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Series & Trilogias Literarias
NOTAS DO ARQUIVO HISTÓRICO
Duas figuras históricas desempenham papéis fundamentais neste livro: dois padres que viveram em séculos diferentes, embora ligados pelo destino.
Durante o século XVII, o padre Athanasius Kircher tornou-se conhecido como o Leonardo da Vinci da ordem jesuíta. Tal como o visionário renascentista, o padre dominava centenas de disciplinas. Estudava medicina, geologia e egiptologia, além de se dedicar à criação de intricados mecanismos automáticos, incluindo um relógio magnético (do qual existe uma reprodução na Biblioteca Verde da Universidade de Stanford). Este autêntico homem do Renascimento, assim como o trabalho por ele desenvolvido, influenciaram várias figuras ao longo dos séculos como Descartes, Newton, Júlio Verne ou Edgar Allan Poe.
E ainda uma outra.
O padre Carlos Crespi nasceu séculos depois, em 1891. Inspirado pelo trabalho de Kircher, Crespi tornou-se um monge de inúmeros talentos. Era botânico, antropólogo, historiador e músico. Tornou-se missionário numa pequena cidade no Equador, onde serviu ao longo de cinquenta anos. Foi nesse local que lhe chegou às mãos um conjunto de artefactos de ouro, uma oferta dos shuares, uma tribo indígena da região. Segundo os relatos disponíveis, os singulares objetos provinham de um sistema de cavernas que se estendia ao longo da América do Sul, onde supostamente se escondia uma vasta biblioteca de antigas placas de metal e livros de cristal. As relíquias ostentavam estranhos símbolos, além de hieróglifos indecifráveis.
Alguns arqueólogos acreditavam que os artefactos não passavam de falsificações, outros acabaram por aceitar os relatos do padre acerca das origens dos objetos. De qualquer maneira, em 1962, um incêndio misterioso destruiu o museu que albergava a maioria desses artefactos. Pouco tempo depois, as autoridades equatorianas tomaram posse dos restantes.
Assim sendo, que partes da história do padre Crespi eram verdadeiras ou falsas? Ninguém poderá dizer. Ainda assim, ninguém poderá questionar a crença do monge de que toda a história era verdadeira, tão-pouco a existência da vasta coleção que acumulou durante anos.
Na verdade, em 1976, uma expedição científica e militar britânica tentou descobrir a localização da suposta biblioteca subterrânea. Porém, o grupo acabou por explorar o sistema de cavernas errado. Estranhamente, essa expedição foi chefiada por um americano. Nada menos do que Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar a superfície da Lua.
Que terá levado esse solitário e recluso herói americano, que raramente concedia entrevistas, a participar nessa aventura? A resposta poderá estar relacionada com um mistério ainda maior, capaz de abalar as fundações daquele que acreditamos ser o nosso lugar neste mundo.
NOTAS DO ARQUIVO CIENTÍFICO
Existe um mistério fundamental associado às nossas origens — ao que nos torna humanos —, que pode ser resumido numa única pergunta: o que nos tornou animais racionais?
A evolução da inteligência humana ainda intriga cientistas e filósofos. Sim, é possível associar o crescimento dos nossos cérebros desde os primeiros hominídeos até ao aparecimento do Homo sapiens, há cerca de duzentos mil anos. Contudo, a razão pela qual se assistiu a uma explosão súbita de inteligência, partilhada por toda a espécie, há cerca de cinquenta mil anos, permanece uma incógnita.
Os antropólogos identificam esse momento no tempo como o Grande Salto Evolutivo. Encontra-se assinalado em registos fósseis como uma explosão súbita de arte, música, até em avanços nas ferramentas e armas. Anatomicamente, não existiu nenhuma mudança nos nossos cérebros que justificasse esse salto de engenhosidade, porém, algo de fundamental terá ocorrido para provocar tal despertar de inteligência e conhecimento. As teorias abundam, atribuindo esse acontecimento a alterações climáticas, a mutações genéticas, até por via de alterações na dieta e nutrição.
Mais desconcertante ainda é, ao longo dos últimos dez mil anos, os nossos cérebros terem perdido volume — cerca de 15 por cento até aos dias de hoje. Que significa essa nova mudança? De que forma determinará o nosso futuro? A resposta pode residir na resolução do mistério do Grande Salto Evolutivo. Porém, por enquanto, ainda não apareceu nenhuma conclusão sólida que justifique esse marco determinante na história da humanidade.
Até à data.
E com as revelações contidas nestas páginas, levanta-se uma pergunta ainda mais inquietante: será que nos encontramos no limiar de um segundo Grande Salto Evolutivo? Ou será que nos preparamos para retroceder?
Outono, 38 000 a.C.
Sul dos Alpes
— Corre!
O fogo ilumina a floresta. No dia anterior, empurrara K’ruk e a filha até ao coração das montanhas cobertas de neve. Porém, o que ele receava não era o fumo nem a fornalha em movimento. Olhou por cima do ombro, procurando um vislumbre dos caçadores, os mesmos que tinham ateado as chamas para os privarem da proteção da floresta, mas não viu sinal do inimigo. Ainda assim, o uivo dos lobos fez-se de novo ouvir, bestas magníficas que também se vergavam à vontade dos seus perseguidores. A alcateia parecia estar agora mais próxima. A um mero vale de distância.
Franziu o rosto, preocupado, ao observar o Sol no horizonte. Os tons do ocaso lembraram-lhe a promessa de calor que os aguardava naquela direção, do seu abrigo resgatado às entranhas da rocha negra, sob montes verdes, onde as águas ainda correriam livres e os veados e bisontes se juntavam, numerosos, nas encostas suaves.
Imaginou as fogueiras acesas, a carne a respingar gordura sobre o lume. O clã reunido, pela última vez, antes de dormirem. Tinha saudades da sua antiga vida. Porém, sabia que essa deixara de ser uma opção — sobretudo para a filha.
Um grito lancinante despertou-o do torpor melancólico. Mais à frente, Onka escorregara numa rocha coberta de musgo e caíra desamparada e com violência. A sua passada, sempre segura, acusara finalmente o fardo de três longos dias em fuga.
Apressou-se a ir ao seu encontro e ajudou-a a levantar-se, o pequeno rosto a reluzir de suor e medo. Acariciou-o demoradamente. Nas suas feições delicadas conseguia ver os traços da mãe, uma curandeira do clã, que morrera pouco tempo após o nascimento de Onka.
Entrelaçou um dedo nos cabelos da rapariga.
Tens tanto dela...
Porém, conseguia ver mais no rosto de Onka, particularidades que a tinham cunhado como diferente. O nariz era mais fino do que o de qualquer outro membro do clã de K’ruk, mesmo para uma rapariga que apenas contava nove invernos. Além disso, as sobrancelhas também se mostravam mais direitas, menos espessas. Deteve-se nos olhos azuis e brilhantes como um céu límpido de verão. Todas essas características tinham-na marcado como um espírito misto, alguém capaz de estabelecer uma ponte entre o povo de K’ruk e aqueles que tinham chegado do Sul, com os seus membros delgados e as suas línguas afiadas. Crianças nascidas assim, diferentes, eram consideradas um bom presságio, provando pelo seu nascimento que as tribos — a nova e a velha — poderiam coexistir em paz. Talvez nunca partilhassem abrigo, mas poderiam certamente caçar no mesmo terreno, assegurando a prosperidade. À medida que as duas tribos se foram aproximando, o número de nascimentos de crianças como Onka aumentara. Veneradas, pareciam entender de outra maneira o mundo, onde ocupariam posições de destaque entre os seus como grandes xamãs, curandeiros ou caçadores.
Todavia, tudo mudara dois dias antes, com a chegada de um homem de um clã vizinho. Encontrava-se ferido de morte, mas as últimas palavras deram conta de um inimigo poderoso, uma nova ameaça que se estendia pelas montanhas. Esse misterioso clã avançava em grande número e procurava crianças como Onka. Nenhuma tribo poderia ter uma delas a viver no seu seio.
As que ousassem o contrário seriam massacradas.
Consciente dessa possibilidade, K’ruk sabia que não podia pôr a vida dos seus em risco, e muito menos permitiria que levassem Onka.
Sem alternativa, fugira.
Mas alguém alertara o inimigo sobre o que tinha feito.
Sobre Onka.
Nunca deixarei que te levem.
Segurou a rapariga pela mão e acelerou o passo, mas por pouco tempo, uma vez que ela não o conseguia acompanhar e cambaleava a custo, evitando apoiar-se no tornozelo magoado. Tomou-a nos braços e subiram por uma encosta. Observou a paisagem. Lá em baixo, um riacho desenhara o seu percurso na floresta, prometendo-lhes um local onde pudessem matar a sede.
— Podemos descansar ali — disse ele, apontando. — Mas por pouco tempo.
Ouviram o crepitar de um ramo. K’ruk agachou-se, alerta, pousando Onka no chão. Empunhou a sua lança, a ponta de pedra na direção do ruído. Uma figura esguia surgiu de trás de uma árvore caída, vestida e calçada com peles de rena. Trocaram olhares. Sem proferirem uma única palavra, K’ruk percebeu que estava diante de alguém como Onka. Devido às peles que envergava, ou pelo modo como prendia o cabelo, com um cordão de couro, sabia que aquele estranho não pertencia ao seu clã, mas às tribos de membros delgados que se tinham deslocado para estas montanhas.
Um novo uivo chegou até eles, soando ainda mais perto.
O homem ficou muito quieto, à escuta. Depois, levantou a mão e proferiu algumas palavras que K’ruk não conseguia compreender. Finalmente, apontou na direção do riacho e começou a descer a encosta.
K’ruk hesitou, sem saber se deveria segui-lo, mas um novo chamamento dos lobos pôs termo à sua breve indecisão. Pegou em Onka e apressou-se no encalço do estranho, que se mostrava bastante ágil, para não o perder de vista. Quando chegaram ao riacho, encontraram um pequeno grupo que aí aguardava: cerca de dez ou doze elementos, alguns mais novos do que Onka, outros tantos vergados pela idade. K’ruk reparou que exibiam características de clãs diferentes.
Ainda assim, tinham algo em comum.
Eram todos espíritos mistos.
O homem da encosta avançou e ajoelhou-se perante Onka. Acariciou-lhe o rosto, reconhecendo-a como igual. Por sua vez, Onka levou a mão à testa dele, que exibia um padrão de tecido cicatrizado em forma de estrela.
Os seus dedos percorreram as estranhas marcas na pele, como se retirassem delas um significado oculto. Isso pareceu agradar aos restantes elementos do grupo, que sorriram, satisfeitos, como se partilhassem um qualquer nível de entendimento com a rapariga.
O homem ergueu-se e tocou no peito.
— Teron — disse.
K’ruk deduziu que seria o nome dele, mas o homem começou a falar mais rápido, indicando um ancião que se apoiava pesadamente sobre um bastão de madeira nodosa.
O ancião avançou, dirigindo-se a K’ruk na sua língua nativa.
— Teron diz que a rapariga pode juntar-se a nós. Vamos seguir por uma passagem elevada que ele conhece e que estará ainda livre de gelo durante uns dias. Se conseguirmos passar, ficaremos fora do alcance dos nossos perseguidores.
— Até as neves derreterem — acrescentou K’ruk, pensativo.
— Isso não acontecerá durante muitas luas. Por essa altura, já estaremos demasiado longe para que possam seguir-nos o rasto.
Um novo uivo ecoou à distância, lembrando-os que era urgente avançarem.
— Está na hora. Não podemos esperar mais — reforçou o ancião.
K’ruk afastou Onka na direção de Teron.
— Levam a minha filha?
Teron pousou uma mão no ombro de K’ruk. Os dedos fortes, confortando-o, assegurando-lhe que seria assim.
— É bem-vinda entre nós — disse o ancião. — Cuidaremos para que nada lhe aconteça. Porém, também daríamos bom uso às tuas costas fortes ou à ponta da tua lança.
K’ruk deu um passo atrás, com a mão firme na sua arma.
— O inimigo avança demasiado rápido. Ficarei aqui e lutarei até ao meu último fôlego. Só espero que seja o suficiente para alcançarem essa passagem.
Os olhos húmidos de Onka procuraram os de K’ruk, conscientes do que essa decisão implicava.
— Papá...
— Este é o teu novo clã, Onka — disse K’ruk, o peito a arder de dor. — Vais para um lugar melhor, onde crescerás em segurança e te tornarás na mulher forte que eu sei que poderás ser.
A rapariga libertou-se de Teron e saltou para os braços do pai, pendurando-se no seu pescoço. Sufocado pelo desgosto e pelo abraço de Onka, K’ruk afastou-a uma vez mais e entregou-a de novo a Teron. Em seguida, ajoelhando-se, encostou o seu rosto ao dela, despedindo-se, sabendo que nunca mais veria a filha. Por fim, levantou-se, virou as costas e começou a caminhar na direção dos uivos, ainda que só conseguisse ouvir os gritos lancinantes de Onka, atrás de si, conforme se afastava.
Vive bem, minha querida.
Regressou rapidamente ao topo da encosta. Lá em cima, acelerou na direção do ruído dos animais. Os uivos tornaram-se mais presentes e guturais, elevando-se do vale imediato. Começou a correr, determinado.
Alcançou o próximo declive já o Sol se afundava no horizonte, preenchendo o terreno abaixo com longas sombras. Uma vez que o uivo dos lobos se havia silenciado, começou a descer com cuidado, atento. Manteve-se junto ao chão e contra o vento, avançando de sombra em sombra, evitando qualquer ruído que o denunciasse. Pelo menos tinha uma boa visão de toda a extensão do vale, o que lhe permitiria notar qualquer agitação nas sombras.
O primeiro lobo fez a sua aparição, e era diferente de qualquer outro que tivesse visto. Possuía uma juba espessa e um dorso musculado, coberto de cicatrizes; o focinho, arreganhado, revelava longas presas amareladas.
Apesar de sentir o coração bater na garganta, K’ruk permaneceu agachado, à espera de que os donos de tamanhos monstros se revelassem.
Então, finalmente, uma série de vultos surgiu da floresta.
O mais imponente de todos avançou e encontrava-se agora em plena linha de visão, revelando por fim a verdadeira face dos seus perseguidores.
K’ruk sentiu-se gelar, como se estivesse a viver um pesadelo. Ainda assim, sentiu os dedos fincarem-se no cabo da lança.
Não, não é possível...
Lançou um último olhar por cima do ombro.
Corre, Onka... Corre e nunca mais pares.
Primavera, 1669
Roma, Estados Papais
Nicolas Steno conduziu o jovem emissário pelas profundezas do Museu do Colégio Romano. O forasteiro usava um manto que o ocultava por completo, as botas estavam enlameadas, sinal evidente da urgência e secretismo da sua missão. Fora enviado pelo Sacro Imperador Romano do Norte, Leopoldo I, e a mensagem que trazia destinava-se ao padre Athanasius Kircher, responsável pelo museu e bom amigo de Nicolas.
Enquanto caminhava, não conseguia evitar o espanto diante dos objetos raros em exposição, desde obeliscos egípcios a maravilhas mecânicas que enchiam o ar com sons compassados, todos eles coroados por magníficas cúpulas que, acima dele, se agigantavam adornadas com motivos astronómicos.
Mais à frente, fixou a atenção num pedaço de âmbar iluminado por uma vela. No interior, perfeitamente preservado, encontrava-se um lagarto.
— Vamos! — incitou Nicolas, despertando-o do transe momentâneo.
Nicolas conhecia cada canto daquele lugar, cada volume encadernado que constituía o fruto do trabalho do responsável por aquelas galerias. Passara grande parte desse ano a estudar o conteúdo do museu, a pedido do seu benfeitor, o grão-duque da Toscana, para criar um gabinete de curiosidades no palácio deste, em Florença.
Encontraram-se por fim diante de uma porta alta, de carvalho maciço. Nicolas anunciou a sua presença e aguardou.
— Entre — respondeu uma voz.
Abriu a porta e deu passagem ao mensageiro para o interior do pequeno gabinete, iluminado pelas brasas de uma lareira.
— Desculpe incomodá-lo, Reverendíssimo Padre.
O emissário avançou e pousou um joelho no chão, curvando-se, em sinal de respeito.
Fez-se ouvir um longo suspiro do vulto que se encontrava sentado à secretária, cercado de pilhas de livros. Segurava uma pena sobre um pergaminho.
— Vens remexer a minha coleção outra vez, querido Nicolas? Devo avisar-te que tratei de numerar todos os livros nestas estantes.
Nicolas sorriu.
— Prometi devolver a minha cópia do Mundus Subterraneus, e assim o farei quando conseguir refutar muitas das suas conclusões.
— Deveras? Chegou-me aos ouvidos que estás a concluir um trabalho sobre os mistérios subterrâneos da rocha e do cristal.
Nicolas anuiu.
— Sim, é verdade. Porém, antes de o apresentar, não me importaria de contar com o seu olhar crítico.
No último ano, desde que Nicolas chegara, os dois homens tinham passado várias noites a debater matérias do domínio da ciência, teologia e filosofia. Apesar de Kircher contar mais trinta e sete anos do que Nicolas, e merecer o devido respeito, apreciava ser desafiado. Na verdade, por ocasião do primeiro encontro, os dois tinham-se envolvido num aceso debate acerca de uma tese publicada por Nicolas, dois anos antes, declarando que as glossopetrae (línguas de pedra que se podiam encontrar embutidas em rocha) eram, ao contrário da crença comum, dentes de tubarões do passado.
O padre Kircher partilhava o interesse de Nicolas por esses fragmentos de outras eras aprisionados em rocha estratificada, e já tinham discutido apaixonadamente a origem de tais mistérios. Foi assim, no âmago da discussão científica, que se tornaram admiradores mútuos, colegas, e sobretudo amigos.
Kircher fitou o jovem emissário, que ainda se encontrava apoiado sobre um joelho.
— E quem é o teu acompanhante?
— Traz uma encomenda de Leopoldo I. Ao que tudo indica, o imperador lembra-se o suficiente da sua educação jesuíta e enviou-lhe algo importante. Na verdade, apelou para o grão-duque para que eu lhe trouxesse este mensageiro com grande urgência e secretismo.
Kircher pousou a pena.
— Intrigante.
Os dois padres conheciam o interesse do imperador pela ciência e pelo mundo natural, legado que lhe fora transmitido por tutores jesuítas durante a juventude. Em boa verdade, Leopoldo estava destinado à vida eclesiástica, porém, a morte inesperada do irmão mais velho, vítima de varíola, conduzira o estudante aplicado ao trono do Norte.
— Chega de protocolo — disse Kircher, dirigindo um sinal ao mensageiro. — Levanta-te e entrega-me o que trouxeste de tão longe.
O emissário ergueu-se e recolheu o capuz que lhe cobria a cabeça, revelando o rosto de um jovem de vinte anos. Retirou da sacola uma carta, devidamente autenticada com o lacre do imperador. Deu um passo em frente e depositou-a na secretária, retrocedendo de imediato.
Kircher olhou para Nicolas, que se limitou a encolher os ombros, revelando igual desconhecimento sobre o assunto.
Alcançou uma faca e cortou o selo de lacre. Um pequeno objeto caiu e rolou sobre o tampo da secretária. Tratava-se de um pedaço de osso calcificado. Franziu o sobrolho e retirou um pergaminho que acompanhava o artefacto. À distância, Nicolas conseguia perceber que se tratava de um mapa que reproduzia a parte oriental da Europa.
— Desconheço o significado de tudo isto — disse, examinando o documento. — O mapa e o osso não trazem nenhuma informação adicional.
— O imperador incumbiu-me de transmitir o que falta da mensagem, Reverendíssimo Padre — declarou o emissário. — Palavras que apenas deverei pronunciar na sua presença.
— Que palavras são essas?
— O imperador tem conhecimento do seu interesse no passado distante, nos segredos que se escondem nas entranhas da Terra. E solicita a sua assistência na averiguação do que foi descoberto no local assinalado pelo mapa.
— Em que consiste essa descoberta? — perguntou Nicolas. — Mais ossos, como este?
Aproximou-se e examinou a lasca de osso, a crosta de rocha esbranquiçada. Denunciavam a antiguidade do que estava a ver.
— Sim — confirmou o mensageiro. — E muito mais.
— E a quem pertencem estes restos mortais? — indagou Kircher. — Que túmulo assinalam?
O jovem emissário respondeu porém, as suas palavras eram inacreditáveis. Então, antes que qualquer um dos padres pudesse agir o rapaz sacou de um punhal e cortou a própria garganta.
O sangue começou a jorrar, profuso, e o mensageiro caiu sobre os joelhos, tombando por fim no chão.
Nicolas correu em auxílio, amaldiçoando a necessidade daquele ato brutal. Ao que parecia, aquelas últimas palavras destinavam-se exclusivamente aos ouvidos dos dois padres e, depois de proferidas, nunca mais deveriam ser repetidas.
Kircher contornou a secretária e prostrou-se junto ao rapaz, segurando-lhe nas mãos. Porém, a questão que lhe assolava o pensamento destinava-se a Nicolas.
— Será verdade?
Nicolas engoliu em seco, o raciocínio toldado pelo que acabara de ouvir da boca do mensageiro.
Os ossos... são os restos mortais de Adão e Eva.
PRIMEIRA PARTE
SANGUE E SOMBRAS
1
29 de abril, 10h32 CEST
Karlovac, Croácia
Não devíamos estar aqui.
Um temor supersticioso deteve Roland Novak no meio do trilho. Levantou a mão sobre os olhos, para bloquear a luz da manhã, e observou o cume da montanha que se erguia diante dele. No horizonte, apenas nuvens negras.
Recordava-se de velhas lendas do folclore croata. Histórias sobre bruxas e fadas que se juntavam no monte Klek em noites de tempestade, onde os seus gritos se faziam ouvir na cidade vizinha de Ogulin. Por tudo isso, aquele era um pico assombrado por relatos de má sorte para os que se tinham aventurado nos seus domínios.
Durante séculos, essas histórias tinham mantido a zona relativamente incólume. Mas tudo mudara há algumas décadas, quando as suas escarpas começaram a atrair cada vez mais alpinistas. Ainda assim, nessa manhã, não tinha sido esse o motivo que levara Roland e o seu grupo ao lado norte da montanha.
— Não falta muito — garantiu Alex Wrightson. — Convém que não nos deixemos surpreender pela tempestade.
O geólogo britânico encabeçava o quarteto. Mostrava-se tão sólido quanto aqueles picos, embora contasse perto de setenta anos. Apesar do frio, vestia uns simples calções caqui, que revelavam pernas fortes e trabalhadas. O seu cabelo branco, bem mais espesso do que o de Roland, estava coberto pelo capacete de proteção.
— É a terceira vez que diz o mesmo — resmungou Lena Crandall para Roland. O seu rosto reluzia devido ao suor de quatro horas de ascensão, mas não acusava sinais de cansaço. Afinal, tinha vinte e poucos anos, e pelo desgaste das suas botas de caminhada Roland depreendera que não era novata naquelas andanças.
Ela observou o céu, avaliando a presença crescente de nuvens negras.
— Ainda bem que cheguei um dia antes. Não tardará que toda a montanha fique alagada durante sabe-se lá quanto tempo.
O grupo pareceu concordar, apressando o passo pelo trilho não assinalado.
Lena abriu o fecho do seu blusão térmico e ajustou as alças da velha mochila que carregava. Exibia o logótipo da Universidade de Emory, que frequentara em Atlanta, na Geórgia. Roland pouco sabia acerca da americana, exceto que era geneticista e investigadora no Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária em Leipzig, na Alemanha. Como Roland, desconhecia o verdadeiro propósito de ter sido convocada pelo geólogo inglês e pelo colega deste, um paleontólogo francês.
Durante a ascensão, o doutor Dayne Arnaud trocara algumas palavras, em surdina, com Wrightson. Roland não conseguira perceber o que o paleontólogo francês dissera, sobretudo por causa do sotaque francês, mas detetara alguma crispação na sua voz. Até ao momento, nenhum dos homens partilhara qualquer pormenor sobre o destino da expedição ou sobre o que tinham descoberto naqueles picos.
Roland forçara-se a ser paciente. Crescera em Zagreb, a capital da Croácia, mas conhecia todas as histórias sobre aquela montanha dos Alpes Dináricos. A forma do cume lembrava um gigante deitado de costas. A crença popular afirmava tratar-se do corpo do gigante Klek, que desafiara o deus Volos. Pela afronta, Volos transformara o gigante em pedra depois de o derrotar em combate. Porém, no último instante, Klek jurara que havia de se libertar da sua prisão. Nesse dia, faria descer a sua vingança sobre o mundo.
Roland sentiu um arrepio ominoso.
Porque o gigante já dera sinais de querer acordar.
A região era propensa à ocorrência de fenómenos sísmicos, o que possivelmente ajudara a perpetuar a lenda. Um mês antes, um forte abalo fizera tremer a região, registando um valor de 5,2 na escala de Richter — o suficiente para danificar a torre da igreja medieval na cidade vizinha de Ogulin.
Roland suspeitava que a ocorrência estava relacionada com a descoberta dos diretores da expedição, o que viria a confirmar-se quando o grupo contornou uma encosta mais acidentada e continuou por uma área arborizada. Mais à frente, um bloco massivo de rocha tinha-se desprendido da face da montanha e, à semelhança do gigante Klek, precipitara-se sobre a floresta, arrasando tudo o que encontrara pela frente.
— Um ornitólogo deparou com este cenário de destruição depois do abalo — disse Wrightson, enquanto abria caminho pelo labirinto de pedregulhos e troncos. — Estava a caminhar desde cedo; o suficiente para detetar as colunas de vapor que pareciam erguer-se do chão, sugerindo a existência de um sistema de cavernas.
— Ao qual o tremor de terra providenciou acesso — disse Lena.
— Exatamente. Não constitui uma surpresa, uma vez que a zona apresenta um perfil cársico. No que diz respeito a maravilhas geológicas, a água da chuva e das nascentes transformaram a região num autêntico parque de diversões: rios subterrâneos, poços, cavernas... é só escolher.
Roland fitou Arnaud.
— Mas não estamos aqui para ver uma caverna, pois não?
Os olhos de Wrightson brilharam de excitação.
— Bom, é melhor não estragar a surpresa... Certo, doutor Arnaud?
O paleontólogo limitou-se a resmungar, a condizer com o ar carrancudo que o caracterizava. Enquanto Wrightson aparentava possuir uma personalidade sociável, o francês mostrava-se o oposto, distante e fechado sobre si. Não teria muitos mais anos do que Roland, que contava trinta e dois, mas a sua postura fazia-o parecer mais velho. Roland suspeitava que isso se devia a um certo desagrado por causa da presença dele e da americana. Sabia bem como alguns cientistas podiam ser bastante territoriais.
— Finalmente! — declarou Wrightson, avançando em direção ao topo de uma escada que espreitava de um buraco inconspícuo.
Concentrado, Roland não reparou no homem que se encontrava na sombra de uma rocha até este dar um passo em frente. Carregava uma espingarda ao ombro. Apesar de não envergar uniforme, a postura, a roupa engomada e o olhar inexpressivo sugeriam um passado militar. O cabelo, muito curto e rapado nos lados, lembrava um solidéu repicado.
Disparou algumas palavras na direção de Arnaud.
Roland não entendia francês, contudo, pelo que podia observar, o guarda não se mostrava subserviente para com o paleontólogo, mas sim como igual, como um colega. O guarda apontou para o céu, agora mais escuro, parecendo não estar disposto a autorizar que a equipa prosseguisse. Finalmente, depois de soltar um ou dois impropérios, dirigiu-se a um gerador e ligou-o.
— Apresento-lhes o comandante Henri Gerard — disse Wrightson. — Pertence aos Chasseurs Alpins, um corpo francês de elite de infantaria de montanha. Os seus homens têm garantido a ausência de olhares indiscretos.
Roland olhou em redor, tentando localizar a presença de mais soldados, mas não viu ninguém.
— Uma precaução necessária, infelizmente — continuou Wrightson. — Depois de o nosso observador de aves ter descoberto esta possível entrada, contactou um clube de espeleologia local. Tivemos a sorte de os membros se regerem por estritas normas de conduta. Assim sendo, quando perceberam a importância do que encontraram, solicitaram a assistência imediata de congéneres franceses; os mesmos que supervisionaram a preservação das famosas cavernas de Chauvet e Lascaux.
O conhecimento de história de arte de Roland permitia-lhe compreender a menção das duas cavernas, famosas pelas amostras de arte paleolítica que tinham sido encontradas nas suas galerias. Fitou a abertura já com uma ideia do que se encontraria lá em baixo.
Lena também parecia compreender.
— Encontraram pinturas?
Wrightson levantou o sobrolho.
— Oh, muito mais do que pinturas! — exclamou, fitando Roland. — Foi por isso que contactámos o Vaticano, padre Novak... foi esse o motivo de o terem chamado da Universidade Católica de Zagreb.
Roland aproximou-se e espreitou pela abertura. A tempestade fez-se ouvir à distância. Num gesto inconsciente, levou os dedos ao pescoço e tocou o branco do cabeção.
Arnaud interveio.
— Padre Novak — disse ele, com sotaque cerrado, o desdém indisfarçado. — Prepare-se para testemunhar e oficializar um milagre.
11h15
Lena começou a descer a escada, seguindo Wrightson e Arnaud. Paralelo ao grupo, um cabo de energia estendia-se desde a superfície, fazendo a ligação entre o gerador e as luzes fantasmagóricas que podia vislumbrar abaixo dela. Como os outros, usava um capacete apropriado, munido de lanterna. Sentiu o coração acelerar num misto de excitação e temor claustrofóbico.
Passava a maior parte do tempo dentro de um laboratório, de olhos fixos no microscópio ou a ler código no computador. Quando não o fazia, gostava de escapar para onde a natureza o permitisse. Ultimamente, as escapadelas resumiam-se a um passeio nos parques que acompanhavam os rios que atravessavam Leipzig. Tinha saudades dos extensos bosques que circundavam o seu anterior posto, em Atlanta. E também sentia a falta da irmã gémea — também geneticista —, que continuara a investigação que tinham iniciado nos Estados Unidos enquanto ela desenvolvia trabalho auxiliar na Europa, que se traduzira em cerca de dezoito horas por dia a reconstruir códigos de ADN de antigos fragmentos de ossos e dentes. Se a caverna se revelasse rica em vestígios da era paleolítica, era mais do que certo que o seu papel consistiria na recolha meticulosa de amostras para futura análise em laboratório. O Instituto Max Planck tornara-se conhecido pela capacidade de reconstrução de sequências de ADN antigas.
Olhou por entre as pernas enquanto descia, interrogando-se sobre o que a aguardava na escuridão. Desejava que a irmã, Maria, estivesse ali para partilhar o momento. Acima dela, ouviu o padre Novak atrapalhar-se e pousar um pé em falso na escada. Franziu a testa, ainda às voltas com as razões que justificariam a presença de um padre na expedição. Tinham trocado impressões durante a viagem de Zagreb, e ficara a saber que ensinava história medieval na universidade; um currículo com o seu quê de estranho, pensara, para alguém que vinha agora explorar uma caverna pré-histórica.
Chegou por fim à base da escada. Wrightson ajudou-a e indicou-lhe que seguisse Arnaud, que se agachara e continuara por um túnel rasteiro. Ela baixou a cabeça e seguiu o francês, porém, parecia incapaz de impedir que o capacete batesse no teto, o que fazia a luz da lanterna oscilar repetidamente. O ar era mais quente do que na superfície, mas encontrava-se carregado de humidade; As paredes calcárias mostravam-se húmidas ao toque, e o chão estava escorregadio e coberto de lodo.
Um pouco mais à frente, Lena viu Arnaud erguer-se, o que sugeria o final do túnel. Juntou-se a ele e endireitou as costas, ressentindo-se da má postura durante a travessia.
Depois, sentiu o corpo paralisar perante a natureza do que estava a ver.
O túnel desembocava numa galeria repleta de estalactites e estalagmites. As paredes apresentavam um efeito ondulado, como se estivessem a derreter, e do teto pendiam autênticos lustres de cristal branco que variavam desde delicados pendentes até às mais impressionantes e elaboradas criações.
— Uma espetacular mostra de helictites — disse Wrightson, notando o espanto da americana. — Este tipo de espeleotemas desenvolve-se pela penetração da água através de fendas microscópicas. É um processo moroso... cerca de um século para atingirem uns escassos centímetros.
— Incrível — sussurrou Lena, receosa de que a sua voz pudesse danificar a incrível estrutura.
— Recomendo muita atenção daqui em diante — aconselhou Wrightson. — Caminhem apenas nas escadas que dispusemos como pontes ao longo da caverna. O que se encontra no chão é tão importante como o que está por cima de nós.
O paleontólogo continuou a guiar o caminho, avançando cautelosamente ao longo do percurso metálico que levava mais para o interior do sistema de grutas. Encontrava-se assinalado por painéis luminosos, alimentados pelo gerador instalado na superfície. Lena notou a presença de objetos espalhados pelo chão que tinham sido sujeitos à ação dos depósitos de calcite. Conseguia distinguir as formas distintas de crânios e ossos de animais.
— O que aqui temos é um tesouro no que diz respeito a vida pré-histórica — disse Arnaud, a acidez habitual transformada em êxtase. Indicou com a cabeça um dos objetos. — A pata traseira de um Coelodonta antiquitatis...
— O rinoceronte-lanudo — declarou Lena.
Arnaud olhou para ela. Exibia uma expressão que denunciava uma mistura de respeito e — quase insultuosa — surpresa.
— Exatamente.
Lena apontou para um segundo artefacto, um crânio que repousava junto a uma estalagmite quebrada, fundido com a rocha pela ação da calcite.
— Ursus spelaeus, se não me engano.
— O famoso urso-das-cavernas — concedeu Arnaud, relutante. O inusitado da situação arrancou um riso abafado a Wrightson.
Lena sorriu interiormente.
Também posso jogar este jogo.
— Pela posição em que se encontra — prosseguiu Arnaud —, podemos presumir que tenha sido utilizado como totem. Ainda se consegue ver as marcas de uma fogueira que estaria aqui. Possivelmente, as chamas projetariam a sombra do crânio do animal na parede mais distante.
Lena tentou visualizar a cena, o impacte que deveria causar no espírito dos homens e mulheres que tinham feito destas cavernas a sua casa.
O paleontólogo continuou a identificar outras raridades enquanto atravessavam a galeria: os chifres de um antílope-saiga; o crânio de um bisonte; uma pilha de presas de mamute; os restos completos de uma águia-dourada. Ainda visíveis, encontravam-se também pequenas marcas negras, cuja função seria delimitar os vários espaços individuais.
Completaram a travessia e encontraram-se numa segunda galeria, em nada comparada com a primeira pela extraordinária dimensão. O teto descrevia um arco com dezenas de metros de altura e era tão amplo que um autocarro de dois andares poderia dar meia-volta ali dentro.
— A atração principal — anunciou Wrightson, assumindo outra vez a chefia do grupo.
Desta vez, Lena não precisava que ninguém apontasse as maravilhas que se revelavam. Ao longo da câmara, a metade inferior das paredes encontrava-se decorada com séries incríveis de petróglifos, autênticos instantâneos do mundo natural que exibiam figuras de animais e plantas. Algumas pareciam ter sido desenhadas com carvão; outras tantas, mais elaboradas, tinham sido gravadas na rocha negra, revelando os tons mais claros sob a superfície, matizados com pigmentos ancestrais.
Mais do que a técnica, o que impressionava Lena era a pura beleza do que estava a ver. As composições não apresentavam meras figuras, mais ou menos toscas, atiradas numa parede. Tratava-se de arte — no verdadeiro sentido da palavra. As crinas dos cavalos mostravam-se fluidas e dinâmicas, bem como as pernas dos bisontes, que sugeriam uma igual sensação de movimento. Orgulhosos, os veados exibiam e arremessavam as hastes, tentando atingir águias que voavam acima, enquanto grupos de leões abriam caminho pelas manadas, ora em perseguição, ora fugindo. Num dos lados, um poderoso urso-das-cavernas erguia-se sobre as patas traseiras, sobranceiro a toda a cena.
— Incrível... Quem me dera que a minha irmã pudesse ver isto — disse Lena, lutando para manter os pés nos sítios certos enquanto caminhava e tentava olhar para todas as direções.
Wrightson abriu um sorriso de orelha a orelha.
— Os rabiscos em Lascaux não têm nada que ver com isto, pois não? E não é tudo...
— Como assim? — perguntou o padre.
Wrightson virou-se para Arnaud.
— Talvez esteja na altura de revelar o que está escondido à vista de todos.
O francês encolheu os ombros.
Wrightson dirigiu a atenção para o centro da galeria. No chão, uma mancha de fuligem, com cerca de dois metros de diâmetro, parecia assinalar o que teria sido o local de uma grande fogueira. No centro da mancha, encontrava-se um tripé com painéis luminosos.
— Peço-lhes que desliguem as luzes dos capacetes — disse o geólogo, ajoelhando-se diante de uma consola de interruptores.
Depois de todos acederem ao pedido, pressionou um botão que cortou o fornecimento de energia elétrica, mergulhando a caverna na mais absoluta escuridão.
— Preparem-se para recuar quarenta mil anos no tempo! — anunciou, qual mestre de cerimónias de um espetáculo de circo.
Ouviu-se o estalido de um interruptor e a luz regressou à galeria, desta feita através dos painéis que estavam montados no tripé, que começaram a piscar de maneira alternada.
Como se fosse uma fogueira, pensou Lena.
A princípio interrogou-se sobre o motivo daquele aparato, porém, a reação do padre Novak, que ficara boquiaberto a olhar para a parede, encarregou-se de tirar as dúvidas. Seguiu o olhar dele na direção da rocha, onde agora dançavam sombras que se agigantavam aos petróglifos, projetadas por um círculo de estalagmites que se erguiam do chão. Só então notou que tinham sido esculpidas para criar o exército fantasmagórico que tomava conta da galeria.
As silhuetas tinham uma forma humana, algumas ostentando cornos, outras tantas empunhando lanças. Porém, o mais impressionante era o efeito que a alternância da luz provocava nas figuras desenhadas, sublimando a sensação de movimento, criando uma ideia de pânico entre os animais. Uma das silhuetas surgia diante do urso-das-cavernas, trespassando-o com uma lança. A figura do animal, outrora representativa de imponência e ferocidade, transformara-se assim, inesperadamente, numa imagem de tormento.
Rendida ao espetáculo, Lena girou sobre os calcanhares numa espécie de transe, com um terror insidioso a apoderar-se dos seus ossos. Ao seu lado, o padre Novak benzeu-se.
— Já chega de entretenimento — disparou Arnaud.
Wrightson obedeceu e ligou as restantes luzes.
Lena respirou fundo, inalando o cheiro a terra. Sentiu o metal debaixo das suas botas, ancorando-a de volta à realidade.
— Impressionante... — balbuciou. — Mas que significa? A representação de uma caçada, uma forma de enaltecer as capacidades da tribo na perseguição e abate das suas presas?
Ninguém respondeu.
— Parece um aviso — arriscou finalmente o padre, pouco seguro de que as suas palavras pudessem transmitir o que estava a sentir.
Lena pareceu concordar. Parecia mais uma ameaça do que uma celebração: era algo brutal, sinistro.
— A resposta a essa pergunta não nos compete — declarou Arnaud, dando o assunto como encerrado e indicando que prosseguissem. — Não é para isso que estamos aqui.
O francês conduziu-os para o extremo oposto da galeria, onde um arco assinalava a passagem para a secção seguinte. Lena queria examinar uma das estalagmites esculpidas e verificar como um povo antigo tinha engendrado tamanha ilusão de forma e movimento, mas Arnaud não o permitira.
Não existia mais iluminação depois da galeria principal. Passando o arco, existia apenas a escuridão. Lena acendeu a lanterna do capacete. O feixe de luz perfurou as sombras e revelou um pequeno túnel. Parecia terminar numa parede colapsada.
Arnaud dirigiu o grupo até ao final da passagem.
— Alguém bloqueou este túnel com tijolos! — disse Novak, tão surpreendido quanto Lena.
A americana passou a mão pelos tijolos.
— Não foi obra de nenhuma tribo do Paleolítico, embora seja bastante antigo.
Wrightson avançou, baixou-se e fez incidir a luz da lanterna num pequeno buraco que permitia a passagem pela parede.
— O túnel continua depois desta obstrução. Termina num outro, colapsado. Acredito que era a entrada original do sistema. Alguém a bloqueou, de modo que ninguém conseguisse aqui entrar. Depois, o tempo e as forças da natureza fizeram o resto, selando-a em definitivo.
Lena espreitou pela abertura.
— Aparentemente, aquilo que um terramoto conseguiu, outro desfez.
— Assim parece. Os segredos enterrados têm o péssimo hábito de se recusarem a cair no esquecimento.
— Que se encontra para lá desta parede? — perguntou o padre.
— O enigma que os trouxe aqui.
Wrightson afastou-se da abertura e estendeu o braço, em jeito de convite. Dominada pelo ímpeto curioso, Lena passou primeiro, seguindo o feixe de luz do seu capacete. A parede teria uns bons sessenta centímetros de espessura. No fim da passagem, encontrou uma pequena câmara, revestida com tijolo. Fazia lembrar uma pequena capela.
O padre Novak juntou-se a ela. Apontou a luz para o teto, suportado por arcos cruzados.
— Reconheço esta arquitetura. Este trabalho de alvenaria, de estilo gótico, era bastante comum na Idade Média.
Lena ignorou as palavras do padre. A alcova que se encontrava numa das paredes, talhada na rocha natural, prendera-lhe imediatamente a atenção. No interior, rodeado por um círculo perfeito de pedras, repousava um esqueleto com os braços cruzados sobre o peito. Dentro do círculo, encontravam-se ainda uma variedade de ossadas pequenas — costelas, carpos, tarsos e falanges —, que tinham sido dispostas meticulosamente, formando um padrão intrincado.
— Será a sepultura de um dos homens que selou o túnel? — perguntou Novak.
Lena aproximou-se e fez incidir melhor a luz da lanterna sobre as ossadas.
— O formato pélvico confirma que é um homem. Porém, se não me engano, as características do crânio dizem-me que estamos a olhar para os restos mortais de um Homo neanderthalensis.
— Um neandertal?
Lena fez que sim com a cabeça.
— Ouvi dizer que já foram encontradas ossadas semelhantes na Croácia — disse ele.
— Sim, nas cavernas de Vindija.
Lena começava a compreender o motivo pelo qual fora convocada para a expedição. O Instituto Max Planck fora responsável pelas análises de ADN às ossadas de Vindija. Na verdade, a descoberta proporcionara ao instituto a primeira reconstrução completa do genoma de um neandertal.
— Julgava que os neandertais não pintavam cavernas — disse Novak, olhando na direção da galeria principal.
— Isso é discutível. Temos o exemplo da caverna de El Castillo, em Espanha. As galerias encontravam-se repletas de arte: impressões de mãos, imagens de animais, representações abstratas. A datação concluiu que alguns dos trabalhos poderiam sido feitos por neandertais. A questão permanece em aberto, e o padre terá razão quando aponta o grau de sofisticação que observámos aqui. Os petróglifos mais elaborados, como os que foram encontrados em Lascaux e Chauvet, foram todos criados pela mão dos primeiros homens. Não existe registo de trabalhos desta complexidade feitos por tribos de neandertais.
Até agora, possivelmente.
Arnaud surgiu nas costas deles, acompanhado de Wrightson.
— Foi por isso que requisitámos a sua ajuda, doutora Crandall. Para determinar se os habitantes destas cavernas eram, de facto, neandertais. E, se possível, o que os tornou tão diferentes, tão prodigiosos do ponto de vista artístico.
Lena apontou a luz para o fundo da sepultura, iluminando uma última pintura. Tratava-se de um petróglifo criado com impressões de mãos dispostas em forma de estrela. Sob a luz, as impressões mostravam-se vermelhas, com laivos de castanho, fazendo lembrar sangue seco.
A americana pegou no telemóvel e tirou algumas fotografias. Depois, voltou a atenção para as ossadas, interrogando-se se aquelas impressões pertenceriam ao homem ali deitado. Veio-lhe à cabeça a imagem das sombras a dançarem na parede, juntamente com a convicção do padre.
Parece um aviso...
Wrightson clareou a garganta.
— Passemos então ao próximo enigma. Este é para si, padre Novak.
11h52
Ao ouvir o seu nome, Roland afastou do pensamento a sepultura e as ossadas. Pelos vistos, alguém ter sepultado um neandertal numa capela medieval não é suficientemente enigmático.
— Mais um passo — disse Wrightson, apontando para uma segunda abertura. De acordo com a descrição anterior do geólogo, conduzia à secção do túnel que antigamente fazia a ligação à superfície.
Intrigado, Roland rastejou pela abertura e encontrou-se do outro lado. Apontou a lanterna em direção ao final da passagem, mas não viu nada de particular relevância, exceto umas marcas paralelas que se estendiam ao longo das camadas de calcite no chão, como se tivessem sido raspadas.
Wrightson juntou-se a ele, observando igualmente as marcas.
— Parece que alguma coisa pesada terá sido arrastada daqui para fora. Provavelmente pelas mãos de quem selou o túnel.
— E acredita que eu possa responder a essa questão?
— Não sei, mas acredito que consiga responder a outra.
Wrightson pousou uma mão no ombro do padre e dirigiu-lhe a atenção para a parede que se encontrava atrás. Só então é que Roland reparou numa placa metálica, fixada na parede, como um marcador de sepultura.
Wrightson aproximou a lanterna.
— Tem algumas inscrições. Em latim.
Roland semicerrou os olhos. O tempo e a corrosão tinham obscurecido a maior parte das letras, porém, podia confirmar que se tratava de um texto escrito em latim. Conseguiu retirar sentido de algumas partes, incluindo a última linha e a assinatura de quem tinha deixado a mensagem.
— Reverende Pater in Christo, Athanasius Kircher — disse. Depois traduziu. — Reverendíssimo Padre em Cristo, Athanasius Kircher.
Roland fitou Wrightson, a surpresa estampada no rosto.
— Conheço este nome. Fiz a minha dissertação acerca deste padre e do seu trabalho.
— Um facto de que estou bem ciente. Foi por isso que o Vaticano o escolheu, padre Novak. — Wrightson apontou para a placa. — E o resto da mensagem?
Roland abanou a cabeça.
— Consigo ler frases soltas. Penso ser capaz de restaurar a placa com material adequado. De qualquer modo, o trecho mais extenso que consigo compreender diz mais ou menos isto: que ninguém percorra este caminho, exceto suportando a ira de Deus.
— Um pouco tarde para isso, diria eu — ironizou o geólogo.
Roland ignorou o comentário e continuou a estudar a placa.
Outro aviso...
Ao longe, o estrondo de um trovão ressoou no interior do túnel. A tempestade atingira finalmente a montanha.
— Está na hora de sairmos — declarou Wrightson.
Conduziu Roland de volta à capela, reunindo-se com o resto da equipa ao longo do caminho. Quando alcançaram a galeria principal, o geólogo apontou em frente.
— Temos mesmo de sair antes que...
O som explosivo de outro trovão cortou a palavra ao geólogo ao mesmo tempo que todas as luzes se apagaram, exceto as dos capacetes, mergulhando-os na escuridão. Logo em seguida, um grito distante cortou as trevas.
Desta vez, contudo, não eram as bruxas das lendas de folclore.
Uma saraivada de tiros ecoou pela caverna.
Arnaud agarrou Roland pelo braço.
— Estamos a ser atacados!
2
29 de abril, 06h08 EDT
Lawrenceville, Geórgia
O terror acorda-o.
O batimento nos seus ouvidos obriga-o a mexer-se. Salta da cama enquanto uma imagem surge na cabeça, um rosto...
Mãe.
Ele corre pela sala escura até à janela e bate com as palmas das mãos no vidro grosso. Depois, usa os punhos. A pressão aumenta no peito até não conseguir contê-la. Urra de frustração.
As luzes acendem-se, finalmente, e do outro lado encontra-se um rosto que o observa. Não é quem ele quer.
Leva o polegar ao queixo, repetindo o gesto uma e outra vez.
Mãe, mãe, mãe...
06h22
As pancadas na porta do gabinete acordaram Maria. Endireitou-se no sofá, como uma mola, tomada por uma vaga sensação de pânico. Sentiu o coração bater na garganta. Um livro aberto, que repousava no seu colo, caiu no chão.
Demorou cerca de meio segundo para perceber onde estava — um brevíssimo instante, uma vez que eram cada vez mais as noites que passava a trabalhar. Olhou para a secretária. O ecrã do computador ainda exibia os dados do último ensaio genético. Tinha adormecido enquanto a máquina compilava a informação.
Ainda a processar... incrível!
— Sim? — disse, finalmente.
— Desculpe, doutora Crandall — respondeu a voz do outro lado da porta. — Passa-se alguma coisa com o Baako. Achei que devia saber.
Maria reconheceu de imediato a voz nasalada do estudante do departamento de estudos animais da Universidade de Emory.
— Okay, Jack. Vou já.
Levantou-se e alcançou uma lata aberta de Coca-Cola Diet, que estava na secretária. Bebeu um pouco do líquido tépido, apenas para refrescar o hálito, e abandonou o gabinete. Jack Russo, o estudante de serviço, seguiu-lhe os passos.
— Que aconteceu? — perguntou, tentando evitar o tom acusatório. Ainda assim, o instinto maternal fez as palavras soarem ásperas.
— Não faço ideia. Estava a limpar os habitáculos vazios quando, sem razão aparente, ele começou a ficar muito agitado.
Chegaram por fim à porta que dava acesso ao pequeno reino de Baako, no piso inferior, onde existia um espaço para brincar, um quarto para dormir e uma sala de aula, tudo separado do resto das instalações. Durante o dia, sob supervisão, Baako também tinha acesso às centenas de hectares de floresta que pertenciam ao Centro Nacional de Investigação de Primatas de Yerkes. Porém, as instalações principais funcionavam na Universidade de Emory, em Atlanta, a cerca de cinquenta quilómetros de distância.
Era demasiado perto para o gosto de Maria. Preferia a autonomia de que usufruía em Lawrenceville. O seu projeto era praticamente independente do centro de investigação, uma vez que era financiado com a atribuição de uma bolsa da DARPA, uma iniciativa patrocinada pela Casa Branca denominada BRAIN, acrónimo para Brain Research Through Advancing Innovative Neurotechnologies.
Com um duplo doutoramento em genómica e ciência comportamental pela Universidade de Columbia, Maria tinha sido escolhida a dedo — juntamente com a irmã, Lena — para um projeto exclusivo: investigar a evolução da inteligência humana. O projeto usufruía de financiamento adicional do Instituto Max Planck, onde a irmã se encontrava a desenvolver uma investigação paralela sobre os últimos avanços em genómica.
Maria chegou à última porta e passou o cartão de acesso pelo dispositivo de leitura eletrónico. Avançou, seguida por Jack. O estudante era bem mais alto do que ela e vestia um macacão de trabalho com o logótipo da Universidade de Emory. Enquanto caminhavam, parecia incapaz de parar de coçar nervosamente a barbicha loira, condizente com o cabelo comprido, desgrenhado, que trazia apanhado com uma bandana, o que resultava num visual cuidadosamente descuidado.
— Está tudo bem — disse Maria, tentando tranquilizar o estudante ao entrar no vestíbulo do departamento. — Vai buscar o Tango. A presença dele ajuda sempre.
— Boa ideia — desabafou Jack, escapulindo-se por uma porta lateral.
Maria avançou em direção ao enorme vidro de observação, que teria uns bons oito centímetros de espessura. Do outro lado, encontrava-se uma divisão atulhada de blocos coloridos, exibindo as várias letras do alfabeto. Eram semelhantes aos blocos de brincar para crianças, exceto pela dimensão exagerada e pela resistência do material. Na parede distante, existia um quadro branco com vários marcadores, e as únicas peças de mobiliário compunham-se de uma mesa larga mais duas cadeiras.
Era a sala de aula de um estudante muito especial.
O aluno avançou em direção ao vidro, apoiando-se sobre o braço esquerdo enquanto fazia sinais com a mão direita, como se estivesse a falar com ele próprio. Encontrava-se visivelmente agitado.
Maria pôs uma mão contra o vidro.
— Estou aqui, Baako. Está tudo bem.
Ele pareceu reagir e aproximou-se dela.
Maria usou novamente o cartão e abriu uma segunda porta que dava acesso a uma pequena jaula lateral. Abriu o portão da jaula e juntou-se a ele, no interior da sala.
Baako apressou-se ao seu encontro, caminhando de maneira desajeitada. Abraçou-a pela cintura com os seus braços quentes e peludos, o rosto encostado ao ventre dela numa demonstração clara de necessidade.
Maria sentou-se no chão, tentando que ele a imitasse enquanto observava a sua linguagem corporal.
Baako era um gorila de três anos das terras baixas. Um jovem macho com setenta quilos de peso e um metro e meio de altura. Poderoso, ainda exibia fragilidades de coordenação próprias da idade. Enquanto se sentava, os seus olhos grandes, cor de caramelo, visivelmente inquietos, fitaram Maria. Mantinha a testa enrugada de preocupação, os lábios arrepanhados e tensos, exibindo o branco dos dentes.
Maria cuidava de Baako desde que ele nascera e sabia tudo o que havia a saber sobre o primata, quer física quer psicologicamente. Procedia-se a ressonâncias magnéticas a cada três meses, para manter registos detalhados do crescimento corporal, com especial incidência na anatomia do crânio e no desenvolvimento do cérebro.
Enquanto o segurava, Maria passou os dedos sobre a crista sagital que corria ao longo do crânio. Era menos proeminente do que seria expectável num gorila daquela idade. O mesmo acontecia com a mandíbula e restantes ossos maxilofaciais, menos pronunciados, que conferiam um perfil mais achatado do que seria típico encontrar num primata.
— Que se passa contigo? — perguntou, o tom suave, tranquilizador.
Ele ergueu os punhos, abriu as mãos e levou os dedos espalmados ao peito, virados para si.
[Medo]
Comunicando mediante a voz e sinais, Maria apontou para ele e repetiu o gesto, finalizando-o com as palmas das mãos viradas para cima e um ligeiro encolher dos ombros.
— Do que tens medo?
Ele levou o polegar ao queixo, os restantes dedos abertos.
[Mãe]
Maria sabia que Baako a considerava como sua progenitora, o que não andava longe da verdade. Afinal, cuidava dele desde o nascimento, e tinha-o feito com a total dedicação de uma mãe verdadeira. Além disso, sob o ponto de vista biológico, Baako era, tecnicamente, dela. O seu genoma singular tinha sido desenvolvido no laboratório de fertilidade de Maria, e o embrião resultante fora implantado num gorila fêmea, que depois levara a gravidez a bom termo.
— Eu estou bem — assegurou ela, enfatizando as palavras com um ligeiro toque. — Estou aqui, certo?
Baako libertou-se do seu toque e abanou a cabeça. Repetiu o sinal para a palavra «mãe» e levou a mão direita ao queixo, em forma de concha, deixando-a cair com firmeza na mão esquerda, o dedo indicador a apontar na direção de Maria.
[Irmã-Mãe]
Maria fez que sim com a cabeça.
Estás preocupado com a Lena.
Baako tinha duas mães. Pelo menos, era dessa forma que olhava para Maria e para Lena. Sendo gémeas idênticas, ambas pensavam que se tratava de uma confusão natural, contudo, tornara-se evidente que o animal não tinha nenhuma dificuldade em distinguir uma da outra — o que nem sempre acontecia com alguns colegas do centro.
Baako repetiu consecutivamente o primeiro gesto.
[Medo, medo, medo...]
— Não tens razão para estar preocupado, Baako. Já falámos sobre isso. A Lena não está aqui agora, mas vai voltar. Ela está bem — Maria fez o sinal para okay.
Baako voltou a abanar a cabeça, insistindo no gesto para a palavra «medo».
Maria voltou à questão anterior. Gesticulou com mais assertividade, para obter uma resposta mais concreta.
— Porque tens medo?
06h38
Ele afunda-se sobre si mesmo e olha para as palmas das mãos. Cerra e estica os dedos, debate-se com a melhor forma de se fazer entender. Por fim, põe as pontas dos dedos sobre a testa, virando a palma da mão na direção dela.
[Não sei]
Cruza o braço esquerdo sobre o peito e atira o polegar direito na direção do rosto, fazendo com que os pulsos batam um no outro.
[Perigo]
Ela franze o sobrolho. Olha na direção da outra sala, para a cama desfeita. Toca na testa com o dedo indicador, ergue-o no ar e dobra-o duas vezes enquanto fala.
— Foi apenas um sonho, Baako.
Ele bufa, frustrado.
— Tu sabes o que são sonhos. Já falámos sobre isso.
Ele abana a cabeça. Depois, apenas lhe devolve o gesto.
[Não foi um sonho]
06h40
Maria conseguia ler a certeza no rosto de Baako; a convicção de que Lena se encontrava em perigo. Deu por si a interrogar-se acerca da ansiedade que sentira momentos antes, quando acordara.
Tenho razões para ficar preocupada?
Tendo crescido como um reflexo de Lena, tinha conhecimento das teorias que alegavam a existência de laços singulares entre irmãos gémeos, de como pareciam estabelecer ligações sensoriais à distância. Alguns animais pareciam partilhar dessa capacidade; como os cães, quando aguardavam à porta de casa, pressentindo a chegada dos donos. Contudo, como cientista, era incapaz de dar crédito a esses relatos, preferindo a análise de dados empíricos a histórias mirabolantes.
Ainda assim...
Podia tentar falar com ela.
A voz de Lena ao telefone deveria ser o suficiente para tranquilizar Baako.
E tranquilizar-me a mim.
Olhou para o relógio, calculando que horas seriam na Croácia. Costumavam falar quase todos os dias, por vezes durante horas, tanto por telefone como por videoconferência, trocando impressões, partilhando histórias, fazendo o possível para manterem uma ligação próxima apesar da distância. Sabia que a relação que mantinha com a irmã era tudo menos estranha entre gémeos. Porém, os laços que as uniam, íntimos e duradouros, tinham sido fortalecidos pelo desgosto e pela dificuldade.
Fechou os olhos e regressou a Albany, em Nova Iorque, recordando o apartamento minúsculo onde tinham crescido.
A porta do quarto rangeu ao ser aberta.
— Onde estão as minhas gatinhas?
Debaixo dos cobertores, Maria espremeu-se o mais que podia contra o corpo de Lena. Aos nove anos de idade, e apesar de cada uma ter a sua cama, costumavam dormir juntas até que a mãe regressasse a casa. Apesar de nunca terem conhecido o pai, de quando em vez Lena abria um álbum de fotos. Então, enquanto olhavam as imagens dele, contavam histórias sobre os motivos que o tinham levado a partir, nas quais o imaginavam ora como o herói, ora como o vilão.
— Será que ouço ronronar debaixo destes cobertores?
Lena riu-se, o que fez com que Maria também o fizesse.
Uma mão afastou a roupa da cama, perfumando o ar com o aroma de sabonete de pêssego. A mãe tinha o hábito de lavar as mãos mal chegava a casa.
— Aqui estão as minhas gatinhas — disse, aninhando-se entre elas, visivelmente cansada pela necessidade de manter dois empregos: o primeiro numa Costco, localizada na outra ponta da cidade, e o segundo na loja de bebidas da esquina, onde fazia o turno da noite. Abraçou ambas, carinhosamente, e depois encorajou Maria para que fosse dormir na sua cama.
Sem possibilidade de recorrer aos serviços de uma ama, a mãe via-se obrigada a deixá-las sozinhas a maior parte do dia. Porém, tinha-as ensinado a regressarem a casa assim que terminassem as aulas. Maria e Lena não se importavam que assim fosse — não se importavam muito, pelo menos. Tinham uma à outra para companhia, para brincarem juntas e assistirem aos desenhos animados na televisão.
Maria deitou-se finalmente na cama dela. A mãe aproximou-se e beijou-a na testa.
— Dorme bem, minha gatinha.
Maria tentou imitar o miar de um gato, mas apenas emitiu um longo bocejo, adormecendo ainda antes de a mãe fechar a porta do quarto.
As batidas trouxeram-na de volta ao presente. Olhou na direção da janela de observação. Jack acenou-lhe, exibindo a ponta da trela que trazia na mão.
Maria aclarou a garganta.
— Podes entrar.
Tentou recompor-se e afastar as preocupações acerca de Lena. Ainda assim, sobreveio à memória como a vida podia mudar num instante, como o amor podia desvanecer-se sem aviso. No primeiro ano de faculdade, alguém tinha batido na porta do dormitório a meio da noite. Um assalto na loja de bebidas resultara na morte brutal da mãe, que se esvaíra em sangue no chão frio forrado a linóleo. Daí em diante, só se tinham uma à outra.
Maria sentiu uma nova pontada de ansiedade.
Espero mesmo que estejas bem, Lena.
Jack avançou em direção à porta, provocando uma reação imediata em Baako, que começou a balancear-se e a emitir sons, visivelmente excitado. Tal não se devia à presença do estudante, mas à presença de quem ele habitualmente encaminhava na ponta daquela trela.
Desta vez, porém, trazia ainda uma terceira companhia.
Não era exatamente bem-vinda.
Apreensiva, Maria observou a cabeça calva que seguia atrás de Jack. Pelos vistos, a notícia da comoção que ocorrera já tinha chegado ao outro lado do campus. Mais concretamente, até aos ouvidos do diretor do departamento, o doutor Trask.
Endureceu a postura, preparando-se para o confronto que se adivinhava.
Jack entrou primeiro. Atravessou o portão da jaula e soltou a trela. O cachorro, um queensland heeler com dez meses de idade, correu desenfreado pela sala e esbarrou contra Baako, que imediatamente começou a brincar com ele. Tango era um adolescente como Baako, com pelo cinzento sarapintado e focinho preto. Um ano e meio antes, o gorila tinha-o escolhido de entre uma seleção de cachorros. Daí em diante, tinham-se tornado verdadeiros compinchas.
— Ouvi dizer que havia um problema com a sua cobaia, doutora Crandall — disse o diretor, com semblante fechado.
— Nada que eu não consiga resolver — Maria apontou para o par brincalhão. — Como pode verificar, aliás.
Trask cruzou os braços, indiferente.
— Calculo que esteja a par das recomendações da administração sobre segurança conforme o animal se vai tornando adulto. Algumas já deveriam estar a ser implementadas.
— Como fechá-lo numa jaula, quando não está sob supervisão?
— É uma medida que tanto acautela a segurança do animal como a dos que aqui trabalham. — Trask apontou para o estudante. — Imagine que partia o vidro e escapava.
— Não tem força para isso.
— Por enquanto... — cortou Trask. — Mas seria recomendável que começasse já a habituar-se a ficar na jaula.
Maria não parecia disposta a ceder.
— A administração está na posse de vários relatórios meus que atestam que o confinamento de primatas prejudica o desenvolvimento mental. Estamos a falar de criaturas inteligentes, capazes de distinguir passado e futuro, de formular pensamento abstrato. Perante estas características, qualquer forma de isolamento compromete seriamente o desenvolvimento psicológico, o que poderá levar a distúrbios mentais, incluindo ataques psicóticos. Em matéria de segurança, suponho que represente um risco bem maior, não?
— Tenho a certeza de que a administração levou o seu parecer em consideração, doutora Crandall. Tem quarenta e cinco dias para implementar as novas diretrizes.
A investigadora sabia que a administração não passava de um grupo de paus-mandados de Trask. Antes que pudesse continuar a argumentar, o diretor virou costas e saiu. Não tentou impedi-lo, pois sabia que a atitude dele advinha de despeito profissional. A soma de dinheiro que fora atribuída ao seu projeto não era comparável com nenhuma outra pesquisa que decorria no centro; bem como a necessidade de recursos, incluindo espaço físico. Além disso, chegara-lhe aos ouvidos que o diretor desejava expandir o seu próprio estudo de transplantes, utilizando chimpanzés como cobaias. Tivera a oportunidade de ler a respetiva proposta de candidatura a financiamento e considerara-a irrelevante; ou pouco merecedora, no mínimo. Não só repetia trabalho que já tinha sido desenvolvido em outros locais, como também era desnecessariamente cruel.
Outra boa razão para não ceder.
Voltou a atenção para Baako, que estava a embalar Tango no seu colo. Parecia ter sossegado durante a discussão, dando a impressão de que sentira a tensão, que poderia até ter entendido que se encontrava no centro da disputa. Olhou em redor, avaliando as várias divisões que compunham o recinto, tentando perceber se alguma serviria para confinar Baako durante a noite.
Existirá alguma diferença entre isto e uma jaula?
Sentiu-se dominada por uma sensação de culpa que lhe era familiar. De certo modo, parte do rancor que guardava em relação a Trask resultava do conflito interior sobre a natureza do trabalho que estava a desenvolver. Tinha a certeza de que fazia o possível para minimizar qualquer impacte sobre Baako, como recusar qualquer tipo de teste invasivo que fosse além de uma simples análise sanguínea ou de uma ressonância magnética. Adicionalmente, tinha o cuidado de o manter exercitado, estimulado e entretido.
Mas seria correto, ainda assim?
Eram vários os países que tinham banido qualquer tipo de pesquisa que envolvesse grandes primatas — Nova Zelândia, Países Baixos, Reino Unido, Suécia. Nos Estados Unidos, não havia restrições, e este estudo, único pela sua natureza, só podia ser realizado num centro como aquele.
Baako respirou fundo, como se pressentisse a preocupação dela. Cruzou os punhos sobre o peito, tentando confortá-la com o significado desse sinal.
Maria sorriu.
— Também gosto muito de ti.
Baako repetiu o gesto e apontou para o cachorro.
— Sim, também gosto muito do Tango.
Satisfeito, o animal rolou sobre as pernas, agarrou num cobertor e começou a brincar ao jogo da corda com Tango.
Com os receios de Baako apaziguados, Maria abandonou a sala com uma única ideia no pensamento.
Ligar para Lena.
3
29 de abril, 12h45 CEST
Região de Karlovac, Croácia
Lena encontrava-se deitada sobre a barriga na rocha enlameada. Ao seu lado, agarrando-a pelo ombro, o padre Roland Novak tentava recuperar o fôlego. Estavam escondidos numa fenda horizontal na galeria principal, rente ao chão, o que impossibilitava uma linha de visão superior à altura do joelho.
Mergulhada na escuridão, debatia-se sobre o que estaria a acontecer na superfície. A trovoada deslocava-se agora sobre a montanha, fazendo-se sentir em toda a sua fúria. Atrás de si, ecoando de algum rio subterrâneo, Lena conseguia ouvir o som característico de água a correr. Podia jurar que soava mais intenso desde que ambos tinham rastejado para o interior da fenda. Considerou a probabilidade iminente de a caverna poder ficar inundada.
Pode ser que o som apenas pareça mais alto na escuridão.
Enquanto aguardava, os seus sentidos tinham-se aguçado como uma lâmina. Sentia na boca o sabor metálico do terror. No peito, o coração ribombava contra o chão de pedra.
— Que estará a acontecer lá em cima? — murmurou.
Era uma pergunta retórica, mas, ainda assim, o padre Novak respondeu.
— Talvez tenham partido. Já conseguiram o que os trouxe aqui... Arnaud e Wrightson.
Lena rezou para que os dois homens estivessem vivos. Logo após a troca de tiros, uma voz amplificada por um megafone ecoara pela caverna com uma única exigência: que Arnaud e Wrightson subissem à superfície. Aparentemente, os atacantes tinham conseguido emboscar os soldados franceses e dominavam agora a montanha.
Relembrou a última instrução da voz em inglês e em francês.
Saiam imediatamente... se querem viver!
Ao ouvir o ultimato, o geólogo tomara uma decisão precipitada.
— Os filhos da mãe querem que subamos os dois! — Virou-se para Roland e Lena. — Quem planeou o ataque não deverá saber da vossa presença. O que faz sentido, uma vez que vocês só deviam chegar amanhã. Só estamos aqui hoje pela necessidade de nos anteciparmos à tempestade, por isso, escondam-se!
Era um subterfúgio arriscado, mas era também a melhor opção. Com alguma sorte, Roland e Lena poderiam procurar ajuda assim que fosse possível. Sem outra alternativa, tinham rastejado para o interior da fenda enquanto os dois diretores subiam até à superfície, enfrentando um destino incerto. Nos tensos segundos que se seguiram, Lena apenas aguardara, temendo uma nova saraivada de tiros que anunciasse a execução dos dois cientistas.
— Vem aí alguém! — murmurou Novak, apertando a mão da americana.
Alertada pelo padre, Lena observou a luz que vinha da câmara adjacente que ligava à superfície. Logo depois, viu surgir um grupo de homens, vestidos com uniformes militares pretos. As luzes das suas lanternas varreram a área enquanto atravessavam a galeria principal, ignorando o trilho de metal e espezinhando os delicados artefactos que ali se encontravam. Dirigiram-se para o túnel que conduzia à capela medieval.
— Que será que procuram? — sussurrou Novak.
Apesar de aterrorizada, Lena sentiu uma ponta de raiva. A pilhagem de escavações arqueológicas ainda era um problema frequente. Alguém deveria ter passado a informação acerca da caverna, e estes homens preparavam-se para deitar a mão a tudo o que ali se encontrava.
Ficaram à escuta dos ruídos que chegavam do interior do túnel, percebendo que os homens estariam a arrastar e a partir pedras. Alguns minutos depois, Novak voltou a apertar a mão de Lena.
— Estão a regressar...
Os homens reapareceram e atravessaram de novo a galeria, mostrando-se tão descuidados como antes. Desta vez, porém, carregavam uma caixa plástica comprida, semelhante a um caixão. Lena conseguia adivinhar o conteúdo. Visualizou os restos mortais do neandertal; como se encontravam perfeitamente preservados na capela medieval. Um espécime em tão raras condições renderia, com toda a certeza, uma boa maquia no mercado negro. Ainda assim, o grupo ignorara todas as outras relíquias espalhadas pelo chão e que valeriam centenas de milhares de dólares, espezinhando-as, literalmente, com as botas.
Que raio estão eles a...
Uma explosão abafada cortou-lhe o pensamento. Atordoada, observou a nuvem de fumo e poeira que saía do túnel.
Fizeram explodir a capela... mas porquê?
Os salteadores rumaram à superfície, dando outra vez lugar à escuridão. Novak fez um pequeno compasso de espera. Depois, começou a rastejar para fora do esconderijo.
— Ainda não é seguro — disse Lena, puxando o casaco do padre. — Temos de ter a certeza de que se foram embora.
— Não creio que voltem a descer — disse Novak, olhando para trás. — Mas concordo que devemos ficar mais um pouco. Entretanto, tenciono descobrir o que sobrou de toda esta destruição.
Novak prosseguiu e ligou a sua lanterna, abafando a luz com os dedos. Lena seguiu atrás dele, reconhecendo a validade do que o padre dissera, assim como algum embaraço pelo medo de ficar sozinha no escuro. Deu alguns passos tímidos e o terror que sentia foi diminuindo uma vez que tinha agora um objetivo, algo em que podia focar a atenção.
Novak avançou pela galeria, iluminando o caminho. Colada a ele, de vez em quando Lena olhava por cima do ombro, atenta a qualquer sinal que denunciasse o regresso dos homens. Quando chegaram à boca do túnel, perguntou:
— Que raio nos interessa se sobrou alguma coisa ali dentro?
— O doutor Wrightson convocou-me para o ajudar a resolver o mistério histórico que aqui se esconde há séculos. Não vou permitir que o seu sacrifício e o do doutor Arnaud sejam em vão.
Lena engoliu em seco, sentindo alguma culpa. Pensou nos dois cientistas a desaparecerem na escuridão como fantasmas. Ela também tinha sido incumbida de resolver um mistério. No seu caso, científico.
Antes de entrar no túnel, lançou um último olhar para as estalagmites esculpidas e para as impressionantes pinturas nas paredes. O padre tinha razão.
Deviam tentar descobrir tudo o que pudessem.
Antes que fosse demasiado tarde.
13h16
Como único representante da Igreja Católica Romana, Roland estava determinado em testemunhar a profanação da pequena capela; uma capela cuja construção teria sido aparentemente supervisionada e santificada, séculos antes, pelo padre Athanasius Kircher. Enquanto avançava pelo túnel, as perguntas rodopiavam-lhe no espírito.
Que motivo teria o reverendíssimo padre para santificar este lugar? Qual a necessidade de tamanho secretismo? Mais importante, porque tinha agora sido profanado e pilhado?
Na esperança de encontrar resposta para estas perguntas, abriu caminho pelo fumo e poeira até se encontrar diante do que restara da pequena capela gótica. As paredes de pedra eram agora uma pilha de escombros fumegantes. Dava a sensação de que a explosão teria sido calculada para soterrar o local, suprimindo qualquer prova de que alguma vez tivesse existido, juntamente com as ossadas e os estranhos petróglifos.
Lena tossiu, pressionando o punho contra os lábios, para não fazer barulho.
— Julgo que o objetivo seria a destruição de todos os indícios do saque.
— Mas nós temos fotografias, certo?
— Diabos me levem se não temos!
As palavras indignadas de Lena arrancaram um sorriso a Roland.
— Desculpe, padre — disse ela, embaraçada.
— Não faz mal. Diabos me levem se não estou contente por termos fotografias. E o meu nome é Roland... acho que ultrapassámos a necessidade de formalidades.
Lena aproximou-se.
— Não creio que consigamos recuperar nada daqui.
— Eu não teria tanta certeza, Lena.
Roland começou a trepar por cima dos escombros, na esperança de que os salteadores se tivessem esquecido de examinar a parte posterior da capela, especialmente a parede virada para a antiga entrada do sistema de cavernas.
Antes que conseguisse atravessar os destroços, Lena chamou-o.
— Padre... Roland, anda ver isto.
O padre virou-se e viu que ela apontava a lanterna para a parede da caverna oposta ao local das ossadas. A explosão tinha provocado uma derrocada nessa secção, revelando o que parecia ser uma segunda alcova que estaria escondida. Juntou-se a ela e apontou também a sua lanterna.
Ficou boquiaberto.
Na parede posterior da alcova existia um segundo petróglifo em forma de estrela, em tudo semelhante ao primeiro.
— É exatamente igual ao outro.
— Não é bem assim...
Lena alcançou o telemóvel.
— As impressões das mãos são mais pequenas e numerosas — afirmou, comparando o novo petróglifo com as fotografias do primeiro. — E repara no dedo mindinho, todo torcido. Diria que o artista terá partido o dedo e que este nunca sarou corretamente. Definitivamente, estas impressões não foram feitas pelo mesmo indivíduo. E, se tivesse de apostar, pelo tamanho diria que foram feitas por uma mulher.
Enquanto Lena tirava uma série de fotografias, Roland olhou para trás, para a pilha de destroços.
— Se calhar o homem era o companheiro desta mulher.
— Talvez... nunca o saberemos. — Lena apontou a luz para o chão da alcova. — Não existem aqui ossadas.
Agora, pelo menos.
Roland virou costas e atravessou outra vez os escombros. Ajoelhou-se e examinou as marcas que já tinha observado anteriormente no chão do túnel. Um trilho secular que se estendia desde a capela até à antiga entrada da caverna.
Talvez estes homens não fossem os primeiros a levar qualquer coisa daqui.
Endireitou-se e dirigiu a atenção para a secção de parede derrubada na parte posterior da capela. Começou a remexer os tijolos, examinando cada um, com uma prece silenciosa nos lábios.
— Que procuras? — perguntou Lena.
Antes que ele pudesse responder, a luz da lanterna incidiu sobre um pedaço de metal entre o entulho. Afastou rapidamente as pedras, aliviado.
— Isto! — disse ele, passando o polegar sobre o nome inscrito na placa de metal que se encontrava fixada num dos tijolos. Era o marcador de sepultura que Wrightson lhe mostrara.
Lena juntou-se a ele, espreitando por cima do ombro.
— Penso que estas inscrições nos podem ajudar a resolver o mistério — explicou. — Está em péssimo estado, mas, com algum tempo, penso que...
Uma nova explosão, embora distante, ressoou pelo interior da caverna. Roland agarrou Lena pelo braço.
— Que será desta vez?
Receando a resposta, Roland apressou-a pelo túnel. Quando chegaram à galeria principal, os feixes das lanternas iluminaram uma nova nuvem de poeira e fumo. Vinha da câmara adjacente que ligava à superfície.
— Não... — gemeu Lena, instintivamente, compreendendo o que significava. Os homens não se tinham contentado em fazer explodir a capela. Tencionavam selar todo o sistema, para garantir o encobrimento definitivo das suas ações.
— Que vamos fazer? — desesperou ela.
Roland tentou esboçar uma resposta, mas um troar ensurdecedor cortou-lhe a palavra ao mesmo tempo que o chão começou a tremer violentamente. Uma enorme formação de helictites soltou-se do teto e caiu, estilhaçando-se em mil pedaços aos seus pés. Lena agarrou-se a ele, à espera de que tudo terminasse.
Roland lembrou-se do abalo de 5,2 graus de magnitude que soltara parte do gigante Klek e revelara o coração daquele sistema de cavernas. A tempestade e a torrente de água súbita deviam ter acrescentado tensão às falhas sísmicas sob a montanha, desencadeando uma réplica — ou mesmo as ondas de choque das recentes explosões poderiam ter contribuído para o novo abalo.
Fosse como fosse, estavam em maus lençóis.
Susteve a respiração até que a terra parou de tremer.
— Está tudo bem — sussurrou, tentando tranquilizar-se a si mesmo e à companheira.
— Olha! — Lena apontou para a fenda onde se tinham escondido anteriormente. Do seu interior, jorrava agora uma torrente de água.
O novo sismo alterara o sistema hidrológico da montanha, reposicionando as veias e artérias do gigante Klek. De repente, toda a água da tempestade estava a ser redirecionada para o interior do sistema. De todas as outras fendas em redor, ainda mais água.
Lívida, Lena olhou para Roland, rezando para que ele tivesse uma ideia ou um plano.
Mas ele não tinha nenhum.
4
29 de abril, 13h38 CEST
Paris, França
O telefone tocou no momento mais inoportuno.
Na casa de banho do quarto do hotel, o comandante Gray Pierce encontrava-se nu, diante de uma convidativa banheira fumegante. Se olhasse pela janela da suíte, podia contemplar a beleza dos históricos e majestosos Campos Elísios de Paris. Ainda assim, as vistas mais próximas eram bem mais interessantes.
De entre os vapores da água perfumada com lavanda, uma perna esguia e torneada repousava sobre o rebordo da banheira. A camada de espuma dos sais de banho pouco fazia para esconder a figura inebriante que se encontrava dentro de água, toda ela pernas e curvas. Quando mudou de posição, uma madeixa de cabelo negro, como as asas de um corvo, deu lugar a uns olhos cor de esmeralda.
Denunciavam alguma irritação pela interrupção.
— Podes ignorar — disse ela, elevando a perna bem alto, apenas para a esconder de novo, sob a espuma.
Gray sentia-se tentado a seguir a sugestão, porém, o toque que estava a ouvir não era do telefone do hotel, mas sim do telemóvel, que se encontrava na mesa de cabeceira. O toque específico identificava o autor da chamada: o seu chefe, Painter Crowe, diretor da Sigma.
— Se me está a ligar, é porque é urgente — suspirou, contrariado.
— Quando é que não é? — murmurou ela, deslizando para debaixo de água e emergindo de novo. Gray observou as colunas de vapor que se erguiam da superfície da pele enquanto a água escorria ao longo das maçãs do rosto e do pescoço delicado.
Precisaria de toda a sua força de vontade para virar costas.
— Desculpa, Seichan.
Dirigiu-se para o quarto e pegou no telemóvel. Nos últimos três dias, tinha gozado as delícias de Paris na companhia de Seichan — ou, pelo menos, aquelas a que tivera acesso através das janelas da suíte ou pelo serviço de quartos. Depois de três semanas separados, a verdade é que raramente se tinham aventurado para fora dos limites do Hotel Fouquet’s Barrière.
Seichan apanhara um voo direto de Hong Kong, onde estivera a supervisionar a construção de um abrigo para mulheres. Por sua vez, Gray tinha viajado de Washington. Encontrava-se a usufruir de umas breves férias, não só por imposição da Sigma, mas também para cuidar do pai, diagnosticado com Alzheimer. Nos últimos tempos, a condição dele parecia mais estável, o que levara Gray a decidir-se por uns dias de descanso, deixando a prestação desses cuidados a cargo do seu irmão mais novo e de uma enfermeira contratada.
Ainda assim, enquanto se preparava para atender a chamada, sentiu-se invadido pelo pressentimento de que poderia estar relacionada com o pai. Era um receio que parecia acompanhá-lo diariamente, um peso que carregava no estômago como um bloco de granito, frio, inamovível. Dessa forma, parte de si encontrava-se refém do inevitável.
Encostou o aparelho ao ouvido, aguardando que fosse estabelecida uma ligação segura à sede da Sigma. Pelo canto do olho, vislumbrou o seu reflexo no espelho que estava em cima da cómoda, notando os dentes cerrados de ansiedade. Impaciente pela demora, passou a mão pelo cabelo húmido e afagou a barba.
Vá lá...
A ligação foi por fim estabelecida, e a voz do diretor fez-se ouvir de imediato.
— Comandante Pierce, peço desculpa por interromper as férias, mas é importante.
— Que se passa? — respondeu ele, cada vez mais ansioso.
— Temos um problema. Há cerca de vinte minutos, recebi uma chamada de emergência do general Metcalf.
Gray sentou-se na cama, libertando-se de parte do seu receio. A chamada não estava relacionada com o pai.
— Ao que parece, os serviços secretos franceses receberam um SOS de uma das unidades na Croácia.
— Na Croácia?
— Algures nas montanhas. Uma unidade militar alpina encontrava-se encarregada da segurança de uma escavação arqueológica. Pelo que pude perceber, terão sido alvo de uma emboscada. Desde então, não conseguimos estabelecer comunicação alguma.
Gray não conseguia perceber que tinha isso que ver com a Sigma. Porém, se Metcalf ligara a Painter, significava que algo de relevante estava a acontecer. O general Gregory Metcalf estava à frente da DARPA — a agência de projetos de investigação avançada de defesa — e era o superior imediato de Painter. A Força Sigma atuava sob a égide da DARPA e era composta por ex-militares das forças especiais que tinham sido treinados em várias disciplinas científicas, permitindo-lhes operar clandestinamente contra ameaças específicas aos Estados Unidos da América ou à segurança global.
— Não estou a entender — disse Gray. — Parece-me mais um assunto da competência do exército francês. Que tem a Sigma que ver com isto?
— Porque a DARPA tinha gente no terreno. A equipa que estava sob proteção da unidade francesa era composta por um grupo internacional de cientistas, incluindo uma geneticista americana, a doutora Lena Crandall. O seu projeto atual é parcialmente financiado pela DARPA. É por isso que o general Metcalf nos ligou, para que ponhamos de imediato alguém no terreno.
E como eu já estou praticamente nas vizinhanças...
— A Kat já providenciou um jato, comandante. Consegue pô-lo naquelas montanhas em duas horas.
A capitã Kathryn Bryant era a analista-chefe dos serviços de informação da Sigma e o braço-direito de Painter. Ela e o marido eram também os melhores amigos de Gray.
— E a Seichan?
— A Kat incluiu-a nos planos.
A atenção de Gray foi desviada para a porta da casa de banho. Seichan estava encostada à ombreira, embrulhada numa toalha que escondia muito pouco.
— Para onde vamos? — perguntou ela, adivinhando com facilidade o teor da chamada.
Gray sorriu perante os seus poderes de perceção, competência adquirida ao longo dos anos como assassina profissional. Mesmo agora, continuava a ser uma criatura de mistério para Gray. Ainda assim, enquanto vários países continuavam a oferecer recompensas pela sua cabeça, não existia ninguém que ele mais quisesse ter ao seu lado.
E não pelo seu talento com uma arma.
Percorreu-lhe o corpo com o olhar, o tom de café torrado da sua pele nua. Mesmo quieta, os seus membros sugeriam força e graciosidade em partes iguais.
— Parece que as nossas férias terminaram.
Ela encolheu os ombros, deixando cair a toalha.
— Também já estava a ficar farta de Paris — disse. Depois, virou costas e afastou-se, completamente nua.
Aí está uma vista da qual nunca me vou fartar...
Do outro lado da linha, Painter interrompeu.
— Como precaução, também vou estender a investigação internamente.
Gray voltou a dirigir a atenção para o telefonema.
— Como assim?
— A investigação da doutora Crandall tem como base a Universidade de Emory. Vou despachar uma equipa para Atlanta, para falarem com a corresponsável pelo projeto, a irmã da doutora Crandall.
— A irmã?
— Irmã gémea, na verdade, doutora Maria Crandall. Diria que é um projeto de família.
— No que consiste a investigação delas?
— É confidencial na sua maioria. Nem o general Metcalf sabe pormenores. Tudo o que sei é que estará relacionada com as origens da inteligência humana.
A origem da inteligência humana?
Intrigado, Gray queria saber mais, mas suspeitava que Painter estaria a esconder o jogo até estar na posse de todos os elementos.
— E quem vai a Atlanta?
— Pois, essa é a questão... preciso de alguém fluente em linguagem gestual.
Gray franziu a testa. Não entendia a necessidade de tal competência, porém, tratando-se de um projeto relacionado com a inteligência humana, tinha a certeza de que Painter iria enviar o melhor operacional que pudesse encontrar.
— Então, quem vamos enviar? — perguntou de novo.
Painter limitou-se a suspirar.
07h55
— Pensava mesmo que ela estava grávida — disse Joe Kowalski, visualizando a expressão furiosa da nova guarda que trabalhava na receção do piso superior. As portas do elevador abriram e encontrou-se no coração do centro de comando da Sigma, acompanhado por Monk Kokkalis.
— Nunca se pergunta a uma mulher se está grávida. — disse Monk. — Nem tendo a certeza de que espera trigémeos!
— Foi a porcaria do uniforme — desculpou-se Kowalski. — Aquele cinto preto, enorme... Como é que eu podia adivinhar?
— Olha, considera-te feliz por ela não te ter dado um tiro.
Acho que mais valia...
Observou o teto do átrio enquanto caminhava ao lado de Monk. O comando da Sigma localizava-se sob o Castelo Smithsonian, ocupando uma ala dos abrigos antibombas do tempo da Segunda Guerra Mundial. Momentos antes, ao regressar de uma corrida no Parque Nacional, tentara ser simpático com a nova colega e dar-lhe as boas-vindas. Claro que não era indiferente a mulher ser bonita e possuir uns lábios carnudos.
— Não acertas uma, sabes? — insistiu Monk.
— Já chega, não? — barafustou Kowalski. Naquele momento, a última coisa de que precisava era de que o lembrassem do seu pobre currículo no que dizia respeito ao sexo feminino.
Monk encolheu os ombros e passou a mão pela careca. Talvez já tivesse levado a brincadeira demasiado longe. Um pouco mais baixo do que Kowalski, a verdade é que também nunca ganharia nenhum concurso de beleza. Ainda assim, Kowalski teria a noção de que não era nenhum Casanova. Algumas mulheres já o haviam comparado a um macaco pelado, e teriam sido generosas, provavelmente.
Mais à frente, encontraram uma mulher elegante, impecavelmente vestida com um uniforme azul da marinha. Dirigia-se para o centro de comunicações da Sigma.
— Aqui estão vocês! — disse Kat, juntando-se a eles. — Vou agora mesmo para o gabinete do diretor.
— A que se devem estas convocatórias súbitas? — perguntou Monk, dando a mão à sua mulher enquanto caminhavam.
Kowalski reparou na simplicidade daquela demonstração de afeto. Tão natural, tão pouco forçada. Sentiu uma ponta de inveja... e de esperança.
Se este gajo conseguiu conquistar uma mulher destas...
Contudo, Monk parecia compensar o que lhe faltava em atributos físicos. Ex-boina verde — com as cicatrizes que o provavam —, exercia funções na Sigma como especialista em medicina forense. A maioria dos seus inimigos cometia o erro de o julgar pela aparência embrutecida, subestimando as suas competências e a mente perspicaz.
Numa ocasião, o diretor Crowe explicara que a Força Sigma retirara o seu nome do alfabeto grego, mais concretamente da letra S, o símbolo matemático para a soma de — o que fazia sentido porque a Sigma representava a união das melhores capacidades do homem: a união entre o cérebro e os músculos.
Descrição que assentava como uma luva em Monk Kokkalis.
Kowalski reparou no seu próprio reflexo ao passar diante de uma porta de vidro. Observou o corpo disforme, o pescoço grosso, o nariz torto...
Que faço eu aqui, então?
Durante os anos em que servira na marinha, nunca conseguira obter uma patente superior a marinheiro. Como operacional da Sigma, o seu treino «científico» consistia em fazer explodir coisas — não é que fosse algo que lhe desagradasse. Porém, no seu íntimo, no que dizia respeito ao equilíbrio entre cérebro e músculo, sabia bem que a balança pendia para um dos lados.
— Vou deixar que seja o Painter a explicar-lhes a razão de terem sido convocados. Ainda estamos a juntar as peças de tudo isto — disse Kat, caminhando à frente dele.
Kowalski seguiu o par pelo corredor até ao gabinete do diretor. Ele e Monk tinham recebido a ordem para se apresentarem na Sigma enquanto contornavam o Lincoln Memorial, durante a corrida matinal. Como tal, tinham-se apresentado em fato de treino.
Kat conduziu primeiro o marido para o interior do gabinete, seguido por Kowalski. Como lhe era habitual, encontraram Painter Crowe sentado à secretária, rodeado de pastas. O diretor levantou uma mão, indicando que aguardassem enquanto terminava um telefonema. Atrás de si, as paredes encontravam-se iluminadas por vários ecrãs, exibindo mapas, notícias em direto e imagens aéreas de uma montanha. Apesar de as instalações da Sigma serem subterrâneas, aqueles ecrãs eram as janelas do diretor para o mundo inteiro.
Painter terminou o telefonema e retirou o auricular da orelha. Levantou-se.
— Obrigado por terem vindo. Parece que temos um caso à altura das vossas capacidades.
O diretor prosseguiu com as explicações, informando-os de que uma unidade militar francesa tinha sofrido uma emboscada nas montanhas da Croácia. Mostrou-lhes elaborados mapas topográficos e imagens de satélite transmitidas em direto. Por fim, apresentou a equipa de cientistas que se encontrava a trabalhar sob proteção dos franceses. Um a um, os rostos foram surgindo nos ecrãs: um geólogo inglês, um paleontólogo francês e um especialista em história do Vaticano. A última fotografia mostrava uma mulher jovem, vestida com uma bata de laboratório. Sorria para a câmara, exibindo uns dentes perfeitos e uma tez bronzeada, salpicada de sardas. O longo cabelo loiro encontrava-se perfeitamente apanhado num rabo de cavalo.
Kowalski assobiou baixinho, claramente impressionado pela beleza da cientista. Painter ignorou-o.
— Doutora Lena Crandall. Geneticista da Universidade de Emory. Encontrava-se a supervisionar um projeto financiado pela DARPA.
— E qual era o projeto? — perguntou Monk. Kowalski parecia não querer saber. Continuava a olhar para a fotografia, embasbacado.
— É isso que eu quero que descubram. A Kat arranjou-lhes um voo, esta manhã, para Atlanta, para falarem com a irmã da doutora Crandall. Quero saber qual é exatamente a relação entre a investigação da universidade e a escavação na Croácia. É uma das peças que nos faltam neste quebra-cabeças.
— E a equipa na Croácia? — perguntou Monk.
— O Gray e a Seichan já estão a caminho — respondeu o diretor, olhando para Kat. Ela confirmou com a cabeça. — Quanto a vocês os dois, preciso desta informação até eles aterrarem na Croácia, entendido?
Monk estalou os nós dos dedos. Observou os ecrãs, estudando cada detalhe, preparando-se claramente para a missão.
Painter pousou-lhe uma mão no ombro.
— Com os seus antecedentes em medicina e genética, não tenho dúvidas de que é a pessoa indicada para confrontar a doutora Maria Crandall acerca das particularidades da sua pesquisa. Também irá estar presente um representante da Fundação Nacional para a Ciência, um cientista que tem supervisionado o financiamento do projeto.
Painter virou-se para Kowalski.
— Quanto a si...
Kowalski franziu a testa, incapaz de perceber qual o seu papel na missão, além de força bruta.
— Penso que seja a escolha ideal para comunicar com o alvo da pesquisa da doutora Crandall.
— Como assim?
— Segundo sei, é fluente em linguagem gestual.
Kowalski ficou surpreendido por o diretor estar a par desta particularidade. Porém, no que dizia respeito à averiguação do historial dos seus operacionais, a Sigma era minuciosa. Era natural que soubesse tudo sobre o seu passado, de como tinha sido criado na pior parte do Bronx, literalmente no lado errado dos carris. Os seus avós tinham emigrado da Polónia durante a guerra. Apesar das dificuldades, o pai acabara por conseguir montar uma pequena mercearia, mas arranjara maneira de deitar tudo a perder com a ajuda da garrafa, esbanjando em álcool cada cêntimo que ganhava. Tinha também uma irmã mais nova, Ana, que nascera com síndrome de Goldenhar, uma doença congénita que a deixara com as costas deformadas e uma grave perda de audição. Depois de a mãe ter sido morta por um condutor embriagado, o pai encontrara na tragédia outra boa razão para beber ainda mais, deixando Ana entregue aos cuidados de Kowalski, ele próprio uma criança.
Respirou fundo, tentando escapar às duras memórias de como a irmã sofrera física e emocionalmente até ao dia da sua morte, com apenas onze anos de idade. Deu por si a remexer no bolso das calças, onde guardava um charuto. Tocou o invólucro de plástico, sentindo uma vontade súbita de fumar.
— Estou bastante enferrujado — murmurou.
— Não foi isso que me disseram — respondeu Painter. — Consta que faz voluntariado no hospital de Georgetown. Trabalha com crianças com problemas de audição, certo?
Monk olhou para ele, surpreendido.
— E quem vou interrogar, concretamente? — perguntou Kowalski, amaldiçoando em silêncio a descarada intromissão da Sigma nos seus assuntos pessoais.
Painter cruzou os braços.
— Acho que o vou deixar descobrir por si. Se pretendemos a colaboração total da doutora Crandall, uma boa interação com o alvo da sua pesquisa pode ser benéfico.
Como queiram...
Kowalski virou costas, visivelmente irritado.
— E em relação à irmã, a que se encontrava na Croácia? — perguntou Monk. — Não houve mais novidades acerca da equipa?
O tom de voz de Painter ficou mais grave.
— Nada. As informações que temos é que a região tem sido abalada por uma série de sismos. O que deixou a montanha em muito mau estado.
— E parece que apenas vai piorar — acrescentou Kat.
5
29 de abril, 14h15 CEST
Região de Karlovac, Croácia
A tremer no escuro, Lena agachou-se em cima de uma rocha. A luz do capacete iluminou a superfície da água que se acumulava no chão da caverna.
Temos de sair daqui...
Nos últimos vinte minutos, a subida da água apagara todos os vestígios do acampamento pré-histórico que ali existira, submergindo as ossadas encrustadas em calcite e as marcas das fogueiras milenares. Tudo o que restava agora eram as estalagmites que ainda se erguiam acima da linha de água e as gravuras ao longo das paredes. Ainda assim, não tardaria muito para que essas manadas de bisontes e veados também se afogassem.
Apesar de aterrorizada, Lena sentiu-se consternada por tão grande perda.
Ao seu lado, o padre Novak voltou a guardar o telemóvel na mochila. Não tivera melhor sorte do que Lena, que tentara ligar para a irmã há uns momentos. Era de todo impossível àquela profundidade.
— É melhor tentarmos passar para a câmara que leva à superfície. Pode ser que haja uma saída. Talvez as réplicas tenham aberto uma passagem depois da explosão.
As palavras dele soavam pouco esperançosas, mas Lena concordou com o plano. Desesperava por poder fazer qualquer coisa, quando mais não fosse para se manter em movimento. Ajustou a mochila, elevando-a o mais que podia nas costas. Logo a seguir, saltou da rocha para dentro do lago negro. A água gelada encharcou-lhe as botas e as calças até à altura das coxas. A ranger os dentes, deu os primeiros passos e começou a avançar.
— Cuidado — avisou. — É bastante escorregadio.
O padre seguiu-a, arquejando ruidosamente assim que entrou na água.
— Para a próxima, avisa-me sobre o frio.
Lena não conseguiu evitar um sorriso, apreciando o esforço que ele fazia para aligeirar os ânimos, e continuou a atravessar a galeria em direção ao túnel que conduzia à câmara anterior. Rezou para que existisse de facto uma escapatória daquele lado.
Quando já estavam perto, um novo tremor agitou a superfície da água.
— Outra réplica! — disse Roland, agarrando-a.
Ficaram muito quietos, sustendo a respiração, esperando o pior. Porém, à semelhança das réplicas anteriores, também esta durou apenas alguns segundos. Ainda assim, Lena acelerou o passo e logo apontou a lanterna para o interior do túnel.
— Está meio inundado — disse.
— Suponho que seja melhor do que completamente inundado.
— Sim, é verdade.
Lena baixou a cabeça e avançou primeiro. Sentiu a respiração pesada enquanto fazia o possível para afastar o pânico claustrofóbico. Os espaços apertados não costumavam incomodá-la, mas a consciência do peso da montanha e a necessidade de se curvar e obrigar-se a caminhar com o nariz rente à superfície da água permitiam-lhe ouvir o coração bater nos ouvidos.
Felizmente, o túnel apresentava um grau de inclinação ascendente e, à medida que se aproximavam do fim, a água já se encontrava pela altura dos tornozelos. Ainda assim, tinha a roupa completamente encharcada e batia cada vez mais os dentes, reação que não se devia apenas ao frio.
Roland não se via em melhor estado, tremendo convulsivamente enquanto observava a pilha de rocha desfeita que tinha à frente. Esticou-se e apontou a luz para o teto. Lena fez o mesmo. Juntos, procuraram por qualquer indício que apontasse a antiga entrada, mas tinha sido completamente arrasada. Do topo, caíam apenas uns fios de água que se infiltravam pela massa de rocha desfeita, assinalando a tempestade à solta na superfície.
Roland cerrou um punho contra os lábios e murmurou algumas palavras em croata. Ainda assim, apesar de ela não as entender, soaram mais como uma maldição do que como uma prece.
— Está tudo bem — disse ela, numa vã tentativa de o confortar. — Alguém virá procurar-nos assim que passe a tempestade. Se ouvirmos alguma coisa, gritamos. Depois, só temos de esperar que cheguem até nós.
Roland examinou o nível da água que entretanto subira até ao meio das canelas de ambos. Não apontou o óbvio, o que ela apreciou. Se a inundação não os matasse, a exposição ao frio encarregar-se-ia de o fazer.
Roland fez que sim com a cabeça.
— Esperemos então que...
Erguendo-se das sombras do lado esquerdo, um grunhido abafado silenciou-lhe as palavras na garganta. Lena rodou o corpo nessa direção. De trás de uma formação calcária, uma silhueta materializou-se da escuridão. Roland puxou a americana para trás de si, temendo um dos ladrões.
Vergado sobre as mãos e os joelhos, o homem inclinou o corpo para um dos lados. Depois, levantou um braço contra as luzes dos capacetes.
— Pére Novak... Docteur Crandall... — gemeu em francês. — C’est vous?
Lena centrou a luz da lanterna. Revelou um rosto familiar, parcialmente coberto de sangue. Apesar de o ter visto uma única vez, e por um breve instante, reconheceu imediatamente o comandante da unidade de infantaria francesa.
Roland também.
— Comandante Gerard! — disse, apressando-se a ir ao seu encontro.
O comandante pareceu aliviado e alcançou a espingarda que tinha atrás de si. A solidez da arma parecia ajudá-lo a focar-se. Fitou ambos.
— Qu’est-ce qui s’est passé? — perguntou, com voz rouca. Aclarou a garganta e tentou novamente, desta vez em inglês. — Que aconteceu?
Roland examinou a ferida do militar, uma laceração no escalpe que continuava a sangrar lentamente. Lena juntou-se a ele. Calculou que o ferimento fosse resultado da explosão.
— Como veio aqui parar, comandante?
Os olhos de Gerard percorreram o que restava da entrada. Depois, ainda confuso, começou a falar devagar.
— Tentei vir ao vosso encontro quando fomos atacados. Era essa a prioridade... protegê-los.
Lena compreendeu.
Salvaguardar os civis a seu cargo.
— Mas o inimigo foi demasiado rápido — continuou Gerard. — Mal tive tempo para me esconder quando apareceram em força. Ouvi-os chamar pelo Wrightson e pelo Arnaud, exigindo que se mostrassem. Quando vocês os dois não apareceram, deduzi que eles lhes tivessem dito para se esconderem. Para os proteger, n’est-ce pas?
Lena fez que sim com a cabeça.
— Mas eram demasiado numerosos. Qualquer tentativa para salvar os professores resultaria na morte de ambos. Decidi, portanto, esperar. Mais tarde arranjaria maneira de vos resgatar. Só depois daria o alarme.
— Nós tínhamos um plano semelhante — admitiu Lena.
Ele olhou para o teto e franziu o sobrolho.
— Já estava a preparar-me para descer quando... — Abanou a cabeça. — Não me recordo de mais nada...
— Eles fizeram explodir a entrada — completou Lena. — E o comandante foi apanhado pela onda de choque.
Gerard levantou-se, atordoado, mantendo uma mão na parede e pondo a espingarda ao ombro com a outra. Observou o nível da água.
— A caverna está a ficar inundada — informou Roland. — A nossa melhor hipótese é subirmos o mais que pudermos.
O comandante ignorou-o, afastando-se. Agarrou numa lanterna que trazia no cinto e apontou-a para o interior do túnel. Uns metros à frente, a água já atingia o teto.
Lena aproximou-se.
— Receio que o Roland... que o padre Novak tenha razão. Devíamos tentar ficar acima do nível da água.
Gerard abanou a cabeça.
— Não temos tempo. Estaremos mortos antes da chegada de uma equipa de resgate.
— Que fazemos, então? — perguntou Roland.
Gerard conduziu ambos até à formação de calcário e apontou para a parte de trás. Lena aproximou-se e deu uma espreitadela, percebendo que o espaço onde o militar estivera escondido era, na realidade, a entrada de um outro túnel. Encontrava-se uns bons cento e vinte centímetros acima da linha de água.
Porém, aonde os levaria?
Gerard retirou um mapa do bolso. Abriu-o e pô-lo contra a parede para que todos o pudessem ver. Tratava-se de um esboço de todo o sistema de cavernas.
— Nós estamos aqui — disse, apontando com um dedo grosso. — De acordo com o estudo geológico que o Wrightson fez, estas galerias encontram-se ligadas por uma série de túneis a outras cavernas, bem no coração da montanha. Provavelmente, este sistema estende-se até ao Abismo de -Dula.
Gerard fitou Roland, que não parecia convencido.
— Do que está ele a falar? — perguntou Lena.
— Passaste pela cidade de Ogulin para aqui chegar, certo?
Lena confirmou com a cabeça, lembrando-se da singular cidade medieval com o seu castelo e casas centenárias.
— A cidade foi construída em cima do maior sistema de cavernas da Croácia, mais de vinte quilómetros de grutas, túneis e lagos subterrâneos. Uma das entradas encontra-se bem no centro da cidade.
— No centro?
— O rio Dobra nasce nas montanhas e desce por um desfiladeiro que atravessa metade de Ogulin. No centro da cidade, a água desaparece no interior de uma cratera profunda e dá lugar a um rio subterrâneo. Esse ponto chama-se Abismo de -Dula. Segundo a lenda, uma rapariga chamada -Dula terá posto termo à vida atirando-se para as profundezas do abismo, para não ser obrigada a casar com um velho e cruel nobre.
Lena virou-se para o comandante francês.
— Portanto, existe a possibilidade de estas cavernas se estenderem até esse abismo, o que para nós significaria uma possível escapatória.
— Wrightson acreditava que sim — disse Gerard. — Mas nunca chegou a explorar todo o sistema.
— A que distância se encontra a cidade?
— Cerca de sete quilómetros, em linha reta — disse Roland.
Cerca de quatro milhas.
Lena sentiu uma ponta de desespero.
— Tenho algum equipamento de escalada... cordas, pilhas suplementares — ofereceu Gerard.
Tentando afastar o pânico, ela voltou a olhar para o nível de água, que continuava a subir.
— E se o resto do sistema também estiver inundado?
Gerard encolheu os ombros.
— Je ne sais pas — disse. — Mas sei que aqui está a inundar.
Roland olhou-a nos olhos.
— A escolha é tua. Se não quiseres arriscar, fico aqui contigo.
Lena apontou outra vez a lanterna para o interior do túnel, interrogando-se sobre o que a aguardava na escuridão. Porém, sabia que o comandante tinha razão. Perante o desconhecido ou uma morte certa, nada havia para decidir.
Endireitou as costas e fitou os dois homens.
— Vamos!
16h04
Gray segurou-se bem enquanto o helicóptero se debatia contra a tempestade. Intensa, a chuva tombava em pesados lençóis sobre os vidros do aparelho, desafiando a eficiência das escovas limpa-para-brisas. Apesar das horas que ainda faltavam para o ocaso, um denso manto de nuvens negras envolvia o topo da montanha, obscurecendo toda a região e transformando o dia em noite.
Ao lado de Gray, o piloto lutava como podia para manter o comando enquanto os rotores cortavam selvaticamente o manto de água. Chegando de todas as direções e ao mesmo tempo, rajadas de vento forte fustigavam cada vez mais a aeronave conforme avançavam para o coração dos Alpes. Finalmente, depois de sobrevoarem mais um pico, vislumbraram por fim um aglomerado de luzes no vale seguinte.
— Ogulin! — comunicou o piloto pelo rádio, limpando o suor do rosto. — É o mais longe que consigo voar nestas condições. Fui informado de que a tempestade ainda é mais intensa daqui em diante.
Gray virou-se e olhou para Seichan, sentada na parte de trás da cabina, aparentemente imperturbada com as condições. Ela apenas encolheu os ombros, aceitando a mudança de planos com igual indiferença.
Meia hora atrás, os dois tinham aterrado em Zagreb, onde um piloto local e um helicóptero os aguardavam. A viagem para o local assinalado pelas coordenadas como o do desaparecimento da unidade francesa não deveria demorar mais do que quinze minutos. Porém, a tempestade já tinha dobrado essa estimativa, e agora ameaçava recambiá-los de volta para o solo.
Sem disposição para perder mais tempo, Gray fitou o piloto, preparando-se para o intimar a prosseguir. Quanto mais tempo demorassem, maior se tornava a probabilidade de perderem o rasto da equipa de cientistas e dos militares. Contudo, olhando o céu escurecido e para a fúria dos relâmpagos sobre a montanha, simplesmente afundou o corpo no assento.
— Assim seja — concedeu.
O piloto anuiu com um suspiro de alívio, e começou a descer o aparelho em direção às luzes que iluminavam o vale.
