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O LADO ATIVO DO INFINITO / Carlos Castañeda
O LADO ATIVO DO INFINITO / Carlos Castañeda

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O LADO ATIVO DO INFINITO

 

ESTE LIVRO é uma coleção de acontecimentos memoráveis em minha vida. Eu os reuni seguindo uma recomendação de don Juan Matus, um índio yaqui xamã do México, que, como um professor, esforçou-se durante treze anos para tornar disponível para mim o mundo cognitivo dos xamãs que viveram no México nos tempos antigos. A sugestão de don Juan Matus para que eu reunisse esta coleção de eventos memoráveis foi feita casualmente, como se fosse algo que lhe ocorrera ao calor da conversa. Esse era o estilo de ensinar de don Juan. Ele escondia a importância de certas manobras suas com palavras triviais. Escondia, dessa maneira, o que realmente pretendia, fazendo sua proposta como se estivesse referindo-se a algo nada diferente dos assuntos comuns do dia-a-dia.

Don Juan revelou-me, com o passar do tempo, que os xamãs do México antigo conceberam colecionar os eventos memoráveis como um instrumento fidedigno para agitar os aglomerados de energia que existem em nosso interior. Diziam que tais aglomerados são constituídos de energia que se origina no próprio corpo e que são deslocados, são empurrados, ficando fora de nosso alcance pelas circunstâncias de nosso viver do dia-a-dia. Nesse sentido, a coleção dos eventos memoráveis era, para don Juan e para os xamãs de sua linhagem, um instrumento para a redistribuição de sua energia não utilizada.

O pré-requisito para tal coleção seria o ato genuíno e completo de reunir a soma total de nossas emoções e percepções, sem nada deixar de fora. De acordo com don Juan, os xamãs de sua linhagem estavam convencidos de que a coleção dos eventos memoráveis era o veículo para o ajustamento emocional e energético necessários para aventurar-se, em termos de percepção, no desconhecido.

Don Juan descrevia a meta última do conhecimento xamanístico que ele manipulava como a preparação para enfrentar-se a viagem definitiva: a viagem que cada um dos seres humanos tem que fazer ao final de sua vida. Ele disse que, através de sua disciplina e decisão, os xamãs eram capazes de reter sua percepção individual e seu propósito após a morte. Para eles, aquele estado vago e ideal que o homem moderno chama de “vida após a morte” era uma região concreta cheia até à borda de atividades práticas de uma ordem diferente daquela do nosso dia-a-dia, embora contendo um aspecto funcional prático semelhante. Don Juan considerava que recolher os eventos memoráveis de suas vidas era, para os xamãs, a preparação para a entrada nessa região concreta que era chamada por eles de o lado ativo do infinito.

Don Juan e eu conversávamos uma tarde, sob o caramanchão de sua casa, uma frágil estrutura feita de bambu. Ela parecia uma varanda coberta que era parcialmente sombreada mas que não fornecia nenhuma proteção contra a chuva. Existiam ali alguns caixotes pequenos e pesados que serviam de bancos. As marcas referentes ao seu transporte estavam apagadas, e mais pareciam enfeites que identificação. Eu estava sentado em um deles. Minhas costas apoiavam-se na parede da fachada da casa. Don Juan estava sentado em outro caixote, encostado numa coluna que suportava o caramanchão. Eu chegara alguns minutos antes, de carro. A minha viagem durou todo o dia, e o tempo estava quente e úmido. Sentia-me nervoso, aflito e suado.

Don Juan começou a conversar comigo logo que me ajeitei sobre o caixote. Com um sorriso amplo, comentou que as pessoas com excesso de peso dificilmente sabem como combater sua gordura. O sorriso que pairava em seus lábios deu-me a dica de que ele não estava brincando. Ele estava indicando para mim, de um modo ao mesmo tempo direto e indireto, que eu estava com excesso de peso.

Fiquei tão nervoso que desequilibrei-me sobre o caixote em que estava sentado e bati fortemente com minhas costas na fina parede da casa. O impacto fez tremer a casa até suas fundações. Don Juan olhou-me inquisitivamente, mas em lugar de perguntar-me se eu estava bem, assegurou-me que eu não havia provocado nenhuma trinca na casa. Depois explicou-me extensamente que aquela casa era apenas uma moradia temporária para ele, e que morava realmente em outro local. Quando perguntei-lhe onde ele realmente morava, ele encarou-me. Seu olhar não era beligerante; era, em vez disso, uma forte indicação de que ele não admitia perguntas impróprias. Não compreendi isso de imediato e quando ia repetir a mesma pergunta, ele impediu-me.

“Perguntas desse tipo não são feitas por aqui”, disse ele com firmeza. “Pergunte o que quiser sobre procedimentos e idéias. Quando eu tiver que lhe dizer onde moro, se é que isso vá realmente ocorrer, eu lhe direi sem que você tenha que me perguntar”.

Eu imediatamente senti-me rejeitado. Minha face ficou, involuntariamente, vermelha. Eu estava completamente ofendido. A explosão de gargalhadas de don Juan só serviu para aumentar a minha humilhação. Ele não apenas rejeitou-me, mas também insultou-me e depois riu de mim.

“Eu vivo aqui temporariamente”, acrescentou ele, sem dar nenhuma bola para o meu estado de espírito, “porque aqui é um lugar mágico. Para dizer a verdade, eu moro aqui por sua causa”.

Tal afirmação desarmou-me inteiramente. Não podia acreditar nela. Pensei que ele tinha dito aquilo provavelmente para amenizar o insulto que tanto me irritou.

“Você realmente vive aqui por minha causa?” Perguntei-lhe finalmente, incapaz de conter minha curiosidade.

“Sim”, disse ele tranqüilamente. “Eu tenho que preparar você. Você é igual a mim. Vou repetir para você agora aquilo que já lhe disse: a busca de cada nagual, ou líder, em cada geração de xamãs, ou feiticeiros, é encontrar um novo homem ou mulher que apresente, como ele próprio, uma estrutura energética dupla; eu vi tal característica em você quando estávamos na rodoviária em Nogales. Quando eu vejo a sua energia, vejo duas bolas sobrepostas de energia, uma no topo da outra, e essa característica nos liga um ao outro. Não posso rejeitar você e nem você a mim”.

Suas palavras causaram uma agitação enorme em mim. Um instante atrás estava furioso e agora tinha vontade de chorar.

Ele continuou, dizendo que queria iniciar-me em algo que os feiticeiros chamavam de o caminho do guerreiro, com o amparo da energia que existia na área onde morava, local que era o centro de emoções e reações muito fortes. Pessoas semelhantes a guerreiros viveram ali por milhares de anos, embebendo a terra com seu interesse pela guerra.

Ele vivia naquela época no Estado de Sonora, na parte setentrional do México, a cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao sul da cidade de Guaymas. Eu ia sempre visitá-lo ali sob o pretexto de realizar meus trabalhos de campo.

“Eu necessito entrar nessa guerra, don Juan?” Perguntei-lhe, genuinamente preocupado depois que declarou que o interesse pela guerra era algo que eu iria necessitar algum dia. Eu aprendera a tratar com a maior seriedade tudo o que ele dizia.

“Pode apostar até sua cueca”, replicou sorrindo. “Quando você tiver absorvido tudo que esse local tenha para ser absorvido, eu me mudarei daqui”.

Eu não tinha nenhum motivo para duvidar do que ele dissera, mas não conseguia conceber que ele pudesse morar em outro local. Ele era, em seu todo, parte de tudo que o cercava. Sua casa, entretanto, parecia ser realmente uma morada temporária. Ela era um barracão típico dos fazendeiros yaquis; era feita de taipa rebocada e tinha um telhado de sapé quase plano; possuía um quarto grande para refeições, que também servia de dormitório e uma cozinha a céu aberto.

“É muito difícil lidar com pessoas com excesso de peso”, disse ele. Parecia ser um “fim de papo”, mas não era. Don Juan estava simplesmente retomando o assunto que havia introduzido antes que eu o interrompesse batendo minhas costas na parede de sua casa.

“Um minuto antes, você atingiu minha casa como uma bola de demolição”, disse ele, balançando a cabeça de um lado para o outro.

“Que impacto! Uma batida digna de um obeso”.

Tive o sentimento desconfortável de que ele falava como se tivesse desistido de lidar comigo. Tomei imediatamente uma posição defensiva. Ele escutava, com um sorriso zombeteiro, minhas explicações excitadas de que meu peso era normal considerando-se a minha estrutura óssea.

“É isso mesmo”, concordou ele com ar brincalhão. “Você tem ossos grandes. Provavelmente poderia, tranqüilamente, engordar mais uns quinze quilos e ninguém, eu garanto, iria notar. Eu não iria notar”.

Seu sorriso zombeteiro mostrou-me que eu, realmente, estava gorducho, atarracado. Perguntou-me em seguida pela minha saúde em geral, e eu continuei falando, tentando desesperadamente evitar qualquer comentário adicional sobre o meu peso. Ele mesmo mudou de assunto.

“Quais são as novidades com respeito às suas excentricidades e aberrações?” Perguntou ele com a expressão a mais indiferente possível.

Eu tolamente respondi que tudo estava OK. “Excentricidades e aberrações” era como ele indicava meu interesse em colecionar coisas. Naquela ocasião, eu retomei, com maior zelo, aquilo que durante toda a minha vida apreciava: colecionar qualquer coisa colecionável. Eu colecionava revistas, selos, discos, toda a parafernália da Segunda Guerra Mundial tais como sabres, capacetes, bandeiras, etc.

“Tudo que posso lhe dizer, don Juan, acerca das minhas aberrações, é que estou tentando vender minhas coleções,” disse eu com o ar de um mártir que estivesse sendo obrigado a fazer algo muito odioso.

“Ser um colecionador não é assim algo tão ruim”, disse ele como se realmente acreditasse no que dizia. “O ‘x’ da questão não é o fato de colecionar, mas o que colecionar. Você coleciona porcarias, objetos sem nenhum valor que certamente prendem você do mesmo modo que seu cachorrinho de estimação. Você não pode simplesmente levantar e ausentar-se de onde mora se tiver um bichinho de estimação para cuidar, ou se tiver que se preocupar com o que poderá acontecer com suas coleções durante sua ausência”.

“Eu estou seriamente procurando quem possa comprar minhas coleções, don Juan; pode acreditar,” protestei.

“Não, não, não, não sinta-se como se eu estivesse acusando você de alguma coisa,” retorquiu ele. “Na verdade, eu gosto de seu espírito de colecionador. Apenas não gosto do que você coleciona, isso é tudo. Gostaria, entretanto, de aproveitar seu olho clínico de colecionador. Gostaria de propor que você colecionasse algo que valha a pena”. Don Juan ficou em silêncio durante algum tempo. Parecia procurar as palavras adequadas; ou talvez aquilo fosse apenas uma hesitação dramática, bem colocada. Olhou-me de modo penetrante, profundo.

“Todo o guerreiro tem a obrigação de organizar um álbum”, continuou ele, “um álbum que revele a sua personalidade, um álbum que ateste as circunstâncias de sua vida”.

“Por que você chama isso de uma coleção, don Juan?” Perguntei num tom desafiador, “Ou um álbum, como afirmou?”

“Porque os dois nomes são adequados,” replicou ele. “Mas, acima de tudo, tal coleção é como um álbum de retratos, retratos da memória, fotografias tiradas da lembrança de fatos memoráveis”.

“Tais eventos memoráveis são memoráveis por algum motivo específico?” Perguntei.

“São memoráveis porque têm um significado especial na vida das pessoas”, disse ele. “Minha proposta é no sentido de que você monte este álbum colocando nele o relato completo dos vários eventos que possuem um significado especial para você”.

“Todos os eventos de minha vida têm um profundo significado para mim, don Juan!” Disse eu forçadamente, sentindo logo em seguida o impacto de minha própria pomposidade.

“Nem tanto”, disse ele, sorrindo, parecendo estar deliciando-se imensamente com a minha reação. “Nem todo evento em sua vida tem um significado profundo para você. Existem alguns, entretanto, que eu consideraria ter mudado as coisas para você, ter iluminado o seu caminho. Ordinariamente, os eventos que mudam os nossos caminhos são coisas impessoais, e ainda assim extremamente pessoais”.

“Eu não estou tentando ser teimoso, don Juan, mas pode acreditar, toda coisa que acontece comigo apresenta tais características”, disse eu, sabendo que mentia.

Imediatamente depois de ter dito aquilo, tentei desculpar-me, mas don Juan não deu nenhuma atenção ao que eu falava. Era como se eu não tivesse dito nada.

“Não pense nesse álbum em termos de banalidades, ou em termos de uma reorganização trivial de suas experiências de vida”, disse ele.

Eu respirei fundo, fechei os olhos, e tentei aquietar minha mente. Falava comigo mesmo freneticamente a respeito de meu problema sem solução: era fora de qualquer dúvida que eu não gostava, de modo algum, de visitar don Juan. Sentia-me ameaçado em sua presença. Ele encurralava-me verbalmente e não deixava nenhuma brecha para que pudesse mostrar meu valor. Eu detestava ser desprestigiado cada vez que abria a boca; detestava fazer papel de bobo.

Mas havia outra voz dentro de mim, uma voz que vinha de uma profundidade maior, mais distante, quase um sussurro. No meio de minha verborragia conhecida, ouvi a mim mesmo dizendo que era muito tarde para que eu pudesse voltar. Mas não era realmente minha voz ou meus pensamentos que eu estava percebendo; era mais como uma voz desconhecida dizendo que eu tinha entrado muito profundamente no mundo de don Juan e que necessitava dele mais que do ar.

“Diga o que quiser”, parecia dizer-me a voz, “mas se você não fosse o ego-maníaco que é, você não estaria tão contrariado.”

“Essa é a voz de sua outra mente,” disse don Juan como se estivesse ouvindo ou lendo meus pensamentos.

Meu corpo pulou involuntariamente. Meu susto foi tão grande que as lágrimas umedeceram meus olhos. Confessei para don Juan a natureza real de minha perturbação.

“Seu conflito é muito natural”, disse ele. “E acredite-me, eu não o exacerbei tanto assim. Não é meu feitio. Tenho para contar-lhe algumas estórias sobre meu professor, o nagual Julian, a respeito do que ele fazia comigo. Eu o odiei com todo o meu ser. Era muito jovem, e via como as mulheres o adoravam, entregavam-se a ele como algo nunca visto, e quando eu tentava dizer apenas um alô para elas, voltavam-se contra mim como leoas, prontas para arrancar minha cabeça com uma patada. Elas detestavam-me até as entranhas e amavam Julian. Como você acha que eu me sentia?”

“Como você resolveu tal conflito, don Juan?” perguntei com um interesse real e genuíno.

“Eu não resolvi coisa nenhuma”, declarou ele. “Aquilo, conflito ou o que fosse, era o resultado da batalha entre minhas duas mentes. Cada um de nós, seres humanos, tem duas mentes. Uma delas é totalmente nossa, e fala conosco por uma voz que sussurra e que sempre traz para nós ordem, integridade, propósito. A outra é uma instalação alienígena. Ela nos traz conflito, reivindicações egoístas, dúvidas, desespero”.

Estava tão intensamente fixado em minhas próprias concatenações mentais que não captei nada do que don Juan dissera. Podia lembrar-se claramente de cada uma de suas palavras, mas elas não faziam nenhum sentido para mim. Don Juan muito tranqüilamente, olhando diretamente em meus olhos, repetiu o que acabara de dizer. Eu continuava sem condição de perceber o que ele queria dizer. Eu não podia focalizar minha atenção em suas palavras.

“Por alguma estranha razão, don Juan, eu não posso concentrar-me no que você está me dizendo”, disse eu.

“Entendo perfeitamente porque você não pode”, disse ele, sorrindo abertamente, “e você também irá entender algum dia, quando tiver resolvido o conflito de gostar ou não de mim, no dia em que você deixar de ser, para você mesmo, o centro do mundo.

“Enquanto isso”, continuou ele, “deixemos de lado o problema de suas duas mentes e voltemos ao assunto do seu álbum de eventos memoráveis. Devo acrescentar que tal álbum representa um exercício de disciplina e imparcialidade. Considere tal álbum como sendo um ato de guerra”.

A afirmação de don Juan – que meu conflito de gostar ou não gostar de vê-lo iria terminar quando eu abandonasse meu egocentrismo – não solucionou o meu problema. Na verdade, tal afirmação deixou-me mais furioso ainda; frustou-me mais que tudo. E quando eu ouvi don Juan dizer que o álbum era um ato de guerra, lancei-me sobre ele com todo o meu veneno.

“A idéia de que isso é uma coleção de eventos já é algo difícil de entender”, disse em tom de protesto, “Mas depois de tudo isso, você diz que trata-se de um álbum, e mais, que tal álbum é um ato de guerra; isso é demais para mim. É muito obscuro. Sendo obscura, a metáfora perde todo o seu sentido.”

“Que coisa estranha! Para mim, é o contrário,” replicou don Juan calmamente. “Que tal álbum seja um ato de guerra é para mim a coisa mais significativa do mundo. Eu não gostaria que meu álbum de eventos memoráveis fosse qualquer coisa que não um ato de guerra”.

Queria prolongar a discussão e explicar para ele que tinha entendido a idéia do álbum de eventos memoráveis. A minha objeção referia-se ao modo complicado com que ele o descreveu. Considerava-me naquela época um advogado da clareza e funcionalidade do uso da linguagem.

Don Juan não fez nenhum comentário acerca do meu espírito beligerante. Apenas balançava a cabeça para baixo e para cima, como se concordasse inteiramente comigo. Depois de alguns instantes, ou eu fiquei completamente exaurido de energia ou então recebi uma dose gigante da mesma. De repente, sem nenhum esforço de minha parte, percebi a futilidade de minha explosão emocional. Senti-me terrivelmente embaraçado.

“O que faz com que eu aja do modo como ajo?” Perguntei a don Juan, ansiosamente. Estava, naquele momento, inteiramente intrigado. Fiquei tão abalado pela minha percepção que, involuntariamente, comecei a chorar.

“Não se preocupe com detalhes estúpidos”, disse don Juan apazigüadoramente. “Cada um de nós, homem ou mulher, reage desse modo”.

“Você quer dizer, don Juan, que cada um de nós é mesquinho e contraditório?”

“Não, nós não somos por natureza mesquinhos e contraditórios,” replicou ele. “Nossa mesquinhez e contradições, em vez serem características inatas, são o resultado do conflito transcendental que aflige cada um de nós, do qual apenas os feiticeiros estão dolorosa e desesperadamente conscientes: o conflito de nossas duas mentes”.

Don Juan encarou-me e seus olhos pareciam dois fragmentos de carvão preto.

“Você tem falado para mim uma vez atrás da outra sobre as duas mentes”, disse eu, “mas meu cérebro não consegue registrar o que você está dizendo. Por quê?”

“Você irá saber quando chegar a hora,” disse ele. “Por enquanto é suficiente que eu repita para você o que disse antes sobre nossas duas mentes. Uma delas é a nossa mente verdadeira, o produto de todas as nossas experiências de vida, aquela que raramente fala conosco por ter sido derrotada e relegada à obscuridade. A outra, a que usamos diariamente para tudo o que fazemos, é uma instalação alienígena”.

“Penso que o ‘x’ da questão é que o conceito da mente ser uma instalação alienígena é tão estapafúrdio que minha mente se recusa considerá-lo com seriedade”, disse eu, sentido que tinha feito uma descoberta genuína.

Don Juan não fez nenhum comentário sobre o que eu disse. Continuou explicando o assunto referente às duas mentes como se eu não tivesse dito uma palavra.

“Resolver o conflito das duas mentes é uma questão de intentá-lo”, disse ele. “Os feiticeiros evocam o intento pronunciando a palavra intento em voz alta e clara. O intento é uma força que existe no universo. Quando os feiticeiros a evocam, ela vem até eles e fixa o caminho para a obtenção do que for, o que significa que os feiticeiros sempre conseguem o que se propõem”.

“Você quer dizer, don Juan, que os feiticeiros conseguem tudo o que quiserem, mesmo as coisas mesquinhas e arbitrárias?” Perguntei.

“Não, não quis dizer isso. O intento pode ser chamado, é claro, para qualquer coisa”, replicou ele, “mas os feiticeiros descobriram, com grande esforço, que o intento só vem até eles apenas para realizarem algo que seja abstrato. Essa é a válvula de segurança para os feiticeiros; não fosse assim, eles seriam insuportáveis. No seu caso, evocar o intento para resolver o conflito de suas duas mentes, ou para ouvir a voz de sua mente verdadeira, não é algo mesquinho ou arbitrário. Muito pelo contrário; é algo etéreo e abstrato e ainda assim vital para você como nada mais pode ser”.

Don Juan parou por um momento; depois começou a falar de novo sobre o álbum.

“Meu próprio álbum, sendo um ato de guerra, exigiu uma seleção super cuidadosa”, disse ele. “Ele é agora uma coleção rigorosa dos momentos inesquecíveis de minha vida, e de tudo que me conduziu a eles. Tenho concentrado nele aquilo que é e será significativo para mim. Na minha opinião, o álbum de um guerreiro é algo muito concreto, algo tão ‘no ponto’ que é arrasador”.

Não tinha nenhuma pista do que don Juan desejava, mas apesar disso entendia-o perfeitamente. Ele aconselhou-me a ficar sentado, sozinho, e deixar que meus pensamentos, memórias e idéias viessem a mim livremente. Ele recomendou que eu fizesse um esforço para deixar que a voz do meu íntimo falasse comigo e indicasse o que deveria selecionar. Don Juan disse-me então para entrar dentro da casa e deitar-me na cama que tinha preparado para mim. Ela era feita de caixotes de madeira e de dúzias de sacos de estopa que serviam de colchão. Meu corpo todo doía, e quando deitei-me naquela cama senti que ela era extremamente confortável.

Segui sua sugestão ao pé da letra e comecei a pensar no meu passado, procurando eventos que deixaram uma marca em mim. Logo percebi que minha afirmação de que todos os acontecimentos de minha vida foram marcantes, era besteira. Quando pressionava a mim mesmo para recordar, descobri que nem mesmo sabia por onde começar. Passaram por minha mente um sem número de pensamentos dissociados e memórias de acontecimentos que experimentei, mas não consegui definir se eles tiveram ou não qualquer significado para mim. A minha impressão foi de que nenhum deles teve qualquer importância para mim. Parecia que eu tinha passado pela vida como um cadáver com o poder de falar e andar, mas não de sentir. Não tendo nenhum poder de concentração que permitisse uma análise mais profunda, eu desisti e peguei no sono.

“Você teve algum sucesso?” Perguntou-me don Juan quando acordei algumas horas mais tarde.

Em vez de estar tranqüilo depois de ter dormido e descansado, eu estava novamente rabugento e beligerante.

“Não, não tive nenhum sucesso!” Vociferei.

“Ouviu a voz de seu íntimo?” Perguntou ele.

“Acho que sim”, menti.

“O que ela lhe disse?” Inquiriu ele com um tom insistente.

“Eu não consigo lembrar-me, don Juan”, murmurei.

“Ah, você está de volta com sua mente do dia-a-dia”, disse ele, batendo com força nas minhas costas. “Sua mente do dia-a-dia tomou as rédeas novamente. Vamos relaxá-la conversando sobre sua coleção de eventos memoráveis. Eu deveria dizer que selecionar aquilo que deverá ser colocado no álbum não é uma tarefa fácil. Essa é a razão pela qual eu disse que organizar o álbum é um ato de guerra. Você deve recordar sua vida dez vezes para ter certeza do que selecionar”.

Entendi claramente então, ainda que por um segundo, que eu tinha duas mentes; o meu pensamento, entretanto, era tão vago que o perdi instantaneamente. O que ficou foi apenas a sensação da incapacidade de realizar o que don Juan estava exigindo. Em vez de aceitar essa minha incapacidade tranqüilamente, entretanto, permiti que ela se transformasse em algo ameaçador. A força propulsora de minha vida, à época, era de me mostrar como um vencedor. Ser incompetente era o equivalente a ser um perdedor, e isso era inteiramente intolerável para mim. Desde que não sabia como vencer o desafio que don Juan estava propondo, fiz a única coisa que sabia: ficar furioso.

“Tenho que pensar um bocado sobre isso, don Juan”, disse eu. “Tenho que dar algum tempo para que minha mente se fixe nessa idéia”.

“É claro, é claro”, tranqüilizou-me don Juan. “Use todo o tempo que precisar, mas comece logo”.

Nada mais foi dito sobre o assunto naquela ocasião. Em casa, eu esqueci-me completamente dele até que um dia, bastante repentinamente, durante uma palestra a que eu assistia, uma necessidade muito forte para que procurasse os eventos memoráveis de minha vida, surgiu-me como um choque em todo o meu corpo, como um espasmo que me sacudiu dos pés à cabeça.

Comecei a trabalhar no assunto com toda seriedade. Gastei meses para reorganizar as experiências de minha vida que julgava significativas para mim. Depois de examinar minha coleção, entretanto, percebi que estava lidando apenas com idéias que não tinham qualquer substância. Os eventos de que me lembrei eram pontos de referência vagos, dos quais tinha apenas recordações abstratas. Uma vez mais, tive a sensação bastante incômoda de ter sido educado para apenas agir sem nunca parar para sentir o que quer que fosse.

Um dos eventos mais vagos de que me lembrei, e que eu queria transformar a qualquer custo em memorável, foi quando descobri ter sido admitido num curso de graduação da UCLA. Por mais que me esforçasse, não consegui lembrar-me do que estive fazendo naquele dia. Não havia nada interessante ou especial que tivesse acontecido, salvo a minha idéia de que aquele dia tinha que ser memorável. Entrar para um curso de graduação na UCLA tinha que ser algo que me tornaria feliz e orgulhoso de mim mesmo, mas tal não aconteceu.

Outra amostra do que havia escolhido para minha coleção foi o dia em que iria casar-me com Kay Condor. Seu sobrenome não era realmente Condor, mas ela mudou-o porque queria ser uma atriz. Sua entrada para a fama era o fato de que parecia com Carole Lombard. Aquele dia era memorável em minha mente, não somente por causa do que aconteceu, mas porque ela era linda e iria casar-se comigo. Ela era uma cabeça mais alta que eu, o que a tornava mais atraente para mim.

Eu estava excitado com a idéia de casar-me, numa cerimônia de igreja, com uma mulher alta. Aluguei um “smoking” cinza. As calças eram compridas para o meu tamanho. Não eram “boca de sino”; só eram compridas, e isso chateou-me sobremaneira. Outra coisa que me aborreceu demais foi o fato das mangas da camisa cor-de-rosa que comprei para a ocasião serem cinco centímetros mais compridas que meus braços; eu tive que usar “gominhas” para mantê-las no lugar.

Fora disso, tudo estava perfeito até o momento em que os convidados e eu descobrimos que Kay Condor roera a corda e não iria aparecer.

Sendo uma jovem muito cônscia de seus deveres, mandou-me uma nota por um mensageiro de motocicleta, na qual dizia que não acreditava em divórcio e que não poderia comprometer-se para o resto de seus dias com alguém que não tinha os mesmos pontos de vista sobre a vida que ela. Lembrou-me que eu dissimulava um risinho cada vez que pronunciava o nome “Condor”, o que representava um total desrespeito por sua pessoa. Disse que discutira o assunto com sua mãe. Ambas gostavam imensamente de mim, mas não o bastante para que eu fizesse parte de sua família. Acrescentou que, brava e sabiamente, tínhamos que nos safar a tempo.

Fiquei totalmente atordoado. Quando tentei recordar aquele dia, não pude determinar se ficara horrivelmente humilhado por ter sido deixado esperando em frente de todos os convidados com o meu “smoking” cinza alugado com as calças arrastando no chão, ou se ficara totalmente aniquilado porque Kay Condor não quis casar comigo.

Esses foram os dois únicos eventos que consegui isolar com clareza. Eles eram exemplos inadequados, mas depois de reordená-los, consegui revesti-los como eventos filosoficamente aceitáveis. Pensava que eu fosse alguém que vivesse a vida sem nenhum sentimento real, alguém que só tinha visões intelectuais de tudo. Tomando as metáforas de don Juan como modelos, cheguei até mesmo a criar uma referente a mim mesmo: um ser que vivia sua vida de modo vicário em termos de como ela deveria ser.

Acreditava, por exemplo, que o dia em que fui admitido na UCLA deveria ser memorável. Desde que não foi, tentei imbuí-lo com uma importância que nem de longe eu sentira. Uma coisa semelhante aconteceu com o dia em que quase casei-me com Kay Condor. Aquele deveria ter sido um dia devastador para mim, mas não foi. No momento em que eu recordei tal dia, soube que não ocorrera nada de significativo nele e então comecei a dar duro para construir o que deveria ter sentido.

Em minha visita seguinte a don Juan, apresentei-lhe meus dois exemplos tão logo cheguei.

“Isto é um monte de tolices”, declarou ele. “Nada disto serve. As estórias referem-se a você como pessoa que pensa, sente, chora, ou que nada sente. Os eventos memoráveis do álbum de um xamã são questões que resistem ao passar do tempo porque elas não têm nada a ver com ele, e ainda assim ele está no miolo delas. Ele estará sempre no miolo delas, pela duração de sua vida, e talvez mesmo depois, mas não de maneira pessoal”.

Suas palavras fizeram com que me sentisse rejeitado, inteiramente derrotado. Eu sinceramente acreditava nessa época que don Juan era um velho intransigente que sentia um deleite especial em fazer-me sentir estúpido. Ele lembrava-me um mestre artesão que eu encontrara numa fundição de esculturas onde eu trabalhava quando freqüentava uma escola de belas artes. Tal mestre artesão usava criticar e encontrar defeitos em todos os trabalhos de seus alunos mais adiantados, e exigia que eles os corrigissem levando em conta suas recomendações. Seus alunos viravam as costas e fingiam corrigir seus trabalhos. Lembrei-me do júbilo do artesão quando dizia, depois de examinar o mesmo trabalho, “Agora ficou no ponto exato!”.

“Não fique assim”, disse don Juan, sacudindo-me para tirar-me de minhas recordações. “Durante meu tempo, acontecia o mesmo comigo. Durante anos, eu não apenas não sabia o que escolher, como também pensava não ter nada para ser selecionado. Parecia que nada nunca me acontecera. É claro que tudo tinha acontecido comigo, mas o meu esforço de defender a idéia que tinha de mim mesmo, não me dava tempo nem inclinação para notar o que quer que fosse”.

“Você poderia dizer-me, don Juan, especificamente, o que há de errado com minhas histórias? Sei que elas não são nada, mas o resto de minha vida é a mesma coisa”.

“Vou repetir isto para você”, disse ele. “As histórias do álbum do guerreiro são impessoais. Sua história do dia em que entrou para a UCLA não passa de uma afirmação acerca de você como o centro do mundo. Você sente, ou você não sente; você percebe, ou você não percebe. Entende o que eu quero dizer? Toda a história é só sobre você”.

“Mas como pode ser diferente, don Juan?” Perguntei. “Na sua outra história, você quase tocou naquilo que eu quero, mas depois transformou-a em algo extremamente pessoal. Sei que você poderia acrescentar mais alguns detalhes, mas todos eles seriam uma extensão de sua personalidade e nada mais que isso”

“Sinceramente, eu não consigo perceber o que você quer dizer, don Juan”, protestei. “Qualquer história vista pelos olhos de uma testemunha tem que ser, forçosamente, pessoal”.

“Sim, sim, é claro”, disse ele, rindo, deliciando-se como sempre com a minha confusão. “Mas se assim for, elas não são estórias para o álbum de um guerreiro. São histórias para outros propósitos. Os eventos memoráveis que procuramos têm o toque escuro do impessoal. Esse toque permeia-os. Não sei como explicá-lo de outra maneira”.

Acreditei então que tivera um momento de inspiração e que entendera o que ele chamava de toque escuro do impessoal. Pensei que ele quisesse referir-se a algo um pouco mórbido. Escuridão tinha tal significado para mim. E relatei para ele uma estória de minha infância.

Um de meus primos mais velhos cursava uma escola de medicina. Era interno e um dia levou-me ao necrotério. Ele garantiu-me que toda pessoa jovem deveria ver um cadáver, pois isso era muito educativo; demonstrava que a vida é transitória. Falava comigo sobre isso uma vez atrás da outra, para convencer-me. Quanto mais ele falava-me que não éramos importantes em presença da morte, tanto mais curioso eu sentia-me. Nunca tinha visto um cadáver. Minha curiosidade para ver um deles, finalmente, venceu-me e fui com ele.

Ele mostrou-me vários cadáveres e conseguiu assustar-me a ponto de paralisar-me. Não vi nada de educativo ou iluminativo em tal experiência. Os corpos eram, sem dúvida, as coisas mais assustadoras que jamais tinha visto. Enquanto meu primo falava comigo, olhava para o relógio como se esperasse que alguém fosse chegar a qualquer momento. Obviamente ele queria que eu demorasse no necrotério mais tempo que minhas forças permitissem. Sendo a pessoa competitiva que eu era, acreditei que ele estivesse testando minha resistência, minha masculinidade. Cerrei os dentes e resolvi ficar até que acontecesse o pior.

O pior aconteceu de um modo que eu nunca suspeitei. Um cadáver que estava coberto com um lençol realmente movimentou-se para cima, fazendo um som no tampo de mármore sobre o qual estavam todos os cadáveres, como se preparasse para ficar sentado. O corpo emitiu um som como se arrotasse, um som tão aterrador que queimou-me por dentro e que ficará em minha memória pelo resto de minha vida. Meu primo, o doutor, o cientista, explicou-me que aquele era o corpo de um homem que morreu de tuberculose, e que seus pulmões foram devorados por bacilos que deixaram enormes buracos cheios de ar, e que em casos semelhantes, quando mudava a sua temperatura, o ar forçava o corpo a ficar sentado ou, pelo menos, a ter uma convulsão.

“Não, ainda não é isso”, disse don Juan, balançando a cabeça de um lado para o outro. “Essa é meramente uma estória sobre seu medo. Eu também teria ficado morto de medo; ficar morto de medo, entretanto, não ilumina o caminho de ninguém. Mas estou curioso para saber o que aconteceu com você”.

“Eu berrei como um celerado”, disse eu. “Meu primo chamou-me de covarde, de poltrão, por ter escondido minha cara em seu peito e por ter vomitado em cima dele”.

Eu, sem nenhuma dúvida, tinha adquirido um toque de morbidez em minha vida. Contei outra estória, dessa vez sobre um jovem de dezesseis anos que conheci no colégio, o qual sofria de uma doença glandular e que por causa dela desenvolveu uma altura enorme. Seu coração não se desenvolveu proporcionalmente ao resto do corpo e certo dia ele morreu de um ataque cardíaco. Eu fui até o necrotério com um colega apenas por mórbida curiosidade. O agente funerário, que talvez fosse mais mórbido que nós dois, abriu a porta dos fundos para entrarmos. Mostrou-nos sua obra de arte. Havia colocado o menino gigante, que tinha mais de dois metros e trinta centímetros de altura, em um caixão normal serrando as pernas do cadáver. Mostrou-nos como arrumara as pernas serradas, colocando-as ao lados dos dois braços, que pareciam exibir dois troféus.

O susto que experimentei foi comparável ao que havia sentido quando criança naquele necrotério, mas esse novo susto não foi uma reação física; foi mais uma reação de repulsa psicológica.

“Você está quase chegando lá”, disse don Juan. “Sua estória, entretanto, ainda é muito pessoal. É revoltante. Sinto náuseas, mas vejo um grande potencial”.

Don Juan e eu rimos dos horrores que encontramos nas situações da vida do dia-a-dia. Naquele momento eu estava desesperadamente perdido em meio aos sentimentos mórbidos que iam e vinham. Contei-lhe então a estória do meu melhor amigo, Roy Goldpiss. Seu sobrenome verdadeiro não era esse, mas sim um sobrenome polonês, mas seus amigos chamavam-no de Goldpiss porque tudo em que tocava era transformado em ouro; era um grande homem de negócios.

Seu talento pelos negócios fez dele uma pessoa super ambiciosa. Queria ser o homem mais rico do mundo. Descobriu, entretanto que a competição era muito disputada. De acordo com ele, apenas realizando negócios, ele não poderia competir, por exemplo, com o cabeça de uma seita Islâmica que, naquela época, recebia seu peso em ouro cada ano que passava. Tal homem engordava o máximo que seu corpo suportasse antes de ser pesado.

Meu amigo então diminuiu sua pretensão e esforçou-se para ser o homem mais rico dos EEUU. A competição, ainda assim, era feroz. Ele então diminuiu um grau abaixo: talvez pudesse ser o homem mais rico da Califórnia. Mas tal meta estava muito distante de sua fortuna. Desistiu da esperança de que, com sua cadeia de pizzarias e de sorveterias, pudesse progredir tanto a ponto de competir com as famílias estabelecidas que eram donas da Califórnia. Contentou-se em ser o homem mais rico de Woodlands Hills, subúrbio de LA em que residia. Infelizmente para ele, o Sr. Marsh, dono das fábricas que produziam um colchão de primeira qualidade, conhecido e utilizado em todos os EEUU, morava na mesma rua que ele, e sua fortuna era inacreditável. A frustração tornou-se ilimitada. Seu esforço para realizar sua pretensão era tão forte que começou a afetar sua saúde.

Um dia faleceu com um aneurisma cerebral.

Sua morte levou-me à minha terceira visita a um necrotério. A esposa de Roy solicitou-me, como seu melhor amigo, certificar-me de que o corpo estivesse convenientemente vestido. Fui até a funerária, onde um auxiliar do sexo masculino conduziu-me até a câmara mais interna. No exato momento de minha chegada, o agente funerário estava tentando, sobre uma mesa de mármore alta, pressionando com muita força, puxar para cima os cantos do lábio superior do cadáver, o qual já apresentava a rigidez da morte, usando os dedos indicador e polegar, enquanto mantinha o dedo médio contra a palma da mão. Enquanto um sorriso grotesco aparecia na face morta de Roy, o agente virou-se um pouco de lado para mim, dizendo em tom servil: “Espero que seja do seu agrado o que estou fazendo, senhor”.

A mulher de Roy – nunca se saberá se ela gostava dele ou não – decidiu enterrá-lo com todo o luxo que, em sua opinião, merecia sua vida. Comprou um caixão muito caro, feito sob medida e que mais parecia uma cabine telefônica; ela teve tal idéia por causa de um filme. Roy seria enterrado sentado, como se estivesse fazendo uma ligação telefônica de negócios.

Não esperei pela cerimônia. Eu saí em meio a uma reação a mais violenta possível, uma mistura de impotência e ódio, um tipo de raiva que não podia desabafar com ninguém.

“Sem dúvida, você hoje está mórbido”, comentou, don Juan rindo. “Mas a despeito disso, ou talvez por causa disso, você está quase no ponto... o chicotinho está quente”.

Eu nunca consegui deixar de ficar admirado pelo modo como o meu estado de espírito modificava cada vez que estava com don Juan. Quando chegava, eu sempre estava mal humorado, rabugento, cheio de auto afirmações e dúvidas. Depois de um momento, meu estado de espírito mudava misteriosamente e eu ia tornando-me aos poucos mais expansivo até ficar completamente calmo como nunca havia estado. Meu novo estado de ânimo, entretanto, sempre era revestido pelo meu velho modo de me exprimir. Minha maneira usual de falar era aquela de uma pessoa totalmente insatisfeita que se esforçava para não reclamar aos brados, mas cuja reclamações infindáveis estavam sempre implícitas em cada mudança de assunto da conversa.

“Você pode fornecer-me um exemplo de um evento memorável de seu álbum, don Juan?” perguntei-lhe no meu tom velado de reclamação. “Se eu conhecer o padrão que você procura, talvez eu possa acabar por encontrar algo. Do jeito que a coisa está, estarei dando voltas no escuro, sem nenhuma esperança”.

“Não dê tantas explicações”, disse don Juan com uma expressão séria em seu olhar. “Os feiticeiros dizem que existe uma desculpa em cada explicação. Desse modo, cada vez que você estiver se desculpando por não conseguir fazer isso ou aquilo, na verdade você está desculpando-se por suas deficiências, esperando que quem estiver ouvindo você tenha a bondade de entendê-las”.

Minha manobra mais eficaz, quando estou sendo atacado, tem sido descartar os golpes de meus agressores ignorando suas palavras. Don Juan, entretanto, tinha a habilidade desagradável de capturar cada pedacinho de minha atenção. Não importava o modo pelo qual ele me atacasse, não importava o que dizia, ele sempre conseguia prender-me em cada uma de suas palavras. Naquele momento, o que ele estava dizendo não me agradava nem um pouquinho, pois era a verdade nua e crua.

Evitei seu olhar. Senti-me, como sempre, derrotado, mas aquela era uma derrota diferente, peculiar. Não fiquei tão chateado como ficaria se o caso tivesse acontecido no mundo do dia-a-dia, ou se tivesse acontecido logo depois de chegar à sua casa. Depois de um longo momento de silêncio, don Juan falou comigo novamente.

“Melhor que dar um exemplo de um evento memorável de meu álbum,” disse ele, “será dar um exemplo de um momento memorável de sua própria vida, um que por certo irá fazer parte de sua coleção. Ou, diria eu, se eu fosse você, eu certamente o colocaria em minha coleção de eventos memoráveis.”

Pensei que don Juan estivesse brincando e ri estupidamente.

“Esse não é um assunto para risos”, disse ele bruscamente. “Estou falando sério. Você certa vez contou-me uma estória que preenche os pré-requisitos de um evento memorável”.

“Que história é essa, don Juan?”

“A história de ‘figuras em frente de um espelho,’” disse ele. “Conte-me essa estória novamente. Mas conte-a com todos os detalhes que você possa lembrar”.

Comecei a tornar contar a estória de uma maneira apressada e superficial. Ele me fez parar e exigiu uma narrativa cuidadosa e detalhada, a partir do início. Tentei novamente, mas meu relato não o satisfez.

“Vamos dar um passeio”, propôs ele. “Quando você anda, você é muito mais acurado do que quando sentado. Não é à toa que você deveria andar de um lado para o outro quando fosse relatar alguma coisa”.

Estávamos sentados sob o caramanchão de sua casa, como sempre acontecia. Eu havia adquirido um hábito: sempre que estivesse sentado ali, escolhia o mesmo local, apoiando minhas costas contra a parede. Don Juan sentava-se em vários lugares, mas nunca no mesmo local.

Saímos para dar uma volta na pior parte do dia, às 12 horas. Ele deu-me um chapéu de palha, como sempre fazia quando íamos andar sob o forte calor do sol. Andamos por muito tempo em completo silêncio. Tentei, ao máximo que minha habilidade permitiu, forçar a mim mesmo para lembrar-me de todos os detalhes da estória. Foi no meio da tarde que, sentados sob a sombra de uns arbustos altos, contei-lhe de novo toda a estória.

Anos antes, como estudante de escultura numa excelente escola de artes da Itália eu tinha um amigo íntimo, um escocês que estudava arte para se tornar um crítico de arte. O que mais vivamente se destacava em minha mente sobre ele, e que tinha algo a ver com a estória que estava contando mais uma vez para don Juan, era a bombástica idéia que ele tinha de si mesmo; ele considerava-se o mais licencioso, concupiscente, consumado erudito e artesão, um homem da Renascença. Era licencioso, mas concupiscência era algo em contradição com sua pessoa séria, seca e esquelética. Ele era um seguidor vicário do filósofo inglês Bertrand Russel e sonhava em aplicar os princípios do positivismo lógico à crítica da arte. Ser um consumado erudito e artesão era talvez sua fantasia mais ousada, pois ele era um procrastinador; o trabalho era seu pior inimigo.

Sua especialidade dúbia não era ser crítico de arte, mas o conhecimento pessoal de todas as prostitutas dos bordéis locais, cuja quantidade era enorme. Os relatos extensos e coloridos que ele costumava me oferecer – com a finalidade, segundo ele, de me colocar a par das coisas maravilhosas que ele fazia no mundo de sua especialidade – eram deliciosos. Não constituiu, desse modo, nenhuma surpresa para mim quando, certo dia, ele apareceu em meu apartamento, inteiramente excitado, quase sem fôlego, e disse-me que algo extraordinário acontecera com ele e que queria que eu compartilhasse do mesmo.

“Afirmo-lhe, caro amigo, que você deve comprovar isso você mesmo!” Disse ele excitado com o sotaque de Oxford que lhe afetava sempre que falava comigo. Andava pelo quarto nervosamente. “É difícil de descrever, mas sei que é algo que você irá apreciar. Algo que irá impressionar você para o resto de sua vida. Eu vou dar para você um presente para toda a sua vida. Está entendendo?”

Eu entendi que ele era um escocês histérico. Era com prazer que fazia a sua vontade e o acompanhava de longe. Nunca arrependi-me dessa estratégia.

“Acalme-se, acalme-se, Eddie”, disse eu. “O que você está tentando dizer-me?”

Ele contou que esteve num bordel, onde encontrara uma mulher incrível que fazia uma coisa maravilhosa que chamava de “figuras em frente de um espelho”. Ele garantia-me repetidas vezes, quase gaguejando, que eu devia a mim mesmo experienciar tal evento pessoalmente.

“Digo-lhe que pode ficar tranqüilo quanto ao dinheiro!” Disse ele, uma vez que sabia que eu quase sempre estava quebrado. “Eu já paguei por você. Tudo o que você tem que fazer é vir comigo. Madame Ludmilla irá mostrar para você suas ‘figuras em frente de um espelho’. É o máximo!”

Numa explosão de alegria incontrolável, Eddie dava gargalhadas, esquecendo-se de seus dentes estragados, que usualmente escondia atrás de um sorriso ou mesmo riso com os lábios quase fechados. “Digo para você, é algo espetacular!”

Minha curiosidade crescia a cada minuto. Estava mais que disposto a participar desse seu novo deleite. Eddie levou-me em seu carro para a periferia da cidade. Paramos em frente de um prédio em mau estado de conservação e todo empoeirado; a pintura estava descascando. Parecia que o prédio fora um hotel anteriormente, um hotel que se transformou em um prédio de apartamentos. Eu pude ver os vestígios de um letreiro do hotel, que estava todo descascado. Na frente do prédio existiam filas de sacadas sujas, cheias de vasos de flores e de tapetes a secar.

Na portaria do edifício encontravam-se dois homens de cor, mal encarados, que usavam sapatos pretos pontudos, parecendo muito apertados; eles cumprimentaram Eddie efusivamente. Tinham olhos pretos, evasivos e ameaçadores. Os dois estavam usando ternos azul claro brilhantes, também muito apertados para seus corpos robustos. Um deles abriu a porta para Eddie. Eles nem mesmo olharam para mim. Subimos dois lances de uma escada dilapidada que um dia devia ter sido luxuosa. Eddie mostrava-me o caminho e andamos ao longo de um corredor vazio que parecia ser de um hotel, com portas nos dois lados. Todas as portas estavam pintadas com a mesma cor verde oliva, escura e desbotada. Cada porta tinha um número de latão, enferrujado pela idade, quase invisível contra a madeira pintada.

Eddie parou na frente de uma das portas. Notei que tinha o número 112. Ele bateu repetidas vezes. A porta abriu, e uma mulher baixa e rechonchuda – uma loura oxigenada – cumprimentou-nos sem dizer uma palavra. Usava um robe vermelho de seda, cujas mangas tinham babados de penas, e chinelos vermelhos com pompons peludos no topo. Uma vez dentro de um pequeno hall e fechada a porta por trás de nós, ela cumprimentou Eddie em inglês, com um sotaque terrível.

“Alô Eddie, você trouxe um amigo, não é?”

Eddie tomou sua mão e depois beijou-a galantemente. Ele agia como se estivesse calmo, mas pude notar seus gestos inconscientes de não estar à vontade.

“Como está passando, Madame Ludmilla?” Disse ele, tentando sem sucesso passar por um americano.

Eu nunca descobri porque Eddie queria aparentar que era americano toda a vez que estivesse tratando de negócios naquelas casas de má reputação. Suspeitava que o motivo era porque os americanos eram conhecidos como sendo ricos, e ele queria deixar, de modo fidedigno, a impressão de que era rico.

Eddie virou-se para mim e disse com seu falso sotaque de americano, “deixo você em boas mãos, meu menino”.

Seus modos foram tão terríveis, tão estranhos aos meus ouvidos, que eu dei uma gargalhada. Madame Ludmilla não pareceu nenhum pouco perturbada pela minha explosão de riso. Eddie beijou novamente a mão de Madame Ludmilla e saiu.

“Você fala inglês, meu rapaz?” Gritou ela como se eu fosse surdo. “Você parece-me egípcio ou, talvez, turco”.

Garanti para Madame Ludmilla que não era nenhum dos dois e que falava inglês. Perguntou-me então se eu tinha idéia do que seriam suas “figuras em frente de um espelho”. Eu não sabia o que dizer. Apenas balancei minha cabeça afirmativamente.

“Vou dar para você um belo show”, assegurou-me ela. As “figuras em frente de um espelho” são apenas a “overture”. Quando você estiver pronto e quente, avise-me para que eu pare”.

Deixamos o pequeno hall onde estávamos e fomos para um quarto escuro e lúgubre. As janelas tinham pesadas cortinas. Havia algumas arandelas com lâmpadas de baixa potência fixadas nas paredes. Existia uma profusão de objetos espalhados pelo quarto: peças de mobília tais como uma pequena cômoda, mesinhas e cadeiras antigas; uma escrivaninha cujo topo podia ser fechado por uma corrediça estava apinhada de papéis, lápis, réguas, e pelo menos uma dúzia de tesouras. Madame Ludmilla fez-me sentar numa antiga poltrona estofada.

“A cama fica no outro lado do quarto, querido,” disse ela, apontando para o local. “Esta é a minha ante-sala. É aqui que eu apresento o show para deixar você no ponto.”

Ela deixou cair seu robe vermelho, tirou os chinelos chutando-os para longe, e abriu as portas duplas de dois armários que ficavam um ao lado do outro, contra a parede. Fixados nas partes de dentro das portas dos armários havia espelhos do tamanho das mesmas.

“E agora a música, meu rapaz,” disse Madame Ludmilla e depois deu corda numa vitrola que parecia nova em folha, brilhando como se fosse recém adquirida. Colocou um disco na mesma. A música apresentava uma melodia etérea, que me fez lembrar de uma marcha de circo.

“E agora, o meu show”, disse ela, começando a rodopiar de acordo com o ritmo da lúgubre melodia. A pele de Madame Ludmilla era firme, em sua maior parte, e extraordinariamente branca, embora ela não fosse uma jovem. Ela devia estar nos seus quase cinqüenta anos bem vividos. Sua barriga dobrava, mas não muito, apenas um pouquinho, do mesmo modo que os seios. A pele de sua face mostrava as bochechas pronunciadas. Tinha um nariz pequeno e o batom que usava tinha cores vivas. Ela havia colocado uma espessa máscara negra. Sua aparência geral era a de uma prostituta idosa. Mesmo assim, havia algo infantil na mesma, uma despreocupação e confiança joviais, uma doçura que mexia comigo.

“E agora, as figuras em frente do espelho”, anunciou Madame Ludmilla, enquanto a música ainda continuava.

“Perna, perna, perna!” Disse ela chutando o alto com uma das pernas, e depois com a outra, seguindo o ritmo da música. Ela ficava com a mão direita na cabeça, como uma mocinha que não tinha a certeza de conseguir realizar os movimentos.

“Gira, gira, gira!” Disse ela, rodando como um pião.

“Bumbum, bumbum, bumbum!” Disse depois, mostrando-me seu bumbum pelado, como uma dançarina de cancã.

Ela repetiu a seqüência uma vez atrás da outra, até que a música começou a parar porque a corda da Vitrola estava acabando. Eu tive a impressão de que Madame Ludmilla estava rodopiando e se distanciando, tornando-se cada vez menor à medida em que a música parava. Uma espécie de desespero e solidão, que eu não sabia existirem em mim, emergiram a partir das profundezas do meu próprio ser, fazendo com que eu me levantasse e saísse correndo para fora do quarto, descendo as escadas como um louco, saindo do prédio e mergulhando na rua.

Eddie estava parado na porta conversando com os dois homens de terno azul claro brilhante. Vendo-me correr daquele jeito, começou a dar as maiores gargalhadas.

“Não foi o máximo?” Disse ele, ainda tentando parecer americano. “As figuras em frente do espelho eram apenas o intróito. Que beleza! Que beleza!”.

Na primeira vez que contei a estória para don Juan, disse-lhe que ficara profundamente afetado pela melodia lúgubre e pelo rodopiar desajeitado da prostituta ao som da música. E que também ficara profundamente afetado ao perceber quão grosseiro era meu amigo.

Quando acabei de contar de novo a estória para don Juan, enquanto sentados numa colina de uma cadeia de montanhas em Sonora eu tremia todo, misteriosamente afetado por algo bastante impreciso.

“Essa história”, disse don Juan, “deveria constar de seu álbum de eventos memoráveis. Seu amigo, sem ter a mínima idéia do que estava fazendo, deu-lhe, como ele mesmo disse, algo que na verdade irá durar por toda a sua vida”.

“Eu a vejo como uma triste história, don Juan, mas apenas isso”, declarou.

“Ela é realmente uma história triste, do mesmo modo que as suas outras histórias”, replicou don Juan, “mas o que a faz diferente e memorável para mim é que ela toca a cada um de nós seres humanos, não apenas a você, como suas outras estórias. Veja você, como Madame Ludmilla, cada um de nós, jovem e também adulto, também está fazendo, de um ou outro modo, figuras em frente de um espelho. Isso está de acordo com o que sabemos a respeito das pessoas. Pense em qualquer ser humano sobre a Terra, e saberá, sem sombra de dúvida, não importando quem seja, o que pense de si mesmo, ou o que faça, o resultado de suas ações é sempre o mesmo: figuras sem sentido em frente de um espelho”.

 

Um Tremor no Ar

 

                   Uma Jornada de Poder

Na ocasião em que encontrei don Juan eu era um estudante de antropologia autenticamente dedicado, e queria começar minha carreira profissional como antropólogo publicando o máximo possível sobre a minha especialidade. Estava determinado a escalar a ladeira acadêmica, e pelos meus cálculos, decidi que o primeiro passo seria coligir dados referentes ao uso de plantas medicinais pelos índios do sudoeste americano.

Inicialmente pedi a opinião acerca de meu projeto a um professor de antropologia que trabalhara naquela área. Ele era um eminente etnologista que publicara vários livros no final dos anos trinta e início dos quarenta, sobre os índios da Califórnia, sobre os índios do sudoeste e sobre os índios de Sonora, no México. Ele ouviu pacientemente minha exposição. Minha idéia era escrever um informe, chamá-lo de “Dados Etno-botânicos”, e publicá-lo em um jornal que tratava exclusivamente de assuntos antropológicos do sudoeste americano.

A minha proposta era colher plantas, levar as amostras para o jardim botânico da UCLA para serem identificados corretamente, e então descrever como e porque eram utilizados pelos índios do sudoeste. Imaginava coletar milhares de amostras. Imaginava até mesmo publicar uma pequena enciclopédia sobre a matéria.

O professor sorriu como perdoando a minha ousadia, ou minha ingenuidade. “Não quero arrefecer o seu entusiasmo”, disse numa voz cansada, “mas não posso deixar de comentar negativamente a propósito de sua ânsia. A ânsia é bem-vinda em antropologia, mas tem que ser corretamente direcionada. Ainda estamos na idade de ouro com relação à antropologia. Tive sorte em estudar com Alfred Kröber e Robert Lowie, dois pilares das ciências sociais. Não traí sua confiança. Antropologia é ainda a mestra das disciplinas. Cada uma das outras disciplinas deveria brotar da antropologia. O campo inteiro da história, por exemplo, deveria ser chamado de ‘antropologia histórica’, e o campo da filosofia deveria ser chamado de ‘filosofia antropológica’. O homem deveria ser a medida de tudo. Desse modo, a antropologia, o estudo do homem, deveria ser o cerne de cada uma das outras disciplinas. Um dia, será.”

Eu olhei para ele, desnorteado. Ele era, no meu modo de pensar, um velho professor totalmente passivo e benevolente que tivera um ataque de coração recentemente. Parecia que eu havia tocado numa corda de paixão em seu interior.

“Você não acha que deveria dar mais atenção aos seus estudos formais?” Continuou ele. “Em lugar de trabalhos de campo, não seria melhor para você estudar lingüística? Temos em nosso Departamento aqui na UCLA um dos mais proeminentes lingüistas do mundo. Se eu fosse você, estaria sentado em seus pés, catando qualquer migalha que emanasse dele.

“Temos também uma soberba autoridade nos estudos comparativos das religiões. E existem outros antropólogos excepcionalmente competentes que trabalharam em sistemas de afinidades culturais entre povos de todo o mundo, sob o ponto de vista lingüístico e de cognição. Você necessita de um montão de coisas para se preparar. Pensar que já pode ir direto para a pesquisa de campo é um engano grosseiro. Mergulhe nos livros, meu jovem. Esse é o meu conselho”.

Teimosamente, conversei sobre meus planos com um outro professor, desta vez um mais jovem. Ele não foi, sob nenhum ponto de vista, mais encorajador. Riu abertamente em minha cara. Disse-me que o informe que eu queria escrever era um tipo de “história em quadrinhos” e que não era antropologia nem mesmo sob o aspecto da mais fértil imaginação.

“Os antropólogos modernos”, disse ele em tom professoral, “ocupam-se de assuntos que tenham relevância. Cientistas das áreas médica e farmacêutica já realizaram pesquisas intermináveis acerca de todas as plantas medicinais possíveis existentes no mundo. Não existe mais em tal campo nenhum osso para ser roído. O tipo de pesquisa de campo que você pretende fazer é coisa do passado, do fim do século dezenove. Você está quase duzentos anos atrasado. Como você sabe, não existe essa coisa chamada progresso”.

Ele prosseguiu dando-me, então, uma definição e uma justificação de progresso e perfectibilidade como dois itens do discurso filosófico, que, segundo ele, eram mais relevantes para a antropologia.

“Antropologia é a única das disciplinas que existem”, continuou ele, “que pode claramente consolidar o conceito de perfectibilidade e de progresso. Graças a Deus ainda existe um raio de esperança no meio do cinismo de nossos tempos. Somente a antropologia pode mostrar o real desenvolvimento da cultura e da organização social. Apenas os antropólogos podem provar para a humanidade, sem nenhuma sombra de dúvida, o progresso do conhecimento humano. A cultura evolve, e só os antropólogos podem apresentar amostras de sociedades que, na linha do progresso e perfectibilidade, se adequam a determinado padrão. Digo para você, isso é antropologia! E não uma pesquisa de campo insignificante, que na verdade não é pesquisa coisa nenhuma, mas sim mera masturbação”.

Aquilo foi para mim como uma explosão de minha cabeça. Numa última tentativa, fui para o Arizona conversar com alguns antropólogos que faziam trabalho de campo. Naquele momento, eu já estava preparado para desistir de tudo que planejara. Entendi o que aqueles dois professores estavam tentando dizer-me. Eu não poderia acreditar mais neles. Minhas tentativas de realizar trabalhos de campo eram sem dúvida frutos de minha pobreza de espírito. Mesmo assim queria molhar meus pés no campo; não queria fazer apenas pesquisas em bibliotecas.

No Arizona encontrei um antropólogo extremamente amadurecido que tinha escrito extensivamente sobre os índios yaqui do Arizona e também sobre os de Sonora, no México. Ele foi extremamente bondoso para comigo. Não me desencorajou e nem deu-me conselho algum. Apenas comentou que as sociedades indígenas do sudoeste eram extremamente isolacionistas, e que as pessoas estranhas, principalmente os de origem hispânica, eram suspeitas, ou mesmo abominadas, por aqueles índios.

Um colega seu mais jovem, entretanto, foi mais franco. Disse que ler livros sobre ervas medicinais era melhor para mim. Ele era uma autoridade no assunto e sua opinião era de que tudo o que havia para ser conhecido sobre as plantas medicinais do sudoeste já havia sido classificado e comentado em várias publicações. Ele foi até mesmo ao extremo de dizer que as fontes de qualquer curandeiro índio moderno eram precisamente aquelas publicações em vez de qualquer conhecimento tradicional. Ele despachou-me com a afirmação de que mesmo se ainda houvesse qualquer método tradicional de cura ainda não divulgado, os índios não iriam divulgá-lo para um estranho.

“Faça alguma coisa que valha a pena”, aconselhou-me. “Examine a antropologia urbana. Existe um montão de dinheiro para estudo do alcoolismo dos índios que vivem nas grandes cidades, por exemplo. Isso é algo que qualquer antropólogo pode facilmente fazer. Vá e fique bêbado com os índios em um bar. Depois organize o que descobriu sobre o assunto em termos de estatística. Transforme tudo em números. A antropologia urbana é realmente um campo para pesquisa”.

Não restava nada mais para mim a não ser aceitar os conselhos daqueles cientistas sociais tão experientes. Decidi tomar o avião de volta para LA, mas um outro amigo antropólogo contou-me que iria percorrer todo o Arizona e Novo México, em visita a todos os locais onde trabalhara no passado, renovando desse modo o seu relacionamento com as pessoas que eram seus informantes de antropologia.

Você será bem-vindo se quiser acompanhar-me, “disse ele”. Não irei executar nenhum trabalho. Estou indo apenas para visitá-los, beber umas e outras com eles, conversar fiado com eles. Comprei alguns presentes para eles – cobertores, aguardente, jaquetas, munição para rifles calibre vinte e dois. Meu carro está carregado com mercadorias. Usualmente viajo sozinho quando vou visitá-los, mas estando só, corro o risco de pegar no sono. Você poderia me fazer companhia, conversar comigo para que eu não cochile, ou mesmo dirigir um pouco sempre que eu estiver muito bêbado.”

Eu estava tão desapontado que recusei o convite.

“Sinto muito, Bill”, disse eu. “Tal viagem de nada valerá para mim. Não vejo como continuar com essa idéia de trabalho de campo por mais tempo”.

“Não desista sem lutar,” disse Bill num tom de preocupação paternal. “Lute com tudo o que você tiver, e se nada conseguir, então sim, estará OK desistir, mas antes, não. Venha comigo e descubra como o sudoeste poderá lhe agradar”.

Ele colocou seu braço ao redor dos meus ombros. Não pude deixar de notar quão imensamente o mesmo pesava. Ele era alto e robusto, mas recentemente seu corpo havia adquirido uma estranha rigidez. Ele perdera aquela qualidade juvenil. Sua face redonda não tinha mais a jovialidade de antes. Agora era uma face que espelhava preocupação. Eu acreditava que sua preocupação era motivada pela queda de seus cabelos, mas agora parecia que se tratava de algo mais profundo que isso. E não era o fato dele estar mais gordo; seu corpo estava pesado por motivos que não podiam ser explicados. Eu notava isso pelo modo como ele andava, levantava ou sentava. Bill parecia lutar contra a gravidade com cada fibra de seu ser, em tudo o que fazia.

Afastando meus sentimentos de derrota, iniciei a viagem com ele. Visitamos cada local no Arizona e Novo México onde havia índios. Um dos resultados finais desta viagem foi a minha descoberta de que meu amigo antropólogo tinha duas facetas bem definidas em sua personalidade. Explicou-me que suas opiniões como antropólogo profissional eram bem definidas e congruentes com o pensamento antropológico atual, mas como um homem em particular, sua pesquisa antropológica de campo havia proporcionado a ele uma enorme riqueza de experiências sobre as quais ele nunca falou com ninguém. Tais experiências não eram congruentes com o pensamento antropológico atual porque eram eventos impossíveis de ser catalogados.

Durante o desenrolar de nossa viagem, ele invariavelmente tomava alguns drinques com seus ex-informantes, e sentia-se muito relaxado depois disso. Em tais momentos eu tomava o volante e dirigia enquanto ele ficava no banco do passageiro tomando seus golinhos numa garrafa de Ballantine de trinta anos de idade. Era então que Bill falava sobre suas experiências que não podiam ser catalogadas.

“Eu nunca acreditei em fantasmas”, disse ele de repente certo dia. “Eu nunca me envolvi nessa coisa de aparições, essências flutuantes, vozes no escuro, você sabe. A minha educação foi muito séria, pragmática. A ciência foi sempre a minha bússola. Mas então, trabalhando no campo, toda espécie de coisas esquisitas começaram a filtrar através de mim. Por exemplo, certa noite acompanhei uns índios numa busca de aparições. Eles na verdade estavam iniciando-me com uma experiência dolorosa de espetar os músculos de meu peito. Eles prepararam uma espécie de sauna no meio da floresta. Eu suportava a dor resignado. Tomei alguns drinques para me dar força. E então o homem que iria interceder por mim com as pessoas que realmente conduziam a cerimônia gritou horrorizado apontando para uma figura negra, sombria, que avançava em nossa direção.

“Quando a figura sombria aproximou-se de mim”, continuou Bill, “notei que tinha pela frente um velho índio vestido com as roupas mais esquisitas que você possa imaginar. Usava a parafernália dos xamãs. O homem que estava comigo nessa noite desmaiou vergonhosamente ao ver o velho. Ele, o velho índio, veio até mim e apontou com o dedo o meu peito. Seu dedo era apenas pele e osso. Ele balbuciou palavras incompreensíveis para mim. Naquela altura, o resto das pessoas já tinham visto o velho, e começaram a investir silenciosamente em minha direção. O velho virou para vê-los e todos ficaram imobilizados de medo. Ele arengou com eles por um momento. Sua voz era algo que nunca poderá ser esquecido. Era como se ele falasse por um tubo, ou como se ele tivesse alguma coisa presa em sua boca que conduzisse as palavras de dentro dele. Juro para você que vi o homem falando de dentro do corpo, e sua boca irradiava as palavras como um aparelho mecânico. Depois de arengar com os índios, o velho continuou andando, passou por mim e desapareceu, tragado pela escuridão.

Bill disse que o plano de iniciá-lo foi por água abaixo; nunca mais foi completado; e os homens, inclusive os xamãs em comando, tremiam até os ossos. Disse que estavam tão assustados que saíram em debandada.

“Pessoas que eram amigas durante anos e anos”, continuou ele, “nunca mais falaram umas com as outras. Alegavam que o que viram foi a aparição de um xamã incrivelmente velho, e que falar entre si sobre ele traria azar e desgraça. Afirmavam que até mesmo o simples ato de um ver o outro, traria má sorte para ambos. A maior parte deles mudou-se para outra região.”

“Porque achavam que falar sobre o que viram ou mesmo olhar um para o outro traria má sorte para eles?”

“Essa é a sua crença,” replicou ele. “Uma visão dessa natureza significa para eles que ela, a visão, falou com cada um em particular. Ter uma visão de tal natureza é, para eles, a sorte de toda uma vida”.

“E o que foi que a visão falou com cada um em particular?” Perguntei.

“Você não acredita!” Replicou ele. “Eles nunca explicaram nada para mim. Cada vez que eu perguntava, eles entravam num profundo estado de entorpecimento. Eles não tinham visto nada, não tinham ouvido nada. Anos depois do acontecido, o homem que havia desmaiado ao meu lado jurou que havia fingido ter desmaiado porque estava tão assustado que não queria encarar o velho índio, e que o que tinha a dizer foi entendido por todos em um nível diferente da compreensão pela linguagem”.

Bill disse que no seu caso particular, o que a aparição falou para ele foi entendido por ele como relacionado com sua saúde e sua expectativa de vida.

“O que você quer dizer com isso?” Perguntei-lhe.

“Que as coisas não estão assim tão boas para mim”, confessou ele. “Meu corpo não se sente bem”.

“Mas você sabe o que realmente há com você?” Perguntei.

“Oh, é claro”, disse ele despreocupadamente. “Os médicos disseram-me. Mas eu não vou preocupar-me com isso e nem mesmo pensar nisso”.

As revelações de Bill deixaram-me completamente incomodado. Essa era uma faceta de sua personalidade que não conhecia. Eu tinha sempre pensado que ele fosse um osso duro de roer. Nunca poderia conceber que ele fosse vulnerável. Não gostei de nossa interação. Era, entretanto, muito tarde para que eu pudesse tirar o time. Nossa viagem continuava.

Em outra ocasião, ele confidenciou-me que os xamãs do sudoeste eram capazes de se transformarem em diferentes entidades, e que os esquemas que caracterizavam-nos como “xamã urso” ou “xamã leão da montanha”, etc, não deviam ser tomados como eufemismos ou metáforas, pois na realidade não o eram.

