jogo de râguebi na Austrália. A hora de recolher na sala de festas determinada por Harkin há muito que estava esquecida.

— Porque é que está acordada a esta hora? — perguntou ele, tirando o som à televisão com o telecomando.

Millie sentou-se numa cadeira ao lado dele, de costas para aporta. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados. O cabelo grisalho, curto, despenteado. Mas não se importava. Millie morava numa casa sempre cheia de adolescentes. Entravam e saíam, ficavam, dormiam, comiam, ligavam a televisão, esvaziavam o frigorífico, vendo-a o tempo todo com o seu fato de treino vermelho, e era assim que gostava. Millie era a mãe de toda a gente.

- Não consegui dormir. E você?

— É difícil dormir aqui. Quer pipocas?

— Não, obrigada.

- O Hoppy hoje não veio?

— Veio.

— Parece boa pessoa.                                                  

Depois de uma pausa, a mulher concordou:      

— E é.

Fez-se uma pausa, os dois em silêncio, pensando no que dizer.

— Quer ver um filme? — perguntou ele finalmente.

— Não. Posso fazer-lhe uma pergunta? — Estava muito séria e Nicholas desligou a televisão. A sala ficou iluminada apenas por um candeeiro de mesa.

— Claro. Parece preocupada.

— Pareço e estou. É um assunto legal.

— Se puder ajudar...

— Vamos ver. — Millie respirou fundo e apertou as mãos. — O que é que acontece se um jurado se convencer de que não pode ser justo e imparcial? O que é que deve fazer?

Nicholas olhou para a parede, depois para o tecto, bebeu um golo de soda e disse lentamente:

— Acho que depende das razões que tiver para tomar essa decisão.

— Não estou a perceber, Nicholas. — Ela considerava-o um jovem muito bom e muito inteligente. O seu filho mais novo queria ser advogado e Millie desejava que fosse tão inteligente como Nicholas.

— Para simplificar as coisas, vamos deixar de lado as hipóteses — propôs ele. — Vamos imaginar que esse jurado é a senhora. Está bem?

— Está.

— Aconteceu alguma coisa durante o julgamento que tivesse afectado a sua capacidade para ser justa e imparcial?

Depois de reflectir um momento, ela disse:

— Aconteceu.

Nicholas pensou no assunto e opinou:

— Foi alguma coisa que ouviu no tribunal? É normal que à medida que um julgamento evolui os jurados comecem a pender para um dos lados, comecem a ser parciais... é assim que se chega ao veredicto. Não há nada de mal nisso. Faz parte do processo.    .     ,. „

Ela esfregou o olho esquerdo e perguntou: • — E se for uma coisa que tenha acontecido Nicholas fingiu-se chocado.

— Isso torna o caso muito mais sério.

— Mais sério? Como? Nicholas levantou-se, deu alguns passos, puxou uma cadeira para perto de Millie e sentou-se; os seus pés quase se tocavam.

— Qual é o problema, Millie? — perguntou suavemente.

— Preciso de ajuda e não tenho mais ninguém a quem a pedir. Estou trancada neste lugar horrível, longe da família e dos amigos e não tenho para onde me virar. Pode ajudar-me, Nicholas?

— Vou tentar.

Os olhos de Millie encheram-se de lágrimas pela vigésima vez naquela noite.

— Você é uma pessoa tão boa! Conhece a lei e este é um assunto legal e eu não posso falar com mais ninguém. — Estava a chorar e Nicholas estendeu-lhe um guardanapo de papel que estava sobre a mesa.

Millie contou-lhe tudo.

Lou Dell acordou às duas da manhã e patrulhou rapidamente o corredor metida na sua camisola de algodão. Na sala de festas, com a televisão desligada, encontrou Nicholas e Millie conversando animadamente, com um prato de pipocas entre os dois. Nicholas explicou que simplesmente não conseguiam dormir, falavam sobre as suas famílias e que estava tudo bem. Lou Dell foi embora, maneando a cabeça.

Nicholas não explicou a Millie que suspeitava que tudo aquilo era um golpe bem armado. Quando ela parou de chorar, Nicholas fê-la contar os detalhes e tomou notas. Millie prometeu não fazer nada até que pudessem conversar outra vez. Despediram-se desejando mutuamente umaboa-noite.

Nicholas foi para o seu quarto, ligou a Marlee e desligou quando ela atendeu com voz sonolenta. Esperou dois minutos e ligou de novo. O telefone tocou seis vezes e ele desligou. Depois de mais dois minutos, Nicholas ligou para o telemóvel secreto de Marlee.

Nicholas contou-lhe toda a história de Hoppy. O descanso dos dois tinha acabado. Tinham muito que fazer, e rapidamente.

Resolveram começar com os nomes de Napier, Nitchman e Cristano.

 

Nada mudou no tribunal naquele sábado. Os funcionários, com as mesmas roupas, tratavam dos mesmos papéis. A toga do juiz Harkin era negra como sempre. Os rostos dos advogados pareciam uma grande mancha indefinida, como todas as semanas, de segunda a sexta. Os seguranças estavam tão entediados como nos outros dias, talvez até mais. Minutos depois do juiz Harkin entrar e terminar as suas perguntas, a monotonia instalou-se como durante todas as semanas, de segunda a sexta.

Depois do enfadonho depoimento de Gunther na sexta-feira, Cable e a sua equipa acharam melhor começar o dia com um pouco de acção. Chamaram um especialista, o doutor Olney, que qualificaram simplesmente como investigador, e que tinha feito coisas espantosas com ratos de laboratório. Tinha um vídeo dos bonitos animaizinhos, todos vivos e aparentemente cheios de energia, nenhum doente ou agonizante. Estavam divididos por grupos em caixas de vidro, e a tarefa de Olney tinha consistido em aplicar diariamente várias quantidades de fumo de cigarros em cada uma delas. Fez isso durante anos. Doses maciças de fumo de cigarros. A exposição prolongada não produziu nem um caso de cancro. Tentou tudo, excepto a sufocação, para provocar a morte dos animaizinhos, mas nada funcionou. Olney tinha os relatórios e os pormenores. E uma enorme quantidade de opiniões de que o cigarro não provoca cancro do pulmão, nem em ratos nem em seres humanos.

Hoppy estava a ouvir, sentado no lugar que agora era seu na sala do tribunal. Tinha prometido à mulher aparecer, dar-lhe apoio moral, piscar-lhe os olhos, para que ela soubesse como lhe pesava a situação criada. Era o mínimo que podia fazer. E afinal era sábado: um dia movimentado para os corretores... mas a Dupree Imóveis raramente tinha clientes no início da manhã. Desde o desastre de Stillwater Bay que

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Hoppy perdera o entusiasmo. A ideia de vários anos na prisão transformava a sua vontade em pó.

Taunton estava de volta, na primeira fila atrás de Cable, ainda com o seu imaculado fato escuro, muito concentrado, tomando notas e olhando para Lonnie que não precisava de nenhum estímulo paru avivar a memória.

Derrick estava perto da última fila, observando tudo e fazendo planos. O marido de Rikki, Rhea, estava na última fila. Quando o júri entrou, os seus dois filhos tentaram acenar-lhe. O senhor Nelson Card estava ao lado da senhora Herman Grimes. As duas filhas adolescentes de Lo-reen também estavam presentes.

As famílias estavam ali para dar apoio e para satisfazer a curiosidade. Todos tinham ouvido o suficiente para ter uma opinião formada sobre o assunto, sobre os advogados, as duas partes, os especialistas e o juiz. De qualquer maneira, queriam ouvir o que ali era dito: assim, talvez mais tarde pudessem partilhar as suas impressões sobre o que devia ser feito.

Beverly Monk saiu do estado de semi-coma a meio da manhã: os restos de gim, de craque, e de outras drogas, ainda atacavam o seu corpo com violência, cegando-a. Cobriu o rosto e viu que estava deitada no chão de madeira. Enrolou um cobertor sujo no corpo, passou por cima de um desconhecido que roncava e encontrou os seus óculos escuros no caixote que usava como cómoda. Ao menos com os óculos podia ver. O sótão aberto do antigo armazém estava um caos — corpos esparramados nas camas e no chão, garrafas de bebida vazias sobre os móveis baratos. Quem era aquela gente? Caminhou em direcção à janela, passando sobre uma companheira de quarto aqui e um estranho ali. O que teria feito na noite anterior?

A janela estava coberta de geada. A neve chegou cedo de mais e os flocos derretiam assim que chegavam ao solo. Ajeitou o cobertor em volta do corpo e sentou-se num pé como se fosse um saco de feijão em frente à janela, olhando a neve e imaginando quanto é que ainda lhe restava dos mil dólares.

Respirou o ar gelado perto do vidro da janela e os seus olhos começaram a clarear. A cabeça latejava e doía-lhe, mas as tonturas tinham começado a desaparecer. Antes de conhecer Claire, há muitos anos, morara com uma estudante da universidade de Karisas chamada Phoebe, uma rapariga instável, com problemas de droga, que havia passado algum tempo numa clínica de reabilitação, mas que estava sempre a ponto de sucumbir outra vez. Phoebe, que era de Wichita, tinha trabalhado por pouco tempo no Mulligan's com Claire e Beverly, e saiu de Lawrence sob uma nuvem de mistério. Certa vez disse a Beverly que um rapaz que tinha namorado com Claire lhe tinha contado algumas coisas sobre o seu passado. Não tinha sido Jeff Kerr, mas outro, e se a sua cabeça não estivesse a latejar talvez conseguisse lembrar-se de mais pormenores.

Fora há muito tempo.

Alguém rosnou debaixo de um colchão. Depois, o silêncio voltou. Beverly tinha passado um fim de semana em Wichita com Phoebe e a sua grande e católica família. O pai era médico. Devia ser fácil encontrá-lo. Se aquele giraço do S wanson estava disposto a pagar mil dólares por algumas respostas inocentes, quanto é que pagaria por informações reais do passado de Claire Clement?

Beverly resolveu procurar Phoebe. A última vez que tivera notícias dela soube que estava em Los Angeles, fazendo a mesma coisa que Beverely fazia em Nova Iorque. Ia tentar «sacar» o máximo possível a Swanson e depois talvez pudesse mudar de casa, talvez até para um apartamento maior partilhando-o com outro tipo de amigas que não se misturassem com a escória das ruas.

Onde estava o cartão de Swanson?

Fitch deixou de ouvir a testemunha daquela manhã para se dedicar a uma espécie de interrogatório que raramente fazia. Mas a sua visita era importante. O nome do homem era James Local, chefe da companhia de investigação com a qual Fitch estava a gastar uma fortuna. Escondida em Bethesda, a firma de Local empregava um grande número de ex-agentes do governo. Para aqueles agentes uma viagem ao interior para localizar uma solitária mulher americana sem cadastro era um aborrecimento. A especialidade da firma era acompanhar e vigiar carregamentos ilegais de armas, localizar terroristas e outras acções desse tipo.

Mas Fitch tinha bastante dinheiro e o risco de balas perdidas era muito pequeno. O trabalho também tinha dado muitos frutos e era por isso que Local estava em Biloxi.

Swanson e Fitch ouviam Local descrever com detalhe os seus esforços dos últimos quatro dias. Claire Clement não existia antes de aparecer em Lawrence, no Verão de 1989. O seu primeiro apartamento tinha duas assoalhadas, era alugado ao mês e pago em numerário. Os contratos com os fornecedores de água, luz e gás estavam no seu nome. Não havia registo em Karisas de alguém ter querido mudar legalmente de nome para Claire Clement. Aliás, devia acrescentar-se que embora esse tipo de arquivo não fosse de livre acesso ao público, os homens de Local tinham conseguido chegar até ele. Claire não estava registada como eleitora, não pagou imposto automóvel, não comprou imóveis, mas tinha um número de segurança social que usara para conseguir dois empregos diferentes — um no Mulligan's e outro numa loja de roupa perto do campus universitário. É fácil obter um cartão da segurança social e a sua posse facilita a vida de uma pessoa que esteja a fugir de alguma coisa ou de alguém. Conseguiram uma cópia do impresso que tinha preenchido para obter o cartão da segurança social, mas não revelava nada de particularmente útil. Claire não preencheu nenhum requerimento a pedir um novo passaporte.

Local achava que ela tinha mudado legalmente de nome noutro estado, em algum dos restantes quarenta e nove, tendo vindo para Lawrence já com uma nova identidade.

Tinham o registo total dos seus telefonemas nos três anos em que viveu em Lawrence. Não havia registos de chamadas interurbanas em seu nome. Ele repetiu este dado duas vezes, enfatizando-o. Em três anos nenhuma chamada interurbana. Estavam a verificar todos os números para onde ela tinha ligado, mas Claire usava pouco o telefone.

— Como é que uma pessoa pode viver nos dias de hoje sem fazer chamadas interurbanas? E a família? E os amigos?—perguntou Fitch, incrédulo.

— Há sempre formas alternativas para fazer as coisas — disse Local. — Na verdade, até há muitas. Talvez ela usasse o telefone de alguma amiga ou amigo. Talvez fosse uma vez por semana a um motel, a algum lugar onde permitissem fazer telefonemas registados no número do quarto e pagos juntamente com a diária. E não é possível localizar essas chamadas.

— Incrível—resmungou Fitch.

— Vou dizer-lhe uma coisa, senhor Fitch. Essa rapariga é muito boa. Se cometeu algum erro, ainda não o encontrámos. — O respeito era evidente na voz de Local. — Uma pessoa como esta planeia tudo partindo do pressuposto de que alguém vai verificar mais tarde.

— Sim, é Marlee — disse Fitch, como quem admira uma filha. Marlee tinha dois cartões de crédito em Lawrence — um Visa e um Sheli. A sua ficha de crédito não revelava nada de invulgar ou que pudesse ajudar na investigação. É claro que pagava a maior parte das suas contas em dinheiro. Não se arriscava a cometer erros.

Jeff Kerr já era outra história. Foi fácil seguir a sua pista até à faculdade de direito na universidade de Karisas. A maior parte do trabalho foi feito pelos primeiros agentes de Fitch. Só depois de ter conhecido Claire é que Jeff tinha adquirido a mania do secretismo.

Saíram de Lawrence no Verão de 1991 quando ele terminou o segundo ano de Direito. Os empregados de Local ainda estavam à procura de alguém que soubesse exactamente quando é que tinham deixado a cidade ou para onde pretendiam ir. Em Junho desse ano, Claire pagou em dinheiro o aluguer do apartamento, tendo desaparecido logo a seguir. Tinham investigado uma dúzia de cidades à procura de algum sinal de Claire Clement depois de Maio de 1991, mas até agora as pesquisas tinham sido infrutíferas. Por motivos óbvios, não era possível investigar em todas as cidades.

— O meu palpite é que ela abandonou o nome de Claire assim que saiu da cidade e adoptou outro qualquer — opinou Local.

Fitch já tinha pensado nisso há muito tempo.

—Hoje é sábado. O júri recebe o caso para deliberação na segunda-feira. Vamos esquecer o que aconteceu depois de Lawrence e vamos concentrar-nos para tentar descobrir quem é que ela é na realidade. Ou seja, prefiro que trabalhem sobre o passado.

— Estamos a trabalhar nisso. —Trabalhem mais.

Fitch consultou o relógio e disse que precisava de ir embora. Marlee esperava-o dentro de poucos minutos. Local saiu para ir apanhar um avião particular que o levaria rapidamente a Karisas City.

Marlee estava no seu pequeno escritório desde as seis horas. Adormeceu pouco depois de Nicholas telefonar, mais ou menos às três da manhã. Falaram ao telefone quatro vezes antes de ele sair para o tribunal.

A história de Hoppy tinha a marca evidente de Fitch — se assim não fosse que sentido faria a ameaça de Cristano em arrasar Hoppy se ele não convencesse Millie a votar a favor da defesa? Marlee encheu páginas e páginas com anotações e diagramas e fez dezenas de telefonemas no seu telemóvel. A informação começava a chegar aos poucos. O único George Cristano que constava na lista telefónica da área metropolitana de D.C. morava em Alexandria. Marlee telefonou mais ou menos às 4 horas da manhã, disse que era da Delta Airlines, que um avião tinha caído perto de Tampa e havia a bordo uma senhora Cristano e perguntou se ele era o senhor George Cristano que trabalhava no Departamento de Justiça. Não, graças a Deus, trabalhava no Serviço de Saúde. Ela pediu desculpa, desligou e imaginou o pobre homem correndo para ligar a CNN para ver a notícia do acidente.

Dezenas de telefonemas semelhantes conduziram-na a uma certeza absoluta: nenhum agente do FBI chamado Napier ou Nitchman estava a trabalhar em Atlanta. Também não havia ninguém com esse nome em Biloxi, Nova Orleães, Mobile ou qualquer cidade próxima. Às oito horas entrou em contacto com um investigador em Atlanta que agora estava a seguir as pistas de Napier e Nitchman. Marlee e Nicholas estavam quase certos de que os dois eram agentes falsos, mas precisavam de uma confirmação. Marlee telefonou para repórteres, polícias, linhas do FBI e serviços de informação do governo.

Quando Fitch chegou, às dez em ponto, a mesa estava vazia e o telefone escondido num pequeno armário. Mal se cumprimentaram. Fitch imaginava quem ela era antes de ser Claire e ela ainda estava a estudar o passo seguinte para expor a cilada contra Hoppy.

— Acho melhor que se despache. O júri está quase em estado de coma.

— Acabamos esta tarde. Acha bem?

—Vamos ver. Não está a facilitar as coisas a Nicholas.

— Mandei Cable apressar-se. É tudo o que posso fazer.

— Temos problemas com Rikki Coleman. Nicholas tem passado muito tempo com ela e, ao que parece, não vai ser fácil convencê-la. Rikki é respeitada pelos jurados, homens e mulheres, e Nicholas diz que aos poucos está a tornar-se numa presença importante. E, na verdade, isso é uma surpresa para ele.

— Ela quer um grande veredicto a favor da acusação?

— É o que parece, embora não tenham discutido nenhum ponto específico. Nicholas apercebeu-se de uma certa má vontade contra a indústria por incentivar o vício entre as crianças. E, embora não pareça sentir muita simpatia pela família Wood, está mais inclinada para punir a Big Tobacco por viciar os jovens. De qualquer modo, você disse que podia ter uma surpresa para ela.

Sem comentários ou formalidades, Fitch tirou uma folha de papel da pasta e pô-la na mesa. Marlee leu rapidamente.

— Aborto? — disse ela surpreendida, continuando a ler.

— Isso mesmo.

  • Tem a certeza de que é ela?

  • — Absoluta.

  • Isso deve bastar.

  • — Nicholas tem coragem de lhe mostrar isso?  : Marlee largou o papel e olhou para Fitch.

    — Não me diga que por dez milhões também não tinha?

    — Claro que sim. E por que não? Ela vê isto, vota como deve ser e o seu pequeno segredo sujo é esquecido. Se quiser votar contra nós, ameaçamo-la. É fácil.

    — Exactamente. — Marlee pegou no papel e dobrou-o. — Não se preocupe com a coragem de Nick, está bem? Planeámos isto bem de mais para não correr bem.

    — Há quanto tempo?

    — Isso não é importante. Não tem nada contra Herman Grimes?

    — Nada. Nicholas vai ter de lidar com ele durante a deliberação. —Muito obrigada.

    — Ele está a ser muito bem pago para poder lidar com pequenas contrariedades, não acha? Por dez milhões, deve ser capaz de mudar o sentido de alguns votos...

    — Ele tem os votos, Fitch. Estão no seu bolso neste momento. Ele quer que seja por unanimidade mas Herman pode ser um problema.

     — Pois então deitem fora o filho da mãe. Parece que gostam desse tipo de jogo.

    — Estamos a pensar no assunto. Fitch balançou a cabeça, incrédulo.

    — Tem ideia de quanto tudo isto é corrupto?                    

  • Sim, acho que tenho.

  • —Eu adoro.

    — Pois vá adorar para outro sítio, Fitch. Por agora é tudo. Tenho muita coisa a fazer.

    — Sim, querida—disse Fitch, levantando-se de um salto e fechando a pasta.