— Consigo aterrar nas imediações da cidade — disse ele, apontando. — Vou pedir um carro pelo rádio para vir ao nosso encontro. Podemos tentar outra vez, assim que a tempestade amaine, mas não prevejo que isso aconteça antes do amanhecer. Entretanto, posso-lhes arranjar um hotel, se quiserem.
Gray mal o ouvia, às voltas com a melhor alternativa para não comprometer o prazo que delineara para o êxito da missão.
— Quanto tempo levaríamos até ao local, se completássemos a distância a pé?
O piloto lançou-lhe um olhar cético.
— Podem ir de carro até Bjelsko, que fica a apenas seis quilómetros. Daí, são uns quarenta minutos de caminhada. Com bom tempo, claro. Nestas condições, com os trilhos enlameados ou destruídos, pode demorar horas até que consigam atravessar uma floresta tão densa como aquela. Se não se perderem, o que também não seria difícil de acontecer. Acho melhor aguardarem.
Fazendo justiça à recomendação do piloto, uma rajada de vento lateral fez o helicóptero inclinar-se perigosamente, obrigando-o a concentrar-se para aterrar o aparelho o mais depressa possível.
Gray levou a mão ao bolso e retirou o telemóvel. Usou a sua impressão digital para descodificar o conteúdo do aparelho e examinou os ficheiros relativos à missão. Já o tinha feito exaustivamente durante a viagem para Zagreb e sabia o que procurava. Abriu a fotografia de um homem vestido com equipamento de escalada, no topo de uma ravina. Teria à volta de cinquenta anos.
Rodou o corpo e mostrou a fotografia a Seichan.
— Fredrik Horvat, o responsável pelo clube de montanhismo local. Foram os primeiros a entrar naquelas cavernas. Conseguiram manter o segredo até que fosse possível reunir uma equipa de investigação para assegurar a integridade do local.
— E vive aqui, em Ogulin? — perguntou Seichan, inclinando-se para a frente.
— Sim, vive aqui. Suponho que conheça estas montanhas melhor do que ninguém. Se o conseguirmos convencer a levar-nos até lá acima...
Seichan endireitou-se.
— Não temos de esperar pela manhã.
— Tenho aqui a morada.
O piloto aterrou rapidamente o helicóptero num terreno descampado. Pouco depois, os faróis de um automóvel romperam a escuridão e aceleraram pela estrada contígua, em direção a eles. Gray e Seichan abandonaram a aeronave e aguardaram curvados nos seus agasalhos. Assim que o automóvel parou, entraram para o banco de trás.
Assim que se puseram em movimento, Gray entregou ao motorista — um jovem chamado Dag — o nome e morada do montanhista.
— Ah, o Fredrik... eu conheço-o — disse Dag num inglês vacilante. Abriu um sorriso, revelando o enorme espaço entre os dentes da frente. — Esta cidade pequena. Ele homem louco, sempre nas cavernas. Eu preferir ar livre. Mais melhor.
— Tentei telefonar-lhe — disse Gray. — Ninguém atende.
— Deve estar no bar. Hotel Frankopan. Vive muito perto. Muitas pessoas vão ao bar durante tempestade. Bom para beber brandy quando as vjestice... as bruxas... uivam.
Um potente trovão ribombou acima deles, suficientemente forte para fazer estremecer os vidros do automóvel. Dag encolheu-se ligeiramente contra o volante. Depois, endireitando-se, benzeu-se.
— Melhor não falar das vjestice agora.
Conforme se aproximavam da cidade, Gray ia tentando ligar para o telemóvel do montanhista, embora sem êxito. Restava-lhe, portanto, uma única alternativa.
— Vamos tentar o bar — disse a Dag. Depois virou-se para Seichan. — Se ele não estiver lá, pode ser que alguém do hotel conheça outro guia.
Seichan recostou-se no banco e fechou os olhos.
— Se não tiverem medo das bruxas, bem se vê.
Gray estudou o ambiente em redor quando entraram na cidade. Era um lugar singular, com ruas estreitas, pequenos parques arborizados e casas com telhados vermelhos. De certa maneira, lembravam-lhe contos de fada. As origens da cidade, que datavam do século XVI, estavam presentes por toda a parte: desde a majestosa igreja, com o seu alto campanário, às ruínas de um velho forte, situado no topo de um monte próximo.
Encostaram por fim junto às muralhas do castelo. Em cada esquina, erguiam-se maciças torres redondas. As ameias ladeavam uma ravina profunda, semelhante à da fotografia de Fredrik.
— Castelo de Frankopan — anunciou Dag, enquanto estacionava o automóvel. Apontou para o edifício branco limítrofe. — E este é Hotel Frankopan. O bar fica dentro. Eu entrar com vocês e perguntar por Fredrik.
Gray preferiria não dar nas vistas, mas o tempo estava a esgotar-se e tinham ainda uma longa caminhada pela frente.
— Hvala — disse Gray, agradecendo ao homem em croata, o que lhe arrancou um sorriso.
— Vamos. Talvez beber brandy também. Para afastar as vjestice.
Gray não tinha objeções. Pagar-lhe-ia uma garrafa inteira se Dag encontrasse o montanhista.
Entraram rapidamente no hotel. O interior era igualmente branco, embora acolhedor devido ao mobiliário de madeira antigo. A rececionista lançou-lhes um olhar curioso, mas Dag cumprimentou-a e continuaram a andar.
— Zdravo, Brigita!
Ela devolveu o cumprimento, porém a sua postura corporal tornou-se mais rígida, atenta.
— Parece que todos se conhecem nesta cidade — disse Gray.
— Até os que são de fora — observou Seichan, ominosa.
Gray olhou para ela. O seu modo de andar mudara subtilmente. Era algo impercetível, exceto para ele. Notou o ligeiro semicerrar dos olhos, como cada passo parecia ser dado com uma medida de cautela.
— Que se passa? — sussurrou, enquanto se aproximavam do burburinho que chegava da zona do bar.
— Reparaste na reação dela? Não me parece que tenha ficado agradada com a nossa presença. Não creio que sejamos os primeiros forasteiros a passar por aqui recentemente. E também não me parece que tenham deixado boa impressão.
Gray olhou por cima do ombro. A rececionista continuava a observá-los com desconfiança.
— Acho que tens razão. Não terão os responsáveis pela emboscada passado por esta cidade? Ou mesmo por este hotel? Vale a pena averiguar e fazer umas perguntas discretas.
— E se ainda aqui estiverem? — disse ela, levantando o sobrolho. — Podem estar retidos pela tempestade... como nós. Será que temos essa sorte?
Uma saraivada de tiros irrompeu à frente deles, acompanhada de gritos.
Acho que sim, Seichan.
16h24
Como num escorrega, Roland deslizou de costas pela rocha enlameada. Desacelerando com os calcanhares, até conseguir parar, encontrou-se então na caverna seguinte. O comandante Gerard ajudou-o a levantar-se e juntaram-se a Lena, que se apoiava contra a parede com as costas ligeiramente dobradas devido à altura do teto.
— Será que ainda falta muito? — perguntou ela, tentando recuperar o fôlego. Há duas horas que escalavam, rastejavam e escorregavam ao longo daquele mundo subterrâneo.
Gerard consultou de novo o mapa e verificou que já tinham ultrapassado a área explorada por Wrightson. Encontravam-se agora em território desconhecido. Agarrou na bússola e fez algumas marcações a lápis no mapa, para ficar com um registo do progresso e evitar que se perdessem ainda mais.
— Já devemos estar perto do fim — disse Roland, ainda que não passasse de um palpite.
Lena endireitou-se.
— Ouçam!
Roland tentou obedecer, suprimindo a respiração pesada. Gerard guardou o mapa e rodou a cabeça, como uma antena.
Ecoando à distância, começaram então a ouvir um som familiar.
— Um rio — disse Gerard.
Até ao momento, tinham conseguido evitar o pior da inundação, e apenas tinham deparado com algumas poças e pequenos lagos. Além disso, pareciam ser permanentes e não uma consequência direta da tempestade.
Proferiu uma prece silenciosa para que o curso de água fosse transponível.
— Vamos — ordenou ele, preocupado.
Avançaram pela caverna acanhada, seguindo o foco das lanternas. Mais à frente, a altura do teto começou a subir. Como na primeira caverna, começaram a surgir vastas formações de helictites, intercaladas por uma profusão de estalactites. O som de água a correr também aumentara de volume e ecoava agora por esse espaço vasto, abafando as palavras ocasionais, deixando apenas o bater do coração de cada um como companhia.
Lena levantou um braço e apontou.
— Roland! — disse ela. — Outro petróglifo!
O padre humedeceu os lábios. Na verdade, há muito que tinha ultrapassado a fase de se impressionar com mais pinturas. Nas últimas horas, haviam deparado com várias representações isoladas de animais: um bisonte, um antílope, um urso, até um leopardo. Ao que parecia, o povo primitivo que decorara a caverna principal também se teria aventurado nas profundezas do sistema, deixando atrás de si aqueles testemunhos pré-históricos.
Lena aproximou-se da parede, arrastando consigo Roland.
— Não é um animal.
Apontou a lanterna para a enorme figura, com uma altura superior à de dois andares. Pintada em tons de branco, os seios proeminentes indicavam tratar-se de uma mulher — embora algo fantasmagórica. Os olhos, dois círculos vermelhos, davam a sensação de os observarem.
Lena notou as pintas azuis na testa da figura, formando um padrão em forma de uma estrela de seis pontas. Era o mesmo símbolo que tinham encontrado junto das sepulturas, feito com impressões de mãos.
— Achas que poderá ser a representação da mulher do Neandertal cujas ossadas foram retiradas da outra caverna? — perguntou.
Roubadas pelo padre Kircher, séculos antes.
— É a primeira pintura de uma pessoa que encontramos aqui— acrescentou. — Todos os outros petróglifos são animais.
Exceto as figuras feitas pelas sombras das estalactites, pensou o padre, representando algum inimigo poderoso.
— Espera, parece que temos aqui mais qualquer coisa!
Lena curvou-se e centrou a luz da lanterna entre os calcanhares da figura. Junto ao chão, encontrava-se a entrada de um túnel rasteiro. Roland aproximou-se e apontou também a sua lanterna, percebendo que não se tratava de um túnel, mas sim de uma entrada, em forma de arco, que conduzia a outra câmara adjacente.
— Deixem isso. Não há tempo para explorações — disse Gerard.
Sempre crescente, o som de água a correr amplificava aquele aviso.
Ainda assim...
Lena tomou a decisão pelos dois. Agachou-se e rastejou por baixo da entrada. Tão curioso quanto ela, Roland seguiu-a, ignorando os protestos do comandante francês.
Esta câmara era pequena, com pouco mais do que cinco metros de comprimento. Não havia nenhuns ossos no chão, apenas outra marca de fuligem no centro, que denunciava que também ali existira uma fogueira. Lena levantou-se e olhou em redor, varrendo as paredes com a lanterna.
Não conseguia acreditar no que estava a ver.
Em vez de pinturas, as paredes apresentavam fileiras de pequenos nichos esculpidos, cada um com pequenas esculturas de animais. Um deles exibia um mamute com a tromba levantada; num outro, um leão erguido sobre as patas traseiras. Roland apontou também a sua luz, revelando esculturas de lobos, ursos, bisontes e todo o tipo de veados e antílopes. Nos nichos superiores, uma variedade de aves que se estendia desde falcões a aves aquáticas.
Se existisse alguma dúvida em relação à idade daquelas peças, os depósitos de calcite que as tinham aprisionado na rocha desfaziam-na por completo, confirmando que se tratava de artefactos pré-históricos. Seria necessário pelo menos um milénio para tal acumulação de sedimentos.
Lena tocou na escultura de um leopardo.
— Devem ser totens tribais. Se foram esculpidos por neandertais, muda por completo o que sabemos acerca deles.
Roland anuiu e aproximou-se do maior dos nichos. Encontrava-se bem no centro da parede oposta à entrada. Umas pequenas marcas chamaram-lhe a atenção. Duas impressões de mãos, uma de cada lado do nicho, em vermelho-sangue.
Lena juntou-se a ele.
— A do lado esquerdo também tem o dedo mindinho torcido. Exatamente como vimos nas impressões do túmulo da mulher. — Pousou a sua mão sobre a impressão do lado direito. — E esta... aposto que é igual às impressões do túmulo do homem.
Roland olhou para ela. Franziu a testa.
— Penso que é evidente que ambos eram importantes para esta tribo. Talvez fossem chefes. Ou xamãs, a julgar pela quantidade de totens.
Apontou a lanterna para iluminar o interior do nicho. Ao contrário de todos os outros, não continha nenhuma figura de pedra. No entanto, havia ali algo, cuidadosamente embrulhado.
Roland tentou retirar o objeto.
— Cuidado — disse Lena, mas não tentou dissuadi-lo.
Roland segurou o artefacto, percebendo que estava embrulhado em camadas de um tecido rijo. Restos de cera caíram-lhe nos dedos.
— Isto não é pré-histórico — comentou.
— O que é? — Lena tentou ver melhor.
O padre humedeceu os lábios e começou a retirar as camadas de tecido, fazendo cair mais partículas de cera, até revelar um livro encadernado em couro. A capa exibia um símbolo gravado, com formas convolutas, formando um padrão.
— Parece o corte transversal de um cérebro — disse Lena, impressionada.
Roland sorriu. Como geneticista, era natural que Lena tivesse visto um cérebro naquele padrão.
— Penso que é um labirinto — disse ele, corrigindo-a. — Existem desenhos assim desde que o homem começou a produzir arte.
— Que achas que significa?
— Não sei. Mas repara nas iniciais que estão abaixo.
Lena leu as iniciais em voz alta.
— A.K... e S.J.
— Athanasius Kircher... Societas Jesu — acrescentou Roland, deixando transparecer reverência na voz.
As mãos tremeram-lhe ao tomar consciência de que segurava um livro que pertencera ao padre jesuíta, cuja obra ele estudara a vida inteira. Incapaz de resistir, abriu-o cuidadosamente e algo caiu no chão da caverna.
Lena ajoelhou-se e apanhou o objeto.
— É uma chave.
Aproximou-a da luz. Era do tamanho da palma da sua mão, trabalhada com motivos intrincados que representavam um querubim rodeado por um arco de caveiras.
Lembrou-se das ossadas roubadas na outra caverna.
Que significa tudo isto?
Tentou encontrar respostas no livro, porém, as páginas não tinham resistido ao teste do tempo. Ao longo dos séculos, a humidade conseguira atravessar o tecido encerado, tornando o papel numa espécie de polpa. A impressão da chave permanecia, mas as palavras escritas naquelas páginas tinham desaparecido há muito tempo.
— Não podemos esperar mais! — ordenou Gerard, perentório.
Lena fez ouvidos moucos e voltou a examinar o nicho, tateando o seu interior.
— Consigo sentir pedaços soltos de calcite. Alguém retirou alguma coisa daqui.
Roland olhou para as esculturas em redor, todas elas aprisionadas na rocha pela ação do tempo.
— Suponho que tenha sido o padre Kircher. O livro pode ser uma espécie de pista deixada por ele... um relato do que aqui encontrou e, mais importante, para onde o terá levado.
Roland olhou para o estado miserável do livro nas suas mãos.
— Talvez possa ser recuperado — disse Lena. — Podemos entregá-lo a um perito. Nunca se sabe.
Roland duvidava que tal fosse possível, mas não perderiam nada em tentar.
— Primeiro temos de conseguir sair destes malditos túneis — disse, dirigindo-se para a saída da câmara.
Juntaram-se a Gerard. No mesmo instante, Roland percebeu imediatamente qual a razão por trás da urgência do comandante. Na caverna principal, o som da água ecoava agora muito mais alto.
Lena olhou para ele, o medo estampado no rosto.
Não tinham mais tempo.
16h48
Os tiros vinham do interior do bar.
Uma multidão em fuga atravessou o átrio do hotel, em direção a Gray e Seichan. Gray agarrou em Dag e empurrou-o de volta para a receção.
— Chama a polícia!
Enquanto o mar de gente passava por eles, Gray encostou-se à parede e sacou da sua arma, uma pistola SIG Sauer, que trazia num coldre por baixo do casaco. Na parede oposta, Seichan segurava um punhal militar e também uma pistola. Assim que o espaço ficou livre, começaram a avançar em direção ao bar, mantendo o corpo baixo e cobrindo ambos os flancos.
Antes que conseguissem alcançar a porta, Gray ouviu passos atrás de si.
Dag regressara para junto dele, ofegante, os olhos muito abertos perante a arma que Gray segurava.
O operacional empurrou o rapaz com força contra a parede. Seichan fincou um joelho no chão, mantendo a mira da arma na porta do bar. O tiroteio parecia ter cessado, mas continuavam a ouvir vozes exaltadas que pareciam ser exigências gritadas em croata. Aparentemente, os assaltantes — fossem eles quem fossem — tinham feito reféns.
Que raio se passa aqui?
Dag tinha a resposta.
— Os outros disseram para mim — explicou a Gray, aterrorizado. — Um grupo de razbojnici... bandidos... entraram no bar. Procuram o Fredrik. Deram tiros no ar e deram tiro em homem, na perna.
Gray olhou para ele, depois para Seichan. Os assaltantes também andavam à procura do montanhista. Este ataque estava relacionado com a emboscada nas montanhas, pensou. Seria uma operação de limpeza, uma tentativa de destruir todas as provas, incluindo a eliminação de quem pudesse saber alguma coisa?
— E Fredrik? — perguntou Gray.
Dag apontou para o bar.
— Ainda estar lá. O rapaz anuiu com um movimento de cabeça. — Escondido na casa de banho. Amigo dele único que sabe que ele está lá.
— Existe alguma saída, uma janela?
— Sim. Mas muito pequena.
Está encurralado.
Gray não acreditava que o esconderijo de Fredrik o protegesse por muito mais tempo. Olhou para Seichan, sabendo que ela escutara a conversa. Ela dirigiu-lhe um sinal com a cabeça, sabendo de antemão o que se passaria a seguir. Não era a primeira vez que faziam esta dança. Ela atravessou rapidamente o átrio para junto dele, agarrando Dag pela parte de trás do colarinho.
— Tu vens comigo — disse-lhe, friamente.
Enquanto Seichan se afastava, arrastando Dag, Gray correu em direção à porta do bar e agachou-se num dos lados da ombreira. Junto ao chão, espreitou rapidamente o interior e voltou à mesma posição. Com a imagem gravada na cabeça, avaliou a ameaça: quatro homens encapuzados e armados; tudo pistolas; nenhuma arma automática. Dois deles guardavam um trio de clientes sentados numa cabina privada forrada a vermelho. Outro encontrava-se de pé, junto a um homem caído no chão, enrolado sobre si mesmo numa poça de sangue. O quarto mantinha a vigilância de todo o espaço. Felizmente, o balcão de mogno sobredimensionado não lhe permitira reparar em Gray.
No entanto, tomara também nota de outro pormenor. Um dos clientes na cabina privada estava a apontar na direção das traseiras do bar, provavelmente para a zona das casas de banho.
Não podia perder mais tempo.
Como se tivesse sido ensaiado, ouviram-se novos disparos, acompanhados de vidros a partirem-se. Vinham das traseiras do bar, de uma das casas de banho.
Era o sinal para entrar em ação.
Rebolou pela porta, mantendo-se escondido pelo balcão. Os quatro encapuzados estavam todos a olhar na direção das casas de banho, apontando as respetivas armas, preparados para responder.
Gray levantou-se e premiu o gatilho duas vezes. As cabeças de dois encapuzados explodiram e ambos tombaram de imediato. Gray apontou então para a perna do terceiro, desfazendo-lhe o joelho com um único tiro certeiro. O sequestrador rodou com o impacte e caiu para cima do cliente que se encontrava em agonia no chão, com um ferimento semelhante.
O carma é lixado, eu sei.
O quarto sequestrador, que estava mais afastado, correu em busca do único abrigo possível e irrompeu pela casa de banho das senhoras, convencido de que os disparos tinham sido efetuados por Fredrik, escondido na casa de banho dos homens. A esperança dele era que existisse uma janela por onde pudesse fugir.
Porém, Gray lembrava-se das palavras de Dag.
Sim, existe. Mas é pequena.
Ouviu-se um único disparo, de novo acompanhado pelo som de vidros a partirem-se.
O sequestrador surgiu outra vez no bar, recuando cambaleante, a nuca transformada numa cratera. Depois, finalmente, caiu no chão.
Necessitando de respostas, Gray correu para junto do encapuzado que alvejara no joelho, o único que ainda respirava. Porém, antes que conseguisse chegar perto, o homem ergueu um braço, encostou a pistola à cabeça e premiu o gatilho.
O disparo ressoou como uma explosão. Não havia mais nada que Gray pudesse fazer.
Engolindo o desapontamento, apressou-se a ir ao encontro de Fredrik. Encontrou o montanhista encolhido numa das retretes, o rosto lívido, o cabelo desgrenhado. Apesar de estar completamente aterrorizado, fitou Gray nos olhos, preparado para o que viesse a seguir.
Uma voz surgiu da janela partida.
— Fredrik!
Na rua, debaixo de chuva, Dag espreitava através dos vidros estilhaçados, falando rapidamente em croata, tentando tranquilizar o compatriota.
Gray tentou fazer o mesmo, dando uso às poucas palavras que memorizara desde que pisara solo croata.
— Zovem se Gray — disse, apresentando-se e guardando a pistola.
Seichan afastou Dag.
— Perímetro seguro — informou, guardando também a sua arma.
Gray visualizou Seichan a esgueirar-se e a rodear o hotel para poder disparar pela janela, criando a manobra de diversão inicial. A seguir, percebendo que um dos sequestradores se esgueirara para a outra casa de banho, abatera-o ali mesmo, a partir da sua posição, eliminando a ameaça.
Fredrik recompôs-se.
— Que se está a passar? — perguntou num inglês fluente.
— É melhor discutirmos isso num lugar mais apropriado — disse Gray. — Não sabemos se estes tipos têm mais companhia.
Fredrik não necessitava de grandes argumentos para sair dali. Gray conduziu-o pelo bar e abandonaram o hotel por uma porta lateral, evitando a zona do átrio e a receção. Cá fora, reuniram-se a Seichan e Dag e correram para o BMW estacionado.
Antes que Dag pudesse ligar o motor, o telefone por satélite de Gray vibrou no seu bolso. Atendeu a chamada, reconhecendo imediatamente a voz de Kat.
— Gray, acabámos de detetar um sinal proveniente do telemóvel da doutora Crandall. É demasiado fraco e intermitente para estabelecermos uma ligação. Ainda assim, conseguimos uma localização aproximada. O problema é que não faz sentido nenhum...
— De onde veio o sinal?
— Vou transmitir as coordenadas de GPS para o teu telefone.
Gray examinou o mapa que surgiu no ecrã. A vila tinha a disposição de uma ferradura, com as ruas e as casas a rodearem uma ravina que a dividia ao meio e terminava num abismo profundo, junto ao castelo.
Um ponto luminoso intermitente marcava a localização do sinal no mapa.
Gray franziu a testa e olhou na direção do imenso buraco negro no final da rua. Aparentemente, o sinal vinha daí.
Isto não pode ser bom.
6
29 de abril, 11h03 EDT
Lawrenceville, Geórgia
Porque não atendes?
Maria desligou e pressionou o telefone, nervosa, entre as palmas das mãos. Sentou-se na secretária. Nas últimas duas horas, tentara repetidamente contactar a irmã, sentindo-se cada vez mais ansiosa a cada chamada não atendida.
Por intermédio da DARPA, ficara a saber de um problema no local da escavação, embora os pormenores continuassem a ser poucos. Desse modo, fora instruída para aguardar e continuar a tentar contactar a irmã. Entretanto, deveria contar com a visita de uma equipa de investigação de Washington. Os agentes iriam interrogá-la acerca dos pormenores da sua pesquisa e dar-lhe-iam informação adicional acerca do que se estava a passar na Croácia.
Verificou as horas no telemóvel.
Devem chegar a qualquer momento.
Respirou fundo, tentando manter-se calma, mas não conseguia esquecer o episódio com Baako. Recordou os sinais que o animal repetira insistentemente:
Medo, medo, medo...
— Também estou com medo, Baako — sussurrou.
Visualizou o rosto da irmã. Lena era apenas uns minutos mais velha, mas consubstanciara o peso desses minutos extras de maturidade assumindo, de alguma forma, um papel mais maternal na relação de ambas. Era sempre a irmã que aquecia o jantar enquanto a mãe não regressava do trabalho, que confirmava se ela tinha terminado os trabalhos de casa para poder ver televisão. Tudo isso fizera com que Lena se tornasse um pouco mais séria e cautelosa, ao contrário de Maria, que sempre fora mais descontraída, mais audaz perante novos desafios.
Porém, agora não me sinto corajosa, apenas preocupada.
Depois de um novo telefonema falhado, Maria ouviu alguém conversar no corredor. Logo a seguir, bateram à porta do gabinete. Maria abriu-a e deparou com Leonard Trask. Atrás do diretor, encontravam-se ainda dois estranhos e uma mulher que conhecia bem, Amy Wu.
Amy trabalhava para a Fundação Nacional para a Ciência e era supervisora de projetos da BRAIN. Colaborara de perto com as irmãs nos trâmites necessários para o financiamento da investigação. Entre as três mulheres, todas da mesma idade e com profissões em áreas dominadas por homens, tinha-se desenvolvido uma boa amizade ao longo dos anos.
Amy passou por Trask e deu um forte abraço a Maria. O seu suave perfume cheirava a madressilva e usava o cabelo curto, à rapaz.
— Como estás a aguentar-te? — perguntou, olhando-a nos olhos com autêntica preocupação.
Maria apreciou o ato, porém, naquele momento, tudo o que queria era ter notícias da irmã.
— Soubeste mais alguma coisa?
Amy olhou para os dois homens que a acompanhavam e que mais pareciam seguranças de um bar de motociclistas. Ambos usavam fatos, mas a constituição física corpulenta saltava à vista. Pelos cortes de cabelo e postura rígida, calculou que fossem militares. O mais baixo cumprimentou com a cabeça e sorriu.
Amy fez as apresentações.
— Estes senhores foram enviados pela DARPA. Monk Kokkalis e o seu colega, Joseph Kowalski.
— Joe — corrigiu Kowalski, baixando a cabeça ao passar na ombreira da porta. Olhou imediatamente em redor, estudando o espaço.
Trask preparava-se também para entrar, mas Amy pôs-lhe um braço à frente.
— Lamento, Leonard. Esta conversa é um assunto de segurança nacional. Tenho a certeza de que compreenderá.
O diretor lançou-lhe um olhar fulminante, mas Amy fechou-lhe simplesmente a porta na cara. Calculou que isso lhe trouxesse problemas no futuro, porém, no imediato, a única preocupação era o paradeiro de Lena.
Maria não precisou de perguntar nada.
— Sei que estás muito preocupada com a tua irmã — disse Amy, assim que fechou a porta. — Por isso, vou ser o mais direta possível. Lembra-te, porém, de que há variáveis que desconhecemos. A verdade é que ainda estamos a tentar apurar o que aconteceu realmente naquelas montanhas.
— Que sabem até agora?
— Que o local foi atacado e que perdemos toda a comunicação com a unidade militar francesa que estava encarregada da segurança.
Maria olhou para o telemóvel nas suas mãos. Cada palavra de Amy parecia atingi-la como um murro no estômago.
Deixou-se cair pesadamente na cadeira.
— E Lena?
— Não vamos pensar o pior. Como te disse, estamos sem qualquer contacto. Neste momento, a montanha está a ser atingida por uma forte tempestade, e a região também tem sido abalada por uma série de pequenos sismos. A DARPA já enviou uma equipa de resgate, e não tenho dúvidas de que teremos mais notícias em breve. Porém, o mais importante é que já tivemos um sinal muito positivo.
Amy virou-se para Monk Kokkalis.
O operacional aclarou a garganta e começou a falar.
— Como pode calcular, doutora Crandall, temos estado a monitorizar a região. Há minutos, quando vínhamos do aeroporto, fomos informados de que tinha sido detetado um sinal proveniente do telemóvel da sua irmã. Era bastante fraco, mas foi possível determinar a origem, a vários quilómetros do local do ataque.
Amy segurou as mãos de Maria.
— O que sugere que Lena está em movimento, provavelmente a tentar sair da montanha.
Maria sentiu os olhos lacrimejarem de alívio, mas também de medo.
— Sabem se está sozinha ou acompanhada? Pode estar ferida. Pode até ter sido raptada.
— Não podemos saber — admitiu Monk. — Mas conheço bem o homem que foi procurá-la. E sei que vai encontrá-la.
Maria sentia a convicção na sua voz grave. Queria acreditar nele.
— Se este ataque não foi uma pilhagem — continuou Monk —, é importante que consigamos apurar as razões que o possam ter motivado. É por isso que estamos aqui, para reunir o máximo de informação acerca da vossa investigação. Essa é a melhor hipótese que conseguimos oferecer à sua irmã e aos restantes membros da equipa.
— Tenciono ajudar no que for possível, claro. Mas não vejo motivo que possa estar relacionado com o nosso projeto.
— Talvez seja assim — admitiu Monk. — Estamos a considerar todas as possibilidades.
Maria engoliu em seco.
— Bom, que querem saber?
— Segundo sei, o propósito da sua investigação é a exploração das origens da inteligência humana. Pode dizer-nos alguma coisa sobre a metodologia e a teoria que pretende comprovar?
Maria suspirou, sem saber por onde começar, ou se um militar como Monk a poderia sequer compreender. Ainda assim, endireitou-se na cadeira, disposta a colaborar.
— A minha irmã e eu estamos a investigar um momento na História do Homem conhecido como Grande Salto Evolutivo. Trata-se de um ponto de viragem no domínio do desenvolvimento cognitivo, ocorrido há cerca de cinquenta mil anos, em que surge uma explosão inexplicável de arte e inovação.
Monk anuiu com um movimento de cabeça.
— O Big Bang da consciência humana.
Maria fitou os seus olhos, notando uma centelha de divertimento e inteligência. Perguntou a si própria se seria boa ideia julgar aquele homem pela sua aparência de pugilista.
Okay, vamos lá elevar a fasquia.
— O homem moderno apareceu em cena há duzentos mil anos. Para todos os efeitos, foi uma evolução muito rápida em relação aos hominídeos anteriores. De acordo com a investigação de um trio de geneticistas da Universidade de Chicago, a aparição súbita do Homo sapiens pode ser atribuída a uma mutação repentina de apenas dezassete genes da construção cerebral. Uma coisa ínfima, na verdade. Porém, terá sido o suficiente para desencadear uma reação em cadeia, ou um efeito de bola de neve, se preferir, que resultou em centenas de alterações em milhares de genes num curto período de tempo.
Monk franziu a testa, pensativo.
— E essa bola de neve deu origem ao nosso cérebro moderno, ao que nos separa dos chimpanzés e anteriores hominídeos?
— E àquilo que nos tornou humanos: a capacidade cognitiva, a nossa consciência. — Lena olhou para os rostos em redor, satisfeita por poder continuar a falar. Era uma boa distração dos receios em relação a Lena. — O que nos leva de volta ao Grande Salto Evolutivo. Antes do salto, a humanidade havia estagnado durante cento e cinquenta mil anos. É verdade que dominávamos e usávamos mais ferramentas de pedra, mas, durante todo esse tempo, nunca criámos arte, nunca adornámos o corpo e nunca enterrámos os nossos mortos.
— E depois do salto?
— Uma explosão de engenhosidade. As ferramentas passam a ser fabricadas com osso. Aparecem as primeiras técnicas de coloração e começamos a aquecer pigmentos para criar novas cores. Começamos a recolher conchas para as transformar em adornos corporais. A verdade é que, sem nada que o justifique, demos por nós a usar colares e pulseiras e a realizar cerimónias fúnebres com oferendas para os mortos, desde comida a ferramentas. Porém, ainda mais impressionante, começámos a criar magníficas obras de arte, decorando cavernas com pinturas do mundo natural. Foi aí, nesse momento, que nasceu verdadeiramente o homem moderno.
Uma voz rouca fez-se ouvir atrás deles.
— E que terá causado tudo isso? — quis saber Kowalski.
— É o que a minha irmã e eu pretendemos descobrir. Sabemos, por via de registos fósseis, que os nossos cérebros não mudaram de tamanho, que não houve nenhuma alteração depois do salto. Sem uma explicação anatómica, as teorias divergem quanto à causa exata de tão grande avanço. Uns defendem que terá sido a introdução de uma dieta rica em ácidos gordos, que nos ajudaram a pensar melhor. Outros afirmam que fomos obrigados a evoluir por causa de alterações climáticas. E há quem acredite que foi consequência da nossa migração de África, que terá exposto os cérebros dos nossos antepassados a novos desafios e condições de sobrevivência, estimulando assim a engenhosidade.
— E qual é a sua teoria, doutora Crandall? — perguntou Monk.
Maria apontou para o seu diploma na parede.
— Sou geneticista. Se não houve um aumento do cérebro, então a mudança poderá ter ocorrido geneticamente. Lembrem-se de que foi uma mutação de meia dúzia de genes que deu origem ao surgimento do homem moderno. Assim sendo, será que aconteceu algo semelhante há cinquenta mil anos, algo que poderá ter alterado o nosso genoma de forma significativa... suficiente para o Grande Salto Evolutivo?
— O quê, por exemplo? — insistiu Kowalski.
— Algo como a introdução de genes de uma espécie diferente — respondeu Monk, pensativo.
Maria anuiu com a cabeça.
— Foi por essa altura que o Homo sapiens teve os primeiros encontros com tribos de neandertais; e foi por essa altura que começaram também a procriar. Estão familiarizados com o termo «heterose»?
Kowalski encolheu os ombros, mas o colega cruzou simplesmente os braços. Maria suspeitou que Monk conhecia o significado da palavra. Em boa verdade, por esta altura, já estava mais do que convencida de que ele estaria apenas a permitir que ela conduzisse a discussão.
— Heterose também significa vigor — continuou. — É um fenómeno biológico que advém do acasalamento entre espécies diferentes, originando o nascimento de uma cria, ou de um híbrido, que apresenta características mais fortes do que as dos progenitores.
— Neste caso, a procriação entre os primeiros homens e os neandertais deu origem a um ser mais capaz. É essa a sua teoria, doutora Crandall?
— Estamos a explorar essa possibilidade. Dois a três por cento do genoma do homem moderno é constituído por genes do homem de Neandertal, com exceção da maioria das populações africanas, que nunca procriaram com neandertais. Porém, essa pequena porção de ADN também é diferente em todos nós. Se somássemos todas essas porções, então o total seria de vinte por cento. Mais do que o suficiente para alterar o rumo da humanidade de forma significativa. Já foi comprovado por geneticistas que algumas dessas sequências de ADN facilitaram a adaptação dos nossos antepassados aos climas do norte da Europa, por exemplo, equipando-os com mais pelo corporal e uma pele menos pigmentada.
— Porém, não existe nenhuma indicação de que tenha aumentado a inteligência — disse Monk.
— Exato. E estamos convencidas de que não existe nenhuma relação direta.
Monk franziu a testa.
— Porquê?
— Porque as populações africanas também participaram no Grande Salto Evolutivo, apesar de não apresentarem nenhuns genes de neandertal. O que nos leva ao segundo mistério relacionado com este momento da história. Esta mudança não foi um fenómeno isolado, mas algo que aconteceu com todas as tribos humanas espalhadas pelo mundo, propagando-se pela Europa, Ásia e África.
— Como interpreta isso?
— Pomos a hipótese de que este Grande Salto Evolutivo se deveu a uma combinação de fatores genéticos e sociais. Acreditamos que esta mudança global se deveu inicialmente à mistura de genes, o que resultou no aparecimento súbito de vigorosos híbridos que pensavam e agiam de maneira diferente. Por sua vez, esses indivíduos inspiraram rápidas mudanças sociais, originando novas competências que foram então disseminadas globalmente por meio de migrações. Sabemos, com a genética, que os padrões migratórios dos primeiros homens não foram de sentido único. Ou seja, também regressaram a África. Nesse regresso, estariam incluídas tribos que já carregavam genes dos neandertais.
— Portanto, o que me está a dizer é que o nascimento de alguns indivíduos únicos originou uma mudança global?
— De um modo sucinto, sim. A teoria não é apenas nossa. O nosso projeto foi extrapolado de um trabalho da autoria de um filósofo da Universidade de Oxford, Nick Bostrom, publicado em 2013. Ele escreveu que, para mudar o mundo, não seriam necessários mais do que um punhado de indivíduos extraordinários, desde que pudessem partilhar globalmente a sua criatividade, descobertas e inovações. No ensaio, Bostrom estava a referir-se a um cenário futuro, mas as teorias podem ser aplicadas na explicação do Grande Salto Evolutivo.
— Nesse caso, os indivíduos extraordinários seriam os hipotéticos híbridos — declarou Monk.
— Acredito que sim. É isso que estamos a explorar: o que significou ser essa primeira geração da união do Homo sapiens com o Homo neanderthalensis. O resultado prático de ser cinquenta por cento neandertal e cinquenta por cento homem moderno. De ser um verdadeiro híbrido. Sabemos que o número de genes neandertais acabou por se diluir no nosso genoma, reduzindo-se a uns meros dois ou três por cento nos dias de hoje, quantidade demasiado pequena para criar algum impacte no nosso intelecto. Porém, o que aconteceria se pudéssemos reverter o relógio biológico? — Maria olhou em redor. — E se pudéssemos recriar esse híbrido nos dias de hoje?
— É o que estão a tentar fazer aqui? — perguntou Monk, sem saber se deveria ficar espantado ou horrorizado.
— Não estamos a tentar. Já o fizemos. Querem conhecê-lo?
11h35
Só podem estar a brincar comigo...
Kowalski olhou pelo vidro para o que parecia ser uma sala de aula infantil. Porém, uma sala que teria sido idealizada para um aluno muito peculiar. O teto tinha cordas penduradas, e também um pneu, num dos cantos, que servia de baloiço. Espalhados pelo chão, uma variedade de blocos de brincar.
No meio da desarrumação, uma figura peluda observava-o, atenta, apoiada sobre os nós dos dedos. Levantou o focinho, tentando cheirar o grupo de estranhos do lado de lá do vidro.
— Chama-se Baako — disse Maria.
— Mas é um gorila — disse Kowalski, incapaz de reprimir o desdém na voz. Em boa verdade, nem sequer tentara. Já tivera más experiências com primatas.
Começo a perceber por que razão o Painter se fechou em copas...
— É um gorila-ocidental-das-terras-baixas — explicou Maria. — Um jovem imaturo de três anos.
— É o seu híbrido, doutora Crandall? — perguntou Monk, igualmente estupefacto.
— Não podíamos autorizar este estudo com embriões humanos — interveio Amy. — Pelo menos sem levantar uma onda de protestos. Apesar de a utilização de ADN humano para fins experimentais não ser ilegal, ainda é olhada com relutância. Sobretudo no que diz respeito à criação de híbridos.
— Para não falar das implicações éticas e morais — acrescentou Maria. — Foi por isso que optámos por um gorila. Há seis anos, completámos a primeira sequência completa de ADN de um Homo neanderthalensis. O que nos ofereceu uma base sólida para o recriar de raiz, recorrendo às mais recentes técnicas de manipulação genética. Depois, utilizando essa amostra, fertilizámos um óvulo de gorila para obtermos um embrião híbrido viável. Por fim, implantámo-lo num gorila fêmea.
As palavras da cientista não caíram bem em Kowalski, que lhe lançou um olhar incomodado. Maria interpretou-o como descrença. Tentou explicar de novo.
— A criação de híbridos com genes humanos não é recente. Em 2003, um grupo de cientistas chineses conseguiu fundir células humanas com as células de um coelho, gerando embriões que poderiam ser viáveis. No ano seguinte, aqui mesmo nos Estados Unidos, a Clínica Mayo anunciou que produzira porcos com sangue humano. Desde então, já surgiram ratos com fígados que foram criados de células humanas; até cérebros. Enfim, podia enumerar muitos projetos similares, envolvendo as mais variadas espécies: gatos, ovelhas, vacas...
Amy parecia apoiar incondicionalmente as palavras de Maria.
— Acredito que o nosso Baako seja apenas o primeiro passo na perseguição de objetivos mais ambiciosos num futuro próximo.
— Suponho que a escolha de um gorila se deva à proximidade genética — disse Monk.
— Exatamente — anuiu Amy.
Monk olhou para Baako.
— Porque não um chimpanzé? Julgava-os mais idênticos a nós.
— É uma pergunta válida — respondeu Maria. — Os chimpanzés têm noventa e oito por cento dos nossos genes, enquanto os gorilas têm noventa e seis. Porém, para o nosso estudo o importante era a qualidade, não a quantidade. No que diz respeito às sequências que envolvem a perceção sensorial, a audição e, mais importante, o desenvolvimento cerebral, o genoma do gorila é significativamente mais próximo do nosso.
— Diferença que já foi demonstrada em estudos de comunicação opondo gorilas e chimpanzés — acrescentou Amy. — Washoe e Nim, dois dos chimpanzés mais dotados em linguagem gestual, esgotaram a curva de aprendizagem ao fim de duzentos vocábulos. Koko, o gorila, conseguiu aprender perto de mil.
Kowalski olhou para as mãos, lembrando-se do seu papel na missão.
— Por que razão é a linguagem gestual tão importante? — perguntou.
Maria dirigiu-lhe um breve sorriso que o deixou ruborizado. Tinha os mesmos olhos azul-claros e a pele salpicada de sardas da fotografia da irmã. A única diferença é que Maria usava o cabelo um pouco acima dos ombros, com um corte assimétrico. Do lado direito do pescoço, onde o cabelo era mais comprido, tinha também uma pequena tatuagem de uma dupla hélice de ADN, apenas visível quando virava a cabeça.
— As competências linguísticas são um bom barómetro para medir a criatividade e a engenhosidade — explicou, captando outra vez o foco de Kowalski para a conversa. — Depois de décadas de investigação com primatas no domínio da linguagem, temos uma excelente base de comparação para os resultados do desenvolvimento intelectual do Baako.
Aproximou-se da janela de observação e pousou uma mão no vidro.
— O mais importante é que estamos a falar de um animal único. Como nenhum outro no planeta. Como tal, é óbvio que teríamos de arranjar um meio de comunicação, uma maneira de o compreender melhor. — Olhou para os dois homens. — Venham conhecê-lo. Tenho a certeza de que entenderão o que estou a dizer.
Maria conduziu-os na direção da porta e passou o seu cartão no dispositivo de acesso eletrónico.
Kowalski deixou-se ficar para trás, relutante, embora soubesse que não tinha alternativa.
Calculo que seja este o meu lugar na Sigma... o gajo que fala com macacos.
Avançou e encontrou-se numa jaula alta. Depois de a porta anterior se ter fechado automaticamente, a cientista destrancou e abriu a seguinte, o que representava uma medida de segurança. Kowalski continuou a deixar-se ficar para último, aguardando que todos entrassem naquela sala de aula peculiar. Quando chegou a vez dele, a primeira impressão foi que era demasiado húmida para o seu gosto. Apesar de não cheirar exatamente como um estábulo, que era o que esperava, sentiu no ar um forte odor almiscarado.
Maria adiantou-se ao grupo e estendeu um braço.
— Baako, anda dizer olá.
O jovem gorila endireitou-se, erguendo-se em duas patas, mas não se moveu.
Kowalski observou-o. Em pé, o gorila não ultrapassaria a altura do seu estômago, mas ainda assim pareceu-lhe poderoso. Procurou qualquer indício da natureza híbrida da criatura, porém, não sabia o suficiente acerca destes animais para reconhecer a diferença.
— Está tudo bem — encorajou Maria.
Baako hesitou um instante. Então, com um ligeiro grunhido, levou um braço ao chão e avançou até Maria, estendendo uma mão.
— Lindo menino! — Maria virou-se para o grupo. — É melhor deixarem-no ir ao vosso encontro.
Amy pôs um joelho no chão.
— Olá, Baako. Lembras-te de mim? Costumávamos fazer cócegas um ao outro.
O gorila escondeu-se atrás das pernas de Maria, que lhe pousou a outra mão sobre a cabeça.
— A última vez que aqui estiveste foi há seis meses... Duvido que se lembre de ti.
Baako emitiu novo grunhido, como se discordasse. Largou a mão de Maria e tocou nas costelas, agitando os dedos.
Era um gesto que não necessitava de tradução.
[Cócegas]
Amy riu-se.
— Isso mesmo!
Baako dirigiu-se a ela, timidamente. Depois, deu-lhe um abraço. Amy começou a fazer-lhe cócegas, recebendo em troca grunhidos de satisfação que soaram como o relinchar de um cavalo. Porém, tudo aquilo parecia ensaiado aos olhos de Kowalski, como se o animal estivesse apenas a cumprir um papel, fazendo a vontade às duas cientistas. Sobretudo porque nunca desviara a atenção dos dois homens presentes.
Monk tentou a sua sorte e também pôs um joelho no chão.
— E eu, Baako. Não tenho direito a um abraço? — perguntou, abrindo os braços.
O animal grunhiu, pouco confortável com a situação.
— É um amigo — disse Maria, reforçando as palavras com um sinal.
[Amigo]
— Vai dizer olá.
Baako avançou na direção de Monk, relutante. Contudo, o brilho nos olhos denunciava alguma curiosidade. Quando chegou perto de Monk, levou a mão direita à sobrancelha e acenou.
[Olá]
Depois, fechou a mão junto ao peito e deixou-a deslizar, gesticulando uma série de letras com os dedos.
[Eu sou o Baako]
Os seus olhos negros fitaram Monk, que parecia atordoado.
Kowalski deu uma ligeira cotovelada ao colega.
— O gajo está a dizer-te como se chama.
Maria olhou para o operacional, franzindo a testa.
— Isso mesmo.
Kowalski apontou para Monk e soletrou o nome do colega.
[Ele chama-se Monk]
Baako fez que sim com a cabeça. Aproximou-se e segurou a mão de Monk, apertando-a ligeiramente. Em seguida, inclinou o corpo e cheirou a outra mão. Endireitou a cabeça, confuso.
— Uso uma prótese — explicou Monk.
— A sério? — disse Maria, aproximando-se.
Kowalski era o único que não estava surpreendido. A mão artificial de Monk, uma extraordinária peça de engenharia, tinha sido desenvolvida pela DARPA. Ultrarrealista, era capaz de executar qualquer tarefa com a máxima precisão e destreza. Aquela era a versão mais recente, concebida para responder a um implante neurológico no cérebro de Monk. Nesta versão, além dos contactos de titânio que faziam a ligação aos nervos do pulso, Monk podia também comandá-la com o pensamento.
O operacional decidiu demonstrar ainda outra característica. Estendendo o braço, retirou a prótese do encaixe metálico no seu pulso e entregou-a a Baako. Confuso, o gorila examinou-a de todos os ângulos. Então, sem ninguém o esperar, Monk começou a fazer mexer os dedos. Baako ergueu as sobrancelhas de espanto, assim como Maria, totalmente rendida ao espetáculo.
O animal começou imediatamente a mordiscar um dos dedos. Kowalski encolheu-se, interrogando-se se os engenheiros da DARPA apreciariam aquele tipo de abuso sobre a sua maravilha tecnológica. Monk pensou o mesmo e deu um passo em frente. Maria segurou-o, divertida.
— Não se preocupe, está a tentar fazer-lhe cócegas. É assim que os gorilas fazem, mordiscam os dedos ou as barrigas uns dos outros.
Monk riu-se, embora mais pela situação do que pelas cócegas.
— Na verdade, eu consigo sentir o que ele está a fazer.
— Impressionante — disse Maria, olhando de novo para a mão artificial. — Já tinha lido que a DARPA estava a testar membros protésicos com componentes sensoriais, mas nunca pensei que conseguissem uma proeza destas.
Monk encolheu os ombros.
— Considere-me uma das cobaias da DARPA.
Baako devolveu a prótese.
— Obrigado, rapaz — agradeceu Monk.
O gorila olhou para as mãos de Kowalski.
Kowalski levantou os braços.
— Não tenhas ideias. Estas são minhas, okay? — Pôs uma mão sobre a outra e fechou os dedos, como uma mandíbula.
[Nada de morder]
Baako exibiu uma expressão amuada e grunhiu, protestando.
Maria sorriu para o operacional.
— Estou impressionada. Gesticula muito bem.
Embaraçado com a atenção da cientista, Kowalski fez girar dois dedos no ar e depois tocou nas costas da outra mão.
[Claro que sim]
Baako parecia menos convencido do que Maria. Recuou um passo e sentou-se pesadamente. Fez alguns gestos para Kowalski e apontou para si próprio.
[Não gosto de ti]
Kowalski encolheu os ombros.
Nem eu de ti, aguenta-te!
11h48
Baako olha para a posição do homem. Percebe o azedume no seu corpo, os tiques de desdém no seu rosto. Sabe que o homem não gosta dele, mas não percebe porquê. A confusão fá-lo sofrer — e fá-lo zangar-se.
A mãe aproxima-se, com os lábios tensos, pronta para o repreender. Faz alguns gestos.
[Também é um amigo]
Baako não sabe como explicar, como argumentar. Cruza os braços, recusando-se a falar.
Homem não gosta de mim, por isso, também não gosto dele.
Ainda por cima, a mãe tinha elogiado o modo como o homem falava com as mãos. Tinha-a visto sorrir para ele. Ela devia gostar apenas do modo como Baako fala.
Não deste homem.
Ela aponta para a porta traseira.
— Vai para o teu quarto, Baako.
Ele grunhe, dando voz ao desapontamento e frustração.
Com firmeza, ela aponta dois dedos na direção da porta do quarto.
[Vai]
Ele bufa. Porém, obedece e levanta-se. Afasta-se, sobre os dois braços, com o peito a arder de desgosto. Antes de abandonar a sala, deita um último olhar na direção do homem.
Não faz nenhum gesto, mas pensa-o.
Vai-te embora...
11h49
— Está cansado — explicou Maria, perguntando a si própria se teria sido demasiado dura com o seu bebé. Porém, às vezes precisava de ser firme.
Monk sorriu.
— Não se preocupe, o Kowalski tem esse efeito nas pessoas. É uma questão de hábito.
Kowalski acusou a piada com um franzir do sobrolho, embora não dissesse nada.
Maria sentiu-se incomodada pelo sucedido e tentou reconfortá-lo.
— O Baako não tem dormido bem. Tem tido alguns pesadelos com a Lena.
— A sério? — perguntou Amy.
— Foi apenas uma coincidência — disse Maria, tentando distrair Amy daquele tópico de conversa. A verdade é que não lhe iria contar que acordara cheia de ansiedade, à semelhança de Baako.
— Já que estamos a falar da sua irmã — disse Monk —, que estava ela a fazer na Europa, exatamente?
— Foi-nos concedida uma parceria com o Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária. Trata-se do organismo de referência no campo dos estudos de hominídeos. A parceria permitiu que uma de nós fosse trabalhar num novo programa, cujo objetivo é a construção de um modelo mais rigoroso da variedade genética do homem de Neandertal, bem como o desenvolvimento de novos métodos de recolha de ADN, a partir de ossos antigos e de fósseis.
— E por que razão ficou a Lena responsável por esse programa e não a Maria?
— Apesar de partilharmos os mesmos interesses, a minha investigação tende para uma macroabordagem às questões de ADN. Ao resultado final, por assim dizer. O trabalho de Lena, pelo contrário, foca-se sobretudo num micronível, na cartografia e manipulação de genes. Assim sendo, pareceu-nos mais adequado que fosse ela.
Consumida pela culpa, cruzou os braços sobre o peito, lamentando a decisão. A irmã poderia estar a lutar pela vida numa montanha no outro lado do planeta, e ela estava ali, em casa, perfeitamente segura.
— Esta parceria é importante — continuou —, contam-se pelos dedos o número de fósseis que oferecem amostras viáveis de ADN de neandertal. As boas fontes não aparecem todos os dias. Com amostras melhores, técnicas de recolha mais apuradas e uma compreensão mais alargada da variedade genética das diferentes tribos de neandertais, tínhamos esperança de descobrir o que tornou esta espécie singular, de que modo a hibridização das suas características poderá ter contribuído para o Grande Salto Evolutivo. Havia tanto a ganhar.
Veio-lhe ao pensamento o rosto da irmã.
E, agora, tanto a perder...
— Com quem está ela a trabalhar na Croácia? — perguntou Monk.
Maria abanou a cabeça.
— É uma equipa. Tenho os nomes no computador, mas são todos peritos em áreas de estudo que envolvem outros hominídeos que contribuíram para o nosso genoma.
Kowalski aclarou a garganta.
— Isso quer dizer que temos mais genes de outras espécies?
— Sim. Dos denisovas, outra espécie de hominídeos. Eram contemporâneos dos neandertais e do Homo sapiens, e também procriaram uns com os outros, contribuindo para o nosso fundo genético.
Kowalski franziu a testa.
— Dá-me ideia de que esse fundo não era muito limpo.
— Pelo contrário, os genes dos denisovas ajudaram à nossa sobrevivência. Por exemplo, o gene EPAS1 é ativado quando os níveis de oxigénio baixam na atmosfera, para aumentar a produção de hemoglobina. O povo do Tibete possui uma variação deste gene, o que lhe permite sobreviver em altitudes extremas, onde o oxigénio rareia, como nos Himalaias. Temos dados que demonstram que esta variação proveio dos genes dos denisovas.
— E é tudo? — troçou Kowalski. — Ou essa orgia pré-histórica contou com mais participantes?
Maria olhou para Amy. Sabia que era uma pergunta de particular interesse para a amiga.
— As análises genéticas dos ossos de neandertais e denisovas sugerem a possibilidade de uma terceira espécie — explicou Amy. — De um outro hominídeo, que permanece desconhecido até agora.
— O que demonstra, mais uma vez, que provavelmente não estaríamos aqui se não fossem esses acasalamentos entre espécies — acrescentou Maria. — Tudo isto sustenta a nossa teoria do vigor híbrido, de que a nossa viabilidade genética se deveu à procriação entre o homem e outros hominídeos, permitindo que a nossa espécie se espalhasse pela Europa e pelo mundo. Acredito sinceramente que foram esses genes emprestados que nos permitiram sobreviver até hoje.
— E é nesse contexto que surge o Baako — disse Monk. — Para que possam verificar esses traços singulares que terão contribuído para o Grande Salto Evolutivo.
— Exatamente. O Baako é muito jovem, mas já apresenta um progresso notável nas capacidades cognitivas. O ritmo de aprendizagem tem sido o mais rápido que alguma vez foi observado num primata. E a anatomia do seu cérebro também é significativamente diferente, com um aumento da superfície do córtex e maior volume de massa cerebral. São dados verificados e documentados por meio de ressonâncias magnéticas.
— Não me importava de ver esses resultados — admitiu Monk. — Parecem fascinantes.
— Estão no meu computador, posso mostrá-los se...
Um gemido silenciou-lhe as palavras na garganta. Era muito ténue, quase impercetível, mas, ao mesmo tempo, impossível de escapar aos ouvidos de uma mãe. Virou-se e olhou na direção do quarto de Baako. Encolhido na sombra da ombreira da porta, o animal levou o punho ao peito e desenhou um círculo.
[Desculpa...]
Amy tocou no braço de Maria.
— Parece que alguém quer fazer as pazes. Se quiseres, posso levá-los ao teu gabinete e ajudá-los a examinar o que considerem pertinente.
Maria sentiu o coração apertado perante a tristeza de Baako.
— Bom, e eu preciso de contactar Washington — declarou Monk. — Pode ser que haja novidades em relação à situação na Croácia.
— Obrigada — disse ela.
Monk apontou para o colega.
— Deixo aqui o grandalhão. Algo me diz que é parte deste problema... e que também pode ser parte da solução.
— Que fiz eu agora? — insurgiu-se Kowalski.
Monk ignorou-o.
— Estaremos no gabinete. Assim que terminarmos, dou um toque para o telefone do Kowalski.
Maria anuiu, ainda que suspeitasse de que aquilo não passava de uma desculpa para Monk e Amy conversarem em privado. Olhou para Kowalski enquanto se afastavam. Aparentemente, a contribuição dele não era desejada no que dizia respeito aos aspetos científicos da investigação. Como tal, tinham encontrado uma maneira de o deixar ali, a desempenhar o papel de ama-seca.
Perguntou a si própria qual dos dois se deveria sentir mais ofendido.
Fosse como fosse, sentia-se demasiado cansada para protestar e queria tranquilizar o seu bebé. Porém, antes de se dirigir a Baako, alcançou de novo o telemóvel. Premiu a tecla para o último número marcado e aguardou. Contava ouvir o mesmo aviso sonoro, seguido da inevitável mensagem automática que informava não ser possível estabelecer uma ligação.
Em vez disso, uma chuva de estática irrompeu do aparelho, entrecortada por uma voz frenética.
— ... ria! Consegues ouv...?
A chamada caiu e a voz silenciou-se abruptamente.
No ecrã do telefone, uma mensagem: NESTE MOMENTO, NÃO É POSSÍVEL ESTABELECER LIGAÇÃO.
Ainda assim, Maria gritou a plenos pulmões.
— Lena!
7
29 de abril, 18h04 CEST
Região de Karlovac, Croácia
Não, não, não...
Lena agarrou no telemóvel e tentou de novo a ligação. A cada tentativa falhada, a respiração tornava-se mais pesada. Gerard e Roland olharam para ela, impotentes. Roland tentara o mesmo com o seu telefone, mas não tivera melhor sorte.
— Era ela! — jurou Lena. — A minha irmã.
De momento, o trio encontrava-se preso numa saliência rochosa, acima de um lago subterrâneo que preenchia a totalidade de uma enorme galeria. Estendia-se por uns bons noventa metros de comprimento e outros tantos de largura. O lago era alimentado por um túnel no lado direito, de onde a água jorrava com força, como de uma gigantesca torneira aberta. Com tamanha quantidade de água a entrar, a única razão pela qual a galeria ainda não estava completamente inundada encontrava-se do lado esquerdo. Nesse ponto, a superfície do lago enrolava-se numa imensa voragem, assinalando aquilo que seria o escoadouro da caverna. Lena imaginou o poder de sucção de toda aquela quantidade de água a descer para as profundezas do sistema, arrastando tudo consigo.
Daqui a pouco seremos nós.
— Calculo que seja o rio Dobra — disse Roland, observando o imenso caudal. — Devemos estar praticamente debaixo de Ogulin. É aqui que o rio desaparece para o interior da terra, através do Abismo de -Dula.
— O padre tem razão — disse Gerard. — Devemos estar perto do abismo. Foi por isso que apanhámos um sinal no telemóvel.
Lena baixou o telefone, desistindo.
— Estivemos tão perto.
— Se ao menos fosse possível nadar contra esta corrente... — disse Roland.
Ninguém se preocupara em alimentar a ideia. Se entrassem na água, sabiam que seriam imediatamente arrastados e engolidos pelo remoinho.
Lena sentiu os olhos lacrimejarem de frustração. Enxugou-os com as mãos, furiosa, recusando-se a aceitar a derrota.
Então, sentiu a água tocar-lhe na ponta das botas.
Olhou para baixo. O nível do lago já tinha subido até à altura da saliência rochosa.
Gerard apontou para trás.
— Temos de regressar.
— Para onde? — perguntou Roland, desesperado. — Todas as cavernas estão igualmente inundadas.
— Temos de encontrar um local elevado onde possamos esperar. Temos de continuar à procura.
Todos sabiam que era um plano inútil, mas ninguém contrariou a ideia.
Lena apertou o telefone contra o peito, desejando uma nova oportunidade de ouvir a voz da irmã.
Não porque alimentasse a esperança de que Maria a poderia salvar.
Apenas para se despedir.
18h11
Do fundo da ravina, Gray observou as ameias do Castelo de Frankopan. A chuva fustigava-lhe o rosto, enquanto os relâmpagos saíam disparados das tempestuosas nuvens negras como forquilhas apontadas à terra.
Concentrou-se no cenário que estava mais próximo. Uma corda pendia da sacada de um edifício acima, ao nível da rua. Atentou na silhueta magra e musculada de Fredrik Horvat, que descia velozmente em rapel até ao fundo da ravina. Completada a descida, o montanhista juntou-se a ele numa das margens rochosas do rio. Atrás de ambos, destacava-se uma doca construída em folha de aço, em forma de U, abrigando um barco de borracha Zodiac.
Enquanto Fredrik se libertava da corda e do arnês, Gray tentou dissuadi-lo uma última vez.
— Consigo fazer isto sozinho. Não é a primeira vez que entro num barco.
— Acredito. Mas não há ninguém que conheça este rio e estas cavernas como eu. — Fredrik deu-lhe uma palmada nas costas. — Há duas décadas que levo turistas até às profundezas do Abismo de -Dula. Conheço todas as curvas, todas as pedras e rochas. Se quer encontrar a sua amiga, vai precisar de mim.
Apesar do tom confiante, Gray conseguia ver o medo nos olhos de Fredrik. Não duvidava de que ele conhecesse o rio e as cavernas como as palmas das mãos, contudo, tentar a travessia debaixo daquela tempestade era uma história bem diferente. As correntes apresentar-se-iam traiçoeiras com a subida do caudal e a maioria dos pontos de referência podiam encontrar-se agora debaixo de água.
Ainda assim, Fredrik apontou para o Zodiac.
— Vamos. Isto não vai ficar melhor do que está.
Gray olhou para cima uma última vez. Seichan inclinou-se sobre a barreira de proteção da ravina, acompanhada de Dag. Não estava nada satisfeita com a ideia de ficar para trás, mas Gray decidira que não havia razão para ambos arriscarem a vida. Além disso, equacionara a probabilidade de um novo atentado à vida de Fredrik, e contava com ela para proteger a retaguarda.
Acenou da margem do rio, mas Seichan virou-lhe o rosto, ainda contrariada.
Deu meia-volta e subiu a bordo do Zodiac, sentando-se na proa. Mesmo amarrado, a corrente sacudia o barco como um touro enfurecido. Fredrik soltou as amarras e ocupou também o seu lugar, na popa, junto ao motor.
— Segure-se bem — avisou o montanhista.
Gray agarrou uma das pegas de borracha e Fredrik ligou o motor — embora parecesse que não o tinha feito, tal era o nível de ruído da fúria das águas. Assim que abandonaram a doca, o impacte do caudal fez-se sentir de imediato, obrigando o barco a rodopiar desgovernado, enquanto Fredrik lutava para o apontar na direção certa.
Segundos depois, as paredes íngremes da ravina já tinham ficado para trás.
Gray olhou para a garganta do túnel, mais adiante, engolindo toda aquela torrente de água.
— Aqui vamos nós! — gritou Fredrik.
18h15
Seichan viu o Zodiac desaparecer no interior do túnel. Angustiada, apertou os dedos contra o metal frio da barreira de proteção.
Eu devia estar com ele.
Depois de Fredrik os ter informado acerca do barco, Seichan e Gray tinham improvisado um plano de resgate no BMW — embora estivessem pouco certos da sua viabilidade. A ideia de entrarem nas cavernas pelo rio parecia, no mínimo, traiçoeira. Para começar, apesar de o centro de comunicações da Sigma ter detetado um sinal do telemóvel da cientista, não tinham nenhuma garantia de que estivesse viva. Na pior das hipóteses, podia-se ter dado o caso de o cadáver — ou apenas o telemóvel — ter sido arrastado pelas águas até um ponto mais elevado da montanha.
Então, enquanto consideravam os vários cenários, tinham recebido outra comunicação de Washington, que dava conta de uma brevíssima troca de palavras entre as duas irmãs.
Pelos vistos, a mulher encontrava-se ainda encurralada.
Com a primeira dúvida resolvida, Seichan assumira o papel de advogado do diabo, adicionando mais um motivo para não tentarem o resgate. Que razão teria Gray para arriscar a sua pele? Ou a do montanhista, já agora? Para salvar a de uma mulher? Tanto quanto sabia, o que estava em causa não passava de um assalto a uma escavação arqueológica. Assim sendo, mesmo com uma vida humana em jogo, não era exatamente o tipo de cenário que justificasse a perda de um operacional da Sigma altamente qualificado. No seu entender, deveriam optar por uma abordagem mais conservadora. Aguardarem pelo fim da tempestade, por exemplo.
Porém, as suas palavras tinham caído em saco roto.
Nunca esperara que fosse de outra maneira.
O som de passos despertou-a dos seus pensamentos. Atrás de si, Dag corria ao seu encontro. Tinha pedido ao rapaz que regressasse ao hotel para se inteirar do ambiente e tentar sacar informação acerca dos planos das forças policiais locais.
— E então? — perguntou, notando ainda a presença das luzes dos veículos de emergência através do arvoredo.
— Uma confusão. Ninguém dizer nada...
Uma forte explosão fez Dag agachar-se. Seichan percebeu imediatamente que não se tratava de um trovão. Rodou a cabeça e viu a bola de fogo que se erguia à distância. Visualizou o terreno descampado que ficava nessa direção, o mesmo onde o helicóptero tinha aterrado.
Dag também não tivera dificuldade em adivinhar a origem da explosão.
— Alguém saber que estão aqui.
Mais perto, a explosão despertara um coro de gritos e sirenes. Logo a seguir, uma fila de luzes intermitentes abandonou apressadamente o hotel, dirigindo-se para oeste, na direção da bola de fogo.
Seichan respirou fundo e sacou da sua pistola.
— Que ires fazer? — perguntou Dag.
Ela ignorou-o, focando a sua atenção na ravina. Suspeitava que a explosão do helicóptero não servira apenas para os impedir de abandonarem a cidade.
Era, também, uma manobra de diversão.
Uma maneira de retirar toda a polícia dali.
Apurou os sentidos, atenta a qualquer movimento entre o arvoredo, mas foi um zumbido crescente, no fundo da ravina, que a obrigou a entrar em ação.
Um trio de motas de água descia o rio a toda a brida. Exibiam o logótipo de uma marina local. Pelos potentes faróis que equipavam cada mota, era fácil de adivinhar que serviam para explorar cavernas, à semelhança do barco de Fredrik.
Desta vez, porém, não transportavam turistas.
Cada mota transportava dois homens, ambos com capacetes. Nas costas de cada um, Seichan conseguia distinguir a forma inconfundível de uma espingarda automática.
Já sabem que há um sobrevivente do ataque.
Apoiou o braço no corrimão e fez pontaria para a mota que encabeçava o trio. Do seu ponto elevado, disparou uma, duas, três vezes. A primeira bala atingiu o homem que seguia no lugar do passageiro, arremessando-o para as águas geladas. A segunda fez ricochete no guiador, obrigando o piloto a agachar-se. Tal como esperava, a mota oscilou o suficiente para expor o alvo durante um segundo, o bastante para que a terceira bala lhe perfurasse o ombro, atirando-o igualmente para o rio. Desgovernada, a mota acabou por colidir com a doca.
Menos um...
Pôs na mira o segundo alvo, sabendo que não voltaria a beneficiar do elemento de surpresa. Cientes de que estavam debaixo de fogo, as outras motos continuaram a avançar, descrevendo agora curvas rápidas, para dificultar uma linha de tiro. Seichan voltou a premir o gatilho, despejando o carregador inteiro da SIG Sauer, mas não acertou uma única vez.
As duas motas aceleraram e entraram no túnel, desaparecendo de vista.
Furiosa, Seichan arremessou o cabo da pistola contra o corrimão, amaldiçoando aquele plano de resgate idiota e o homem que fora tonto o suficiente para o tentar executar.
Raios te partam, Gray...
18h21
Espero que isto não seja um erro.
Gray encolheu-se o mais que conseguiu na popa do barco. Tinha duas preocupações imediatas. A primeira era facilitar a visão de Fredrik, ajudando-o a navegar, e a segunda era evitar ficar sem a cabeça. Por esta altura, o aumento do caudal submergira praticamente a totalidade do túnel, o que fazia com que várias estalactites cortassem a superfície da água, lembrando presas gigantescas que desciam do teto, prontas a atacar. Mesmo que não lhe arrancassem a cabeça, a probabilidade de romperem os flutuadores do Zodiac era bastante elevada.
— Mantenha a luz a direito! — avisou Fredrik.
Gray obedeceu, segurando com mais força o farol do barco, mas era tudo o que podia fazer.
A cada curva, a corrente galgava a totalidade das paredes, e, das várias grutas laterais, a entrada e o recuo das águas provocavam um intenso turbilhão. Estas formações naturais não eram a única fonte de perigo. A acompanhar o barco, a corrente arrastava uma série de detritos, incluindo troncos de árvores, que giravam desgovernados e esbarravam contra as rochas. Enquanto tudo isto sucedia, o teto continuava a descer.
Até ao momento, Fredrik parecia capaz de combater a fúria do rio, o que lhe conquistara o respeito de Gray. Na maior parte da travessia, o montanhista vira-se forçado a reverter o sentido da propulsão da hélice, para reduzir a velocidade — apenas um dos muitos truques de que se socorrera para navegar naquelas condições.
— Atenção! — gritou Fredrik.
Gray percebeu de imediato qual era o perigo iminente. Mais à frente, o túnel cortava a direito para a esquerda, fazendo com que toda aquela massa de água esbarrasse contra a parede, turvando-se em água branca, suficientemente violenta para os engolir.
A mudança no timbre do motor chamou-lhe a atenção para a proa. Fredrik mudara o sentido da rotação das hélices. Gray percebia a razão de ele ter tomado essa decisão. Precisavam de velocidade para vencer tamanho obstáculo.
Gray segurou-se bem e o barco saiu disparado na direção do turbilhão. Acompanhavam agora a corrente em vez de a combater. No preciso instante em que estavam a chegar à curva, Fredrik pôs o motor na potência máxima. O Zodiac voou por cima da espuma, inclinando-se quase na vertical, acompanhando o curso de água sobre a parede.
Gray susteve a respiração. Logo a seguir, o barco tombou sobre águas tranquilas.
Suspirou de alívio.
— Fim da linha! — anunciou Fredrik, apontando.
À frente deles, a luz do farol desapareceu numa vasta caverna, meia inundada por um imenso lago.
Fredrik reduziu a potência do motor, cauteloso.
— Ainda não estamos fora de perigo — declarou.
— Porquê?
— Caríbdis.
Gray franziu a testa. De acordo com a Odisseia de Homero, Caríbdis era o nome de um sorvedouro gigantesco, um monstro que reclamava as vidas e os navios de marinheiros incautos.
Não eram exatamente boas notícias.
18h24
Roland quase escorregou ao parar repentinamente. Aos seus pés, a água descia da direção da galeria que tinham abandonado, validando a decisão de a terem abandonado. O trio retrocedia agora pelo mesmo caminho, acossados pela enchente. Infelizmente, obrigava-os a descer, em vez de subir.
Gerard ia à frente, procurando qualquer desvio escondido que conduzisse a terreno mais elevado, que os pudesse retirar das entranhas inundadas da montanha.
— Esperem! — disse Roland.
Lena deteve-se, exausta. A luz do capacete tremelicou, indicando que as pilhas da lanterna começavam a morrer. — Que se passa? — perguntou.
— Ouçam.
Gerard resmungou.
— Não temos tempo para...
— Raios partam, ouçam! — berrou o padre. Mais tarde pediria perdão a Deus pela súbita explosão de temperamento, mas agora precisava da atenção dos outros, despertando-os do desespero, do frio e do cansaço.
Pareceu resultar. Lena endireitou a cabeça, com os olhos muito abertos.
— É um motor?
Ecoando da direção do lago que tinham abandonado, um zunido agudo trespassava o ruído da torrente em redor.
— É um motor! — confirmou Gerard. — Vamos! Rápido!
Roland não necessitava de encorajamento. Rodou nos calcanhares e apressou-se na direção do som, escorregando e tropeçando pelo caminho. Quando chegou por fim à saliência na beira do lago, o nível da água já se encontrava pela altura dos tornozelos. Não seria difícil deixarem-se arrastar de volta para de onde tinham saído. Gerard ajudou Lena e juntou-se a ele.
Em silêncio, Roland agradeceu a Deus pela sua misericórdia.
No meio do lago, encontrava-se uma luz brilhante.
Um barco!
— Não se mexam — disse uma voz. — Vamos ter convosco.
Do túnel atrás do barco, surgiu outro par de luzes.
Roland sentiu a garganta estreitar-se e suspirou de alívio.
Aparentemente, Deus tinha enviado uma equipa inteira para os salvar.
18h27
Gray virou-se e viu as luzes dirigirem-se na sua direção, acompanhadas pelo zunido característico de motores. Logo a seguir, duas motos de água voaram do túnel e aterraram no meio do lago.
Que raio...
A intensidade das luzes não lhe permitia identificar quem conduzia as motos, mas experimentou um mau pressentimento. Teve oportunidade de o confirmar quando os homens abriram fogo. Porém, seguira o seu instinto, e já estava em movimento. Sacou da SIG Sauer e ripostou, deslocando-se para a popa do barco. Agarrou em Fredrik e empurrou-o para o chão, salvaguardando-o da linha de fogo.
Os disparos de Gray atingiram o farol de uma das motos. Quando a luz se apagou, distinguiu as silhuetas de dois homens, um deles empunhando uma espingarda automática. Debaixo da mira de Gray, a mota começou a virar. Do lado oposto, a segunda mota executou a mesma manobra, e continuou a acelerar.
Estão a tentar flanquear-nos.
Cerrou os maxilares. Se ficassem encurralados entre os dois atacantes, não havia defesa possível. Tinha uma única arma na sua posse, e só podia ripostar alternadamente de cada lado do barco. Precisava de ajuda.
Disparando com uma mão para a segunda mota, Gray apontou com a outra.
— Mantenha-se baixo, Fredrik. Mas preciso que ponha esta coisa a andar! E rápido!
O montanhista mostrava ter a fibra necessária. Injetou o motor e o barco saiu disparado, tentando manter-se à frente dos atacantes.
Gray agachou-se e continuou a disparar para a mota que os acompanhava a estibordo, mas o outro piloto já se tinha recomposto e começava a encurtar a distância. A chuva de balas não se fez tardar, atingindo um dos flutuadores do Zodiac. Gray ouviu o som do ar a escapar-se, anunciando uma nova ameaça. Mesmo que conseguisse evitar que fossem alvejados, o barco estava provavelmente condenado.
Voltou a atenção para a mota que já tinha atingido. Precisava de acabar o serviço. Levantou o braço, preparando-se para fazer pontaria, mas começaram a soar disparos de uma terceira direção. Pelo canto do olho, notou os lampejos inconfundíveis de uma arma entre o trio de luzes na orla da gruta.
Alguém ali tem uma arma, alguém que já encontrou estes tipos antes.
Uma das motos abandonou a perseguição e descreveu uma curva, abrindo fogo na direção da abertura na parede. Duas das luzes deixaram de se ver, saindo de vista. Continuaram a ouvir-se explosões de armas vindas de lá. Gray sabia que o seu inesperado companheiro de armas se encontrava demasiado exposto e não conseguiria resistir durante muito tempo.
Ainda assim, o seu esforço heroico oferecia-lhe uma oportunidade para tratar da mota que ainda os perseguia.
Virou-se para o outro lado. Por esta altura, o inimigo encurtara a distância e acelerava em linha com o Zodiac. Gray amaldiçoou a velocidade e manobrabilidade daqueles veículos. Fez pontaria. Pelas suas contas, tinha apenas duas balas no carregador. Convinha que lhes desse bom uso.
— Agarre-se! — gritou Fredrik.
Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o montanhista desligou o motor. O Zodiac desacelerou por um segundo, depois, com um solavanco, Fredrik mudou o sentido da hélice.
Surpreendido pela manobra, o alvo de Gray continuara em frente, mas logo descreveu uma curva apertada, deixando um rasto de espuma na frente deles.
Merda!
O pior pesadelo de Gray acabara de se materializar.
Encontravam-se encurralados entre os dois atacantes. Um na frente, o outro nas costas. Como se tivesse desistido, Fredrik continuava a recuar.
— Que está a fazer? — gritou Gray, exasperado.
Lá atrás, o tiroteio parecia ter cessado, o que indicava que quem tentara ajudá-los teria sido morto ou fora forçado a procurar abrigo. Agora livre, a mota sem luz acelerava ao encontro deles, como um falcão sobre uma presa ferida.
Gray olhou para Fredrik, que lhe devolveu um sorriso maquiavélico.
Então, gritos de terror ecoaram nas suas costas. Gray virou-se e viu a primeira mota rodopiar vertiginosamente sobre uma profunda depressão na superfície do lago, tentando escapar das garras do imenso redemoinho.
Enquanto Gray assistia àquele espetáculo de horror, a mota acabou por ceder e tombou com os seus dois ocupantes, sendo imediatamente sugada pela voragem. A luz do seu farol brilhou uma última vez, rasgando a negritude da superfície para uma derradeira aparição. Depois, como se nunca tivesse existido, desapareceu.
Gray compreendia finalmente o ardil por trás da manobra de Fredrik. O montanhista conduzira os atacantes até à garganta do monstro Caríbdis.
Mas o jogo ainda não tinha terminado.
Aproveitando o choque momentâneo dos outros atacantes, rodou o corpo e fez pontaria. Porém, antes que pudesse premir o gatilho, uma nova série de disparos eclodiu da parede da caverna.
O atirador da mota caiu dentro de água.
Menos um...
Gray apertou a SIG Sauer entre as mãos e disparou as últimas munições. A cabeça do piloto sacudiu duas vezes — uma vez por cada bala —, com a viseira do capacete estilhaçada. Inerte, o corpo tombou sobre o guiador. Desgovernada, a mota continuou a acelerar em direção à garganta do monstro Caríbdis. Onde, momentos depois, se juntou aos companheiros naquele túmulo aquático.
Gray apontou para o trio de luzes na parede da caverna.
— Penso que já está na altura de abandonarmos todos esta maldita caverna.
Fredrik lançou um olhar soturno ao flutuador crivado de balas. Depois, observou a torrente que continuava a chegar pelo túnel.
— Se conseguirmos...
18h33
Lena aninhou-se no centro do Zodiac, os ouvidos ainda a tinir por causa do tiroteio. Tentou não olhar para Roland e para a laceração profunda que ele tentava limpar no braço de Gerard. O comandante despira o blusão quando subira a bordo, expondo o ferimento. Não se devia a uma bala, mas a um fragmento de rocha que o atingira na explosão.
— Obrigado pela ajuda. Não nos teríamos safado de outra maneira — disse Gray, olhando de esguelha para a espingarda do francês — Bom trabalho.
Momentos antes, segundo Lena entendera, apresentara-se como comandante Gray Pierce, adjunto militar da DARPA. A verdade, porém, é que não estava minimamente interessada em saber quem eram os seus dois salvadores, apenas queria sair daquele buraco infernal.
Gerard alcançou a espingarda e puxou-a para junto de si.
— Estava em dívida com aqueles sacanas... pelos meus homens.
Gray anuiu. Compreendia bem o sentido de lealdade entre irmãos de armas.
O piloto do barco — um homem da zona chamado Fredrik — ligou o motor. Exibia uma expressão preocupada que mantinha Lena inquieta, como se o pior ainda estivesse por vir. Quando o barco começou a acelerar, ela afastou-se o mais que podia do flutuador inutilizado. Momentos depois, voavam sobre a superfície da água a uma velocidade assustadora, em direção à boca do túnel.
— Precisamos de ganhar velocidade — gritou o piloto. — O nível do rio é muito mais elevado, por isso, mantenham-se juntos e o mais baixo possível. Isto vai ser à justa!
Lena levou o aviso à letra, agachando-se até ficar com a cabeça ao nível do perfil do barco. Ainda assim, manteve os olhos postos na torrente, pronta para a enfrentar.
Se tiver de morrer aqui, que seja de olhos abertos e a lutar.
O Zodiac atingiu o turbilhão à máxima velocidade, catapultando-se por cima da espuma. Contrariando a corrente, a energia cinética continuou a desempenhar o seu papel, permitindo que o barco entrasse no túnel. Amplificada, a fúria do rio era agora ensurdecedora. Incapaz de lutar contra o imenso caudal, o Zodiac começou a balancear, desacelerando rapidamente. Lena sabia o que os aguardava se perdessem aquele combate. Visualizou a voragem na superfície negra do lago. Porém, o que tinham pela frente não parecia muito melhor.
Uns metros adiante, o rio esbarrava numa curva apertada, explodindo num turbilhão de espuma branca.
Fredrik apontou para o lado interior, onde a água era menos agitada. Continuou a injetar o máximo de potência no motor, mas o barco avançava cada vez mais devagar. Agachou-se, praguejando em croata, tentando conquistar a curva centímetro a centímetro.
Lena olhou para a parede de espuma branca no lado exterior.
Oh, meu Deus...
Conseguiram passar. Desse ponto em diante, o caudal permanecia forte e tentava ainda empurrá-los de volta para a curva, embora a corrente não fosse tão vigorosa.
Ainda assim, aguardava-os uma nova ameaça.
— Conseguimos passar? — gritou Roland.
— Não temos escolha — respondeu Fredrik, entredentes.
Mais à frente, o túnel encontrava-se praticamente inundado, oferecendo menos de um metro acima do nível da água para poderem passar. Como se não bastasse, do teto pendiam uma série de formações rochosas.
Estalactites, observou Lena.
O piloto viu-se obrigado a abrandar, para poder navegar por entre o labirinto de espigões.
Se acertamos numa destas coisas...
Porém, existiam outros perigos sob a superfície. O som de borracha a ser perfurada dirigiu a atenção de Lena para o fundo do barco. A ponta de uma rocha irrompeu debaixo dos seus pés, abrindo um buraco.
Fredrik conseguiu impedir que o Zodiac ficasse preso, mas o estrago estava feito. A água começou a entrar em profusão.
— Usem os capacetes — berrou Gray. — Rápido!
Lena tirou o capacete. Roland e Gerard fizeram o mesmo. Começaram a lutar contra a inundação, escoando o máximo de água que conseguiam.
Mas era inútil.
Cada vez mais pesado, apesar da enorme potência do motor, o barco começou a recuar com a corrente. Por um angustiante momento, Lena notou o olhar que Gray lançou a Fredrik. O piloto abanou a cabeça. Não havia mais nada que pudesse fazer.
Então, um ruído familiar materializou-se em crescendo, rompendo o caos. O zunido inconfundível de uma mota de água, ecoando nas paredes rochosas. Uma forma negra surgiu ao fundo do túnel, antecedida por um feixe de luz brilhante. Acelerando em direção a eles, o piloto guiava agachado, evitando bater no teto.
Aparentemente, o inimigo guardara uma última carta na manga.
Gerard ergueu a espingarda, praguejando, mas Gray agarrou o cano da arma.
— Não dispare!
18h46
Seichan acelerou em direção ao barco em apuros.
Olhou atentamente para a secção do túnel depois do barco, certificando-se de que não havia sinal dos atacantes. Depois de os ter deixado escapar no rio, utilizara a corda e descera do topo da ravina até à doca, onde a terceira mota de água embatera. Felizmente, as chaves ainda se encontravam na ignição em vez de presas ao pulso do homem que tinha abatido.
Completou a distância que a separava do Zodiac. Torceu o guiador e a mota girou sobre si mesma, imobilizando-se ao lado do barco. Com um único olhar, avaliou a situação de uma assentada: a água a entrar pelo fundo do barco; o flutuador inutilizado; o motor que parecia incapaz de combater a corrente.
— Atirem-me uma corda — vociferou sem hesitar.
Os outros que seguiam no barco devolveram-lhe um olhar confuso, mas Gray percebeu qual era o plano.
Atirou-lhe uma das amarras do Zodiac. Seichan segurou uma das pontas e atou-a ao gancho de reboque na traseira da mota. Gray enrolou a outra ponta nos braços e empurrou as pernas contra o flutuador da popa do barco.
Seichan fez-lhe sinal com a cabeça e meteu a mota em andamento. Quando a corda retesou atrás dela, injetou o motor e acelerou, adicionando a potência da mota à do Zodiac. Porém, o barco não se moveu.
Mexe-te, meu pedaço de...
Finalmente, a muito custo, o barco começou a avançar, desafiando a corrente. Iniciaram então uma penosa batalha contra o rio, debatendo-se por cada metro conquistado. Por fim, após o que lhes pareceu uma hora, encontraram-se finalmente sob céu aberto.
Seichan ergueu o rosto contra a chuva, enquanto os raios crepitavam acima dela. Nunca se sentira tão agradecida por se encontrar debaixo de uma tempestade. Continuou a rebocar o Zodiac até à doca e, após algumas manobras, conseguiu pôr toda a gente em terra firme.
Saltou da mota de água e correu para os braços do seu amante.
Gray apertou-a com força.
— Pensei que te tinha dito para ficares aqui — sussurrou-lhe ele ao ouvido.
Ela inclinou-se para trás e franziu a testa.
— E deixava o divertimento todo para ti?
19h12
Gray aguardou na berma da estrada com o resto do grupo. Tinham-se agrupado debaixo do arvoredo, que delimitava um pequeno parque. Logo acima, o Castelo de Frankopan estendia a sua longa sombra. Gray queria sair daquela maldita cidade o quanto antes. Desconhecia a identidade do inimigo, mas tratava-se claramente de uma organização paramilitar. Fosse o que fosse, o que estava a acontecer nunca tivera nada que ver com uma simples pilhagem, tratando-se, sim, de um ataque bem orquestrado, cujo objetivo o iludia.
E já estou farto de andar às cegas.
O som de um motor dirigiu-lhe a atenção para a estrada. Um BMW fez a curva a queimar pneus e imobilizou-se, frente ao grupo. Dag encontrava-se ao volante, porém, aquele não era o BMW que conduzira antes, mas sim um SUV, um X5 de última geração.
— Vamos — disse Dag — As estradas estar abertas. Melhor agora enquanto polícia procura bandidos e tempestade passa. Melhor ir rápido. Enfiou um braço fora da janela e deu uma palmada na porta. — Carro de amigo. Jipe muito bom para atravessar montanha até Zagreb.
— Tu ficas aqui — declarou Gray, abrindo a porta do condutor.
Dag fechou-a de novo.
— Conhece caminho? Quem sabe como estradas ficaram com tempestade? — Deu uma palmada no peito. — Eu conhecer todos caminhos na montanha.
— O rapaz tem razão — disse Fredrik, — Vão precisar de alguém que conheça o terreno.
Gray olhou para o montanhista.
— Não me levem a mal — justificou-se Fredrik, encolhendo os ombros. — Mas acho que já tive a minha dose de aventura.
Gray anuiu. Sabia que não lhe podia pedir mais nada.
— Além disso — continuou o montanhista, — alguém tem de levar o comandante Gerard a um hospital.
Gray olhou para o militar francês, que também o informara de que não iria acompanhá-los. A sua prioridade era descobrir o destino dos seus homens. Gray compreendera, sabendo que faria o mesmo no lugar dele. Ainda assim, Gerard prometera que partilharia qualquer informação sobre o inimigo ou sobre o paradeiro dos dois cientistas raptados. Gray concordara, dando-lhe um número de telefone seguro para usar.
Com as posições de todos claramente definidas, Gray e os restantes ocuparam os lugares no SUV. Gray sentou-se à frente, deixando o assento traseiro para Seichan, Lena e Roland. O plano era seguirem para Zagreb, onde avaliariam a situação, decidindo então o passo seguinte.
Feitas as despedidas, o carro arrancou na direção dos limites da cidade.
Lena inclinou-se para a frente, apertando o telemóvel entre as mãos. Gray tinha retirado a bateria do aparelho, receoso de que o inimigo o pudesse localizar.
— Quando posso ligar para a minha irmã?
— Mais tarde — explicou Gray. — Por enquanto, é melhor deixarmos o inimigo acreditar que está morta.
Ela recostou-se, contrariada com a decisão e preocupada com a irmã.
Gray tentou confortá-la.
— A sua irmã encontra-se bem melhor do que nós. Acredite.
Lena suspirou.
— Sim, suponho que seja verdade.
8
29 de abril, 13h33 EDT
Lawrenceville, Geórgia
Maria encontrava-se sentada na pequena mesa na sala de aula de Baako, incapaz de tirar os olhos do telemóvel no centro do tampo de fórmica. Depois do brevíssimo e inesperado contacto com Lena, alertara imediatamente Monk e Amy. Os dois ainda se encontravam no seu gabinete, a trocarem informações com Washington há mais de uma hora. Porém, até ao momento, nada havia a relatar.
Ou então não me querem dizer.
Olhou para o homem enorme que aguardava com ela. Joe Kowalski segurava o seu próprio telefone, esperando a qualquer momento um telefonema do colega que anunciasse desenvolvimentos. Caminhava de um lado para o outro, como um animal enjaulado, e parecia tão ansioso quanto ela. Depois de ouvir a voz da irmã, Maria quase se fora abaixo, mas ele confortara-a, sussurrando-lhe palavras de esperança. Entre elas, que um colega chamado Gray iria encontrá-la e trazê-la de volta, sã e salva.
Maria apreciara a tentativa dele para a tranquilizar, e passara um bom tempo a estudá-lo enquanto caminhava de um lado para o outro. Tinha um rosto talhado à faca, exibindo marcas de velhas cicatrizes, suportadas por um queixo quadrado. O nariz condizia com o resto das feições, ostentando um volume ou uma espécie de nódulo, provavelmente em consequência de uma antiga fratura. Apesar do evidente e inegável ar endurecido de quem já vira muitas batalhas, as orelhas eram um pouco espetadas, o que lhe conferia um toque de rapazola.
Um oof-oof familiar chamou-lhe a atenção para o outro ocupante da sala. Baako encontrava-se junto ao quadro branco, segurando um marcador de feltro. Tinha traçado quatro letras na sua superfície.
Maria levantou-se de um salto, como uma mola, pasmada. Ela e a irmã tinham ensinado a Baako alguns rudimentos de soletração, complemento necessário à linguagem gestual. Tinham utilizado os blocos de plástico com letras do alfabeto, apresentando-lhe palavras simples como cão e gato, juntamente com alguns nomes: o seu tratador Jack, o seu amigo peludo Tango, e, claro, Maria e Lena.
Kowalski aproximou-se, parecendo tão pasmado quanto ela.
— Ele consegue escrever?
— Ele gosta de desenhar e pinta, também. Mas nunca o tinha visto escrever palavras como estas.
Baako notou a atenção de Maria. Fitou-a com os seus grandes olhos negros, guinchando baixinho, como se não tivesse a certeza se teria feito bem.
Mais do que bem.
— Que menino tão esperto! — disse Maria, elogiando-o.
Baako tocou com um dedo da mão direita no peito, e depois usou os dedos para gesticular repetidamente o mesmo sinal.
[Amor, amor, amor...]
Terminou a sequência batendo com a ponta do marcador debaixo de cada letra no quadro, olhando em seguida para Maria.
Ela sorriu.
— Eu também amo a Lena.
O animal devia ter ouvido as conversas recentes ao telefone e apercebera-se da preocupação em torno de Lena, interiorizando esses sentimentos. Depois, sentindo a aflição de Maria, procurara dentro de si um modo de demonstrar o que sentia, revelando-lhe este talento latente, que ficara escondido até agora.
Maria sentiu as lágrimas escorrerem-lhe de espanto e amor. Enxugou os olhos.
Devias estar aqui para ver isto.
Baako largou o marcador e aproximou-se. Abraçou-a pela cintura.
— És um menino muito bom — murmurou ela.
— A caligrafia podia ser melhor — comentou Kowalski.
Maria olhou para ele, notando-lhe um ligeiro sorriso divertido, embora exibisse a mesma expressão de espanto. Libertou-se do abraço de Baako.
— E se fôssemos apanhar ar? — disse, olhando para o relógio. Virou-se para Kowalski. — Costumo passear o nosso amigo peludo todos os dias. Acho que ele já deve estar a pensar que me esqueci.
Kowalski olhou na direção do vidro.
— Aonde o leva?
— O centro de primatas encontra-se rodeado por quarenta hectares de floresta. Existe um trilho que utilizamos sempre. Ele adora-o.
Sentiu uma pontada de culpa ao proferir aquelas palavras. Sabia como o animal se sentia feliz na floresta, longe daquela sala. O seu lugar era a céu aberto, não fechado naquele lugar. Porém, também sabia que Baako era muito mais do que um simples gorila. Apenas ali, devidamente acompanhado e acarinhado, poderia atingir o seu verdadeiro potencial.
Suspirou, ciente de que passava a maior parte do tempo a convencer-se disso.
Mas continua a dizer isso a ti própria... pode ser que acredites.
Aclarou a garganta e olhou para Kowalski.
— Não precisa de vir connosco, claro. Se quiser ir ter com o seu colega ao gabinete...
— Um pouco de ar fresco é capaz de me fazer bem — disse ele, encolhendo os ombros.
Maria duvidou da sinceridade naquelas palavras; o mais certo é que teria ordens para não a perder de vista. Fosse como fosse, precisava de sair dali, de escapar da nuvem de ansiedade que crescera ao ponto de tomar conta de todo o espaço naquela sala.
Tudo menos ficar aqui a roer as unhas.
Dirigiu-se à mesa e pegou no telemóvel. Não queria correr o risco de perder qualquer chamada relacionada com a irmã. Baako observou-a, balanceando-se nos nós dos dedos, claramente antecipando o que vinha a seguir.
— Pronto para o passeio, Baako?
O animal deu um pulo, guinchando ruidosamente, depois apressou-se a acompanhá-la em direção à jaula contígua à porta de saída.
Kowalski seguiu atrás.
— Calculo que isso seja um sim.
Enquanto Maria abria a jaula, Baako olhou para trás. Sentiu a tensão que emanava do corpo do jovem gorila, uma mistura de excitação e irritação por perceber que Kowalski também os acompanhava.
Procurou distraí-lo.
— E se fôssemos buscar o Tango? Aposto que também gostava de ir passear.
O nome do cachorro foi o suficiente para que Baako se esquecesse de Kowalski. Pegou na mão de Maria, apressando-a para a saída. A cientista deu uma gargalhada e abriu-lhe a porta.
Uma vez fora da jaula, Baako chegou-se mais perto. Continuava a segurar-lhe a mão, o que nunca dispensava quando se encontrava fora dos seus domínios. Ergueu o outro braço, aguardando que fosse implementada outra medida de segurança. Maria alcançou um par de localizadores via GPS e aplicou cada uma das bandas magnéticas nos pulsos do gorila.
— Já está! — disse ela. — Estamos prontos.
Conduziu Baako e Kowalski na direção das traseiras do edifício. Baako colou-se ainda mais, sobretudo enquanto passavam pelos restantes laboratórios, onde eram conduzidas outras pesquisas. Apesar de as portas se encontrarem seladas, parecia ser capaz de detetar o cheiro ou a presença dos outros animais, na sua maioria primatas, como ele. Entre as várias espécies, encontravam-se macacos resos, utilizados num projeto de substituição hormonal, mandris que faziam parte de um estudo de avaliação do crescimento, macacos saimiris e cinomolgos, usados em diversos programas de vacinas e de neurociência. Baako retesou-se contra o corpo dela ao ouvir o guincho de um chimpanzé por trás de uma porta fechada.
Maria tranquilizou-o.
— Está tudo bem.
Estaria mesmo? Quão desconcertante seria tudo aquilo para ele?
Chegaram finalmente ao canil. Uma figura magricela cumprimentou-os.
— Vais passear, matulão? — perguntou Jack a sorrir, apoiando-se no cabo de uma vassoura.
Maria indicou com a cabeça na direção de um dos cubículos.
— E o Tango também.
— Vou buscá-lo — disse o estudante. — Aviso-os de que está a cair uma chuva miudinha. Somando a chuvada de ontem à noite, os trilhos devem estar bem enlameados. É melhor levarem umas galochas.
— Não é preciso. — Maria virou-se para Kowalski, notando o seu fato e uns surpreendentemente elegantes sapatos de marca. — Se calhar, prefere esperar aqui.
Kowalski olhou para os pés, pesaroso.
— Brunello Cucinelli — disse ele. — Cosidos à mão.
— Tenho um par extra de galochas e um impermeável — ofereceu Jack. — Posso emprestar. Talvez sejam um pouco pequenos, mas devem servir.
Kowalski encolheu os ombros.
— Pode ser.
Maria aguardou enquanto Jack conduzia o operacional para o vestuário. Olhou para o hangar de cargas e descargas, que dava acesso às traseiras arborizadas do centro de primatas. A demora permitiu que as suas preocupações regressassem em força, pesando-lhe sobre os ombros.
Vá lá, Lena... diz-me que estás bem.
Sentiu uns dedos quentes apertarem-lhe a mão.
Olhou para baixo e viu Baako a fitá-la. A angústia nos olhos dele era tão fácil de ler.
Parece que não sou a única a estar preocupada.
11h57
As coisas que eu faço pela Sigma...
Sozinho no vestiário, Kowalski dobrou cuidadosamente as calças e pousou-as sobre os sapatos, no fundo do cacifo. A camisa e o casaco encontravam-se pendurados num cabide. Vestindo apenas meias e boxers, pegou no impermeável. O estudante era quase da altura dele, embora fosse mais magro. Por sorte, gostava de usar a roupa larga.
Suspirando, começou a tentar vestir o macacão de trabalho emprestado, encolhendo a barriga para conseguir apertar o fecho.
É o melhor que se pode arranjar, calculo.
Agarrou no coldre da arma, que estava em cima de um banco. Não havia hipótese nenhuma de conseguir usar aquilo por baixo do impermeável, e tinha sérias dúvidas de que a geneticista apreciasse o facto de ele andar por ali com a arma à vista de todos. Abanou a cabeça, contrariado, e pendurou o coldre junto do casaco.
— De qualquer maneira, também ninguém me ia deixar dar um tiro no raio do gorila — murmurou.
Pouco convencido, olhou uma última vez para a arma, uma Heckler & Koch, calibre 45. Cerrou os maxilares, incapaz de a abandonar.
Pertences-me, querida.
Retirou a pistola do coldre e guardou-a num bolso traseiro do macacão. O chumaço era tudo menos discreto, mas não havia alternativa.
Bateu a porta do cacifo e calçou as galochas. Assim que se despachou, abandonou finalmente o vestiário, ao encontro de Maria.
O estudante também regressava do canil, acompanhado de um cachorro sarapintado de cinzento e preto que se abanava, jovial, ao seu lado.
— E este é o Tango — sorriu Maria, apresentando o animal.
O gorila levantou as sobrancelhas, satisfeito, acenando com o braço que tinha livre. Jack soltou a trela e o cachorro correu disparado, a abanar entusiasticamente a cauda.
— Os meus meninos estão prontos? — perguntou Maria.
— Despachemos isto de uma vez por todas — resmungou Kowalski para si próprio, seguindo o gorila e o cachorro.
Pelos vistos, também sou o passeador de cães oficial da Sigma...
Dirigiram-se para a porta aberta do hangar de cargas e descargas. Lá fora, a chuva continuava a cair, miudinha, de um céu pardacento. Ainda assim, a brisa era límpida e convidativa, livre dos odores almiscarados dos animais e do amoníaco dos produtos de limpeza.
Desceram a rampa de cimento até um trilho de gravilha, que conduzia a um prado verde e húmido. Jack acompanhou-os, levando a trela na mão. Uma vez em terreno aberto, Maria largou a mão de Baako e este correu pela relva molhada, seguido de perto por um cão a ladrar. A cinquenta metros, erguia-se uma densa floresta de pinheiros, carvalhos e cedros-brancos.
— É seguro deixá-lo assim à solta? — perguntou Kowalski.
Maria apontou para a linha de uma vedação distante.
— O perímetro encontra-se assinalado por uma corrente. Não é nenhum obstáculo para o Baako, evidentemente, mas ele sabe que deve manter-se dentro dos limites do terreno. De qualquer maneira, não creio que arriscasse. — Olhou em redor. — Tudo o que adora está aqui. Além disso, digamos que ele não é uma alma corajosa, apesar da descontração que aparenta quando vagueia livre, como agora, com o Tango. Em muitos aspetos, diria que é um menino da mamã.
Kowalski notou-lhe a hesitação na voz naquela última frase, detetando não só afeto mas também alguma culpa. Ela cruzou os braços e continuou a caminhar, o olhar melancólico enquanto observava os dois animais a brincarem.
— O que a levou a si e à sua irmã a tornarem-se geneticistas? — perguntou ele, procurando satisfazer alguma curiosidade.
— Só os homens é que podem ser cientistas? — disse ela, sorrindo. — Calculo que esteja relacionado com sermos gémeas. Quando crescemos ao lado de alguém idêntico a nós que é, ao mesmo tempo, tão diferente, essa dicotomia acaba por nos marcar, por fazer com que queiramos entendê-la. E, por sua vez, a nós próprios. Isso faz com que, ao longo do tempo, as perguntas se transformem em curiosidade, e foi essa curiosidade que nos levou à genética.
— Nesse caso, poderem usar aquelas batas sexy não teve nada que ver com a escolha? — perguntou Kowalski, esboçando também um sorriso.
— Bom, eu não disse que as batas não eram um dos benefícios, pois não?
Por essa altura, os dois animais já se encontravam no limiar da linha de árvores, onde um trilho estreito continuava pelo interior da floresta. Jack deu uma corrida para não os perder de vista, fazendo-se valer da inesgotável energia da juventude; ou talvez quisesse apenas fugir da chuva que começara a engrossar.
Kowalski encolheu a cabeça entre os ombros, sentindo um desejo súbito de que a sua pele estivesse coberta de pelo, à semelhança de Baako e de Tango. Acelerou também o passo em direção à linha de árvores.
Uns metros à frente, o estudante estacou subitamente.
Kowalski estranhou a atitude dele. Então, os seus olhos foram desviados para as sombras que se moviam na floresta. O disparo de uma espingarda fez Maria dar um salto. Kowalski agarrou-a e puxou-a para si, deitando-se no chão, para ficarem escondidos pela erva alta.
Utilizou o seu corpo como escudo quando soou um novo tiro. Levantou os olhos e viu Jack rodopiar e cair no chão, o sangue a esguichar do ombro do estudante.
— Não se mexa! — sussurrou para Maria.
Mantendo a cabeça baixa, sacou da pistola e começou a rastejar em direção ao rapaz. Precisamente nessa altura, deu conta da presença de Baako, que vinha a fugir da floresta, carregando o cachorro debaixo do braço. Sem tempo para se desviar, o gorila assustado passou simplesmente por cima dele, atingindo-o com força. O impacte fez a arma escapar-lhe dos dedos enlameados, lançando-a pelo ar.
Raios me partam!
Sem tempo para procurar a pistola caída entre as ervas, Kowalski continuou a avançar e alcançou o estudante, que se encontrava ainda deitado no chão, a gemer, com os olhos inundados de terror. Os atacantes surgiram da linha de árvores, um grupo de figuras negras, de rosto tapado, que avançavam pelo prado.
Kowalski olhou por cima do ombro, calculando a distância para o edifício do centro de primatas.
Demasiado longe...
Pensando rápido, sujou a mão de sangue e passou-a no rosto de Jack.
— Sustém a respiração e finge que estás morto!
Era tudo o que podia fazer por ele.
Rastejou novamente ao encontro de Maria. Os atacantes continuaram a avançar, apontando as armas para o local onde Baako se encolhera contra a geneticista. No meio daquele mar de erva verde, a corpulência de Baako saltava à vista como uma ilha vulcânica.
Kowalski agarrou o braço de Maria.
— Temos de o deixar aqui. Pode ser que não nos vejam se continuarmos a rastejar entre as ervas.
— Nunca! — protestou a geneticista, soltando-se. — Não o abandono.
— Levante-se e caminhe até nós, doutora Crandall! — ordenou uma voz. — E traga o gorila.
Kowalski cerrou os maxilares. Os atacantes pareciam ter conhecimento da rotina da cientista, dos passeios diários na floresta, permitindo-lhes planear a emboscada. Maria olhou-o nos olhos, esperançada de que ele tivesse ainda uma solução.
Com um resmungo, o operacional mostrou-lhe a única saída possível.
Ergueu os braços e levantou-se, ficando frente a frente com uma fileira de armas apontadas na sua direção.
— Não disparem!
Maria hesitou apenas o suficiente para retirar um dos localizadores de GPS dos pulsos de Baako, prendendo-o de seguida na coleira de Tango.
— Vai para casa! — ordenou ao cachorro, apontando para o edifício nas costas.
Tango ficou a olhar para ela, demasiado assustado para se mexer, mas Baako deu-lhe um ligeiro empurrão, como se o incentivasse. O cachorro rodou sobre si mesmo e começou a correr.
Kowalski tentou bloquear a linha de visão dos atacantes, acenando com os braços para que não notassem o subterfúgio. Maria também ajudou, levantando-se e segurando Baako pela mão, enquanto guardava dissimuladamente qualquer coisa no bolso traseiro das calças. Ao seu lado, o gorila agarrava-se às suas pernas, choramingando.
— Faço o que quiserem — disse ela. — Só peço que não façam mal...
Um novo tiro cortou-lhe as palavras.
Kowalski olhou para um dos atacantes. Segurava uma pistola com o cano ainda fumegante, apontado para o chão. Era o mesmo homem que exigira que se mostrassem e, aparentemente, também o chefe do grupo.
Aos seus pés, encontrava-se o corpo caído de Jack.
Kowalski cerrou os maxilares, contendo a raiva.
Filho da puta...
Maria sentiu as lágrimas ferverem no rosto e encostou-se a ele. O chefe deu dois passos em frente e ergueu a pistola, apontando-a ao peito de Kowalski.
Kowalski fitou-o, sabendo o que vinha a seguir.
Como sempre, estava errado.
Maria pôs-se em frente da arma, gritando para o homem de negro.
— Se querem a minha ajuda, se querem o Baako, então também querem o Joe! — Apontou para Kowalski, dando-lhe inadvertidamente uma cotovelada no estômago. — O Joe é o tratador do Baako. Sabe tudo acerca dele. Como o acalmar. Como fazer com que coopere.
A geneticista falava depressa, fazendo o possível para que Kowalski parecesse indispensável aos planos dos atacantes. Ele baixou o olhar para o símbolo da Universidade de Emory que trazia no peito do impermeável. Engoliu em seco e estendeu a mão para Baako, sabendo que seria a única maneira de validar os argumentos de Maria.
Não me deixes pendurado, matulão.
Baako virou o rosto encharcado para ele, os olhos vitrificados pelo medo. Depois, um braço negro ergueu-se devagar e uns dedos curtidos entrelaçaram-se nos seus.
O chefe dos atacantes deteve-se por um longo instante, estudando o trio. Finalmente, baixou a pistola, virou as costas e afastou-se.
— Metam-nos no helicóptero! — ordenou.
Enquanto o grupo de homens os rodeava, Baako largou a mão de Kowalski e desatou a gesticular.
Porém, o significado podia ser lido nos seus olhos assustados.
[Ajuda-nos]
O gorila agarrou então Maria pela cintura, apertando o seu corpo contra o dela. Suplicantes, os olhos da geneticista encontraram também os dele. Kowalski sabia que se encontrava em dívida com os dois. Afinal, tinham acabado de lhe salvar a vida.
Mas, que posso eu fazer sozinho?
