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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O LABIRINTO DA BESTA / Emily Rodda
O LABIRINTO DA BESTA / Emily Rodda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LABIRINTO DA BESTA

 

Lief, de 16 anos, cumprindo uma promessa feita pelo pai antes de seu nascimento, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras preciosas do mágico Cinturão de Deltora. As pedras foram roubadas do Cinturão a fim de permitir que o desprezível Senhor das Sombras invadisse o reino. Escondidas em locais assustadores em todo o reino, elas devem ser recolocadas no Cinturão para que o herdeiro do trono possa ser encontrado e a tirania do Senhor das Sombras seja derrotada.

Os companheiros de Lief são Barda, um homem que já foi guarda do palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã, da idade de Lief, que ambos conheceram em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do Silêncio. Em suas andanças, os três

tomaram conhecimento de um movimento de resistência secreto liderado por Perdição, um misterioso homem com uma cicatriz no rosto que os salvou quando foram capturados pelos brutais Guardas Cinzentos.

Cinco pedras já foram encontradas. O topázio, símbolo da lealdade, que tem o poder de contatar o mundo espiritual e de aclarar e estimular a mente; o rubi, símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade na presença de ameaças, repele

espíritos malignos e é um antídoto para venenos; a opala, pedra da esperança, que oferece vagas imagens do futuro; o lápis-lazúli, pedra celestial, que é um poderoso talismã; os poderes da esmeralda, símbolo da honra, ainda não foram descobertos.

Seguindo o mapa desenhado pelo pai de Lief, os companheiros agora se encontram a caminho da costa e de sua próxima meta... O Labirinto da Besta. Rapidez e discrição são extremamente importantes, pois o Senhor das Sombras já tomou conhecimento

de seus feitos, e Lief descobriu que seus pais foram aprisionados.

E, agora, continue a leitura...

 

 

   Lief, Barda e Jasmine saíram da Montanha do Medo e seguiram em direção ao Rio Tor apressados e em silêncio, satisfeitos por terem as árvores para protegê-los do céu aberto. Durante vários dias, eles viajaram dessa maneira, cientes de que o inimigo poderia atacar a qualquer momento. Por várias noites, dormiram em turnos, totalmente vestidos, de armas na mão.

Em breve, atingiriam o rio. Eles sabiam que bastava acompanhá-lo para chegar à costa oeste de Deltora. Ali, em algum lugar, encontrava-se a próxima meta marcada no mapa - o terrível Labirinto da Besta. Ali, se o pai de Lief estivesse certo, encontrava-se também a sexta pedra do Cinturão de Deltora.

Contudo, os servos do Senhor das Sombras estavam atentos, esperando que os três amigos se revelassem. O Senhor das Sombras sabia que o topázio havia sido retirado das Florestas do Silêncio, que o rubi não mais se encontrava no Lago das Lágrimas, tampouco a opala, na Cidade dos Ratos. Talvez, naquele momento, ele até suspeitasse que o lápis-lazúli também tivesse sido arrebatado das mãos do terrível guardião das Dunas.

Se os Gnomos do Medo tivessem sido bem-sucedidos em enganá-lo, ele levaria algum tempo para perceber que a esmeralda já seguira o mesmo destino das outras quatro pedras preciosas. Entretanto, seus servos certamente estavam por perto naquele momento, ocultos nos contrafortes da montanha ou sobrevoando a região à procura de Barda, Lief e Jasmine. Por isso, o Labirinto da Besta e todas as estradas que levavam até ele estariam bem vigiados pelos inimigos à procura do grupo que se encaixava na

descrição que haviam recebido: um homem, um rapaz e uma garota selvagem com um pássaro preto.

Lief observou Kree, mais adiante, melancolicamente empoleirado no ombro de Jasmine ao lado de Filli. O pobre pássaro queria esticar as asas, mas seria perigoso demais que ele fosse visto no ar, pois sua presença indicava a posição deles para o inimigo. Assim sendo, ele foi obrigado a ficar perto do chão, fato que não lhe agradava nem um pouco.

"Nenhum de nós gosta disso", Lief pensou. Era desagradável correr como criaturas caçadas em meio aos rumores daquela floresta ou temer a chegada da noite. Mas não havia nada que se pudesse fazer.

Lief teve um sobressalto quando Jasmine se virou bruscamente, sacando a adaga do cinto. Kree voejou no ar, gritando. O rapaz entreviu um par de olhos negros e brilhantes e um focinho pontudo entre os arbustos. Em seguida, ouviu-se o ruído de minúsculas patas em fuga e Jasmine tornou a guardar a arma, resmungando, aborrecida.

- Agora estou com medo de minha própria sombra e enfrentando até mesmo ratos silvestres - resmungou ela, enquanto estendia o braço para Kree e continuava a caminhar pela trilha acidentada. - Não consigo me livrar da sensação de que estamos sendo observados.

- Essa mesma sensação tem me acompanhado há dias - Barda respondeu, fitando-a. - A floresta parece estar cheia de olhos.

Lief permaneceu em silêncio. Ele estava totalmente consciente do Cinturão que lhe envolvia a cintura e sentiu que quem os vigiava também estava ciente de sua existência, embora se encontrasse oculto sob a camisa e apertado sob o casaco abotoado até o pescoço. Ele estava muito mais pesado do que quando o colocara pela primeira vez, ainda vazio, em Del. Parecia que o poder e a mágica das pedras preciosas que agora preenchiam cinco de seus medalhões o pressionavam para baixo.

De repente, ouviu-se um leve grito agudo e um espadanar em algum lugar adiante. Os companheiros ficaram paralisados. O chapinhar ficou mais ruidoso e desesperado. A uma palavra de Jasmine, Kree bateu asas e voou na direção do ruído.

- Marie! Marie! - gritou uma voz esganiçada. - Ah, Marie!

- O que foi isso? - sussurrou Lief. - Barda, depressa! Parece que...

- Precisamos ter cuidado - Barda aconselhou. - Pode ser um truque. Espere...

Mas Kree já retornava, gritando, apressado.

- Alguém caiu na água! - exclamou Jasmine. - Alguém está se afogando!

Eles começaram a correr, os pés martelando na trilha estreita, o som da voz desesperada ficando mais alto e esganiçado a cada momento, o espadanar diminuindo cada vez mais.

Os amigos dispararam por entre as últimas árvores até um amplo banco de fina areia branca. O rio se estendia cintilante diante deles, fundo e de águas rápidas. Uma garotinha de uns 6 anos de idade estava sendo arrastada pelas águas, na parte rasa do rio, e se agarrara a um galho de árvore. Era ela quem gritava, estendendo inutilmente a mão para outra criança que se debatia num ponto mais profundo ao lado de uma balsa virada.

Em segundos, Lief e Barda livraram-se das botas e espadas e atiraram-se na água.

- Pegue a mais próxima da borda - gritou Barda sobre o ombro, enquanto dava braçadas na direção da balsa. - Depressa, Lief, ou a perderemos. A correnteza é muito rápida.

Lief movimentou-se com dificuldade até onde a criança se encontrava e conseguiu apanhá-la antes que fosse arrastada para longe. A menina agarrou-se a ele freneticamente quando Lief a ergueu nos braços. O corpo dela estava gelado. A água batia no peito de Lief enquanto lutava para voltar à margem.

- Marie! - soluçava a garota, tremendo e se esforçando para olhar para onde estava a balsa virada. - Eu caí na água. Ela tentou me ajudar e, então, caiu também. Eu consegui me segurar no galho, mas ela... Oh, onde está ela? Onde está Marie?

Lief olhou ao redor e sentiu o desânimo tomar conta dele. Barda já se encontrava perto da balsa, mas no local em que Marie se encontrava havia somente um redemoinho.

Barda respirou fundo e mergulhou. Momentos depois, ressurgiu, carregando um corpo inerte e pálido. Nadou de volta à margem com um dos braços, enquanto puxava a criança com o outro.

- Ela morreu! - gritou a outra criança.

- Não. Ela não ficou submersa por muito tempo. Ela vai ficar bem - garantiu Lief, aparentando mais confiança do que realmente sentia. Ele avançou na direção da praia, sentindo aliviado que a água ficava cada vez mais rasa à medida que subia até a margem onde Jasmine esperava com um cobertor.

- Eu cuido dela. Ajude Barda! - Jasmine ordenou bruscamente, envolvendo a menininha com o cobertor.

- Meu nome é Jasmine - Lief ouviu-a dizer quando correu para onde Barda nadava e carregava a criança imóvel e encharcada. - Estes são Filli e Kree. Como você se chama?

- Ida - disse a menina. - Eu me chamo Ida. Por favor, vamos sair de perto do rio. Não quero mais olhar para ele. Marie morreu afogada!

Lief mergulhou outra vez na água e ajudou Barda a levar a criança inconsciente até a margem. Como Ida, ela estava gelada até os ossos. Eles a deitaram no chão com suavidade. Ao ver-lhe o rosto, Lief abafou um grito de surpresa. Cabelos castanhos lisos, pele macia e dourada, rosto em forma de coração, cílios negros, longos e curvos - era uma cópia fiel de Ida, até mesmo no pequeno sinal marrom na bochecha esquerda e no vestido branco simples. Elas eram gêmeas idênticas.

O que duas meninas tão pequenas estariam fazendo no meio da mata sozinhas? Onde estavam seus pais?

Barda virou Marie de lado e inclinou-se sobre ela, a expressão séria.

- Ela está morta? - sussurrou Lief. De algum modo, o pensamento era ainda mais terrível agora que sabia que as meninas eram gêmeas. Era assustador pensar que uma delas ficaria sozinha. Ele ergueu os olhos e viu, com alívio, que Jasmine levava a soluçante Ida para longe da margem do rio, na direção das árvores.

E então, quando Jasmine deu um passo para o lado para que a menininha passasse à frente na trilha, Lief percebeu um leve movimento na vegetação rasteira próxima. Antes que pudesse se mover ou gritar, ele ouviu um som metálico e uma flecha cruzou o ar.

A arma atingiu Ida nas costas. Ela se encolheu e caiu para a frente sem emitir um grito sequer. Lief saltou na direção do atacante com um brado de indignação. Sua espada encontrava-se fora de alcance, mas ele não deu atenção ao fato. Ele estava zangado e chocado o bastante para lutar de mãos vazias.

Lief arrancou os arbustos que serviram de esconderijo e atirou-se sobre o rapaz de cabelos escuros que ali se encontrava agachado. Com um golpe, arrancou-lhe a arma mortal da mão e derrubou-o no chão. O assassino caiu pesadamente, batendo o rosto no chão e ali permaneceu, os braços encolhidos sob o corpo, gemendo de dor. Lief correu para apanhar a espada. Seus ouvidos pareciam rugir, pois havia ódio em seu coração quando ele se virou.

Gemendo, o garoto virou-se de costas. Ele tentou se erguer, mas caiu novamente, o rosto crispado, segurando o braço.

- Você não percebeu... elas são Ols! Ols! - ele gritou.

Então, Lief ouviu o grito gorgolejante de Barda e o brado de Jasmine e ergueu os olhos.

O corpo de Ida tinha desaparecido. E Marie, a pequena Marie, erguia-se na areia, arrastando Barda pelo pescoço, os dedos brancos enterrados profundamente em sua carne. Os lábios dela estavam arreganhados e seu corpo começou a borbulhar, a esticar e a crescer até se transformar numa imensa sombra branca ondulante com um sinal escuro no centro e uma enorme cabeça em ponta, como a assustadora chama de uma vela. Os olhos do monstro estavam vermelhos como fogo e a boca era um buraco negro destituído de dentes, mas ele riu como uma criança quando Barda cambaleou para trás e caiu no chão.

Abafando um grito, aterrorizados, jasmine e Lief se adiantaram desferindo golpes, tentando atingir o monstro e afastá-lo de Barda, porém a massa fria e oscilante se encolhia e recuperava a forma. O monstro vacilava, mas não libertava sua presa.

- O coração! - avisou o garoto ferido. -Atinjam o coração! Matem-no sem piedade ou ele vai matar seu amigo!

- Já o ferimos no coração - devolveu Jasmine. - Ele não cai. Rosnando, o monstro virou-se para ela. Com um grito, Jasmine foi violentamente atirada para o lado pela imensa criatura branca.

- Agora, Lief! Atinja-o no lado direito! - gritou o menino. - O coração dele fica do lado direito!

Lief enterrou a espada no corpo do monstro com todas as forças. A criatura estremeceu e caiu por terra, uma massa disforme e retorcida com membros, caras, garras e orelhas que se arqueava terrivelmente aqui e ali. Horrorizado diante da cena repugnante, Lief reconheceu o rosto de Marie, o focinho pontiagudo de um rato silvestre, a asa de um pássaro... E, no final, restou somente uma massa branca e borbulhante, que era tragada pela areia diante de seus olhos.

Barda estava caído no chão, tremendo e tossindo, a respiração irritando-lhe a garganta. As marcas vermelho-escuras deixadas pelos dedos da criatura em seu pescoço estavam ficando arroxeadas. Mas ele estava vivo.

- Ele teve sorte. Mais um minuto e teria sido tarde demais. Lief virou-se e viu que o garoto que atacara tinha conseguido erguer-se e fora para o seu lado. Ele ouviu Jasmine exclamar e fitou-o. Ela olhava o rapaz perplexa.

- É você! - disse ela. - O garoto que serviu as bebidas nos Jogos de Rithmere. Você faz parte do bando de Perdição. Você é Dain!

O garoto assentiu com um gesto rápido, aproximou-se de Barda mancando e examinou-o.

- Seu amigo precisa ficar aquecido - aconselhou. - Ele está molhado e os ataques de um Ol deixam a pessoa enregelada até os ossos.

Ele se afastou e devagar dirigiu-se para as árvores.

Lief apressou-se em acender uma fogueira e aquecer água para um chá enquanto Jasmine correu a buscar mais cobertores. Quando Dain voltou arrastando uma pequena mochila, o braço ferido apoiado numa tipóia rústica, Barda já se encontrava envolto nas cobertas, sentado perto de um fogo crepitante. O forte tremor havia acalmado e a cor retornava ao seu rosto.

- Obrigado - disse ele a Dain, com voz rouca. - Se não fosse por você... - Ele estremeceu e levou a mão à garganta.

- Não tente falar - aconselhou Dain. E então se voltou para Lief e lhe estendeu um jarro com a mão sã. - Uma bebida quente adoçada com isto irá ajudá-lo. Ele fortalece e alivia a dor. É muito poderoso e uma colher das de sopa deve ser suficiente.

O jarro exibia um pequeno rótulo escrito à mão.

MEL ASAS RADIANTES

Lief abriu a tampa e cheirou o seu conteúdo dourado, assimilando o doce aroma de flor de maçã. - Asas Radiantes - murmurou ele, fitando Dain. - As iniciais são interessantes, mas o nome em si é comum. Na verdade, tão comum que acho que é falso.

- Tão falso quanto os nomes que vocês deram nos Jogos de Rithmere, Lief - respondeu o garoto sem titubear. - Estes são tempos difíceis. Vocês não são os únicos que precisam ser cuidadosos.

Lief assentiu, dando-se conta de que ele os ouvira usar os próprios nomes antes do ataque dos Ols. Tinha sido um azar, mas nada havia a fazer.

Ele apanhou uma caneca de chá e derramou um pouco de mel na infusão quente e ofereceu-a a Barda, que envolveu a caneca com ambas as mãos e sorveu o líquido, agradecido.

- O que são esses Ols? - indagou Jasmine, ao passar uma caneca de chá para Dain.

- Seres mutantes vindos das Terras das Sombras - esclareceu Dain, dissolvendo uma colher de mel na sua bebida. - O Senhor das Sombras os usa para realizar esse trabalho maligno. Talvez eu não devesse me surpreender por vocês nunca terem ouvido falar deles. Eles são mais comuns aqui, no Oeste, do que no Leste, de onde vocês vieram.

Ele fez uma pausa e observou-os calado. Barda, Lief e Jasmine permaneceram impassíveis. Estaria Dain pensando que eles cairiam numa armadilha tão óbvia?

Dain soltou uma gargalhada e inclinou-se para desenhar na areia.

A marca da Resistência. Os companheiros a observaram em silêncio e depois se entreolharam.

- Estamos do mesmo lado, não é? - indagou Dain com franqueza, inclinando-se para a frente, repentinamente deixando de lado a atitude de camaradagem. - Que importância tem que eu saiba onde vocês moram? Perdição diz que...

- Como você veio parar aqui? - interrompeu Jasmine, ríspida.

- Como nos encontrou?

Dain recuou, e sua expressão ficou séria mais uma vez.

- Eu não estava procurando vocês. Estava voltando para a nossa fortaleza, no Oeste, quando vi os Ols. Eu os conheço muito bem. Os Ols de Grau Um são imaturos e não conseguem manter a mesma forma durante muito tempo. É fácil reconhecê-los quando se sabe o que procurar. Eu os segui, esperando uma oportunidade para destruí-los. E então, de repente, vocês apareceram, e os Ols ficaram muito interessados.

Dain fez uma pausa.

- Eles vinham seguindo vocês há dias - acrescentou com frieza.

- Assumiram a forma de ratos silvestres e vigiaram todos os seus movimentos, ouviram o que diziam a fim de decidir como iriam agir. No final, escolheram apelar para a sua compaixão. Depois de separá-los, poderiam atacar. E vocês não teriam nenhuma chance.

Lief, Jasmine e Barda se entreolharam embaraçados.

- Nós lhe agradecemos por nos ajudar - disse Barda por fim, meio sem jeito. - Peço que nos perdoe por nossas suspeitas e reservas. Aprendemos a ser cautelosos.

- Assim como eu - retrucou Dain, ainda com voz áspera -, embora, por um momento, tenha baixado a guarda pelo prazer de ver rostos conhecidos.

De repente, Lief se deu conta de que o garoto era mais velho do que imaginara - tinha pelo menos a sua idade. O corpo franzino, o rosto magro e a maciez dos cabelos escuros que lhe caíam descuidadamente sobre a testa o haviam enganado.

Dain tomou o último gole de chá e se ergueu desajeitado, protegendo o braço ferido.

- Vou deixá-los em paz. Fiquem atentos aos Ols. Os de Grau Um, como os que acabam de derrotar, sempre viajam aos pares. Os outros, bem... vocês provavelmente não vão reconhecê-los. É melhor não confiarem em ninguém.

Ele ajeitou a mochila nas costas e virou-se para partir.

- Espere! - chamou Lief num impulso, erguendo-se de um salto.

- Você não pode viajar sozinho! Seu braço está ferido. Não vai conseguir usar o arco, nem mesmo a adaga.

- Vou ficar bem - assegurou Dain. - Não tenho de ir muito longe.

- Espere uma noite e nós o escoltaremos - ofereceu Barda, a voz rouca, a mão na garganta. - É o mínimo que podemos fazer.

Lief viu Jasmine enrijecer. Ficou claro que ela não aprovava o plano. De repente, ele se deu conta de que ela não queria rever Perdição, pois desconfiava dele. Mas ela nada disse, e Dain pareceu não lhe notar a expressão.

Ele hesitou. Era óbvio que seu orgulho, que o instava a deixá-los, lutava contra o bom senso, que lhe dizia que seria loucura viajar desprotegido.

- Muito bem - concordou ele, afinal, deixando cair a mochila.

- Agradeço. Vou esperar, e então iremos juntos até a fortaleza. - Ele fez uma pausa e mordeu o lábio. - Fica a Sudoeste, fora do caminho de vocês.

- Como sabe disso? Não lhe dissemos para onde vamos - disparou Jasmine com rispidez.

- Pensei que talvez vocês estivessem viajando para... para Tora - balbuciou Dain, o rosto delicado enrubescido.

Jasmine olhou-o fixamente. O nome nada significava para ela. Lief, porém, forçava a memória.

Tora! A grande cidade-irmã de Del, no Oeste. Ele aprendera sobre ela, mas há tanto tempo não ouvia esse nome que tinha se esquecido de sua existência.

Dain, inclinando-se para a frente, aguardava uma resposta ansioso.

- É isso mesmo - respondeu Barda devagar. - Bem, se estamos indo para Tora, não nos fará mal chegar lá um dia ou dois depois do planejado.

- Vou procurar um lugar seguro para acamparmos nesta noite - disse Jasmine, erguendo-se. E desapareceu por entre as árvores, caminhando a passos duros, com Kree voando à sua frente. Dain seguiu-a com os olhos, e Lief percebeu uma centelha de admiração em seu olhar.

Lief sentiu uma perturbadora ponta de ciúmes, mordeu o lábio e virou o rosto. "Se ao menos não o tivesse machucado", pensou, "Dain poderia seguir seu caminho e nós, o nosso."

Imediatamente, sentiu-se envergonhado e tentou convencer-se de que só estava aborrecido porque a ida à fortaleza da Resistência demandaria um tempo precioso. Cada dia de atraso representava mais um dia em que seus pais corriam perigo, talvez sujeitos a sofrimentos, nas masmorras do Senhor das Sombras, em Del.