    No início da tarde de sábado, Marlee localizou um agente do FBI em Jackson, Mississipi, que, quando o telefone tocou, por acaso estava no escritório, pondo em dia o seu trabalho burocrático. Ela deu um nome fictício, disse que trabalhava numa corretora de imóveis em Biloxi e suspeitava que havia dois homens fazendo-se passar por agentes do FBI. Estavam a importunar o seu chefe, fazendo ameaças, mostrando distintivos, etc. E ela achava que tinha algo a ver com os casinos e, para credibilizar as suas suspeitas, citou o nome de Jimmy Hull Moke. Ele deu-lhe o número de telefone de um jovem agente do FBI em Biloxi chamado Madden.

    Madden estava de cama, com gripe, mas mesmo assim estava disposto a falar, especialmente quando Marlee disse que talvez tivesse informações confidenciais sobre Jimmy Hull Moke. Madden nunca tinha ouvido falar de Napier ou Nitchman. Nem sequer de Cristano. Não sabia de qualquer unidade especial de Atlanta de combate ao crime que estivesse a operar na Costa e quanto mais ela falava mais excitado Madden ficava. Ele queria investigar um pouco e ela prometeu telefonar dentro de uma hora.

    A voz de Madden estava muito mais forte quando ela voltou a telefonar. Não havia nenhum agente do FBI chamado Nitchman. Havia um Lance Napier no escritório de São Francisco, mas não trabalhava na Costa. Cristano também era uma identidade falsa. Madden entrou em contacto com o agente encarregado de investigar Ammy Hull Moke e confirmou que Nitchman, Napier e Cristano, fossem quem fossem, certamente não eram agentes do FBI. Adoraria falar com esses homens e Marlee disse que ia tentar arranjar um encontro.

    A defesa encerrou o caso na tarde de sábado. O juiz Harkin anunciou orgulhosamente:

    — Senhoras e senhores, acabaram de ouvir a última testemunha.

    Ele e os advogados ainda teriam de examinar algumas moções e argumentos de última hora, mas os jurados estavam livres. Naquela noite um autocarro levá-los-ia a um jogo de futebol de uma universidade e ao cinema. Depois, seriam permitidas as «visitas pessoais» até à meia-noite. No dia seguinte, cada jurado podia sair do motel das nove da manhã até à uma da tarde para ir à igreja, desacompanhado, desde que prometesse não dizer uma única palavra sobre o julgamento. Domingo à noite, «visitas pessoais» das sete às dez. Na segunda-feira de manhã ouviriam as alegações finais e, antes do almoço, receberiam o caso para deliberação.

     

    Explicar as regras do futebol americano a Henry Vu era uma tarefa difícil e inglória. Mas, afinal, todos pareciam peritos. Nicholas jogara na equipa do liceu, no Texas, nem mais nem menos, onde o desporto é quase uma religião. Jerry acompanhava cerca de vinte desafios por semana: na verdade, acompanhava-os com a carteira e, por isso, afirmava que conhecia o jogo intimamente. Lonnie, sentado atrás de Henry, também jogar a no colégio e estava sempre a inclinar-se sobre o ombro de Henry e a apontar. Poodle, ao lado de Jerry, muito juntos, debaixo da manta que lhes cobria os joelhos, aprendera o jogo quando os dois filhos se haviam tornado praticantes. Até Shine Royce não hesitava em dar alguns palpites. Nunca jogara, mas assistia frequentemente aos desafios pela televisão.

    Constituíam um pequeno grupo, sentados na bancada fria de alumínio reservada aos não sócios, longe do resto dos espectadores, e viam uma escola da Costa do Golfo jogar contra uma escola de Jackson. Era um ambiente perfeito para futebol. — frio, o público muito bem-comportado nas cadeiras, um bando barulhento nas bancadas, as claques animadas por bonitas raparigas, enfim, um jogo equilibrado.

    Henry fazia muitas perguntas disparatadas. Porque são as calças deles tão justas? O que dizem quando se reúnem antes de uma jogada e porque dão as mãos uns aos outros? Porque se amontoam uns sobre os outros daquela maneira? Jurava que era a primeira vez que assistia a um jogo de futebol americano ao vivo.

    No outro lado da passagem, Chuck e outro polícia à paisana viam o jogo, ignorando seis dos jurados domais importante julgamento de direito civil do país.

    Era expressamente proibido aos jurados qualquer contacto com as visitas do outro jurado. A proibição fora determinada por escrito desde que se iniciara o isolamento e o juiz Harkin repetia-a persistentemente. Mas um olá ocasional parecia inevitável e Nicholas estava firmemente resolvido a quebrar a regra sempre que possível.

    Millie não se interessava por cinema e muito menos por futebol. Hoppy chegou com um saco de burritos, que comeram devagar, quase sem trocar palavra. Depois do jantar, tentaram assistir a um programa na TV, mas desistiram e começaram a falar sobre o sarilho em que Hoppy se metera. Mais lágrimas, mais pedidos de desculpas, até algumas referências da parte de Hoppy a suicídio, que Millie achou exagera-damente dramáticas. Finalmente ela confessou que contara tudo a Nicholas Easter, um óptimo rapaz que conhecia a lei e era digno de confiança. A princípio, Hoppy ficou chocado e zangou-se, depois a curiosidade foi mais forte e mostrou-se ansioso por saber o que é que uma pessoa de fora pensava da situação. Especialmente alguém que conhecia a lei, como Millie dissera. Mais de uma vez ela mencionara a admiração que nutria por Nicholas.

    Nicholas prometer a fazer alguns telefonemas e isso alarmou Hoppy. Nitchman, Napier e Cristano tinham-no advertido severamente sobre a importância de se guardar segredo. Podia confiar em Nicholas, repetiu Millie, e Hoppy entusiasmou-se finalmente com a ideia.

    O telefone tocou às dez e meia. Era Nicholas, járegressado do jogo, instalado no seu quarto e ansioso por se encontrar com os Dupree. Millie abriu a porta. Willis, no seu posto ao fim do corredor, ficou surpreendido quando Easter entrou no quarto de Millie. O marido dela ainda estava lá? Willis não se lembrava.

    Muitos visitantes ainda estavam no motel e ele tinha dormido uma soneca. Seria que Easter e Millie tinham uma ligação? Willis anotou o facto mentalmente e voltou a dormir.

    Hoppy e Millie sentaram-se na beira da cama,de frente para Nicholas, que estava encostado à cómoda, perto do televisor. Começou por sublinhar delicadamente a necessidade do silêncio, como se Hoppy não tivesse ouvido essa prelecção vezes sem conta na última semana. Bastaria dizer que estavam a violar as ordens do juiz.

    Nicholas deu a notícia gentilmente. Napier, Nitchman e Cristano eram actores secundários numa grande fraude, uma conspiração orquestrada pelas tabaqueiras para pressionar Millie. Não eram agentes do governo. Os nomes eram falsos. Hoppy fora enganado.

    Este aceitou com calma a revelação. A princípio, sentiu-se ainda mais idiota, se era possível; depois o quarto começou a andar à roda e Hoppy oscilava para um lado e para o outro. Aquilo era bom ou mau? E a gravação? Qual deveria ser o seu próximo passo? E se Nicholas estivesse enganado? Centenas de pensamentos giravam no seu cérebro, enquanto Millie apertava o joelho e começava a chorar.

    — Tem a certeza? — conseguiu perguntar, prestes a ter um colapso.

    — Absoluta. Não têm nada a ver com o FBI ou com o Departamento de Justiça.

    — Sim, mas os distintivos e...

    Nicholas ergueu as duas mãos, acenou com a cabeça e disse:

    -—Eu sei, Hoppy. Acredite, tudo isso é fácil de conseguir. É muito

    simples criar esse tipo de disfarce.

    Hoppy passou a mão pela testa e tentou ordenar os pensamentos.

    Nicholas explicou que o Grupo de Propriedades KLX em Las Vegas

    não existia. Não conseguiram encontrar nenhum senhor Todd Ringwald,

    que certamente era também um nome falso.

    — Como sabe tudo isso? — perguntou Hoppy.

    — Boa pergunta. Tenho um amigo lá fora que é muito bom a conseguir informações. Posso confiar nele. Bastaram três horas ao telefone, o que não é muito, considerando que hoje é sábado.

    Três horas. Num sábado. Porque não tinha Hoppy feito telefonemas? Tivera uma semana. Dobrou mais o corpo até descansar os cotovelos nos joelhos. Millie limpou o rosto com um lenço de papel. Depois de um minuto de silêncio, Hoppy perguntou:

    — E a gravação?

    — Da sua conversa com Moke?

    — Sim, a gravação.

    — Não estou preocupado com isso — disse Nicholas, com segurança, como se fosse agora o advogado de Hoppy. — Há vários problemas legais com aquela fita.

    Diga-me quais são, pensou Hoppy, mas continuou calado. Nicholas

    prosseguiu:

    — Foi obtida sob falsos pretextos. É um caso claro de armadilha. Está nas mãos de homens que violam a lei. Não foi obtida por autoridades. Não há nenhum mandado de busca para ela, nenhuma ordem judicial que permita a gravação das suas palavras. Esqueça,

    Que palavras suaves! Os ombros de Hoppy ergueram-se e soltc»Sfi> ar dos pulmões, aliviado.                                                         

    — Está a falar a sério?

    — Sim, Hoppy. Aquela fita nunca mais será ouvida.

    Millie inclinou-se para o marido e abraçaram-se descontraída e naturalmente. As lágrimas dela eram agora de incontida alegria. Hoppy levantou-se e começou a andar pelo quarto.

    — Então, qual é o plano do jogo? — perguntou, estalando os nós dos dedos, pronto para a batalha.

    — Precisamos de ter cuidado.

    — Basta dar-me a morada. Aqueles filhos da puta!

    — Hoppy!

    — Desculpa, querida. É que estou pronto para dar uns murros e uns pontapés.

    — Sim, mas podes cuidar da linguagem, Hoppy!

    O domingo começou com um bolo de aniversário. Loreen Duke dissera à senhora Gladys Card que dentro de poucos dias faria trinta e seis anos. A senhora Card telefonou para a irmã e, no domingo, esta apareceu com um bolo de chocolate com cobertura. Três camadas com trinta e seis velas. Os jurados reuniram-se na sala de jantar às nove horas e comeram o bolo ao pequeno-almoço. A maior parte saiu apressadamente para quatro ansiadas horas nas respectivas igrejas. Alguns não entravam numa igreja há anos, mas sentiram-se atraídos pelo espírito.

    Um dos filhos de Poodle foi buscá-la e Jerry acompanhou-os. Seguiram na direcção de uma igreja não identificada, mas assim que tiveram a certeza de que ninguém estava a vigiá-los, dirigiram-se para um casino. Nicholas saiu com Marlee e assistiram à missa. A senhora Gladys Card fez uma entrada triunfal na Igreja Baptista do Calvário. Millie foi para casa com a intenção de se vestir para a missa, mas a emoção dominou-a quando viu os filhos. Como ninguém estava a ver, passou o tempo na cozinha, a fazer comida, a limpar e a cuidar da sua ninhada. Phillip Savelle ficou no motel.

    Hoppy foi para o escritório às dez horas. Tinha telefonado a Napier às oito da manhã desse domingo, dizendo que precisavam de falar sobre coisas importantes surgidas no julgamento. Disse que fizera prógressos com a mulher e que ela tinha agora muita influência nos jurados. Queria encontrar-se com Napier e Nitchman no escritório para fazer um relatório completo e receber novas instruções.

    Napier atendeu o telefone no apartamento de duas assoalhadas que ele e Nitchman usavam como fachada para o golpe. Tinham dois telefones instalados temporariamente — um com o número do escritório, o outro com o número da residência que ocupariam durante a pesquisa sobre a corrupção na Costa do Golfo. Napier conversou com Hoppy, depois telefonou a Cristano, a fim de receber novas ordens. O quarto de Cristano ficava num Holiday Inn, perto da praia. Ele, por sua vez, telefonou a Fitch, que ficou satisfeito com a notícia. Finalmente Millie estava a passar-se para o seu lado. Fitch começava a perguntar-se se o seu investimento valeria a pena. Deu sinal verde para o encontro no escritório de Hoppy.

    Com os fatos e os óculos-escuros da praxe, Napier e Nitchman chegaram às onze horas e encontraram Hoppy a fazer café, contente da vida. Sentaram-se à volta da mesa e esperaram que o café ficasse pronto. Millie estava lá, lutando como uma leoa para salvar o marido; Hoppy tinha a certeza de que ela já havia convencido a senhora Gla-dys Card e Rikki Coleman. Mostrara-lhes o memorando sobre Robilio e tinham ficado escandalizadas com a falsidade do homem.

    Serviu o café enquanto Nitchman e Napier tomavam notas. Outro visitante entrou silenciosamente no prédio pela porta da frente, que Hoppy não fechara. Atravessou o corredor atrás da área da recepção com passos leves sobre a alcatifa até chegar a uma porta de madeira onde estava escrito HOPPY DUPREE. Escutou por um momento e então bateu com força.

    Lá dentro, Napier deu um salto na cadeira, Nitchman pôs a chávena na mesa e Hoppy olhou para eles, assustado.

    — Quem é? — perguntou em voz alta.

    A porta abriu-se bruscamente e o agente Alan Madden entrou, dizendo em voz alta:

    — FBI! — Caminhou até a mesa, olhando furioso para os três. Hoppy empurrou a cadeira para trás e ficou de pé, como se fosse

    ser revistado.

    Napier teria desmaiado se estivesse de pé. Nitchman abriu a boca. Os dois ficaram muito pálidos e os seus corações pareceram parar.

    — Agente Alan Madden, FBI — anunciou, mostrando o distintivo para que todos o vissem. — É o senhor Dupree? — perguntou.

    — Sou. Mas o FBI já está aqui — respondeu Hoppy, olhando para Madden, para os outros dois e outra vez para Madden.

    — Onde? — perguntou ele, franzindo a testa para Napier e Nitchman.

    — Estes dois homens—indicou Hoppy, como um verdadeiro actor. Era o seu melhor momento. — Este é o agente Ralph Napier e este o agente Dean Nitchman. Não se conhecem?

    —Eu vou explicar—começou Napier, confiante, como se pudesse realmente esclarecer tudo.

    — FBI? — interrogou-se Madden. — Mostrem-me as identificações — ordenou, estendendo a mão.

    Hesitaram e Hoppy atacou.

    — Vá, mostrem os distintivos. Os que me mostraram a mim.

    — Identificação, por favor — insistiu Madden, a sua fúria crescendo a cada segundo.

    Napier começou a levantar-se, mas Madden fê-lo sentar-se de novo, empurrando-o pelos ombros para baixo.

    — Eu posso explicar— disse Nitchman, a voz uma oitava acima do normal.

    — Então explique — concordou Madden.

    — Bem, compreenda, não somos na verdade agentes do FBI, mas...

    — Mas o quê? — gritou Hoppy do outro lado da mesa, com olhos ferozes e pronto para começar a atirar coisas aos dois. — Seus filhos da puta! Há dez dias que me dizem que são agentes do FBI!

    — Isso é verdade ? — quis saber Madden.

    — Não, realmente não é — tentou atalhar Nitchman.

    — O quê? — berrou Hoppy de novo.

    — Tenha calma! — aconselhou Madden secamente. — Agora, continue — pediu a Nitchman.

    Nitchman não queria continuar. Queria correr para a porta, dizer adeus a Biloxi e desaparecer do mapa.

    — Somos investigadores particulares e, bem...

    —Trabalhamos para uma firma em D.C. — ajudou Napier, solícito. Ia dizer mais qualquer coisa quando Hoppy abriu a gaveta da mesa e tirou dois cartões: um de Ralph Napier, outro de Dean Nitchman, identificando-os como agentes do FBI, ambos da Unidade Regional do Sueste de Atlanta. Madden observou os dois cartões, viu os números dos telefones locais escritos nas costas.

    — Afinal, o que se passa? — perguntou Hoppy.

    — Qual é o Nitchman? — perguntou Madden. Nenhuma resposta.

    — Ele é o Nitchman — gritou Hoppy, apontando.

    — Eu não — escusou-se Nitchman.

    — O quê! — berrou Hoppy novamente.

    Madden deu dois passos para Hoppy e indicou a cadeira.

    — Quero que se sente aí e cale a boca, está bem? Nem mais uma palavra sem eu dar ordem.

    Hoppy caiu na cadeira, olhando furioso para Nitchman.

    — Você é Ralph Napier? — perguntou Madden.                 

    — Não — respondeu Napier, sem olhar para Hoppy.             

    — Filhos de uma cadela — resmungou Hoppy.

    — Então quem é você? — Madden esperou, mas não teve resposta.

    — Eles deram-me esses cartões, não deram? — alvitrou Hoppy, sem qualquer intenção de se calar. — Posso jurar perante o grande júri, sobre uma pilha de Bíblias, que me deram esses cartões. Disseram que eram agentes do FBI e quero que sejam processados.

    — Quem é você? — perguntou Madden ao suposto Nitchman. Nenhuma resposta. Madden tirou um revólver do cinto, o que impressionou profundamente Hoppy, e mandou que os dois ficassem de pé, com as pernas afastadas e inclinados sobre a mesa. Passou-lhes revista, mas não encontrou nada além de moedas, chaves e fichas telefónicas. Nenhuma carteira. Nenhum distintivo falso do FBI. Nenhuma identificação. Estavam demasiado treinados para cometerem esse erro.

    Madden algemou os dois e levou-os para a frente do prédio, onde outro agente do FBI o esperava, tomando café. Juntos, puseram Napier e Nitchman no banco de trás de um verdadeiro carro do FBI. Madden despediu-se de Hoppy, prometeu telefonar mais tarde e partiu com os dois golpistas sentados em cima das mãos. O outro agente do FBI seguiu-o, no falso carro do FBI que Napier costumava guiar.

    Hoppy disse-lhes adeus.

    Madden seguiu pela Estrada 90, na direcção de Mobile. Napier, o mais esperto dos dois, inventou uma história verosímil com a qual Nitchman concordou imediatamente. Disseram a Madden que a sua firma fora contratada por pessoas que tinham interesses nos casinos para investigar vários lotes de terreno ao longo da Costa. Fora assim que haviam conhecido Hoppy, um tipo extremamente corrupto que lhes tentara extorquir dinheiro. Uma coisa levou a outra e o chefe de ambos mandara-os fazer-se passar por agentes do FBI. Na verdade, não tinham feito nada de mal.

    Madden ouviu quase em silêncio. Mais tarde, diriam a Fitch que aparentemente não sabia nada sobre a mulher de Hoppy, Millie e as suas responsabilidades cívicas do momento. Madden era um agente jovem, obviamente orgulhoso da sua presa, mas sem saber ao certo o que fazer com ela.

    Finalmente considerou o facto como um crime de menor gravidade, não passível de processo penal e que não justificava qualquer esforço suplementar da sua parte. De qualquer modo, estava cheio de serviço. A última coisa que precisava era de perder tempo a processar dois mentirosos de segunda categoria. Quando entraram em Alabama, fez um sermão sobre as penalidades aplicadas a quem se faz passar por agente federal. Eles disseram que lamentavam muito, que não voltaria a acontecer.

    Numa paragem na estrada, tirou as algemas aos dois, devolveu-lhes o carro e mandou-os ficar longe do Mississipi.

    Agradeceram, prometeram não mais regressar e foram-se embora.

    Fitch partiu um candeeiro com um murro quando recebeu o telefonema de Napier. Com sangue a pingar de um dedo, praguejou e ouviu a história, contada de uma barulhenta estação de camionetas do Alabama. Mandou Pang ir buscar os dois.

    Três horas depois de terem sido algemados, Napier e Nitchman estavam sentados em frente de Fitch, no escritório das traseiras da antiga loja. Cristano estava também presente.

    — Comecem do princípio — pediu Fitch. — Quero ouvir tudo. — Ligou o gravador.

    Conjugando esforços, os dois conseguiram lembrar-se praticamente de tudo.

    Fitch dispensou-os e mandou-os de regresso para Washington.

    Sozinho, reduziu as luzes do escritório e ficou a remoer a sua fúria no escuro. Hoppy contaria tudo a Millie nessa noite. Millie estaria perdida como voto para a defesa; na verdade, provavelmente passaria com tanto ardor para o outro lado que acabaria a exigir milhares de milhões como indemnização para a pobre viúva Wood. Mas Marlee podia evitar esse desastre. Só Marlee.

     

    Isto era muito estranho, comentou Phoebe, ainda não refeita da surpresa do telefonema de Beverly, porque há dois dias tinha-lhe telefonado um homem dizendo que era Jeff Kerr e que andava à procura de Claire. Phoebe percebeu imediatamente que não era o Jeff, mas fê-lo falar para tentar descobrir o que é que queria. Há quatro anos que não falava com Claire.