12h23
Monk esfregou os olhos e voltou a ler as conclusões do radiologista que assinara um dos exames ao cérebro do gorila. A morfologia distinguia-se da de um gorila normal em vários aspetos. Atentou num parágrafo acerca da quantidade de circunvoluções no córtex. Segundo o exame, o número de sulcos e giros era três vezes superior, sugerindo a existência de uma área cerebral maior, o que obrigara a um maior acondicionamento do órgão, para caber no crânio do animal.
Para Monk, era uma imagem igualmente fascinante e inquietante.
Atrás dele, Amy Wu falava ao telefone. Tinha recebido uma chamada há uns minutos, provavelmente outra atualização por parte dos colegas na Casa Branca.
— Entendido — disse ela, caminhando de um lado para o outro. — Vou agir em conformidade. Zàijiàn.
Monk notou a despedida em chinês, sugerindo que talvez não tivesse estado a falar com Washington, embora não pudesse excluir essa hipótese. Ainda assim, a estranheza do sucedido levou-o a observar o reflexo dela no monitor do computador.
Ela virou-se e guardou o telefone. Depois, levou a mão à zona dos rins, como se estivesse a esticar as costas.
Quando a mão voltou a subir, Monk distinguiu a forma inconfundível de um pequeno revólver prateado.
Reagiu de imediato e agachou-se, empurrando a cadeira na direção de Amy. O disparo do revólver soou como um trovão, estilhaçando o monitor na secretária enquanto ele caía no chão.
A cadeira atingiu Amy nas pernas, obrigando-a a recuar um passo e recuperar o equilíbrio. Monk aproveitou o momento e sacou da arma, disparando às cegas, mais para a manter à distância do que para acabar com ela. Ainda assim, uma das balas atingiu-a na perna. Caiu sobre o joelho, gritando de dor enquanto tentava mantê-lo sobre a mira da arma.
Por esta altura, Monk tinha uma linha de tiro certeira. Segurou firmemente a Glock com as duas mãos e apontou-a. Notou a expressão de Amy, o olhar frio e calculista depois de caída a máscara de colaboradora da DARPA.
Dispararam ao mesmo tempo.
Rolando sobre si próprio, sentiu a bala dela assobiar a centímetros da orelha. Amy não conseguira ser tão rápida. O tiro dele atingiu-a no pescoço, projetando-a para trás. Monk levantou-se, mantendo-a debaixo de mira. Porém, antes que se conseguisse aproximar, ela voltou a erguer a arma, centrando-a no peito dele. Sem alternativa, Monk disparou de novo, desta feita apontando à cabeça.
Amy tombou finalmente no chão, os dedos inertes sobre o revólver prateado.
Monk pontapeou a arma, embora não tivesse dúvidas de que a tinha matado.
Ajoelhou-se junto ao corpo e retirou-lhe o telemóvel. Amy já não lhe podia dizer nada, mas talvez encontrasse qualquer coisa no aparelho que justificasse aquele ataque. Ainda assim, o pensamento seguinte foi para uma preocupação mais imediata.
Kowalski e Maria.
Alguém tinha ligado para Amy com a ordem para o liquidar.
E isso dava-lhe uma única certeza.
Eu sou uma ponta solta.
De arma em riste, abandonou o gabinete e correu pelo corredor.
Irrompeu na antecâmara da sala de Baako e deslizou até à janela de observação. O espaço encontrava-se vazio.
Nada de corpos, manchas de sangue ou qualquer sinal de luta. E nada de Baako, também.
Olhou em redor, momentaneamente confuso.
Onde é que se enfiaram?
Ouviu uma série de gritos que ecoavam do átrio que se estendia até às traseiras do edifício. Correu nessa direção, reconhecendo a voz irada do diretor do centro, Leonard Trask.
— Quem deixou este cão solto? — gritava o homem, à distância. — Metam este rafeiro no canil, imediatamente!
Monk não sabia se a confusão estaria relacionada com o desaparecimento de Kowalski e Maria. Fosse como fosse, o diretor podia ter alguma informação.
Passou por uma série de laboratórios e encontrou-se num espaço amplo, cercado de cubículos e jaulas para cães. Mais à frente, os portões do hangar de cargas e descargas encontravam-se fechados, mas uma porta mais pequena permanecia aberta.
Junto à porta, um pequeno cão tremia, completamente encharcado.
Trask aproximou-se do cachorro, prendendo-o contra a parede com a bota, para que não fugisse. Finalmente, uma estudante da universidade atravessou o hangar a correr, segurando uma trela na mão.
Monk juntou-se a eles.
— Que se passa? — perguntou.
Trask virou-se com uma expressão furiosa, preparado para continuar a gritar, mas as palavras morreram-lhe na garganta ao ver a pistola.
— Mas... O que está a fazer?
Monk não tinha tempo para explicações.
A estudante agarrou no cachorro e pôs-lhe a trela. Ao fazê-lo, um objeto metálico soltou-se da coleira. Ela apanhou-o do chão, examinando-o, curiosa.
Trask estendeu a mão.
— Dê cá isso.
— Acho que é um dos localizadores do Baako — disse ela, desconcertada.
Monk aproximou-se.
— Tem a certeza?
— Sim — confirmou Trask, arqueando a sobrancelha. — Mas por que raio estava o localizador no cão?
A estudante tentou explicar, apontando para a porta aberta.
— Acho que a doutora Crandall levou o Baako e o Tango a passear — disse ela, nervosa.
— Há quanto tempo? — perguntou Monk.
— Meia hora, talvez. Eu tinha acabado de chegar, quando vi o Jack ir buscar o Tango ao canil.
Monk apressou-se para a saída e perscrutou o prado à sua frente.
— Ainda devem andar por aí — declarou Trask. — A floresta tem uma quantidade enorme de trilhos.
Monk não estava convencido. Fixou o olhar no caminho de gravilha que se estendia pela erva. Notou uma forma escura no chão.
Merda!
Agarrou no braço de Trask e correu pela rampa de cimento, arrastando o diretor. Quando chegou a meio do caminho de gravilha, confirmou que se tratava de um corpo.
— Jack... — disse Trask, recuando uns passos, claramente perturbado.
Monk olhou à sua volta, examinando as sombras na floresta, procurando um sinal dos outros, mas sabia que chegara demasiado tarde.
Fosse quem fosse, quem tinha ligado para Amy Wu apenas o faria sabendo que o objetivo já fora cumprido.
— Já estão longe... — murmurou entredentes.
Virou-se e arrancou o localizador das mãos de Trask.
Ou talvez não...
12h48
Baako encolhe-se contra a traseira da jaula, abraçando os joelhos contra o peito. O ruído, ensurdecedor, parece rasgar-lhe os ouvidos, porém, ainda consegue ouvir o coração martelar-lhe na cabeça. Quer gritar, bater no peito, largar mão daquele terror. Consegue ver o mundo passar, através de uma janela próxima, fustigada pela chuva. O estômago embrulha-se com o fedor do espaço confinado, com o revolutear das coisas à sua volta.
O único ponto seguro no meio da tempestade é a silhueta familiar da mãe. Está sentada ao lado da jaula, mas os olhos são demasiado grandes, a pele demasiado branca, a respiração demasiado pesada.
Quer tocar na mão dela.
Mamã...
Mas ela tem os braços atrás das costas, as mãos amarradas.
O homem grande está sentado frente a ela. Tem os lábios fechados, as narinas dilatadas, os olhos mexem-se em todas as direções. Parece que vai bater no peito a qualquer momento, mas também tem as mãos presas.
As pessoas más, sem rosto, estão sentadas nos outros lugares. Já têm cara, agora. Os seus olhos são apertados. A pele é diferente.
Como aquela a mulher que é amiga da mamã, aquela que lhe faz cócegas quando o vem visitar.
Mas estas pessoas não são boas, como ela.
Lembra-se como foi obrigado a entrar na jaula, como foi empurrado com um pau que queimava fazendo uma espécie de fogo azul. A mamã não deixou que continuassem a queimá-lo. Ela disse palavras suaves, palavras que ele não compreendeu por estar demasiado assustado. Mas ele entrou na jaula.
Depois, foram maus para a mamã. Agarraram nela e tiraram o telefone... e o telefone do homem grande, também. Baako sabe o que são telefones. Às vezes falava com a mamã Lena num telefone. Sente vontade de chorar quando pensa nela.
— Está tudo bem — diz a mamã.
Mas ele sabe que não.
Não está...
A mamã quer chegar mais perto da jaula. Roda o corpo e tenta meter as mãos amarradas entre as grades. Olha para ele por cima do ombro, enquanto os dedos fazem letras.
[Esconde]
Ele não compreende. Por vezes, a mãe esconde-lhe coisas a brincar. Põe uma banana dentro de uma caixa que ele tem de virar, torcer, empurrar e puxar até conseguir tirar a banana e comê-la.
Baako arrepanha os lábios e mostra-lhe os dentes, confuso.
Ela abre os dedos da outra mão e mostra-lhe a argola de plástico e metal. Ele conhece aquele objeto. Fecha uma mão sobre o pulso para lhe mostrar que sabe o que é. Lembra-se que ela tinha tirado os círculos dos braços dele e tinha dado um ao Tango. Depois, quando as pessoas más apareceram, guardou o outro no bolso das calças.
As mãos da mãe fazem mais sinais.
[Toma... Esconde]
Ele obedece e agarra no objeto.
Uma voz grita para a mamã. Baako está demasiado assustado para compreender, mas sabe que a voz está zangada.
A mamã diz palavras que ele conhece.
— O Baako está com medo.
Depois, faz outra vez sinais com as mãos.
[Esconde... Agora]
Baako afasta-se para o fundo da jaula, sem saber que fazer. Quer ser um bom menino. Finalmente, pensa um pouco e vira as costas. Leva a mão à boca e enfia o objeto debaixo dos lábios, escondendo-o.
Um dos homens maus empurra a mamã, afastando-a da jaula, mas ela faz sinal com a cabeça para Baako e sorri. Ele sabe o que ela está a dizer.
[Lindo menino]
O homem grande também está a olhar para ele.
Não sorri, mas Baako sabe que ele está contente.
Baako senta-se, mais calmo. Afinal, tem agora uma certeza.
Eu sou um bom menino.
9
30 de abril, 07h23 CST
Pequim, China
— Qi’ng bú shì... qi’ng bú shì... — implorou o homem, ajoelhado. — Shàojiàng Lau, qi’ng bú shì...
A major-general Jiaying Lau ignorou-o.
Mantinha as costas viradas, revendo os relatórios diários das várias divisões de laboratórios. Encontrava-se de pé, frente a uma janela com vista para o jardim zoológico de Pequim. Dos maiores do mundo, era também o mais antigo na China, remontando a 1906, quando não passava de uma quinta experimental.
Um começo adequado, considerando o projeto corrente.
Não se coibia de exibir um certo orgulho, tendo em conta o planeamento e o trabalho que tinham sido precisos para levar tudo a bom porto.
Deixou os olhos vaguearem pelo parque. O seu ponto de observação privilegiado situava-se no segundo andar de Changguanlou, um imponente edifício histórico que se situava no canto noroeste do zoo. Inspirado no período barroco francês, fora construído durante o século XIX para servir de residência à imperatriz Dowager Cixi.
Visualizou a imperatriz a olhar pela mesma janela, vendo-se a si própria num papel semelhante, reinando sobre tudo o que a vista alcançava.
Sob vários aspetos, não deixava de ser verdade. Podia não ter poder total sobre o zoo nem sobre os quinze mil animais alojados nos mais de oitenta hectares de terreno. Porém, a sua autoridade era total sobre a instalação que se escondia no subsolo, digna de rivalizar com as recentes construções das Olimpíadas de Pequim. Além do mais, a instalação tinha objetivos bem mais importantes do que atrair a atenção e o reconhecimento global.
Fechou os olhos, assimilando a dimensão do projeto. Tudo começara com uma semente roubada a milhares de quilómetros e que depois fora plantada ali mesmo, onde criara raízes, prometendo glória ao seu país. A semente tinha vindo de um vale no sudoeste do Tibete, próximo das fronteiras do Nepal e da Índia. Tratava-se de um lugar sagrado para budistas e hindus, devido ao monte Kailash, o pico mais elevado daqueles vales, do qual se dizia ser a eterna residência do deus Xiva.
Contraiu o rosto num esgar de desprezo por essas antigas superstições. Expirou demoradamente, abrindo depois os olhos para lá dos limites do zoo, para o horizonte da moderna cidade de Pequim. Estudara na Universidade de Ciência e Tecnologia, onde viria a ser recrutada pelo adjunto do secretário-geral para ingressar na Academia de Ciências Militares. Endireitou a postura, recordando até que ponto se sentira honrada. Tinha dezanove anos na altura: o futuro não passava de um livro em branco.
Mas isso tinha sido há mais de quatro décadas.
Observou o seu reflexo na janela. Notou o cabelo grisalho, meticulosamente penteado e aparado por cima das orelhas. Conseguia ler a sua história em cada linha do rosto. Nunca tivera filhos ou um marido, e o que conhecera de mais parecido com um casamento duradouro era a sua carreira militar. A recompensa encontrava-se no uniforme verde-seco, naquela estrela embutida nas dragonas que lhe conferiam o posto de shàojiàng, major-general do Exército de Libertação Popular. Costumava polir diariamente cada uma das duas estrelas, porém, conforme os anos passavam, começara a fazê-lo com uma dose de amargura, ressentindo-se de serem as únicas que lhe agraciavam o uniforme.
Sabia que a sua carreira havia estagnado — consequência direta de ser mulher, mas também porque desempenhava funções na divisão científica do ELP. Todavia, essas circunstâncias não a impediam de continuar a sonhar com um par de estrelas adicional, ou mesmo com a possibilidade de um dia conseguir ser promovida a diretora da divisão científica, cargo que nunca nenhuma mulher ocupara. O objetivo final era essa distinção, mas, para a conseguir, sabia que primeiro precisava de provar que era merecedora.
Na verdade, estava a apostar a carreira no projeto que tinha em mãos.
Não posso falhar.
Abaixo da janela, uma lagoa azul alojava uma variedade de elegantes garças. Notou a beleza das plumagens, que resplandeciam em tons de rosa e branco, o enorme caramanchão adornado de folhagem e flores. Absorveu toda aquela vista magnífica. Mais à frente, entrecortados por límpidos cursos de água e pequenos lagos, erguiam-se os numerosos espaços dos animais, na maioria a céu aberto, reproduzindo fielmente os vários habitats naturais. No extremo oposto, encontrava-se a estrela principal do zoo, que atraía centenas de milhares de visitantes todos os anos. A Casa dos Pandas.
Ainda assim, por muito impressionantes que fossem as condições e atrações, as verdadeiras maravilhas do mundo natural encontravam-se escondidas no subsolo, distribuídas por trinta mil metros quadrados de laboratórios, jaulas e habitats climatizados. A ideia surgira em 2003, durante a invasão do Iraque, quando as tropas norte-americanas descobriram instalações semelhantes no subsolo do jardim zoológico de Bagdade.
Sem comparação, a instalação chinesa faria corar de vergonha a iraquiana, estendendo-se sob a totalidade da área ocupada pelo zoo. De início, as pesquisas que ali eram efetuadas eram rudimentares, mas as técnicas tinham sido exponencialmente refinadas ao longo dos anos, bem como as suas aspirações em relação ao potencial do trabalho que poderia ser desenvolvido no domínio da genética. Então, sem nada que o fizesse prever, tudo mudara com uma incrível descoberta nas encostas sagradas do monte Kailash.
Durante mais de uma década, uma pequena estação de investigação antropológica estabelecera-se no vale, para efetuar um estudo do genoma das populações indígenas. Os antropólogos queriam elaborar um mapa genético dos padrões de migração ancestrais na região, e o local fora escolhido por causa da afluência de peregrinos, oriundos de todos os cantos. O exército financiara o projeto, uma vez que era uma maneira de conseguir uma base científica para as pretensões chinesas na disputa das fronteiras locais, cujas configurações se encontravam no cerne de conflitos que envolviam a Índia, o Tibete, o Nepal e o Butão.
Além de amostras genéticas, os antropólogos também tinham recolhido histórias de avistamentos de animais raros, como o esquivo leopardo-das-neves ou o urso-azul-tibetano. Com o tempo, os pastores locais começaram a trazer amostras para os cientistas, como ossos fossilizados, restos de peles de animais ou pedaços de madeira petrificada. Então, oito anos antes, um pastor tibetano conduzira um dos cientistas até uma caverna no topo das encostas do monte Kailash, acima da linha da neve, terreno considerado demasiado sagrado para ser trilhado.
O pastor afirmara ter descoberto o covil de um ieti, o lendário monstro dos Himalaias. Histórias de criaturas similares podiam ser encontradas ao longo dos séculos nas mais variadas culturas. No Butão, chamavam-lhe Migo, nas tribos das montanhas chinesas, Alma. De qualquer modo, a descoberta não revelara o covil de um ieti, mas sim uma caverna que guardava um tesouro científico mais importante do que qualquer outro jamais encontrado.
Foi nada menos do que uma feliz coincidência que o cientista pertencesse à Academia de Ciências Militares. Mantendo o sigilo, contactou o diretor adjunto da organização, o qual enviou Jiaying Lau para investigar. Depois de compreender as implicações e possibilidades que estavam em jogo, Jiaying confiscou o achado e levou-o para Pequim, onde reuniu alguns dos nomes mais brilhantes da comunidade científica chinesa, incluindo zoólogos, arqueólogos, biólogos moleculares, engenheiros genéticos e até peritos em estudos de reprodução e desenvolvimento.
As instalações sob o zoo eram o local perfeito para investigar um enigma capaz de mudar a humanidade. Com um prazo especialmente apertado, o êxito do projeto dependia em grande parte de uma política de tolerância zero para falhas de segurança.
— Qi’ng bú shì... — ouviu de novo nas suas costas.
O homem que implorava — um técnico de informática de vinte e oito anos chamado Quon Zheng — tinha usado o sistema de comunicação via satélite para efetuar uma chamada não autorizada na noite anterior. Tentara contactar a namorada, que vivia em Xangai. Apesar de não haver nenhuma outra intenção por trás do que tinha feito, aquele tipo de contacto com o mundo exterior estava estritamente proibido a quem trabalhava nas instalações.
Jiaying fechou os olhos, recordando a difícil ascensão na montanha sagrada, o suposto reduto do deus Xiva, o destruidor de ilusões.
O seu nome de família, Lau, também significava destruir.
Retirou força desse facto.
— Levem-no! — ordenou aos dois soldados que aguardavam junto à porta. — Metam-no na Arca.
Um choro desesperado encheu a sala. O técnico não estava num nível hierárquico que lhe permitisse saber para onde estava a ser levado. Porém, numa comunidade tão fechada, não era difícil ouvir os rumores de pessoas que desapareciam para nunca mais serem vistas.
Jiaying endireitou as costas enquanto o homem era arrastado. Voltou a admirar a lagoa azul, as garças deslocando-se gentilmente sobre as águas.
Uma nova voz surgiu nas suas costas, apanhando-a desprevenida.
— Chéngmahn, Shàojiàng Lau.
O pedido de desculpas pela interrupção fora feito em cantonês. Apesar de respeitoso, o insulto velado era evidente. Fora criada numa aldeia pobre na província de Guangdong, no sul da China, onde o cantonês era o dialeto mais usado. Dessa forma, a pessoa que se lhe dirigira daquela maneira fizera-o com a intenção de a recordar das suas origens humildes. Além do mais, essa pessoa sabia que o mandarim, a língua oficial da China, era também a sua.
— Não está a interromper, Zhongxiào Sun — respondeu num mandarim cristalino. Mantinha um tom de voz neutro, mas fez questão de lembrar o oficial do seu estatuto inferior de tenente-coronel. — Que se passa?
Chang Sun dirigiu-lhe uma pequena vénia antes de falar. Tinha uma aparência tão empertigada quanto a dela, o uniforme caqui igualmente impecável; a diferença é que era vinte anos mais novo e exibia todas as bandeiras da juventude: os músculos firmes, o cabelo negro e espesso, a pele lisa, além de uma ambição desmedida no olhar.
Chang era o oficial que o pastor tibetano conduzira até à caverna no monte Kailash. A sua descoberta, juntamente com as funções alargadas que agora desempenhava, tinham-lhe valido uma promoção. Contudo, à semelhança de Jiaying, esperava que este projeto lhe permitisse voos maiores, e estava disposto a passar por cima dela, se tal fosse necessário.
— Pensei que gostaria de saber que a minha equipa acaba de chegar com a encomenda da Croácia. Estão a trazê-los para aqui neste preciso momento.
— Ótimo. E a segunda encomenda, a dos Estados Unidos?
— Ainda a caminho. Devem aterrar nas próximas horas.
Jiaying anuiu, oferecendo o seu muito contrariado respeito. Enquanto ela comandava a instalação, Chang Sun coordenava a vertente militar da operação, incluindo os serviços de informação. O seu papel consistia em ser o braço armado de Jiaying, mas sabia o quanto ele gostaria de virar esse braço contra ela própria. Com esse facto em mente, aproveitou para o rebaixar um pouco.
— Soube que perderam o nosso contacto científico na Casa Branca, que foi abatida durante a operação em Atlanta.
Chang baixou o olhar.
— Uma perda lamentável. Compete-nos agora demonstrar que não terá sido em vão.
Compreendeu o que Chang lhe estava a dizer. Como responsável máxima pela parte científica do projeto, competia-lhe garantir que tal perda era justificada.
— E as pontas soltas na Croácia? — ripostou Jiaying. — Resolvidas?
Continuava a manter um tom de voz neutro, mas a frustração queimava-a. Os serviços de informação de Chang tinham falhado redondamente acerca da presença de Lena Crandall, percebendo demasiado tarde que ela viajara para a montanha um dia antes do previsto. O plano inicial consistia em raptá-la em Leipzig, antes de abandonar a Alemanha. Com as duas irmãs em seu poder, ser-lhe-ia fácil usar qualquer uma delas para obter a colaboração da outra. Além do mais, o lapso dos serviços de informação obrigara a acelerar o ataque no centro de primatas nos Estados Unidos. Se não fossem a pressa e o improviso, talvez não tivessem perdido Amy Wu.
— Acreditamos que a doutora Lena Crandall esteja morta — respondeu Chang —, mas continuamos a tentar corroborar a informação.
— E os homens que perdemos?
Chang suspirou, dando mostras de irritação. Algo que era raro nele.
— Os corpos estão limpos. Não existe nenhuma maneira de os relacionarem connosco. Se vier a acontecer, já estamos a preparar um comunicado oficial, negando tais acusações.
— Tem alguma ideia de quem eliminou os seus homens?
Chang abanou a cabeça, com os olhos a cintilarem de raiva. Não pela morte dos seus camaradas, evidentemente, mas pela mancha que lhe inscrevia no currículo.
— Ainda não sabemos.
— Talvez seja algo que mereça a sua atenção imediata, não? — sugeriu ela, satisfeita por direcionar a atenção dele para outro lugar. Apontou para a porta. — Agora vou preparar-me para receber os nossos convidados.
— Sim, major-general Lau — confirmou ele com um movimento de cabeça. Depois, virou costas e abandonou a sala.
Jiaying voltou a atenção para a janela, olhando para a lagoa enquanto o Sol subia para um novo dia. Visualizou outro lago, que se localizava na sombra do monte Kailash, o lago Rakshastal, o lago do Diabo, assim conhecido pelas águas amargas e pelo demónio de dez cabeças que espreitava nas profundezas.
Franziu a testa para o seu próprio reflexo.
Sabia que existiam coisas no mundo bem piores do que demónios.
Especialmente porque ajudei a criar algumas delas.
06h44
Algemado atrás das costas, Quon Zheng cambaleava ao longo do corredor, escoltado por dois soldados. Um deles segurava-o por um cotovelo, enquanto o outro se certificava de que ele continuava a caminhar, com a ajuda de um bastão elétrico. Conduziram-no por um átrio amplo que atravessava o coração da instalação, seguindo na direção do extremo oposto, onde poucos estavam autorizados a entrar. Enquanto passava com os soldados, alguns rostos olhavam para ele, mas depressa voltavam ao trabalho, amedrontados. Quem se cruzava no caminho, apressava-se a desviar-se, de cabeça baixa, concedendo passagem.
De um corredor contíguo, viu surgir um grupo de quatro soldados que acompanhavam dois homens mais velhos, visivelmente exaustos, com os pulsos amarrados atrás das costas. Atrás deles, acompanhavam-nos mais dois soldados que carregavam uma caixa de formato retangular, lembrando um caixão.
Quon calculou que viessem do heliporto militar, que servia a instalação.
Olhou nessa direção, lembrando-se da sua chegada, dez meses antes, de como se sentira orgulhoso, cheio de esperança. Agora, tinha os olhos pejados de lágrimas enquanto visualizava a imagem da mãe, que adorava visitar os jardins de chá de Xangai, e da irmã mais nova, caminhando atrás dela. Também se lembrava do brilho dos olhos da namorada no escuro... do toque dos seus lábios.
As vozes interromperam-lhe o pensamento. O par de prisioneiros segredava em inglês, perscrutando o ambiente em redor. Quon calculou que os guardas os estivessem a levar à presença da major-general Lau. Notou o olhar do homem mais velho. Os dois pareciam igualmente assustados, mas a voz do homem que falava em inglês mantinha-se firme. O forasteiro dirigiu-lhe umas palavras quando se cruzaram, uma vez que também estava a ser conduzido sob escolta.
— Onde estamos? Que lugar é este?
Quon sabia o suficiente de inglês para compreender a pergunta. Pensou numa única palavra, que tanto servia de aviso como para descrever o lugar.
— Dìyù... — respondeu, rodando as costas ao passar. — Ta shì dìyù!
Os forasteiros continuaram a ser arrastados pelo átrio, mas conseguiu ouvir a reação daquele que tinha um sotaque francês.
— O homem disse... disse este lugar é o inferno.
Quon queria gritar e contar-lhes tudo o que sabia acerca daquele lugar, mas sentiu as costas explodirem de dor quando o guarda lhe cravou o bastão elétrico nos rins.
Arquejando, atravessou o resto do átrio meio arrastado meio empurrado pelos guardas. Nas divisões seguintes, deparou com várias áreas de contenção para animais, desde ovelhas a iaques. Finalmente, encontrou-se frente a uma porta alta de aço reforçado. Por cima da porta, encontrava-se um letreiro iluminado a vermelho.
— Não! — gemeu, olhando para o letreiro.
A Arca.
Ouvira os rumores acerca daquela sala de contenção, embora poucos soubessem realmente o que se escondia por trás daquelas portas de aço.
Um dos guardas pousou a mão num dispositivo de identificação eletrónico. Momentos depois, a porta começou a abrir lentamente por meio de um sistema hidráulico.
Um sopro de ar gelado bafejou-lhe o rosto. Quon sentiu o habitual odor almiscarado de animais, embora fosse ainda mais forte do que aquele que sentira quando passara pelos iaques. Sentiu os pelos da nuca eriçarem-se. Tentou recuar, instintivamente, mas os guardas seguraram-no, retiraram-lhe as algemas e arremessaram-no para lá da porta.
Caiu de joelhos, encontrando-se no interior de uma pequena jaula que servia de antecâmara. Para lá das barras de aço, estendia-se uma caverna recortada da rocha natural. As paredes erguiam-se vinte metros, formando uma espécie de fosso íngreme, com pedregulhos negros no chão. A face da parede oposta encontrava-se pejada de reentrâncias ou grutas, umas ao nível do chão, outras mais elevadas.
Encolhendo-se, ouviu a porta fechar-se atrás dele.
Sentiu o coração martelar-lhe no peito.
Por favor, não...
Notou as sombras que se mexiam no interior das grutas na parede. Então, uns metros à frente, um dos pedregulhos deslocou-se, revelando um horror inimaginável.
Quon gritou, atirando os punhos contra a porta de aço.
Logo a seguir, as barras da jaula começaram a subir.
SEGUNDA PARTE
A RELÍQUIA DE EVA
10
30 de abril, 05h45 CEST
Zagreb, Croácia
Ao entrar na pequena cozinha, Gray notou a mistura de medo e de esperança no rosto de Lena. Talhadas à mão, vigas de madeira envelhecida suportavam um teto baixo enquanto as paredes expunham tijolos antigos, remontando ao século XVII. A cozinha pertencia à casa paroquial da Igreja de Santa Catarina em Zagreb, na Croácia. A geneticista estava sentada a um canto, numa mesa de carvalho de tábua corrida. Atrás dela, o lume crepitava numa lareira de pedra.
— Já há notícias da minha irmã? — perguntou Lena.
Seichan também olhou para Gray, apreensiva. Afastou-se do balcão próximo e deu-lhe uma chávena de café quente. Ele agradeceu, servindo-se também de uma espécie de pastel de queijo de um tabuleiro — uma iguaria chamada strukli — e sentou-se à mesa.
— Recebi uma atualização de Washington — respondeu Gray. — Continuam a monitorizar o sinal do localizador de GPS que creem estar na posse da sua irmã. Mas apenas têm obtido um sinal intermitente.
Lena baixou a cabeça, apertando as mãos sobre a mesa.
— O alcance desses localizadores é demasiado curto. Eram apenas uma precaução caso o Baako se perdesse na floresta ou resolvesse aventurar-se além do perímetro do centro de primatas.
Gray tentou visualizar como seria, na verdade, esse gorila híbrido. Durante a traiçoeira viagem de carro pelas montanhas, Lena fornecera-lhe todos os detalhes da sua pesquisa, incluindo as características únicas de Baako.
Obviamente, o ataque nos Estados Unidos estava diretamente ligado com o que ocorrera na Croácia.
Mas quem eram os responsáveis? Qual o motivo?
Visualizou o rosto de Kowalski, interrogando-se se estaria ainda vivo.
Lena partilhava o mesmo receio em relação à irmã.
Tentou tranquilizá-la.
— O localizador permanece ativo, e tem sido o suficiente para sabermos que se encontra agora sobre o Pacífico, dirigindo-se para leste. Temos uma equipa no ar que tem estado a seguir o sinal e a encurtar a distância. Assim que os atacantes aterrarem, caímos-lhes em cima com tudo o que temos.
Gray evitou mencionar uma das suspeitas do diretor da Sigma, de que os ataques poderiam ter sido orquestrados por uma fação chinesa. Se estivesse certo, qualquer tentativa de resgate em solo chinês apresentar-se-ia, no mínimo, problemática.
Ou impossível, na pior das hipóteses.
Lena levantou outra questão.
— As baterias destes localizadores duram pouco mais de um dia. Uma vez esgotadas, calculo que não haja maneira de continuarmos a saber para onde se dirigem.
Gray olhou para Lena. Painter não mencionara esse pormenor.
Se é que tinha conhecimento dele.
Fosse como fosse, o que vinha a seguir já não dependia de Gray. No imediato, a sua missão era acompanhar Lena de volta para os Estados Unidos em segurança. Estava apenas a aguardar os pormenores do itinerário.
— E os professores? — perguntou Lena.
Gray abanou a cabeça. Se Arnaud e Wrightson estivessem vivos, há muito que se encontrariam fora de alcance. A prioridade agora era manterem-se longe de vista, para garantir o êxito do resgate da geneticista. O padre Novak tinha providenciado uma boa ajuda quando chegaram a Zagreb, disponibilizando a igreja, garantindo-lhes um lugar seguro para descansarem o resto da noite. Tinham gozado de umas horas de sono, mas amanheceria em breve. E tinham de continuar.
O som de passos desviou a atenção de Gray. Roland surgiu à porta da cozinha, carregando um livro enorme debaixo do braço, mais ou menos do tamanho de um atlas. Na outra mão, segurava um segundo livro mais pequeno, juntamente com uma placa de metal. O jovem padre parecia extenuado, exibindo um par de papos cinzentos sob os olhos raiados. Não teria dormido uma única hora, mas, ainda assim, tremia de excitação.
— Têm de ver isto! — anunciou, aproximando-se da mesa e arrastando Seichan consigo.
Depositou o livro maior na mesa. A capa de pele exibia o título em letras gravadas em dourado: Mundus Subterraneus.
— Este livro é uma cópia de um trabalho do padre Athanasius Kircher, publicado em 1665 — explicou. Depois, apresentou também o mais pequeno. — E este é o tomo que encontrámos nas cavernas. Um diário, creio eu, que terá pertencido ao reverendíssimo padre.
Gray ficou a olhar para o padrão labiríntico na capa.
Roland e Lena tinham contado aos outros acerca da capela gótica que guardava os restos mortais de um homem de Neandertal, cujas ossadas seriam mais tarde removidas pelos atacantes na caverna. Além disso, a bizarra construção parecia ter uma ligação histórica a Athanasius Kircher, um padre jesuíta que vivera no século XVII. Pelo que tinham observado, o padre era também o principal suspeito pela remoção anterior de um hipotético segundo conjunto de ossadas, possivelmente de uma mulher do Neandertal.
Roland teria passado as últimas horas a investigar essa pista. A paixão do padre, além da estoicidade que exibira perante o perigo, lembrava a versão mais jovem de um querido amigo de Gray, também sacerdote, que morrera enquanto tentava desvendar verdades ancestrais.
A tua ajuda ser-me-ia valiosa, meu caro Vigor.
Honrando essa memória, Gray atentou na explicação de Roland.
— Infelizmente, o conteúdo destas páginas não resistiu ao tempo, restando apenas algumas pistas.
— Como esta chave — acrescentou Lena, pousando o objeto em cima da mesa. Apesar de não se encontrar nas melhores condições, o arco de caveiras e o querubim saltavam à vista.
— Não faço ideia a que fechadura pertence — disse Roland —, mas decidi começar pelo óbvio. — Passou um dedo sobre a gravura do labirinto. — Este desenho pareceu-me familiar. Creio que é uma representação do labirinto da antiga lenda do Minotauro. Reparem nisto.
O padre abriu uma secção do livro grande e apontou para uma ilustração de uma antiga moeda de prata.
— Foi cunhada em Cnosso, a antiga capital de Creta.
Gray comparou o labirinto da capa do diário com o da moeda.
— São praticamente idênticos.
— Segundo a minha pesquisa, este desenho não remonta apenas a Creta. Já foram encontrados vários petróglifos com o mesmo padrão um pouco por todo o mundo. Podem ser encontrados em gravuras de pedra na Itália, Espanha, Irlanda, até na Finlândia. Um dos maiores épicos da Índia, o Mahabharata, descreve uma formação militar conhecida como Padmavyuha, que apresenta basicamente a mesma forma.
— Interessante — disse Lena, puxando a ilustração da moeda para mais perto de si. — É como se houvesse um significado neste padrão que o levou a ser partilhado por várias civilizações antigas, tornando-se parte da mitologia de cada uma. Em Creta, tornou-se o labirinto do Minotauro, na Índia, uma formação militar.
Roland fitou a capa do diário.
— Talvez represente um lugar verdadeiro. Seja como for, calculo que fosse importante para o padre Kircher o ter posto na capa do diário. Procurei por mais exemplos do interesse do reverendíssimo padre em labirintos, e posso afirmar que encontrei vários neste livro.
Roland passou uma mão na cópia do Mundus Subterraneus.
Seichan sentou-se ao lado de Lena.
— Nunca ouvi falar deste padre. Quem foi e o que fez, exatamente?
Roland sorriu, abrindo o enorme volume. Gray tinha conhecimento de que Roland fora convocado para a expedição pelo seu conhecimento da vida e obra do padre jesuíta. Se existia alguém que poderia fazer incidir alguma luz sobre este mistério, essa pessoa era Roland Novak.
O padre mostrou uma página com o retrato de um homem vestido com uma batina e um chapéu pontiagudo.
O seu tom de voz tornou-se mais grave, claramente respeitoso.
— O padre Kircher foi considerado por muitos como o Leonardo da Vinci do seu tempo. Foi um verdadeiro homem do Renascimento, com um interesse profundo em disciplinas como a biologia, medicina, geologia, cartografia, ótica e engenharia. No entanto, um dos seus grandes fascínios era o estudo da linguagem. Foi o primeiro a demonstrar a correlação entre o egípcio e as línguas coptas que ainda hoje são usadas. Para muitos académicos, Athanasius Kircher foi o primeiro egiptólogo, produzindo vários volumes de trabalho acerca dos hieróglifos egípcios. Num período mais tardio da sua vida, veio a acreditar que se tratava da linguagem perdida de Adão e Eva, e chegou a gravar os seus próprios hieróglifos em meia dúzia de obeliscos, que ainda hoje podem ser encontrados em Roma.
Gray sentiu o seu interesse aumentar por aquele homem. Atentou no semblante, no olhar introspetivo. Lembrou-lhe de novo o seu velho amigo, monsenhor Vigor Verona. Apesar de separados por séculos, poderiam ter sido irmãos; o que não deixava de ser verdade em alguns aspetos. Ambos eram homens do clero que procuravam compreender as criações de Deus, não só por meio da Bíblia, mas também pela exploração do mundo natural.
Roland continuou.
— O padre Kircher acabaria por fundar um museu no colégio do Vaticano, onde ensinava ao mesmo tempo que prosseguia os estudos. O Museu Kircheriano albergava uma quantidade colossal de antiguidades, juntamente com uma vasta biblioteca e algumas das suas próprias invenções. Para terem uma noção da grandiosidade do lugar — e da relevância do seu mentor à época —, observem esta gravura.
Gray examinou a imagem, detendo-se na grandiosidade das abóbadas que encimavam o vastíssimo espaço que albergava a obra de vida daquele homem. Tinha de admitir que era impressionante.
Seichan não parecia tão entusiasmada quanto isso.
— Bom, e como foi esse padre jesuíta parar a uma montanha na Croácia?
Roland abanou a cabeça.
— Na verdade, não existe registo algum desse facto. Daquilo que averiguei na minha pesquisa de doutoramento, terá chegado aqui na primavera de 1669, para supervisionar a construção das fortificações da catedral de Zagreb.
Gray lembrava-se de ter visto as muralhas e ameias de estilo gótico quando entraram na cidade. Na verdade, seria impossível não reparar nelas, uma vez que eram as estruturas mais altas que por ali existiam.
— As muralhas foram erguidas para responder à ameaça otomana — explicou Roland. Foi o Sacro Imperador Romano do Norte, Leopoldo I, que convocou pessoalmente o padre Kircher. O objetivo era a construção de uma muralha defensiva ao longo da zona sul da cidade, que serviria de posto de observação militar. Porém, encontrei várias inconsistências acerca deste episódio, indícios de que o reverendíssimo padre esteve desaparecido várias semanas durante a construção. Entre os habitantes da zona, corriam vários rumores de que teria sido convocado por outros motivos, sendo a história da muralha apenas uma manobra de diversão.
— Motivos que agora começam a ser evidentes — comentou Gray, indicando com a cabeça na direção do diário. — Ainda assim, mesmo que alguém tivesse encontrado a caverna cheia de ossos e pinturas, que razões levariam o imperador a pedir a Kircher que a investigasse?
— Estou apenas a especular, mas o reverendíssimo padre era sobejamente conhecido pelo seu interesse em fósseis e ossos — respondeu Roland, continuando a folhear a cópia do Mundus Subterraneus. — Este seu trabalho abrange vários temas, como geologia, geografia, química e física. A inspiração surgiu-lhe por ocasião de uma visita ao monte Vesúvio, após a erupção de 1637. Por incrível que pareça, chegou a utilizar uma corda para descer à cratera, para compreender melhor os fenómenos vulcânicos.
Este tipo dava mesmo o corpo ao manifesto, pensou Gray.
— Acabou por compreender que no interior da Terra existia um intrincado sistema de túneis, fontes naturais e reservatórios do tamanho de oceanos. Durante as várias incursões no subsolo, acabou por recolher milhares de fósseis, documentando-os a todos.
Roland parou numa página que exibia imagens de peixes fossilizados.
— Existem aqui páginas e páginas de gravuras como esta, mas ele também descobriu algumas cavernas no norte da Itália, que continham ossos de dimensões nunca antes observadas. Tratava-se de ossos de pernas de mamutes. Porém, erradamente, atribuiu-os a uma espécie de gigantes que em tempos teriam partilhado a Terra com o homem.
Roland mostrou uma página com uma ilustração de como seria o aspeto dos gigantes, juntamente com a ilustração de um homem, para transmitir a noção de escala.
Roland notou o ceticismo e os sorrisos à volta da gravura. Sorriu também.
— Admito que de quando em vez o padre Kircher fazia uns juízos estranhos, mas devemos compreender que era um homem do seu tempo, que procurava compreender o mundo com as ferramentas e o conhecimento então disponíveis. Este Mundus Subterraneus contém mais algumas especulações caprichosas, desde monstros lendários à localização do continente perdido da Atlântida.
Gray endireitou as costas, começando a sentir-se impaciente.
— E que tem isto que ver com o mistério da caverna?
— Porque sei qual foi o motivo que levou o padre Kircher até à montanha — respondeu Roland, confiante.
Gray fitou-o por um instante, notando o brilho de excitação nos olhos do padre.
Roland alcançou a placa de metal que se encontrava junto aos livros. Virou-a ao contrário, revelando a face escrita. O brilho prateado indicava que tinha sido limpa.
— Encontrámos esta placa na capela, aparafusada a uma parede.
Gray observou as linhas de texto em latim. Abaixo, encontrava-se ainda uma fila de símbolos.
— Conseguiu traduzir o que diz?
Roland anuiu.
— É sobretudo um aviso. Uma sentença de morte, na verdade, para quem ousasse entrar naquele lugar.
— Porquê? — perguntou Seichan. — O que tentavam proteger, exatamente?
Rolando passou um dedo sobre o texto e leu uma parte.
— Aqui jazem os restos mortais de Adão, pai da humanidade. Que repouse no seu sono eterno... — Fez uma pausa. — Para que o mundo não chegue ao fim.
06h14
Lena sentiu um arrepio nas costas ao ouvir aquelas últimas palavras. Ainda tinha os olhos postos na ilustração do gigante. De alguma maneira, associava a imagem ao jogo de sombras que testemunhara no interior da caverna. Visualizou as figuras negras, dançando nas paredes, o modo como se erguiam acima das pinturas dos animais.
Como se fossem as sombras dos gigantes de Kircher.
A voz de Gray devolveu-lhe a atenção para a conversa em redor da mesa.
— Que levaria o padre Kircher a acreditar numa coisa dessas? Que aqueles ossos pertenciam a Adão?
Roland encolheu os ombros.
— Calculo que foi o mesmo que se passou com o mamute, talvez tenha ficado demasiado entusiasmado com a antiguidade das ossadas. Ou então descobriu outra coisa qualquer que o levou a fazer essa associação tão extemporânea. — Olhou para Lena. — Como os petróglifos, por exemplo, aqueles com as impressões de mãos...
Lena abanou a cabeça, incapaz de contribuir com alguma ideia válida. Porém, lembrou-se de um segundo mistério.
— E as segundas ossadas, que acreditamos terem sido removidas pelo padre Kircher? Será que acreditava que pertenciam a Eva?
— Possivelmente — admitiu Roland. — Mas não existe nenhuma referência na placa sobre um segundo conjunto de ossos.
— Partindo do princípio de que acreditava nisso — notou Lena —, por que razão não lhes proporcionaria o mesmo descanso eterno?
Roland franziu a testa.
— Não faço ideia... por enquanto.
Seichan apontou para os símbolos na base da placa.
— E esta linha de símbolos?
Lena atentou nas formas circulares, no modo como apresentavam um gradiente de sombra ao longo da sequência.
— Parece uma representação das fases da Lua. Reparem, são vinte e oito símbolos. A duração de um ciclo lunar completo.
— Acho que a doutora Crandall tem razão — anuiu Roland. — O padre Kircher tinha um interesse especial pela Lua. Acreditava que tinha uma influência crítica no funcionamento da Terra, como nas marés, mas também no homem. Chegou a criar mapas da superfície lunar por via de observação direta, recorrendo a um telescópio.
Roland folheou mais algumas páginas do Mundus Subterraneus, até encontrar uma ilustração que confirmava a sua afirmação.
Lena admirou o grau de pormenor das crateras, montanhas e oceanos lunares presentes na imagem. Deu por si dividida entre o respeito pelo trabalho daquele homem e o desdém por algumas das suas conclusões mais estapafúrdias.
Gray mantinha o olhar fixo no livro mais pequeno.
— É evidente que ele queria passar algum tipo de mensagem ao deixar este diário na caverna.
Lena concordou, recordando-se dos nichos com as pequenas esculturas.
— Ele não retirou apenas as ossadas. Também levou outro objeto que terá substituído pelo diário. Penso que a intenção era que alguém o pudesse encontrar um dia.
— Sim, mas qual o significado disto tudo?
Lena abanou a cabeça.
— Seja qual for a mensagem que terá deixado nestas páginas, há muito que foi destruída. Mas aposto que seria uma espécie de mapa para o destino desta chave.
Gray continuava a olhar fixamente para o diário. Lena conseguia visualizar as engrenagens do cérebro dele a moverem-se por trás dos olhos azuis. Finalmente, estendeu o braço e pousou um dedo sobre a capa do pequeno livro.
— Aqui temos 1679 — disse ele. Olhou para Roland. — Se não me engano, o padre afirmou que Kircher foi convocado para Zagreb em 1669. Certo?
Roland aproximou-se e examinou também a data.
— É verdade... Não sei como deixei escapar isto. Significa que terá regressado à caverna uma década depois, apenas para deixar o livro e a chave.
— Porquê?
— Não sei, mas a verdade é que o reverendíssimo padre morreu no ano seguinte. Talvez a intenção fosse mesmo essa: deixar uma mensagem às gerações futuras, assegurando-se de que a verdade não desaparecia com ele.
Lena pegou na chave. Sentiu-lhe o peso dos séculos, bem mais significativo do que o do metal envelhecido. Que oculta esta chave? Que segredos foram escondidos por este Leonardo da Vinci do seu tempo?
Gray pegou no diário e abriu-o com cuidado. Observou o maço de páginas bolorentas que tinham tomado o lugar do testemunho de Kircher. Examinou a impressão deixada pela chave. Em seguida, as guardas da capa. Arqueando uma sobrancelha, levantou-se subitamente e aproximou o livro da lareira, para obter um pouco mais de luz.
— O interior da capa tem uma inscrição. Parece um símbolo, mas é praticamente ilegível.
Roland juntou-se a ele, acompanhado por Lena.
— Pois tem — confirmou Lena, espreitando por cima do ombro de Gray. Semicerrou os olhos, tentando decifrar o que parecia ser uma cruz, enquadrada por um par de asas abertas.
Seichan parecia não concordar.
— Parecem-me chamas em vez de asas.
Roland recuou um passo, os olhos muito abertos.
— Não são chamas. São chifres.
Chifres?
Respirou fundo, olhando os rostos expectantes à sua volta.
— Acho que sei onde é que o padre Kircher nos quer levar.
06h33
Gray viu Roland abandonar apressadamente os livros e as mensagens crípticas e dirigir-se para o frigorífico da cozinha. Retirou uma garrafa de licor e regressou à mesa, pousando-a ao lado dos volumes, da chave e da placa de metal.
Seichan agarrou na garrafa e rodou o rótulo alemão na sua direção.
— Jagermeister? Se vamos celebrar, acho que a ocasião exige uma coisa melhor. Que tal uma garrafa de vinho sacramental?
— O monsenhor gosta de beber o seu copinho antes de se deitar — explicou Roland. — Esta bebida é muito popular na Croácia, mas não foi por isso que a fui buscar. — Rodou o rótulo na direção de Gray, como se a resposta fosse óbvia.
Gray examinou-o e percebeu imediatamente.
— O símbolo...
O logótipo da bebida era um veado, um possante macho cujas enormes hastes rodeavam uma cruz luminosa.
— O símbolo da bebida é uma referência ao padroeiro dos caçadores, Santo Humberto — explicou Roland. — Jagermeister significa grande caçador, daí a escolha da imagem.
— Mas que tem isto que ver com o padre Kircher?
Roland levantou a mão, pedindo a paciência de todos.
— A história de Santo Humberto tem origem no decorrer de uma das suas caçadas, onde terá tido uma visão de um magnífico veado, que surgiu repentinamente diante dele, exibindo uma cruz dourada entre as hastes. Porém, alguns estudiosos católicos atribuem esse episódio a Santo Eustáquio, quinhentos anos antes. De acordo com a lenda, um general romano chamado Plácido caçava um veado quando teve uma visão semelhante, convertendo-se de imediato ao cristianismo, passando a chamar-se Eustáquio.
— Certo, mas qual a ligação com tudo isto? — pressionou Gray.
— Nos últimos anos de vida, sentindo o peso da idade, Kircher retirou-se para o campo, em Itália, onde viria ainda a descobrir as ruínas de uma pequena igreja no vale de Gionvenzano, o santuário de Mentorella, uma obra do imperador Constantino em homenagem a Santo Eustáquio.
Gray olhou para o rótulo da garrafa.
O padroeiro dos caçadores.
Roland continuou.
— Depois de descobrir estas ruínas no meio de nenhures, Kircher decidiu chamar a si a responsabilidade de a restaurar. Começou por recolher fundos, mas acabou mesmo por supervisionar toda a reconstrução, mantendo uma apertada vigilância.
— E o padre Roland pensa que ele pode ter escondido algo nesse santuário — declarou Gray.
— De acordo com os registos históricos, o santuário tornou-se uma espécie de obsessão. Foi onde terminou os seus dias. Na verdade, insistiu para ser enterrado naquele local.
— E a sua vontade foi cumprida? — perguntou Lena.
— Estranhamente, apenas o coração — respondeu Roland. Fez uma pausa, permitindo que o peso daquela afirmação fizesse sentido nos outros. — E não é tudo. Na altura, o papa Inocêncio XIII também pediu que o seu coração fosse enterrado no mesmo local.
Qualquer coisa era claramente importante nesse santuário.
Gray pegou na chave. Passou o polegar sobre o arco de caveiras, enquanto refletia nas ossadas removidas pelo reverendíssimo padre.
Definitivamente, eu diria que esta chave tem qualquer coisa de fúnebre.
— Eu acho que vale a pena averiguar — admitiu Seichan.
Gray olhou para ela, notando-lhe a ânsia de ação. Ou não soubesse que ela nunca fora do tipo de ficar sentada à espera de instruções.
— Podemos estar em Roma em menos de duas horas — rematou Seichan.
Gray sentiu-se tentado; e não era o único.
— Contem comigo — disse Roland. — Vão precisar da minha ajuda.
— E eu também vou! — anunciou Lena, surpreendendo tudo e todos.
Gray preparava-se para recusar tal ideia, mas Lena levantou-se, mostrando-se resoluta.
— Alguém roubou aqueles ossos de neandertal da caverna — disse, — e todos sabemos que não foi pelo dinheiro que poderiam render no mercado negro. Sobretudo se considerarmos a coordenação dos ataques, aqui e em Atlanta. — A voz sumiu-lhe um pouco ao mencionar o ataque nos Estados Unidos. Ainda assim, insistiu: — Há qualquer coisa nesses ossos que desconhecemos. Observei-os por escassos segundos, mas sou capaz de jurar que havia qualquer coisa de anormal na configuração do crânio.
— A doutora Crandall tem razão. — disse Roland, juntando-se à geneticista. — Se localizarmos o segundo conjunto de ossadas, talvez consigamos descobrir o verdadeiro motivo dos ataques. Acredito que o padre Kircher tenha descoberto algo realmente importante naquelas cavernas, e só alguém com as competências da doutora Crandall poderá confirmá-lo.
Seichan encolheu os ombros.
— Estes dois têm razão, Gray. Há qualquer coisa que nos está a escapar no meio disto tudo. De resto, calculo que não façamos parte dos planos de Painter para a operação na China.
Apesar de se encontrar em minoria, Gray não parecia disposto a ceder. A missão de que fora incumbido era clara: manter Lena Crandall em segurança.
A geneticista adivinhou-lhe os pensamentos.
— Ninguém tem de saber que viajei para Roma — insistiu. Gray notou-lhe um toque da impaciência e determinação de Seichan. — Além disso, não tenciono ficar de braços cruzados enquanto a minha irmã estiver em perigo.
Antes que Gray pudesse contestar, o telefone de satélite começou a zunir com o toque associado ao comando da Sigma. Levou o aparelho ao ouvido. Era Painter:
— Comandante Pierce, temos tudo pronto para o resgate. Um contacto na força aérea croata irá levá-los a bordo de um transporte militar com destino a...
Desligou a chamada, e olhou para os companheiros.
— Peço desculpa, senhor diretor. Julgo que vamos ter de alterar esse plano.
07h22
O homem estava sentado num pequeno café. Fingindo ler um jornal, ocupava uma mesa junto à janela, mantendo a atenção focada no que acontecia lá fora. Do outro lado da Praça de Santa Catarina, a fachada branca da igreja resplandecia sob o sol matinal. Era apenas um dos muitos edifícios católicos espalhados pela capital. De onde estava sentado, conseguia observar os torreões góticos da catedral de Zagreb, recortando o céu azul. Tinha dois colegas juntos à catedral, e outros tantos no aeroporto internacional e na estação de comboios.
Os locais de culto católicos estavam a ser vigiados devido à informação de que havia um padre na equipa de cientistas. Embora não se soubesse se tanto ele como a americana teriam conseguido escapar das cavernas, Zhongxiào Sun ordenara que fosse estabelecido um perímetro de contenção, para detetar quaisquer sinais de sobreviventes.
O homem não sentia nenhuma reserva em relação às ordens. Ainda sentia o sangue ferver ao recordar os companheiros que tinham morrido nas montanhas, e faria o que fosse necessário para vingá-los.
O movimento na rua desviou-lhe a atenção para uma galeria de arte contígua à igreja. Era demasiado cedo para se encontrar aberta. Segundo um folheto turístico que consultara enquanto aguardava, a Galeria Klovicevi Dvori fora em tempos o Convento de Santa Catarina. Momentos antes, um automóvel preto estacionara frente à entrada. Notou a coluna de vapor que saía do escape, indicando que o motor continuava a trabalhar.
Logo a seguir, quatro figuras abandonaram a galeria em direção ao automóvel. Notou a presença de uma mulher, os seus cabelos loiros destacando-se entre as roupas escuras dos elementos do grupo. Quando as portas do automóvel se abriram, reparou também que o condutor vestia um uniforme da força aérea croata.
Sentiu o coração acelerar, certo de que a espera terminara.
Calmamente, continuou a fingir que lia o jornal e alcançou o telemóvel que se encontrava em cima da mesa. Pressionou a tecla de chamada e encostou o aparelho ao ouvido.
— Zhongxiào Sun, encontrei-os.
11
30 de abril, 14h05 CST
Algures sobre o mar da China
Sorridente, a assistente de bordo inclinou-se e exibiu um tabuleiro com toalhitas quentes, graciosamente dobradas em forma de aves.
— Iremos aterrar em Pequim em menos de uma hora. Desejam refrescar-se?
Monk esticou o braço e alcançou uma das toalhitas, sentindo o calor húmido através dos dedos da prótese.
— Obrigado.
— E para a sua esposa?
Monk olhou para a companheira de viagem.
— Querida?
— Búyào xièxie — disse ao mulher ao seu lado, recusando delicadamente.
Enquanto a assistente se afastava, Monk passou a toalhita fumegante no rosto, evaporando algum do seu cansaço.
— É assim que costumas viajar? — perguntou a companheira, sorrindo. Afastou uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre o rosto, invulgarmente belo. — Se for sempre assim, talvez tenha de reconsiderar o convite da Kat para me juntar à vossa organização.
Monk encolheu os ombros.
— Infelizmente, o mais frequente é viajarmos amarrados no interior da bagageira de um carro.
Kimberly Moy tinha a mesma idade de Monk, mas possuía uma beleza intemporal, que a fazia parecer muito mais nova. Não era algo que ajudasse, uma vez que estavam a representar o papel de marido e mulher.
Ainda assim, tornava a viagem muito mais agradável para Monk.
Desculpa, Kat.
A sua verdadeira cara-metade encontrava-se ainda na sede da Sigma, em Washington, a coordenar as operações com o diretor Crowe. Kat recomendara Kimberly para fazer dupla com o marido. A amizade de ambas vinha dos tempos da Academia Naval. Kimberly ingressara mais tarde na Defense Intelligence Agency, mas tinham mantido um contacto próximo, cada uma operando no seu respetivo setor dos serviços de segurança dos Estados Unidos. Kat atestara as competências da amiga. Fluente em mandarim, era também uma atiradora exímia e especialista em combate corpo a corpo. Melhor do que muitos colegas masculinos, em boa verdade.
— Não era difícil habituar-me a isto — disse Kimberly, reclinando o assento.
Encontravam-se a bordo de um Boeing 757, convertido pela cadeia hoteleira Four Seasons num luxuoso hotel voador de cinquenta lugares, dos quais apenas metade se encontravam ocupados. O itinerário deste voo semiprivado cobria oito países ao longo de vinte e quatro dias. Kat conseguira que apanhassem a ligação de Tóquio para Pequim, no papel de um casal de milionários que estava a dar uma volta ao mundo.
Naquele momento, tinham a secção traseira do avião por conta deles.
Monk olhou para o telefone de satélite, estudando um mapa da costa chinesa. Painter mantinha o aparelho atualizado com a última posição do localizador de GPS de Baako. Segundo o mapa, os últimos sinais tinham sido emitidos de Pequim, mas continuava atento a qualquer nova movimentação.
Monk e Kimberly estavam a atuar como batedores, procurando reduzir o número de locais para onde os sequestradores poderiam ter levado Maria, Kowalski e Baako. Uma equipa de assalto seguia na peugada, aguardando ordens para tentarem o resgate.
O telefone vibrou com uma nova mensagem de Painter. Monk começou a ler o texto, apercebendo-se da dimensão do desafio que tinha pela frente. Era um relatório de toda a informação que a Sigma compilara acerca de Amy Wu, a investigadora da Fundação Nacional para a Ciência que orquestrara a emboscada no centro de primatas. Apontava-a como uma agente chinesa, que conseguira infiltrar-se ao ponto de ter obtido um lugar no conselho de ciência da Casa Branca.
Os motivos permaneciam vagos. Amy Wu era uma cidadã americana de quarta geração, alguém com muito poucas probabilidades de se deixar seduzir pelas ideologias chinesas. Apesar de terem vasculhado toda a sua vida, incluindo mensagens e correspondência, não haviam encontrado indício algum de apoio ou simpatia para com o comunismo. Porém, a análise do histórico financeiro detetara transferências de dinheiro de Pequim por via da fundação de Amy Wu para o financiamento de várias pesquisas.
Não fazia sentido.
Entregou o telefone a Kimberly. Ela leu o relatório até ao fim e devolveu-lhe o aparelho.
— Há décadas que monitorizamos ações chinesas dentro das nossas fronteiras — disse Kimberly, mantendo a voz baixa, apesar de os lugares mais próximos não se encontrarem ocupados por ninguém. — A ação de agentes infiltrados e de espiões chineses vai muito além da pirataria informática que é noticiada pela imprensa. Existe uma quantidade considerável de estudantes chineses nos Estados Unidos, ao abrigo de programas de pós-graduação em todo o tipo de domínio tecnológico e científico. Adquirem uma série de competências e regressam à China, onde, não raras as vezes, esse conhecimento é depois usado contra nós.
— Por que razão permitimos que isso aconteça?
— É uma boa pergunta. A verdade é que não temos número suficiente de licenciados com qualificações necessárias para colmatar todas as vagas dos nossos programas de doutoramento. Atualmente, nas nossas universidades, metade dos doutoramentos em física são atribuídos a estudantes estrangeiros. E a maioria desses estudantes agarra no diploma e regressa a casa. Se quiser ser irónica, diria que o nosso sistema de ensino poderia ser considerado de ajuda internacional, uma vez que a educação destes estudantes está a ser paga pelo contribuinte americano com bolsas e assistência financeira; para não falar das isenções de impostos de que gozam as universidades.
— Portanto, não só oferecemos o conhecimento que levam para fora de fronteiras, como também o pagamos.
— Há quem defenda que é uma boa aposta a longo prazo.
— Como?
— Porque pode servir como veículo de disseminação do capitalismo americano, das nossas práticas empresariais, até dos nossos valores como sociedade. O lado negativo, claro, é que estamos criar a nossa própria concorrência de mercado. Invariavelmente, a força por trás da inovação reside sempre nas mãos de cientistas e engenheiros, e nós estamos a exportar esse capital intelectual.
Monk começava a compreender por que razão Kat escolhera Kimberly para a missão. Eis uma mulher que sabia do assunto.
— Posso dar-te o exemplo de uma estudante chinesa que esteve quatro anos em Harvard a trabalhar com os nossos melhores geneticistas e bioengenheiros. Voltou recentemente para Xangai, onde aplicou os conhecimentos adquiridos em procedimentos considerados pouco éticos pela maioria dos países ocidentais.
— Que fez ela?
— Iniciou um programa de manipulação genética de embriões humanos. Estamos a falar de procedimentos proibidos em mais de quarenta países, e por uma boa razão, uma vez que podem ser um primeiro passo para a eugenia. Ou seja, o aprimorar da raça humana, introduzindo características hereditárias na nossa piscina genética, não só corrompendo-a, mas arriscando um futuro onde só nasçam um novo tipo de humanos, aqueles que foram concebidos para serem superiores.
Monk franziu a testa.
— Achas que um objetivo como esse poderia estar por trás destes ataques? As irmãs Crandall foram financiadas por intermédio da Amy Wu. E o projeto delas visava as origens da inteligência humana.
— Não faço ideia. Mas acredito que as motivações da doutora Wu não tinham nada que ver com política, mas sim com ciência. A investigação atual parece apenas preocupada em perceber se uma coisa pode ser feita, independentemente de se deve ser feita. É a procura do conhecimento apenas pelo conhecimento, sem qualquer consideração sobre o impacte que pode causar no mundo.
Monk lembrou-se do comentário que Amy fizera acerca do tema da manipulação genética: «Não podíamos autorizar este estudo com embriões humanos. Pelo menos sem levantar uma onda de protestos.» Parecia-lhe agora claro que a preocupação dela não se prendia com questões éticas, apenas com a reação da opinião pública.
O telefone vibrou com uma nova mensagem. Monk olhou para o ecrã.
PERDEMOS O SINAL.
LOCALIZADOR DESCOBERTO OU SEM BATERIA.
ESTAMOS A ENVIAR AS ÚLTIMAS COORDENADAS RECEBIDAS.
Monk acedeu de novo ao mapa, ampliando a zona assinalada sobre uma grelha das ruas de Pequim. O sinal tinha origem num enorme parque da cidade.
Inclinando-se, Kimberly olhou também para o ecrã.
— Isto é o jardim zoológico de Pequim.
Monk anuiu. Tendo em conta que os sequestradores estavam na posse de um gorila, o local não poderia ser mais apropriado.
— Próximo passo? — perguntou Kimberly.
— Ao que parece, querida esposa, vamos ter de fazer uma visita a esses famosos pandas chineses.
14h22
Maria baixou-se sob as pás do helicóptero. O aparelho recolhera-os numa base militar nos arredores de Pequim, atravessando depois a cidade, até um heliporto que se situava na margem de um rio. O curso de água continuava após uma curva, ladeado por fileiras de salgueiros. Durante a aproximação, Maria conseguira observar o parque que se estendia para sul. Notara os vários edifícios de todos os géneros e feitios, que incluíam jaulas e outras instalações para animais. Ao longo dos vários percursos que entrecortavam as instalações, centenas de pessoas caminhavam despreocupadamente.
Um jardim zoológico... provavelmente o de Pequim.
Assim que se afastou dos rotores do helicóptero, endireitou-se e esticou as costas. Kowalski juntou-se a ela, visivelmente desagradado.
— Que fedor — vociferou.
Maria anuiu com a cabeça, igualmente incomodada com o odor forte de gases de combustão. Notou os arranha-céus no outro lado do rio, praticamente imersos numa densa névoa amarelada. Tinha conhecimento do problema de poluição em Pequim, mas nunca pensara que fosse tão grave. Numa questão de segundos, sentia já os olhos arderem e via-se obrigada a pôr a mão sobre a boca para não tossir.
— Vamos! — ordenou a voz atrás dela.
Maria virou-se e encarou o chefe do grupo. Durante o voo, ficara a saber que se chamava Gao, embora não fizesse ideia se seria nome ou apelido. Usava o cabelo rapado, estilo militar, e aparentava trinta e poucos anos.
Desviou a atenção para o que se passava atrás dele, notando a pequena empilhadora que retirava a jaula de Baako do porão do helicóptero. Assustado, o gorila olhou na direção dela e guinchou, agarrado às barras, como se pedisse ajuda. O ruído dos rotores da aeronave tornava impossível que tivesse ouvido o apelo do animal, mas sentiu-se compelida a ir ao seu encontro e deu um passo em frente.
Gao deteve-a imediatamente.
— Vamos! — vociferou, reforçando a ordem apontando-lhe a pistola.
A arma que matou o Jack.
Sentiu o sangue ferver de raiva e ergueu um punho contra aquele assassino de sangue-frio, ameaçando-o, dando-lhe a entender o que sentia.
Kowalski agarrou-lhe o braço e obrigou-a a virar costas.
— Noutra altura — murmurou ele, as palavras soando como uma promessa.
Maria deixou-se conduzir pela placa de cimento. Olhou em todas as direções, tentando orientar-se. Mais à frente, um moderno edifício curvilíneo erguia-se à distância. A enorme fachada exibia um mural que espreitava por cima da copa das árvores, representando uma cena aquática com focas, golfinhos e orcas.
Um aquário...
Porém, o destino para onde a conduziam ficava mais próximo. Olhou para o edifício de cimento de dois andares, completamente descaracterizado, exceto pela profusão de antenas e discos de satélite que ocupavam todo o telhado. Num dos lados, uma enorme porta abriu-se, revelando um elevador de mercadorias.
A empilhadora passou por eles em direção ao monta-cargas que aguardava. Maria acelerou o passo.
— Tu não — ordenou Gao, passando-lhe à frente. Apontou para Kowalski. — Tu vais com o gorila.
Kowalski olhou para Maria. Ao que parecia, a história que tinham engendrado mantinha-se intacta. Para todos os efeitos, ele era o tratador do gorila.
— Faz o que puderes para o manter calmo, Joe — disse Maria, para reforçar o logro.
Kowalski arqueou uma sobrancelha, perguntando a si próprio se ela acreditava mesmo no que estava a dizer.
— O Baako precisa de um rosto familiar — insistiu ela.
Mesmo que seja de alguém que acabou de conhecer.
Maria sabia que Baako era esperto. Por esta altura, já teria percebido que ela confiava em Kowalski. Talvez a presença dele fosse o suficiente para lhe dar algum conforto, sobretudo num ambiente totalmente desconhecido. De qualquer modo, rezou para que Kowalski conseguisse impedi-lo de entrar em pânico, lembrando-se como os seus captores tinham usado um bastão elétrico para o conter. Não queria que sofresse mais maus tratos.
Esse pensamento despertou um receio ainda maior enquanto observava a jaula a ser carregada no monta-cargas.
Que querem de ti, Baako? E de mim...?
Kowalski notou-lhe a ansiedade estampada no rosto.
— Está tudo bem. Eu tomo conta do nosso rapaz.
Sem pensar, Maria lançou-se na direção dele e abraçou-o. Kowalski retesou-se, surpreendido, mas depressa relaxou. Os seus braços rodearam-na e apertaram-na firme mas gentilmente, demonstrando uma ternura inesperada que desmentia o seu aspeto brutal. Maria sentiu o calor do corpo dele, a certeza daquele abraço... era bem mais reconfortante do que as palavras.
— Vamos! — gritou de novo Gao, cravando o cano da pistola nas costelas de Kowalski.
O operacional desfez o abraço e lançou um olhar duro a Gao, que o fez recuar um passo.
O soldado chinês virou-se então para Maria.
— Tu vens comigo.
Um segundo soldado avançou com uma espingarda e escoltou Kowalski para o elevador. Maria foi encaminhada para uma segunda porta.
— Para onde me levam? — perguntou a Gao.
— A major-general Lau está à espera — disse ele, friamente. — Para decidir se vives.
14h45
Ainda vamos descer mais?
A sensação no estômago de Kowalski indicava-lhe que o elevador estava a descer. Não tinha maneira de saber a quantos pisos se encontrava da superfície, mas contou quinze segundos até ao elevador parar. Além da empilhadora que carregava a jaula de Baako, partilhava o espaço com quatro soldados armados, o que tornava qualquer ação imediata num ato suicida.
Sentiu um puxão na manga do impermeável. Olhou para baixo e viu a mão peluda do gorila. O animal fitava-o com o focinho espremido entre as barras, os olhos negros suplicantes.
Eu sei, matulão... estás assustado.
Libertou-se da mão do gorila quando as portas do elevador se abriram. Não tinha tempo para distrações. Precisava de estar concentrado, para fazer um mapa mental daquele complexo subterrâneo. Sabia que não valeria a pena alimentar planos de fuga se não conseguisse orientar-se até à saída.
Baako emitiu um guincho ténue, ao mesmo tempo que a empilhadora recuava do elevador para o interior de um armazém cavernoso. O espaço tinha uma altura de dois andares, com extensas filas de prateleiras que se alinhavam umas a seguir às outras, das quais várias empilhadoras carregavam e descarregavam caixas.
Um dos soldados ergueu a espingarda e empurrou Kowalski com o cano, indicando-lhe que avançasse. Acompanhando o gorila, fez o possível para mostrar-se intimidado enquanto atravessava o armazém, assumindo uma postura derrotada. Caminhava com os ombros descaídos, embora mantivesse os olhos nas prateleiras, examinando cada caixote. Procurava qualquer coisa que lhe pudesse ser útil, porém, todos os volumes se encontravam identificados com caracteres chineses. Tanto quanto sabia, tão depressa podiam conter armas automáticas como pacotes de massa de arroz.
Abandonaram o armazém e continuaram por uma série de corredores e rampas, atravessando em seguida uma espécie de estábulo com cabras, ovelhas e porcos.
Que raio de lugar é este?
Conforme avançavam, a presença dos funcionários da instalação — na sua maioria com batas de laboratório, uniformes e macacões de trabalho — tornou-se menos notada, até que chegaram a uma área assinalada com intimidantes avisos vermelhos.
Desta vez, não precisava de saber mandarim para compreender o que significavam.
Acesso restrito. Proibida a passagem.
Continuaram a avançar, todavia.
Sem se cruzarem com mais ninguém, chegaram por fim a um corredor com jaulas de ambos os lados, cada uma da dimensão de um lugar de estacionamento, lembrando uma ala de prisão. As jaulas — ou celas — encontravam-se desocupadas, mas as manchas e os arranhões no chão de cimento indicavam que costumavam ser postas a bom uso.
Assinalada com mais um aviso vermelho, uma enorme porta de aço erguia-se no outro extremo do corredor, lembrando um cofre de um banco. Um dos soldados apontou nessa direção, valendo-lhe uma severa repreensão da parte de outro. Claramente, o que se encontrava para lá da espessura do aço era suficientemente importante para desencorajar até a mais simples curiosidade.
Kowalski franziu a testa.
Interessante...
Contudo, a porta de aço não era a última paragem. A empilhadora deteve-se a meio do corredor e o condutor vociferou em chinês. Um dos soldados avançou e abriu uma das celas, enquanto a jaula de Baako era posta no chão. Trocando as espingardas pelos bastões elétricos, dois dos soldados rodearam-na prontamente. O último dos quatro continuou a manter Kowalski sob mira, guardando alguma distância, caso o operacional se pusesse com ideias.
Os guardas começaram então a gritar e a usar selvaticamente os bastões em Baako, que se encontrava encolhido na parte de trás da jaula, forçando-o a entrar na cela. Impotente, Kowalski só podia imaginar o terror que o animal estava a sentir.
— Chega! — gritou por fim. Ergueu os braços, subserviente, mostrando as mãos abertas. — Deixem-me tentar antes que o matem.
Kowalski não sabia se os soldados percebiam inglês, mas tornou a sua intenção clara ao pôr-se em frente à jaula, estendo a mão na direção do gorila.
— Está tudo bem, Baako. Estou aqui.
Os soldados recuaram, dando-lhe algum espaço. Kowalski agachou-se para passar pela porta aberta da jaula. Baako arquejava ruidosamente, o olhar perdido em todas as direções, os lábios comprimidos de terror. Estava no limiar de perder o domínio de si próprio.
Mantendo o contacto visual, Kowalski deu uma palmada no peito.
Olha para mim, matulão.
Os dois olhos negros fixaram-se nele.
Kowalski começou a gesticular devagar, fazendo uso das capacidades de Baako, resgatando-o das garras do pânico. Cruzou os braços sobre o peito, batendo com um pulso no outro.
[Eu protejo-te]
A respiração do gorila mantinha-se irregular, mas o olhar parecia mais focado. Soltou um guincho ténue, descontraindo os braços que apertavam firmemente os joelhos. Repetiu o gesto de Kowalski.
O operacional fez que sim com a cabeça.
— Isso mesmo...
Baako estendeu-lhe a mão, despertando em Kowalski uma lembrança súbita da irmã mais nova, Anne, como ela o procurava com esse mesmo gesto quando se sentia assustada, quer fosse num consultório médico ou durante uma das bebedeiras violentas do pai.
Uns dedos quentes apertaram os seus.
Isso mesmo, matulão.
Conduziu calmamente o animal para o interior da cela de cimento, substituindo uma prisão por outra.
Impaciente, um dos soldados berrou-lhe, fazendo com que os dedos de Baako lhe apertassem a mão como uma prensa mecânica. Kowalski cerrou os maxilares, suportando a dor, agitando a mão livre na direção dos guardas.
— Não se aproximem!
As condições na cela eram miseráveis. O chão de cimento estava coberto por uma camada dispersa de palha seca. Num dos cantos, encontrava-se um balde com água esverdeada. Não havia brinquedos, nem cordas penduradas no teto; nada que proporcionasse a mínima distração daquele ambiente sombrio. Como se não bastasse, um par de algemas de ferro pendia de uma corrente na parede mais afastada, sugerindo a possibilidade de um suplício ainda maior.
Mais contido, o guarda ordenou que abandonasse a cela.
Kowalski olhou para os dedos do gorila, ainda entrelaçados nos seus.
Que se lixe!
Sentou-se no fundo da cela, incitando Baako a fazer o mesmo.
— Fico com ele — declarou, mostrando-se resoluto.
Antes aqui que noutro sítio qualquer.
Os soldados falaram entre eles, avaliando a situação. Conseguido o consenso, um deles pegou num cesto com bananas, cenouras e verduras. Pousou-o no chão e pontapeou-o na direção de Kowalski. De seguida, fechou a porta da cela e trancou-a com uma pesada chave de metal.
— Pelos vistos, perceberam a mensagem— murmurou para si próprio.
A empilhadora recuou pelo corredor, juntamente com os quatro soldados. Kowalski observou-os enquanto fechavam as portas duplas que davam acesso às celas. Reparou que um deles ficara de sentinela.
Estes tipos não brincam em serviço.
Libertou-se da mão de Baako e levantou-se. Observou o lado do corredor que terminava na enorme porta de aço. Notou o dispositivo de leitura de impressões digitais que se encontrava na parede, bem como a fila de câmaras de vigilância ao longo do teto, apontadas para o interior das celas.
Baako também aproveitou para se familiarizar com o ambiente. Ergueu o focinho, cheirando o ar. Depois, examinou uma mancha no chão de cimento, recuando imediatamente. Kowalski calculou que fosse sangue seco.
Para o distrair, alcançou o cesto de comida e sentou-se junto dele.
— Não é a mesma coisa que piza e cerveja, mas é o que se arranja.
Retirou uma banana e ofereceu-a a Baako. O gorila recusou-a, virando as costas. Kowalski sabia que o animal ainda não tinha comido desde que fora capturado. Maria conseguira que bebesse um pouco de água, mas não passara disso.
— Tens de comer — disse Kowalski.
Ainda assustado, Baako olhou para ele e levou um dedo aos lábios.
Merda. O localizador...
Kowalski rodou o corpo e pôs-se em frente ao gorila, anulando o ângulo de visão das câmaras de vigilância. Estendeu a mão.
— Está tudo bem. Cospe isso.
Baako obedeceu. Abriu a boca e depositou o objeto coberto de saliva na mão aberta de Kowalski. O operacional examinou-o, mantendo as costas viradas para as câmaras. A luz verde que indicava o correto funcionamento do localizador mal se notava, o que significava que estava prestes a desligar-se.
Não é que fizesse alguma diferença debaixo de todo este cimento.
Frustrado, praguejou entredentes.
Baako baixou a cabeça, encolhendo-se.
— A culpa não é tua, matulão — disse Kowalski, guardando o aparelho. Tinha preocupações mais imediatas. — Vamos lá arranjar qualquer coisa para comeres.
Ofereceu de novo a banana, mas o companheiro de cela apenas lhe devolveu um olhar desamparado. Um fio de memória insinuou-se de novo no pensamento. Amiúde, Anne também costumava olhá-lo daquela maneira. A falta de apetite sempre fora uma consequência direta da doença. Porém, não raras vezes, apenas uma reação natural aos esforços patéticos de Kowalski na cozinha.
Ajoelhou-se frente a Baako, pousando-lhe a peça de fruta no colo. Ergueu os braços, cerrando os punhos e fletindo os músculos.
[Tens de ser forte]
Repetiu o gesto, alterando-o ligeiramente.
[E corajoso]
Finalmente, fechou os dedos como uma pinça e levou a mão à boca.
[Por isso, tens de comer]
O gorila olhou para a banana. Kowalski descascou-a e ofereceu-a de novo.
Baako aceitou-a, segurando-a com os lábios. Repetiu o primeiro gesto de Kowalski e apontou para ele.
[Tu também és forte]
Trincou a banana e ofereceu a metade restante a Kowalski.
Reprimindo uma careta, o operacional olhou para a peça de fruta mordida. Depois, simplesmente encolheu os ombros e enfiou-a na boca.
Que se lixe... um gajo tem de comer, certo?
15h13
Para onde me estão a levar?
Receando o que a aguardava, Maria atravessou um opulento átrio com paredes carmesim e janelas folheadas a ouro. Sob os pés, uma imensa tapeçaria de seda ocupava a totalidade do espaço.
Que sítio é este?
Depois de ter sido separada de Baako e de Kowalski, fora levada de elevador por Gao até um complexo no subsolo, onde outro soldado os aguardava com um veículo elétrico, sendo então conduzida através daquele mundo subterrâneo. Conseguira vislumbrar o interior de alguns dos laboratórios que ali funcionavam, reconhecendo equipamentos utilizados em investigação genética como termocicladoras, fornos de hibridização ou centrifugadoras. Numa das divisões, existia inclusive uma cuba de eletroforese em gel para sequenciação de ADN, idêntica à que usava nos Estados Unidos. Logo depois, sob mira de arma, Gao forçou-a a entrar num outro elevador, que a trouxe de novo para a superfície.
Encontrou-se então num edifício antigo, cujo mobiliário ornamentado lhe dava a sensação de ter sido transportada no tempo para o século XVII. Ao longo do átrio, as várias janelas tinham uma vista privilegiada para uma lagoa com aves pernaltas, estendendo-se depois para o resto do jardim zoológico.
Isto ainda faz parte do zoo.
Mais à frente, um outro soldado aguardava-os junto a uma porta fechada, impecavelmente vestido com um uniforme caqui e botas pretas de cano alto. Mais velho do que ela, tinha um rosto de feições agradáveis, que foram evidenciadas quando sorriu para os saudar — ou melhor, quando sorriu para saudar Gao.
— Gao, huanyíng huí jia, dìdi.
Gao guardou a pistola e abraçou-o.
— Xiè xie, Chang.
Pelo modo íntimo como se cumprimentaram, e pelas semelhanças físicas, Maria deduziu que fossem irmãos. Enquanto os dois conversavam, notou ainda alguma deferência da parte de Gao. Uma postura que teria menos que ver com a diferença de idades e sim com o respeito pela patente do irmão, superior à dele.
Chang bateu por fim na porta, anunciando-se. Aguardou permissão e só depois a abriu. Foi o primeiro a entrar, seguido de Maria e Gao.
Maria recordou as anteriores palavras de Gao.
A major-general Lau está à espera... para decidir se vives.
Contava ser interrogada por um antigo e estoico membro do Exército de Libertação Popular da China. Em vez disso, deparou com uma mulher franzina sentada a uma secretária. Vestia um uniforme verde-seco, cravejado de medalhas coloridas, com duas estrelas nas dragonas. Pelo cabelo grisalho e linhas no rosto, calculou que tivesse à volta de cinquenta anos.
A general não estava sozinha na sala. Encontrava-se acompanhada por dois homens mais velhos — nenhum deles chinês —, que estavam sentados num sofá próximo. De cada lado da janela que ficava atrás da ampla secretária, encontravam-se ainda duas sentinelas.
Um dos homens levantou-se, visivelmente confuso.
— Lena? — balbuciou, ajeitando melhor os óculos na ponta do nariz.
Maria estava habituada a ser confundida com a irmã. Tratou de corrigir o homem.
— A Lena é a minha irmã gémea... eu sou a Maria.
— Claro... claro que sim... — desculpou-se o homem, voltando a sentar-se.
Maria não precisava de ter ouvido o sotaque inglês para saber que aquele homem era o professor Alex Wrightson, o geólogo que descobrira o sistema de cavernas na Croácia. Monk tinha-lhe mostrado fotografias dos dois cientistas no centro de primatas. Como tal, também reconhecera o paleontólogo francês, o doutor Dayne Arnaud. Apesar de ser uns vinte anos mais novo do que Wrightson, naquele momento parecia igualmente envelhecido.
A general levantou-se e contornou a secretária.
— Permita-me que me apresente, doutora Crandall — disse, estendendo a mão. — Chamo-me Jiaying Lau, major-general do Exército de Libertação Popular, e sou uma grande admiradora do seu trabalho.
Maria cumprimentou-a, entendendo que não seria boa política antagonizar a mulher que se preparava para decidir o seu destino.
Jiaying desviou o olhar na direção de Gao e Chang. Apontou para a porta, dizendo meia dúzia de palavras em mandarim. Apanhado de surpresa, Chang tentou protestar, mas a general deu a conversa por terminada. Abandonou a sala, visivelmente irritado, seguido por Gao.
O inusitado da cena fez com que Maria se sentisse mais recetiva em relação à general. Endireitou-se e aclarou a garganta, tomando a iniciativa.
— Como conhece o meu trabalho? — perguntou com voz firme.
Jiaying indicou-lhe uma cadeira, convidando-a a sentar-se.
— Quem acha que tem financiado a sua pesquisa?
Mais do que o convite, o choque daquela afirmação fez Maria cair sobre a cadeira.
— Que quer dizer com isso?
— A vossa patrona na Fundação Nacional para a Ciência, a mulher que ocupava um lugar no conselho científico da Casa Branca, que os ajudou a conseguirem uma bolsa para o projeto...
— Amy...
A general anuiu.
— A doutora Wu foi muito bem paga para facilitar o fluxo de verbas entre a nossa Academia Militar de Ciência, aqui em Pequim, e o vosso centro de primatas nos Estados Unidos. O que lhe aconteceu foi um terrível infortúnio. Uma grande perda, na verdade.
Perda?
Maria tentou mostrar-se imperturbável ao mesmo tempo que lutava contra o peso daquelas afirmações. A ser verdade, tinham estado a trabalhar para os chineses durante todo esse tempo.
Duas marionetas sob os dedos hábeis de Amy Wu.
Como era possível?
Sempre considerara Amy uma boa amiga. Em vez disso, a mulher não passava de uma espia chinesa. Sentiu a respiração pesada, desejando poder pousar a cabeça entre os joelhos. Lembrava-se de como Amy costumava puxar por elas, instigando-as a trabalharem mais rápido, a abandonarem as reservas iniciais acerca da possibilidade de gerarem um gorila híbrido.
Nunca concordara com a utilização de grandes primatas em investigação científica, e tivera acesas discussões com Amy acerca dessa matéria. Os gorilas eram animais inteligentes, com uma vida rica, do ponto de vista emocional e cognitivo. Demonstravam autoconsciência, exibindo a capacidade de compreenderem os seus papéis individuais no passado e no futuro. Que direito tinham os humanos de os torturarem em nome da ciência?
Ainda assim, Amy encontrara maneira de a persuadir a fazer tábua rasa das suas convicções, a atentar contra os limites do que considerava ética e moralmente aceitável.
Como foste capaz?
No seu íntimo, sabia que não lhe servia de muito culpar Amy. A verdade é que se deixara convencer porque queria provar a sua explicação para o Grande Salto Evolutivo. Acima de tudo, queria saber se conseguiria ser bem-sucedida onde tantos outros tinham falhado.
Incluindo os chineses.
Ela e a irmã tinham desenvolvido novas técnicas de hibridização e de manipulação de linhas germinais. Métodos revolucionários que ainda não tinham sido patenteados, dos quais nem sequer Amy fora informada.
Graças a Deus.
Maria começava a compreender o motivo pelo qual fora raptada, porém, a verdade é que esses avanços técnicos eram sobretudo fruto do trabalho da irmã. Era Lena que ocupava a linha da frente do projeto, trabalhando no plano molecular, enquanto o seu papel se focava essencialmente na avaliação dos resultados, educando e testando Baako.
— É nosso desejo que continue a investigação connosco — disse Jiaying, confirmando os receios de Maria. — Compreendo que sinta alguma reserva em relação aos nossos métodos e pela forma como a trouxemos até nós. Porém, somos ambas cientistas, procurando a verdade. Em última análise, que diferença faz se decidir trabalhar aqui em vez de nos Estados Unidos? Se colaborar, garanto-lhe que terá uma vida maravilhosa, com todos os recursos do governo chinês ao seu dispor. Além disso, não precisará mais de se preocupar com questões burocráticas, tão-pouco com quaisquer limitações éticas que possam condicionar o seu trabalho.
Maria tentou mostrar-se interessada em vez de horrorizada.
— Esta proposta também é válida para a sua irmã, evidentemente — acrescentou a general.
— Lena?
Antes de ser raptada, Maria continuava a aguardar notícias da equipa de resgate que fora enviada para a Croácia, situação que se mantinha inalterável até ao momento.
— Ela... ela está viva?
— Temos a informação de que se encontra em Zagreb — confirmou Jiaying — Mas em breve estará connosco.
Maria apertou as mãos entre os joelhos, para não tremerem. Olhou para os dois homens.
— O que importa é que esteja viva — disse Wrightson, sorrindo-lhe. Arnaud não parecia partilhar do mesmo otimismo.
Maria tentou mudar de assunto.
— Por que razão atacaram as cavernas? Foi por causa da minha irmã?
— Tencionávamos apanhá-la na Alemanha, no Instituto Max Planck. Todavia, devido ao mau tempo, a sua irmã acabou por viajar um dia antes do previsto. Assim são os caprichos do destino, nem sempre se coadunam com os nossos planos.
— Nesse caso, que procuravam nas cavernas? — quis saber Maria.
— Penso que é melhor mostrar-lhe.
A general convidou-a a examinar uma caixa de plástico que se encontrava no chão, ao lado do sofá. Os trincos já estavam abertos, pelo que Jiaying apenas levantou a tampa, revelando o conteúdo. Maria reconheceu de imediato os restos de um esqueleto fossilizado. Apesar de sentir o coração martelar-lhe na garganta, não conseguia evitar alguma curiosidade profissional.
Fincou um joelho no chão e observou o crânio, fascinada com o bom estado de preservação.
— Estes ossos não são humanos... ou melhor, não são de um Homo sapiens.
— Neandertal — corrigiu Wrightson.
Maria franziu a testa.
— Não me parece... Não completamente — contrapôs, passando um dedo sobre o crânio. — A arcada supraciliar é demasiado pequena, bem como os molares.
Olhou para Jiaying. A general sorriu-lhe.
— Já tinha reparado nesse pormenor — interveio Arnaud, a voz pesarosa. — De acordo com as medições que fiz, acredito que se trata dos restos mortais de um híbrido. Um descendente direto, ou próximo, dos primeiros acasalamentos entre o homem moderno e os neandertais.
Maria deixou-se cair sobre os calcanhares.
— Se o professor tiver razão...
— Estamos perante uma descoberta inigualável — concluiu Arnaud. — Um espécime de uma raridade extraordinária encontrado em perfeitas condições. A datação por radiocarbono do professor Wrightson aponta para a última era glaciar, há quarenta mil anos.
O geólogo fez que sim com a cabeça.
— Porém, o mais interessante são as contradições que...
— Chega, Alex! — cortou Arnaud. — Ninguém está interessado nessas minudências.
Wrightson parecia pronto para contrapor. Ao invés, apenas cruzou os braços e afundou-se no sofá. Claramente, aquela não era a primeira vez que os dois cientistas andavam às turras um com o outro.
Arnaud fechou os olhos, recuperando a compostura.
— Foi por este motivo que contactei o Instituto Max Planck e solicitei especificamente a comparência da sua irmã na Croácia.
— Por causa da nossa pesquisa... — disse Maria.
O paleontólogo anuiu.
— Reunidas as condições certas, existiam excelentes probabilidades de conseguirmos uma boa amostra de ADN. A doutora Lena Crandall parecia-me a pessoa indicada para a tarefa.
Maria compreendia bem a frustração do professor. Uma descoberta desse calibre poderia ser o derradeiro passo para um mapa completo até às origens do homem, para um novo entendimento dos humanos como espécie.
Se tivéssemos acesso a uma amostra dessas...
A general desviou-lhe a atenção do potencial científico da descoberta, focando-a de novo na ameaça imediata.
— Tivemos conhecimento do achado do doutor Arnaud por intermédio de um agente infiltrado no Instituto Max Planck. E tivemos de agir com rapidez. Demasiado, talvez.
Maria abanou ligeiramente a cabeça, incrédula com a facilidade com que o governo chinês punha agentes no terreno. Tinha noção da quantidade significativa de estudantes chineses que frequentavam universidades técnicas nos Estados Unidos e pelo mundo fora. Aparentemente, o currículo escolar de alguns desses estudantes incluía o ocasional ato de espionagem a favor das autoridades chinesas, alertando-as para todas as descobertas significativas de que tivessem conhecimento.
Jiaying continuou.
— Uma bênção como esta permite-nos avançar uma década de investigação, ou ainda mais. Sobretudo com a equipa certa.
Com a cabeça, indicou Maria e os professores, reforçando a mensagem.
— E qual é o objetivo da vossa pesquisa? — quis saber Maria, levantando-se.
— É melhor verem com os seus olhos — desafiou a general. Estendeu um braço na direção da porta.
Os dois homens levantaram-se do sofá.
— Não há descanso para os pecadores — comentou Wrightson, esticando as costas. Arnaud ignorou-o.
— Conto com a sua colaboração, doutora Crandall. — disse Jiaying, encaminhando o grupo. — E as suas competências também são bem-vindas, doutor Arnaud. Quanto a si, professor Wrightson, infelizmente não tenho necessidade de um geólogo, mas talvez ainda possa ser útil.
O professor olhou-a, confuso.
Então, sem nada que o fizesse prever, Jiaying sacou da pistola e deu-lhe um tiro na cabeça.
Com a perplexidade ainda estampada no rosto, o geólogo tombou no sofá, inerte, com um buraco fumegante no meio da testa.
O tiro deixou os ouvidos de Maria a zunirem. Recuou um passo, prestes a desfalecer, mas Jiaying agarrou-a pelo braço. Olhou o rosto impassível da general chinesa, compreendendo de imediato a intenção por trás daquele ato brutal.
Constituíra uma lição.
Maria compreendera-a sobremaneira.
Torna-te útil... se queres viver.
12
30 de abril, 11h10 CEST
Guadagnolo, Itália
Gray conduziu o Mercedes por mais uma estrada serpenteante nas montanhas Prenestini. Apesar de se encontrarem apenas a uma hora de caminho do aeroporto de Roma, parecia que tinham viajado no tempo até uma outra época. O bulício da capital ficara para trás, dando lugar à paisagem coberta de vinhas e terrenos agrícolas que davam o mote à Itália rural.
Sentada no banco traseiro, Lena Crandall aproveitava a brisa primaveril que lhe acariciava gentilmente o rosto, porém, o olhar permanecia ausente, refletindo as preocupações em torno da irmã. À chegada a Itália, tinham sido informados de que a Sigma perdera definitivamente o sinal do localizador de GPS. As últimas coordenadas situavam Maria algures em Pequim, onde Monk acabara de aterrar, para dar continuidade à operação de busca e salvamento.
Entretanto, o grupo de Gray tinha a sua própria missão.
Sentado ao lado de Lena, Roland Novak dividia a atenção entre a leitura de um guia turístico da região e um iPad que equilibrava em cima dos joelhos, com toda a informação que possuía sobre o padre Athanasius Kircher. Roland comprara o guia durante uma paragem na aldeia de Guadagnolo, onde tinham aproveitado para apaziguar os estômagos no Ristorante da Peppe, um acolhedor estabelecimento familiar, com uma enorme lareira rústica e enchidos artesanais pendurados no teto. Durante a refeição, o padre também aproveitara para obter mais informação acerca do local para onde se dirigiam: o santuário de Mentorella.
O santuário católico — cujas ruínas haviam sido descobertas e recuperadas pelo padre Kircher — situava-se no cume do monte Guadagnolo, alcandorado como um ninho de águia no contraforte rochoso, sobranceiro ao vale de Giovenzano. Segundo a lenda, fora aí, nesse preciso local, que Santo Eustáquio tivera a visão de um veado com uma cruz luminosa entre as hastes.
Gray recordou o símbolo que descobrira no diário de Kircher.
Espero que isto não seja uma caça aos gambozinos.
Mais à frente, um aglomerado de edifícios de pedra surgiu após uma última subida, indicando que tinham atingido finalmente o cume do monte. Gray notou um sinal de trânsito cujas indicações estavam escritas em polaco, italiano e inglês. Sentada ao seu lado, Seichan franziu a testa.
— Por que razão existe tanta informação em polaco?
Era uma pergunta válida. Na aldeia onde tinham almoçado, por exemplo, existia uma livraria que vendia um bom número de livros polacos.
Roland adiantou uma explicação.
— Em 1857, o papa Pio XI concedeu o santuário à Congregação da Ressurreição, uma ordem religiosa polaca, o que poderá estar por trás das visitas frequentes de João Paulo II a este local. Na verdade, a primeira visita ocorreu imediatamente após a sua nomeação. Todavia, o seu sucessor, o papa Bento XVI, seguiu-lhe o exemplo.
— Portanto, temos um santuário onde foram enterrados os corações de um padre e de um papa — comentou Gray. — Séculos depois, os chefes da Igreja continuam a fazer do local um motivo de visita obrigatória. Penso que não restam dúvidas acerca da importância deste sítio.
— Segundo o guia, o santuário também guarda relíquias de mais de duzentos santos — acrescentou Roland.
— Tantos? — retorquiu Lena, intrigada.
— Penso que se deve ao facto de ser o mais antigo santuário mariano de que há registo.
A geneticista franziu a testa.
— Mariano?
— Esta igreja é dedicada ao culto de Maria — explicou Roland. — O local data do século quatro, quando o quarto imperador Constantino o mandou erigir. Durante mil anos, o santuário esteva a cargo da ordem beneditina, até que se deteriorou por completo. Na verdade, crê-se que São Bento terá passado aqui largas temporadas em reclusão, vivendo numa pequena gruta a poucos passos da igreja. Ainda se pode visitá-la hoje em dia...
— Penso que já tive a minha dose de cavernas. — disse Lena, arrancando um sorriso a Seichan.
Gray concluiu o último troço da estrada, passando por um cemitério e estacionando o SUV num parque contíguo a um convento. A igreja do santuário ficava mesmo ao lado, cuja fachada discreta contrastava com a sua importância. Acima das portas de madeira, uma janela em forma de roseta refletia o sol. Num dos lados, uma estátua de bronze do papa João Paulo II abençoava quem chegava.
— É só isto? — indagou Lena, parecendo desapontada.
Gray saiu do automóvel e olhou em redor. A grandeza que faltava à modesta igreja sobejava nas fabulosas vistas panorâmicas. A norte e a sul, os picos rochosos estendiam-se até à linha do horizonte, enquanto a leste, no sopé da montanha, um imenso vale desdobrava-se ao longo de desfiladeiros, florestas e campos de cultivo.
— É melhor começarmos pela igreja — sugeriu Roland, ajustando o cabeção e avançando em direção à porta. — As freiras saberão mais acerca dos mistérios deste lugar do que qualquer guia turístico.
Gray prontificou-se a segui-lo, acompanhado por Lena e Seichan. De facto, se existia alguém que poderia arrancar segredos de uma freira local, esse alguém só poderia ser um padre.
Com o Sol já alto, o dia adivinhava-se quente, tornando o frio das montanhas croatas numa memória distante. Ainda assim, Seichan permanecia vigilante, mantendo-se atenta à estrada que conduzia ao santuário. Quando chegaram à porta da igreja, a operacional estacou.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou Gray.
— Não gosto nada disto. A estrada por onde viemos é a única maneira de sair daqui.
Era uma observação válida. Com um único acesso disponível, encontravam-se isolados no topo do monte, e seriam facilmente encurralados. Depois de tudo o que tinha acontecido na Croácia, Gray não podia censurar a cautela de Seichan. Ajeitou o casaco, sentindo o peso da sua SIG Sauer no coldre que trazia ao ombro.
Seichan notou o pequeno gesto.
— Eu fico aqui — disse-lhe, fitando-o.
Gray anuiu. Mesmo que não existisse nenhum indício de terem sido seguidos, era uma decisão acertada. Pegou na mão dela, agradecendo-lhe. Os seus dedos sentiram a suavidade do interior dos pulsos dela, lembrando-lhe as ocasiões em que os beijara. Todavia, sentiu também a ponta do punhal que ela trazia guardado na manga. Recordava-o também da verdadeira natureza da mulher que amava, uma mistura de ternura e aço.
Assim era Seichan.
Roland abriu a porta da igreja.
— Despacha-te — murmurou ela, fitando Gray com os seus olhos cor de esmeralda. Encerravam um desafio e uma ameaça.
Não me deixes aqui muito tempo. Quem sabe quais os sarilhos em que me posso meter.
11h21
Assim que entrou na igreja, Roland mergulhou os dedos na pia batismal que se encontrava junto à entrada e benzeu-se, proferindo uma pequena oração. Como sempre acontecia quando entrava na casa do Senhor, sentiu-se invadido por uma sensação de reverência e gratidão. A suave fragrância de incenso cumprimentou-o como um velho amigo, juntamente com o aroma de cera e baunilha das velas acesas.
Apesar da fachada modesta, o interior da igreja exultava sacralidade com as suas paredes e arcadas brancas, suportadas por contrafortes góticos. Duas fileiras de bancos de madeira conduziam ao altar, encimado por um magnífico órgão de tubos do século XVIII, enquanto as janelas exibiam vitrais que iluminavam antigas pinturas e murais. Porém, o maior tesouro do santuário encontrava-se no altar principal, resguardado no interior de uma alcova. Uma estátua de madeira, datada do século XII que representava a Virgem Maria sentada num trono, segurando o Menino Jesus nos braços. Ambas as figuras exibiam coroas cravejadas de pedras preciosas, iluminadas por candeeiros de bronze, dando a impressão de que a escultura brilhava — como se a própria madeira estivesse impregnada de santidade.
Roland sentiu-se impelido a dirigir-se ao altar, atraído pela beleza da peça. A voz de Lena fez-se ouvir, quebrando o encantamento.
— Não faço ideia de por onde devemos começar a procurar...
Roland estacou, lembrando-se da missão de que estava incumbido: estava ali para encontrar o que tinha sido removido das cavernas pelo padre Kircher. Esperou que Lena e Gray se juntassem a ele no centro da nave. Olhou em redor, notando a escassa presença de visitantes. Somente um casal de turistas deambulava ao longo das arcadas laterais; num dos bancos, uma mulher de idade, ajoelhada, a cabeça coberta por um lenço.
Além dos turistas e da mulher idosa que rezava, a única presença adicional era uma freira que se encontrava de pé, junto ao altar, com os braços cruzados, as mãos escondidas no interior do hábito. Dada a antiguidade do convento, Roland esperava encontrar uma freira mais velha. Ao invés, esta não aparentava ter mais do que vinte e poucos anos. Usava o cabelo apanhado sob o véu, mas o brilho dos olhos azuis irradiava juventude. A irmã notou o cabeção de Roland e dirigiu-lhe um ligeiro sinal com a cabeça, reconhecendo a sua posição.
— Vou ver se nos pode ajudar — disse ele, avançando em direção ao altar.
— Dzie dobry — cumprimentou a freira em polaco. Depois, repetiu em italiano. — Buongiorno.
Roland sorriu perante a tentativa da freira de tornar bem-vindos os visitantes de todas as nacionalidades — ou pelo menos aqueles que eram mais frequentes.
— Lei parla inglese? — perguntou-lhe.
— Sim, padre — respondeu a freira, o sotaque polaco ainda presente. — Na verdade, trabalhei dois anos num casino em Atlantic City. Numa mesa de blackjack...
Roland soltou uma gargalhada.
— Bom, não costuma ser o caminho habitual de quem serve o Senhor.
Ela sorriu-lhe e baixou o rosto, constrangida.
— Era um bom emprego. Permitiu-me ver um pouco mais do mundo.
— Compreendo — disse ele, sorrindo calorosamente enquanto fazia as apresentações. — E qual é o seu nome, irmã?
— Irmã Clara.
— Muito bem. Espero que nos possa ajudar, irmã Clara.
— Naquilo que me for possível, padre.
— Viemos de propósito da Croácia e queríamos saber mais acerca do santuário. Nomeadamente acerca do padre que supervisionou a reconstrução do local no século dezassete.
— O padre Kircher?
A resposta pronta da freira surpreendeu Roland, mas logo percebeu que o conhecimento da freira em relação ao historial do santuário era perfeitamente plausível.
— Precisamente. Sou professor numa universidade católica de Zagreb e baseei a minha tese de doutoramento no trabalho do reverendíssimo padre. O propósito desta minha visita é saber mais acerca dos seus últimos anos de vida, descobrir quais os motivos que o levaram a envolver-se na reconstrução deste lugar. Sobretudo a razão de se ter tornado numa missão pessoal. Tinha esperança de que as irmãs me pudessem elucidar com as informações de que preciso.
— Mesmo que sejam apenas rumores ou mitos — acrescentou Gray. — Tudo o que nos possa ajudar a saber mais acerca dos anos que o padre aqui passou.
— Podemos começar por aqui — disse a freira, apontando para o chão de mármore. — O coração do padre Kircher foi enterrado aqui mesmo, junto ao altar, conforme o pedido que dirigiu ao papa. Desejava que a graça da Virgem olhasse por ele por toda a eternidade.
— Portanto, podemos afirmar que o padre Kircher era obcecado pela Virgem Maria — comentou Lena.
— Eu diria que a venerava... foi por isso que se encarregou da reconstrução do santuário. Porque sabia que este era o mais velho altar do mundo dedicado ao culto mariano.
Roland olhou para Lena, notando-lhe um brilho no olhar. Agarrou-a por um braço e puxou-a à parte. Gray juntou-se a eles.
— Que estás a pensar?
— Eva era uma mulher... a mãe de toda a humanidade. Se o padre Kircher procurava um lugar para a venerar...
Este seria o local perfeito para depositar as ossadas.
— Mas que solução teria ele encontrado para esconder tamanho tesouro? De que modo o assinalaria?
— Se bem me lembro, o padre mencionou que Kircher era fascinado por hieróglifos e que chegou a gravar os seus próprios símbolos em obeliscos egípcios — disse Gray.
— Sim, mas que tem isso que ver com...
— E creio que também disse que o padre Kircher acreditava que se tratava da linguagem perdida de Adão e Eva.
Roland arqueou as sobrancelhas, surpreendido com a argúcia do americano.
— Bom, só há uma maneira de o confirmar — disse. Virou costas e dirigiu-se outra vez à freira. — Segundo sei, irmã Clara, o reverendíssimo padre encarregou-se pessoalmente da restauração de algumas das obras de arte e de alguns ornamentos. Há quem diga que chegou a assentar tijolos com as próprias mãos.
— Correto.
— Fascinante... Calculo que esta seja uma pergunta estranha, mas saberá dizer-me se alguns dos ornamentos do santuário apresentam hieróglifos?
— Na verdade, sim — confirmou a freira, intrigada. Apontou na direção de uma porta lateral. — Existem alguns no interior da Capela de Santo Eustáquio. Posso indicar-lhes o caminho, se quiserem.
Roland indicou que sim com a cabeça, tentando mostrar-se calmo.
— Agradeço-lhe, irmã.
A freira conduziu-os pelo altar até uma pequena porta de madeira e abriu-a, revelando um pátio luminoso nas traseiras do edifício. Mais à frente, um trilho de gravilha atravessava um jardim com oliveiras, roseiras e estátuas de mármore.
— Se seguirem este trilho, encontrarão uma encruzilhada. Do lado esquerdo fica o caminho para a Gruta de São Bento. Do lado direito, irão encontrar a Scala Santa, uma escadaria de mármore que os conduzirá até à Capela de Santo Eustáquio.
— Obrigado, irmã — agradeceu Gray, apressando-se pelo trilho.
A freira agarrou o braço de Roland.
— Perguntou-me acerca de histórias em torno da permanência do padre Kircher no santuário — disse, indicando com a cabeça na direção do ponto mais alto do monte. — Diz-se que ele trabalhou na reconstrução da capela com a ajuda de um único pedreiro. Na verdade, só uma outra pessoa estava autorizada a subir até lá acima, um bispo chamado Nicolas Steno. De acordo com os nossos registos, o bispo e o padre passaram muito tempo aqui, e, após a morte de Kircher, foi ele que trouxe o coração do reverendíssimo padre para o santuário.
— Interessante... Muito obrigado, irmã.
A freira dirigiu-lhe um breve sorriso. Despediu-se com um breve cumprimento de cabeça e voltou a entrar na igreja.
Roland seguiu na peugada de Gray, acompanhado por Lena.
— Que conversa era aquela?
— Pode ser coincidência, mas encontrei referências a Nicolas Steno durante o meu estudo da vida do padre Kircher. Steno era um cientista dinamarquês, bastante mais novo, mas trabalhavam nos mesmos círculos e tornaram-se bons amigos. O mais interessante, porém, é que a área de estudo dele era o que hoje em dia chamamos paleontologia.
— Estás a pensar se Kircher envolveu o seu amigo nesta história, uma vez que acreditava estar na posse dos restos mortais de Eva, certo?
Alcançaram Gray na encruzilhada. Roland apontou para a escadaria de mármore que subia do lado direito.
— Segundo a irmã Clara, parece que trabalharam em algo confidencial na capela.
Gray parara para observar o caminho do lado esquerdo, que descia na direção de uma abertura vertical na face rochosa da montanha.
— Calculo que seja a famosa gruta — disse o operacional, apontando na direção de um altar que se encontrava junto à entrada, exibindo uma série de ossos e crânios. — Alguém sabe dizer o que é aquilo?
— Um ossário — explicou Roland. — Segundo o guia, guarda as relíquias dos monges e frades que viveram aqui. A inscrição no pedestal diz o seguinte: Aquilo que és, nós também fomos. Aquilo que somos, também tu serás.