Contudo, para ser honesto, tinha de admitir que não queria Dain como companheiro, mesmo que por pouco tempo.

Dain o deixava pouco à vontade. Seus modos gentis e educados eram cativantes, sua calma tranqüilidade o fascinava e, apesar de não ser muito forte, ele agira com bravura ao salvá-los dos Ols. Contudo, apesar da aparente indiferença, Lief podia perceber que Dain ocultava algo. Algum segredo que não dividia com ninguém.

"Não é de surpreender que ele sinta o mesmo em relação a nós", refletia Lief. "E ele tem razão, é claro. Ou seja, não confiamos um no outro. Essa é a raiz do problema. Enquanto estivermos com Dain, não poderemos discutir nossa busca ou falar

sobre o Cinturão. Não poderemos falar sobre meus pais ou comentar em voz alta como estão passando. Não podemos ficar à vontade."

Inquieto, não querendo mais ficar perto do fogo com Dain e Barda, Lief foi ajudar Jasmine. Mas, ao caminhar para as árvores, outra idéia lhe ocorreu.

O destino já lhes pregara estranhas peças no passado e, de um jeito ou de outro, o resultado sempre tinha sido positivo para eles. Haveria alguma razão para que se vissem obrigados a manter Dain em sua companhia? Estaria escrito, de alguma forma, que eles deveriam conhecê-lo? Estaria escrito que eles deveriam ir à fortaleza da Resistência? Reencontrar Perdição?

Somente o tempo poderia dizer.

Depois de instalados sob a árvore frondosa que Jasmine encontrara, Dain lhes contou mais sobre os Ols. Ao ouvir-lhe a voz suave e tranqüila, Lief começou a sentir que, se tinha havido um motivo especial para encontrá-lo, aquelas informações por si só representavam um bom motivo.

- Eles estão em toda parte - disse Dain, aconchegando-se melhor sob o cobertor. - Eles podem assumir a forma de qualquer ser vivo. Não comem, não bebem, mas os de Grau Dois podem fingir que o fazem, já que conseguem criar calor corporal a fim de disfarçar quem são. Em seu estado natural, todos os Ols possuem a marca do Senhor das Sombras em seu cerne e, seja qual for a forma que assumam, a marca estará em alguma parte de seu corpo, de algum jeito.

- As gêmeas, os Ols que matamos, tinham um sinal no rosto - Lief lembrou. - Era isso?

- Mas não pense que será sempre tão fácil - advertiu Dain, assentindo. - Ols do Grau Dois são muito mais experientes. Eles nunca terão o sinal assim visível.

- Então, você está dizendo que reconhecer um Ol de Grau Dois é simplesmente uma questão de sorte? - Barda ajuntou preocupado.

- Há uma forma de testá-los - disse Dain, sorrindo levemente. - Eles não conseguem manter a mesma forma por mais do que três dias. Se você observar um Ol de Grau Dois e nunca o perder de vista, haverá um momento em que ele perderá o controle e a sua forma começará a mudar e a oscilar. Nós chamamos esse momento de Tremor. Ele não dura muito e em segundos o Ol recupera o controle. Mas, a essa altura, você já saberá quem ele é.

Dain demonstrava sinais de cansaço e abraçava o peito com o braço são como se a dor o estivesse perturbando.

- Há pessoas em Deltora que não precisam esperar pelo Tremor. Elas desenvolveram um instinto, uma percepção que adivinha a presença de um Ol. Pelo menos, é o que Perdição diz. Quando ele sente a presença de um Ol, não espera para atacar. E ele acerta sempre.

- Dificilmente poderemos seguir o exemplo dele - Barda murmurou. - Matar com base em mera suspeita é um negócio arriscado.

Dain assentiu e desta vez o seu sorriso foi mais largo e franco.

- Concordo. Para gente como nós, a suspeita deve ser um sinal para correr e não para atacar.

- Correr? - Jasmine retrucou furiosa.

Dain corou diante do desdém da voz de Jasmine e seu sorriso esmoreceu.

- Vejo que a idéia a desagrada, Jasmine. Você e Perdição pensam da mesma forma, mas certamente é melhor correr do que matar uma pessoa inocente.

- Ou, se as suspeitas se confirmarem - Barda acrescentou -, ser espionado pelo Ol à vontade, ou ser morto quando menos espera. Depois que aqueles dedos gelados apertam a sua garganta, você fica impotente. Pode acreditar no que eu digo, Jasmine.

- Ele tocou de leve a garganta ferida.

Jasmine ergueu o queixo obstinadamente e voltou-se para Dain.

- Você falou dos Ols de Grau Um e de Grau Dois. Existem outros?

- Perdição diz que há outros... - Dain respondeu com relutância, depois de um momento de hesitação. - Ele diz que há Ols de Grau Três. Ele diz também que eles são poucos, mas que neles o Senhor das Sombras aperfeiçoou a arte da maldade. Eles podem mudar para qualquer forma que desejaram, seja de ser vivo ou inanimado. Eles são tão perfeitos, tão bem controlados que ninguém é capaz de dizer quem realmente são. Nem mesmo Perdição.

- Então, como ele sabe que existem? - replicou Jasmine.

Lief observou fascinado quando uma expressão de desânimo invadiu o rosto de Dain e este mordeu o lábio. O que o estaria perturbando?

- E então? - insistiu Jasmine, ao também perceber-lhe a hesitação.

- Perdição diz que... ele diz que tomou conhecimento deles nas Terras das Sombras - balbuciou o rapaz.

Lief sentiu-se paralisar. Foi como se as peças de um quebra-cabeça se encaixassem em seus devidos lugares. De repente, ele estava vendo um túmulo perto de um riacho coberto pela vegetação. No instante seguinte, estava de volta à caverna na Montanha do Medo, lendo as palavras rabiscadas com sangue.

- Dain, você acredita em Perdição quando ele diz que esteve nas Terras das Sombras? - indagou Lief.

- Acreditar como? - respondeu o rapaz, o olhar confuso. - Ninguém escapa das Terras das Sombras. E, no entanto, Perdição nunca mente. Nunca!

- Ele mente sobre seu nome! - revelou Jasmine.

- O que você quer dizer? - Dain estava muito pálido. Ele parecia exausto e seu rosto estava coberto de suor e exibia uma expressão sombria. Ele oscilou.

Lief segurou-o antes que caísse. Barda encontrou o jarro de mel, empurrou uma colher de seu conteúdo entre os lábios fechados de Dain e rapidamente a cor voltou ao rosto do rapaz. Lief deitou-o gentilmente no chão e cobriu-o com o cobertor.

- Não se preocupe, Dain. Qualquer que seja o verdadeiro nome de Perdição, ele não mentiu para você. Ele esteve nas Terras das Sombras e, de algum modo, escapou. Talvez você não acredite. Mas eu, sim.

Ele percebeu um movimento nas pálpebras de Dain. O rapaz abriu os lábios como se tentasse falar.

- Voltaremos a falar desse assunto com o próprio Perdição - sussurrou Lief. - Por ora, tente descansar. Amanhã, você vai precisar de todas as suas forças.

Dois dias longos e difíceis se seguiram - dias em que o respeito de Lief por Dain aumentou. A queda que o rapaz sofrerá não só lhe deslocara o braço como também lhe quebrara várias costelas. No segundo dia, eles escalaram colinas cobertas de rochas.

Cada passo dado deve ter causado a Dain muita dor, mas ele não se queixou. Somente o olhar revelava seu sofrimento.

Já não se podia ver o rio.A Montanha do Medo erguia-se escura e proibitiva no horizonte distante. Por duas vezes, ao olhar para trás, Lief viu a figura de um imenso e grotesco Ak-Baba circundando a montanha, procurando vestígios dos viajantes abaixo.

De muitas maneiras, aquele era um bom sinal, pois significava que o Senhor das Sombras, apesar de todo o seu poder, não percebera que os companheiros haviam recuperado a pedra da Montanha. Contudo, a presença do Ak-Baba, mesmo à distância, tornou

mais premente a necessidade de viajarem em segredo. À medida que o terreno se tornava mais acidentado e as árvores frondosas davam lugar a arbustos esparsos e enormes matacães, eles se viram obrigados a andar curvados, às vezes avançando com dificuldade em fila única.

Dain não proferia uma palavra há muitas horas e parecia usar toda a sua energia somente para caminhar. "Como ele teria se saído sozinho?", pensou Lief ao observar as costas curvadas do garoto à sua frente e ao ouvir-lhe a respiração ofegante enquanto avançava com dificuldade.

- Acho que Dain precisa de um descanso - disse ele em voz baixa.

Barda e Jasmine pararam de imediato, mas Dain virou-se um pouco e sacudiu a cabeça.

- Precisamos chegar a um lugar seguro. Então, poderemos descansar. Não estamos longe... - o rapaz insistiu, arfando, pressionando as costelas com o braço não machucado. - Fica bem ali acima... numa fenda do rochedo. Então... há três arbustos alinhados e... a entrada de uma caverna fechada por uma pedra. Há uma senha...

A voz dele enfraqueceu. E, então, sem qualquer aviso, ele caiu pesadamente ao chão.

Os três amigos curvaram-se sobre o rapaz e chamaram-no pelo nome, mas ele não despertou. Até mesmo o resto do mel não o reanimou.

O sol se punha no horizonte e começava a escurecer.

- Precisamos levá-lo a um abrigo - Lief disse. - Outra noite ao relento...

- Ele disse que a fortaleza estava próxima - murmurou Barda. - Vou carregá-lo o resto do caminho. - Ele ergueu o garoto inconsciente com delicadeza e eles continuaram a escalada.

Não demorou para que encontrassem uma profunda fenda na rocha, semelhante a uma estreita passagem. O grupo arrastou-se por ela com dificuldade e, logo adiante, conforme Dain informara, avistaram três arbustos alinhados que apontavam um matacão recostado à rocha. Este parecia bastante natural, como se tivesse caído ali por acaso, mas eles perceberam que a grande pedra disfarçava a entrada da fortaleza.

- Está bem escondida - disse Barda. - Se não soubéssemos onde procurar, teríamos passado direto. - Ele se aproximou da grande rocha e examinou-a, procurando meios de movê-la para o lado.

- É estranho que não haja nenhum vigia - murmurou Jasmine, olhando ao redor com a mão na adaga. - Eles com certeza estão aguardando o retorno de Dain. Como ele iria entrar?

Lief também olhou à sua volta e viu uma tira de papel jogada sob o último dos arbustos, presa a um galho, certamente trazida pelo vento. Ele a apanhou e a examinou.

 

"ATIREM NOS INIMIGOS LOGO"

 

- Alguém foi descuidado - disse ele contrariado, mostrando o bilhete aos amigos.

- Parece que eles estão esperando problemas - Barda conjeturou.

- Ou estão esperando por nós - ajuntou Jasmine. - Temos somente a palavra de Dain de que isto é a fortaleza da Resistência. Pode ser uma armadilha.

- Logo saberemos.

Lief apanhou um galho firme, dirigiu-se ao matacão, bateu nele com força, ao mesmo tempo em que chamava:

- Olá! Somos amigos e queremos entrar.

Nenhum ruído se ouviu atrás da rocha, mas Lief teve a forte sensação de que havia alguém do outro lado. Ele bateu novamente.

- Perdição, escute! Nós somos os viajantes que você salvou dos Guardas Cinzentos perto de Rithmere. Dain está conosco. Ele está ferido e precisa de ajuda.

- Qual é a senha de hoje? - indagou uma voz profunda e abafada. Surpreso, Lief recuou. Era como se a própria rocha tivesse falado, mas então ele percebeu que o som tinha vindo por uma pequena fresta à direita do matacão. Como os gnomos da Montanha do Medo, a Resistência tinha vigias em suas paredes.

- Quero falar com Perdição! - gritou.

- Perdição não está aqui - a voz respondeu. - Qual é a senha? Responda ou morre.

Barda aproximou-se mais da pedra.

- Você está louco? - gritou ele - Não somos inimigos! Somos conhecidos de Perdição. E, se você pudesse nos ver, saberia que seu amigo está conosco.

- Nós podemos ver vocês, acredite - respondeu a voz atrás da rocha. - Há uma dezena de armas apontadas para vocês neste momento. Não se mexam.

Perplexos, os companheiros olharam ao redor e não conseguiram ver ninguém. Jasmine deu um passo para trás. Uma bola de fogo espatifou-se no chão ao lado dela, cobrindo-a de faíscas que ela apagou freneticamente.

- Eu lhes disse para não se mexerem! - a voz repetiu. - Assumam o risco, se o fizerem.

- Chame Neridah e Glock! - gritou Jasmine, a voz assustada. - Sei que eles estão com vocês. Perdição os salvou dos Guardas Cinzentos, assim como nos salvou. Eles vão nos reconhecer.

Ouviu-se o som de uma gargalhada profunda.

- Pode ser, não duvido. Mas por aqui não confiamos somente nas aparências. É por esse motivo que usamos uma senha. Vocês a têm, ou não?

- Claro! -respondeu Lief.

- Lief! -sussurrou Jasmine.

- Se eu dissesse que não, eles nos matariam - Lief devolveu no mesmo tom. - Eles acreditariam que somos Ols.

- Assim que descobrirem que estamos mentindo, vão nos matar de qualquer jeito. - Jasmine fechou os punhos com força, frustrada e zangada. - Isso é loucura!

- Dain mencionou uma senha - Lief começou desesperado. - Mas ele não poderia saber a senha do dia, já que esteve fora por tanto tempo. Ele deve ter planejado descobri-la quando chegasse aqui. E, se ele tinha condições de fazer isso, nós também temos. Deve haver um código, um sinal...

- Onde? - indagou Jasmine.

- Talvez eles levem uma lista consigo em que há uma palavra marcada para cada dia - opinou Barda.

- Isso certamente seria muito perigoso, mas... - Ele jogou a mochila de Dain ao chão e rapidamente começou a examiná-la. Contudo, como imaginara, não encontrou nada escrito - apenas suprimentos de viagem, algumas mudas de roupa e o jarro vazio de mel.

Asas Radiantes.

Ele apanhou o jarro e olhou-o fixamente. De repente, uma idéia formou-se em sua mente. Remexeu o bolso à procura do bilhete que encontrara preso ao arbusto.

- Estou ficando cansado desse jogo. Você tem dez segundos para responder! - gritou a voz por detrás da rocha. - Um, dois...

- Espere! - gritou Lief. Seus dedos se fecharam sobre o bilhete. Ele o tirou do bolso e o releu rapidamente, esperando, apesar das probabilidades em contrário, que estivesse certo. As palavras escritas dançavam-lhe diante dos olhos.

ATIREM NOS INIMIGOS LOGO

Sim! O que vira ali não podia ser apenas sorte. Era isso mesmo. Com toda a certeza. Ele respirou fundo e deixou cair o papel.

- A senha é... "anil" - gritou.

- Lief, como pode saber disso? - sussurrou Barda. - O que...

Ele parou de falar quando, lentamente, o matacão que ocultava a entrada da fortaleza começou a ser rolado para o lado e um facho de luz escapou pela fresta da caverna do outro lado.

À entrada, estava um homenzinho magro que vestia uma estranha coleção de vestimentas de todas as cores do arco-íris. Sob o gorro de lã listrado, o cabelo grisalho trançado com penas pendia até a cintura.

Lief sentiu Barda sobressaltar-se, mas não havia tempo para perguntar-lhe o que estava acontecendo, pois o homenzinho sorria, exibindo dois ou três dentes tortos e uma ampla gengiva cor-de-rosa.

- Você não teve a menor pressa! - disparou com uma voz profunda e poderosa que em nada combinava com a sua aparência. - Você se diverte brincando com a morte? Faltou muito pouco para que eu desse a ordem para disparar.

O homenzinho espiou a figura desfalecida nos braços de Barda.

- Então o garotinho se meteu numa aventura e se saiu mal! Ora, ora, quem diria? Justo ele, sempre tão cuidadoso consigo mesmo!

Como os companheiros hesitavam, ele acenou impaciente.

- Bem, não fiquem parados aí! - exclamou. - Vocês estão deixando o frio entrar. - E voltando-se para a caverna - Thalgus! Petronne! Está tudo bem. Deixem as armas e desçam. Venham cuidar de Dain. Ele foi carregado nos braços como um bebê, o pobrezinho.

Lief e Jasmine passaram pela entrada estreita, seguidos mais lentamente por Barda. Quando este ficou sob o foco de luz, o homenzinho olhou seu rosto e soltou uma ruidosa gargalhada.

- Barda! - rugiu ele. - Barda, o urso! Quem imaginaria isso? Depois de todos esses anos. Quem diria! Pensei que você tivesse morrido! Não se lembra de mim?

- Claro que me lembro, Jinks - Barda afirmou, sorrindo meio sem jeito. - Mas este é o último lugar em que eu esperaria encontrá-lo.

Ele parou de falar quando um homem malvestido e uma mulher igualmente andrajosa, Thalgus e Petronne, provavelmente, saltaram para o chão de algum ponto acima da soleira da porta. Barda permitiu que eles lhe tomassem Dain dos braços e então virou-se para Lief e Jasmine.

- Jinks era um dos acrobatas do palácio de Del - ele exclamou, a voz inexpressiva. - Ele me conhecia bem, quando fui um dos guardas do palácio.

- Um guarda do palácio? Que é isso! O mais forte e corajoso de todos, essa é a verdade! - Jinks tagarelava, seguindo Petronne e Thalgus enquanto levavam Dain para uma caverna maior de onde vinha o murmurar de várias vozes. - Mas, Barda, ouvi dizer que todos os guardas foram mortos no dia da chegada do Senhor das Sombras. Como você escapou à matança?

- Por sorte, saí do palácio antes de ela começar - Barda murmurou. - E você?

- Os invasores não deram atenção aos palhaços e acrobatas - esclareceu o homenzinho, franzindo o nariz. - Para eles, não éramos mais importantes do que cachorrinhos. Eles nos deixaram partir à vontade. Pulamos os muros enquanto eles derramavam o sangue dos nobres, assassinavam os guardas do palácio e punham tudo abaixo ao procurar nossos corajosos rei e rainha, que estavam escondidos em algum lugar, tremendo em suas botas de ouro.

Ele sorriu novamente e, desta vez, o sorriso tinha um toque de malícia.

- Pois, então, você conseguiu escapar bem a tempo de se salvar! Barda, o Urso! - grunhiu o homenzinho. - Muito esperto! Os seus colegas foram mortos defendendo o palácio, mas você, não! Deve estar muito orgulhoso de si mesmo.

Lief olhou rapidamente para Barda e notou que o rosto dele exibia uma dura expressão de sofrimento.

- Barda não sabia o que estava acontecendo naquele dia! - exclamou zangado. - Ele deixou o palácio na noite anterior porque sua mãe tinha sido assassinada e ele temia ser o próximo.

- Não faz mal, Lief - murmurou Barda. Ele se virou para Jinks, e Lief percebeu que ele estava se controlando para falar com educação.

- Você me faria um grande favor se não voltasse a falar de meu passado a ninguém mais, Jinks. Prefiro manter isso em segredo.

- Ora, mas claro, Barda! - o homenzinho garantiu, os olhos arregalados. - Entendo a sua posição, o que não acontece com o seu jovem amigo. Estes são tempos difíceis e nem todos podem ser heróis. Ora, eu mesmo sou o maior covarde do mundo!

- Eles chegaram à entrada da caverna maior e Jinks se afastou, gesticulando graciosamente para que entrassem. E, quando Barda passou por ele, acrescentou: - Veja bem, eu não finjo ser o que não sou.

A caverna ampla era iluminada por tochas bruxuleantes e encontrava-se tomada por grupos de homens, mulheres e crianças de diferentes idades. A comida já cozinhava em diferentes fogueiras e colchões de palha forravam as paredes.

- Por que deixou que ele o chamasse de covarde? - Jasmine sussurrou para Barda, ainda zangada, ignorando os rostos que se voltavam para observar os recém-chegados. - Pois isso é o que ele está fazendo!

- Sei muito bem o que ele está fazendo - retrucou Barda sombrio, fixando o olhar à frente. - Conheço Jinks há muito tempo. Ele era um ótimo acrobata, mas nunca vi um sujeito mais fofoqueiro, invejoso, maldoso e criador de casos do que ele.

De fato, encontrá-lo aqui não foi nada bom. Por mais que tenha prometido, amanhã todos aqui saberão tudo a meu respeito.

- Dain já sabe o seu nome - lembrou Lief.

- O nome não é tão importante. Os outros detalhes...

Barda se interrompeu quando Jinks se aproximou deles apressado, batendo palmas para chamar a atenção de todos na caverna.

- Aqui estão alguns amigos que vieram se juntar a nós - anunciou. - Eles trouxeram o pobre Dain para casa. Parece que ele decidiu se aventurar por aí e deu um passo maior do que a perna.

Jinks riu em silêncio, olhando rapidamente para a figura pálida de Dain, que tinha sido colocado sobre um colchão de palha em um canto e, finalmente, começava a se mexer. Várias outras pessoas riram em resposta, e Lief sentiu-se invadir pela irritação. Ele abriu a boca para falar, mas Jasmine foi mais rápida.