    Beverly e Phoebe compararam os telefonemas, mas Beverly não mencionou o encontro com Swanson, nem o júri que ele andava a investigar. Conversaram sobre o tempo do colégio, que parecia tão distante. Mentiram sobre as respectivas carreiras teatrais e os progressos que iam fazendo. Prometeram rever-se na primeira oportunidade e depois despediram-se.

    Beverly telefonou de novo uma hora depois, como se se tivesse esquecido de algo. Estava a pensar em Claire. Tinham-se separado com uma pequena diferença entre ambas, nada de importante, mas que a preocupava. Gostava de a rever para resolver o caso, nem que fosse apenas para aliviar o seu sentimento de culpa. Mas não tinha ideia de onde poderia encontrá-la. Claire tinha desaparecido rápida e completamente.

    Então, Beverly decidiu arriscar. Uma vez que Swanson tinha mencionado a possibilidade de um nome anterior, e como se lembrava do mistério que envolvia o passado de Claire, lançou uma isca para ver se Phoebe a agarrava.

    — Sabias que Claire não era o verdadeiro nome dela? — perguntou, com a maior convicção.

  • Sabia — respondeu Phoebe.

  • Uma vez disse-me qual era, mas não me consigo lembrar.

  • Phoebe hesitou.

    — Tinha um nome muito bonito, embora Claire não seja feio.

    — Qual era?

    — Gabrielle.

    — Isso mesmo, Gabrielle. E o apelido?

    — Brant. Gabrielle Brant. Era de Columbia, no Missouri. Foi aí que estudou, na universidade de Columbia. Contou-te a história?

    — Talvez, mas não me lembro.

    — Tinha um namorado muito irascível e meio doido. Tentou acabar tudo e ele começou a segui-la. Então saiu da cidade e mudou de nome.

    — Nunca ouvi nada disso. Como se chamavam os pais dela?

    — Brant. Acho que o pai morreu. A mãe era professora de estudos medievais na universidade.

    — Ainda lá está?                                                           

    — Não faço ideia.— Vou tentar encontrá-la por intermédio da mãe. Obrigada, Phoebe. Só uma hora depois conseguiu falar com Swanson. Perguntou-lhe quanto valia a informação. Swanson telefonou a Fitch, que estava mesmo a precisar de boas notícias. Ele autorizou um tecto de cinco mil dólares e Swanson ofereceu metade a Beverly. Ela queria mais. Negociaram durante dez minutos e chegaram a acordo pelos quatro mil, que queria receber em dinheiro e pessoalmente antes de dizer uma palavra que fosse.

    Os quatro directores executivos estavam na cidade para assistir aos argumentos finais e ao veredicto, por isso Fitch tinha uma pequena frota de aviões particulares à sua disposição. Mandou Swanson a Nova Iorque no avião da Pynex.

    Swanson chegou ao cair da noite e foi para um pequeno hotel perto de Washington Square. Uma das companheiras de apartamento de Beverly disse-lhe que ela não estava e que não tinha ido trabalhar, mas talvez estivesse nalguma festa. Ele telefonou para apizzaria onde ela trabalhava e ficou a saber que tinha sido despedida. Telefonou outra vez para o apartamento e a companheira de Beverly desligou-lhe o telefone na cara quando começou a fazer muitas perguntas. Swanson ficou furioso e começou a caminhar de um lado para o outro no quarto. Como é que se encontra uma pessoa nas ruas de Greenwich Village? Foi a pé até ao apartamento dela, que ficava a poucos quarteirões do hotel, com os pés a gelar sob a chuva fria. Tomou café no mesmo lugar onde se tinham encontrado anteriormente, enquanto os pés aqueciam e secavam, e usou o telefone público para mais uma conversa infrutífera com a mesma companheira de quarto.

    Marlee queria um último encontro com ele antes do grande dia, que seria segunda-feira. Encontraram-se no escritório. Fitch estava capaz de lhe beijar os pés quando a viu. Resolveu contar-lhe tudo sobre Hoppy e Millie e o fracasso da sua grande fraude. Nicholas tinha de começar imediatamente a trabalhar Millie para a acalmar, antes que ela contaminasse os amigos do júri. Afinal, Hoppy tinha dito a Napier e a Nitch-man, no domingo de manhã, que Millie se tornara agora uma acérrima defensora da defesa, que andava a mostrar a todos os jurados as cópias do documento sobre Robilio. Isso era verdade? Se assim era, o que faria quando soubesse toda a verdade sobre Hoppy? Ficaria furiosa, sem dúvida, e mudaria de lado imediatamente. Provavelmente contaria aos amigos do júri a coisa terrível que a defesa tinha feito ao marido numa tentativa de a pressionar a ela. Isso seria um desastre.

    Marlee ouviu a história sem reagir. Não ficou chocada, estava antes divertida com a angústia de Fitch.

    — Acho que devemos tirar a Millie do júri — disse Fitch, para concluir.

    — Tem uma cópia do memorando sobre o Robilio? — perguntou Marlee, sem se deixar abalar.

    Fitch tirou o papel da pasta e entregou-lho.

    — Trabalho seu?—perguntou Marlee, depois de ler.

    — Sim. Tudo falso.

    Marlee dobrou a folha de papel e pô-la debaixo da sua cadeira.

    — Um belo plano, Fitch.

    — Pois, foi bonito até termos sido apanhados.

    — Vocês fazem coisas deste tipo em todos os julgamentos das tabaqueiras?

    — Pelo menos tentamos.

    — Por que é que escolheu o senhor Dupree?

    — Estudámo-lo cuidadosamente e achámos que seria fácil. Corrector numa cidade pequena, mal ganhando para pagar as contas, muito dinheiro a mudar de mãos com os casinos e tal, muitos dos seus amigos a enriquecer de um momento para o outro. Caiu imediatamente.

    -           Já foram apanhados alguma vez?

    -Já tivemos de abortar alguns planos, mas nunca fomos apanhados em flagrante.

    - Até hoje.

    - Hoje, não é bem assim. O Hoppy e a Millie podem suspeitar de

    que foi alguém que trabalha para a companhia, mas não sabem quem.

    Portanto, quanto a isso ainda há alguma dúvida.

    - Qual é a diferença?

    - Nenhuma.

    -           Descanse, Fitch. Acho que o marido estava a exagerar a in

    fluência dela sobre o júri. O Nicholas e a Millie são muito amigos e não

    se tornou uma defensora do seu cliente.

    -           Do nosso cliente.

    - Certo. Nosso cliente. O Nicholas não viu o memorando.

    - Acha que o Hoppy estava a mentir?

    -           E poderíamos censurá-lo? Os seus homens convenceram-no de

    que ia ser indiciado.

    Fitch suspirou de alívio e quase sorriu. Depois disse: -É imperativo que o Nicholas fale com a Millie esta noite. O Hoppy estará no motel dentro de algumas horas e vai contar-lhe tudo. O Nicholas pode falar com ela antes disso?

    -           Fitch, a Millie vai votar como nós queremos. Descanse.

    Fitch relaxou um pouco. Tirou os cotovelos da mesa e tentou sorrir outra vez.

    -           Só por curiosidade, quantos votos temos neste momento?

    -           Nove.

    -           Quem são os outros três?

    - Herman, Rikki e Lonnie.

    - Não falou com a Rikki sobre o passado dela?

    - Ainda não.

    - Com a Rikki são dez. - Calculou Fitch, com o olhar errando

    pela sala, os dedos num tamborilar repentino. - Podemos ficar com

    onze se tirarmos alguém de circulação e o substituirmos por Shine Royce,

    não é?

    - Escute, Fitch, está a preocupar-te de mais. Pagou o que tinha a

    pagar, contratou o melhor que havia, agora descanse e aguarde o vere

    dicto. Está em óptimas mãos.

    - Unânime? - perguntou Fitch, esperançoso.

    - O Nicholas está decidido a apresentar um resultado unânime. Fitch desceu agilmente os degraus do velho prédio e equilibrou-se ao longo do passeio estreito até chegar à rua. Andou seis quarteirões, a assobiar, quase aos pulos de contentamento no ar da noite. José foi ao encontro dele, a pé, e tentou acompanhá-lo. Nunca tinha visto o patrão tão satisfeito.

    Num dos lados da sala de conferências estavam sentados sete advogados que teriam pago um milhão de dólares cada um só pelo privilégio de assistir a este evento. Não havia mais ninguém na sala a não ser Wendall Rohr, que passeava lentamente de um lado para o outro de uma extremidade da mesa de conferências, falando numa voz calma e pausada para o seu júri. A voz de Rohr era quente e sonora, ora repleta de compaixão, ora proferindo palavras contundentes contra a Big Tobacco. Discursava e persuadia. Alternava a comicidade com a ira. Mostrava fotografias e escrevia números num quadro negro.

    Terminou a alegação ao fim de cinquenta e um minutos, o ensaio mais curto até então. O resultado final não podia durar mais de uma hora, ordens do juiz Harkin. Os comentários dos seus companheiros foram rápidos e variados, alguns elogiosos, mas a maioria sugerindo formas de melhorar o discurso. Não era possível imaginar ouvintes mais severos. Estes sete tinham formado equipa em centenas de alegações finais, com argumentações que já haviam produzido cerca de quinhentos milhões de dólares em veredictos. Sabiam exactamente como extrair grandes quantias de dinheiro das decisões dos jurados.

    Tinham combinado deixar os egos estacionados lá fora. Rohr levou outra tareia argumentativa, coisa que não sabia aceitar muito bem, e concordou em repetir tudo de novo.

    Tinha de ser perfeito. A vitória estava tão perto!

    Cable foi submetido a um teste semelhante. O seu público era muito maior - uma dúzia de advogados, vários consultores de júri e diversos administrativos. O desempenho foi gravado em vídeo para que a pudesse estudar posteriormente. Estava resolvido a concluir o seu discurso de encerramento em meia hora. O júri iria apreciar isso. Rohr ia, sem dúvida, demorar mais. O contraste seria interessante - Cable, o técnico, limitando-se aos factos, contra Rohr, o bombástico, que procurava despertar as emoções do júri.

    Apresentou a sua argumentação e depois estudou o vídeo. Uma vez, e outra, e mais outra, ao longo de toda a tarde de domingo e de uma boa parte da noite.

    Quando Fitch chegou à casa de praia, tinha voltado ao seu habitual estado de pessimismo cauteloso. Os quatro directores-executivos estavam à espera dele, depois de uma boa refeição. Jankle estava bêbado e introspectivo, ao pé da lareira. Fitch tomou um café e analisou os esforços de último minuto da defesa. As perguntas rapidamente chegaram às transferências de dinheiro que exigira na sexta-feira: dois milhões de dólares a cada um deles.

    Antes disso, o Fundo tinha um saldo de seis milhões e meio, sem dúvida mais do que suficiente para terminar o julgamento. Para que eram aqueles oito milhões adicionais? E quanto havia no Fundo agora?

    Fitch explicou que se tratava de uma despesa de grandes proporções, repentina e inesperada.

    -           Pare com esses jogos, Fitch - disse Luther Vandemeer, daTrell-

    co. - Conseguiu finalmente comprar o veredicto?

    Fitch tentou não mentir a estes quatro. Afinal de contas, eram seus empregadores. Nunca lhes contava toda a verdade e não esperavam que a contasse. Mas em resposta a uma pergunta directa, especialmente daquela magnitude, sentiu-se obrigado a fazer um esforço para ser honesto.

    -           Qualquer coisa desse estilo - disse.

    -           Tem os votos, Fitch? - perguntou outro executivo.

    Fitch olhou atentamente para cada um deles, incluindo Jankle, que de repente prestou atenção.

    -           Acredito que sim.

    Jankle levantou-se bruscamente, sem grande equilíbrio mas vendo muito bem onde estava, e pôs-se no centro da sala.

    - Repita lá isso - ordenou.

    - Ouviu muito bem - disse Fitch.  O veredicto foi comprado.

    - Não conseguiu disfarçar o orgulho.

    Os outros três levantaram-se também. Aproximaram-se os quatro de Fitch, rodeando-o.

    -           Como? - perguntou um deles.

    - Não lhe vou dizer - respondeu Fitch, friamente. - Os pormenores não são importantes.

    - Mas exijo saber - intimou Jankle.

    - Esqueça. Uma parte da minha obrigação é fazer o trabalho sujo

    e ao mesmo tempo proteger-vos a vocês e às vossas empresas. Se me

    quiserem despedir, óptimo. Mas nunca saberão os pormenores.

    Os olhares ficaram fixos nele durante uma longa pausa. O círculo fechou-se mais. Todos tomavam bebidas e admiravam o seu herói. Oito vezes tinham estado à beira do desastre e oito vezes Rankin Fitch os salvara com as suas manobras sujas. Agora tinha-o feito pela nona vez. Era invencível.

    E era a primeira vez que prometia a vitória com antecedência. Normalmente nunca fazia isso. Ficava sempre angustiado antes de cada veredicto, sempre a prever uma derrota e a saborear a angústia deles. Esta garantia antecipada não era característica da actuação de Fitch.

    -           Quanto? - perguntou Jankle.

    Era uma coisa que Fitch não podia esconder. Por razões óbvias, osquatro tinham direito a saber para onde ia o dinheiro. Tinham criado um modelo primitivo de contabilidade para o Fundo. Cada companhia contribuía com igual quantia quando Fitch o exigia, e cada director-exe-cutivo tinha direito a uma relação mensal das despesas.

    -           Dez milhões - especificou ele.

    O bêbedo foi o primeiro a protestar:

    -- Pagou dez milhões a um jurado?

    Os outros estavam igualmente chocados.

    -           Não. Não foi a um jurado. Digamos que comprei o veredicto por

    dez milhões de dólares, está bem? É tudo o que lhes vou dizer. O Fundo

    tem agora um saldo de quatro milhões e meio. E não vou responder a

    nenhuma pergunta sobre a forma como o dinheiro mudou de mãos.

    Talvez fosse fácil compreender uma mala cheia de dinheiro passada por debaixo da mesa. Cinco, dez mil dólares. Mas era impossível imaginar qualquer um daqueles saloios de província que constituíam o júri a ser capaz de sonhar sequer com dez milhões de dólares. Claro que não era tudo para uma pessoa.

    Continuavam a rodear Fitch, atónitos e em silêncio, todos a pensar o mesmo: evidentemente que Fitch tinha aplicado a sua magia em dez deles. Isso fazia sentido: conseguiu comprar dez jurados e ofereceu um milhão a cada um. Sim, fazia muito mais sentido. Dez milionários novi-nhos em folha na Costa do Golfo. Mas como se pode esconder tanto dinheiro?

    Fitch saboreou o momento.

    - É claro que nada está garantido - disse. - Nunca se sabe, até o júri voltar com o veredicto.

    Para bem de todos, e por dez milhões de dólares, era bom que estivesse mesmo garantido, pensaram. Mas não disseram nada. Luther Vandemeer foi o primeiro a afastar-se de Fitch. Serviu-se de uma dose generosa de conhaque e sentou-se na banqueta do piano de cauda. Fitch contar-lhe-ia mais tarde. Esperaria um ou dois meses, chamá-lo--ia a Nova Iorque para tratar de negócios e ouviria a história toda.

    Fitch disse que tinha ainda muito que fazer. Queria os quatro no tribunal, no dia seguinte, para ouvir os argumentos finais das duas partes. E não se sentem juntos, ordenou.

     

    Todos os jurados sentiam que a noite de segunda-feira seria a última noite de isolamento. Comentavam em voz baixa que, se recebessem o caso ao meio-dia de segunda-feira, poderiam obter um veredicto na segunda à noite e voltar para casa. Isto não era comentado abertamente porque implicava especulação sobre os resultados, algo que Herman estava pronto a atalhar.

    No entanto, o ambiente estava animado e muitos deles fizeram discretamente as malas e arrumaram os quartos. Queriam demorar o menos tempo possível no Siesta Inn após o veredicto - o suficiente apenas para, numa corrida do tribunal, recolher as malas e as escovas de dentes.

    A noite de domingo foi a terceira consecutiva de visitas pessoais e todos estavam fartos dos seus visitantes, especialmente os casados. Três noites seguidas no aconchego de um quarto minúsculo era uma provação para muitos casamentos. Até os solteiros precisavam de ir arejar. A namorada de Savelle não apareceu. Derrick disse a Angel que talvez aparecesse mais tarde, mas que antes disso precisava de tratar de uns assuntos importantes. Loreen não tinha namorado, mas um fim-de-semana inteiro com as filhas adolescentes já lhe chegava. Jerry e Poodle debatiam-se com a sua primeira desavença.

    O motel estava calmo naquela noite de domingo. Nada de futebol e cerveja no salão de festas, nada de torneios de damas. Marlee e Ni-cholas jantaram pizza no quarto dele. Verificaram as suas listas de tarefas e delinearam os planos finais. Estavam ambos nervosos e tensos e relembraram a triste história de Fitch e Hoppy com pouco mais que um sorriso amarelo.

    Marlee saiu às nove horas. Foi no seu carro alugado até ao condomínio, onde acabou de fazer as malas.

    Nicholas atravessou o corredor e entrou no quarto onde Millie e Hoppy esperavam como um casal em lua-de-mel. Não sabiam como lhe haviam de agradecer. Nicholas tinha exposto aquela fraude horrível e agora estavam de novo livres. Era chocante pensar nos extremos a que a indústria do tabaco podia chegar para pressionar um jurado.

    Millie estava preocupada com o facto de continuar no júri. Ela e Hoppy já tinham discutido o assunto e achavam que, depois do que lhe tinham feito a ele, ela não conseguiria ser imparcial. Nicholas já contava com isto. Na sua opinião, ele precisava de Millie.

    E havia ainda uma razão mais forte. Se Millie contasse ao juiz Harkin o que tinham feito a Hoppy, provavelmente anularia o julgamento. E isso seria uma tragédia. Uma anulação significaria que, dentro de um ou dois anos, outro júri seria escolhido para ouvir o mesmo caso. Cada um dos lados gastaria outra fortuna para voltar a fazer o que estavam a fazer agora.

    - Depende de nós, Millie. Fomos escolhidos para decidir este caso e é nossa responsabilidade chegar a um resultado. O próximo júri não será melhor do que o nosso.

    - Concordo - aprovou Hoppy. -- Este julgamento vai acabar amanhã. Seria uma pena se fosse anulado no último minuto.

    Assim sendo, Millie mordeu o lábio e tomou uma decisão. O seu amigo Nicholas facilitava-lhe as coisas.

    Cleve encontrou-se com Derrick no bar desportivo do Casino Nugget, no domingo à noite. Tomaram umas cervejas, assistiram a um jogo de futebol, falaram pouco porque Derrick tentava parecer zangado e ofendido por estar a ser explorado, como dizia. Os quinze mil em dinheiro estavam num embrulho de papel castanho que Cleve lhe passou por cima da mesa e que Derrick guardou no bolso, sem dizer obrigado ou qualquer outra coisa. Segundo o último acordo, os outros dez mil seriam pagos depois do veredicto, desde que Angel votasse a favor da acusação.

    - Por que não vai andando? - sugeriu Derrick, alguns minutos depois de sentir o dinheiro junto ao coração.

    - Grande ideia - respondeu Cleve. - Vá ter com a sua namorada. Explique-lhe as coisas todas, tim-tim por tim-tim.

    - Não se preocupe com ela.

    Cleve agarrou na garrafa de cerveja e desapareceu.

     

    Derrick esvaziou a sua, correu para a casa de banho dos homens, entrou num cubículo e contou o dinheiro, um pacote muito bem feito com cento e cinquenta notas de cem dólares novinhas em folha-com menos de dois centímetros de espessura. Dividiu o dinheiro em quatro partes e guardou cada uma delas num bolso dos jeans.

    O casino estava cheio. Derrick tinha aprendido a jogar dados com o irmão mais velho, que servira no exército, e foi direitinho à mesa de dados, como que atraído por um íman. Observou o jogo durante um minuto, depois resolveu resistir à tentação e ir ver Angel. Parou para uma cerveja num pequeno bar acima da roleta. Por toda a parte, lá em baixo, fortunas eram ganhas e perdidas. Era preciso dinheiro para fazer dinheiro. Era a sua noite de sorte.

    Comprou mil dólares de fichas na mesa de dados e saboreou a atenção que despertam todos os grandes gastadores. O caixa examinou as notas de cem dólares estaladiças e sorriu para Derrick. Uma empregada loura surgiu ao seu lado e ele pediu-lhe uma cerveja.