“Você acredita”, disse ele com um tom de grande admiração, “que existem xamãs que realmente podem se transformar em ursos, ou em leões da montanha, ou em águias? Não estou exagerando e nem inventando quando digo que certa vez testemunhei a transformação de um xamã que se denominava ‘Homem Rio’ ou ‘Xamã Rio’, ou ‘Vindo de um Rio, Retornando ao Rio’. Estava fora, numa montanha em Novo México, na companhia desse xamã. Acompanhava-o a seu pedido; ele confiava em mim, e estava à procura de suas origens, pelo menos foi o que disse. Estávamos caminhando ao longo de um rio quando de repente ele ficou muito excitado. Disse para afastar-me da margem e ir para determinadas pedras altas onde deveria esconder-me; colocou um cobertor sobre minha cabeça e ombros e orientou-me para espiar através dele de modo a não perder nada do que ele iria fazer.”

“O que ele iria fazer?” perguntei a Bill, incapaz de me conter.

“Eu não sabia”, respondeu ele. “Eu não fazia a mínima idéia, do mesmo modo que você agora. Não havia como eu pudesse conceber o que ele iria fazer. Ele apenas caminhou para dentro da água, com roupa e tudo. Quando a água atingiu a metade de suas panturrilhas – o rio era largo, mas raso – o xamã simplesmente evaporou, desapareceu. Antes de entrar na água, ele murmurou em meu ouvido que eu deveria descer rio abaixo e esperar por ele. Indicou-me o local exato onde deveria esperá-lo. Eu, é claro, não acreditei em uma só palavra do que ele disse, de modo que a princípio não consegui lembrar-me do local onde deveria esperar por ele, mas depois encontrei-o e vi o xamã saindo fora da água. Parece estúpido dizer ‘saindo fora da água’. Eu vira o xamã transformando-se em água e depois sendo refeito a partir da água. Pode acreditar nisso?”

Não fiz nenhum comentário sobre suas histórias. Era impossível para mim acreditar nele, mas também não pude deixar de acreditar. Ele era um homem muito sério. A única explicação possível em que podia pensar era que enquanto continuava nossa viagem ele bebia mais a cada dia que passava. Ele tinha no porta-malas do carro uma caixa com vinte e quatro garrafas de Scotch para seu consumo exclusivo. Ele era realmente um pau d’água.

“Eu sempre fui parcial com relação às mutações esotéricas dos xamãs”, disse-me ele em outro dia. “Isso não quer dizer que eu possa explicar tais mutações, ou mesmo acreditar que elas acontecem, mas como um exercício intelectual eu estou muito interessado em considerar que as mutações em cobras e leões da montanha não são tão difíceis como o que o xamã água fez. É num momento como esse, quando eu disponho meu intelecto de tal maneira que deixo de ser um antropólogo e começo a reagir segundo um sentimento de minhas entranhas. O sentimento de minhas entranhas é que aqueles xamãs certamente fazem algo que não pode ser medido cientificamente ou mesmo ser objeto de uma conversa inteligente.

“Por exemplo, existem xamãs nuvens que se transformam em nuvens, em névoa. Eu nunca vi isso acontecer, mas conheci um xamã nuvem. Nunca o vi desaparecer ou transformar-se em névoa em frente de meus olhos como vi o xamã água transformar-se em água bem na minha frente. Mas eu persegui certa vez esse xamã nuvem, e ele simplesmente desapareceu numa área onde não havia nenhum lugar para ele esconder-se. Embora eu não o tenha visto transformar-se numa nuvem, ele desapareceu. Eu não pude explicar para aonde ele foi. Não havia nem pedras e nem vegetação nas proximidades do lugar aonde ele foi parar. Eu cheguei nesse lugar meio minuto depois dele, mas o xamã sumiu”.

“Cacei este homem por todo o canto para pedir informação,” continuou Bill. “Ele não iria me dar nenhuma colher de chá. Era um amigo muito chegado a mim, mas apenas isso”.

Bill contou-me intermináveis histórias sobre disputas e facções políticas entre os índios em diversas reserva indígenas, ou histórias referentes a vinganças pessoais, animosidades, amizades, etc, etc, as quais não me interessaram nenhum pouco. Por outro lado, suas histórias sobre as mutações de xamãs e aparições causaram uma verdadeira reviravolta emocional em mim. Fiquei ao mesmo tempo fascinado e aterrado por elas. Entretanto, sempre que eu tentava pensar na razão pela qual ficava fascinado ou aterrado, não sabia dizer. Tudo o que poderia dizer era que suas histórias sobre xamãs atingiram-me em um nível visceral, desconhecido.

Outra percepção que resultou dessa viagem foi que eu descobri por mim mesmo que as sociedades indígenas do sudoeste eram realmente fechadas para os de fora. Finalmente aceitei o fato de que necessitava realmente de muita preparação na ciência da antropologia, e que a coisa funcionaria muito melhor se fizesse minhas pesquisas antropológicas de campo numa área que me fosse familiar ou na qual tivesse fácil acesso.

Quando a viagem terminou, Bill levou-me de carro até o terminal dos ônibus da Greyhound, em Nogales, no Arizona, para minha viagem de volta a LA. Enquanto estávamos sentados no salão de espera, aguardando a chegada do ônibus, ele consolava-me de maneira paternal, relembrando-me que os fracassos eram coisas naturais no caso das pesquisas antropológicas de campo e que elas significavam ou o fortalecimento dos propósitos ou o amadurecimento dos antropólogos.

Abruptamente, ele inclinou-se para meu lado e apontou com um leve movimento do queixo o outro lado do salão. “Acho que aquele velho sentado no banco lá naquele canto é o homem sobre o qual lhe falei”, murmurou aos meus ouvidos. “Não estou bem certo, pois só estive uma vez de frente a frente com ele”.

“Que homem é aquele? O que você me falou dele?” Perguntei.

“Quando estávamos falando dos xamãs e das transformações dos xamãs, disse-lhe que uma vez encontrei um xamã nuvem”.

“Sim, sim, estou lembrado”, disse eu. “Aquele homem é um xamã nuvem?”

“Não,” disse ele enfaticamente. “Mas acho que ele é companheiro ou professor do xamã nuvem. Eu os vi juntos várias vezes, muitos anos atrás.”

Eu lembrei-me que Bill mencionou, de um modo muito casual, mas não com relação ao xamã nuvem, que sabia da existência de um velho misterioso que era um xamã aposentado, um velho índio misantropo de Yuma que antes era um terrível feiticeiro. O relacionamento entre o velho e o xamã nuvem nunca me foi relatado por meu amigo, mas obviamente ele estava de tal modo fixado em sua mente que Bill estava convencido de ter falado comigo sobre o assunto.

Uma estranha ansiedade, repentinamente, tomou conta de mim e me fez dar um pulo do lugar onde estava sentado. Como que impelido por uma vontade que não era minha, eu aproximei-me do velho e comecei imediatamente arengar uma ladainha sobre o quanto eu conhecia a respeito de plantas medicinais e sobre xamanismo entre os índios americanos das planícies e seus ancestrais da Sibéria. Como assunto secundário, eu mencionei para o velho que eu sabia que ele era um xamã. Terminei minha arenga assegurando-lhe que seria de grande valia para ele conversar comigo mais demoradamente.

“Ainda que apenas isso”, eu disse petulantemente, “poderíamos trocar figurinhas: você me contaria suas histórias e eu lhe contaria as minhas”.

O velho permaneceu com a cabeça baixa até o último momento. Depois encarou-me. “Eu sou Juan Matus,” disse ele, olhando-me diretamente nos olhos.

A minha tirada não deveria terminar de jeito nenhum, mas por uma razão que não consegui discernir senti que não havia mais nada que eu pudesse dizer. Queria dizer para ele o meu nome. Ele levantou a mão até a altura de minha boca como para evitar que eu falasse.

Neste instante, um ônibus entrou pelo terminal. O velho murmurou que aquele era o ônibus que ele deveria tomar, e depois pediu-me penhoradamente que eu procurasse depois por ele para que pudéssemos falar mais tranqüilamente e trocar figurinhas. Havia um risinho de ironia no canto de sua boca quando ele disse isso. Com uma incrível agilidade para um homem de sua idade – calculei que ele andava aí pelos seus oitenta anos – ele cobriu, com algumas passadas, os cinqüenta metros existentes entre o banco onde estava assentado e a porta do ônibus. O ônibus, como se tivesse parado apenas para apanhá-lo, começou a sair tão logo ele subiu e foi fechada a porta atrás dele.

Depois que o velho saiu, eu voltei para o banco onde Bill estava sentado.

“O que ele disse, o que ele disse?” Perguntou Bill excitado.

“Ele disse-me para procurá-lo depois e ir até sua casa para uma visita,” disse eu. “Disse mesmo que poderíamos conversar ali”.

“Mas o que foi que você lhe disse para que ele lhe convidasse para ir visitá-lo?” Perguntou Bill em tom de demanda.

Disse a Bill que usei toda a minha lábia, e que prometera ao homem revelar-lhe tudo o que eu sabia, sob o ponto de vista de meus estudos, sobre as plantas medicinais.

É claro que Bill não acreditou em mim. Acusou-me de estar enrolando-o. “Eu conheço as pessoas que moram por aqui,” disse ele em tom beligerante, “e aquele velho é um tipo muito estranho. Ele não fala com qualquer um, índios inclusive. Por que iria ele falar com você, uma pessoa totalmente estranha para ele? Você não é nem mesmo atraente!”

Era óbvio que Bill estava chateado comigo. Entretanto, eu não saberia definir o porque. Não ousei pedir-lhe uma explicação. A minha impressão era de que ele estava com um pouco de ciúme. Talvez ele estivesse sentindo que eu tive sucesso em algo que ele falhara.

Meu sucesso, entretanto, havia ocorrido tão inadvertidamente que nada significou para mim. Não fosse a observação informal de Bill, eu não teria a mínima idéia de que fosse difícil aproximar daquele velho índio, e não poderia tratar com ele menos tranqüilamente como aconteceu. Naquele momento, não achei nada de mais em nossa breve interação. Fiquei intrigado pelo fato de Bill ter ficado tão chateado.

“Você sabe onde é a casa dele?” Perguntei-lhe.

“Não tenho a mínima idéia”, respondeu ele secamente. “Tenho ouvido as pessoas desta área dizer que ele não vive em nenhum lugar, que ele aparece inesperadamente aqui e ali, mas isso é conversa fiada. Acho que ele provavelmente vive em algum barracão em Nogales, no México”.

“Por que ele é tão importante?” Perguntei a ele. Minha pergunta me fez reunir bastante coragem para acrescentar, “Você parece ter ficado chateado porque ele falou comigo. Por que?”

Sem nenhum alvoroço, ele admitiu que estava amolado porque sabia que era inútil tentar falar com aquele homem. “Esse velho consegue ser mais rude que ninguém,” acrescentou ele. “No melhor dos casos, ele encara você sem dizer uma palavra quando você fala com ele. Em outras vezes, ele nem mesmo olha para você; trata as pessoas como se elas não existissem. Quando tentei falar com ele uma vez ele recusou brutalmente. Sabe o que disse para mim? Disse, ‘se eu fosse você, não desperdiçaria minha energia abrindo minha boca. Economize-a. Vai necessitar dela.’ Se ele não fosse o velho coroca que é, teria quebrado sua cara”.

Destaquei para Bill que chamá-lo de “velho” era mais uma figura de linguagem que uma descrição real. Ele de fato não parecia ser tão velho, embora fosse sem dúvida velho. Possuía um tremendo vigor e uma agilidade estupenda. Sentia que Bill teria falhado fragorosamente se tentasse acertar o nariz do velho. Aquele índio velho era poderoso. Era, de fato, inequivocamente assustador.

Eu não disse o que estava pensando. Deixei que Bill continuasse dizendo-me quanto estava enojado com a grosseria daquele velho, e como o trataria se ele não fosse tão frágil.

“Quem você acha que me pode dar informações sobre onde ele mora?” Perguntei-lhe.

“Talvez algumas pessoas em Yuma”, replicou ele, um pouco mais relaxado. “Talvez aquele pessoal que lhe apresentei no início de nossa viagem. Você não tem nada a perder se perguntar a eles. Diga-lhes que fui eu quem mandou você procurá-los”.

Mudei meus planos ali mesmo, e em lugar de voltar para LA fui diretamente para Yuma, no Arizona. Estive com as pessoas que Bill tinha me apresentado. Elas não sabiam onde o velho morava, mas seus comentários sobre ele aguçaram ainda mais minha curiosidade. Disseram que ele não era de Yuma, mas de Sonora, no México, e que em sua juventude tinha sido um feiticeiro temível que fazia encantamentos e colocava feitiço nas pessoas, mas que ao ficar mais velho ficou mais brando, transformando-se num eremita ascético. Observaram que ele embora sendo um índio yaqui andou às voltas certa vez com um grupo de mexicanos que parecia conhecer ao extremo as práticas de enfeitiçar. Todos foram unânimes em afirmar que tal grupo não era visto mais pela região desde há muitos anos.

Um dos homens acrescentou que o velho era contemporâneo de seu avô, mas que seu avô era senil e decrépito, enquanto aquele velho parecia ser vigoroso como ninguém. O mesmo homem falou-me de certas pessoas em Hermosillo, a capital de Sonora, que poderiam conhecer o velho e fornecer mais informações sobre ele. O prospecto de ir até o México não me atraía muito. Sonora era muito distante da área na qual estava interessado. Além disso, raciocinei que seria melhor para mim, depois de tudo o que acontecera, dedicar-me à antropologia urbana e então regressei a LA. Antes disso, investiguei a área de Tuma, procurando por informações sobre aquele velho. Ninguém conhecia qualquer coisa relacionada com ele.

Enquanto o ônibus dirigia-se para LA, experimentei uma sensação singular. Por um lado, sentia-me totalmente curado de minha obsessão com pesquisa de campo ou de meu interesse naquele velho. Pelo outro, sentia uma estranha nostalgia. Aquilo era, verdadeiramente, algo que nunca sentira antes. Era algo tão novo e diferente que fiquei profundamente impressionado. Era uma mistura de ansiedade e saudade, como seu eu estivesse perdendo algo tremendamente importante. Tive a sensação clara, enquanto aproximava-me de LA, que, o que quer que fosse que estivesse atuando em mim na região de Yuma, começava a desaparecer com a distância; mas desaparecia apenas para aumentar aquela saudade inexplicável.

 

                   O Intento do Infinito

“Quero que você pense deliberadamente sobre cada detalhe do que transpirou entre você e aqueles dois homens, Jorge Campos e Lucas Coronado,” disse don Juan para mim, “os quais foram realmente os que encaminharam você para mim, e depois conte-me tudo a respeito.”

Achei sua exigência muito difícil de ser atendida, e mesmo assim eu realmente deliciava-me em recordar tudo aquilo que aqueles dois disseram para mim. Ele queria cada detalhe possível, algo que me fez forçar minha memória até seus limites.

A história que don Juan queria que recordasse iniciou-se na cidade de Guaymas, em Sonora, México. Em Yuma, Arizona, obtive nomes e endereços de algumas pessoas que, disseram-me, poderiam derramar alguma luz sobre o mistério do velho que encontrara no terminal de ônibus. As pessoas que fui ver não apenas desconheciam qualquer velho xamã aposentado, como também duvidavam que tal homem tivesse alguma vez existido. Estavam entretanto cheias até o pescoço de terríveis histórias sobre xamãs yaquis, e sobre a natureza em geral beligerante dos índios yaqui. Elas insinuaram que talvez em Vicam, uma estação ferroviária entre as cidades de Guaymas e Cidade Obregon, eu pudesse talvez encontrar alguém que me guiasse no caminho certo.

“Existe ali alguém em particular que eu pudesse procurar?” Perguntei.

“A coisa melhor que você tem a fazer é conversar com o inspetor de campo do banco oficial do governo”, sugeriu um dos homens. “O banco tem vários inspetores. Eles conhecem todos os índios das redondezas porque o banco é a instituição governamental que compra suas colheitas, e cada índio yaqui é um fazendeiro, um proprietário de um pedaço de terra que ele pode considerar sua desde que a cultive”.

“Você conhece algum inspetor do banco?” Perguntei.

Olharam uns para os outros e sorriram para mim como se pedissem desculpas. Não conheciam nenhum, mas recomendaram com veemência que eu deveria aproximar-me de um desses homens por mim mesmo e expor meu problema para ele.

Na Estação Vicam, minhas tentativas de contatar algum inspetor do banco governamental foram um desastre completo. Estive com três deles, e quando disse o que queria, cada um deles olhou-me com total desconfiança. Eles suspeitaram imediatamente que eu era um espião que estava ali a mandado dos Yankees para causar problemas que eles não conseguiam definir claramente, mas sobre os quais faziam as mais violentas especulações, desde agitação política até espionagem industrial. Existia uma crença sem fundamento entre aquela gente de que havia jazidas de cobre nas terras dos índios yaquis e que os Yankees as cobiçavam.

Depois desse fracasso retumbante, retirei-me para a cidade de Guaymas e hospedei-me num hotel que ficava muito perto de um restaurante fabuloso. Eu ia ali três vezes ao dia. A comida era soberba. Gostava tanto da mesma que permaneci em Guaymas por mais de uma semana. Eu praticamente morava no restaurante, e tornei-me, dessa maneira, conhecido do proprietário, Mr. Reyes.

Uma tarde enquanto eu comia, Mr. Reyes veio até minha mesa com outro homem, o qual apresentou a mim como Jorge Campos, um empreiteiro yaqui por parte de pai e mãe que havia morado no Arizona em sua mocidade, e que falava inglês fluentemente, e que era mais americano que qualquer americano. Mr. Reyes elogiava-o dizendo ser ele um verdadeiro exemplo de como o trabalho duro e a dedicação poderiam transformar a pessoa num homem excepcional.

Mr. Reyes saiu e Jorge Campos sentou-se ao meu lado e imediatamente tomou conta da situação. Fingia-se de modesto e negava toda a fama, mas era óbvio que estava feliz da vida pelo que Mr. Reyes falara dele. À primeira vista, eu tive a impressão nítida que Jorge Campos era um empresário de um certo tipo particular que é encontrado em bares ou no meio de pequenas multidões que se aglomeram nas esquinas das ruas principais tentando vender uma idéia ou simplesmente tentando encontrar um modo de lesar pessoas que possuam alguma economia.

Mr. Campos tinha boa aparência, altura de mais ou menos um metro e oitenta e era esbelto, mas com uma barriga estufada como se fosse um bebedor contumaz de bebida forte. Tinha a compleição bastante escura, com um toque esverdeado, e usava uma jaqueta jeans cara e botas brilhantes de vaqueiro, pontudas na frente e com saltos angulares como se tivesse de enterrá-las no chão para evitar de ser arrastado por algum novilho que fora laçado.

Usava uma camisa xadrez cinza impecavelmente passada a ferro; no bolso direito havia um pacotinho de plástico com várias canetas. Eu tinha visto um pacotinho semelhante no bolso de um dos funcionários do governo e ele era usado era para que a tinta das canetas não sujasse a camisa. Sua vestimenta também incluía uma rica jaqueta de camurça com franjas marron-avermelhadas e um grande chapéu de vaqueiro do tipo texano. Sua face redonda era inexpressiva. Ele não tinha rugas, embora sua idade parecesse superar os cinqüenta anos. Por alguma razão desconhecida, eu acreditava que ele era perigoso.

“Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Campos”, eu disse em espanhol, estendendo a mão para ele.

“Deixemos de lado as formalidades”, respondeu ele, também em espanhol, apertando minha mão vigorosamente. “Gosto de tratar as pessoas jovens como iguais, apesar da diferença das idades. Pode me chamar de Jorge”.

Ele ficou parado por um momento, certamente avaliando minha reação. Eu não sabia o que dizer. Certamente não queria rir dele, mas também não queria levá-lo a sério.

“Estou curioso para saber o que você está fazendo em Guaymas”, continuou ele despreocupadamente. “Você não me parece ser um turista e nem parece alguém interessado em pescaria em alto mar.”

“Eu sou um estudante de antropologia,” disse eu, “e estou tentando entrar em contato com os índios da região com a finalidade de mostrar-lhes minhas credenciais e fazer algumas pesquisas de campo”.

“E eu sou um homem de negócios”, disse ele. “Meu negócio é fornecer informações, ser um elo de ligação. Você tem a necessidade, eu tenho a mercadoria. Cobro pelo serviço que presto, mas ele é garantido. Se você não ficar satisfeito, não terá que pagar-me”.

“Se seu serviço é fornecer informações,” disse eu, “pagarei de bom grado o que você cobrar.”

“Ah!” exclamou ele. “Você certamente necessita de um guia, alguém com mais educação que o índio comum daqui, para andar com você por aí. Você tem uma permissão do governo dos EEUU ou de outra grande instituição?”

“Sim,” eu menti. “Eu tenho uma permissão da Fundação Esotérica de LA”.

Quando eu disse isso, vi realmente um brilho de cobiça em seus olhos.

“Ah!” Disse ele novamente. “Essa instituição é muito poderosa?”

“Bastante poderosa”, disse eu.

“Minha Nossa Senhora! É mesmo?” Disse ele, como se minhas palavras fossem exatamente uma explicação que ele queria ouvir. “Gostaria de perguntar, se você não se importa, qual é o valor limite de sua permissão? Quanto você foi autorizado a gastar?”

“Alguns milhares de dólares para as primeiras pesquisas de campo,” menti novamente, para ouvir o que ele iria dizer.

“Ah! Gosto de pessoas francas”, disse ele, saboreando as próprias palavras. “Tenho certeza de que você e eu iremos fazer um acordo. Ofereço os meus serviços como guia e como uma chave que abrirá qualquer porta secreta dos yaqui. Como você pode ver pela minha aparência geral, eu sou um homem de bom gosto e de recurso.”

“Oh, sim, você é sem dúvida um homem de bom gosto,” afirmei.

“O que estou dizendo para você,” disse ele, “é que por uma pequena taxa, que você irá julgar bastante razoável, eu vou encaminhá-lo às pessoas certas, pessoas a quem você poderá perguntar o que quiser. E por um pouquinho mais, eu traduzirei suas palavras para você, ao pé da letra, seja para o espanhol seja para o inglês. Eu também falo francês e alemão, mas sinto que essas línguas não interessam a você.”

“Você está certo, inteiramente certo”, disse eu. “Essas línguas não me interessam de modo algum. Mas qual seria o valor das taxas que você cobra?”

“Ah! Minhas taxas!” disse ele, tirando uma caderneta com capa de couro do bolso de trás de sua calça, abrindo-a bem em frente de meus olhos; garatujou algumas anotações na mesma, fechou-a e levou-a de volta para o bolso com precisão e rapidez. Tive a certeza de que ele queria dar-me a impressão de que era rápido e eficiente em fazer cálculos.

“Vou cobrar de você cinqüenta dólares por dia”, disse ele, “mais transporte e refeições. Quero dizer, quando você comer, eu comerei com você. O que me diz?”

Nesse momento ele inclinou-se para o meu lado e, quase num murmúrio, disse que iria mudar a conversa para o inglês, pois não queria que as pessoas soubessem da natureza de nossas transações. Começou então a falar comigo numa língua que não era inglês de maneira alguma. Fiquei perdido, sem saber o que dizer. Comecei a ficar nervosamente irritado enquanto o homem continuou com seu blá-blá-blá de uma maneira a mais natural possível. Ele não piscava. Movia as mãos animadamente e apontava à sua volta como se estivesse instruindo-me. Não tive a impressão que falava em alguma língua; pensei que, talvez, ele estivesse falando na linguagem yaqui.

Quando algumas pessoas começaram a nos rodear e a nos encarar, eu balancei a cabeça afirmativamente e disse para Jorge Campos, “Sim, sim. É claro”. A certa altura eu disse, “Você poderia dizer isso novamente,” e o que disse pareceu-me tão engraçado que desatei a rir. Ele também riu até não poder mais, como se eu tivesse dito a coisa mais engraçada do mundo.

Ele deve ter notado que eu já não podia mais, e antes que me levantasse para dizer a ele que parasse com aquilo, ele voltou a falar em espanhol.

“Não quero cansar você com as minhas tolas observações”, disse ele. “Mas se vou ser seu guia, como penso que serei, nós iremos passar longas horas batendo papo. Eu acabo de testar você, para ver se você é bom de papo. Se vou passar horas e horas com você dirigindo, necessito de alguém perto de mim que seja bom ouvinte e que tenha iniciativa. Estou feliz em dizer que você possui essas duas boas qualidades”.

Em seguida, ele levantou-se, apertou a minha mão e saiu. Com se os dois estivessem em conluio, o proprietário veio até minha mesa, sorrindo e balançando a cabeça de um para outro lado, como um ursinho.

“Ele não é um cara fabuloso?” Perguntou ele.

Eu não queria comprometer-me dizendo estar de acordo com tal afirmação, e Mr. Reyes informou-me, sem que eu perguntasse, que Jorge Campos era naqueles dias intermediário numa transação ao mesmo tempo extremamente delicada e rentável. Disse que algumas companhias de mineração dos EEUU estavam interessadas nas jazidas de ferro e cobre que pertenciam aos yaquis e que Jorge Campos ali estava para ganhar, talvez, uma fortuna de cinco milhões de dólares pelos seus serviços. Percebi naquele momento que Jorge Campos era um vigarista. Não existia nenhuma jazida de ferro ou cobre nas terras dos yaquis. Se houvesse, a iniciativa privada já teria conseguido removê-los dali, assentando-os num outro lugar qualquer.

“Ele é fabuloso,” disse eu. “É o cara mais maravilhoso que jamais encontrei. Como poderia entrar em contato com ele novamente?”

“Não se preocupe com isso,” disse Mr. Reyes. “Jorge perguntou-me tudo sobre você. Ele tem estado de olho em você desde que você chegou aqui. Provavelmente ele voltará e baterá em sua porta hoje ainda ou então amanhã cedo”.

Mr. Reyes tinha razão. Umas duas horas mais tarde, alguém acordou-me de minha sesta da tarde. Era Jorge Campos. Eu pretendia sair de Guaymas à tardinha e dirigir durante toda a noite para a Califórnia. Expliquei-lhe que estava de partida, mas que estaria de volta dentro de mais ou menos um mês.

“Ah! Mas você deve ficar, agora que decidi ser seu guia”, disse ele.

“Sinto muito, mas teremos que esperar por esse prazo, pois meu tempo agora está muito limitado”, repliquei.

Sabia que Jorge Campos era vigarista, mas mesmo assim decidi contar-lhe que eu já tinha um informante que estava à minha espera para trabalharmos juntos, e que o encontrara no Arizona. Dei-lhe a descrição daquele velho, dizendo que seu nome era Juan Matus, e que outras pessoas disseram que ele era um xamã. Jorge Campos sorriu para mim escancaradamente. Perguntei-lhe se conhecia aquele velho.

“Ah, sim, eu o conheço”, disse alegremente. “Pode-se dizer que somos bons amigos”. Sem ser convidado, Jorge entrou em meu quarto e sentou-se à mesa existente na varanda.

“Ele mora aqui por perto?” Perguntei.

“É claro que mora”, garantiu para mim.

“Você poderia levar-me até ele?”.

“Não vejo porque não”, disse ele. “Vou necessitar de uns dois dias para fazer minhas próprias investigações, apenas para saber se ele está por aqui, e então iremos vê-lo”.

Sabia que ele estava mentindo, embora não quisesse acreditar nisso. Cheguei mesmo a pensar que a minha desconfiança inicial não tinha fundamento. Ele pareceu-me muito convincente naquele momento.

“Entretanto”, continuou ele, “para levar você até este homem, vou cobrar uma pequena taxa. Meus honorários serão de duzentos dólares”.

A quantia era mais do que dispunha no momento. Recusei polidamente, informando-lhe não contava com aquele total.

“Não quero parecer mercenário”, disse ele com um sorriso encantador, “mas de quanto é que você dispõe? Você deve levar em consideração que eu tenho que dar algumas gorjetas. Os yaquis são muito arredios, mas sempre se pode dar um jeito; sempre existem portas que podem ser abertas com a chave mágica – dinheiro”.

A despeito de toda a minha apreensão, tinha a certeza de que Jorge Campos era não apenas minha porta de entrada para o mundo dos yaquis como também para encontrar aquele homem que tanto me intrigou. Não queria regatear. Fiquei quase embaraçado ao lhe oferecer os cinqüenta dólares que tinha no bolso.

“Eu estou no fim de minha estada aqui”, disse como que me desculpando, “por isso estou quase sem dinheiro. Sobraram-me apenas cinqüenta dólares”.

Jorge Campos espichou as pernas sob a mesa e cruzou os braços atrás da cabeça, tocando seu chapéu para que cobrisse sua face.

“Fico com os cinqüenta dólares e com seu relógio”, disse sem demonstrar nenhuma vergonha.

“Mas com apenas esse dinheiro, vou levá-lo a um xamã menos importante. Não fique impaciente”, avisou-me ele, como se eu fosse protestar. “Devemos subir a escada com cuidado, dos primeiros degraus até o topo, onde com certeza está o nosso homem”.

“E quando poderei encontrar esse xamã menos importante?” Perguntei, dando-lhe o dinheiro e meu relógio.

“Agora mesmo!” Replicou ele levantando-se e pegando com avidez o dinheiro e o relógio. “Vamos! Não podemos perder nem mesmo um minuto”.

Entramos no meu carro e ele instruiu-me para seguir em direção da cidade de Potam, uma das cidades yaquis tradicionais ao longo do rio Yaqui. Enquanto dirigia, ele informou-me que íamos nos encontrar com Lucas Coronado, um homem que era conhecido por suas feitiçarias, por seus transes xamânicos, e pelas magníficas máscaras esculpidas por ele para as festividades yaquis de Lent.

Depois ele mudou a conversa para aquele velho, e o que disse estava em total contradição com o que outras pessoas disseram-me a respeito dele. Enquanto elas disseram-me que ele era um xamã que não exercia as práticas xamanísticas e que era um eremita, Jorge Campos descrevi-o como o mais proeminente curandeiro e feiticeiro da região, um homem cuja fama transformara-o numa figura quase inacessível. Ele fez uma pausa teatral e depois continuou com seu discurso: disse que conversar com aquele velho em circunstâncias adequadas, do modo como os antropólogos gostam de fazer, iria custar-me pelo menos dois mil dólares.

Eu ia protestar contra a drástica elevação do preço, mas ele antecipou-me.

“Por duzentos dólares, eu poderia levar você até ele,” disse. “Desses duzentos, apenas trinta seriam para mim, pois o resto gastaria em propinas. Mas para conversar com o velho demoradamente, o custo seria maior. Você mesmo pode avaliar o quanto seria necessário. Ele possui guarda-costas, pessoas que o protegem. Eu tenho que conversar cuidadosamente com eles, depois de molhar suas mãos.

“No final,” continuou ele, “vou entregar para você os recibos e tudo o mais, para efeito de sua prestação de contas e acerto com o fisco. Você então poderá ver que a parte que me caberá foi mínima”.

Senti uma onda de admiração por ele. Estava a par de tudo, até mesmo dos recibos para imposto de renda. Ficou calado por um instante, como que calculando seu lucro mínimo. Eu não tinha nada a dizer. Eu mesmo estava ocupado com meus cálculos, tentando descobrir como poderia arranjar os dois mil dólares. Cheguei até mesmo a pensar em conseguir um empréstimo.

Mas você tem certeza de que o velho irá falar comigo?” Perguntei.

“Mas é claro,” garantiu-me ele. “Ele não apenas irá falar com você, mas também fará algumas demonstrações de feitiçaria para você, e você terá que pagar por elas. Posteriormente poderão entrar em acordo com relação ao pagamento de futuras lições”.

Jorge Campos permaneceu em silêncio por alguns instantes, olhando-me nos olhos.

“Você acha que poderá me pagar os dois mil dólares?” Perguntou-me ele num tom tão forçadamente indiferente que eu instantaneamente vi toda a sua embromação.

“Oh, sim, isso não é nada para mim”, menti tranqüilamente. Ele não conseguiu disfarçar seu contentamento.

“Bom menino, bom menino!” Disse ele animado. “Nós vamos fazer uma festa!”

Tentei fazer algumas perguntas de caráter geral sobre aquele velho; ele forçadamente cortou o assunto. “Guarde tais perguntas para fazê-las diretamente ao velho; ele estará inteiramente à sua disposição,” disse ele, sorrindo.

Ele então começou a falar sobre sua vida nos EEUU e sobre suas expectativas de negócios, e para minha mais completa surpresa, desde que eu concluíra que ele era um poltrão que não conhecia uma só palavra do inglês, começou a falar em inglês.

“Então você realmente fala inglês!” Exclamei eu sem tentar esconder minha surpresa.

“Mas é claro que falo, meu caro”, disse ele, forçando um sotaque texano, que manteve durante todo o tempo de nossa conversa. “Como disse a você, queria testá-lo, para ver se era um homem que sabe improvisar. Você sabe. De fato, pode-se até dizer que você é bastante esperto”.

Seu domínio do inglês era soberbo, e deliciou-me com anedotas e histórias. Chegamos a Potam sem ver o tempo passar. Guiou-me até uma casa na periferia da cidade. Saímos do carro. Andava na frente, chamando em voz alta e em espanhol por Lucas Coronado.

Ouvimos uma voz vinda dos fundos da casa que dizia, também em espanhol, “Venha até aqui”.

A “casa” era um pequeno barraco, e atrás dele, sentado no chão, sobre um couro curtido de cabra, estava um homem. Ele segurava com os pés descalços um pedaço de madeira em que trabalhava com um formão e um maço. Manter no lugar o pedaço de madeira com a pressão dos pés equivalia, a bem dizer, fazer dos pés uma roda de olaria. Eles giravam o pedaço de madeira enquanto as mãos trabalhavam com o cinzel. Nunca tinha visto nada igual em minha vida. Ele estava fazendo uma máscara, esculpindo a madeira com um cinzel curvo. Sua habilidade em fixar a madeira e em girá-la era notável.

O homem era muito magro; tinha feições angulares, maçãs do rosto pronunciadas, e uma compleição escura e acobreada. A pele do rosto e pescoço parecia espichada ao máximo. Ele usava um bigodinho fino, recurvado, que dava à sua face angular um acento maldoso. Tinha um nariz aquilino e pequena separação entre os olhos, que eram de um preto feroz. Suas sobrancelhas extremamente pretas pareciam ter sido desenhadas com um lápis, como também seus cabelos pretos como breu, penteados para trás. Eu nunca vira uma face mais hostil. A imagem que me veio à mente ao olhar para ele foi a de um envenenador italiano da era dos Medicis. As palavras “truculento” e “saturnino” pareciam ser as descrições mais fiéis quando focalizei minha atenção no rosto de Lucas Coronado.

Notei que, enquanto estava sentado no chão, segurando o pedaço de madeira com os pés, os ossos de suas pernas eram tão longos que os joelhos chegavam até seus ombros. Quando nos aproximamos, ele parou de trabalhar e levantou-se. Era mais alto que Jorge Campos, e tão fino como um trilho. Como uma gesto de deferência para nós, suponho, ele calçou suas guaraches.

“Cheguem, cheguem”, disse ele sem sorrir.

Tive então um estranho sentimento de que Lucas Coronado não sabia sorrir.

“A que devo o prazer desta visita?” Perguntou a Jorge Campos.

“Trouxe este jovem até aqui porque ele deseja fazer-lhe algumas perguntas sobre sua arte”, disse Jorge Campos num tom o mais protetor possível. “Eu garanti que você responderia a suas perguntas honestamente”.

“Oh, isso não é nenhum problema, nenhum problema”, garantiu-me Lucas Coronado, fitando-me de alto a baixo com seu olhar frio.

Ele então começou falar em outra língua, em yaqui segundo presumi. Ele e Jorge Campos conversaram animadamente durante algum tempo. Ambos agiam como se eu não existisse. Depois Jorge Campos virou-se para mim.

“Estamos com um pequeno problema aqui”, disse ele. “Lucas acaba de me informar que essa temporada está sendo muito trabalhosa para ele, já que as festividades estão aproximando-se, de modo que agora não tem condições de responder todas as perguntas que você tem para ele, mas que as responderá em outra ocasião”.

“Sim, sim, é claro”, disse-me Lucas Coronado em espanhol. “Noutra ocasião, certamente; noutra ocasião”.

“Teremos que encurtar nossa visita”, disse Jorge Campos, “mas eu trarei você de novo aqui”.

Enquanto saíamos, senti um impulso de manifestar a Lucas Coronado minha admiração por sua estupenda técnica em trabalhar com os pés e com as mãos. Ele olhou-me como se eu estivesse maluco, arregalando os olhos pela surpresa.

“Você nunca viu ninguém trabalhando numa máscara?” sibilou ele através dos dentes cerrados. “De onde você é? De Marte?”

Senti-me estúpido. Tentei explicar que sua técnica era inteiramente desconhecida por mim. Ele parecia pronto para bater em minha cabeça. Jorge Campos disse-me em inglês que eu havia ofendido Lucas Coronado com meus comentários. Ele entendeu meu elogio com uma forma velada de zombar de sua pobreza; minhas palavras foram para ele uma afirmação irônica de como ele era pobre e incompetente.

“Mas é exatamente o contrário”, disse eu. “Acho que ele é magnífico”.

“Não tente dizer uma coisa dessas para ele”, retorquiu Jorge Campos. “Essas pessoas estão acostumadas a receber e a dispensar insultos de um modo mais obscuro possível. Ele pensa que é muito esquisito você falar dele sem nem mesmo conhecê-lo, e divertir-se pelo fato de ele não ter condições de comprar um torno para prender sua escultura”.

Senti-me totalmente desconcertado. A última coisa que queria era fazer de palhaço meu único contato possível para encontrar aquele velho. Jorge Campos parecia inteiramente ciente de meu pesar.

“Compre uma de suas máscaras”, aconselhou-me ele.

Disse-lhe que pretendia seguir de carro direto para LA, sem nenhuma parada, e que meu dinheiro só dava para a gasolina e refeição.

“Bem, pague com sua jaqueta de couro”, disse ele tranqüilamente, mas num tom confidencial, como se me ajudasse. “Se não o fizer, você vai enfurecê-lo, e tudo que ficará de lembrança sua nele serão seus insultos. Mas não diga que suas máscaras são lindas; apenas compre uma”.

Quando eu disse a Lucas Coronado que queria negociar com ele a troca de minha jaqueta por uma de suas máscaras, ele sorriu de satisfação. Pegou a jaqueta e vestiu-a. Dirigiu-se para sua casa, mas antes de entrar ele fez estranhas contorções com o corpo. Ajoelhou-se à frente do que parecia um altar e moveu os braços, como esticando-os e depois esfregou as mãos nos lados da jaqueta.

Entrou na casa e voltou com um pacote embrulhado em jornais, que me entregou. Queria perguntar-lhe algumas coisas. Ele desculpou-se, dizendo que tinha que trabalhar, mas acrescentou que se eu quisesse, poderia voltar outro dia.

Na volta para a cidade de Guaymas, Jorge Campos pediu-me para abrir o pacote. Queria certificar-se de que Lucas Coronado não tinha me enganado. Não me importava abrir ou não o pacote; minha única preocupação era a possibilidade de poder voltar sozinho para falar com Lucas Coronado. Fiquei encantado com ele.

“Eu tenho que ver o que está no pacote”, insistiu Jorge Campos. “Pare o carro, por favor. Sob nenhuma condição ou por qualquer razão que seja eu não colocaria a vida de meus clientes em risco. Você pagou-me para fazer um serviço para você. Esse homem é um verdadeiro xamã, e por isso, muito perigoso. Pelo fato de você o ter ofendido, pode ser que ele tenha colocado um feitiço no pacote. Se esse for o caso, teremos que enterrá-lo o mais depressa possível nesta área”.

Senti uma onda de náusea e parei o carro. Com extremo cuidado, tirei o pacote para fora. Jorge Campos arrebatou-o de minhas mãos e abriu-o. Ele continha três máscaras yaqui tradicionais, magnificamente esculpidas. Jorge Campos disse, num tom displicente e desinteressado, que eu deveria dar uma delas para ele. Raciocinei que, uma vez que ele não me levara ainda àquele velho, eu devia preservar minha conexão com ele. De bom grado dei-lhe uma das máscaras.

“Se você me permite escolher, gostaria de ficar com esta”, disse ele apontando para a máscara.

Disse a ele para ir em frente; as máscaras nada significavam para mim; consegui o que procurava. Teria dado para ele também as outras duas, mas queria mostrá-las aos meus amigos antropólogos.

“Essas máscaras não têm nada de extraordinário”, disse Jorge Campos. “Você pode comprá-las em qualquer loja da cidade. São vendidas para os turistas”.

Eu já vira as máscaras yaqui que eram vendidas nas lojas da cidade. Elas eram mal feitas se comparadas com as que eu tinha, e Jorge Campos de fato pegou a melhor delas.

Deixei-o na cidade e rumei para LA. Antes de me despedir dele, ele lembrou-me que eu praticamente devia-lhe dois mil dólares porque ele iria começar a distribuir gorjetas e trabalhar para levar-me ao encontro do grande xamã.

“Você acha que terá condições de me trazer o dinheiro em sua próxima visita?” Perguntou-me ele ousadamente.

Sua pergunta colocou-me num terrível dilema. Acreditava que, se dissesse a verdade, o que duvidava, faria com que ele me deixasse na mão. Fiquei convencido então que, a despeito de sua ambição, ele era meu guia até don Juan.

“Farei o possível para conseguir o dinheiro”, disse em um tom que mostrava indiferença.

“Terá que fazer mais que isso, meu rapaz”, retorquiu ele com uma voz forte, quase com raiva. “Eu vou gastar dinheiro de meu próprio bolso para realizar este encontro, e por isso devo ter uma garantia de sua parte. Sei que você é um jovem sério. Quanto vale esse seu carro? Pode ser vendido?”

Disse-lhe quanto valia meu carro e que eu poderia vendê-lo, mas ele pareceu-me convencido só depois que dei-lhe minha palavra que lhe traria, em dinheiro vivo, a quantia combinada na minha próxima visita.

Cinco meses mais tarde, voltei a Guaymas para ver Jorge Campos. Dois mil dólares na ocasião era uma quantia considerável de dinheiro, especialmente para um estudante. Pensei que, talvez, ele estivesse disposto a receber a quantia em parcelas; isso me deixaria mais do que feliz e então me empenharia em fazer o pagamento das prestações.

Não consegui encontrar Jorge Campos em nenhum lugar de Guaymas. Perguntei ao dono do restaurante. Ele estava tão aturdido quanto eu sobre o seu desaparecimento.

“Ele simplesmente evaporou”, disse ele. “Tenho certeza de que ele voltou para o Arizona ou para o Texas, onde ele tem negócios”.

Eu aproveitei a oportunidade e fui ver Lucas Coronado sem ele. Cheguei à sua casa por volta de meio dia. Não consegui encontrá-lo também. Perguntei aos vizinhos se sabiam onde ele poderia estar.

Eles olharam-me com cara de pouco amigos e não se dignaram a dar-me uma resposta. Fui embora mas voltei à casa mais tarde. Na verdade não esperava encontrar alguém. De fato, estava disposto a voltar para LA imediatamente. Para minha surpresa, Lucas Coronado não apenas estava lá, como também tratou-me de modo extremamente amigável. Ele foi franco ao dizer que aprovava o fato de ter ido vê-lo sem Jorge Campos, que era, segundo ele, o cara mais chato do mundo. Ele queixava-se de que Jorge Campos, a quem se referia como um índio yaqui renegado, deliciava-se em explorar seus irmãos yaquis.

Dei a Lucas Coronado alguns presentes que comprara para ele e comprei três de suas máscaras, um conjunto de lindas esculturas, e um par de perneiras chocoalhantes, feitas de casulos de alguns insetos do deserto, perneiras que os yaquis usam em suas danças tradicionais. Depois levei-o até Guaymas para jantarmos.

Encontrei-me com ele durante os cinco dias que fiquei nas redondezas, e ele deu-me um sem número de informações sobre os yaquis – sua história e organização social, o significado e a natureza de suas festividades. Eu divertia-me tanto com tal pesquisa de campo que me senti até mesmo relutante em perguntar-lhe sobre o velho xamã. Vencendo minha cisma, acabei por perguntar-lhe se conhecia o velho que Jorge Campos garantira-me ser um xamã proeminente. Lucas Coronado ficou perplexo. Garantiu-me que, segundo era de seu conhecimento, tal pessoa jamais existiu naquela região do país e que Jorge Campos era um vigarista que só queria lograr-me.

Ouvir Lucas Coronado negar a existência do velho xamã causou um terrível e inesperado impacto em mim. Em um instante, ficou evidente para mim que eu não ligava à mínima para pesquisa de campo. Só queria encontrar aquele velho. Percebi então que encontrar o velho xamã era a culminação de algo que nada tinha a ver com os meus desejos, aspirações ou mesmo pensamentos como antropólogo.

Queria saber mais que nunca que diabos era aquele homem. Sem nada que me inibisse, comecei a vociferar e a gritar em frustração. Caí no chão. Lucas Coronado ficou bastante impressionado pela minha cena. Olhou para mim, desnorteado, e depois começou a rir. Não fazia a menor idéia de que ele poderia rir. Pedi-lhe desculpas pela minha explosão de raiva e frustração. Não conseguia explicar-lhe porque fiquei tão fora de controle. Lucas Coronado parecia entender meu dilema.

“Coisas como essa acontecem freqüentemente por aqui”, disse ele.

Não sabia a que ele se referia e não queria perguntar-lhe. Estava com um medo danado da facilidade com que ele se sentia ofendido. Uma particularidade dos yaquis era a facilidade que tinham de se sentirem ofendidos. Parecia que estavam perenemente com um pé atrás, à espera de insultos que eram sempre muito sutis para serem percebidos por qualquer outra pessoa.

“Existem seres mágicos que vivem nas montanhas que nos cercam,” continuou ele, “e eles agem sobre as pessoas. Eles fazem com que elas fiquem completamente doidas. As pessoas fazem e acontecem sob sua influência, e quando depois se acalmam, exaustas, não têm a menor idéia do que lhes aconteceu.”

“Você acha que foi algo assim que aconteceu comigo?” perguntei.

“Não há nenhuma dúvida”, replicou ele com convicção total. “Você já tinha predisposição para ficar doidão por qualquer coisinha, mas também tem muito autocontrole. Você fica fulo por quase nada”.

“Não é por quase nada”, garanti para ele. “Não sabia até a pouco, mas para mim aquele velho era a força que impulsionava todos os meus esforços”.

Lucas Coronado ficou quieto, como se examinando profundos pensamentos. Depois começou a andar de um lado para outro.

“Você conhece algum velho que more nas redondezas, mas que não tenha nascido por aqui?” perguntei-lhe.

Ele não entendeu minha pergunta. Tive que lhe explicar que o velho que encontrara talvez fosse como o Jorge Campos, um yaqui que morasse em um outro lugar qualquer. Lucas Coronado explicou-me que o sobrenome “Matus” era bastante comum na região, mas que não conhecia nenhum Matus cujo primeiro nome fosse Juan. Ele parecia desanimado. Então teve um momento de clareza e disse-me que talvez o homem, pelo fato de ser idoso, tivesse um outro nome, e me tenha dado o seu nome de “guerra” e não o verdadeiro.

“O único homem idoso que conheço”, continuou, “é o pai de Ignácio Flores. Ele vem aqui de tempos em tempos visitar seu filho, mas vem da cidade do México. E pensando no assunto, ele é o pai de Ignácio, mas não parece tão velho. Mas ele é velho. Ignácio é velho também. Seu pai, entretanto parece mais novo que ele”.

Ele riu abertamente do que percebera. Aparentemente ele nunca havia pensado a respeito da jovialidade do velho até aquele momento. Continuou balançando a cabeça como se não acreditasse. Eu, por outro lado, estava para lá de extasiado.

“Esse é o homem!” Gritei sem saber porque.

Lucas Coronado não sabia onde Ignácio Flores realmente morava, mas estava cheio de boa vontade e foi comigo até uma cidadezinha yaqui das proximidades, onde encontrou o homem para mim.

Ignácio Flores era um homem grande e corpulento, com, talvez, seus 65 anos. Lucas Coronado prevenira-me que o homenzarrão havia sido um soldado de carreira em sua mocidade, e que ainda possuía o jeitão de um militar. Tinha um enorme bigode; isso e a ferocidade de seus olhos fizeram-no parecer para mim a personificação de um soldado feroz. Tinha a compleição escura. Seus cabelos ainda eram pretos feito breu, apesar da idade. Sua voz possante e grave parecia treinada apenas para dar ordens. Tive a impressão que era cavalariano. Caminhava como se ainda usasse esporas, e por alguma estranha razão, impossível de ser definida, ouvia o ruído das esporas quando ele andava.

Lucas Coronado apresentou-me a ele e disse que eu tinha vindo do Arizona para ver seu pai, que encontrara em Nogales. Ignácio Flores não parecia nem um pouco surpreso.

“Oh, sim”, disse ele. “Meu pai viaja bastante”. Sem nenhum outro preliminar, indicou-nos onde poderíamos encontrar seu pai. Não foi conosco, segundo pensei, por polidez. Desculpou-se e saiu andando, como se desfilasse em uma parada.

Eu preparei-me para ir na casa do velho com Lucas Coronado. Mas ele desculpou-se polidamente; queria que eu o levasse de volta à sua casa.

“Penso que você encontrou o homem que procurava, e sinto que você deve vê-lo sozinho”, disse ele.

Fiquei maravilhado ao perceber como extraordinariamente polidos eram os índios yaquis, e ainda assim e ao mesmo tempo, tão ferozes. Disseram-me que os yaquis eram selvagens que não tinham nenhum escrúpulo em matar qualquer pessoa; no que concerne a mim, entretanto, sua característica mais marcante era a sua polidez e consideração.

Fui até a casa do pai de Ignácio Flores e lá encontrei o homem que procurava.

“Gostaria de saber porque Jorge Campos mentiu para mim, dizendo que te conhecia”, disse ao terminar o que estava relatando a ele.

“Ele não mentiu para você”, disse don Juan com a convicção de alguém que estivesse justificando o comportamento de Jorge Campos. “Ele nem mesmo fingiu ser outro tipo de pessoa. Ele pensou que você fosse um boboca e iria te tapear. Ele não pôde concluir seu plano, entretanto, porque o infinito sobrepujou-o. Sabia que ele sumiu logo depois de ter estado com você e que até hoje ninguém sabe dele?

“Jorge Campos foi um personagem muito significante para você,” continuou ele. “Você descobrirá, em tudo aquilo que transpirou entre vocês, uma espécie de projeto-guia, pois ele é a representação de sua vida.”

“O quê? Eu não sou vigarista”! Protestei.

Ele riu, como se soubesse de algo que eu não sabia. Vi-me, em seguida, em meio a uma extensa explicação de minhas ações, meus ideais, minhas expectativas. Entretanto, um estranho pensamento forçava-me a considerar, com o mesmo fervor com o qual explicava a mim mesmo, que sob certas circunstâncias, eu poderia ser igualzinho a Jorge Campos. Achei tal pensamento inadmissível, e usei toda a minha energia disponível para tentar negá-lo. Entretanto, lá no fundo de mim mesmo, não me importava desculpar-me se eu fosse igual a Jorge Campos.

Quando contei meu dilema, don Juan riu tanto que engasgou várias vezes.

“Se eu fosse você”, comentou ele, “ouviria minha voz interna. Que enorme diferença faria se você fosse como Jorge Campos: um vigarista! Ele era um vigarista comum. Você é mais elaborado. Esse é o poder do contar de novo os eventos. É por isso que os feiticeiros o utilizam. Ele colocou-o em contato com algo que você nem suspeitava existir em si mesmo”.

Eu tive vontade de deixá-lo naquele exato momento. Don Juan sabia perfeitamente como me sentia. “Não ouça a voz superficial que te faz ficar com raiva”, disse ele em tom de comando. “Ouça a voz mais profunda que irá te guiar daqui pra frente, a voz que agora está rindo. Ouça-a! E ria com ela. Ria! Ria!”

Suas palavras foram como uma ordem mágica para mim. Contra minha vontade, comecei a rir. Nunca estivera tão feliz. Sentia-me livre, sem máscaras.

“Conte a história de Jorge Campos uma, duas, três, quatro e mais vezes para você mesmo”, disse don Juan. “Você irá encontrar uma riqueza inesgotável na mesma. Cada detalhe é parte de um mapa. É da natureza do infinito, assim que cruzamos determinado limiar, colocar um mapa esquemático à nossa frente”.

Ele fixou seus olhos em mim por um longo tempo. Ele não olhou meramente para mim como anteriormente, mas encarou-me propositadamente. “Uma coisa que Jorge Campos não conseguiu deixar de fazer”, disse ele finalmente, “foi colocar você em contato com outro homem: Lucas Coronado, que significa tanto para você, ou talvez mais que o próprio Jorge Campos”.

Durante o tempo em que contei de novo as histórias desses dois homens, percebi que ficara mais tempo com Lucas Coronado do que com Jorge Campos; nossa interação, entretanto, não foi tão intensa, e foram marcadas por enormes lapsos de silêncio. Lucas Coronado não era por natureza um homem que falava muito, e devido a alguma estranha peculiaridade, sempre que ele estava silente conseguia fazer com que eu também ficasse.

“Lucas Coronado é a outra parte de seu mapa”, disse don Juan. “Você não acha estranho que ele seja um escultor, como você, um artista super sensível que estava, como você esteve em determinada época, à procura de um patrocinador de sua arte? Ele procurava por um patrocinador do mesmo modo que você procurava por uma mulher, por uma amante das artes, que patrocinaria sua criatividade”.

Eu entrei em outra luta terrível. Dessa vez a luta foi entre minha absoluta certeza de que não mencionara esse aspecto de minha vida para ele, o fato de ser verdade tudo o que dissera, e o fato de eu não encontrar uma explicação de como ele obtivera tal informação. Outra vez, tive vontade de dar o fora naquele instante. Mas, uma vez mais, o impulso foi sobrepujado por uma voz que veio de algum lugar profundo. Sem sofrer nenhuma coação, comecei a dar boas gargalhadas. Alguma parte de mim, em um nível profundo, não se importava nem um pouco sobre como don Juan conseguira a informação. O fato dele a ter obtido e de ter mostrado isso de uma maneira ao mesmo tempo delicada e velada, era uma manobra deliciosa de ser testemunhada. Não surtiu nenhum efeito o fato daquela parte superficial de mim mesmo ter ficado com raiva e querer dar o fora.

“Muito bom”, disse-me don Juan batendo com força nas minhas costas, “muito bom”.

Ele ficou pensativo por um instante, como vendo coisas invisíveis para o olho comum.

“Jorge Campos e Lucas Coronado são duas extremidades de um eixo”, disse ele. “Esse eixo é você, em uma extremidade um mercenário grasso, implacável e sem-vergonha, que só pensa em si mesmo; hediondo, mas indestrutível. Na outra extremidade, um artista super sensível, atormentado, fraco e vulnerável. Esse deveria ser o mapa de sua vida, não fosse o aparecimento de outra possibilidade, aquela que surgiu assim que você atravessou o limiar do infinito. Você procurou por mim, e você achou-me; e assim, você cruzou o limiar. O intento do infinito disse-me para procurar alguém como você. Encontrei você e desse modo eu também cruzei o mesmo limiar”.

A conversa terminou nesse ponto. Don Juan entrou então em um dos seus longos períodos de total silêncio. Foi só no fim do dia, depois de termos retornado à sua casa e estarmos sentados sob o caramanchão, refrescando-nos da nossa longa caminhada, que ele quebrou seu silêncio.

“Quando você tornou a contar o que aconteceu entre você e Jorge Campos, e entre você e Lucas Coronado”, continuou dou Juan, “descobri, e espero que você também, um fator muito preocupante. Para mim, trata-se de um presságio. Ele indica o final de uma era, significando que nada do que existiu, permanecerá. Elementos muito sutis trouxeram você a mim. Nenhum deles se sustentariam por si só. Essa é a minha conclusão de seu novo relato”.

Lembrei-me de que don Juan havia revelado-me um dia que Lucas Coronado era um doente terminal. Possuía certas condições de saúde que, aos poucos, o estavam consumindo.

“Eu dei algumas instruções para ele, através de meu filho Ignácio, sobre o que deveria fazer para curar a si mesmo”, continuou don Juan, “mas ele acha que é besteira e não quer dar atenção a elas. Não é sua culpa. A raça humana inteira nada quer ouvir. Só ouvem o que querem ouvir”.

Lembrei-me de que convencera don Juan a me dizer o que poderia ser feito para aliviar Lucas Coronado de suas dores físicas e angustia mental. Don Juan não apenas instruiu-me sobre o que dizer a ele como também afirmou que se Lucas Coronado quisesse, ele poderia curar-se facilmente. Mesmo assim, quando dei-lhe o recado de don Juan, Lucas Coronado olhou-me como se eu estivesse louco. Depois começou com uma brilhante descrição, como se eu fosse um yaqui, profundamente insultante de alguém completamente entediado pela insistência injustificada de outrem. Pensei que só um índio yaqui poderia ser tão sutil.

“Tais coisas de nada valem para mim,” disse ele finalmente, em tom desafiante, irado pela minha falta de sensibilidade. “Realmente nada disso me importa. Todos temos que morrer. Mas não se atreva a acreditar que eu tenha perdido a esperança. Eu vou conseguir algum dinheiro do banco oficial. Conseguirei um adiantamento com a garantia de minha colheita, e então terei o dinheiro necessário para comprar algo que irá curar-me, ipso facto. Seu nome é Vi-ta-mi-nol”.

“O que é Vitaminol?” Perguntei.

“É um remédio do qual o rádio faz propaganda”, disse ele com a inocência de uma criança. “Ele cura tudo. É recomendado para pessoas que não comem nem carne, nem peixe e nem frango todo o dia. É recomendado para pessoas como eu, que mantêm com muita dificuldade corpo e alma unidos”.

Na minha ânsia de ajudar Lucas Coronado, eu dei naquele exato momento a maior mancada que se possa imaginar numa sociedade de seres hiper-sensíveis como são os yaquis: ofereci o dinheiro necessário para comprar o Vitaminol. Seu olhar frio era a medida de quão profundamente eu o ofendera. Minha estupidez era imperdoável. Muito tranqüilamente, Lucas Coronado disse-me que tinha condições, ele mesmo, de comprar o Vitaminol.

Voltei para a casa de don Juan. Tinha vontade de chorar. Minha ansiedade traíra-me.

“Não desperdice sua energia preocupando-se com coisas como essa”, disse don Juan friamente. “Lucas Coronado está preso num círculo vicioso, mas você também está. Todo o mundo está. Ele acredita que seu Vitaminol tem o poder de curar tudo e resolver cada um de seus problemas. No momento ele não tem condições de comprar tal remédio, mas ele tem grandes esperanças de que algum dia, finalmente ele irá comprar o Vitaminol”.

Don Juan encarou-me com seu olhar penetrante. “Eu disse-lhe que os atos de Lucas Coronado são o mapa de sua vida, da vida do Carlitos”, disse ele. “Acredite-me, eles realmente são. Lucas Coronado apontou o Vitaminol para você e fez isso de um modo tão poderoso e penoso que lhe feriu e fez com que você chorasse”.

Don Juan parou de falar depois disso. Foi uma pausa longa e efetiva. “E não me diga que você não entendeu o que eu quis dizer”, acrescentou ele. “De um modo ou de outro, todos nós temos a nossa versão de Vitaminol”.

 

                   Na Realidade, quem era Juan Matus?

A parte de meu relato referente ao encontro com don Juan que ele não queria ouvir, diz respeito aos meus sentimentos e impressões daquele dia fatídico em que entrei em sua casa: o choque contraditório entre minhas expectativas e a realidade da situação, e o efeito que causou em mim o conjunto das idéias mais extravagantes que jamais ouvira.

“Isto está mais ligado à linha das confissões que à linha dos eventos”, disse-me ele certa vez quando tentei falar com ele sobre tudo aquilo.

“Você está completamente errado, don Juan”, comecei eu, mas parando logo em seguida. Alguma coisa no modo com que ele me olhou me fez perceber que ele tinha razão. Qualquer coisa que eu fosse dizer soaria apenas como trabalho dos lábios, lisonja. O que acontecera no nosso primeiro encontro real, entretanto, foi de uma importância transcendental para mim, um evento da mais alta conseqüência.

Durante meu primeiro encontro com don Juan, no terminal de ônibus em Nogales, Arizona, algo de natureza incomum acontecera comigo, mas esse algo veio até mim amortecido pelas minhas preocupações com a apresentação do meu ‘self’. Eu queria impressionar don Juan e ao tentar fazer isso eu concentrei minha atenção, a bem dizer, em vender meu peixe. Somente meses mais tarde foi que um estranho resíduo dos eventos passados começou a aparecer.

Um dia, surgiu do nada, e sem nenhuma pressão, fosse de mim mesmo ou de uma outra pessoa qualquer, a lembrança extraordinariamente clara de algo que me passara inteiramente despercebido durante meu contato com don Juan. Quando ele fez com que eu emudecesse ao falar para ele qual era o meu nome, ele encarou-me com seus olhos penetrantes e deixou-me entorpecido com seu olhar. Eu poderia ter contado para ele muitíssimas outras coisas sobre mim mesmo. Poderia expor durante horas para ele a respeito do meu conhecimento e do meu valor se ele não tivesse feito com que eu me calasse.

À luz dessa nova percepção, eu reconsiderei tudo o que me acontecera naquela ocasião. Minha conclusão inevitável era de que experimentara a interrupção de algum fluxo misterioso que me mantinha funcionando, um fluxo que nunca antes havia sido interrompido, pelo menos da maneira com que don Juan fizera. Quando eu tentei explicar a alguns de meus amigos o que eu experimentara fisicamente, uma estranha transpiração começou a surgir em meu corpo todo, aquele mesmo suor que experimentei quando don Juan olhou daquela maneira; naquele momento, eu não apenas era incapaz de pronunciar uma só palavra como também era incapaz de ter um único pensamento.

Durante algum tempo depois, permaneceu comigo aquela estranha sensação de interrupção, para a qual eu não encontrei nenhuma explicação racional. Argumentei durante alguns momentos que talvez don Juan tivesse hipnotizado-me, mas depois minha memória garantiu-me que ele não dera-me nenhuma ordem hipnótica, e nem fizera nenhum movimento que pudesse aprisionar minha atenção. Na realidade, ele apenas encarou-me. Foi a intensidade de seu olhar que me deu a sensação de que aquele evento teve uma longa duração. Fiquei obcecado por ele, e também fisicamente perturbado em um nível bastante profundo.

Quando, por fim, tive don Juan diante de mim novamente, a primeira coisa que percebi a seu respeito foi que ele não parecia em nada com aquilo que imaginei durante todo o tempo em que procurei por ele. Eu fabricara uma imagem do homem que encontrara no terminal de ônibus, a qual eu aperfeiçoava a cada dia supostamente lembrando-me de mais algum detalhe. Em minha mente ele era um homem idoso, ainda muito forte e ágil, ainda que quase frágil. O homem à minha frente era musculoso e decidido. Movia-se com agilidade, desembaraçadamente. Seus passos eram firmes e, ao mesmo tempo, leves. Vitalidade e propósito exsudavam dele. Aquilo que minha memória compôs nada tinha a ver com a realidade. Pensava que seu cabelo fosse branco e curto e sua compleição extremamente escura. Seu cabelo era maior e não tão branco como imaginara. Sua compleição tão pouco era escura. Poderia jurar que suas feições eram aquilinas, por causa de sua idade. Isso também não era verdade. Sua face era cheia, quase redonda. De relance, a característica mais impressionante do homem à minha frente eram seus olhos pretos, que luziam com um brilho particular, ondulante.

O que escapou-me inteiramente quando de minha avaliação inicial foi o fato de que o conjunto de suas feições era as de um atleta. Seus ombros eram largos e não tinha nenhuma barriga; ele parecia firmemente plantado no chão. Não havia mostras de nenhuma fraqueza em seus joelhos e nenhum tremor em seus membros superiores. Eu imaginara ter detectado um leve tremor em seus braços e cabeça, como se ele fosse nervoso e instável. Também imaginara que sua altura fosse de mais ou menos um metro e setenta quando na realidade era quase de um metro e oitenta.

Don Juan não parecia surpreso ao me ver. Eu queria dizer-lhe como fora difícil para mim encontrá-lo. Queria ser congratulado pelos meus esforços titânicos, mas ele apenas sorria para mim, enigmaticamente.

“Seus esforços não são importantes”, disse ele. “O que importa é que você encontrou a minha casa. Sente-se, sente-se”, disse ele, atraindo-me e apontando para um dos engradados sob o caramanchão, e batendo em minhas costas; seus tapas não eram amigáveis.

Sentia-me como se ele tivesse dado tapas nas minhas costas, mas na realidade ele não tocou em mim. Seus quase tapas criaram em mim uma sensação estranha e instável, já que apareciam de repente para logo em seguida sumirem, antes que eu pudesse perceber o que eram. O que ficava era uma estranha paz. Sentia-me confortável. Minha mente ficou perfeitamente lúcida. Não tinha nenhuma expectativa, nenhum desejo. Meu nervosismo usual e minhas mãos sempre suando, marcas de minha existência, desapareciam de repente.

“Agora você irá entender tudo que vou dizer para você”, disse don Juan para mim, olhando-me nos olhos do modo como aconteceu no terminal de Nogales.

Ordinariamente, eu acharia que suas afirmações eram perfunctórias, talvez até mesmo retóricas, mas quando ele as fez, eu pude apenas assegurar para ele repetida e sinceramente que entendera tudo o que disse para mim. Ele olhou-me de novo nos meus olhos, com uma intensidade feroz.

“Eu sou Juan Matus”, disse ele, sentando-se em outro engradado, a menos de um metro de mim, encarando-me. “Esse é o meu nome e eu estou proclamando-o em voz alta para, desse modo, construir uma ponte para você atravessar e vir até mim”.

Encarou-me por um instante antes de começar a falar de novo. “Sou um feiticeiro”, continuou ele, “Pertenço a uma linhagem de feiticeiros que existe por vinte e sete gerações. Sou o nagual de minha geração”.

Explicou para mim que o líder, como ele, de um grupo de feiticeiros era chamado de “nagual”, e que esse era um termo genérico aplicado a um feiticeiro em cada geração que tivesse uma configuração energética específica que o distinguia dos outros. Não em termos de superioridade ou inferioridade, ou algo semelhante, mas em termos de capacidade de assumir responsabilidades.

“Apenas o nagual”, disse ele, “tem a capacidade energética para ser responsável pelo destino de sua coorte. Cada componente de sua coorte sabe disso, e aceita esse fato. O nagual pode ser um homem ou uma mulher. No tempo dos feiticeiros que criaram a minha linhagem, as mulheres eram, pelo regulamento, os naguais. Seu pragmatismo natural – produto de sua feminilidade – conduziu minha linhagem a ocupar-se demasiadamente com coisinhas práticas das quais quase não se livrou. Os homens, então, assumiram o comando, e levaram minha linhagem a ocupar-se com coisinhas imbecis das quais só agora estamos conseguindo nos livrar.

“Desde o tempo do nagual Lujan, que viveu há cerca de duzentos anos atrás”, continuou ele, “tem havido um nexo de soma de esforços, ligando homem e mulher. O nagual masculino traz sobriedade; o feminino traz inovação.”

Queria perguntar-lhe neste ponto se havia uma mulher que fosse nagual em sua vida, mas a profundidade de minha concentração não me permitiu fazer a pergunta. Em vez disso, ele mesmo a formulou para mim.

“ Existe uma mulher nagual em minha vida?”Perguntou”. Não, não existe nenhuma. Eu sou um feiticeiro solitário. Tenho minha coorte, entretanto. No momento, seus componentes não estão por perto”.

Um pensamento apareceu em minha mente com um vigor irreprimível. Naquele instante, lembrei-me que alguém em Yuma contara-me que don Juan tinha um grupo de mexicanos que parecia muito versado em manobras de feitiçaria.

“Ser um feiticeiro”, continuou don Juan, “não significa praticar feitiçaria, ou trabalhar para influenciar pessoas, ou ser possuído por demônios. Ser feiticeiro significa atingir um grau de consciência que torna disponíveis coisas inconcebíveis. O termo ‘feitiçaria’ é inadequado para exprimir o que os feiticeiros fazem, como também é inadequado o termo ‘xamanismo’. As ações dos feiticeiros pertencem exclusivamente ao reino da abstração, do impessoal. Os feiticeiros esforçam-se para atingir uma meta que nada tem a ver com a busca do homem comum. As aspirações dos feiticeiros é atingir o infinito, e ficar consciente disso.”