- Dain nos salvou de dois Ols - informou em voz alta. - Ele foi muito corajoso.

- É mesmo? - gritou uma voz em meio à multidão. - Quem é você para falar de coragem, Birdie de Bushtown?

E, do meio da multidão, surgiu a figura afetada e enorme de Glock.

Glock estava ali, alternando sorrisos desdenhosos e olhares enfurecidos para Jasmine, os braços fortes pendendo livres ao lado do corpo, os olhos pequenos brilhando. Todos os músculos do corpo poderoso indicavam que ele estava procurando briga.

- Olá, Glock - cumprimentou a moça com calma. - Na última vez em que nos vimos, você estava sendo carregado para fora da arena de Rithmere, profundamente adormecido. Foi uma pena você não ter ficado acordado para a final.

Várias pessoas riram. Era evidente que tinham ouvido a história. O rosto rude de Glock adquiriu uma expressão sombria e pareceu inchar. Ele rugiu perigosamente e seus dedos estalaram.

Com o canto dos olhos, Lief percebeu que Jinks assistia à cena com uma expressão de perverso interesse. Então Jinks era do tipo que adorava colocar lenha na fogueira e depois se afastar e observar os resultados! Um homem perigoso... tão perigoso quanto Glock, à sua maneira.

Nesse momento, ouviram-se golpes vindos do lado de fora da caverna. Foram três pancadas leves seguidas de três batidas rápidas. Por um momento, Jinks pareceu desapontado, mas então se virou e correu para a entrada, seguido de perto por Petronne e Thalgus.

- Qual é a senha? - eles o ouviram perguntar.

- Anil! - foi a resposta. A voz soou abafada, mas Lief acreditou tê-la reconhecido. Perdição tinha retornado.

Glock, porém, não deu atenção ao que ocorria. Seu interesse ainda estava voltado para Jasmine.

- Eu teria sido o campeão, coisinha insignificante! - ele rosnou. - Se tivéssemos lutado, a sua dança e os seus saltos não teriam me enganado. Eu teria transformado você numa massa disforme com uma das mãos amarrada às costas.

- Felizmente, a sua ganância garantiu que você não tivesse a chance de tentar - retrucou ela, fitando-o com repugnância.

Glock rugiu e tentou agarrá-la. Jasmine saltou para o lado, sorrindo com desprezo quando ele cambaleou, as mãos enormes apanhando nada além de ar.

- Já chega!

Perdição encontrava-se parado, carrancudo, na entrada. Seu rosto estava marcado pela exaustão, a barba e os longos cabelos pretos emaranhados estavam cobertos de poeira, e a cicatriz irregular parecia descorada em contraste com a pele profundamente bronzeada.

- Não deve haver lutas neste lugar! - vociferou. - Glock, você já foi avisado. Mais uma explosão de raiva e será expulso da fortaleza. E então não terá mais a nossa proteção quando os Guardas Cinzentos procurarem você.

Glock se afastou, resmungando e lançando olhares perversos por cima do ombro. Ninguém emitiu um som sequer, mas Lief viu uma mulher alta cobrir a boca com a mão para ocultar um sorriso. A mulher era Neridah. Ela flagrou o olhar de Lief e o sorriso dela se tornou mais amplo e irritante. Lief desviou o olhar e enrubesceu ao lembrar a vergonha que ela o tinha feito passar na arena de Rithmere.

O olhar zangado de Perdição agora estava fixo em Jasmine.

- E você... - ele ajuntou com frieza - se souber o que é bom para você, vai controlar essa língua afiada.

No silêncio que se seguiu, ele se virou bruscamente e foi até o colchão em que Dain descansava. O garoto já tinha conseguido se sentar.

- Então, finalmente você voltou. Nós o esperávamos há dias. Por onde andou?

- Eu vi um par de Ols, Perdição - balbuciou Dain, o rosto muito vermelho. - Apenas de Grau Um. Eu os segui...

- Sozinho! - disparou Perdição. - Você os seguiu sozinho! Saiu de seu caminho, desobedeceu ordens e não chegou aqui quando era esperado.

Dain baixou a cabeça, mas Perdição não tinha terminado.

- E me disseram... - ele olhou para Jinks, que tentava, sem sucesso, parecer inocente. - Me disseram que você decidiu colocar todas as nossas vidas em perigo ao contar a esses desconhecidos que ainda não foram testados o segredo da senha.

Ouviu-se um burburinho zangado na caverna. Finalmente, Dain conseguiu falar.

- Na verdade... na verdade eu não disse nada, Perdição -garantiu o rapaz.

- E como eles conseguiram entrar? - a voz de Perdição era gelada. - Você, suponho, nem mesmo viu o bilhete de hoje. No entanto, eles conseguiram dar a senha.

- Não foi difícil descobrir - interrompeu Lief, aproximando-se depressa. - O bilhete dizia: ATIREM NOS INIMIGOS LOGO. As primeiras letras dessas palavras formam a senha ANIL.

Quando Perdição o fitou, ele deu de ombros e decidiu deixar a cautela de lado, pois não se deixaria intimidar como Dain.

- É claro que tive uma pista para desvendar o código - ele contou em voz alta. - Eu já tinha visto o rótulo do jarro de mel de Dain. "Asas Radiantes". - Ali, também, as iniciais são usadas para disfarçar a verdade. Por que vocês têm medo que todos saibam que usam o mel da Abelha Rainha?

Outro murmúrio se ouviu na multidão. Perdição gritou uma ordem e imediatamente Lief, Barda e Jasmine foram agarrados por trás por vários pares de mãos fortes. Eles lutaram inutilmente.

- O que vocês estão fazendo? - Lief disparou. - A minha foi uma pergunta inocente. Eu só estava interessado.

- Então deveria ter ficado de boca fechada - devolveu Perdição, os olhos frios como gelo. - Você tropeçou num segredo que juramos proteger. Efetuar qualquer comércio com a Resistência é proibido, e o mel Abelha Rainha é ainda mais raro e valioso do que a cidra da mesma marca. Seus poderes curativos são fantásticos. Aquela senhora tem muito a perder por nos fornecer o seu produto. Ela arrisca não apenas a própria vida como a de seus filhos.

Agora era a vez de Lief olhar intrigado. A idéia de que a mulher impetuosa que encontraram após a fuga da Cidade dos Ratos era mãe parecia muito estranha.

- Para nós, não significa nada se a Abelha Rainha fornece mel para vocês - grunhiu Barda. - Para quem contaríamos?

- Ao seu Mestre, talvez - Jinks se intrometeu, os olhinhos brilhando de excitamento. - Foi assim que conseguiu escapar do palácio, corajoso guarda Barda? Você se vendeu ao Senhor das Sombras naquela época?

Barda lançou-se para a frente furioso, mas as mãos que o prendiam puxaram-no de volta.

- Cale-se, Jinks! - ordenou Perdição. Ele fitou Barda, por um momento, pensativo.

- Então... você era guarda do palácio. O seu verdadeiro nome é Barda. E onde ficou escondido todos esses anos, Barda... antes de começar a viajar pelo país com seus jovens companheiros?

- Isso é problema meu - respondeu Barda, encontrando o olhar do interlocutor. - Prefiro guardar esse assunto para mim. Assim como, imagino, você decidiu guardar para si por onde andou naqueles primeiros anos.

- O seu paradeiro... e o seu verdadeiro nome - Jasmine acrescentou.

Perdição olhou para ela rapidamente. Apertando os lábios, ele voltou a encarar Barda.

- Você esteve em Tora? - indagou com aspereza.

Ao ouvir a pergunta, Dain, que havia estado encolhido no colchão, com a cabeça baixa, ergueu os olhos ansioso.

- Tora? - repetiu Barda, o olhar inescrutável. - Por que todos vocês parecem tão fascinados com Tora? Não, nunca estive lá em toda a minha vida.

- Levem-nos para a sala de teste - Perdição ordenou, virando-se bruscamente. - Volto a falar com eles quando os três dias tiverem passado.

- Deixe-nos partir! - gritou Jasmine, enquanto eram arrastados para a sala de teste. - Não há motivo para nos prender! Você sabe que não somos Ols. Você sabe!

- Veremos - respondeu Perdição, o queixo erguido.

Os três amigos passaram três dias exaustivos trancados na pequena caverna fortemente iluminada que Perdição chamava de "sala de teste". Havia uma janela com barras na pesada porta de madeira e sempre havia um rosto espiando através dela, observando todos os seus movimentos.

Os seus pertences encontravam-se com eles. Nem mesmo as armas lhes tinham sido tiradas. Bandejas de comida eram empurradas por baixo da porta e eles dispunham de bastante água. Mas não havia privacidade, escuridão ou paz.

No terceiro dia, até Barda estava entrando em desespero. Jasmine havia se encolhido sobre um catre, as mãos cobrindo o rosto. Kree pousara em um canto da cela, as asas caídas. Lief andava pelo aposento agoniado e impaciente, sentindo o tempo passar.

Ele amaldiçoou o dia em que haviam encontrado Dain e, então, lembrou que, se não fosse por ele, todos os três estariam mortos. Ele amaldiçoou a suspeita de Perdição e, então, lembrou-se da própria perplexidade quando a doce Marie se transformou num monstro assassino.

Contudo, Dain não dissera que Perdição podia pressentir a presença de um Ol? Nesse caso, ele sabia muito bem que ele, Barda e Jasmine eram o que pareciam ser. Por que motivo, então, os mantinha ali?

Ele quer nos manter junto dele. O teste de três dias é um pretexto, algo que os outros na caverna irão aceitar e compreender. Ele quer saber quais são as nossas intenções. Ele espera que ao final desse período contemos a ele.

A idéia surgiu nítida na mente de Lief. Ele sabia que era a verdade.

"Bem, você está enganado, Perdição, ou seja lá qual for seu nome", pensou Lief irritado. "Nunca lhe contaremos sobre a nossa causa. E isso porque ainda não sabemos se você é amigo ou inimigo."

Os três companheiros perderam a noção do tempo. Eles não sabiam se era dia ou noite, mas, na verdade, exatamente setenta e duas horas e cinco minutos depois que entraram na caverna, eles ouviram um assobio vindo da abertura na porta.

Espiando pelas barras encontrava-se Dain, não mais curvado de dor, mas ereto e com o braço livre da tipóia. A expressão de seu rosto era séria e determinada, embora Lief percebesse um tremor nos dedos do garoto apoiados na janela.

- Três dias se passaram - sussurrou, quando os três amigos se reuniram junto da porta. - Vocês não precisam mais ser vigiados. Mas Perdição ainda adia a sua libertação. Não sei por que e acho que isso não está certo. Vou levá-los para fora daqui.

Mas somente se prometerem que me levarão com vocês. Para Tora.

É possível que Dain tivesse sentido medo, ou até culpa e vergonha, de libertar Lief, Barda e jasmine da cela e levá-los em silêncio pela passagem escura. Ele pode ter ficado assustado enquanto avançavam para o interior de outro túnel e passavam por uma pequena porta que se abria para o mundo exterior. Mas, mesmo assim, ele foi em frente. Quando, finalmente, se encontraram ao ar livre, sob as estrelas que cintilavam como jóias espalhadas sobre o veludo escuro do céu, ele deixou escapar um suspiro de alívio.

- Agora estamos seguros - sussurrou. - Todos estão comendo e bebendo. Ninguém irá visitar a sala de teste antes da hora de dormir. Até lá, estaremos longe.

Eles não perderam tempo com palavras e juntos começaram a avançar com dificuldade sobre as rochas, deslizando e escorregando sobre pedras soltas, segurando-se em arbustos firmes para evitar uma queda.

O grupo parou para descansar e conversar somente quando se encontrava a grande distância da fortaleza, ao atingir uma superfície plana outra vez.

- Tora fica a vários dias de viagem daqui, seguindo rio abaixo - Dain sussurrou. - Teremos de ser muito cuidadosos, pois bandidos e piratas rondam o rio Tor e um grande número de Ols patrulha a área.

- Por quê? sussurrou Lief em resposta. - O que há de tão especial em Tora? E por que você quer ir até lá?

Dain olhou-o fixamente. Diferentes emoções pareciam suceder-se em seu rosto: surpresa, perplexidade, incredulidade e, finalmente, raiva. Devagar, ele se ergueu.

- Você sabe muito bem por quê - retrucou, olhando Lief de cima a baixo. - Será que ainda não confia em mim? - disse ele e sacudiu a cabeça violentamente de um lado para outro. - Eu traí meus companheiros por vocês. Eu traí Perdição, que tem sido como um pai para mim. Isso não é o bastante para provar...

- Calma, garoto - Barda murmurou. - Não é uma questão de confiança. Sabemos muito pouco sobre Tora.

- E eu não sei nada - Jasmine ajuntou. - Nunca ouvi falar dela até você pronunciar esse nome quando nos conhecemos.

- Mas eu pensei... - Dain respirou fundo e apertou as mãos até que os nós dos seus dedos ficaram brancos. - Vocês me enganaram. Vocês me disseram que estavam indo...

- Não dissemos nada - tornou Barda com firmeza. - Você sugeriu que Tora era o nosso destino. Nós apenas não corrigimos o seu erro.

Dain gemeu e enterrou o rosto nas mãos. Estava escuro, e o rapaz moveu-se levemente, mas Lief imaginou ter visto um brilho de lágrimas nos olhos escuros. Ele sentiu uma ponta de culpa e apoiou a mão no ombro de Dain, num gesto de conforto.

- Nós vamos até a costa, acompanhando o rio. Se Tora estiver junto à margem ou nas proximidades, podemos levá-lo até lá, se é isso que você quer.

Com o rosto ainda escondido nas mãos, Dain balançou a cabeça devagar de um lado a outro.

- Quando ouvi falar de vocês pela primeira vez: um homem, um rapaz e uma garota com um pássaro preto que desfaziam o mal do Senhor das Sombras por onde passavam, comecei a pensar que seriam a resposta - disse ele, a voz grave e abafada. -

E, quando os meses passaram e Perdição nos contou que vocês estavam se dirigindo para o Oeste, eu tive certeza.

Dain sufocou um soluço.

- E então conheci vocês. Pensei que tivesse sido o destino. Mas tudo não passou de um engano. Outro engano. Ah, não faço nada certo. O que vou fazer?

- Acho que é melhor você nos contar o que o preocupa - disse Jasmine, sem rodeios. - De nada adianta chorar e se lamentar.

Dain olhou para ela. A calma de Jasmine ajudou Dain a se recompor como nenhum tipo de solidariedade o teria feito, e ele secou as lágrimas dos olhos com as costas da mão.

- Eu preciso ir a Tora, mas não posso lhes contar os motivos.Perdição me proibiu de ir. Primeiro, quando ele me encontrou, deixado para morrer depois que bandidos incendiaram a fazenda de meus pais, ele disse que eu precisava recuperar minhas forças.

Em seguida, disse que eu precisava de mais treinamento para viajar em segurança, embora eu já soubesse usar o arco e flecha. Mais tarde, ele afirmou que precisava de minha ajuda por mais algum tempo, e não pude dizer não. E, por fim, quando fiquei impaciente, ele disse que Tora ficara perigosa demais para mim ou qualquer pessoa de nosso grupo e que deveríamos esperar até ficarmos mais fortes.

Ele fez uma pausa e sacudiu a cabeça, como que para aclarar as idéias.

- Ele disse que visitá-la significaria captura na certa, o que colocaria toda a Resistência em risco. Ele disse que Tora está repleta de Guardas Cinzentos, tomada por espiões, porque...

Sua voz desvaneceu e ele engoliu em seco.

- Porque Tora sempre foi extremamente leal à família real - completou Barda de repente. - Mas é claro!

Os seus olhos estavam atentos e mostravam entusiasmo. Lentamente, as lembranças vieram à tona na mente de Lief. Ele se lembrou do pai, batendo o ferro vermelho e incandescente, falando sobre Tora, a grande cidade do Oeste. Ele tinha dito que ela era um lugar de beleza, cultura e poderosa magia, muito longe do alvoroço de Del e seu palácio, mas totalmente leal à coroa. Lief lembrou-se do pai descrevendo um quadro que vira na biblioteca do palácio, muito tempo atrás.

Era o quadro de uma grande multidão de pessoas. Todas eram altas e magras, com rostos compridos e delicados, sobrancelhas arqueadas e cabelos pretos e brilhantes. Elas usavam túnicas de várias cores cujas mangas largas tocavam o chão. As mãos estavam postas sobre seus corações.

Todos estavam voltados para uma grande rocha de cujo topo saltavam chamas verdes para o céu. Ao lado da rocha, com a cabeça curvada com humildade, encontrava-se um homem alto usando roupas rústicas de trabalho e o Cinturão de Deltora. Uma linda mulher de cabelos negros estava a seu lado, a mão pousada no braço dele.

- Adin amava uma mulher de Tora e era correspondido - Lief contou devagar. - Quando foi proclamado rei, ela o acompanhou a Del a fim de reinar a seu lado. No dia da partida, os toranos juraram lealdade a Adin e a todos os seus sucessores.

Outras tribos haviam feito o mesmo, mas os toranos, que formavam a maior de todas, gravaram o juramento na rocha incandescente que se encontrava no centro da cidade e lançaram sobre ela um feitiço que nunca poderia ser quebrado.

Ele encontrou o olhar de Barda e Jasmine e o mesmo pensamento percorreu a mente dos três. Que lugar mais perfeito do que Tora para esconder o herdeiro do trono?

- É uma longa jornada de Del a Tora - Barda disse em voz alta, escolhendo as palavras com cuidado para não revelar seu significado a Dain. - Uma jornada perigosa. Mas, uma vez lá...

Sim, o olhar de Lief respondeu em silêncio. Uma vez lá, o rei Endon poderia ter certeza de encontrar ajuda. Os toranos teriam feito e arriscado qualquer coisa para manter o rei, a rainha Sharn e o bebê em segurança. E eles dispunham de magia suficiente para fazê-lo, quaisquer que fossem as ameaças do Senhor das Sombras ou a destruição que ele causasse.

- Então, vocês sabem algo sobre Tora, afinal - Dain exclamou, o rosto se iluminando.

- Não sabemos como está hoje - tornou Lief devagar. - Conheço apenas histórias antigas. Nenhuma informação sobre o Oeste chegou a Del desde antes do meu nascimento.

- E talvez muito antes disso - Barda acrescentou. Ele encontrou o olhar ansioso de Dain. - Acho que, talvez, não sejam apenas os perigos que existem em Tora que façam Perdição proibi-la para o seu pessoal. Ele despreza quaisquer lembranças sobre a família real, não é mesmo?

- É verdade - admitiu Dain, mostrando desânimo. - E Perdição também não quer recorrer à magia de Tora. Ele diz que já dependemos dela no passado para nos salvar e que ela falhou conosco. Ele diz que precisamos aprender a andar com os próprios pés e a combater o Senhor das Sombras com astúcia, força e armas. Mas eu...

- Você sabe que isso não é o bastante - interrompeu Lief. - E você está certo, Dain. O poder do inimigo foi conquistado com feitiçaria. A força comum, mesmo que usada com determinação, pode desfazer parte de seus atos malignos, mas não derrotá-lo para sempre.

Jasmine, que estivera ouvindo, olhando de um interlocutor a outro, decidiu externar a sua opinião.

- A força normal pode não derrotar o Senhor das Sombras, mas o senso comum nos diz como devemos proceder daqui em diante. É evidente que estamos prestes a entrar num território que o inimigo vigia atentamente. Haverá muitos olhos procurando o grupo de que ouviram falar: um homem, um rapaz... e uma garota selvagem com um pássaro preto.

As últimas palavras foram acompanhadas de um sorriso amargo.

Lief tentou interromper, mas ela ergueu a mão para impedi-lo.

- Se quisermos passar desapercebidos, precisamos nos separar - ela concluiu. - Como somos Kree e eu que tornamos o grupo facilmente reconhecível, somos nós que devemos seguir outro caminho.

Ela apanhou a mochila e Kree voou e se empoleirou em seu braço. Filli guinchava assustado.

- Jasmine, não! - exclamou Lief.

- Não nos deixe! - gritou Dain ao mesmo tempo.

- Estou certa, não é mesmo? - Jasmine indagou, voltando-se para Barda. - Diga a eles!

O homenzarrão hesitou, mas a expressão mortificada indicava que o raciocínio dela era bem fundado.

- Então, está combinado - ela assentiu, bruscamente. - Se tudo der certo, nos encontraremos na costa, na foz do rio.

Com essas palavras, Jasmine ergueu a mão num gesto de despedida e caminhou depressa para a escuridão. Com um grito, Lief começou a segui-la, mas ela não respondeu e ele não conseguiu alcançá-la. Momentos depois, ela não passava de uma sombra oscilante entre as árvores e, em seguida, desapareceu.

Barda, Lief e Dain acompanhavam o rio, esgueirando-se entre as árvores que ladeavam as margens.