— Diria que é um pouco mórbido, apesar de ser verdade — comentou Gray. Virou costas e começou a subir as escadas.
Lena lançou um último olhar ao ossário.
— No nosso caso, espero que não seja tão depressa...
Roland sorriu.
Isso também é verdade.
Gray dirigiu o grupo pela particularmente íngreme Scala Santa. Escorregadios, os degraus de mármore acusavam a passagem de milhares de botas e sandálias ao longo dos séculos. Do lado esquerdo, um muro baixo acompanhava a escadaria, oferecendo a única proteção contra uma queda pelo precipício.
— Começo a perceber o motivo de chamarem a isto a Escada Santa — comentou Lena, ofegante.
— A escadaria representa um desafio aos peregrinos que tentam alcançar a capela. E é também uma maneira de os manter humildes — disse Roland.
— Acho que resulta...
Roland levantou a mão sobre os olhos, observando a pequena capela enquanto subia. Recortada contra o céu azul e alcandorada na face rochosa com vista para o vale seguinte, a sua silhueta era simples e austera, com quatro janelas arqueadas, representando os quatro pontos cardeais.
Atingiu finalmente o topo, sentindo-se exaurido. Recuperou o fôlego por um instante, aspirando a brisa com odor a pinheiro e absorvendo a magnífica vista panorâmica dos picos rochosos polvilhados de neve. Fitou a porta da capela. Uma pontada de ansiedade percorreu-lhe o corpo.
Que terá o padre Kircher escondido atrás desta porta... e porquê?
11h48
Lena seguiu Roland para o interior sombrio da capela. Com tão difícil acesso, contava deparar com algo majestoso, porém, o que encontrou no interior daquelas paredes era tudo menos isso. O único ornamento era um pequeno altar de mármore, pejado de velas usadas e encimado por um crucifixo de pedra. A área total era pouco maior do que uma garagem para dois automóveis, rodeada de quatro janelas com vista para todas as direções.
Roland observou o teto, notando os arcos de pedra que se intercetavam.
— É o mesmo tipo de construção que encontrámos na capela da caverna.
O padre tinha razão, o que levou Lena a interrogar-se. Se a primeira tinha sido construída para abrigar restos mortais de um homem de Neandertal, será que a arquitetura semelhante poderia ser um indício do que acontecera às ossadas femininas?
— A irmã Clara confirmou a existência de hieróglifos — disse Roland, olhando em volta.
Gray percorreu o perímetro da sala, passando os dedos na superfície das paredes, examinando-as atentamente.
— Os tijolos estão cobertos de inscrições — disse. — Parece que dão a volta à capela, linha por linha. As primeiras estão escritas em latim. As segundas em grego.
Lena aproximou-se, pondo um joelho no chão.
— As linhas seguintes foram escritas com caracteres chineses. E as últimas são hieróglifos egípcios...
Roland agachou-se.
— É como se estivessem dispostas por eras, como se recuassem no tempo.
Lena passou os dedos sobre o último nível de inscrições, examinando os detalhes. Estava claramente impressionada com a perícia revelada pelo padre Kircher ao reproduzir aquela forma de escrita. Continuou ao longo das paredes, estudando as triplas fileiras de figuras que davam a volta à capela, junto ao chão.
Roland juntou-se a ela.
— Um dos maiores trabalhos publicados pelo padre Kircher foi um épico de três volumes, intitulado Oedipus Aegyptiacus. Um verdadeiro tratado sobre o Egito, hieróglifos e sabedoria ancestral, no qual combinou mitologia grega, equações matemáticas de Pitágoras, astrologia árabe, relatos bíblicos e até alquimia, para encontrar uma fonte universal para todo o conhecimento.
— Como se procurasse uma grande teoria unificadora de toda a inteligência — disse Lena.
Roland anuiu, fazendo com que a americana sentisse uma afinidade súbita com aquela figura histórica.
A minha irmã e eu procurávamos o mesmo... descobrir a verdadeira origem da inteligência humana.
— Consegue traduzir alguma coisa disto? — quis saber Gray.
Roland franziu a testa.
— Duvido que faça qualquer sentido. O padre Kircher acreditava ter descoberto uma forma de decifrar hieróglifos, mas apenas se estava a enganar a si próprio.
— Assim sendo, o que esperávamos retirar daqui? — observou Lena, fazendo cair um silêncio pesado sobre o grupo.
Quando já estavam prestes a admitir a derrota, o rosto de Gray iluminou-se.
— Vejam! — disse, aproximando-se de uma secção da parede. — Este par de antílopes na fila do meio: reparem nas hastes do animal à direita.
Esfregou a pedra com o polegar, para revelar melhor uma marca circular entre as hastes. Olhou para os companheiros.
— Parece uma representação do símbolo de Santo Eustáquio... As hastes de veado com uma cruz.
— Como o que encontrámos no diário — disse Lena, aproximando-se para ver melhor. — Mas que significa?
Gray virou-se para ela, estendendo uma mão.
— Posso ver a chave que estava no diário?
Lena retirou-a do bolso e entregou-a a Gray.
O operacional posicionou a ponta da chave sobre a marca circular entre as hastes. O diâmetro era idêntico.
— Reparem como a ponta da chave não apresenta dentes... como se servisse para perfurar.
— Acredita que serve para perfurar através dessa marca? — perguntou Roland, pouco convencido.
Gray pegou numa caneta e começou a raspar a pedra.
— Não é sólido — verificou, enquanto a ponta da caneta penetrava a superfície, soltando detritos de material. Examinou-os entre os dedos. — Parece uma mistura de areia e cera...
Roland engoliu em seco.
— Experimente com a chave.
Gray posicionou-se melhor e inseriu a ponta da chave. A seguir, deu uma pancada seca com a palma da mão. A chave afundou-se até ao primeiro dente. Retirou-a outra vez e soprou para a parede. No lugar da marca circular encontrava-se agora um buraco.
— Consigo ver uma ranhura vertical. Não tenho dúvidas de que é uma fechadura.
Alcançou a faca que trazia nas botas e utilizou a ponta para libertar a abertura do resto da mistura de areia e cera. Uma vez satisfeito, introduziu outra vez a chave, sacudindo-a, forçando-a até se afundar finalmente na parede.
Olhou para os companheiros, fazendo um compasso de espera.
Não é possível que esta fechadura funcione após tantos séculos, pensou Lena.
— Força! — instruiu Roland, confiante. — Além de estudioso de línguas ancestrais, o padre Kircher foi um mestre de engenharia. Inventou todo o tipo de engenhocas, desde relógios magnéticos a mecanismos de corda autómatos. No museu, chegou a exibir estátuas que falavam, amplificando as vozes de quem se encontrava noutra divisão.
Tendo a concordância do padre, Gray apertou os dedos sobre a chave e rodou-a com força.
Lena susteve a respiração, sem saber que esperar.
Um ruído áspero fez-se ouvir no interior da parede. De seguida, uma enorme laje aos pés do altar afundou-se subitamente no chão, com a ajuda de dobradiças escondidas, transformando-se numa rampa. Uma rajada de vento soprou da abertura, levantando uma nuvem de poeira.
Lena aproximou-se, cautelosa. Roland juntou-se a ela. Gray retirou a chave da fechadura e fez o mesmo.
A rampa conduzia a uma escadaria escondida por debaixo do altar. Bastante íngreme, parecia ter sido talhada na rocha da montanha.
— É como se fosse uma réplica negra da Scala Santa — murmurou Roland.
Todavia, Lena tinha uma preocupação maior.
E aonde conduz?
12h18
Seichan mantinha o seu posto na sombra das paredes do convento. O sol do meio-dia brilhava agora num dolorido céu azul. Observou um falcão que voava em círculos lentos acima dela, aproveitando as correntes quentes que ascendiam das montanhas. O ar cheirava a pinheiros, com um toque de rosmaninho dos jardins do convento. De onde se encontrava, conseguia ouvir as vozes das freiras no interior do edifício, as palavras elevando-se e diminuindo consoante a cadência da oração.
Tentou imaginar como seria levar uma vida de reclusão, de se encontrar em paz consigo mesma e com Deus. Crescera habituada a lutar pela sobrevivência nos bairros de lata do sudeste asiático, rodeada de terror e desespero. Depois, fora recrutada e treinada de forma brutal, para abrir mão de qualquer réstia de humanidade. Só agora começara a reconciliar-se com o passado, obrigando-se a corrigir o mal que tinha feito, para encontrar qualquer coisa que se assemelhasse a essa paz interior.
Uma paz da qual ainda desconfiava.
Sabia bem como tudo lhe podia ser retirado.
Olhou para a capela que se situava no topo da montanha, para lá da igreja. Minutos atrás, observara a subida de Gray e dos outros. Não duvidava do amor que ele sentia por ela, tão-pouco dos seus próprios sentimentos. Porém, por muito que tentasse — e era exímia a disfarçar emoções —, não conseguia esconder um certo desconforto quando estava com ele, uma sensação que resultava do medo de o perder, misturado com uma sensação de culpa, como se não o merecesse.
Como se nada merecesse desta nova vida, aliás.
O bater de uma porta chamou-lhe de novo a atenção para a igreja. Um casal de meia-idade dirigia-se em direção ao parque de estacionamento. A mão da mulher encontrou a do marido enquanto caminhavam. Notou a naturalidade do gesto, tão natural como uma ave a pousar num ramo de árvore. A mulher disse qualquer coisa que fez o homem sorrir. Lado a lado, à medida que se afastavam, reparou também como pareciam aproximar-se um do outro, inconscientemente. Era uma dança mais velha do que o tempo, conduzida pelo bater de dois corações que palpitavam em uníssono num ritmo perfeito, sincronizados pela passagem dos anos.
Mudou de posição, endireitando as costas. A visão do casal deixara-a irritada; não porque os invejava, mas precisamente pelo contrário. Considerara-os ingénuos, abençoadamente ignorantes perante a dura realidade da vida. Para ela, aquela paz era uma ilusão, uma cegueira intencional. Como as palas de um cavalo, impedindo-o de se assustar com os perigos em redor.
No final, a única paz verdadeira e douradora era aquela que a morte oferecia.
E eu não tenciono ir ao seu encontro sem luta.
Um ronco distante desviou-lhe a atenção para a estrada. Um autocarro de turistas dirigia-se para o santuário. Observou-o enquanto atacava as últimas curvas, com a sua pintura vermelho-vivo, exibindo um dragão estilizado ao longo da carroçaria. Já tinha visto autocarros similares um pouco por toda a Europa, sempre apinhados de turistas asiáticos com máquinas fotográficas que se comportavam como autênticos rebanhos, refugiando-se uns nos outros contra qualquer influência estrangeira. Algumas operadoras desses autocarros chegavam ao ponto de desencorajarem os seus clientes de experimentarem a cozinha local, programando as paragens para as refeições em restaurantes asiáticos.
Apesar de esses autocarros serem comuns por toda a Europa, Seichan voltou a afundar-se nas sombras do convento. Sabia que os responsáveis pelo rapto da irmã de Lena e de Kowalski pertenciam a uma fação chinesa, e que provavelmente também tinham orquestrado o ataque em Ogulin, na Croácia.
Como precaução, pôs-se junto a uma janela aberta para as brisas suaves da montanha. As vozes das freiras soaram mais altas, fazendo ouvir as orações do meio-dia que decorriam ainda no interior da estrutura secular. Anteriormente tinha passado a área a pente fino, fazendo um reconhecimento minucioso do terreno, avaliando os possíveis pontos de vantagem e de fuga.
Agachada, ficou à escuta até ouvir os pneus do autocarro sobre a gravilha do parque de estacionamento. Aproveitando o momento, saltou pela janela aberta e refugiou-se no interior do convento. Longe da vista, continuou a observar o autocarro enquanto este se detinha numa nuvem de pó e de fumo de escape.
No instante seguinte, as portas abriram-se e os passageiros começaram-se a acumular em redor, espreguiçando-se, bocejando, verificando as máquinas fotográficas. O guia da excursão, uma mulher ridiculamente pequena que vestia um casaco vermelho a condizer com o autocarro, abriu um chapéu de chuva da mesma cor. Servia para a proteger do sol, mas também como foco de atenção enquanto berrava em mandarim, tentando ordenar o rebanho. Superada a confusão inicial, logo começou a encaminhar os seus clientes em direção às portas da igreja.
Seichan estudou os turistas. Eram todos chineses e de várias idades, desde crianças a anciões. Não formavam nenhuma unidade de assalto, evidentemente. Todavia, uma multidão daquelas fornecia a camuflagem perfeita para quem quisesse aproximar-se dela e dos seus companheiros. Continuou a estudar atentamente cada turista, avaliando o modo como se moviam, com quem falavam e como interagiam.
Seis homens, com idades entre os vinte e os trinta anos, deixaram-na apreensiva. Não estavam juntos, mas também não conversavam com mais ninguém. Caminhavam com um semblante focado, como se estivessem a avaliar o terreno. Além disso, um deles fixara o olhar demasiado tempo no Mercedes estacionado no parque. Quando se virou, Seichan notara um chumaço característico debaixo do blusão. Podia ser uma câmara fotográfica aos olhos de outra pessoa. Menos aos dela.
Afastou-se da janela, pensando no melhor plano de ação, embora tivesse já uma certeza.
O tempo de paz terminara.
12h32
Gray conduziu o grupo pela escadaria negra. Os degraus eram estreitos e traiçoeiros, obrigando-os a descer em fila única. Na frente, Gray iluminava o caminho com uma lanterna de bolso, enquanto Lena seguia atrás, socorrendo-se da luz do telemóvel. Muito mais frio do que no interior da capela banhada de sol, o ar também era mais seco do que seria de esperar.
Como se entrássemos num túmulo egípcio.
— Se tivesse de adivinhar — disse Roland, passando os dedos ao longo da parede —, diria que esta escada conduz a uma gruta semelhante à de São Bento.
Uns metros à frente, o feixe da lanterna de Gray desapareceu no interior de uma caverna, validando as palavras de Roland. Não era muito grande, com pouco mais de cinco metros de comprimento. Quando desceu o último degrau, as botas afundaram-se no que parecia ser uma camada de gravilha que cobria todo o chão. Afastou-se para o lado, permitindo que os outros se juntassem a ele. O restolhar debaixo das solas era suficientemente alto para encher toda a caverna, mas não abafava as respirações sobressaltadas de espanto.
Lena ergueu o telemóvel para iluminar melhor o espaço.
Roland estacou, titubeante. Na parede mais afastada, sentada num trono talhado na rocha, encontrava-se uma estátua de bronze da Virgem Maria. Era uma réplica perfeita da estátua de madeira do santuário, desde a coroa pejada de joias à figura do menino Jesus, repousando no seu colo.
— É linda... — balbuciou Roland.
— Mas não é o que procuramos — disse Lena, temperando o entusiasmo do padre. Olhou em redor, examinado as paredes da caverna. — É apenas uma capela. Possivelmente um lugar privado, onde o padre Kircher podia orar à Virgem.
— Ainda assim, descobrir um lugar destes após tantos séculos... — disse Roland, tentando conter as lágrimas, a voz cheia de paixão. — É nada menos do que um milagre!
Gray aproximou-se, varrendo a estátua com a lanterna.
— Estou mais preocupado com respostas do que com milagres, padre. Como a razão pela qual o padre Kircher escondeu esta estátua, por exemplo.
Atentou nos olhos serenos da figura de bronze, recordando as palavras da freira acerca do desejo de Kircher de que o seu coração repousasse eternamente sob a graça da Virgem.
Tem de haver aqui mais qualquer coisa.
Observou o chão, varrendo a gravilha com as botas. Não parecia uma consequência da construção. Em vez disso, o material granular lembrava-lhe um tabuleiro para excrementos de gatos. A concentração de Gray desviou a atenção de Roland da estátua.
O operacional agachou-se, tocando o material com os dedos.
— Parece semelhante à mistura de areia e cera que cobria a fechadura.
Roland também se agachou.
— Não é areia... — verificou. — É sílica.
— Sílica? — perguntou Lena.
— Uma forma de dióxido de silício — explicou o padre. — Como os pacotinhos que encontramos nas embalagens de comprimidos, para absorver a humidade.
Não admira que o ar seja tão seco.
— Este material era uma curiosidade científica no tempo do padre Kircher — continuou Roland. — Ele escreveu alguns capítulos acerca da sua constituição e propriedades, chegando mesmo a utilizá-lo para preservar o interior de algumas das suas criações mecânicas.
— Como o mecanismo da fechadura — disse Lena, olhando para as escadas.
Roland anuiu.
— Talvez o tenha usado em algo mais — acrescentou Gray. — Padre Novak, creio que mencionou que o padre Kircher construiu estátuas mecânicas, chegando a exibir algumas no museu.
Roland arqueou as sobrancelhas.
— Não acredita que... — Virou-se para a estátua de bronze. — Não pode ser...
Só há uma maneira de descobrirmos.
Gray atravessou a caverna e voltou a examinar a estátua, desta vez com uma ideia feita do que deveria procurar. A coroa na cabeça da Virgem prendeu-lhe a atenção. Enquadrada por um padrão de pedras preciosas, encontrava-se uma pequena abertura em forma de cruz.
Como as hastes de um veado.
Roland benzeu-se, proferindo uma oração.
Lena estava igualmente atónita.
Gray entregou a lanterna a Roland e tirou a chave de Kircher do bolso. Para alcançar a coroa, precisava de se apoiar no colo da estátua.
— Cuidado — avisou Roland.
Enfiou a chave na ranhura em forma de cruz e rodou-a. Nada aconteceu. Tentou de novo, mas o resultado foi o mesmo.
Lena cruzou os braços, nervosa.
— Se calhar está avariada.
Gray voltou a insistir, notando que era cada vez mais difícil rodar a chave.
— Parece que há qualquer coisa sob pressão aqui dentro.
— Continue — encorajou Roland.
Gray obedeceu e continuou a rodar a chave, sentindo a tensão aumentar no interior da ranhura. Começava a compreender qual era a esperança de Roland.
Estou a dar corda a um mecanismo qualquer.
Não tardou muito para que tivesse de aplicar toda a sua força. Sentiu as pequenas caveiras de metal na cabeça da chave a cravarem-se na ponta dos dedos. Finalmente, um baque metálico fez tremer toda a figura de bronze.
Sobressaltado, Gray recuou um passo, arrancando a chave da ranhura.
Roland amparou-o por um braço — não para o segurar, mas pelo choque do que estava a ver.
— Olhem!
Um zumbido cadenciado ecoou do interior da estátua, à medida que uma linha negra a dividia verticalmente desde a coroa até à base. A figura continuou a abrir-se, separando-se em duas metades, como um sarcófago.
Desta vez, nem mesmo Gray conseguia acreditar no que estava a ver.
Aninhado no interior da escultura oca, encontrava-se um esqueleto. Porém, não era uma pilha de ossadas. Os ossos tinham sido meticulosamente dispostos e unidos com fio de bronze, para replicarem a posição da Virgem. Igualmente sentada, a figura olhava-os com as suas órbitas vazias, cujos arcos supraciliares a denunciavam como diferente do homem moderno.
— Encontrámo-la — murmurou Lena. — Eva...
— E não é tudo — notou Roland, aproximando-se. — Também tem qualquer coisa no colo.
Num dos braços, o esqueleto apoiava um osso comprido, reproduzindo o modo como a estátua da Virgem segurava Jesus. Porém, não fora isso que chamara a atenção do padre. Equilibrada sobre um joelho, encontrava-se uma esfera de pedra, mais ou menos do tamanho de uma toranja.
Gray iluminou-a com a lanterna, revelando os pormenores gravados na superfície. Representavam crateras de impacte e planícies suaves.
— É uma escultura da Lua — disse Roland —, reproduzindo o seu lado visível na perfeição.
— Impossível! — disse Lena, observando-a de perto.
Gray não compreendia a razão de tanto espanto. Anteriormente, Roland mostrara-lhes várias ilustrações da superfície lunar feitas pelo padre Kircher. Como tal, a escultura não justificava os olhares incrédulos dos companheiros.
— Que se passa? — quis saber.
Lena olhou para ele, engolindo em seco.
— A esfera... apresenta depósitos de calcite...
Gray franziu a testa, sem fazer ideia do que a geneticista estava a falar.
— Esta escultura não é do tempo do padre Kircher — explicou Roland. — Deve ter sido retirada da galeria de figuras pré-históricas que encontrámos na caverna. Ainda tem resíduos da formação de calcite que cobriu as paredes ao longo dos milénios.
— O que significa que esta representação da Lua deve ter sido feita há dezenas de milhares de anos.
Gray fitou a esfera, incrédulo.
Impossível.
— Não admira que o padre Kircher ficasse tão obcecado pela Lua, que quisesse descobrir a fonte do conhecimento. Tal como nós, terá percebido a impossibilidade desta descoberta.
— Deve ter sido por isso que selou a caverna e deixou aquele aviso — arriscou Lena.
— E o motivo pelo qual acabou por esconder tudo aqui — acrescentou Roland.
— Ao fazê-lo, Kircher provou ser um verdadeiro cientista — disse Lena, tocando o braço do padre. — Protegeu e preservou a sua descoberta para a posterioridade.
Roland suspirou.
— Deve ter passado os últimos anos de vida a investigar tudo isto em segredo, revelando o que sabia apenas a meia dúzia de colegas mais próximos. Apesar de nunca ter compreendido inteiramente o que tinha entre mãos, acabou por venerá-lo de maneira inegável.
Gray observou o engenho e a arte da estátua mecânica. Não podia estar mais de acordo.
Lena ergueu um braço na direção do osso comprido que a figura segurava com os seus dedos esqueléticos.
— Creio que foi esculpido de uma presa de mamute.
— Que poderá ser? — perguntou Gray.
— Não sei... talvez seja uma espécie de bengala ou bastão. Pelos indícios de artrite em alguns ossos, calculo que ela fosse uma mulher com bastante idade.
Gray fitou o objeto. Pelo modo como tinha sido exposto, não estava convencido de que fosse apenas uma simples bengala pré-histórica. Notou umas marcas ténues ao longo de todo o comprimento, como se fosse uma espécie de régua ou marcador.
Lena aproximou-se.
— O dedo mindinho desta mão terá sido fraturado em tempos.
— Está torcido. Exatamente como vimos nas impressões das mãos que decoravam a caverna onde repousavam as ossadas — disse Roland.
— E na caverna com as esculturas. O que significa que foi tudo feito pela mesma mulher. As pinturas e a esfera devem ter sido feitas por ela.
Gray recuou um passo, enquanto os companheiros observavam o esqueleto. De onde se encontrava, notou algo que escapara a Lena e a Roland. O interior da estátua da Virgem parecia conter mais mistérios. Num dos lados, a superfície de metal exibia um mapa gravado. Gray conseguia distinguir o formato de uma ilha, mas os restantes pormenores eram demasiado ténues para poderem ser observados à distância.
No outro lado da carcaça, dentro de uma bolsa de bronze, encontrava-se um pequeno livro com capa de cabedal. A metade superior da capa era perfeitamente visível, exibindo as formas familiares de um labirinto. Ao fazer incidir o feixe da lanterna sobre o livro, o movimento captou a atenção de Roland. O padre expirou com força, reconhecendo aquilo que Gray já tinha percebido. Ergueu os braços para o retirar, mas logo recuou, cauteloso.
— É uma cópia do diário de Kircher — murmurou.
Antes que pudessem decidir sobre o que fazer em seguida, o telefone de Gray vibrou no seu bolso.
Encostou-o ao ouvido. A voz de Seichan fez-se ouvir de imediato.
— Tenho estado a tentar ligar-te. Temos companhia.
13
30 de abril, 17h04 CST
Pequim, China
— Segundo o mapa do zoo, o habitat dos gorilas encontra-se a seguir à próxima curva — disse Monk, continuando a caminhar ao lado de Kimberly. Depois de terem passado por uma série de jaulas acrílicas que exibiam macacos, caminhavam agora ao longo de um trilho arborizado. Com a gola do blusão levantada, segurava a mão da companheira, mantendo as aparências de um casal que passeava pelo Jardim Zoológico de Pequim.
Olhou para o relógio.
Passavam quinze minutos desde que tinham entrado no recinto por um portão grandioso, em forma de arco, ricamente adornado com gravuras de dragões. A introdução majestosa não preparara Monk para as terríveis condições no interior do parque.
A esmagadora maioria dos visitantes encontrava-se ali por causa da atração principal, a Casa dos Pandas, convenientemente instalada junto à entrada. Moderna e atrativa, a instalação albergava o tesouro nacional da China, os pandas-gigantes. Resistindo ao imenso caudal de pessoas que se deslocava ininterruptamente nessa direção, Monk e Kimberly tinham continuado a avançar para o interior do zoo.
O que encontraram não era apenas lamentável, mas um espetáculo capaz de partir o coração.
Monk passara por um recinto fechado com macacos-dourados. O vidro acrílico encontrava-se imundo, bem como o interior do espaço. Pior do que tudo, vários visitantes tinham passado por baixo dos corrimões de metal que marcavam o perímetro da instalação, e divertiam-se a bater no vidro, gritando e provocando os animais — o que apenas os aterrorizava.
Do pouco que tinha visto do resto do zoo, esse tipo de comportamento parecia perfeitamente aceitável. Pelo menos, ainda não tinha visto um único funcionário que aparecesse para repreender ou impedir alguém de o fazer. Num outro recinto, desta vez aberto, que albergava um urso-da-mongólia, o chão de cimento encontrava-se pejado de detritos que tinham sido atirados pelas pessoas: invólucros de comida, copos, guardanapos. Monk observara uma adolescente, rindo histericamente, enquanto despejava uma garrafa de Coca-Cola por cima da cabeça do pobre animal. Teve de se conter, para não atirar a fedelha para dentro do recinto.
— É de facto lamentável — disse Kimberly, sentindo a frustração crescente de Monk. — A falta de manutenção, o comportamento vergonhoso das pessoas, a condição miserável dos recintos.
— Miserável é um eufemismo... este sítio é um inferno.
— Calculo que seja um reflexo dos tempos que se vivem neste país — disse Kimberly, tentando acalmá-lo. — Este parque é um retrocesso em comparação com os zoos modernos, mas, segundo sei, existem planos para mudar o parque para os subúrbios, onde os terrenos são mais baratos e onde os animais poderão ter maiores instalações.
— Não sei do que estão à espera — bufou Gray. — Avaliando a enxurrada de dinheiro que gastaram nas olimpíadas, já deviam ter feito qualquer coisa neste lugar. Pelo menos, podiam começar por impedir estes comportamentos. O governo chinês nunca teve nenhum problema no que diz respeito ao uso da autoridade sobre a população. Não sei por que razão toleram isto.
Apontou para um turista que estava a pontapear a jaula de raposa-vermelha, fazendo o animal encolher-se a um canto.
— Que se passa com esta gente? — murmurou.
— Tens de compreender que os chineses ainda olham para os animais como comida, medicina ou entretenimento. Houve tempos em que as jaulas exibiam sinalética que listava as partes dos animais que eram comestíveis ou que serviam para a medicina tradicional chinesa. Como vês, as coisas estão a melhorar.
Enojado, Gray acelerou o passo em direção à secção dos grandes primatas. O zoo encerrava dentro de uma hora, e ele queria explorar o mais que pudesse do recinto antes que fossem forçados a sair. Com uma área que se estendia por mais de oitenta hectares, tinham de usar o tempo judiciosamente. O plano era concentrarem-se nas instalações de grandes primatas, uma vez que era o sítio lógico para procurarem por Baako, caso se encontrasse no parque.
Depois de encerrado, continuariam a busca nas imediações do zoo, desta feita por eventuais sinais de Kowalski e de Maria Crandall. Na sede da Sigma, Painter continuava a monitorizar o localizador de GPS, caso voltasse a ficar ativo, e Kat preparara um mapa pormenorizado da zona do parque, que compreendia tanto a superfície como o subsolo.
Monk olhou para os sapatos. De acordo com a reunião preliminar de Painter, o zoo possuía instalações subterrâneas. Porém, a extensão das mesmas representava uma incógnita.
Kimberly adivinhou-lhe os pensamentos.
— Não temos maneira de saber o que se encontra aqui debaixo.
— Que queres dizer com isso?
— A Dìxià Chèng, ou Cidade Subterrânea, é outro dos destinos turísticos mais populares de Pequim. Foi construída durante os anos setenta, para servir de abrigo à população em caso de bombardeamentos. Estende-se por mais de duzentos quilómetros quadrados, e diz-se que existem centenas de entradas, a maioria das quais escondidas ao longo das ruas e em estabelecimentos comerciais. Apesar de uma pequena área se encontrar aberta ao público, o resto permanece até hoje em segredo.
Monk tentou imaginar tamanha infraestrutura debaixo dos seus pés.
— Achas que se poderá estender até aqui?
— Possivelmente. Interliga alguns dos pontos importantes da cidade, como a estação ferroviária, a praça Tiananmen, até a Cidade Proibida.
Monk coçou o queixo. Definitivamente, era algo que valia a pena investigar.
— Olha — disse Kimberly, desviando a sua atenção. — Chimpanzés!
Monk olhou em redor. Encontravam-se finalmente na zona dos grandes primatas.
O recinto dos chimpanzés não parecia melhor do que as instalações que vira anteriormente. O vidro encontrava-se sujo, assim como as jaulas, pejadas de excrementos e poças de urina. Os animais exibiam um ar tristonho, deitados no chão, catando-se uns aos outros. Os visitantes batiam no vidro, tentando chamar-lhes a atenção.
Um gorila solitário encontrava-se sentado numa jaula contígua. O espaço era pouco maior do que uma cela de cimento, e a criatura permanecia agachada a um canto, com as costas viradas para o triste espetáculo no exterior. Monk não conseguia imaginar como seria a vida do animal, o isolamento, a falta de estímulo mental adequado, a incessante tortura dos comportamentos inadequados dos visitantes. Se isto acontecia na capital do país, o que se passaria em outros zoos mais pequenos por todo a China deveria ser assustador.
— Não vejo nenhum sinal do Baako — disse Kimberly, mantendo a voz baixa, enquanto observava os vários recintos.
Por muito que Monk quisesse encontrar o gorila, parte dele sentia-se satisfeito por não o ver ali. Nenhuma criatura viva merecia ser tratada daquela maneira.
Como se sentisse a compaixão de Monk, o gorila solitário virou-se, fitando-o com uns olhos negros e vazios. As narinas dilataram-se, aspirando o ar. Depois, com um suspiro pesado, o animal voltou a encarar a parede de cimento.
Desculpa, grandalhão. Tirava-te daí, se pudesse.
— Penso que é tudo — disse Kimberly.
— Sim, está na hora de sairmos daqui — concordou Monk.
Antes que meta uma bala em alguém.
Continuaram a caminhar, retrocedendo pelo mesmo caminho, em direção ao portão principal do zoo. Descontando as instalações dos animais, o recinto em si era bastante bonito, com vários riachos e belas lagoas azuis, delineadas por salgueiros, com aves aquáticas, além de uma quantidade generosa de exuberantes pavilhões e colunatas de madeira.
Todavia, toda essa beleza não mascarava o tormento que ali encontrara.
Acusando o peso de não ter descoberto nada que pudesse fazer avançar a investigação, Monk sentiu-se ainda mais frustrado. Ainda assim, agarrou-se a uma réstia de esperança.
Afinal, Maria e Baako não se encontravam sozinhos.
Vá lá, Kowalski, dá-me uma ajuda.
17h18
— Força! — bufou Kowalski.
Voltou a repetir o gesto para o companheiro de cela, mantendo as costas viradas para a câmara de vigilância. Não tinha a certeza se estaria a ser observado, mas não podia correr riscos desnecessários.
Baako olhou para ele, relutante.
Kowalski fez o sinal de okay com os dedos, encorajando a cooperação do gorila. Ele tinha de cumprir o papel na perfeição. Passara a última hora a gesticular sorrateiramente, tentando que Baako compreendesse o que pretendia dele.
Gesticulou de novo.
[Tens de conseguir, matulão... se queres ver a Maria de novo]
Não tinha a certeza qual o nível exato de compreensão do seu amigo peludo, mas o plano que delineara era a única esperança para os dois.
Baako hesitou, guinchando de preocupação e receio. Finalmente, ergueu a mão e tocou no queixo com o polegar, abrindo os dedos com firmeza. Grunhiu, questionando Kowalski.
[Pela mamã?]
— Isso mesmo — confirmou o operacional, percebendo que deveria estar a referir-se a Maria.
Afinal, o gajo é mais esperto do que eu pensava. Pode ser que isto resulte.
Kowalski aproximou-se, inclinando ligeiramente o queixo. Baako olhou para ele. Kowalski fez que sim com a cabeça.
É agora ou nunca.
Baako levantou um braço. Depois, com um movimento de chicote, atingiu Kowalski em cheio na cara, arranhando-lhe a bochecha. O golpe foi mais forte do que Kowalski estava à espera. Cambaleou para trás, interrogando-se se ainda tinha a cabeça no mesmo sítio.
Baako encolheu-se, recuando por um instante.
Kowalski deixou-se cair sentado, gesticulando para o gorila.
[Estou bem]
Cerrou os punhos, indicando ao gorila que deveria continuar.
Baako carregou sobre ele. Kowalski não precisava de fingir que estava assustado, recuando instintivamente. O gorila era muito mais forte do que parecia. Baako deu-lhe um encontrão com o ombro, atirando-o contra as barras da cela. Kowalski arquejou, debatendo-se para encher os pulmões de ar pela violência do impacte. Depois, gritou o mais alto que conseguiu.
— Socorro! Tirem-me daqui!
Instantes depois, ouviu alguém abrir as portas ao fundo do corredor. Pelo canto do olho, viu dois soldados correrem em direção à cela. Um deles segurava um bastão elétrico, o outro trazia uma espingarda.
Cerrou os maxilares. Tinha esperança de que tivesse de lidar com apenas um guarda, alguém que pudesse dominar facilmente, permitindo assim a fuga.
Está na hora de passar ao plano B.
Antes que os guardas alcançassem a cela, ergueu os braços em frente ao peito, agitando-os freneticamente. Aos olhos dos guardas, o gesto não passava de uma tentativa desajeitada de se proteger. Porém, tratava-se de um sinal claro para Baako.
[Sê agressivo]
Baako não precisava de instruções para extravasar a sua fúria. Os olhos brilharam de raiva perante a visão dos guardas e o crepitar do bastão elétrico. Manteve uma posição firme, longe das barras da cela. Apoiando-se numa mão, começou a bater no peito com a outra, grunhindo e exibindo uma expressão feroz.
— Deixem-me sair! — gritou de novo Kowalski.
O guarda que segurava o bastão elétrico sacou um molho de chaves e abriu a cela, ao mesmo tempo que brandia a arma faiscante, permitindo uma oportunidade para Kowalski rolar para o corredor. Kowalski lançou-se sobre o guarda, embrulhando-se com ele na sua ânsia de poder sair dali, mas o soldado logo o repeliu.
O segundo guarda mantinha-se afastado, de arma em riste, alternando a mira entre o operacional e o gorila.
Kowalski gesticulou sorrateiramente para Baako, baixando a palma da mão.
[Quieto]
O gorila guinchou, parecendo irritado, depois recuou para o fundo da cela.
O guarda bateu a porta, trancando-a.
Kowalski tocou nos arranhões profundos que tinha na cara, espalhando o sangue para dar a ideia de que o ferimento era ainda pior.
— Ele queria matar-me — disse.
Os soldados trocaram algumas palavras em mandarim. Só então Kowalski reconheceu um deles. Era a besta-quadrada que encabeçara o grupo que os raptara, Gao. O filho da mãe devia ter voltado para se assegurar da condição dos seus prisioneiros, depois de ter deixado Maria algures.
Gao aproximou-se e cuspiu por entre as barras para Baako. Depois fez sinal para Kowalski se aproximar, ameaçando-o com o bastão elétrico. O guarda que tinha a espingarda flanqueou-o, para garantir que o operacional não tentava nenhuma surpresa.
Mantendo os braços semierguidos, Kowalski fez o possível para se mostrar grato e cooperante.
— Deixem-me falar com a doutora Crandall. Ela saberá dizer o que fazer.
Sem qualquer resposta dos soldados, limitou-se a deixar-se conduzir pelo corredor. Antes de a última porta se fechar, lançou um último olhar a Baako, sentindo-se culpado por o abandonar. Cerrou os dois punhos acima da cabeça, levando-os depois ao peito.
[Sê forte]
17h22
Baako vê o homem grande ir-se embora, a porta a fechar-se. Lembra-se das últimas palavras dele, mas apenas encontra medo dentro de si. O cheiro do sangue que tem debaixo das unhas não ajuda e sente a respiração pesada, forçando-o a sentar-se.
Abraça os joelhos, desejando que a mamã o pudesse envolver com os braços dela.
Olha em redor da sala. Não existem brinquedos, nem quadro para desenhar, nem cordas. Observa a comida no cesto, mas não tem fome.
Apenas medo.
Mantém-se encostado a um canto, as costas viradas para a pilha fedorenta onde o homem grande disse que ele se podia aliviar. A sala não tem uma casa de banho como a casa da mamã e ele sente vergonha, não só por ter sido ensinado a não fazer nada no chão, mas também porque sabe o que o homem escondeu na pilha fedorenta.
Guincha, confuso, para libertar a frustração.
Toca com o polegar no queixo, embalando-se.
[Mamã, Mamã, Mamã...]
Então, ouve um barulho muito grande, um rugido feroz. Vem da direção da porta brilhante no fundo do corredor. Tem um sinal com letras vermelhas que brilham como uma ameaça, e alguma coisa está a bater na porta com força.
Baako fica muito quieto, com medo de se mexer, com medo de atrair seja o que for que rugiu daquela maneira. Sente os pelos eriçarem-se. Consegue ouvir sangue naquele rugido, tão real como aquele que consegue cheirar na ponta dos dedos. As suas duas mães costumavam contar-lhe histórias à noite, algumas com desenhos. Às vezes, as histórias tinham monstros, como sombras que espreitavam debaixo da cama ou ogres que se escondiam debaixo de pontes.
A mamã dizia que os ogres comiam cabras.
Ele não sabe quem fez aquele barulho. Agora está tudo silencioso outra vez, mas Baako receia que possa existir uma cabra nesta história.
Ele vira as costas para a porta brilhante e olha na direção contrária, por onde o homem grande desapareceu, mas só consegue pensar noutra cara.
Onde estás, mamã?
17h42
Maria caminhava para trás e para a frente na sala em forma de octógono. O chão era de cimento polido, com paredes brancas e despidas. Ao redor, expositores de vidro exibiam artefactos e ferramentas antigas, que contrastavam com o ambiente moderno e esterilizado.
O doutor Dayne Arnaud encontrava-se junto de um dos expositores, com as costas curvadas e as mãos atrás das costas. Observava uma pedra do tamanho de um punho fechado, que fora talhada para ser usada como machado pré-histórico. Todavia, pela expressão assombrada que lhe cobria o rosto, teria pouco ou nenhum interesse no que estava a ver, procurando apenas uma forma de distrair a mente da situação que estavam a viver.
Compreendia-o bem. A execução brutal e inesperada do professor Wrightson deixara marcas nos dois.
Observou os soldados armados que guardavam a saída. Jiaying Lau conduzira ambos pelo complexo subterrâneo e depois abandonara-os naquela espécie de sala-museu, prometendo regressar em breve.
Isso fora há uma hora. De tanto esperar, sentia-se à beira de um ataque de nervos. Dirigiu-se por fim ao paleontólogo francês.
Talvez possamos trocar ideias...
— Doutor Arnaud — disse, chamando-lhe a atenção. — Tem alguma ideia ou teoria acerca do que se passa aqui?
Ele olhou na direção da saída, abanando a cabeça.
Maria suspirou, tentando ordenar as ideias.
— É óbvio que devem estar a desenvolver uma investigação genética clandestina, envolvendo ADN ancestral, mas não creio que seja apenas isso. Há mais qualquer coisa que nos estão a esconder. Conseguiram perceber alguma conversa desde o momento em que foram atacados?
— Hélas, docteur Crandall! — disse Arnaud, continuando depois em inglês. — Infelizmente, não falo mandarim. Assim sendo, o pouco que tenha ouvido não faz sentido algum para mim.
Maria estava no mesmo barco.
— Todavia — acrescentou ele, apontando para os expositores —, posso fazer algumas suposições pelo que vejo desta coleção.
— Sim?
— Permita-me que lhe mostre.
Dirigiu-se a um dos expositores maiores. Numa das prateleiras, iluminada por painéis traseiros, encontrava-se um enorme crânio, cujas proporções eram claramente não humanas, embora fossem similares nas formas.
Algum grande primata, calculou Maria.
Quando Arnaud falou, conseguia notar a inveja na voz.
— Nunca foi encontrado um crânio como este. Tão intacto, pelo menos.
— Qual é o animal a que pertence?
— Uma espécie extinta de gorilas, o Gigantopithecus blacki. Estes animais cruzavam as terras altas da China e do Vietname até terem desaparecido, há milhares de anos.
— Deveriam ser criaturas impressionantes.
— En effet — concordou Arnaud. — Tinham mais de três metros e pesavam cerca de quinhentos quilos.
Maria tentou visualizar semelhante animal de meia tonelada.
— Tudo o que sabemos acerca da espécie foi conseguido por meio de uma mão-cheia de molares e fragmentos de maxilares. Os primeiros dentes foram encontrados em 1935, num boticário em Hong Kong.
— Que estavam os dentes a fazer num boticário?
— O uso de ossos fossilizados era comum na medicina tradicional chinesa. Costumavam transformá-los em pó para a produção de elixires.
— Mas que tem isso que ver com o que se passa aqui?
— Pelas espécies que vejo aqui representadas, seria capaz de apostar que alguém fez uma descoberta de extraordinária importância, um conjunto de fósseis e relíquias com o potencial de rescreverem o que conhecemos dos primórdios da nossa história.
Maria olhou para o crânio, franzindo a testa.
— Que quer dizer com a nossa história?
— Como lhe disse, o Gigantopithecus extinguiu-se há cerca de cem mil anos, tornando-o contemporâneo dos primeiros homens nesta região — disse Arnaud. Dirigiu-se para outra montra. — E repare em todos estes ossos, hastes e ferramentas de pedra. Pelos meus cálculos, devem pertencer ao período do Paleolítico Superior.
Maria anuiu. Conhecia bem o período por causa da sua pesquisa. Fora nessa altura que os neandertais tinham coexistido com humanos, juntamente com outras tribos de hominídeos ainda existentes, como os denisovas, os Homo floresiensis e até com alguns parentes próximos do Homo erectus.
Constituía um momento determinante na história da humanidade.
Arnaud dirigiu-lhe a atenção para uma figura de pedra, uma representação rude de uma mulher grávida, agachada com a sua enorme barriga.
— Estas representações de Vénus começaram a surgir no Paleolítico Superior. A Vénus de Willendorf, a Vénus de Laussel, etc. Se reparar bem, consegue-se distinguir vestígios de uma pintura vermelho-ocre, sinal claro de comportamento ritualista.
— Portanto, acredita que toda esta coleção pertence ao mesmo período da história?
— Não só ao mesmo período, mas também a uma única região. Pela presença deste crânio intacto de um Gigantopithecus, diria que todos estes artefactos vieram do sudeste da China, talvez dos Himalaias. O que nos leva a este objeto fascinante. — Arnaud conduziu Maria para outro expositor que exibia mais um crânio, bastante mais pequeno. — Repare na ausência de feições arcaicas e na anatomia moderna deste espécime. O rosto liso, a espessura do osso, o nariz amplo.
— Parece humano.
— Quase. Na verdade, pertence a um povo que habitava em cavernas nas províncias do sul da China e que só agora foi descoberto. Chamaram-lhe Povo das Cavernas do Veado Vermelho, e a sua existência continua a desconcertar paleontólogos e arqueólogos.
— Porquê?
— Porque não deveriam existir. Há muito tempo que aceitámos que os neandertais foram os últimos hominídeos próximos que sobreviveram. Os últimos elementos extinguiram-se há cerca de trinta ou quarenta mil anos, porém, a datação das ossadas do Povo das Cavernas do Veado Vermelho concluiu que viveram há onze mil anos.
Maria arqueou as sobrancelhas. Onze mil anos não representavam quase nada em tempo geológico.
— A maioria dos paleontólogos acredita que são uma subespécie de humanos, um cruzamento do Homo sapiens com um hominídeo mais antigo, o denisova, reforçando a ideia de que a nossa origem é muito mais variada do que se pensava.
Não era uma novidade para Maria. Que os humanos carregavam genes dos neandertais e denisovas estava bem documentado, existindo apenas ligeiras variações nas proporções desses genes consoante as regiões. Todavia, havia ainda muito que permanecia um mistério, como as conclusões de um estudo recente, que apontavam a existência de uma terceira espécie arcaica na nossa piscina genética, ainda desconhecida.
As possibilidades intrigavam-na.
Se o mistério pudesse ser resolvido, o que poderia revelar acerca do nosso passado?
— Pensa que é nisso que os chineses estão a trabalhar? Que estarão a tentar descobrir a raiz genética do que nos torna humanos?
— Não sei — respondeu Arnaud, olhando em redor. — Mas a julgar pela condição imaculada destes achados, todos eles provenientes de um período determinante na nossa história, acredito que os chineses descobriram algo importante. Algo suficientemente valioso para o manterem escondido do resto da comunidade científica.
Maria considerou os custos envolvidos na construção daquele complexo subterrâneo. Teria sido substancial, pensou ela, talvez uma soma do mesmo calibre do Projeto Manhattan. Porém, o mais desconcertante era quem se encontrava à frente de tal empreitada.
Olhou para os soldados que guardavam a entrada.
— Se estiver certo, por que razão está esta pesquisa a ser conduzida por uma divisão do exército chinês?
Arnaud franziu a testa.
— Talvez estejam a tentar encontrar uma maneira de transformar a descoberta numa arma.
Maria respirou fundo, horrorizada com o que isso poderia significar.
— Por outro lado, doutora Crandall, julgo que a sua pesquisa também estava a ser financiada pela DARPA, a divisão científica do exército dos Estados Unidos.
Isso também era verdade.
Estarão as minhas mãos mais limpas do que as dos chineses?, pensou Maria.
O seu financiamento tinha sido garantido por uma divisão da DARPA, o Biological Technologies Office, cuja missão era explorar a fronteira entre a ciência física e biológica. Antes de aceitar o dinheiro da DARPA, tinha-se informado acerca de outro projeto da mesma divisão, que envolvia o melhoramento das capacidades de soldados mediante várias formas, desde próteses avançadas a implantes cerebrais. Contudo, uma das pesquisas também procurava soluções para o aumento da inteligência por meio de manipulação genética, e suspeitava que a sua própria investigação estava de alguma forma ligada a esse objetivo maior.
Fechou os olhos, incapaz de continuar a negar a realidade. Gostasse ou não, a verdade é que o mundo se encontrava numa corrida às armas biotecnológicas. E ela e a irmã faziam parte dela.
Mas para quem estavam a trabalhar? Convocou o rosto sorridente de Amy Wu. China ou Estados Unidos?
Sentiu a respiração mais pesada, sabendo que isso era irrelevante se pretendesse continuar viva. Recordou a lição que constituíra a execução brutal do professor Wrightson.
Torna-te útil, se queres viver.
Olhou na direção da saída, consciente de que o seu destino estava nas mãos de uma única pessoa.
Quase de propósito, a porta abriu-se e uma figura entrou na sala, acompanhada por um soldado armado. Todavia, o recém-chegado não era quem Maria esperava.
Kowalski avançou, deitando um último olhar repelente para o soldado que vinha com ele, depois olhou para ela. Tinha uma ligadura ensanguentada na face esquerda e vestia um macacão novo.
— Aí estás tu — grunhiu.
— Que aconteceu? — perguntou Maria. — O Baako...
— Passou-se da cabeça — disse ele, tocando na ligadura. — Atacou-me.
Maria sentiu o coração saltar uma batida, mas Kowalski esticou os dedos debaixo do queixo e fez-lhe um sinal.
[É mentira]
Fitou-a diretamente.
— É melhor vires comigo, para ver se o conseguimos acalmar.
Antes que Maria pudesse responder, Gao empurrou Kowalski para o centro da sala.
— A major-general diz que têm de ficar aqui!
Kowalski cerrou os maxilares, contendo a frustração.
Ao que parece, por enquanto não vamos a lado nenhum.
Sem mais explicações, Gao virou costas e abandonou a sala, visivelmente irritado.
— Que se passou para ele estar tão danado? — perguntou Maria.
Kowalski lançou-lhe um olhar sombrio. Baixou o rosto, sussurrando.
— Acho que já nos toparam.
18h05
— Tenho a certeza de que o meu irmão não deixou nenhuma pista para o americano — insistiu Chang Sun. O tenente-coronel mantinha-se em sentido, mas os olhos brilhavam de raiva. — Sou capaz de apostar a minha vida!
E eu assegurar-me-ei de que pagas a aposta, pensou Jiaying.
Naquele momento, encontrava-se no comando de segurança do complexo. Tinha recebido um aviso do Ministério da Administração Interna, que supervisionava os serviços secretos da República Popular da China. Mediante informações conseguidas dos serviços secretos americanos, estes pareciam ter uma ideia de quem ordenara o ataque no centro de primatas. A confirmar-se, tinha de partir do princípio de que os americanos não tardariam a enviar operacionais para investigar.
Se é que já não o tinham feito...
Para garantir o nível de alerta no complexo, deslocara-se pessoalmente ao comando de segurança, localizado no coração da secção dirigida por Chang. Era uma intromissão propositada, destinada a transmitir-lhe o seu desagrado, um sinal claro de que não confiava nas capacidades do tenente-coronel.
Olhou para os monitores que cobriam as três paredes. Normalmente, os técnicos encontravam-se sentados à secretária em forma de U por baixo dos ecrãs, monitorizando as imagens que chegavam das várias câmaras de vigilância no interior e exterior do complexo. Jiaying ordenara a todos para abandonarem a sala, para falar em privado com Chang.
Deixou o coronel entregue à irritação que experimentava por ter sido repreendido, e observou o monitor que exibia a imagem do gorila da doutora Crandall.
— Lembrou-se de verificar a existência de aparelhos eletrónicos no corpo da criatura ou na cela?
— Gao encarregou-se pessoalmente de fazer uma busca corporal ao gorila e ao tratador. Não encontrou nada. Não houve nenhuma falha da parte dele que possa ter conduzido os americanos até nós.
— Segundo o Ministério da Administração Interna, não é bem assim.
— Então calculo que os americanos tenham obtido a informação por meio da agente infiltrada na divisão científica da Casa Branca. Quem sabe o que poderá ter dito antes de morrer, ou o que eles poderão ter descoberto depois?
Jiaying tinha de admitir esse cenário como provável. Felizmente, Wu não conhecia os pormenores do trabalho que estava a ser desenvolvido naqueles laboratórios. Ainda assim, a general não estava disposta a aliviar a pressão sobre Chang e o irmão. Pelo menos até estar convencida de que os americanos nada sabiam acerca do complexo.
— E a doutora Crandall? — perguntou.
Chang dirigiu a atenção da general para o monitor que exibia uma imagem da sala onde a geneticista e o paleontólogo aguardavam. O tratador acabava de se juntar a eles, acompanhado por Gao.
— Vou levar um técnico para fazer uma busca eletrónica quando for ter com ela — disse a general. — A doutora e eu ainda temos que conversar.
— Acredita que ela vai cooperar?
— Depende da sua capacidade de resolver a situação da irmã, tenente-coronel. Como estão a correr as coisas em Itália?
Jiaying teve especial prazer em apontar mais um falhanço de Chang. Segundo parecia, Lena tinha sobrevivido às cavernas na Croácia, encontrando-se em fuga com um pequeno grupo cujas identidades permaneciam por apurar. A general ainda estava confusa quanto ao motivo de se encontrarem em Itália.
Não fazia sentido.
Que estão a fazer num santuário católico?
— Conto ter esse problema resolvido dentro de uma hora — afirmou Chang, perentório.
— De modo satisfatório, espero eu. Sugiro que se concentre nisso e deixe o problema da cooperação da doutora Crandall comigo.
Olhou para outro monitor. Estava apagado. Para ter acesso a essas imagens, era necessária uma chave especial que só ela e Chang possuíam. Quando o monitor estava ligado, oferecia uma vista exclusiva para o interior da Arca. Se conseguisse capturar as duas irmãs, os problemas relativos a essa instalação podiam ser resolvidos mais depressa.
Por outro lado, se fosse necessário, resolveria a questão com apenas uma delas.
Virou-se para Chang e lançou-lhe um olhar gelado.
— Certifique-se de que perímetro do complexo continua a ser monitorizado, especialmente no que toca à presença de estrangeiros.
— E o meu irmão?
A general virou costas.
— Será interrogado por um representante do ministério que chegará a qualquer momento. Assim que terminar, o seu irmão deverá abandonar estas instalações até que as consequências do seu falhanço sejam inteiramente apuradas.
— Mas...
— Está a questionar as minhas ordens, Zhongxiào Sun?
Sentiu o olhar do coronel a queimar-lhe um buraco nas costas. Porém, preferia ter os irmãos separados, mantendo Chang isolado de qualquer apoio. O comportamento do tenente-coronel seria mais maleável e respeitoso, sabendo que a carreira do irmão poderia estar comprometida.
— Bù, Shàojiàng Lau — disse ele.
Jiaying sorriu, notando-lhe a obediência na voz.
Lindo menino...
Abandonou a sala, determinada a vergar outra vontade à sua.
18h18
Maria permaneceu de pé e esticou os braços enquanto um técnico varria o seu corpo com um detetor eletrónico. A major-general Jiaying Lau aguardava no outro lado da sala de braços cruzados. Tinha-lhe pedido para se submeter àquela revista corporal, mas não lhe explicara o motivo.
Não é que eu não consiga adivinhar, pensou Maria.
Os chineses já deviam suspeitar da presença de um localizador de GPS nas instalações, porém, a revista aleatória sugeria que não tinham a certeza, dando a impressão de que se tratava de uma medida preventiva. Olhou por cima da cabeça do técnico na direção de Kowalski, que se mantinha imperturbável. Certamente que os guardas já o tinham revistado a ele e a Baako.
O técnico trocou umas palavras em mandarim com Jiaying, fazendo uma vénia com a cabeça. Depois abandonou a sala. Não precisava de entender o que lhe teria dito para saber que apenas confirmara que estava tudo bem. Sendo assim, onde escondera Kowalski o aparelho? Na cela de Baako? Será que o animal o engolira?
A verdade é que tinha a cabeça cheia de perguntas, mas Jiaying regressara antes de ter oportunidade de conversar com Kowalski.
A general avançou na sua direção.
— Uma vez que esta questão foi resolvida, doutora Crandall, podemos continuar a nossa troca de impressões acerca da pesquisa que temos em mãos. Segundo sei, houve tempos em que conseguia dar o devido valor ao que estamos a fazer, e acredito que queira fazer parte da equipa.
O tanas!, pensou Maria. Porém, olhou em redor para os fósseis, espécimes e relíquias em exibição naquela sala.
— Se tivesse de adivinhar — disse Maria —, diria que a sua pesquisa tem como objetivo a criação de soldados geneticamente melhorados.
A general não manifestou reação alguma, anuindo apenas com a cabeça.
— Talvez à superfície seja esse o objetivo. Os grandes avanços científicos sempre foram motivados por necessidades mundanas.
— Por outras palavras, a necessidade é a mãe da invenção — citou Maria.
— Uma frase feita que tem sido verdadeira desde sempre. Assim como o aproveitamento global de tecnologias que nasceram de projetos militares secretos. A Internet, por exemplo: começou por ser uma pequena rede de informação e comunicação militar dos Estados Unidos, mas logo se expandiu para o mundo inteiro. De forma similar, as barreiras que hoje estamos a quebrar vão alterar o rumo da humanidade.
— Estamos a falar de encontrar maneiras de alterar o genoma humano. Ninguém pode prever quais serão os efeitos a longo prazo.
— Não está a pensar de forma racional — suspirou Jiaying. — A atividade humana já alterou o nosso genoma. O tabaco causa mutações no esperma. Quando têm filhos, os homens mais velhos têm uma elevada probabilidade de transmitir mutações semelhantes. A única diferença é que essas alterações são aleatórias. Por que razão não deveremos assumir o comando dessas consequências nefastas para o nosso genoma.
— Porque essa é a palavra-chave: comando. O que me está a dizer é nada menos do que um primeiro passo no caminho traiçoeiro da eugenia, em que a vida humana passará a ser fabricada, em que os bebés serão projetados e os mais fracos passarão a ser excluídos ou reduzidos a um nível inferior de humanidade. Nada de bom pode advir de tal aventura.
— Nada de bom? Podemos erradicar doenças, curar cancros, prolongar a vida; e sim, podemos até aperfeiçoar a natureza. Desde quando a natureza é infalível? Por que razão é tão horrível imaginar a humanidade a tomar as rédeas do seu futuro evolucionário? Que eu saiba, o seu país nunca proibiu oficialmente a perseguição destes objetivos.
Maria sabia isso melhor do que ninguém. A sua pesquisa podia ser um passo nessa direção. Qual é a diferença ética entre criar num laboratório um animal como Baako ou uma vida humana?
No silêncio que se seguiu, a voz de Dayne Arnaud fez-se ouvir.
— Penso não estar errado se disser que a major-general Lau descobriu algo que a pôs nesse caminho. Algo suficientemente importante para ter construído este complexo. Posso perguntar-lhe que descoberta foi essa?
— Obrigado por me lembrar, doutor Arnaud. Foi por isso que trouxe ambos até aqui — disse Jiaying. Dirigiu-se à parede oposta à saída. — Conhecem o monte Kailash, no sul do Tibete?
— Não conheço — respondeu o paleontólogo.
— É uma montanha sagrada nos Himalaias, um local de culto para hindus e budistas. Diz-se que o deus Xiva tomou o cume como residência eterna, o que justifica a afluência de peregrinos ao longo dos séculos. Há oito anos, um pastor tibetano que procurava uma ovelha tresmalhada descobriu um sistema de cavernas nas encostas do monte. Perante o que viu, chamou um antropólogo para examinar a descoberta.
Maria olhou em redor.
— E foi onde obteve esta coleção?
— Nessas cavernas e nos picos circundantes — confirmou a general. Pousou a mão numa secção insuspeita da parede. Um quadrado iluminou-se, revelando um leitor de impressões digitais. — No entanto, foi na primeira caverna, na que foi descoberta pelo pastor, que encontrámos isto.
Um gavetão deslizou lentamente da parede, semelhante a um caixão. O interior iluminou-se com uma luz suave.
— O pastor acreditava ter encontrado o covil de um ieti — explicou Jiaying. — E talvez não estivesse totalmente enganado, uma vez que as ossadas que encontrámos poderão estar na origem do mito de tais criaturas. Ou até no nascimento de lendas sobre um deus a meditar no topo daquela montanha. Seja como for, a verdade é que a realidade era bem mais excitante e esclarecedora.
A general afastou-se, para que Maria e Arnaud pudessem examinar o conteúdo do gavetão. Kowalski também se aproximou, curioso. O arquejar de espanto do paleontólogo fez-se ouvir de imediato. Maria levou uma mão à garganta, lutando para conter a sua própria surpresa.
Dentro do gavetão, repousava o esqueleto completo de uma figura antropoide. O formato do crânio era surpreendentemente similar ao dos humanos modernos, exceto pelas arcadas supraciliares, um pouco mais espessas, e pela crista sagital dupla. Porém, o que suscitara aquela onda de espanto era o tamanho impressionante do esqueleto, que deveria medir quase dois metros e meio, exibindo um crânio duas vezes maior do que o de um homem normal.
Eram as ossadas de um verdadeiro gigante.
— Não pode ser verdadeiro — balbuciou Kowalski.
— É, sim... — sussurrou Arnaud, quase sem voz. — Já tinha visto fragmentos deste hominídeo, mas nada como isto. Na nomenclatura mais antiga, esses fragmentos foram classificados como Meganthropus, ou Homem Grande.
— Acho que é uma descrição adequada — disse Kowalski.
Arnaud continuou.
— A maioria dos paleontólogos modernos acordaram em mudar o nome científico para Homo erectus palaeojavanicus, acreditando tratar-se de um outro ramo da nossa árvore genealógica ancestral. Têm sido encontrados restos destes enormes descendentes do Homo erectus ao longo do Sudeste Asiático.
— Quanto poderia pesar? — quis saber Maria.
— Pela densidade dos ossos das pernas e pelo tamanho do crânio — respondeu Jiaying —, estimamos que poderia pesar entre trezentos e trezentos e cinquenta quilos.
Kowalski olhou para ela, questionando-se.
— Entre seiscentas a oitocentas libras — explicou Maria.
O dobro do peso de um gorila.
— Contudo, pelo que posso observar — interrompeu Arnaud —, este espécime apresenta características invulgares. Conformações que me parecem diferentes do Meganthropus típico.
Jiaying anuiu.
— Tem razão. De acordo com o nosso estudo comparativo, acreditamos que este espécime é o resultado do cruzamento de um Meganthropus com os primeiros humanos. Foi por isso que lhe demos o nome Homo meganthropus. Esta conclusão foi corroborada pela análise que fizemos ao genoma, o qual conseguimos sequenciar na íntegra.
— Conseguiram recuperar ADN válido? — perguntou Maria, incapaz de esconder o espanto.
— Exato.
Maria observou o esqueleto com mais atenção e notou os pequenos furos na pélvis e numa tíbia. Endireitou as costas, apercebendo-se subitamente de algo ainda mais espantoso. Pôs as ideias em ordem, para conseguir formular as palavras. A hipótese já tinha sido lançada por geneticistas e antropólogos, de que existiria uma terceira espécie não identificada de hominídeos que teria contribuído para o genoma do homem moderno, provavelmente um descendente desconhecido do Homo erectus, como aquele esqueleto. Ainda mais significativo, estimava-se que poderia ter vivido algures na Eurásia Central.
Voltou a olhar para o interior do gavetão.
Estou a olhar para esse espécime? É este o nosso antepassado comum?
Arnaud parecia seguir o mesmo raciocínio, embora de um ângulo diferente.
— Se estiver certa acerca de esta espécie ter acasalado com os primeiros homens, estamos a falar de que período? Calculo que tenham datado estas ossadas?
— Sim. O esqueleto tem aproximadamente trinta mil anos.
— Então estes gigantes partilharam o mundo connosco — disse Kowalski, compreendendo as implicações.
— Durante algum tempo — concordou Jiaying. — E se considerarmos os avistamentos de ietis ao longo dos Himalaias, talvez ainda estejam connosco. As histórias de ietis que roubam as mulheres de aldeias remotas para acasalarem e gerarem crias ainda persistem. Por isso, quem sabe?
A general sorriu, divertida com tais superstições. Todavia, Maria interrogou-se se essas histórias não teriam um fundo de verdade que subsistia desde esse período longínquo. No Antigo Testamento, podia-se encontrar trechos que davam conta de gigantes a viverem entre os homens.
— Estes tipos só viviam nestas redondezas? — perguntou Kowalski. — Na China?
— Não podemos saber — disse Jiaying.
— Pode não ser assim — interveio Arnaud. — Em 1890, um compatriota meu, um antropólogo chamado Georges Vacher de Lapouge, descobriu ossadas do período neolítico em Castelnau-le-Lez, em França. O achado ficou conhecido como Gigante de Castelnau, porque o indivíduo teria três metros de altura. Os ossos foram estudados por zoólogos, paleontólogos e anatomistas, na Universidade de Montpellier, e todos confirmaram a validade da descoberta. Mais tarde, foram descobertas ossadas semelhantes durante a construção de uma barragem em França, com crânios que eram duas vezes maiores do que o de um homem normal. Todas essas descobertas remontavam à última era glaciar na Europa, por volta do mesmo período destes ossos.
— Que terá acontecido a estes gigantes? — perguntou Kowalski, fazendo um movimento com o braço ao longo do comprimento do esqueleto. — Alguma coisa me diz que os nossos antepassados minorcas não teriam condições de fazer frente a estes tipos... pelo menos, sem ajuda.
— Tornámo-nos simplesmente mais espertos — disse Arnaud. Inclinou-se sobre o gavetão, examinando o crânio. — Pela capacidade craniana deste espécime, esta criatura não devia ser muito inteligente. Quando muito saberia usar uma ferramenta ou fazer fogo como o Homo erectus, mas pouco mais.
Maria franziu a testa.
— Então de onde vieram estes artefactos? As ferramentas, as hastes... para não falar da figura de Vénus. Está a dizer que este híbrido não teria capacidade para os fazer?
— Não vejo como — respondeu Arnaud, endireitando-se.
— E tem razão — reforçou Jiaying. — Demorámos cinco anos a juntar as peças acerca do comportamento desta espécie, estudando as suas cavernas, investigando clãs vizinhos.
— Como o Povo das Cavernas do Veado Vermelho — disse Arnaud, olhando para o crânio mais pequeno.
Jiaying fez que sim com a cabeça.
— As ferramentas mais avançadas que aqui estão expostas foram produzidas por essa tribo, mas descobrimos algumas delas nas cavernas do monte Kailash. Juntamente com estas...
A general tocou noutro painel, fazendo subir uma secção de parede que revelou uma alcova, protegida por um vidro. Os projetores de halogéneo iluminavam uma coleção de pedaços de crânios carbonizados, juntamente com fragmentos de pélvis e fémures. Era como se estivessem a espreitar um ossário.
— Encontrámos uma espécie de crematório no interior das cavernas do Meganthropus. Retirámos estes ossos das cinzas. Pertencem ao Povo do Veado Vermelho.
— Estes gigantes eram canibais? — perguntou Maria, repugnada.
A general fitou o grupo.
— A nossa pesquisa arqueológica diz-nos que eram uma espécie de bárbaros. Sabemos que atacavam os clãs vizinhos, provavelmente por motivos xenófobos. E mesmo que não tivessem capacidade para fabricarem as suas próprias ferramentas e armas, não se coibiam de as roubar, acabando por as assimilar.
— E que lhes aconteceu? — insistiu Maria.
— Acreditamos que esse comportamento selvagem acabou por se virar contra eles próprios. No mesmo crematório, também encontrámos fragmentos de crânios do Meganthropus.
Maria suspirou pesadamente.
Acabaram por comer os seus.
Arnaud deu uma última achega.
— Talvez esse comportamento seja a razão de existirem tão poucos indícios desta tribo. Se canibalizavam e queimavam os mortos, é normal que os registos fósseis sejam tão escassos.
— É por isso que este achado é tão importante — declarou a general. — Porque nos oferece uma oportunidade única de dissecarmos o âmago da nossa herança genética, de extrairmos genes que sabemos serem compatíveis com o homem moderno, sequências de ADN que podem beneficiar a humanidade.
— Beneficiar? — perguntou Maria. — Como?
— Pela mera existência do Homo meganthropus, sabemos que podemos ser maiores, mais fortes. É apenas uma questão de recuperarmos esse potencial.
— Para desenvolver soldados melhores — atirou Maria.
— Está a pensar em ponto pequeno, doutora Crandall. Na sua Universidade de Harvard, os geneticistas já isolaram dez variações naturais de genes que poderiam beneficiar toda a humanidade. Uma delas confere maior densidade óssea, por exemplo, tornando os nossos membros mais resistentes a fraturas. Outra variante poderia proteger-nos da doença de Alzheimer. Outra poderia reduzir o risco de doenças cardíacas. — A general apontou para o gavetão. — Por que razão não havíamos de tirar todo o proveito deste valioso recurso genético? Por que razão não devemos usar este potencial ancestral para o bem de todos?
— Por causa disto — disse Maria, apontando para os ossos carbonizados. — Força bruta sem inteligência para a domar, uma receita para o desastre.
Em vez de desafiar Jiaying, o comentário limitou-se a arrancar um sorriso à general.
— Precisamente, doutora Crandall.
Maria pestanejou várias vezes, compreendendo subitamente porque fora trazida até ali, por que razão os ossos do neandertal híbrido descoberto na Croácia eram tão importantes. A sua investigação lidava com a evolução da inteligência, essa sequência singular de genes que tinha diferenciado os primeiros homens dos restantes hominídeos.
Fitou o gavetão aberto. Aparentemente, os chineses tinham descoberto o músculo e agora queriam um cérebro para o acompanhar.
Antes que pudesse protestar, a porta da sala abriu-se. Chang entrou, ignorando todos os presentes, o olhar fixo na major-general. Falou rapidamente em mandarim, aparentando alguma excitação.
As palavras arrancaram um sorriso a Jiaying.
Maria sentiu o coração acelerar.
Qualquer coisa que faça esta mulher feliz não pode ser boa para nós.
Após a breve troca de palavras, Jiaying virou-se para Maria.
— Tenho uma notícia maravilhosa, doutora Crandall. Parece que a sua irmã se vai juntar a nós.
14
30 de abril, 13h00 CEST
Guadagnolo, Itália
— Que fazemos? — perguntou Lena.
Momentos antes, no silêncio da pequena caverna, conseguira ouvir o aviso de Seichan ao telefone com Gray: temos companhia. Ele encontrava-se agora de sentinela na base da escadaria. Empunhava uma pistola preta, vigiando a única saída possível. Olhou os degraus negros. Mesmo que conseguissem chegar à capela, quais eram as opções? A única saída da montanha obrigava-os a ir ao encontro dos inimigos, que andavam à procura deles, lá em baixo.
— Já temos as fotografias? — perguntou Gray.
Lena ergueu o telemóvel.
— Sim.
A seguir ao telefonema de Seichan, Lena tirara uma série de fotografias, captando a Eva de Kircher de todo os ângulos possíveis. Tentara registar todos os pormenores do esqueleto, juntamente com as relíquias que segurava: a escultura da Lua e o estranho bastão. Naturalmente, também tirara fotografias da estátua de bronze que mantivera escondidos aqueles restos mortais durante séculos.
— Também tenho tudo do que preciso — disse Roland, afastando-se da figura da Virgem e exibindo a capa de cabedal com um labirinto dourado do diário de Athanasius Kircher, que retirara de uma bolsa metálica no interior da estátua.
Apontou para a outra metade da carcaça aberta.
— Conseguiste uma boa imagem deste mapa? — perguntou a Lena.
— Fiz o meu melhor, mas as inscrições são muito ténues.
— Não faz mal — disse ele, apressando-a. — Não é a primeira vez que vejo algo semelhante.
Lena sentiu que algo perturbara o padre, mas não tinha tempo para tentar saber o motivo. Apressaram-se ao encontro de Gray.
— Estamos prontos — disse Roland, deitando um último olhar lamentoso para a Virgem de bronze. Tomara algumas medidas. Também tinha retirado a escultura da Lua, guardando-a numa sacola que trazia ao ombro. Todavia, mostrava-se relutante em abandonar a Eva de Kircher.
Apesar de sentir o coração na garganta, Lena apreciou a hesitação dele. Desejava poder levar consigo aquelas ossadas, preservando-as para um futuro ensaio genético. Porém, o esqueleto tinha sido artificialmente articulado com fio de bronze, não só para ligar os ossos, mas também para o manter preso à estátua mecânica. Sem tempo e sem ferramentas para o libertar, tinha de se contentar com as imagens que guardara no telemóvel e com o que Roland recolhera. De qualquer maneira, podiam sempre regressar, caso sobrevivessem.
— Mantenham-se atrás de mim — disse Gray, começando a subir a escadaria. — Mas guardem alguma distância. Deixem-me avaliar a situação lá em cima e esperem pelo meu sinal antes de subirem.
Avançaram em fila indiana. Lena respirava pesadamente, enquanto Roland se arrastava atrás dela. Mais ágil, Gray subiu com rapidez e em silêncio. Desligara a lanterna de bolso, deixando-os dependentes da iluminação natural que provinha do alçapão aberto no chão da capela.
Gray chegou à abertura bem mais rápido do que Lena e Roland. Parou e inspecionou a laje de mármore que se transformara em rampa. Lena aguardou a pouco mais de um metro dele, aproveitando para recuperar o fôlego.
Gray olhou para trás e apontou para a parede.
— Encontrei uma alavanca. Deve servir para fazer descer e subir a rampa manualmente.
— Que fazemos? — perguntou Roland.
Lena conseguia adivinhar. As palavras de Gray confirmaram o que estava a pensar.
— Um de vocês fica a segurar a alavanca. Se houver sarilhos, acionem a rampa e mantenham-se escondidos na caverna.
— Mas assim não poderá... — disse Lena.
— Eu farei o possível para afastar o inimigo daqui. Se não regressar, aguardem pelo anoitecer antes de tentarem a fuga.
Recortado pela luz que entrava pela abertura, o rosto de Gray era apenas uma sombra, tornando impossível saber até que ponto se sentia confiante acerca daquele plano.
— Roland — continuou ele —, ainda tem o número da linha segura para Washington que lhe dei?
— Sim, tenho.
— Se acontecer o pior, use-a. O diretor Crowe ajudá-los-á até se encontrarem em segurança.
Ao contrário de a tranquilizar, aqueles planos de contingência apenas deixavam Lena mais ansiosa.
— Okay... — disse Roland, acusando a mesma tensão na voz.
Gray assentiu com a cabeça. Virou costas e começou a subir a rampa, mantendo-se agachado.
Lena subiu os últimos degraus e posicionou-se junto à alavanca de bronze que saía da parede. Agarrou-a com as duas mãos, resgatando um pouco de confiança à solidez do metal. Olhou para o rosto pálido de Roland, iluminado pelo alçapão. Os olhos do padre brilhavam de medo. Atrás dos ombros, havia apenas escuridão.
Sentiu os dedos apertarem-se à volta da alavanca.
Meu Deus, faz com que não tenha de puxar isto...
13h02
Gray deslizou até à porta da capela, mantendo-se fora da linha de visão da Escada Santa, a escadaria que fazia a ligação à igreja do santuário. Tocou o pequeno microfone que trazia junto à garganta.
— Seichan? — sussurrou. Ajustou melhor o auricular ao ouvido, aguardando uma resposta.
Não obteve nenhuma.
Onde estás?
Na caverna, enquanto aguardava que Lena e Roland terminassem o trabalho, tentara contactar a companheira diversas vezes, quer pelo rádio quer pelo telefone de satélite. Porém, depois da mensagem inicial, nunca mais tivera notícias.
Aconteceu alguma coisa.
Deslocou-se até uma das janelas e ergueu-se o suficiente para espreitar para lá de uma curva. O ponto de observação era menos exposto do que à porta da capela. Debaixo da sua posição, os degraus de mármore da Escada Santa irradiavam sob o sol do meio-dia. De momento, parecia não haver ninguém na escadaria. Porém, a vista da janela alcançava o pátio nas traseiras da igreja, onde podia observar um grupo de pessoas que se reunira ao redor de um guia turístico, segurando um guarda-chuva vermelho.
Na última mensagem, Seichan informara-o da chegada de um autocarro carregado de turistas chineses, entre os quais se encontrava um grupo suspeito de seis elementos.
No pátio, o guia turístico baixou o chapéu e apontou para a capela.
Gray cerrou os maxilares.
Não me digam que vêm para aqui.
Desejou que não arredassem pé do pátio da igreja. A ideia de pôr civis em risco nunca era agradável, sobretudo se fosse obrigado a abrir caminho a tiro.
Então, um movimento chamou-lhe a atenção. Da porta nas traseiras da igreja, viu surgir a silhueta familiar da irmã Clara. Encontrava-se acompanhada por dois homens. A freira protegeu os olhos com a mão, apontando em seguida para a capela. Os dois homens olharam nessa direção.
Gray afastou-se da janela, amaldiçoando a boa vontade da freira. Teriam os homens perguntado por eles ou a irmã Clara limitara-se a contar a história da capela e a lenda de Santo Eustáquio? Um deles agradeceu, fazendo uma vénia com a cabeça. O outro apressou-se a ir ter com dois companheiros que aguardavam no trilho, junto à encruzilhada. Houve uma breve troca de palavras e o par dirigiu-se para a gruta de São Bento, indicando claramente que tinham recebido instruções para procurarem na caverna do eremita.
O homem que deu a ordem juntou-se de novo ao colega, que tornou a levantar o olhar para a capela.
Gray agachou-se.
Quatro de uma equipa de seis...
Calculou que os restantes se encontrassem frente à igreja, cobrindo a única saída da montanha e fechando o perímetro. A estratégia era óbvia, uma vez que a alternativa disponível seria atirarem-se do penhasco.
E eu não trouxe paraquedas, portanto...
Um murmúrio abafado ergueu-se do chão atrás dele. Compreendeu apenas algumas palavras, mas o tom dava a entender que Lena e Roland queriam saber o que estava a acontecer.
— Fiquem onde estão — avisou, deitando-se sobre a barriga, junto à porta.
Estendeu os braços e assestou a mira da SIG Sauer sobre os dois homens que começavam a subir a escadaria. Considerou a opção de retroceder para o alçapão e esconder-se com Lena e Roland, porém, parecia-lhe evidente que o inimigo estava a par da presença deles naquela montanha. Receou por aquilo que poderiam fazer ao grupo de turistas e à freira se não os conseguissem encontrar.
Além do mais, Seichan encontrava-se em parte incerta.
Sabendo disso, Gray precisava de manter a posição, para a apoiar.
A meio da escadaria, o homem que subia à frente abriu o blusão comprido, revelando um colete à prova de bala e uma metralhadora de assalto compacta. Gray reconheceu a arma, uma ZH-05, a última novidade das forças especiais chinesas. Vinha equipada com uma mira de laser e um lança-granadas.
Então, como se a situação não fosse suficientemente má...
No pátio, o grupo de turistas separou-se do guia e começou a dispersar. Alguns foram na direção da gruta. Os restantes começaram a subir a escadaria. Se abrisse fogo, a probabilidade de atingir um deles era mais do que certa.
Precisava de outro plano.
Olhou por cima do ombro. A capela tinha quatro janelas, cada uma virada para um dos pontos cardeais. Precisava que os dois homens entrassem na capela, longe dos civis. Rastejou até ao altar na parede oposta. A janela acima dele abria-se para o vazio do penhasco. Se conseguisse esconder-se do lado de fora, poderia tentar uma emboscada.
Todavia, primeiro tinha de se certificar de que Roland e Lena ficavam em segurança.
Espreitou pelo alçapão. Dois rostos pálidos olharam para ele.
— Fechem-no — ordenou. — Temos companhia a caminho.
Apesar de assustada, Lena assentiu com a cabeça e fez força na alavanca de bronze. Recusou-se a mexer. Voltou a tentar, fazendo com que as veias da testa palpitassem enquanto lutava com o mecanismo secular.
Roland juntou-se a ela, adicionando a sua força, e a alavanca cedeu finalmente. O chão estremeceu e a rampa começou a subir, acompanhada pelo som rítmico de engrenagens.
Satisfeito, Gray correu para a janela acima do altar.
Pelo menos, estavam a salvo.
Falta apenas a Seichan.
Trepou por cima do altar e saltou para o parapeito da janela. No mesmo instante, ouviu um disparo nas costas, vindo do exterior. Rodou o corpo, equilibrando-se na janela.
Um objeto negro entrou a voar para o interior da capela.
Granada!
Sem tempo para pensar, já estava em movimento.
O projétil de vinte milímetros fez ricochete no teto e caiu sobre o altar, ressaltando na pedra. Sem alternativa, Gray lançara-se pela janela. Horrorizado, ainda conseguira ver a granada rolar e cair pelo alçapão, antes de se fechar.
Amaldiçoando-se, caiu no chão e encostou o corpo à rocha, cobrindo a cabeça com as mãos.
A detonação fez tremer o chão debaixo dele.
Algumas telhas da capela soltaram-se, caindo e partindo-se à sua volta.
Visualizou os rostos assustados de Roland e Lena.
Que foi que eu fiz?
13h08
Que foi que fizeste, Gray?
Seichan agachou-se na pequena caverna, enquanto a explosão se desvanecia. As chamas das velas ainda oscilavam por causa do abalo, projetando sombras dançantes nas paredes da gruta de São Bento. Manteve a posição e encheu os pulmões de ar, retesando os músculos, preparada para sair para a luz do Sol.
No exterior, os gritos dos turistas erguiam-se conforme reagiam à explosão, tentando abandonar as imediações. Melhor assim, pensou penosamente. Sem gente por perto, o risco de vítimas colaterais sempre era menor no caso de um tiroteio — e ia haver um.
Assim que teve a certeza de que o teto da gruta não ia desabar sobre ele, concentrou-se em Gray. Acreditava que ele tinha sido o alvo daquela explosão, mas não conseguia estabelecer comunicação alguma a partir do interior da caverna.
Uma coisa de cada vez...
Ajoelhou-se e arrancou o seu punhal do pescoço do cadáver do operacional chinês. O companheiro encontrava-se a um metro de distância, com a garganta cortada de orelha a orelha. Minutos antes, calculara que o inimigo iria vasculhar aquela gruta, e tinha montado uma emboscada. Acreditava poder despachar um deles.
Dois era muito melhor.
Eliminara ainda um terceiro, junto ao parque de estacionamento. Não tivera dificuldade em surpreendê-lo a partir do lado do convento onde se encontrava anteriormente, e que oferecia um ângulo morto para se poder aproximar. Sem estar à espera, o desgraçado não fora suficientemente rápido para ela. Depois escondera o corpo debaixo do autocarro e contornara a igreja, dirigindo-se então para a gruta para preparar a armadilha.
Disposta a continuar a matança, limpou o punhal ensanguentado no peito da vítima e guardou-o de novo na bainha de pulso. Certificou-se de que a manga do casaco o cobria na totalidade. Como precaução adicional, alcançou a pistola que ele trazia sob o blusão. Entalou-a no cinto, atrás das costas. Uma vez pronta, sacudiu e alinhou a roupa, verificando o seu aspeto.
O preto, pelo menos, sempre disfarçava os salpicos de sangue.
Ajustou o véu do hábito de freira. Enquanto estivera escondida no convento após a chegada do autocarro, vasculhara o edifício e encontrara o traje num armário, compondo imediatamente a personagem. Nada melhor do que uma simples freira para surpreender o inimigo, pensara, sobretudo nas imediações de uma igreja.
Satisfeita com o visual, dirigiu-se para a saída. Ao abandonar a igreja, deparou com uma jovem mulher chinesa, acompanhada da filha de quatro anos. Tinham-se abrigado atrás do vidro do ossário, como se os restos mortais dos monges as pudessem proteger. A mulher olhou para ela, aterrorizada, os braços envolvendo a criança.
— Xiunu, jiu ming? — suplicou, em mandarim.
Ajude-me, irmã!
Mantendo as aparências, Seichan apontou na direção do gradeamento da igreja, que conduzia ao parque de estacionamento. Manteve a voz suave, consolando-a em mandarim.
— Corra para a frente da igreja, minha filha. Depois continue pela estrada e não pare.
A mulher apertou a criança com mais força, demasiado aterrorizada para se conseguir mexer.
Seichan revirou os olhos, optando por uma abordagem mais direta. Meteu uma mão no interior do hábito e sacou da pistola, apontando com a arma na direção do gradeamento.
— Mexe-te! Já!
Resultou.
Como um coelho assustado, a mulher correu disparada, carregando a criança nos braços.
Com o caminho livre, avançou até à encruzilhada no meio do trilho, de onde tinha uma perspetiva desimpedida da capela. Observou os dois homens que corriam escadaria acima. Um deles segurava uma pistola, o outro empunhava uma espingarda automática. Os dois alcançaram a capela e tomaram posições de cada lado da entrada, encostados à parede.
Sentiu o coração acelerar, receando por Gray.
Ergueu a pistola, mas encontravam-se demasiado afastados para conseguir um tiro decente.
Tocou no microfone que trazia no pescoço.
— Gray, estás bem?
A voz dele fez-se ouvir de imediato no auricular.
— Ainda estou vivo, se é isso que queres dizer.
Seichan sentiu uma onda de alívio, mas procurou ser concisa.
— Tens dois tipos a prepararem-se para te bater à porta.
— Okay. Consegues dar conta dos outros? Precisamos de encontrar uma maneira de sair desta montanha.
— Estou a tratar disso — disse Seichan, olhando para a igreja.
O último atacante deveria estar escondido no santuário, o que representava um problema devido aos turistas que ali tinham procurado abrigo. Observou o pátio e o jardim nas traseiras da igreja, verificando que se encontravam vazios. A guia turística era a única pessoa que se encontrava ainda a céu aberto, olhando ansiosamente na direção da capela. A mulher reconhecera claramente a ameaça, mas mantivera o sangue-frio, tentando garantir que todos os seus clientes conseguiam abrigo na igreja.
Pela porta aberta, Seichan notou a multidão que se acotovelava no interior.
Isto não vai acabar bem.
Cruzou as mãos, escondendo-as juntamente com a pistola no interior das mangas do hábito. Baixou a cabeça e apressou-se em direção à igreja, esperando que o disfarce fosse o suficiente para poder surpreender o atacante que restava. Uma troca de tiros naquele espaço apinhado de gente seria o pior que poderia acontecer.
A guia turística avistou-a e fez-lhe sinal para que acelerasse o passo. Ainda segurava o chapéu de chuva aberto, escondendo-se menos do sol do que dos atiradores.
Seichan estugou o passo.
Quando já estava perto da igreja, ouviram-se novos disparos vindos da capela. Um dos atacantes abrira fogo da entrada, oferecendo uma oportunidade para o companheiro entrar.
Lutou contra a vontade de virar costas e correr em auxílio de Gray, mas tinha a sua própria missão. Ao aproximar-se da porta do santuário, uma figura escura irrompeu do interior, atraída pelos disparos. Reconheceu o homem de imediato. Ele avançou na direção dela, completamente alheio à ameaça que tinha à frente dos olhos.
Seichan sorriu. Puxou a pistola do interior do hábito e quase lhe despejou o carregador no peito. A chuva de chumbo deteve-o instantaneamente. Ainda assim, pregou-lhe uma última bala no meio da testa. Ele vacilou, com o rosto ainda em choque, depois caiu sobre a gravilha.
Seichan desfez-se da arma vazia e sacou da sua SIG Sauer — uma precaução na hipótese de haver outro atacante. Contara seis deles à chegada, mas podiam ser mais.
Feitas as contas, a verdade é que estava certa quanto ao número de homens.
A guia turística baixou o guarda-chuva, como se estivesse a esconder-se atrás dele. Seichan notou o olhar dela acima do rebordo. Os olhos não mostravam medo.
Mau sinal.
Reconheceu imediatamente o erro que cometera.
Não sou a única a envergar um disfarce.
No mesmo instante em que as balas irromperam através do tecido do guarda-chuva, mergulhou para um dos lados, rolando pelo chão. Um dos disparos acertou na SIG Sauer, arrancando-lhe a arma das mãos.
A mulher rodou o guarda-chuva e avançou sobre ela.
13h12
Enquanto os tiros ecoavam do santuário, Gray circundou a capela. Ouviu o primeiro atacante gritar para o companheiro, provavelmente informando-o de que não havia ninguém no interior. Conseguia perceber a perplexidade nas vozes dos homens. Além de encontrarem a capela deserta, deveriam estar igualmente estupefactos pela ausência de danos causados pela granada.
Gray tinha as suas próprias preocupações acerca da explosão, pois ignorava o destino de Roland e Lena.
Alcançando a janela virada a sul, levantou-se de repente e disparou duas vezes contra o atacante no interior. Apontou à cabeça, ciente de que envergava um colete à prova de bala por baixo da roupa. Os disparos foram ambos certeiros e o soldado chinês tombou no chão. Na entrada, o segundo ripostou de imediato com uma chuva de balas, forçando Gray a desaparecer de novo.
Recuou pelo mesmo caminho por onde tinha vindo, pondo a capela entre ele e o atirador chinês. A janela que se encontrava acima ficava frente à entrada. Visualizou o adversário acocorado contra a parede, atento a qualquer movimento nas três janelas restantes.
Com as costas coladas à parede, segurou a pistola com as duas mãos, preparando-se para o duelo iminente.
Então, ouviram-se três tiros sucessivos.
Uma granada voou pela janela, passando-lhe por cima da cabeça e atingindo um pedregulho a cerca de dez metros, ressaltando depois na sua direção. Gray visualizou os outros dois projéteis a voarem pelas restantes janelas. Aparentemente, o soldado chinês tentava obrigá-lo a mostrar-se.
Resultara.
Vendo a primeira granada rebolar para junto dele, Gray não tivera opção. Mergulhou de cabeça pela janela, abrigando-se das explosões que se sucediam no exterior. Enquanto voava por cima do parapeito, manteve os braços esticados à frente da cabeça, segurando a pistola e disparando contra a entrada.
O oponente não precisou de mover um músculo. Encontrava-se deitado sobre a barriga, resguardado na ombreira da porta, com o bocal da metralhadora a expelir fogo contínuo para o interior da capela. Gray sentiu um ardor atravessar-lhe o braço quando aterrou no chão, rolando imediatamente sobre si mesmo, para junto do cadáver do outro atacante. Deitado de costas, usou o corpo do soldado como escudo, continuando a disparar.
A posição era indefensável, o que viria a comprovar-se no instante imediato, quando o atacante lançou outra granada.
O projétil passou-lhe a centímetros do nariz e ressaltou no altar, caindo junto dele. Antecipando essa possibilidade, Gray rodou juntamente com o cadáver, cobrindo a granada com o peito do soldado morto. Encolheu-se em cima dele, esperando que o colete à prova de bala fosse suficiente para o proteger. Pelo canto do olho, viu o atirador esconder-se atrás da ombreira da porta, procurando também escapar à explosão.
A onda de choque arremessou Gray pelo ar, juntamente com uma nuvem de fumo e sangue. Quando caiu, em vez de se estatelar no chão de mármore, atravessou-o. Além de o ter atirado como uma boneca de trapos, a detonação também despedaçara a laje que cobria a escadaria de pedra.
O impacte nos degraus foi forte e doloroso.
Atordoado e surdo, Gray conseguiu encontrar forças para se levantar. Passou por cima da pilha de detritos que cobria a parte superior da escadaria e espreitou pelo alçapão. O fumo obscurecera o interior da capela. Aguardou um instante, atento ao retângulo iluminado que demarcava a entrada. Uma silhueta ergueu-se em contraluz.
O seu oponente.
Resguardado pela nuvem de fumo, Gray manteve-se calmo enquanto levantava a sua SIG Sauer. Conseguira mantê-la na mão. Fez o possível por manter o braço estável, e disparou as últimas balas que lhe restavam.
Com um sorriso lúgubre, viu a figura negra cair no chão.
Finalmente...
Completamente esgotado, sentiu as pernas cederem e tombou por fim, deslizando pelos degraus. A visão enevoou-se. Porém, a base da escadaria iluminou-se, revelando duas formas indistintas.
Sentiu umas mãos agarrarem-lhe os ombros.
— Gray?
Era Lena.
Respirou pesadamente, tentando pronunciar um único nome.
— Sei... chan...
13h15
O tiro seguinte arrancou um pedaço da asa do anjo.
Nove...
Escondida atrás da estátua, Seichan mantinha a contagem das balas disparadas pela assassina asiática com o chapéu de chuva. Se a arma fosse o mesmo modelo da que tinha roubado a um dos homens que matara na gruta — uma QSZ-92 de fabrico chinês —, o carregador duplo continha quinze munições, o que significava que a sua oponente ainda dispunha de várias oportunidades para acabar com ela.
Passara os últimos dois minutos num feroz jogo do gato e do rato, ao longo dos jardins da igreja. De quando em vez, a batalha era interrompida por ruidosas explosões que ecoavam da capela. Seichan aproveitava as oportunidades para mudar de abrigo, para forçar a adversária a desperdiçar munições.
Enquanto o fazia, tentava manter ao largo os receios acerca de Gray, ignorando as saraivadas de tiros que chegavam do cimo da montanha. Precisava de se manter focada. Aquela assassina era disciplinada e bem treinada, mostrando-se tão fria quanto ela.
Conseguira apenas vislumbres do aspeto da mulher enquanto se movimentava pelos jardins, iludindo-a constantemente com um rodopiar daquele chapéu de chuva infernal. Aparentava uns vinte anos, ou talvez menos. Usava um corte de cabelo a direito, um pouco abaixo das orelhas, com franja. Calculou que não tivesse mais do que um metro e meio, com um corpo magro e tonificado: uma constituição física ideal para a velocidade, da qual sabia tirar vantagem.
Tentara repetidamente alcançar a SIG Sauer que lhe fora arrancada da mão, mas a sua oponente conseguira impedi-la em todas as ocasiões. Restando-lhe apenas os punhais, já tinha lançado dois dos três que trazia sempre consigo. O primeiro perfurara o tecido do guarda-chuva, mas falhara o corpo da mulher. O segundo fora bloqueado com um rodopiar hábil das hastes metálicas do chapéu.
Agachada atrás da estátua do anjo, Seichan enfiou a mão por baixo do hábito de freira, retirando a última lâmina de uma bainha que trazia presa no tornozelo.
É a tua última oportunidade...
Usou a superfície polida como um espelho, observando a adversária sem necessitar de se expor. Na imagem refletida, viu a mulher aproximar-se escudada pelo chapéu, os olhos negros espreitando ocasionalmente fora do rebordo, mas nunca surgindo no mesmo sítio.
Para lá da ameaça, tinha uma linha de visão direta para a porta traseira da igreja. Continuava entreaberta, conseguindo distinguir o conjunto de vultos que se amontoava no interior. Com tanto tiroteio e explosões, os turistas continuavam demasiado aterrorizados para arriscarem uma tentativa de fuga. Conseguia ouvir o choro de crianças, os pais que tentavam acalmá-las. Calculou que alguém tivesse telefonado para a polícia, mas nunca chegariam a tempo.
Sabendo disso, esperou que a mulher retrocedesse até ao trilho de gravilha.
Só então tentou a sua última cartada.
Surgiu do lado esquerdo da estátua, simulando uma nova tentativa de recuperar a pistola, mas logo mergulhou para o lado contrário, rolando sob a asa esquerda do anjo. Quando surgiu do outro lado, lançou o punhal rente ao chão. A lâmina voou-lhe dos dedos, passando por baixo do guarda-chuva, atingindo a mulher na barriga da perna.
Atirou-se para o chão, deslizando para trás de uma floreira de cimento. Espreitou entre os espinhos de um arbusto de rosas e viu a adversária recuar alguns passos. Impressionada, não ouviu um único gemido de dor da mulher, que se mantinha de pé, ainda resguardada pelo chapéu. Mesmo enquanto recuava, voltou a disparar na sua direção. Apesar de o ter feito às cegas, duas balas atingiram a floreira.
A mulher era um osso duro de roer.
Mas eu sou melhor.
Quando a assassina asiática se recompôs, já se tinha aproximado demasiado da porta da igreja, encontrando-se no sítio exato que Seichan queria, depois ter avistado um aliado no interior da igreja. Com a atenção focada em Seichan, a mulher não reparou na figura de negro que lhe surgiu por trás.
Seichan sorriu de satisfação.
Não sou a única freira com quem devias estar preocupada.
A irmã Clara avançou, segurando um pesado crucifixo de bronze. Com um movimento rápido, atingiu a assassina na cabeça.
A mulher largou o guarda-chuva e uma rajada de vento fê-lo rodopiar pelo jardim. Caiu sobre os joelhos. Depois, para o lado.
Seichan correu na sua direção, recuperando a pistola caída no chão. Quando chegou perto dela, notou os olhos negros rolarem nas órbitas, enquanto o sangue jorrava na gravilha. Mesmo assim, a mulher ainda respirava.
Estava viva. Mas não por muito tempo.
Seichan apontou-lhe a pistola à testa pálida. Porém, a irmã Clara abriu os braços, pondo-se frente ao cano da arma
— Não! — gritou a freira.
Seichan lançou-lhe um olhar perfurante, mas a freira não cedeu um milímetro. Notou a determinação e a compaixão no seu jovem rosto. Fora obrigada a recorrer à violência para proteger os inocentes que se encontravam na igreja, mas nunca consentiria uma execução a sangue-frio.
Seichan cerrou os maxilares, frustrada, sabendo que estava em dívida com a freira. Além disso, podia retirar informação da assassina. Tendo oportunidade, de certeza que Gray gostaria de a interrogar.
Desviou o olhar para a capela. Continuava envolta em fumo. O tiroteio havia cessado há mais de um minuto. Que quereria isso dizer?
Impaciente e preocupada, pegou na pistola da assassina, ainda quente. Espetou com ela nas mãos da freira.
— Sabe usar isto?
— Sim... mas...
— Ou fica a guardar a tipa ou tenho de acabar com ela.
A irmã Clara engoliu em seco e assentiu. Seichan aguardou até que a freira apontasse a arma ao corpo caído da mulher. Só então virou costas e correu em direção da escadaria. Em cada degrau, os receios que afastara durante o confronto com a assassina asiática pareciam agora atormentá-la com força redobrada.
Espero bem que estejas vivo, Gray.
13h18
Roland subiu pelo túnel secreto, regressando à capela. Esticou um braço e ajudou Gray, puxando o seu corpo mole pelo alçapão. O operacional tinha as roupas rasgadas e sangrava de uma centena de cortes. De uma ferida na cabeça, um fluxo carmim espesso cobria-lhe metade do rosto.
Porém, salvou-nos a vida.
Gray rastejou e encostou-se à pedra do altar. Bebeu um pouco da garrafa de água que Lena oferecera. A geneticista encontrava-se junto à entrada, vigiando a escadaria.
— Vem aí uma freira — avisou, preocupada. — Traz uma pistola na mão.
Roland sentiu o coração acelerar.
Gray rolou sobre os joelhos e pegou na sua arma.
Lena virou-se outra vez para eles.
— É a Seichan!
Gray deixou-se cair para trás.
— Graças a Deus... — murmurou.
No instante seguinte, a silhueta da mulher flutuou através do fumo como um falcão negro e entrou na capela. Avaliou a situação com um único olhar, concentrando a atenção no buraco no chão de mármore.
— Vejo que andaste ocupado.
— E tu encontraste uma nova vocação — disse Gray, observando o hábito de freira. — Confesso que gosto do que vejo... fica-te bem.
Roland franziu a testa pela troca de comentários imprópria, mas sabia que não passava de uma forma de se ajudarem mutuamente. Conseguia notar a preocupação autêntica que mostravam um pelo outro, muito além de qualquer sentimento partilhado por colegas.
— Bom, chega de ronha — disse Seichan. Dirigiu-se a Gray e estendeu bruscamente uma mão para o ajudar a levantar-se. — Está na hora de sairmos desta montanha, antes que tenhamos mais surpresas.
Gray sorriu através do sangue que lhe cobria o rosto.
— Obrigado, querida.
— Alguém tem de passar a vida a tirar-te de sarilhos, certo?
— Vens um pouco tarde — disse Gray, coxeando até à porta da capela. Olhou para trás, para as escadas secretas. — A primeira granada... aquela que caiu pelo alçapão. Que aconteceu a seguir?
— Passou por nós e rolou pelas escadas abaixo — disse Lena.
— Explodiu na caverna — acrescentou Roland. — Ainda tenho os ouvidos a tinir, mas...
— Ainda temos as cabeças no lugar — rematou Lena.
— E a Virgem de Kircher... o esqueleto?
Roland abanou a cabeça.
— A granada deve ter explodido aos pés da estátua. Encontrámo-la desfeita.
— Os ossos ficaram ainda piores — suspirou Lena. — Uma pilha de cinzas e fragmentos queimados. Felizmente, ainda temos o que conseguimos recolher. Esperemos que seja o suficiente para...
Um novo disparo cortou-lhe as palavras, ecoando pelo cume.
Roland avançou para a porta, mas Seichan antecipou-se e empurrou Lena para o interior da capela.
A operacional apontou a pistola para as escadas. Depois, praguejou entredentes.
Roland espreitou pela janela com vista para o pátio da igreja. No trilho de gravilha que conduzia ao jardim, encontrava-se o corpo caído de uma freira. Notou uma figura pequena que se escapulia por cima da vedação, desaparecendo em seguida.
— Que se passa? — perguntou Lena.
Sem adiantar explicações, Seichan saiu disparada da capela e correu pela escadaria abaixo.
Gray seguiu-lhe o exemplo, coxeando atrás dela.
— Fica aqui! — ordenou-lhe.
Abandonados, Roland fitou Lena.
A geneticista mordeu o lábio, abanando a cabeça.
— Que se lixe!
Apesar de não serem as palavras que ele teria escolhido, traduziam bem o que sentia. Estava farto de se esconder nas sombras, de se sentir impotente. Determinado, abandonou a capela juntamente com Lena e correram pela escadaria.
Seichan chegou ao pátio antes deles. Ajoelhou-se junto ao corpo da freira caída. Era a irmã Clara. Mantendo a arma em riste, verificou-lhe os sinais vitais.
Roland e Lena apareceram logo atrás de Gray, que mal se aguentava de pé.
— Que aconteceu? — perguntou Gray, chegando-se junto ao corpo.
Seichan olhou para ele. O rosto exibia uma tempestade de emoções, na sua maioria raiva e frustração.
— Aquela cabra usou a minha faca — murmurou, perturbada. — Arrancou-a da perna e apunhalou a irmã Clara. Esqueci-me de a retirar antes de ir ter contigo.
Roland calculou que a preocupação de Seichan pelo parceiro contribuíra para aquele lapso. Ajoelhou-se junto da freira. Sentiu-se aliviado ao verificar que estava viva, embora gravemente ferida. O rosto era uma máscara de dor, e tinha o hábito ensopado de sangue em redor do cabo metálico do punhal, enterrado no estômago.
— Tentei disparar... — sussurrou Clara, agarrando a manga do padre. — Mas ela foi demasiado rápida.
— Está tudo bem — disse Roland, confortando-a.
Os olhos da freira fitaram-no, suplicantes.
— Perdoe-me, padre.
— Não há nada para perdoar, minha filha — assegurou Roland. Olhou para os companheiros, sem saber o que fazer.
Erguendo-se do vale, o som de sirenes ecoou à distância. Duas freiras correram da porta da igreja. Uma delas trazia um estojo de primeiros socorros.
Seichan levantou-se.
— Temos de sair daqui.
— Mas... a irmã Clara... — balbuciou Lena, relutante.
Roland apertou os dedos da freira, recusando-se também a abandoná-la.
— Não creio que tenha atingido algum órgão vital — disse Seichan. — É capaz de sobreviver até a ajuda chegar.
As palavras pareciam cruéis ou insensíveis, mas Roland conseguia perceber a dor e a culpa na voz de Seichan. Sentiu os dedos da freira apertarem os seus. Clara olhou para ele e para os outros.
— Vão — murmurou com voz fraca, embora convicta. — Seja lá o que for que aqueles potwory perseguiam, detenham-nos.
— Prometo — anuiu Roland.
Lena também fez que sim com a cabeça.
Com a permissão de Clara, Roland levantou-se e afastou-se, deixando a jovem freira aos cuidados das outras irmãs. Olhou para Seichan e Gray. Não fazia ideia do que aconteceria a seguir, mas agarrou-se a uma única convicção.
Cumprirei a minha promessa.
15
30 de abril, 19h22 CST
Pequim, China
— Para onde nos levam? — reclamou Kowalski, entredentes.
Maria abanou a cabeça. Sabia tanto quanto ele. Encontrava-se sentada ao lado do operacional, no banco traseiro de um carro elétrico, que acelerava pelas profundezas do complexo. Observou Kowalski enquanto este remexia no curativo que tinha no rosto, recordando-se do que ele lhe tinha dito acerca de Baako o ter atacado. Também se recordava do gesto furtivo enquanto lhe contara o episódio.
[É mentira]
A preocupação pelo gorila causava-lhe um ardor no estômago, juntamente com uma dose generosa de culpa. O animal devia estar aterrorizado. Desejou encontrar-se ao lado dele, consolando-o, mas não lhe parecia que isso pudesse acontecer tão depressa.
Depois de ter revelado o esqueleto fossilizado da recém-descoberta espécie de hominídeo — o Homo meganthropus —, a major-general Lau ordenara que fossem transportados para um novo destino. Jiaying estava sentada ao lado do condutor, a falar ao telemóvel. Pelo tom crispado, percebia que estava a desancar o interlocutor no outro lado da linha.
O carro acabou por parar frente a uma porta dupla. Uma figura familiar aguardava-os em sentido, com uma expressão estoica, envergando um camuflado militar. Era o irmão de Gao, Chang Sun.
— Esperem aqui — ordenou a general.
Saiu do carro e afastou-se uns metros, acompanhada de Chang.
— Para onde achas que ela vai? — perguntou Kowalski, afundando-se no banco.
Um segundo carro parou junto à porta, ocupado por Arnaud e por dois soldados armados. O paleontólogo abandonou o veículo e dirigiu-se para eles, observando a enorme porta dupla. Um sistema de carris de metal corria ao longo do topo e da base.
— Parece que estamos perto de conhecer a razão pela qual foi trazida para aqui, doutora Crandall — disse Arnaud, suspirando.
Maria pensava o mesmo. Depois de ter visto o esqueleto, sabia que os chineses estariam a tentar recolher sequências específicas de ADN dos ossos do gigante, para criarem um soldado superior.
Até que ponto o tinham conseguido?
Arnaud cruzou os braços, provavelmente interrogando-se acerca do mesmo.
— Segundo entendo, a sua pesquisa visava provar que o Grande Salto Evolutivo se deveu à introdução de novos genes, consequência direta do acasalamento entre os primeiros homens e os neandertais.
— Basicamente, sim. A nossa teoria defende que essa hibridização deu origem a uma tribo de indivíduos com capacidades intuitivas extraordinárias, que olhavam para o mundo de maneira diferente da dos seus progenitores.
— E o grande salto aconteceu por causa dessas almas raras?
Maria notou-lhe o tom incrédulo na voz e reforçou a ideia.
— Existem vários modelos estatísticos que defendem a teoria. O conhecimento é como um vírus. Nas condições certas, é capaz de se multiplicar exponencialmente. Para alterar o mundo, não seria necessário mais do que a criatividade e a inovação de uma pequena população de indivíduos especiais, desde que divulgassem novas formas de pensar, novas ferramentas, novas expressões artísticas, novos rituais. Na verdade, é o maior perigo deste caminho que os chineses querem seguir. Se tais indivíduos fossem criados hoje em dia, o resultado seria uma mudança de paradigma no que diz respeito à civilização humana.
— Ou o fim dela — disse Arnaud, olhando para Jiaying. — Sobretudo nas mãos erradas.
Maria compreendeu.
— Até que ponto estavam próximas do objetivo? — quis saber Arnaud.
Lena visualizou Baako, um modelo da mesma hibridização neandertal, recordando a incrível curva de aprendizagem que já demonstrara. No entanto, apesar de ela e a irmã terem conseguido avanços significativos, havia muito por descobrir.
Não tinha problemas em admiti-lo de viva voz.
— Os genes que afetam a inteligência ainda representam uma incógnita, envolvendo uma complicada interação de múltiplas sequências. Estamos a aflorar uma nova fronteira.
— Mas tanto a Maria como a sua irmã são pioneiras nesse território, tendo já desbravado possíveis caminhos — lembrou Arnaud, ainda a olhar para os oficiais chineses. — Como tal, devem ter uma ideia do passo seguinte.