Don Juan continuou, dizendo que as tarefas dos feiticeiros era enfrentar o infinito, e que eles lançavam-se nele diariamente, do modo como os pescadores lançavam-se no mar. Eram tarefas tão aterrorizantes que os feiticeiros tinham que proclamar seus nomes antes de se aventurar nelas. Ele lembrou-me que, em Nogales, ele havia proclamado seu nome antes que ocorresse qualquer interação entre nós. Havia, dessa maneira, proclamado sua individualidade em face do infinito.

Entendi com uma clareza inigualável o que ele estava explicando. Não havia nenhuma necessidade de pedir-lhe esclarecimentos. Minha agudeza de pensamento deveria surpreender-me, mas isso não ocorreu. Soube naquele momento que eu sempre tivera idéias claras, e que meramente fazia-me de desentendido para beneficiar alguém.

“Sem que você percebesse nada do estava acontecendo”, continuou ele, “eu iniciei você numa busca tradicional. Você é a pessoa que eu procurava. Minha busca terminou quando encontrei você, e a sua quando você encontrou-me agora.

Don Juan explicou-me que, como o nagual de sua geração, ele buscava uma pessoa que tivesse uma configuração energética específica, adequada para a continuação de sua linhagem. Disse que em dado momento, o nagual de cada geração, numa sucessão de vinte e sete gerações, iniciava uma busca que representava uma experiência que mais atormentava os nervos em toda a sua vida: a busca de seu sucessor.

Olhando-me diretamente nos olhos, ele proclamou que a capacidade de ver a energia diretamente como flui no universo era o que transformava os seres humanos em feiticeiros e que quando os mesmos percebem os homens dessa maneira, eles vêem uma bola luminosa, ou uma figura com a forma de ovo. Argumentava que os seres humanos eram não apenas capazes de ver a energia diretamente como flui no universo, como também que eles realmente a vêem, embora não estejam deliberadamente conscientes de vê-la.

Logo em seguida ele fez a distinção mais crucial referente aos feiticeiros: o estado de estar consciente de um modo geral e aquele de estar deliberadamente consciente de alguma coisa. Ele categorizou todos os seres humanos como seres conscientes, num sentido geral, o que permite que eles vejam a energia diretamente, e categorizou os feiticeiros como os únicos seres humanos que eram deliberadamente conscientes de ver a energia diretamente. Depois ele definiu a “percepção” como energia e a “energia” como um fluxo constante, uma vibração luminosa que nunca ficava estacionária, mas que possuía um movimento permanente próprio. Declarou que quando um ser humano era visto, era percebido como um aglomerado de campos de energia mantido coeso pela força mais misteriosa do universo: uma força vibratória, aglutinante e de ligação que mantinha unidos os campos de energia numa unidade coesiva. Ele explicou mais que o nagual era um feiticeiro característico em cada geração o qual era visto pelos demais feiticeiros, não como uma esfera luminosa única, mas como um conjunto de duas esferas luminosas fundidas uma sobre a outra.

“Essa característica de duplicidade”, continuou, “permite ao nagual realizar manobras que são bastante difíceis para os feiticeiros comuns. Por exemplo, o nagual é um connoisseur da força que nos mantém unidos numa unidade coesiva. O nagual pode colocar sua atenção total, por uma fração de segundos, sobre essa força, e entorpecer outra pessoa. Eu fiz isso com você no terminal de ônibus porque eu queria barrar sua cachoeira de mim, mim, mim, mim, mim, mim, mim. Queria que você me encontrasse e parasse com aquela porcaria.

“Os feiticeiros de minha linhagem garantem,” continuou don Juan, “que a presença de um ser duplo – um nagual – é suficiente para esclarecer as coisas para nós. O que é estranho a respeito disso é que a presença do nagual esclarece as coisas de um modo velado. Aconteceu comigo quando encontrei o nagual Julian, meu professor. Sua presença confundiu-me durante anos, porque sempre que estava ao seu lado os meus pensamentos eram bastante claros, mas quando ele afastava-se de mim, eu voltava a ser o idiota que sempre fui.

“Tive o privilégio”, continuou don Juan, “de ter encontrado e convivido com dois naguais. Durante seis anos, com a exigência do nagual Elias, o professor do nagual Julian, fui viver com esse último. Foi ele quem me educou, pode-se dizer. Isso significou um raro privilégio. Fiquei na primeira fila para assistir ao espetáculo que é a vida de um nagual. O nagual Elias e o nagual Julian eram dois homens de temperamentos inteiramente diferentes. O nagual Elias era muito mais quieto e escondia-se na escuridão do seu silêncio. O nagual Julian era um falador compulsivo, bombástico. Parecia que ele vivia para encantar as mulheres. Havia mais mulheres em sua vida que se podia imaginar. E ainda assim eles eram estonteantemente iguais no que diz respeito ao vazio interior. Eram ocos por dentro. O nagual Elias era uma coleção de histórias assombrosas, estonteantes que diziam respeito a regiões do desconhecido. O nagual Julian era uma coleção de histórias que faziam qualquer um rolar no chão de tanto rir. Sempre que eu tentava perceber o homem de cada um deles, o homem real, do modo como podia perceber o homem que existia em meu pai, que existia em todo o mundo que eu conhecia, eu nada encontrava. Em lugar de uma pessoa em seu interior, havia um monte de histórias sobre pessoas desconhecidas. Cada um dos dois homens tinha seu jeito próprio, mas o resultado final era sempre o mesmo: o vazio, um vazio que refletia não o mundo, mas o infinito”.

Don Juan continuou explicando que a partir do momento em que alguém cruza um limiar específico do infinito, seja deliberadamente ou, como no meu caso, sem querer, tudo o que acontece a partir daí não mais pertence ao domínio exclusivo daquela pessoa, mas faz parte do reino do infinito.

“Quando nos encontramos no Arizona, nós dois cruzamos um limiar específico”, continuou ele. “E isso não foi decisão de nenhum de nós dois, mas sim do próprio infinito, que é tudo aquilo o que nos cerca”. Ele disse isso e fez um gesto amplo com os braços. “Os feiticeiros de minha linhagem chamam-no de infinito, de espírito, de mar escuro da percepção, e dizem que ele é algo que existe lá fora e que regula nossas vidas”.

Eu realmente era capaz de compreender tudo o que ele dizia, e mesmo assim não sabia de jeito nenhum do que ele falava. Perguntei se cruzar tal limiar foi um acontecimento acidental, fruto de circunstâncias imprevisíveis do acaso. Ele respondeu que os seus passos e os meus foram guiados pelo infinito, e que as circunstâncias que pareciam ser guiadas pelo acaso eram em sua essência guiadas pelo lado ativo do infinito. Ele chamava-o de intento.

“O que nos reuniu”, continuou, “foi o intento do infinito. É impossível determinar o que é esse intento do infinito, e ainda assim lá está ele, tão palpável quanto eu e você. Os feiticeiros dizem que ele é um tremor no ar. A vantagem dos feiticeiros é saber que o tremor no ar existe, e aceitam isso sem maiores complicações. Para os feiticeiros não existe o ponderar, o imaginar, o especular. Eles sabem que só lhes resta a possibilidade de fundirem-se com o intento do infinito, e então apenas fazem isso”.

Nada poderia ser mais claro para mim que tais afirmações. No que me dizia respeito, a verdade do que ele me dizia era tão auto evidente que não me permitia ponderar como afirmações absurdas como aquelas podiam ter soado tão racionais. Eu sabia que tudo o que don Juan estava dizendo-me não somente era um truísmo, mas também que podia ser corroborado pelo meu próprio ser. Sabia de tudo o que ele estava dizendo. Tive a sensação de que experimentara cada item de sua descrição.

“Quando nos encontramos no Arizona, nós dois cruzamos um limiar específico”, continuou ele. “E isso não foi decisão de nenhum de nós dois, mas sim do próprio infinito, que é tudo aquilo o que nos cerca”. Ele disse isso e fez um gesto amplo com os braços. “Os feiticeiros de minha linhagem chamam-no de infinito, de espírito, de mar escuro da percepção, e dizem que ele é algo que existe lá fora e que regula nossas vidas.”

Eu realmente era capaz de compreender tudo o que ele dizia, e mesmo assim não sabia de jeito nenhum do que ele falava. Perguntei se cruzar tal limiar foi um acontecimento acidental, fruto de circunstâncias imprevisíveis do acaso. Ele respondeu que os seus passos e os meus foram guiados pelo infinito, e que as circunstâncias que pareciam ser guiadas pelo acaso eram em sua essência guiadas pelo lado ativo do infinito. Ele chamava-o de intento.

“O que nos reuniu,” continuou, “foi o intento do infinito. É impossível determinar o que é esse intento do infinito, e ainda assim lá está ele, tão palpável quanto eu e você. Os feiticeiros dizem que ele é um tremor no ar. A vantagem dos feiticeiros é saber que o tremor no ar existe, e aceitam isso sem maiores complicações. Para os feiticeiros não existe o ponderar, o imaginar, o especular. Eles sabem que só lhes resta a possibilidade de fundirem-se com o intento do infinito, e então apenas fazem isso.” Nada poderia ser mais claro para mim que tais afirmações. No que me dizia respeito, a verdade do que ele me dizia era tão auto evidente que não me permitia ponderar como afirmações absurdas como aquelas podiam ter soado tão racionais. Eu sabia que tudo o que don Juan estava dizendo-me não somente era um truísmo, mas também que podia ser corroborado pelo meu próprio ser. Sabia de tudo o que ele estava dizendo. Tive a sensação de que experimentara cada item de sua descrição.

Nada poderia ser mais claro para mim que tais afirmações. No que me dizia respeito, a verdade do que ele me dizia era tão auto evidente que não me permitia ponderar como afirmações absurdas como aquelas podiam ter soado tão racionais. Eu sabia que tudo o que don Juan estava dizendo-me não somente era um truísmo, mas também que podia ser corroborado pelo meu próprio ser. Sabia de tudo o que ele estava dizendo. Tive a sensação de que experimentara cada item de sua descrição.

Nossa interação então terminou. Algo pareceu ter murchado dentro de mim. Naquele instante preciso o pensamento de que eu estava ficando biruta cruzou minha mente. Fora cegado por afirmações fantásticas e perdi todo senso concebível de objetividade. Por causa disso, saí da casa de don Juan apressadamente, sentido-me ameaçado até a alma por um inimigo invisível. Don Juan foi comigo até meu carro, inteiramente cônscio do que acontecia em meu interior.

“Não se preocupe”, disse ele colocando sua mão em meu ombro. “Você não está perdendo o juízo. O que sentiu foi o toque gentil do infinito”.

Com o passar do tempo, eu tive condições de corroborar o que don Juan disse sobre seus dois professores. Don Juan Matus era exatamente igual ao que ele descrevera como sendo aqueles dois homens. Iria até mais longe, dizendo que ele era uma mistura extraordinária de ambos: de um lado, extremamente quieto e introspectivo; de outro, extremamente aberto e engraçado. A afirmação mais acurada sobre o que é um nagual, feita por ele no dia em que nos conhecemos, é que o nagual é vazio, e que esse vazio não reflete o mundo, mas reflete o infinito.

Nada pode ser mais verdadeiro que essa referência a don Juan Matus. Seu vazio reflete o infinito. Não existia o mínimo de ostentação em todas as suas atitudes, e nem ao menos qualquer afirmação egoísta. Não existia a menor migalha seja de remorso seja de ressentimento, de queixa. O seu era um vazio de um guerreiro-viajante, amadurecido até ao ponto de considerar que nada era garantido, de considerar que a certeza não existe. Um guerreiro-viajante que não subestima e nem superestima nada, absolutamente nada. Um guerreiro quieto e disciplinado cuja elegância é tão extrema que ninguém, não importa o quanto tente, irá descobrir como toda aquela complexidade podia estar nele reunida.

 

O Final de uma Era

 

                   A Excessiva Preocupação com a Vida do Dia-a-dia

Fui a Sonora ver don Juan. Tinha que discutir com ele o mais sério acontecimento de minha vida na ocasião. Necessitava de seus conselhos. Quando cheguei em sua casa, eu mal cumprimentei-o. Sentei-me e relatei-lhe apressadamente tudo o que me atormentava.

“Acalme-se, acalme-se”, disse don Juan. “Nada pode ser tão ruim assim”.

“O que está acontecendo comigo, don Juan?” Perguntei-lhe. A minha pergunta foi realmente eloqüente.

“Essas são as ações do infinito”, replicou ele. “Algo aconteceu com o seu modo de perceber as coisas no dia em que nos encontramos. Seu nervosismo é devido à percepção subliminar de que seu tempo terminou. Você percebeu isso, mas não está deliberadamente consciente do fato. Você sente a ausência do tempo, e isso o torna impaciente. Eu sei disso, pois o mesmo aconteceu comigo e com todos os feiticeiros de minha linhagem. Em certo momento, toda uma era em minha vida, ou nas deles, chegou ao seu final. Agora é a sua vez. Seu tempo simplesmente esgotou-se”.

Ele então exigiu um relato completo de tudo o que me acontecera. Disse que deveria ser um relato em que não deveria ser omitido nenhum detalhe. Ele não queria uma descrição superficial. Exigia que eu botasse para fora tudo o que estava causando aquele impacto e complicando toda a minha vida.

“Vamos ter a nossa conversa pelo modo como é conhecida em seu mundo, isto é, seguindo todas as regras”, disse ele. “Entremos no reino da conversa formal”.

Don Juan explicou-me que os xamãs do México antigo desenvolveram a idéia conversas formais versus conversas informais, e que usavam as duas como instrumentos para ensinar e guiar seus discípulos. Conversas formais eram, para eles, sumários que faziam de tempos em tempos de tudo o que haviam ensinado ou dito a seus discípulos. Conversas informais eram elucidações diárias nas quais as coisas eram explicadas sem nenhuma referência a não ser ao próprio fenômeno que estava sendo cuidadosamente examinado.

“Os feiticeiros nada guardam consigo mesmo”, continuou ele. “Esvaziar a si mesmo dessa maneira é uma manobra dos feiticeiros. Isso os conduz a abandonar a fortaleza do ‘self’”.

Comecei minha história dizendo a don Juan que as circunstâncias de minha vida nunca permitiram-me ser introspectivo. Tão distante em meu passado que eu pude lembrar-me, minha vida diária foi sempre cheia até a borda de problemas pragmáticos que reclamavam minha interferência imediata para solucioná-los. Lembro-me de meu tio favorito dizendo-me que ficava abismado pelo fato de eu nunca ter recebido presentes pelo Natal ou pelo meu aniversário. Ele tinha vindo morar na casa da família de meu pai um pouco antes de fazer tal afirmação. Ele solidarizava-se comigo pela injustiça de minha situação. Até mesmo pedia-me desculpas, embora nada tivesse a ver com o meu caso.

“Isso é revoltante, meu rapaz”, disse ele, tremendo de emoção. “Quero que você saiba que estarei cem por cento ao seu lado sempre que for chegada a hora de reparar os malfeitos”.

Ele insistia uma vez atrás da outra que eu deveria perdoar as pessoas que fizeram coisas erradas para comigo. Pelo que ele disse, fiquei com a impressão de que ele queria que eu enfrentasse meu pai apontando-lhe aquelas coisas que ele descobrira e que, primeiro o acusasse de indolência e negligência e depois, é claro, que o perdoasse. Ele falhou por não perceber que eu não me sentia injustiçado de maneira nenhuma. O que ele pedia para que eu fizesse requeria uma natureza introspectiva de minha parte, a qual me faria reagir às farpas de ter sido maltratado psicologicamente, sempre que elas fossem destacadas para mim. Garanti para meu tio que iria pensar no assunto, mas não naquele momento, porque naquele mesmo instante minha namorada, que estava me esperando na sala de visitas, fazia sinais para que eu me apressasse.

Eu nunca tive a oportunidade de pensar sobre o que prometera, mas meu tio deve ter falado com meu pai, porque ele deu-me um presente, um pacote muito bem embrulhado, com fita e tudo, e mais, com um cartão onde estava escrito “Sinto muito”. Eu, curiosa e ansiosamente, rasquei o papel do embrulho. Era uma caixinha de papelão com um lindo brinquedo dentro, um pequeno barco com uma chavinha de corda junto, colada à chaminé. Poderia ser usado para brincar quando se tomava banho em banheiras. Meu pai esquecera-se totalmente que eu já tinha quinze anos e que, praticamente, já era um homem.

Desde que eu atingira minha idade adulta sem ser capaz de, seriamente, realizar qualquer introspeção foi sem dúvida uma autêntica novidade quando um dia, anos mais tarde, encontrei-me às voltas com uma estranha agitação emocional, que parecia aumentar com o passar do tempo. Descartei-a, atribuindo-a a um processo natural da mente ou do corpo que entra em ação periodicamente, sem nenhuma razão aparente, ou que talvez seja provocada por processo bioquímicos dentro do próprio corpo. Não pensei nada mais sobre aquilo. A agitação, entretanto, cresceu e sua pressão forçou-me a acreditar que eu chegara a um momento de minha vida que requeria uma mudança drástica. Havia algo em mim que exigia uma reorganização de minha vida. Esse impulso para reorganizar tudo me era familiar. Havia sentido-o no passado, mas ele esteve adormecido por um longo tempo.

Estava comprometido com o estudo de antropologia, e esse compromisso era tão forte que deixá-lo de lado não fazia parte de minha proposta de mudança drástica. Não ocorrera-me deixar de lado a escola e fazer outra coisa qualquer, bem longe de LA.

Antes que eu empreendesse uma mudança daquela magnitude, queria fazer certo tipo de teste. Envolvi-me inteiramente num curso de verão de uma escola de outra cidade. O curso mais importante para mim era o de antropologia, que seria ministrado por um professor que era a mais famosa autoridade em índios da região andina. Eu acreditava que se focalizasse minha atenção no estudo de uma área que era emocionalmente acessível a mim, teria uma melhor oportunidade em realizar sérias pesquisas antropológicas de campo, quando chegasse a hora certa. Achava que meu conhecimento da América do Sul me facilitaria o contato com qualquer sociedade indígena da região.

Ao mesmo tempo em que me matriculei no curso, consegui um emprego como assistente de pesquisa de um psiquiatra que era o irmão mais velho de um amigo meu. Ele queria fazer uma análise consistente de trechos de algumas fitas velhas onde foram gravadas sessões de perguntas e respostas com rapazes e moças a respeito de seus problemas causados por excesso de trabalho na escola, expectativas não realizadas, desentendimentos domésticos, namoros frustados, etc, etc. As fitas foram gravadas há mais de cinco anos e seriam destruídas, mas antes disso, foram marcadas com números ao acaso, e seguindo uma tabela com tais números, as fitas eram escolhidas a esmo pelo psiquiatra e seu assistente de pesquisa, para exame de alguns trechos.

No primeiro dia de aula na nova escola, o professor de antropologia falou sobre sua boa fé acadêmica e fascinou todos os alunos com o escopo de seu conhecimento e publicações. Ele era um homem alto e magro com seus quarenta e cinco anos e olhos azuis inquietos. O que mais me impressionou em sua aparência física foi o fato de que seus olhos pareciam enormes por causa das grossas lentes de seu óculos de míope, e também pelo fato de que um deles parecia girar em sentido oposto ao do outro quando ele movia a cabeça ao falar. Eu sabia que isso não poderia acontecer; era, entretanto uma imagem muito desconcertante. Ele era extremamente bem vestido para um antropólogo, que no meu tempo era alguém que se distinguia pela vestimenta super comum. Como exemplo, posso citar que os estudantes costumavam dizer que os antropólogos eram criaturas ocupadas em determinar a idade de tudo pelo carbono-14 e que nunca tomavam banho.

Por razões que desconheço, entretanto, o que realmente o distinguia não era sua aparência física, ou sua erudição, mas sim seu modo de falar. Pronunciava cada palavra tão claramente como eu nunca ouvira, e enfatizava algumas delas alongando-as. Tinha uma entonação marcadamente estrangeira, mas eu sabia que aquilo era uma afetação. Ele pronunciava certas frases como um inglês e outras como um pastor protestante.

Fascinou-me à primeira vista, apesar de sua enorme pomposidade. Sua auto importância era tão espalhafatosa que deixava de ser notada depois de cinco minutos do começo de sua aula, que eram sempre mostras bombásticas de conhecimento apoiadas por ousadas afirmações sobre si mesmo. Dominava seus ouvintes de maneira sensacional. Nenhum dos estudantes com quem eu conversei não sentia outra coisa senão suprema admiração por aquele homem extraordinário. Eu ansiosamente pensava que tudo estava correndo muito bem, e que aquela mudança para uma outra escola e outra cidade iria ser não apenas fácil e tranqüila, mas também extremamente positiva. Gostei muito de meu novo ambiente.

No meu trabalho, tornei-me completamente envolvido com a tarefa de ouvir as fitas, a ponto de entrar furtivamente no escritório e ouvir não apenas os trechos, mas toda a fita. O que me fascinava mais que tudo, no início, era o fato de que eu ouvia a mim mesmo falando em cada um das fitas. Com o passar das semanas e ouvir mais e mais fitas, minha fascinação transformou-se em verdadeiro horror. Cada frase que era pronunciada, inclusive as perguntas do psiquiatra, parecia minha. Aquelas pessoas falavam das profundidades do meu próprio ser. A repulsa que experimentei era algo inteiramente novo para mim. Nunca pensara que eu pudesse ser repetido indefinidamente em cada homem ou mulher cuja voz fora gravada nas fitas. Meu senso de individualidade, que foi plantado em mim desde meu nascimento, desmoronou-se sob o impacto dessa descoberta colossal.

Iniciei então um processo odioso de auto restauração. Inconscientemente fiz uma tentativa absurda de introspecção; tentei desvencilhar-me de meu dilema falando sem parar comigo mesmo. Reorganizei em minha mente todas as bases racionais possíveis que poderiam reafirmar meu senso de identidade, e depois expressei-as em voz alta para mim mesmo. Até mesmo experimentei algo bastante revolucionário para mim: acordei a mim mesmo várias vezes falando em voz alta durante meu sono, discursando acerca de meu valor e distinção.

Então, em um dia terrível, sofri outra explosão mortal. Nas horas silentes da noite, fui acordado por umas batidas insistentes em minha porta. Não eram batidas tímidas, educadas mas eram o que os meus amigos chamariam de “batidas da Gestapo”. A porta estava quase vindo abaixo, depregando-se das dobradiças. Saltei da cama e olhei pelo olho-mágico. A pessoa que batia na porta era meu patrão, o psiquiatra. O fato de ser amigo de seu irmão mais novo parecia ter acabado com toda a cerimônia entre nós dois. Ele transformou-se em meu amigo íntimo sem nenhuma hesitação, e ali estava na porta de minha casa. Acendi a luz e abri a porta.

“Entre, por favor”, disse eu. “O que aconteceu?”

Eram três da manhã, e por seu rosto lívido e suas olheiras, percebi que ele estava profundamente agitado. Entrou e sentou-se. Seu orgulho e alegria, sua cabeleira preta e comprida, tudo estava espalhado em sua face. Ele não ligava para isso e não tentava pentear o cabelo para trás como sempre o fazia. Eu gostava muito dele, pois era uma versão mais velha de meu amigo de LA, com grossas sobrancelhas escuras, olhos castanhos penetrantes, queixo quadrado, e lábios grossos. Seu lábio superior parecia possuir uma dobra extra por dentro, e de vez em quando, ao sorrir de certa maneira, ele dava a impressão de ter o lábio superior duplo. Ele sempre comentava sobre a forma de seu nariz, que ele descrevia como impertinente e peludo. Eu achava que ele era extremamente seguro de si, dogmático a perder de vista. Ele afirmava que em sua profissão, tais qualidades eram essenciais ao sucesso.

“O que aconteceu!” Repetiu ele em de zombaria, com seu lábio superior duplo tremendo incontrolavelmente. “Ninguém sabe o quanto me aconteceu esta noite”.

Sentou-se numa cadeira. Parecia tonto, desorientado, procurando pelas palavras. Levantou-se e foi até ao sofá, estirando-se nele.

“Eu não apenas tenho responsabilidade sobre meus pacientes,” continuou, “mas também pelas pesquisas, por minha mulher e meus filhos, e agora recebo outra carga desgraçada e o pior é que eu mesmo sou o culpado, com minha burrice em confiar numa vagabunda estúpida!

“Vou dizer para você, Carlos”, continuou ele, “não existe nada mais constrangedor, nojento, nauseante, que a insensibilidade das mulheres. Eu não sou alguém que deteste as mulheres, você sabe disso! Mas nesse momento tenho a impressão de que cada uma dessas vagabundas não passa disso, uma vagabunda. Vira folhas e vil!”

Eu não sabia o que dizer. Tudo o que ele estava dizendo não necessitava nem de aprovação e nem de negação. Eu não me atreveria absolutamente a contradizê-lo. Não tinha argumentos para tanto. Eu estava com muito sono. Queria voltar para a minha cama e continuar dormindo, mas ele continuou falando como se sua vida dependesse disso.

“Você conhece Theresa Manning, não conhece?” Perguntou-me ele de um modo forçado, acusatório.

Por um instante, acreditei que ele estivesse me acusando de ter algo a ver com a sua jovem e linda secretária estagiária. Sem me dar tempo para responder, ele continuou falando.

“Theresa Mannig é uma vagabunda. É uma simplória! É uma mulher estúpida e sem consideração que não tem outro incentivo na vida que enrolar as pessoas com um pouquinho de fama e notoriedade. Eu pensei que ela fosse uma mulher inteligente e sensível. Pensei que ela tivesse alguma coisa, alguma compreensão, alguma empatia, algo que pudesse ser compartilhado, ou mesmo guardado para si mesmo como um tesouro. Eu não sei, mas esse é o retrato de si mesma que ela pintou para mim, quando na realidade ela é indecente e degenerada, e mais ainda, posso acrescentar, uma mulher incuravelmente grossa”.

Enquanto ele continuava falando, uma estranha imagem começou a emergir. Aparentemente o psiquiatra tinha apenas tido uma má experiência envolvendo sua secretária.

“Desde o dia em que ela começou a trabalhar para mim”, continuou ele, “eu percebi que ela sentia-se atraída sexualmente por mim, mas ela nunca manifestou isso. Isso só era percebido nas indiretas e nos olhares. Bem, foda-se! Esta tarde eu me senti doente e farto de tanto fingimento e fui direto ao assunto. Subi até sua mesa e disse-lhe, ‘sei o que você quer, e você sabe o que eu quero....”

Ele então começou com uma enorme e elaborada falação de como ele esforçou-se para dizer a ela que a esperava em seu apartamento do outro lado da rua, às 23:30 e que não modificava suas rotinas para ninguém, que leu, que trabalhou, que bebeu vinho até uma da manhã, quando então foi para o quarto de dormir. Ele mantinha um apartamento no cidade bem como uma casa no subúrbio onde vivia com sua mulher e filhos.

“Estava muito confiante de que tudo iria dar certo e que seria uma noite memorável,” disse ele suspirando. Sua voz adquiriu o tom meloso de alguém que confidenciasse algo muito íntimo. “Cheguei até mesmo a entregar-lhe a chave do meu apartamento,” disse ele com a voz em falsete.

“Muito obedientemente ela chegou às 11:30,” continuou ele. “Entrou no apartamento usando a chave que lhe dei, e esgueirou-se para quarto de dormir como uma sombra. Isso excitou-me terrivelmente. Sabia que ela não iria representar nenhuma dificuldade para mim. Ela sabia qual era o seu papel. Provavelmente ela pegou no sono ao deitar-se na cama. Ou talvez tenha ficado vendo TV. Eu fiquei envolvido em meu trabalho, e não me importei com o que estivesse acontecendo com ela. Sabia que ela estava no papo.

“Mas no momento em que fui para o quarto,” continuou ele, com sua voz tensa e contrita, como se tivesse sido moralmente ofendido, “Theresa pulou em cima de mim como um animal e pegou meu pênis. Ela nem mesmo me deu tempo para colocar no chão a garrafa e os dois copos que estava segurando. Tive agilidade suficiente para colocar no chão meus dois copos de cristal sem quebrá-los. A garrafa rodou pelo assoalho quando ela agarrou meus bagos como se eles fossem pedras. Eu tentei bater nela. Na verdade berrei de dor, mas isso não afetou-a. Ela dava risadas como se tivesse louca, pensando que eu estivesse me fazendo de atraente e sexy. Ela disse isso, como para me conter”.

Balançando a cabeça com uma raiva contida, ele disse que aquela mulher estava tão faminta sexualmente e era tão egoísta que não levou em consideração que o homem necessita de um momento de paz, que necessita de sentir-se à vontade, como se estivesse em casa, num ambiente amigo. Em lugar de mostrar consideração e compreensão, como exigia o seu papel, Theresa Manning tirou os seus órgãos sexuais para fora de suas calças com a perícia de alguém que tivesse feito isso centenas de vezes.

“O resultado de toda essa merda”, disse ele, “foi que minha sensualidade retraiu-se com horror. Eu fiquei emocionalmente brocha. Meu corpo abominou aquela vagabunda instantaneamente. Mesmo assim, minha luxúria impediu-me de jogá-la no olho da rua”.

Ele disse que decidiu então que, em lugar de ficar miseravelmente vexado com a sua impotência, como era a sua tendência, ele iria fazer sexo oral com ela, e fazer com que ela tivesse um orgasmo – ou seja, colocá-la sob seu controle – mas seu corpo rejeitou aquela mulher tão completamente que ele não pôde fazer aquilo.

“A mulher não era mais nem mesmo bonita”, disse ele, “mas era uma mulher comum. Quando vestida, seu vestido disfarçava o volume de suas ancas. Ela realmente parecia OK. Mas quando nua, é um saco volumoso de carne branca! A elegância que ela mostra quando vestida é falsa. Não existe”.

O veneno jorrava do psiquiatra numa quantidade que eu nunca poderia imaginar. Ele tremia de raiva. Ele queria desesperadamente parecer calmo, e fumava um cigarro atrás do outro.

Ele disse que o sexo oral era muito mais enlouquecedor e nauseante, e que ele estava quase vomitando quando aquela vagabunda deu um soco em sua barriga, rolou-o para fora de sua própria cama fazendo com que ele caísse no chão, e ainda chamou-o de fresco e brocha.

Nessa altura de sua narrativa, os olhos do psiquiatra estavam flamejantes de ódio. Sua boca estava trêmula. Ele ficou extremamente pálido.

“Tenho que usar o seu banheiro”, disse ele. “Necessito tomar um banho. Estou fedendo a fumaça de cigarro. Acredite ou não, peguei também um cheiro de vagina”.

Ele chorava abertamente e eu daria qualquer coisa do mundo para não estar ali. Talvez fosse o meu cansaço, ou a natureza mesmérica de sua voz, ou ainda a futilidade daquela situação que tenha criado a ilusão de que eu não estava ouvindo a voz de um psiquiatra, mas sim a voz de um suplicante masculino de uma de suas fitas reclamando de um probleminha que foi transformado em algo sério pela repetição obsessiva do mesmo. Meu tormento terminou por volta das nove horas da manhã. Era hora de ir para minhas aulas e hora para o psiquiatra ir embora e ver até onde havia se rebaixado.

Fui para a escola então com a enorme carga de uma ansiedade que me queimava por dentro, e com uma tremenda sensação de desconforto e impotência. Lá eu recebi o golpe final, golpe que causou uma tentativa de minha parte de uma mudança drástica que quase provocou meu colapso final. Nesse colapso não estava incluída nenhuma parte de minha vontade, e ele surgiu como se tivesse sido programado de antemão, sendo seu desenrolar acelerado por alguma causa desconhecida.

O professor de antropologia começou sua palestra sobre um grupo de indígenas do altiplano do Peru e Bolívia, os aymarás. Ele chamava-os de “ei- Má- ras”, alongando o nome como se sua pronúncia daquele nome fosse a única certa em todo o mundo. Ele disse que a preparação da chica, que é pronunciada como “CHEE-cha”, mas que ele pronunciava como “CHAHI-cha”, uma bebida alcoólica feita do milho fermentado, era do domínio de uma seita de sacerdotisas, consideradas semidivinas pelos aymarás. Ele disse, num tom de revelação, que tais mulheres tinham a seu cargo preparar o milho cozido transformando-o numa papa a ser fermentada, e que faziam isso mastigando e cuspindo o milho, adicionando à papa, desse maneira, a enzima que existe na saliva humana. Toda a classe recolheu-se com um horror contido quando ele mencionou tal fato.

O professor pareceu estar se deliciando ao máximo. Ele dava risadinhas a prestação. Era como um risinho desagradável de um bebê. Ele continuou dizendo que as mulheres eram mastigadoras peritas, e chamava-as de as “chahichas mastigadoras”. Ele olhou para as pessoas da primeira fileira da sala, onde estava sentada a maioria das jovens alunas, e desferiu seu golpe de misericórdia.

“Tive o p-r-r-ivilégio”, disse ele com uma estranha entonação como se fosse um estrangeiro, “de ser convidado a dormir com uma das mastigadoras chahi-cha. A arte de mastigar a papa do chahi-cha faz com que elas desenvolvam os músculos faciais e ao redor da garganta ao ponto de que elas possam fazer maravilhas com eles.”

Ele olhou para a sua platéia atônita e fez uma longa pausa, salpicando-a com os seus risinhos maliciosos. “Estou certo de que vocês perceberam o que insinuo,” disse ele, e então começou a dar acessos de risadas histéricas.

Toda a classe ficou louca com as indiretas do professor. A palestra foi interrompida por pelo menos cinco minutos de risadas e uma enxurrada de perguntas que o professor declinou-se de responder, emitindo outros risinhos estúpidos.

Eu senti-me tão oprimido pela pressão das fitas, pela história do psiquiatra e pelas “mastigadoras chahi-cha” do professor que numa tacada instantânea desisti do emprego, da escola e voltei para LA.

“O que quer que tenha me acontecido por causa do psiquiatra e do professor de antropologia”, disse para don Juan, “lançou-me num estado emocional desconhecido. Eu só posso chamá-lo de introspeção. Tenho falado comigo mesmo sem parar”.

“A sua doença é muito simples”, disse don Juan, tremendo de tanto rir.

Aparentemente deliciava-se com minha situação. Era um deleite do qual eu não podia participar, porque não encontrava nenhuma graça nele.

“Seu mundo está chegando ao fim”, disse ele. “É o fim de uma era para você. Você acha que o mundo que sempre conheceu irá deixá-lo levar uma vida tranqüila, sem nenhuma confusão ou balbúrdia? Não! Ele irá contorcer-se sob seus pés e chicoteá-lo com sua cauda”.

 

                   A Visão que não Pude Suportar

LA sempre foi um lar para mim. Minha escolha por LA não foi por vontade própria. Para mim, permanecer em LA sempre foi o equivalente a ter nascido ali, talvez mais que isso. Minha conexão emocional com a cidade foi sempre total. Meu amor pela cidade de LA tem sido sempre tão intenso, tão parte de mim, que nunca tive que proclamar isso. Nunca tive que rever ou renovar isso, jamais.

Eu tinha, em LA, minha família de amigos. Eles eram para mim parte do meu ambiente mais próximo, isso significando que eu os aceitei totalmente, do mesmo modo como aceitei a cidade. Um dos meus amigos certa vez afirmou, com certo tom de brincadeira, que todos nós odiávamos uns aos outros cordialmente. Sem dúvida, eles podiam suportar eles mesmos tal espécie de sentimento, pois tinham à sua disposição outros arranjos emocionais, aqueles representados por parentes, esposas e maridos. Eu tinha em LA apenas meus amigos.

Por razões diversas, era o confidente de cada um deles. Cada um deles despejava em mim seus problemas e vicissitudes. Meus amigos eram tão chegados a mim que eu nunca considerava seus problemas e tribulações como algo anormal. Podia conversar durante horas com eles sobre as próprias coisas que me horrorizaram no caso do psiquiatra e suas fitas.

Mais ainda, eu nunca percebera que cada um de meus amigos era impressionantemente semelhante ao psiquiatra e ao professor de antropologia. Nunca notara quão tensos eles eram. Todos eles fumavam compulsivamente, como o psiquiatra, mas isso nunca foi algo óbvio para mim, pois eu fumava tanto quanto eles e era igualmente tenso como eles. Seu falar afetado era outra coisa que nunca foi óbvia para mim, embora fosse um fato. Eles tinham o falar fanhoso do oeste americano, mas nunca percebiam isso. Eu também nunca notara suas insinuações espalhafatosas sobre uma sensualidade que eram incapazes de sentir, salvo intelectualmente.

A confrontação real comigo mesmo começou quando enfrentei o dilema de meu amigo Pete. Ele veio ver-me, todo machucado. Tinha a boca inchada, bem como o olho esquerdo, que obviamente havia sido esmurrado e já estava tornando-se azulado. Antes que eu tivesse tempo de perguntar o que lhe acontecera, ele berrou para mim que sua mulher, Patrícia, fora a uma convenção de corretores imobiliários no fim de semana, relacionada ao seu emprego, e que algo terrível acontecera com ela. Pela aparência de Pete, pensei que talvez a Patrícia estivesse muito machucada, talvez morta, por algum acidente.

“Ela está bem?”, perguntei, realmente preocupado.

“É claro que está bem,” berrou ele. “Ela é uma cadela e uma prostituta, e nada acontece a esse tipo de mulher a não ser transar, coisa que elas realmente gostam!”

Pete estava p. da vida. Ele tremia todo, quase convulsivamente. Seu cabelo farto e anelado estava todo espetado. Usualmente, ele penteava-os e alisava-os cuidadosamente, com as suas ondas naturais no devido lugar. Mas naquele momento ele parecia tão selvagem quanto um diabo da Tasmânia.

“Tudo estava normal até hoje”, continuou meu amigo. “Aí, esta manhã, depois que terminei minha chuveirada, ela jogou uma toalha no meu traseiro molhado, e isso me fez perceber toda a merda! Percebi instantaneamente que ela estava transando com outro homem”.

Fiquei intrigado com a sua linha de raciocínio, e pedi-lhe mais informações sobre o ocorrido. Perguntei-lhe como jogar uma toalha poderia revelar alguma coisa para quem quer que fosse.

“Pode não revelar nada para patetas!” Disse ele distilando veneno. “Mas eu conheço Patrícia, e na quinta-feira, antes que ela fosse para a convenção dos corretores, ela não seria capaz de jogar uma toalha! De fato, ela nunca foi capaz de jogar uma toalha durante todo esse tempo em que estamos casados. Alguém deve ter ensinado para ela enquanto estavam nus! Por isso agarrei-a pela garganta e fiz com que ela vomitasse toda a verdade! Ela está transando com seu patrão!”.

Pete disse que foi até o escritório de Patrícia tomar satisfação com o patrão dela, mas que o homem era fortemente protegido por guarda-costas. Eles jogaram-no no estacionamento. Ele queria quebrar as janelas do escritório, jogar pedras nelas, mas os guarda-costas disseram que se ele fizesse aquilo iria para a cadeia, ou pior ainda, poderia receber uma bala na cabeça.

“Foram eles que bateram em você, Pete?” Perguntei-lhe.

“Não”, disse ele, deprimido. “Eu andei um pouco mais pela rua e entrei no escritório de uma loja de carros usados. Dei um soco na cara do primeiro vendedor que veio falar comigo. O homem ficou chocado, mas não ficou com raiva. Disse, ‘Calma, senhor, calma! Temos uma sala para negociar.’ Quando tornei a dar um soco em sua boca, ele ficou p. da vida. Era um cara alto, e atingiu-me no olho e na boca deixando-me fora de ação. Quando voltei a mim”, continuou Pete, “eu estava deitado no sofá do escritório. Ouvi o som de uma ambulância aproximando-se. Sabia que ela estava vindo buscar-me, por isso levantei-me e saí correndo. Depois vim ver você”.

Ele começou a chorar incontrolavelmente. Depois ficou com vontade de vomitar. Estava em frangalhos. Chamei sua mulher, e em menos de dez minutos ela chegou em meu apartamento. Ajoelhou ao lado de Pete e jurou que amava apenas a ele, e que tudo o que fizera foi imbecilidade dela, e que o amor deles era questão de vida ou morte. Os outros eram nada. Ela nem mesmo lembrava-se deles. Ambos choraram até não mais poder e, é claro, cada um perdoou o outro. Patrícia estava usando óculos escuros para esconder o hematoma de seu olho direito onde Pete a tinha acertado – ele era canhoto. Os dois esqueceram-se de minha presença, e quando saíram, nem mesmo perceberam que eu estava ali. Simplesmente caminharam para fora do apartamento, deixando a porta aberta, abraçando um ao outro.

A vida parecia continuar para mim do mesmo modo de sempre. Meus amigos agiam para comigo do mesmo modo como sempre agiram. Nós estávamos, como era usual, envolvidos em ir a festas, ao cinema, ou simplesmente “mascando fumo”, ou então procurando restaurantes que ofereciam “tudo o que você agüentar comer” pelo preço de uma refeição. Entretanto, a despeito dessa pseudonormalidade, um fator novo e estranho parecia ter entrado em minha vida. Como um indivíduo que estivesse experimentando aquilo, parecia-me que, repentinamente, a minha mente tornara-se extremamente estreita. Comecei a julgar os meus amigos do mesmo modo que julgara o psiquiatra e o professor de antropologia. Quem era eu, afinal de contas, para julgar quem quer que fosse?

Senti um enorme senso de culpa. Julgar meus amigos criou um estado de espírito antes desconhecido por mim. Mas o que eu considerava ser ainda pior era que eu não apenas estava julgando-os, eu estava descobrindo que seus problemas e tribulações eram extremamente banais. Eu era o mesmo homem; eles eram os mesmos amigos. Eu havia escutado suas queixas e os relatos de sua situação centenas de vezes, e nunca sentira nada a não ser uma profunda identificação com o que quer que escutasse. Meu horror ao descobrir esse novo estado de espírito em mim mesmo era devastador.

O aforismo de que uma desgraça nunca vem só não poderia ser mais verdadeiro naquele momento de minha vida. A desintegração total de meu modo de vida surgiu quando meu amigo Rodrigo Cummings pediu-me para levá-lo ao aeroporto de Burbank; dali ele iria voar para NY. Aquela era uma manobra muito dramática e desesperada que ele fazia. Ele considerava uma desgraça ficar em LA sem nada para fazer. Para o resto de seus amigos era uma grande piada o fato de que ele havia tentado várias vezes ir dirigindo seu carro até NY e que cada vez que tentava, seu carro enguiçava. Certa vez ele conseguira chegar tão distante quanto a Cidade de Salt Lake antes de seu carro pifar; o motor fundira. Teve que abandoná-lo ali. A maior parte das vezes seus carros pifavam nos subúrbios de LA.

“O que acontece com seus carros, Rodrigo?” perguntei-lhe certa vez, levado por uma sincera curiosidade.

“Não sei”, replicou ele com um senso velado de culpa. E então, com uma voz que parecia a de um professor de antropologia em seu papel de pregador protestante, ele disse, “Talvez seja porque quando estou na estrada, eu acelero muito o carro porque me sinto livre. Usualmente abro todas as janelas. Gosto de sentir o vento soprando em minha cara. Sinto-me como um menino em busca de algo novo”.

Era óbvio para mim que seus carros, que quase sempre eram furrecas, não tinham mais condições de desenvolver velocidades altas e eles então simplesmente fundiam os motores.

Da Cidade de Salt Lake, Rodrigo retornou para LA de carona. É claro que ele poderia ter ido para NY de carona, mas isso não passou por sua cabeça. Rodrigo parecia aflito pela mesma coisa que me afligia: uma paixão inconsciente por LA, o que ele negava com toda sua força.

De outra vez seu carro estava em excelentes condições mecânicas. Poderia fazer a viagem tranqüilamente, mas Rodrigo parecia não ter nenhuma condição de sair de LA. Ele dirigiu até San Bernadino, onde queria assistir a um filme – Os Dez Mandamentos. Esse filme, por razões que só Rodrigo conhecia, despertava nele uma insuportável nostalgia por LA. Ele regressou e chorou, dizendo-me que a desgraçada daquela cidade de LA construíra uma cerca ao seu redor e não deixava que ele a transpusesse. Sua mulher ficou toda alegre por ele não ter ido e sua namorada Melissa ficou mais feliz ainda, embora tenha também ficado chateada por ter que devolver os dicionários que ele lhe dera.

Sua última tentativa desesperada de chegar até NY por avião tornou-se até mesmo dramática porque ele teve que pedir dinheiro emprestado para comprar a passagem. Ele disse a esse respeito, uma vez que não tinha a intenção de pagar a dívida, que estava dispondo as coisas para não mais regressar.

Coloquei as suas malas em meu carro e dirigi-me para o aeroporto de Burbank. Ele disse que o avião só sairia às dezenove horas. Passava pouco do meio dia, e ele tinha muito tempo para assistir a um filme. Além disso, ele queria dar uma última olhadela na Hollywood Boulevard, o centro de nossas vidas e de nossas atividades.

Fomos assistir a um filme épico em tecnicolor e cinerama. Era um filme demorado e cansativo que parecia ter prendido a atenção de Rodrigo. Quando saímos do cinema, já estava escurecendo. Eu corri para Burbank no meio de um pesado tráfego. Ele exigiu que fossemos pela via comum e não pela ‘freeway’, que estaria congestionada naquela hora. O avião acabara de levantar vôo quando chegamos no aeroporto. Essa foi a última gota d’água. Submisso e derrotado, Rodrigo foi até a um guichê para apresentar sua passagem e receber seu dinheiro de volta. O caixa escreveu seu nome e lhe deu um recibo e disse que o dinheiro seria devolvido dentro de seis a doze semanas do Tennessee, onde estavam localizados os escritórios de contabilidade da companhia aérea.

Regressamos ao prédio de apartamentos onde nós dois morávamos. Uma vez que ele não se despedira de ninguém desta vez, temendo a humilhação, ninguém nunca soube que ele tentara mais uma vez sair de LA. A única falha foi ele ter vendido seu carro. Ele pediu-me para dirigir até a casa de seus pais, porque seu pai iria dar-lhe o dinheiro que gastou na passagem. Seu pai tinha sido, desde tanto tempo atrás quanto eu me lembro, a pessoa que amparava Rodrigo em todas as situações problemáticas em que ele se metia. O seu slogan era “Não tenha medo, Rodrigo Senior está aqui!” Depois de ouvir o pedido de empréstimo de Rodrigo para pagar outro empréstimo, o pai olhou para meu amigo com a expressão mais triste que eu jamais vira. Ele mesmo estava passando por dificuldades financeiras terríveis.

Colocando o braço ao redor dos ombros do filho, ele disse, “Eu não posso te ajudar desta vez, meu rapaz. Agora você deverá ter medo, pois o Rodrigo Senior não está mais aqui.”

Eu desesperadamente queria identificar-me com meu amigo, sentir seu drama como sempre acontecia, mas não consegui. Eu apenas focalizei-me no que dissera seu pai. A sua afirmação pareceu-me tão definitiva que galvanizou minha atenção.

Busquei então, avidamente, pela companhia de don Juan. Deixei tudo pendente em LA e me mandei para Sonora. Disse-lhe sobre o estranho estado de espírito que apareceu em mim com respeito aos meus amigos. Soluçando de remorso, disse que começara a julgá-los.

“Não fique estressado com bobagens,” disse don Juan calmamente. “Você já sabe que toda uma era de sua vida está terminando, mas ela não termina realmente antes da morte do rei.”

“O que você quer dizer com isso, don Juan?”

“Você é o rei e é exatamente como seus amigos. E essa verdade faz você tremer dos pés à cabeça. Uma coisa que você pode fazer é aceitar o valor aparente disso, o que, é claro, você não pode fazer. A outra coisa que você pode fazer é dizer, ‘não sou assim, não sou assim,’ e repetir para você mesmo que você não é assim. Eu garanto para você, entretanto, que chegará um momento em que você irá perceber que é assim.”

 

                  O Encontro Inevitável

Havia algo que me atormentava continuadamente por trás de minha mente: tinha que responder a uma carta muito importante que recebera, e tinha que fazê-lo a qualquer custo. O que me impedia era uma mistura de indolência e um profundo desejo de ser agradável. O meu amigo antropólogo responsável por meu encontro com don Juan havia-me escrito uma carta há uns dois meses atrás. Queria saber como iam meus estudos de antropologia, e insistia para que eu fosse visitá-lo. Escrevi três cartas em resposta. Ao reler cada uma delas, achei-as tão banais e subservientes que rasguei todas elas. Não conseguia exprimir numa carta minha profunda gratidão, meus profundos sentimentos por ele. Minha demora em responder, raciocinava, era devido à decisão genuína de ir visitá-lo e dizer pessoalmente o que estava fazendo com don Juan Matus, mas adiava uma vez atrás da outra minha viagem iminente por não ter certeza do que estava fazendo com don Juan. Queria poder algum dia mostrar resultados palpáveis ao meu amigo. Do jeito que estava, eu tinha apenas esquemas de possibilidades, os quais, ao seus olhos exigentes, não eram trabalhos antropológicos de campo de maneira nenhuma.

Um dia descobri que ele havia morrido. Sua morte me trouxe uma dessas perigosas depressões silenciosas. Eu não tinha como exprimir o que estava sentindo pois não conseguia formular inteiramente em minha mente o que sentia. Era uma mistura de melancolia, depressão e abominação para comigo mesmo por não ter respondido a carta, por não ter ido visitá-lo.

Fui visitar don Juan logo depois disso. Ao chegar em sua casa, sentei-me em um dos engradados do caramanchão e tentei buscar as palavras que não soassem como banalidades para contar a ele meu sentimento de depressão com respeito à morte do amigo. Por razões incompreensíveis para mim, don Juan sabia qual era a origem de minha tormenta e a razão óbvia de minha visita.

“Sim”, disse don Juan secamente, “eu sei que seu amigo, o antropólogo que guiou você para que se encontrasse comigo, morreu”.

Sua afirmação sacudiu-me dos pés à cabeça.

“Vi sua morte aproximando-se há muito tempo atrás. Eu até mesmo falei com você a respeito dela, mas você não deu atenção. Tenho certeza de que você nem mesmo lembra-se disso”.

Eu lembrava de cada palavra que ele dissera, mas elas não fizeram nenhum sentido para mim quando ele as pronunciou. Don Juan afirmara que um evento profundamente relacionado com o nosso encontro, mas que não fazia parte dele, foi o fato dele ter visto o meu amigo antropólogo como um homem que estava morrendo.

“Vi a morte como uma força externa que já estava abrindo seu amigo”, dissera-me ele. “Cada um de nós tem uma fissura energética, uma brecha energética abaixo do umbigo. Essa brecha, que os feiticeiros chamam de fenda, está fechada quando estamos na flor da idade”.

Ele disse que, normalmente, tudo o que é discernível aos olhos de um feiticeiro é um local levemente descorado no brilho então esbranquiçado da esfera luminosa. Mas quando o homem está morrendo, a fenda torna-se algo bastante aparente. Ele garantiu-me que a fenda de meu amigo estava bastante aberta.

“Qual é o significado de tudo isso, don Juan”, perguntei perfunctoriamente.

“O significado é algo bastante letal”, replicou ele. “O espírito estava mostrando para mim que algo estava chegando ao seu final. Eu pensei que fosse minha vida que estivesse terminado, e aceitei o fato tão elegantemente quanto pude. Só percebi muito, muito mais tarde que não era a minha vida que estava chegando ao fim mas sim minha inteira linhagem.”

Eu não entendia nada do que ele estava falando. Mas como poderia eu levar a sério tudo aquilo que ele dizia? No que me dizia respeito, aquilo era, naquela época em que ele falou, como tudo o mais em minha vida: apenas palavras.

“Seu próprio amigo disse-lhe, não com tantas palavras, que estava morrendo”, disse don Juan, “Você percebeu o que ele estava dizendo do mesmo modo como percebeu o que eu disse, mas preferiu, nos dois casos, ignorar o que estava sendo dito”.

Não tive nenhum comentário para fazer. Fiquei acabrunhado pelo que ele disse. Queria enfiar minha cabeça no caixote onde estava sentado, desaparecer, ser tragado pela terra.

“Não é por culpa sua que você ignora coisas como essa”, continuou ele, “É a sua mocidade. Você tem muitas coisas para fazer, muita gente ao seu redor. Você não fica permanentemente alerta. De qualquer modo, você nunca aprendeu como ficar alerta.”

Com o intuito de defender o último baluarte de mim mesmo, ou seja, a idéia que eu era observador, eu destaquei tal fato para don Juan no caso de situações de vida ou de morte que requeriam minha presença de espírito e vigilância. Não tratava-se do fato de que me faltava a capacidade de estar alerta, mas o que me faltava era a orientação que me permitisse fixar apropriadamente uma lista de prioridades; desse modo, nada era importante ou sem importância para mim.

“Estar alerta não é a mesma coisa que ser observador,” disse don Juan. “Para os feiticeiros, estar alerta significa perceber a textura do mundo do dia-a-dia que parece irrelevante na interação do momento. Na viagem que você fez com seu amigo antes de encontrar-me, você percebeu apenas os detalhes que eram óbvios. Você não percebeu como sua morte estava absorvendo-o, mas ainda assim, algo em você sabia disso”.

Comecei a protestar, dizendo-lhe que aquilo não era verdade.

“Não esconda-se atrás de banalidades,” disse ele num tom de acusação. “Fique de pé. Ainda que apenas pelo momento em que você esteja comigo, assuma a responsabilidade por aquilo que você sabe. Não se perca na textura irrelevante do mundo ao seu redor, irrelevante com relação ao que está acontecendo. Se você não estivesse tão interessado em você mesmo e em seus problemas, você teria percebido que aquela era a última viagem de seu amigo. Teria notado que ele estava fechando suas contas, visitando pessoas que lhe haviam ajudado, despedindo-se delas.

“Seu amigo antropólogo falou comigo certa vez,” continuou don Juan, “Lembrava-me dele tão claramente que não fiquei nem um pouco surpreso quando ele trouxe você para encontrar-me naquele terminal de ônibus. Eu não pude ajudá-lo quando falou comigo. Ele não era o homem que eu procurava, mas eu desejei-lhe o bem a partir do meu vazio de feiticeiro, a partir do meu silêncio de feiticeiro. Por essa razão, sei que em sua última viagem, ele estava agradecendo as pessoas que se destacaram em sua vida.”

Admiti para don Juan que ele tinha toda razão, que aconteceram várias coisas que eu tinha percebido, mas nada significaram para mim no momento, tais como, por exemplo, o êxtase de meu amigo ao apreciar a paisagem ao nosso redor. Ele parava o carro apenas para ficar olhando, durante horas a fio, as montanhas distantes, ou o leito de um rio, ou o deserto. Fiz pouco caso daquilo, achando tratar-se de sentimentalismo idiota de um homem de meia idade. Cheguei até mesmo a dar algumas dicas para ele no sentido de que, talvez, ele estivesse bebendo muito. Ele então disse-me que em situações tristes a bebida proporciona um pouco de paz e isolamento, um momento suficientemente longo para saborear-se algo que nunca mais se repetiria.

“Aquela viagem foi, de fato, apenas para os olhos do seu amigo”, disse don Juan. “Os feiticeiros fazem viagens semelhantes e nelas nada conta exceto o que seus olhos podem absorver. Seu amigo estava descarregando de si mesmo tudo o que era supérfluo”.

Confessei a don Juan que eu tinha desconsiderado o que ele dissera a respeito da morte do meu amigo porque, em um nível desconhecido, eu sabia que aquilo era verdade.

“Os feiticeiros nunca dizem coisas supérfluas”, disse ele. “Tenho o maior cuidado ao dizer coisas para você como também para qualquer outra pessoa. A diferença entre mim e você é que eu não tenho nenhum tempo disponível e ajo de acordo com isso. Você, por outro lado, acredita que tem todo o tempo do mundo, e age de acordo com isso. O resultado final de nossos comportamentos individuais é que eu meço tudo o que faço ou digo e você não”.

Concordei que ele estava certo, mas assegurei-lhe que o que quer que ele estivesse dizendo para mim, não aliviava a minha angústia, ou minha tristeza. Botei para fora então, descontroladamente, cada nuança de meus sentimentos confusos. Disse-lhe que não estava pedindo seu conselho. Queria que ele me desse uma receita de feitiçaria para acabar com minha angústia. Acreditava que estivesse realmente interessado em receber dele uma espécie de relaxante natural, um Valium orgânico, e disse isso para ele. Don Juan balançou a cabeça como se não acreditasse no que ouvira.

“Você é o máximo”, disse ele. “Já, já vai querer que eu dê para você um remédio feiticeiro para remover tudo o que estiver chateando-lhe, sem que você tenha que fazer nenhum esforço – apenas o esforço de engolir o que receber. Quanto mais amargo, melhor o resultado. Esse é o seu lema de homem ocidental. Você quer resultados – uma poção e você está curado.

“Os feiticeiros vêem as coisas de modo diferente”, continuou don Juan. “Uma vez que eles nunca dispõem de tempo, eles se dão totalmente ao que se encontra à sua frente. Sua tormenta é o resultado de sua falta de sobriedade. Você não teve a sobriedade necessária para agradecer seu amigo devidamente. Isso acontece a cada um de nós. Nós nunca exprimimos o que sentimos, e quando queremos fazê-lo já é muito tarde, porque ficamos sem tempo. Não foi só seu amigo que ficou sem tempo. Você, também, ficou sem tempo. Você deveria ter agradecido-lhe profusamente no Arizona. Ele teve o trabalho de rodar com você, e entenda ou não, naquele terminal de ônibus, ele deu para você o melhor presente de sua vida. Mas no momento em que você deveria agradecê-lo, você ficou com raiva dele – você começou a julgá-lo, ficou chateado com ele, ou o que seja. E depois você adiou sua visita a ele. O que na verdade você adiou foi apresentar seus agradecimentos a ele. Agora você tem um fantasma preso em seu rabo. Você nunca terá como pagar o que lhe deve.”

Entendi a imensidade do que ele estava dizendo. Eu nunca havia examinado minhas ações sob tal luz. De fato, eu nunca agradeci a ninguém, jamais. Don Juan aprofundou ainda mais sua punhalada.

“Seu amigo sabia que estava morrendo”, disse ele. “Ele mandou para você uma última carta para descobrir o que você andava fazendo. Talvez sem que soubesse, ou que você soubesse, você tenha sido seu último pensamento”.

O peso das palavras de don Juan foi muito alto para meus ombros. Desmoronei. Senti que deveria jogar-me no chão. Minha cabeça girava. Talvez fosse o por do sol. Cometi o terrível engano de chegar na casa de don Juan quase à noitinha. O por do sol era de um dourado estonteante, e os reflexos nas montanhas nuas a leste da casa de don Juan eram dourados e de cor púrpura. O céu não tinha nem mesmo uma pitada de nuvem. Nada parecia mover-se. Era como se o mundo inteiro estivesse escondido, mas sua presença era devastadora. A quietude do deserto de Sonora era como uma adaga. Ela penetrou fundo até meus ossos. Eu queria sair, pegar meu carro e sumir. Queria estar na cidade, perdido em meio ao seu barulho.

“Você está sentindo o gosto do infinito”, disse don Juan com grave determinação. “Eu sei disso, por que já passei pela mesma situação. Você quer fugir, mergulhar em algo humano, quente, contraditório, estúpido, o que importa? Você quer esquecer a morte de seu amigo. Mas o infinito não deixa”. Sua voz tornou-se mais suave. “Ele agarrou-lhe com suas garras impiedosas”.

“O que posso eu fazer agora, don Juan?” Perguntei.

“A única coisa que você pode fazer”, disse don Juan, “é manter fresca a memória de seu amigo, mantê-la viva para o resto de sua vida ou talvez mais além. Os feiticeiros exprimem, dessa maneira, os agradecimentos que eles não mais possam verbalizar. Você pode pensar que isso é besteira, mas isso é que os feiticeiros consideram o melhor que podem fazer”.

Foi minha própria tristeza, sem dúvida, que me fez pensar que o sempre entusiasmado don Juan estava tão triste quanto eu mesmo. Descartei tal pensamento imediatamente. Aquilo não era possível.

“A tristeza, para os feiticeiros, não é algo pessoal”, disse don Juan, irrompendo de novo em meus pensamentos. “Não é propriamente tristeza. É uma onda de energia que vem das profundezas do cosmos, e atinge os feiticeiros quando eles estão receptivos, quando eles são como rádios, capazes de captar as ondas de rádio.

“Os feiticeiros dos velhos tempos, aqueles que nos deram o plano geral da feitiçaria, acreditavam que a tristeza que existe no universo é como uma força, como uma condição, como uma luz, como o intento, e que essa força perene age especialmente sobre os feiticeiros porque eles não mais possuem escudos protetores, defensivos. Eles não são capazes de se esconderem atrás de seus amigos, de seus estudos. Eles não podem se esconder atrás do amor, ou do ódio, ou da felicidade, ou da miséria. Eles não podem se esconder atrás de nada.

“A condição dos feiticeiros”, continuou don Juan, “é que a tristeza, para eles, é abstrata. Ela não é fruto da cobiça ou da falta de alguma coisa, ou fruto da auto importância. Não é fruto do mim. Ela vem do infinito. A tristeza que você sente por não ter agradecido seu amigo já está pendendo para essa direção.

“Meu professor, o nagual Julian,” continuou ele, “era um ator fabuloso. Ele realmente trabalhou profissionalmente no teatro. Ele tinha uma história favorita que contava em suas apresentações teatrais. Ele usava colocar-me em situações de terrível angústia com ela. Dizia que aquela era uma história para os guerreiros que possuíam tudo e ainda assim sentiam a agulhada da tristeza universal. Eu sempre pensava que ele estivesse contando aquilo para mim, pessoalmente.

Don Juan então parafraseou seu professor, dizendo-me que a história referia-se a um homem que sofria uma profunda melancolia. Ele consultou os melhores médicos de sua época e cada um deles fracassou em tentar ajudá-lo. Ele finalmente foi ao consultório de um médico eminente, um curador de almas. O médico sugeriu que seu paciente talvez pudesse encontrar um consolo, e o fim de sua melancolia, no amor. O homem respondeu que o amor não era problema para ele, e que ele talvez fosse a pessoa mais amada em todo o mundo. A sugestão seguinte do médico foi que ele, talvez, devesse viajar para conhecer outras partes do mundo. O homem respondeu que, sem exagero nenhum, esteve em todos os lugares do mundo. O médico recomendou ‘hobbies’ como artes, esportes, etc. O homem respondeu cada sugestão do médico com as mesmas palavras: tinha feito tudo aquilo e não encontrara alívio. O médico suspeitou que o homem talvez fosse um mentiroso incurável. Ele não poderia ter feito todas aquelas coisas, como afirmava. Mas sendo um bom curador, o médico teve um insight final.

“Ah!” Exclamou ele. “Tenho a solução perfeita para você, senhor. Você deve assistir ao espetáculo do maior comediante da atualidade. Ele irá deliciar você de tal maneira que você irá esquecer cada pedacinho de sua melancolia. Você deve assistir ao espetáculo de ‘O Grande Garrick!’”

Don Juan disse que o homem olhou para o médico com a expressão mais triste que possa ser imaginada, e disse, “Doutor, se essa é a sua recomendação, eu estou perdido. Não tenho cura. Eu sou ‘O Grande Garrick.’”

 

                   O Ponto Crítico

Don Juan definiu o silêncio interior como um estado particular de ser onde os pensamentos são eliminados e a pessoa então age a partir de um nível diferente daquele da percepção do dia-a-dia. Ele enfatizou que o silêncio interior significa o cancelamento do diálogo interno – o companheiro perene dos pensamentos – e que desse modo era um estado de profunda quietude.

Os feiticeiros antigos, “disse don Juan”, chamavam de silêncio interior a esse estado porque é um estado onde a percepção não depende dos sentidos. O que funciona durante o silêncio interior é uma outra faculdade que o homem possui, a faculdade que faz dele um ser mágico, a mesma faculdade que foi suprimida, não pelo próprio homem, mas por uma espécie de influência externa.”

“Que influência externa é essa que suprimiu a faculdade mágica do homem?” perguntei.

“Esse é um tópico para futura explanação,” replicou don Juan, “não está sendo objeto de nossa presente discussão, embora ele seja na verdade o aspecto mais sério da feitiçaria dos xamãs do México antigo.

“O silêncio interior”, continuou ele, “é a plataforma da qual tudo o mais é projetado pela feitiçaria. Em outras palavras, tudo o que fazemos nos conduz a essa plataforma, que, como tudo o mais no mundo dos feiticeiros, não revela a si mesmo a menos que algo gigantesco nos sacuda”.

Don Juan disse que os feiticeiros do México antigo arquitetaram um sem número de caminhos para sacudi-los, a si mesmos ou a outros praticantes de feitiçaria, dos pés à cabeça com a finalidade de conduzi-los ao cobiçado estado de silêncio interior. Consideravam que os atos mais disparatados, que pareciam não ter nada a ver com a busca do silêncio interior, tais como, por exemplo, pular de cachoeiras ou passar a noite dependurado de cabeça para baixo do ramo mais alto de uma árvore, eram pontos chave que despertavam-no.

Seguindo as bases racionais dos feiticeiros do México antigo, don Juan afirmava categoricamente que o silêncio interior era algo acumulável, algo que pode ser desenvolvido aos poucos. No meu caso, ele esforçou-se para guiar-me no sentido de construir um núcleo de silêncio interior em mim mesmo, e depois adicionar a ele, minuto a minuto, novas porções pela prática em cada momento oportuno. Ele explicou que os feiticeiros do México antigo descobriram que cada indivíduo tem um limiar diferente de silêncio interior em termos de tempo, isso significando que o silêncio interior deve ser mantido por cada um de nós por um período de tempo correspondente ao seu limiar particular antes que possa funcionar.

“Qual é o sinal que indica que o silêncio interior esteja funcionando, don Juan?” Perguntei.

“O silêncio interior começa a funcionar a partir do momento em que começa a ser acumulado”, replicou ele. “O que os antigos feiticeiros buscavam era o resultado final, dramático, definitivo de se atingir o limiar individual do silêncio. Alguns praticantes muito talentosos necessitam apenas de alguns minutos de silêncio para atingir o cobiçado gol. Outros, menos talentosos, necessitam de longos períodos de silêncio, talvez mais de uma hora de quietude completa, antes de atingir o fim desejado. O resultado desejado é o que os feiticeiros chamam de parar o mundo, momento em que tudo ao nosso redor deixa de ser o que sempre foi.

“Esse é o momento em que os feiticeiros retornam à verdadeira natureza do homem,” continuou don Juan. “Os feiticeiros também chamavam-no de liberdade total. Ele é o momento em que o homem escravo transforma-se no homem livre, capaz de feitos de percepção que desafiam nossa imaginação linear.”

Don Juan assegurou-me que o silêncio interior é a avenida que conduz à verdadeira suspensão do julgamento – a um momento em que os dados sensoriais emanados do universo ao largo cessam de ser interpretados pelos nossos sentidos; um momento em que a cognição cessa de ser a força com a qual, através do uso e repetição, é tecida a natureza do mundo.

“Os feiticeiros necessitam de um ponto crítico para ajustar o funcionamento do silêncio interior”, disse don Juan. “O ponto crítico é como a massa que o pedreiro coloca entre os tijolos. Só quando a massa seca é que os tijolos soltos transformam-se numa estrutura”.

Desde o início de nossa associação, don Juan inculcou em mim o valor, a necessidade do silêncio interior. Eu fiz o melhor possível para seguir suas sugestões para acumular o silêncio interior, segundo por segundo. Eu não tinha nem modo de medir o efeito dessa acumulação e nem tive nenhum meio de julgar se atingi ou não qualquer limiar. Eu apenas aspirava evasivamente acumular o silêncio interior, não apenas para satisfazer don Juan, mas porque o ato de o acumular tornou-se um desafio em si mesmo.

Um dia, eu e don Juan passeávamos despreocupadamente pela praça principal de Hermossilo. Era no início de uma tarde de um dia nublado. O ar estava quente e seco e realmente muito agradável. Havia grande número de pessoas passeando pelo local. A praça possuía lojas ao seu redor. Eu havia estado em Hermossilo muitas vezes, e mesmo assim nunca notara a existências das lojas. Sabia que elas ali estavam, mas a sua presença não era algo que eu conscientemente percebia. Eu não teria condições de desenhar um mapa da praça mesmo se minha vida dependesse disso. Naquele dia, enquanto andava com don Juan, tentava localizar e identificar as lojas. Procurava alguma coisa para usar como artifício mnemônico que iria ativar minha lembrança no caso de necessidade futura.

“Como já disse para você muitas vezes anteriormente”, disse don Juan, sacudindo-me para fora de minha concentração, “cada feiticeiro que conheço, homem ou mulher, cedo ou tarde atinge um ponto crítico em sua vida”.

“Você quer dizer que eles sofrem um colapso mental, ou algo parecido?” Perguntei.