Muitos dias haviam se passado desde que Jasmine os deixara e, embora Lief procurasse sinais dela constantemente, até aquele momento nada encontrara. Era estranho e monótono viajar sem ela, sem o chiar agradável de Filli ao fundo e os gritos de Kree sobre suas cabeças. Dain, embora sempre fosse digno de confiança em momentos de perigo, não era capaz de substituí-la.

Lief também ficou assustado ao perceber o quanto ele próprio e Barda haviam ficado dependentes dos ouvidos e olhos atentos de Jasmine para adverti-los dos perigos que se aproximavam. Pois perigo era o que não faltava. Por duas vezes, os companheiros foram obrigados a lutar por suas vidas contra bandidos que os surpreenderam ao saltar das árvores sobre eles. Quatro vezes eles se esconderam bem a tempo quando barcos de piratas passaram navegando o rio - embarcações de madeira, grandes e velhas, carregadas de todo tipo de quinquilharia, algumas delas com velas feitas de tiras de tecido toscamente costuradas umas às outras.

Os rufiões que içavam as velas, que se encontravam deitados dormindo nas pranchas rústicas ou que manejavam os grandes remos eram tão mal-ajambrados quanto o material usado para construir a embarcação. Havia tripulantes de todos os tamanhos, cores e formas, mas todos exibiam uma expressão selvagem e faminta. Suas roupas estavam esfarrapadas e sujas, os cabelos desgrenhados; mas as facas, espadas e machadinhas que pendiam de seus cintos brilhavam e cintilavam ao sol.

Um vulto solitário oscilava no topo de cada mastro, preso a ele com cordas ou tiras de couro. Daquele ponto privilegiado, olhos atentos, protegidos do sol pela mão estendida, por um chapéu ou galho de árvore, vigiavam as margens do rio e a água adiante.

Eles procuravam por uma presa, viajantes que pudessem matar e roubar, vilas desprotegidas e outros barcos para saquear.

Aqui, longe das montanhas e dos córregos que o alimentavam, o rio diminuíra o ritmo e se tornara estreito e sinuoso. Suas águas estavam escuras, oleosas e manchadas por uma espuma de aspecto desagradável. O cheiro de morte e decadência pairava

sobre ele como uma névoa. Toras quebradas e em decomposição, roupas esfarrapadas e lixo moviam-se na correnteza.

E não eram somente esses objetos que flutuavam na água: vez ou outra, corpos passavam mal tocando a superfície, a água ao redor deles movendo-se e borbulhando horrivelmente, enquanto criaturas do rio se debatiam, banqueteando-se, invisíveis.

E Ols? Quem saberia dizer quais dessas criaturas ou bandidos eram Ols?

Uma noite, quando Lief, Barda e Dain pararam para descansar, dois magníficos pássaros aquáticos, brancos como o lírio, vagueavam entre os juncos, próximos à margem, curvando os pescoços graciosos como que pedindo para ser alimentados. Mas eles ignoraram os restos que Lief lhes atirou. Eles apenas olharam. E Lief só se deu conta do que eram quando se afastaram batendo as asas e ele viu o sinal negro que cada um tinha do lado.

Ols à espreita. Mas um homem e dois rapazes não lhes interessavam. Eles prosseguiram na busca do homem, do rapaz e da garota acompanhada do pássaro preto que tinham sido enviados para encontrar e destruir.

Lief recostou-se, o estômago revirado, olhando fixamente a Lua cintilante. Mais três dias e ela estaria cheia; mesmo agora, já estava grande e brilhante, iluminando a escuridão. Todos os arbustos pareciam brilhar, todas as árvores podiam ser vistas.

Não havia lugar para se esconder.

Jasmine estava certa. Era a sua presença e a de Kree que fazia com que o grupo chamasse a atenção. Mas, se os Ols a encontrassem sozinha, acompanhada do pássaro, eles não a atacariam? Era ela que se encontrava em verdadeiro perigo agora.

Lief rezou para que ela estivesse em segurança. Ele jurou que, se todos sobrevivessem a esse teste, o grupo nunca mais se separaria. Era bom ser prudente, mas havia outras coisas mais importantes.

Na manhã seguinte, eles chegaram a uma ponte que se estendia sobre outro afluente do rio Tor. Tratava-se de uma estrutura alta e arqueada de modo a permitir a passagem de barcos e, embora se encontrasse em mau estado, parecia segura o bastante para ser atravessada. Do outro lado, havia uma pequena vila aparentemente deserta aninhada na curva formada pelos dois rios.

- Acho que esse é o rio Largo - disse Dain, observando a água que passava lentamente quando eles cruzaram a ponte. - Vocês devem ter visto parte dele quando foram para Rithmere.

- Ah, sim - Barda concordou com um sorriso triste. - E também o sentimos na pele, mais do que desejávamos. Então é aqui que ele termina.

Eles chegaram ao final da ponte e avançaram para a vila que, segundo podiam ver agora, fora assolada por um terrível desastre. Muitas casas haviam sido incendiadas, janelas quebradas e entulho e cacos de vidro forravam as ruas estreitas.

- Piratas - murmurou Dain.

Mais adiante, havia um poste fincado no chão. Quando o grupo se aproximou, viu que dele pendera uma placa que no momento se encontrava no chão, as bordas quebradas e as letras sujas de lama.

 

"ONDE AS ÁGUAS SE ENCONTRAM

Bem-vindos, viajantes!"

 

- Ouvi Perdição falar deste lugar - contou Dain. - Ele disse que o seu povo era corajoso e tinha bom coração. Ele queria que se juntassem a nós para ficar em segurança. Mas eles se recusaram a abandonar a vila aos piratas e afirmaram que a defenderiam até a morte.

- E parece que foi o que aconteceu. - A voz de Barda soou rouca e irada.

Quando Lief se afastava dali, notou alguns restos de fios de lã caídos no chão junto da borda da placa. Ele se agachou para apanhá-los, mas retirou a mão imediatamente ao perceber que tinham sido arranjados de modo a formar um desenho.

- Barda! Jasmine esteve aqui! - exclamou ele entusiasmado. - E talvez ainda esteja. Essa é uma mensagem para nós, uma mensagem que ninguém mais iria notar. Vê? Ela formou a primeira letra de seu nome e a figura de um pássaro. Os outros sinais devem indicar o seu esconderijo.

Barda analisou os desenhos no chão.

- O círculo pode representar parte de um edifício. Mas o que seria o número 3?

- O número em uma porta, talvez. Lief ergueu-se e olhou ao redor tomado por uma nova energia.

Seguidos de perto por Dain, eles começaram a explorar a vila. Era uma tarefa deprimente, e o entusiasmo de Lief desapareceu rapidamente. Era evidente que Onde as Águas se Encontram tinha sido uma pequena vila agitada e próspera. Agora, por toda

parte havia sinais de violência e derramamento de sangue. A taverna, o centro de reuniões, todas as casas e lojas haviam sido saqueados. Tudo o que era de valor tinha sido levado.

Alguns dos invasores haviam triunfalmente rabiscado os seus nomes nas paredes das salas de visita, dos quartos e corredores. "Nak" era um nome que se repetia várias vezes, duas das quais escrito aparentemente com sangue. Mas havia outros nomes,

também. "Finn" era um deles; "Milne", outro.

Lief observou os rabiscos com ódio. Nak, Finn e Milne eram nomes de que se lembraria. "Vocês não são Ols ou Guardas Cinzentos, servos do Senhor das Sombras, criados para o mal", pensou. "Vocês são livres para escolher o que fazer. E vocês escolheram afligir o seu próprio povo, decidiram roubar, destruir e matar. Espero encontrá-los algum dia e, então, vou fazê-los pagar."

Os companheiros concluíram a busca com o coração apertado. Havia um pátio circular e alguns caixilhos redondos de janelas, mas nenhum número e nenhum sinal de Jasmine. Lief parou do lado de fora da última casa em cuja porta havia uma Lua nova esculpida.

- Luas são círculos, quando cheias - ele disse a Barda. - Será que Jasmine quis dizer...

E então ele parou de falar, pois finalmente se deu conta do verdadeiro significado do recado de Jasmine. Ele sacudiu a cabeça aborrecido com sua falta de esperteza. - Desperdiçamos o nosso tempo - ele avisou.

- Jasmine se foi há muito tempo. Os sinais não mostram em que parte da vila ela se encontra, mas quando ela esteve aqui. O círculo é a Lua cheia. Ele é seguido por um sinal de menos e pelo número três. Ela esteve aqui ontem, três dias antes da Lua cheia!

- Mas, claro! - Barda soltou um profundo suspiro. - Então...

De repente, ele ficou atento, cobriu os lábios com um dedo e escutou. Lief o imitou e o que ouviram foi totalmente inesperado.

Era o ruído de vários sininhos que soavam cada vez mais alto. E, ainda mais atordoante, o canto feliz e animado que o acompanhava.

 

"Era uma vez um Ol-io,

Feliz e contente Ol-io,

Era uma vez um Ol-io,

Mais terrível não podia haver!

Eu disse para esse Ol-io,

Feliz e contente Ol-io,

Eu disse para esse Ol-io,

Que ele não me faz tremer!"

 

Um carroção mambembe puxado por um cavalo velho e gordo vinha rodando ao longo da trilha que acompanhava o Rio Largo, em direção à vila. Primeiro, Lief imaginou ter visto dois vultos sentados no banco do condutor. Contudo, à medida que o veículo se aproximava, ele percebeu que se enganara. havia somente uma pessoa - um homenzarrão loiro e de pele bronzeada que cantava aquela música um tanto surpreendente com toda força de seus pulmões.

Impulsivamente, Lief começou a caminhar até ele.

- Espere! - ordenou Barda. - Aparência e palavras podem enganar. Lief assentiu e permaneceu onde estava. Mas, ao ouvir a voz vacilar quando o carroção avançou para a placa caída da vila e ao ver a tristeza no rosto largo, ele não esperou mais.

A expressão do homem denotou o seu espanto ao ver os três emergirem das sombras.

- Ah! Isso não é nada bom - disse ele. Saltou do veículo, olhou ao redor, observando a desolação. - Mas não estou surpreso. Temos vindo para cá há muito tempo, todos os anos, em nossas rondas, e a cada vez receava encontrar uma situação dessas.

- Eu os avisei - continuou consternado. - Desistam, amigos. Partam. A vida é preciosa! Mas eles eram corajosos demais. E tolos...

O homem esfregou os olhos com a mão enorme.

- Você falou de rondas. Que rondas são essas? - indagou Barda ainda desconfiado.

- Ora, sou um mascate, senhor - ele retrucou com cortesia. - Eu vendo, compro e troco. Steven B é o meu nome. - E com um gesto mostrou as letras esmaecidas gravadas no carroção.

 

"S & NB

Artigos Finos

Compra e Venda"

 

Para surpresa de Lief, houve um movimento atrás dele e Dain deu um passo à frente.

- Olá, Steven. Não se lembra de mim?

- O jovem Dain! - a expressão do velho se desanuviou e ele exibiu um sorriso. - Eu o vi, mas não tinha certeza se você queria ser reconhecido na companhia deles.

- Eles são amigos - afirmou Dain. - Estão me ajudando a ir até Tora, Steven. Finalmente estou indo para lá.

- Isso é má notícia - comentou Steven. - Por que não fica onde está seguro? Esta parte do país não é gentil com os viajantes.

- E mesmo assim você viaja todos os dias - Lief ressaltou.

- Eu? - disse o homem, dando de ombros, como se essa fosse uma questão totalmente diferente. - Ah, sim. Mas eu tenho proteção.

Lief olhou-o atentamente. O homem estava desarmado e parecia totalmente só, com exceção do velho cavalo. Ele era grande, é verdade, mas o seu rosto afável e franco não parecia o rosto de um lutador. Muito pelo contrário.

- O irmão de Steven, Nevets, sempre viaja com ele - Dain ajuntou depressa e, Lief adivinhou, para adverti-lo.

- Você gostaria de conhecer Nevets? - Steven indagou, inclinando a cabeça para o lado.

- Oh, não. Nem por sonho queremos incomodá-lo - exclamou Dain, antes que Lief e Barda pudessem dizer alguma coisa. - Mas, antes que vocês partam, meus amigos e eu gostaríamos de comprar alguns artigos para a nossa viagem.

- Ora, é um prazer servir vocês. - O homem caminhou até o fundo da carroça e abriu as portas. O espaço estava arranjado como se fosse uma pequena loja, atulhado de roupas e utilidades domésticas.

"Ao que parece, o irmão não está escondido aqui", pensou Lief. "E o que vamos comprar? Pois, é evidente, ele espera que compremos alguma coisa."

Ele observou Dain adquirir uma pequena panela de que não precisava. E então Steven virou-se para Lief.

- E o senhor, o que quer ver?

Lief estendeu uma moeda e apontou uma cesta que continha vários pacotinhos semelhantes a balas de caramelo. Steven mostrou surpresa, mas aceitou a moeda e entregou-lhe dois pacotes.

Na vez de Barda e para a surpresa de Lief, o amigo apontou para um cinto de tecido bordado com folhas douradas e marrons.

- Se estiver de acordo com minhas posses, gostaria de levar isso - pediu.

- Ótima escolha - elogiou Steven, removendo o cinto do gancho em que estava pendurado.

- Para você, amigo de Dain, somente três moedas de prata. - Ele mediu a cintura de Barda com os olhos. - Talvez fique um pouco apertado... - acrescentou.

- Não é para mim - informou Barda, contando o dinheiro. - É um presente.

Steven assentiu e passou-lhe o cinto.

- Bem, a nossa viagem até que rendeu alguma coisa e isso é muito bom. Mas esse lugar me deixa triste e isso não é nada bom. Nós já vamos embora.

Quando deu as costas para fechar as portas do veículo, começou a murmurar consigo mesmo. "Uma figura estranha", Lief pensou. "E um pouco louca, pois esse irmão de quem ele fala parece existir somente em sua imaginação. Talvez Nevets tenha morrido

e o fato tenha deixado Steven fora de si."

O homenzarrão terminou de trancar as portas e foi até a dianteira do carroção. Ao colocar o pé no degrau para subir ao lugar do condutor, ele se voltou para Dain.

- Desista dessa idéia de ir a Tora, pelo menos por enquanto, Dain, e venha conosco - convidou ele, estendendo a mão com simpatia. - Há espaço no banco para você. Logo vamos nos encontrar com alguns de seus amigos para fazer uma entrega.

Você pode voltar à fortaleza com eles.

- Agradeço a sua oferta com toda a sinceridade, Steven, mas não posso aceitar.

Steven pareceu triste, mas ergueu os ombros e terminou de se ajeitar. Quando se sentou com segurança no lugar do condutor, inclinou-se e pareceu procurar algo sob o banco. Ouviu-se um tilintar e, finalmente, ele apanhou uma pequena jarra e passou-a a Dain.

- Com os meus cumprimentos - ele disse. - Espero que o ajude em sua jornada.

Enquanto Dain balbuciava um agradecimento, Lief olhou com curiosidade para a jarra. Com surpresa, ele viu o conhecido rótulo "Asas Radiantes".

Steven observou o gesto e colocou um dedo sobre os lábios fechados.

- Nem uma palavra - pediu. Ele estalou a língua para o cavalo; a carroça arrastou-se para a frente e lentamente deu meia-volta.

Barda, Lief e Dain ergueram as mãos em despedida. Steven sorriu, acenou e sacudiu os arreios tilintantes, e o carroção afastou-se rangendo.

- Ele vende mel Abelha Rainha? - Lief murmurou. - Mas pensei que estava em falta.

- Ele o vende somente para a Resistência - informou Dain, observando a jarra. - E cobra apenas uma fração do que ele vale. Você não entende? Ele não é um mascate comum. Ele é o próprio filho da Abelha Rainha.

Lief respirou fundo.

- Mas que conversa é essa sobre ter um irmão? - Barda quis saber. - Ele estava sozinho!

- Steven nunca está só - Dain afirmou, a expressão sombria. - Nevets está sempre com ele. Mas Nevets não é um homem que você gostaria de conhecer. Eu o vi somente uma vez e não quero vê-lo de novo.

Barda e Lief o fitaram intrigados e Dain virou-se para observar o carroção.

- Nevets aparece somente quando Steven ou alguém próximo dele é ameaçado. Na maior parte do tempo, ele fica do lado de dentro.

- Não havia ninguém do lado de dentro - retrucou Barda, impaciente. - Na carroça, havia apenas mercadorias para vender.

- Não me refiro ao interior da carroça, mas sim do próprio Steven.

Lief sentiu os cabelos da nuca arrepiarem. Espiou a trilha e constatou que a carroça já se ocultava atrás de uma fina nuvem de poeira. Mas o tilintar dos sinos nos arreios do cavalo chegavam até eles. E, acima do ruído dos sinos, ouvia-se o som da canção.

 

"Ol-io roncador.

Ol-io feliz e contente,

Ol-io roncador,

Você não me faz tremer!"

 

Desta vez, contudo, Lief podia jurar que, em vez de uma voz, havia duas.

Assim que o carroção desapareceu de vista, os companheiros voltaram as costas para as tristes ruínas de onde as águas se encontram e se puseram a caminho até a margem do Rio Tor. Ali chegaram a um pequeno píer de madeira que se estendia alguns metros acima da água. Num poste, estava fixada uma placa de metal.

 

"O Rainha do Rio"

 

- Deve haver um barco de passageiros que percorre esta parte do rio. Ele certamente desce o rio Largo e leva viajantes e mercadorias a Tora - exclamou Lief. - É por isso que a ponte é tão alta.

Dain fez um gesto preocupado com a cabeça e fitou a placa com desconfiança.

- Seria muito bom ir de barco em vez de andar, para variar... além de mais rápido - disse Lief. - Devemos esperar?

- Acho que não - Barda opinou pesaroso. - Pelo que sabemos, o barco passa apenas uma vez por semana. Talvez nem navegue mais. Essa placa não é nova e, de qualquer forma, decidimos ficar longe dos olhares curiosos.

Lief concordou com relutância e eles continuaram seu caminho.

Depois do encontro dos dois rios, o Tor ficou mais largo, fundo e menos sinuoso. Além disso, suas águas pareciam mais limpas e o cheiro de decomposição era menos intenso. Contudo, Lief sabia que sob a superfície tranqüila formas escuras flutuavam lentamente. Elas não haviam desaparecido, apenas tinham afundado e se ocultado à vista.

À medida que o rio se alargava, a paisagem que o cercava também se alterava. Gradativamente, árvores e arbustos desapareciam e multiplicavam-se os juncos. Quando os companheiros pararam para descansar, à noite, o solo sob seus pés se tornara pantanoso.

Depois de comer, Dain logo se ajeitou para dormir sob a Lua brilhante que surgira no céu. Lief lembrou-se das balas que comprara de Steven e tirou uma do bolso com intenção de dividi-la com Barda. Mas, assim que desembrulhou o conteúdo marrom duro e brilhante, percebeu que não se tratava de uma bala de caramelo. O cheiro era horrível e o gosto, ainda pior.

Constrangido por ter cometido um erro tão banal, Lief tornou a embrulhar a substância e empurrou-a para o fundo do bolso. Olhou para Barda a fim de verificar se o amigo tinha notado algo, mas ele estava ocupado examinando a própria compra, o cinto bordado. Enquanto Lief observava curioso, perguntando-se para quem seria o presente, Barda o fitou e acenou. Com cuidado, para não despertar Dain, Lief aproximou-se dele.

- Tive um motivo para comprar este cinto, Lief - disse Barda num sussurro. - O tecido é duplo, grosso e forte. Acho que deveríamos usá-lo como uma capa para o Cinturão de Deltora. Lief abriu a boca para protestar. Se o Cinturão fosse coberto por tecido, ele não poderia tocá-lo ou ver as pedras. Ele perderia a possibilidade de sentir o topázio, que aclarava a mente; o rubi, cuja cor perdia a intensidade diante do perigo;

e a opala, que oferecia vislumbres do futuro.

Ele temia o poder da opala, mas há dias vinha reunindo coragem para tocá-la. O mapa feito por seu pai mostrava que o Labirinto da Besta situava-se na costa oeste de Deltora, mas sua verdadeira localização não estava clara. Talvez a opala pudesse fornecer uma pista.

- O rio está cercado de inimigos. E Dain estará conosco, pelo menos até chegarmos a Tora - Barda continuou. - É só uma questão de tempo até que ele veja o Cinturão, por mais cuidadosos que sejamos.

Lief engoliu sua objeção. Barda tinha razão. Ele sentia muito por Dain, mas um fato era indiscutível: nem ele, nem Barda haviam se decidido a confiar totalmente no rapaz. Ele assentiu e Barda se pôs a abrir a costura do cinto bordado.

Lief estava apreensivo. O tempo era curto e ele não podia esperar mais. Lief deslizou a mão sob a camisa e correu os dedos sobre a pedra até alcançar a opala.

Uma misteriosa luz azulada. Grandes lanças de pedra pendentes do teto. Paredes cintilantes e sulcadas sobre as quais escorria um líquido leitoso. E algo imenso, branco, com uma cauda agitada, mandíbulas vermelho-sangue abertas...

Abafando um grito, Lief apressou-se em retirar a mão e cerrou os olhos com força a fim de afastar da mente a terrível imagem.