Enquanto Maria conversava com Arnaud, a troca de palavras entre Jiaying e Chang tornara-se mais acesa. Ouviu o nome de Lena ser pronunciado várias vezes entre a enxurrada de mandarim. Era evidente que algo correra mal. Porém, o que significava em relação ao destino da irmã?
— Acho que a coisa deu para o torto em Itália — murmurou Kowalski. Cruzou os braços, exibindo um esgar de satisfação. — E sou capaz de adivinhar de quem foi a culpa.
19h29
— E não faz ideia de onde possam estar? — perguntou Jiyaing. Mantinha os braços cruzados, aguardando a explicação do tenente-coronel Chang para o seu mais recente fracasso.
Ele baixou a cabeça, deixando que o silêncio respondesse por ele.
A informação que chegara de Itália era deprimente. Além de Lena Crandall ter escapado às garras dos operacionais — escolhidos a dedo por Chang —, os seus cadáveres tinham sido recuperados pelos serviços secretos italianos.
— Os italianos podem ter suspeitas de quem enviou aqueles homens — disse Chang —, mas podemos negar qualquer envolvimento. A equipa era constituída por fantasmas, sem qualquer ligação ao Exército de Libertação Popular. Além disso, não se registaram mortes de civis italianos. Assim sendo, o episódio pode ser facilmente descartado como um ataque terrorista a um alvo cristão.
A avaliação de Chang podia revelar-se acertada a longo prazo, porém, não diminuía em nada o falhanço retumbante da missão. Por muito que o tentasse atenuar, a verdade é que Lena escapara. De novo.
Sabendo que assim era, Chang tentou diluir alguma da culpa.
— Se tivesse sido informado da presença de outro agente, se calhar a operação poderia ter tido outro desfecho.
Nos lábios da general, desenhou-se um sorriso.
— Duì — concordou. — Felizmente, a tenente Wei sobreviveu a este desastre, encontrando-se neste preciso momento na peugada dos alvos.
A primeiro-tenente Shu Wei era um dos membros mais novos das Forças Especiais da Região Militar de Chengdu, uma unidade de elite com o nome de código Falcão, especializada na aquisição e eliminação de alvos e operações de sabotagem. Também era sobrinha de Jiaying. A general usara os seus contactos nos serviços secretos militares, para que Shu Wei participasse na missão; intervindo, se necessário.
— A tenente Wei também descobriu as identidades dos acompanhantes de Lena Crandall e do padre croata — continuou Jiaying. — A partir de uma conversa com uma freira, antes do ataque, ficou ainda a saber o que procuravam.
— E o que procuravam?
— Informações acerca de um padre que viveu no século dezassete, chamado Athanasius Kircher.
Chang franziu a testa, claramente perplexo. Jiaying também estava com dificuldade em juntar as peças do quebra-cabeças, embora não o revelasse.
— A tenente Wei irá manter o curso de ação, para conseguirmos determinar se estes novos dados poderão comprometer o nosso objetivo. E eliminará Lena Crandall.
— Pensava que a queria capturar viva — disse Chang, surpreendido.
— Depois de tantos falhanços da sua parte, cheguei à conclusão de que se trata de um risco desnecessário. Capturá-la implica uma delicadeza de que não nos podemos dar ao luxo. Assim sendo, Shu Wei está a reunir uma equipa para dar caça ao grupo e eliminar esta ameaça em definitivo.
Chang endireitou as costas.
— Com o meu apoio, tenho a certeza de que...
— Não será preciso — interrompeu a general, encerrando a conversa. — É óbvio que já tem demasiado em mãos.
Jiaying afastou-se, imaginando a cara de Chang a rubescer de raiva. Não resistiu a uma estocada final.
— Concentrando toda a atenção no complexo, estou confiante de que consegue, pelo menos, manter estas instalações seguras. — Olhou por cima do ombro. — Evidentemente, um novo falhanço implicará algo mais do que uma repreensão.
Com a cabeça, indicou a porta.
Os olhos de Chang brilharam com uma dose de receio, trespassando a máscara de raiva que ainda exibia no rosto.
Ótimo, pensou Jiaying.
Virou-se para Maria e para os outros.
Agora, vamos lá mostrar aos recém-chegados com o que podem contar se falharem.
19h27
Cheira-me a sarilhos.
Kowalski observou a general chinesa, enquanto esta regressava para junto do grupo. Parecia demasiado satisfeita consigo própria.
— Venham — disse ela. — Deixem-me mostrar-lhes o que aqui foi conseguido, e como poderão ajudar.
Fez-lhes sinal para que seguissem atrás dela, ao mesmo tempo que ordenava bruscamente aos soldados armados para acompanharem o grupo.
— Pelos vistos, esta visita não é opcional — disse Kowalski, começando a caminhar ao lado de Maria.
A geneticista não respondeu, mas conseguia notar a apreensão no seu rosto pálido. Tateava nervosamente a dupla hélice de ADN tatuada no pescoço, assinalando a sua profissão, e agora, provavelmente, também a fonte de tanta preocupação. Os chineses queriam as suas competências na área da genética. Mas a questão mais importante era saber porquê.
Jiaying estacou junto das enormes portas de aço, que se abriram diante dela, expelindo um bafo almiscarado de animais, lixívia e materiais antissépticos.
Para lá da entrada, uma sala recheada de equipamento de aço inoxidável estendia-se pelo comprimento de meio campo de basebol. Um dos lados exibia uma parede de jaulas; no lado oposto, encontrava-se uma fila de dez marquesas de metal. De certa maneira, lembrava uma gigantesca morgue. Porém, as marquesas mais próximas estavam equipadas com apoios elevados para as pernas, à semelhança de um consultório de ginecologia.
Uma delas parecia ter sido usada recentemente. Um funcionário, envergando uma bata branca, limpava a marquesa com uma mangueira, usando a pressão da água para diluir o sangue e empurrar os pedaços de tecido ao longo da superfície inclinada, para um balde de metal, que se encontrava na outra ponta. Ainda mais perturbador, uma série de frascos de vidro encontrava-se alinhada num balcão de apoio. Os frascos continham vários órgãos, flutuando dentro de um líquido, incluindo o que parecia ser um enorme coração.
Kowalski desviou o olhar, enojado.
Conforme o grupo avançava pela sala, os técnicos presentes atarefavam-se freneticamente. Sobretudo no que dizia respeito a manterem-se fora do caminho da major-general Lau.
Maria observou as gaiolas de aço inoxidável no outro lado da sala. Algumas continham o que Kowalski calculava ver num laboratório: ratinhos brancos, coelhos e até um chimpanzé, que se encontrava encostado contra o fundo de uma gaiola maior. O animal tinha os braços rapados até aos sovacos, bem como o topo da cabeça.
Antes que pudesse tentar adivinhar o motivo, a gaiola seguinte ofereceu a resposta. Um jovem chimpanzé olhou para eles, seguindo-os com os seus olhos grandes e castanhos enquanto caminhavam.
Os olhos eram tudo o que o animal podia mexer. Uma prateleira de metal perfurada tinha sido imposta à volta do pescoço, imobilizando-o e impedindo-o de levantar os braços acima dos ombros. A necessidade de tal restrição era óbvia. O topo do crânio tinha sido recortado, expondo a superfície do cérebro, e uma profusão de elétrodos saíam-lhe da massa encefálica, ligados a uma parafernália de equipamento no exterior da gaiola. Um guincho ténue saía-lhe continuamente dos lábios, que se encontravam arrepanhados sobre os dentes.
— Filhos da... — disse Kowalski, calando-se imediatamente quando a general olhou para trás. Não era altura de ofender a anfitriã. Pelo menos, por enquanto.
— É um laboratório de vivissecção — murmurou Maria, com os olhos turvos pelo choque.
Noutra gaiola, um primata — possivelmente um jovem gorila — agarrava-se a um pilar de madeira com um trapo, como se o objeto fosse a mãe.
O paleontólogo abrandou o passo para poder ver melhor a pequena figura, cujo rosto assustado logo se afundou no pilar, seu único consolo naquele palácio de horrores. Arnaud franziu a testa, revelando a sua preocupação a Maria. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, a general apressou-os.
— Por aqui — insistiu.
O destino parecia ser uma janela larga ao fundo do laboratório. Abrangia a totalidade da parede. Uma enorme câmara iluminada abria-se para lá do vidro grosso.
Continuaram a ser conduzidos na direção da janela.
— Graças às técnicas que a doutora Crandall e a irmã aperfeiçoaram — explicou a general —, vejam o que conseguimos já alcançar.
Quando chegaram perto do vidro, Kowalski aproximou-se, ladeado por Maria e por Arnaud. Olhou para o espaço cavernoso.
Desta vez, não conseguiu conter o que lhe atravessava a alma.
— Filhos da mãe...
19h48
Monk e Kimberly sentaram-se num banco de jardim junto ao rio Nanchang. O curso de água negro, iluminado a espaços pelos candeeiros de rua, cortava diretamente pelo centro do Jardim Zoológico de Pequim. Perto deles, uma estação fluvial, que já se encontrava encerrada, oferecia excursões pelo parque, com destino ao Palácio de Verão. Monk tinha uma boa vista do curso do rio e das pontes de pedra que o atravessavam.
— Que te parece? — perguntou, baixinho.
Kimberly massajou a barriga da perna. Caminhara durante três horas. Primeiro no parque, e em seguida ao redor do perímetro. Encontravam-se agora no lado norte do parque, o que significava que tinham praticamente circundado toda a área à volta do zoo.
— Definitivamente, acho que é um Z-18A, um dos novos helicópteros do exército chinês para o transporte de tropas e carga.
Mais do que suficiente para transportar a jaula de um gorila.
Monk reparara no aparelho pousado num heliporto que se situava num canto descaracterizado do parque, não muito longe do edifício do aquário. Do lado de cá da vedação, apenas lhe era possível observar parte da aeronave. Para não levantar suspeitas, tinham continuado a caminhar até se sentarem naquele banco de jardim, de onde mantinham uma linha de visão para o helicóptero militar.
— Parecem atarefados — comentou Monk.
Nos últimos dez minutos, tinham assistido a um vai e vem de homens em uniformes, carregando caixotes não identificados para o interior do aparelho. Parecia que se preparavam para partir. Pensando que pudessem ser preparativos para deslocar o grupo sequestrado, Monk mantivera-se atento a qualquer sinal de uma escolta armada a conduzir um grupo de prisioneiros para a aeronave.
— Quem me dera poder aproximar-me para ter a certeza — murmurou. — Podem já estar a bordo.
— Sim? E depois, o que farias? A área está apinhada de pessoal deles. Até termos a certeza de que o grupo ainda aqui está, só estarias a revelar a nossa presença sem necessidade.
Kimberly tinha razão, mas detestava ficar de braços cruzados, à espera de que algo acontecesse.
Um ruído forte desviou-lhes a atenção para a estrada. Um veículo militar blindado, exibindo uma proeminente estrela vermelha, passou por eles e estacionou junto ao portão norte do parque. Um grupo de soldados saltou da traseira enquanto outro surgia de uma escotilha na parte superior, tomando posição por trás de uma metralhadora de grande calibre. As tropas perfilaram-se diante do portão. Logo a seguir, dois pares de soldados dispersaram em direções opostas, claramente com a intenção de patrulharem o perímetro do zoo.
Monk calculou que estivesse a acontecer o mesmo junto dos restantes portões.
— Achas que é sinal suficiente de que os nossos amigos ainda aqui estão? — perguntou a Kimberly, dando-lhe uma cotovelada discreta.
A companheira assentiu.
— Ou pode ser sinal de que os serviços secretos chineses sabem da nossa presença. Ou suspeitam, pelo menos.
Monk segurou-lhe a mão, compreendendo o que ela lhe estava a dizer.
Está na hora de sair daqui.
Monk e Kimberly levantaram-se e começaram a caminhar, retrocedendo pela estrada junto ao rio no mesmo instante em que um par dos soldados se dirigia na direção de ambos. Monk chegou-se mais perto da companheira, assumindo o papel de um casal de turistas. De mãos dadas, continuaram a caminhar descontraidamente, ampliando a distância entre eles e os limites do zoo. Monk mantinha a gola do blusão levantada e a cabeça baixa. Esperava ouvir um grito dos soldados a qualquer momento, ordenando-lhes que parassem. Em vez disso, um ruído familiar de rotores ergueu-se nas suas costas.
— Não olhes! — avisou Kimberly, apertando-lhe os dedos.
Monk não precisava de olhar para trás. Conseguia perfeitamente visualizar o helicóptero a erguer-se do chão de cimento, desaparecendo em seguida no céu noturno. Não fazia ideia se Kowalski e Maria se encontravam a bordo. Todavia, sentiu no estômago o peso amargo da derrota.
Sem alternativas imediatas, continuaram a caminhar, impelidos pela presença dos soldados. Perante tal aparato das forças militares chinesas, mesmo que o operacional e a geneticista ainda estivessem nas instalações, a perspetiva de um resgate encontrava-se bastante diminuída.
— Alguma ideia? — perguntou Kimberly.
— Aguardamos — disse Monk, resignado. — Resta-nos a esperança de que a Kat e o diretor consigam detetar um novo sinal do localizador de GPS.
Momentos antes, recebera uma ligação segura da Sigma. Painter informara-o de que os elementos que constituíam a equipa de extração tinham aterrado em Pequim, vindos de destinos diferentes. Os cinco comandos estavam a reunir-se num ponto de encontro predeterminado, preparando-se para entrar em ação assim que Monk precisasse deles.
Encolheu os ombros.
Parece que vão ter de esperar mais um pouco.
Suficientemente longe do zoo, Monk olhou por cima do ombro.
Que raio se passa naquele lugar?
19h50
Maria lutava por compreender o que estava a ver.
Não pode ser verdade...
Encontrava-se ao lado de Kowalski e de Arnaud, junto à enorme janela curva que ocupava a parede do laboratório, observando um fosso que teria mais ou menos o tamanho de um campo de basquetebol. O espaço parecia ter sido roubado à rocha no subsolo, com paredes que exibiam pequenas reentrâncias e grutas. Todavia, a sua atenção estava focada no fundo do fosso.
Mais ou menos a uma altura de três andares abaixo dela, gigantescos animais peludos arrastavam-se pesadamente ou agachavam-se por entre árvores falsas, feitas de cimento, algumas parecendo terem sido partidas em mil pedaços pelas criaturas. Cada animal devia andar por volta dos dois metros e meio de altura, ou um pouco mais, com meia tonelada de peso, o dobro da massa corporal de um gorila-de-montanha típico. As pernas pareciam autênticos troncos, e os braços eram apenas um pouco mais finos. Alguns deslocavam-se curvados de um lado para o outro, apoiados sobre os nós dos dedos das mãos, mas o maior de todos encontrava-se de pé, exibindo o seu tamanho massivo e a sua pelagem prateada. Observava-os ameaçadoramente do fundo do fosso, expondo longas presas amarelas, maiores do que uma mão aberta.
O gigante, um macho adulto, parecia guardar a sua refeição mais recente, sentindo-se ameaçado pelos espectadores na janela. O cadáver aos seus pés, completamente desfeito, ainda exibia pedaços de um uniforme, embora diferente de todos os outros que Maria tinha visto no complexo.
Antes que pudesse desviar o olhar, a criatura agarrou em qualquer coisa e arremessou-a contra a janela de observação. Maria recuou, impressionada pela demonstração de força da criatura, mas, sobretudo, horrorizada com a visão de um braço decepado a embater na janela, ensanguentando a superfície do vidro.
A violência do ato despertou-a do choque.
— Que... que é isto? — perguntou.
— Chamamos-lhe a Arca — respondeu a general —, um recinto onde podemos observar as nossas criações. Não é muito diferente da sua sala de aula no centro dos primatas.
Maria recusou-se a aceitar tal comparação. Abanou ligeiramente a cabeça, para clarificar o seu repúdio.
— São gorilas...
— Híbridos — corrigiu Jiaying, sem necessidade.
Maria percebia perfeitamente que não eram gorilas comuns. Recordou o crânio maciço do gorila pré-histórico que observara há pouco, o Gigantopithecus blacki. Estas criaturas eram comparáveis em tamanho e forma, mas também sabia que não eram recriações da espécie.
Arnaud deu o seu parecer, permitindo a Maria um momento para pôr as ideias em ordem.
— Calculo que estes espécimes tenham sido criados com uma amostra de ADN do Meganthropus que nos mostrou anteriormente.
Jiaying fez que sim com a cabeça.
— Tivemos de recorrer a várias técnicas, refinando-as por um processo de tentativa e erro. Acabámos por aplicar os protocolos desenvolvidos pelas irmãs Crandall, o que nos permitiu acelerar o programa. No entanto, em vez de utilizarmos ADN de neandertal para criarmos o nosso híbrido, sequenciámos os genes do esqueleto do Meganthropus. — A general ergueu uma mão para a janela. — Ainda assim, tal como as Crandall, escolhemos um gorila para servir de base. Os resultados foram francamente impressionantes, tal como prevíamos. Até a musculatura dos espécimes se revelou extraordinária, cerca do dobro da massa de um gorila comum e dez vezes mais do que a de um homem.
A respiração de Maria tornou-se cada vez mais pesada pelo horror e repúdio. As palavras frias da general ecoaram-lhe na cabeça.
Acabámos por aplicar os protocolos desenvolvidos pelas irmãs Crandall.
Olhou de novo pela janela e viu o animal curvar-se sobre o cadáver. Agarrou no que parecia ser um pedaço de fígado e levou-o à boca.
Que foi que nós fizemos?
— É claro que temos ainda de resolver alguns pontos fundamentais, antes de podermos avançar com um modelo humano — continuou Jiaying.
— E que pontos são esses? — quis saber Maria.
— Os espécimes acabaram por se revelar mais selvagens do que um gorila típico, atacando-se uns aos outros perante a mínima escassez de alimentos.
Maria recordou o que tinha sido dito acerca dos Meganthropus, de como se alimentavam de clãs vizinhos e, provavelmente, dos elementos da própria tribo. Ao que parecia, os híbridos gerados pelos geneticistas chineses não tinham herdado apenas a compleição física da espécie, mas também a sua ferocidade canibal.
Se calhar, as duas características eram até indissociáveis.
Jiaying fixou o olhar gelado em Maria.
— É por isso que precisamos das suas competências. Para encontrar uma maneira de equilibrar o que aqui foi conseguido com a inteligência superior que instilou na sua cobaia.
Maria recordou a alma gentil de Baako. Não conseguia sequer imaginar como poderia comparar a doçura do gorila com os animais no fundo desta arca maldita.
Disse o que podia em voz alta.
— Para conseguir o que me pede, teria de considerar centenas de variáveis. Para não falar de um incontável número de fatores epigenéticos, que poderiam complicar ainda mais as coisas. Seriam necessárias décadas de experimentação para atingir um objetivo desses... e partindo do princípio de que é possível, claro.
— Foi o que nós pensámos — admitiu Jiaying. — Daí a razão de termos continuado a financiar a sua pesquisa por meio de canais indiretos.
Cortesia da Amy Wu, recordou Maria, com um amargo de boca.
A general endireitou as costas.
— Claro que depois ficámos a saber da descoberta do doutor Arnaud, nas montanhas da Croácia.
O paleontólogo mostrou-se igualmente ofendido pela sugestão de que também poderia estar relacionado com aquele horror.
— Que tem a minha descoberta que ver com isto?
— Ofereceu-nos a possibilidade genética aprisionada naquelas ossadas... as ossadas de um híbrido de primeira geração, nascido do acasalamento entre os primeiros homens e os neandertais. Se conseguíssemos recolher ADN válido, teríamos uma oportunidade única para isolar os fatores genéticos que contribuíram para um novo grau de inteligência.
Maria cruzou os braços, sabendo que a general tinha razão no que dizia. Acedendo a uma amostra de ADN tão singular, a definição e extração do código específico que dera origem ao Grande Salto Evolutivo era mais do que uma possibilidade.
Ou, no mínimo, aceleraria o processo.
Maria começava a compreender o alcance do que estava em jogo. Quem dominasse esse raro repositório genético detinha a vantagem na nova guerra de armas suportada pela bioengenharia. Essas ossadas poderiam representar o Santo Graal para o próximo passo da evolução humana. E não eram apenas os chineses. A DARPA, por meio da divisão de tecnologias biológicas, perseguia o mesmo objetivo: o código genético da inteligência humana.
Assim sendo, não admirava que os chineses tivessem sido tão incisivos e rápidos a atuar. A recompensa final não era o domínio de um país sobre outros. Era o poder sobre o futuro da humanidade.
— E temos ainda o Baako — acrescentou Jiaying, atraindo de novo a atenção de Maria.
Kowalski também reagiu, endurecendo a expressão.
— Que querem do Baako?
— Tivemos outra contrariedade além dos problemas de agressão — disse Jiaying, voltando a olhar pela janela. — Um problema reprodutivo. As fêmeas são férteis, mas os machos são todos estéreis.
Maria sabia ser um problema comum nos híbridos resultantes de espécies próximas. Era o que acontecia com as mulas, por exemplo, uma vez que eram o resultado do acasalamento entre burros e cavalos. No caso das mulas, os machos nasciam invariavelmente estéreis, mas as fêmeas mantinham alguma capacidade reprodutiva.
Arnaud acrescentou um pormenor ainda mais relevante para a situação.
— A maioria dos paleontólogos acredita que isso também acontecia com os híbridos dos neandertais. Os machos eram provavelmente estéreis, ao contrário das fêmeas.
— Se for verdade — acrescentou Maria —, significa que os nossos genes de neandertal foram transmitidos exclusivamente pelos híbridos fêmeas.
— Daí a importância do Baako — disse Jiaying. — Segundo sei, a sua capacidade reprodutiva está intacta.
— Não é bem assim — disse Maria. — Parece ser o caso, geneticamente, mas não podemos ter a certeza, uma vez que tem apenas três anos. Ainda é sexualmente imaturo. Levará cerca de três ou quatro anos até que possamos validar a sua fertilidade.
— Talvez — discordou Jiaying. — De qualquer maneira, não pretendemos que acasale fisicamente. Apenas precisamos de sequenciar a viabilidade reprodutiva guardada no cromossoma Y. Naturalmente, os genes de neandertal que lhe aumentaram a inteligência são ainda mais importantes.
Maria sentiu-se de novo consumida pela culpa.
Meu querido Baako...
— De qualquer modo — continuou a general —, há muito que podíamos tê-lo feito com uma simples amostra de saliva e de sangue. E é o que vamos fazer, precisamente, além de umas biópsias de medula óssea. Porém, o verdadeiro valor do Baako reside no acesso direto à arquitetura singular do seu cérebro. A oportunidade de estudar um espécime vivo pode vir a provar-se de um valor incalculável, no que toca à observação direta da expressão desses genes.
— Pretendem estudar-lhe o cérebro? — perguntou Lena, recordando a quantidade de ressonâncias magnéticas a que submetia Baako, periodicamente, desde o nascimento. — Para verificarem o desenvolvimento?
— Correto — anuiu a general. — No entanto, acreditamos que a sua abordagem tem sido demasiado conservadora. Estamos convencidos de que um estudo mais invasivo trará melhores resultados. — Olhou na direção do chimpanzé com o cérebro exposto. — Descobrimos que é possível manter um espécime vivo nestas condições durante dois anos. Num sujeito maior, calculo que consigamos duplicar esse prazo.
Horrorizada, Maria percebeu que pretendiam aplicar o mesmo procedimento em Baako.
— Não! Nunca o permitirei!
— Não estamos à espera da sua autorização, doutora Crandall. Os cirurgiões veterinários já estão a preparar tudo.
— Quando? — quis saber.
— Amanhã de manhã, depois de ter descansado de todas estas viagens.
Desesperada, Maria procurou uma maneira de impedir aquela barbaridade.
— Se fizerem isso, prometo que não mexerei um dedo para os ajudar. Vão ter de me matar!
Jiaying olhou de relance para Kowalski.
— Se chegarmos a esse ponto, não será a primeira vez. Contudo, não serei tão misericordiosa como fui com o professor Wrightson.
Maria olhou para Kowalski.
— Eles que façam o que quiserem comigo — disse ele.
Apesar do tom desafiador do operacional, Maria notou o modo como a ponta da língua lambia o lábio inferior, denunciando o nervosismo.
Porém, Jiaying ainda não tinha terminado. Fez sinal à escolta armada, para que encaminhassem o grupo para a parede com gaiolas. Pararam frente ao chimpanzé, que choramingou de receio e aflição. A general aproximou-se de uma consola junto à gaiola e rodou um botão.
O corpo do chimpanzé contorceu-se com espasmos, enquanto um guincho dilacerante lhe escapava do peito, os olhos muito abertos e cegos pela dor, como se fossem saltar das órbitas.
— Chega! — gritou Maria.
Jiaying manteve-se impassível, ignorando todo aquele sofrimento.
Mas havia quem não estivesse disposto a tolerá-lo.
Subitamente, Kowalski arremessou o corpo para trás, revelando uma agilidade inesperada. Esbarrou contra um dos soldados, ao mesmo tempo que lançava um braço por cima do cano da espingarda. Apesar de não ter desarmado o guarda, Kowalski conseguiu deslizar uma das mãos até ao gatilho.
O disparo soou como uma explosão.
A bala passou entre as barras da jaula, arrancando metade da cabeça do animal. Os guinchos cessaram de imediato e o corpo do chimpanzé ficou inerte, pendurado pelo pescoço.
Kowalski recuou instantaneamente e levantou os braços. Os dois guardas flanquearam-no, apontando-lhe as espingardas. A general também ergueu a sua pistola. Maria ficou paralisada, aguardando a execução iminente.
Em vez disso, a general guardou a arma no coldre.
— Pelo que vejo, o tratador tem o mesmo coração mole. — Virou-se e fitou Maria. — Todavia, garanto-lhe que não a poderá ajudar em relação ao Baako. Se quer que o animal passe pelo procedimento o mais confortavelmente possível, espero nada menos do que a sua total cooperação... e, sobretudo, resultados.
Jiaying ordenou aos soldados que escoltassem o grupo para fora do laboratório.
— A noite já vai longa — disse. — Sugiro que descansem.
— Espere... — resistiu Maria. — Quero ver o Baako. Quero passar estas últimas horas com ele.
Jiaying fitou-a.
— Por favor... — implorou a geneticista.
— Se tentar alguma coisa — avisou a general, indicando com a cabeça o chimpanzé morto —, mesmo que seja um ato de misericórdia, prometo-lhe que alguém irá tomar o lugar do gorila.
Jiaying olhou para Kowalski.
Maria fez que sim com a cabeça, sabendo que nunca seria capaz de considerar a hipótese de tirar a vida a Baako.
— Também quero ir — disse Kowalski, levando os dedos ao curativo que tinha no rosto. — Posso ajudar a manter o Baako calmo e posso proteger a doutora Crandall, se necessário.
A general suspirou, cansada.
— Assim seja. Vou mandar pôr camas na cela. Mas informo-os desde já que serão vigiados o tempo todo.
Maria segurou a mão de Kowalski, agradecendo-lhe em silêncio. Porém, o desespero da situação atingiu-a como uma marreta, assim que abandonaram o laboratório.
Que vamos fazer? Como posso encarar o Baako, sabendo o que lhe vão fazer?
Sentiu as pernas fraquejarem. Os joelhos tremiam.
Então, um braço forte amparou-a pela cintura.
— Vamos conseguir ultrapassar isto — sussurrou Kowalski.
— Como?
— Não faço ideia.
Maria franziu a testa.
— Apenas achei que precisavas de o ouvir — disse Kowalski.
Estranhamente, Maria sentiu-se confortada pela honestidade do operacional.
Logo a seguir, ele ajudou-a a entrar no carro.
— Agora vamos lá ver o nosso matulão.
20h44
Baako vê a mãe assim que as portas se abrem. O coração enche-se de alegria pela presença dela. Agarra-se às barras da cela, guinchando na sua direção, para lhe mostrar como está feliz.
Enquanto se aproxima, cruza os punhos sobre o peito e faz o sinal que ele tão bem conhece.
[Amo-te]
Ele larga as barras, saltitando, e repete o sinal.
[Baako ama a mamã]
Ela sorri, mas o sorriso não é tão rasgado como habitual. Nota a tristeza que carrega no olhar. Levanta o focinho e consegue cheirar o medo dela, o que o leva a bater no braço com a outra mão. Só faz isto quando está assustado.
Ela vê o gesto e junta os pulsos.
[Está tudo bem]
Ela espera enquanto um dos homens maus abre a porta. Ele detesta o cheiro deles. Entre as barras, um pau preto cospe fogo para Baako. Ele tem medo e recua, mas sente a raiva dentro do peito e mostra os dentes.
Finalmente, a porta abre-se e a mamã entra. Vem com o homem grande que sabe falar com as mãos. Ontem, a mamã disse o nome dele, fazendo os sinais das letras: [J-O-E]. Foi em casa, onde o Baako tem a televisão, a cama, os brinquedos e o melhor amigo, o Tango.
O Baako está contente por o Tango não estar neste lugar mau.
A mamã aproxima-se e abraça o Baako. Ela aperta os braços e faz sons que são carinhosos e cheios de amor. Ele guincha baixinho para ela. Ela encosta-se para trás e o Baako vê que está a chorar. Ela limpa as lágrimas com uma mão, mas depois chora outra vez. Ela vira a cara. Ele aproxima-se e toca na cara dela com as costas da mão.
A mamã gosta quando ele faz isso.
Mas, desta vez, ela não sorri e não lhe dá um beijo no nariz. Em vez disso, caem mais lágrimas dos olhos dela.
Ele baixa os braços. Então, o homem grande — o Joe — senta-se à frente do Baako, apoiando-se numa mão como ele faz. Com a outra, faz um sinal e fala ao mesmo tempo.
[Estás bem?]
Baako abana a cabeça. Vira-se de lado, para a mamã não ver, e mexe os dedos em frente ao peito.
[Assustado]
Joe aproxima-se. As mãos grandes formam palavras.
[Vamos ser corajosos... tu e eu]
Joe aponta para a mamã.
[Por ela... okay?]
Baako diz que sim com a cabeça e repete o último gesto.
[Pela mamã]
Uma mão grande toca no ombro do Baako. Os dedos fortes apertam com força, mas sabe que não é para magoar o Baako. Ele olha para os olhos do homem, depois junta os dois punhos e agita-os entre eles.
[Juntos]
Joe sorri e diz palavras que o Baako conhece.
[Muito bem]
Os homens maus já se foram embora, mas deixaram dois rolos no chão. São vermelhos e cheiram a penas. Lembram a Baako as almofadas que tinha em casa. Uma vez a mamã zangou-se com ele por morder as almofadas para tirar as penas.
A mamã e o Joe abanam e esticam os rolos.
O Baako fica curioso e senta-se no meio deles.
A mamã faz sinais, encostando a cabeça na mão aberta.
[São camas]
Baako não acredita que os rolos sejam camas. Às vezes a mamã gosta de enganar o Baako. Ela mostra um fecho de correr. O Baako brinca com o fecho, puxando para cima e para baixo.
O Joe diz qualquer coisa que faz a mamã rir. O Baako gosta de a ouvir rir. O Joe mostra como se faz para abrir uma das camas. Depois de aberta, o Joe entra para dentro dela, com as pernas e tudo, e finge que está a dormir.
Baako cheira os cantos das camas, enquanto o Joe e mamã conversam. Ele não percebe o que dizem porque falam muito depressa, mas ouve o nome de Baako muitas vezes. A mamã faz com que o Baako coma algumas bananas, depois deita-se na cama.
Baako fica a olhar para os dois, a brincar com o fecho.
O Joe estica um braço e bate com a mão no chão, no espaço entre ele e a mamã. Baako percebe e aproxima-se. Dá algumas voltas e pisa o Joe sem querer. Depois, senta-se e enrola-se entre eles.
A mamã dá-lhe um beijo na testa, como faz sempre quando é de noite. Ele chega-se mais perto, e ela põe um braço por cima dele. Ele suspira, contente.
Pela primeira vez, sente-se seguro.
Ainda assim, estica uma mão para o Joe.
No escuro, os olhos do homem olham para ele. Então, uma mão grande surge de dentro da cama e agarra a mão de Baako. Os dedos apertam os seus. Depois, relaxam — mas não largam a mão do Baako.
O Joe abana a cabeça e afunda-se na cama. Baako ouve palavras abafadas: «Satisfeito?»
Baako olha para os dedos entrelaçados, percebendo a mensagem silenciosa, tão clara como qualquer gesto com os braços e as mãos.
É uma palavra e uma promessa.
[Juntos]
Ele fecha os olhos e responde a Joe com o seu coração.
Sim.
16
30 de abril, 17h44 CEST
Roma, Itália
— Acreditamos que os chineses ainda mantêm Maria Crandall e Joe Kowalski prisioneiros algures na propriedade do jardim zoológico — disse Painter, na linha segura.
Com o telefone encostado ao ouvido, Gray encontrava-se junto a uma janela no terceiro andar da Pontifícia Universidade Gregoriana. O escritório vago pertencia a um dos velhos colegas de Roland, outro historiador medieval, que se encontrava a gozar um ano sabático. Depois de escaparem das montanhas, o padre sugerira que se reagrupassem ali, para decidirem o próximo passo. Roland também queria utilizar a vasta biblioteca da universidade. Precisara de pesquisar algo que julgava relevante para o que estava a acontecer.
Gray aproveitara o tempo morto para contactar a Sigma.
— E o localizador de GPS? — perguntou. — Algum sinal?
— Não, mas tendo em conta a presença de tropas em redor do zoo, podemos dar como certo que os chineses sabem das nossas suspeitas. Pelo menos, é esta a conclusão da Kat após o relatório de Monk.
Gray calculava que Kat estivesse preocupada com o marido, e tinha razões para isso. O rosto de Monk não passava facilmente despercebido entre a população de Pequim.
— Qual é o próximo passo dele? — perguntou Gray, apreensivo.
— As minhas ordens foram no sentido de aguardarem, para evitar serem expostos. A Kat está a fazer o que pode para reunir mais informação por meio de canais não oficiais. De momento, ainda estamos às escuras acerca dos motivos do ataque em solo americano.
Para não falar do que aconteceu aqui.
Gray tinha o rosto e o corpo cobertos de pensos, e o que estava à vista encontrava-se igualmente maltratado, com nódoas negras de todos os tamanhos e feitios. Tentou retirar algum sentido do que acontecera.
— É evidente que os chineses queriam aquelas ossadas da caverna na Croácia — disse. — E, ao que tudo indica, esses ossos estão relacionados com a pesquisa das Crandall.
— Parece que sim. Sabemos que os chineses financiavam secretamente o trabalho das irmãs, por intermédio de um agente infiltrado na Fundação Nacional para a Ciência, a doutora Amy Wu. Porém, é tudo o que sabemos. Precisamos de descobrir o porquê da importância desses ossos, uma vez que parecem ter desencadeado estes acontecimentos.
— Estamos a seguir algumas pistas — disse Gray. Já tinha informado Painter acerca do que tinham encontrado no santuário de Mentorella, bem como da ligação a Athanasius Kircher. — De momento, a abordagem dos chineses tem sido inteiramente científica, mas talvez possamos saber um pouco mais se continuarmos a seguir o trilho histórico deixado pelo padre Kircher.
— Há alguma razão especial para acreditar nisso?
— Porque é evidente que este padre Kircher estava a par de algo significativo, suficientemente importante para ser preservado, embora demasiado alarmante para ser revelado. Se descobrirmos o que era, pode ser que seja o suficiente para nos adiantarmos aos chineses. Na pior das hipóteses, pode ajudar-nos a perceber o interesse nos ossos e na pesquisa das Crandall.
— Acho que deve fazer o que entender — disse Painter, pouco convencido. — Encontramo-nos num impasse. Como tal, qualquer informação nova pode revelar-se útil.
— Vou dando notícias.
Gray desligou o telefone, mas continuou junto à janela. Não havia indícios de que tivessem sido seguidos, porém, sabia que havia um sobrevivente da equipa de assalto chinesa: uma mulher, que escapara a pé da montanha. Mais tarde, nos arredores de Guadagnolo, um agricultor denunciara o roubo de uma mota.
Não era uma coincidência.
Observou as ruas abaixo, procurando um vislumbre da mota roubada, mas quase todos os veículos eram vespas ou outra motoreta qualquer. Desviou o olhar para uma janela no prédio em frente. Os vidros tinham sido substituídos recentemente, e, à volta dos frisos, os tijolos da fachada encontravam-se escurecidos. Ainda conseguia ouvir a explosão que ali ocorrera, meses atrás. A janela pertencia ao antigo gabinete do monsenhor Vigor Verona, arquivista do Vaticano e professor naquela universidade.
Uma sensação de mau agouro pesou-lhe sobre os ombros, recordando-se da perda do seu bom amigo; bem como da sobrinha deste. Sentiu uma pontada de culpa.
Rachel...
Sentiu uma presença atrás das costas e sobressaltou-se. Não tinha ouvido Seichan aproximar-se. Pensava que ela estava na sala ao lado, vigiando Lena, enquanto esta dormia uma sesta.
Seichan abraçou-o pela cintura, afastando-o da janela. Olhou para os seus olhos, lendo-lhe os pensamentos.
— A minha mãe costumava dizer que o mundo estava cheio de fantasmas — sussurrou. — Quanto mais vivemos, mais nos assombram.
— A minha só dizia para me sentar direito e tirar os cotovelos da mesa.
Seichan apenas suspirou perante a tentativa dele de aligeirar o momento. Aproximou-se e beijou-o na boca, silenciando-lhe as palavras. Gray sentiu o calor do corpo dela, o sabor, a fragrância de jasmim na sua pele. Ela afastou a boca o suficiente para falar, as palavras intercaladas pelo hálito quente.
— Os fantasmas existem para nos lembrarem de que continuamos vivos, de que ainda temos corações que batem, carne que arde, pulmões que clamam por ar. — Deixou que os lábios tocassem outra vez nos dele. — Nunca te esqueças disso... ou todas essas mortes perdem sentido.
Gray puxou o corpo dela e abraçou-a com mais força, sentindo-lhe o bater do coração contra as costelas enquanto a beijava intensamente.
Nunca me esquecerei.
No mesmo instante, ouviram o ruído de uma chave a abrir a porta do escritório. Gray desfez o abraço e levou a mão à arma. Seichan recuou um passo e virou-se. A lâmina de um punhal reluziu nos seus dedos.
A porta abriu-se, revelando a silhueta desgrenhada do padre Novak.
Lutando contra a pilha de livros que carregava nos braços, Roland nem sequer reparou no modo como fora recebido.
— Acho que descobri algo importante.
17h52
Lena acordou com a agitação na sala contígua, despertando-lhe uma imediata sensação de pânico. Sentou-se no sofá e pôs-se à escuta, com o coração ainda a bater com força. Reconheceu a voz excitada de Roland.
Deve ter descoberto qualquer coisa.
Uma hora antes, tinha pedido para acompanhar Roland — quando mais não fosse para conhecer a famosa Biblioteca Gregoriana. Porém, os livros que o padre queria consultar encontravam-se numa área vedada ao público.
Esfregou os olhos, surpreendida por ter conseguido adormecer, ainda que por breves instantes. Quando fechou os olhos, tinha a certeza de que a preocupação com a irmã a manteria acordada.
Devo estar mais cansada do que pensava.
Olhou para a janela exígua daquela pequena sala privada do colega de Roland. Era pouco maior do que um roupeiro, com apenas um sofá e um banco de orações, por baixo de um crucifixo. Parecia mais o tipo de divisão que encontraria num convento.
Animada pelo entusiasmo na voz de Roland, levantou-se e foi ter com o resto do grupo. A sala ao lado tinha uma secretária junto à janela, com estantes de cada um dos lados, recheadas de livros empoeirados. No centro da sala, encontrava-se uma ampla mesa de biblioteca, rodeada de cadeiras, cada uma diferente da outra. No ar persistia o odor de cigarros e cachimbo, como se o colega de Roland tivesse acabado de abandonar o espaço.
— Tens de ver isto — disse Roland, empilhando uma série de livros na mesa. — Se estiver certo, é verdadeiramente fantástico.
Espicaçada pelo fervor do padre, a curiosidade de Lena aumentou.
Roland levou a mão ao bolso do casaco e retirou o diário de Kircher que tinham encontrado na capela, no interior da estátua de bronze. Pousou-o com reverência em cima da mesa, ao lado dos outros volumes. O labirinto dourado reluziu sob a luz que entrava pela janela.
Gray juntou-se ao redor da mesa, mas Seichan permaneceu onde estava, atenta ao que se passava lá fora. A cautela da operacional era um lembrete da ameaça que pairava ainda sobre todos. Foi o suficiente para esmorecer a curiosidade de Lena, mas apenas um pouco. Naquele momento, sabia que a melhor maneira de ajudar a irmã passava pela resolução do mistério que teimava em iludi-los.
Olhou para o diário, suspeitando que as respostas se encontrariam naquelas velhas páginas. No caminho para Roma, deitara uma vista de olhos no conteúdo. As páginas encontravam-se cobertas com uma caligrafia meticulosa, em latim, intercalada por ilustrações, mapas e páginas cheias de números.
— Conseguiste retirar alguma informação do diário? — quis saber.
Roland franziu a testa.
— Na verdade, apenas li algumas partes. Serão necessárias horas, até semanas, para conseguir decifrar a mensagem que se esconde nestas páginas. Mas fiz alguns progressos.
— Nesse caso, o que procurava na biblioteca? — perguntou Gray. — Não nos chegou a dizer.
— Quis saber mais acerca do mapa que estava gravado na estátua. — disse Roland, retirando o iPad da sacola e pondo-o na mesa. — Pareceu-me familiar. Já o tinha visto num trabalho anterior do padre Kircher.
Roland ligou o aparelho e mostrou a fotografia do mapa que Lena tinha tirado.
Parecia ser a forma de uma ilha, com linhas toscas que representavam rios e um par de montanhas.
— Que estamos a ver, exatamente? — quis saber Gray.
Roland olhou para ele, o rosto a transbordar de espanto.
— Acho que não vão acreditar se não lhes explicar passo a passo. Eu próprio tive dificuldade.
— Conta-nos tudo — disse Lena, aproximando-se.
Roland tocou no ecrã.
— Reconheci a gravura assim que a vi. Existe uma versão mais completa no Mundus Subterraneus.
Lena lembrava-se de Roland lhes ter mostrado uma cópia do livro do padre jesuíta, um enorme volume carregado de ilustrações, umas científicas, outras tantas fantásticas.
Roland procurou nos vários ficheiros que tinha no aparelho acerca do padre Kircher, que incluíam a coleção completa das suas obras.
— Aqui está ela.
Os olhares de todos concentraram-se na imagem no ecrã.
A ilha que se encontrava no centro da imagem era exatamente igual à que fora gravada na estátua. A diferença é que a ilustração continha mais pormenores, incluindo nomes e uma legenda no topo, em latim.
Lena não conseguia decifrar grande coisa, exceto o nome que identificava a ilha.
— É o que estou a pensar?
Roland sorriu e leu a legenda em voz alta.
— Situs Insulae Atlandis, a Mari olim absorpte ex mente Egyptiorum et Platonis descripto. Traduzindo: a localização da ilha de Atlântida, no mar, segundo os egípcios e a descrição de Platão.
— Isto pretende ser a localização da Atlântida? — A incredulidade na voz de Gray era indisfarçável.
— Exato. Segundo o que Kircher escreveu no Mundus Subterraneus, este mapa foi baseado em cartas de navegação encontradas em papiros, por ocasião das suas pesquisas acerca do antigo Egito, e também com base nos textos de Platão. Segundo o filósofo, esta ilha era o lar de uma raça tecnologicamente superior, que eram também grandes professores. De modo similar, alguns papiros egípcios retratavam os residentes desta ilha como uma espécie de deuses, que partilhavam conhecimento e sabedoria com os antigos faraós.
Lena reconhecia a semelhança entre o que o padre dizia e a teoria que ela própria e a irmã defendiam, de que o Grande Salto Evolutivo fora impulsionado por um grupo de indivíduos extraordinários.
— Estes relatos não são exclusivos dos egípcios e dos gregos — continuou Roland. — Podem também ser encontrados em antigos textos sumérios que dão conta da existência de uma raça de seres muito altos, a quem chamavam Vigilantes. Esses mesmos Vigilantes podem ser encontrados em textos hebraicos, até na Bíblia. Contudo, o relato mais pertinente encontra-se no Livro de Enoch. De acordo com esse texto, foi um desses seres, Uriel, quem ensinou a Enoch o movimento das estrelas. E existem outros nomes ao longo das páginas, juntamente com as disciplinas que ensinavam.
Roland alcançou um dos livros da pilha em cima da mesa, abrindo-o numa página que tinha marcado. Começou a ler.
— Semihazah ensinava encantamentos e o corte de raízes; Baraquel, astrologia; Kokabel, constelações; Araquiel, os signos da terra; Sariel, a órbita da Lua.
O padre pousou o livro.
— Como podem ver, temos uma mitologia que parece ter persistido ao longo de diferentes culturas. — Olhou para Lena. — Além disso, no que diz respeito às espécies híbridas dos primeiros homens, os Manuscritos do Mar Morto também fazem referência ao nascimento de crianças nascidas da união entre Vigilantes e humanos.
Lena engoliu em seco, absorvendo o que estava a ser dito. Imaginou como seria o aspeto da Eva de Kircher em vida, interrogando-se se os descendentes da união dos primeiros homens com os neandertais poderiam ter originado tais lendas.
— Será que o padre Kircher acreditava que a sua Eva era um desses seres da Atlântida? — perguntou. — Uma Vigilante?
— Possivelmente. Pensa nisto: uma vez no interior da estátua, os olhos de Eva velariam para sempre sobre aquela ilha, o lugar que Kircher acreditava ser a sua casa.
— Parece-me rebuscado, até mesmo para o padre Kircher — observou Gray. — Não vejo nenhuma razão que o levasse a associar as ossadas à mitologia da Atlântida.
Lena parecia discordar. Apontou para a escultura da Lua que se encontrava ao lado da sacola de Roland.
— Kircher retirou esta figura da galeria de esculturas pré-históricas que encontrámos na Croácia. Como nós, terá reconhecido que quem habitara aquelas cavernas era muito mais avançado do que se esperava ser possível ou imaginar. Considerando o episódio das ossadas de mamute, as quais identificou como pertencentes a uma espécie extinta de gigantes, não acho assim tão difícil que tenha chegado a uma conclusão igualmente fantástica acerca destes ossos.
— A diferença é que neste caso — acrescentou Roland, incapaz de conter o entusiasmo — o padre Kircher é capaz de ter razão.
— O quê? — disse Lena, pasmada com a afirmação de Roland. — Como é isso possível?
O padre baixou os olhos para o mapa que brilhava no ecrã. Depois, olhou para os companheiros.
— Porque eu sei onde fica a Atlântida.
18h07
Roland sentiu uma ponta de divertimento perante as expressões dos outros, que o olhavam como se tivesse perdido o juízo.
— Como disse há pouco, deixem-me explicar. Depois entenderão melhor a mensagem deixada pelo padre Kircher.
Tocou no ecrã do iPad, ampliando uma zona do mapa da ilha que fazia parte do Mundus Subterraneus.
— Se repararem na rosa dos ventos, podem ver que a seta aponta para baixo, indicando que o mapa foi elaborado com o norte na parte inferior e o sul na parte superior.
— O inverso da maioria dos mapas — comentou Lena.
— Exato, o que não era invulgar na cartografia deste período — esclareceu Roland. Voltou a tocar no ecrã e fez aparecer uma imagem que tinha editado anteriormente, na biblioteca. — Tomei a liberdade de inverter o mapa e identificar os continentes em redor.
Mostrou o resultado aos companheiros.
Gray estudou a imagem durante uns segundos.
— Se bem percebo, a ilha de Atlântida está representada no meio do oceano Atlântico. Ou, pelo menos, algures entre a América do Norte e a Europa.
— O que suporta as palavras no diálogo de Platão intitulado Timeu. — Roland agarrou num exemplar da obra grega e leu um trecho que assinalara. — Segundo a descrição de Platão, a Atlântida encontra-se além do «estreito a que vós chamais os Pilares de Hércules»... ou seja, além do estreito de Gibraltar.
— O que situaria a Atlântida fora do mar Mediterrâneo — disse Gray.
— Correto — anuiu Roland. Apontou para o livro. — Porém, Platão também afirma que a ilha é maior do que a Líbia e a Ásia juntas — contrapôs em seguida.
Gray franziu a testa.
— Isso tornaria a Atlântida num continente, nunca uma ilha.
— E qual é o continente que se encontra além do estreito de Gibraltar e perto da América do Norte?
Gray coçou o queixo.
— América do Sul?
— Exato.
Gray arqueou as sobrancelhas, cético.
— Portanto, está a afirmar que a ilha de Atlântida é, na verdade, o continente sul-americano? — reforçou. Apontou para o mapa. — Embora seja obrigado a admitir que a linha costeira é bastante semelhante, a verdade é que se encontra no meio do Atlântico.
Roland compreendia a hesitação de Gray, uma vez que ele próprio levantara as mesmas questões.
— Não podemos esquecer que esta ilustração foi baseada em mapas antigos. Como tal, existe a possibilidade de esses cartógrafos terem falhado alguns cálculos no que diz respeito ao alinhamento do continente; ou então queriam apenas destacá-lo e situaram-no no meio do oceano, para evidenciar a sua massa terrestre e características.
Roland fez aparecer outro par de imagens que editara no iPad.
— Se sobrepusermos estas duas ilustrações, conseguimos perceber que a semelhança vai além das linhas costeiras. Os rios e as montanhas também são idênticos.
— O Roland tem razão — disse Lena, inclinando-se para examinar melhor os dois mapas. — O Amazonas, o Orenoco... todos os outros grandes rios. Bate certo.
Gray continuava determinado a descartar a possibilidade.
— Mesmo assim, continua a não fazer sentido. Se a América do Sul tivesse sido em tempos a Atlântida, o lar desse hipotético grande império de Vigilantes ou professores, porque não existe nenhuma prova da sua existência?
— E quem disse que não existe? — Roland mostrou um exemplar recente de uma revista de arqueologia e pousou-o em cima da mesa. — No início de 2015, uma equipa de arqueólogos hondurenhos, auxiliada por soldados britânicos, descobriu as ruínas de uma cidade perdida, enterrada na floresta tropical. A equipa acredita que são as ruínas da Ciudad Blanca, a lendária Cidade Branca de Ouro, um enorme complexo que terá sido construído por uma misteriosa civilização pré-colombiana, desaparecida há muito tempo. O primeiro relato desta cidade é da autoria do conquistador Hernán Cortés, em cartas dirigidas ao rei de Espanha, em 1526. Nessas cartas, o conquistador descreve um lugar prodigioso, cujos habitantes tinham a fama de serem descendentes de um deus-macaco, e cujas crianças ainda apresentavam traços faciais semelhantes aos dos primatas.
Lena endireitou-se na cadeira.
— Feições de primatas... — disse, pensativa. — Se os conquistadores espanhóis tivessem mesmo encontrado uma tribo de hominídeos, ou até de híbridos, como Eva, calculo que os pudessem confundir com primatas.
— E ainda há mais — declarou Roland. — A cartografia por satélite e a tecnologia de sonar continuam a revelar lentamente o que permanece escondido sob as florestas daquele continente, identificando camada após camada de vestígios de civilizações antigas, algumas delas antecedendo os astecas, os incas e os maias em mais de um milénio.
Gray continuava a não estar convencido.
— Acredita mesmo que uma dessas civilizações era o berço dos Vigilantes?
— É possível. Se essa civilização era suficientemente avançada em navegação, conseguiam enviar emissários, oferecendo novas ferramentas, ensinando novas técnicas. Talvez alguns se tenham instalado em terras distantes, tivessem tido filhos e acabassem por ser assimilados em diferentes culturas ancestrais. — Roland tocou no mapa. — Ou talvez este seja o lugar para onde se retiraram e onde se esconderam.
Lena assentiu lentamente com a cabeça. Ainda assim, tinha mais uma questão.
— Platão não descreveu também a destruição da Atlântida? Que foi engolida pelo mar? Posso estar enganada, mas tenho quase a certeza de que a América do Sul ainda está no mesmo sítio.
Roland apontou para a pilha de livros em cima da mesa.
— Temos de compreender que todas estas histórias egípcias e gregas foram contadas por narradores que não poderiam saber realmente o que se passava num continente inteiro que ficava num oceano no outro lado do mundo. Além disso, numa leitura mais profunda, o cataclismo descrito por Platão assemelha-se mais à destruição de uma cidade insular, ou mesmo de um pedaço de terra isolado, que terá sido devastado por terramotos e inundações.
— Ainda assim — insistiu Gray —, mesmo que o padre Kircher tenha escondido as ossadas convencido de que tinham pertencido a um desses Vigilantes, aonde nos levam essas conjeturas sobre a América do Sul?
Roland sorriu.
— Levam-nos a essa cidade; à última morada dos Vigilantes e ao coração do mistério que Kircher investigou durante os últimos anos de vida... e que pode finalmente explicar por que razão os chineses roubaram os ossos e raptaram a irmã de Lena.
18h12
Gray suspirou ao ouvir as últimas palavras de Roland. Recordavam-no da conversa que tivera com Painter, acerca da possibilidade de o trilho histórico deixado por Athanasius Kircher lhes poder oferecer a vantagem de que tanto necessitavam sobre os chineses.
Impaciente, indicou a Roland que continuasse, calculando que o padre ainda não revelara tudo o que descobrira.
— Continue, padre. Se Kircher passou os últimos onze anos de vida a estudar secretamente este mistério, que mais descobriu?
— Não é bem o que ele descobriu, mas sim o que descobriu o seu bom amigo, o bispo Nicolas Steno.
Gray lembrava-se de a irmã Clara ter mencionado esse nome a respeito da recuperação do santuário de Mentorella — de o bispo ser a única pessoa que Kircher autorizara a visitá-lo durante a reconstrução da capela onde escondera o esqueleto. O jovem bispo era também uma espécie de paleontólogo, com um ávido interesse em fósseis e ossos.
Roland pegou no diário do padre jesuíta.
— De acordo com o que aqui está escrito, Kircher enviou Nicolas numa missão à volta do mundo. O reverendíssimo padre necessitava de alguém que ainda tivesse a força necessária para estender a investigação a outras paragens como Creta, Egito, África e, eventualmente, até ao Novo Mundo.
— Que deveria ele procurar? — perguntou Lena.
— A verdade por trás daquelas ossadas. — Roland ergueu o diário no ar. — Apesar de não ter tido oportunidade de ler exaustivamente toda a informação que se encontra nestas páginas, examinei algumas cartas de Nicolas Steno que Kircher copiou para o diário, incluindo alguns mapas das suas viagens. Um desses mapas chamou-me a atenção, e pode muito bem indicar-nos qual é o próximo passo.
Gray aproximou-se.
— E que tem esse mapa?
— Para o entender, é preferível mostrar primeiro este. — Roland fez aparecer uma nova imagem no iPad. — Este mapa encontra-se no Mundus Subterraneus. Foi desenhado pelo padre Kircher, e mostra o continente sul-americano com bastante pormenor.
Gray examinou a ilustração, perplexo.
— Este livro foi publicado muito antes de ele ter descoberto as ossadas, certo?
— Sim — admitiu Roland. — Na verdade, este mapa foi elaborado numa tentativa de representar o sistema hidrológico único do continente sul-americano, mostrando o percurso dos rios até ao oceano. Reparem na cratera desenhada no centro da cordilheira dos Andes.
— Que tem de especial?
— O padre Kircher acreditava que as montanhas escondiam um gigantesco reservatório, uma espécie de mar subterrâneo que fornecia água a todo o continente.
— Muito bem — disse Lena —, mas que tem isso que ver com...
— Agora, vejam esta imagem — disse Roland, abrindo o diário. — Encontrei esta ilustração entre a correspondência de Nicolas. É a mesma cratera do mapa anterior, mas foi acrescentado um pormenor que julgo relevante.
Pôs o diário na mesa, para que todos pudessem ver.
Parecia tratar-se efetivamente de uma reprodução aumentada do mesmo mar subterrâneo, mas tinha sido acrescentada uma nova ilustração no centro da cratera, que quase dava a sensação de que brilhava sobre a superfície da água.
Lena olhou para ilustração, boquiaberta.
— Este padrão é o mesmo que se encontra na capa do diário.
Roland assentiu.
— O famoso labirinto do Minotauro de Creta.
Gray recordava-se do que o padre tinha dito acerca do labirinto; de como aquele padrão podia ser encontrado não só em Creta, mas também em gravuras de pedra, espalhadas por vários países do sul e norte da Europa, como Itália, Espanha, Irlanda ou Finlândia. Havia inclusive uma descrição do mesmo padrão num dos maiores épicos sânscritos da Índia, o Mahabharata.
Roland olhou para os companheiros.
— Estou convencido de que Nicolas Steno, ao seguir as pistas na Croácia e as deduções de Kircher, descobriu a cidade perdida dos antigos Vigilantes, assinalando-a no mapa com este labirinto.
Gray observou a representação da imensa superfície de água no interior da cratera.
— Mencionou anteriormente que o afundamento da Atlântida pode ser, na verdade, o relato da destruição de uma cidade. — Apontou para o diário aberto. — Está a dizer que este é o lugar que deu origem à lenda?
— É possível. O padre Kircher parecia acreditar que sim, pelo menos. Mas também podia ter associado a descoberta de Nicolas ao texto de Platão. Seja como for, o bispo Steno descobriu qualquer coisa naquelas montanhas sul-americanas, algo que parece ser o culminar de todas estas pontas soltas.
— Se ao menos soubéssemos onde fica essa cratera... — observou Lena. — Já imaginaram se pudéssemos lá ir?
Roland olhou para ela.
— Não precisamos de imaginar.
— Como? — perguntou Gray.
Roland apontou para a ilustração.
— Porque eu sei onde fica.
Gray voltou a examinar o mapa. Só então compreendeu.
— As linhas que cruzam a cratera... estão numeradas.
Roland fez que sim com a cabeça.
— Assinalam a longitude e a latitude. No tempo do padre Kircher, as linhas de latitude eram calculadas da mesma maneira que conhecemos hoje. No entanto, a longitude era determinada com base no meridiano da ilha de Ferro, em vez do meridiano de Greenwich.
— Conseguiu converter os valores? — perguntou Gray, notando a centelha de excitação nos olhos de Roland.
— E não só. Também assinalei a localização — disse o padre.
Voltou a pegar no iPad e fez aparecer um novo mapa, exibindo uma seta e um conjunto de coordenadas.
— Fica no Equador — disse Gray.
— Bem no coração dos Andes — confirmou Roland —, a cerca de oitenta quilómetros a sul de Cuenca.
— E quem nos garante que isto é realmente relevante? — perguntou Lena, partilhando algum do ceticismo do operacional. — Não é por nada, mas esta cratera fica no meio de nenhures...
Roland sorriu.
— Porque não somos os primeiros nesta demanda.
— Que quer dizer com isso? — perguntou Gray, incapaz de disfarçar a surpresa.
— Por causa do meu próprio trabalho, tive conhecimento de um monge do século vinte, chamado Carlos Crespi, que nutria uma obsessão pelo padre Kircher. O homem chegou ao ponto de emular o trabalho do reverendíssimo padre, dedicando-se tão fervorosamente à ciência como se dedicava à religião, tornando-se um ávido botânico, antropólogo, historiador e músico. Acabou por fundar uma missão em Cuenca, onde serviu durante cinquenta anos, até ao dia da sua morte.
— Cuenca? — disse Lena, observando o mapa do Equador.
— Exato. Sempre achei estranho que um homem tão qualificado e estudioso como o padre Crespi decidisse passar o resto da vida numa vila remota nos Andes. Isto é, até agora...
— Pensas que tomou essa decisão por causa de Kircher?
— Além de outras raridades, esta biblioteca ainda guarda grande parte do espólio do reverendíssimo padre. A maioria dos trabalhos é da altura em que o Museu Kircheriano encerrou as portas aqui na universidade. Inclui uma vasta coleção de notas soltas, correspondência, até rascunhos de primeiras obras, algumas delas nunca publicadas. Muito desse trabalho ficou esquecido durante séculos, sem nunca ter sido catalogado... Até ao dia em que alguém decidiu abraçar a tarefa.
— Deixe-me adivinhar... — disse Gray —, esse alguém foi o padre Carlos Crespi.
— Ele ajudou a organizar a maioria desse espólio esquecido, juntamente com a restauração e a preservação de correspondência antiga. Incluindo muitas cartas de Nicolas Steno.
— E está a pensar que Crespi pode ter apanhado alguma coisa nessas cartas que o levou ao Equador...
— Não acredito que tenha alcançado a dimensão do que se esconde por trás disto tudo. Mas pode ter percebido que era suficientemente importante para investigar.
— E a missão que fundou em Cuenca? — perguntou Lena. — Uma tentativa de encobrimento do que estava a fazer?
Roland encolheu os ombros.
— Não creio. Acho que viu uma oportunidade de conjugar este interesse com o verdadeiro chamamento de ajudar os nativos da região. Por altura da sua morte, era imensamente estimado por aqueles a quem servira.
— E a sua demanda em relação a Kircher? — quis saber Gray. — Conduziu-o ao que procurava?
Roland esboçou um sorriso enigmático.
— Conduziu a um mistério que continua a baralhar arqueólogos há décadas, e que acabaria por levar uma expedição britânica aos Andes equatorianos, envolvendo centenas de soldados e cientistas, todos sob o comando de um grande herói americano.
Um herói americano?
— Quem? — perguntou Gray.
Roland pegou na esfera de pedra e balançou-a nas mãos, exibindo a representação perfeita da superfície lunar.
— A expedição foi dirigida por Neil Armstrong — respondeu, com um sorriso rasgado. — O primeiro homem a pisar a Lua.
Antes que Gray pudesse esboçar uma reação, um grito furioso cortou o silêncio na sala.
— Aquela cabra!
Gray virou-se e viu Seichan desviar-se da janela.
— Corram! — gritou ela, frenética.
18h22
Seichan saltou por cima do canto da secretária.
No instante anterior, reparara num grupo de freiras que abandonava o edifício principal da universidade do Vaticano. Não dera nenhuma importância à presença das irmãs. Pelo menos, até ao momento em que uma delas se separou do grupo e se dirigiu para uma mota estacionada, aparentando coxear ligeiramente. A estranheza da situação levou-a a continuar a observação. Logo a seguir, quando chegou junto ao passeio, a freira virou-se e sacou de uma espingarda automática compacta, que trazia escondida por baixo do hábito.
Quando apontou a arma para a janela, Seichan conseguiu finalmente um vislumbre do rosto escondido pelo véu. Era a assassina chinesa. Aparentemente, a mulher descartara o anterior papel de guia turística e vestia agora a pele de uma freira católica, replicando a estratégia de Seichan no santuário.
Enquanto deslizava sobre a secretária, a janela estilhaçou-se e um objeto negro voou por cima da sua cabeça, fazendo ricochete numa viga do gabinete.
Uma granada.
À sua frente, Gray também já estava em ação. Com um só braço, agarrou Lena pela cintura e empurrou-a contra Roland, forçando os dois companheiros em direção à porta do gabinete ao mesmo tempo que alcançava o diário de Kircher.
Para Seichan, chegar à porta não era uma opção.
Depois de passar a secretária, atirou-se para o chão e deslizou de costas por baixo da mesa onde os outros tinham estado a conferenciar. Esticou as pernas e pontapeou-a, fazendo-a tombar, para poder usá-la como um escudo entre ela e a granada.
A explosão fez estremecer a divisão, sacudindo-lhe a cabeça e estalando-lhe os ouvidos, e a onda de choque arremessou-a em direção à porta, acompanhada por uma chuva de lascas de madeira e por uma nuvem de fumo.
Por sua vez, Gray conseguira alcançar o corredor e abrigara-se junto à ombreira. Esticou um braço e agarrou a companheira pelo tornozelo, arrastando-a para fora do gabinete.
Seichan agachou-se junto dele, alternando o olhar entre o gabinete e o corredor. Não viu ninguém. De acesso restrito, aquela secção do edifício da universidade encontrava-se protegida por um sistema de fechaduras com código. Todavia, com tanta agitação, Seichan sabia que essa medida de segurança poderia ser facilmente contornada durante o caos que se seguiria.
O que parecia ser o objetivo do ataque.
Uma maneira de os forçar a abandonar o gabinete.
Gray era da mesma opinião.
— Precisamos de sair daqui! — gritou, com os ouvidos a tinirem. — Mas não podemos utilizar as saídas habituais.
Roland apontou para o fundo do corredor.
— Podemos sair pela cave! — disse o padre. — Existe um túnel de serviço que faz parte de um antigo aqueduto romano. A saída fica numa rua próxima.
— Indique o caminho! — disse Gray, pondo o grupo em movimento.
Seichan avançou atrás dele, porém, sentia que algo não batia certo. Olhou por cima do ombro e observou a nuvem de fumo que ainda escapava do interior do gabinete. Lembrava-se de ver a mesa a ser despedaçada e de ver detritos pelo ar, porém, a explosão fora pouco mais do que isso: apenas barulho e fumo.
Nada de estilhaços.
— Que se passa? — perguntou Gray, reparando que ela arrastava o passo.
Seichan olhou para ele, hesitante. Depois fez sinal para avançar, munida de uma única certeza.
— Anda, vamos sair daqui.
19h31
A primeiro-tenente Shu Wei encontrava-se junto à mota estacionada no ponto de encontro na Piazza Navona. Com o Sol perto da linha do horizonte, um manto de sombra começava a invadir a praça. Os turistas e os habitantes locais conversavam e passeavam descontraidamente, a maioria preparando-se para ocupar um lugar e jantar numa das muitas esplanadas à disposição.
Ninguém lhe prestara atenção.
Ao longo da última hora, descartara-se do disfarce e da arma, mantendo sempre o contacto com a equipa de três homens que lhe tinha sido atribuída para a missão. Agora, aguardava com o telefone junto ao ouvido, enquanto o aparelho estabelecia uma ligação segura para Pequim.
Uma voz severa fez-se ouvir no outro lado da linha.
— Comunique.
Reconheceu o tom brusco da major-general Lau, e endireitou prontamente as costas, como se estivesse na presença da tia.
— Os alvos encontram-se em movimento. Conseguiram iludir os homens que guardavam as saídas do edifício, infelizmente.
— Uma grande infelicidade, de facto.
Shu cerrou os maxilares ao ouvir a irritação na voz da general. Depois do ataque no santuário, fora obrigada a planear a emboscada à pressa. Ainda assim, aquela oportunidade só acontecera graças à sua desenvoltura e rapidez de raciocínio.
Antes de escapar das montanhas e de ter roubado a mota, instalara um localizador no único automóvel que ocupava o parque de estacionamento da igreja. Permitira-lhe seguir o rasto dos alvos até Roma, onde vira o quarteto entrar no edifício da universidade.
Logo a seguir, tinha sido fácil atacar uma freira num átrio deserto, esconder o corpo num armário e roubar-lhe o hábito. Uma vez disfarçada, não tivera dificuldade em obter informações acerca da chegada de um grupo tão invulgar e maltratado, descobrindo para onde se dirigiam. Pouco tempo depois, conseguira ver o padre a dirigir-se para a biblioteca. Para tirar partido da oportunidade de o eliminar, decidira segui-lo. Porém, antes que pudesse meter-lhe uma faca entre as costelas, o padre entrara numa secção da biblioteca à qual ela não tinha acesso.
Ainda assim, conseguira ouvir o suficiente das perguntas que ele fizera junto da receção para ficar a saber que investigava diligentemente algo. Se bem se lembrava, a freira que a atacara no santuário tinha-lhe dito que o grupo procurava informações acerca de um sacerdote do século XVII.
Aparentemente, essa investigação ainda prosseguia.
Enquanto aguardava pelo regresso do padre, aproveitara a ocasião para informar a major-general Lau do que estava a acontecer. Como sempre, a tia nunca descartava as variáveis de qualquer equação e ordenara-lhe que descobrisse o que eles procuravam na universidade, claramente preocupada com a possibilidade de ser apanhada de surpresa com o resultado dessa investigação.
Assim sendo, Shu deixara-se ficar pela biblioteca. Passada uma hora, o padre croata voltou a surgir e dirigiu-se para uma ala segura da universidade, onde ficavam os gabinetes privados dos professores. Shu desejava poder escutar as conversas do grupo, mas o acesso àquela área era restrito, obrigando ao conhecimento de um código de acesso. Uma vez que também não tinha um microfone de laser, não havia nenhuma maneira de os poder ouvir da rua.
Sabendo disso, a major-general Lau sugerira que Shu forçasse os alvos a abandonarem o edifício, pondo-os de novo em movimento, para continuar a perseguição e eventualmente descobrir o que procuravam. A granada de fumo resolvera a primeira parte do problema, mas o grupo revelara-se mais expedito do que antecipara, desaparecendo nas sombras, ainda antes de ter conseguido aceder ao gabinete.
— Se os tiver perdido, tenente Shu, garanto que haverá consequências — avisou Lau, ao telefone. — Mesmo para uma sobrinha que me é querida.
— Não importa — disse Shu.
— Porquê?
Shu olhou para o objeto que segurava na outra mão. Recuperara-o do gabinete na universidade, aproveitando o caos que se seguiu ao rebentamento da granada. Carregou no botão e o ecrã do iPad iluminou-se. O aparelho pertencia ao padre, tendo ficado esquecido durante a fuga apressada do grupo.
Shu olhou para a última imagem visualizada, ainda fixa no ecrã.
Sorrindo, respondeu finalmente à tia.
— Porque eu sei qual é o destino deles.
TERCEIRA PARTE
A CIDADE PERDIDA
17
1 de maio, 08h04 CST
Pequim, China
Faças o que fizeres, não te mexas.
Kowalski permanecia imóvel, deitado no saco-cama. Segundos antes, acordara com o braço preso sob o imenso peso do gorila. Baako ressonava tranquilamente, enrolado sobre si próprio com a cabeça apoiada na dobra do seu braço. Maria também continuava a dormir, no outro lado, aninhada contra as costas do animal. Um dos braços repousava sobre os ombros do gorila, tocando o queixo de Kowalski com a ponta dos dedos.
Kowalski não queria acordar nenhum dos dois, consciente do terrível dia que os aguardava. Apesar de não fazer ideia de que horas eram, calculava que fosse bastante cedo. De acordo com o que a general anunciara, não deveria faltar muito até que surgisse alguém para levar o gorila para o prepararem para a operação. Recordou o chimpanzé torturado, o modo horrível como se encontrava imobilizado com o cérebro exposto, ligado a todos aqueles aparelhos eletrónicos.
Cambada de selvagens...
Observou o rosto adormecido de Baako no seu braço, notando o ligeiro rolar dos olhos enquanto sonhava. Por trás dos ombros do gorila, Maria respirava pesadamente, com os lábios entreabertos. O sono profundo relaxara-lhe as feições delicadas, fazendo com que parecesse ainda mais jovem, e deu por si a olhar fixamente para o comprimento das pestanas dela.
Desejava desesperadamente poder ajudá-los, mas tudo o que podia fazer naquele momento era permitir que continuassem a dormir, que pudessem continuar a usufruir daquele último momento juntos... nem que fosse por uns minutos.
Olhou para lá das barras da cela, para as câmaras de vigilância posicionadas ao longo do teto. Seguiu-as na direção das enormes portas de aço ao fundo do corredor. Um sinal vermelho iluminava lugubremente as sombras. Semicerrou os olhos, estudando os caracteres.
Apesar de não saber o que significavam, tinha a certeza de que eram os mesmos que tinha visto no laboratório de vivissecção, por cima da janela de observação do fosso dos gorilas híbridos. Lembrava-se de ter reparado numas portas de aço ao nível do chão do recinto, seladas por uma antecâmara composta por uma jaula com barras grossas.
Aposto que é a mesma porta.
Estudou o interior das celas ao longo do corredor. Começava a compreender a razão dos arranhões no chão de cimento, bem como das correntes e algemas de ferro que pendiam das paredes.
Eles devem testar as criaturas nestas celas.
Recordou o gorila mais corpulento, com as costas prateadas, a facilidade com que arremessara aquele braço ensanguentado contra a janela... a raiva que lhe transbordava nos olhos e no rugido ensurdecedor. Aqueles animais podiam ser geneticamente predispostos para a hostilidade e agressão, mas Kowalski tinha a certeza de outro pormenor acerca das criaturas.
Tinham um ódio de morte aos seus criadores.
E com razão, provavelmente.
Como se pressentissem o que estava a pensar, um rugido atroador fez-se ouvir do fundo do corredor, transformando-se gradualmente num uivo lancinante.
Maria acordou assustada com o ruído, com os olhos muito abertos e o medo estampado no rosto enquanto tentava compreender o que estava a acontecer. Baako reagiu de maneira semelhante, encolhendo-se por um momento. Depois saltou e agachou-se, assumindo uma postura cautelosa. Guinchou, ansioso, varrendo o espaço com o olhar.
— Está tudo bem — disse Kowalski.
Era mentira, claro, mas que outra coisa lhes poderia dizer?
Maria tentou ordenar a respiração, procurando acalmar-se. Sentou-se e pousou uma mão na perna de Baako.
— Tem calma — sussurrou-lhe. — Estou aqui.
Baako respondeu-lhe com um guincho e sentou-se. Com os olhos fixos na porta de aço, abraçou os joelhos peludos com um braço, estendendo a outra mão para Maria.
Maria segurou-lhe a mão e puxou-o para si.
Kowalski aproveitou o momento para sair do saco-cama e levantou-se lentamente, esticando todos os músculos do corpo.
— Que horas são? — quis saber Maria.
Kowalski encolheu os ombros.
— Já amanheceu, calculo eu.
Maria humedeceu os lábios e olhou em silêncio para o outro lado do corredor, observando as portas duplas que conduziam ao resto do complexo. Apesar de não ter dito uma palavra, Kowalski conseguia ler a preocupação que transparecia no seu rosto. Puxou Baako para mais perto e abraçou-o com mais firmeza, como se o conseguisse proteger apenas por força de vontade.
Baako encolheu-se debaixo do braço dela a tremer, pressentindo claramente a tensão que pairava no ar.
— Que vamos fazer? — perguntou a Kowalski.
— Vamos cooperar — disse Kowalski, friamente, sabendo que não havia razão para adoçar a realidade. — Qualquer atitude contrária apenas resultará na tua morte, e o Baako acabará na mesma na mesa de operações. Se continuares viva, sempre podes confortá-lo... mesmo que aconteça o pior.
As palavras de Kowalski nada fizeram para lhe atenuar o desânimo, mas não esperava o contrário. De certa forma, eram também dirigidas a quem pudesse estar a ver e a ouvir o que se passava na cela.
É melhor deixá-los pensar que já desistimos.
Virou as costas para as câmaras e ergueu a mão. Queria dar a Maria uma ponta de esperança, ainda que fosse demasiado ténue. Formou três letras com os dedos.
[GPS]
Uma ruga profunda formou-se entre as sobrancelhas de Maria, enquanto ela tentava compreender o que ele lhe estava a tentar dizer. Kowalski sabia que Maria já se teria interrogado acerca do que tinha acontecido ao localizador de Baako. Optara por manter o silêncio sobre o assunto, receando que um mínimo deslize pudesse denunciar o que fizera no dia anterior.
Desviou o olhar para a pilha de excrementos no canto da cela. Sentiu-se agradecido por os serviços de limpeza daquelas instalações serem tão negligentes. Fosse como fosse, o máximo que os chineses poderiam encontrar não passava de uns pedaços de borracha mordida.
No dia anterior, enquanto comia com Baako — embora fingisse mais do que comia —, Kowalski fizera com que o gorila mordesse a banda de borracha do localizador, para poder retirar o dispositivo de GPS. Sem a pulseira, a unidade eletrónica não era maior do que uma moeda de um cêntimo. Uma vez removida, Kowalski instruíra o gorila para que escondesse os pedaços de borracha mastigada sob a pilha de excrementos. Logo depois, conseguira arranjar uma maneira engenhosa de o dispositivo poder ser eventualmente levado para a superfície, onde, com alguma sorte, o sinal seria de novo detetado.
Tocou no penso que ainda trazia no rosto. Visualizou a luta que encenara com Baako, recordando o momento em que abandonara atabalhoadamente a cela e esbarrara com o guarda que lhe abrira a porta. Com as atenções focadas no gorila raivoso, tinha sido fácil enfiar o aparelho num dos bolsos do uniforme do soldado. Se tudo corresse como esperava, era apenas uma questão de tempo até que o homem se deslocasse à superfície. Se o localizador ainda estivesse a ser monitorizado, o sinal acabaria por conduzir uma equipa de resgate ao encontro do soldado — e em seguida àquele lugar, esperava Kowalski.
De costas para as câmaras, o operacional manteve a mão escondida e formou mais três letras com os dedos, indicando o nome do guarda.
[GAO]
08h23
As palavras apressadas de Kat não conseguiam esconder a excitação e a urgência.
— Acabámos de detetar um sinal do localizador!
— Onde? — perguntou Monk.
— Vou enviar-te o ponto de origem do sinal e o rastreamento em tempo real, para que possas acompanhar. Está em movimento.
Enquanto aguardava, Monk olhou pela janela do hotel, localizado a menos de oitocentos metros a leste do Jardim Zoológico de Pequim. Solicitara um quarto no piso mais elevado, o que lhe oferecia uma vista que alcançava o pináculo do aquário e o portão norte do zoo. Ao longo da noite, Kimberly e ele tinham-se revezado na janela do quarto com um par de binóculos, para vigiarem a atividade militar nos terrenos do parque, procurando qualquer mudança significativa no movimento das tropas.
Ouvindo a conversa, Kimberly vestiu o blusão. Ainda há momentos, estivera a falar com o marido, que se encontrava na Virgínia, Durante o telefonema, a voz tornara-se doce e calorosa, e um sorriso meigo brincara-lhe nos lábios o tempo todo. Monk apercebera-se quando o marido pôs a filha de três anos ao telefone. As palavras tornaram-se mais melosas, e o tom ficou um pouco mais agudo. Monk tinha duas filhas. Era natural que conseguisse reconhecer essa mistura de preocupação e amor incondicional.
— Já deves ter a informação — anunciou Kat.
Kimberly juntou-se a Monk, espreitando para o ecrã do telefone por cima do ombro dele. Um pequeno ponto azul assinalava a nova aparição do sinal, e uma linha tracejada indicava o rastreamento pela da cidade de Pequim.
— Estranho...
Monk olhou para ela.
— O sinal reapareceu a cerca de um quilómetro e meio a sudeste do zoo. — Virou-se e abriu o seu computador portátil. Os dedos saltaram nas teclas, fazendo aparecer mapas de satélite e uma série de janelas de dados. Suspirou, desapontada.
— Que se passa? — perguntou Monk.
— A localização corresponde a um velho restaurante. Foi encerrado em 2012 e nunca mais reabriu. — Fechou o computador e apontou para a porta. — Pega nas tuas coisas.
Monk compreendia a razão de ser da urgência de Kimberly. Olhou para o ecrã, observando o tracejado que continuava a estender-se lentamente sobre o mapa da cidade. Tinham de o intercetar antes que voltasse a desaparecer.
Agarrou na mochila e seguiu atrás de Kimberly. Apressaram-se para o elevador e desceram até ao átrio do hotel. Depois de apanharem um táxi, Kimberly deu finalmente o seu parecer.
— Para o sinal ter surgido tão afastado do zoo, aposto que esse restaurante deve esconder uma das entradas para a Dìxià Chèng, a Cidade Subterrânea.
Monk recordava-se de ela ter mencionado esse complexo de abrigos no subsolo de Pequim, dos tempos da Guerra Fria. Estendiam-se por quase duzentos e sessenta quilómetros quadrados, ligando a maioria dos pontos importantes da cidade.
— Achas que o Kowalski e a Maria Crandall foram levados por esses túneis?
— Faz todo o sentido. No passado, o exército chinês utilizava frequentemente os túneis para esconder a movimentação de tropas. Em 1989, por ocasião dos confrontos na Praça Tiananmen, transferiram soldados por essas passagens, para os esconder dos olhos do mundo.
— E calculo que alguns desses túneis possam ser usados para o transporte de materiais e de equipamento, permitindo aos chineses a construção de novas instalações subterrâneas sem que ninguém perceba.
— Não seria difícil. Diz-se que algumas das passagens são tão largas como uma autoestrada de quatro faixas, o suficiente para acomodar batalhões de tanques.
Enquanto o táxi virava numa esquina, Monk voltou a olhar para o ecrã do telemóvel.
— Estamos a cerca de quatrocentos metros do sinal.
Kimberly inclinou-se para a frente e falou rapidamente em mandarim para o condutor, indicando-lhe a direção que deveria seguir. Voltou a encostar-se.
— Estamos a dirigir-nos para uma zona residencial — disse ela. — Um dos velhos bairros hutong.
— Hutong?
— São bairros antigos, compostos de ruas estreitas e becos, formados por um labirinto de siheyuan, as tradicionais casas chinesas com pátios. Pedi ao condutor para nos deixar o mais perto possível. Depois teremos de continuar a pé.
Monk franziu o sobrolho.
— Por que razão transportariam o Kowalski e a Maria Crandall por uma zona residencial? Sobretudo se o Baako ainda se encontrar com eles?
— Não faço ideia. Mas é uma preocupação a ter em conta. — Olhou para Monk. — Assim como o teu aspeto, num bairro destes.
Monk assentiu.
Acho que não vou passar despercebido.
— Tive uma ideia — disse Kimberly. Virou-se e começou a remexer na mochila. Passou-lhe um boné de basebol com caracteres chineses, um par de óculos escuros e uma máscara cirúrgica. — Acho que resolve o problema.
Monk segurou a máscara entre os dedos. Era uma peça de vestuário obrigatória para muitos dos habitantes de Pequim, para se protegerem da ubíqua poluição da cidade. Com o boné e os óculos escuros, poderia passar insuspeito, sobretudo se mantivesse a cabeça baixa.
Enquanto montava o disfarce, Kimberly deu novas instruções ao condutor, apontando para o próximo cruzamento.
Parece que chegámos à nossa paragem
Kimberly deu um último conselho.
— Deixa-me ser eu a falar. Os habitantes destes bairros são manifestamente fechados e cautelosos em relação à presença de estranhos, sobretudo de estrangeiros.
O táxi parou na esquina seguinte. Kimberly pagou ao condutor em dinheiro e abandonaram o veículo. Monk olhou em redor. Do outro lado da rua, erguia-se uma área comercial típica de Pequim, com hotéis altos e um imenso centro comercial.
Kimberly conduziu-os na direção oposta, para um beco ladeado por muros de tijolos. Era tão estreito que quase não podiam caminhar lado a lado. Uns passos à frente, a sensação que dava era que tinham deixado o mundo moderno e penetravam lentamente num pedaço do passado de Pequim. A primeira camada parecia constituir-se de pequenas lojas que vendiam tabaco, antiguidades ou guloseimas coloridas. A seguinte tinha um toque mais pessoal, conforme as casas de chá comunitárias substituíam as montras das lojas e um cheiro a incenso preenchia o ar, erguendo-se de um templo próximo.
— Um pouco mais à frente — sussurrou Kimberly, depois de consultar sorrateiramente o mapa no telefone.
À medida que avançavam para o coração do hutong, Monk conseguia vislumbres ocasionais dos pátios das residências, notando os pequenos jardins, os estendais carregados de roupa ou as inúmeras gaiolas de pombos.
Escondendo o telefone na palma da mão, reparara que o sinal contornara uma esquina próxima e se dirigia agora na direção de ambos. Levantou a mão, mostrando o ecrã a Kimberly.
A companheira olhou em redor e puxou-o para o interior de uma loja de arte. Era tão pequena que mal acomodava os dois, obrigando-os a espremerem-se entre as prateleiras preenchidas de pincéis de caligrafia, pilhas de papel, tinteiros e carimbos. A proprietária — uma pequena mulher enrugada que podia ter entre sessenta e cem anos — apresentou um sorriso que mostrava apenas gengivas, uma vez que não tinha um único dente.
Kimberly dirigiu-se à mulher, falando suavemente num tom respeitoso. Com as costas ligeiramente viradas para elas, Monk concentrou-se no telefone, atento ao telefone e à porta da loja.
Finalmente, o ponto azul iluminou-se sobre aquela posição atual. Ao mesmo tempo, uma figura alta que vestia um uniforme do Exército de Libertação Popular passou frente à porta, continuando depois o seu caminho.
Monk fez um compasso de espera, na expectativa de ver uma escolta armada a conduzir Kowalski e Maria pelo bairro. Porém, apenas viu passar uma fila ruidosa de crianças, que provavelmente se dirigiam para um infantário.
Monk fez sinal a Kimberly para que o seguisse. Abandonou a loja enquanto a companheira se despedia da proprietária, desculpando-se pela saída apressada. De volta ao beco, Monk indicou com a cabeça o homem que contornava a esquina seguinte.
— O sinal vem daquele tipo — sussurrou, enquanto caminhavam atrás das crianças.
Kimberly olhou para trás e depois para a esquina.
— Qual é a tua opinião?
Monk sabia o que ela estava a pensar.
Pode ser uma armadilha.
Monk e Kimberly não tinham maneira de saber se os chineses tinham descoberto o dispositivo, e havia a possibilidade de estarem a utilizar o soldado como isco, para atrair quem quer que estivesse a monitorizar o sinal.
Alguém como nós.
Monk continuou a pesar os riscos enquanto seguia o alvo. A opção mais inteligente seria retirarem-se e reavaliarem a situação. Todavia, depois de um dia inteiro de braços cruzados, a impaciência sobrepôs-se à cautela. Sabia que as melhores hipóteses de conseguirem um resgate se esgotavam ao fim de vinte e quatro horas. O estudante assassinado no Centro de Primatas de Yerkes era um bom testemunho da determinação de quem comandava esta operação.
Tanto quanto sei, até pode ter sido este soldado quem matou o rapaz.
— Então? — perguntou Kimberly.
Monk acelerou o passo, consciente de que havia uma única maneira de conseguir todas as respostas.
— Este já não escapa.
09h02
Maria sentiu os músculos retesarem-se quando as portas duplas se abriram. Levantou-se imediatamente do chão, pondo-se entre Baako e a entrada da cela. Uma empilhadora avançou pelo corredor, carregando a mesma jaula que transportara o gorila no dia anterior.
— Parece que está na hora — rosnou Kowalski, entredentes.
Uma equipa de quatro soldados acompanhava a empilhadora. Todos traziam espingardas ao ombro, mas um deles segurava um bastão elétrico.
Baako encostou-se a Maria, encolhendo-se contra a perna dela, recordando-se claramente da jaula e da dor infligida pelos bastões faiscantes. Estendeu um braço para Kowalski, pedindo silenciosamente a proteção do homem grande.
Kowalski segurou-lhe a mão e fitou o grupo que se aproximava.
A empilhadora deteve-se frente à cela e um quinto soldado saltou do interior da cabina. Vociferou uma ordem ao condutor, que logo fez descer a jaula. Maria reconheceu Chang Sun, vestido com aprumo no seu uniforme e com o cabelo esticado para trás, ainda húmido, como se tivesse acabado de sair do duche. Estava surpreendida de o ver ali em lugar do irmão mais novo, Gao. Pelo olhar irritado e postura rígida, percebia-se que não estava nada satisfeito por lhe ter sido atribuída a tarefa menor de recolher o gorila.
Fez sinal a um guarda para que abrisse a cela, vociferando ao mesmo tempo para o que segurava o bastão elétrico. Os dois soldados obedeceram de imediato. A cela foi aberta e as espingardas e o bastão faiscante alinharam-se na direção dos prisioneiros.
Por esta altura, Baako tremia por todo o lado. Kowalski semicerrou os olhos, sentindo os dedos a serem esmagados pelo aperto da mão do gorila. Ainda assim, recusou-se a largá-la. Em vez disso, deu um passo em frente e confrontou Chang.
— Não o vão meter de novo nessa jaula. Ele fica connosco.
O esgar de Chang acentuou-se.
Maria também avançou, reforçando a posição de Kowalski.
— Se tencionam operar esta manhã, não convém deixá-lo demasiado agitado. Pode ter consequências adversas. Além disso, tenho a certeza de que a major-general Lau não...
Chang cortou-lhe a palavra, sacando da pistola que trazia à cintura. Maria reconheceu imediatamente o erro que cometera. Não devia ter mencionado o nome da general, recordando-o da tensão existente entre os dois oficiais. Reconheceu também a arma que ele segurava na mão. Uma pistola de dardos tranquilizantes.
Kowalski levantou um braço, disposto a continuar a argumentar. Porém, antes que pudesse abrir a boca, Chang apontou a pistola e disparou.
O dardo passou entre Maria e Kowalski e acertou no ombro de Baako. O gorila guinchou e arrancou-o com uma palmada. Todavia, a droga tranquilizante já tinha sido injetada. Assustado, Baako largou a mão de Kowalski e refugiou-se ao fundo da cela.
Maria apressou-se a ir ter com ele.
Kowalski fez o mesmo, praguejando alto e bom som.
Encostado a um canto, com os olhos a transbordar de pânico, Baako enrolou-se sobre si mesmo. Maria ajoelhou-se e abraçou-o, segurando-lhe a cabeça junto ao peito.
Kowalski aproximou-se.
— Está tudo bem, matulão.
Baako olhou para ele. Com os braços trementes, ergueu dois punhos no ar e bateu com os nós dos dedos.
[Juntos]
— Não te vou deixar — prometeu Kowalski. — Somos uma equipa.
— Isso mesmo, uma equipa — reforçou Maria, sem ter a certeza se Baako a compreendia e tentando imprimir o máximo de conforto na voz.
O olhar de Baako alternou entre os dois, os olhos já vidrados pelo efeito do tranquilizante. Pela rapidez com que a substância atuara, Maria calculou que o dardo continha M99, um potente tranquilizante que era frequentemente usado em jardins zoológicos.
Conforme caía num sono forçado, Baako abriu as mãos e fez o sinal de okay com os dedos. Depois, voltando a alternar o olhar entre Maria e Kowalski, fez ainda um último gesto. Ainda que tivesse sido executado de forma débil, Maria compreendera o significado. Olhou para Kowalski, verificando que Kowalski também o tinha compreendido.
Baako corrigira as palavras anteriores do operacional. Em vez de equipa, substituíra a palavra por família.
— Isso, uma família... — repetiu Kowalski.
Como se estivesse apenas a aguardar a confirmação, a cabeça de Baako tombou para trás e os braços caíram pesadamente no chão de cimento.
O som de passos fez-se ouvir nas costas de ambos.
Maria olhou por cima do ombro. Era Chang.
— Está calmo, agora — disse o oficial, sardónico. — Satisfeitos?
Kowalski levantou-se de rompante, disposto a ajustar contas, mas Chang apontou-lhe a pistola. Maria agarrou imediatamente Kowalski pelo braço, apelando para o seu bom senso. Para um ser humano, o M99 era mortífero. Na verdade, duas ou três gotas eram o suficiente para provocar morte imediata.
Kowalski continuou a fitar o oficial, embora a postura corporal indicasse que atendera o pedido silencioso de Maria.
Chang desviou o olhar para a geneticista, mantendo a pistola apontada para o peito de Kowalski
— Tu vens connosco. Ele fica.
— O tanas! — vociferou Kowalski.
Maria segurou-lhe a mão, consciente de que era uma batalha que não podiam vencer.
— Está tudo bem. Eu posso olhar pelo Baako.
Kowalski respirou com força pelo nariz, visivelmente contrariado, mas era obrigado a reconhecer que não tinha alternativa.
— Como queiras — resmungou.
Resolvida a questão, três dos soldados entraram na cela e carregaram o gorila até à empilhadora. Maria acompanhou-os, amparando a cabeça do animal, certificando-se de que não o magoavam no processo. Ainda que soubesse que aquilo que o aguardava nessa manhã era incomparavelmente pior.
Visualizou a imagem do chimpanzé brutalizado do dia anterior. Apesar de tudo aquilo a ter horrorizado para lá de toda a compreensão, não conseguia escapar à sua própria vergonha. Será que a vida que proporcionava a Baako era assim tão diferente? Em boa verdade, além dos curtos passeios na floresta, apenas o mantinha preso numa sala e sujeitava-o a testes periódicos.
Recordou o último gesto do gorila.
[Somos uma família]
Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas enquanto a culpa lhe esmagava o coração. Quando os soldados depositaram o animal inerte na jaula, pousou-lhe uma mão sobre a cabeça, sabendo o quão especial ele era.
Devias ser livre...
Um dos soldados afastou-a, batendo a porta da jaula. Chang conduziu-a para a saída, seguido pela empilhadora.
Maria olhou uma última vez por cima do ombro. Sozinho na cela, Kowalski devolveu-lhe um olhar firme, exortando-a silenciosamente para que se mantivesse calma. Como medida adicional, ergueu as mãos e repetiu o gesto de Baako.
[Família]
Maria fez que sim com a cabeça, tomando a peito a mensagem. Acontecesse o que acontecesse, estavam juntos. Ainda assim, o medo acompanhou-a enquanto atravessava as portas duplas no final do corredor, um sentimento inexorável de condenação. Mais à frente, a sensação ainda persistia à medida que se aproximava do laboratório de vivissecção.
Como poderá algum de nós sobreviver a isto?
09h07
A um quarteirão de distância, Monk viu o seu alvo atravessar a estrada. Parecia que se dirigia para um complexo de apartamentos de cinco andares, localizado no limiar do bairro hutong.
Lar doce lar.
Kimberly apercebera-se do mesmo. Para encurtarem a distância, ambos aceleraram o passo. Não queriam correr o risco de o perderem no interior do complexo. O sinal do localizador não era assim tão preciso e, se o perdessem de vista, seria difícil descobrirem qual era o apartamento do soldado.
Atravessaram a rua, serpenteando por entre o fluxo de veículos causado pelo trânsito matinal. Mais à frente, o soldado deteve-se junto à entrada ajardinada do edifício. Monk não antecipara que o fizesse. Sem alternativa, continuaram a caminhar na direção dele. Se parassem de repente, ou mudassem de direção, poderia ser o suficiente para alertar o soldado.
Kimberly apontou para uma paragem de autocarros frente ao edifício.
Mantendo a cabeça baixa, Monk ajustou a máscara cirúrgica, cobrindo melhor o nariz. Continuaram a caminhar e passaram por ele. Em seguida, sentaram-se no banco da paragem de autocarro. Kimberly encostou-se a Monk e segurou-lhe a mão, passando a ideia de que eram apenas um casal a caminho de mais um dia de trabalho.
Monk viu o soldado acender um cigarro no reflexo da janela de um automóvel estacionado. Acabara de comprar o maço numa das lojas por onde tinham passado. Os modos como se dirigira ao lojista tinham sido bruscos e rudes, o que sugeria que o soldado estava irritado com alguma coisa. Deu algumas baforadas, aspirando profundamente o fumo. Depois, tirou o telemóvel do bolso.
Kimberly apertou os dedos de Monk. O soldado falava suficientemente alto para que conseguisse ouvir o que dizia, imprimindo às palavras um tom carregado de raiva e frustração. Claramente, alguma coisa ou alguém o tinham deixado pelos cabelos.
Monk visualizou o rosto de Kowalski. Sabia, por experiência própria, como o grandalhão conseguia por vezes ser exasperante — e surpreendentemente esperto, também. Interrogou-se se teria sido o colega a pôr o localizador no soldado, usando-o como um meio de trazer o dispositivo até à superfície.
Pela parte que me toca, tenciono aproveitar esta vantagem.
Kimberly deitou a cabeça no ombro de Monk, como se estivesse cansada.
— Está a falar com o irmão — disse, sussurrando-lhe ao ouvido. — Parece que foi suspenso por qualquer motivo. Disse que foi interrogado, durante horas, por um representante do Ministério da Administração Interna.
Fez uma pausa e continuou à escuta. No reflexo, Monk viu o soldado apagar o cigarro com o pé e despedir-se com mais algumas palavras zangadas. Desligou o telefone e entrou no complexo de apartamentos.
Monk e Kimberly fizeram um compasso de espera, permitindo-lhe algum avanço. Levantaram-se e seguiram atrás.
— Acho que alguém o encostou à parede — disse Kimberly — ainda agarrada a Monk. — E ao irmão também, ao que parece. Uma mulher chamada Lau, que calculo seja a superior direta de ambos.
Monk tomou nota mental da informação. Interrogou-se se poderia tirar partido dessa fricção entre os oficiais chineses.
— Se tivesse tempo para consultar os meus recursos de informação, acho que conseguia descobrir de quem se trata. Talvez nos desse uma pista acerca do que se passa aqui.
— Uma coisa de cada vez — sussurrou Monk.
Contornaram uma esquina em direção ao pátio central do complexo de apartamentos, uma área a céu aberto, rodeada por passadiços.
O soldado cruzou o pátio e subiu um lance de escadas.
Monk deixou-se ficar a um canto. Pôs um joelho no chão, fingindo apertar um atacador. O soldado prosseguiu ao longo de um passadiço que dava acesso aos apartamentos localizados no segundo andar. Passou por uma série de portas correspondentes às várias unidades, detendo-se por fim na sétima. Levou a mão ao bolso e retirou um molho de chaves. Ao fazê-lo, deixou cair qualquer coisa prateada no chão. Brilhando sob o sol matinal, o objeto chamou de imediato a atenção do soldado. Ajoelhou-se para o apanhar, franzindo o sobrolho.
Monk recuou um passo, mantendo-se fora de vista. Olhou para Kimberly, lendo-lhe o mesmo pensamento no rosto.
Só podia ser o dispositivo de GPS.
Já nos toparam.
09h10
Maria assistiu impotente enquanto os soldados retiravam Baako da jaula e o depositavam numa maca com rodas. Logo a seguir, empurraram o seu corpo inerte em direção às portas do laboratório de vivissecção. Maria manteve-se ao lado da maca, assegurando-se de que o gorila ainda respirava. Ainda assim, sentiu o coração bater na garganta, esmagado por uma perceção sombria.
Talvez fosse melhor se morresses durante a operação.
Perante as circunstâncias, seria um desfecho bem mais tolerável do que a terrível existência que aguardava Baako depois da cirurgia. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, mas apressou-se a combatê-las, recusando admitir a derrota.
No interior do laboratório, a atividade era bem mais frenética do que no dia anterior, concentrando-se sobretudo ao redor de uma das marquesas de aço inoxidável, onde se encontrava uma equipa de cirurgia. Preparavam uma pilha de instrumentos. Um deles, esterilizado e selado dentro de uma bolsa plástica, chamou-lhe a atenção.
Uma serra circular elétrica, utilizada para cortar osso.
Sentiu os joelhos fraquejarem perante tal visão.
Dois membros da equipa cirúrgica avançaram e ajudaram a conduzir a maca, posicionando-a ao lado da marquesa.
Maria manteve-se por perto, receando que fosse obrigada a abandonar as instalações. Em vez disso, uma das enfermeiras entregou-lhe uma touca e uma máscara. O ato indicava que lhe seria permitido assistir à operação de Baako — à mutilação, fez questão de lembrar a si própria. A enfermeira notou o desespero que lhe cobria o rosto. Tocou-lhe gentilmente no cotovelo, regressando depois às tarefas em mãos.
Maria deixou-se ficar estática, junto à maca, segurando a máscara e a touca. Teve uma vontade súbita de desatar a correr, de virar costas ao que estava prestes a acontecer. Todavia, ergueu os braços e pôs a touca na cabeça, ajeitando os fios de cabelos soltos.
Não te abandonarei, Baako.
Deu um passo em frente, enquanto transferiam o gorila para a marquesa. Os pulsos e tornozelos foram presos com correias, procedimento que Maria considerou estranho e que a obrigou a mudar de posição, para poder continuar a segurar a mão do gorila. Sentiu a maciez das almofadas dos seus dedos, e passou o polegar pela linha de pelo que delimitava a superfície da palma da mão. Era suave como um bebé; um lembrete doloroso de que Baako era, de facto, ainda uma criança. Sobreveio-lhe ao pensamento a ocasião em que lhe dobrara gentilmente esses mesmos dedos, enquanto lhe ensinava as primeiras palavras.
Uma dessas palavras fora Mamã.
As lágrimas começaram a correr copiosamente. E, desta vez, não havia nada que pudesse fazer. Nem sequer as podia limpar, uma vez que se recusava a largar a mão de Baako, aninhada entre as suas.
O meu menino... como permiti que isto acontecesse?
Uma agitação na porta do laboratório chamou-lhe a atenção. Jiaying acabara de entrar, acompanhada por Arnaud. O paleontólogo parecia cansado, com dois papos salientes sob os olhos. Assentiu com a cabeça para Jiaying, enquanto esta lhe dizia qualquer coisa.
Sem largar a mão do gorila, Maria olhou para a general.
Ao contrário de Arnaud, Jiaying exibia um ar fresco e repousado. Sorridente, cumprimentou o elemento mais alto da equipa, que deveria ser o cirurgião responsável. Após uma breve troca de palavras, fez que sim com a cabeça e dispensou o homem para os seus afazeres, virando-se depois para Maria.
— Fico satisfeita de a ver cooperar, doutora Crandall. Parece que está tudo a correr conforme o planeado.
Cooperar?
Maria teve vontade de saltar para cima da mulher e arrancar-lhe os olhos. Em vez disso, desviou o olhar para Arnaud, cujo rosto espelhava o horror que ela estava a sentir.
Jiaying sabia bem qual seria a verdadeira disposição de Maria, mas decidiu ignorá-la.
— De qualquer maneira, estou aqui para lhe pedir um novo favor.
— Não deixo o Baako — disse Maria, perentória.
— Não espero que o faça, doutora Crandall. Na verdade, a equipa cirúrgica acredita que a sua presença poderá ser muito útil nesta manhã.
Maria franziu a testa.
— Útil? Porquê?
— Porque vão executar uma versão do procedimento de Monreal, na qual a craniotomia e a implantação dos elétrodos será feita com o paciente acordado.
— Acordado? — Lena não conseguiu esconder o terror na voz.
Jiaying levantou a mão.
— É perfeitamente seguro e quase indolor — disse a general. Apontou para o cirurgião responsável. — O doutor Han usará uma droga para reverter o efeito do tranquilizante. Logo a seguir, utilizará propofol por via endovenosa. Finalmente, após a aplicação de um anestésico local, poderá então executar a craniotomia sob o efeito de uma ligeira sedação. A sua cooperação só será necessária quando o animal estiver completamente acordado, já com o cérebro exposto.
— E o que esperam que eu faça?
— Que fale com ele.
Apesar da brutalidade do que estava a ser dito, Maria compreendeu o que lhe estava a ser pedido.
— Na verdade, o que me está a pedir é que faça perguntas ao Baako enquanto lhe estimulam o cérebro com eletricidade.
A general assentiu.
— Por via das respostas do gorila, a equipa poderá elaborar um mapa preciso da arquitetura cerebral. Ajudá-los-á na inserção dos elétrodos, permitindo-lhes identificar as secções mais críticas para os futuros testes neurológicos.
Maria engoliu em seco. Por mais horrendo que fosse, fazia todo o sentido do ponto de vista clínico. Tentou imaginar o animal acordado, com o crânio aberto, preso àquela mesa. Começava a perceber o porquê de lhe terem amarrado os pulsos e os tornozelos. Ficaria aterrorizado, olhando para ela em busca de conforto.
Como vou conseguir encarar aqueles olhos, tão cheios de amor e de confiança?
Maria queria desesperadamente recusar, mas sabia que tinha de estar ali por ele.
Ainda assim, as palavras escaparam-lhe num gemido.
— Não faça isso, peço-lhe...
— Sou sensível à sua aflição, doutora Crandall, mas a ciência deve ser pragmática. Cada um de nós tem o seu papel para desempenhar. — Indicou o paleontólogo. — Durante a manhã, o doutor Arnaud irá fazer uma análise exaustiva às ossadas do neandertal híbrido, que recuperámos na Croácia. Assim que terminar, vou necessitar que se junte a ele, para recolherem o máximo de amostras de ADN viável.
Por esta altura, Maria já quase não ouvia a major-general. Não conseguia focar-se em mais nada além daquilo que estava prestes a acontecer a Baako. Nada mais importava.
De repente, sentiu uma mão apertar-lhe o braço, dirigindo-lhe outra vez a atenção para Jiaying, que continuava a falar.
— ... para assegurar a sua cooperação.
— O quê? — perguntou, perplexa.
Ainda a segurar-lhe o braço, a general conduziu-a na direção da parede mais distante do laboratório de vivissecção.
— Estava a explicar-lhe que o fracasso acarreta um preço a pagar. Mas talvez seja melhor mostrar-lhe.
A general levou-a até à janela de observação que oferecia uma vista para o recinto a que chamava Arca. Uma vez mais, Maria encontrou-se a olhar pelo vidro para o negrume daquele fosso escavado da rocha natural. Procurou entre as sombras por um sinal das criaturas, mas não viu nenhuma. Não ligou importância, calculando que provavelmente estariam a dormir nas várias grutas que preenchiam as paredes. Ainda assim, notou a pilha de ossos partidos no chão do recinto, totalmente despidos de carne. Visualizou o braço decepado que fora arremessado contra a janela e olhou para o vidro. Ainda exibia um borrão de sangue seco.
Então, um movimento desviou-lhe a atenção para uma jaula que se encontrava no chão do recinto, frente a uma enorme porta de aço. Reparou que a porta se abria, lentamente. Logo a seguir, viu uma figura alta ser empurrada para o interior da jaula. O homem caiu de joelhos, desamparado. Depois, ergueu o rosto para a janela.
Kowalski...
— Não temos nenhuma utilidade para o tratador do gorila depois da operação — explicou Jiaying. — Exceto como possível incentivo para a sua cooperação.
Maria voltou a olhar para a pilha de ossos.
Ou colaboras... ou o Kowalski morre.
Um ruído nas costas chamou-lhe a atenção para o interior do laboratório. Os olhos viraram-se na direção da marquesa e encontraram Baako a debater-se. Um guinchar ténue e assustado escapava-lhe da garganta, enquanto lutava com as correias que lhe prendiam os pulsos.
Derrotada, Maria percebeu o que significava.
A equipa cirúrgica já tinha administrado a droga que revertia o efeito do tranquilizante, acordando-o parcialmente.
Jiaying olhou na mesma direção.
— Está na hora de ir trabalhar, doutora Crandall.
09h19
É agora ou nunca...
Monk viu o alvo ajoelhar-se e apanhar o dispositivo de GPS. O que significava que tinham de agir rapidamente. Sabia que dispunham de escassos segundos até que o soldado percebesse que objeto era aquele.
Dobrou a esquina e começou a avançar pelo pátio, em direção às escadas, mas Kimberly agarrou-o pelo braço.
— Deixa-me ser eu — sussurrou-lhe, passando à frente dele.
Com Monk a cobrir a retaguarda, Kimberly continuou a avançar em passo rápido. Quando chegou às escadas, começou a falar alto em mandarim enquanto subia os degraus, como se estivesse a discutir com Monk. Apesar de ser apenas uma encenação — uma mulher dominante a desancar o marido submisso —, Kimberly lançou-lhe um olhar fulminante, exortando-o a manter a cabeça baixa e mostrar-se calmo e obediente.