“Não, não”, disse ele, rindo. “Colapsos mentais ocorrem nas pessoas auto indulgentes. Os feiticeiros não são pessoas. O que eu quero dizer é que em dado momento a continuidade de suas vidas tem que ser quebrada para que o silêncio interior possa ser instalado, tornando-se uma parte ativa de suas estruturas.

“É importante, muito importante,” continuou don Juan, “que você mesmo atinja deliberadamente o ponto crítico, ou que você o crie artificial e inteligentemente.”

“O que você quer dizer com isso, don Juan?” perguntei, fisgado pelo seu raciocínio intrigante.

“Seu ponto crítico,” disse ele, “é interromper sua vida como você a conhece. Você fez tudo o que eu disse para você fazer, zelosa e acuradamente. Se você é talentoso, nunca o demonstrou. Esse parece ser o seu estilo. Você não é vagaroso, mas age como se fosse. Você é muito seguro de si mesmo, mas age como se fosse inseguro. Você não é tímido e mesmo assim age com se temesse as pessoas. Tudo o que você faz aponta para uma mesma direção: você necessita acabar com tudo isso, impiedosamente.”

“Mas de que modo, don Juan? O que você tem em mente?” perguntei, genuinamente agitado.

“Penso que tudo se resume numa coisa,” disse ele. “Você deve deixar seus amigos. Deve despedir-se deles, para sempre. Não é possível você continuar no caminho do guerreiro carregando sua história pessoal com você, e a menos que você interrompa seu modo de vida, não terei condições de continuar com a minha instrução.”

“E agora, don Juan?” disse eu. “Tenho que colocar os pés no chão. Você está pedindo um preço muito alto. Para ser franco, acho que não posso pagá-lo. Meus amigos são minha família, meu ponto de referência.

“Exatamente, exatamente”, afirmou ele. “Eles são o seu ponto de referência. Por isso, eles têm que sair de sua vida. Os feiticeiros têm apenas um ponto de referência: o infinito”.

“Mas como você quer que eu proceda, don Juan?” Perguntei com uma voz queixosa. Seu pedido estava fazendo-me subir pelas paredes.

“Você deve simplesmente sair”, disse ele tranqüilamente. “Saia de qualquer modo que conseguir”.

“Mas para aonde irei?” Perguntei.

“Minha recomendação é que você alugue um quarto num desses hotéis de terceira categoria que você conhece”, disse ele. “Quanto pior a aparência do mesmo, melhor. Se o quarto tiver tapetes verdes estragados, cortinas verdes estragadas, e paredes verdes estragadas, será então muitíssimo melhor – um lugar comparável àquele hotel que uma vez mostrei para você em LA”.

Ri nervosamente ao lembrar-me da ocasião em que estive dando uma volta de carro com don Juan no setor industrial de LA, onde havia apenas depósitos e hotéis dilapidados para as pessoas em trânsito. Um hotel em particular chamou a atenção de don Juan por causa de seu nome bombástico: Eduardo Sétimo. Paramos por um momento na rua para apreciá-lo.

“Aquele hotel lá”, disse don Juan, apontando para ele, “é para mim a representação verdadeira da vida na Terra para o homem comum. Se você tivesse sorte ou se fosse implacável, você alugaria um quarto com vista para a rua, onde você veria este desfile interminável da miséria humana. Se não tivesse tal sorte ou se não for tão implacável, você alugaria um quarto dos fundos, com vista para o prédio ao lado. Pense em passar a vida dividido entre essas duas vistas, tendo inveja da vista da rua se seu quarto for nos fundos, e com inveja da vista do prédio ao lado, se seu quarto for de frente, cansado de tanto olhar para fora.”

A metáfora de don Juan aborreceu-me imensuravelmente, pois calou fundo em mim.

Agora, com a perspectiva de ter que alugar um quarto num hotel comparável ao Eduardo Sétimo, eu não sabia o que dizer ou para aonde ir.

“O que você quer que faça lá, don Juan?” Perguntei.

“Um feiticeiro usa um lugar como esse para morrer”, disse ele, olhando para mim sem piscar uma só vez. “Você nunca esteve sozinho em sua vida. Agora está na hora. Você ficará naquele quarto até morrer”.

Sua exigência assustou-me, mas ao mesmo tempo, fez-me rir.

“Não é que eu vá fazer isso, don Juan”, disse eu, “mas qual seria o critério para saber que morri? – a menos que você queira que eu morra de fato, fisicamente.”

“Não,” disse ele, “não quero que seu corpo morra fisicamente. Quero que sua pessoa morra. Essas duas coisas são muito diferentes. Em essência, sua pessoa tem muito pouco a ver com seu corpo. Sua pessoa é sua mente, e acredite-me, a sua mente não é sua.”

“Que disparate é esse, don Juan, que minha mente não é minha?” ouvi a mim mesmo dizer com um acento nervoso em minha voz.

“Algum dia irei falar com você sobre isso”, disse ele, “mas não enquanto você tiver seus amigos como amortecedores.

“O critério que indica que um feiticeiro está morto,” continuou ele, “é o fato de não fazer nenhuma diferença para ele estar sozinho ou ter companhia. O dia em que você não cobiçar a companhia de seus amigos, que você usa com anteparos, esse será o dia em que sua pessoa morreu. O que você me diz? Você topa?”

“Eu não posso fazer isso, don Juan,” disse eu. “É inútil tentar mentir para você. Eu não posso deixar meus amigos”.

“Está tudo bem,” disse ele imperturbável. O que eu disse pareceu não ter lhe afetado nenhum pouco. “Eu não terei mais condições de conversar com você, mas podemos dizer que durante o tempo em que passamos juntos, você aprendeu bastante. Você aprendeu coisas que farão de você uma pessoa muito forte, independentemente de você voltar ou extraviar-se.”

Ele bateu em minhas costas e disse-me adeus. Deu meia volta e simplesmente desapareceu no meio das pessoas que estavam na praça, como se tivesse diluído-se entre elas. Por um instante eu tive a estranha sensação de que as pessoas na praça eram como uma cortina que ele tinha aberto e desaparecido depois atrás dela. O final chegou, como tudo no mundo de don Juan: rápida e imprevisivelmente. De repente, aquilo estava comigo, eu estava à sua mercê, sem que eu nem mesmo soubesse como aconteceu.

Eu deveria sentir-me esmagado. Isso, entretanto não ocorreu. Não sabia por que estava feliz da vida. Fiquei maravilhado com a facilidade como tudo terminou. Don Juan era certamente uma pessoa elegante. Não houve nenhuma recriminação, nem raiva, nem nada parecido, nada. Entrei no carro e comecei a dirigir, feliz como uma cotovia. Eu estava excitado. Como era extraordinário o modo como tudo terminara tão depressa, pensava eu, sem nenhum trauma, sem nenhuma dor.

Minha viagem de volta para casa foi tranqüila. Em LA, estando em meu ambiente familiar, percebi que absorvera uma enorme quantidade de energia em meu último encontro com don Juan. Estava realmente muito feliz, relaxado, e retomei o que considerava ser minha vida normal com sabor renovado. Toda a minha atribulação com meus amigos, e tudo o que percebera sobre eles, tudo o que dissera a don Juan a esse respeito, tudo, tudo estava definitivamente esquecido. Era como se alguma coisa tivesse apagado tudo de minha mente.

Fiquei maravilhado por duas vezes com a facilidade com que esquecera algo que fora tão significativo, e de como esse esquecimento fora tão completo.

Tudo estava como esperava. Havia apenas uma única inconsistência que perturbava o claro paradigma de minha volta à boa vida anterior: lembrava-me distintamente de ouvir don Juan dizer-me que minha partida do mundo dos feiticeiros era puramente acadêmica, e que eu voltaria. Eu lembrei-me de ter anotado cada uma das palavras de nossa conversa. De acordo com o meu modo linear de raciocinar e lembrar-me das coisas, don Juan nunca dissera tal coisa. Como seria possível que eu me lembrasse de coisas que nunca aconteceram? Eu ponderei sobre aquilo sem conseguir esclarecer nada. Minha pseudo lembrança era bastante estranha para que eu pudesse levá-la a sério, mas então decidi que não mais iria pensar no assunto. No que me dizia respeito, estava fora do ambiente de don Juan.

Seguindo as sugestões de don Juan com relação ao meu comportamento 1para com as pessoas que de algum modo me favoreceram, eu cheguei a uma conclusão que para mim era tremenda: honrar e agradecer meus amigos antes que fosse tarde demais. Um caso específico era o meu amigo Rodrigo Cummings. Um incidente envolvendo meu amigo Rodrigo, entretanto, desmoronou meu novo paradigma do que resultou outros desmoronamentos até a destruição total.

Minha atitude para com ele mudou-se radicalmente quando eu consegui vencer minha competitividade para com ele. Descobri que era a coisa mais fácil do mundo para mim projetar-me cem por cento em qualquer coisa que Rodrigo fizesse. Eu era, de fato, exatamente igual a ele, mas só descobri isso depois que parei de competir com ele. A verdade então emergiu para mim com uma clareza enlouquecedora. Um dos desejos mais ardentes de Rodrigo era terminar o colégio. Cada semestre, ele matriculava-se no maior número permitido de matérias. Depois, quando o semestre avançava, ele desistia de cada uma das matérias, uma atrás da outra. Em algumas vezes ele até mesmo saía da escola. Em outras vezes, ele fazia um curso de três matérias durante todo o semestre até o final amargo.

Durante seu último semestre, ele fazia um curso de sociologia porque gostava da matéria. O exame final aproximava-se. Ele me disse que tinha três semanas para estudar, para ler o livro texto do curso. Ele pensava que tal quantidade de tempo era um desperdício para ler apenas seiscentas páginas do livro. Considerava-se uma espécie de leitor-relâmpago, e que retinha o que lia em um nível muito alto; em sua opinião, sua memória era cem por cento fotográfica.

Ele pensava que tinha muito tempo para o exame e por isso pediu-me para ajudá-lo no recondicionamento do seu carro no sentido de facilitar jogar papel fora. Queria remover a porta direita para poder jogar o papel pela abertura com a mão direita, em lugar de jogar o papel sobre a capota do carro, com a esquerda. Chamei sua atenção para o fato de que era canhoto e ele então argumentou que, entre suas múltiplas habilidades, uma delas era ser ambidestro, fato que nenhum de seus amigos notara. Tinha razão nessa parte; eu mesmo nunca notara isso. Depois que lhe ajudei a remover a porta, ele decidiu remover também o forro do teto, que estava muito estragado. Ele disse que seu carro estava em ótimas condições na parte mecânica e que iria levá-lo a Tijuana, no México, cidade que ele, como bom angelino que era, chamava de TJ, e onde trocaria o forro por alguns poucos dólares.

“Poderíamos aproveitar a viagem,” disse ele alegremente. Chegou até mesmo a escolher os amigos que iriam com ele. “Em TJ, estou certo de que você irá procurar livros usados, porque é um bobo. O restante da turma irá para algum bordel. Eu conheço uma porção deles”.

Gastamos uma semana para tirar o forro velho e lixar o teto para receber o novo. Rodrigo então ficou com apenas duas semanas para estudar e ainda considerava esse tempo muito longo. Ele então engajou-me em ajudá-lo a pintar seu apartamento e consertar o assoalho. Levamos uma semana para pintar o apartamento e lixar o assoalho de madeira. Em um dos quartos, ele não quis pintar sobre o papel de parede que já existia. Teria que alugar uma máquina que removia o papel pela aplicação de vapor d’água. Nem eu e nem Rodrigo, naturalmente, sabia como usar devidamente a máquina, e por isso fizemos o serviço mais porco do mundo. No final, tivemos que usar um produto chamado “Topping”, uma mistura muito fina de gesso e outros produtos, que deixava a parede bastante lisa.

Depois de todo esse esforço, acabou que Rodrigo só ficou com dois dias para enfiar na cabeça as 600 páginas do livro. Ele entrou freneticamente numa maratona de leitura durante o dia e a noite, com a ajuda de anfetaminas. Rodrigo foi para a escola no dia do exame, sentou-se em sua carteira, e pegou a folha de múltipla escolha.

O que ele não conseguiu fazer foi ficar acordado para preencher a folha do exame. Seu corpo pendeu para a frente e sua cabeça bateu na carteira com um terrível baque. O exame teve que ser suspenso por um momento. O professor de sociologia ficou histérico, e o mesmo aconteceu com os alunos que estavam nas proximidades de Rodrigo. Seu corpo estava rígido e frio como gelo. A classe inteira suspeitou do pior; pensaram que ele morrera de um ataque do coração. Foram chamados paramédicos para removê-lo. Depois de um rápido exame, eles declararam que Rodrigo dormia profundamente e levaram-no para um hospital para que dormisse até passar o efeito da anfetamina.

Minha projeção em Rodrigo Cummings era tão completa que me assustou. Eu era exatamente como ele. A similitude tornou-se insustentável para mim. Num ato que considerei um aniquilamento total e suicida, aluguei um quarto num hotel dilapidado de Hollywood.

O carpete era verde e tinha manchas horríveis de cigarros queimados, que foram naturalmente esmagados com os pés antes que o carpete pegasse fogo. O quarto tinha cortinas verdes e paredes verdes em mal estado de conservação. O sinal luminoso do nome do hotel, que podia ser visto pela janela, piscava durante toda a noite.

Acabei por fazer o que don Juan recomendara, mas de maneira indireta. Eu não fiz o que fiz para atender qualquer exigência de don Juan ou com a intenção de aplainar as nossas arestas. Permaneci no hotel por meses sem fim, até que minha pessoa, como propusera don Juan, morresse, até que verdadeiramente não fizesse nenhuma diferença para mim estar só ou com amigos.

Depois de deixar o hotel, fui morar sozinho, mais perto da escola. Continuei meus estudos de antropologia, que nunca interrompera, e iniciei um negócio muito lucrativo tendo uma mulher como sócia. Tudo parecia estar perfeitamente em ordem até o dia em que fui atingido por uma percepção que pareceu como um tijolo jogado em minha cabeça: percebi que iria passar o resto de minha vida preocupando-me com meu negócio, ou preocupado com o fantasma da escolha entre ser acadêmico ou um negociante, ou preocupando-me com as fobias e embromações de minha sócia. Um verdadeiro desespero perfurava-me nas profundezas de meu ser. Pela primeira vez em minha vida, a despeito de todas as coisas que tinha feito e visto, sentia-me num beco sem saída. Estava completamente perdido. Comecei seriamente a brincar com a idéia do modo mais pragmático e indolor de dar cabo de minha vida.

Certa manhã uma batida alta e insistente acordou-me. Pensei que fosse a senhoria, e estava certo de que se não respondesse, ela teria entrado com sua chave mestra. Abri a porta, e ali estava don Juan! A minha surpresa foi tanta que fiquei tonto. Eu balbuciei e gaguejei, incapaz de dizer uma só palavra. Queria beijar sua mão, ajoelhar-me aos seus pés. Don Juan entrou e sentou-se na beira da cama tranqüilamente.

“Fiz a viagem a LA”, disse ele, “só para te ver”.

Queria que ele tomasse café comigo, mas ele disse que tinha outras coisas para fazer, e que dispunha apenas de alguns momentos para conversar comigo. Eu contei para ele, apressadamente, a minha experiência no hotel. Sua presença causou-me tanta confusão que eu nem lembrei-me de perguntar-lhe como descobriu o meu endereço.

Disse para ele que sentia um remorso intenso por ter dito as palavras que disse em Hermosillo.

“Você não tem que se desculpar”, garantiu-me ele. “Cada um de nós faria a mesma coisa. Certa vez, eu mesmo deixei o mundo dos feiticeiros numa carreira desabalada, e quase que tive que morrer para perceber a estupidez do meu ato. O que importa é atingir o ponto crítico, do modo que for, e isso foi exatamente o que você fez. O silêncio interior está tornando-se real para você. Essa é a razão pela qual estou aqui na sua frente, falando com você. Entende o que quero dizer?”

Pensei ter entendido o que ele disse. Pensei que ele tivesse intuído ou lido, pelo modo com que ele lia as coisas no ar, que eu estava no fundo do poço e que ele tinha vindo para me resgatar.

“Você não tem nenhum tempo a perder”, disse-me ele. “Deve dissolver a sua firma comercial dentro de uma hora, porque esse é o tempo de que disponho para esperar por você – não porque eu não possa esperar mais, mas porque o infinito está pressionando-me impiedosamente. Digamos que o infinito está dando uma hora para você anular a si mesmo. Para o infinito a única empreitada de um guerreiro que vale a pena é a liberdade. Qualquer outra é fraudulenta. Você pode dissolver tudo em uma hora?”

Não tive que assegurar-lhe que conseguiria. Sabia que tinha que conseguir. Don Juan disse-me então que uma vez realizada a tarefa, deveria encontrar-me com ele no mercado de uma certa cidade do México. Em meu esforço de pensar como terminar meu negócio, não entendi direito o que ele falou. Ele repetiu o que dissera e, é claro, pensei que estivesse brincando.

“Como irei até essa cidade, don Juan? Você quer que eu vá de carro, que tome um avião?” Perguntei.

“Dissolva o seu negócio primeiro”, ordenou ele, “e então a solução virá. Mas lembre-se, estarei esperando por você por apenas uma hora”.

Ele saiu do apartamento, e eu esforcei-me febrilmente para dissolver tudo o que tinha. Naturalmente, gastei mais de uma hora, mas não parei para pensar nisso porque uma vez iniciada a dissolução dos meus negócios, o seu momentum levou-me de roldão. Foi somente depois de tudo terminado que o dilema real surgiu na minha frente. Senti então que falhara e que não havia nenhuma esperança para mim. Encontrava-me sem meus negócios e sem nenhuma possibilidade de ir ao encontro de don Juan.

Gastamos uma semana para tirar o forro velho e lixar o teto para receber o novo. Rodrigo então ficou com apenas duas semanas para estudar e ainda considerava esse tempo muito longo. Ele então engajou-me em ajudá-lo a pintar seu apartamento e consertar o assoalho. Levamos uma semana para pintar o apartamento e lixar o assoalho de madeira. Em um dos quartos, ele não quis pintar sobre o papel de parede que já existia. Teria que alugar uma máquina que removia o papel pela aplicação de vapor d’água. Nem eu e nem Rodrigo, naturalmente, sabia como usar devidamente a máquina, e por isso fizemos o serviço mais porco do mundo. No final, tivemos que usar um produto chamado “Topping”, uma mistura muito fina de gesso e outros produtos, que deixava a parede bastante lisa.

Depois de todo esse esforço, acabou que Rodrigo só ficou com dois dias para enfiar na cabeça as 600 páginas do livro. Ele entrou freneticamente numa maratona de leitura durante o dia e a noite, com a ajuda de anfetaminas. Rodrigo foi para a escola no dia do exame, sentou-se em sua carteira, e pegou a folha de múltipla escolha.

O que ele não conseguiu fazer foi ficar acordado para preencher a folha do exame. Seu corpo pendeu para a frente e sua cabeça bateu na carteira com um terrível baque. O exame teve que ser suspenso por um momento. O professor de sociologia ficou histérico, e o mesmo aconteceu com os alunos que estavam nas proximidades de Rodrigo. Seu corpo estava rígido e frio como gelo. A classe inteira suspeitou do pior; pensaram que ele morrera de um ataque do coração. Foram chamados paramédicos para removê-lo. Depois de um rápido exame, eles declararam que Rodrigo dormia profundamente e levaram-no para um hospital para que dormisse até passar o efeito da anfetamina.

Minha projeção em Rodrigo Cummings era tão completa que me assustou. Eu era exatamente como ele. A similitude tornou-se insustentável para mim. Num ato que considerei um aniquilamento total e suicida, aluguei um quarto num hotel dilapidado de Hollywood.

O carpete era verde e tinha manchas horríveis de cigarros queimados, que foram naturalmente esmagados com os pés antes que o carpete pegasse fogo. O quarto tinha cortinas verdes e paredes verdes em mal estado de conservação. O sinal luminoso do nome do hotel, que podia ser visto pela janela, piscava durante toda a noite.

Acabei por fazer o que don Juan recomendara, mas de maneira indireta. Eu não fiz o que fiz para atender qualquer exigência de don Juan ou com a intenção de aplainar as nossas arestas. Permaneci no hotel por meses sem fim, até que minha pessoa, como propusera don Juan, morresse, até que verdadeiramente não fizesse nenhuma diferença para mim estar só ou com amigos.

Depois de deixar o hotel, fui morar sozinho, mais perto da escola. Continuei meus estudos de antropologia, que nunca interrompera, e iniciei um negócio muito lucrativo tendo uma mulher como sócia. Tudo parecia estar perfeitamente em ordem até o dia em que fui atingido por uma percepção que pareceu como um tijolo jogado em minha cabeça: percebi que iria passar o resto de minha vida preocupando-me com meu negócio, ou preocupado com o fantasma da escolha entre ser acadêmico ou um negociante, ou preocupando-me com as fobias e embromações de minha sócia. Um verdadeiro desespero perfurava-me nas profundezas de meu ser. Pela primeira vez em minha vida, a despeito de todas as coisas que tinha feito e visto, sentia-me num beco sem saída. Estava completamente perdido. Comecei seriamente a brincar com a idéia do modo mais pragmático e indolor de dar cabo de minha vida.

Certa manhã uma batida alta e insistente acordou-me. Pensei que fosse a senhoria, e estava certo de que se não respondesse, ela teria entrado com sua chave mestra. Abri a porta, e ali estava don Juan! A minha surpresa foi tanta que fiquei tonto. Eu balbuciei e gaguejei, incapaz de dizer uma só palavra. Queria beijar sua mão, ajoelhar-me aos seus pés. Don Juan entrou e sentou-se na beira da cama tranqüilamente.

“Fiz a viagem a LA”, disse ele, “só para te ver”.

Queria que ele tomasse café comigo, mas ele disse que tinha outras coisas para fazer, e que dispunha apenas de alguns momentos para conversar comigo. Eu contei para ele, apressadamente, a minha experiência no hotel. Sua presença causou-me tanta confusão que eu nem lembrei-me de perguntar-lhe como descobriu o meu endereço. Disse para ele que sentia um remorso intenso por ter dito as palavras que disse em Hermosillo.

“Você não tem que se desculpar,” garantiu-me ele. “Cada um de nós faria a mesma coisa. Certa vez, eu mesmo deixei o mundo dos feiticeiros numa carreira desabalada, e quase que tive que morrer para perceber a estupidez do meu ato. O que importa é atingir o ponto crítico, do modo que for, e isso foi exatamente o que você fez. O silêncio interior está tornando-se real para você. Essa é a razão pela qual estou aqui na sua frente, falando com você. Entende o que quero dizer?”

Pensei ter entendido o que ele disse. Pensei que ele tivesse intuído ou lido, pelo modo com que ele lia as coisas no ar, que eu estava no fundo do poço e que ele tinha vindo para me resgatar.

“Você não tem nenhum tempo a perder”, disse-me ele. “Deve dissolver a sua firma comercial dentro de uma hora, porque esse é o tempo de que disponho para esperar por você – não porque eu não possa esperar mais, mas porque o infinito está pressionando-me impiedosamente. Digamos que o infinito está dando uma hora para você anular a si mesmo. Para o infinito a única empreitada de um guerreiro que vale a pena é a liberdade. Qualquer outra é fraudulenta. Você pode dissolver tudo em uma hora?”

Não tive que assegurar-lhe que conseguiria. Sabia que tinha que conseguir. Don Juan disse-me então que uma vez realizada a tarefa, deveria encontrar-me com ele no mercado de uma certa cidade do México. Em meu esforço de pensar como terminar meu negócio, não entendi direito o que ele falou. Ele repetiu o que dissera e, é claro, pensei que estivesse brincando.

“Como irei até essa cidade, don Juan? Você quer que eu vá de carro, que tome um avião?” Perguntei.

“Dissolva o seu negócio primeiro”, ordenou ele, “e então a solução virá. Mas lembre-se, estarei esperando por você por apenas uma hora”.

Ele saiu do apartamento, e eu esforcei-me febrilmente para dissolver tudo o que tinha. Naturalmente, gastei mais de uma hora, mas não parei para pensar nisso porque uma vez iniciada a dissolução dos meus negócios, o seu momentum levou-me de roldão. Foi somente depois de tudo terminado que o dilema real surgiu na minha frente. Senti então que falhara e que não havia nenhuma esperança para mim. Encontrava-me sem meus negócios e sem nenhuma possibilidade de ir ao encontro de don Juan.

Fui para a cama e busquei o único consolo que me veio à mente: quietude, silêncio. Para facilitar o aparecimento do silêncio interior, don Juan ensinara-me um modo de sentar-me na cama, com os joelhos dobrados e as solas dos pés juntas, as mãos empurrando os pés juntos, segurando-os pelos calcanhares. Ele dera-me uma grossa cavilha que eu sempre levava comigo para aonde fosse. Tinha cerca de 35 cm e destinava-se a suportar o peso de minha cabeça quando tombada para a frente; uma ponta ficava entre meus pés e a outra, que era almofadada, ficava no meio de minha testa. Todas as vezes que eu ficava em tal posição, caía no sono em questão de segundos.

Devo ter caído no sono com minha facilidade usual, pois sonhei que estava na cidade mexicana onde don Juan disse que me encontraria. Eu sempre ficava intrigado com essa cidade. O mercado só abria uma vez por semana, quando os fazendeiros da redondeza traziam seus produtos para serem vendidos. O que mais me fascinava nessa cidade era a estrada pavimentada que conduzia a ela. No ponto em a estrada chegava na cidade, a topografia possuía uma lombada forte. Eu sempre ficava sentado próximo de uma banca que vendia queijos e olhava para tal lombada. Via as pessoas que chegavam à cidade com seus jumentos carregados com as mercadorias, mas primeiro via apenas suas cabeças; quanto mais se aproximavam, maiores partes de seus corpos podiam ser vistas, até o momento em que atingiam a parte mais alta da lombada, quando então via todo o corpo delas. Eu tinha a impressão de que tais pessoas emergiam-se de dentro da terra, seja vagarosamente seja rapidamente, dependendo de sua velocidade. Em meu sonho, don Juan esperava por mim próximo da banca de queijo. Aproximei-me dele.

“Você conseguiu, a partir do seu silêncio interior”, disse-me ele, batendo em minhas costas. “Você atingiu seu ponto crítico. Por um momento comecei a perder a esperança. Mas dei umas voltinhas por aí, pois sabia que você iria conseguir”.

Fui para a cama e busquei o único consolo que me veio à mente: quietude, silêncio. Para facilitar o aparecimento do silêncio interior, don Juan ensinara-me um modo de sentar-me na cama, com os joelhos dobrados e as solas dos pés juntas, as mãos empurrando os pés juntos, segurando-os pelos calcanhares. Ele dera-me uma grossa cavilha que eu sempre levava comigo para aonde fosse. Tinha cerca de 35 cm e destinava-se a suportar o peso de minha cabeça quando tombada para a frente; uma ponta ficava entre meus pés e a outra, que era almofadada, ficava no meio de minha testa. Todas as vezes que eu ficava em tal posição, caía no sono em questão de segundos.

Devo ter caído no sono com minha facilidade usual, pois sonhei que estava na cidade mexicana onde don Juan disse que me encontraria. Eu sempre ficava intrigado com essa cidade. O mercado só abria uma vez por semana, quando os fazendeiros da redondeza traziam seus produtos para serem vendidos. O que mais me fascinava nessa cidade era a estrada pavimentada que conduzia a ela. No ponto em a estrada chegava na cidade, a topografia possuía uma lombada forte. Eu sempre ficava sentado próximo de uma banca que vendia queijos e olhava para tal lombada. Via as pessoas que chegavam à cidade com seus jumentos carregados com as mercadorias, mas primeiro via apenas suas cabeças; quanto mais se aproximavam, maiores partes de seus corpos podiam ser vistas, até o momento em que atingiam a parte mais alta da lombada, quando então via todo o corpo delas. Eu tinha a impressão de que tais pessoas emergiam-se de dentro da terra, seja vagarosamente seja rapidamente, dependendo de sua velocidade. Em meu sonho, don Juan esperava por mim próximo da banca de queijo. Aproximei-me dele.

“Você conseguiu, a partir do seu silêncio interior”, disse-me ele, batendo em minhas costas. “Você atingiu seu ponto crítico. Por um momento comecei a perder a esperança. Mas dei umas voltinhas por aí, pois sabia que você iria conseguir”.

Nesse sonho, nós fomos dar umas voltas. Eu estava mais feliz que nunca. O sonho era tão vívido, tão terrivelmente real, que me deixou convencido, sem nenhuma dúvida de que resolvera meu problema, ainda que a solução fosse apenas uma fantasia, um sonho.

Don Juan riu, balançando a cabeça. Ele, claramente, lera meus pensamentos. “Você não está meramente sonhando,” disse ele, “mas quem sou eu para dizer isso para você? Você, algum dia, irá saber disso por você mesmo – que não existe sonho a partir do silêncio interior – porque você irá escolher conhecer isso.”

 

                   As Medidas da Cognição

“O término de uma era”, para don Juan, significava uma descrição acurada de um processo que os xamãs submetem-se para o desmantelamento da estrutura do mundo que eles conhecem e substituí-la por outro modo de entendimento do mundo que os cerca. Don Juan Matus, como professor, esforçou-se desde o primeiro instante em que nos encontramos, para introduzir-me no mundo cognitivo dos xamãs do México antigo. O termo “cognição” representava para mim, naquela ocasião, algo tremendamente controverso. Eu entendia-o como um processo pelo qual reconhecemos o mundo à nossa volta. Certas coisas pertenciam ao domínio desse processo e são facilmente reconhecidas por nós. Outras não, e permanecem desse modo, como extravagâncias, coisas para as quais não possuímos compreensão adequada.

Don Juan afirmava, desde o começo de nossa associação, que o mundo dos feiticeiros do México antigo era diferente do nosso, não de um modo superficial, mas diferente pelo modo como o processo de cognição estava estruturado. Ele afirmava que em nosso mundo, nossa cognição requer a interpretação das informações captadas pelos sentidos, que ele chamava de dados sensoriais. Ele disse que o universo é composto por um número infinito de campos de energia que existem “lá fora” como filamentos luminosos. Tais filamentos luminosos atuam no homem como um organismo. O organismo, como resposta ao estímulos dos filamentos, transforma tais campos de energia em dados sensoriais. Tais dados sensoriais são então interpretados, e essa interpretação representa o nosso sistema de cognição. Meu entendimento do que é a cognição forçou-me a acreditar que ela é um processo universal, do mesmo modo que a linguagem.

Existe uma sintaxe diferente para cada linguagem, como deve haver uma ligeira diferença na estruturação de cada sistema de interpretação do mundo.

A afirmação de don Juan, entretanto, de que os xamãs do México antigo tinham um sistema de cognição diferente, representou, para mim, algo equivalente a dizer que eles tinham um modo diferente de comunicação que nada tinha a ver com a linguagem. O que eu desejava desesperadamente que ele dissesse era que seu sistema de cognição diferente era equivalente a um sistema diferente de linguagem, mas que era, apesar disso, uma espécie de linguagem. “O término de uma era” significava, para don Juan, que as unidades de uma cognição diferente da usual estavam começando a tomar conta de mim. As antigas unidades, não importava o quanto eram agradáveis e gratificantes para mim, começavam a desaparecer. Um momento grave na vida de um homem!

Talvez a unidade mais apreciada por mim fosse a minha vida acadêmica. Tudo que a ameaçava era uma ameaça ao próprio cerne do meu ser, especialmente se fosse um ataque velado, que não se notava. Isso aconteceu com um professor em que coloquei toda a minha confiança, Professor Lorca.

Envolvi-me no curso do Professor Lorca sobre cognição por causa de sua fama de ser um dos mais brilhantes acadêmicos vivos. Ele era muito elegante, e usava pentear cuidadosamente seus cabelos louros para o lado. Sua testa era lisa, sem rugas, dando a impressão de que ele era uma pessoa que nunca tivera uma única preocupação em sua vida. Suas roupas apresentavam um corte impecável. Não usava gravata, e essa característica dava-lhe uma expressão jovial. Ele apenas usava gravata quando ia tratar com pessoas importantes.

Em minha inesquecível primeira aula com o Professor Lorca, eu fiquei desnorteado e nervoso ao vê-lo andar de um lado para outro durante minutos que, para mim, estenderam-se até a eternidade. O Professor Lorca continuou movendo seus lábios finos e cerrados para baixo e para cima, adicionando imensas quantidades de tensão que estava gerando naquela sala abafada, de janelas fechadas. De repente, ele parou de andar. Ficou no meio da sala, a pouco mais de um metro do local onde eu estava sentado, e, batendo no estrado um jornal cuidadosamente enrolado, começou a falar.

“Nunca será conhecido...” começou ele.

Todos na sala começaram ao mesmo tempo, ansiosamente, a tomar nota.

“Nunca será conhecido”, repetiu ele, “o que um sapo sente enquanto sentado no fundo de um lago, interpretando o mundo dos sapos ao seu redor”. Sua voz possuía uma força e uma determinação tremendas. “Assim, o que vocês pensam que é isso?” Ele rodava o jornal sobre sua cabeça.

Continuou lendo para a classe um artigo do jornal no qual o trabalho de um biólogo era relatado. No jornal estavam transcritas as suas palavras referentes àquilo que os sapos sentem quando enxames de insetos nadam sobre suas cabeças.

“Esse artigo mostra a falta de cuidado de um repórter, que naturalmente confundiu as palavras do cientista”, afirmou com a autoridade de um professor completo. “Um cientista, não importa quão inferior possa ser seu trabalho, não permitiria nunca que os resultados de sua pesquisa fossem antropomorfizados, a menos, é claro, que seja um pateta”.

Depois dessa introdução, ele proferiu uma palestra brilhante sobre a qualidade ímpar de nosso sistema cognitivo e também do sistema cognitivo de qualquer organismo. Ele trouxe-me, com sua palestra inicial, uma enxurrada de novas idéias e transformou-as em algo extremamente simples, pronto para ser usado. A idéia mais original para mim foi a de que cada indivíduo de cada espécie existente na Terra interpreta o mundo à sua volta utilizando dados reportados por seus sentidos especializados. Ele afirmou que os seres humanos não podem nem mesmo imaginar o que seria, por exemplo, estar num mundo regulamentado pela ecolocalização, como no mundo dos morcegos, onde cada ponto inferido de referência não poderia nem mesmo ser concebido pela mente humana. Ele deixou bem claro que, sob esse ponto de vista, dois sistemas cognitivos entre as espécies, nunca poderiam ser semelhantes.

Assim que eu sai do auditório, depois de uma hora e meia de palestra, senti que estava profundamente impressionado pelo brilhantismo da mente do Professor Lorca. Daquela ocasião para a frente, eu era seu admirador convicto. Descobri que suas palestras eram não somente estimulantes, mas provocantes. As suas palestras eram as únicas que eu esperava ansiosamente. Suas excentricidades nada significavam para mim em comparação com a excelência de suas aulas e suas idéias inovadoras no ramo da psicologia.

Quando assisti pela primeira vez às aulas do Professor Lorca, eu já havia estado trabalhando com don Juan por quase dois anos. Era uma característica bem estabelecida em meu padrão de comportamento, acostumado como estava com as rotinas, contar para don Juan tudo o que acontecia comigo. Na primeira oportunidade que tive, relatei para ele o que estava ocorrendo com o Professor Lorca. Eu colocava-o nas alturas e contava para don Juan sem nenhum acanhamento que o Professor Lorca era para mim o modelo a ser seguido. Don Juan pareceu muito impressionado com a minha demonstração de genuína admiração, apesar de ter me dado um estranho aviso.

“Não admire as pessoas de longe”, disse ele. “Esse é o modo mais seguro de criarem-se seres mitológicos. Fique perto de seu professor, fale com ele, veja o que ele é como homem. Teste-o. Se o comportamento de seu professor for o resultado de sua convicção de que ele é um ser que vai morrer, então tudo o que ele fizer, não importa o quanto estranho seja, deve ser premeditado e definitivo. Se o que ele diz for simplesmente palavras, ele não vale um tostão furado”.

Senti-me insultado ao máximo pelo que considerei uma franqueza rude de don Juan. Pensei que ele estivesse com um pouquinho de ciúme pelos meus sentimentos a respeito do Professor Lorca. Logo que formulei tal pensamento em minha mente, senti-me aliviado; entendera tudo.

“Diga-me, don Juan,” disse eu para terminar a conversa de um modo diferente, “o que é na verdade um ser que vai morrer? Já ouvi várias vezes você referir-se a isso, mas na verdade você nunca definiu para mim o que seja.”

“Os seres humanos são seres que vão morrer,” disse ele. “Os feiticeiros afirmam com determinação que o único modo de ter um ponto de apoio em nosso mundo, e em tudo o que fazemos, é através da aceitação total de que somos seres que vão morrer. Sem essa aceitação básica, nossas vidas, nossas ações, e o mundo em que vivemos são coisas com as quais não podemos lidar adequadamente”.

“Mas é tão difícil assim a mera aceitação dessa premissa?” Perguntei quase protestando.

“Pode apostar sua vida!” disse don Juan sorridente. “Entretanto não é a mera aceitação que realiza o truque. Temos que corporificá-la e vivê-la ao longo de toda a nossa jornada. Os feiticeiros através dos tempos dizem que a visão de nossa morte é a coisa mais sóbria que existe. O que há de errado com os seres humanos, e isso acontece desde tempos imemoriais, é que, sem nunca atestar isso com muitas palavras, acreditamos que entramos no reino da imortalidade. Nós nos comportamos como se nunca fossemos morrer – o que é uma arrogância infantil. Mas o que é pior ainda que esse senso de imortalidade é aquilo que o acompanha: o sentimento de que podemos engolfar com nossa mente esse nosso universo inconcebível”.

Uma justaposição de idéias mais que letal tomou conta de mim: a sabedoria de don Juan e o conhecimento do Professor Lorca. Ambos eram difíceis, obscuros, abrangentes, e muito atraentes. Nada mais havia para mim senão aceitar o curso dos acontecimentos e acompanhá-lo para aonde quer que me levasse.

Segui ao pé da letra as sugestões de don Juan a respeito do meu relacionamento com o Professor Lorca. Tentei, durante um semestre inteiro, aproximar-me dele, conversar com ele. Fui religiosamente ao seu gabinete durante as horas de expediente, mas parecia que ele nunca dispunha de tempo para receber-me. Mas mesmo sem poder falar com ele, eu o admirava irrestritamente. Cheguei até mesmo a admitir que ele nunca iria falar comigo. Isso não faria nenhuma diferença; o que importavam eram as idéias que colhi de suas magníficas aulas.

Relatei para don Juan todas as minhas descobertas intelectuais. Li muito sobre o assunto cognição. Don Juan Matus pressionava-me, mais do que nunca, a estabelecer contato direto com a fonte de minha revolução intelectual.

“É imperativo que você fale com ele”, disse ele com um toque de urgência na voz. “Os feiticeiros não admiram as pessoas num vácuo. Eles falam com essas pessoas; eles travam conhecimento com as mesmas. Estabelecem pontos de referência. Comparam. O que você está fazendo é um pouco infantil. Você está admirando à distância. Isso parece muito com o que acontece com o homem que tem medo de mulher. No final, suas gônadas falam mais alto que seu medo e compele-o a adorar a primeira mulher que diga um ‘alô’ para ele.”

Eu dobrei meus esforços para tentar aproximar-me do Professor Lorca, mas ele era como uma fortaleza impenetrável. Quando contei para don Juan minhas dificuldades, ele explicou-me que os feiticeiros consideram qualquer coisa relativa à interação com as pessoas, não importa quão insignificante seja, como estar num campo de batalha. Nesse campo de batalha, os feiticeiros executam o melhor de sua mágica, o melhor de seus esforços. Ele assegurou-me que a melhor arma, o melhor truque em tais casos era algo que nunca fora o meu forte: enfrentar os oponentes abertamente. Ele expressou sua aversão para com as pessoas tímidas que evitam o relacionamento a um ponto tal que, mesmo interagindo, elas meramente inferem ou deduzem, com relação aos seus estados psicológicos, o que está acontecendo sem percebem o que realmente está acontecendo. Elas interagem sem nunca fazer parte da interação.

“Olhe sempre para a pessoa que esteja disputando um cabo de guerra com você”, continuou ele. “Não apenas puxe o cabo; olhe-o nos olhos. Você então perceberá que ele é um homem, do mesmo modo que você. Não importa o que diga, não importa o que faça, ele está tremendo dentro de suas botas, igualzinho a você. Olhe com um olhar que torne seu oponente indefeso, ainda que por um instante; só então aplique seu golpe”.

Certo dia, a sorte estava do meu lado: cerquei o Professor Lorca num canto do hall de seu escritório.

“Professor Lorca”, disse eu, “poderia falar com o senhor por um momento?”.

“Ora, quem é você?” disse ele com toda a naturalidade, como se eu fosse seu melhor amigo e ele estivesse perguntando-me como estava passando.

O Professor Lorca foi bruto como uma porta, mas suas palavras não afetaram-me. Ele sorriu zombeteiramente, com seus lábios cerrados, como que encorajando-me a cair fora ou dizer algo significativo.

“Sou um estudante de antropologia, Professor Lorca”, disse eu, “Estou envolvido com uma situação de campo onde tive a oportunidade de aprender algo sobre o sistema de cognição dos feiticeiros”.

O Professor Lorca olhou para mim com desconfiança e aborrecimento. Seus olhos pareceram dois pontos azuis cheios de rancor. Penteou o cabelo para trás com as mãos, como se eles tivessem caído em sua face.

“Trabalho no México com um feiticeiro de verdade”, continuei, tentando encorajar uma resposta de sua parte. “Ele é um feiticeiro de verdade, preste atenção. Custou-me mais de um ano para interessá-lo em consentir falar comigo”.

A face do Professor Lorca relaxou-se; ele abriu a boca e, balançando sua mão de modo muito delicado em frente de meus olhos, como se girasse uma massa de pizza com ela, falou comigo. Não pude deixar de notar suas abotoaduras de esmalte dourado, as quais combinavam perfeitamente com seu blazer esverdeado.

“E o que você quer de mim?” Perguntou ele.

“Gostaria que você me ouvisse por um momento,” disse eu, “e ver se o que eu irei dizer poderá, de alguma forma, ser de seu interesse.”

Ele fez um gesto de relutância e resignação com seus ombros, abriu a porta de sua sala, e convidou-me a entrar. Eu sabia que não tinha um minuto a perder e forneci-lhe uma descrição direta de minha situação no que diz respeito à pesquisa de campo. Disse-lhe que estava aprendendo procedimentos que nada tinham a ver com tudo aquilo que pode ser encontrado na literatura antropológica do xamanismo.

Ele moveu os lábios por um momento, sem dizer nenhuma palavra.

Quando falou, ele destacou que a falha dos antropólogos em geral é que eles nunca concedem a si mesmos tempo suficiente para se tornarem totalmente cientes de todas as nuanças do sistema de cognição particular usado pelas pessoas que estão estudando. Ele definiu “cognição” como um sistema de interpretação que, pelo uso, permite que as pessoas utilizem, com grande perícia, todas as nuanças dos significados que fazem parte do meio social considerado.

As palavras do Professor Lorca iluminaram o escopo total de minhas pesquisas de campo. Sem ter o comando de todas as nuanças do sistema cognitivo dos xamãs do México antigo, seria totalmente supérfluo para mim formular qualquer idéia sobre tal mundo. Ainda que o Professor Lorca não dissesse nenhuma outra palavra para mim, o que acabara de dizer era mais do que suficiente. O que se seguiu foi um discurso maravilhoso sobre a cognição.

“Seu problema,” disse o Professor Lorca, “é que o sistema cognitivo de nossa vida do dia-a-dia com o qual estamos todos familiarizados, virtualmente a partir do dia em que nascemos, não é igual ao sistema cognitivo do mundo dos feiticeiros.”

Essa afirmação criou em mim um estado de euforia. Agradeci o Professor Lorca profusamente e assegurei-lhe que só existia um modo de agir no meu caso particular: seguir suas idéias através de céus e terra.

“O que eu lhe disse, é claro, é conhecimento geral”, disse ele enquanto acompanhava-me até a saída. “Toda a pessoa que lê o suficiente tem conhecimento de tudo o que eu estive falando para você”.

Despedimo-nos um do outro quase como amigos. Meu relato a don Juan do sucesso de minha aproximação do Professor Lorca gerou uma reação estranha. Don Juan parecia, por um lado, estar vibrando e por outro muito preocupado.

“Eu tenho um sentimento que seu professor não é bem o que afirma ser”, disse ele. “Isso, é claro, do ponto de vista de um feiticeiro. Talvez fosse melhor você retirar-se agora, antes que tudo isso se torne muito envolvente e desgastante. Uma das facetas da arte de um feiticeiro é saber quando deve parar. Parece-me que você já tirou de seu professor tudo o que ele tinha para ser aproveitado por você.”

Eu reagi imediatamente com uma enxurrada de palavras para defender o Professor Lorca. Don Juan acalmou-me. Disse que não era sua intenção criticar ou julgar quem quer que fosse, mas segundo sua percepção, muito poucas pessoas sabem quando parar e um número menor ainda sabe como realmente utilizar o seu conhecimento.

Apesar do aviso de don Juan, eu não deixei de me encontrar com o Professor Lorca; em vez disso, tornei-me um aluno confiante, um seguidor, um admirador dele. Ele pareceu sinceramente interessado em meu trabalho, embora tenha ficado tremendamente frustado com minha relutância e inabilidade em formular conceitos bem definidos sobre o sistema cognitivo do mundo dos feiticeiros.

Um dia, o Professor Lorca formulou para mim o conceito referente a um cientista visitante de outro mundo cognitivo. Ele admitiu sua boa vontade em ter uma mente aberta, e brincar, como um cientista social, com a possibilidade de um sistema cognitivo diferente. Ele imaginou uma pesquisa real na qual seriam reunidos e analisados certos documentos. Certos problemas de cognição seriam delineados e entregues aos xamãs que eu conhecia para que fosse medida, por exemplo, sua capacidade de focalizar sua cognição em dois aspectos diversos de comportamento.

Ele pensou que os testes teriam início com um paradigma simples no qual eles tentariam compreender e reter textos escritos que eles iriam ler enquanto jogavam poker. O teste iria escalar, medir, por exemplo, sua capacidade de focalizar sua cognição em coisas complexas que lhes seriam ditas enquanto dormiam, e assim por diante. O Professor Lorca queria uma análise lingüística a ser realizada com as declarações dos xamãs. Ele queria medir realmente suas respostas em termos de presteza e precisão, e de outras variáveis que se tornassem prevalentes à medida que o projeto progredisse.

Don Juan rolou de rir quando contei-lhe a proposta do Professor Lorca de medir a cognição dos xamãs.

“Agora eu realmente gosto do seu professor”, disse ele. “Mas você não pode estar falando sério com relação a essa idéia de medir nossa cognição. O que poderia seu professor extrair da medição de nossas respostas? Ele iria ficar convencido de que nós somos um bando de imbecis, pois isso é o que somos. Não nos é possível ser mais inteligentes, mais ligeiros que o homem comum. Não é culpa dele, entretanto, acreditar que possa comparar unidades de cognição de sistemas diferentes. A culpa é sua. Você não conseguiu explicar para seu professor que quando os feiticeiros falam sobre o sistema cognitivo dos xamãs do México antigo, eles falam sobre coisas que não possuem similares no mundo do dia-a-dia.

“Por exemplo, perceber a energia diretamente como flui no universo é uma unidade de cognição da qual vivem os xamãs. Eles vêem como a energia flui e então seguem seu fluxo. Se esse fluxo é obstruído, eles deslocam-se para algo totalmente diferente. Os xamãs vêem linhas no universo. Sua arte, ou sua atividade é escolher a linha que os conduzirá, sob o ponto de vista da percepção, a regiões que não possuem nenhum nome. Pode-se dizer que os xamãs reagem imediatamente às linhas do universo. Eles vêem os seres humanos como bolas luminosas, e eles procuram em si mesmos os seus fluxos de energia. Naturalmente, eles reagem instantaneamente a essa visão. Isso faz parte de sua cognição”.

Disse a don Juan que eu não poderia falar nada disso com o Professor Lorca porque eu não tinha feito nenhuma das coisas que ele descreveu. Minha cognição permaneceu a mesma.

“Ah!” exclamou ele. “Você simplesmente não teve tempo ainda de incorporar as unidades de cognição do mundo dos xamãs”.

Saí da casa de don Juan mais confuso que nunca. Havia uma voz dentro de mim que virtualmente exigia que eu terminasse de vez com os meus esforços junto ao Professor Lorca. Eu entendera como don Juan estava certo quando uma vez disse-me que as coisas práticas em que os cientistas estavam interessados conduziam à construção de máquinas cada vez mais complexas. Elas não eram coisas práticas que levavam à transformação do curso da vida do indivíduo a partir de seu interior. Elas não eram engrenadas para que se atingisse a vastidão do universo como uma aventura, como uma experiência pessoal. As estupendas máquinas que existem, ou mesmo as que estão sendo construídas, são atividades culturais, cujo uso conduzem a satisfações vicárias, mesmo para os próprios construtores das mesmas. A sua única recompensa é monetária.

Ao destacar tudo isso para mim, don Juan teve sucesso em colocar-me num estado de espírito ainda mais inquisitivo. Comecei realmente a questionar as idéias do Professor Lorca, algo que nunca fizera antes. Nesse meio tempo, o Professor Lorca continuava com sua fala pomposa afirmando verdades estonteantes sobre a cognição. Cada declaração era mais severa que a anterior e assim, mais incisiva.

No final do meu segundo semestre com o Professor Lorca, atingi um impasse. Não havia nenhuma maneira no mundo para que eu pudesse construir uma ponte entre as duas linhas de pensamento: a de don Juan e a do Professor Lorca. Elas eram paralelas. Entendia a tendência do Professor Lorca em medir e qualificar o estudo da cognição. A Cibernética estava justamente despontando naquela época, e os aspectos práticos do estudo da cognição eram uma realidade. Mas também acontecia o mesmo com o mundo de don Juan, o qual não podia ser medido com os instrumentos padrão da cognição. Eu era alguém privilegiado que podia testemunhá-lo, pelas ações de don Juan, mas não as experimentara eu mesmo. Sentia que havia algum empecilho que impossibilitava a construção de uma ponte ligando os dois mundos.

Disse tudo isso para don Juan em uma de minhas visitas a ele. Ele disse que aquilo que eu considerava um empecilho, e, portanto o fator que tornava impossível a construção de uma ponte entre os dois mundos, não era muito acurado. Em sua opinião, o empecilho era algo muito mais abrangente que a circunstância individual de uma pessoa.

“Talvez você possa lembrar-se do que eu disse ser uma das maiores falhas do ser humano comum”, disse ele.

Não consegui lembrar-me de nada em particular a esse respeito. Ele destacara tantas falhas que atingiam o homem comum, que minha mente rodou no vazio.

“Você quer algo específico”, disse eu. “Não consigo lembrar-me de nada”.

“O grande defeito de que estou falando”, disse ele, “é algo que devemos levar em conta cada segundo de nossa existência. Para mim, ele é o assunto dos assuntos, algo que irei repetir para você uma vez atrás da outra até que ele salte de seus ouvidos”.

Depois de um longo momento, desisti de continuar tentando lembrar-me.

“Nós somos seres que estamos a caminho da morte,” disse ele. “Nós não somos imortais, mas agimos como se fossemos. Essa é a falha que nos derrota como indivíduo e que nos derrotará como espécie algum dia”.

Don Juan afirmou que a vantagem dos feiticeiros sobre seus companheiros comuns é que os feiticeiros sabem que são seres que estão a caminho da morte e não se permitem desviar desse conhecimento. Ele enfatizou que um esforço enorme deve ser empregado para evocar e manter esse conhecimento como uma certeza completa.

“Por que é tão difícil para nós admitir algo que é tão verdadeiro?” Perguntei, desnorteado pela magnitude de nossa contradição interna.

“Isso realmente não é culpa do homem”, disse ele num tom conciliatório. “Algum dia eu irei contar para você alguma coisa mais sobre tais forças que fazem com que o homem aja como um burro”.

Não havia nada mais a dizer. O silêncio que se seguiu foi devastador. Eu nem mesmo quis saber a que forças don Juan estava referindo-se.

“Não é nenhuma proeza minha avaliar seu professor à distância”, continuou don Juan. “Ele é um cientista imortal. Ele nunca irá morrer. E quando aparecer qualquer preocupação a respeito da morte, estou certo de que ele já cuidou dela. Ele tem um pedacinho de terra em que será enterrado, e uma valiosa apólice de seguro de vida que irá cuidar de sua família. Tendo cuidado dessas duas premissas, ele não pensa mais sobre a morte. Ele só pensa sobre seu trabalho.

“O Professor Lorca consegue falar sensatamente”, continuou don Juan, “porque está preparado para usar as palavras acuradamente. Mas ele não está preparado para levar a sério a si mesmo como alguém a caminho da morte. Sendo imortal, ele não pode saber como fazer isso. Não faz nenhuma diferença quão complexas sejam as máquinas que o homem consegue inventar e construir. As máquinas não podem ajudar o homem de nenhuma maneira em seu compromisso inevitável: seu encontro com o infinito.

“O nagual Julian usava dizer-me,” continuou ele, “a respeito dos generais conquistadores da Roma antiga. Quando retornavam vitoriosos para casa, imensas paradas eram realizadas em sua honra. Exibindo os tesouros que conquistaram, e as pessoas que derrotaram e transformaram em escravos, os conquistadores desfilavam, dirigindo suas carruagens de guerra. Um escravo ia sempre ao seu lado e seu trabalho era murmurar em seus ouvidos que toda a fama e glória são transitórias.

“Se nós somos vitoriosos de algum modo,” continuou don Juan, “nós não temos ninguém para murmurar em nossos ouvidos que nossas vitórias são passageiras. Os feiticeiros, entretanto, têm uma vantagem; como seres em seu caminho para a morte, eles têm alguém para murmurar em seus ouvidos que tudo é efêmero. Quem murmura é a morte, a conselheira infalível, a que nunca mentirá para ninguém.”

 

                   Agradecendo

“Os guerreiros-viajantes não deixam nenhum débito pendente,” disse don Juan.

“Sobre o que está falando, don Juan?” Perguntei.

“Está na hora de você saldar certos débitos que contraiu durante o curso de sua vida,” disse ele. “Não digo que você conseguirá saldar todos eles, mas, preste atenção, você precisa fazer um gesto. Você precisa, para compensar, pagar o sinal, para aplacar o infinito. Você contou-me sobre suas duas amigas que significaram tanto para você, Patrícia Turner e Sandra Flanagan. Está na hora de você ir atrás delas e dar para cada uma um presente que custe todo o dinheiro de que você disponha. Os dois presentes que você irá oferecer para as duas deixará você sem um tostão. É isso que é um gesto.”

“Não sei onde elas estão, don Juan,” disse eu, quase protestando.

“Encontrá-las é o seu desafio. Ao procurá-las, você não deixará nenhuma pedra sem virar. O que você vai intentar fazer é algo muito simples e, ao mesmo tempo, quase impossível. Você quer ultrapassar o limiar do endividamento pessoal e, numa tacada, ficar livre para prosseguir. Se você não puder cruzar tal limiar, de nada valerá tentar continuar comigo”.

“Mas de onde você tirou a idéia dessa tarefa para mim?” Perguntei. “Você mesmo inventou-a por achar ela é apropriada para o meu caso?”

“Não invento nada,” disse ele com toda a naturalidade. “Eu tirei essa idéia do próprio infinito. Não é fácil para mim dizer tudo isso para você. Se você acha que estou divertindo-me com suas atribulações, está errado. O sucesso de sua missão significa mais para mim do que para você. Se você falhar, tem muito pouco a perder. O que perderá? Suas visitas a mim. Grande coisa. Mas eu perderei você, e isso significa para mim, ou perder a continuidade de minha linhagem ou deixar de fechá-la, por seu intermédio, com chave de ouro.”

Don Juan parou de falar. Ele sempre percebia quando minha mente fervilhava com pensamentos.

“Eu tenho dito para você, uma vez atrás da outra, que os guerreiros-viajantes são pragmáticos”, continuou ele. “Eles não estão envolvidos com sentimentalismos, ou nostalgia, ou melancolia. Para eles só existe luta, uma luta que não tem fim. Se você pensa que veio aqui para encontrar paz, ou uma vida tranqüila, você está errado. A tarefa de pagar o que deve não é guiada por nenhum sentimento que você conheça. Ela é guiada pelo sentimento mais puro que existe, o sentimento de um guerreiro-viajante que está prestes a mergulhar no infinto, e logo antes de fazê-lo, ele vira e agradece todos aqueles que lhe favoreceram.

“Você deve encarar essa tarefa com a seriedade que ela merece,” continuou ele. “Ela é a sua última parada, antes que o infinito engula você. Na verdade, a menos que o guerreiro-viajante esteja num sublime estado de ser, o infinito não o tocará, nem mesmo com uma vara de três metros. Assim, não poupe esforços; não se poupe. Tente sem ter nenhuma pena de si mesmo, mas aja com elegância, durante toda a sua jornada.”

Eu encontrei as duas pessoas a que don Juan se referia como duas amigas que significavam muito para mim, enquanto freqüentava o colégio. Morei durante algum tempo na garagem do apartamento pertencente aos pais de Patrícia Turner. Em troca de casa e comida, eu cuidava da limpeza da piscina, varria o jardim, colocava o lixo para fora e fazia o café da manhã para mim e Patrícia. Era também pau para toda obra bem como o motorista da casa; conduzia Mrs. Turner para lojas e supermercados e comprava bebida para Mr. Turner, a qual era furtivamente colocada por mim dentro do escritório, localizado na própria casa.

Ele era um executivo que trabalhava no ramo de seguros; bebia às escondidas. Havia prometido nunca mais tocar numa garrafa depois de uma altercação violenta com a família por ter bebido demais.

Confessou-me que havia diminuído muito a bebida mas que necessitava de um golinho de vez em quando. Seu escritório era, é claro, território proibido para qualquer um, menos para mim. Eu entrava ali com a desculpa de que ia fazer a limpeza, mas o que na realidade fazia era esconder as garrafas dentro de uma viga que parecia suportar um arco do teto do escritório e que na verdade era oca. Eu tinha que colocar furtivamente as garrafas na viga e tirar as vazias, que eram jogadas no lixo do supermercado.

Patrícia freqüentava um curso superior de música e teatro e era uma cantora fabulosa. Sua meta era participar de musicais na Broadway. Não é preciso dizer que eu me apaixonei por ela dos pés à cabeça. Ela era uma morena esguia e atlética, de feições angulares, e mais alta que eu cerca de 25cm, algo que me deixava louco com relação a qualquer representante do sexo feminino.

Parecia-me que eu preenchia uma profunda necessidade dela, a necessidade de nutrir alguém, especialmente depois que ela percebeu que seu pai implicitamente confiava em mim. Ela então tornou-se babá. Não podia nem mesmo abrir a boca sem seu consentimento. Ela tomava conta de mim como um falcão. Ela até mesmo preenchia formulários para mim, lia livros-texto e organizava para mim sinopses dos mesmos. E eu gostava daquilo, não porque gostasse de ser paparicado; eu não acredito que aquela necessidade fizesse parte de minha cognição. Eu apreciava o fato de que era ela que o fazia. Eu apreciava a sua companhia.

Ela usava levar-me ao cinema diariamente. Ela possuía um passe de entrada grátis em todos os grandes cinemas de LA, um presente ao seu pai de algum magnata da sétima arte. O próprio Mr. Turner nunca usava-o; ele achava que não condizia com sua dignidade ir ao cinema exibindo o passe. Os funcionários dos cinemas sempre exigiam que os portadores dos passes assinassem um recibo. Patrícia não tinha nenhum escrúpulo em assinar qualquer papel, mas algumas vezes funcionários mais exigentes queriam que o próprio Mr. Turner assinasse, e quando eu ia fazer isso, eles não ficavam satisfeitos só com a assinatura de Mr. Turner. Exigiam a carteira de motorista. Um deles, um sujeitinho atrevido, fez um comentário que me levou, e a ele também, a perder a cabeça, mas que provocou em Patrícia um acesso de fúria.

“Eu acho que você é Mr. Troço(*),” disse ele com o risinho mais cínico que você possa imaginar, “e não Mr. Turner.” [(*) – Turd, cagalhão, troço em inglês)].

Eu poderia ter relevado o que ele dissera, mas o cara então submeteu-nos a uma profunda humilhação, impedindo que entrássemos para ver o filme Hércules, estrelado por Steve Reeves.

Usualmente, nós íamos a todos os lugares com a melhor amiga de Patrícia, Sandra Flanagan, sua vizinha que morava com os pais. Sandra era o oposto de Patrícia. Tinha a mesma altura dela, mas sua face era redonda, com faces rosadas e uma boca sensual; ela tinha mais saúde que um touro. Não gostava de cantar. Estava interessada apenas nos prazeres sensuais do corpo. Poderia comer e beber qualquer coisa e digeri-la, e – uma característica que não suportava nela – depois de lamber seu próprio prato, fazia o mesmo com o meu, uma coisa que, mesmo sendo eu um comilão insuportável, nunca fui capaz de fazer. Ela era também extremamente atlética, mas de uma maneira bruta, saudável. Seu soco era como de um homem e seu coice como de uma mula.

Como cortesia para Patrícia, eu costumava fazer para os pais de Sandra as mesmas coisas que fazia para os pais dela: limpar a piscina, varrer as folhas do gramado da casa deles, tirar o lixo para fora no dia do recolhimento, e queimar papeis e entulho inflamável. Aquele era o tempo em que a poluição do ar de LA aumentava pelos incineradores de fundo de quintal.

Talvez por causa da proximidade, pela facilidade de estar com essas duas jovens, que acabei por me apaixonar perdidamente pelas duas.

Pedi os conselhos de um jovem muito estranho que era meu amigo, Nicholas van Hooten. Ele tinha duas namoradas, e vivia nessa situação, aparentemente, num constante estado de euforia. Ele começou por me dar, segundo dizia, o mais simples dos conselhos: como comportar num cinema ao lado de duas namoradas. Dizia que quando ia ao cinema com as duas namoradas, concentrava sua atenção sempre na que estivesse à sua esquerda. Depois de algum tempo, as duas moças iriam ao toalete, e na sua volta, ele dava um jeito de que elas trocassem de lugar. Anna sentaria onde Betty estava sentada, e fim de papo. Ele garantiu-me que esse era o primeiro passo de um longo processo que resultaria na aceitação tranqüila pelas duas garotas daquela situação “triangular”; Nicholas era bastante careta e costumava usar uma expressão francesa muito vulgar: ménage à trois.

Eu segui seu conselho e fui a um cinema que exibia filmes mudos, na avenida Fairfax em LA com Patrícia e Sandy. Sentei minha Patrícia à minha esquerda e dei toda a minha atenção a ela. Elas foram ao toalete e quando voltaram, eu falei com elas para trocar de lugares. Comecei então a fazer aquilo que Nicholas van Hooten tinha aconselhado, mas Patrícia não iria concordar com uma bobagem daquelas. Ela levantou-se e saiu do cinema, ofendida, humilhada e espumando de raiva. Tentei sair correndo atrás dela e pedir desculpas, mas Sandra me impediu.

“Deixe que ela se vá”, disse ela com um sorriso malicioso. “Já está crescida. Tem dinheiro para pegar um táxi e ir para casa”.

Eu fui na conversa e permaneci no cinema beijando Sandra, muito nervoso, e sentido-me culpado. Estava no meio de um beijo apaixonado quando senti que alguém estava puxando-me para trás, pelos cabelos. Era Patrícia. A fila de cadeiras estava solta e pendeu para trás. A atlética Patrícia deu um pulo antes que as cadeiras onde estávamos sentados batessem na fila de trás. Eu ouvi o grito assustado de dois espectadores que estavam sentados próximo do corredor.

A sugestão de Nicholas van Hooten foi um conselho desastroso. Patrícia, Sandra e eu voltamos para casa em absoluto silêncio. Nós aparamos nossas arestas, em meio de promessas esdrúxulas, lágrimas, trabalhos. O resultado de tal relacionamento triplo foi, no final, que quase destruímos a nós mesmos. Não estávamos preparados para tanto esforço. Nós não sabíamos como resolver os problemas relacionados com afeição, moralidade, dever, e costumes sociais. Eu não podia deixar uma pela outra, e as duas não podiam deixar-me. Um dia, no cume de um tremendo desentendimento, e como fruto de um desespero completo, cada um de nós três tomou um rumo diferente, para nunca mais encontrar-se com qualquer um dos outros dois.

Senti-me aniquilado. Nada do que fazia apagava o impacto das duas em minha vida. Sai de LA e entreguei-me ao trabalho, fazendo mil e uma coisas, num esforço para aplacar minhas saudades. Sem nenhum exagero, digo sinceramente que caí no mais profundo dos infernos, e, segundo entendia, para nunca mais sair. Se não fosse a influência de don Juan sobre minha vida e minha pessoa, eu não teria conseguido livrar-me de meus demônios particulares. Disse a don Juan que eu sabia que era errado tudo o que fiz, que eu não deveria ter engajado pessoas tão belas em embromações sórdidas e estúpidas, as quais eu não estava preparado para enfrentar.

“O que houve de errado,” disse don Juan, “foi que vocês três eram cada um mais egoísta que o outro. Sua importância pessoal quase os destruiu. Se vocês não fossem auto importantes, teriam apenas sentimentos.

“Para agradar-me,” continuou ele, “faça o seguinte exercício, simples e direto, que pode significar o máximo para você: remova de suas lembranças dessas duas moças todas as afirmações que você fez a si mesmo, tais como ‘ela disse isso ou aquilo para mim, e gritou, e a outra gritou para MIM!’ e permaneça no nível de seus sentimentos. Se você não fosse tão auto importante, o que teria sobrado como resíduo irredutível?”

“Meu amor imparcial pelas duas,” disse eu, quase sufocando-me.

“E ele é menor hoje que naquela época?” perguntou don Juan.

“Não, não é, don Juan,” disse com toda a sinceridade, sentindo a mesma pontada de angústia que me perseguiu durante anos.

“Agora, abrace as duas a partir de seu silêncio,” disse ele. “Não seja um idiota de marca maior. Abrace as duas totalmente pela última vez. Mas intente que essa é a última vez nessa Terra. Intente isso a partir de sua escuridão. Se você vale o que come,” continuou ele, “quando você der o presente para elas, você irá somar sua vida duas vezes. Atos dessa natureza fazem os guerreiros ficarem leves, quase vaporosos.”

Seguindo as ordens de don Juan, eu dediquei-me à tarefa de corpo e alma. Percebi que se não tivesse sucesso, don Juan não seria o único que iria desaparecer. Eu também iria perder algo, e qualquer que fosse a minha perda, seria algo tão importante para mim quanto o que don Juan descreveu como sendo importante para ele. Iria perder a minha chance de enfrentar o infinito e ser consciente dele.

A lembrança de Patrícia e Sandra colocou-me num terrível estado de espírito. O sentimento devastador de uma perda irreparável que me acompanhava durante todos esses anos estava tão vívido como sempre esteve. Quando don Juan exacerbou-o, percebi com muita clareza que existem certas coisas que podem permanecer conosco, segundo as palavras de don Juan, por toda uma vida e mais além. Eu tinha que descobrir o paradeiro de Patrícia e de Sandra. A recomendação final de don Juan era de que, caso eu as encontrasse, não poderia ficar com elas. O tempo que deveria despender com elas seria o estritamente necessário para a reconciliação e o envolvimento de cada uma com toda a afeição que sentia por elas, sem nenhuma palavra dura de recriminação, sem nenhuma piedade, sem a interferência do ego.

Embarquei-me então na imensa tarefa de descobrir o que acontecera com elas e onde foram parar. Comecei por fazer perguntas às pessoas que conheciam os pais delas. Seu pais haviam mudado de LA, e ninguém pôde dar-me uma indicação do lugar para aonde eles foram. Não havia ninguém mais com quem eu pudesse falar. Pensei em colocar um aviso nos jornais. Mas depois pensei que talvez elas tivessem saído da Califórnia. Tive finalmente de contratar os serviços de um investigador particular. Através de sua conexão com escritórios oficiais de registro e similares, ele as localizou dentro de umas duas semanas.

Elas viviam em NY, a uma curta distância uma da outra, e sua amizade era tão grande como sempre fora. Fui até NY e estive primeiro com Patrícia. Ela não fazia parte do estrelato da Broadway como planejara, mas fazia parte de uma produção. Não quis saber se na parte da performance ou se na do gerenciamento. Visitei-a em seu escritório. Ela não me disse o que fazia. Ficou chocada ao me ver.