- Lief?

Barda estendia a mão, impaciente. Lief tirou o Cinturão com dedos trêmulos. Barda o introduziu na tira de tecido bordado e tornou a costurar a abertura. Quando terminou, nada indicava que ele tinha sido aberto.

Lief prendeu o cinto ao redor da cintura, debaixo da camisa. O tecido era áspero e estranho contra a pele. Lembrou que seu pai mantivera o Cinturão em segurança dentro da cinta de trabalho de couro durante dezesseis anos. Aquele era um plano prudente.

Contudo, ele ainda estava inquieto. Voltou para junto do fogo e se preparou para dormir, desejando, do fundo do coração e não pela primeira vez, que Dain nunca tivesse cruzado o caminho deles.

Na manhã seguinte, os três companheiros prosseguiram com dificuldade, mas ao meio-dia só conseguiam avançar cambaleantes, a cada passo mergulhando as pernas até os joelhos na lama malcheirosa.

- Isso é impossível - queixou-se Barda, ofegante, após mais uma hora na qual somente uma pequena distância tinha sido percorrida. - Temos de nos afastar do rio, procurar terreno seco.

Contudo, naquele ponto os juncos se estendiam até onde a vista alcançava e uma névoa densa encobria o horizonte, fazendo com que os companheiros parecessem cercados por um deserto de lama, úmido e fétido.

Foi nesse momento que escutaram o leve ruído de um motor e o som de música. Todos se viraram para olhar o rio e, vindo na direção deles, o vapor saindo da chaminé e a grande roda propulsora jogando água atrás de si, estava um barco vermelho.

Lief, Barda e Dain não hesitaram. Os três começaram a gritar e a agitar os braços.

O barco se aproximou e logo estava tão perto que puderam ver o nome "Rainha do Rio" escrito em letras brancas na proa. Acima da música, eles puderam ouvir os gritos de um homem barbado que usava um quepe de capitão inclinado para o lado e olhava para eles.

- Querem uma carona, rapazes? - ofereceu, quando o barco desacelerou.

- Sim! - responderam Lief, Barda e Dain.

- Vocês têm dinheiro?

- Temos.

- Que ninguém diga que o Rainha do Rio recusou um passageiro pagante - o capitão devolveu, rindo. - Quanto mais, três! Ei, Chett!

Assim, um pequeno bote a remo caiu no rio, espadanando água. Uma estranha criatura curvada com braços longos e um rosto peludo e sorridente saltou na embarcação e remou furiosamente para a margem.

- O que é isso? - indagou Lief.

- É um polípano - esclareceu Dain, franzindo o nariz e recuando um passo. - E, se esse capitão os emprega como tripulação, as intenções dele não são boas.

- Acho que vi algo parecido nas feiras em Rithmere - lembrou Barda. - Ele estava andando em meio à multidão com uma caneca, coletando dinheiro para uma mulher que tocava um violino.

- E, secretamente, coletando muito mais do que isso, sem dúvida - Dain ajuntou, assentindo, quando o pequeno bote se aproximou.

- Polípanos são ladrões habilidosos. Dizem que eles podem tirar sua camisa sem que você perceba.

O barco a remo parou na lama e o polípano acenou, abrindo um sorriso largo. Lief percebeu que ele mascava algum tipo de goma escura. Seus dentes estavam manchados de marrom e, enquanto os companheiros se esgueiravam entre os juncos, ele cuspiu uma porção de líquido marrom no rio.

Lief e Dain subiram no bote; Barda empurrou-o para fora da lama e então subiu também.

O polípano cuspiu novamente e remou de volta ao Rainha do Rio. Embora agora levasse mais três passageiros, o pequeno barco disparou pela água em alta velocidade. Os braços longos e cabeludos do polípano eram muito fortes e, aparentemente, dotados de ilimitada energia.

Quando chegaram perto do barco maior, constataram que uma escada de corda havia sido baixada na lateral. Eles subiram, um após o outro, muito atentos aos olhinhos negros do polípano fixos neles. "Sem dúvida", pensou Lief, pouco à vontade, "ele está observando cada bolso de nossos casacos, cada fecho de nossas mochilas."

Lief ficou satisfeito com o fato de o Cinturão de Deltora estar bem escondido e só sentia não confirmar se a sensação de perigo que o invadiu quando puseram o pé no convés do barco era real ou imaginária.

Os demais passageiros fitavam os recém-chegados com curiosidade. Um deles, um homem muito gordo vestindo uma roupa de malha listrada, segurava uma grande caixa pintada com uma manivela. Uma caixa de música, Lief adivinhou. Lembrando-se da música

que tinha ouvido da margem.

- Ho-di-ho! - gritou o homem gordo, numa voz estranhamente fina e estridente para alguém daquele tamanho. - Lockie, o Listrado, às suas ordens, amantes da música!

A mulher ao lado dele riu. Ela também era do tipo gorducho e usava um vestido e luvas cor-de-rosa. O seu rosto redondo estava emoldurado por enormes feixes de cachos rosados que se amontoavam na testa e nas bochechas. Com uma das mãos, ela acenava para Lief, Barda e Dain, com jeito de garota. Com a outra, segurava o braço de um homem alto e magro parado ao seu lado e que usava um tapa-olho. Circunspecto, ele fez um gesto com a cabeça.

Dois outros homens ergueram o olhar da mesa em que estavam jogando cartas, mas não fizeram menção de falar. Ambos tinham as cabeças raspadas e largas bandanas amarradas na testa. Seus dedos estavam cobertos de anéis, e ambos tinham o que parecia ser um dente de animal enfiado na orelha. Nenhum dos dois parecia muito amistoso.

A última passageira era uma jovem de aparência arrogante que usava uma fina capa roxa amarrada ao pescoço por um cordão dourado. As mãos que seguravam a sombrinha estavam cobertas por luvas apertadas e negras que combinavam com as lustrosas botas de salto alto. Um lenço de seda roxo envolvia-lhe a cabeça e longos brincos dourados balançavam-lhe nas orelhas. O rosto estava coberto com pó-de-arroz branco; os lábios estavam pintados de vermelho e os olhos, fortemente delineados de preto. Após um olhar entediado aos recém-chegados, ela se virou e ficou observando a água, girando a sombrinha.

Lief olhou ao redor, tentando parecer à vontade, mas a apreensão tomava conta dele. Qualquer um daqueles personagens poderia ser um Ol. Para falar a verdade, todos eles podiam ser Ols. Lief começou a se perguntar se ele, Barda e Dain não estariam em melhores condições se tivessem ficado em meio aos juncos.

O capitão se aproximou sorrindo. Ele era um homem baixo e atarracado, de nariz torto e cabelos grisalhos que formavam uma trança que lhe caía nas costas como uma corda. O seu quepe estava de tal modo puxado sobre a testa que os olhos ficavam ocultos pela sombra.

- Bem-vindos a bordo! Qual é o seu destino? - perguntou.

- Um dos meus filhos e eu temos negócios a resolver na costa - disse Barda de modo agradável.

- É mesmo? - o capitão sorriu. - Negócios complicados, imagino. E cutucou Barda astuciosamente, depois do que estendeu a mão suja para receber o pagamento. Enquanto Barda contava o dinheiro, Lief percebeu que o capitão perdera o dedo mínimo e que o anular não passava de um toco.

- Uma pequena discussão com um verme, meu rapaz - ele esclareceu, notando que Lief observava sua mão. - Você vai querer manter os seus dedinhos fora da água enquanto navegamos. Os vermes vêm do mar e nadam até aqui. E, quanto mais longe eu chego, mais famintos eles ficam. - Ele sorriu e a mulher de rosa riu nervosamente.

- Meu filho mais novo quer descer em Tora - Barda avisou, erguendo um pouco a voz. - Você pode parar lá?

- Tora? - O capitão riu com desdém. - Ora, não é possível. Sinto não poder lhe fazer esse favor. Uma visita a Tora é impossível para nós.

Dain ficou perplexo, mas logo se recompôs. Era evidente que compreendera não ter outra escolha senão ficar no barco, pelo menos por hora.

Barda olhou para ele e ergueu de ombros num gesto de aquiescência.

- Tudo bem. Apenas mais duas coisas - o capitão prosseguiu. - Primeiro, estou oferecendo uma condução, não um serviço de proteção. Este é um rio cruel, e vocês devem cuidar da própria segurança. Se vocês forem Ols, é problema de vocês. Se pagarem, eu levo Ols com tanta satisfação quanto qualquer outra pessoa. Mas mantenham as mãos quietas enquanto estiverem neste barco ou vou jogá-los na água para alimentar os vermes. Já lidei com Ols e posso fazê-lo outra vez. Entendido?

Lief, Barda e Dain olharam-no fixamente e então assentiram. O capitão sorriu, girou nos calcanhares e os deixou.

- Tudo bem - sussurrou a mulher de rosa. - Ele disse o mesmo para nós. Acho que ele precisa ser cuidadoso, mas assim é demais!

O capitão havia retomado o leme na cabine do barco. Ele gritou algumas ordens, o polípano correu a atendê-lo, um apito soou e o barco recomeçou a se mover.

Lockie, o Listrado, sentou-se com um gemido, posicionou a caixa de música pintada entre os joelhos, começou a girar a manivela e uma melodia pipilante e alegre encheu o ar. A mulher de rosa e seu parceiro alto e magro começaram a dançar, os pés martelando na prancha rústica. Ela ria, enquanto ele permanecia solene como um túmulo. Os dois outros homens voltaram ao jogo de cartas, e a jovem de casaco roxo girou a sombrinha e olhou fixamente para o rio.

Os companheiros sentaram-se num banco perto do parapeito.

- Um grupo estranho - murmurou Barda. - Teremos de guardar nossos pensamentos para nós mesmos.

- É verdade.

Todos os três ergueram os olhos. A jovem vestida de roxo havia se aproximado deles. Ela ainda olhava para o rio, mas era evidente que fora ela que falara.

Lief a fitou e observou a inclinação orgulhosa da cabeça, os lábios pintados, os olhos sombreados de negro, os longos brincos dourados. E então ele levou o maior susto de sua vida quando a reconheceu.

Era Jasmine.

O sol encontrava-se muito baixo no céu. O Rainha do Rio avançava ruidosamente, descendo o rio num ritmo inalterável. Lockie, o Listrado, cansara-se de girar a manivela da caixa de música e estava deitado de costas no convés, os olhos fechados.

A mulher de rosa e o companheiro conversavam em voz baixa. Os dois jogadores de cartas haviam iniciado outra partida.

Sem mostrar nenhum sinal de que os conhecia, Jasmine afastou-se de Barda, Lief e Dain e sentou-se sob o abrigo da sombrinha na outra extremidade do barco.

- Não acredito que não a reconheci! - sussurrou Lief pela décima vez. - Como ela conseguiu aquelas roupas?

- Do nosso amigo Steven, sem dúvida - sussurrou Barda em resposta. - Ela deve ter tentado ir para o interior a fim de evitar os juncos e se viu obrigada a voltar à trilha do rio Largo. E assim ela acabou se atrasando e ficando atrás de nós.

- Ela é muito esperta - murmurou Dain com admiração, observando Jasmine mordiscar delicadamente uma fruta desidratada que tirara da bolsinha que carregava. - Quem a descreveria como uma "garota selvagem" agora? Mas onde está o pássaro?

Lief examinou as margens do rio e vislumbrou uma sombra negra voando entre os juncos. Kree não os perdia de vista.

Quando o sol se pôs, o leito do rio coberto de juncos deu lugar a montes de areia pontilhados por pequenos arbustos. A Lua surgiu no céu para logo ser coberta por nuvens. O apitou soou. O Rainha do Rio desacelerou e parou.

- Partiremos novamente na primeira luz do dia - o capitão anunciou quando Chett lançou outra âncora com um ruído de correntes. - Fiquem à vontade, amigos, e descansem um pouco. Mas fiquem atentos. Lembrem-se: a sua segurança depende de vocês, não de mim.

Ele retornou à cabine com passos pesados, fechou a porta e todos ouviram o ruído metálico quando ele a trancou com o ferrolho. Depois, houve apenas o silêncio, exceto pelo burburinho da água e o ranger do costado no barco.

Chett correu pelo convés e acendeu lanternas, mas elas pouco ajudaram a diminuir a escuridão que os cercava. A mulher de rosa recostou-se no companheiro e fechou os olhos. Os jogadores guardaram as cartas, puxaram cobertas de dentro das mochilas e ajeitaram-se para dormir.

Lief, Barda e Dain comeram e beberam alguma coisa e a seguir também apanharam os cobertores, pois a noite se anunciava fria. Lief bocejou. O balanço do barco começava a deixá-lo sonolento e ele teve de lutar para se manter acordado.

- Eu vou ficar no primeiro turno de vigília, Lief - Barda anunciou de repente. - Durma, mas esteja preparado. Temo que a noite vá ser muito longa.

Lief foi despertado por um grito estridente. Ele se levantou de um salto, a mão na espada, sem noção de quanto tempo se passara. Estava muito escuro e as lanternas haviam se apagado. O céu estava negro.

- Barda! - Lief sussurrou. - Dain!

As duas vozes responderam perto dele. Seus companheiros também estavam acordados e alertas.

O grito se repetiu. Lief percebeu que se tratava de Kree dando um grito de advertência. Onde estava Jasmine? Ele queria chamá-la, mas sabia que não podia fazê-lo. Ninguém deveria saber que se conheciam.

Vozes sonolentas e sussurrantes foram ouvidas no convés quando os outros passageiros acordaram.

- É apenas um pássaro, querido - murmurou a mulher de rosa. - Durma outra vez.

Por um instante, fez-se silêncio novamente e só se ouvia o agitar da água, o ranger do madeiramento do barco. Mas os ouvidos de Lief se aguçaram e ele tinha certeza de que os sons não eram os mesmos de antes. Eles estavam mais fortes e eram acompanhados por leves pancadas.

Outro barco...

O pensamento mal tinha ocorrido a Lief quando, de repente, a escuridão ao redor do parapeito pareceu mover-se e se adensar. Ele ouviu respirações pesadas e um leve retinir de aço. Havia pessoas entrando no barco!

- Cuidado! - ele gritou. - Defendam os seus...

Ouviu-se um burburinho irado e um arrastar de pés apressados. Alguém caiu sobre ele e atirou-o ao chão com violência. Lief atingiu o convés com um baque, batendo a testa no canto de um objeto que repicava e tilintava. "A caixa de música", pensou ele confuso. Lief tocou a testa e sentiu o sangue escorrer.

Tonto e nauseado, Lief esforçou-se para ficar de joelhos. Lockie, o Listrado, protestava assustado. A mulher de rosa gritava e chorava. Sons de luta enchiam a escuridão. Lief ouviu estrondos e gemidos, um grito de gelar o sangue, o espadanar de algo caindo na água e também o bater de aço contra aço.

- Acenda uma luz, idiota! - rugiu uma voz.

Uma a uma, as lanternas recomeçaram a brilhar. O polípano as estava acendendo, rindo e mascando enquanto saltava de uma para outra. Aos poucos, uma cena de horror foi revelada.

Os invasores eram pelo menos vinte. Homens e mulheres que usavam uma estranha combinação de roupas finas e esfarrapadas, tinham cabelos emaranhados e olhos brilhantes e estavam munidos de facas, espadas e machadinhas.

Barda, as costas apoiadas ao parapeito do barco, lutava contra dois deles. Dain encontrava-se ao lado dele, enfrentando um terceiro. Lockie encolhia-se no convés. A mulher de rosa, lamentando-se indefesa agarrava-se ao homem magro que, na tentativa de livrar-se dela, sacudia-a e rastejava para longe como uma aranha à procura de um buraco para se esconder. Um dos jogadores de cartas jazia morto numa poça de sangue. O outro havia desaparecido. "Com certeza, saltou na água", pensou Lief, lembrando-se do espadanar.

Nem sinal do capitão. Não havia dúvida de que ele ainda se encontrava trancado na cabine, e Lief tinha certeza de que não se arriscaria pelo bem de alguns passageiros. Eles tinham concordado com os seus termos, pago o seu dinheiro e aceitado os riscos. Ele não passara toda uma vida nesse rio perigoso por nada.

Lief ergueu-se com dificuldade e procurou sua espada. Ele tinha de ajudar Barda, mas o convés parecia girar. Ele não conseguiu se mover rápido o bastante. Aterrorizado, viu um dos oponentes de Barda se aproximar, agarrar uma lanterna e atirá-la no rosto do amigo, mas este recuou e conseguiu escapar à chama. O parapeito do convés estalou e começou a se partir.

- Não! - gritou Lief, atirando-se para a frente. Nos segundos que se seguiram, todo o parapeito daquele lado se despedaçou. Barda, o pirata e a lanterna caíram na água com grande ruído. Depois, o silêncio.

- Barda! - chamou Lief com voz estridente, indo aos tropeços para a beira do barco. Contudo, nenhuma cabeça assomou à superfície; a lanterna tinha se apagado e tudo estava imerso na escuridão.

Lief preparou-se para pular. Tudo o que sabia era que tinha de salvar Barda, imerso em algum lugar naquela água escura. Mas desesperado sentiu-se puxado para trás por mãos fortes e atirado ao convés outra vez.

- Não até que eu faça você em pedacinhos, garoto! - o pirata riu acima dele, um homem cujo nariz quase alcançava o queixo e cujos dentes pareciam afiados como facas. - Depois posso entregá-lo aos vermes!

Tudo ao redor ficou desfocado. Pontadas de dor percorriam a cabeça de Lief enquanto ele era rolado e empurrado pelo convés. O casaco foi-lhe rasgado das costas; a espada e a bolsa de dinheiro, tomadas. O cinto bordado foi-lhe arrancado da cintura.

- Não!

Lief gemeu, lutando para se levantar. Um pé calçado com uma pesada bota atingiu-lhe as costelas.

- Acabe com ele, Finn, e com os outros dois também - gritou uma voz.

Finn. Lief contorceu-se ao som desse nome, um dos nomes rabiscados nas paredes das casas de Onde as Águas se Encontram.

- O outro é valioso - avisou uma voz mais grave. - Ele é da Resistência. Eu o vi com Perdição. Os Guardas pagarão em ouro para tê-lo vivo.

- Veja o que encontrei, tentando fugir de nós! - Uma mulher enorme de cabelos ruivos surgiu de trás da cabine carregando Jasmine nos braços morenos. Os pés de Jasmine balançavam-se longe do solo, e ela chutava, e lutava, mordendo as mãos que a agarravam sem que a mulher desse atenção ao fato.

- Roupas elegantes para uma moça elegante! - ela rugiu. - Eu não ficaria maravilhosa nelas? - Ela arrancou o lenço roxo e os cabelos negros e emaranhados de Jasmine se soltaram. Em seguida, a mulher passou a rasgar os cordões dourados que prendiam a capa ao pescoço de Jasmine.

Ouviu-se um grasnado e uma sombra negra mergulhou sobre a cabeça da mulher. Com um movimento rápido, o bico preto atingiu-a bem acima da orelha. A mulher deu um grito, cambaleou e afrouxou a mão que segurava Jasmine.

Em questão de segundos, Jasmine se libertou, deixando a capa nas mãos da mulher. Um momento depois, ela empunhava a adaga, e um de seus pés calçado com a bota de couro chutava para trás com força mortal.

A mulher uivou e caiu para trás, desabando sobre o atacante de Lief e fazendo-o estender-se no solo. Jasmine ergueu Lief e passou-lhe a sua segunda adaga.

- Fique atrás de mim! - ela ordenou. - Onde está Barda?

- Desapareceu - Lief balbuciou. - Os olhos de Jasmine encheram-se de tristeza. Quando Kree voou até o braço dela, ela virou-se para enfrentar os piratas mostrando os dentes.

Lief os viu hesitar, e com razão. A senhorita elegante que imaginaram poder roubar com muita facilidade transformara-se diante dos olhos deles em uma guerreira feroz cuja adaga brilhava tanto quanto as espadas deles. Até mesmo o polípano olhava perplexo. E a mulher de rosa...

Ela estava boquiaberta. Os seus olhos pareciam queimar imensos, fixos em Jasmine. E, enquanto ela a fitava, algo começou a ocorrer com seu rosto. Era como se os olhos em fogo o estivessem derretendo. A carne empalidecia, os cachos rosados se contraíam e encolhiam, voltando ao crânio inchado e revelando o sinal no alto da testa. Seus braços e pernas borbulhavam e se retorciam. Então, todo o corpo debateu-se e estremeceu como uma fria chama branca.

- Ol! - O grito de terror ecoou em todo o convés e, no mesmo instante, os piratas se espalharam, correram para o parapeito, arrastando Dain e todo o produto da pilhagem com eles. Seus pés atingiram o convés do próprio barco com um baque.

O polípano saltou depois deles, chiando e cuspindo atemorizado. Os remos moviam-se rápida e ruidosamente na água quando os bandidos se curvaram para se afastar do perigo correnteza abaixo.

Mas o Ol não se importou com eles. Os olhos em fogo estavam fixos em Jasmine. A boca sem dentes sorria ávida. Ele se arrastou para a frente, os dedos longos e brancos estalando à medida que se estendiam na direção da garganta da garota.