    Derrick apostava alto, mais alto do que qualquer dos brancos que estavam à mesa. A primeira pilha de fichas desapareceu em quinze minutos e, sem hesitar, comprou mais mil dólares.

    A segunda pilha seguiu o destino da primeira, então os dados aqueceram e Derrick ganhou mil e oitocentos dólares em cinco minutos. Comprou mais fichas. As cervejas continuavam a chegar. A loura começou a meter-se com ele.

    Derrick perdeu a conta ao dinheiro. Tirava as notas de todos os bolsos, depois guardava algumas que tinha ganho. Comprou mais fichas. Ao fim de uma hora estava a perder seis mil dólares e queria desesperadamente ir-se embora. Mas a sua sorte tinha de mudar. Os dados já tinham "aquecido" antes e, quando a sorte mudasse, ia recuperar tudo. Mais uma cerveja, e passou para o whisky.

    Depois de uma maré de azar, Derrick afastou-se da mesa e voltou à casa de banho, para o mesmo cubículo. Trancou a porta e tirou as notas soltas dos bolsos. Não tinha mais de sete mil dólares e sentiu vontade de chorar. Mas precisava de recuperar o dinheiro perdido. Resolveu ir lá fora e tratar disso. Ia tentar outra mesa. Ia alterar as apostas. E fosse qual fosse o resultado, levantaria as mãos ao alto e sairia do casino se, que Deus o livrasse, descesse até aos cinco mil dólares. De forma alguma iria deixar ir os últimos cinco mil.

    Passou pela roleta, que estava deserta, e impulsivamente apostou cinco fichas de cem dólares no vermelho. A bola girou e parou no vermelho. Derrick ganhou quinhentos dólares. Deixou as fichas no vermelho e ganhou outra vez. Sem hesitar, deixou os dois mil no vermelho e ganhou pela terceira vez seguida. Quatro mil dólares em menos de cinco minutos. Foi beber uma cerveja ao bar e assistir a um combate de boxe que estava a dar na televisão. Gritos excitados vindos da mesa de dados eram um aviso para se manter afastado. Derrick achou que tinha muita sorte por ter quase onze mil dólares no bolso.

     

    Passava da hora da visita no motel, mas precisava de ver An gel. Passou por entre as fileiras de slot-machines e o mais longe possível da mesa de dados. Caminhou depressa, esperando chegar à porta da frente antes de mudar de ideias e voltar a correr para os dados. Conseguiu.

    Estava ao volante há um minuto quando viu as luzes azuis atrás de si. Era um carro da polícia de Biloxi, muito perto, com os faróis a piscar. Derrick não tinha pastilhas de hortelã, nem chicletes. Parou, desceu do carro e esperou as ordens do polícia, que se aproximou e sentiu o cheiro a álcool.

    - Esteve a beber? - perguntou.

    - Ó senhor guarda, sabe como é, uma ou duas cervejas no casino. O polícia examinou os olhos de Derrick com a lanterna, depois fê-lo

    andar em linha recta e tocar o nariz com as pontas dos dedos. Derrick estava evidentemente bêbedo. Foi algemado e levado para a cadeia. Consentiu em fazer o teste do balão e o resultado foi 1,8.

    Fizeram-lhe uma porção de perguntas sobre o dinheiro que tinha distribuído pelos bolsos. A explicação fazia sentido - uma boa noite no casino. Mas estava desempregado. Morava com um irmão. Não tinha cadastro. O carcereiro fez uma relação do dinheiro e dos outros objectos que trazia nos bolsos e fechou tudo no cofre.

    Derrick sentou-se na parte de cima de um beliche na cela dos bêbedos, com dois homens também embriagados a gemer no chão. Fazer um telefonema não ia ajudar nada, porque não podia ligar directamente para Angel. O tempo obrigatório de detenção para motoristas bêbedos era de cinco horas. Derrick precisava falar com Angel antes de ela sair para o tribunal.

    O telefone acordou Swanson às três e meia da manhã de segunda--feira. A voz do outro lado do fio, espessa e sonolenta, dizia palavras arrastadas, mas era sem dúvida a voz de Beverly Monk.

    - Bem-vindo à Big Apple - saudou ela, muito alto, e depois riu como uma louca, completamente drogada.

    - Onde é que está?-perguntou Swanson. - Já tenho o dinheiro.

    - Mais tarde - respondeu ela, e Swanson ouviu duas vozes masculinas zangadas. - Resolvemos isso mais tarde. - Alguém aumentou o volume da música.

    - Preciso da informação rapidamente.

    - E eu preciso do dinheiro.

    - Óptimo. Diga-me quando e onde.

    - Ora, sei lá quando! -- e gritou uma obscenidade para alguém que se encontrava no quarto.

    Swanson agarrou o auscultador com mais força.

    - Escute, Beverly, ouça com atenção. Lembra-se daquele cafezinho onde nos encontrámos da última vez?

    - Sim, acho que sim.

    - Na Oitava, perto do Balducci's.

    - Ah, sim.

    - Muito bem. Esteja lá o mais depressa possível.

    - E quando é isso? - perguntou com uma gargalhada. Swanson foi paciente.

    - Que tal às sete?

     

    - Que horas são agora?

    - Três e meia.

    - Caramba!

    - Oiça, porque é que não a vou buscar aí agora? Diga-me onde é que está, que vou aí de táxi.

    - Não, estou bem. Estou só a divertir-me um bocadinho.

    - Está bêbeda.

    - E então?

    - Então, se quiser os quatro mil, é melhor pôr-se suficientemente sóbria para se encontrar comigo.

    - Lá estarei, meu amor. Diga-me lá então outra vez como é que se chama?

    - Swanson.

    - Certo, Swanson. Estarei lá às sete, mais ou menos isso. - Riu--se e desligou.

    Swanson não se deu ao trabalho de tentar adormecer de novo.

    Às cinco e meia, Marvis Maples apresentou-se ao carcereiro e perguntou-lhe se podia levar o seu irmão Derrick. As cinco horas de detenção já tinham terminado. O carcereiro libertou Derrick da cela dos bêbedos, depois retirou uma bandeja de metal do cofre e colocou-a sobre o balcão, para verificar o seu conteúdo: onze mil dólares em dinheiro, chaves do carro, canivete e baton de cieiro. O irmão olhava, incrédulo.

    No estacionamento, Marvis perguntou-lhe de onde tinha vindo o dinheiro e Derrick explicou-lhe que tivera uma boa noite nos dados. Deu duzentos dólares a Marvis e pediu-lhe o carro emprestado. Marvis aceitou o dinheiro e concordou em esperar na esquadra até o carro de Derrick ser trazido do parque da polícia.

    No carro do irmão, Derrick foi até Pass Christian e estacionou nas traseiras do Siesta Inn quando o Sol começava precisamente a nascer. Agachado para não ser visto, escapuliu-se por entre os arbustos até atingir a janela do quarto de Angel, que estava fechada, e começou a bater ao de leve. Não obteve resposta. Apanhou uma pedrita e bateu com mais força. A luz do dia ia-se espalhando cada vez mais e começava a entrar em pânico.

    - Não se mexa! - disse alguém em voz alta, atrás dele.

    Derrick virou a cabeça e viu Chuck, o polícia fardado, a apontar-lhe uma pistola enorme e luzidia à cabeça. Chuck fez um gesto com a arma.

    - Afaste-se dessa janela! Mãos ao alto.

    Derrick levantou os braços e saiu dos arbustos.

    - Deite-se no chão - foi a ordem seguinte, e Derrick deitou-se, de pernas abertas e mãos atrás da nuca, no passeio gelado, enquanto Chuck pedia ajuda pelo rádio.

     

    Marvis ainda estava na esquadra, à espera do carro de Derrick, quando o irmão regressou para a segunda detenção daquela noite.

    Angel, entretanto, dormia como uma justa.

     

    Foi lamentável que o jurado mais diligente, o mais acatado por todos, o que melhor se lembrava de tudo que fora dito e que obedecia a todas as ordens do juiz Harkin tivesse de ser dispensado no final do julgamento, não tomando desse modo parte na decisão do veredicto.

    Pontual como um relógio, a senhora Herman Grimes chegou à sala do pequeno-almoço exactamente às sete e um quarto, pegou numa bandeja e começou a servir-se das mesmas coisas de que se servia há quase duas semanas: cereais ricos em fibra, leite magro e uma banana para o Herman. Cornflakes, leite rico em cálcio, uma fatia de bacon e um sumo de maçã para si própria. Como era hábito, Nicholas encontrou-se com ela à volta do buffet e perguntou-lhe se não queria ajuda. Era ele que preparava o café do Herman durante o dia, na sala dos jurados, e sentia-se obrigado a dar uma ajuda também de manhã. Dois cubos de açúcar e natas para o Herman. Café simples para a senhora Grimes. Conversaram sobre as bagagens mais ou menos arrumadas, prontos para partir. Ela parecia realmente entusiasmada com a ideia de jantar em casa nessa noite.

    O ambiente era festivo desde o início da manhã, com Nicholas e Henry Vu já sentados à mesa a cumprimentar os que iam chegando. Iam para casa!

    A senhora Grimes pegou nos talheres e Nicholas deitou rapidamente quatro pequenos comprimidos no café de Herman, enquanto fazia um comentário sobre os advogados. Os comprimidos não iam matá-lo. Era Methergine, um obscuro composto farmacêutico usado especialmente nas urgências hospitalares para fazer reagir corpos semimortos. Herman ia ficar doente durante umas quatro horas, depois o restabelecimento seria completo.

    Como habitualmente, Nicholas acompanhou-a até ao quarto, levando a bandeja e conversando sobre banalidades. Ela agradeceu calorosamente a este jovem tão simpático.

    A cena teve início meia hora depois e Nicholas colocou-se exactamente no centro da acção. A senhora Grimes saiu para o corredor e gritou para Chuck, que estava sentado no seu posto, tomando café e lendo o jornal. Nicholas ouviu e veio a correr do seu quarto. O Herman não estava bem!

    Lou Dell e Willis chegaram, atraídos pelas vozes excitadas e pouco depois quase todos os jurados se encontravam à porta do quarto dos Grimes. Herman estava no chão da casa de banho, dobrado sobre si próprio, agarrado ao estômago, com dores terríveis. A senhora Grimes e Chuck agacharam-se ao lado dele, Lou Dell correu para o telefone e chamou uma ambulância. Nicholas informou solenemente Rikki Cole-man de que estava com dores no peito, talvez com um enfarte. Herman já sofrera um há seis anos.

    Em poucos minutos, todos estavam informados de que Herman tinha tido uma paragem cardíaca.

    Os paramédicos chegaram com a maca e Chuck empurrou os demais jurados para a outra extremidade do corredor. Herman foi estabilizado e foi-lhe colocada uma máscara de oxigénio. A tensão arterial estava ligeiramente acima do normal. A senhora Grimes repetia que os sintomas eram muito parecidos com os do primeiro enfarte.

    Levaram-no para fora do quarto e empurraram a maca rapidamente pelo corredor. Na confusão, Nicholas conseguiu entornar a chávena de café de Herman.

    Herman foi levado para o hospital por entre o barulho das sirenes. Os jurados voltaram cada um para o seu quarto, tentando acalmar os nervos que nesta altura estavam esfrangalhados. Lou Dell telefonou para o juiz Harkin avisando-o de que Herman estava muito doente. O consenso era de que se tratava de um enfarte.

    - Eles caem que nem moscas - comentou ela, e depois lembrou--se que nunca tinha perdido tantos jurados nos dezoito anos em que trabalhava no tribunal. Harkin não quis ouvir mais nada.

    Swanson não esperava realmente que Beverly chegasse às sete em ponto para tomar café e receber o dinheiro. Há poucas horas estava completamente bêbada e sem sinais de tencionar abrandar... como podia esperar que ela aparecesse a horas? Tomou um lauto pequeno-al-moço e leu vários jornais. As oito horas chegaram e foram passando. Mudou-se para uma mesa melhor, perto da janela, de onde podia ver quem passava na rua.

    Às nove horas, Swanson telefonou para o apartamento de Beverly e teve outra discussão com a mesma companheira de quarto. Não, não estava, tinha passado a noite fora e talvez tivesse até mudado de casa.

    Aí está uma filha de família, pensou Swanson, que vive os seus dias a saltitar entre apartamentos manhosos e a "cravar" refeições e dinheiro para sobreviver e comprar a próxima dose de droga. Será que os pais sabem disto?

    Swanson tinha muito tempo para pensar neste tipo de coisas. Às dez horas, pediu torradas secas, porque o empregado não tirava os olhos dele, evidentemente irritado, certo de que Swanson resolvera acampar o dia inteiro no café.

    Reagindo a rumores aparentemente bem fundados, as acções ordinárias da Pynex abriram em alta. Depois de fecharem a setenta e três na sexta-feira, saltaram para setenta e seis na abertura e em poucos minutos estavam a setenta e oito. Eram boas as notícias de Biloxi, embora ninguém soubesse a fonte. Todos os papéis das tabaqueiras subiram logo na abertura da sessão, quando as grandes transacções são feitas.

    O juiz Harkin só apareceu no tribunal quase às nove e meia e quando entrou notou, sem surpresa, que a sala de audiências estava completamente cheia. Acabava de ter uma acalorada discussão com Rohr e Cable. Este último queria a anulação do julgamento porque mais um jurado fora dispensado. Não havia razões suficientes para a anulação. Harkin tinha estudado muito bem o assunto. Chegou a encontrar um antigo caso onde permitiram que onze jurados decidissem um veredicto de processo civil. Eram exigidos nove votos, mas o veredicto fora mantido pelo Supremo.

    Como era de esperar, a notícia da paragem cardíaca de Herman espalhou-se rapidamente por toda a assistência. Os consultores do Júri contratados pela defesa consideraram isso uma vitória importante para o seu lado, porque Herman era obviamente a favor da acusação. Os da acusação garantiram a Rohr e à sua equipa que a saída de Herman era um grande golpe para a defesa, porque o homem era obviamente a favor das tabaqueiras. Todos os peritos aclamaram a entrada de Shine Royce no júri, embora nem todos soubessem explicar porquê.

    Fitch estava imóvel, perplexo. Como diabo se provoca um enfarte em alguém? Seria Marlee tão fria a ponto de envenenar um homem cego? Graças a Deus que estava do seu lado.

    A porta abriu-se. Os jurados entraram em fila. Todos queriam ter a certeza de que Herman não tinha vindo. A cadeira dele estava vazia.

    O juiz Harkin, que conversara com um médico no hospital, começou por informar o júri de que Herman estava a reagir bem, que talvez não fosse tão sério como parecia a princípio. Os membros do júri ficaram extremamente satisfeitos, especialmente Nicholas. Shine Royce passou a ser o jurado número cinco e sentou-se na cadeira de Herman, na primeira fila, entre Phillip Savelle e Angel Weese.

    Shine estava todo orgulhoso.

    Quando todos estavam sentados e em silêncio, o Meritíssimo instruiu Weridall Rohr para dar início às alegações finais, advertindo-o de que o seu discurso não deveria ultrapassar uma hora. Rohr vestia o seu casaco favorito, espalhafatoso, mas trazia uma camisa engomada e limpa e um laço. Começou suavemente, pedindo desculpas pela duração do julgamento e agradecendo ao júri por ter sido tão empenhado. Terminadas as considerações amáveis, lançou-se numa diatribe acalorada contra "o mais mortal produto de consumo fabricado: o cigarro. O cigarro mata quatrocentos mil americanos por ano, dez vezes mais do que as drogas ilegais. Nenhum outro produto é tão mortífero".

    Atacou os pontos mais importantes do testemunho dos doutores Fricke, Bronsky e Kilvan, e fê-lo sem desacreditar o que qualquer deles havia dito. Recordou-lhes então Lawrence Krigler, um homem que trabalhara na indústria e conhecia os seus mais terríveis segredos. Passou dez minutos a falar em tom casual sobre Leon Robilio, o homem sem voz que durante vinte anos colaborara na promoção das tabaqueiras, mas depois percebera o quanto essa indústria era corrupta.

    Atingiu a velocidade de cruzeiro quando chegou ao tema das crianças. Para sobreviver, a Big Tobacco precisava de atrair os adolescentes e assim garantir que a próxima geração ia comprar os seus produtos. Como se tivesse ouvido as conversas na sala do júri, Rohr pediu aos jurados para se lembrarem com que idade tinham começado a fumar.

    Três mil crianças por dia adquirem o hábito de fumar. Um terço dessas crianças vai morrer por causa do cigarro. O que mais precisava de ser dito? Não estaria na hora de obrigar essas ricas empresas a responsabilizarem-se pelo que fabricavam? Não estaria na hora de despertar a sua atenção? Na hora de deixar as crianças em paz? Na hora de fazer as empresas pagar pelos danos causados pelos seus produtos?

    Ganhou um tom mais agressivo quando falou sobre a nicotina e a teimosa insistência da Big Tobacco em afirmar que ela não cria dependência. Ex-viciados em drogas garantiam que era mais fácil largar a marijuana e a cocaína do que o cigarro. Com maior violência ainda mencionou Jankle e a sua teoria sobre o abuso.

    Em seguida piscou os olhos e transformou-se numa pessoa com-pletamente diferente. Falou sobre a sua cliente, a senhora Celeste Wood, boa esposa, mãe, amiga, uma verdadeira vítima das tabaqueiras. Citou o marido, o falecido Sr. Jacob Wood, viciado nos cigarros Bristol, a estrela da linha de produção da Pynex, que durante vinte anos tentara largar o vício. Morreu, aos cinquenta e um anos, deixando filhos e netos, e isso deveu-se exclusivamente ao facto de ter usado um produto legalmente fabricado e vendido e de tê-lo feito exactamente como era suposto.

    Aproximou-se de um quadro colocado num tripé e fez algumas contas com um marcador branco. O valor em dinheiro da vida de Jacob Wood era, digamos, de um milhão de dólares. Acrescentou alguns outros danos e chegou ao total de dois milhões. Esses eram os prejuízos reais, quantias em dinheiro às quais a família tinha direito por causa da morte de Jacob.

    Mas este caso não era sobre danos reais. Rohr deu uma pequena palestra sobre as indemnizações punitivas e o seu papel preventivo na indústria americana. Como se poderá punir uma empresa que tem oitocentos milhões de dólares em dinheiro?

    A primeira coisa a fazer é chamar-lhes a atenção.

    Rohr teve o cuidado de não sugerir uma quantia, embora isso fosse permitido por lei. Deixou simplesmente escrito no quadro, em grandes letras, 800 000 000 EM DINHEIRO, e voltando para o pódio terminou as suas observações. Agradeceu de novo ao júri e sentou-se, quarenta e oito minutos.

    O juiz anunciou um intervalo de dez minutos.

    Ela chegou com quatro horas de atraso, mas mesmo assim Swan-son teve vontade de a abraçar. Não abraçou porque tinha medo de doenças infecciosas e porque ela estava acompanhada por um jovem carrancudo vestido de couro preto da cabeça aos pés, cabelo negro de azeviche e barbicha pintada. Tinha a palavra JADE tatuada no meio da testa e usava uma bela colecção de brincos em ambas as orelhas.

    Mantendo-se em silêncio, Jade puxou uma cadeira e sentou-se, parecendo um doberman de guarda.

    Beverly parecia ter sido espancada. O lábio inferior estava cortado e entumescido. A maquilhagem disfarçava mal uma equimose no rosto. O canto do olho direito estava inchado. Cheirava a marijuana rançosa e whisky barato e estava dopada com qualquer coisa, provavelmente anfetaminas.

    Com uma pequena provocação, Swanson teria com prazer esmurrado Jade na testa, exactamente em cima da tatuagem, e arrancado um a um os brincos das orelhas.

    - Trouxe o dinheiro? - perguntou ela olhando para Jade, que observava Swanson com um olhar vazio. Era sem dúvida a ele que o dinheiro iria parar.

    - Sim. Fale-me da Claire.

    - Quero ver o dinheiro.

    Swanson tirou do bolso um pequeno envelope, abriu-o um pouco, mostrando as notas, e pô-lo em cima da mesa, com ambas as mãos em cima.

    - Quatro mil dólares. Agora, fale depressa-disse, olhando para Jade.

    Beverly voltou-se para o companheiro, que anuiu e disse:

    - Força.