O que fizemos foi apenas ficar sentados um ao lado do outro, de mãos dadas e chorando. Eu também não lhe disse o que fazia. Disse-lhe que queria vê-la para lhe dar um presente que expressasse minha gratidão, e que estava iniciando uma viagem da qual não pretendia regressar.

“Por que estas palavras sinistras?” perguntou ela, parecendo-se genuinamente alarmada. “O que você está planejando? Está doente? Você não parece doente”.

“Estou falando metaforicamente”, garanti para ela. “Estou regressando para a América do Sul, e pretendo fazer fortuna lá. A competição é feroz, e as circunstâncias são muito duras, isso é tudo. Se quiser ser bem sucedido, tenho que dar tudo de mim.”

Ela pareceu aliviada, e abraçou-me. Ela tinha a aparência de sempre, salvo por estar um pouco mais alta, muito mais poderosa, mais madura, muito elegante. Beijei suas mãos e uma afeição devastadora envolveu-me. Don Juan tinha razão. Liberado das recriminações, tudo o que eu tinha eram sentimentos.

“Quero dar-lhe um presente, Patrícia”, disse eu. “Diga-me o que você quer, e se estiver ao meu alcance, eu te darei”.

“Está dando uma de rico?” disse ela rindo. “O que se destaca em você é que nunca teve nada e nunca terá. Converso com a Sandra sobre você quase que diariamente. Imaginamos você estacionando carros, conduzindo madames, etc, etc. Sinto muito, nós não conseguimos evitá-lo, mas ainda amamos você.”

Insisti para que dissesse o que queria. Ela começou a rir e a chorar ao mesmo tempo.

“Você vai comprar-me um casaco de vison?” perguntou ela entre os soluços.

Eu toquei seus cabelos e disse que sim.

“Se você não gostar, pode devolvê-lo para a loja e pegar o dinheiro de volta,” disse-lhe.

Ela riu e deu-me um soco, do modo como sempre fazia. Ela disse que tinha que voltar ao trabalho e então nos despedimos um do outro, tendo eu prometido para ela que voltaria para vê-la, mas que se não voltasse, queria que ela entendesse que a força de minha vida estava empurrando-me para todos os lados, mas que mesmo assim eu não me esqueceria dela para o resto de minha vida ou, talvez, mais além.

Eu voltei, mas apenas para olhar de longe como entregariam para ela o casaco de vison. Ouvi seus gritos de prazer.

Aquela parte da tarefa estava cumprida. Saí, mas não me sentia vaporoso, do modo como don Juan disse que iria sentir. Reabrira uma velha ferida que começou a sangrar. Lá fora não estava propriamente chovendo; caía uma peneirinha que parecia penetrar até a medula dos meus ossos.

Depois fui ver Sandra Flanagan. Morava num dos subúrbios de NY que era servido por trem. Bati em sua porta. Sandra abriu e olhou-me como se eu fosse um fantasma. Sua face perdeu toda sua cor. Estava mais linda que nunca, talvez por ter ficado mais cheiinha e parecesse tão grande quanto uma casa.

“Uai, é você, você, você!” gaguejou ela, sem conseguir articular meu nome.

Ela soluçou, e por um momento pareceu indignada, como se fosse recriminar-me. Eu não lhe dei tempo para continuar. Meu silêncio foi total. Depois de algum tempo, afetou-a. Convidou-me a entrar e sentamos na sua sala de visitas.

“O que você está fazendo aqui?” perguntou ela, bastante mais calma. “Você não pode ficar! Sou uma mulher casada! Tenho três filhos! E estou muito feliz com meu casamento.”

Proferindo as palavras rapidamente, como uma metralhadora, disse-me que seu marido era alguém muito digno de confiança, não muito brilhante, mas era uma pessoa boa, uma pessoa que não era sensual, que ela tinha que ser muito cuidadosa porque ele ficava cansado muito facilmente quando faziam amor, que ele ficava doente com facilidade e algumas vezes não podia ir trabalhar mas que ele conseguira gerar três belas crianças, e que depois da terceira, seu marido, cujo nome parecia ser Herbert, não funcionou mais. Ele não funcionou nunca mais, mas isso não tinha importância.

Tentei acalmá-la assegurando-lhe uma vez atrás da outra que eu tinha vindo apenas para fazer-lhe uma visitinha, que não era minha intenção alterar sua vida ou aborrecê-la de jeito nenhum. Contei para ela como fora difícil para mim encontrá-la.

“Vim para dizer adeus para você”, disse-lhe eu, “e para dizer-lhe que você é o amor de minha vida. Quero lhe dar um presente como prova disso, como um símbolo de minha gratidão e de minha afeição imorredoura”.

Ela pareceu profundamente comovida. Sorriu abertamente do modo como sempre fazia. A separação entre seus dentes dava-lhe um ar infantil. Comentei que ela estava mais bonita que nunca, o que era para mim uma verdade.

Ela riu e disse que iria começar uma dieta apertada, e que se soubesse que eu iria visitá-la, teria começado a dieta há muito tempo atrás. Mas que iria começar agora, e que eu a encontraria da próxima vez esbelta como sempre fora. Ela reiterou o horror que tinha sido nossa vida juntos e quão profundamente ela ficou afetada. Chegou mesmo a pensar, a despeito de ser católica devota, em se suicidar, mas que encontrou em seus filhos o consolo que necessitava; o que quer que nós tivéssemos feito eram caprichos da juventude que nunca seriam apagados mas que deveriam ser varridos para debaixo do tapete.

Quando perguntei se existia algum presente como prova de minha gratidão e de minha afeição por ela, ela riu e disse exatamente a mesma coisa que Patrícia dissera: que eu não tinha onde cair morto, e que nunca teria, pois eu era assim. Insisti para que ela dissesse qual seria o presente.

“Você poderia comprar para mim um utilitário que coubesse os meus filhos?” disse ela, rindo. “Quero um Pontiac, ou um Oldsmobile, com todos os acessórios”.

Ela disse aquilo sabendo, bem no fundo do coração, que eu não teria, absolutamente, condições de dar tal presente para ela. Mas eu dei.

Dirigi o carro do vendedor, seguindo atrás dele quando foi entregar o utilitário para ela no dia seguinte; do carro estacionado onde eu escondi-me, ouvi como ela ficou surpresa ao receber o presente; mas congruente com o ser sensual que ela era, sua surpresa não foi uma expressão de deleite. Foi uma reação corporal, um soluço de angústia, de desespero. Ela chorou, mas eu sabia que seu choro não era causado pelo presente. Ela expressava uma saudade que ecoava em mim. Retraí-me no assento do carro.

Quando fui de trem para NY e em meu vôo de volta para LA, eu sentia que minha vida estava esvaindo-se; estava esvaindo-se como areia entre os dedos. Eu não sentia-me liberado depois de agradecer e dizer adeus. Muito ao contrário, sentia a carga daquela estranha afeição mais profundamente que nunca. A minha vontade era de chorar. Em minha mente desfilavam, sem parar, os títulos dos livros que meu amigo Rodrigo Cummings inventara para livros que nunca seriam escritos. Ele especializou-se em escrever títulos. Seu título favorito era “Todos Morreremos em Hollywood”; um outro era “Nunca Mudaremos”; e o meu favorito, aquele que comprei por dez dólares, era “Da Vida e Pecados de Rodrigo Cummings.” Todos esses títulos passavam pela minha cabeça. Eu era Rodrigo Cummings, e estava colado no tempo e no espaço, amava duas mulheres mais que a própria vida, e nunca iria mudar. E como o resto de meus amigos, morreria em Hollywood.

Contei para don Juan tudo isso, quando relatava para ele o que considerava meu pseudo-sucesso. Ele descartou tudo aquilo com indignação. Disse que o que eu estava sentindo era meramente o resultado da auto indulgência e auto piedade, e que para dizer adeus e agradecer séria e definitivamente, os feiticeiros têm de refazer a si mesmos.

“Vença a sua auto piedade já, nesse momento”, ordenou ele. “Vença a idéia de que você está ferido e, então, o que restará como resíduo irredutível?”

O que eu tinha como resíduo irredutível era o sentimento de que eu dera para as duas os meus melhores presentes. Não com o espírito de renovar o que fosse, ou de ferir quem quer que fosse, inclusive a mim mesmo, mas com o espírito verdadeiro do que don Juan tentara destacar para mim – com o espírito de um guerreiro-viajante cuja única virtude, dissera ele, é manter viva a memória de tudo o que o afetara, e cujo único modo de agradecer e dizer adeus era por este ato de magia: guardando em seu silêncio tudo o que amou.

 

Além da Sintaxe

 

                   O Condutor

Estava na casa de don Juan, em Sonora, dormindo profundamente em minha cama, quando ele despertou-me. Eu tinha praticamente passado a noite em claro, examinando profundamente os conceitos que ele havia explicado para mim.

“Você já descansou o bastante”, disse ele com firmeza, quase grosseiramente, ao sacudir-me pelo ombro. “Não seja indulgente com seu cansaço. Seu cansaço é mais que cansaço: é um desejo de não ser incomodado. Algo em você ressente-se em ser incomodado. Mas é muito importante que essa parte sua seja molestada até que desapareça. Vamos dar uma caminhada”.

Don Juan tinha razão. Existia uma parte de mim que ressentia-se imensamente de ser molestada. Eu queria dormir durante dias e não pensar mais sobre os conceitos de feitiçaria que don Juan me explicava. Contrariando totalmente a minha vontade, levantei-me e o segui. Don Juan havia preparado uma refeição que eu devorei como se não houvesse comido durante vários dias, e então saímos da casa e caminhamos para o leste, em direção das montanhas. Eu estava tão aturdido que não notara, até ver o sol, que já era de manhãzinha; ele estava logo acima da cadeia de montanhas do leste. Queria comentar com don Juan que eu dormira toda a noite na mesma posição, mas ele fez-me um sinal para ficar calado. Disse que estávamos indo continuar a procura de certas plantas específicas, nas montanhas.

“O que você vai fazer com estas plantas que irá colher, don Juan?” perguntei-lhe logo que começamos a andar.

“Elas não são para mim”, disse ele com um largo sorriso. “Elas são para um amigo meu que é botânico e farmacêutico. Ele prepara poções com elas”.

“Ele é yaqui, don Juan? Mora em Sonora?” perguntei.

“Não, ele não é yaqui e nem mora em Sonora. Você o conhecerá algum dia.”

“Ele é um feiticeiro, don Juan?”

“Sim, é,” respondeu ele secamente.

Perguntei-lhe se eu poderia levar algumas das plantas para serem identificadas no Jardim Botânico da UCLA.

“Mas é claro!” disse ele.

Descobri no passado que sempre que don Juan dizia “Mas é claro”, ele não falava sério. Era claro para mim que ele não tinha nenhuma intenção de me dar qualquer espécie para identificação. Eu fiquei muito curioso a respeito de seu amigo feiticeiro, e pedi-lhe para falar-me mais sobre ele, talvez descrevê-lo, dizer-me onde ele morava e como foi que o conheceu.

“Ôh, ôh, ôh, ôh!” disse don Juan, como se eu fosse um cavalo. “Espere aí, espere aí! Quem é você? Professor Lorca? Você que estudar seu sistema cognitivo?”

Fomos até os longíqüos contrafortes da montanha. Don Juan caminhou firmemente durante horas. Pensei que a tarefa daquele dia iria ser só andar. Ele finalmente parou e sentou-me numa sombra ao sopé da montanha.

“Está na hora de você começar um dos maiores projetos da feitiçaria”, disse don Juan.

“Que projeto de feitiçaria é esse de que você está falando, don Juan?” perguntei.

“Ele chama-se recapitulação”, disse ele. “Os feiticeiros antigos chamavam-no de recontar os eventos da própria vida, e para eles, tal projeto começa com uma simples técnica, um instrumento para os ajudar a relembrar o que fizeram e disseram aos seus discípulos. Para seus discípulos, a técnica tinha o mesmo valor: permitiam que eles se lembrassem do que seus professores haviam dito e feito para eles. Ocorreram tremendas agitações sociais, tais como ser conquistado e ser derrotado várias vezes, antes que os antigos feiticeiros percebessem que sua técnica estava produzindo os mais disparatados efeitos”.

“Você está referindo-se, don Juan, à conquista pelos espanhóis?” perguntei.

“Não”, disse ele. “Essa foi apenas uma delas. Houve outras, antes dessa, muito mais devastadoras. Quando os espanhóis chegaram aqui, os velhos feiticeiros não existiam mais. Os discípulos daqueles que sobreviveram a outros tumultos sociais eram então muito mais astutos. Sabiam como cuidar de si mesmos. Foi essa nova safra de feiticeiros que mudou o nome da técnica dos antigos feiticeiros para recapitulação.

“Há um enorme prêmio no tempo”, continuou ele. “Para os feiticeiros em geral, o tempo é algo essencial. O desafio que estou enfrentando é que numa unidade de tempo muito compacta, tenho que abarrotar você com tudo o que existir na feitiçaria para ser aprendido como uma proposição abstrata, mas para fazer isso tenho que construir em você o espaço necessário”.

“Que espaço? De que está falando, don Juan?”

“A premissa dos feiticeiros é que para colocar algo dentro das pessoas, deve existir um espaço para isso,” disse ele. “Se você estiver cheio até a borda com os itens do dia-a-dia, não existe espaço para mais nada. Esse espaço deve ser construído. Entende o que digo? Os feiticeiros dos tempos antigos acreditavam que a recapitulação da própria vida construía tal espaço. Sem dúvida, construía, isso e muito mais, é claro.

“O modo como os feiticeiros executam a recapitulação é bastante formal,” continuou ele. “Ela consiste em escrever uma lista de todas as pessoas que eles encontraram, de hoje até o próprio início de suas vidas. Uma vez providenciada a lista, eles pegam o primeiro nome da mesma e relembram de tudo o possível sobre tal pessoa. Quero dizer tudo mesmo, cada detalhe. É melhor recapitular do presente para o passado, porque a lembrança do presente está fresca, e dessa maneira, a habilidade de recapitular é afiada, polida. O que os praticantes fazem é recapitular e, ao mesmo tempo, respirar. Eles inspiram vagarosa e deliberadamente, balançando a cabeça da direita para a esquerda, num movimento quase imperceptível, e expiram do mesmo modo.”

Ele disse que a inspiração e a expiração devem ser naturais; se forem muito rápidas, a pessoa irá entrar num estado que ele chamou de respiração cansativa: a respiração terá que ser diminuída para relaxar os músculos.

“E o que você quer que eu faça com tudo isso, don Juan?” perguntei.

“Você deve começar hoje a fazer sua lista”, disse ele. “Divida-a por anos, por ocupação, organize-a numa ordem qualquer que você queira, mas faça isso de modo seqüencial, com a pessoa mais recente no início da lista, e termine com Papai e Mamãe. E depois, recorde tudo sobre eles. Nada mais que isso. Ao praticar, você irá percebendo o que está fazendo”.

Em minha visita seguinte à sua casa, disse a don Juan que eu estava repassando meticulosamente os eventos de minha vida, e que era muito difícil para mim aderir estritamente àquele modo de recapitular pessoa por pessoa da lista. Ordinariamente, minha recapitulação levava-me a diversas direções. Deixava que os próprios eventos decidissem em que direção continuar. O que fiz, voluntariamente, foi aderir a uma unidade de tempo. Por exemplo, comecei com o pessoal do departamento de antropologia, mas deixei que a minha recapitulação levasse-me a qualquer lugar no tempo, do presente até o dia em que comecei a freqüentar a escola na UCLA.

Disse a don Juan que uma coisa estranha que descobrira, mas que tinha me esquecido completamente, é que eu nunca tive a menor idéia da existência da UCLA até certa noite quando a amiga e companheira de quarto de minha namorada no tempo do colégio veio a LA e fomos buscá-la no aeroporto. Ela iria estudar música na UCLA. Seu avião chegou no início da noite, e ela pediu-me para levá-la até o campus para dar uma olhadela no lugar onde iria passar os próximos quatro anos de sua vida. Eu sabia onde era o campus, pois passara inúmeras vezes pela sua entrada, na Sunset Boulevard, indo para a praia. Nunca tinha estado no campus, entretanto.

Estávamos num intervalo entre semestres. As poucas pessoas que encontramos nos indicaram onde era o departamento de música. O campus estava deserto, mas o que testemunhara subjetivamente foi a coisa mais estranha que já vira. Foi um deleite para os meus olhos. Os prédios pareciam vivos com uma energia própria. Aquilo que seria uma visitinha ligeira ao departamento de música transformou-se num tour gigantesco do campus inteiro. Apaixonei-me pela UCLA. Mencionei para don Juan que a única coisa que frustou meu êxtase foi a minha namorada ter ficado chateada com a minha insistência em andar a pé pelo enorme campus.

“Que diabos pode existir aqui para se ver?” gritou ela, protestando para mim. “Até parece que você nunca viu um campus universitário em sua vida! Uma vez que viu um, você viu todos. Acho que você está tentando impressionar minha amiga com sua sensibilidade!”

Não estava, e disse veementemente para elas que estava genuinamente impressionado pela beleza de tudo aquilo que me rodeava. Sentia que aqueles prédios eram cheios de esperança, de promessas, e entretanto não conseguia exprimir meu estado interior.

“Eu tenho estado em escolas durante quase toda a minha vida,” disse minha namorada com os dentes cerrados, “e estou cheia e cansada disso! Ninguém irá descobrir nenhuma merda aqui! Tudo que pode ser encontrado aqui é burrice, e eles nem mesmo preparam você para enfrentar as responsabilidades da vida prática.”

Quando mencionei que gostaria de freqüentar algum curso ali, ela ficou ainda mais furiosa.

“Arranje um emprego!” berrou ela. “Vá em frente e viva das oito às cinco da tarde, e esqueça essa besteira! A vida é isto: um emprego das oito às cinco, quarenta horas por semana! Veja o que isso fará com você! Olhe para mim – sou super educada agora, e mesmo assim não estou pronta para conseguir um emprego.”

Tudo o que sentia era que nunca estivera num lugar tão bonito. Fiz então um juramento que iria freqüentar um curso na UCLA, não importava qual, nem que chovesse canivete. Meu desejo tinha tudo a ver comigo, e ainda assim não era movido pela necessidade de gratificação imediata. Era mais algo ligado ao mundo do maravilhoso.

Disse para don Juan que o aborrecimento de minha namorada tinha sido tão fora de propósito para mim que me forçou a vê-la sob um ótica diferente, e, em minha recapitulação, isso foi a primeira vez que um comentário despertou uma reação tão profunda em mim. Vi certos aspectos do caráter de minha namorada que nunca vira antes, aspectos esses que me deixaram profundamente assustado.

“Penso que a julguei com muito rigor”, disse para don Juan. “Depois de nossa visita ao campus, cada um seguiu seu caminho. Foi como se a UCLA tivesse transformado-se numa barreira entre nós. Sei que pensar assim é ser estúpido”.

“Não é ser estúpido”, disse don Juan. “Foi uma reação perfeitamente válida. Enquanto você esteve andando pelo campus tenho certeza de que você teve uma trombada com o intento. Você intentou entrar para a UCLA e tudo que se opunha a isso tinha que ser abandonado.

“Mas não supervalorize o ocorrido,” continuou ele. “O toque dos guerreiros-viajantes é bem suave, embora deva ser cultivado. A mão do guerreiro-viajante é, no princípio, uma mão de ferro, pesada, que segura firme mas que depois transforma-se numa mão de um fantasma, numa mão que parece ser feita de teias de aranha. Os guerreiros-viajantes não deixam nenhuma marca, nenhum rastro. Esse é o desafio para os guerreiros viajantes.”

Os comentários de don Juan colocaram-me num profundo e sombrio estado de espírito em que recriminava a mim mesmo, pois eu soube, com o pouco de recapitulação que fiz, que eu tinha a mão extremamente pesada, que era obsessivo e gostava de dominar. Contei para don Juan as minhas ruminações.

“O poder da recapitulação,” disse don Juan, “é que ela agita todo o lixo de nossas vidas e o faz emergir

Então don Juan delineou a complexidade da consciência e da percepção, que eram a base da recapitulação. Começou dizendo que iria apresentar um conjunto de conceitos que eu não deveria, sob nenhuma hipótese, tomar como teorias da feitiçaria, por que eles eram um conjunto formulado pelos xamãs do México antigo como resultado de sua visão direta da energia, como flui livre no universo. Preveniu-me que iria apresentar as unidades de tal conjunto sem nenhuma tentativa de classificá-las ou de compará-las com qualquer padrão predeterminado.

“Não estou interessado em classificações”, continuou ele. “Você tem classificado tudo em sua vida. Agora você será obrigado a deixar de lado as classificações. Outro dia, quando perguntei para você se sabia alguma coisa sobre as nuvens, você deu-me os nomes de todo os tipos de nuvens e os percentuais de mistura que se poderia esperar existir em cada um deles. Você foi verdadeiramente um meteorologista. Mas quando perguntei se você sabia o que fazer pessoalmente com as nuvens, você disse que não tinha a mínima idéia do que eu estava falando.

“As classificações pertencem a mundos que lhes são próprios,” continuou ele. “Depois que você começa classificar qualquer coisa, a classificação torna-se viva, e controla você. Mas desde que as classificações nunca comecem com eventos que geram energia, elas sempre permanecem como toras mortas. Elas não são como as árvores; são meramente toras.”

Ele explicou que os feiticeiros do México antigo viam que o universo em seu todo é composto de campos de energia em forma de filamentos luminosos. Eles viam um número incalculável deles, enilhões deles, sempre que se predispunham a ver. Eles também viam que tais campos de energia organizavam-se em correntes de fibras luminosas, fluxos que eram constantes, que eram forças perenes no universo, e que as correntes ou fluxos de filamentos que estão relacionados com a recapitulação eram chamados por aqueles feiticeiros de o mar escuro da consciência, e também de Águia.

Ele afirmou que tais feiticeiros também descobriram que cada criatura do universo é ligada ao mar escuro da consciência através de um ponto redondo de luminosidade que ficava aparente quando a criatura correspondente era percebida como energia. Nesse ponto de luminosidade, que os feiticeiros do México antigo chamavam de ponto de aglutinação, don Juan disse que a percepção era aglutinada por um misterioso aspecto do mar escuro da consciência.

Don Juan garantiu que no ponto de aglutinação dos seres humanos, enilhões de campos de energia do universo exterior, na forma de filamentos luminosos, convergem para ali e o atravessam. Tais campos de energia são convertidos em dados sensitivos, os quais são então interpretados e percebidos como o mundo que conhecemos. Don Juan explicou mais ainda que o que transforma as fibras luminosas em dados sensitivos é o mar escuro da consciência. Os feiticeiros vêem essa transformação e chamam-na de o brilho da consciência, um esplendor que toma a forma de halo ao redor do ponto de aglutinação. Ele então preveniu-me de que iria afirmar algo que, no entendimento dos feiticeiros, era primordial para a compreensão da finalidade da recapitulação.

Colocando uma ênfase enorme em suas palavras, ele disse que o que chamamos de sentidos nos organismos nada mais são que graus de consciência. Ele afirmava que se aceitarmos o fato de que os sentidos são o mar escuro da consciência, teremos que admitir que a interpretação que os sentidos fazem dos dados sensitivos é também o mar escuro da consciência. Ele explicou extensivamente que enfrentar o mundo à nossa volta nos termos que usualmente acontece conosco é o resultado do sistema de interpretação com o qual cada ser humano é equipado. Disse também que cada organismo que existe terá também que possuir um sistema de interpretação que permita seu funcionamento em seu meio ambiente.

“Os feiticeiros que surgiram depois dos transtornos apocalípticos dos quais lhe falei”, continuou ele, “viram que no momento da morte, o mar escuro da consciência como que suga para si mesmo, através do ponto de aglutinação, a consciência dos seres vivos. Eles também viram que o mar escuro da consciência tinha, digamos, uma hesitação momentânea quando da morte dos feiticeiros que fizeram uma re-contagem de suas vidas. Sem que soubessem, o mar escuro da consciência tomava a consciência em forma de suas experiências de vida, mas não tocava em sua força vital no caso daqueles feiticeiros que recapitularam suas vidas do modo mais completo possível. Os feiticeiros descobriram uma verdade gigantesca com relação às forças do universo: o mar escuro da consciência quer apenas a nossa experiência de vida, não a nossa força vital”.

As premissas da elucidação de don Juan foram incompreensíveis para mim. Ou talvez seja mais acurado dizer que eu fiquei vagamente e, ao mesmo tempo, profundamente ciente do quão funcionais eram as premissas de sua explanação.

“Os feiticeiros acreditam”, continuou don Juan, “que ao recapitular nossas vidas, tudo o que foi decantado para o fundo, como disse para você, vem à superfície. Nós percebemos nossas contradições, nossas repetições, mas algo em nós aciona uma tremenda resistência em recapitular. Os feiticeiros dizem que a estrada fica livre apenas depois de esforços tremendos, depois de uma gigantesca convulsão, depois do aparecimento na tela de nossa memória de um evento que nos faz tremer nossas bases com terrível claridade de detalhes. É o evento que nos arrasta ao momento real em que nós o vivemos. Os feiticeiros chamam esse evento de o mordomo, porque a partir daí cada evento que tocamos será revivido, não meramente relembrado.

“Andar é sempre algo que agita as memórias”, continuou don Juan. “Os feiticeiros do México antigo acreditavam que tudo o que vivemos nós armazenamos como uma sensação nas costas das pernas. Consideravam que as costas das pernas era o armazém da história pessoal dos homens. Assim, iremos dar um passeio agora até as montanhas.”

Andamos até que já era quase noite.

“Acredito que fizemos uma caminhada longa bastante,” disse don Juan quando chegamos de volta à sua casa, “para que você ficasse pronto para começar a manobra dos feiticeiros de encontrar o mordomo: um evento em sua vida que você irá relembrar com uma clareza tal que servirá como uma lanterna para iluminar tudo o mais em sua recapitulação com a mesma clareza, ou com a clareza comparável a ela. Faça aquilo que os feiticeiros chamam de recapitular as peças de um quebra-cabeça. Algo que o fará lembrar-se do evento que lhe servirá de mordomo para você.”

Ele deixou-me só, dando-me um último aviso.

“Dê a isso o melhor de seus esforços”, disse ele. “Capriche!”

Fiquei extremamente silente por um momento, devido talvez ao silêncio ao meu redor. Experimentei, em seguida, uma vibração, uma espécie de tremor em meu peito. Tive dificuldade de respirar, mas repentinamente algo se abriu em meu peito permitindo-me realizar uma respiração profunda, e uma visão total de um evento esquecido de minha infância explodiu em minha memória, como se estivesse mantido cativo e depois liberado de repente.

Eu estava no estúdio de meu avô, onde ele tinha uma mesa de bilhar, e eu estava jogando com ele. Eu tinha quase nove anos na época.

Meu avô era um jogador de bilhar muito habilidoso, e compulsivamente ensinara-me cada uma das tacadas que sabia até que eu tivesse aprendido o bastante para jogar com ele seriamente. Nós passamos horas a fio jogando bilhar. Eu tornei-me tão perito que um dia derrotei-o. A partir desse dia, ele não conseguia ganhar de mim. Mais de uma vez errava deliberadamente para agradá-lo, mas ele percebia e ficava furioso comigo. Certa vez, ele ficou tão transtornado que bateu em minha cabeça com o taco.

Para deleite e contrariedade de meu avô, na época em que eu tinha nove anos de idade, eu podia fazer uma carambola atrás da outra, sem parar. Ele tornou-se tão frustado e impaciente jogando comigo certa vez que jogou seu taco no chão e falou-me para continuar jogando comigo mesmo. Minha natureza compulsiva possibilitou-me competir comigo mesmo e trabalhar na mesma jogada uma vez atrás da outra até executá-la com perfeição.

Certa vez, um homem conhecido na cidade por suas ligações com o jogo, dono de uma casa de bilhares, veio visitar meu avô. Eles estavam conversando sobre bilhares quando eu surgi na sala. Tentei imediatamente retirar-me, mas meu avô agarrou-me e me fez entrar.

“Esse é meu neto”, disse ele para o homem.

“Muito prazer em conhecê-lo”, disse o homem. Encarou-me com um olhar sério, e depois estendeu-me sua mão, que era do tamanho da cabeça de uma pessoa normal.

Fiquei horrorizado. Sua enorme explosão de gargalhada revelou para mim que ele percebera o meus desconforto. Disse-me que seu nome era Falelo Quiroga, e eu murmurei meu nome.

Ele era muito alto, e extremamente bem vestido. Usava um terno com colete listrado de azul com lindas calças de boca estreita. Devia andar pelo inícios de seus cinqüenta anos, mas era elegante e bem proporcionado, a menos da barriga, um pouco acentuada. Ele não era gordo; parecia cultivar o olhar do homem que é bem alimentado e que não necessita de absolutamente nada. A maioria das pessoas em minha cidade natal era macilenta. Era uma gente que dava duro para ganhar a vida e não tinha tempo para refinamentos. Falelo Quiroga parecia o oposto. Todo o seu modo de ser parecia mostrar que ele só tinha tempo para refinamentos.

Era agradável olhar para ele. Tinha uma face branda, bem barbeada e com bondosos olhos azuis. Tinha o ar e a confiança de um médico. O pessoal da cidade usava dizer que ele seria capaz de colocar qualquer pessoa à vontade, e que deveria ter seguido a carreira eclesiástica, ou a de um advogado ou de médico, em vez de ser um jogador. Diziam também que ele ganhou no jogo mais dinheiro que todos os médicos e advogados da cidade, juntos, ganharam trabalhando.

Seu cabelo era preto e cuidadosamente penteado. Estava raleando-se consideravelmente. Ele tentava ocultar o fato de que estava ficando careca, penteando o cabelo para a frente. Tinha um queixo quadrado e um sorriso absolutamente encantador. Os dentes eram brancos e grandes, muito bem cuidados, última novidade na região, onde a quantidade de pessoas com dentes estragados era monumental. As outras características de Falelo Quiroga notáveis para mim, eram seus enormes pés calçados com sapatos pretos de couro, feitos a mão. Fiquei fascinado pelo fato de seus sapatos não chiarem nem um pouco enquanto ele andava de um para o outro lado na sala. Estava acostumado a perceber a aproximação de meu avô pelo chiado das solas de seus sapatos.

“Meu neto joga bilhar muito bem”, disse meu avô casualmente para Falelo Quiroga. “Que tal eu dar-lhe meu taco para ele jogar com você enquanto eu fico assistindo?”.

“Essa criança joga bilhar?” perguntou o grandalhão, rindo, ao meu avô.

“Oh, joga sim”, assegurou meu avô. “É claro que não joga tão bem como você, Falelo. Por que você não experimenta jogar com ele? E para tornar o jogo mais interessante para você, de maneira que não haja necessidade de você jogar paternalmente, vamos apostar um pouco de dinheiro. Que tal apostar essa quantia?”

Ele colocou um maço grosso de notas amassadas sobre a mesa e sorriu para Falelo, balançando a cabeça de um lado para o outro como que insinuando que o homenzarrão não teria coragem de aceitar a aposta.

“Meu Deus, tudo isso?” disse Falelo, olhando para mim interrogativamente. Abriu a carteira e tirou algumas notas cuidadosamente dobradas. Isso, para mim, foi outro detalhe surpreendente. Meu avô tinha o hábito de andar com seu dinheiro em seus dois bolsos, onde as notas ficavam amarrotadas. Quando precisava fazer algum pagamento, ele tinha que alisar as notas para poder contá-las.

Falelo Quiroga nada disse, mas eu sabia que ele se sentia como um assaltante de beira de estrada. Sorriu para meu avô e, obviamente por causa do respeito que tinha por ele, colocou o dinheiro sobre a mesa. Meu avô, agindo como o árbitro, fixou um certo número de carambolas como a meta do jogo e lançou uma moeda para o ar para ver quem começaria. Falelo Quiroga ganhou.

“É melhor você caprichar, sem nenhuma hesitação”, disse meu avô incitando-o. “Não tenha qualquer escrúpulo em arrasar esse bobinho e embolsar o meu dinheiro!”.

Falelo Quiroga, seguindo o conselho de meu avô, caprichou o máximo que pôde, mas depois de certo tempo perdeu uma carambola por um fio de cabelo. Peguei o taco. Pensei que fosse desmaiar, mas vendo o jubilo de meu avô – ele dava pulinhos de alegria – acalmei-me, e, além disso, fiquei irritado ao ver Falelo Quiroga quase rachar de tanto rir do modo como eu segurava o taco. Eu não podia dobrar-me sobre a mesa, do modo com comumente se joga o bilhar, por causa de minha altura. Mas meu avô, com esmerada paciência e determinação, ensinou-me um modo alternativo para o jogo. Estendendo o meu braço para trás ao máximo possível, segurava o taco logo acima dos ombros, para o lado.

“O que ele faz para jogar quando tiver que atingir o meio da mesa?” perguntou Falelo, rindo.

“Ele fica dependurado na quina da mesa”, disse meu avô tranqüilamente. “Isso é permitido, como você deve saber”.

Meu avô aproximou-se de mim e disse entre os dentes que se eu tentasse ser polido e perdesse, ele iria quebrar todos os tacos em minha cabeça. Sabia que ele não falava sério; aquele era simplesmente o seu modo de expressar sua confiança em mim.

Venci facilmente. Meu avô não cabia em si de contentamento, mas por estranho que pareça, o mesmo acontecia com Falelo Quiroga. Ele ria a não mais poder, enquanto andava ao redor da mesa, batendo nas tabelas. Meu avô colocava-me nas alturas com seus elogios. Contou para Quiroga qual foi o maior placar que eu conseguira, e brincou dizendo que eu atingira a excelência porque ele descobrira como me atrair para que praticasse: café com pastel dinamarquês.

“Você está brincando, está brincando!” disse Quiroga repetidas vezes. Despediu-se; meu avô pegou o dinheiro e o incidente foi esquecido.

Meu avô prometera-me levar-me num restaurante e pedir o melhor prato da cidade, mas nunca cumpriu sua promessa. Ele era muito sovina; tinha a fama de ser mão aberta só com mulheres.

Dois dias depois, dois homens enormes ligados ao Quiroga abordaram-me no final das aulas, quando dirigia-me para casa.

“Falelo quer conversar com você”, disse um deles com uma voz gutural. “Ele quer que você vá até onde ele está para tomar café com pastéis dinamarqueses com ele”.

Se ele não tivesse mencionado café com pastéis dinamarqueses, provavelmente eu teria saído correndo e fugido deles. Lembrei-me então que meu avô dissera para Falelo que eu venderia minha alma em troca de café com pastéis dinamarqueses. Fui com os dois alegremente. Não conseguia, entretanto, caminhar tão depressa como eles, e por isso um dos dois, o que se chamava Guillermo Falcón, carregou-me em seus braços enormes. Ele ria através de seus dentes tortos.

“É melhor aproveitar o passeio, menino”, disse ele. Seu hálito era terrível. “Alguém já te carregou? Pelo jeito que você mexe, parece que não, nunca!” Ficou rindo grotescamente.

Felizmente a casa de Falelo não era muito distante da escola. O senhor Falcón colocou-me num sofá, num escritório. Falelo Quiroga estava lá, sentado atrás de uma enorme escrivaninha. Levantou-se e apertamos as mãos. Ele providenciou imediatamente café com deliciosos pastéis para mim, e nós dois ficamos conversando amigavelmente sobre a fazenda de criar galinhas de meu avô. Ele perguntou-me se queria mais pastéis, e eu disse que eu não me importaria se tivesse mais. Ele riu, e foi ele mesmo buscar no cômodo ao lado uma bandeja cheia de deliciosos pastéis.

Depois que eu, literalmente, fartei-me, ele perguntou-me polidamente se eu estava disposto a ir até sua sala de bilhares na calada da noite jogar algumas partidas amistosas com alguns amigos escolhidos por ele. Mencionou casualmente que estaria em jogo uma enorme quantidade de dinheiro. Disse abertamente de sua confiança em minha habilidade, acrescentando que iria pagar-me uma percentagem do dinheiro que arrecadasse. Disse mais que conhecia a mentalidade de minha família; eles achariam que não seria correto que ele me desse dinheiro, mesmo sendo um pagamento. Por isso ele prometeu colocar o dinheiro no banco numa conta especial que abriria para mim, ou, melhor ainda, ele iria pagar qualquer compra que eu fizesse nas lojas da cidade, ou pagaria qualquer conta em restaurantes da cidade pelo consumo que eu tivesse feito.

Eu não acreditei em uma só palavra de tudo o que ele dissera. Sabia que Falelo Quiroga era um escroque, um chantagista. Gostei, entretanto, da idéia de jogar bilhar com pessoas que não conhecia, e então aceitei uma barganha com ele.

“Você me daria café com pastéis dinamarqueses como esses que me deu hoje?” perguntei.

“É claro, garoto,” replicou ele. “Se você vier jogar para mim, eu comprarei uma confeitaria para você! Farei com que o confeiteiro faça os pastéis só para você. Te dou minha palavra”.

Preveni Falelo Quiroga que a única dificuldade seria minha incapacidade de sair de casa; tinha muitas tias que me vigiavam como falcões, e, além disso, meu quarto de dormir era no segundo andar.

“Isso não é problema”, Garantiu-me Falelo. “Você é muito pequeno. O senhor Falcón pegará você nos braços quando você saltar da janela. Ele é grande como uma casa! Recomendo que você vá para a cama cedo esta noite. O senhor Falcón irá acordar você assobiando e jogando pedrinhas em sua janela. Mesmo assim, você deverá estar atento, pois ele não tem muita paciência”.

Fui para casa no meio da maior excitação. Não consegui pegar no sono. Estava inteiramente acordado quando ouvi o assobio do senhor Falcón e ouvi o ruído das pedrinhas nas vidraças de minha janela. Abri a janela. O senhor Falcón estava bem debaixo de mim, na rua.

“Pule nos meus braços, menino”, disse ele para mim numa voz baixa, que ele tentava modular num murmúrio alto. “Se você não acertar meus braços, deixarei você cair e você morrerá. Lembre-se disto. Não me obrigue a sair do lugar. Basta mirar meus braços. Pule! Pule!”

Pulei e ele pegou-me como alguém pega uma trouxa de roupa. Colocou-me no chão e falou para mim que corresse. Disse que eu era uma criança que fora acordada de um sono profundo e que ele deveria fazer-me correr para que eu ficasse totalmente desperto quando chegasse na casa onde estavam os bilhares.

Joguei nesta noite com dois homens e ganhei as duas partidas. Tomei café com os pastéis mais deliciosos que se possa imaginar. Pessoalmente, estava no céu. Era por volta das sete da manhã quando voltei para casa. Ninguém notara minha ausência. Estava na hora de ir para a escola. Para todas as finalidades práticas, tudo estava normal, salvo o fato de que eu estava tão cansado que não conseguia manter os olhos abertos durante todo o dia.

A partir desse dia, Falelo Quiroga mandava o senhor Falcón pegar-me duas a três vezes por semana, e eu ganhava cada jogo que ele fazia-me jogar. E fiel à sua promessa, ele pagava toda compra que eu fazia, inclusive as refeições em meu restaurante chinês favorito, aonde eu ia diariamente. Algumas vezes eu até mesmo convidava meus amigos, a quem eu apavorava ao extremo correndo e gritando para fora do restaurante quando o garçom apresentava a conta. Eles ficavam deslumbrados com o fato de nunca terem sido presos por comer sem nunca pagar a conta.

O que era um sofrimento enorme para mim era que nunca concebera o fato de que eu tinha que corresponder às expectativas e esperanças das pessoas que apostavam em mim. O cúmulo do sofrimento, entretanto, ocorreu quando um exímio jogador de uma cidade vizinha desafiou Falelo a fazer uma aposta gigantesca. A noite do jogo não foi nada auspiciosa. Meu avô adoeceu e não conseguia pegar no sono. A família inteira estava agitada. Parecia que ninguém iria para a cama. E duvidava que conseguisse esgueirar-me para fora de meu quarto, mas os assobios e as pedrinhas jogadas em minha janela mostravam que o senhor Falcón estava mais insistente que nunca e por isso resolvi correr o risco e saltar da janela para seus braços.

Parecia que todos os homens da cidade foram ao salão de bilhar para assistir ao jogo. Faces angustiadas pediam-me com os olhos para não perder. Algumas pessoas garantiam-me que tinham apostado suas casas e todos os seus pertences. Uma delas, disse-me, em tom ao mesmo tempo sério e de brincadeira, que apostara sua mulher; se eu não ganhasse, ele seria naquela noite ou um corno ou um assassino. Não esclareceu se queria dizer que mataria sua mulher para não ser um corno ou se mataria a mim, por ter perdido o jogo.

Falelo Quiroga andava de um lado para outro. Ele queria que eu ficasse relaxado. Um massagista colocou toalhas quentes em meus braços e punhos e toalhas frias em minha testa. Calçou-me com os sapatos mais macios e confortáveis que eu jamais usara em minha vida. Ele tinha calcanhares militares duros e suportes em forma de arcos. Falelo Quiroga fez-me usar até mesmo um boné para evitar que meus cabelo caísse na testa, como também um macacão largo, com cinto.

A metade das pessoas ao redor do bilhar era gente de fora. Elas olhavam ferozmente para mim. Davam-me a impressão de que queriam que eu morresse. Falelo Quiroga jogou cara ou coroa para ver quem começaria o jogo. Meu oponente era um brasileiro de ascendência chinesa, jovem, de cara redonda, janota e confiante. Ele iniciou o jogo e fez um número estonteante de pontos. Pela cara de Falelo vi que ele estava a ponto de ter um ataque do coração, do mesmo modo que todos os outros que haviam apostado em mim tudo o que tinham.

Joguei muito bem nesta noite, e assim que me aproximei do número de pontos que o meu oponente fizera, o nervosismo dos que apostaram em mim atingiu seu limite. Falelo Quiroga era o mais histérico de todos eles. Ele gritava para todo o mundo e exigia que alguém abrisse as janelas porque a fumaça dos cigarros tornava o ar irrespirável para mim. Ele queria o massagista para relaxar meus braços e ombros. Finalmente, tive que mandar todo o mundo ficar quieto, e numa pressa danada, fiz os oito pontos que necessitava para vencer. A euforia dos que apostaram em mim era indescritível. Eu fiquei indiferente a tudo aquilo pois já era quase de manhã e eles tiveram que me levar às pressas para casa.

Meu cansaço neste dia era ilimitado. Demonstrando muita consideração, Falelo Quiroga deixou-me em paz por toda uma semana. Uma tarde, entretanto, o senhor Falcón foi encontrar-me na saída da escola e levou-me para o salão dos bilhares. Falelo Quiroga estava extremamente sério. Nem mesmo ofereceu-me café com pastéis dinamarqueses. Mandou que todos se retirassem da sala e foi diretamente ao assunto. Puxou sua cadeira para perto da minha.

“Coloquei no banco uma grande quantidade de dinheiro para você”, disse ele solenemente. “Cumpri o que prometi para você. Dou a minha palavra que irei sempre cuidar de você. Você sabe disso! Agora, se você fizer o que vou pedir para você fazer, irá ganhar tanto dinheiro que não terá que trabalhar nenhum dia em toda a sua vida. Quero que você perca seu próximo jogo por um ponto. Sei que você conseguirá tal proeza. Mas quero que você perca o ponto passando com a bola a uma distância da outra de apenas um fio de cabelo. Quanto mais dramática for o jogada, melhor.”

Fiquei atônito. Tudo aquilo era incompreensível para mim. Falelo Quiroga repetiu toda sua proposta e explicou mais que ele iria apostar anonimamente contra mim tudo o que possuía e que aquele era o novo tipo de acordo entre nós.

“O senhor Falcón tem tomado conta de você durante meses”, disse ele. “Tudo o que tenho para lhe contar é que o senhor Falcón usa toda a força que tem para te proteger, mas ele poderá usar toda a sua força para fazer o contrário”.

A ameaça de Falelo não poderia ter sido mais clara. Ele deve ter visto em minha cara o horror que senti, pois relaxou e começou a rir.

“Oh, mas você não precisa se preocupar com tais coisas”, disse ele tentando tranqüilizar-me, “pois nós dois somos irmãos”.

Esta foi a primeira vez em minha vida em que me vi numa posição insustentável. Queria, com toda a minha força, fugir da presença de Falelo Quiroga por causa do medo que ele despertara em mim. Mas, ao mesmo tempo, e com a mesma força, queria ficar; queria a facilidade de ter condições de comprar o que quisesse, de qualquer loja que fosse, e acima de tudo, de poder comer em qualquer restaurante à minha escolha, sem pagar nada. Nunca, entretanto, havia enfrentado o dilema de escolher entre uma coisa ou outra.

Inesperadamente, pelo menos para mim, meu avô mudou-se para outro endereço, bastante distante do anterior. Era como se ele soubesse o que estava acontecendo, e mandou-me antes que todas as outras pessoas. Eu duvidei do fato de que ele realmente soubesse o que estava acontecendo. Parecia que sua decisão de mandar-me na frente era uma de suas ações intuitivas usuais.

A volta de don Juan tirou-me das minhas recordações. Perdi a noção do tempo. Deveria estar morrendo de fome, mas não sentia nenhuma vontade de comer. Estava cheio de uma energia nervosa. Don Juan acendeu uma lanterna de querosene e dependurou-a no prego da parede. Sua luz fraca fez surgir no quarto umas estranhas sombras dançantes. Demorei alguns instantes para acostumar-me com a semi-escuridão do quarto. Entrei então num estado de profunda tristeza. Era um sentimento estranho, como que separado de mim, uma saudade longínqua que veio daquela semi-escuridão, ou talvez da sensação de estar preso em uma armadilha. Estava tão cansado que queria ir embora, e com a mesma força, queria ficar.

A voz de don Juan restabeleceu o meu autocontrole. Parecia que ele sabia a razão e a profundidade do meu tormento, e modulou a voz para ajustá-la àquele momento. A severidade de seu tom de voz ajudou-me a recuperar o controle sobre algo que poderia facilmente transformar-se numa reação histérica à fadiga e ao estímulo mental.

“Contar de novo os eventos é, para os feiticeiros, algo mágico,” disse ele. “Não se trata apenas de contar histórias. É ver a trama subjacente aos eventos. É por isso que contar de novo é tão importante e vasto”.

A seu pedido, contei para don Juan o evento que acabara de recordar.

“Muito apropriado”, disse ele, dando uma risadinha gostosa. “O único comentário que posso fazer é que os guerreiros-viajantes se deixam levar. Vão para qualquer lugar que o impulso possa levá-los. O poder dos guerreiros-viajantes é estar alerta, no sentido de conseguir o maior efeito com o mínimo de impulso. E principalmente, seu poder reside em não interferir. Os eventos possuem uma força, uma gravidade própria, e viajantes são apenas viajantes. Tudo à sua volta é apenas para seus olhos. Desse modo, os viajantes constróem o significado de cada situação, sem nunca perguntar como aquilo pode acontecer de uma e não de outra maneira.

“Hoje você recordou um evento que abrange a totalidade de sua vida,” continuou ele. “Você está sempre enfrentando uma situação que é a mesma que aquela que você nunca solucionou. Na realidade você nunca teve que escolher entre aceitar ou rejeitar o acordo desonesto de Falelo Quiroga.

“O infinito sempre nos coloca nessa terrível posição de ter que escolher,” continuou ele. “Queremos o infinito, mas, ao mesmo tempo, queremos fugir dele. Gostaríamos de sair correndo e pular num lago, mas ao mesmo tempo gostaríamos de ser compelidos a ficar. Seria infinitamente mais fácil ser compelido a ficar”.

 

                    A Interação da Energia no Horizonte

A claridade do mordomo (a tradução correta seria: condutor e não mordomo) trouxe um novo ímpeto à minha recapitulação. Um novo estado de espírito substituiu o antigo. A partir de então, comecei a recapitular os eventos de minha vida com uma clareza alucinante. Era exatamente como se tivesse sido construída uma barreira em meu interior que mantinha-me preso rigidamente a umas poucas e vagas memórias, e o mordomo a tivesse demolido. A faculdade da memória fora para mim, antes de tal ocorrência, um modo vago de referir-me a fatos já acontecidos, os quais, de modo geral, eu queria esquecer. Basicamente, eu não tinha nenhum interesse em recordar nada que acontecera em minha vida. Desse modo, honestamente, eu não via nenhuma finalidade em tal exercício fútil de recapitular, que don Juan praticamente me impôs. Para mim, era uma tarefa que me cansava instantaneamente e que servia apenas para destacar minha incapacidade de concentração.

Apesar disso, entretanto, eu, obedientemente, fiz a lista das pessoas e iniciei a esmo a tarefa de tentar lembrar-me dos meus relacionamentos com as mesmas. A minha falta de clareza em focalizar essas pessoas não me dissuadiu. Realizei o que considerei meu dever, sem dar importância ao que sentia. Com a prática, a clareza de minhas recordações aumentou. Pensava com facilidade notável. Era capaz de descer, a bem dizer, a certos eventos escolhidos com uma agudeza impressionante, que era ao mesmo tempo assustadora e gratificante. Depois que don Juan apresentou-me a idéia do mordomo, entretanto, o poder de minhas recordações tornou-se algo para o qual eu não possuo nenhum nome.

Seguir minha lista de pessoas fez a recapitulação ser extremamente formal e exigente, do modo como queria don Juan. Mas de intervalo a intervalo, algo em mim soltava-se, algo que me forçava a focalizar em eventos não relacionados com minha lista, eventos cuja clareza era tão assustadora que me via preso e submerso nos mesmos, talvez com maior intensidade que aquela em que me encontrava quando da ocorrência dos mesmos. Cada vez que recapitulava desse modo, surgia um grau de desapego que me permitia perceber algum detalhe que me escapara na época em que vivera aquele evento.

A primeira vez na qual a recordação de um evento sacudiu-me dos pés à cabeça aconteceu depois de uma palestra que dei num colégio em Oregon. Os estudantes responsáveis pela realização da palestra conduziram a mim e a outro colega meu a uma casa para passar a noite. Eu iria para um motel, mas eles insistiram que teríamos muito mais conforto na casa. Disseram que a casa era situada no campo, sem nenhum ruído, que era o lugar mais quieto do mundo, sem telefone, sem interferências externas. Eu, tolo como era, concordei em ir com eles. Don Juan não apenas recomendara-me agir como um pássaro solitário, como também exigira que eu observasse sua recomendação, algo que eu fazia a maior parte do tempo, mas em certas ocasiões o criatura gregária que existia em mim tomava as rédeas.

O comitê levou-nos para a casa, bem distante de Portland, de um professor que estava fora, descansando. Apressadamente, eles acenderam todas as luzes de dentro e de fora da casa, que situava-se numa elevação, com focos de luz em todo o seu redor. Por causa de tais focos, a casa se tornaria visível a uma distância considerável.

Depois disso, o comitê retirou-se tão depressa quanto pôde, algo que muito me surpreendeu, pois esperava que aquelas pessoas ficassem e conversassem durante algum tempo. A casa era de madeira, com a estrutura em forma de A; era pequena mas muito bem construída. Tinha uma sala enorme e, sobre ela, um mezanino com o quarto de dormir.

Logo acima, no topo do A, existia um crucifixo de tamanho natural, dependurado numa estranha articulação rotativa que foi fixada na cabeça da figura. Os focos de luz da parte externa da casa iluminavam diretamente o crucifixo. A sua visão era algo bastante impressionante, principalmente quando girava com um chiado que indicava falta de lubrificação da articulação.

O banheiro da casa era outra peça digna de nota. O teto, paredes e assoalho eram revestidos de espelhos, iluminados com uma luz avermelhada. Não havia como ir ao banheiro sem se ver a si mesmo segundo cada ângulo possível. Eu apreciei todas essas características da casa, que me pareceram estupendas.

Quando chegou a hora de dormir, entretanto, encontrei um sério problema, pois só havia uma caminha estreita, dura, quase monástica e meu amigo antropólogo estava com ameaça de pneumonia, com dificuldade de respirar, tendo de cuspir catarro cada vez que tossia. Ele foi direto para a cama e adormeceu. Procurei por um lugar para dormir. Não achei nenhum. A casa era desprovida de conforto. Além disso, era fria. O pessoal do comitê havia acendido as luzes, mas não ligara o aquecedor. Procurei pelo aquecedor. Minha busca foi inútil, como fora inútil minha busca pelos interruptores dos focos de luz de fora como das luzes da parte interior. Os interruptores estavam ali, nas paredes, mas devia haver uma chave geral que os comandava e essa eu não pude encontrar. As luzes estavam acesas e eu não tinha como apagá-las.

O único lugar que encontrei para dormir foi sobre uma estreita passadeira, e a única coisa que achei para cobrir-me foi uma pele curtida de um poodle francês gigante. Obviamente ele fora o cãozinho de estimação da casa e foi, daquela maneira, preservado; tinha olhos brilhantes pretos, parecendo bolinhas de gude, e uma boca aberta da qual pendia a língua. Coloquei a cabeça do poodle sobre meus joelhos e cobri-me com a parte traseira da pele curtida, que chegava apenas no meu pescoço. A cabeça do poodle era como um pesado objeto entre meus joelhos, e assim bastante desconfortável. Se as luzes estivessem apagadas, a situação não seria tão insuportável. Eu enrolei algumas peças de roupa suja para servir como travesseiro. Usei outras, ao máximo possível, para cobrir a pele do poodle francês do melhor modo que consegui. Não preguei os olhos durante toda a noite.

Foi quando, deitado ali, xingando a mim mesmo por ter sido tão estúpido não seguindo as recomendações de don Juan, que tive a primeira recordação assustadora de minha vida inteira. Recordei o evento que don Juan havia chamado de mordomo com a mesma clareza, mas minha tendência sempre fora de desprezar pela metade o que acontecera comigo quando estava com don Juan, na base de que, com sua presença, tudo era possível. Dessa vez, entretanto, eu estava sozinho.

Anos antes de encontrar don Juan, trabalhara na pintura de anúncios em edifícios. Meu patrão chamava-se Luigi Palma. Um dia, Luigi fez um contrato referente à pintura de anúncios de venda e aluguel de vestidos de noiva e ternos de noivo na parede de trás de um velho edifício. O dono da loja, localizada no edifício, queria chamar a atenção de eventuais fregueses com um anúncio enorme. Luigi iria pintar uma noiva e um noivo, e eu pintaria o letreiro. Fomos até o teto plano do prédio e instalamos o andaime.

Eu estava bastante apreensivo, embora não houvesse razão aparente para tanto. Havia pintado dezenas de anúncios em edifícios altos. Luigi pensou que eu estaria começando a ter medo de altura, mas que tratava-se de coisa passageira. Quando chegou a hora de iniciarmos o serviço, ele desceu o andaime um pouco abaixo do teto e pulou sobre ele. Foi para uma extremidade e eu para a outra, para que ele ficasse inteiramente livre para pintar. Ele era o artista.

Luigi começou a exibir-se. Seus movimentos para pintar foram tão erráticos e agitados que o andaime movia-se de um lado para o outro. Eu fiquei tonto. Queria voltar para o teto, com o pretexto de que necessitava de mais tinta e de pincéis. Agarrei a borda da platibanda e tentei impulsionar-me para cima, mas as pontas de meus pés ficaram presas na borda do andaime. Tentei empurrar meus pés e o andaime na direção da parede; quanto mais tentava, mais o andaime afastava da parede. Em lugar de ajudar-me a soltar meus pés, Luigi sentou-se no andaime e abraçou as cordas que prendiam as tábuas no teto. Fez o sinal da cruz e olhou para mim aterrorizado. Depois ficou de joelhos, chorando baixinho enquanto rezava o Pai Nosso.

Agarrei-me na platibanda para não cair; o que me deu forças, em meu desespero, foi a certeza de que se me controlasse, poderia evitar que o andaime deslocasse ainda mais para fora da parede. Eu não iria perder minha pega e despencar de treze andares para morrer. Luigi, sendo um feitor compulsivo incorrigível, gritava para mim, em meio às lágrimas, que eu deveria rezar. Ele jurava que nós dois iríamos cair e morrer, e que a última coisa que deveríamos fazer seria rezar para a salvação de nossas almas. Por um momento, considerei se seria ou não algo funcional rezar naquela hora. Optei por gritar por socorro. As pessoas do edifício devem ter ouvido meus gritos pois mandaram os bombeiros para nos resgatar. Sinceramente eu pensei que decorreram apenas dois ou três segundos a partir de meus gritos para que os bombeiros chegassem até o teto e agarrassem a mim e ao Luigi e prendessem o andaime.

Na verdade, eu fiquei pendurado no lado do edifício pelo menos por vinte minutos. Quando os bombeiros finalmente colocaram-me no teto, perdi qualquer vestígio de auto controle. Vomitei no chão duro do teto, passando mal por causa do medo e do cheiro repulsivo de alcatrão derretido. Era um dia muito quente; o alcatrão que calafetava as juntas das lajotas usadas no teto, derreteu por causa do calor. A minha tormenta havia sido tão assustadora e desconcertante que eu nunca mais iria querer lembrar-me dela, e acabei por fantasiar que os bombeiros haviam colocado-me num quarto quentinho, pintado de amarelo; depois deitaram-me numa cama maravilhosamente confortável, e eu caí tranqüilamente no sono, vestido em meu pijama, livre de qualquer perigo.

Minha segunda recordação foi outra explosão de força incomensurável. Conversava tranqüilamente com um grupo de amigos quando, sem nenhuma razão aparente que justificasse o fato, de repente, perdi a respiração sob o impacto de um pensamento, de uma recordação, vaga de início, mas logo depois transformando-se numa experiência envolvente. Sua força era tão intensa que tive que pedir desculpas e retirar-me por um momento para uma esquina. Meus amigos pareceram entender a minha situação, pois debandaram-se sem nenhum comentário. O que estava retornando à minha memória era um incidente que ocorrera no meu último ano de faculdade.

Eu e meu melhor amigo usávamos ir a pé para a escola, passando em frente de uma grande mansão, que tinha uma grade de ferro fundido de pelo menos dois metros de altura, cujas barras eram pontiagudas em suas extremidades. Atrás das grades existiam gramados extensos, muito bem cuidados, e um pastor alemão enorme e feroz. Todos os dias, nós mexíamos com o cachorro e deixávamos que ele avançasse para nós. Ele, fisicamente, esbarrava na grade de ferro, mas sua raiva parecia trespassá-la e chegar até nós. Meu amigo adorava excitar o cachorro todos os dias, numa espécie de disputa entre a mente e a matéria. Ele costumava botar a cara a alguns centímetros do focinho da fera, enfiado entre duas barras, ficando cerca de quinze centímetros para fora, e arreganhar os dentes do mesmo modo que o cachorro.

“Lata, lata!” gritava meu amigo todas as vezes. “Obedeça! Obedeça! Eu sou mais poderoso que você!”

Suas demonstrações diárias de poder mental, que duravam pelo menos cinco minutos, nunca afetavam o cachorro, além de deixá-lo mais furioso que nunca. Meu amigo assegurava-me, como parte de seu ritual diário, que o cachorro acabaria por obedecê-lo ou por cair morto de um ataque de coração, causado por sua raiva. Sua convicção era tão intensa que eu acreditei que o cachorro iria tombar morto um dia qualquer.

Certa manhã, ao passarmos pela casa, o cachorro não apareceu. Esperamos durante alguns minutos, mas nada; então, nós o vimos, na extremidade do enorme gramado. Ele parecia estar muito ocupado ali, pelo que começamos a nos afastar. Pela quina do olho, notei que o cachorro corria à toda, em nossa direção. Quando estava a uns setenta ou oitenta centímetros da grade, ele deu um pulo gigante sobre ela. Eu tinha a certeza de que ele iria rasgar a barriga nas pontas da grade. Ele passou raspando-as e caiu na calçada como um saco de batatas.

Por um momento pensei que tivesse morrido, mas estava apenas meio tonto. De repente, levantou-se, e em lugar de correr atrás de quem sempre o enraivecia, o cachorro correu atrás de mim. Pulei na capota de um carro, mas o carro era nada para o cachorro. Deu um pulo e quase ficou por cima de mim. Desci do carro às carreiras e subi na primeira árvore que encontrei, uma arvorezinha que quase não agüentava o meu peso. Estava certo de que iria partir ao meio, mandando-me diretamente para as mandíbulas do cão, que me estraçalhariam.

Na árvore, quase fiquei fora de alcance do cachorro, mas ele pulou novamente, e deu uma mordida em meu bumbum, rasgando as minhas calças. Na verdade, feriu minhas nádegas. No momento em que fiquei fora de seu alcance na árvore, o cachorro foi embora, saindo correndo pela rua, talvez buscando o meu amigo. Na enfermaria da escola, uma enfermeira disse-me que eu teria que pedir ao dono do cachorro o certificado de vacinação contra a raiva.

“Você deve cuidar disso”, disse ela severamente. “É até possível que você já esteja com a doença. Se o dono do cachorro se recusar, você tem direito a chamar a polícia.”

Eu conversei com o vigia da casa onde morava o cachorro. Ele acusou-me de incitar o cachorro mais valioso do proprietário, um animal com pedigree, a pular a grade.

“É melhor você tomar cuidado, rapaz!” disse ele com raiva. “O cachorro desapareceu. O proprietário mandará você para a cadeia se continuar a nos aborrecer”.

“Mas eu posso ter pegado raiva”, sinceramente aterrorizado.

“Eu não dou a mínima se você pegar até a peste bubônica”, retorquiu o homem. “Caia fora!”

“Eu vou chamar a polícia,” disse eu.

“Chame quem você quiser”, respondeu ele. “Você chama a polícia e nós a viramos contra você. Nesta casa temos muita influência para fazer isso”.

Eu acreditei nele e então menti para a enfermeira, dizendo que o cachorro não pôde ser encontrado e que não tinha dono.

“Oh, meu Deus!” exclamou a mulher. “Então espere pelo pior. Terei que mandá-lo para o médico”. Deu-me uma longa lista de sintomas que eu deveria esperar ou procurar por eles até que se manifestassem. Ela disse que as injeções para combate à raiva eram extremamente dolorosas, e que deveriam ser aplicadas via subcutânea, na região da barriga. “Eu não desejaria tal tratamento para o meu pior inimigo,” disse ela, lançando-me num terrível pesadelo.

O que se seguiu foi minha primeira depressão real. Eu ficava deitado na cama, sentindo todos os sintomas enumerados pela enfermeira. Por fim, fui até a enfermaria da escola e pedi a enfermeira para aplicar-me o tratamento para raiva, não me importando quão doloroso fosse ele. Fiz uma cena terrível. Fiquei histérico. Eu não havia pegado a raiva, mas perdi totalmente o auto controle.

Relatei para don Juan a recordação dos dois eventos com todos os detalhes, sem omitir nada. Ele não fez nenhum comentário. Apenas balançou por algumas vezes a cabeça, afirmativamente

“Em ambas as recordações, don Juan,” disse eu, sentindo a ansiedade de minha própria voz, “eu estava tão histérico como ninguém. Meu corpo todo tremia. Fiquei enjoado. Não quero dizer que era como se eu tivesse tendo experiências, porque essa não era a verdade. Eu realmente experimentava em ambos os casos. E quando eu não pude mais agüentar aquilo, saltei para minha vida de agora. Para mim, aquele foi um salto para o futuro. Tinha o poder de superar o tempo. Meu salto para o passado não foi abrupto; o evento desenvolveu-se vagarosamente, como acontece com as lembranças. Foi no final que saltei abruptamente para o futuro: minha vida agora.”

“Algo em você, certamente, começou a desmoronar-se,” disse ele finalmente. “O desmoronamento já estava em curso, mas aquele algo recuperava-se a si mesmo rapidamente cada vez que seu suporte falhava. Sinto que agora o colapso está sendo completo.”

Depois de outro longo silêncio, don Juan explicou que os feiticeiros dos tempos antigos, no México, acreditavam que, como ele já me dissera, nós temos duas mentes, e que apenas uma delas é realmente nossa. Eu sempre entendera que don Juan queria dizer que nossas mentes possuem duas partes, e que uma delas era silente por força da outra parte, que lhe negava o direito de expressão. Seja o que for que don Juan tenha dito, eu o considerava um recurso metafórico para explicar, talvez, o aparente domínio do hemisfério esquerdo do cérebro sobre o direito, ou algo parecido.

“Existe uma opção secreta na recapitulação”, disse don Juan. “Do mesmo modo como te disse que existe uma opção secreta para a morte, uma opção que apenas os feiticeiros escolhem. No caso da morte, o segredo é que os seres humanos podem reter sua força de vida e abrir mão apenas de sua consciência, o produto de suas vidas. No caso da recapitulação, a opção secreta que só os feiticeiros utilizam, é a escolha de realçar suas mentes verdadeiras.

“As lembranças obsessivas de suas recordações”, continuou ele, “só podem ter origem em sua mente real. A outra mente que todos nós temos e compartilhamos é, poderia dizer, um modelo barato: tamanho econômico, um modelo que serve em todos. Mas esse é um assunto para futura discussão. O que está em pauta no momento é o advento da força de desintegração. Não de uma força que esteja desintegrando você – não estou dizendo isso. Ela está desintegrando aquilo que os feiticeiros chamam de instalação alienígena, que existe em você e também em todo ser humano. O efeito da força que está descendo sobre você, a qual está desintegrando a instalação alienígena, é livrar os feiticeiros de sua sintaxe”.

Eu escutara cuidadosamente don Juan, mas não posso dizer que entendi o que disse. Por alguma estranha razão, que era tão desconhecida por mim como era a causa de minhas recordações vívidas, não pude fazer-lhe nenhuma pergunta.

“Sei como é difícil para você”, disse don Juan repentinamente, “lidar com essa faceta de sua vida. Todos os feiticeiros que conheci passaram pelas mesmas dificuldades. Os homens que as experimentam sofrem infinitamente mais estragos que as mulheres. Suponho que isso é o resultado do fato delas serem mais resistentes. Os feiticeiros do México antigo, agindo em grupo, deram o melhor de si para amparar o impacto dessa força de desintegração. Nos dias de hoje, não temos como agir em grupo, e por isso temos que ir à luta cada um por si mesmo e suportar sozinho a ação dessa força que irá varrer nossas vidas para longe da linguagem; não há outro modo de descrever adequadamente o que ocorre em tais casos”.

Don Juan tinha razão no que diz respeito ao fato de eu não ter como explicar ou entender o efeito em mim de minhas recordações. Don Juan dissera-me que os feiticeiros enfrentam o desconhecido como o mais comum dos incidentes que se possa imaginar. Quando confrontados com ele, e como não conseguem interpretar o que estão percebendo, eles têm que confiar numa fonte exterior que os oriente. Don Juan chamava essa fonte de infinito, ou de voz do espírito, e disse que apesar dos feiticeiros não tentarem ser racionais a respeito do que não pode ser racionalizado, ficam sabendo o que é o quê, pois o espírito lhes diz, sem nenhum erro.

Don Juan orientou-me no sentido de aceitar a idéia de que o infinito era uma força que tinha uma voz e que era consciente de si mesma. Consequentemente, ele preparou-me para estar em condições de ouvir essa voz e agir sempre eficientemente, mas sem antecedentes, usando o quanto menos possível os recursos do ‘a priori’. Esperei impacientemente que a voz do espírito dissesse-me o significado de minhas lembranças, mas nada aconteceu.

Estava numa livraria certo dia quando uma garota reconheceu-me e aproximou-se para conversar. Ela era alta e esguia, e tinha uma voz insegura de mocinha. Eu tentava colocá-la à vontade quando fui repentinamente acometido por uma mudança energética instantânea. Foi como se um alarme despertasse dentro de mim, e como acontecera no passado, sem qualquer intromissão de minha vontade, eu recordei outro evento de minha vida, completamente esquecido. A lembrança da casa de meus avós inundou-me. Foi realmente uma verdadeira avalanche tão intensa que a tornava devastadora, e mais uma vez, tive que retirar-me para um canto. Meu corpo todo tremia, como se tivesse calafrios.

Eu devia ter uns oito anos. Meu avô falava comigo. Começara dizendo-me que era seu dever mais sagrado esclarecer desde já as coisas do mundo para mim. Eu tinha dois primos com a mesma idade minha: Alfredo e Luís. Meu avô exigia sem nenhuma piedade que eu admitisse que meu primo Alfredo era realmente muito bonito. Em minha visão, ouvia a voz áspera e contrita de meu avô.

“Alfredo não necessita de nenhuma apresentação”, disse-me ele naquela ocasião. “Ele necessita apenas aparecer para que todas as portas se abram de par em par para ele, pois todo o mundo pratica o culto da beleza. Todos gostam de pessoas bonitas. Eles as invejam, mas certamente buscam sua companhia. Veja o meu próprio exemplo. Eu sou elegante, você não acha?”