O frio que envolvia o monstro o precedeu, um frio de tirar o fôlego, que congelava os membros, fazia os olhos arderem e transformava os lábios em gelo. Ofegante, cambaleando para trás e tentando proteger Lief com seu corpo, jasmine investiu com a adaga sobre os dedos brancos que tentavam agarrá-la. Um tanto desorientado pelo frio, Kree atirou-se contra a cabeça pontiaguda do monstro.

Contudo, nada conseguia detê-lo. Os dedos de uma das mãos avançaram como serpentes, agarraram Jasmine pelo pescoço e ergueram-na do solo. Quase com indiferença, a outra mão segurou o braço de Lief com força descomunal, e a adaga caiu com ruído sobre o convés.

A Lua surgiu por trás das nuvens e sua luz branca e fria inundou o convés, caindo sobre o rosto de Lief. "Estamos morrendo", pensou ele, quase surpreso. O tempo parecia arrastar-se.

Então, o Ol contorceu-se com violência. Em um pesadelo de terror, Lief olhou para o imenso corpo trêmulo e viu um objeto afiado e brilhante deslizar para fora do lado direito de seu peito...

As garras em seu braço afrouxaram. Ele viu Jasmine cair, e a criatura começou a tombar para a frente.

- Saia do caminho, seu tolo! - uma voz rosnou. Desesperado, Lief girou para um lado. O Ol caiu no convés com um baque, a longa lança de madeira que lhe perfurou o coração fincada nas costas. A sua carne inchava e ondeava. Cachos rosados e um único olho azul borbulhavam horrivelmente em meio à massa branca.

Com um sorriso selvagem, o capitão retirou a lança e chutou o corpo caído para o rio.

- Eu odeio Ols! - rugiu.

Lief arrastou-se até Jasmine. Filli guinchava, tentando fazer com que ela abrisse os olhos. Ela respirava, mas o pescoço, muito vermelho, parecia ter sido queimado.

A mochila de Dain ainda estava jogada no convés. Lief abriu-a com um gesto brusco, tirou a jarra de mel e espalhou um pouco de seu conteúdo na boca de Jasmine.

- Lamba os lábios, Jasmine - ele sussurrou. - O mel vai ajudar você, assim como ajudou Barda. - Ao pronunciar o nome do amigo, sentiu uma dor contrair-lhe o peito.

O capitão olhava ao redor sacudindo a cabeça. O convés estava coberto de corpos de piratas.

- Parece que vocês deram cabo de alguns desses desgraçados antes que os outros fugissem - comentou. - E eles levaram o seu irmão, não é mesmo? Se é que ele era seu irmão, o que eu duvido.

- Eles levaram Dain - ele conseguiu dizer. - Preciso ir atrás deles para salvá-lo.

E o Cinturão... O Cinturão!

As palavras pareciam gritar em sua mente e mais uma vez o terror do que acontecera o invadiu.

O capitão se aproximou e espiou Jasmine com curiosidade. Filli gemia, mostrando os pequenos dentes e o seu pêlo estava eriçado. O capitão saltou para trás e caiu sobre uma pilha de tábuas. Ouviu-se um grito estridente e Lockie, o Listrado, rastejou para fora de seu esconderijo:

- Não suporto este rio. Chega! Vou me aposentar. Não importa se eu morrer de fome.

- Você sempre diz isso, seu covarde! - o capitão disparou com rispidez. - E o parapeito do convés? E o meu polípano? Quem vai pagar por eles?

- Quem se importa com isso? - Lief gritou. - Como você pode falar de dinheiro quando o convés está coberto de sangue? - Lágrimas iradas e quentes assomaram-lhe aos olhos.

- Se é isso que você pensa, pode descer, amigo! - ele vociferou. - Você e sua amiga selvagem e o pássaro maluco. Vou ficar feliz em vê-los pelas costas. Você acha que eu não sei por que o Ol a atacou? Ele a reconheceu, não foi? Ele tinha ordens para pegá-la. E, pelo que eu sei, você também.

Ele se virou ríspido para Lockie, o Listrado:

- Leve-os até a margem no bote a remo. Tire-os da minha frente! Vamos voltar ao rio Largo para consertar o barco.

Depois que Lockie muito abatido deixou Jasmine e Lief e remou de volta ao Rainha do Rio, o vapor já saía da chaminé da embarcação. Momentos depois, a corrente da âncora rangeu e a roda propulsora começou a se mover. O barco virou e navegou correnteza acima, deixando os companheiros apenas com a mochila de Dain e um cobertor para se aquecerem.

Jasmine estava consciente, mas mal conseguia falar. Ela aceitou outra colher de mel e a engoliu com dificuldade.

- O que vamos fazer? - ela indagou com voz rouca.

- Seguir os piratas e recuperar o Cinturão - Lief balbuciou, com mais confiança do que realmente sentia.

Jasmine assentiu, a cabeça curvada.

- Eles têm Dain e também o Cinturão. Precisamos ajudar Dain. Barda gostaria que fizéssemos isso.

Todo o corpo de Jasmine tremia. Lief apanhou o cobertor, cobriu-a e sentou-se junto dela para aquecê-la.

- Se ao menos soubéssemos para onde os piratas planejam ir! - ele disse. - A água da Fonte dos Sonhos nos ajudaria a descobrir, mas ficou tudo nas mochilas. - Lief olhou para o céu, onde as estrelas começavam a desaparecer. E o barco dos piratas certamente já se encontrava bem longe.

- Precisamos ir, Lief! Eles estão fugindo! - Ela se esforçou para levantar, mas tornou a cair quase de imediato. Lief voltou a cobri-la com o cobertor. A cabeça dele latejava.

- Barda diria que devemos descansar - aconselhou o rapaz. - Ele diria: "De que adianta alcançar nossos inimigos, mas estar fraco demais para enfrentá-los?" E ele estaria certo. Quase sempre ele tinha razão.

- Que bom ouvi-lo dizer isso - resmungou uma voz conhecida. Das sombras, surgiu Barda ensopado, trêmulo, mas vivo! O choque foi tão grande que por um momento Lief não conseguiu falar. Mas a alegria e o alívio certamente estavam visíveis em seu rosto, pois Barda sorriu e deu-lhe tapinhas nas costas quando se sentou com um profundo gemido.

- Você pensou que eu tinha desaparecido, hein? Bem, confesso que desapareci, mas consegui derrotar o bandido que caiu na água comigo. E os vermes, se existirem, devem ter ficado ocupados com outra presa.

- Um dos jogadores de cartas - Jasmine sugeriu roucamente. - Ela pôs a mão na garganta enquanto falava, mas era evidente que a dor já cedia, graças ao mel Abelha Rainha. E, com a volta de Barda, ela se mostrava animada outra vez.

- Talvez - Barda assentiu, sério. - Não lembro muito bem como cheguei à margem. Recuperei os sentidos somente alguns minutos atrás. Ouvi o barulho do barco e então ouvi as vozes de vocês.

- Barda, eles pegaram o Cinturão - contou Lief angustiado. -Minha espada, todos os nossos pertences... e Dain.

- Pois então... - disse Barda finalmente, depois de respirar fundo - precisamos dar um jeito nisso.

Ele se ergueu com dificuldade.

- Mas, primeiro, precisamos nos aquecer e secar. Vamos acender um fogo e, se mais inimigos o virem e quiserem nos atacar, serão bem-vindos. Um grupo de piratas e um Ol não foram capazes de nos derrotar. Outros que tentem, se tiverem coragem!

Lief também se ergueu devagar e ajudou o amigo a apanhar lenha para a fogueira. O terrível desespero que o invadira desapareceu com a volta de Barda, mas, enquanto examinava a areia desprovida de vegetação, agora lentamente se iluminando com o raiar do dia, percebeu que ainda estava triste.

Não havia nada demais em se encher de coragem, planejar seguir os piratas e encontrá-los. Contudo, quando eles alcançassem a costa, o velho barco certamente estaria ancorado em alguma baía oculta. Como conseguiriam achá-lo?

Lief viu algumas tábuas velhas que haviam sido trazidas até a margem pelas águas e foi até elas. Então, percebeu que algo mais jazia na água rasa imediatamente atrás da madeira. Parecia um monte de lixo e trapos, mas, não, era um homem morto.

- Barda! - ele chamou.

O amigo atendeu depressa ao chamado, e juntos puxaram o corpo para a areia.

- É o pirata que caiu na água comigo - reconheceu Barda. - Parece que ele não teve tanta sorte.

Lief observou o rosto descarnado. Morto, o pirata parecia mais patético do que selvagem. Barda agachou-se ao lado do corpo e começou a remexer-lhe nas roupas, verificar os bolsos em busca de armas ou qualquer outro objeto de valor. Houve época em que nenhum dos dois teria sonhado em roubar um morto. Mas isso fora há muito tempo.

Barda soltou uma exclamação e apoiou-se nos calcanhares. Ele segurava algo nas mãos, um pacote estreito envolto em tecido impermeável, e desembrulhou-o com cuidado. O papel em seu interior estava úmido, mas inteiro. Estendeu-o sobre a areia e Lief se inclinou para observá-lo. Mesmo na fraca luz do alvorecer, ele pôde ver claramente do que se tratava.

- É o caminho para o Labirinto da Besta - Barda murmurou.

- Os piratas estão indo para o Labirinto? Mas por quê? É um lugar de terror.

O coração de Lief saltava-lhe no peito dolorosamente.

- Eles não se importariam, se tivessem ouvido falar de uma grande pedra preciosa escondida ali - retrucou Barda, aborrecido. - De alguma forma, eles ouviram falar dela, Lief, e vão procurá-la. E agora têm o Cinturão para ajudá-los.

Dois dias mais tarde, os amigos encontravam-se parados na praia observando o vasto oceano azul salpicado de espuma. O vento açoitava-lhes as roupas e desmanchava-lhes os cabelos. Durante a jornada em que passaram frio e fome, viram vários vilarejos murados do outro lado do rio e até passaram por uma ponte, mas dos piratas não havia sinal e mesmo ali não se via nenhum barco.

Para Jasmine, que nunca vira o mar, o oceano era uma novidade e uma fonte de admiração. Para Lief, foi a princípio como uma lembrança de casa. Não tanto pela vista, pois o Senhor das Sombras há muito proibira a costa para o povo de Del, mas o som, o cheiro e o gosto de sal em seus lábios eram-lhe dolorosamente familiares.

No entanto, após somente alguns momentos, a sensação desapareceu e uma espécie de aversão tomou seu lugar.

Aquela não era a costa de Del. Aquela costa era deserta e totalmente silenciosa, exceto pelo vento e pelo quebrar das ondas. Não havia sinal de nenhum ser vivo. Não havia peixes saltando na água agitada ou caranguejos correndo pela areia.

E Kree era o único pássaro visível.

Lief flagrou-se fugindo da espuma sibilante que rastejava na direção de seus pés. Toda a sujeira do rio Tor desaguava nesse mar. A sua superfície limpa e espumante era uma mentira, visto que abaixo dela se espalhava todo o lixo e a maldade que o rio fora obrigado a carregar por tanto tempo. Vermes assassinos contorciam-se em suas profundezas alimentando-se dos corpos dos mortos, rastejando nos destroços de barcos naufragados. E, no fim da longa faixa de areia à esquerda de Lief, sob o promontório que parecia um rosto desfigurado, encontrava-se o lugar chamado de o Labirinto da Besta.

Lief afastou bruscamente o olhar dessa visão para observar o outro lado da foz do rio, à direita. Além de suas águas agitadas, mais areia se estendia até outro promontório sombrio que nascia da base de um rochedo achatado e plano. Enquanto observava, um enorme jato de água jorrou para o alto, vindo da rocha. Era como se alguma gigantesca criatura ali estivesse oculta cuspindo para o céu.

Jasmine gemeu assustada.

- Não tenha medo - tranqüilizou Lief. - É um respiradouro. Minha mãe me falou dessas coisas. A água abre caminho à força por um túnel sob a rocha e então é lançada por uma abertura distante daquela por onde entrou.

- Eu não estava com medo - apressou-se Jasmine em dizer. - Apenas surpresa... por um momento. Mas estou contente por não termos de ir para aquele lado.

"Este lado também não é lá grande coisa", Lief pensou, quando ele e os amigos começaram a caminhar com dificuldade sobre a areia molhada. O vento soprava em seus ouvidos. A praia adiante estava deserta e o promontório parecia ameaçador.

Ele, Barda e Jasmine haviam sido tão cuidadosos por tanto tempo. Suportaram a separação, haviam rastejado e se escondido. Mas ali, onde os servos do Senhor das Sombras certamente vigiavam e esperavam, eles não tinham escolha senão estar expostos.

Não havia onde se esconder e eles não tinham mais o Cinturão para adverti-los de que algum perigo se aproximava.

Lief olhou rapidamente para Barda e sentiu o mesmo desalento e angústia que experimentara tantas vezes nos últimos dois dias. O grande homem caminhava com a cabeça baixa como se tivesse esquecido que o perigo poderia surgir do céu ou de sob a areia a qualquer momento. Ele docilmente seguia Jasmine, que caminhava na dianteira, os olhos atingindo todos os cantos, como dardos.

A inesperada descoberta do mapa dos piratas, que havia dado uma nova onda de energia para Lief e Jasmine, parecia ter deixado Barda pensativo e distante. Além de pedir pressa, ele pouco dissera ao descerem o rio. Enquanto seus companheiros falavam de seus medos e esperanças, ele simplesmente ouvia.

Estava claro que algo o preocupava. Algo que não queria dividir com os outros. Quando Lief se arriscou, ele não se queixou. Quando Jasmine parou para apanhar pequenos objetos na beira do rio, ele nada disse. Na verdade, ele estava de tal modo paciente e gentil que Lief passou a ficar pouco à vontade e desejou ouvir o velho e irritado Barda resmungando outra vez.

Jasmine olhou rapidamente para trás e Lief percebeu-lhe o ar preocupado ao notar a cabeça curvada de Barda. O rapaz correu para alcançá-la.

- Será que ele está doente? - ela sussurrou. - Ou apenas desanimado?

- As coisas já estiveram difíceis antes e ele sempre foi uma torre de força - comentou Lief com tristeza. - Agora é diferente. Talvez... talvez ele esteja prevendo a chegada de uma grande fatalidade.

Desta vez, foi ele quem olhou para trás a fim de observar o companheiro. E, como ele receara, Jasmine riu com desdém e jogou a cabeça para trás.

- Barda não possui poderes mágicos, nem pode prever o futuro. E, mesmo que pudesse, que fatalidade maior poderia acontecer além do que tudo que já ocorreu?

Ela fez um gesto de cansaço, a expressão sombria. O grupo já se encontrava próximo aos rochedos. Jasmine chamou Kree para perto dela, curvou os ombros para proteger-se do frio e esperou que Barda os alcançasse.

O penhasco açoitado pelo vento assomava diante deles. As rochas erguiam-se em picos cruéis para depois formar abismos marcados por grutas escuras. As ondas atingiam-nas com violência, salpicando os companheiros com borrifos de água à medida que eles avançavam com cautela e iniciavam a travessia ardilosa. Ainda não havia sinal dos piratas ou de qualquer outro inimigo.

"Isto é estranho", Lief pensou intranqüilo. "Por quê?..."

E então ele viu a caverna. Ela se abria no penhasco justamente atrás de onde ele se encontrava - a entrada escura e misteriosa, longe do alcance das ondas e escondida de ambos os lados por rochas recortadas.

Ele acenou para Barda e Jasmine e, em silêncio, todos se esgueiraram até a entrada da caverna. Uma corrente de ar frio e úmido soprou-lhes a face. Era como se o hálito do mar, com traços de sal e morte, os atingisse.

Filli choramingou em seu esconderijo sob o casaco de Jasmine. Ela o afagou a fim de acalmá-lo e avançou para a escuridão.

Lief e Barda seguiram-na depressa. Lief piscou, esperando que os olhos se adaptassem à fraca luminosidade. Mas, mesmo antes que isso acontecesse, ele soube que não havia vida naquela caverna. Seria impossível que um lugar em que vivesse alguma criatura fosse tão silencioso.

No entanto, sua pele estava arrepiada como se um perigo os ameaçasse. De repente, escutou Jasmine abafar uma exclamação e Barda emitir um leve gemido. Ele retirou a adaga do cós da calça...

E, então, Lief viu os que os companheiros tinham visto antes dele.

Uma cova abria-se no chão, uma cova que conduzia a uma terrível escuridão. Podia-se ver, pela areia amontoada ao seu redor, que fora cavada recentemente. Havia pegadas de pesadas botas por toda parte.

Um pedaço de papel se achava meio enterrado na areia. Lief o apanhou e constatou ser outra cópia do mapa dos piratas.

Com a voz trêmula, Lief leu a mensagem para que todos a ouvissem.

- Perdição adivinhou a nossa meta. E nos traiu! - exclamou Jasmine.

Lief forçou os lábios paralisados a se moverem.

- Talvez não seja tarde demais. Talvez os piratas não tenham encontrado a pedra. Talvez a Besta do Labirinto os tenha matado.

- Receio que isso seja esperar demais.

Barda apanhara outro objeto na areia. Era uma pequena caixa de madrepérola. Suas dobradiças tinham sido quebradas como se mãos rudes e ávidas a tivessem forçado.

- Eles estão com a pedra - constatou Barda. Chegamos tarde demais. É o fim.

- Não! Precisamos ir atrás deles! Precisamos encontrá-los! - gritou Lief, amassando o papel que tinha nas mãos.

- Não se engane - aconselhou Barda. - Com tal riqueza nas mãos, os piratas não vão voltar ao rio. Eles já devem estar em alto-mar para ficar o mais longe possível de Perdição e encontrar estranhos com quem negociar. Eles estão fora de nosso alcance.

Ele apoiou a mão no ombro de Lief num gesto de conforto.

- É um golpe duro, mas precisamos encarar a verdade. Nossa busca terminou. Precisamos voltar a Del.

Ele chutou a areia revirada e continuou:

- Pense nisso, Lief. Agora os seus pais podem ser libertados. Você pode ir até o palácio e se revelar, fingir que apenas fugiu, como o seu pai disse.

A nossa busca terminou. Encare a verdade. Lentamente, Lief assentiu. Melancolicamente, pensou em Dain, que não mais podia ser ajudado.

Jasmine mantivera-se em profundo silêncio. Lief a fitou e a viu parada na outra extremidade da caverna, totalmente imóvel. Kree encontrava-se pousado em seu braço como uma estátua. O rosto de Jasmine estava encoberto pela sombra, mas algo brilhava em sua mão. Lief sentiu-se gelar.

Jasmine empunhara a adaga. Mas para quê? E por que estava tão imóvel? Ela parecia ter receio de se mover. Receio de assustar...

Ele se virou devagar. E, de repente, alguém que se esgueirara por trás dele investiu com a rapidez de uma serpente. Barda arremessou os braços para cima com urro de agonia quando a enorme espada o atingiu, atravessando-lhe o peito.

Lief ouviu o próprio grito ecoando no interior da caverna. Com os ouvidos zunindo, o coração constrangido, ele se virou com um movimento rápido, adaga na mão, pronto para atingir o atacante.

E foi tomado pela surpresa. Parado ali, ofegante e abatido, puxando a espada manchada de sangue do corpo caído, encontrava-se outro Barda.

Lief virou-se atordoado, para olhar o vulto caído no chão. Com repugnância, viu o rosto se dissolvendo, o corpo se transformando em uma massa contorcida. De dentro dela, surgiram as mãos longas e crispadas do parceiro de dança da mulher de rosa, que logo foram seguidas pela cabeça de um pássaro aquático branco e muitos outros olhos e bocas que Lief não reconheceu.

- Um Ol! - murmurou.

- Claro! - A voz de Barda soou retumbante às suas costas. - Como vocês se deixaram enganar?

Ao ouvir o resmungo irritável e gloriosamente conhecido, Lief deixou cair a adaga com um grito de alegria e atirou os braços ao redor de Barda.

- Calma - pediu o homenzarrão, pouco à vontade, mas sem recuar.

- Quando eu o vi na entrada da caverna, não acreditei! - Jasmine saltara para o lado de Barda e também o abraçava. - Como isso aconteceu?

- O Ol pensou que eu estava morto - Barda contou, dando de ombros. - Mas não sou pessoa que se deixa matar tão facilmente. Eu rastejei até a margem e lá passei bastante tempo me recuperando para poder seguir vocês. As pegadas me surpreenderam, mas, quando cheguei aqui, compreendi.

Ele fez uma careta na direção do corpo do OL, agora apenas uma poça borbulhante no chão da gruta.

- Eu devia ter desconfiado! - disse Lief. - Você... quer dizer... essa coisa falou de como tínhamos escapado dos piratas e de um Ol! E, no entanto, você tinha caído na água antes que a mulher de rosa se revelasse ser um deles. Como você poderia saber o que aconteceu?