    - O nome verdadeiro dela é Gabrielle Brant. É de Columbia, no Missouri. Estudou na universidade de Columbia, onde a mãe leccionava estudos medievais. É tudo o que sei.

    - E o pai?

    - Acho que morreu.

    - Mais alguma coisa?

    - Não. Dê-me o dinheiro.

    Swanson empurrou o envelope sobre a mesa e pôs-se imediatamente de pé.

    - Obrigado - disse, e desapareceu.

    Durwood Cable levou pouco mais de meia hora para descartar habilmente a ideia ridícula de dar milhões à família de um homem que voluntariamente tinha fumado durante trinta e cinco anos. O julgamento era pouco mais do que uma clara tentativa de se apossar de muito dinheiro.

    O que ele considerava mais injusto no caso da acusação era o facto de esta se afastar do assunto Jacob Wood e os seus hábitos de transformar o julgamento num debate emocional sobre o hábito de fumar entre os adolescentes. Qual era a relação de Jacob Wood com a actual publicidade ao tabaco? Não havia qualquer prova de que o falecido senhor Wood tivesse sido influenciado por uma campanha publicitária. Começou a fumar porque quis.

    Por quê trazer os garotos para esta briga? Só para transformar o julgamento num debate emocional. Reagimos com revolta quando pensamos que as crianças estão a ser maltratadas ou manipuladas. E antes que os advogados de acusação os possam convencer a dar-lhes uma fortuna, necessitam de despertar a vossa ira.

    Cable apelou ao sentido de justiça dos jurados. Decidam o caso com base em factos, não em emoções. Quando terminou, tinha conquistado a atenção do júri.

    Cable sentou-se, o juiz agradeceu-lhe e disse ao júri:

    - Senhoras e senhores, o caso agora é vosso. Sugiro que escolham outro líder para substituir o senhor Grimes, que, segundo me disseram, está muito melhor. Falei com a mulher dele durante o último intervalo e ele ainda está em sofrimento, mas vai recuperar. Se por algum motivo precisarem de falar comigo, por favor notifiquem a funcionária do tribunal. Receberão o resto das instruções na sala dos jurados. Boa sorte.

    Enquanto Harkin se despedia do júri, Nicholas perscrutou a sala e observou os olhos de Rankin Fitch, apenas para uma breve confirmação > de como as coisas estavam a correr. Fitch inclinou a cabeça e Nicholas levantou-se com os restantes jurados.

Era quase meio-dia. A sessão estava interrompida, sujeita ao chama­mento do juiz, o que significava que quem quisesse podia deixar a sala até o júri chegar a um veredicto. O bando de Wall Street afastou-se rapidamente, indo telefonar para os seus escritórios. Os directores­-executivos das Quatro Grandes misturaram-se por um momento com a restante audiência, depois abandonaram a sala.

Fitch foi imediatamente para o escritório. Konrad estava inclinado sobre a mesa dos telefones.

É ela - disse, nervoso. - Está numa cabina pública. Fitch apressou-se ainda mais, entrou no escritório e atendeu. -Sim.

-Escute, Fitch. Novas instruções para a remessa de dinheiro. Pouse o auscultador e vá até ao fax.

Fitch reparou que o seu fax particular estava a receber uma men­sagem.

- Já aqui está - disse ele. - Novas instruções porquê?

- Cale-se, Fitch. Faça o que lhe digo, não discuta.

Tirou o fax da máquina e leu a mensagem escrita à mão. O dinheiro devia ser agora encaminhado para o Panamá. Mais precisamente para o Banco Atlântico, na cidade do Panamá. O fax dava instruções para o seu encaminhamento e o número da conta.

-Tem vinte minutos, Fitch. O júri está a almoçar. Se não tiver a con­firmação ao meio-dia e meia, o negócio é cancelado e o Nicholas muda de direcção. Tem um telemóvel e está à espera do meu telefonema.

-Telefono-lhe ao meio dia e meia - disse Fitch, desligando. Man­dou Konrad suspender todos os telefonemas, sem excepção. Enviou imediatamente a mensagem por fax para o seu consultor bancário em D.C., que por sua vez enviou por fax a autorização necessária para o Banco Hanwa, nas Antilhas Holandesas. O Hanwa ficara à espera durante toda a manhã e ao fim de dez minutos o dinheiro saiu da conta de Fitch e saltou sobre as Caraíbas para o banco da cidade do Panamá, onde era aguardado. Foi enviada, por fax, uma confirmação do Hanwa. Fitch gostaria, naquele momento, de a transmitir a Marlee, mas não sabia o número do fax dela.

Ao meio dia e vinte, Marlee telefonou para o seu banqueiro no Panamá, que confirmou o recebimento de dez milhões de dólares. Ela estava num quarto de motel a seis quilómetros do tribunal e operava através de um fax portátil, Aguardou cinco minutos e enviou instruções

ao mesmo banqueiro para que remetesse todo o dinheiro para um

banco das ilhas Caimão e, depois disso, fechasse a conta no Banco

Atlântico.

Nicholas telefonou exactamente ao meio dia e trinta, da casa de

banho dos homens. Já tinham almoçado e iam iniciar as deliberações.

Marlee confirmou-lhe que o dinheiro estava seguro e que se ia embora. Fitch esperou quase até à uma hora. Ela ligou-lhe de outro telefone

público.

- O dinheiro já chegou, Fitch - disse. - Óptimo. Que tal um almoço? - Talvez mais tarde.

- E então, para quando podemos esperar o veredicto?

- Lá mais para o fim da tarde. Espero que não estej a preocupado. - Eu? Absolutamente nada.

-Esteja descansado. Será o seu momento de glória. Doze a zero,

Fitch. Que tal?

- Música para os meus ouvidos. Por que é eliminaram o pobre do

Herman?

- Não sei do que é que está a falar.

- Pronto, está bem. Quando é que podemos comemorar? - Telefono-lhe depois.

Abandonou rapidamente a cidade num carro alugado, atenta ao re­

trovisor. O carro que tinha usado durante aqueles dias ficou em frente

ao condomínio, abandonado. No banco de trás estavam duas malas

cheias de roupa, os únicos objectos pessoais que iria levar, e o fax

portátil. Os móveis do apartamento ficariam para quem o comprasse. Deu uma volta completa a um trevo de acesso à auto estrada, uma

manobra que tinha praticado na véspera, para o caso de estar a ser

seguida. Os homens de Fitch não iam atrás dela. Seguiu em ziguezague

por ruas secundárias até chegar ao Aeroporto Municipal do Golfo, onde

um pequeno Lear Jet a aguardava. Agarrou nas duas malas e fechou o

carro, deixando as chaves no seu interior.

Swanson telefonou a Fitch mas não conseguiu falar com ele. Ligou

então para o supervisor, em Kansas City, e três agentes foram imedia­

tamente despachados para Columbia, que ficava a uma hora de cami­

nho. Outros dois agentes encarregaram-se de fazer rapidamente uns

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telefonemas para o departamento de estudos medievais da universidade do Missouri, numa tentativa desesperada de localizar alguém que pudesse saber algo e estivesse disposto a falar. Existiam seis Brant na lista telefónica de Columbia. Entraram em contacto com todos mais do que uma vez, mas nenhum conhecia Gabrielle Brant.

Finalmente, conseguiu falar com Fitch pouco depois da uma. Fitch permanecia entrincheirado no escritório há uma hora, sem receber telefonemas. Swanson estava já a caminho do Missouri.

 

Quando os pratos do almoço foram retirados e todos os fumadores voltaram da sala de fumo, tornou-se evidente que estava na hora de fazer o que há um mês sonhavam. Sentaram-se à volta da mesa, olhando para a cadeira vazia à cabeceira, antes orgulhosamente ocupada por Herman.

 

- Acho que precisamos de um novo líder - disse Jerry.

- E eu acho que deve ser Nicholas - acrescentou Millie rapidamente.

Na verdade, ninguém tinha dúvidas a esse respeito. Mais ninguém queria o cargo e Nicholas parecia saber tanto como os advogados sobre o julgamento. Foi eleito por unanimidade.

De pé ao lado da cadeira de Herman, fez um resumo da lista de sugestões do juiz Harkin:

 

- Ele quer que apreciemos cuidadosamente toda e qualquer prova, incluindo os objectos e documentos, antes de começar a votação. - Nicholas voltou-se para a esquerda e observou uma mesa onde estavam as pilhas de relatórios e estudos que vinham reunindo há quatro semanas.

- Não pretendo ficar aqui sentado durante três dias - disse Lon-nie, e todos olharam para a mesa dos documentos. - Na verdade, estou pronto para votar agora mesmo.

- Não tão depressa - atalhou Nicholas. - Este é um caso commplicado e muito importante e seria um erro apressarmos as coisas sem tomarmos cuidadosamente uma deliberação.

- Acho que devemos votar - insistiu Lonnie.

- E eu que devemos fazer o que o juiz mandou Podemos chamá-lo cá para uma conversa breve, se for necessário.

- Não vamos ler essa papelada toda, ou vamos? – perguntou Sylvia, a Poodle. Ler não era um dos seus passatempos favoritos.

-Tenho uma ideia - sugeriu Nicholas. - Porque é que cada um de nós não pega num relatório, dá uma vista de olhos e depois faz um resumo do que leu? Assim podemos dizer honestamente ao juiz Harkin que verificámos todas as provas e documentos existentes.

- E tem a certeza de que ele quer saber isso? - perguntou Rikki Coleman.

- Provavelmente. O nosso veredicto deve basear-se nas provas que temos: os testemunhos que ouvimos e as provas que nos deram. Pelo menos, devemos fazer um esforço para obedecer às ordens que nos foram dadas.

- Concordo - disse Millie. - Todos queremos ir para casa, mas o nosso dever exige que consideremos o que aqui temos.

A afirmação eliminou qualquer outra tentativa de protesto. Millie e Henry Vu ergueram os pesados relatórios e puseram-nos no centro da mesa, de onde foram sendo lentamente retirados por cada um dos jurados.

- Basta uma leitura rápida - orientou Nicholas, conduzindo-os como um professor. Pegou numa pasta grossa, um estudo do Dr. Milton Fricke sobre os efeitos do tabaco nas vias respiratórias, e leu como se nunca tivesse visto aquela prosa dinâmica.

Alguns curiosos permaneciam ainda na sala do tribunal, na esperança de que o veredicto saísse rapidamente. Isso acontecia sempre - levem os jurados para a sala, dêem-lhes de almoçar, deixem-nos votar e, pronto, temos um veredicto. O júri já tinha resolvido como votaria antes de ouvir a primeira testemunha.

Mas não agora.

A doze mil e quinhentos metros de altura e oitocentos quilómetros por hora, o Lear fez a viagem de Biloxi a George Town, em Grande Caimão, em noventa minutos. Marlee passou a alfândega com um novo passaporte canadiano, em nome de Lane MacRoland, uma bonita jovem de Toronto que faria uma viagem de uma semana - só turismo, nada de negócios. Como a lei das Caimão exigia, tinha também a passagem aérea de regresso, num voo Delta para Miami, que deveria ocorrer daí a seis dias. O povo das Caimão recebia com prazer os turistas, mas a coisa era diferente quando se tratava de novos cidadãos.

O passaporte era parte de um conjunto perfeito de documentos comprados a um famoso falsário em Montreal. Passaporte, carta de

condução, certidão de nascimento, cartão de eleitor. Preço total: três mil dólares.

Apanhou um táxi em George Town e encontrou o seu banco, o Royal Swiss Trust, num velho e imponente edifício a um quarteirão do cais. Era a primeira vez que ia às Caimão, mas sentia-se como se fosse a sua segunda casa. Havia dois meses que estudava tudo sobre as ilhas. O seu dinheiro fora transferido por fax.

O ar tropical era pesado e quente, mas mal notava. Não estava ali para apanhar Sol e ir à praia. Eram três horas em George Town e em Nova Iorque. Duas da tarde no Mississipi.

Foi recebida por uma recepcionista e conduzida ao escritório onde outro formulário deveria ser preenchido, um formulário que não podia ser mandado por fax. Logo um jovem chamado Marcus se lhe apresentou. Tinham conversado muitas vezes por telefone. Era magro, elegante, muito europeu, apenas com um leve sotaque no inglês perfeito.

O dinheiro chegara, informou ele, e Marlee conseguiu receber a informação sem o mais ínfimo sorriso. Não foi fácil. Os documentos estavam em ordem. Subiram juntos para o escritório dele. A função de Marcus era vaga, como a de muitos banqueiros na Grande Caimão, mas era vice-presidente de alguma coisa e encarregado dos dossiers.

Uma secretária serviu café e Marlee pediu uma sanduíche. A Pynex estava em setenta e nove, subindo regularmente durante o dia todo no mercado comprador, disse Marcus, consultando o computador. A Trellco tinha subido três e um quarto, chegando a cinquenta e seis. A Smith Greer estava a sessenta e quatro e meio. Cori Pack estava a ser negociada firmemente a trinta e três.

Com base nos apontamentos praticamente decoradas, Marlee fez a sua primeira operação vendendo a descoberto cinquenta mil acções da Pynex a setenta e nove. Esperava comprá-las outra vez num futuro próximo a um preço muito mais baixo. A venda a descoberto era uma manobra arriscada, normalmente usada apenas pelos investidores mais sofisticados. Se o preço da acção estava a cair, as regras da bolsa permitiam que fosse vendida primeiro ao preço mais alto e mais tarde comprada a um preço mais baixo.

Com dez milhõesem dinheiro, Marlee podia vender aproximadamente vinte milhões de dólares em acções.

Marcus confirmou a compra digitando rapidamente no computador e pediu licença por um segundo enquanto usava os auscultadores. A segunda operação de Marlee foi a venda a descoberto de acções da Trellco - trinta mil acções a cinquenta e seis e um quarto. Marcus confirmou e de novo os dedos correram céleres ao longo do teclado. Ela vendeu quarenta mil acções da Smith Greer a sessenta e quatro e meio, mais sessenta mil da Pynex a setenta e nove e oitenta, mais trinta mil da Trellco a cinquenta e seis e um oitavo, cinquenta mil da Smith Greer a sessenta e quatro e três oitavos.

Fez uma pausa e mandou Marcus observar atentamente a Pynex. Marlee acabava de descarregar no mercado cento e dez mil acções da Pynex e estava muito preocupada com a reacção imediata de Wall Street. As acções pararam em setenta e nove, caíram para setenta e oito e três quartos, por fim voltaram para setenta e nove.

- Acho que agora é seguro - disse Marcus, que há duas semanas observava atentamente o mercado de acções.

- Venda mais cinquenta mil - ordenou ela, sem hesitar. Marcus parou por um momento, depois fez um gesto afirmativo

para o monitor e completou a operação.

A Pynex desceu para setenta e oito e meio, depois mais um quarto. Tomando o café, Marlee estudou os apontamentos enquanto Marcus observava e a Wall Street reagia. Pensou em Nicholas e no que estaria a fazer naquele momento, mas não ficou preocupada. Na verdade, estava extremamente calma.

Marcus retirou os auscultadores:

- Isso representa aproximadamente vinte e dois milhões de dólares, senhora MacRoland. Acho que devemos ficar por aqui. Um número maior de vendas vai exigir uma aprovação do meu superior.

- Isto chega - disse ela.

- O mercado fecha dentro de quinze minutos. A senhora pode aguardar na sala de espera.

- Não, obrigada. Vou para o hotel, talvez apanhar um pouco de sol. Marcus levantou-se e abotoou o casaco.

- Uma pergunta. Quando espera movimento nestas acções?

- Amanhã. Bem cedo.

-Movimento significativo?

Marlee pôs-se de pé e arrumou os papéis.

- Sim. Se quiser que os seus outros clientes o considerem um génio, venda a descoberto todas as acções da indústria tabaqueira.

Ele mandou chamar um carro da companhia, um pequeno Mercedes que levou Marlee para o hotel na Seven Millie Beach, não muito distante do centro da cidade e do banco.

Se o presente de Marlee parecia sob controle, o passado estava praticamente a apanhá-la. Um agente, que trabalhava para Fitch na Universidade do Missouri, encontrou uma colecção de antigos anuários de admissão na biblioteca principal. No anuário de 1986 constava o nome da doutora Evelyn Y. Brant como professora de estudos medievais, mas já não aparecia no anuário de 1987.

Telefonou imediatamente para um sócio que estava a verificar as declarações de imposto de renda na comarca de Boone Courity. O outro agente foi directo ao escritório do secretário e encontrou o Registo de Testamentos e Espólios. O testamento de Evelyri Y. Brant dera entrada para inventário em Abril de 1987. Umfuncionário ajudou-o aencontrar o arquivo correspondente.

Tinham descoberto a mina de ouro. A senhora Brant morrera em 2 de Março de 1987, na Colúmbia, aos sessenta e seis anos. Era viúva e deixara uma filha única, Gabrielle, de vinte e um anos, herdeira universal do testamento assinado pela mãe três meses antes da morte.

O arquivo tinha mais de dois centímetros de espessura e examinou--o rapidamente. O inventário consistia numa casa avaliada em 180 000 dólares, com uma hipoteca de metade dessa importância, um carro, uma lista de móveis e acessórios, um certificado de depósito num banco local, de 32 000 dólares, e uma carteira de acções e apólices avaliada em 202 000 dólares. Havia apenas duas reivindicações de credores. Evidentemente, a doutora Brant, antecipando a própria morte, procurara o conselho de um advogado. Com aprovação de Gabrielle, a casa foi vendida, os bens convertidos em dinheiro e, depois de pagos os impostos, as despesas legais e os custos do processo, a quantia de 191 500 dólares fora depositada num estabelecimento bancário. Gabrielle era a única beneficiária.

A execução do inventário foi feita sem a menor sugestão de controvérsia. O advogado parecia rápido e muito competente. Treze meses depois da morte da doutora Brant, o inventário fora fechado.

Folheou outra vez o arquivo, tomando apontamentos. Encontrou duas páginas agrafadas e separou-as com cuidado. A de baixo era uma folha com um carimbo oficial.

Tratava-se da certidão de óbito. A causa da morte da Dra. Evelyn Y. Brant fora cancro de pulmão.

Saiu para o corredor e telefonou para o chefe.

Quando Fitch recebeu o telefonema tinham mais informações. Uma leitura atenta do arquivo por outro investigador, ex-agente do FBI formado em Direito, revelou uma série de doações para certos grupos, como a Associação Americana do Pulmão, a União para um Mundo Livre do Fumo, a Força-Tarefa contra o Tabaco, a Campanha do Ar Puro e uma meia dúzia de outras associações de combate ao tabaco. Uma das reivindicações de credores que constava do inventário era uma conta de quase vinte mil dólares da última estada da doutora Brant no hospital. O marido, o falecido doutor Peter Brant, constava numa antiga apólice de seguro. Uma rápida verificação nos registos indicava a entrada do inventário do seu testamento em 1981. O arquivo estava do outro lado da secretária. Morrera em Junho de 1981, com cinquenta e dois anos, deixando a sua amada esposa e filha querida, Gabrielle, então com quinze anos. Falecera em casa, segundo a certidão de óbito, assinada pelo mesmo médico que assinara o de Evelyn Brant. Um oncolo-gista.

Peter Brant sucumbira também ao cancro de pulmão.

Swanson telefonou para Fitch, mas só depois de se certificar de que os factos estavam correctos.

Fitch atendeu o telefone no escritório, sozinho, com a porta trancada, e ouviu com calma porque ficou demasiado chocado para reagir. Estava sentado à secretária, sem casaco, a gravata desapertada, os sapatos desatados. Não disse quase nada.

O pai e mãe de Marlee tinham morrido de cancro de pulmão.

Fitch escreveu isso no seu bloco e desenhou um círculo em volta da frase, com linhas que se estendiam para fora, como se pudesse fazer o desdobramento do diagrama, dividir em partes, analisar, qualquer coisa para que a informação se encaixasse na promessa de Marlee de conseguir o veredicto que ele queria.

- Rankin, ainda está aí? - perguntou Swanson, depois de um longo silêncio.

- Estou - disse Fitch, e continuou calado por mais algum tempo. O diagrama desdobrou-se, mas sem chegar a lado nenhum.

- Onde está a rapariga? - perguntou Swanson. Estava de pé naquele frio, no lado de fora do prédio do tribunal da Colúmbia com um telefone ridiculamente pequeno apertado contra o queixo.