Concordei sinceramente com meu avô. Ele certamente era um homem muito elegante, bem estruturado, com olhos azuis sorridentes e uma face belamente cinzelada com lindas maçãs de rosto. Tudo parecia perfeitamente equilibrado em seu rosto – seu nariz, sua boca, seus olhos, seu queixo saliente. Usava cabelos louros caindo sobre as orelhas, uma característica que lhe conferia um ar de duende. Ele estava ciente de tudo a respeito de si mesmo, e explorava ao máximo seus atributos. As mulheres adoravam-no; primeiro, segundo ele, por causa de sua beleza, e segundo, porque ele não apresentava nenhuma ameaça para elas. Ele, está claro, aproveitava tudo isso in totum.

“Seu primo Alfredo é um vencedor,” continuou meu avô. “Ele nunca terá a necessidade de ser um penetra nas festas porque será o primeiro nome na lista de convidados. Você já notou como as pessoas param na rua para olhar para ele, e como gostariam de tocar nele? Ele é tão bonito que tenho medo que se transforme num imbecil, mas essa é outra história. Digamos que ele será o imbecil mais bem-vindo que você jamais encontrou”.

Meu avô comparou meu primo Luís com Alfredo. Disse que Luís era caseiro, um pouquinho estúpido, mas que tinha um coração de ouro. E então trouxe-me para a cena.

“Se formos continuar com a nossa explicação”, continuou ele, “você terá que admitir com sinceridade que Alfredo é bonito e que Luís é bondoso. Agora, vejamos o seu caso; você não é nem elegante e nem bondoso. Na verdade você é um verdadeiro filho da puta. Ninguém irá convidá-lo para uma festa. Você terá que se acostumar com idéia de que se quiser ir a uma festa, terá que ser um penetra. As portas nunca irão abrir-se para você do modo como serão abertas para Alfredo por ser bonito e para Luís por ser bondoso, de modo que você terá que entrar pela janela.”

Sua análise de seus três netos foi tão acurada que ela me fez chorar pelo caráter definitivo do que ele dissera. Quanto mais eu chorava, mais feliz ele ficava. Ele terminou o caso com a advertência mais deletéria possível.

“Não há nenhuma razão para você sentir-se desse jeito,” disse ele, “porque nada é mais excitante que entrar pela janela. Para fazer isso, você deverá ser esperto e alerta. Terá que perceber tudo à sua volta, e estar preparado para incontáveis humilhações.

“Se você tiver que entrar pela janela,” continuou ele, “será porque definitivamente não estará na lista dos convidados; desse modo, sua presença não era de modo nenhum bem-vinda, e assim terá que se esforçar para não ter que sair. O único modo que conheço é possuindo todo o mundo. Grite! Exija! Aconselhe! Faça todos verem que você é quem manda! Como poderão mandar você embora se é você quem manda?”

A recordação dessa cena causou uma profunda agitação em mim. Havia enterrado esse evento tão profundamente que me esquecera de tudo relacionado a ele. O que sempre tive presente, entretanto, era sua advertência de sempre ser quem mandava, a qual ele, com certeza, repetiu para mim muitas vezes com o passar dos anos.

Eu não tive condição de examinar esse evento, ou mesmo avaliá-lo, porque outra lembrança esquecida aflorou com a mesma força. Nela, estava com uma mulher de quem era noivo. Naquela ocasião, nós dois estávamos economizando para o casamento e para comprar nossa casa.

Ouvi-me exigindo que tivéssemos uma conta conjunta; eu não aceitava nenhuma outra condição. Senti uma grande necessidade de instruí-la a respeito da frugalidade. Ouvi a mim mesmo dizer onde ela deveria comprar suas roupas, e quais deveriam ser os preços máximos que ela deveria pagar.

Depois vi-me dando aulas de direção para sua irmã mais nova e tornando-me verdadeiramente insano quando ela disse que estava planejando mudar-se da casa dos pais. Forçadamente, ameacei-a com o cancelamento das minhas aulas. Ela chorou, confessando que estava tendo um caso com seu patrão. Saí do carro e comecei a dar chutes na porta.

E não foi só isso. Ouvi a mim mesmo dizer para o pai de minha noiva que não se mudasse para o Óregon, como ele planejara. Gritei no tom mais alto de minha voz que era estúpido mudar. Eu realmente acreditava que meus argumentos a respeito eram imbatíveis. Mostrei para ele certos cálculos meticulosos que fiz, pelos quais indicava o quanto ele iria ter de prejuízo. Quando vi que ele não prestou nenhuma atenção a mim, eu saí batendo a porta, tremendo de raiva. Encontrei minha noiva na sala, tocando violão. Arranquei-o de suas mãos e gritei para ela dizendo que mais que tocar, ela abraçava o violão, como se ele fosse algo mais que um objeto.

Meu desejo de impor minha vontade estendia-se para todos os lados. Eu não fazia nenhuma distinção; quem quer que fosse que estivesse próximo de mim ali estava para que eu o possuísse e moldasse, segundo meus caprichos.

Eu não mais tinha que ponderar acerca do significado de minhas visões tão vívidas. Isso porque uma certeza inquestionável invadiu-me, como que vinda de fora de mim. Ela disse-me que meu ponto fraco era a idéia de que eu deveria ser o tempo todo o homem que sentava na cadeira do diretor. Tal idéia estava profundamente arraigada em mim, como também uma outra que dizia que eu deveria ter o tempo todo o controle de qualquer situação. O modo com que fora educado reforçou esse impulso, que deve ter sido arbitrário no início, mas que tinha transformado-se, em minha idade adulta, numa profunda necessidade.

Estava consciente, fora de qualquer dúvida, de que o que estava em jogo era o infinito. Don Juan havia descrito o mesmo como uma força consciente que deliberadamente intervém na vida dos feiticeiros. E agora estava intervindo na minha. Eu sabia que o infinito estava destacando para mim, através da recordação viva de experiências inteiramente esquecidas, a intensidade e a profundidade de meu ímpeto para controlar qualquer situação, e assim preparando-me para alguma coisa que transcendesse a mim mesmo. Sabia com uma certeza que assustava, que algo iria barrar qualquer possibilidade que eu tivesse para controlar a situação, e que eu necessitava, mais que tudo, de sobriedade, fluidez, e abandono para enfrentar as coisas que eu sabia estarem vindo em minha direção.

Naturalmente disse tudo isso para don Juan, floreando como gostava as especulações e inspirados insights sobre a possível significância de minhas recordações.

Don Juan riu, bem humorado. “Tudo isso é um exagero psicológico de sua parte, são pensamentos cheios de desejos,” disse ele. “Você está, como de hábito, procurando explicações lineares de causa e efeito. Cada uma de suas recordações se torna mais e mais vívida, mais e mais desconcertante para você, porque, como já disse, você entrou num processo irreversível. Sua mente verdadeira está aflorando, acordando de uma letargia que teve a duração de toda sua vida.

“O infinito está reivindicando você,” continuou ele. “Qualquer que seja o meio que esteja sendo usado para indicar isso para você não pode ter nenhuma razão, nenhuma outra causa, nenhum outro valor além desse. O que você deve fazer, entretanto, é estar preparado para as investidas do infinito. Você deverá estar num estado permanente de preparar a si mesmo para receber um choque de magnitude tremenda. Esse é o modo sóbrio e sadio com o qual os feiticeiros enfrentam o infinito.”

As palavras de don Juan deixaram-me com um gosto amargo na boca. Eu realmente sentia a investida chegando até mim, e tinha medo dela. Desde que despendera toda a minha vida escondendo-me atrás de alguma atividade supérflua, eu mergulhei no trabalho. Dei palestras em diversas escolas, cujos cursos eram ministrados por professores amigos meus, escolas essas situadas a sudeste da Califórnia.

Escrevia sem parar. Poderia dizer sem nenhum exagero que jogava dezenas de manuscritos na lata de lixo porque eles não preenchiam uma exigência indispensável que don Juan havia descrito como a marca de algo que era aceitável pelo infinito.

Ele dissera que tudo o que eu fizesse teria que ser um ato de feitiçaria. Um ato livre de expectativas intrometidas, medo de fracasso, esperanças de sucesso. Livre do culto do eu, do culto do ego; tudo o que eu fizesse deveria ser de improviso, o trabalho de magia onde eu livremente abria a mim mesmo aos impulsos do infinito.

Certa noite, sentei-me em minha escrivaninha, preparando-me para minha atividade diária de escrever. Senti-me então um pouco grogue.

Pensei que estivesse meio tonto por ter levantado-me muito depressa da esteira onde fazia meus exercícios. Minha visão borrou. Comecei a ver manchas amarelas em frente de meus olhos. Pensei que fosse desmaiar. A ameaça de desmaio aumentou. Havia uma enorme mancha vermelha na minha frente. Comecei a respirar profundamente, tentando acalmar aquilo, fosse o que fosse, que estivesse causando minha distorção visual. Tornei-me extraordinariamente silente, até o ponto em que percebi estar rodeado por uma escuridão impenetrável. O pensamento de que desmaiara cruzou minha mente. Podia sentir, entretanto, a cadeira, minha escrivaninha; podia sentir tudo à minha volta a partir daquela escuridão que me envolvia.

Don Juan dissera que os feiticeiros de sua linhagem consideravam como um dos mais cobiçados resultados do silêncio interior era uma interação específica de energia, a qual era sempre anunciada por uma forte emoção. Ele sentia que minhas recordações eram o meio de agitar-me ao extremo, onde então eu experimentaria essa interação. Tal interação manifesta-se através de matizes que eram projetados em todos os horizontes no mundo do dia-a-dia, fossem eles uma montanha, o firmamento, uma parede, ou então simplesmente as palmas das mãos. Ele explicara que essa interação de matizes começa com o aparecimento de uma tênue brochada cor de alfazema no horizonte. Com o tempo, essa brochada de alfazema começa a expandir-se até cobrir o horizonte visível, como nuvens que avançam numa tempestade.

Assegurou-me que um ponto peculiar, de um vermelho vivo, como um bago de romã, aparece como que brotando da nuvem de alfazema. Afirmou que os feiticeiros ao se tornarem mais disciplinados e experimentados, percebem que o bago de romã expande e então explode em pensamentos ou visões, ou no caso de um intelectual, em palavras escritas; os feiticeiros ou vêm cenas engendradas pela energia, ou ouvem pensamentos sendo falados como palavras, ou lêem palavras escritas.

Naquela noite em minha escrivaninha, eu não vi nenhuma brochada de alfazema, e nem vi nenhuma nuvem avançando. Estava certo de não ter a disciplina que os feiticeiros diziam ser necessária para tal interação com a energia, mas vi uma enorme mancha vermelha como um bago de romã à minha frente. Essa enorme mancha, sem que nada acontecesse antes, explodiu em palavras dissociadas que eu vi como se elas estivessem escritas numa folha de papel saindo de uma máquina de datilografia. As palavras moviam-se a uma velocidade tremenda à minha frente, sendo impossível ler alguma coisa. Ouvi então uma voz descrevendo algo para mim. Ainda aqui, a velocidade da voz era muito elevada para meus ouvidos. As palavras eram truncadas, tornando-se impossível captar algo que fizesse sentido.

Como se isso não bastasse, comecei a ver cenas como se estivesse bêbado, iguais àquelas que se vê em sonhos depois de um ‘heavy metal’. Elas eram barrocas, escuras, sinistras. Eu comecei a girar, e continuei até ficar enjoado. O evento todo acabou aí. Eu senti o efeito do que quer que fosse que tivesse acontecido comigo em cada um dos músculos do meu corpo. Fiquei exausto. Essa intervenção violenta me fez ficar com raiva e frustado.

Corri para a casa de don Juan para contar-lhe sobre o acontecimento. Senti que necessitava de sua ajuda mais do que nunca.

“Não há nada gentil com respeito aos feiticeiros ou à feitiçaria.” Comentou don Juan depois de ouvir minha história. “Essa foi a primeira vez que o infinito desceu sobre você dessa maneira. Foi como uma blitz. Foi uma conquista completa de suas faculdades. Com respeito à velocidade de suas visões, você mesmo deverá aprender a ajustá-las. Para alguns feiticeiros isso é uma tarefa para a vida toda. Mas de agora em diante, a energia irá aparecer para você como se estivesse sendo projetada numa tela de cinema.

“Se você irá entender ou não a projeção,” continuou ele, “é outro assunto. Para que possa ser feita uma interpretação acurada, você necessita de experiência. Minha recomendação é de que você não se acanhe, e deve começar a partir de agora. Leia a energia na parede! Sua mente verdadeira está emergindo, e ela não tem nada a ver com a mente que é uma instalação de fora. Deixe que sua mente verdadeira ajusta a velocidade. Fique em silêncio, e não fique agitado, aconteça o que acontecer.”

“Mas don Juan, é possível tudo isso? A energia pode ser lida como se fosse um texto?” perguntei, desnorteado pela idéia.

“É claro que é possível!” retorquiu ele. “No seu caso, não só é possível mas já está acontecendo com você.”

“Mas porque deve ser lida, como se fosse um texto?” insisti, mas aquela era uma insistência retórica.

“Essa é uma afetação de sua parte”, disse ele. “Se você tivesse lido o texto, poderia repeti-lo ao pé da letra. Se tentasse, entretanto, ser um espectador do infinito em lugar de um leitor do infinito, você descobriria que não poderia descrever o que quer que tenha visto, e acabaria num blá-blá-blá de besteiras, incapaz de verbalizar o que testemunhou. O mesmo aconteceria se tentasse ouvir em vez de ver. Isso, é claro, depende de você. De qualquer modo, o infinito sempre escolhe. O guerreiro-viajante simplesmente aceita a escolha.

“Mas acima de tudo,” acrescentou ele, depois de uma pausa estudada, “não fique desnorteado pelo evento porque você não pode descrevê-lo. Ele é um evento que transcende a sintaxe de nossa linguagem.”

 

                   Viagens Através do Mar Escuro da Consciência

“Podemos conversar um pouco mais claramente agora sobre o silêncio interior,” disse don Juan.

Sua fala relacionava-se a um assunto tão inesperado que fiquei assustado. Ele tinha estado contando para mim, durante toda a tarde, a respeito das vicissitudes que os índios yaquis tinham sofrido após sua grande guerra dos anos vinte, quando foram deportados pelo governo mexicano de sua terra nativa no estado de Sonora, no nordeste do México, para trabalhar em plantações de açúcar no centro e sudeste do México. O governo do México tinha travado guerras endêmicas com os yaquis durante anos. Don Juan contara-me algumas histórias incríveis e pungentes a respeito de intrigas políticas e traições, depravações e miséria humana.

Sentia que don Juan estava preparando-me para alguma coisa, porque ele sabia que tais histórias eram, por assim dizer, minha cachacinha. Eu tinha à época um senso exagerado de justiça e eqüidade social.

“As circunstâncias ao seu redor tornaram possível para você ter mais energia”, continuou ele. “Você iniciou a recapitulação de sua vida; você olhou para seus amigos pela primeira vez como se eles fossem manequins de uma vitrine; você chegou ao seu ponto crítico, por si mesmo, guiado por suas próprias necessidades; você cancelou seus negócios; e acima de tudo, você conseguiu acumular o silêncio interior em quantidade suficiente. Tudo isso tornou possível a você fazer uma viagem através do mar escuro da consciência.

“Essa viagem foi realizada por você quando encontrou-me naquela cidade que escolhemos,” continuou ele. “Sei que uma questão crucial quase emergiu em você, e que por um instante, você ficou a imaginar se eu havia realmente ido até sua casa. A minha ida até sua casa não foi um sonho para você. Eu era real, não era?”

“Você era tão real como nada mais pode ser”, disse eu.

Eu quase havia me esquecido daqueles acontecimentos, mas lembrei-me de que tinha achado estranho que ele tivesse encontrado o meu apartamento. Descartei minha estranheza pelo simples processo de supor que ele houvesse perguntado a alguém a respeito do meu novo endereço, embora, tivesse eu sido pressionado, não teria como identificar essa pessoa que pudesse saber onde eu morava.

“Vamos esclarecer esse ponto”, continuou ele. “Em meus termos, que são aqueles dos feiticeiros do México antigo, eu era tão real como poderia ser, e como tal, eu realmente fui à sua casa a partir do meu silêncio interior para lhe dizer do requisito do infinito, e para avisar você que você estava com o seu tempo quase esgotado. E você, por sua vez, e a partir de seu silêncio interior foi verdadeiramente para aquela cidade que escolhemos para dizer-me que você havia tido sucesso em preencher o requisito do infinito.

“Nos seus termos, que são os termos do homem comum, aquilo não passou, em ambos os casos, de um sonho fantasioso. Você teve um sonho fantasioso que eu fui ao seu apartamento sem saber seu endereço, e depois teve outro sonho fantasioso que foi me ver. No que me diz respeito, como um feiticeiro, o que você considera seu sonho fantasioso de encontrar-me naquela cidade foi tão real como somos agora, conversando um com o outro.”

Confessei para don Juan que não havia nenhuma possibilidade de que eu, como homem ocidental, pudesse enquadrar aqueles eventos no padrão correspondente do modo de pensar. Disse que pensar neles em termos de sonhos fantasiosos seria criar uma falsa categoria que não seria passível de qualquer exame, e a única quase explicação vagamente possível referia-se àquele outro aspecto de seu conhecimento: o sonhar.

“Não, não é o sonhar”, disse ele enfaticamente. “Trata-se de algo mais direto, e mais misterioso. A propósito, eu tenho uma nova definição para você hoje do que seja o sonhar, uma definição mais de acordo com seu estado de ser. Sonhar é o ato de mudar o ponto de ligação com o mar escuro da consciência. Se você examiná-lo sob essa ótica, verá que trata-se de um conceito muito simples, e uma manobra muito simples. A compreensão desse conceito exige que você dê tudo o que tem, mas não é uma impossibilidade e nem algo envolto em nuvens místicas.

“Sonhar é um termo que sempre me tirou do sério,” continuou ele, “porque enfraquece um ato muito poderoso. Ele faz parecer que se trata de algo arbitrário; dá o senso de que se trata de uma fantasia, e fantasia é a única coisa que ele não é. Tentei eu mesmo mudar o termo, mas ele estava muito arraigado. Talvez algum dia você mesmo possa mudá-lo, embora, como tudo o mais em feitiçaria, tenho o receio de que quando chegar o tempo em que você tenha condição de fazê-lo, você não irá dar a menor importância a isso, pois o nome não mais irá fazer a menor diferença.”

Don Juan explicou-me extensamente, durante todo o nosso relacionamento, que o sonhar era uma arte descoberta pelos feiticeiros do México antigo, pela qual os sonhos comuns são transformados, de boa fé, em entradas para outros mundos da percepção. Ele advogava, por todos os meios que podia, o advento de algo que chamava de atenção do sonhar, que era a capacidade de se prestar um tipo particular de atenção, ou de se ter um tipo especial de percepção dos elementos de um sonho comum.

Eu segui meticulosamente suas recomendações e tive sucesso em comandar minha consciência a permanecer fixada nos elementos do sonho. A idéia que don Juan propôs não era preparar-se deliberadamente para ter um sonho desejado, mas fixar a própria atenção nos componentes de qualquer sonho que surgisse.

Depois don Juan mostrou-me energeticamente o que os feiticeiros do México antigo consideravam ser a origem do sonhar: o deslocamento do ponto de aglutinação. Ele disse que o ponto de aglutinação deslocava-se naturalmente durante o sono, mas que ver tal deslocamento era um pouco mais difícil, pois requeria um estado de espírito agressivo, e que tal estado de espírito era o predileto dos feiticeiros do México antigo. Aqueles feiticeiros, de acordo com don Juan, descobriram todas as premissas de sua feitiçaria através de tal estado de espírito.

“Ele é um estado de espírito muito predatório”, continuou don Juan. “Não é difícil entrar em tal estado de espírito, pois o homem é predador por natureza. Você poderia ver, agressivamente, qualquer pessoa nessa pequena vila, ou talvez alguém muito distante, enquanto dorme; qualquer pessoa serviria para a finalidade que estamos considerando. O que é importante é que você atinja um estado de completa indiferença. Você está à procura de algo, e saiu para procurar. Você saiu para procurar uma pessoa, caçando como um felino, como um animal caça sua presa, procurando alguém sobre quem saltar”.

Don Juan disse-me, rindo de minha aparente contrariedade, que a dificuldade de tal técnica era o estado de espírito, e que eu não poderia ficar passivo no ato de ver, por que o que se via não era algo para ser olhado mas algo sobre o qual deveríamos agir. Pode ter sido o poder de sua sugestão, mas neste dia, quando ele disse-me tudo isso, senti-me profundamente agressivo. Cada músculo do meu corpo estava cheio até a borda com energia, e em minha prática de sonhar eu persegui alguém. Não estava interessado em quem fosse esse alguém. Necessitava de alguém que estivesse dormindo, e alguma força da qual tinha consciência apenas parcialmente, guiou-me para achar esse alguém.

Nunca soube quem era tal pessoa, mas enquanto eu estava vendo-a, senti a presença de don Juan. Era uma sensação estranha aquela de saber que alguém estava comigo através de um senso indeterminado de proximidade que ocorria em um nível de consciência que não fazia parte de nada do que eu já experimentara. Eu só podia focalizar minha atenção numa pessoa quieta. Sabia que era do sexo masculino, mas não sabia porque sabia disso. Sabia que dormia porque a bola de energia que, ordinariamente, são os seres humanos estava um pouco achatada; estava expandida lateralmente.

E então eu vi o ponto de aglutinação numa posição diferente da habitual, que era logo atrás das omoplatas. Nesse instante, ele estava deslocado para a direita de onde deveria estar, e um pouco mais baixo. Calculei que naquele caso ele deslocou-se para o lado do quadril. Outra coisa que notei foi que ele não estava estável. Flutuava erraticamente e então voltou abruptamente para sua posição normal. Tive a sensação clara de que, obviamente, a minha presença e a de don Juan acordaram aquele indivíduo. Experimentei uma profusão de imagens borradas logo depois disso, e então eu acordei de volta ao local inicial.

Don Juan também sempre dizia-me, quase o tempo todo, que os feiticeiros dividem-se em dois grupos: uns são sonhadores; outros são espreitadores. Os primeiros são aqueles que possuem grande facilidade de deslocar seus pontos de aglutinação. Os espreitadores são aqueles que possuem grande facilidade de manter seus pontos de aglutinação fixados numa nova posição. Sonhadores e espreitadores são complementares uns dos outros, e trabalham aos pares, afetando uns aos outros com suas tendências próprias.

Don Juan assegurou-me que o deslocamento e a fixação do ponto de aglutinação poderiam ser realizadas à vontade através da disciplina de mão de ferro dos feiticeiros. Disse que os feiticeiros de sua linhagem acreditavam que existiam pelo menos 600 pontos dentro da esfera luminosa que somos nós, os quais, quando atingidos pelo ponto de aglutinação – deslocado por força da vontade – poderão, fornecer a percepção de um mundo totalmente inclusivo, completo; isso significando que se nosso ponto de aglutinação for deslocado para qualquer um desses 600 pontos e permanecer fixo nele, iremos perceber um mundo tão inclusivo e total como o mundo do dia-a-dia, embora diferente dele.

Don Juan explicou mais que a arte da feitiçaria é manipular o ponto de aglutinação pela ação da vontade e fazê-lo mudar de posição dentro da esfera luminosa que são os seres humanos. O resultado dessa manipulação é a mudança do ponto de contato com o mar escuro da consciência, resultando, concomitantemente, que um novo feixe de enilhões de campos de energia, sob a forma de filamentos luminosos, converge no ponto de aglutinação. A conseqüência desse fato é o surgimento da percepção de algo diferente do mundo do dia-a-dia; nossa percepção transforma os novos campos de energia em dados sensoriais, os quais são interpretados e percebidos como um mundo diferente, pois os novos campos de energia são diferente dos habituais.

Ele disse que uma definição acurada da feitiçaria como uma prática seria dizer que ela é a manipulação do ponto de aglutinação com o propósito de mudar a nossa ligação com o mar escuro da consciência, e assim perceber novos mundos.

Don Juan disse que a arte da espreita entra em cena após deslocado o ponto de aglutinação. Manter o ponto de aglutinação fixado em sua nova posição assegura aos feiticeiros a percepção de um novo mundo no qual eles entram em sua absoluta totalidade, exatamente como acontece com o mundo do nosso dia-a-dia. Para os feiticeiros da linhagem de don Juan, o mundo do nosso dia-a-dia é apenas uma dobra de um conjunto que possui pelo menos 600 dobras.

Don Juan voltou de novo ao tópico que discutíamos: minhas viagens pelo mar escuro da consciência, e disse que o que eu fizera a partir do meu silêncio interior foi bastante similar àquilo que ocorre no sonhar quando se está dormindo. Quando se viaja pelo mar escuro da consciência, entretanto, não existe nenhum tipo de interrupção causada pelo adormecer, e nem pode haver qualquer tipo de tentativa de controle da atenção como quando estamos sonhando. A viagem através do mar escuro da consciência acarreta uma resposta imediata. Existe uma sensação dominadora do aqui e agora. Don Juan lamentou o fato de que alguns feiticeiros idiotas tenham dado o nome de sonhar-acordado a esse ato de atingir o mar escuro da consciência diretamente, tornando o termo sonhar ainda mais ridículo.

“Quando você pensou que teve um sonho fantasioso indo para aquela cidade que escolhemos”, continuou ele, “você na realidade colocou seu ponto de aglutinação diretamente numa posição específica no mar escuro da consciência que possibilita a viagem. Depois o mar escuro da consciência supriu você com o quer que fosse necessário para realizar a viagem. Não existe meio nenhum para posicionar à vontade o nosso ponto de aglutinação. Os feiticeiros afirmam o silêncio interior seleciona o local, sem errar nunca. Simples, não é mesmo?”

Ele explicou-me então a complexidade da escolha. Disse que escolher, para o guerreiro-viajante não era realmente um ato de escolha, mas em vez disso, um ato de aquiescer elegantemente às solicitações do infinito.

“O infinito escolhe”, disse ele. “A arte do guerreiro-viajante é ter a habilidade de mover-se à menor insinuação, a arte de aquiescer a cada comando do infinito. Para isso, um guerreiro-viajante necessita de coragem, força, e sobre tudo o mais, sobriedade. Essas três características somadas dão, como resultado, a elegância!”

Depois da pausa de um momento, retomei ao assunto que mais me intrigava.

“Mas é inacreditável que eu tenha ido realmente até aquela cidade, com corpo e alma, don Juan”, disse eu.

“É inacreditável, mas pode ser vivenciado”, disse ele. “O universo não tem limites, e as possibilidades em jogo no universo lá fora são realmente incomensuráveis. Assim não caia na armadilha do axioma ‘só acredito no que vejo’ porque tal decisão é a maior burrice que alguém possa tomar.

As elucidações de don Juan foram claras como água. Faziam sentido, mas não sabia onde elas faziam sentido; certamente que não no mundo das atividades do meu dia-a-dia. Don Juan assegurou-me então, desencadeando uma grande trepidação em mim, que só havia um modo pelo qual os feiticeiros lidavam com toda aquela informação: testá-las através da experiência, porque a mente era incapaz de assimilar todo aqueles estímulos.

“O que você quer que eu faça, don Juan?” perguntei.

“Você deve viajar deliberadamente através do mar escuro da consciência,” replicou ele, “mas você nunca saberá como isso é feito. Digamos que o silêncio interior realiza-o, seguindo caminhos inexplicáveis, caminhos que não podem ser entendidos, mas apenas praticados.”

Don Juan colocou-me sentado em minha cama, na posição que promove o silêncio interior. Eu sempre caio instantaneamente no sono quando adoto tal posição. Entretanto, quando estou com don Juan, sua presença sempre me impede de cair no sono; em lugar disso, eu entro em um verdadeiro estado de quietude completa. Dessa vez, depois de um instante de silêncio, encontrei-me andando. Don Juan guiava-me, segurando o meu braço enquanto andávamos.

Não mais estávamos em sua casa; andávamos por uma cidade yaqui onde nunca havia estado. Sabia da existência da cidade. Havia estado em suas proximidades por diversas vezes, mas fui sempre obrigado a dar a volta à mesma devido à extrema hostilidade dos habitantes. Era uma cidade em que era quase impossível um visitante entrar. As únicas pessoas que não eram yaquis que tinham livre acesso à cidade eram os supervisores do banco do governo pelo fato do banco comprar as colheitas dos fazendeiros yaquis. As negociações intermináveis dos fazendeiros yaquis diziam respeito aos adiantamentos garantidos pelas colheitas futuras.

Reconheci imediatamente a cidade por causa das descrições de pessoas que haviam estado ali. Como se fosse para aumentar a minha aflição, don Juan disse-me ao ouvido que estávamos na cidade em questão. Queria perguntar-lhe como fomos parar ali, mas não conseguia articular as palavras. Havia um grande número de índios discutindo entre si; os ânimos pareciam exaltados. Não entendi nenhuma palavra do que diziam, mas no momento em que concebi o pensamento de que não podia entender, algo começou a clarear. Era verdadeiramente como se mais luz houvesse entrado em cena. As coisas ficaram bem definidas e ordenadas, e eu entendi o que as pessoas estavam dizendo embora não soubesse como; eu não conhecia a sua língua. As palavras eram definitivamente inteligíveis para mim, não cada uma por si, mas em cachos, como se minha mente pudesse captar o padrão total do pensamento.

Poderia dizer com toda sinceridade que recebi o grande choque de minha vida, não tanto pelo fato de que entedia o que as pessoas diziam, mas pelo conteúdo de sua fala. Aquelas pessoas eram certamente belicosas. Não eram, definitivamente, homens ocidentais.

Suas proposições eram proposições de ataque, de guerrear, de estratégia. Estavam avaliando sua força, seus recursos para atacar, e lamentando o fato de que não tinham poder para dar seus golpes. Registrei em meu corpo a angústia de sua impotência. Tudo o que possuíam eram paus e pedras para lutar contra armas de alta tecnologia. Eles lamentavam-se por não ter um líder. Cobiçavam, mais que tudo que se possa imaginar, o aparecimento de algum lutador carismático que os pudessem galvanizar ao redor de si.

Ouvi então a voz do cinismo; um deles manifestou um pensamento que pareceu devastar todos os demais, inclusive a mim, pois parecia que eu era uma parte indivisível deles. Ele disse que estavam derrotados e sem esperança de salvação, porque se num dado momento aparecesse entre eles alguém com o carisma de congregá-los, esse alguém poderia ser traído por causa da inveja, ciúme e suscetibilidade ferida.

Queria comentar com don Juan o que estava acontecendo comigo, mas não podia verbalizar uma única palavra. Apenas don Juan podia falar.

“Os yaquis não são os únicos em sua mesquinhez”, disse ele aos meus ouvidos. “Essa é uma condição na qual os seres humanos estão presos, uma condição que nem mesmo é humana, pois é algo que foi imposto de fora”.

Senti minha boca abrir e fechar involuntariamente enquanto tentava desesperadamente fazer uma pergunta que não conseguia saber nem mesmo qual era. Minha mente estava vazia, sem nenhum pensamento. Don Juan e eu estávamos no meio de um círculo de pessoas, mas ninguém parecia ter notado nossa presença. Não registrei nenhum movimento, reação, ou olhar furtivo que poderiam indicar que eles nos tivessem percebido.

No momento seguinte, encontrei-me numa cidade mexicana construída ao redor de uma estação ferroviária, uma cidade localizada a cerca de 1,5 milha a leste de onde vivia don Juan. Estávamos no meio da rua, próximos do banco do governo. Imediatamente depois, tive uma das mais estranhas visões que testemunhara no mundo de don Juan. Eu estava vendo a energia como flui no universo, mas eu não estava vendo os seres humanos como bolhas de energia de forma esférica ou oblonga. As pessoas em volta de mim eram, em um instante, pessoas normais, e no instante seguinte, criaturas estranhas. Era como se a bola de energia que somos fossem transparentes; era como um halo ao redor de um núcleo parecendo com um inseto. Esse núcleo não tinha a forma de um primata. Não havia nenhuma parte de um possível esqueleto, e então eu não estava vendo as pessoas como se tivesse uma visão de raio X que atingisse o cerne de osso. No cerne daquelas pessoas havia, em vez disso, formas geométricas feitas do que parecia ser vibrações duras da matéria. Aquele cerne parecia letras do alfabeto – a letra T maiúscula parecia ser o principal suporte estrutural. Um L grosso invertido estava suspenso à frente do T; a letra grega delta, que quase tocava o chão, era o fundo da barra vertical do T, e parecia ser o suporte de toda a estrutura. No topo da letra T, vi uma espécie de fio parecendo com uma corda, talvez com uma polegada de diâmetro; ela saía do topo da esfera luminosa, como se o que eu estivesse vendo fosse de fato uma conta gigante pendendo do topo como uma gema, uma gota preste a cair.

Certa vez, don Juan apresentara-me uma metáfora para descrever a união energética de fios de seres humanos. Ele dissera que os feiticeiros do México antigo descreviam tais fios como uma cortina feita de contas ligadas a um cordel. Eu tomara tal descrição literalmente, e pensava que esse cordel passasse através do conglomerado de campos de energia que somos, da cabeça aos pés. O cordel de ligação que eu estava vendo fazia a forma redonda dos campos de energia dos seres humanos parecer mais como um pingente. Eu não vi, entretanto, nenhuma outra criatura ligada ao mesmo cordel. Cada criatura isolada que vi era um ser padronizado geometricamente que tinha uma espécie de cordel na parte superior do halo esférico. O cordel fazia-me lembrar muito das formas segmentadas parecendo minhocas que alguns de nós vê quando temos as pálpebras semicerradas à luz do sol.

Don Juan e eu caminhamos pela cidade de um extremo a outro, e eu vi literalmente grande quantidade de criaturas geometricamente padronizadas. Minha habilidade de vê-los era extremamente instável.

Eu os via num instante, e depois perdia a visão deles e passava a ter à minha frente pessoas comuns.

Logo, logo, fiquei exausto, e podia ver apenas as pessoas normais. Don Juan disse que era hora de voltar pra casa, e de novo, algo em mim fez desaparecer meu senso usual de continuidade. Encontrei-me na casa de don Juan, sem ter a mínima noção de como cobrira a distância entre a cidade e a casa. Deitei-me em minha cama e tentei desesperadamente recordar, chamar de volta minha memória, pesquisar as profundezas do meu próprio ser, à busca de pistas para descobrir como fui até a cidade yaqui, e à cidade da estação ferroviária. Não acreditava que elas eram sonhos fantasiosos, porque as cenas eram muito detalhadas para ser algo que não a realidade, embora não houvesse nenhuma possibilidade de que elas tivessem sido cenas reais.

“Você está desperdiçando o seu tempo,” disse don Juan rindo. “Garanto para você que nunca saberá como fomos até a cidade yaqui, como fomos dela para a estação ferroviária e de lá para aqui. Houve uma quebra na continuidade do tempo. É isso que o silêncio interior faz.

Ele explicou para mim, pacientemente, que a interrupção daquele fluxo de continuidade que faz o mundo ser compreensível para nós é feitiçaria. Ele destacou para mim que eu havia viajado naquele dia pelo mar escuro da consciência, e que vira pessoas como são, engajadas em tarefas da dia-a-dia. E depois que eu vira cordéis de energia que ligam linhas específicas de seres humanos.

Don Juan reiterou para mim uma vez atrás da outra que eu testemunhara alguma coisa específica e inexplicável. Eu entendera o que as pessoas disseram, sem conhecer sua língua, e tinha visto o cordel de energia conectando seres humanos a certos outros tipos de seres, e selecionara aqueles aspectos através do ato de intentá-lo. Ele enfatizou o fato de que esse intentar que eu realizei não era algo consciente ou volitivo; o intentar foi realizado a um nível profundo, e foi fruto da necessidade. Eu necessitava tornar-me ciente de algumas das possibilidades de viajar pelo mar escuro da consciência, e meu silêncio interior guiou o intento – uma força perene no universo – a satisfazer essa necessidade.

 

                   Consciência Inorgânica

A um dado momento em meu aprendizado, don Juan revelou para mim a complexidade da situação de sua vida. Ele afirmara, para meu desgosto e desapontamento, que morava num barracão em Sonora, México, porque o barraco era uma espécie de retrato de meu nível de consciência. Eu não acreditava de fato que ele quisesse dizer que eu era tão inadequado, e nem acreditava que ele tivesse outros lugares para viver, como proclamava.

Aconteceu que descobri que ele estava com a razão nos dois casos. Meu nível de consciência era bastante inadequado e havia outros lugares em que ele poderia morar, infinitamente mais confortáveis que o barraco onde o encontrei pela primeira vez. E ele também não era o feiticeiro solitário que pensei que fosse, mas era o líder de um grupo de quinze outros guerreiros-viajantes: dez mulheres e cinco homens. Minha surpresa foi gigantesca quando ele levou-me até sua casa, na parte central do México, onde ele e seus companheiros feiticeiros viviam.

“Você vive em Sonora só por minha causa, don Juan?” perguntei-lhe, incapaz de assumir a responsabilidade, que enchia-me de culpa, remorso e uma sensação de desmerecimento.

“Bem, na verdade eu não moro ali”, disse ele rindo. “Apenas encontro-me com você ali”.

“Mas, mas, mas você não poderia saber quando eu iria me encontrar com você, don Juan,” disse eu. “Não tinha como comunicar isso a você!”

“Bem, se você se lembrar corretamente,” disse ele, “houve muitas, muitas vezes em que você não me encontrou. Você teve que ficar sentado pacientemente esperando por mim, em alguns casos durante dias.”

“Você voou daqui para Guaymas, don Juan?” perguntei para ele em tom sério. Pensava que o caminho mais curto seria tomar um avião.

“Não, não voei para Guaymas”, disse ele com um sorriso largo. “Voei diretamente para o barracão onde você estava esperando”.

Sabia que ele dizia-me de propósito algo que minha mente linear não poderia entender ou aceitar, algo que confundia-me enormemente. Eu estava num nível de consciência, naqueles dias, em que não cansava de me fazer uma pergunta fatal: E se tudo isso que don Juan diz for verdade?

Eu não queria fazer-lhe nenhuma outra pergunta, pois estava desesperadamente perdido, tentando fazer uma ligação entre os nossos dois modos de pensar e agir. Em seu novo meio ambiente, don Juan começou a instruir-me esmeradamente a respeito de uma faceta mais complexa de seu conhecimento, uma faceta que requeria toda a minha atenção, uma faceta na qual a simples suspensão de julgamento não era suficiente. Aquele era o tempo que tive que ir a fundo até as profundezas de seu conhecimento. Tive que parar de ser objetivo, e ao mesmo tempo desistir de ser objetivo.

Um dia, estava ajudando don Juan limpar algumas estacas de bambu, na parte de trás da casa. Ele recomendou-me usar luvas porque, disse, as lascas de bambu eram muito afiadas e causavam infecção facilmente. Ensinou-me como usar uma faca para limpar o bambu. Fiquei absorvido no trabalho. Quando don Juan começou a falar comigo, tive que parar de trabalhar para prestar atenção. Ele disse-me que já tinha trabalhado o suficiente, e que eu deveria entrar na casa.

Pediu-me para sentar numa poltrona muito confortável em sua sala espaçosa, quase vazia. Deu-me algumas castanhas, damasco seco, fatias de queijo, tudo isso perfeitamente arrumado num prato. Protestei dizendo que não tinha fome e que queria continuar limpando os bambus. Mas ele não prestou nenhuma atenção a mim. Recomendou-me para morder devagar e cuidadosamente, pois eu iria necessitar de um suprimento continuado de alimento para ficar bem alerta e prestar muita atenção ao que ele iria dizer-me.

“Você já sabe”, iniciou ele, “que existe no universo uma força perene, a qual era conhecida pelos feiticeiros do México antigo como mar escuro da consciência. Enquanto eles encontravam-se como o máximo de seu poder de percepção, eles viram algo que os fizeram tremer dentro de suas calças, se é que estivessem usando alguma. Eles viram que o mar escuro da consciência é não apenas responsável pela consciência dos organismos, mas também pela consciência de entidades que não possuem um organismo.”

“O que é isso, don Juan, seres sem um organismo e que têm consciência?” perguntei, atônito, pois ele nunca mencionara tal idéia antes.

“Os velhos xamãs descobriram que o universo inteiro é composto de forças gêmeas,” começou ele, “forças que são ao mesmo tempo opostas e complementares uma da outra. É inegável que nosso mundo é um mundo duplo, tem um gêmeo. Seu mundo oposto e complementar é um mundo povoado por seres que possuem consciência mas que não possuem um organismo. Por essa razão, os xamãs chamavam-nos de seres inorgânicos.

“E onde está esse mundo, don Juan?” perguntei, mascando inconscientemente um damasco seco.

“Aqui, onde eu e você estamos assentados,” respondeu ele tranqüilamente, mas rindo francamente por causa de meu nervosismo. “Disse para você que ele é nosso mundo gêmeo, e assim está intimamente ligado a nós. Os feiticeiros do México antigo não pensavam como você em termos de espaço e tempo. Eles pensavam exclusivamente em termos de percepção. Os dois tipos de consciência coexistem, sem nunca entrar em choque um com o outro, porque cada tipo é inteiramente diferente do outro. Os antigos xamãs enfrentavam esse problema de coexistência sem se preocuparem com tempo e espaço. Raciocinavam que o grau de consciência dos seres orgânicos e o grau de consciência dos seres inorgânicos eram tão diferentes que ambos poderiam coexistir com a interferência mínima possível entre ambas.”

“Nós podemos perceber tais seres inorgânicos, don Juan?” perguntei.

“Podemos, com toda a certeza,” replicou ele. “Os feiticeiros fazem isso sempre que quiserem. As pessoas comuns também, mas não têm consciência disso porque não sabem que o nosso mundo é duplo. Quando pensam em um mundo gêmeo, elas entram em todos os tipos de masturbação mental, nunca ocorrendo a elas que sua fantasia tem sua origem num conhecimento subliminar que todos nós possuímos: que não estamos sós.”

Fiquei absorvido pelas palavras de don Juan. Repentinamente, percebi que estava com uma fome voraz. Havia um vazio bem no fundo do meu estômago. Tudo o que podia fazer era ouvir tão atentamente quanto podia, e comer.

“A dificuldade que você tem em ver as coisas em termos de tempo e espaço,” continuou ele, “é que você só percebe algo se ele pousar no espaço e no tempo à sua disposição, os quais são muito limitados. Os feiticeiros, por outro lado, têm um vasto campo sobre o qual podem perceber se algo estranho nele pousou. Grande número de entidades do universo exterior, entidades que possuem consciência mas não possuem um organismo, pousam no campo de consciência do nosso mundo, ou no campo de consciência do seu gêmeo, e o homem comum nunca percebe isso. As entidades que pousam em nosso campo de consciência, ou no campo de consciência do nosso mundo gêmeo, pertencem a outros mundos que existem além do nosso e do seu gêmeo. O universo exterior é cheio até a borda com mundos de consciência, orgânica e inorgânica.”

Don Juan continuou conversando e disse que aqueles feiticeiros percebem quando consciências inorgânicas provenientes de outros mundos além do nosso mundo duplo pousam em seu campo de consciência. Ele disse que, como todos os seres humanos da Terra fazem, aqueles xamãs fizeram intermináveis classificações dos diferentes tipos de energia que possuem consciência. Eles usam o termo geral seres inorgânicos para mencioná-las.

“Esses seres inorgânicos possuem vida como a nossa?” perguntei.

“Se você pensa que viver é estar consciente, então eles têm vida”, disse ele. “Acho que seria mais acurado dizer que se a vida pode ser medida pela intensidade, agudeza, duração dessa consciência, posso sinceramente dizer que eles estão mais vivos que eu e você”.

“Esses seres inorgânicos morrem, don Juan?” perguntei.

Don deu um risinho antes de responder. “Se você chamar de morte o término da consciência, sim, eles morrem. Sua consciência acaba. Sua morte é bastante parecida com a de um ser humano, e ao mesmo tempo, não, porque a morte dos seres humanos possui uma opção oculta. É algo parecido com uma cláusula em um documento legal, escrita em letras miudinhas que quase não podem ser lidas. Tem-se que usar uma lente de aumento para ler tal cláusula, embora ela seja a principal cláusula do documento.”

“Qual é essa opção oculta, don Juan?”

“A opção oculta da morte só existe para os feiticeiros. Eles são os únicos que, segundo estou informado, leram as letrinhas minúsculas. Para eles, a opção é pertinente e funcional. Para os seres humanos comuns, a morte significa o término de sua consciência, o término de seus organismos. Para os seres inorgânicos, a morte tem o mesmo significado: o fim de sua consciência. Em ambos os casos, o impacto da morte é o ato de ser sugado para dentro do mar escuro da consciência. A consciência individual, enriquecida com a experiência da vida, rompe suas fronteiras, e a consciência como energia é derramada no mar escuro da consciência.”

“Mas qual é a opção oculta que só é escolhida pelos feiticeiros, don Juan?” perguntei.

“Para o feiticeiro, a morte é um fator de unificação. Em lugar de desintegrar o organismo, como ordinariamente acontece, a morte unifica-o.”

“Como pode a morte unificar alguma coisa?” protestei.

“A morte para um feiticeiro”, disse ele, “termina com o reinado de estados de espíritos individuais no corpo. Os velhos feiticeiros acreditavam que era o domínio das diferente partes do corpo que regulava os estados de espíritos e ações do corpo total; as partes que apresentavam disfunções levavam o resto do corpo ao caos, tais como, por exemplo, quando você mesmo fica doente ao comer porcarias. Nesse caso, o estado do estômago afeta todo o resto. A morte erradica o domínio dessas partes individuais. Ela unifica suas consciências em uma única unidade.”

“Você quer dizer que depois da própria morte, os feiticeiros ainda têm consciência?” perguntei.

“Para os feiticeiros, a morte é um ato de unificação que emprega cada partícula de sua energia. Você está pensando na morte como um cadáver à sua frente, um corpo onde se instalou a decomposição. Para os feiticeiros, quando ocorre o ato de unificação, não há nenhum cadáver. Não há nenhuma decomposição. Seus corpos, em sua totalidade, são transformados em energia, energia possuindo consciência que não é fragmentada. As fronteiras que são fixadas pelo organismo, as quais desmoronam com a morte, ainda funcionam no caso dos feiticeiros, embora não sejam mais visíveis a olho nu.

“Sei que você está morrendo de vontade de me perguntar,” continuou ele com um amplo sorriso, “se o que estou descrevendo para você seria a alma que irá para o céu ou para o inferno. Não, não é a alma. O que acontece com os feiticeiros, quando escolhem a opção oculta da morte, é que se transformam em seres inorgânicos, muito especializados, seres inorgânicos de alta vibração, seres capazes de estupendas manobras de percepção. Os feiticeiros então realizam o que os xamãs do México antigo chamavam de viagem definitiva. E o infinito torna-se seu reino de ação.”

“Você quer dizer com isso, don Juan, que eles se tornam eternos?”

“Minha sobriedade de feiticeiro me diz”, disse ele, “que sua consciência terminará, do modo como terminam a consciência dos seres inorgânicos, mas eu nunca vi tal acontecer. Não tenho conhecimento de primeira mão disso. Os velhos feiticeiros acreditam que a consciência de tais tipos de seres inorgânicos terá a duração da vida da Terra. A Terra é sua matriz. Enquanto prevalecer, sua consciência continua. Para mim, essa é a afirmação mais razoável”.

A continuidade e a ordem da explicação de don Juan foram, para mim, soberbas. Eu não podia, de nenhuma maneira, acrescentar algo à mesma. Ele deixou-me com uma sensação de mistério e de expectativas indefinidas a realizar.

Em minha visita seguinte a don Juan, comecei minha conversa perguntando-lhe ansiosamente a respeito de um assunto que atormentava minha mente.

“Existe uma possibilidade, don Juan, de que fantasmas e aparições realmente existam?”

“O que quer que você chame de fantasma ou aparição,” disse ele, “é um assunto que, quando examinado cuidadosamente por um feiticeiro, resume-se num único tópico – é possível que qualquer dessas aparições fantasmagóricas possa ser um aglomerado de campos de energia que possua consciência, os quais transformamos em coisas que conhecemos. Se for esse o caso, então as aparições possuem energia. Os feiticeiros as chamam de configurações que geram energia. Ou então, nenhuma energia emana delas, e nesse caso elas são criações fantasmagóricas, usualmente de uma pessoas muito forte – forte em termos de consciência.

“Uma história que muito me intrigou,” continuou don Juan, “foi aquela que você me contou certa vez sobre uma tia sua. Lembra-se?”

Dissera a don Juan que quando tinha quatorze anos fui morar na casa de uma tia. Ela vivia numa casa enorme que possuía três pátios com acomodações completas entre eles – quartos de dormir, salas, etc. O primeiro pátio era muito austero, pavimentado com pedra. Disseram-me que a casa era colonial e que no primeiro pátio ficavam as carruagens puxadas por cavalos. No segundo pátio havia um lindo pomar, com passeios em ziguezague, feitos de tijolos com desenhos mouriscos e cheio de árvores frutíferas. O terceiro pátio era coberto com vasos de flores dependurados nas vigas da cobertura, tinha gaiolas com pássaros, e uma fonte de estilo colonial no centro, com água corrente, bem como uma área cercada com tela de galinheiro, instalada num canto para acomodar os galos de briga de minha tia, os quais eram a paixão de sua vida.

Minha tia colocou à minha disposição um apartamento completo, situado justamente em frente do pomar. Pensei que iria viver ali a vida que pedi a Deus. Poderia comer todas as frutas que quisesse. Ninguém mais da casa podia tocar nas frutas de qualquer das árvores, por razões que nunca me foram reveladas. Os moradores consistiam em minha tia, uma senhora alta, rechonchuda, de face redonda, em seus 50 anos, muito jovial, uma grande contadora de histórias, cheia de excentricidades que escondia atrás de uma fachada formal e da aparência de uma católica devota; o mordomo, um homem alto e imponente, em seus quarenta e poucos anos que foi sargento mor do exército, o qual deixou atraído pela melhor remuneração do cargo de mordomo, guarda-costas e pau-para-toda-obra na casa de minha tia. Sua mulher, uma bela jovem, era dama de companhia de minha tia, cozinheira e confidente. O casal também possuía uma filha, uma menininha rechonchuda que parecia muito com minha tia. A semelhança era tão grande que minha tia adotou-a de papel passado.

Os quatro eram as pessoas mais tranqüilas que jamais encontrei. Viviam uma vida tremendamente sedentária, pontuada apenas pelas excentricidades de minha tia, que, no calor do momento, decidia quanto a viagens, compra de promissores galos de briga, seu treinamento, e disputas realmente sérias, que envolviam enormes somas de dinheiro. Ela cuidava amorosamente de seus galos de briga, algumas vezes durante todo o dia. Usava grossas luvas de couro e polainas de couro rígido por causa das esporadas dos galos.

Eu passei com minha tia dois meses estupendos. Ela ensinava-me música durante as tardes, e contava-me histórias intermináveis sobres os mais velhos da família. O meu viver era o ideal pois saía com os amigos e não tinha que dizer para ninguém a que horas voltei para casa. Usava passar horas acordado deitado em minha cama. A janela ficava aberta para que o perfume das laranjeiras floridas enchesse o meu quarto. Sempre que ficava acordado deitado na cama, ouvia alguém andar pelo longo corredor que atravessava toda a propriedade do lado norte, ligando os pátios existentes. Esse corredor possuía lindos arcos e o piso era ladrilhado. Havia quatro pontos de luz com lâmpadas de baixa potência, as quais iluminavam fracamente o corredor, e que eram acesas às 18 horas e apagadas às 6 da manhã.

Perguntei minha tia se alguém caminhava à noite pelo corredor e parava sob minha janela, porque quem quer que andasse pelo corredor, parava sob a janela, dava meia volta e retornava para a entrada principal da casa.

“Não fique preocupado com besteiras, meu querido,” dizia minha tia, sorrindo. “Com certeza é o mordomo, fazendo suas rondas. Grande coisa! Você ficou assustado?”

“Não, não fiquei assustado,” disse eu, “fiquei apenas curioso, porque o mordomo toda a noite sobe até meu quarto. Algumas vezes, seus passos me acordam.”

Ela não deu importância às minhas perguntas, dizendo tranqüilamente que o mordomo tinha sido um militar e estava habituado a fazer rondas como se fosse uma sentinela. Fiquei convencido com suas explicações.

Certo dia, conversei com o mordomo sobre o assunto, dizendo que seus passos eram muito barulhentos, e perguntei-lhe se poderia fazer suas rondas sob minha janela com um pouco mais de cuidado para não me acordar.

“Não sei sobre o que você está falando!” disse ele com voz áspera.

“Minha tia me disse que você faz rondas à noite,” disse eu.

“Nunca fiz ronda nenhuma!” disse ele, com os olhos brilhando de desgosto.

“Mas quem então anda sob minha janela à noite?”

“Ninguém anda sob sua janela. Você está imaginando coisas. Volte a dormir. Não fique complicando as coisas. Falo isso para o seu próprio bem.”

Nada poderia ser pior para mim na ocasião que alguém dizer que fazia algo para o meu próprio bem. Nessa noite, assim que comecei a ouvir os passos, saí da cama e fiquei atrás da parede que conduzia à entrada do meu apartamento. Quando calculei que a pessoa que andava pelo corredor estaria sob a segunda lâmpada, eu coloquei minha cabeça para fora da janela para olhar para baixo, no corredor. Os passos interromperam-se de repente, mas não havia ninguém à vista. O corredor mal iluminado estava deserto. Se alguém estivesse andando por ele, não teria tido tempo de esconder-se porque não havia onde esconder-se. Havia apenas as paredes vazias.

Meu susto foi tão grande que botei a boca no mundo e acordei todos da casa. Minha tia e seu mordomo tentavam acalmar-me dizendo-me que eu imaginara tudo aquilo, mas minha agitação era tão intensa que ambos, no final, acabaram por dizer, humildemente, que algo que desconheciam andava pela casa todas as noites.

Don Juan disse que era quase cem por cento certo que quem andava à noite pela casa era minha própria tia; isso é, alguma parte de sua consciência sobre a qual ela não tinha controle volitivo. Ele acreditava que esse fenômeno obedecia a algum senso brincalhão ou de mistério que ela cultivava. Don Juan tinha certeza de que não era um disparate pensar que minha tia, num nível subliminar, estaria não apenas produzindo aqueles ruídos mas que era capaz de manipulações muito mais complexas da consciência. Ele disse também que não devia ser descartada a possibilidade de que os passos teriam sido produzidos por alguma consciência inorgânica.

Don Juan disse que os seres inorgânicos que povoavam nosso mundo gêmeo eram considerados, pelos feiticeiros de sua linhagem, nossos parentes. Aqueles xamãs acreditavam que era fútil fazer amizade com tais membros de nossa família porque o preço que teríamos que pagar por tal amizade era sempre exorbitante. Disse que esse tipo de seres inorgânicos, que são nossos primos de primeiro grau, comunicam-se conosco incessantemente, mas que tal comunicação não se processa no nível da percepção consciente. Em outras palavras, nós sabemos de tudo a seu respeito de modo subliminar, enquanto eles sabem de tudo a nosso respeito de maneira consciente, deliberada.

“A energia de nossos primos de primeiro grau é uma droga!” continuou don Juan. “Eles são tão trapalhões quanto nós. Podemos dizer que os seres orgânicos e inorgânicos dos nossos mundos gêmeos são como as crianças de duas irmãs vizinhas uma da outra. Elas são exatamente iguais embora pareçam ser diferentes. Eles não podem nos auxiliar e nem nós a eles. Talvez pudéssemos nos unir e criar uma corporação familiar de negócios fabulosa, mas isso não ocorreu. Ambos os ramos da família são extremamente melindrosos e se sentem ofendidos por qualquer coisinha, sendo essa uma relação típica entre primos melindrosos do primeiro grau. O “x” da questão, acreditavam os feiticeiros do México antigo, é que tanto os seres humanos quanto os seres inorgânicos dos mundos gêmeos são profundamente egomaníacos.”

De acordo com don Juan, outra classificação que os feiticeiros do México antigo fizeram do seres inorgânicos foi a dos sentinelas avançadas ou exploradores e por esse nome eles designavam os seres inorgânicos provenientes das profundezas do universo e que possuem uma Consciência muitíssimo mais aguda e mais rápida que a dos seres humanos. Don Juan afirmou que os antigos feiticeiros levaram gerações brunindo seus esquemas classificatórios, e que sua conclusão foi que certos tipos de seres inorgânicos da categoria dos exploradores ou sentinelas avançadas, por causa de sua vivacidade, eram afins com os humanos. Eles podiam fazer ligações e estabelecer relações simbióticas com os homens. Os antigos feiticeiros chamavam tais seres inorgânicos de aliados.

Don Juan explicou que o engano crucial daqueles xamãs com referência a esse tipo de ser inorgânico foi atribuir características humanas a tais energias impessoais e acreditar que poderiam manuseá-las, “amansá-las”. Eles pensavam que tais blocos de energia pudessem ser auxiliares, e confiaram neles sem compreender que, sendo energia pura, eles não tinham o poder de sustentar qualquer esforço.

“Já disse para você tudo o que havia a dizer sobre os seres inorgânicos”, disse don Juan abruptamente. “O único modo pelo qual você pode testar tais informações é pela experiência direta”.

Eu não lhe perguntei o que queria que eu fizesse. Um medo profundo fez meu corpo chacoalhar com espasmos nervosos que explodiram como uma erupção vulcânica em meu plexo solar estendendo-se para baixo até a ponta dos dedos dos pés e, para cima, até a parte superior do meu tronco.

“Hoje vamos procurar alguns seres inorgânicos”, anunciou ele. Don Juan ordenou-me ficar sentado em minha cama e adotar novamente a posição que despertava o silêncio interior. Segui suas ordens com uma facilidade incomum. Normalmente, eu ficaria relutante, talvez não abertamente, mas sentindo pelo menos uma pontada de relutância. Tive um vago pensamento de que naquele instante em que me assentei, eu já estaria no estado de silêncio interior. Meus pensamentos já não eram mais distintos. Senti uma escuridão impenetrável ao meu redor, fazendo-me sentir como se fosse adormecer. Meu corpo estava completamente imóvel, fosse porque eu não tinha nenhuma intenção de emitir qualquer ordem para movimentar, fosse porque eu não podia formular tais ordens.

Um momento depois, estava com don Juan andando pelo deserto de Sonora. Reconheci os arredores; havia estado com ele tantas vezes naquelas paragens que tinha memorizado todas as suas características. Era o fim do dia, e a luz do sol poente criou em mim um estado de espírito de desespero. Andava automaticamente, consciente de que sentia em meu corpo sensações que não eram ligadas a nenhum pensamento. Eu não estava descrevendo para mim mesmo meu estado de ser. Queria dizer tais coisas para don Juan, mas o desejo de comunicar para ele minhas sensações corpóreas desapareceram num instante.

Don Juan disse, muito vagarosamente, numa voz baixa e grave, que o leito seco do rio por onde caminhávamos era bastante apropriado para o que havíamos planejado, e que eu deveria sentar-me numa pequena pedra, sozinho, enquanto ele iria sentar-se numa outra a cerca de 6 metros de distância. Eu não perguntei a don Juan, como sempre acontecia, o que eu deveria fazer. Sabia o que deveria fazer. Ouvi então o ruído dos passos de pessoas andando entre os arbustos que escassamente existiam no local. Não havia por ali umidade necessária para que a vegetação fosse abundante. Alguns arbustos ásperos cresciam por ali, a uns 120 ou 180 cm uns dos outros.

Vi então dois homens aproximando-se. Pareciam ser gente do local, talvez índios yaquis, procedentes de alguma das cidades yaquis da vizinhança. Eles chegaram e ficaram ao meu lado. Um deles perguntou-me tranqüilamente como estava passando. Eu queria sorrir para ele, queria rir, mas não podia. Minha face estava extremamente rígida. Ainda assim eu estava excitado. Queria dar pulos de alegria, mas não conseguia. Disse para ele que estava bem. Depois perguntei quem eram eles. Disse-lhes que não os conhecia e ainda assim sentia uma familiaridade extraordinária para com eles. Um deles disse, com a voz mais natural desse mundo, que eles eram meus aliados.

Eu encarei-os, tentando memorizar sua feições, mas elas mudavam. Eles pareciam moldar a si mesmos de acordo com a expressão de meu olhar. Nenhum pensamento estava envolvido no que acontecia. Tudo parecia ser uma questão guiada por sensações viscerais. Eu os encarei o tempo suficiente para fazer sumir completamente suas feições, e finalmente, estava encarando duas bolhas brilhantes, de uma luminosidade que vibrava. As bolhas luminosas não eram delimitadas. Parecia que sustentavam coesamente a si mesmas a partir de seu interior. De tempos em tempos, tornavam-se achatadas, amplas. Depois ficavam novamente verticais, da altura de um homem.

De repente, senti o braço de don Juan pegando o meu braço direito e puxando-me para que saísse da pedra onde estava sentado. Disse que era hora de ir embora. No momento seguinte, eu estava novamente em sua casa, na parte central do México, mais desnorteado que nunca.

“Hoje você encontrou consciências inorgânicas, e depois as viu como realmente são,” disse ele. “A energia é o resíduo irredutível de tudo. No que nos diz respeito, ver a energia diretamente é a linha básica de todo ser humano. Talvez exista algo além da energia, mas, caso exista, não está disponível para nós”.

Don Juan afirmou isso uma vez atrás da outra, e cada vez que falava, suas palavras pareciam solidificar-me mais e mais, ajudar-me a voltar ao meu estado normal.

Disse a don Juan tudo o que testemunhara, tudo o que ouvira. Ele explicou-me que eu tive sucesso nesse dia em transformar a forma antropomórfica dos seres inorgânicos em sua essência: energia impessoal consciente de si mesma.

“Você deve perceber,” disse ele, “que é a nossa cognição, que é, em essência, um sistema de interpretação, que reduz, que limita nossos recursos. Nosso sistema de interpretação é aquilo que nos diz quais são os parâmetros de nossas possibilidades, e já que usamos tal sistema de interpretação durante toda nossa vida, não temos nenhuma possibilidade de ir contra aquilo que ele determina.

“A energia desses seres inorgânicos nos empurra,” continuou don Juan, “e interpretamos seu empuxo como conseguimos, dependendo do nosso estado de espírito. A coisa mais sóbria a fazer, para o feiticeiro, é relegar tais entidades a um nível abstrato. Quanto menos interpretações fazem os feiticeiros, tanto melhor será sua situação.

“Daqui para frente,” continuou ele, “sempre que você enfrentar a estranha visão de uma aparição, fique firme e encare-a com uma atitude inflexível. Se se tratar de um ser inorgânico, sua interpretação dela cairá por terra como folhas mortas. Se nada acontecer, será apenas uma bosta de aberração de sua mente, que, de qualquer modo, não é sua mesmo.”

 

                   Ver Claramente

Pela primeira vez em minha vida, encontrava-me num beco sem saída total com relação ao meu comportamento no mundo. O mundo à minha volta não mudou. Aquilo que estava acontecendo comigo era fruto, sem dúvida, de alguma falha minha. A influência de don Juan e todas as atividades práticas decorrentes, nas quais ele engajou-me muito profundamente, estavam cobrando seu pedágio e causando em mim uma séria incapacidade de lidar com meus semelhantes. Examinei meu problema e conclui que a falha era minha compulsão em medir todo o mundo usando don Juan como unidade de medida.

Don Juan era, em minha avaliação, um ser que vivia sua vida prozfissionalmente, em todos os seus aspectos, isso significando que cada um de seus atos, não importando quão insignificante fossem, era levado em conta. Eu estava rodeado de pessoas que acreditavam que eram seres imortais, que se contradiziam a cada passo do caminho; eram seres cujos atos nunca eram de sua responsabilidade. Não era um jogo limpo; todas as cartas estavam contra as pessoas que encontrava. Eu acostumara-me com o comportamento inalterável de don Juan, com a sua total falta de auto importância, e com o insondável escopo de seu intelecto; pouquíssimas pessoas entre as que conhecia nem mesmo sabiam da existência de outro padrão de comportamento que alimentavam aquelas qualidades. A maioria delas apenas conhecia o padrão de comportamento baseado na auto reflexão, o qual transforma o homem num ser fraco e destorcido.

Como conseqüência, eu estava passando por sérias dificuldades em meus estudos acadêmicos. Estava perdendo-os de vista. Tentei desesperadamente encontrar uma base racional que justificasse meus esforços nesse campo. A única coisa que veio em meu auxílio e deu-me uma conexão, ainda que frágil, com a academia, foi a recomendação que don Juan fizera-me certa vez de que os guerreiros-viajantes deveriam ter um romance com o conhecimento, qualquer que fosse a forma em que ele fosse apresentado.

Ele havia definido o conceito de guerreiros-viajantes, dizendo que ele referia-se aos feiticeiros que, pelo fato de serem guerreiros, viajavam no mar escuro da consciência. Disse mais que os seres humanos eram viajantes do mar escuro da consciência, e que a Terra nada mais era que uma estação de tal viagem; por razões extrínsecas, que ele não tinha interesse na época em divulgar, os viajantes tinham interrompido sua viagem. Disse que os seres humanos foram apanhados numa espécie de redemoinho, numa corrente que movia-se em círculos, dando aos homens a impressão que se moviam, enquanto na realidade estavam, em essência, estacionários. Ele afirmava que os feiticeiros eram os únicos que opunham-se à força, qualquer que fosse, que mantinha os homens prisioneiros, e que por meio de sua disciplina os feiticeiros desvencilharam-se de suas garras e continuavam sua viagem da consciência.

O que precipitou o final caótico da convulsão de minha vida acadêmica foi minha incapacidade de focalizar minha atenção em tópicos de interesse antropológico que nada representavam para mim, não por falta de atrativo mas porque a sua maioria não passava de assuntos onde as palavras e conceitos tinham que ser manipulados, como acontece num documento legal, para que certos resultados fossem obtidos e, desse modo, fosse estabelecido um precedente. Argumentava-se que o conhecimento humano é construído dessa maneira e que o esforço de cada indivíduo era um tijolo na construção do sistema de conhecimento. O exemplo que me foi apresentado foi o do sistema legal pelo qual vivemos, o qual é de importância inestimável para nós. Entretanto, minhas noções românticas naquela ocasião impediram-me de conceber a mim mesmo como um advogado da antropologia. Eu comprei, tranquei, armazenei e guardei em toneis o conceito de que a antropologia deveria ser a matriz de todos os esforços humanos ou a medida do homem.

Don Juan, um ser pragmático de primeira água, um verdadeiro guerreiro-viajante do desconhecido, disse que eu estava cheio de nicas. Disse que não importava que os tópicos antropomórficos que me foram propostos fossem manobras de palavras e conceitos, que o que importava era o exercício da disciplina.

“Não faz nenhuma diferença”, disse-me ele certa vez, “que você seja um grande leitor, e quantos livros maravilhosos você possa ler. O que importa é que você tenha a disciplina para ler o que você não quer ler. O “x” da questão para os feiticeiros no exercício de ir à escola está no que você recusa, não no que você aceita.” Decidi parar algum tempo com meus estudos e trabalhar no departamento de arte de uma companhia que produzia decalques. Meu trabalho engajou meus esforços e pensamentos numa totalidade completa. Meu desafio era concluir as tarefas de que fui incumbido com a perfeição e rapidez que eram possíveis. Preparar as folhas de vinil com imagens para serem processadas pelo sistema “silk-screen” e transformá-las em decalques era algo padronizado que não se prestava a nenhuma inovação e a eficiência de quem trabalha nisso era medida pela rapidez e perfeição. Eu transformei-me num viciado no trabalho e desfrutava imensamente aquela situação.

O diretor do departamento de arte tornou-se meu amigo. Ele praticamente colocou-me sob sua proteção direta. Seu nome era Ernest Lipton. Eu admirava-o e respeitava-o imensamente. Ele era um artista de primeira linha e um magnífico artífice. Seu defeito era sua brandura, sua incrível consideração para com as pessoas, que chegava às raias da passividade.

Por exemplo, certo dia estávamos saindo de carro do estacionamento de um restaurante onde almoçáramos. Muito polidamente, ele esperou que outro carro saísse de uma vaga à sua frente. O motorista obviamente não nos vira e começou a dar uma ré numa velocidade considerável. Ernest Lipton poderia facilmente ter buzinado para atrair a atenção do homem para que visse para aonde estava indo. Em vez disso, ele ficou sentado rindo como um idiota enquanto o cara dava a maior batida em seu carro. Depois ele virou-se para mim e pediu desculpas.