- Não é de surpreender que a criatura estivesse tão quieta e gentil! - Jasmine exclamou. - Ela podia copiar a sua aparência e voz e saber coisas a nosso respeito pelo que dizíamos. Mas ela não conhecia o seu comportamento. Ela não teve tempo de aprender como você realmente é.

Barda ergueu uma sobrancelha e Jasmine se deu conta, tarde demais, de que as suas palavras não tinham sido muito lisonjeiras. Ela disfarçou apanhando a segunda adaga e enfiando-a na bota.

- Talvez eu não seja especialmente calado e gentil por natureza, Jasmine - Barda retrucou secamente -, mas, por outro lado, eu não seria convencido a abandonar a nossa busca por causa de um pequeno problema.

- Pequeno problema?! - exclamou Lief. - Os piratas têm a sexta pedra e o Cinturão! E eles estão muito longe daqui.

- Como você sabe que eles estão longe? - indagou Barda. - Por que um Ol lhe disse? Pelo que sei, nesse exato momento, os piratas podem estar escondidos na baía além do promontório.

Barda gesticulou na direção da cova feita na areia.

- E, se eles encontraram a pedra, tanto melhor! Eu prefiro tirá-la deles do que enfrentar a Besta!

A visão nauseante que a opala lhe tinha oferecido voltou à mente de Lief. De repente, ele sentiu necessidade de ar fresco. Ele se virou e deixou a caverna às cegas...

... direto para os braços de um homem sorridente cujo nariz aquilino quase lhe chegava ao queixo, cujos dentes amarelos não passavam de cacos afiados e cujos olhos selvagens cintilavam triunfantes.

Eram somente dois piratas, mas Barda e Jasmine não tiveram escolha senão se render ao verem a espada encostada à garganta de Lief. Cruelmente amarrados juntos, os três foram arrastados pelas rochas até um bote a remo, enquanto Kree voava impotente sobre eles.

- E então, Nak, eu não lhe disse que tinha visto movimento na caverna? - tagarelava o homem com os dentes estragados. - Não valeu a pena remar até a praia?

- Vamos nos divertir um bocado com eles concordou - a companheira, a enorme mulher ruiva que agarrara Jasmine no Rainha do Rio.

Ela torceu os dedos nos cabelos de Jasmine e maldosamente puxou a cabeça da garota para trás, para que ela a olhasse diretamente no rosto.

- Você vai aprender a não chutar aqueles que mandam, senhorita! Nós temos um destino especial reservado para invasores de nossa praia. Um bichinho de estimação que queremos que conheça, não é mesmo, Finn?

O homem soltou um riso abafado. Ao sentar-se no bote, ele desabotoou o casaco, revelando o cinturão bordado. Finn notou o olhar de Lief sobre ele e sorriu maldosamente.

- Sente falta dele? - zombou. - Não estou surpreso. Ele é mais pesado do que parece - é mesmo coisa fina! Mas você não vai precisar dele no lugar para onde vai.

E, ainda rindo, ele se inclinou sobre os remos.

Depois que o bote alcançou águas mais calmas, além da arrebentação, Finn deu meia-volta, e eles tomaram o caminho que os companheiros haviam percorrido para chegar até ali. Eles atingiram o ponto em que o Tor deságua no mar e avançaram, enquanto Kree lutava contra o vento acima deles, e Finn e Nak se esforçavam para vencer a correnteza.

Finalmente, eles passaram o respiradouro e contornaram os rochedos com cautela. E ali, balançando nas águas rasas, oculto em uma enorme caverna no promontório, encontrava-se o navio pirata.

- Não nos siga, Kree! - Jasmine gritou para o céu. - Espere!

- E ele vai esperar para sempre! - zombou Nak.

Quando o bote a remo deslizou para o interior da caverna, Lief viu o restante da tripulação pirata comendo e bebendo em um imenso recife acima da água. O polípano corria de um lado para outro carregando pratos, recebendo ordens de todos. Havia

algo diferente nele, Lief percebeu. Ele parecia atormentado e infeliz, mas isso não era tudo. Lief refletiu por alguns instantes e, então, percebeu mais um detalhe.

Dain estava deitado em um canto, firmemente amarrado. Outro prisioneiro estava junto dele, um homem com um apertado casaco azul.

Nak e Finn foram recebidos com vivas. Lief, Barda e Jasmine foram empurrados e alvo de chacotas por alguns momentos e depois jogados ao lado de Dain e do outro homem.

- Os seus gritos serão música para os meus ouvidos! - berrou Nak enquanto se voltava com arrogância para junto dos companheiros. - Mas será muito mais doce de estômago cheio - completou.

Assim que ela se afastou, Lief viu Filli deslizar para fora do casaco de Jasmine e correr para a bota da dona. Com todo o empenho de que era capaz, a pequena criatura tentou puxar a adaga escondida, mas a tarefa estava acima de suas forças.

Os olhos exaustos de Dain estavam anuviados pelo sofrimento.

- Eu sabia que, se vocês estivessem vivos, viriam me procurar - ele sussurrou. - Primeiro, rezei para que viessem, depois para que não conseguissem chegar aqui. Agora, o que eu temia aconteceu. Eles apanharam vocês.

- O que pretendem fazer conosco? - Lief perguntou baixinho.

- Eu não sei - Dain respondeu, molhando os lábios. - Mas eles falam de algo chamado Glus.

O homem do casaco azul gemeu aterrorizado.

- Este é Milne - Dain apresentou, olhando para ele. - Eles o chamam de traidor. Ele tentou matar Nak quando disse que ela era tola por me trazer com eles.

"Milne", lembrou Lief. "Milne, Nak, Finn. Bem, eu esperei encontrar os donos desses nomes, e foi o que aconteceu. Se tivermos que morrer, pelo menos levaremos um deles conosco."

O polípano estivera farejando ao redor deles. Naquele momento, enfiou a cara no peito de Lief e choramingou. Lief tentou empurrá-lo para longe, pois o cheiro dele era terrível e o fazia lembrar-se de algo, mas ele não sabia dizer o que era.

- Eles ainda vão nos entregar aos Guardas Cinzentos, Dain? - Jasmine quis saber.

- Sim, embora tenha havido uma discussão feia a respeito. Milne e os outros aprovaram o plano, mas Nak e Finn estavam com medo.

- Medo? - Lief olhou para Nak e Finn, que riam ao redor do fogo. - Eles não parecem ter medo de nada.

Uma expressão estranha e desconcertada percorreu o rosto de Dain.

- Eles têm medo de Perdição - ele sussurrou. - Finn disse que, se Perdição algum dia descobrisse que eles traíram a Resistência intencionalmente, a vida deles não valeria um punhado de cinzas. Perdição iria caçá-los um a um, e eles nunca conseguiriam escapar.

Se me enganar, você vai desejar ter morrido no Labirinto. Então, aquele era o motivo para que os piratas ainda estivessem ali, constatou Lief. Eles tinham muito medo de fugir de Perdição.

- Vamos partir esta noite - Dain contou. - Nak e Finn se recusam a ir. Eles vão ficar aqui com o saque. Os demais vão navegar comigo rio acima para encontrar os Guardas perto da Montanha do Medo.

O polípano batia outra vez em Lief com a pata.

- O que está incomodando você? - Lief indagou com raiva, tentando esquivar-se dele. - O que você quer de mim?

E então, de repente, ele compreendeu.

Lief sussurrou ansioso enquanto o polípano ouvia. Primeiro, ele sacudiu a cabeça e, então, finalmente, assentiu e afastou-se em disparada.

Barda e Jasmine concentrados em Dain não haviam notado o que se passara.

Dain mordia o lábio, evidentemente ainda confuso e atordoado pelo que ouvira os piratas dizerem.

- Pensei que conhecia Perdição - ele balbuciou. - Agora acho que o conhecia muito pouco. Finn falou dele como se ele tivesse poderes maiores do que os de um homem comum.

- Então Finn é um idiota! - disse Jasmine decidida. Ela ergueu o queixo quando todos a fitaram. - Eu lutei com Perdição em Rithmere, lembram-se? - ela prosseguiu. - Eu senti o perigo que ele representava e o compreendi. Perdição não se importa de viver ou morrer. Seja lá o que tenha sofrido, marcou o seu coração e o seu rosto. Agora, dentro dele só existem raiva, amargura e insensibilidade.

- Então ele não tem mais nada a perder - murmurou Barda.

- E isso o torna um inimigo mortal - deduziu Jasmine, estremecendo. - Essa é a fonte de seu poder. Mas é o tipo de poder que não me interessa ter. - Ela ergueu a mão a fim de acariciar o pêlo de Filli.

Chett aproximou-se tagarelando e puxou a manga da camisa de Lief com impaciência.

- Ponha-o em mim, debaixo da camisa - Lief sussurrou. - E só então...

Desta vez, Barda, Jasmine e até Dain observavam. Lief notou os olhos dos amigos se arregalarem quando o polípano, resmungando, prendeu o cinto bordado à cintura de Lief. Ele os viu olhar assustados para Finn, que estava comendo e bebendo com os companheiros, sem perceber que tinha sido roubado.

- Você é mesmo um ótimo ladrão, Chett - Lief elogiou. - Ele virou para o lado e deixou que o polípano pegasse o que queria em seu bolso: o pequeno pacote que comprara de Steven. A criatura desembrulhou a massa marrom e brilhante, enfiou-a na boca e começou a mastigar feliz.

- Parece que esse caramelo é o favorito dos polípanos - brincou Lief.- Chett acompanhou os piratas sem saber que eles não o mantém em estoque para dá-lo como recompensa, como fazia o capitão do Rainha do Rio. Não foi muita sorte eu ter alguns comigo?

- Jasmine tem uma segunda adaga na bota - Barda contou, molhando os lábios. Será que Chett a tiraria em troca de outro pedaço para mais tarde? - ele perguntou.

O polípano negou com um gesto de cabeça.

- Eu já tentei isso - respondeu Lief devagar. - Mas ele tem medo de ir longe demais. Eu disse que Nak e Finn nunca iriam descobrir quem foi o culpado...

- É claro que não! - Barda e Jasmine concordaram em uníssono. Mesmo assim, o polípano sacudiu a cabeça com determinação, lançando olhares invejosos aos bolsos de Lief.

- Claro - Barda reforçou. - E o outro pequeno tesouro, Lief? A linda jóia encontrada apenas há um ou dois dias? Em uma caixinha de madrepérola?

- Parece que Chett nunca ouviu falar dela. Acho que Finn está mantendo segredo.

- Tesouro? - Repentinamente interessado, Milne rolou sobre o corpo e fitou-os com os olhos injetados. Dain igualmente ergueu-se em um cotovelo e fitou-os.

Hesitante, sem saber se estava agindo com prudência, Lief continuou a tagarelar com indiferença.

- Tínhamos um mapa, mas chegamos ao lugar tarde demais. Finn já tinha estado ali. Espere! Eu vou lhe mostrar.

Ele sussurrou algo para o polípano. Mastigando loucamente e sorrindo deliciado, ele mergulhou a mão em outro bolso e retirou o mapa que Lief tinha encontrado no chão da caverna. Ele se aproximou, colocou-o na frente de Milne e voltou correndo para perto de Lief. Este se virou mais uma vez para que a criatura pudesse apanhar a segunda recompensa.

Milne examinou o mapa com os olhos semicerrados. Seus lábios se moviam enquanto tentava decifrar as palavras, principalmente o bilhete ao lado, o bilhete assinado "Perdição". Durante um breve momento, ele ficou em silêncio. Então, com um riso de escárnio, ele virou de costas e voltou a cabeça para o outro lado.

Antes que Lief pudesse se perguntar o que representava aquela atitude, ele foi rudemente obrigado a se erguer.

- Chegou a hora de nos livrarmos do lixo! - Finn riu, sacudindo Lief pelo colarinho. Os demais piratas, corados de tanto comer e beber, aglomeraram-se sobre as vítimas e começaram a arrastá-las para fora da caverna e para a extensa rocha lisa que se estendia até o mar. Dain, deixado para trás, gemia indefeso e lutava com as cordas que o prendiam.

- Escutem! - Lief gritou com todas as forças. - Finn os enganou! Ele tem um tesouro que não dividiu. Ele encontrou uma grande pedra preciosa!

Houve um silêncio repentino.

- Como? - perguntou Nak com dureza, olhando para Finn. - Uma grande pedra preciosa? E onde ele a encontrou?

- No Labirinto da Besta! - Lief gritou.

Para sua surpresa, os homens e mulheres à sua volta, inclusive Nak e Finn, começaram a rir às gargalhadas.

- Aha! E talvez você e seus amigos possam encontrar mais uma! - zombou a mulher. - Sem dúvida alguma, Glus vai ficar feliz em ajudar vocês a procurar. Vamos cortar as suas cordas para que possam se divertir por mais tempo.

Seguiu-se um som de pedra raspando sobre pedra quando uma enorme rocha foi empurrada de cima de um buraco escuro e redondo que havia no penhasco.

- Boa caçada! - Finn desejou rispidamente. Lief sentiu as cordas sendo cortadas e, logo depois, sentiu-se empurrado pelas costas. E então ele caiu de cabeça para baixo no buraco, para dentro da escuridão.

Lief se viu cercado por muitos sons: Milne soluçando num terror impotente, risos indistintos vindos de cima depois que a pedra foi empurrada de volta ao seu lugar, o gotejar de água que ecoava nos espaços intermináveis e sinuosos. E algo pior:

o deslizar pegajoso e furtivo de algo imenso e ágil.

Lief abriu os olhos, sabendo o que iria enxergar.

Uma luz azulada e misteriosa; enormes lanças de pedra gotejantes que pendiam do teto; pilares largos e encrespados que se erguiam do solo; colunas retorcidas, onduladas e sulcadas como se fossem água em estado sólido; paredes estriadas e reverberantes nas quais escorria um líquido leitoso.

O Labirinto da Besta. Como ele pôde imaginar que escapariam dele? Aquele momento sempre fizera parte de seus destinos.

Lief virou-se, estremecendo com a dor no ombro. Jasmine e Barda moviam-se lentamente, a cabeça erguida, olhando ao redor, confusos e aturdidos. Milne debatia-se e chapinhava na água que cobria o solo.

O som deslizante se intensificou.

- Ele está vindo - Milne soluçou. - Glus...

Jasmine arrancou a adaga de dentro da bota e virou-se bruscamente, olhando para todos os lados.

- Não sei de onde ele vem! - ela gritou. - Parece que estamos cercados por ele. De que lado?...

O som da carne monstruosa e deslizante tomava todo o lugar.

E então eles a viram: uma besta gigantesca semelhante a uma lesma de palidez doentia arrastava-se na direção deles. A criatura ocupava inteiramente a ampla passagem pela qual rastejava, o corpo inchado encrespando-se horrivelmente, os olhos minúsculos oscilando nas extremidades de hastes no alto da terrível cabeça.

Tagarelando aterrorizado, Milne conseguiu erguer-se.

Glus avançava, erguendo a cabeça, enquanto a cauda recoberta de espinhos açoitava o ar. A boca vermelho-sangue escancarava-se faminta. Listras mosqueadas coloriam-lhe as costas.

Então, começou um som grave, gorgolejante vindo do fundo de seu peito. E, com uma brusquidão assustadora, um emaranhado de finos fios brancos foi lançado de sua garganta diretamente sobre Milne.

Aos gritos, o pirata esquivou-se deles num movimento súbito, agitando os braços vigorosamente. A maioria dos fios não conseguiu atingi-lo por pouco, mas alguns alcançaram uma das mãos e um ombro e ataram-nos juntos como se fossem cordas de aço.

Ele cambaleou e caiu, lutando para libertar a mão, rolando e desferindo chutes na água.

- Levante-se! - gritou Jasmine, saltando na direção dele e estendendo a mão. A Besta avançou lentamente, ergueu-se nas patas traseiras, as listras em suas costas brilhando como luzes cruéis, as hastes em sua cabeça movendo-se e inclinando-se,

enquanto os olhos frios e inexpressivos se fixavam nela. Jasmine desferiu um golpe contra o monstro numa inútil tentativa de mantê-lo a distância.

As mandíbulas vermelho-sangue se abriram. O som grave e gorgolejante recomeçou. Mesmo assim, Jasmine estendeu o braço para Milne, enquanto ele continuava a gritar e a se debater apavorado.

- Jasmine! Não! Você não pode ajudá-lo. - Barda agarrou Jasmine pela cintura e puxou-a para trás e para o lado no exato momento em que a criatura atacou novamente. Fios brancos saíram como cascata de sua garganta e cobriram a cabeça e o pescoço de Milne como um capacete branco imobilizador.

Mal podendo enxergar, enlouquecido de pavor, Milne tropeçou e chapinhou cegamente na água com um dos braços dobrado e impotente enquanto mergulhava nas profundezas do labirinto de luzes azuladas.

Glus parou, os olhos balançando em suas hastes. Então, enquanto os companheiros esperavam paralisados, fitando-a com um terror fascinado, a Besta virou o imenso corpo sem esforço, passou com facilidade por um pequeno espaço entre duas colunas e o seguiu.

- Agora é a nossa chance - disse Jasmine incisiva. - Depressa! Sinto o cheiro de ar fresco entrando por ali. E, onde existe ar, existe uma saída.

- Dê-me a adaga - sussurrou Lief, tirando o cinto bordado. Sem nada dizer, Jasmine atirou-lhe a arma; Lief enfiou a ponta afiada no tecido e rasgou-o. O Cinturão de Deltora deslizou para as suas mãos.

Lief fitou-o por uns rápidos momentos. O objeto era tão maravilhoso, tão precioso. Mas o rubi estava descorado e a esmeralda perdera o brilho.

Perigo. Maldade. Medo.

- Lief! - Barda chamou.

Lief prendeu o Cinturão ao redor da cintura, agarrou-o com ambas as mãos a fim de extrair de seu significado e calor tão conhecidos a força de que necessitava. Talvez ele nunca mais ficasse completo. Mas, mesmo assim, ele tinha poder. O topázio deixou escapar entre os seus dedos um brilho forte e dourado.

O topázio é uma pedra poderosa e a sua força aumenta com a chegada da Lua cheia... Ele fortalece e aclara a mente...

A Lua pairava acima deles, bloqueada pelo mar revolto e pela montanha de rochas, mas o seu poder ainda era capaz de atingir a pedra. Lief sentiu a mente se aclarar e aguçar, e a névoa de confusão e medo se afastou.

- Por aqui! - gritou ele, apontando para uma passagem que os conduzia para longe do caminho pelo qual Milne tentara escapar. - Mas vamos devagar e com cuidado. Acho que os olhos e os ouvidos da Besta são fracos, mas ela é atraída por movimentos.

Ela pressente os movimentos no Labirinto como as aranhas sentem os insetos que se debatem em suas teias. Foi por isso que ela perseguiu Milne e não ficou para nos atacar.

Foi uma agonia mover-se devagar quando todos os instintos lhes ordenavam para correr cegamente como Milne havia feito. Eles avançaram rastejando, passagem após passagem, virando para um lado e outro. Molharam as mãos e o rosto para melhor sentir

o ar frio que lhes indicaria a presença de uma brecha, de uma saída.

Finalmente, eles chegaram a um ponto além do qual não podiam prosseguir. Os amigos espremeram-se para o interior de um espaço estreito entre duas colunas onduladas e gotejantes. Ali descansaram ofegantes e trêmulos, uma das paredes pressionando-lhes a costas; a outra, a centímetros de seus rostos. O som dos gritos e dos passos de Milne na água ecoavam no ar. Ele ainda corria perdido em algum lugar do labirinto.

E o terrível som emitido pelo monstro não cessava nunca.

- Ele está se movendo tão devagar... - sussurrou Jasmine, os ouvidos atentos. - Como ele acha que vai apanhá-lo?

- Ele só precisa segui-lo e esperar - Barda afirmou. - Mesmo que Milne não cometa nenhum erro e não se depare com o monstro em alguma esquina, cedo ou tarde ele vai ter de parar para descansar.

A voz de Barda parecia estranha. Lief o fitou rapidamente. Barda examinava a parede à sua frente; com cuidado, ergueu a mão e, lentamente, identificou algumas formas na pedra reluzente.

Um braço esquelético. Cinco dedos. Um crânio, a boca aberta num grito silencioso.

- Aqui está um que parou para descansar por um tempo longo demais - deduziu Barda. Ele virou o pescoço e olhou por cima do ombro. Gotas leitosas escorriam devagar e incessantemente, parede abaixo às suas costas. Naquele momento, elas já se acumulavam em seus ombros e formavam uma fina camada de pedra.

Com um grito de horror, Lief e Jasmine afastaram-se da parede. A camada de pedra que se formara e secara quebrou e caiu de seus ombros e costas na água a seus pés. Eles se esgueiraram para fora do esconderijo e, ao olhar para trás, viram os contornos dos próprios corpos gravados na parede.

- Quanto tempo teria sido necessário para que ficássemos presos? - indagou Barda sombrio. - Uma hora, talvez? Ou menos? Se dormíssemos...