Monk enterrou a cabeça nos ombros e baixou a pala do boné sobre os olhos. Ao longo dos anos, tinha aprendido uma valiosa lição de vida com Kat: a esposa tem sempre razão. Neste caso, até uma esposa inventada.
Chegaram por fim ao passadiço que servia o segundo piso. Alinhadas umas a seguir às outras, as portas dos vários apartamentos estendiam-se ao longo da passagem. Ainda a desancar Monk, Kimberly continuou a avançar em direção ao soldado, que se encontrava apoiado sobre um joelho, ainda a examinar o dispositivo entre os dedos.
Mantendo a cabeça baixa, Monk olhou em redor, notando a presença de outros moradores, uns encostados ao corrimão a fumarem, outros a tagarelaram com vizinhos. No pátio abaixo, uma mão-cheia de crianças ria e brincava à volta de um pequeno baloiço.
Reconheceu quão imprudente fora o seu primeiro impulso. Se tivesse avançado de cabeça sobre o alvo, aquele pátio seria transformado em campo de batalha; ou então teria denunciado a presença de ambos, caso o deixasse escapar.
Ainda assim, esses dois cenários ainda eram uma distinta possibilidade.
Mais à frente, o soldado retirou o telefone do bolso.
Não era um bom sinal.
Kimberly chegou junto dele primeiro, gritando-lhe uma série de impropérios para se desviar do caminho. Aparentemente, era tão dotada a dar broncas nos outros como era em atos de espionagem.
O soldado levantou-se rapidamente, desculpando-se. Virou-se e levou as chaves à fechadura. No instante em que abriu a porta, Kimberly deu-lhe um valente empurrão pelas costas, fazendo-o cair desamparado para o interior do apartamento. Entrou atrás dele.
Monk apressou-se também a entrar.
— Fecha a porta! — ordenou ela, ao mesmo tempo que pregava um valente pontapé na testa do soldado. Kimberly usava botas de biqueira de aço. Como tal, a cabeça do homem saltou para trás e este caiu inconsciente. — Tira-lhe a arma. Arrasta-o cá para dentro.
Enquanto Monk se ocupava de desarmar o homem, Kimberly sacou da sua Glock e fez uma vistoria rápida ao minúsculo apartamento de uma assoalhada. Monk arrastou o soldado para o meio da sala. Um gemido ergueu-se do seu corpo inerte.
— O paciente está a acordar — disse Monk.
Kimberly atirou-lhe um rolo de fita adesiva. Monk não tinha a certeza se ela teria encontrado a fita no apartamento ou se já a trazia com ela. Aquela mulher era assustadoramente precavida.
Monk tapou a boca do soldado com a fita. Depois passou o rolo à volta dos pulsos e tornozelos. Enquanto Monk enfaixava o prisioneiro, Kimberly revistou os vários bolsos do uniforme, pondo no chão os pertences do soldado conforme os encontrava: um mapa dobrado... uma corrente com chaves eletrónicas... uma carteira...
— Apresento-te o nosso amigo Gao Sun — disse ela, verificando o conteúdo da carteira. — Segundo os documentos e insígnia, temos aqui um primeiro-tenente do Exército de Libertação Popular.
Por essa altura, Gao recuperara os sentidos e olhava-os furiosamente. Monk manteve um joelho firme sobre a garganta dele, pressionando com força.
— Qual é o próximo passo? — perguntou. — Não é a minha primeira dança, mas conheces este país melhor do que eu.
Kimberly estudou o prisioneiro.
— Não creio que dê com a língua nos dentes. Nada de importante, pelo menos. Segundo o que li acerca dos acontecimentos na Croácia, os membros da equipa de assalto chinesa cometeram suicídio antes de se deixarem capturar.
— Que queres fazer com ele, então?
Kimberly ergueu a Glock e agarrou numa almofada do sofá.
Monk interrogou-se se ela seria mesmo capaz de executar um homem a sangue-frio.
— Espera — disse.
Levantou-se e apanhou o telemóvel que o militar tinha deixado cair junto à porta. Tentou aceder ao conteúdo. Estava bloqueado.
Kimberly estendeu a mão, notando a frustração do companheiro.
— Deixa-me tentar.
Monk passou-lhe o telefone.
— Funciona com o reconhecimento da impressão digital — disse Kimberly.
Com a ajuda de Monk, agarraram na mão direita do soldado e pousaram o polegar sobre o sensor do aparelho. O ecrã iluminou-se. Kimberly percorreu uma série de menus e assentiu com a cabeça.
— Consigo alterar o sistema de proteção, para podermos utilizá-lo sem necessidade da impressão digital.
— Perfeito.
— Que pensas fazer com o desgraçado? — perguntou Kimberly, devolvendo o telefone.
— Podemos usá-lo como apólice de seguro. — Monk acedeu à câmara do telefone e tirou uma fotografia ao prisioneiro.
— Que estás a fazer?
— Disseste que ele estava a falar com o irmão. Pelo teor da conversa, aposto que também trabalha nas instalações sob o jardim zoológico. Termos o mano como refém pode ser vantajoso.
— És capaz de ter razão. — Kimberly atravessou a sala e pegou numa fotografia emoldurada. — Reparei nisto, quando entrei.
Monk olhou para o retrato de dois homens com uniforme militar, abraçados e sorridentes. Um deles era Gao.
— O outro deve ser o irmão.
Com um assentir de cabeça, Kimberly tirou a fotografia da moldura, dobrou-a e guardou-a no bolso.
— Próximo passo?
Monk pegou no seu telefone de satélite.
— Está na hora de reunir as tropas enviadas por Painter. Vou arranjar alguém para tomar conta do nosso amigo e nós os dois vamos averiguar essa possível entrada para a Cidade Subterrânea.
— Não vai ser fácil. Aquilo é um labirinto.
— Acredito. Mas nós sabemos para onde queremos ir: em direção ao zoo.
— Esperemos que seja o suficiente.
Monk anuiu, consciente da enormidade da tarefa que tinham pela frente. Enquanto aguardava ligação, fez figas para que não fosse tarde demais.
Aguenta-te, Kowalski...
09h28
Com as costas viradas para a porta de aço, Kowalski tentou ignorar o fedor. O interior do recinto cheirava a carne podre, misturada com um odor almiscarado. Lembrava-o dos tempos em que trabalhava nos estábulos de Riverdale, no Bronx, a limpar a porcaria dos animais para ganhar um dinheiro extra. O cheiro enjoativo equiparava-se a certa ocasião, quando uma égua morrera na estrebaria durante uma vaga de calor intenso.
Ainda assim, não é este fedor que me vai matar.
Pousou uma das mãos na arcada de rocha que separava a porta atrás de si das grades de ferro em frente. Um sistema de carris denunciava o sistema de abertura da jaula. Visualizou aquela secção das grades a erguer-se, expondo-o às criaturas que espreitavam nas sombras da Arca.
Momentos antes, reparara na presença de Maria na janela do laboratório, acompanhada da major-general Lau, o que lhe dava a certeza de que estava a ser usado como forma de pressão.
Aproximou-se das barras de ferro — cada uma tão grossa como o seu pulso —, consciente daquilo que o aguardava se a geneticista não cooperasse.
A avaliação que fazia da situação foi reforçada por um movimento no interior de uma das cavernas. Uma figura maciça surgiu das sombras, apoiada sobre os nós dos dedos. A pelagem do gorila era negra como carvão, espessa sobre os ombros, mais rara nos quadris e zona lombar. Deveria pesar uns bons trezentos quilos, a maioria deles músculo. A testa, longa e bicuda, exibia sobrancelhas proeminentes. Aspirou o ar duas ou três vezes. Depois, os dois olhos pretos pousaram em Kowalski.
Kowalski notou a banda metálica que trazia à volta do pescoço, de onde pendia uma caixa de aço. Calculou que fosse uma coleira elétrica, que serviria para ter mão nos animais.
Recuou um passo, mantendo-se afastado das grades.
O pequeno movimento desencadeou uma reação brutal.
O gorila carregou em direção à jaula. Kowalski cerrou os maxilares, temendo que conseguisse derrubar as barras. Porém, no último instante, a criatura rodou o corpo e derrapou sobre as patas, detendo-se a menos de um metro da jaula.
Inclinou-se para a frente e encostou o focinho contra as barras, respirando pesadamente. Kowalski ficou muito quieto, sentindo o bafo do animal no rosto. Então, o gorila rugiu. Exibindo longas presas amarelas, as mandíbulas eram suficientemente largas para morder uma bola de basquetebol pela metade, e a intensidade do som era tal que Kowalski conseguia sentir a deslocação do ar contra as costelas, martelando-lhe as têmporas, como se fosse capaz de lhe implodir o crânio.
Levantou as mãos e tapou os ouvidos.
E eu que começava a gostar de macacos...
Logo a seguir, a gigantesca criatura afastou-se subitamente da jaula; ou melhor, foi afastada. Um outro gorila tomou o seu lugar.
Kowalski reconheceu de imediato a pelagem prateada do recém-chegado. Era o animal que observara no dia anterior e que despedaçara o cadáver humano que se encontrava no recinto. Era bastante maior do que o primeiro gorila, com mais de quatrocentos quilos de peso. Zangado, o gorila preto ergueu-se sobre as patas traseiras e bateu no peito.
O prateado olhou para ele e rugiu uma única vez. O resultado foi imediato. O outro deixou-se cair sobre as quatro patas, deu meia-volta e retirou-se.
Aparentemente, o chefe do recinto não precisava de se repetir para fazer valer a sua autoridade. Virou-se então para Kowalski. Sentou-se frente à jaula, observando-o. Não houve demonstração de força, rugido ou ameaça. Apenas ficou sentado, fitando-o demoradamente. Era bem mais enervante, sobretudo pela boa dose de astúcia e malícia que aqueles olhos denunciavam.
Kowalski manteve-se encostado contra a porta de aço, avaliando o comportamento do gorila. Porém, a criatura permaneceu sentada. Apenas o peito subia e descia ao ritmo tranquilo da respiração, numa demonstração perfeita de paciência. Kowalski não conseguia imaginar por que razão os chineses queriam substituir aqueles monstros por versões mais inteligentes.
Afinal, o plano do gorila prateado parecia bem simples e, sobretudo, eficaz.
Só precisava de esperar pela hora do jantar.
18
30 de abril, 20h45 ECT
Algures sobre o Equador
O piloto do Gulfstream G650 dirigiu-se por fim à cabina.
— Aterraremos em Cuenca em trinta minutos.
Gray espreitou pela janela, para a Lua que iluminava o céu noturno. Verificou o relógio, ajustando o fuso horário. Apesar de o voo ter durado nove horas, acabariam por aterrar exatamente uma hora depois de terem descolado de Roma.
Virou-se para trás e observou o interior requintado da cabina, repleta de apontamentos em pele e de madeiras exóticas. Acomodava doze passageiros. Porém, naquele momento, os lugares ocupados eram apenas quatro. Lá atrás, Roland encontrava-se de novo mergulhado numa pilha de livros, embora tivesse passado a maior parte do voo a estudar o diário de Kircher. Lena vestira a pele de assistente do padre e, de quando em vez, trocavam impressões em surdina, fazendo que sim com a cabeça enquanto mantinham os olhos fixos nas páginas do diário. Mais à frente, Seichan reclinara o assento e dormitara o tempo todo. Quando ouviu a voz do piloto no sistema de som, abriu um olho e praguejou, ensonada. Depois, mudou de posição e voltou a adormecer.
Gray sabia bem como estava exausta. Ele próprio dormira algumas horas, consciente do que ainda tinham pela frente assim que pusessem os pés na remota cidade de Cuenca. Minutos antes, estabelecera contacto com Painter. O diretor informara-o de que ainda não havia novidades em relação a Kowalski e Lena. Contudo, Monk encontrava-se a seguir uma nova pista. Sem mais desenvolvimentos de ambas as partes, restava-lhe continuar a seguir o trilho histórico deixado pelo padre Kircher, que agora o obrigava a procurar uma cidade perdida no meio da selva.
Segundo as anotações de Kircher no diário e no mapa, o seu amigo Nicolas Steno aventurara-se até ao coração dos Andes e regressara com as coordenadas aproximadas do local. Apesar da convicção do padre jesuíta, Gray continuava a não acreditar que essa hipotética cidade, onde viveriam esses professores ancestrais — os tais Vigilantes, segundo os antigos textos —, pudesse ser, na verdade, a mítica cidade de Atlântida. Como tal, aproveitara o resto do voo para descobrir mais um pouco acerca da história da região.
Lena levantou-se e avançou pela coxia, segurando um livro.
— O Roland pediu-me para lhe mostrar isto, antes de aterrarmos.
Sentou-se no lugar frente a Gray e pousou o livro numa pequena mesa entre ambos. Abriu-o e apontou para uma página que exibia a fotografia de uma rocha, com um labirinto gravado. Era igual ao desenho na capa do diário de Kircher, um padrão que, aparentemente, podia ser encontrado um pouco por todo o mundo, em vários locais arqueológicos.
— É um pedaço de diorito polido — explicou Lena. — Foi recuperado em plena selva, perto de Cuenca, para onde nos dirigimos.
Gray inclinou-se para a frente.
Pelos vistos, também o encontraram aqui.
Lena continuou.
— Foi oferecido ao padre Crespi por um membro de uma tribo indígena.
Gray olhou para ela.
— O missionário? Aquele que se exilou no Equador, inspirado pelo trabalho do padre Kircher?
Lena confirmou.
— A missão que fundou localizava-se na Igreja de Nossa Senhora do Auxílio. Um santuário dedicado à Virgem Maria, à semelhança de Mentorella, onde Kircher escondeu as ossadas de Eva. — Fez um compasso de espera, permitindo que a ideia assentasse. — Ao longo dos cinquenta anos em que aqui viveu, período que se estendeu até ao dia da sua morte, com quase noventa anos, o padre Crespi acumulou uma vasta coleção de artefactos, cerca de setenta mil peças, todas elas oferecidas pelos shuares, uma tribo indígena.
— De onde vieram todas essas peças?
— Segundo os nativos, foram recuperadas de um sistema de cavernas em plena selva. Roland acredita que não foram parar às mãos de Crespi por mero acaso, mas sim porque teria feito perguntas aos nativos acerca da existência desse local.
— Mas ele não sabia as coordenadas da cratera.
— Não. Tinha apenas uma vaga ideia da localização por meio da pesquisa de Kircher. O suficiente para o trazer para esta região.
— E insuficiente para o levar até às portas da cidade perdida — disse Gray. Assentiu com a cabeça na direção do livro. — Que mais lhe foi oferecido?
Lena folheou algumas páginas, mostrando uma variedade de artefactos: sarcófagos que se assemelhavam aos egípcios; armaduras corporais incas; peças de cerâmica equatoriana; painéis de ouro e de prata, adornados com motivos que pareciam incongruentes para aquela região.
Lena apontou essas anomalias.
— De acordo com os arqueólogos que examinaram a coleção, muitas destas peças apresentam características que assentariam melhor em outras culturas, como a assíria, a babilónica ou a egípcia.
Mostrou a imagem de uma escultura de cobre, que representava um homem com cabeça de lagarto.
— Por exemplo, esta figura representa claramente Nisroque, um deus assírio. Estamos a falar de uma antiga civilização da Mesopotâmia, com milhares de anos. — Escolheu outra imagem, que mostrava um conjunto de painéis de ouro, cobertos de inscrições. — E estes símbolos fazem parte do alfabeto fenício. Os peritos também identificaram peças da coleção com hieróglifos egípcios, outras com símbolos líbios e púnicos, e até celtas. O padre Crespi acabou por ficar convencido de que estes artefactos provavam a existência de uma ligação entre esta civilização desconhecida e todas estas outras do mundo antigo, ligação que recuava à proto-história.
Lena continuou a folhear o livro.
— Ainda mais estranho, os nativos também recuperaram rodas dentadas de cobre endurecido, juntamente com estranhos tubos de latão que não apresentavam estrias. Tudo exemplos de conhecimentos metalúrgicos que não estavam ao alcance das tribos locais.
Gray pegou no livro e observou mais algumas imagens da coleção do padre Crespi. A maioria consistia de painéis de ouro e pergaminhos, exibindo uma variedade de figuras astrológicas, pirâmides e deuses. Notou que um dos painéis mostrava uma figura curvada, a escrever com uma pena.
— Só pode ser uma falsificação — comentou, abanando a cabeça.
Lena encolheu os ombros.
— O padre Crespi também aceitou essa hipótese, acreditando que algumas das peças podiam ter sido forjadas pelos nativos, como maneira de lhe agradar. De qualquer modo, até ele conseguia distinguir as falsificações. Além do mais, quem mais ofereceria tanto ouro a um velho padre apenas para o ludibriar?
Para reforçar essa ideia, Lena mostrou uma fotografia de um crocodilo em ouro maciço, com cerca de um metro de comprimento, cujos olhos eram dois enormes rubis. Dificilmente um nativo forjaria uma peça daquelas para oferecer, uma vez que deveria valer uma pequena fortuna.
— E que aconteceu à coleção? — quis saber Gray.
— É outro mistério. Depois da morte do padre Crespi, em 1982, a coleção foi rapidamente desmantelada. A maioria das peças acabou nos cofres de museus, por ordem do governo equatoriano. E só podem ser vistas com uma autorização especial. Porém, outras tantas acabaram numa base militar localizada em Cayambe, no coração da selva.
Uma base militar?
Lena olhou para a traseira da cabina.
— Segundo o Roland, também existem rumores de que algumas peças foram parar ao Vaticano.
— Se for verdade — disse Gray, encostando-se no assento —, significa que o padre Kircher não foi o único sacerdote que tentou esconder qualquer coisa.
Mas o quê, exatamente?
— Para termos mais respostas, acho que temos de encontrar esse sistema de cavernas assinalado no mapa de Kircher.
A voz de Seichan ergueu-se do outro lado da coxia. Aparentemente, estaria a fingir que dormia, mantendo os ouvidos bem abertos na direção da conversa entre Lena e Gray.
— Na minha opinião — disse ela, com um braço sobre os olhos —, esta história toda não passa de folclore... uma caça ao tesouro imaginária.
— Talvez não — contrapôs Gray.
Seichan baixou o braço e olhou para ele, erguendo uma sobrancelha.
Enquanto Roland e Lena se debruçavam sobre as peças do quebra-cabeças, Gray passara as últimas horas a pesquisar a possibilidade da existência dessa cidade perdida, enterrada algures naquelas selvas e montanhas.
— A existência do sistema de cavernas está perfeitamente documentada — disse Gray. — Estende-se, de facto, sob esta região dos Andes, abrangendo uma área total ainda por determinar. Em 1976, a expedição anglo-equatoriana fotografou e cartografou algumas das secções.
— A expedição dirigida por Neil Armstrong — disse Lena.
— Ele foi o presidente honorário da expedição. Apesar de não terem encontrado nenhuma cidade, a verdade é que descobriram os restos de um antigo túmulo, juntamente com centenas de novas espécies de plantas, morcegos e borboletas.
Seichan revirou os olhos.
— Ainda assim, como tu bem disseste, não encontraram cidade nenhuma. O que nos leva de volta ao que também disse. Não passa de folclore...
— Eu não teria tanta certeza. Existe uma lenda persistente acerca desta região, de cavernas secretas que guardam uma vasta biblioteca de livros de metal e painéis de cristal. De acordo com o relato de um homem chamado Petronio Jaramillo, quando era jovem, um desses indígenas levou-o a visitar as cavernas. Isso ter-se-á passado em 1946. Depois do que encontrou e com medo de pilhagens, decidiu manter-se em silêncio acerca da localização exata durante décadas. Acabou finalmente por concordar em guiar um punhado de investigadores até ao local, mas apenas mediante a garantia de que Neil Armstrong participaria na expedição. Então, em 1998, a poucas semanas da data marcada, foi assassinado à porta de casa.
— Assassinado — inquietou-se Lena.
— Há quem afirme que foi para o silenciar. Outros dizem que morreu às mãos de quem lhe queria extrair essa informação. Seja como for, o segredo da localização da caverna morreu com ele.
Lena retirou o livro de cima da mesa.
— Acha que a coleção do padre Crespi proveio dessa caverna?
— É possível. Dessa caverna em concreto ou dos túneis que fazem parte do mesmo sistema.
— E por que razão o defunto insistiu na presença do Neil Armstrong? — perguntou Seichan, espreguiçando-se.
Gray encolheu os ombros.
— Penso que o homem queria alguém cuja reputação e estatuto estavam acima de qualquer suspeita. Ou talvez existisse outra razão. Confesso que o facto de o Armstrong ter aceitado o convite ainda me parece mais estranho. O tipo não era arqueólogo. E, depois da missão Apolo 11, a verdade é que se tornou numa espécie de eremita, concedendo apenas uma mão-cheia de entrevistas. Assim sendo, por que razão decidiu envolver-se nisto?
— Talvez eu possa responder a essa pergunta — disse uma voz nas costas de Gray.
Roland juntara-se silenciosamente ao grupo, os olhos vidrados de cansaço e espanto. Apertou o diário de Kircher junto ao peito e olhou pela janela, contemplando a Lua no céu noturno, perfeitamente enquadrada no centro do vidro.
— Porquê? — quis saber Lena.
— Porque a Lua não é aquilo que pensamos que é...
21h02
Roland ignorou as reações incrédulas dos companheiros. Tentou ordenar as ideias, procurando as palavras certas para explicar o que descobrira no diário de Kircher.
Não admira que o reverendíssimo padre tenha mantido isto tudo em segredo.
Quarenta anos antes de Kircher ter descoberto as ossadas de Eva, a Inquisição condenara Galileu à morte pela sugestão de que a Terra não era o centro do universo. As revelações contidas no diário teriam igualmente condenado o padre, assim como todos os que estivessem associados à descoberta que Roland se preparava agora para partilhar.
— Se a Lua não é o que pensamos, então é o quê, exatamente? — quis saber Gray.
Roland ergueu a mão que segurava o diário.
— O reverendíssimo padre chegou à conclusão de que a Lua não é um objeto natural — declarou Roland. Antes que alguém se pronunciasse, endireitou as costas. — E eu concordo com ele.
Seichan endireitou o assento e virou-se para o grupo. Olhou para a janela do avião e apontou para a lua cheia.
— Está a dizer que aquilo não é real?
Roland sentou-se junto deles.
— Passei a noite toda a analisar os pormenores que encontrei no diário, tentando encontrar mil e uma formas de desacreditar as conclusões do padre. Em vez disso, apenas consegui ficar mais convencido.
— Acho que é melhor explicar tudo bem devagarinho — disse Gray, indicando o diário com a cabeça. — Que foi que descobriu?
— Não se trata apenas do que encontrei no diário — disse Roland. Olhou outra vez para a janela. — Já alguma vez se interrogaram por que razão, durante um eclipse, o diâmetro da Lua ocupa exatamente a totalidade do diâmetro do Sol? Esse alinhamento visual perfeito nunca lhes pareceu uma bizarra coincidência astronómica?
Pelas expressões em redor, Roland deduziu que os companheiros nunca tinham pensado nisso.
Como a maioria das pessoas, aliás.
— Esse fenómeno acontece porque a Lua é quatrocentas vezes mais pequena que o Sol, enquanto a distância entre a Terra e o Sol é quatrocentas vezes superior à que vai da Terra à Lua. E não é tudo. A Lua também reflete pormenorizadamente o movimento anual do Sol. No solstício de verão, a lua cheia desce sobre o horizonte no mesmo ângulo e local de um pôr do Sol no solstício de inverno. Uma vez mais, essa simetria parece desafiar a simples coincidência.
— Isso não significa que a Lua não seja natural — disse Lena com gentileza, parecendo que estava a falar com um louco.
E se calhar estou louco, pensou Roland. Se calhar, deixei-me cair demasiado nesta espiral de mistérios.
Ainda assim, o padre recusou-se a desistir.
— Não existe sequer um consenso entre os cientistas acerca da origem da Lua. A hipótese corrente, a Teoria do Grande Impacte, defende que foi originada pelo impacte de um corpo desconhecido contra a Terra durante a sua formação, o que terá lançado uma série de detritos em órbita, que acabaram por formar a Lua.
— E qual é o problema dessa teoria? — perguntou Gray.
— São dois, na verdade. Primeiro: todos os astrónomos concordam que um impacte com essa dimensão seria o suficiente para que a velocidade de rotação da Terra fosse o dobro do que é hoje. Para compensar esta discrepância e validar a teoria, pôs-se a hipótese de ter existido um segundo impacte, mas, desta vez, vindo da direção oposta e com a mesma força.
— Para anular o efeito do primeiro — disse Gray, franzindo a testa perante a improbabilidade de um acontecimento dessa natureza.
— Além disso, os astrónomos admitem que não existem provas de nenhum dos impactes. O que nos leva ao segundo problema da teoria. E diz respeito à estranha quantidade de material que foi ejetado da Terra, dando depois origem à Lua.
— Que tem de estranho?
— Porque, depois de a poeira assentar, a Terra acabou por ficar com uma circunferência que é exatamente trezentas e sessenta e seis vezes maior do que a da Lua. Este número também não lhes parece peculiar?
Lena franziu a testa.
— Um ano inteiro tem trezentos e sessenta e cinco dias...
— Na verdade — continuou Roland —, a Terra gira trezentas e sessenta e seis vezes durante uma órbita completa à volta do Sol. — Roland olhou para a capa do diário e passou um dedo sobre o desenho do labirinto da antiga Creta. — Foi por isso que os astrónomos minoicos dividiam um círculo em trezentos e sessenta e seis graus. E os sumérios fizeram o mesmo, dividindo depois os graus em sessenta minutos e os minutos em sessenta segundos.
— Tal como nós, hoje em dia — disse Lena.
— Exceto que nós arredondámos para trezentos e sessenta graus — corrigiu Roland. — Mas regressemos à Lua. Existem outras singularidades em relação ao nosso satélite natural: a sua massa ser muito mais leve do que se julgava, o seu campo gravitacional apresentar pontos fortes e pontos fracos, o núcleo ser demasiado pequeno. Ainda assim, sem esta estranha Lua, não teríamos vida neste planeta.
— Porquê? — perguntou Lena.
— A maior parte dos biólogos acredita que a força gravitacional da Lua... que influencia as nossas marés, juntamente com o Sol... terá ajudado na transição da vida aquática para a existência terrestre. Porém, mais importante, os astrofísicos sabem que a massa da Lua ajuda a estabilizar o eixo da Terra, mantendo o planeta inclinado num certo ângulo em relação ao Sol. Sem a presença da Lua, esse ângulo sofreria oscilações, originando mudanças de temperatura extremas, o que tornaria impossível o desenvolvimento de formas de vida complexas.
— Portanto, sem a Lua, não estaríamos aqui — disse Seichan. — Contudo, a sua própria existência e perfeita simetria desafiam toda a racionalidade. É isso que está a dizer, padre?
Roland encolheu os ombros, deixando que cada um tirasse as suas próprias conclusões.
— Talvez seja por isso que Neil Armstrong aceitou participar na expedição. Talvez tenha visto algo na superfície lunar que sugeriu mais perguntas do que respostas.
Gray franziu o sobrolho, contemplando pela janela a lua cheia.
— Os dois minutos desaparecidos da NASA... — murmurou.
Os companheiros olharam todos para ele.
— Que história é essa? — perguntou Seichan.
21h07
Gray não sabia até que ponto deveria dar crédito às revelações de Roland. Todavia, a inusitada participação de Neil Armstrong na expedição arqueológica recordara-o de um outro mistério que envolvia a missão Apolo 11.
— Tive conhecimento da história por intermédio de um colega, um astrofísico que trabalhava na NASA. Durante a cobertura televisiva da alunagem, duas câmaras deixaram supostamente de funcionar, provocando uma interrupção na emissão durante dois minutos. Depois do regresso dos astronautas, começaram a surgir rumores de que a NASA estava a esconder alguma coisa que fora testemunhada por Armstrong e Aldrin. A suspeita foi reforçada mais tarde por um engenheiro de comunicações da NASA, que admitiu que o episódio não passara de um embuste, para ocultar a verdade sobre o que fora encontrado na superfície lunar.
— Sinais de extraterrestres? — perguntou Lena.
— Foi uma das teorias — disse Gray, olhando para Roland. — Mas houve quem afirmasse que estava relacionado com a própria Lua.
— E talvez tivessem razão — admitiu Roland. — O padre Kircher estava certamente convencido de que tinha algo de milagroso. Dedicou um sem-número de páginas do diário à exploração dessa possibilidade.
— E quais foram as conclusões? — perguntou Gray.
— A maioria gira em torno das estranhas simetrias entre a Lua e a Terra. Por exemplo, conseguem adivinhar quantas vezes a Lua orbita em redor da Terra ao longo de dez mil dias?
Ninguém tentou responder.
— Trezentas e sessenta e seis vezes. E esse número é ainda importante sob outros aspetos. De certa maneira, parece ser uma espécie de código fundamental para o nosso planeta. E conhecemo-lo há muito mais tempo do que se poderia imaginar.
— Desde quando? — perguntou Gray.
— Lembram-se do bastão nas mãos do esqueleto de Eva? — Roland pegou no telemóvel e mostrou uma das fotografias das ossadas que Lena tinha tirado, que mostrava a presa de mamute talhada. — O padre Kircher refere-se a este objeto como de Costa Eve, a Costela de Eva. Se olharmos de perto, conseguimos perceber que apresenta uma espécie de escala ao longo do comprimento.
Roland ampliou a imagem e passou o telemóvel aos companheiros.
— Que significam as marcas? — quis saber Gray.
— Significa que é um instrumento de medição.
— Para medir o quê? — perguntou Seichan.
— Tudo. Pode até ser a chave para o nosso mundo.
Gray lançou-lhe um olhar exasperado, mas Roland continuou.
— Enquanto estávamos na capela, tive o cuidado de verificar o comprimento do bastão. Mede exatamente oitenta e três centímetros.
Gray encolheu os ombros.
— Quase um metro, e então?
— Exato, porém...
— Meu Deus! — interrompeu Lena. — Já sei o que vais dizer a seguir. Não tem o comprimento de um metro tal como o conhecemos atualmente. É uma jarda megalítica.
Roland olhou para Lena e assentiu.
— Precisamente. Encontrei o mesmo termo no diário, enquanto cruzava as várias conclusões de Kircher.
— Alguém me pode explicar que raio é uma jarda megalítica? — perguntou Gray, alternando o olhar entre Lena e o padre.
— Havia um engenheiro escocês, nos anos trinta — disse Lena, entusiasmada —, não me recordo do nome...
— Alexander Thom — completou Roland.
— Exato! Foi o responsável pelo estudo e classificação de várias estruturas megalíticas na Escócia e na Inglaterra. E foi também o primeiro investigador a avançar com a ideia de que os construtores pré-históricos não tinham erigido essas formações de pedras gigantescas ao acaso, mas sim de acordo com o alinhamento do Sol e da Lua. Acabou por fazer uma análise estatística de várias construções neolíticas no Reino Unido e em França, e notou uma estranha anomalia: todas as estruturas tinham sido erigidas de acordo com uma unidade métrica padrão.
— A jarda megalítica — disse Roland. — O comprimento exato do bastão que encontrámos nas mãos de Eva. Essa medida aparece repetidamente ao longo da história e em várias culturas. A antiga vara castelhana, o shaku japonês, a gaz da antiga civilização harappiana, na Índia... todas estas unidades de medição apresentam um comprimento semelhante à jarda megalítica. Podemos até recuar aos minoicos, da antiga Creta. Mil pés minoicos equivalem a trezentas e sessenta e seis jardas megalíticas.
— Outra vez esse número... — murmurou Gray.
— Se não estou em erro — acrescentou Lena —, o anel de Stonehenge ocupa exatamente mil jardas megalíticas quadradas.
Seichan olhou para Lena, interrogando-se por que razão uma geneticista parecia demonstrar tanto conhecimento nessa matéria.
— Como sabe tanto acerca disto?
— A minha irmã e eu estudámos algumas destas construções, uma vez que são evidência da disseminação do conhecimento ao longo do Paleolítico. Vai ao encontro da nossa teoria, de que um grupo restrito de indivíduos impulsionou o Grande Salto Evolutivo, indicando o caminho para a modernidade.
— Exatamente como os Vigilantes do padre Roland — acrescentou Gray.
Seichan franziu o sobrolho.
— Portanto, o que estão a querer dizer é que essa unidade métrica universal, partilhada entre culturas, foi um presente desses Vigilantes?
Gray olhou para as ossadas de Eva no ecrã do telefone. Observou as feições únicas que denunciavam a sua condição híbrida, identificando-a como uma descendente direta da aproximação entre os primeiros homens e os neandertais.
Será que estou a olhar para um desses Vigilantes?
— Mas afinal, por que razão esta medida é tão importante, padre Roland? — perguntou, voltando a concentrar-se na discussão. — Porque disse que pode ser a chave do mundo?
Lena respondeu pelo padre.
— Porque a jarda megalítica foi calculada da dimensão do planeta. Da circunferência da Terra, para ser mais específica.
— Foi uma das conclusões do padre Kircher — disse Roland. Abriu o diário e mostrou uma página com uma ilustração da Terra, acompanhada de cálculos matemáticos. — Como podem observar, ele dividiu a circunferência da Terra em trezentos e sessenta e seis graus. Em seguida, dividiu os graus em sessenta minutos e, finalmente, em segundos. O cálculo encontra-se na parte inferior da página, onde conseguiu determinar o comprimento equivalente a um segundo da circunferência da Terra.
Apontou para o resultado final.
— Outra vez o mesmo número — notou Gray.
Seichan examinou melhor a página.
— Alguém me explica como é que um povo pré-histórico conseguiria determinar a circunferência da Terra, para fazer este cálculo?
— Por meios indiretos, provavelmente. Podiam tê-lo feito com recurso a um cordel, um seixo e um pau. — Roland virou outra página do diário, que exibia uma ilustração de um pêndulo rudimentar. — O padre Kircher fez um diagrama do método, usando o planeta Vénus como ponto de referência.
— O Roland pode estar certo — acrescentou Lena. — Sabemos que os construtores pré-históricos conheciam o movimento das estrelas, e muitas culturas veneravam Vénus. Temos o exemplo das ruínas de Newgrange, na Irlanda. A entrada foi pensada de modo que a luz de Vénus incidisse no interior da estrutura durante o solstício de inverno.
Gray recostou-se no assento.
— Portanto, também acredita que alguém calculou esta medida megalítica com base na circunferência da Terra e que depois a partilhou como um sistema de medição universal.
— Kircher acreditava que sim — disse Roland. — É evidente que reconheceu a antiguidade daquelas ossadas, que a configuração não era totalmente humana, e que aqueles artefactos, tanto a escultura perfeita da Lua como o bastão de marfim, revelavam conhecimentos avançados de astronomia.
— E, depois de chegar a essa conclusão, fez segredo da descoberta e procurou saber mais acerca desse povo — concluiu Gray.
Roland disse que sim com a cabeça.
— Porém, o padre Kircher era um homem devoto e também procurou respostas nos textos religiosos. Acabou por descobrir que a Bíblia escondia algumas pistas acerca dos números que estamos a discutir.
— A Bíblia? Como assim?
21h09
Roland engoliu em seco, como se receasse revelar a derradeira verdade que descobrira no diário de Athanasius Kircher. Calculou que tivesse sido ainda mais difícil para o padre jesuíta.
— Conhecem o termo gematria? — perguntou por fim. Os outros abanaram a cabeça. Roland continuou: — É um sistema numérico originário da Babilónia, que mais tarde foi adotado pelos hebreus, em que a cada letra do abecedário corresponde um número, o que confere às palavras um significado extra consoante o somatório desses algarismos. Tornou-se a base de um sistema medieval cabalístico de interpretação das Escrituras. Mais tarde, os cristãos também abraçaram este método em relação à Bíblia. Como matemático que era, este tipo de numerologia não podia deixar de interessar ao padre Kircher. De acordo com as anotações no diário, ficou obcecado com um número em particular, sobretudo pelo modo como estava ligado à Bíblia.
— Que número é esse?
— Um número primo. Trinta e sete. — Roland voltou à página que mostrava a relação entre a medida da costela de Eva e a circunferência da Terra. — De início, pensei que o padre Kircher arredondara este número, 36,6, para 37. Porém, também faz uma referência ao que Lena e eu encontrámos no túmulo de Adão, na Croácia.
Roland procurou na galeria de imagens do telemóvel, até encontrar uma fotografia das impressões de mãos que se encontravam na caverna do homem de Neandertal.
— Se contarem o número de impressões, verão que são trinta e sete. — Roland olhou para Lena. — Tiraste uma fotografia idêntica no túmulo de Eva, onde também existia o mesmo padrão. A única diferença residia no número de impressões, que era bastante superior. Não tenho essa imagem, mas podes confirmar no teu telefone e contar quantas são?
Franzindo a testa, Lena alcançou o telemóvel e procurou a fotografia em questão.
Contou o número de impressões e levantou o rosto assim que terminou.
— Setenta e três.
Roland assentiu.
— O padre Kircher apontou o mesmo número no diário.
— Outro número primo — disse Gray — e também o reverso de trinta e sete.
— Ambos são o que o padre Kircher chamou stella numeros, ou números-estrela, por causa dos padrões que formam. — Roland folheou uma secção do diário. — Também usou a gematria para extrair mensagens escondidas na Bíblia, e chegou à conclusão de que o número trinta e sete era fundamental para entender as Escrituras Sagradas.
— Como? — perguntou Gray.
— Posso apontar alguns exemplos — disse Roland. — A palavra fé aparece trinta e sete vezes nos Evangelhos. E, se convertermos a palavra hebraica para sabedoria, chokmah, no seu equivalente cabalístico, obtemos também o número trinta e sete. — Olhou para Lena. — Andas à procura das raízes da inteligência humana, e a única palavra da Bíblia que equivale ao número trinta e sete é chokmah.
— Sabedoria... — murmurou Lena, pensativa.
Roland olhou para os outros.
— O padre Kircher anotou muitas outras ligações entre a Bíblia e o número trinta e sete, mas o exemplo mais pungente encontra-se logo na primeira linha do texto sagrado, no Génesis: No princípio, quando Deus criou os céus e a terra.
Roland mostrou uma página do diário com a frase escrita em hebraico. Debaixo do texto, o padre jesuíta tinha assinalado os números equivalentes a cada palavra.
— Se somarmos o total desta linha de números cabalísticos, o resultado que obtemos é dois mil setecentos e um.
Gray franziu a testa.
— E qual é a relevância desse valor?
Roland virou a página e revelou o cálculo que Kircher tinha anotado.
Gray inclinou-se para a frente.
— É a multiplicação desse dois números primos.
Roland anuiu.
— Os números-estrela do reverendíssimo padre. Uma descoberta destas parece fora das probabilidades de se tratar de um mero acaso, sobretudo pelo que encontrou, quando decidiu averiguar ainda mais esta questão. Descobriu que, se pegarmos na mesma frase e multiplicarmos o valor numérico de cada letra pelo número total de letras, e dividirmos em seguida o resultado pelo valor das palavras, o resultado que obtemos é um número que desafia qualquer explicação racional.
Roland entregou o diário a Gray, para que este pudesse confirmar os cálculos matemáticos do padre, sobretudo o resultado final, assinalado com um círculo.
— Isso é o pi... — disse Gray, estupefacto.
— Um número que já era bem conhecido no tempo do padre Kircher.
Lena recostou-se, falando muito baixo, como se estivesse com o pensamento em outro lugar.
— A Maria e eu estudámos a história do pi para a nossa dissertação sobre as raízes da inteligência... usando-o como um pilar para a evolução do conhecimento. A primeira aproximação de pi data da antiga Babilónia.
Roland pegou outra vez no diário.
— Portanto, ao que parece, a abertura do Génesis não só contém números-estrela como, também, o valor numérico significativo de pi.
Gray inclinou-se para a frente e pegou no diário. Folheou-o até encontrar a página com a ilustração da Terra. Apontou para o cálculo final na parte inferior da página: 36,6 Costa Eve.
— Tal como mencionou, este número também arredonda para 37. Um número que, se estiver certo naquilo que está a dizer, parece ligar o Sol, a Lua e a Terra com a precisão de um mestre relojoeiro suíço.
O rosto de Lena tornou-se gradualmente pálido.
— E talvez não sejam apenas as estrelas — disse.
Os companheiros olharam para ela.
— Este número também se encontra escondido no nosso código genético.
21h12
Lena sentia-se pouco confortável por abordar o assunto. Assim que a importância do número 37 fora mencionada, recordou-se de um artigo que lera numa publicação científica, em 2014. Sempre considerara o teor do artigo como uma anomalia estatística, mas agora começava a interrogar-se se era apenas isso.
Roland olhou para ela.
— Do que estás a falar?
Lena baixou o rosto e olhou para as mãos.
— Quase toda a vida do planeta possui um código genético, mas existe um código dentro desse código, que é imutável e inalterável. Trata-se do complexo conjunto de regras que determina o modo como o ADN produz proteínas. Recentemente, um biólogo e um matemático descobriram uma série de simetrias perfeitas nesse código. Um padrão inteiramente baseado nos múltiplos de um único número primo.
— Deixe-me adivinhar — disse Gray. — Trinta e sete?
Lena assentiu.
— Lembro-me de um exemplo no artigo, de como a massa atómica de cada um dos vinte aminoácidos que compõem o nosso corpo são múltiplos de 37. As probabilidades de este padrão ter surgido por acaso foram calculadas em uma num decilião. E, caso não estejam a ver a enormidade deste número, trata-se do algarismo um seguido por trinta e três zeros!
— Por outras palavras, inexistentes — disse Seichan.
Roland franziu o sobrolho.
— Não é preciso olhar pelo microscópio para descobrir uma ligação à nossa biologia. Basta lembrarmo-nos da temperatura normal do corpo humano: trinta e sete graus Celsius.
O silêncio caiu sobre a cabina.
— Se tudo for verdade — disse Gray, quase sussurrando —, estamos a falar de um único número que define tudo. Que liga o nosso ADN e os nossos corpos ao próprio movimento do Sol, da Lua e da Terra.
— Sim, mas qual é o significado? — perguntou Seichan.
Gray abanou a cabeça.
— Se houver uma resposta — disse Roland —, será encontrada aqui.
O padre abrira de novo o diário e olhava para uma ilustração que já tinha mostrado. Representava uma secção do mapa da América do Sul, com um labirinto desenhado por cima de um lago subterrâneo. Segundo Kircher, assinalava a localização da lendária Atlântida. Lena recordou a história da região, que falava de uma cidade enterrada sob as montanhas. Um lugar de inexplicáveis tesouros, onde antigas bibliotecas guardavam livros de metal e de cristal.
Poderia mesmo existir um lugar como esse?
Seichan deu voz à pergunta que ocupava a cabeça de todos.
— Como pode ter assim tanta certeza?
Roland apontou para a ilustração.
— Reparem na latitude que está assinalada no mapa.
Gray inclinou-se para a frente e leu as coordenadas em voz alta.
— Trezentos e sessenta e seis...
Roland sorriu.
— Alguém acredita que é pura coincidência?
A voz do piloto fez-se ouvir de novo na cabina.
— Apertem os cintos. Vamos iniciar a aproximação final a Cuenca.
Lena recostou-se e espreitou pela janela. Mais à frente, o negro da floresta dava lugar ao manto de luzes da cidade. Desviou a atenção para a imensa extensão de selva e para os picos montanhosos à distância. A maior descoberta da história da humanidade podia ainda estar escondida algures, no meio de toda aquela negritude. Ainda assim, parte de si desejava que o avião desse meia-volta, consciente do sangue que fora derramado para os conduzir até ali, recordando-a de que Maria ainda se encontrava em perigo.
Desviou o olhar para a Lua, para o mistério que iluminava o céu noturno. Além de toda a conversa sobre números e cálculos, recordou o primeiro comentário de Roland, de como a face da Lua cobria a totalidade do Sol durante um eclipse. Uma simetria de movimentos orbitais e dimensões celestes que parecia desafiar o senso comum. Todavia, há milénios que ali estava, à vista de toda a gente, oferecendo esse milagre a quem o quisesse questionar.
Recordava-se também da observação de Gray. De como a precisão dessa relação entre o Sol, a Lua e a Terra parecia o trabalho de um mestre relojoeiro suíço.
Uma pergunta inquietante sobreveio-lhe ao pensamento.
Se assim for, quem é o mestre relojoeiro?
O avião agitou-se, indicando a descida do trem de aterragem.
Talvez estejamos prestes a descobrir.
22h03
No interior do hangar que ficava junto ao aeroporto de Cuenca, Shu Wei enterrou o punhal por baixo da orelha do homem, empurrando a lâmina num ângulo ascendente. A boca abriu-se para gritar, mas a morte foi imediata, impedindo um único som. O corpo tombou para trás, libertando a faca do interior do crânio, e caiu pesadamente no chão de cimento.
A assassina virou costas, limpando a lâmina ensanguentada com um trapo. Conseguira a informação que queria do homem. Os alvos tinham descolado do hangar num helicóptero alugado, há cerca de quarenta e cinco minutos, com destino à selva. Estavam apenas acompanhados do piloto do aparelho, que os levaria até um local recôndito no coração das montanhas, onde eram aguardados por um par de guias da tribo dos shuares.
Agarrou no iPad que trazia no bolso do blusão. Era o dispositivo que tinha recuperado em Roma, no gabinete da universidade, e que pertencera ao padre Roland. Durante a viagem até Cuenca, um analista digital forense examinara todo o conteúdo armazenado no aparelho. A maioria dos ficheiros estava relacionada com um padre medieval, Athanasius Kircher, incluindo algumas das obras que publicara. Parecia pouco pertinente para o que se estava a passar, exceto pela imagem que tinha visto desde o início. Fez aparecer de novo a imagem no ecrã.
Era um mapa do Equador, com as coordenadas de um local específico.
E era também o destino para onde os alvos se dirigiam agora, a bordo do helicóptero alugado.
Franziu a testa, lamentando o facto de não terem aguardado pela manhã. Alimentara a esperança de poder emboscar o grupo ainda em Cuenca, enquanto dormiam. Todavia, preparara-se para todos os cenários. Incluindo este.
Avançou na direção dos homens que aguardavam na porta do hangar. Escolhera pessoalmente cada membro daquela equipa de assalto. Pertenciam à sua própria unidade das forças especiais da região militar de Chengdu, uma força tática cujo nome de código era Gu. O nome da unidade, Falcão, devia-se às capacidades notórias destes operacionais na localização e eliminação de alvos, o que os equiparava às implacáveis aves de rapina.
E eu pretendo honrar esse nome.
O seu braço-direito, e segundo na linha de comando, juntou-se a ela. O sargento-mor Kwan era um palmo mais alto do que Shu, com pernas fortes e musculadas. O cabelo preto, preso num rabo de cavalo curto, emoldurava um rosto coberto de velhas cicatrizes. Chamavam-lhe Corvo Preto, devido ao hábito de guardar troféus das vidas que tirava, desde anéis, alianças, madeixas de cabelo e até um par de chinelos. Em certa ocasião, Shu perguntara-lhe a razão de tal hábito. Ele respondera que não o fazia para se vangloriar dessas mortes, mas sim como uma maneira de as honrar.
Com o decorrer do tempo, aprendera a confiar nele, mais do que em qualquer outro homem. Por sua vez, Kwan nunca demonstrara ressentimento em relação à patente, idade ou sexo de Shu, uma maneira de estar que era rara e apreciada.
— O helicóptero está pronto — disse o sargento, a voz suave e calma, contrastando com a sua aparência dura. — Estamos a aquecer os rotores.
Shu fez que sim com a cabeça. Olhou para lá da pista do hangar, na direção das montanhas.
Está aberta a caça.
19
1 de maio, 11h04 CST
Pequim, China
Está tudo bem, meu querido...
Maria agarrou a mão de Baako com mais força. Uma vez que o gorila tinha os pulsos presos com correias, tudo o que podia fazer era apertar-lhe os dedos. O calor que irradiava das mãos era febril e, embora estivessem ausentes e vidrados pelo efeito do sedativo, os olhos ainda imploravam silenciosamente, tentando compreender o que estava a acontecer, perguntando a Maria por que razão continuava a permitir que lhe fizessem aquilo. Sem resposta, as lágrimas escorreram-lhe pelo canto das pálpebras. Não podia fazer muito mais do que isso, já que a cabeça também se encontrava presa à mesa, com uma banda metálica.
Uma máquina de barbear elétrica deslizou sobre o seu escalpe, guiada pela mão de uma enfermeira. Tinham passado noventa minutos desde que Maria e Baako tinham sido levados para o laboratório de vivissecção. Os preparativos pré-operatórios pareciam intermináveis, envolvendo uma série de testes físicos, análises sanguíneas e até uma ressonância magnética. Enquanto continuavam os procedimentos, a major-general Lau abandonara as instalações acompanhada de Arnaud, para que o paleontólogo começasse imediatamente a trabalhar nas ossadas do homem de Neandertal roubadas na Croácia.
Então, há cerca de dez minutos, um técnico do laboratório regressara com os resultados de uma análise à medula de Baako. O cirurgião-chefe, o doutor Han, examinara o relatório. Confirmados os resultados, dera por fim permissão para o início da cirurgia.
Enquanto as enfermeiras ultimavam os preparativos, o doutor Han assumiu o seu lugar junto à mesa, segurando uma seringa com lidocaína, para administrar a anestesia local assim que terminassem. Ao redor, os outros membros da equipa começaram a abrir as embalagens de instrumentos cirúrgicos.
Baako guinchou, penosamente, para Maria.
— Eu sei que estás assustado — sussurrou Maria. Inclinou-se e beijou-lhe as pontas dos dedos. Depois, cruzou os dois punhos, frente ao peito.
[Amo-te]
Voltou imediatamente a segurar-lhe os dedos. No mesmo instante, uma enfermeira testou um dos instrumentos. O som arrepiante da serra elétrica fez Maria estremecer. Baako reagiu de modo mais severo e debateu-se com as correias, tanto para conseguir identificar a origem do som como para fugir dele. De tão assustado, a força com que apertava a mão de Maria quase lhe esmagou os ossos.
— Estou aqui, Baako — disse ela, mantendo-se firme. — Olha para mim.
Movidos pelo pânico, os olhos dele giraram por toda a parte. Depois, finalmente, encontraram os dela.
— Isso mesmo, meu querido. Eu não vou sair daqui.
Mais lágrimas voltaram a cair.
Baako gemeu, baixinho, despedaçando o coração de Maria.
Maria tentou focar-se, procurando desesperadamente uma maneira de o confortar, mas a sua mente apenas revolvia à volta da esperança de o poder tirar daquela mesa de operações. Sabia bem como era inútil alimentar essa ideia. Para começar, havia soldados a guardarem a porta do laboratório. Além disso, durante a ressonância magnética de Baako, aproveitara para ir até à janela de observação do recinto dos gorilas, para espreitar Kowalski, cuja vida dependia agora da sua colaboração com os chineses. Conseguira confirmar que ainda se encontrava naquela jaula no fundo do recinto. Porém, já não estava sozinho. O enorme gorila encontrava-se agachado, frente à jaula. Dispersos, os restantes animais deambulavam pelo chão do recinto, espreitando ocasionalmente por cima das costas do chefe.
Consciente do destino que aguardava Kowalski, Maria sabia que tinha de cooperar. Que tinha de fazer o que os chineses esperavam dela.
Que mais posso fazer?
Olhou para os olhos de Baako, tentando demonstrar-lhe todo o seu amor, tentando mostrar-se forte, mas nunca conseguiria enganar os seus sentidos. Sabia que a sua capacidade empática era tão apurada como a de um ser humano. Naquele olhar de dor, Maria conseguia notar o esforço que o animal fazia para comunicar. Porém, com os braços presos, era como se fosse mudo. Ainda que pudesse soletrar algumas palavras com os dedos, não tinha forma de expressar a verdadeira dimensão do medo e perturbação que o consumiam, alimentando ainda mais a sua aflição.
Então, sentiu os dedos dele apertarem os seus, cada vez com mais força. Os lábios de Baako juntaram-se, suprimindo por um instante aquele choramingar ténue. Quando os voltou a separar, um som inesperado escapou-se em simultâneo com o choramingar.
Duas sílabas...
— Ma... mã...
Maria engoliu em seco, sentindo as pernas cederem. Até a equipa de cirurgia se deteve por um momento, enquanto os rostos se viravam para o paciente na mesa de operações. Murmúrios de espanto espalharam-se entre todos. Os gorilas não possuíam aparelhos vocais que lhes permitissem falar, mas, aparentemente, Baako conseguia imitar um som que conhecia bem. Um som que tinha bem gravado no coração.
— Mamã... — repetiu de novo, com o olhar fixo no rosto dela.
Maria não se conteve mais.
Caiu sobre os joelhos, o rosto encostado aos dedos de Baako.
O choro explodiu-lhe no peito, incontido, elevando-se das profundezas mais recônditas da sua alma.
Alguém nos ajude...
11h08
— Isto pode demorar o dia inteiro. Ou uma semana — bufou Monk.
Encontrava-se numa das entradas da Dìxià Chèng — a Cidade Subterrânea de Pequim —, a examinar a passagem arqueada que se estendia do fundo das escadas. O túnel era branco como um hospital, pontilhado de manchas de bolor verde, e o chão encontrava-se coberto de água negra, à altura dos tornozelos. Sentiu-se satisfeito por ainda usar a máscara cirúrgica, imaginando a quantidade de agentes patogénicos que deveriam habitar aquele lugar claustrofóbico. Mesmo através do tecido, o ar cheirava a algas, fungos e podridão.
Kimberly devolveu-lhe o telefone.
— Duvido que nos possa ajudar a encontrar o caminho certo.
O ecrã exibia um diagrama fornecido por Kat. A mulher de Monk compilara um esboço dos duzentos quilómetros quadrados que compunham a Cidade Subterrânea, recorrendo a várias fontes nos serviços secretos. Porém, a Dìxià Chèng fora construída há meio século e, desde então, tinha sido sujeita a inúmeras alterações, para não interferir com a constante expansão do sistema de metropolitano de Pequim.
Quando enviou o mapa a Monk, Kat admitira que não passava de um cálculo aproximado do que poderiam encontrar. Além disso, as fontes não conseguiam confirmar se a infraestrutura se estendia, de facto, até ao jardim zoológico, que ficava a cerca de um quilómetro e meio do restaurante.
Uma vez que fora ali que o sinal do localizador de GPS reaparecera, Monk reunira a equipa de resgate de Painter no local, depois da captura de Gao Sun. Tinham forçado a entrada por uma janela traseira e, após uma busca rápida ao restaurante abandonado, tinham descoberto umas escadas na cave, que conduziam à entrada da Cidade Subterrânea. De acordo com Kimberly, era apenas uma das centenas que se encontravam espalhadas pela cidade.
No entanto, a porta de aço no final das escadas era claramente um acrescento recente. Encontrava-se protegida por uma fechadura eletrónica, mas esse problema fora ultrapassado com recurso a um dos cartões magnéticos de Gao Sun.
A captura do militar provara ser uma boa fonte de informação adicional. Por intermédio dos seus contactos, Kat conseguira descobrir o nome do irmão, Chang Sun. Era um tenente-coronel do Exército de Libertação Popular, formado na Academia Militar de Ciências. O superior imediato, a major-general Jiaying Lau, também se formara na mesma academia. Kat enviara uma fotografia da mulher, na qual posava hirta e orgulhosa, com um uniforme verde-pinho imaculado. A major-general deveria ser o motivo da irritação que Gao demonstrara na conversa telefónica com o irmão.
Ao que parece, já sabemos quem mexe os cordelinhos. Resta descobrir onde estão...
O chapinhar na água desviou a atenção de Monk. Um dos elementos da equipa de resgate surgiu das sombras. Monk enviara quatro comandos para varrerem a área imediata. O quinto encontrava-se a vigiar Gao no apartamento, para salvaguardarem a apólice de seguro, caso necessitassem de a utilizar.
— Tudo limpo — informou o comando. — Mas é melhor ver o que encontrámos.
Escolhidos a dedo por Painter, os cinco comandos do exército eram todos sino-americanos, para passarem despercebidos entre a população. Para tornar a presença deles ainda mais invisível, encontravam-se equipados com uniformes completos do Exército de Libertação Popular, o que incluía Monk e Kimberly.
Em Roma...
— Vamos — disse Monk.
O comando, um sargento atarracado chamado John Chin, conduziu-o pelo túnel inundado, passando por várias salas atulhadas de bicicletas ferrugentas e móveis bolorentos. Mais à frente, a passagem começou a subir, fazendo com que deixassem de caminhar dentro de água. Logo depois, gradualmente, a escuridão perpétua deu lugar à luz.
Monk encontrou-se acompanhado dos restantes comandos que constituíam a equipa: dois irmãos com olhar de aço, Henry e Michael Shaw, e um terceiro que dava pelo nome de Kong, embora Monk não tivesse a certeza se era apelido ou alcunha, uma vez que o soldado era francamente baixo e franzino.
Kimberly olhou em redor e arquejou, surpreendida. A passagem estreita dava lugar a um segundo túnel, suficientemente largo para permitir a passagem de um tanque. Dando a ideia de que poderia ser uma construção recente, as paredes tinham sido pintadas com um cinzento impecável, assim como o teto arqueado, iluminado por um trilho de lâmpadas de vapor de sódio. Estendia-se pelo menos em duas direções, norte e sul, antes de desaparecer em torno de curvas à distância.
— Calculo que seja por aqui — comentou Monk. — E, para nossa sorte, o camarada Gao deixou-nos transporte.
Um jipe do exército chinês — um BJ2022 de meia tonelada — encontrava-se estacionado junto à saída do túnel pequeno. Verde e com uma estrela vermelha nas duas portas, teria sido deixado por Gao, que depois fazia o resto do caminho a pé até ao seu apartamento.
Kimberly levou a mão ao bolso e retirou o conjunto de chaves do soldado.
— Quem é que alinha num passeio? — perguntou com um sorriso, que se estendeu ao resto do grupo.
Kimberly sentou-se ao volante, enquanto os outros ocupavam rapidamente os restantes lugares. Se encontrassem postos de fiscalização mais adiante, a sua cara bonita e língua afiada forneciam as melhores probabilidades de passarem sem problemas.
Monk sentara-se no banco de trás, espremendo-se entre os dois irmãos, para ocultar minimamente a sua presença. Como medida adicional, baixou a pala do boné e ajeitou melhor a máscara. Todavia, sabia que esse subterfúgio apenas resultaria numa inspeção superficial.
Assim seja.
Inclinou-se para a frente e apontou para norte, na direção do zoo.
— Vamos lá ver onde isto nos leva.
Kimberly rodou a ignição e o som do motor ecoou nas paredes de cimento.
Monk voltou a afundar-se no assento.
E esperemos que não seja tarde demais.
11h14
Baako sente o ardor na cabeça.
Agita-se de dor e em pânico, mas não consegue mexer os braços nem as pernas. Também não pode levantar a cabeça. Só consegue revirar os olhos, para tentar ver o que está a acontecer.
Tinha visto o homem alto a inclinar-se, com uma seringa na mão.
Baako sabe o que são agulhas. A mamã pica-o, às vezes, mas depois oferece-lhe deliciosas bananas com mel.
Esta agulha dói mais... muito mais.
Baako olha para a mamã. Ela segura-lhe a mão e diz palavras suaves, mas tem a cara molhada. Baako consegue cheirar o medo dela. É mais forte do que os outros cheiros e chega até Baako, aumentando o terror que está a sentir.
Faz com que parem, mamã. Prometo ser um bom menino.
Mas o homem continua.
Espeta outra vez a agulha e depois outra e outra vez, deixando a cabeça de Baako a arder.
Finalmente, o homem vai embora.
A mamã aproxima-se.
«Está tudo bem», diz.
Ele quer acreditar no que a mamã diz, mas não consegue deixar de ouvir o coração a bater nos ouvidos.
Então, o fogo que sente na cabeça começa a desaparecer e transforma-se em frio, e a pele fica grossa e gelada, como se estivesse morta.
Baako também não gosta disso.
«És o meu menino», diz a mamã. «O meu menino valente.»
Ela diz estas palavras boas, mas os olhos continuam a chorar. Ela toca na testa de Baako, mas o frio espalhou-se e mal consegue sentir os dedos dela.
«Dorme, meu pequenino», sussurra a mamã, como costuma fazer em casa. «Estarei à tua espera quando acordares.»
Ela olha para o homem alto. Está a mexer num saco que tem um líquido branco. O saco está ligado ao braço de Baako, por uma corda de plástico. Baako lembra-se de um balão azul que a mamã lhe ofereceu. Um dia, quando passeava na floresta, o fio escapou-se dos dedos e o balão começou a subir, em direção ao céu.
Baako sente-se como o balão.
A cara da mamã começa a desaparecer.
Ele guincha, para ela não ir embora.
Não vás, mamã.
Depois, escuridão.
11h28
Conforme o corpo dele relaxou, Maria largou finalmente a mão de Baako. Ainda a tremer, afastou-se da mesa de operações e cruzou os braços sobre o peito, com uma certeza fria. Assistira à agonia e terror de Baako durante a aplicação da anestesia local, mas, pelo menos, agora dormia profundamente sob o efeito do propofol. O seu peito elevava-se e descia a um ritmo constante, parecendo em paz por agora.
Porém, não duraria muito.
A equipa médica — dois cirurgiões e três enfermeiras — estava já a pôr um lençol sobre o corpo do gorila. Sob anestesia, Baako continuaria a dormir durante a remoção parcial do escalpe e a craniotomia. Contudo, assim que o cérebro estivesse exposto, o efeito do propofol seria revertido. O que faria com que acordasse numa questão de minutos.
Então, o verdadeiro pesadelo começaria.
Incapaz de assistir aos últimos preparativos, Lena afastou-se e dirigiu-se de novo para a janela de observação, no fundo do laboratório. Encostou a cabeça ao vidro, olhando para o fundo do fosso. Kowalski continuava encurralado na jaula, cercado pelas bestas corpulentas, que se mantinham atrás do seu chefe. Atrás das barras, Kowalski parecia do tamanho de um boneco comparado com o animal de meia tonelada.
Maria interrogou-se como conseguiam os chineses dominar criaturas tão agressivas. Pousou as mãos no vidro. Não lhe parecia que fosse suficientemente grosso para suportar um impacte daqueles animais. Além disso, tinha a certeza de que conseguiam trepar aquelas paredes rochosas se quisessem alcançar a janela.
Um som de passos desviou-lhe a atenção de volta para o laboratório. Uma das enfermeiras — uma mulher jovem, com olhos brilhantes — juntou-se a ela. Beberricava um copo de água, enquanto fazia uma curta pausa antes da próxima fase da cirurgia. Era a mesma enfermeira que lhe oferecera algum conforto anteriormente. A mulher fez sinal com a cabeça na direção do vidro, como se lhe adivinhasse o pensamento.
— Não conseguem chegar cá acima — disse. As palavras eram murmuradas, não porque tivesse receio de estar a partilhar segredos. Era simplesmente como falava, com uma suavidade natural. Apontou para uma fila de caixas que se encontravam fixadas na rocha, abaixo do nível da janela. — Emitem uma frequência que é captada pelas coleiras dos animais.
Maria notou as bandas metálicas à volta dos pescoços das criaturas.
— São coleiras elétricas?
— Correto. O sinal gera um escudo invisível sobre o recinto.
Maria assentiu, compreendendo o que a enfermeira dizia. Se os animais trepassem demasiado alto, eram atingidos com um choque elétrico que os atirava de volta para o fundo do recinto.
— Além disso, em caso de emergência... — A enfermeira apontou para o lado esquerdo, para um armário de vidro que guardava uma espingarda de dardos tranquilizantes. Maria notou uma escotilha fechada no painel contíguo à janela de observação. — Mas não se preocupe, a arma nunca foi usada. Não precisa de ter medo.
Maria nem se deu ao trabalho de comentar aquela última afirmação. Olhou para Kowalski. Lá em baixo, o operacional levantou um braço e acenou-lhe. Maria pousou de novo uma das mãos no vidro, dando-lhe a entender que estava a fazer o melhor que podia para o manter também em segurança.
Nas costas dela, o cirurgião-chefe berrou uma ordem para a enfermeira, sobressaltando-a. A mulher olhou para Maria, oferecendo uma vénia rápida com a cabeça, e apressou-se a ir ter com o superior. Maria olhou para a mesa de operações, percebendo que estava tudo pronto para dar início ao procedimento. A equipa cirúrgica reuniu-se e começou a desinfetar as mãos.
Um arrepio gelado percorreu-lhe a espinha.
Vai começar...
11h35
— Bem me parecia que isto estava a correr bem demais — comentou Monk, sentado no banco traseiro do jipe.
A seguir a uma curva longa, a equipa deparara com a visão inesperada de uma guarita com uma barreira e arame farpado, assinalando um posto de fiscalização. Para lá da barreira, um pequeno parque de estacionamento acomodava uma mão-cheia de jipes e motos.
— Que fazemos? — perguntou Kimberly, levantando um pouco o pé do acelerador.
— Pelos meus cálculos, estamos mesmo por baixo do limite sul do zoo — disse Monk. — Por isso, temos de seguir em frente.
Durante o percurso, Monk monitorizara o avanço com o telefone, por meio de um acelerómetro. Nos últimos quatrocentos metros, tinham já ultrapassado os limites do mapa de Kat, o que indicava que se encontravam agora em terreno desconhecido. Ao longo de todo o trajeto, várias passagens estendiam-se noutras direções, incluindo dois túneis que eram ainda mais largos do que este. Tal como previam, a infraestrutura revelara-se um verdadeiro labirinto. Sem sinais para os guiarem, tinham continuado em frente, seguindo o caminho que melhor apontava para o jardim zoológico.
Parecia ter resultado, até agora.
Porém, um novo desafio apresentara-se.
Uns metros à frente, a estrada junto ao posto de fiscalização encontrava-se bloqueada com pilaretes de aço retráteis. Um soldado saiu da guarita, pronto para os receber.
Sem mostrar hesitação, Kimberly continuou a avançar e parou junto à barreira. O soldado avançou com ar entediado. Reconhecera provavelmente o jipe. Como tal, trazia a espingarda ao ombro, mostrando-se pouco preocupado.
O posto não deve ter muito movimento.
O guarda aproximou-se e inclinou-se sobre a janela do condutor.
Monk baixou a cabeça, fingindo estar meio a dormir. Para todos os efeitos, era apenas um camarada a caminho do serviço. Kimberly disse algumas palavras firmes. Depois, rodou o corpo para alcançar a sua mochila, como se procurasse os documentos que justificavam a presença deles.
Enquanto ela remexia a mochila, o soldado espreitou pela janela, estudando os rostos no interior do jipe. Monk sentiu um dos irmãos Shaw levar a mão à pistola que trazia à cintura.
Não faças asneira, disse Gray, silenciosamente.
Então, antes que alguém pudesse fazer qualquer coisa, Kimberly virou-se e estendeu um braço para o pescoço do homem. Apanhando-o desprevenido, não teve dificuldade em espetar-lhe uma seringa de ar comprimido na garganta, injetando-o num piscar de olhos com um poderoso sedativo. Continuou a segurá-lo durante os segundos que a droga demorou a fazer efeito.
O sargento Chin aproveitou para saltar do banco do passageiro e correr para a guarita. Procurou a consola que comandava os pilaretes de aço e pressionou um botão com o punho, para desimpedir a passagem. Correu de volta para o jipe e pegou no corpo inerte da sentinela, escondendo-o no interior do posto.
— Este vai dormir uma hora, pelo menos — disse Kimberly, pondo de novo o jipe em andamento. — Mas temos de ser rápidos. Não tardará até que alguém encontre o posto abandonado.
De arma em riste, Chin continuou a pé, atento à possível presença de mais soldados. Depois do parque de estacionamento, o túnel terminava junto a uma porta que abria verticalmente, grande o suficiente para permitir a passagem de um autocarro de dois andares. Uma camioneta pesada de caixa aberta encontrava-se estacionada junto à porta, sugerindo que daria acesso a um hangar de cargas e descargas. Chin inspecionou a cabina do veículo e ergueu o polegar, indicando que não havia ninguém no interior.
Kimberly estacionou e todos abandonaram o jipe. Apontou para uma porta mais pequena, do lado esquerdo da outra. Um dispositivo de identificação eletrónica brilhava junto da maçaneta.
Pegou no conjunto de cartões magnéticos de Gao.
— Esperemos que também abra esta.
— E que não haja nenhum sensor biométrico — murmurou Monk —, leitores de impressões digitais ou de retina.
Kimberly encolheu os ombros.
— Se for preciso, arrastamos a sentinela e usamos a mão dele ou os olhos.
Verdade...
Monk apreciava cada vez mais o raciocínio rápido da colega. Kat acertara em cheio quando a escolhera. Kimberly passou um dos cartões de Gao pelo sensor do dispositivo.
A fechadura abriu-se com um estalido metálico.
— Mais fácil era difícil — murmurou para si mesma.
Empurrou a porta e deu de caras com um funcionário num uniforme azul. O boné exibia o mesmo logótipo da camioneta estacionada. Surpreendido, o funcionário deu um passo atrás, desfazendo-se em desculpas e apressando-se a sair do caminho do grupo de militares uniformizados.
Kimberly ofereceu um ligeiro sinal de cabeça e avançou. Monk deixou-se ficar para trás e ajustou os óculos de sol, rezando para que o homem não achasse estranho o uso de lentes escuras num ambiente subterrâneo. Porém, não era com aquele homem que Monk se devia preocupar.
Chin seguiu atrás de Kimberly. Assim que o sargento passou pela porta, Monk notou uma mudança no dispositivo de identificação. A luz do sensor mudou de azul para um vermelho-vivo.
Merda!
Um coro de sirenes irrompeu de imediato, propagando-se por todo o espaço.
Kimberly virou-se, o rosto dominado pelo choque, embora compreendendo o que tinha acontecido. A porta devia ter um segundo sensor, que permitia apenas a passagem a quem estivesse na posse do respetivo cartão de identificação.
O condutor da camioneta tentou fugir, mas Chin deu-lhe uma coronhada na nuca, derrubando-o com facilidade.
Kimberly olhou para cima e acenou para Monk.
— Entra! Rápido!
Uma grade de segurança começou a descer do topo da ombreira da porta. Os irmãos Shaw apressaram-se a passar. Monk seguiu atrás, rolando rapidamente sobre si mesmo, para conseguir esgueirar-se pelo espaço que restava entre o chão e a grade. Kong, o último do grupo, avançou com uma rapidez inesperada e mergulhou de cabeça, deslizando sobre a barriga. Porém, a grade já se encontrava demasiado baixa e prendeu-lhe o cinto, imobilizando-o a meio da ombreira.
O pânico tomou-lhe conta do rosto.
Nem penses nisso.
Monk atirou-se e segurou a grade com a mão protésica, lutando contra a força do mecanismo, apesar de saber que não conseguiria aguentar mais do que uns segundos. Chin agarrou Kong pelos braços e puxou-o para si, usando o próprio peso para o libertar enquanto caía de costas. A grade de metal caiu pesadamente atrás dos calcanhares de Kong, selando o grupo no interior do complexo.
Com as sirenes ainda a uivarem, Monk tirou os óculos de sol e olhou para Kimberly.
Acabou o passeio.
11h42
Maria olhou para a cena à sua frente.
Assim que as sirenes se fizeram ouvir, a equipa cirúrgica imobilizou-se ao redor da mesa de operações. O doutor Han ficou muito quieto, com o bisturi entre os dedos. Acabara de fazer a primeira incisão no escalpe de Baako.
Maria não conseguia parar de olhar para o fio de sangue que escorria do golpe de oito centímetros. Sentia o corpo e a cabeça dormentes, ao ponto de mal dar conta do som das sirenes. Ainda assim, a sua mente despertou o suficiente para se interrogar acerca do que estava a acontecer.
Os rostos viraram-se na direção das portas do laboratório, acompanhados de murmúrios de preocupação, claramente sem saberem se deveriam continuar com a cirurgia.
Antes que chegassem a um consenso, Maria tomou a decisão por todos. Reagindo por instinto, lançou-se sobre a mesa, determinada a proteger Baako, nem que fosse apenas para adiar o inevitável. Deu uma joelhada na parte de trás das pernas do cirurgião-chefe, fazendo-o cair desamparado ao mesmo tempo que lhe retirava o bisturi. Puxou-o pela gola da bata e passou-lhe um braço à volta do pescoço.
Depois, encostou a ponta da lâmina à carótida do homem.
— Acordem o Baako! — berrou para o resto da equipa.
Recomposto do choque, o cirurgião tentou debater-se. Maria fincou-lhe a ponta do bisturi até fazer sangue. O cirurgião ficou muito quieto.
— Rápido! — gritou outra vez.
Finalmente, um dos membros da equipa avançou. Era a jovem enfermeira com quem conversara junto à janela. A enfermeira circundou a mesa e suspendeu a anestesia que continuava a ser administrada a conta-gotas por via endovenosa.
— Retire também o cateter — ordenou Maria. Olhou para os outros. — E retirem as correias!
Ninguém se moveu. Para incentivar o resto da equipa, Maria enrolou o punho na bata do cirurgião e empurrou a lâmina com mais força. O homem arquejou de dor e berrou para os outros, ordenando que obedecessem. Tal como Maria, provavelmente percebera que, em boa verdade, ela não tinha hipótese de sair dali com o gorila. Sendo assim, porque não cooperar?
Ainda sob a ameaça da lâmina, o lençol cirúrgico foi retirado de cima do gorila e as correias soltas.
— Suture a incisão — ordenou ao cirurgião assistente, a voz mais fraca, cada vez mais insegura conforme a onda de adrenalina começava a perder efeito.
Ainda assim, o médico obedeceu. Fechou a incisão com grampos, protegendo-a com gazes e adesivo. Quando terminou, as sirenes já se tinham silenciado.
Os outros olharam para ela, aguardando a próxima instrução.
Maria fitou-os, cada vez mais esmagada por um único pensamento.
E agora o que faço?
11h44
A major-general Lau encontrava-se no olho da tempestade.
Assim que soaram as sirenes, obedecera ao protocolo que se aplicava a brechas de segurança, dirigindo-se de imediato para o centro de comunicações do complexo. Seis homens atarefavam-se nas várias secretárias em redor da sala, atentos aos vários ecrãs que cobriam as paredes. O ecrã maior exibia um mapa tridimensional dos quatro pisos do complexo, revelando quilómetros de túneis e centenas de hectares de laboratórios, gabinetes, armazéns, acomodações para funcionários e um sem-número de outros espaços.
O alarme ocorrera na entrada sul, onde as instalações se fundiam com os velhos abrigos e túneis da Cidade Subterrânea.
— Quantos intrusos? — perguntou Jiaying, olhando para Chang Sun.
— Ainda não sabemos — respondeu o tenente-coronel, pousando a mão sobre o auricular enquanto escutava o relatório da equipa de segurança que enviara para o local. Apontou para uma grelha de monitores. — Estamos a rever as gravações das câmaras de vigilância.
Nos ecrãs, as imagens desfilaram em reverso, em velocidade acelerada. Finalmente, um dos técnicos levantou um braço.
— Aqui — disse Chang.
Jiaying juntou-se ao tenente-coronel, nas costas do técnico. O homem mostrou a gravação do momento da invasão. Fora captada por uma câmara no interior do hangar de cargas e descargas. Jiaying fixou o olhar no ecrã que mostrava um pequeno grupo a esgueirar-se pela porta e a atacar um funcionário.
Chang inclinou-se sobre o ombro do técnico e congelou a imagem. Tocou com o dedo nos vários rostos que compunham o grupo, selecionando-os com retângulos azuis e ampliando essas secções do ecrã.
— Seis — disse por fim, respondendo à pergunta anterior. — Uma mulher e cinco homens. Todos com uniformes.
Jiaying inclinou-se para a frente.
— São nossos?
A general não descartara a possibilidade de o ataque ter sido ordenado pelo Ministério de Segurança Interna, para testar a inviolabilidade do complexo. Todavia, não lhe parecia que fosse um exercício.
Chang reforçou essa conclusão ao apontar para um dos rostos ampliados. O homem retirara um par de óculos de sol, revelando feições caucasianas.
— Americanos — disse ele. — Tenho a certeza.
A general sentiu o sangue ferver perante tal ousadia.
— Onde estão?
Chang suspirou, exasperado.
— Têm conseguido manter-se fora do alcance das câmaras, mas não o podem fazer para sempre. De qualquer modo, uma das minhas equipas acabará por encontrá-los.
— Quantos homens temos nas instalações?
— Mais de cem — disse Chang, endireitando as costas. — Com todas as saídas fechadas, não têm para onde ir. É apenas uma questão de tempo.
Jiaying assentiu, acalmando-se. Apesar da irritação que o ataque lhe causara, sentia-se em parte aliviada. Sempre suspeitara de que os americanos tinham enviado operacionais, porém, até ao momento, não passara de uma ameaça hipotética que constituía uma variável que lhe fugia das mãos. Agora, tornara-se quantificável, uma pequena contrariedade que podia eliminar. Na verdade, podia até revertê-la a seu favor.
— Zhongxiào Sun! — alertou um técnico, pedindo a atenção imediata de Chang.
Jiaying acompanhou o tenente-coronel até outra secretária, na expectativa de que os intrusos tivessem sido localizados. Todavia, o ecrã exibia imagens que chegavam do laboratório de vivissecção. A general franziu a testa ao ver Maria Crandall. Aparentemente, mantinha um dos médicos como refém sob a ameaça de uma faca, numa vã tentativa de interromper a cirurgia.
Abanou a cabeça perante o esforço patético da mulher, claramente motivado pelos seus sentimentos pelo gorila.
Esperava mais de uma colega cientista.
Por outro lado, não era a primeira vez que os americanos provavam ser um povo mole. Eram demasiado mimados e convencidos da sua superioridade; demasiado cegos perante a mudança de paradigma dos poderes mundiais no novo milénio.
Ao contrário da China, onde as lições duras se aprendem desde tenra idade.
Ao que parece, a sua educação também deixou muito a desejar, doutora Crandall.
— Liguem-me ao laboratório — ordenou.
Chang instruiu o técnico. O homem pressionou algumas teclas e passou um microfone sem fios à general.
— Pode ouvir as respostas pelas colunas de som do computador.
— Muito bem — A general levou o microfone aos lábios. — Doutora Crandall, preciso de um minuto da sua atenção.
No ecrã, Maria sobressaltou-se e recuou um passo, arrastando o cirurgião. Levantou o rosto para os altifalantes no teto.
— Pelo que vejo, parece que entrou em pânico. Porém, deixe-me assegurar-lhe que as sirenes fazem parte de um exercício de segurança — disse Jiaying, usando a mentira para destruir qualquer expectativa de um salvamento. — Ainda assim, devo informá-la de que, devido ao protocolo, todo o complexo se encontra selado.
A última afirmação não era mentira.
Maria estava encurralada.
— Também lhe quero dizer que não haverá consequências nem para si nem para o gorila. Infelizmente, não posso dizer o mesmo em relação ao seu colega.
Maria olhou por cima do ombro, para a janela de observação.
— Penso que fui bem clara a esse respeito, não? — disse Jiaying.
Agora, está na hora de aprender a lição.
11h55
No interior da jaula, Kowalski mantinha-se alerta, enervado pelo silêncio súbito que se instalara depois do alarme. Tinham passado três horas desde que fora posto em exibição para os animais, como um petisco no interior de uma máquina de venda automática. Quando as sirenes soaram, pensou que se tratava do toque para o jantar, assinalando o seu fim.
E não fora o único a ser incomodado pelo alarme.
Ecoando forte por todo o recinto cavernoso, o uivo das sirenes deixara as criaturas num frenesim. Algumas tinham procurado abrigo nas cavernas, tentando escapar ao ruído. Outras aproximaram-se, agrupando-se junto do chefe. O gorila continuou sentado, claramente imperturbado. Na verdade, o único sinal de ter ouvido o alarme foi quando olhou por cima do ombro, na direção da janela de observação.
Kowalski também olhara para a janela na esperança de ver Maria, repetindo vezes sem conta a mesma pergunta.
Que raio se passa lá em cima?
Por esta altura, receava que os cirurgiões tivessem terminado a operação. Desejava poder consolar Maria e oferecer-lhe o seu apoio, por muito insignificante que fosse. Tentara também não pensar no destino de Baako, o que apenas serviria para apertar ainda mais o nó e a raiva que sentia no estômago.
Um movimento desviou-lhe a atenção para a montanha de pelo sentada à sua frente. O gigantesco gorila prateado começara a balançar-se ligeiramente sobre os quadris. Kowalski olhou para os seus olhos negros, que nunca tinham deixado de o fitar.
Parece que o animal sabe qualquer coisa que eu não sei.
Kowalski encostou-se o mais que podia contra a porta de aço, desejando poder derreter-se através dela. Então, um ruído de engrenagens soou por cima da cabeça dele.
Lentamente, as barras da jaula começaram a subir.
Merda...
20
30 de abril, 23h02 ECT
Cordilheira dos Andes, Equador
No lugar do copiloto, Gray perscrutou a selva enquanto o helicóptero sobrevoava o coração da montanha. Apesar da proximidade da meia-noite, a luminosidade intensa da lua cheia reverberava na copa das árvores, que se encontrava parcialmente coberta por uma camada fina de nevoeiro. O terreno abaixo parecia intocado pelo homem, dividido por fendas profundas e pontilhado por irregulares formações de granito.
Olhou para o altímetro do aparelho. A pequena cidade de Cuenca, de onde tinham descolado, situava-se a dois mil e quatrocentos metros de altitude. O local para onde se dirigiam, a cerca de sessenta e cinco quilómetros a sul, ficava num ponto ainda mais alto dos Andes equatorianos.
A voz de Lena fez-se ouvir nos auscultadores.
— Custa a crer que alguém pudesse ter construído aqui uma cidade.
— Não é impossível — contrapôs Roland. — Durante a minha pesquisa, percebi que o Equador tem características muito atrativas. Para começar, o solo é extremamente fértil devido à atividade vulcânica, o que o torna perfeito para a agricultura. A região também foi ponto de passagem para quatro rotas migratórias ancestrais pelos Andes, fornecendo uma ligação entre a selva da Amazónia e o oceano Pacífico. É dos locais mais relevantes deste continente. Até o império inca se estabeleceu em Cuenca, nomeando-a a capital do norte.
— Parece um destino popular — comentou Seichan, sardónica.
Roland ignorou o comentário.
— Mais importante, o Equador é a única fonte de balsa no mundo.
— Balsa? — perguntou Lena.
— Esta madeira ultraleve era muito usada nas primeiras embarcações que surgiram nesta região, há mais de um milénio. Se alguém procurasse um lugar ideal para se estabelecer e, ao mesmo tempo, servir de ponto de partida para uma cultura emigratória, o Equador seria a escolha ideal.
Gray refletiu sobre o que estava a ser dito. Visualizou essa civilização perdida, recordando o livro que Lena mostrara com imagens da coleção do padre Crespi, constituída por antiguidades que pareciam ter vindo de todos os cantos do mundo.
— Por último — disse Roland —, na língua ameríndia, a expressão Antigos Andes traduz-se Atl Antida.
— Atlântida? — exclamou Lena, a voz uma mistura de choque e dúvida.
Até Gray olhou por cima do ombro, para perceber se o padre estaria a falar a sério.
Roland encolheu os ombros.
— Foi o que li, pelo menos.
A voz do piloto fez-se ouvir.
— Aquela clareira mais à frente, señor — disse ele, com um sotaque espanhol cerrado. — É o mais próximo que consigo das coordenadas que me deu.
Gray voltou de novo a atenção para o manto de selva, sem conseguir identificar nenhuma abertura entre a copa das árvores. O terreno parecia tão inacessível como sempre. Boquiaberto, vislumbrou por fim uma clareira mínima naquele mar de verde.
Este tipo não pode estar a falar a sério...
— Consegue aterrar naquele espaço? — perguntou Seichan, incrédula.
— Sí, sem problemas.
O piloto direcionou o helicóptero para a pequena clareira rodeada de árvores maciças. Como se não bastasse, a fina camada de nevoeiro não permitia vislumbre algum do solo.
Gray segurou-se bem enquanto o aparelho descrevia um semicírculo e reduzia a altitude, até ficar a pairar sobre a clareira. Depois, com mestria, o piloto fê-lo descer. O sopro dos rotores chicoteou os ramos das árvores em redor, que pareciam estar a centímetros das pás do aparelho. Imperturbado, o homem continuou a aproximação ao solo, mergulhando o helicóptero na camada de nevoeiro.
Sem distinguir um palmo à frente do nariz, Gray susteve a respiração, interrogando-se quando chegaria o momento em que as pás atingiriam as árvores, catapultando-os em direção ao solo. Em vez disso, após uns segundos aterradores, os patins de aterragem tocaram suavemente o chão da floresta.
O piloto olhou para ele.
— Sem problemas — repetiu.
Só se for para ti...
Aliviado, deu uma palmada nas costas do homem, agradecendo-lhe. Virou-se para os companheiros.
— Vamos! — Verificou o relógio. — Os nossos guias devem estar a chegar.
Espero eu.
Durante a viagem, Roland contactara o padre Pelham, que substituíra o padre Crespi na Igreja de Nossa Senhora do Auxílio, em Cuenca. Tal como Crespi, o atual sacerdote também era muito respeitado pelas tribos shuares. Com o peso do Vaticano atrás de si, Roland conseguira convencer o padre Pelham a contactar uma comunidade shuar próxima, uma aldeia com cerca de vinte famílias, não muito longe do local assinalado pelas coordenadas.
Se havia alguém que conhecia os segredos daquele terreno, esse alguém era o povo indígena local.
Porém, conseguir a sua cooperação adivinhava-se um desafio. As tribos eram notoriamente desconfiadas em relação aos estrangeiros. Ainda havia viajantes que desapareciam naquelas florestas, sucumbindo às garras de predadores, pelas mordidelas de cobras venenosas ou por doença. Porém, ninguém podia negar que uma mão-cheia deles teria desaparecido às mãos das tribos que ainda habitavam os recônditos mais negros da selva, onde os caçadores de cabeças e a prática de canibalismo persistiam. Na verdade, a ocasional tsantsa, ou cabeça encolhida, ainda surgia de quando em vez no mercado negro, diretamente das sombras da floresta.
Lena apertou o blusão assim que saiu do helicóptero.
— Está tanto frio...
— De facto, está tudo menos o calor de que estava à espera — concordou Roland.
— É por causa daquilo — explicou Gray, apontando para a camada de nevoeiro. — A esta altitude, a selva transforma-se numa floresta nublada.
O ar também era incrivelmente rarefeito, dificultando a respiração.
Seichan afastou-se um pouco e fitou a escuridão que se estendia para lá das luzes do helicóptero.
— Parece outro planeta.
Gray alcançou a lanterna que trazia no cinto e apontou-a entre as árvores, iluminando o coração de uma luxuriante paisagem coberta de verde. As florestas nubladas eram conhecidas pela humidade extrema, e esta não era exceção. Os troncos, os ramos e as lianas encontravam-se revestidos por uma crosta de musgo. As orquídeas surgiam numa miríade de tons por toda a parte com pétalas subtis. Os fetos brotavam do solo, troncos e ramos acima, e até as folhas se cobriam de algas.
No meio de tudo isso, as várias camadas de neblina pairavam ou serpenteavam gentilmente entre o chão e a copa da floresta. Rarefeito, o ar obrigava os pulmões a lutarem por oxigénio e o coração a bater mais depressa. Ainda assim, a brisa suave carregava o odor rico da argila sob os seus pés, intercalado com o doce perfume das flores noturnas.
Era, de facto, outro planeta.
Um planeta para o qual não se tinha sido convidado.
À medida que os rotores do helicóptero se silenciavam, a floresta ia despertando com os zumbidos dos insetos, o crepitar na copa das árvores, como se algo se tivesse posto em fuga, e o ocasional chamamento de uma ave. Tudo isso era um lembrete de que não existia apenas verde naquele lugar. A selva era a casa de grandes predadores como os jaguares e as anacondas, e também dos tapires, preguiças, javalis e de todo o tipo de macacos.
Um bando de papagaios surgiu a voar de entre as árvores e circundou a clareira, fazendo ouvir o seu desagrado, antes de desaparecer de novo.
Lena acompanhou-os com o olhar.
— É lindo — disse para Gray.
— E perigoso — lembrou Seichan, temperando o entusiasmo da geneticista, para a manter focada. — Esta beleza é a maneira que a natureza tem de a fazer cair na sua armadilha.
Lena lançou-lhe um olhar agastado.
Gray conteve um sorriso e aproximou-se de Seichan.
— Não sejas tão dura. Precisamos da ajuda de todos.
Seichan segurou-lhe a mão e encostou a cabeça no ombro dele.
— E também precisamos deles vivos — sussurrou. Ergueu os lábios, bafejando-lhe os ouvidos com o seu hálito quente. — Além disso, não fui dura. Nem sequer mencionei a serpente que está pendurada por cima da cabeça dela.
Gray olhou para Lena e levantou o rosto. Notou a forma comprida, cor de esmeralda, enrolada num ramo.
— É venenosa?
— Pela cabeça triangular, calculo que seja uma víbora. — disse Seichan, aninhando-se mais enquanto ele se tentava libertar para avisar Lena. — Não te preocupes, está demasiado frio para a cobra ser uma ameaça.
Gray não estava inteiramente convencido.
— Talvez seja melhor aguardarmos pelo nascer do dia — sugeriu, começando a interrogar-se se seria boa ideia atravessarem a selva em plena escuridão, acompanhados de dois caçadores de cabeças.
Seichan olhou para ele.
— Não. Fazemos como estava planeado. Demorámos dez horas para chegar até aqui, e não podemos perder mais tempo. Além disso, se descobrirmos a caverna, não faz diferença se é de noite ou de dia, certo?
Verdade, mas primeiro temos de a encontrar.
— Temos companhia — alertou Roland, aproximando-se e arrastando Lena com ele.
À direita deles, encontravam-se duas figuras na orla da floresta, observando-os em silêncio. Gray não fazia ideia de há quanto tempo estariam ali. Era como se se tivessem materializado das sombras.
Cauteloso, fez sinal aos outros para ficarem onde estavam, avançando na direção do par.
O mais alto parecia ser um ancião shuar. Tinha o rosto coberto de escarificações tribais, com tatuagens geométricas ao longo das bochechas, do queixo e da testa. O longo cabelo grisalho caía-lhe para trás dos ombros ossudos, e o peito nu exibia um elaborado colar de penas, sementes e, segundo parecia, ossos.
Ao lado, encontrava-se uma figura mais pequena, um rapaz de doze ou treze anos. O cabelo era escuro e desgrenhado. Estava descalço, como o ancião, mas usava uns calções largos e uma t-shirt verde com a mascote da equipa da Universidade de Notre Dame. Ao contrário do semblante sisudo do ancião, dirigiu a Gray um sorriso entusiasta.
— Olá — disse Gray, apresentando-se. — Falas inglês?
O rapaz fez que sim com a cabeça.
— Chamo-me Jembe. — Estendeu o braço na direção do homem mais velho. — E ele chama-se Chakikui. Eu vou falar por ele e dizer-lhe o que tu dizes.
— Obrigado. — Gray sentiu-se aliviado por ter um tradutor. — Conheces o padre Pelham, da Igreja de Nossa Senhora do Auxílio?
O sorriso do rapaz tornou-se ainda mais aberto.
— Gosto muito dele. Ensinou-me inglês e espanhol na escola da missão.
Ótimo. Uma ligação pessoal pode ajudar.
— O padre Pelham disse que nos podem guiar até às cavernas.
Jembe disse vigorosamente que sim com a cabeça.
— Sim, cavernas. Muitas cavernas nestas montanhas.
Sem nunca tirar os olhos de Gray, o ancião interrompeu a conversa, dirigindo-se ao rapaz com um tom severo.
Jembe ouviu até ao fim, traduzindo em seguida.
— O tio Chakikui conhece a caverna que procuras.
Gray soltou um suspiro de alívio.
— Mas não te vai ajudar — acrescentou o rapaz, desgostoso. — Se tentares encontrar a caverna, a nossa tribo mata-te.
Com a mensagem entregue, Chakikui virou costas. Jembe lançou um último olhar, desculpando-se.
Gray ficou parado, vendo-os desaparecer na escuridão.
Bom, lá se foi a ligação pessoal.
23h22
— Esperem! — gritou Roland, apressando-se assim que ouviu a declaração e o aviso do ancião. — Por favor!
Juntou-se a Gray, que o impediu de correr atrás do par.
— Cuidado! Podem estar acompanhados. Se os assustar, ainda acaba com uma flecha no peito.
Recusando-se a ceder, o padre avançou até à orla da floresta.
— Sou o padre Novak! — gritou para a escuridão. — Vim de muito longe!
Sem saber mais o que fazer, abriu o blusão e expôs o cabeção. Se o padre Pelham contava com a estima dos shuares, talvez esse respeito se estendesse a um colega sacerdote.
Deixou-se ficar quieto, com o peito exposto, ciente do aviso de Gray.
Então, em absoluto silêncio, as duas figuras materializaram-se mais uma vez entre as sombras.
O ancião aproximou-se, o olhar fixo no cabeção de Roland. Falou com firmeza, embora com uma medida de tolerância.
Jembe traduziu.
— Chakikui está disposto a ouvir. Os padres sempre foram gentis para a nossa tribo.
Roland notou que o rapaz usara o plural. O ancião tinha idade suficiente para ter conhecido o predecessor do padre Pelham. Decidiu jogar esse trunfo.
— Calculo que tenha conhecido o padre Crespi — disse Roland, notando o estreitar de olhos do ancião ao mencionar o nome do missionário. — Estamos aqui para honrar a memória do bom padre, e para continuar o seu trabalho nestas florestas.
Jembe traduziu e retransmitiu a resposta cética de Chakikui.
— Muitos vêm à procura do ouro.
— Não — insistiu Roland. — Estamos aqui pelo conhecimento. Para procurar uma cidade de antigos professores.
Tirou o diário do padre Kircher do bolso e mostrou-o. O olhar do ancião focou-se no labirinto dourado da capa, como se reconhecesse aquele padrão.
Interessante...
— Ouvimos histórias de cavernas que guardam livros como este — continuou Roland, lembrando-se do relato de Jaramillo de uma biblioteca perdida. — Pode levar-nos até lá?
O ancião murmurou algumas palavras, abanando a cabeça.
— Chakikui diz que levou um homem à caverna, em tempos — disse Jembe, o rosto fechado enquanto traduzia. — Diz que foi um erro.
Roland olhou para Gray.
Será que é o mesmo nativo que conduziu Jaramillo nos anos quarenta?
— É proibido entrar na caverna — disse Jembe, continuando a partilhar as palavras do ancião. — Mesmo que seja para honrar o padre Crespi. — O rapaz benzeu-se ao proferir o nome do missionário. — Que descanse em paz.
Roland suspirou e arqueou a sobrancelha, tentando encontrar uma maneira de convencer o homem. Durante a conversa, notara que os seus olhos se fixavam constantemente no livro que tinha na mão. Na esperança de que pudesse ser a chave para o fazer mudar de ideias, mostrou outra vez o diário.
— Este livro foi escrito por um outro padre, séculos atrás. Tal como o padre Crespi, também procurava esta cidade perdida de antigos professores. — Folheou algumas páginas e mostrou a ilustração do continente sul-americano, assinalado com um labirinto. — Ele queria que procurássemos este lugar.
Chakikui aproximou-se e estendeu a mão. Roland entregou-lhe o diário. O ancião folheou-o, detendo-se na página que exibia a ilustração dos petróglifos em forma de estrela dos túmulos de Adão e Eva.
Virou-se para Jembe e sussurrou algumas palavras.
O rapaz olhou para Roland, esperançado.
— Chakikui quer saber quem é esse padre. Diz que só um nome poderá abrir o caminho para as cavernas.
Roland sentiu uma onda de alívio.
— Athanasius Kircher — disse, convicto. Apontou para o diário nas mãos do ancião. — Essas palavras são dele.
Chakikui fechou o livro e devolveu-o. Virou costas, proferindo o veredicto final.
— Não é esse o nome — disse Jembe.
O par começou a afastar-se.
Sem palavras, Roland ficou prostrado, sem saber o que mais poderia fazer.
Gray chegou-se à frente e passou por Roland. Preparava-se para deter o ancião, pousando-lhe uma mão no ombro, porém, lembrando-se de que poderia ser mal interpretado, recuou.
— Esperem! — gritou. — O nome desse padre... era Nicolas Steno?
Roland estremeceu, apercebendo-se imediatamente do erro que cometera com a primeira resposta.
Claro!
O padre Kircher nunca tinha posto os pés naquele continente. Nos últimos anos de vida, encontrava-se já demasiado doente. Por isso, tinha enviado um emissário: um homem mais jovem, que fosse capaz de suportar tão dura viagem, o seu bom amigo, Nicolas Steno. Ainda assim, seria possível que a história oral dos shuares ainda recordasse esse homem, que venerassem ainda o seu nome?
Chakikui ofereceu a resposta a essa pergunta. Virou-se e olhou para Gray e Roland.
— Nikloss... Steno? — disse o ancião com os olhos a brilharem.
Roland fez que sim com a cabeça.
Chakikui soltou um longo suspiro, como se o tivesse guardado no peito durante décadas. Depois, sussurrou para o rapaz.
O rapaz ouviu.
— Ele diz que sim, que os leva à casa dos antigos, à cidade dos Antigos Andes.
Roland quase não ouviu a tradução do rapaz. As últimas palavras do ancião ainda ecoavam na sua cabeça. Reconhecera a expressão ameríndia que ele usara para Antigos Andes.
Atl Antida.
Virou-se para os outros, cujos rostos eram uma única máscara de choque.
Poderá ser mesmo verdade?
23h58
Lena seguiu atrás de Gray e Roland, com Seichan a cobrir a retaguarda. Depois de quarenta minutos de caminhada na floresta tropical, as suas roupas pareciam colar-se-lhe a cada milímetro de pele: não pelo suor, mas pela humidade fria, que se perpetuava sob a copa das árvores. Suspensa no ar, a condensação formava gotículas que caíam incessantemente de cada ramo, encharcando o tapete de folhas apodrecidas que cobria o chão. Em cada fôlego, Lena absorvia toda essa viscosidade, tornando a experiência cada vez mais insuportável. Até os pulmões começavam a doer, conforme o ar rarefeito tornava a respiração mais difícil.
Continuou a lutar para conseguir acompanhar Gray, que segurava uma lanterna. Iluminava o suficiente para que pudesse encontrar o caminho certo através daquele mundo verde. Ainda assim, de quando em vez os olhos perscrutavam a escuridão de ambos os lados. A floresta rangia e zumbia com um sussurro constante, despertando ocasionalmente com o guincho agudo de um macaco ou com o assobio de uma ave. Na sua mente, imaginava que tipo de ameaças se esconderia sob aquele manto de invisibilidade, sobretudo no que dizia respeito a serpentes.
Como se não bastasse, a deslocação da névoa só aumentava a inquietação.
Dá a sensação de que a floresta está a mexer.
Um rugido profundo atravessou a escuridão, soando igualmente perto e distante. Estugou o passo, juntando-se mais aos companheiros.
Jembe veio ao seu encontro, deixando o ancião sozinho a conduzir o grupo por aquele terreno inavegável.
— Jaguar — informou o rapaz. — Existem aqui muitos. Mas não se aproximam. Estamos a fazer muito barulho.
Barulho?
Há quinze minutos que ninguém trocava uma palavra. Os únicos sons que os denunciavam eram as respirações pesadas e o espezinhar húmido das botas sobre a argila.
Jembe olhou para ela e deu-lhe uma palmada suave no braço, claramente encantado com a beleza da geneticista.
— Eu protejo-te. Sou muito rápido. O meu nome significa beija-flor.
Lena sorriu.
— Beija-flor?
O rapaz disse orgulhosamente que sim com a cabeça, imitando o voo da ave com uma das mãos.
— Muito rápido!
— Tenho a certeza que sim.
Continuaram ao longo do que pareceu quilómetros, subindo penosamente encostas íngremes, ora serpenteando por declives acentuados. Por duas vezes, tiveram de avançar sobre pedras cobertas de musgo, ao longo de cursos de água. No último, o nível de água chegara-lhes às coxas.
Então, gradualmente, um som trovejante começou a fazer-se ouvir mais à frente.
Que será desta vez?
Antes que conseguissem alcançar a origem daquele troar, Chakikui deteve-se na crista de uma falésia. Jembe traduziu o seu aviso.
— A partir daqui, é terra proibida. Guardada por... — Jembe debateu-se para encontrar a palavra certa. — Por demónios!
Para fazer prova do que dissera, Chakikui aproximou-se de um penedo vertical. A superfície encontrava-se coberta de líquen, mas a face virada para eles estava limpa o suficiente para conseguirem distinguir a figura que fora gravada na rocha. O petróglifo fora desenhado raspando a camada negra do penedo, revelando a parte mais clara da pedra, o que conferia um toque fantasmagórico à imagem.
— Um demónio — reforçou Jembe, com ar muito sério.
A figura representada erguia-se sobre as patas traseiras, com as garras bem levantadas, rugindo ameaçadoramente para eles.
Lena aproximou-se para ver melhor. Passou um dedo sobre o focinho, contornando as orelhas arredondadas.
— Não é um demónio — disse, surpreendida. — É um urso-das-cavernas. Semelhante à pintura que eu e o Roland vimos na Croácia.
— A Lena tem razão — anuiu Roland.
A geneticista abanou a cabeça.
— Porém, o território paleolítico do Ursus spelaeus não se estendia à América do Sul — murmurou. — Esta imagem não devia estar aqui.
— A não ser que alguém o tenha desenhado de memória — sugeriu Roland.
Lena desviou o olhar para a falésia. Para lá daquele penedo, encontravam-se outros tantos, espalhados ao longo da face da ravina. Mesmo à distância, conseguia distinguir os diferentes petróglifos que decoravam todas aquelas rochas. A maioria eram desenhos abstratos: formas geométricas, redemoinhos, até o que parecia ser escrita cuneiforme. Todavia, também havia outros animais: cobras, aves, jaguares, macacos, e ainda um animal corpulento, que aparentava ser um bisonte.
Não admira que o lugar possa assustar esta gente.
Chakikui ergueu um braço, apresentando mais um motivo pelo qual ninguém deveria entrar naquela área.
— Há muito tempo — disse o rapaz —, o padre Nikloss Steno disse para não deixarmos ninguém vir aqui. A não ser que soubessem o seu nome.
— Porquê? — quis saber Gray.
Chakikui franziu a testa e respondeu com a ajuda do rapaz.
— Perigoso. — O ancião bateu no peito. — Para o corpo e para o espírito... — estendeu os braços, fazendo um movimento largo — ... e para o mundo.
Fitou Gray, perguntando-lhe silenciosamente se queria continuar.
— Compreendo — disse Gray. — Mas vamos até ao fim.
Antes de prosseguir, Chakikui levou as mãos à boca e soltou um assobio semelhante ao canto de uma ave.
— Está a dizer aos outros para voltarem para a aldeia — explicou Jembe. — Não podem vir connosco.
Lena olhou em redor.
Seichan não parecia surpreendida.
— Estamos a ser seguidos desde que deixámos o helicóptero. Por uma dúzia deles, pelo menos.
Incrédula, Lena continuou a olhar por cima do ombro enquanto desciam a encosta, seguindo atrás de Chakikui.
Roland manteve-se ao seu lado.
— De acordo com o relato de Jaramillo, o trilho que conduzia à biblioteca perdida passava por um labirinto de penedos gravados. — Apontou para o troar distante de água a correr. — Um trilho que terminava num rio engolido por uma tempestade.
Conforme desciam, a floresta tornara-se menos densa, permitindo que a luz da lua rompesse entre a copa das árvores. Lena sentiu-se revigorada pela luminosidade adicional, todavia, fê-la recordar as inquietantes observações de Roland acerca do satélite da Terra. Refletiu sobre essa estranha sinergia de alinhamentos e proporções que definiam a relação entre a Terra, a Lua e o Sol.
Roland notou o olhar dela para o céu noturno.
— Isto tudo faz-me pensar outra vez no envolvimento de Neil Armstrong.
— Porquê? — perguntou Lena.
O padre contemplou a Lua, os olhos brilhantes.
— Talvez tenha mesmo encontrado algo estranho lá em cima. Terá sido isso que o levou a juntar-se à expedição britânica? O desejo de conhecer a verdade? Sabemos que falou com o organizador da primeira expedição, um engenheiro escocês chamado Stan Hall; um homem que, por sua vez, estivera em contacto com Jaramillo. Hall também foi o organizador da segunda expedição com Armstrong, antes do assassínio de Jaramillo.
Por esta altura, qualquer troca de palavras ia-se revelando cada vez mais difícil, conforme o troar da água se tornava cada vez mais ensurdecedor. Então, mais à frente, o rio surgiu por fim à vista de todos, iluminado pelo luar. Corria ao longo de uma série de cascatas, em direção a um penhasco rochoso, de onde caía para uma enseada cristalina. Daí, encontrava outro precipício um pouco mais à frente, transformando-se então numa volumosa catarata que desaparecia na floresta abaixo.
Gray verificou o telefone de satélite à medida que se aproximavam da margem do rio.
— Estranho...
— O quê? — quis saber Lena, aproximando-se.
— A localização de GPS indica que estamos no sítio certo. Exatamente na mesma longitude e latitude do mapa de Kircher. Porém... — Apontou para uma bússola no canto inferior direito do ecrã. — É uma leitura magnética, não o resultado de nenhum sinal de satélite.
Lena notou que a agulha da bússola girava erraticamente, sem rumo certo.
Antes que alguém pudesse refletir sobre uma explicação, o rapaz chamou-os. Encontrava-se ao lado de Chakikui, na margem da enseada, As gotículas das cataratas brilhavam sobre os seus corpos.
Enquanto Lena e os outros se juntavam ao par, o ancião apontou para o outro lado do rio, para uma face rochosa que se erguia mais adiante.
— A entrada é por ali — explicou o rapaz.
Lena tentou distinguir alguma abertura na rocha. Não conseguiu.
Roland soltou um pequeno gemido. Os outros olharam para ele.
— Vejam... na linha de água. Consegue-se perceber a forma escura de um túnel. Só se vê uns centímetros acima da água. Acho que é a entrada de que falam.
— Está inundada, portanto — comentou Gray.
— Não sei de que estavam à espera — disse Seichan, suspirando. — Se é a Atlântida, devia ter-se afundado, não?
Gray abanou a cabeça, resignado.
— Bom, parece que vamos ter de dar um mergulho.
A reação de Lena não foi tão pacífica. Sentiu o ar escapar-se dos pulmões, o coração acelerado. Tinha bem presente a memória de outros túneis inundados, dos quais quase não escapara com vida.
Roland sentiu a sua apreensão e ofereceu-lhe algum conforto.