- Não sei. Temos de encontrá-la-respondeu Fitch sem nenhuma convicção e Swanson teve acerteza de que a rapariga desaparecera. Outra longa pausa. - Que devo fazer agora? - indagou Swanson.

- Voltar para cá, acho eu - respondeu Fitch, que desligou de repente.

Os números no seu relógio digital estavam baços e Fitch fechou os olhos. Passou as mãos nas têmporas latejantes, apertou a barbicha com força contra o queixo, imaginou uma erupção, com a mesa voando contra a parede e os telefones arrancados das tomadas, mas foi corrigindo os pensamentos. O que precisava era de se acalmar.

Excepto incendiar o tribunal ou lançar granadas na sala dos jurados, nada podia fazer para interromper as deliberações. Estavam lá dentro, os últimos doze, com guardas encostados à porta. Talvez se trabalhassem devagar e tivessem de passar outra noite isolados Fitch pudesse tirar um coelho da cartola e conseguir uma anulação.

Uma ameaça de bomba era inviável. Os jurados seriam evacuados, isolados outra vez, levados para um lugar secreto para continuarem o trabalho.

Desdobrou mentalmente o diagrama e elaborou uma lista de possibilidades - todas ultrajantes, todas perigosas, ilegais e destinadas ao fracasso.

O relógio fazia tiquetaque.

Os doze escolhidos - onze discípulos e o seu mestre.

Fitch ergueu-se lentamente da cadeira e segurou com as duas mãos o candeeiro de porcelana barata. Konrad havia algum tempo que queria retirar aquele candeeiro da mesa de Fitch, um lugar de caos e grande violência.

Konrad e Pang estavam no corredor, aguardando instruções. alguma coisa terrível tinha acontecido. O candeeiro espatifou-se  contra a porta. Fitch berrou. As divisórias tremeram. Outro objecto bateu e estilhaçou-se, talvez um telefone. Fitch gritou alguma coisa como "o dinheiro!", e então a mesa aterrou numa parede.

Recuaram, petrificados, não querendo estar perto da porta quando esta fosse aberta. Bam! Bam! Bam! Fitch estava a dar socos nas divisórias de madeira.

- Encontrem a rapariga! - gritava, angustiado. Bam! Bam! -Encontrem a rapariga!

 

Depois de um extenuante momento de concentração forçada, Ni-cholas percebeu que o debate era necessário. Resolveu falar primeiro e fez um breve resumo do relatório do doutor Fricke sobre o estado dos pulmões de Jacob Wood. Passou as fotos da autópsia, nenhuma das quais despertou grande atenção. Era território antigo e o seu público estava entediado.

- O relatório do doutor Fricke diz que fumar cigarros durante muito tempo provoca cancro - disse Nicholas, como se isso pudesse surpreender alguém.

-Tenho uma ideia-disse Rikki Coleman. - Vamos ver se todos concordam com o facto de que fumar provoca cancro. Vai poupar-nos muito tempo. - Estava à espera de uma oportunidade para falar e parecia pronta para discutir.

- Grande ideia-disse Lonnie, que era o mais nervoso e frustrado de todos.

Nicholas concordou com um erguer de ombros. Era o líder, mas representava apenas um voto. O júri podia fazer o que quisesse.

- Por mim, tudo bem - aprovou. - Todos acreditam que fumar provoca cancro de pulmão? Levantem as mãos.

Onze mãos ergueram-se no ar e foi dado um passo gigantesco na direcção do veredicto.

- Vamos falar sobre a dependência - prosseguiu Rikki, olhando em volta. - Quem acha que a nicotina vicia?

Outra afirmação geral.

Ela saboreou o momento e parecia prestes a aventurar-se no gelo fino da responsabilidade.

- Vamos manter o nosso voto unânime - disse Nicholas. - É crucial sairmos daqui unidos. Se nos dividirmos, vai ser um fracasso.

Todos já tinham ouvido aquela conversa. A razão legal para a necessidade de uma decisão una não era muito clara, mas acreditavam nela mesmo assim.

- Agora, vamos terminar a leitura dos relatórios. Há mais alguém pronto para falar?

O relatório de Loreen Duke era um artigo apresentado pela doutora Myra Sprawling-Goode. Loreen leu a introdução, informando que o estudo era uma revisão minuciosa dos modelos de publicidade usados pelos fabricantes de cigarros, especialmente o modo pelo qual esses modelos se relacionavam com jovens menores de dezoito anos; depois leu a conclusão, que absolvia a indústria tabaqueira de ter como alvo pessoas dessa faixa etária. As duzentas páginas entre a introdução e a conclusão não foram comentadas.

Fez um resumo do índice.

- Aqui diz que não encontraram provas de que a publicidade dos fabricantes de cigarros tenha como finalidade atrair crianças.

- Você acredita nisso? - perguntou Millie.

- Não. Pensei que já tínhamos resolvido que a maioria dos fumadores começa antes dos dezoito. Não confirmámos isso aqui, uma vez?

- Confirmámos - respondeu Rikki. - E todos os fumadores do júri começaram ainda muito jovens.

- E a maior parte deles deixou de fumar, se bem me lembro -concluiu Lonnie, com uma boa dose de má vontade.

- Adiante - disse Nicholas. - Mais alguém?

Sem muito entusiasmo, Jerry descreveu os estudos do doutor Hilo Kilvan, o génio da estatística, que apresentou provas do maior risco de cancro do pulmão entre os fumadores. O resumo de Jerry não despertou interesse, nem perguntas, nenhum debate, e ele saiu da sala para fumar.

Fez-se então silêncio, enquanto todos continuavam com a árdua tarefa da leitura do material impresso. Saíam e entravam à vontade - para fumar, para descontrair os músculos, para ir à casa de banho. Lou Dell, Willis e Chuck guardavam a porta.

A senhora Gladys Card havia ensinado Biologia ao nono ano. Entendia de ciência. Fez um trabalho magnífico dissecando o relatório do doutor Robert Bronsky sobre a composição da passa de um cigarro, os

mais de quatro mil componentes, os dezasseis carcinogénios conhecidos e tudo o resto. Usou a sua melhor dicção de sala de aula, olhando de rosto para rosto enquanto falava.

O tédio dominava enquanto ela seguia a sua monótona ladainha.

Quando terminou, Nicholas, que ainda estava acordado, agradeceu calorosamente e levantou-se para ir buscar mais café.

- Afinal, o que acha de tudo isto? - perguntou Lonnie. Estava de pé ao lado da janela, de costas para a sala, comendo amendoins e bebendo um refrigerante.

- Para mim, isso prova que fumar cigarros é extremamente nocivo - respondeu ele.

Lonnie voltou-se e olhou para ele.

- Bem, pensei que já tínhamos resolvido isso. - Olhou para Nicholas. - Acho que devemos começar a votação. Estamos a ler há quase três horas e se o juiz me perguntar se Li esse amontoado de coisas, vou dizer: "Que diabo, é claro. Li cada palavra."

- Faça como quiser, Lonnie - assentiu Nicholas.

- Tudo bem. Vamos votar.

- Votar em quê? - perguntou Nicholas.

Os dois estavam agora de pé, um de cada lado da mesa, com os outros jurados sentados entre eles.

- Vamos ver quem está com quem. Eu voto primeiro.

- Adiante. Vamos ouvir o seu voto.

 

Lonnie respirou fundo e todos se voltaram para ele.

- A minha posição é muito fácil. Acredito que o cigarro é um produto perigoso. O cigarro vicia. O cigarro é mortal. Por isso não fumo. Toda a gente sabe disso; na verdade, já decidimos isso. Acredito que cada pessoa tem o direito de escolher. Ninguém pode obrigá-lo a fumar mas, se quiser, sofrerá as consequências. Não fume como um desesperado durante trinta anos à espera que eu o faça enriquecer depois. Estes processos malucos precisam de parar.

A sua voz era alta e cada palavra foi ouvida com toda a atenção. - Terminou?-perguntou Nicholas. -Terminei.

- Quem é o próximo?

  • Eu - disse a senhora Gladys Card. - Que dinheiro a  acusação vai receber? O doutor Rohr deixou essa questão em suspenso.

    - Ele quer dois milhões por danos reais. A indemnização punitiva fica por nossa conta - explicou Nicholas.

    - Então porque é que ele escreveu oitocentos milhões no quadro?

    - Porque ficaria com oitocentos milhões - respondeu Lonnie. - Vão dar-lhos?

    - Acho que não - respondeu ela. - Eu nem sabia que existia tanto dinheiro no mundo. Celeste Wood vai receber esse dinheiro todo?

    - Viu quantos advogados estavam no tribunal? - perguntou Lonnie com ironia. Ela terá muita sorte se receber alguma coisa. Este julgamento não é a respeito dela ou do seu defunto marido. Este julgamento refere-se a um bando de advogados que pretendem enriquecer processando as tabaqueiras. Seremos muito estúpidos se cairmos nessa cilada.

    - Sabe porque comecei a fumar? - perguntou Angel Weese a Lonnie, que ainda estava de pé.

    - Não.

    - Lembro-me do dia exacto. Tinha treze anos e vi aquele cartaz enorme na Decatur Street, não muito longe de minha casa, com um tipo grande e negro, muito bonito, com osjeans arregaçados a caminhar à beira-mar, o cigarro numa mão e uma mulher negra lindíssima às cavalitas. Todo ele era sorriso. Todo ele era dentes perfeitos. Salem men-tolado. Deve ser divertido, pensei, isso é que é vida. Gostaria de ter um pouco desta vida. Então fui para casa, tirei dinheiro da gaveta, saí e comprei um maço de Salem mentolado. Os meus amigos acharam-me tão sofisticada que nunca mais deixei de fumar. - Olhou para Loreen Duke, depois de novo para Lonnie. - Não venha dizer-me que qualquer pessoa consegue deixar de fumar. Eu sou viciada, sabe? Não é assim tão fácil. Tenho vinte anos, fumo dois maços por dia e, se não deixar de fumar, não chego aos cinquenta. E não me diga que eles não têm os jovens como alvo. Os alvos deles são negros, mulheres, adolescentes, toda a gente é o alvo e você sabe disso.

    Para alguém que não tinha demonstrado qualquer emoção durante as quatro semanas que haviam passado juntos, a fúria na voz de Angel foi uma surpresa. Lonnie olhou zangado para ela, mas não disse nada.

    Loreen tomou o partido dela.

    - Uma das minhas filhas, de quinze anos, disse-me na semana passada que começou a fumar quando estava na escola porque todos

    os amigos fumam. São muito novos para saber o que é vício e, quando perceberem, estarão agarrados ao cigarro. Perguntei onde ela os comprava. Sabem o que me respondeu? Lonnie ficou calado.

    - Nas máquinas automáticas. Há uma perto da galeria onde os jovens se reúnem. E outra no hall de entrada do cinema onde vão. Algumas pastelarias têm máquinas de vender cigarros. E vai dizer-me que as crianças não são o alvo deles? Isso põe-me doente. Mal posso esperar para chegar a casa e contar à minha filha toda a verdade.

    - Então, que vai fazer quando ela começar a beber cerveja? -perguntou Jerry. - Vai processar a Budweiser por dez milhões porque todos os adolescentes estão a beber às escondidas?

    - Não há prova de que a cerveja crie dependência - respondeu Rikki.

     

    - Ah, não?

    - Há uma diferença.

    - Por favor, explique-se -pediu Jerry. O debate cobria agora dois dos seus vícios favoritos. Será que o jogo e as mulheres viriam depois?

    Rikki ordenou os pensamentos por um instante e então lançou-se num discurso acalorado em defesa do álcool.

    - O cigarro é o único produto mortal se for usado de acordo com a sua finalidade. O álcool deve ser consumido, é claro, mas em doses razoáveis. E, quando usado com moderação, não é um produto perigoso. Claro, muita gente bebe de mais e mata-se por causa disso, mas podemos argumentar que o produto não está a ser usado adequadamente nesses casos.

    -E se uma pessoa bebe durante cinquenta anos, não está a matar-se?

    - Não, se beber com moderação.

    - Cara, é bom ouvir isso.

    - E há mais uma coisa. O álcool tem um aviso natural. Você percebe os efeitos assim que começa a beber. Isso não acontece com o fumo. Só depois de muitos anos percebe os danos que o fumo causa no  seu corpo. E nessa altura já está viciado e não consegue deixar.

    - A maioria das pessoas consegue - opinou Lonnie, da janela, sem olhar para Angel.

    - E porque acha que toda agente tenta? - perguntou  Rikki, calmamente. - Será porque se sentem jovens e charmosos? Não, tentam deixar de fumar para evitar o cancro do pulmão e as doenças cardíacas.

    - Em suma, como vai votar? - perguntou Lonnie.

    - Acho que é óbvio - respondeu ela. - Comecei este julgamento com a mente aberta, mas cheguei à conclusão de que o único meio de fazer com que os fabricantes sejam responsáveis é dizendo-lhes isso.

    - E você? - perguntou Lonnie a Jerry, esperando encontrar um aliado.

    - Ainda estou indeciso. Acho que primeiro vou ouvir os outros.

    - E você? - perguntou a Sylvia Taylor-Tatum.

    - Estou a ter muita dificuldade em compreender porque devemos fazer dessa mulher uma multimilionária.

    Lonnie caminhou à volta da mesa, olhando para cada um deles. De um modo geral, os outros evitavam olhar para si. Não havia dúvida de que estava a saborear o papel de líder rebelde.

    - E o senhor Savelle? O senhor não fala muito.

    Agora seria interessante. Ninguém tinha ideia do que Savelle pensava.

    - Acredito na liberdade de escolha - respondeu ele. - Escolha absoluta. Deploro o que essas empresas fazem ao ambiente. Detesto os seus produtos. Mas cada pessoa tem o direito de escolher.

    - Senhor Vu? - indagou Lonnie.

    Henry pigarreou, pensou um minuto, e disse:

    - Ainda estou a pensar. - Henry votaria com Nicholas, que nesse momento estava incrivelmente silencioso.

    - E o senhor, primeiro-jurado? - perguntou Lonnie.

    - Podemos terminar esses relatórios em trinta minutos. Vamos fazer isso e começar a votação.

    Depois das primeiras escaramuças, era um alívio voltar a ler por mais algum tempo. O resultado final estava próximo.

    A princípio, teve vontade de sair pelas ruas no seu Suburban, com José ao volante, rodar para cima e para baixo na estrada 90, sem destino, sem oportunidade de encontrar Marlee. Pelo menos, estaria lá fora a fazer alguma coisa, tentando encontrá-la, esperando talvez tropeçar nela por acaso.

    Fitch sabia que Marlee estava longe.

    Assim, ficou no escritório, sozinho ao lado do telefone, rezando para que ela ligasse mais uma vez para dizer que negócio era negócio. Durante toda a tarde, Konrad entrou e saiu, com as notícias que Fitch esperava ouvir. O carro dela estava parado na frente do apartamento há oito horas. Nenhuma actividade dentro ou fora do apartamento. Nenhum sinal dela em lugar algum. Tinha desaparecido.

    Estranhamente, quanto mais o júri demorava, mais crescia a esperança de Fitch. Se ela tivesse planeado pegar no dinheiro e fugir, e arrasar Fitch com um veredicto a favor da acusação, então onde estava o veredicto? Talvez não fosse tão fácil. Nicholas podia estar a ter dificuldade em conseguir os votos.

    Fitch jamais perdera um caso como aquele, mas lembrava-se de ter passado por aquela mesma angústia, de suar sangue enquanto o júri deliberava.

    Exactamente às cinco horas, o juiz Harkin reabriu a sessão e mandou chamar o júri. Os advogados correram para os seus lugares. A maioria do público voltou também.

    Os jurados ocuparam os seus lugares. Pareciam cansados, mas isso era comum a todos os jurados naquela altura do julgamento.

    - Apenas umas perguntas rápidas - disse o Meritíssimo. - Elegeram um novo líder?

    Todos acenaram com a cabeça afirmativamente e Nicholas levantou a mão.

    - Eu tenho a honra - disse em voz baixa, sem o menor sinal de orgulho.

    - Muito bem. Quero que saibam que falei com Herman Grimes mais ou menos há uma hora e ele está muito melhor. Parece que não foi um enfarte e deve ter alta amanhã. Mandou-vos cumprimentos. Todos pareceram satisfeitos.

    - Agora, os senhores estão com o caso há cinco horas e gostaria de saber se fizeram progressos.

    Nicholas levantou-se constrangido, com as mãos nos bolsos das calças.

    - Acho que sim, Meritíssimo.

    - Muito bem. Sem mencionar nada do que foi discutido, acha que o júri chegará a um veredicto, qualquer que seja?

    Nicholas olhou para os pares e disse:

    - Acho que sim, Meritíssimo. Realmente, tenho a certeza de que chegaremos a uma decisão.

    - Quando acha que terão o veredicto? Compreendam bem, não estou a apressar-vos. Podem demorar o que quiserem. Pretendo apenas fazer planos para este tribunal se formos passar a noite aqui.

    - Nós queremos ir para casa, Meritíssimo. Estamos resolvidos a terminar as deliberações e a apresentar um veredicto esta noite.

    - Maravilhoso. Muito obrigado. O jantar está a caminho. Estarei na minha sala se precisarem de mim.

     

    O senhor O'Reilly voltou para servir o jantar ao júri pela última vez e despedir-se daqueles que considerava seus amigos. Ele e três empregados atenderam todos como se estivessem a servir a realeza.

    Acabaram de jantar às seis e meia e o júri estava pronto para voltar para casa. Concordaram em votar primeiro o assunto sob a sua responsabilidade. Nicholas apresentou a questão em termos leigos.

    - Estão dispostos a considerar a Pynex responsável pela morte de JacobWood?

    Rikki Coleman, Millie Dupree, Loreen Dukee, Angel Weese disseram sim, sem hesitar. Lonnie, Phillip Savelle e a Sra.Gladys Card disseram não com a mesma firmeza. Os outros não sabiam ainda. Poodle estava incerta, mais inclinada a votar não. Jerry, de repente, parecia vacilar, mas tendendo também para o não. Shine Royce, o mais novo membro do júri, não tinha dito três palavras o dia todo e simplesmente deixava-se levar pela brisa. Saltaria para dentro do primeiro vagão onde estivesse a maioria. Henry Vu disse que estava indeciso, mas na verdade esperava por Nicholas, que, por sua vez, esperava que todos terminassem. Estava desapontado com aquela divisão.

    - Acho que está na hora de dar o seu voto - disse Lonnie para Nicholas, ansioso por uma discussão.

    - Sim, vamos ouvir Nicholas - apoiou Rikki, também pronta para discutir. Todos os olhos se dirigiram para o líder.

    - Tudo bem - disse ele, e a sala ficou em completo silêncio. Depois de anos de planeamento, tudo acabava assim. Nicholas  escolheu cuidadosamente as palavras, mas já havia repetido o discurso mentalmente várias vezes. - Estou convencido de que o cigarro é perigoso e mortal, mata milhares de pessoas todos os anos e os fabricantes usam o nível máximo de nicotina porque sabem há muito tempo que a nicotina

    vicia. O cigarro poderia ser bem menos perigoso se os fabricantes quisessem, mas teriam de reduzir a nicotina e isso significaria uma redução nas vendas. Acho que o cigarro matou Jacob Wood e nenhum de vocês vai argumentar o contrário. Estou convencido de que os fabricantes de cigarros mentem e fazem o possível por levar os jovens a fumar. São um bando de impiedosos filhos da puta e acho que devemos puni-los por isso.

    - Concordo - disse Henry Vu.

    Rikki e Millie tiveram vontade de bater palmas.

    - Quer sanções punitivas? - perguntou Jerry, incrédulo.

    - O veredicto não terá sentido se não for significativo, Jerry. Tem de ser rigoroso. Uma decisão limitada aos danos reais significa apenas que não temos coragem de punir a indústria tabaqueira pelos seus pecados.

    - É preciso fazer com que eles sintam o castigo - aprovou Shine Royce, mas só para parecer inteligente. Tinha encontrado a sua maioria. Lonnie olhou incrédulo para Shine e para Vu. Contou rapidamente - sete votos para a acusação.

    - Não pode falar em dinheiro porque ainda não tem os seus votos.

    - Não são os meus votos - frisou Nicholas.

    - Uma ova que não são - disse Lonnie, amargamente. - Este é o seu veredicto.

    Repetiram a votação - sete para a acusação, três para a defesa, Jerry e Poodle no alto da cerca, mas procurando um lugar para descer. Então a senhora Gladys Card alterou a contagem, dizendo:

    - Não quero votar a favor da indústria tabaqueira mas, ao mesmo tempo, não compreendo porque devemos dar todo esse dinheiro a Celeste Wood.