O grupo começou a se mover novamente, e desta vez os três notaram o que realmente eram as formas retorcidas, as protuberâncias e ranhuras nos pilares, colunas e paredes. Para todos os lugares que olhavam, havia ossos de mortos: mãos crispadas, pernas esticadas, crânios que pareciam gritar de pavor.

Lief sentiu o corpo todo estremecer. Ele imaginou o horror de caminhar e se ver preso na armadilha que as paredes representavam. Ele se imaginou lutando incessantemente... enquanto Glus se movia lentamente em sua direção.

- Não podemos descansar - murmurou ele. - Não podemos dormir.

Os três amigos continuaram a avançar com dificuldade, tentando mover-se o mínimo possível, os rostos voltados para as paredes, as mãos estendidas à frente. Após alguns momentos, os pensamentos de Lief transformaram-se em uma confusão delirante composta de água, movimentos incessantes e palavras. Existe uma saída. Precisamos encontrá-la. Não podemos descansar. Não podemos dormir.

A cabeça de Lief tombou para a frente, despertando-o com um solavanco. Ele piscou confuso e percebeu que vinha andando num sonho sem ter noção de quanto tempo se passara.

Vagamente, deu-se conta de que os gritos e movimentos de Milne haviam cessado. Talvez eles tivessem parado muito tempo atrás.

E se... e se Milne tinha parado de correr, onde estaria a Besta? Com suor brotando na testa, Lief escutou os ecos e, finalmente, conseguiu distinguir um som baixo e horrível, misturado ao gotejar da água. Não se tratava apenas do deslizar pegajoso que ouvira antes, mas um som baixo e sussurrante que lhe arrepiava os cabelos da nuca.

- Barda, Jasmine... - ele sussurrou. Mas seus amigos não responderam. Eles se moviam, porém o olhar deles estava parado e vidrado. Eles se encontravam no estado de sonho em que ele estivera.

Ele respirou fundo para falar outra vez e, então, de repente, foi como se uma chama percorresse o seu corpo, dos pés à cabeça.

O Cinturão! O Cinturão se aquecera! Lief parou assustado e incrédulo. Um pilar de pedra arredondado encontrava-se ao seu lado e, cautelosamente, ele se aproximou. O Cinturão ficou ainda mais quente e parecia queimar sob seus dedos.

Barda e Jasmine viravam uma esquina e desapareceram de vista. Lief os chamou, espadanando na água descuidado e segurou-os pelo braço.

Então, ele ficou paralisado, pois Glus encontrava-se exatamente diante deles. O seu corpo inchado se encrespava e ondulava, ocultando-lhe a cabeça. E da encrespada montanha de carne vinha o som suave e hediondo.

Contudo, naquele mesmo momento, o som parou. O corpo ficou imóvel, a cabeça endireitou-se e voltou-se para os amigos, a boca aberta e pingando sangue. Glus avançava devagar, afastando-se dos restos mortais de Milne em que estivera se banqueteando,

e se aproximava das novas presas. A sua cauda em ponta curvava-se para cima e as listras em suas costas começaram a brilhar.

E então ele atacou, projetando-se para a frente, e fios brancos saíram sibilando de sua garganta.

Lief, Jasmine e Barda saltaram para trás, caíram na água, ergueram-se rapidamente e se afastaram aos tropeços. O monstro avançou um pouco mais depressa.

Os companheiros chegaram ao pilar de pedra. Lief segurou-se nele, o Cinturão queimando-lhe a cintura.

- Barda, Jasmine, a pedra está aqui, dentro do pilar de pedra - ele gritou.

Barda e Jasmine viraram-se bruscamente incrédulos. Ele assentiu com um gesto veemente.

- Fomos enganados. A pedra estava aqui o tempo todo.

- Lief, esqueça-a! Precisamos correr! - pediu Jasmine com determinação, agarrando-o pelo braço, os olhos no monstro que, inchado e aterrador, emitia da garganta o som gorgolejante.

- Não! - gritou Lief, segurando-se com firmeza ao pilar. - Se sair daqui agora, nunca mais a encontrarei.

- Se ficar, morrerá! - Jasmine retrucou com voz estridente. - Lief! Barda segurou-lhe o ombro, o rosto sombrio e sério.

- Jasmine e eu vamos atrair a Besta para o outro lado, Lief. Fique quieto, imóvel como uma pedra, até que tenhamos desaparecido. Depois, pegue a pedra e faça o melhor que puder para encontrar a saída. Jasmine! A sua adaga!

- Não! Precisamos ficar juntos! - retrucou Lief quando Jasmine lhe passou a arma.

Mas Barda puxava Jasmine que remexia em sua jaqueta. Finalmente, ela retirou uma bola de lã amarela. Livrando-se da mão de Barda, ela correu de volta para perto de Lief, puxando um fio à medida que corria.

- Achei isso em Onde as Águas se Encontram. Segure firme! - gritou, deixando a extremidade solta na mão do amigo. - Assim poderemos voltar até onde você se encontra.

- Cuide-se! - Barda pediu.

Lief deslizou para trás do pilar, e Jasmine se afastou depressa. Outra massa confusa de fios brancos foi lançada na direção deles e caiu na água pouco antes de atingi-los. Jasmine se virou e correu, chapinhando para junto de Barda, deixando uma trilha de lã atrás de si. Eles avançaram pela água com dificuldade até se perderem no labirinto.

E, então, restou somente o ruído da água, o gotejar do teto e o furtivo deslizar de Glus, lento e constante.

Lief agachou-se, prendendo a respiração quando o monstro passou por ele, os olhos minúsculos ondulando nas pontas das hastes carnudas. O seu corpo encolheu e tornou a se abaular horrivelmente quando ele atravessou a passagem estreita na pedra.

Lief pôde ver que a pele da criatura era coberta por finos pêlos eriçados que estremeciam sensíveis, diante de qualquer ruído ou pequeno movimento nas águas de seu reino. Um erro e o monstro estaria sobre ele.

Imóvel. Imóvel como uma pedra.

A Besta continuava a rastejar. Todos os músculos do corpo de Lief se contraíam ávidos por movimento. Mas ele se manteve quieto, o fino fio amarelo que era a sua ligação com Barda e Jasmine firmemente preso à sua mão.

Lief ergueu-se com cautela. A criatura tinha desaparecido havia muito tempo. Ele podia ouvi-la movimentar-se ao longe, mas não conseguia mais ouvir o chapinhar na água provocado por Barda e Jasmine. Eles haviam parado, talvez para confundir o monstro ou simplesmente para descansar. De qualquer modo, eles o haviam conduzido para longe dele. Eles haviam feito sua parte. Agora ele podia cumprir a dele.

"Para quê, Lief?", uma voz em seu interior parecia zombar. "Com a pedra ou sem ela, você vai caminhar por esse labirinto até não mais poder. Então, Glus vai prendê-lo com seus fios pegajosos e sugar a carne de seus ossos. Ele fará com você o mesmo que fez com Milne."

Lief afastou a voz de sua mente, pousou uma das mãos sobre o Cinturão de Deltora e a outra no pilar de pedra. Ele deslizou os dedos sobre a superfície fria e úmida, esperando...

Assim, Lief sentiu o inconfundível latejar que o avisou onde a pedra se encontrava, um pouco acima da metade do pilar.

Lief começou a cavar com a ponta da adaga, mantendo a mão livre em concha logo abaixo para apanhar os fragmentos que caíam. A camada externa do pilar era mole e úmida e foi facilmente removida. Não demorou para que ele fizesse um buraco grande

o bastante para introduzir a mão. Contudo, quando alcançou o centro do pilar, percebeu que a tarefa era mais difícil. O aço afiado mal arranhava a camada mais dura da rocha. Além disso, o medo de danificar a pedra preciosa se fosse descuidado ou rápido demais não o abandonava.

Ele não conseguia ver, ouvir ou sentir nenhum cheiro dentro do buraco. "Assim sendo, tudo o que me resta é o tato" pensou. "Devo fazer como Glus e permitir que o tato me guie."

Lief fechou os olhos e moveu a mão ao longo da adaga até atingir a extremidade com a ponta de seus dedos. Ele raspou com delicadeza, mentalmente chamando a pedra oculta, ao mesmo tempo em que sondava com os dedos o toque que lhe diria...

E lá estava. Um centro frio e imóvel dentro da coluna. No momento em que seus dedos o tocaram, o objeto frio rolou para a sua mão, a pedra branca que a envolvia transformando-se em pó.

Lenta e cuidadosamente, ele retirou a mão e abriu os dedos. Ali, velada por uma camada de poeira branca, encontrava-se uma enorme pedra roxa.

A ametista, o símbolo da verdade.

Uma sensação de profunda paz invadiu Lief quando ele limpou o pó de sua superfície reluzente, maravilhado diante de sua beleza. O Cinturão ao redor de sua cintura queimava, mas a sua mente estava tranqüila e serena. Ele se lembrou das palavras sobre a ametista que vira em O Cinturão de Deltora:

A ametista, símbolo da verdade, acalma e tranqüiliza...

"De fato", Lief pensou. "Calma é do que precisamos agora. Calma para colocar a pedra no Cinturão, onde estará segura, para esperar até que Jasmine e Barda retornem e para acreditar que eles vão retornar."

Ele se agachou, a água dançando à sua volta. Abriu o fecho do Cinturão e estendeu-o sobre os joelhos. A ametista deslizou para o seu lugar ao lado da esmeralda e ali exibiu o seu brilho inalterável. Lief recolocou o Cinturão e, com cuidado, levantou-se outra vez.

"Agora só preciso esperar", disse a si mesmo. Lief ergueu as mãos molhadas a fim de secá-las na camisa. E foi nesse momento que ele sentiu nas costas da mão esquerda uma leve corrente de ar fresco vindo por trás.

Lief virou-se muito devagar. Estendendo a mão diante dele e guiado pela corrente de ar, ele foi até a parede que assomava do outro lado do pilar de pedra.

Havia uma pequena brecha na parte superior que poderia ser simplesmente uma concavidade na rocha, mas não era esse o caso. Por aquela brecha, passava ar fresco e salgado, e Lief não só podia sentir a sua presença, mas também o seu cheiro.

Ele ergueu a adaga de Jasmine, escavou no local e um pedaço de pedra caiu em sua outra mão. Uma brisa suave continuava a soprar. Obrigando-se a ser paciente, ele pousou a pedra solta no chão a seus pés. Ergueu-se, escavou novamente e, desta vez, um fragmento maior se soltou e a brecha ficou mais ampla. O ar soprava em seu rosto e o som abafado de água em movimento misturava-se ao do vento.

O peito de Lief estava apertado. Ofegante, ele tocou a ametista a fim de se acalmar. Era vital que ele não se apressasse nem entrasse em pânico. Ele colocou a pedra maior no chão com tanta suavidade quanto depusera a primeira. Em seguida, escavou outro pedaço de rocha e mais outro...

Esse último movimento, contudo, rompeu a parede de pedra e a água começou a verter pela abertura. O túnel que se encontrava além da parede estava cheio de água e Lief escavara fundo demais.

Quase com desespero, ele viu o novo jato atingir a água a seus pés. O som parecia incrivelmente alto. A água ondulava e formava redemoinhos e não havia nada que ele pudesse fazer para impedi-la de entrar. Como se a sua mente fosse dotada de olhos, ele viu os pêlos de Glus se eriçarem. Ele viu o monstro virar-se, inclinando a cabeça. Ele o viu mover-se... em sua direção.

Ao longe, Lief ouviu passos apressados que se aproximavam. No mesmo momento, sentiu que o fio de lã amarela preso ao seu pulso fora puxado. Ele se obrigou a esperar e observar.

- Lief! - O chamado surgiu em meio às sombras branco-azuladas. - Lief, o que está acontecendo? Lief, ele está vindo!

Barda e Jasmine corriam até ele, seguindo o fio amarelo.

Lief não esperou mais. Ele saltou, içando-se para a abertura existente na parede, suspendendo a respiração quando a água gelada bateu-lhe na cintura. Havia pedra sobre a sua cabeça e sob seus pés, mas não era a mesma pedra que formava a caverna.

Ela era muito mais dura e escura e a água não era leitosa, mas límpida e com forte gosto de sal.

Ele se inclinou e estendeu os braços para Jasmine. Quando ela se aproximou, ele a ergueu para junto dele.

Então, foi a vez de Barda. Ele agarrou a extremidade da abertura. A pedra se desfez sob suas mãos e ele caiu, prendendo a respiração quando a água salgada escorreu-lhe sobre o corpo.

- Barda! - Jasmine gritou.

Glus se aproximava, não devagar, mas com uma rapidez impressionante e emitindo um som aterrador. A sua boca abriu-se com um rosnado, um buraco vermelho em meio à brancura. Fios brancos se espalharam no ar diante dele como uma nuvem.

Lief e Jasmine curvaram-se para a frente, os músculos retesados, e puxaram Barda para cima em meio à água que jorrava. Ele desferia chutes frenéticos, os pés lutando para encontrar apoio.

Barda escalou até o túnel e ergueu os pés no momento exato em que uma nuvem de fios se colou à parede abaixo dele. Ele rastejou ofegante, afastando-se da abertura, mas a terrível cabeça de Glus se ergueu e ocupou o espaço.

- Ele está vindo atrás de nós! - Jasmine gritou desesperada. Contudo, o monstro não tentou entrar no túnel. Em vez disso, a sua cabeça começou a oscilar de um lado para o outro. Fios brancos foram despejados da garganta vermelha, colando-se às

bordas da abertura. E então os amigos perceberam qual era a sua intenção.

Glus estava fechando a brecha. Afastar o perigo do Labirinto, o amplo covil que construíra para si durante séculos, era mais importante do que o alimento.

- Que lugar é este? - Os dentes de Jasmine batiam. Ela gritou quando a água no túnel se avolumou de repente, derrubando-a. Ela se ergueu, sem poder respirar, sufocada, enquanto Filli guinchava. Perdendo o equilíbrio por causa da correnteza, Lief agarrou a mão de Jasmine.

- Devemos estar sob a rocha em frente à caverna dos piratas - gritou Barda, sacudindo água dos cabelos e dos olhos. - A maré está subindo. Segurem-se com firmeza.

Com ambas as mãos, ele se agarrou à rocha enquanto a água era sugada de volta, passando pelos três companheiros com rapidez gorgolejante. De dentes cerrados, Lief agarrou-se à mão de Jasmine, impedindo que ela fosse puxada para trás.

- Andem! - Barda rugiu. - E, quando a próxima onda vier, deixem-se levar. Não lutem contra ela!

Novamente, a água se avolumou e se lançou contra eles. Os amigos foram jogados para a frente sem nada poder fazer. Em seguida, foram lançados para a superfície e seguraram-se à rocha quando a água foi sugada para fora.

- As ondas estão ficando maiores! Elas vão inundar o túnel, e nós vamos nos afogar - Jasmine gritou.

- Não vamos, não - Lief quis tranqüilizá-la, segurando-lhe a mão com mais força. - Não chegamos até aqui para morrer agora.

- Ali! - gritou Barda.

Lief olhou para a direção em que o amigo apontava e viu luz.

- É o respiradouro! - Desesperadamente, Barda empurrou Lief e Jasmine naquela direção. - Andem! Depressa! A onda está pronta para rebentar. Precisamos sair antes disso. Vamos!

Lief lembrou-se do jato violento, da água lançando-se às rochas implacáveis e então voltando com uma força a que ninguém conseguia resistir. Ele continuou lutando, meio rastejando, meio nadando, com Jasmine soluçando e movendo-se com dificuldade à sua frente.

Uma nova e imensa onda o dominou, fechando-lhe os olhos, enchendo-lhe os ouvidos com seu rugido. "Será essa a onda que trará a nossa morte?", ele se perguntou, quando foi jogado em direção à luz. Mas ele ainda agarrava a mão de Jasmine e, quando abriu os olhos ardentes, viu o céu sobre suas cabeças. Um céu tingido com a luz do amanhecer. Eles estavam oscilando na boca do respiradouro.

Lief empurrou Jasmine para cima e para fora. Ela deixou-se cair na pedra molhada enquanto ele subia atrás dela, lutando contra a água que parecia puxá-lo de volta para o túnel. Barda surgiu em seguida, ofegante e encharcado, inspirando grandes quantidades de ar.

Juntos, ergueram Jasmine e afastaram-se do buraco aos tropeços, em direção à praia.

Um grito de satisfação se fez ouvir quando Kree esvoaçou até eles, logo seguido por um grito ao longe. Lief olhou para trás e viu dois vultos correndo pesadamente, vindos da caverna dos piratas na direção deles.

Eram Finn e Nak, espadas em punho, urrando furiosos.

"Temos somente uma adaga", lembrou Lief, correndo, a respiração raspando-lhe a garganta. "Uma adaga contra duas espadas..."

E, então, eles ouviram um leve som retumbante.

- Pule! - Barda ordenou.

Lief obedeceu e seus pés atingiram a areia da praia. Ele rolou no chão sem fôlego, enquanto Barda e Jasmine deixavam-se cair ao seu lado, e olhou para trás.

Nak e Finn haviam parado como se tivessem sido congelados enquanto andavam e os seus rostos haviam se transformado em máscaras de terror. Eles começaram a se virar num movimento que pareceu terrivelmente lento, jogaram fora as espadas, dando um passo, depois outro...

Era tarde demais. O respiradouro esguichou com um forte estrondo e os fez cair de costas. Eles rastejaram por alguns instantes, impotentes e, então, com um ruído poderoso, a água caiu sobre eles, fazendo-os girar, apanhando-os em suas garras.

Com um terrível som de sucção, ela começou a voltar rapidamente para o túnel de pedra de onde viera.

Ela desapareceu e nada restou além da pedra lisa e úmida e duas espadas jogadas em poças de água que cintilavam sob o sol nascente.

Os companheiros reuniram os seus pertences da caverna dos piratas, agora deserta, e deram as costas às ondas violentas que quebravam na praia. Exaustos e famintos, eles não queriam nada além de ficar o mais longe possível daquele mar terrível.

O sol ia alto no céu quando eles finalmente encontraram um lugar onde se sentiam seguros: uma cabana perto do rio, há muito abandonada. Eles acenderam uma fogueira na lareira em ruínas para se aquecer. Em seguida, alimentaram-se avidamente de nozes e frutas secas, biscoitos e mel Abelha Rainha, acompanhando a refeição com água das límpidas fontes da Montanha do Medo.

No início, eles pouco falaram. Nenhum deles queria pensar no que tinham visto e do que tinham escapado. Lief lembrou-se de Dain. Será que ele viveria para chegar até Tora? Eles se encontrariam novamente? E quanto a Perdição?

Então, Jasmine falou, estranhamente repetindo os seus pensamentos.

- Você acha que Perdição nos traiu? - ela murmurou. - Ou o bilhete foi forjado para que desconfiássemos dele?

Lief balançou a cabeça incapaz de responder. Ele não sabia.

- O mapa era uma grande mentira. Uma pista falsa - Jasmine insistiu.

- Plantado no pirata morto por aquele Ol que assumiu a minha aparência, para nos induzir ao erro e fazer com que, por fim, vocês abandonassem a busca! - Barda exibia uma expressão de repugnância. - Sem dúvida, havia dezenas de cópias e dezenas de Ols no rio para levá-las. Ols com ordens, não de nos matar, mas de nos enganar.

- Foi por isso que nenhum inimigo nos esperava na praia - Jasmine deduziu, estremecendo. - Desta vez, o plano era nos fazer abandonar a busca e espalhar a notícia de que ela era inútil, para que ninguém tentasse outra vez.

- Ols para matar, Ols para iludir. Ao que parece, o inimigo preparou vários planos. Planos entrelaçados como uma rede, de modo que, se não fôssemos apanhados de uma forma, certamente o seríamos de outra. - Lief olhou fixamente para a superfície

do rio, a superfície lisa e acetinada debaixo da qual horrores flutuavam e se contorciam.

- O Senhor das Sombras pode ter planos - ajuntou Barda, tranqüilo - mas desta vez eles falharam. E por quê? Porque ele cometeu um erro. Ele não contou com os piratas. Eles surgiram de repente e estraçalharam a sua rede.

- E, se tivermos sorte, ele não vai descobrir, pelo menos por enquanto. Afinal, quem sobrou para lhe contar? - Olhando para Lief e Barda, Jasmine acrescentou - Isso quer dizer que, por ora, podemos continuar juntos?

Lief pousou os dedos no Cinturão de Deltora, mais uma vez escondido sob sua camisa. Ele sentiu o contorno das seis pedras preciosas e soube a resposta.

- Nós precisamos continuar juntos - afirmou. - Precisamos um do outro como as pedras no Cinturão. Pela fé, pela felicidade, pela esperança, pela sorte, pela honra e pela verdade.

Barda assentiu com um gesto veemente.

Eles se deram as mãos por alguns momentos e então recostaram-se para descansar.

Outra longa e perigosa jornada os aguardava - a jornada para o lugar chamado Vale dos Perdidos. O grande diamante, símbolo da pureza e da força, a sétima e última pedra do Cinturão de Deltora, os aguardava lá.

Agora, tudo o que tinham a fazer era encontrá-la.

 

                                                                                            Emily Rodda  

 

                      

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