— Pelo menos, desta vez não temos ninguém a disparar sobre nós.
00h04
O vento açoitava a roupa de Shu Wei, enquanto caía vertiginosamente através do nevoeiro.
Estudou a zona de aterragem, observando o terreno através de óculos de visão noturna. O equipamento encontrava-se em modo de infravermelhos, para detetar assinaturas térmicas.
Abaixo dela, uma mancha vermelha assinalava a localização do helicóptero dos alvos. Ainda quentes, os rotores ofereciam uma assinatura de calor discreta, que contrastava com o ambiente frio da floresta.
Ao redor, manchas mais pequenas identificavam os restantes membros da equipa de assalto, enquanto os paraquedas desciam em espiral, em direção à clareira.
Finalmente, um brilho intenso materializou-se ao nível do solo. Marcava um sinalizador que tinha sido aceso pelo sargento-mor Kwan, o seu braço-direito e número dois na linha de comando. O sargento completara a descida e estava a indicar que a área se encontrava segura.
Shu Wei puxou o cordão do paraquedas e ouviu o drapejar agradável do tecido a desdobrar-se sobre a cabeça. Logo a seguir, uma sacudidela violenta pressionou-lhe as correias do arnês contra o peito, dando por terminado o salto em queda livre do avião monomotor que se encontrava bem acima. Manobrou o paraquedas com destreza, descrevendo uma espiral apertada atrás dos outros, em direção à clareira. Momentos depois, contornando a presença luminosa do helicóptero pousado, aterrou por fim no chão da floresta.
Desfazendo-se do paraquedas, retirou os óculos e olhou em redor, estudando o ambiente. O sargento-mor encontrava-se junto à aeronave, ajoelhado sobre um corpo caído.
Kwan endireitou-se.
— Não tive alternativa — disse ele, indicando com a cabeça a caçadeira que estava no chão, a um metro do braço esticado do cadáver.
Shu franziu a testa, desapontada. Tinha esperança de poder interrogar o piloto, antes de o despachar ao encontro do criador. De qualquer maneira, pouco importava.
— Algum sinal dos alvos?
O sargento abanou a cabeça e levantou-se, guardando qualquer coisa no bolso. Shu reparou que era uma madeixa de cabelo do piloto. A cada morte, o Corvo Negro reclamava sempre o seu troféu.
Não fez nenhum comentário sobre o assunto, preferindo manter-se focada na missão.
— Qual é o avanço em relação a nós?
— Quarenta minutos, na pior das hipóteses.
Tão perto e, no entanto, tão longe.
Ainda assim, sentia-se satisfeita com o progresso. Teriam sido mais rápidos se tivessem vindo de helicóptero, porém, o ruído poderia espantar a caça. Os quarenta minutos perdidos eram um pequeno preço a pagar.
— Já neutralizámos o helicóptero — informou Kwan. — Não vão poder utilizá-lo para saírem daqui.
Não vão sair daqui, simplesmente.
Examinou as sombras em redor. Daí em diante, a equipa iria deslocar-se a coberto da escuridão, com recurso ao equipamento de visão noturna.
— O Zhu e o Feng seguem na frente — ordenou. Os dois soldados eram os melhores batedores da equipa.
Kwan assentiu com um movimento de cabeça e afastou-se, para preparar a equipa.
Shu Wei ficou em silêncio, a ouvir o murmúrio do vento, o zumbido dos mosquitos, o canto distante de um pássaro. Visualizou o sem-número de predadores que se esconderiam naquelas sombras. Ainda assim, estava segura de um pormenor...
A verdadeira ameaça acabara de chegar.
Com toda a gente a postos, Kwan olhou para ela, aguardando a ordem.
Muito bem.
Deu um passo em direção à escuridão.
Vamos lá acabar com isto.
21
1 de maio, 12h04 CST
Pequim, China
Tenho de fazer alguma coisa...
Maria mantinha-se encostada à janela de observação dos gorilas. Continuava a segurar o doutor Han pelo colarinho, com a ponta do bisturi pressionada sobre a carótida do cirurgião. Pelo canto do olho, apercebera-se de que as grades que protegiam Kowalski tinham começado a subir, transformando-o numa refeição para os animais do recinto.
Aguardando pacientemente que o prato fosse servido, o gorila permanecia sentado, a cerca de um metro da jaula.
Procurou uma maneira de ajudar Kowalski. Desviou o olhar para o expositor de vidro, que guardava a espingarda de dardos tranquilizantes.
— Abram-no! — ordenou.
Uma figura apressou-se na direção do armário. Era a jovem enfermeira que mostrara ser o membro mais cooperante da equipa. A mulher alcançou o expositor, digitou o código da fechadura eletrónica e abriu-o.
Maria empurrou o cirurgião, fazendo-o tropeçar. Enquanto o médico caía sobre os joelhos, descartou o bisturi e agarrou na espingarda. Aprendera a manejar esse tipo de arma no centro de primatas. Confirmou rapidamente se estava carregada, sentindo-se aliviada ao encontrar um par de dardos, um em cada cano, prontos a disparar.
Ainda assim, retirou outros dois da prateleira inferior do armário e guardou-os no bolso, apontando em seguida a espingarda à equipa de médicos.
— Não se aproximem! — vociferou.
Um gemido ténue chamou-lhe a atenção para a mesa de operações. Baako agitou-se e ergueu a cabeça, libertando-a da coroa de aço inoxidável que antes lhe prendera o crânio. Os olhos vaguearam pelo laboratório à medida que a anestesia de curta duração perdia o efeito. Tonto, rolou sobre si mesmo e caiu da mesa, mas despertara o suficiente para reagir. Aterrou sobre as quatro patas e virou-se para Maria.
Os cirurgiões e enfermeiras recuaram um passo.
Maria chamou-o.
— Baako, vem ter com a mamã!
O gorila guinchou e apressou-se aos ziguezagues em direção a ela, ainda tonto.
Sem poder esperar mais, Maria virou-se para a escotilha junto à janela de observação. Tentou abrir o fecho, frenética, mantendo os olhos no chão do recinto. Por essa altura, a jaula de Kowalski encontrava-se completamente escancarada. O operacional mantinha-se no seu interior, encostado às portas de aço. O gorila também não se movera. Continuava sentado, imóvel, como um gato à frente da toca de um rato, aguardando o momento certo.
Maria sabia que aquele impasse não duraria muito.
Enquanto se debatia com o fecho da escotilha, Baako aproximou-se e encostou-se às suas pernas. Notando a atenção de Maria, esticou-se o suficiente para também espreitar pela janela.
— Abre-te, maldita! — praguejou Maria.
A jovem enfermeira juntou-se a ela. Desviou-lhe as mãos trémulas e abriu rapidamente o fecho com uma série de voltas e puxões experientes. A porta da escotilha deslizou, revelando uma abertura de sessenta por sessenta centímetros.
— Obrigada — murmurou Maria.
Ergueu a espingarda pela abertura, porém, era tarde demais.
Kowalski já não estava na jaula.
12h07
Mostrem-me do que são capazes, suas aberrações...
Kowalski mergulhou pela porta aberta. Aguentara o mais que pudera, consciente de que a paciência do animal não duraria para sempre. Quando um grunhido de irritação se soltou daquele peito monstruoso, Kowalski soube que estava na hora. No instante em que o gorila ergueu um braço para alcançar o interior da jaula, Kowalski já estava em movimento.
Esquivou-se daquela manápula carnuda e rolou sobre si mesmo, passando por baixo do braço do gorila. Uma vez fora da jaula, correu o mais rápido possível.
Outros gorilas rodeavam o chefe, mas a reação rápida do operacional deixara-os momentaneamente confundidos; e momentaneamente queria dizer isso mesmo. Talvez por causa das sirenes, alguns ainda se encontravam atordoados e desviaram-se do caminho, ou talvez receassem o gorila adulto o suficiente para não se atreverem a reclamar a refeição que o gigante guardara durante as últimas três horas.
Qual fosse a razão, Kowalski não desperdiçou a oportunidade e atravessou o cordão de músculo, osso e dentes.
Atrás dele, um rugido ensurdecedor preencheu todo o recinto.
Não precisou de olhar para trás para saber a origem. Em vez disso, acelerou em direção à secção do habitat que oferecia o melhor refúgio, onde vários pedregulhos se amontoavam entre as árvores de cimento.
Um bater pesado fez-se ouvir em contraponto ao rugido.
Kowalski alcançou o labirinto de pedregulhos e cimento e contornou-o, usando-o como uma barreira. Frente à jaula e frustrado, o gorila erguera-se sobre as patas traseiras, batendo com os dois punhos no seu peito maciço, numa impressionante e eficaz demonstração de fúria. Laivos de saliva escapavam-lhe dos lábios enquanto arreganhava os longos dentes, aperfeiçoados para triturar osso e carne.
Arquejando, Kowalski agachou-se. Tentou pensar no próximo movimento, calculando que o animal de meia tonelada logo carregaria na sua direção, imparável, como um comboio de mercadorias a todo o vapor. Procurou um lugar onde pudesse abrigar-se, nem que fosse por um segundo.
Preciso de me manter afastado dele...
Então, algo o atingiu pelas costas, estalando-lhe as costelas com um clarão de agonia. A violência do impacte arremessou-o pelo ar. Rodou o corpo e caiu no chão, desamparado, batendo com força sobre o lado que não estava magoado. Ainda deitado, ergueu rapidamente a cabeça. À frente dos seus pés, encontrava-se uma forma que lhe era familiar, o mesmo gorila preto que o confrontara na porta da jaula, antes de ter sido escorraçado pelo adulto.
Aparentemente, o filho da mãe ainda estava chateado.
12h08
O rugido furioso ecoou nos ouvidos de Maria pela escotilha aberta. Erguera-se do gorila híbrido preto, que acabara de arremessar Kowalski pelo ar, expulsando-o do seu esconderijo. Saltando sobre um pedregulho, o gorila mergulhou em direção a Kowalski, pronto para acabar com ele.
Maria desviou a espingarda do chefe adulto e assestou a mira sobre a ameaça imediata. Premiu o gatilho, embora receando que fosse demasiado tarde.
Kowalski rolou para um dos lados no último instante, evitando que o corpulento animal o esmagasse, porém, assim que tocou o chão, o gorila agarrou-lhe uma perna e sacudiu-o como uma boneca de trapos.
Maria centrou a espingarda e espreitou pela mira telescópica, insegura se o primeiro dardo atingira o animal. Premiu de novo o gatilho. O disparo fez-lhe doer os ouvidos, mas evitou piscar os olhos, concentrando-se. Desta vez, notou uma penugem vermelha pendurada no pescoço do gorila.
O animal largou Kowalski e deu uma patada no pescoço, soltando o dardo. Olhou na direção da janela, como se soubesse a origem do ataque. Ergueu-se em duas patas e rugiu para Maria. Depois, cambaleou para trás e deixou-se cair sentado.
Para o efeito do tranquilizante ser tão rápido, Maria calculou que o primeiro disparo também fora bem-sucedido. Apressou-se a abrir a espingarda e levou a mão ao bolso para retirar o segundo par de dardos. Precipitada, atrapalhou-se e deixou cair um deles no chão. Praguejando, recarregou a arma com o outro.
No chão do recinto, o gorila preto tombou para o lado, os membros enormes abertos e inertes. Todavia, aquele animal não era a única ameaça.
Antes que pudesse terminar de recarregar a espingarda, o gorila adulto rugiu com toda a sua fúria, erguendo-se sobre as patas traseira. Maria ainda não conseguia acreditar no tamanho absurdo do animal. Apesar de compreender a genética envolvida na criação de semelhante monstro, a sua mente ainda lutava para o aceitar. Visualizou os ossos gigantes que observara no dia anterior, o Meganthropus, um dos mais antigos antepassados do homem, e percebeu que o tamanho monstruoso desse hominídeo não fora a única característica que tinha sido incluída naquelas criaturas híbridas, mas, também, a sua ferocidade e natureza xenófoba.
O gorila adulto curvou-se por fim sobre as quatro patas e carregou em direção a Kowalski, que ainda se encontrava caído e atordoado. Não teria hipótese de conseguir fugir a tempo.
Maria enfiou a espingarda pela escotilha e disparou o seu único dardo contra o animal em movimento, que porém avançava demasiado rápido. Viu o projétil vermelho fazer ricochete no tronco de uma das árvores de cimento.
Meu Deus...
Virou-se para apanhar o dardo que caíra no chão, mas sabia que nunca conseguiria recarregar a tempo.
Mais alguém percebeu o mesmo.
Antes que Maria o pudesse impedir, Baako saltou pela escotilha. Ficou pendurado por um braço do lado de lá do vidro. Depois, balanceando-se, saltou e iniciou uma descida controlada ao longo de vários apoios na rocha, em direção ao fundo do recinto.
Maria gritou-lhe, desesperada.
— Volta, Baako! Volta!
Pela primeira vez na sua jovem vida, o gorila ignorou-a.
12h09
Monk juntou-se a Kimberly no escritório vazio. O sargento Chin ficou de guarda junto à porta, enquanto os irmãos Shaw e Kong vigiavam os corredores.
— Quanto tempo? — perguntou Monk.
Kimberly escrevia furiosamente no teclado. Já tinha ligado o telefone de satélite no terminal do computador por uma porta lateral.
— Pronto, consegui aceder às câmaras de vigilância. Não posso desligá-las, mas posso substituir o sinal de vídeo.
— Serve.
Kimberly pegou no telefone e utilizou-o para transmitir um ficheiro de vídeo pelo sinal das câmaras.
— Já está.
Monk assentiu com a cabeça, apertando os dedos no rádio transmissor que tinha na mão. Retirara-o a um soldado que tinham emboscado, pouco depois de entrarem no complexo.
— Vou incluir alguma informação na parte inferior da imagem — disse Kimberly. — A frequência segura do teu rádio.
— Consegues fazer isso?
Como resposta, Kimberly simplesmente arqueou a sobrancelha.
Monk ergueu os braços. Por essa altura, deveria saber que não valia a pena questionar-se acerca das capacidades da companheira.
— Okay, resta-nos esperar que esta transmissão seja vista pelo público certo.
12h10
Como sempre, tenho de fazer tudo sozinha.
Jiaying Lau encontrava-se inclinada sobre uma secretária, o nariz quase enfiado no monitor do computador. Fazia o melhor que podia para ignorar o caos que se desenrolava no interior do laboratório de vivissecção. Já tinha recebido telefonemas do Ministério de Segurança Interna, e também do diretor da Academia Militar de Ciências. A notícia da brecha de segurança extravasara claramente para lá dos limites do complexo.
Conseguia adivinhar quem fora o responsável por essa informação.
Atrás dela, Chang Sun berrava ordens para um rádio, acossando as equipas para que continuassem a procurar os intrusos. Quando os encontrasse, o que acabaria por acontecer, iria certamente usar a captura para ficar bem na fotografia, diminuindo o seu papel. Jiaying conseguia cheirar a ambição no suor que lhe cobria o sobrolho.
Ainda assim, manteve-se focada noutro potencial embaraço, outra marca negra que ameaçava conspurcar o seu currículo. No monitor, observara os acontecimentos no laboratório irem de mal a pior. A doutora Crandall apossara-se de uma espingarda de tranquilizantes e tentava ajudar o companheiro que se encontrava retido na Arca. O episódio já deveria estar concluído da maneira mais sangrenta possível, certamente, o que constituía uma valiosa lição para a geneticista.
Então, quando pensava que o pior já tinha passado, Baako saltara pela escotilha e desaparecera no interior da Arca. Jiaying despendera recursos consideráveis para obter aquele espécime único, incluindo a perda de uma valiosa agente infiltrada. Acabar com o gorila despedaçado pelos seus híbridos revelar-se-ia muito pior do que uma mancha no currículo. Na verdade, poderia garantir-lhe um lugar frente a um pelotão de fuzilamento.
Deu um murro na secretária, decidida a tratar do assunto pessoalmente. Porém, antes que pudesse virar costas, uma pequena janela abriu-se no canto do ecrã. Inclinou-se para a frente. O novo vídeo mostrava um soldado amarrado a uma cadeira, com uma pistola encostada à cabeça.
— Amplie essa imagem — ordenou ao técnico.
Murmúrios ergueram-se nas suas costas, vindos das outras secretárias. Olhando por cima do ombro, percebeu que todos os ecrãs mostravam o mesmo vídeo. Chang juntou-se a ela. Semicerrou os olhos, desconcertado.
— Que é isto? — perguntou.
— Estou à espera de que me diga. — A general apontou para o monitor. — O sistema é seu.
— Alguém deve ter conseguido aceder ao sinal das câmaras de vigilância.
Chang inclinou-se enquanto o técnico ampliava a imagem para revelar o rosto do soldado que fora feito prisioneiro. Jiaying reconheceu as feições familiares, mesmo com uma mordaça a cobrir a metade inferior do rosto.
— É o seu irmão?
Chang cerrou os punhos.
— Gao...
A general apontou para os números que passavam na parte inferior do monitor. Era uma exigência para estabelecerem contacto por uma frequência de rádio segura. Conseguia adivinhar quem estaria no outro lado.
— Consegue localizar a origem deste sinal de vídeo? — quis saber Jiaying.
Chang exalou ruidosamente.
— Sim. Demora um minuto ou dois.
Mas será que os americanos ainda cá estarão depois desse minuto?
Chang apertou o ombro do técnico, tanto para o apressar a obter a informação como para o ameaçar. O homem começou a carregar nas teclas vigorosamente, abrindo e fechando janelas no monitor.
Jiaying fitou o ecrã.
— Como sempre suspeitei, parece que o seu irmão foi a origem deste problema. Inadvertidamente ou não, conduziu o inimigo até à nossa porta.
Chang engoliu em seco, reconhecendo o mesmo.
Jiaying virou-se e espetou um dedo no peito do tenente-coronel.
— Sugiro que limpe a porcaria que o seu irmão fez. Utilize os meios que forem necessários para encontrar os intrusos e elimine-os. — Desviou o olhar para o monitor que recebia as imagens da Arca. — Agora tenho de ir proteger os nossos ativos, antes que isto tudo termine em desastre.
Saiu disparada do centro de segurança, determinada a recuperar o comando das coisas. Porém, a sua mente já começara a avaliar as várias contingências caso as coisas tomassem outra proporção.
Durante a construção do complexo, instalara secretamente contramedidas na infraestrutura. Nunca permitiria a derrota. Jamais sofreria a desonra de estas instalações lhe serem retiradas das mãos.
Se eu cair, caímos todos.
12h12
O rádio vibrou na mão de Monk.
Está na hora do espetáculo.
Subiu para o veículo elétrico de que se tinham apoderado: uma carrinha militar de caixa aberta. O sargento Chin sentou-se ao volante, enquanto Kong e os irmãos Shaw arrastavam o condutor chinês inconsciente para um laboratório próximo.
Monk ergueu o rádio e sentou-se ao lado de Kimberly, no banco da frente.
— A chamada vem de um canal seguro. Parece que a nossa mensagem foi recebida.
Inclinou-se e carregou num botão do rádio, de modo que Kimberly pudesse ouvir a conversa, e traduzir, se necessário.
Uma voz firme fez-se ouvir do outro lado. Falava em mandarim.
— Quer saber quem nós somos — sussurrou Kimberly.
Gray levou o rádio aos lábios.
— Sabe perfeitamente quem nós somos — respondeu, calculando que o seu interlocutor soubesse inglês. — E suponho que esteja a falar com Zhongxiào Sun. — Interrogou-se se teria pronunciado corretamente a patente do tenente-coronel. — O irmão de Gao Sun.
Não houve resposta. Enquanto o silêncio se estendia, Monk tocou no ombro de Chin, indicando-lhe que pusesse a carrinha em movimento, uma vez que toda a equipa já estava a bordo.
Lançou um olhar preocupado a Kimberly.
Se isto não resultar...
Por fim, a voz fez-se ouvir de novo, claramente zangada.
— Daqui fala o tenente-coronel Sun. Se querem continuar vivos, sugiro que se entreguem de imediato... e que libertem o meu irmão.
Monk notou a preocupação latente no final da frase.
Ótimo.
Kimberly conseguira informações adicionais sobre os dois irmãos. Chang era o mais velho, casado e com uma filha. Gao era solteiro. Tinham perdido os pais na adolescência e, logo depois, ingressaram nas fileiras do exército chinês, servindo na mesma unidade. Kimberly calculava que tanto a morte dos pais, como o posterior curso de vida, tivessem fortalecido os laços entre os dois irmãos.
Agora só precisamos de tornar isso numa vantagem.
Monk ergueu o rádio.
— Se quer voltar a ver o seu irmão, é bom que ouça o que tenho para dizer.
Enquanto aguardava resposta, a camioneta avançou por um átrio comprido, passando por uma série de laboratórios sofisticados, recheados de equipamento e jaulas de aço inoxidável. Até ao momento, não tinham encontrado mais do que uma mão-cheia de funcionários. Aparentemente, o alarme originara um qualquer protocolo de segurança.
— Que pretendem? — perguntou Chang, conciso.
— É muito simples. Ajude-nos e nós ajudamo-lo.
Chang caiu noutro longo silêncio. Voltou a falar, o tom mais disponível.
— Como?
— Se cooperar, entregamos-lhe o seu irmão, acompanhado de informação sólida que implicará a major-general Lau como cúmplice desta ação. Ela será o bode expiatório. Por cada vitória que nos conseguir durante a próxima hora, a general somará uma derrota.
Monk susteve a respiração. O sucesso do plano assentava na animosidade entre Chang e Lau. Todavia, conseguiria a ambição profissional superar a lealdade?
— Que garantia tenho de que conseguirão cumprir com o que dizem?
— Conseguimos entrar neste complexo — disse Monk. — Calculo que seja uma prova das nossas capacidades.
— E por que razão devo confiar em vocês?
— Porque não tem alternativa. Se os nossos operacionais em Pequim não receberem notícias, o corpo do seu irmão será encontrado perto da embaixada dos Estados Unidos, juntamente com provas irrefutáveis de que procurava asilo diplomático. — Monk reforçou a ameaça. — As provas também o implicarão a si e à sua mulher como espiões americanos.
Monk deixou a ideia assentar em Chang.
— Pelo contrário, se nos der o que pretendemos, será apontado como um herói e a major-general cairá em desgraça. Se insistir em não colaborar, sofrerá as consequências, juntamente com a sua família, e Lau receberá os louros por nos ter impedido. A escolha é sua, Zhongxiào Sun.
Desta vez, não houve pausa.
— Que querem que faça?
Monk sorriu para Kimberly.
— Diga-nos onde estão os prisioneiros e arranje maneira de chegarmos até eles.
Kimberly alcançou o seu telefone de satélite. Fez aparecer uma planta do complexo, que descarregara anteriormente de um terminal de computador. Assentiu com a cabeça enquanto Chang fornecia a informação.
— Okay — sussurrou —, já sei onde estão.
— É tudo? — perguntou Chang, derrotado.
— Só mais uma coisa.
— O quê?
Monk transmitiu-lhe a última exigência e desligou.
— Podemos confiar nele? — perguntou Kimberly.
Monk apontou em frente.
— Estamos prestes a descobrir.
Assim que se puseram em movimento, outra preocupação sobreveio-lhe ao pensamento.
Será que vamos a tempo?
12h13
O chão estremeceu quando o gorila adulto carregou sobre Kowalski. Ainda a recuperar, podia fazer pouco mais do que preparar-se para o impacte. Rolou para o lado esquerdo, numa última tentativa de procurar abrigo, pondo-se atrás do corpo caído do gorila preto.
A banha há de fazer grande diferença...
Então, um guincho estridente ecoou por todo o recinto, parecendo que chegava de todas as direções, cheio de raiva e ameaçador.
Que é agora?
Levantou a cabeça e viu o gorila derrapar sobre as patas e virar-se no último instante, detendo-se a uma distância de pouco mais de um metro. Apoiou-se num braço, olhando em redor, tentando localizar a origem daquele som.
Kowalski fez o mesmo, aproveitando também para recuar na direção da pilha de pedregulhos no centro do recinto. Enquanto se arrastava, notou a figura negra que se afastava da janela de observação, descendo rapidamente a parede rochosa. Demorou-lhe meio segundo para perceber que era Baako.
Não...
Que fazia ali o gorila?
Com um último salto, Baako atingiu o chão e agachou-se ao lado de Kowalski. Ofegante, o seu jovem amigo fitou a montanha de músculos que se encontrava a um metro de distância. Ergueu-se sobre as patas e bateu no peito com os dois punhos, desafiando o macho alfa daquele habitat.
Não é uma boa ideia, matulão.
— Foge, Baako! — gritou Kowalski, esticando o braço, o que lhe provocou um novo clarão de agonia por causa das costelas partidas. — Sai daqui!
Baako não se moveu.
O gorila adulto também ficara no mesmo sítio, claramente a tentar compreender aquela invasão dos seus domínios, para não falar da postura desafiante de tão minúscula criatura. Porém, a perplexidade logo se desvaneceu, dando lugar à irritação e à raiva.
Um rugido explodiu-lhe do peito. O animal de meia tonelada esticou-se e arremessou um braço, mas Baako já não estava lá.
Como se tivesse molas nas pernas, o jovem gorila saltou e passou por cima da cabeça da criatura argêntea, aterrando no seu dorso. O gorila gigante ergueu-se, furioso.
No preciso instante em que uma manápula o tentava sacudir, Baako saltou de novo. Porém, não correu tão bem como da primeira vez. O cotovelo do monstro atingiu-o nas ancas, arremessando-o pelo ar. Ainda assim, Baako enrolou-se sobre si mesmo ao cair no chão e afastou-se rapidamente.
O outro foi em perseguição, batendo com os punhos no cimento.
Os outros ocupantes do recinto, inicialmente desconcertados com a estranheza dos acontecimentos, começaram a querer reagir. Com a atenção do chefe desviada para outra presa, fecharam o cerco a Kowalski.
Isto não é nada bom...
Continuou a recuar para a zona dos pedregulhos, enquanto assistia aos esforços de Baako para se manter fora do alcance da avalanche de músculos e garras que lhe seguia na peugada. Chegou à pilha de rochas e agachou-se. Agarrou numa pedra com uma das mãos e num pedaço de cimento das árvores falsas com a outra. Se fosse preciso, enfrentaria os gorilas qual homem das cavernas.
Encostou as costas à rocha, notando que Baako começava a perder o fôlego. O monstruoso gorila encurtara a distância, bufando a escassos centímetros dos calcanhares do jovem gorila.
Kowalski cerrou os maxilares, com medo de olhar, mas Baako voltou a trocar as voltas ao outro, cortando rapidamente à esquerda. O monstro não era tão ágil. Toda aquela massa corporal não se equiparava à ligeireza do pequeno gorila. Ainda assim, o gigante derrapou sobre alguns pedaços de xisto, encolhendo as patas grossas sobre o pesado tronco. Sem perder velocidade, virou-se e continuou a perseguir Baako. Infelizmente, o pequenote vinha lançado na direção do esconderijo de Kowalski.
Kowalski levantou-se, erguendo os braços para a janela de observação.
— Volta lá para cima!
Como toda a gente na sua vida, Baako ignorou-o.
O jovem gorila saltou na sua direção, de braços abertos, tentando alcançar Kowalski, porém, a sorte não podia durar para sempre. O outro agarrou-o pelo tornozelo e sacudiu-lhe o pequeno corpo para um dos lados, arrancando-o do alcance de Kowalski.
Não!
12h14
A dor atravessa a perna de Baako enquanto é sacudido. As paredes de rocha ficam desfocadas. Ainda assim, sabe que tem de continuar a lutar. No fundo do peito, sabe que tudo o resto significa morrer.
Sem conseguir soltar-se, está a voar por cima da cabeça do monstro. Um monstro que parece saído de uma das histórias da mamã, e que quer esmagar o corpo de Baako contra o chão. Sabendo disso, Baako encolhe-se e morde-lhe a mão gigantesca.
O monstro ruge e larga Baako.
Baako voa agora em direção ao chão. Abana os braços e as pernas, tentando equilibrar-se. Então, os dedos poderosos do monstro voltam a apertar-se na cintura de Baako, agarrando-o em pleno ar, apertando com tanta força que mal consegue respirar.
O monstro apanhou-o outra vez. Ruge, furioso, desejando sangue. A boca abre-se. Os dentes mergulham para a garganta de Baako. Baako desvia os olhos, aterrorizado, e vê um rosto lá em cima, na janela grande, tão assustado como o dele.
Baako consegue encher os pulmões e guincha para ela.
Adeus, mamã...
O guincho aflito de Baako chegou a Maria, dilacerando-lhe o coração.
Apertou o gatilho num reflexo maternal, mas a espingarda estava vazia. Já tinha utilizado o último dardo, recarregando três vezes a arma durante a batalha que se desenrolava lá em baixo. Concentrara os disparos no gorila adulto, mas o animal movia-se demasiado rápido. O único tiro certeiro atingira uma das fêmeas que se aproximara demasiado de Kowalski. Conseguira afugentar a criatura, e não levaria mais do que um minuto para que o sedativo fizesse efeito.
Isto se um único dardo fosse o suficiente para deter tais monstros.
Com uma espingarda vazia, e sem munições, tudo o que podia fazer era assistir, impotente, enquanto o gorila adulto se preparava para rasgar a garganta de Baako.
Então, um pedaço de rocha atravessou o ar e acertou no gorila adulto no meio dos olhos. O gigante deteve-se e olhou em redor, mais surpreendido do que incomodado.
Kowalski subiu para cima de um dos pedregulhos maiores, segurando uma espécie de moca de cimento.
— Mete-te com alguém do teu tamanho, seu cabrão peludo!
12h15
Não é que eu seja do teu tamanho...
Mesmo em cima do pedregulho, Kowalski parecia um anão comparado com o gigante. O gorila ainda segurava Baako, embora o tivesse esquecido por momentos.
— Vamos! — desafiou Kowalski, agitando a moca para o animal, na esperança de que largasse o gorila.
O gigante precipitou-se para Kowalski, porém, pareceu cambalear e embateu numa das árvores falsas, fazendo soltar pedaços de cimento dos ramos acima.
O gorila caiu sobre um joelho.
Que raio?
Os pedaços que o tinham atingido nunca lhe poderiam fazer mossa. Seria a mesma coisa do que atingir um touro com uma ervilha.
Todavia, o gorila largou Baako e apoiou-se num punho, tentando manter o equilíbrio. Aproveitando a oportunidade, Baako saltou por cima dos pedregulhos e manteve-se à distância.
Kowalski olhou em redor. Os outros gorilas ficaram estáticos, aparentemente intimidados com o que estava a acontecer com o macho alfa. Cada vez mais desorientado, o gigante deixou-se cair sentado. Só então Kowalski notou a penugem vermelha no meio das suas costas.
Olhou na direção da janela, para Maria. Será que ela conseguira acertar no animal? Porém, a geneticista estava tão surpreendida quanto ele.
Ela apontou para as portas de aço, gritando-lhe.
— Corre! Um dardo não chega para o pôr a dormir!
12h16
Maria compreendeu por fim o que tinha acontecido. Momentos antes, não encontrara o dardo tranquilizante que deixara cair no chão. Só agora percebera porquê. Baako devia ter pegado nele antes de saltar para o interior do recinto. Em Lawrenceville, ensinara-lhe tudo acerca de armas tranquilizantes, uma vez que eram frequentemente usadas no centro de primatas. Maria pretendia que ele compreendesse que os animais incapacitados dessa maneira não estavam mortos, apenas a dormir.
Ainda assim, nunca ficara certa se ele chegara a compreender realmente.
Pelos vistos, sim.
Lá em baixo, o gorila adulto continuava a oscilar, tentando lutar contra o efeito da droga.
Aproveitando a oportunidade, Kowalski e Baako correram para a porta de aço. Enquanto atravessavam o recinto, os outros gorilas agitaram-se, atraídos pelo movimento, provavelmente já mais confortáveis com a incapacidade do chefe.
Maria virou-se para a enfermeira que a ajudara.
— Tem de conseguir abrir aquela porta.
A enfermeira lançou-lhe um olhar desamparado.
— Não posso, daqui de cima. Alguém tem de estar lá em baixo e pousar a palma da mão num dispositivo de identificação eletrónico.
E nós estamos fechadas aqui em cima.
Sentindo o coração afundar, espreitou para o chão do recinto. Perseguidos pelos restantes gorilas, Kowalski e Baako continuavam a avançar para a porta de aço, na esperança de poderem sair.
Vão na direção errada.
12h17
Kowalski mergulhou para o interior da jaula que servia de antecâmara à porta de aço. Ouviu Maria gritar o seu nome, a voz cheia de urgência e medo. Olhou por cima do ombro.
— Não consigo abrir a porta daqui de cima! Venham nesta direção!
Kowalski viu algo ser atirado pela escotilha da janela e desenrolar-se ao longo da parede rochosa.
Uma mangueira de incêndio.
Maria queria que eles trepassem a parede.
Mais fácil de dizer do que fazer.
Desviou o olhar para a barreira de pelo e músculo que se erguera frente à jaula. Não havia hipótese de conseguir atravessar aquilo. Embora pudesse tentar uma manobra de diversão, de modo que pelo menos Baako pudesse escapar, tinha sérias dúvidas de que o gorila o abandonasse.
Baako puxou-lhe o braço, chamando-lhe a atenção. Esticou o polegar e o dedo mindinho e apontou a mão para o chão.
[Fica]
Antes que Kowalski pudesse reagir, Baako saiu disparado da jaula, em direção aos monstros híbridos. Uma das patas ainda se ressentia do ataque do gigante, mas conseguiu arranjar forças para saltar por cima do grupo, evitando agilmente que o conseguissem agarrar.
Lá se foi a teoria de que não me abandonavas...
Conforme os animais fechavam o cerco, tentou fazer descer a porta da jaula, mas encontrava-se bloqueada pelo sistema de carris.
Logo a seguir, um rugido familiar fez-se de novo ouvir.
O monstro estava de volta.
Kowalski encostou-se à porta de aço, consolado por um único pensamento.
Pelo menos, o Baako conseguiu fugir.
12h18
Baako larga a pedra comprida e continua a correr.
Um instante antes, apanhara a pedra do chão e correra em direção ao monstro. Encontrou-o com os olhos meio fechados, a respiração pesada. Sem parar de correr, Baako saltara e batera-lhe com toda a força que tinha. A pedra comprida partiu-se em pedaços na testa do monstro, logo acima dos olhos meio fechados, fazendo com que se abrissem outra vez.
Antes, Baako queria que o monstro dormisse, mas agora precisava dele acordado.
Um rugido forte persegue outra vez Baako. A perna continua a doer muito, por isso, corre com as mãos e com os pés, para conseguir fugir mais depressa. O monstro ruge, furioso, sem o conseguir apanhar.
Baako não corre em direção à mamã... sabe que a mamã está em segurança, longe dos monstros.
Em vez disso, corre na direção de outro membro da família.
Kowalski cerrou os maxilares, esperando o pior assim que ouviu o rugido do gigante. O que não podia esperar, com toda a certeza, era ver Baako saltar de novo por cima dos gorilas que se acotovelavam frente à jaula. Logo que passou pelo grupo, rebolou pelo chão e apressou-se a entrar na jaula.
Kowalski abriu os braços para o apanhar, mas o impacte arremessou-o contra a porta de aço, expulsando-lhe o ar dos pulmões. Ainda assim, abraçou-o com força.
Por cima do ombro do pequenote, Kowalski viu a muralha de gorilas abrir-se enquanto o gigante a atravessava como um comboio desgovernado. Ainda descoordenado, o gorila não conseguiu parar a tempo e esbarrou contra a arcada de pedra por cima da jaula.
Kowalski encolheu-se para se proteger do impacte, receando que aquela montanha de carne o pudesse esmagar. Em vez disso, o gigante ressaltou da parede rochosa e tombou para cima dos restantes gorilas.
Baako agarrou no braço de Kowalski e puxou-o para a porta da jaula.
Kowalski compreendeu.
É de aproveitar enquanto o vento está de feição.
Saíram disparados da jaula e contornaram o gigante atordoado, atravessando depois diretamente pelo meio do grupo de gorilas, aproveitando o caos que se instalara. Porém, Kowalski sabia que dispunham de escassos segundos.
Acelerou pelo recinto, tentando ignorar as dores lancinantes no lado esquerdo do peito. Quando chegaram à parede da janela, Kowalski agarrou Baako pela cintura e ajudou-o a alcançar a mangueira. As mãos peludas seguraram-se firmes, mas o gorila olhou para trás e guinchou, preocupado.
— Sobe! Eu sigo atrás de ti!
Para fazer prova do que dizia, agarrou a ponta da mangueira e elevou-se assim que Baako começou a subir.
Três andares mais acima, Maria gritou-lhes.
— Rápido! Eles vêm aí!
Kowalski não se deu ao trabalho de olhar para trás. De que lhe servia? Fez força com os braços e apoiou bem os pés na rocha. Naquele momento, gostaria de ter a agilidade de Baako, que simplesmente disparara parede acima e encontrava-se já ao nível da janela.
Assim que o gorila se esgueirou pela escotilha, a cabeça de Maria reapareceu. Kowalski conseguiu ler-lhe o medo estampado no rosto, a urgência no seu olhar.
Despacha-te.
12h19
Enquanto Maria observava, a horda de gorilas preparava-se para avançar — incluindo o monstro, que entretanto se levantara e rugia furioso, olhando na sua direção. O ataque de Baako, a consequente perseguição pelo recinto e o impacte contra a jaula deviam ter contribuído para elevar a pressão arterial da criatura, anulando o efeito do tranquilizante.
O chefe avançou determinado, originando uma espécie de toque a reunir dos animais. Com a sede de sangue do bando de gorilas ao rubro, alguns começaram a atacar-se entre si, os mais fortes perseguindo os mais fracos, demonstrando uma vez mais a ferocidade herdada nos seus genes.
Por essa altura, Kowalski encontrava-se a meio da escalada, mas não era o suficiente.
Maria olhou para as caixas de aço, posicionadas um pouco abaixo da janela, recordando-se das palavras da enfermeira acerca da barreira elétrica que enviava um sinal para as coleiras metálicas dos gorilas. O escudo invisível destinava-se a manter as criaturas no fundo do recinto, eletrocutando-as se porventura subissem as paredes da rocha.
Kowalski podia passar pelo escudo em segurança.
— Tens de subir acima da barreira elétrica! — gritou Maria.
O operacional franziu a testa, sem perceber patavina.
— Continua a subir! — insistiu ela.
Kowalski baixou a cabeça e tentou avançar mais depressa, esforçando-se para aumentar a distância. Porém, uma das mãos escapou-lhe e caiu cerca de um metro antes de conseguir agarrar de novo a mangueira.
Ficou pendurado, a recuperar o fôlego, enquanto o primeiro gorila alcançava a parede. Felizmente, era um dos mais pequenos, não tendo mais de dois metros. O animal saltou, tentando alcançar Kowalski, as pontas dos dedos tocando-lhe os calcanhares.
A ameaça iminente foi o suficiente para provocar uma nova descarga de adrenalina no operacional. Começou a subir mais depressa, mas estava claramente em dificuldades por causa das costelas fraturadas. O suor escorreu-lhe pelo rosto, contorcido de dor.
Os gorilas maiores alcançaram a parede e começaram também a subir, cravando garras e pés em tudo o que era orifícios na rocha.
Kowalski nunca conseguiria ser mais rápido do que eles.
Então, a mangueira moveu-se ao lado de Maria.
A geneticista olhou por cima do ombro e viu Baako a agarrar numa secção da corda improvisada. O gorila tentava puxar a mangueira, para acelerar a ascensão de Kowalski
Como não me lembrei disto?
Fincou os pés contra a parede e puxou também, adicionando a sua força. A jovem enfermeira juntou-se a ela, e a seguir juntaram-se outros membros da equipa médica, relegando por um momento as diferenças que os separavam. Todos tinham assistido à valorosa batalha que se desenrolara no recinto, e agora honravam esse esforço. Voltariam a ocupar os respetivos lados das fileiras, depois de a poeira assentar, mas naquele momento recusavam-se a perder aquele homem para os animais.
Trabalhando juntos, fizeram subir Kowalski até ao nível da janela.
Agarrou-se ao parapeito com um braço, depois com o outro, mas parecia demasiado fraco para içar o próprio corpo pela escotilha. Maria largou a mangueira e puxou-o para dentro do laboratório. O operacional caiu pesadamente no chão, deitando-se de costas.
Os seus pulmões clamavam por ar a cada inspiração, mas não o impediu de querer saber de que raio Maria estava a falar quando lhe gritara momentos antes.
— Que... que história é essa de uma barreira?
Um crepitar elétrico fez-se ouvir do lado de lá do vidro, acompanhado de um guincho estridente. Maria viu um dos gorilas híbridos soltar-se da parede e cair, deixando uma espiral de fumo no ar enquanto mergulhava para o fundo do recinto. Os outros animais detiveram-se imediatamente ou saltaram para o chão.
— Esquece isso — disse Maria, ajudando-o a levantar-se.
Baako abraçou-o com força assim que se pôs de pé.
— Obrigada por não deixares que nada de mal lhe acontecesse.
— Acho que foi mais ao contrário — disse Kowalski, tocando o ombro do gorila. Olhou para a equipa médica. — Alguém nos vai ajudar a sair daqui?
Todos abanaram a cabeça; não é que tivesse importância.
— Estamos trancados aqui dentro — explicou Maria. — Desde que soou o alarme.
— Então, é como se estivéssemos ainda na cela.
Maria tocou-lhe no cotovelo.
— Pelo menos estamos a salvo, no imediato.
As luzes do laboratório piscaram e apagaram-se, mergulhando-os na escuridão. Sem ninguém compreender o que tinha acontecido, fez-se um momento de silêncio.
— Mais valia estares calada — murmurou Kowalski.
Baako aproximou-se de Maria e agarrou-lhe o braço. Não gostava do escuro, porém, após uns segundos de tensão, as luzes de emergência acenderam-se ao longo do topo das paredes, substituindo a negritude por um vermelho fantasmagórico.
Maria suspirou de alívio.
— Se calhar, conseguimos sair sem eletricidade — disse Kowalski.
Apressou-se na direção da entrada do laboratório e tentou forçar as enormes portas metálicas. Não se moveram um centímetro. Assentou as mãos nas ancas e franziu o sobrolho, como se isso ajudasse a resolver a questão.
Os dedos de Baako apertaram o braço de Maria. Ela baixou o rosto para o gorila, notando que ele olhava para a mangueira, ainda pendurada na escotilha.
A mangueira moveu-se com um esticão.
Não.
Virou-se para a janela no mesmo instante em que uma manápula alcançava o parapeito.
Sem eletricidade, a barreira não estava a funcionar.
Horrorizada, virou-se para o grupo encurralado.
— Eles vêm aí!
22
1 de maio, 00h32 ECT
Cordilheira dos Andes, Equador
Gray arquejou ao entrar na água gelada, desfazendo o reflexo perfeito da Lua e das estrelas sobre a superfície do lago. Os outros seguiram-lhe o exemplo, chapinhando atrás dele. Chakikui e Jembe permanecerem na margem. O ancião honrara o compromisso de os trazer até à Cidade Perdida.
Pelos vistos, essa obrigação terminava na entrada.
Entregues a si próprios, Gray conduziu os três companheiros ao longo do lago. Foi obrigado a nadar os últimos metros até alcançar a boca do túnel, que se abria na face rochosa situada na outra margem. Submersa, a passagem oferecia pouco mais do que um palmo livre entre a superfície da água e o teto.
Assim que entraram no túnel, percebeu que podia tocar o fundo com os pés. Manteve a cabeça baixa e acendeu a lanterna, que era à prova de água.
— O teto parece mais baixo, lá mais à frente — avisou.
— Conseguimos passar? — perguntou Lena.
— Não sei. Se calhar, vamos ter de mergulhar e procurar bolsas de ar ao longo do caminho.
Lena não pareceu muito à vontade com essa ideia.
Ele também não ficara entusiasmado.
Roland juntou-se a Gray.
— No relato de Jaramillo, ele afirma que teve de nadar debaixo de água para entrar na cidade.
— Chega de conversa — disse Seichan, incitando-os a continuar. — A única maneira de sabermos se existe aqui alguma coisa é procurá-la.
Gray notou o tom cético na voz dela. E tinha razão. Nada lhes garantia que existia um fundo de verdade naquela história, e a única maneira de o saberem era fazendo o que Seichan sugerira.
Vamos lá confirmar, então.
Gray avançou, esbracejando ao longo do túnel. O ar era húmido, com um odor forte de pedra e musgo. O feixe da lanterna alcançava uma distância considerável através das águas cristalinas, dando a sensação de que flutuava sobre vidro.
Os murmúrios ergueram-se nas suas costas enquanto avançavam em fila indiana, com Seichan a fechar a retaguarda.
— As paredes... — murmurou Lena para Roland. — Parecem demasiado polidas para serem naturais.
Gary passou os dedos ao longo do teto, verificando que ela tinha razão. E a passagem também era demasiado direita. Continuaram em silêncio, sobretudo porque a água já lhes cobria a boca. Gray manteve o nariz à tona, respirando com dificuldade, sentindo uma ponta de claustrofobia. Pelos arquejares que ouvia atrás de si, não deveria ser o único.
Enquanto dava mais um passo, o chão desapareceu-lhe subitamente sob os pés. Apanhado de surpresa, viu-se com a cabeça debaixo de água, juntamente com a lanterna. O feixe iluminou um conjunto de degraus.
Regressou à superfície, tendo o cuidado de não bater com a cabeça no teto do túnel. Inclinou o rosto o suficiente para conseguir manter os lábios fora de água.
— Uma escada — disse. — Fiquem onde estão. Vou mergulhar para ver se conduzem a outra passagem.
— Cuidado — disse Lena.
Gray não fazia intenções de que fosse de outra maneira. Repreendeu-se por não se lembrar de alugar equipamento de mergulho em Cuenca — embora não fizesse ideia se haveria algum local onde o pudesse fazer. Fosse como fosse, se aquelas escadas significassem o fim da linha, teriam de regressar no dia seguinte, munidos de equipamento adequado.
Ainda assim, o sentimento de urgência incitava-o a continuar. Desejava culpar a longa viagem de avião, mas sabia que era mais do que isso. Encolhendo o estômago, encheu os pulmões de ar e mergulhou.
Sacudindo vigorosamente as pernas, seguiu o feixe da lanterna ao longo dos degraus. O movimento fez com que a água se enchesse de sedimentos, obscurecendo-a. Conforme a pressão aumentava nos ouvidos, alcançou finalmente o fundo das escadas, confirmando que faziam ligação a uma segunda passagem.
Deteve-se por um instante, ponderando se deveria continuar ou regressar à superfície.
Cerrando os maxilares, empurrou as pernas contra o último degrau e continuou a nadar, igualmente impelido pelo mistério que procurava resolver e pela tensão que deixara atrás dele. Pequenas câmaras abriam-se em ambos os lados. Uma breve passagem com a lanterna revelou a presença de objetos semicobertos pelo lodo. Sem fôlego para explorações adicionais, continuou em frente.
De qualquer maneira, aquelas salas indiciavam que tinham sido utilizadas em tempos.
Finalmente, a passagem terminou noutras escadas, que subiam em caracol.
Apontou a lanterna para cima. Com os pulmões a arderem, sabia que se encontrava no ponto de não retorno: ou voltava agora para trás, ou arriscava e continuava em frente.
Recordou as palavras de Roland acerca da história de Jaramillo. O homem afirmara que existia uma passagem, mas tinha sido há décadas, quando ainda era rapaz. Além disso, não havia maneira de saber se as passagens se encontravam tão inundadas como agora... ou se eram sequer as mesmas que o jovem Jaramillo atravessara.
Afastou as dúvidas, confiando noutras palavras.
A voz de Seichan ecoou no seu pensamento.
A única maneira é procurar...
00h54
Seichan passou por Roland e Lena, com as mãos a deslizarem ao longo da parede. Apontou a lanterna para a escadaria submersa. A nuvem de sedimentos bloqueou a luz, impedindo-a de ver sequer o primeiro degrau.
Já passou demasiado tempo.
Ao longo dos anos, tivera várias provas da competência de Gray em situações de sobrevivência. Porém, naquele momento, tinha a certeza de que estava morto. Não porque ele teria falhado, mas porque não merecia a felicidade que encontrara ao lado dele. Antes de o conhecer, levava uma vida solitária, liberta de ligações. Ainda que se encontrasse sempre rodeada de sangue e horror, não deixava de fazer sentido, uma vez que nunca sentira nenhuma ambiguidade moral. Sozinha, fora fácil blindar-se contra o mundo.
Mas deixara de ser assim, e isso despertava-lhe sentimentos contraditórios.
Por vezes, dava consigo deitada ao lado dele, observando-o enquanto dormia. Nesses momentos, não sabia se queria abraçá-lo com força ou se queria sufocá-lo com a almofada, para voltar a ser livre.
Porém, naquele túnel não existia ambiguidade alguma, apenas certeza e determinação. Varreu a nuvem de sedimentos com a lanterna, sentindo o coração bater nos ouvidos, sabendo o que queria.
Volta imediatamente, Gray. Não te atrevas a deixar-me.
Como se comandada pelos seus pensamentos, a nuvem de sedimentos tornou-se mais espessa. Depois, uma silhueta brilhante surgiu das profundezas. Seichan recuou, dando-lhe espaço.
Gray emergiu, erguendo o rosto para o teto do túnel. Libertou o ar consumido dos pulmões e voltou a inspirar profundamente. Sem querer saber se ele estava sem fôlego, Seichan abraçou-o e colou a boca nos seus lábios gelados, beijando-o apaixonadamente.
Surpreendido, Gray ficou sem reação, mas logo a agarrou pela cintura e puxou-a mais para si. Quando a afastou, os seus olhos brilharam, divertidos.
— Não me digas que estavas preocupada?
Seichan empurrou-o.
— Apenas porque sei que não aguentarias tanto tempo sem respirar. Deves ter encontrado qualquer coisa.
— Que foi que descobriu? — quis saber Lena.
Gray apenas sorriu.
— Espero que seja boa nadadora.
01h08
Já não pode faltar muito...
Com os pulmões a gritarem por ar, Lena continuou a nadar atrás dos calcanhares de Roland, com o olhar fixo na lanterna de Gray, que seguia mais à frente. O operacional conduzia-os por uma escadaria em caracol, que parecia nunca mais acabar. Para aliviar a pressão que sentia no peito, Lena deixou escapar dos lábios algumas bolhas de ar para enganar o corpo, convencendo-o de que estava prestes a respirar.
Então, Roland desviou-se para o lado e deteve-se acima dela. Lena passou por ele, emergindo finalmente. Inspirou fundo.
Graças a Deus...
A cabeça de Seichan surgiu ao lado dela. Exalou uma única vez e inspirou tranquilamente, pouco incomodada com o longo mergulho.
Irritada, Lena virou costas e fez o melhor que pôde para se recompor.
Encontravam-se agora numa câmara inundada. O teto de pedra erguia-se um metro acima da linha de água. Depois do confinamento do túnel, o tamanho e o espaço extra para respirar faziam a sala parecer cavernosa. Diante de Lena, erguia-se da água uma escadaria larga.
Gray segurou a lanterna e nadou para os degraus.
Lena e os outros seguiram-no.
Uma vez lá, Roland ajudou-a a erguer o corpo para a base dos degraus. Subiu também.
— Está mais quente aqui — notou o padre.
Lena apercebeu-se do mesmo. Apesar de estar encharcada até aos ossos, conseguia sentir o calor húmido que preenchia a sala, mais próprio do que esperava encontrar numa floresta tropical. Havia também um odor sulfuroso no ar.
— Um sinal de atividade geotérmica — explicou Gray, olhando para Roland. — Tinha mencionado que esta região dos Andes era rica em atividade vulcânica, certo?
— Exato. Daí o solo ser tão fértil.
Seichan sacudiu o excesso de água na roupa.
— Não admira que alguém tenha transformado estes túneis num lar. Vêm com aquecimento incluído.
Lena apontou para os degraus.
— Que há a seguir?
— Venham — disse Gray. — Só avancei até ao topo dos degraus. Apenas para ter a certeza de que não se tratava de um beco sem saída.
Roland ligou a sua lanterna, para melhor iluminar o caminho. As escadas terminavam num patamar largo. Quando alcançaram o topo, Lena deteve-se ao lado do padre, que tinha parado de repente.
O feixe da lanterna dele estendia-se para lá de uma arcada, iluminando um corredor longo. A arcada era feita de ouro, adornada com motivos de crânios e ossos, aparentemente humanos. Com o tempo, a humidade e o enxofre tinham manchado as reentrâncias mais profundas da escultura, mas a maior parte da superfície do ouro permanecia brilhante.
— Incrível — arquejou Roland.
E macabro, pensou Lena. Não admira que os nativos considerem este lugar perigoso, sobretudo com este fedor a enxofre.
Sentiu um arrepio na espinha ao passar por baixo da arcada.
Os outros pareciam não sofrer com essas inquietações. Gray continuou a avançar, iluminando o corredor. A passagem talhada da rocha era ampla o suficiente para permitir a passagem a dois elefantes lado a lado.
— Reparem nas paredes — disse Roland, apontando a lanterna. — Estão cobertas de símbolos.
Lena aproximou-se, estudando as linhas de texto. Num único relance, reconhecera escrita suméria, hieróglifos egípcios, simbologia maia e letras gregas. Estendendo-se ao longo de todo o corredor, as várias línguas encontravam-se empilhadas umas por cima das outras, desde o chão até ao teto.
— É igual ao que vimos na Capela de Santo Eustáquio — disse Roland.
Lena recordou os escritos de Kircher nessas paredes, o que representavam.
A história da palavra escrita...
Agachou-se e estudou a primeira linha de texto, que era também a mais antiga. Era o mesmo tipo de caracteres cuneiformes que observara nos penedos da floresta. Passou os dedos ao longo do texto.
Será que estou a olhar para a primeira forma de escrita humana?
Levantou-se e olhou para os outros.
— Deve ser uma espécie de registo da evolução da linguagem.
— Acho que tens razão — disse Roland, continuando a caminhar, os olhos perdidos em todas as direções. — E aposto que o padre Kircher retirou daqui a ideia para a decoração da capela... o que sugere que Nicolas Steno caminhou nestes mesmos corredores e regressou para contar ao seu bom amigo o que viu.
— Uma coisa é certa — disse Gray, observando as paredes —, isto só vem confirmar as afirmações do padre Crespi. Não há dúvida de que os construtores deste lugar estavam em comunicação com o resto do mundo.
Lena olhou em frente. Tentou imaginar o que se esconderia para lá do alcance das lanternas, recordando-se das histórias de um vasto sistema de cavernas sob os Andes. Poderia realmente estender-se sob quase todo o continente, como alguns afirmavam? De qualquer forma, sentia que esta era apenas uma das entradas para esse lugar. Segundo os nativos, os artefactos do padre Crespi tinham vindo de toda a parte: da floresta, da selva, de cavernas, de túneis, de ruínas...
— Acho que o túnel termina aqui — disse Seichan, apontando.
Continuaram a avançar e depararam com outra escada em caracol. Porém, esta descia. Reuniram-se ao redor dos degraus.
Roland suspirou.
— Espero que não nos leve para outra secção inundada.
— Só há uma maneira de saber — disse Gray, começando a descer a escada.
Lena susteve a respiração, esperando encontrar a cada volta dos degraus uma imensa poça de água negra, a refletir as luzes das lanternas. Porém, os degraus continuaram secos enquanto desciam.
Roland apontou uma questão preocupante.
— De certeza que já devemos estar abaixo do lençol de água.
A ideia fez Lena arrepiar-se.
Gray tocou nas paredes.
— Esta secção da estrutura deve estar isolada das águas circundantes.
Lena não encontrou conforto nessa observação.
Finalmente, as escadas terminaram numa sala redonda. Era tão alta como o corredor anterior, e suficientemente larga para que os feixes das lanternas mal conseguissem iluminar o lado mais afastado.
Seichan demonstrou ter uma visão mais apurada do que os companheiros.
— Parece que existem ali mais umas escadas. — Olhou para Gray. — Vamos continuar a descer.
Lena mal tinha reparado nesse lado da sala. Assim como Roland, que olhava para ela com uma sobrancelha arqueada. Caminharam juntos ao longo da curvatura da parede, que se encontrava repleta de milhares de pequenos nichos. Alojavam esculturas de animais, as mais pequenas com o tamanho de um polegar, a maior com o tamanho de um cavalo verdadeiro.
— Igual à galeria que encontrámos na Croácia... — comentou Roland.
Lena fez que sim com a cabeça.
— Só que essa tinha uma fração do tamanho desta.
A curiosidade e o espanto impeliram-na a continuar. Deparou com animais que representavam todas as formas de vida, de todos os cantos do planeta. Besouros com escudos de cristal iridescentes, centopeias com patas de ouro, crocodilos incrustados de esmeraldas, macacos com pelagem de fios de cobre, bisontes e veados com chifres de marfim, escorpiões com armaduras de ferro negro.
Os níveis superiores eram dominados por uma panóplia de aves, com finas penas de cristal, que reluziam num caleidoscópio de tons. Falcões, pardais, águias, pelicanos, colibris. Algumas repousavam nos ninhos, outras empoleiravam-se em ramos dourados. Inexplicavelmente, algumas pairavam em pleno ar, no interior dos nichos.
Nos níveis inferiores, a vida marítima e subterrânea encontrava-se representada com pormenores preciosos: peixes de porcelana, correntes de formigas, lagostas de cobre, vermes prateados espreitando do interior de esferas de quartzo, e por aí adiante.
Lena sentiu-se tonta pela esmagadora abundância.
— Um registo da vida do planeta — disse Roland, completamente estupefacto. Apontou para um hipopótamo de ouro, com diamantes negros no lugar dos olhos. — Incluindo muitos que não pertencem a este continente.
— É também um registo de arte — acrescentou Lena. — Repara na perícia que foi necessária para esculpir este berço de vida. Estão aqui centenas de técnicas, abrangendo práticas artísticas de diferentes culturas, como a fundição de diferentes metais, o corte de cristais e de pedras preciosas, o trabalho de esmaltes e porcelanas.
Lena fez um gesto largo com o braço.
— Em muitos aspetos, isto representa tão bem a evolução do conhecimento como a escrita nas paredes do túnel superior.
Por essa altura, tinham circundado a sala e alcançado o lance de escadas. Estes degraus desciam a direito em vez de formarem uma espiral. Mesmo do topo da escadaria, o feixe da lanterna de Roland refletiu na superfície do que quer que fosse que se encontrava lá em baixo.
— Ouro — disse Roland.
Lena não precisava de incentivo para descer as escadas, atraída não pela promessa de um tesouro, mas pela curiosidade em relação ao que ainda havia por descobrir. Os degraus eram suficientemente largos para que pudessem descer lado a lado. As respirações sustiveram-se assim que os olhos tiveram um primeiro vislumbre do conteúdo da câmara seguinte.
Assim que chegaram à base das escadas, Roland benzeu-se. Depois, tocou no braço de Lena.
— Já estivemos aqui antes.
01h33
Receoso de entrar, Roland manteve-se na base das escadas e varreu o espaço com a lanterna. A sala tinha a dimensão e a forma da galeria anterior, porém, cada centímetro de chão, paredes e teto encontrava-se forrado a ouro batido, decorado com elaborados mosaicos de minúsculos azulejos cristalinos, dando a sensação de que se encontrava dentro de uma iluminura medieval. Os motivos apresentavam características góticas, e representavam pessoas e animais em poses estáticas, rodeadas de luxuriantes videiras, arbustos e árvores.
Contudo, havia um elemento familiar que unia toda a decoração.
Lena também reparara.
— É como se alguém tivesse reproduzido os petróglifos das cavernas da Croácia... usando ouro e joias.
Roland assentiu, entrando atrás dela e dos outros.
As paredes mostravam uma vibrante explosão de vida: leões e manadas de bisontes, veados, cavalos galopantes, até um urso-das-cavernas, erguido sobre as patas traseiras. Porém, entre os animais, encontravam-se também figuras mais pequenas, claramente humanas.
Roland aproximou-se. Estudou as figuras, que eram compostas de azulejos pouco maiores do que a unha do dedo mindinho. Tocou o rosto de uma delas, passando um dedo sobre o sobrolho proeminente. Olhou para Lena.
— Acho que são representações dos híbridos de neandertal... como a Eva de Kircher — sussurrou Lena, confirmando o que ele estava a pensar. — Pelo modo como estão representados, parece que estão a tentar proteger os animais. Mas também dá a sensação de que existe aqui uma metáfora.
— Como assim? — quis saber Gray, aproximando-se.
— Acho que mostra estas figuras a defenderem todas as formas de vida, como se fossem uma espécie de guardiões do futuro.
— Como os Vigilantes dos textos antigos — compreendeu Roland.
— Ou como na Atlântida de Platão — acrescentou Lena.
— Também eram conhecidos por outro nome — disse o padre, continuando assim que os outros olharam para ele. — Enquanto estava a investigar os relatos de Crespi acerca de uma antiga civilização perdida no Equador, encontrei várias referências à Sociedade Teosófica, que foi fundada no final do século dezanove. Eles acreditavam que um pequeno grupo, a que chamavam Irmandade dos Santos, constituía o segredo que se encontrava na base do desenvolvimento da humanidade, ao guardar e disseminar conhecimento. — Com a cabeça, indicou Lena. — Um pouco como a tua teoria, segundo a qual uma geração de professores terá despontado da hibridização entre o homem de Neandertal com o homem moderno.
Seichan encontrava-se uns metros atrás, com o rosto levantado.
— Vigilantes, atlantes, santos, ou o que lhes quiserem chamar... se eram realmente guardiões, os motivos estão bem à vista.
Roland compreendeu. Ergueu os olhos para as figuras ameaçadoras que se encontravam acima dos animais e dos seus defensores. Na Croácia, essas figuras tinham sido representadas pelas sombras dançantes das estalagmites esculpidas. Naquela sala, eram retratadas com muito mais pormenor.
Apontou a lanterna para as iluminar melhor. Exibiam cabelos desgrenhados e ossos gigantescos. Debaixo das espessas sobrancelhas, os olhos brilhavam com uma ferocidade sedenta de sangue. Atacavam os animais em redor com mocas e lanças arcaicas. Porém, Seichan detivera-se na parte mais grotesca do mosaico, que exibia um par de gigantes a rasgar um bebé ao meio, cada um segurando uma perna.
— Que criaturas serão estas? — perguntou Gray.
— Não faço ideia — disse Roland, franzindo a testa. — Outra metáfora? Um retrato da brutalidade da ignorância, ilustrando o que os guardiões tinham de enfrentar?
Lena abanou a cabeça.
— Não. O pormenor e a conformação das figuras são demasiado precisos. Reparem no cuidado nos rostos e membros. Acho que estamos a olhar para um inimigo que era bem real.
Gray parecia chocado.
— Talvez fosse uma tribo inimiga de hominídeos — continuou Lena —, pertencente a outro ramo da nossa árvore genealógica. Sabemos que os primeiros homens partilhavam o mundo com outras espécies, além dos neandertais. Na altura, ainda subsistiam nichos de outras tribos.
— Uma espécie tão grande? — notou Seichan.
Lena encolheu os ombros.
— Alguns descendentes do Homo erectus eram verdadeiros gigantes. Os Meganthropus, ou Homem Grande, por exemplo. — Olhou em redor e fez um movimento largo com o braço. — Acho que isto é a representação de uma batalha real. Uma batalha pelo futuro da humanidade, opondo músculo e cérebro, ignorância e inteligência.
Gray esticou o braço e tocou uma das figuras monstruosas.
— Se estiver certa, este inimigo pode ter sido o catalisador para a eventual união dos híbridos de neandertal. Sem esta ameaça, a tribo de professores poderia nunca ter existido.
Lena anuiu.
— E talvez possa explicar a razão de necessitarem de uma casa só deles. Um lugar afastado dos perigos do mundo, onde poderiam estudar em paz, preservando o que era importante. Depois, de quando em vez, alguns aventuravam-se para longe e partilhavam esses conhecimentos.
Roland olhou para mais um conjunto de escadas, no outro lado da sala.
— Mas que lhes terá acontecido? Para onde foram?
Enquanto caminhavam na direção daqueles degraus negros, pensava que talvez nunca viesse a saber a verdade. Todavia, o contrário era igualmente assustador.
01h47
Gray conduziu-os pelos degraus, que pareciam estender-se pela eternidade. Calculava que, por essa altura, deveriam estar a uma profundidade de cerca de quinze ou vinte andares debaixo de terra. Visualizou o grupo a descer por um poço seco, rodeado de água por todos os lados.
Até onde é que isto desce?
Limpou o suor do rosto. Conforme continuavam, o ar era cada vez mais quente, o odor a enxofre mais presente, como se estivessem a caminho do Inferno.
Vislumbraram por fim o fundo das escadas. Reverberava com um brilho argênteo. De início, Gray pensou que era uma fonte de luz qualquer, porém, após mais uns degraus, percebeu que o brilho provinha das próprias lanternas do grupo, refletindo numa superfície de cristais.
— Incrível — murmurou Roland.
Como a galeria dourada, esta câmara era circular e aproximadamente do mesmo tamanho. Contudo, encontrava-se coberta de cristais. O chão e as paredes estavam forrados com o que parecia ser folhas de quartzo, intercaladas com pedras preciosas e cristais coloridos. O teto exibia um céu noturno, pejado de estrelas, criado com pedaços de quartzo incrustados em placas de obsidiana. Uma colunata de pilares de cristal suportava a estrutura, com pedestais e capitéis góticos, igualmente adornados de pedras e ligados uns aos outros mediante arcos.
Debaixo dos arcos, encontrava-se um círculo de portas cobertas de joias, com as ombreiras seladas com cera preta. Duas das portas, uma de cada lado da sala, tinham sido abertas anteriormente, notando-se ainda os pedaços de cera espalhados pelo chão.
Roland dirigiu-se para uma delas, Lena para a outra.
Gray e Seichan avançaram para o centro da sala, atraídos pelo que se encontrava no meio daquele espaço.
A voz de Roland fez-se ouvir de um dos lados.
— É uma biblioteca — anunciou o padre, o feixe da lanterna brilhando do interior da sala contígua. — Estão aqui centenas de estantes que parecem não terminar, todas folheadas a ouro. E tantos livros... — Ajoelhou-se. — Está um livro no chão. Alguém o deve ter retirado das estantes e deixou-o assim. O Jaramillo, se calhar.
— Aqui é igual — informou Lena, no outro lado —, uma carrada de estantes douradas... e existem mais salas depois desta.
Roland examinou o livro abandonado.
— Não admira que Jaramillo não o tenha devolvido à estante. Deve pesar uns vinte quilos! A capa é de metal preto, e as páginas de cobre. O texto é indecifrável, mas julgo ser o mesmo tipo de escrita que vimos nos penedos e naquele corredor.
A voz de Lena fez-se ouvir de novo, carregada de espanto.
— Os meus livros... os livros deste lado parecem ter sido feitos com folhas de um material cristalino. Consigo distinguir formas geométricas e estranhos padrões no interior... juntamente com o que, e acho que posso jurar, parecem ser fórmulas matemáticas!
Antes que algum dos dois se pudesse aventurar mais pelo interior das duas bibliotecas, Gray ordenou-lhes que regressassem.
— Preciso de toda a gente aqui.
Juntamente com Seichan, encontrava-se parado, a olhar para maior mistério que aquele espaço oferecia.
Um longo estrado erguia-se do centro da sala, esculpido de um único bloco de quartzo translúcido. Por cima, todo de ouro, repousava um esqueleto humano em tamanho real, cada osso e articulação reproduzidos ao pormenor. A figura estava deitada de costas, segurando uma vara com um comprimento familiar.
— Que pensam disto? — perguntou Gray, olhando para Lena e Roland assim que apareceram.
— Deve ser a costela de Eva, igual à que encontrámos na capela, feita de marfim. — Roland incidiu a luz da lanterna sobre a vara, iluminando as finas estrias que marcavam a ancestral jarda megalítica, uma medida que estava associada à circunferência da Terra. A voz transformou-se num murmúrio. — Existe uma referência no Apocalipse. Capítulo vinte e um, versículo quinze: o anjo que falava comigo tinha uma cana de ouro para medir a cidade, as suas portas e a sua muralha. Poderá ser esta mesma cana?
Ninguém respondeu.
Em vez disso, Lena focou a atenção no esqueleto.
— Estranho — murmurou.
— O quê? — quis saber Gray.
Pela conformação do crânio, já tinha percebido que reproduzia um híbrido de neandertal, porém, a reação de Lena denunciava qualquer coisa que lhe escapara.
A geneticista abanou a cabeça.
— O pormenor fisiológico é incrível... mas também está errado.
— Errado? Como? — perguntou Seichan.
— Reparem no osso pélvico. — Lena concentrou a luz da lanterna nessa zona. — Um dos lados é anatomicamente feminino, mas o outro é masculino. Existem discrepâncias semelhantes em todo o esqueleto, uma mistura de conformações masculinas e femininas.
Gray franziu a testa.
Estranho.
Seichan contornou o estrado até à cabeceira, onde se erguia uma coluna que lhe dava pela cintura.
— E isto é o quê?
Gray juntou-se a ela. O topo do pilar estava cortado em ângulo, exibindo um símbolo que todos conheciam. Era uma estrela de seis pontas, composta por setenta e três peças.
— É o mesmo petróglifo do túmulo de Eva — notou Lena. — A diferença é que este é feito de esferas de metal e cristal, em vez de impressões de mãos.
— Para que serve? — perguntou Roland.
— Não sei — admitiu Lena —, mas, pelo lugar de destaque, calculo que seja importante.
Seichan encolheu os ombros.
— Ou alguém gostava muito de jogar damas chinesas.
Gray tocou numa das esferas metálicas, retirando-a do respetivo apoio côncavo para a examinar melhor. Assim que a levantou, um único tom grave, semelhante ao bater de um sino, ecoou por toda a sala de cristal.
Ficaram muito quietos.
— Ponha isso no sítio! — disse Lena.
Gray obedeceu e pousou a esfera. Olharam todos em redor, sustendo as respirações. Porém, uns segundos depois, o som fez-se ouvir de novo.
— Demasiado tarde! — disse Seichan, ajoelhando-se e examinando o pedestal. — Acionaste um mecanismo qualquer e não há como voltar atrás.
Gray visualizou o manto de água ao redor daquele poço seco. Seria uma espécie de armadilha?
Ou, se calhar, deveríamos ter dado ouvidos a Chakikui.
O sino fez-se ouvir de novo.
Seichan estreitou os olhos para a base do pilar.
— Aqui! Consegue-se ver uns fios de cobre ligados a cada um dos apoios das esferas. Depois, desaparecem no chão.
Gray agachou-se e iluminou a base do pilar.
— Tens razão. Deve ser o gatilho do mecanismo. — Ergueu-se rapidamente e estudou o padrão de esferas. — E isto pode ser a chave para o desativar.
— Como? — inquietou-se Lena. — Uma espécie de teste?
— Talvez.
— Como um quebra-cabeças... — murmurou, pensativa. — Uma forma de testar o conhecimento de cada um.
Gray assentiu.
— Talvez os construtores entendessem que quem quisesse passar daqui teria de demonstrar o seu valor.
Seichan cruzou os braços.
— Nesse caso, sugiro que não faças asneira.
Enfatizando o conselho de Seichan, ouviu-se um novo toque, agora mais alto.
— Acho que este chegou mais depressa... — notou Roland.
Gray olhou em redor.
Se os intervalos entre os toques estão a ficar mais curtos...
Roland concluiu o pensamento dele.
— É uma contagem decrescente!
Gray sentiu-se no centro das atenções. Respirou fundo, consciente de que dependiam dele para resolver aquele enigma. Concentrou-se no padrão em forma de estrela, recordando-se da referência de Seichan ao jogo das damas chinês.
Mas quais são as regras deste jogo?
Como já não fazia diferença, pegou de novo na esfera metálica, sentindo-lhe o peso. Virou-se para Roland.
— Na biblioteca, disse que as capas dos livros eram feitas de metal negro. É este material?
Roland aproximou o rosto da esfera.
— Provavelmente.
Gray removeu outra esfera, desta vez de cristal, e mostrou-a a Lena.
— E estas são como os livros na segunda biblioteca.
— Acha que isso é importante? — perguntou ela.
— Talvez. — Gray segurou uma esfera em cada mão, comparando o peso. — Temos aqui uma lógica de opostos: opaco e translúcido, metal e cristal. — Fez um sinal com a cabeça na direção do esqueleto. — Masculino e feminino...
Suspirou pesadamente, sentindo que estava perto de descobrir qualquer coisa, embora não soubesse bem o quê. Uma das razões porque fora escolhido para a Sigma era a capacidade de encontrar padrões onde mais ninguém os via, de estabelecer ligações entre elementos díspares, de visualizar o todo pela soma das partes, ver a floresta em vez de olhar para as árvores.
Se calhar, já não sou capaz... Se calhar, desta vez, perdi-me na floresta.
O sino tocou de novo, fazendo-o ranger os dentes.
— Opostos — murmurou, sabendo que era a resposta.
Metal e cristal...
Escuro e claro...
Pesado e leve...
Masculino e feminino...
Estava perto, pressentia. Esforçou-se para encontrar outras características inerentes ao enigma que se apresentava. Pegou noutra esfera de metal e pô-la ao lado da primeira. As esferas colaram-se uma à outra.
— São magnéticas — constatou, com os olhos arregalados.
Olhou para a outra mão.
As de cristal não são.
Encontrara mais um oposto.
Fechou os olhos.
Mas que significa?
Ouvindo um novo toque do sino, reviu mentalmente tudo o que aprendera nos últimos dois dias. Sentiu a respiração pesada. Ter consciência de que estava a ficar sem tempo apenas o enervava mais. O que lhe estava a escapar?
Então, abriu os olhos.
Não são apenas opostos...
Olhou para o esqueleto, para a mistura de masculino e feminino, duas faces da mesma moeda.
— São espelhos! — Virou-se para os outros. — Acho que já sei o que tenho de fazer.
Seichan estava com cara de poucos amigos.
— Espero bem que tenhas razão. Alguma coisa me diz que não teremos uma segunda oportunidade.
O sino tocou de novo, mais alto do que nunca e mais rápido.
Gray estudou o padrão de esferas.
E se estiver errado?
01h58
— Para onde foram? — perguntou Shu Wei, fitando lugubremente o rapaz.
O olho dele começara a inchar pela coronhada que o sargento-mor Kwan lhe dera com a pistola. A mesma arma que o seu fiel braço-direito mantinha encostada à cabeça do ancião, que se encontrava ajoelhado junto a uma lagoa, alimentada por uma cascata.
A sua equipa de assalto conseguira emboscar o par de indígenas, depois de atravessar a floresta, valendo-se do trilho deixado pelos alvos. O grupo percorrera a distância a coberto da escuridão, munido de equipamento de visão noturna. Num terreno como aquele, eternamente húmido, as marcas de pegadas eram inevitáveis.
Ainda assim, quando chegaram à enseada, verificaram que o trilho desaparecera na margem do rio. Os seus melhores batedores, Zhu e Feng, tinham vasculhado todo o perímetro, tentando apanhar de novo o rasto, mas haviam regressado de mãos a abanar.
Com a ajuda de Kwan, enquanto os batedores faziam a busca, aproveitara para extrair informações ao par de indígenas. Porém, os prisioneiros tinham-se revelado teimosos. Percebera rapidamente que o velho não falava inglês, por isso concentrara a atenção no rapaz.
As lágrimas caíam-lhe pela face, mas o olhar ainda brilhava com uma ponta de desafio. Shu retirou um punhal da bota e passou-o na cara do rapaz com o lado cego da lâmina, invertendo-a depois com um rodar do pulso.
— Da próxima vez que perguntar, não serei tão delicada — avisou.
A voz do ancião fez-se ouvir na margem. O rapaz olhou para ele e respondeu-lhe, parecendo irritado. Com um tom assertivo, o homem repetiu as mesmas palavras.
O rapaz baixou o rosto, fechando os olhos por um momento. Depois, apontou para uma parede rochosa no outro lado do lago.
— Foram por ali — disse ele. — Para o lugar proibido.
Shu semicerrou os olhos, mas viu apenas rocha. Ergueu o punhal.
— Estás a tentar enganar-me?
O rapaz suspirou, exasperado, apontando para a superfície do lago.
— Caverna... no fundo.
Shu olhou de novo e notou a entrada do túnel submerso.
— Foram por ali?
O rapaz assentiu com a cabeça. Depois manteve o queixo baixo, envergonhado consigo mesmo pelo que acabara de fazer.
Shu agarrou-o pelo ombro e arrastou-o pela margem.
— Mostra-nos. Leva-nos até lá.
A tenente fez sinal para Kwan, que sacou de uma pequena navalha. Sabia bem como o sargento-mor conseguia ser habilidoso e criativo com aquela lâmina. A navalha já soltara muitas línguas, tanto no sentido figurativo como literalmente.
O rapaz engoliu em seco, ainda a olhar para o chão.
Shu fincou um joelho no chão e ergueu-lhe o rosto com a ponta do punhal. Suavizou o tom de voz.
— Não quero fazer mal a nenhum dos dois. Quando isto terminar, vamos embora da vossa floresta e vocês voltam às vossas vidas, como se nada tivesse acontecido.
O rapaz respirou fundo. Não parecia convencido, porém, desviou o olhar culpado para o lago.
— Eu levo-os.
Ótimo.
A tenente levantou-se e fitou Kwan.
— Zhu fica com o velho para garantir a cooperação do rapaz. — Com a cabeça, indicou o lago. — O resto da equipa vem comigo.
Kwan anuiu.
Shu olhou para a navalha do sargento.
— E não se esqueça disso — acrescentou.
A tia — a major-general Lau — exigira que descobrisse tudo o que os alvos sabiam, antes de os despachar.
Ela tencionava fazer isso mesmo.
E também proporcionar ao Corvo Negro arrecadar os seus troféus.
23
1 de maio, 12h22 CST
Pequim, China
Pelo menos, Chang Sun fez o que lhe foi pedido.
Monk perscrutou o túnel escuro, enquanto a camioneta roubada percorria toda a sua extensão. Apenas as ocasionais luzes de emergência iluminavam o caminho.
Depois de saber onde os chineses mantinham os prisioneiros, ordenara a Chang que cortasse a eletricidade do complexo subterrâneo, o que serviria para ajudar à confusão e, também, a manterem-se fora de vista o maior tempo possível. Adicionalmente, como fora instruído, o tenente-coronel desviara as equipas de busca da área para onde se dirigiam.
Ainda assim, uma vez que não se podia dar ao luxo de confiar em Chang, Monk manteve a equipa focada. Na caixa aberta da carrinha, os irmãos Shaw protegiam os flancos, enquanto o mais pequeno do grupo, Kong, se agachara com a espingarda automática apoiada na porta traseira, vigiando a retaguarda.
— Estamos quase — informou Kimberly. Ergueu o telefone de satélite, que exibia um mapa das instalações. — Vire na próxima à direita.
Ao volante, o sargento Chin assentiu com a cabeça e dobrou a esquina, continuando por uma passagem mais estreita.
— Deve haver uma rampa mais à frente que leva ao piso inferior, onde se encontram a doutora Crandall e o gorila. — Kimberly fez uma expressão pesada. — Mas ainda estamos muito longe de onde enfiaram o Kowalski. Uma tal Arca, segundo Chang.
Monk apontou em frente.
— Primeiro a doutora Crandall, depois o Kowalski.
Chin pressionou o acelerador, sentindo a apreensão de Monk.
Espero que não seja tarde demais.
Então, do nada, o fundo do corredor iluminou-se com lampejos de disparos e uma saraivada de balas atingiu a carrinha. O para-brisas estilhaçou-se ao mesmo tempo que Monk agarrava em Kimberly, mantendo-lhe a cabeça baixa. Ching começou a desacelerar, mas não era altura para cautelas.
— Acelera! — gritou Monk.
Por cima dele, os irmãos Shaw ripostaram da caixa da carrinha. Monk inclinou-se com a pistola sobre a janela do passageiro. Apontou para o inimigo. Não sabia se aquilo era uma armadilha armada por Chang ou se tinham esbarrado acidentalmente com uma patrulha.
Fosse como fosse, aquela emboscada iria custar-lhes minutos preciosos.
Se não lhes custasse a vida, isto é.
Assim que abriu fogo, enviou uma ordem silenciosa para aqueles que vinha salvar.
Aguentem-se, estamos a caminho...
12h24
Kowalski tentou forçar as portas de aço que os aprisionavam no laboratório de vivissecção. Recusaram-se a mexer. Logo a seguir, o som horrível de metal e vidro a serem despedaçados obrigou-o a olhar por cima do ombro.
Uma figura negra agigantou-se ameaçadoramente para lá da janela, ao mesmo tempo que uma manápula peluda alcançava os caixilhos da escotilha, arrancando-a juntamente com todo o painel circundante. A cedência súbita do painel fez o gorila perder o apoio. Quando caiu, levou boa parte da janela consigo.
O interior do laboratório encheu-se com o odor almiscarado do recinto.
Ao lado de Kowalski, Maria encostou-se contra a parede, segurando a mão de Baako. A equipa médica encolheu-se do outro lado.
Um raspar ominoso chegou-lhes aos ouvidos, enquanto a mangueira de incêndio vibrava e se torcia. Os animais escalavam a rocha. Não tardariam a surgir pela grande abertura na parede.
Kowalski olhou em redor, estudando as pequenas jaulas de aço, mas as grades eram demasiado finas para oferecerem proteção. Testemunhara a força daqueles monstros. Despedaçariam as jaulas como se fossem feitas de cartão.
Um gorila rugiu, soando bem perto da janela.
Maria agarrou o braço de Kowalski, os olhos suplicando-lhe que a salvasse a si e a Baako.
Kowalski cerrou os punhos, consciente de que tinha de fazer qualquer coisa. Nem que fosse apenas adiar o inevitável.
— Fiquem aqui — ordenou.
— Que vais...
Kowalski não se deu ao trabalho de responder, receoso de que as palavras confirmassem a futilidade do plano. Afastou-se das portas e atravessou o laboratório. Passou pelas várias marquesas até alcançar a mesa de operações abandonada. Agarrou num dos instrumentos cirúrgicos e correu para a janela. A mangueira continuava a vibrar, completamente esticada pelo peso que suportava.
Aqui vai disto.
Carregou no interruptor da serra circular elétrica, aliviado por ouvir o zumbido da ferramenta na sua mão. Tinha reparado no instrumento antes. Não era muito diferente das ferramentas que se acumulavam na garagem de casa.
Ergueu a lâmina rotativa e fê-la descer sobre a superfície resistente da mangueira, uma mistura de tecido e borracha. Assim que a cortou, a mangueira rompeu-se como um elástico, desaparecendo pela janela partida. Fez-se acompanhar de um rugido ultrajado, seguido por um baque seco no chão de cimento do recinto.
Kowalski esboçou um sorriso maquiavélico, imaginando a surpresa da criatura. Ainda assim, o seu esforço não lhes oferecera mais do que uns segundos. As paredes rochosas do fosso eram perfeitamente escaláveis, sobretudo para aqueles animais, uma vez que eram símios.
Virou costas, esperando que esses segundos fossem o suficiente.
Porém, um bufar agressivo obrigou-o a olhar para trás. Outra manápula monstruosa ergueu-se e agarrou o parapeito da janela partida. Mesmo na penumbra, reconheceu imediatamente o pelo argênteo nas costas daquelas mãos.
Era o gigante.
Agora é que está tudo lixado...
12h28
Com um punho cerrado sobre a boca, Maria viu Kowalski mergulhar na direção da janela. O operacional esticou o braço e fez cair a serra circular sobre os dedos do gorila.
Um rugido enfurecido fez estremecer o ar. O animal retirou a mão ferida do parapeito, mas já se tinha conseguido agarrar com a outra. Ainda pendurado, elevou-se e emergiu da escuridão do recinto, ocupando toda a moldura da janela, parecendo ainda maior do que era. Cerrou a mão ensanguentada e puxou o braço atrás, depois, arremessou-o como um pistão de aço através do vidro grosso, destruindo o resto do painel, alargando ainda mais a abertura.
A chuva de vidro atirou Kowalski para trás, fazendo-o deslizar de costas pelo chão do laboratório. Ainda assim, conseguiu manter a serra na mão. Agitou-a defensivamente contra os dedos abertos do gorila ao mesmo tempo que empurrava com as pernas, tentando escapar do seu alcance.
Baako largou a mão de Maria e apressou-se em seu auxílio.
Maria correu atrás dele.
Baako alcançou Kowalski primeiro. Agarrou-o pelo colarinho e arrastou-o para mais longe da janela. Porém, a manápula monstruosa continuou a avançar e fechou-se sobre a bota do operacional. O gigante sacudiu-o violentamente contra o chão, puxando-o para si.
Kowalski tentou golpear o braço do gorila com a serra, mas estava desligada. A bateria soltara-se.
Maria apanhou-a do chão quando chegou perto dele.
— A serra! — gritou-lhe.
Kowalski compreendeu e fez deslizar a ferramenta pelo chão, na direção de Maria. Sacudindo as pernas para se libertar, o seu rosto era uma máscara de desespero. Baako continuava a segurá-lo, lutando como podia para impedir que fosse arrastado pela janela.
Maria encaixou a bateria, ligou a serra e golpeou os dedos do gorila. O corte foi profundo, atingindo o osso e fazendo o animal urrar de dor. Ao mesmo tempo que o sangue jorrava, a manápula largou a bota de Kowalski e veio direita a ela. Maria esquivou-se, mas a serra escapou-se dos dedos e deslizou para baixo de um conjunto de jaulas.
Kowalski aproveitou a oportunidade e levantou-se rapidamente. Agarrou Baako por um braço, arrastando-o para longe da janela. Maria seguiu-os. Os três conseguiram chegar às portas do laboratório, esbarrando contra elas. Viraram-se e verificaram, horrorizados, quais tinham sido os efeitos práticos de todo aquele esforço.
Não era bom.
O gigante fincara as duas mãos no parapeito e erguera metade do corpo através da janela estilhaçada. Rugiu para eles, furioso, com as mandíbulas escancaradas, exibindo as longas presas. Acompanhando o som ensurdecedor, laivos de saliva voaram pelo ar, o hálito tresandando a carne e a sangue.
Meu Deus...
Começou a transpor o parapeito, elevando-se para o interior do laboratório.
Consciente de que o fim chegara, Maria espremeu-se contra as portas de aço. Sentiu-as deslizar nas suas costas. Sobressaltada, caiu de rabo no chão e virou-se. As portas continuavam a abrir-se.
Kowalski agarrou nela e empurrou-a.
— Vamos!
Maria tentou obedecer, mas os membros da equipa médica acotovelaram-se e bloquearam a saída, igualmente desesperados por saírem dali. Então, um único tiro fez-se ouvir. O doutor Han cambaleou para trás, separando o grupo, parecendo confuso e atordoado. Caiu sobre os joelhos, depois para o lado, expondo um buraco de bala no meio do rosto.
Um grupo de soldados chineses irrompeu no laboratório. Atrás deles, ainda no corredor, encontrava-se Jiaying Lau, acompanhada de Arnaud. A major-general segurava uma pistola fumegante. Olhou para lá de Maria, para o fundo do laboratório, boquiaberta.
Por essa altura, o gigante já transpusera a janela partida. Estremecendo de raiva, firmou os dois braços no chão, preparando-se para atacar. Atrás dele, mais sombras emergiram junto ao parapeito.
Jiaying gritou finalmente, com a voz a subir numa nota de pânico. Os soldados abriram fogo. Uma mão agarrou Maria pelo ombro e empurrou-a para o corredor com o resto da equipa médica. Maria sabia que não estavam a salvá-la por compaixão, mas apenas para salvaguardar a pesquisa.
Kowalski seguiu atrás dela, empurrando Baako.
O tiroteio continuou, acompanhado de rugidos. Maria sabia que os soldados não tinham poder de fogo para segurarem os animais por muito tempo. Jiaying compreendera o mesmo e berrou outra ordem. Os soldados que se encontravam no corredor apressaram-se a obedecer e fecharam as portas do laboratório, selando alguns camaradas no interior.
Sem perder mais tempo, Jiaying virou-se e dirigiu-se para um jipe que a aguardava num cruzamento próximo.
— Rápido! — ordenou. Apesar da voz firme, a cor do seu rosto transformara-se num azul-pálido.
— A general foi-me buscar antes de se deslocar para aqui — disse Arnaud, caminhando ao lado de Maria. — Vinha tratar de si quando a luz se apagou.
Tratar de mim?
— Ela assistiu a tudo... à sua tentativa de libertar o seu amigo — explicou Arnaud, lançando um olhar preocupado na direção de Kowalski, e por uma boa razão.
Chegados ao cruzamento, Jiaying virou-se e apontou a pistola para Kowalski.
— Doutora Crandall, ponha o animal no jipe.
Maria não se mexeu.
— É melhor fazer o que ela diz — aconselhou Arnaud.
Kowalski empurrou Baako para junto de Maria.
— Leva-o.
Antes que Maria pudesse reagir, algo pesado esbarrou contra as portas deslizantes do laboratório, fazendo o chão estremecer pela força do impacte. Os caixilhos superiores dobraram-se para fora.
Kowalski deu um passo em frente e bloqueou-lhe a linha de visão.
— Vai — pediu-lhe.
Ambos sabiam que, independentemente da decisão de Maria, Jiaying matá-lo-ia.
— Vai — repetiu ele, calmo e seguro.
Arnaud tocou no braço dela, tentando demovê-la.
Sabendo que o paleontólogo e Baako sofreriam as consequências da sua recusa, Maria deu um passo atrás, afastando-se de Kowalski, arrasada pelo desgosto e pela culpa.
Os soldados escoltaram-na até ao jipe, mas Jiaying ficou no mesmo sítio.
Enquanto Maria era afastada, os olhos de Kowalski nunca largaram os dela; nem quando as portas do laboratório foram de novo abalroadas, distorcendo ainda mais os caixilhos. Os gorilas não tardariam a escapar.
Jiaying ergueu a pistola.
Antes que pudesse premir o gatilho, um novo estrondo fez estremecer as paredes do corredor. Porém, desta vez, nas costas de Maria.
A major-general virou-se e viu o jipe ser arrastado vários metros por uma carrinha. Travou a fundo, derrapando sobre a traseira, e três militares chineses emergiram do compartimento de carga, empunhando espingardas automáticas. Abriram fogo contra os soldados de Lau.
Maria cerrou os dentes e curvou-se sobre Baako, protegendo-o.
De ambos os lados, os soldados que a escoltavam tombaram no chão.
Jiaying gritou e o sangue jorrou-lhe do ombro ao mesmo tempo que era arremessada para trás. Ainda assim, conseguiu disparar, mas não para os recém-chegados. Arnaud caiu para cima de Maria, com os olhos muito abertos. O sangue inundou-lhe a garganta. Tentou falar, mas apenas conseguiu tossir mais sangue e afundou-se nos braços dela.
Maria amparou-o até ao chão.
— Não desista, Arnaud...
Assim que o deitou no corredor, o homem respirou uma última vez e revirou os olhos.
Não...
Kowalski puxou-a por um braço.
Uma voz gritou da carrinha militar.
— Rápido! Todos cá para dentro!
O homem que dava as ordens inclinou-se sobre a janela do passageiro. Desconcertada, Maria demorou uns segundos para o reconhecer. A última vez que o vira fora no centro de primatas.
Era o parceiro de Kowalski, Monk.
Enquanto se debatia para compreender a sua presença inesperada, os tiros recomeçaram, desta vez do corredor atrás da carrinha.
Estavam a chegar mais soldados.
Kowalski empurrou-a para a camioneta.
— Vamos!
Sem precisar de mais incentivos, Maria correu com Baako. Kowalski acompanhou-os, respirando com dificuldade por causa das costelas partidas.
Antes que conseguissem alcançar a segurança da camioneta, um novo estrondo ecoou nos corredores, vindo do laboratório de vivissecção. Maria olhou por cima do ombro e viu uma das portas ser arremessada contra a parede oposta. Logo a seguir, silhuetas monstruosas materializaram-se no corredor.
Kowalski puxou-a pelo braço.
— Está na hora de sairmos daqui.
Correram os últimos metros e alcançaram a lateral da carrinha. Kowalski ajudou-a a subir para a traseira, erguendo-se em seguida com Baako. Com todos a bordo, a carrinha começou a recuar e acelerou pelo corredor em marcha-atrás.
Um dos soldados ordenou-lhes que baixassem a cabeça. Uma série de balas voltou a atingir a traseira do veículo.
— Toda a gente deitada! — berrou o militar.
A carrinha ganhou velocidade. A traseira começou a inclinar, fazendo o coração de Maria disparar, mas era apenas porque estavam a subir por uma rampa. A carrinha saltou no final da subida, empinando-se no ar, depois os pneus voltaram a tocar no solo e continuaram em frente.
As detonações continuaram a fazer-se ouvir, cada vez mais ténues, até que se desvaneceram.
Ainda assim, Maria continuou deitada com um braço sobre Baako, que por sua vez abraçava Kowalski.
Estavam juntos, de novo, como uma família...
Mas por quanto tempo?
12h34
Quase cega de dor, Jiaying segurava o volante do jipe acidentado com uma das mãos. Mantinha o outro braço caído sobre as pernas, tentando ignorar a agonia excruciante causada pelo ferimento. A bala estilhaçara-lhe o ombro direito e deixara-lhe aquele membro inutilizado. O sangue continuava a jorrar, ensopando-lhe o uniforme.
Mas ainda estou viva.
Como tal, deveria considerar-se uma mulher de sorte.
Não, não tinha nada que ver com sorte, recordou a si própria. Perseverança...
Necessitara de toda a sua força para ultrapassar a agonia do ferimento e continuar em movimento. Assim que a carrinha dos americanos desaparecera, utilizara a proteção das sombras do corredor para se arrastar e contornar a esquina, até ao jipe abandonado. Desejando que o abalroamento anterior não tivesse danificado o motor nem a bateria, sentou-se ao volante e rodou a chave na ignição. O motor elétrico ressuscitou com um ronronar satisfatório. Endireitando a frente do jipe, carregou no acelerador e apressou-se a sair dali.
Na verdade, saiu no momento exato.
Ao contornar a primeira curva, olhou pelo retrovisor e viu um vulto monstruoso deter-se no cruzamento por onde acabara de passar. Mesmo agachado, dava a sensação de que preenchia todo o corredor, rugindo furioso e sedento de sangue.
Acelerou o jipe, pondo a maior distância possível entre ela e os animais evadidos. Só então se focou no novo plano. Primeiro precisava de cuidados médicos e de um local seguro. Sabia para onde tinha de ir.
Todavia, já perto do destino, sentia-se fraca e nauseada. O jipe avançava aos ziguezagues, enquanto tentava manter a direção o melhor que podia, mas o centro de comando surgiu logo adiante. A porta encontrava-se aberta.
Travou vigorosamente e rolou para fora do veículo, quase caindo sobre os joelhos ao sentir uma pontada de dor. Encostou-se e respirou fundo várias vezes, depois cambaleou em direção à porta aberta.
Encontrou o comandante do centro onde o deixara.
De costas para ela, Chang Sun estava de pé no meio da sala obscurecida. Os monitores refletiam as várias luzes de emergência, conferindo ao lugar uma qualidade infernal. A raiva de o ver ali ajudou-a a concentrar-se.
Aquele homem falhara a todos os níveis.
Ao entrar na sala, reparou finalmente nos técnicos do centro de comando: encontravam-se tombados sobre as várias secretárias; outro deitado aos pés de Chang, numa poça de sangue, que também refletia o brilho vermelho das luzes.
— Que surpresa agradável — disse Chang, virando-se. — E eu a pensar que teria de ir à sua procura.
Ergueu a mão com uma pistola.
Jiaying tentou alcançar a sua arma, mas encontrou o coldre vazio. Na pressa de fugir, tinha perdido a pistola.
Chang percebeu que a general estava desarmada. Virou a pistola de lado, para que ela pudesse ver que a culatra estava puxada para trás, depois pousou-a na mesa. Estava sem munições. Devia ter despejado o carregador inteiro nos técnicos. Chang avançou com um braço levantado, como se a fosse abraçar.
Jiaying sabia o que vinha a seguir. Porém, recusou-se a recuar. Nunca se permitiria tal desonra.
Quando chegou perto dela, o outro braço de Chang avançou e apunhalou-a no estômago. Jiaying tossiu, não pela dor, mas pela força feroz do impacte. Chang empurrou a lâmina para cima, à procura do coração. Então, algo cedeu dentro dela, fazendo os pulmões deixar de funcionar.
Chang retirou a lâmina com um movimento rápido e deixou-a cair sentada no chão, encostada à ombreira da porta.
Afastou-se calmamente, limpou o punhal e guardou-o na bainha. A seguir, pegou na pistola e limpou-a também. Uma vez satisfeito, agachou-se e pôs a arma na mão de Jiaying. Tencionava lançar a culpa pelas mortes dos técnicos sobre ela, assim como a fuga dos americanos. O nome de Jiaying Lau ficaria para sempre associado a falhanço e traição, materializando dessa maneira o pior pesadelo da major-general.
O olhar de Jiaying encontrou o dele, reconhecendo nos olhos frios de Chang uma ambição muito superior à sua.
O tenente-coronel atravessou a sala e puxou uma série de alavancas. A luz regressou ao centro de comando conforme o fornecimento de energia era restabelecido por todo o complexo. Os monitores começaram a piscar, enquanto os servidores reiniciavam.
Intrigada, Jiaying não conseguia compreender o que ele estava a fazer.
Como se sentisse a sua consternação, Chang tentou explicar-lhe.
— Já convoquei o exército. Os americanos já serviram o seu propósito, como tal, não tenho mais utilidade para eles. Com as suas mortes, o meu triunfo será ainda maior, a minha lealdade inquestionável. — Olhou para ela. — Mesmo que levantem as acusações que quiserem.
Chang leu a perplexidade no rosto dela.
— Os americanos ameaçaram incriminar-me se não cooperasse. E prometeram glória, se me submetesse. — Soltou uma gargalhada desdenhosa. — Como se algum dia me vergasse a esses cães. Em vez disso, vou usá-los para forjar o meu caminho de glória, tão fantástico que nunca poderá ser questionado. Provavelmente irá custar a vida do meu irmão, mas a memória dele continuará viva através de mim, dos meus filhos e dos meus netos.
Jiaying sentiu as pálpebras fecharem-se com o peso da derrota, percebendo o quanto tinha subestimado aquele homem.
A culpa é toda minha.
Sabia que tinha de ser ela a corrigir o erro, mesmo que isso a deixasse para sempre desonrada. Conjurou as últimas forças para levar a mão ao bolso. Enquanto as trevas desciam sobre ela, procurou no interior o telemóvel e usou um dedo para fazer deslizar a tampa de um compartimento secreto, que existia na parte de trás do aparelho. Não precisava de ver o botão luminoso que se escondia dentro desse espaço. Pressionou o polegar sobre o sensor de impressão digital por cima dele. Tinha de manter o dedo no sensor durante dez segundos. Era uma precaução simples para não ativar sem querer as contramedidas que incluíra secretamente no desenho do complexo. Estavam ali para a eventualidade de um ataque estrangeiro aos laboratórios, mas também para o caso de algum dia precisar de se desforrar de quem a quisesse destruir.
Nunca lhe passara pela cabeça que as duas situações surgissem em simultâneo.
Como pude ser tão cega...
As trevas adensaram-se, diminuindo a dor. Por essa altura, não conseguia perceber se o dedo ainda estava no botão ou se os dez segundos tinham passado.
Finalmente, rendeu-se à escuridão, sem nunca saber a verdade
A agonia dessa dúvida iria persegui-la por toda a eternidade.
12h45
Assim que as luzes se acenderam ao longo do corredor, Monk teve um mau pressentimento.
Isto não pode ser bom.
O vira-casacas, Chang Sun, devia ter mudado de opinião. Monk desconfiara quando sofreram aquela emboscada e pedira a Kimberly para descobrir outra saída, suspeitando que Chang pudesse ter concentrado tropas no hangar por onde tinham entrado.
Kimberly apontou em frente.
— Deve haver um elevador no fundo deste corredor, a uns noventa metros. Conduz a um edifício público, no interior do zoo. Uma mansão qualquer do século dezanove, chamada Changguanlou.
— Ela tem razão — disse Maria, sentada na caixa aberta da carrinha, falando pela janela traseira da cabina. — A major-general Lau tem um escritório nessa mansão.
Kimberly virou-se para Monk.
— O zoo deve estar fechado ou evacuado. Mas, quando chegarmos à superfície, temos de ter cuidado para não...
Uma série de explosões silenciou-lhe as palavras na garganta.
O sargento Chin lutou para manter o comando da carrinha, ziguezagueando e atingindo uma fileira de barris de resíduos de risco biológico. Uma coluna de fumo avançou para eles, erguendo-se da direção dos elevadores. As luzes piscaram e apagaram-se, mergulhando-os na escuridão.
Chin parou a carrinha e acendeu os faróis.
Através da cortina de fumo e poeira, os feixes dos faróis revelaram um colapso do teto no fundo do túnel, bloqueando a passagem com uma pilha de placas de cimento e vigas retorcidas. À distância, a estrutura continuava a ranger e a partir-se. Gritos ténues chegaram até eles.
— Que raio? — murmurou Monk.
Kimberly abanou a cabeça.
— Alguém deve estar a tentar destruir o complexo.
— Quem? Chang?
— Não faço ideia. Não faz sentido.
Da traseira da carrinha, Kowalski ofereceu a sua opinião.
— Não me interessa quem está a fazer o quê ou porquê! Vamos é sair daqui antes que fiquemos transformados em panquecas!
Monk assentiu.
— E se utilizarmos o hangar? Fica dois níveis abaixo deste. Pode ser que esteja inteiro.
Kimberly ergueu o telefone e examinou o diagrama do complexo.
— Podemos tentar, mas...
— Mas o quê?
— Para lá chegar, somos obrigados a atravessar a área onde estão aquelas criaturas.
— Maravilha... — bufou Monk. — Mas não vejo alternativa.
Kimberly anuiu e indicou a Chin o novo destino.
Retrocederam rapidamente pelo mesmo caminho, com os faróis da carrinha a perfurarem uma cortina permanente de fumo e poeira, enquanto a estrutura continuava a ceder em redor deles. Kimberly fazia o possível para os manter na direção certa, mas via-se obrigada a recalcular constantemente o percurso, contornando túneis colapsados ou focos de incêndio que começavam também a surgir um pouco por toda a parte.
Aqui e ali, começaram a cruzar-se com funcionários do complexo. Alguns vestiam batas de laboratório, outros uniformes. Todos se encontravam atordoados, ensanguentados ou em pânico. Alguns soldados dispararam, mas era como se não se importassem. Chin começou a buzinar enquanto avançava, afastando-os do caminho, enquanto os irmãos Shaw e Kong desencorajavam os mais persistentes.
Ao fundo de uma passagem lateral, Monk vislumbrou uma clareira de luz natural. Ordenou a Chin que virasse nessa direção, deparando com um desabamento que rompera até à superfície. Infelizmente, a abertura era demasiado estreita e traiçoeira para conseguirem escalar. Enquanto a examinavam, a pilha de escombros cedeu sobre si própria e selou a abertura.
Mesmo por um momento, o vislumbre do céu fora igualmente reconfortante e desolador.
Tão perto, mas tão longe...
Continuaram a avançar, apenas para darem com uma visão bem mais estranha. Enquanto se aproximavam de um cruzamento, uma fila de figuras fantasmagóricas passou rapidamente diante deles, desaparecendo em seguida.
— Eram lobos? — perguntou Monk.
Kimberly ergueu o rosto para o teto da cabina.
— O zoo pode ter sido evacuado, mas os animais continuam lá em cima.
Monk imaginou o chão a desabar ao longo dos vários habitats do jardim zoológico, permitindo a fuga dos respetivos ocupantes. À medida que penetravam cada vez mais no coração do complexo, depararam com outros exemplos dessas incursões forçadas dos animais pelo subsolo.
Enquanto passavam por um laboratório destruído, Monk teve um vislumbre de um par de leoas a arrastar um corpo atrás de uma mesa. Noutra passagem, o riso característico de uma alcateia de hienas ecoou ominosamente, pontuado pelos gritos de um homem.
Chin curvou-se mais sobre o volante e carregou no acelerador.
— Descemos na próxima rampa — disse Kimberly, apontando em frente.
O sargento obedeceu, porém encontraram o nível inferior mergulhado num mar de chamas, os corredores obscurecidos por uma nuvem de fuma oleosa. Ouviram-se novas explosões à distância, assinalando o rebentamento de mais condutas de gás e de tanques de propano, alimentando uma furiosa reação em cadeia de novos focos de incêndios.
— Conseguimos atravessar isto? — perguntou Monk.
— É a única maneira de alcançarmos a saída — explicou Kimberly.
Monk observou a paisagem infernal, consciente de que as labaredas não tardariam a comprometer a segurança estrutural daquela área do complexo, originando novas derrocadas.
Tinham de continuar em movimento — e depressa.
Assim que percorreram os primeiros metros daquele inferno subterrâneo, um rugido ensurdecedor saudou-os, ecoando de todas as direções ao mesmo tempo, tornando difícil reconhecer a sua origem.
Porém, o som era inconfundível.
— Já cá faltavam... — resmungou Kowalski.
24
1 de maio, 02h13 ECT
Cordilheira dos Andes, Equador
O sino ecoou de novo na câmara de cristal, recordando Gray de que o tempo estava a esgotar-se. Estudou o padrão em estrela composto de pequenas esferas de metal negro e cristal branco, revendo as várias opções.
Só tens uma oportunidade.
Enquanto se concentrava, Roland caminhava ao longo do estrado do esqueleto de ouro, para trás e para a frente. Frente ao padre, Lena observava nervosamente com os braços cruzados. Seichan apenas aguardava no lado mais afastado do pilar que suportava o misterioso padrão.
— Estás com dúvidas? — perguntou ela.
— Apenas pela centésima vez — disse Gray, com um sorriso cansado.
— Pode ser que seja o nosso número de sorte — retorquiu Seichan.
Gray também esperava que sim, porém, sabia que não podia contar com a sorte para resolver aquele enigma. Nos últimos minutos, construíra e desconstruíra repetidamente na sua cabeça o padrão. Pedira duas vezes para consultar o diário de Kircher, que Roland trazia guardado numa bolsa à prova de água. Passara algum tempo a estudar os cálculos do padre jesuíta, consciente do fascínio particular do homem pela numerologia, quer pela pureza matemática dos números primos quer pelo misticismo cabalístico da gematria.
Recordou de novo a multitude de opostos inerentes ao quebra-cabeças.
Claro e escuro...
Pesado e leve...
Preto e branco...
Metal e cristal...
Basicamente, acabava por regressar sempre à mesma conclusão.
Duas faces, como num espelho.
— Só pode ser isso — murmurou —, pares!
— Qual é a ideia? — quis saber Lena. — Se partilhar connosco, talvez possamos ajudar.
A sala estremeceu com um novo toque.