    - Quanto dinheiro lhe daria? - perguntou Nicholas. Confusa e nervosa, ela ficou na dúvida.

    - Simplesmente, não sei. Votaria para que lhe dessem alguma coisa. Mas, bem... não sei.

    - Em quanto está a pensar? - perguntou Rikki ao líder e a sala voltou a ficar em silêncio.

    - Mil milhões - disse Nicholas, com o maior descaramento. Foi como se uma bomba tivesse aterrado no centro da mesa. As bocas abriram-se, os olhos ficaram arregalados.

    Antes que alguém pudesse falar, Nicholas explicou:

    - Se queremos realmente enviar uma mensagem à indústria tabaqueira, temos de fazer isso com impacto. A nossa decisão deve ser um marco. Ficará famosa e conhecida como o momento em que o povo americano, agindo através do seu sistema judiciário, finalmente enfrentou a indústria tabaqueira e disse: "Agora basta, vocês passaram da conta!"

    - Enlouqueceu-reprovou Lonnie, e naquele momento quase todos concordavam com ele.

    - Ou então quer tornar-se famoso - disse Jerry, sarcástico.

    - Não eu, mas o veredicto. Na semana que vem ninguém se vai lembrar dos nossos nomes, mas todos se lembrarão do veredicto. Se vamos fazer isto, é melhor fazermo-lo como deve ser.

    - Gosto da ideia - aplaudiu Shine Royce. A ideia de oferecer tanto dinheiro atordoava-o. Shine era o único jurado pronto a passar mais uma noite no motel, comendo de graça e recebendo mais quinze dólares no dia seguinte.

    - E depois, o que vai acontecer? - indagou Millie, ainda atónita.

    - Eles vão apelar algum dia, talvez dentro de dois anos, um bando de bodes velhos usando togas pretas vai reduzir a indemnização para um valor mais razoável. Dirão que foi um veredicto descontrolado, feito por um júri tresloucado, e baixarão a quantia. O sistema funciona quase sempre.

    - Então, porque devemos fazer isto? - quis saber Loreen.

    - Para mudar. Iniciaremos o longo processo de tornar os fabricantes de cigarros responsáveis pela morte de muitas pessoas. Lembrem-se, eles nunca perderam um julgamento como este. Julgam-se invencíveis. Nós provamos o contrário e de tal modo que os outros queixosos não terão medo de processar a indústria.

    - Então quer levar a indústria à falência - concluiu Lonnie.

    - Não me preocuparia com isso. A Pynex vale l ,2 milhares de milhões e praticamente todo o seu lucro é proveniente das pessoas que usam os seus produtos. Sim, pensando bem, o mundo seria um lugar melhor sem a Pynex. Quem é que ia chorar se ela fosse à falência?

    -Talvez os empregados - disse Lonnie.

    - Tem razão. Mas tenho mais simpatia pelos milhares de pessoas viciadas nos seus produtos.

    - Quanto poderiam os tribunais conceder a Celeste Wood? -perguntou a senhora Gladys Card. Perturbava-a a ideia de que uma sua vizinha, embora desconhecida, fosse ficar rica. Claro, havia perdido o marido, mas o senhor Card estava a sobreviver ao cancro da próstata sem pensar em processar fosse quem fosse.

    - Não faço ideia - respondeu Nicholas. - E acho que não devemos preocupar-nos com isso. Será outro dia, em outro tribunal, e existem normas legais para a redução de grandes indemnizações.

    - Mil milhões de dólares - Loreen repetiu para si mesma, mas em voz suficientemente alta para ser ouvida pelos demais. Era tão fácil como dizer um milhão de dólares. Os jurados, olhando para a mesa, repetiam a expressão "mil milhões".

    Não pela primeira vez Nicholas agradeceu a si mesmo a ausência de Herrera. Num momento como aquele, com mil milhões de dólares na mesa, Herrera estaria a ter um acesso de fúria e provavelmente a atirar coisas ao ar. Mas a sala estava quieta. Lonnie era agora o único advogado de defesa e estava ocupado a contar e recontar os votos.

    A ausência de Herman também era importante, provavelmente mais do que a do coronel, porque os jurados iriam dar-lhe ouvidos se ali estivesse. Ele era sério e calculista, pouco dado a emoções e certamente nada susceptível a um veredicto absurdo.

    Nicholas afastou-se do assunto da responsabilidade, conduzindo-o para os danos, uma mudança crucial. Mil milhões de dólares deixara-os atordoados, obrigando-os a pensar em dinheiro e não em culpa.

    Nicholas estava determinado a manter a atenção de todos no dinheiro.

    - É só uma ideia - resmungou. - O importante é chamar a atenção deles.

    Nicholas piscou o olho a Jerry, que não perdeu a deixa.

    - Não posso chegar a tanto - disse ele, no seu melhor tom de vendedor, que era bastante eficaz. - Chega a ser uma extravagância. Vejo alguns danos mas, que diabo, tanto assim também é loucura.

    - Não é extravagante - argumentou Nicholas. - A companhia tem oitocentos milhões em dinheiro. Pode comparar-se a uma casa da moeda. Todas as tabaqueiras imprimem o próprio dinheiro.

    Jerry era o oitavo voto e Lonnie foi para um canto onde começou a aparar as unhas.

    Poodle era o nono voto.

    - É abusivo e não posso fazer isso - disse ela. - Alguma coisa menor, talvez, mas não mil milhões de dólares.

    - Então quanto? - perguntou Rikki.

    Quinhentos milhões. Ou cem milhões. Nenhum deles tinha coragem de expressar em palavras essas quantias absurdas de dinheiro.

    - Não sei - disse Sylvia. - O que é que acha?

    - Gosto da ideia de lixar aqueles tipos - afirmou Rikki. - Se a intenção é enviar uma mensagem, não sejamos tímidos.

    -Mil milhões?-perguntou Sylvia. -- Sim, posso arbitrar isso.

    - Eu também - disse Shine, sentindo-se rico só por estar ali. Na longa pausa que se seguiu só se ouvia o corta-unhas de Lonnie. Finalmente, Nicholas disse:

    - Quem acha que não pode votar qualquer indemnização por danos? Savelle ergueu a mão. Lonnie ignorou a pergunta mas ele, afinal,

    não precisava de responder.

    - Os votos estão em dez a dois - informou Nicholas, anotando esses números. - Este júri chegou a uma decisão sobre responsabilidade. Agora, vamos resolver o assunto dos danos. Será que dez de nós concordamos em dizer que o espólio dos Wood tem direito a dois milhões de indemnização por danos reais?

    Savelle empurrou a cadeira para trás e saiu da sala. Lonnie serviu--se de café e sentou-se ao lado da janela, de costas para o grupo, mas atento a tudo o que se dizia.

    Os dois milhões pareciam uns trocos comparados com a quantia que dez jurados acabavam de aprovar. Nicholas escreveu isso num formulário aprovado pelo juiz Harkin.

     

    - Nós dez concordamos que deve ser imposta uma indemnização punitiva? - Passou os olhos pela mesa e recebeu um sim de cada um. A senhora Gladys Card hesitou. Podia mudar de ideias, mas já não faria diferença. Nove votos bastavam para o veredicto.

     

    - Muito bem. Agora, quanto ao valor da indemnização punitiva. Alguma ideia?

    - Eu tenho uma - disse Jerry. - Cada um vai escrever a quantia num papel e dobrá-lo; depois somamos todos, sem saber de quem são, e dividimos por dez. Assim saberemos a média.

    - Será o valor definitivo? - indagou Nicholas.

    - Não. Mas ficaremos com uma ideia de até onde devemos ir.

    A ideia do voto secreto agradou a todos e escreveram os valores nos pedaços de papel.

    Nicholas abriu lentamente cada voto, ditando as quantias a Millie, que as anotava. Mil milhões, um milhão, cinquenta milhões, dez milhões, mil milhões, um milhão, cinco milhões, quinhentos milhões, mil milhões e dois milhões.

    Millie fez as contas.

    - O total é de três mil milhões, quinhentos e sessenta e nove milhões. Dividido por dez, a média é trezentos e cinquenta e seis milhões e novecentos mil.

    Foi preciso um momento para os zeros serem assimilados. Lonnie levantou-se de um salto e aproximou-se da mesa.

    - Vocês estão loucos - disse em voz alta; e saiu da sala, batendo a porta.

    - Não posso pedir isso - disse a senhora Gladys Card, visivelmente abalada. - Vivo de uma pensão, sabem? É uma boa pensão, mas não posso sequer imaginar esses números todos.

    - Os números são reais - assegurou Nicholas. - A empresa tem oitocentos milhões em dinheiro, mais de mil milhões de lucro. No ano passado o nosso país gastou seis mil milhões em serviços médicos directamente relacionados com o tabaco e esse número sobe todos os anos. As quatro maiores indústrias tabaqueiras, em conjunto, venderam no ano passado quase dezasseis mil milhões. E esse número continua a crescer. Temos de pensar grande, concordam? Aqueles homens vão achar graça a um veredicto de cinco milhões de dólares. Não vão mudar nada, manterão o seu negócio como sempre. A mesma publicidade dirigida aos adolescentes. As mesmas mentiras ao Congresso. Tudo igual, a não ser que façamos alguma coisa para os despertarmos.

    Rikki inclinou-se para a frente, apoiada nos cotovelos, e olhou para a senhora Card, do outro lado da mesa.

    - Se não pode pedir isso, deixe-os decidirem.

    - Não me provoque.

    - Não estou a provocar. Agir exige coragem, esta é que é a verdade. Nicholas tem razão. Se não os esbofetearmos e os fizermos ficarem de joelhos, nada vai mudar. São pessoas implacáveis.

    A senhora Gladys Card estava nervosa, a tremer e prestes a ter um colapso.

    -Desculpem-me. Quero ajudar, mas simplesmente não posso pedir tanto.

    -Tudo bem, senhora Card-disse Nicholas, tentando acalmá-la. A pobre senhora estava atormentada e precisava de um amigo. Enfim, tudo estava bem enquanto tivessem nove votos. Ele podia dar-se ao luxo de confortar a senhora Card, só não podia perder mais um voto.

    Ficaram em silêncio, esperando para ver se continuariam como um grupo ou, pelo contrário, se se dividiriam. Ela respirou fundo, ergueu o queixo e encontrou a coragem interior de que precisava.

     

    - Posso fazer uma pergunta? - indagou Angel, olhando na direcção de Nicholas, como se ele fosse agora a única fonte de sabedoria.

     

    - Claro -- respondeu este, incitando-o com um gesto dos ombros.

    - O que vai acontecer à indústria tabaqueira se optarmos por uma indemnização como essa?

    -Legal, económica ou politicamente? -Tudo.

    Ele pensou durante um ou dois segundos, mas estava ansioso para responder.

    - Inicialmente, muito pânico. Muitas ondas de choque. Muitos executivos assustados, preocupados com o que virá a seguir. Certamente esperarão para ver se os advogados os inundam com processos de indemnizações. Seriam obrigados a reexaminar as suas estratégias de publicidade. Não irão à falência, pelo menos não num futuro próximo, porque têm muito dinheiro em caixa. Vão exigir do Congresso leis especiais. A indústria jamais será a mesma se fizermos o que devemos.

    -Esperando que algum dia o cigarro seja proibido por lei - acrescentou Rikki.

    - Isso, ou que as empresas já não possam fabricá-los - disse Nicholas.

    - O que vai acontecer connosco? - perguntou Angel. - Quero dizer, corremos algum perigo? Disse que aquela gente está a vigiar-nos desde o início do julgamento.

    - Não, estaremos a salvo - respondeu Nicholas. - Não podem fazer-nos nada. Como já disse, na próxima semana ninguém vai lembrar-se dos nossos nomes. Mas todos se vão lembrar do nosso veredicto.

    Phillip Savelle voltou e sentou-se outra vez.

    - Então o que é que vocês, Robin Hoods, resolveram agora? - perguntou.

    Nicholas ignorou-o.

    - Precisamos de resolver a quantia, amigos, se quisermos ir para casa.

    - Pensei que isso já estava resolvido - disse Rikki.

    - Temos pelo menos nove votos? - indagou Nicholas.

    - Para quanto, posso perguntar? - especulou Savelle, zombeteiro.

    - Trezentos e cinquenta milhões, mais ou menos - respondeu Rikki.

    - Ah, a velha teoria da distribuição de riqueza. Engraçado, não parecem um bando de marxistas.

    - Tenho uma ideia - propôs Jerry. - Vamos arredondar para quatrocentos, metade do que eles têm em dinheiro. Isso não os levará à falência. Podem apertar o cinto, aumentar a nicotina, viciar mais algumas crianças e terão o dinheiro de volta dentro de alguns anos.

    - Agora é um leilão? - perguntou Savelle, mas ninguém respondeu.

     

    - Vamos fazer isso então - disse Rikki.

    - Contagem de votos - disse Nicholas; e nove mãos se ergueram. Então indagou de cada um se estava a votar para aprovar um veredicto de dois milhões de dólares por danos reais e quatrocentos milhões de dólares como indemnização punitiva. Todos responderam que sim. Preencheu o formulário do veredicto e fê-los assinar.

    Lonnie voltou depois de uma longa ausência. Nicholas dirigiu-se a ele.

    - Chegámos a um veredicto, Lonnie.

    - Que surpresa. Quanto?

    - Quatrocentos e dois milhões de dólares - disse Savelle. - Mais ou menos alguns milhões.

    Lonnie olhou para Savelle e depois para Nicholas.

    - Está a gozar? - A sua voz era quase inaudível.

    - Nada disso - assegurou Nicholas. - É verdade e temos nove votos. Quer juntar-se a nós?

    - Que diabo, não.

    - Realmente incrível, não é? - disse Savelle. - E, pense nisto, seremos famosos.

    - É uma coisa sem precedentes - disse Lonnie, recostando-se na

    parede.

    - Na verdade, não - explicou Nicholas. - A Texaco teve um veredicto contra ela de dez mil milhões de dólares há alguns anos.

    - Bolas, então isto é um ajuste de contas? - perguntou Lonnie.

    - Não. Isto é justiça. - Nicholas levantou-se, foi até à porta, abriu e pediu a Lou Dell para informar o juiz Harkin de que o júri estava pronto.

    Enquanto esperavam, Lonnie levou Nicholas para um canto e murmurou:

    - Há algum modo de deixar o meu nome fora disto? - Estava mais nervoso do que zangado.

    - Claro. Não se preocupe. O juiz vai perguntar a cada um de nós se este é o nosso veredicto. Quando chegar a sua vez, certifique-se de que todos saberão que não teve nada a ver com isto.

    - Obrigado.

     

    Lou Dell recebeu a mensagem escrita e, como já havia feito com as anteriores, entregou-a a Willis, que seguiu pelo corredor, virou a esquina e desapareceu. Willis entregou por sua vez o papel directamente ao Meritíssimo, que naquele momento estava a falar ao telefone, mas ansioso por ouvir o veredicto. Harkin ouvia veredictos todos os dias, mas tinha um palpite de que este iria ser diferente. Estava certo de que, mais dia menos dia, iria presidir a um grande julgamento civil, embora para já não se lhe afigurasse nenhum.

    O bilhete dizia: "Juiz Harkin, não se importa de destacar um polícia para me escoltar quando sair do tribunal? Estou com medo. Depois lhe explico. Nicholas Easter."

    O juiz deu instruções a um polícia que se encontrava na sala ao lado e penetrou com passo decidido na sala do tribunal, onde o ar estava denso, como que carregado de electricidade. Os advogados, que tinham aguardado até àquele momento nos gabinetes, não muito longe do tribunal, apressavam-se a tomar os seus lugares, nervosos e preocupados. Os espectadores começaram a entrar. Eram quase oito horas. - Fui informado de que o júri chegou a um veredicto - disse Harkin em voz alta, ao microfone, e os advogados estremeceram. - Por favor, faça entrar o júri.

    Entraram, solenes como todos os jurados. Independentemente das boas notícias que trazem para um lado ou para o outro e independentemente do como estão unidos, os jurados entram sempre de olhos baixos, fazendo com que ambos os lados sintam imediatamente afundar as suas expectativas e comecem a pensar no apelo da sentença.

    Lou Dell recebeu a folha da mão de Nicholas e entregou-a ao juiz, que conseguiu ler com o rosto completamente inexpressivo. Não transmitiu a menor indicação sobre a espantosa notícia que tinha nas mãos.

    A decisão deixou-o extremamente chocado, mas processualmente não havia nada que pudesse fazer. Tecnicamente, estava correcta. Mais tarde poderia haver moções para a redução do valor imposto pelo júri, mas por enquanto estava de mãos atadas. Dobrou outra vez o papel, devolveu-o a Lou Dell e ela entregou-o a Nicholas, que se encontrava de pé, pronto para anunciar a decisão.

    - Senhor primeiro-jurado, leia o veredicto.

    Nicholas abriu a sua obra-prima, pigarreou, olhou em volta rapidamente para ver se Fitch estava na sala, não o viu e começou a ler:

    - Nós, o júri, decidimos o veredicto a favor de Celeste Wood e determinamos uma indemnização por danos sofridos no valor de dois milhões de dólares.

    Só isso já era um precedente. Wendall Rohr e o seu bando de advogados respiraram aliviados. Acabavam de fazer história. Mas o júri não tinha terminado.

    - E nós, o júri, que decidimos o veredicto a favor da queixosa, Celeste Wood, determinamos ainda uma indemnização punitiva por danos sofridos, no total de quatrocentos milhões de dólares.

    Para um advogado, receber um veredicto é quase uma forma de arte. Não se pode recuar nem estremecer. Não se pode olhar em volta em busca de consolo ou de júbilo. Não se pode abraçar o cliente para comemorar ou para o consolar. O advogado deve ficar imóvel, escrevendo no bloco de apontamentos com a testa franzida e agir como se soubesse de antemão a decisão.

    Essa forma de arte foi profanada. Cable caiu na cadeira como se tivesse levado um tiro no estômago. Os seus companheiros olharam para o júri boquiabertos, como se não tivessem ar para respirar, os olhos fora das órbitas e completamente incrédulos. Um "Oh, meu Deus" veio algures da segunda fila de advogados da defesa, atrás de Cable.

    Rohr, com um sorriso de orelha a orelha, abraçou Celeste Wood, que começou a chorar. Os outros advogados abraçavam-se discretamente, congratulando-se. Oh, a excitação da vitória, a expectativa de receber quarenta por cento daquele veredicto!

    Nicholas sentou-se e deu uma palmadinha na perna de Loreen Duke. Estava acabado, finalmente estava tudo acabado.

    O juiz Harkin ficou subitamente muito activo, com o ar de que aquele era apenas mais um veredicto.

     

    - Agora, senhoras e senhores, vou confirmar os votos do júri. Isso significa que vou perguntar a cada um, individualmente, se é essa a sua decisão. Começarei com a senhora Loreen Duke. Declare, por favor, em voz alta, para os autos, se votou ou não a favor deste veredicto.

    - Eu votei - disse ela, com orgulho.

    Alguns advogados tomavam notas. Outros olhavam simplesmente para o infinito.

    - Senhor Easter? Votou a favor deste veredicto?

    - Votei.

    - Senhora Dupree?

    - Sim, senhor, votei.

    - Senhor Savelle?

    - Não votei.

    - Senhor Royce? Votou a favor deste veredicto? -Votei.

    - Senhora Weese? -Votei.

    - Senhor Vu? -Votei.

    - Senhor Lonnie Shaver?

    Lonnie soergueu-se ligeiramente e disse em voz alta, para todos o ouvirem:

    - Não, Meritíssimo juiz, não votei a favor deste veredicto e discordo completamente dele.

    - Obrigado. Senhora Rikki Coleman? É este o seu veredicto?

    - Sim, senhor.

    - Senhora Gladys Card?

    - Não senhor.

    Subitamente, acendeu-se uma pequena centelha de esperança para Cable e para a Pynex, para Fitch e para toda a indústria do tabaco. Três jurados tinham votado contra o veredicto. Mais um e o júri seria mandado de volta para novas deliberações. Qualquer juiz de tribunal tem histórias para contar acerca de júris cujos veredictos se desintegram depois de entregues, quando os jurados são interrogados individualmente. Um veredicto, quando é lido num tribunal aberto, frente à plateia dos advogados e dos clientes, parece muito diferente do que se afigurava poucos minutos antes, na segurança da sala dos jurados.