“Veja, eu poderia ter buzinado,” disse ele, “mas a minha buzina está tão alta que iria me deixar embaraçado.”

O cara que batera no carro ao dar a ré estava furioso e teve que ser acalmado.

“Não fique preocupado”, disse Ernest. “Seu carro nada sofreu. Além disso, você apenas quebrou as lanternas do meu; eu pretendia mesmo trocá-las, de modo que não há com o que você se preocupar”.

Num outro dia, no mesmo restaurante, alguns japoneses, clientes da firma de decalques e convidados seus para o almoço, falavam animadamente conosco, fazendo perguntas. O garçon veio com a comida e tirou da mesa alguns pratos de salada, para dar espaço, do melhor modo que ele podia fazer naquela mesinha estreita, para os pratos grandes da entrada. Um dos clientes japoneses necessitava de mais espaço. Empurrou seu prato para frente; o empurrão movimentou o prato de Ernest, que ameaçou cair da mesa. Novamente, Ernest poderia ter avisado o homem, mas não avisou. Ficou ali sentado rindo até que o prato caiu em seu colo.

Em outra ocasião, fui até sua casa ajudá-lo a preparar uma latada para uma parreira no pátio; ele desejava um pouco de sombra e algumas uvas. Com alguns caibros fizemos uma grade pesada, levantamos um lado e a aparafusamos numas vigas. Ernest era alto, muito forte, e usando uma peça de 5x10 cm como alavanca, alçou a outra extremidade de modo que alguns parafusos fossem colocados nos furos previamente feitos nas vigas suporte e na grade. Mas antes que eu pudesse colocá-los, alguém começou a bater insistentemente na porta e Ernest pediu-me para ver quem era, enquanto ele ficava segurando a grade.

Sua mulher estava na porta, cheia de embrulhos do super-mercado. Ela me pegou de prosa e eu acabei esquecendo-me do Ernest. Até mesmo ajudei-a a descarregar os pacotes. Quando levava alguns molhos de aipos, lembrei-me que meu amigo ainda estava segurando a pesada grade de caibros, e conhecendo-o bem, sabia que ele estaria esperando que alguém tivesse para com ele a consideração que ele tinha para com todo mundo, e o ajudasse. Corri desesperadamente para o quintal, e ali estava ele no chão. Caíra de exaustão por estar segurando a pesada estrutura de madeira. Parecia uma boneca de trapos. Tivemos que chamar um vizinho, amigo dele, para dar uma mãozinha e alçar a estrutura; fomos obrigados a suspender o serviço: ele foi para cama, certo de que tinha contraído uma hérnia.

A história clássica a respeito de Ernest Lipton diz que certo dia ele saiu com uns amigos para uma caminhada nas montanhas de São Bernardino, num fim de semana. Acamparam nas montanhas para passar a noite. Enquanto todos estavam dormindo, Ernest foi no mato, e sendo um homem atencioso, caminhou até uma distância considerável do acampamento para não incomodar ninguém. Tropeçou na escuridão e rolou montanha abaixo. Disse aos seus amigos, depois, que tinha a certeza, enquanto rolava, que iria morrer no fundo do vale. Teve a sorte de agarrar a borda do precipício com as pontas dos dedos; ficou naquela posição durante horas, procurando algum apoio com os pés, porque seus braços já não mais agüentavam; ficaria naquela posição até sua morte. Estendendo suas pernas no máximo possível, encontrou pequenas protuberâncias na rocha, que o ajudaram a ficar firme. Ficou pregado na rocha, como os decalques que fazia, até que houvesse luz do dia suficiente para que ele percebesse que estava a apenas uns 30 cm do chão.

“Ernest, você poderia ter gritado por socorro!” reclamaram seus amigos.

“Veja você, não pensei que isso iria ajudar”, replicou ele. “Quem poderia ouvir-me? Pensei que tivesse rolado pelo menos uma milha em direção ao fundo do vale. Além disso, todo o mundo estava dormindo”.

A gota d’água em minhas relações com meu amigo aconteceu quando Ernest Lipton, que gastava duas horas por dia, indo e vindo entre sua casa e a loja, decidiu comprar um carro econômico, um Fusca, e começou a medir quantas milhas fazia com um galão de gasolina. Fiquei extremamente surpreso quando ele anunciou certa manhã que atingira a marca de 125 milhas com um galão. Sendo um homem extremamente exato, ele quantificou sua afirmação, dizendo que a maior parte do percurso que fazia não ocorria na cidade, mas no “free-way”, apesar de que nas horas de pico, ele tinha que diminuir a marcha e depois acelerar, com muita freqüência. Uma semana mais tarde, ele disse que atingira a marca de 250 milhas por galão.

Esse evento maravilhoso expandiu-se até que ele conseguiu uma marca inacreditável: 645 milhas com um galão. Seus amigos disseram-lhe que ele deveria registrar tal recorde nos anais da Volkswagen. Ernest Lipton ficou feliz da vida e gabava-se dizendo que ele não saberia o que fazer se atingisse a marca de mil milhas. Seus amigos disseram que, em tal caso, poder-se-ia dizer que ele realizou um milagre.

Essa situação extraordinária continuou até certa manhã, quando ele pegou um amigo em flagrante, o qual durante meses estava pregando a mais velha das peças nele, colocando gasolina no tanque de seu Fusca. Toda manhã o amigo colocava um pouquinho de gasolina, de modo que o tanque nunca zerava.

Ernest Lipton chegou a quase ficar com raiva. Seu comentário mais duro foi, “Gente! Quem acha graça nisso?”

Fiquei sabendo durante semanas que seus amigos estavam pilheriando com ele, mas não tive como intervir. Achei que aquilo não era de minha conta. As pessoas que estavam gozando-o eram seus amigos de longa data. Eu era um recém chegado. Quando eu vi aquele seu olhar que mostrava estar muito desapontado e ferido, e sua incapacidade de enfurecer-se, senti uma onda de culpa e ansiedade. Estava de novo encarando um velho inimigo. Desprezei Ernest Lipton, e ao mesmo tempo, gostava dele imensamente. Seu caso não tinha solução.

A verdade com relação ao assunto “Ernest Lipton” era que ele parecia muito com meu pai. Suas lentes grossas, suas entradas pronunciadas, bem como alguns fios de barba grisalha que sempre ficavam por fazer, traziam para minha mente as feições de meu pai. Ele tinha o mesmo nariz reto e pontudo e o queixo também pontudo. Mas ver a impossibilidade de Ernest Lipton ficar com raiva e de dar um soco no nariz dos seus gozadores, era, para mim, o que fixava sua similaridade com meu pai e empurrava-a para além do limite de segurança.

Eu recordei como meu pai havia ficado perdidamente apaixonado pela irmã de seu melhor amigo. Eu a vi certo dia, numa estação de águas de mãos dadas com um jovem. Sua mãe estava acompanhando-a. A moça parecia estar feliz da vida. Os dois jovens olhavam um para o outro, extasiados. Tanto quanto pude perceber, aquele era um jovem amor em seus melhores momentos. Quando vi meu pai, contei-lhe o caso, temperando cada instante do meu relato com toda a malícia dos meus 10 anos e afirmando que sua namorada tinha um outro namorado firme. Ele quase caiu de costas. Não acreditou em mim.

“Mas o senhor já falou alguma coisa para a moça?” perguntei-lhe ousadamente. “Ela sabe que o senhor está apaixonado por ela?”

“Não seja burro, seu pirralho!” retorquiu ele. “Não tenho que contar para mulher nenhuma uma besteira dessa!” Como uma criança mimada, ele olhou-me com ar petulante, com os lábios tremendo de raiva.

“Ela é minha! Ela deveria saber que é minha mulher sem que eu tivesse de dizer nada para ela!”

Ele afirmou tudo isso com a certeza de uma criança que tinha tudo que quisesse na vida sem que tivesse que lutar para conseguir.

No ápice de minha forma, eu desferi meu golpe, dizendo: “Bem, penso que ela estava esperando que alguém dissesse isso para ela, e esse alguém chegou antes do senhor.”

Estava preparado para dar um pulo e sair correndo, ficando fora do seu alcance, pois pensava que ele fosse avançar para mim com toda a fúria do mundo, mas, em vez disso, ele abaixou-se e começou a chorar. Perguntou-me, soluçando incontrolavelmente, desde que eu era capaz de qualquer coisa, se podia espionar a garota e depois contar tudo para ele.

Eu desprezei meu pai mais que qualquer coisa no mundo, e ao mesmo tempo amava-o, com uma tristeza sem limites. Eu amaldiçoei a mim mesmo por ter desencadeado tamanha vergonha sobre ele.

rnest Lipton fazia-me lembrar tanto de meu pai que desisti do meu emprego, com a desculpa que tinha que retomar meus estudos. Não queria aumentar a carga que já carregava em meus ombros. Eu nunca me perdoara por ter causado uma angústia tão grande nele, e eu nunca o perdoei por ter agido tão covardemente.

Voltei para a escola e comecei uma tarefa gigante de reintegrar-me aos estudos de antropologia. O que tornava a reintegração muito difícil era o fato de que se existisse alguém com quem eu pudesse trabalhar sentindo-me à vontade e desfrutando o que fazia por causa de seu toque admirável, sua ousada curiosidade, e sua boa vontade em expandir seu conhecimento sem ficar atrapalhado ou defendendo questões indefensáveis, teria que ser alguém fora do meu departamento, um arqueólogo. Em primeiro lugar, tinha sido por causa de sua influência que eu fiquei interessado em pesquisa de campo. Talvez pelo fato de que ele realmente foi para o campo, para literalmente escavar informações, sua natureza prática foi um oásis de sobriedade para mim. Ele foi o único a encorajar-me a tocar pra frente e fazer pesquisas de campo porque não tinha nada a perder.

“Perca tudo, e você irá ganhar tudo”, disse-me ele certa vez, e esse foi o conselho mais efetivo que recebi em minha vida acadêmica. Se eu tivesse seguido o conselho de don Juan, e trabalhado no sentido de corrigir minha obsessão com a auto-reflexão, eu realmente nada tinha a perder e tinha tudo a ganhar. Mas tal possibilidade não estava nas cartas para mim, naquela ocasião.

Quando eu disse a don Juan sobre minha dificuldade em encontrar um professor com quem trabalhar, achei que sua reação ao que eu dissera foi maligna. Ele chamou-me de “peido mesquinho” e pior ainda. Disse-me o que eu já sabia: que se eu não estivesse tão tenso, poderia ter trabalhado com sucesso com qualquer pessoa, fosse na academia fosse no emprego.

“Os guerreiros-viajantes nunca reclamam”, continuou don Juan. “Eles aceitam qualquer coisa que o infinito lhes apresente como um desafio. Desafio é desafio. É impessoal. Não pode ser considerado como uma benção ou como uma desgraça. Ou o guerreiro-viajante vence o desafio ou o desafio esmaga-o. É mais excitante vencer, então vença!”

Disse-lhe que era fácil para ele ou para outras pessoas dizerem aquilo, mas fazer era outra coisa, e que minhas atribulações não tinham solução porque elas tinham sua origem na incapacidade dos meus companheiros em ser consistentes.

“Não é nas pessoas à sua volta que está o problema”, disse ele. “Elas não podem ajudar a si mesmas. O problema reside em você mesmo, porque você pode se ajudar, mas você tem a inclinação de julgar as pessoas, num nível profundo de silêncio. Qualquer idiota consegue julgar. Se você julga as pessoas, só pode obter o pior delas. Todos nós seres humanos somos prisioneiros e é a prisão que nos fazer agir de maneira tão miserável. Seu desafio é aceitar as pessoas como são. Deixe-as em paz”.

“Você está completamente errado desta vez, don Juan”, disse eu. “Acredite-me, não tenho nenhum interesse em julgar as pessoas ou em envolver-me com as elas seja de que modo for”.

“Você sabe do que estou falando”, insistiu ele tenazmente. “Se você não está consciente de seu desejo de julgar as pessoas”, continuou ele, “você está num estado pior do que eu supunha. Este é o defeito dos guerreiros-viajantes quando começam a resumir suas viagens. Eles se tornam arrogantes, imprestáveis”.

Admiti para don Juan que minhas queixas eram mesquinhas ao extremo. Sabia disso. Disse-lhe que enfrentava os eventos do dia-a-dia, os quais possuíam a qualidade nefanda de destruir toda a minha capacidade de decisão e que sentia-me embaraçado em relatar para ele os incidentes que pressionavam minha mente em um grau tão elevado.

“Ora, ora, o que é isso”, instigou-me ele. “Pare com isso! Não tenha nenhum segredo para mim. Sou um tubo vazio. O que quer que você fale para mim será projetado no infinito”.

“Tudo o que possuo são queixas miseráveis”, disse eu. “Sou exatamente igual às pessoas que conheço. Não existe como falar com uma única dentre elas sem ouvir uma queixa, seja direta seja disfarçada.”

Relatei para don Juan como até mesmo em simples diálogos com meus amigos, eles conseguiam infiltrar na conversa uma série de queixas, como no exemplo abaixo:

“Como vão as coisas, Jim?’

“Oh, joia, Cal.” Um profundo silêncio seguiria.

Eu me sentiria obrigado a perguntar, “Existe algo errado, Jim?”

“Não. Está tudo bem. Tenho um probleminha com Mel, mas você sabe como ele é – egoísta e desagradável. Mas deve-se aceitar as pessoas como elas são, não é mesmo? Ele poderia, é claro, ter um pouquinho mais de consideração. Mas é foda. Só ele mesmo. Ele sempre põe a culpa nos outros – aceite-me ou deixe-me. Ele tem agido desse modo desde nossos doze anos, por isso a culpa é realmente minha. Desgraça, por que tenho que suportá-lo?”

“Bem, você está certo, Jim, sabe como Mel é grosso, não é?”

“Pois é; e por falar de pessoas desagradáveis, sua situação, Cal, não é muito diferente da de Mel. Nunca se pode contar com você”, etc.

Outro diálogo clássico seria:

“Com vai passando, Alex? Como está sua vida de casado?”

“Oh, beleza. Pela primeira vez estou comendo nas horas certas, comida caseira, mas estou engordando. Nada tenho para fazer, a não ser assistir à TV. Costumava sair com vocês, mas agora não posso. Theresa não consente. É claro que eu poderia sair e dizer para ela: “Foda-se!”, mas não quero magoá-la. Sinto-me contente, mas infeliz.”

E Alex era a pessoa mais infeliz antes de se casar. Ele era um cara que contava para os amigos a piada clássica, sempre que nós o encontrávamos, tipo, “Ei, venha para o meu carro, quero apresentar-lhes minha cadela”.

Ele divertia-se a valer diante de nossa frustração ao descobrirmos que o que ele tinha no carro era uma cachorra. Ele apresentava sua “cadela” a cada um de nós. Ficamos chocados quando ele casou-se com Theresa, uma corredora de longa distância. Eles conheceram-se numa maratona, quando Alex desmaiara. Estavam nas montanhas, e como Theresa teve que usar todos os meios disponíveis para fazê-lo voltar a si, ela então urinou em sua cara. Depois disso, Alex ficou seu prisioneiro. Ela havia marcado seu território. Seus amigos costumavam chamá-lo de “Prisioneiro Urinado”. Seus amigos achavam que ela era uma cadela verdadeira que transformara o estranho Alex num porco gordo.

Don Juan e eu rimos durante alguns instantes. Depois, ele encarou-me com uma expressão séria.

“Esses são os altos e baixos do cotidiano”, disse don Juan. “Você perde, você ganha, e não sabe quando perde ou quando ganha. Esse é o preço de quem vive sob o controle da auto-reflexão. Não há nada que eu possa dizer para você, e nada que você possa dizer para si mesmo. Só posso recomendar que você não se sinta culpado por ser um idiota, mas que se esforce para acabar com o domínio da auto-reflexão. Volte para a escola. Não desista ainda.”

Meu interesse em permanecer na academia diminuía consideravelmente. Comecei a viver com o piloto automático sempre ligado. Sentia-me pesado, desanimado. Entretanto, notei que minha mente não estava envolvida. Eu não calculava nada, e nem fixava nenhum gol e não tinha expectativa de nenhuma espécie. Meus pensamentos não eram obsessivos, mas meus sentimentos eram. Tentei conceituar essa dicotomia entre minha mente tranqüila e meus sentimentos turbulentos. Foi nesse estado de espírito, de ausência da mente e da presença de sentimentos esmagadores que um dia caminhei do Haines Hall, onde localizava-se o departamento de antropologia até a lanchonete onde almoçaria.

Fui tomado de repente por um estranho tremor. Achei que fosse desmaiar, e sentei-me em uns degraus de tijolos. Vi manchas amarelas em frente de meus olhos. Tive a sensação de estar girando. Tinha a certeza de que iria ficar enjoado. Minha visão ficou borrada, e depois não enxergava nada. Meu desconforto físico era total e tão intenso que não deixava espaço para um único pensamento. Eu apenas tinha sensações corpóreas de medo e ansiedade misturadas com êxtase e com uma estranha antecipação de que eu estava no limiar de um evento fenomenal. Eram sensações sem a contraparte dos pensamentos. Em dado momento, eu não mais sabia se estava assentado ou de pé. Estava rodeado pela mais impenetrável escuridão que possa ser imaginada, e depois, eu vi a energia com a mesma flui no universo.

Eu vi uma sucessão de esferas luminosas avançando em minha direção ou afastando-se de mim. Eu as vi uma de cada vez, como don Juan sempre disse-me que são vistas. Sabia que elas eram individualidades diferentes, por causa de seu tamanho diferente. Examinei os detalhes de suas estruturas. Sua luminosidade e sua forma esférica eram feitas de fibras que pareciam ligadas entre si. Eram fibras de espessuras finas e grossas. Cada uma dessas figuras luminosas tinha uma cobertura maleável e espessa. Pareciam com algum animal estranho, luminoso e peludo ou com um inseto redondo gigante coberto com cabelo luminoso.

O que foi a coisa mais chocante para mim foi a percepção de que eu tinha visto tais insetos peludos durante toda a minha vida. Cada ocasião em que don Juan deliberadamente fez-me ver esses insetos pareceu para mim naquele momento ser como que uma volta que fiz com ele. Lembrei-me de cada uma das vezes em que ele ajudava-me ver as pessoas como esferas luminosas, e todos esses exemplos estavam colocados à parte do grosso do que via naquele momento. Soube então, sem sombra de dúvida, que eu tinha percebido a energia como flui no universo durante toda a minha vida, por mim mesmo, sem a ajuda de ninguém.

Tal percepção foi desnorteante para mim. Sentia-me infinitamente vulnerável, débil. Necessitava de uma cobertura, de esconder-me em algum lugar. Era exatamente como no sonho que a maioria de nós parece ter tido, no qual nos encontramos nus e sem saber o que fazer. Sentia-me mais que nu; sentia-me desprotegido, fraco, e tinha pavor de voltar ao meu estado normal. De maneira vaga, senti que estava deitando-me. Tomei coragem para retornar à normalidade. Formei a idéia de que iria encontrar-me estirado no passeio de tijolos, contorcendo-me convulsivamente, com um grupo de curiosos à minha volta.

A sensação de que estava deitado tornou-se mais e mais acentuada. Senti que podia mover os olhos. Podia ver a luz através de minhas pálpebras cerradas, mas tinha medo de abri-las. O que era estranho é que não ouvia nenhum ruído das pessoas que supunha estar à minha volta. Não ouvia ruído nenhum. Por fim, aventurei-me a abrir os olhos. Estava em minha cama, em meu apartamento/escritório próximo da esquina das ruas Wilshire com Westwood.

Fiquei bastante histérico por encontrar a mim mesmo na cama. Mas por alguma razão que estava além do meu entendimento, acalmei-me quase imediatamente. Minha histeria foi substituída por uma espécie de indiferença corporal ou por um estado de satisfação corporal, algo parecido com o que se sente depois de uma boa refeição. Entretanto, não conseguia aquietar minha mente. Havia sido para mim o maior choque imaginável descobrir que eu havia percebido a energia diretamente durante toda minha vida. Como, ora bolas, poderia ter sido possível que eu não soubesse disso? O que havia impedido que eu tivesse acesso a essa faceta do meu ser? Don Juan dissera que todo o ser humano tinha o potencial de ver a energia diretamente. O que ele não dissera foi que todo o ser humano já vê a energia diretamente, só que não tem consciência disso.

Discuti essa questão com um psiquiatra amigo meu. Ele não pôde esclarecer nada com relação à minha confusão. Pensava que minha reação fosse resultado de fadiga e de excesso de estímulos. Deu-me uma receita de Valium e mandou que repousasse.

Não ousei dizer para ninguém que havia despertado em minha cama sem ter explicações de como isso acontecera. Dessa maneira, minha pressa em encontrar-me com don Juan era mais que justificada. Voei até a cidade do México logo que me foi possível, aluguei um carro, e dirigi-me para aonde ele vivia.

“Você já fez tudo isso antes!” disse don Juan, rindo, quando eu narrei-lhe a minha experiência de virar a cabeça. “Existem apenas duas coisas novas. Uma é que você agora percebeu a energia por si mesmo. O que você fez foi parar o mundo, e depois percebeu que sempre viu a energia com flui no universo, como acontece com todo mundo, mas sem saber disso deliberadamente. A outra coisa nova foi que você viajou a partir de seu silêncio interior por você mesmo.

“Você soube, sem que eu tivesse dito para você, que qualquer coisa é possível a partir do silêncio interior. Desta vez seu medo e vulnerabilidade tornou possível para você ir parar em sua cama, que realmente não estava muito distante do campus da UCLA. Se você não tivesse sido indulgente ficando tão surpreso, você teria percebido que o que fez foi nada, nada extraordinário para um guerreiro-viajante.

“Mas o fato que é da mais alta importância não é saber que você sempre percebeu a energia diretamente, ou sua viagem a partir do silêncio interior, mas sim, para ser mais preciso, algo composto de duas partes. A primeira foi que você experimentou o que os feiticeiros do México antigo chamavam de visão clara, ou a perda da forma humana: o tempo em que a mesquinhez humana desaparece, como se fora uma mancha de névoa que pairava sobre nossas cabeças, uma névoa que vagarosamente torna-se clara e dissipa-se. Mas sob nenhuma circunstância você deve acreditar que trata-se de um caso encerrado. O mundo dos feiticeiros não é um mundo imutável como o mundo do dia-a-dia, onde diz-se que quando uma meta é atingida, você permanece um vitorioso por toda a vida. No mundo dos feiticeiros, atingir um objetivo significa que você adquiriu mais um instrumento eficiente para continuar a luta, que, por sinal, nunca termina.

“A segunda parte de tal fato duplo é que você experimentou a questão mais enlouquecedora para os corações dos seres humanos. Você exprimiu-a você mesmo ao se perguntar: ‘Como no mundo pôde ser possível que eu não soubesse que percebia o fluir da energia durante toda minha vida? O que impediu-me de ter acesso a tal faceta do meu ser?’”

 

                   Sombras de Barro

SENTAR-ME EM SILÊNCIO COM DOM JUAN era uma das experiências mais agradáveis que já conheci. Estávamos confortavelmente sentados em cadeiras estofadas na parte de trás de sua casa nas montanhas de México central. Era fim de tarde. Havia uma brisa agradável. O sol estava atrás da casa, às nossas costas. Sua luz desvanecente criava sombras primorosas de verde nas árvores grandes do quintal. Havia grandes árvores ao redor de sua casa, e além, que obliteravam a visão da cidade onde ele vivia. Isto sempre me dava a impressão de que eu estava num ermo, um ermo diferente do estéril deserto de Sonora, mas ainda assim ermo.

“Hoje, vamos discutir um tópico muito sério em feitiçaria”, disse don Juan abruptamente, “e vamos começar falando sobre o corpo de energia”.

Ele tinha me descrito o corpo de energia inúmeras vezes, dizendo que era um conglomerado de campos de energia, a imagem no espelho do conglomerado de campos de energia que compõem o corpo físico quando este é visto como energia que flui no universo. Tinha dito também que ele era menor, mais compacto, e de aparência mais pesada que a esfera luminosa do corpo físico.

Don Juan tinha explicado que o corpo e o corpo de energia eram dois conglomerados de campos de energia mantidos juntos por alguma estranha força aglutinadora. Ele tinha enfatizado incansavelmente que a força que mantém juntos aqueles grupos de campos de energia era, de acordo com os feiticeiros de México antigo, a força mais misteriosa no universo; em sua avaliação pessoal, era a pura essência do cosmos inteiro, a soma total de tudo que existe.

Ele afirmava que o corpo físico e o corpo de energia eram as únicas configurações de energia contrabalançadas em nosso ‘reino’ de seres humanos. Não aceitava, portanto, nenhum outro dualismo senão aquele entre estes dois. Os dualismos entre corpo e mente, espírito e carne, eram para ele uma mera concatenação da mente, emanando dela sem qualquer base energética.

Don Juan tinha dito que por meio da disciplina é possível para qualquer um aproximar o corpo de energia do corpo físico. Normalmente, a distância entre os dois é enorme. Uma vez o corpo de energia está dentro de uma certa gama, que varia individualmente para cada pessoa, qualquer um pode, através da disciplina, forjá-lo como a réplica exata do corpo físico — ou seja, uma entidade sólida e tridimensional. Daí surgiu a idéia dos feiticeiros do outro ou o duplo. Pelo mesmo princípio, através dos mesmos processos de disciplina, qualquer um pode forjar seu corpo físico sólido e tridimensional para ser uma réplica perfeita do corpo de energia — ou seja, uma carga etérea de energia invisível ao olho humano, como é toda a energia.

Quando Don Juan me contou isto, minha reação tinha sido perguntar-lhe se ele estava descrevendo uma proposição mítica. Ele respondeu que não havia nada de mítico sobre feiticeiros. Os feiticeiros eram seres práticos, e o que eles descreviam era sempre algo bastante sóbrio e razoável. De acordo com Don Juan, a dificuldade em entender o que os feiticeiros fizeram era que eles agiam a partir de um sistema cognitivo diferente.

Sentando nos fundos de sua casa no México central aquele dia, don Juan disse que o corpo de energia era de importância fundamental em tudo que estava acontecendo em minha vida. Ele viu que era um fato energético que meu corpo de energia, em vez de se afastar de mim, como em geral acontece, estava se aproximando de mim com grande velocidade.

“O que significa, que está se aproximando de mim, don Juan?” eu perguntei.

“Significa que algo vai dar-lhe um tranco,” ele disse sorrindo. “Um tremendo grau de controle vai entrar em sua vida, mas não o seu controle, o controle do corpo de energia.”

“Você quer dizer, don Juan, que alguma força externa irá me controlar?” eu perguntei.

“Há dúzias de forças externas controlando-o neste momento,” don Juan respondeu. “O controle a que me refiro é algo fora do domínio da linguagem. É seu controle e ao mesmo tempo não é. Não pode ser classificado, mas certamente pode ser experimentado. E, acima de tudo, pode certamente ser manipulado. Lembre-se disto: pode ser manipulado, para seu total benefício, claro, o que novamente, não é seu benefício, mas o benefício do corpo de energia. Porém, o corpo de energia é você, e assim poderíamos continuar para sempre, como cachorros que mordem os próprios rabos, tentando descrever isto. A linguagem é inadequada. Todas estas experiências estão além da sintaxe”.

A escuridão tinha descido muito depressa, e a folhagem das árvores que tinha sido verde brilhante ainda há pouco era agora muito escura e pesada. Don Juan disse que se eu prestasse bastante atenção à escuridão da folhagem sem focalizar meus olhos, mas sim olhando com o rabo do olho, eu veria uma sombra fugaz cruzar meu campo de visão.

“Esta é a hora apropriada do dia para fazer o que estou lhe pedindo que faça,” ele disse. “Leva um momento até você conseguir a atenção necessária para fazer isto. Não pare até que você veja aquela sombra preta”.

Eu vi algumas sombra pretas passageiras projetadas na folhagem das árvores. Eram ou uma sombra indo de um lado para outro ou várias sombras passageiras movendo-se da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, ou diretamente para cima no ar. Elas me pareciam um peixe preto gordo e enorme. Era como se um peixe-espada gigantesco estivesse voando no ar. Eu fui passado a limpo na visão. Então, finalmente, aquilo me assustou. Ficou muito escuro para ver a folhagem, contudo eu ainda podia ver as sombras pretas passageiras.

“O que é isso, don Juan?” eu perguntei. “Vejo sombras pretas em movimento por toda parte”.

“Ah, isso é o universo imenso lá fora”, ele disse, “incomensurável, não-linear, fora do reino de sintaxe. Os feiticeiros do México antigo foram os primeiros a ver essas sombras, assim eles estudaram seus movimentos. Eles as viram como você as está vendo, e eles as viram como energia que flui no universo. E eles descobriram algo transcendental”.

Ele parou de falar e olhou para mim. Suas pausas eram perfeitamente colocadas. Ele sempre parava de falar quando eu estava preso por um fio.

“O que eles descobriram, Don Juan?” eu perguntei.

“Eles descobriram que nós temos companhia na vida,” ele disse, tão claramente quanto pôde. “Nós temos um predador que veio das profundezas do cosmos e assumiu o controle de nossas vidas. Os seres humanos são seus prisioneiros. O predador é nosso senhor e mestre. Nos faz dóceis e desamparados. Se queremos protestar, suprime nosso protesto. Se queremos agir independentemente, exige que não o façamos.”

Estava muito escuro ao nosso redor, e isso parecia restringir qualquer reação de minha parte. Se fosse dia, eu teria rido até cair. Na escuridão, eu me sentia totalmente inibido.

“Está um breu aqui”, don Juan disse, “mas se você olhar pelo canto do olho, você ainda verá sombras em movimento, saltando ao seu redor.”

Ele estava certo. Eu ainda podia vê-las. Seu movimento me deixou atordoado. Dom Juan acendeu a luz, e isso pareceu dissipar tudo.

“Você chegou, por seu próprio esforço, ao que os xamãs do México antigo chamavam ‘o tópico de tópicos’”, don Juan disse. “Eu tenho usado de evasivas a esse respeito até agora, insinuando a você que algo está nos mantendo prisioneiros. Realmente nós somos prisioneiros! Este era um fato energético para os feiticeiros de México antigo”.

“Por que este predador assumiu o controle do modo que você está descrevendo, don Juan?” eu perguntei. “Deve haver uma explicação lógica”.

“Há uma explicação”, don Juan respondeu, “que é a explicação mais simples no mundo. Eles nos dominam porque somos comida para eles, e nos apertam impiedosamente porque somos seu sustento. Da mesma maneira que nós criamos galinhas em galinheiros, gallineros, os predadores nos criam em gaiolas humanas, humaneros. Então, sua comida está sempre disponível para eles.”

Eu sentia que minha cabeça estava sacudindo violentamente de um lado para o outro. Não podia expressar meu profundo senso de desconforto e descontentamento, mas meu corpo se moveu para trazê-lo à superfície. Eu tremi da cabeça aos pés sem qualquer volição de minha parte.

“Não, não, não, não”, eu me ouvi dizendo. “Isto é absurdo, don Juan. O que você está dizendo é algo monstruoso. Simplesmente não pode ser verdade, para feiticeiros ou para homens comuns, ou para qualquer um”.

“Por que não?” don Juan calmamente perguntou. “Por que não? Porque o enfurece?”

“Sim, me enfurece,” eu repliquei. “Essas afirmações são monstruosas!”

“Bem,” ele disse, “você não ouviu todas as afirmações ainda. Espere um pouco mais e veja como você se sente. Eu vou sujeitá-lo a um ataque relâmpago. Aliás, eu vou sujeitar sua mente a tremendos assaltos, e você não pode levantar e partir porque você está preso. Não porque eu o estou prendendo, mas porque algo em você o impedirá de partir, enquanto outra parte de você ficará totalmente desarvorada. Então prepare-se!”

Havia algo em mim que estava, eu sentia, com desejo de ser castigado. Ele tinha razão. Eu não teria ido embora por nada neste mundo. E ainda assim eu não gostava nem um pouco das coisas que ele estava dizendo.

“Eu quero atrair a sua mente analítica”, don Juan disse. “Pense por um momento, e me diga como você explica a contradição entre a inteligência do homem engenheiro e a estupidez de seus sistemas de convicções, ou a estupidez de seu comportamento contraditório. Os feiticeiros acreditam que os predadores nos deram nosso sistema de crenças, nossas idéias de bem e mal, nossos costumes sociais. Foram eles que programaram nossas esperanças e expectativas e sonhos de sucesso ou fracasso. Eles nos deram ambição, ganância, e covardia. São os predadores que nos fazem complacentes, rotineiros, e egomaníacos”.

“Mas como eles podem fazer isto, don Juan?” eu perguntei, de alguma maneira mais irritado com o que ele estava dizendo. “Eles sussurram tudo isso em nossos ouvidos enquanto estamos adormecidos?”

“Não, eles não fazem assim. Isso é idiota!” Don Juan disse, sorrindo. “Eles são infinitamente mais eficientes e organizados que isso. Para nos manter obedientes, submissos e fracos, os predadores empreenderam uma manobra estupenda — estupenda, claro, do ponto de vista de um combatente estrategista. Uma manobra horrenda do ponto de vista dos que a sofrem. Eles nos deram sua mente! Entende? Os predadores nos dão a mente deles que se torna a nossa mente. A mente dos predadores é grotesca, contraditória, taciturna e cheia de medo de ser descoberta a qualquer momento.”

“Eu sei que embora nunca tenha passado fome,” ele continuou, “você tem ansiedade por comida que não é diferente da ansiedade do predador que teme que a qualquer momento sua manobra vai ser descoberta e sua comida vai ser negada. Pela nossa mente que, afinal de contas, é a mente deles, os predadores injetam nas vidas dos seres humanos tudo que é conveniente para eles. E eles asseguram, desta maneira, um grau de segurança para agir como um pára-choque contra o medo deles.”

“Não é que eu não possa aceitar tudo isso desta forma, don Juan,” eu disse. “Eu posso, mas há algo tão odioso nisso que na verdade me repele. Me força a assumir um ponto de vista contraditório. Se é verdade que eles se alimentam de nós, como eles fazem isso?”

Don Juan deu um largo sorriso. Ele estava tão contente quanto um saltimbanco. Ele explicou que os feiticeiros vêem as crianças como estranhas e luminosas bolas de energia, cobertas de cima a baixo com uma capa brilhante, algo como uma cobertura de plástico que é ajustada firmemente em cima de seu casulo de energia. Ele disse que aquela capa brilhante de consciência era o que os predadores consumiam, e que quando um ser humano alcançava a idade adulta, tudo que sobrava daquela capa brilhante de consciência era uma franja estreita que ia do chão ao topo dos dedos do pé. Aquela franja permitia ao gênero humano continuar vivendo, mas só de forma precária.

Como em um sonho, eu ouvi Don Juan Matus explicando que, ao que ele sabia, o homem era a única espécie que tinha a capa brilhante de consciência fora de seu casulo luminoso. Portanto, ele se tornou presa fácil para uma consciência de uma ordem diferente, como a consciência pesada do predador.

Ele fez então a declaração mais prejudicial que tinha feito até então. Ele disse que esta faixa estreita de consciência era o epicentro da auto-reflexão, onde o homem era irremediavelmente preso. Manipulando nossa auto-reflexão, que é o único ponto de consciência que nos restou, os predadores criam lampejos de consciência que eles em seguida consomem de forma cruel e predatória. Eles nos dão problemas frívolos que forçam esses lampejos de consciência a aumentar, e desta maneira nos mantêm vivos para que eles possam ser alimentados com o brilho energético de nossas pseudo-preocupações.

Deve ter havido algo tão devastador no que Don Juan estava dizendo que naquele momento eu comecei a sentir ânsias de vômito.

Depois de uma pausa, longa bastante para eu me recuperar, perguntei a don Juan: “Mas por que é que os feiticeiros de México antigo e todos os feiticeiros de hoje, embora vissem os predadores, não faziam nada a respeito?”

“Não há nada que você ou eu possamos fazer sobre isso,” Don Juan disse em uma voz triste e grave. “Tudo que nós podemos fazer é disciplinar-nos até o ponto onde eles não poderão nos tocar. Como você pode pedir para os seres humanos que passem por esses rigores de disciplina? Eles rirão e farão chacota de você, e os mais agressivos irão até bater-lhe. E nem tanto porque eles não acreditem nisto. Bem fundo, nos recônditos de todo ser humano, há um conhecimento ancestral, visceral sobre a existência dos predadores”.

Minha mente analítica balançava de um lado para outro como um ioiô. Me deixava e voltava e me deixava e voltava novamente. O que quer que Don Juan estivesse propondo era irracional e inacreditável. Ao mesmo tempo, era uma coisa bem razoável, tão simples. Explicava todo tipo de contradição humana que eu pudesse imaginar. Mas como se poderia levar tudo isso seriamente? Don Juan estava me empurrando no caminho de uma avalanche que poderia me levar para sempre.

Eu sentia uma outra onda de sensação ameaçadora. A onda não se originou de mim, contudo estava presa a mim. Don Juan estava me fazendo algo misteriosamente positivo e terrivelmente negativo ao mesmo tempo. Eu sentia isto como se fosse uma tentativa para cortar algo como um filme fino que parecia estar colado a mim. Seus olhos estavam cravados em mim em um olhar fixo. Ele passou a olhar para longe e começou a falar sem olhar mais para mim.

“Sempre que as dúvidas empurrarem você para um ponto perigoso”, ele disse, “faça algo pragmático a respeito. Apague a luz. Perscrute a escuridão; descubra o que você pode ver”.

Ele se levantou para apagar as luzes. Eu o impedi.

“Não, não, Don Juan”, eu disse, não apague as luzes. “Eu estou bem”.

O que eu sentia então era um, para mim incomum, medo da escuridão. O mero pensamento me fez arquejar. Eu definitivamente sabia algo visceralmente, mas não ousaria pensar, ou trazer isto à superfície, nem em um milhão de anos!

“Você viu as sombras passageiras contra as árvores”, Don Juan disse, recostando-se no espaldar de sua cadeira. “Isso é muito bom. Eu gostaria que você os visse dentro deste quarto. Você não está vendo nada. Você está simplesmente capturando imagens passageiras. Você tem bastante energia para isso”.

Eu temia que don Juan se levantasse de qualquer maneira e apagasse as luzes, o que ele fez. Dois segundos depois, eu estava gritando a plenos pulmões. Não só consegui um rápido lampejo dessas imagens passageiras, como eu os ouvi zumbindo em meus ouvidos. Don Juan caiu na gargalhada enquanto acendia as luzes.

“Que sujeito temperamental!” ele disse. “Um cético total, por um lado, e um pragmático total por outro. Você tem que organizar esta briga interna. Caso contrário, você vai inchar como um sapo grande e estourar.”

Don Juan continuou a espetar suas farpas mais e mais profundamente em mim. “Os feiticeiros de México antigo”, ele disse, “viam o predador. Eles o chamaram o voador porque voa pelo ar. Não é uma bela visão. É uma sombra grande, impenetravelmente escura, uma sombra preta que salta pelo ar. Então, pousa pesadamente no chão. Os feiticeiros de México antigo ficavam facilmente doentes com a idéia de quando teriam feito seu aparecimento na Terra. Eles achavam que o homem deveria ter sido em certo ponto um ser completo, com insights estupendos e feitos de consciência que são hoje em dia lendas mitológicas. E então tudo parece desaparecer, e nós temos um homem sedado agora”.

Eu queria ficar com raiva, chamá-lo paranóico, mas de alguma maneira a certeza que em geral eu tinha debaixo da superfície de meu ser não estava lá. Algo em mim estava além do ponto de fazer minha pergunta favorita: E se tudo aquilo que ele disse fosse verdade? No momento em que ele estava falando comigo, naquela noite, no fundo de meu coração, sentia que tudo o que ele estava dizendo era verdade, mas ao mesmo tempo, e com igual força, tudo aquilo que ele estava dizendo era o próprio absurdo.

“O que você está dizendo, Don Juan?” eu perguntei debilmente. Minha garganta estava apertada. Eu quase não podia respirar.

“O que eu estou dizendo é que o que temos contra nós não é um simples predador. É muito inteligente, e organizado. Segue um sistema metódico para nos fazer inúteis. O Homem, o ser mágico que ele é destinado a ser, não é mais mágico. Ele é um pedaço comum de carne. Não há nenhum sonho mais no homem a não ser os sonhos de um animal que está sendo criado para se tornar um pedaço de carne: muito vulgar, convencional, imbecil.”

As palavras de Don Juan estavam arrancando uma estranha reação corporal em mim, comparável à sensação de náusea. Era como se eu fosse enjoar novamente. Mas a náusea estava vindo do fundo de meu ser, da medula de meus ossos. Eu tive uma convulsão involuntária. Don Juan me sacudiu vigorosamente pelos ombros. Eu sentia meu pescoço balançando para a frente e para trás em conseqüência de seu aperto. A manobra me acalmou imediatamente. Eu me sentia mais controlado.

“Este predador”, don Juan disse, “que, claro, é um ser inorgânico, não é completamente invisível a nós, como outros seres inorgânicos são. Eu penso que quando crianças nós podemos vê-lo e decidimos que é tão horroroso que nós não queremos pensar nisto. Crianças, claro, podem teimar em focalizar sua visão, mas todos ao seu redor as dissuadem de fazer isso”.

“A única alternativa deixada para o gênero humano”, ele continuou, “é a disciplina. Disciplina é o único dissuasor. Mas por disciplina eu não quero dizer rotinas severas. Eu não quero dizer acordar todas as manhãs às cinco e meia e entrar na água fria até que você fique azul. Feiticeiros entendem disciplina como a capacidade para enfrentar com serenidade imprevistos que não estão incluídos em nossas expectativas. Para eles, disciplina é uma arte: a arte de enfrentar o infinito sem vacilar, não porque eles são fortes e duros mas porque eles estão cheios de respeito e temor.”

“De que modo poderia a disciplina dos feiticeiros ser um impedimento?” eu perguntei.

“Os feiticeiros dizem que disciplina torna a capa brilhante de consciência sem sabor para o voador”, Don Juan disse, examinando minha expressão como para descobrir qualquer sinal de descrença. “O resultado é que os predadores ficam desnorteados. Uma capa brilhante de consciência não comestível não é parte da cognição deles, eu suponho. Depois de ficarem confusos, eles não têm nenhum recurso além de se abster de continuar sua tarefa abominável”.

“Se os predadores não comerem nossa capa brilhante de consciência por algum tempo”, ele continuou, “ela continuará crescendo. Simplificando este assunto ao extremo, eu posso dizer que feiticeiros, por meio de sua disciplina, repelem os predadores tempo suficiente para permitir que sua capa brilhante de consciência cresça além do nível dos dedos do pé. Uma vez que vá além do nível dos dedos do pé, cresce de volta a seu tamanho natural”.

“Os feiticeiros de México antigo costumavam dizer que a capa brilhante de consciência é como uma árvore. Se não é podada, cresce até seu volume e tamanho naturais. Quando a consciência atinge níveis mais altos que os dedos do pé, tremendas manobras de percepção se tornam naturais.”

“Os feiticeiros de México antigo costumavam dizer que a capa brilhante de consciência é como uma árvore. Se não é podada, cresce até seu volume e tamanho naturais. Quando a consciência atinge níveis mais altos que os dedos do pé, tremendas manobras de percepção se tornam naturais.”

“O truque principal desses feiticeiros de tempos antigos,” don Juan continuou, “era sobrecarregar a mente dos voadores com disciplina. Eles descobriram que se eles ‘taxassem’ a mente dos voadores com silêncio interno, a instalação estrangeira fugiria, dando a qualquer um dos praticantes envolvidos nesta manobra a certeza total da origem externa da mente. A instalação estrangeira volta, eu lhe asseguro, mas não tão forte, e começa um processo no qual o fugir da mente dos voadores se torna rotineiro, até um dia que foge permanentemente. Um dia triste realmente! Esse é o dia em que você tem que confiar nos seus próprios dispositivos, que são quase zero. Não há ninguém para lhe dizer o que fazer. Não há nenhuma mente de origem alienígena para ditar as imbecilidades às quais você está acostumado.”

“Meu professor, o nagual Julian, costumava advertir todos os seus discípulos,” Don Juan continuou, “que este era o dia mais duro na vida de um feiticeiro, pois a mente real que pertence a nós, a soma total de nossas experiências, depois de toda uma vida de dominação se tornou tímida, insegura, e velhaca. Pessoalmente, eu diria que a batalha real dos feiticeiros começa naquele momento. O resto somente é preparação.”

Eu fiquei genuinamente agitado. Queria saber mais, e ainda assim um sentimento estranho em mim clamava para eu parar. Aludia a resultados negros e castigo, algo como a ira de Deus descendo em mim por ter mexido com algo ocultado pelo próprio Deus. Eu fiz um esforço supremo para permitir minha curiosidade vencer.

“Qu—qu—que você quer dizer,” eu me ouvi dizer, “taxando a mente dos voadores?”

“Disciplina taxa a mente estrangeira tremendamente”, ele respondeu. “Assim, pela disciplina, feiticeiros derrotam a instalação alienígena”.

Eu fui subjugado por suas declarações. Eu acreditava que, ou don Juan estava comprovadamente insano ou o que ele estava me contando era algo tão tremendo que gelou tudo em mim. Percebi, contudo, quão rapidamente eu reuni minha energia para negar tudo que ele tinha dito. Depois de um momento de pânico, eu comecei a rir, como se Don Juan tivesse me contado uma piada. Eu até me ouvi dizendo, “Don Juan, Don Juan, você é incorrigível!”

Don Juan parecia entender tudo que eu estava experimentando. Ele balançou a cabeça de um lado ao outro e elevou os olhos aos céus em um gesto de desespero fingido.

“Eu sou tão incorrigível,” ele disse, “que eu vou dar à mente dos voadores, que você leva dentro de si, mais uma pancada. Eu vou lhe revelar um dos segredos mais extraordinários de feitiçaria. Eu vou descrever a você um achado que os feiticeiros levaram milhares de anos para verificar e consolidar.”

Ele olhou para mim e sorriu maliciosamente. “A mente dos voadores foge para sempre,” ele disse, “quando um feiticeiro tem sucesso em agarrar a força vibratória que nos une num conglomerado de campos de energia. Se um feiticeiro mantiver aquela pressão tempo suficiente, a mente dos voadores foge derrotada. E isso é exatamente o que você vai fazer: agarre-se à energia que o mantém unido.”

Eu tive a reação mais inexplicável que poderia imaginar. Algo em mim na verdade tremeu, como se tivesse recebido uma sacudidela. Eu entrei em um estado de medo injustificável, que eu imediatamente associei à minha formação religiosa.

Don Juan olhou para mim da cabeça aos pés.

“Você está temendo a ira de Deus, não é?” ele disse. “Fique certo, isso não é seu medo. É o medo dos voadores, porque sabe que você fará exatamente como eu estou lhe falando”.

As palavras dele não me acalmaram em absoluto. Eu me sentia pior. Eu estava tendo ânsias de vômito involuntariamente, e não tinha nenhum meio de parar isto.

“Não se preocupe”, disse Don Juan calmamente. “Eu sei por experiência que esses ataques se enfraquecem muito depressa”. A mente do voador não tem absolutamente nenhuma concentração.”

Depois de um momento, tudo parou, como don Juan tinha predito. Dizer novamente que eu estava confuso é um eufemismo. Esta foi a primeira vez, em minha vida, com Don Juan ou só, que eu não soube se eu estava vindo ou indo. Eu quis sair da cadeira e caminhar ao redor, mas estava mortalmente amedrontado. Eu estava cheio de afirmações racionais, mas ao mesmo tempo eu estava cheio de um medo infantil. Eu comecei a respirar profundamente, pois uma transpiração fria cobria meu corpo inteiro. Eu tinha liberado de alguma maneira em mim uma visão miserável: sombras pretas, esvoaçantes, saltando ao redor de mim, para onde quer que eu me virasse.

Eu fechei meus olhos e descansei minha cabeça no braço da cadeira estofada. “Eu não sei para onde me virar, Don Juan,” eu disse. “Hoje à noite, você realmente teve sucesso em me deixar perdido.”

“Você está sendo rasgado por uma luta interna,” disse Don Juan. “Bem nas profundezas de seu ser, você sabe que é incapaz de recusar o acordo em que uma parte indispensável de você, sua capa brilhante de consciência, vai servir como uma fonte incompreensível de alimento para, naturalmente, entidades incompreensíveis. E outra parte de você ficará contra esta situação com todo seu poder.”

“A revolução dos feiticeiros,” ele continuou, “é que eles recusam honrar acordos dos quais eles não participaram. Ninguém nunca me perguntou se eu consentia em ser comido por seres de um tipo diferente de consciência. Meus pais apenas me trouxeram neste mundo para ser comida, como eles, e isso é o fim da história.”

Don Juan se levantou da cadeira e esticou os braços e pernas. “Estamos sentados aqui há horas. Está na hora de entrar em casa. Eu vou comer. Você quer comer comigo?”

Eu recusei. Meu estômago estava em alvoroço.

“Eu acho que você devia dormir,” ele disse. “Esse ataque o devastou”.

Eu não precisava mais nenhuma persuasão. Desmoronei sobre minha cama e dormi como um morto.

Em casa, à medida que o tempo passava, a idéia dos voadores se tornou um das principais fixações de minha vida. Eu cheguei ao ponto onde eu sentia que Don Juan estava absolutamente certo sobre eles. Não importa quanto eu tentasse, não podia descartar sua lógica. Quanto mais eu pensava nisso, mais eu falava e observava a mim e meus pares da raça humana, mais intensa a convicção de que algo estava nos tornando incapaz de qualquer atividade ou qualquer interação ou qualquer pensamento que não tivesse o ego como ponto focal. Minha preocupação, como também a preocupação de todos que eu conhecia ou com quem conversava, era o ego. Como eu não podia achar nenhuma explicação para tal homogeneidade universal, eu acreditei que a linha de pensamento de don Juan era o modo mais apropriado de elucidar o fenômeno.

Eu mergulhei tão profundamente quanto pude em leituras sobre mitos e lendas. Lendo, experimentei algo que eu nunca tinha sentido antes: cada um dos livros que eu lia era uma interpretação de mitos e lendas. Em cada um desses livros, uma mente homogênea era palpável. Os estilos diferiam, mas a força atrás das palavras era homogeneamente a mesma: embora o tema fosse algo tão abstrato quanto mitos e lendas, os autores sempre conseguiam inserir declarações sobre si próprios. O impulso homogêneo atrás de cada um desses livros não era o tema declarado do livro; era, ao invés, auto-serviço. Eu nunca tinha sentido isto antes.

Eu atribuí minha reação à influência de don Juan. A pergunta inevitável que eu me fiz era: ele está me influenciando a ver isto, ou realmente há uma mente alienígena que dita tudo que nós fazemos? Eu caí, por força das circunstâncias, em negação novamente, e mudava insanamente da negação para a aceitação e novamente para a negação. Algo em mim sabia que o que don Juan estava querendo dizer era um fato energético, mas algo igualmente importante em mim sabia que tudo isso era absurdo. O resultado final de minha luta interna era um senso de presságio, o senso de algo iminentemente perigoso vindo a mim.

Eu fiz investigações antropológicas extensas sobre o assunto dos voadores em outras culturas, mas não pude achar nenhuma referência, em qualquer lugar, a eles. Don Juan parecia ser a única fonte de informação sobre este assunto. Da próxima vez que eu o vi, eu imediatamente comecei a falar sobre os voadores.

“Eu tentei o máximo ser racional sobre este assunto,” disse eu, “mas eu não posso. Há momentos em que eu concordo completamente com você sobre os predadores.”

“Focalize sua atenção nas sombras fugazes que você vê de fato,” don Juan disse com um sorriso.

Eu disse a don Juan que essas sombras iam ser o fim de minha vida racional. Eu as via em todos os lugares. Desde que tinha deixado sua casa, eu era incapaz de dormir na escuridão. Dormir com as luzes acesas não me aborrecia em nada. O momento em que eu apagava as luzes, porém, tudo ao meu redor começava a saltar. Eu nunca via figuras completas ou formas. Tudo que eu via eram sombras pretas fugazes.

“A mente dos voadores não o deixou,” disse don Juan, “Ela foi seriamente ferida. Está tentando ao máximo rearranjar sua relação com você. Mas algo em você está rompido para sempre. O voador sabe isso. O perigo real é que a mente dos voadores pode ganhar cansando-o e forçando-o a desistir, mostrando a contradição entre o que ela diz e o que eu digo.”

“Você vê, a mente dos voadores não tem nenhum competidor,” don Juan continuou. “Quando ela propõe algo, concorda com sua própria proposição, e o faz acreditar que você fez algo de valor. A mente dos voadores dirá a você que tudo que Juan Matus está contando é pura tolice, e então a mesma mente concordará com sua própria proposição, 'Sim, claro que é tolice,' você dirá. Esse é o modo com que eles nos derrotam.”

“Os voadores são uma parte essencial do universo,” ele continuou, “e devem ser levados como o que eles realmente são — pavorosos, monstruosos. Eles são os meios pelos quais o universo nos testa.”

“Nós somos sondas energéticas criadas pelo universo,” ele continuou como se estivesse inconsciente da minha presença, “e é porque nós somos os possuidores de energia que tem consciência que nós somos os meios pelos quais o universo se dá conta de si mesmo. Os voadores são os desafiantes implacáveis. Eles não podem ser tomados como qualquer outra coisa. Se nós temos sucesso nisso, o universo nos permite continuar.”

Eu quis que don Juan dissesse mais. Mas ele disse apenas, “a blitz terminou a última vez que você esteve aqui; há tanto que você pode dizer sobre os voadores. Está na hora de outro tipo de manobra”.

Eu não pude dormir aquela noite. Entrei em um sono leve, nas primeiras horas da madrugada, até que don Juan me tirou de minha cama e me levou para uma caminhada nas montanhas. Onde ele vivia, a configuração da terra era muito diferente daquela do deserto de Sonora, mas ele me disse que não me preocupasse com comparações, porque depois de caminhar durante um quarto de milha, todo lugar do mundo era a mesma coisa.

“Apreciar a vista é para pessoas em carros”, ele disse. “Eles vão a grande velocidade sem qualquer esforço de sua parte. Apreciar a vista não é para andarilhos. Por exemplo, quando você está indo em um carro, você pode ver uma montanha gigantesca cuja visão o subjuga com sua beleza. A visão da mesma montanha não o subjugaria da mesma maneira se você olhá-la enquanto você for a pé; o impressionará de modo diferente, especialmente se você tem que escalá-la ou dar a volta em torno dela.”

Estava muito quente aquela manhã. Caminhamos em um leito fluvial seco. Uma coisa que aquele vale e o deserto de Sonora tinham em comum era os milhões de insetos. Os mosquitos e moscas ao meu redor estavam como bombardeiros kamikazes que miravam minhas narinas, olhos e orelhas. Don Juan me disse que não prestasse atenção ao seu zumbido.

“Não os tente dispersar com sua mão”, ele disse em um tom firme. “Intente-os longe. Monte uma barreira de energia ao seu redor. Fique em silêncio, e de seu silêncio será construída a barreira. Ninguém sabe como isto é feito. É uma dessas coisas que os feiticeiros antigos chamavam fatos energéticos. Desligue seu diálogo interno. Isso é tudo que é necessário”.

“Eu quero propor uma idéia estranha a você”, Dom Juan disse enquanto continuava caminhando à minha frente.

Eu tive que apressar meus passos para me aproximar dele e não perder nada do que ele dizia.

“Eu tenho que deixar claro que esta é uma idéia estranha que achará resistência infinita em você,” ele disse. “Já vou lhe avisando que você não aceitará isto facilmente. Mas o fato de que é estranho não deveria ser um impedimento. Você é um cientista social. Então, sua mente está sempre aberta à investigação, não é assim?”

Don Juan estava tirando sarro descaradamente de mim. Eu percebi, mas isto não me aborreceu. Talvez devido ao fato de que ele estava caminhando tão rápido, e eu tinha que fazer um tremendo esforço para manter seu ritmo, o sarcasmo dele não me atingia, e em vez de me deixar irritado, me fez rir. Minha atenção integral estava focalizada no que ele estava dizendo, e os insetos ou deixaram de me aborrecer porque eu tinha intentado uma barreira de energia ao meu redor ou porque eu estava tão ocupado escutando don Juan que não me preocupava mais com seu zumbido.

“A idéia estranha”, ele disse lentamente, medindo o efeito de suas palavras, “é que todo ser humano nesta terra parece ter exatamente as mesmas reações, os mesmos pensamentos, os mesmos sentimentos. Eles parecem responder mais ou menos do mesmo modo aos mesmos estímulos. Essas reações parecem algo “enevoadas” pelo idioma que eles falam, mas se nós eliminarmos isso, são exatamente as mesmas reações que sitiam todo ser humano na Terra. Eu gostaria que você ficasse curioso sobre isto, como cientista social, claro, e veja se você poderia explicar formalmente tal homogeneidade.”

Don Juan coletou uma série de plantas. Algumas delas quase não poderiam ser vistas. Eles pareciam estar mais no reino das algas e musgo. Eu segurei sua bolsa aberta, e não nos falamos mais. Quando ele teve bastante plantas, tomou o caminho de casa, caminhando tão rápido quanto podia. Ele disse que queria limpar e separar essas plantas e colocá-las em ordem antes que secassem muito.

Eu estava profundamente envolvido pensando na tarefa que ele tinha delineado para mim. Comecei tentando revisar em minha mente se eu conhecia qualquer artigo ou documento escrito sobre este assunto. Eu pensei que eu teria que pesquisar, e decidi começar minha pesquisa lendo todos os trabalhos disponíveis em âmbito nacional. Eu me pus entusiástico sobre o tema, de modo fortuito, e realmente quis ir imediatamente para casa, porque queria levar a tarefa a sério, mas antes que nós chegássemos à sua casa, don Juan se sentou em uma borda alta que descortinava o vale. Não disse nada durante algum tempo. Ele não estava ofegante. Não pude conceber por que ele tinha parado para se sentar.

“A tarefa do dia, para você,” ele disse abruptamente, em um tom de presságio, “é uma das coisas mais misteriosas da feitiçaria, algo que vai além da linguagem, além das explicações. Nós caminhamos hoje, nós falamos, porque o mistério de feitiçaria deve ser acomodado dentro do mundano. Deve originar-se do nada, e voltar novamente para o nada. Isso é a arte dos guerreiros: passar pelo buraco de uma agulha desapercebidos. Então, firme-se apoiando suas costas nesta parede de pedra, o mais longe possível da extremidade. Eu estarei próximo, no caso de você desfalecer ou cair.

“O que você está planejando fazer, Don Juan?” eu perguntei, e meu alarme era tão patente que eu notei e baixei minha voz.

“Eu quero que você cruze suas pernas e entre no silêncio interior,” ele disse. “Digamos que você quer descobrir que artigos você poderia procurar para desacreditar ou substanciar o que eu lhe pedi que faça em seu ambiente acadêmico. Entre no silêncio interior, mas não durma. Esta não é uma viagem pelo mar escuro de consciência. Isto é ver a partir do silêncio interior.”

Era bastante difícil para mim entrar no silêncio interior sem cair adormecido. Eu lutei contra um desejo quase invencível de dormir. Tive sucesso, e me vi olhando para o fundo do vale a partir de uma escuridão impenetrável ao meu redor. E então, eu vi algo que me gelou até a medula dos ossos. Eu vi uma sombra gigantesca, de talvez cinco metros de comprimento, saltando no ar e pousando com um baque silencioso. Eu sentia o baque em meus ossos, mas não o ouvi.

“Eles são realmente pesados,” don Juan disse em meu ouvido. Ele estava me segurando pelo braço esquerdo, com toda a força que podia.

Eu vi algo que se parecia com um meneio de sombra de lama agitar-se no chão, e então dar outro pulo gigantesco, talvez de quinze metros, e pousar novamente, com o mesmo baque silencioso ameaçador. Eu lutei para não perder minha concentração. Estava amedrontado além de qualquer coisa que eu pudesse usar racionalmente como descrição. Mantive meus olhos fixos na sombra saltando no fundo do vale. Então eu ouvi um zumbido mais peculiar, uma mistura do som de asas batendo e o zumbido de um rádio cujo dial não sintonizou totalmente a freqüência de uma estação de rádio, e o baque que seguiu foi algo inesquecível. Sacudiu don Juan e eu a fundo — uma sombra de lama preta gigantesca tinha acabado de pousar aos nossos pés.

“Não fique apavorado”, don Juan disse imperiosamente. “Mantenha seu silêncio interior e ela se afastará”.

Eu estava tremendo de cabeça aos pés. Tive o conhecimento claro de que se eu não mantivesse meu silêncio interior vivo, a sombra de lama me cobriria como uma manta e me sufocaria. Sem esquecer a escuridão ao meu redor, eu gritei com todas as minhas forças. Nunca tido estado tão irritado, tão totalmente frustrado. A sombra deu outro pulo, claramente para o fundo do vale. Eu continuei gritando, sacudindo minhas pernas. Eu queria livrar-me de tudo que pudesse vir a me comer. Meu estado de nervosismo era tão intenso que eu perdi o controle do tempo. Talvez eu tenha desmaiado.

Quando despertei, eu estava em minha cama na casa de Don Juan. Havia uma toalha, encharcada em água gelada, enrolada em minha testa. Eu estava ardendo em febre. Um das discípulas de don Juan esfregava minhas costas, peito e testa com álcool, mas isto não me aliviou. O calor que eu estava experimentando vinha de dentro. Era gerado por minha ira e impotência.

Don Juan riu como se o que estava acontecendo a mim fosse a coisa mais engraçada no mundo. Acessos de riso o invadiam de forma contínua.

“Eu nunca teria pensado que você levaria ver um voador tão a sério,” ele disse.

Ele me levou pela mão e me conduziu à parte de trás da casa, onde ele me mergulhou em uma banheira enorme de água, completamente vestido — sapatos, relógio, tudo.

“Meu relógio, meu relógio!” eu gritei.

Don Juan se torcia de rir. “Você não deveria usar um relógio quando vem me ver,” ele disse. “Agora você estragou seu relógio!”

Eu tirei meu relógio e o pus ao lado da banheira. Me lembrei que era à prova d’água e que nada poderia lhe acontecer.

Ser molhado na banheira me ajudou enormemente. Quando Don Juan me tirou da água gelada, eu tinha ganho um certo grau de controle.

“Essa coisa é absurda!” eu continuei repetindo, incapaz de dizer qualquer outra coisa.

O predador que don Juan tinha descrito não era algo benevolente. Era enormemente pesado, bruto, indiferente. Eu sentia seu descaso por nós. Indubitavelmente, tinha nos esmagado eras atrás, tornando-nos, como don Juan tinha dito, fracos, vulneráveis e dóceis. Eu tirei minhas roupas molhadas, cobri-me com um poncho, sentei em minha cama, e verdadeiramente me acabei de tanto chorar, mas não por mim. Minha ira e meu intento inflexível não os deixariam me comer. Eu chorei por meus companheiros da raça humana, especialmente por meu pai. Eu nunca soube até aquele momento que eu o amava tanto.

“Ele nunca teve uma chance”, eu me ouvi repetindo, sem parar, como se as palavras realmente não fossem minhas. Meu pobre pai, o ser mais atencioso que eu conheci, tão terno, tão gentil, tão indefeso.

A segunda pessoa com quem don Juan entendia que eu estava em débito era uma criança de dez anos de idade que conheci em sua fase de crescimento. Seu nome era Armando Velez. Exatamente como seu nome, ele era extremamente majestoso, almofadinha, uma criança com pose de adulto. Eu gostava muito dele porque era firme e mesmo assim, muito amigável. Era alguém que não se intimidava facilmente. Lutaria com quem fosse necessário e mesmo assim não era de modo algum um valentão.

Nós dois costumávamos ir pescar juntos. Usávamos pescar pequenos peixes que viviam sob as rochas e tinham que ser agrupados com as mãos. Colocávamos os peixinhos que pegávamos para secar ao sol e os comíamos crus, em algumas vezes, durante o dia todo.

Eu também gostava do fato dele ser muito engenhoso e esperto, bem como ser ambidestro. Ele conseguia atirar uma pedra com a mão esquerda mais longe que com a direita. Disputávamos um sem número de jogos competitivos que, para minha tristeza, ele sempre ganhava. Ele usava uma espécie de desculpa pelo fato de ganhar sempre, dizendo: “Se eu ficar mole e deixar você me vencer, você me odiará. Seria uma afronta para sua masculinidade. Por isso, esforce-se ao máximo”.

Pelo fato dele ser extremamente almofadinha, costumávamos chamá-lo de “Senhor Velez,” mas o “Senhor” era reduzido para “Sô”, um costume típico da região da América do Sul, de onde vim.

Um dia, Sô Velez pediu-me algo bastante incomum. Ele iniciou seu pedido, naturalmente, como um desafio para mim. “Aposto qualquer coisa,” disse ele, “que eu sei de uma coisa que você não ousaria fazer.”

“Sobre o que você está falando, Sô Velez?”

“Você não teria a coragem de descer o rio numa jangada.”

“Oh, sim, teria. Já desci uma vez num rio cheio. Fiquei isolado numa ilha por oito dias, certa vez. Eles tiveram que impelir comida para mim.”

 

Dando a Partida para a Viagem Definitiva

                   O Salto para o Abismo

Havia apenas uma trilha que conduzia àquela meseta, àquele topo achatado da montanha. Uma vez ali, na meseta, percebi que ela não era tão extensa como parecia quando a olhei de longe. A vegetação em sua superfície não era diferente da vegetação da parte de baixo: arbustos com troncos grossos, de um verde descorado que tinham uma semelhança ambígua com árvores.

A princípio, eu não vi nenhum precipício. Foi só quando don Juan conduziu-me até ele que eu percebi que a meseta terminava num abismo; não se tratava realmente de uma meseta, mas meramente do topo achatado de uma montanha de bom tamanho. A montanha era redonda e erodida em seus lados leste e sul; entretanto, na parte de seus lados norte e oeste, ela parecia ter sido cortada com uma faca. Da borda do precipício, eu pude ver o fundo do barranco, talvez a uns 180 m abaixo. Estava coberto com os mesmos arbustos de tronco grosso que cresciam por toda parte.

Toda uma fila de pequenas montanhas ao sul e ao norte do pico da montanha onde nos encontrávamos, dava a impressão clara de que o vale era parte de um desfiladeiro gigante, com milhões de anos de idade, escavado por um rio que não mais existia. As bordas desse desfiladeiro haviam sido destruídas pela erosão. Em certos pontos elas foram niveladas com o fundo do vale. O único ponto ainda intato era o local onde me achava.

“É uma rocha sólida”, disse don Juan como se estivesse lendo meus pensamentos. Apontou com o queixo o fundo do desfiladeiro. “Qualquer coisa que caísse daqui até lá em baixo, seria transformada em pedacinhos pelas rochas, até chegar lá no fundo”.

Esse foi o início do diálogo entre mim e don Juan nesse dia, no topo da montanha. Antes de nos dirigirmos para lá, ele dissera-me que seu tempo na Terra havia chegado ao fim. Ele estava partindo para sua viagem definitiva. Sua declaração foi devastadora para mim. Eu realmente perdi meu auto domínio, e entrei em um estado bem-aventurado de fragmentação, talvez semelhante ao que as pessoas experimentam quando têm um colapso mental. Mas havia um fragmento cerne de mim mesmo que permaneceu coesivo: o mim da meninice. O resto era imprecisão, incerteza. Eu havia estado fragmentado por tanto tempo que me tornar fragmentado mais uma vez era a única saída para fora de minha devastação.

Uma interação muito peculiar entre diferentes níveis de minha percepção ocorreu em seguida. Don Juan, seu coorte Genaro, dois de seus aprendizes, Pablito e Nestor, e eu escalamos o topo daquela montanha. Pablito, Nestor e eu ali estávamos para cuidar de nossa última tarefa como aprendizes: pular no abismo, algo bastante misterioso, que don Juan explicara-me em vários níveis de percepção, mas que permanecia um enigma até aquele dia.

Don Juan dissera, em tom de gozação, que eu deveria levar minha caderneta de anotações e começasse a anotar quais eram os nossos últimos pensamentos enquanto estávamos juntos. Ele cutucou-me gentilmente nos quadris e garantiu-me, escondendo o riso, que aquilo seria a única coisa apropriada já que eu comecei a trilhar o caminho do guerreiro- viajante fazendo anotações.

Don Genaro interrompeu a conversa e disse que outros guerreiros-viajantes antes de nós estiveram naquela meseta antes de embarcarem em sua viagem definitiva em direção ao desconhecido. Don Juan virou-se para mim e disse numa voz suave que eu logo, logo entraria no infinito pela força do meu poder pessoal, e que ele e don Genaro estavam ali apenas para dizer adeus. Don Genaro novamente interrompeu a conversa para dizer que eu também estava ali para dizer adeus para eles.