Seichan franziu a testa.
— Passaram apenas dez segundos desde o último. Ao ritmo a que os intervalos estão a diminuir, tens menos de um minuto.
Gray visualizou o lençol de água que rodeava aquele poço seco no coração da cidade perdida. Podia jurar que conseguia sentir a pressão hidráulica de toda a água acumulada, mas sabia que era apenas a frustração a tomar conta dele.
— Talvez seja melhor pensarmos em conjunto — ofereceu Seichan. — Não estás sozinho.
Gray assentiu. Tencionava testar a teoria com os companheiros, mas, antes disso, queria ter a certeza de que tinha a ideia bem arrumada na cabeça. Cedeu por fim e apontou para o padrão de esferas.
— Pela simetria presente, a resposta tem de estar relacionada com os opostos espelhados. Podemos encontrá-los neste padrão, representados pelas esferas, mas também nesta sala, nas duas bibliotecas. — Indicou ambas as portas. — Uma contém livros de metal, a outra de cristal. Porém, existe ainda outro par espelhado que se esconde neste quebra-cabeças, e está relacionado com a matemática. Com números primos, para ser mais exato.
Roland mostrou a sua concordância com um movimento de cabeça.
— Setenta e três esferas. Um número primo.
— E nós sabemos que o espelho desse número primo é o número trinta e sete, número esse que, como já discutimos, aparenta ter vários níveis de relevância, desde o nosso ADN ao movimento das estrelas.
— Ainda assim, o que tem o número trinta e sete que ver com este quebra-cabeças em particular? — perguntou Seichan.
— Por causa disto — disse Gray, apontando para o esqueleto de ouro. — Esta figura também representa dois opostos espelhados, unindo as conformações masculinas e femininas num todo. É essa a resposta.
Gray notou a perplexidade nos rostos dos outros ao mesmo tempo que a sala estremeceu de novo, desta vez com força suficiente para soltar algumas pedras preciosas dos capitéis da colunata em redor.
O tempo estava a esgotar-se.
Lena e Roland pareciam tão ansiosos quanto ele, enquanto Seichan apenas se mostrava impaciente, à espera de que ele terminasse, demonstrando toda a confiança que depositava nas suas capacidades.
Retirando alguma força dessa confiança, Gray continuou.
— Nos túmulos na Croácia, a sepultura de Eva exibia este mesmo padrão em estrela, com setenta e três impressões.
Lena anuiu.
— E a sepultura do macho neandertal híbrido, Adão, exibia uma versão menor, com trinta e sete.
Gray pousou uma mão sobre as esferas.
— Conseguimos ver claramente que este é o padrão de Eva, com setenta e três peças. — Olhou para os outros. — Porém, onde está o padrão de Adão?
Ninguém respondeu.
Gray apontou para as esferas.
— Está aqui mesmo, à espera de ser revelado, tornando este padrão num todo, como estas ossadas douradas.
A sala estremeceu outra vez com um novo toque, abrindo fissuras nas paredes.
— Não percas mais tempo! — avisou Seichan, olhando em redor. — É agora ou nunca!
Gray sabia que ela tinha razão. Pondo de lado qualquer réstia de dúvida, começou a mudar a posição das esferas de metal e de cristal, revelando aos poucos o desenho de uma estrela dentro de outra estrela.
Exclamações de espanto ergueram-se ao redor, conforme os outros observavam o padrão a tomar forma.
— As duas estrelas... — disse Lena, estupefacta.
Gray apressou-se, sabendo que estava no limite da contagem decrescente. Antes que pudesse terminar, uma nova pancada de metal e cristal ecoou por toda a câmara. Porém, dessa vez, não parou. O toque começou a subir de tom e de volume.
Gray pôs a última esfera na posição correta, completando o padrão. Assim que o fez, um tom agudo ficou suspenso no ar, estremecendo cada molécula de cristal na sala. Por fim, desvaneceu-se.
Olharam uns para os outros, com as respirações suspensas, mas nada aconteceu.
— Resultou! — disse Lena, claramente aliviada.
Olharam todos para o padrão terminado.
Gray conseguira encaixar trinta e sete esferas de cristal no centro, revelando a estrela mais pequena de Adão no interior da de Eva.
— Este novo padrão — notou Roland —, uma estrela no interior de outra. O masculino no interior do feminino. Penso que pretende representar o ato da procriação... a vida, a promessa de novas gerações.
Ainda assim, aquela não era a única revelação que o padrão oferecia.
Para lá da coluna das esferas, a parede mais afastada começou a abrir, separando duas placas de quartzo que cobriam a pedra. Uma nova passagem revelou-se diante deles, expondo um novo conjunto de degraus que desapareciam na escuridão.
Ninguém se mexeu.
Gradualmente, furando o silêncio, um tiquetaque ecoou das profundezas da nova passagem.
— Espero que não seja outra contagem decrescente — sussurrou Seichan.
Receando que Seichan pudesse estar certa, Gray pôs o grupo de novo em movimento. Avançaram para as escadas. Deteve-se no topo e apontou a lanterna para o longo lance de degraus, incapaz de distinguir o fundo. Sentiu um pingo de inquietação, como se algo lhe dissesse que não deveria continuar. Ainda assim, recordou as anteriores palavras de Seichan.
A única maneira é procurar.
Esse mesmo sentimento sempre fora a força motriz por trás do progresso da humanidade ao longo dos tempos. Um imperativo simples, alimentado por uma curiosidade inata de descobrir o que se escondia atrás de cada esquina ou além do horizonte. Fora esse mesmo espírito inquisidor que nos impelira a olhar também para dentro, para quem somos, de onde viemos e para onde iremos a seguir.
Dirigindo o grupo, Gray deu um passo, depois outro.
Enquanto desciam, o ar encheu-se de energia. Conseguia sentir um formigueiro na pele, à medida que a eletricidade estática lhe eriçava cada pelo no corpo. Conseguia até cheirá-la, como uma brisa de verão durante uma trovoada.
Quando pisou o último degrau, fitou a vastidão da câmara que se abria diante dele. A sua mente lutou para compreender o que os olhos captavam. Desconcertado, apenas conseguiu pronunciar duas palavras.
Meu Deus...
02h21
O súbito silêncio inquietou Shu Wei.
Desde que entrara naquele mundo subterrâneo, ainda não deixara de ouvir o som de sinos a tocarem à distância. Durante uma travessia nos Himalaias, ouvira toques semelhantes a estes, que ressoavam ao de leve no cume das montanhas, na maior parte das vezes provenientes de mosteiros a quilómetros de distância. Encarara os sinos como um sinal promissor, e tinha seguido o seu clamor, conduzindo a equipa desde uma antecâmara inundada e através de um longo corredor, com as paredes repletas de inscrições de línguas antigas.
O som dos sinos tornara-se mais audível desde esse ponto, dando-lhe a certeza de que se aproximava dos alvos. Ansiava por esse momento, sobretudo sabendo de que gozava de uma relação de forças de nove para quatro.
Além disso, tenho o elemento de surpresa.
Enquanto progrediam pela cidade enterrada, obrigara a equipa a movimentar-se o mais silenciosamente possível, e recorrendo ao mínimo de luz. Naquela escuridão perpétua, não se podia fiar apenas nos óculos de visão noturna, uma vez que esse equipamento obrigava a um mínimo de claridade disponível para um correto funcionamento.
Então, momentos antes, quando atravessavam uma galeria decorada com esculturas de animais elaboradas com metais e pedras preciosas, os sinos tinham-se silenciado abruptamente. Erguera um punho no ar, ordenando que a equipa se detivesse, interrogando-se acerca da razão da calmaria súbita.
Alguns dos soldados aproveitaram a pausa para absorverem a riqueza que se encontrava ali armazenada. Os seus próprios olhos tinham-se enamorado de uma pantera de ouro e esmeraldas. Depois de conseguir a informação dos alvos e de os despachar, havia de regressar ali.
O Corvo Negro não será o único a regressar a casa com um troféu.
Olhou para o sargento-mor Kwan, que mantinha uma das mãos sobre o ombro do rapaz indígena. O seu braço-direito não perdera um único segundo a apreciar aquelas riquezas. Os seus troféus tinham uma natureza pessoal e muito particular.
Enquanto o silêncio se prolongava, cansou-se de esperar e baixou o braço. Com ou sem sinos, estava na hora de avançarem. Dirigiu-se para as escadas seguintes, preparada para enfrentar o inimigo e terminar a missão.
Kwan praguejou, desviando-lhe a atenção. O rapaz libertara-se da mão dele e lançou-se escada abaixo, correndo como uma gazela e desaparecendo na escuridão. Kwan ainda ergueu a pistola, mas sabia que era tarde demais.
Shu Wei aproximou-se dele. Não o admoestou nem consolou, uma vez que sabia que, aos olhos dele, o falhanço era um castigo mais do que suficiente.
Em última análise, a fuga do rapaz não comprometia a missão. Mesmo que alcançasse os alvos e os alertasse, retirando a Shu o elemento de surpresa, a sua equipa ainda gozava da superioridade numérica. Além disso, pela informação que sacara do miúdo, o poder de fogo que a acompanhava era infinitamente superior ao dos alvos.
— Em frente! — ordenou. — Olhos bem abertos!
Com o inimigo alerta, não fazia intenção de se deixar cair numa emboscada.
Enquanto descia as escadas, sentiu uma ponta de irritação pela ousadia do rapaz. Quando tudo terminasse, permitiria que o Corvo Negro cobrasse a compensação adequada por aquela mancha na sua honra. Pelo modo como Kwan caminhava rígido ao lado dela, com o sangue a ferver, estava certa de que ele se encarregaria disso com especial requinte.
02h23
Roland respirou fundo. Mal podia crer no que via. Era como se tivesse entrado no interior de um relógio concebido pela própria mão de Deus. Um forte tiquetaque reverberava das paredes do espaço cavernoso, uma gigantesca esfera perfeita que minguava o grupo reunido no seu equador ao tamanho de insetos. A escada desembocava a meio da parede curva. O teto arqueava suavemente, estendendo-se até à altura do primeiro nível da cidade perdida, enquanto o chão se encontrava a uma profundidade equivalente.
Toda a vastidão da esfera se apresentava forrada a folha de ouro.
Roland também ficara hipnotizado pela energia aprisionada no interior do espaço. Sentia-a percorrer a superfície da pele, os cabelos, até no ar. Observou os lampejos azulados que pulsavam no teto, bem como a cintilação vermelha que dançava ao longo do mistério que se encontrava abaixo.
No entanto, o que se encontrava no meio daquele espaço é que desafiava verdadeiramente a razão e entorpecia os sentidos. Pairando no ar entre aquelas duas demonstrações de energia, uma esfera maciça preenchia um quarto do espaço cavernoso. Metade aparentava ser feita de metal negro, igual ao dos livros que tinha visto, e a outra metade do mesmo quartzo branco que existia na biblioteca oposta. As superfícies dos dois materiais não se encontravam polidas como as paredes. Em vez disso, apresentavam uma textura familiar com crateras de meteoritos, superfícies de lagos e montanhas.
— É a Lua... — sussurrou Lena.
Roland assentiu mentalmente com a cabeça, incapaz de se mexer, como se tivesse medo de fazer desaparecer o que estava a ver.
Encontravam-se todos paralisados naquela saliência ao nível do equador da sala. Uma série de níveis diferenciados continuava a partir de onde estavam, mas ninguém arriscava, ou queria, continuar. Era como se tivessem percebido, de uma assentada, que tudo aquilo se encontrava muito além do alcance de qualquer um deles, que não passavam de invasores que perseguiam uma verdade que nunca compreenderiam.
Roland continuou a estudar a escultura gigantesca da Lua. Pairava no meio da sala, sem qualquer suporte. Não conseguia sequer imaginar que tipo de energia a mantinha suspensa, mas talvez fosse uma mistura de magnetismo e de forças eletroestáticas.
Igualmente inconcebível era o grau de pormenor da escultura. Cada mar lunar, cratera, montanha, crista, fenda e canal fora capturado de forma perfeita. E isso não acontecia apenas na metade cristalina, que claramente representava o lado iluminado da Lua. O hemisfério de metal negro era igualmente rigoroso em pormenor, revelando a face escondida da Lua.
Seichan fitou a superfície metálica, a testa franzida de incredulidade.
— Como é possível? — sussurrou. — Como podiam estes construtores ancestrais saber o que se encontrava no lado oculto da Lua?
Gray notou a presença de outro mistério.
— Está a girar. Devagar, mas está a girar.
Roland olhou com atenção e percebeu que Gray estava certo. A Lua não estava apenas suspensa, também girava progressivamente. Focou a atenção no tiquetaque, fazendo-o pensar num relógio gigantesco, recordando-lhe algo que lera em tempos.
— Sic mundus pendet et in nullo ponit vestigia fundo — murmurou.
Lena olhou para ele, mas apenas um segundo, antes de voltar a atenção de novo para a esfera.
Roland traduziu o latim.
— Assim está suspenso o mundo, sem nada sob os seus pés... estas palavras foram inscritas pelo padre Kircher numa espécie de relógio que ele inventou, movido por forças magnéticas. Era uma esfera de vidro cheia de óleo mineral, dentro da qual se encontrava um globo terrestre de cobre, girando lentamente, para marcar a passagem do tempo.
— Achas que tirou a ideia daqui? — murmurou Lena.
— Não sei, mas o padre Kircher acreditava que o movimento dos planetas assentava nessas forças. — Roland apontou para a Lua. — De qualquer modo, não duvido de que Nicolas Steno esteve aqui e lhe deu conta desta descoberta.
Preenchendo o fundo da galeria coberta de ouro, encontrava-se ainda um labirinto de paredes de cobre, mais ou menos da altura de um homem, como se um convite para o percorrer. No entanto, toda a estrutura estava inundada por um líquido negro, quase ao nível do topo das paredes.
— É semelhante ao labirinto na capa do diário de Kircher — notou Gray.
— Um padrão que se encontra um pouco por todo o mundo e em várias épocas da História — acrescentou Roland. — Porém, este é claramente mais elaborado, mais intricado e convoluto.
Alcançou o diário e segurou-o para que todos pudessem comparar o desenho da capa com o labirinto no chão da sala.
Roland olhou para Lena e notou o brilho de compreensão no rosto dela. Tocou-lhe no braço.
— Estavas certa desde o início, Lena.
02h26
Será verdade?
Enquanto Lena lutava para abraçar os mistérios e impossibilidades que encontrara naquele lugar, recordou-se do seu primeiro comentário quando viu o labirinto na cópia danificada do diário de Kircher, aquela que tinham encontrado na Croácia.
Repetiu essas palavras.
— Parece o corte lateral de um cérebro.
Roland anuiu.
Lena estudou a versão mais elaborada que se encontrava lá em baixo, notando cada curvatura e cada dobra daquelas paredes de cobre. A disposição representava na perfeição os montes e vales que compunham o córtex e cérebro humano.
— É, na verdade, um corte lateral de um cérebro — murmurou Roland. — Um cérebro que está repleto de energia.
Lena observou a cintilação vermelha ao longo das paredes de cobre, como se toda a estrutura fosse uma espécie de bateria milenar.
E, se calhar, é mesmo.
— Bom, mas que significa tudo isto? — perguntou Gray. — O corte lateral de um cérebro com uma lua suspensa?
Lena abanou a cabeça, recordando a descrição de Roland da extraordinária, e quase impossível de compreender, simetria e dimensão do único satélite da Terra. Um globo que era responsável pelas marés que tinham impulsionado as primeiras formas de vida, uma esfera cuja massa era tão perfeita que estabilizava a rotação e o eixo da Terra, de modo que o planeta pudesse ser um lar seguro para que organismos complexos desenvolvessem uma inteligência capaz de perscrutar os céus e de fazer perguntas.
Baixou o olhar para aquela representação do cérebro humano e sentiu os olhos lacrimejarem. Ainda que não conseguisse responder à pergunta de Gray, no seu íntimo conhecia a verdade que não podia ser traduzida em palavras, a enormidade do que se encontrava dentro e fora daquelas paredes.
Roland tentou explicar.
— Talvez os antigos professores quisessem compreender Deus, e isto seja a tentativa deles.
Lena sentia que o padre não andava longe da verdade, mas os mistérios daquele lugar eram mais complexos, como o pormenor da face oculta da Lua. Como poderiam possuir esse tipo de conhecimento?
Roland suspirou, provavelmente compreendendo o mesmo.
— Ou talvez isto tudo... — Fez um gesto largo com o braço, indicando não só aquela câmara de mistérios, mas também todas as perguntas para lá dela. — Talvez seja uma tentativa de comunicação de uma inteligência superior antiga. Talvez nos tenham deixado esta mensagem no nosso ADN, no movimento do Sol, da Terra e da Lua, para que a descobríssemos.
— Mas qual é a mensagem? — perguntou Lena.
Gray propôs uma conjetura.
— Os físicos interrogaram-se desde sempre acerca da estranheza e quase impossibilidade do modo como o universo parece ter sido afinado para criar vida. Reparem na força eletromagnética, por exemplo. Tem um valor específico que permite que as estrelas produzam carbono, a pedra basilar da vida. Da mesma forma, a força nuclear que mantém os átomos ligados também apresenta um equilíbrio perfeito. Se fosse um nadinha mais forte, o universo seria constituído apenas por hidrogénio. Se fosse mais fraca, não existiria sequer hidrogénio.
Lena compreendeu onde Gray queria chegar.
— Se alguma dessas constantes fosse diferente, não existiria vida. — Olhou para Gray. — Mas, nessa equação, onde se encaixa tudo isto que estamos a ver?
Gray suspirou.
— Não tenho a certeza. Acho que os antigos professores construíram isto como um modelo, para nos mostrarem que a vida também é uma lei fundamental da natureza. Em última análise, estávamos destinados a descobrir estas ligações, estes rácios e simetrias, que ligam os nossos corpos ao universo mais largo, para podermos compreender uma verdade maior.
— E que verdade é essa? — quis saber Roland.
— Que somos especiais. — Gray apontou para o labirinto. — Que o universo está centrado à volta da criação de vida inteligente, da nossa criação. Que somos uma lei fundamental da natureza.
O silêncio caiu sobre o grupo enquanto contemplavam essa possibilidade.
— Não admira que o padre Kircher fizesse segredo disto — murmurou Roland.
— O mundo não estava pronto — acrescentou Lena.
E, se calhar, ainda não está.
Roland fez um sinal na direção do labirinto.
— Nicolas Steno acabou por abandonar a paleontologia e o interesse por fósseis numa fase mais adiantada da sua vida. — Olhou para os companheiros. — Conseguem adivinhar o que decidiu estudar nesses últimos anos?
Lena abanou a cabeça.
Roland virou-se e olhou para o labirinto.
— O cérebro humano.
Subitamente, o tiquetaque daquele relógio gigantesco pareceu diferente, frenético, irregular. Lena demorou alguns segundos até perceber que a nova cadência que ouvia eram, na realidade, passos apressados que corriam pelos degraus abaixo.
Virou-se e deparou como uma pequena figura, voando na direção deles.
— Jembe?
02h28
Pela aparição súbita e apressada do rapaz, Gray soube de imediato que algo estava errado. Seichan deu um passo em frente e agarrou rapidamente o rapaz, impedindo-o de mergulhar de cabeça para o vazio.
O miúdo arquejou, momentaneamente estupidificado, observando de olhos arregalados o que estava suspenso no meio daquela sala.
Gray agarrou-lhe no queixo e desviou-lhe a atenção.
— Que estás aqui a fazer?
O rapaz libertou-se e olhou por cima do ombro.
— Eu corro depressa... — Levantou uma mão no ar. — Como um beija-flor. Mas aqui é muito escuro.
Só nesse momento Gray notou o fio de sangue no sobrolho do rapaz. Devia ter batido com a cabeça no caminho.
Jembe agarrou-lhe o blusão.
— Vêm aí pessoas más. Agarraram Chakikui.
Gray endireitou-se, olhando para os degraus.
Outra vez os chineses?
Seichan pensou o mesmo.
— Devem ter seguido o nosso rasto.
Mas como?
Gray deixou essa pergunta de lado e focou-se no que era importante.
— Quantos são, Jembe?
O rapaz levantou dez dedos.
— Um deles ficou com o Chakikui.
E, provavelmente, armados até aos dentes, pensou Gray.
Sacou da sua SIG Sauer. Seichan fez o mesmo. Mas as suas probabilidades não eram favoráveis.
Duas pistolas contra uma equipa de assalto equipada dos pés à cabeça.
— Aqui ficamos demasiado expostos — disse Gray, começando a despachar toda a gente pelas escadas acima e arrastando o rapaz atrás dele.
— E se nos escondermos nas bibliotecas? — sugeriu Lena, apressando-se ao lado de Gray. — Aquelas salas parecem estar interligadas em volta deste espaço.
Roland concordou.
A ideia também agradou a Seichan.
— Acho que é a melhor jogada, Gray. Eles ficam protegidos e nós dois brincamos ao gato e ao rato com os nossos convidados.
Assim que regressaram à câmara de cristal, Gray apontou para a biblioteca de metal, na esperança de que a solidez das prateleiras e dos livros pudessem oferecer proteção. Ainda considerou enviar os companheiros para a biblioteca de cristal, enquanto ele e Seichan atraíam os soldados para o lado oposto. No entanto, a equipa de assalto podia dividir-se e procurar também na outra direção. Se isso acontecesse, os companheiros ficariam à mercê dos assassinos. Assim sendo, deixou-se ficar pelo plano original.
Passou a lanterna a Seichan.
— Leva-os.
— O que estás a fazer?
— Já vou ter contigo, não te preocupes.
Seichan agarrou na lanterna e conduziu o grupo para a porta aberta. Apressando-se pela escuridão, Gray regressou para junto do esqueleto de ouro. Séculos antes, Nicolas Steno teria fechado as portas para a galeria da lua alterando a posição das esferas e reiniciando o mecanismo. Gray não precisava de ser tão meticuloso. Agarrou numa única esfera de metal e trocou-a de posição com uma de cristal. Com o padrão alterado, as portas começaram a fechar, acompanhadas de um som mecânico de engrenagens.
Despacha-te.
Olhou por cima do ombro, para as escadarias. Os degraus brilharam com uma luz ténue, que chegava do piso superior. O inimigo aproximava-se, cauteloso, sabendo que o rapaz já teria dado o alerta. Ainda assim, sabia que precisava de mais tempo. Apontou a pistola e disparou duas vezes nessa direção. Talvez fosse o suficiente para os empatar durante uns segundos.
Finalmente, as portas da sala da lua fecharam-se com estrondo.
Fez um compasso de espera, apenas para garantir que o mecanismo reiniciara na totalidade. Logo a seguir, retirou uma única esfera do respetivo apoio. Tal como acontecera antes, um badalar forte ressoou de imediato.
Com a contagem decrescente novamente ativa, Gray apressou-se em direção à biblioteca, na esperança de alcançar a porta antes da chegada do inimigo.
Não houve tempo.
Uma rajada de metralhadora irrompeu da base das escadas, estilhaçando os azulejos de quartzo atrás dos calcanhares de Gray, obrigando-o a mergulhar de cabeça para a porta da biblioteca. Assim que caiu no chão, rolou sobre si mesmo e atravessou a ombreira.
Seichan ajudou-o a levantar-se e contornaram a estante mais próxima, pondo uma muralha de metal entre eles e a porta.
— Os outros? — perguntou Gray.
— Duas salas mais atrás. Disse-lhes para saírem daqui caso não os consigamos deter.
O sino tocou de novo.
— Uma equipa de comandos não era o suficiente? — resmungou Seichan.
Gray mostrou-lhe a esfera metálica que retirara do pedestal.
— Posso interromper a contagem. Ou posso usá-la como moeda de troca. No pior dos cenários, acabo de criar a maior manobra de diversão do mundo.
— Gostas de viver rápido e no limite, é isso?
— Neste momento, contento-me com viver.
Uma série de movimentos furtivos ecoou da sala do esqueleto. Logo a seguir, um objeto negro rebolou para o interior da biblioteca.
Uma granada.
Pensando bem, acho que a moeda de troca deles é melhor.
Seichan agarrou-o, e ambos rebolaram para longe.
02h31
Lena encolheu-se ao ouvir a explosão repentina. Apesar de a granada ter deflagrado a duas salas de distância, o clarão iluminou o recanto onde se encontrava escondida, recortando as silhuetas dos livros e a ombreira da porta.
Agachara-se com Roland e Jembe atrás de uma estante. O padre abafava a luz de uma pequena lanterna com a palma da mão, o que tornava visível o seu rosto vincado pela ansiedade.
O rapaz puxou a manga do blusão da geneticista.
— Menina Lena — murmurou o rapaz, tentando chamar-lhe a atenção.
Lena percebeu que o rapaz deveria estar mais do que assustado. Fazia tempo que se agarrara a ela, procurando a sua atenção. Passou um braço por cima do ombro dele.
— Vamos ficar bem — disse ela, tentando confortar o miúdo, embora sentisse que o estava a fazer para se convencer a si própria.
— Não — insistiu ele. — Tenho de lhe dizer.
Ela olhou para ele e percebeu a aflição no pequeno rosto.
— Que tens para me dizer?
O rapaz contou-lhe.
Roland também ouviu. Pegou no braço de Lena e levantou-se imediatamente.
— Precisamos de avisar os outros!
02h32
Seichan deixou escapar um gemido ao levantar-se do chão. O rebentamento não fora provocado por uma granada convencional, mas sim por uma granada de atordoamento, um engenho explosivo cuja função era mesmo essa: atordoar o inimigo e incapacitá-lo momentaneamente. Se não estivesse protegida pelas estantes, estaria agora a sofrer de cegueira temporária. Ainda assim, a onda de choque e o estampido tinham-na deixado com a sensação de que acabara de ser atingida na cabeça por um par de bofetadas de um gigante.
Gray não estava em melhor estado, enquanto se agachava com a pistola em riste. Tinham recuado para a sala seguinte, cada um tomando a sua posição em ambos os lados da ombreira da porta. Seichan vigiava com uma linha de visão mais elevada. Por sua vez, Gray observava junto ao chão. Ambos perscrutavam o interior da sala que tinham abandonado.
Notaram movimento nas sombras.
Gray disparou uma vez, escutando um bem-vindo grito de dor. Não era um ferimento mortal, mas fora o suficiente para manter o inimigo em sentido.
Calculando que a equipa de assalto estivesse equipada com óculos de visão noturna, Seichan tirou a sua lanterna do cinto e arremessou-a por cima das prateleiras. Não seria tão eficiente como uma granada de atordoamento, mas a luminosidade repentina cegaria por instantes quem estivesse a usar esse equipamento.
— Bem visto — murmurou Gray.
A lanterna também revelou um par de inimigos, que se tentaram esquivar da fonte de luz inesperada. Seichan e Gray dispararam. Seichan atingiu um deles na coxa, fazendo-o rodopiar contra uma estante. Gray acertou no outro por baixo da orelha, pregando com ele no chão.
Menos um.
Mas aquele inimigo não se deixaria intimidar tão facilmente. Os restantes encontravam-se espalhados lá atrás, a coberto da escuridão. E eram demasiados. Seichan sabia que estava na hora de recuar outra vez, e de fazer com que Roland e Lena se afastassem ainda mais da linha da frente.
Quando se preparava para mudar de posição, uma estranha luz vermelha inundou a sala de cristal.
Ouviram-se disparos. Esporádicos, de início. Depois, mais intensos.
Logo a seguir, começaram os gritos. Horríveis, desesperados.
Que raio se está a passar?
Uma figura de uniforme negro correu na direção deles, tentando escapar da sala de cristal. Não conseguiu. Uma flecha comprida atravessou-lhe a garganta, arremessando-o para a frente. O homem caiu no chão, partindo metade da haste com o impacte. Tentou arrastar-se mais uns metros, arquejando para Seichan e Gray. Então, um espasmo forte arqueou-lhe as costas, enchendo-lhe a boca de espuma branca.
Seichan olhou para a cabeça da flecha.
Veneno.
O som de passos irrompeu nas costas dela. Virou-se rapidamente, de pistola em riste.
— Não dispares! — avisou Gray.
Roland e Lena avançaram, acompanhados pelo rapaz.
Gray fez-lhes sinal para se abrigarem junto dele.
— É a tribo de Jembe! — informou Lena, ofegante.
Seichan olhou para o rapaz. Jembe confirmou com um movimento de cabeça.
— Chakikui disse-me para guiar os homens maus. Mas também disse, sem eles perceberem, que os nossos guerreiros ainda estavam na floresta. Eu tentei avisar, mas...
Seichan percebeu que o miúdo tinha razão. Depois de ele ter dito que estavam a chegar convidados inesperados, simplesmente tinham entrado em modo automático e acabara-se a conversa.
O sino ressoou outra vez, muito mais alto.
Conforme se desvanecia, o tiroteio intenso parecia ter abrandado, ouvindo-se apenas umas rajadas esporádicas que ecoavam à distância, indicando que os guerreiros shuares tinham obrigado os chineses a recuarem.
— E agora? Que fazemos? — perguntou Roland.
— Temos de arrepiar caminho. E depressa! — disse Gray.
— Porquê?
— Porque perdi a esfera — disse Gray, exibindo as mãos vazias. — Tinha-a na mão quando a granada explodiu. Nunca mais a vi.
Claro que não. As coisas com Gray nunca eram fáceis.
O operacional olhou em redor. Não tinham tempo para procurar ou tentar substituir a esfera, sobretudo com um número desconhecido de inimigos ainda à solta.
O sino ressoou outra vez, ainda mais gravoso.
— Não há mais nada que possamos fazer. Está na hora de sair daqui — disse Gray. Virou-se para o rapaz. — Procura um dos teus guerreiros. Diz-lhes para saírem também. Rápido.
O rapaz assentiu.
Gray deu uma palmada no ombro do miúdo e virou-se para os outros.
— Prontos?
Ninguém estava, mas isso não importava para nada.
02h37
— Vamos!
Gray ergueu a pistola e contornou a ombreira da porta. Correu agachado para a sala seguinte, seguido pelos outros. Passou pelo homem morto e correu ao longo das filas de estantes. Deteve-se na última e espreitou a porta que dava para a câmara de cristal.
Não parecia haver ninguém ali.
Mas havia mais corpos, tanto nessa sala como para lá da ombreira, a maioria vestidos com uniformes negros das operações especiais, dois ou três com uma simples tanga. Várias tochas ardiam ainda pelo chão, abandonadas na sala de cristal.
Nos confins da biblioteca, as rajadas esporádicas continuavam. Não era nada que preocupasse Gray.
A câmara de cristal estremeceu com mais um toque.
Estamos a ficar sem tempo.
Sabendo que não podia arriscar mais um segundo, apressou-se através da porta aberta, porém, no mesmo instante, uma silhueta materializou-se à frente dele. Jembe gritou na sua língua nativa. Gray derrapou sobre os calcanhares e deteve-se. Baixou o rosto, para a ponta da flecha apontada a centímetros do seu peito.
O guerreiro desviou-se. Trocou umas palavras rápidas com o rapaz, enquanto o grupo abandonava a biblioteca. Jembe apontou para as escadas. O homem assentiu com a cabeça, juntou os lábios e soltou um assobio semelhante ao de um pássaro, chamando os companheiros.
Gray tocou no braço dele, agradecendo-lhe. Qualquer outra demonstração de gratidão teria de esperar.
— Vamos! — ordenou aos companheiros.
Enquanto se apressava escadas acima, o sino tocou pela última vez, dando início àquela subida de tom ominosa, que tinha ouvido na ocasião anterior. Quando o tom atingiu o pico, o chão estremeceu violentamente sob os seus pés, fazendo-o tropeçar e cair. Os outros não se saíram melhor. Apenas Jembe conseguiu manter o equilíbrio.
A toda a volta, as placas de obsidiana soltaram-se do teto, estilhaçando-se no chão em mil pedaços afiados. As colunas começaram a rachar e a desmoronar-se.
— Rápido! Vamos! — berrou Gray, empurrando o grupo para as escadas.
Atrás dele, os restantes guerreiros abandonaram a biblioteca.
Gray conduziu toda a gente pelas escadas acima e através da câmara seguinte, a que se encontrava coberta pelos mosaicos. À medida que aquele mundo subterrâneo continuava a abanar, os azulejos cristalinos começaram a acumular-se no chão, desfazendo as imagens nas paredes dos animais e dos seus guardiões.
Um trovejar gorgolejante ressoou atrás deles.
Água.
Sentiu os ouvidos estalarem com a subida da pressão do ar. Visualizou a torrente a engolir todos os mistérios que se encontravam abaixo, subindo rapidamente na direção deles, espremendo aquela última bolsa de ar.
Enquanto corria, uma certeza cresceu dentro dele.
A Atlântida estava a afundar-se pela última vez.
02h38
— Temos de ir — avisou o sargento-mor Kwan.
Shu Wei encontrava-se parada entre duas estantes, com água gelada a correr-lhe sobre as botas. Os abalos tinham derrubado a maioria das estantes, fazendo cair os volumes maciços com capas de metal negro. Os indígenas de pela morena que os haviam emboscado já se tinham posto em fuga, antecipando-se à torrente que agora inundava rapidamente o espaço.
Parte dela queria deixar-se ficar ali, aceitar a derrota com uma certa graciosidade e honra, mas o seu peito ardia com um fogo intenso.
Por vingança.
Cambaleando sobre o tornozelo torcido, começou a avançar. Kwan aproximou-se e ajudou-a, passando-lhe um braço ao redor da cintura. Em condições normais, nunca admitiria aquele gesto, tomando-o como um sinal de fraqueza, sobretudo para uma mulher no exército.
Porém, inclinou-se mais para junto dele, sentindo que a ajuda era motivada por mais que mera lealdade. O braço forte dele amparou-a com firmeza. Reservaria a sua própria força para lidar com o inimigo.
Tencionava tornar-se igual ao homem que a carregava.
Tornar-se um Corvo Negro, uma força impiedosa que tomava o que lhe era devido.
Quando abandonaram a biblioteca, o nível de água encontrava-se pela cintura. Kwan já a carregava mais do que a amparava, avançando o mais depressa que conseguia. Porém, uma figura familiar bloqueava a saída.
O ancião segurava um arco, balanceando uma seta no polegar.
Parecia que ela não era a única à procura de vingança.
Kwan ergueu a espingarda com o braço que tinha livre. Antes que pudesse disparar, um som de chicote soou do seu lado direito. Uma flecha perfurou-lhe o pulso, obrigando-o a largar a arma. Logo a seguir, uma lança trespassou-lhe as costas. Kwan tossiu uma ou duas vezes. Um fio de sangue escorreu-lhe pelos cantos dos lábios.
Quando tombou na água, Shu Wei caiu para o lado.
Duas mãos agarram-na pelos ombros e levantaram-na, mantendo-a de pé.
Podia tentar lutar, mas o equipamento encharcado pesava demasiado e a perna esquerda latejava de dor.
Endireitou as costas, pronta a aceitar a morte.
O ancião manteve-se junto à porta, o arco pronto a disparar.
Ela fitou-o, desafiadora, quando ele deixou a flecha voar.
02h43
Gray apressou-se pelo longo corredor com as várias formas de escrita antigas. Rachas enormes tinham dividido as linhas de texto. Mais adiante, uma secção de chão partira-se e encontrava-se desnivelada. No entanto, apesar de toda a destruição visível, a terra continuava a tremer, indicando que o pior ainda estava para vir.
Não tenciono estar aqui quando isso acontecer.
Visualizou a cidade a ser engolida pelo manto de água gelada.
Abrandou para ajudar Lena, notando que ela estava a ficar para trás. Seichan tentou fazer o mesmo com Roland, mas o padre afastou-lhe a mão.
— Eu consigo — disse o padre, a deitar os bofes pela boca.
Os únicos que pareciam imunes à longa e desesperada corrida eram os guerreiros que seguiam na retaguarda. Na verdade, dava a sensação de que os indígenas estavam a conter o ritmo da passada, assegurando-se de que Gray e os outros não ficavam para trás. Sobretudo Jembe, que corria para a frente e para trás entre eles, como um cachorro excitado, embora estivesse claramente assustado.
Alcançaram por fim o lance de escadas que conduzia à entrada inundada da cidade. Sem abrandarem, desceram os degraus que formavam uma espiral. Gray manteve uma mão na parede, para não perder o equilíbrio.
Subitamente, os degraus tornaram-se perigosamente escorregadios, cobertos de musgo molhado, assim como as paredes. Percebeu que a linha de água retrocedera, uma vez que teria escoado para os níveis inferiores da estrutura.
Começou a abrandar o passo, consciente da dificuldade da descida.
Então, um estrondo ensurdecedor estremeceu a escadaria, acompanhado do estalejar de rocha a partir-se. Pedras do tamanho de um punho fechado precipitaram-se pelos degraus abaixo. Algumas tinham o tamanho de verdadeiras abóboras.
A cidade começara a implodir.
Esquecendo as cautelas, Gray acelerou, fazendo o seu melhor para não ser atingido por trás pelas pedras maiores. Instantes depois, o grupo já se encontrava no ponto onde os degraus desapareciam dentro de água.
— Tentem permanecer juntos! — berrou Gray. — Ajudem-se uns aos outros, se for preciso!
Fez Lena avançar, depois Roland.
Jembe empurrou Seichan, pondo-lhe as mãos sobre as ancas.
— Vai!
Gray não disse nada ao rapaz e agarrou a mão de Seichan. Mergulharam juntos e nadaram pelas últimas curvas da escadaria, seguindo pelo túnel seguinte.
Lena e Roland sacudiam as pernas mais adiante, lutando por chegarem rapidamente à superfície.
Finalmente, alcançaram o pequeno lance de degraus que levavam ao túnel que desembocava no lago. Emergiram uns a seguir aos outros, ofegantes. Quando tinham entrado na cidade, aquela passagem estreita encontrava-se inundada quase até ao teto. Agora, o nível de água ficava-se pela barriga das pernas. Exaustos, percorreram os últimos metros em fila indiana até ao lago.
A brisa noturna, límpida e fresca, cumprimentou-os. O céu brilhava com uma lua cheia cristalina, acompanhada da extensa banda de estrelas que compunham a Via Láctea. Atravessaram o lago e arrastaram-se para a margem oposta.
Gray notou um par de botas pretas a espreitarem de um arbusto, provavelmente do soldado que ficara com Chakikui. Seichan sacou da pistola, na eventualidade de algum dos outros comandos ter conseguido escapar.
Gray apreciava a resolução dela, mas duvidava de que houvesse motivos para se preocuparem. Observou os restantes nativos que emergiam entre as árvores.
Jembe sentou-se pesadamente ao lado dele.
— Onde está Chakikui? — perguntou Gray.
Jembe olhou para a boca do túnel. Gray percebeu que o ancião ainda devia estar lá em baixo. Engoliu em seco, mas o rapaz deu-lhe uma palmada na perna.
— Chakikui é velho.
Gray olhou para Jembe, entendendo que as palavras dele eram uma maneira de lidar com a perda do ancião. Em vez disso, o rapaz continuou.
— É muito sábio, conhece muitas saídas.
Roland ouvira a conversa.
— Os nativos que ofereceram os artefactos a Crespi afirmavam que existiam múltiplas entradas para aqueles túneis recheados de tesouros.
Gray desejou que ambos estivessem certos.
Estava em dívida para com aquele homem... a bem dizer, estavam todos.
Lena sentou-se com os braços à volta das canelas. Parecia pouco aliviada apesar da fuga espetacular. O olhar continuava atormentado, ausente. A razão era mais do que evidente.
Ela estava a salvo, Maria ainda não.
25
1 de maio, 13h05 CST
Pequim, China
Maria encolheu-se na caixa da carrinha, enquanto aceleravam através do mar de chamas. Usava um lenço sobre o nariz e a boca, que humedecera com água do cantil de um dos soldados. Ajudava a filtrar o fumo espesso, mas o calor ainda queimava sempre que as chamas beijavam as laterais da carrinha curva após curva. Agarrada a Baako e sem ter onde se segurar, deslizava para a frente e para trás na caixa aberta do veículo, mantendo um pano sobre o focinho do gorila, que choramingava e tremia.
Kowalski agachou-se e pousou um braço sobre os dois.
— Está quase, matulão — confortou Kowalski, fixando uma perna contra as tábuas laterais, para segurá-los minimamente. — Já não falta muito.
Maria desejava que ele estivesse a dizer a verdade. Sentia os olhos e os pulmões arderem. Ainda assim, pelo menos o calor deveria manter os monstros híbridos à distância. Infelizmente, os rugidos esporádicos indicavam que não andariam assim tão longe quanto isso.
Se não estiverem neste piso, estão de certeza no próximo.
Erguendo o rosto, tentou visualizar um céu azul, ar puro e brisa fresca. Viu uma forma grande atravessar a cortina de fumo, voando acima deles, provavelmente uma ave de grande porte que escapara do zoo e que agora tentava fugir daquele inferno. Não conseguiu perceber de que espécie era a ave, mas desejou que encontrasse o caminho para a liberdade.
Espero que todos nós consigamos.
Pela pequena janela na traseira da cabina, ouviu Kimberly gritar para o condutor.
— Não vamos conseguir chegar à próxima rampa!
Maria abraçou Baako com mais força, desesperando.
— Existe uma escadaria mais à frente — continuou Kimberly. — Parem aí. Temos de fazer a pé o resto do caminho.
A notícia aliviou-a e aterrorizou-a ao mesmo tempo. Olhou em redor, para os rostos estoicos dos soldados. Não estavam menos preocupados.
A carrinha avançou mais uns trinta metros e deteve-se bruscamente.
— Toda a gente cá para fora! — berrou Monk. — Sigam para as escadas!
Kowalski ajudou-a a descer, gemendo e evitando fazer força com o lado esquerdo do corpo, mas, ainda assim, conseguiu segurá-la com firmeza. Assim que todos abandonaram o veículo, avançaram em formação compacta para a escadaria coberta de fumo. Uma ligeira brisa soprou do nível inferior, aliviando a fumaça. Conforme iam descendo os degraus, o ar tornava-se mais fresco e respirável.
Monk acendeu uma lanterna, abafando o feixe luminoso com a outra mão.
— Fica atrás de mim — disse Kowalski a Maria.
Monk chefiou o grupo, flanqueado pelos seus operacionais e com Kimberly na retaguarda.
Maria conduziu Baako pela mão, mantendo-o junto dela. Em algum momento, a ligadura do animal soltara-se, expondo a laceração ao longo do escalpe. A preocupação pelo seu bem-estar era uma dor constante no peito.
À medida que avançavam, ia reconhecendo alguns pontos do complexo. Não se encontravam longe do laboratório de vivissecção. Um rebentamento fê-la dar um salto e virar-se. No fundo de um corredor escuro, uma secção do teto acabara de abater, por conta da ferocidade do incêndio no piso superior, arrastando consigo labaredas intensas que se espalharam na direção do grupo.
— Não tarda muito até que isto tudo se desmorone de vez — avisou Kimberly.
Estugaram o passo, preferindo a velocidade à cautela.
Após uma série de curvas enervantes, Baako puxou a mão de Maria e obrigou-a a parar. Só nesse momento, por cima do batimento do seu próprio coração, ela conseguiu ouvir um choramingar familiar. Baako continuou a puxá-la em direção a uma porta. Maria queria desesperadamente continuar, mas sabia o que Baako pretendia. Com a mão que tinha livre, o gorila agarrou na maçaneta. Destrancada, a porta abriu-se.
— Que estás a fazer? — perguntou Kowalski, fazendo sinal ao grupo para aguardarem.
Baako entrou na sala. Sem escolha, Maria seguiu-o, arrastando o resto dos companheiros. No interior do espaço, encontrava-se uma fila de jaulas de aço inoxidável. A maioria estava vazia, porém, três delas albergavam jovens chimpanzés, que não teriam mais que dois anos. A seguir a essas, uma quarta jaula aprisionava uma fêmea adulta, com tetas descaídas, provavelmente uma fêmea parideira. A chimpanzé estendeu um braço por entre as grades.
— Temos de continuar — disse Kowalski.
Ignorando-o, Baako aproximou-se de uma das jaulas e abanou-a. Virou-se e gesticulou uma série rápida de sinais.
[Abrir... sair... juntos]
— Não — respondeu Maria. Apontou para Kowalski. — Temos de ir embora.
Baako lançou-lhe um olhar desamparado, provavelmente recordando-se da sua própria experiência numa jaula semelhante àquela. Continuou a abanar as grades. Um dos chimpanzés, que não teria mais de um ano, estendeu um braço e agarrou-lhe um dos dedos.
— Que se lixe! — disse Kowalski. Começou a forçar as trancas das jaulas. — O Baako já não vai a lugar nenhum sem levar estes desgraçados.
Maria juntou-se a Kowalski.
— Ajudem-nos — vociferou Kowalski para os outros.
Abriram todas as jaulas. Kowalski carregou um dos chimpanzés debaixo do braço e segurou outro pela mão. A fêmea correu para o pequenino e pegou nele ao colo.
Monk olhou para eles, abanando a cabeça, depois caminhou para a porta. Um dos guardas que vigiava o corredor fez sinal para não avançarem. Recuou para o interior da sala e fechou a porta, segurando a maçaneta. Levou um dedo aos lábios.
Ninguém se mexeu um milímetro.
Algo monstruoso avançou pelo corredor. Maria sentiu o chão tremer, visualizando um dos gorilas híbridos. Passou pela porta e continuou o seu caminho. Aguardaram uns bons segundos antes que o soldado arriscasse espreitar o corredor. Algures à distância, uma série de gritos fez-se ouvir, acompanhados de tiros e de rugidos furiosos.
O soldado olhou por cima do ombro.
— Podemos continuar.
Abandonaram a sala e avançaram na direção contrária ao som da matança. O odor almiscarado do animal ainda pairava no ar. Conforme o corredor descrevia uma curva larga, a passagem seguinte apresentava-se como uma longa reta, ladeada por laboratórios selados. Maria apercebeu-se de que teriam dado de caras com o monstro híbrido caso Baako não os tivesse desviado para a outra sala.
Kowalski devia ter pensado o mesmo e deu uma palmada no ombro do gorila.
Apressaram-se ao longo do resto do corredor, abrandando apenas nos últimos metros. Kimberly aproximou-se de Monk, mas Maria conseguiu ouvir o que dizia.
— O hangar de cargas e descargas fica na próxima esquina. O mais certo é estar fortemente guardado pelos homens do Chang.
Monk virou-se e fez um sinal à equipa. Os operacionais acondicionaram melhor a coronha da arma contra o ombro.
Kowalski tentou passar a Maria o chimpanzé que carregava consigo, fazendo uma careta por causa daqueles pequenos braços enrolados no seu pescoço. Maria ajudou-o, libertando-o da criatura assustada e aninhando-a junto ao peito. Esticou um braço e segurou também a mão da fêmea adulta, puxando-a para junto de si.
Kowalski fez um sinal para Baako.
[Sê rápido]
Baako grunhiu baixinho e pôs o outro jovem chimpanzé em cima das costas. O animal agarrou-se ao seu pescoço, para manter o equilíbrio. Baako modificou o sinal de Kowalski.
[Muito rápido]
— Isso mesmo — confirmou Kowalski, erguendo uma caçadeira que Monk lhe entregara antes.
Monk olhou por cima do ombro para Kowalski e Baako. Sorriu.
— É tal e qual o pai...
Era apenas uma piada para ambos descontraírem, mas Kowalski não pareceu entender assim.
— Sim, é um bom rapagão — respondeu. Apontou com a caçadeira para a frente. — Vamos lá acabar com isto.
13h22
Monk contornou a esquina, guiando os outros. Um pequeno átrio desembocava no espaço cavernoso do hangar de cargas e descargas. Manteve toda a gente encostada à parede, para permanecerem fora de vista o mais tempo possível. Os ouvidos procuraram qualquer sinal da presença do inimigo, mas apenas captavam gemidos distantes, explosões e todo o tipo de ruídos inerentes à implosão do complexo.
Mais diante, tudo era tranquilidade e silêncio. Porém, o seu nariz identificou um odor fétido por entre o cheiro a queimado e a fumo.
Cerrou os maxilares.
Alcançou por fim o limiar do hangar e estudou as várias filas de prateleiras. Algumas tinham tombado, derrubando as seguintes num efeito de dominó e espalhando os variados conteúdos pelo chão, numa amálgama de caixotes de madeira partidos, barris e caixas esmagadas.
Monk tinha uma vista parcial da saída, de onde jorrava um retângulo de luz exterior para dentro do espaço cavernoso. Os portões do hangar — que antes se encontravam fechados — estavam semiabertos, sugerindo que poderia ter ocorrido uma evacuação rápida daquele espaço. Os candeeiros das passagens da Cidade Proibida brilhavam para lá dos portões.
Ainda sem sinais de atividade, Monk respirou fundo e avançou aos ziguezagues entre as sombras, tentando manter-se invisível. Quando contornou uma pilha de caixas de papelão, a vista do hangar abriu-se na totalidade.
Meu Deus...
Os corpos uniformizados encontravam-se espalhados por toda a parte, rasgados, despedaçados ou esmagados. O sangue cobria chão e paredes. Caídas em todo o lado, havia armas que ainda fumegavam. Algumas tinham mãos a agarrá-las, mas sem corpos.
No centro da carnificina, uma montanha de pelo estava caída de focinho no chão. Tinha metade do crânio arrancada, provavelmente pelo impacte de uma granada de propulsão. Monk varreu a cena com o olhar e notou o tubo negro de um lança-granadas abandonado, junto aos portões semiabertos.
— Acho que isto é o que resta dos homens do Chang — murmurou Kimberly.
Monk tinha esperança de que o tenente-coronel se encontrasse entre os cadáveres, mas havia uma preocupação premente. No exterior, o parque de estacionamento estava desocupado. Os soldados em fuga não deviam ter olhado a meios e socorreram-se de tudo o que tinha rodas. Sobrara apenas um camião de carga azul.
Olhou para Kimberly, que também estudava o camião.
— Precisamos das chaves.
A razão provável pela qual o camião ainda estava estacionado era as chaves estarem com o condutor. Monk recordava-se da coronhada que o sargento Chin dera no homem, quando entraram no complexo. A seguir, tinham escondido o corpo inconsciente atrás de uma pilha de paletes de madeira.
Porém, será que ainda estava no mesmo sítio?
Monk semicerrou os olhos e viu um par de botas.
Suspirou de alívio.
— Ao meu sinal, eu corro para buscar as chaves e tu levas toda a gente para o camião.
Kimberly assentiu.
Monk olhou para os outros, certificando-se de que todos tinham percebido. Depois emitiu a ordem.
— Mexam esses rabos!
Virou costas e correu pelo espaço aberto. Apontou para a pilha de paletes, enquanto o resto da equipa se apressava para os portões. Esteve perto de cair várias vezes, escorregando no chão de cimento ensanguentado.
Então, um som de madeira a lascar chamou-lhe atenção.
Deslizando sobre as botas, olhou por cima do ombro.
Uma figura monstruosa emergiu de uma pilha de caixotes, arremessando-os pelo ar e derrubando mais prateleiras enquanto abandonava o local onde se escondia. Saltou por cima do último obstáculo e aterrou pesadamente sobre as patas traseiras, apoiando-se num dos braços. Curvou-se para encher os pulmões, exibindo a crista de pelo prateado ao longo das costas maciças. Depois, ergueu-se e soltou um rugido indescritível. Um dos punhos bateu no peito, soando tão poderoso como um trovão.
Merda...
Monk apressou-se a sair dali.
— Corram para o camião! Já!
Virou-se e correu para o corpo caído do condutor. Ouviu o animal cair sobre as quatro patas e sentiu o chão começar a tremer quando arrancou na sua direção, atraído pelo som do grito. Ao redor, as poças de sangue formavam círculos concêntricos por causa da vibração.
Monk mergulhou no último instante, voando pelo ar. Assim que aterrou, um punho gigantesco esmagou a pilha de paletes, causando uma explosão de lascas de madeira.
Monk esticou-se, agarrou o tornozelo do condutor e rolou para se afastar do golpe demolidor. Encolheu-se junto ao corpo, com as lascas de madeira ainda a caírem. Esperava sentir a qualquer momento o outro punho do animal nas suas costas, esmagando-o contra o cimento.
Em vez disso, uma voz gritou junto aos portões.
— Ó feioso! Ainda não terminámos a nossa conversa!
13h26
Kowalski viu o gigante rodar o corpo, claramente reconhecendo a sua voz, reconhecendo o seu anterior adversário, ou refeição, consoante o ponto de vista.
Ergueu o lança-granadas e apoiou-o sobre o ombro.
Agora sim, podemos dançar.
No instante anterior, enquanto o animal perseguia Monk, Kowalski separara-se do grupo e correra para o lança-granadas abandonado, recolhendo dois projéteis pelo caminho.
Carregara rapidamente a arma, e agora apontava a ponta do tubo para o gigante, que se virava na sua direção. Ainda assim, aguardou até que Monk terminasse de procurar as chaves nos bolsos do condutor. Finalmente, o companheiro levantou-se e correu para a pequena porta lateral.
O gigante apoiou-se sobre um braço, fitando-o, a respiração pesada. A julgar pelo brilho nos olhos negros, lembrava-se bem dele.
Kowalski centrou a mira.
Dificilmente falho este tiro.
Com Monk fora do caminho, Kowalski premiu o gatilho; a detonação foi ensurdecedora. Um rasto de fumo cruzou o ar em forma de espiral, em direção ao gigante. Porém, no último instante, o gorila esquivou-se para o lado, claramente reconhecendo o funcionamento da arma que tinha sido usada há momentos contra um dos seus. O gigante mostrava ter a capacidade de aprender com os erros dos outros.
Tendo falhado o alvo, o projétil atingiu a parede do hangar e explodiu numa bola de fogo, projetando uma chuva de cimento.
Kowalski não tinha tempo para recarregar, por isso virou costas e fez exatamente o que Monk instruíra de início.
Mexer o rabo.
O parceiro já se encontrava ao volante do camião. O motor a gasóleo despertou com um ronco profundo, ejetando uma baforada de fumo negro.
Kowalski correu para a traseira do camião. Notou o rosto preocupado de Monk no reflexo do enorme espelho retrovisor lateral. Sabia bem qual era a fonte da preocupação do colega. No mesmo reflexo, viu o monstro agigantar-se nas suas costas. As patas traseiras escorregaram numa poça de sangue, e depois carregou na sua direção.
— Arranca! — gritou Kowalski, brandindo o lança-granadas.
Correu mais depressa, com o olhar fixo no espelho retrovisor. O gigante ocupava a superfície inteira do espelho, rugindo para ele, soltando longos laivos de saliva enquanto exibia as presas.
Kowalski sabia que não ia conseguir, sobretudo quando o pesado camião começou finalmente a ganhar velocidade. A cada passo que dava, parecia que as costelas partidas se cravavam sob os músculos.
Começou a ficar para trás, as forças a esvaírem-se.
Uma série de disparos irrompeu da traseira do camião. As balas começaram a voar por cima da cabeça, apontadas ao gigante. Os operacionais de Monk tinham saído da cabina, trepando para o compartimento de carga, para ajudar o companheiro em apuros.
O ato deu-lhe forças para continuar.
Conseguiu por fim deitar uma das mãos ao para-choques e agarrou uma pequena escada que se encontrava fixa ao longo da traseira. Os dedos escaparam-se-lhe. Desequilibrado, usou as últimas das suas forças para se atirar de cabeça com os braços esticados. Uma mão agarrou-se nos degraus tubulares da escada, com as biqueiras das botas a arrastarem pelo chão enquanto o camião ganhava velocidade.
Olhou por cima do ombro.
O gigante continuava atrás dele. A pele espessa e os ossos grossos pareciam impenetráveis para as balas. O monstro estendeu um braço, mas Kowalski acertou-lhe com o lança-granadas no nó dos dedos.
O braço recolheu, mas o monstro continuou a perseguição.
Kowalski atirou a arma para o compartimento de carga, uma vez que necessitava das duas mãos para se elevar. Uma vez seguro, recolheu as pernas para cima do para-choques, endireitando-se facilmente em seguida. Todavia, o camião era demasiado lento. O gigante encurtou a distância e conseguiu alcançar a traseira.
Então, um tubo preto emergiu do compartimento de carga, apontando diretamente para o focinho do gorila. Kowalski olhou para cima, intrigado, sobretudo quando percebeu que era Maria quem manejava a arma. Todavia, a única granada que sobrara estava na sua posse.
Ainda assim, o gigante reconheceu a ameaça.
Um baque forte e profundo sobressaltou Kowalski, quase o fazendo cair.
O gigante teve uma reação idêntica esquivando-se e rebolando para o lado, como tinha feito antes, acreditando que ia ser atingido. Porém, aquele som tinha sido Maria a bater com a sola da bota na parte anterior do tubo, fingindo um disparo.
Kowalski olhou por cima do ombro para o gigante, que ficara no meio da estrada. Rugiu furioso, provavelmente percebendo que tinha sido enganado.
Kowalski ergueu uma das mãos e esticou o dedo do meio.
Boa sorte para a próxima, campeão.
— Agarrem-se! — gritou Monk da cabina.
Kowalski olhou para a frente.
Mais adiante, um comboio de veículos militares avançava para eles, ocupando toda a largura da estrada.
Era o exército chinês.
Kowalski suspirou.
Eu e a minha grande boca...
13h31
Com Kowalski a bordo, Monk abrandou a velocidade. Tentou ignorar o comboio que se aproximava e virou-se para Kimberly.
Ela franziu a testa. Estivera a estudar o percurso desde o momento em que o camião arrancara, tentando encontrar alternativas no mapa da Cidade Proibida fornecido por Kat.
— O exército está a vir da mesma direção por onde entrámos a primeira vez.
Monk parou o camião.
— Isso quer dizer que não vamos sair por onde entrámos.
— Não — respondeu Kimberly, olhando por cima do ombro. — Mas há um cruzamento cem metros lá atrás.
Monk lembrava-se desse túnel. Era ainda maior do que aquele em que se encontravam.
— Onde vai dar?
— Não faço ideia. Não consta no mapa da Kat.
— Vamos ter de descobrir.
Olhando pelo retrovisor, Monk engrenou a marcha-atrás e carregou no acelerador. O gigante encontrava-se parado a cerca de cinquenta metros. Por essa altura, os seus rugidos furiosos tinham atraído o resto dos gorilas para o túnel. Formas negras gigantescas deambulavam agora por toda a largura da estrada, juntando-se ao chefe.
— Tens de fazer a curva o mais depressa que conseguires — avisou Kimberly.
A sério?
Ainda assim, Monk manteve uma velocidade moderada. Queria dar a entender aos chineses que era apenas um condutor que tentava escapar ao caos, manobrando o melhor que podia para sair da frente do caminho do exército.
Uma saraivada de tiros irrompeu dos veículos que encabeçavam o comboio militar, atingindo a grelha do camião e estilhaçando o para-brisas.
Okay, isto não vai resultar.
Enquanto ganhava velocidade, Kimberly baixou-se e alcançou uns binóculos. Estudou a caravana de veículos militares, avaliando a ameaça, depois praguejou entredentes.
— Que foi que viste?
— No jipe da frente. Chang Sun.
Só podes estar a brincar.
Kimberly franziu o sobrolho.
— Deve ter fugido durante a confusão e encontrou o comboio pelo caminho. Provavelmente foi ele quem chamou o exército.
E agora vem com a cavalaria para fazer o papel de herói.
Monk ganhou mais velocidade, perseguido pela caravana militar. O sargento Chin e os seus homens começaram a ripostar do compartimento de carga do camião. Todos os outros, incluindo Baako e os chimpanzés resgatados, também se encontravam lá. As paredes de aço grosso forneciam uma proteção razoável contra as balas.
Monk manteve-se focado no espelho retrovisor. No reflexo, verificou que os gorilas já se tinham agrupado ao redor do macho alfa. O tiroteio e a aproximação de veículos mantinha os gorilas cautelosos, mas isso não duraria muito tempo.
O gigante fixou o olhar no camião. Caiu sobre as quatro patas e carregou ao encontro deles, convencido de que estavam a regressar, talvez acreditando que pretendiam dar luta.
Infelizmente vou desapontar-te, calmeirão.
Monk alcançou o cruzamento e travou a fundo. Torceu o volante, desequilibrando a traseira e quase parando com a frente apontada para o novo túnel.
Atravessado na estrada, Monk tinha agora uma visão desimpedida para o comboio que se aproximava a toda a velocidade, com as luzes apontadas para ele.
— De que estás à espera? — perguntou Kimberly.
Monk manteve o pé esquerdo no travão e começou a aumentar a rotação do motor com o direito, enchendo o túnel com fumo negro. Manteve-se firme até conseguir ver a menina dos olhos de Chang Sun, que ocupava o banco do passageiro do primeiro jipe.
Kowalski gritou da traseira.
— Estão mesmo em cima de nós!
Não se estava a referir aos chineses.
Monk notou o esgar de satisfação no rosto de Chang.
Deve ser suficiente.
Tirou o pé de cima do travão e agarrou-se ao volante. Os pneus giraram, a queimar borracha, e o camião disparou pelo outro túnel.
Tal como esperava, o comboio avançava tão focado no gigantesco veículo azul que ocupava toda a estrada que nem tinham reparado no exército de animais que aguardava nas sombras, para lá do camião.
Pelo espelho retrovisor, Monk observou o momento em que as duas forças colidiram.
Os gorilas híbridos carregaram sobre os jipes e camiões, rompendo as lonas das capotas e arrancando os soldados dos assentos.
O túnel descrevia uma curva logo adiante, e foi tudo o que conseguiu ver da batalha.
Finalmente, focou toda a sua atenção no caminho que se estendia pela frente.
— Bom, por onde vamos agora?
13h58
Depois de vinte minutos de viagem por túneis escuros, Maria conseguiu finalmente respirar de alívio. Encontrava-se sentada no compartimento de carga do camião, rodeada de corpos quentes e peludos.
Baako dormitava encostado a ela, com um dos jovens chimpanzés aninhado no colo. No outro lado, a fêmea adulta dava de mamar à cria. Nos braços, Maria segurava o pequenino de um ano de idade, com a pequena cabeça repousada no seu ombro, o bafo suave do animal afagando-lhe a base do pescoço.
Recordou-se de quando Baako era pequeno.
Kowalski encontrava-se sentado de pernas cruzadas, encostado numa das laterais, a olhar para ela.
— Que foi? — perguntou Maria.
Kowalski encolheu os ombros.
— Nada. Estava só a admirar-te. Estás com bom aspeto.
Maria baixou o rosto e olhou para o seu estado desalinhado, franzindo as sobrancelhas.
Conta-me histórias...
Kowalski passou uma das mãos sobre o cabelo.
— Quero dizer... pareces satisfeita... como se soubesses qual é o teu lugar no mundo.
Maria esboçou um sorriso.
— Talvez.
Melhor do que há uns dias, pelo menos.
— Estás com bom aspeto, apenas isso — acrescentou ele, encostando-se e fechando os olhos, mas não sem antes deixar escapar um sorriso.
Maria sabia que desta vez ele não se estava a referir a contentamento. Mas não fez nenhum comentário e aceitou o elogio, sentindo-se lisonjeada.
O motor tossiu subitamente, estremecendo o camião, depois engasgou-se mais duas vezes. Por fim, estrebuchou e ejetou uma nuvem de fumo, acabando por morrer.
Maria endireitou-se, rodando o corpo.
Monk gritou pela janela da cabina.
— Acabou-se a gasolina, acho que uma das balas furou o depósito. Mas a Kimberly sabe onde estamos. Existe uma saída a cerca de oitocentos metros. Vamos continuar a pé.
Kowalski ajudou Maria com a bicharada.
Uma vez no chão, deram início à caminhada. Monk guiou o grupo com uma lanterna. O feixe era suficiente para iluminar o túnel.
Após alguns minutos, Kimberly guardou o telefone e olhou em frente.
— A saída fica perto da Cidade Proibida. Quando lá chegarmos, eu subo à superfície com o sargento Chin e tentamos arranjar um veículo. — Olhou para Maria. — Provavelmente uma carrinha fechada, por causa dos nossos invulgares companheiros. Com as atenções focadas no zoo, não deverá ser difícil passarmos despercebidos até aos limites da cidade. Depois tratamos da evacuação. Ainda assim, devíamos...
— Silêncio! — disse Monk, cortando-lhe a palavra e abafando a luz da lanterna. Fez sinal para toda a gente se encostar à parede.
— Que foi agora? — resmungou Kowalski.
Então, Maria também ouviu.
O roncar de um motor. Um par de faróis surgiu atrás deles, contornando a última curva. De certeza que o veículo tinha reparado no camião abandonado.
Monk desligou a lanterna e virou-se para Kimberly.
— Algum sítio onde nos possamos esconder?
— Nenhum que esteja suficientemente perto.
Monk praguejou e indicou a todos que se agachassem. Os operacionais fincaram um joelho no chão, com as armas prontas, protegendo Maria e os outros.
O veículo continuou a avançar, detendo-se a cerca de dez metros deles. A luz dos faróis cegou-os, mas conseguiam perceber que era um jipe militar chinês. Tinha uma metralhadora pesada, montada num suporte, que prontamente foi apontada na direção do grupo.
Uma voz fez-se ouvir.
— Não existe nenhum lugar para onde possam fugir.
Maria reconheceu o tom superior.
Pelo resmungo de Kowalski, ele também sabia de quem era a voz.
14h16
Este filho da mãe tem mais vidas do que um gato.
Com o motor do jipe a roncar, Chang Sun permanecia resguardado pelo suporte da metralhadora pesada, pretendendo conservar aquelas vidas que ainda lhe restavam. O cobarde devia ter abandonado o comboio militar assim que deu de caras com os gorilas no cruzamento. Depois, tinha seguido o camião, com intenções de reclamar para ele toda a glória pela captura do grupo.
O sargento Chin disparou uma rajada curta, mas logo percebeu que o para-brisas do jipe era à prova de bala. Necessitariam de mais poder de fogo.
Kowalski ergueu o lança-granadas, mas Chang varreu o chão à frente deles com uma chuva de chumbo quente.
— Não se mexam — avisou Chang — e talvez permita que alguns continuem vivos, para poderem ser julgados como espiões americanos.
Kowalski baixou a arma.
— Mas não preciso dos animais — continuou Chang. — Façam-nos avançar para os despachar aqui mesmo.
Maria pôs-se à frente de Baako.
O cano da metralhadora virou na direção do peito dela.
— É melhor obedeceres — disse Kowalski, dolorosamente pragmático. — Se o Baako tiver de morrer, antes desta maneira do que num laboratório qualquer.
Maria respirou fundo, mantendo-se firme. Por fim, sabendo que Kowalski estava certo, cedeu. Virou-se para Baako e gesticulou na direção dele.
[Amo-te muito]
O gorila choramingou, agarrando-se a ela.
— Rápido! — berrou Chang.
— Deixa-os despedirem-se, seu pedaço de merda! — gritou Kowalski.
Maria ajoelhou-se e abraçou Baako, apertando-o o mais que podia. Segurou-o por um longo momento, mas sabia que a paciência de Chang não durava para sempre. Afastou-se e encorajou-o a avançar com os chimpanzés para o jipe.
Baako avançou, carregando os dois animais mais jovens nas costas e segurando a mão da fêmea, que segurava a sua cria. Pararam em frente do jipe, tornando-se silhuetas negras contra o brilho dos faróis, como se fossem já fantasmas.
O cano da arma desceu na direção do grupo.
Maria afundou o rosto no peito de Kowalski, preparando-se para o trovejar dos disparos.
— Está tudo bem — disse ele.
Não era uma mentira piedosa.
Com todas as atenções focadas na frente do jipe, ninguém notara a sombra que se movia na traseira, materializando-se lentamente numa forma maciça.
Chang não era o único sobrevivente da batalha no cruzamento.
O gorila gigante aproximou-se furtivamente da sua presa. Estava bastante ferido, a sangrar profusamente, com um dos braços a pender como um peso morto. Ergueu-se junto à traseira do jipe. Os ocupantes, incapazes de o ouvir por causa do ruído do motor, não faziam ideia do que aí vinha.
Monk começou a recuar com o grupo.
Chang deveria estar a pensar que se estavam a afastar da matança.
— Não vai demorar muito — prometeu, com um sorriso maquiavélico.
Tens toda a razão.
A manápula monstruosa agarrou Chang pelas costas e arrancou-o do suporte da metralhadora. O choque impediu-o de soltar um único som. Então, rodou o corpo e conseguiu um vislumbre de quem o tinha atacado.
Gritou, finalmente.
Em pânico, o condutor saltou disparado do jipe. O sargento Chin ofereceu-lhe duas balas bem no meio da testa.
O gigante ignorou os disparos e levou o corpo contorcido de Chang à boca. Cravou os molares na cabeça do homem, depois cerrou os maxilares com uma força explosiva, esmagando-lhe o crânio.
Assim que o corpo de Chang ficou inerte, o gorila arremessou-o para as sombras e apoiou-se num punho. Fitou o grupo por cima do jipe.
Kowalski já tinha o lança-granadas pronto a disparar, a mira bem centrada no gigante. Desta vez, não havia escapatória. O animal rugiu, preparando-se para o combate.
Estou à tua espera.
Então, uma sombra tapou a visão de Kowalski. Uma mão peluda baixou-lhe o cano da arma. Baako ergueu-se sobre as patas traseiras, virando-se para o monstro híbrido.
O jovem gorila esticou-se o mais que podia. Gesticulou para o gigante, estendendo um braço e apontando dois dedos no ar e depois na direção do monstro.
[Vai-te embora]
O gigante curvou-se sobre o braço bom. O sangue acumulava-se debaixo dele, formando uma poça negra. Alternou o olhar entre a postura desafiante de Baako e o lança-granadas.
Baako repetiu o sinal.
[Vai-te embora]
O gigante cedeu, rugindo de exaustão. Depois, virou costas e desapareceu na escuridão.
Ninguém se mexeu, com medo de que pudesse regressar.
Finalmente, Maria correu e abraçou Baako.
Kowalski permaneceu atento. Interrogou-se se o gorila teria recuado por causa dos ferimentos, por causa do atrevimento de Baako ou por ter baixado a arma.
Talvez um pouco de tudo.
Fosse qual fosse a razão, a verdade é que desaparecera na escuridão. Se calhar, dali por uns anos alimentaria a imaginação das pessoas como um mito urbano, um ieti monstruoso a viver algures no subsolo de Pequim.
Kowalski passou o lança-granadas a Monk e foi ter com Baako. Deu uma palmada no ombro do gorila.
— Aqui está o novo mandachuva cá do sítio!
Baako ergueu um braço para brincar com ele e acabou por lhe acertar nas costelas.
Kowalski contorceu-se.
Baako arqueou a sobrancelha, pensando que o tinha aleijado.
— Está tudo bem — assegurou Kowalski. Formou a letra F com os dedos e desenhou um círculo no ar.
[Família]
Baako disse vigorosamente que sim com a cabeça. Olhou para Maria, depois para Kowalski. A seguir, bateu com o polegar na testa, olhando-o seriamente.
[Papá]
Kowalski recuou um passo.
— Não vamos exagerar, okay?
26
6 de maio, 21h05 EDT
Cidade de Washington
— Essa é a posição oficial do governo chinês? — perguntou Gray, sentado frente à secretária do diretor da Sigma. — Uma fuga de gás?
Painter reclinou-se na cadeira, passando as mãos no cabelo.
— É o que vai ouvir nas notícias da CNN e da FOX, acerca da devastação no jardim zoológico de Pequim. Claro que nos bastidores todos sabem a verdade. Foi permitido à China salvar a face em troca da identificação dos operacionais infiltrados em várias áreas académicas nos Estados Unidos.
— E acredita que eles vão alinhar nisso?
— Claro que não, mas é um ponto de partida para começar a arrumar a casa. Além disso, os chineses concordaram em assinar a moratória que estabelece as regras em relação à manipulação do genoma humano.
Gray ergueu a sobrancelha.
Como se a assinatura de um papel os impedisse.
Painter encolheu os ombros.
— O génio está fora da lâmpada. Tudo o que podemos fazer é tomar as rédeas no que diz respeito a este tipo de pesquisa. As próprias irmãs Crandall descontinuaram o projeto delas.
— E o ativo que trouxemos da China?
— Gao Sun? O nosso convidado recente num centro de detenção de operações especiais?
Gray assentiu. A equipa de Monk regressara com o soldado, para que respondesse pelo assassínio do estudante da Universidade de Emory, no centro de primatas. Com o caos que se sucedeu aos acontecimentos no zoo, ninguém se deu ao trabalho de procurar o militar. O prisioneiro tinha sido transferido para instalações secretas, onde cumpriria uma sentença de prisão perpétua.
— Está a cooperar — informou Painter. — Apesar de não ter dito uma palavra.
Gray franziu a testa, sem perceber.
— Ou seja, ainda não conseguiu dizer uma palavra. Kowalski ofereceu-lhe uma despedida calorosa antes de abandonar a China. Partiu-lhe o maxilar e arrancou-lhe quatro dentes. E isto apenas com um murro. Monk teve de o segurar antes que ele fizesse mais estragos. Mesmo assim, o desgraçado ainda não pode abrir a boca. Há quatro semanas que toma as refeições por uma palhinha.
E merecia bem pior.
— E em relação ao Equador?
— O padre Roland conseguiu a autorização do Vaticano para se instalar na Igreja de Nossa Senhora do Auxílio, em Cuenca. Vai ficar a supervisionar a escavação arqueológica na Cidade Perdida. O rapaz, Jembe, está a ajudá-lo com o povo shuar. Parece que continua otimista em relação à recuperação de artefactos importantes.
Gray assentiu. Ao que tudo indicava, Roland estava a caminho de assumir o papel do padre Crespi, continuando a seguir nas pisadas de Athanasius Kircher.
— É uma pena que tenhamos perdido ambos os conjuntos de ossadas dos neandertais híbridos — acrescentou Painter. — Podíamos ter aprendido muito com o ADN daqueles ossos.
Gray não tinha tanta certeza.
Se calhar, foi melhor assim.
Recordou a escultura maciça da Lua, suspensa naquela caverna dourada. Pela enésima vez, interrogou-se acerca do que teria acontecido àqueles antigos construtores. Teriam simplesmente morrido ou teriam arranjado outro sítio para viverem? Por outro lado, talvez tivessem sido apenas assimilados pelo mundo, juntando-se ao resto da humanidade na sua jornada rumo ao futuro.
Considerou o exemplo das cavernas na Croácia, os últimos indícios da presença dos Vigilantes no continente europeu. A Sigma podia ter falhado na proteção e preservação daqueles ossos, mas, se Roland fosse bem-sucedido, as descobertas que sairiam do Equador tinham todo o potencial para alterarem o entendimento do verdadeiro lugar do homem no planeta, até no universo.
Gray trocou mais uma série de impressões com Painter. Quando abandonou a Sigma, apanhou o metro, substituindo-o depois pela sua bicicleta e pedalando o resto do caminho até casa.
Acima dele, a Lua já não se encontrava cheia, mas os mistérios latentes na sua simetria e dimensões continuavam ali, no céu noturno, à espera de que alguém se decidisse a explorá-los, a questionar-se... a olhar além do horizonte mais próximo.
Chegou ao seu edifício de apartamentos e trancou a bicicleta na rua. Atravessou o pequeno relvado junto à entrada, preparado para esquecer esses mistérios até à manhã seguinte.
Abriu a porta de casa e encontrou o apartamento vazio e as luzes apagadas. Por um instante de pânico, acreditou que Seichan o deixara. Ultimamente, nos momentos tranquilos da vida que levavam em comum, sentira a inquietação que a consumia, como se não estivesse preparada para essa existência a dois ou, simplesmente, porque entendia que não era merecedora. Seichan tentara esconder-lhe esses sentimentos, pensando que era capaz de o iludir, e ele deixara-a continuar a pensar que assim era.
Com o tempo, aprendera a conhecer a natureza da mulher que amava, respeitando as dificuldades com que crescera, aceitando as suas desconfianças. Em muitos aspetos, ela era uma criatura feroz, indomável, que nunca se vergaria contra vontade nem por exigência. Por isso, sempre lhe dera o espaço necessário para lidar com os demónios do passado, estando do seu lado quando ela precisava, e recuando quando sabia que estava a mais.
Atravessou o apartamento às escuras. Notou a claridade ténue de velas, percebendo então que não estava sozinho.
Abriu a porta da casa de banho, encontrando Seichan mergulhada na banheira, o seu corpo nu oculto sob as bolhas de espuma perfumada. Uma garrafa de champanhe gelada repousava no chão, juntamente com dois copos de cristal. A única iluminação provinha das velas altas ao redor.
Ela sorriu-lhe, reconhecendo aquele cenário, recordando-se do quarto de hotel em Paris, com vista para os Campos Elísios.
Ergueu uma sobrancelha, como se conseguisse ler os pensamentos dele.
— Onde ficámos na última vez, antes de sermos interrompidos?
Gray começou a despir-se, mais do que pronto para continuar a vida do seu lado.
Quem é que precisa de Paris?
2 de junho, 10h05 WAT
República do Congo
Kowalski esborrachou uma mosca no seu braço, certo de que carregava alguma doença exótica.
Porque demoram tanto tempo?
Ergueu os olhos para o sol matinal, que atingia a clareira da selva como um martelo. No outro lado do tapete verde, estendia-se uma fila de tendas elevadas em plataformas, onde ele e os outros haviam dormido as últimas três noites, para se aclimatizarem ao ambiente e preparem-se para os desafios que tinham pela frente. Encontravam-se naquele vale acidentado, aninhado entre dois picos vulcânicos, para uma missão muito especial.
— Mais quanto tempo? — gritou para as raparigas.
Lena e Maria estavam ambas ajoelhadas ao lado de Baako, preparando-o para o primeiro dia. As duas irmãs atarefavam-se de volta do gorila, como duas mães a prepararem uma criança para o primeiro dia de escola. Por outro lado, Baako também cumpria o papel na perfeição, parecendo tão excitado e assustado como uma criança no primeiro dia de aulas.
Tango encontrava-se sentado na relva junto delas, arquejando com a língua de fora. Maria trouxera o cachorro para ajudar na transição do seu amigo.
Depois dos acontecimentos na China, Maria decidira avançar com o processo de libertar Baako na natureza, escolhendo a reserva de vida selvagem do Parque Nacional de Virunga para futuro lar do gorila. A irmã e ela tencionavam passar os próximos seis meses no Congo, assistindo à transição. Tinham o apoio de uma equipa local de zoólogos, que eram bastante experientes nesses processos e que se encontravam numa missão idêntica, envolvendo um grupo de chimpanzés resgatados de um laboratório. A maioria era muito jovem, mas estavam a ser acompanhados até serem suficientemente independentes para darem o grande salto para a vida selvagem.
Kowalski decidira acompanhar as irmãs, gozando de duas semanas de férias. Também tencionava regressar e visitar Maria ao longo desses seis meses. Recordou-se da noite anterior, sentado com ela no alpendre da sua tenda, enquanto observavam o brilho no céu noturno que provinha da caldeira de lava no topo do monte Nyiragongo, a norte. Tinham partilhado cervejas geladas, e tinham ficado juntos até de madrugada; nem sempre no alpendre. As camas também eram surpreendentemente agradáveis.
Sem dúvida que vou voltar...
— Okay, acho que estamos prontas — disse Maria, levantando-se. — E tu, Baako, estás?
Baako fletiu ambos os braços.
[Corajoso]
— Eu sei que és — riu-se Maria.
Segurou-o pela mão e conduziu-o até à orla da floresta, acompanhada de Tango. Um dos zoólogos locais, o doutor Joseph Kyenge, aguardava à sombra das árvores. Nas costas dele, um pequeno grupo de gorilas, cinco ou seis, observava curioso enquanto Maria encaminhava Baako.
Alguns começaram a guinchar.
A ideia era o zoólogo proceder às apresentações necessárias. O processo deveria ser feito por alguém que os animais conheciam, em vez de uma das irmãs. E era o primeiro passo para quebrar esse laço e permitir a Baako uma vida em liberdade.
Kyenge fincou um joelho no chão e encorajou o gorila.
— Anda, Baako, vem ter comigo.
Maria largou-lhe a mão. Baako ficou parado por um momento, depois olhou para Tango, desafiando o amigo a acompanhá-lo.
— O Tango não pode ficar contigo — disse Maria, suavemente, enquanto gesticulava. — Esta não é a casa dele.
Baako olhou para a floresta. Virou costas e dirigiu-se a Kowalski, com os braços bem abertos.
Kowalski ajoelhou-se, para se despedir convenientemente.
Baako encostou a cabeça no peito dele, com um ténue choramingar.
— Vá, matulão. Está tudo bem — confortou Kowalski. Passou uma das mãos sobre a cabeça do gorila, sentindo o pelo raso que entretanto crescera, notando que a cicatriz sarara na perfeição. — Qual é o problema?
Baako recuou um passo mas continuou a olhar para o chão. Abanou a cabeça, tocando com o polegar no queixo. Depois repetiu uma versão do sinal anterior, utilizando apenas uma das mãos.
[Não corajoso]
Kowalski sentiu um pouco do seu coração partir-se. Pousou as mãos nos ombros do gorila e fez com que ele olhasse para os seus olhos.
— És o miúdo mais corajoso que já conheci — disse, sem se preocupar em gesticular, sabendo que ele o compreendia. Apontou para o grupo de gorilas. — Se algum deles te chatear, tem de se haver comigo.
Baako abraçou-o, pressionando a cabeça contra o peito dele. Apesar de já não tremer tanto, continuava inseguro.
Kowalski sentou-se no chão, mantendo o resto da conversa privada. Deu uma palmada no peito e levou o polegar à testa, com os dedos esticados.
[Sou o teu papá]
Baako arqueou as sobrancelhas.
Kowalski pousou a mão no peito do gorila. Depois, pôs a mesma mão por cima do braço que tinha apoiado no estômago. Olhou para Baako.
[Tu és o meu filho]
Baako arregalou os olhos. Atirou-se para cima de Kowalski, derrubando-o e rebolando com ele na relva, esmagando-lhe as costelas que ainda estavam a sarar.
A tremer, Kowalski levantou-se finalmente.
— Agora que estamos entendidos — disse, apontando bruscamente para a floresta —, vai conhecer os teus novos amigos!
Baako rebolou e saiu disparado, em direção à sua nova vida.
15 de maio, 08h13 ECT
Cordilheira dos Andes, Equador
Shu Wei acordou de um sonho febril e caiu num pesadelo.
Recuperou os sentidos a espaços, sentindo o odor da floresta, misturado com o do seu próprio sangue. Muco escorria-lhe sobre os lábios, causando-lhe ardor. O mundo girava ao redor em tons de azul e verde. O estômago doía-lhe, oferecendo uma boa dose de refluxo gástrico na garganta. Não conseguia ter uma noção de tempo ou espaço, apenas uma vaga lembrança dos últimos dias.
Onde estou?
Recordava-se de ver Kwan cair e de alguém a ter levantado. Recordava-se da flecha que lhe furara a barriga.
Tentou olhar para baixo, mas não conseguiu mexer a cabeça. Sentiu algo rijo atrás das costas, mantendo-a direita. Tentou mexer os braços. Também não conseguiu.
Porque estou amarrada?
Recordava-se de ter sido arrastada pela água, semi-inconsciente. Mais tarde, quando acordara, tivera febres altas, delirantes. Tinha uma vaga imagem de uma mulher com os seios nus, que lhe aplicara um curativo de salva e terra na barriga. Tinha-lhe doído horrores, tanto que desmaiara de novo.
Agora, estou acordada... e ainda estou viva.
Respirou fundo pelo nariz, incapaz de falar, uma vez que não conseguia abrir a boca. Ainda assim, deixou escapar um gemido.
Então, um rosto familiar materializou-se diante dela.
Era o ancião. Dirigiu algumas palavras a alguém que ela não conseguia ver. Várias sombras cobriram-lhe o corpo enquanto mais figuras surgiam em redor.
Tentou debater-se.
Tirem-me daqui.
Os indígenas ignoraram-na. O ancião ergueu uma agulha curva, feita de osso, com um cordel de tripa de animal. Começaram a entoar uma única palavra.
Tsantsa.
Lutou para compreender o que estava a acontecer. Se a tribo a tinha salvado, que diabo queriam agora dela?
Outro rosto familiar inclinou-se sobre ela, notando-lhe a perplexidade. Era o rapaz. Ergueu um braço e mostrou-lhe um objeto que trazia na mão. À primeira vista, parecia uma peça de fruta ressequida, mas depois viu as costuras nos olhos e na boca, as madeixas de cabelo... era uma cabeça encolhida.
Porém, não era uma cabeça qualquer.
Exibia um padrão familiar de cicatrizes.
Kwan...
Os selvagens tinham transformado o Corvo Negro num troféu.
O rapaz voltou a erguer a cabeça encolhida do sargento-mor, repetindo a mesma palavra: tsantsa.
Finalmente, teve um clarão de reconhecimento. Tentou gritar, sentindo o ardor nos lábios. Olhou para a boca cosida de Kwan e percebeu que lhe tinham feito o mesmo.
Porém, os nativos ainda não tinham acabado o trabalho.
O ancião inclinou-se sobre ela, levantando a agulha.
Agora, era a vez dos olhos.
EPÍLOGO
DEZ ANOS DEPOIS
18 de setembro, 17h32 WAT
República do Congo
— Estamos quase a perder a luz, doutora Crandall — avisou Kyenge, com o seu sotaque congolês. — Não pode ficar aqui sozinha e eu tenho de regressar.
Maria deu uma palmada no dorso do cão sentado ao lado dela.
— Não estou sozinha, tenho o Tango.
— Claro que sim. E não pretendo menosprezar um companheiro tão valoroso, mas está velho e doente.
Maria suspirou perante essa triste realidade.
Hepatocellular carcinoma.
Era maligno e inoperável.
Tango tinha apenas algumas semanas de vida.
Era uma das razões daquele regresso ao Parque Natural de Virunga, a esperança de conseguir um vislumbre de Baako, a esperança de que a presença de Tango o fizesse surgir da floresta.
Gostava muito que ele se pudesse despedir do amigo.
Maria devia isso a ambos. Tinham passado cinco anos desde a última vez que estivera com Baako, o que era um bom sinal. Baako conseguira ambientar-se e parecia feliz. Sabia que o gorila ainda estava vivo, uma vez que os guardas do parque monitorizavam o grupo de gorilas com frequência.
Continuou a ouvir os sons da floresta enquanto o dia dava lugar à noite. Bandos de morcegos abandonavam as árvores, projetando os seus guinchos ultrassónicos. Os insetos zumbiam. Diferentes aves saudavam o pôr do Sol ou o nascer da Lua. Os macacos ululavam as suas queixas constantes.
— Talvez possamos tentar amanhã, doutora Crandall.
Maria suspirou e ergueu-se, esticando as pernas. Estava ali desde manhã. E este era o terceiro dia. Talvez devesse aceitar a verdade e levar Tango para casa.
— Acho que está na altura de regressar aos Estados Unidos — admitiu.
Kyenge lançou-lhe um olhar pesaroso.
— Tenho muita pena.
Então, ouviu um guincho forte. O tom era um pouco mais grave, mas familiar.
Sorrindo, Kyenge recuou, permitindo que Maria se aproximasse mais da orla da floresta.
— Baako?
A parede de folhagem espessa abriu-se e uma figura imponente materializou-se, apoiando-se pesadamente sobre um punho. Os olhos negros fitaram-na. As costas encontravam-se cobertas com uma pelagem prateada, indicando a sua maturidade.
Uma mão ergueu-se e tocou no queixo com o polegar.
[Mamã ]
Maria sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Correu disparada, seguida por Tango, que já não a conseguia acompanhar.
Baako olhou para o cão e bufou, a sua maneira de rir à gargalhada. Tango aspirou o ar, aproximando-se, depois começou a abanar a cauda como se fosse outra vez cachorro, reconhecendo o cheiro do velho amigo.
Maria agarrou-se a Baako e fez o melhor que podia para o abraçar, tentando pôr os braços à volta do seu poderoso pescoço. Baako levantou o braço livre, encostando-se a ela, quase a esmagá-la com o seu peso.
Tango juntou-se a eles, ladrando entusiasticamente.
Baako largou Maria e sentou-se, com as pernas esticadas. Tango saltou-lhe para o colo. Baako soltou um suspiro de satisfação.
Olhou em redor, através da floresta, depois levou um polegar à testa.
[Papá]
Maria aproximou-se, sem saber bem como responder. Começou a gesticular, com esperança de que ele a pudesse entender.
[Deixa-me contar-te uma história]
No decurso da hora seguinte, contou-lhe a verdade — não toda. Algumas partes eram demasiado dolorosas de revelar, mesmo mediante gestos. Quando terminou, Baako tinha a cabeça baixa, curvado sobre Tango, embalando-se suavemente.
Dando-lhe um momento, olhou para o anel com um diamante solitário no seu dedo anelar. Sabia que devia retirá-lo, pondo-a de parte com toda a mistura de alegria e dor que representava.
Mas ainda não...
Ainda não se sentia preparada. Em vez disso, levantou-se e aproximou-se de Baako. Aninhou-se no seu colo, contemplando a lua cheia. Ficaram assim durante muito tempo, até que um guincho suave emergiu da floresta. Baako olhou por cima do ombro e grunhiu, acenando com um braço.
Uma figura mais pequena surgiu na orla da floresta, um gorila fêmea, carregando uma cria junto ao peito. A fêmea apontou para Baako, tocando depois no peito. Completou o gesto fazendo uma concha com a mão e deslizando-a sobre o braço que carregava a cria.
Maria arregalou os olhos, incrédula, reconhecendo o que aquele gesto implicava.
Ele ensinou a companheira a falar...
A fêmea repetiu a mesma combinação de gestos, agora mais assertiva.
[Vem... noite]
Maria sorriu, percebendo que Baako estava a levar um raspanete por andar na rua àquelas horas.
Virou-se e gesticulou para Baako.
[Agora és papá]
Baako grunhiu, anuindo. Levantou uma mão e acariciou o rosto de Maria, claramente a despedir-se. Ergueu-se, tornando evidente que estava na altura de regressar para a floresta, para junto dos seus, da sua própria família.
Maria recuou, sem alternativa senão deixá-lo partir.
Tango seguiu atrás do amigo, a abanar a cauda.
Baako olhou para o cão e para Maria.
Maria gesticulou para ele, embora suspeitasse de que os sentidos apurados do gorila já tinham percebido a dolorosa realidade em relação ao seu amigo de sempre.
[Está velho... e doente]
Baako abanou a cabeça. Tocou com os dedos nas bochechas e nas orelhas. Repetiu outra vez o gesto.
[Ele está em casa]
Baako virou costas e embrenhou-se na floresta, acompanhado de Tango, os dois amigos determinados a ficarem juntos até ao fim.
Maria observou-os enquanto se afastavam, sabendo que aquilo era o adeus definitivo.
Nenhum deles olhou para trás.
Partiu-lhe o coração, mas deixou-a imensamente feliz.
Na escuridão da noite, Baako senta-se junto do seu grupo no interior da floresta. Todos dormem. Até Tango, encolhido ao lado dele. Embala o seu filho entre as pernas cruzadas, segurando-lhe os dedos pequeninos enquanto os dobra para formarem letras. O pequenino é muito novo para perceber o que aquilo quer dizer, mas um dia compreenderá.
É o nome que deu ao seu filho.
Em honra de alguém.
Repete as letras outra vez.
[J-O-E]
Finalmente, os olhos pequenos começam a fechar-se, e Baako segura o bebé nos braços. Enquanto se embala, levanta os olhos e procura alcançar o horizonte que se estende além das folhas, para conseguir ver a Lua a brilhar, a beleza das estrelas... e os mistérios que representam.
NOTA DO AUTOR PARA OS LEITORES
REALIDADE OU FICÇÃO?
Uma vez mais, é chegado o momento em que tento fazer o meu melhor para extrair a verdade oculta ao longo da narrativa. Lembrei-me também de aproveitar as páginas seguintes para responder a uma questão recorrente que apavora todos os autores: de onde vêm as suas ideias? Tendo isso em vista, tentarei explicar a génese desta história, partilhando em simultâneo como surgiram as várias ideias básicas.
Aqui vamos nós.
Em primeiro lugar, este romance começou como uma viagem às origens da inteligência humana, tentando basicamente descobrir de onde viemos e para onde vamos. Esta linha de inquérito conduziu a um intrigante mistério antropológico. Ao longo dos últimos duzentos mil anos, o cérebro humano manteve aproximadamente o mesmo tamanho e forma, porém, há cerca de cinquenta mil anos, por uma qualquer razão inexplicável, verificou-se uma explosão de arte, de engenhosidade e civilizacional. Porquê? Ninguém sabe. Este enigma, que recebeu o nome de Grande Salto Evolutivo, continua a intrigar antropólogos e filósofos.
Por que razão explodiu de repente a inteligência humana?
Foram apresentadas várias teorias, mas nunca reuniram consenso. O pensamento mais comum defende que o Grande Salto Evolutivo coincidiu com a deslocação dos primeiros homens para fora das fronteiras de África, onde foram expostos a territórios desconhecidos e desafios únicos, que estimularam a necessidade de inovação e de modos diferentes de encararem a vida.
Contudo, e se não foi apenas isso? E se, durante essa migração, os primeiros homens encontraram algo muito mais poderoso do que apenas novos territórios, algo que terá mudado o nosso ADN? Os geneticistas sabem que foi por volta dessa altura que o homem moderno encontrou as primeiras tribos de neandertais, o que levou à procriação entre as duas espécies.
Um facto de biologia comprovado é uma condição denominada «vigor híbrido», em que o acasalamento entre duas espécies diferentes resulta em crias mais fortes do que os progenitores, e isso também se aplica quanto à inteligência. Um exemplo: as mulas são o resultado do cruzamento de uma fêmea de cavalo com um macho de burro, e existem testes que comprovam que as mulas são, de facto, mais espertas do que os pais.
Mas de que modo o vigor híbrido também se aplica a nós? Pode a união entre os neandertais e os primeiros homens ter originado uma geração de crianças mais inteligentes? Nunca saberemos ao certo, uma vez que não dispomos de nenhuma maneira de criar um híbrido puro, um indivíduo cujo ADN consista de 50 por cento de genes de neandertal e outros 50 por cento de genes de Homo sapiens (embora não estejamos longe de tornar esse objetivo possível, o que levanta uma série de questões éticas). Sabemos, no entanto, que esse cruzamento com neandertais foi benéfico o suficiente para ainda carregarmos o seu ADN no nosso genoma.
Dessa forma, a exploração dessa possibilidade tornou-se a semente que deu origem a esta narrativa. Todavia, vamos escrutinar mais de perto alguns dos factos e separar o trigo do joio.
NEANDERTAIS E OUTROS HOMINÍDEOS
O nosso entendimento da alvorada do homem e das nossas relações com diferentes tribos mudou rapidamente ao longo dos últimos anos. Tão rápido que, ao longo do processo de escrita deste romance, fui obrigado a ajustar constantemente a linha narrativa para acomodar as novas revelações. Sabemos, de forma empírica, que os neandertais não foram os únicos hominídeos a deixarem uma marca no nosso ADN, mas também os denisovas, uma espécie extinta que ofereceu um gene que permite ao povo tibetano a sobrevivência a grandes altitudes. Da mesma forma, no decurso do último ano, outra impressão digital no nosso ADN sugere a presença de uma terceira espécie que também terá contribuído para o nosso genoma. Porém, os antropólogos ainda não foram capazes de identificar esses indivíduos, embora acreditem que terão vivido algures no Extremo Oriente e que seriam prováveis descendentes de um outro antepassado nosso, o Homo erectus.
Isto conduz-nos a outra espécie importante de hominídeos, o Meganthropus, que era um descendente do Homo erectus e habitava as terras do Extremo Oriente, sendo também contemporâneo dos primeiros homens. Poderá ser também o misterioso terceiro elemento que terá contribuído para o nosso ADN? O que sabemos dos registos fósseis é que se tratava de uma espécie com indivíduos que apresentavam uma constituição física impressionante, podendo atingir quase três metros de altura, segundo as estimativas.
Da mesma forma, existiam ainda outras espécies que partilhavam o planeta connosco, incluindo o pequeno Homo floresiensis, da Indonésia, e o povo das Cavernas do Veado Vermelho, na China. Assim sendo, a verdadeira história da alvorada do homem continua a crescer e a expandir-se.
Por último, apesar de este último animal não pertencer à classe dos hominídeos, vale a pena mencionar que a espécie extinta de um gorila gigante, o Gigantopithecus blacki, existiu mesmo no Extremo Oriente, sobrevivendo o tempo suficiente para ter partilhado o planeta com os primeiros homens. Mediam mais de três metros de altura e pesavam meia tonelada cada. Alguns acreditam que tais criaturas podem ainda existir, sobrevivendo em regiões remotas dos Himalaias; podem até encontrar-se na origem do mito dos Yetis ou do Abominável Homem das Neves.
Para este romance, baseei a criação dos híbridos na selvagem combinação de um Meganthropus com um Gigantophitecus.
Para mais informação acerca do homem de Neandertal, recomendo a seguinte leitura: Neanderthal Man: In Search of Lost Genomes, de Svante Pääbo
PRIMATAS NÃO HUMANOS
Este romance contém variada informação acerca de gorilas, acerca da sua inteligência e consciência de si mesmos, incluindo terem a capacidade de ensinar a nossa linguagem gestual uns aos outros, além de uma tendência natural para darem nomes a objetos, pessoas, e até a outros gorilas. Muita dessa inteligência e consciência aplica-se a outros grandes primatas (chimpanzés, orangotangos e bonobos) e encontra-se tipificada na personagem de Baako. Existe um movimento crescente no sentido de reconhecer aos primatas a mesma proteção. A União Europeia, Austrália, Japão e Nova Zelândia já baniram ou restringiram seriamente a utilização de grandes primatas como cobaias. Nos Estados Unidos, não há restrições algumas nesta matéria e os chimpanzés e os gorilas continuam a fazer parte de pesquisas com supervisão limitada. Talvez esteja mais do que na altura de rever essa política.
CHINA
Passei algum tempo na China a recolher material para esta narrativa. Apesar de ter descoberto que são um povo maravilhoso, persistem sérios problemas, a maioria envolvendo o nível de secretismo e as ações de espionagem do governo chinês. Visitei o Jardim Zoológico de Pequim e as condições que encontrei são, de facto, horríveis. As autoridades mantêm o plano de mudar a localização do parque para os limites da cidade, melhorando assim as instalações dos animais. Esperemos que este livro também possa ajudar a incentivar essa mudança.
A narrativa também se centra nos métodos persistentes de infiltração e de espionagem informática e tradicional do governo chinês. Parece que não existe um único mês em que não venham a lume notícias de ataques desta natureza. Do mesmo modo, a contínua colocação de estrangeiros em universidades e institutos técnicos por todos os Estados Unidos, a maioria suportada pelos impostos dos cidadãos americanos, está a tornar-se uma ameaça séria à segurança nacional, para não falar de perda de capital intelectual para além-fronteiras.
Ao mesmo tempo que escrevia sobre a descarada vontade da China de continuar a explorar e manipular embriões humanos, comecei a receber inúmeros relatos acerca de um grupo de investigadores chineses que estão a trabalhar na alteração do genoma humano, o que representa um primeiro passo para o controlo da evolução da humanidade. De acordo com um artigo na New Scientist, existe pelo menos um grupo nos Estados Unidos e outros na China que continuam a desenvolver este trabalho com embriões humanos. Assim sendo, até que ponto esta narrativa andará longe da verdade? Quanto tempo demorará até que possa tornar-se uma realidade?
Aparentemente, não é novidade nenhuma.
PADRE ATHANASIUS KIRCHER
Mencionei este padre católico no início do romance, um homem que ficou conhecido como o Leonardo da Vinci da ordem jesuíta. Quase todos os pormenores que incluí na narrativa são verdadeiros: desde as obras publicadas, tanto as práticas como as fantásticas, ao seu perfil aventureiro, como a exploração da cratera do monte Vesúvio antes de uma erupção. Considerei fascinante essa mistura de fé e ciência. Tenho a certeza de que gostaria de o ter sentado comigo à mesa para jantar, juntamente com o seu amigo paleontólogo, Nicolas Steno.
A ligação de Kircher ao santuário de Mentorella também é verdadeira, incluindo o facto de o seu coração ter sido sepultado no local. Apesar de o pormenor das inscrições de texto antigo e da câmara secreta na capela serem criações da minha lavra, vale a pena mencionar que Kircher era um engenheiro de mão-cheia, que idealizou e construiu uma série de aparelhos e mecanismos mecânicos e automáticos. A Universidade de Stanford revisitou muitas dessas criações, incluindo o seu relógio magnético, e existe um museu inteiro dedicado ao trabalho do padre, em Los Angeles, chamado Museu de Tecnologia Jurássica.
Por último, não fui o primeiro a reparar que o mapa da Atlântida, que se encontra no seu volume Mundus Subterraneus (mapa que, segundo o padre, retirou de fontes egípcias), tem uma forte semelhança com a América do Sul.
Analisemos, pois, essa indubitável possibilidade.
ATLÂNTIDA E O PADRE CARLOS CRESPI
A descrição da coleção de artefactos de Crespi (que contava mais de 70 000 itens) é verdadeira, embora continue envolta em mistério. O que se conhece com certeza absoluta era a sua crença de que esses artefactos constituíam prova irrefutável de uma civilização esquecida no Equador, que estava em comunicação com o resto do mundo. A maior parte dos arqueólogos contesta essa afirmação e defende que as oferendas dos nativos não passavam de falsificações. Porém, com a dispersão da coleção por vários museus — públicos e privados —, nunca ninguém efetuou uma análise rigorosa. Para mim, faz muito pouco sentido que os nativos decidissem criar falsificações utilizando ouro e pedras preciosas. Do mesmo modo, Crespi não era nenhum tolo. Possuía vários doutoramentos, viveu na região durante décadas e conhecia a área e os nativos melhor do que qualquer arqueólogo.
Para informação adicional sobre a coleção do padre Crespi, podem consultar a seguinte leitura: Atlantis in the Amazon: Lost Technologies and the Secrets of the Crespi Treasure, de Richard Wingate.
Sobre o modo como a história de Petronio Jaramillo e de Neil Armstrong se liga às descobertas de Crespi, existe um relato exaustivo e fascinante da autoria de Stan Hall, que presenciou esses acontecimentos ao vivo e a cores. É, de facto, uma leitura excitante e provocadora. No mesmo livro, descobri o relato de Jaramillo sobre a sua viagem à biblioteca perdida. Baseei algumas partes da viagem dos nossos heróis na cidade perdida nesse relato, desde a galeria de esculturas ao esqueleto de ouro num estrado de cristal. Evidentemente, permiti-me uma série de liberdades criativas a partir daí. Caso desejem consultar, aqui fica a referência da obra: Tayos Gold: The Archives of Atlantis, de Stan Hall.
CIVILIZAÇÕES ANTIGAS
Neste romance, existe muita discussão acerca da possibilidade de uma antiga civilização de professores, quer lhes chamemos Vigilantes, Atlantes, Irmandade dos Santos ou, simplesmente, um grupo desconhecido de construtores megalíticos. Os pormenores acerca dos mistérios que envolvem a jarda megalítica e a sua ligação à circunferência da Terra encontram-se descritos na narrativa. No entanto, apenas raspei a superfície da verdadeira história dessa descoberta. Para uma leitura mais exaustiva, recomendo: Civilization One: The World Is Not as You Thought It Was, de Christopher Knight e Alan Butler.
Os mesmos autores também desenvolvem a importância do número 366 em relação à Terra, Lua e Sol. Por isso, avancemos um pouco mais.
MISTÉRIOS DA LUA
Okay, tenho de admitir que nunca questionei a estranha coincidência de a Lua cobrir na perfeição a circunferência do Sol durante um eclipse. Mas é estranho. Só acontece porque a Lua é 400 vezes mais pequena do que o Sol e encontra-se a 1/400 da distância entre a Terra e o Sol. Isaac Asimov descreve este bizarro alinhamento como «a mais improvável coincidência imaginável».
Os outros rácios e dinâmicas descritos na narrativa também estão corretos. Retirei-os desta impressionante obra: Who Built the Moon?, de Christopher Knight e Alan Butler.
Aqui fica uma dessas coincidências apresentada de forma matemática, revelando a magia do número 366:
Que mais podemos fazer com números?
O NÚMERO 37
Apesar da afirmação de Doug Adams em The Hitchiker’s Guide to the Galaxy, a derradeira resposta para a vida não é o número 42.
É 37.
Na obra de Knight e Butler, estes obtiveram o número 366 dividindo o arco-minuto da circunferência do planeta em 6 segundos. Interroguei-me sobre esta decisão, olhei para o meu relógio e decidi dividir esse arco-minuto nos habituais 60 segundos. Ao fazer isso, obtive o número 36,6 — o que continua a demonstrar a magia do código planetário fundamental porém, se arredondarmos a casa decimal, obtemos o número 37.
Fiz isto de forma arbitrária, mas depois percebi que lera um artigo na New Scientist, intitulado: «Será que o número 37 é a resposta para a vida, para o universo e para tudo o mais?» Esse número parece repetir-se indefinidamente, seja no nosso código, seja nos aminoácidos produzidos por esse código.
Da mesma forma, através da numerologia cabalística conhecida como gematria, encontramos esse mesmo número primo escondido na primeira linha da Bíblia (juntamente com o número pi). E, emparelhado com o seu número primo espelhado (73), consegue-se, de facto, estranhos padrões de estrelas de seis pontas.
Por último, sim, a temperatura média do corpo humano são 37 graus Celsius.
Que significa isto tudo? Será uma prova de uma forma de comunicação encriptada, um sinal da mão de Deus, uma simples coincidência? Apenas para reflexão: a probabilidade de este número aparecer de forma aleatória no nosso código genético foi calculada. O resultado é este:
1 em 300 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000
Deixo a cada um as suas próprias conclusões. Pela parte que me toca, tenho a certeza de que não comprava um bilhete de lotaria com estas probabilidades.
Entretanto, para aqueles que queiram saber mais sobre como o universo parece ter sido concebido, unicamente e de forma quase impossível, para suportar vida, sugiro a seguinte obra de um cosmólogo da Universidade Estatal do Arizona: The Goldilocks Enigma: Why Is the Universe Just Right for Life?, de Paul Davies.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não sei se existe alguma mensagem escondida nesta sincronicidade de rácios, tanto no nosso código como na sinfonia das estrelas. Talvez não seja mais do que um mistério para nos maravilhar e fazer-nos respeitar o que nos rodeia, independentemente das nossas crenças. Talvez seja um toque a reunir para a preservação do planeta, das suas espécies, deste jardim de vida; para respeitarmos a empatia e inteligência que nos rodeiam numa miríade de formas; de nos lembrarmos de que o amor pode não ser uma característica apenas humana.
Ou então é tão simples como contemplar a Lua e perguntarmos a nós próprios quem somos e para onde vamos. Essa é a pergunta com que comecei este romance — e talvez seja um bom pensamento para o terminar.
James Rollins
O melhor da literatura para todos os gostos e idades