    Mas a ténue esperança de um milagre foi destruída pelos votos de Poodle e Jerry. Ambos confirmaram o veredicto.

    - Parece que os votos são nove contra três - disse o Meritíssimo. - Tudo o mais parece estar em ordem. Tem alguma observação a fazer, doutor Rohr?

    Rohr limitou-se a abanar a cabeça. Não podia agradecer ao júri agora, mas adoraria saltar por cima da balaustrada para lhes beijar os pés. Ficou sentado, saboreando a vitória, com um braço em volta dos ombros de Celeste Wood.

    - Doutor Cable, alguma observação?

    - Não, senhor - conseguiu responder Cable. Oh, as coisas que gostaria de dizer aos idiotas dos jurados!

    O facto de Fitch não estar na sala preocupava Nicholas. Significava que se encontrava lá fora, emboscado nalgum canto escuro, à espera. O que é que Fitch saberia agora? Provavelmente de mais. Nicholas estava ansioso por sair do tribunal e abandonar a cidade.

    Harkin iniciou então um longo discurso de agradecimento, mesclado de uma boa dose de patriotismo e dever cívico, usando todos os chavões que já tinha ouvido no tribunal, advertindo os jurados contra o facto de se comentar com qualquer pessoa as deliberações para chegar ao veredicto, dizendo que podia acusá-los de desobediência se deixassem escapar uma palavra do que tinha acontecido na sala dos jurados e dispensando-os para a jornada final até ao motel, a fim de irem recolher as suas coisas.

    Fitch via e ouvia tudo da sala de visionamento, ao lado do gabinete. Estava sozinho, todos os consultores de júri tinham sido despedidos há poucas horas e recambiados para Chicago.

    Podia sequestrar Easter e essa hipótese foi detalhadamente discutida com Swanson, que foi posto ao corrente de tudo assim que chegou. Mas de que adiantava isso? Easter não iria falar e arriscavam-se a incorrer no crime de sequestro. Já tinham preocupações que chegassem sem terem de passar uma temporada na cadeia de Biloxi.

    Resolveram segui-lo, esperando que os conduzisse à rapariga. O que, é claro, criava outro dilema. O que fariam com Marlee se a encontrassem? Não podiam denunciá-la à polícia. Ela tinha tomado a decisão magnífica de roubar dinheiro sujo. O que diria Fitch ao FBI na sua declaração sob juramento? Que lhe dera dez milhões de dólares para

    entregar um veredicto a favor da indústria do tabaco e ela tinha tido a coragem de o trairye agora fizessem o favor de a processar?

    Fora completamente enrolado.

    Assistia à cena attravés da lente da câmara oculta de Oliver McAdoo. Os jurados levantaram-se, saíram e o banco do júri ficou vazio.

    Reuniram-se na sala onde haviam passado muitas horas para recolher livros, revistas e, sacolas com trabalhos de tricô. Nicholas não estava com vontade de comversar. Saiu da sala e chuck, agora um velho amigo, informou-o de que O xerife o aguardava lá fora.

    Sem uma palavra para Lou Dell ou Willis, nem para as pessoas com quem tinha passado as últimas duas semanas, Nicholas sumiu-se apressadamente atrás de Çhuck. Saíram pela porta das traseiras. O xerife em pessoa estava à espera dele no seu enorme Ford castanho.

    O juiz disse-me que precisava de ajuda - justificou o xerife, já sentado ao volante.

    Exactamente, vamos para norte pela estrada 49. Eu indico-lhe o caminho. E certifique-se de que não somos seguidos.

    - Tudo bem. E quem é que pode vir atrás de nós?

    - Uns homens maus.

    Chuck fechou a porta do lugar do pendura e Nicholas e o xerife krtiram. Nicholas olhou pela última vez para a sala do juri, no segundo piso. Junto à janela Vjslumbrou Millie abraçada a Rikki Coleman.

    - Não tem nada no motel? - perguntou o xerife. - É melhor esquecer. Vou lá depois.

    O xerife deu instruções pelo rádio para que dois carros os escoltassem, certificando-^ de que não estavam a ser seguidos. Vinte minutos mais tarde, quando atravessavam velozmente Gulfport, Nicholas começou a indicar o caminho e o xerife parou junto aos courts de ténis de um grande complexo de ^partamentos a norte da cidade. Nicholas disse-lhe que ali ficava bem e saiudocarro.

    - Tem a certeza de que fica bem? - perguntou o xerife.

    - Tenho a certeza, sim. Vou ficar por aqui com uns amigos. Obrigado. -Se precisar de ajuda,chame. - Certo, obrigado

    Nicholas desapareceu e esperou que o carro da polícia se afastasse. Encontrava-se junto ao vestiario da piscina, de onde podia ver todo o tráfego. Não Viu nada de suspeito.

    O carro para a fuga era novo, alugado por Marlee há dois dias, um dos três agora abandonados em vários estacionamentos na periferia de Biloxi. Fez a salvo a viagem de noventa minutos até Hattiesburg, controlando permanentemente pelo retrovisor a possibilidade de estar a ser seguido.

    O Lear estava à espera dele no aeroporto de Hattiesburg. Nicholas fechou o carro com as chaves lá dentro e entrou calmamente no pequeno terminal.

    Alguns minutos depois da meia-noite, passou suavemente pela alfândega de George Town com documentos canadianos novos em folha. Não havia mais passageiros, o aeroporto estava praticamente deserto. Marlee estava à espera dele junto ao tapete das bagagens e caíram nos braços um do outro.

    - Já ouviste alguma coisa? - perguntou. Saíram do terminal e foram envolvidos pela humidade da noite.

    - Claro, a CNN não fala noutra coisa! - disse ela. - Foi o melhor que conseguiste fazer? - perguntou com uma gargalhada, antes de se voltarem a beijar.

    Com Marlee ao volante seguiram para George Town, passando por ruas sinuosas e desertas, que circundavam os modernos edifícios dos bancos amontoados junto ao cais.

    - Aquele é o nosso - disse ela, apontando para o Royal Swiss Trust.

    -Belo.

    Mais tarde, sentaram-se na areia, à beira da água, com os pés na espuma das ondas calmas. Alguns barcos fracamente iluminados pontilhavam vagarosamente a linha do horizonte. Os hotéis e os condomínios ficavam lá trás. Naquele momento, eram donos da praia.

    E que momento! Os quatro anos de luta chegavam ao fim. Os planos tinham finalmente funcionado na perfeição. Há quanto tempo sonhavam com esta noite, e quantas vezes se convenceram de que jamais aconteceria.

    As horas escoaram-se preguiçosamente.

    Consideraram melhor Marcus, o corretor, não conhecer Nicholas. Havia a possibilidade de ser aberto um inquérito, mais tarde, por parte das autoridades, e quanto menos Marcus soubesse melhor. Marlee

    apresentou-se à recepcionista do Royal Swiss Trust às nove horas em ponto e foi conduzida ao segundo piso, onde Marcus a esperava com muitas perguntas que não podia fazer. Ele ofereceu-lhe café, depois fechou a porta.

    - A operação a descoberto das acções da Pynex parece ter sido um óptimo negócio - disse ele, sublinhando o seu próprio talento com um sorriso subtil.

    - Parece que sim - respondeu ela. - A quanto vão abrir?

    - Boa pergunta. Estive ao telefone com Nova Iorque e as coisas estão realmente caóticas. O veredicto deixou toda a gente atordoada. Toda a gente excepto a senhora, acho eu... - Queria muito perguntar, mas sabia que não obteria respostas. - É possível que nem abram. Podem suspender as operações durante um ou dois dias.

    Aparentemente, ela compreendia isso muito bem. O café chegou e tomaram-no devagar, enquanto estudavam os números do fecho da véspera. Às nove e meia, Marcus pôs os auscultadores e observou com atenção os dois monitores sobre a mesa.

    - O mercado está aberto - informou, aguardando.

    Marlee ouviu atentamente, tentando parecer calma. Ela e Nicholas queriam dar um golpe rápido e definitivo, entrar e sair, e depois ir com o dinheiro para qualquer lugar distante onde nunca tivessem estado. Tinha de cobrir 160 000 acções da Pynex e estava ansiosa para se desfazer delas.

    - Está suspenso - disse Marcus para o computador, e ela estremeceu. Marcus digitou números no telefone e começou a falar com alguém em Nova Iorque, Murmurou números e pontos e depois comunicou a Marlee: - Estão a cinquenta, e não há compradores. Sim ou não?

    - Não.

    Passaram dois minutos. Os olhos dele não se desviavam do ecrã.

    - Estão a quarenta e cinco. Sim ou não?

    - Não. E as outras?

    Os dedos dele dançaram no teclado.

    - Caramba! A Trellco caiu treze pontos, para quarenta e três, a Smith Greer caiu onze pontos, para cinquenta e três e um quarto. A Cori-Pack caiu oito, para vinte e cinco. É um banho de sangue. Toda a indústria está a ser bombardeada.

    - Verifique a Pynex.

    - Continua a cair. Quarenta e dois, com alguns pequenos compradores.

    - Compre vinte mil a quarenta e dois - disse ela, consultando as suas notas.

    Depois de alguns segundos, ele respondeu:

    - Confirmado. Subiu para quarenta e três. Eles estão atentos. Da próxima vez faço uma oferta para menos de vinte mil acções.

    Retirando as comissões, a sociedade Marlee e Nicholas acabava de ganhar 740 000 dólares.

    - Voltaram aos quarenta e dois - avisou.

    - Compre vinte mil a quarenta e um - ordenou ela. Um minuto depois, Marcus respondeu:

    - Confirmado. Mais 760 000 de lucro.

     

    - Mantém-se em quarenta e um, agora meio ponto acima - informou ele numa voz mecânica. Repararam na sua compra.

    - Há mais compradores? - perguntou ela.

    - Ainda não.

    - Quando é que vão começar?

    - Quem sabe? Mas acho que não vão demorar. Esta empresa tem muito dinheiro, não pode sair do mercado. O valor real por acção é de mais ou menos setenta dólares. Cinquenta dólares é uma pechincha. Diria a todos os meus clientes para entrarem agora.

    Marlee comprou mais vinte mil acções a quarenta e um, depois esperou meia hora para comprar vinte mil a quarenta. Quando a Trellco caiu para quarenta, comprou vinte mil, com um lucro de 320 000.

    O rápido golpe de misericórdia estava a ser dado. Às dez e meia pediu-lhe para usar o telefone e ligou para Nicholas que estava amarrado à televisão, a acompanhar tudo pela CNN, que tinha uma equipa em Biloxi a tentar entrevistar Rohr, Cable, Harkin ou Glória Lane, qualquer pessoa que soubesse alguma coisa sobre o caso. Ninguém queria falar com eles. Nicholas também estava a par das cotações da bolsa através de um canal de notícias financeiras.

    A Pynex tocou no fundo uma hora depois de abrir. Encontraram compradores a trinta e oito, e nessa altura Marlee pulverizou as restantes oitenta mil acções.

    Quando a Trellco encontrou resistência a quarenta e um, ela comprou quarenta mil acções. Não lhe interessava o negócio da Trellco. Com o grosso das suas operações coberto, e de forma brilhante, Marlee não queria ser demasiado gananciosa e perder tempo com as outras acções. Sabia ser paciente. Tinha ensaiado este plano dezenas de vezes e jamais teria oportunidade igual.

    Alguns minutos antes do meio-dia, com o mercado ainda em confusão, cobriu as restantes acções da Smith Greer. Marcus tirou os auscultadores dos ouvidos e enxugou a testa.

    -Uma manhã mui to provei tosa, senhora MacRoland. Ganhou mais de oito milhões líquidos, menos as comissões.

     

    Uma impressora zumbia discretamente na mesa, emitindo as confirmações.

    - Quero que o dinheiro seja remetido para um banco em Zurique.

    - Para o nosso?

    - Não. - E entregou-lhe um papel com as instruções.

    - Quanto? - perguntou ele.

    - Tudo, menos as suas comissões, claro.

     

    - Okay. Suponho que o envio seja prioritário. - Imediato, por favor.

    Fez as malas rapidamente. Nicholas apenas assistiu, porque não tinha nada para pôr na mala, a não ser duas camisas e unsjeans comprados na loja do hotel. Resolveram comprar roupas novas no próximo destino. O dinheiro não seria problema.

    Voaram em primeira classe para Miami, onde esperaram duas horas pelo voo para Amsterdão. O noticiário do avião na primeira classe era precisamente da CNN e do Financial News. Assistiram divertidos à cobertura do veredicto em Biloxi ao mesmo tempo que Wall Street andava às voltas. Os entendidos apareciam por todos os lados. Professores de direito faziam previsões destemidas sobre o futuro da indústria tabaqueira. Analistas do mercado de acções ofereciam inúmeras opiniões, cada uma opondo-se à anterior. O juiz Harkin não tinha nada a comentar. Cable não foi encontrado. Rohr emergiu finalmente do escritório e assumiu todo o mérito pela vitória. Ninguém sabia de Rankin Fitch, o que era uma pena, porque Marlee queria vê-lo sofrer.

    Visto daqui, o seu timing fora perfeito. O mercado atingira o preço mais baixo logo após o crash bolsista, e no final do dia a Pynex manti-nha-se firme nos quarenta e cinco.

    De Amsterdão voaram para Genebra, onde alugaram uma suite num hotel durante um mês.

     

    Fitch abandonou Biloxi três dias após o veredicto. Voltou para casa em Arlington e para a sua rotina em Washington. Embora o futuro como director do Fundo fosse agora duvidoso, a sua pequena e anónima firma tinha trabalho suficiente não relacionado com as tabaqueiras para se manter no activo. Mas nada que se aproximasse, em termos de rendimentos, ao que o Fundo lhe pagava.

    Uma semana depois do veredicto, encontrou-se com Luther Vande-meer e D. Martin Jankle em Nova Iorque e confessou todos os pormenores do contrato que fizera com Marlee. Não foi uma reunião nada agradável.

    Conferenciou também com um grupo de advogados implacáveis para descobrir a melhor forma de contestar o veredicto. O facto de Easter ter desaparecido imediatamente após o final julgamento era suspeito. Herman Grimes já tinha concordado em enviar a sua ficha médica. Não havia nenhum sinal de enfarte iminente. Estava perfeitamente saudável e em forma até àquela manhã. Lembrava-se de ter sentido um gosto estranho no café e de repente estava caído no chão. O coronel na reserva Frank Herrera assinou uma declaração ajuramentada, afirmando que o material não autorizado encontrado debaixo da sua cama não lhe pertencia. Não tinha recebido quaisquer visitas. A Mogul não era vendida em quiosque nenhum ao pé do motel. O mistério que envolvia o veredicto tornava-se mais complicado a cada dia que passava. Os advogados de Nova Iorque não sabiam do contrato com Marlee, e nunca saberiam.

    Cable tinha preparado um requerimento pedindo autorização para entrevistar os jurados, uma ideia que aparentemente agradava ao juiz Harkin. De que outro modo podiam descobrir o que tinha acontecido na sala dos jurados? Lonnie Shaver estava especialmente ansioso para

    contar tudo. Recebera a sua promoção e estava pronto para defender a indústria americana.

    Havia, pois, esperança para os esforços pós-julgamento. O processo de apelo seria longo e árduo.

    Quanto a Rohr e ao grupo de advogados que contribuíram para o caso, o futuro estava repleto de oportunidades chorudas. Organizaram uma equipa para atender o fluxo de telefonemas provenientes de outros advogados e potenciais vítimas. Instalaram mesmo uma linha telefónica colectiva. Estavam a considerar a hipótese de pôr acções.

    Wall Street parecia ter mais simpatia por Rohr do que pelas tabaqueiras. Nas semanas que se seguiram ao veredicto, a Pynex não conseguiu chegar aos cinquenta dólares e as outras três caíram pelo menos vinte por cento. Grupos anti-tabagistas previam abertamente a falência e a morte da indústria tabaqueira.

    Seis semanas depois de deixar Biloxi, Fitch almoçava sozinho num pequeno restaurante indiano perto do Dupont Circle, em D.C. Estava debruçado sobre um prato de sopa picante, sem tirar o sobretudo porque nevava lá fora e estava frio mesmo dentro do restaurante.

    Ela apareceu do nada, como um anjo caído do céu, tal como tinha aparecido no terraço no último andar do St. Regis, em Nova Orleães, há mais de dois meses.

    - Viva, Fitch - disse e ele deixou cair a colher.

    Olhou em volta para o restaurante escuro e viu apenas um grupo de indianos inclinados sobre pratos de sopa quente, nenhuma palavra em inglês num raio de doze metros.

    - O que é que estás aqui a fazer? - perguntou ele, sem mexer os lábios.

    A gola de peles do casaco emoldurava-lhe o rosto e Fitch lembrou--se de como Marlee era bonita. O cabelo parecia ainda mais curto.

    - Passei só para dizer olá.

    - Já disse.

    - E o dinheiro está a ser-lhe devolvido neste momento. Estou a depositá-lo na conta do Hanwa, nas Antilhas Holandesas. Os dez milhões, Fitch.

    Fitch não tinha palavras para responder a isto. Estava a olhar para o belo rosto da única pessoa que conseguira derrotá-lo. E ela continuava a ser um mistério.

    - É muita bondade sua - disse ele.

    - Pensei em distribuir o dinheiro, sabe, dá-lo àqueles grupos anti- tabagistas. Mas acabámos por decidir o contrário.

    - Nós? Como vai o Nicholas?

    - Tenho a certeza de que sente falta dele.

    - Profundamente. - Está óptimo. -Então, estão juntos? -Claro.

    - Pensei que tivesse agarrado no dinheiro e fugido.

    - Que disparate, Fitch.

    - Não quero o dinheiro.

    - Óptimo. Então doe-o à Associação Americana do Pulmão.

    - Não é o meu tipo de caridade. Por que é que mo está a devolver?

    - Não é meu.

    - Então descobriu a ética e a moral, talvez mesmo Deus.

    - Esqueça o sermão, Fitch. Parece muito vazio vindo da sua boca. Nunca pensei em ficar com o dinheiro. Só queria um empréstimo.

    - Se está pronta a mentir e a trapacear, por que não aproveita também para roubar?

    -Não sou nenhuma ladra. Menti e aldrabei porque é essa a linguagem que o seu cliente entende. Diga-me, Fitch, encontrou a Gabrielle?

     

    - Sim, encontrámos.

    - E encontrou os pais dela?

    - Sabemos onde eles estão.

    - E compreende agora, Fitch?

    - Faz mais sentido, sim.

    - Eram pessoas maravilhosas. Inteligentes e vigorosos e amavam a vida. Viciaram-se os dois em tabaco quando andavam na universidade e eu vi-os lutar contra o vício até à morte. Odiavam-se por fumar, mas não conseguiam largar. Tiveram uma morte horrível, Fitch. Vi-os sofrer e sufocar até não conseguirem respirar. Era filha única, Fitch. Os seus capangas descobriram isso?

    - Descobriram.

    - A minha mãe morreu em casa, no sofá da sala de estar, porque não conseguia andar até ao quarto. Só ela e eu. - Calou-se e olhou em volta. Fitch reparou nos olhos extremamente claros. Por mais triste que fosse tudo aquilo, era incapaz de sentir simpatia.

    - Quando é que começou a pôr este plano em acção? - perguntou, engolindo finalmente uma colherada de sopa.

    - Durante o curso de graduação. Estudei economia e finanças, pensei em estudar direito e depois namorei durante algum tempo com um advogado e ouvi histórias dos processos contra a indústria tabaqueira. A ideia começou a compor-se.

    - Uma ideia verdadeiramente diabólica.

    - Obrigada, Fitch. Vindo de si, é um elogio. Ajustou as luvas, como se estivesse pronta para partir.

    - Só lhe queria dizer olá, Fitch. E ter a certeza de que sabe o que aconteceu.

    - Já acabou a vingança?

    - Não. Vamos vigiar este apelo de perto e se os seus advogados ficarem muito empolgados com o ataque ao veredicto, temos cópias das transferências do dinheiro. Tenha cuidado, Fitch. Temos orgulho naquele veredicto e estamos vigilantes.

     

    Estava agora de pé, ao lado da mesa.

    - E lembre-se, Fitch. Da próxima vez que você e os seus amigos forem a julgamento, estaremos lá.

 

                                                                                            Jonh Grisham

 

 

                      

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