“Um vez que você tenha entrado no infinito,” disse don Juan, “você não poderá contar conosco para trazê-lo de volta. Será necessária então a sua decisão. Só você poderá decidir se quer voltar ou não. Devo também prevenir você que poucos guerreiros-viajantes sobrevivem a esse encontro com o infinito. A atração do infinito é inacreditável. O guerreiro-viajante descobre que retornar ao mundo da desordem, compulsão, ruído, e dor é algo sem nenhum atrativo. Você deve saber que sua decisão de ficar ou de retornar não é assunto da escolha pela razão, mas é assunto de intentá-lo.

“Se você escolher não retornar,” continuou ele, “você desaparecerá como se a Terra o tivesse engolido. Mas se escolher retornar, você deve apertar o cinto e esperar como um guerreiro-viajante até sua tarefa, qualquer que seja, termine, seja com sucesso, seja com derrota.”

Uma mudança muito sutil começou a acontecer em minha percepção a partir de então. Comecei a lembrar-me da face das pessoas, mas não estava certo de as ter encontrado; estranhos sentimentos de angústia e afeição começaram a aumentar. A voz de don Juan não mais era audível. Tinha saudades de pessoas que sinceramente duvidava de haver conhecido. Fui repentinamente possuído por um amor o mais insuportável possível por aquelas pessoas, quem quer que pudessem ser. Meus sentimentos por elas iam além das palavras, e ainda assim não podia dizer quem eram elas. Apenas sentia sua presença, com se eu tivesse vivido outra vida antes, ou como se estivesse sentindo por elas como num sonho. Senti que suas formas externas mudavam; elas começavam sendo altas e terminavam pequenas. O que restava intata era sua essência, a própria coisa que produzia minha saudade intolerável por elas.

Don Juan aproximou-se de mim e disse, “A combinação foi que você permanecesse com a percepção do dia-a-dia”. Sua voz era áspera e autoritária. “Hoje você vai completar uma tarefa concreta”, continuou ele, “o último elo de uma longa corrente; e você deve realizá-la com o estado de espírito o mais racional possível.”

Nunca ouvira don Juan falar comigo naquele tom de voz. Ele era uma pessoa diferente naquele momento, e ainda assim era para mim inteiramente familiar. Eu obedeci docilmente e voltei à consciência da vida do dia-a-dia. Não sabia o que estava fazendo, entretanto. Para mim, parecia que, naquele dia, eu tinha concordado com don Juan por temor e respeito.

Em seguida, don Juan falou comigo no tom em que eu estava acostumado. O que disse foi também bastante familiar. Ele disse que a espinha dorsal de um guerreiro-viajante é a humildade e a eficiência, e que ele age sem nada esperar e suportando o que for que estiver à sua frente.

Neste ponto passei por outra mudança de consciência. Minha mente focalizou um pensamento, ou sentimento de angústia. Lembrei-me que fizera um pacto com algumas pessoas de morrer com elas, e não conseguia lembrar-me quem eram. Senti, sem sombra de nenhuma dúvida, que era errado eu morrer sozinho. Minha angústia tornou-se insuportável.

Don Juan falou comigo. “Estamos sós”, disse ele. “Essa é a nossa condição, mas morrer sozinho não é morrer em solidão”.

Respirei fundo várias vezes para acabar com tensão. Depois disso, minha mente tornou-se clara.

“O grande problema de nós, homens, é a nossa fragilidade”, continuou ele. “Quando nossa consciência começa crescer, ela cresce como uma coluna, exatamente no ponto médio do nosso ser luminoso, a partir do chão para cima. Essa coluna deve atingir uma altura considerável antes de podermos confiar nela. Nessa altura de sua vida, como feiticeiro, você perde facilmente o seu elo com a sua nova consciência. Quando você faz isso, você se esquece de tudo que fez e viu no caminho do guerreiro-viajante porque sua consciência retorna à percepção de sua vida do dia-a-dia. Eu já expliquei para você que a tarefa de cada feiticeiro do sexo masculino é reclamar tudo o que fez e viu no caminho de guerreiro-viajante enquanto estiver nos novos níveis de percepção. O problema dos feiticeiros masculinos é que eles esquecem facilmente porque sua percepção perde a ligação com seu novo nível e cai por terra por qualquer motivo”.

“Eu entendo exatamente o que você está dizendo, don Juan”, disse eu. “Talvez essa seja a primeira vez em que atingi a percepção total do por quê eu me esqueço de tudo, e por quê eu recordo de tudo posteriormente. Eu sempre acreditei que minhas mudanças ocorriam por causa de uma condição patológica pessoal; agora sei porque elas ocorrem, embora não consiga verbalizar o que sei”.

“Não se preocupe com verbalizações”, disse don Juan. “Você irá verbalizar tudo o que quiser no tempo devido. Hoje, você deve agir a partir de seu silêncio interior, a partir do que sabe sem saber. Você conhece com perfeição o que deve fazer, mas esse conhecimento ainda não esta perfeitamente formulado em seus pensamentos”.

No nível dos pensamentos concretos ou sensações, tudo o que eu tinha eram sentimentos vagos de saber algo que não fazia parte de minha mente. Tive, então, o sentimento claríssimo de ter dado um enorme passo para baixo; algo parecia ter caído dentro de mim. Foi quase uma sacudidela. Soube então que havia entrado em outro nível de consciência naquele instante.

Don Juan disse-me então que era obrigatório para todo guerreiro-viajante dizer adeus para todas as pessoas que ele deixou para trás. Ele deve dizer adeus em uma voz alta e clara de modo que seu grito e seus sentimentos fiquem para sempre gravados naquelas montanhas.

Hesitei por um longo tempo, não por causa de algum acanhamento mas por causa de não saber quem incluir em meus agradecimentos. Eu tinha interiorizado completamente o conceito dos feiticeiros de que um guerreiro-viajante não deve ter nenhum débito com ninguém.

Don Juan havia inculcado em mim o seguinte axioma dos feiticeiros: “Os guerreiros-viajantes pagam com elegância, generosidade, e com uma facilidade inigualável cada favor, cada serviço prestado a eles. Dessa maneira, eles ficam livres da carga de estar em débito”.

Eu havia pago, ou estava em processo de pagamento, a todos aqueles que me honraram com seus cuidados ou preocupações. Eu havia recapitulado toda a minha vida com tal profundidade que não deixara nenhuma pedra sem ser virada. Eu sentia que, verdadeiramente, naqueles dias, não devia nada a ninguém. Exprimi para don Juan minhas convicções e minha hesitações.

Don Juan disse que eu, era certo, recapitulara minha vida inteira, mas que eu ainda estava longe de nada dever a ninguém.

“E quanto aos seus fantasmas? continuou ele. “Aqueles que você não mais pode tocar?”

Ele sabia sobre o que falava. Durante minha recapitulação, eu havia contado para ele cada um dos incidentes de minha vida. Entre as centenas de incidentes que contara para ele, ele separou três deles como amostras de débitos que eu havia contraído muito cedo em minha vida, e acrescentou mais um, aquele referente à pessoa que serviu de instrumento para meu encontro com ele. Eu havia agradecido meu amigo profusamente e tinha a sensação de que algo “lá fora” sabia dos meus agradecimentos. Os outros três que permaneceram como histórias de minha vida, histórias de pessoas que deram-me um presente inconcebível, e a quem eu nunca agradecera.

Uma dessas histórias tinha a ver com um homem que eu conhecera quando era uma criança. Seu nome era senhor Leandro Acosta. Ele era o arqui-inimigo de meu avô, sua nemesis verdadeira. Meu avô acusara tal homem repetidamente de haver furtado galinhas de sua granja. O homem não era um vadio, mas alguém que não tinha um emprego fixo, definido. Ele era uma espécie de rebelde independente, um jogador, um mestre de muito ofícios: pau-para-toda-obra, curandeiro free-lancer, caçador e fornecedor de ervas e de insetos de várias espécies para os curandeiros e ervanários locais e também de qualquer espécie de pássaros ou mamíferos para empalhadores e lojas de animais domésticos.

As pessoas acreditavam que ele fazia rios de dinheiro, mas que não podia guardar ou investir sua fortuna. Seus detratores e também seus amigos acreditavam que ele poderia ter estabelecido o negócio mais próspero na região, fazendo o que melhor conhecia – descobrir plantas medicinais e caçar animais – mas que ele carregava uma praga traduzida numa estranha doença do espírito que o transformou numa pessoa inquieta, incapaz de se fixar em o que quer que fosse, por um período de tempo mais longo.

Certo dia, enquanto eu passeava pelos limites da fazenda de meu avô, notei que alguém estava me espiando entre frondosos arbustos onde começava a mata. Era o senhor Acosta. Ele estava agachado no meio do mato, bem na borda da floresta, e estaria inteiramente oculto não fosse a visão aguda de meus oito anos de idade.

“Não é à-toa que meu avô acha que ele está roubando suas galinhas”, pensei. Acreditava que ninguém além de mim poderia ter notado sua presença já que ele estava inteiramente escondido em sua imobilidade. Eu captei a diferença entre o mato e a sua silhueta mais por sentimento que pela vista. Aproximei-me dele. O fato de que algumas pessoas o rejeitavam tão perversamente e de que outras gostavam dele tão apaixonadamente, intrigava-me ao extremo.

“O que o senhor está fazendo aqui, senhor Acosta?” perguntei audaciosamente.

“Estou fazendo cocô enquanto dou uma olhadela na fazenda do seu avô”, disse ele, “e é melhor você dar o fora antes que eu me levante, a menos que goste do cheiro de cocô.”

Afastei-me dele por alguns passos. Queria ter certeza de que falava a verdade. Falava. Levantou-se. Pensei que ele fosse sair do mato e entrar nas terras de meu avô, talvez atravessar a estrada, mas não. Ele começou a andar, penetrando no mato.

“Hei, hei, senhor Acosta!” gritei. “Posso ir com o senhor?” Notei que ele parou de caminhar; era mais um sentimento que uma vista, pois o mato era muito espesso.

“É claro que pode, desde que você encontre uma entrada no mato”, disse ele.

Aquilo não foi difícil para mim. Em minha horas de vadiagem, marcara uma entrada no mato com uma pedra de bom tamanho. Descobri por meio de um processo interminável de tentar e errar que havia um espaço por onde podia-se passar arrastando-se no chão e que depois de uns três ou quatro metros iniciava-se uma trilha pela qual podia-se caminhar.

O senhor Acosta veio até mim e disse, “Bravo, garoto! Você conseguiu. Sim, pode vir comigo se quiser”.

Esse foi o início de minha associação com o senhor Leandro Acosta. Saíamos quase diariamente para caçar. Nosso relacionamento tornou-se tão óbvio, já que me ausentava desde a madrugada até o por do sol, sem que ninguém soubesse para aonde ia, que finalmente meu avô advertiu-me severamente.

“Você deve selecionar suas amizades”, disse ele, “senão terminará sendo igual a elas. Não vou tolerar que esse homem influa em você de qualquer modo imaginável. Ele certamente poderia transmitir para você seu elã, é verdade. E poderia influenciar sua mente para que seja exatamente igual a dele: inútil. Estou dizendo para você, se você não parar com isso, eu irei. Colocarei as autoridades atrás dele com a queixa de roubar minhas galinhas, pois você sabe muito bem que ele vem todos os dias roubá-las.”

Tentei convencer meu avô do absurdo de sua queixa. O senhor Acosta não tinha porque roubar galinhas. Ele tinha ao seu comando a vastidão daquela floresta. Ele conseguia retirar dela o que quisesse. Mas meus argumentos fizeram meu avô ficar ainda mais furioso. Percebi então que meu avô secretamente tinha inveja da liberdade do senhor Acosta, e esta percepção transformou, para mim, o senhor Acosta, de um caçador excelente na expressão última daquilo que era ao mesmo tempo proibido e desejado.

Tentei reduzir meus encontros com o senhor Acosta, mas a atração era muito grande para mim. Então, um dia, o senhor Acosta e três de seus amigos propuseram que eu fizesse uma coisa que o senhor Acosta nunca fizera antes: pegar um urubu vivo, sem feri-lo. Ele explicou para mim que os urubus da região, que eram enormes, com 1,5 a 1,8 m de ponta a ponta de asa, tinham sete tipos de carnes diferentes em seus corpos, e cada um deles servia para um propósito específico de cura. Disse que o ideal seria que o corpo da ave não estivesse ferido. O urubu teria que ser morto com um tranqüilizante, não com violência. Era fácil atirar neles, mas nesse caso, a carne perdia seu valor curativo. Assim a arte seria pegá-los vivos, uma coisa que ele nunca fizera. Havia compreendido, entretanto, que com a minha ajuda e a ajuda de seus três amigos solucionaria o problema. Garantiu-me que essa era uma conclusão natural a que chegara depois das centenas de vezes em que observou o comportamento dos urubus.

“Necessitamos de um burro morto para realizarmos a proeza, e temos esse burro morto,” declarou ele todo animado.

Olhou para mim, esperando que eu fizesse a pergunta do que seria feito com o burro morto. Desde que tal questão não foi formulada, ele prosseguiu.

“Removemos os intestinos e colocamos umas escoras dentro, para manter a redondeza da barriga.

“O líder dos urubus perus é o rei; ele é o maior, o mais inteligente”, continuou ele. “Não existe nenhuma outra vista tão aguda. É isso que faz dele o rei. Será ele o primeiro a ver o burro morto e o primeiro a pousar nele. Ele descerá a favor do vento que levará até ele o cheiro do burro morto. Os intestinos e as vísceras que tirarmos da barriga serão empilhados próximo do rabo, do lado de fora. Desse modo ficará parecendo que algum gato do mato já comeu parte da carniça. Assim, tranqüilamente, o urubu aproximará do burro. Não terá nenhuma pressa. Ele chegará pulando e voando, e depois pousará na anca do burro morto e começará a perfurar seu corpo. Ele viraria a carcaça não fossem as estacas da estrutura para manter o corpo, que também fincaremos no chão. Ele ficará sobre a anca durante uns instantes; essa será a dica para que outros urubus desçam e pousem na vizinhança. Somente depois que ele tiver 3 ou 4 companheiros pousados nas proximidades iniciará o urubu rei o seu trabalho.”

“E qual seria o meu papel em tudo isso, senhor Acosta?” perguntei.

“Você ficará escondido dentro do burro”, disse ele com a cara mais inexpressiva do mundo. “Nada mais que isso. Vou te dar um par especial de luvas de couro, e você ficará sentado lá dentro, esperando até que o urubu rei comece a rasgar o anus do burro morto, abrindo-o com seu enorme e poderoso bico e enfie a sua cabeça no buraco para começar a comer. Você então o agarrará pelo pescoço e não deixará que escape.

“Eu e meus três amigos estaremos montados a cavalo, escondidos num barranco profundo. Acompanharei toda a operação com binóculos. Quando vir que você pegou o urubu rei pelo pescoço, nós iremos a todo galope e nos jogaremos em cima do urubu e o domaremos.”

“Você conseguirá dominar este urubu, senhor Acosta?” perguntei-lhe. Não que duvidasse de sua habilidade, queria apenas ter certeza.

“É claro que conseguirei!” disse ele com toda a confiança do mundo. “Todos nós estaremos usando luvas e polainas de couro. As garras do urubu são muito poderosas. Elas conseguem quebrar a canela da gente como se fosse um galhinho.”

Eu não tinha como sair daquela. Fui apanhado, tornando-me presa de uma excitação sem par. Minha admiração pelo senhor Leandro Acosta, naquele momento, não tinha limites. Via-o como um caçador de verdade – engenhoso, astuto, instruído.

“OK, mãos à obra, então!” disse eu.

“É isso aí, meu garoto!” disse o senhor Acosta. “Eu sabia que podia contar com você.”

Ele colocou um cobertor grosso atrás da sela e um de seus amigos levantou-me, colocando-me na garupa, sentado no cobertor.

“Segure na sela”, disse o senhor Acosta, “e ao segurar nela, segure o cobertor também.”

Saímos num trote despreocupado. Cavalgamos durante cerca de uma hora até chegarmos a uma região plana, seca e desolada. Paramos próximos a uma tenda que parecia com uma banca de venda do mercado. Tinha um teto plano como cobertura. Sob ele jazia o burro marrom morto. Ele não parecia muito velho; parecia um burro adolescente.

Nem o senhor Acosta e nem seus amigos explicaram-me se haviam encontrado o burro morto ou se o mataram. Esperava que eles dissessem isso para mim, mas não iria perguntar. Enquanto eles faziam os preparativos iniciais, o senhor Acosta explicou que a tenda fora colocada porque os urubus estavam de espreita a grandes distâncias dali, voando em círculos, lá no alto, fora do alcance da nossa vista, mas certamente capazes de perceber tudo o que ocorria cá em baixo.

“Essas criaturas são criaturas que só vêem,” disse o senhor Acosta. “Elas têm péssimo ouvido, e seus narizes não são tão bons quanto seus olhos. Teremos que obturar todos os buracos de sua carcaça. Não quero que você fique espiando pelos buracos, porque eles veriam seus olhos e nunca desceriam. Eles não devem ver nada.”

Eles colocaram algumas estacas na barriga do burro e as cruzaram, deixando espaço suficiente para que eu me esgueirasse para dentro. Em certo momento, fiz a pergunta que estava morrendo de vontade de fazer.

“Diga-me, senhor Acosta, este burro certamente morreu de alguma doença, não é mesmo? O senhor acha que sua doença poderá afetar-me?”

O senhor Acosta levantou os olhos para o céu. “Ora, o que é isso? Você não pode ser tão tonto assim. As doenças dos burros não podem ser transmitidas para os homens. Vamos viver esta aventura sem nos preocuparmos com detalhes estúpidos. Se eu fosse menor, eu mesmo estaria dentro da barriga. Você sabe o que é caçar o rei dos urubus busardos?”

Acreditei nele. Suas palavras foram suficientes para cobrir-me com uma confiança inigualável. Eu não iria ficar doente e perder o evento dos eventos.

O momento temido chegou quando o senhor Acosta colocou-me dentro da barriga do burro. Depois cobriram a estrutura com o couro e começaram a costurá-la, deixando uma abertura na parte de baixo para a circulação do ar. O momento horrendo para mim foi quando a pele ficou totalmente fechada sobre minha cabeça, como a tampa de um caixão. Respirei forte, pensando apenas no excitamento de agarrar o urubu rei pelo pescoço.

O senhor Acosta deu-me as instruções finais. Disse que me informaria com um assobio, parecendo com o canto de passarinho, quando o urubu rei estivesse voando pelas proximidades e quando tivesse pousado, para que eu ficasse informado e não ficasse nervoso ou impaciente. Depois ouvi quando eles desmontavam a tenda, e em seguida, ouvi o galope dos cavalos afastando-se. Foi uma coisa acertada não deixar nenhum buraco pelo qual pudesse olhar para fora, pois isso era exatamente o que eu faria. A tentação de olhar para cima e ver o que estava acontecendo era quase irresistível.

Passou um longo tempo durante o qual eu não pensei em nada. Ouvi então o assobio do senhor Acosta e presumi que o urubu rei estivesse voando em círculos nas proximidades. Minha suposição transformou-se em certeza quando ouvi o bater de poderosas asas, e depois, de repente, o corpo do burro morto começou a balançar como se estivesse sob uma ventania. Em seguida senti um peso no corpo do burro e percebi que o rei dos urubus havia pousado e não mais se movia. Ouvi o bater de outras asas e o assobio de longe do senhor Acosta. Preparei-me então para o inevitável. O corpo do burro começou a balançar quando algo iniciou a rasgar sua pele.

Depois, repentinamente, uma cabeça enorme e feia, com uma crista vermelha, um bico de todo o tamanho e um olho aberto perscrutador surgiu na minha frente. Eu gritei assustado e agarrei o pescoço com as duas mãos. Penso que deixei o urubu rei meio atordoado pois o mesmo ficou alguns instantes sem reagir, o que me deu a oportunidade de agarrar seu pescoço com mais força ainda, e depois o inferno todo caiu sobre mim. Ele não mais estava atordoado e começou a puxar com tal força que eu fiquei espremido contra a estrutura, e no instante seguinte estava parcialmente fora do corpo do burro, da estrutura e tudo, agarrando o pescoço da besta invasora para salvar minha vida.

Ouvi o cavalo do senhor Acosta galopando à distância. Ouvi seus gritos, dizendo, “Largue o bicho, rapaz, largue o bicho, ele está voando e levando você!.”

O rei dos urubus, realmente, iria voar comigo agarrado ao seu pescoço ou iria rasgar-me todo com a força de suas garras. A razão pela qual ele não conseguia atingir-me era que sua cabeça estava mergulhada até a metade da distância entre a estrutura e as vísceras. Suas garras ficaram escorregando nos intestinos soltos e realmente não me tocaram por nenhuma vez sequer. Outra coisa que me salvou foi o fato de que todo o esforço do urubu rei estava concentrado em libertar seu pescoço das minhas mãos e não podia mover suas garras o suficiente para alcançar-me. A próxima coisa que percebi foi o senhor Acosta saltar em cima do urubu rei no exato momento em que minhas luvas de couro soltaram-se de minhas mãos.

O senhor Acosta não cabia em si de tanto contentamento. “Conseguimos, meu rapaz, conseguimos!” disse ele. “Da próxima vez, usaremos estacas mais longas e montaremos a estrutura de modo que o urubu não consiga puxar você para fora, pois ela será como uma barreira”.

Meu relacionamento com o senhor Acosta durou o bastante para pegarmos o urubu. Depois meu interesse em procurá-lo desapareceu tão misteriosamente como surgira e eu nunca realmente tive a oportunidade de agradecer-lhe por todas as coisas que ele me ensinara.

Don Juan disse que ele ensinara-me a paciência de um caçador na melhor época para que seja aprendida; e acima de tudo, ele ensinara-me como retirar do fato de se estar sozinho todo o conforto de que um caçador necessita.

“Você não deve confundir solidão com o estar só”, explicou don Juan certa vez para mim. “Solidão para mim é psicológico, é da mente. Estar só é físico. Uma é debilitante e o outro é reconfortante”.

Por tudo isso, dissera don Juan, eu estava em débito com senhor Acosta para sempre, compreendesse eu ou não o que os guerreiros-viajantes entendem por estar em débito.

Eu não sabia quem era o pai de Sô Velez. Nunca o vira. Não sabia como ganhava a vida. Sô Velez revelou que seu pai era um negociante, e que tudo o que ele possuía estava, a bem dizer, aplicado.

“Meu pai construiu uma balsa e quer ir. Ele quer fazer tal expedição. Minha mãe diz que ele está falando da boca pra fora, mas eu não confio nele”, continuou Sô Velez. “Vi seu olhar maluco nos olhos dele. Um dia desses, ele irá fazê-lo, e tenho certeza de que morrerá. Por isso, eu mesmo vou pegar a balsa e entrar na caverna. Sei que vou morrer, mas salvarei meu pai”.

Senti uma descarga elétrica pelo meu pescoço, e ouvi a mim mesmo dizer, na maior agitação que se possa imaginar, “Eu vou, Sô Velez, eu vou. Sim, sim, será jóia! Irei com você!”

Apareceu um sorriso matreiro na face de Sô Velez. Percebi que era um sorriso de felicidade porque eu iria com ele, e não pelo fato dele ter me convencido. Ele confirmou esse sentimento com sua frase seguinte. “Sei que se você for comigo, eu sobreviverei,” disse ele.

Eu não me importava se Sô Velez morresse ou não. O que havia me galvanizado foi sua coragem. Sabia que ele tinha tutano para fazer o que dizia. Ele e o Pastor Maluco eram os dois únicos meninos da cidade que tinham fibra. Ambos tinham algo que eu considerava único e inédito: coragem. Ninguém mais em toda a cidade não tinha nem um pingo. Eu testara todos eles. No que me dizia respeito, todos estavam mortos, inclusive o amor de minha vida, meu avô. Sabia de tudo isso sem sombra de dúvida aos meus dez anos. A ousadia de Sô Velez era uma percepção devastadora para mim. Queria estar com ele para o que desse e viesse.

Planejamos nos encontrar ao romper da aurora, o que realmente aconteceu, e nós dois carregamos a balsa leve do pai dele por 3 ou 4 milhas para fora da cidade até umas montanhas verdes baixas, próximo da caverna onde o rio tornava-se subterrâneo. O cheiro de excremento de morcego era insuportável. Arrastamo-nos até a balsa e empurramos a nós mesmos em direção da corrente. A balsa era equipada com lanternas, as quais tivemos que acender imediatamente. Era escuro feito breu dentro da montanha, além de úmido e quente. A água era bastante funda para a balsa e bastante rápida para que não precisássemos remar.

As lanternas criavam sombras grotescas. Sô Velez murmurou aos meus ouvidos que talvez fosse melhor não olhar para elas, porque eram realmente algo mais que aterradoras. Ele tinha razão: eram nauseantes, opressivas. As luzes excitaram os morcegos, que ficaram batendo as asas ao nosso redor, desorientados. Assim que nos aprofundamos na caverna, não mais havia nem mesmo morcegos, mas apenas um ar estagnado, pesado, difícil de ser respirado. Depois do que pareceram horas para mim, chegamos numa espécie de piscina onde a água era muito profunda; quase não movia. Parecia que a corrente principal fora barrada.

“Não podemos prosseguir”, Sô Velez murmurou em meus ouvidos novamente. “Não há como a balsa continuar e nem regressar”.

A corrente era mesmo muito forte para tentar voltar. Decidimos que devíamos achar uma saída. Percebi que se ficássemos de pé sobre a balsa, poderíamos tocar o teto da caverna, o que significava que a água tinha sido represada até quase o topo da caverna. Na entrada, a altura era como de uma catedral, talvez com uns 15 m de altura. Minha conclusão foi que estávamos na superfície de um lago com 15 m de profundidade.

Amarramos a balsa numa pedra e começamos a mergulhar, tentando descobrir algum movimento da água, alguma possível corrente. Na superfície tudo estava quente e úmido mas a pouco mais de um metro de profundidade, estava muito frio. Meu corpo sentiu a diferença de temperatura e fiquei assustado, presa de um medo animal estranho, que nunca antes sentira. Voltei à superfície. Sô Velez deve ter sentido o mesmo. Trombamos um com o outro na superfície.

“Penso que estamos próximos da nossa morte”, disse ele solenemente.

Eu não compartilhava de sua solenidade e desejo de morrer. Procurei freneticamente por uma saída. As enchentes possivelmente movimentaram as pedras que formaram uma barragem. Encontrei um buraco que cabia meu corpo de garoto de dez anos. Puxei Sô Velez para baixo e mostrei-lhe o buraco. Era impossível que a balsa passasse por ele. Puxamos nossas roupas da balsa e fizemos com elas uma trouxa muito apertada e mergulhamos com ela até encontrarmos de novo o buraco, pelo qual passamos.

Saímos numa cascata, numa espécie de tobogã natural. As pedras cobertas com musgo e líquen permitiram que deslizássemos por elas numa grande distância sem que ficássemos feridos. Chegamos depois numa enorme caverna, parecendo uma catedral, onde a água continuava a fluir, na altura de nossas cinturas. Vimos a luz do céu no fim da caverna e saímos da água. Sem dizer uma palavra, estendemos nossas roupas para secarem e depois dirigimo-nos para a cidade. Sô Velez estava inconsolável pela perda da balsa de seu pai.

“Meu pai teria morrido ali,” reconheceu ele finalmente. “Seu corpo não passaria pelo buraco que atravessamos. Ele é muito grande para isso. Meu pai é um homem grande, gordo,” disse ele. “Mas ele seria forte o bastante para encontrar seu caminho de volta para a entrada.”

Eu duvidava disso. Como eu recordei, em certos trechos, a corrente era muito forte devido à sua inclinação. Reconheci que talvez um homem grande, desesperado, poderia finalmente conseguir sair com o auxílio de cordas e de muito esforço.

O assunto referente à morte ou não do pai de Sô Velez não foi então resolvido, mas isso não mais me importava. O que importava era que pela primeira vez em minha vida eu senti uma pontada de inveja. Sô Velez era a única criatura no mundo pela qual senti inveja em toda minha vida. Ele tinha alguém por quem morrer, e provou para mim que isso era verdade; eu não tinha ninguém por quem morrer, e não havia provado coisa nenhuma.

De um modo simbólico, eu dei o bolo todo para Sô Velez. Seu triunfo foi completo. Tirei o meu chapéu para ele. Aquela era sua cidade, aquela era sua gente, e ele era o melhor de todos, no que me dizia respeito. Quando nos separamos naquele dia, eu usei um chavão que se transformou numa profunda verdade quando disse, “Seja o rei de todos, Sô Velez. Você é o melhor”.

Nunca mais falei com ele. Terminei de propósito minha amizade com ele. Senti que esse era o único gesto que eu poderia fazer para denotar quão profundamente fui afetado por ele.

Don Juan acreditava que meu débito para com Sô Velez era imperecível; em toda a minha vida, ele foi a única pessoa que me ensinou que devemos ter algo por quê morrer antes de pensar em ter algo por quê viver.

“Se você não tem nada por quê morrer”, disse-me don Juan certa vez, “como você pode alegar que tem algo por quê viver? Os dois seguem de mãos dadas, com a morte no leme.

A terceira pessoa de quem don Juan julgava que eu fosse devedor além da minha vida e da minha morte, era minha avó materna. Por causa de minha afeição cega por meu avô – o macho – esqueci-me da fonte real de força entre todos os de casa: minha própria e excêntrica avó.

Muitos anos antes de minha vinda para morar com sua família, ela havia salvo um índio da localidade de ser linchado. Ele era acusado de ser um feiticeiro. Alguns jovens irados haviam realmente dependurado o índio numa árvore na propriedade de minha avó. Ela apareceu em cena e parou com o linchamento. Todos os linchadores, ao que parecia, eram seus afilhados e nenhum deles ousou ir contra ela. Ela desceu com o homem para o chão e depois levou-o para casa, a fim de curá-lo. A corda já havia feito uma ferida profunda em seu pescoço.

Sua ferida cicatrizou, mas ele nunca mais saiu de perto de minha avó. Ele alegava que sua vida terminara no dia do linchamento, e que qualquer que fosse a vida nova que tivesse não mais pertencia a ele; pertencia a ela. Sendo um homem de palavra, dedicou sua vida servindo minha avó. Ele era seu ajudante, seu mordomo, e conselheiro. Minhas tias disseram que fora ele quem aconselhara minha avó a adotar uma criança órfã recém-nascida, algo que ressentiram mais que amargamente.

Quando cheguei na casa de meus avós, o filho adotivo de minha avó andava pelos seus quase quarenta anos. Ela havia mandado-o para estudar na França. Certa tarde, sem quê e nem pra quê, um homem vigoroso e elegantemente vestido, saiu de um táxi na frente da casa. O motorista carregou suas malas de couro para próximo da entrada. O homem vigoroso deu uma gorjeta generosa para o motorista. Notei de cara que as feições do homem robusto eram muito impressionantes. Ele tinha um comprido cabelo cacheado bem como pestanas aneladas. Era extremamente elegante, sem ser fisicamente bonito. Sua melhor característica era, entretanto, seu sorriso aberto, radiante, que imediatamente dirigiu a mim.

“Posso perguntar seu nome, meu jovem?” disse ele com a voz teatral mais linda que jamais ouvira.

O fato dele ter dirigido-se a mim como ‘meu jovem’ cativou-me instantaneamente. “Meu nome é Carlos Aranha, senhor”, disse eu, “e eu posso, por minha vez, perguntar qual é o seu?”

Ele fez um gesto zombeteiro de surpresa. Abriu seus olhos ao máximo e deu um pulo para trás, como se estivesse sendo atacado. Depois começou a dar boas gargalhadas. Ao ouvir as mesmas, minha avó veio até aonde estávamos. Quando ela viu o homem corpulento, gritou como uma mocinha e abraçou-o afetivamente. Ele levantou-a do chão como se ela não pesasse nada e rodou em volta de si mesmo, carregando-a. Notei então que ele era muito alto. Sua robustez escondia sua altura. Ele realmente tinha o corpo de um lutador profissional. Ele pareceu notar meu olhar. Flexionou o braço, mostrando seu muque.

“Eu lutava box nos meus bons tempos, senhor,” disse ele, percebendo tudo o que eu estava pensando.

Minha avó apresentou-o para mim. Ela disse que ele era seu filho Antoine, seu bebê, o colírio de seus olhos; disse que ele era um dramaturgo, diretor de teatro, escritor e poeta.

O fato de ele ser tão atlético serviu como bilhete premiado para mim. Eu não entendi a princípio que ele era adotado. Notei, entretanto, que ele não parecia em nada com o resto da família. Enquanto todos os membros de minha família eram cadáveres que andavam, ele era vivo, vital de dentro para fora. Fazia, maravilhosamente, amigos à primeira vista. Gostava do fato de que ele treinava diariamente, dando golpes num saco. Gostava imensamente do fato de que ele não apenas socava o saco, mas chutava-o também, com um estilo estonteante, uma mistura de lutar socando e chutando. Seu corpo era duro como uma rocha.

Certo dia Antoine confessou para mim que seu único desejo ardente na vida era ser um escritor de renome.

“Eu tenho tudo”, disse ele. “A vida tem sido muito generosa para comigo. A única coisa que não tenho é a única coisa que desejo: talento. As musas não gostam de mim. Aprecio o que leio, mas não consigo criar nada que goste de ler. Esse é o meu tormento; falta-me a disciplina ou charme que atraem as musas, e por isso a vida é vazia a não mais poder”.

Antoine continuou dizendo-me que sua única realidade era sua mãe. Ele chamava minha avó de ‘meu bastão’, ‘meu suporte’, ‘minha alma gêmea’. Terminou vocalizando um pensamento que muito me perturbou: “Se eu não tivesse minha mãe”, disse ele, “não viveria”.

Percebi então quão profundamente estava ele ligado à minha avó. Todas as histórias terríveis que minhas tias contaram-me sobre a criança mimada que era Antoine tornaram-se repentinamente muito vivas para mim. Minha avó, realmente mimou-o a tal ponto que não havia mais jeito para ele. Mesmo assim eles pareciam imensamente felizes um ao lado do outro. Eu os via sentados horas a fio, sua cabeça no colo dela como se ainda fosse uma criança. Eu nunca vira minha avó conversando com alguém por tanto tempo.

Abruptamente, Antoine começou um dia a escrever sem parar. Começou a dirigir uma peça no teatro local, uma peça que ele mesmo escrevera. Quando foi encenada, tornou-se um sucesso imediato. Seus poemas foram publicados nos jornais da cidade. Ele pareceu ter encontrado um filão criativo. Mas tudo acabou apenas alguns meses depois. O editor do jornal denunciou Antoine publicamente; acusou-o de plágio e publicou no jornal a prova da sua culpabilidade.

Minha avó, é claro, não dava ouvidos às notícias de mal comportamento de seu filho. Ela explicava que tudo não passava de profunda inveja. Todas as pessoas da cidade invejavam a elegância, o porte de seu filho. Invejavam sua personalidade, sua sagacidade, seu espírito. Realmente, ele era a personificação da elegância e do ‘savoir faire’. Mas, com certeza, era plagiário; não havia nenhuma dúvida quanto a isso.

Antoine nunca explicou para ninguém seu comportamento. Eu gostava muito dele para perguntar algo a respeito. Além disso, eu não dava nenhuma importância para tal assunto. Ele devia ter suas razões, e para mim isso explicava tudo. Mas algo fora quebrado; desde então, nossas vidas, a bem dizer, andavam aos trancos e barrancos. As coisas dentro de casa mudaram tão drasticamente de um dia para o outro, que eu acabei por não esperar nada, fosse o melhor, fosse o pior. Certa noite minha avó foi até ao quarto de Antoine de um modo o mais dramático possível. Havia um quê de severidade em seus olhos que eu nunca vira antes. Seus lábios tremeram assim que ela começou a falar.

“Aconteceu algo terrível, Antoine”, começou ela.

Antoine interrompeu-a. Pediu-lhe que o deixasse explicar.

Ela interceptou-o abruptamente. “Não, Antoine, não”, disse ela com firmeza. “Isso nada tem a ver com você. Tem a ver comigo. Nestes tempos tão difíceis para você, aconteceu algo de maior importância ainda. Antoine, meu querido filho, o tempo acabou para mim.

“Quero que você entenda que isto é inevitável,” continuou ela. “Eu tenho que ir, mas você deve permanecer. Você é a soma total de tudo o que eu fiz na minha vida. Bom ou mau, Antoine, você é tudo o que eu sou. Dê uma oportunidade à vida. No final, seja como for, nós estaremos juntos novamente. Enquanto isso, entretanto, faça, Antoine, faça. Qualquer coisa, não importa o quê, desde que você faça.”

Eu vi o corpo de Antoine tremer de angústia. Eu vi como ele contraiu todo o seu ser, todos os músculos de seu corpo, toda a sua força. Era como se ele tivesse mudado as variáveis de seu problema, antes como um rio, agora como o oceano.

“Prometa-me que você não irá morrer antes de mim!” gritou ela para ele.

Antoine balançou a cabeça, concordando.

Minha avó, no dia seguinte, seguindo o conselho de seu feiticeiro, vendeu todos os seus pertences, que eram de grande porte, e entregou o produto da venda para o seu filho Antoine. E no dia seguinte, bem cedo pela manhã, a cena mais estranha que testemunhei, aconteceu em frente dos olhos dos meus dez anos: o momento em que Antoine disse adeus para sua mãe. Foi algo tão irreal como a montagem de uma cena de cinema; irreal no sentido de que parecia previamente combinada, fruto de um ‘script’ feito algures, criado por uma série de ajustes que o escritor fez e o diretor executou.

A cena desenrolava-se no pátio de frente da casa de minha avó. Antoine era o protagonista principal e sua mãe era a atriz mais importante. Antoine iria viajar neste dia. Ele estava indo para o porto. Iria embarcar num navio italiano e atravessar o Atlântico em direção da Europa, num cruzeiro de lazer. Estava elegantemente vestido como nunca. O motorista do táxi esperava por ele fora do pátio, buzinando impacientemente.

Eu havia testemunhado a última noite febril de Antoine quando ele tentava, tão desesperadamente quanto alguém pode tentar, escrever um poema para sua mãe.

“É uma porcaria”, disse ele para mim. “Tudo o que escrevo é uma porcaria. Eu sou um João Ninguém”.

Eu assegurei-lhe, embora não fosse ninguém para isso, que qualquer coisa que escrevesse era jóia. Em certo momento, deixei-me levar e ultrapassei certos limites que nunca deveria cruzar.

“Acredite-me, Antoine”, gritei, “eu sou um João Ninguém pior que você! Você tem uma mãe. Eu não tenho nada. Qualquer coisa que você escrever será jóia.”

Muito polidamente, ele pediu-me para sair do quarto. Eu havia conseguido fazê-lo sentir-se estúpido, tendo que ouvir um conselho de um João Ninguém criança. Eu arrependi amargamente de minha explosão. Gostaria que ele continuasse sendo meu amigo.

Antoine tinha um elegante sobretudo cuidadosamente dobrado, dependurado sobre seu ombro direito. Estava usando um lindo terno verde de casimira inglesa.

Minha avó falou. “Você tem que se apressar, querido,” disse ela. “Não tem muito tempo. Tem que ir embora. Se não for, essas pessoas matarão você por causa do dinheiro.”

Ela referia-se às suas irmãs, e respectivos maridos, que estavam mais que furiosos quando descobriram que sua mãe havia deserdado-os às escondidas, e que o hediondo Antoine, o arquiinimigo deles, iria embora levando tudo o que, por direito, lhes pertencia.

“Sinto muito por ter colocado você nesta situação,” desculpou-se minha avó. “Mas, como você sabe, o tempo independe de nossa vontade.”

Antoine falou com sua linda voz modulada. Nunca pareceu tanto com um ator de teatro. “Só vou gastar um minuto, mamãe”, disse ele. “Gostaria de ler algo que escrevi para você.”

Era um poema de obrigados. Quando ele terminou sua leitura, ele fez uma pausa. Havia uma riqueza de sentimentos, um tremor no ar.

“É beleza pura, Antoine”, disse minha avó, suspirando. “Expressa tudo que você queria dizer. Tudo o que eu queria ouvir”. Ela fez uma pausa por um instante. Então seus lábios revelaram um belo sorriso.

“Plágio, Antoine?” perguntou ela.

O sorriso de Antoine, em reposta, era igualmente deslumbrante.

“É claro, mamãe”, disse ele. “É claro”.

Eles se abraçaram, chorando. A buzina do táxi soou mais impaciente ainda. Antoine olhou para debaixo da escada, onde eu me escondera. Balançou levemente a cabeça, como se dissesse, “Adeus. Cuide-se”.

Depois, deu meia volta, e sem olhar de novo para sua mãe, correu em direção da porta. Tinha trinta e sete anos de idade, mas parecia ter sessenta, parecia carregar um peso enorme sobre os ombros.

Parou antes de chegar na porta, quando ouviu a voz de sua mãe admoestando-o pela última vez.

“Não vire para olhar, Antoine”, disse ela. “Não vire para olhar, nunca. Seja feliz, e faça. Faça! Esse é o truque. Faça!”

Tal cena encheu-me de uma estranha tristeza que permanece até hoje – uma melancolia mais que inexplicável que don Juan esclareceu-me como meu conhecimento pela primeira vez de que o tempo acabará.

Tal cena encheu-me de uma estranha tristeza que permanece até hoje – uma melancolia mais que inexplicável que don Juan esclareceu-me como meu conhecimento pela primeira vez de que o tempo acabará para nós.

No dia seguinte minha avó partiu com seu conselheiro/servo/criado pessoal para um local místico chamado Rondônia, onde seu feiticeiro-ajudante iria evocar sua cura. Minha avó era uma doente terminal, embora eu não soubesse disso. Ela nunca retornou, e don Juan explicou que a venda de seus bens e entrega do dinheiro a Antoine foi uma manobra suprema dos feiticeiros, no caso executada pelo seu conselheiro, para desapegá-la do cuidado com a família. Eles ficaram tão furiosos com a ‘mamãe’ pelo que fez que não ligaram se ela voltaria ou não. Fiquei achando que eles nem mesmo perceberam que ela havia ido embora.

No topo daquela montanha achatada, eu recordei-me daqueles três eventos como se eles tivessem acontecido há apenas um instante antes. Quando eu expressei meus agradecimentos para aquelas três pessoas, eu fui bem sucedido em trazê-las para o topo daquela montanha. Quando acabei de gritar, minha solidão era algo inexprimível. Chorava incontrolavelmente.

Don Juan muito pacientemente explicou para mim que a solidão era algo inadmissível para um guerreiro. Ele disse que os guerreiros-viajantes contam com um ser no qual podem focalizar todo o seu amor, todo o seu desvelo: esta Terra maravilhosa, a Mãe, a Matriz, o epicentro de tudo o que somos, de tudo o que fazemos; o próprio ser para o qual todos voltaremos; o próprio ser que permite aos guerreiros-viajantes sair para sua viagem definitiva.

Don Genaro iniciou então uma ato de intento mágico em meu benefício. Deitado sobre seu estômago, ele executou uma série de movimentos deslumbrantes. Ele transformou-se numa bolha de luminosidade que parecia estar nadando, como se o chão fosse uma piscina. Don Juan disse que aquele era o modo pelo qual don Genaro abraçava a imensa Terra, e a despeito da diferença de tamanho, a Terra reconheceu o gesto de don Genaro. Ver os movimentos de don Genaro e ouvir a explicação dos mesmos substituiu minha solidão por uma alegria sublime.

“Eu não suporto a idéia de que você está indo embora, don Juan,” ouvi a mim mesmo dizer. O som de minha voz e o que eu estava falando me fez ficar embaraçado. Quando comecei a soluçar, involuntariamente, por força da auto piedade, senti-me ainda mais envergonhado. “O que há comigo, don Juan?” murmurei. “Eu não sou tão ordinário assim.”

“O que há com você é que sua consciência voltou novamente para o nível dos pés,” replicou ele, rindo.

Perdi então qualquer vestígio de controle e entreguei-me aos meus sentimentos de desespero e rejeição.

“Eu vou ficar sozinho”, disse numa voz estridente. “O que vai ser de mim? O que acontecerá comigo?”

“Vamos colocar o assunto dessa maneira,” disse don Juan calmamente. “Para que eu possa deixar este mundo e enfrentar o desconhecido, necessito de toda a minha força, todo o meu auto controle, toda minha sorte; mas, acima de tudo, necessito de cada pedacinho das entranhas de aço de um guerreiro-viajante. Para permanecer aqui e proceder como um guerreiro-viajante, você necessita de tudo aquilo necessário a mim mesmo. Aventurar-se no além, como irá acontecer conosco, não é graça, como também não é ficar para trás”.

Tive uma explosão emocional e beijei suas mãos.

“Ôh, ôh, ôh!” disse ele. “Daqui a pouco você colocará minhas guaraches num altar!”.

A angústia que tomou conta de mim mudou de auto piedade para um sentimento inigualável de perda. “Você está indo embora!” murmurei. “Meu deus! Indo embora para sempre!”

Neste momento don Juan fez algo comigo que fazia repetidamente desde o primeiro dia que me encontrei com ele. Sua face ficava como que inchada, parecendo que a profunda respiração que ele realizava o tivesse inflado. Ele então batia com força em minhas costas, com a palma de sua mão esquerda e dizia, “Saia dos artelhos! Eleve-se a si mesmo!”

No instante seguinte, eu ficava novamente coerente, completo, controlado. Sabia o que era esperado de mim. Não mais havia nenhuma hesitação de minha parte, ou qualquer preocupação para comigo mesmo. Eu não ligava a mínima para o que aconteceria comigo depois da partida de don Juan. Sabia que sua partida era iminente. Ele olhou para mim, e naquele olhar seus olhos disseram tudo o que havia para ser dito.

“Nunca mais estaremos juntos novamente”, disse ele tranqüilamente. “Você não mais necessita de minha ajuda, e eu não quero oferecê-la para você, porque se você vale o que come, como guerreiro-viajante, irá cuspir em minha cara se eu fizer isso. Além de certo ponto, a única alegria de um guerreiro-viajante é estar só. Eu também não gostaria que você tentasse ajudar-me. Uma vez que eu saia, terei ido embora. Não pense em mim, pois também não pensarei em você. Se você é um guerreiro-viajante de valor, seja impecável! Cuide de seu mundo. Honre-o; guarde-o com sua vida!”

Ele saiu de perto de mim. O momento não comportava auto-piedade, lágrimas ou felicidade. Ele balançou a cabeça como para dizer adeus, ou como se soubesse o que eu sentia.

“Esqueça o ‘self’ e você não irá temer nada, qualquer que seja o nível de consciência em que se encontre”, disse ele.

Ele teve uma explosão de “gozação”. Ele me gozou pela última vez nesta Terra.

“Espero que você encontre seu amor!” disse ele.

Levantou a palma da mão em minha direção e espichou os dedos como uma criança, depois contraiu-os contra a palma.

“Ciao,” disse ele.

Sabia que era fútil sentir-me pesaroso ou sentir remorso por qualquer coisa, e sabia que para mim era tão difícil ficar quanto era para don Juan partir. Nós dois éramos presas de uma manobra energética irreversível, a qual nenhum de nós poderia sustar. Mesmo assim, eu queria juntar-me a don Juan, ir com ele para aonde quer que estivesse indo. O pensamento de que se eu morresse, talvez ele me levaria, cruzou a minha mente.

Eu então vi como don Juan Matus, o nagual, liderou os outros quinze videntes que eram seus companheiros, seus discípulos, seu deleite, um por um, a desaparecer na névoa daquela meseta, em direção ao norte. Eu vi como cada um deles transformou-se numa bolha de luminosidade, e juntos ele ascenderam e flutuaram acima do topo da montanha como luzes fantasmas no céu. Eles fizeram um círculo sobre a montanha, como don Juan dissera que fariam: seu último reconhecimento, apenas para os próprios olhos; seu último olhar para esta Terra maravilhosa. E depois desapareceram.

Eu sabia o que deveria fazer. O tempo acabara para mim. Precipitei-me, correndo o máximo que podia, em direção do abismo e saltei para o precipício. Por um instante senti o vento em minha face, e depois a escuridão mais generosa engoliu-me como um tranqüilo rio subterrâneo.

 

                   A Viagem do Retorno

Eu estava vagamente consciente do roncar alto de um motor que parecia rodar no ponto morto. Pensei que os atendentes estavam consertando um carro no estacionamento existente atrás do edifício onde localizava-se meu escritório/apartamento. O barulho tornou-se tão intenso que acabou por me despertar inteiramente. Eu esconjurei em silêncio os rapazes que dirigiam o estacionamento por consertar uma carro diretamente sob a minha janela. Eu sentia calor, estava suado e cansado. Sentei-me na beirada da cama e comecei a sentir cãibras terríveis em minhas panturrilhas. Esfreguei-as por um momento. Elas pareciam ter contraído-se tão fortemente que era como se eu tivesse sofrido machucões horríveis. Automaticamente dirigi-me ao banheiro procurando por algum ungüento. Não consegui andar. Estava tonto. Caí no chão, algo que nunca me acontecera antes. Quando recuperei um mínimo de controle, notei que não estava nem um pouco preocupado com as cãibras nas panturrilhas. Eu sempre estive perto de ser hipocondríaco. Uma dor incomum nas panturrilhas como a que sentia naquele momento teria, como de costume, deixado-me num estado caótico de ansiedade.

Dirigi-me então para a janela, para fechá-la, embora não mais ouvisse o barulho. Percebi que a janela estava fechada e que estava escuro lá fora. Era noite! O quarto estava abafado. Abri a janela e não consegui entender porque a fechara. O ar da noite estava frio e refrescante. O estacionamento estava vazio. Ocorreu-me que o barulho que ouvira poderia ser de um carro acelerando na viela entre o estacionamento e o meu prédio. Não pensei mais naquilo, e voltei para minha cama para continuar a dormir. Deitei-me atravessado, com os pés para fora. Queria dormir daquele jeito para ajudar na circulação das panturrilhas, que ainda doíam muito, mas não tinha certeza se deveria deixá-las naquela posição ou levantá-las com algumas almofadas.

No momento em que começava a descansar confortavelmente e a dormir de novo, um pensamento passou-me pela cabeça com uma força potente e feroz que me fez ficar de pé num único reflexo. Eu havia lançado-me num abismo no México! O pensamento seguinte que tive foi uma dedução quase lógica: desde que lançara-me num abismo deliberadamente para morrer, deveria ser agora um fantasma. Quão estranho, pensei, retornar sob a forma de um fantasma, para o meu escritório/apartamento na esquina da rua Westwood com Wilshire, em LA, depois de ter morrido. Não era de se estranhar que meus sentimentos mudaram. Mas se eu fosse um fantasma, raciocinei, por que sentira em minha face o ar fresco da noite, ou a dor em minhas panturrilhas?

Passei a mão pelos lençóis de minha cama; pareceram reais para mim. O mesmo aconteceu com as partes metálicas da cama. Fui ao banheiro. Olhei a mim mesmo no espelho. Pela minha imagem, eu parecia mesmo um fantasma. Minha aparência era horrível. Meus olhos estavam fundos, com enormes círculos pretos sob eles. Eu estava desidratado, ou morto. Numa reação automática, bebi água diretamente da torneira. Eu podia realmente engolir a mesma. Bebi gole após gole, como se não bebesse água por muitos dias. Senti minha inspirações profundas. Estava vivo! Por deus, estava vivo! Sabia sem sombra de dúvida, mas não estava exultante, como deveria estar.

Um pensamento o mais estapafúrdio possível cruzou minha mente: eu já morrera e revivera antes. Estava acostumado com isso; não significava nada para mim. A vivacidade do pensamento, entretanto, fez com que parece quase uma recordação. Era uma quase recordação que não era fruto de nenhuma situação na qual minha vida corresse perigo. Era algo bastante diferente disso. Era mais um conhecimento vago de algo que nunca acontecera e que não tinha nenhuma razão, fosse qual fosse, para estar em meus pensamentos.

Não havia nenhuma dúvida em minha mente que saltara num abismo no México. Estava agora em meu apartamento em LA, a mais de três mil milhas do lugar onde saltara, sem absolutamente nenhuma recordação de ter feito uma viagem de volta. De modo automático, eu abri a torneira da banheira e sentei-me nela. Não senti a água quente; eu estava frio até os ossos. Don Juan ensinara-me que nos momentos de crise, como aquele, a água corrente deve ser usada come elemento de purificação. Lembrei-me disso e entrei debaixo do chuveiro. Deixei a água morna correr sobre o meu corpo talvez por mais de uma hora.

Queria pensar calma e racionalmente sobre o que me acontecera, mas não consegui. Os pensamentos pareciam ter sido apagados de minha mente. Não tinha nenhum pensamento embora estivesse cheio até a borda de sensações que vinham até meu corpo em enxurradas que me eram impossíveis de ser examinadas. Tudo de que era capaz era sentir sua investida e deixar que percorressem todo o meu corpo. A única escolha consciente que fiz foi vestir-me e sair. Fui tomar o café da manhã, algo que sempre fazia a qualquer hora do dia ou da noite, no restaurante Ship’s, em Wilshire, a uma quadra de distância do meu escritório/apartamento.

Havia percorrido a distância entre meu escritório e o restaurante Ship’s por tantas vezes que conhecia cada passo do caminho. A mesma caminhada desta vez foi uma novidade para mim. Não sentia meus passos. Era como se eu tivesse almofadas sob os pés, ou como se o passeio fosse atapetado. Eu praticamente planei. Eu estava de repente na porta do restaurante depois de, segundo pensei, dar apenas o que poderia ser uns dois ou três passos. Sabia que poderia engolir alimentos porque havia bebido água em meu apartamento. Também sabia que poderia falar porque havia limpado a garganta e xingado enquanto a água corria sobre mim. Entrei no restaurante como sempre fazia. Sentei no balcão e uma garçonete que eu conhecia veio até mim.

“Você não parece estar bem hoje, querido,” disse ela. “Está gripado?”

“Não”, repliquei, tentando parecer animado. “Tenho trabalhado muito. Estou acordado por vinte e quatro horas, escrevendo sem parar um trabalho de aula. Por falar nisso, que dia é hoje?”

Ela olhou para seu relógio e me informou a data, explicando que tinha um relógio especial que era também calendário, presente de sua filha. Informou-me também as horas: 3:15 da manhã.

Pedi um bife com ovos, batatas douradas, e torradas brancas com manteiga. Quando ela afastou-se para providenciar o meu pedido, outra onda de horror inundou minha mente: teria sido apenas uma ilusão que eu pulara num abismo no México, no crepúsculo do dia anterior? Mas mesmo se o salto fosse uma ilusão, como teria eu voltado para LA, de um lugar tão distante em apenas dez horas depois? Será que eu dormira por dez horas? Ou será que demorei apenas dez horas para voar, deslizar, flutuar, ou o que for, até LA? Ter viajado pelos meios convencionais até LA do lugar onde saltara no abismo estava fora de cogitação, desde que demoraria dois dias apenas para chegar até a Cidade do México do lugar onde eu saltara.

Outro pensamento estranho emergiu em minha mente. Tinha a mesma claridade de minha quase recordação de ter morrido e revivido antes, e a mesma qualidade de ser totalmente alheio para mim: minha continuidade rompera sem possibilidade de restabelecimento. Eu tinha realmente morrido, de um modo ou de outro, no fundo daquele abismo. Era impossível compreender como estava vivo, tomando meu desjejum no restaurante Ship’s. Era impossível para mim olhar para atrás no meu passado e ver a linha contínua dos eventos como acontece com todos nós quando olhamos para o passado.

A única explicação disponível para mim referia-se ao que don Juan dissera; eu havia movido meu ponto de aglutinação para uma posição que impedia minha morte e, do meu silêncio interior, eu fizera a viagem de retorno a LA. Não havia nenhuma outra explicação racional em que eu pudesse me agarrar. Pela primeira e única vez, essa linha de pensamento era inteiramente aceitável para mim, e inteiramente satisfatória. Ela realmente nada explicava, mas certamente apontava para um procedimento pragmático que eu testara antes de uma forma mais simples quando encontrei don Juan naquela cidade que escolhemos, e esse pensamento colocava todo o meu ser em tranqüilidade.

Pensamentos vívidos começaram a surgir em minha mente. Tinham a qualidade ímpar de esclarecer certos assuntos. O primeiro a surgir tinha a ver com algo que me perseguia há longo tempo. Don Juan dissera que se tratava de uma ocorrência comum entre os feiticeiros do sexo masculino: minha incapacidade de recordar eventos que aconteceram quando eu estava no estado de consciência intensificada.

Don Juan havia esclarecido-me que consciência intensificada era fruto de um diminuto deslocamento do meu ponto de aglutinação; sempre que ia vê-lo, ele provocava tal deslocamento, apertando minhas costas com força. Provocando tais deslocamentos, ele ajudava-me a engajar campos de energia que ordinariamente estavam na periferia de minha percepção. Em outras palavras, os campos de energia que usualmente encontram-se na borda do meu ponto de aglutinação tornam-se centralizados no mesmo com o deslocamento. Um deslocamento dessa natureza tinha duas conseqüências para mim: uma agudeza extraordinária de pensar e perceber, e a incapacidade de recordar, quando voltava à minha condição normal de percepção, o que havia transpirado quando encontrava-me naquele outro estado de percepção.

Meu relacionamento com meu grupo era um exemplo dessas duas conseqüências. Eu tinha um grupo, os outros aprendizes de don Juan, companheiros de minha viagem definitiva. O meu relacionamento com eles era sempre realizado em estado de consciência intensificada. A claridade e o escopo de nossa interação era supremo. A falha para mim era que em minha vida normal do dia-a-dia eles eram apenas quase memórias pungentes, que me levavam ao desespero por causa da ansiedade e expectativa. Posso dizer que vivia minha vida normal num estado de perene expectativa de encontrar-me com alguém que iria aparecer de uma hora para outra em minha frente, talvez emergindo de um prédio de escritórios, talvez dobrando uma esquina e trombando comigo. Para qualquer lugar que fosse, meus olhos perscrutavam tudo ao meu redor, incessante e involuntariamente, procurando pessoas que não existiam, mas que ainda assim existiam como nenhuma outra.

Enquanto estava sentado naquela manhã no Ship’s, tudo que acontecera comigo quando no estado de consciência intensificada, em seus mínimos detalhes, durante toda a minha associação com don Juan tornou-se novamente numa memória contínua, sem interrupção. Don Juan havia lamentado que o feiticeiro do sexo masculino que forçosamente era nagual tinha que ser fragmentado por causa da grande quantidade de sua massa energética. Ele disse que cada fragmento vivia uma parcela específica de um escopo total de atividade, e que os eventos que ele experienciava em cada fragmento teriam que ser reunidos, algum dia, para dar uma imagem consciente e completa de tudo o que acontecera em sua vida total.

Olhando-me nos olhos, ele disse-me que essa unificação leva anos para ser completada, e que ele sabia de casos de naguais que nunca atingiram o escopo de suas atividades de maneira consciente e viviam fragmentados.

O que eu experimentara naquela manhã no Ship’s era algo que ultrapassava tudo o que eu imaginara em minhas fantasias mais disparatadas. Don Juan dissera para mim que o mundo dos feiticeiros não era um mundo imutável, onde a palavra é algo final, definitivo, mas que é um mundo de eterna flutuação, onde nada poderia ser considerado como garantido. O salto no abismo modificara minha cognição tão drasticamente que permitia naquela hora o surgimento de possibilidades tanto portentosas quanto indescritíveis.

Mas qualquer coisa que eu poderia ter dito sobre a unificação de meus fragmentos cognitivos seria ofuscado pela realidade da mesma. Naquela manhã decisiva do Ship’s eu experimentei algo infinitamente mais potente que o ocorrido naquele dia em que vi a energia como flui no universo pela primeira vez – o dia em que fui parar em minha cama no meu escritório/apartamento depois de estar no campus da UCLA sem realmente ir para casa pelo modo que o meu sistema de cognição exigia para que a totalidade de qualquer evento fosse real. No Ship’s, eu integrei todos os fragmentos do meu ser. Agira em cada um deles com consistência e certeza perfeitas, e ainda assim eu não tinha nenhuma idéia de que agira daquela maneira. Eu era, em essência, um quebra-cabeça gigante, e encaixar cada peça em seu lugar produzia um efeito que não tinha nome.

Transpirando profusamente, ponderando inutilmente, e fazendo a mim mesmo, obsessivamente, perguntas que não podiam ser respondidas, permaneci sentado no balcão do Ship’s. Como pôde ter acontecido tudo aquilo? Como pude eu ter sido fragmentado daquela maneira? Quem, realmente, somos nós? Certamente que não somos aquilo a que todos nós fomos levados a crer que éramos. Lembrava de eventos que nunca aconteceram, no que diz respeito a alguma parte de meu cerne. Não podia nem mesmo chorar.

“O feiticeiro chora quando está fragmentado”, dissera don Juan certa vez para mim. “Quando está completo, ele é tomado por um calafrio que tem o potencial, por causa de sua intensidade, de acabar com sua vida”.

Eu estava sentindo tal calafrio! Duvidava que fosse encontrar minha coorte novamente. Parecia que todos eles haviam partido com don Juan. Eu estava só. Queria pensar naquilo, lamentar minha perda, mergulhar numa tristeza que me satisfizesse, do modo que sempre aconteceu comigo. Não conseguia. Não havia nada para ser lamentado, nada que pudesse causar-me tristeza. Nada importava. Todos nós éramos guerreiros-viajantes, e todos nós havíamos sido engolidos pelo infinito.

Durante todo o tempo do nosso relacionamento, ouvira don Juan falar sobre os guerreiros-viajantes. Gostara imensamente da descrição, e identificara-me com ela numa base puramente emocional. Ainda assim, eu nunca sentira o que ele realmente queria dizer, a despeito das muitas e muitas vezes em que ele explicara-me seu significado. Naquela noite, no balcão do Ship’s, descobri o significava aquilo sobre o qual don Juan sempre falara. Eu era um guerreio-viajante. Apenas os fatos energéticos tinham significado para mim. Todo o resto eram aparas que não possuíam importância alguma.

Naquela noite, enquanto esperava por meu alimento, outro pensamento vívido irrompeu na minha mente. Senti uma onda de empatia, uma onda de identificação com as premissas de don Juan. Finalmente eu atingira o alvo de seus ensinamentos: era um com ele, como nunca fora antes. Nunca foi o caso de eu estar apenas lutando contra don Juan ou contra seus conceitos, que eram revolucionários para mim por não preencherem a linearidade de meus pensamentos como homem do ocidente. Em vez disso, o que acontecia era que a precisão com que don Juan apresentava seus conceitos sempre assustava-me até quase a morte. Sua eficiência parecia ser um dogmatismo. Foi essa semelhança que me forçou a procurar elucidações, e que me fez agir, o tempo todo, como se fora um crente relutante.

Sim, eu lançara-me num abismo, disse a mim mesmo, e não morri porque antes de atingir o fundo daquela ravina eu deixara o mar escuro da consciência engolir-me. Rendi-me a ele, sem medos ou remorsos. E aquele mar escuro havia suprido-me com o que quer que fosse necessário para que eu não morresse, mas que terminasse em minha cama em LA. Essa explicação nada explicaria para mim dois dias antes. Às três da manhã, no Ship’s, significava tudo para mim.

Bati minha mão no balcão como se estivesse sozinho naquele lugar. As pessoas olharam para mim e sorriram intencionalmente. Eu não liguei. Minha mente estava focalizada num problema insolúvel: eu estava vivo a despeito de ter me lançado num abismo, dez horas antes, para morrer. Sabia que tal dilema nunca poderia ser resolvido. Minha cognição normal exigia uma explanação linear para que ficasse satisfeita, e uma explanação linear era impossível. Esse era o ponto crucial da interrupção da continuidade. Don Juan dissera que tal interrupção era feitiçaria. Naquele momento entendi o que ele queria dizer, e entendi tão claramente como podia. Como don Juan tinha razão quando disse que, para que eu ficasse para trás, necessitava de toda minha força, todo meu controle, e acima de tudo, as entranhas de aço de um guerreiro-viajante.

Queria pensar em don Juan, mas não conseguia. Além disso, naquele momento, don Juan não era mais nem um pouco importante para mim. Parecia existir uma barreira gigante entre nós. Acreditei realmente, naquele momento, que o pensamento de fora que se insinuava para dentro de mim, desde o momento que eu acordara, era verdadeiro: eu era um outro alguém. Uma mudança acontecera comigo no momento do meu pulo. Se assim não fosse, eu teria apreciado pensar a respeito de don Juan; teria sentido saudades dele. Até mesmo teria sentido uma pontada de ressentimento porque ele não me levara consigo. Assim teria reagido meu “eu” normal.

Um novo estado de espírito tomou conta de mim. Don Juan deixara em meu interior um sonho que foi o seu agente provocador. Senti que meu corpo começou a perder a rigidez; tornou-se flexível, de grau em grau, até que eu pude respirar livre e profundamente. Dei uma risada alta. Não liguei quando as pessoas olharam-me, desta vez sem sorrir. Estava só e não havia nada que pudesse fazer a respeito!

Tive a sensação física de estar realmente atravessando uma passagem, uma passagem que tinha força própria. Ela puxava-me. Era uma passagem silenciosa. Don Juan era tal passagem, quieta e imensa. Essa foi a primeira vez, em toda minha vida, que senti que don Juan era vazio de matéria física. Não havia espaço para sentimentalismo ou saudade. Não havia nenhuma possibilidade para mim de sentir sua falta pois ele ali estava como uma emoção despersonalizada que atraía-me para si.

A passagem desafiou-me. Tive a sensação de excitamento, de bem estar. Sim, eu poderia atravessar essa passagem, só ou acompanhado, talvez para sempre. E fazer isso não era uma imposição para mim, e nem era motivo de prazer. Aquilo era mais que o início da viagem definitiva, o destino inevitável de todo guerreiro-viajante, era o início de uma nova era. Eu deveria estar chorando por ter percebido que encontrara a passagem, mas não estava. Eu estava de frente para o infinito no Ship’s! Que extraordinário! Senti um frio nas costas. Ouvi a voz de don Juan dizendo que o universo é realmente insondável.

Nesse momento a porta dos fundos do restaurante, a que dava para o estacionamento, abriu-se e então surgiu uma figura estranha: era um homem, talvez com quarenta e poucos anos, descabelado e macilento, mas com feições bastante bonitas. Eu sempre o vira, perambulando pelos arredores da UCLA, no meio dos estudantes. Alguém dissera-me que ele um paciente externo do Hospital dos Veteranos, existente nas proximidades. Ele parecia ser mentalmente desequilibrado. Eu o vira vezes e vezes no Ship’s, aconchegado ao redor de uma xícara de café, sempre no mesmo canto do balcão. Também vira como ele ficava esperando do lado de fora, olhando pela janela, até que seu banco preferido, quando usado por alguém, ficasse desocupado.

Quando ele entrou no restaurante, assentou-se no seu banco costumeiro e depois olhou para mim. Nossos olhos se encontraram. A primeira coisa que percebi em seguida, foi que ele soltou um tremendo grito, que me gelou até os ossos, bem como a todos os presentes. Todo mundo olhou para mim, com os olhos arregalados, alguns com a boca cheia de comida. Obviamente todos pensavam que fora eu quem gritara. Eu havia estabelecido os precedentes, batendo no balcão e rindo alto sozinho. O homem saltou de seu tamborete e correu para fora do restaurante, virando-se para me ver, enquanto fazia com as mãos gestos agitados sobre a cabeça.

Não resisti a um forte ímpeto e corri atrás dele. Queria perguntar-lhe o que vira em mim para gritar daquele jeito. Alcancei-o no estacionamento e perguntei-lhe por quê gritara. Ele tapou os olhos e gritou, mais alto ainda. Era como uma criança, assustada por um pesadelo, berrando tanto quanto seus pulmões permitiam. Deixe-o e voltei para o restaurante.

“Que aconteceu com você, querido?” perguntou a garçonete com um ar preocupado. “Pensei que você estivesse fugindo de mim”.

“Eu apenas fui ver um amigo”, disse eu.

A garçonete olhou para mim e fez um gesto que era um misto de aborrecimento, zombaria e surpresa.

“Aquele cara é seu amigo?” perguntou ela.

“É o único amigo que tenho no mundo”, disse eu, e era verdade, desde que eu pudesse definir “amigo” como alguém que vê através do verniz que nos cobre e sabe de onde nós realmente viemos.

 

                                                                                 Carlos Castañeda  

 

                      

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